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RELATÓRIO FINAL
CURITIBA
2021
RESUMO
DESENVOLVIMENTO
Entretanto, assim como tratar a África como um único lugar é uma mentalidade
empobrecedora e limitadora, ignorar as diferenças entre lugares, cidades e estados
no Brasil, também o é. O rosto da arquitetura popular brasileira muda de região para
região, uma vez que em um país verticalmente extenso como o Brasil, fatores físicos
e bioclimáticos podem ser tão diferentes quanto suas peculiaridades culturais,
econômicas, etc. Esses fatores fazem com que uma casa de periferia na Região
Norte, em uma grande cidade como Manaus, por exemplo, seja composta por
barracos de madeira em palafitas, e outra na região Sudeste tenha uma materialidade
basicamente de blocos cerâmicos e concreto armado, materiais com características
totalmente diferentes. Em ambos os casos, uma coisa é certa: a população será
majoritariamente negra 1.
1
Segundo relata a pesquisadora Rita Izsák, relatora especial das Organizações das Nações Unidas
sobre questões de minorias, 70,8% de todos os 16,2 milhões de brasileiros que vivem atualmente em
situação de extrema pobreza são negros.
2
O engenheiro e político brasileiro, Francisco Pereira Passos, foi prefeito do então Distrito Federal
entre 1902 a 1906, e foi marcado pela grande reforma urbana na capital brasileira, baseada nos moldes
parisienses, iniciada no ano de 1903. A reforma ficou conhecida como “o bota-abaixo”.
3
Georges-Eugène Haussmann, também conhecido como Barão Haussmann, (1809-1891), foi o
prefeito do distrito de Sena entre 1853 a 1870, sendo responsável pela transformação de Paris na
cidade que conhecemos hoje, com suas grandes reformas na malha urbana parisiense que inspiraram
e influenciaram o urbanismo moderno.
4
PINHEIRO, Diógenes. A Cidade-Espetáculo e as Favelas Visibilidade e Invisibilidade Social.
Revista Contexto & Educação, v. 26, n. 85, p. 95.
5
DA SILVA, Lucas M. M. A população negra africana e a diáspora na arquitetura:
influências e inter-relações afro-brasileiras na arquitetura. Curitiba: UFPR. NUPRA. 2020. p-22.
6
LUCENA, Felipe. História do Cais do Valongo - Diário do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Dez 2019.
Disponível em: <https://diariodorio.com/historia-do-cais-do-valongo-2/>. Acesso em: 8 Jun. 2021.
7
O Nascimento do Samba. Rio de Janeiro, Podcast História Preta, Fev. 2019.
A série de fatos citados, somados a quase nenhuma mudança nas relações
dos grupos dominantes para com os mais pobres (e consequentemente pretos), após
a Proclamação da República, em 1889, resultaram no caos social e de habitação,
como cita o antropólogo Darcy Ribeiro:
Tudo isso, somado ao pós Guerra dos Canudos (onde milhares de soldados
negros e mestiços e suas famílias foram ludibriados pelo governo republicano com a
sonhada promessa de moradia, caso voltassem vitoriosos da guerra - promessa que
obviamente não se cumpriu) e a uma série de políticas higienistas, deu início à
primeira favela do Brasil, o Morro da Favela 10, hoje conhecido como Morro da
Providência.
8
MOURA. Alessandro de. Quilombolas e favelas: negação e reafirmação das condições da
população negra no Brasil. Marília. Unesp, 2006
9 “Era um cortiço monumental [...]. O local exato onde ele ficava é onde existe hoje o Túnel João
Ricardo, ao lado da Central do Brasil (TEIXEIRA, Milton. Entrevista ao G1, 2015)”. CARVALHO,
Janaína. Conheça a história da 1ª favela do Rio, criada há quase 120 anos. G1 Rio, Rio de Janeiro,
jan. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/rio-450-anos/noticia/2015/01/conheca-
historia-da-1-favela-do-rio-criada-ha-quase-120-anos.html>. Acesso em: 9 Jun. 2021.
10 O nome se deu pela grande quantidade do arbusto rasteiro da família das euforbiáceas, da espécie
Fonte: Renascença
11As explorações continuaram até 1968, quando um acidente soterrou 36 pessoas que nunca foram
encontradas. (TEIXEIRA, Milton. Entrevista ao G1, 2015). Idem, Ibidem.
Percebe-se um movimento similar na formação do imaginário da população
brasileira, que também acontece no continente africano, principalmente em cidades
marcadas pela colonização. A busca pela boa arquitetura lá toma como referência
aquilo que se produz no Ocidente, mais especificamente nos EUA e na Europa. As
vias largas de asfalto, arranha-céus recobertos por vidros, janelas pequenas
centralizadas, e a busca abusiva por materiais industriais como ferro, concreto, aço,
etc. são os elementos almejados na construção civil de países subdesenvolvidos, pois
o uso desses simboliza o progresso. Ou seja, a produção de arquitetura e engenharia
de qualidade e considerada avançada deriva do emprego desses materiais. Muitas
vezes, esses materiais não são acessíveis logisticamente; necessitam mão-de-obra
qualificada para o manuseio, bem como de um projeto estrutural minimamente
complexo; ou até são inadequados para as condições climáticas locais.
A mesma lógica se aplica ao uso das telhas de metal. Telhados feitos de palha
são muito equilibrados termicamente, e se realizados de forma correta (cerca de 30
centímetros de espessura) podem durar cerca de 50 anos sem grandes manutenções,
além de serem impermeáveis (como exemplo, há o uso de sapé como telhado por
diversos povos europeus, que além de suportar a neve, ainda mantém o ambiente
interno termicamente confortável). Porém, boa parte das pessoas que não moram em
grandes cidades não conseguem comprar a quantidade ideal de palha para construir
o telhado nas medidas necessárias, o que gera telhados mais finos e frágeis, que
necessitam de manutenção mais frequente. Essa insegurança cria o desejo por telhas
metálicas, que de fato têm uma manutenção muito menor e diminuem o risco de
incêndio, mas suas vantagens se limitam a isso, até porque as folhas metálicas que
compõem esses telhados são finas.
Figura 2 - Parede não rebocada para mostrar que foram usados tijolos queimados na casa, Malauí.
Nos morros e periferias brasileiras hoje, cada vez mais distantes dos centros
econômicos, as favelas se moldam de uma forma um pouco diferente das periferias
africanas, como exemplificou Kashala, e se faz nítido o abandono de materiais como
a madeira, que foi tão importante para o surgimento das construções periféricas. O
desuso deste material, inclusive, está ligado a questões de status social, uma vez que
a madeira não é vista como “material” no imaginário popular brasileiro. Tal
pensamento é comumente percebido através de expressões como “ter uma casa de
material” para se referir à alvenaria, ou por meio de histórias clássicas como Os Três
Porquinhos, onde a casa de alvenaria é vista como uma fortaleza inabalável e a casa
madeira como passível de ser derrubada com um sopro - e que apesar de simples,
desenvolve desde de cedo nas crianças a ideia da fragilidade do material. O fato é
Segundo Aston (2018), os edifícios são a manifestação física de uma cultura 22.
Quando se analisa a paisagem das periferias brasileiras com base nessa premissa,
percebe-se como funciona o modus operandi da construção civil informal nesses
bairros. Como relata o arquiteto francês Solène Veysseyre (2014), em artigo ao
Archdaily, acerca de seus estudos sobre as regras tácitas das construções nas
favelas: “é por isso que uma casa leva várias gerações para ser construída: uma laje
é construída, colunas erguidas e uma cobertura leve é instalada, mas isso é apenas
para marcar onde o próximo pedreiro deve continuar seu serviço” 23. A partir disso,
percebe-se uma das regras informais (e veremos algumas) mais recorrentes em
periferias no Brasil (talvez por conta da superlotação e falta de espaço construível
dentro desses bairros), é a tendência de manutenção das famílias ocupando o mesmo
terreno por gerações sucessivas. É extremamente comum andar por esses bairros e
encontrar famílias que dividem andares de uma mesma casa. Estes andares não são,
na maioria dos casos, construídos de uma só vez, mas aos poucos, sanando
necessidades que aparecem conforme as famílias crescem. Esse fenômeno é
ilustrado por Veysseyre (2014): o pavimento térreo é feito pelo avô/avó há cerca de
40 anos. Por volta de 20 anos depois, seu filho construiu o primeiro andar sobre a
segunda laje e agora o neto constrói sua casa sobre a última laje (Fig. 4). Às vezes,
a expansão pode ser visando uma renda extra, sendo comum a construção de casas
para alugar, normalmente para parentes ou conhecidos, embora isso não seja uma
regra.
21 BERRIEL, Andréa. Tectônica e poética das casas de tábuas. Curitiba, PR: Instituto Arquibrasil,
2011. p. 33-34.
22 ASTON, Sam. Architecture of Wakanda. MATECHI, Abril, 2018. Disponível em:
24 Fabiano, C., & Muniz, S. (2021). DIQUE VILA GILDA: CAMINHOS PARA A REGULARIZAÇÃO.
Planejamento E Políticas Públicas, (34). Recuperado de
//www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/173. Disponível em:
<https://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/173/186>. Acesso em: 14 Aug. 2021.
25 VEYSSEYRE, op. cit..
Figura 5 -Vigotas e tavelas cerâmicas, materiais comuns nas lajes das favelas . Brasil, 2014
No topo das casas, principalmente em regiões com sol abundante como o Rio
de Janeiro (RJ) ou Espírito Santo (ES), é comum que ao invés de telhado, utilize-se
mais frequentemente uma laje como cobertura, podendo até mesmo transformar o
terraço em área comercial, como bar, restaurante e solário (onde funcionam áreas de
bronzeamento, amplamente divulgadas na internet). Um dos elementos mais
marcantes na paisagem das favelas é a caixa d’água no terraço ou laje, juntamente
com um sistema de varal exposto, onde se penduram roupas onde não
necessariamente existe a preocupação de resguardar a privacidade das peças de
vestuário dos moradores. Já nas regiões mais frias, ao Sul, os terraços não são tão
frequentes, mas os outros parâmetros não necessariamente mudam. Outro
pavimento que costuma mudar de função nos edifícios-casa das favelas é o térreo,
comumente utilizado como comércio que recebe pintura ou azulejos que o diferencie
dos demais andares, onde a entrada para o restante da casa pode ser feita por dentro
do comércio, escada externa ou corredor na lateral do prédio.
26Caixarias ou formas para concreto, são estruturas de madeira feitas para a moldagem de peças de
concreto. Ao fim do processo de cura do concreto, sacam-se as madeiras (ou não) e a peça está
pronta para ser utilizada.
sala de jantar, e a sala de estar (ou sala de TV) assume esse papel. Os espaços
internos, em geral, são bem cuidados e limpos, pintados e decorados, e quase todos
possuem grandes televisões como elemento central. Azulejos são frequentemente
utilizados nas fachadas, paredes, escadas e pisos (VEYSSEYRE, 2014) 27.
27Idem.
28GABIRA, Gabriel. Casa desaba e danifica outras duas residências em Mauá, na Grande SP. São
Paulo, Brasil: TV Globo e G1 SP, agosto, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/noticia/2020/08/22/casa-desaba-em-maua-na-grande-sp-veja-video.ghtml>. Acesso em: 10,
Ago, 2021.
são explorados ao limite, com 100% da taxa de ocupação (ou mais), como relata o
repórter Sérgio Quintella, em matéria à revista Veja SP 29:
CARMO, Beatriz. A pobreza brasileira tem cor e é preta | Brasil. Techo.org. Disponível
em: <https://www.techo.org/brasil/informe-se/a-pobreza-brasileira-tem-cor-e-e-
preta/>. Acesso em: 17 jul. 2021.
BERRIEL, Andréa. Tectônica e poética das casas de tábuas. Curitiba, PR: Instituto
Arquibrasil, 2011. p. 33-34.
COSTA, Duarte Brasil e AZEVEDO, Uly da Costa. Das senzalas às favelas: por onde
vive a população negra brasileiras senzalas. The slum: where to live the population
brazilian black. [s.l.]: 2016. Disponível em: <https://www.fvj.br/revista/wp-
content/uploads/2016/07/Socializando_2016_12.pdf>.
FABIANO, C., & MUNIZ. Dique vila gilda: caminhos para a regularização.
Planejamento E Políticas Públicas, (34). Recuperado de
//www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/173. Disponível em:
<https://www.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/173/186>. Acesso em: 14
Aug. 2021.