Você está na página 1de 16

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS


PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

SELEÇÃO MESTRADO
TÍTULO DO PROJETO DE PESQUISA: Marx e um conceito de História

Área de pesquisa: História da Filosofia


Autor do projeto: Kayque Eduardo de Souza
Orientador(es) pretendido(os): Benito Eduardo Maeso e Polyana Tidre

CURITIBA, 2022
1. O TEMA

A querela a respeito da história atravessa as reflexões nas quais o marxismo se ocupa, sendo
inclusive de acordo com o próprio autor, junto com Engels, de caráter fundamental,a única
ciência conhecida. Em texto escrito ao lado de Engels, ‘’A Ideologia Alemã’’ isto é afirmado
de maneira categórica com as seguintes palavras: ‘’Conhecemos uma única ciência, a ciência
da história’’(p.86). Com isto posto, fica evidente a centralidade do tema para ambos os
autores.
No entanto, pensar a história em Marx não é uma tarefa das mais simples, principalmente
pela maneira como ela é abordada pelo autor e ao mesmo tempo, estruturada por este.
Trata-se de compreender as maneiras pelas quais esse raciocínio é empreendido por Marx
para poder expor efetivamente o conceito de história que pode ser extraído de sua obra.

Para tal empreendimento, é necessário não se isolar em uma ou duas obras, mas sim,
atravessar sua obra inteira da mesma maneira na qual o tema efetivamente atravessa sua obra,
desde os escritos de juventude até os escritos da sua maturidade, o tema sempre está
ressoando, seja de maneira direta com uma reflexão sobre a história até então, como é o caso
do ‘’Manifesto Comunista’’ até em textos nos quais o tema não aparece de forma imediata
como ‘’O Capital’’, o tema continua como horizonte da obra.
De acordo com comentário de Ruy Fausto em seu texto ‘’Marx, Lógica e Política’’,
especialmente no livro 2, ‘’O marxismo é uma crítica do capitalismo, que se articula com
uma apresentação da história’’(p.11), posto nessas palavras, o tema fica mais enxuto a
respeito de sua articulação, mesmo que para efetivamente chegar nesse resultado, muito deve
ser feito e compreendido.

Como a crítica do capitalismo se relaciona com a história? Como é possível o tema estar
sempre indo e voltando nas reflexões de Marx, desde a sua juventude até a maturidade de sua
obra? Por que isso é possível? Para poder responder a temática, é necessário não se valer tão
somente do arsenal teórico de Marx, mesmo ele sendo o centro de sua reflexão. Comentários
de Benjamin, Althusser, Deleuze, entre outros podem ajudar a vislumbrar a razão desse
constante ressoar do conceito de história na obra do autor. A opção por tais autores não é por
acaso pois eles oferecem uma chave na qual o problema pode ser abordado no
desenvolvimento da pesquisa, como tentarei mostrar e articular.
2. UM POSSÍVEL DESENVOLVIMENTO TEÓRICO DO TEMA

Um primeiro momento onde o conceito de história aparece na obra de Marx, ao menos sua
menção de uma forma mais definida, por assim dizer, está na Crítica da Filosofia do Direito
de Hegel, mais exatamente, na Introdução(1843), onde o autor define a história como um
campo no qual toda a desmistificação é operada, onde o caráter verdadeiro das coisas é
efetivamente revelado, nas suas exatas palavras ‘’Portanto, a tarefa da história, depois de
desaparecido o além da verdade, é estabelecer a verdade do aquém.’’(p.146). O tom do texto
em geral revela, enquanto um texto contra a Filosofia do Direito de Hegel, de antemão algo
que em sua obra vai se tornando algo de grande importância, que é o papel da história junto
da crítica, que aqui, ainda aparece como ‘’filosofia’’.

Dito de uma outra maneira, a filosofia aparece como algo que está a serviço da história, esse
campo de desmistificações contínuas, mostrando que a verdade que se mostra como um além,
efetivamente é a verdade de um aquém, daquilo que nos circunda1, como Marx salienta

‘’A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é, depois de


desmascarada a forma sagrada da autoalienação [Selbstentfremdung]
humana, desmascarar a autoalienação nas suas formas não sagradas. A
crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião,
na crítica do direito, à crítica da teologia na crítica da política ’’(MARX,
KARL, 2010 p.146)

Posto assim, a história nesse sentido, ao lado da filosofia, é um momento fundamental para se
pensar a desmistificação e colocar o homem como centro desse desenvolvimento, como o
próprio fundamento deste. Revelando a pura imanência do pensamento marxiano, tendo a
história e também a filosofia como ponto de entrada.

O segundo momento em que o conceito de história aparece em Marx, está nos ‘’Manuscritos
Econômico-Filosófico’’(1844), onde o tom dos escritos avança um pouco mais em relação à
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, pois aqui, a história é lida enquanto um contínuo

1
Há uma diferença entre as traduções, pois na versão online do Manuscrito encontrado no site Marxists.org, é
dito que: ''[...] estabelece a verdade do que nos circunda.’’ e na tradução feita Boitempo, este ‘’circunda’’ é
substituído por ‘’aquém’’. A passagem ficaria assim: ‘’[...]estabelece a verdade do aquém.’’ A tradução reflete
basicamente o jogo que Marx faz entre o além-mundo que é posto na religiosidade, alvo da crítica do autor x o
mundo real no qual essas abstrações místicas brotam. A verdade não é o além, mas o aquém dos céus, aquilo
que nos circunda.
desenvolvimento sensível do homem, desde a própria natureza, onde já há uma história
entendida como ‘’História Natural’’, que é o desenvolvimento desta própria, até um
desenvolvimento humano em que se chega ao comunismo efetivamente. Onde toda a
externalidade entre homem e mundo é efetivamente resolvida, de uma forma semelhante ao
Hegelianismo

‘’Este comunismo é, enquanto naturalismo consumado = humanismo, e


enquanto humanismo consumado = naturalismo. Ele é a verdadeira
dissolução (Auflösung) do antagonismo do homem com a natureza e com o
homem; a verdadeira resolução (Auflösung) do conflito entre existência e
essência, entre objetivação e auto-confirmação (Selbstbestätigung), entre
liberdade e necessidade (Notwendigkeit), entre indivíduo e gênero. É o
enigma resolvido da história e se sabe como esta solução’’(MARX, KARL,
2004 p.105)

Ou então, em outros momentos, a respeito da relação desse desenvolvimento entre homem e


natureza e seu desdobramento a partir da sensibilidade ‘’A fim de que o “homem” se torne
objeto da consciência sensível e a carência do “homem enquanto homem” se torne
necessidade (Bedürfnis), para isso a história inteira é a história da preparação / a história
do desenvolvimento.’’(p.112).
A tal desenvolvimento vislumbrado a partir dessas duas obras mencionadas, é possível
articular uma versão humanista da história em Marx, a história é a história do
desenvolvimento do homem que ao desmistificar suas representações a partir desse
desenvolvimento se descobre como real fundamento da sua própria existência enquanto ser
humano, ele se auto-produz e se liberta das condições naturais de pura necessidade.
Entretanto, as coisas não se encerram por aí. Como a história é um conceito que perpassa toda
a obra de Marx, ela reaparece novamente.
Nessas obras posteriores em que o conceito de história é lançado mão, tudo aparenta em que
o primeiro momento no qual se mostrou a história na obra de Marx, como história do
desenvolvimento do homem, como desmistificação das representações invertidas da
humanidade, enquanto um hegelianismo, muda um tanto de figura a partir de três obras, ‘’A
Ideologia Alemã’’ (1845-1846), ‘’A Miséria da Filosofia’’(1847), ‘’Manifesto
Comunista’’(1848). Essas três obras marcam aquilo que em Althusser mais tarde, se chamará
de Corte Epistemológico, no qual existe um jovem Marx, humanista, preocupado com
reflexões de cunho filosófico e derivados, contra um Marx científico, que começa a se
direcionar à Crítica da Economia Política.
O que está condensado nesses três textos mencionados em Marx, está articulado diretamente
em Althusser como o próprio desenvolvimento do corte epistemológico entre Marx e Hegel,
entre um jovem Marx Ideológico e um Marx maduro, que é científico, o Marx que se
conheceu como escritor do Capital, materialista. A argumentação que decorre para a
descoberta desse corte, de acordo com os escritos de Althusser está diretamente ligada com a
própria vivência de Marx e mostra alguns espasmos deste materialismo diretamente em sua
obra da juventude entre uns escritos e outros. Esses escritos de acordo com a reflexão
empreendida por Althusser, são ainda produtos das vivências pessoais de Marx. Ou seja, um
Marx ainda afetado por aquele mundo que o circunda, em uma Alemanha atrasada, numa
formação teórica voltada justamente nesses autores da filosofia alemã desde então, para
Althusser, este jovem Marx seria produto de sua própria conjuntura

‘’É preciso nascer algum dia, em algum lugar, começar a pensar e


escrever[...]Marx não escolheu nascer para o pensamento e pensar no mundo
ideológico que a história alemã concentrara no ensino das universidades. Foi
nesse mundo em que ele cresceu, aprendeu a mover-se e a viver, foi para ele
que se ‘’justificou’’, foi dele que se libertou. [...] o jovem Marx surge no
mundo de pensamentos do seu tempo[...]’’(ALTHUSSER, LOUIS, 2015,
p.48-49)

A partir da constatação de que o próprio Jovem Marx e seus conceitos que aparecem de uma
forma ainda um tanto quanto Hegeliana até os Manuscritos de 1844, como produto
justamente da sua formação teórica e sua vida na Alemanha, logo, Althusser, rastreia e
justifica seu corte, onde o primeiro Marx é deixado para trás, em nome de um Marx
científico, a partir da sua mudança para a França, onde este acaba testemunhando
pessoalmente o barril de pólvora que é o país politicamente.

Althusser faz questão de mostrar esse movimento de abandono das concepções que aparecem
nesse jovem Marx como um retorno do próprio Marx, de uma crítica às representações
tomadas de maneira espontânea, vindas do próprio idealismo alemão, noções como
‘’Homem’, ‘’Gênero’’, etc etc. Tudo isso é revisto a partir do momento em que Marx se
depara com uma nova realidade na França em completa ebulição política.

’’Essa volta atrás da Ideologia começava a coincidir com uma realidade


radicalmente nova, na qual Marx e Engels não encontravam eco nos textos
da Filosofia Alemã. O que Marx descobriu na França foi a classe operária
organizada, e Engels na Inglaterra o capitalismo desenvolvido e uma luta de
classes que seguia suas próprias, prescindindo da filosofia e dos
filósofos’’(Idem, 2015, p.61)

É justamente esse momento no qual Marx muda de realidade em que todas as suas
concepções mudam radicalmente de acordo com Althusser. Trata-se agora de um discurso
sobre as classes sociais, e aqui, sobre o capitalismo que as move. A passagem que diz no
manifesto comunista que: ‘’A história de todas as sociedades até aqui tem sido a história da
luta de classes’’(p.40) endossa justamente essa mudança de foco de Marx. Note-se que o que
se apresenta enquanto história aqui não é mais o poder desmistificador desta ao lado da
filosofia, mas uma história disputada entre as classes sociais, um campo de disputa.

O texto que melhor aborda essas disputas é de fato ‘’A Ideologia Alemã’’ (1845-1846), pois
ele aparece como um verdadeiro acerto de contas de Marx e Engels com a tradição desde
então, a tradição neste caso, seria a própria filosofia alemã e seus representantes. Neste caso,
justifica-se a compreensão Althussereana a respeito desse corte, Marx de fato se dirige a uma
compreensão da história que é mais científica do que especulativa. Os elementos materialistas
tomam a frente em relação aos idealistas e filosóficos.
Vale a pena delinear nesse caso, que esse elemento materialista em que toma frente, é a
premissa em geral de toda a história para Marx, é justamente o fato de que antes de se engajar
em qualquer relação conceitual ou derivada disso, os homens precisam produzir meios para
sobreviver e viver enquanto tais. Não existe um homem etéreo no qual todas as noções estão
postas e basta ele tomar consciência dessa essência. O primeiro pressuposto da história, para
se fazer história é estar vivo, como virão a demonstrar Marx e Engels.

‘’[...]devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda


a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber,
o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver
para poder “fazer história”.a Mas, para viver, precisa-se, antes de
tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas
mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a
satisfação dessas necessidades’’(MARX, KARL, ENGELS,
FRIEDRICH 2007, p.32-33)

Este primeiro ato histórico de acordo com Marx fundamenta antes de tudo as representações
de mundo dos homens ou como este mesmo diz em páginas seguintes ‘’A produção de ideias,
de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a
atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida
real.’’(p.93). Não se trata de começar com as representações dos homens, com demonstrar o
homem como aquilo que está por trás, mas sim de mostrar o homem nessa sua atividade,
como ele pode de fato produzir essas representações. Sendo assim, a história para Marx a
partir da Ideologia Alemã, ganha um caráter ainda mais imanente, graças a esse reino das
representações que é mencionado, pois para o materialista, trata-se de descobrir como essas
representações são fabricadas, o que Marx diz de diversas maneiras e da forma mais resumida
a partir da célebre frase que captura esse movimento, frase que é dita posteriormente na
‘’Contribuição à Crítica da Economia Política’’ ‘’Não é a consciência que determina o ser,
mas o seu ser social que determina sua consciência’’(p.47).

Muito embora ainda no contexto de ‘’A Ideologia Alemã’’, corra-se o perigo de uma espécie
de nominalismo a respeito dessas representações2, ao mesmo tempo há uma menção à própria
dispersão pela primeira vez. Se fala não em uma história do homem, mas em histórias no
sentido mais plural possível, como o próprio autor pode mostra, pois a história não é tão
somente um acúmulo dessas experiências que culminam na libertação do ‘’Eu’’, da
‘’Autoconsciência’’ entre outros conceitos. Esses conceitos são correlatos da produção de
vida dos homens enquanto seres que produzem e se reproduzem a partir de condições
materiais e objetivas dadas, como se segue abaixo, ou seja, como uma história do
desenvolvimento material e das ideias que o acompanham

‘’A história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em que


cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a
ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por um lado ela
continua a atividade anterior sob condições totalmente alteradas e, por outro,
modifica com uma atividade completamente diferente as antigas condições,
o que então pode ser especulativamente distorcido, ao converter-se a história
posterior na finalidade da anterior, por exemplo, quando se atribui à
descoberta da América a finalidade de facilitar a irrupção da Revolução
Francesa, com o que a história ganha finalidades à parte e torna-se uma
“pessoa ao lado de outras pessoas” (tais como: “Autoconsciência, Crítica,
Único” etc.), enquanto o que se designa com as palavras “destinação”,
“finalidade”, “núcleo”, “ideia” da história anterior não é nada além de uma
abstração da história posterior, uma abstração da influência ativa que a
história anterior exerce sobre a posterior. Ora, quanto mais no curso desse
desenvolvimento se expandem os círculos singulares que atuam uns sobre os
outros, quanto mais o isolamento primitivo das nacionalidades singulares é
destruído pelo modo de produção desenvolvido, pelo intercâmbio e pela
2
De acordo com a leitura de Ruy Fausto, no livro III de Marx, Lógica e Política, essa tendência aparece pela
maneira na qual a história é exposta na Ideologia Alemã e nas obras citadas ao lado desta, as ditas obras do corte
epistemológico, nos termos de Althusser.
divisão do trabalho surgida de forma natural entre as diferentes nações, tanto
mais a história torna-se história mundial[...]Segue-se daí que essa
transformação da história em história mundial não é um mero ato abstrato da
“autoconsciência”, do espírito mundial ou de outro fantasma metafísico
qualquer, mas sim uma ação plenamente material, empiricamente
verificável, uma ação da qual cada indivíduo fornece a prova, na medida em
que anda e para, come, bebe e se veste.’’(MARX, KARL, ENGELS,
FRIEDRICH 2007, p.40)

Além de que, como mencionado na passagem supracitada, as ideias não pairam no éter do
pensamento puro, como já reforçado, mas são advindas de estruturas sociais que até aqui, de
acordo com a célebre frase do Manifesto, o são como correlatos da luta de classes. Existe até
aqui uma dominação na história, nos quais as ideias ganham um caráter quase irônico,
quando se olha para tal estrutura social. Marx com Engels diz mais a frente que ‘’As ideias da
classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força
material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante’’( p.47)

Nesse movimento que é importante deflagrar, pois esse caráter de dominação no qual as
ideias tendem a expressar, como ideias das classes dominantes, aparece novamente no 18
Brumário (1851-1852), onde um golpe de estado aparece aos historiadores como uma
repetição do passado, um retorno de Napoleão. O evento histórico, mencionado no entanto é
tomado como algo cômico, repetição farsesca do passado sob a pena de Marx.. Como as
primeiras páginas do texto indicam, a ironia de Marx com Hegel3 Faz mostrar justamente que
a partir da concepção que brota das relações sociais, que é ideológica ao lado da concepção
que está junto da história como esse passar de geração para geração, uma ao lado da outra.
Há de fato um fazer da história pelos homens, ao mesmo tempo em que ‘’pois não são eles
quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas
assim como se encontram’’(p.23), essas condições são tais como ‘’A tradição de todas as
gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos’’(IDEM, p.23),
nos tempos de crise revolucionária, como é a época do 18 Brumário, conjurou-se os
fantasmas do passado que encobriram a possibilidade de mudança real.
O futuro torna-se um pastiche de passado na concepção das classes dominantes e nesse meio
tempo, aparece a possibilidade de uma crítica desta concepção a partir das relações reais,
onde o pastiche o evento histórico verdadeiro estão lado a lado.

3
‘’ Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são
encenados, por assim dizer, duas vezes . Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a
segunda como farsa’’ p.23, Boitempo.
É justamente esse caráter ideológico, farsesco e cômico que brota como a possibilidade da
Ideologia que é denunciada a partir dos textos da ‘’Ideologia Alemã’’ não é só mero dado a
ideias a partir de relações sociais de produção determinadas, mas ela compõe também uma
visão de mundo. No que concerne ao conceito de história, ela permite surgir em Marx um
conceito que não enxerga mais na história somente o poder desmistificador das alienações do
homem ou então, o desenvolvimento de forças materiais dos homens a partir dos modos de
produção. Esse processo quando chega ao 18 Brumário mostra-se mais contraditório do que
o esclarecimento supostamente economicista em A Ideologia Alemã. A narrativa ideológica
está junto dessa história, o pastiche, a comédia, a farsa têm sua consistência. De acordo com
Marx o próprio Luís Bonaparte toma ‘’sua comédia como história universal’’(p.86). Não é
por acaso que Marx tem a partir disso conclusões a respeito desse processo que futuramente
em sua obra se é lidado de uma forma mais rigorosa

’’E, assim como na vida privada se costuma diferenciar entre o que uma
pessoa pensa e diz de si mesma e o que ela realmente é e faz, nas lutas
históricas deve-se diferenciar tanto mais as fraseologias e ilusões nutridas
pelos partidos do seu verdadeiro organismo e dos seus reais interesses,
deve-se diferenciar as suas concepções da sua realidade.’’(MARX, KARL,
2011, p.56-57)

A concepção de história que brota ao lado do desenvolvimento que Marx nota em 18


Brumário é portanto uma grande comédia, ironia, onde o futuro e o passado são a mesma
coisa, diferenciados tão somente pelos personagens, existe uma involução ou conservação e
não mudança radical de estruturas, ou seja, uma ‘’Ideologia’’ que não é só mero nome. Ao
passo que a história real contradiz isso, se tomada como desenvolvimento diverso de geração
em geração a partir do tempo. Como é possível a resolução dessa aporia? Ora, de acordo com
Ruy Fausto em seu livro III de ‘’Marx, Lógica e Política’’, os textos que marcam até a
Ideologia Alemã tem como seu centro o fato de que‘’o tempo domina o conceito. Não é o
conceito que põe o tempo, mas o tempo que põe o conceito. Há por isso mesmo um primado
da prática, que vai até o ponto de diluir as significações teóricas’’(p.92, grifos meus). É
nesse sentido que a concepção de história evolucionista e ainda um tanto historicista que
brota nesses escritos 4, pode entrar em choque com as concepções da obra de Marx
desenvolvidas em ‘’O Capital’’.

4
Mesmo contrariando a visão Althusser a respeito do historicismo, por exemplo. O que pode ser desenvolvido
no andamento da pesquisa.
Trata-se da questão do Conceito. O Conceito está ausente nessas obras. Althusser percebe
uma mudança de foco do Marx jovem ao Marx maduro, que aqui vai ser explorada, a partir
dos textos que abordam a Economia Política e a Crítica, como o momento no qual o Conceito
se faz presente.

A partir daí, todas essas outras obras podem ser relidas sob outra luz ou então, a relação entre
o jovem Marx e o Marx maduro podem ser articuladas não tão somente como um corte como
aponta Althusser, mas uma relação contraditória entre um e outro, no qual o segundo Marx
justifica o primeiro ou ao menos, dá um sentido a essa crítica que é engendrada no primeiro
Marx. Os termos, por exemplo, podem ser tranquilamente revisitados sob a ótica da Crítica
da Economia Política e na ordem do conceito. A sua posição, no entanto, muda de acordo
com a exposição que é feita de acordo com a ordem do Conceito enquanto o Capital.

O conceito no qual completa a exposição da obra Marxiana e renova a leitura da história a


partir de seus desdobramentos e a partir disso é o conceito que não fecha a compreensão da
história em Marx, mas o abre para um novo horizonte é justamente, O Capital e os
Grundrisse. O modelo de história que ali está presente refinaria os conceitos apresentados por
exemplo na Ideologia Alemã e em textos como 18 Brumário e derivados retroativamente até
a ordem capitalista. Dito de uma outra forma, o Conceito colocaria em pé essa dispersão até
aqui, mas ao mesmo tempo, ele também mostraria limitações. Por isso que sua apresentação
assume um caráter de crítica, trata-se de uma Crítica da Economia Política que apresenta a
história retroativamente a respeito dela. É nesse sentido que Marx termina dizendo que o que
se apresentou como resultado de seus estudos é a ‘’pré-história’’ humana.

Tudo que é retratado até aqui, é revisto retroativamente a partir dos textos de Crítica da
Economia Política, principalmente os Grundrisse como o Capital tomando o lugar do
conceito. O capital enquanto conceito nos faz rever as obras da juventude a partir do seguinte
prisma: Existe uma história diversa, onde as condições materiais de fato determinam cada
povo em sua pluralidade. De acordo com Deleuze em seu ‘’O que é Filosofia’’, trata-se de
compreender o caráter contingente dessa história, ou então: ‘’[...]não há história universal
senão da contingência.’’(p.122)5. Essas rupturas nas quais passam a história que apontam sua
descontinuidade, sua pluralidade estão reforçadas pelo próprio Marx no capítulo sobre as

5
A página aqui marcada é de uma edição online do texto, indicada no final deste nas referências bibliográficas.
‘’Formas que antecedem a produção capitalista’’ nos Grundrisse, onde três formas sociais de
relações pré-capitalistas são analisadas em sua particularidade. Mas ao mesmo tempo, a
retroação que o conceito quando se põe a partir do Capital, torna essa diferença sujeitada a
uma espécie de identidade, para usar os termos Deleuzeanos, que neste caso, é o da
modernidade.
A diferença, em respeito ao trato que Marx dá a isso, é o fato de que essa história da
contingência, da ruptura está correndo ao lado da história tomada como ideologia e muitas
vezes uma invade o espaço da outra, como Marx mostra nos Grundrisse

‘’ A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por


outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores
só podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é
conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da
economia antiga etc. Mas de modo algum à moda dos economistas, que
apagam todas as diferenças históricas e vêem a sociedade burguesa em todas
as formas de sociedade’’(MARX, KARL, 2011, p.58)

As diferenças, portanto, estão ao lado dessa concepção. Essas formas sociais que antecedem o
capitalismo são diversas ao mesmo tempo que de seus escombros nasce a sociedade
capitalista. A sociedade capitalista surge desses escombros e os engendra como parte do SEU
próprio movimento e os justifica, do futuro para o passado, do ponto de vista da ideologia, as
formas passadas são tomadas como preparação do capitalismo ao mesmo tempo que não são.
Essa contradição só é sanada efetivamente a partir do próprio movimento do conceito lido
dessa maneira retroativa. É uma projeção do futuro no passado parecida com a feita no 18
Brumário, que é do passado para o futuro, como se os tempos pudessem efetivamente se
intercambiar com essa facilidade.

A efetividade do ideológico nesse sentido não é só mais uma representação que brota das
relações materiais, mas possui uma consistência graças a sua formulação universal e concreta,
pois as categorias se manifestam no ser individual e não mais como ideia pairando em nada.
Ao mesmo momento em que uma história mundial é permitida quando a burguesia rompe
com as relações antigas e a partir do capitalismo, ruma globo a fora6 Com o comércio e a
indústria, as outras histórias e diversos são engolidos a partir dessa roda que se apresenta
como progresso.
A evidência dessa relação entre o tempo concreto que narra a passagem de geração para

6
Ver ‘’Manifesto Comunista’’ p.40 a 45 a respeito desse caráter expansivo da burguesia.
geração x a história idílica é narrada justamente no capítulo XXIV do primeiro livro de ‘’O
Capital’’(1867), onde a versão idílica está ao lado da história real que mostra que o
assassínio, o roubo e a pilhagem estão ao lado desse progresso levado pela história mundial,
da indústria e do comércio (O Capital, p.785)

Esse ponto de vista aqui proposto faz revisitar a possível teoria da história de Marx não como
uma teoria geral da história. Mas uma apresentação da história até aqui ao lado da Crítica da
Economia Política como um sentido pelo qual essa história passa até aqui, o sentido já
anunciado no Manifesto como história da luta de classes, mas aqui, nomeada como
pré-história da humanidade. O Capital seria como um elo negativo no qual essa história se
desenvolve, como uma história de negação da humanidade, que as justifica efetivamente, pois
por seu caráter universal engendra também o caráter universal da própria libertação. Dito
assim, segundo as palavras de Ruy Fausto em seu segundo livro de Marx, Lógica e Política,
‘’Esse resultado, entretanto, abre, mas não fecha a História’’(p.11). A História se abre para
uma complexão ampla de história que nega o homem ao mesmo tempo que a partir de seu
mecanismo interno de ruptura, graças a passagem de geração para geração, possibilita a
descontinuidade dessa pré-história. O tempo venceria o conceito como resultado.

Ainda de acordo com Walter Benjamin na tese XIV, em ‘’Teses Sobre um Conceito de
História’’(1940), trata-se, no caso do materialista histórico, de articular o passado e suas
condições e a partir do tempo de agora (Jetztzeit) fazê-lo explodir. Toda a teoria da história de
Marx ou da sua apresentação junto da Crítica da Economia Política desemboca justamente na
tentativa de explodir esse contínuo da história, ou como diz Marx, terminar a pré-história da
humanidade.7 A pretensão do capitalismo de ser para além da história ou nesse caso aqui, do
conceito que faz a história é desfeita e Deleuze e Benjamin a partir dos apontamentos aqui
feitos mostram como isso é feito na obra marxiana. De um lado, a leitura da pura
contingência, da diversidade, da ruptura, do outro, a implosão desse contínuo da história até
aqui. O próprio capitalismo ou o próprio conceito torna-se histórico pois ele é vencido pelo
tempo ou de acordo com uma teoria mais adequada ao marxismo, o próprio tempo engendra
sua possibilidade de destruição e de superação.

7
‘’Com essa formação social termina, pois, a pré-história da sociedade humana’’(MARX ,KARL p.48)
3. OBJETIVOS

O principal objetivo do presente projeto se resume a partir do seguinte ponto: Oferecer uma
leitura da história em Marx que não é uma leitura mecanicista, economicista e determinista,
mas sim uma leitura que engaja a pluralidade do desenvolvimento histórico e que ao mesmo
tempo é atravessada por algo que se pretende não-histórico ou então, que dá um sentido a
essa história até aqui a despeito da vontade dos homens, como é o caso da autonomia da
própria economia que é assumida dentro do capitalismo e tendo o seu desenvolvimento
tomado de maneira quase mitológica8. Essa mitologia que atravessa a história e faz aparecer
uma história ao lado da história real, é a questão da Ideologia, que não é somente uma
coleção de nomes vazios, mas um correlato do próprio objeto que se revela como o mais
decisivo na obra de Marx, O Capital. O que devia ser esclarecido a respeito da origem,
torna-se confusão a respeito dela mesma e se perde em um discurso vago e que confunde a
verdade e a falsidade, mas que pode se reabilitar a partir da crítica.
Se seguiria daí, a importância de salientar a própria pluralidade que a história é tomada por
Marx, como mostrado em passagens aqui postas, essas passagens mostram justamente uma
abertura à pluralidade que foi sujeitada à unidade do desenvolvimento capitalista e é
compreendida assim ideologicamente. A articulação com Benjamin e Deleuze apontada no
fim deste projeto, ajudaria a compreender a relação entre multiplicidades e unidade da
história, dando um corpo mais sólido à reflexão, sem tirar Marx de vista.

E por último, uma possibilidade de apontar uma possível articulação interna da obra de Marx
a partir do tema, pois este não pode ser concebido fora da imanência da própria obra do autor,
pois ela mesma atravessa a obra de Marx, desde seus textos de juventude até os textos de sua
maturidade, trata-se, portanto de mostrar como a relação entre jovem Marx e o Marx maduro
que se articula como uma dialética interna da sua própria obra que é justificada a partir de ‘’O
Capital’’ como nexo crítico e lógico de sua obra. A ideia de mudança de mundo também pode
ressoar no fundo, pois se trata de poder ultrapassar a própria pré-história dos homens com a
possibilidade de ruptura deste contínuo até aqui a partir do conceito de história.

8
Aqui é possível fazer uma referência aos desdobramentos da Dialética do Esclarecimento (Adorno e
Horkheimer), pois a própria história como história do desenvolvimento do capitalismo nesse caso, tem um
caráter mitológico se lida de maneira descuidada. Como já citado, Marx quando se refere ao processo de
acumulação primitiva contado pelas elites possuidoras de Capital como um idílio, pode tranquilamente ser
relacionado à mitologia da razão que Adorno e Horkheimer descobrem na questão do esclarecimento. Há uma
lacuna no tempo que separa os autores que também é conjuntural, mas é importante notar que Marx já começa a
notar essas tendências mais ou menos mitológicas na ideologia burguesa,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARX, KARL, 18 Brumário de Luís Bonaparte, BOITEMPO, 2011, São Paulo

______, _____, Grundrisse, BOITEMPO, 2011, São Paulo

_____, _______, Contribuição à Crítica da Economia Política, EXPRESSÃO


POPULAR, 2008, São Paulo

_______,______ O Capital, Livro 1 O processo de produção do Capital, Boitempo,


São Paulo-SP, 2013

_____,_____, ENGELS, FRIEDRICH, A Ideologia Alemã, Crítica da mais recente


filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo
alemão em seus diferentes profetas, Boitempo, São Paulo-SP, 2007

______,_______, Contribuição à Crítica da Economia Política, Expressão Popular,


São Paulo-SP, 2008

______,_______, _________,_________ Manifesto do Partido Comunista, Boitempo,


São Paulo-SP, 2010

________,______ Crítica da Filosofia do Direito, Boitempo, 2010, São Paulo

_______,_______, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Boitempo, 2010, São Paulo

________,________, O Capital, livro 3, O processo global de produção capitalista,


Boitempo, São Paulo-SP, 2017.

FAUSTO, RUY, Marx, Lógica e Política, Tomo II, Brasiliense, São Paulo-SP, 1987
FAUSTO, RUY, Marx, Lógica e Política, Tomo III, 34, São Paulo-SP, 2002

LOWY, MICHAEL, Walter Benjamin, Aviso de Incêndio, uma leitura das teses
‘’Sobre um Conceito de História’’, Boitempo, Sâo Paulo-SP, 2005

MAESO, BENITO, Marx e Deleuze, as Diferenças em Comum, Appris, Curitiba,


2020

ALTHUSSER, LOUIS, Por Marx, UNICAMP, São Paulo, 2015

DELEUZE, GILLES, GUATTARI, FÉLIX, O que é Filosofia? Editora !34, Coleção


Trans, Disponível em:
https://conexoesclinicas.com.br/wp-content/uploads/2015/12/deleuze-g_-guattari-f-o-q
ue-e-filosofia.pdf

ADORNO, THEODOR, HORKHEIMER, MAX, Dialética do Esclarecimento,


Disponível em: http://antivalor.vilabol.uol.com.br

REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES

FAUSTO, RUY, Sentido da Dialética, Marx, Lógica e Política, Vozes, Petrópolis-RJ,


2015.

KURZ, ROBERT, Razão Sangrenta, Hedra, São Paulo-SP, 2010

POSTONE, MOISHE, Tempo, Trabalho e Dominação Social, Boitempo, São


Paulo-SP 2014

GAGNEBIN, JEANNE MARIE, Walter Benjamin, Os cacos da História, Brasiliense,


São Paulo-SP, 1993
MANDEL, ERNEST, Iniciação à Teoria Econômica Marxista, Edições Antídoto,
Lisboa-PT, 1978

JAPPE, ANSELM, A Sociedade Autofágica, Antígona, Lisboa-PT, 2019

LUKÁCS, GEORGY, História e Consciência de Classe, Martins Fontes, São


Paulo-SP, 2019

HEGEL, GEORG WILHELM FRIEDRICH, Ciência da Lógica, Doutrina do Ser,


Vozes, Petrópolis-RJ, 2017

________,____________________________, Ciência da Lógica, Doutrina da


Essência, Vozes, Petrópolis-RJ, 2018

_________,________, RANCIÉRE, JACQUES, MACHEREY, PIERRE, Ler O


Capital, Vol.1, Zahar, Rio de Janeiro, 1979

ALTHUSSER, LOUIS, BALIBAR, ÉTIENNE, ROGER STABLET, Ler O Capital,


Vol.2, Zahar, Rio de Janeiro, 1980

DELEUZE, GILLES, O Anti-Édipo, Editora 34, São Paulo, 2011

Você também pode gostar