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seja a que vem sendo produzida em outros países. Ela se caracteriza pela abertura a diferen-
tes abordagens teóricas e metodológicas, e pelos estudos sobre diferentes gêneros, que pos-
sam compor um painel multifacetado da produção cultural dos dias de hoje. Em particular,
a coleção é sensível à busca de novos meios de transmissão da expressão literária, tanto
pela revalorização da tradição das poéticas orais, por exemplo, quanto pela incorporação
das tecnologias mais recentes. Estará em perspectiva, também, a posição da obra literária e
de suas criadoras e criadores em meio aos enfrentamentos políticos e sociais da atualidade.
Coordenadores da coleção
LITERATURA
E
EDUCAÇÃO
Cristiane Tavares
Telma Weisz
(organizadoras)
LITERATURA
E
EDUCAÇÃO
Porto Alegre
1ª edição
2019
Clarice Lispector e as crianças:
uma investigação literária
Carlos Pires
Daniela Venturi
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tam essas estratégias? Em que elementos da construção literária é possível enxergar
as marcas de autoria? Como promover intervenções para potencializar o olhar das
crianças para esses aspectos? Estabelecida a direção, colocamos o experimento em
ação em uma sala de ensino fundamental com alunos de 8 e 9 anos de uma escola
particular da cidade de São Paulo. Os livros de Clarice Lispector que escolhemos,
praticamente todos,1 foram: Quase de verdade (LISPECTOR, 1985); O mistério
do coelho pensante (LISPECTOR, 2009); A vida íntima de Laura (LISPECTOR,
1983b); e, por fim, A mulher que matou os peixes (LISPECTOR, 1983a).
Os escritos de Clarice Lispector possuem uma relevância ímpar para a cons-
tituição e formação de leitores, sejam eles crianças, jovens ou adultos. Lajolo e
Zilberman, no livro Literatura infantil brasileira, pontuam alguns aspectos dessa
relevância na perspectiva da constituição de um sistema literário de livros para
crianças no país:
Talvez o escritor infantil que primeiro e com mais empenho tenha trazido
para a narrativa infantil os dilemas do narrador moderno seja Clarice Lis-
pector. Suas obras para crianças abandonam a onisciência, ponto de vista
tradicional da história infantil. Esse abandono permite o afloramento no
texto de todas as hesitações do narrador e, como recurso narrativo, pode
atenuar a assimetria que preside a emissão adulta e a recepção infantil de um
livro para crianças. (LAJOLO; ZILBERMAN, 1984, p. 154).
Esse narrador moderno é entendido muitas vezes como “difícil” por profes-
sores que trabalham com esses textos nos primeiros anos do ensino fundamental,
pois, com efeito, ele quebra a imagem de um narrador ideal que “pega o leitor pelas
mãos” e o leva, em um espírito “neutro”, a um passeio para um mundo maravilho-
so ou de aventuras ou, ainda, de mistério, que ao fim será solucionado.
Clarice Lispector constitui seu ponto de vista narrativo justamente em atrito
com esses estereótipos, e isso em diversos níveis da construção literária. Os exem-
plos aqui são muitos, desde a revelação de quem é “a mulher que matou os peixes”,
logo na primeira linha desse mesmo livro, estabelecendo outro tensionamento
narrativo com a própria voz que narra como a autora desse “assassinato”. Ou a
conhecida confissão do narrador em O mistério do coelho pensante sobre a sua in-
capacidade em resolver esse mistério anunciado desde o título. Lajolo e Zilberman
mostram, ainda, outras faces dessa complexa elaboração literária da autora:
1 Deixamos de fora seu livro Como nasceram as estrelas por acreditar que ele é um tanto diferente
dos outros, nem melhor nem pior, por acontecer em um registro de reconto de lendas.
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ção da narrativa, sempre postergada, o que exige ostensivamente a participa-
ção do leitor a quem o narrador se dirige com frequência, explicando o que
narra e fazendo perguntas. (LAJOLO; ZILBERMAN, 1984, p. 155).
***
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que escolhemos abordar. Os registros das conversas foram filmados e, posterior-
mente, a transcrição teve como eixo a seleção das partes mais significativas dessas
situações, compostas por vestígios que combinam a subjetividade de cada olhar
com a reflexão que o distanciamento posterior implicou. As análises foram realiza-
das a partir de alguns fragmentos dos registros das rodas de conversa que aconte-
ceram nos momentos posteriores às leituras com atenção aos elementos presentes
e característicos na escrita de Clarice Lispector.
As leituras:
Quase de verdade
Quase de verdade é narrado por Ulisses, cachorro que late suas histórias
para sua dona, Clarice, que entende seus latidos e os escreve. A trama que se dá
por meio dessa, digamos assim, triangulação narrativa, acontece em torno de uma
figueira invejosa que se empenha em escravizar galinhas para obter o lucro da pro-
dução de seus ovos. Com a ajuda de uma bruxa, a árvore acende-se durante a noite,
levando as galinhas a pensar que é dia e, dessa forma, botar mais ovos. Clarice
promove em Quase de verdade uma relação muito particular entre verdade e fan-
tasia, que fornecerá, junto com os outros livros da autora, um importante padrão
de medida para a literatura infantil da década de 1970 e seguintes.
Em sala de aula, a conversa começou com uma indagação em relação ao
título, Quase de verdade, com o objetivo de pensarmos esse mundo imaginário
criado pela autora onde elementos da fantasia se entrelaçam a outros de um “mun-
do real”, ou construído assim, criando esse atrito – ou dissonância –, comentado
acima, em relação a um tipo de literatura para crianças mais, digamos assim, “tra-
dicionais”.2 Vamos à conversa:
C1:3 No começo ela falou que você deve usar a imaginação, o mundo da fan-
tasia!
P: Vocês acham que isso tem alguma relação com o título Quase de verdade?
O que será que quer dizer?
2 É importante ter em mente, sem receio de exagerar, que a revolução simbólica proposta por
esses livros de fato se tornou hegemônica ao longo dos anos 1970 a ponto de hoje ser difícil perceber
sua radicalidade em relação a uma tradição constituída, já que formamos nossa percepção, em muitos
casos, em um contexto posterior a essa complexa transformação cultural ainda pouco estudada
nessa chave. Esboçamos alguns aspectos desse projeto da autora em um outro texto: PIRES, Carlos;
GRINFELD, Renata; NATALÍCIO, Rafaella. Você sabe? A narradora não. Um projeto literário para
crianças: A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector. Revista Veras, v. 2, 2012.
3 Vamos marcar a fala da professora com “P” e as falas das crianças com “C1”, “C2” etc.
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C2: Ah, pra mim fica assim, talvez a história não seja tão real porque os ani-
mais não conseguem falar, Quase de verdade porque pode ser de verdade para
os animais e para gente, não.
C3: Eu acho que é Quase de verdade porque os animais têm esse sentimento
que ela falou aí no texto, só que eles não conseguem falar.
C4: Eu acho que é a mistura do real com o surreal. Que fica aquela coisa “su-
perssurreal” e também as coisas são um pouco reais.
C5: Por isso que chama Quase de verdade, porque mistura um conto de fadas
com a realidade.
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Com essa declaração: “Era uma vez… eu”, logo no início, nos é apresenta-
da uma situação que ancora um narrador que faz uso da primeira pessoa. Essa
construção, assim, apresenta por meio desse “eu” certa dimensão subjetiva, ou,
em outros termos, certa dimensão subjetiva é assumida pelo cão Ulisses, que, no
entanto, “divide” com ou precisa da sua dona para dar voz às suas histórias, já que
ele late e ela “interpreta” esses latidos por meio da escrita. Clarice toma muito
cuidado para que o bicho, o cachorro Ulisses, no caso, não fale simplesmente, e as
crianças reverberam com perplexidade essa estratégia compositiva da autora. Ela
precisa dessa artimanha narrativa para de fato estabelecer essa dimensão “quase
de verdade” essencial para a verossimilhança que pretende construir – novamente,
em atrito com histórias em que os bichos simplesmente falam. As crianças C3 e C5
percebem exatamente isso formulando esse problema com precisão e de maneira
sofisticada. Os alunos, com efeito, apontam para esses nós na linguagem que a
autora estabelece. Eles formulam tranquilamente essa diferenciação entre esse inu-
sitado “eu” que corresponde ao cachorro Ulisses e às estruturas tradicionais que
estão ainda em boa medida habituados a ler – narradas, muitas vezes, em terceira
pessoa.
A “quase conversa” desse narrador se estabelece a partir de uma linguagem
mais coloquial, em tom de conversa íntima, “ao pé do ouvido”, com o claro intuito
de aproximar as crianças de sua narrativa, e assim criar uma relação de cumpli-
cidade entre escritor e leitor. Nesse contrato narrativo se coloca para seus leitores
como “pessoa grande”, ou como um diferente que, no entanto, compreende e res-
peita seus leitores. Essa cumplicidade começa a se estabelecer já no trecho: “Pois
não é que vou latir uma história que até parece de mentira e até parece de verdade?
Só é verdade no mundo de quem gosta de inventar, como você e eu”.
As perguntas lançadas pela autora aos leitores é uma das estratégias bastan-
te utilizadas, central no dispositivo literário que a autora cria, o que promove ao
mesmo tempo uma identificação e um, digamos assim, encurtamento da distância
entre leitor e narrador, como rapidamente foi percebido pelos alunos no trecho
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acima. Essa forma dialogada, em uma segunda pessoa que convoca o leitor, ganha-
rá ainda mais centralidade nos livros posteriores de Clarice.
Outra estratégia utilizada pela escritora nessa mesma direção do encurta-
mento da distância narrativa com o leitor acontece por meio do uso ostensivo da
oralidade na construção de, por exemplo, onomatopeias: “Canta assim: pirilim-
-pim-pim, pirilim-pim-pim… Quando eu contar a história vou interrompê-la às
vezes quando ouvir o passarinho”, nos latidos de Ulisses: “Mas assim não. (Au, au,
au)”.
Esse elemento foi rapidamente identificado pelos alunos durante a conversa:
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P: Essa história é específica para alguém?
Crianças: Para o Paulo, o filho dela. Ela diz logo no começo do livro.
P: Clarice faz qual provocação para nós, leitores, logo no começo?
C1: Ela deixa a gente curioso.
C: Ela deixa a criança à vontade durante a história.
P: E como ela faz isso? Como deixa as crianças à vontade?
C2: Ela vai conversando com a gente.
P: E como, de que forma ela conversa na história?
C3: Ao invés de ser só um narrador contando uma história que aconteceu, ela
meio que vai conversando, fazendo perguntas.
P: E por que será que ela faz dessa forma, usando esse recurso? É por acaso?
Porque a gente já viu, no livro Quase de verdade que tinha essa linguagem de
conversa, né?
Crianças: Tinha!!!
C4: É o estilo dela e te entretém na história, aí você para e fica pensando: nos-
sa, que legal, e assim continua lendo. E é mais fácil de entender.
P: Será então que podemos dizer que esse é um recurso para “prender” a aten-
ção do leitor?
Crianças: Sim.
C1: Ela usa uma linguagem que é próxima das crianças, com os animais.
C2: Ah, o coelho pensa mexendo a nariz! E na verdade ele fareja usando o
nariz!
P: O que a Clarice faz nessa hora? O que ela dá para o personagem?
C2: Uma característica humana. Eu acho que para gente ficar mais perto do
livro ela usa o coelho pra sentir o que a gente sente e pensa.
P: Eu também acho (risos).
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Em diversos momentos o narrador prolonga o diálogo, sugere imagens,
pede para a criança pensar, imaginar, antes de colocar o elemento que desencadeia
a continuação da história, proporcionando ao leitor um tempo particular dentro
desse espaço imaginário. E, nesse contexto, durante a leitura, os alunos percebem
essa intencionalidade configurada na linguagem literária:
P: Qual a linguagem da autora nesse livro? O que quero dizer é, de que forma
ela escreve essa história?
C2: Ela conversa com a gente, uma linguagem que prende a nossa atenção,
que mistura a realidade com a fantasia, a ficção com coisas imaginárias. Igual
quando lemos Quase de verdade.
P: E o que podemos perceber de semelhança e diferença entre esses dois livros
que já lemos?
C3: Ela vai fazendo uma conversa, usando perguntas para prender nossa aten-
ção.
P: E você, C4, o que achou dessa história?
C4: Gostei muito, dá muita curiosidade. Clarice sempre faz isso.
C5: É meio como se ela jogasse uma brincadeira pra gente continuar pensando
depois.
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o livro acaba, ela quer que a gente pense sobre o mistério.
P: E a Clarice faz isso em que parte da história? Essa proposta para o leitor?
Crianças: No começo!
P: Mas vocês gostaram da história mesmo ela não tendo escrito o final?
C3: Eu gostei porque a história é muito legal de ler inteira…
O que vemos aqui, por meio das reações de alguns alunos, é que houve uma
“desestabilização” inicial com a ausência de um final que revele o mistério. Inicial
porque, não obstante, essa desestabilização não diminuiu para as crianças o inte-
resse pelo texto.
Durante suas histórias, ela volta a assuntos já iniciados, depois de longos
desvios para fazer mais algum comentário, de caráter pessoal, ou seja, comentários
que apontam para o que seriam traços da autora por meio da revelação de seus
gostos pessoais. Os trechos se complementam sem que tenham uma relação ime-
diata de causa e efeito na elaboração narrativa:
C1: Às vezes ela interrompe a história, por exemplo, quando ela diz: vamos
mudar de assunto.
C2: Eu acho que nessa parte é porque ela não gosta tanto do assunto, aí ela
fala: vamos mudar esse assunto!
P: Será que é sempre por isso? Toda vez que ela não gosta do assunto anterior
ela resolve mudar?
C3: É para dar mais curiosidade pra gente…
P: Quando ela faz isso pensamos o quê?
C3: Ai, meu Deus, qual será que vai ser o próximo assunto…
C4: Eu acho que ela sempre gosta de contar um pouco dela…
P: Eu também acho! Essa autora cria uma relação muito próxima de nós,
leitores, né?
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trução de certa intimidade e, ainda, de uma maior fragmentação narrativa. Laura
é uma galinha cuja intimidade é vasculhada e, enquanto o leitor conhece a perso-
nagem principal, isso se torna, de certa maneira, um convite para ele conhecer-se.
Aliás, já na abertura do livro, Clarice aciona a possibilidade de revelar segredos e
desvendar aspectos mais subterrâneos da realidade e dos personagens que a habi-
tam, o que, no dispositivo da autora, acaba por incluir, no limite, o leitor.
Entre as obras que compõem a literatura para crianças de Clarice, arrisca-
mos dizer que essa foi uma das que alcançaram maior êxito na tentativa de a autora
convidar os alunos a entrar nessa construção narrativa. Durante a leitura em sala
de aula, verificou-se uma interação e maior identificação com a história, o que não
consideramos propriamente surpreendente, pois essa foi a terceira leitura de livros
de Clarice.
P: Mas será que, para a maioria das pessoas, principalmente aquelas que não
conhecem a obra dessa autora, fica tão simples adivinhar que a personagem
Laura será uma galinha?
Crianças: Não!
C1: Mas como nós já lemos dois livros dela, a gente consegue adivinhar que a
Laura é uma galinha porque ela sempre usa os animais como personagens. É
uma característica dos livros dela!
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P: Quando já lemos alguns livros, por exemplo, de uma mesma autora, conse-
guimos perceber o jeito, a forma, o estilo de ela escrever?
C1: Sim!
P: Como Clarice faz nesse livro que acabamos de ler?
C1: Ela conversa com você.
C1: Ela sempre faz perguntas, que nem aquela parte que ela faz uma pergunta
e não responde, que ela também não sabe de tudo…
P: O que ela quis dizer quando escreveu: “… quem conhece bem Laura é que
sabe que Laura tem seus pensamentozinhos e sentimentozinhos…”.
C3: Ela termina as palavras com INHO…
P: São diminutivos, né? Será que teve alguma intenção dela em usar diminu-
tivos?
C4: Acho que é pra dizer que ela não é muito sabida, porque tem poucos pen-
samentos…
C5: Que os pensamentos da galinha não são tão importantes…
C1: Eu achei estranho quando ela fala que a Laura é bastante burra.
P: Por quê? Eu percebi mesmo enquanto lia que vocês fizeram caras estranhas
e alguns até falaram “nossa…”
C1: Sei lá, meio raro achar isso assim escrito nos livros, porque não estamos
acostumados a ler esse tipo de frase nos livros, usar a palavra burra, assim…
P: Explica-me melhor isso de ser raro, estranho…
C1: Porque geralmente os escritores costumam usar uma linguagem mais for-
mal, no caso dela, o jeito que ela escreve fica normal porque parece que é uma
conversa mesmo, que ela está contando pra gente.
A autora, em sua construção literária, não quer dar lições de moral, nem
tratar as crianças como adultos, quer propor-lhes conversas, acolhendo-as e, as-
sim, demonstrando seu respeito por elas. É importante notar aqui ainda a maneira
como a criança problematiza o registro oral muito particular que Clarice procura
imprimir nesses diálogos, novamente iluminando o centro dessa elaboração li-
terária que se dá em contraste com uma literatura que é mais comum para essas
crianças.
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No trecho a seguir, a discussão continua seguindo o mesmo percurso:
P: Quando ela diz, por exemplo: “… os humanos são muito complicados por
dentro”. O que ela quer dizer com essa expressão: “complicado por dentro”?
Que tipo de conversa ela quer estabelecer com o leitor?
C1: Ah, discutir como a gente é por dentro, como são os nossos pensamentos,
o que a gente sente…
C2: Ela sempre conversa sobre alguns assuntos com a gente…
P: Mas durante essas conversas, ela tenta dizer o que é certo ou errado?
C2: Acho que não, ela faz só a gente pensar… Quando ela diz: o que vale é ser
bonito por dentro…, ela só quer que a gente pense nisso…
Evidencia-se, então, nas falas dos alunos, mais uma vez, uma apreciação
sobre o conjunto das obras lidas. E uma problematização do papel da descrição e
do tipo de reflexão proposta pelo narrador, onde o objetivo, por sua vez, não está
nas lições de moral, e sim, ao que parece, em uma “apresentação” de uma realidade
complexa, com impressões dele (narrador) a respeito do mundo.
A intensidade e o exagero de que a autora lança mão em muitos momen-
tos, centrais nesse dispositivo literário que busca desconstruir uma literatura para
crianças mais tradicional, aparecem como problema aos olhos de alguns alunos:
Na leitura deste último livro da autora, que nos parece o mais complexo,
foi possível perceber nas falas dos alunos uma identificação clara das marcas de
autoria, assim como uma reflexão sobre os aspectos constitutivos desse disposi-
tivo literário que Clarice cria. Percebemos que nas primeiras leituras os alunos
vivenciaram de fato um estado de profunda descoberta. Já durante essa última lei-
tura a relação com o livro e com essa autora figurada nessa estratégia narrativa foi
um pouco diferente, pois a cada momento os comentários dos alunos apontavam
tanto para confirmar elementos antes identificados como para explorar essa nova
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configuração desse dispositivo. Por vezes os alunos lançaram mão de estratégias
comparativas para evidenciar aspectos de suas reflexões efetivamente literárias.
Clarice aparece, digamos assim, ficcionalizada nessa construção, contando
casos de sua vida com bichos com o objetivo de provar sua inocência em relação
à morte dos peixes, ou procurando provar que não foi um ato proposital para,
dessa forma, conseguir o perdão do leitor ao final da narrativa. A sintonia com os
leitores é obtida a partir do endereçamento da confissão da narradora direto a eles.
Segue abaixo um primeiro trecho da conversa da professora com os leitores:
P: E quando ela diz: “Mas prometo que no fim do livro contarei a vocês…”, o
que ela quis com isso?
C1: Criar curiosidade…
P: Que parte ela quer criar essa curiosidade? Lê para mim, por favor? (nesse
momento as páginas do livro estão escaneadas e projetadas no telão da sala)
C2: Quando ela fala “fim do livro”…
P: Isso mesmo!
C3: Só no fim do livro, aí a gente vai ter que ler o livro todo para poder desco-
brir o que aconteceu, e aí cria curiosidade…
P: Ela faz isso em algum outro livro?
C4: O mistério do coelho pensante!
P: Ela cria uma curiosidade, ela lança uma questão no livro e ainda diz que
vocês só terão a solução no final. Essas são algumas marcas da Clarice como já
conversamos, e são intencionais, certo? Mas saber a resposta no final vira um
objetivo central para ela?
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C5: Não!!
C6: Eu acho que o objetivo central dela é contar histórias! Esse é mais uma
forma de ela contar uma história legal!
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da distância narrativa é notado com precisão por C3: “criar mais amizade ainda
com o leitor, aproximar mais ainda…”. Ele verbaliza como isso é tramado ao mes-
mo tempo por meio de uma estratégia afetiva e da constituição desse narrador
frontal, digamos assim, que se dirige diretamente ao seu interlocutor.
Considerações finais
Nos quatros livros para crianças de Clarice Lispector escolhidos para esta
investigação, é possível perceber como a conversa com o leitor, por meio dessa
construção textual específica, se coloca de fato como central. Isso associado a um
tom oral na linguagem, os problemas configurados, a maneira como a autora com-
bina real e fantasia conferem a importância da obra da autora e abrem, com efeito,
um novo campo simbólico de possibilidades na literatura para crianças no Brasil.
Esse dispositivo literário que Clarice Lispector forja acontece também por meio do
atrito com uma produção para crianças e jovens mais, digamos assim, tradicional.
Com a relevância literária posta em todo o seu processo e não apenas em um final
onde se descobre algo, ou se resolve um mistério. A autora desenha uma clara es-
tratégia para quebrar expectativas óbvias ou romanescas de resolução de questões,
e reestabelece a tensão narrativa, como dito, em outro patamar.
Essa investigação, ou o breve recorte que apresentamos acima, apontou
para alguns caminhos de como as crianças se aproximaram dessas construções
literárias complexas. Ao longo das leituras, elas foram identificando essas marcas
literárias à medida que foram refletindo sobre o que esses livros apresentavam e,
principal, percebendo “como” isso se dava na linguagem. Acreditamos que o vín-
culo criado por esse narrador, ou por esse encurtamento da distância narrativa que
se dá por meio dessa forma dialogada, gera um espaço generoso para as crianças
se situarem e estabelecerem uma troca particular de experiências. Esse processo
possibilitou também a realização em muitos momentos de relações intertextuais
entre os quatro livros, bem como com outros tipos de narrativas. Ou permitiu, de
fato, que os alunos refletissem sobre os textos por meio de comparações literárias,
atentos efetivamente às construções narrativas.
Para tanto, foi imprescindível apontar para as crianças aspectos do “como”
esse dispositivo foi armado. Isso se deu de maneira mais efetiva por meio, muitas
vezes, das próprias observações que elas faziam, usando para promover as refle-
xões a linguagem que elas traziam. E, o que é essencial, chamando atenção para
esses aspectos na própria armação da linguagem para que os alunos não fiquem
apenas no plano da troca de vivências, o que já seria proveitoso, mas não garantiria
necessariamente uma compreensão mais complexa das estruturas textuais, ou não
promoveria uma aprendizagem literária propriamente dita.
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Referências bibliográficas
233
Parte II
Literatura para crianças e jovens,
mercado editorial e crítica literária
O “boom” da literatura para crianças e jovens
ocorrido a partir da década de 1970 –
alguns pontos para reflexão e análise1
Lenice Bueno
237
Criou-se, assim, além do prestígio social, um sólido mercado para os livros
infantis e juvenis, que existiu de forma intensa e continuada até bem recentemente,
o que nos passou a impressão de que existia no Brasil um espaço firme e consolida-
do para os livros destinados a esse público. Uma ilusão que, infelizmente, quase se
dissipou assim que foram interrompidas as compras por parte do governo federal,
no final de 2015.
A longa duração desse processo – foram mais de quarenta anos de cresci-
mento ininterrupto! – também causou a falsa impressão de que ele ocorreu sem
nenhuma solução de continuidade.
Olhando mais de perto, porém, vemos que podemos dividir esse período
em pelo menos duas fases: a que vai da explosão inicial do mercado até sua conso-
lidação, durante a década de 1990, e a fase de expansão que ocorreu principalmen-
te na entrada do novo século.
Dentro dos naturais limites de espaço, este artigo foi escrito com o propósito
de:
1. Elencar os fatores econômicos, políticos e sociais que confluíram po-
sitivamente para a ocorrência do boom e também possibilitaram – em
plena ditadura militar – o surgimento de obras portadoras de inovações
estéticas e ideias libertárias, divergentes do padrão moralista a que a
literatura para crianças, após a era Lobato, havia retornado.
2. Analisar rapidamente as características mais expressivas de algumas
das obras lançadas durante os anos iniciais do boom e a forma como as
ideias libertárias e a nova concepção de infância se transmutaram em
soluções estéticas, na linha do que afirma Antonio Candido:
238
Trata-se, como se vê, de uma proposta audaciosa. Mas aqui estão apenas as
ideias iniciais de um projeto de estudo que continuo a desenvolver e a aprofundar.
As origens do boom
2 Atualmente, a imunidade tributária está prevista na Constituição Federal (1988), no artigo
150: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas a contribuinte é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios:
VI – Instituir imposto sobre:
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”.
239
públicas por todo o Brasil. Data de 1971 a promulgação da Lei 5.692, a nova Lei
de Diretrizes e Bases da Educação, que criava a divisão do ensino básico em 1o e 2o
graus e tornava ambos obrigatórios.
Paralelamente, durante a década de 1970 a leitura e o livro para crianças
conquistaram grande prestígio entre as camadas mais intelectualizadas da popu-
lação.
Foi a imprensa – talvez por sua característica rapidez na produção de con-
teúdos e sua ligação mais próxima com o público – o primeiro ramo editorial a
notar as novas oportunidades que o mercado oferecia.
A Editora Abril foi pioneira, criando em 1969 a Revista Recreio. Escritores,
jornalistas, artistas gráficos, cartunistas reuniram-se em torno da revista, dirigida
originalmente por Sonia Robatto e, depois, por Ruth Rocha. Aproximaram-se em
busca de trabalho e espaço para escapar da censura da ditadura militar. Foi assim
que muitos começaram a se dedicar a produzir para crianças e se definiram profis-
sionalmente por esse caminho.
Quase todos esses artistas jamais haviam produzido para o público infantil.
Vinham do mercado adulto e, com esse background, trouxeram novas ideias, mais
arejadas, mais modernas que as que dominavam as publicações para crianças.
Foi assim que a Revista Recreio se transformou num importante polo criati-
vo e difusor de novas propostas estéticas, tanto de texto quanto de imagens. Valen-
do-se de recursos de impressão modernos para a época, a revista era colorida, ale-
gre e adorada pelas crianças. Em 16 páginas, publicava passatempos desenvolvidos
a partir de histórias divertidas e leves, com personagens que apresentavam uma
nova imagem de criança (às vezes representada por animais antropomorfizados):
brasileira, urbanizada, irreverente, contestadora da autoridade dos adultos, nem
sempre bem-comportada para os padrões da época. A Recreio tornou-se tão po-
pular que chegou a vender 1 milhão de exemplares ao mês, nas bancas de jornal.3
Um outro ponto a destacar foi que, talvez por perceber a pressão social em
favor do livro e da leitura, ou por objetivos nacionalistas próprios, o governo mi-
litar incluiu na Lei 5.692 a recomendação de que as crianças e os jovens lessem
na escola obras de autores brasileiros. A lei não era muito clara sobre como isso
ocorreria, apenas incluía essa leitura como parte do currículo.
Essa foi a grande porta que se abriu para o texto literário na escola. Na ver-
dade, a sua presença na sala de aula, em si, não seria novidade. Há tempos estava
presente, de forma fragmentada, nos “livros de leitura”, nos livros para o ensino de
gramática e “do bem escrever” e em antologias de autores clássicos brasileiros. A
3 Informação retirada de entrevista de Ruth Rocha, em entrevista à Revista Crescer, disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=pO2UfvUAZJw>. Acesso em: mar. 2019.
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grande diferença era sua entrada como objeto autônomo, cujo suporte, na forma
de livros individualizados, lhe dava o caráter de “obra autoral”, escrita e publicada
especialmente para o público infantojuvenil.
A consequência foi o aumento da demanda de livros destinados a crianças
e jovens, o que foi benéfico não só para as editoras, mas também para os profissio-
nais da área. Surgiu assim um mercado fértil e duradouro, que ofereceu a muitos
escritores e artistas gráficos possibilidades reais de profissionalização.
Os profissionais dessa geração, entretanto, em oposição ao moralismo ca-
racterístico da geração anterior de escritores, foram responsáveis pela criação de
um estilo e de princípios que durante muitos anos exerceram influência sobre a
produção editorial para o público infantil. Eram ideias que davam à criança o pro-
tagonismo, em narrativas que tematizavam suas questões pessoais diante da vida,
incentivavam a rebeldia contra tiranos de todo tipo, exprimiam valores da socie-
dade urbana e associavam a linguagem coloquial a uma sofisticação literária rara-
mente encontrada nos livros para essa faixa etária. Além disso, a chegada de novos
ilustradores e artistas gráficos, portadores de estilos mais arrojados e modernos,
mudou para sempre a imagem do livro para crianças no Brasil.
Como foi que tudo isso ocorreu? Que condições sociais permitiram que,
durante os chamados “anos de chumbo” da ditadura militar, isso tenha acontecido?
241
• levar em conta o gosto infantil, que ele considera “o único critério
válido em literatura infantil” […] seu valor fundamental, “como único
critério de aferição da literatura infantil”.
• guardar traços de oralidade, pois a “tradição oral” é a base histórica da
literatura para crianças.
• respeitar a inteligência da criança, pois, citando o educador argen-
tino Lorenzo Luzuriaga, Arroyo defende que só se tornaram clássicos
infantis (ou seja, eleitos pelas próprias crianças) os livros que não eram
portadores de um caráter moralizante e fingido e que não tratavam as
crianças como seres menos inteligentes.
• colocar o escritor em comunicação com a criança, compartilhando
com o pedagogo Anton S. Makarenko a visão de que a verdadeira litera-
tura “tem de ser humanista por defender sempre as melhores ideias da
humanidade”, negando “ao tom moralista qualquer função na literatura
infantil” e defendendo a presença nos livros de um “espírito travesso”,
como presente na obra de Lobato.
• ser escrito num estilo “concreto, com uma economia verbal capaz de
tornar visual a cena e tema focalizados” e que faça com que o escritor se
coloque no nível da criança (ARROYO, 2011[1968]).
4 Já em 1932, um grupo de 25 educadores havia lançado o Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova, que se considerava “o movimento de reconstrução educacional, com que, reagindo contra o
empirismo dominante, pretendeu um grupo de educadores […] transferir do terreno administrativo
para os planos político-sociais a solução dos problemas escolares”. De cunho altamente republicano
e humanista, esse documento defendia a educação pública única e laica para todos os brasileiros,
autônoma em relação a partidos e a interesses particulares. Essa educação deveria se voltar à “for-
mação integral das novas gerações” e considerava “a função educacional […] uma função complexa
de ações e reações em que o espírito cresce de ‘dentro para fora’, substitui o mecanismo pela vida
(atividade funcional) e transfere para a criança e para o respeito de sua personalidade o eixo da escola
e o centro de gravidade do problema da educação”. Era assinado por pessoas como Cecília Meireles,
Fernando Azevedo, Lourenço Filho e Anísio Teixeira, que, nos anos seguintes, travariam uma árdua
batalha pelo ensino público e, também, pela literatura infantil. In: Revista HISTEDBR. Disponível
em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e.pdf>. Acesso em: mar. 2019.
242
Tudo começou pela poesia
O texto fala de crianças, faz-se aliado delas, dá-lhes a palavra muitas vezes, e
sublinha sua fragilidade perante as normas do mundo, ao mesmo tempo que
salienta sua capacidade de rebeldia, criação e independência. […]
Numa outra perspectiva, a poesia infantil brasileira contemporânea com-
partilha com seus destinatários o olhar naïve e desarmado perante o mundo.
Esse desejo de naturalidade e ingenuidade descomprometidas com a civili-
zação parece exprimir-se frequentemente através de animais.
243
É claro que a aceitação por parte do público se devia também ao ambiente
cultural mais refinado que vigorava no período. Mas não se pode negar que a pu-
blicação dessas obras exerceu influência sobre o trabalho dos escritores que vieram
em seguida e que se dedicaram especialmente ao público infantojuvenil.
Um exemplo é Lygia Bojunga, que num curto período de tempo publicou
um conjunto de obras inovadoras, como Angélica (1975), A bolsa amarela (1976),
A casa da madrinha (1978), Corda bamba (1979) e outras; nessa linha estão tam-
bém João Carlos Marinho, com O caneco de prata (1971) e demais livros da série,
e Edy Lima, com a série iniciada por A vaca voadora (1973).
Todos esses escritores pareciam também influenciados pelas ideias defendi-
das por Arroyo: traziam à tona temáticas retiradas do universo infantil; levavam
a sério a inteligência da criança e a consideravam como um interlocutor à altu-
ra; buscavam conversar com o leitor, trazendo-o para dentro da obra; apresenta-
vam um estilo econômico e direto. Porém, se essa literatura também apresentava
fortes características de oralidade, havia uma diferença fundamental em relação
à concepção tradicional de literatura oral apresentada por Arroyo: tratava-se de
uma oralidade construída de forma mais sofisticada, com procedimentos estéticos
modernos, que traziam para o campo infantojuvenil características da literatura
adulta.
Foi um período muito rico para a literatura para crianças, nada acostumada
a ousadias como a imaginação delirante de personagens, as gírias e as brincadeiras
com os gêneros narrativos presentes na obra de Lygia Bojunga; o humor sarcástico
e politicamente incorreto e as experimentações visuais de João Carlos Marinho;
o nonsense das histórias escritas por Edy Lima; as desconstruções provocativas,
que causavam estranhamento nos leitores, por parte de Clarice Lispector e, um
pouco posteriormente, de Ana Maria Machado (História meio ao contrário, 1978;
Bisa Bia, Bisa Bel, 1980; Bem de seu tamanho, 1981), e de Bartolomeu Campos de
Queirós (Onde tem bruxa tem fada, 1978).
Em 1979, agregou-se a esse grupo a escritora e jornalista Marina Colasanti
com seus contos de fadas (Uma ideia toda azul) primorosamente escritos, que re-
petiam a qualidade literária de seus trabalhos como escritora para adultos.
Houve outras obras, principalmente entre as publicadas a partir de mea-
dos da década de 1970, que trouxeram para primeiro plano as ousadias de cunho
ideológico: nelas, as crianças ou jovens eram sempre os protagonistas, e muitas
apresentavam uma inversão de valores que deixava os adultos a reboque, como em
A fada que tinha ideias (1972) e A curiosidade premiada (1978), de Fernanda Lopes
de Almeida, e Marcelo, marmelo martelo (1976), de Ruth Rocha.
244
Com o decorrer do processo de democratização do país, alguns livros pas-
saram a delegar grande poder político à criança, quer em narrativas no formato de
fábulas que lhe davam voz para resolver “problemas de adulto”, como em O reizi-
nho mandão (1978), O rei que não sabia de nada (1980) e O que os olhos não veem
(1981), todos de Ruth Rocha; quer na forma de dilemas relativos à realidade so-
cial apresentados a pré-adolescentes, como em Bento-que-bento-é-o-frade (1976) e
Raul da ferrugem azul (1979), de Ana Maria Machado.
Algumas obras tratavam desses mesmos assuntos, mas num estilo “realista”,
que não poupava os leitores de um contato duro com os problemas da sociedade
brasileira. Na verdade, esse tipo de livros ainda mereceria uma atenção especial
da crítica. Apesar de terem simplesmente sido classificados como obras “realis-
tas”, havia uma clara diferença entre o trabalho de diferentes escritores. Entre eles,
Odette de Barros Mott (Justino, o retirante, de 1970, e A rosa dos ventos, de 1972,
ambos juvenis) e Wander Piroli (O menino e o pinto do menino, 1975, e Os rios
morrem de sede, 1976), por exemplo, embora ambos enfocassem questões relativas
às mudanças sociais por que passava o país, ou Mirna Pinsky que, com Zero-Zero
Alpiste (1978) e Nó na garganta (1979), levantava questões relativas a gênero e
identificação racial muito antes de Esses assuntos estarem em voga. É interessante
notar que, no decorrer dos anos do boom, livros com esses tipos de temática foram
praticamente esquecidos, a ponto de desaparecerem das chamadas “listas de ado-
ção” das escolas, antes mesmo do final da década de 1980.
Um ponto importante a destacar é a ocorrência, em número menor, mas de
forma muito significativa, de obras que apresentavam inovações estéticas do ponto
de vista visual, tanto nas ilustrações quanto no uso das cores ou na incorporação
de elementos de outras mídias, como balões de fala ou ilustrações no estilo cartum.
Bons exemplos são A curiosidade premiada (1978) e Pinote, o fracote, e Janjão, o
fortão (1980), ambos de Fernanda Lopes de Almeida e com ilustrações do cartu-
nista Alcy.
Uma proposta visual mais ousada se manifestou em Flicts, de Ziraldo (1968),
em que as cores se transformavam em personagens e as palavras e a tipologia uti-
lizada cumpriam um papel importante no design. A mesma concepção embasou,
mais tarde, o livro Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque (1979), com um pro-
jeto gráfico e ilustrações de autoria da artista Donatella Berlendis, que humilde-
mente identificou o próprio trabalho apenas como de “planejamento gráfico”, mas
que deu ao texto uma dimensão interpretativa muito mais ampla. Tratava-se de
livros que apresentavam experimentações estéticas envolvendo o diálogo entre
texto, imagem e design, influenciadas por ideias que surgiam e se desenvolviam
fora do Brasil, que consideravam o livro ilustrado como um objeto artístico.
245
Entretanto, embora Flicts e Chapeuzinho Amarelo tenham permanecido dis-
poníveis no mercado e a ilustração tenha passado a ser um elemento estético cada
vez mais importante na literatura para crianças, a não ocorrência, até a década de
1990, de novos lançamentos nessa linha é representativa do processo que ocorria
com os livros infantis, cada vez mais vistos por autores, editores e escolas como
objetos destinados a ensinar a ler o texto escrito.
O mesmo processo ocorreu as narrativas realizadas apenas por meio de
imagens, como os livros do artista plástico Juarez Machado, autor de Ida e volta
(1976). O fato de se achar, na época, que livros sem texto se destinavam a bebês ou
a crianças que ainda não sabiam ler levou ao entendimento (equivocado) de que a
linguagem visual mais complexa dos livros de Juarez não era adequada a público
nenhum.
Enfim, apenas com essa rápida passagem pelos mais diversos estilos, pode-
-se perceber como se tratou de um período de grande riqueza e diversidade nas
publicações brasileiras destinadas a crianças e jovens.
Um aspecto interessante é que o ano de 1976 viu chegarem ao mercado as
histórias que Ana Maria Machado e Ruth Rocha haviam publicado originalmente
na Revista Recreio. As primeiras edições dessas histórias, por serem considera-
das “curtas” demais, ocorreram na forma de coletâneas. Elas só foram publicadas
como livros ilustrados autônomos depois do sucesso da Coleção Gato e Rato, de
Mary e Eliardo França, com livros assumidamente destinados à aprendizagem da
leitura, utilizando textos curtos e ilustrações coloridas.
Era mais um sinal do caminho preponderante que o livro para crianças e
jovens estava tomando e que se confirmou pela redução na diversidade das publi-
cações nos anos que se seguiram.
Foram necessárias mudanças conjunturais como a democratização do Bra-
sil e a globalização para que sinais de renovação se fizessem sentir e o mercado
editorial entrasse numa nova fase. Mas até aí, a ruptura já se havia configurado e,
por um bom tempo, a maior parte dos lançamentos passou a seguir um padrão
consagrado pelo mercado escolar.
Num país cuja história foi marcada pelo desenvolvimento tardio da im-
prensa – até a chegada ao Brasil da família real, a metrópole portuguesa proibiu a
impressão de livros no Brasil –, que foi um dos últimos da América a conceder o
direito à escola pública e gratuita e onde as injustiças sociais são tão gritantes, é de
se esperar que caiba à escola a principal responsabilidade sobre o trabalho com a
leitura.
246
Na verdade, a literatura para crianças no Brasil nasceu mesmo à sombra
da instituição escolar. Segundo Leonardo Arroyo, os primeiros livros datam da
segunda metade do século XIX, e eram escritos nos moldes do que ele chama de
“literatura escolar”: “A literatura infantil propriamente dita partiu do livro escolar,
do livro útil e funcional, de objetivo eminentemente didático” (LAJOLO; ZILBER-
MAN, 1984, p. 124).
Embora essa literatura tenha sido fruto das primeiras reações contra a im-
posição de livros portugueses para o ensino nas escolas brasileiras,5 os livros pu-
blicados no período constituíram-se em uma espécie de antepassados do livro di-
dático, quase sempre compostos por miscelâneas de textos variados, informações
fragmentadas sobre várias disciplinas, verbetes de enciclopédias e, eventualmente,
textos literários e poemas.
O fato é que a escola brasileira, desde suas origens, exerceu uma influên-
cia decisiva nas leituras oferecidas às crianças. O próprio Monteiro Lobato, para
conseguir que Narizinho arrebitado, precursor de Reinações de Narizinho, fosse
comprado para as escolas públicas, teve, segundo Arroyo, de “fazer concessões
à literatura escolar”, à Diretoria da Instrução Pública do Estado de São Paulo, e
incluir na página de rosto do livro a informação “Segundo livro de leitura para as
escolas primárias”, em 1921. Arroyo não esclarece que outras concessões foram
feitas, mas afirma que as mudanças foram revistas por Lobato nos anos seguintes,
à medida que ele foi se sentindo mais seguro de sua aceitação por parte do público
(ARROYO, 2011, p. 288).
Entretanto, essa atitude de Lobato – de ignorar os ditames da burocracia
educacional – é também reveladora. Pois, a partir do final dos anos 1930, mesmo
que a escola tivesse poder de determinar o que era ou não adequado às crianças,
outras instituições atuantes no âmbito da cultura passaram a exercer um contra-
ponto interessante a essa determinação. Um exemplo eram as bibliotecas públicas
que, desde 1936, com a fundação da depois nomeada Biblioteca Monteiro Loba-
to, funcionavam muito bem, especialmente no estado de São Paulo, registrando a
frequência assídua de muitas crianças leitoras, que vinham de bairros distantes da
cidade.
Lobato manteve um contato ativo por meio de cartas com parte de seus leito-
res, que chegavam a opinar sobre novos livros, pedindo a inclusão de personagens,
mudanças de finais etc., mesmo depois de ele ter sido censurado pela ditadura
5 Para se ter uma ideia, durante muito tempo Os Lusíadas foi a principal obra utilizada para ensi-
nar a ler. Arroyo cita nada menos que 22 diferentes edições “adaptadas” para a escola, desde 1856 até
1930. Ver ARROYO, 2011, p. 111-114.
247
Vargas e de muitas de suas obras terem sido proibidas na escola, como apontam
algumas pesquisas, como a de Patricia Raffaini e a de Raquel Afonso da Silva.6
Assim, apesar de Arroyo demonstrar pessimismo sobre a situação da lei-
tura em sua época (1968), pode-se depreender de suas afirmações a existência de
certo número de crianças brasileiras (provavelmente oriundas de classes sociais e
regiões restritas) que frequentavam regularmente as bibliotecas, de onde retiravam
livros para sua leitura espontânea.
Arroyo deixa entrever a coexistência de duas formas de acesso à literatura
por parte das crianças: a leitura espontânea, baseada no gosto infantil – cujos
canais eram provavelmente as bibliotecas públicas e as (poucas) livrarias –, e o
“didatismo excessivo” que caracterizava a “moderna literatura infantil atual” (AR-
ROYO, 2011, p. 35-36) 7 – e que com certeza era indicada pela escola. Ou seja, ele
nos passa a impressão de que havia uma certa tensão, embora ainda incipiente, na
influência exercida de um lado, pela escola, e de outro, pelas bibliotecas e livra-
rias, mesmo que a escola predominasse sobre as duas últimas.
É preciso ressaltar que, em países onde os índices de leitura são bem mais
altos que os nossos, essa tensão se desenvolveu e se encontra presente ainda hoje,
cumprindo a saudável função de equilibrar a qualidade literária dos livros para
crianças com a abertura de espaço para as novidades e a liberdade de escolha.
No Brasil, entretanto, o que ocorreu a partir da década de 1990 foi a extin-
ção lenta e gradual de parte dos componentes desse jogo de influências, fazendo
que todo o poder de decisão sobre o que as crianças deviam ler ficasse cada vez
mais concentrado nas mãos da escola.
248
A década de 1980
[…] a Verbo (270 títulos) a Brasil América (200) e a Brasiliense (58). A es-
tas, seguiram-se a Ática com sua “Coleção Gato e Rato” (35), Melhoramen-
tos e Civilização Brasileira (30 cada uma), Ao Livro Técnico (21) Miguilim
e AGIR (vinte cada), Pioneira (quinze), Paz & Terra (nove), José Olympio
(seis) e Berlendis & Vertecchia e Francisco Alves (com cinco cada uma com).
Até meados dos anos de 1980 a Nova Fronteira, a Abril Cultural e a Atual
Editora também se destacaram nesse campo. (HALLEWELL, 2017, p. 770)
249
sil novas propostas editoriais, novos formatos, novos tipos de acabamento, mais
sofisticados.
O surgimento das megalivrarias como espaço de exposição e venda não só
abriu espaço para a distribuição dessa produção. No plano da criação, abriu-se
também espaço para que uma nova geração de artistas gráficos passasse de ilustra-
dores de textos de outros autores para criadores de suas próprias obras.
Outro fator de mudança seria, a partir de 1998, a criação do PNBE (Progra-
ma Nacional Biblioteca da Escola), que abriu um ciclo de compras volumosas de
livros de literatura, por parte do MEC, e que foi aos poucos incluindo as pequenas
editoras, ampliando as possibilidades de escolha e selecionando livros de qualida-
de para as escolas públicas.8
Evidentemente, para aprofundar essas questões seja necessário realizar mais
pesquisas. Mas um fato relevante para nós é que o crescimento apresentado duran-
te a década de 1970 pelo mercado de livros infantojuvenis (em quantidade de títu-
los lançados e vendidos), ao expandir as possibilidades de trabalho para escritores
e ilustradores, provocou um rápido aumento na produção, tanto dos autores tradi-
cionais quanto dos novos, que começaram a escrever incentivados pelas próprias
editoras. A produção de novos títulos aumentou, mas se caracterizou em grande
parte pela repetição de modelos consagrados e bem-aceitos pela escola.
Além disso, os professores tinham (e ainda têm) dificuldades sobre o que
fazer com a leitura literária. Precisavam inventar usos para os livros, desenvolver
atividades práticas, para justificar a leitura.
Durante a década de 1980, multiplicou-se a produção, por parte das edi-
toras, de recursos para ajudar o professor (encartes para o aluno, encartes com
sugestões de trabalho) a ensinar a ler a partir de livros ilustrados, alguns na forma
de cartilhas disfarçadas, editados segundo as concepções de leitura que passaram
a vigorar: textos curtos, letras grandes e muitas ilustrações.
Considerando-se que a maior parte das crianças brasileiras tem acesso a
livros apenas ao entrar na escola, esta e as editoras de livros didáticos passaram a
deter um enorme poder de decisão, não só sobre o que crianças e jovens deveriam
ler, mas também sobre de que maneira ocorreria o acesso à leitura.
8 Podemos até considerar que as compras do governo no Programa Nacional Biblioteca da Es-
cola, de 1998 a 2013, tenham cumprido em parte o papel da crítica, exercendo uma escolha mais
criteriosa de livros para as bibliotecas escolares. Mesmo assim, não se tratava da leitura espontânea,
eleita pela própria criança.
250
Ideias que se tornam senso comum
Muito se publicou nos anos 1970 a 1990. E, com a falsa unanimidade que
as novas ideias conquistaram, concepções inovadoras e antiquadas foram se mes-
clando, criando um conjunto de ideias que se transformaram em senso comum na
maior parte das escolas:
• O texto literário, sempre considerado apenas em sua forma escrita, é
uma ferramenta para alfabetizar e ensinar a ler (= decodificar o que está
escrito).
• As ilustrações têm a função de tornar os livros mais bonitos e manter a
atenção da criança.
• É preciso atrair as crianças para a leitura, pois elas não tendem natural-
mente a gostar de ler.
• A leitura deve estar associada a atividades prazerosas, geralmente reali-
zadas a posteriori e que acabam se tornando seu único objetivo.
• As crianças são ingênuas, não conhecem o mundo e precisam ser pro-
tegidas. Assim, os livros não devem apresentar temas que possam trau-
matizá-las.
• A importância da leitura está em ser uma forma de transmitir ensina-
mentos morais.
251
Por fim, é preciso lembrar também que o clima de “rebeldia” da literatu-
ra para crianças nunca se estendeu à chamada literatura juvenil. A liberdade se
restringiu à entrada de novelas policiais na escola, embora as consideradas mais
ousadas, como as obras de João Carlos Marinho, nem sempre tivessem o mesmo
espaço que outras menos “problemáticas”. Alguns editores mantiveram em catálo-
go (e ainda mantêm) muitos dos livros escritos nas décadas de 1940 e 1950, mesmo
aqueles que transmitem uma imagem de jovem que nada tem a ver com os leitores
de hoje.
Seria porque, com a ajuda da escola, é mais possível controlar o que chega à
criança e ao jovem? Ou porque essa literatura (e, com ela, a própria concepção de
criança e de jovem) permaneceu por muito tempo contida numa redoma da qual
é difícil libertá-la?
252
ressurgimento, entre educadores e estudiosos da literatura, de uma visão estética
com relação aos livros para crianças, o que aparenta ser um sinal de que um novo
ciclo positivo está se abrindo.
Não foi sem propósito que Clarice Lispector iniciou O mistério do coelho
pensante, o primeiro de cinco livros que publicou para crianças, com uma adver-
tência, dirigida aos adultos, sobre a origem da história. Entre outras coisas, ela
explica:
Como a história foi escrita para exclusivo uso doméstico, deixei todas as
entrelinhas para explicações orais. Peço desculpas a pais e mães, tios e tias, e
avós, pela contribuição forçada que serão obrigados a dar.
E conclui que:
Mas pelo menos posso garantir, por experiência própria, que a parte oral
desta história é a melhor dela. Conversar sobre coelho é muito bom. Aliás,
esse mistério é mais uma conversa íntima do que uma história. Daí ser mui-
to mais extensa que o seu aparente número de páginas. Na verdade só acaba
quando a criança descobre outros mistérios.
253
Com essa advertência, ela prepara não só os adultos para longas conversas
com as crianças, durante e depois da leitura do livro, como também, podemos
imaginar, as próprias crianças para longas conversas consigo mesmas. Pois – como
adiantado na advertência inicial – esse pequeno e aparentemente singelo conto
trata de mistérios muito maiores que o do sumiço de um coelho; envolve reflexões
sobre a natureza humana (e a dos coelhos), sobre a liberdade, sobre a vida e as
perdas por que temos de passar que, é claro, vão muito além do curto texto apre-
sentado nas páginas do livro.
É nesse sentido que Perry Nodelman se refere, na citação que abre esta aná-
lise, às lacunas que o texto deixa para o leitor e que ele terá a oportunidade de
preencher com seu repertório pessoal e suas reflexões.
Qual a importância disso na literatura para crianças?
254
amiga…) Já o leitão Rabicó, mesmo se comportando quase sempre como porco,
recebe ironicamente o título de “marquês” e se casa com Emília. E, embora chegue
em alguns episódios do livro a falar, escapa por um triz de ser comido no almoço
de Ano Bom.
Ou seja, dentro da ficção de Lobato, os animais “da fantasia” comportam-
-se como seres humanos (embora continuem agindo de acordo com sua visão de
mundo de animais); já os animais “da realidade” continuam sendo animais mes-
mo, que se comem uns aos outros e podem ser comidos por nós. Embora, como
demonstram a história cruel de Miss Sardine e o destino ambíguo de Rabicó, as
personagens “da fantasia” estejam sempre sob o risco de serem tratadas como ani-
mais reais.
Em sua análise do livro para crianças A teia de Charlotte, de E. B. White
(2010), Perry Nodelman nos mostra como a repetição de situações que envolvem
verdadeiras listas de comidas de humanos ou de bichos, comer e ser comido, viver
e morrer, criam um “padrão” que é essencial na construção de sentido, ao apresen-
tar para os leitores a ideia de que vida e morte são parte de um mesmo ciclo:
Embora Lobato tenha acrescentado a esse padrão uma boa dosagem de hu-
mor negro, também ele parece compartilhar da mesma ideia.
Além de um escritor excepcional, ele retratava em seus livros um Brasil ru-
ral, uma época em que a vida era assim: os animais eram criados no quintal, eram
abatidos quando necessário e ninguém estranhava ver o leitãozinho que há pouco
corria, solto e feliz, servido na mesa em sua versão “pururuca”.
Entre os anos de 1940 e 1950, entretanto, Lajolo e Zilberman encontram um
outro padrão nas narrativas em que animais antropomorfizados aparecem como
protagonistas. Afirmam que essas narrativas “[…] são frequentes no período e dão
preferência aos animais domésticos, em particular, aos pequenos” (NODELMAN,
1996, p. 112).
Em seguida, destacam características dessa ficção:
[…] dá vazão a uma imagem de infância que a considera uma faixa etária
frágil e desprotegida, necessitando amparo permanente e cuidados suple-
mentares. Postula a incompetência da criança para cuidar de si mesma e
justifica a intervenção constante do adulto na vida dela;
255
[…] assume uma postura doutrinária, já que aproveita a ocasião para trans-
mitir ensinamentos morais e incutir atitudes, pregando principalmente a
obediência.
E concluem:
256
E:
Coelho tem muita dificuldade de pensar, porque ninguém acredita que ele
pense. […]. Tanto que a natureza do coelho até já se habituou a não pensar.
E hoje em dia eles todos estão conformados e felizes.
Nariz de coelho vale muito mais para ele do que nariz de gente vale para a
gente. […]. Isso não quer dizer que a natureza do coelho seja melhor que a
nossa. Cada natureza tem suas vantagens.
Vou te dizer como o mundo é feito. É assim: quando se tem natureza de
coelho, a melhor coisa do mundo é ser coelho, mas quando se tem natureza
de gente, não se quer outra vida.
Cada um com a natureza que Deus lhe deu, chegamos a esse ponto como
que “empatados” com o coelho, que passa a ser chamado por seu nome, começa
a ter sua vida fora da gaiola imaginada e ganha status de realmente “pensante”, ao
adivinhar com o nariz que a Terra é redonda.
Chegamos ao final da história com nossa natureza tão próxima à do coelho
que narrador e personagem já começam a pensar com o nariz… e a desenvolver
uma vontade louca de comer cenouras…
257
“Enquanto isso, as crianças, que não têm natureza boba…”
Ao chamar o leitor para perto de si e deixar “lacunas” para que ele preencha,
Clarice expressa uma confiança na inteligência da criança que é (ou pelo menos
era, em sua época) incomum nos livros a ela destinados. Considera-as como inter-
locutores respeitáveis, deixa problemas para resolverem. Como anuncia na abertu-
ra do conto, ela deixou “entrelinhas” para as “explicações orais” – o que é o mesmo
que dizer que há lacunas no texto a serem preenchidas pelos leitores.
Mas como podem os leitores fazerem isso? No meu caso, nenhuma das infe-
rências que extraí do texto estavam expressamente presentes lá. Algumas evidên-
cias sim, e eu me vali de meu repertório e de minhas estratégias de leitura para
formulá-las.
Pode-se argumentar, então, que uma criança não dispõe desse tipo de re-
pertório e estratégias e que jamais chegaria às mesmas conclusões. Não necessa-
riamente.
Em seu livro, Nodelman utiliza as palavras do psicólogo cognitivista Ulric
Neisser para definir o conceito de schemata:
Não apenas ler, mas também ouvir, sentir e olhar são atividades engenhosas
que ocorrem o tempo todo. Todas elas dependem de estruturas pré-existen-
tes […] chamadas schemata, que dirigem a atividade perceptiva e se modifi-
cam à medida que ela ocorre. (apud NODELMAN, 1996, p. 43)
Esse conceito é vital para a formação de leitores (assim como para todo
tipo de aprendizagem). Do ponto de vista da aprendizagem da leitura, podemos
dizer que desde bebês as crianças vão se apropriando de schemata que as permi-
tem compreender cada vez melhor o que leem. Alguns dos schemata mais simples
seriam, na cultura ocidental, descobrir que um livro é lido virando as páginas da
direita para a esquerda; ou que onde aparecem letras impressas há uma história
sendo contada; ou, ainda, que num livro ilustrado as imagens estabelecem algum
tipo de relação com as palavras impressas.
Se estivermos de acordo com as concepções de Ulric Neisser e Perry Nodel-
man, passaremos a ter do conceito prazer na leitura uma visão mais complexa.
Esse prazer seria construído à medida que o leitor vai se apropriando de novos
schemata, que lhe permitiriam ampliar seu repertório e aprender retirar sentido
de textos cada vez mais complexos. E, nesse sentido, a mediação da leitura cumpre
um papel fundamental.
O escritor e educador Aidan Chambers, um profundo conhecedor de crian-
ças, afirma que: “Se existe um interesse profundo em um assunto e se propor-
258
cionam as facilidades necessárias para sua expressão, as crianças […] são críticos
naturais desde idades muito iniciais” (CHAMBERS, 2007, p. 40).
E o que seria a crítica? Segundo ele:
O que todos sabemos […] é que a crítica tem a ver com o significado dos tex-
tos, com fazer com que “tenham sentido”: estabelecendo-o, encontrando-o,
concordando ou não sobre ele. A interpretação é parte da crítica. Também o
são as considerações como se constrói o significado: por meio da linguagem,
das formas narrativas, das convenções e ideologias; o mesmo que o leitor faz
com o texto e que o texto faz ao leitor. (CHAMBERS, 2007, p. 40)
Por isso concordamos com Clarice, quando ela afirma que o mistério que
o livro envolve: “é mais uma conversa íntima do que uma história. Daí ser muito
mais extensa que o aparente número de páginas. Na verdade, só acaba quando a
criança descobre outros mistérios”.
E, se é verdade que: “Só há dois modos de descobrir que Terra é redonda:
ou estudando em livros, ou sendo feliz”. E que: “Coelho feliz sabe um bocado de
coisas”.
O que temos de fazer como adultos mediadores de leitura é fazer nosso
nariz tremelicar – e incentivar as crianças a fazerem o mesmo – até entendermos
juntos que a natureza do coelho, assim como a de todos os seres humanos, não é se
deixar prender em gaiolas que impedem os movimentos do corpo ou da mente, e
sim deixar nosso pensamento voar em majestosa liberdade.
259
Uma história sem marca?
a) o cão simboliza a criança; mais que isso: dá vazão a uma imagem de in-
fância que a considera uma faixa etária frágil e desprotegida, necessitando
amparo permanente e cuidados suplementares. Postula a incompetência da
criança para cuidar de si mesma e justifica a intervenção constante do adulto
na vida dela;
b) o texto assume uma postura doutrinária, já que aproveita a ocasião para
transmitir ensinamentos morais e incutir atitudes, pregando principalmente
a obediência.
260
E as duas autoras completam:
261
ceiro caso: já que é preciso trabalhar e ter um lugar para viver, que seja da melhor
maneira possível. Dessa forma, Lygia acaba criando com o leitor uma relação mais
honesta.
Essas são algumas das marcas – senão as principais – de seu primeiro livro
publicado para crianças, que demonstram a ruptura com a maior parte das narra-
tivas com animais como protagonistas que a antecederam.
Redondas ou planas?
Pensando-se que as personagens escolhidas por Lygia para sua novela são
animais que são músicos e saem em busca de um verdadeiro lar, a primeira lem-
brança intertextual que nos vem à mente é o conto “Os músicos de Bremen”, reco-
lhido da tradição oral alemã pelos irmãos Wilhelm e Jacob Grimm.
Nesse conto, quatro animais se encontram pelo mundo em sua solidão, na
busca de um lugar para viver. Também querem ser músicos (sabem disso desde o
momento em que iniciam sua jornada) e também são adultos – na verdade, velhos
e, portanto, “inúteis” para o trabalho. Além disso, cada um deles se comporta e se
defende de acordo com suas características animais (o burro dá coices, o cachorro
rosna e morde, o gato arranha, o galo assusta com seu tremendo “cocoricó” no
meio da escuridão). Passam também a ser amigos para sempre: a imagem dos qua-
tro empoleirados um sobre o outro (o burro embaixo, depois o cachorro, o gato e,
por cima de todos, o galo), na mais feliz das camaradagens, é o que fica em nossa
memória do jubiloso hino à verdadeira amizade que é esse conto.
Com segurança podemos dizer que Lygia se inspirou (conscientemente ou
não) nesse conto para escrever Os colegas. Entretanto, muitas são as diferenças
presentes na história.
Em primeiro lugar, Lygia escolheu cinco amigos, entre eles, uma represen-
tante do sexo feminino e um animal “selvagem” (que, aliás, nem existe no Brasil).
Todos eles são jovens e, portanto, não são “inúteis para o trabalho”. Na verdade,
nem querem muito trabalhar; procuram o que necessitam na medida de sua ne-
cessidade, começam a fazer música por prazer, até descobrir, no final, que ela pode
ser um meio de ganhar a vida.
262
Se, inspirados por Os colegas, fôssemos construir uma imagem dos amigos
andando juntos, jamais pensaríamos em um empoleirado sobre o outro, com o
mais forte apoiando todos; pelo contrário: a imagem que nos viria é de quatro
amigos andando lado a lado, encarando um ao outro de igual para igual.
Finalmente, se as personagens de “Os músicos de Bremen” agem de acordo
com suas características animais, em Lygia, não é bem isso que acontece. Embora
estejam presentes, essas características não são estereotipadas, nem são as únicas
que eles demonstram ter. Pelo contrário: o urso Voz de Cristal tem a voz fina e
chora por qualquer motivo; Flor-de-Lis é uma cachorrinha mimada, mas demons-
tra mais coragem e decisão que seus dois colegas do sexo masculino; Cara-de-Pau
não é um coelho mansinho. É calado, sim, e gregário, como são os coelhos, mas é
também muito mal-humorado. Ou seja – Lygia utilizou as características dos ani-
mais da maneira que melhor lhe convinha para desenvolver a narrativa: ora posi-
tivamente, para reforçar suas intenções (a “inexpressividade” aparente do coelho),
ora contrariando-as, como no caso do urso enorme e chorão. Curiosamente, só a
dupla de vira-latas – Virinha e Latinha – reforça as características dos animais que
representam: são “boa gente”, como costumam ser os vira-latas.
Mais importante que tudo, em Lygia os animais comportam-se muitas vezes
como seres humanos – conversam com pessoas, têm atitudes que só pessoas pode-
riam ter, como tocar instrumentos musicais, fantasiar-se, sair em bloco de carna-
val e, principalmente, organizar-se para se defender – sem em nenhum momento
negarem que são animais.
Por mais que as crianças tenham em seu repertório literário histórias de ani-
mais que falam e se comportam como humanos, não me parece ser possível evitar
um estranhamento por parte delas com relação à maneira como as personagens
de Lygia agem.
A forma nada óbvia como Lygia desenvolve suas personagens tem como
efeito transformá-las de “planas” em “redondas” – ou seja, durante a narrativa elas
têm a oportunidade de experimentar novas maneiras de ser e, com sua experiên-
cia, chegar ao final muito diferentes de como começaram (por exemplo, com Voz
de Cristal voltando ao grupo depois de experimentar de novo a estabilidade de seu
“lar”).
Que benefícios uma leitura como essa poderia trazer para uma criança?
Romper com estereótipos já demonstrou ser algo muito importante na for-
mação do ser humano. Pensar para além das “caixinhas” em que o senso comum
busca enquadrar o pensamento humano é saudável para o coração e para a mente.
263
A forma como isso é feito em Os colegas funciona também como um desafio
para a inteligência do leitor, obrigando-o a repensar padrões e encontrar senti-
do usando novos recursos que vão ampliar suas estratégias e a desenvolver novos
schemata (no sentido que vimos anteriormente) para a leitura de futuros textos (ou
situações) em sua vida.
Na segunda citação com que abri este pequeno ensaio, Nodelman se refere
a um conceito de “estrutura” no texto:
264
Pensando-se que os leitores desse livro poderiam ser tanto as crianças de
classe média como as mais pobres, as repetições da narrativa são positivas para
ambas: ajudam as primeiras a enxergar as segundas, e estas enxergarem a si mes-
mas de maneira mais positiva.
Mas parar por aqui não faria jus à riqueza estética presente em Os colegas.
Lygia se vale de muitos outros recursos literários que merecem destaque e análise
particular: diálogos ágeis, histórias dentro da história principal, capítulos dentro
de capítulos; uso do espaço da página como forma de expressão, uso lúdico das
notas de rodapé; isso sem falar nas figuras de linguagem como personificação,
metáforas e onomatopeias.
O trecho acima faz parte de uma análise de Perry Nodelman sobre as ca-
racterísticas da literatura para crianças como gênero: O que define um livro para
crianças? O que há de comum entre livros destinados a esse público? Existem algu-
mas características presentes em todos os livros, quer sejam eles “limitantes”, quer
estimulem a inteligência e a autonomia da criança? Há algo em comum entre os de
melhor e de pior qualidade literária?
Como já vimos, o que Nodelman chama de “história genérica” é a narrativa
que expressa de forma simples e sem nuances as características do gênero em ques-
tão: é aquela que segue um padrão básico e repetitivo, que não apresenta ao leitor
nenhum tipo de desafio.
Ele parece incluir nesse padrão os contos de fadas (ou tradicionais) com
heroínas “ingenuamente passivas” e também aqueles em que a personagem mais
jovem e ingênua e, “teoricamente”, “mais tola” conquista algo que os mais velhos e
“supostamente mais inteligentes” não conseguem.
265
Pessoalmente, considero que suas afirmações correm o risco de simplificar
aquilo que sabemos ser bem mais complexo, pois Nodelman ignora algumas ca-
racterísticas importantes dos contos de fadas ou maravilhosos:
• Em primeiro lugar, as heroínas não são exatamente passivas; elas lutam
pelo que querem (mesmo sendo um casamento com um príncipe);
• Em segundo, a ganância ou a falta de generosidade – na verdade, a ina-
bilidade de colocar-se no lugar do outro – costumam ser os motivos
pelos quais os irmãos mais velhos se dão mal. Normalmente, nos contos
de “três irmãos” o irmão mais novo parece ser o mais ingênuo, mas ao
demonstrar empatia pelos que precisam de ajuda revela um grau de ma-
turidade que lhe permite vencer onde seus irmãos falharam.
266
zer certas coisas e pequena para fazer outras?), indicam que não estamos às voltas
com uma menina “ingenuamente passiva” ou cheia de “uma passividade confian-
te”. Muito pelo contrário.
O primeiro capítulo se dedica a apresentar Helena e sua família. Moradora
pobre do mundo rural brasileiro, ela é uma menina a quem não faltam inteligência
e determinação. Seu diálogo inicial com o boi de mamão – brinquedo típico das
crianças da zona rural – é uma das partes mais bonitas do livro. Suas indagações,
suas angústias são expostas de maneira instigante para leitores da mesma idade
que a personagem.
Mesmo que a discussão de cunho “feminista” que Helena tem em seguida
com o pai soe exagerada para uma menina da roça (na verdade, ali parece predo-
minar mais a voz do narrador que da personagem); mesmo que nessa discussão o
pai seja apresentado como uma personagem mais complexa do que será na conti-
nuação da narrativa, desde o início já percebemos que não estamos diante daquilo
que Nodelman caracteriza como “narrativa genérica”.
Como num conto de fadas, Helena decide sair numa jornada em busca de
respostas. Também como costuma ocorrer nesses contos, ela leva consigo um fiel
companheiro, uma espécie de amuleto: seu boi de mamão.
As referências mais explícitas aos contos tradicionais aparecem no capítulo
II. No momento de partir, Helena lembra os pais de que precisam dar a ela os mes-
mos conselhos dos pais das histórias “na hora em que os filhos partem para essas
longas jornadas pelo mundo procurando alguma coisa”.
Os pais passam a dar conselhos, adaptando o conteúdo a uma visão de mun-
do utilitária:
– Nada disso. A gente não pode logo começar sendo interesseiro. Você tem
é que perguntar aquele negócio da bênção e do dinheiro.
Foi aí que eles lembraram:
– Minha filha, você quer muito dinheiro e pouca bênção ou muita bênção e
pouco dinheiro?
E ela, que não era boba, e já sabia que sempre o irmão menor das histórias é
que pedia certo, tratou de responder:
– Muita bênção e pouco dinheiro.
267
É neste pequeno trecho que Ana Maria dá uma “virada” na estrutura do con-
to tradicional. Pois Helena não é nada ingênua ou boba. Espertamente, ela “pula”
a parte em que os dois irmãos mais velhos fazem tudo errado, pois a experiência
com a literatura lhe ensinou a “fazer de conta” que ela é o irmão menor e bobo,
pois ela sabe que é ele quem se dará bem. Podemos deduzir então que, mesmo que
apresentem modelos de heróis “simplórios e fracos”, os contos de fada podem nos
ensinar a ser mais espertos.
Seguindo o mestre
Ao relatar que os pais de Helena a deixam “sair pelo mundo” apenas acom-
panhada de seu boi de mamão e que lhe dão ao partir conselhos típicos dos contos
tradicionais, o narrador deixa implícito que tudo está ocorrendo no espaço da fic-
ção. Pois as crianças não são bobas e logo se dão conta de que, apesar do aparente
realismo do conto, adultos não deixariam uma criança “sair pelo mundo” tendo
como companhia apenas um boizinho feito de mamão. Isso só acontece de brin-
cadeira… ou nas histórias.
Leitora e admiradora confessa de Monteiro Lobato, Ana também não se
preocupa em separar de maneira clara, dentro da ficção, o que é “realidade” e o que
é imaginação. O corpo do boi de mamão é, obviamente, feito de mamão. Mesmo
assim ele fala, muda de tamanho, anda e pode carregar sua dona.
A viagem de Helena começa de forma fantasiosa, mas, ao encontrar o me-
nino Tipiti, parece transformar-se em algo mais real. Tipiti (cujo apelido está as-
sociado à rede usada para torcer e secar a massa da farinha de mandioca) é o con-
traponto realista às fantasias de Helena. Embora ele não estranhe o fato de o boi
de mamão ser uma criatura viva, ao saber que Helena está viajando não sabe para
onde, para descobrir qual é seu tamanho, espanta-se: “– Mas isso é muito fácil.
Você encosta ali naquela árvore e eu faço uma marquinha no alto de sua cabeça.
Depois você olha e fica sabendo qual é seu tamanho.”
Um novo Brasil
268
causa a princípio certa estranheza: ela não combina com o entorno, parece artifi-
cialmente colocada ali.
Entretanto, Flávia se integra ao grupo de forma simpática.
Diferentemente do Brasil do tempo de Lobato, estamos no final dos anos
1970, num momento em que nosso país está passando por um forte processo de
urbanização. A reunião das três crianças parece, assim, uma forma de simbolizar
essa passagem.
Na edição original do livro, há uma cena em que o ilustrador, Gerson Con-
forti, desenhou as três personagens lado a lado, cada qual montada no “veículo”
que a carrega na “jornada” que decidiram fazer juntas.
Essa imagem – que, de certa forma, recria, de forma meio “desconstruída”,
a clássica cena de Dom Quixote montado em Rocinante e Sancho Pança em seu
burrico – parece mostrar que o ilustrador captou exatamente um dos sentidos im-
portantes do livro. Tipiti é a personagem mais prática e realista, um representante
da realidade rural brasileira: sua viagem tem um objetivo, ajudar sua família. Hele-
na, influenciada pelas histórias, montada num animal imaginário, faz uma viagem
pelos caminhos de seu mundo interior; nesse sentido, ela representa nossas tra-
dições culturais (influenciadas pela cultura europeia, pois as histórias que Helena
conhece são também de origem europeia). À dupla, meio deslocada do contexto,
acrescenta-se Flávia, montada em sua bicicleta, a típica criança da classe média
urbana da década de 1970.
Quando acabam de se conhecer, há um diálogo em que a personalidade de
cada um parece ficar mais clara:
Helena foi reparando que Flávia sabia mesmo das coisas. E convidou:
– Você não quer viajar conosco?
– Pode ser. Onde é que vocês vão?
– Vamos até a vila, onde vai ter mercado.
E Tipiti, todo orgulhoso, foi explicando:
– Estou levando duas sacas de farinha para vender.
– E você? – quis saber Flávia, olhando para Helena.
– Eu não vou vender nada, não. Sou estou querendo descobrir alguma coisa.
– Ah então eu vou. Se a gente não descobrir, a gente inventa.
A imagem das três crianças juntas parece, assim, constituir-se em uma es-
pécie de “nascimento simbólico da criança brasileira ideal”, que tem a sabedoria
prática do povo, vive sua cultura de forma profunda, tem questionamentos sobre o
sentido da vida e, por fim, a audácia da criança urbana, questionadora e “pergun-
tadeira” (como a Emília de Lobato).
269
A imagem idealizada criada pelas três crianças juntas, apesar de bonita, pa-
rece apontar para uma fragilidade da narrativa, no que diz respeito à criação das
personagens.
Como dissemos, esta foi a primeira experiência de Ana Maria Machado
com novelas mais longas. Todos os seus contos anteriores eram pequenas histórias
escritas para a Revista Recreio, com personagens mais simples e infantis.
Uma novela exige personagens mais densas, como, de certa forma, é a pro-
tagonista de Bem do seu tamanho. Mas, para conseguir criar uma imagem idea-
lizada, ela foi obrigada a optar por um narrador totalmente onisciente, que tenta
controlar tudo o que acontece. A consequência disso é que, afora Helena, todas
as outras personagens tendem a ser planas, pois parecem ter a função apenas de
fazer declarações a respeito de si mesmas e do que está implícito que representam
na narrativa.
270
A única que retira um ensinamento verdadeiro da sorte que recebeu do pe-
riquito do realejo é Helena. O contato com a realidade a ajuda a encontrar a res-
posta para suas perguntas sobre o tamanho da gente: todos podemos ser pequenos
e ser grandes, depende da forma de se ver. O adulto deixa de ser aquele que está
sempre no controle de tudo e seguro da verdade. Pode-se ser adulto quando é pre-
ciso e também ser criança no momento de desfrutar a alegria de viver. Dos três,
Helena é a única personagem que evolui no decorrer da narrativa.
Também há um conjunto de premissas e ideias defendidas pelo narrador
de forma muito explícita, que poderiam ser mais bem integradas à narrativa: dar
poder às crianças, valorizar sua ingenuidade, sua busca pela verdade; valorizar
nossas tradições; defender a convivência pacífica e cooperativa entre o Brasil rural
e o urbano, entre as pessoas e as classes sociais.
Mas é importante ressaltar outra vez o ponto forte deste livro: a reflexão
sobre o sentido das palavras e as ambiguidades da linguagem.
Bibliografia
ARROYO, Leonardo. Literatura infantil brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Duas
Cidades / Ouro sobre azul, 2004.
FUNDAÇÃO NACIONAL DO LIVRO INFANTIL E JUVENIL. Um imaginário de livros e
leituras. Rio de Janeiro, FNLIJ, 2008.
HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Edusp, 2017.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: História & histórias.
São Paulo: Ática, 1984.
MORTATTI, M. R. L. Leitura crítica da literatura infantil. Itinerários, 17, 2001.
NODELMAN, Perry. The Pleasures of Children’s Literature. New York: Longman, 1996.
RAFFAINI Patrícia Tavares. Pequenos poemas em prosa. Vestígios da literatura ficcional
na infância brasileira, nas décadas de 30 e 40. Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2008.
SILVA, Raquel Afonso. Entre livros e leituras: um estudo de cartas e leitores. Tese de Douto-
rado apresentada ao Programa de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos
da Linguagem da Universidade de Campinas, 2009.
VÁRIOS AUTORES. Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Revista HISTEDBR.
Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/22e/doc1_22e.
pdf>. Acesso em: mar. 2019.
WHITE, E. B. A teia de Charlotte. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
271
Edições utilizadas para as análises literárias:
BOJUNGA, Lygia. Os colegas. Rio Janeiro: José Olympio Editora, 1998.
LISPECTOR, Clarice. O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
MACHADO, Ana Maria. Bem do seu tamanho. Rio de Janeiro: Salamandra, 1991.
272
Divergir concordando – Dois prêmios literários e
os livros para crianças e jovens no Brasil
Marília Mendes
Carlos Pires
1 Bourdieu (BOURDIEU, 2007, p. 116-154) demonstra como instituições criam e fortalecem os
instrumentos de consagração – os prêmios fazem parte desses instrumentos – para se preservar e
assegurar a legitimidade dos bens simbólicos que agenciam em determinado campo.
273
indica sua posição central nesse contexto artístico-cultural. Foco de investigação
deste artigo junto com o Prêmio FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Ju-
venil), o Jabuti é, com efeito, o mais tradicional e antigo prêmio literário brasileiro,
existe desde 1959. Já o Prêmio FNLIJ é especializado em literatura infantil e juve-
nil, criado em 1975 em um contexto de expansão ao mesmo tempo das vendas de
livros e da indústria cultural no Brasil (cf. HALLEWELL, 2012, e REIMÃO, 1996).
No campo da literatura infantojuvenil no país, também foco deste artigo,
esses dois prêmios são, ao que parece, os mais significativos: o Jabuti com as ca-
tegorias Literatura Infantil, Literatura Juvenil e, a partir de 1983, também a de
Ilustração de Literatura Infantil ou Juvenil,2 e o “Prêmio FNLIJ”, “O Melhor para
a Criança” a categoria mais importante além das outras 18 atualmente premiadas
pela instituição. Ambos servem de referência para a leitura e divulgação de livros
para crianças e jovens em todo o Brasil (cf. GUERRA, 2015). A partir de uma
lista de lançamentos anuais, pais, professores, bibliotecários e outros mediadores
adquirem um documento de referência, e uma pré‐seleção feita por especialistas
com os livros de maior destaque.
O Prêmio Jabuti foi criado em 1958, idealizado por Edgar Cavalheiro, então
presidente da CBL, e pelo secretário da instituição Mário da Silva Brito – dois inte-
lectuais e estudiosos da literatura brasileira, o segundo responsável pela afirmação
e rotinização do modernismo no contexto nacional. O prêmio foi criado apesar do
período da baixa articulação do segmento editorial e da alta parcela de analfabetos
no país, em torno de 40% da população. Os idealizadores tiveram como norte pre-
miar os profissionais do livro que mais se destacassem a cada ano – profissionais,
importante salientar, em um contexto de baixa especialização dos trabalhos cultu-
rais (cf. ORTIZ, 1987). O secretário Mário da Silva Brito, um dos idealizadores do
prêmio, recebeu um Jabuti já na primeira edição de 1959 (que ajudou a idealizar)
por sua História do modernismo brasileiro, lançada pela editora Saraiva, capitanea-
da pela família fortemente envolvida na fundação da CBL – em 1946, Jorge Saraiva
foi o primeiro presidente da instituição. A família Saraiva, a que por mais tempo
ficou no comando da CBL3 até hoje, ganhou também o Jabuti “Editor do ano” em
1959, mesmo ano da fundação do prêmio.
Segundo Rosely Boschini, ex‐presidente da CBL, que escreveu um livro com
caráter celebrativo sobre o Jabuti:
2 A partir de 2018, essas três categorias do prêmio Jabuti foram concentradas em uma só, “In-
fantil e Juvenil”, o que provocou protestos dos profissionais atuantes na área, por não a considerarem
representativa do tipo de produções realizadas pelo setor.
3 Foram 14 anos, somando o mandato de Jorge Saraiva na fundação da CBL, 1946-1950, com o
de seu irmão Paulino Saraiva, 1967-1975.
274
Tudo começou sem alarde, simples e discretamente, como era do estilo do
personagem‐símbolo. Mas também com ousadia, como era do estilo dos
seus criadores, os diretores da CBL nos idos de 1950. Afinal, lançar um prê-
mio literário e editorial em um país de poucos livros e leitores não era pouca
coisa. (PRÊMIO JABUTI: 50 ANOS, 2008, p. 5).
4 Os trabalhos de Constatin Brancusi das duas primeiras décadas do século XX são provavelmen-
te uma das origens dessa simplificação.
5 A Câmara Brasileira do Livro (CBL) foi fundada em 1946.
275
uma demanda de mercado, principalmente voltada ao público infantil e juvenil,
com a rápida ampliação das editoras na virada da década de 1960 para a seguinte.6
É possível perceber essas distintas realidades culturais que os prêmios acu-
sam na própria forma como eles se organizam: o Jabuti contempla livros “adultos”
e “infantis”, sendo que, para os segundos, existiram, de 1983 a 2017, três categorias
(Livro Infantil, Livro Juvenil e Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil), enquanto o
Prêmio FNLIJ é exclusivo para publicações infantojuvenis, ou demarca um campo
que em boa medida se autonomizou dentro do literário na virada da década de
1960 para a seguinte. Em 2016, limite do nosso recorte de pesquisa, esse prêmio
(FNLIJ) contava com 18 categorias: Criança, Jovem, Imagem, Poesia, Informati-
vo, Tradução Criança, Tradução Jovem, Tradução Informativo, Tradução Reconto,
Projeto Editorial, Revelação Escritor, Revelação Ilustrador, Melhor Ilustração, Tea-
tro, Livro Brinquedo, Teórico, Reconto e Literatura de Língua Portuguesa.
A Instituição também é a responsável por indicar os candidatos ao Prêmio
Hans Christian Andersen, premiação internacional correspondente ao “Nobel da
Literatura” no campo dos livros para crianças e jovens, o que é revelador em rela-
ção aos processos que levaram à autonomização e institucionalização desse novo
campo para além dos limites nacionais, com um arranjo complexo e hierárquico
transnacional. O Brasil já teve, com efeito, três vencedores da premiação interna-
cional: Lygia Bojunga, em 1982; Ana Maria Machado, em 2000 (ambas como au-
toras); e Roger Mello, em 2014, como ilustrador, sendo este o primeiro ilustrador
latino‐americano a receber o prêmio.
No caso da FNLIJ, os livros são enviados pelos editores à fundação assim
que são lançados (é uma escolha da editora/autor enviar). Ou seja, não é preciso
pagar para inscrevê-los, diferente do Jabuti. Ambas as premiações ocorrem em
duas etapas: no Jabuti, primeiro é divulgada uma lista com dez livros finalistas
em cada categoria e, depois, outra com os três livros premiados; no Prêmio FN-
LIJ, primeiramente é divulgada uma lista de livros selecionados como “Altamente
Recomendáveis”, e, na segunda etapa, são divulgados os melhores livros de cada
categoria, que recebem efetivamente o prêmio.
Como mencionamos acima, ao longo da história, os prêmios passaram por
muitas mudanças: desde 1959 o Jabuti já mudou, entre outras coisas, desde os es-
paços para a cerimônia de entrega, até o número de categorias.
Neste artigo vamos apresentar parte de uma pesquisa que realizamos a par-
tir de uma tabulação dos livros premiados de 2001 a 2016 contendo as seguintes
informações: prêmio (Jabuti ou FNLIJ), categoria, posição (primeiro, segundo e
6 Para Sandra Reimão, suas pesquisas localizaram nos anos 1970 “o crescente processo de indus-
trialização da produção cultural” (REIMÃO, 1996, p. 18).
276
terceiro lugares no caso do Jabuti), ano, título, autor, ilustrador e editora. Foi feita
uma análise procurando identificar as editoras mais premiadas, autores, ilustrado-
res e afinidades ou diferenças entre os prêmios. Após esse levantamento, compa-
rou‐se esse com a lista de livros mais vendidos de livrarias renomadas do país, o
que confirmou uma intuição que tínhamos sobre a relação, ou a falta dela, entre os
livros premiados e os best‐sellers, ou os mais vendidos.
No breve histórico feito anteriormente sobre a origem dos prêmios, vimos
que eles foram criados em contextos muito diferentes, com propósitos distintos.
O Prêmio Jabuti confere um espaço um tanto genérico para a literatura infantil e
juvenil dentro de uma perspectiva da classe editorial do país. Já o Prêmio FNLIJ
é bem mais específico, a começar pelo fato de ter só a literatura infantil e juve-
nil no seu horizonte e dividir suas categorias. O Jabuti foi pensado para premiar
“profissionais do livro no Brasil”, em um contexto, como vimos, de relativa baixa
especialização do trabalho no campo cultural brasileiro, enquanto a FNLIJ já surge
como uma premiação específica, com um recorte na produção de livros direciona-
do a um público específico. E, ainda, no caso da FNLIJ, um tipo de livro que tem
o sistema educacional como o seu principal meio de circulação – com influência
envolvida em compras do Estado e/ou de grandes instituições. Esse prêmio tem
como foco maior o livro propriamente, e não as pessoas responsáveis por ele, os
“profissionais do livro”, ou a classe editorial.
7 No prêmio Jabuti, por mais de uma vez aconteceram empates. Em 2010, por exemplo, na cate-
goria Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil, cinco livros foram premiados, sendo dois em segundo
lugar e dois em terceiro. O mesmo ocorreu em 2007, na categoria Literatura Juvenil, com dois livros
premiados com o terceiro lugar.
277
indo de 17 em 2001… … a 24 em 2016:
Tradução Jovem Reconto
Teórico Tradução/Adaptação Jovem
Criança Literatura em Língua Portuguesa
Informativo Poesia
Tradução Informativo Ilustrador Revelação
Tradução Criança Tradução/Adaptação Criança
Escritor Revelação Livro-brinquedo
Livro Brinquedo Poesia
Projeto Editorial Imagem – Hors-Concours
Teatro Melhor Ilustração
Criança “Hors-Concours” Reconto – Hors-Concours
Escritor Revelação Jovem
Ilustrador Revelação Criança Hors-Concours
Reconto Melhor Projeto Editorial
Jovem Tradução/Adaptação Reconto
Imagem Imagem
Poesia Criança
Escritora Revelação
Informativo
Literatura em Língua Portuguesa
Teatro
Teórico
Tradução/Adaptação Informativo
Tradução/Adaptação Jovem
8 O prêmio se desmembrou em Livro Infantil e Livro Juvenil em 2005, como veremos.
278
dito, mais recentemente. A FNLIJ assumiu um papel decisivo nesse processo,
criando estratégias de diferenciação, entre elas a própria maneira de premiar e os
vínculos com um sistema internacional de circulação dos livros para crianças e
jovens. Essas questões, de qualquer maneira, são ainda relativamente pouco estu-
dadas nessa chave que estamos propondo.
Voltando à nossa primeira comparação bruta entre os dois prêmios, de um
total de 460 prêmios atribuídos ao longo de 2001 a 2016, apenas 36 títulos rece-
beram os dois prêmios (Jabuti e FNLIJ). Mesmo levando em consideração que
não existe sobreposição de categorias, o que torna a comparação pouco precisa e
inefetiva em alguns casos, se olharmos para o ano de 2012:
279
Ilustração de Livro o
Jabuti 2 lugar A visita
Infantil ou Juvenil
Ilustração de Livro o
Jabuti 3 lugar Carmela vai à escola
Infantil ou Juvenil
Jabuti Literatura Infantil 1o lugar Benjamin: Poemas com desenhos e músicas
Jabuti Literatura Infantil 2o lugar O herói imóvel
Jabuti Literatura Infantil 3o lugar Votupira o vento doido da esquina
Jabuti Literatura Juvenil 1o lugar A mocinha do Mercado Central
Jabuti Literatura Juvenil 2o lugar A guardiã dos segredos de família
FNLIJ Jabuti
Ática Cosac Naify
FTD DCL
Edições SM Editora Record
Peirópolis Editora Melhoramentos
FTD Editora Rovelle
Moderna Edições SM
Martins Martins Fontes Editora Globo
Cosac Naify Edições SM
Peirópolis Editora Positivo
FTD
Dimensão
Cosac Naify
Edições SM
Objetiva
Cosac Naify
280
Bertrand Brasil
Edições SM
Excetuando Cosac Naify e Edições SM, não existe mais qualquer sobreposi-
ção nesse ano entre dezesseis editoras.
Deslocando a análise para o ano de 2007, onde é possível observar alguns
pontos de contato entre as premiações: dos 28 prêmios atribuídos nesse ano, Lam-
pião & Lancelote, de Fernando Vilela, ganhou ao todo seis prêmios, quatro da FN-
LIJ – Escritor Revelação, Melhor Ilustração, Poesia e Projeto Editorial – e dois
primeiros lugares da CBL – Literatura infantil e Ilustração de Livro Infantil ou
Juvenil. Seguindo o grande premiado do ano, outra sobreposição de uma artista
já consagrada no campo, Eva Furnari, que com seu Felpo Filva ganhou o terceiro
lugar da CBL, Literatura Infantil, e o prêmio Criança “Hors-Concours” da FNLIJ.
Os outros 20 prêmios do ano, fazendo a ressalva de que em alguns casos a sobrepo-
sição não é possível, são atribuídos a livros completamente diferentes, com, algu-
mas vezes, repetições nas editoras Edições SM, Companhia das Letrinhas e Cosac
Naify. As duas últimas são as mais premiadas ao longo do recorte temporal que
esta pesquisa privilegia: Companhia das Letrinhas com 62 prêmios, Cosac Naify
com 61, seguidas pela SM com 27 e Ática com 26.
De qualquer maneira, mesmo nas raras vezes em que essas editoras mais
premiadas estão presentes nos dois prêmios, os títulos, com as exceções comen-
tadas acima, são diferentes, o que, como estamos argumentando, revela um forte
descompasso entre as instituições, ou, ao menos, critérios muito distintos para a
valoração dos livros para crianças e jovens.
Em 2001, começo do nosso levantamento, o Jabuti não separava literatura
281
infantil e juvenil, o que só passou a acontecer em 2005.9 Em 2001, nas 23 pre-
miações, 6 da CBL e o restante da FNLIJ, aconteceram quatro sobreposições,10 ou
oito prêmios, quatro de cada instituição. Do ponto de vista estatístico, isso vai em
direção contrária ao que estamos argumentando em relação às instituições terem
critérios de avaliação distintos, já que a FNLIJ premiou mais da metade dos livros
contemplados pela CBL, quase 70% de fato. Em 2002, algo semelhante acontece,
com a premiação de dois títulos em comum, Meninos do mangue, de Roger Mello,
e Clave de lua, de Leo Cunha – com, ainda, o livro de Mello recebendo o prêmio
Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil da CBL e dois da FNLIJ, Criança “Hors-
-Concours” e Melhor Ilustração “Hors-Concours”.
Em 2003, também dois títulos em comum dos 30 daquele ano – 6 da CBL e
24 da FNILIJ. Em 2004, uma única sobreposição de premiação, Até passarinho pas-
sa, de Bartolomeu Campos de Queirós, Criança “Hors-Concours”, FNLIJ e Men-
ção Honrosa no Jabuti. E, a partir de 2005, com o desmembramento de infantil e
juvenil no Jabuti, do ponto de vista quantitativo a diferença se acentua, mesmo
com os 3 títulos em comum premiados nesse ano pelas duas instituições, 911 de um
total de 32 – 1012 atribuídos pela CBL e 22 pela FNLIJ.
Em quinze anos, cinco títulos que foram vencedores da categoria Literatura
Infantil ou Literatura Juvenil receberam também o prêmio de Livro do Ano no
Jabuti (o que representa um terço dos premiados, mostrando a representatividade
da literatura infantojuvenil dentro do campo literário ampliado, ou considerando
também a literatura produzida para adultos). Porém, desses cinco, apenas um deles
foi selecionado também pela FNLIJ: Breve história de um pequeno amor, de Marina
Colasanti, em 2014. Os outros quatro – A mocinha do Mercado Central, de Stella
Maris Rezende; O menino que vendia palavras, de Ignácio de Loyola Brandão; Bi-
chos que existem & bichos que não existem, de Arthur Nestrovski; e O fazedor de
amanhecer, de Manoel de Barros – nem entraram na lista da FNLIJ, mostrando
uma brutal diferença nos critérios de seleção, já que quatro livros “melhores do
ano” de uma instituição não são considerados pela outra.
Dez títulos receberam a premiação em ao menos duas categorias em algum
9 Isso dentro do período que levantamos, em momentos anteriores do prêmio esse desmembra-
mento aconteceu.
10 Os livros são: Indo não sei aonde buscar não sei o quê, de Angela-Lago – Criança “Hors-Con-
cours”, FNLIJ, Literatura Infantil ou Juvenil, Jabuti; Um gato chamado gatinho, de Ferreira Gullar,
com ilustração de Angela-Lago – Poesia, FNLIJ, Ilustração de Livro Infantil ou Juvenil, Jabuti; Chica
e João, de Nelson Cruz – Criança, FNLIJ, Literatura Infantil ou juvenil, Jabuti; e Festa, de Marcelo
Xavier – Projeto Editorial, FNLIJ, Literatura Infantil ou Juvenil, Jabuti.
11 Dez de fato, pois um dos livros premiados, o de Roger Mello, ganha dois prêmios da FNLIJ.
12 Neste ano foram dados quatro prêmios Literatura Juvenil com um empate no 2o lugar.
282
dos prêmios. Vimos alguns casos como Lampião & Lancelote (2007), de Fernando
Vilela, com duas categorias no Jabuti e quatro no FNLIJ e Meninos do mangue
(2002), de Roger Mello, com dois no Jabuti e dois no FNLIJ.
283
Títulos premiados nos dois prêmios
Posi-
Prêmio Categoria Ano Título Autor Ilustrador Editora
ção
Literatura Thais
Jabuti 3o lugar 2016 Iluminuras Rosana Rios Lê
Juvenil Linhares
Iluminuras: uma
Thais
FNLIJ Jovem 2016 incrível viagem ao Rosana Rios Lê
Linhares
passado
Criança Hors- Mariana Companhia
FNLIJ 2016 Inês Roger Mello
-Concours Massarani das Letrinhas
Melhor Projeto Mariana Companhia
FNLIJ 2016 Inês Roger Mello
Editorial Massarani das Letrinhas
Literatura Mariana Companhia
Jabuti 1o lugar 2016 Inês Roger Mello
Infantil Massarani das Letrinhas
Literatura Carolina Moreyra Odilon
Jabuti 2o lugar 2016 Lá e aqui Zahar
Infantil e Odilon Moraes Moraes
Carolina Odilon Pequena
FNLIJ Criança 2016 Lá e aqui
Moreyra Moraes Zahar
Ilustração de
Os três ratos de Alexandre Alexandre
Jabuti Livro Infantil 2o lugar 2015 Pulo do Gato
Chantilly Camanho Camanho
ou Juvenil
Melhor Os três ratos de Alexandre Alexandre
FNLIJ 2015 Pulo do Gato
Ilustração Chantilly Camanho Camanho
Renato Renato Companhia
FNLIJ Imagem 2014 Bárbaro
Moriconi Moriconi das Letrinhas
Ilustração de
Renato Renato Companhia
Jabuti Livro Infantil 1o lugar 2014 Bárbaro
Moriconi Moriconi das Letras
ou Juvenil
Criança Hors- Breve história de um Marina Rebeca
FNLIJ 2014 FTD
-Concours pequeno amor Colasanti Luciani
Literatura Breve história de um Marina Rebeca
Jabuti 1 lugar 2014
o
FTD
Infantil pequeno amor* Colasanti Luciani
António
Literatura Uma escuridão
Jabuti 3o lugar 2014 Ondjaki Jorge Pallas
Juvenil bonita
Gonçalves
Literatura em António
Uma escuridão
FNLIJ Língua 2014 Ondjaki Jorge Pallas
bonita
Portuguesa Gonçalves
Ilustração de
Fernando
Jabuti Livro Infantil 2o lugar 2013 Simbá, o marujo Stela Barbieri Cosac Naify
Vilela
ou Juvenil
Fernando
FNLIJ Reconto 2013 Simbá, o marujo Stela Barbieri Cosac Naify
Vilela
Melhor André
FNLIJ 2013 Tom André Neves Projeto
Ilustração Neves
Ilustração de
André
Jabuti Livro Infantil 1o lugar 2013 Tom André Neves Projeto
Neves
ou Juvenil
Literatura Editora
Jabuti 2o lugar 2013 Visita à baleia Paulo Venturelli Nelson Cruz
Infantil Positivo
284
FNLIJ Criança 2013 Visita à baleia Paulo Venturelli Nelson Cruz Positivo
Melhor
FNLIJ Ilustração 2013 Visita à baleia Paulo Venturelli Nelson Cruz Positivo
(Hors-Concours)
Literatura Eloar
Jabuti 2o lugar 2011 A lua dentro do coco Sérgio Capparelli Projeto
Infantil Guazzelli
FNLIJ Poesia 2011 A lua dentro do coco Sérgio Capparelli Guazzelli Projeto
Melhor Ilustra-
Angela-La-
FNLIJ ção 2011 Psiquê Angela-Lago Cosac Naify
go
“Hors Concours”
Reconto “Hors Angela-La-
FNLIJ 2011 Psiquê Angela-Lago Cosac Naify
Concours” go
Literatura Angela-La-
Jabuti 3o lugar 2011 Psiquê Angela-Lago Cosac Naify
Infantil go
Literatura Avó Dezanove e o Companhia
Jabuti 1o lugar 2010 Ondjaki
Juvenil segredo do soviético das Letras
Literatura em
AvóDezanove e o Companhia
FNLIJ Língua 2010 Ondjaki -
segredo do soviético das Letras
Portuguesa
Melhor
Companhia
FNLIJ Ilustração 2010 Carvoeirinhos Roger Mello Roger Mello
das Letrinhas
Hors-Concours
Literatura Companhia
Jabuti 2o lugar 2010 Carvoeirinhos Roger Mello Roger Mello
Infantil das Letras
Ilustração de
Angela-La-
Jabuti Livro Infantil 2o lugar 2010 Marginal à esquerda Angela-Lago RHJ
go
ou Juvenil
Literatura Angela-La-
Jabuti 2o lugar 2010 Marginal à esquerda Angela-Lago RHJ
Juvenil go
Jovem Angela-La-
FNLIJ 2010 Marginal à esquerda Angela-Lago RHJ
Hors-Concours go
Nair Eli-
Ilustração de
Graziela Bozano sabeth da
Jabuti Livro Infantil 2o lugar 2010 O lobo Manati
Hetzel Silva Tei-
ou Juvenil
xeira
Graziela Bozano Elizabeth
FNLIJ Criança 2010 O lobo Manati
Hetzel Teixeira
Literatura
Jabuti 1o lugar 2009 O fazedor de velhos Rodrigo Lacerda Cosac Naify
Juvenil
Adrianne
FNLIJ Jovem 2009 O fazedor de velhos. Rodrigo Lacerda Cosac Naify
Gallinari
Ilustração de
João Felizardo – o Angela-La-
Jabuti Livro Infantil ou 2o lugar 2008 Angela-Lago Cosac Naify
rei dos negócios go
Juvenil
Reconto “Hors- João Felizardo – o Angela-La-
FNLIJ 2008 Angela-Lago Cosac Naify
-Concours” rei dos negócios go
Ilustração de
Poeminha em língua Martha
Jabuti Livro Infantil ou 3o lugar 2008 Manoel de Barros Record
de brincar Barros
Juvenil
Poeminha em língua Martha
FNLIJ Poesia 2008 Manoel de Barros Record
de brincar Barros
285
Literatura In- Zubair e os labi- Companhia
Jabuti 3o lugar 2008 Roger Mello Roger Mello
fantil rintos das Letras
Melhor Projeto Zubair e os labi- Companhia
FNLIJ 2008 Roger Mello Roger Mello
Editorial rintos das Letrinhas
Literatura In-
Jabuti 3o lugar 2007 Felpo Filva Eva Furnari Eva Furnari Moderna
fantil
Criança “Hors-
FNLIJ 2007 Felpo Filva Eva Furnari Eva Furnari Moderna
-Concours”
Literatura In- Companhia
Jabuti 2o lugar 2007 João por um fio Roger Mello Roger Mello
fantil das Letras
Ilustração de
Lampião & Lan- Fernando
Jabuti Livro Infantil ou 1o lugar 2007 Fernando Vilela Cosac Naify
celote Vilela
Juvenil
Literatura In- Lampião & Lan- Fernando
Jabuti 1o lugar 2007 Fernando Vilela Cosac Naify
fantil celote Vilela
Escritor Reve- Lampião & Lan- Fernando
FNLIJ 2007 Fernando Vilela Cosac Naify
lação celote Vilela
Melhor Ilustra- Lampião & Lan- Fernando
FNLIJ 2007 Fernando Vilela Cosac Naify
ção celote Vilela
Lampião & Lan- Fernando
FNLIJ Poesia 2007 Fernando Vilela Cosac Naify
celote Vilela
Lampião & Lan- Fernando
FNLIJ Projeto Editorial 2007 Fernando Vilela Cosac Naify
celote Vilela
Criança “Hors
FNLIJ 2006 Cacoete Eva Furnari Eva Furnari Ática
Concours”
Ilustração de
Jabuti Livro Infantil ou 1o lugar 2006 Cacoete Eva Furnari Eva Furnari Ática
Juvenil
Literatura In-
Jabuti 3o lugar 2006 Cacoete Eva Furnari Eva Furnari Ática
fantil
Criança “Hors Companhia
FNLIJ 2006 João por um fio Roger Mello Roger Mello
Concours” das Letrinhas
Melhor Ilustra-
Companhia
FNLIJ ção “Hors Con- 2006 João por um fio Roger Mello Roger Mello
das Letrinhas
cours”
Lis no peito: um li- Jorge Miguel
Jabuti Literatura Juvenil 1o lugar 2006 Biruta
vro que pede perdão Marinho
Lis no peito: um li- Jorge Miguel
FNLIJ Jovem 2006 Biruta
vro que pede perdão Marinho
Ilustração de
Palavra cigana: seis Stephan
Jabuti Livro Infantil ou 2o lugar 2006 Florencia Ferrari Cosac Naify
contos nômades Doitschnoff
Juvenil
Palavra cigana: seis Stephan
FNLIJ Reconto 2006 Florencia Ferrari Cosac Naify
contos nômades Doitschinoff
Ilustração de
Jabuti Livro Infantil ou 1o lugar 2005 Nau Catarineta Roger Mello Roger Mello Manati
Juvenil
Melhor Ilustra-
FNLIJ ção “Hors Con- 2005 Nau Catarineta Roger Mello Roger Mello Manati
cours”
Reconto “Hors
FNLIJ 2005 Nau Catarineta Roger Mello Roger Mello Manati
Concours”
286
JabutiLiteratura Juvenil 3o lugar 2005 No longe dos Gerais Nelson Cruz Nelson Cruz Cosac Naify
Projeto Editorial
FNLIJ 2005 No longe dos Gerais Nelson Cruz Nelson Cruz Cosac Naify
“Hors Concours”
O olho de vidro do Bartolomeu Cam-
Jabuti Literatura Juvenil 2o lugar 2005 Moderna
meu avô pos de Queirós
Jovem “Hors O olho de vidro do Bartolomeu Cam-
FNLIJ 2005 Moderna
Concours” meu avô pos de Queirós
Men-
Literatura Infan- ção Até o passarinho Bartolomeu Cam- Elisabeth
Jabuti 2004 Moderna
til ou juvenil Hon- passa pos de Queirós Teixeira
rosa
Criança “Hors- Até passarinho Bartolomeu Cam- Elizabeth
FNLIJ 2004 Moderna
-Concours” passa pos de Queirós Teixeira
Men-
Ilustração de Chapeuzinho Ver-
ção Rui de Companhia
Jabuti Livro Infantil ou 2003 melho e outros con- Rui de Oliveira
Hon- Oliveira das Letrinhas
Juvenil tos por imagem
rosa
Chapeuzinho Ver- Rui de Oliveira.
Rui de Companhia
FNLIJ Imagem 2003 melho e outros con- Luciana Sandroni
Oliveira das Letrinhas
tos por imagem (adaptação)
Ilustração de
Eliardo
Jabuti Livro Infantil ou 1o lugar 2002 Clave de lua Leo Cunha Paulinas
França
Juvenil
Melhor Ilustra- Eliardo
FNLIJ 2002 Clave de lua Léo Cunha Paulinas
ção França
Eliardo
FNLIJ Poesia 2002 Clave de lua Leo Cunha Paulinas
França
Ilustração de
Companhia
Jabuti Livro Infantil ou 3o lugar 2002 Meninos do mangue Roger Mello Roger Mello
das Letrinhas
Juvenil
Literatura Infan- Vence- Companhia
Jabuti 2002 Meninos do mangue Roger Mello Roger Mello
til ou juvenil dor das Letrinhas
Criança “Hors- Companhia
FNLIJ 2002 Meninos do mangue Roger Mello Roger Mello
-Concours” das Letrinhas
Melhor Ilustra-
Companhia
FNLIJ ção “Hors-Con- 2002 Meninos do mangue Roger Mello Roger Mello
das Letrinhas
cours”
Literatura Infan- Vence-
Jabuti 2001 Chica e João Nelson Cruz Nelson Cruz Formato
til ou juvenil dor
FNLIJ Criança 2001 Chica e João Nelson Cruz Nelson Cruz Formato
Literatura Infan- Vence- Indo não sei aonde
Jabuti 2001 Ângela Lago Ângela Lago RHJ
til ou juvenil dor buscar não sei o quê
Criança “Hors- Indo não sei aonde Angela-La-
FNLIJ 2001 Angela-Lago RHJ
-Concours” buscar não sei o quê go
Um gato chamado Angela-La-
FNLIJ Poesia 2001 Ferreira Gullar Salamandra
Gatinho go
Ilustração de
Vence- Um gato chamado
Jabuti Livro Infantil ou 2001 Ferreira Gullar Ângela Lago Salamandra
dor Gatinho
Juvenil
* Ganhou também Prêmio Livro do Ano Ficção
287
***
A partir da breve história desses prêmios foi possível identificar uma dinâ-
mica de afirmação cultural e autonomização relativa do campo da literatura para
crianças e jovens a partir do final da década de 1960 e, principalmente, na década
de 1970 que acompanha um processo, segundo Reimão, de industrialização da
cultura (cf. REIMÃO, 1996). Essa autonomização acompanha disputas em torno
desse campo que acabaram por criar instâncias de consagração divergentes. No
entanto, na média geral do período estudado, poucas editoras de aproximadamen-
te uma centena – Companhia das Letrinhas, Cosac Naify, SM e Ática, principal-
mente – adquirem posição hegemônica nesse campo. Isso, curiosamente, mesmo
com a relativamente pouca similaridade nas escolhas por parte das duas institui-
ções em foco nesta pesquisa.
Bourdieu diz sobre o processo de “canonização” da consagração:
Por maiores que possam ser as variações da estrutura das relações entre as
instâncias de conservação e consagração, a duração do “processo de cano-
nização” (montado por estas instâncias antes de concederem sua consagra-
ção) depende diretamente da medida em que sua autoridade é reconhecida
e capaz de impor‐se de maneira duradoura. (BOURDIEU, 2007. p. 120‐121).
13 Ver neste livro o artigo de Lenice Bueno que organiza os diferentes momentos do “boom” da
literatura para crianças e jovens na década de 1970 e apresenta uma hipótese que compartilhamos
sobre sua expansão “que ocorreu principalmente na entrada do novo século, provocada pelo incre-
mento das compras governamentais e pelo surgimento das megalivrarias, associado à internacionali-
zação do setor editorial” (ver neste livro, página XXX). Segundo o Sindicato Nacional de Editoras de
Livros (Snel), de 2006 a 2015 houve uma queda considerável no preço médio do livro: 36% no setor
como um todo. Porém, nas obras gerais (onde se encontram os livros de literatura infantojuvenil), a
queda foi de 44%, o que aponta para o fato de as editoras procurarem oferecer livros menos custosos
288
como estamos insinuando, o fato de a literatura para crianças e jovens formar um
subsistema,14 que procura diferenciação, dentro de um campo literário ampliado
em que no mesmo período “o romance constitui a face mais visível e valorizada
da literatura brasileira contemporânea” (ZILBERMAN, 2017, p. 426). Regina Zil-
berman, pesquisadora que estuda há décadas a literatura para crianças e jovens no
país, afirma ainda, pensando no romance:
Nos prêmios literários que investigamos, é possível verificar que essa afirma-
ção em relação ao gênero não se sustenta, ou não se sustenta da mesma maneira.
Homens e mulheres estão relativamente equiparados como autores e ilustradores
premiados, o que não surpreende propriamente, pois o livro para crianças e jovens
tem como um dos espaços prioritários de circulação as escolas, espaços predomi-
nantemente ocupados, principalmente no ensino fundamental I, por mulheres.
Além do fato de esses livros ainda estarem no imaginário social relacionados de
maneira um tanto imediata aos “cuidados com as criança,15 âmbito considerado
“naturalmente” feminino na divisão, injusta, do trabalho “doméstico”16 que se es-
e mais acessíveis, ou, talvez, o mercado ter ficado mais competitivo. Isso se deu, em grande parte, pelo
acordo feito por representantes do Plano Nacional do Livro da da Leitura (PNLL) com as editoras,
acordo que conseguiu derrubar impostos dos livros e diminuir seu preço para o consumidor final:
Em 21 de dezembro de 2004, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei de Desoneração
Fiscal que isenta “[…] a produção, comercialização e importação de livros do pagamento do PIS/
Cofins/Pasep, o que varia entre 3,655 a 9,25%” (SCORTECCI; PERFETTI, 2006, p. 29). Desse modo,
editores, livreiros e distribuidores não mais pagarão qualquer tipo de taxa ou imposto sobre opera-
ções com livro gozando, pois, de imunidade tributária, conforme prevê a Constituição, na Seção II
– Das Limitações do Poder de Tributar, Art. 150, inciso VI, alínea “d” (BRASIL. MINISTÉRIO DA
CULTURA, 2005). A desoneração foi vista por muitos de forma bastante otimista, sobretudo pelo
próprio governo, como uma garantia de uma redução no preço do livro, fato que não está assegurado
(BRASIL, MINISTÉRIO DA CULTURA, ano).
14 Paralelo ao “boom” da literatura para crianças nos anos 1970, acontece o “boom” dos contos,
que adquirem forte importância naquele contexto literário. Sobre esse fenômeno ver Regina Dalcas-
tagnè (2001). Nas últimas décadas, ou no mesmo recorte temporal desta pesquisa, o romance passa,
segundo Zilberman, a ocupar uma posição central no campo.
15 Em um levantamento que fizemos em escolas de uma região da periferia da cidade de São
Paulo, uma década e pouco atrás, constatamos, embora com uma amostragem não estatisticamente
significativa, que os livros eram escolhidos e lidos em sala de aula pelas professoras principalmente
levando em conta o ensinamento moral que eles poderiam trazer para as crianças.
16 Wendy Goldman (2014, p. 52) defende que a primeira legislação que desnaturalizou essa “con-
289
palha para o mundo do trabalho.
Livros premiados e mais vendidos
dição feminina” e “varreu séculos de domínio patriarcal e eclesiástico e firmou uma nova doutrina
baseada em direitos individuais e igualdade de gênero” aconteceu em outubro de 1918, na União
Soviética. Algo que demorou ainda muitas décadas para começar a ser considerado nos sistemas
legais de outros países.
290
Christian Figueiredo Novas
2015 5 Eu fico loko 2
de Caldas Páginas
Suma de
2015 6 Dois mundos, um herói Rezende Evil
Letras
Paula Pimenta / Babi
2015 12 Um ano inesquecível Dewet / Bruna Vieira Gutenberg
/ Thalita Rebouças
Minha vida fora de série – 3a tempora-
2015 14 Paula Pimenta Gutenberg
da
Minha vida fora de série – 2 tempora-
a
2013 19 Paula Pimenta Gutenberg
da
Globo
2012 1 Agapinho Padre Marcelo
Livros
Em uma seleção que abrange 2010 a 2016, com 140 livros selecionados,
apenas 12 são de autores nacionais, sendo que em 2010, 2011 e 2014 não existiu
qualquer representante brasileiro entre os mais vendidos. Em 2012 e 2013, tivemos
apenas um representante brasileiro. Somente a partir de 2015, a produção nacional
começou a ficar um pouco mais significativa na lista. Porém, ainda assim, apenas
um deles figurou na lista em dois anos, Dois mundos, um herói, em 2015 e 2016.
Também é possível perceber que é muito comum vários livros da mesma série
aparecerem nas listas. Uma produção em “série”, com caráter, digamos assim, “in-
dustrial”, corresponde de fato a boa parte das vendas.
Outro fator que determina os livros infantojuvenis mais vendidos também
são as adaptações para o cinema. Muitos livros viraram filmes e, inclusive, troca-
ram a capa para a associação do leitor com a obra cinematográfica – o que é uma
estratégia comum nas negociações simbólicas entre diferentes campos da indús-
tria cultural (cf. REIMÃO, 1996).
Investigar a relação entre os dois prêmios levou a organizar, em um primei-
ro momento e de forma um tanto sumária, a origem deles e suas diferenças, ou
seus lugares distintos no campo de produção de livros para crianças. Esse campo,
com efeito, ganhou maior autonomia, como argumentamos, na década de 1970, e
a FNLIJ foi uma instituição central para compreender esse processo. O Jabuti e a
CBL participaram de um momento anterior, de institucionalização dos “profissio-
nais do livro” em um momento de relativamente pouca especialização do trabalho
cultural (cf. ORTIZ, 1987).
A comparação entre os dois prêmios precisaria partir da própria maneira
como como eles se organizam, que remete a dois contextos culturais distintos da
cultura nacional. Estabelecer uma genealogia dessa diferença, ou marcar a disputa
nesse campo que aumentou seu grau de autonomia na década de 1970 dentro de
um contexto cultural determinado, contribuiu para o trabalho comparativo entre
291
prêmios que não se sobrepõem.
O ponto central desta pesquisa foi organizar dados de um período recente
da história nacional, ou dados dos últimos 15 anos de dois prêmios literários re-
lacionados aos livros para crianças e jovens. Essa abordagem levou a uma série de
problemas práticos, como o fato já mencionado de não existir uma sobreposição
exata entre os prêmios, a divergência entre os critérios de avaliação e a consagração
de poucas editoras mesmo com essa divergência. Algo que percebemos necessário,
mas que preferimos deixar para futuras investigações, foi problematizar os temas,
construções narrativas, personagens e outros aspectos propriamente literários –
isso certamente permitiria uma interessante reavaliação dos dados e hipóteses que
apresentamos aqui. Optamos, como dito acima, por uma tabulação desses dados
que recobrem 15 anos, um largo período de tempo. Fizemos, então, um esboço
de análise e arriscamos algumas hipóteses interpretativas apoiadas nesses dados
sobre o funcionamento do campo da literatura para crianças e jovens.
A relação entre duas instâncias de consagração que premiam livros dife-
rentes, ou não compartilham em boa medida de mesmos critérios como nosso
levantamento demonstrou, e o fato de os prêmios ficarem entre poucos grandes
grupos editoriais revelam um aspecto interessante relacionado à história recente
de formação e consolidação desses grupos e da relação deles com a dinâmica cul-
tural atual.
Elisabeth Serra, em um livro com tom celebrativo, Um imaginário de livros
e leituras: 40 anos da FNLIJ (2008), afirma:
292
construir um gosto estético. (UM IMAGINÁRIO…, 2008, p. XV)
A criação dos dois prêmios contribuiu tanto para a forma como o merca-
do editorial se estabeleceu no país quanto para a institucionalização da CBL e da
FNLIJ. Embora, como procuramos demonstrar pontualmente, existe um funcio-
namento paralelo a essas instituições que passa, ao que parece, ao largo de seus
critérios e disputas. Os best-sellers, como o próprio nome indica, são as obras mais
vendidas em livrarias. Os prêmios, no entanto, acabam servindo como uma pré‐
seleção aos mediadores de leitura, profissionais que se veem em meio a uma in-
finidade de lançamentos a cada ano e, sem condições de analisar tudo o que o
mercado oferece, enxergam nos livros premiados um atalho para o que “há de
melhor”, segundo a seleção dessas instituições. As vendas para o governo e, mais
recentemente, para os programas de incentivo à leitura de empresas geram, muitas
vezes, retornos financeiros mais significativos para as editoras. Essas, com efeito,
organizam seus cronogramas por meio dos editais que regulamentam essas dispu-
tas.17
Parece‐nos que os levantamentos e as análises desta pesquisa de fato apenas
abrem um problema. Será preciso ainda muita investigação, um esforço coletivo
na verdade, para se chegar a um desenho mais claro relacionado ao campo da
literatura para crianças no Brasil, e para entender suas instituições e as media-
ções em jogo. Mas, de qualquer modo, esta é uma abertura, feita por meio de um
levantamento extenso, para novas pesquisas que provavelmente acontecerão em
diferentes áreas do conhecimento e com diferentes propósitos.
17 Em 2015 o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) foi suspenso, e em 2018 o gover-
no Temer mudou a forma de comprar livros de ficção, incluindo-os no PNLD (Programa Nacional
do Livro Didático). E, com relação ao atual governo Bolsonaro, ainda não se sabe como se darão as
compras para esse tipo de livro. Agradecemos a Lenice Bueno pela sugestão desta nota e pela leitura
cuidadosa do artigo.
293
Referências
294
esta obra foi composta
em Minion Pro 11/14
pela Editora Zouk e impressa
em papel Pólen 70g/m2
pela gráfica Odisséia
em Junho de 2019