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A razão do estudo desse livro do Bauman é a mesma que tem me feito ler diversas obras
que abordam o tema cultura sob variados aspectos a fim de construir uma compração
entre a noção de Kultur freudiana, as diferentes maneiras como os psicanalistas
contemporâneos utilizam o termo cultura e diferentes trabalhos de autores não
psicanalistas sobre o mesmo tema (como "A noção de cultura nas ciências sociais", de
Denys Cuche, "A invenção da cultura", de Roy Wagner, vários trabalhos de Lévi-Strauss
e afins). Na introdução póstuma (1999) que Bauman faz ao seu livro (de 1975), o autor -
na época menos célebre e mais pesquisador, menos autoral e mais acadêmico -
contextualiza que sua principal influencia era Lévi-Strauss e parece aceitar com ressalvas
o que propunha na época. Contudo, veremos que em O mal-estar da pós-modernidade,
de 1997, há alguns - poucos, mas importantes - pontos em comum. Outro fato interessante
é que o título original é Culture as praxis, muito diferente do que recebeu a sua tradução.
O título em inglês dá um tom de trabalho autoral para o livro que a tradução brasileira
suprime. São ensaios sobre um conceito dado ou existe uma proposta conceitual do autor?
Bom, de minha parte creio que ambas possibilidades se confirmam no texto, mas deixo a
questão aos que acompanham a obra como um todo.
Retomando a razão dessa leitura e da reflexão sobre a mesma, isto é, do que falamos - e
especialmente nós, os psicanalistas - quando falamos sobre cultura, destaco o seguinte
trecho (p. 90): "O uso do termo 'cultura' está tão profundamente arraigado na camada
comum pré-científica da mentalidade ocidental que todo mundo o conhece bem, embora
por vezes de forma irrefletida, a partir de sua própria experiência cotidiana". É uma
questão de suma importância: Freud tem um conceito de Kultur extraível de seus diversos
trabalhos "sociais", mais ou menos sistematizado, mas bastante reconhecido enquanto tal
pelos pós-freudianos e a comunidade científica interessada no geral. O mérito do trabalho
de Bauman (e de outros autores, como o supracitado Cuche) é permitir uma
contextualização histórica da produção freudiana. Sendo assim, a cultura deixa de ser um
objeto dado e observável de maneira suficientemente objetiva onde o termo é empregado
e compreendido por um conjunto de pessoas de maneira unívoca. A cultura é situada
como um problema próprio e exclusivo do homem moderno - como Freud, por exemplo.
"A ideia de cultura foi uma invenção história instigada pelo impulso de assimilar, do
ponto de vista intelectual, uma experiência inegavelmente histórica. E, no entanto, a ideia
em si não poderia apreender essa experiência de outra maneira senão em termos supra-
históricas, da condiação humana como tal" (p. 19), isto é, o homem moderno, delimitado
historicamente, pretendeu uma teoria não-histórica, algo como a própria essência da
experiência humana enquanto cultura, oposta à natureza. Não levar isso em consideração
produziria um uso do termo cultura baseado na experiência cotidiana. Assim, o que se
considera de maneira irrefletida algo dado e de acesso comum se torna na verdade uma
construção baseada na experiência individual que se crê partilhada. Resumindo: sabemos
se estamos falando da mesma coisa quando falamos de cultura? Sobre o que construímos
essa noção? É um alerta que deveria suscitar os psicanalistas a, no mínimo, abandonarem
algumas de suas (nossas) certezas.
Seguindo Bauman na construção da cultura enquanto uma questão moderna (p. 12):
"Originalmente, na segunda metade do século XVIII, a ideia de cultura foi cunhada para
distinguir as realizações humanas dos fatos 'duros' da natureza. 'Cultura' significava
aquilo que os seres humanos podem fazer; 'natureza', aquilo a que devem obedecer.
Porém, a tendência geral do pensamento social durante o século XIX, culminando com
Émile Durkheim e o conceito de 'fatos sociais', foi 'naturalizar' a cultura: os fatos culturais
podem ser produtos humanos; contudo, uma vez produzidos, passam a confrontar seus
antigos autores com toda a inflexível e indomável obstinação da natureza (...)". Aqui
começa a se afigurar o que será comum tanto ao Ensaios (1975) quanto ao Mal-estar
(1997), a saber, a compreensão da cultura enquanto produção de ordem. Em Ensaios essa
ordem será compreendida a partir de um viés estruturalista. Vejamos (p. 19): "Uma
sequência temporal será 'ordenada', e não aleatória, à medida em que nem tudo possa
acontecer. 'Construir a ordem' significa, em outras palavras, manipular as probabilidades
dos eventos. Se o que se deve ordenar é um conjunto de seres humanos, a tarefa consiste
em incrementar a possibilidade de certos padrões de comportamento, ao mesmo tempo
que se restringe, ou se elimina totalmente, a possiblidade de outros tipos de conduta." O
autor ainda lembra que, na antropologia ortodoxa, cultura "queria dizer regularidade e
padrão - com a liberdade classificada sob a rubrica de 'desvio' e 'rompimento da norma'"
(p. 23). Em Mal-estar veremos o uso da noção de cultura enquanto ordem situado no
contexto do que o autor considera pós-modernidade: se, segundo sua interpretação do
texto clássico freudiano, o mal-estar na Kultur (moderna) é gerado por uma espécie de
contrato onde se abre mão de grande parte da liberdade em nome convivência a partir de
uma ordem, na pós-modernidade a liberdade se torna um valor mais importante do que a
ordem e a gangorra assim muda de posição. Trata-se, ao meu ver, de uma equação
demasiada simples quando exposta dessa maneira. A maneira como é utilizada no restante
do livro, porém, é mais frutífera e complexa.
No seguinte trecho (p. 28) se apresenta uma relação entre ordem e mudança: "A busca
da ordem torna toda ordem flexível e menos que atemporal; a cultura nada pode produzir
além da mudança constante, embora só possa produzir mudança por meio do esforço de
ordenação. Foi a paixão pela ordem nascida do medo do caos – assim como a descoberta
da cultura, a percepção de que o destino da ordem está em mãos humanas – que levou o
mundo humano a uma era de ininterrupto e acelerado dinamismo de formas e padrões".
Aqui o autor já apresenta o germe dos argumentos que o farão defender uma noção de
pós-modernidade que se opõe à modernidade. Se uma busca a ordem em direção a um
ideal racional de organização e inteligibilidade (herança iluminista?), produz-se uma
descontinuidade (a "pós") quando a destruição da ordem anterior em prol de uma nova
ordem passa a ser um constante processo de mudança não guiado por um ideal de
organização, mas apenas puro movimento (liquidez?). No Ensaios, por sua
vez, encontramos uma caracterização da contemporaneidade (de 1975, lembremos) não
como uma ausência de valores, mas como a coexistência de diversos que não
necessariamente se conjugam e são até mesmo discordantes, o que é considerado uma
"experiência enervadora" (p. 79)
Acompanhando a ambiguidade do título original e de sua tradução para o português,
vemos mais uma vez a alternância entre a obra do autor que teoriza sobre a cultura e a do
autor que faz ensaios sobre seus diversos aspectos (p. 29): "À luz da experiência agora
comum, parece plausível que, tendo havido ou não uma cultura "de tipo sistema", a
possibilidade (e a probabilidade) de perceber os fenômenos culturais como constituindo
uma totalidade coesa e fechada em si mesma (um "sistema", no sentido antes descrito) foi
uma contingência histórica".