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Vol. 6 - No.

1 - 2004 1

GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO NORDESTE

GELNE

REVISTA
DO GELNE
Dermeval da Hora (UFPB)
Eliane Ferraz Alves (UFPB)
Lucienne C. Espíndola (UFPB)
Maria Elizabeth Affonso Christiano (UFPB)
Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB)
(Organizadores)

Revista do Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste - GELNE João Pessoa Vol. 6 No. 1 2004
ISSN 1517-7874
2 Revista do Gelne

Todos os direitos reservados ao GELNE

Editoração Eletrônica
Magno Nicolau

Realização
Grupo de Estudos Lingüísticos do Norte e Nordeste (GELNE)
www.gelne.org.br

Revista do GELNE - Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste - Vol. 6 - No. 1


- João Pessoa: Idéia, 2004.
Semestral
ISSN 1517-7874
1. Língua - Lingüística - Literatura - Periódicos I. Grupo de Estudos Lingüísticos
do Nordeste

Endereço para correspondência:


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Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste


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Vol. 6 - No. 1 - 2004 3

REVISTA
DO GELNE

Dermeval da Hora (UFPB)


Eliane Ferraz Alves (UFPB)
Lucienne C. Espíndola (UFPB)
Maria Elizabeth Affonso Christiano (UFPB)
Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB)
(Organizadores)

João Pessoa
Idéia
2004
4 Revista do Gelne

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

COMITÊ EDITORIAL
Américo Venâncio Lopes Machado Filho (UFBA)
Dermeval da Hora (UFPB) – Presidente
Dóris de Arruda Carneiro da Cunha (UFPE)
José de Ribamar Mendes Bezerra (UFMA)
Maria Elias Soares (UFC)
Socorro de Fátima Pacífico Barbosa (UFPB)

CONSELHO EDITORIAL
Ataliba Teixeira de Castilho - USP
Célia Marques Telles - UFBA
Diana Luz Pessoa de Barros - USP
Dino Preti - USP
Ingedore Vilaça Koch - UNICAMP
José Luiz Fiorim - USP
Kazuê Saito de Barros - UFRN
Luiz Antônio Marcuschi - UFPE
Maria Aparecida Barbosa - USP
Maria da Piedade de Sá - UFPE
Maria do Socorro Simões - UFPA
Sônia Maria van Dijck Lima - UFPB
Stella Maris Bortoni-Ricardo - UNB

GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO NORDESTE

Presidente Prof. Dr. Dermeval da Hora (UFPB)


Vice-Presidente Profa. Dra. Ma. Elizabeth Affonso Christiano (UFPB)
Secretária Profa. Dra. Socorro de Fátima Pacífico Vilar (UFPB)
Tesoureira Profa. Dra. Lucienne C. Espíndola (UFPB)
Suplente-Secretária Prfa. Dra. Eliane Ferraz Alves (UFPB)
Suplente-Tesureira Profa. Dra. Marianne Bezerra Cavalcante (UFPB)

CONSELHO TITULARES
Prof. Dr. Antônio Luciano Pontes (UECE)
Profa. Dra. Célia Marques Telles (UFBA)
Profa. Dra. Maria Éster Vieira de Sousa (UFPB)
Profa. Dra. Conceição de Maria de Araújo Ramos (UFMA)
Prof. Dr. Luís Passeggi (UFRN)
Profa. Dra. Maria Elias Soares (UFCE)

CONSELHO - SUPLENTES
Profa. Dra. Maria das Graças Carvalho Ribeiro (UFPB)
Profa. Dra. Kasuê Saito Barros (UFPE)
Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa (UFMA)
Profa. Dra. Maria do Socorro Oliveira (UFRN)
Profa. Dra. Serafina Maria de S. Pondé (UFBA)
Vol. 6 - No. 1 - 2004 5

SUMÁRIO

UMA PROPOSTA DE ATUAÇÃO FONOAUDIOLÓGICA


JUNTO A IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS
Diana Babini Lapa de Albuquerque, Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo,
Ivana Arrais de Lavor Navarro Lins
7
O DESENVOLVIMENTO DO SISTEMA DAS
PREPOSIÇÕES NA LÍNGUA PORTUGUESA
Evangelina Maria Brito de Faria
33
SEMIÓTICA E ANÁLISE LITERÁRIA: UMA INTRODUÇÃO
Expedito Ferraz Júnior
47
LEVANTAMENTO DE QUESTÕES SOBRE A NOÇÃO DE PARTILHA
NO CAMPO DA AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM
Glória Carvalho
57
CONSTRUINDO VERSÕES DE MUNDO (Reflexões sobre
a atividade de categorização em aulas de Por tuguês)
Jan Edson Rodrigues-Leite
69

ABORDAGEM SOCIOFUNCIONALISTA DA MUDANÇA EM TEMPO APARENTE:


ANÁLISE DE UM CASO EM FLORIANÓPOLIS (SC)
Maria Alice Tavares
91
A TRANSITIVIDADE DE VERBOS DICENDI
Maria Angélica Furtado da Cunha
111
6 Revista do Gelne

PROCEDIMENTOS DE REFORMULAÇÃO DO TEXTO ORAL


Maria Cristina de Assis Pinto Fonseca
127
SUJEITO NULO NA AQUISIÇÃO: UM PARÂMETRO EM MUDANÇA – SUJEITO
PREENCHIDO NA APRENDIZAGEM:
A ETERNA TENTATIVA DE MUDANÇA
Maridelma Laperuta
141
A PROPAGANDA TURÍSTICA É UM GÊNERO DO DISCURSO?
Regina Baracuhy
153
UM ESTUDO DE ASPECTOS DO LÉXICO NOS TROVADORES DO MAR
Rosa Virgínia Mattos e Silva
167
Vol. 6 - No. 1 - 2004 7

Diana Babini Lapa de Albuquerque*


Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo**
Ivana Ar rais de Lavor Navarro Lins***

UMA PROPOSTA DE ATUAÇÃO FONOAUDIOLÓGICA


JUNTO A IDOSOS INSTITUCIONALIZADOS

ABSTRACT: The present study outlines to keep the institutionalized language of the aged people in
functioning through the interaction with the others. The motivation of this research was based on the
interest in studying the institutionalized language of the aged people, once that speech therapy
literature just approaches the work with aged people under pathological point of view (i.e., disturbs,
such as: audition, voice, motor and language), without checking, the citizens which do not present any
speech therapy problem, a possibility of intervention in their language. The study of the institutionalized
language of the aged people is a new subject of the speech therapy field knowledge; not because is
a work that has being done in geriatric institutions, but, for being an innovative theory that emphasizes
the language functioning under a non-pathological process perspective, opening, then, new horizons
of work. For this reason, 20 aged people were selected from a public geriatric institution in Recife city
and then, group sessions were done. These sessions were recorded for a later analysis. From their
speeches, were identified some aspects, namely: relations between force and direction, anticipations,
silences, childish language, among others. It is relevant to observe that the speech therapy support
to the aged people is fundamental in order to guarantee a better language performance, given that
during the sessions, it was in a constant movement.
KEY-WORDS: Aged people institutionalized; speech therapy; language.

Introdução

Esta pesquisa surgiu do interesse em estudar a linguagem de idosos


institucionalizados, uma vez que a literatura fonoaudiológica contempla o trabalho
com idosos sob o ponto de vista das patologias, ou seja, distúrbios auditivos, de
voz, motores e de linguagem, sem conferir aos sujeitos que não apresentam
quaisquer comprometimentos de ordem fonoaudiológica uma possibilidade de
intervenção em sua linguagem.

* Fonoaudióloga pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.


** Professora Adjunto da graduação e da pós-graduação de Fonoaudiologia da
Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP.
*** Fonoaudióloga pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP
8 Revista do Gelne

O trabalho teve como objetivo geral manter a linguagem do idoso


institucionalizado em funcionamento através da interação com o outro, a fim
de proporcionar maiores possibilidades de se evitar quadros como depressão,
ansiedade, demência e outras situações relacionadas à ausência de atividades
de linguagem.
O estudo da linguagem do idoso institucionalizado é um tema novo no
campo da Fonoaudiologia, não por ser um trabalho realizado em instituições
geriátricas, mas sim, por partir de uma teoria inovadora que enfatiza o processo
de funcionamento da linguagem sob um olhar não patológico, abrindo, então,
novos horizontes de trabalho.
Esta pesquisa fundamentou-se na Análise de Discurso (AD) de linha
francesa, tal como desenvolvida no Brasil por Eni Orlandi e na teoria
Interacionista proposta por Lemos (1999; 2000), que considera a linguagem
como constituinte do sujeito e a interação com o outro como fundante deste
processo, partindo do principio que a interação “é uma condição necessária”
(Lemos, 1999, p. 128), pois o outro, como meio de movimentação da língua,
estabelece uma relação social, propiciando o funcionamento da linguagem do
idoso constituída através dos processos de interação realizados com este.

O idoso institucionalizado

De acordo com Rodrigues et al. (1996), o envelhecimento é um processo


universal que se refere a um fenômeno fisiológico, social e ainda cronológico.
O homem em desenvolvimento durante o ciclo de vida é um ser biopsicossocial,
podendo sofrer influências e influenciar o ambiente em que vive, num processo
de adaptação em suas relações com o mundo. Assim, o ambiente físico, político
e cultural no qual o indivíduo estiver situado, poderá facilitar ou dificultar o
processo de adaptação, acelerando ou retardando o envelhecimento.
Nos dias atuais, o envelhecer não é mais uma exceção, e sim, uma
regra. Porém, esta é individual para cada ser humano, podendo ocorrer de
diversas maneiras.
Na verdade, o idoso pode e deve estar engajado no social, exercendo
qualquer tipo de atividade para a qual esteja preparado e que lhe dê prazer,
mas muitas vezes a situação político-social do país o impede de exercer tal
atividade.
Nas relações interpessoais cotidianas, observamos uma série de interesses
que se definem de acordo com a nossa compreensão e/ou interesse. Construímos
conceitos, julgamentos e explicações e sempre rotulamos os diferentes grupos
existentes em nossa sociedade.
De acordo com Dias (1998), existem diferenças importantes entre “ser
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velho” e “estar na terceira idade”. Ou seja, diferentes imagens da velhice


podem ser produzidas pela forma como os meios sociais tratam os idosos.
“Ser velho”, na representação de Dias (1998), também se relaciona à
idéia de perdas – sejam elas biológicas ou sociais. O termo traz consigo a idéia
de estagnação e de inutilidade, além da falta de capacidade pessoal e isolamento
social. Associa-se a uma imagem negativa desta fase de vida, vinculada a
imagem estereotipada do aposentado, isto é, pessoa que não tem espaço no
mercado produtivo e nem uma função social. O ser velho significa ser aquele
indivíduo que se encontra no final da vida, esperando a morte.
Porém, se a sociedade tem outra imagem do idoso, isto é, a sociedade o
vê como um indivíduo que “está na terceira idade”, toda a situação muda.
Ainda de acordo com Dias (1998), “estar na terceira idade” significa ser
uma pessoa que busca constantemente modernizar-se para acompanhar as
mudanças sociais.

Análise de discurso

De acordo com Orlandi (2000), a Análise de Discurso (AD, como será


chamado daqui por diante), como o próprio nome diz, trata do discurso
propriamente dito e não da língua e/ou gramática existentes, mesmo que estas
a interessem. Aqui, observa-se o indivíduo falando, buscando compreender a
língua, produzindo sentidos.
Assim, as palavras do nosso cotidiano chegam a nós cobertas de sentidos.
Não se sabe a origem destes; sabe-se, porém, que estes significam tanto em
nós quanto para nós.
Ao se analisar o discurso, percebe-se que a linguagem é a ponte que
une o homem a sua experiência natural e social. É através dela que há sentido
das realizações humanas no tempo e no espaço. Esta união é o que torna
possível a permanência, a continuidade, o deslocamento e a transformação do
homem e da realidade em que ele vive. Com isso, percebe-se que não há
discurso sem sujeito, nem sujeito sem linguagem, onde a língua se abriga e faz
sentido.
A AD considera a linguagem como algo materializado ou, melhor
explicando, como algo não transparente. Desta forma, o que se procura extrair
do texto não é o que a linguagem quer dizer e sim como ela significa. A linguagem
existente no discurso oferece conhecimento próprio, já que possui a sua
materialidade específica, demonstrando, então, a sua discursividade, sua
significação.
Quando se pensa no discurso, ao analisá-lo, não se vê como um processo
de comunicação, no qual o emissor é separado do receptor atuando numa
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seqüência, existindo apenas, transmissão e informação, e sim, como algo onde


se realiza ao mesmo tempo o processo de significação, existindo um complexo
processo de constituição do sujeito juntamente com a produção de sentidos. A
linguagem, dentro do discurso, serve para comunicar e/ou não comunicar, no
qual seus efeitos são múltiplos e variados, causando efeitos de sentidos.
A linguagem que existe no discurso é linguagem porque elicita efeito em
quem a usa; porém, ela faz efeito porque está presente na história, no cotidiano
dos seres humanos. É através da linguagem que a AD compreende como os
objetos simbólicos, inseridos na linguagem, produzem efeito. Quando se analisa
um discurso, o que se observa na linguagem é a sua inteligibilidade, a
interpretação que se faz dela e a compreensão que ela deixa nos locutores,
enfim, o efeito que a linguagem faz nos locutores. Ainda assim, o que pode
fazer efeito num locutor pode não fazer em outro. Nem sempre o mesmo
trecho da linguagem surte efeito em diferentes pessoas. Pode até surtir efeito,
mas este será diferente.
Os dizeres, quando expressados, não têm apenas mensagem a ser
codificada. Têm efeitos de sentido que são produzidos de alguma maneira
estando presente no discurso, na forma como se diz, na pista que se deixa.
Estas pistas são possíveis de serem compreendidas, ou melhor, os sentidos
existentes nestas pistas são compreendidos. Estes sentidos têm a ver com o
que foi dito, o que não é dito e o que poderia ter sido dito e não foi.
Pode-se dizer que os sujeitos e sentidos ficam sempre em movimentos
por existir, no discurso, o eixo parafrástico e o polissêmico. O parafrástico é o
que se mantém, é o dizível, é a memória. Melhor explicando, é o retorno ao
mesmo. Já o polissêmico é a ruptura dos processos de significação, é o
deslocamento. A paráfrase e a polissemia são o mesmo e o diferente, são o já
dito e o a se dizer. Neste jogo, os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem
seus percursos e assim, significam.

Teoria interacionista proposta por Lemos

Neste aspecto abordado será utilizado o arcabouço teórico da Proposta


Interacionista em aquisição de linguagem, proposto por Cláudia Lemos. Mesmo
este tendo como objetivo estudar a aquisição da linguagem, foi tido como intuito
compreender o funcionamento peculiar da linguagem do sujeito idoso
institucionalizado, apresentando, mais tarde, as análises de discurso de idosos,
fundamentadas nesta teoria.
Lemos (1999) relata que o processo da Curva-em-U ocorre na criança
em três posições de falante:
A primeira posição de falante é uma fase inicial de acertos onde a fala
da criança está limitada, localizada na fala do outro.
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A segunda posição de falante é a fase dos erros, que na verdade são


grandes acertos. Aqui, a língua começa a fazer efeito na criança, pois ela está
em movimento.
E, por fim, a terceira posição de falante. Nela ocorre o desaparecimento
dos erros, caracterizando o estado estável da língua da criança. A fala atinge a
sua homogeneidade caracterizada por pausas, reformulações e auto-correções.
De acordo com Lemos (2000), ainda que estas três posições se mani-
festem no tempo cronológico, não significa dizer que apenas quando o indivíduo
é criança está submetido a esta transformação no seu desenvolvimento enquanto
falante. O indivíduo idoso é igualmente submetido ao funcionamento da
linguagem, pois ele, o idoso, transita tanto quanto a criança pela linguagem, ou
melhor explicando, tem a sua linguagem sempre em movimento.
O idoso, por sofrer algumas transformações na sua linguagem, é que
necessita de uma interação maior com o mundo, com o outro, para poder ter
sua posição e singularidade de sujeito-falante.
O indivíduo, ao utilizar a linguagem, põe em uso processos de linguagem,
permitindo, desta forma, o aparecimento tanto na sua fala quanto na fala do
outro, de ações metonímicas e metafóricas. Essas ações dão origem a processos
reorganizacionais, nos quais o eixo metafórico e metonímico do idoso se
movimenta, trazendo como conseqüência o funcionamento lingüístico do seu
discurso.
Assim, gostaríamos de enfatizar a utilização do arcabouço teórico da
Proposta Interacionista em aquisição de linguagem, proposto por Cláudia Lemos,
com o intuito primordial de estudar e compreender o funcionamento peculiar
da linguagem do sujeito idoso institucionalizado. Apresentaremos, mais tarde,
as análises de discurso de idosos, fundamentadas nesta teoria.

Método

Sujeitos:
Para atender aos objetivos propostos na pesquisa, foram selecionados
20 idosos que se encontravam inseridos em uma instituição geriátrica pública,
na cidade do Recife.
Pretendíamos, com isto, comprovar que os idosos que interagiram em
grupo com o fonoaudiólogo e/ou familiares e os outros idosos recuperaram a
sua atividade mais prazerosa: interação social por meio da linguagem.
Vale salientar que das vinte idosas selecionadas, duas desistiram (uma
deixou a instituição e a outra, negou-se a participar).
É importante salientar que os nomes utilizados, referidos a cada idosa
participante no estudo em questão, foram fictícios.
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Seleção dos Idosos

Os idosos foram selecionados de acordo com os seguintes critérios: idade


mínima de 60 anos para os idosos e a vinculação a uma instituição geriátrica,
independente do sexo, sendo excluídos apenas os que apresentaram patologias
relacionadas à ausência de atividades de linguagem, cuja etiologia fosse
neurológica.

Material

· Gravador
· Fitas cassete

Método

Análise de Discurso de linha francesa, desenvolvida no Brasil por Eni


Orlandi.

Procedimento

Esta pesquisa foi desenvolvida com a atuação de duas estudantes de


Fonoaudiologia, orientadas por uma professora/fonoaudióloga, em um período
de 11 meses, em uma instituição geriátrica pública.
Essa atuação foi realizada em três momentos:
Primeiro momento: Interação individual com os idosos da instituição,
sendo o discurso pesquisador X idoso analisado pelo pesquisador. No primeiro
contato com os idosos participantes da pesquisa foi realizada uma conversa
informal de acordo com o assunto abordado pelo idoso. Esta conversa teve
dois objetivos: a familiarização dos idosos com a pesquisa; e um conhecimento
pessoal mútuo.
Estas sessões iniciais foram gravadas em fitas cassete; posteriormente
transcritas e analisadas.
Para a realização das análises, selecionamos fragmentos das próprias
sessões, e assim, constituímos recortes discursivos, que melhor esclarecem a
natureza da análise.
As análises foram realizadas com base no funcionamento discursivo
dos sujeitos, sendo, então, destacadas as propriedades discursivas. A partir daí,
iniciamos o segundo momento.
Segundo momento: partindo da análise individual, começamos a atuar
com os sujeitos a partir da interação. Como forma de promover esta interação,
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utilizamos atividades em grupo, através da conversa espontânea para facilitação


do processo de funcionamento da linguagem.
Durante a interação, estavam sendo gravados os discursos desses idosos
com o restante do grupo e o investigador para posterior análise, sendo que
nestas reuniões a proposta terapêutica já estava sendo empregada.
Os discursos também foram gravados em fitas cassete, posteriormente
transcritas e analisadas.
Analisamos os discursos dos idosos e os articulamos aos conhecimentos
previamente adquiridos, a fim de promover um melhor funcionamento da
linguagem, através da atuação fonoaudiológica junto a esses, prevenindo o
aparecimento de situações relacionadas à ausência de atividades de linguagem.
A análise também foi realizada com base no funcionamento discursivo dos
sujeitos, sendo, então, destacadas as propriedades discursivas. No entanto,
desta vez a análise foi realizada sobre todo o discurso existente nas reuniões e
não em recortes discursivos, para que o funcionamento da linguagem ficasse
em evidência.

O procedimento da Análise de Discurso

Na primeira sessão, no qual foi estabelecido o primeiro contato, não


houve temas planejados a priori, uma vez que os idosos deveriam iniciar o
discurso a partir de seus próprios interesses. Esta sessão teve dois objetivos: a
familiarização dos idosos com a pesquisa; e um conhecimento pessoal mútuo.
As sessões foram gravadas em fitas cassete, posteriormente transcritas
e analisadas.
Para a realização das análises, selecionamos fragmentos das próprias
sessões, e assim, constituímos recortes discursivos, que melhor esclarecem a
natureza da análise.
As análises foram realizadas com base no funcionamento discursivo
dos sujeitos, sendo, então, destacadas as propriedades discursivas.
A partir do contato inicial com as idosas, realizamos reuniões em grupo
com as mesmas, a fim de analisar e dinamizar o funcionamento da linguagem
destes, sendo que nestas reuniões a proposta terapêutica já estava sendo
empregada.
14 Revista do Gelne

Reunião: 1 (assunto: Família)


Investigadora A: Cada um conta
alguma experiência na família, fala um
pouquinho sobre sua família. Hoje eu
vou começar falando um pouquinho e
depois cada uma conta alguma coisa
que queira sobre a família. A minha
família é grande, a gente gosta de se
reunir e eu acho que é bom tá em
contato com a família e tudo. por outro
lado também quando a família é muito
próxima é como algumas de vocês
disseram que conviver em conjunto, em
grupo é um pouquinho difícil. Por que?
Porque quando tá tudo muito junto um
dá uma opinião, outro quer dar outra
opinião, fica meio que se intrometendo.
F1: Eu tenho família, mas é pequena.
Uns vive mais comigo e outros não.
Agora, a desunião é muito pouco. A
desunião que eu tenho é com uma
cunhada minha, mas os sobrinhos me
abraçam. Os sobrinhos vêm, tudo, tem
uma irmã que mora com um sobrinho,
ela tem 90 anos, ele morava com ela,
ela já tava um pouco delirando, 90
anos. Aí esse sobrinho foi e levou ela
prá lá. Ele queria me levar pra lá. Eu
disse: não vou não.
Investigadora A: Prá onde?
F2: Se mudar prá Artur Lundgren. Eu
nasci aqui na Várzea. Fiquei pensando,
pensando, pensando, ficando em casa
sozinha, já criando medo. Criando
medo por causa do pessoal que tá
tudo... tudo doido. Eu disse: isso aqui
num dá certo. Eu sempre doente... que
sou doente. É meu, um bucado de troço,
mas eu não ligo não. Tô doente, me
levanto...

M1: Eu não tenho família. Meu marido


morreu faz 28 anos. Eu resolvi vim prá
cá.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 15

Investigadora A: Não tem irmãos?


M2: Não tenho nada, eu digo que não
tenho nada.... Sabe qual é o motivo?
Porque um faz 45 anos que foi pro
Paraná. Ele escreveu uns 3 meses e
depois deixou. Sumiu! E o outro foi prá
São Paulo. Enquanto era solteiro se
comunicava com os pais, depois que
casou, cabou-se. Não deu mais noticia.
Ele nunca me procurou, nem quando
eu tinha marido.
Investigadora A: Quem mais quer
falar? A...

A1: eu ? não tenho nada, morreu tudo!


Investigadora A: A!!! .(NOME DA
IDOSA)
A2: não tenho marido, não tenho pai,
não tenho mãe, não tenho irmão,
morreu todo mundo.
Investigadora A: Não tem nem
sobrinho?
A3: Tenho.
Investigadora A: Tá vendo, e a senhora
nem ia falar deles.

A4: São como 4 filhos bons, mas não


tenho mais ninguém. Tenho essas
amigas aqui tudinho.
Investigadora A: Olhe, já tem muita
coisa. Quer coisa melhor?
A5: De jeito nenhum.
Investigadora A: Mas seus sobrinhos
vêm muito aqui?
A6: Só vem as que moram aqui. Vem
toda semana e a que não mora aqui
liga sempre. Eu tenho isso tudinho. Não
é uma riqueza?
Investigadora A: Com certeza. E disse
que não tinha nada.

Investigadora A: E a sua MMC?


16 Revista do Gelne

M.C1: Eu também não tenho família,


minha filha. Minha família foi na casa
que eu passei 32 anos. Considerava
como se fosse minha família, mas
tratava bem. Mas, foi o tempo que o
patrão adoeceu, os filhos se casaram.
E ele era doente nervoso aí ficou a
minha patroa: ela não pode trabalhar
porque ela sofreu da vista, não enxerga
aí foi aquela confusão toda e ela ficou
aperriada. Por mim eu não tinha vindo
não porque eu gostava, não era? Já
faz 2 anos que eu tô aqui. Prá mim já
faz bem 10 anos. Eu não esqueço de lá
nunca.
Investigadora A: A senhora tá aqui há
2 anos, mas a senhora diz que parece
que já faz quase 10 anos. Por que?
M.C2: porque esse tempo todinho, eu
sou muito agarrada com as pessoas,
mas as pessoas não é comigo. A minha
peca é essa. Tinha uma doente lá que
era muito pegada comigo era como
criança. Eu me apeguei muito com ela.
E a mais nova, esse povo que se casa
não quer mais saber que eu criei nem
que levava prá colégio nem nada, não
vieram mais. Elas podem até telefonar,
né? Mas, não sei. As únicas famílias
que eu conheci é essas. Uma me botou
aqui, eu me aposentei lá, eu não pensei
que vinha pro abrigo. Ainda passei 1
ano lá. Mas ele disse: tem que levar
porque ela não enxerga mais, não
trabalha mais. Ele é atacado da cabeça
e é diabético, né? A família que eu
conheci é essa que eu me apeguei
muito, mas faz 2 anos que estou aqui.
Às vezes, tem gente da família eu vejo
que desaparece, não são todos, quanto
mais eu que não sou, né? Mas não é
tão ruim porque vem as visitas,
conversa com a gente, tem uma
madrinha de adoção, ela de 15 em 15
Vol. 6 - No. 1 - 2004 17

dias vêm visitar a gente aqui. Pronto,


é a visita que eu tenho, né? Alguma
vez, vem uma que trabalhou comigo há
muitos anos. Ela vem aqui. Essa diz que
o marido tá doente, num sei o quê... eu
digo: tá certo. O que é que vou fazer?
A gente não vive só, né? Vive com Deus,
né? Com Deus. É isso. Minha mãe
legitima mesmo eu não conheci. Ela deu
a gente na usina Aliança e a dona da
usina repartiu para cada um uma
menina. Mas, a de criação morreu. Foi
para a casa de outra família. Acabei
para criar outra menina. Casou-se, foi
embora pras banda do Rio. Queria me
levar, mas a mãe dela não quis aí eu
fiquei aqui. 4Ates eu achava que aqui
era o bom pastor, mas eu encontrei
muita gente boa aqui.
Investigadora A: Por que a senhora
achava que aqui era o bom pastor?

M.C3: Não sei. Porque são criminosa,


pensei. Eu vou sofrer muito!
Investigadora A: Mas não tá, né?
M.C4: Não. Eu não conheci abrigo
nenhum. Não sabia nem que existia.
Investigadora A: E a senhora D. H?

H1: Sobre família eu não tenho nada


prá lhe dizer porque não conheço um
parente que eu diga: esse parente aqui
é da minha família. Agora o motivo de
dizer que não conheço ninguém da
família foi porque quando eu era
pequena meu pai me deu a uma família
muito distante do lugar onde eu
morava. Os de lá da família nunca me
levaram lá porque eu não sabia de onde
eu vim, né? Porque era pequena ainda.
Aí pronto, prá lhe dizer que não
conheço um parente, eu não conheço.
Me casei, não tive filho, meu esposo
faleceu. Eu fiquei só ainda. Fiquei
18 Revista do Gelne

morando na casa uma porção de


tempo, mas depois vi que não dava certo
eu ficar sozinha numa casa. Aí procurei
e vim pro abrigo. E graças à Deus tô
muito feliz, já quase terminando a
minha vida, não é?
Investigadora A: Tá nada! Os seus
parentes viraram as pessoas que
moram aqui?
H2: Justamente. Meus parentes são as
pessoas que moram aqui. São pessoas
muito boa que a gente considera como
parente. Foi uma coisa que eu tive
muita tristeza quando me entendi de
gente e fiquei sabendo que não era
daquela família que tava me criando.
Mas o que é que eu ia fazer? O certo
era os de lá, que era da família, me
procurar, saber como ia, como não ia,
não é? Mas, não veio ninguém. Quem
me criou nunca me levou lá. Me casei,
não tive filho. Meu esposo faleceu aí
fiquei sozinha. Vi que não dava mais
para viver sozinha aí vim pro abrigo.
É o que eu tenho para lhe dizer. Tô feito
aqueles 2 irmãos que se casaram sem
se conhecer. Posso até conversar com
algum deles sem saber que é parente.
Eu não conheço, não é?

Investigadora A: E a senhora D. J?
J1: Construir uma família é como um
prédio. Um prédio de 5 andares com
um bom alicerce, uma boa formação...
A família é uma coisa importantíssima,
é uma beleza, é um lar mesmo.
Principalmente quando se entende,
quando se tem paciência e fé em Deus.

Análise

F1, no seu segmento discursivo, sempre dentro do contexto, antecipa o


seu discurso. Por exemplo: “...ficando em casa sozinha, já criando medo.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 19

Criando medo por causa do pessoal que tá tudo... tudo doido...”. Aqui,
ela também silencia o seu discurso, talvez porque em suas formações
imaginárias ela tenha pensado que nós não concordaríamos com sua opinião.
Mas, logo em seguida ela o antecipa.
Em seu segmento discursivo, M2 inicia o seu discurso com uma marca
discursiva: “Não tenho nada...”. Nada é um pronome que designa ausência,
nenhuma coisa, é indeterminado, pois o que é nada para uns é alguma coisa
para outros. Com isso ela restringe o seu discurso, tornando-o metafórico e,
assim, deixando um leque de idéias, abrindo para a polissemia. Porém, em suas
formações imaginárias, provavelmente Maria imaginou que seria questionada.
Desta forma, direcionou o seu discurso, retirando a polissemia que ela havia
propiciado no início de seu relato.
Outro aspecto importante encontrado são os segmentos de A. pois, os
mesmos são metafóricos, além da presença de marcas discursivas. Tais como:
“Eu não tenho nada!.... morreu todo mundo”. “Nada” relata nenhuma
coisa e “todo mundo é algo indeterminado”. Quem é todo mundo? A quem ela
está se referindo? Parentes, amigos? Não se sabe. Em A.3, ela relata sobre a
existência de seus sobrinhos: “são como 4 filhos bons...”. Neste relato,
podemos perceber a relação de forças existente quando Anna compara os
sobrinhos a filhos. Há aqui, uma reversibilidade de papéis quando existe esta
comparação, provavelmente por o amor de A pelos sobrinhos ser semelhante
ao de um filho.
A. nos seus segmentos discursivos 3 e 5, relata a existência de amigos:
“... tenho essas amigas aqui tudinho”, e: “... eu tenho isso tudinho, não é
uma riqueza?” Aqui, A. volta a metaforizar o seu discurso, fechando-o.
Outra questão encontrada foi no segmento 2 de M.C., pois ela compara
a instituição ao bom pastor: “...antes eu achava que aqui era o bom pastor,
mas eu encontrei muita gente boa aqui”. O discurso da idosa sobre a
instituição faz uma relação com um lugar ruim. Em suas formações imaginárias
deve existir o conceito de que só quem habita uma instituição, um abrigo, são
pessoas más, tristes. Porém, isto é uma relação de forças, pois, para a sociedade,
a posição que uma instituição de 3ª idade ocupa é exatamente esta, um lugar
habitado por pessoas abandonadas, desabrigadas. Quando ela foi questionada
sobre o porquê deste pensamento, respondeu: “Não sei. Porque são
criminosas. Pensei: eu vou sofrer muito!”
H, no segmento 1, logo antecipa o seu discurso. Em suas formações
imaginárias, previu que seria questionada sobre o porquê daquele discurso.
Assim, ela logo o antecipou. Podemos encontrar no seguinte trecho de seu
relato: “...Sobre família eu não tenho nada prá lhe dizer porque não
conheço um parente que eu diga: esse parente aqui é da minha família.
20 Revista do Gelne

Agora o motivo de dizer que não conheço ninguém da família foi porque
quando eu era pequena meu pai me deu a uma família muito distante do
lugar onde eu morava...”.
Já no segmento 2, H. utiliza a metáfora: “quando me entendi de gente”.
Com isso o seu discurso abre para a polissemia, lançando um leque de idéias:
quando ela cresceu? Quando ela começou a entender as coisas? Não se sabe,
ficou indeterminado.
J. apresenta um relato fazendo uma analogia entre a construção da
família e a construção de um prédio: “Construir uma família é como um
prédio. Um prédio de 5 andares com um bom alicerce, uma boa
formação...”.
Finalmente, podemos salientar a presença do efeito da linguagem dos
idosos sob a linguagem dos próprios idosos, uma vez que através da interação,
o movimento da língua esteve presente ante o discurso apresentado,
proporcionando aos idosos momentos discursivos bastante interessantes.

Reunião: 2 (Assunto: Mulher de hoje)


Investigadora A: A gente sabe que a
mulher hoje é diferente da mulher de
antigamente, não é? O que vocês
acham da mulher de hoje? Tá melhor
desse jeito, a mulher mais evoluída ou
é melhor como era antigamente que a
mulher ficava em casa tomando conta
de tudo?
M.S1: Quem vai vencer é ela prá se
formar e ser alguma coisa. Aí trabalha
ela e o marido, quando casar. Hoje em
dia quando o marido tá parado a
mulher vai trabalhar... se for uma mãe
solteira vai trabalhar prá criar o
filhinho dela, como eu conheço... e tem
muitas assim que tem que trabalhar prá
ajudar o filhinho dela e o marido, não
acha? umas faz faxina, vai cozinhar,
lavar roupa, tudo prá ajudar o marido,
para não estar em casa... não querem
fazer nada em casa, tem uma pessoa
que faz, só quer se distrair na rua,
vender qualquer coisa, se distrair e
ajudar o marido para não ser as custas
do marido... e as outras faz isso mesmo,
Vol. 6 - No. 1 - 2004 21

uma arrumação, outras vão lavar... se


vira, procura qualquer coisa.
Investigadora A: E você acha
importante?
M.S2: Eu acho, é uma distração. Eu
acho que seja. Agora a gente sendo
doente não tem disposição para fazer
nada. Ainda tendo a vista boa faz
qualquer coisa, mas não tendo, não faz
nada. Eu acho que é isso. De primeiro
ninguém fazia nada, não saída de casa.
ficava em casa, trabalhava em casa...

M.F1: Não acho importante a mulher


trabalhar.
Investigadora A: Por que?

M.F2: porque não tem necessidade


dela estar trabalhando.
Investigadora A: E a independência
dela?
M.F3: Eu acho que não. Se fosse
mulher minha não deixava não. Tá
faltando alguma coisa para a senhora?
Tá não. Então fica em casa.
Investigadora A: Mas, e a indepen-
dência da mulher, você não acha
importante a mulher trabalhar hoje em
dia?
M.F4: Não é bem certo não.
Investigadora A: Por que?
M.F 5: É feio. Eu acho feio.
Investigadora A: E por que você não
acha certo?
Magnólia6: porque se fosse mulher
minha não. Tá faltando alguma coisa
prá você? Tá não. Então não vai.
Investigadora A: Então você acha que
as mulheres deveriam continuar a ser
como as de antigamente?
M.F 7: É, deveriam. O mundo seria
outro...
Investigadora A: Mas o mundo não
está ruim por causa disso.
22 Revista do Gelne

M.F 8: Mas tá muito ruim. Não tá


nunca nem a metade do que era...
Investigadora A: E você acha que isso
é porque as mulheres estão traba-
lhando?
M.F9: Justo. A mulher tá trabalhando,
tá com dinheiro, quer ter a mesma força
que o marido.
Investigadora A: E se você precisasse
de uma coisa e seu marido não lhe
desse, você não ia trabalhar?
M.F10: Não. Ficava com o ruimzinho.
Fico com qualquer uma roupa. Eu não
tô com qualquer uma roupa e tô viva.
Tudo o que ela vê eu vejo...

D1: Eu quero dizer uma coisa muito


certa: trabalhei 8 anos na máquina
costurando...
Investigadora A: Mas você acha certo,
hoje em dia, as mulheres saírem de casa
para trabalhar, ser independente?
D2: não, não, não, não.
Investigadora A: O que você acha das
mulheres de hoje?
D3: Eu num trabalhei! Na maquina
né? Prá mim e pros meus irmãos. Nunca
casei, nunca tive filho.
Investigadora A: Mas, qual a sua
opinião sobre as mulheres de hoje em
dia? Você vê falando na tv que as
mulher ;e governadora, ganha mais
que o marido, o que você acha disso
tudo?
D4: Eu acho certo ele trabalhar.
Investigadora A: E a mulher? Ficar em
casa?
D5: Justo.

Análise

M.S relata: “Hoje em dia quando o marido tá parado a mulher vai


Vol. 6 - No. 1 - 2004 23

trabalhar... umas faz faxina, vai cozinhar, lavar roupa, tudo prá ajudar o
marido, para não estar em casa... só quer se distrair na rua... se distrair
e ajudar o marido para não ser às custas do marido...”. há uma constante
antecipação de relatos, um explicando o outro. O seu discurso apresenta uma
discordância sobre a reversibilidade de papéis existente entre o homem e a
mulher, quando relata: “... ajudar o marido para não ser as custas do
marido...”.
Vale salientar que, além de M.F, D. novamente concorda com a relação
de forças existente: “...Eu acho certo ele trabalhar...”. Aqui, houve um efeito
de evidência. Para D. o seu silenciamento não precisava da conclusão do dito,
pois, para ela, subentendia-se o que ela estava querendo dizer. Evidentemente,
o seu discurso não era transparente, pois a Investigadora A, logo em seguida,
não devolveu o dito, mas tentou adivinhar o que D. silenciou.
Novamente destacamos a presença da interação das idosas através do
discurso. Vale salientar que a evolução da interação, e conseqüentemente um
maior movimento da linguagem, desta vez, foi notório. Pôde ser percebida uma
maior participação das próprias idosas no discurso sobre o assunto – Mulher
de Hoje. De um modo geral, as idosas têm em seu discurso a importância do
desenvolvimento do indivíduo enquanto mulher, sendo ele pessoal ou profissional.
Nos seus discursos fica bem explícito o desejo delas em terem tido sua liberdade
e direito de fazer o que tinham vontade. Trabalhar, sair, passear. Estas
declarações podem ser encontradas nos segmentos desta reunião.

Reunião: 3 (Assunto: Situações Cotidianas)

Investigadora A: Quem é que assisti a


novela das seis?

S1: Todo mundo.


Investigadora A: todo mundo sabe que
tem aquela Amelinha, né? vou contar
um pedacinho. ela namorava com edu
e ela traia Edu com o peão da fazenda.
só que ela tá grávida. agora,
provavelmente ela tá grávida do peão.
mas aí ela disse prá Edu que tava
grávida dele prá prender ele. o que é
que vocês acham disso? (silêncio) uma
mulher grávida de outro homem, mas
dizendo que tá grávida do outro prá
poder o outro ficar com ela.
24 Revista do Gelne

S2: ela nem gosta dele e nem gosta do


peão e nem gosta do pai e nem gosta
de ninguém. Ela só gosta dela ... ela é
um poço de maldade. Você viu o que
ela fez com a irmã? Ela foi buscar a
irmã no colégio e ela tá com raiva
porque tá grávida porque por ela, ela
já tinha tirado aquele menino... ela tá
usando aquela gravidez pela
chantagem e como a irmã tem aquelas
visões ela deixou a menina na estrada
prá menina vim sozinha à pé. E
ameaçou a empregada, a empregada
disse que ia contar tudo ao pai dela, e
contou realmente aí ela disse: seu
emprego tá perdido. Ela é má, é
perversa.
Investigadora A: Foi por isso que ela
colocou as jóias, né?
S3: Aí o pai chamou a empregada e
disse: você roubou todas as jóias da
minha filha. Quer dizer isso não
acontece apenas em novela não. O povo
diz que as novelas botam o povo a
perder. Não, a novela não bota a perder
não, a novela é uma lição de vida, é
uma lição de vida. Tem muita coisa na
novela que eu acho na minha...
impressão, na minha não deveria
passar porque as novelas só deveriam
transmitir coisas boas. Assim, coisas
decentes. Mas, a gente que vive num
que tem muita maldade. Então aquilo
que ela tá fazendo com a empregada, o
mundo tá cheio. Tem muita patroa que
tem raiva da empregada, quer botar a
empregada prá fora sem pagar os
direitos da empregada, ela arruma um
jeito de dizer que a empregada é
ladrona e coloca a empregada prá fora
sem pagar. Aí daqui que aquela
empregada vá provar que é inocente...
minha filha... ela já é... já estragou a
vida dela... já tá em idade... não tem
Vol. 6 - No. 1 - 2004 25

mais condições de trabalhar... ninguém


acredita porque fica desacreditada
porque você não quer uma pessoa na
sua casa que... você diz assim: mas ela
parece ser uma criatura tão boa, mas
se já tem a mau informação da patroa,
que roubou, que fez e aconteceu, você
fica confiando desconfiando. Quer
dizer que o mundo está cheio de
maldade, não é só em novela, não é só
no mundo social não é em todo canto
que existe maldade. Agora eu faço
igual ao Padre Marcelo: “existe uma
doença que não tem cura e não tem
remédio: inveja”... pior doença do
mundo é a inveja. Da inveja a gente
não se livra. Se quem tem inveja, de
quem faça maldade. Tem gente que
anda com a Bíblia debaixo do braço,
criticando a vida dos outros, fazendo
maldade, rezando, aplaudindo,
louvando, batendo palma e o
subconsciente: fulano é isso, fulano é
aquilo... porque eu estou careca de ver
e conviver com pessoas desse tipo.
Investigadora A: É verdade. Mas, essa
questão de que hoje em dia, o mundo
realmente. Assim, a gente vê 90% de
coisas ruins e 10% de coisas boas. E o
que é que tu acha H.C de tudo isso que
Solange tá falando?
H.C1: Minha filha, de novela eu não
lhe digo nada porque eu não assisto
Investigadora A: Mas, desse
sentimento ruim que a gente tá vendo
no mundo...
H.C2: Ah, desse sentimento ruim é uma
coisa triste porque... num, num quer
dizer que antigamente não aparecia
não aparecia umas certas coisas,
aparecia, às vezes. Mas, como hoje?
Hoje tá uma coisa horrível mesmo, tá
muito mesmo. Mas, não pode se falar
em coisas antigas porque era coisa de
26 Revista do Gelne

cafona, hoje tudo é moderno, tudo que


aparecer certo e errado é do, é, é do
tempo é, é como é que eu ia dizer?.... eu
tô com uma cabeça era uma coisa seria
mesmo o que a gente ouve dizer. Eu,
quando começou a televisão eu assisti
muita novela... mas, que novelas eu
assistia? Era mamãe Dolores, O direito
de nascer, Senhora de Engenho e
outras...mas era uma coisa que podia
se ver, mas hoje... primeiramente eu não
tô entendendo nada e acho que é uma
coisa horrível as novelas de hoje, não
assisto mais não.
Investigadora A: Mas, o que passa nas
novelas de hoje é o que tá acontecendo
no mundo, né? Se a gente vê na novela,
a menina engravidou de um homem e
disse que era de outro, ela faz essas
ruindades toda com a irmã, que a gente
vê. É a questão da traição, que passa
naquela novela das sete...
H.C3: Naquele tempo, falasse em uma
coisa antiga: Ah, isso é coisa de cafona,
é coisa de já era. Então leve como vocês
quiserem, agora tem uma coisa...
precisa-se saber que quando a gente
chegar lá em cima diante do pai a gente
vai dar conta dessas coisas... porque
ele vai dizer a cada um de nós: Dai-me
conta da tua vida. O que fizeste? Ele
não sabe o que foi que a gente fez? Mas,
ele pede conta... de tudo que a gente
fez. Tinha um livro antigo que hoje não
tem que dizia que é pecado se usar prá
figuras indecorosas, repare? Quem era
que antigamente falava numa coisa,
falava até coisa no tempo dos escravos,
mas não se ouvia dizer que a filha tinha
filho do pai... e hoje o que é que se vê?
É natural, né? É moderno, é o mundo
prá frente. Então vá prá frente, não vire
as costas não, vá prá frente (RISOS)
deixe que tudo que vier tá certo, né?
Tudo que vier tá certo.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 27

Investigadora A: E você M.S, o que


acha de tudo que estamos conver-
sando?
M.S1: Eu não escutei nada.
Investigadora A: Olhe, a gente estava
conversando da ruindade que o povo
tá fazendo hoje em dia, da violência...o
que é que tu acha desses sentimentos?
Acha que é bom, que é ruim, que existe
mesmo ou que não...
M.S2: Falsidade? Existe demais. Eu
brigar com você por falsidade?saber
que uma mata a outra, eu vou lhe
contar? Não conto. É o mundo todo
que não presta.

Análise

S., em S2, tem em seu discurso uma interpretação das ações e atitudes
da personagem da novela, mesmo sendo o discurso opaco e as situações irreais.
Existindo assim, uma posição autoritária desta em relação à personagem, pois
de acordo com Solange, a personagem é uma mulher má e chantagista:
“Continuando a novela: ela nem gosta dele e nem gosta do peão e nem
gosta do pai e nem gosta de ninguém. Ela só gosta dela ... ela é um poço
de maldade. (...) ela tá usando aquela gravidez pela chantagem...”
S., em S3, utiliza em seu discurso a metáfora lição de vida, e ainda, a
presença das palavras divinas como justificativa para seus pensamentos e
atitudes existentes no mundo atualmente: “...o mundo está cheio de maldade,
não é só em novela, não é só no mundo social não é em todo canto que
existe maldade. Agora eu faço igual ao Padre Marcelo: “existe uma doença
que não tem cura e não tem remédio: inveja”... pior doença do mundo é
a inveja...”.
No segmento H.C3, existiu a presença de metáforas como: “coisa de
cafona” e “coisa de já era”. Acredito que H.C usou essas expressões pelo
fato de nas suas formações imaginárias estar pré-estabelecido que estas seriam
expressões conhecidas pela interlocutora e as demais idosas.
Outro aspecto importante encontrado no discurso dos idosos é o efeito
que gera efeito. Melhor explicando, o discurso de um gera efeito no discurso
do outro, colocando, desta maneira, a linguagem em movimento, através da
interação com o outro.
28 Revista do Gelne

Por fim, o relato dos demais idosos. Neles podemos constatar uma relação
de sentido, já que a interlocutora sempre teve que estar resgatando seus
discursos anteriores para poder fazer com que as idosas resgatassem a idéia
central da reunião e pudessem falar, opinar. Podemos citar como exemplo o
trecho abaixo: Investigadora A: “E você M.S, o que acha de tudo que
estamos conversando?”, M.S1: “Eu não escutei nada”, Investigadora
A:: “Olhe, a gente estava conversando da ruindade que o povo tá fazendo
hoje em dia, da violência...o que é que tu acha desses sentimentos? Acha
que é bom, que é ruim, que existe mesmo ou que não...” e M.S2:
“Falsidade? Existe demais. Eu brigar com você por falsidade?saber que
uma mata a outra, eu vou lhe contar? Não conto. É o mundo todo que
não presta”.
No confronto dos discursos das 18 idosas participantes da pesquisa em
grupo, através da Análise de Discurso (AD), procuramos destacar as
semelhanças entre as propriedades discursivas existentes. Identificamos cinco
propriedades discursivas, que passamos a explorar mais adiante.

Linguagem infantilizada do interlocutor

As idosas, em vários momentos dos seus respectivos discursos, utilizam


uma linguagem infantilizada. Talvez, para elas, a volta da utilização da linguagem
infantilizada tenha algum significado maior, uma vez que as crianças têm menos
cobrança, recebem mais carinho e atenção. Podemos destacar a utilização da
linguagem infantilizada nos segmentos discursivos de A.L2: “...estou nas
mãos de papai-do-céu...” Papai-do-céu é uma expressão utilizada por crianças
numa forma mais inocente de se referir a Deus.

Metaforização da posição do indivíduo senil para a própria


“doença”

Diante do discurso das idosas, podemos perceber a metaforização do


indivíduo senil como sendo a própria doença. Talvez este atributo seja dado por
elas a si próprias pelo fato de esta ser a única possibilidade de materializar o
que sentem, o que desejam expressar ou até para chamarem a atenção, através
dos seus discursos. No recorte individual da idosa I., a sua necessidade de
falar sobre seus problemas é evidente, tanto que ela relata: “...o que não
falta é doença em mim”. Através de seu discurso, ela metaforizou algo que “a
incomoda” e ao qual ela sente necessidade de dar ênfase.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 29

Atribuição divina

A presença de Deus para a solução dos problemas ou compreensão e


consolo para os mesmos é uma propriedade discursiva de muito peso para os
idosos. Talvez isto se dê pelo fato de que o indivíduo quando vai ficando mais
idoso, apresenta um apego mais forte à religião. Por terem sofrido momentos
difíceis, criam este vinculo à imagem divina como solução para todos os
problemas. É comum, quando estamos passando por situações difíceis,
querermos acreditar em algo, nos apegar a alguma crença. E isto é o que
podemos encontrar com bastante freqüência nos segmentos discursivos das
idosas. A idosa J.P, relata: “...pedi a Deus que tomasse conta, que Deus
resolvesse esse problema...”. Aqui ela enfatiza Deus como solução, aquele
que irá resolver o que ela tanto deseja. Percebemos neste segmento, a devoção,
o carinho, o apego que estas idosas depositam na divindade, o que é comum na
fase senil das nossas vidas.

Ênfase dada à velhice

As idosas também enfatizam a velhice de uma maneira negativa. Talvez


por tanto escutarem da sociedade que o idoso não produz, não tem serventia,
eles terminam se auto-rotulando como algo sem função, vendo-se como estorvo
para a família e/ou sociedade. A idosa A. relata em A1: “E eu sei mais... com
essa idade, já passei por tudo.(...) Não faço mais nada, eu num já disse,
só fico preguiçando...” Aqui, ela deixa claro que não tem mais o que fazer
por ser idosa, não sabe mais de nada, como ela mesmo relata.

Cobrança da presença familiar

As idosas, em seus relatos, demonstram a falta da família e a vontade


da presença desta em suas vidas. Talvez pelo fato da família ser a nossa base,
o nosso alicerce, as idosas sintam falta. Como o indivíduo nesta fase da vida
fica mais sensível à modificações, o fato da família estar ausente os deixa mais
abalados emocionalmente, o que não é bom para o indivíduo como um todo.
Podemos encontrar isto em diversos relatos, sendo destacado em J1: “...Aí
ela disse: mas, tu vai visitar Júlia e me deixar sozinha aqui. Repara! Agora
eu digo, sabe quantas vezes ele veio: nenhuma, minha filha!...”.
30 Revista do Gelne

Conclusão

Esta pesquisa teve como objetivo manter a linguagem do idoso


institucionalizado em funcionamento, através da interação com o outro, buscando
maiores possibilidades de prevenir quadros como depressão, ansiedade,
demência e outras situações relacionadas à ausência de atividades de linguagem.
Este objetivo surgiu pelo fato de acreditarmos que, ao manter a linguagem
do idoso institucionalizado em movimento, através da interação com o outro,
podendo este outro ser o fonoaudiólogo, a família ou outro idoso, a linguagem
do idoso irá evoluir, manter-se em funcionamento e, com isso, minimizar
problemas relacionados a ausência de comunicação.
Em nosso trabalho, pudemos constatar que a linguagem dos idosos
institucionalizados, selecionados em nosso estudo, apresentou evolução, pois o
movimento da linguagem foi evidenciado durante as reuniões em grupo, que
foram de grande valia para a vida das idosas, pois proporcionaram momentos
de descontração, interação e desenvolvimento da linguagem, posta em prática
através das conversas existentes nas reuniões.
É importante ressaltar que nas análises dos discursos das idosas foram
encontradas cinco propriedades discursivas: linguagem infantilizada do
interlocutor, metaforização da posição do indivíduo senil para a própria “doença”,
atribuição divina tanto na compreensão das suas dificuldades como para a
solução destas, ênfase dada à velhice e cobrança da presença familiar.
Assim, considerando o que foi exposto sobre a linguagem dos idosos,
concluímos que através da proposta interacionista os idosos recuperam a sua
atividade mais prazerosa: a linguagem, por meio da interação social. Nesta
perspectiva, a proposta interacionista de atuação fonoaudiológica junto a idosos
institucionalizados é de extrema importância, não apenas para a recuperação,
mas também para a manutenção da linguagem do idoso, podendo ser realizada
através do contato entre o idoso e o outro, seja ele individual (fonoaudiólogo e/
ou família X idoso) ou, como no caso da nossa pesquisa, em grupo (fonoaudiólogo
e/ou família X idoso X idoso).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 31

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32 Revista do Gelne
Vol. 6 - No. 1 - 2004 33

Evangelina Maria Brito de Faria*

O DESENVOLVIMENTO DO SISTEMA DAS


PREPOSIÇÕES NA LÍNGUA PORTUGUESA
ABSTRACT: The increasing evolution and deepening of linguistic studies have led several issues
approached by traditional grammar to be reviewed as they have been presented in an inappropriate
manner regarding the new theories proposed by the language science. Among the several issues
which deserve a major focus by language experts are, undoubtedly, linking words- Conjunctions and
Prepositions- and mainly the latter, constitute the main aspect of a field of study which requires a new
look. It is very easy to realize that, on the whole, grammarians have devoted a special attention to
nouns, verbs and pronouns. It is worth pointing out the priority given in grammars, for example, to
gender and number infections of the nouns and adjectives, the description involving the degree of
nouns, adjectives and adverbs, the inflections of verb forms in relation to the categories of tense,
mood, number, voice and aspect, concerning either the general or the special pattern. This emphasis
is not limited to the morphological aspect, it also includes the syntactic aspects of concord, complements
and collocation. However, regarding the study of propositions, most grammars display nothing but
a mere list. Prepositions play a relevant role in language. Besides being linking elements, their high
frequency in discourses, and above all, the multiple meanings they have statements, can be pointed
out as a phenomenon that values their study. Examine the following sentences: “He acted with
affection” and “He acted without affection”. The mere change in proposition fully modified the relation
the terms acted and affection. Such relations that have received secondary attention by grammarians
have recently been highlighted in the approaches of modern linguist. This article, which is part of a
comprehensive research, seeks to reconstruct, considering its profit and loss, the development that
these elements have undergone in the Portuguese language, starting form the Latin language to
nowadays.
KEY-WORDS: Preposition; development.

1 Origem. O sistema latino das preposições

O sistema de preposição existente hoje no português, ao menos em suas


linhas gerais, proveio do sistema latino.
Como língua eminentemente flexional, o latim apresenta uma estrutura
sintética. A subordinação, nesse idioma, era realizada através de seis casos:
nominativo, genitivo, dativo, acusativo, ablativo e vocativo. “Casos são formas
distintas que podem apresentar em muitas línguas um nome ou pronome segundo

* Universidade Federal da Paraíba.


34 Revista do Gelne

a função sintática” (CÂMARA, 1983, p. 69). Em outros termos, são as


terminações que indicam as funções que as palavras desempenham na frase.
E isto faz com que uma língua seja sintética.
Havia, paralelamente aos casos, um sistema de preposições com idêntica
finalidade: subordinar um termo a outro.
O professor Mattoso Câmara (1979, p.75) pronuncia-se a respeito do
assunto da seguinte maneira:

“O latim já possuía um princípio desse sistema, a fim de subordinar certos


complementos ao verbo respectivo. O nome complemento vinha no caso
acusativo ou ablativo, já indicadores da subordinação ao verbo, mas a partícula
adverbial que se antepunha e, por isso se chamava preposição na terminologia
gramatical, insistia no elo subordinativo e delimitava melhor as condições de
dependência.”

Por serem em maior número, as preposições, muitas vezes, sobrepunham-


se aos casos, exprimindo com maior sutileza as diversas relações existentes
entre as palavras.
Vejamos como se expressa o professor Ernesto Carneiro Ribeiro (1965,
p. 463) sobre a importância da preposição sobre os casos:

“No latim, como em algumas outras línguas, a maior parte das relações que as
preposições criam são realizadas através de casos. Estes, porém, com o número
limitado das mudanças flexionais, não conseguem exprimir a imensa variedade
das relações existentes. Por isso, mesmo nessas línguas, existem as preposições
para expressar de um modo mais completo todas essas relações.”

Assim, havia no causativo e o ablativo uma partícula que reforçava no


elo subordinativo, ao mesmo tempo em que explicitava melhores condições de
dependência. Pode-se perceber que, tanto no latim, como acontece hoje no
português, a preposição se caracteriza por desempenhar duas funções: a de
subordinação, estabelecendo uma dependência, e a de fazer surgir entre os
termos que une uma relação semântica.
Segundo Ravizza (1958, p. 174), o sistema latino das preposições era
formado da seguinte maneira:

“ – Preposições que regem o causativo:


Ad (a, para) indica movimento em direção a, aproximação.
Ex.: Ad castra venire. (Vir ou chegar ao acampamento)

Ante (diante de, perante, antes de) com relação a tempo e lugar.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 35

Ex.: Ante oppidum (diante da cidade)


Ante eius mortis diem (antes do dia da morte dele)

Post (após, depois de) com relação a tempo e lugar.


Ex.: Post meridiem (depois do meio-dia)
Post templum (depois do tempo)

Apud (em, junto a, perto de, em casa de, entre, segundo)


Ex.: Incredibilis apud Cannas pugna (a formidável batalha de Canas)
Apude Paulum (em São Paulo)
Apud germanos (entre os germanos)

Ob (por causa de)


Ex.: Ob iram (de raiva)

Per (por, através de, por meio de, durante)


Ex.: Per silvam ambulare (passar pela floresta)
Per multos annos (durante muitos anos)

Juxta (ao pé de)


Ex.: Juxta aram iurare (jurar ao pé do altar)

Penes (em posse de, em poder de)


Ex.: Penes milites (em poder dos soldados)
Prope (perto de, ao pé de, junto a)
Ex.: Prope castra (perto do acampamento)

Propter (por causa de)


Ex.: Propter eam causam (por essa razão)

Adversus (em direção a, contra, para com)


Ex.: Impetum adversus montem faciunt (atacam monte acima)

Contra (em oposição a, contra, em frente de)


Ex.: Contra hostes dimicare (lutar contra os inimigos)
Contra templum (diante do templo)

Erga (para com, em favor de)


Ex.: Pietas erga victos (piedade para os vencidos)

Secundum (ao longo de, depois de, conforme, consoante)


Ex.: Secundum flumen (ao longo do rio)
Secundum ludos (depois dos jogos)
Secundum naturam (conforme a natureza)
36 Revista do Gelne

Praeter (além de, exceto)


Ex.: Praeter spem (além da esperança)
Nemo praeter mercatores Britanniam adit. (ninguém além dos
mercadores chega à Bretanha)

Circum (ao redor de)


Ex.: Templa circum fora erant (Os templos ficavam ao redor das praias)

Circiter (cerca de) ordinariamente usado como advérbio, significando ’em


todos os sentidos ‘ , ‘ em todas as dimensões ‘ ; usa-se como
preposição nos conceitos de tempo (aproximadamente).
Ex.: Circiter meridiem (cerca de meio-dia)

Inter (entre, no meio-dia)


Ex.: Mons Iura est inter sequanos et helvetios (o monte Jura fica entre
os séquanos e os helvécios)

Intra (dentro de, para dentro de interior)


Ex.: Intra moenia esse (estar dentro dos muros)
Deus creavit coelum et terram intra sex dies. (Deus criou o céu e
a terra dentro de seis dias.)

Extra (fora de, contra)


Ex.: Extra portam esse (estar da porta para fora)
Extra ordinem (fora de ordem)

Infra (abaixo de)


Ex.: Infra lunam (abaixo da lua)

Supra (acima de)


Ex.: Supra deos (acima dos deuses)

Cis (aquém de)


Ex.: Cis Alpes (aquém dos Alpes)

Trans (além de)


Ex.: Trans Alpes (além dos Alpes)

Ultra (além de)


Ex.: Ultra modum (além do necessário)

- Preposições que regem o ablativo

A (ab, abs) (de, por) a, antes de consoantes; ab, antes de vogal ou h;


Vol. 6 - No. 1 - 2004 37

Abs, quase exclusivamente antes de “te”. Indica origem,


afastamento, agente e com complemento pessoa do verbo
petere (pedir)

Ex.: A patre tuo (por teu pai)


Ab origine (desde o princípio)
Peto abs(a) te (peço-te)

E, Ex (de) lugar donde, origem, movimento para fora, matéria, partitivo)


Ex.: Ex urbe proficisci (partir da cidade)
Statua ex aere facta (estátua feita de bronze)
Unus ex multis (um dentre muitos)

De (de) proveniência, movimento de cima para baixo, a respeito de


Ex.: De muro dejicere aliquem (derrubar alguém do muro)
De aliqua re dicere (falar a respeito de alguma coisa)

Cum (Com) ajuntamento, companhia, modo


Ex.: Cum amico laborare (trabalhar com o amigo)
Cum cura scribere (escrever com cuidado)

Sine (sem) Privação


Ex: Sine amicis vivere (viver sem amigos)
Sine spe (sem esperança)

Pro (por) mais empregado com o sentido de “diante de’, “em favor de”, “em
função de”.
Ex: Legiones pro castris constituere (dispor as legiões diante do acampa
mento)
Oratio pro rege (discurso em favor do rei)

Prae (diante de) para lugar, por causa de, em relação a


Ex.: Prae se armentum agere (tanger o rebanho diante de si)
Prae coeteris beatus (feliz diante dos outros)

Coram (em presença de)


Ex.: Coram populo romano ( em presença dos romanos)

Tenus (até) proposto ao substantivo


Ex.: Colo tenus (até ao pescoço)

Palam (diante de)


Ex.: Palam populo (diante do povo)
38 Revista do Gelne

- Preposições de duplo caso, com valor diferenciado para cada um dos


casos.

In - usado com acusativo, indica “para”, “em direção a” , sempre traduzindo


uma situação dinâmica no sentido de aproximação.

Ex.: In urbem ire (ir para a cidade)


In Brasiliam proficisci (viajar para o Brasil)
Amor in patriam (o amor para com a pátria)
Severus in filiun (severo para com o filho)

In - usado com ablativo significa “em” com relação a tempo e lugar.


Ex.: In flumine pontem facere (construir a ponte sobre o rio)
In litore et in monte (no litoral e na montanha)
Semel in anno (uma vez por ano)
O “In” usado com ablativo traduz uma situação estática.

Sub - empregado com acusativo, significa sob, debaixo de, porém dando
uma
idéia dinâmica.
Ex.: Sub iugum mittere (submeter à escravidão)
Sub vesperum (pela tarde)
Sub lucem ( pela manhã)

Sub - usado com ablativo tem o mesmo significado, indicando, porém uma
idéia estática.
Ex.: Sub monte esse (estar ao pé do monte)
Sub media nocte (à meia-noite)

Super - usado com acusativo significa “para além”.


Ex.: Super Numidiam (para além da Numídia)

Super - empregado com ablativo externa o significado de “sobre”.


Ex.: Ensis super cervice pendet (a espada pende sobre a cabeça)

- As preposições que se seguem são usadas com um e outro caso, sem, no


entanto, haver distinção de sentido.

Subter (debaixo de) usado geralmente com acusativo.


Ex.: Subter montes (debaixo dos montes)

Clam (às escondidas de) mais freqüentemente usado como advérbio - às


escondidas surge como preposição na língua jurídica e mais comumente
com o acusativo.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 39

Ex.: Clam uxorem (às escondidas da esposa)


Clam dominum (às escondidas do patrão).”

Embora se fale aqui, em relação ao latim, em um sistema de preposição,


tal sistema não chegou a ser esboçado nas gramáticas latinas. O que aparece
é apenas um elemento ou catálogo de formas denominadas preposições que
não vão além de uma divisão em dois grupos: um para uso do acusativo e outro
para uso do ablativo.

1.2 Fragmentação do sistema a partir do latim vulgar

No período nobre, o latim ainda se apresentava como uma língua flexional.


A norma do latim clássico procurou fixar esse sistema. Muito cedo, porém, as
desinências casuais começaram a desaparecer nos usos vulgares e até na
língua escrita.
Com a difusão do idioma por outras províncias do império, era natural
que ocorressem transformações. Os estudos comprovam que essas alterações
aconteceram em todos os níveis da língua.
Em relação às preposições, estas atraíram para si uma sobrecarga maior
no campo da sintaxe, pois foram largamente ampliadas em sua função e
significação.
Modificado em sua estrutura original, o sistema de preposições do latim
erudito não teve uma evolução homogênea em todas as regiões da România.
As alterações a que esteve sujeito apresentam características diversificadas
de acordo com as tendências de cada uma das regiões. Aqui, particularmente,
são de interesse de estudo, os fenômenos que constituíram maior freqüência
na Península Ibérica.
As transformações, que começam a ocorrer no sistema latino das
preposições, já podem ser percebidas no próprio latim clássico no período da
decadência, pois algumas preposições passam a ser usadas em detrimento de
outras. O filólogo Grandgent (1990, p. 76) evidenciou esse fato da seguinte
maneira:

“Ab, segundo parece, não teve continuidade nas línguas românicas, tendo
sido substituída por “de”, que também ocupou (desde o século III) o lugar de
“ex”: ‘de palato exit’ , ‘egredere de ecclesia’ [ . . . ] Ad por apud aparece em
Plauto, Terêncio e outros: ‘ad ipsum fontem fact est oratio’ , ‘ad nos’ [ . . .
] Apud é usado no lugar de cum por Sulpício Severo e mais freqüentemente por
escritores da fase da decadência [ . . . ] Super, às vezes, substitui de: ‘super
anima comendatus’.”
40 Revista do Gelne

Ao lado dessa alteração, ocorre, simultaneamente, uma outra de igual


importância. A queda gradual de alguns casos, como o genitivo, dativo, ablativo
enseja o fortalecimento do acusativo que surge, neste momento, ricamente
assessorado das mais diversas preposições e, não só daquelas que se usavam
com o acusativo, mas também das que se destinavam ao uso do ablativo. Assim,
enquanto no latim erudito dizia-se:

domus magistri (a casa do professor)


librum discipulo dedi (dei um livro ao aluno)
puella cum matre ambulat (a criança passeia com a mãe)

na linguagem coloquial ou no latim da decadência via-se:

domus de magistru (m)


libru (m) ad discipulu (m) dedi
puella cum matre (m) ambulat.

Silva Dias (1959, p. 108) se expressa a respeito disso, com essas palavras:

“No próprio latim preromânico, o emprego do dativo ou ad é, às vezes, indiferente


(litteras mittere alicui ou ad aliquem). Nos Cômicos e de T. Lívio em diante,
ocorre ad, em lugar do dativo da prosa clássica, por exemplo, em Plauto: utinam
meus nunc mortus [ = mortuus] pater ad me muntietur; aequiperare suas virtutis
[ = virtutes ] ad meas; em T. Lívio: ad spem eventus respondit; a par de: ut
prodigio responderet eventus [ . . . ]”

Eduardo Carlos Pereira, em sua Gramática Histórica (1916, p. 182)


comenta deste modo, esse assunto: “O dativo de atribuição do latim clássico
passou a ser, muitas vezes, expresso pelo acusativo regido de ad. A vulgata
nos oferece deste fato larga cópia de exemplos: dixit Thomas ad condiscipulos;
dicebat ergo ad eos”.
Uma outra característica de mudança desse período é a utilização da
preposição para subordinar um nome substantivo a outro. No latim, a
subordinação nominal era realizada através da desinência do genitivo. Com o
tempo, os diferentes tipos que esse caso exprimia na língua latina foram sendo
substituídos pela preposição de: “possessor propriae terrae – possessor de
própria terra” (CARDOSO, 1978, p. 91).
Naturalmente, essa tendência fixou-se em português. Observem os
exemplos:
Vol. 6 - No. 1 - 2004 41

genitivo subjetivo - amor matris - amor de mãe


genitivo objetivo - amor patriae - amor da pátria
genitivo possessivo - domus Regis - casa do rei
genitivo apositivo - urbs Ramae - cidade de Roma
genitivo especificativo - virtus abstinentiae - virtude da abstinência
genitivo de qualidade - homo magni ingenii - homem de grande talento
genitivo de qualidade - fossa quindecim pedum - vala de quinze pés
genitivo de idade - puer decem annorum - menino de dez anos
genitivo partitivo - magna pars hominum - grande parte dos homens

Assim, gradativamente, os casos foram desaparecendo. O dativo que se


conservou excepcionalmente nos pronomes pessoais e no pronome reflexivo,
nas situações restantes, foi substituído pelas preposições a e para; o ablativo,
pelas preposições de, em, com e por e o genitivo, em geral, pela preposição
de.
Várias são as causas que concorreram para a sobrevivência das
preposições em prejuízo dos casos. Primeiro, pode-se lembrar o aspecto
semântico. As preposições evidenciam-se pelo seu conteúdo semântico, o que
pode ser facilmente verificado, quando as comparamos com os advérbios –
chegou antes, chegou antes da hora; falou perto de mim – enquanto que a
desinência casual constitui um elemento semanticamente vazio, isto é, sua
significação é meramente gramatical. Segundo, tome-se igualmente em
consideração, o aspecto da economia. Como a preposição era usada em
redundância com os casos, quase sempre a preposição absorvia a desinência
em parte ou por completo, tornando, assim, algumas vezes, desnecessário,
supérfluo, o uso das flexões.
Se com a presença dos casos, o uso das preposições já era, de certa
forma, necessário para o sistema da língua, com o desaparecimento das flexões
casuais, tal uso tornou-se muito mais solicitado e muito mais complexo, o que
resultou em sobrecarga no emprego e na função das preposições.
A partir desses dados, é possível concluir que houve uma
descaracterização no sistema latino das preposições. Essa descaracterização
teve início, ainda que de forma não muito acentuada, no latim clássico da fase
da decadência, o que se pode deduzir pelas citações feitas com relação a
Plauto e a Terêncio. Tal descaracterização acentuou-se fortemente no latim
vulgar no período da romanização.

1.3 Organização do sistema das preposições em português

Embora se tenha como inquestionável que o sistema das preposições em


português proveio do sistema de preposições do latim, uma visão geral do nosso
42 Revista do Gelne

quadro de preposições permite, de imediato, perceber que o aproveitamento


com relação ao latim foi apenas parcial. É de se crer que os ganhos se
sobreponham às perdas, mas, mesmo considerados os ganhos, muitas alterações
se processaram na mudança de uma para outra língua. Se de uma parte houve
perdas totais, de outra se verificou, com freqüência, alteração de funções; isto
sem contar com os casos em que a preposição teve funções acumuladas, além
de alguns poucos casos de novas criações românicas.
Em resumo, com relação à passagem do latim ao português, como
ocorrências mais evidentes, podem-se registrar as seguintes:

- formas que não subsistiram


- formas que acumulam funções
- formas que se firmaram como preposições
- criações românicas.

É sabido que um pequeno número de preposições latinas passaram para


o português. Algumas formas não resistiram à evolução e perderam-se no
tempo, dentre estas, vale a pena nomear: prope, erga, ciciter, coram e palam.
Outras subsistiram na língua portuguesa sob a forma de prefixo.
Para suprir tal deficiência, o sistema da língua lançou mão de vários
recursos, um naturalmente, foi a redistribuição de função, ou seja, algumas
partículas passaram a ter um uso mais acentuado, o que acarretou um acúmulo
de funções.
Nesse sentido, deve-se destacar a preposição de. No latim, essa
preposição limitava-se a exprimir “origem”, “movimento de cima para baixo”
– descendit de coelis – e “assunto” – de Brasília reperta – (descobrimento
do Brasil). Ao seu lado, havia ab, que significava “afastamento no sentido
horizontal” e ex com a noção de “movimento de dentro para fora”. No dia-a-
dia, o critério muito rígido entre as noções horizontais e verticais foram diminuindo
até fazer com que o uso da preposição de se confundisse com o de ab, o que
resultou, naturalmente, no desaparecimento dessa última. Da mesma forma, a
idéia de origem acabou por suplantar a significação de “movimento de dentro
para fora”, fazendo com que, aos poucos, a preposição ex deixasse de ter
continuidade. Assim, de, além de sua própria função que continuou a
desempenhar, passou a exercer os papéis característicos que cabiam às
preposições ex e ab e ainda acumulou a idéia de posse que está na base da
relação nominal. Matosso Câmara (1979, p. 178) registra os seguintes exemplos:
Vol. 6 - No. 1 - 2004 43

Se deiicere de muro – atirar-se da muralha


A fano tollere – retirar-se do templo
Ex Epheso advenire – vir de Éfeso
Líber Petri – livro de Pedro

Outros exemplos de preposições que tiveram seus campos de atuação


ampliados foram ad e pro. A preposição ad era limitada por in quando se
indicava uma noção de “movimento com entrada”: “Ire in silvan”. Em português
tem-se: “Ir à floresta”, em que ad > a substituiu in. O modelo anterior, no
entanto, mantém-se, fortemente, na linguagem coloquial – ir na floresta.
Com relação à segunda preposição, no idioma latino, a idéia de percurso
era expressa através de per > per e a noção de posição dianteira era indicada
por pro > por. Com o tempo, por assumiu completamente a função de per. A
respeito desse assunto, vale salientar que é perfeitamente possível identificar
na língua portuguesa o por que proveio de per com o sentido de “através de”,
“por meio de”, “por intermédio de” e o próprio sentido de “causa” ou “agente
da passiva” como pode ser verificado nestes exemplos: “passe pela minha
casa”, “mandei pelo correio”, “perdeu por não saber jogar”, “foi ajudado por
mim”, “fiz tudo por você”, “o que não se faz por um amigo”. Diante disso, é
perfeitamente concebível a existência, no português, de uma homonímia com
relação à preposição por, uma advinda de per e outra de pro.
Como foi visto, algumas formas desapareceram de nossa língua, outras
partículas, no entanto, firmaram-se como preposições ainda que sujeitas à
evolução fonética: ad, ante, contra, cum, de, in, inter, per, pro, sub, super, post,
sine e trans.
Constituindo um grupo um pouco diversificado, encontram-se as formas
compostas. Observe-se o relato do filólogo Grandgent (1990, p. 61)

“Alguns compostos adverbiais e outros de índole semelhante eram empregados


no latim vulgar como preposições: ab ante, de inter, de intrus, de retro, in ante,
in ante, in contra. Existiam ainda alguns compostos formados por preposição e
nome: in giro, in medic, per girum, per giro e outros constituídos por duas
preposições: de ab, de post, de sub, de super.”

Através desses compostos, pode-se chegar a duas conclusões: a primeira,


que já, no latim vulgar havia um estreito relacionamento entre preposições e
advérbios. Basta lembrar que, além de os compostos adverbiais serem usados
como preposição, vários advérbios resultam da aglutinação de preposições: ad
+ trans > atrás, de + post > depois, de + intro > dentro, de + in + ante > diante,
de + trans > detrás; a segunda, que a combinação de preposição é um recurso
que teve início ainda no latim vulgar e seu uso na língua portuguesa, estende-se
44 Revista do Gelne

até nossos dias. Sirvam de exemplos: de entre, de sobre, por entre, por sobre,
de sob, por sob.
Em conseqüência do uso de formas compostas, surgiu, mais tarde, um
grupo constituído em romanço pela aglutinação de preposições latinas:

per + ad < para


ad + post < após
ad + tenus < até
de + ex + de < desde
per + ante < perante (combinação)

Forma-se, assim, o quadro restrito das preposições portuguesas. São


elas:

a < ad
ante < ante
após < a + pos ad + post
até < ad + tenus
contra < contra
com < cum
de < de
desde < de + ex + de
em < in
entre < arc. antre, ontre intre inter
para < per + ad
per + per
perante per + ante
por < pro
sem < sine
sob < so sub
sobre < supre super
trás < trans

A essas chamadas essenciais juntaram-se palavras de outras classes,


que eventualmente são empregadas como preposição, entre outras, destacam-
se:

conforme
consoante { derivadas de adjetivos
segundo
Vol. 6 - No. 1 - 2004 45

mediante
durante
exceto { derivadas de verbos
salvo

É necessário lembrar que estas duas últimas são consideradas hoje


denotativos de exclusão.
A transformação de particípios em formas invariáveis, que passam a
funcionar como preposições, tem sua origem no latim vulgar, acentuando-se,
consideravelmente, nas línguas românicas, conforme comenta Maurer (1962,
p. 164):

“Alem das preposições vindas do latim vulgar, as línguas românicas – sempre


do Ocidente – criaram mais tarde certo número de preposições pela cristalização
de particípios usados em expressões absolutas [ . . . ] O particípio, quando
passado, acaba por tornar-se invariável na expressão, esvaziando-se do seu
valor de particípio absoluto. A tendência para reduzir tais particípios a formas
petrificadas nota-se já em latim [ . . . ] Durante a Idade Média, observa-se a
mesma tendência nas línguas românicas. Assim encontramos em textos
portugueses antigos: ‘e todollos domyngos tirado os da quaresma’, ‘passado
alguns dias [ . . . ] Stolz-Schmalz notam que mediante e exceto se tornaram
invariáveis no latim da decadência’. Outros surgiram na Idade Média.”

Junto ao quadro das essenciais e das acidentais, desenvolveu-se uma


série aberta de locuções prepositivas, que enriqueceram enormemente o sistema
das preposições em português. Das quais são exemplos: atrás de, diante de,
por baixo de, por cima de, em conseqüência de, por causa de. Em muitas
estruturas, essas locuções substituem as preposições simples, externando, às
vezes, com maior exatidão, as mais sutis e variadas relações existentes entre
as palavras.
Pelo exposto, pode-se perceber que a descaracterização, que ocorreu
no sistema latino das preposições, atingiu o sistema de preposições portuguesas
tanto no plano mórfico como no funcional.
Em suma, ficou evidente que do acervo das preposições existentes hoje
no português, a maioria proveio do latim ainda já foneticamente modificada
pelo latim vulgar; outras tantas surgem como contribuição do romanço; por
último, temos ainda algumas criadas no próprio português.
Quanto às perdas, se é verdade que na transição latim/português chegou
a se verificar algum tipo de redução, por outro lado é inegável que tais reduções
foram compensadas tanto pela criação de novas formas como pela redistribuição
de funções atribuídas às preposições remanescentes.
46 Revista do Gelne

O sintetismo do latim foi-se aos poucos debilitando, de forma que as


línguas novas que iam surgindo tinham desenhado em seus semblantes uma
marca exatamente oposta à da língua de origem, esta marca era acentuadamente
analitista. A debilitação das desinências casuais, associada ao não aproveita-
mento de algumas formas resultou em que as preposições que permaneceram
ficassem sobrecarregadas, razão pela qual vieram sofrer sensível redistribuição
de funções.

Referências

CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso (1983). Estrutura da língua portuguesa. 13 ed.


Petrópolis: Vozes, 1983.
______. História e estrutura da língua portuguesa. 3 ed. Rio de janeiro: Padrão, 1979.
CARDOSO Wilton e CUNHA Celso. Estilística e gramática histórica. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1978.
GRANDGENT, C. H (1992) Introducion al latin vulgar. 2 ed. Madri: Instituto Miguel de
Cervantes, 1992.
MAURER JÚNIOR, Theodoro. O problema do latim vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica,
1962.
PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática histórica. São Paulo: Weiszflog Irmãos, 1916.
RAVIZZA João. Gramática latina. 40 ed. Niterói: Dom Bosco, 1958.
RIBEIRO, Ernesto Carneiro. Serões gramaticais. 6 ed. Salvador: Progresso, 1965.
SILVA DIAS, Augusto E. Syntaxe histórica portuguesa. Rio de Janeiro: Acadêmica,
1959.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 47

Expedito Fer raz Júnior*

SEMIÓTICA E ANÁLISE LITERÁRIA: UMA INTRODUÇÃO


ABSTRACT: This work aims to contribute to a primary reflexion on the applicability of Semiotics
Theory to literary text reading and interpretation. Using Charles Peirce’s notion of hypoicon, and by
making brief comments on a popular sound lyrics, we want to demonstrate the pertinency of such
theoretical tool to the analysis of poetry.
KEY-WORDS: Semiotics; hypoicon; literary text.

Introdução

Definida como ciência geral dos signos, a Semiótica peirceana tem


por objeto os processos de significação que constituem a linguagem, não se
ocupando, a princípio, com a obra de arte literária, de modo específico. Decorre
daí que essa teoria não oferece, aos que se dedicam ao estudo do texto poético
ou de ficção, um modelo de análise voltado para suas características
particulares. Trata-se antes, nas palavras de Pignatari (1979, p.9), de “uma
ciência que ajuda a ler o mundo”– aí incluído, obviamente, o mundo das
palavras, entre outros signos –, mas tal leitura não possui uma gramática ou
um método, no sentido tradicional destes termos.
A passagem dessa visão teórica geral para a prática da abordagem
semiótica da literatura nem sempre se dá sem dificuldades. Mesmo a existência,
entre nós, de autores que têm realizado brilhantemente essa aplicação, não
significa que a trilha por eles aberta possa ser seguida sem percalços. A maioria
dos seus achados interpretativos, embora fundada numa mesma concepção de
linguagem, dificilmente funcionaria como fórmula a ser transposta para a leitura
de outros textos, pois se refere a processos existentes apenas nos contextos
em que foram identificados. Sobre essa característica da leitura semiótica,
assim se posiciona uma pioneira de sua divulgação em nosso meio, Santaella
(1996, p.60):

UNIR - Rondônia
48 Revista do Gelne

A semiótica peirceana ou a ciência dos signos ao mesmo tempo que nos fornece
um complexo dispositivo de indagação das possibilidades de realização e
classificação dos signos num corpo teórico sistematizado, também exige de
nós uma atividade de descoberta, quando pretendemos aplicar esse corpo teórico
a sistemas concretos de signos. Aliás, não é hoje novidade para ninguém o fato
de que uma ciência não se define como corpo de dogmas cristalizados, nem
como receituário metodológico aplicável a qualquer objeto. A relação teoria /
aplicação prática não se processa, portanto, como mera reiteração ritualística
de fórmulas sagradas, visto que, ao se defrontar com seu objeto na atividade
metodológica de sua aplicação prática, a teoria pode sofrer retificação de seus
conceitos. A questão da aplicação é pois indagação dupla: a teoria desvendando
seu objeto e o objeto testando os conceitos que o falam.

Nada é mais apropriado à natureza da linguagem literária do que um


antimétodo – isto é, um aparato teórico que fundamenta as análises de textos
sem, no entanto, uniformizá-las – uma vez que a literatura se caracteriza
justamente pela transgressão de códigos, pela invenção constante de formas,
repelindo os esquemas fechados, prescritivos. E isto nada tem a ver com
subjetivismo ou falta de rigor científico: as bases conceituais da teoria peirceana
são, ao contrário, bastante objetivas, além de possuírem uma finalidade precisa,
como explica Pignatari (1979, p.12):

Mas afinal, para que serve a Semiótica? Serve para estabelecer as ligações
entre um código e outro código, entre uma linguagem e outra linguagem. Serve
para ler o mundo não-verbal: “ler” um quadro, “ler” uma dança, “ler” um filme –
e para ensinar a ler o mundo verbal em ligação com o mundo icônico ou não-
verbal.

De fato, as reflexões de Peirce (1990, p.64) a respeito da linguagem


aplicam-se, indefinidamente, aos contextos literários e aos não-literários. Mas
é aí que está a novidade: munido dessa visão ampla, e atento à interação do
icônico e do verbal, o semioticista focalizará o texto de uma perspectiva capaz
de apreender os diálogos que se estabelecem entre as diversas formas artísticas:
a literatura, o cinema, a música, as artes plásticas etc. E ainda quando se
detenha exclusivamente na leitura do código verbal, a Semiótica buscará nele
a transformação do simbólico (no caso, a palavra) em ícone, isto é, os meios
pelos quais a obra literária, mais do que representar, presentifica o seu objeto.
Para entendermos os modos possíveis como se opera, na linguagem
literária, essa transformação, é necessário remetermo-nos, ainda que de forma
sintética, a alguns conceitos elementares da teoria peirceana, especialmente à
categoria dos signos icônicos ou hipoícones.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 49

1 Alguma teoria

A mais importante das tricotomias criadas por Peirce (1990) para a


descrição dos signos distingue-os em ícone, índice e símbolo. Fundamental
para a expressão artística (e também para o pensamento científico), o ícone é
definido como um signo que mantém, com aquilo que representa, traços de
semelhança em suas qualidades imediatas, isto é, em suas características visuais,
sonoras, táteis etc. Diversamente do símbolo, cuja associação com o objeto é
arbitrária e convencional; e do índice, que está diretamente ligado a ele, por
contigüidade; o ícone reproduz qualidades idênticas às do objeto, constituindo-
se numa réplica deste. Não existe, por exemplo, qualquer semelhança entre a
palavra livro e o que ela denota na língua portuguesa, ou entre a luz verde e a
mensagem “siga” no código de trânsito (relações simbólicas). Já o surgimento
de certas ervas e pássaros, ao redor de uma embarcação, indica ao navegante
a aproximação do continente (relação indexical). Um girassol retratado numa
tela mantém, por sua vez, uma relação icônica com o girassol real.
Entretanto, a identidade de um signo com o seu objeto será sempre
ilusória, parcial (um retrato pode substituir/significar, em certos contextos, a
pessoa retratada, mas jamais se confundirá com ela). Por isso, ao nos referirmos
a fenômenos concretos de linguagem, o que temos em mente, geralmente, não
são ícones ideais, mas signos icônicos ou hipoícones, na expressão de Peirce
(op. cit.).
Descendo ainda um degrau nessa tipologia, encontramos uma
subclassificação que adquire grande interesse para a abordagem de sistemas
complexos de significação, como as obras de arte: trata-se da divisão dos
hipoícones em outras três categorias ou modos de representação. São elas: a
imagem – que reproduz mimeticamente as qualidades simples da coisa
representada –, o diagrama – que está mais próximo de uma associação
indexical com o objeto – e a metáfora – que guarda maior semelhança com as
formas simbólicas de representação – (Cf.PEIRCE,1990, p.64). Esta última
– que dispensa apresentações no campo dos estudos literários – parece não
divergir, em sua definição semiótica, do conceito que conhecemos da Retórica.
Peirce (Op. cit.) inclui nesta categoria os signos ou representâmens cuja
remissão ao objeto se dá através “de um paralelismo com alguma outra coisa”.
É o que ocorre, por exemplo, no código verbal, em sentenças como “fecha-se
a pálpebra do dia” (= anoitece), de um soneto de Raimundo Correia. Mais
instigante é a oposição que se estabelece entre imagem e diagrama. São
imagens, por exemplo, uma tela naturalista, a maquete de um edifício ou uma
onomatopéia, pois estes signos nos remetem sensorialmente à presença daquilo
a que se referem. Por outro lado, considera-se diagramática a relação entre
50 Revista do Gelne

dois processos que, embora não se assemelhando mimeticamente, possuem


certa identidade em algumas de suas partes: a escala do termômetro e a
temperatura medida; um mapa e a região nele representada.

2 A questão da operacionalidade

A primeira pergunta que se coloca para a Semiótica literária é


precisamente: que rendimento o leitor de um poema ou de uma narrativa de
ficção pode obter dessa teoria acerca dos signos? Antes de tentar respondê-la,
devemos advertir contra dois extremos que representam riscos para uma
atividade prática neste terreno. O primeiro deles é a diluição ou a banalização
da abordagem semiótica, muitas vezes degenerada em mero inventário de jogos
paragramáticos que sequer estabelecem relações convincentes com o sentido
dos textos analisados. O extremo oposto, igualmente nocivo, é a utilização do
texto como pretexto para exercícios de classificação, em prejuízo da análise
interpretativa. Assim como existem um sociologismo e um psicologismo
literários, não estamos livres aqui do emprego abusivo da teoria pela teoria. E,
se a teoria não servir para nos fazer compreender o seu objeto, para que serve
então a teoria?
Para enfrentar a questão da operacionalidade da Semiótica peirceana,
no que se refere à análise literária, retornemos à constatação, aparentemente
consensual, de que o texto literário é um signo (complexo, porque composto
de muitos signos) icônico. A matéria-prima da literatura é o símbolo (a palavra),
mas o artista a emprega de um modo especial, visando ao que Pignatari (1979),
reformulando a função poética de Jakobson, definiu como uma projeção do
icônico sobre o verbal. 1Nesse contexto, o signo lingüístico tem sua
arbitrariedade relativizada e tende a transformar-se em signo icônico, isto é,
tende a imitar as características do seu objeto. A principal contribuição da
Semiótica para a literatura é a compreensão de como se constrói essa
iconicidade da linguagem literária.
Tome-se como exemplo o comentário seguinte, acerca de uma letra de
canção de Edu Lobo e Chico Buarque de Holanda: Sobre todas as coisas.
Gravada inicialmente por Gilberto Gil, para a trilha sonora do espetáculo O
grande circo místico (1982)2 e posteriormente por vários outros intérpretes,
1
A função poética de Jakobson, de base lingüística, fala de uma projeção do eixo da
similaridade sobre o eixo da contigüidade. Cf. Jakobson, Roman. Lingüística e poética.
In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Perspectiva, 1969.
2
Referência ao balé de Naum Alves de Souza, inspirado num poema homônimo de
Murilo Mendes.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 51

esta composição foi incluída por Chico Buarque no disco Paratodos (1992),
registro que ora nos serve de referência.3

Sobre todas as coisas

01 Pelo amor de Deus,


02 Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem?
03 Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
04 Abandonado pelo amor de Deus?

05 Ao Nosso Senhor
06 Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor
07 Se tudo foi criado – o macho, a fêmea, o bicho, a flor,
08 Criado pra adorar o Criador.

09 E se o Criador
10 Inventou a criatura por favor
11 Se do barro fez alguém com tanto amor
12 Para amar Nosso Senhor.

13 Não, Nosso Senhor


14 Não há de ter lançado em movimento terra e céu
15 Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel
16 Pra circular em torno ao Criador.

17 Ou será que o Deus


18 Que criou nosso desejo é tão cruel,
19 Mostra os vales onde jorra o leite e o mel
20 E esses vales são de Deus?

21 Pelo amor de Deus,


22 Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem?
23 Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
24 Abandonado pelo amor de Deus?

3
Sobre Todas as Coisas. Chico Buarque e Edu Lobo. Paratodos. Faixa 5, n.65064470
BMG.1982. CD.
52 Revista do Gelne

Sobre todos as coisas conjuga a gravidade do motivo religioso, sinalizado


desde o título, e certa ironia profanadora, o que se explica pelo contexto ficcional
para o qual a canção foi composta: trata-se de um protesto contra a indiferença
da mulher amada, consagrada à vida religiosa e, portanto, ao amor divino. Para
vencer-lhe a resistência, o sujeito lírico recorre a um argumento afetadamente
retórico (“Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem?”), com o
qual busca subverter-lhe as convicções, mostrando-lhe que sua recusa, ao invés
de agradar, ofende a Deus, pois Ele não teria reservado para Si todo o amor
com que dotou a criação.
Embora preterida, ou evocada sempre de modo indireto ou atenuado
(pergunte se... / não há de... / ou será que...), a figura de um “Deus cruel”, que
teria criado o amor para usufruto próprio, ocupa quatro das seis estrofes do
texto. Ela surge no segundo e terceiro segmentos, assumindo a forma negativa
no quarto para voltar a ser considerada no quinto – só não ocorre na primeira
e última estrofes que, idênticas, envolvem visualmente as demais, ao mesmo
tempo que servem de contrapeso no jogo sutil de convicção e dúvida em que o
texto se equilibra. Essa imagem narcísica do Deus cristão estrutura todo o
discurso e repercute em vários níveis da composição, chegando a fixar-se
mais vigorosamente na percepção do leitor do que o próprio tema do apelo
amoroso, que acaba como que deslocado para segundo plano.
Duas questões nos conduzem aqui à reflexão teórica: (1) por que essa
imagem se torna esteticamente eficaz? E (2) como é construído tal efeito? O
primeiro problema foi parcialmente abordado quando referimos a freqüência
com que ela se reitera ao longo do poema. A teoria literária nos ensina que
toda recorrência deve ser considerada em uma análise, ainda mais quando o
objeto de estudo é um discurso altamente condensado, como é o caso da poesia.
Mas devemos perceber que essa reiteração ocorre, como dissemos, em vários
níveis de significação do texto. A imagem ganha vida aqui, não apenas porque
se repete, mas porque se materializa na construção do signo, extrapolando o
simbólico em direção ao icônico, de modo que forma e conteúdo parecem
estar dizendo a mesma coisa. O segundo questionamento, que nos interessa
de perto na presente análise, diz respeito aos recursos empregados pelos autores
para alcançar essa materialidade do conceito. Como e onde ocorre,
precisamente, a projeção do icônico sobre o verbal?
Sublinhemos um detalhe curioso na estrutura do poema: as repetições
de palavras e expressões (vejam-se os grifos na transcrição) não ocorrem ali
de modo aleatório, mas obedecem a um esquema regular. Os elementos
duplicados estão, em sua maioria, dispostos nos extremos de partes visualmente
definidas do texto: início e fim de uma estrofe, de um grupo de estrofes, de um
período ou do poema inteiro. A primeira e a sexta estrofes, não apenas são
Vol. 6 - No. 1 - 2004 53

idênticas, como também iniciam e terminam pela mesma expressão. As demais


incidem no mesmo processo, se considerarmos a sinonímia dos termos “Nosso
Senhor” e “Criador”, que se alternam entre a segunda e a quarta estrofes,
configurando um duplo quiasmo (versos 5 a 12 e 9 a 16, respectivamente). No
penúltimo bloco, vê-se ainda a recorrência da palavra “Deus” em final de
verso.
A reiteração de um elemento inicial no fim de cada um desses segmentos
é uma figura conhecida da Retórica, que a chama de epanadiplose, e seu
efeito está aqui diretamente relacionado à construção do ícone. A equivalência
dos extremos, seja nas unidades internas ou na macroestrutura textual, adquire,
para o ouvinte ou leitor (mas sobretudo para este último, que pode explorar o
texto de forma não-linear), o efeito de um contínuo retorno ao ponto de
partida, se empregarmos a já consagrada analogia em que se representa o
discurso como trajetória (considere-se, neste sentido, o emprego de expressões
como linearidade e paralelismo nos estudos lingüísticos e literários). Daí
podermos falar, neste caso, de uma estrutura circular.
Sugerida pela disposição e seleção das palavras, essa circularidade afeta
o plano sonoro da canção (veja-se, por exemplo, o efeito localizado da
paronomásia, no oitavo verso: “criado pra adorar o criador”), mas também se
manifesta na sua organização discursiva, impressão que se reforça pelo fato
de as estrofes coincidirem com enunciados completos, marcando uma
segmentação, não apenas rítmica, mas também lógica do discurso. Além do
retorno à primeira estrofe, no final do poema, repete-se nas quatro estrofes
internas um mesmo argumento, apenas variando a forma de expressá-lo
(costuma-se dizer, nestes casos, que o discurso dá voltas ou gira em torno de
um mesmo ponto). Temos assim uma multiplicação do efeito de circularidade,
que atua simultaneamente nas unidades internas e no corpo inteiro do poema.
Não há dúvida de que a analogia com o círculo, embora seja apenas um
dos modos possíveis de representação da estrutura destacada (outra figura
pertinente seria a do espelho), não nos ocorre de modo arbitrário: somos
conduzidos a ela por uma série de correspondências. Basta lembrarmos que o
atributo da circularidade aparece de modo eloqüente em uma das passagens
mais expressivas da composição:

Não, Nosso Senhor


Não há de ter lançado em movimento terra e céu
Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel
Pra circular em torno ao Criador.

A organização lógica do discurso, determinada pela ordem específica de


54 Revista do Gelne

repetições acima descrita, configura-se, assim, como um signo icônico em


relação à imagem do carrossel, que integra, por sua vez – e noutro plano de
análise – uma alegoria da visão teocêntrica do Universo.
Para melhor explorar essa correspondência, deve-se perceber que tal
estrutura circular não reproduz pontualmente as qualidades imediatas do objeto
carrossel, mas o constante retorno ao ponto inicial que, por força das
repetições, impõe-se à leitura, mimetiza a ação de “circular em torno a”, de
que falam esses versos. À luz da categoria dos hipoícones, podemos afirmar
que o que temos, neste caso, não é, portanto, uma imagem, mas um diagrama.
Importa aqui distingui-los, menos para efeito de classificação do que para fim
de compreensão do processo descrito: menos evidentes, as associações
diagramáticas demandam interpretações relativamente mais complexas, na
medida em que implicam maior abertura. Elas não preexistem ao processo da
leitura, não estão dadas, mas sugeridas enquanto relações possíveis, cabendo
ao leitor estabelecer o nexo entre elementos aparentemente desvinculados.
Daí a grande importância do conceito peirceano de diagrama para a análise
literária.4

3 Considerações finais

Os comentários acima nos conduzem a um dos pressupostos


fundamentais para uma abordagem da obra literária através da Semiótica. Trata-
se da consideração do texto como um signo complexo, em que diferentes níveis
de construção (a organização sintática e discursiva, as escolhas lexicais, o
ritmo, a segmentação espacial) concorrem para um efeito de coerência estrutural,
isto é, para uma impressão de unidade, podendo todo o conjunto ser apreendido
como um hipoícone na medida em que reflete qualidades análogas às do conceito
representado. Lembremos que, para Peirce (op. cit), o efeito estético decorre
de o signo apresentar “uma quantidade de partes de tal modo relacionadas
umas às outras que confiram uma positiva e simples qualidade imediata à sua
totalidade”.5

4
Em um artigo de 1965, Roman Jakobson já destacava a relevância desse conceito no
âmbito dos estudos lingüísticos. Cf. JAKOBSON, Roman. À procura da essência da
linguagem. In: Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969, p.98-117.
5
O termo cunhado por Peirce para designar essa “simples qualidade imediata” é
firstness, que se costuma traduzir por primeiridade ou primariedade.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 55

Referências

BUARQUE, Chico e LOBO, Edu . Sobre Todas as Coisas. Chico Buarque e Edu Lobo.m
Paratodos. Faixa 5, n. 65064470 BMG. 1982. CD.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1990.
PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura: icônico e verbal, Oriente e Ocidente. São
Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
SANTAELLA, Lúcia. Produção de Linguagem e Ideologia. 2. ed. São Paulo: Cortez,
1996.
56 Revista do Gelne
Vol. 6 - No. 1 - 2004 57

Glória Car valho*

LEVANTAMENTO DE QUESTÕES SOBRE A NOÇÃO DE


PARTILHA NO CAMPO DA AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM **
ABSTRACT: Dialogical relations have been approached by various groups of researchers in the field
of Language Acquisition by standing out its privileged empirical unity statute. Nevertheless, one
cannot undervalue the great differences implied in each of those approaches. Thus, in the clipping of
this unit, special emphasis is put on the speech experience shared by the interlocutors (parent-child),
as well as the infant’s utterance singularity at an early stage of the subject’s linguistic course. In the
light of De Lemos’ proposition (2002), the present work suggests an attempt to discussing the
relation between the child’s singular speech and his/her speech experience shared with an adult
interlocutor (parent). Then it is worth standing out the importance to consider both interlocutors’
speech background when studying the changes occurring in the subject as s/he turns from the stage
of a non speaker into the condition of a speaker. Nevertheless, it is herein indicated that it would be
the movement of the language – by means of its two functioning poles: metaphoric and metonymical
processes – that would work onto such experience making it return, in the infant’s utterances, as a
different and singular structure. Therefore, the child’s speech singularity would be pointing at a
feedback with a difference whose discussion could bring about consequences to the field of Language
Acquisition investigation, as for raising questions about the natural way such notion has been dealt with
in that field.
KEY-WORDS: Sharing; singularity; language acquisition.

A relação dialógica tem sido considerada como unidade de análise


privilegiada na investigação da linguagem da criança. Este trabalho consiste,
portanto, numa tentativa de abordar tal unidade a partir da idéia de experiência
discursiva partilhada. Nesse sentido, pretendemos indicar algumas questões
sobre a noção de partilha, ou melhor, sobre a noção de história discursiva
partilhada pelos interlocutores (adulto e criança), durante a trajetória lingüística
do sujeito. Embora possua raízes na pragmática, tal noção tem sido adotada
em diferentes abordagens, no campo da Aquisição de Linguagem. Realçamos,
então, a importância do papel desempenhado pela partilha na tentativa de
explicar a mudança, que ocorre no sujeito, de uma condição de não falante
para uma condição de falante. Propomos, entretanto, que parece não se tratar

*
Universidade Federal de Pernambuco
**
Este trabalho faz parte da realização de Projeto de Pesquisa financiado pelo CNPq.
58 Revista do Gelne

de uma noção simples, natural, evidente em si mesma e, por isso, mereceria


ser colocada em discussão.

1 A Partilha e a Noção de Desacordo

De um modo geral, tem vindo à tona a necessidade de se trazer, para o


campo da Aquisição de Linguagem – e, especificamente, para a questão da
singularidade da fala da criança – a discussão sobre o reconhecimento de
intenções comunicativas em sua relação com a experiência discursiva partilhada
pelos interlocutores. Nesse campo de estudo, sob o enfoque pragmático, o
outro (interlocutor/adulto), concebido como indivíduo que reconhece na criança
intenções de comunicar uma mensagem, adquire especial relevo, durante a
trajetória lingüística do sujeito. Essa concepção recebe destaque, por exemplo,
na análise feita por John Dore do seguinte fragmento de diálogo:

Episódio 1: “Um experimentador [E] está falando com uma criança [C] de 18
meses, antes que a mãe [M] entre em cena:

C: Band-Aid.
E: Onde está seu Band-Aid?
C: Band-Aid.
E: Você tem um Band-Aid?
C: Band-Aid.
E: Você se feriu e caiu?
[A mãe entra]
C: Band-Aid.
M: Quem lhe deu o Band-Aid?
C: Enfermeira.
M: Onde ela o colocou?
C: Braço.”
(Extraído de DORE, 1979, tradução nossa)

Ao analisar esse episódio, Dore (1979) compara a comunicação mal


sucedida do experimentador com o êxito da comunicação depois que a mãe
entra em cena. Explica então essa diferença pelo fato de que mãe e filho
partilham, tanto um conhecimento anterior, como a intenção de comunicar esse
conhecimento. Em outras palavras, a mãe reconhece, na produção de C (“Band-
Aid”), a intenção de comunicar um conhecimento sobre a visita ao médico.
Segundo esse autor, o êxito da comunicação depois que a mãe entra em
cena se deve, em suma, ao fato de que “a mãe sabia que questões a criança
Vol. 6 - No. 1 - 2004 59

poderia responder e a criança sabia que questões a mãe provavelmente faria”


(1979: 350, tradução e ênfases nossas). Em outras palavras, para esse autor,
o êxito da experiência discursiva atual (no episódio citado) teria, como condição,
o retorno da história discursiva (sobre a visita ao médico) – partilhada pelos
dois interlocutores – a qual, por sua vez, teria como condição, tanto o
conhecimento partilhado anteriormente, como a intenção partilhada de comunicar
esse conhecimento.
Nessa perspectiva, a história discursiva partilhada pelos dois sujeitos
(mãe e criança) teria, como base, um acordo, uma relação de semelhança
entre intenções comunicativas dos interlocutores, ou mesmo uma coincidência
entre um saber da mãe e um saber da criança sobre as intenções mútuas.
Neste momento, vamos sair do campo específico da Aquisição de
Linguagem para um outro campo, evocando o Contrato Social de Rousseau,
com base no qual podemos propor que o mais essencial à noção de partilha
seria o desacordo e não o acordo. Nesse sentido, passaremos muito rapidamente
por alguns aspectos do Contrato Social apenas com o objetivo de recortar
elementos que sirvam de operadores para a discussão da partilha em Aquisição
de Linguagem. Nesse texto, Rousseau (citado por CHAUÍ, 1996) parte da
suposição de que o bom selvagem, o estado natural de felicidade teria se
acabado no momento em que o homem teria dito: isso é meu, isso é teu, ou
seja, a partir do momento em que teria surgido a divisão, a propriedade, em
outras palavras, a sociedade. Entretanto, a sociedade (a partilha) não poderia
sobreviver naturalmente, isto é, não poderia sobreviver se os indivíduos se
relacionassem de forma direta, cada um fazendo valer os seus conhecimentos,
as suas vontades, os seus interesses individuais, uma vez que naturalmente
existiria uma assimetria entre eles: uns seriam mais fortes do que outros, segundo
aquele autor. Teria surgido, então, a necessidade de um pacto social, de um
contrato, de uma lei a que os indivíduos teriam que se submeter, não somente
para que a partilha entre eles pudesse sobreviver, mas para que ela pudesse
mesmo existir, já que segundo Rousseau (1987) a lei seria a condição da partilha.
Assim, decorreria dessa lei uma vontade comum, semelhante. Por sua vez, ao
se submeterem à lei, os indivíduos se transformariam em cidadãos (em sujeitos),
com suas diferenças, suas singularidades.
Com base nesse rápido resumo, sugerimos, como conseqüência, que o
investigador, em Aquisição de Linguagem, seria afetado por uma suspeita, no
que diz respeito ao acordo concebido como base da história discursiva partilhada
pelos interlocutores (mãe e criança).
60 Revista do Gelne

2 Atitude de Suspeita do Investigador no Campo da Aquisição de


Linguagem

Partindo da colocação acima, segundo a qual o mais essencial na partilha


seria o desacordo, a diferença, destacaremos os seguintes aspectos, trazendo-
os para o campo da Aquisição de Linguagem:

1 – A partilha, ou melhor, a história discursiva partilhada pelos interlocutores


(mãe e criança) teria, como condição constitutiva a lei estrutural da língua à
qual mãe e criança se submeteriam. Estamos nos referindo, portanto, às leis
do funcionamento lingüístico – no sentido saussuriano – que foram relidas por
Jakobson (1971) como funcionamento metonímico, através do qual os signos
se combinam por uma relação de contigüidade, e funcionamento metafórico,
pelo qual os signos se substituem uns aos outros por uma relação de semelhança.
Essas leis foram ressignificadas por De Lemos (2002), no campo de investigação
da Aquisição de Linguagem.
2 – Dessa partilha, o investigador não poderia ficar de fora. Em outras
palavras, ao estudar a mudança que ocorre na criança de uma condição de não
falante para uma condição de falante, isto é, ao se relacionar com a fala da
díade (mãe-criança), o investigador, embora de forma diferente desses sujeitos,
também se submeteria à lei que constitui a partilha.
3 – Essa submissão à lei criaria, no investigador, o que passaremos a
chamar de uma atitude de suspeita, aspecto esse que vai assumir o foco da
discussão ao longo deste trabalho.

Na tentativa de tornar um pouco mais claro o sentido que estamos


atribuindo a uma tal atitude de suspeita, discutiremos o seguinte exemplo:

(C = criança; M = mãe)

Episódio 2: (C - 1;2.15 entrega a M uma revista tipo Veja)

C: Ó nenê/o auau.
M: Auau? Vamo achá o auau? Ó a moça ta tomando banho.
C: Ava? Eva?
M: É. Ta lavando o cabelo. Acho que essa revista não tem auau nenhum.
C: Auau.
M: Só tem moça, carro, telefone.
C: Alô?
M: Alô, quem fala? É a Mariana?
(Extraído de DE LEMOS, C., 2002)
Vol. 6 - No. 1 - 2004 61

Segundo De Lemos (2002), apreende-se da fala de M que não há nem


nenê nem auau na revista. Nesse sentido, o que retorna da fala da mãe na
fala da criança são significantes cujo significado seria uma interrogação,
apontando para uma não coincidência entre a fala da mãe e a fala da criança.
Desse modo, o funcionamento lingüístico, atuando sobre a díade, fez o
diálogo progredir. Por exemplo, o significante telefone (produzido por M)
convocou, metonimicamente, na fala da criança, o fragmento de uma situação
anterior (Alô), situação essa que foi reconstituída, metonímica e metafo-
ricamente, pela mãe (Alô quem fala? É a Mariana?). Por sua vez, a
interpretação do investigador não recairia apenas sobre esse fragmento de
diálogo, em que a discordância é mais visível, porém retroagiria a momentos
anteriores. Melhor dizendo, nessa retroação, seriam convocadas situações
anteriores em que mãe e criança produziram nenê e auau, de modo
aparentemente idêntico, coincidente, sem que alguma discordância se tornasse
visível, colocando-se, portanto, em questão aquela coincidência.
Uma conseqüência do que foi dito seria a de que o investigador, em sua
relação com a fala da criança seria deslocado do nível do significado – regido
por uma intencionalidade única – para o nível do significante no qual predomina
o equívoco entendido como a possibilidade de um enunciado tornar-se outro,
isto é, a possibilidade de um significante (ou cadeia de significantes) assumir,
simultaneamente, vários significados.
Por sua vez, tanto o caráter retroativo do que estamos chamando de
suspeita quanto o equívoco se tornam mais visíveis na abordagem dos erros
produzidos pela criança.

3 O Erro e a Experiência Discursiva Partilhada

Os erros – produzidos pela criança num ponto inicial de seu percurso


lingüístico – trazem à tona, de modo especial, o caráter singular (diferente) do
estado de mudança, em relação ao estado em que se encontra o sujeito já
falante de determinada língua. Podemos nos referir, entretanto, a dois tipos de
erros: os erros previsíveis e as produções insólitas ou estranhas. No primeiro
caso, trata-se daqueles erros que respondem claramente a um padrão lingüístico,
tendo sido realçados, sobretudo, por autores que se situam numa vertente do
construtivismo piagetiano, como Peters (1983), Bowerman (1974 e 1982) e
Karmiloff-Smith (1986 e 1992). Bowerman (1982), por exemplo, privilegiou a
chamada ultrarregularização, como é o caso do uso (na língua portuguesa)
de fazi, ao invés de fiz, em que se estaria conjugando, no passado, formas
irregulares de acordo com a regra de conjugação das formas regulares. Quanto
62 Revista do Gelne

às produções estranhas, seriam aqueles erros imprevisíveis os quais não


poderiam ser explicados por uma regra de conhecimento lingüístico, como a
regra de conjugação de verbos no passado.
Vale apontar, aqui, um exemplo de erro imprevisível destacado por Bellugi,
ou seja, a produção verbal de uma criança (Adam): “...o que você pensa que
eu sou, um não menino com não relógio?” (no original: “a no boy with no
watch?”).
É importante indicar que Lemos (2002) abordou esse tipo de erro, segundo
a concepção de efeito de estranhamento ou efeito de enigma provocado
pela fala da criança sobre o adulto, tendo realçado a perplexidade do investigador
diante de seu caráter imprevisível. Essa abordagem tem como referência a
experiência do estranho (segundo Freud) a qual é provocada pelo retorno de
algo conhecido, mas que havia sido esquecido. Nesse sentido, o enigma
produzido pela fala da criança consistiria numa possibilidade (ainda que
esquecida) da língua, ou seja, decorreria de uma maneira singular de combinar
significantes. Esse tipo de produção também foi constatada por Bowerman
que deixou clara a inquietude provocada por seu caráter inesperado, ao afirmar
que:

Muitos dos erros que eu estava registrando, entretanto, me colocavam diante


de algo mais como um quebra-cabeça. Não era óbvio que a criança estivesse
respondendo a um padrão estrutural do inglês e, mesmo que isso parecesse
provável, não era necessariamente claro como caracterizar essa regularidade
[...] (BOWERMAN, citada por LEMOS, 2002, p. 143).

Portanto, os erros estranhos, inesperados – mais do que os erros


previsíveis – dão visibilidade ao caráter singular da fala da criança, apontando
ainda para a resistência que esse caráter oferece a uma explicação através do
conhecimento que o infante possuiria sobre a língua. No tocante a essa
resistência, De Lemos destaca o papel crucial desempenhado pela relação do
enunciado da criança com o do interlocutor/adulto, no sentido de que:

o movimento da língua aproximando palavras ou fragmentos que, oriundas de


diferentes cadeias se cruzam e se substituem na mesma posição, ainda que
imprevisível, não é aleatório. É a história da relação da criança com os textos em
que sua fala, gesto, movimento e presença foram interpretados que está aí
inscrita e que lhe dá singularidade (1995, p. 26).

Desse modo, seria a história da relação discursiva entre o adulto (mãe)


e a criança – ou melhor, a história de uma experiência discursiva partilhada –
que o movimento da língua faria retornar, de maneira constante e diferente,
Vol. 6 - No. 1 - 2004 63

nos enunciados infantis, constituindo a singularidade desses enunciados, como


pretendemos apontar na análise (extraída de CARVALHO, 2003) de três
episódios retirados do Banco de Dados do Projeto de Aquisição de Linguagem
do IEL-UNICAMP:

Episódio 3: (Depois do almoço, C - 2;0.15 é acordada por M)

M: Num pode não. Quando a gente levanta precisa...cê ficou descalça antes de
dormir, é?
C: É.
M: Tá se vendo.
C: Tá se vendo.
M: Tá se vendo que você ficou descalça antes de dormir.
C: Eu achuvia agu.
M: Vai chover logo?
C: É.
M: Ahn.
C: Tá muito fio.

Episódio 4 (C - 2;5.23)

M: A água tá guardada nas nuvens.


C: Tá sovendo ele num abiu.
M: Num abriu porque num tá chovendo.
C: Cumasu.

No episódio 3, sugerimos que a produção de C (Tá se vendo) foi


interpretada pela mãe como uma reprodução de sua cadeia anterior (Tá se
vendo). Nesse sentido, M repete essa cadeia incluindo-a no enunciado completo
Tá se vendo que você ficou descalça antes de dormir. Esse exemplo levantou,
entretanto, a suspeita de que a interpretação da mãe em relação ao suposto
caráter reprodutivo da cadeia da criança (Tá se vendo), provavelmente, não
coincidia com uma intenção da criança de repetir o mesmo enunciado ou, pelo
menos, de repeti-lo com sentido idêntico àquele que lhe foi atribuído. Tal suspeita,
por sua vez, somente teria surgido em virtude da produção posterior (estranha):
Eu achuvia agu, no episódio 3, bem como da produção Tá sovendo, no episódio
4 e em vários outros momentos da sessão de gravação. Assim, foi ao se deparar,
posteriormente, com essas produções, que o investigador retroagiu à cadeia
anterior de C (Tá se vendo), colocando em questão seu sentido de reprodução.
Em outras palavras, levantou-se a hipótese de que o Tá se vendo do enunciado
da mãe teria convocado (por deslocamento metonímico) as expressões Tá
chovendo e Tá sovendo escutadas e produzidas pela criança, em outros
64 Revista do Gelne

momentos. Isso teria permitido ao investigador suspender o sentido ou a intenção


atribuídos pela mãe à fala da menina, levando-o a suspeitar de que não poderia
saber em que sentido a criança estaria usando seus significantes, ou melhor,
ele teria sido tomado pelo caráter equívoco desses significantes, oscilando entre
ver e chover.
Por sua vez, a análise do erro: Eu achuvia agu, fez com que o
investigador voltasse aos dados, pois já havia se deparado, várias vezes, com o
enunciado da mãe: Eu acho que vai chover, como por exemplo, no seguinte
fragmento de diálogo:

Episódio 5: (C - 1;11.05 está conversando com M)

M: Nós vamos no Ibirapuera? Achei que a gente fosse para o zoológico. O


Ibirapuera é mais perto, né? Só queria comprar um pirulito, cê compra?
C: Compo. Intão vô no bilapuela/qui é muito puquinho.
M: Mas só que eu acho que vai chover e nós num podemos descer do carro.
Então você sai e vai comprar o pirulito pra nós todos. O seu dinheiro dá? Se
não, eu empresto um pouco do meu.
C: Num dá.

Sugere-se, por meio desse exemplo, que teria havido no erro (Eu achuvia
agu), a fragmentação do enunciado Eu acho que vai chover, bem como a
recomposição e substituições (metafóricas) de seus significantes, de forma
imprevisível. Ao que parece, esse caso estaria dando visibilidade à suposição
de que uma experiência anterior partilhada (em torno do tema da chuva) havia
retornado, como significantes, na fala da criança. Teria sido então a língua, em
seus dois movimentos (indissociáveis) de aproximar (metonimicamente) cadeias
verbais e de substituir (metaforicamente) pontos nessas cadeias, que havia
feito retornar, de modos diferentes, tanto na díade como no investigador, a
história da experiência discursiva partilhada, pelos interlocutores (mãe e criança),
sobre a chuva.

4 Considerações Finais

Para finalizar, retornemos à abordagem pragmática em aquisição de


linguagem, através do estudo transcultural de Ochs e Schieffelin (1995) que
apontam para o fato de que, em algumas comunidades lingüísticas, não se
reconhece, ou melhor, não se atribui às verbalizações da criança uma intenção
de comunicar alguma coisa, num momento muito inicial de seu percurso
lingüístico. Tal reconhecimento/atribuição somente ocorreria a partir do
Vol. 6 - No. 1 - 2004 65

momento em que o infante começasse a produzir formas verbais semelhantes


às do falante. Essas autoras, porém, constataram, nas comunidades referidas,
um tipo de história da experiência discursiva da criança com a mãe, com
características bem diferentes – sobretudo em seus momentos iniciais – daquela
história que tem lugar em outras comunidades. Explicando um pouco melhor,
nas comunidades exemplificadas, diferentemente do que predomina entre os
ocidentais, as crianças somente são tratadas como parceiros conversacionais
diretos depois que aprendem a falar; antes disso, porém, os bebês participam
de interações comunicativas na posição de um terceiro, ou seja, na posição
de ouvinte casual da conversação entre múltiplos agentes, diferentemente do
que ocorre, na cultura ocidental, onde o bebê é eleito pelo adulto como parceiro
conversacional direto. Contudo, Ochs e Schieffelin concluem que “o resultado
em termos da aquisição final da competência gramatical não é substancialmente
diferente nessas duas estratégias” (1995, p. 74). Dizendo com outras palavras,
essas crianças percorrem com êxito os vários momentos de sua trajetória
lingüística. Por sua vez, esse fato é complementado por uma outra constatação
empírica – apontada pelas autoras mencionadas – segundo a qual a produção
de enunciados ambíguos (ou ininteligíveis) é universal, não estando seu
aparecimento, portanto, na dependência de práticas discursivo-culturais
específicas. Desse modo, podemos inferir que a criança daquelas comunidades,
num determinado momento do seu percurso lingüístico, produz formas verbais
diferentes, singulares, heterogêneas com relação a um padrão lingüístico.
A partir desse estudo, poderíamos levantar uma suspeita em relação ao
acordo de intenções comunicativas concebido como base para a história
discursiva partilhada pelos interlocutores (mãe e criança). Explicando um pouco
melhor, as comunidades exemplificadas funcionariam como uma espécie de
contra exemplo onde não se poderia focalizar esse acordo num momento muito
inicial da trajetória lingüística do sujeito, até porque a mãe, nesse momento,
não reconhece ou não atribui intenções às verbalizações da criança.
Da nossa leitura desse estudo, portanto, três proposições foram
convocadas e se cruzaram:
– O papel crucial da história discursiva partilhada pelos interlocutores
(mãe e criança);
– A não atribuição de intenção comunicativa;
– A universalidade das produções infantis ambíguas.

Pode-se dizer, então, que mesmo nessas comunidades exemplificadas,


uma história discursiva estaria sendo, desde muito cedo, constituída através da
partilha entre adultos e criança, muito embora tal partilha esteja fundada em
padrões culturais bem diversos dos padrões predominantes na nossa cultura.
66 Revista do Gelne

Nesse sentido, ganharia destaque o segundo aspecto recortado no início


deste trabalho, ou seja, a proposta de que a lei seria a condição da partilha.
Lembremos que a mãe, nos exemplos referidos, não atribui intenções às
verbalizações da criança, num período inicial de sua história discursiva e, mesmo
assim, erros ou enunciados ambíguos são, posteriormente, produzidos na fala
infantil. Em outras palavras, da escuta da criança, na interação comunicativa
– em que ela comparece na posição de um terceiro (ou de um ouvinte casual)
– os enunciados produzidos pelos adultos teriam que se deslocar
(metonimicamente) e se modificar (metaforicamente) para que pudessem
constituir os enunciados ambíguos infantis. Como já foi dito, essa ambigüidade
estaria apontando, sobretudo, para uma diferença em relação aos enunciados
do falante, isto é, estaria apontando para a singularidade da fala da criança em
seu momento de mudança. Em conseqüência, podemos propor que uma tal
singularidade seria efeito de uma história discursiva partilhada cuja condição
constitutiva, isto é, as leis de funcionamento lingüístico se imporiam não somente
à crianças e aos falantes de sua comunidade, mas também ao investigador no
campo da aquisição de linguagem.

Referências

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ROUSSEAU, J.J. Do contrato social. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Coleção Os
Pensadores)
68 Revista do Gelne
Vol. 6 - No. 1 - 2004 69

Jan Edson Rodrigues-Leite *

CONSTRUINDO VERSÕES DE MUNDO


(Reflexões sobre a atividade de categorização
em aulas de Por tuguês)
ABSTRACT: This article aims at reflecting on the question of categorization as it is carried out in
classroom environment. Category construction, as we assume, is essential to knowledge acquisition
once categories are the basic units which allow us negotiate views of reality through processes of
socio-historically, cultural-based joint interaction. Social interaction brings to classroom context
different world versions held by teachers and students in an attempt share these versions with all
lesson participants. Social cognition, in its turn, distributes those versions among cognitive subjects
in order to allow them negotiate, in situated contexts, the way they should observe the facts of the
world, and eventually think of it and act on it.
KEY-WORDS: Categories; social cognition; interaction.

Introdução

Este texto tem por finalidade discutir a atividade de construção de


categorias e conceitos no contexto específico das aulas de língua portuguesa,
com foco privilegiado no conjunto de saberes fabricados conjuntamente por
professores e alunos em ambientes de aula. O trabalho com categorias é central
nessa discussão na medida em que estas nos permitem observar como os
atores do contexto social de aula manejam em termos concretos as unidades
básicas que estruturam o conhecimento. Além disso, nos permitem considerar
como se classificam os pontos de vista mais gerais sobre a realidade, dado o
contexto situado.
Categorias são aqui compreendidas como versões públicas do mundo
que utilizamos como o meio de constituirmos o conhecimento sobre um dado.
Nestes termos, o conhecimento publicamente construído e veiculado na escola
não seria mais do que uma das muitas versões da realidade, autorizada
institucionalmente e aceita pelos membros da sociedade para ser oficial e vigorar
como se fosse a verdade existente e aceitável.
Estas versões são altamente estabilizadas (porém não estáticas) graças

* Universidade Federal da Paraíba.


70 Revista do Gelne

aos mecanismos de conceptualização sócio-cognitiva que opera, de um lado,


através de redes de modelos cognitivos idealizados (LAKOFF, 1987) como
dispositivos estruturantes da formação de categorias, e de outro, por meio de
redes de integração conceptual (FAUCONNIER, 2002), mais dinâmicas, que
operacionalizam a convergência dos espaços mentais, responsáveis pelo fluir
do pensamento, do discurso, dos conceitos, para a categorização.
Os estudos de categorização no âmbito da cognição social têm o papel
investigar como as versões mais ou menos estáveis são distribuídas entre os
sujeitos cognitivos para que os indivíduos possam negociar, de modo situado, o
olhar com que devem observar os fatos da realidade e eventualmente pensar
sobre o mundo e agir nele.

1 Esquemas explicativos da categorização

1.1. A hipótese clássica: condições necessárias e suficientes

A primeira teoria de categorização, no ocidente, é parte da herança


filosófica clássica, representada pela figura de Aristóteles, para quem os seres
e objetos são considerados pertencentes a uma dada categoria se compartilharem
as mesmas propriedades necessárias e suficientes. Nesta tradição, aos objetos
do mundo exterior são atribuídas certas propriedades suficientes, através das
quais identificam-se com objetos de uma mesma categoria, além de propriedades
necessárias, sem as quais deixam de fazer parte dessa categoria. Como para
Aristóteles, o conceito homem é reconhecido por propriedades necessárias
como animal, racional, mortal, bípede, entre outras, a ausência de uma
propriedade, como racional, por exemplo, seria suficiente para desvinculá-lo
da categoria em questão.
Segundo Lakoff (1987, p. xii), a visão da teoria clássica é extremamente
objetivista, pois assume a posição de uma realidade construída de forma
especular – as categorias refletem o mundo. Para o autor, uma teoria de
categorização assim postulada trata o pensamento como sendo a manipulação
mecânica de símbolos, ou seja, a mente humana se configura como uma máquina
interna abstrata que opera através de símbolos objetivos, tomados externamente.
Tais símbolos mantêm uma relação biunívoca com o mundo à medida que são
uma representação interna de uma realidade externa e devem corresponder
aos elementos do mundo, independentemente dos contextos em que se
encontram.
Nas categorias objetivamente tomadas, as variações são traços
incidentais e equívocos, não determinantes na atribuição de propriedades
Vol. 6 - No. 1 - 2004 71

necessárias e suficientes e, por isso, descartáveis no cálculo da significação do


objeto. Estas categorias são vistas como descorporificadas da realidade,
insensíveis às contingências sensório-motrizes dos indivíduos, bem como às
suas demandas sócio-históricas. Como são atomísticas e discretas, as categorias
são incontornáveis em sua relação biunívoca com a realidade e só explicam as
semelhanças entre os seres do mundo e não suas diferenças.

1.2 A hipótese pragmática: semelhanças de famílias

A discussão sobre a categorização tem sido produtiva desde Aristóteles.


O século XX, no entanto, produziu teorias capazes de por em xeque o
pensamento clássico que vigorava até então. Wittgenstein (1961,1979), por
exemplo, postulou a ineficácia das propriedades necessárias e suficientes em
seu famoso exemplo sobre o conceito de jogo (Investigações Filosóficas, §
66). Propôs, na ocasião, que as semelhanças entre os indivíduos de uma família
são mais úteis na identificação dos membros pertencentes às categorias, uma
vez que no exemplo de jogos – jogos olímpicos, jogos de cartas, jogos de bola,
de tabuleiro – os exemplares podem não compartilhar todas as propriedades,
porém se conectam um ao outro por semelhanças sobrepostas, como as
semelhanças entre os membros de uma família, através das quais os itens A e
B são intrinsecamente relacionados, enquanto B se assemelha a C, C a D, D a
E, sucessivamente, até que cada item tem, pelo menos, um elemento em comum
com outro ou outros itens, mas poucos elementos são comuns a todos os itens
do mesmo grupo (Cf. ROSCH & MERVIS, 1975, p. 575).

Considere, por exemplo, as atividades a que chamamos de jogos (...) O que é


comum a elas? Não diga ‘deve haver algo em comum, senão não seriam
chamadas de jogos’, – mas veja se há algo comum a todas elas – pois se você
observá-las, não verá algo comum a todas, apenas similaridades, relações, e
toda uma série delas. Repito: não pense, veja! – Por exemplo, veja os jogos de
tabuleiro, com seus múltiplos parentescos. Agora observe os jogos de carta;
aqui você encontra muitas correspondências com o primeiro grupo, mas muitos
traços comuns se perdem e outros surgem. Quando você passa para os jogos
de bola, muito do que é comum é mantido, mas outro tanto se perde. São todos
jogos ‘divertidos’? Compare xadrez com jogo da velha. Ou há sempre perdedores
e ganhadores, ou competição entre os jogadores? Pense em paciência. Nos
jogos de bola há perdedor e vencedor, mas quando uma criança atira a bola
contra a parede e a apanha na volta, este traço desaparece. Observe aqueles
em que há habilidade e aqueles em que há sorte e veja a diferença entre habilidade
no xadrez e habilidade em tênis. Pense agora em outros jogos de crianças; aqui
há um elemento de diversão, mas quantos outros traços característicos
72 Revista do Gelne

desapareceram! E nós podemos percorrer os muitos, muitos outros grupos de


jogos da mesma forma; vemos como as semelhanças surgem e desaparecem
(WITTGENSTEIN, 1961, § 66).

1.3 A hipótese sociolingüística: categorias têm limites difusos

Além de Wittgenstein, Labov (1973, p. 342), nas ciências da linguagem,


havia reconhecido que se a lingüística pode ser definida por um objeto, o mesmo
seria possível com os estudos das categorias, mas ele acrescentou que a
categorização é uma dimensão tão evidente e fundamental para a atividade
lingüística que suas propriedades são freqüentemente mais pressupostas do
que propriamente estudadas. O autor se ocupou, assim, da natureza difusa dos
limites categoriais através de uma investigação empírica, através da qual
desenvolveu uma série de experimentos envolvendo figuras de xícaras e outros
recipientes semelhantes. O procedimento do experimento de Labov era muito
simples: os informantes observavam desenhos de xícaras e outros recipientes,
um a um, e respondiam perguntas do pesquisador sobre qual era o nome de
cada figura. Os resultados eram analisados em termos de perfis de consistência.
Se todos os informantes do teste nomeassem um objeto como X, a
consistência seria de cem por cento; se metade deles tivesse dúvida se o objeto
era, de fato, X, e não o nomeassem, a consistência cairia para cinqüenta por
cento. Tais análises encaminharam para a seguinte conclusão:

O aspecto subjetivo da difusão (fuzzyness, na terminologia laboviana) pode


ser pensado como a falta de exatidão sobre se um termo é ou não é denotativo;
e isto pode ser transformado na consistência com a qual alguns exemplares de
falantes, de fato, aplicam esse termo (LABOV, 1973, p. 353).

Para Ungerer & Schmid (1996, p. 19), os achados de Labov contrastam


fortemente com o pensamento aristotélico de propriedades necessárias e
suficientes, mas relacionam-se com alguns dos pressupostos já emergentes
sobre a natureza cognitiva das categorias, especialmente nas seguintes
características:

a) as categorias não representam divisões arbitrárias de fenômenos do mundo,


mas podem ser vistas como fundamentadas nas capacidades cognitivas
da mente humana;
b) categorias cognitivas como cores, formas, organismos e objetos concretos
são ancoradas em protótipos conceptualmente salientes, que têm papel
crucial na formação de categorias;
Vol. 6 - No. 1 - 2004 73

c) os limites categoriais são difusos, isto é, categorias circunvizinhas não se


separam por fronteiras rígidas, mas se mesclam entre si.
d) entre os protótipos e seus limites, as categorias cognitivas contêm membros
que podem ser classificados em uma escala de tipicalidade que varia de
piores a melhores exemplares.

1.4 A hipótese prototípica: categorias têm exemplares melhores que outros

As características acima descritas levam a questão da categorização e


de sua natureza cognitiva a uma das hipóteses mais expressivas, representada
pelos postulados de Rosch (1978) sobre a estrutura prototípica. A atenção
sobre os processos lingüísticos atraiu os trabalhos de Rosch para a redefinição
da concepção clássica que havia dominado desde Aristóteles. Rosch
desenvolveu seu enfoque das estruturas de conhecimento na memória humana,
motivada pela crítica da arbitrariedade e artificialidade dos conceitos então
utilizados nos experimentos psicológicos, e por sua vontade de aproveitar os
processos categoriais empregados nas categorias naturais que não são
articuladas pelos cânones da lógica clássica, mas por uma lógica prototípica.
Rosch apresenta uma teoria conceptual, na qual postula a existência de
categorias prototípicas. Tal concepção repousa sobre a natureza contínua das
categorias, sua gradualidade. Ou seja, cada categoria possui representantes
mais ou menos típicos, e não é clara a linha que separa os exemplares mais
próximos de uma categoria de seus não-exemplares. Assim, se perguntarmos
a um informante qualquer (comum ou não especializado) por um exemplar de
um conceito como fruta, ou pássaro, ou uma cor, ouviremos mais
freqüentemente termos como maçã, bem-te-vi, e azul do que tomate, pingüim
e magenta (Cf. RODRIGUES-LEITE, 2004, p. 26)
Como bem reconhece Rosch, as categorias são observáveis através de
sua expressão na língua, “os assuntos da categorização com os quais nos
ocupamos primeiramente têm a ver com a explicação das categorias encontradas
em uma cultura e codificadas pela língua daquela cultura em um ponto especifico
do tempo” (1978, p. 28). Rosch descreve as categorias como funcionando
notadamente segundo dois princípios psicológicos realistas de base: a economia
cognitiva e a natureza não arbitrária da estrutura do mundo percebido.
Neste sentido, Rosch se omite de abordar a questão de saber qual é a
concepção de língua mais apropriada quando se trata de cognição. Ainda que
as manifestações lingüísticas sejam onipresentes nas suas experiências e
observações, a autora as ignora enquanto tais, ou mesmo as trata segundo uma
concepção de língua como repertório de etiquetas, dicionário e nomenclatura.
Com efeito, essa concepção de língua é marcada por uma confusão constante
entre referente, conceito e significado (Cf. MONDADA, 1997, p. 293).
74 Revista do Gelne

A despeito de suas contribuições heurísticas, a teoria da categorização


prototípica se caracteriza por um tratamento lingüístico, e mais geralmente
semiótico, que revela uma concepção realista e transparente das mediações
simbólicas. Tal tratamento negligenciou a dimensão sintagmática do discurso,
provocando o que Mondada (p. 294) chama de apagamento do co-texto, o qual
se acompanha do apagamento do próprio contexto, que passa a ser considerado
como periférico ou é totalmente negado. Estas duas dimensões, no entanto,
são constitutivas dos fatos lingüísticos empíricos e centrais a eles, sendo,
portanto, centrais também às categorizações.

1.5 A hipótese de conceitos de nível básico: categorias são percebidas


em diferentes níveis

Relativamente à apreensão das categorias das linguagens naturais, em


Rosch (1976) também encontramos uma contribuição que fornece subsídios
para seu estudo – trata-se da concepção de nível básico das categorias. Em
oposição à concepção aristotélica que pressupunha a uniformidade dos níveis
taxonômicos dos sistemas de categorização, em que, por exemplo, um nível de
taxonomia da biologia como ‘ser vivo’ só se distinguia de outros níveis de acordo
com sua posição hierárquica (‘espécie’, ‘gênero’, etc.), Rosch postula a
existência de um nível especial, em cada taxonomia, o qual se distingue dos
demais por uma série de particularidades cognitivas, como percepção,
comunicação e organização do conhecimento. Este nível especial é denominado
de nível básico.
O nível básico é mais bem definido se posto em relação às outras
concepções também apresentadas por Rosch, que fazem com que sua teoria
constitua-se de três ordens: conceitos básicos, conceitos superordenados e
conceitos subordinados. As crianças aprendem mais facilmente os conceitos
básicos como ‘cachorro’ antes de aprenderem os superordenados ‘animais’ e
os subordinados ‘vira-lata’.
As particularidades características da ordem básica (percepção,
comunicação e organização do conhecimento) são relacionadas com as
proposições apontadas por Oliveira (1999, p. 25), segundo as quais, categorias
de nível básico são aprendidas pelas crianças primeiramente, de acordo com a
ordem básico-subordinado-superordenado. Assim, primeiro se processa a
percepção de um objeto conhecido como ‘carro’, para depois reconhecê-lo
como ‘carro de corrida’, e em seguida como ‘veículo’. Os conceitos apreendidos
em nível básico também são mais rapidamente aplicados – o tempo médio para
identificação de um objeto como um martelo é menor do que para identificá-lo
como uma ferramenta. Além disso, as categorias correspondem ao nível mais
Vol. 6 - No. 1 - 2004 75

alto para o qual uma imagem mental é associada ao conceito como um todo e
correspondem ao nível mais alto em que uma pessoa usa programas motores
semelhantes para interagir com as unidades às quais o conceito se aplica.

1.6 A hipótese do realismo experiencialista: a corporificação da


cognição

Um outro direcionamento à categorização prototípica foi dado por Varela,


Thompson & Rosch (1991 – a chamada “virada budista”, ou seja, a
interdependência dos fenômenos da experiência), e teve como objetivo liberar
as ciências cognitivas de uma concepção realista e, logo, representacional da
cognição, que sustém a concepção de cognição como o tratamento da
informação procedente pela seleção das propriedades dadas e pré-existentes
no ambiente contextual. A noção adotada para a cognição depende dos tipos
de experiência que vêm do fato de termos um corpo com várias capacidades
sensório-motrizes, e estas capacidades individuais são em si mesmas embutidas
em um contexto biológico, psicológico e cultural mais fechado.
O semanticista mais próximo das novas proposições roschianas foi
Lakoff (1988) que propôs uma crítica paralela à de Varella, Thompson & Rosch,
ao opor a cognição objetivista a uma cognição baseada na experiência. A
primeira revela um realismo metafísico onde os símbolos são representações
internas de uma realidade externa. A segunda, ao contrário, se fundamenta
sobre os símbolos significantes e não-finitos, que funcionam segundo os
esquemas imagéticos baseados sobre os processos elementares. O autor
considera a experiência como ativa, funcionando como parte de um ambiente
natural e social, motivando o que é significativo no pensamento humano (p.
120).
Assim, com relação às categorias prototípicas, a hipótese realista-
experiencialista propõe que a prototipicidade é plástica e condicionada pelo
ambiente cultural da comunidade lingüística. Lakoff (1987, p. xiv), por exemplo,
atribui às categorias as características de corporificação – as categorias não
são abstratas, mas sensíveis às contingências sensório-motrizes dos falantes;
natureza imaginativa – as categorias não têm necessidade de correlação com
fenômenos reais, mas pertencem a esquemas imaginativos de base; pro-
priedades gestálticas (de formas) e não apenas de qualidades; contextualmente
situadas – a estrutura da categoria é ambientada no contexto; idealização – as
categorias podem ser descritas por modelos cognitivos idealizados domínios
mentais estáveis e locais.
Na lingüística cognitiva, a noção proposta por Lakoff (1987, p.68) relativa
aos modelos cognitivos idealizados (MCI), reflete a maneira como organizamos
76 Revista do Gelne

o nosso conhecimento através de estruturas de categorias e efeitos prototípicos


que são produtos resultantes da disposição MCIs. A noção de modelos cognitivos
é tributária de quatro fontes no âmbito da lingüística: a semântica dos frames
de Fillmore (1982), a teoria de metáforas e metonímias como organizações
cognitivas de Lakoff e Johnson (1980), a gramática cognitiva de Langacker
(1986) e a teoria dos espaços mentais de Fauconnier (1985, 1994).
A noção de MCI, proposta por Lakoff (1987), diz respeito aos
conhecimentos produzidos socialmente e disponíveis culturalmente. São espaços
permanentes, estáveis, que estruturam os conceitos, as categorias e os frames,
ou seja, nossa maneira de organizar o conhecimento sobre o mundo.
Ainda que Lakoff (1988) e Rosch (1991) falem de categorização e
cognição como corporificados, o problema reside em saber onde situar tal
dimensão e superar sua redução à sensório-motricidade. Em todo caso,
corporificado não significa situado em uma prática social como é o caso da
etnometodologia (que faz a distinção entre o mundano e o ideal), o que se
permite ao contrário é uma visão endógena dos processos que se constituem
na/para a interação e a ação. É por isso que o debate se fixa na esfera dos
condicionamentos genéticos e não pode se deslocar para a interação social.

1.7 A hipótese sócio-cognitivista: categorias são negociadas para fins


práticos, temporários em contextos locais

Ao contrário da psicologia cognitiva de Rosch, a abordagem sócio-


cognitiva permite reorientar o enfoque das categorias, levando em conta seu
caráter situado, localmente produzido, contextualmente dependente e
lingüisticamente organizado. As categorias, neste sentido, são produzidas de
forma corporificada, o que não significa que têm uma determinação sensório-
motriz, mas que estão imersas em uma prática social secular, mundana. Desta
forma, a atividade categorial não se reduz à atribuição de etiquetas prototípicas
aos indivíduos e aos objetos, mas se ocupa dos métodos utilizados pelos sujeitos
para caracterizar, descrever, justificar, compreender os fenômenos da vida
cotidiana.
As categorias tratadas por Mondada (1994, 1997, 2003) não são apenas
observáveis discursivamente, mas também estruturadas pelos processos
lingüísticos que fazem delas objetos-de-discurso (e não objetos de referência),
ou seja, objetos que são construídos para o discurso e não são preexistentes a
ele. O corpus lingüístico permite observar como o discurso se constrói
progressivamente, não postulando objetos e configurações pré-elaboradas, mas
lhes constituindo. Tal enfoque considera as categorias como sendo tratadas
lingüisticamente em seu interior, decompostas e recompostas, associadas e
Vol. 6 - No. 1 - 2004 77

contrastadas e constantemente ajustadas ao contexto e à dinâmica comuni-


cacional.
A dinâmica categorial observada é essencialmente discursiva – leva a
conceber uma semântica discursiva, baseada em operações sobre as fronteiras
categoriais e não sobre seus traços fixos. De outro modo, ela é indissociável
da prática enunciativa que se apropria do sistema lingüístico para ajustar os
objetivos particulares e comunicativamente situados à dimensão que define a
flexibilidade das categorias.
Esta concepção considera o discurso como instaurador de sua própria
realidade. O discurso deixa de ser uma cópia do mundo, ou a simples emissão
de palavras conectadas entre si, passa a ter uma eficácia performativa que se
exprime em sua capacidade de reificar aquilo que enuncia. Esta concepção
interacionista e praxeológica da categorização se concebe como constitu-
tivamente ligada às situações onde ela se desenrola, emergente nos trabalhos
de negociação, de construção interativa, de elaborações coletivas, ordenando
de forma endógena o curso de sua realização prática.

1.8 A hipótese da integração conceptual: espaços mentais são


mobilizados na conceptualização

Uma das grandes contribuições para o estudo dos processos de


conceptualização e categorização no âmbito das ciências cognitivas, na
atualidade, é oriunda de um conjunto de pressupostos apresentados por
Fauconnier (1994, 1997, 2002), no tocante à criação e manipulação de espaços
mentais, pelos seres humanos; e ao mapeamento do pensamento e da linguagem
dentro de uma perspectiva semântica. Esta teoria tem como principal atrativo
a operação mental verificada na formação de conceitos e na atribuição de
sentido às relações que os objetos têm com o contexto, ao invés do enfoque
formal da semântica que atribui significados na linguagem a elementos
exteriores, como se aquela refletisse o mundo. Fauconnier, de modo diferente,
procura investigar como a cognição funciona na sociedade e que conjuntos de
relações são utilizados para se estabelecer a fusão entre espaços mentais,
conhecida como blending, ou mesclagem conceptual, que funciona como o
nascedouro dos sentidos.
Segundo Fauconnier & Sweetser (1996, p. 8-9),
a linguagem nos permite falar não só sobre o que é, mas também sobre o que
poderia ser, o que será, do que se espera, do que se acredita, de hipóteses, do
que é visualmente esperado, do que aconteceu, do que deveria ter acontecido,
dentre outros. Para isso, criamos uma rede de espaços mentais através dos
quais nos movemos à medida que o discurso ocorre.
78 Revista do Gelne

Esta teoria postula a existência de quatro (ou mais) espaços mentais


envolvidos no processo de projeção conceptual entre domínios: dois espaços
de input (correspondentes ao domínio-fonte e ao domínio-alvo), um espaço
genérico que comporta a estrutura abstrata partilhada pelos dois espaços
anteriores (e eventualmente por muitos outros) e ainda um espaço de mesclagem
(blending), em que se verifica a combinação, a mistura, de representações
dos espaços de input, e por vezes também de outros espaços mentais cuja
informação é mobilizada. É desta mesclagem que resulta uma nova
conceptualização. O espaço mescla permite explicar a emergência de uma
estrutura nova, que é um produto da projeção conceptual e não pode, por isso,
ser encontrada nos espaços de input. A projeção conceptual constitui um processo
cognitivo fundamental, responsável por fenômenos como a categorização, a
formulação de hipóteses, os mecanismos inferenciais, a contrafactualidade,
etc.
Nesta hipótese, o processo da construção do discurso é altamente fluido,
dinâmico, e localmente criativo – categorias provisionais são ajustadas em
espaços apropriados; conexões provisórias são estabelecidas; novos enquadres
são criados, e os sentidos são negociados. Esta abordagem possibilita a
mediação entre conhecimento acumulado em modelos culturais e pessoais e
sua ativação nos eventos comunicativos em desenvolvimento, na forma de
esquemas conceptuais, modelos cognitivos idealizados e espaços mentais
(LAKOFF 1987; FAUCONNIER 1994, 1997, 2002). A emergência da
significação, deste modo, tem uma dimensão essencialmente pública e sua
interpretação é tanto ato cognitivo como ato social (Cf. SALOMÃO 1997,
p.33).
O tipo de construção de significações que emerge no ambiente escolar
é emblemático da relevância da teoria dos Espaços Mentais para a investigação
que ora empreendemos. A aula é fortemente marcada pela negociação de
modelos transitórios da realidade, que cumprem uma função local no processo
de elaboração criativa de outros modelos mais estáveis, os quais garantem a
permanência do conhecimento enciclopédico como objetivo acadêmico. É,
também, o local onde presenciamos uma influência mútua entre as escolhas
discursivas feitas pelos alunos e aquelas feitas pelos professores, as quais
acionam modalidades diversas de tratamento contextual dos tópicos discursivos
e refletem um dinamismo latente, pouco explorado nas pesquisas sobre as
rotinas escolares. Este dinamismo é explicado, nas atividades comunicativas
da interação em aula, pela abundância de estratégias sócio-cognitivas que
ocorrem à medida que o discurso e pensamento fluem, tornando o contexto
escolar o ambiente mais adequado para se construir publicamente versões da
realidade.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 79

2 A interação em aula como mecanismo de categorização

Procuraremos demonstrar, nesta seção, como certas rotinas comu-


nicativas e atitudes interativas em aulas de português, entre os quais a avaliação,
a correção e o reparo são também mecanismos que auxiliam na atividade
cognitiva envolvida na construção conceptual e na categorização de conteúdos
escolares. Iniciaremos pelo aspecto da avaliação, uma vez que, através de
dados observados, percebeu-se que ela consiste em uma atividade bidirecional,
isto é, da parte de ambos alunos e professores, que promove a recontextua-
lização dos conteúdos em discussão. Em seguida, apresentaremos a
categorização segundo uma dinâmica discursivo-interacional que envolve a
negociação de objetos-de-discurso entre professores e alunos, em uma situação
comunicativa bastante delimitada, e enfim, discutiremos a categorização do
ponto de vista da integração conceptual, da mesclagem de espaços mentais,
dentro do quadro teórico da hipótese sócio-cognitiva.
Gumperz (1982) destaca o caráter interativo da comunicação, por apontá-
la como uma atividade social, onde os esforços coordenados de dois ou mais
indivíduos são exigidos. Desse modo, a comunicação só é atingida, quando os
movimentos de um interlocutor provocam respostas por parte de outro, e isto
com base em um inter-relacionamento entre um processo inicial de inferência
global e as inferências locais geradas pelas trocas conversacionais subseqüentes.
Este julgamento inicial é feito através do enquadramento da interação
num modelo global. O indivíduo apresenta, inicialmente, uma série de
expectativas acerca do que está se passando no contexto comunicativo antes
de fazer qualquer inferência sobre o sentido do que está ocorrendo. A esse
conjunto de expectativas dá-se o nome de ‘Frame’, ou enquadramento, ou
ainda, moldura. O conceito de ‘Frame’ de que Gumperz se utiliza, foi desen-
volvido por Goffman (1972) para designar o quadro do qual os participantes de
uma interação face a face fazem parte em uma atividade de fala. As
interpretações de sentido dos enunciados são feitas com base no que ocorre ao
tempo da interação, e esta é definida como um quadro ou esquema identificável
e familiar aos participantes. Juntamente à noção de ‘frames’, Gumperz aponta
a teoria do alinhamento, ou ‘footing’, com o interesse de definir o papel ou a
postura adotada pelos participantes da interação. O alinhamento ocorre toda
vez que há uma mudança no enquadramento da situação vivida pelo falante.
Marcuschi1 nos lembra que a teoria do footing deve ser observada em
dois níveis: o nível macro do alinhamento na estrutura dos papéis e eventos,
observado acima segundo Gumperz; e o nível micro das relações interpessoais,

1
Informação verbal.
80 Revista do Gelne

conforme Goffman. Este último apresenta maior relevância para a investigação


feita em sala de aula. Professores e alunos apresentam alinhamentos
diversificados em atividades como as rotinas de pergunta e resposta, por
exemplo, em que a pergunta do professor ao aluno encadeia determinados
modos de agir, de falar, de gesticular, de sorrir – observe o caso da pergunta-
surpresa feita pelo professor para testar a atenção do aluno (Exemplo 1), ou a
pergunta retórica no início da aula, como tentativa de revisão de aulas anteriores.
De modo diferente, a pergunta do aluno ao professor pode ensejar uma variedade
de alinhamentos manifestados por reações agressivas, irônicas, cômicas, etc.
(Exemplo 2).2

1.P= (...) peraí.../ com licença/ felipe/ por que rr não é encontro consonantal?
2.A1= éé:::
3.P= /.../ ah/ ah/ ah/ ah/ ah com licença/ carlos felipe não está prestando atenção então eu acho
4 que ele já sabe do assunto... certo? eu quero saber de carlos felipe/ carlos felipe... iuri falou
5 que rr não é encontro consonantal porque? (5s) r-r não é encontro consonantal por quê?...
6 nós aqui estamos vendo pr dr tr br/ e ai alguém gritou rr e iuri falou... erre erre não é
7 encontro consonantal... por que?
8.A= [é dígrafo
9.P= calma]/ eu quero que o carlos felipe... carlos/ eu acho que só tem um carlos felipe nessa
10 turma/ respeite/ porque rr não é considerado encontro consonantal? procura na sua
11 gramática
12.A= eu sei/ é porque
13.P= não dêem a resposta/ ouviram? tão ouvindo? nós vamos continuar a aula mas não vamos
14 dar a resposta pra ele... entendido? tá certo? procure na sua gramática e me diga porque
15 rr não é encontro consonantal/ bem... então encontramos uma regra rr/r dobrado... num é?
16 entre duas vogais... né? o som hhh mas aqui também tem o som hhh... e aí qual é a regra?
(...)

Exemplo 1 – Pergunta-Resposta: Professor-Aluno.

2
Convenções da transcrição utilizadas: 1. ... = qualquer pausa; 2. (XXX) = trecho não
compreensível; 3. :: = alongamento de vogal ou consoante r ou s; 4. PAgina =
ênfase; 5. fa-zer = silabação; 6. ((comentários))= comentários do observador; 7. [ ] =
sobreposição de voz localizada; 8. A= aluno; 9. P= professor; 10. (...) ou /.../ = indicação
de transcrição parcial ou de eliminação de trechos.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 81

1.P= (...) à proporção que você for colocando o número um... ai responde ai depois copia o dois/ eu
2 quero a pergunta com a resposta no caderno
3.A1= vai até onde?
4.P= até onde vocês conseguirem fazer
5.A1= e se um conseguir fazer a metade e o outro conseguir fazer menos?
6.A= e se uma pessoa não conseguir fazer nenhum... hein tia?
7.A1= ô tia a gente vai fazer até que número?
8.P= vá fazendo tainah, não se preocupe... você coloca o quesito copia a pergunta e responde
9 logo
10.A1= a pergunta (xxx) muito grande
11.P= é pra copiar tudinho! tô lidando com criança aqui de alfabetização não tainah/ eu falo uma coisa
12 você/
13.A1= eu não vou copiar não (...)

Exemplo 2 – Pergunta-Resposta: Aluno-Professor.

Para Marcuschi (2004, p. 10), as características funcionais da atividade


interativa de perguntar-responder realizada pelo professor ou pelo aluno
dependem do formato de aula3 em que o diálogo interacional ocorre, bem como
do sistema de participação que cada tipo de aula utiliza. Assim, o diálogo é
percebido de modo diferente em cada contexto e se presta a finalidades
interacionais diversas, conforme a natureza do evento em curso.

2.1 A avaliação interativa e a negociação de conceitos

A idéia inicial que se tem sobre a avaliação sempre a reduz às noções


de prova, nota, conceito, boletim, etc., ou seja, um procedimento de julgamento
de quanto o aluno aprendeu após ser exposto a uma certa quantidade de
informações. Cada uma das práticas avaliativas citadas está ligada a uma

3
O autor apresenta quatro formatos de aula: 1. Ortodoxa – o professor apresenta o
tema e o desenvolve, geralmente sem intervenção dos alunos ou com intervenções
breves, orientadas para o tópico, assimiladas se pertinentes ou ignoradas quando
fogem ao tema; 2. Socrática – o professor não enuncia o tema da aula nem o expõe
diretamente, mas usa sistematicamente a estratégia de perguntas aos alunos e busca
respostas intuitivas para, a partir delas, elaborar sua posição; 3. Caleidoscópica – o
professor tem um plano maleável e um bloco de temas construído segundo a motivação
e colaboração dos alunos, através de grande participação espontânea; 4. Desfocada
– não há um tópico bem delineado em andamento e o professor trata de vários temas
com pouca conexão entre si e dá a entender que tudo é tratável, desde que se associe
com o que está em andamento. (Cf. MARCUSCHI, 2004, p. 5-8).
82 Revista do Gelne

determinada concepção educacional do professor ou da instituição e refere-se


às visões da realidade adotadas por eles. Essa idéia inicial sobre a avaliação
tem como finalidade encontrar valores julgados adequados pela escola, sendo
portanto, uma etapa seletiva e autoritária que estimula a hierarquização (alunos
bons e insatisfatórios), padronização e seleção dos alunos, operando com
conceitos polarizados que indicam quem fracassou ou quem obteve sucesso
comparado a outros, visando à submissão do aluno em relação ao conteúdo
adotado pela escola; essa concepção tradicional dispensa qualquer atenção à
interatividade, à historicidade e o aos processos sócio-cognitivos de catego-
rização.
A avaliação está aqui sendo discutida como um procedimento interativo
operado pelo ouvinte e falante na sequenciação intra e interturnos, que não
deve ser vista apenas como o julgamento do que é certo ou errado, mas como
uma oportunidade do locutor, no caso o aluno, refazer sua contribuição,
confirmando ou mudando a aplicação prática das instruções obtidas do
interlocutor, no caso o professor e vice-versa. A avaliação interativa que
propomos assegura a negociação coletiva de categorias e conceitos no jogo
avaliativo de sala de aula. A construção categorial tem, assim, caráter
cooperativo, isto é, constrói-se a partir não apenas do que se vê e se ouve do
interlocutor, mas das rotinas de sala de aula que promovem o intercâmbio do
conhecimento através da interação social, levando em conta a intenção e
significação do falante/ouvinte.
Os trechos destacados abaixo são exemplos reais de atividades
interativas que se propõem a auxiliar a construção de conceitos acerca dos
conteúdos escolares. Tratam-se de trechos de aulas de língua portuguesa,
coletados em turmas de 4ª e 5ª séries do Ensino Fundamental de duas escolas
públicas da cidade de João Pessoa, entre 1998 e 2002.
Ressalte-se que as pistas lingüísticas que tanto alunos como professores
fornecem em sala de aula buscam quase sempre retomar os conteúdos, trazer
à tona tentativas de negociações sobre o conteúdo, ou seja, avaliar muito mais
a produção do conhecimento do que a precisão dos enunciados do falante,
mantendo o foco na interatividade dos turnos negociados na situação
comunicativa.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 83

1. P= [...] aquele grupo acredita que a palavra gás... deu e:: veio...veio...derivou-se...criou-se de
2 gasoso...gasolina e gasosa...alguém tem alguma consideração sobre isso?/.../
3.A= [ professora]
4.P= diz... tiago
5.A= e:: eles num disse que gás vinha de gasoso...gasolina e gasosa?
6.P= [sim]
7.6= mas é o contrário...
8.P= a::::h!

Exemplo 3 – Avaliação: Aluno-Aluno.

No exemplo acima, retirado de uma aula de português em que a


professora explica questões de ortografia a partir da semelhança entre palavras
primitivas e derivadas, percebe-se que a atitude comunicativa de avaliação
(linha 5) partiu do aluno em relação ao turno de outro aluno retomado por P
(linha 1). Ele analisa a suposição do outro grupo envolvido na atividade, chamou
a atenção da professora e corrigiu a informação (linha 7): “mas é o contrário...”.
O exemplo demonstra que a avaliação, correção e reparo4, como atitudes
interativas, orientam o processo comunicativo pondo em relevo as dúvidas e
incompreensões sobre o tópico em curso e procedendo a tomada, reformulação
e inserção de conteúdos que venham a favorecer a conceptualização das noções
discutidas.

1. P= [...] agora o dimas/ dimas já percebeu outra coisa... que além do significado elas tem escritas
2 iguais...ou seja...elas têm letras iguais...né isso?/.../
3.P= e isso quer dizer o quê?
4.A= semelhança?
5.P= ah...então vamos usar semelhança o que você tá colocando...é isso que eu queria dizer. semelhança
6 de que gente?
7.A= de palavras?
8.P= de palavras? [...]
9.P= será que é... será que é de palavras?
10.A= não
11.A= de nomes?
12.P= de nomes?
13.A= de sílabas?
14.A= de ortografia /.../
15.P= não.
16.A= ortográficas
17.P= ah... semelhanças ortográficas. /.../

Exemplo 4 – Avaliação: Professor – Aluno.


4
Consideramos estes três termos como conceitos diferentes, pois avaliar é posicionar-
se em relação a um dado, informação ou turno, corrigir é sugerir algo diverso do que
foi veiculado, e reparar é restabelecer a interação em seus enquadres.
84 Revista do Gelne

No exemplo 4, tanto professora quanto aluno interagem de forma


avaliativa na interação. Nas linhas 8 e 12, a professora repete a questão proposta
pelo aluno como forma de fazê-lo ir em busca do que ela pretende que seja
alcançado. Depois é o próprio aluno que responde “não” (linha 10) a avaliação
feita por P, indicando que entendeu que não está no caminho certo para encontrar
a solução do problema. Outros alunos seguem suas tentativas de erro e acerto,
até que na linha 15 a professora rejeita todas as respostas. Em seguida, os
alunos alcançam encontram o termo desejado (linha 16): semelhanças
ortográficas.
No campo da análise sócio-interacional, a avaliação, a correção, e o
reparo, têm sido tratados como estratégias utilizadas no curso da construção
conceptual (ONO & THOMPSON, 1996; GOODWIN & DURANTI, 1992).
Tais estratégias são empregadas pelos sujeitos cognitivos no curso da interação
através da coordenação eficaz de seus esforços, e atuam ora na transição
interturnos, ora no interior de um mesmo turno conversacional. Estas estratégias
também ilustram a noção de contexto como uma dimensão acionada
seqüenciadamente na temporalidade da interação e restringem o esforço
cognitivo de interpretação, tanto através do gerenciamento da interação como
por via das negociações de sentido. Além disso, revelam o desdobramento
sincrônico da comunicação em planos interativos, replicáveis em planos
discursivos (Cf. SALOMÃO, 1997, p. 26-9).
Philips (1992, p. 312) também ressalta que na medida em que cada
falante utiliza o turno na fala, ele ou ela constrói o sentido a partir das
contribuições do falante anterior e ao fazer isso evidencia as compreensões
particulares da fala prévia. Assim, o sentido de uma sentença específica não é
inerente a esta sentença, mas é conjuntamente construído pelos co-interactantes
– não sendo propriedade de um único falante – de forma emergente, ou
continuadamente em mudança, através estrutura seqüencial da fala. Deste
modo, os reparos têm papel crucial na construção contextual do sentido.
Philips (p. 313) sugere que é comum aos falantes produzirem trechos
de fala na interação que foram anteriormente utilizados por outros falantes
como novos e espontâneos, ainda que possam ser repetições quase exatas de
um ou vários aspectos da forma discursiva do falante anterior, ou ainda a
repetição da própria fala utilizada em uma ocasião anterior. Tal fenômeno explica
as ações de reparo, além da construção interacional do contexto social como
amplamente padronizados ou ‘rotinizados’.
A avaliação fornece exemplos dos pequenos sistemas de atividade que
podem emergir, desenvolver-se e expirar nas fronteiras de um único turno de
fala, podendo também se estender a múltiplos turnos e conectar unidades maiores
que o turno. As avaliações também fornecem aos participantes recursos para
Vol. 6 - No. 1 - 2004 85

demonstrar julgamentos dos eventos e das pessoas de maneira relevante aos


projetos maiores nos quais estão inseridos. É também crucial o modo como
estas atividades dão aos participantes recursos para cumprir a organização
social no interior de um turno, e para negociar e demonstrar compreensão
congruente dos eventos nos quais eles estão engajados.
As avaliações contribuem com uma arena na qual a estrutura lingüística,
a cognição, a afetividade, e a coordenação social podem ser investigadas em
detalhe como componentes integrados de um único processo. Por isso, a
avaliação tem grande relevância para os assuntos mais amplos, levantados
pelas análises da linguagem, cultura e organização social (Cf. GOODWIN &
GOODWIN, 1992, p. 183-4).

2.2 Categorização como atividade praxeológica

As categorias ordenam a descrição dos acontecimentos em questão;


elas são também os processos genéricos de controle social; organizam e regulam
a forma como se constrói um novo saber. Os dispositivos de categorização são
contextualmente pertinentes, dependem da atividade em curso e de suas
finalidade práticas.
O enfoque discursivo das categorias permite superar uma visão reificante
ao propor uma abordagem em termos de realizações práticas, localmente
situadas, organizadas de forma contingente na/para as atividades em curso.
Tal abordagem permite trabalhar com a variabilidade das versões do tópico em
desenvolvimento, apresentadas pelos indivíduos no decorrer da conversação,
ao invés de propor uma resolução aos impedimentos analíticos que banalizam
as diferenças, vistas do ponto de vista logicista em termos de contradições
(Cf. MONDADA, 1994, p. 90).
86 Revista do Gelne

1.P= /.../ a que/a palavra que dá origem é a que eu chamo de derivada?


2.A= [não!
3.P= com’é que eu chamo a que deu origem?
4.A= original
5.P= sim... mas tem outra/vamos procurar o-ri-gi-nar/ vamos procurar no dicionário original/
6 procura no dicionário a palavra o-ri-gi-nal/o-ri-gi-nal
7.A= que dá origem
8.P= somente isso?
9.A1= achei original
10.P= ainda não é essa que eu quero
11.A= /.../ (substantivo derivado)
12.P= substantivo pode ser derivado... mas para ser derivado ele veio de um
13.A= adjetivo?
14.P= não... adjetivo não
15.A= [ de um verbo tia?]
16.P= o:::lha... pegue a gramática
17.A1= [palavra primitiva ((gritando))
18.P= procure a gramática]
19.A= professora... humberto achou
20.A1= primitivo] ((aluno grita do fundo))
21.P= pri-mi-ti-vo... que veio primeiro... olha aqui ó... (...)

Exemplo 5 – Conceito: Derivação.

A tentativa de conceptualização do conceito ‘palavra derivada’ sofre


um impasse quando a consulta ao dicionário não é suficiente para definir o
termo tratado na aula. As diversas tentativas dos alunos ao apresentarem
significações para o conceito podem ser vistas superficialmente como
inadequações e mesmo contradições ao tópico que está em foco na discussão.
Numa perspectiva sócio-cognitiva, entretanto, trata-se de construções coletivas
da categoria para as finalidades locais da interação. A dinâmica da aula, por
sua vez, geralmente rejeita estas tentativas porque elege uma categoria precisa,
um item lexical definido de antemão, como é o caso de ‘primitivo’.
A análise dos processos de categorização feita do ponto de vista sócio-
cognitivo permite mostrar que as categorias são sempre construídas em um
contexto interacional, de forma situada e para fins práticos. A questão da
adequação referencial não pode ser vista a não ser como concebida em si
mesma, construída localmente e interativamente e não dada por critérios a
priori em relação com uma realidade independente (Cf. MARCUSCHI, 2001,
KOCH, 2001, MONDADA, 1994, 2001).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 87

2.3 A integração conceptual na atividade de categorização

De acordo com o modelo de mapeamentos de Fauconnier (1997), as


categorias apresentadas e discutidas em aula pelo professor e alunos,
estruturadas pelos modelos cognitivos idealizados do discurso cotidiano podem
ser projetadas entre si, através do princípio de identificação conceptual da
teoria dos Espaços Mentais (EM). Este mapeamento permite a construção
dos significados partindo dos esquemas mais genéricos, de base, para esquemas
particulares. O processo de reconceptualização, desta forma, envolve o
reconhecimento da integração entre os domínios fonte e alvo para a construção
de um domínio mescla (blending) que leva em conta conhecimentos
estruturados nos dois níveis anteriores (fonte e alvo).

1. P= /.../ vocês sabem o que significa reciclagem?


2.AA= ((silêncio))
3.P que símbolo é este? ((a professora mostra o símbolo de reciclar – três setas largas
4 interconectadas em um círculo)
5.A= já sei/ reciclar é colocar o lixo na caixa azul /.../

Exemplo 6 – Reconceptualização no ‘Blending’.

A reconceptualização feita pelo aluno no exemplo acima (linha 5) só é


possível em um contexto em que ambos professor e alunos compartilham um
modelo cultural construído possivelmente através de um contrato sócio-didático,
em que disponham de um recipiente (uma caixa envolta em papel azul) onde
possam ser colocados as sobras de papel e outros materiais re-utilizáveis. Tal
caixa, dada sua função de depósito de materiais recicláveis, contém um símbolo
internacionalmente reconhecível que indica sua função. Como o evento se
trata de uma aula de alfabetização, com alunos na faixa etária de 5-6 anos, a
pergunta da professora na linha 1 não contextualiza conhecimentos possuídos
pelos alunos. Trata-se, na verdade, de um conceito técnico que engloba uma
série de possíveis definições. No entanto, quando o símbolo é apresentado,
aciona um conjunto de saberes pressupostos e experienciados pelos alunos no
convívio diário da aula, ou de suas atividades em casa. Isto conduz a uma
associação entre o símbolo e a categoria introduzida pela professora, o que
engatilha uma fusão das duas, sendo reconceptualizadas na assertiva do aluno
(linha 5).
88 Revista do Gelne

Espaço Genérico
Enquadre = reciclagem

= caixa azul ?

Espaço Influente
Espaço Reciclagem 2
Influente 1
caixa azul

reciclar
é por o lixo
na caixa Espaço-Mescla
azul Estrutura Emergente

Esquema 1: Mesclagem Conceptual – Reciclagem.

Conclusão

Neste trabalho, procuramos demonstrar como o uso da linguagem em


sala de aula, para fins de categorização e construção do conhecimento, é produto
da coordenação das competências individuais e sociais dos falantes, reafirmando
sua posição de atividade conjunta colaborativa, e como este uso é delimitado
por um contexto localmente situado, produzido no curso das atividades
lingüísticas.
A atividade de categorização, em decorrência do papel da linguagem
nas atividades sócio-cognitivas, abandona de uma vez por todas a preocupação
com a apreensão representacionista da realidade e as categorias, nossas versões
do mundo, passam a constituir e serem o constituídas pelo conhecimento como
formas palpáveis, manipuláveis, que utilizamos para lidar com a fluidez da
realidade existente no mundo. Fazemos isto, através de atividades colaborativas
que nos permitem intercambiar e distribuir o conhecimento, agora negociável e
não definido de uma vez por todas.
Decorre desta reflexão que as categorias e os conceitos, como as formas
mais básicas de organizarmos o conhecimento sobre algo, são itens priorizados
nos diversos sistemas de ensino, e em geral, organizados em grades curriculares
contextualmente determinadas pela situação sócio-histórica de uma dada
Vol. 6 - No. 1 - 2004 89

comunidade. Dessa forma, o conhecimento publicamente veiculado na escola


não é mais que uma das muitas versões públicas do mundo, autorizada
institucionalmente e aceita pelos membros da sociedade para ser oficial e vigorar
como se fosse a única verdade/realidade existente e aceitável.

Referências

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Maria Alice Tavares*

ABORDAGEM SOCIOFUNCIONALISTA DA MUDANÇA


EM TEMPO APARENTE: ANÁLISE DE UM CASO
EM FLORIANÓPOLIS (SC)

ABSTRACT: In this paper I deal with the function I designate “retroactive-propeller seqüenciation”,
which is responsible for establish a link between a past statement and a future one. In Florianópolis
(SC), the sequenciation link is especially codified by the sequence connectors E, AÍ, DAÍ and ENTÃO.
In a sociofunctionalism approach (combination of theoretical presuppositions of Variacionist
Sociolinguistics and of Linguistic Functionalism), I analyze these items of speech sequence as layerings/
variants, trying to verify how they are distributed in different age groups in Florianópolis. The age
distributions obtained allow two explanations: (i) age-grading stable variation, where de individual
changes but the community remains constant; (ii) generational change in progress, where the individual
preserves his or her earlier pattern, but the community as a whole changes.
KEY-WORDS: Retroactive-propeller seqüenciation; apparent time change.

1 Introdução

Focalizo itens lingüísticos que atuam no âmbito discursivo como


conectores – e, aí, daí e então. Grande parte dos papéis que esses conectores
desempenham estão vinculados ao domínio funcional que denominei
seqüenciação retroativo-propulsora, responsável por estabelecer uma relação
coesiva entre um enunciado passado e um futuro, indicando que este será
introduzido em continuidade e consonância com aquele. É o que tento apreender
com a expressão retroativo-propulsora: os movimentos simultâneos de
retroagir – conduzindo a atenção do interlocutor para trás no discurso – e de
propulsionar – conduzindo a atenção do interlocutor para a frente, para a
continuidade do discurso.Vejam-se alguns exemplos:

(1) Quer dizer, descia de táxi e levava até lá. E era combinado assim: ele ia nos
buscar às cinco horas. Se chovesse, que não dava pra descer o morro, ele

* Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


92 Revista do Gelne

ficava lá em cima no morro e fazia sinal com o farol, aí a gente subia o morro com
aquelas tralhas todas (ZO/FLP24:1258).1
(2) Ela tava assim fazendo um barulhinho, esse barulhinho é quando ela chora,
então tu vai dando uma coisa. Daí foi doendo a perna, que a minha prima jogou,
aí bateu nela (FR/FLP02C:42).
(3) Então tu vês, o pai voltou a nada. E o meu avô era tratorista da prefeitura há
muito tempo. Se aposentou pela prefeitura. Então ele ensinou a profissão de
tratorista pro pai. Aí o pai começou trabalhar como tratorista e começou a
levantar tudo novamente (IR/FLP13:756).

Cada um dos conectores destacados nos exemplos acima aponta para o


enunciado anterior ressaltando que ele se relacionará com algo que aparecerá
a seguir, e, assim, criando a expectativa desse aparecimento e instigando a
procura por relações semântico-pragmáticas entre as informações interligadas.2
E, aí, daí e então são opções bastante recorrentes dentre as atualmente
disponíveis na gramática da comunidade de fala de Florianópolis, sendo postos
variavelmente em funcionamento quando há a necessidade de marcar a
seqüenciação.3 Encontrei inclusive casos de uso muito semelhantes, como os
seguintes, envolvendo verbos dicendi:

(4) Aí ele viu que não tinha mais jeito, ficamos naquele (hes) E ele: “Vou ficar.”
“Não, tu não vais ficar.” E ele disse: “Eu não vou” (RO/FLP03:735).
(5) Ela falou: “Ah, vai ser menino e o nome vai ser Mateus.” Aí eu disse assim:
“Então, se for menina, tu bota o nome de Bárbara, porque eu gosto” (DE/
FLP06J:552) (5).
(6) Daí ela diz: “Ah, vai fazer deveres.” “Não tem deveres.” Daí ela diz: “Ah,
que escola é essa que nunca tem deveres, professor nunca passa deveres?”
(DE/FLP06J:188).
(7) A pessoa já está vendo que terminou, então vai na pessoa que é encarregada,
então diz a ela: “Está faltando uma caixa de tomate” (ID/FLP07:469).

1
O código que segue o trecho da entrevista a identifica. Por exemplo, (ZO/FLP24:1258)
= informante ZO, natural de Florianópolis (FLP), entrevista número 24, linha 1258.
Quando há uma letra após o número da entrevista, temos J = informante de 15 a 21
anos, ou C = informante de 09 a 12 anos.
2
Identifiquei cinco subfunções de natureza semântico-pragmática vinculadas à
seqüenciação retroativo-propulsora (seqüenciação textual, seqüenciação temporal,
introdução de efeito, retomada e finalização), que não são ora apresentadas por
questão de espaço. E, aí, daí e então são utilizados variavelmente em todas essas
subfunções (resultados quantitativos podem ser conferidos em Tavares, 2003a).
3
Há ainda outros seqüenciadores, porém de freqüência bastante menor, como o
depois.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 93

E adentrou o português já na função de conector, oriundo da conjunção


latina et. Então também já era utilizado como marca da seqüenciação nos
primórdios da língua portuguesa (séculos XIII e XIV). Quanto a aí e a daí, é
provável que seus usos seqüenciadores tenham surgido apenas em língua
portuguesa e em tempos recentes, pois, em um estudo anterior, tendo como
fonte diversos textos do século XIII ao XX, obtive os primeiros dados do aí
apenas em textos escritos em português brasileiro a partir da primeira metade
do século XX, e do daí somente a partir da segunda metade desse século (cf.
TAVARES, 2003a). Além disso, em outro estudo, comparando os domínios da
seqüenciação na fala do português brasileiro e do português europeu, não
localizei nenhum dado do aí e do daí na fala portuguesa, o que é forte indício
de que se desenvolveram apenas no português brasileiro (TAVARES, 2003b).
Provenientes de fontes distintas e em épocas distintas, e, aí, daí e então
chegaram à seqüenciação através da gramaticalização (processo de criação e
re-criação constante da gramática).4 Cada conector recém-chegado passou a
conviver e a competir por espaço com os demais, provavelmente ocasionando
alterações quanto à distribuição do território pertinente ao domínio. Em
Florianópolis, daí, o seqüenciador mais recente, é muito freqüente na fala de
adolescentes e pré-adolescentes (fenômeno facilmente perceptível tanto pelos
habitantes da cidade quanto por quem vem de fora), o que permite considerar
que seja uma marca identitária dos falantes mais jovens da comunidade. Mais
ainda: é possível levantar a hipótese de que uma mudança esteja em andamento
no domínio funcional em tela, na direção de uma maior recorrência de uso do
daí por gerações cada vez mais jovens, em detrimento dos demais
seqüenciadores.
Assim, unindo pressupostos da sociolingüística variacionista
(WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968; LABOV, 1972a/b, 1994, 2001) e
do funcionalismo lingüístico norte-americano (HOPPER, 1987, 1991; BYBEE;
HOPPER, 2001; GIVÓN, 1995, 2001), em uma abordagem que pode ser dita
sociofuncionalista (NEVES, 1999; TAVARES, 2003a), tomo e, aí, daí e então
como camadas/variantes da seqüenciação florianopolitana, verificando como
eles se distribuem relativamente a diferentes micro-cosmos etários da comu-
nidade. Analiso os resultados quantitativos obtidos à luz de duas possibilidades
explanatórias, a de gradação etária estável e a de mudança em tempo aparente.
Em especial, considero, em relação a esta última, reformulações recentes
levadas a cabo no seio da sociolingüística variacionista (LABOV, 2001), e
discuto implicações dessas reformulações relativamente ao caso em estudo.
Para a realização desta pesquisa, considero as ocorrências da
seqüenciação retroativo-propulsora na segunda metade de quarenta e oito
entrevistas de informantes nativos de Florianópolis (cerca de trinta minutos de
4
Tavares (2003a) descreve com detalhe possíveis trajetórias de gramaticalização
seguidas por cada uma das formas em questão até se tornarem seqüenciadores.
94 Revista do Gelne

fala de cada um), estratificados em quatro faixas etárias: de 09 a 12 anos, de


15 a 21 anos, de 25 a 45 anos e mais de 50 anos. O total de dados é de 4.300,
com a seguinte distribuição: e = 1.790 (42%), aí = 926 (22%), daí = 890 (21%),
então = 694 (16%). A fonte das entrevistas é o Banco de Dados do Projeto
VARSUL/UFSC.5
O artigo está organizado do seguinte modo: inicialmente, apresento o
referencial teórico; na seqüência, procedo à análise quantitativa e à discussão
de questões pertinentes ao fenômeno enfocado; encerro com as considerações
finais e as referências bibliográficas.

2 Referencial teórico

Uma abordagem sociofuncionalista à mudança em tempo aparente como


a adotada neste estudo encontra respaldo no fato de a sociolingüística
variacionista e o funcionalismo lingüístico norte-americano possuírem um certo
número de postulados teórico-metodológicos comuns ou similares, alguns dos
quais estão sintetizados no quadro a seguir:6

· O objeto de estudo é a língua em uso, cuja natureza heterogênea abriga a


variação e a mudança (cf. WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968; GIVÓN, 1995).
· Os fenômenos lingüísticos que constituem o alvo das investigações são
analisados em situações de comunicação real em que falantes reais interagem
(cf. LABOV, 1972a/b; BYBEE; HOPPER, 2001).
· A língua está continuamente se movendo, mudando e interagindo (cf. HOPPER,
1987; GUY, 1995).
· A mudança espalha-se de forma gradual ao longo do espectro social,
considerando-se fatores como região, geração, classe social, etc, sendo o
aumento de freqüência de uso compreendido como índice de difusão
sociolingüística (cf. LABOV, 1972a/b, 2001; HOPPER; TRAUGOTT, 1993).
· É comum haver diferença de freqüência de uso entre falantes mais velhos e
mais jovens, no caso de mudança em progresso. (WEINREICH; LABOV;
HERZOG, 1968; LABOV, 1972a/b; LICHTENBERK, 1991;
ANDROUSTOPOULOS, 1999).
· Fenômenos de mudança podem ser atestados através de tratamento empírico
com quantificação estatística. (LABOV, 1994; GIVÓN, 1995).

Quadro 1: Postulados convergentes – sociolingüística variacionista e


funcionalismo lingüístico.
5
Variação Lingüística Urbana da Região Sul.
6
Todos os postulados listados no Quadro 1 são mencionados e/ou discutidos por
estudiosos variacionistas e funcionalistas em diversos trabalhos. Contudo, para
cada postulado, cito apenas um ou dois trabalhos de cada um dos quadros teóricos
(geralmente, os estudos pioneiros e/ou os que mais se destacam).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 95

Embora este estudo busque inspiração em ambas as fontes teóricas,


inclina-se em direção ao funcionalismo, ao assumir que a função a que serve
a gramática é prioritária e determinante de seu uso pelos falantes. A gramática
é “o agregado maleável e internalizado das formações vindas da língua em
uso” – do discurso, das experiências com a interação lingüística que acumulamos
durante a vida (BYBEE; HOPPER, 2001, p. 7). Trata-se de um processo em
andamento, nunca chegando a constituir-se de fato, devido às constantes
alterações a que está sujeito no discurso. O movimento de re-arranjo constante
da gramática é denominado gramaticalização, definido como o processo de
regularização gradual pelo qual um item lingüístico freqüentemente utilizado
em contextos comunicativos particulares adquire função gramatical e pode,
uma vez gramaticalizado, angariar ainda mais funções gramaticais (HOPPER;
TRAUGOTT, 1993; BYBEE, 2003).7
A gramática coaduna domínios funcionais variados, cada um abarcando
um conjunto de formas gramaticalizadas, isto é, de uso rotinizado na língua.
Tais domínios podem corresponder a áreas funcionais gerais (ou macro-
domínios) como TAM (tempo/ aspecto/ modalidade), caso, referência, ou a
áreas mais estritas (micro-domínios), como o tempo futuro, o sujeito, a dêixis,
etc. (GIVÓN, 1984, 2001) As formas pertinentes a cada domínio são um conjunto
de elementos “unificados funcionalmente” (NICHOLS, 1984, p. 111), isto é,
que codificam o mesmo ou semelhante papel. Elas são consideradas camadas
do domínio do qual fazem parte: formas alternantes de realização existentes
em uma relação de estratificação na mesma etapa histórica de uma língua
(HOPPER, 1991). Podemos dizer que as camadas representam variantes
lingüísticas em um sentido próximo ao da sociolingüística variacionista, segundo
a qual variantes são duas ou mais formas de mesmo significado passíveis de
serem empregadas no mesmo contexto, em uma relação de variação. 8
Combinando-se os termos, temos “camadas/variantes” e “estratificação/
variação”.9
A gramaticalização está por trás do fenômeno de estratificação/variação:

7
Conferir em Tavares (2003a), com base em Labov (1972a/b, 1994 e 2001), as propostas
da sociolingüística variacionista a respeito dos tópicos que foram comentados
acima apenas do ponto de vista do funcionalismo.
8
As camadas/variantes, na proposta apresentada aqui, podem possuir ou não o
mesmo significado, conquanto exibam a mesma função. Diferenças de significado
que porventura existam podem ser descobertas e descritas via controle de grupos
de fatores particulares.
9
É possível utilizar os termos de modo conjugado (por exemplo, estratificação/
variação), ou optar por um deles, salientando-se que, no caso deste estudo, remetem
ao mesmo fenômeno.
96 Revista do Gelne

no decorrer de seu desenvolvimento, uma forma pode vir a migrar para um


domínio funcional já codificado por outra forma. Nesse caso, surge um ponto
de estratificação/variação, em que as formas passam a co-habitar como
camadas/variantes. É o caso de e, aí, daí e então, que, como já comentado,
tornaram-se marcas lingüísticas da seqüenciação retroativo-propulsora em
épocas distintas. A hipótese é que, a cada novo conector recém-chegado, a
distribuição (em termos de freqüência de uso) dos demais é alterada, pois
surge mais uma forma para partilhar os espaços lingüísticos e sociais pertinentes
ao domínio.
Como a seqüenciação conta com duas formas relativamente recentes,
aí e daí, é possível que esteja em andamento atualmente uma mudança nos
padrões de distribuição de suas camadas/variantes. Se for o caso, um estudo
em tempo aparente pode revelar indícios dos rumos que estão sendo seguidos
por cada forma: aumento de uso? diminuição de uso?
Mas o que é um estudo em tempo aparente? Vimos, no Quadro 1, que a
sociolingüística e o funcionalismo prevêem a possibilidade de haver diferenças
nos padrões de freqüência de uso entre falantes mais jovens e mais velhos
quando uma mudança lingüística está em progresso. No seio da sociolingüística,
Labov (1994) afirma que podemos perscrutar a mudança lingüística tanto em
amostras do passado quanto no que ouvimos a nossa volta, pois a língua é
constituída por variações e alterações que cruzam períodos de tempo. O quadro
de inter-relações lingüísticas delineado hoje é reflexo dos usos anteriores dados
a língua por seus usuários e é a base dos usos futuros, em um contínuo de
pequenos incrementos inovadores levando a grandes mudanças. Sendo assim,
os indícios de mudança lingüística podem ser buscados em estudos que envolvem
dados de tempo real e/ou de tempo aparente, isto é, dados de épocas passadas
– o uso em tempo real; ou dados atuais, relacionando-se as variantes à idade
dos informantes – o uso atual como reflexo do uso passado e fonte dos usos
futuros.
Nesse último caso, se uma mudança estiver em jogo, possivelmente
haverá uma correlação significativa entre a idade dos informantes e o fenômeno
estudado, mapeando-se diferenças nas freqüências das variantes entre falantes
mais jovens e mais velhos de uma mesma fatia sincrônica, o que é conhecido
como mudança em tempo aparente. O esperado é que a recorrência das
variantes inovadoras aumente à proporção que diminua a idade dos informantes,
do que resulta uma distribuição linear crescente: de um lado da escala, temos a
faixa etária mais velha, com as freqüências de uso mais baixas ou mesmo com
freqüência zero, e do outro a faixa etária mais jovem, com as freqüências de
uso mais elevadas.
A possibilidade de estudo da mudança em tempo aparente depende da
Vol. 6 - No. 1 - 2004 97

validade do pressuposto de que o sistema lingüístico individual é estável, isto é,


o vernáculo de um indivíduo de uma certa faixa etária permanece essencialmente
o mesmo a despeito da passagem dos anos, o que permite que se compare a
fala de pessoas de diferentes idades para observar diferentes estágios da língua.
A hipótese, baseada na psicologia desenvolvimentista, é que a aquisição da
língua é finalizada até o final da adolescência e se mantém estável pelo resto
da vida, do que resulta que, ao analisarmos a fala de uma pessoa de setenta
anos hoje, temos um reflexo do sistema que estava sendo adquirido por volta
dos anos quarenta, ao passo que a fala de uma pessoa de cinqüenta anos nos
desvela os anos sessenta (cf. LABOV, 1994, 1981; SILVA; PAIVA, 1996).
Todavia, temos de ser cuidadosos ao assumir a perspectiva de análise
da mudança em tempo aparente, pois o pressuposto de fixação do sistema
lingüístico ao final da adolescência não é balizado em alguns casos. Exceções
têm emergido de análises empíricas, envolvendo tanto mudança morfossintática
quanto fonológica. Por essa razão, Labov (2001, p. 438) e Kerswill (1996, p.
179) alertam que a concepção de estabilidade do vernáculo após a adolescência
talvez precise ser revisada ou ao menos relativizada à cada situação de variação.
Adultos em torno de trinta a quarenta anos aparentemente perderam grande
parte da habilidade de mudar seu sistema lingüístico, mas ainda assim não se
pode afirmar que possuam um sistema rígido e imutável.10 Quando os adultos
modificam seus vernáculos, acompanhando pari passu a evolução lingüística
na comunidade de fala, a mudança não pode ser detectada por meio de uma
metodologia de tempo aparente, pois as freqüências de distribuição das inovações
serão semelhantes ao longo das faixas etárias, ao invés de mais intensas entre
os jovens (ou seja, não há uma distribuição linear crescente). Na grande maioria
dos casos de mudança já estudados isso não ocorre, mas as exceções exigem
cautela por parte do analista, que não deve se conformar a evidências
unicamente derivadas da distribuição etária.
Urge mencionar que duas interpretações podem ser dadas para casos
de distribuição etária linear crescente: a já discutida mudança em tempo
aparente e a gradação etária (age-grading). Neste segundo caso, não há
mudança, mas sim um tipo de variação estável11 caracterizada pelo fato de

10
Tomemos um exemplo. Modelos de mudança sonora definiram o período final para
a estabilização fonológica do sistema lingüístico como ocorrendo aos dezessete
anos de idade. Contudo, Norberg e Sundgren (1998 apud LABOV, 2001, p. 447)
observaram que, no caso de algumas variáveis fonológicas, adultos jovens continua-
vam a avançar a mudança no início dos vinte e mesmo trinta e quarenta anos.
11
A gradação etária é um tipo de variação estável, mas não o único. É possível, por
exemplo, que, em situações de estabilidade, os grupos etários usem as variantes
com freqüência similar, não havendo uma distribuição linear, padrão que pode se
manter idêntico com o passar das décadas e mesmo séculos (cf. LABOV, 2001).
98 Revista do Gelne

que os indivíduos mudam seu comportamento lingüístico durante a vida, mas a


comunidade como um todo não é afetada por essa mudança. É o caso da gíria,
por exemplo: os mais jovens usam mais, o que não significa que a quantidade
de gíria vá aumentar diacronicamente entre a população. À medida que os
jovens amadurecem, ao invés de manterem esse traço, abandonam-no, o que
faz com que sua taxa mantenha-se constante na comunidade (LABOV, 1994,
p. 353). Diferentemente, nos casos de mudança em curso, indivíduos estáveis
carregam sempre consigo uma dada taxa de uso das variantes – maior a cada
geração de falantes –, o que resulta em mudança lingüística com o passar do
tempo.
Portanto, se obtivermos uma distribuição linear crescente dos
seqüenciadores retroativo-propulsores relativamente aos micro-cosmos etários
da comunidade de fala florianopolitana, temos de considerar as duas
possibilidades explanatórias: mudança em tempo aparente ou gradação etária.
Mas como diferenciá-las, se ambas apresentam distribuição linear crescente?
Novamente, a solução é não se conformar apenas a evidências provindas da
distribuição etária, e sim recorrer a diferentes métodos e fontes.

3 Idade: o caminho da mudança

Em razão da existência de modificações nas relações sociais ao longo


das histórias de vida dos seres humanos, a idade influi sobre uma variedade de
manifestações comportamentais de um indivíduo, incluindo-se aí o uso da língua.
Busquei propor, no conjunto de 48 informantes que, nesta pesquisa, representam
a comunidade de fala de Florianópolis, recortes no contínuo etário que fossem
consoantes a diferentes etapas de vida. Contemplo, então, quatro faixas etárias:
de 09 a 12 anos (crianças ou pré-adolescentes, em pleno processo de
alinhamento a um grupo de amigos); de 15 a 21 anos (envolvimento em grupos
adolescentes, finalização da escolarização secundária e orientação ao grupo
de trabalho mais amplo e/ou universidade); de 25 a 45 anos (emprego regular
e/ou responsabilidades familiaridades); acima de 50 anos (diminuição da força
de trabalho e aposentadoria).12
É no período da adolescência (ou já na pré-adolescência) que os indivíduos
comumente sentem necessidade de, por um lado, distinguir-se dos adultos e,
por outro, aproximar-se de companheiros da mesma idade ou um pouco mais
12
Embora a faixa etária ‘de 25 a 45 anos’ seja bastante ampla, a maioria dos informantes
que a integram se encontra entre 34 e 45 anos (nove informantes do total de doze),
o que minimiza eventuais envieasamentos que uma faixa etária abarcando indivíduos
de idades tão diferentes pudesse causar.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 99

velhos. Nesse processo de busca da identidade, formas já existentes na região


podem ser tomadas como marcas identitárias, havendo predileção por aquelas
que fogem à língua padrão/culta. Dois dos seqüenciadores sob enfoque – aí e
daí – costumam ser considerados de menor status, isto é, trata-se de conectores
que não fazem parte do conjunto de formas pertencentes à língua padrão/
culta. Sua utilização é, provavelmente, influenciada por tal avaliação negativa:
aí e daí devem ser mais recorrentes na fala dos indivíduos mais jovens, de 09
a 12 anos (pré-adolescentes) e de 15 a 21 anos (adolescentes), ao passo que
os indivíduos de mais idade devem dar preferência para e e para então, os
quais não são considerados conectores de menor status.
Subjacente à relação entre períodos de vida e o uso de formas de status
inferior, está outra razão pela qual podemos esperar uma maior recorrência do
aí e do daí na fala dos menores de 21 anos: são esses indivíduos que tendem a
utilizar formas inovadoras como marcas típicas do grupo de pares. Os itens
lingüísticos que sofrem “discriminação” são, em geral, mais novos em relação
a outras opções tidas como mais “corretas” – e por isso mesmo considerados
como de menor valor. Destarte, as formas tomadas como marcas identitárias
pelos pré-adolescentes e/ou adolescentes apresentam, comumente, duas
propriedades correlacionadas: são relativamente recentes e, em decorrência,
possuem baixo status no mercado lingüístico – como o aí e o daí. Tais formas
podem estar envolvidas em um caso de gradação etária, tendo sua freqüência
diminuída quando os indivíduos se tornam adultos, ou em um caso de mudança
em progresso, em que a experiência de cada geração mais jovem faz a mudança
avançar.
Minha hipótese é que o aparecimento das camadas/variantes mais
recentes, aí e daí, deve aumentar à proporção que diminui a idade dos
informantes. Se aí e daí têm tido avanços, em termos de freqüência, na fala
dos indivíduos com menos de 21 anos, possivelmente e e então apresentam,
como contraparte, freqüência reduzida na fala de tais indivíduos: a opção maior
seria pelas formas mais novas e de menor status, possivelmente adotadas
como marcas de identidade. Essa opção pode levar à mudança lingüística, no
sentido de aí e de daí virem a ocupar pouco a pouco o espaço de e e de então.
Vejamos os resultados na Tabela 1:13

13
Os dados foram submetidos a tratamento estatístico através do pacote VARBRUL
(PINTZUK, 1988), para cálculo de freqüências, percentuais, pesos relativos e
identificação da ordem de significância dos grupos de condicionadores testados
(cinco lingüísticos e três sociais, dos quais este estudo apresenta resultados apenas
para o grupo “idade”). Realizei rodadas binárias distintas para cada conector, além
de rodadas eneárias, que confirmaram os resultados das binárias.
100 Revista do Gelne

E AÍ DAÍ ENTÃO
IDADE Ap./Tot. % P R Ap./Tot. % P R Ap./Tot. % P R Ap./Tot. % P R
09 a 12 anos 300/1.146 26 0,39 144/1.146 13 0,24 686/1.146 60 0 , 9 1 16/1.146 01 0,12
15 a 21 anos 479/1.064 45 0 , 5 1 310/1.064 29 0 , 6 4 161/1.064 15 0 , 6 4 114/1.064 11 0,36
25 a 45 anos 488/1.113 44 0 , 5 2 290/1.113 26 0 , 6 0 29/1.113 03 0,21 306/1.113 27 0 , 7 4
+ de 50 anos 523/977 54 0 , 5 9 182/977 19 0,40 14/977 01 0,13 258/977 26 0 , 7 7
TOTAL 1.790/4.300 42 926/4.300 22 890/4.300 21 694/4.300 16
3º selecionado 6º selecionado 1º selecionado 1º selecionado
Input: .43 Sig: .002 Input: .19 Sig: .015 Input: .20 Sig: .005 Input: .15 Sig: .000
Log-likelihood: -2179.259 Log-likelihood:-1852.120 Log-likelihood:-1284.763 Log-likelihood:-1285.255
Tabela 1: Influência da idade sobre o uso de e, aí, daí e então.

E tem uso mais restrito apenas entre os pré-adolescentes, sendo


responsável, nas demais faixas etárias, por 45 a 54% das ocorrências de
seqüenciação em Florianópolis (com pesos relativos de 0,51 a 0,59). Aí
predomina na fala dos adolescentes, mas também é opção recorrente por parte
dos indivíduos de 25 a 45 anos. Quanto ao daí, verifica-se uma acentuada
polarização entre os pesos relativos de 0,91/0,64 e 0,21/0,13, atribuídos a pessoas
com menos de 21 anos e a pessoas com mais de 25 anos, respectivamente. Ou
seja, falantes mais jovens tendem largamente ao uso do conector, enquanto
falantes mais velhos inclinam-se fortemente a seu desfavorecimento. Os grupos
que mais fazem uso do então são aqueles referentes a indivíduos maiores de
25 anos. Em oposição, indivíduos com menos de 21 anos o repelem intensamente.
Portanto, as hipóteses propostas para a influência da idade sobre o uso
da seqüenciação foram confirmadas: os conectores mais novos e de menor
status, aí e daí, estão associados aos falantes mais jovens, ao passo que os
mais antigos e não estigmatizados, e e então, estão associados aos falantes
mais velhos. As exceções são a inesperada alta freqüência do aí entre os
indivíduos de 25 a 45 anos e a sua baixa freqüência entre os pré-adolescentes.
Uma vez que foi constatada uma correlação significativa entre a idade
dos informantes e o uso de e, aí, daí e então, a possibilidade de que uma
mudança esteja em curso é grande: daí está ocupando um espaço maior no
domínio da seqüenciação a cada geração considerada. Esse fenômeno é
discutido na próxima seção.
O gráfico a seguir permite uma comparação entre os pesos relativos
atribuídos a e, aí, daí e então (cf. Tabela 1):
Vol. 6 - No. 1 - 2004 101

IDADE E USO DE E, AÍ, DAÍ E ENTÃO

100
90 91
80
74 77
70
64
60 60 59
50 51 52

40 39 40
36
30
24
20 21
12 13
10
0
09-12 anos 15-21 anos 25-45 anos mais de 50
idade

E AÍ DAÍ ENTÃO

Gráfico 1: Idade e uso de e, aí, daí e então - Florianópolis.

4 Um caso de mudança em tempo aparente?

Estudos em busca da mudança em tempo aparente como o aqui realizado,


ao obterem um perfil gradiente quanto à estratificação etária, defrontam-se
com duas possibilidades de interpretação:

(i) Gradação etária (age grading): indivíduos móveis numa situação estável,
isto é, os indivíduos mudam seu comportamento lingüístico durante a vida,
mas a comunidade como um todo não é afetada. Nesse caso, um comportamento
lingüístico se repete a cada geração, de modo geralmente regular e previsível,
como marca de um estágio de maturação, caracterizando uma situação de variação
estável. A entrada na fase adulta é acompanhada por uma queda drástica no
uso das formas identitárias socialmente desvalorizadas.

(ii) Mudança em tempo aparente: indivíduos estáveis numa situação móvel,


isto é, os indivíduos permanecem estáveis, carregando sempre consigo uma
dada taxa de uso das variantes – maior a cada geração de falantes –, o que
resulta em mudança lingüística comunitária com o passar do tempo.

A mudança lingüística geralmente avança em progressão geracional:


uma camada/variante que ocorre com baixa freqüência na fala dos idosos
ocorre com mais freqüência na fala dos adultos e mais ainda na fala dos jovens.
102 Revista do Gelne

A explicação fornecida para o elo entre juventude e mudança inspira-se nas


transformações sofridas pelas relações sociais ao longo da história de vida do
indivíduo. Na pré-adolescência e na adolescência, os falantes estão,
respectivamente, iniciando e dando continuidade à sua transição para o
individualismo, passando por uma etapa movimentada, turbulenta e longa, a
qual, nas sociedades industrializadas, pode ultrapassar a faixa dos 20 anos.
(CHAMBERS, 1995) Esses falantes, ao mesmo tempo em que buscam uma
identidade que marque sua separação em relação aos mais velhos, necessitam
de ligação com seus pares, como compensação pela perda da segurança do
grupo domiciliar. Daí advêm duas forças – distinção em relação aos mais velhos
e solidariedade com os pares – que se combinam, fazendo com que,
sociolingüisticamente, indivíduos pertencentes às faixas etárias em questão
sejam o ponto focal para a mudança: ao tomar itens lingüísticos particulares
como marcas de identidade, tendem a super utilizá-los, acelerando a
disseminação das camadas/variantes inovadoras e/ou estigmatizadas entre seus
pares e entre indivíduos ainda mais jovens, contribuindo para a evolução da
mudança.
Diferentemente do que acontece no fenômeno de gradação etária, as
inovações incorporadas ao vernáculo e super generalizadas pelos falantes mais
jovens podem rotinizar-se como parte de sua gramática e prosseguir com eles
pelo resto da vida, e são passíveis de sofrer aceleração ainda maior por parte
das gerações posteriores, o que resulta em alterações progressivas na gramática
da comunidade de fala. É possível que, com o tempo, as formas tomadas como
marcas de identidade atinjam a comunidade de fala como um todo, suplantando
eventuais camadas/variantes mais antigas com as quais competiam, em um
processo que pode chegar até a extinção destas últimas.
Inicialmente, analiso os resultados apresentados na Tabela 1 à luz da
hipótese de mudança em tempo aparente. Quando uma mudança está em
andamento, considerando-se o comportamento de diferentes gerações de
falantes, comumente obtém-se uma distribuição linear gradiente: (i) crescente,
no caso de implementação de uma forma lingüística (os indivíduos mais jovens
usam-na cada vez mais); ou (ii) decrescente, no caso de desaparecimento de
uma forma (os indivíduos mais jovens usam-na cada vez menos). Tal é o que
se verifica, em Florianópolis, no caso do e (que tem seu uso diminuído de 54%
na faixa mais velha para cerca de 45% nas faixas intermediárias e para 26%
na faixa mais jovem) e do aí (que tem seu uso aumentado de 19% na faixa
mais velha para cerca de 28% nas faixas intermediárias, embora esse acréscimo
de uso seja interrompido na faixa mais jovem, com apenas 13% de ocorrência).
Contudo, não é o que se verifica no caso do daí e do então. O primeiro sofre
um aumento gradual entre a faixa etária mais velha e a de 25 a 45 anos (de 01
Vol. 6 - No. 1 - 2004 103

a 03%), mas tem dois grandes avanços de uso nas faixas mais jovens (de 03 a
15% e de 15 a 60%). O segundo sofre uma diminuição gradual entre a faixa
etária mais velha e a de 25 a 45 anos (de 77 a 74%), mas tem dois grandes
recuos de uso nas faixas mais jovens (de 74 a 36% e de 36 a 12%).
No entanto, esses picos mais intensos de uso ou desuso não colocam em
cheque a possibilidade de estar em curso uma mudança no domínio de
seqüenciação sob enfoque. Labov (2001) modificou sua proposta de que a
existência de uma distribuição linear crescente ou decrescente envolvendo
todas as faixas etárias seria indício de mudança lingüística em tempo aparente
(cf. Labov, 1972, 1981). Como vários estudos têm constatado a existência do
uso intenso de formas inovadoras por indivíduos com idades em torno de
dezesseis a vinte anos, Labov acredita que, nos casos de mudança lingüística,
deva haver um pico de uso no período final da adolescência, ao qual se segue
a diminuição constante do uso das formas inovadoras à medida que aumenta a
idade dos informantes (ou seja, a distribuição linear crescente ou decrescente
parece ocorrer somente a partir das faixas adultas), e ao qual precede um uso
ainda elevado, mas menor, das formas em questão, por parte dos indivíduos
com menos de dezesseis anos.
Como contraparte ao pico de uso das inovações, podemos esperar um
pico de desuso, entre os adolescentes, das camadas/variantes mais antigas.
No caso da seqüenciação em Florianópolis, as formas mais antigas, e e então,
parecem estar perdendo porções do território a cada geração, o que é
evidenciado pela distribuição etária decrescente: quanto mais jovem os falantes,
menor a utilização do e e do então. Contudo, a retração do uso do e acontece
de modo mais suave que a do então: e possui freqüência de 54% e peso relativo
de 0,59 na faixa dos informantes com mais de 50 anos, que diminuem para
cerca de 45% e 0,52 nas faixas intermediárias e, em uma redução mais brusca,
para 26% e 0,39 na faixa mais baixa. Dessa guisa, verifica-se, para o e, a
existência de um declive maior de desuso apenas na fala dos pré-adolescentes.
Já o então sofre duas quedas bruscas em termos de freqüência e de
peso relativo, passando dos cerca de 27% e 0,75 atribuídos aos informantes
com mais de 25 anos aos 11% e 0,36 atribuídos aos informantes de 15 a 21
anos e, finalmente, aos 01% e 0,12 atribuídos aos informantes de 09 a 12 anos.
Ou seja, os desenvolvimentos do então em termos geracionais apresentam um
pico de recalque de uso que se inicia entre os adolescentes e se acentua entre
os pré-adolescentes, como se estes tivessem sido afetados pela “aversão” ao
conector demonstrada por seus irmãos e/ou amigos mais velhos e a tivessem
intensificado ainda mais.14
14
Labov (2001) afirma que a aquisição lingüística é, em grande parte, uma transmissão
de traços fonéticos e morfossintáticos de núcleos adolescentes e pré-adolescentes
104 Revista do Gelne

E quanto a aí e a daí? A distribuição do aí pelas três faixas etárias mais


velhas caracteriza-se por um aumento de freqüência acompanhando a diminuição
da idade dos florianopolitanos: de 19% entre os indivíduos com mais de 50 anos
a 29% entre os adolescentes. Configura-se, portanto, uma distribuição linear
crescente que poderia ser interpretada, a despeito de um pico mais intenso de
uso, como indício de mudança gradual em curso, no sentido de que as gerações
vindouras optariam cada vez mais pelo aí como marca da seqüenciação.
Contudo, os resultados para o grupo mais jovem, de 09 a 12 anos, frustram
essa interpretação: a utilização do conector sofre uma grande contração,
passando da freqüência de 29% e do peso de 0,64 referentes à faixa anterior,
para 13% e 0,24.
Silva e Macedo (1996), com base em dados de informantes cariocas,
analisaram a influência da idade sobre o uso do aí e concluíram que, quanto
mais jovem o falante, maior é o uso do conector em questão. Os pesos relativos
atribuídos a cada uma das faixas etárias consideradas foram: de 7 a 14 anos =
0,70; de 15 a 25 anos = 0,60; de 26 a 50 anos = 0,40; mais de 50 anos = 0,30.
Foi obtida, portanto, uma distribuição linear crescente: o aparecimento do aí
aumenta à medida que diminui a idade dos informantes. Ou seja, no Rio de
Janeiro, o aí parece não ter tido interrompida sua trajetória de aumento em
progressão geracional, ocupando o conector mais e mais terreno no domínio da
seqüenciação a cada novo grupo etário.
Em Florianópolis, entre os indivíduos de 15 a 21 anos, a freqüência do aí,
de 29%, já é a segunda maior (nessa faixa etária, ele perde apenas para o e,
com 45%), e o peso relativo, 0,64, é semelhante ao atribuído à faixa etária
correspondente no estudo de Silva e Macedo (indivíduos de 15 a 25 anos),
0,60. Se o processo de incremento de uso a cada nova geração tivesse tido
continuidade em Florianópolis, o aí poderia ter sido conservado, na fala dos
pré-adolescentes, como uma das formas detentoras da maior parte do território
da seqüenciação. Nesse caso, talvez apresentasse um peso relativo similar ao
do aí carioca no grupo de 7 a 14 anos (0,70). Contudo, no grupo florianopolitano
correspondente (de 09 a 12 anos), uma das camadas/variantes – a mais recente
– aparece atirando para todos os lados e tomando espaço dos demais
seqüenciadores.

mais velhos a mais jovens, sobrepondo-se à base lingüística transmitida pelos pais.
A transmissão da mudança acontece no processo de transmissão da língua, em uma
trajetória constante e regular de inovações que são adicionadas ao vernáculo
adquirido dos pais. Cada criança reflete o nível de sua aquisição inicial (do que lhe
foi transmitido pelos pais), acrescido de alterações advindas do contato com irmãos
e outras crianças mais velhas na comunidade local. Há, portanto, pequenos
incrementos constantes nas gramáticas individuais: a experiência de cada grupo
mais jovem faz a mudança avançar, afastando-se ligeiramente do nível alcançado
pelos falantes um pouco mais velhos.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 105

O uso do daí para sinalizar a seqüenciação entre informações é raro


entre os florianopolitanos com mais de 50 anos, com freqüência e peso relativo
diminutos: 01% e 0,13. Ocorre uma pequena elevação entre os adultos: 03% e
0,21. Na faixa representando a geração seguinte, de 15 a 21 anos, há um pico
de uso, em comparação com as duas faixas anteriores: 15% e 0,64. Surpre-
endentemente, surge um pico de uso ainda maior entre os pré-adolescentes:
60% e 0,91. Parece que os adolescentes de Florianópolis adotaram o daí como
marca identitária e o transmitiram a falantes cada vez mais jovens, até haver
uma explosão de uso entre os pré-adolescentes. É interessante observar que a
freqüência do daí na faixa mais jovem é superior até mesmo a do e na faixa
dos informantes com mais de 50 anos (54%), a segunda maior freqüência de
um dos seqüenciadores em relação aos grupos etários (cf. Tabela 1).
Cumpre ressaltar que Labov (2001) prevê que os picos de mudança
acontecem na fala de indivíduos no final da adolescência (até cerca de 20 anos
de idade). No caso da seqüenciação em Florianópolis, tal não se verifica: os
maiores picos de uso e de desuso de e, aí, daí e então encontram-se na faixa
etária de 09 a 12 anos, e não na faixa de 15 a 21 anos.15 As razões que motivam
os indivíduos, na pré-adolescência, a super generalizarem formas inovadoras e
de baixo status devem ser as mesmas que motivam os adolescentes. Atualmente,
as pessoas de 09 a 12 anos já estão em uma fase de busca e afirmação da
identidade, procurando distinguir-se dos pais e aproximar-se do grupo de pares.
Nesse processo, podem adotar formas lingüísticas como marcas identitárias,
reforçando um modo de falar “jovem”, em oposição a um modo de falar “adulto”
(ou “velho”), do qual querem marcar distanciamento.
Podemos interpretar os resultados elencados na Tabela 1 como
significando que o aí tomou um pouco do espaço do e entre os adultos (a
freqüência daquele aumentou, a deste diminuiu) e outro tanto do e e do então
entre os adolescentes. No entanto, a mudança em direção ao predomínio do aí
na seqüenciação florianopolitana foi interrompida em razão da super
disseminação do daí. Entre os adolescentes, o daí parece estar ocupando o
espaço outrora pertencente ao então (a freqüência daquele eleva-se
intensamente, e a deste reduz-se em proporção semelhante). Entre os pré-
adolescentes, a situação se agrava e tem lugar um golpe de misericórdia: com
apenas 16 dados, o então não passa de um “resquício de épocas passadas”,
em comparação com sua forte recorrência na fala dos indivíduos com mais de
25 anos.
É também na fala dos pré-adolescentes que o terreno do aí é invadido,

15
É possível que, se tivesse sido levada em conta uma faixa etária de indivíduos ainda
mais jovens (de 03 a 05 anos, por exemplo), a existência dos picos de uso na fala pré-
adolescente fosse mais ressaltada. Por hipótese, haveria um decréscimo do uso do
daí entre essas crianças que, por sua pouca idade, possuem elos de ligação mais
fortes com os pais do que aquelas que já são pré-adolescentes.
106 Revista do Gelne

sofrendo o conector uma intensa retração de uso (de um peso relativo de 0,64
a um de 0,24), e que até o e é atingido, tendo sua freqüência reduzida quase
que à metade em relação à faixa etária anterior, e obtendo seu único peso
relativo desfavorecedor no grupo de fatores idade. O e reinava no domínio da
seqüenciação, como a conjunção mais freqüente em todas as faixas etárias,
até enfrentar o daí na fala florianopolitana pré-adolescente e ser derrotado.
Todavia, o maior atingido pelo super avanço do daí parece ter sido o
então, cuja evolução reflete, como imagem de espelho, a do daí: o pico de uso
– altíssimo – do então acontece entre os falantes adultos e com mais de 50
anos e o do daí – ainda mais alto – entre os falantes adolescentes e pré-
adolescentes. À medida que a utilização do daí aumenta, a do então diminui.
Observem-se as linhas traçadas para ambos no Gráfico 1: quase uma imagem
de espelho...
Enfim, podem ser tomados como indícios de que uma mudança está em
andamento na fala de Florianópolis: (i) o aparecimento intenso da forma mais
inovadora da seqüenciação (daí) entre os adolescentes e, especialmente, entre
os pré-adolescentes – um pico de uso –; (ii) o quase desaparecimento de uma
das formas mais antigas (então) nas mesmas faixas etárias – um pico de
desuso –; (iii) o fato de que os dois grupos adultos apresentam uma distribuição
linear decrescente para o daí e crescente para o então (a freqüência do primeiro
diminui com o aumento da idade dos informantes, e a do segundo aumenta),
consoante previsto por Labov (2001) para casos de mudança. Já o aí,
descontando-se o grupo mais jovem, parece passar por uma mudança menos
vigorosa, pois, embora seja constatada uma queda mais acentuada entre as
faixas de 25 a 45 anos e mais de 50 anos, o uso do conector diminui
gradualmente entre os adolescentes e adultos. A mudança para o e também
parece ser mais suave, havendo um decréscimo de uso gradual com a diminuição
da idade dos informantes e apenas um salto mais brusco, entre a faixa etária
de 15 a 21 anos e a de 09 a 12 anos.
É possível que os hoje pré-adolescentes florianopolitanos tenham
diminuída a taxa de recorrência do daí em sua fala à medida que amadurecerem.
Conforme Labov (2001), é esperado que ocorra, nos processo de mudança,
após o pico de uso da forma inovadora, uma retração de seu aparecimento: ela
é incorporada, ainda com índices de grande freqüência, à gramática dos falantes
do grupo em que teve seu uso fortemente acelerado, mas passa a recorrer
menos, em comparação com a fase de pico de uso. Assim, a mudança adquire
matizes não tão radicais e sim uma maior gradualidade: passa a haver uma
distribuição linear crescente entre faixas etárias adultas, agora ocupadas pelos
mesmos indivíduos que levaram a forma inovadora a seu ápice. Esta poderá
vir a derrotar as demais concorrentes com o passar do tempo, mas com uma
menor velocidade do que a que seria prevista, considerando-se somente seu(s)
estágio(s) de pico de uso.
Contudo, poderíamos considerar que os resultados expostos na Tabela 1
Vol. 6 - No. 1 - 2004 107

revelam não mudança em tempo aparente, mas sim gradação etária (age-
grading), que também pode ter como reflexo a distribuição linear crescente.
Nesse caso, o daí, tomado como marca identitária pelos adolescentes e pré-
adolescentes florianopolitanos, seria pouco utilizado por eles como marca da
seqüenciação nas fases posteriores da vida (a exemplo dos adultos de hoje,
com taxas de uso de 01 a 03%): daí seria abandonado ou teria sua freqüência
fortemente reprimida, como tipicamente acontece com a gíria.
Entretanto, acredito que o daí esteja sofrendo, atualmente, uma mudança
da qual resultará como um dos articuladores que dividem a parte do leão da
seqüenciação na comunidade como um todo e não somente entre os mais
jovens, podendo mesmo se tornar o conector predominante, em termos de
freqüência, no domínio da seqüenciação em Florianópolis.
Para tecer essa hipótese, confio no seguinte indício: o daí pode estar
seguindo os passos do aí, que, como ele, migrou recentemente para o domínio
da seqüenciação e nele está estabelecido como conector de grande recorrência
(ao menos até ser atacado pelo daí, entre os pré-adolescentes), observada
inclusive na fala dos florianopolitanos de mais de 50 anos. Nessa faixa, o aí
representa 19% do total dos seqüenciadores utilizados, o que é um sintoma de
que está na luta com boas freqüências desde as décadas de 40 e 50,
acompanhando os falantes que, hoje com mais de 50 anos, na época eram
crianças em fase de aquisição ou já adolescentes. Se o aí não foi abandonado,
é provável que o daí não o seja.
Em um estudo anterior (TAVARES, 2004), apresento algumas evidências
a respeito da distribuição sociolingüística do aí no final da primeira metade do
século XX que confirmam a hipótese de que esse conector era utilizado com
freqüência na codificação da seqüenciação retroativo-propulsora já naquela
época. Nesse estudo, utilizei dados extraídos da fala dos personagens do
romance As Vinhas da Ira, datado de 1940, tradução de The Grapes of Wrath,
de John Steinbeck. Encontram-se em As Vinhas da Ira casos de variação em
diferentes níveis lingüísticos, possivelmente em uma tentativa dos tradutores
brasileiros de apresentar traços de oralidade de classes populares, à semelhança
do original americano. Compus o grupo de fatores idade pela estratificação
dos personagens do romance relativamente a quatro faixas etárias e interpretei
os resultados como reflexos do uso real da comunidade de fala da época.16
Obtive a seguinte distribuição etária para o aí: de 09 a 12 anos = 13%; de 15 a
21 anos = 08%, de 25 a 45 anos = 06%; acima de 50 anos = 02%.
Se, como defende Labov, adquirimos grande parte da língua através de
nossas experiências em situações de comunicação transcorridas da infância
até o final da adolescência e tendemos a conservar por toda a vida os padrões
16
Encontra-se em Tavares (2004) uma discussão sobre o grau de confiabilidade que
pode ser depositado em dados de variação lingüística provenientes de As Vinhas
da Ira. Aí também pode ser conferida a distribuição dos demais seqüenciadores em
relação à idade dos personagens.
108 Revista do Gelne

lingüísticos conforme experienciados nesse período, a freqüência de uso do aí


no grupo mais idoso de Florianópolis (acima de 50 anos) deveria guardar
semelhanças com sua distribuição na fala dos personagens de 09 a 12 anos do
romance, que são aqui tomados como representando os pré-adolescentes da
época em que o grupo de informantes florianopolitanos em questão estava na
infância e/ou pré-adolescência. E é realmente similar a freqüência de
aparecimento do aí na fala dos pré-adolescentes do romance (13%) e na fala
dos florianopolitanos com mais de 50 anos (19%). Portanto, temos aqui indicações
de que o aí foi preservado na fala dos indivíduos a despeito de seu
amadurecimento, não configurando, assim, um caso de gradação etária. O
mesmo pode acontecer com o daí.
Além disso, é preciso considerar que o grande aumento de uso sofrido
pelo daí em tempos recentes na comunidade de Florianópolis possivelmente
trará implicações para o seu processo de gramaticalização. Quanto mais
freqüente é uma forma, maior o seu grau de penetração na gramática, uma vez
que a representação cognitiva desta é afetada pelo contato do usuário da língua
com repetidas instâncias de utilização no sentido em que tokens da experiência
fortalecem os exemplares armazenados (PIERREHUMBERT, 2001; BYBEE;
HOPPER, 2001). Sendo assim, a alta freqüência do daí provavelmente
contribuirá para que o conector seja conservado na gramática da comunidade,
mesmo quando os jovens de hoje envelhecerem.

5 Considerações finais

O procedimento de análise de mudança em tempo aparente mostrou-se


bastante significativo para este estudo sociofuncionalista do domínio da
seqüenciação, pois permitiu antever soluções possíveis para a situação de
estratificação/variação sob enfoque. Tais soluções estão relacionadas à
gramaticalização de e, aí, daí e então, pois, ao estudar seu uso variável no
plano da seqüenciação, analisou-se com maior refinamento aquela que é uma
das etapas dos percursos de gramaticalização seguidos por cada uma dessas
formas.17
A estratificação etária implicada na utilização de e, aí, daí e então
como seqüenciadores na fala de Florianópolis aponta múltiplas possibilidades
de rumos a serem seguidos pelo domínio: (i) o daí pode se fixar como o
seqüenciador mais recorrente; (ii) o então e o aí podem desaparecer da fala
florianopolitana (já que sua taxa de uso foi bruscamente encolhida na fala dos
pré-adolescentes); (iii) e, aí, daí e então podem ser todos conservados como
marcas da seqüenciação, mas cada um especializado para nichos específicos
17
Provenientes de fontes distintas, e, aí, daí e então chegaram à seqüenciação, mas
sua odisséia não acaba aí: a partir de seus usos seqüenciadores, passaram a exibir
outras funções, como a adversão e o preenchimento de pausa (cf. Tavares, 2003a).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 109

(certos contextos lingüísticos e/ou sociais); (iv) daí pode ter sua freqüência
fortemente reprimida quando os falantes hoje adolescentes e pré-adolescentes
se tornarem adultos, configurando, nesse caso, uma situação de gradação etária
e não mudança geracional.
Todavia, somente um novo estudo, levado a cabo daqui a alguns anos,
pode revelar qual dessas possibilidades de fato se concretizará. Enquanto
esperamos, observemos o futuro sendo tramado:
F: Ele é chato. Ele fica- Ele- já passa uma- uma hora e ele fica lá conversando-
(hes) conversando assim: “Onde que tu mora?” a onde- Daí não começa o jogo.
(hes) Até onze horas que ele co- que ele faz o jogo, daí não dá, né? Não dá pra
fazer as pessoas- as pessoas que são sorteadas, né? não vai dar, né? que- que
são doze pessoas, né? É bastante, não dá tempo.
E: E aí o que acontece?
F: Daí ele fica conversando, daí- daí demora, né? pra fazer os- o jogo. É assim:
é as perguntas- o Sílvio Santos faz as perguntas, né? que valem um mil, dois mil,
três mil, até um milhão- um milhão de reais, até. Daí a hora que chega a do meio
milhão, (hes) vem- que vem a resposta de um milhão- um milhão de reais, daí o
Sílvio Santos coloca uma maletinha, a hora que fechar tem que dizer a resposta.
Tem ou responder ou tem que parar, parar com meio milhão. E se errar, perde
tudo, não ganha nem um real, nem um centavo (FR/FLP02C:32-33).18

Referências

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JANDA, Richard; JOSEPH, Brian (Eds). The handbook of historical linguistcs. Oxford:
Blackwell Publishers, 2003.
______. HOPPER, Paul J. Introduction to frequency and the emergence of linguistic
structure. In: BYBEE, Joan; HOPPER, Paul J. (Eds). Frequency and the emergence of
linguistic structure. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 2001. p.01-24.
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18
No exemplo, o entrevistador pertence a um grupo etário que, na comunidade de fala
de Florianópolis, inclina-se ao uso do aí (de 25 a 45 anos), e interage com uma
informante de 09 anos (pré-adolescente), que utiliza como principal marca de
seqüenciação o daí.
110 Revista do Gelne

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Vol. 6 - No. 1 - 2004 111

Maria Angélica Fur tado da Cunha*

A TRANSITIVIDADE DE VERBOS DICENDI


ABSTRACT: This paper focuses on reported speech, aiming at examining the status of complement
clauses of verbs dicendi. In particular, I will attempt to answer the following questions: can the clause
which introduces the quotation be analyzed as an object complement of the verb of saying? Which are
the syntactic, semantic and prosodic properties of utterance verbs that support such treatment?
Which degree of transitivity does the complement clause manifest? The data come from twelve
conversational narratives from Corpus Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do
Natal. The analysis follows a functional perspective.
KEY-WORDS: reported speech; transitivity; complement clause.

1 Introdução

O fato de que o discurso reportado constitui um domínio muito especial


do uso da língua é amplamente reconhecido (CLARK e GERRIG, 1990; CHAFE,
1994 inter alia). Sua investigação faz surgir questões que ultrapassam o escopo
da gramática da complementação, como indexação, efeito e atitude. Ainda que
vários trabalhos tenham focalizado a citação, a maioria deles analisa dados
criados ou fragmentos de textos escritos.
O discurso reportado pode ser descrito como um recurso utilizado na
fala e na escrita quando o falante ou o escritor reporta o discurso (ou
pensamento) de outra pessoa considerado em um tempo diferente do tempo de
fala. No domínio do discurso reportado, pode-se distinguir discurso direto e
indireto1. Além do uso de um complementizador nas citações indiretas, ambas
as construções diferem com respeito à sua orientação dêitica. No discurso
direto (DD), o centro dêitico é aquele do enunciação original, i. e., o tempo de
fala e o tempo em que a citação foi produzida são considerados o mesmo. Ao
contrário, no discurso indireto (DI), o centro dêitico é aquele do momento de
fala, ou seja, a citação reflete o tempo real em que ela foi produzida. Essa
diferença em orientação dêitica determina a escolha da referência pronominal
(em que ‘eu’ e ‘você’ referem-se, respectivamente, ao falante e ouvinte originais,

*
Universidade Federal do Rio Grande do Norte/CNPq.
1
Há um terceiro tipo, chamado discurso indireto livre, que contém traços tanto do
discurso direto quanto do indireto. Esse tipo de discurso reportado não será analisado
neste artigo.
112 Revista do Gelne

no DD, e ao falante e ouvinte correntes, respectivamente, no DI), da dêixis de


lugar (o uso de este, aqui e vir, por exemplo, no DD, e de aquele, lá e ir, no
DI) e do tempo verbal (em que o tempo do verbo no DI é o mesmo do verbo
dicendi, enquanto isso não se dá no DD). Em outras palavras, no discurso
direto o falante adota a a orientação dêitica daquele que cita, enquanto no
discurso indireto o falante usa a si próprio como o ponto de referência espaço-
temporal.
O discurso reportado é geralmente introduzido por verbos dicendi ou
verbos de enunciação, cujo protótipo é o verbo dizer, seguido pela oração
citada. Os verbos dicendi tem sido objeto de estudo de vários trabalhos. Parece
haver uma tendência geral para considerar esses verbos como intransitivos.
Enquanto algumas línguas permitem que o complemento dos verbos dicendi
seja codificado como um objeto oracional, em muitas línguas esses verbos
exibem características de intransitivos. Os principais aspectos discutidos na
literatura referem-se a: 1. as distinções sintáticas e semânticas entre o discurso
direto e indireto; 2. a relação entre um verbo dicendi e o material citado; 3. as
funções discursivas da citação. Neste trabalho investigo o status da oração
complemento do verbo dicendi, com o objetivo de responder as seguintes
perguntas: a oração que introduz a citação pode ser analisada como um
complemento objeto do verbo dicendi? Quais são as propriedades sintáticas e
semânticas dos verbos de enunciação que evidenciam tal tratamento? Qual o
grau de transitividade que a oração complemento manifesta? Os dados
empíricos correspondem a doze narrativas conversacionais extraídas do Corpus
Discurso & Gramática: a língua falada e escrita na cidade do Natal,
totalizando cerca de 12 horas de gravação. A análise segue uma perspectiva
funcionalista do estudo da língua.
Meus dados consistem num total de 349 citações, das quais 167 (48%)
occorrências representam DD, e 182 (52%) exemplificam DI. Há uma
variedade de verbos que podem introduzir discurso reportado, o que contribui
para uma diferenciação semântica da citação. O Quadro 1 mostra as
ocorrências desses verbos no discurso direto e indireto.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 113

Verbos DD (167) DI (182)


dizer 135 (81%) 110 (60%)
falar 7 9
perguntar 6 11
fazer 4 -
reclamar 2 -
pensar 2 28
ficar 3 -
contar 17
pedir 2 5
chamar 3 -
repetir 1 1
indicar 1 -
combinar 1 1
Quadro 1: Verbos de discurso reportado.

Dizer é o verbo mais frequentemente usado para introduzir uma citação


em meus dados (70% do total), com poucas ocorrências dos outros verbos.
Dizer corresponde a 81% de todas as ocorrências de verbos de enunciação no
discurso direto e 60% no indireto, representando o verbo prototípico da classe
de verbos que emolduram o discurso do outro. Uma razão para a natureza
não-marcada de dizer e sua predominância é que ele pode ser considerado
pragmaticamente neutro, já que a prosódia é geralmente usada para indicar o
modo como o enunciado foi falado, se era uma pergunta, um pedido, uma
ordem ou qualquer outro ato de fala, como no exemplo (1):

(1) minha mãe trouxe, trouxe, biquini e essas coisa, maiô, num sabe? ela trouxe
maiô. aí disse: < ei, você vai >? aí eu disse: < não, num vou não >.

Nesse fragmento, o falante está falando sobre uma excursão que fez. A
primeira citação é uma pergunta, enquanto a segunda é a resposta que ela deu
a sua mãe. Ambas as citações são introduzidas por dizer. Ocorrências como
essas são comuns em meus dados.
O Quadro 1 também permite observações interessantes. Primeiro, note
que alguns verbos não ocorreram no discurso indireto (fazer, ficar, reclamar,
indicar, chamar). O uso de fazer e ficar, comparáveis ao ‘go’ do inglês usado
no registro coloquial, está restrito ao discurso direto, como em:

(2) aí ele fez: < eu num acredito >.


114 Revista do Gelne

(3) aí ficou todo mundo: < quem foi, quem não, quem não foi >, e terminou
ficando o professor com a culpa.

Quanto a chamar e indicar, sua ausência do discurso indireto tem uma


motivação semântica-pragmática. Com esses significados, esses verbos não
podem ser seguidos por uma oração introduzida pelo complementizador que.
Como esses verbos denotam um ato de fala lexicalizado, eles só podem ser
usados no discurso direto, em que a citação representa as funções retóricas
realizadas:

(4) e já tinha algumas amigas minhas, tavam lá atrás e foram logo me chamando:
< Gerson, vem pra cá, pra cá cantar >.

(5) aí daqui a pouco um cara que num, que não me perguntou se eu queria ou
não, chegou e indicou: < eu indico o nome de Gerson e tudo, da igreja do
Satélite >.

Além disso, pensar tem uma frequência de ocorrência mais alta no


discurso indireto (n = 28) do que no direto (n = 2), enquanto contar apenas
aparece no discurso indireto (n = 17). O uso do verbo pensar mostra que o ato
de reporter inclui não somente atividade de fala, mas também atividade mental
não verbalizada (para uma discussão de pensamento reportado, ver CHAFE,
1994).
É interessante observar que quando uma pergunta é reproduzida no
discurso indireto, a entonação se perde, mas o uso do verbo perguntar,
juntamente com um pronome interrogativo na citação, compensa essa perda.
Em meus dados, as 7 occorrências de citação introduzidas por perguntar são
precedidas por diferentes complementizadores: se, por que, onde, como e
quem:

(6) se alguém pergunta pra gente < se você viu aquele filme >,

Do ponto de vista sintático, esses verbos dicendi tendem a selecionar o


mesmo tipo de oração complemento. No português do Brasil, o discurso
reportado tem três tipos de complemento: oração principal, i.e., o complemento
tem a mesma forma sintática de uma oração principal (discurso direto), orações
com que e orações no infinitivo (discurso indireto).
É relevante notar que alguns verbos de enunciação meramente
transmitem que um certo tipo de atividade verbal aconteceu. Nesse caso, o
objeto direto não é obrigatório e o objeto indireto/recipiente pode (7) ou não (8)
Vol. 6 - No. 1 - 2004 115

ser expresso. O mais comum é o verbo falar. Quando esse é o caso, o verbo
dicendi tem uma estrutura argumental diferente, e pode codificar o assunto
sobre o qual se está falando como um constituinte oblíquo, como em (9-12):

(7) só sei que a namorada chegou. aí começou a falar com ele, num sabe?

(8) aí [o amigo dele] começou a falar.

(9) ela começa falando da ocupação nazista na França.

(10) você começou a me contar aí de um passeio, né? com a sua tia.

(11) mas quando foi à noite, né? foi perguntar de novo pelo gato, né?

(12) aí ele foi pra casa, né? e ficou pensando só nisso, né?

Meus dados também registram várias ocorrências de citação zero, isto


é, discurso direto em que não há verbo dicendi:

(13) aí vinha um caminhão e descarregava lá, na calçada. aí maínha: <


ei, tire esse negócio daqui >.

(14) o morador tinha saído. aí ela ofereceu o apartamento. aí mãe: < ah, tudo
bem. eu fico com o apartamento. fico pagando o aluguel pra você >.

(13) e (14) mostram algumas das características que ajudam a identificar


os enunciados entre parênteses angulados como discurso direto. Primeiro, há
mudança de sujeito: da 3ª pessoa (maínha) para a 2ª pessoa do singular (você,
omitido mas recuperável através da morfologia verbal) em (13), e da 3ª pessoa
(mãe) para a 1ª pessoa do singular (eu) em (14). Segundo, há também uma
mudança no tempo verbal: do passado para o presente em ambas as orações.
Terceiro, o uso de partículas como ei e ah no começo dos enunciados reportados
indica que o falante corrente está agora citando, e que essas partículas foram
supostamente produzidas pelo falante original no evento que está sendo
reportado. Observe também o uso do marcador narrativo aí antes da referência
ao falante que está sendo citado. Além disso, a prosódia ajuda a indicar que
uma citação é pretendida, visto que ambas as citações são precedidas por
entonação contínua. Assim, o verbo dicendi pode ser omitido, enquanto os
pronomes e o tempo verbal são usados de um modo apropriado ao discurso
direto.
116 Revista do Gelne

Na citação, a escolha do tempo verbal, assim como a escolha da


orientação especial e temporal, é determinada pelo ponto de referência da
citação. Com relação ao tempo em que o verbo dicendi aparece em meus
dados, o Quadro 2 exibe o número de ocorrências para esse traço:

Tempo DD (166) DI (182)

Pretérito 144 (87%) 145 (80%)


Presente 20 (12%) 33 (18%)
Futuro 2 (1%) 4 (2%)

Quadro 2: O tempo dos verbos dicendi.

O verbo que introduz a citação está predominantemente no tempo


pretérito (289/348 = 83%), tanto em DD como em DI, mas também pode estar
no presente (53/348 = 15%), com muito poucas ocorrências no futuro. A alta
frequência do pretérito tem a ver com a função de reportar uma situação ou
evento prévios.
O uso do presente no discurso reportado representa uma instância do
presente histórico. Ao invés de reporter um evento passado no tempo pretérito,
o falante usa o presente como um recurso para similar que o evento está
acontecendo no momento de fala. Essa estratégia é usada principalmente em
pontos na narrative em que o falante está altamente envolvido com o que ele/
a está recontando, e tem o efeito de dramatizar aquilo que está sendo descrito,
fazendo-o parecer mais vívido (ver CHAFE, 1994), como em (15) abaixo, em
que o falante reproduz seu diálogo com um antigo namorado:

(15) aí ele: < num vai comer não, você? digo: < não, é porque eu tô sem fome
>. e eu morrendo de fome, sabe? tinha saído do colégio.

O exemplo em (16) ilustra o uso do presente habitual (ou genérico), que


veicula uma situação ou estado de coisas atemporal:

(16) a moral da história é, quando o povo diz: < ah, tenha paciência de Jó >, é
porque Jó era o nome do cara.

Quanto ao futuro, nos dados examinados ele é sempre expresso por


meio de uma locução formada pelo verbo auxiliar ir, flexionado no presente, e
o verb principal dizer. Esse uso é típico do registro coloquial, e representa um
caso de gramaticalização. No fragmanto em (17) o narrador está falando sobre
Vol. 6 - No. 1 - 2004 117

um plano que ela bolou para enganar o diretor da escola onde ela estudava
naquela época. Esse trecho é interessante porque contém citações diretas dentro
de uma outra citação direta, introduzida pelo verbo combinei. Observe que
todos os verbos dentro da citação estendida estão no futuro imediato:

(17) então eu combinei com as minhas amigas: < olha, vai duas pra sala de
aula assistir à data comemorativa. eu vou começar a chorar e vou dizer
< que estou doente Q. uma vai chegar, vai chamar o diretor, vai dizer <
que eu estou doente > pra poder, você vai chamar as outras que estão no
auditório, que é pra me levar pro hospital >.

Assume-se, em geral, que o tempo do verbo no DI, mas não do DD, é o


mesmo do verbo dicendi (LI, 1986). Isso pode ser explicado pelo fato de que
no DD o centro dêitico é o do enunciado reportado, enquanto no DI o centro
dêitico é o do momento de fala. Desse modo, no primeiro o tempo verbal é o
mesmo do enunciado original, enquanto no último o verbo da citação
frequentemente está no pretérito, assim como o verbo dicendi (predomi-
nantemente no pretérito, mas também no presente e também no futuro, em
meu corpus, em ambos os tipos de discurso reportado. Cf. Quadro 2). Meus
dados corroboram essa assunção: no DD, em 121 de 159 occorrências (76%)
o verbo dicendi e o verbo na citação têm tempos diferentes, enquanto no DI
em 160 de 180 ocorrências (89%) o verbo dicendi e o verbo reportado estão
no mesmo tempo.
Com relação ao tempo verbal, note-se que considerei um número menor
de ocorrências para o DD e o DI: 159, em vez de 166, e 180, em vez de 182,
respectivamente (cf. Quadro 1). In DD, registrei 7 occorrências em que a
citação não é uma oração, mas um SN, (6 exemplos, como em ((18), abaixo) e
um pronome interrogativo (por que). Em DI, 2 citações são expressas pelo
complementizador que seguido de sim, e de não, como em (19):

(18) era o filho dele, muito sujo, aí chamando: < papai >, né?

(19) o cara disse que ela podia sair de lá, mas ela disse < que não >.

O exemplo (19) é interessante na medida em que apresenta caracte-


rísticas da citação direta e indireta simultaneamente, isto é, o uso do comple-
mentizador que, e o marcador negativo não, que pertence à fala.
Quanto ao modo do verbo, embora a grande maioria das citações estejam
no indicativo, o subjuntivo ocorre em 9 citações indiretas. A preferência pelo
subjuntivo parece estar condicionada pelo verbo, mas alguns verbos admitem
118 Revista do Gelne

ambos os modos. À exceção de dizer (n=5), todas as outras ocorrências de


subjuntivo são exigidas pelo significado dos verbos de enunciação pensar e
pedir, flexionados no pretérito. Todas essas orações são irrealis, reportando
um evento futuro, como em (20) e (21).

(20) eu pensei < que eu fosse morrer >, sabe, quando o colégio inteiro correu
pro laboratório pra ver o que tinha sido.

(21) dá esse almanaque e diz para ele < que aposte em tudo >.

Alguns estudos apontaram as diferenças em pronominalização como


um critério para distinguir entre DD e DI (MUNRO, 1982, LI, 1986, MAYES,
1990). Em DD, os pronomes pessoais de 1a e 2a pessoas referem-se ao falante
original e ao ouvinte original, respectivamente, enquanto o pronome de 3a pessoa
não se refere nem ao falante original nem ao ouvinte original. Por outro lado,
no DI os pronomes de 1a e 2a pessoas referem-se ao falante e ao ouvinte
correntes, respectivamente, enquanto o pronome de 3a pessoa é usado de acordo
com a regra geral de pronominalização. Meus dados confirmam o critério de
pronominalização, como mostram os seguintes exemplos:

(22) aí seu Carrilho disse: < não, ainda não fui atendido >.
(23) aí minha tia disse: < o que que você tava conversando com ele >? aí eu
disse: < nada, ele tava me contando uma história >.

Em (22), a forma verbal fui está flexionada na 1a pessoa do singular, e


se refere ao falante original, seu Carrilho. Em (23), você é correferente ao
ouvinte, que é o falante corrente, e ele refere-se a uma terceira pessoa, que
não é nem o falante original nem o ouvinte original.

(24) o médico disse: < que [o acidente] me prejudicou também >.

(25) mas você disse < que foi a melhor coisa que aconteceu pra você >, e,
você hoje tem muitos amigos, né?

(26) o professor quando chegou viu que tinha sido eu que tinha feito o serviço.
aí ele disse < que tinha sido ele > fazendo uma experiência.

Em (24), o pronome objeto me é correferencial ao falante corrente. O


exemplo (25) mostra que o pronome de 2a pessoa você se refere ao ouvinte
corrente. Em (26), o pronome ele se refere ao SN o professor, que não é nem
o falante nem o ouvinte correntes.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 119

A citação parece ser predominantemente usada para reportar os


enunciados de outro, tanto no discurso direto quanto no indireto. No DD, apenas
10% (16/165) das ocorrências se referem ao falante corrente (isto é, 1a pessoa
do singular), enquanto no DI 9% das citações (17/181) referem-se ao falante
corrente. Vale notar que no discurso direto, somente quando o sujeito do verbo
dicendi está na 1a pessoa do singular, temos o mesmo sujeito na oração citada.
Consequentemente, no DD o sujeito da oração principal é diferente do sujeito
da oração citada em 90% (142/158) dos casos.2 Quanto ao discurso indireto,
temos um quadro um tanto diferente: o sujeito da oração principal é diferente
do sujeito da oração citada em 72% (128/179) das ocorrências. Quando o
verbo dicendi e a citação têm o mesmo sujeito, ele pode ser 3a pessoa do
singular (32/179 = 18%), 1a pessoa do singular (16/179 = 9%), ou mesmo 2a
pessoa do singular (apenas uma ocorrência).3

2 Propriedades intransitivas das orações citadas

A afirmação de que verbos dicendi são intransitivos geralmente se baseia


no fato de que os complementos desses verbos se comportam diferentemente
de outros tipos de argumentos objeto direto. O comportamento desviante das
orações reportadas é apresentado como evidência de que a oração introduzida
por um verbo de enunciação desempenha alguma função que não a de objeto
direto, embora essa função não seja identificada na literatura.
Vejamos algumas das propriedades comumente apontadas como
indicadoras do caráter intransitivo da citação: marcação de subordinação,
entonação e afetamento. Munro (1982) demonstra que em várias línguas a
citação relacionada a um verbo dicendi aparece completamente não-marcada,
mesmo nos casos em que todos os outros verbos que tomam complementos
oracionais requerem marcação subordinativa explícita, ou ao menos a sua
possibilidade, como no inglês. Noonan (1985) observa que a função de um
complementizador é identificar a entidade com a qual ele se associa como um
complemento. Em português, o complementizador que não pode aparecer antes
de uma citação direta (27), mas é obrigatório em citações indiretas (28):

2
Aqui, novamente, 159 occorrências foram consideradas, em vez de 166, devido ao
fato de que no discurso direto 7 citações não são orações, como salientado acima.
3
Novamente, para o discurso indireto 180 occorrências, em vez de 182, foram contadas
porque em duas delas a citação não é uma oração, mas o complementizador que
seguido por sim e não.
120 Revista do Gelne

(27) aí ela disse: < quer sair comigo >?

(28) o médico disse < que ela não podia se machucar >.

De fato, o complementizador que pode ser omitido no discurso indireto


quando o recipiente do verbo dicendi é introduzido pela preposição para e o
verbo da oração citada está no infinitivo, como em (29):

(29) e ele não admite você é:: dizer pra ele < não beber numa ocasião dessa >.

Logo, a presença de um complementizador antes da citação não pode


ser tomada como decisiva para provar o status de objeto direto da citação, a
menos que o discurso indireto seja tratado diferentemente do direto com relação
a sua natureza gramatical.
A entonação é tida como uma fator importante na avaliação da integração
de orações, de modo que a ausência de uma quebra entonacional entre duas
orações é um indicador confiável de que uma delas está integrada à outra
(LEHMAN, 1988). Vários linguistas alegam que a presença de pausa entre
um verbo dicendi e a citação é evidência de que a citação não é dependente
do verbo. Noonan (1985) observa que quase todas as línguas distinguem discurso
direto de indireto por meio de entonação: enquanto tipicamente há uma pausa
antes e/ou depois da citação direta, do ponto de vista da entonação a citação
indireta é tratada como qualquer outro complemento oracional. Aqui, outra
vez, discurso direto se comporta de modo diferente dediscurso indireto. Contudo,
o critério da entonação não é útil para decidir sobre o comportamento
(in)transitivo da citação no português do Brasil, visto que na fala não apenas é
possível uma pausa separando dizer e a citação direta, mas também entre a
citação indireta (30), por um lado, e entre qualquer verbo transitivo e seu objeto
direto, por outro (31):

(30) e disse: < que ela era uma prostituta >.

(31) eles descobriram: o local lá, né?

Logo, no português do Brasil os verbos dicendi e seus complementos


nominais/oracionais podem estar na mesma unidade entonacional, ou podem
estar separados, sem nenhuma razão sintática aparente.
Na formulação de transitividade de Hopper e Thompson (1980), dois
parâmetros caracterizam um objeto altamente transitivo: afetamento e
individuação. Hopper (1985) enfatiza a importância do grau de afetamento do
Vol. 6 - No. 1 - 2004 121

objeto na mensuração da transitividade prototípica. Ele reconhece, além disso,


que é impossível atribuir uma propriedade semântica unitária, invariável à relação
verbo-objeto, porque alguns objetos não são transformados, e sim criados, pela
ação do verbo. Hopper chama esses casos de objetos efetuados. Objetos
afetados e efetuados compartilham a propriedade gramatical de ocupar a mesma
posição sintática reservada para os objetos, mas eles se distinguem em outros
traços gramaticais, como: (i) sua contribuição para o grau de transitividade
oracional (objetos efetuados são menos transitivos do que objetos afetados), e
(ii) a referencialidade do objeto (objetos efetuados geralmente são não-
referenciais). De acordo com Hopper, os verbos de enunciação formam o
maior grupo de verbos efetuados em inglês e, presumivelmente, em qualquer
língua. Há, portanto, uma correlaçao entre Efetuamento e Intransitividade: a
oração efetuada será sempre menos transitiva do que a oração afetada.
Deste modo, os parâmetros ‘afetamento’ e ‘individuação’ do objeto
direto não se aplicam totalmente aos complementos dos verbos dicendi. Por
um lado, a citação não tem individuação pois não é própria, animada, concreta,
singular, contável e referencial; por outro lado, embora não seja estritamente
afetada, a citação é efetuada pelo ato de dizer executado por um sujeito-agente
volicional, exibindo, portanto, algum grau de transitividade. Em resumo, não
discarto a transitividade dos verbos dicendi; ao contrário, admito que eles não
são prototipicamente transitivos, na medida em que um objeto efetuado é menos
transitivo do que um afetado.

3 Propriedades transitivas das orações citadas

Passemos, agora, às características transitivas que se aplicam aos verbos


de enunciação: tipo morfológico de verbo, ordenação e número de argumentos.
Munro (1982) destaca as restrições sobre possíveis objetos dos verbos dicendi
como uma característica intransitiva da citação. Assim, algumas línguas permitem
que dizer tome uma citação como um objeto oracional, mas não um objeto
pronominal como ‘it’ ou um SN mais concreto. No português do Brasil, contudo,
dizer pode ocorrer tanto com um objeto pronominal (32), quanto com um SN
(33), como em:

(32) foi a única palavra que eu disse.

(33) a gente não disse o nome dela.


122 Revista do Gelne

Diferenças na ordenação das palavras entre citações e outros objetos


oracionais frequentemente são apontadas como uma característica intransitiva
dos verbos dicendi: (i) em muitas línguas, orações citadas podem ser precedidas
e seguidas simultaneamente pelo verbo dicendi, enquanto outros verbos não
permitem esse tipo de construção “emoldurada”; (ii) algumas línguas permitem
a extraposição de objetos oracionais, mas não da citação; (iii) nas línguas Yuman,
um objeto direto oracional pode aparecer encaixado entre o sujeito e o verbo,
enquanto o complemento de dizer nunca aparece nessa posição.
O português do Brasil não exibe diferenças de ordenação entre discurso
direto, discurso indireto e complementos no infinitivo. Embora rara, a inversão
é possível no discurso indireto (34), com SNs objetos de dizer (35) e, em geral,
em orações S-V-OD (36):

(34) < se fosse mentira >, eu já tinha dito.

(35) tudo que eu faço, digo a ela.

(36) o filme, eu assisti no cinema.

No português do Brasil, os verbos dicendi podem ser usados como um


predicado de três argumentos, com o recipiente do ato de fala expresso em um
sintagma oblíquo (SPrep) na oração matriz. Essa codificação é possível quer o
objeto direto seja um SN (37), ou um complemento oracional (38).

(37) você diz uma coisa pra mim, você acha que eu vou acreditar?

(38) às vezes eu dizia pra minha mãe < que tinha aula no sábado >.

A codificação explícita do destinatário é mais comum no discurso indireto


(n=21) do que no discurso direto (apenas uma ocorrência). Em 8 casos, o
objeto indireto da oração matriz também desempenha a função de sujeito na
oração citada, o que demonstra a integração entre a oração principal e a citação:

(39) ele sempre disse pra mim < que eu era muito fria, assim, calculista >.

O compartilhamento de elementos – predicados, tempo e aspecto,


participantes – entre a oração principal e a citação reflete seu entrelaçamento
semântico e sintático (LEHMANN, 1988). Além disso, complementos oracionais
objetos que têm o mesmo sujeito que a oração principal são considerados mais
dependentes do que orações com sujeitos diferentes. Em meus dados, o discurso
Vol. 6 - No. 1 - 2004 123

direto se opõe ao indireto com relação à identidade de tempo. No DD, em 24%


das ocorrências a oração principal e a citação estão no mesmo tempo, enquanto
no DI a percentagem sobe para 89%. Quanto à identidade do sujeito, contudo,
ambos os tipos de discurso exibem o mesmo padrão: no DD, os sujeitos da
oração principal e da citação são idênticos em 10% dos casos, enquanto no DI
a percentagem de sujeitos idênticos é 28%. Resulta, então, que nenhum desses
parâmetros é útil para determinar a transitividade dos verbos dicendi no PB,
se quisermos propor um tratamento unificado para o discurso direto e o indireto.

4 Conclusão

A citação parece ser um universal da estrutura cognitiva. Embora a


função da citação seja bastante difundida, os recursos gramaticais para a
codificação do discurso reportado diferem de uma língua para a outra, conquanto
sejam todos marcados. Não apenas a transitividade das construções com dizer
varia translinguisticamente, mas também há diferenças com relação aos padrões
de discurso reportado que uma língua distingue.
Em muitas línguas, as citações de discurso direto não têm o mesmo
status que SNs objetos de verbos dicendi, e portanto elas não se enquadram
nas categorias de ‘objeto’ ou ‘complemento’. Além disso, várias línguas
restringem a complementação de verbos de enunciação ao discurso direto, o
que as posiciona longe do centro transitivo (HOPPER, 1985). Como vimos,
por um lado, o português do Brasil não distingue sintaticamente entre objetos
oracionais e objetos nominais como complementos de verbos dicendi; por outro
lado, tanto o discurso direto quanto o indireto são usados. Alguns linguistas
alegam que em muitas línguas a fronteira entre o discurso direto e o indireto
não é nítida (TANNEN, 1989, ROCHA, 2000). Esse não parece ser o caso no
português do Brasil: a distinção entre os dois tipos de citação é sempre clara.
Todavia, assim como muitas outras categorias linguísticas, o discurso
reportado não é uma entidade discreta. Se adotamos um tratamento gradiente
da complementação em termos da integração sintática com o verbo dicendi
(GIVÓN, 2001), podemos distribuir os tipos de citação num continuum, com o
discurso indireto no ponto mais alto da escala, e o discurso direto no ponto mais
baixo. Conforme foi visto, as citações diretas exibem o menor grau de
dependência sintática do verbo da oração matriz, representando orações
estruturalmente independentes que podem se manter sozinhas. As citações
indiretas, por outro lado, não podem ficar sozinhas, porque elas são
obrigatoriamente introduzidas por um complementizador que estabelece uma
relação de dependência entre as orações matriz e complemento. No caso do
124 Revista do Gelne

discurso reportado, então, o critério de transitividade não corresponde a uma


divisão binária clara: o discurso direto e o indireto ocupam cada extremo da
escala, com vários pontos intermediários entre eles, representados pelas formas
de citação com graus variados de integração. No nível semântico, todavia,
ambas as citações são estreitamente relacionadas ao verbo dicendi da oração
matriz.
Os fatos apresentados evidenciam que no português do Brasil, embora
a citação não seja um objeto direto prototípico, ela é efetuada pelo ato de dizer.
Em outras palavras, os verbos dicendi criam seu objeto, que são produzidos
pelo próprio dizer. Nesse sentido, os verbos dicendi projetam o que está por
vir, de tal modo que a citação pode ser adequadamente considerada como o
complemento objeto do verbo da matriz. Se o termo ‘complemento’ implica
completude (PAYNE, 1997), um verbo de enunciação não expressa uma
proposição completa até que a citação seja produzida. Desse modo, mantenho
a transitividade como uma propriedade dos verbos dicendi, sob a consideração
de que a citação acrescenta algo ao significado do predicado. Em resumo, os
verbos dicendi no português do Brasil exibem mais características transitivas
do que intransitivas.

Símbolos de transcrição

. entonação final prototípica


? entonação final interrogativa
, entonação de continuação
: pausa
< > discurso reportado
/ palavra truncada
:: alongamento

Referências

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126 Revista do Gelne
Vol. 6 - No. 1 - 2004 127

Maria Cristina de Assis Pinto Fonseca*

PROCEDIMENTOS DE REFORMULAÇÃO DO TEXTO ORAL


ABSTRACT: This article concerns the analysis of some textual reformulation strategies used by
participants in an interview with a “rezador”. In this analysis, the procedures of reformulation
employed by speakers are emphasized and exemplified based on some theoretical assumptions
from Conversational Analysis, an approach which gives priority to real data collected in their natural
context of occurrence.
KEY-WORDS: Conversational analysis; paraphrase; correction.

1 Introdução

O objetivo deste trabalho é abordar, a partir da análise de uma entrevista


com um rezador popular, algumas estratégias de reformulação textual utilizadas
pelos participantes.
O encontro teve o objetivo de promover rituais de cura, através de rezas
populares tradicionais. Após o evento, procedeu-se a entrevista, com o intuito
de obter algumas informações acerca das rezas. Encontram-se presentes à
gravação, além da documentadora, que sugeriu o tema da conversa, e dos
interlocutores, mais duas pessoas que, embora não se manifestem, fazem parte
da cena da conversação, o que é comprovado em determinados momentos da
entrevista.
O segmento transcrito, com duração de 38 minutos, aproxima-se de uma
conversação espontânea, apesar de o objetivo do encontro ter sido sugerido
previamente e de ter sido autorizada a gravação. Os interlocutores estão em
relação de diálogo. Alternam-se nos papéis de falante e de ouvinte uma mulher
(Locutor 1) de cinqüenta e três anos, empresária, com segundo grau, natural
da Paraíba e residente no Ceará, e um homem (Locutor 2) de oitenta e dois
anos, vigia aposentado, rezador popular, primeiro grau incompleto, natural de
Pernambuco, residente na Paraíba.
Os dados relacionados aos interlocutores (idade, sexo, profissão etc.)
mostram que há um desequilíbrio de papéis. No entanto, essa relação
assimétrica (MARCUSCHI, 1986, p.16) explica-se mais pelo caráter da

* Universidade Federal da Paraíba.


128 Revista do Gelne

entrevista do que pelas diferenças de condições sócio-econômicas e culturais.


O tema da conversa, a reza popular, é bastante familiar a L2; o entrevistado
tem competência para falar sobre o assunto, uma vez que é rezador profissional
bem conceituado na comunidade em que se encontra.
A perspectiva adotada é a Análise da Conversação, abordagem que
prioriza os dados reais em seu contexto natural de ocorrência.
Alguns conceitos teóricos acerca dos procedimentos de reformulação
serão destacados e exemplificados, embora não seja de maneira exaustiva,
nem do ponto de vista teórico, nem na análise dos elementos.

2 A formulação do texto

Neste estudo, a linguagem é entendida como uma atividade não apenas


verbal, mas também sociocognitiva, em que os interlocutores constroem
cooperativamente um texto, utilizando, além de sua competência lingüística,
sua competência discursiva. Dessa forma, privilegia-se o estudo da linguagem
em situações concretas de interação.
Entende-se que os participantes desempenham papéis, de acordo com
regras situacionais e institucionais por eles interiorizadas, buscando adequar
seu comportamento às regras da sociedade em que se inserem, para que possam
compreender e serem compreendidos. Para tanto, é necessário que eles sejam
capazes de fazer escolhas lingüísticas e discursivas apropriadas e, assim,
produzirem textos orais, de forma que se possa reconhecer a ação
desempenhada pelo enunciado do interlocutor e responder de modo apropriado
e coerente. Numa conversação, apenas a competência gramatical não basta: o
participante precisa saber o que se espera dele e construir seu enunciado de
forma que o interlocutor possa reconhecer sua intenção comunicativa. Ou, no
dizer de Hilgert (1993, p.108):

Construir lingüisticamente o enunciado ou, no sentido mais amplo, o texto,


significa dar forma e organização lingüística a um conteúdo, a uma idéia,
enfim, a uma intenção comunicativa, o que permite dizer que, na construção
lingüística do enunciado, desenvolvem-se atividades de formulação.

Fávero et al. (1999, p. 55), citando Antos, lembram que formular um


texto significa deixar marcas, traços no texto que possibilitem a sua
compreensão. Na formulação de um texto oral, diferentemente do que ocorre
com o texto escrito, as marcas de seu processo de organização são perfeitamente
visíveis. Enquanto na escrita a elaboração e a produção discursivas podem ser
Vol. 6 - No. 1 - 2004 129

dissociadas, na fala, elaboração e produção ocorrem explicitamente,


simultaneamente, porque aparecem no próprio momento da interação ou, como
diz Marcuschi (1986, p. 28), “no tempo real”. Disso resulta que incidentes de
produção, pistas da elaboração textual como repetições, paráfrases e correções
surgem na conversação.
Um texto falado apresenta-se cheio de descontinuidades. Schegloff,
Jefferson e Sacks (apud HIGERT, 1993, p.108), lembram que, tanto na
ocorrência de erros e falhas quanto na busca de termos ou palavras adequadas
é possível identificar problemas. O próprio falante, ou seu interlocutor, ao detectar
algum tipo de problema no seu enunciado, é levado a reformulá-lo, a fim de
garantir a compreensão.
Utilizando uma terminologia sugerida por Koch e Oesterreicher, Hilgert
(1993: p.108) distingue os problemas prospectivos, os que são detectados pelos
falantes antes mesmo de os formular, e retrospectivos, os que só são percebidos
quando já estão lingüisticamente inseridos na formulação do texto.
Os seguintes segmentos mostram alguns exemplos de problemas
prospectivos e retrospectivos:

(1)
L1 é porque ela deve ta carregada, né?
L2 eu já rezei uma aqui que caiu uma vez o marido dela tava acolá
eu chamei ele disse ...ai eu disse a ele...aí e e ele disse...
quando ela ficou boa suou demais levantou e disse... e e e o
senhor não vai rezar mais não? eu disse rezo mas ela vai de
novo... não cai não ... então tá certo/ oxente... cheguei no meio
da oração (...)

Esse trecho inicia-se com uma sobreposição de vozes. L1 interrompe


seu turno e L2 começa sua narrativa. O fluxo é interrompido no momento em
que L2 sente dificuldade em encontrar a seqüência correta dos acontecimentos:
hesita, escolhendo entre “ele disse” ou “eu disse”, hesita novamente, corrige-
se, segue a formulação com dificuldade, gaguejando, até finalizar a narrativa e
passar a explicar como evita que as pessoas caiam durante a reza. Esta
seqüência apresenta-se com descontinuidades que denunciam problemas de
formulação detectados pelo próprio falante antes de formular.

(2)
L2 eu vou lhe contar uma... eu rezo mordida de casca... mordida de
jararaca...faz muito
130 Revista do Gelne

Nesse caso, o locutor percebe o erro antes de completar seu enunciado.


Interrompe a formulação e a refaz usando o termo que corresponde ao que
pretendia.
Outros problemas são detectados pelo falante ou pelo interlocutor depois
de o enunciado formulado. Nesses casos, ocorrem as atividades de
reformulação, como nos fragmentos seguintes:

(3)
L2 (...) aí diz que tenho que limitar...rezar uma quantidade...

Em (3), o verbo limitar parece ser sentido pelo falante não


suficientemente explícito, o que poderia acarretar problemas de compreensão.
Então interrompe o enunciado, e retoma-o em forma de paráfrase, “rezar uma
quantidade”, buscando maior explicitação.

(4)
L1 [ é mas qual é a a a proteção que o senhor... acha que tem
que...se protege... como é que o senhor se protege?

Nesse fragmento, L1, com o intuito de ser bem entendida pelo interlocutor,
reformula seu enunciado original, buscando uma forma adequada para expressar
seu pensamento.

3 Atividades de reformulação

Koch (1997, p. 68) apresenta dois tipos de reformulação: a retórica e a


saneadora. A retórica manifesta-se através de repetições e parafraseamentos
e tem como função principal reforçar a argumentação e ainda facilitar a
compreensão por meio da desaceleração do ritmo da fala. A saneadora realiza-
se por meio de correções ou reparos e de repetições ou paráfrases saneadoras.
As correções nascem da tentativa de o locutor solucionar, após a materialização
de um segmento, dificuldades detectadas por ele mesmo ou pelo parceiro.

3.1 A paráfrase

A paráfrase é, segundo Hilgert (1993, p. 114),

dentro do processo de construção do texto, uma atividade lingüística de


Vol. 6 - No. 1 - 2004 131

reformulação, por meio da qual se estabelece entre um enunciado de origem e


um enunciado reformulador uma relação de equivalência semântica,
responsável por deslocamentos de sentidos que impulsionam a
progressividade textual.

Caracteriza-a o tipo de relação que ela mantém com o seu enunciado


de origem: uma relação de equivalência semântica, isto é, a paráfrase retoma
total ou parcialmente o conteúdo de um texto-fonte, num texto-derivado.
Muitas vezes, o texto original é ampliado quando o locutor pretende
generalizar o enunciado de origem. Em outros casos, a paráfrase serve para
resumir, limitar os traços semânticos do texto original.
Entre as diversas funções da paráfrase, segundo Fávero et al (1999 :60),
estão principalmente “garantir a intercompreensão” e “contribuir para a coesão
do texto, enquanto articuladora de informações novas e antigas”.
São exemplos de paráfrases encontrados no corpus pesquisados:

(5)
L1 [ o senhor tem uma proteção muito grande, né?
L2 é mas se eu não num coidar ...se eu não tiver cuidado... aí cai

(6)
L1 [ é mas qual é a a a proteção que o senhor... acha que tem
que...se protege/ como é que o senhor se protege?
L2 eu acho que a minha proteção que eu tenho é porque eu confio
muito em Deus

(7)
L2 (...) pequeno assim... dor de ventrusidade... dor reumática...essas
rezas tudo pequininim berruga assim sinal hérnia eu peguei a/faz
pouco tempo,...comecei agora há pouco... mas essas coisinhas eu reza-
va pouquinho mas adespois desses problema que eu recebi (...)

No caso seguinte, o locutor refaz seu enunciado em outro turno,


enfatizando a importância das rezas em sua vida: substitui “não durmo não”por
“não durmo de jeito nenhum” .

(8 )
L2 sabe por quê? porque se eu não rezar eu eu tenho eu tenho
duas oração que se eu não rezar de noite eu também não durmo
não
132 Revista do Gelne

Doc e é?
L1 hum
L2 durmo de jeito nenhum/ e então eu tenho uma proteção de uma
mulherzinha que se apresenta eu todo dia...( incompreensível) às
vezes ela vem nesse portão aí... a (...)

3.2 A correção

Outro procedimento de reformulação, característico da conversação, é


a correção, um “procedimento de reelaboração do discurso que visa a consertar
seus “erros” (BARROS, 1993:136).
Barros (1993: 139) cita um dos mais conhecidos trabalhos acerca das
correções, o de E. Schegloff, G. Jefferson e H. Sacks – S/J/S – que tem como
critério o modelo elementar da conversação em sistema de turnos de fala.
Neste modelo, distinguem-se dois tipos de correção, a reparação e a correção
propriamente dita.

3.2.1 A reparação

Por reparação entende-se a correção de uma infração conversacional:


os interlocutores cometem erros no sistema de tomada de turnos, desobedecem
às regras e essas falhas são reparadas.
Na conversação, a regra geral básica estabelece que deve haver pelo
menos uma troca de falante. Quando um dos participantes não cede a palavra
aos demais e fala o tempo todo ele viola essa regra e pode sofrer reparações,
ou ele mesmo corrigir-se.

(9)
L1 só se o senhor...é ... eu vou ficar curada...
L2 a senhora ...sabe... ãn sabe onde
L1 eu vou ficar curada... e o senhor curou uma pessoa de Fortaleza
L2 [sabe onde é Rondônia?
L1 sei
L2 que divide com o estrangeiro?
L1 sim
L2 já rezei gente daqui lá...
L1 é
L2 eu tem rezado gente de São Paulo, de Rio, de Natal de todo
canto
L1 pois é o senhor rezou agora uma de Fortaleza sabia?
Vol. 6 - No. 1 - 2004 133

Na conversação em apreço, há inúmeras sobreposições de vozes,


desobedecendo à regra de falar um de cada vez. Essas violações no corpus
analisado são reparadas apenas implicitamente, em forma de tomada ou
devolução de turno, de sobreposição de voz ou de formulação de novas
perguntas. Este fato explica-se pelo caráter da conversação – uma entrevista,
e de L2 ter a preferência, em virtude de ser entrevistado, como é ilustrado no
segmento acima.
Há de se considerar que as regras e técnicas variam de acordo com o
modelo cultural e com o tipo de conversação, uma vez que o estudo da reparação
está diretamente relacionado ao da organização da conversação que, por sua
vez, diferencia-se nas diversas culturas, embora existam também normas
universais.

3.2.2 A correção propriamente dita

São chamadas correções propriamente ditas, ou simplesmente


correções, aquelas que não se relacionam com as violações às regras
conversacionais.

(10)
L2 só só porque eu tem medo dela demais...e nojo... num é tanto medo
como é nojo de cobra... uma cobra pode tá morta e eu não boto
minha mão em cima por caridade não...e às vezes diz que quem reza
mordida não pode matar a cobra né?

Nesse segmento, L2 corrige-se, substituindo a palavra medo por nojo,


que não considera adequada para expressar seu sentimento diante das cobras.
Observe-se que ele continua a formulação enfatizando a correção.
Marcuschi (1986, p. 29) apresenta a seguinte tipologia geral para o
mecanismo de correção estabelecida por Schegloff, Jefferson e Sacks:

(a) autocorreção auto-iniciada: é a correção feita pelo próprio falante logo


após a falha;
(b) autocorreção iniciada pelo outro: é a correção feita pelo falante, mas
estimulada pelo seu parceiro ou por outro;
(c) correção pelo outro e auto-iniciada: o falante inicia a correção, mas
quem a faz é o parceiro;
(d) correção pelo outro e iniciada pelo outro: o falante comete a falha e
quem corrige é o parceiro.
134 Revista do Gelne

Segundo diversos autores, entre eles Sacks, Jefferson e Schegloff (1977),


Marcuschi (1986), a preferência na conversação decai na autocorreção auto-
iniciada. O falante, ao autocorrigir-se, procura evitar as conseqüências do seu
erro. No corpus analisado a freqüência maior foi desse tipo de correção. Essa
predominância se justifica também pelo fato de L2 manter o turno por mais
tempo, principalmente porque responde as perguntas do interlocutor. Vejam-se
os trechos seguintes:

(12)
L1 [ é é é por isso que eu perguntei... se o senhor reza[va ... num é?
L2 [ataca minha vista tem vez que ataca de eu ficar cego/ficar quase
cego/ ( muitas vezes)

(13)
L2 [quatro oração que eu tinha ...menina tinha sido há dez anos aí
eu disse assim com aquelas oração que a menina ensinou você
pode rezar qualquer problema na sua vida aí de lá pra cá eu
fiquei rezando/ num fiquei rezando ninguém não/ fiquei guardando
assim no pensamento/ com mais um bocado de ano mas eu sempre
me lembrava/ mas (...)

(14)
L2 eu rezo qualquer PROblema na vida ... porque ele ...quando me
ensinou isso... quando ela me ensinou ... a pessoa que me
ensino...i/isso foi um rapaz que me ensinou/ ele fazia dez anos
que tinha morrido... ele disse assim... com essas oração... que
você sabe/eu só sabia de quatro oração...aí então... rezando pra
curar engasgo que é fácil demais... tomar sangue de palavra é
bem pouquinho...esses aí eu sabia... dor de (...)

Ainda segundo os autores, em segundo e terceiro lugares estão


respectivamente a autocorreção iniciada pelo outro e a correção feita e iniciada
pelo outro. No corpus examinado foram encontrados casos em que o interlocutor,
não entendendo o que foi dito, demonstra sua dificuldade através de repetições
ou da expressão “o quê?”, com nos casos seguintes:

(15)
L2 (...) da serra ...aí assim coitado só faltava morrer... veio aqui
...aí eu... mandei ele ...arrumar o remédio... ele arrumou... fiz
ficou BONzinho...e eu sofro de gastrite e não tem coragem de
tomar... porque é FEdorento demais... banha de cágado
Vol. 6 - No. 1 - 2004 135

L1 é o quê?
L2 daquele cágado preto
L2 BAnha de cágado preto ... da d’água... ela disse você pegue...
arranje a banha de (...)

(16)
L1 sei... o senhor reza quantas vezes ( incompreensível) quantas
vezes o senhor reza assim por dia?
L2 quantas pessoas?
L1 sim
L2 ... eu num conto não mas às vezes cheguei a rezar aqui
cinqüenta e seis pessoas...

(17)
L2 aí você sabe... agora você não sabe dizer foi fulano poi.. ã um
am
L1 no no meu caso o senhor não rezou mau olhado não...né? o
senhor rezou...
L2 em você?
L1 sim...
L2 eu rezei o corpo geral... porque eu rezo assim rezo geral...
L1 fechou, né?... fechou geral
L2 ( )

Na conversação em exame não aparecem heterocorreções, caracte-


rísticas de conversações muito polêmicas, o que não é esse caso.
As correções podem ocorrer no mesmo turno ou em turnos diferentes.
Marcuschi (1986, p. 32), citando Streek, explica a urgência da correção no
mesmo turno por uma motivação estrutural ou pressão estrutural. Segundo
ele, o falante prefere truncar sua fala a perder a oportunidade de reparar um
erro, por temer passar a chance de reparar um erro.

(18)
L2 (...) não pode nem pisar? tem um cara aqui com... dois...o pai e
o filho... cada um tinha oito...em cada um pé quatro... aí eu
rezei... rezei ele ...rezei assim três sextas-feiras seguida...eu
..(....)

(19)
L1 de repente sentiu isso
136 Revista do Gelne

L2 foi eu tomei... não tomei e andei ...assim como daqui ali naquela
esquina... tinha um passador.. quando eu subi que peguei aí recebi
esse problema... dormente e fiquei dormente... três dias... com três
dias voltei pelo mesmo caminho quando peguei no (...)

(20)
L1 aí o senhor chegou a a a ...
L2 ...(...) com aquelas oração que a menina ensinou você pode rezar
qualquer problema na sua vida aí de lá pra cá eu fiquei rezando/
num fiquei rezando ninguém não/ fiquei guardando assim no
pensamento/ com mais um bocado de ano mas eu sempre me lembrava
(...)

Em alguns casos, a correção é parcial, confundindo-se com a paráfrase.


No trecho seguinte, L1 faz a pergunta em um turno, mas L2 não ouviu, em
virtude de estar falando. Repete a pergunta em outro turno, logo que tem a
oportunidade, mas mesmo assim sua pergunta não é compreendida, provocando
diversas reelaborações do enunciado, o que faz ver o caráter interativo e
colaborativo da correção.

(21)
L1 [o senhor tem visão?]
L2 [quando eu vou pros hospital eu rezo eles num quarto
separado(...)
L1 tá certo, tem que ser um quarto separado né?
L2 [ lá é bom porque na minha casa não tem cômodo nem eu posso
fazer
L1 é ...é... quando o senhor reza...
L2 nem interesso mais fazer
L1 quando o senhor reza o senhor tem visão não?
L2 ver o quê?
L1 visão... o senhor consegue ver a a a vibração da pessoa?...
L2 [ às vezes tem tem muitas vezes eu vejo ( incompreensível )]
L1 o senhor vê o espírito que acompanha a pessoa?

4 Tipos de erros

Há vários tipos de erros e diversos mecanismos são usados para repará-


los. Pessoa (1990, p. 23) distingue três blocos de erros, de acordo com o nível
Vol. 6 - No. 1 - 2004 137

de descrição lingüística reconhecido: os fonético-fonológicos, morfossintáticos


e semântico-pragmáticos. Não foram encontrados no corpus erros do tipo
fonético-fonológico nem morfossintáticos. Predominam erros que podem ser
vistos principalmente como impropriedades nas informações.

(22)
L2 tô ... dentro do hospital um DOEnte dentro desse hospital eu não
gosto de rezar no hospital que eu rezo em qualquer hospital tô eu
fui entrevistado rezo em todos eles mas ... eu não gosto de rezar em
hospital não porque quando eu vou rezar um doente aí eu rezo ao

5 Marcadores e padrões lingüísticos de correção

Os principais marcadores da correção, segundo Barros e Melo (1990)


são a pausa, prolongamento de vogais, repetição, truncamento ou interrupção,
expressões verbais estereotipadas, mudança na curva entonacional, aceleração
do ritmo. Acrescentam ainda marcadores paralingüísticos ou não-verbais como
o olhar, os gestos, os movimentos da cabeça, entre outros. Todos esses
procedimentos funcionam para marcar dúvidas ou dificuldades em relação à
continuidade do enunciado, ao mesmo tempo em que garantem tempo para
que o falante reformule seu discurso.
Eis, a seguir, alguns procedimentos lingüísticos empregados nas atividades
de correção, apontados na literatura e encontrados no texto analisado:

(23)
L2 foi ...eu me acordei com uma azia infe:liz...comi... um pedaço de
uma galinha muito gorda ali... aí fui dormir mas quando
acordei, mulher, foi morrendo... morrendo não, com aquela
GAStura ...a a senhora já sofreu azia?
L1 [é fica ruim ter azia... é muito ruim]

(24)
L2 [mas quando eu rezava assim por lista digamos eu pegava sua
lista né rezava hoje /que eu tenho MUItas ali/ um caderno
assim ..um ãn eu acho que eu acho tenho bem vinte ... un ..não
vinte ou trinta (...)
138 Revista do Gelne

6 Funções da correção

Uma das principais funções das correções é garantir a boa compreensão


entre os participantes da conversação, através da reformulação de enunciados
inadequados. Barros e Melo (1990, p. 30) apresentam as funções da correção
organizadas em três grandes blocos:
a) funções cognitivo-informativas: a correção tem o objeto de levar o
ouvinte a bem compreender as informações objetivas do falante;
b) funções pragmáticas ou enunciativas: a correção procura levar o
ouvinte a compreender o falante, suas opiniões e sentimentos e seu papel
social;
c) funções interacionais: a correção tenciona fazer o ouvinte reconhecer
as intenções do falante, no que toca às relações intersubjetivas e aos
envolvimentos emocionais.

7 Considerações finais

Neste estudo, objetivou-se mostrar alguns procedimentos de reformulação


textual, a partir de uma entrevista feita com um rezador popular, voltando-se
principalmente para uma aplicação da teoria sobre os procedimentos de
reformulação, observados no corpus analisado, com destaque maior para
paráfrases e correções.
Observou-se que o texto falado apresenta problemas de formulação que
podem ser percebidos através de hesitações ou correções e paráfrases. As
atividades de formulação, que acontecem em textos falados ou escritos,
desempenham uma importante função na construção desses textos. Elas
ocorrem de forma distinta nessas duas modalidades da língua: no texto escrito,
as inadequações podem ser refeitas de maneira que o leitor só recebe a versão
final do texto, enquanto no texto falado, elaboração e produção “coincidem no
eixo temporal”, deixando marcas que permitem detectar os procedimentos
usados pelo falante, a fim de conseguir atingir seu objetivo comunicacional.
A partir dessa análise, foi possível observar que esses mecanismos de
reformulação desempenham uma importante função na construção do texto
oral, no momento em que permite maior interação entre os participantes de
uma conversação.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 139

Referências

BARROS, Diana Luz Pessoa de, e MELO, Zilda Maria Zapparoli Castro. Procedimentos
e funções da correção na conversação. In: PRETI, Dino e URBANO, Hudinilson (org.).
A linguagem falada culta na cidade de São Paulo: materiais para seu estudo. Vol. IV.
São Paulo, T.A . Queiroz / FAPESP, 1990.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Procedimentos de reformulação: a correção. O processo
interacional. IN: Preti, Dino (org.). Análise de textos orais. vol. 1, 2 ed. São Paulo:
FFLCH/USP, 1993.
BRAIT, Beth. O processo interacional. In: Preti, Dino (org.). Análise de textos orais.
vol. 1, 2 ed. São Paulo: FFLCH/USP, 1993.
FÁVERO, Leonor L., ANDRADE, Maria Lúcia da Cunha V. de Oliveira, AQUINO, Zilda
Gaspar Oliveira de. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino de língua materna.
São Paulo: Cortez, 1999.
HILGERT, Urbano. Procedimentos de reformulação: a paráfrase. In: Preti, Dino (org.).
Análise de textos orais. vol. 1, 2 ed. São Paulo: FFLCH/USP, 1993.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo:
Contexto, 1997.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da Conversação. São Paulo: Ática, 1986.
140 Revista do Gelne
Vol. 6 - No. 1 - 2004 141

Maridelma Laper uta*

SUJEITO NULO NA AQUISIÇÃO: UM PARÂMETRO EM


MUDANÇA – SUJEITO PREENCHIDO NA APRENDIZAGEM:
A ETERNA TENTATIVA DE MUDANÇA
ABSTRACT: The aim of this paper is to explain away the research entitled “The null subject: not more
acquired, but supposing learned”, that has been developing by me at UNIOESTE – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – Foz do Iguaçu – Brasil. This is a research that compares data, about
syntactic subject, in language acquisition (of a 2 years old child) and in mother language learning of
school age children. The purpose of this research is to argue my initial hypothesis: the acquired
subject by the children is not null. And to inquire: “what does the school do with this children non-pro-
drop parameters?”
KEY-WORDS: Null subject; principles and parameters; language acquisition.

1 O Parâmetro do Sujeito Nulo

Se considerarmos que as línguas naturais são um “dote” do ser humano


e apenas dele e que todos os seres humanos possuem um mesmo “dote”
lingüístico, poderíamos supor que todas as línguas são iguais. Entretanto,
sabemos que essa suposição não é verdadeira. Há diferenças entre as línguas
naturais de todo o mundo que não se restringem apenas a diferenças lexicais,
fonéticas ou fonológicas, mas também, a diferenças na organização das palavras
nas sentenças, na sintaxe. Como, então, explicar esse aparente paradoxo: todos
os seres humanos possuem um mesmo aparato lingüístico (concepção inatista
da aquisição da linguagem) e, ao mesmo tempo, determinados grupos se utilizam
de códigos lingüísticos e de estruturas sintáticas diferentes para sua
comunicação e interação?
Como se sabe, a Teoria Gerativa traz uma alternativa para essa questão.
São as definições de “princípios e parâmetros”. Desde 1981, quando
Chomsky propôs um modelo de gramática baseado em princípios e parâmetros,
os estudos de variação e mudança lingüísticas, no âmbito da Teoria Gerativa,
tomaram novos rumos. As línguas naturais, então, passaram a ser analisadas

* Docente do Centro de Educação e Letras da UNIOESTE – Universidade Estadual do


Oeste do Paraná – Campus Foz do Iguaçu.
142 Revista do Gelne

em termos de Princípios Universais - responsáveis pelo que há de semelhante


entre as línguas – e Parâmetros – responsáveis pela variação, isto é, pelo que
as diferencia.
No que se refere ao estudo dos Parâmetros, um dos fenômenos que têm
sido estudados é a possibilidade de algumas línguas apresentarem o sujeito
nulo. Tal possibilidade diferencia, por exemplo, o Italiano, que o permite, do
Inglês, que não o permite.
O parâmetro responsável por esse tipo de diferença entre as línguas é o
famoso e discutido Parâmetro do Sujeito Nulo (CHOMSKY, 1981). Tem sido
proposto como tendo sua particularidade básica definida em termos das
propriedades flexionais das línguas: em línguas, como o Italiano, que têm o
sistema flexional “rico”, o elemento agreement (concordância) permite a
omissão do sujeito; línguas com agr “pobre”, caso em que se insere o Inglês, a
omissão do sujeito não é permitida1. Segundo Chomsky (1981), essa correlação
com a flexão visível não precisa ser exata2, mas há alguma propriedade abstrata
de agr correlacionada mais ou menos com a morfologia visível, que distingue
línguas pro-drop de não-pro-drop.
Com relação ao Português do Brasil, o que muitas pesquisas (por exemplo,
Duarte (1995)) têm mostrado é que ele está deixando de licenciar o sujeito
nulo referencial. Isso tem sido relacionado à redução na riqueza flexional sofrida
por essa língua. No entanto, tem-se verificado na escrita um uso ainda
significativo de sujeitos pronominais nulos (MAGALHÃES, 2000).

2 Sujeito Nulo? Onde?

A partir do contato com a tese de doutorado de Duarte (1995), valorizando


o conteúdo de sua pesquisa e de outros que também têm-se interessado pela
pronominalização do sujeito (FERREIRA, 2000), elaborei minha primeira
pesquisa realizada com esse objeto de estudo (LAPERUTA, 2002) e verifiquei,
dentro do modelo Sociolingüístico Variacionista, a presença ou ausência do
sujeito nulo nas orações finitas, de um corpus composto por entrevistas de
falantes da cidade de Londrina (no Norte do Paraná), para saber se, também

1
Há ainda outras hipóteses (não abordadas aqui) a respeito da possibilidade que
certas línguas têm de apresentarem categorias vazias (neste caso, o sujeito nulo)
sem marcas de concordância, como o caso do Chinês (HUANG, 1982).
2
Chomsky faz essa observação, baseado no fato de que há línguas que apresentam
um sistema flexional misto, permitindo o apagamento do sujeito em algumas
construções, mas não em outras (Hebraico, Irlandês).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 143

naquela comunidade, a posição de sujeito tem sido preenchida por prono-


me.
Considerava ter um resultado que me permitisse afirmar que, também
ali, o português está passando por um processo de mudança no que se refere à
sua sintaxe pronominal e, além disso, que a realização foneticamente nula ou
plena desse sujeito associa-se a contextos lingüísticos como, por exemplo,
pessoa gramatical e tipo de referência expressos pelo sujeito.
Houve um resultado bastante satisfatório se comparado às hipóteses
que eu havia levantado. Quase todos os fatores lingüísticos e extralingüísticos
corresponderam a outras pesquisas já realizadas sobre parâmetro pro-drop.
Através das análises da variável pessoa gramatical, pude comprovar
os resultados, uma vez que, no cômputo geral, a segunda pessoa aparece
como a que possui maiores índices de sujeito pleno:
“Eu sei que você3 é de Curitiba, mas você não torce pro Coritiba
né?” (Pr Ld 19).4
E a terceira pessoa, os menores. Considerei a hipótese de que a
existência de um referente externo reforça os traços enfraquecidos por agr,
como pode ser observado em outras pesquisas sobre o mesmo objeto (LIRA,
1982; TARALLO, 1985; DUARTE, 1995; MAGALHÃES, 2000). “Reforça”
esses traços, mas não tem sido suficiente para o aparecimento do sujeito nulo,
uma vez que mesmo as terceiras pessoas parecem estar precisando de Spec
de IP5 preenchido (MAGALHÃES, 2000).

3
O pronome tu, de 2a. pessoa, não é utilizado na região, por isso, foi considerado
apenas o você como pronome pessoal de 2a. pessoa.
4
Os exemplos foram retirados do corpus do projeto VARSUL (Variação Lingüística do
Sul do País) e a abreviatura PrLd significa que são entrevistas do Paraná, da cidade
de Londrina. Os números, na seqüência, indicam a entrevista de que foram extraídos
(1 a 24).
5
Spec de IP – na linguagem da teoria gerativa, significa a categoria na qual se insere o
sujeito.
144 Revista do Gelne

45
41
39
40
36
35

30 28

25
%
Sujeito nulo
20

15 13

10

0
EU VOCÊ ELE A GENTE ELES

Gráfico 1: procentagem de sujeito nulo por pessoa gramatical

É possível observar, pelo gráfico acima, que os menores índices de sujeito


nulo aparecem na 2a. pessoa (você) e os maiores aparecem nas 3a. pessoas
(mesmo assim, com percentuais abaixo de 50%).
A única exceção refere-se à 3ª pessoa arbitrária, que ainda resiste
com mais de 50% de sujeito nulo em orações finitas:

“É muda. É muda. (cv6) Planta, né? Faz-se a cova, (cv) planta ali,
tá? (cv) Aduba” (Pr Ld 01)).

Galves (2001), que discorre sobre a interpretação das categorias vazias,


embora afirme que “a interpretação determinada ou indeterminada do
sujeito nulo depende do contexto...” (p. 48), demonstra, com exemplos, que
são vários os casos em que o sujeito nulo em PB recebe interpretação
indeterminada. Além disso, acredito que a inclusão, na amostra, das orações
coordenadas não iniciais:

“Sabe quando você saí às seis horas e (cv) chega só às cinco da


tarde?... (PrLd21),

e das orações que se fazem basicamente em português com sujeito nulo


e verbo:

E: “Você lembra como é que foi? F: (cv) Lembro” (PrLd15)

tenham “enviesado” o resultado.

6
cv – categoria vazia. Neste caso, sujeito nulo.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 145

Inclusão essa que não significa “erro”, mas surge a partir de uma noção
intuitiva de indícios de mudança também nesses contextos, tidos como ambientes
categóricos de sujeito nulo. Sobre essa “noção intuitiva”, posso afirmar, baseada
nos dados estatísticos, que se trata de algo mais do que uma simples intuição.
Como já foi dito, se, até em línguas não pro-drop, as orações coordenadas
não iniciais com sujeito correferente possuem sujeito nulo, línguas pro-drop,
como “ainda” é considerado o PB, deveriam, obrigatoriamente, ter sujeito nulo
nessas orações. Entretanto, observei que, do total dos sintagmas (inseridos em
coordenadas não iniciais) analisados, 46% têm sujeito pleno. Observe os
exemplos:

“... você vai na igreja, você ora, você pede a palavra, você sente de
ficar com Deus” (PrLd03).
“Ela mora em Curitiba, ela está lá agora, sabe? Morando lá”. (PrLd
02).
“A gente saía no sábado e a gente chegava lá no domingo à tarde.
Daí a gente voltava pra casa, né?” (PrLd 07).

A resistência do pretérito perfeito à mudança mais que os outros


tempos (inclusive nas orações coordenadas não iniciais), a destacada correlação
entre preeenchimento e orações subordinadas, especificamente as relativas
e a quase irrelevância da transitividade para o preenchimento do sujeito
comprovam que os falantes londrinenses possuem a mesma tendência à perda
da propriedade de sujeito nulo, observada por Duarte (1995), em outra variedade
geográfica do português brasileiro.
O fator animacidade do referente do sujeito de 3ª pessoa também
mostrou que o sujeito nulo é preferido quando o referente for [-animado], como
esperado:

“...então acho que (falando da novela) (ec) não terminou não, viu?
Não é possível terminar assim, então, (ec) não teve fim, sabe?”
(PrLd 02)

Mas com um resultado interessante: o fato de ter apenas 23% de sujeitos


nulos com o grupo que possui 2º grau completo e esse grupo ser, em sua maioria,
composto de falantes do grupo etário mais jovem mostra que (pelo menos com
relação a essa variante) existe uma evidência de mudança.
146 Revista do Gelne

O sujeito duplo é, sem dúvida, um dos mais fortes indícios de mudança:

“É..., o meu cunhado, ele ia namorar a minha irmã, quando tudo


aconteceu” (PrLd 13).

Segundo Kato (1999), a mudança no paradigma flexional tornou o agr


do PB [-pronominal], “não sendo mais possível licenciar o sujeito nulo via
morfologia verbal”. Isso fez com que surgisse um paradigma de “pronomes
fracos” visíveis no PB que passaram a ser duplicados pelos nominais fortes,
dando origem à duplicação do sujeito.
O fator faixa etária, porém, contradisse minhas hipóteses, uma vez que
o grupo de falantes mais velhos, no cômputo geral, utilizou-se mais de sujeito
pleno do que o grupo dos mais jovens. As demais pesquisas tinham demonstrado
que os falantes mais velhos preenchem menos o sujeito que os mais jovens, o
que, verdadeiramente, denotaria mudança lingüística.

3 A Escolaridade

Entretanto, essa contradição cai por terra se se considera sua correlação


com a variável escolaridade. Para Magalhães (2000), a escola é o grande
contribuinte para que o falante “aprenda” sujeito nulo: ele adquire a língua
materna com sujeito pleno e aprende que não deve preencher essa categoria,
quando de sua escolarização. O que também foi observado é que os falantes
mais velhos possuem menos escolarização do que os mais jovens e, por esse
motivo, pôde-se inferir que essa escolarização seria a responsável pela categoria
vazia na posição do sujeito.
Os resultados referentes ao fator sexo também, aparentemente,
mostraram-se incoerentes, uma vez que, como pode ser comprovado em
pesquisas sociolingüísticas (OLIVEIRA; SCHEERE, 1996), são as mulheres
que tomam a frente da mudança e, portanto, deveriam ser elas as maiores
responsáveis pelo aparecimento do sujeito pleno. Porém, uma vez considerando
que as mulheres são mais conservadoras em relação a formas mais prestigiadas
(PAIVA, 1996) e conjeturando que a variante sujeito nulo é prestigiada, uma
vez que é aprendida na escola, não vejo incoerência; pelo contrário, encontro
uma justificativa para esse resultado.
Considerando a relevância desses resultados (que, apenas aparen-
temente, são contraditórios), imaginei que seria interessante continuar
pesquisando esse objeto de estudo em outra Região do português falado no
Brasil. Assim, estou iniciando uma pesquisa que considera uma correlação
Vol. 6 - No. 1 - 2004 147

entre aquisição da linguagem (sob a luz do inatismo) e aprendizado de


língua – com objeto de estudo “o sujeito” – na cidade de Foz do Iguaçu (também
no Paraná).

4 Aquisição de Língua Materna Versus Aprendizagem de Língua


que “se diz” Materna

Para um estudo cujo objetivo é verificar como um mesmo fenômeno se


comporta na aquisição da linguagem oral e na aprendizagem da linguagem
escrita, faz-se necessário explicitar a diferença que envolve essas duas
modalidades. Por essa razão, especifico abaixo como estou entendendo aquisição
e aprendizagem.
Aquisição de língua materna é o processo pelo qual o falante entra
em contato com a língua por meio de um “input” natural externo. Na aquisição
da linguagem, a criança precisa

estar inserida no ambiente lingüístico da língua que está adquirindo e não ter
ultrapassado o período crítico, para ter as informações necessárias para
desenvolver o sistema lingüístico correspondente a essa língua (MAGALHÃES,
2000, p. 78).

Não é necessário que indiquem para ela quais os caminhos a seguir


nesse percurso. Assume-se, portanto, que adquirir a fala é algo biológico da
espécie humana, um processo natural, no sentido de que ela se desenvolve
sem a necessidade de correções ou instruções. Já aprendizagem é o processo
em que há algum tipo intervenção ou estímulo externo (KATO, 1999). A
aprendizagem da escrita, por sua vez, é uma “habilidade cultural durante a qual
o aprendiz, normalmente, necessita de ajuda para descobrir de quais mecanismos
ele pode dispor para usá-la de uma forma eficiente” (MAGALHÃES, 2000).
A criança, que já passou pelo processo de aquisição, vai para a escola
com um conhecimento gramatical de língua materna (Gramática-I7) pronto e,
muitas vezes, ao chegar à escola, é apresentada a formas que não correspondem
àquelas que ela adquiriu. Mesmo diante de formas diferentes, a criança vai
utilizar o conhecimento de que já dispõe e a escola vai tentar reprimir esse uso
através das correções, pois esse conhecimento não condiz com aquele exigido

7
Gramática-I (gramática internalizada): nos termos da Teoria Gerativa, é o mecanismo,
o conjunto de regras que é dominado pelos falantes e que lhes permite o uso normal
da língua – individual – aquela que desenvolvemos quando crianças.
148 Revista do Gelne

pela Gramática Normativa para a escrita. Como conseqüência, têm-se


produções escritas com uma mistura de formas que reflete o conhecimento da
gramática que o aluno leva para a escola (sua Gramática-I) e das regras que
lhe são ensinadas durante o processo de ensino-aprendizagem.
Se o PB está passando por um processo de mudança com relação ao
uso de sujeito nulo (DUARTE, 1995) e, se é a criança que detona o processo
de mudança (LIGHTFOOT, 1991), minha expectativa, assim como em
Magalhães (2000), é de que a produção oral da criança apresente um índice de
pronomes plenos mais altos do que aqueles apresentados pelos dados da escrita.
Tal resultado mostraria que o processo de mudança no PB, com relação ao uso
de sujeitos pronominais nulos, já estaria implementado e que sua gramática já
se encontraria estável. Portanto, os sujeitos pronominais nulos encontrados na
escrita seriam, realmente, frutos da aprendizagem escolar.

5 Propósitos do Trabalho

Minha proposta, nesta pesquisa, é então, observar o uso dos sujeitos


pronominais nulos vs plenos na fala de uma criança em fase de aquisição e
na escrita escolar. O objetivo é verificar se as restrições encontradas na
língua oral são ainda verificadas durante a escolarização e, caso isso não
se verifique, buscar os fatores que determinam a ocorrência do sujeito
pronominal nulo vs pleno na escrita.
Entre outras, em princípio, procurarei responder às seguintes perguntas,
que trarão os resultados da pesquisa:

l O que a criança traz de sua gramática-I para a escola?


l A escola consegue reverter quantitativamente as inovações
apresentadas pela gramática do PB com o processo de mudança?
l Como o sujeito nulo se desenvolve durante a escolarização, isto é,
ele apresenta as mesmas restrições encontradas na fala e na intuição
do falante adulto?

6 Caminhos a serem Percorridos

Para verificar o uso que se faz do sujeito nulo e não nulo na oralidade da
criança e na escrita dos escolares, utilizarei a metodologia da Sociolingüística
Quantitativa para o levantamento dos condicionamentos lingüísticos e
extralingüísticos.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 149

A Sociolingüística Quantitativa é um modelo teórico-metodológico


que, embora não tenha sido criado por Labov, foi por ele sistematizado. Foi ele
quem mais “veementemente”, segundo Tarallo (1997), insistiu na relação entre
língua e sociedade e na possibilidade, virtual e real, de sistematizar a variação
existente e própria da língua falada, língua essa que pode ser definida como o
veículo lingüístico de comunicação usado em situações naturais de interação
social, do tipo comunicação face a face (TARALLO, 1997). Essa língua é o
que constitui o objeto de estudo desse modelo, o material básico para a análise
sociolingüística. Esse modelo é chamado “quantitativo” porque opera com
números e tratamento estatístico dos dados coletados.
O corpus para esta pesquisa está sendo coletado. Primeiramente, foi
realizada a coleta de 12 textos produzidos por alunos e alunas da primeira fase
do Ensino Fundamental (2a. e 3a. séries) em uma escola pública da cidade de
Foz do Iguaçu. E, no presente momento, estou coletando os dados orais de
uma criança de 2 anos e 5 meses. Para isso, estão sendo feitas gravações da
fala da criança em situação informal.
Farei, então, um estudo, em tempo aparente8, do uso dos pronomes nulos
e plenos, com intuito de investigar quais sujeitos preenchidos constituem
inovações da criança em relação aos dados da escrita, para verificar qual o
papel da aprendizagem no uso de sujeitos nulos que aparece nessa modalidade.
Depois da análise, serão computados os dados (tanto os orais, como os
escritos). Para isso, utilizarei o programa computacional VARBRUL, uma
ferramenta da informática, que atribui porcentagens relativas à variável
dependente ‘sujeito nulo vs sujeito pleno’ e pesos relativos, referentes ao
preenchimento do sujeito, a cada um dos fatores citados, além de realizar
também cruzamentos entre os fatores independentes.

7 Contribuições

Considerando que os dados lingüísticos que serão analisados nessa


pesquisa são de uma criança nascida na cidade de Foz do Iguaçu, em fase de
aquisição, a análise certamente trará uma mostra de como está acontecendo
esse processo de mudança lingüística (no que se refere ao sujeito sintático)
especificamente nessa Região brasileira que, por questões sócio-culturais, é
um ambiente lingüístico mais heterogêneo e diversificado que muitos outros
lugares do país.
No que se refere à questão extralingüística, como já disse, tenho como

8
Para maiores esclarecimentos de tempo aparente, vide TARALLO (1997).
150 Revista do Gelne

hipótese (baseada em outras pesquisas) que a criança adquire a linguagem


com a categoria sujeito preenchida e, na escola, é “ensinada” que não deve
preencher essa categoria porque a flexão verbal é suficiente para indicar a
pessoa e o número gramaticais. A análise dos textos escritos de crianças em
idade escolar verificará a função da escola na “correção” da aquisição da
linguagem. Ou seja, o quanto e como a escola ainda desconhece das mudanças
que ocorrem na língua.

Referências

CHOMSKY, Noam. Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris, 1981.


DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. A perda do princípio “Evite Pronome” no português
brasileiro. 1995. ... f. Tese (Doutorado em Ciências da Linguagem) Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, 1995.
FERREIRA, Marcelo Barra. Argumentos nulos em português brasileiro. 2000. ...f.
Dissertação (Mestrado em Lingüística) Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2000.
GALVES, Charlotte. Ensaios sobre as gramáticas do português. Campinas: Ed. da
Unicamp, 2001.
KATO, M. A. “Aquisição e Aprendizagem da Língua Materna: de um saber inconsciente
para um saber metalingüístico.” In MORAES, J.; GRIMM-CABRAL (orgs) Investigações
à Linguagem: ensaios em homenagem a Leonor Scliar-Cabral. Florianópolis: Editora
Mulher, 1999.
LAPERUTA, Maridelma. A realização do sujeito pronominal: um estudo
sociolingüístico paramétrico para a cidade de Londrina – Norte do Paraná. 2002. ...f.
Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) - Universidade Estadual
Paulista: Araraquara, 2002.
LIGHTFOOT, David. How to set parameters: arguments from language change.
Massachusetts: The MIT Press, 1991.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 151

LIRA, Solange de Azambuja Nominal, pronominal and zero subject in brazilian


portuguese. 1982. Tese (Doutorado) - University of Pennsylvania: University Microfilms
International. 1982.
MAGALHÃES, Telma Moreira Vianna. Aprendendo sujeito nulo na escola. 2000. ...f.
Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) - Universidade Estadual de
Campinas: Campinas, 2000.
OLIVEIRA SILVA, Giseli Machline de; SCHERRE, Martha Maria Pereira. (Org.) Padrões
sociolingüísticos : análise de fenômenos variáveis do português falado na cidade do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.
PAIVA, Maria Conceição. Sexo. In: MOLLICA, Maria Cecília. (Org) Introdução à
sociolingüística variacionista. 3 ed. Rio de Janeiro. UFRJ (Cadernos Didáticos), 1996.
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. 6 ed. São Paulo: Ática, 1997.
TARALLO, Fernando. The filling of the gap: PRO-DROP rules in Brazilian Portuguese.
In L. D. KING; C. A. MALEY (Eds.) Selected papers from the XIIIth Linguistic
Symposium on Romance Languages. Capel Hill, N.C., 24-26 March 1983. Published as
Current Issues in Linguistic Theory, 36. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins,
1985.
152 Revista do Gelne
Vol. 6 - No. 1 - 2004 153

Regina Baracuhy*

A PROPAGANDA TURÍSTICA É UM GÊNERO DO DISCURSO?


ABSTRACT: This article aims at discussing if touristic advertisiment may be considered a discourse
genre, according Bakhtin´s theory.
KEY-WORDS: Touristic advertisiment; genre; discourse analysis.

Os gêneros do discurso são as correias de transmissão


que levam da história da sociedade à história da língua.
Nenhum fenômeno novo (fonético, lexical, gramatical)
pode entrar no sistema da língua sem ter sido longamente
testado e ter passado pelo acabamento do estilo-gênero.

(Mikhail Bakhtin)

1 Entrando na ordem do enunciável

A importância de discutir se a propaganda turística é um gênero do


discurso, na acepção que o filósofo russo Mikhail Bakhtin emprega o termo, é
mostrar que há um jogo de regras que controlam o funcionamento e a circulação
dos discursos sociais. Por isso, não se pode dizer o que se quer quando se quer,
mas os discursos são socialmente organizados, inserem-se numa ordem
enunciativa e são regulados, moldados pelos gêneros que os constituem. Como
salienta Bakhtin (1997, p. 302):

Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam


as formas gramaticais (sintáticas). (...) Se não existissem os gêneros do discurso
e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no
processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a
comunicação verbal seria quase impossível.

Na ótica do mestre russo, a utilização da língua efetua-se sob a forma de


enunciados, considerados como “unidades básicas da comunicação verbal”.

* Universidade Federal da Paraíba


154 Revista do Gelne

Para ele, cada esfera da comunicação social apresenta “tipos relativamente


estáveis de enunciados”, sendo isso que Bakhtin designa de gêneros do
discurso. Todos os gêneros apresentam três elementos indissociáveis: conteúdo
temático, estilo (recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais) e construção
composicional, marcados pelas especificidades dos modos de enunciação.
Para identificarmos a propaganda turística como um gênero do discurso,
vamos verificar se ela apresenta os três elementos acima citados, uma vez que
eles são condições indispensáveis para a classificação do gênero.
Quanto ao conteúdo temático, o conjunto de enunciados que compõem
os textos de propaganda, selecionados nesse trabalho, refere-se aos estados
do Nordeste que eles anunciam. Por se filiarem a uma formação social1
capitalista, os dizeres da propaganda turística visam a transformar o espaço
nordestino em um bem de consumo, uma mercadoria que ofereça prestígio,
status social e, conseqüentemente, poder a quem a adquire. Objetivando vender
esse espaço como destino ideal para viagens com finalidades turísticas e de
lazer, a propaganda redimensiona o Nordeste, num processo metonímico, em
que se toma a parte (Litoral) pelo todo (região). Para descreverem os atrativos
turísticos da costa litorânea nordestina – foco temático da propaganda –, os
enunciados, em sua maioria, se ancoram no mito do paraíso tropical, que é
constantemente ressignificado na materialidade textual da propaganda. Essa
perspectiva ufanista, em que o litoral aparece somente como sinônimo de oásis,
fartura, e “reino da diversão”, mascara a realidade social do Nordeste, onde
riqueza e pobreza convivem dialeticamente. Todavia, a produção de um dado
discurso ocorre em condições de possibilidade específicas, logo, ele se insere
em uma ordem: a ordem do enunciável, que delimita o “que pode e o que deve
ser dito”.
Não seria compatível, na ordem enunciativa da propaganda turística, a
exposição das mazelas sociais, uma vez que a finalidade maior desse discurso
é fazer o público-alvo comprar o produto anunciado. Há, portanto, regras e
restrições que regem os gêneros – formas materiais dos discursos sociais.
Como sintetiza Brait (2001, p. 32): “O gênero discursivo diz respeito às coerções
estabelecidas entre as diferentes atividades humanas e os usos da língua nessas
atividades, ou seja, as práticas discursivas implicam necessariamente coerções”.
Sendo o texto da propaganda turística, submetido à voz institucional, que
se marca em diversas posições enunciativas, as coerções desse dizer delimitam
a atividade turística na região, instituindo para o Nordeste, rotas turísticas
orientadas quase em sua totalidade para as capitais litorâneas, e apagando,

1
O conceito de formação social, definido por Pêcheux na primeira época da Análise do
Discurso, refere-se aos modos de produção em uma dada sociedade.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 155

silenciando outros caminhos possíveis, como as regiões do Brejo, Cariri e Sertão,


como analisa Cruz (2000, p. 210):

O litoral nordestino, uma estreita faixa de, aproximadamente, 3.300 quilômetros


de extensão, é o território eleito nesta região pelo e para o turismo, ou seja, para
se especializar como território turístico receptivo. Este Nordeste turístico, repleto
de diferenças e contradições, esconde, por outro lado, um Nordeste que o
turismo e o turista não vêem, um território onde pobreza e concentração de
renda são elementos importantes do processo de construção do lugar.

Em se tratando de estilo, podemos dizer que os enunciados, dos textos


de propaganda turística, caracterizam-se pela opacidade, pelo jogo com as
formas do sistema lingüístico, pela constante utilização de recursos expressivos,
como figuras de linguagem, que configuram uma polissemia enunciativa. O
slogan do estado do Maranhão, que circulou na mídia no ano de 2001, anuncia:
Maranhão. O segredo do Brasil. Neste último enunciado, o vocábulo “segredo”
é extremamente opaco, podendo significar de diversas maneiras, de acordo
com a situação enunciativa em que ele se insere. Ele tem como referência
próxima o topônimo Maranhão, o que possibilita relacioná-lo a todo o estado.
Mas qual é o segredo do Maranhão? Esse enigma o leitor somente descobre
ao ler o restante da propaganda, pois o “segredo” pode ser a Festa de São
João, tal qual ela ocorre na capital maranhense, com “Bois de Matraca, Zabumba
e Orquestra, numa sinfonia ‘única de alegria e paixão”, ou o “segredo” pode
estar no Parque dos Lençóis Maranhenses, “onde impossível é não voltar”, ou
ainda para entender por que o Maranhão é “uma terra inesquecível”, o “segredo”
é ler as poesias do “romancista José Sarney”. Enfim, a eficácia do vocábulo
segredo, na cadeia enunciativa, decorre de sua opacidade, a qual possibilita a
multiplicidade dos sentidos no slogan e atesta a natureza fugidia dos sentidos,
que ora se escondem (na própria acepção do vocábulo segredo como “aquilo
que não pode ser revelado”), ora se deixam entrever na materialidade sintático-
lexical da propaganda. Por isso, para Bakhtin, a palavra é sempre plural e
inacabada.
Além disso, a atividade turística no Maranhão não é tão intensa quanto a
de outros estados nordestinos como o Ceará e a Bahia. Por isso, para muitos
turistas do Brasil e do exterior, ainda há, no Maranhão, inúmeros “segredos”
que eles desconhecem. Com o propósito de atrair riquezas por intermédio do
turismo, o governo do estado procura instigar a curiosidade do turista para
descobrir o que o texto de propaganda anuncia, ou seja, os roteiros turísticos
do estado e assim, conseguir o seu intento: implementar a vinda de turistas e
conseqüentemente lucrar com o turismo local.
Seguindo a mesma estrutura formal do slogan maranhense, temos:
156 Revista do Gelne

Aracaju. A novidade do Nordeste. Novamente, observamos a opacidade no


vocábulo “novidade”, que à semelhança do slogan maranhense, objetiva atrair
a atenção do público, fazê-lo interessar-se em adquirir o produto à venda. Esse
jogo, de/com os sentidos na estrutura enunciativa, caracteriza o estilo do texto
publicitário, em geral, e da propaganda turística, em particular, pois é um
procedimento recorrente em todos os textos que compõem o corpus dessa
pesquisa. Ferreira (2000, p. 108) esclarece que

isso acontece porque a língua é um sistema sintático intrinsecamente passível


de jogo. E dentro desse espaço de jogo, as marcas significantes da língua são
capazes de deslocamentos, transgressões, de rearranjos. É isso que faz com
que um determinado segmento possa ser ele mesmo ou outro, através da metáfora,
da homofonia, da homonímia, dos lapsos da língua, dos deslizamentos sêmicos,
enfim, dos jogos de palavra e da dupla interpretação de efeitos discursi-
vos.

O uso de empréstimos lexicais, provenientes em sua maioria, da língua


inglesa, como o anglicismo point, é verificado em vários enunciados que
compõem os texto de propaganda turística. A propaganda oficial do estado da
Bahia (publicada na revista Caminhos de Salvador) afirma que Salvador é “o
novo point do Brasil”; mas a revista internacional Condé Nast Traveler indica
o Ceará como “um dos points mais quentes do milênio” e na Paraíba, “o point
mais festejado na orla, no entanto, é Tambaú, com seus hotéis de luxo,
restaurantes internacionais e regionais, bares, boates, mercados de artesanato,
barraquinhas de comidas típicas e vendedores de frutas tropicais”.
Essa técnica de construção dos enunciados, utilizando-se de terminologia
estrangeira, revela a ideologia capitalista que regula o discurso da propaganda
oficial. Vender uma mercadoria é a grande finalidade do discurso publicitário
e o turismo é uma das atividades econômicas mais rentáveis do mundo. Para a
Análise do Discurso, o discurso materializa o contato entre o ideológico e o
lingüístico, pois ele representa no interior da língua, os efeitos das contradições
ideológicas e manifesta a existência da materialidade lingüística no interior da
ideologia.
O discurso da propaganda turística sobre o Nordeste – instância da
materialidade ideológica – visa a atrair turistas do exterior, como também os
“de casa”, sendo essa uma das justificativas para o uso de empréstimos lexicais
em sua estrutura enunciativa. Para os turistas internacionais, o uso de
anglicismos surte um efeito de identificação pela empatia lingüística e
conseqüentemente atrai o seu interesse para o produto enunciado, já em relação
ao turista brasileiro, os vocábulos estrangeiros – Beach Park, show-room,
Vol. 6 - No. 1 - 2004 157

point – funcionam como símbolos de status e riqueza, que despertam nele, o


desejo de obter a mercadoria anunciada.
Além disso, o fato de a voz estrangeira agregar um valor material à
estrutura simbólica, evidencia a superioridade econômica do país importador
do vocábulo (geralmente os Estados Unidos) sobre o Brasil e o domínio sócio-
cultural americano, que se difunde, sobremaneira, pelos veículos da mídia
nacional, como é o caso da propaganda turística oficial, influenciando condutas
lingüísticas e determinando valores sociais. Essa relação constitutiva entre
linguagem e ideologia, tão cara aos estudos da Análise do Discurso, já inquietava
Bakhtin. Em sua obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (publicada na Rússia
em 1929), o pensador russo afirma que:

A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações


das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos
constituídos, já que a ‘ideologia do cotidiano’, que se exprime na vida corrente,
é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas (1992, p.
16).

A linguagem coloquial – caracterizada pelo uso de termos e expressões


do cotidiano, bem como por pequenos desvios da variante culta da língua – é
outro traço estilístico da propaganda turística oficial. Por exemplo, a utilização
do verbo “ter” no sentido de “haver”, a forma sincopada da preposição para:
“pra”, a questão da regência do verbo ir: “ir em” ao invés da variante culta “ir
para” são casos de uso extremamente produtivos na fala do cotidiano e na
escrita informal. O enunciado abaixo, integrante do texto de propaganda do
estado do Ceará, publicado na revista Veja em 13 de junho de 2001, ilustra bem
esse tipo de linguagem:

“Tem coisas que só indo no Ceará pra entender como é bom.”

Também a utilização de gírias, como o verbo curtir, é um recurso de


persuasão utilizado para causar um efeito de empatia com o público-alvo, criando
um tom de conversa informal, íntima, para fazer o consumidor sentir-se “em
casa”, diminuindo a distância entre enunciador e enunciatário; dissimulando,
assim, o eventual receio de se estar em terra estranha, desconhecida, na “casa
do outro”. A propaganda do estado da Bahia (aquela da revista Caminhos de
Salvador) assim convida seu leitor(a):

Venha para Salvador e descubra todos os encantos da primeira capital do Brasil.


Salvador está de cara nova, muito mais bonita. Aqui, você curte de tudo: folclore,
festas populares, música, dança, comidas típicas, os banhos noturnos com
águas mornas e cristalinas, shows e novíssimas atrações (grifo nosso).
158 Revista do Gelne

Já o sujeito enunciador da propaganda do Ceará avisa (13/06/2001):

Quem curte a agitada vida noturna de Fortaleza e descobre o rico artesanato, a


culinária deliciosa e todo o conforto da bem estruturada rede hoteleira cearense,
fica ligado para sempre ao Ceará. Uma terra de gente hospitaleira e bem-humorada
com um jeitinho de falar que cativa na hora (grifo nosso).

A ênfase no registro da linguagem cotidiana, informal, da propaganda


está diretamente relacionada com a imagem do povo nordestino que se quer
construir nesse gênero: pessoas de hábitos simples, alegres, hospitaleiras, como
enfatiza a propaganda do Rio Grande do Norte: “os nativos desse belo e
riquíssimo litoral são simples, amigos, hospitaleiros”. Segundo Ferreira (2000,
p. 114):

A linguagem publicitária em seu propósito de atrair a atenção do público (cliente


em potencial) explora, não raro com bastante eficácia, recursos expressivos
contidos na própria estrutura significante do sistema lingüístico. Dessa forma,
realiza, em algumas formulações, um trabalho do sentido com o sentido,
incorporando o caráter oscilante e paradoxal que perpassa a língua no registro
do cotidiano.

Na ótica bakhtiniana, “as palavras dos outros introduzem sua própria


expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos,
modificamos” (1997, p. 314). Alguns enunciados da propaganda turística sobre
o Nordeste fazem circular a voz de um personagem ilustre no cenário estadual,
porém de prestígio reconhecido nacionalmente, para dar credibilidade ao seu
discurso. É o caso do Maranhão, em que o texto da propaganda turística se
constitui por um recorte de trechos do romance de José Sarney – ex-presidente
da República, nascido no Maranhão, onde foi também Governador do Estado –
, citado na estrutura enunciativa. Interessante observar como a propaganda
desse estado recoloca Sarney em cena; apagando seu lugar social como político
e privilegiando sua posição de romancista. Essa escolha confere um tom erudito
ao texto, pelo recurso de utilização do discurso literário, outro gênero que se
entrelaça com a propaganda, fazendo emergir a história do povo maranhense,
num jogo de memória, em que se ressignifica o passado, atualizando-o na
contemporaneidade do texto publicitário.
Subi a ladeira do Desterro como os holandeses,
franceses e portugueses que nos amaram .
O cheiro da terra e o sacrifício de chegar em caravelas
não indicavam os caminhos de voltar
Ninguém partiu, mas todos voltaram.
José Sarney- Romancista
Vol. 6 - No. 1 - 2004 159

Observa-se, ainda, na linguagem da propaganda, o uso de recursos


expressivos como a utilização de figuras de linguagem. No folder distribuído
pela Prefeitura Municipal de Lucena, praia localizada no litoral norte da Paraíba,
lê-se na capa: “Lucena, um lugar chamado Liberdade”. O animismo, prosopopéia
ou personificação2 é um tipo de metáfora que “humaniza” esse espaço
geográfico, acenando para o leitor-alvo com a ilusória utopia de ele gozar ali, a
liberdade, de forma plena. Ao jogar com a natureza simbólica da palavra
“liberdade”, a propaganda ativa a fantasia e o desejo do turista de conhecer/
descobrir um lugar ideal para o lazer. Dessa maneira, a propaganda municipal
redimensiona o espaço real, transformando–o em sonho possível. Na
compreensão de Castoriadis (1982, p. 152):

A sociedade constitui seu simbolismo, mas não dentro de uma liberdade total. O
simbolismo se crava no natural e se crava no histórico (ao que já estava lá);
participa, enfim, do racional. (...) Nem livremente escolhido, nem imposto à
sociedade considerada, nem simples instrumento neutro e medium transparente,
nem opacidade impenetrável e adversidade irredutível, nem senhor da sociedade,
nem escravo flexível da funcionalidade, nem meio de participação direta e
completa em uma ordem racional, o simbolismo determina aspectos da vida da
sociedade (e não somente os que era suposto determinar) estando ao mesmo
tempo, cheio de interstícios e de graus de liberdade.

Ainda em relação ao estilo da propaganda oficial, podemos apontar o


uso de regionalismos (o uso do verbo “arribar”, por exemplo, na propaganda do
Ceará), que conferem um efeito de identidade a esse gênero.
Por ter um caráter essencialmente persuasivo, o foco do processo
enunciativo, no discurso publicitário, é o outro. Por isso, o destinatário aparece
inscrito no fio do discurso, tanto de forma direta, pelo dêitico você (que, na
linguagem coloquial, funciona como um pronome do caso reto), quanto
indiretamente, pelo verbo na terceira pessoa do singular, ou ainda, expresso
pelo pronome relativo quem. Observem-se os exemplos, a seguir:

“O sol, o mar e a nossa tranqüilidade estão esperando por você”. (propaganda


de Sergipe)
“Siga as trilhas da natureza”. “Respeite a sinalização do Parque” (propaganda
do Piauí)
“Quem não gosta de beleza, do bom e do melhor sem gastar muito?” (propaganda
do Rio Grande do Norte)
2
Animismo, Prosopopéia ou Personificação é um tipo de metáfora que funciona como
uma projeção de sensações, havendo um deslocamento de sentido que consiste em
transferir algo inerente ao universo humano para o mundo dos seres inanimados ou
irracionais, a fim de fazer as coisas “falarem e sentirem” .
160 Revista do Gelne

Bakhtin, em Estética da Criação Verbal (1997), assegura que

Ter um destinatário, dirigir-se a alguém, é uma particularidade constitutiva do


enunciado, sem a qual não há, e não poderia haver, enunciado. As diversas
formas típicas de dirigir-se a alguém e as diversas concepções típicas do
destinatário são as particularidades constitutivas que determinam a diversidade
dos gêneros do discurso.

Enfim, para se interpretar os enunciados típicos da propaganda turística,


é preciso lê-los sempre em relação ao outro, sendo este a quem o texto se
destina, como também outros textos e discursos com os quais esse gênero
dialoga. Além disso, no espaço enunciativo, é mister compreender o verbal,
sempre em relação necessária com o não-verbal, isto é, com as imagens que
compõem o texto sincrético da propaganda, pois é nesse intercruzamento de
palavras e imagens (permeadas por vestígios da memória de outras) que os
sentidos se estabelecem, materializando-se nas formas cristalizadas dos gêneros
textuais.
Estabelecendo fronteiras para a produção e circulação dos dizeres sociais,
o gênero discursivo delineia a estrutura do enunciado, o qual é definido por
Bakhtin como “um elo na cadeia da comunicação verbal, que não pode ser
separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por dentro, e
provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica” (1997,
p. 320).
Quanto ao modo de construção composicional, a propaganda turística
enquadra-se na categoria de gênero complexo, secundário. Para Bakhtin, os
gêneros se classificam em primários (simples) e secundários (complexos). Os
primários dizem respeito à atividade lingüística relacionada com os discursos
orais em seus mais variados níveis: do diálogo cotidiano à carta pessoal, passando
pelo discurso didático, dentre outros; já os gêneros secundários: discurso literário,
científico, político, etc., são elaborados por meio de uma comunicação cultural
mais complexa, principalmente escrita. O pensador russo assinala que os gêneros
não são categorias estanques, pelo contrário, são intercambiáveis. Bakhtin
explica que durante o processo de formação dos gêneros secundários, eles

absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies,


que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea.
Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários,
transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem
sua relação imediata com a realidade existente e a realidade dos enunciados
alheios (1997, p. 281).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 161

Como vimos, os enunciados que constituem o discurso da propaganda


turística são bastante complexos, pois se por um lado, a linguagem utilizada é a
do cotidiano, com palavras e expressões amplamente usadas no dia-a-dia,
portanto próxima da oralidade primária; por outro lado, ao ser deslocada para o
discurso publicitário, essas formas coloquiais passam por um processo de
acabamento estético, que as diferenciam na situação enunciativa do discurso
em pauta.

2 Os suportes textuais da propaganda turística: o folder, a revista


e o site eletrônico

Todos os gêneros discursivos necessitam de uma materialidade para fazer


circular os seus dizeres. No caso da propaganda turística oficial sobre o Nordeste,
são os folders turísticos, as revistas e os sites eletrônicos dos órgãos
institucionais de turismo que constituem os suportes materiais que abrigam os
sentidos dos textos da propaganda turística oficial.
Cada um desses suportes textuais assemelha-se quanto à finalidade:
divulgar produtos e serviços do trade turístico estadual, e quanto ao conteúdo
temático, constituem-se por imagens e textos verbais que versam sobre roteiros
turísticos, informações sobre datas de festas e eventos turísticos, como também
indicam como chegar, onde ir e onde comer. Em outras palavras, encontra-se,
nos folders, a localização de rodovias, aeroportos, praias, rede hoteleira e
restaurantes que compõem a infra-estrutura turística do município ou estado
nordestino. No entanto, esses suportes diferenciam-se quanto ao público-alvo,
forma de circulação e formato estrutural.
De acordo com o Dicionário de Comunicação (1978, p. 210), folder é
uma palavra originária da língua inglesa (to fold = dobrar). Ele é definido como
“um folheto publicitário, constituído de uma só folha impressa, com duas, três
ou mais dobras”. SOUZA & CORRÊA (2000) acrescentam que o folder é
um impresso, de circulação não-periódica, que se constitui de informações
referentes a uma oferta, seja produto ou serviço.
O folder turístico não apresenta o período ou a data de divulgação do
texto impresso; é pela presença obrigatória do slogan estadual ou municipal
(marca da gestão administrativa oficial) que se deduz, aproximadamente, o
tempo de circulação desse tipo de folheto publicitário. Composto por uma única
folha com várias dobras, esse formato estrutural do folder possibilita um amplo
leque de informações (históricas, econômicas, sócio-culturais) sobre a cidade
ou estado que ele anuncia.
O folder exibe um número de informações turísticas bem maior do que
162 Revista do Gelne

um texto de propaganda inserido em uma revista semanal, como a Veja; por


outro lado, a sua forma de distribuição e o meio de circulação são mais restritos.
A distribuição do folder é local, ou seja, ele é entregue diretamente ao turista
que está eventualmente visitando a cidade. Geralmente, os folhetos circulam
apenas nos espaços destinados a divulgar o turismo da cidade, por isso ele é
encontrado nos balcões das agências de viagens, hotéis, nos órgãos oficiais de
turismo e em eventos turísticos locais.
Há, também, as publicações turísticas institucionais como as revistas.
Assim como os folders, elas não têm uma periodicidade definida e não contêm
o período ou data de impressão e/ou divulgação. Igualmente têm distribuição
direta ao turista (leitor-alvo) e circulam de forma local e restrita aos órgãos
ligados ao turismo estadual ou municipal. Entretanto, esse tipo de revista é
usualmente financiado pelo órgão oficial de turismo em nível estadual, enquanto
o folder, até mesmo pelo custo mais barato, é publicado tanto pelo estado
como pelos municípios.
Outra diferença entre a revista e o folder reside no formato estrutural.
A revista constitui-se de reportagens que divulgam as festas e eventos turísticos
realizados ou a se realizarem no circuito estadual, como os “carnavais fora de
época” que acontecem em diversas capitais nordestinas: MICAROA,
CARNATAL, RECIFOLIA, FORTAL, dentre outros. Os textos também
discorrem minuciosamente sobre as potencialidades turísticas da região. Além
disso, as revistas apresentam, em suas páginas, propagandas de hotéis e
propagandas turísticas oficiais do estado, estas sempre em destaque, seja na
capa posterior, como o faz a revista Caminhos de Salvador, seja em folha dupla
na parte central da publicação, como acontece em Trade News, revista turística
oficial de Pernambuco. Esse suporte impresso serve ainda para divulgar as
ações que a instituição responsável pelo turismo em âmbito estadual
(EMPETUR, PIEMTUR, PBTUR, por exemplo) está desenvolvendo.
A propaganda eletrônica dos órgãos estaduais de turismo, divulgada nos
sites turísticos oficiais, tem em comum com os demais suportes textuais, o
conteúdo temático e a função: divulgar os atrativos turísticos do estado sob a
perspectiva institucional. Todavia, na migração dos textos, das páginas impressas
para o computador, muitas diferenças são observadas. Uma delas é a relação
com o público-leitor. Enquanto os folders e as revistas de turismo se destinam
ao turista empírico, a abrangência do público-leitor dos sites eletrônicos de
turismo é bem maior, pois qualquer indivíduo que possua ou tenha disponível
um computador pode “navegar” na página da internet e tornar-se um turista
virtual. Se a propaganda impressa em revistas ou folhetos é exposta ao olhar
público, podendo ser dobrada, amassada, levada para casa, lida em ônibus, o
texto eletrônico localiza-se distante dos corpos e dos hábitos coletivos, estando
Vol. 6 - No. 1 - 2004 163

reservado ao olhar exclusivo do leitor virtual, que precisa dominar a técnica de


captação de dados via internet para poder ter acesso às informações do site
turístico.
Também muda a materialidade do texto, que não mais é o impresso, mas
a tela do computador e com isso, modifica-se o modo de leitura da propaganda.
Para Chartier (1998, p. 92): do códex à tela, os novos dispositivos formais dos
textos eletrônicos modificam as condições de recepção e compreensão do
leitor. A respeito dessa “revolução” da leitura do objeto impresso para o texto
eletrônico, comenta Chartier (1998, p. 100):

A revolução do texto eletrônico será ela também uma revolução de leitura. Ler
sobre uma tela não é ler sobre um códex. Se abre possibilidades novas e imensas,
a representação eletrônica dos textos modifica totalmente a sua condição: ela
substitui a materialidade do livro pela imaterialidade de textos sem lugar
específico; às relações de contigüidade estabelecidas no objeto impresso ela
opõe a livre composição de fragmentos indefinidamente manipuláveis; à captura
imediata da totalidade da obra, tornada visível pelo objeto que a contém, ela faz
suceder a navegação de longo curso entre arquipélagos textuais sem margens
nem limites.

O formato estrutural do site eletrônico turístico difere bastante dos textos


de propaganda impressos. Esse ciberespaço apresenta menus, submenus, ícones
para orientar o leitor/turista a fim de ele conseguir as informações desejadas.
Ao invés de páginas, o site possui links, que permitem uma leitura “verticalizada”
ou “em camadas” de vários textos não-visíveis na página principal. Além disso,
os links do texto eletrônico estabelecem uma rede intertextual através de
interconexões, que disponibilizam para o leitor, informações diversas sobre
turismo no interior do espaço virtual em que ele se encontra ou em outros
lugares do universo virtual (GREGOLIN, 2000).
Na maioria dos sites turísticos oficiais, encontram-se, na página principal,
imagens dos roteiros turísticos oferecidos pelo estado. Elas podem aparecer
em lugares fixos na página de abertura, como no site oficial do estado de
Alagoas (www.visitealagoas.com.br), ou ainda as imagens são exibidas através
de flashes em movimento, como no site da Bahiatursa
(www.bahiatursa.ba.gov.br), órgão do governo da Bahia, em que elas aparecem
na parte inferior da página principal, emolduradas por uma película preta,
simulando um trailler de filme, através do qual se vislumbram alguns dos
principais points turísticos do estado. As imagens também podem se localizar
na faixa superior da tela, como acontece no site do governo estadual do Piauí
(www.piemtur.pi.gov.br). Graças ao avanço tecnológico, as imagens dos sites
eletrônicos de turismo, associadas à linguagem verbal, criam impactantes efeitos
164 Revista do Gelne

de referencialidade, fazendo o leitor acreditar na possibilidade de “viver” a


realidade virtual.
Além das imagens, o site eletrônico oficial apresenta uma coluna central,
onde figura um texto escrito, em geral, versando sobre os principais atrativos
turísticos do estado e “convidando” o turista para conhecê-los. Na lateral
esquerda, geralmente aparece um índice das seções que você pode acessar
para saber mais sobre os assuntos nele elencados. Essa estrutura organizacional
confere ao site, um caráter didático, pois oferece várias opções de leitura em
seu universo virtual, possibilitando ao leitor “recortar”, “colar”, imprimir,
“anexar”, enfim, interagir diretamente com os textos que lhe convier. Por outro
lado, a leitura no site obedece a uma ordem específica e está organizada pelos
dispositivos técnicos, visuais e físicos que direcionam o modo de ler eletrônico.

Assim como nos textos impressos de propaganda turística, os sites são


espaços virtuais destinados a implementar as atividades do órgão institucional,
que se auto-promove ao divulgar as potencialidades turísticas do estado. Por
isso, todos eles apresentam o nome do governo do estado e seu logotipo, bem
como o slogan turístico que particulariza a gestão administrativa vigente.
Em relação ao gênero propaganda turística, podemos concluir que a
estrutura enunciativa complexa de que se compõe, decorre da heterogeneidade
que a constitui e torna possível:

– os vários discursos no interior de um único discurso,


– os deslocamentos de sentido (retomadas, apagamentos e os jogos
Vol. 6 - No. 1 - 2004 165

semânticos que exibem o trabalho com as formas verbais e não-verbais),


– a alteridade do sujeito enunciador, que se apresenta disperso em toda
a cena enunciativa, ora explicitando, ora mascarando, no discurso
publicitário, a voz institucional que regulamenta seus dizeres.

Os textos de propaganda, que compõem o corpus dessa pesquisa,


apresentam regularidades enunciativas que se podem observar, tanto em nível
de conteúdo temático – anunciar o espaço nordestino –, quanto de estilo –
através de uma linguagem coloquial trabalhada esteticamente – como também,
se constituem pelo cruzamento de vários textos e discursos, arquitetonicamente
organizados, na materialidade textual por um sujeito enunciador heterogêneo e
disperso, através das formas típicas do discurso da propaganda: – os enunciados
que singularizam o modo de dizer da propaganda turística oficial sobre o Nordeste
–, caracterizando-a como um gênero discursivo.
Para finalizar esse artigo, concluímos que o conceito de gênero
bakhtiniano, ao articular os usos da língua às diversas esferas da atividade
humana, revela a indissociabilidade entre as práticas discursivas (instituídas
através do processo de interação verbal) e as práticas sociais, ou em sentido
lato, a relação constitutiva entre a língua e a vida. Nas sábias palavras do
mestre russo: “A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que
a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra
na língua” (1997, p. 282).
Segundo Bakhtin, todos os enunciados de uma dada língua se enquadram
em um gênero, ou seja, estão articulados a um tema, a um estilo e a uma
construção composicional, entretanto, o gênero não é uma camisa-de-força do
dizer, como salienta Daniel Faïta (1997, p. 173): “Contradição entre a pregnância
incontornável das normas e a liberdade do projeto discursivo: os gêneros do
discurso apresentam-se ao locutor como recursos para pensar e dizer”.

Referências

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Vol. 6 - No. 1 - 2004 167

Rosa Virgínia Mattos e Silva *

UM ESTUDO DE ASPECTOS DO LÉXICO


NOS TROVADORES DO MAR
ABSTRACT: The present study focuses on aspects of the lexicon, mainly nouns, verbs and idioms, in
Trovadores do Mar, making use of Elsa Gonçalves’s recent published work that retrieves Celso
Cunha’s Paay Gômez Charinho (1945), Joan Zorro (1949) and Cancioneiro de Martin Codax (1956)
editions.
KEY-WORDS: Old portuguese lexicon aspects; medieval portuguese cancioneiro.

Compõem o admirável trabalho de Elsa Gonçalves não só as reimpressões


das referidas edições de Celso Cunha – O Cancioneiro de Paay Gômez
Charinho (1945), O Cancioneiro de Joan Zorro (1949) e O Cancioneiro de
Martin Codax (1956), mas ainda notas introdutórias a cada cancioneiro, ou
seja, ‘apostilas’, comentários apostos ao Cancioneiro de Joan Zorro, em que
Elsa Gonçalves discute o confronto que fez entre a edição publicada desse
cancioneiro e o exemplar anotado de Celso Cunha, isto é, o exemplar de trabalho
do autor.
O conjunto de cantigas dos trovadores do mar perfaz um total de
quarenta e seis cantigas – vinte e oito de Charinho, onze de Joan Zorro e sete
de Martin Codax. Não partirei aqui dos eruditos glossários de Celso Cunha,
apensos às edições das cantigas de Joan Zorro e Martin Codax, mas dos textos
editados das cantigas com o objetivo de examinar o campo léxico-semântico,
que designarei de amar e navegar nos trovadores do mar.
Considerarei apenas nomes (substantivos e adjetivos), verbos e lexias
feitas. Mas distinguirei as cantigas de amigo das de amor: Paay Gômez Charinho
tem, na edição de Celso Cunha, dezenove cantigas de amor – de I a XIX; seis
de amigo – de XX a XXV, sendo as três últimas “de escárnio” – XXVI a
XXVIII (p. 140), que aqui não considerarei. As de Joan Zorro (onze cantigas)
e Martin Codax (sete cantigas) são todas cantigas de amigo. Assim investigarei,
no total, quarenta e três cantigas para tentar alcançar o meu objetivo – amar e
navegar nos tovadores do mar, um campo léxico-semântico.
Antes de iniciar a análise dos dados nas cantigas referidas, gostaria de
tecer breves considerações, com base em Giuseppe Tavani, reconhecido
* UFBA/CNPq/Grupo PROHPOR.
168 Revista do Gelne

especialista da lírica medieval galego-portuguesa. No seu artigo, A poesia lírica


na literatura hispânica do século XIII (1988[1967 e 1969]), Tavani define o
contexto poético das cantigas de amigo:

O seu ambiente é sempre marítimo ou campestre, com um cenário esquemático


ou nitidamente caracterizado pela presença do mar, do ribeiro, da fonte, das
aves, das árvores e das flores. E a cantiga de amigo é um eterno diálogo da
donzela com tudo que a rodeia, um diálogo em que ouvimos apenas, por vezes
uma voz, a da protagonista ... porque a voz do interlocutor, se não aparece
fisicamente, reflecte-se aí, todavia, indirectamente (1988, p. 43).

Mais adiante, ao tratar das chamadas “origens” dessas cantigas, do debate


antigo e conhecido, opta pelas kahrag&at ou jarchas e diz:

(...) se poderia ver no uso do Habib, em vez de amigo, um reflexo da realidade


bilingüe da Espanha muçulmana ... daí esse homogênero poético chegou aos
poetas galego-portugueses, talvez através de um período de aclimatação
românica ao nível popular, durante o qual se teria eventualmente processado a
“tradução”, ou seja, adaptação ao novo meio, latino e cristão (idem, p. 45).

Ao tratar ainda das origens da lírica medieval, embora não explicite,


estar se referindo às cantigas de amor, apresenta a interessante hipótese que
é a de correlacionar essa questão aos “métodos da geografia lingüística”. (idem,
p. 48), ou seja, da geografia lingüíistica areal, que é, como sabido, de origem
italiana, pelo menos no âmbito da romanística. Aplicando o conceito de “áreas
periféricas”, diz:

A área galego-portuguesa recebe a nova concepção da poesia através da


Catalunha e, sobretudo, através de Toledo, durante todo o século XIII (e até à
morte de Afonso X, em 1284), [que é] o principal centro de recolha, adaptação e
distribuição no ocidente peninsular (idem, p. 50).

Considera que sua hipótese

Supõe que as mutações sofridas pelos trovadores na área galego-portuguesa


tenham sido provocadas principalmente por três elementos: o afastamento dessa
poesia do lugar de nascença a mediação de uma área intermédia, a tradução-
adaptação para uma língua e um meio cultural diferentes (ibid.).

Estou consciente de que simplifiquei o artigo de Giuseppe Tavani, mas,


para não me estender mais, tentarei perseguir o meu objetivo já antes explicitado:

amar e navegar, campo léxico-semântico nos Cancioneiros do mar.


Vol. 6 - No. 1 - 2004 169

Do campo léxico do amor, já tratou Machado Filho (2003) em textos do


tipo religioso, que congrega o amor carnal, o espiritual e o amor fraternal.
Diria que aqui tratarei do amor marinheiro, delicado e singelo, sobretudo nas
cantigas de amigo.
Carolina Michaëlis de Vasconcelos, referindo-se a Charinho, um dos
trovadores do mar, e que, creio, se poderia estender às cantigas de amigo de
Zorro e Codax, expressa:

Afigura-se simpática e nobre a fisionomia dêste homem do mar. Nem uma só vez
abusa da liberdade concedida aos trovadores medievais para licensiosamente
expandir as fezes do seu pensar e sentir. Nenhuma palavra vil afeia seus versos
(cf. Elsa Gonçalves, p. 31).

Dessas “fezes” e “palavra vil”, de que tratei em outro trabalho, Elsa


Gonçalves diz sobre as palavras citadas anteriormente: “é claro que hoje não
podemos subscrever esta interpretação do cancioneiro do grande poeta” (ibid).
Viu-se que Charinho nos legou três cantigas d’escarnho, de que, como dito
antes, não tratarei aqui.
Sobre esse poeta diz Giuseppe Tavani que seu

discurso lingüístico de tom contido, caracterizado por uma fluidez insólita de


texturas retóricas e pelo emprego de termos e expressões muito raras é, por
vezes, único, muitas vezes imerso no léxico marítimo (Lanciani e Tavani, 1993,
s.v. Pai Gomes Charinho).

Em primeiro lugar considerarei as cantigas de amor de Charinho para


depois tratar das cantigas de amigo dos três trovadores do mar.
Tentarei primeiro observar o mar e o navegar nas cantigas de amor do
“trovador almirante”, uma vez que o amar e o amor e o amor é tema de todas
elas como seria de esperar.
Dentre as dezenove cantigas de Charinho, são as de número III, VI, XII
e XVI aquelas em que o mar e navegar ou estão expressos ou podem ser
inferidos.
Inferem-se nas cantigas VI e XII e estão expressos nas de número II e
XVI, segundo a minha interpretação. Vejamos:

Na Cantiga VI o trovador se despede da senhor, provavelmente porque


vai navegar:

Ora me venh’eu, senhor espedir (v. 1).


Andareu triste, cuydando no vooso parecer (v. 12).
170 Revista do Gelne

E do meu corpo que será senhor / quand’el d’alá o vosso desejar? (vs. 15-16).
muy sen vergonha irey per u for / ora con graça de vós, mya senhor (vs. 32-33).

Na cantiga XII o trovador tem de partir e se conforma com a lembrança


da senhor:

e quero-vosleixar / encomendad’este meu coraçom (vs. 1 e 2).


se vos algu)a vez nembrar / ca de vós nunca el se partirá (vs. 4 e 5).
nembre-se (d’el) sempr’e faredes i / gram mesura ...” (vs. 10 e 11).
[meu coraçom] ... mays quer sempre vosso morar / ca nunca soub’amar
(tant’)outra rem e nembre-se d’el, senhor (vs. 18 e 19).

Na cantiga III, o trovador não é amado pela senhor e é o seguinte o


refrão da cantiga, em que o amado expressa que não o podem livrar dessa
coyta:

mar, nem terra, nem prazer, nem pesar / nem bem, nem mal nom my-a
podem quitar (vs. 5, 6, 11, 12, 17, 18).

Na cantiga XVI, compara “coyta d’amor” e “coyta do mar”, o que está expresso
no refrão:

coyta d’amor nam faz escaecer / a muy gram coyta do mar (vs. 5, 6, 11, 12, 17,
18).

Conclui seu lamento:

Po(la) mayor coyt’a que faz perder / coyta do mar, que fez muitos morrer (vs. 19
e 20)

Parece que, para o trovador, a coyta d’amor é mais forte que a coyta
do mar.
Tratarei as demais cantigas de Charinho, considerando nomes
(substantivos e adjetivos), verbos e lexias feitas que caracterizam seus cantares
d’amor. Note-se que Charinho é um sofredor e a senhor é caracterizada por
inúmeras qualidades. Começarei, então, pelas qualidades da senhor, seguindo
a ordem das cantigas, ao mesmo tempo em que se expressam nessas cantigas
a coyta do trovador:
Qualidades da senhor e a coyta d’amor do trovador:

a bela figura (C.I, v.1)


a bondade (C. I, v. 2)
Vol. 6 - No. 1 - 2004 171

a mesura (C. I, v. 3)
a melhor dona do mundo (C. I, v. 21).

Tantas qualidades levam o trovador a morrer (CI, v21).

Na cantiga II, desiste o trovador da senhor. Observem-se as lexias


feitas:

queria-me lh’eu muy gram bem querer / mays non queria por ela morrer (vs. 5,
6, 11, 12 e 17, 18).

É esse o refrão.
Justifica-se o trovador:

Ca nunca lhi tam bem posso fazer / serviço morto, como se viver (vs. 19 e 20).

Na cantiga IV, o trovador vê a amada, mas

nunca dix’o que dizer querria (v. 28);

é assim que finaliza esse seu cantar. Por quê? Viu a dona, mas

non lh’ousey atento dizer (v. 5) ... e vi-a / eu por meu mal, sey-o per bõa fé (vs.
8-9).

Dessa visão resulta:

mays quand’e vi / o seu bom parecer / vi, amigos, que mya morte seria (vs. 20-
21).

Na cantiga V, a senhor é:

fremosa (v. 1).


seu bem (v. 8).
lume de seus olhos (v. 14).

Na cantiga VII, o trovador qualifica a senhor como:

muy fremosa (v. 7).


muyt’aposta (v. 13).
muy mans’e bõa razom (v. 14).
das donas a melhor (v. 16).
172 Revista do Gelne

Na cantiga VIII, vê o trovador a senhor, mas não a alcança. É o que


expressa o refrão:

nom vos pês e catarem vós, que a desejarem (vs. 5, 6, 11, 12, 17, 18).

Os olhos dele

am sabor de vos catar (v. 2) ... nunca podem dormir / nem aver bem (vs. 9 e 10).

Na cantiga IX, o trovador prefere

o gram bem / ca o gram mal (vs. 2 e 3).

e sobre o gram mal

Ca sofri eu mal por vós, qual mal, senhor / me quer matar (vs. 5 e 6).

Contudo deseja o bem da senhor:

e pod’assi veer qual é peor / – do gram bem ou do gram mal do sofrer (vs. 14
e 15).

Conforma-se, por fim com a lembrança da senhor:

Mays en que mal sofri / sempre por vós – e non bem – des aqui /
terríades por beò de vos nembrar (vs. 26, 27 e 28).

Na cantiga X, mais uma vez o trovador sofre pelo amor não


correspondido e deseja esse amor,

como desej’a noyte e o dia (v. 4).

seu sofrer chega à loucura

por muyt’afam que eu sofr’e sofri / por vós, senhor, e oymais des aqui /
pois entender que fac’i folia (vs. 5, 6 e 7)

e, por esse amor, poderia morrer

como nom moyro, e morrer devia, / por en rog’a Deus que me vlaha i, /
que sab’a coyta que por vós sofr’i (vs. 11, 12 e 13).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 173

Na cantiga XI, o refrão, parece-se, diz tudo

disse-m’oje ca me queria bem / pero que nunca me faria bem (vs. 11-12
e 17, 18).

Nela, ele viu a senhor

por mal deste meus olhos eu vi (v. 1).

e dela apenas obteve essa visão

melhor que dela pud’aver (v. 3).


melhor que m’ela nunca fez (v. 16).

Na cantiga XIII, sente-se o trovador incapaz de expressar o seu amor


pela poesia

E fazer nõ-na sey (v. 5).

porque

seria falar no que sempre cuydey; / no seu bem e no seu bom parecer (vs. 13 e
14).

Julga ter perdido a razão e já não sabe o que diz

mas como pod’achar bõa razom / ome coytado, que perdeu o sem / (...)
quando falo rem / que nom sey que me digo (vs. 15, 16, 17 e 18).

Então, para fazer o seu “cantar”, conforma-se com a lembrança.

E, se quero cantar, / choro, ca ele me nembra entom! (vs. 28 e 29).

Na cantiga XIV, dialogada, mostra que a “senhor” não entende mais o


“amigo”, o que antes acontecia,

(...) que vos prazia d’ouvides entom / em mi falar, e que nom é já si (vs. 3 e 4).

Todavia, o trovador morre de amor e não é entendido,

quero que moyra, que rem nom me val / ca vós dizedes dest’amor atol /
que nunca vos ende se nom mal vem (vs. 8, 9 e 10).
174 Revista do Gelne

Pergunta por fim

Mays que farey? / ca por vós muyr’e nom ey d’al sabor (vs. 11 e 12).

Na cantiga XV, mais uma vez, o trovador não é correspondido pelo


seu amor e melhor era quando não amava.

cuydava quand’amor nom avia / que nom prol s’el comigo poder (vs. 1 e 2).

Contudo, depois de amar, sem o amor não pode viver.

ojemays ca viver, / ca sofro coyta qual nom sofreria (vs. 9 e 10).

Diante disso, pede à amada que, pelo menos, se deixe ver.

ca nom lh’ouso dizer / que me valha, ca sey que me diria / que me


quitasse bem de a veer (vs. 23, 24 e 25).

Na cantiga XVII, mais uma vez é o amor que faz o trovador viver porque
a “senhor” é

fremosa (v. 1)
tem mansedume (v. 10).
tem bom parecer (v. 10).
tem bondade (v. 11).

Sonha então ele com o que vier e que o mantém vivo, o verdadeiro
amor.

ca sem desejos nunca eu vi quem / podessa’aver tam verdadeyro amor /


com’oj’eu, nem fosse sofredor / do que eu sofri. E esto me mantém (vs. 22,
23, 24 e 25).

Na cantiga XVIII, mais uma vez não é o poeta correspondido:

Ela, pero sey que lhe plazerá / de mya morte, ca nom quis nem querrerá,
/ nem quer que eu seja seu servidor (vs. 29, 30 e 31).

A razão do “sofrer”:

Ca nom á no mundo tam sofredor / que a veja, que se possa sofrer / que
ele nom aja gram bem de querer (vs. 15, 16 e 17).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 175

Melhor negócio seria, então,

e por esto baratará melhor / nõ-na veer, ca sem nom lhe valrá (vs. 18 e 19).

O trovador não quer dar conselhos, porque não se aconselhou a si mesmo:

May eu, que me faço conselhador / d’outros devera pera mi prender / tal
conselho (vs. 22, 23 e 24).

Na cantiga XIX, a última dentre as cantigas d’amor de Charinho,


expressa-se, no refrão, a súplica à senhor:

e pelo bem que vos quer, outrossi, / ay meu lume, doede-vos de mim! (vs.
5, 6; 11, 12; 17, 18 e 23, 24).

“A senhor” é fremosa (v. 1), o trovador é seu servidor (v. 4). Por que deve “a
senhor” ter pena do poeta?

porque vos nunca podedes per de / en aver doo de mim (vs. 13 e 14).

por quam mansa e por quam de / bom prez e por quem aposto vos / fez
falar Nostro Senhor (vs. 19, 20 e 21).

Esses recortes apresentados são, sem dúvida, uma violência à poética


de amor do trovador almirante. Trovador “sofredor” e “servidor”, por vezes
mal amado, também “conselhador”, está sempre a serviço da amada – mansa,
bem aposta, de bom parecer. Sofre sempre coytas d’amor e, por vezes,
conforma-se com a nembrança da sua amada. Tendo lido as cantigas na sua
totalidade , concordo com Tavani (1993, s.v. Pai Gomes Charinho), quando diz
que o seu discurso é contido, fluido e com texturas retóricas insólitas, como,
por exemplo na cantiga XVIII – “e por esto baratará melhor / nõ-na veer, ca
rem nom lhe valrá” (vs. 18 e 19) [‘fará melhor negócio’].
Passarei, em seguida, a examinar o campo léxico-semântico das Cantigas
de amigo, dos três “trovadores do mar”, para observar as formas de expressão
do amar e do navegar. Considerarei, como anteriormente: nomes (substantivos
e adjetivos; também lexias ou frases feitas). Pelo que direi, em seguida, tratarei,
em separado, as de Charinho.
Das vinte e quatro cantigas de amigo que compõem os Cancioneiros
dos trovadores do mar, são, certamente, as de Paay Gômes Charinho as mais
elaboradas quanto à forma. Dessas seis cantigas de número XX, XXI, XXII,
XXIII, XXIV e XXV, na edição de Celso Cunha, reimpressas por Elsa Gonçalves
176 Revista do Gelne

(1999, p. 133-140), diz da primeira – As frores do meu amigo, o especialista


galego Xosé Filgueira Valverde.

[A cantiga XX] junta o motivo erótico das flores com o do mar (...); de idéia
claramente desenvolvida, movimento aquecido e justa proporção é uma das
mais rigorosamente perfeitas do Cancioneiro segundo os cânones da
versificação dos trovadores (1992, p. 89-90) [tradução minha].

Destacarei, portanto, para iniciar essa cantiga composta de seis estrofes


que se iniciam por dois versos de estrutura paralelística, que transcreverei,
destacando os itens lexicais que interessam a este estudo:

As frores do meu amigo / briosas vam no navio! (vs. 1 e 2).


As frores do meu amado / briosas vam (e))-no barco! (vs. 7 e 8).
Briosas vam no navio / pera chegar ao ferido (vs. 13 e 14).
Briosas vam e)-no barco / pera chegar ao fossado (vs. 19 e 20).
Pera chegar ao ferido, / servir mi, corpo velido (vs. 25 e 26).
Pera chegar ao fossado, / servir mi, corpo loado (vs. 25 e 26).

Amigo e amado, pode-se dizer, são sinônimos perfeitos nas cantigas de


amigo; ferido e fossado, por metonímia, são também sinônimos de amigo e
amado. Note-se que, nos quatro primeiros versos acima transcritos, alternam,
também como sinônimos, navio e barco. Nos dois últimos versos acima, destaco
o “serviço amoroso”, próprio ao amor cortês à amada de corpo velido, de
corpo loado. E as frores briosas? Segundo Elsa Gonçalves e Maria Ana
Ramos, interogativamente, referem-se elas, metaforicamente, às “flores de lis
do escudo do Almirante Pai Gomez Charinho (?)” (1983, p. 214).
Ao final de cada estrofe, seguem-se os versos:

Idas som as frores / d’aqui bem com meus amores! (vs. 5 e 6; 11 e 12; 17
e 18; 23 e 24; 29 e 30; 35 e 36).

Certamente, a referência do refrão expressa a partida pelo mar, para a


guerra do Almirante amigo / amado, porque ferido e fossado têm referências
bélicas. Diga-se, para o leitor que não conheça o léxico medieval, que fossado
quer dizer: “obrigação que os nobres tinham de acompanhar o monarca nas
suas incursões em território inimigo” (GOLÇALVES e RAMOS, 1983, p. 332,
s.v.).
Os dois versos que intermedeiam os apresentados,

E vam-s(e) as frores / daqui bem com meus amores (vs. 3 e 4; 9 e 10; 15 e


16; 21 e 22; 27 e 28; 33 e 34),
Vol. 6 - No. 1 - 2004 177

parecem expressar a partida e o ato consumado de ir o amado para a guerra.


Não é sem razão que Filgueira Valverde assim interpreta o belo ritmo da cantiga:
“Sob seus versos estão, sem embargo, os remos a bater nas águas” (Ibid, p.
90) [tradução minha].
As cantigas XXI e XXV parecem expressar a seqüência dos
acontecimentos da XX. Inicia a XXI:

Disserom-m’oj’ay amiga! que nom / é meu amig’almirante do mar, / e


meu coraçom já pode folgar / e dormir já (...) (vs. 1 a 4).

A amada já pode folgar e dormir, o Almirante estará de volta, o que


ficará claro na cantiga XXV. Na seqüência da XXI, está:

Muy bem é a mim, ca já nom andarey / triste por vento que veja fazer,
nem por tormenta nom ey de perder / o son’ (...) (vs. 7, 8, 9 e 10).

A amada não há de perder o sono, nem andará triste, temendo vento e tormenta.

No belo refrão que acompanha as três estrofes,

o que do mar meu amigo sacou, / saque-o Deus de coytas qu’afogou (vs.
5 e 6; 11 e 12; 17 e 18),

almeja a amiga e pede a Deus que o amado tenha afogado no mar suas
coytas, já que no mar não se afogou.
Na cantiga XXV, breve e bela, agradece a amiga a Santiago por ter
trazido de volta o seu amigo:

Ay Sant’Iago, padrom sabido, / vós me adugades o meu amigo (vs. 1 e 2;


5 e 6).

Concluem as duas estrofes:

Sôbre mar vem quem frores d’amor tem! / Mirarey as torres de Geem!
(vs. 3 e 4; 7 e 8).

Já em terra, quem tem fores de amor, ou seja, o Almirante, e a amiga


mirará as torres do castelo de Jaén, talvez a morada do amado.
A cantiga XXII é uma reflexão da amiga sobre o amor do amado; em
seu refrão expressa sua dúvida amorosa:
178 Revista do Gelne

se mi quer bem, que lho quero eu mayor, / e, se lhi vem mal, que é por
senhor (vs. 5 e 6; 11 e 12; 17 e 18).

Nas três estrofes, espécie de monólogo, cogita sobre o amor do seu


amado:

Que muytas vezes eu cuydo no bem / que meu amigo mi quer e no mal /
que lhi por mi de muytas guisas vem! (vs. 1, 2 e 3).

Continua a cuydar (‘cogitar’) na estrofe seguinte:

E poys (é) assi, que razom diria? / Porque nom sofra mal nom a razom, e,
/ u eu cuydo que nom poderia, – / tam gram bem mi quer! (vs. 7, 8, 9 e 10).

Também na última, prossegue no seu cuydar:

E por tod’esto dev’el a sofrer / tod’aquel mal que lh’oje vem por mi, /
pero cuydo que nom pode viver, – tam gram bem mi quer! (vs. 13, 14, 15
e 16).

Cuydar, sofrer mal, querer bem são expressões-chave nessa cantiga


de amigo, que bem poderia ser uma cantiga de amor, se não houvesse no verso
2 a referência explícita ao amigo.
Na cantiga XIII, a mãe aconselha a filha, para não confiar no amigo; o
refrão é muito sugestivo e incisivo:

que nulha rem nom creades / que vos diga, que sabyades (vs. 5 e 6; 11 e
12; 17 e 18).

Por que razão dá a mãe esse conselho à filha? Para defendê-la; vejam-
se os versos das três estrofes:

Mya filha, nom ey eu prazer / de que parecedes tam bem, / ca voss’amigo


falar vem / convosqu’ (...) (vs. 1, 2, 3, 4).

Filha, ca perderedes i / e pesar-my-á de coraçom; / e já Deus nunca mi


perdom / se ment’ (...) (vs. 7, 8, 9 e 10).

Filha, ca perderedes i, / e vedes que vos averrá: / des quand’eu quiser


nem será, / ora vos defend(o) aqui (vs. 13, 14, 15 e 16).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 179

Muito simplesmente se pode parodiar essa cantiga XXIII: “não diga que
não lhe avisei!”.
Na cantiga XXIV, o amigo pergunta à amiga por que razão ela não lhe
quer mais, ele que

vos sempre serviu (v. 1).

sabemos que nom / vos errou nunca voss’amigu’e som / maravilhados


todos ende aqui (vs. 8, 9 e 10).

serviu-vos sempr’e fazerdes-lhi mal. / E que diredes d’el assi perder? (vs.
15 e 16).

Conclui o amigo que a amiga ouviu dizer novidades não verdadeiras


sobre o amigo e por isso morre de amor, claro, não correspondido:

Nom sey, amiga; dizem que oíu / dizer nom sey quê, e morre por em (vs. 5
e 6).

Nom sey, amiga; el cada u é / aprende novas com que morr’assi (vs. 11 e
12).

Nom sey, amiga; el quer sempr’oir / novas de pouca prol pera morrer (vs.
17 e 18).

Se as cantigas XX, XXIV e XXV tratam do amar e do navegar, nas de


número XXII, XXIII e XXVI, Charinho se concentra em faces da arte de
amar – a dúvida amorosa, o cuidado materno, o desfazer-se de um amor por
ouvir “dizer nom sey quê” ou “novas de pouca prol”.
Figueira Valverde, ao tratar de Joan Zorro, diz que da série poética de
onze cantigas “apenas três não falam do mar, as outras, contudo, têm o mar
como motivo principal” (Ibid, p. 87). Comparando Zorro a Codax, esse autor
considera que “talvez seja superior a Codax nos recursos métricos, embora de
muito menor importância poética” (Ibid, p. 90).
Se nas cantigas de Zorro apenas três não falam do mar, nas de Codax,
a última das sete, na edição de Celso Cunha, não fala de Vigo, cidade galega,
e seu mar.
Vejamos então o amar e o navegar nas onze cantigas de Joan Zorro e
nas sete de Codax.
Celso Cunha intitula a cantiga I de Pastorela; as de número II a VIII de
Barcarola e as de número IX e XI de Tenção. As de Martin Codax apenas
númera de I a XI, seguindo a ordem do Pergaminho Vindel.
180 Revista do Gelne

Por curiosidade, verifiquei, em primeiro lugar, aquelas cantigas de Joan


Zorro que “não falam do mar”, segundo Filgueira Valverde: suponho que são,
conforme a edição de Celso Cunha, a Pastorela (n. I) e as duas que intitula de
Tenção (as de n. X e XI).
Na Pastorela, o refrão, que acompanha as três estrofes, é:

Ay amor, leixedes-me oje / de sô lo ramo folgar / e depoys treydes-vos


migo / meu amigo demandar (vs. 5, 6, 7, 8; 13, 14, 15, 16 e 21, 22, 23, 24).

A amiga invoca o amor pela presença do amigo, a fim de que possa sô


lo ramo folgar, ou seja, folgar sob os ramos, desde que o amigo venha estar
com ela.
Nas três estrofes, expressa a “amiga”, que andava fremosi)ha (v. 1); de
amor coytada (v. 2); muito namorada (v. 3); fremosa (v. 10); d’amor
chorando (v. 10); fazendo queyxumes d’amor d’amigo (v. 18); diria que
estava à espera do amado, para, por fim, sô lo ramo folgar (vs. 6, 14 e 22).
A Tenção de número dez é um diálogo entre mães e filha. A filha
enamorada se lamenta porque o amado partiu com o rei:

– Os meus olhos e o meu coraçom / e o meu lume foy-se com el-rey! (vs.
1 e 2).

– Que coyt’ouv’ora’ el rey de me levar / quanto bem avia, nen ey d’aver


(vs. 7 e 8).

O amado é para a amiga: meus olhos; meu coraçom; meu lume; quanto
bem avia e há d’aver. A mãe pergunta quem é este por quem a filha espera,

Quem est’, ay filha, se Deus vos perdon? / Que my-o digades gracir-vo-
lo-ey (vs. 3 e 4).

Non vos ten prol, filha, de my-o negar, / ante vo-lo terrá de my-o dizer
(vs. 9 e 10).

e agradecerá (gracir-vo-lo-ei) se a filha lhe disser e insiste que ela o diga


(terrá de my-o dizer).
Responde, por fim, a filha:

Direy-vo-l’eu e, poys que o disser, / nom vos pês, madre, quand’aqui


veer (vs. 5 e 6; 11 e 12).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 181

Ela dirá quem é o amado, mas que a mãe não se “desagrade” (non vos
pês) quando o amigo vier à presença da mãe.
A tenção de número XI é mais um diálogo entre mãe e filha e trata do
pedido de casamento que o rei mandou fazer à amiga:

– Cabelos, los meus cabelos, / el-rei m’enviou por elos! (vs. 1 e 2).

– Garcetas, las mias garcetas, el-rei m’enviou por elas! (vs. 5 e 6).

Cabelos e garcetas são de certo modo itens sinônimos, por metonímia,


já que garceta é uma “mecha” ou uma “trança” de cabelos e não era a mão
que se pedia, mas, sim, os cabelos.
Responde a mãe, concordando com o pedido:

– Filha, dade-os a el rey (v. 4).

– Filha, dade-as a el rey (v. 8).

As cantigas centradas no mar ou na ribeira do rio são as Barcarolas


(cantigas II, II, IV, V, VII, VIII, IX, X); no mar, são as de números II e II e, na
ribeira do rio, as outras sete cantigas.
Na Barcarola II, o amado informa à amiga:

En Lisboa sôbre lo mar / barcas novas mandei lavrar (vs. 1 e 2).

En Lisboa sôbre lo lez / barcas novas mandey fazer (vs. 5 e 6).

Barcas novas mandey fazer / e no mar as mandey meter (vs. 10 e 11).

E no refrão há a emnção à amiga:

Ay mia senhor velida (vs. 3, 6, 9 e 12)).

Vale esclarecer, para o leitor que não convive com o léxico arcaico, dois
itens: lez e velida; o primiero significa ‘costa (do mar)’, ‘beira mar’ e o segundo,
‘formosa’ (cf. CUNHA, apud GONÇALVES, s. v. pags. 272 e 288,
respectivamente).
Na Barcarola II, o rei de Portugal manda fazer barcas e lançá-las ao
mar:
182 Revista do Gelne

El-rey de Portugal / barcas mandou lavrare (vs. 1 e 2).

El-rey portuguese / barcas mandou fazere (vs. 5 e 6).

Barcas mandou lavrare / e no mar as deytare (vs. 9 e 10).

Barcas mandou fazere / e no mar as metere (vs. 13 e 14).

Sendo o refrão:

e lá irão na barcas migo, mya filha e noss’amigo (vs.3, 4; 7, 8; 11, 12; e 15,
16).

Assim informa à amiga o amigo.


As Barcarolas seguintes se centram no “rio” ou na “ribeira do rio”, ou
seja, às suas margens; na de número IV, a amiga irá com o amado para onde
ele for. O refrão diz tudo:

Amores, convusco m’irey (vs. 4, 8, 12 e 16).

Nas quatro estrofes, a amiga confirma a sua decisão:

Jus’a lo mar e o rio / eu namorada irey, / u el-rey arma navio (vs. 1, 2 e 3).

Jus’a lo mar e o alto / eu namorada irey, / u el-rey arma barco (vs. 5, 6 e 7).

U el-rey arma barco / eu namorada irey, / pera levar a d’algo (vs. 13, 14 e 15).

Note-se a sinonímia mar e alto e a amiga é qualificada de namorada.


Uma “namorada” decidida, certamente!
Na Barcarola V, de estrofes singelas, informa a amiga à mãe:

Pela ribeyra do rio salido / trebelhey, madre con meu amigo (vs. 1 e 2).

Pela ribeyra do rio levado / trebelhey, madre con meu amado (vs. 7 e 8).

Já mais complexa é o que chamarei de refrão, em que a amiga se justifica


à mãe por ter trebelhado (‘folgar’, ‘brincar’; cf. Cunha, Celso, apud Gonçalves,
Elsa, s. v. pag. 287):

amor ey migo / que non ouvesse! / fiz por amigo / que non fezesse! (vs. 3, 4, 5
e 6; 9, 10, 11 e 12)).
Vol. 6 - No. 1 - 2004 183

Na singela Barcarola VI, a amiga observa o amado a remar na “ribeira


do rio”:

Per ribeyra do rio / vi remar o navio (vs. 1 e 2).

Per ribeyra do alto / vi remar o barco (vs. 4 e 5).

Vi remar o navio / i vay o meu amigo (vs. 7 e 8).

Vi remar o barco / i vay o meu amado (vs. 10 e 11).

I vay o meu amigo, / quer-me levar consigo (vs. 13 e 14).

I vay o meu amado, / quer-me levar de grado (vs. 16 e 17).

Notem-se as sinonímias ribeyra do rio / ribeyra do alto; navio / barco


e amigo / amado.
No refrão diz a amiga:

e sabor ey da ribeyra (vs. 3, 6, 9, 12, 15 e 18).

A ribeyra não poderia ser mais “saborosa”.


Na Barcarola VII, mais uma vez a amiga dialoga com a mãe, como se
vê no refrão:

alá vay madr’ond’ey suidade! (vs. 3 e 6).

Por que tem ela saudade?

Met’el-rey barcas no rio forte; / quen amig’á que Deus lh’o amostre (vs 1 e 2).

Met’el-rey barcas na extremadura; quen amig’á Deus lh’o aduga (vs. 4 e 5).

Porque o amado foi com o rei no rio forte e a amiga pede a Deus que o
traga de volta (Deus lh’o aduga).
Na última Barcarola, a VIII, canta à beira do rio a amiga:

Venham nas barcas polo rio / a sabor (vs. 4 e 5; 9 e 10).

Esse canto se explicita nos versos que precedem o refrão:

Pela ribeyra do rio / cantando ia la dona-virgo / d’amor (vs. 1, 2 e 3).


184 Revista do Gelne

Pela ribeyra do alto / cantando ia la dona-d’algo / d’amor (vs. 7, 8 e 9).

Notem-se os sinônimos: ribeyra do rio / do alto e dona-origo / dona-


d’algo.
A cantiga IX é uma bailada e trata, com simplicidade, do bailado das
amigas velidas sob a sombra das avelaneiras; o refrão explicita isso:

sô aquestas avelaneyras frolidas / verrá baylar! (vs. 5, 6 e 11, 12).

E por que bailam as amigas velidas?

Baylemos agora, por Deus, ay velidas / sô aquestas avelaneyras frolidas


/ e quen fôr velida, como nós velidas, / s’amig’amar (vs. 1, 2, 3 e 4).

Baylemos agora, por Deus, ay loadass / sô aquestas avelaneyras


granadas / e quen fôr loada, como nós loadas, / s’amig’amar (vs. 7, 8, 9
e 10).

Velidas e loadas bailam as amigas se estão amando o amigo


(s’amig’amar). Nesta bailada o “trovador do mar” Joan Zorro não trata do
mar, mas do amar. Conclui-se, então, diferentemente de Filgueira Valverde,
que são quatro e não três as cantigas de Joan Zorro que não tratam do mar ou
da ribeira do rio.
As sete cantigas de amigo são consideradas por Filgueira Valverde não
só como de maior “importância poética” que as de Joan Zorro (cf. Ibid, p. 89),
mas ainda considera esse especialista galego Martin Codax “o maior dos nossos
poetas marinheiros” (Ibid, p. 89), com já antes referido. Não direi que não
compartilho desse julgamento, mas avento que não é fácil tomar tal decisão.
Iniciarei pela última das cantigas, já que se destaca, como ressaltado,
por não falar de Vigo. É ela a de número VII, na edição de Celso Cunha, que
como antes assinalado, segue a ordem do Pergaminho Vindel.
Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, seguindo Tavani, convidam o leitor
à leitura das sete cantigas “como se se tratasse de um único poema” porque

todos os textos são cantigas d’amigo paralelísticas e têm o mesmo esquema


rimático; todas têm o mesmo tema, (...) têm o mesmo tema e desenvolvem um
discurso poético unitário e coerente (1983, p. 266-267).

Sobre a cantiga VII dizem as mesmas autoras que sua “função conclusiva
a isola como se fosse uma finda (é a mais curta), as outras seis alternam-se
em estruturas de 4 estrofes e de 6” (Ibid, p. 267). Mais adiante dizem: “Nas
Vol. 6 - No. 1 - 2004 185

cantigas I – III – V (...) o elemento temático chave é ondas e nos pares é


Vigo” (Ibid).
Vejamos, então, a VII, começando, portanto pelo fim, ou pela finda como
analisam Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos.
Consta essa cantiga de duas estrofes que são duas interrogações às
ondas (Ay ondas) (vs. 1 e 5).

se me saberedes dizer / porque tarda meu amigo / sem mim? (vs. 2, 3 e 4).

se me saberedes contar / porque tarda meu amigo / sem mim? (vs. 6, 7 e 8).

Segundo o direcionamento das autoras citadas, observarei primeiro as


cantigas I, III e V, cujo “elemento temático chave é ondas”:
Na cantiga I, a amiga interroga às ondas do mar de Vigo (v.1), sobre
o amigo:

se vistes meu amigo (v. 2).

Sobre o amado:

Ondas do mar levado / se vistes meu amado? (vs. 5 e 6).

Continua a perguntar:

se vistes meu amigo / o por que eu suspiro? (vs. 7 e 8).

se vistes meu amado / por que ey gran coydado? (vs. 9 e 10).

No refrão, evoca Deus e exclama, desejando que o amigo / amado


venhal logo:

E ay Deus, se verrá cedo (vs. 3, 6, 9 e 12).

A cantiga III, mais complexa que a anterior, convida a irmana para


mirar as oìdas (E miremos las ondas!) (vs. 3, 6, 9 e 12), que é o refrão do
poema.
Nas duas primeiras estrofes busca persuadir à irmana:

Mia ìrmana fremosa, treydes comigo / a la igreja de Vig’u é o mar salido (vs. 1
e 2).
186 Revista do Gelne

Mia irmana fremosa, treydes de grado / a la igreja de Vig’u é o mar levado (vs.
4 e 5).

Nas duas últimas, esclarece por que deseja ver o mar:

A la igreja de Vigo, u é o mar salido, / e verrá i mia madr’e o meu amigo (vs. 7
e 8).

A la igreja de Vigo, u é o mar levado, / e verrá i mia madr’e o meu amado (vs.
10 e 11).

porque para a igreja de Vigo irão a mãe e o amigo / amado.

Na cantiga V, a amiga não quer só “mirar o mar”, mas banhar-se nele


com outras amigas / amadas, o que está claro no refrão:

E banhar-nos-emos nas ondas! (vs. 3, 6, 9 e 12).

Pela razão clara de que ali é o lugar para amar:

Quantas sabedes amar amigo / treydes comig’a lo mar de Vigo (vs. 1 e 2).

Quantas sabedes amar amado / treydes comig’a lo mar levado (vs. 4 e 5).

Treydes comig’a lo mar levado / e veeremo-lo meu amado (vs. 10 e 11).

Nos dois últimos versos transcritos, vê-se que o convite às amigas para
banharem-se no mar de Vigo é um pretexto, válido, para que possa ver o seu
amado.
Observemos, na seqüência, as cantigas pares, em que, conforme Elsa
Gonçalves e Maria Ana Ramos, o “elemento temático é Vigo” (Ibid, p. 267) e
não as “ondas”:
Na cantiga II, o refrão mostra a decisão da amiga, quando informa à
mãe:

E irey, madr’, a Vigo! (vs. 3, 6, 9, 12, 15 e 18).

A razão é receber o amigo, informado que foi de sua vinda:

Mandad’ey comigo / ca ven meu amigo (vs. 1 e 2).

Comigu’ey mandado / ca vem meu amado (vs. 4 e 5).


Vol. 6 - No. 1 - 2004 187

O amigo, ela foi informada, vem vivo, são e amigo do rei:

Ca ven meu amigo / e ven san’e vivo (vs. 7 e 8).

Ca ven meu amado / e ven viv’e sano (vs. 10 e 11).

Ca ven viv’e sano / e d’el rey privado (vs. 16 e 17).

Na cantiga IV, a amiga, enamorada, pergunta a Deus pelo seu amado,


por que continua a esperar e a amar. O refrão é:

E sou namorada (vs. 3, 6, 9, 12, 15 e 18). [= e continuo enamorada].

Nas duas primeiras estrofes diz da sua solidão:

Ay Deus, se sab’ora meu amigo / com’eu senheyra estou en Vigo! (vs. 1 e 2).

Ay Deus, se sab’ora meu amado / com’eu en Vigo senheyra manho! (vs.3 e 4).

Notem os menos habituados ao léxico arcaico que senheyra e manho,


respectivamente, significam: ‘sozinho’ e ‘permaneço’.
Nas estrofes três e quatro, continua a amiga sanheyra e sem gardas
(‘proteção’, ‘acompanhante’):

Com’eu senheyra estou en Vigo, / e nulhas gardas migo trago! (vs. 7 e 8).

Com’eu en Vigo senheyra manho, / e nulhas gardas migo non trago! (vs. 10 e
11).

Nas duas últimas estrofes, comoestá sozinha, choram os seus olhos:

E nulhas gardas non ey comigo, / ergas meus olhos choran migo! (vs. 13 e 14).

E nulhas gardas migo trago, / ergas meus olhos choran ambos! (vs. 16 e 17).

Vale esclarecer que ergas é uma conjunção arcaica equivalente a por


isso, portanto.
Na cantiga VI, baila a amiga porque tem o seu amado. O refrão:

Amor ey! (vs. 3, 6, 9, 12, 15 e 18) (‘tenho amor’).

Nas seis estrofes de dois versos, expressa Martin Codax a felicidade da


amiga:
188 Revista do Gelne

Eno sagrado, en Vigo, / baylava corpo velido (vs. 1 e 2).

En Vigo, no sagrado / baylava corpo delgado (vs. 4 e 5).

Baylava corpo velido, / que nunc’ouver’amigo (vs. 7 e 8).

Baylava corpo delgado, / que nunc’ouver’amado (vs. 10 e 11).

Que nunc’ouver’amigo / ergas no sagrad’en Vigo! (vs. 13 e 14).

Com os argumentos antes transcritos de Elsa Gonçalves e Maria Ana


Ramos poderei concordar com Filgueira Valverde: Martin Codax, “o maior de
nossos poetas marinheiros”. Além dos argumentos referidos, diria que, com
tão pouco, Codax, poeta, diz tanto!
Arrolarei em seguida os itens lexicais – substantivos, adjetivos, verbos e
lexias ou frases feitas – encontrados nas cantigas de amor de Charinho e nas
cantigas de amigo dos três “trovadores do mar”, sem exemplificação, para
evitar redundâncias e sem identificar os trovadores. Seguireia ordem
anteriormente apresentada. Quanto aos verbos, apresentarei na forma do
infinitivo; por vezes, entre parênteses, apresentarei o contexto contíguo ou o
significado atual do item.
O objetivo deste rol é faclitar ao interessado a consulta e dar uma idéia
de conjunto do campo léxico-semântico antes descrito e comentado.

SUBSTANTIVOS

(A) SENHOR SERVIDOR


MAR ACONSELHADOR
BONDADE SOFREDOR
MESURA LUME
DONA (BOM) PREZ (‘bom preço’, ‘bom valor’)
MAL FRORES (D’AMOR)
(BOM) PARECER BARCO
(BELA) FIGURA NAVIO
MANSEDUME (‘mansidão’) TORMENTA
AMOR
AMIGO

CABELOS
GARCETAS (‘mecha de cabelo’)
ALTO (‘mar’)
RIO
AVELANEYRA
ONDAS
IRMANA
GARDAS (‘acompanhantes’)
Vol. 6 - No. 1 - 2004 189

ADJETIVOS

FREMOSA
APOSTA
MANSA
BRIOSA
FERIDO
FOSSADO (‘atividade bélica’)
VELIDO
LOADO (‘louvado’)
FREMOSI) H A
NAMORADA
SALIDO (‘mar’)
LEVADO (‘mar’)
(rio) FORTE
GRANADAS (‘avelaneyras’)
SENHEYRA (‘sozinha’)
(corpo) DELGADO

VERBOS

NAVEGAR
ESPEDIR (‘despedir’)
NEMBRAR
CATAR
SERVIR
GRACIR (‘agradecer’)
LAVRAR
BAYLAR
TARDAR

LEXIAS E FRASES FEITAS

ANDAR TRISTE AVER DOO


DESEJAR O CORPO FALAR APOSTO
IR PER U FOR (u, ‘onde’) PERDER O SONO
QUERER LEIXAR AFOGAR COYTAS
NEM BEM NEM MAL ADUZER O AMIGO (‘trazer o amigo’)
NOM PODER QUITAR FRORES D’AMOR
COYTA D’AMOR MIRAR AS TORRES
COYTA DO MAR CUYDAR NO BEM E NO MAL
MELHOR DONA DO MUNDO DEUS NUNCA ME PERDOM (‘Deus nunca me perdoe)
QUERER (GRAM) BEM OUIR DIZER NO SEI QUÊ
NON QUERER MORRER APRENDER NOVAS
FAZER SERVIÇO NOVAS DE POUCA PROL (‘novidades de pouco
proveito’)
QUERER DIZER FOLGAR SO O RAMO (da árvore)
190 Revista do Gelne

NON OUSAR DIZER DEMANDAR O AMIGO (‘procurar o amigo’)


LUME DOS OLHOS CHORAR D’AMOR
DE BÕA RAZOM TE)E)R DE DIZER
DAS DONAS A MELHOR RIBEIRA DO RIO
NON PODER DORMIR BARCAS NOVAS
AVER BEM DEYTAR / METER NO MAR
SOFRER MAL TREBELHAR (‘brincar’) COM O AMIGO
GRAM BEM AVER SABOR
GRAM MAL DO SOFRER AVER SUYDADE (‘ter saudade’)
DESEJAR A NOITE E O DIA DONA VIRGO
FAZER FOLIA (‘enlouquecer’) DONA D’ALGO
DEVER MORRER SABER CONTAR
POR MAL AVER COYDADO
PERDER O SEM (‘perder o juízo’) MIRAR AS ONDAS
NOM SABER QUE DIZER BANHAR NAS ONDAS
NOM VI)I)R MAL AVER MANDADO (‘ter informação’)
AVER SABOR SABER DO AMIGO / AMADO
SOFRER COYTA / SOFRER MAL MÃER SENHEYRA (‘ficar sozinha’)
BARATAR MELHOR (‘negociar
melhor’) AVER AMOR
PRENDER CONSELHO

Referências

CUNHA, Celso Ferreira da. Cancioneiros dos trovadores do mar. Edição preparada por
Elsa Gonçalves. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999.
FILGUEIRA VALVERDE, Xosé. Estudios sobre lírica medieval. Trabalhos dispersos
(1925-1987). Vigo: Editorial Galáxia, 1992.
GONÇALVES, Elsa & RAMOS, Maria Ana. A lírica galego-portuguesa (textos
escolhidos). Lisboa: Editorial Comunicação, 1983.
MACHADO FILHO, Américo Venâncio Lopes. O que revela um manuscrito trecentista
sobre “as formas de amar” na sociedade medieval: uma abordagem em campos
associativos. Comunicação ao VI Encontro Internacional da Associação de Estudos
Medievais. Salvador: 2003 (a sair nas Atas).
TAVANI, Giuseppe & LANCIANI, Giulia. Dicionário da literatura medieval galega e
portuguesa. Lisboa: Caminho, 1993.
TAVANI, Giuseppe. (1988). Ensaios portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1988.
Vol. 6 - No. 1 - 2004 191

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letras minúsculas após a data.
· Exemplos de referências:
LABOV, William (2001). Principles of linguistic change: social factors.
Oxford: Blackwell Publishers.
PATRICK, Peter L. (1991). Creoles at the intersection of variable processes:
-t,d deletion and past-marking in the Jamaican mesolect. Language
Variation and Change. Cambridge: Cambridge University Press, p. 171-
189.
· As citações com até três linhas devem estar entre aspas e no corpo do
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192 Revista do Gelne

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