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A teologia de Marx explicada às crianças*

Marx’s Theology Explained to Children


José Crisóstomo de Souza**

Resumo: A doutrina de Marx pode ser entendida como uma so-


breposição de quatro camadas de pensamento. 1) Um interessante,
embrionário, materialismo prático, secularizado, moderno, que
demanda recuperação e desenvolvimento em nossos dias em diá-
logo com aquisições da filosofia prática contemporânea. 2) Um
materialismo histórico, lamentavelmente esquemático, dualista,
determinista, cripto-normativo, com todo jeito de filosofia idealista
da história, do qual sua crítica do capitalismo é o capitulo decisivo
- um materialismo que poderia ter sido uma melhor conversão de
Hegel para fora do idealismo e da metafísica. 3) Um humanismo
especulativo, do ser-genérico, que assume a critica feuerbachiana
do cristianismo como seu pressuposto/fundamento, junto como o
próprio cristianismo (feuerbachianamente traduzido), um que toma
como medida e telos a plena reunificação da sociedade como verda-
deiro corpo político. Esse humanismo especulativo, para desespero
dos que percebem sua debilidade, v.g. Althusser, nunca é abandonado
por Marx nem pelos marxistas tradicionais, embora seja desenvolvido
por Marx, na crítica da economia politica, como “determinação pelo
nível essencial”, efetivamente social, uma determinação mascarada,
por trás de uma “aparência real” onde toda liberdade e particulari-
dade é ilusão. Aqui nesse texto nos ocuparemos principalmente do
ponto três.
Palavras-chave: cristianismo. alienação. tradução (da teologia em an-
tropologia). essência humana genérica. fundamento transcendental-
normativo. corpo místico-politico.

* A parte II deste artigo apresenta uma versão modificada da conclusão do meu Teses ad Marx: Para uma crítica
ao (não-)pragmatismo de Marx, Cognitio (PUCSP), v. 13, n.1, jan.-jun. São Paulo: 2012, pp. 115-144. A parte
III é uma versão modificada e ampliada do meu "Do Corpo Político ao Corpo Social: o Corpo Transpessoal em
Karl Marx", Revista da Bahia, v. 5, n. 19, p. 60-63, 1980. O leitor interessado no assunto do presente texto pode
querer dar uma olhada também nos nossos "A Filosofia Marxiana da História como Selbsterzeugung do Homem",
em Santos, A. C. História e Ação. São Cristóvão: Ed. UFS, 2006, e "Materialismo e Moral em Friedrich Engels: uma
confusão do século XIX", em Ideação, UEFS, n. 1 (set.), Feira de Santana, 1997, pp. 53-58.
** O autor é professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com estágios de pós-doutorado na Uni-
versidade da Califórnia (Berkeley) e na New School (New York).

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JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA

Abstract: Marx’s doctrine can be understood as a superposition of


four layers of thought. 1) An interesting, embryonary, practical ma-
terialism, secularized, modern that demands to be recovered and de-
veloped for our days, in dialogue with practical acquisitions of con-
temporary philosophy. 2) an, alas, schematic, dualistic, deterministic,
crypto-normative, historical materialism, in all likelihood an idealis-
tic, dogmatic philosophy of history, of which Marx’s critique of capita-
lism is the decisive chapter – a materialism that could be made into a
better transformation of Hegel away from idealism and metaphysics.
3) A speculative humanism, of species-being, that assumes the Feuer-
bachian critique of Christianity as its presupposition/foundation, to-
gether with Christianity itself (feuerbachianly “translated”), and that
takes, as its measure and telos the total reunification of society as the
true mystical-political body of Man. This humanism, for the despair
of those which see it and understand its inconsistency, v.g. Althusser,
is never really abandoned by Marx and traditional Marxists, although
it is further developed by Marx, especially in his critique of politi-
cal economy, behind the mask of a unifying determination by the es-
sential - effectively social - level that underlies a level of “real appea-
rence” where all kinds of freedom and particularity are illusions. Here
we will particularly focus on point three.
Key words:Christianity. alienation. translation (of theology into anth-
ropology). human species-essence. transcendental-normative foun-
dation. mystical-political body.

Parte 1 - Humanismo e Comu- menos levanta a conclusão de que,


nismo como negação/realização superado do Cristianismo, a polí-
do Cristianismo tica deve agora passar a ser a nossa
verdadeira religião. O “segundo
No precioso “Feuerbach e o violino” de Marx não vê nisso qual-
Fim (Ausgang) da Filosofia Clás- quer risco ou problema, antes pelo
sica Alemã”, Friedrich Engels lem- contrário, e nós próprios não va-
bra, com aprovação, que o autor mos aqui enfrentar diretamente
da Essência do Cristianismo, ape- essa questão, de se é bom ou ruim
sar das alegadas insuficiências nor- que a política seja entendida a sé-
mativas de seu humanismo ateísta- rio como religião (a mim me pa-
naturalista para um ativismo revo- rece péssimo). Mas vamos, não
lucionário de tipo jacobino, pelo obstante, explorar o tema da pro-
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ximidade e até eventual implica- ainda que nossa essência seja defi-
ção entre o Cristianismo e o novo nida como o conjunto de nossas re-
ponto de vista materialista histó- lações sociais, fundamentalmente
rico, ateu, de Marx e Engels. O aquelas desenvolvidas na ativi-
que envolve a pergunta por qual dade prático-produtiva, conformes
é mesmo a compreensão marxi- ao grau de desenvolvimento dos
ana da religião em geral e do cris- objetos /instrumentos que lhe dão
tianismo em particular, incluído suporte, e de acordo com nossa
aí o protestantismo, e por qual é própria compleição corpórea, a do
mesmo a relação (de negação, que organismo que somos. Ao mesmo
seja), para Marx, entre as duas coi- tempo, em associação com isso,
sas: sua concepção e a do cristi- Marx propõe – pelo lado episte-
anismo. O que no fim de contas mológico desse materialismo - que
tem a ver, na minha opinião, com a a objetividade de nosso conheci-
pergunta pelo fundamento forte da mento seja entendida não como
forte dimensão normativa do pen- algo a ser resolvido na teoria (o
samento do autor de O Capital. que para ele seria escolástico), mas
Marx é certamente várias coisas, a ser demostrada na prática. E,
entre elas um materialista prático para culminar esse materialismo
(como ele se autodenomina aí por prático, propõe que a própria ver-
1845-46), junto com - é o que em dade de um pensamento seja com-
geral primeiro se concebe - mate- preendida como sua efetividade e
rialista histórico e dialético. Como poder, justamente demonstrados,
autodenominado materialista prá- de novo, na mesma prática.
tico, e essa é a parte de Marx de que Nosso materialista prático en-
no momento mais gosto, ele pro- tende ainda que é a nossa existên-
põe que a realidade seja apreen- cia (social, prática) que determina
dida não apenas como objeto mas a nossa consciência, e que mesmo
em primeiro lugar como atividade nossas concepções gerais sobre as
prática sensível e como processo, coisas correspondem a pontos de
enquanto propõe que nós próprios, vista (Standpunkten) - práticos, so-
também, sejamos entendidos como cialmente engendrados. Isto é, ele
atividade sensível e como histó- entende, que nosso ser prático e
ricos, como prática. Ele defende social, ativo-produtivo, está ine-

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vitavelmente por trás de nossos gico. Mas como uma teoria social,
pontos de vista, mesmo os mais econômica e histórica abrangente,
filosóficos. Tudo isso para, ao fi- pretensamente científica, uma Ci-
nal, declarar com todas as letras, ência da História e em primeiro lu-
na Ideologia Alemã, de jeito sur- gar do Capitalismo, que incluiria
preendente para quem começa tão com destaque a descoberta da lei
prático, que esse materialismo prá- de sua gênese, desenvolvimento,
tico é sinônimo de comunismo. Ou colapso e superação, o princípio de
seja, que sua compreensão materi- seu funcionamento, de seus efei-
alista e prática, do que somos nós tos e de sua passagem. A obra O
e são as coisas, e do que é conhe- Capital aparece então como o ca-
cimento, conduz a uma conclusão pítulo principal e mais elaborado
prescritiva, comunista, e deveria do materialismo histórico ofere-
orientar a realização desse grande cido por Marx, esse materialismo
Ideal normativo, como um Bem histórico aparecendo como uma
admirável e final: o Comunismo. narrativa geral, com todo jeito de
Quem sabe, também vice-versa: filosofia da história. Ou seja, O Ca-
a declarar que sua posição comu- pital aparece como parte da nar-
nista ativista, revolucionária e ra- rativa de uma sucessão encadeada
dical, pede o materialismo prático de estágios históricos progressiva-
que ele então formula, para tanto mente superiores, que correspon-
devendo ir além do materialismo deriam a diferentes modos de pro-
e do humanismo menos ativistas dução, desde a comunidade primi-
de Feuerbach. E isso tudo quando, tiva original até o Comunismo fi-
paradoxalmente, tal materialismo nal. O qual aparece como o único
– prático-produtivo, poiético - pa- e verdadeiro fim do Capitalismo, e
rece ser a parte mais secularizada, também como Reino da Liberdade,
mais laica, menos especulativa, fim da Pré-História do Homem e
mais empirista, de sua concepção. do Reino da Necessidade. Quase
O marxismo, porém, aparece, como Fim dos Tempos e completa
de saída, e para mais gente, não reconciliação dos homens entre si,
simplesmente como um materia- com seu mundo e com a natureza.
lismo prático geral, digamos, onto- Enfim, o Comunismo como nada
lógico, antropológico e epistemoló- menos do que, diz Marx em outra

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parte, “o Enigma resolvido da His- de Bíblia do Proletariado, consti-


tória”. tui uma posição filosófica, junto
Por toda essa abrangência teó- com econômica, política e até cul-
rica, a Crítica da Economia Polí- tural, sobre o que está eminente e
tica, de O Capital, e a Teoria So- centralmente errado com o Mundo
cial (o materialismo histórico, dia- e sobre o que daí cabe fazer nele
lético) que a emoldura, mostram- e com ele. O que não é pouca
se como um pensamento também coisa para o pensamento em geral,
filosófico, talvez até bem mais do quanto mais para a ciência em par-
que isso. Eles deixam transpare- ticular.
cer esse escopo mais largo, em pri- Conforme entendo, O Capital de
meiro lugar, por seu alcance nor- Marx, chega a nada menos do que
mativo, como Crítica - não ape- estabelecer como materialmente
nas da economia política mas da (realmente, objetivamente) conde-
inteira Civilização moderna, como nado o que é também moralmente
dito em prefácio da magna obra. O condenável (a injustiça, a explora-
Capital mostra-se então como Teo- ção) - uma façanha que não se via
ria Crítica, desveladora de alega- no pensamento ocidental desde o
dos escamoteamentos (da explo- fim da compreensão teocêntrica do
ração do trabalho, do seu cará- mundo. Em linha semelhante, o
ter social, etc.). Escamoteamen- envolvimento de Marx com a ló-
tos esses engendrados no jogo en- gica dialética de Hegel, destacado
tre superfície-aparência e fundo- no mesmo Capital e também fora
essência, aos quais sucumbe a dele, explica-se não por ser ela ape-
economia política burguesa, mas nas, com seu particular aparato
que pertencem também ao próprio conceitual encadeador, um suposto
funcionamento objetivo do capi- novo e superior organon da Ciência
talismo. Por esse alcance norma- e da Crítica. Mas, para bom en-
tivo maior (além de desvelador de tendedor, por ela se oferecer como
segredos), como matriz de toda lógica da Emancipação (álgebra da
a Teoria Crítica alemã posterior Revolução, como disse Trotsky), ou
(junto com os Manuscritos Econô- seja, lógica da passagem da Subs-
micos e Filosóficos), é que aquele li- tância a Sujeito, passagem que é o
vro de economia, que foi chamado fulcro da narrativa histórica que

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Marx em última análise propõe, losóficos, de 1844. Refiro-me ao


além de parte principal da Grande seu sedutor humanismo especula-
Lógica de seu mestre idealista es- tivo do homem como ser-genérico
peculativo. Sempre a implicação (Gattungswesen), dele como essen-
normativa, de tipo transcendental. cialmente trabalho, e deste como
O fato é que nos parece que aí pelo nosso universal ser-um-para-o-
século XIX havia essa inclinação outro. Aqui me refiro também à
a tomar implausivelmente a ciên- correlata crítica da alienação/ de-
cia como co-extensiva com a reli- sumanização do homem (e do tra-
gião: o que a religião prometeu e balho) no mundo da propriedade
a filosofia não cumpriu, a ciência privada e da produção mercan-
(como ateísmo) realizará. E certa til capitalista. E àquilo que Marx
ambiciosa noção clássica alemã de propõe, de início em chave assu-
Wissenschaft (com Ciência, Teoria, midamente essencialista e ética,
Crítica) seria particularmente ade- sob o nome de humanismo real,
quada a essa pretensão, exemplar- emprestado de Feuerbach. Como
mente nutrida por Marx. uma aplicação/ transposição do
Há ainda, entretanto, uma ter- feuerbachianismo (ou seja, da cri-
ceira coisa que é Marx, e, nesse tica/conversão feuerbachiana do
caso, algo de sentido normativo cristianismo em humanismo co-
mais aberto, e idealista mais explí- munitarista, por recurso à fórmula
cito, a concepção que ele primeiro de inversão sujeito-objeto), à crí-
assumiu (depois de abandonar, na tica do Estado e logo da Economia,
esteira de Feuerbach, o hegelia- como fica claro nos seus textos nos
nismo e o republicanismo hegeli- Anais Franco-Alemães e no seu ma-
ano iniciais, e a ênfase baueriana nuscrito Crítica da Doutrina do Es-
na auto-consciência): Marx huma- tado de Hegel.
nista, filósofo de um humanismo Quando Marx diz que a crítica
pós-hegeliano, naturalista, mate- da religião é o começo de toda
rialista e ateu, de forte inspiração crítica, ele está se referindo à crí-
feuerbachiana, exposto nos seus ar- tica do Cristianismo feita por Feu-
tigos dos Anais Franco-Alemães e, erbach, que conclui que na raiz
de modo sistemático, nos chama- (mesmo da religião) está “o ho-
dos Manuscritos Econômicos e Fi- mem” (genérico). E é essencial-

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mente essa chave de crítica feuer- ria da história e críti9ca da econo-


bachiana do Cristianismo e de seu mia política.
Deus (que Feuerbach “traduz” em Essas três identidades, ou quem
Homem/Humanidade como Ser sabe camadas de pensamento, de
Supremo) que Marx leva para a crí- Marx, quais sejam: 1) humanista
tica do conjunto da realidade do da desalienação do homem, 2) ma-
seu/nosso tempo, a Modernidade, terialista prático-comunista, e 3)
o Capitalismo. De todo modo, de- teórico crítico da história, da soci-
pois da conversão feuebachiana da edade e da economia, isto é, da ne-
Teologia em antropologia, do Cris- gação determinada do capitalismo,
tianismo em humanismo, teríamos estão bastante entrelaçadas na sua
com Marx finalmente um mais efe- obra, e – pace Althusser - parecem
tivo e verdadeiro humanismo, real, acompanhar a elaboração inteira
integral, estendido como crítica da do seu pensamento. Um pensa-
economia política burguesa, uma mento que tem, ele todo, como
crítica que nos compromete com procuramos apontar, um forte ca-
a restauração da unidade e intei- ráter normativo ou ideal, e tam-
reza harmônicas dos homens, pela bém, aqui e ali, junto com isso,
transformação, digamos, “desin- uma visível dimensão especula-
dividualista” e “redentora” – co- tiva, quiçá teológica - alemã em
munista - da economia. Uma con- todo caso. O que é de se esperar,
cepção, esse humanismo real, que, não apenas porque o marxismo se
entretanto, aos poucos foi-se mos- põe como o herdeiro da filosofia
trando, para Marx, ainda inade- clássica alemã, aí compreendido
quada para sustentar uma posição Hegel, e porque propõe-se nada
ativista, além de difícil de carre- menos do que consumar a reali-
gar, por seus compromissos aberta- zação de toda a filosofia anterior,
mente idealistas e sentimentais no à qual poria fim. Mas também
nível da teoria. Compromissos, en- porque nasce de um contexto no
tretanto, bem mais modestos, de- qual as discussões e referências es-
flacionados, em Feuerbach, do que peculativas, teológicas e religiosas
no pensamento de Marx como se tem uma influência enorme, im-
configurou em seguida, como ma- pregnante. Não só porque a Ale-
terialismo histórico dialético, teo- manha é o país de Lutero e da Re-

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forma Protestante, das apocalípti- (aquele que mais anunciou o Mes-


cas guerras camponeses e dos em- sias e mais denunciou a injustiça
penhados embates de pensamento social e a falsa religião), e que pre-
que se lhe seguiram, e porque a fi- tendia ingressar na carreira uni-
losofia alemã, para muita gente e versitária, pela mão de Bauer, ofe-
até mesmo o próprio Marx, traz a recendo de saída um curso sobre
marca dominante dessa herança. teologia kantiana. Nem esque-
Mas em razão, também, do próprio çamos, por fim, que Engels em
contexto filosófico mais imediato, dado momento escreveu a Marx
pessoal, de Marx, ou seja, de sua propondo que Thomas Münzer –
biografia. proto-teólogo da libertação, pro-
Não esqueçamos, para começo feta da realização do Reino de Deus
de conversa, que, para Hegel, sua na Terra e apocalíptico líder re-
filosofia (como ápice da filosofia) belde nas Guerras Camponesas -
e o cristianismo reformado (como fosse entronizado entre os “santos”
ápice dessa que é a “religião abso- do proletariado.1
luta”) dizem a mesma coisa, têm Isso tudo, porém, no fim de con-
o mesmo conteúdo - apenas ex- tas apenas um agregado de fa-
presso, na filosofia, na forma do tos sintomáticos mas soltos, é se-
conceito, e, na religião, na forma cundário em relação a uma pers-
da imagem, da representação, da pectiva histórica contextualizante
alegoria. Não esqueçamos tam- mais articulada, sobre o pensa-
pouco que Marx teve como seu mento de Marx. Sem falar da ou-
principal mentor, formador, de sua tra, mais conceitual, menos his-
juventude, ninguém menos do que tórica, que vamos apresentar no
o teólogo hegeliano, depois radica- resto desse artigo, nas suas duas
líssimo intelectual jacobino, Bruno partes seguintes, dois e três. O
Bauer. Nem esqueçamos que nosso ateísta movimento jovem hegeli-
materialista ateu fez na universi- ano, ou hegeliano de esquerda, de
dade curso sobre o profeta Isaias que Marx e Engels, também Feu-

1 O leitor pode sentir falta, nessa parte I, de referências para algumas de minhas afirmações, porém elas es-
tão dadas nas partes II e III, onde as mesmas questões serão retomadas de modo desenvolvido. Fora disso, mais
referências para as posições que defendo aqui estão dadas em diversos outros artigos meus sobre assuntos afins,
oferecidas na Referência ao final do artigo.

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erbach e Bauer, fizeram parte, co- como tradução ou conversão hu-


meça (como registra Marx, e ainda manista do Cristianismo, como
Nietzsche, que para mim faz igual- passagem da Teologia a uma An-
mente parte dele) com a obra do tropologia (filosófica, normativa)
teólogo liberal, e logo herético, Da- que lhe tome o lugar, envolvendo
vid Strauss, A Vida de Jesus criti- também, como já disse, a passa-
camente examinada. A esquerda gem da ideia / ideal de salvação
hegeliana começa justamente por individual à de salvação coletiva.
algo como um humanismo pan- Ou seja, a salvação ou emancipa-
teísta, naturalista, monista, ima- ção (nome para coisa semelhante)
nentista, em que o Ser Supremo do indivíduo agora como ser es-
da religião passa a ser entendido sencialmente social, genérico, co-
abertamente como sendo a Huma- munitário em sentido o mais pleno
nidade. Um humanismo em que a e forte, no interior da – e pela en-
encarnação de Deus ou do Divino trada na – sociedade, na perspec-
no mundo passa a ser entendida tiva da progressiva elevação dessa
como se dando ao longo do per- a verdadeira e universal Comu-
curso da História, não mais em um nidade Humana Universal. Feu-
só indivíduo determinado e num erbach e Marx situam-se justa-
ponto determinado do tempo, em mente na esteira desse desenvol-
Cristo. Começa por um huma- vimento humanizante da religião,
nismo em que, depois disso, a sal- straussiano, um desenvolvimento
vação individual e a imortalidade do Cristianismo que se poderia
possível passam a significar apenas chamar de “substancialista” (anti-
a integração/ identificação do indi- individualista, anti-subjetivista,
viduo à vida e ao destino comuns, espinosano), de superação do indi-
coletivos, dos homens, e sua par- vidualismo, digamos, ontológico,
ticipação naquele percurso histó- remanescente neste, por uma on-
rico, para uma realização na Histó- tologia ou teologia do pleno ser
ria inteira e numa verdadeira Co- social do homem. Uma perspec-
munidade Humana como seu Te- tiva, essa de Feuerbach e Marx,
los imanente, com valor de Grande que os põe em contraste com a do
Ideal normativo. ateísmo do teólogo Bruno Bauer
Isso é o que se pode entender e de seus seguidores, com quem

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Marx acaba por romper, que as- quando Nietzshe nem era nascido.
sume uma tonalidade, pode-se di- Daí então as diferentes posições
zer, mais protestante, mais subje- desses filósofos hegelianos de es-
tivista (embora, no caso de Bauer, querda, quanto à Crítica, ou seja,
numa perspectiva política não co- quanto ao enquadramento - ge-
munista nem liberal, mas repu- ral, valorativo, por vezes especu-
blicana). Uma perspectiva, a de lativo, sempre filosófico - do Pre-
Bauer, que prefere ir para o lado sente, isto é, do nosso Tempo,
da tradução - ou melhor, dessa vez, como uma época histórica ainda
dissolução – do Cristianismo em não completamente nova: a Mo-
uma consciência universal, autô- dernidade. Tal época coincidindo
noma e soberana, do próprio ho- ainda com um certo desenvolvi-
mem. Deste enquanto indivíduo, mento do Cristianismo, a Reforma
até oposto à “Massa” (a que ape- Protestante, tomada por esses críti-
lam os comunistas), tomada por cos ateus como uma espécie de re-
Bauer na verdade como grosseira caída no Judaísmo latente do qual
e egoísta. Uma transformação do o Cristianismo nunca se teria com-
cristianismo numa autoconsciên- pletamente libertado. Uma época
cia universal a que cada homem de transição semelhante à que deu
poderia / deveria individualmente origem ao Cristianismo, pondo fim
erguer-se pela razão e pelo pen- à Antiguidade. Marx está entre es-
samento, como um ser finamente ses que entendem a Modernidade
autônomo - mais ou menos como protestante, como um retorno (no
na Fenomenologia do Espírito de He- nível cultural ou espiritual, pelo
gel. Só que, agora, por uma supe- menos) ao - e generalização do
ração de toda “substância”, uma – Judaísmo. Ou seja, para ele e
superação mais radical e subjeti- Feuerbach, uma generalização do
vista do que a de Hegel, pelo fim egoísmo, do individualismo, do
completo da religião (como ali- particularismo, do engajamento
enação a outro Ser, como hete- apenas prático vulgar, utilitarista,
ronomia) e pela proclamação da com o mundo - uma generaliza-
“morte de Deus” - anunciada por ção do interesse subjetivo não uni-
Bruno Bauer bem antes de Nietzs- versalizável, enfim. Essa genera-
che, mais precisamente em 1841, lização como tendo sido realizada

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pela Reforma, pelo Protestantismo, representar, do ponto de vista reli-


como um judaísmo que sempre gioso, um mundo de hipocrisia, em
teria estado no fundo do Cristia- que as pessoas declaram crença na
nismo, agora ainda mais apenas Pessoa de Deus, mas na prática dão
tenuemente disfarçado, embora as costas aos seus valores ou atri-
ainda sublimado, por suas noções, butos, que sempre encontraram no
subjetivistas e abstratas, de moral, Cristianismo seu fundamento: o
de liberdade e de autonomia indi- Amor, o Bem, a Justiça, a Verdade,
viduais, de livre exame, de bem, de etc. Ou seja, um tempo em que as
amor. Mais ou menos como Max pessoas sustentam a crença no Su-
Weber entenderia depois: o Protes- jeito (Supremo), mas não nos seus
tantismo como o verdadeiro espí- Predicados – enquanto compreen-
rito do Capitalismo, bem critica- didos como objetivos e absolutos,
mente compreendido, no caso de como Feuerbach os quer. Feuer-
Marx. Isso tudo em razão de um bach prefere, então, na verdade,
alegado individualismo essencial que tais predicados ou virtudes
do Cristianismo, agravado no Pro- possam sair fortalecidos por en-
testantismo, e dos demais vícios contrarem, conforme sua nova Re-
que acompanham o que no plano forma, um fundamento mais ver-
filosófico seria seu idealismo sub- dadeiro na própria Humanidade,
jetivo, de um lado, e seu empirismo no homem, enquanto Gênero e Es-
grosseiro, do outro – ambos tipica- sência, como novo Ser Supremo,
mente modernos. em vez de fundarem-se numa Sub-
Nesse quadro, Feuerbach tem a jetividade imaterial, transcenden-
pretensão expressa de representar tal, solipsista, absolutamente autô-
uma nova e diferente Reforma, a noma, logo arbitrária e caprichosa:
pretensão de ser um novo Lutero, Deus.
que é o teólogo que ele mais cita O ateísmo e o materialismo, en-
e sobre o qual escreveu um livro tão, para Feuerbach, seriam pon-
inteiro.2 Nosso humanista do ser- tos de vista mais propícios a uma
genérico critica a Modernidade por perspectiva não individualista, al-

2 Sobre isso, ver, por exemplo, Why did Feuerbach concern himself with Luther? John GLASSE. Revue Internati-
onale de Philosophie. Vol. 26, No. 101 (3), FEUERBACH (1972), pp. 364-385

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truísta, não egoísta, comunitária, laico, secularizado, em que todos


por fim comunista. Pode-se dizer esses vícios viram apenas reflexo
que é essa a verdadeira preocupa- ideológico de uma dinâmica mate-
ção das críticas de Marx e Feuer- rial e de uma situação econômica,
bach ao Cristianismo e à Moderni- nos fatos do dinheiro, da merca-
dade: pela verdadeira realização, doria e da propriedade privada,
finalmente, dos valores do Cristi- da divisão do trabalho, do capita-
anismo, uma realização até aqui lismo. Aos poucos, a normativi-
frustrada por sua marca subjeti- dade comunista de Marx fundar-
vista, idealista, individualista, de se-á cada vez menos num huma-
fundo. O Cristianismo tradicio- nismo explícito e no vocabulário
nal seria na verdade uma forma feuerbachiano da essência gené-
disfarçada de egoísmo, de ilusão rica (Gattungswesen), para melhor
e fingimento, no mínimo de um al- fundar-se como negação determi-
truísmo abstrato e impotente, e, nada, imanente, do capitalismo,
em sua tradução filosófica, uma construída do modo mais sólido no
forma de idealismo subjetivo, esse Capital. Do capitalismo enquanto
sendo assim o também pernicioso a um só tempo normativa e mate-
e egoísta ponto de vista filosófico rialmente condenado. Assim Marx
que lhe corresponde. Por isso é que escapa de um discurso expressa-
Feuerbach diz, literalmente, que mente moral, contra o egoísmo e
“materialismo é amor” ou, como a moderna “falta de Cristianismo”,
diz Marx, “materialismo prático que se converte agora em um dis-
é Comunismo” – sendo o materi- curso empírico, teórico e científico,
alismo a perspectiva que efetiva- mas, ao mesmo tempo, ainda for-
mente podaria as pretensões da temente normativo. Com o que,
subjetividade individual, idealista, mesmo assim, permanece a ques-
que estaria no fundo de todo o tão: de onde vem a normatividade
egoísmo – e da Modernidade. forte que a nova teoria dita cientí-
Certamente esses elementos fica apesar de tudo sustenta?
conjuntamente tomados compõem Ontologicamente, digamos, o
um discurso cada vez mais trans- problema de Marx sempre foi o
ferido por Max para um vocabu- da cisão (em classes) e o estilha-
lário materialista puro e simples, çamento e dispersão (em indiví-

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A TEOLOGIA DE MARX EXPLICADA ÀS CRIANÇAS

duos autônomos, indiferentes en- (enquanto separação entre os ho-


tre si) do Gênero, do Corpo So- mens e o mundo que eles produ-
cial (ele diria, do Homem mesmo), zem, e enquanto mascaramento de
em contraste com sua unidade es- suas verdadeiras relações entre si e
sencial como algo historicamente com as coisas) menos extrema que
por vir, por realizar-se, como Te- a do Capitalismo.
los imanente da História. Mas, Por isso tudo Marx é capaz de
certamente, mesmo que essa cisão dizer que os homens apenas se en-
e dispersão deem-se no plano da ganam ao se imaginarem mais li-
economia, tudo isso corresponde, vres sobre o capitalismo do que no
para nosso materialista anti- feudalismo. E é capaz de entender,
nominalista, no plano ideológico, correlatamente, que, na forma de
ao que o Cristianismo-Idealismo- Catolicismo, o Cristianismo, ape-
Subjetivismo representa: duplica- sar de tudo, ainda albergava algum
ção, dualismos, separações, univer- espírito de comunidade. O Pro-
salidade abstrata, inversão sujeito- testantismo, é verdade, aparente-
objeto, etc. etc. Em contraste, para mente acaba com a figura do sa-
Marx, não só com o que nos espera cerdote, acima do comum dos ho-
no Comunismo, mas também em mens, mas o faz, alega Marx, às
boa medida com o que antecedeu custas de fazer de cada indivíduo o
o Cristianismo: a Antiguidade e sacerdote de si mesmo. E embora
o Paganismo, gregos pelo menos, isso pareça uma crítica perspicaz e
enquanto não dualistas, não sub- aceitável, à auto-sujeição e à severi-
jetivistas, “naturalmente” materi- dade moral no Protestantismo, tal
alistas - com sua ideia unitária de juízo pode muito bem ser enten-
corpo político, sua ideia de liber- dido como a outra face da crítica
dade não individualista como so- marxiana à soberania que a Mo-
berania do todo, isto é, da Polis, dernidade – Reformada - confere
e do indivíduo apenas como parte ao indivíduo como senhor e juiz
desse Todo, etc. etc. Até própria de si mesmo. Não é por outra ra-
Idade Média e o Feudalismo, Marx zão que Marx denuncia a democra-
os vê e aprecia como mais comu- cia moderna, que ele chama justa-
nitários, mais orgânicos e integra- mente de democracia espiritualista,
dos, marcados por uma alienação cristã, pelo pecado e pelo engodo

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JOSÉ CRISÓSTOMO DE SOUZA

(ele e Moses Hess acham) de tor- elementos para a eventual apreci-


nar cada homem individualmente ação dessa indagação, por referên-
autônomo, cada um como um pe- cia a algumas posições e noções de
queno soberano. Desse vício seu Marx, mas também pela explora-
materialismo trataria de cuidar. ção de elementos do que podemos
Ao fim e ao cabo, resta a questão chamar de seu imaginário, já aqui
de se Marx representaria não ape- inicialmente apresentados.
nas, como admite expressamente, o
fim da Filosofia, entendido esse fim PARTE 2 - MARX E A REALI-
como sua realização, mas também ZAÇÃO FEUERBACHIANA DO
o fim da religião, do Cristianismo, CRISTIANISMO
também entendido como sua reali-
zação. Marx entende a filosofia, 2.1 - Da Teologia à Antropologia,
aquela a que alega pôr fim e reali- do Cristianismo ao Humanismo e
zar, como sendo a filosofia clássica, ao Comunismo.
racionalista, v.g. o platonismo e o As Teses ad Feuerbach, de Marx,
aristotelismo, seguidos de seus de- vão ocupar-se expressamente da
senvolvimentos / prolongamentos sociedade e do que haveria de es-
na metafísica medieval e moderna, sencialmente errado com ela (que,
e no idealismo alemão, como a filo- para Marx, Feuerbach não chega-
sofia da universalidade e do Ideal– ria a ver direito), e vão fazê-lo par-
entretanto separados do Mundo e tindo nada menos que da religião
do real empírico, e, logo, por isso, como Ideal humano-universal alie-
também não realizados. Mas po- nado e como Sintoma. Pois é aqui
demos perguntar: disso tudo que que o materialismo prático das Te-
ele diz sobre a filosofia, não é o ses encara de frente o problema da
Cristianismo apenas a versão re- Normatividade e do Ideal (de um
ligiosa, igualmente duplicadora do fim último para as ações humanas),
Mundo, que padece então precisa- buscando para sua resolução um
mente dos mesmos males, tal como fundamento intra-mundano, que,
– valeria mesmo dizer – o “Plato- entretanto, note-se bem, aparece
nismo para o povo” que nele viu mesmo é como dado no Cristia-
Nietzsche? Bom, esperamos que nismo, como um Ideal colocado
o resto desse artigo possa trazer de todo modo para muito além do
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A TEOLOGIA DE MARX EXPLICADA ÀS CRIANÇAS

que se poderia encontrar empirica- existentes, uma rejeição compará-


mente na sociedade como percep- vel àquela do platonismo, de que o
ções e aspirações comuns, dos ho- marxismo se aproxima. Talvez por
mens realmente existentes. isso também cativo, inclusive, de
As Teses de Marx vão dar às rela- uma recaída teoricista no menta-
ções sociais (de produção) o caráter lismo solipsista-cartesiano, numa
de essência do real e dos homens, e versão magnificada, infinitizada,
vão submetê-la tacitamente à me- do sujeito individual burguês.3 Se-
dida do “autenticamente humano” não vejamos.
(ainda que não existente). Por opo- Feuerbach, diz a Quarta Tese,
sição à divisão e à fragmentação não vai muito além da suposta de-
da sociedade civil moderna, onde o cifração do “segredo” da religião,
autenticamente humano (a expres- ou seja, da descoberta do – para
são é de Marx) ainda não está - Marx - “fato” de que Deus é o ho-
e, portanto, não será daí que ele mem, o fato da “auto-alienação re-
a tirará. É a formulação essen- ligiosa” do homem, e da denún-
cialista das Teses, e sua constru- cia da consequente “duplicação do
ção, transcendentalizante, do Fun- mundo, em mundano e religioso”,
damento terreno (Ideal), que ao fi- em Céu e Terra, em real, depre-
nal, parece, transformam seu ma- ciado, e ideal, transcendentalizado
terialismo prático em um materia- - separação essa tomada, então,
lismo transcendental – ao invés de como grande Mal e Descaminho.4
propriamente prático, mundana- A Crítica feurbachiana, diz Marx,
mente prático. Por isso um mate- limita-se a dar o passo de traduzir
rialismo aparentemente envolvido (as Teses dizem resolver/dissolver:
com uma tácita rejeição da política auflösen) a religião cristã “em seu
e do político como efetivamente Fundamento mundano” (em Hu-

3 A tese de que Marx não se submete, nas suas pretensões de conhecimento, à crítica que ele próprio faz do
individualismo abstrato, intuicionista-contemplativo, cartesiano-lockeano - para o qual o indivíduo, teórico, des-
provido de contexto e exterior à realidade, poderia sozinho refletir adequadamente o todo do real social - é apenas
sugerida ao longo desse texto.
4 A Crítica alemã, desenvolvida desde Hegel, deu à filosofia o curioso papel transcendental de decifrar, para a
humanidade toda, seu grande enigma ou segredo, que – sem a ajuda dos filósofos – completamente lhe escaparia.
Marx vai preferir falar do segredo das nossas “representações” como sendo um segredo constituído pela própria
realidade objetivamente alienada, e isso é sua crítica da economia política e do capitalismo - o que aparentemente
deixaria os homens comuns ainda mais à mercê dos homens teóricos.
5 “Humanismo real” é o que Feuerbach põe no lugar do Cristianismo, e que Marx adota e usa como sinônimo de

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manismo real, Marx poderia tam- gundo Marx, algo como sintoma
bém dizer),5 ao revelar que Deus e signo, um fato que “só se ex-
(o fundamento celeste) é apenas plica” – a Tese Quatro trata de
uma projeção de si mesmo do ho- adiantar – “pelo auto-dilaceramento
mem, uma projeção distorcida de e pelo auto-contradizer-se” daquele
sua verdadeira essência (o funda- fundamento aqui embaixo.6 “É tal
mento terrestre). Com essa sua in- fundamento [terreno], portanto, que
terpretação supostamente decifra- tem de ser compreendido em sua
dora, Feuerbach pensaria ter re- contradição” (para Marx, sua ta-
solvido, poe seu humanismo ge- refa teórica, coroada no Capital), e
neroso, o problema do empobreci- principalmente (aqui as Teses co-
mento da vida humana e das re- meçam a introduzir seu dever-ser)
lações entre os homens, como in- “tem de ser revolucionado na prá-
troduzido pela alienação/religião, tica.” Em que direção, Marx ainda
e como prolongado no protestan- não explicita na Tese Quatro, mas
tismo e mesmo no secularismo mo- de qualquer forma esse agora se-
dernos. Mas, para Marx, Feuer- ria o verdadeiro fim da alienação
bach deixaria ainda de fazer o prin- terrena (logo, também da religi-
cipal, que é entender por que o fun- osa, seu sintoma), e é esse o impe-
damento humano abandona esse rativo categórico (como explicita a
mundo, “separa-se de si mesmo, e se Ideologia Alemã) que as Teses têm
fixa num Reino autônomo, nas nu- para oferecer aos homens, na Tese
vens” - autonomizando-se com re- Onze.7 Quanto ao que Marx de-
lação aos homens. fine como fundamento para sua
A religião, porém, seria, se- Grande Prescrição (o Comunismo),

Comunismo até pelo menos a Ideologia Alemã.


6 Para Marx, no O Capital, é a realidade que é “religiosa”, não só porque produz religião mas porque o faz ao nos
deixar na condição de sujeição-dependência-alienação, replicada então, idealmente, na religião, da qual (condição)
a realização do comunismo (que seria também a da filosofia, e, nota bene, da própria religião, i.e, do que nela os
homens aspiram) é a cabal supressão – e esse seria o segredo ocultado pelo ponto de vista empirista, da intuição
sensível e da economia política burguesa.
7 Segundo o próprio Marx, a noção de auto-alienação do homem é umas das chaves de interpretação idealistas
alemãs (do real) que induzem as doutrinas filosóficas ao misticismo (Teses Oito, de Marx). Marx, entretanto, acha
que sua própria doutrina supera tal misticismo, encontrando uma tradução real, prático-sensível, para ela, a alie-
nação (Tese Quatro). Marx pressupõe que o idealismo alemão não introduz na realidadeelementos especulativos e
teológicos problemáticos (que seu novo ponto de vista acabasse assumindo), mas apenas que, como idealismo, tal
como a religião, apreende-a – ou a “representa” - de modo deformado, embora sendo ainda assim superior, como
ponto de partida, ao empirismo inglês ou ao materialismo francês do séc. XVIII.

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A TEOLOGIA DE MARX EXPLICADA ÀS CRIANÇAS

posso reiterar que não serão pro- Sociedade como uma espécie de
priamente as percepções e aspi- macro-sujeito. Uma perspectiva
rações mundanas dos homens re- tal que, segundo ela, se os ho-
ais (nem mesmo dos trabalhado- mens estão separados e a socie-
res), de dentro da sociedade civil, dade dividida, o homem está sepa-
como tais homens as tenham, em- rado/estranhado de si mesmo, em
piricamente verificáveis, como gos- contradição consigo mesmo, e a so-
tariam filósofos destranscendenta- ciedade (ou o mundo humano) está
lizantes, mesmo que por isso mo- despedaçada-dilacerada e oposta a
deradamente normativos e críticos. si mesma. Assim, homem ou so-
Em vez disso, o fundamento se es- ciedade (aqui, a mesma coisa),
tabelece como transcendente àque- nas atuais condições, literalmente
las aspirações e percepções, apare- auto-contradizem-se a si próprios,
cendo aqui como o que eles (os ho- negam-se a si mesmos. Com o que,
mens) expressam apenas, incons- ao mesmo tempo, fica estabelecida,
ciente e distorcidamente, na reli- por sobre a aparente dispersão dos
gião, isto é, no Cristianismo. Pois é, homens isolados, uma redução “di-
na realidade, pelas “más” relações alética” das diferenças e oposições
que estabelecem na prática pro- sociais a um par único de contradi-
dutora que as circunstâncias hu- tórios. Para o “Idealismo alemão”
manas se autonomizam em relação (com recurso ao qual as Teses se
aos homens, passando a submetê- batem contra a Modernidade como
los e determiná-los - até no próprio empirismo-liberalismo), a unidade
rumo ao Comunismo marxiano.8 (ou totalidade) é pressuposta, e a
O fato de a Tese Quatro re- divisão um erro e uma passagem
correr tantas vezes ao prefixo transitória. A unidade está no co-
“auto-” explica-se por sua pecu- meço, e no fim deve retornar, res-
liar perspectiva teórico-alemã es- tando então a tarefa teórico-prática
peculativa, de totalidade e uni- de eliminar – por um salto dialético
dade para o mundo humano, a - a Grande Contradição (da reali-

8 Marx, ao que parece, galga uma elaboração superior dessa ideia no O Capital, mas uma fórmula aproximada,
dela, é dada por ele já em 1845: “Não se trata de saber que fim um proletário ou mesmo o proletariado inteiro pensa ter
momentaneamente, [mas](...) do que ele será obrigado historicamente a fazer.” (MARX K, ENGELS F. La Sainte Famille.
Paris: Éditions Sociales, 1972, p. 48.

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dade) e de reconciliar a Sociedade que o ateísmo feuerbchiano tem


com ela mesma, como um Nós em declaradamente a intenção, não de
sentido forte, uno e substancial. negar, mas de resgatar, fortalecer
e realizar, como humano, o núcleo
2.2 - O Cristianismo Traduzido - de valores e sentimentos mais fun-
como Fundamento do Ideal da So- damentais do Cristianismo - ape-
ciedade Humana de Marx nas despojando-os de sua deforma-
ção subjetivista-individualista ori-
De outro lado, a Tese Quatro ginal.9 Ao fim e ao cabo, en-
não só toma como um fato a su- tão, é o Cristianismo que é pres-
posta auto-alienação religiosa do suposto por Marx na sua teoria.
homem, revelada por Feuerbach. Dele sai seu Fundamento essencial,
Ela também põe a crítica feuerba- ainda quando Marx dá seu passo
chiana da religião (na leitura de à frente com relação a Feuerbach.
Marx) – e isso é o que mais nos in- Configurando-se, esse modo, uma
teressa - como premissa da passa- dependência (com relação a Feu-
gem marxiana da crítica da religião erbach) da qual Marx certamente
à crítica da sociedade e ao impera- gostaria de tomar certa distância.10
tivo da supressão pratico-material Essas coisas todas ficam mais
da alienação fundamental. Nesse claras na Tese Seis,11 que retoma
sentido, é oportuno sublinhar que a tradução-transformação feuerba-
o diagnóstico hermenêutico feuer- chiana do Cristianismo em huma-
bachiano refere-se na verdade não nismo, só que agora referindo-se
a algo como a religião em geral, a essa metamorfose ateísta-crítica
mas ao Cristianismo em particular. expressamente como resgate da es-
Em segundo lugar, vale sublinhar

9 Ver de SOUZA, J. Crisóstomo. Feuerbach, Crítica da Religião, Crítica da Modernidade. InCHAGAS, REDY-
SON e DE PAULA (orgs.). Homem e Natureza em Ludwig Feuerbach. Fortaleza: Edições UFC, 2009, p. 241-270. O
problema de Feuerbach é com a faltade verdadeira religião no mundo moderno, mantida a superficial crença na
existência do Sujeito da religião (o Deus pessoal) mas não a crença efetiva nos valoresdo cristianismo, ou seja nos
predicadosdivinos que seriam os da verdadeira essência do homem projetada em Deus – o amor (ou a solidariedade)
em primeiro lugar, mas também a razão e a vontade, enquanto atributos humanos coletivos, como tais infinitos.
10 Depois das Teses, Marx ainda recorrerá à linguagem da essência (à laFeuerbach), mas preferindo cada vez mais
a da determinação, oculta, do nível da aparência (inversora), à superfície, pelo nível da essência, o da verdade, ao
fundo. Ele dará ao seu “ponto-de-vista da sociedade humana” o caráter de Ciência e definirá a ciência, esdruxula-
mente, como conhecimento da essência (cf. A Ideologia Alemã).
11 A Tese Cinco apenas reitera a preocupação de Marx com a suposta fixação de Feuerbach no paradigma empi-
rista da chamada intuição sensível, em oposição ao da atividade humana sensível cindida. O que mostra como esse
ponto, digamos, de epistemologia política, é central para ele nas Teses.

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sência genérica do homem (que pitalista e da correspondente di-


será o fundamento assumido, por visão social do trabalho),12 “em
Marx, para o Comunismo). “Feu- cuja crítica – Marx acusa - Feu-
erbach resolve a essência religiosa erbach não entra”. A verdadeira
[Deus] na essência humana [gené- essência humana (projetada / de-
rica]” - trazendo dessa maneira o formada no Cristianismo), que se-
Céu para a Terra, a Ideia para ria o oposto daquela fragmenta-
o Sensível, diz Marx. A ques- ção, não poderia, para Marx, diga-
tão agora enfrentada, porém, não é mos, “vestir-lhes” direito, a esses
mais somente que a duplicação re- homens reais existentes, assim sem
ligiosa do mundo resulta de uma mais. Permanecendo, assim, nas
divisão na essência real (ou na re- atuais condições, apenas como um
alidade essencial) dos homens, nas ideal abstrato para indivíduos abs-
suas relações (materiais, de produ- tratos - tudo o que Marx não quer
ção) aqui embaixo. Tal divisão- que aconteça. Isso, entretanto,
duplicação também implica na dis- seria o máximo a que Feuerbach
persão dos homens, como indiví- chega “abstraindo do Curso da His-
duos avulsos, não verdadeiramente tória” – justamente por não perce-
sociais, na sociedade civil. ber o real como atividade sensível
Assim é que a essência hu- desdobrada, cindida, e por assim
mana (ou o ideal humano recupe- “pressupor esse indivíduo abstrato e
rado do Cristianismo), retornada isolado,” que Feuerbach (Tese Sete)
ao mundo por Feuerbach, encon- “não vê que pertence a uma forma so-
tra “cá embaixo”, como sociedade, cial determinada,” a sociedade civil
aponta a Tese Seis, um conjunto moderna.
atomizado de indivíduos avulsos, Et-voilá, então, a razão da preo-
concorrentes e contrapostos entre cupação central das Teses (come-
si pelo “conjunto das relações so- çando pela Tese Um) com a em-
ciais” vigentes (da produção ca- pirista intuição sensível, uma pre-

12 Marx segue aqui as prescrições da lógica hegeliana: “a essência introduzida na efetividade” é a definição he-
geliana para Substância, e é assim que ele entende o real social, a atividade sensível, com relação aos homens
individuais: mais do que sua essência, sua substância– em passagem pra sujeito, no Comunismo, naturalmente.
Também aqui Marx foge do nominalismo, tomando o ponto de vista, recorrente no pragmatismo, da realidade das
relações e continuidades no mundo que experimentamos (em oposição a Locke e Hume), tanto quanto dos objetos
(que elas de certo modo definem).

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ocupação resumida finalmente na em oposição ao individualismo e


Tese Nove: “O mais alto a que chega ao nominalismo (pois é disso que
o materialismo intuitivo, que não se trata), de um modo melhor e
compreende o mundo sensível como mais completo do que conseguiria
atividade prática, é a intuição dos in- afinal Marx, mesmo depois das Te-
divíduos avulsos e da Sociedade Ci- ses. E poderia obter resultados nor-
vil” – no nível da aparência, de- mativos e solidários, políticos e so-
vemos entender. É a isso que, ciais, também melhores, sem pre-
em seguida, a Tese Dez, a penúl- cisar enveredar por uma essenci-
tima, trata por sua vez de contra- alização do humano, ou por uma
por o Standpunkt, pelo visto não transcendentalização do seu Ideal
intuicionista-sensível, mas mate- (ou de sua Base Real), que ele in-
rialista prático, comunista, da – siste em herdar e traduzir da filoso-
ainda inexistente - Sociedade Hu- fia clássica (idealista, especulativa,
mana. O que nos sugere, entre ou- metafísica). Quando em vez disso,
tras coisas, uma questão de episte- creio, deveria substituí-las alegre-
mologia política, isto é, uma per- mente por um interesse acrescido
gunta pelo que seria uma episte- pelas aspirações e práticas renova-
mologia politicamente melhor, su- doras dos homens e mulheres re-
perior à liberal-empirista: uma que ais existentes. Substituí-las por
corresponda à transformação ou suas demandas reais, em desenvol-
constituição “humana” – por que vimento, por uma sociedade cada
não, democrática - da sociedade. vez mais democrática, demandas
Qualquer que seja a resposta a essas postas no interior da própria
essa questão, creio que o materia- Sociedade Civil existente.
lismo prático-ativo das Teses pode- Quem sabe Marx deveria en-
ria conceber o conhecimento como tão ter pensado na democracia
prático-social-normativo, e o real como resposta ao problema da ali-
como atividade sensível relacional, enação, aí então em versão me-

13 Pode-se entender que Feuerbach retira do Cristianismo o Ideal alienado para devolvê-lo, desinflado, aos ho-
mens realmente existentes, mais ou menos à sua medida (de sua razão, sentimentos e aspirações), na forma de
um humanismo sensível, afetuoso, articulado às inclinações não-individualistas já manifestas no mundo vivido.
Enquanto que Marx acha que tal Ideal (ou seu Fundamento real) se manterá ainda, inevitavelmente, como trans-
cendente a esses homens (por injunções materiais), enquanto as relações entre eles (e eles próprios) não forem
radicalmente - entenda-se comunistamente - transformadas.

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nos alemã, religiosa, não genérico- ção comunista, o fim da grande


essencializada.13 Pois poderia ima- Auto-alienação do homem que é o
ginar que, numa democracia mais que inevitavelmente produz a reli-
efetiva e pluralista, seres huma- gião.
nos mais empoderados (individual, Preparando a conclusão consu-
grupal e socialmente; cultural, po- mada na Teses Onze (que co-
lítica e economicamente), have- bra a transformação real da socie-
riam de ganhar maior autonomia dade, como tarefa final para a Fi-
e de fazer mais efetivamente sua losofia), as Teses Seis e Sete in-
a realidade humana que os cerca troduzem ainda, apesar de tudo,
(seja ela o Estado, a sociedade, um elemento pragmático, não-
as instituições, etc.), trazendo as transcendentalizante, que merece
circunstâncias econômicas, políti- nosso registro, ao fazerem refe-
cas, sociais, culturais, etc., que afi- rência ao que se pode entender
nal são sua própria criação, para como resgate do sentimento hu-
mais perto deles mesmos, que te- mano (Gemüt, coração, ânimo) ex-
riam assim maior controle sobre presso na religião. Uma conside-
suas próprias vidas. Marx, en- ração que poderia não seria mal-
tretanto, só acha isso possível, e vista por quem considere que, no
de forma infinitamente mais com- campo do conhecimento como no
pleta, numa sociedade sem con- da ação, ou seja, no nosso envolvi-
tradições, constituída por homens mento com o mundo e com os ho-
plenamente sociais, uma vez supe- mens, estamos, enquanto seres hu-
rada em toda parte a divisão do manos normais, inteiros: intelecto,
trabalho e a propriedade privada, afetos, temperamento, gosto, etc.
bem como superado o conflito po- Afinal, estamos falando, com Feu-
lítico legítimo. Ou seja, Marx só erbach, em solidariedade e até em
acha isso possível na sociedade co- amor ao próximo. A filosofia de
munista, sua verdadeira Sociedade Feuerbach é declaradamente uma
Humana. Por isso, quando ele con- filosofia do amor e do sentimento,
clui as Teses afirmando que se trata e a essência do Cristianismo - logo,
de transformar o mundo, trata- a essência do homem - é para Feu-
se mesmo de uma transformação erbach em primeiro lugar coração
filosófico-alemã, uma transforma- e sentimento. A Tese Seis entende

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que Feuerbach, por sua desconsi- tro” - e o Comunismo tome o lugar


deração do curso da História, “fixa dela.
o sentimento religioso” à medida dos Ora, a ideia de converter o sen-
indivíduos humanos “avulsos” da timento religioso numa solidarie-
sociedade existente. Ele não vê, a dade humana mais efetiva, reali-
Tese Sete completa, que esse reli- zada em laços sociais transforma-
giöse Gemüt (sentimento religioso) dos e referida a um novo ideal
é também, para Marx, um produto de comunidade humana, de algum
social, de indivíduos que “perten- modo mais ou menos “inscrito”
cem a uma determinada forma de so- no próprio movimento do real,
ciedade.” Ora, o sentimento religi- como possibilidade ou promessa,
oso é justamente aquele que, nas não é propriamente estranha a ou-
condições da auto-alienação do ho- tras posições filosóficas. Apenas
mem, orientado em primeiro lu- é aí uma transformação despojada
gar para Deus, deveria ser agora, de radicais e poéticas metáforas
em vez disso, voltado inteiramente alemãs de infinitude, como “to-
para os homens.14 O imperativo mar o céu de assalto”, “pôr fim à
categórico das Teses, com que elas pré-história do homem”, etc., para
se concluem, não haveria de ser as quais Marx teima em encon-
deixado desarmado de sentimento, trar tradução “teórica” e “cientí-
de ânimo para se realizar. Afi- fica.” William James, por exemplo,
nal, certamente, para materialistas repetindo que “os homens não da-
práticos normativos, o significado rão mais dois mil anos à religião
de uma crença pode ser entendido para desperdiçar seu tempo,” intro-
como a correspondente disposição duz sua filosofia ao público através
para agir, o que implica a vontade. da denúncia da indiferença da fi-
Sai o Ser Supremo da Religião para losofia idealista às aflições huma-
“que o homem seja o Ser Supremo nas materiais (que ele apresenta
para o homem”, e para que o im- como o desemprego, o desespero e
perativo religioso da solidariedade a fome dos trabalhadores de Cle-
volte-se efetivamente para “o ou- veland). Enquanto Charles Peirce

14 O ateísmo de Feuerbach quer ser uma passagem do que para ele é o mal-disfarçado egoísmo judeo-cristão (em
que se ama ao seu Deus por amor de si mesmo), abrigado no subjetivismo da religião monoteísta, a um mais efetivo
sentimento de comunidade entre os homens todos.

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denuncia o evangelho da ganância, clui com a tarefa, para “os filóso-


da economia política burguesa em fos”, de, não mais “apenas” inter-
geral e de Wall Street em particu- pretar o mundo, mas “transformá-
lar, ao qual trata de opor seu evo- lo.” Por um script teórico fechado,
lucionismo amoroso e seu comu- que concebe uma determinação, ao
nitarismo lógico. Para ficar ainda mesmo tempo transcendental e vir-
entre os pragmatistas, John Dewey, tuosa, da própria Realidade, ou da
mais secularizado e politizado que sua essência, do seu nível de fundo.
James e Peirce, procura dar a “reli- O que, além de muito filosófico,
gioso” um alcance apenas humano- pode parecer prático, mas certa-
natural (no seu A Common Faith), mente também muito religioso – e
ligado à realização de um ideal hu- até especulativo. Então, o que mais
mano maior, enquanto que seu se- na concepção de Marx se aproxima
guidor, Richard Rorty, tem na soli- de uma verdadeira teologia e de
dariedade o motivo central de sua uma tradução da religião, ou me-
obra.15 lhor, do Cristianismo?
Um ou dois anos antes das Te-
ses, Marx dizia que “a crítica [feu- PARTE 3 - A SOCIEDADE HU-
erbachiana] da religião desemboca MANA COMO CORPO (MÍS-
na ideia do homem como ser/essência TICO) DO HOMEM
suprema para o homem, o que tem
como consequência o Imperativo Ca- 3.1 - O Corpo Político em Marx e
tegórico de mudar todas as relações nos Contratualistas
em que o homem é um ser humi-
A associação duradoura entre in-
lhado, subjugado, abandonado e des-
divíduos humanos, em vários ní-
prezível”.16 Não é coisa a que
veis, tem sido concebida pela fi-
se fique indiferente, e é o que
losofia política ocidental moderna,
está por trás, finalmente, da Tese
como na também religião, como
Onze, a última, aquela que con-
a constituição de um Corpo, um

15 Para James, ver a primeira conferência, The present dilemma of philosophy, op. cit. Para Peirce, ver o artigo
também já citado, Evolutionary Love. Quanto a Dewey, ver seu A Common Faith, New Haven: Yale University
Press, 1934. A solidariedade é também, como dissemos, o grande motivo do pensamento do neo-pragmatista
Richard Rorty (Philosophy and Social Hope, Londres: Penguin Books, 1999.
16 MARX, Zur Kritik der hegelschen Rechstsphilosophie. Einleitung, inLÖWITH, K., Die hegelsche Linke. Stutt-
gart: Fromman Verlag, 1962, p. 262.

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corpo transpessoal, uma particu- ser entendida como a realização


lar Unidade entre eles. Constitui- de uma perfeição, a perfeição dos
ção que poderia realizar, quando membros daquele corpo, até como
bem feita e completa, uma nova e sua “emancipação” – de uma exis-
nada trivial dimensão da existên- tência imperfeita, de isolamento,
cia, em comparação com o que a dissonância, dissociação, que de-
precede ou ocorre fora dela. Um vem deixar para traz. Na passa-
modo de assim conceber a Socie- gem a esse estágio, alguma coisa
dade (como uma associação-corpo) de importante aconteceria aos se-
pode representar os indivíduos hu- res humanos, e mesmo aos seus
manos como formando uma uni- corpos individuais, àquilo que com
dade apenas entre eles próprios, esses corpos está mais associado:
ou como constituindo o corpo de seus instintos, impulsos, desejos,
algo Outro. E entender que é sob enquanto particulares, exclusivos,
a égide desse Outro, por sua me- excludentes ou mesmo arbitrários
diação, que aqueles indivíduos se e irracionais. Desse modo, en-
unificam, como sua encarnação ou tão, pode-se entender que as duas
corporificação. Essa metáfora pode corporeidades, do indivíduo mem-
também implicar em que os indiví- bro e do todo que ele integra,
duos não formam aí simplesmente relacionam-se e contrapõem-se em
um Corpo, mas mesmo um Sujeito, alguma medida uma à outra. De
um Eu, uma Pessoa – muito maior um lado, a corporeidade, digamos,
do que eles individualmente consi- pessoal, física, e, de outro, a trans-
derados. pessoal, ideal. E pode-se conceber
Digno especialmente de nota é que a primeira deve ceder para que
que essa constituição dos homens a segunda se realize, para que se
em um Corpo - isto é, a forma- obtenha a união e a solidariedade
ção, por eles, de um corpo trans- mais completas e efetivas para os
pessoal superior – pode pressu- homens, sobre sua base.
por ou implicar, se bem realizada, Resta ainda um ponto impor-
uma profunda transformação de- tante a destacar no alcance dessa
les mesmos, para realização de sua imagem de um Corpo transpes-
mais completa solidariedade e li- soal. Frente a ela, daquele modo
berdade. Transformação que pode concebida, as precárias comunida-

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des humanas realmente existen- participam do corpo de Cristo e se


tes ficam como falsos corpos, fal- tornam um só corpo, a Igreja (eccle-
sas associações – divididas inter- sia, assembleia), no qual reside um
namente, e constituídas por laços só Espírito, o Espírito Santo, que
débeis ou deformados e deforman- equivale a algo como uma Alma co-
tes. E as concepções que as su- mum.17 Essa concepção/imagem
portam ficam também como fal- paulina aparentemente encontra-
sas, enganosas, “ideológicas”, aco- ria sua pré-história, seu provável
bertadoras dessa deformação ra- antecedente, na ideia de um Corpo
dical. Nesse contraste, o Estado cósmico, que aparece nos estoicos
- pelo menos o Estado moderno, e na concepção gnóstica do homem
da filosofia política moderna, sepa- primevo, bem como na especula-
rado, acima da sociedade e oposto ção judaica sobre o corpo cósmico
aos indivíduos – pode ficar ca- de Adão. Embora em São Paulo não
racterizado como falsa Comuni- se trate propriamente dessa noção,
dade, falso corpo, como frustra- a identidade dos cristãos com o
ção/negação de uma verdadeira corpo do Deus-Homem, Cristo, vai
Unidade, e como sintoma de sua além de uma simples figura de lin-
não-ocorrência. E os próprios ho- guagem, devendo representar mais
mens, sob o Estado, podem apa- do que a união dos membros de
recer então como não sendo o que uma sociedade comum e mais do
deveriam ser, como sendo também que o vínculo com uma autoridade
falsos, deformados – além de não- governamental qualquer.18 A ca-
livres. racterização da Igreja como Corpo
Sobre isso, para uma genealo- Místico de Cristo, que se firmou
gia dessa concepção, comecemos na Europa a partir do século XII,
pelo começo, pela Teologia Cristã traz a imagem de uma solidarie-
e pelo Cristianismo, através dos dade muito mais profunda, mais
quais essa “imaginação” do corpo radical do que a mera união mo-
transpessoal nos chega. Segundo ral entre seus membros. O termo
São Paulo, na eucaristia os cristãos “místico” não quer dizer aí ape-

17 1 Cor 10:16 ss; Col 3:15; Ef 4:4, 1; Cor 3 e 4:19.


18 J. L. McKenzie, Dictionary of the Bible, p. 102b e 101b.

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nas ideal, mas que se trata de algo se torna a encarnação de um ver-


real e até de certa forma físico - dadeiro “eu comum”, com vida e
por isso mesmo misterioso, difícil vontade próprias, a “vontade ge-
de exprimir. Vale registrar que, ral”, que tem, entre outros atribu-
ainda segundo São Paulo, cabe aos tos da vontade divina, a infalibi-
apóstolos, aos profetas, pastores e lidade. Trata-se, no Contrato So-
professores, ou seja, a um sacerdó- cial, da constituição de uma “Pes-
cio, “organizar a vida dos fiéis”, para soa moral”, a República ou Corpo
construir a “estrutura do Corpo de político, dotada de absoluta sobe-
Cristo”, na qual os cristãos realiza- rania sobre todos os seus membros,
rão “sua unidade comum”, através que na verdade não seriam exteri-
da fé no filho de Deus e do conhe- ores a ela ou à sua vontade. O con-
cimento dele. Quando então alcan- trato social, dotado por Rousseau
çarão, registre-se, sua “plena quali- de uma verdadeira “santidade”, re-
dade de homens”, e serão verdadei- presenta a passagem do “estado de
ramente livres.19 natureza” para o “estado civil”, pas-
É essa imagem, cristã, teológica, sagem que deve produzir no ho-
de um corpo transpessoal, mais ou mem, como por um verdadeiro sa-
menos substancial, que vai ecoar cramento, uma “extraordinária mu-
nas concepções da filosofia política dança” - substituindo o “instinto”
moderna, com as quais, como quer pela “justiça”, o “impulso físico”
o marxista Della Volpe, Marx pode pelo “dever”, e o “apetite” pelo “di-
ser relacionado - como desenvol- reito”.21 Assim bem constituído, os
vimento, superação e perfeição.20 homens serão, nesse estado civil,
De fato, em Jean-Jacques Rousseau, verdadeiramente livres e verdadei-
o contrato social - não mais o ba- ramente homens.
tismo ou a eucaristia - é o “ato de Antes de Rousseau, em Thomas
associação” que produz um corpo Hobbes, é também um “Pacto” que
coletivo, “o corpo do Povo”, como cria o corpo político e instaura
verdadeiro soberano. Corpo que “uma verdadeira unidade de todos

19 Ef 4:12-13 e 4:13-14.
20 Ver Della Volpe, Rosseau y Marx - y otros ensayos de critica materialista, seção primeira.
21 Rousseau, Du Contrat Social, I, 6; II, 3; II, 4; VII, 1; e I, 8.
22 Thomas Hobbes, Leviathan, II, 17.

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numa só e mesma pessoa”,22 pes- chiana, tipicamente alemã (para a


soa que é entendida por Hobbes época), do contrato social: “As for-
como ao mesmo tempo “Homem” ças do homem separaram-se e se de-
e “Deus” - embora se trate, no seu senvolvem no Estado, para consti-
caso, de um “Homem Artificial” e tuir, com sua separação e sua nova
de um “Deus Mortal”. Do seco reunião, um ser infinito, o Estado”,
e materialista, não-dialético, ponto que é “o homem realizado” e “ab-
de vista hobbesiano, tal pessoa po- soluto”.24 Finalmente, em Karl
derosa, o Estado, que atende tam- Marx e em seu companheiro Mo-
bém pelo nome menos simpático ses Hess, também jovem hegeliano,
de Leviatã, deve forçar as agita- o gênero de Feuerbach, dentro de
das individualidades corpóreas, os uma concepção alegadamente “não
seres humanos em geral, a uma mística”, torna-se a própria Socie-
ordem e um alinhamento, pelo dade, só que bem realizado apenas
menos o suficiente para que dei- no Socialismo.25 O Socialismo é a
xem para trás o belicoso e caó- verdadeira realização do Ser gené-
tico Estado de Natureza, onde a rico (Gattungswesen) dos homens,
vida só pode ser miserável. De- que estariam então livres, por isso,
pois de Hobbes e Rousseau, em da coerção do Estado - pois recupe-
Ludwig Feuerbach, Deus é na ver- rariam no socialismo sua natureza
dade o homem, o gênero humano, genérica, suas relações tornando-se
pois o homem bem entendido já a partir daí inteira e espontanea-
seria por natureza um Ser gené- mente harmoniosas.
rico, geral, e o verdadeiro “Ser Su- São tais concepções e imagens
premo” em carne e osso, coletivo, que Max Stirner, um outro jovem
uno por natureza e praticamente hegeliano, este porém individua-
imortal,23 que, para nosso huma- lista radical, tem em vista, quando
nista, realiza-se no Estado. Eis aqui se rebela contra o homem genérico,
a especulativa paráfrase feuerba- contra “l‘homme” – não só de Feu-

23 Sobre isso, com a liberdade e a agudeza da literatura, Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, entende iro-
nicamente: “A escolha da Humanidade para sucedâneo de Deus, o culto da Humanidade, sendo ela uma espécie animal,
pareceu-me sempre uma revivescência de cultos antigos, em que animais eram como deuses” (p. 40).
24 Feuerbach, “Nécessité d’une Réforme de la Philosophie”, p. 101.
25 Ver sobre isso carta de Marx a Feuerbach, de 11-8-44 (MEW, vol. 27). E o artigo de Hess, “Sobre o Movimento
Socialista na Alemanha” (1844), citado por N. Lobkowicz, “Karl Marx and Max Stirner”, p. 66n.

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erbach e Marx, mas do Esclareci- fazer-se real apenas no socialismo


mento, das ideologias modernas e, e no comunismo, ou seja, na “Soci-
exponencialmente, do humanismo edade humana” ou “Humanidade
e socialismo alemães. É contra esse social”27 - sem Estado.
homem, contra as formas de asso- Com a ajuda do próprio mo-
ciação concebidas como seu corpo, vimento da História, dotado, por
que Stirner quer sublinhar que só sua concepção, de sentido, e com
ele, como indivíduo, pode ser pes- a ajuda da Revolução, que seria o
soa, que unicamente ele pode ser ato de nascimento do novo homem
soberano e, por fim, que “só ele tem e a nova sociedade, Marx espera
um corpo”. “Se o ‘homem’ [gené- conseguir (na teoria pelo menos, e
rico]” - ou Estado, ou a Sociedade para o futuro, mas já como refe-
- “tenta hoje se tornar [um] eu, e rência para sua ação no presente)
ganhar graças a mim um corpo, ob- um Corpo transpessoal muito mais
servo que enfim tudo repousa mesmo efetivo, uma unidade dos homens
sobre mim, e que sem mim ele, ‘o muito mais sólida, solidária e livre,
homem’, está perdido”.26 Marx, ao do que qualquer coisa antes conce-
contrário, vai criticar a filosofia po- bida ou realizada, seja pela filoso-
lítica moderna, contratualista, ale- fia política moderna, seja, na reli-
gadamente democrática, porque - gião, pela teologia especulativa de
na constituição do Corpo polí- São Paulo. Com efeito, segundo
tico, partindo dos indivíduos par- o apóstolo Paulo, os cristãos “for-
ticulares existentes - não alcança mam um único corpo em Cristo”,
constituir mais do que um corpo mas dentro de uma diversidade de
falso, artificial, não efetivamente funções e charismata; ou seja, em
uno. Para Marx, o corpo transpes- última análise, mantidas as dife-
soal, verdadeiro, não-místico, do renças nacionais e a divisão do tra-
homem (genérico), é a sociedade, balho. “Fomos todos batizados em
mas, na sociedade atual, o homem um só corpo”, diz São Paulo, “pela
genérico, social, encontra-se ainda força de um só Espírito, tanto judeus
em devir, ou, melhor, negado, para como gregos, escravos e livres”, e tal

26 Max Stirner, Der Einzige und sein Eigentum: “Ich allein bin leibhaftig”, p. 14, e p. 152. Sobre a posição de
Stirner, ver meu “Dominação do Espírito em Plena Modernidade”. /////////////
27 Marx, “Teses ad Feuerbach”, tese n.10.

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corpo “não consiste apenas de um ór- versal concreto, à constituição do


gão, mas de muitos”. “As diferentes que se poderia chamar de um
partes do nosso corpo devem fazer do homem verdadeiramente genérico,
bem-estar de cada qual uma preocu- de um corpo coletivo realmente
pação comum”, e “são as que pare- uno, digno do nome. Do ponto
cem mais desprezíveis que são mais de vista de Marx, o contrato so-
necessárias a ele”.28 Pode-se então cial de Rousseau representa ainda
entender que, por sobre essas dife- uma falsa constituição do homem
renças objetivas, a unidade, a so- e do corpo político, acobertadora
lidariedade e a igualdade entre os do não-homem, do não-genérico,
homens, em São Paulo e na filo- do não-humano, da não-liberdade.
sofia política moderna, ficam limi- Apenas com a supressão da divi-
tadas ao débil terreno do espírito, são do trabalho e da propriedade
do subjetivo, do impotente dever- privada, a unidade, a solidariedade
ser, daquilo que Friedrich Engels e a liberdade entre os homens se-
vai chamar de “impotência da mo- rão perfeitas, o interesse pessoal e
ral”.29 o interesse geral estarão finalmente
Não assim em Marx. Segundo fundidos, e poder-se-á falar efeti-
a concepção materialista da histó- vamente de vontade geral e de ho-
ria, do chamado socialismo cientí- mem31 - e de Corpo político. Do
fico, a divisão do trabalho fica de- contrário, a vontade geral será ape-
vidamente suprimida, junto com nas a de alguns, imposta aos de-
outros percalços secundários, com mais, e não se poderá falar em ver-
a Revolução, no Comunismo.30 dadeira liberdade.
Na crítica marxista a Rousseau, Já na teoria de Marx, a unidade
a propriedade privada (mantida dos homens não se situa mais além
por Rousseau) é denunciada como deles, na transcendência sobrena-
o entrave à constituição da soci- tural do Espírito, nem na trans-
edade como um verdadeiro uni- cendência não-sobrenatural do Es-

28 Rm 12:4ss.; 1 Cr 12:13; 1 Co 12:14-15 1; Co 12:25 e 1 Co 12:22.


29 Sobre a “impotência da moral” fora de uma concepção materialista da história, ver Friedrich Engels em Feuer-
bach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, 1886. Ver também meu “Materialismo e moral em Friedrich Engels: uma
confusão do século XIX”, 1997.
30 Sobre isso, ver meu “O Homem Genérico como Telos Imanente da História”, 1996.
31 Ver, de Marx e Engels, Die deutsche Ideologie, seção “Feuerbach”.

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tado. Em Marx, o imaginário “re- especial de organizar a vida dos de-


alismo físico” de São Paulo ga- mais homens, para construir com
nha uma plenitude e uma realiza- sucesso o novo e verdadeiro corpo
ção antes escamoteadas pelo ide- transpessoal. E nisso se poderia
alismo e pelo dualismo da reli- ver um “novo Príncipe” - como
gião. Na concepção paulina, no diria Antonio Gramsci, referindo-
Cristianismo, é apenas pela duvi- se à vanguarda revolucionária, o
dosa força de um etéreo Espírito, e partido comunista.32 Um “Prín-
como filhos de um Deus único, que cipe” que deveria, entretanto, de-
os homens (melhor dizendo, ape- saparecer mais adiante, depois que
nas os cristãos) são “batizados num os homens se moldassem inteira-
só Corpo”, cuja unidade origina-se, mente à nova norma – no caso, sua
portanto, fora deles. E, se os cris- à própria essência, irrestritamente
tãos reunidos constituem o corpo social. Sem propriedade privada
do Deus-Homem, é Cristo que nem divisão de trabalho, não have-
representa sua cabeça, sua parte ria razão para que tal não aconte-
principal - o Príncipe, na lingua- cesse.
gem de Maquiavel. No corpo social
do homem marxiano, porém, den- 3.2 - A “Perfeição Mística” do
tro do exigido por uma concepção Corpo Político em Marx. Corpo
plenamente monista, imanentista, Anti-Egoísta vs Demoracia Espi-
não deve ao final haver lugar parti- ritualista.
cular para príncipe ou cabeça, para
Num de seus primeiros escritos,
governo ou Estado. Em termos,
publicado na Gazeta Renana, em
porém, pois aqui também cabe-
1842, a propósito de uma lei so-
ria a novos “apóstolos”, “profetas”,
bre o roubo ou coleta de madeira,33
“pastores” e “professores”, a um
Marx repudiava o que para ele era
sacerdócio de novo tipo, a função
o esfacelamento do gênero humano

32 No campo do marxismo, Lênin, mais do que Gramsci, é a expressão mais clara desse desdobramento. Ver,
no seu Que Fazer?: “Dissemos que os operários não podem ter consciência comunista; esta só pode ser introduzida no
exterior” (p.39); e: “Qual o papel dos comunistas senão de um ‘espírito’ que não só paira sobre o movimento espontâneo,
mas também eleva esse movimento ao nível do ‘seu programa’?” (p. 59). Nesta segunda citação, embora Lênin esteja
parafraseando uma crítica de adversários (daí as aspas), ele assume sem restrições a imagem bíblica do “espírito
pairando sobre o caos informe”.
33 Marx, “Debaten über das Holzdiebstahlsgesetz”, publicado em outubro de 1942, na Gazeta Renana.Marx &
Engels Werke, v. 1, pp. 109-116.

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e da sociedade no chamado “Reino mens chegam a se transformar, a se


animal do Espírito” - expressão deconstituir “misteriosamente” num
Hegel, na Fenomenologia do Espí- Todo único e harmonioso, encar-
rito, para a falsa comunidade de nando, cada um, complementar-
indivíduos particulares, distintosmente, uma parte do espírito do
e separados, opostos uns aos ou- Santo Homem. Finalmente aca-
tros, egoístas, que se exploram e bando por não precisarem mais
enganam mutuamente, na socie- dele como Mediador de sua per-
dade civil burguesa, moderna, ca- feita unidade, por poderem agora
pitalista. Marx repudia esse Reinodispensar sua presença física em
de modo ainda mais radical do qualquer forma, sua autoridade ex-
que Hegel, contrapondo-lhe, na- terior. Eis, então, na metáfora de
quele escrito, uma outra imagem, Humanus, o ideal original e um
outra metáfora, especialmente sig-tanto especulativo de Marx, para
nificativa como expressão do seu a sociedade: que os indivíduos se
ideal de sociedade e de homem: (re)constituam numa unidade tal
a do “Santo Humanus”, extraída que, dentro dela, diferenças e de-
dos Mistérios, de Goethe. Nestes sigualdades sejam “apenas a refra-
não por acaso denominados Misté- ção matizada” da igualdade, apenas
rios, Humanus é o “Santo” e o “Sá-um desdobramento, livre, desse
bio”, “o melhor de todos os homens”,
todo essencialmente uno. A perfei-
à volta do qual estes se reúnem - ção que Marx concebe para os seres
ainda em toda a sua diferença, par-
humanos seria assim a de “nobres
membros do grande Santo”, de tal
ticularidade, incompletude (de ser,
de sentir, de pensar), mas em busca
maneira libertos de toda particula-
da Perfeição, da superação dos li-ridade excludente que se poderiam
mites de seu pequeno espírito par-“transmudar livremente uns nos ou-
ticular. tros”, simplesmente como homens
genéricos.34 Aparentemente, uma
No decorrer do tempo, em con- vez libertos de sua particularidade,
tato com Humanus e em comuni- os indivíduos poderão tornar-se até
dade uns com os outros, esses ho- infinitos - e de certo modo tam-

34 Id., p. 115.

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bém imortais, através do gênero e nhã, pescar à tarde, criticar à noite,


da comunidade com os quais se etc.),36 pode ser interpretada, à luz
(con)fundem, que é a imortalidade do ideal de Humanus, como signi-
que lhes cabe já na especulação de ficando - junto com a equação de
David Strauss e Ludwig Feuerbach, cada homem, não mais apenas com
os dois primeiros jovens hegelia- uma, porém com todas as funções
nos, em cuja sucessão Marx se si- e com nenhuma delas - também a
tua. equação de cada homem com todo
É esse horizonte místico e espe- outro, no sentido de sua plena co-
culativo que parece mais adiante mutabilidade. Sem as distinções e
voltar à tona em Marx, por exem- particularidades que subsistem no
plo, num trecho dos seus Manus- corpo paulino.
critos Econômicos e Filosóficos de 44, A dialética da alienação / liber-
em que ele sugere que só na apa- tação do indivíduo no Todo, no
rência a morte – digamos, solitária, Corpo social e político, dialética
separada - de cada um é uma ne- subjacente a uma parte da filoso-
gação da “Unidade” do Gênero hu- fia política moderna e às fórmulas
mano (dos indivíduos no Gênero), de Feuerbach e do jovem Marx, pa-
uma “dura vitória” do Gênero “so- rece acompanhar este último inte-
bre o indivíduo”. Isso porque o in- gralmente até a concepção mate-
divíduo humano, no fundo, “não rialista da história, de sua matu-
é mais do que o ser genérico de- ridade. Disso um marxista inte-
terminado” - ele é mortal apenas gral como Mario Rossi, discípulo
enquanto “indivíduo determinado”, de Della Volpe, pode-nos dar o me-
particular.35 Do mesmo modo, lhor testemunho. Só a concep-
a sedutora promessa de Marx (e ção materialista da história, diz
Engels), na Ideologia Alemã (1845- Rossi candidamente, “pode fundar
46), de um indivíduo livre da divi- em concreto e sem contradição a re-
são do trabalho, tão livre que po- solução total do indivíduo no corpo
derá escolher exercer praticamente social, que é ao mesmo tempo a ga-
qualquer atividade (caçar pela ma- rantia única de que ao indivíduo será

35 Marx, Manuscrits de 1844, p. 90.


36 Marx e Engels, Die deutsche Ideologie, p.33.
37 Rossi, La Concezione Materialistica della Storia, p. 150.

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assegurado um ‘âmbito total e ilimi- como (numa imagem de Max Stir-


tado’ de manifestação pessoal”.37 Eis, ner) um “círculo mágico do Cristi-
então, com a concepção madura de anismo”, perpetuando a tendência
Marx, o verdadeiro “Corpo do Ho- encarnacionista, iniciada faz dois
mem”, em que o indivíduo deve, mil anos, de buscar um corpo, uma
por fim, inteiramente “resolver- realidade, para o espírito, isto é,
se”, como condição de sua verda- para o que tem existência ideal,
deira liberdade e plenitude, depois para o que é geral, para o que é
das tentativas limitadas e imperfei- uma Ideia, no caso o homem ge-
tas, pré-comunistas, religiosas ou nérico, sem jamais reconciliar-se
políticas, eclesiais ou estadistas, de com a corporeidade real, particu-
São Paulo, Rousseau, Feuerbach, lar, finita, dos homens reais exis-
etc. Na sua fase explicitamente tentes. Diante disso, podemos in-
humanista-naturalista, Marx acre- dagar, será que a afirmação forte
ditava que a Natureza é “o corpo de um Corpo transpessoal, para os
não-orgânico do homem”.38 Agora homens, por Marx, é ainda tam-
a sociedade será seu Corpo “orgâ- bém especulativa, cripto-teológica,
nico”, material, alegadamente não- e implica em que ele não consegue
místico, que já se constitui aí onde reconciliar-se com a corporeidade
ele está ainda como negado, ou finita dos homens reais?40 Bem,
seja, nas relações sociais capitalis- Marx consegue, sim, aproximar-se
tas.39 Uma contradição encarnada da realidade corpórea dos homens;
pelo Proletariado - para Sartre “o ele encara o corpo real dos indi-
corpo enorme e sombrio que vive o víduos, seu corpo, digamos, social,
marxismo” -, a ser resolvida pela seu corpo para a sociedade. O
Revolução, junto com a supressão corpo social do indivíduo - o corpo
do Estado, por desnecessário. marxiano - é o da necessidade e
As especulativas concepções hu- da produção, do trabalho social.
manistas e socialistas alemãs po- Trata-se de um corpo individual do
dem, assim, estar presas a algo qual Marx consegue extrair gran-

38 Manuscrits de 1844, p. 62.


39 “Teses ad Feuerbach”, tese n.6.
40 Stirner, Der Einzige, p. 407. Como qualquer outra ideia, diz Stirner, “o homem” não tem existência real, pois
não é suscetível de corporeidade (p. 409).

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des virtualidades filosóficas e ge- um novo sacerdócio para “organi-


néricas, um corpo potencialmente zar a vida dos fiéis”, para construir a
racional e até essencialmente po- “estrutura do novo Corpo de Cristo”,
lítico. É o que se poderia cha- em que os indivíduos humanos re-
mar de “corpo compatível”, não- alizarão finalmente “sua unidade
excludente, não-conflitivo, com a comum” e se tornarão homens ver-
vantagem de ser ainda - ao contrá- dadeiros e livres.
rio do corpo natural à la Feuerbach Em Marx, tudo começa, a pró-
- um corpo histórico. Pode ser o pria história começa, com o corpo,
corpo rebelado da luta de classes, com a “compleição corpórea” (ko-
mas que, como esta, encarna uma erperliche Organisation) dos seres
racionalidade e se orienta para a humanos. Junto com a simples
realização de uma plena universa- existência destes, e em certo sen-
lidade futura. Tanto é assim que, tido “anteriormente” a eles, estão
a partir de tal corpo humano, a logo “as relações que aquela complei-
partir dos homens reais corpóreos ção corpórea lhes cria”, por neces-
produzindo para suas necessida- sidade, deles entre si e com a na-
des, Marx consegue, com a ajuda tureza, na produção.42 Sabemos
da história, “deduzir” uma nova e para onde, na concepção marxi-
perfeita Polis, a Comunidade ver- ana, uma premissa tão singela con-
dadeira, a Sociedade humana, co- duz: esse corpo do trabalho e da
munista, o Corpo político final- necessidade logo mostrará ser um
mente digno do nome, unificado corpo virtualmente universal, ge-
e livre. Sobre o corpo individual nérico, constituinte de uma verda-
social, Marx pode mesmo cons- deira ordem. Quem sabe, trata-se
truir seu edifício comunista e su- ainda, em Marx, do corpo do in-
perar o nominalismo41 ainda rema- divíduo, mas não o da individua-
nescente em Rousseau ou mesmo lidade. Não seria o corpo do indi-
São Paulo. Embora, nessa tarefa, víduo em sua diferença, como no
de construir o Comunismo, Marx caso do indisciplinado corpo dos
tampouco prescinda da ajuda de instintos, do desejo e da fruição,

41 Uma posição nominalista é a que atribui mais realidade ao que é particular, individual, do que ao que é geral,
universal, ideal. No limite, atribui realidade apenas ao primeiro.
42 Die deustsche Ideologie, pp. 20-21.

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do capricho e da Wilkür, o corpo corpo do pecado”, é que deve ser


da desordem, aquele que subver- subjugada como um escravo, para
teria os cálculos estatais – corpo que nasça o homem novo, com ou-
com que têm flertado alguns filó- tro corpo. Ludwig Feuerbach, in-
sofos franceses, anti-filósofos, neo- decisamente, diz que “o corpo é o
nietzschianos, no nosso tempo. fundamento, o sujeito da personali-
Este corpo indisciplinado, não in- dade”, mas, vejam só, para ele isso
teiramente normatizável, repre- se prova notadamente no fato da
senta o “corps propre”, “Leib” “impenetrabilidade”, no fato da “ex-
(carne); o outro é, antes, “Koerper”. clusão espacial” implicada pela cor-
E, na opinião de Stirner, “é apenas poreidade de cada um de nós. É
pela carne”, pelo corpo enquanto verdade que o corpo feuerbachi-
carne, “que posso romper a tirania do ano não é só, cartesianamente, res
Espírito” -43 do geral, do genérico, extensa; quer ser também “carne”
do ideal hipostasiado, e sair do cír- e “diferença sexual” – o que chega
culo vicioso iniciado pelo Cristi- a ser extraordinário para um filó-
anismo e perpetuado pelo que se sofo. Mas, mesmo assim, para ele,
pode chamar de “platonismo” re- é “a glória da Natureza que se mani-
manescente da nossa cultura e das festa nessa diferença”, que, além do
nossas teorias, ao qual Marx tam- mais, deve constituir-se na base da
bém permaneceria preso. “verdadeira moralidade”, da verda-
São Paulo acredita que a existên- deira normalidade - pois “por tal
cia “no corpo” significa estar “au- diferença até o animal é susceptível
sente do Senhor”; para se estar pre- de amor e de sacrifício”.45
sente “no Senhor” é preciso aban- Assim, a própria carne é, ao que
donar o corpo. Ao mesmo tempo, tudo indica, convertida, pelo ma-
porém, o corpo de cada homem terialista Feuerbach, em corpo mo-
pode, segundo Paulo, chegar, ape- ral, em corpo da moral - e certa-
sar de tudo, ao Reino dos Céus mente também da política. Quanto
- quer dizer, pode tornar-se um a Moses Hess - companheiro de
corpo espiritual.44 A carne, “o Marx na esquerda hegeliana, de-

43 Der Einzige, p. 68.


44 2 Co 5:6, 8; Co 15:35-44. Pela união com Cristo, o corpo se ergue para uma nova vida (1 Co 9:27).
45 L’Essence du Christianisme, pp. 220-221.

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pois na Internacional Comunista dade, como na velha Teologia?


e, como Marx, discípulo de Feuer- Isso poderia não ser totalmente
bach -, ele não disfarça sua preo- verdade. Posso entender que Marx
cupação com a corporeidade indi- não é o tempo todo um pensa-
vidual, “egoísta”, dos homens. E dor assim tão misticamente comu-
vê com alarme como os corpos es- nitarista, o pensador de uma uni-
tão “separados” na sociedade ci- dade social tão forte entre os ho-
vil moderna, para ele o âmbito mens, e que sua imagem de um
de um “materialismo sem espírito”. Corpo social uno é apenas, di-
Se, para Hess, “o indivíduo corpó- gamos, uma metáfora fortemente
reo deve realmente tomar o lugar do anti-nominalista. Posso enten-
homem espiritualizado”, não há de der ainda que tamanha idealização
ser, porém, o indivíduo do corpo do laço social apresenta não ape-
“isolado”, um corpo “sem coração e nas vícios, mas também possivel-
sem alma”, que tem como objetivo mente virtudes (digamos, crítico-
“o prazer”. Hess quer, ao contrá- utópicas), para confrontar e trans-
rio, o corpo que represente justa- formar as precárias associações
mente “o ser-para-outro”,46 e Marx existentes, em que vivem atual-
aparentemente soube encontrá-lo mente os homens. Marx cons-
muito bem: o corpo do trabalho. trói muito bem sua poderosa metá-
Será, porém, que nosso materia- fora e consegue com sucesso, habil-
lista histórico, que trata de, me- mente, o que poderia ser conside-
lhor do que qualquer outro, cons- rado como sua “prova real”: con-
tituir, através do corpo do traba- segue desenvolver toda uma teo-
lho (como nosso corpo essencial), o ria – alegadamente científica - que
grande corpo do Homem, de Hu- permite literalizá-la (à nossa me-
manus, a ponto de dispensar, na táfora), que permite que ela apa-
teoria, o Estado, será que ele fará reça como coisa plausível, atraente,
isso abstraindo de - e em oposição realista e prática. Mas as raízes
a - uma parte importante de nossa e parentescos especulativos de sua
corporeidade, de nossa particulari- concepção, que procurei exibir em

46 Moses Hess, “Die letzten Philosophen”, pp. 57-58.

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seus próprios termos, podem ser aparentemente paradoxal absoluti-


de fato problemáticos para sua te- zação, não visada por ele, do Es-
oria, marcando-a com um traço de tado - pelas mãos do novo sacer-
exagero, em especial no contexto dócio, os representantes do Univer-
de uma compreensão atual das coi- sal, colocados, tal como a essên-
sas e em confronto com a experiên- cia genérica, acima dos homens co-
cia histórica do séc. XIX para cá. muns existentes. Isso exatamente
Senão vejamos. como o avesso, talvez não tão di-
Marx faz uma aposta na sociali- fícil de vislumbrar, da sua aposta
dade plena dos homens, e associa político-filosófica na mais plena
estreitamente a ela a sua ideia de unidade dos homens na sociedade
liberdade, de uma liberdade e de futura, com base em uma “na-
uma democracia superiores. E atri- tureza” absolutamente social (em-
bui toda a discrepância atual com bora ainda não realizada) e na pro-
relação a isso (a existência do Es- messa de uma liberdade completa,
tado, a democracia desigual, por superior, não-individualista, para
ex.) à divisão do trabalho e à eles. Pois o Estado acaba assu-
propriedade privada, e à consci- mindo o lugar da antecipação com-
ência que lhes corresponde, cristã plementar e objetiva possível dessa
ou moderna (liberal). Marx reduz socialidade/ universalidade plena
o problema do conflito e do po- que existiria na cabeça de alguns,
der, entre os seres humanos, na so- na teoria, e que entrementes legi-
ciedade, a essa única/última raiz, tima um mando igualmente pleno
não só para ele perfeitamente eli- (e não poderia ser diferente). En-
minável, como também destinada, quanto isso, a sociedade real, que
por necessidade histórica, à com- deveria ser a verdadeira realização
pleta eliminação. Com essas pre- de tal unidade, digo, daquela soci-
missas, ele não regateia em pa- alidade/universalidade, pode que-
rafrasear e assimilar, no seu pro- dar esvaziada de toda iniciativa e
jeto, o horizonte e as promessas de toda “costura” própria, autô-
da visão religiosa, e se dispõe até noma - isto é, não autorizada pelo
a ultrapassá-las. E, talvez, em Estado. Paradoxalmente, então, a
função dessa ambição, não consiga universalidade/unidade, por abs-
precaver-se contra uma insidiosa e trata, teórica, mística, acaba, na re-

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alização prática da concepção de mação subjetiva, superficial, dos


Marx, sustentada muito mais por homens, apenas num laço espiri-
cima do que por baixo, muito mais tual entre eles, por sobre suas se-
de fora do que entre os próprios parações e particularidades reais,
homens, mais até do que em outras materiais. Mas não só. A demo-
formas de organização social nada cracia moderna seria falsa porque
primorosas, falsamente corpóreas, se basearia num subjetivismo ao
na unificadas. qual estaria associada a ilusão de
Nosso propósito aqui, entre- autonomia pessoal, nela, de cada
tanto, não é bem discutir as coi- homem por si. Tal democracia
sas em termos inteiramente con- é falsa e cristã, acha Marx, por-
clusivos, mas deixar falar, sobre que, idealistamente, imagina cada
esse assunto, o uso, por Marx, homem como um pequeno sobe-
da metáfora do corpo transpes- rano por si mesmo, como origina-
soal, com suas várias implicações riamente independente, e porque
e com o parentesco que atesta- o coloca acima do todo, da socie-
mos. Abordando, por um lado me- dade. Como diz o filósofo cristão
nos usual, sua posição com rela- Sören Kierkegaard, nos seus Diá-
ção ao Estado, sua ideia da supe- rios (II): no caso dos homens “o in-
ração deste por um Corpo político divíduo é superior ao gênero porque
(na verdade, social, não-político) cada indivíduo singular é feito à se-
verdadeiro, e a possível implica- melhança de Deus”. Ora, com base
ção de sua proposta para a corpo- em tais premissas, não haveria ver-
reidade pessoal e a “pequena li- dadeiro corpo político possível, na
berdade”, aquela possível, dos ho- opinião de Marx.
mens. Segundo Marx (na Ques- Em tempos anteriores à Moder-
tão Judaica), a democracia moderna nidade, na Cristandade Medieval,
é “cristã” e “espiritualista” porque, o Cristianismo, como “espírito do
em última análise, remete a uma Estado”, acha Marx, chegou a re-
unidade ou corporeidade apenas presentar uma certa “vida genérica
ideal, não material, não real, entre limitada”. Mas, na Modernidade,
os homens. Remete a uma unidade em especial como Protestantismo,
fundada, malgrado as intenções de ele representa nada menos do que
São Paulo, apenas numa transfor- “o espírito da sociedade civil bur-

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guesa” e “a guerra de todos con- corpo transpessoal, de uma uni-


tra todos”. Agora, o Cristianismo dade e harmonização entre os ho-
não é mais essência da Comuni- mens, os ecos disso nas concepções
dade e da Unidade coisa alguma, contratualistas modernas, deixam
mas antes essência do seu oposto suficientes brechas. Mas a concep-
– “da separação”, “da independên- ção de Marx certamente não. Ela
cia do particular”. Agora o Cris- de fato obtém, “em concreto e sem
tianismo é tão somente a afirma- contradição”, na teoria, “a resolução
ção da “absurdidade particular”, do total do indivíduo no corpo social”,
“capricho”, da “vontade arbitrária”, que dispensa o Estado e a “demo-
subjetiva (QJ 28-9).47 E é aparen- cracia imperfeita”. A metáfora do
temente essa base desprezível que corpo transpessoal encontra aí fi-
dá, no plano secular, naquilo a que nalmente sua realização. Resta sa-
se tem chamado equivocadamente ber se isso é uma virtude ou um ví-
de democracia. Podemos concluir cio.
que, para tal equívoco, os ecos da
idealista concepção paulina, de um

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