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reitor
RÔMULO SOARES POLARI
vice-reitora
MARIA YARA CAMPOS MATOS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTE
diretor
ARIOSVALDO DA SILVA DINIS
vice-diretora
MÔNICA NÓBREGA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
coordenadora
SANDRA LUNA
vice-coordenadora
LUCIANA ELEONORA DE F. CALADO DEPLAGNE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
coordenadora
FERNANDA LEMOS
vice-coordenadora
MARIA LUCIA ABAURRE GNERRE
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA:
Paulo Aldemir Delfino Lopes
CAPA, WEB, ARTE:
François Deplagne (Designer gráfico)
Imagem de Joana D´Arc, miniatura, pergaminho do Século XV
E82 II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba - Sábias, Guerreiras e místicas: Homenagem aos 600 anos
de Joana D´arc – ANAIS / Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne, Fabrício Possebon
(Organizadores). - João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2012.
451p.
ISBN: 978-85-237-0603-6
1.Literatura. 2.Estudos Medievais. I. Deplagne, Luciana Eleonora de F. Calado. II. Possebon,
Fabrício.
Editora Universitária
João Pessoa - PB
2012
II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA
SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´arc
ANAIS
João Pessoa - PB
11 a 13 de junho de 2012
PROMOÇÃO
APOIO
CAPES
PPGL
CCHLA
PPGCR
ABREM
USINA CULTURAL ENERGISA
ORGANIZAÇÃO
SIMPÓSIOS TEMÁTICOS
(Coordenadores e monitores)
Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne (GIEM/PPGL)
Fabrício Possebon (PPGCR /PPGL)
Suelma de Sousa Moraes (PPGCR)
Beliza Áurea (PROLIN)
Sandra Luna (PPGL)
André Sérgio Trigueiro (PIBIC/CNPq)
Frederico Lima (GIEM)
Danyele Almeida (GIEM)
Maria do Rosário Leite (PPGL)
Gilberto Lucena (GIEM/PPGL)
Siméia de Castro (GIEM)
Anderson D´Arc Ferreira (PPGFIL/ABREM)
COMITÊ CIENTÍFICO
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 6
Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne ................................................................................. 6
Fabrício Possebon ...................................................................................................................... 6
CONFERÊNCIAS .................................................................................................................. 13
UNA TIPOLOGÍA DE LAS MUJERES SABIAS EN LA LITERATURA ESPAÑOLA
MEDIEVAL ............................................................................................................................ 13
Alicia Esther Ramadori ............................................................................................................ 13
MÍSTICA FEMININA NA IDADE MÉDIA HISTORIOGRAFIA FEMINISTA E
DESCOLONIZAÇÃO DAS PAISAGENS MEDIEVAIS ................................................... 27
Lieve Troch ............................................................................................................................... 27
PALESTRAS........................................................................................................................... 40
A MULHER EM CARMINA BURANA .............................................................................. 40
Eduardo Hoornaert .................................................................................................................. 40
MESAS-REDONDAS............................................................................................................. 47
O MOVIMENTO DAS BEGUINAS: INTERFACES E RESSONÂNCIAS EM
EXPERIÊNCIAS SÓCIO-RELIGIOSAS FEMININAS DO PRESENTE ....................... 47
Alder Júlio Ferreira Calado ..................................................................................................... 47
LINGUAGEM MÍSTICA ERÓTICA MEDIEVAL: ASPECTOS PROPEDÊUTICOS 59
Anderson D’Arc Ferreira ......................................................................................................... 59
POSSIBILIDADES DE UMA LEITURA HERMENÊUTICA DAS CONFISSÕES DE
AGOSTINHO DE HIPONA: A FILOSOFIA RICOEURIANA COMO VIA PARA
REINTRODUÇÃO DO SAGRADO NA LEITURA FILOSÓFICA DAS CONFISSÕES75
Andrés Bruzzone ....................................................................................................................... 75
HELOISA E ABELARDO..................................................................................................... 82
Eduardo Hoornaert .................................................................................................................. 82
RUY GONÇALVES E A DISCUSSÃO DO FEMININO NA REGÊNCIA DE D.
CATARINA DE ÁUSTRIA ................................................................................................... 85
Eduardo José de Azevedo Charters Fuentes Morais................................................................ 85
Luisa Stella de Oliveira Coutinho Silva ................................................................................... 85
A INFIDELIDADE DO CORPO FEMININO: IMAGENS DA JUSTIÇA E DA
VIOLÊNCIA NO TEXTO POPULAR IBÉRICO .............................................................. 93
Hermano de França Rodrigues ................................................................................................ 93
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CONFERÊNCIAS
La primera mitad del siglo XIII vio surgir en Castilla un movimiento de renovación
cultural que trajo como consecuencia un nuevo concepto de sabiduría caracterizado por la
confianza en la razón y en la experiencia y por una insaciable apetencia de saber. Como
correlato de esta situación surge un nuevo estamento social: los clérigos o intelectuales, cuya
principal función dentro de la sociedad consistirá en la adquisición y transmisión del saber.
Las universidades, nacidas como corporaciones de maestros y estudiantes, serán el centro de
su actividad. (Le Goff, 1965). Una renovación similar alcanza al ámbito literario, en el que se
inicia la tendencia innovadora denominada por sus primeros cultores la “nueva maestría” o
“mester de clerecía”, aludiendo a su novedad y carácter culto. Los textos del mester de
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clerecía son poemas narrativos que comparten una misma configuración discursiva encauzada
en la estrofa de la cuaderna vía (cuartetas de versos de catorce sílabas monorrimos y
consonantes). Se inspiran en fuentes escritas, preferentemente latinas, y han sido concebidos
con sentido artístico así como elaborados retóricamente. Al mismo tiempo, canalizan las
aspiraciones intelectuales de un grupo social que busca imponer paulatinamente sus ideales y
modelos culturales. Uno de los medios de hacerlo es a través de la creación de un nuevo
arquetipo heroico en el que la destreza física y la valentía guerrera han sido reemplazadas por
cualidades más espirituales. (Ramadori, 2001 y 2011).
El protagonista del Libro de Apolonio –poema perteneciente al mester de clerecía-
constituye un acabado ejemplo del nuevo ideal de rey sabio en que las virtudes intelectuales
están íntimamente vinculadas a su cortesía y bondad. El mundo en que se mueve el héroe es
una sociedad refinada y culta, regida por códigos corteses que valoran las buenas maneras, el
cultivo intelectual y artístico, la instrucción escolar. Pero la novedad mayor que aporta el
Libro de Apolonio radica en la plasmación femenina de este modelo sapiencial, representada
por Luciana, esposa de Apolonio, y por su hija Tarsiana.
En la corte del rey Architrastes hace su aparición por primera vez Luciana, hija del
mencionado rey. La joven se destaca por su belleza, discreción y buenas maneras; el poeta la
llama “bien enseñada” (163b). Luciana es encarnación de una sociedad culta, similar a la
creada por la novela cortesana del siglo XII. En este mundo, alejado tanto del campo de
batalla de los cantares de gesta como del ascetismo de la literatura religiosa, sólo cabe el brillo
de la persona cultivada. La intelectualidad de los personajes queda así relacionada
estrechamente con su cortesía. En esta escena de la primera presentación, la música es el
vehículo para la manifestación de la sabiduría de los personajes.
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entonces, ha tenido una enorme divulgación en todo el ámbito ibérico, llegando hasta la
literatura de cordel brasilera, como lo prueba el conocido folheto “A Donzela Teodora” de
Leandro Gomes de Barros (1865-1918), el poeta de Paraíba, autor de una recreación poética
de la versión portuguesa en prosa (traducción, a su vez, de un pliego suelto español). La
capacidad de adaptarse a todo tipo de entornos y la extensa pervivencia literaria
particularizan, entonces, a esta obra (Baranda-Infantes, 1995). Básicamente, constituye una
disputa de carácter enciclopédico, pues admite la exposición de toda clase de conocimientos,
entre una joven esclava cristiana y tres sabios de la corte del rey Almanzor. Sin embargo, su
principal atracción quizá se deba al marco narrativo que introduce la materia sapiencial. En él
cobra vida una de las más exquisitas representaciones de la sabiduría femenina.
La Historia de la doncella Teodor comienza con la compra de la joven por un
mercader, quien al ver su hermosura y gentil disposición decide darle una esmerada
educación:
En los reinos de Tunez ouo vn mercader natural de Vngria, el qual entre los
mercaderes era el mas rico que en el mundo se fallasse. E vn dia pasando por
la plaça, vido vender vna donzella christiana que era de las partes de España.
Y viéndola ser muy hermosa, compróla al moro que la traýa. E conociendo
en su gentil disposición e criança que deuía ser fijadalgo, hízole mostrar a
leer y escreuir e todas las sciencias que deprender pudiesse. La qual se dio
tanto a la virtud y estudio que sobrepujo a todos los hombres e mugeres que
en aquel tiempo fuesen, assi en sciencia como en música y otras infinitas
maneras de artes. (p.103)
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a medir sus conocimientos con los hombres, que se muestran como poseedores exclusivos del
patrimonio del saber, supera airosa también el examen iniciático que la introduce en el
reducido círculo de los sapientes. (Goldberg, 1982). Por eso, su último contendiente que se
había manifestado como el más agresivo y soberbio, termina reconociendo:
“Yo os digo, señor, ciertamente que esta doncella sabe mas que yo; e desde
aquí os digo que ella es bastante de disputar con todo el mundo e quedar
vencedora, e que vuestra Alteza le deue dar señaladas mercedes e mucha
honrra” […] E vista por el rey la peticion que la buena e discreta donzella le
fazía, e conosciendo su alteza la razon e justicia que para ello tenía […]
mando al sabio por sentencia que luego en esse punto se desnudasse de todos
sus paños e los diesse e entregasse a la donzella. (pp. 130-131)
E dize asy: que vn ome bueno auía vna fija muy fermosa e muy leyda e de
buena palabra e de buen resçebir, e plaziale mucho de dezir e de oyr, e por
todas razones era muy visitada, e era familiar de muchas dueñas quando
yuan a los santuarios en romeria, por muchas plazenterias que les sabia
dezir. E porende quiso el ome bueno saber de estos amores que su fija
mostraua a todos, sy eran verdaderos; e dixole: “Ya mia fija mucho amada e
muy visitada e muy entendida en muchos bienes, dezidora de buenas cosas e
plazenteras, queriades que feziesemos vos e yo vn trebejo de preguntas e de
respuestas, en que tomasemos algunt plazer?”. Respondio la fija: “Ya mi
padre e mi señor, sabet que todo aquello que a vos plaze plaze a mi, e sabe
dios que muy grant deseo auia de ser conbusco en algunt solas, porque
viesesdes sy era en mi algunt buen entendimiento”. “Fija amiga”, dixo el
padre, “decirme hedes verdat a las preguntas que vos feziere?”. “Çertas, sy
dire”, dixo la fija, “segunt el entendimiento que en mi ouiere, e non vos
encubriré ninguna cosa, maguer que algunas de las palabras que yo dixiere
sean contra mi”. (pp. 246-247).
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El Libro del caballero Zifar, relato caballeresco de la primera mitad del siglo XIV,
muestra una complejidad compositiva propia de la época medieval, resultado de la sumatoria
de una estructura de entrelazado que combina distintas historias narradas, la confluencia de
diversos géneros discursivos y la reelaboración de diferentes fuentes. Sin embargo, hay un
principio de unidad que organiza el texto tanto a nivel narrativo como ideológico. Así se
presenta la historia de la recuperación de un linaje, primero, por obra de Zifar que asciende de
esforzado caballero a rey de Mentón; a continuación, por Roboán, el hijo menor que, también
por sus méritos, alcanza la dignidad de emperador y corona el ascenso de su familia. Se
reviste a la aventura caballeresca de altos valores ético-políticos y se le adjudica una nueva
proyección en el ámbito social, en consonancia con el contexto de producción de la obra. Más
allá del debate sobre la fecha de composición –ya sea en los primeros años del siglo XIV o
entre las décadas de 1320 a 1330- no puede negarse su vinculación con un entorno político-
cultural dominado por la figura y pensamiento de la reina María de Molina, esposa de Sancho
IV y dos veces regente durante las minoridades de Fernando IV y Alfonso XI. Frente a los
ideales de la clerecía formada en las universidades y partícipe del proyecto ecuménico y
cientificista de Alfonso X, la pareja regia tuvo que construir un nuevo entramado ideológico,
asociado a la escuela catedralicia de Toledo. Así, la concepción de un saber concebido como
una totalidad a la que se puede acceder a través de la razón y el estudio científico, se sustituye
por la idea de que la sabiduría y el entendimiento del hombre provienen de Dios. La
influencia eclesiástica en el dominio sapiencial también se observa en la subordinación del
conocimiento a la ejecución de las buenas obras, que sólo pueden acabarse con la ayuda de
Dios. (Gómez Redondo, 1999: II).
El protagonismo histórico de doña María en la defensa de este ideario y su proyección
política puede verse reflejado en los personajes femeninos del Caballero Zifar, especialmente
las reinas prudentes que saben aconsejar con discreción y sensatez. Ilustraré este nuevo tipo
de mujer sabia con dos ejemplos que aparecen en distintos momentos y niveles de la
narración. En primer lugar, con Grima la mujer de Zifar, apenas iniciada la historia y luego,
con la reina consejera del exemplum contado por Roboán al conde de Turbia.
En los prolegómenos de la narración sobre Zifar, el primer personaje del que se habla
es su esposa Grima. Al referir el sumario de la historia, se describen las cualidades de la mujer
antes de la presentación del héroe y se la considera igualmente merecedora de los premios con
que Dios los compensa por las vicisitudes y los obstáculos que deben superar en sus
aventuras.
Cuenta la estoria que este cauallero auia vna dueña por mujer que auia
nombre Grima e fue muy buena dueña e de buena vida e muy mandada a su
marido e mantenedora e guardadora de la su casa; pero atan fuerte fue la
fortuna del marido que non podia mucho adelantar en su casa asy commo
ella auia mester. E ouieron dos fijuelos que se vieron en muy grandes
peligros, asy commo oyeredes adelante, tan bien commo el padre e la madre.
E el mayor auia nombre Garfin e el menor Roboan. Pero Dios, por la su
piedat, que es endereçador de todas las cosas, veyendo el buen propósito del
cauallero e la esperança que en el auia, nunca desesperando de la su merçed,
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“Amigo señor”, dixo ella, “si pesar es que remedio ninguno non puede ome
auer, dexalo oluidar; ca en los males que por ninguna manera no se pueden
esquiuar, no ay otro remedio sino es dexarlo oluidar e non pensar en ello, e
dexarlo pasar por su ventura. Mas sy cosa es en que algunt buen
pensamiento puede aprouechar, deue ome partir el cuidado con sus amigos,
ca mas pueden pensar e cuidar muchos que vno, e mas ayna pueden açertar
en lo mejor. E non deue ome enfiuzar en su buen entendimiento solo,
commoquier que Dios le de buen seso natural; ca do ay buen seso ay otro
mejor. E porende todo ome que alguna grant cosa quiere començar e fazer,
deue lo fazer con consejo de aquellos de quien es seguro quel consejaran
bien. (pp.79-80)
Zifar, consolado con las palabras de Grima, accede a contar sus preocupaciones, pero
antes se asegura de que su esposa guarde el secreto con el relato de dos cuentos sobre la
amistad. En la moralización que extrae de las narraciones, el caballero distingue a Grima entre
todas las mujeres – que según la común creencia son incapaces de mantener secretos- con la
enumeración de las mismas virtudes con la caracterizó el narrador al comienzo del libro,
destacándose especialmente su sensatez y obediencia. (Ver p.92). Con la separación de los
esposos e hijos, no disminuirá la importancia de la figura de Grima, que continuará
destacándose por su conducta regida por la bondad y la prudencia. Incluso en la dramática
circunstancia del reencuentro con Zifar, su actitud estará determinada por la misma discreción
y lealtad al marido.
En la aventura que Roboán lleva a cabo en el condado de Turbia se ve precisado de
modificar la conducta injusta del conde hacia sus vasallos con el relato de un conocido
cuento, cuyo origen puede remontarse hasta una obra de Séneca, De Clementia. (Rossaroli,
1990). En el relato inserto aparece una reina que, angustiada por la vida pesarosa que lleva su
esposo, le solicita que comparta con ella los motivos por los que siempre está armado y en
continua vigilancia. El rey se niega porque considera que la mujer no puede aconsejarle
ninguna solución a su problema. La respuesta de la reina muestra una discreción de la que
carece su marido: “Señor, non dezides bien”, dixo la reyna, “ca non ha cosa en el mundo por
desesperado que sea, que Dios non puede poner remedio.” (p.393). Al igual que Grima,
resalta el valor del consejo y logra persuadir al rey para que acepte el suyo. Las sensatas
palabras de la mujer inducen al rey a confesar que teme la represalia de sus vasallos porque ha
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sido cruel e injusto con ellos. La reina no duda en dar su consejo al monarca a través de una
analogía con los tratamientos médicos de la enfermedad:
“Señor”, dixo la reyna, “por el mio consejo vos faredes commo fazen los
buenos físicos a los dolientes que tienen en guarda … E a las vegadas con el
contrario guarescen los enfermos de las enfermedades grandes que han. E
pues este vuestro mal e vuestro reçelo tan grande e tan desesperado es que
non cuydades ende ser guarido en ningunt tiempo, tengo que vos conuiene
de fazer el contrario de lo que fezistes fasta aquí, e por auentura que seres
librado deste reçelo, queriendo vos Dios fazer merçed”. (pp.393-394)
La consejera no se limita a decir qué hacer sino que a continuación detalla los pasos
que debe seguir para obtener el perdón de sus súbditos: convocar a sus vasallos, reconocer los
males y desafueros cometidos contra ellos y pedirles perdón mostrando que le pesa
profundamente el mal que les ha ocasionado. Se advierte claramente la correspondencia con
los pasos que deben seguirse en el sacramento de la confesión. (Rossaroli, 1990). Los
prudentes consejos de la mujer no provienen sólo de una sagacidad innata sino también, del
conocimiento y la práctica de principios cristianos. Vemos así encarnado el ideal de sabiduría
que sostiene que el entendimiento en cuanto don divino debe aplicarse para la consecución de
las buenas obras, que sólo con la ayuda de Dios pueden alcanzarse.
El mismo modelo de mujer prudente encontramos en otro relato que integra la
colección de El Conde Lucanor de Don Juan Manuel, el noble escritor cercano también al
entorno ideológico del molinismo. El exemplo L contiene la historia del amor de Saladino por
la mujer de un vasallo, la cual logra rechazarlo con agudeza e ingenio. Ante el requerimiento
amoroso del rey, la dueña “commo era muy buena et de muy buen entendimiento” le propone
un enigma a modo de prueba: “cuál era la mejor cosa que omne podía aver en sí, et era madre
et cabeça de todas las bondades” (p.20κ). Ante su incapacidad y la de los sabios para dar la
respuesta correcta, Saladino comienza un extenso peregrinaje motivado, ya no por la pasión
hacia la mujer sino, por un alto sentido del honor que le exige acabar lo comenzado.
Finalmente obtiene la respuesta acertada de un anciano caballero: ésta es la vergüenza.
Cuando reclama a la mujer la satisfacción de sus deseos como recompensa a la solución
lograda, nuevamente se observa la discreción de la dama que consigue que el soberano se
avergüence de su lujuria:
Cuando Saladín todas estas buenas razones oyó et entendió cómo aquella
buena dueña, con la su bondat et con el su buen entendimiento, sopiera
aguisar que fuesse él guardado de grand yerro, gradesciólo mucho a Dios.
(p.213)
La mujer del vasallo emplea su prudencia e inteligencia para salir con éxito de una
situación complicada; otra vez son las adivinanzas el recurso elegido para sortear la dificultad
e imponer una prueba. Paralelamente actúa como una buena consejera al corregir el mal
comportamiento del rey. En este papel, por un lado, se opone al mal consejero del inicio del
cuento, que avaló la conducta deshonrosa del monarca al estimular su lujuria y, por otro, se
alinea entre los de buen entendimiento, tal como el mismo Patronio es caracterizado por el
conde Lucanor en el marco narrativo.
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Cualquier panorama literario sobre el siglo XIV estaría incompleto sin alguna mención
al Libro de buen amor, obra del mester de clerecía de Juan Ruiz, Arcipreste de Hita. Es un
texto poético que se distingue por su pluralidad connotativa y el acentuado sentido estético,
resultado de la habilidad artística del autor que adapta la tan diversificada materia a una
intencionalidad regida por la ambigüedad y la ironía. Está constituido como una serie de
episodios amorosos articulados por la presencia de un narrador protagonista, que se identifica
con el Arcipreste de Hita. El relato de las aventuras amorosas se alterna con abundantes
disquisiciones doctrinales y digresiones narrativas, en correspondencia con la continua
fluctuación entre lo serio y lo jocoso, el tono admonitorio y la ironía burlesca. En este
contexto, toda la responsabilidad interpretativa se deriva al lector: “Entiende bien mis dichos
e piensa la sentencia” (46a), recomienda el narrador, para insistir a continuación:
La particularidad del Libro de buen amor radica en que extiende al lector las
cualidades intelectuales que, en el mester de clerecía del siglo XIII, se reservaban a los poetas
y a los personajes modélicos. Aunque la principal nota distintiva está dada por la ambigüedad
intencional y la ironía como principal estrategia discursiva, que afectan también la apreciación
de los paradigmas sapienciales; sin embargo, encontramos algunas damas que se caracterizan
por su sensatez y cordura, especialmente al rechazar los requerimientos amorosos del
Arcipreste. En la primera aventura amorosa la mujer se presenta como una “dueña guardada”
(est.ικ), “de buenas costumbres” (est.ι9), que sabe aconsejarse a sí misma y refutar a la
mensajera argumentando con exempla y proverbios, valorándose además de sus cualidades
intelectuales, su erudición:
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Entre la complejidad discursiva e intencional del Libro de buen amor, emerge el tercer
tipo de mujer sabia que reconocemos: la vieja que aúna la sabiduría de la experiencia de vida
y la capacidad de transmitirla condensándola en expresiones proverbiales. Esta figura de la
anciana que compendia un conocimiento vital, adquirido a lo largo de la propia existencia, se
transforma en fuente de cognición para su comunidad y, al mismo tiempo, se integra en el
“conjunto venerable receptor de una sabiduría antigua”. (Bizzarri, 2004). Esta idea es la base
de la recopilación del Seniloquium, o Refranes de los viejos, compilación manuscrita del siglo
XV que combina refranes castellanos con glosas latinas, las cuales interpretan los proverbios
desde una perspectiva jurídica: “En primer lugar afirmo que los proverbios se llaman ley
antigua, pues se suele decir «es un antiguo proverbio»… En segundo lugar mantengo que la
vejez o antigüedad debe venerarse o reverenciarse, porque, aquello que los antiguos dicen
debe considerarse como Derecho…” (p.4ι). En Seniloquium se proclama la identidad de los
ancianos con la sabiduría y la prudencia, equiparando su autoridad con la Sagrada Escritura y
llamando al viejo “maestro de doctrina y testigo de vida”. Anteriormente las mismas nociones
habían sido incluidas en el Libro de buen amor (en el episodio de doña Endrina, basado en la
comedia latina Pamphilus)
En distintos lugares del Libro de buen amor aparecen referencias a la vieja como
productora de proverbios populares o refranes, que en la literatura medieval castellana reciben
diversos nombres: fabla, fablilla, pastraña, parlilla, vieso o verso, palabra, retraire, ejemplo,
proverbio, fazaña, conseja, vulgar, brocárdico. (τ’Kane, 1950). La primera mención muestra
la sagacidad de las ancianas en una paremia que se reproduce para autorizar las advertencias
del Arcipreste sobre la correcta comprensión del libro, después del relato del exemplum de los
griegos y los romanos:
Mientras que realiza su labor, rodeada de otras mujeres, la vieja se constituye en la voz
de la experiencia que comenta y enjuicia a través de la generalización que le provee la
paremia, aplicándola a una situación específica.
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Iñigo López de Mendoça a ruego del rrey don Juan ordenó estos refranes que
dizen las viejas tras el fuego y van ordenados por el [orden del] a.b.c.
Como prueba el epígrafe, este refranero se compuso para el entorno cortesano del rey.
De esta manera, la vieja decidora de refranes se aleja de su propio ámbito popular y cotidiano
para entrar de lleno en la esfera aristocrática de la cultura cortesana. Pero aunque trascienda
este contexto, la sabiduría que transmiten los refranes adscriptos a las viejas, continúa
constituyendo una intelectualización de experiencias vitales y un código ético por el que se
rige una comunidad específica.
Con los Refranes que dizen las viejas tras el fuego, la sabiduría femenina se ve
nuevamente obligada a competir en el círculo cerrado del conocimiento de los hombres. Sin
embargo, en esta última contienda, el conocimiento de las mujeres no podrá pasar triunfante
la prueba: el saber proverbial de las ancianas es cuestionado en su verdad y la vieja se
transforma en una mediadora de engaños. Paradójicamente (o no) el primer embate proviene
del Libro de buen amor.
Trotaconventos, la vieja alcahueta del Arcipreste, preanuncia los nuevos rasgos que
asume el paradigma al encarnarse en la protagonista de La Celestina. Esta célebre obra
testimonia las grandes trasformaciones culturales y económicas producidas a fines del siglo
XV que provocan la fuerte impronta materialista de la sociedad urbana, nuevo ámbito en
donde se desenvuelve el tipo de la sabia experimentada y paremióloga. El primer cambio
significativo se produce cuando la sabiduría de la vieja deja de funcionar como código ético
para guiar la conducta correcta y se transforma en instrumento de persuasión y manipulación.
Celestina siempre tiene presto un proverbio con que autorizar sus interesadas razones, incluso
en sus soliloquios utiliza los refranes para autoconvencerse de su accionar:
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¡Oh buena fortuna, cómo ayudas a los osados y a los tímidos eres contraria.
Nunca huyendo huye la muerte al cobarde! ¡O cuántas erraran en lo que yo
he acertado! ¿Qué hizieran en tan fuerte estrecho estas nuevas maestras de
mi officio sino responder algo a Melibea por donde se perdiera quanto yo
con buen callar he ganado? Por esto dizen quien las sabe las tañe, y que es
más cierto médico el sperimentado que el letrado, y la experiencia y
escarmiento haze a los hombres arteros, y la vieja, como yo, que alce sus
haldas al pasar del vado, como maestra. (V, pp.171-172)
de El Conde Lucanor comparten las mismas virtudes de discreción y lealtad, que ponen al
servicio del honor y bienestar de sus maridos. Incluso en un texto ambiguo y polivalente
como el Libro de buen amor también puede encontrarse la exaltación de la sensatez y la
cordura en damas que obran correctamente aconsejándose con su buen entendimiento. En esta
obra comienza a gestarse el tercer tipo de mujer sabia que se identifica con la vieja
experimentada y formuladora de proverbios. Al igual que los otros modelos sapienciales,
prevalece la misma valoración positiva propia de la presentación paradigmática que suponen
todos. Sin embargo, la común subordinación a la figura masculina que de una u otra forma se
desliza en cada uno de ellos, en este caso provoca una devaluación del modelo. En La
Celestina la protagonista es una vieja experimentada y hábil manipuladora del discurso
paremiológico que emplea en beneficio propio, en un mundo femenino que se presenta
independizado de la tutela del hombre. Quizá porque el saber proverbial y la experiencia de
vida de la vieja no puedan someterse a la autoridad varonil ni servir exclusivamente a los
intereses masculinos, terminarán siendo descalificados y ridiculizados. En los siglos
siguientes, la estimación del saber proverbial quedará confinada a la jurisdicción del hombre,
única voz acreditada para proclamarlo.
La representación de la sabiduría femenina subordinada al dominio del hombre ha
llevado a pensar que los textos protagonizados por mujeres sabias no se alejan tanto de la
corriente misógina, de la que son sólo una variante singular. Si bien estos personajes
constituyen una excepción del preconcepto generalizado que considera a la mujer como
simple y necia, las propias palabras de algunas protagonistas como Teodor reforzarían la
perspectiva antifemenina. (Lacarra, 1993). Sin negar la cuota de certeza que subyace en las
inferencias señaladas, hay que recordar que estos textos medievales están concebidos de
acuerdo a una visión masculina de la cuestión. No podemos esperar una formulación
feminista o simplemente femenina del asunto porque las obras literarias responden a los
condicionantes culturales e ideológicos de los contextos de producción y difusión originales,
dominados por los hombres. No obstante, considero que en general las figuraciones de la
mujer sabia en la literatura española medieval muestran una valoración positiva de estos
paradigmas femeninos y, consecuentemente, de la mujer.
Ediciones
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Lieve Troch1
Introdução
1
Docente da Radboud Universiteit Nijmegen- Holanda e da Pós-Graduação em Ciências da Religião da
UMESP.
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Antes de fornecer uma definição geral de palavras e conceitos, talvez uma rápida
observação possa contribuir para com o desenvolvimento de uma ciência mais
intercontinental.
A história europeia parece até hoje intrigante para os historiadores e os cientistas das
ciências humanas no Brasil. Por um lado, no campo econômico e social, há uma grande
suspeita e distância em relação ao que poderíamos chamar de ‘patrimônio europeu
imperialista’. Por outro lado, nas ciências como a história, teologia, antropologia, filosofia e
ciências da religião, os clássicos europeus são constantemente invocados e, curiosamente,
apenas uma menor atenção está voltada aos recursos intelectuais – e místicos – em seu próprio
continente e de outros continentes como África e Ásia. Interligar pesquisas de diversos
continentes seria, ao que parece, uma tarefa que contribuiria enormemente para a construção
de uma ciência situada para além da ocupação colonial das mentes.
mulheres na vida social, política, religiosa e econômica nesse período foi bastante forte.
Desde o século XI, mulheres se distinguiram pela auto-definição, auto-representação e auto-
autorização, incluindo a esfera religiosa, e se definiram como parceiras em posição
equivalente a dos líderes poderosos do sexo masculino no campo político e religioso (Lerner,
46-64).
Todavia, como diria Brecht, ‘a história é principalmente a história dos vencedores’:
para a historiografia tradicional, estes séculos após a queda do Império Romano não foram
considerados importantes pelo poder masculino. Desde o início da Idade Média, percebemos
um poder político crescente das mulheres nas grandes decisões e disputas sobre terras,
fronteiras e poder religioso. Por um lado, as mulheres da nobreza emergiram no campo
político: muitas mulheres de diferentes estratos sociais possuíam um papel importante na
cultura, na economia, educação e religião (Bynum). Efetivamente, por volta do século XI até
do século XII, as mulheres preenchem os papéis que tradicionalmente foram atribuídos aos
homens na história. As mulheres eram pregadoras e professoras, um papel assumido mais
tarde pelo clero. Elas estavam na liderança de grandes mosteiros de poder religioso e político
(Lerner, 99).
Além disso, as mulheres lêem mais que os homens na Idade Média: leitura e escrita
foram quase exclusivamente realizadas por mulheres. Como agora se sabe, a maioria dos
homens eram analfabetos (Pernoud, 49). Em contrapartida, mulheres ensinaram meninas e
meninos nos mosteiros. No período medieval, as mulheres ainda detinham uma grande
potência econômica – possuíam cervejarias, fábricas, moinhos, empresas têxteis – e isso
estava, em certas situações, relacionado com o seu poder religioso. Só aos poucos este poder
vai desmoronar-se, já por volta do século XIV.
As universidades que se iniciaram no final do chamado período medieval entraram em
conflito com as mulheres. Em um constante exercício hierárquico de condenação, o
conhecimento das mulheres não foi mais levado a sério, ao ser empurrado para fora do
pensamento intelectual. Seu principal corolário é a vasta perseguição às assim chamadas
'bruxas' (ver Margarete Porete, Joana d'Arc e milhares de outras mulheres).
A 'Mística feminina’
As fontes
A interpretação
A forma do material
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provenientes de Deus. Quando são inescrutáveis, a pessoa que recebe a visão é que deverá
interpretá-la.
As visões – compreendidas como contato imediato com o divino – são um meio, um
estilo, uma forma para aumentar a importância do conteúdo. Não chega a ser surpreendente
que as mulheres façam uso desta forma literária, afinal, no campo teológico, os homens
normalmente eram aqueles que determinavam ‘a verdade’. Para as mulheres ratificarem e
afirmarem a importância de sua voz, precisaram articular seus conteúdos dizendo que a
palavra provinha diretamente de Deus. A visão, portanto, é um conceito estratégico para
garantir à voz teológica feminina uma dimensão divina e, consequentemente, sua autoridade.
As mulheres querem afirmar que sua voz não é o resultado de uma emoção descontrolada,
mas que vem do próprio Deus. Trata-se, pois, de uma maneira de contestar a voz dominante.
A hermenêutica da mística, a meu ver, deve decifrar precisamente estes códigos de modo que
se faça justiça às mulheres místicas que, ao encontrarem uma audaciosa forma de expressão
teológica, abriram uma possibilidade de influência na igreja e no mundo (Lerner).
As alegorias e a poesia fornecem, ao mesmo tempo, chances para (i) experiências
pessoais, bem como (ii) para uma multiplicidade de interpretações. Também é, por vezes, um
modo de não precisar ser muito cauteloso para falar com clareza a respeito de posições
políticas e religiosas. Com efeito, místicas femininas exercitaram de forma muito inteligente
um poder dentro dos limites do que era possível para pessoas ‘de natureza feminina’. σesse
sentido, a mística é muito diversificada e não pode ser captada a partir de dados únicos. Há
diferentes ênfases em estratégia e local: as manifestações e organizações diferem na Europa
meridional e ocidental. A maioria das mulheres construíram círculos em torno delas que, ao
longo do tempo, cresceram e deram-lhes acesso a indivíduos poderosos. Isso geralmente
ocorreu, ainda que cautelosamente, através de confessores ou a partir do poder de seu
mosteiro.
Nos últimos anos muitas pesquisas foram publicadas na área da mística feminina no
período medieval. Seguindo tais estudos, é possível dizer que as mulheres místicas medievais
tiveram um papel importante na vida eclesiástica, religiosa e também política e econômica.
As mulheres se relacionaram com papas, bispos, teólogos e líderes políticos poderosos.
Algumas, inclusive, fizeram isto numa idade muito jovem. Há vários escritos sobre a vida
dessas mulheres, tecidos por suas próprias mãos ou por biógrafos de seu tempo, atraídos pelas
próprias mulheres e a quem elas contaram suas visões.
Não só medievalistas estão interessados na investigação do conteúdo de seus escritos.
Também teólogos e teólogas, voltaram-se para as místicas devido as implicações teológicas
de muitas de suas afirmações. Nas palavras teológicas dessas mulheres do passado, vemos
linhas desenvolvidas por teólogas feministas do presente e, igualmente, por vários teólogos do
sexo masculino: redefinição do divino, relação entre divindade e ecologia, a importância do
corpo na relação com o divino. Muitas das declarações teológicas místicas que estão sendo
trabalhadas de forma paralela por teólogos contemporâneos nos fornecem aberturas para um
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diálogo mais amplo com outras religiões e filosofias como o Hinduísmo e o Budismo. As
ideias das mulheres místicas possuem, deste modo, um significado muito contemporâneo.
Se neste artigo enfatizarei apenas quatro mulheres místicas (no interior de uma longa
fila que haveria de ser considerada com mais detalhe), isso se deve precisamente pelos
diferentes contextos em que elas funcionam enquanto protótipo. Portanto, o contexto social e
econômico preciso em que cada mulher vai operar é de fundamental interesse.
Seria, pois, equivocado tratar essas mulheres apenas como indivíduos ou exceções. Em
outros termos: tais mulheres não são arquétipos, mas protótipos de diferentes contextos em
que uma mística poderia ser ouvida e criada. Vivem em mosteiros, em beguinarias, em ordens
terciárias. Vivem sozinhas, como leigas, viúvas ou, ainda, como mulheres casadas.
Dependendo do contexto, pois, é de se esperar que tais mulheres praticaram várias estratégias
para a sua própria auto-representação e auto-autorização. Vale ressaltar, assim, que essas
mulheres são apenas a ponta de um iceberg, em uma ampla gama de possibilidades dentro da
qual elas se manifestam. As mulheres eram líderes, profetisas, pregadoras, responsáveis da
pastoral litúrgica, escritoras, teólogas. Todas essas funções estão encapsuladas pelo termo
‘mística’.
Passemos a articular essa atuação contextual das mulheres a partir de suas múltiplas
posicionalidades ou territorialidades: o mosteiro com Hildegard van Bingen; as beguinarias
com Hadewijch de Antuérpia e Margareta Porete; as ordens terciárias e a prática de jejum
com Catarina de Siena; a mulher intelectual leiga com C. De Pisan.
Hildegard já ‘recebia’ visões na idade de 3-5 anos. Ao que parece, era uma mulher
com problemas de saúde, mas que viveu 81 anos. Ela se apresentou na idade de 8 anos em um
convento localizado próximo a um mosteiro beneditino de homens. Sua tia Jutta, era a líder do
mosteiro feminino e introduziu Hildegard na música e na língua latina. Provavelmente,
Hildegard trabalhou muito no jardim.
Após a morte de sua tia Jutta, Hildegard foi eleita abadessa da parte feminina do
mosteiro beneditino. Entretanto, após um tempo ela desejava operar de forma mais
independente e assim decidiu criar, com suas irmãs, seu próprio convento em Bingen. Antes
da difícil decisão – dada a resistência do abade do sexo masculino – Hildegard estava
assustada e doente. Este padrão de doença em situações de temor já aparecera algumas vezes
em sua vida (Lerner, 57). Não por acaso, ela censura a si mesma às vezes, quando acha que
não poderia sustentar as críticas (Lerner, 51).
Quando fundou o seu próprio mosteiro, muitos adentram ao conselho: Hildegard
começa a desempenhar um papel importante na política e na igreja. Ela, então, escreve
extensivamente em várias áreas: música (lembremo-nos de que ela foi uma compositora muito
famosa!), textos sobre botânica, belos desenhos, tratados teológicos, visões, textos
cosmológicos, interpretações da Bíblia. Ela se destacou por conta de sua erudição. Não por
acaso, ela é a mística mais conhecida do século XII. Sua fama é tão grande que em 1918 seu
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Em 09 de maio de 2012 foi canonizada como santa e em 07 de outubro de 2012 como doctor ecclesiae.
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nome foi dado a uma estrela: asteróide 898 Hildegard, devido à importância cosmológica de
seus textos. Além do reconhecimento de suas visões, ela indaga ao teólogo Bernardo de
Clervaux quanto ao seu reconhecimento enquanto profetisa.
A música que compôs está preservada e disponível até hoje, inclusive, em CD. Eis um
pequeno exemplo de um de seus poemas:
Como já dito, Hildegard era uma abadessa e abadessas tinham um grande poder no
período medieval. Era até comum para algumas mulheres jovens serem líderes de um
convento de freiras e homens, os chamados mosteiros duplos. Sabemos que no século XII,
uma mulher de 26 anos, foi abadessa de um mosteiro duplo na França e recebeu o papa
durante uma visita. Uma certa abadessa esteve a cargo de mais de 5000 homens e mulheres
em um mosteiro duplo na França. Os membros do mosteiro declararam seus votos de
obediência nas mãos dessa mulher (Pernoud, 94).
Até o século XVI, as mulheres eram importantes para a compra e a venda de terras e
propriedades, bem como para o fechamento de contratos. E esse dado vale tanto para
mulheres comuns quanto para abadessas. A partir do século XVI, contudo, as mulheres
deixaram de ser vistas como capazes de competência jurídica (Pernoud, 136).
Um segundo grupo de místicas não está ligado aos mosteiros, mas às beguinarias
(Begijnhof). Este fenômeno muito difundido em algumas partes da Europa Ocidental não é
tão conhecido em outros países ou, por vezes, é mal interpretado. Duas mulheres beguinas
bem conhecidas como místicas são Hadewijch de Antuérpia (1200-1260) e Margarete Porete
(1250-1310). Elas fazem parte de um grande movimento leigo de mulheres que se
desenvolveram desde o século XII nas cidades e no campo. Elas se chamavam Beguinas. Elas
não viviam em mosteiros, mas individualmente viajaram por diversos países, ou viveram em
comunidades e beguinárias. Até o século XVI na Europa Ocidental, este foi um movimento
muito influente no âmbito religioso.
Com as beguinarias, as mulheres criaram uma espécie de cidade dentro da cidade. A
maioria das casas foram construídas em círculo com um grande pátio e apenas uma única
porta de entrada para esta ‘pequena cidade’. Em seu interior, cada mulher tinha sua própria
casa. As primeiras beguinas, muito provavelmente, eram mulheres ricas que não desejavam
se casar e nem queriam uma vida monástica. Mais tarde vemos que há beguinarias com
mulheres de todas as camadas sociais.
Cada beguinaria era diferente. Existem, contudo, algumas características comuns: cada
beguina trabalhou por seu próprio sustento; o grupo possuia estruturas sociais e democráticas;
as mulheres eram economicamente independentes, autônomas e não vinculadas por regras
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religiosas. Havia uma senhora eleita que coordenava a beguinaria por um certo tempo e,
assim, representava as mulheres no município. A Beguina se comprometia apenas em não se
casar e ela poderia a qualquer momento sair da comunidade. Além disso, a comunidade
nomeava ou expulsava os membros do clero com quem elas desejavam negociar. Beguinas
traduziram a Bíblia e outros textos religiosos, lecionaram, cuidaram de doentes, venderam os
seus talentos, tais como contabilidade, leitura e escrita. A mais antiga beguinaria está em
Aachen, Alemanha (1230). A beguinaria de Breda, nos Países Baixos, data de 1254.
Em relação ao clero, as beguinas tinham tanto aliados como inimigos. Desde seu início
no século 13, elas foram perseguidas em muitos lugares. Em 1311, o Papa condenou as
Beguinas, mas o movimento floresceu ainda mais. Há vereditos do Papa Clemente XI, em que
a música é proibida para as mulheres porque ela prejudicaria sua ‘modéstia natural’. Beguinas
foram proprietárias e tinham seus próprios negócios: indústria têxtil, padarias próprias,
fábricas e cervejarias. Esses bens e alimentos foram repetidamente redistribuídos entre os
pobres da cidade.
Deste movimento, encontramos ainda resquícios, especialmente na Bélgica,
Alemanha, França e Países Baixos. No século XVI, mais e mais restrições foram feitas para as
beguinarias em relação à sua atividade econômica e cada vez mais passaram para o controle
da igreja. Algumas mulheres beguinas foram queimadas na fogueira (como por exemplo,
Margarete Porete).
Hadewijch de Antuérpia é uma grande poetisa e mística do século XIII. Supõe-se que
ela – e Margarete Porete – pertencia a este movimento religioso de Beguinas, mas na verdade
ela foi uma beguina viajante.
Hadewijch escreveu muitas cartas de amor, poemas e visões. Ela fala sobre o amor que
é livre e orgulhoso e que cria autonomia e auto-consciência. Ela conectou canções religiosas
com poesia dos trovadores daquela época. Ela se vê como uma noiva e amante de Deus, e
descreve uma relação muito pessoal de amor com Deus que a leva a uma situação de libertade
e auto-estima. Ela discute seus textos com 'amigas' que estavam em sua volta e que ela
visitava em suas viagens. Sua viagens foram, provavelmente, de uma beguinaria à outra. Ela
escreveu no flamengo antigo, mas é claro a partir de seus escritos que ela domina o latim e o
francês e estava familiarizada com os escritos de muitos eruditos de seu tempo. Ela é uma
inspiração importante para Ruysbroeck e Eckhart, dois importantes místicos do sexo
masculino.
Margarete Porete também escreveu alegorias sobre o amor e a razão. Seus livros foram
lidos em muitos lugares. Depois de algum tempo, eles foram proibidos e Margarete Porete
terminou na fogeira, sob pressão da universidade de Paris.
Milhares de mulheres pertenciaram ao movimento de beguinas no período da Idade
Média e há provas, em muitos arquivos, que foram uma séria ameaça para o clero do sexo
masculino. Em muitas cidades da Bélgica e dos Países Baixos existem arquivos sobre este
fenômeno importante, mas que ainda não estão pesquisados e analisados.
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evitava contestar lideres públicos. Muitas de suas obras são de natureza didática, dirigida aos
príncipes com instruções sobre como governar para manter a paz. Ela também recebeu
comissões para escrever obras históricas.
Alocar Christine de Pisan no grupo de mulheres místicas se deve a três elementos:
- Seus vários escritos se dão a partir de suas próprias experiências e expressam muitos
dos seus sentimentos. Ela própria é a fonte de sua escrita. Isto é particularmente evidente nos
poemas. Esta é uma característica de todas as místicas.
- Christine de Pisan escreve em um estilo visionário, um estilo que é muito
característico da mística feminina. Ela mesma esclarece a decodificação desse estilo
estratégico. Diz ela: “estou sonhando, mas eu estou acordada!”
- Ela também se aventura em debates explicitamente teológicos. Seu livro mais
famoso – O Livro da Cidade de Mulheres – remete claramente sua inspiração no título do
livro de Agostinho, A Cidade de Deus. Christine de Pisan resiste contra os duplos padrões,
critica a igreja que perde a sua santidade pelo acúmulo de grande riqueza e outros excessos, e
ela chama a responsabilidade dos titulares eclesiásticos a se comportarem melhor. Christine
de Pisan interpreta de uma maneira nova e autónoma os dados bíblicos e os mitos gregos. Ela
reage contra a misoginia e os estereótipos das mulheres divulgado por homens de seu tempo.
Proclama três virtudes divinas – Direito, Justiça e Razão. Estas três virtudes femininas
fornecem a ela o contrato para construir uma cidade onde as mulheres vivem de forma segura
e estarão protegidas contra as alegações de homens. As virtudes fornecem respostas às suas
questões e cada resposta é um bloco de construção para a cidade de mulheres. É um livro
fascinante com ideias ainda muito atuais.
Em nenhum lugar Christine de Pisan fala sobre o típico de uma natureza feminina: ela
argumenta que as mulheres são iguais aos homens e como tal devem ser valorizadas.
Apresenta-se claramente como uma leiga, uma mulher fora dos muros do mosteiro e das
ordens terciárias.
Christine de Pisan é uma grande admiradora de Joana d'Arc, embora intelectualmente
se situem em pólos opostos. De Pisan depositava grandes expectativas em Joana d’Arc,
considerando esta última como um instrumento de Deus. Ambas estão sob ataque dos
intelectuais da universidade de Paris que tentavam eliminar a influência dessas mulheres, bem
como as próprias mulheres.
Christine de Pisan pode ser vista, como as outras mulheres mencionadas, um protótipo
de grupos de mulheres que trabalharam de maneira semelhante e que moldaram sua
resistência contra as visões predominantes de homens.
Algumas conclusões
classificado como uma mulher, como amante, como mãe; uma maneira muito aberta de falar
sobre o corpo sexual para aumentar a relação com o divino. Igualmente, há uma grande
atenção à Trindade em que a relação entre as pessoas divinas são estados centrais e distantes
das idéias da teologia clássica. Fala-se de um papel feminino na salvação e mesmo Jesus é
muitas vezes retratado como mãe (Lerner, 90-91). É justamente esta criatividade teológica
que vai ser penalizada nos séculos seguintes.
A mística feminina e os conceitos estratégicos das mulheres no final da Idade Média –
como visões, lidar com seus corpos, o uso de seu intelecto, seu próprio poder e auto-confiança
para dar forma para sua própria vida – não serão mais possíveis a partir do século XV.
De fato, uma forte ofensiva se inicia sob dois ângulos nos séculos XV e XVI: a partir
da igreja e a partir das cidades em crescimento e dos estados.
A ofensiva da igreja é dupla: por um lado, as mulheres que se unem em grupos são
colocadas sob controle do clero: terciárias e beguinas são controladas e limitadas em seu
comportamento. Por outro lado, há uma ‘purificação’ crescente e o clero mantêm um olho
afiado para discernir se as mulheres são sólidas na doutrina ou precisam ser condenadas como
bruxas ou hereges. Milhares de mulheres, então, morrem nas piras funerárias. Há aldeias na
Alemanha onde, depois de uma purificação, só 1 entre 10 mulheres sobreviveram.
Há também uma ofensiva contra a posição das mulheres a partir da sociedade em
transformação: o poder das universidades está crescendo e as universidades exercem uma
grande influência na vida política. O surgimento das universidades mantêm o conhecimento
sob controle. Nesse ínterim, o conhecimento trazido pelas mulheres é visto como perigoso e o
controle das mulheres aumenta. A igreja apoia temporariamente as universidades como um
meio de manter a fé. Este foi realmente o caso, porque o objetivo principal das universidades
no século XV não residia na aquisição de novos conhecimentos, mas na preservação do
conhecimento existente e das doutrinas da igreja. As universidades tiveram muitos privilégios
e poderiam funcionar como um Estado dentro do Estado.
No tumulto da colonização e de cidades e estados emergentes, da Reforma e da
Contra-Reforma, as mulheres foram mutiladas. A voz das mulheres não aparece mais tão
claramente. Engenharia e racionalidade assumem o poder, visões se tornam perigosas ...
Na Idade Média e no início do Renascimento, o contexto social e cultural determinará
se os esforços das mulheres para adquirir auto-controle sobre sua própria vida e
espiritualidade serão avaliados como sagrado ou histérico (Bell, 38). Quão lamentável seria se
a historiografia aceitasse facilmente a determinação histérica.
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Women Mystics. Syracuse: Syracuse university Press, 1993, 206p.
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SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
PALESTRAS
Eduardo Hoornaert
(UFBa)
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- Talvez a vida na Idade Media tenha sido mais alegre que na idade moderna.
Insistimos demais no ‘cérebro calculador’, em detrimento do ‘cérebro sensível’. τ riso
medieval até hoje nos dá inveja. É o riso dos goliardos.
No início do século XIII surge, no cenário católico, uma estranha ‘ordem religiosa’,
que venera Golias como patrono, como nos lembra o professor Maurice, que escreve que o
nome teria vindo de Abelardo, um verdadeiro Golias da ciência livre a desafiar o Davi da
ciência presa, professada pela igreja. Abelardo elabora ao mesmo tempo excelente teologia e
canções amorosas. Ele é um estudioso sério e namora uma aluna. Abelardo é um paradigma
trágico, pois não encontra um caminho dentro do labirinto eclesiástico.
O século XIII é o tempo do florescimento de ordens religiosas. σisso, a ‘ordo
vagorum’ ao mesmo tempo destoa, problematiza e aponta para questões fundamentais. A
igreja não entende essa ‘ordem’ e toma o caminho mais fácil, o de reprimir. A luta começa em
1231 e dura séculos. O clérigo vagante é banido do clero. Ele tem de raspar a cabeça para
fazer desaparecer a tonsura. Ele não pode mais entrar nos conventos e desse modo vive ao
longo dos caminhos, ‘fora da lei’ e livre que nem um pássaro no ar. Essa liberdade traz a
pobreza, O goliardo aproxima-se dos saltimbancos, prestidigitadores, charlatões, acrobatas,
adestradores de macacos ou ursos, bobos e cômicos, vive em tabernas e prostíbulos e tem
contacto com mulheres da vida livre. No final do século XIV, goliardo significa dono de
prostíbulo. Mas o pior castigo é a fome. Será por acaso que ele gosta de dormir em forno de
padaria?
Mas, por que tanto sofrimento? É que o goliardo é fascinado pela ciência. A ciência é
um paraíso de liberdade e grandeza humana, contra o acanhamento da teologia dos conventos.
Ele sabe que a ciência traz liberdade, mas encontra poucos professores livres. Então esse
clérigo deixa o convento e anda pelo mundo à procura da ciência, ou seja, atrás de bons
professores, que são inevitavelmente clérigos. Na época, todos os cientistas são clérigos, e
eles enfrentam o problema do celibato. Mas o goliardo é teimoso, ele ousa mexer com as leis
canônicas que proíbem o amor livre, uma das questões mais espinhosas do direito canônico. O
celibato é protegido pela tonsura e pelo habito, mas muitos tonsurados andam pelo mundo
sem exercer nenhuma função pastoral. Pois, na época, ser clérigo é ser alguém, é ser
considerado culto e inteligente. A roupa de estudante é roupa de clérigo. Mas os bons
professores são raros. Nem todos são como Abelardo. Ulrich von Hütten foge do mosteiro de
Fulda, aparece em Colônia, Erfurt, Frankfurt e Bolonha, sempre à procura da ciência. Em
1348, o papa dá licença de sair do mosteiro por três anos para estudar. Aí muitos viajam a
Roma e povoam as tabernas ao longo dos caminhos. A ‘libertas evagandi’ traz o problema da
vida sexual e o problema da pobreza. Pois o monge fujão vai ao mesmo tempo atrás da
ciência e atrás do evangelho. Ele diz: não me procure entre prelados nos palácios. Estou no
caminho de Jericó, deitado ao lado da estrada, esperando o bom samaritano.
O goliardo exerce um fascínio sobre os conventos e mosteiros. Os monges gostam
quando um goliardo canta e dança no refeitório da abadia depois da janta. O abade fica
revoltado, mas os monges se sentem atraídos. Mesmo prelados se sentem seduzidos. ‘In
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palatio ubique ressonat cantus’. τ goliardo é uma presença trágico-cômica. Ele sabe cantar,
ou seja, domina uma das fundamentais funções eclesiásticas, fundamento da liturgia: cantar.
Sabe rir e exerce a irresistível atração da liberdade.
As virtudes do goliardo contrastam com as virtudes cultivadas nos mosteiros, onde se
valorizam as virtudes feudais: fidelidade (os fiéis), lealdade, voto perpétuo (juramento),
exaltação da autoridade (abade), voluntarismo. O mosteiro exalta o ideal do homem
controlado, discreto e afastado do mundo. Ele se prepara para enfrentar o sofrimento, não o
prazer, fica mais ocupado com afazeres intelectuais e espirituais do que com os carnais. Na
opinião do mosteiro, o goliardo é vagus, cupidus, amator, venustus, instabilis. Exatamente o
contrário do mosteiro. O goliardo canta:
Por sua maneira de viver, o goliardo mostra que o convento é uma prisão: chato,
hipócrita, falso, submisso, ignorante, parado. A vagância traz liberdade, novidade, alegria,
ciência. Muitos entram nos mosteiros e depois se decepcionam. Eles têm e interromper o sono
no meio da noite, o que é uma estupidez (o tema volta repetidamente em Carmina Burana). As
vigílias, os jejuns, a rotina, a conformidade, a comida sem gosto, tudo é triste, monótono,
permeado de hipocrisia. Mas para os eclesiásticos, os goliardos têm a marca de Caim na testa.
A condenação eclesiástica, imprimida pelos bispos, os persegue o tempo todo. Rejeitado na
portaria do mosteiro por ser ‘scolaris pauper et vagus’, o goliardo é visto como um morcego,
rejeitado pelos bichos. (veja o morcego no bestiário editado por professor Maurice).
Diante de tanta repressão, o goliardo provoca. Percebamos o tom provocativo na
canção ‘in taberna quando sumus’ (CD 12). Ao mesmo tempo, ele cria uma capa dura de
tenacidade na resistência. O goliardo diz que perdeu todos os livros nas tabernas, em
‘remissionem’ de comida e vinho. Perdeu também a espiritualidade. Trata-se de uma poesia
ácida, dura, persistente. Qualificar essa poesia de paródia é dizer pouco. O goliardo não
admite sentimentalismo e persiste até o fim, como se verifica num precioso documento da
época.
A última confissão de um goliardo (Waddell, ed. 1986, 183).
O confessor diz que basta repetir as palavras do Credo e dizer algo acerca de cada
ponto. Eis a resposta do penitente moribundo:
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Venturi: aí eu gostaria de voltar. Em Paris há meninas bonitas.
Credo: no vinho
Spiritum sanctum: não conheço
Ecclesiam sanctam: nunca vi
Remissionem: sim, eu troco vinho por chapéu ou capa
Et corporis: os prazeres do corpo eu adoro.
No final, o moribundo acrescenta:
O que mais me angustia, padre, é a vitam aeternam. Ela não tem o menor
valor. Peço a Deus que me poupe da ressurrectionem.
Vitam aeternam. Então me perdoe. Amén. Padre, terminou tudo. Reze por
mim.
(editado por Barbazon-Meón, iv, Paris, 1808).
3. Acerca da mulher na IM
A Idade Média cultiva menos o pudor que a idade moderna. O historiador Norbert
Elias mostra como os corpos ficam mais expostos, com menos privaticidade, na Idade Média
(Elias, τ processo civilizador, 1, ι3 e 169). σão há ‘close’, não há ‘water close’ (WC). σão
há lenço. O escarro, vômito, gordura da carne, a nudez e o sexo são mais expostos. Nos ritos
do casamento, os noivos são levados até a cama nupcial e entram na cama na presença dos
familiares e testemunhas. Ainda no século XVI (1530), Erasmo escreve um livro educativo
para crianças de 8 a 10 anos (De civilitate morum puerilium), que traz uma conversa entre um
rapaz e uma prostituta. τ rapaz ‘educado’ aconselha a mulher a deixar a vida desregrada. Um
texto como esse foi lido durante séculos, aparentemente sem provocar reações. A vergonha é
um produto cultural dos últimos séculos, típico de nosso ‘processo civilizador’ (σorbert
Elias). O puritanismo afasta os corpos. Os europeus diante do ‘abraço brasileiro’.
Uma segunda observação: é difícil saber como a mulher se sente na sociedade
medieval, pois só possuímos pouquíssimos textos escritos por ela. Os letrados são quase
exclusivamente homens. Só conhecemos a mulher por meio de um discurso indireto. Como
lembra o professor Alder Calado em seu trabalho sobre as beguinas, há distorções na
documentação. Por sua simples presença, a mulher lembra que a humanidade é composta de
dois gêneros, algo que o discurso masculino costuma esconder. O homem consegue escrever
longos tratados em que a realidade dos gêneros não aparece. A mulher lembra que somos
sexuados.
Uma terceira observação: o panorama medieval feminina, tal qual aparece nos textos,
é dominado por princesas e freiras. Só elas aparecem. A maioria das santas é da nobreza ou
dos conventos, ou então ligadas a congregações masculinas (OSB). Aparecem as abadessas,
pessoas poderosas. Algumas mulheres escapam, como Hildegarde de Bingen (faleceu em
1179), que escreve tão bem que se torna profetisa da igreja, ou Julian de Norwich (1343-
1416) que se esconde sob um nome masculino e é uma mística de grande qualidade. Há ainda
Matilde de Magdeburgo, Catarina de Siena, e poucas outras. Mas, para a mulher, é perigoso
aparecer.
Em 1310, Marguerite Porete escreve ‘Le miroir des simples âmes’, em que critica o
comportamento masculino. Ela é excomungada e queimada. Igualmente vergonhoso (ainda
para hoje) o destino dado a Joana d`Arc, que salvou a realeza francesa e lhe deu dignidade.
Ela também acaba queimada sob a alegação que se veste em homem e ocupa um lugar
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reservado aos homens. Joana entrou no universo masculino e com isso ameaçou derrubar, sem
o saber, uma série de leis que colocavam a mulher no seu ‘devido lugar’, como a lei da
inferioridade jurídica, a falta de acesso ao patrimônio, a dificuldade de se ‘arranjar’ um
casamento.
τ debate em torno do ‘Roman de la Rose’ (1230-1275), de 22.000 versos, uma das
obras mais lidas e copiadas da literatura (200 manuscritos) ajuda a compreender a posição da
mulher na ideologia medieval dominante. σesse ‘romance’, principalmente na parte redigida
por Jean de Meung, o encontro entre homem e mulher acontece dentro de um jardim fechado
e altamente privatizado, um paraíso de prazer, com música e comidas oferecidas, fechado aos
de fora. Dentro reina o amor, fora a vida cotidiana. O romance mantém silêncio sobre a casa,
a cozinha, a lavagem de roupa etc. A dona de casa não aparece, nem as beguinas (professor
Alder Calado), nem as beatas do Brasil. A luta pela sobrevivência não existe dentro do jardim
das delícias do amor. É uma imagem aristocrática, em que a mulher funciona como ‘rosa a ser
deflorada’. Há um fato estranho na história desse importante documento, um dos mais
importantes de toda a literatura francesa: a igreja, tão ciosa em defender os bons costumes e a
moral, nunca se pronunciou a respeito do ‘roman de la rose’ (passar a gravura do jardim das
delícias).
Mas esse romance não passa sem contestação. Em 1399 (mais de 100 anos depois da
publicação do romance), se inicia a ‘querelle de la Rose’ com o ‘Épître au Dieu d’ amour’ de
Cristina de Pizan (1364-1431). Trata-se da ‘primeira voz de mulher’ na literatura francesa
(Simone de Beauvoir). Mais, estamos diante da primeira disputa escrita na literatura francesa.
Cristina de Pizan se revolta exatamente contra a imagem da mulher como ‘uma rosa a
ser deflorada’, uma flor intacta da primavera (virgindade). Isso nos leva ao tema seguinte.
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Hoy e toe!
Maledicantur tiliae
Iuxta viam positae.
Ela lamenta: o jogo acabou (ludus completur) e curte a decepção. Parece-me um texto
forjado. Talvez a canção 34 (Estuans interius) explica melhor o sentimento do goliardo,
inclusive em relação à mulher. Essa canção apresenta muito bem uma filosofia da
provisoriedade e do prazer passageiro, contra os temas de eternidade e espiritualidade
vigentes nos mosteiros e na casa do bispo. Aí aparece o tema de Vênus: ‘onde Vênus impera,
o labor é suave’, e ainda ‘todos os caminhos levam à câmara de Vênus’. A impressão que se
tem é que os Carmina burana seguem o imaginário do ‘roman de la rose’. σão se fala em
cuidados maternos, educação de crianças, cozinha, limpeza da casa, lavagem da roupa. Nada
disso aparece nas canções. Os goliardos, enfim, permanecem clérigos, são da classe alta,
mesmo vivendo como pobres.
Tanto a dura experiência dos goliardos como os limites de seu comportamento diante
das mulheres apelam para considerações mais amplas. Há quem diga que a experiência
goliarda teria sido apenas uma aventura passageira, hoje desde muito varrida pelos ventos da
história e que pode interessar como ‘divertimento’. Enfim, será que o movimento dos goliardo
tem algo a nos dizer hoje? O mesmo se diga da ‘querelle des femmes’, que começa no século
XIV e dura muitos séculos. Será que ela ainda significa algo hoje?
Fica claro que a história dos vagantes nos obriga a estudar uma outra história da Idade
Média. Com ela estamos diante do ‘reverso’ da história. Abandonamos a história de papas,
bispos, abades, mosteiros, obediência, celibato, monaquismo, virtude, santidade, segurança,
para estudar o outro lado: liberdade, procura do conhecimento, arte, música, sexualidade,
insegurança, provisoriedade, pobreza, precariedade, tenacidade, sustento de cada dia.
A relação entre homem e mulher está na mesma linha da relação do ser humano com a
natureza em geral. Desse modo, o capitalismo entra no campo da visão. O homem tem de
aprender a se aproximar da mulher, não numa perspectiva de exploração, mas numa linha de
amizade, respeito. O encontro humano faz parte de inúmeros encontros que temos
continuamente com a natureza. Como nos comportamos diante da natureza? Mulher e homem
são chamados à simbiose, à relacionalidade, como diria Ivone Gebara. Na relação entre um
goliardo e sua namorada na taberna persiste no fundo uma relação de classe. O goliardo,
mesmo estando na taberna com uma mulher, permanece clérigo e tem comportamento de
classe aristocrática. Isso se revela nas canções. Ao goliardo falta fundamentalmente o respeito
pela natureza da mulher. Nesse sentido se pode dizer que o comportamento do goliardo, por
contestador que seja, de certa forma já prepara o capitalismo. Ele demonstra, sem o explicitar,
uma mentalidade desstruidora da natureza: a mulher é uma rosa a ser deflorada. O goliardo
que se ‘aproveita’ da mulher na taberna é o antecessor daquele que, séculos depois, vai
explorar o trabalho escravo dos índios e dos negros, matar e destruir. A razão é que ele só
encara a natureza como fornecedora de bemestar e lucro para si. É importante falar claro: o
erro do goliardo não consiste na relação sexual em si, mas na maneira em que se pratica essa
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relação. O pecado não está na relação com a mulher, mas na falta de uma redefinição dessa
relação numa linha de respeito pela ‘natureza’. Eis, no fundo, a queixa de Heloisa a Abelardo:
‘você tirou proveito de mim, você me abusou’. σão se pode deixar de perceber a amargura da
queixa da mulher grávida na canção 16. Penso que vale a pena relacionar o ‘erro’ do amor
goliardo com o erro do atual capitalismo. São duas expressões do mesmo erro, que consiste
em tentar ‘dominar’ a natureza em proveito próprio. Se o capitalismo provoca uma ruptura na
troca material entre a natureza e a satisfação das necessidades humanas, o mesmo acontece
com o encontro entre homem e mulher exaltado no ‘roman de la Rose’ e, afinal, no amor
goliardo. O namoro goliardo não tem nada de inocente. Não é um passatempo fútil. Há de
haver, em todos os relacionamentos entre homem e natureza, o que Marx chama
‘metabolismo’, Gebara ‘relacionalidade’, Heloisa ‘amizade’. Afinal, essas pessoas tão
diversas entre si dizem a mesma coisa. Marx, Gebara e Heloisa dizem a mesma coisa. Eis o
sentido do que a mulher revela nos versos dos Carmina Burana. Ela merece ser ouvida,
mesmo nos dias de hoje. O estudo dessas canções apela para um fato novo na consciência
coletiva, que ainda está longe de ser compartilhado por todos. Paradoxalmente, se pode dizer
que figuras como Heloisa e as mulheres queixosas dos Carmina Burana preparam o
socialismo do século XXI, que deverá integrar a relacionalidade entre homem em mulher da
mesma forma em que integra a relacionalidade entre homem e natureza em geral.
6. Maurice
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MESAS-REDONDAS
Introdução
1
Cf. cf. por ex., REZENDE, M. Valéria. Vidas rompendo muros: pequenas comunidades religiosas inseridas no
meio popular no Nordeste. Dissertação de Mestrado, João Pessoa, UFPB/PPGL, 1999.
2
Vide “website”: www.lcwr.org/
3
Cf. WIEACKER, Katharina, in http://mechthild-von-magdeburg.de/spanisch/biographie.htm, Acesso em:
04/06/2012.
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das Religiosas dos Estados Unidos, afiliadas à Leadership Conference of Women Religious).
há de perceber semelhanças significativas, guardadas as circunstâncias histórico-contextuais,
entre tais experiências da atualidade e aquelas protagonizadas pelas Beguinas da Idade Média.
Neste e noutros casos de experiências contemporâneas similares, observam-se, com
efeito, traços comuns, tais como: a busca de pronunciar sua palavra, seja diante de uma Igreja
controlada exclusivamente por uma pequena cúpula de homens (a hierarquia eclesiástica, a
começar pelo Vaticano), seja frente aos poderes civis; traços comuns em relação ao empenho
em buscar caminhos de autonomia; sua luta pela construção de outro mundo, possível e
necessário, a partir do protagonismo dos “de baixo”, isto é, a partir dos excluídos, seja nas
relações de espacialidade, de gênero, de etnia, de geração, etc., seja ao interno dos espaços
eclesiásticos, seja no âmbito macro-social, em oposição ao controle das instâncias oficiais,
civis ou eclesiásticas.
A observação desses e de outros traços nessas e noutras iniciativas protagonizadas
pelas mulheres de hoje, é que nos fez evocar traços vivenciados no e pelo Movimento das
Beguinas. Haveria, mesmo, aí algum tipo de afinidade? Que outros traços comuns entre esses
movimentos atuais e o das Beguinas é possível assinalar? Eis o que buscamos desenvolver, a
seguir, começando por reavivar aspectos históricos do período em foco (séc. XII a séc. XV).
Em seguida, cuidamos de recuperar ou de reavivar alguns elementos característicos do
Movimento das Beguinas, alguns elementos históricos, principais características, suas figuras
proeminentes, sua contribuição, também no âmbito macro-social, para além da esfera
estritamente eclesiástica. No tópico seguinte, tratamos de, em meio a uma pluralidade de
experiências femininas contemporâneas, animadas pela fé cristã, descrever aspectos
emblemáticos de duas experiências densas na contemporaneidade: a das Pequenas
Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular (PCIs), no Nordeste do Brasil,
sobretudo nos anos 70 e 80, e a experiência corrente vivida pelas Religiosas nos Estados
Unidos, organizadas na LCWR. Por último, tecemos algumas considerações sobre eventuais
afinidades entre as experiências de hoje e as do Movimento das Beguinas, não sem deixar de
também reconhecer suas descontinuidades.
Ainda hoje ressoam, embora em menor grau, traços do injusto rótulo por vezes
atribuído à Idade Média como uma era estritamente obscurantista – a famigerada “noite de
mil anos”... Pesquisas históricas mais recentes vêm ajudando a desconstruir e a reparar esse
viés reducionista. Com efeito, notadamente os últimos séculos da Idade Média – a chamada
baixa Idade Média – se apresentam, antes, como um tempo “novidoso”, grávido de
alternatividade; comportam traços surpreendentes, no que diz respeito ao multiforme
protagonismo e inventividade então testemunhados por diferentes sujeitos (coletivos e
individuais), dentre os quais aqui sublinhamos o protagonismo das mulheres orientadas por
sua fé libertária.
Um olhar crítico sobre os últimos séculos da Idade Média haverá, por conseguinte, de
ensejar impactantes achados, inclusive a experimentados pesquisadores e pesquisadoras. Aqui
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evocamos aquela imagem bíblica do velho baú, do qual, a cada visita, se recolhem coisas
velhas e novas. Isto para quem tem olhos para ver...
Diante de um cenário hegemonizado, durante séculos, pela instituição eclesiástica e
seus aterrorizantes aparelhos de opressão e repressão sobre os excluídos desse sistema – os
pobres, as mulheres, os grupos, organizações, movimentos e figuras individuais que aspiram à
liberdade, que não aceitam um sistema de subordinação nas relações humanas e sociais, no
seu empenho em resistirem à bitola ou à régua evocando a imagem do aterrador leito do
Procusto eclesiástico, por não corresponderem às medidas de sua régua, tornando-se assim
alvo sistemático de suspeição, de perseguições, de condenações sumárias, como sucedeu
durante o tenebroso período da Inquisição.
A baixa Idade Média apresenta-se, pois, como um período de grande impulso
renovador. Nele podemos perceber a presença de elementos que se antecipam a períodos
posteriores. Séculos de reconhecida inventividade, fazendo aparecer fatos e situações que
precedem, em séculos, a irrupção da Reforma e de outros traços caracaterísticos da
Modernidade.
Assim aconteceu em relação, por exemplo, a diversos movimentos pauperísticos – os
Cátaros, os Valdenses, os Franciscanos radicais, os Fraticelli, os Goliardos (alvo predileto de
um notável pesquisador da UFPB, o saudoso Prof. Maurice Van Woensel, bem como um
tema de a ser abordado, neste evento, pelo historiador Eduardo Hoornaert, que coordena esta
Mesa), etc.. Movimentos pauperísticos protagonizados, portanto, por vastas massas do povo
dos pobres, animadas por lideranças proféticas a buscarem afirmar sua fé cristã por horizonte
e caminhos opostos aos seguidos e impostos pela religião eclesiástica, tão distante do espírito
do Evangelho.
À riqueza e ao luxo da alta hierarquia eclesiástica e da nobreza, os movimentos
pauperísticos opunham sua vida de simplicidade e de pobreza; aos complicados códigos
canônicos, preferiam a transparência do Evangelho; à voracidade e avidez pelo acúmulo de
bens materiais, preferiam a partiha fraterna dos bens e de sua própria vida em mutirão; aos
lugares de honra e aos privilégios do poder, empenhavam-se no serviço fraterno das pessoas e
grupos socialmente marginalizados; em vez de uma organização imperial de feição piramidal,
como o Império Romano e outros impérios, lutavam por uma organização horizontal de sua
vida social, econômica, política, cultural e religiosa. Sobre tais movimentos há uma
relativamente vasta literatura.4
Os séculos característicos da baixa Idade Média constituem, com efeito, uma era de
precursores e precursoras relevantes, especialmente do ponto de vista de sua criatividade
cultural-religiosa, do que pode ser mencionado como um exemplo as interpretações
formuladas por Joaquim de Fiore, quanto à idade do Espírito, e que tiveram ampla e
duradoura influência entre os movimentos reformadores da época.
No que tange à grade de valores, por exemplo, esses séculos comportam traços
marcantes de inovação e de antecipação à Idade Moderna. Como ignorar sua ânsia de
liberdade, de autonomia, de protagonismo, de autogestão, de valorização do vernáculo, e
4
Ver, por ex. algumas referências bibliográficas em CALADO, Alder Júlio F. Memória Histórica e
Movimentos Sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa: Idéia,
1999).
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sobretudo de afirmação das mulheres como sujeitos históricos? Muito lhe tem a dever a
Modernidade, sob distintos aspectos. Muito lhe deve o Movimento de Reforma cujas raízes
estão fortemente fincadas nesse período.
Conforme o acima prometido desde o título, aqui tomamos como alvo de nossa
reflexão apenas o Movimentos das Beguinas, também desse mesmo período. As Beguinas se
apresentam, ao mesmo tempo, como resultado, expressão e protagonistas desse período
histórico. Trata-se de um movimento impetuoso que se dá justamente numa atmosfera de
adversidades aparentemente intransponíveis para os excluídos de então, ao ponto de se
produzir em meio a uma sociedade que tinha ares de misoginia aí reinante. Impacta-nos, com
efeito, a extrema capacidade de resistência das mulheres a um contexto tão adverso.
Resistência por elas exercitada por diferentes vias, seja pelas veredas de sua inventividade
cultural (as sábias), seja pela sua espiritualidade leiga (as místicas), seja pela sua capacidade
de resistência material (por seu trabalho manual de auto-manutenção (as militantes, as
guerreiras).
Dessas formas de resistência, aqui nos limitamos à que combina o exercício de uma
espiritualidade leiga com a sua capacidade de organização autogestionária a serviço dos
excluídos daquela época (os pobres, os doentes, as mulheres abandonadas).
As Beguinas constituem uma página relevante da história das experiências religiosas
marcadas por uma espiritualidade vivida no feminino, em pequenas comunidades chamadas
“Begijnhof”, “Béguinages”, conforme a região de sua atuação (Flandres, Liège, Bruges,
Antuérpia, etc.), animadas por mulheres jovens e adultas, celibatárias, viúvas, algumas
casadas, que, organizadas, sobretudo em meio urbano, combinavam uma vida de oração, de
trabalho autogestionário com o serviço aos pobres, doentes e pessoas marginalizadas da
época, alimentadas por uma espiritualidade singular, de caráter leigo.
Há referências associando as origens das Beguinas a Lambert le Bègue, figura a quem
também se atribui a fundação do Movimento dos Begardos, uma versão masculina de
semelhante experiência, formada por pregadores errantes, no século XII, na Bélgica, a
denunciarem profeticamente os desmandos do clero, e pregando uma conversão ao Evangelho
e ao estilo de vida das comunidades cristãs primitivas. Há, contudo, quem entenda
diversamente, as origens das Beguinas, a exemplo de Alain de Libera, que situa o início do
Movimento das Beguinas, nos arredores de Liège (Bélgica), por volta de 1210.
Segundo este mesmo autor, o Movimento das Beguinas tinha suas singularidades, tais
como: não tinha um santo fundador, não buscava autorização da hierarquia eclesiástica, não
tinha uma constituição ou regulamento, não fazia votos públicos, “seus votos eram uma
declaração de intenção, não um comprometimento irreversível a uma disciplina imposta pela
autoridade, e seus membros podiam continuar suas atividades normais no mundo”.
O Movimento das Beguinas respondia a um forte anseio de seus membros: tendo em
vista as relações então dominantes, nas esfera sócio-política, no terreno das relações de
gênero, nas relações de vida religiosa, em todas sentindo-se sufocada pela dominação
masculina, as Beguinas procuravam, explicitamente ou não, um estilo de vida que lhes
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permitisse uma múltipla autonomia: em relação a um marido, em relação ao patrão, em
relação à autoridade oficial, em relação à autoridade eclesiástica, em todas essas esferas,
reinando a figura masculina...
Tendo origem na Bélgica, as Beguinas foram expandindo-se pelos Países Baixos, por
áreas da Alemanha e da França, preferindo atuar no meio urbano, onde respiravam um ar de
relativa liberdade (em comparação com o meio rural daquela época). José Comblin assim a
elas assim se refere:
5
COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998, p. 126
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ISBN: 978-85-237-0603-6
correspondendo esta a um tempo de liberdade. Justamente um valor a ser reprimido, ante os
olhos dos hierarcas. Não é por acaso que, numa carta enviada ao bispo de Cremona, o Papa
Clemente V expunha sua veemente oposição contra “os que desejam introduzir na Igreja um
tipo de vida abominável que eles chamam de liberdade do espírito”...
Daí para a oficialização de uma caça às bruxas foi um passo, culminando nos
processos mais aviltantes da condição humana, protagonizados pela tenebrosa Inquisição.
Inclusive várias figuras beguinas, entre as quais Margarida de Porète. Além desta, são várias
as figuras de Beguinas: desde a precursora Hildegard de Bingen, passando por Matilde de
Magdeburgo, por Gertrude de Hefta, Marie d´Oignie, Matilde de Hackeborn, Beatriz de
Nazareth, até Hadewijch de Antuérpia e a própria Marguéritte de Porète, de algumas das quais
nos ocuparemos, a seguir, de modo a destacar aspectos de seu respectivo legado. (cf.
COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998: p. 125-129).
Começamos pela figura de Hildegard de Bingen (Alemanha) uma beneditina que
viveu entre 1098 e 1179, considerada uma precursora das Beguinas, ao menos no que toca ao
reconhecido potencial intelectual, como escritora, como compositora, como filósofa e como
mística. Como abadessa beneditina, Hildegard de Bingen foi também fundadora de alguns
mosteiros. Como compositora, é de sua autoria um dos mais antigos drama litúrgico, “τrdo
Virtutum”, além de mais de ι0 poemas e cantos litúrgicos Escritora prolífica, escreveu obras
teológicas e textos de temas medicinais e de Botânica. A ela é atribuída um número
expressivo de cartas. Fala-se em três centenas! Fato curioso e atual é o anúncio pelo Papa
Bento XVI de que, ainda este ano, Santa Hildegard de Bingen será proclamada Doutora da
Igreja... (cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Hildegard_of_Bingen).
Notícia que reforça suas multifacetadas potencialidades, que atraíam, em seu tempo, a
admiração de papas, de bispos, de príncipes...
Uma segunda figura de beguina – esta já não uma precursora, mas, antes, uma beguina
propriamente dita – diz respeito ao nome de Matilde de Magdesburgo. Também alemã,
nascida em Magdesburg, que viveu entre 1207 e 1282. Sua biografia resultou
fundamentalmente de seu famoso livro A Luz Resplandecente da Divindade, (em alemão,
“Das flissende Licht des Gottheit”), cujo manuscrito foi encontrado no século XIV, escrito
num Alemão popular da época, e não em Latim, como era o hábito das escritas eclesiásticas.
Um escrito que ela vai compondo, a partir de suas visões, que ela começa a registrar, já à
altura dos seus 43 anos, por recomendação de seu confessor. Diferentemente do estilo
convencional, o seu se acha bastante inspirado no que caracteriza o Cântico dos Cânticos, o
que provoca escândalo ao clero e à alta hierarquia de então, não bastasse o fato de tratar-se de
uma mulher. (cf. www.europsy.org/marc-alain)
Nascida quase meio século depois, merece igualmente destaque a beguina Marguerite
Porète (1260-1310), por seu precioso legado de mística, de perfil profético e de mártir. Sua
prematura condenação à fogueira – aos cinqüenta anos! – não é algo casual. Um testemunho
eloqüente de seu perfil místico e profético pode ser encontrado por meio de sua obra Le
miroir des âmes simples et annéanties. Um exemplar desta obra secretamente guardado por
séculos, foi recentemente (1945), num mosteiro de Monte Cassino.6
6
Cf. www.europsy.org/marc-alain
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Hadewijch de Antuérpia, outra beguina que se tornou célebre, sobretudo graças à sua
capacidade intelectual. Foi desbravadura no uso vernáculo em que produziu textos de
reconhecido valor, tendo sido, não por acaso, considerada uma das fundadoras da íngua
flemenga, uma das primeiras referências no cultivo da língua. Característica que cultivou
conscientemente, ao empreender vários textos no vernáculo, diferentemente da tendência da
época, sempre mais aberta ao Latim enquanto língua oficial. Não correspondia ao propósito
de Hadewjich, que preferia comunicar-se na língua de sua gente, por meio da qual socializava
sua produção.
Não menos importante foi a contribuição – talvez a que mais devamos destacar, dentre
todas, ainda que todas devam ser entendidas de modo entrelaçad0 – das Beguinas no campo
da experiência mística. Área em que também foram profundamente emblemáticas, sobretudo
graças à vivência de uma nova espiritualidade, profundamente marcada por um estilo leigo.
Não por acaso, foi no campo dos leigos e das leigas, que mais influência exerceram as
Beguinas. Assim a elas se refere uma analista;
Forte, também, durante longo período, a influência recíproca entre a mística vivida
pelas Beguinas e a exercida pelo dominicano Mestre Eckhart (1269-13), dominicano que
ensinou na Universidade de Paris, por dois períodos. Isto se deu seja em razão do perfil de
pregador de Mestre Eckhart que se dirigia aos leigos, seja também pelo fato de um enorme
contingente de mulheres, em razão das massivas mortes dos homens envolvidos em guerras,
em cruzadas, etc.
Este e outros detalhes e circunstâncias é que ajudam a melhor compreender o perfil da
proposta do Movimento das Beguinas, em especial seu propósito alternativo, razão por que,
como lembra Régine Pernoud, “Le mouvement des béguine séduit parce qu´il propose aux
femmes d´exister n´étant ni épouse, ni moniales, affranchie de toute domination masculine”.7
Com efeito, há quem sustente que as Beguinas não tinham propriamente uma “Madre
Superiora”, preferindo uma “Grande Dame”, eleita para alguns anos. Cada comunidade de
Beguina define seu próprio estilo de vida. Cultivavam um especial apreço ao trabalho como
um meio de sua emancipação econômica. Cultivam os saberes médicos bem como as artes.
De um número considerável de beguinas que se tornaram mais conhecidas, aqui nos
limitamos a apenas esses nomes, com o propósito de destacar-lhes as principais contribuições,
tanto as de caráter mais diretamente eclesial, quanto as de um alcance social mais
pronunciado.
7
Régine PERNOUD. La Vierge et les saints au Moyen Âge
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Comecemos por estas últimas – as de caráter sócio-histórico. O Movimento das
Beguinas constitui um marco relevante histórico-social, podendo ser destacados, de
passagens, os seguintes pontos, neste âmbito:
- seu aporte inventivo como sujeitos históricos (individuais e coletivos) numa época
marcadamente recheada de prevenções de caráter machista;
- seu lugar de protagonistas relevantes nos processos de mudança, no que se refere a
sua contribuição no mundo das letras;
- seu respeitável aporte no que tange a suscitação de valores alternativos á grade de
valores então hegemônica, seja na esfera social, seja no âmbito econômico, seja na esfera
político-cultural: compromisso com a causa libertária dos excluídos, autonomia, liberdade,
autogestão, alternatividade quanto ao uso do vernáculo, entre outros valores. No caso
específico do âmbito econômico, importa tomar em consideração elementos relevantes
ligados à sua automanutenção. Trabalhavam em atividades diversas, tendo suas próprias
oficinas de tecelagem; cerâmica, copistas (num tempo em que, não havendo imprensa, tinha-
se que copiar os livros)
Não menos relevante foi seu papel instituinte no tocante às suas atividades, do ponto
de vista cristão, razão por que aqui destacamos algumas de suas contribuições:
- no questionamento profético (explícito e implícito) em relação ao monopólio
teológico-pastoral da alta hierarquia eclesiástica MASCULINA;
- sua escolha estratégica de inserção religiosa fora do controle institucional
eclesiástico;
- sua postura de priorização do espírito do Evangelho e do Seguimento de Jesus, à luz
de um Francisco de Assis, de uma Clara, etc.;
- sua dedicação à causa libertadora dos excluídos do seu tempo;
- seu estilo “novidoso” de articular espaços de individualidade e espaços comunitários,
como sendo ambos fundamentais à formação humana e cristã;
- seu empenho formativo, numa perspectiva de alternatividade, implicando no
exercício de uma espiritualidade leiga.
Não é por acaso que a hierarquia eclesiástica vê com desconfiança e desconforto o
Movimento das Beguinas, pelo fato de esse movimento aprsentar claros traços de autonomia,
seja do ponto de vista social (organização em pequenas comunidades fora do cotrole
eclesiástico), seja do ponto de vista econômico (organização pelo trabalho autogestionário),
seja do ponto religioso (não pertencer a conventos nem a congregações)
Apesar de, e para além das perseguições, as Beguinas sobrevivem, até hoje, não sem
fazerem concessões, passando a serem aceitas como pessoas que cuidavam de asilos de moças
pobres. Donde ainda hoje a presença de várias experiências de “Béguinage”, na Bélgica, por
exemplo.
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Outra característica importante das PCIs era o fato de priorizarem as atividades diretas
junto com o povo dos pobres, inclusive aquelas e aqueles que não costumavam frequentar os
templos. Embora prestando eventuais serviços à Paróquia, esta não constituía sua prioridade,
o que lhes permitia mais liberdade de ação, e menos controle clerical.
Se já era forte a resistência ao espírito do Concílio Vaticano II, por parte das forças
conservadoras, tal resistência se fortaleceu de modo crescente, a partir do pontificado do Papa
João Paulo II. Com a contribuição efetiva da Cúria Romana, em especial da contribuição do
então Cardeal Ratzinger, arquitetou-se um verdadeiro desmonte das forças progressistas da
Igreja Católica, do que se chama “Igreja dos Pobres” ou “Igreja na Base”, recorrendo-se a
uma série de medidas punitivas, restritivas e de evidente controle de caráter conservador, tais
como:
- silenciamento e outras medidas punitivas contra os teólogos da libertação;
- inibição das atribuições das conferências nacionais e continentais de bispos;
- intervenção em organizações autônomas da vida religiosa;
- advertência aos bispos simpáticos da Teologia da Libertação;
- monitoramento, fiscalização, enquadramento ou fechamento de institutos de
formação na linha da Teologia da Libertação (o fechamento do ITER, em Recife, foi um caso
emblemático);
- política ultra-seletiva de nomeação e transferência de bispos;
- apoio aberto a movimentos reacionários e conservadores (Opus Dei, Legionários de
Cristo, etc.);
- reforma do Código de Direito Canônico e superdimensionamento do Catecismo da
Igreja Católica.
A despeito de toda essa estratégia de desmonte, cumpre reconhecer, de um lado, os
limites daí resultantes para as forças eclesiais identificadas com a “Igreja na Base”, inclusive
as PCIs e grupos similares, e, por outro, da capacidade de resistência de outras forças, a
exemplo de parte considerável das Religiosas dos Estados Unidos, afiliadas à Conferência da
Liderança das Religiosas (LCWR), que reúne milhares de religiosas, atualmente sendo alvo
de perseguição pelo Vaticano.
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LINGUAGEM MÍSTICA ERÓTICA MEDIEVAL: ASPECTOS PROPEDÊUTICOS
I. Introdução
Durante alguns anos de minha vida essa frase de Umberto Eco passou despercebida.
Quando de meus contatos com as Igrejas Históricas de Ouro Preto e Mariana, no Estado de
Minas Gerais, estudando elementos de Arte Sacra, pude entender o real significado das
imagens, pinturas, esculturas, enfim, dos elementos pictográficos no imaginário das pessoas
que se adentravam nos ambientes sacros. Somente depois desse impacto estético e imagético
violento com relação ao Barroco Mineiro é que as imagens iconográficas começaram a se
tornar foco de certa atenção em meu cotidiano. Contudo, esse interesse era meramente pessoal
e descompromissado com a academia, suas regras e estruturas.
Mais de vinte anos depois desse primeiro impacto com o Barroco Mineiro, através de
conversas com as Professoras Suelma de Sousa Moraes, Maria Simone Marinho Nogueira e
Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne, colegas com as quais tenho travado debates
muito frutíferos acerca do medievo, fui provocado a repensar alguns elementos estéticos
dentro da Idade Média e me deparei com a necessidade de pesquisar de forma mais detalhada
a Mística Medieval. Duas esculturas vieram-me de imediato à mente e foram o ponto de
partida para esse trabalho: a escultura da Beata Ludovica Alberoni, feita por Gianlorenzo
Bernini, que se encontra em Roma na Cappella Altieri (San Francesco a Ripa), feita por volta
de 1671-74; a escultura de Santa Teresa d’Ávila, uma escultura de Bernini feita por volta de
1645 a 1652, que se encontra na capela Cornaro, na Igreja de Santa Maria Vitória, em Roma.
A primeira nos mostra a Beata Ludovica deitada em um leito, em estado de êxtase.
Seu corpo se posiciona meio de lado no leito, sua cabeça se reclina no encosto do leito e suas
pernas apresentam-se meio dobradas. Seu rosto modificado, parecendo estar ofegante, e sua
boca entreaberta nos apresentam um semblante transfigurado pelo prazer. Sua mão direita
acaricia seu seio como se estivesse vivenciando um gozo, um orgasmo. A segunda imagem a
de Santa Teresa, nos apresenta a Santa da Igreja apoiada em uma pedra mediante o apoio de
sua mão esquerda, as pernas suspensas, o corpo meio arqueado, a cabeça pendendo para o
lado esquerdo, o rosto com semblante altivo, jovial, sua boca entreaberta. A sensação é a de
que a Santa está sendo consumida por um gozo ininterrupto que lhe consome todas as forças e
a envolve por completo. Ambas as imagens, hodiernamente, poderiam ser enquadradas dentro
de um conjunto de imagens extremamente eróticas, isso se as mesmas não estivessem
narrando um momento íntimo de cada uma dessas religiosas com o Divino. Efetivamente, a
1
Anderson D’Arc Ferreira é Doutor em Filosofia, Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal da Paraíba e suas pesquisas centram-se nos estudos relativos à Filosofia Medieval.
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forma com que cada uma dessas religiosas descreveu em seus escritos seus contatos míticos
com a divindade se assemelham às reações carnais do gozo quando ocorre o encontro entre a
amante e amado. Isso não seria de todo diverso e estranho para os observadores atuais caso o
amado descrito pelas religiosas não fosse Deus. Foi Teresa d’Ávila, foi uma mística cristã do
século XVI, quem nos diz acerca de seus anseios: “toda a miséria do presente é suportável
pela esperança do beijo divino”.
Através das discussões com as professoras acima mencionadas algumas perguntas se
apresentaram como inquietações contundentes à minha mente: Como a expressão de contato
com o divino pode ser descrita em uma linguagem erótica? Como podemos narrar as
experiências subjetivas que temos com o sagrado mediante o uso das expressões que usamos
para descrever o prazer que sentimos quando chegamos ao ápice de uma relação carnal? Qual
é a relação entre o amor e a carne quando efetivamente se pretende dar conta de expressar o
contato mais íntimo de nossa alma com a divindade? Qual é o limiar que me diferencia o gozo
do êxtase?
Nosso presente trabalho não pretende dar conta de responder a todos esses
questionamentos, mesmo porque alguns deles ainda se constituem de fortes indagações
presentes em minhas indagações. O que iremos desenvolver aqui é tão somente o início de
uma investigação que pretende, de forma mais apurada e sistemática, dar conta de responder
aos questionamentos acima descritos. Para que isso possa ocorrer entendemos ser de
fundamental importância compreender o que significa uma linguagem mística erótica e como
ela se insere no medievo cristão. Para tanto nossa reflexão terá de partir de um breve
delineamento do que seja a mística cristã, como ela se estrutura no medievo e como ela se
estrutura como uma linguagem usada pelas religiosas desse período.
Iniciemos nossas pesquisas.
2
Fílon de Alexandria é um filósofo judeu-helenístico nascido por volta do ano 20 a.C. e falecido no ano 50 d.C.
Dentre sua imensa contribuição para o cristianismo patrístico e a formação da doxologia cristã primitiva está o
fato de que ele é iniciador do movimento exegético que será adotado pela Escola de Alexandria, mas
especificamente aquilo que foi desenvolvido por Orígenes. Sua maior contribuição está na tentativa de
harmonizar a filosofia grega com os dados da revelação hebraica. Suas influências filosóficas perpassam o
platonismo tardio, o estoicismo, o neoaristotelismo e o neopitagorismo. Sua interpretação exegética permite a
instanciação do método alegórico. Esse método busca aquilo que está oculto nas escrituras sagradas, ou seja,
busca símbolos e conceitos de verdades morais, espirituais e metafísicas que estão implícitas no texto literal.
Assim se instancia seu movimento denominado de gnose, uma aproximação da revelação judaica com concepção
da teoria das ideias de Platão, cujo objetivo era levar os homens a uma verdadeira realidade acessível somente
através do contato direto da alma humana com a emanação divina. O objetivo da gnose é fazer com que o
homem possa voltar-se para a dimensão superior e divina que transcende sua própria alma. Esses movimentos
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movimento foi caracterizado pela mescla de aspectos filosóficos, de herança grega, com
elementos religiosos, de herança hebraica. Contudo, a linha da qual irá derivar o maior peso
semântico na extensão do conceito de mística no medievo é a herança grega.
O termo mística, dentro do contexto cristão, na literatura medieva, foi primeiramente
usado por Pseudo-Dionísio Areopagita. O contexto de surgimento desse termo ocorre quando
o referido autor fala do conceito de ‘teologia mística’. Em suas palavras, a respeito do que
seria essa ‘teologia mística’: “perfeito conhecimento de Deus que se obtém através da
ignorância, em virtude de uma união incompreensível” (De div. Nom. VIII, 3). Mesmo dentro
desse contexto cristão onde o termo é usado pela primeira vez, observamos várias relações
derivadas do conceito grego.
τ termo ‘mística’ usado no âmbito reflexivo do medievo é derivado do termo grego
‘mystérion’, que em sua tradução para a língua portuguesa torna-se a palavra ‘mistério’, que
quer significar certa cerimônia religiosa secreta. Mas a esse conceito temos a junção de outro,
o termo grego ‘mystikós’, que em sua tradução para a língua portuguesa torna-se a palavra
‘místico’, ou seja, aquilo que é relativo aos mistérios, culminando na noção de que esses
conceitos nos remetem a um significado de algo que ocorre ‘escondido’ ou mesmo que seja
algo ‘secreto’. Tal derivação e junção conceitual nos permite inferir que oo termo ‘mistério’
associa a noção de ‘mística’ a algo considerado como obscuro, algo que é impenetrável pelas
faculdades cognitivas humanas, algo que o intelecto humano não tem a capacidade de
conceber, quer esse movimento ocorra no mundo natural, quer no mundo sobrenatural.
Se seguirmos o percurso que até o momento delineamos podemos entender que o
conceito de ‘misticismo’ está ligado à certa noção de uma experiência mística. Essa noção
dentro do ambiente critão também pode ser entendida como sendo oriundo de uma
experiência religiosa. Essa realidade de uma experiência religiosa de contato da alma humana
com certa emanação divina pressupõe que algumas palavras devam ser usadas usadas para
tentar dizer algo em relação à vivência dessa experiência mística, por exemplo, os conceitos
de felicidade, gozo, fruição, salvação, iluminação, êxtase, transbordamento do coração,
retorno ao ser, esvaziamento, arrebatamento, consciência do todo, etc. É nesse contexto que
devemos entender que, em muitos casos, a noção de ‘misticismo’ irá tentar explicar a conduta
humana antes e depois desse contato de nossa alma com o inefável, com a divindade. Na
literatura mística cristã raramente podemos ver uma descrição de como se obter esse contato
místico, essa fruição, felicidade ou gozo que relata o encontro de nossa alma com a divindade,
mas, efetivamente, temos inúmeros relatos do momento e dos sentimentos vividos por essas
almas que se encontraram com os influzos da emanação divina.
O que efetivamente o fenômeno místico cristão quer significar é, primeiramente, um
movimento da alma para um objeto que está além dos limites da experiência empírica. Dentro
são possíveis mediante, por exemplo, a junção da noção do Logos Divino hebraico com a noção do Mundo das
Ideias de Platão, ou, de outra forma, a junção dos dados da Revelação com as ideias acerca da alma, sua origem e
movimentos expressas no livro Timeu de Platão. Irineu de Lião será um dos responsáveis pela importação da
noção de gnose para o ambiente cristão. Nesse momento o cristianismo irá reivindicar para si o título de
verdadeira gnose. A busca por esse sentido oculto, mas correspondente à verdade, e, por conseguinte, emanado
do contato da alma humana com as emanações divinas, estará expresso em todos os movimentos cristãos e
heréticos expressos desde os padres do período apostólico até as formulações de consolidação da dogmática
cristã, como podemos observar no sistema de Agostinho de Hipona.
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do modelo do cristianismo a mística se enquadra dentro da relação com o “mistério” de
Cristo, ou seja, ela busca a relação, conforme nos é relatado no Novo Testamento, com o
desígnio divino “de reunir todas as coisas em Cristo” (Ef. 1,9-10; Cl 1,20-27). Vejamos a
primeira dessas passagens: “9dando-nos a conhecer seu desígnio secreto, estabelecido de
antemão por sua decisão, 10que haveria de se realizar em Cristo ao cumprir-se o tempo: Que
o universo, o celeste e o terrestre, alcançassem sua unidade em Cristo.” (Efésios 1,9-10)3. A
dimensão mística do cristianismo acontece em geral na comunhão, ou seja, na experiência
onde o homem põe dentro de si o corpo de Cristo, mediante a ação do espírito Santo, para
poder ir de encontro ao Pai. Nesse sentido a experiência mística do cristianismo é um
caminho para a união da criatura com o Criador. Essa união acontece mediante uma
experiência religiosa, mística. É aqui que devemos entender a mística como sendo o caminho
para com a união com Deus, o caminho da salvação que, na ética cristã, e mediante uma
prática austera, cultiva-se a presença e a pertença na e da união com o Divino. A vivência da
experiência mística cristã é uma experiência de cunho contemplativo frente à beatitude na
medida em que estar com a divindade significa a posse direta dos atributos divinos, como o
belo, o verdadeiro, o absoluto. A vivência da experiência mística nesse ambiente específico
pode ser entendida como uma postura, como uma busca, como um estudo, como uma atitude.
Todas essas posturas se enquadram dentro daquilo que o mundo cristão comumente denomina
de ‘mística’. Segundo Smith, a noção de mística cristã:
é para ser descrita mais como uma atitude da mente, uma tendência inata da
alma humana, que busca transcender a razão e atingir uma experiência direta
de Deus, e que acredita que é possível para a alma humana estar unida com a
Realidade Última, quando ‘Deus deixa de ser um objeto e se torna uma
experiência’. Misticismo tem sido definido como ‘o sentimento imediato da
unidade do eu com Deus (...) é o esforço para estabelecer a imediaticidade da
vida em Deus como tal – nesta embriaguez-de-Deus, em que o eu e o mundo
são igualmente esquecidos, o sujeito conhece a si mesmo para estar na posse
da maior e mais completa verdade.4
O perfil dessa mística cristã, entretanto, não deve ser considerado como um
movimento único e uniforme. No período patrístico, onde a mística surge no contexto
supracitado de cunho neoplatônico, oriundo da tradição da gnose de Fílon de Alexandria,
teremos, nos relatos produzidos pelos Padres cristãos, uma tríplice acepção do termo: bíblica,
litúrgica e espiritual. Passemos, brevemente, a esboçar alguns elementos dessa tradição
relevantes para nossa pesquisa atual.
3
Todas as citações bíblicas que trazemos nesse trabalho foram obtidas mediante a versão da Bíblia da edição da
Bíblia Peregrino, Editora Paulus.
4
SMITH, 1980.
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que narra que a Bíblia é, por essência, mística, portanto, misteriosa. Dessa noção surge a
característica de meditação acerca da Palavra Divina, ou seja, a necessidade da busca do
escondido/misterioso que se encontra sob o texto sacro. Essa prática de alguns padres do
período apostólico e do início das Escolas Catequéticas faz nascer a noção de ‘interior’, visto
como subjetividade, e de uma contemplação adorante. Um exemplo claro dessa vertente pode
ser visto na herança textual e interpretativa do método da Escola de Alexandria, mais
especificamente nos textos, traduções e comentários realizados por Orígenes.
A mística litúrgica desenvolveu uma linha um pouco diversa. Nela existe uma
dicotomia em relação às concepções gregas e cristãs. A contraposição que se instaura ocorre
no choque da noção cíclica do tempo grego com a noção cristã que cria uma visão da
temporalidade mediante a instanciação da história no tempo, associando, contudo, a essa
noção, a dimensão da eternidade. O mistério está em entender a contraposição entre a
eternidade e a finitude. Os ritos que começam a ser desenvolvidos darão ênfase a como o
eterno se torna finito sem perder sua eternidade, ou seja, darão ênfase ao mistério da
encarnação de Cristo.
Outro elemento a ser considerado para o período é o da visão espiritual da totalidade
do existente. No cristianismo que se figura desde o início das comunidades cristãs
percebemos as influências da noção de theoria platônica. A filosofia grega impactava o
ambiente místico e religioso de todo o Império Romano, e com os cristãos primitivos isso não
foi diferente. Desde a formação das comunidades cristãs depois da morte dos discípulos, os
cristãos viram-se diante da pergunta de qual seria o locus da experiência com o divino:
intelectual, conceitual, imagética, mediada ou direta? Diante das várias respostas um aspecto
irá se perpetuar: a noção de ruptura do véu da realidade que dará acesso à ‘totalidade do ser’.
Essa noção tomada pelos cristãos fará com que se rompa com a união intelectiva grega e
instaure-se a união com uma realidade ‘espiritual’, misteriosa, que ultrapassa a condição de
descrição da racionalidade, portanto, uma visão mística.
As sucessivas visões de como se poderia viver a relação com a divindade não pararam
nas supracitadas descrições. O adensamento da relação do humano com o divino propicia o
surgimento de uma mística da luz e de uma mística das trevas. A mística da “luz” deve ser
vista como a revelação cristã que ocorre através da noção do Espírito e dos vários graus em
que ela pode ocorrer. Nesse sentido essa revelação ocorre tendo em vista a suspensão das
faculdades humanas, das mais simples até o esvaziamento total de todas as faculdades
humanas, quer sensoriais, quer intelectivas. Essa noção de tomada completa do humano pelo
contato com o divino, com suspensão de suas faculdades, será instanciada pelo conceito de
êxtase. Essa noção está intimamente ligada à gnose neoplatônica e pode ser vista nos diálogos
dos padres do deserto ou nas conversões de vários dos membros mais ativos das Igrejas
τrientais. Já a mística das “trevas” deve ser vista como um novo grau em relação ao anterior,
conforme o que nos é descrito por Gregório de Nissa, autor que nos relata tal mística mediante
a descrição de três graus de subida em direção a Deus: 1) a luz que nos dá a purificação para
que possamos estar diante de Deus; 2) uma contemplação dos inteligíveis que transcende os
sentidos e aquilo que podemos apreender; 3) mediante as trevas é introduzia outra via, a via
do amor, ou seja, o verdadeiro abandono dos parâmetros intelectivos e a busca da fruição
junto a Deus.
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Podemos entender esses dados descritos até aqui como sendo o primeiro momento de
busca da identidade do cristianismo. As reflexões e discussões que perpassaram esse período
demonstram que mediante a origem do cristianismo narra a vivência de homens e mulheres
que buscavam um encontro com o Cristo, ou seja, buscavam ter uma experiência íntima de
Deus. Essa experiência de Deus deve ser entendida como a busca de uma síntese entre uma
percepção humana, de um lado, e uma fé que avança exponencialmente para além dessa
percepção sensível, de outro. Diante disso o que temos que observar é que essa experiência de
Deus não é um sentimento simples ou mesmo o conjunto de sentimentos que se poderia ter
mediante a presença de Jesus. O que essa experiência íntima, mística, reflete, efetivamente, é
a síntese de todas as faculdades humanas, todos os sentimentos humanos com a fé cristã, a
pertença a Deus. Diante do exposto podemos estabelecer que a forma da cristandade entender
a possível experiência com Deus ocorre sempre de forma indireta, ou seja, essa experiência é
transmitida através de sacramentos, de sinais que são interpretados na e através da fé. Essa
será a herança da mística patrística para a mística na Idade Média.
Se essa herança da mística patrística oriunda do cristianismo primevo pode ser sentida
na mística desenvolvida na Idade Média, ainda nos restam alguns elementos fulcrais para
entendermos o que ocorria no medievo. Para que isso ocorra é necessário compreender a
relação dicotômica entre a noção de interior e a noção de exterior.
2.2. Elementos primevos da dicotomia interior versus exterior na mística cristã medieval
5
HEIDEGGER, 1999.
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Deus. Assim devemos entender que a felicidade, o gozo máximo, o êxtase, somente serão
alcançados quando existir a união do homem com a Divindade.
A experiência mística vislumbra o arrebatamento dos sentidos transportando o homem
para uma experiência que é indescritível, um momento em que se têm um turbilhão de
sensações que transcendem todas as faculdades intelectivas e comunicativas humanas levando
a um desvelamento inabalável da verdade acerca do mundo. Essa experiência é imediata,
assim, ela elimina toda forma de dualismo e dá lugar à unidade, ao acesso à verdade absoluta
e à comunhão para com Deus. σas palavras de Smith: “τ objetivo dos místicos, então, é
estabelecer uma relação consciente com o Absoluto, na qual eles encontram o objeto pessoal
de vida. (...) Essa união que eles procuram é ‘a união da vontade humana com o Divino’.”6
O interessante de se observar é que a mudança almejada pela mística não é algo que
ocorre como a transmutação de fatos fenomênicos, não é efetivamente a mudança da estrutura
da realidade. A mudança na forma com que se apreende a alteridade se dá no homem, na sua
interioridade, na sua relação para com Deus. Na medida em que o homem se liberta da
imediaticidade do mundo fenomênico, não dependendo mais das coisas que estão no mundo,
ele se une a Deus e tudo é significado de outra forma. O que ocorre com a experiência mística
é uma libertação, por parte do humano, da experiência com os dados sensoriais do mundo
fenomênico. É o rompimento das experiências mediadas e a afirmação da imediaticidade das
coisas. σas palavras de Bento Silva Santos: “o homem é uma alma que, voltada para o
exterior, anima seu corpo no espaço e no tempo, na região múltipla do dessemelhante e que,
voltada para o interior, atinge o fundo incriado no qual Deus penetra e habita em sentido
próprio.”7
O que temos de dar relevância para o atual estado de nossa pesquisa é que a mística
pretende romper com as divisões entre o interior e o exterior pois busca algo imediato, uma
experiência da unidade com a divindade. Nas palavras de Leonardo Boff:
A passagem supracitada nos coloca diante do último elemento de nossa reflexão nesse
ponto, a necessidade de refletir acerca dos limites da linguagem na descrição dessa
experiência mística que une o humano e o sagrado.
6
SMITH, 1980.
7
SANTOS, 2012.
8
BOFF, 1991, p. 20.
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proposições expressas mediante um sujeito e o predicado que lhe corresponde. Como a
experiência mística descreve justamente a união do sagrado com o humano, não existe como
estabelecer as relações proposicionais entre sujeito e predicado pois quando isso ocorre esse
elemento instancia uma alteridade e, dessa forma, não há a possibilidade da linguagem
alcançar ou expressar Deus e muito menos narrar o encontro com Ele.
As relações que a linguagem usa são relações de significados, não relações de estados.
Embora a linguagem não nos leve ao estado de contemplação, o uso da linguagem pode
despertar em nós o anseio da busca por tal estado. Os influxos da inteligência humana
expressos em forma linguística podem nos levar a busca de novos significados, de novas
experiências, dentre elas a experiência mística. Mas vale salientar que as palavras não nos
levam à experiência mística, elas apenas nos incitam o desejo de buscar por tal experiência.
O que devemos compreender a essa altura de nossa incursão é que a mística faz uso da
linguagem e das estruturas linguísticas à media em que ela usa a capacidade humana de
transmitir as impressões que se tem ou se vive. Nas belíssimas palavras de Boff:
O que o trecho de Boff tenta salientar é que sempre que a linguagem tenta expressar a
totalidade da experiência mística ela falha. Mesmo podendo somente ativar o caráter
imaginativo da descrição, a linguagem não exprime a experiência mística, ela exprime
somente a alteridade, não aquilo que foi vivenciado pela experiência mística, ou seja, a
unidade com Deus. Por mais que a linguagem tente, ela somente tangencia a experiência
mística, ela nunca consegue atingi-la ou descrevê-la. A esse respeito Malherbe assevera:
“Finalmente, através de todas as formas de que ela poder revestir-se, essa experiência é única:
a verdadeira libertação do humano em Deus. Mas a experiência é incomunicável em sua
pureza, em sua singularidade, em sua intensidade.”10 Ainda, na mesma direção, Boff afirma,
frente à impotência da linguagem em exprimir a experiência mística, que os místicos: “Apesar
de sentirem um com a palavra, sentem que a palavra não constitui a realidade fundamental e
una. Ela tenta balbuciar a experiência da unidade, mas não produz a unidade; pode, no
máximo, evocá-la e despertar em nós o desejo de busca.”11
Apesar dessa limitação, os místicos, ao tentarem transmitir suas experiências, se
utilizam de artifícios linguísticos muito variados para que tal experiência possa ser
apreendida. É nesse sentido que veremos neologismos, metáforas, analogias e vários outros
artifícios que tentarão demonstrar o que foi essa vivência da experiência mística de retorno ao
criador.
9
BOFF, 1991, p. 16.
10
MALHERBE, 2006.
11
BOFF, 1991, p. 20.
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Nesse contexto riquíssimo do cristianismo medieval, onde se pretende dar conta de
narrar aquilo que foi vivenciado por uma experiência mística, observamos o surgimento de
uma linguagem mística erótica. Essa linguagem, em sua maioria, foi produzida pelas
narrativas das vivências místicas das monjas do medievo. Cada uma delas se expressa de uma
forma, mas um elemento se torna central em suas narrativas: a vivência de uma relação de
intimidade para com a divindade, relação essa descrita mediante uma linguagem amorosa
onde a amante e o amado se tornam unos. Passemos, pois, a investigar alguns dos elementos
fulcrais que permeiam tais narrativas.
Uma das imagens mais instigantes acerca de monjas medievais a que tive acesso foi a
iluminura de Santa Gertrudes12. Nela temos dois planos: o superior onde aparece um fogo
saindo de seu coração e formando outro coração com as inscrições que remetem às iniciais da
cruz de Jesus; o plano inferior onde aparece a figura da monja ajoelhada diante de um altar
que dá sustentação a um crucifixo com a imagem de Cristo, onde vemos a emanação de uma
luz que sai do peito de Cristo e se dirigi ao coração da Santa. Em amplos os planos temos a
mesma motivação: a tentativa de expressar a relação entre o coração da Monja e o coração de
Cristo, portanto, uma tentativa de ilustrar uma relação amorosa entre o humano e o divino.
Essa imagem instancia aspectos simbólicos daquilo que é visto como uma espécie de
linguagem amorosa dentro da mística. Essa linguagem é fundamental para entendermos os
padrões do que é a mística erótica no medievo.
A linguagem na mística, como vimos anteriormente, narra uma experiência. A
linguagem amorosa é muito usada na mística na medida em que manifesta a relação amorosa
entre a criatura e o criador. Ao assumir tal característica a linguagem mística amorosa tenta
explicitar a grande paixão ou gozo que é provocado pela posse do amado. Vejamos uma
passagem de Nicolau de Cusa:
Por isso, és o amor infinito que, sem o amante, o amável e o nexo de ambos,
não pode ser visto por mim como amor perfeito e natural. Com efeito, como
posso conceber o amor sumamente perfeito e natural sem o amável e a união
de ambos? No amor contraído experiencio que o fato de o amor ser o
amante, o amável e a união de ambos deriva da essência do amor perfeito.
Mas aquilo que pertence à essência do amor perfeito contraído não pode
faltar ao amor absoluto do qual o amor contraído recebe o que de perfeição
comporta. Mas, quanto mais simples o amor tanto mais perfeito. [...] Aquelas
coisas que ocorrem como sendo três, ou seja, o amante, o amável e o nexo,
são a essência mais simples absoluta. Por isso não são três, mas uma só.13
12
Santa Gertrudes, monja do Mosteiro de Helfta, perto de Eisleben, na Saxônia, Alemanha, nasceu em 1256 e
iniciou sua vida monástica aos 5 anos, tendo por mestra Santa Matilde de Hackeborn. Ela é considerada uma das
maiores místicas medievais. Morreu ainda jovem aos 33 anos de idade.
13
NICOLAU DE CUSA. De visione dei, h VI, Cap. XVII, 72: 1-10 e 73: 1-3, p. 198.
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Em outra passagem o cusano ainda assevera: “Revelam-se mutuamente os seus
segredos os espíritos cheios de amor. E com isso aumenta o conhecimento do amado, o desejo
dele e inflama-se a doçura da alegria.”14
Um exemplo eloquente da linguagem do amor, no que se refere ás místicas medievais,
é a narrativa de Beatriz de Nazaret15, no manuscrito intitulado de Os sete graus (modos) do
amor. No manuscrito citado acima a mística medieval assim nos relata cada um dos sete graus
ou modos do amor: 1) o primeiro grau é o de um amor associado ao desejo ativo do amor; 2)
o segundo grau é o de um amor descrito como serviço gratuito em prol de Deus; 3) o terceiro
grau é aquele onde se insere um amor entendido como a busca de saciação do amor mediante
a honra, o serviço, a obediência e a submissão; 4) o quarto grau apresenta um amor que se
manifesta na perenidade que se torna desperta na alma e conduz os sentidos e a vontade ao
amor de tal modo que se perde o uso dos membros e dos sentidos; 5) o quinto grau que
instancia o amor visto como uma explosão do amor, como uma tempestade que toma de
assalto a alma enamorada e a faz perder-se pelo amor, aspecto narrado como sendo uma
torrente avassaladora que consome, e justamente pelo fato de consumir traz o sofrimento nos
momentos em que ele cessa; 6) o sexto grau que apresenta uma descrição de um amor mais
ponderado, como o da esposa santa em relação ao marido, amor esse que conduz a um
conhecimento mais íntimo e elevado; 7) o sétimo e último grau que postula um amor sublime
que ocorre somente no interior da alma superando toda a humanidade e colocando em união o
amante com a eternidade do amor e o amor eterno, elemento de união que ocorre na
inteligibilidade e nas alturas inacessíveis do abismo da Deidade.
Contudo, comumente, essa linguagem amorosa assumia aspectos próprios da
carnalidade. Aqui um fato é digno de nota: toda a mística recusa a carne pois ela leva a um
movimento que ultrapassa o corpo como símbolo da materialidade e, por isso, tende a romper
definitivamente com essa ‘prisão’ corporal. Contudo, levando-se em conta a união mística
vislumbrada pela linguagem amorosa que ela implica, em relação às pulsões eróticas, o que
ela conduz refere-se à uma sublimação da carne. Entrementes, ao mesmo temo em que essa
linguagem e experiência mística nega a carnalidade, ela retorna à carne, mas a noção a que ela
alude é a uma noção de carnalidade transcendente. O que temos nesse movimento, portanto, é
o uso de uma linguagem que se apresenta como erótica pois sempre traz os dados e as
inferências da carnalidade, ou por recusa, ou por aceitação, via uma noção de sublimação
transcendente.
A linguagem mística amorosa desenvolve todo um vocabulário que comporta um
grande pathos, ou seja, um afeto exagerado que se mescla com os elementos da
cotidianeidade. Essa dinâmica sempre narrará um fogo e um ardor extraordinário que tomam
conta do intelecto, da alma ou do espírito. E é justamente aqui que teremos o influxo do
elemento ‘erótico’.
14
NICOLAU DE CUSA. De visione dei, h VI, Cap. XXV, 117: 7-9, p. 237.
15
Nascida na cidade de Tirlemont, Bélgica, por volta de 1200, ela morre em 1269. Beatriz de Nazaret foi monja
cisterciense e ingressou no convento com 17 anos de idade. Ela foi canonizada pela Igreja e sua iconografia
apresenta uma imagem de uma monja com uma flecha transpassando seu coração e uma pena sendo segurada por
sua mão.
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Durante a Idade Média percebemos que a mística foi usada para tentar descrever a
relação do fiel para com Deus, ou seja, ela buscava desvendar a relação amorosa entre ambas
as partes. Essa tentativa de descrição, em muitos discursos, principalmente nos discursos das
místicas medievais, assume uma linguagem sensual, erótica, principalmente quando a
narrativa descreve a relação amorosa e de fruição de uma mística com Deus. Essa linguagem
de cunho erótico tinha como objetivo a descrição da relação afetiva do amor do fiel para com
Deus. Ora ela se apresenta de forma implícita, ora de explícita.
Um exemplo desses elementos que acabamos de mencionar pode ser notado nas
entrelinhas das palavras de Santa Teresa de Jesus, comumente conhecida como Santa Teresa
d’Ávila, a saber:
Via um anjo ao pé de mim, ao lado esquerdo, em forma corporal [...] Não era
grande, antes pequeno, muito belo, e o rosto tão incendido, que parecia ser
dos anjos mais elevados – desses que parecem abrasar-se todos [...] Vi-lhe
nas mãos um grande dardo de ouro, e na ponta da arma pareceu-me ver um
pouco de fogo. E parecia que mo enfiava pelo coração algumas vezes e me
chegava até as entranhas. Ao tirá-lo, cuidava eu que as levava consigo e me
deixava toda abrasada num grande amor de Deus. A dor era tão forte que me
fazia soltar gemidos; e tão excessiva a suavidade que me deixava aquela dor
infinita, que não se podia desejar que me deixasse nem se contenta a alma
com menos do que Deus. Não é dor corporal, mas espiritual, embora o corpo
não deixe de ter participação e grande. É um trato de amor tão suave que
passa entre Deus e a alma que, suplico eu à sua bondade, faça-o gozar a
quem pensar que estou mentindo.16
O uso da linguagem amorosa e mística não ocorre somente nas narrativas das místicas
cristãs. João Crisóstomo (350-407), um dos mais importantes religiosos da Patrística Cristã,
em uma de suas homilias narra que Deus era não somente o esposo ideal das virgens como,
também, apresentava-se como um amante mais ardente do que qualquer homem poderia ser.
Alguns exemplos dessa noção de amante ardente estabelecidas por místicas medievais serão
bem elucidativos para nosso objetivo. Santa Tereza era sempre facilmente transportada para
seus encontros com Jesus de tal forma que um padre chegou a lhe proibir que orasse, mesmo
que mentalmente. Ao padre, Tereza não confessou que tinha ciúmes de Maria Madalena. Mas
16
LEÓN, 1998, p. 171. Caso a narrativa ainda não seja suficiente para a compreensão a que nos referimos seria
interessante observar a narrativa da escultura de Santa Teresa, descrita no terceiro parágrafo de nossa introdução,
local onde associamos a escultura da Santa em todas as expressões que ela demonstra aos sinais de um gozo
carnal.
17
LEÓN, 1998.
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confessou seu ciúme a Jesus, e Ele a tranquilizou dizendo que preferia Tereza a Maria
Madalena e que, sempre que Tereza estivesse com ele, ela seria a única 18. Catarina de Siena
(1347-1380) num dos seus frequentes momentos de êxtase diz que recebeu das mãos de Jesus
o seu prepúcio para que ela se tornasse sua esposa. Ela narra o seguinte: “não com um anel de
prata, mas com uma aliança feita de sua própria carne sagrada, pois quando lhe circuncidaram
esse aro foi retirado do seu corpo sagrado”19. Angela de Foligno (1248-1309), ainda casada,
teve visões de Jesus em que mantinha relações amorosas com Ele e, para isso, diante do
crucifixo, quando iria orar, tirava toda a sua roupa20. Já Catarina de Gênova (1447-1510)
afirmava que Jesus lhe beijava a boca21. Para finalizar esses breves exemplos queremos trazer
à baila uma escultura da Beata Ludovica. Torna-se digno de nota que Ludovica conhecia o
prazer sexual pois já fora casada. Na escultura da beata Ludovica exposta na Capela Altieri da
igreja de Francisco a Ripa Grande a imagem nos relata a beata deitada numa cama, retorcida
em uma espécie de espasmo, as mãos sobre os seios, a cabeça reclinada, os olhos e a boca
entreabertos. Ela se apresenta toda coberta em suas vestes e deitada sobre um leito de
mármore. A escultura nitidamente nos mostra uma mulher que sofre fisicamente todos os
sinais de um gozo carnal. A noção do erotismo que observamos ao deter o olhar na referida
escultura pode ser extraída na medida em que o prazer pode ser interpretado na seguinte
sequencia de detalhes explícitos: as pontas dos dedos da mão direita tocando o seio direito e a
mão esquerda pressionando o abdômen; a cabeça voltada para trás, e para o lado, com a boca
permanecendo ligeiramente entreaberta; os olhos serrados.
Consideramos, todavia, que esses exemplos se constituem de fontes secundárias das
narrativas das místicas medievais e somente nos colocam diante da existência dessas
narrativas. De forma mais detalhada veremos os influxos da monja beguina Hadewijch de
Amberes22 através de alguns trechos selecionados de suas narrativas. Cremos que com esses
exemplos iremos lapidar as noções que até o momento demos daquilo que pode ser descrito
como sendo constitutivo de uma mística erótica no medievo.
O primeiro trecho, extraído de suas cartas, nos relata a posição de abandono do eu e
perda da identidade pessoal diante do contato com o divino. Ela nos diz: “Minha única
satisfação seria pensar que, sendo eu humana, experimentava o amor em meu coração amante
e que, sendo Deus tão grande, eu com a privação de toda satisfação podia com minha
humanidade alcançar a divindade (...).” (Hadewijch de Amberes, Cartas, 29). Em outra
passagem ela esboça alguns elementos que demonstram a impossibilidade de respostas
intelectivas para as perguntas suscitadas frente ao encontro com a divindade e o caráter de
carência que a falta do amado traz ao amante: “Como se unem estas duas metades da alma?
Esta pergunta nos levaria muito longe e não ouso dizer mais. Por outra parte, é demasiado o
que me falta para satisfazer ao amor, mas também temo que gente estrangeira venha a semear
18
Livre narrativa da biografia de Tereza apresentada por Guido Ceronetti, L'Occhiale Malinconico.
19
Trecho citado por Diane Ackerman na obra Le livre de l'amour.
20
Trecho extraído das narrativas de Adolf Holl na Obra A mão esquerda de Deus: Uma biografia do Espírito
Santo.
21
Trecho extraído das narrativas de Cioran na obra Précis de décomposition.
22
Nasceu no final do século XII em Amberes, região de Brabante, hoje Bélgica. Sua morte é datada em 1260,
em Nivelles. Seus escritos datam da janela de 1235 a 1244. Pertenceu a uma comunidade de mulheres católicas
laicas conhecidas como beguinas.
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urtigas ali onde deveriam florescer rosas.” (Hadewijch de Amberes, Cartas, 19). A certeza de
que a linguagem é limitada e que nunca conseguirá exprimir a totalidade da experiência
mística pode ser atestada na seguinte passagem:
faz quatro anos na festa da Ascensão por Deus Pai em pessoa no momento
em que seu Filho descia sobre o altar. Ao descer ele me beijou e com este
signo fiquei marcada. E passei a ser uma com ele na presença de seu Pai, que
me recebeu em seu Filho e o recebeu a ele em mim. Recebida na unidade fui
iluminada de tal forma que compreendi esta essência e dela tive
conhecimento mais claro do que se pode ter com palavras ou com razões ou
visões, tratando-se de coisas desta terra, [...] isto poderia passar por
maravilha. Mas embora quando confesso que parecem maravilhas, estou
segura de que não te assombrarás, sabendo que a linguagem celestial supera
a compreensão terrena. Para todo o terreno se encontram palavras e se pode
dizer em neerlandês, mas aqui não me serve o neerlandês nem tampouco
palavras. Apesar de que conheço a língua mais a fundo que se pode, não me
serve para o que acabo de mencionar e não conheço meio de expressá-lo.
(Hadewijch de Amberes, Cartas, 17)
Em um de seus poemas a monja trata dos nomes do amor. Nele temos sete níveis.
Acerca do sétimo ela assevera:
Na obra que relata suas visões ele descreve o que Jesus quer dela, o que ele a instrui a
fazer e pensar. Ele a ensina a se tornar um verdadeira amante do amor divino e de sua fruição.
Na narrativa da monja:
Por isso só quero dizer isso: Desejava a plena fruição de meu Amado,
conhecê-lo e saboreá-lo plenamente, com tudo o que o pertence; desejava
gozar em sua totalidade de sua humanidade unida com a minha e que a
minha, alicerçada na sua, fosse mais forte e ganhasse firmeza e possuísse
firmeza, pureza e unidade suficiente para satisfazê-lo plenamente em toda
virtude. Para isso desejava que ele me satisfizesse interiormente com sua
Divindade, em unidade de espírito, e que fosse em mim total e integralmente
o que Ele é, sem restar nada. Pois dentro todos os dons que tenha desejado,
escolho este: satisfazê-lo em todos os grandes sofrimentos. Pois a mais
perfeita satisfação é crescer para ser Deus com Deus, mas isto requer sofrer
penas, dor e exílio e viver sempre em renovados pesares, mas desejando que
tudo chegue e passe sem sofrer e experimentar assim nada mais que o doce
amor, as carícias e os beijos. Assim desejava eu que Deus se me entregasse e
poder dar-lhe satisfação. (Hadewijch de Amberes, Visiones, 7, lin. 21-41)
Tal desejo de entrega também tem o lado da falta, do abandono quando não é possível
estar nessa união. Para ela:
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Se o primeiro momento é marcado pelo sofrimento da falta, quando a presença D’Ele
se torna efetiva é possível saboreá-lo e vivenciá-lo. Ela nos relata esse momento de saciação
da seguinte forma:
Por fim, como um exemplo da paixão arrebatadora que desnuda a alma e da união
amorosa que a experiência visionária da mística funda em relação à união do interior e
exterior, temos:
fora de meu espírito, de mim mesma e de quanto havia visto n’Ele, e perdida
por completo, caí no seio da fruição de sua natureza de Amor. Ali permaneci
perdida e aterrada sem compreensão nem conhecimento nem visão nem
outro entendimento espiritual que o de ser uma com Ele e gozar dessa
fruição23. [...] Então caí em um abismo sem fundo e saí de meu espírito
nessa hora em que nada podia dizer24; [...] depois, permaneci perdida em
meu Amado, e me fundi nele de maneira que nada restou de mim25.
V. Referências
BOFF, L. Introdução. In.: ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos
seletos. Petrópolis: Vozes, 1991.
HEIDEGGER, Martin. Estudios sobre mística medieval. Trad. de Jacobo Muñoz. 2ª ed.
México: Fondo de Cultura Económica, 1999.
LEÓN, Luiz (Edit). Vida de Santa Teresa de Jesus escrita por ela mesma. Tradução de
Rachel de Queiroz. São Paulo: Loyola, 1998.
MALHERBE, J. Sofrer Deus: a pregação de Mestre Eckhart. Aparecida: Editora
Santuário, 2006.
CUSA, Nicolau de. A visão de Deus. 3ª ed. Trad. de João Maria André. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2010.
SANTOS, Bento Silva. O Gottesgeburtszyklus de Meister Eckhart: a mística fundamental do
“nascimento de Deus na alma” (Sermões 101 a 104). In.: Revista Mirabilia. nº 14: Mística e
Milenarismo na Idade Média, Jan-Jun de 2012, p. 124-134.
SMITH, M. The nature and meaning of mysticism. In.: WOODS, R. Understanding
mysticism. Garden City: Image Books, 1980.
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POSSIBILIDADES DE UMA LEITURA HERMENÊUTICA DAS CONFISSÕES DE
AGOSTINHO DE HIPONA: A FILOSOFIA RICOEURIANA COMO VIA PARA
REINTRODUÇÃO DO SAGRADO NA LEITURA FILOSÓFICA DAS CONFISSÕES
Andrés Bruzzone
(USP)
andres.bruzzone@usp.br
Poucas obras tão lidas, comentadas e interpretadas, desde solos tão diferentes, como as
Confissões de Agostinho de Hipona. Poucas obras foram apropriadas com sentidos tão
diversos, muitas vezes desde filosofias franca e irreconciliavelmente opostas. Poucas obras
geraram e geram tantas interpretações “definitivas” que, contudo, nunca conseguem dar conta
do conjunto sem que algo fique sobrando ou faltando.
É livro que nos interpela desde antes da leitura: nos questiona sobre nossa situação
como leitores. Com efeito, como lemos as Confissões de Agostinho no século XXI, nós que
carregamos uma história da filosofia onde não é possível ignorar a Aufklärung, onde não
podemos abrir mão da interdição kantiana que nos impede colocar no terreno da crítica as
questões vinculadas com Deus? Está claro que filosofia e fé têm discursos autónomos e que
não cabe à primeira se ocupar da segunda.
Mas Agostinho nos coloca um problema sério, que Jean-Luc Marion define muito bem
no seu Au lieu de soi – l’approche de Saint Augustin: se lermos como filósofo, estaremos
deixando de fora aquilo que há de mais importante para o próprio Agostinho, que é a busca de
Deus. E se lermos como teólogo, estaremos abdicando da filosofia.
Marion entende que não se pode depurar Agostinho, extirpando a fé de seu texto,
retirando o pensamento filosófico do seu ambiente bíblico e purgando suas implicações
teológicas. Propõe o que ele chama de leitura não-metafísica, sem com isso fazer leitura
teológica, que seria tão imprópria como uma leitura filosófica. Assim, sugere evitar importar
em Agostinho os conceitos e o léxico da metafísica.
O soi que resulta desta leitura é um soi afastado, divorciado do ego: um soi que se
define pelo desejo de beatitude, uma beatitude que o ego não pode alcançar por si, menos
ainda ter em si. Um ego sem essência que “performa, conhece e se apropria da sua existência,
mas para perder seu si”
Não é essa a leitura costumeira nas faculdades de filosofia, onde Agostinho é tratado
como filósofo. “Como se fosse” texto filosófico, tomando para isso a dimensão filosófica que
também está nele, e para isso prescindindo da dimensão querigmática, sem a qual o texto já
não é o mesmo texto. Mas o Agostinho que resulta destas leituras é um Agostinho amputado,
desnaturado. O cientista estuda o funcionamento do corpo a partir de órgãos mortos, mas o
faz sabendo que a vida que lhes falta é o que lhes da sentido. Sem Deus, sem Palavra
revelada, sem absoluto e sem conversão, o que sobra de Agostinho não é menos corpo morto.
Uma alternativa é a leitura que faz recurso à filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur,
especialmente a noção de identidade narrativa. Bochet, Alici, Moraes e outros têm
desenvolvido essa via de interpretação, mostrando como deixa em evidência aspectos do texto
agostiniano que outras ferramentas ocultam.
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Na possibilidade de reinstalar a o sagrado na leitura das Confissões, sem sair do campo
filosófico, é onde o encontro de Agostinho com Ricoeur se faz mais rico. Para avançar com
esse argumento será necessário apresentar as definições de identidade narrativa, de ipse e
idem e de caráter, próprios da filosofia de Ricoeur.
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Este caráter relacional da identidade está presente em Kant, que classifica a categoria
de substância entre as categorias de relação como condição de possibilidade de pensar a
mudança.
Ricoeur se pergunta se a ipseidade do si pode ser pensada em termos de uma forma de
permanência no tempo que não implique a determinação de um substrato, mesmo no sentido
relacional kantiano. Uma forma de permanência vinculada à pergunta pelo “quem?”,
irredutível ao “quê?”.
Há dois modelos de permanência no tempo disponíveis para falar de nós mesmos: o
caráter e a palavra mantida. Entre ambos reconhecemos uma permanência que dizemos ser
“de nós mesmos”, e Ricoeur entende que a polaridade dos dois modelos resulta do
recobrimento quase total entre as problemáticas do idem e do ipse, enquanto a fidelidade a si
na palavra mantida marca o afastamento extremo entre a permanência do si e a do mesmo,
atestando a irredutibilidade entre elas.
Caráter é o conjunto das marcas distintivas que permitem reidentificar um indivíduo
humano como o mesmo: acumula a identidade numérica e qualitativa, a continuidade
ininterrupta e a permanência. É por isso que o caráter pode constituir o “ponto limite” em que
ipse e idem se aproximam e se recobrem. Neste sentido, o aspecto temporal da disposição
colocará o caráter na via da narrativização da identidade pessoal.
Em primeiro lugar, à noção de disposição se vincula a de hábito, como hábito que está
sendo e que já foi adquirido. O hábito da uma história ao caráter, mas uma história onde a
sedimentação recobre ou até mesmo abole a inovação que a precedera. Cada hábito adquirido
e transformado em disposição se faz traço do caráter – mais um desses traços que, somados,
constituem o caráter.
O segundo elemento que se vincula à disposição são as identificações adquiridas, pelas
quais o outro entra na composição do mesmo. A identidade de uma pessoa ou de uma
comunidade se faz a partir de identificações a valores, normas, ideais, modelos, heróis, nos
quais a pessoa ou a comunidade se reconhecem. Reconhecer-se em e reconhecer-se a: há uma
alteridade assumida, manifesta nas figuras heróicas, mas é uma alteridade que já está latente
na identificação a valores que faz com que se possa colocar uma causa por sobre a própria
vida. Assim, se incorpora ao caráter um elemento de lealdade, fazendo-o se voltar à fidelidade
e ao mantenimento do si.
A pessoa é irredutível ao conceito de idem, mesmo quando ipse e idem se confundem,
quando chegam a se tornar indiscerníveis: o caráter guarda sempre uma história e um fundo
de responsabilidade ética dado pela escolha dos valores de identificação.
O caráter ganha assim identidade numérica, identidade qualitativa, continuidade
ininterrompida na mudança e permanência no tempo, e o faz a partir da estabilidade
emprestada aos hábitos e às identificações adquiridas ou disposições. Há, destaca Ricoeur,
“uma certa adesão do que ao quem” na identidade do caráter ou, dito de outra maneira, “o
caráter é o que do quem”, por um recobrimento do quem pelo que, que provoca um
deslocamento da pergunta “quem sou eu?” para “o que eu sou?”.
Mas não deve se deixar de diferenciar ipse de idem.
Na noção de palavra mantida (parole tenue), Ricoeur encontra o polo oposto à
identidade do caráter: uma manutenção de si (maintien de soi) que não cabe no conceito de
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coisa em geral, senão somente no de quem?, como a constância na amizade. Manter uma
promessa parece um desafio ao tempo, uma negação da mudança: ainda que meu desejo
mude, ainda que eu mude de opinião ou de inclinação, eu manterei a minha palavra.
Um “intervalo de sentido” se abre entre a oposição entre a mesmidade do caráter e a
manutenção de si mesmo na promessa, entre dois modelos de permanência no tempo. A
mediação deve ser procurada na temporalidade, e é aqui que se situa a identidade narrativa,
que oscila entre dois limites: o limite inferior onde idem e ipse se confundem, e um limite
superior onde o ipse coloca a questão da sua identidade sem o suporte do idem.
Não são raras as referências às Confissões como uma autobiografia; às vezes se fala de
“autobiografia espiritual”. Mas há um elemento formal que incomoda de maneira muito
evidente esta abordagem: a quebra da narração a partir dos livros IX e X. Com efeito, o Livro
IX é o último a relatar fatos passados da vida do autor; começa falando da decisão de
Agostinho de se afastar do ensino para dedicar sua vida à reflexão religiosa e dedica a
segunda metade à mãe, Mônica, e à sua morte. Mas, a rigor, a suposta quebra, o que incomoda
o leitor contemporâneo à busca de uma autobiografia, dá-se nos três últimos Livros, própria e
declaradamente exegéticos. É nesta seção final das Confissões que seu autor procura elucidar
o sentido de mistérios como o tempo, da expressão “céu e terra” e a Criação – sem que seja
dado qualquer elemento de ligação aparente com a narração que antecedera.
Como dissemos, alguns autores propõem ler as Confissões com a chave da identidade
narrativa ricoeuriana, e a leitura funciona muito bem. Mas estas leituras, de maneira geral,
colocam a ênfase ou se limitam à noção de ipseidade. Os nove primeiros Livros, aqueles em
que Agostinho fala sobre si, são, assim, entendidos como uma busca da identidade (ipse) pela
narração. Agostinho narra os fatos da sua vida no esforço por reunir, pela força de uma trama
coerente, o disperso, um esforço por dar coerência àquilo que aparece como caótico,
multiforme e vário. Mas a identidade narrativa entendida em termos de ipse não tem como
dar conta dos livros exegéticos e, assim, é necessário mudar de ferramenta de leitura quando
se trata de encarar os três Livros finais.
Com tudo o que a abordagem pela via da identidade narrativa tem de interessante, ela
fica estreita ao deixar de fora estes os Livros finais das Confissões. É mais uma leitura que, de
certa maneira, pressupõe uma quebra na obra. Mas isso não acontece se for incorporada a
noção de idem que, como vimos, faz parte da teoria da identidade narrativa.
Ponto de partida para esta abordagem é o “eu interrogativo” que aparece nas
Confissões: muito distante do sujeito moderno, autofundado e autosuficiente, ele é um
problema que deve ser endereçado. E Agostinho se interroga:
Por esta via podemos interpretar o esforço agostiniano nas Confissões como uma
tarefa de explicitação da aporia do uno e do diverso da identidade e a solução (ainda parcial)
pela narração. Ou, como diz Ricoeur, para resolver a antinomia sem solução entre a
postulação de um sujeito idêntico a si mesmo na diversidade de seus estados, de um lado, e a
ideia de que este sujeito idêntico nada é senão uma ilusão substancialista, do outro.
A identidade que Agostinho procura será, em certo sentido, identidade idem: a
identidade daquilo que não muda, aquilo que é sempre idêntico a si mesmo, que não é em uma
hora isso, em uma outra aquilo -a forma de identidade do Idipsum. Mas há, no processo de
aproximação às condições que permitirão atingir esse estado do ser, uma identidade ipse em
jogo: é a identidade daquele que percorre com a memória o fio de sua vida, ciente de ser ele
um mesmo, mas confrontado com a mudança, a multiplicidade, a fragmentação.
Trata-se de uma identidade fraturada, que carrega aporias e carências. Há uma busca
da identidade que se dá na passagem do movimento a um repouso somente atingível num
plano de transcendência. Com efeito, fica claro ao leitor das Confissões que uma identidade
perfeita não pode ser atingida no plano mortal. Identidade daquilo que é igual a si mesmo, que
não muda nem deixa de ser, encontra-se somente na Trindade, no Idipsum. Ao homem cabe a
busca da identidade como imagem, e como tal ele não pode abandonar certo estado de
provisoriedade, a imperfeição da criatura temporal, mutável.
Deus é a possibilidade de eliminar as contradições que o tempo impõe, única saída
para as aporias que restam no final do Livro X, quando o percurso narrativo foi completado e
aquilo que a narração podia organizar foi organizado, aquilo que podia ser reinterpretado à luz
do texto sagrado já faz parte de uma história de vida.
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A solução narrativa é suficiente no que diz respeito ao plano temporal, da identidade
ipse: é dada a resposta à pergunta “quem sou?”, e esta resposta chega pela narração dos fatos
de uma vida, iluminados pela palavra sagrada da Escritura. Mas a identidade idem, vinculada
à pergunta “o que eu sou”, continua assombrando Agostinho: não há repouso enquanto não
tiver alcançado a sua forma verdadeira, estável e una, imutável. Para isso, a narração não
basta: precisa do recurso à palavra revelada.
Agostinho recorre ao mediador entre Deus, que é uno, e ele próprio, criatura, temporal,
que é “muitos, em muitas coisas e através de muitas coisas” (XI, xxix, 39), a fim de alcançar
Deus e ser reconstituído. Se propõe seguir somente Deus, “esquecido do passado e não
distraído, mas atraído, não para aquelas coisas que hão de vir e passar, mas para aquelas
coisas que estão adiante de mim, não com a dispersão, mas com atenção” (idem). O prêmio
será contemplar as delícias divinas, “que não vêm nem passam” (idem). Ele se lamenta
porque seus anos decorrem entre gemidos, porque está disperso no tempo “cuja ordem
ignoro”, porque seus pensamentos, “as entranhas mais íntimas da alma” são “dilaceradas por
tumultuosas vicissitudes” (idem), busca se unir a esse Deus que invoca, que chama para
dentro de si.
O recurso à eternidade, por via da mediação crística, é a única esperança de solução
para a dispersão, que é fruto da condição temporal enquanto tal. Como criatura jogada no
tempo, o homem está condenado à dispersão, pois ser no tempo é ser disperso, e isso é algo
que o ordenamento dos fatos, a organização narrativa, não pode resolver.
Agostinho narra a história de uma conversão e sua busca de uma transcendência que
exige ele buscar Deus. Faz esta busca no mundo das criaturas, às que interroga, e voltando-se
para si como mais uma criatura, buscando na memória e se deparando com aquilo que é mais
interior que o próprio interior. E é esta busca o que o leva a se interrogar por aquilo que é
distintivo da criatura, isto é, a condição temporal. Explicitada esta questão, resta encaminhar a
via da mediação, e o texto se volta para a leitura das Escrituras.
É a estabilidade do idem o que o narrador das Confissões busca. O objetivo é uma
reforma do caráter, no sentido ricoeuriano. Lembremos que no caráter repousam a identidade
numérica, a identidade qualitativa, a continuidade no tempo e o princípio de permanência no
tempo, tudo por meio da ideia de traço distintivo. E o que Agostinho procura é, justamente,
uma mudança substancial: quer que aqueles traços distintivos deixem de ser os que o
caracterizavam, que sejam substituídos por outros, novos.
Dar conta da identidade como idem e como ipse aparece, então, como a tarefa
agostiniana nas Confissões. O ipse é apresentado nos nove Livros iniciais, enquanto o idem
permanece no horizonte da investigação como promessa. Se o texto pode dar conta do ipse, é
a tarefa do texto, o esforço da reforma, o que põe Agostinho a caminho desse idem que se
busca, será o fruto do exercício espiritual. O ipse opera no texto, o idem no autor e no leitor,
no qual ainda se faz a fusão entre ambos.
A solução agostiniana busca aproximar as duas formas da identidade: o ipse e o idem.
Agostinho, que se pergunta “o que eu sou?” e “quem eu sou?”, não deixa uma pergunta de
lado em benefício da outra, mas busca a conciliação de ambas no encontro com Deus.
Somente olhando com Deus e como Deus, isto é, toda a vida num olhar só, sem antes nem
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depois, é que ipse e idem se recobrem perfeitamente, se fundem, se fazem uma coisa só.
Identidade.
Conclusões
Referências
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HELOISA E ABELARDO
Eduardo Hoornaert
(UFBa)
1. O estereótipo ocidental.
2. Abelardo
3. Heloisa.
4. A vitória aparente de Abelardo
5. A luta de Heloisa continua.
1. O estereótipo ocidental
2. Abelardo
Contra esse pano de fundo destaca-se a história de Heloisa e Abelardo. Ele é professor
brilhante na universidade de Paris. Tem uns 40 anos e tem de observar o celibato, pois só
clérigos celibatários podem ensinar. Aparece uma aluna muito inteligente, de 17 anos, que
mora na casa de seu tio, o cônego Fulbert e Abelardo, que sente atração por ela, consegue
hospedagem na casa do cônego que, não desconfiando de nada, lhe confia a sobrinha para que
ele a forme na ciência. Na realidade, os dois namoram e, como não pode deixar de ser, nasce
um filho (Astrolábio). Apavorado, Abelardo manda Heloisa para a casa de sua irmã na
Bretanha e pensa arreglar a coisa propondo um casamento secreto. Assim ele pensa continuar
a ensinar (publicamente continuaria celibatário) e dar satisfação ao cônego que não entende
amor fora do casamento. Mas a artimanha pega mal. O cônego manda castrar o teólogo, que
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se refugia num convento e manda Heloisa também para o convento. Mas os estudantes
pressionam Abelardo para que ele volte a ensinar e assim ele volta a Paris. Heloisa percebe
que Abelardo, no fundo, só pensa em carreira e quer guardá-la como esposa escondida sob a
capa religiosa. Ela não aceita a situação, quer ser amiga, não ‘esposa’ refugiada em convento.
Certo dia, para consolar um amigo que passa por desavenças semelhantes, Abelardo escreve a
‘história de minhas desventuras’. τ texto cai nas mãos de Heloisa no convento e ela começa
mandando cartas para ele. Aí nasce uma das mais extraordinárias correspondências de que se
tem conhecimento na história da literatura mundial.
3. Heloisa
Como escrevi cima, a partir da quinta carta Heloisa não trata mais do amor, ela acolhe
os conselhos dados por Abelardo para o bom andamento da vida no mosteiro do Paracleto.
Fica calada a respeito de seus sentimentos. Abelardo morre aos 63 anos, socorrido pelos
monges de Cluny. Se nome funciona em todos os livros de teologia medieval e o ‘caso’ com
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Heloisa aparece como um ‘pecado de juventude’. A ideia do pecado aumenta ainda a
autoridade da igreja e é desse modo que a igreja costuma apresentar a história de Heloisa e
Abelardo, como uma história picante, um ‘divertimento’ erótico.
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RUY GONÇALVES E A DISCUSSÃO DO FEMININO NA REGÊNCIA DE D.
CATARINA DE ÁUSTRIA
Introdução
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tudo o que esta implicava. Caracterizava-se por certa liberdade de espírito, por certo
relativismo, certo cepticismo; o ideal do homem honesto tendia a substituir o do cavaleiro.
Acompanhando esse desenvolvimento das ideias na História, há de se notar que o
poderio intelectual que deriva ao político prático não para com a atuação de Gregório VII.
Após sua morte, sucedeu uma grande movimentação intelectual, como Higo de S. Vítor,
Bernardo de Lervaux... Vamos entrando, aos poucos, no Renascimento.
E é nesse declínio1 dos ideais que continuou o movimento da “laicização sem
equilíbrio”, nas palavras de Jean Touchard (1991, p. 224). Nesse momento político que
surgem as opiniões de William de Occam e Marsílio de Pádua, para assegurar o direito de
Luís da Baviera.
Em Portugal, essas mudanças aconteceram de forma muito diferente e, de forma
relativamente mais lenta do que nos outros períodos.
É nesse período de profundas mudanças na Europa e, especificamente, em Portugal
que a discussão sobre o feminino e o papel social da mulher vai se movimentar de forma cada
vez mais efervescente na vida cotidiana pública. A exemplo, podemos citar as obras
publicadas O "Espelho de Cristina", de Cristina de Pisan (1987); o "Tratado em Loor de las
Mugeres, y de la Ca∫tidad, One∫tidad, Con∫tancia, silencio, Iu∫ticia: Com Otras muchas
Particularidades, y varias Hi∫torias", de Christoval Africano (1592); o "Espelho de Casados",
de João de Barros; entre muitos outros. Entretanto, vamos ressaltar, em especial, uma obra
publicada e dedicada ao reinado de uma mulher, a rainha portuguesa D. Catarina de Áustria,
qual seja, "Dos Privilegios & Praerogativas q ho Genero Feminino tẽ por Direito Comữ &
Ordenações do Reyno mais que ho Genero Masculino", do jurista português Ruy Gonçalves
(1992), publicada no ano de 1557.
1. O Renascimento em Portugal
1
Declínio no sentido de fim, e não de perda de importância.
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que se encarregou da apresentação da bula citada e criou as condições de sua execução. O
próprio irmão do rei veio a ser inquisidor-geral em 1539, o cardeal D. Henrique.
O Renascimento parecia estar diferente nesse país. Concorda Teófilo Braga (2009, p.
264) que:
2
Só para ilustrar, podemos citar o processo contra os professores do Colégio das Artes e concentrou em acusações sobre
humanistas de destaque internacional como Diogo de Teive e George Buchanan, que “apenas” perderam seus cargos,
enquanto o Frei Valentim da Luz foi queimado.
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2. A publicação de "Dos privilegios & praerogativas q ho genero feminino tẽ por direito
comữ & ordenações do reyno mais que ho genero masculino" durante a regência de D.
Catarina de Áustria
É no reinado de D. Catarina de Áustria que foi publicada uma obra que veio a ser
considerada posteriormente, por alguns, como o primeiro livro “feminista” português
(PINHO, 1986 e SILVA, 2002). Trata-se da citada obra escrita em 1557 pelo aluno de
Coimbra e advogado da Casa de Suplicação no âmbito da Corte Rui Gonçalves, Dos
Privilegios & Praerogativas q ho Genero Feminino tẽ por Direito Comữ & Ordenações do
Reyno mais que ho Genero Masculino (Gonçalves, 1992).
A obra foi dedicada a D. Catarina de Áustria, com os detalhes que podemos ver no seu
prólogo, que diz:
Muyto alta e muyto Podero∫a Raynha no∫∫ a Senhora. (...) porque a∫∫i como
ha muitas cou∫as em que os homẽs ∫am de milhor condiçam, a∫∫i outras
muytas tem as molheres mayores, & mais ∫upremas prerogatiuas que os
homẽs, pelo que me pareceo curio∫idade jindigna de reprehen∫am, ajuntar
algữas virtudes em que as molheres forão jguaes & precederam aos homẽs,
& algữs Priuilegios & Prerogatiuas com que ∫am mais priuilegiadas &
fauorecidas em dereito (cou∫a mais trabalho∫a que ...), tratando ∫omente do
que acho ∫cripto em ∫eu louuor & vtilidade, pois há tantos que e∫creueram
ho contrario. A qual jnuençam & trabalho me na atreuo defender dos graues
& excellentes auctores que e∫creueram a contraria opiniam, ∫enam
e∫perando que V. A. (∫ereni∫sima ∫enhora) por me fazer mercê, & dar
atruimento pera e∫creuer outras cou∫as mais jmportantes aa ∫ua Republica,
ho aceite em ∫eruiço, & aproue cõ a ∫ombra de ∫ua real proteiçam, de que
nacera ou∫ar e∫ta obra ∫ahir em publico, e ficar tam ∫egura & ∫em receo, que
nam temeraa reprehen∫am algữa humana, & a V. A. como aa mais excellẽte
& ∫uprema Prince∫a & ∫enhora do mữdo, conuẽ defender & aprouar tudo ho
que ∫e escreuer em louuor do gênero feminino, pera que outros de mais
erudiçã & doctrina po∫∫am dar fim & perfeiçam a e∫tes meus princípios &
cometimentos, que nam ∫am mais que as amo∫tras do muyto que podem
e∫creuer ne∫ta materia. (GONÇALVES, 1992, p. 4).
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Para cada virtude, de um rol não taxativo, que passa por Doctrina e ∫aber, Con∫elho,
Fortaleza e magninimidade, Deuação & temor de Deos, Liberalidade e Magnificẽcia,
Clemencia & mi∫ericordia, Ca∫tidade, Amor conjugal e τuçio∫idade, ele exemplifica com
inúmeras mulheres ilustres da História Mundial, detentoras dessas virtudes e muito mais e em
algumas até inclui o exemplo de D. Catarina, como acontece na categoria do Conselho.
Vejamos:
Não deixa passar sem mencionar, novamente, D. Catarina quando discorre sobre
Doctrina e ∫aber. Em suas palavras diz que sobre todas as princesas e excelentes mulheres
que menciona todos naturais do Império e do mundo podem observar e ter memória do
excelente governo e real cuidado que a Rainha tem em seus reinos e senhorios. Enfatiza as
atuações da rainha, desde que vem
Não há dúvidas, assim e mais uma vez, da grande influência exercida por D. Catarina
nos assuntos de política junto ao seu marido, o rei.
Na segunda parte, diferente da inicial, aparece-nos o autor “falando como juri∫ta”.
τrganizando alfabeticamente, “τs quaes priuilegios & benefícios do gênero feminino vão
ne∫ta parte po∫tos pela ordem do A B. C. Quanto aos vocábulos de latim pera ∫e poderem leeer
& achar com mais facilidade & menos cofu∫ao” (GτσÇALVES, 1992, p. 35) mostra na
legislação portuguesa benefícios que favoreciam o sexo feminino, embora Pinho (1986, p.
214) defenda que “as prerrogativas dessa parte por um lado mostram “pelo reverso da
medalha” a inferioridade situacional das mulheres, pois as estruturas sociais não permitiam
que usufruíssem dos mesmos direitos que os homens – fragilidade que simulavam proteger
concedendo falsas regalias”.
Nessa parte, os privilégios ou direitos que as mulheres possuem a mais do que os
homens são demonstrados sobre os mais diversos aspectos, no direito de propriedade, de
testar... São algumas situações em que as mulheres aparentemente são privilegiadas em certas
situações jurídicas, como, por exemplo, comentários à regra jurídica de como as mulheres
honradas e que vivem honestamente não poderem ser presas por dívidas de coisa civil.
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O que nessa passagem é encarado como privilégio pode ser visto também, hoje em dia,
como um instrumento de subordinação da mulher ao homem, porque é dessa forma que o
modelo da mulher desejada pelo homem era privilegiado, pois diz Clement (1993):
From these few examples, it should be evident that while Gonçalves defends
the superiority of women in Part I, the Law that he describes in Part II
circunscribes women as much as it protects them, linking and subordinating
them to the men in their lives and basing its positions implicity on that it
perceives to be women’s moral and physical inferiority.
Conclusão
3
No Brasil, por exemplo, podemos citar a lei Maria da Penha (LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.
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A subordinação das mulheres no período seiscentista sugeridas através das
observações de Pinho (1986) e de Clement (1993), entretanto, colocam-nos num debate de
gênero de outra natureza. No auge de um ataque à Igreja Católica, o reforço do poder moral
da igreja, através da inquisição e do favorecimento das prerrogativas de Ruy Gonçalves são
muito bem-vindas à consolidação do poder regente de D. Catarina, pois se afigura mulher
virtuosa e católica, que auxiliou em muito o seu marido, o rei D. João III. A tarefa real não
poderia ser mais subversiva, mostrando em duas faces a poderosa mão da igreja católica.
Portanto, uma das possibilidade hermenêuticas da obra em estudo é que ela teria sido, não
fundamentalmente uma apologia ao feminino, mas um instrumento de manipulação no
cenário político.
Ademais, Portugal era fortemente dominado por representações do feminino de
inspirações religiosas judaico-cristãs, o que nos permite questionar, ou vislumbrar o poder, ou
influência de ideias e práticas circulantes como a do culto mariano, o que materializa a
justificação e força das normas em vigor, que subjugam a mulher a um mesmo ideal, ou
representação, com, por exemplo, o arquétipo da santa-mãezinha, entre outros (SILVA, 2008),
todos marcantes para a constituição da mulher brasileira, herdeira em terça parte da cultura
portuguesa.
Referências
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A INFIDELIDADE DO CORPO FEMININO: IMAGENS DA JUSTIÇA E DA
VIOLÊNCIA NO TEXTO POPULAR IBÉRICO
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_Uma noite não é nada para eu estar contigo,
Se não fosse pelo medo que eu tenho de meu marido
τ meu marido foi p’r’à caça p’r’à caça de Aragão
Más raios lhe parta a língua, um cutelo o coração
Numa leitura menos tímida, poderíamos dizer que, inconscientemente, a mulher anseia
atingir, no homem, aquilo que denota, nela, índices da deficiência, da falta. A língua remete
ao domínio da expressão, do discernimento, da fala crível e descomedida. O coração, por sua
vez, contém-se na simbologia do acolhimento e da união. Na condição de traidora,
Brancalinda perde os signos da decência e suas palavras, consequentemente, infundem o
desasseio moral, sinalizando para si mesma o seu erro. Esse conflito interno, talvez explique o
desejo de que forças danosas da natureza extraíam a língua do marido, cujas palavras ainda se
mantêm sóbrias e abstêmias de engodos. Os sentimentos do parceiro conservam os afetos que
resguardam a relação conjugal. Seu coração permanece intacto, firme e incorruptível. Essa
imagem de excelência social humana, possivelmente, se institui como reflexo especular por
meio do qual a esposa desleal se vê em sua essência adversa. O coração feminino, nesse caso,
revela-se condescendente à desavença matrimonial.
O amante não adentra no universo de conspiração, instaurado pela esposa infiel,
imbuído de coragem e destemor. Ele também receia pelo desvelamento do adultério,
certamente, devido ao fato de sua participação, no crime contra a honra de um bom homem,
exigir uma punição tão severa quanto aquela dirigida à fêmea traidora, ou seja, a morte. Ao
declarar à Claralinda a veleidade de tê-la durante uma noite serena e tranquila, sem a
iminência de um flagrante, o cauteloso rapaz já antevê os riscos que um relacionamento com
uma mulher maritalmente comprometida pode trazer. A expressão qualificativa sem temor,
associada ao vocábulo noite, encerra uma informação pressuposta que sustenta nossas
inferências. Essa estrutura conduz-nos à constatação de que o amante já tinha conhecimento
de que a mulher, objeto de sua cobiça, fruía de ocasiões favoráveis à quebra da fidelidade
conjugal. Supunha, certamente, que esses momentos se prestavam a encontros furtivos, sem
sustos e sobressaltos. É por conhecer tais indicações que o astuto comparsa expõe a sua
cúmplice a ânsia de tê-la, sexualmente, numa ocasião em que a escuridão lhes fosse generosa
e não, denunciante. A intimidade como a interpela, denominando-a de meu amor sem ser
repreendido, alude a uma traição que já se processava através de gestos, olhares e
complacências. Observemos os seguintes versos:
Chegada a noite do tão esperado encontro, a falsa esposa abriga o amásio sob os tão
desejados lençóis. As horas passam e, à meia-noite, a tranqüilidade dos algozes é
interrompida pela presença imponente do marido que, inesperadamente, bate à porta. Um
dado que nos chama atenção, aqui, é a referência cronológica meia-noite. É sabido que as
forças sobrenaturais caminham junto às camadas populares desde a Antiguidade. Tornaram-se
mais sólidas e mais fantásticas na Idade Média quando o maniqueísmo cristão passou a
influenciá-las diretamente. Os eventos naturais, biológicos, culturais, econômicos foram
obrigados a ocupar dois polos: o do bem e o do mal. Quanto mais abstruso o elemento, mais
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superstições o envolviam. Uma delas, por exemplo, recai sobre o caráter místico de
determinadas horas ou frações do dia. O folclore reserva para as doze horas às insígnias da
revelação, da intervenção divina, do aparecimento das entidades sobre-humanas.
Provavelmente, a incorporação desse elemento temporal esteja relacionada à aparição
imprevista do marido. É como se forças sobre-humanas se colocassem como coadjuvantes na
tentativa de levá-lo a descobrir o ato desonroso:
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sua curiosidade e suspeita. Prontamente, pede a companheira explicações sobre a vestimenta.
O inocente homem é agraciado com a resposta de que aquele indumento, concluído naquele
instante, é um regalo produzido por sua gentil e abnegada mulher. Chega, também, a
questioná-la sobre um chapéu, enfeitado a galão, que lhe chama visivelmente a atenção. No
intuito de deixar latente sua condição de boa esposa, assevera ser, este, mais um mimo
engendrado por suas próprias mãos para o saudoso esposo:
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Como se percebe, nos fragmentos acima, a mulher não demonstra ter o menor respeito
ou apreço para com o marido. Não há preocupação, por parte dela, de tentar justificar seu
grave desvio de conduta. Coloca-se, aliás, em defesa da vida do amante e ignora
completamente o valor de sua existência. Em termos humanos, tal comportamento pode
parecer enobrecedor uma vez que uma vida é dada em prol de outra. Entretanto, no que diz
respeito às conformações sociais, o gesto ratifica o caráter pérfido da esposa, visto que trai
duplamente o seu cônjuge: desonra-o em sua ausência e, o mais estarrecedor, envergonha-o
diante de seus olhos.
A punição dirigida aos algozes varia de texto para texto. Em algumas peças, o bondoso
esposo atende a súplica da desonesta mulher e decide não matar o inescrupuloso cavaleiro.
Entretanto, prenuncia ao traidor um castigo: será alvo de igual falsidade. Vivendo ao lado de
uma adúltera, resta-lhe apenas a surpresa de encontrar, sob os seus lençóis, um ignóbil
estrangeiro. Sofrerá, portanto, a mesma ação ignominiosa que praticou. É preciso não deixar
de falar que o amante, a depender do texto, ostenta o papel temático de amigo. Não é a esmo
que detinha informações sobre o cotidiano do casal. Sabia, inclusive, que a bela Claralinda
passava noites sem a companhia do marido. Esses subsídios discursivos dão relevo ao
deslustre e infâmia dos companheiros que se deixaram levar pelo prazer carnal e suplantaram
a lealdade do casamento e a concórdia da amizade. A nobreza de caráter reside naquele que
rebaixa a dignidade e eleva os sentimentos, salvaguardando a vida de um ser movido pelo
fingimento e abjeção. Vejamos os seguintes versos:
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rebatida e a infratora deve receber, com severidade, a punição que lhe cabe. Somente assim, o
fato servirá como exemplo para todas aquelas que estiverem religiosamente comprometidas
com um homem. No romance, acontece algo análogo. O marido almeja exterminar a desleal
esposa diante das irmãs dela, a fim de que estas, ao presenciarem o castigo, temam fazer o
mesmo com os seus cônjuges:
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únicos indivíduos socialmente aptos a visitá-la na ausência de seu senhor. É uma solução
bastante sagaz.
O companheiro traído designa a figura do sogro e das cunhadas como vozes de
contestação e anseio de consciência. Ao materializá-las em seu discurso, intenta negar a
nobreza de caráter de toda uma linhagem, em cujo receptáculo reside um membro corrompido
e infeccioso, capaz de fazer propagar o ato vergonhoso. Concorre para os pais a função de
estabelecer os limites comportamentais dos que estão sob os seus cuidados e compete,
especificamente, aos filhos mais velhos o exemplo para os mais jovens. No texto, esses
encargos sociais são claramente contestados quando a mulher infiel é exposta aos olhos da
censura e exprobração de seus familiares. Diante de tal acontecimento, os progenitores
consignam o seu malogro enquanto instrutores e as irmãs se veem destituídas de sua
compostura e alinho moral. Observemos os excertos abaixo:
Percurso
“pressuposto” do
marido
Percurso
do
amante
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Considerações Finais
Referências
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O HOMEM INTERIOR E O DESPRENDIMENTO NA MÍSTICA DE MEISTER
ECKHART
é para ser descrita mais como uma atitude da mente, uma tendência inata da
alma humana, que busca transcender a razão e atingir uma experiência direta
de Deus, e que acredita que é possível para a alma humana estar unida com a
Realidade Última, quando ‘Deus deixa de ser um objeto e se torna uma
experiência’. Misticismo tem sido definido como ‘o sentimento imediato da
unidade do eu com Deus (...) é o esforço para estabelecer a imediatidade1 da
vida em Deus como tal - nesta embriaguez-de-Deus, em que o eu e o mundo
são igualmente esquecidos, o sujeito conhece a si mesmo para estar na posse
da maior e mais completa verdade.
1
A palavra “immediateness” não encontra um correspondente direto no português. Aqui foi utilizado
“imediatidade”, mas talvez possa ser traduzido como “imediação” ou até “imediatismo”.
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dualidade é o oposto, é a causa do distanciamento do homem com Deus, é o pecado, o
sofrimento.
As dimensões éticas, epistemológicas e ontológicas de qualquer filosofia se
estabelecem através de discursos aparentemente distintos. Por exemplo, quando se fala de
ética, procura-se discutir em quê consiste a bondade, o que é certo ou errado na vida, a virtude
etc. Quando se fala de metafísica, busca-se uma clareza conceitual do ser, ou da consistência
da realidade. Entretanto, em Meister Eckhart, todas essas supostas disciplinas da filosofia têm
um ponto em comum no qual se tornam uma única coisa, um único discurso, sustentado por
um único ponto, que dele e para ele confluem necessariamente. Esse ponto é o
desprendimento, que talvez deva ser interpretado muito mais como um estado que como uma
ação. Dessa forma, a partir desse estado, um discurso sobre ética necessariamente seria a
mesma coisa que um discurso sobre metafísica, sobre conhecimento, sobre deus. Concorda
Giachini (2006, p. 20) a dizer:
2
Nas palavras do mestre, der inner mensche e der üzer mensche.
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os senhores dizem-nos que em cada homem, existem dois tipos de homens.
O primeiro é chamado o homem exterior, isto é, a sensibilidade. Este homem
é servido pelos cinco sentidos (...). O segundo homem é chamado o homem
interior, que é a parte mais íntima do homem. Agora você deve saber que um
homem religioso que ama a Deus usa os poderes da alma no homem exterior
não mais do que os cinco sentidos requerem como uma questão de
necessidade. E o homem interior não foca sua atenção aos cinco sentidos,
exceto na medida em que ele é seu guia e líder. Ele cuida para que eles não
se voltem ao seu objeto de forma bestial, como fazem algumas pessoas que
vivem de acordo com os desejos da carne, os quais são mais
apropriadamente descritos como animais do que como seres humanos.
Dessa forma, o uso dos sentidos a ter como fins a si próprios, ou seja, a ter como fim
sensações ou relações que dependem delas, é o fortalecimento do ser humano exterior. Os
sentidos devem servir ao homem como meios para que ele fortaleça seu lado interior, pois.
Para Eckhart, Deus se une ao homem quando o ser humano interior suprime totalmente o
exterior. Então quando o homem vive nesse âmbito relacional do ser humano exterior, tendo
seu lado interior obstruído pelos sentidos, ele se distancia de Deus, pois que Deus se realiza
no ser humano interior. A natureza exterior retira o homem dele mesmo, animalizando-o.
Então o que há é um jogo em que o ser humano exterior fica cada vez mais escravo da
exterioridade e o interior fica cada vez mais impulsionado para seu interior, na medida em que
são exercitados. Como diz Meister Eckhart (2005, p. 123), “σunca pode haver qualquer
alegria física ou carnal sem perda espiritual, pois a carne cobiça contra o Espírito e o Espírito
contra a carne”.
De maneira muito elucidativa, podem-se explicar melhor esses tipos através das
palavras de Malherbe (2006, p. 21):
Tomemos uma analogia (...). Uma porta se abre e fecha através de uma
dobradiça. Agora, se eu comparar as partes exteriores da porta com o homem
exterior, posso comparar a dobradiça com o homem interior. Quando a porta
abre ou fecha, as partes exteriores se movem para lá e para cá, mas a
dobradiça permanece imutável em um lugar e não se modifica em nada
como resultado. Por isso, é também aqui, se você só sabe como agir
corretamente.
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Fica muito clara a distinção de duas espécies de instâncias, que Eckhart chama em
alguns sermões de criatura e criador. A criatura é tudo o que é finito, relacional, dualista,
objetivo, temporal. Criador se refere ao infinito, eterno e livre. Sobre a criatura não se pode
afirmar verdades, não há a possibilidade de haver liberdade, pois que há uma relação
estrutural de interdependências mútuas entre as coisas. Então se a parcialidade está contida na
criatura, o criador não admite relatividades, nele tudo é absoluto. Nesse caso, o absoluto é o
mesmo que o nada, e, portanto, é inexprimível através da quantidade ou qualidade.
A diferença entre o homem exterior e interior pode ser entendida de outra maneira, a
saber que o homem exterior está sempre para deus, enquanto que o homem interior está
sempre para a deidade, ou divindade3, a depender da tradução. Isso se explica através da
necessária distinção que se encontra na filosofia de Eckhart existente entre esses dois
elementos, deus e deidade. Como explica Silva (2004, p. 524),
Deus (...) é o mostrar-se da Deidade como Deus (o Pai que gera o Filho e a
força que os une, o Espírito Santo), portanto, é uma imagem. E, na imagem,
há sempre uma distinção (o que ela mesma é, e aquilo para o que ela aponta).
Se há ainda uma distinção em Deus, não será em Deus que o homem deverá
estabelecer morada e permanecer. A bem-aventurança a que o homem anseia
e busca só a encontrará na Unidade da Deidade. E a Deidade está além de
toda imagem e aparência.
A deidade é algo que está para além da linguagem, que é, portanto, indizível, um
mistério insondável, que se apresenta muitas vezes como Deus nas palavras do mestre como
apenas enquanto palavra a cumprir sua função semântica. Ou seja, aquilo que ela se refere não
se pode dizer. Essa distinção é importante, pois explica como o desprendimento lança o
homem em um quadro tão sublime que ele trespassa inclusive a noção de deus. É de ajuda
também a breve explicação dada por Malherbe (2006, p. 22):
3
Nas palavras do mestre, Got e gotheit.
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te consolam e tu não as aprecias, tu encontrarás conforto, tanto aqui como
acolá.
Em outra tradução do mesmo Daz buoch der götlîchen troestunge, vê-se Eckhart
demonstrando exatamente como se dá esse desvencilhar do homem da criatura, irradiando-se
a deus. Eis, então, que diz Eckhart (1991, p. 65-66):
Uma vez que é tirada da vasilha tudo aquilo que dá a ela o que a compõe, ou seja,
todos os atributos ou características, não sobrará nada dela. De outra maneira a dizer: se for
tirada de um objeto todo o seu ser, tornar-se-á o objeto nada. Surpreendentemente, e ainda
mais para a igreja da época, esse nada é, para Eckhart, deus. Então, quando o homem alcança
o desprendimento completo, ele se torna um com deus. Em miúdas palavras, esse é o coração
da mística de Meister Eckhart, que explica o desprendimento a dizer (1998, p. 49):
Uma montanha de chumbo tem uma magnitude tão imensa que é absolutamente
indiferente ao vento – que lhe nada é capaz de fazer. Essa é a condição da alma desprendida.
Por isso que o homem se iguala a deus, pois assim como esse, o homem se tornará perfeito e
imperturbável pelo que é mundano; e assim permanecerá na alegria e no regozijo eterno,
assim como deus. É notável a centralidade que o desprendimento toma na sua filosofia. Isso
se dá de tal modo que Meister Eckhart chega a literalmente dizer que o desprendimento é
preferível ao amor, por exemplo, para a união do homem a Deus, como se prova na seguinte
passagem do seu Von abegescheidenheit (ECKHART, 1998, p. 47):
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Para completar o pensamento, e acentuar ainda mais essa distinção, Eckhart (1998, p.
47-58) adiante diz:
Essas talvez sejam duas das passagens mais expressivas e, para a igreja do século XIV,
berrantes, do pensamento do autor. Na verdade é um trecho caríssimo para toda a mística que
se seguirá a partir de Meister Eckhart, pois supervaloriza o desprendimento, pondo-o em um
nível tão alto que é superior ao amor, e não para por aí. Eckhart (1998, p. 48) também põe
abaixo do desprendimento outros valores fundamentais do cristianismo, como a humildade,
como se vê abaixo:
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Eckhart também faz menção da superioridade do desprendimento em relação à
misericórdia, concluindo assim sua ideia de que a supremacia do desprendimento em relação
aos principais cultuados valores cristãos, o que constitui uma situação digna de pô-lo talvez
justamente em suspeita de heresia. Entretanto, se entendido o sentido de suas proposições,
com todas as considerações de sua filosofia, entender-se-á que há uma razoabilidade de
julgamento do mestre. Sobre essa superioridade do desprendimento à misericórdia, diz
Eckhart (2005, p. 111):
τu seja, o homem é “de-formado”, é tirada dele sua forma, e posta outra, a forma de
deus. E deus o faz de muito bom grado, pois esse é seu objetivo, e também o objetivo do
homem. Logo, deus quer que o homem de desprenda. Deus desvairadamente corre ao homem
quando este se desprende. Como diz Eckhart (2006, p. 1ικ): “Deus carece tanto de nossa
amizade que não pode esperar que lhe façamos pedidos; ele vem ao nosso encontro e nos pede
que sejamos seus amigos, pois de nós ele deseja que queiramos que ele queira nos perdoar”.
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Percebe-se, portanto, que o homem exterior está preso dentro da impermanência e da
relatividade. O homem interior é sua única saída para a conquista da eternidade, do gozo
esplêndido do criador. É o abandono do sofrimento, da morte, de tudo o que é perecível. O
homem interior é aquele que se abre para a experiência mística, dada por deus como graça
divina. É o ato que deus quer, mesmo na eternidade, tanto praticar.
Em Eckhart, o desprendimento é uma forma de experiência mística, e, portanto, é
imediata. Por isso que se compreende, na verdade, o que quer dizer desprendimento. O
homem se unirá à deus, à deidade, quando se livrar de todas as mediações, podendo obter um
contato imediato – que já não poderá ser contato, e nem outra palavra cujo sentido não conote
unidade. O desprendimento é a experiência mística na linguagem de Meister Eckhart. A vida
é celebrada pelo homem interior através do desprendimento. A morte é dada quando o homem
se entrega à exterioridade. E reina o sofrimento. Sendo assim, toda a potência espiritual
encontra seu furor no desprendimento, no qual retorna a criatura ao criador e lá se regozija na
alegria eterna, findando o homem, findando deus, como que jorrando em ato toda sua
infinidade de potência, em um transbordar de significado cuja magnitude encerra a dúvida, o
receio e toda outra espécie de limitação. E se saberá em plenitude que a vida valeu a pena, ou
melhor, que não há pena, há apenas o engano – que já fora abandonado.
REFERÊNCIAS
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from whom God hid nothing. Boston: New Seed Books, 2005.
ECKHART, Meister. In praise of detachment. In: WEYER, R. V. de. Eckhart in a nutshell.
Londres: Hodder and Stoughton, 1998.
ECKHART, Meister. Sermões alemães. Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006. Vols. 1 e 2.
ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes,
1991.
ECKHART, Meister: On detachment. In: τ’σEAL, D. Meister Eckhart, from whom God
hid nothing. Boston: New Seed Books, 2005.
ECKHART, Meister: The nobleman. In: τ’σEAL, D. Meister Eckhart, from whom God hid
nothing. Boston: New Seed Books, 2005.
FORMAN, R. K. C. Meister Eckhart: The mystic as theologian, an experiment in
methodology. Shaftesbury: Element, 1991.
MALHERBE, J. Sofrer Deus: a pregação de Mestre Eckhart. Aparecida: Editora Santuário,
2006.
SILVA, A. J. Mestre Eckhart, sua vida, sua mística. In: COSTA, M. R. N.; DE BONI, L. A.
(Orgs.). A ética medieval face aos desafios da contemporaneidade. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004.
SMITH, M. The nature and meaning of mysticism. In: WOODS, R. Understanding
mysticism. Garden City: Image Books, 1980.
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VOZES ENTRECRUZADAS: MEDIUNIDADE, HERESIA E SANTIDADE EM
JOANA D’ARC
Segundo, o discurso da Igreja, outra heresia assumida por Joana diz respeito à questão
da sua relação com os pais. Joana partiu da sua aldeia à França, em cumprimento da sua
missão, sem pedir a permissão dos seus pais e nem tampouco comunicá-los sobre sua decisão.
Procedimento que feriu os princípios da Igreja no que diz respeito ao princípio de horar pai e
mãe. Vejamos o que diz o diálogo travado com seus inquisidores sobre esse assunto:
_Acreditavas proceder bem partindo sem permissão de teu pai e de tua mãe?
_ Sempre obedeci a meu pai e a minha mãe em tudo, exceto no que
respeitava a minha partida (DENIS, s/d, p. 77).
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_Quando deixaste pai e mãe, não consideraste estar cometendo um pecado?!
_Pois que Deus ordenava, era preciso fazer. Mesmo que eu tivesse cem pais
e cem mães e que fosse filha de rei, ainda assim teria partido!” (DEσIS, s/d,
p. 77).
Como se pode observar a obediência de Joana ao seu Deus estava sempre em primeiro
lugar: “pois que Deus ordenava, era preciso cumprir”. Procedimento que considerava
originalmente cristã, uma vez que na sua concepção de adepta da Igreja, Deus deveria sempre
estar em evidência. Essa crença na autoridade suprema ao seu Deus a faz considerar-se como
filha em estado de obediência e não em situação de pecado mortal, como queriam os seus
inquisidores.
Para a Igreja, Joana ao rejeitar a necessidade de desvencilhar-se desse e de outros
pecados, renegou, também o princípio da confissão, fato que se constitui em assumir mais
uma heresia. Vejamos a sua resposta a seguinte pergunta do inquisidor: “_Julgas, pois, inútil
confessar-te, ainda que em estado de pecado mortal?” “_Jamais cometi pecado mortal”,
respondeu Joana.
Imbuída da ideia de obediência ao seu Deus, Joana não compreendia a dimensão das
consequências que tomava a sua “não submissão” aos princípios adotados pelos seguidores
dessa Igreja. Estes a acusaram, também, de utilizar práticas de magia e de sortilégios.
Vejamos o diálogo cujo jogo de palavras tem como objetivo induzi-la a assumir sua
identidade de bruxa e/ou feiticeira
Segundo relatos de Joana, como já foi dito, desde os treze anos ela deixou-se ser
orientada por vozes de mensageiros considerados divinos. Para ela, estes funcionavam como
os verdadeiros intermediadores entre ela e a divindade. Nem durante o interrogatório com
seus inquisidores, sob os efeitos de práticas de portutra, Joana abriu mão das orientações
desses enviados fez, pois, questão de reafirmar a ascendência das “vozes espirituais” sobre “as
vozes da igreja”. A Igreja, representada pelos sacerdotes, oficialmente alçada a mediadora
entre Deus e os homens, figurou em segundo plano. O ato de não submeter-se aos princípios
dessa doutrina foi considerado uma heresia imperdoável que a levou à fogueira. Observemos
o trecho do diálogo que versa sobre o tema:
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_Assim, recusas submeter-te a Igreja, recusas renegar as tuas visões
diabólicas?
_Reporto-me a Deus somente. Pelo que respeita as minhas visões, não aceito
o julgamento de homem algum! (DENIS, s/d, p. 137)
_A voz me disse que abjurar é uma traição. A verdade é que Deus me
enviou. O que fiz esta bem feito (DENIS, s/d, p. 143).
Cinco séculos depois, à Joana d’Arc herética a Igreja atribui o status de santa. À
doutrina católica não foi inserida novos princípios; quanto ao discurso de Joana d’Arc, este
permaneceu irretocável o que fez, então, com que esse sistema religioso atribuísse a um dizer
herético o caráter de princípio doutrinário? Como, então, a Igreja produziu a identidade de
santidade para Joana d’Arc?
Para a Igreja, enquanto doutrina religiosa, santificar significa atribuir o epíteto de
adepto doutrinário àquele que, em vida, aceitou as verdades legitimadas e viveu em
conformidade com elas. Conforme Andrade (200κ, p. 241) nessa “instituição, existe um
objetivo claramente definido em suas estratégias de beatificação e canonização: fornecer
modelos de conduta centrados na adesão à fé cristã”. Continua explicando a autora: “o
principal ingrediente para retratar seus escolhidos reside no destaque dado à sua adesão à fé
cristã. As narrativas do Vaticano reforçam sempre o temor a Deus que sempre esteve presente
em suas vidas. (ANDRADE, 2008, p. 254).
A Igreja consagrou Joana d’Arc como santa por meio da identificação de elementos
considerados pela Igreja como estabelecedores desse status; a morte pelo martírio é um deles:
a adepta foi posta para ser queimada na fogueira, ainda, viva; e, mesmo ciente do gênero de
morte a que seria submetida, não a temeu, aceitou-a pacificamente em nome do Deus cuja
ordens estava submetida. Durante o suplício, a mártir pediu para segurar uma cruz e chamou
por Jesus, prática que representou a reafirmação de sua fidelidade a fé religiosa Cristã.
Andrade (2008, p.246) afirma que na valorização do papel do mártir está a “primeira
manifestação da santidade no cristianismo”
Outro princípio de santidade foi a vida de devotamento e de sacrifícios adotada pela
adepta. Joana, conforme relatos históricos, viveu uma vida pautada nos princípios cristã e
sacrificou sua própria vida em prol da liberdade e unificação do povo francês.
Outro ponto fundamental na atribuição da sua identidade de santa, segundo Denis (s/d)
foi o fato de que, conforme os representantes da igreja, Joana, também, produziu “curas
milagrosas” em adeptos da Igreja a cujas preces atendera.
Ao atribuir o título de santa a Joana d’Arc, a Igreja não só aceita como verdade
doutrinária as ideias divulgadas pela adepta como, também, todos os atos praticados por ela.
Entendemos que esses discursos e essas ações recebem valores doutrinários pelo lugar do
dizer que a ela é atribuído, ou seja, o lugar discursivo de santa. Investida dessa posição ela
pode ser considerada uma virgem imaculada, enviada por Deus em missão. Vivência
missionária que, por ser de origem divina, foi passível de ser orientada por mensageiros
divinos. Pelo discurso religioso Católico a desconstrução do discurso herético de Joana d’Arc
passa, portanto, obrigatoriamente pela instituição da noção de santidade.
Em fins do século XIX, a questão de o sujeito poder ouvir vozes e travar diálogos com
seres que ressurgem do além passa a ter um lugar como objeto de estudo em vários campos do
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conhecimento. Nesse momento histórico, uma área de estudo inscrita como pertencendo aos
domínios do saber religioso, filosófico e, também, científico, conhecido com o nome de
Doutrina Espírita, sobressaiu-se por se propor a estudar o fenômeno da comunicação com
seres extraterrestres. Essa possibilidade de intercâmbio foi, então, denominada de
mediunidade e o sujeito capaz de se comunicar com esses seres, intitulados de médium.
Um dos princípios que constitui essa doutrina é, pois, a possibilidade de comunicação
entre os “vivos” e os “mortos”. Para esse domínio do saber, a comunicação com pessoas que
já passaram pelo fenômeno da morte é uma possibilidade real, uma vez que todos os seres
humanos já nascem organicamente preparados para realizar essa espécie de comunicação e
não a perde quando morre, pois durante este processo, apenas o corpo material se decompõe,
o outro, o corpo espiritual, continua a viver em outra dimensão (KARDEC, p. 15).
Ao colocar a mediunidade como um traço da fisiologia humana, o Espiritismo
naturaliza a temática da mediunidade e dos médiuns e os desterritorializa, ampliando o espaço
de atuação, ou seja, todo e qualquer ser humano independente de idade, etnia e fé religiosa
traz em si a possibilidade de se comunicar com entes que passaram pelo fenômeno da morte.
Desse modo, o campo religioso perde a primazia sobre a temática.
Trazendo o caso das vozes de Joana d’Arc, sob o olhar do Espiritismo, tem-se que ela
é uma médium com mediunidade bastante avançada, por meio da qual ela pode não só entrar
em comunicação com seres que estão em outra dimensão através da visão como, também, da
audição e do tato.
Sendo, pois, a mediunidade um princípio que constitui a doutrina Espírita, ela não
possui obviamente o status de heresia como o foi e, ainda é, para o sistema religioso Católico
e outras religiões contemporâneas. Conforme Denis (s/d, p. 68), para o Espiritismo “a
mediunidade tem sido (...), o meio que Deus emprega para elevar e transformar as
sociedades. σo século XV, serviu para tirar a França do abismo”. σessa doutrina, Joana
d'Arc figura, não como herege, bruxa ou feiticeira, mas como uma médium poderosa,
idealizando, assim, o modelo exemplar de mediunidade.
Entendemos que o discurso espírita ao instituir e defender, em fins do século XIX, o
princípio da natureza orgânica da mediunidade, naturaliza o fenômeno e contribui para a
desconstrução da imagem de herege, produzida no século XV pela Igreja Católica para Joana
d’Arc e, paradoxalmente, para a emergência da posição de santidade, construída para a
adepta, pelo discurso católico, no início do século XX. O Espiritismo, enquanto discurso que
se situa entre o religioso e o científico, ao reatualizar essa temática contribui, portanto, com o
debate estabelecido sobre temas que circularam em práticas discursivas, posta em exercício
pelo campo discursivo religioso Cristã na Idade Média, ressignificando-as.
Referências
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KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns e dos doutrinadores / Allan Kardec: tradução de J.
Herculano Pires. São Paulo – LAKE, 2004a.
DENIS, Léon. Joana d'Arc, Médium - Tradução de Guillon Ribeiro, 19ª Edição.
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“OS CARMINA BURANA: ENTRE O CÂNTICO DOS CÂNTICOS DE SALOMÃO E
A CANTATA DE CARL ORFF”
Introdução
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1. Exegeses do “Cântico dos Cânticos” e dos “Carmina Burana”
a. O poema de Salomão
1
Bíblia de Jerusalém, Ct. 1, v .5.
2
Bíblia de Jerusalém, Ct. 1, v .5; 4, vv. 1,3,4,5 e 7.
3
Bíblia de Jerusalém, Ct 1: 2,3.
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Amado e Amada que se juntam e se perdem, se procuram e se encontram”, como refere a
introdução à edição da Bíblia de Jerusalém, (2002:1086).
O fato de esse conjunto de poemas ter origem na celebração do amor de um rei pela
sua consorte ou ainda que tenham sido cantos populares dedicados a esponsais em geral, não
o impede de ter influenciado trovadores e jograis desde tempos remotos até os dias atuais. Um
peculiar exemplo dessa evidência são os Carmina Burana de autoria dos Goliardos.
A poesia fornece uma base para a história da literatura Ocidental e o verso cantado
constitui uma das mais antigas formas de expressão humana. A Idade Média bebera na
tradição literária dos romanos que já recebiam, por sua vez, influências da tradição oral e dos
textos gregos e esses mesmos gregos tiveram outros predecessores, como se pode certificar
através de estudos comparatistas. Tal evidência torna possível a construção de uma ponte a
partir dos poetas greco-romanos em direção à lírica medieval, sem medo de que sejam
cometidos equívocos.
Um erro comum é acreditar-se que o período que vai da decadência de Roma até a
Renascença foi desprovido de cultura ou de qualquer forma de expressão literária. A carência
de textos no início da Idade Média promove tais conclusões errôneas, entretanto, estudiosos
que se debruçaram sobre os pergaminhos remanescentes daquela época demonstram tais
equívocos e apontam a abundância e a riqueza de textos daquela tradição poética.
Os pergaminhos da Idade Média, especificamente no século XIII A.D., época
dominada pelo Teocentrismo, atestam que clérigos descontentes e expulsos dos mosteiros, por
isso marginalizados, juntaram-se aos intelectuais e aos estudantes e formaram um interessante
grupo que resolve popularizar tudo o que consideram irregular nas esferas do poder. Delatam
os crimes, as injustiças, a corrupção, entre outras mazelas da sociedade religiosa, escolhendo a
Literatura e a Música como meio de denúncia. Insatisfeitos, os Monges e outras pessoas de
alto nível cultural expressaram o seu pesar contra o stablishement político-religioso do
medievo e denominaram-se de Goliardos4. Jovens de espírito livre, os Goliardos, que por
razões de princípios, rebelaram-se principalmente com o desvio da atenção dos religiosos
seculares (sacerdotes, bispos e arcebispos), disseminaram na sociedade de então sua
insatisfação através dos poemas intitulados Carmina Burana5. Através de seus textos criticam
o clérigo secular por ter relegado ao segundo plano os assuntos ligados ao espírito, passando a
agir dentro de uma concepção profana, em que, invariavelmente, pregavam a filosofia cristã,
mas estavam longe de praticá-la.
Anárquicos, os Goliardos antagonizavam, sobretudo, com todos aqueles que se
reconheciam importantes nas castas sociais medievais, a exemplo daqueles que se associavam
4
A origem da palavra Goliardo é latina: goliardus; vagantes; outra possível origem, também latina, seria a
referência à gula. Bebiam e comiam em excesso: goliardus; gulosos.
5
Segundo Maurice Van Woensel, “o manuscrito de Carmina Burana consiste em 112 folhas de pergaminho
fino, de 17 por 25 cm, que foram copiados por volta de 1230 na atual Bavaria; a encadernação foi confeccionada
muito tempo depois. Trata-se de uma compilação de canções, provavelmente por três copistas diferentes, e
ilustrada com oito miniaturas e com vinhetas. Certas canções vêm com uma anotação musical rudimentar.
Estudiosos conseguiram reconstituir o que foram as melodias originais delas…” (CB: 17)
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ao poder eclesiástico ou político e principalmente àqueles que estavam subjugados à
mediocridade e à ignorância. Viviam de expedientes, eventualmente a serviço dos ricos, e
seguiam os mestres preferidos, ao mesmo tempo em que ensinavam nos mesmos locais que
professores famosos lecionavam. Com arrazoada crítica antipapal, descreviam o sumo
pontífice como um hipócrita tutor da tradição moral, expoente de uma hierarquia organizada
sob a nova força do dinheiro. Por todas essas razões era quase impossível enquadrar os
Goliardos dentro de uma síntese social determinada, pois quaisquer caracterizações social que
lhes atribuíam gerava suspeita e escândalo entre os conservadores.
Foi sob este contexto histórico-religioso que, pelas mãos dos Goliardos, nasciam os
poemas Carmina Burana. Esse nome “deriva do latim, carmen,ìnis 'canto, cantiga; e bura(m),
em latim vulgar 'pano grosseiro de lã', geralmente escura; por metonímia, designa o hábito de
frade ou freira feito com esse tecido”6. Os Carmina Burana são textos poéticos contidos em
um importante manuscrito do século XIII, o Codex Latinus Monacensis, encontrados durante
a secularização de 1803, no convento de Benediktbeuern, a antiga Bura Sancti Benedicti,
fundada por volta de 740 por São Bonifácio, nas proximidades de Bad Tölz, na Alta Baviera.
O códex compreende 315 composições poéticas, em 112 folhas de pergaminho, decoradas
com miniaturas. Atualmente o manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional de Munique.7
O manuscrito de os Carmina Burana, datado de 1230 e publicado pela primeira vez
em 1847, contém canções, na sua maioria profanas. Essas canções eram escritas em troca de
comida, bebida e abrigo. Possuem teor satírico e erótico, revelando um mundo de orgias,
bebedeiras e jogatinas, em vez dos esperados hinos em louvor a Deus, que seria um ato
próprio de religiosos. O cancioneiro burano reúne em sua temática o trinômio Amor-Vinho-
Jogo, pois os Goliardos baseavam os deleites da vida no vinho, no jogo e, sobretudo, no amor.
Esse trinômio temático desdobra-se em Poemas Líricos ─ bucólicos e amorosos ─ e Satíricos.
Carl Orff é mais conhecido pelo triunfo de os Carmina Burana (1937), cantata que
encenou a partir do canto dos Goliardos de mesmo nome. Na década de 1930, o compositor
alemão, Carl Orff, buscava um texto para que pudesse escrever um ciclo coral. Seus esforços
levaram-no aos Carmina Burana. Resultou de seus esforços um estrondoso sucesso pouco
visto na música clássica, grande parte desse sucesso foi atribuído à fidelidade e ao respeito
que dispensou aos elementos temáticos do manuscrito em si mesmo e ainda ao feitio dos
arranjos melódicos moderno que só enriqueceram as melodias medievais.
A cantata cênica de Orff é a primeira de uma trilogia intitulada Trionfi, que também
inclui Catulli Carmina e Trionfo di Afrodite. Essas composições refletem seu interesse pela
poesia medieval latina e alemã. É descrita pelo compositor como "a celebração de um triunfo
do espírito humano pelo balanço holístico e sexual"8. O trabalho foi baseado no verso erótico
do século XIX de um manuscrito chamado Codex latinus monacensis, já referido. Apesar de
moderno em suas composições, Orff soube capturar o espírito da era medieval em sua trilogia.
6
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana
7
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana
8
cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Orff
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Com o sucesso de Carmina Burana, Orff abandonou todos os seus trabalhos anteriores, exceto
por Catulli Carmina e En trata.
Já no poema Chume, Chum, Geselle min! (CB 174a)12, escrito em alemão medieval, é
a Amada que se dirige ao Amado. Faz uso de versos que se repetem, pondo em relevo a
ansiedade da espera e a voluptuosidade própria dos amantes, e por outro lado, suaviza o item
temático da beleza.
9
Poema escrito em alemão arcaico.
10
Tradução do latim por Maurice vanWoensel.
11
Veni, veni, venias/ ne me mori facias,/ Hyria, hyrie,/nazaza trilirivos!/ Pulchra tibi facies/ oculorum acies,/
capillorum series -/ o quam clara species! Rosa rubicundior/ lilio candidior/ omnibus formosior,/ semper in te
glorior!.
12
Tradução do Alemão por Maurice van Woensel.
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há tanto tempo esperado!
Há tanto tempo esperado,
venha, venha, meu amado.
Doces lábios, cor-de-rosa,
curem minh’alma inditosa!
Curem minh’alma inditosa,
doces lábios cor-de-rosa.13
Nas estrofes do CB 174a são percetíveis ecos da canção medieval dos viajantes
eruditos que também é penetrada pela antiga concepção de beleza da amada. O tom também é
claramente sensual numa referência explícita à personagem Sulamita do Cântico dos
Cânticos, embora a figura com a qual depara-se nos cantos buranos, seja puramente literária.
τ dueto entre os amantes no “Quinto poema” do Cântico dos Cânticos registra o quanto o
texto bíblico influenciou os poetas Goliardos, fundamentalmente na questão do elogio físico-
amoroso-sensual. Comparem-se cada verso dos poemas buranos aqui apresentados aos versos
do texto bíblico para que, efetivamente se consagre a correlação textual. Cântico dos
Cânticos, v. 9: “(…) roubaste meu coração/ com um só de teus olhares”. Carmina Burana, vv.
5-6: “(…) Sua face é divina/ seu olhar me fulmina!”. Cântico dos Cânticos, v. 3: “Teus lábios
são fita vermelha,”. Carmina Burana, v. 5: “ (…) doces lábios cor-de-rosa”. Quanto mais se
apontar paralelos entre os dois textos, bíblico e medieval, mais embrenhar-se-á na questão da
sensualidade e da voluptuosidade. Neles, tornam-se aguçados os sentidos da visão, da
audição, do paladar, do olfato e do tato, a exemplo do arrebatamento dos olhares (v.9), a fala
melodiosa (v. 3), o gosto pelos beijos (v.11), o perfume de suas roupas (vv. 10,11), todas
referências expressas em ambos os textos, bíblico e burano.
Importa perceber, entretanto, que mesmo um texto bíblico, considerado lascivo para
época, havia um teor subjacente que conduz a uma espécie de restauração de vivência bíblica
na experiência cotidiana. Assim é também em relação aos Goliardos, notadamente aos
monges, uma vez que produziam seus textos com o propósito de conferir ao cotidiano uma
verdade que estava camuflada sob a capa de uma beatitude defendida por uma sociedade
político-religiosa extremamente hipócrita.
Em paralelo, observa-se que Orff inclui os dois poemas Carmina Burana, (CB 174 e
CB 174a), em sua cantata cênica. No entanto, todo o prefil de sua peça compreende um
conceito muito difundido na Antigüidade e visível em os Carmina Burana. A Roda-da-
fortuna, símbolizada pela deusa grega, Fortuna, que em movimento contínuo e eterno, traz,
alternadamente, a sorte e o azar a todos humanos. Essa alegoria metaforiza a vida humana,
expostas a constantes transformações. Na peça do compositor alemão, a dedicatória coral à
Deusa da Fortuna, “O Fortuna, velut luna”, tanto introduz como conclui as canções
seculares. O acontecimento simbólico da peça, ensombrado por uma Sorte obscura, divide-se
em três seções: o encontro do Homem com a Natureza, particularmente com o despertar da
Natureza na primavera, “Veris leta facies”, seu encontro com os dons da Natureza, culminado
com o do vinho, “In taberna”; e sua ligação com o Amor “Amor volat undique”, como
13
Chume, chume, geselle min,/ Ih enbite harte din!/ Ih enbite hartedin,/ chume, chum geselle min./ Suzer
rosenvarwer munt,/ Chum und mache mich gesunt,/ Suzer rosenvarwer munt.
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espelhado em “Cour d’amours” na velha tradição francesa, uma forma de serviço
cavalheiresco às damas e ao amor.
A apropriação dos poemas buranos por Carl Orff reafirmou-lhe o perfil emoldurado
pelo movimento da deusa grega Fortuna. Em sua cantata, sente-se que a humanidade está
submetida aos caprichos da roda-da-fortuna, e que o amor e a exuberância da vida estão à
mercê da eterna lei da mutabilidade. Nessa conjuntura, as leis do entusiasmo amoroso são
contrariadas e o homem é submetido a uma luz dura, não sentimental, tornando-se um joguete
de forças impenetráveis e misteriosas. Esse ponto-de-vista é plenamente característico da
atitude antirromântica da obra, seja em relação ao amor fraterno ou ao amor carnal.
Respeitando-se o viés histórico, que permite entender como os símbolos e as imagens
do texto bíblico foram transmitidos através do tempo até os Carmina Burana, o que exige
considerar as diferentes produções em contextos históricos e culturais díspares, Orff imprimiu
em seu corpus critérios essencialmente literários, um conjunto de elementos comuns entre os
textos e melodia que paralisam o corpo e extasiam a alma.
Referências
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução de Euclides Martins Balancini, et al. São
Paulo: Paulus, 2002.
CARMINA BURANA: Canções de Beuern. Apresentação de Segismundo Spina e tradução,
introdução e notas de Maurice van Woensel. São Paulo: Ars Poética, 1994.
CARMINA BURANA. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana>,
acessado em: 05.jul.2012.
Le Goff, Jacques. A Idade Média explicada aos meus filhos. Tradução Hortência Lencastre.
Rio de Janeiro: Agir, 2007.
Orff Carl. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Orff>, acessado em: 05jul.2012.
Spina, Segismundo. Era Medieval. Era Medieval. 11. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006.
Zumthor, Paul. Falando de Idade Média.Tradução de Jerusa Pires Ferreira. São Paulo:
Perspectiva, 2009. (Coleção debates).
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ESPELHO DA LITERATURA, REFLEXO DO SAGRADO – REFLEXÕES
FILOSÓFICAS SOBRE A MÍSTICA DE MARGUERITE PORETE
Considerações Iniciais
O Espelho das almas Simples1, apesar de ser o texto místico mais antigo da literatura
francesa, foi durante muito tempo atribuído a uma beata húngara. Somente em 1944, graças
ao trabalho de Romana Guarnieri, a autoria do livro foi restituída a sua verdadeira escritora,
Marguerite Porete que, possivelmente, assumiu o modo de vida das beguinas. O referido
texto possui uma estrutura dialógica, cujos personagens principais são a Dama Amor, a Razão
e a Alma que, na segunda metade do livro assume, se assim podemos dizer, a identidade de
Marguerite, posto que narra, numa espécie de monólogo, a própria experiência da autora de O
Espelho das almas simples. Dito isto, pode-se dizer que neste trabalho procura-se, de forma
introdutória, apresentar a interface do sagrado com a filosofia, a partir de um texto místico,
destacando a metáfora do espelho como reflexo do divino na alma aniquilada.
1
O título da obra de Marguerite em francês medieval é: Le mirouer dês ames simples et anienties et qui
seulement demeurent em vouloir et desir d’amour. Na tradução para língua vernácula que estamos utilizando a
tradução do título é: O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no
desejo de Amor. Por uma questão de economia linguística sempre que citarmos o título do livro de Marguerite no
corpo do texto, o nomearemos apenas por: O espelho das almas simples e aniquiladas ou simplesmente por O
espelho.
2
Marguerite faz uma diferença entre o que ela chama Santa Igreja, a Pequena (entendida enquanto instituição
religiosa) e Santa Igreja, a Grande (entendida como a força espiritual composta pelas almas aniquiladas).
Segundo TEIXEIRA, 2008: 26, a Santa Igreja, a Pequena, “Enquanto instituição definida e delimitada, (...) não
alcança o mistério das almas aniquiladas. Não capta igualmente a medula que habita o fundo da alma, pois ali
não pode entrar nada de determinado. Daí o auxílio fundamental exercido pela Santa Igreja, a Grande, que vem
constituída pelas almas animadas e preenchidas pelo Amor: as almas aniquiladas. É essa Igreja que sustenta a fé
da Santa Igreja, a Pequena (...)”.
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Na segunda-feira seguinte ardeu naquele lugar [a Praça de Grèves] uma
beguina clériga chamada Marguerite Porete que havia transpassado e
transcendido as divinas escrituras e havia errado nos artigos de fé, e do
sacramento do altar havia dito palavras contrárias e prejudiciais e havia sido
condenada por isso pelos mestres em teologia. (CIRLOT e GARÍ,
1999:224).
O que ela disse para sofrer tal condenação encontra-se no seu livro, O espelho das
almas simples, muito embora no decorrer do processo o que se fez foi julgar frases isoladas,
dissociadas do seu contexto, que por fim foram julgadas como heréticas (quinze proposições)
por uma comissão composta por 21 teólogos, dentre eles alguns representantes das ordens
mendicantes3. Acrescente-se a isso, o silêncio de sua autora durante todo o tempo em que
esteve presa e o fato de escrever sua obra em língua vernácula (francês medieval), tornando-a,
assim, acessível ao público leigo, o que fazia do seu texto, do ponto de vista da ortodoxia da
igreja, perigoso, já que ali, ao pregar a sua ideia de liberdade, afirma que a alma totalmente
livre não se submete a nada, como podemos ler no seguinte excerto:
(...) A herança desta Alma é a perfeita liberdade, cada uma de suas partes
tem o brasão de nobreza. Ela não responde a ninguém a menos que queira, se
ele não é de sua linhagem; pois um nobre não se digna a responder a um
vilão que o chama ou o convida ao campo de batalha. Portanto, quem chama
uma tal alma não a encontra; seus inimigos não conseguem dela nenhuma
resposta. (PORETE, 2008: 148).
É fato que neste e em outros passos do texto, Marguerite deixa explícita a questão da
liberdade (que não será abordada diretamente neste trabalho), que desenvolve ao longo do seu
livro, e que tem relação direta com o tema da aniquilação. Entretanto, nesta e em outras
passagens há acenos implícitos da pessoa Marguerite (mais do que da autora) sobre a
repercussão que poderia ter o seu livro, se levarmos em conta que ele foi escrito,
provavelmente, em meados de 1290 e vai sofrer um primeiro processo entre esta data e 1306,
pelo bispo de Cambrai que proíbe a pregação de Porete e a divulgação da sua obra. Nossa
mística não só não se cala, como continua divulgando o seu livro, enviando-os inclusive para
a avaliação de três teólogos que o aprovam com ressalvas 4. Mediante tal atitude, ela sofre um
segundo processo e é conduzida a Paris onde fica presa, por quase um ano e meio, e, diante do
seu silêncio, é julgada como herética recidiva, relapsa e impenitente e condenada à morte na
fogueira da inquisição, juntamente com o seu livro que também é queimado5.
3
Tais Ordens foram responsáveis pelas orientações espirituais, por exemplo, das beguinas (feitas pelos
dominicanos) e dos begardos (feitas pelos franciscanos). No Concílio de Viena (1311-1312) serão condenados
alguns erros das beguinas e dos begardos e o processo contra Marguerite será amplamente utilizado. Mais
informações sobre este tema podem ser encontradas em GUARNIERI: 2004.
4
São eles, conforme, TEIXEIRA, 2008: 19, Goffredo da Fontaines, da Faculdade Teológica da Sorbonne; um
cisterciense da abadia brabantina de Villiers, chamado Franco e um franciscano inglês, John di Querayn. A
própria Marguerite cita essas três autoridades no seu livro, no capítulo 140 (A aprovação), que vem acrescido da
seguinte nota da tradutora: “A aprovação foi preservada no latim e no inglês médio e acrescentada pelos editores
da edição crítica como o capítulo final”. SCHWARTZ, 200κ: 229.
5
“Segundo a posição do grande inquisidor, todos aqueles que tivessem o livro condenado tinham a obrigação de
entregá-lo às autoridades competentes no prazo de um mês, sob pena de excomunhão”. (TEIXEIRA, 200κ:21).
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Mas do que trata O espelho das almas simples e que tarefa pensa ter Marguerite que
dela não abre mão apesar das insistentes solicitações das autoridades eclesiásticas? Para
responder a estas perguntas é necessário situarmos a nossa pensadora no seu tempo. Ela é
apresentada por alguns estudiosos como sendo uma beguina6. Ela própria num dado passo do
seu livro se autodenomina mendicante e se dirige às beguinas e a outros religiosos:
Mesmo assim, não se tem certeza de ela ter sido realmente uma beguina, apesar de ter
assumido um modo de vida que condiz em alguns aspectos com tal classe8. De qualquer
forma, apesar dos poucos dados da vida de Marguerite, O espelho das almas simples
denuncia, de algum modo, que ela era não só letrada, como também uma mulher culta. Ela é
não só a autora, mas também a escritora da sua obra e nela há uma tripla influência: a da
literatura profana, religiosa e filosófica. Assim, encontramos no seu texto tanto referências
advindas dos trovadores medievais, destacando-se aí a ideia do amor cortês, quanto às
referências advindas da mística do pseudo-Dionísio, como a linguagem apofática, até as
referências às Sagradas Escrituras.
É, portanto, em meio ao cruzamento destas influências que se destaca o tema central
de O espelho: um guia espiritual que deve conduzir as almas que são capazes de mergulhar no
6
“Marguerite Porrete foi uma beguina, teria pertencido, segundo consta, ao Movimento Beguinal, um movimento
que se desenvolveu como alternativa de vida religiosa leiga na Renania e Países Baixos. As beguinagens
começam a aparecer no final do século XII. São formadas por pequenas casas agrupadas. Constituem-se
comunidades com promessa (e não voto) de pobreza, obediência e castidade, inseridas num contexto social
urbano. Nessas comunidades, as mulheres vivem do próprio trabalho: tecelagem, bordado, costura, ensinamento
de crianças e serviço de damas idosas. O Movimento Beguinal está inserido no movimento de renovação da vida
religiosa que, a partir do século X, se espalha por todos os países da Europa Ocidental. No entanto, é um
movimento que permanece marginal, fora do controle institucional, pois não obedecia a uma regra aprovada”.
(MARIAσI, 2011:59). τu, ainda como escreve uma outra estudiosa: “Referia-se a si mesma como uma
mendiant creature, e era chamada de béguine por tantas fontes independentes que essa designação pode ser
considerada como certa. Tudo indica que Porete tenha levado um estilo de vida béguine, de mendicância e
errância. Ela estava imersa na cultura e espiritualidade europeia cristã do final da Idade Média, uma mulher – ou
pseudomulier – como queriam seus inquisidores – à margem da vida religiosa institucional e, por sua condição
feminina, também excluída dos estudos formais, embora suponha-se que tivesse alto nível de educação, o que
sugere que pertencia às altas classes”. (SCHWARTZ, 2011:63).
7
Ao comentar tal passagem, CIRLOT e GARÍ, 1999: 231, explicam que não é impossível que com o nome de
beguinas Marguerite se refira a um grupo bem concreto delas, talvez, inclusive, a suas antigas companheiras de
santa Isabel. De toda forma, acrescentam: “(...) formada o no entre ellas, todo parece indicar que en su madurez
Margarita no pertence a ningún grupo de mujeres religiosas viviendo em uma comunidad más o menos
institucionalizada, sino a esas otras beguinas «independientes», viviendo solas a lo sumo com uma o dos mujeres
más, construyendo de forma autónoma su vida y también su obra”.
8
Alguns aspectos porque, como nos faz pensar CIRLτT e GARÍ, 1999: 231: “¿Era entonces uma mendicante,
como se llama a sí misma em outro momento del Espejo? ¿Andaba vagando por los caminos em um signo de
pobreza voluntaria siguiendo el modo de vida de aquellos y aquellas a los que la época dio el nombre de
«giróvagos»? Algo puede haber de eso, pero em todo caso no estamos ante uma indigente: el número de libros
que parecen circular de su obra a principios del siglo XIV (...) hablan no sólo de uma mujer culta sino también
capaz de sufragar el altísimo coste que suponía la elaboración de manuscritos”.
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abismo do mistério ao aniquilamento de si e a “posse” de Deus que se estabelece no nada da
alma inundada de amor e Marguerite sabe que nem todos entenderão o conteúdo do seu livro.
Por isso, já no Prólogo, chama a atenção dos seus leitores, logo depois da personagem Amor
rogar que todos ouçam com aplicação do vosso entendimento interior sutil e com grande
diligência, senão entenderão mal se não estiverem assim dispostos. Logo, a tarefa que
Marguerite pensa ter significa mais do que pôr em prática uma certa teoria mística. Sua tarefa
consiste, também, na divulgação desta experiência a todos que sejam capazes de vivê-la.
Deste modo, não exagera Guarnieri quando afirma sobre O espelho, que este, sob a forma de
um tratado didático, revela, implicitamente, uma autobiografia mística. (Cf. GUARNIERI,
2004: 265).
Neste sentido, não é ao acaso que logo na abertura do livro, antes do Prólogo,
Marguerite advirta os leitores, ao mesmo tempo em que expõe a importância do Amor, da Fé
e da Razão:
Vós que este livro lereis,/ Se bem o quiserdes entender,/ Pensai no que vos
direi,/ Pois ele é difícil de compreender;/ À humildade, que da Ciência é a
guardiã/ E das outras virtudes amai,/ Deveis vos render./ Teólogos e outros
clérigos,/ Aqui não tereis o entendimento/ Ainda que tenhais as ideias claras/
Se não procederdes humildemente;/ E que Amor e Fé conjuntamente/ Vos
façam suplantar a Razão,/ Pois são as damas da mansão. (PORETE, 2008:0)
Já nesta abertura, Porete não só esclarece que o seu livro é de difícil compreensão,
como também indica a importância da humildade como necessária para o entendimento do
que vai ser “dito”, tanto que esta é colocada como a guardiã do saber (da ciência). Além
disso, e já antecipando, de alguma forma, os problemas que terá com as autoridades
eclesiásticas, a autora/escritora adverte aos teólogos e outros clérigos que por mais que estes
tenham as ideias claras, se não tiverem humildade, ou seja, se não forem capazes de
ultrapassar a razão, nada entenderão. Ao destacar a força do amor e da fé como aquelas que
conduzirão, humildemente, as almas ao aniquilamento, diz, de alguma forma, que o livro trata
de uma gradação pela qual passarão as almas para sua total libertação e fusão com o divino.
Neste caminho ascensivo, Marguerite divide o seu livro em 140 capítulos precedidos
por uma espécie de canção de abertura seguida de um prólogo, sendo encerrada por uma
aprobatio. Ao longo do texto, a autora demonstra toda a sua cultura letrada, mesclando, em
termos de estilo, a prosa e o verso e, em termos de conteúdo, seus conhecimento sobre o amor
cortês que encontramos, por exemplo, no Romance de Alexandre e no Romance da rosa; a
literatura religiosa, como o Speculum virginum; e a literatura filosófica, como o
neoplatonismo (sobretudo pseudo-Dionísio), Gregório de Nisa, Agostinho e a mística
cisterciense. Neste caminho, sete graus se configuram antes de alcançar o estado perfeito.
Passemos, então, a eles e a sua relação com a imagem do espelho.
Podemos dizer que O espelho das almas simples divide-se em duas partes. Uma
maior, que vai do capítulo 1 até o 122, e uma menor, que vai do capítulo 123 até o 139. Na
primeira parte, apresentada em forma de diálogo, o texto gira em torno do caminho que deve
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ser percorrido pelas almas até alcançarem o estado máximo da liberdade que está relacionado
à humildade e à aniquilação. Nesta parte, Marguerite parece tomar a distância necessária entre
narrador e aquilo que é narrado, quando a narrativa não é, necessariamente, uma experiência
de vida daquele que narra. Nesses capítulos, como já frisamos, três personagens principais se
destacam: a Razão, o Amor e a Alma, no entanto, outros personagens, que podemos chamar
de secundários ou esporádicos, também aparecem, como, por exemplo: a Fé, a Verdade, a
Justiça Divina e a Esperança. Por sua vez, na segunda parte do livro nenhum dos personagens
da primeira parte falam. O que ouvimos/lemos é a própria autora que se coloca na sua obra,
inclusive falando na primeira pessoa.
Entretanto, a mudança brusca da estrutura do livro não nos permite entender as duas
partes de forma isoladas, ou seja, as duas fazem parte de um todo intitulado O espelho das
almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor.
Assim, é como se uma parte completasse a outra, não sendo à toa, portanto, que encontramos
reflexos de uma na outra. Por exemplo, já no Prológo, em meio a dois personagens (Amor e
Alma) aparece um “terceiro” intitulado “Autora”. σa primeira parte, no capítulo 96 a Alma se
autodefine como uma mendicante que buscou Deus na criatura e deste modo permaneceu
aprisionada em si mesma. No capítulo seguinte (o 97), a personagem Alma assume a condição
de autora ou a autora se revela na personagem já que afirma de forma poética:
E, contudo, diz essa Alma que escreveu este livro, eu era tão tola no tempo
em que o escrevi, (...) que me aventurei em algo que não se pode fazer, nem
pensar, nem dizer, não mais do que aquele que quisesse encerrar o mar em
seu olho, ou carregar o mundo na ponta de um junco, ou iluminar o sol com
a lanterna ou com uma tocha. Eu era mais tola do que seria quem quisesse
fazer isso. (PORETE, 2008:163).
Logo depois ela complementa essa ideia com alguns versos que falam sobre o ato de
escrever e sobre o estado de perfeição buscado, encerrando este capítulo com a ideia de que
tal estado só acontece quando a alma permanece no puro nada.
Ora, o estado do puro nada é o grau máximo da aniquilação da alma, é o estado do
nada querer, do nada saber, do nada dizer e, porque não, do nada escrever. Mas Marguerite
escreve e opta não só pela escrita, como também pela divulgação disto que foi escrito. Logo,
mesmo dizendo negativamente, no capítulo 132 (portanto, na segunda parte do seu livro) o
que significa estar no puro nada: “Essa é uma obra miraculosa, sobre a qual nada se pode
dizer, a menos que se minta” (PτRETE, 2008: 221), podemos falar, como afirmam Cirlot e
Garí (1999: 236), que Marguerite sente a necessidade de expressar as razões que a levaram a
escrever sobre o que nada se pode dizer. Neste sentido, a narrativa, sobretudo a que é descrita
à distância, se recobre de sentido, uma vez que agora, na segunda parte do seu livro,
Marguerite fala como alguém que vivenciou a experiência do aniquilamento da alma e como
tal, revestida da plenitude divina, se sente na obrigação de dividir o estado do puro nada ao
qual chegou. Neste sentido, Aqueles que lerem O espelho terão não só o relato de uma teoria,
mas a escritura/testemunho de quem só conseguiu teorizar sobre o caminho de ascensão das
almas que buscam a fruição do divino porque uma prática assim o proporcionou. Talvez, por
isso, escreva a autora, pela boca da personagem Amor (ainda na primeira parte do seu livro,
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“(...) vós reconhecereis neste livro a vossa prática”). (PτRETE, 200κ:164). Vejamos, então,
como esta prática se mostra no reflexo do espelho.
Como dissemos, O espelho descreve sete degraus que devem levar as almas a um
experienciar do divino. Já no Prólogo, por exemplo, nossa pensadora afirma que “Há sete
estados nobres de existência por meio dos quais a criatura recebe o ser, se ela se dispõe a
passar por eles antes de alcançar o estado perfeito”. (PτRETE, 200κ:32). Tais degraus vão
sendo denunciados ao longo do texto poretiano, mas é no capítulo 118, através da personagem
Alma que estes estados são descritos de forma mais rigorosa. Como o que mais interessa para
o nosso trabalho é o sexto estado, relataremos de forma breve, os sete graus e depois
voltaremos para o sexto. Deste modo, vejamos como a própria Marguerite apresenta estes
estágios:
9
O espelho. 118: passim (grifos nossos).
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seja Deus mesmo, Aquele Que é, no qual todas as coisas são”. (PτRETE, 200κ:194). Neste
estado, continua o texto, “(...) a alma está liberada de todas as coisas, pura e clarificada”.
(PORETE, 2008:194). Em primeiro lugar, podemos perguntar o que significa dizer que a
Alma não vê a si mesma, mas Deus se vê nela? Em segundo lugar, por que a alma, livre de
todas as coisas, é pura e clarificada? Comecemos pela segunda questão e tentemos relacioná-
la à imagem do espelho ou do que pode significar tal imagem.
Uma alma pura significa uma alma pautada na humildade e, portanto, livre de todas as
coisas que a liga ao mundo exterior e também interior, já que no sexto grau, a alma se
encontra despojada da sua própria vontade. Para chegar a este despojamento o estágio anterior
(o quinto) se mostra como importante, pois, como nos esclarece Marguerite, falando através
da Alma, ainda que haja um certa compreensão divina neste estado, já não há, como no sexto,
vontade alguma:
(...) ela não se preocupa mais com a guerra da natureza, pois sua vontade foi,
com despojamento, recolocada no lugar de onde foi tomada, onde por direito
ela deve estar. Agora essa Alma é nada, pois vê seu nada por meio da
abundância da compreensão divina, que a faz nada e a coloca no nada. E
assim ela é tudo (...). (PORETE, 2008:192).
Ora, ser nada é condição para o aniquilamento da alma que só se torna realmente
aniquilada quando chega ao sexto grau, pois no quinto ela ainda está na abundância da
compreensão divina, como já foi demonstrado. No sexto estágio, por sua vez, por maior que
seja o abismo da humildade que tenha em si e por maior que seja a bondade de Deus, a alma
não possui mais nenhum tipo de compreensão, aí sim, ela se encontra no puro nada. Nesta
pureza e clarificação, ou seja, sem nenhum empecilho, a alma se torna espelho, isto é,
superfície limpa e lisa capaz de refletir o que tem diante de si: o divino.
Neste reflexo do divino, a alma nadificada encontra-se, por um momento, no mais alto
estágio que pode alcançar em vida, o experenciar do Longeperto que é descrito em O espelho
como superabundante e arrebatador e é chamado de centelha pela forma de abertura e rápido
fechamento. σeste ponto, a vontade do eu é “transformada” na vontade divina e o ser da alma
é substituído pelo ser simples e aí como nos diz o texto poretiano: “(...) mais alto ninguém
pode ir, nem mais profundamente descer, nem mais desnudo pode estar” (PτRETE,
2008:227). Em meio a este desnudamento, que é uma imagem sem imagem, como pode Deus
se vê na alma transformada em espelho, se nem ela própria se vê? Uma passagem de O
espelho pode nos ajudar a responder esta questão. Refere-se ela à Alma aniquilada:
Tudo para ela é uma única coisa, sem um porquê, e ela é nada no uno.
Agora ela não tem mais nada a fazer por Deus, nem Deus por ela. Por quê?
Porque Ele é e ela não é. Ela não retém mais nada em si, no seu próprio
nada, pois isso lhe basta, ou seja, Ele é e ela não é. Portanto, ela está
despojada de todas as coisas, pois está sem ser, lá onde estava antes de ser.
Assim ela tem de Deus o que Ele tem e é o que Deus mesmo é, por meio da
transformação do amor, no ponto que estava antes de fluir da bondade de
Deus. (PORETE, 2008: 225).
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A alma não se vê porque ela própria tornou-se espelho cristalino e, como espelho, ela
reflete Deus. No entanto, mesmo afirmando que Deus se vê por si nela, para ela, sem ela;
Alma e Deus, na verdade, tornaram-se espelhos um do outro, posto que se a alma pudesse se
ver, se veria como Deus, assim como Deus se vê nela. Ela e Deus tornaram-se um só: espelho
cristalino e uno. Esse uno é, conforme Marguerite, “quando a Alma é recolocada naquela
Deidade simples, que é um Ser simples de fruição transbordante, na plenitude do saber sem
sentimento, acima do pensamento” (PτRETE, 200κ:22ι).
Podemos acrescentar, para concluir, embora não tenhamos tratado disso neste
trabalho, que a metáfora do espelho (n’O Espelho de Marguerite) transgride um determinado
modo de pensar até então estabelecido e nesta transgressão a personagem Alma, se faz autora,
se faz escritora e se faz mulher que segue uma única regra, aquela que a devolverá para Deus:
a regra da aniquilação. Para viver isto e dividir esta experiência (numa atitude de doação que
só uma alma liberta de todo querer, de todo poder e de toda saber é capaz), Marguerite travou
e, segundo ela mesma, venceu a luta contra todos os poderes, como podemos ler já no final do
seu livro:
Tal Alma professa a sua religião e obedece às suas regras. Qual é a sua
regra? É que ela seja reconduzida pela aniquilação ao estado inicial, onde
Amor a recebeu. Ela passou no exame de sua provação e venceu a guerra
contra todos os poderes. (PORETE, 2008:226).
REFERÊNCIAS
Fonte Primária
PORETE, Marguerite. O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente
na vontade e no desejo do amor. Tradução e notas de Sílvia Schwartz. Petrópolis/RJ: Vozes,
2008.
Fontes secundárias
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SCHWARTZ, Sílvia. “Marguerite Porete: Mística, Apofatismo e Tradição de Resistência”.
In: Numem: Revista de estudos e pesquisa da religião. Juiz de Fora, v. 6, n. 2, 109-126.
______. “Marguerite Porete e a “teologia” do feminino divino”. In: Revista do Instituto
Humanitas Unisinos. São Leopoldo, edição 385, 19 de dezembro de 2011, 63-68.
TEIXEIRA, Faustino. Apresentação de O espelho. In: O espelho das almas simples e
aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor. Petrópolis/RJ:
Vozes, 2008: 17-29.
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ASPECTOS RELIGIOSOS DO AMOR CONJUGAL NA OBRA "JÚLIA OU A NOVA
HELOÍSA" DE ROUSSEAU: UM RETORNO À IDADE MÉDIA?
τ que os pensadores do século XVIII, também conhecido como “Século das Luzes”,
pensavam da Idade Média? Essa pergunta nos parece importante porque é preciso dizer algo
sobre o significado da questão posta no final do título desse trabalho. Quando formulamos a
questão “um retorno à Idade Média?” o nosso escopo é sofístico. Pois, o que significa
eventualmente um “retorno à Idade Média”? Para problematizar essa questão, temos que
recorrer a três outras não menos relevantes para o nosso estudo: o que esses intelectuais
pensavam sobre o período medievo? Será que o que eles pensavam corresponde ao que foi o
período medievo, efetivamente? O que a obra: Júlia ou Nova Heloísa (1760) de Rousseau tem
haver com essa questão? Esse é o caminho que nós pretendemos seguir ao longo desse
trabalho.
A que se deve tal atitude apresentada nos parágrafos anteriores? Talvez porque a
Europa ainda guardasse em determinados domínios marcas intempestivas dos abusos
cometidos pela religião cristã, como na França do século XVIII. Tudo bem, as fogueiras
medievais foram substituídas pelo suplício da roda no Antigo Regime; mas, mais tarde não
seriam substituídas pela guilhotina? Não há dúvida de que a Igreja oficial não tolerasse
determinadas obras literárias e atitudes que fossem contrárias aos seus dogmas. Mas, durante
a Revolução Francesa, foi diferente na querela entre girondinos e jacobinos?
O próprio Voltaire ao fazer tantas críticas risíveis aos judeus, não terminaria por ser
intolerante para com aqueles em que ele acusa de serem intolerantes? Na época, foi notória a
atitude dos representantes das comunidades judaicas que acabaram por questionar Voltaire
por causa de sua postura mordaz contra o judaísmo, ao afirmarem que: “... não basta não
queimar os homens: é possível queimá-los com a caneta e esse fogo é ainda mais cruel na
medida em que seu efeito permanece até as gerações futuras” (BUCCI, 2009, p.214).
Descontente com teu estado presente, por motivos que anunciam à tua infeliz
posteridade maiores descontentamentos ainda, quem sabe gostarias de
retrogadar. Tal desejo deve constituir o elogio dos teus antepassados, a
crítica de teus contemporâneos e o temor daqueles que tiveram a infelicidade
de viver depois de ti (ROUSSEAU, 1983, p.237).
Rousseau precisa de bases para sustentar as suas idéias. Essas bases têm como uma
das orientações: resgatar imagens e costumes que nos fazem lembrar o passado, para iluminar
e denunciar a corrupção moral do presente, ainda que se utilizando das armas da própria
civilização como a escrita de romances, com o intuito de mostrar as feridas dessa mesma
civilização. Não seria agradável escrever romances como a Nova Heloísa, mas é preciso
escrevê-los para demonstrar que uma vida policiada, civilizada, marcada pelas falsidades e
aparências, não tornam as pessoas felizes.
Nesse aspecto, uma pergunta nos parece fundamental: Rousseau retornou à Idade
Média quando escreveu a Nova Heloísa? A pergunta inicial reaparece com essa roupagem. Já
vimos que o nosso autor tende a ver o passado como modelo moral e o presente como
decadência dos costumes. A Idade Média cabe nesse passado? No Discurso sobre as ciências
e as artes, não. O que dizer da Nova Heloísa? Eis o que vamos investigar, agora.
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tivesse vivido num século em que tivesse de jogá-las ao fogo (ROUSSEAU,
1995, p.23).
A obra pode ser desagradável para muitos, mas não passará por despercebida para
todos os que a tiveram lido. Quais as razões para isso? Em que sentido o enredo, os lugares,
os personagens, podem chocar os leitores? Costumes esquecidos no passado podem refrescar
a memória do presente. Mas, a Nova Heloísa é um romance contemporâneo ao escritor, não é
um romance que se passa em tempos passados como a Idade Média, o que ele pode ter de
medieval?
Rousseau nos adverte que: “Esta coletânia, com seu gótico tom, convém melhor às
mulheres do que os livros de filosofia” (RτUSSEAU, 1995, p.24). A expressão: Gótico tom
pode ser uma das arestas que precisávamos para fundamentar a nossa tese, segundo a qual: a
Nova Heloísa é um romance que tem no amor cristão medieval uma das suas fontes de
inspiração. Uma nota da Moretto (tradutora do romance) nos chama a atenção para a definição
da expressão Ghotique presente no Dicionário da Academia (1ι62), segundo a qual: “o que
parece demasiadamente antigo e fora de moda” (RτUSSEAU, 1995, p.24). Explicação pobre
que revela o desejo de superação da cultura e arte góticas. Então, o “Gótico tom” a que
Rousseau se refere parece ter a intenção de mostrar que pode haver bons valores no Gótico,
valores esses ignorados pelos seus contemporâneos.
Outra fonte de fundamentação da nossa tese mencionada no parágrafo anterior, diz
respeito ao próprio nome do romance: Júlia ou A Nova Heloísa, que tem clara relação com a
história de Abelardo e Heloísa, ressurgida romanticamente na época de Rousseau. Saint-
Preux, personagem principal do romance, se apaixona por Júlia, quando aquele é convidado
pelo pai desta, o senhor D’Etange, a morar em sua residência para ser o seu preceptor. σão há
castrações nem fugas para conventos ou investiduras clericais. Mas, o romance que se inicia
entre eles dois e que permanece ao longo da obra, com seus descaminhos, tem inspiração na
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história de Abelardo e Heloísa, conforme a Carta XXIV da Primeira Parte, escrita por Sain-
Preux à Júlia:
Considerações finais
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Se as referências familiares possuem uma complexidade extrema, é possível
delas destacar aqui alguns eixos e, em primeiro lugar, a freqüência dos
enredos sexualizados: seduções do tipo incestuoso (pai/filha,
madrasta/enteado, cunhado/cunhada), rivalidades em torno da mesma
mulher, calúnias de natureza sexual que acarretam o exílio das jovens mães,
em suma, um conjunto de querelas domésticas que outras narrativas,
prudentemente, ocultam por meio de uma exemplaridade por vezes um
pouco rígida (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p.340).
Por mais que moralistas tentem impor regras de conduta religiosas na tentativa de
maquiar a realidade, sempre haverá uma literatura que apresente, nos seus mais diversos
domínios, a “vida como ela é”. σo período medieval: crimes, traições e corrupções, adjetivos
considerados sob uma ótica, cristã, claro, acontecem como em qualquer período da história.
Nesse caso, se nossa tese está correta, na Nova Heloísa, Rousseau apresenta não
apenas uma visão idealizadora da sociedade de seu tempo, mas apresenta também uma visão
romantizada do passado ao acreditar que o amor conjugal, tal qual é apresentado em sua obra,
fosse uma regra absoluta nos tempos medievos, em que: serenidade, inocência, simplicidade,
transparência e fidelidade dos cônjuges, fossem imagens reais de um passado perdido.
Isso demonstra que, Rousseau não apenas desprezou a Idade Média no Discurso sobre
as ciências e as artes, mas idealizou uma forma de amor conjugal que não tem respaldo
absoluto nos tempos da hegemonia da fé cristã na Europa. Essa humanidade dos tempos
passados parece tão medíocre quanto à dos tempos presentes. Então, se não há saída, para que
adianta escrever romances inspirados em tempos passados idealizados, passados esses que
serviriam como modelos morais para o presente? O que realmente aprendemos lendo a Nova
Heloísa? τ próprio Rousseau nos responde: “Aprendemos a amar a humanidade. σas grandes
sociedades somente aprendemos a odiar os homens” (RτUSSEAU, 1995, p.27).
Referências
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A POBREZA COMO EXPRESSÃO MÁXIMA DA VITA VERA APOSTOLICA NOS
ESCRITOS DE CLARA DE ASSIS
Em 1212, a jovem Clara abandonou a casa de sua família para se juntar a Francisco de
Assis e seus frades, tornando-se a primeira “franciscana”. Depois da morte do fundador, em
1226, e durante o primeiro século da Ordem, sua voz foi uma das mais poderosas na defesa da
pobreza conforme aquilo que a santa acreditava ser a vontade do poverello. A todos os papas,
Clara reforçava a necessidade de receber o maior de todos os privilégios, o da pobreza, para
que ela e suas irmãs, no mosteiro de São Damião, nunca pudessem ser constrangidas a receber
nenhuma propriedade de quem quer que fosse.
À Clara são atribuídos poucos escritos, quatro cartas à Princesa Inês de Praga (ou da
Boêmia), uma Bênção, o Testamento e a Forma de Vida.2 As quatro cartas para Inês de Praga
sugerem, uma correspondência maior, assim como outras fontes sobre Clara e as mulheres
franciscanas são indício de uma escritora mais ativa, especialmente, na promoção da pobreza
que lhe era tão cara. Então, por que tão poucos escritos conhecemos da santa? Acreditamos,
e defendemos esta idéia em nossa Tese de doutorado, que a ordem de destruição dos
documentos sobre Francisco de Assis em 1266 atingiu da mesma forma os documentos
ligados à Clara.
Em 1266, o Capítulo Geral da Ordem Franciscana estabeleceu que somente as
biografias escritas por Boaventura seriam tidas como legítimas e oficiais, banindo todas os
demais escritos biográficos, que deveriam ser destruídos. Neste ímpeto de controlar a heresia
dentro das fileiras da Ordem Primeira, é muito provável que documentos diversos sobre e de
autoria de Clara possam ter sido escondidos e perdidos, como, também, destruídos. Afinal,
uma das questões que agitava os franciscanos na época era exatamente o ideal de pobreza
defendido pelo fundador e como ela deveria ser cumprida pelos membros da ordem.
A insistência de Clara na importância de ser pobre e na necessidade de permanecer
vivendo comunitariamente em pobreza norteia todos os escritos atribuídos à santa, desde suas
cartas para Inês até a forma de vida, a única escrita por uma mulher aprovada pela Santa Sé
até o século XIII. A resistência de Clara, ao longo de toda a sua vida religiosa (1212-53),
pode ser percebida em múltiplos documentos, como a Legenda de Santa Clara, de autoria de
Tomás de Celano, na qual a pobreza está associada ao perfeito segmento de Jesus Cristo:
1
Doutora em História pela UnB, professora da Faculdade Teológica de Brasília e do Colégio Militar de Brasília.
2
Há também uma carta para a beguina Ermentrudes de Bruges, cuja autenticidade é alvo de disputa, pois o
compilador dos Annales Minorum, de Lucas Wading, diz ter encontrado duas cartas da santa para esta co-irmã,
mas só apresenta o texto de uma. Esta carta parece ser a junção dos dois documentos.
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Quando tentou convencê-la a aceitar algumas propriedades que oferecia com
liberalidade pelas circunstâncias e perigos dos tempos, ela resistiu com
ânimo fortíssimo e não concordou, absolutamente. Respondeu o Papa: “Se
temes pelo voto, nós te desligamos do voto”, mas ela disse: “Pai santo, por
preço algum quero ser dispensada de seguir Cristo para sempre”. (Legenda
de Santa Clara)
Este fragmento, que corresponde a parte de uma conversa entre a santa e o papa
Gregório IX, mantém-se fiel ao que pode ser lido em várias passagens dos escritos da própria
Clara, como em sua primeira carta à Inês de Praga quando ela declara que “Creio firmemente
que sabeis que o reino dos céus não é prometido e dado pelo Senhor senão aos pobres,
porque, quando se ama uma coisa temporal, perde-se o fruto da caridade.”
A firmeza de Clara em afirmar a pobreza como traço fundamental para a salvação
aproxima-se perigosamente de princípios defendidos dentro de alguns círculos heréticos dos
séculos XII, XIII e XIV, mas, ao mesmo tempo, é uma radicalização daquilo que estava
estabelecido entre os seguidores da chamada vita apostolica ou vita vera apostolica.
Ernest W. McDonnell em seu texto clássico The Vita Apostolica: Diversity or Dissent,
defende que a vita apostolica se assentaria em três princípios básicos: imitação da vida dos
cristãos primitivos, em simplicidade, penitência e busca pelas coisas espirituais; o amor à
Deus e pelo próximo enfatizando tanto o serviço aos pobres (viúvas, leprosos, órfãos,
doentes), quanto o proselitismo; e a pobreza, imitação de Cristo, o ganho do sustento com as
próprias mãos, a aceitação de esmolas. (MCDONNELL, 1955, p. 15) Pobreza, penitência e
pregação centradas no modelo oferecido pelos Evangelhos sintetizam bem o que os
defensores da vita apostolica, oferecendo um tripé de sustentação para uma nova, vigorosa e
plural forma de vivência da espiritualidade.
Os primeiros indícios da vita apostolica começaram a aparecer ainda no século XI,
mas seu grande impulso se deu no século XII e no século XIII com homens como Norbert de
Xanten, Robert D’Abrissel, Pedro Valdo, Francisco de Assis.3 Esse processo de rejeição dos
bens terrenos e da opção por uma forma mais ou menos radical de pobreza é concomitante ao
rápido processo de monetarização da economia, da expansão do comércio. A riqueza,
inclusive da Igreja, era cada vez mais visível e incomodava muitos fiéis.
Durante os séculos XI, XII e XIII, a vita apostolica teve adversários e defensores.
Autoridades monásticas colocavam em dúvida a seriedade das novas formas de vida religiosa
tipicamente urbanas e não claustrais. Cônegos questionavam o direito dos frades e leigos de
pregarem. A familiaridade com as mulheres era usada como acusação aos pregadores, vide as
preocupações do próprio Francisco de Assis para que seus frades não entrassem em mosteiros
3
Ernest W. McDonnell defende em seu texto que os princípios da vita apostolica estariam presentes até as bases
da Reforma Protestante em personagens como Jan Huss e John Wycliff. (MCDONNELL, 1955, p. 15)
144
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de mulheres. Ainda assim, a vita apostolica foi acolhida e defendida por autoridades
eclesiásticas, como Jacques De Vitry, que via com grande positividade a experiência das
beguinas e dos menores (homens e mulheres), e o próprio Papa Inocêncio III, que buscou
reconhecer as novas ordens e reintegrar grupos que tinham sido colocados na heresia, como os
Humiliati. Foi Inocêncio III que aquiesceu em conceder à Clara o primeiro Privilégio da
Pobreza. Este fato é relembrado por Clara em seu Testamento:
Pra maior segurança, tive a preocupação de conseguir do senhor papa Inocêncio, em
cujo tempo começamos, e dos seus outros sucessores, que corroborassem com os seus
privilégios a nossa profissão da santíssima pobreza, que prometemos ao Senhor e ao nosso
bem-aventurado pai, para que em tempo algum nos afastássemos dela de maneira alguma.
McDonnell enfatiza que a reforma religiosa – começada nos dias de Gregório VII e
concluída com Inocêncio III – era religiosa e teológica nas suas origens, mas que só se tornou
realmente efetiva na medida em que as forças sociais a traduziram em práticas.
(MCDONNELL, 1955, p. 17) Os costumes eclesiásticos anteriores permitiam que os
religiosos nada tivessem de si, mas administrassem bens da Igreja, alguns mosteiros eram
riquíssimos. Os praticantes mais radicais da vita apostolica defendiam uma abstenção total de
qualquer posse, de qualquer bem. É esse o tipo de pobreza a defendida por Clara de Assis.
Estabelecido isso, é preciso situar as mulheres dentro desse novo paradigma de vida
religiosa. Assim como os homens, as mulheres se viram atraídas pela vita vera apostolica.
Nesse sentido, o caso de Clara não é singular, mas se encontra dentro de um processo de
renovação religiosa muito mais amplo, sobre essa questão Herbert Grundmann escreve:
Antes de entrar para a vida religiosa, Clara vivia em penitência e pobreza dentro de
sua casa. Este é o testemunho de vários dos depoentes em seu processo de canonização. Mas
isso não era suficiente, permaneciam os constrangimentos familiares, a possibilidade de um
casamento para ampliar as riquezas da família. Todas essas questões impediam a vivência
integral da vita vera apostolica. A fuga, o confronto com a família, a resistência e,
finalmente, a aceitação a contragosto por parte dos parentes da vocação religiosa de Clara,
foram passos seguidos por outras mulheres antes e depois dela.
Não é nosso interesse romantizar a vida religiosa feminina, mas é preciso marcar que
para algumas mulheres a comunidade religiosa (convento, mosteiro, casa de beguinas, etc.)
era um espaço de subjetivação e construção de uma identidade que pudesse escapar aos
poderes masculinos, o pai (o tio, no caso de Clara), o marido, e até o controle dos religiosos
homens. Grundmann enfatiza que a renúncia da posição social e da riqueza não se fazia
geralmente por necessidade ou coação, mas por livre escolha. O autor ressalta que é difícil
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saber com precisão a qual grupo social as beguinas pertenciam, mas no caso das franciscanas
e cistercienses, grande parte era da nobreza ou dos grupos patrícios das cidades.
(GRUNDMANN, 2002, p. 85)
A vita vera apostolica teve nas mulheres, de todos os tipos, grandes entusiastas.
(BRENON, 1992, p. 83-84) Seja como penitentes, hereges, beguinas, monjas, elas
contribuíram criativamente, e foram agentes diretas no estabelecimento de novas formas de
vida religiosa.
É preciso ressaltar que a vita vera apostolica somente acelerou a entrada de mulheres
na vida religiosa, especialmente buscando as novas ordens e movimentos que estivessem
ancorados nas premissas da nova espiritualidade, isto é, a imitação dos apóstolos e do próprio
Cristo. É preciso marcar, também, que as comunidades masculinas fossem mais abundantes,
a vida religiosa feminina floresceu desde os princípios da Igreja Cristã, e foi marcada pela
diversidade.
Quanto à regra, não havia também uma unidade, mesmo os mosteiros onde a regra
beneditina era utilizada, os costumes, a vontade do fundador ou fundadora da casa, mesmo a
vontade das monjas, cuja maioria absoluta era recrutada nas fileiras da nobreza, prevalecia.
(PARISSE, 1994, p. 190) Os mosteiros eram casas voltadas para a oração e, também, a
educação de jovens, e a representação da comunidade religiosa como lugar de reclusão
absoluta não existia. As abadessas e monjas podiam empreender viagens autorizadas, algo
assegurado e prescrito pela regra de São Bento, seguida por boa parte dos mosteiros de
mulheres antes do século XIII. (LECLERQ, 1980, p. 67) Além das viagens para fundar outros
mosteiros ou por motivos diversos, as monjas até o século XII não eram proibidas de pregar e
o caso mais notável é o de Hildegard de Bingen que pregava em praça pública. (LECLERQ,
1980, p. 67 e PERNOUD, 1994, p. 94)4
Ernest W. McDonnell termina seu texto com uma afirmação muito completa sobre o
panorama espiritual do século XIII. Segundo este historiador,
(...) o século XIII foi uma era de ceticismo e fé, discussão e repressão,
espiritualidade e secularismo, diversidade e unidade. Mas a autonomia
religiosa, a liberdade de pensamento, depende da divisão dos interesses, não
somente da diversidade de método. A igreja, ao contrário de certas seitas,
podia ser elástica e inclusiva. (MCDONNELL, 1955, p. 28)
4
Régine Pernoud, na biografia que escreveu sobre Hildegard de Bilgen, discorre sobre as quatro viagens de
pregação da religiosa, a última empreendida quando ela já estava com mais de 70 anos. (PERNOUD, 1994, p.
118)
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de passagem, assim como a resistência das ordens. Joan Mueller, em seu livro sobre o
Privilégio da Pobreza, defende que a aceitação das mulheres nos movimentos e ordens novas,
era um primeiro passo que precedia a exclusão ou tentativa de exclusão.5
A partir do momento em que os franciscanos começaram a se organizar como uma
ordem, estabelecendo conventos, a manutenção de casas femininas começou a se tornar um
peso. (MUELLER, 2006, p. 16) Mas a chave para compreender o “peso” que as mulheres
representavam repousa na emergência de discursos misóginos e na imposição da clausura às
religiosas. Um exemplo de discurso que depreciava as mulheres é o conhecido fragmento de
Prüfening:
5
As tentativas de exclusão normalmente fracassavam, como no caso dos Cistercienses que decidiram excluir as
mulheres em 1213, ou dos Dominicanos em 1228. Não raro, a decisão tornava-se letra morta ou era revertida
por uma autoridade superior. O próprio papa Gregório IX reverteu a decisão do Capítulo Dominicano em 1238.
(BOLTON, 1980, p. 151-152)
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A necessidade da clausura para as religiosas, ancorada em discursos sobre a debilidade
moral e física das mulheres, foi se tornando central na vida religiosa feminina. Assim, no
século XII, “(...) começam a aparecer as determinações mesquinhas sobre portas, chaves,
muros e grades” e a “clausura transforma-se numa prisão”. (ROTZETTER, 1994, p. 141)
No tocante à clausura, a questão começa a se deslocar, então, “da ‘periferia’ para o ‘centro’
de um campo discursivo”, (BACZKO, 1985, p. 298) tornando-se um dos eixos de
estruturação da vida religiosa feminina.
Cria-se um círculo vicioso. Enclausuradas, as mulheres não podem esmolar, nem
pregar, dois eixos da vita vera apostolica. A defesa do afastamento entre homens e mulheres,
começa a impedir que persistam os mosteiros duplos, ou que religiosos possam se abrigar em
mosteiros de mulheres ou usarem essas casas como bases em suas viagens de pregação ou
mesmo que para aí retornem depois de esmolar. Os novos moldes da clausura impedem,
também, as mulheres de administrarem diretamente os bens dos mosteiros, precisando de
procuradores. As casas de mulheres passam a ser um peso. A saída é limitar o número de
religiosas, ou de casas de mulheres.
A preocupação das ordens era menos com, o que chamamos perigo moral ou espiritual
que as mulheres poderiam representar, e muito mais com o seu peso econômico. (LECLERQ,
1980, p. 89) Afinal, nos diz Leclerq, “(...) a clausura se torna um bem em si mesma, e o
primeiro de todos, aquele em função do qual outros são sacrificados, a começar pela
pobreza: a vida claustral exige a existência de rendas e reduz a possibilidade de trabalho.”
(LECLERQ, 1980, p. 86)
A clausura, se seguida nos moldes propostos pelas autoridades masculinas, tornava as
religiosas absolutamente dependentes da boa vontade dos seus patronos laicos e religiosos,
assim como de procuradores que deveriam gerir seus bens. Sem autonomia e a possibilidade
de romper a clausura, tornava-se muito mais fácil controlar a prática religiosa feminina,
impondo sérios limites à independência dos mosteiros de mulheres.6
Outra questão, que teve repercussão sobre Clara e suas irmãs foi a tentativa de
imposição da Regra de São Bento a todas as religiosas. Quando da conversão de Clara, estava
em andamento um projeto de uniformização da vida religiosa feminina a partir do modelo
beneditino na leitura cisterciense. O cardeal Hugolino, futuro Gregório IX, era protetor dos
franciscanos e, também, das mulheres religiosas. Ele será responsável por levar adiante o
projeto de normatização da vida religiosa feminina tendo a Regra de São Bento como
parâmetro e a clausura como condição essencial para a vivência religiosa. A Itália termina
sendo o laboratório para essa primeira iniciativa e as franciscanas, organizadas em mosteiros
independentes, são alvo da ação do cardeal. (MUELLER, 2006, p. 18-20)
6
O canône LXIV do IV Concílio de Latrão toca na questão da simonia e vai condenar especialmente os
mosteiros femininos por essa prática. O texto se inicia com duras palavras: “O pecado da simonia se
desenvolveu de tal maneira entre as monjas, que sob o pretexto da pobreza não admitem senão a um número
mínino de irmãs que não possuem dinheiro. [...]” (Lateranense IV, LXIV, p. 200)
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A Pobreza como síntese da vita apostolica
Durante toda a sua vida como religiosa, Clara lutou para garantir que as irmãs em São
Damião poderiam viver em pobreza. As cartas sobreviventes à Inês de Praga, sugerem que a
santa ajudou a co-irmã a obter o mesmo privilégio para as irmãs de seu convento. O direito
de permanecer franciscana, de viver a vita apostolica, passava pela pobreza e Clara sustentou
seus argumentos remetendo-se a uma autoridade maior, a do próprio Francisco. Assim, a
regra que Clara viu ser aprovada pouco antes de sua morte começa da seguinte maneira “A
Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres, que o bem-aventurado Francisco instituiu, é
esta: (...)”. (Forma de Vida de Santa Clara 1).
As irmãs são pobres e seguem uma forma de vida instituída não por Clara, mas por
Francisco. Esse recurso a uma autoridade maior era uma estratégia para a obtenção de
legitimidade. Ainda que Clara já fosse muito famosa por toda Itália e além, Francisco já era
santo e, além disso, homem. Curiosamente, nenhuma forma de vida de Francisco para as
irmãs resistiu aos séculos, isso, claro, se realmente ela foi escrita ou verbalizada. Em seu
Testamento, Clara volta a insistir:
(...) faça com que sempre o seu pequeno rebanho (cfr. Lc 12,32), que o
Senhor Pai gerou em sua Igreja pela palavra e o exemplo do nosso bem-
aventurado pai São Francisco para seguir a pobreza e a humildade do seu
Filho dileto e da Virgem, sua gloriosa Mãe, observe a santa pobreza que
prometemos a Deus e a nosso bem-aventurado pai Francisco e nela digne-se
encorajá-las e conserva-las. (Testamento)
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As quatro cartas não têm data precisa. Os estudiosos geralmente inferem datas a partir
de indícios discursivos. Por exemplo, a II Carta fala de Frei Elias,7 ministro geral entre 1234-
39. E ao sugerir que Inês “não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito”,
parece que Clara está fazendo referência a forte pressão exercida pelo papa Gregório IX para
que Inês aceitasse propriedades para o seu mosteiro em 1235. A resistência da princesa em
aceitar o decreto do papa, fez com que este recuasse dois anos depois. Além de poderem
viver em pobreza, outro pedido de Inês foi concedido: as irmãs de Praga poderiam trabalhar
em um hospital. Tal decisão mostra que havia ainda terreno para negociação, que as
deliberações papais não eram irrevogáveis e que as mulheres tentaram negociar condições,
ainda que constrangidas por uma instituição cada vez mais falocêntrica.
Por fim, na sua forma de vida Clara reforça várias vezes a necessidade da pobreza.
Sua insistência pauta todo o texto, deixando outros aspectos, como a clausura tão cara aos
papas, em segundo plano. O texto, também, reforça para as irmãs que a resistência a qualquer
autoridade que deseje desviá-las da santa pobreza é legítima. Escreve Clara: “Rogo-vos,
senhoras minhas, e vos aconselho a que vivais sempre nessa santíssima vida e pobreza.
Guardai-vos bastante de vos afastardes dela de maneira alguma pelo ensinamento de quem
quer que seja”. (Forma de Vida de Clara de Assis)
Quando os próprios frades se negaram a aceitar o Testamento de Francisco com a
aquiescência do papa Gregório IX, Clara se manteve firme na sua decisão de acatar a vontade
do fundador. Em tempos de ingerência na vida religiosa feminina e de exercício máximo do
poder papal durante a Idade Média a postura de Clara precisa ser vista como um ato de
subversiva resistência em relação ao que se esperava das mulheres religiosas no século XIII:
clausura, obediência e silêncio. Impossibilitada de exercitar plenamente a vita apostolica,
Clara centralizou seus esforços na manutenção da pobreza evangélica. De uma forma muito
contundente, venceu, pois ao morrer teve sua forma de vida, síntese de seus ideais, aprovada.
Algo singular até então, pois foi a primeira mulher a ter uma regra aprovada e reconhecida
pela Igreja.
REFERÊNCIAS
Fontes Primárias:
PEDROSO, José Carlos Corrêa (org.). Fontes Clarianas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes-
CEFEPAL do Brasil, 1994.
___. Fontes Clarianas. 4ª ed. Piracicaba: Centro Franciscano de Espiritualidade, 2004.
TEIXEIRA, Celso Márcio (org.). Fontes Franciscanas e Clarianas. Petrópolis: Vozes-FFB,
2004.
Lateranense IV. Edição crítica de Raimunda Foreville. Vitória: Eset, 1972.
7
“(...) siga o conselho de nosso venerável pai, o nosso Frei Elias, ministro geral.” (II Carta à Inês de Praga)
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Bibliografia Geral:
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IDEIAS RELIGIOSAS NO CRISTIANISMO PRIMITIVO: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA DO PROTO-EVANGELHO DE TIAGO
OS PRESSUPOSTOS BAKHTINIANOS
De acordo com Bakhtin, a natureza da linguagem é dialógica, sempre está voltada para
o outro e nasce dessa relação com o outro. Os homens se humanizam por meio/na linguagem.
É nela e por ela, no processo dialógico, que os sujeitos são histórica e ideologicamente
construídos. É por meio da interação verbal que os seres humanos constroem sua identidade e
consciência, por meio dela participam das lutas de classe.
A língua, no olhar de Bakhtin, é o lugar de formação de sujeitos que participam
ativamente das realidades que os cercam. O sujeito bakhtiniano é um ser psicossocial que se
manifesta por meio da interação. Nessa interação, produz enunciados orais ou escritos, que se
enquadram em determinados gêneros discursivos. Estes também apreendidos socialmente. É
um sujeito histórico e ideologicamente situado que constrói a identidade com relação à
dinâmica de alteridade.
Uma das características mais importantes da teoria bakhtiniana da linguagem é a
responsividade ativa dos sujeitos durante a interação. O sujeito bakhtiniano nunca é passivo,
ele constrói a significação durante o processo de interação por meio de negociações. Dessa
forma, o sentido nunca é exclusivamente dado pelo autor ou se encontra simplesmente no
texto. O significado é construído na interação entre os sujeitos ativos que estão em dialogo. A
partir dessa responsividade ativa, surgem as réplicas do discurso, uma vez que, o sujeito se
posiciona em relação ao enunciado manifesto. Há o princípio de apropriação do enunciado do
outro para formular o próprio. Daí, a língua se torna o lugar de luta de classes, de afirmação
do indivíduo. Não entendamos aqui, classe, como classe social, mas sim como classe
ideológica.
Os sujeitos reproduzem o social na medida em que participam ativamente dele. É
nessa relação dinâmica de alteridade que é construída também a realidade.
Segundo Souza (2005, p. 325) “na perspectiva bakhtiniana, a verdade não se encontra
no interior de uma pessoa, mas está na interação dialógica entre as pessoas que a procuram
coletivamente”. Por este ângulo devemos considerar as cosmogonias míticas do passado como
também as ideias religiosas do presente verdades, pois para um determinado grupo de pessoas
elas o são.
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Os mitos, mais que uma concepção equivocada dos que os consideram fantasia, ficção
e ilusão, são uma forma de representação de verdade, construção ideológica de um grupo de
indivíduos que a procuram. Eles criam a realidade em que os homens vivem, tal qual a ciência
e a filosofia.
O Cristianismo não nasce como uma religião autônoma. No princípio era considerado
apenas como uma das seitas (facções) judaicas milenaristas. Tal como tais apresentava a
esperança na figura de um messias e um juízo escatológico cataclísmico e fenômenos
cósmicos extravagantes. No judaísmo, essa concepção messiânica e apocalíptica começara a
ganhar forças no período do cativeiro judaico na Babilônia nos VI a.C.. Na mensagem
profética desse tempo há uma mudança substancial de conteúdo. Enquanto os profetas
anteriores pregavam a mudança de atitude dos israelitas, estes anunciavam uma nova era que
se inauguraria com eventos prodigiosos do Deus de Israel e substituiria a anterior. Essa nova
era seria perfeita e feliz para os judeus e traria a condenação para as nações inimigas. Esse
novo mundo seria regido por rei designado por Deus que o governaria em seu nome. Esse rei
era denominado de o Messias, isto é, o ungido. É possível observar essa esperança em uma
obra redigida no século I a.C., os Salmos de Salomão. No capítulo 17, há uma prece para que
o messias, filho de Davi, venha logo e esmage “os dominadores injustos e purifique Jerusalém
da presença dos pagãos”. Deus governará então seu povo com equidade, pois, “Ele é um rei
justo (...) e sob seu reinado não haverá injustiça, porque todos serão santos e seu rei será o
messias”.
Jesus era judeu e como tal, vivia sobre a influência de seu tempo e de seu mundo. Seus
seguidores encontraram motivos para identificá-lo como o messias esperado. No texto dos
evangelhos há referencias a essa identificação por meio de passagens veterotestamentárias de
profetas que foram interpretadas como referentes a ele. Ainda nos evangelhos é possível ver
os discursos escatológicos e apocalípticos que teriam sido pronunciados por Jesus e que
faziam parte da esperança judaica.
O cristianismo nasce tendo o Antigo Testamento como escritura. Há inúmeras citações
dele por todo o Novo Testamento. O cristianismo nasce como religião do livro e aos poucos
vai produzindo uma gama de literatura da qual uma pequena parte se tornará sua Escritura, o
Novo Testamento.
No primeiro período formativo da literatura cristã antiga, encontramos, sobretudo, a
tradição oral. Inicialmente, os seguidores de Jesus utilizavam-se da memória para narrar os
atos de seu mestre tal como também comunicar seus ensinamentos. Nesse primeiro momento,
a mensagem cristã era baseada na paixão, morte e ressurreição de Cristo, como também em
suas aparições como ressurreto.
No final do primeiro século e início de segundo, surge a necessidade de se refletir
sobre outros temas que não eram tão importantes naquele primeiro momento de pregação
evangelística. Nasce então uma gama de textos que procuram desenvolver as ideias religiosas
cristãs não contempladas por este primeiro momento.
Segundo Moraldi (2008, p. 25),
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“Todas as outras obras (Isto é, as que não fazem parte do cânon) escritas e
difundidas por hereges e cismáticos não são aceitas pela igreja católica,
apostólica, romana. Consideramos oportuno mencionar algumas como nos
veem a mente, as quais os católicos devem evitar:” (apud. MτRALDI, 200κ,
p. 21).
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ANÁLISE DA OBRA
O nome Proto-evangelho, que quer dizer, primeiro evangelho, foi atribuído a esse
escrito pelo humanista francês Guillaume Postel apenas no século XIV (KLAUCK, 2007,
pág, 86). Postel, em viagem a Jerusalém, descobriu que um texto era utilizado na liturgia e
lido nas igrejas de lá. Fez uma versão latina, a qual foi impressa em Bale em 1552 e reparada
em Estrasburgo em 1570. A princípio, a publicação da obra trouxe consigo controvérsias. Em
uma delas, Postel foi acusado de ser o seu autor tendo a composto com o intuito de escarnecer
a religião cristã (BRUNET, 1848, pág.112). Em 1564, é publicado pela primeira vez o texto
grego, sem a preocupação de se saber de onde o manuscrito viera, contudo, notou-se grande
divergência entre o texto grego e a tradução latina publicada por Postel. O nome dado por
Postel, segundo Brunet (1848, pag.113), parece ter sido forjado, pois ele não se encontra em
nenhum manuscrito grego conhecidos.
No testemunho mais antigo do texto, o Papiro Bodner V, datado entre o século III e
início do século IV d.C, o título é “σascimento de Maria: Revelação de Tiago”. τs
manuscritos gregos posteriores trazem algumas diferenças como as palavras “História” ou
“Relato” fazendo hora menção ao nome de Tiago, hora não (CULLMANN, 2003, pág.423).
No capítulo XXV, o autor do protoevangelho se identifica como Tiago. Contudo é
obra de um autor anônimo que se vale de um pseudomino para conseguir autoridade. É uma
forma comum de se escrever na literatura cristã da época. O desconhecimento de algumas
instituições judaicas e da geografia da Palestina afasta a possibilidade de ser originário da
região. Contudo, o autor possui um grande conhecimento do Antigo Testamento e conhece
também a forma literária judaica do midrash. Com base nisso, pensamos ser um autor cristão,
nascido e educado em um ambiente judaico, ou judaizante, mas que não habitava nem
conhecia diretamente a Palestina. Quanto à origem, discute-se a possibilidade da Síria ou
Egito. Quanto à língua, parece ser mesmo o grego a original, mas não se descarta a
possibilidade de uma língua semítica.
O testemunho textual mais antigo que temos hoje é o do papiro Bodner V, que data do
III século e apresenta o conteúdo do texto, salvo as variações e abreviações, muito similar às
evidencias posteriores.
Klauck (200ι, pg. κ6) afirma que “o Proto-evangelho surgiu entre 150 e 200 d.C”. Isso
se deve ao fato de que desde Orígenes (os irmãos do Senhor podem ser filhos do primeiro
casamento de José, apoiando-se no Evangelho de Pedro e no livro de Tiago) e Clemente de
Alexandria (a virgindade de Maria foi verificada pelas parteiras) esse documento é conhecido
e Justino (Jesus nasceu em uma gruta) mostra algum contato com suas ideias (CULLMANN,
2003, pág.423).
O nosso texto conta com 25 capítulos que podem ser divididos em três partes e um
pequeno epílogo.
A primeira parte vai do Cap I ao XVI e narra a história do nascimento de Maria até o
momento do nascimento de Jesus. Os pais de Maria, Joaquim e Ana, eram pessoas ricas e
piedosas, entretanto sofriam por não terem filhos. Em um determinado dia de se oferecer
sacrifício um homem chamado Rubem ou Rubel – dependendo da versão do manuscrito –
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humilha Joaquim por causa disso. Este, inconformado, após verificar que todos os homens
justos de Israel possuíam prole, dirige-se para o deserto. Ana, sua mulher, se lamenta pelos
acontecimentos a Deus. Este a ouve e envia-lhe um anjo anunciando que ela seria mãe,
Joaquim também é avisado por um anjo desse novo fato. Cumprido os meses de gestação,
Ana dá a luz a uma menina e põe-lhe o nome de Maria. Quando Maria completa três anos,
para cumprir a promessa que sua mãe fizera, é levada ao templo para servir a Deus. Ela mora
lá até o aparecimento de uma preocupação: a menarca. A menstruação era vista como
impureza para os judeus e Maria não poderia mais permanecer no templo. Os sacerdotes
resolvem então passar a tutela de Maria para um dos viúvos do povo. A sorte recai sobre José.
Ele acolhe a menina, levando-a para casa. Cabe resaltar que o texto atribui filhos a José de seu
primeiro casamento e que esses são os considerados irmãos de Jesus. Ao chegar, José deixa a
Maria e vai cuidar dos afazeres de sua profissão.
Um dia, ao buscar água um anjo lhe aparece e anuncia que ela foi escolhida por Deus
para ser a mãe do salvador. Quando chega ao sexto mês de gestação, José volta de seus
trabalhos e encontra Maria grávida. Ele questiona, ela alega inocência. Pretendendo
abandoná-la, um anjo lhe aparece e explica o ocorrido. Passado algum tempo, o escriba Anás
visita José, vê Maria grávida. Ao voltar da casa de José, leva o caso ao sumo sacerdote. Maria
e José são convocados a passar pela prova das águas amargas e fica então provada a inocência
de ambos.
A segunda parte vai do capitulo XII a XX. Narra o nascimento de Jesus e as
circunstancias desse nascimento. Quando se aproxima o dia do nascimento do menino, vem o
edito de Augusto ordenando o censo dos habitantes de Belém. José e Maria partem para se
recensear e no meio do caminho Maria começa a sentir que é chegado o momento do parto. O
lugar está deserto, mas José encontra uma caverna onde Maria poderia ficar enquanto ele
procuraria uma parteira. Ao voltar com a parteira o menino já havia nascido. A parteira ao ver
um sinal milagroso acredita que ali nascera o salvador. Entretanto, Salomé, outra mulher que
a parteira contara o milagre não creu e pede provas. Após um exame ginecológico, Salomé
comprova a virgindade de Maria, mas por causa da incredulidade foi castigada, tendo a mão
queimada. Mas, ao tomar o menino nos braços, a mão lhe é restituída.
A terceira parte vai do XXI ao XIV. Essa parte inicia-se com os magos do oriente,
seguido do infanticídio e o assassinato de Zacarias, pai de João Batista, por ordem de
Herodes. Tanto Maria como Isabel ocultam seus filhos para que não morram. Ao se procurar
por João Batista, encontra apenas Zacarias que é sacerdote e está no templo. Este é morto e
esta parte do livro se encerra com a escolha de Simeão para o lugar de Zacarias no sacerdócio.
O capitulo XV é um epílogo em que o autor se apresenta como Tiago e explica as
circunstâncias em que compôs a obra.
Como interpretar todas essas informações? O que podemos inferir de tudo isso.
Como vimos, a obra é produto do sec. II e do segundo momento da produção da
literatura cristã antiga, isto é, do desenvolvimento das ideias religiosas estabelecidas do
primeiro momento.
O que historicamente está acontecendo no segundo século para o cristianismo?
Primeiramente podemos destacar que o início de um movimento antijudaico dentro do próprio
cristianismo, que estende também para os judeu-cristãos. Essa forma de compreender o
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Cristianismo pode ser deduzida do pensamento paulino. Entretanto, ganhou motivações
maiores que as propostas por esse autor.
Inácio de Antioquia, em sua carta aos magnésios, diz:
κ. “não vos deixeis enganar por doutrinas heterodoxas nem por velhas
fábulas que são inúteis. Com efeito, se ainda vivemos segundo a lei,
admitimos que não recebemos a graça (...). 10. Contudo, tornamo-nos seus
discípulos [discípulos de Cristo] abraçamos a vida segundo o cristianismo.
Quem é chamado com nome diferente desse, não é de Deus. Jogai fora o
mau fermento, velho e ácido, e transformai-vos no fermento novo, que é
Jesus Cristo (...). É absurdo falar de Jesus Cristo e, ao mesmo tempo,
judaizar. Não foi o cristianismo que acreditou no judaísmo, e sim o judaísmo
no cristianismo (...). (PADRES APOSTÓLICOS, 2008, pag. 93)
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judaísmo palestino. A compreensão do mundo era baseada na visão judaica do mundo que
estimava um Deus de nome impronunciado e que criara todas as coisas.
Em resposta ao pensamento antissemita dessa forma cristã de pensar, e do gnosticismo
em desenvolvimento – ambos desvalorizavam os ritos judaicos, o Protoevangelho aponta para
a piedade judaica dos pais de Maria. Joaquim apresentava suas ofertas para Deus nos períodos
determinados e era tipo por justo. Quando Maria e José são acusados de pecado, por estar ela
grávida, o modo de validação da inocência deles é provado por meio de um ritual judaico
instituído no livro de levítico. O ritual mostra que esse Deus utiliza-se desse recurso
ritualístico para inocentá-los.
Um dos mitos principais atestados no Protoevangelho é sem dúvida o da
partenogênese. É outra resposta ao gnosticismo. Miraculosamente, Maria engravida do
Espírito Santo. Num gnosticismo posterior, como no Evangelho de Felipe, por exemplo, verso
16, isso é algo totalmente impossível. Lá está disposto: “Alguns dizem que Maria concebeu
por obra do Espírito Santo. Mas eles estão enganados. Não sabem o que dizem. Quando uma
mulher alguma vez concebeu por obra de outra mulher?”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 14ª ed. São Paulo: Hucitec,
2010.
BRUNET, Gustave. Les Évangiles Apocryphes. Paris: Frank, Libraire-éditeur, 1848
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CULLMANN, O. Infancy Gospels. In: SCHNEEMELCHER, Wilhelm. New Testament
Apocrypha. Vol I. 2 ed. Louisville: Westminster John Knox Press, 2003. p. 414-469
KLAUCK, Hanns-Josef. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Loyola, 2007
MORALDI, Luigi. Evangelhos apócrifos. 6ª Ed. São Paulo: Paulus, 2008
PADRES APOSTÓLICOS. Coleção Patrística. Vol 1. 4 ed. São Paulo: Paulus, 2008
PÉREZ. Gonzalo A. e GRANADOS, Paloma R. (org.). Apócrifos cristianos: El
Protoeangelio de Santiago. Vol. 3. Madrid: Editorial Ciudad Nueva, 1997
SOUZA, Solange Jobim e. Mikhail Bakhtin e Walter Benjamin: Polifonia, alegoria e o
conceito de verdade no discurso da ciência contemporânea. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin,
dialogismo e construção de sentido. 2ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005.
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ECOS DA FÁBULA E DO BESTIÁRIO MEDIEVAL EM “CONVERSA DE BOIS”,
DE GUIMARÃES ROSA
1
Mestre em Literatura Brasileira, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba e membro do Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais da UFPB
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narrativa de Rosa aqui analisada em consonância com a temática e o conteúdo dos dois
antigos gêneros literários ora evocados.
Ao se referir ao conto “Conversa de Bois”, Álvaro Lins ressalta a “perfeição” daquela
narrativa rosiana enquanto “concepção ficcionista e como arte literária” e chama a atenção
para o fato de que nela os animais não mais são apresentados enquanto meros “elementos
acessórios ou completivos” do enredo, “mas como verdadeiros personagens, aos quais o seu
criador amplamente concedeu ritmo vital e direção autônoma” (LINS, 1963, p.262). São
bastante comentados por críticos, amigos (em cartas) e pessoas do convívio do escritor
(através de seus depoimentos) o fascínio e o carinho de Guimarães Rosa pelos animais, que
com eles se identificava desde a mais tenra infância ao ser precocemente iniciado na literatura
como um escritor de estórias fantasiosas e de suspense, época em que já sentia uma forte
“compulsão para a fábula” (GIRτσ, 2011, p.142). É considerável o repertório de contos ou
de narrativas rosianas em que os animais se fazem presentes como personagens destacados
que se confundem ou se comportam como se fossem gente. Pela incontestável relevância dos
bichos em sua fabulosa literatura, o crítico Alfredo Bosi passou a considerá-la – ao mesmo
tempo – “uma constelação de fantasia e realismo”.
O enredo
“Conversa de Bois” é a estória da viagem de um carro de bois, pelo sertão adentro, que
carrega – além de “umas rapadurinhas pretas”, segundo o narrador – o cadáver de seu
Januário, pai do menino Tiãozinho que segue guiando o agrupamento de bovinos juntamente
com o malvado carreiro Agenor Soronho. Os oito bois que compõem as quatro juntas do carro
são assim denominados: Buscapé, Namorado, Capitão, Brabagato, Dansador, Brilhante,
Realejo e Canindé. Ainda se destacam nesta trama, o enfoque da pobreza – traduzida pela
dependência de Tiãozinho e da sua mãe em relação a Agenor Soronho – e a existência de
estórias dentro da estória, com ênfase em expressões e adágios da sabedoria popular através,
principalmente, da fala do boi Rodapião (verdadeiro catalisador da rebelião dos oprimidos
pelo mal encarado carreiro). Trata-se de uma narrativa em terceira pessoa, cujo espaço é –
como já dito – o cenário rural, com um narrador presente às situações narradas, demonstrando
erudição (chega a fazer citações em latim – conferir CB, p.283) e revelando enorme
conhecimento do ambiente circundante quando se refere a nomes de lugares, de plantas e de
animais que constituem o cenário da trama. Com muita frequência, o narrador utiliza o
discurso indireto livre para se “aliar” ou mesmo se imiscuir ao pensamento do menino
Tiãozinho, inconformado com a situação de opressão vivida por este personagem e os
próprios bois. O tempo da narrativa é marcado pela demora dos acontecimentos. Neste
tocante, podemos destacar o longo percurso – motivo central do conto – em que os bois
conversam entre si a respeito da opressão exercida pelo “homenzão ruivo”, Agenor Soronho,
em relação a eles próprios e ao pobre Tiãozinho.
No curso da estória, o desdobramento desta situação nos levará a compreender o que
no entender de Alfredo Bosi determina a grandeza dos contos de Guimarães Rosa enquanto
ficção reveladora da “dimensão metafísica e atemporal, das realidades vitais”. Tal
dimensionamento se traduz segundo Bosi na extraordinária capacidade do escritor mineiro de
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passar “do fato bruto ao fenômeno vivido, da descrição à epifania, da narrativa plana à
constelação de imagens e símbolos”. Sobretudo por considerar a “mente sertaneja, remexendo
nas relações mágicas e demoníacas que habitam a religião rústica brasileira” (BτSI, 19κ1,
pp.10-11). O autor de História Concisa da Literatura Brasileira nos adverte que – ao
transplantar, de forma letrada, “uma certa visão primitiva ou arcaica das coisas à qual [...]
procurou ser poeticamente fiel” – Guimarães Rosa é extremamente original na “conjuração
rara” do “diálogo de uma solerte cultura linguística e literária com as mais caudalosas fontes
da psique e da mitologia sertaneja”. De acordo com Alfredo Bosi, as coisas, os animais e as
pessoas em seu universo ficcional são tomados por “uma dimensão mais ampla, uma aura que
não é a do dia a dia normal e socializado”, no qual “forças cósmicas, eróticas e sagradas [...]
agem no coração de cada vivente e o empurram para realizar o seu destino”. Ainda segundo
Bosi, o escritor de Cordisburgo busca “na semântica do insólito o seu modo de responder a
situações singulares extremas que fazem contraponto à outra literatura, a de situações típicas e
médias da civilização moderna” (BτSI, 19κ1, pp.11-13). Esta singularidade – também de
certo modo extensiva às fábulas clássicas e à tradição literária dos bestiários medievais – se
revela no conto em apreço: a situação de opressão vivida por Tiãozinho e pelos bois é
suprimida mediante a atitude de solidariedade dos animais para com o garoto. Dessa forma,
constata-se uma identificação entre as partes homem/animal confirmada pela expressão
“bezerro-de-homem” atribuída ao menino por seus companheiros bovinos (conferir CB,
p.314). Em nossa análise, optamos por considerar a caracterização da moral, da solidariedade
e da justiça populares tomando por referência a constatação da existência de uma espécie de
“código de honra” da cultura literariamente representada em “Conversa de Bois”.
Vingança tramada
É necessário atentar para o fato de que, após perder o pai que há muito tempo se
encontrava doente e prostrado, o menino passa a depender de Agenor Soronho para o sustento
da família que – inicialmente – mostra-se prestimoso apenas pelo interesse de tornar-se
amante da mãe de Tiãozinho. Ao longo da viagem, o perverso carreiro atormenta o pobre
menino da mesma forma como maltrata os bois. Percebendo a tristeza e o ódio de Tiãozinho,
os animais passam a urdir planos de vingança após “refletirem” sobre a opressão também
promovida pelo terrível Soronho em relação aos bovinos. Desse modo, reconhecem para si a
possibilidade de derrotar a superioridade do homem. Em solidariedade ao menino, os animais
– de forma brusca e repentina – lançam-se para a frente, fazendo com que Soronho (que nessa
hora estava cochilando em cima do carro) seja esmagado ao cair sob uma das rodas,
“desencarnando” conforme nos assegura o narrador. Como se vê, a vingança ou o “acerto de
contas” se dá por via indireta através de uma ação que envolve a solidariedade dos bois para
com Tiãozinho, que assumem sua vingança contra Agenor Soronho.
Para os casos de reparação de determinado dano moral observado na trama de
“Conversa de Bois”, torna-se pertinente a seguinte afirmação de τswaldo Elias Xidieh: “[...]
no campo da moral rústica os valores referem-se a situações práticas”, esboçando-nos um
“quadro de referência em que, de um lado, está aquilo que a sociedade rústica preconiza e, de
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outro, aquilo que não deve ser feito nem pelo grupo e nem pelas pessoas” (XIDIEH, 1967,
p.κ4). τ sociólogo paulistano enfatiza que, em se tratando desse “quadro de referência”,
Está previsto pela moral rústica “um rol de prêmios e castigos, recompensas e
condenações”, conforme a atuação de cada indivíduo. σesse sentido, convém destacar
algumas situações relativas ao conto “Conversa de Bois”. σesta trama, o corpo de valores da
moral rústica esboçado por Oswaldo Elias Xidieh também concorre para a justificativa das
ações de determinados personagens. Aqui o adultério comparece através do relacionamento
amoroso entre o carreiro Agenor Soronho e a mãe de Tiãozinho, cujo pai morto segue viagem
no carro de bois em cima de uma carga de rapaduras. É necessário frisar que seu Januário há
muito tempo “andava penando” de “doença antiga lá dele” (CB, p.2κ9) – nas palavras de
Soronho – “cego e entrevado”, enquanto o malicioso carreiro mantinha um caso amoroso com
sua esposa. Este fato provoca em Tiãozinho rancor e ódio, de acordo com o que afirma o
narrador:
Ah, da mãe não gostava... Era nova e bonita, mas antes não fosse... Mãe da
gente devia de ser velha, rezando e sendo séria, de outro jeito... Que não
tivesse mexida com outro homem nenhum... Como é que ele ia poder gostar
direito da mãe?... Ela deixava até que o Agenor carreiro mandasse nele,
xingasse, tomasse conta, batesse... Mandava que ele obedecesse ao Soronho,
porque o homem era quem estava sustentando a família toda. Mas o carreiro
não gostava de Tiãozinho... E era melhor, mesmo, porque ele também tinha
ojeriza daquele capeta... Ruço. Então... Malvado... O demônio devia de ser
assim, sem tirar e nem pôr... vivia dentro da cafua... só não embocava era no
quartinho escuro, onde o pai ficava gemendo: mas gemia enquanto o
Soronho estava lá, sempre perto da mãe, cochichando os dois, fazendo
dengos... Que ódio... (CB, pp.294-295, itálico nosso).
Neste excerto, em que se torna perceptível através do discurso indireto livre, a voz do
narrador se incorpora à fala e ao sentimento de Tiãozinho considerando a atitude reprovável
de Agenor Soronho. No trecho destacado, nos é possível constatar a quebra da expectativa do
homem rústico no que se refere ao comportamento do semelhante: ao manter um
relacionamento adúltero com a mãe do menino, o carreiro estabelece uma quebra dos
“códigos de honra” que regem a cultura popular. Por isso, estará sujeito a “um rol de castigos”
e de “condenações” – no dizer de Oswaldo Elias Xidieh. O desfecho da narrativa irá apontar
nesse sentido, como poderemos ver mais adiante.
Em “Conversa de Bois” temos um narrador culto, conhecedor do latim, que ao estilo
de um contador de histórias visa prender a atenção do ouvinte ou leitor. Desse modo, prolonga
o curso da narrativa nela inserindo elementos que – à primeira vista – não teriam
relacionamento algum com a trama. A título de ilustração deste procedimento de narrar, serve
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o exemplo lembrado pelo próprio narrador – na forma de flashback – do caso de Didico da
Extrema, “que caiu morto, na frente de seus bois” (CB, p.29ι). Sendo que a voz que narra dá
a palavra a Manuel Timborna, que ao ser solicitado afirma: “Eu até posso contar um caso
acontecido que se deu” (CB, p.2κ3) – estabelecendo um pacto com o narrador, após a
exigência de Timborna: “– Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e
acrescentado ponto e pouco...” (CB, p.2κ3). Como resposta, Manuel Timborna obtém do
narrador a confirmação do contrato: “– Feito. Eu acho que assim até fica mais merecido, que
não seja” (CB, p.2κ3).
Além da existência de sequências em flashback – como a de Didico da Extrema e do
momento em que Tiãozinho relembra, juntamente com o narrador, a “véspera” da morte do
pai (CB, pp.298-299) – as estórias dentro da história (“narrativas de encaixe”, na visão teórica
de Tzvetan Todorov) também comparecem, principalmente através das falas do boi Rodapião.
Aquele que nunca para “quieto” e conta, reconta, remói, rumina estórias, num movimento
circular, cíclico, à maneira de um pião rodando – como, aliás, seu próprio nome evoca.
Reforçando este aspecto do processo narrativo, temos a frequência repetitiva das reflexões e
estórias dos demais bois, em forma de rememorações, funcionando – conforme já mencionado
– como elemento retardador do clímax da narrativa sugerindo, indubitavelmente, o ato de
ruminar, uma peculiaridade atinente aos bovinos, elemento essencial na fatura do conto. Neste
tocante, destaque-se a seguinte passagem da trama:
Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e
chão solto... Bateu aqui embaixo e berrou triste, porque não pôde se levantar
mais do lugar das suas costas...
– E foi?
Ajudar eu não podia e nem ninguém... Chamei os outros, que não vinham e
não estavam de se ver... Aí olhei p’ra o céu, e enxerguei coisa voando... E
então espiei p’ra baixo e vi que já tinham chegado e estavam chegando
desses urubus, uns e muitos... E fui-m’embora, por não gostar de tantos
bichos pretos, que ficaram rodeando aquele boi Rodapião (CB, p.308 –
itálicos nossos).
De modo claro, se sobressai no trecho acima – como índice da rítmica nele envolvida
– a figura sintática do polissíndeto, através da repetição do conectivo e, conforme destacamos.
Tal figura sintática relaciona-se com a atribuição de “maior expressividade ao significado” da
mensagem, a ponto de a própria “lógica da frase” (em nosso caso, lógica do discurso
narrativo) poder ser “substituída pela maior expressividade que se dá ao sentido”
(PASCHOALIN e SPADOTO, 1989, pp.365-367). Aqui, a sugestão que nos ocorre é da
circularidade ou do movimento cíclico e contínuo – como é o ato de ruminar dos bovinos – do
discurso narrativo. A constante presença de reticências reforça este argumento. Por meio da
fala do boi Brilhante (excerto destacado) – “Contei minha história, agora vou cochilar...” (CB,
p.309) – nos vem, mais uma vez em flashback, a lembrança de um momento em que os bois
foram levados segundo o narrador “p’ra longe” na busca de um “bebedouro” (CB, pp.306-
307). Este episódio (uma estória dentro da história), prolongador por excelência do curso da
narração, antecede o encontro do carro de bois de Agenor Soronho com o “carro quebrado” da
“Estiva, com o João Bala carreando...” (CB, p.309) e que despencara do Morro-do-Sabão (o
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nome do lugar sugere o sentido escorregadiço provocado pelo saponáceo que poderia
concorrer para o despencar ou escorregar do carro da Estiva). Aqui, a “tomada de
consciência” dos bois pela vingança em relação ao malévolo Soronho toma forma mais
delineada. Acostumados aos maus tratos do carreiro, os bois presenciam o desespero de João
Bala contando o acidente, ao mesmo tempo em que Agenor Soronho “está olhando mesmo
de-propósito, todo de-luxo com os estragos do carro do outro” (CB, p.309). Bem dizendo seus
bois Camurça e Melindre, diz João Bala:
Abaixo de Deus, eu tiro o chapéu p’ra eles dois, porque foram que me
salvaram... [...] porque Melindre mais Camurça sojigavam o chão com os
cascos, mas não entregavam o corpo... Eu mesmo nunca vi bois p’ra terem
tanto poder desse jeito (CB, p.310).
Tiãozinho olhou, assim meio torto. “Teu pai já morreu, tu não pode pôr vida
nele outra vez...” Por que é que não foi seu Agenor carreiro quem a morte
veio buscar? Havia de ter sido tão bom... (CB, p.304).
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O senso de justiça tem, no mundo rústico, um embasamento facilmente
destacável pela observação e pela análise de situações de vida rústica em
relação aos meios geográfico e social, e que, na ausência de qualquer
tentativa ou possibilidade de complicação teórica, repousa na identidade de
origem de todos os seres – são todos filhos de Deus – e nas finalidades
práticas de cada uma das coisas e criaturas que formam e rodeiam o mundo
dos viventes (XIDIEH, 1967, p.87).
σo âmbito da cultura popular, tanto o mal como o bem se apresentam “como coisas
que podem ou não podem ser feitas, que são ou não são necessárias, que têm ou não
finalidade, cabimento ou fundamento” (XIDIEH, 196ι, p.κι). Quanto a esta questão, o
sociólogo paulistano conclui que
2 O termo é aqui usado no sentido a ele atribuído por Nádia Battella Gotlib: “técnica narrativa que consiste em
‘suspender’ a ação, adiando o desfecho e, assim, instigando a tensão [...] ou a curiosidade do leitor” (conferir
GOTLIB, 1991, p.95).
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com “reflexões” e “falas” dos bois, através – num primeiro momento – da fala do boi Capitão.
Embora longo, o excerto revela-se fundamental para justificar nosso ponto de vista:
A partir deste episódio, tem início a “tomada de consciência” dos bois no que se refere
à vingança cada vez mais próxima. A presença de reticências nas falas dos animais está,
reiteradamente, reforçando o sentido da continuidade de alocução dos bois no modo como o
próprio narrador se refere: “de focinho a focinho”. Identificando-se, até biologicamente, com
Tiãozinho – “bezerro-de-homem” que “baba” muita água pelos olhos – os animais “refletem”
de modo lógico, como gente que raciocina, acerca da possibilidade de Soronho morrer (“Se
cair” do “chifre-do-carro”) efetuando-se, assim, a vingança desejada por Tiãozinho e pelos
próprios bois devido ao tratamento a eles dispensado pelo malvado carreiro. Em estado de
alerta – “τs guardas do cabeçalho” estão atentos a tudo – a boiada, silenciosamente, espera
pelo momento grave da desforra. σo “remoer”/“tresmoer” (CB, p.2κ6)4 de informações
passadas de um animal para outro – “de focinho a focinho, é transmitida a visão da guia” –
“por via cruzada” é urdido o plano para se eliminar Agenor Soronho. Tendo o boi Dansador
avisado que só “às vezes” os “bois-de-carro” têm de “obedecer ao homem” (CB, p.314). τs
animais estão convencidos de que o “pensamento de bois é grande e quieto”, ao mesmo tempo
em que temem que Tiãozinho entenda a “conversa” deles. Filosoficamente, no ponto de vista
3 O comentário-tática do narrador, usado para aumentar o suspense na trama, compreende o seguinte trecho: “Aqui,
no tabuleiro, o caminho está ainda pior que ruim, como o facão alto e escorregoso no meio, separando as regueiras
feitas pelas enxurradas e pelas rodeiras de outros carros e carretões” (CB, p.313).
4 O verbo “remoer” é aqui utilizado nas acepções de: “repetir muitas vezes a mesma coisa” e de “encasquetar-se
(com ideias fixas, problemas, etc.)”. Conferir o verbete “remoer” em LUFT, 1988, p.480.
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dos animais – “no mato-escuro-de-todos-os-bois”, onde “o homem caminha por fora” – seu
mundo se caracteriza pela equidade; em cujo lugar “não há dentro e nem fora”, podendo os
bois superar a hegemonia do homem pela conscientização da igualdade entre todas as
criaturas:
Para, finalmente, a voz anônima e ambígua de outro boi afirmar de modo inexorável:
5Para uma maior compreensão dessa questão, é necessário considerar o trecho mais extenso da “conversa” dos bois:
onde fica claro o fato de que toda a boiada conversa sem primazia de falas deste ou daquele animal. O excerto
destacado (CB, pp.314-315), fala do boi Capitão, acaba sendo prolongado por outras falas dos bois Brabagato,
Dansador etc.
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cafua. Não deixo... Sou Tiãozinho... Se ele quiser embocar, mato outra vez...
Mil vezes... Se a minha mãe quiser chorar por causa dele, eu também não
deixo... Ralho com a minha mãe... Ela só pode chorar é pela morte do meu
pai... Tem de cuspir no seu Soronho morto... Tem de ajoelhar e rezar o terço
comigo, por alma do meu pai... Quem manda agora na nossa cafua sou eu...
Eu, Tiãozinho... Sou grande, sou dono de muitas terras, com muitos carros
de bois, com muitas juntas... Ninguém pode mais nem falar no nome do seu
Soronho... Não deixo... O mais forte de todos... Ninguém pode mandar em
mim... Tiãozão... Tiãozão... Oung... Hmong... Múh... (CB, p.315).
E todos falam.
– Se o carro desse um abalo maior...
– Se nós todos corrêssemos, ao mesmo tempo...
– O homem-do-pau-comprido rolaria para o chão.
– Ele está na beirada...
– Está cai-não-cai, na beiradinha...
– Se o bezerro, lá na frente, de repente gritasse, nós teríamos de correr, sem
pensar, de supetão...
– E o homem cairia...
– Daqui a pouco... Daqui a pouco...
– Cairia... Cairia.
– Agora. Agora.
– Mûung. Mûng.
– ... Rolaria para o chão (CB, pp.316-317).
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Esse “coro” de bois em afinação6, no qual não lhes falta a faculdade do raciocínio
lógico dito humano – uma das características do gênero da fábula – urde o plano de vingança
que já nos encaminha para o desfecho da trama. Soronho, em “sono sereno”7, após o
solavanco provocado pelos bois em “algazarra” – “se jogaram para diante, de uma vez” (CB,
p.317) – tem o pescoço colhido pela “roda esquerda” do carro, sem tempo para “xingo ou
praga”. τ narrador nos garante que “não se pôde saber ao certo se o carreiro despertou ou não,
antes de desencarnar” (CB, p.31ι).
Em função da sua religiosidade – que para o homem popular inspira sempre temor e
respeito em relação ao que é por ele considerado sagrado (podendo “premiar” ou “castigar”,
conforme nos ensina Oswaldo Elias Xidieh) – Tiãozinho ao ser despertado a tempo de ver o
que ocorrera com Agenor Soronho, segundo o narrador “arrepelando-se todo” e “chorando
como um doido”, lamenta:
– Meu Deus. Como é que foi isto?... Minha Nossa Senhora... [...] Eu tive a
culpa... Mas eu estava meio cochilando... Sonhei... Sonhei... E gritei... Nem
sei o que foi que me assustou... [...] Minha Virgem Santíssima que me
perdoe... Meus boizinhos bonitos que me perdoem... Coitado do seu Agenor.
Quem sabe se ele ainda pode estar vivo?... – Fazer promessa. Todos os
santos. Rezar depressa (CB, pp.317-318).
REFERÊNCIAS
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1981.
GIRτσ, Luís Antônio. “Antes de Rosa Ser Rosa”. In: Época. Rio de Janeiro: Editora Globo,
Edição 693 – 29 de Agosto de 2011, pp.141-145. (“Mente Aberta”).
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. 6ª Edição. São Paulo: Ática, 1991. (Série
Princípios, 2).
6
Esta expressão nos foi motivada pela existência, na clássica tragédia grega (geralmente no início ou no final do
drama), da figura do Corifeu ou do Coro. Compreendido como um porta-voz consciente das intenções morais de
cada história. σesse sentido, não deixa de ser sintomático o fato de em “Conversa de Bois” esse “coro” dos bois
(unissonamente) ser também movido por intenções moralizantes – no que se refere à reparação, em forma de
advertência – na prática da justiça nos moldes populares.
7
Atentar para a maestria do autor relativa à semântica do nome do personagem que, por si só, fornece a sugestão
de seu comportamento sopitante nesse momento decisivo do conto.
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II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA
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Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
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SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
INÊS DE CASTRO: A FACE FEMININA DO AMOR MEDIEVAL EM PORTUGAL
Aldinida Medeiros
(UEPB)
aldinidamedeiros@gmail.com
Inês de Castro morre para a vida e nasce para a História em 1355. Desde então, a
língua e a literatura eternizaram-na. Ela que antes fora imortalizada pelas ações de Pedro,
dentre as quais mandou esculpir duas majestosas arcas tumulares, expostas até hoje no
Mosteiro de Santa Maria, em Alcobaça, consideradas ícones da arquitetura portuguesa. Indo
além, não é exagero afirmar que Inês de Castro bem poderia ser personagem de uma peça
shakespeariana, pois sua morte está registrada em trovas, crônicas, romances, poemas,
rimances e óperas, como uma triste e real tragédia de amor. Por tudo isso, afirmamos que Inês
de Castro é a face que melhor representa o amor medieval na cultura e na literatura
portuguesas.
É a partir das encenações feitas pelos grupos de teatro popular nas aldeias portuguesas,
desde um certo tempo após o episódio inesiano, impossível de precisar, que surge uma frase,
hoje de uso corrente não só dos brasileiros – embora seja um ditado bem popular no Brasil –
mas de muitos falantes da língua portuguesa: “Agora é tarde, Inês é morta”1. Apenas nesta
frase ela é morta, pois a vívida memória inesiana mostra a força do amor que vai além da
morte.
Agnes, Inês, Heloísa, Isolda. No Ocidente, ficção e realidade têm em comum estas
protagonistas de amores impossíveis; amores que vão além da vida: o mito do amor-paixão.
No ensaio O amor e o Ocidente, Dennis de Rougemont (1988) aponta Tristão e Isolda como a
obra que origina o mito do amor na Europa ocidental. Portanto, foi no cenário entre o amor
profano e o amor místico, mencionado por Georges Duby em Idade Média, Idade dos homens
(2001) que a Europa medieval conheceu o amor de Tristão e Isolda. Vale salientar que, de
acordo com o historiador, a lenda, no início, dizia respeito apenas à figura de Tristão.
Assim como muitas outras lendas que circulavam pelas cortes europeias, notadamente
na Normandia, França, nos ducados de Anjou e Aquitânia, como parte dos acontecimentos
sociais e das festas oferecidas por Henrique Plantageneta, bardos do País de Gales e da
Cornualha recitavam lendas que atiçavam a imaginação dos cavaleiros ali presentes. Em
Heloísa, Isolda e outras damas no século XII (1995), Duby explica que
1
Segundo texto mímeo do Historiador Jorge Pereira de Sampaio, a frase teria surgido nas encenações populares,
quando uma personagem diz a D. Pedro, numa peça, que agora a sua Inês estava vingada e a personagem D.
Pedro responde: mas agora é tarde, Inês é morta. A frase tornou-se um dito popular de uso corrente no Brasil.
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dela. [...] Mostrar os efeitos nefastos de um desejo nascido dessa maneira. E
portanto ingovernável, destinava-se a alimentar, na sociedade cortês,
salutares reflexões sobre a ordem e a desordem, e em especial sobre essa
perturbação cuja causa são as turbulências da sexualidade (DUBY, 1995, p.
86-87).
Mais que explicar o contexto no qual surgiram as lendas como a de Tristão e Isolda,
interessa-nos também lembrar a semelhança de tudo isso com a realidade medieval
portuguesa do período referente a Pedro e Inês. Assim como Tristão quebra a “ordem” regular
de obediência ao seu soberano, traindo-o, Pedro quebra também a ordem de obediência ao pai,
vivendo uma relação extraconjugal com Inês, mesmo quando esta segue exilada para
Albuquerque e ele vai constantemente visitá-la. É a força do amor paixão, o amor que é cortês
para a literatura e que se torna também o amor que vai além da morte.
Rougemont (1988) afirma que, a paixão, quando ultrapassa o instinto, faz surgir a
linguagem e assim ambas podem ser vistas como formas – ou criações – literárias; uma
espécie de condição retórica para sacralizar esses sentimentos que, se existissem sem deles
haver registros, não seriam reconhecidos. Subjaz ao mito, instaurado pela lenda celta, o
tantrismo vindo do Oriente, ainda que se encontre aí também uma forte carga de maniqueísmo
cristão, que impregna o lado oriental do globo. É por isso a declaração de Rougemont,
segundo o qual
[...] o amor cortês nasceu no século XII, em plena revolução da psique ocidental.
Surgiu do mesmo movimento que fez remontar à meia-luz da consciência e da
expressão lírica da alma o Princípio feminino da sacti, o culto da mulher, da mãe, da
Virgem. Participa dessa epifania da Anima que representa, a meu ver, no homem
ocidental, o regresso de um Oriente simbólico (ROUGEMONT, 1988, p. 92).
Desse modo, este teórico assegura que, quanto mais apaixonado for o homem, maiores
possibilidades existem para que se reinventem as figuras da retórica amorosa, como em
Tristão e Isolda; amor e morte, amor mortal: motivo não só de lenda, como também de
poesia. E se isso não é o motivo original de toda a poesia, é, ao menos, o que há de mais
universal em termos de subjetividade na Literatura, no Ocidente.
Existem várias versões da lenda celta, entretanto, independente de qual das versões –
Beroul, Thomas, Bérdier ou Gottfried – seja tomada para análise, em Tristão e Isolda, no
primeiro momento da narrativa, o amor nasce sob o signo da proibição e, portanto, é
escondido, impetuoso, um amor selvagem. Depois, extingue-se o poder do filtro mágico e o
sentimento passa a ser decaído e amargurado, porque consciente do adultério. Todavia, ainda
assim, sobrepõe-se o desejo dos amantes, impelindo-os aos encontros amorosos.
Há, desse modo, uma evolução de um sentimento de culpa inicial para um sentimento
de desejo incontestável e impossível de deter, que cada vez mais legitima os direitos da
paixão. Esta, vista como uma desordem e, efetivamente, corrosiva. É o sentimento que leva à
desgraça, ao degredo ou, inevitavelmente à morte. Os direitos desta paixão avassaladora são
admissíveis, porém são postos em causa, sobretudo pelo matrimônio – nesse caso o de Isolda
e Marcos – por ser o casamento uma ordem social, um mecanismo de regulação e não só,
como aponta Duby: “[...] controle, codificação: a instituição matrimonial se encontra, por sua
própria posição e pelo papel que ela assume, encerrada numa firma estrutura de ritos e
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interditos.” (DUBY, 2001, p. 11). Também com Pedro e Inês, o casamento deste com
Constança Manuel, acordo diplomático entre os pais, foi um empecilho para o seu amor por
Inês.
No século XII, a regulação dos casamentos pela Igreja chega a ser arbitrária,
considerando a união para satisfação do dever conjugal era considerada pecaminosa, pois,
visava apenas o prazer carnal, o desejo. Por conseguinte, também a figura feminina medieval
será caracterizada como o ser que tenta o homem a realizar o desejo carnal. A mulher é, então,
personificada em Eva, pecadora, tentadora, mulher-demônio e culpada pelo pecado original.
A partir desse arquétipo, Eva concentra em si todos os vícios que trazem símbolos tidos como
femininos: a luxúria, a gula, a sensualidade e a sexualidade. O outro lado da dicotomia, a
redenção, o arquétipo da mulher-anjo e caminho para a salvação é a figura de Maria, a
redentora, Mãe do Salvador que se contrapõe à Eva por não ter máculas ou pecados.
Esta concepção dualística da mulher, construída através dos séculos, tornou-se deveras
acentuada no período de ascensão da Igreja Católica e por ela foi assegurada, permitindo,
assim, a permanência dos homens no poder e legitimando uma submissão feminina que
sufocava qualquer tentativa de subversão da ordem estabelecida pelos homens. A doutrina
cristã, no centro das regulações religiosas, estendia-se também às regulações sociais e, por
isso, pregava como ideal a união numa intenção apenas procriadora, para multiplicar os
“filhos de Deus”. O prazer era considerado pecado até mesmo nas relações que visavam à
procriação, pois fora do casamento, a paixão amorosa, vista como doença, podia levar até a
morte. Isto vem de uma tradição latina e ocidental, com origem na tradição judaico-cristã,
porém, não quer dizer que outras culturas vejam esse tema dessa forma, muito embora seja
mais comum a percepção por esse ângulo, que se cristalizou através de outras doutrinas
religiosas.
De qualquer modo, a Igreja – Católica, principalmente – fechava os olhos para
relações extraconjugais e paixões vividas fora do casamento, se isso lhe fosse conveniente.
George Duby também nos apresenta este cenário em Heloísa Isolda e outras damas do século
XII (2001), no capítulo sobre Leonor de Aquitânia e seu casamento desfeito com o rei francês.
A própria Igreja tratou de encontrar as desculpas “plausíveis” para que Leonor pudesse
contrair novas núpcias, livrando-se do marido anterior pela desculpa de parentesco.
Observando todos estes aspectos, podemos disso tudo concluir, de acordo com o
ensaio de Duby, que a lenda de Tristão e Isolda faz do amor cortês um amor-paixão,
tornando-se primeira manifestação do amor no Ocidente como hoje conhecemos, mas ressalta
que o troubadorismo provençal – que, consequentemente, expande-se à vizinha Península
Ibérica – acaba por trazer muito desse mito, o da impossibilidade de concretizar o amor.
Embora muitos estudiosos da lenda celta tomem a figura de Tristão como cavaleiro,
atribuindo seu amor por Isolda como um modelo de amor típico dos romances de cavalaria,
em diversos aspectos encontramos características do trágico no amor dos jovens irlandeses.
Acreditamos que o aspecto trágico não exclui o cavaleiresco da lenda. Tristão é um
cavaleiro condicionado pelo desregramento do amor, e sua conduta, se comparada ao código
de honra do cavaleiro medieval fica caracterizada, na cultura européia, como uma forma de
“loucura amorosa”, de modo que,
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A visão de quase toda a literatura da baixa Idade Média é, portanto, o Amor:
o amor profano, responsável pela imensa produção lírica e pela novela
palaciana, o amor sagrado, fermento das representações litúrgicas de toda
esta época, em que a devoção a Cristo e o conhecimento de suas verdades
constituem o núcleo da produção dramática medieval (SPINA, 1997, p. 39).
E não só da baixa Idade Média, vale salientar. Se Seomara da Veiga Ferreira retoma
esse mito no seu romance sobre Pedro e Inês, e João Aguiar o faz em outro romance, A
catedral verde – no qual também alude às questões da identidade portuguesa como em Inês de
Portugal – busca também essa visão medieval do amor, retomando o mito Tristão e Isolda.
Com base nesses exemplos, as imagens de Tristão e Pedro, Inês e Isolda continuam a permear
a produção romanesca contemporânea, conforme podemos apreender nas palavras do próprio
João Aguiar:
Conforme se pode observar nas palavras de João Aguiar, o mundo vive um tempo de
amor descartável, o que está relacionado a uma certa perda da visão de amor como um
sentimento verdadeiro e duradouro, que durante muito tempo foi alimentado por histórias
reais como a de Abelardo e Heloísa. Destarte, é compreensível que essas mudanças na
sociedade e no modo do homem ver e sentir a vida, na contemporaneidade, seja, fatores de
busca desses mitos, de se buscar nas lendas o que já não se encontra na realidade. E vem daí o
fato de constatarmos como o mito inesiano continua sendo alimentado coletivamente como
componente cultura e estar tão fortemente presente no romance.
Voltando a da lenda celta, esta dá início, então, ao mito que vai aparecer sob a forma e
história de diversos casais, que desde a Idade Média simbolizam o amor trágico, o amor-
paixão, o amor que é levado à plenitude, ainda que traga como consequência a morte. São os
chamados “amores eufóricos”, que sobrepujam as questões políticas e sociais apenas para que
os amantes concretizem o intenso desejo de estarem juntos.
Se Pedro e Inês continuam a figurarem na literatura portuguesa contemporânea, é
porque há ainda largo espaço para a circularidade cultural desse mito do amor que supera tudo
e se estende além da morte. No oriente há uma famosa história de amor, a história de Layla e
Manjunan. Semelhante a Pedro, que vai às últimas conseqüências, Manjunan ama até a
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loucura. Layla configura-se, assim como Inês, sua amada eterna. Os casais que vivenciaram
amores impossíveis – Abelardo e Heloísa, Pedro e Inês -, seja qual for o motivo de
impedimento do amor, serão sempre mitos referenciais para a literatura tratar este tema,
conforme acentua Jabouille (1993): “τ mito é a estrutura profunda e universal que suporta a
narrativa […] (p. 21)”, de modo que a “[…] narrativa tradicional, mantém, ao longo dos
tempos, um valor paradigmático, actualizado em cada realização singular” (p. 21).
Diz António Cândido Franco, em A rainha morta e o rei saudade, “[...] próprio dos
mitos é vestirem acessórios diferentes, repetindo o essencial” (2005, p. 13). Com base nesta
afirmação, acreditamos que os diversos romances históricos que retomam o mito inesiano –
compreendam-se aqui as imagens míticas de Pedro e Inês – reelaboram estas figuras
construindo, sob novas focalizações, outras “roupagens” interpretativas na ficção
contemporânea.
Os elementos da ficção são constantemente refigurados no romance contemporâneo
num tipo de inovação própria da modernidade, na qual trabalhar sobre os ecos da história
origina um vasto discurso e inúmeras citações, criando jogos de sentidos e interpretações.
Narra-se também para lembrar. A narrativa literária, composta de citações e recordações que
envolvem sujeitos ficcionais, busca a desconstrução da palavra, para, então, reconstruí-la; e
essa busca se dá através de várias reescritas, acentuando-as, por isso é que se narra
reescrevendo. No caso de Pedro e Inês, reescreve-se tanto a lenda como a História. De tudo
isso, observamos que há uma constante retomada da Idade Média pela literatura
contemporânea. Inês de Castro é quem melhor representa a face feminina do amor medieval
na literatura portuguesa.
Essa constante retomada da imagem inesiana esta, via de regra, associada a dois
componentes que perpassam os textos literários: a memória, visto que se relembra sempre um
fato passado, e a saudade, como não poderia deixar de ser, como forte componente de
Portugal, conforme assegura Cândido Franco entrevistado por Medeiros: “Mas sem Pedro,
que é força da saudade, não havia sequer memória de Inês, que é o amor puro e inefável”
(MEDEIROS, Entrevista. Jornal Tinta Fresca, 10/02/2005).
Esta aura inesiana é tão marcadamente forte na cultura de Portugal que Inês chega a
ser mencionada como um profeta, um messias, por Faustino da Fonseca:
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mas sim no passado. Ressaltamos, portanto, que a pátria lusitana, parece que desde a sua mais
remota origem, vive em busca do que não está no presente.
Maria Leonor Machado de Sousa (2004, p. 12) diz, sobre a história de Inês de Castro,
que “[...] é um caso invulgar de interpenetração da crônica e da literatura. Ao tratá-la, os
historiadores mais objectivos tornaram-se poetas”. Convém, então, ressaltar que, desde a
Idade Média, Inês de Castro aparece como tema literário; e sua morte adquiriu dimensões que
vão muito além das fronteiras de Portugal. A literatura espanhola, por exemplo, é uma das
literaturas europeias que registra um grande número de textos inesianos. Antes mesmo de se
firmarem a língua e a literatura na Espanha – quando os reinos de Aragão, Leão e Castela
ainda tinham seus dialetos –, já havia textos em “línguas peninsulares”, no contexto ibérico, a
tratarem da figura de Inês.
Sobre os textos produzidos no século XIV, na Península Ibérica, Sousa (2004, p. 40)
aponta que “são fundamentalmente quatro espanhóis, além de cinco romances velhos de uma
tradição comum, dos quais só um conhecemos em texto português”. τ poema escrito pelo
judeu Ibn Bilia é o texto em língua portuguesa que primeiro menciona o episódio. Apesar de
saber-se que deve ter sido escrito ainda no mesmo século em que se deu a morte de Inês, não
se pode precisar sua data, como afirma Sousa (2004). Mas, ainda nos séculos XIV e XV, o
episódio é mencionado em diversos textos que servirão de fontes aos que virão nos séculos
seguintes.
Os séculos XVI e XVII serão ricos, principalmente, na produção de rimances. Deste
período, destacam-se, no século XVI, as Trouas que Garcia de Resende fez à morte de Dona
Ynes de Castro, datada de 1516. Depois das Trovas, também a Castro, de António Ferreira –
poeta de destaque do Renascimento português – e o Canto VII, de Os lusíadas. Este conjunto
de textos e duas tragédias espanholas tiveram grande repercussão na literatura portuguesa:
Nise laureada e Nise lastimosa, de Jeronimo Bermudez.
Outro fator que também mostra a força do mito inesiano é a existência de várias
óperas dedicadas à Inês; dentre essas, exemplificamos a primeira, escrita por Gaetano
Andreozzi, que foi estreada em 1793, em Florença. Outra, de Giuseppe Francesco Bianchi,
seria apresentada no ano seguinte: Inês de Castro, em Nápoles, 1794. Ainda em Nápoles,
apresentada sob autoria de Giuseppe Farinelli, uma ópera, homônima às anteriores, seria
apresentada em 1806. Pier Antonio Coppola é também um italiano que escreve, em 1841,
outra ópera intitulada Inês de Castro (SOUSA, 2004).
Vários textos em outros gêneros literários vão se seguindo, sob diversas autorias,
entretanto, dois, da autoria do espanhol Lope de Vega também ganham destaque: Doña Ynes
de Castro, em 1618, e um Romance, em 1621; este, como parte da publicação intitulada Don
Lope Cardona, do mesmo autor. Mais adiante, dá-se destaque para o drama do espanhol Luís
Vélez de Guevara, Reinar despues de morrir2, de 1644. Em Lisboa, esta comédia famosa de
Guevara data uma publicação de 1652. O século XVII é, também, riquíssimo em publicações
inesianas, agora não só na Península Ibérica, mas em diversos países da Europa, dando início
2
Os textos literários desta página e vários textos dos séculos XV, XVI e XVII estão mencionados em
MEDEIROS, Aldinida. Inês de Castro no romance contemporâneo português. Tese de doutorado. Natal:
Univesidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010. 209 páginas.
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a uma tradição que até hoje “aimenta” a literatura, pois o romance histórico contemporâneo
não cessa de recorrer à imagem da Colo de Garça.
Também importantes para firmar e divulgar o tema foram as crônicas medievais. Os
cronistas mais referendados são Fernão Lopes, Rui de Pina – de quem se diz ter-ser
apropriado e feito uso das crônicas de Lopes – e Acenheiro. Bem mais recente, já do século
XVIII são as crônicas de Duarte Nunes de Leão, uma espécie de compilação das crônicas
anteriores. Sem criarmos análise de valor para nenhum dos cronistas, pois o enfoque aqui é
outro, o que interessa-nos é afirmar que, assim como as Trovas de Garcia de Resende foi um
texto importante, também os cronistas soubera, cada um ao seu modo, referenciar o amor de
D. PedroI de Portugal por Dona Inês de Castro.
Considerações finais
Considerando tudo o que acima expusemos, é preciso levar em conta que o discurso da
História é, em certos aspectos, limitado, pois o passado só pode ser conhecido através do que
foi textualizado. Ou seja, só sabemos do passado aquilo que está escrito ou o que os achados
arqueológicos permitem conhecer. Assim, a História é feita de muitos silêncios e não é tão
objetiva quanto parece. Não há apenas um único ponto de vista sobre o passado, e por isso é
que se faz necessário conhecermos os vários pontos de vista, para perceber os fatos e tirar
conclusões acerca deles. Bucando o período medieval como fonte, o romance pós modernos
realiza suas leituras dos tempos medievais e reafirma Inês de Castro como mito.
Ela é a face feminina do amor medieval em Portugal e continua a render teatro, prosa e
poesia após mais de seis séculos de sua morte, isto era a parte previsível de nosso estudo.
Outrossim, constatamos, através do romance histórico contemporâneo, as variadas imagens
que a ficção criou para Pedro, colocando-o num plano também de protagonista e que vai,
tanto da figura do herói cavalheiresco como ao vingador sanguinário, isto foi o inovador que
estas obras apresentaram. Essa é a inovação do romance histórico. Trovas, crônicas
medievais, lenda, romance, toda a literatura inesiana redimensiona essa História. E
acreditamos na literatura, por também acreditarmos nas palavras de Austina Bessa-Luís, em
Advinhas de Pedro e Inês: “A História é uma ficção controlada. A verdade é coisa muito
diferente, e jaz encoberta debaixo dos véus da razão prática e da férrea mão da angústia
humana” (19κ3: p. 224).
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SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa. 2. ed.
Lisboa: ACD, 2004.
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SESSÕES DE COMUNICAÇÕES
1
Graduando em Letras Portuguesas (UFPB). Graduando em Direito (Unjpê). Participante do Grupo de Pesquisa
Interação, Dialogismo e Subjetividade em Gêneros Discursivos Orais (PIBIC-UFPB-DLCV). Membro do Grupo
CIDADI, linha de pesquisa Análise Dialógica de Gêneros Discursivos Verbo-Visuais da Esfera Midiática.
Email: direito.letras@gmail.com
2
Professora Adjunto I do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Doutora em Letras (UFPE-Universite Blaise Pascal). Coordenadora de projetos de pesquisa voltados
para estudos de literatura, medievo, poesia feminina, tradução. Email: lucianaeleonora@yahoo.com.br
3
Constituído em 1184 com a finalidade única de instituir o Tribunal da Inquisição.
4
Constituído em 1545 com a finalidade discutir a Reforma Protestante liderada por Martinho Lutero que se
instalara, bem como, demais movimentos insurgentes que ameaçavam rebelar-se. Tratou também de temáticas
quanto os livros canónicos, apócrifos e perpétua virgindade de Maria.
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A finalidade do movimento eclesiástico era punir os hereges, aqueles que não seguiam
a fé católica, assim os métodos punitivos variavam, podendo ser desde prisões, torturas, até
mesmo a pena de morte, geralmente mediante a fogueira. Este último foi o procedimento final
utilizado para contra Joana D’arc, uma das maiores personagens da Idade Média.
Por serem Estados ligados a Igreja Católica, a Inquisição se deu de modo mais
frequente e intenso nos países ibéricos, Portugal e Espanha, e suas respectivas colônias, tanto
africanas quanto americanas. Relatos historiográficos relatam processos e condenações aqui
no Brasil.
A Inquisição teve imensa projeção, meio pelo qual ampliou seu objeto inicial,
passando a perseguir não somente os cristãos-protestantes, mas também judeus, muçulmanos
(por meio das Cruzadas), mulheres e homossexuais.
Os procedimentos e processos de repressão persistiram até meados do século XIX,
quando passaram a surgir as constituições dos Estados Modernos, juntamente com a
concepção de estado dissociado de religião, conceitos estes oriundos da Revolução Francesa.
Nos dias atuais a Igreja Católica tem uma congregação denominada, Congregação para
a Doutrina da Fé5, esta corresponde a um remodelamento das entidades instituídas durante a
Inquisição. É a partir da referida congregação que se ratificam os dogmas e são editadas
diretrizes basilares da fé cristã católica. Atualmente a Congregação para a Doutrina da Fé é
compreendida como uma das congregações de maior destaque dentro do Estado do Vaticano.
2 A Inquisição na Literatura
A Inquisição surge como tema forte na literatura, dos mais diferentes países, dizemos
isto por ter sido um movimento de grande amplitude, duração e consequências humanísticas.
Sendo esse um dos pontos principais do nosso trabalho, passaremos então a apresentar a
Inquisição presente na obra em estudo.
Escrita em 1966, por Dias Gomes, a obra ‘τ Santo Inquérito’ foi publicada de forma
definitiva no ano de 1985. Inicialmente a obra fora redigida com o intuito de ser tornada peça
teatral, todavia, após o enorme sucesso gerado, a peça fora transformada em livro.
A peça fora elaborada a partir de um episódio histórico, ou lendário, ocorrido
precisamente em 1750 na Paraíba. Distribuída em dois atos e composta por sete personagens,
dois centrais (Branca Dias) e cinco coadjuvantes (Augusto Coutinho, Simão Dias, Visitador
do Santo Ofício, Notário e o Guarda).
5
Corresponde a uma das nove congregações unidas a Cúria Romana, entidade ligada a Santa Sé, governo do
Vaticano. Hoje, diferente do período medieval, tem por objetivo defender a fé, a tradição e os dogmas católicos,
consolidados ao longos dos tempos, como assim prevê o art. 48 da Constituição Apostólica Pastor Bonus:
“Função própria da Congregação da Doutrina da Fé é promover e tutelar a doutrina sobre a fé e os costumes em
todo o mundo católico: é portanto da sua competência tudo o que de qualquer modo se refira a essa matéria.”
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Elementos como a boa fé, a sinceridade e a pureza da personagem Branca Dias
trazidos pelo autor, contradiz com o antigo modo de fazer peça teatral que eram realizadas
pelos antigos românticos.
O narrar trazido por Dias Gomes demonstra que a comunicação exercida pelas pessoas
dentro de uma sociedade se torna bastante relativizada, tudo a depender do contexto em que
está inserida, sujeitos, momento histórico e situação envolvida.
Figura lendária nos estudos medievais, Joana D’arc se tornou uma mártir do período
para a história da França do século XV. Inicialmente compreendida como herege e,
consequentemente, condenada pela Igreja Católica a morte, nos dias atuais a antiga condenada
e excomungada foi transformada em heroína e padroeira da França.
Mesmo tendo sido morta aos 19 anos de idade, ainda muito jovem, Joana D’arc ficou
de forma perpétua fixada na história política da França, e não pela condenação da Inquisição,
mas sim pelo heroísmo apresentado durante a Guerra dos Cem Anos, na qual, tomou a frente
das tropas francesas e, ao fim, conquistou a guerra.
Como sabemos, o heroísmo de Joana D’arc não atribuiu a ela, de forma imediata,
honras nem glórias, mas sim, inveja e temor da elite da época. Primeiro, por está se
emergindo uma nova classe social, daqueles que venceram a guerra, e, segundo, motivado
pelo fato de que as estratégias desenvolvidas por Joana D’arc foram as responsáveis para o
triunfo francês perante a guerra, atos que davam a ela mais notoriedade do que aos altos
generais franceses derrotados em combate. Ressalta-se que tal destaque atingido por Joana
D’arc perante as tropas e o governo francês era uma humilhação aos homens que não
conseguiram atingir o seu feito.
τ fato de ser mulher, constitui como um fator negativo para a história Joana D’arc,
dizemos isso pois, na época em que a personagem histórica viveu a mulher não detinha nem
vez, nem voz. Joana D’arc então se apresenta como uma ruptura ao modelo vigente até então,
demonstrando assim que mesmo mulher e jovem, tem a capacidade de apresentar os seus
atributos a sociedade, esta, patriarcal, totalitária e estratificada.
Vencida a guerra, nada de honras militares e de Estado foram destinadas aquela que
deu a França a vitória da Guerra dos Cem Anos. Ao revés, o que fora destinado a ela foi a
perseguição. Inicialmente fora a ela imputadas suspeitas de bruxaria. Após a realização do
processo de inquirição foi entrega aos ingleses, que fizeram todo o seu julgamento, ao fim,
condenaram-a por feitiçaria às penas da fogueira, na modalidade de auto-de-fé.
Como mencionado acima, a ‘culpa’ atribuída inicialmente a Joana D’arc fora retirada,
e depois dado a ela o valor merecido. Passou assim de herege para santa da Igreja Católica,
oficialmente declarada pelo Vaticano, em 1920, e respectivamente padroeira do seu país. País
este que fora protegido por ela, e que o igual tratamento não fora direcionado em seu favor.
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3.2 Branca Dias – personagem histórica
Os fatos de ser judia ainda nos dias de hoje é mera especulação, certamente o que
levará a condenação foi a cobiça do padre Bernardo, que ao vê-la nadar no rio, encantou-se
com quão beleza, e devido a seu ofício, de sacerdote, via impossível a concretização do seu
amor pela jovem. O amor vira doença, então o sacerdote imputa a Branca Dias práticas
heréticas para que a mesma seja punida pelo Tribunal do Santo Ofício.
Os dois não podem se unir, devido o sacerdócio e também pelo fato da jovem não
aceitá-lo, então o evento da morte vem como meio de amenizar a fixação do padre em relação
a ela.
Esta caracterização de Branca Dias adotada por estes que creem que ela viveu no
século XVIII apresenta-se similar à compreendida e relatada por Dias Gomes na sua obra O
Santo Inquérito, que trataremos a seguir.
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3.3 Branca Dias – personagem literária
Inserida num contexto histórico preso aos anos de 1750, precisamente no estado da
Paraíba, nordeste do Brasil, está a Branca Dias narrada por Dias Gomes, na sua obra ‘O Santo
Inquérito’.
Logo no primeiro ato, nos é apresentado o Padre Bernardo invocando as pessoas para
o início do processo contra Branca Dias. Ocorre um embate entre o Direito Positivo e o
Direito Divino, como podemos verificar na seguinte consideração:
É verdade que uma vez — numa noite de muito calor — eu fui banhar-me no
rio... e estava nua. Mas foi uma vez. Uma vez somente e ninguém viu, nem
mesmo as guriatãs que dormiam no alto dos jeribás! Será por isso que eles
dizem que eu ofendi gravemente a Deus? Ora, o senhor Deus e os senhores
santos têm mais o que fazer que espiar moças tomando banho altas horas da
noite. Não, não é só por isso que eles me perseguem e me torturam. Eu não
entendo... Eles não dizem... só acusam, acusam! E fazem perguntas, tantas
perguntas! (GOMES, 1985, págs. 27-28)
O fato de tê-la visto uma única vez banhando-se no rio, fez com que a figura de
Branca Dias perante a mente do sacerdote fosse permanentemente de pecado, de luxúria.
Todavia, o ato da jovem não trazia consigo características de luxúria, mas sim de um simples
ato de tomar um banho. No entanto, a luxúria estava sim fixada no pensamento do padre, fato
este que fez enchê-la de culpa com o intuito de condená-la.
A partir de tal afirmação de Branca Dias, a palavra é dada ao Visitador, responsável
pelo julgamento de Branca Dias junto ao Tribunal do Santo Ofício. Buscando enquadrá-la
como cristã-nova (judia) o julgador passa a tecer indagações ligadas ao judaísmo.
Diante de tal questionamento, a jovem continua sem compreender o que se passava,
não é a toa que desabava ao questionar:
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[...] Por que me fazem todas essas perguntas, por que me torturam? Eu sou
uma boa moça, cristã, temente a Deus. Meu pai me ensinou a doutrina e eu
procuro segui-la. Mas acho que isso não é o mais importante. O mais
importante é que eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me dão
prazer. No vento que me fustiga os cabelos, quando ando a cavalo. Na água
do rio, que me acaricia o corpo, quando vou me banhar. No corpo de
Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de
carne-seca, bem apimentado, com muita farofa, desses que fazem a gente
chorar de gosto. Pois Deus está em tudo isso. [...]. (GOMES, 1985, pág. 29)
4 Considerações Finais
Como bem pudemos apreciar, tanto Joana D’arc como Branca Dias foram mortas pela
Inquisição, por diferentes motivos, mas com a punição idêntica, o auto-de-fé.
A mulher até pouco tempo não detinha nem vez, nem voz, perante a sociedade em que
vivia. O destaque alcançado por essas personagens gerava cobiça, inveja e desconfiança a
sociedade machista e patriarcal.
Ambas as personagens correspondem a modelos de mulher diferentes, fato notório
devido às circunstâncias distintas em que viveram, uma França revolucionária e um Brasil
colônia, mas que, cada uma a sua forma, combateu o modelo social vigente à sua época.
Joana D’arc com a sua técnica e estratégia desbancou os grandes generais franceses, e
com a sua visão de exército entregou a França uma vitória perante sua maior rival, a
Inglaterra.
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Branca Dias, com a sua pureza e sutileza, não realizara nada contra si, nada que
voltasse os olhos da Inquisição para os seus atos. Entretanto, fora presa, passou por todos os
ritos inquisitoriais que buscavam de toda a forma a confissão. Nada confessou, pois nada
devia. Esta autoafirmação demonstra uma mulher forte nos seus ideais, posição esta que nem
os métodos da Inquisição subverteram.
Referências
GOMES, Dias. O Santo Inquérito. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1985.
Coleção Teatro de Dias Gomes – Vol. 3. Disponível em:
<www.arcos.org.br/download.php?codigoArquivo=142>. Acesso em: 06 maio 2012.
NISKIER, Arnaldo. O Martírio de Branca Dias. 2007. Disponível em:
<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=5146&sid=565>.
Acesso em: 06 maio 2012.
VATICANO. Constituição Apostólica Pastor Bonus sobre a Cúria Romana. Disponível
em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_constitutions/documents/hf_jp-
ii_apc_19880628_pastor-bonus-index_po.html>. Acesso em: 05 de maio de 2012.
WIKIPÉDIA. Auto-de-fé. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Auto
_de_f%C3%A9> Acesso em: 06 de maio de 2012.
WIKIPÉDIA. Branca Dias. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Branca_Dias>.
Acesso em: 06 de maio de 2012.
WIKIPÉDIA. Congregação para a Doutrina da Fé. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Congrega%C3%A7%C3%A3o_para_a_doutrina_da_F%C3%A
9>. Acesso em: 05 de maio de 2012.
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ÉOWYN OU DERNHELM. UMA ANALISE DO ESTEREÓTIPOS DA MULHER
GUERREIRA NAS OBRAS DE J. R. R. TOLKIEN
1. INTRODUÇÃO
Na atualidade diversos tipos de fontes vem sendo utilizadas pelos historiadores para o
estudo historiográfico, é comum a pratica de analises de filmes, iluminuras, fotografias e até
mesmo quadrinhos para a analise historiográfica em diversos sentidos, isso leva o historiador
a ter que lidar com um tipo de instrumental, para tanto deve-se ter determinados cuidados ao
analisar esse instrumental "Saber interpretar signos visuais tornou-se mais que uma
necessidade para os acadêmicos e profissionais do ensino, mas uma necessidade." (LANGER,
2004, p.1).
O texto histórico já não é a única fonte de pesquisa do historiador no caso desta
pesquisa as fontes utilizadas foram obras de cunho literárias e filmes que são encaixadas no
novo instrumental historiográfico oferecido a analises.
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momento ele já dominava: o latim, o grego, o inglês arcaico, e vários outros idiomas indo-
europeus.
Todos os amigos íntimos de Tolkien combateram na Batalha de Somme da Primeira
Grande Guerra e quase todos morreram, isso teve uma grande influência na sua obra
principalmente depois de ler uma correspondência do seu amigo Rob Gilson nas trincheiras da
guerra:
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No prefácio para o “O Senhor dos Anéis” Tolkien comenta sobre sua inspiração e
fonte para escrever a obra.
Inspirado pela filosofia, pelos estudos das línguas germânicas, sagas nórdicas e
poesias anglo-saxões, Tolkien também comenta sobre a forma como o autor não consegue
evitar a sua própria experiência e lugar social em suas obras.
É claro que um autor não consegue evitar ser afetado por sua própria
experiência, mas os modos pelos quais os germes da história usam o solo da
experiência são extremamente complexos, e as tentativas de definição do
processo são, na melhor das hipóteses, suposições feitas a partir de
evidências inadequadas e ambíguas. (Tolkien, 2000, pg. XIII.)
Fica claro a partir do comentário de Tolkien, que todo escritor coloca elementos
pessoais em seus livros, no caso específico de Tolkien, a forma como ele “cria as pessoas” de
Rohan instintivamente sabemos que ele entendia de cavalo. Rohan está intrinsecamente
relacionada a tradições anglo-saxões dos séculos IX e X. A cultura é facilmente reconhecível,
o palácio de Rohan chamado de Melduseld é o mesmo nome do palácio de Beowulf, que é um
poema épico escrito em língua anglo-saxã. Rohan passa a ser então basicamente um Beowulf
com cavalos acrescentados. A maioria dos nomes das pessoas em Rohan tem os nomes
relacionados a cavalos.
Antes da Primeira Grande Guerra, Tolkien se associou a algo chamado “Cavalo do Rei
Eduardo”, era um batalhão, foi sua primeira e maior experiência com cavalos. Essa
experiência mostra mais do que meras abstrações por trás da idéia de Rohan. Os Rohirrim são
uma forma de preencher os desejos de Tolkien, porque eles são muito parecidos com os
anglo-saxões, mas com cavalos.
Tolkien tinha uma teoria de que “se” os ingleses tivessem tido uma cavalaria eles
nunca teriam perdido a batalha de Hastings, porque no momento em que os cavaleiros
atravessaram o mar, vindos da França, eles acabaram com os ingleses. A invasão normanda
segundo a visão de Tolkien foi uma grande catástrofe, o afluxo da cultura normanda impediu
um florescimento total da mitologia inglesa, desta forma, os cavaleiros de Rohan são uma
imagem dos anglo-saxões não como eles foram, mas como provavelmente teriam sido, e
talvez se tivessem retido mais a cultura dos cavaleiros eles poderiam não ter perdido em
Hastings, e a atual civilização inglesa não teria sido tão afrancesada como foi, algo que
Tolkien considerava um completo desastre.
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3. A PERSONAGEM ÉOWYN
Éowyn nasceu em 2995 da Terceira Era, em Rohan, filha de Théodwyn, a amada irmã
do Rei Théoden, e de Éomund, um dos grandes Marechais da Terra dos Cavaleiros. Era
também a irmã mais nova de Éomer, que viria a tornar-se o Terceiro Marechal da Terra dos
Cavaleiros e Rei de Rohan.
Descrita como uma mulher bela, com longos cabelos louros, olhos cinzentos e pele
branca como a neve, era esguia e alta, tendo uma graça e uma altivez herdadas do sul, de
Morwen de Lossarnach, a quem os rohirrim haviam chamado Brilho do Aço.
Seu pai, Éomund, odiava os orcs e amava os cavalos. Em 3002, Éomund atacou um
grupo de orcs que atravessavam suas terras com um grupo pequeno e sem cautela. Isto o
conduziu a uma armadilha, na qual foi morto.
Sua mãe, Théodwyn,ficou doente e morreu pouco depois, para a grande tristeza do rei,
que acolheu em sua casa os filhos da irmã, chamando-os de filho e filha.O filho do Rei,
Théodred, na época com 24 anos, recebeu bem seus primos e tratou-os como irmãos mais
novos, tendo nascido uma grande amizade entre eles. Todavia, ao crescer num ambiente tão
masculino e militarizado quanto Edoras, Éowyn começou a demonstrar grande interesse a
respeito de espadas e cavalos. Alguns anos depois, ela já sabia cavalgar e empunhar uma
espada com destreza.
Todos estavam felizes, até o dia em que Gríma Língua de Cobra, um servo
de Saruman, assumiu o posto de conselheiro do rei. Éowyn esteve sempre ao lado de Théoden
e assistiu com tristeza a decadência física e mental de seu tio. O homem forte e orgulhoso que
ela amava como um pai estava cada vez mais fraco, e isso a entristecia e fazia nascer em si
um ódio secreto, mas forte, contra Gríma, que ela via como o principal responsável pela
decadência de Théoden.
Quando Gandalf veio a Edoras, em 3019, Éowyn tinha poucas esperanças de que algo
mudasse. Mas o mago curou o rei de sua apatia, e lhe mostrou como o mundo caminhava a
passos largos para a guerra contra Mordor. Théoden mandou que o exército dos rohirrim fosse
preparado, e deu a regência do Reino de Rohan para Éowyn, e nisso demonstrou mais amor
por ela do que em qualquer outro gesto, pois nunca antes uma mulher havia ocupado o posto
de regente naquele reino. O Rei Théoden e o exército de Rohan foram para o Abismo
de Helm esperar o ataque dos orcs. Éowyn nada teve a ver com essa batalha, pois estava
ajudando o povo de Rohan a se esconder dos orcs. Os exércitos do Oeste foram vitoriosos e os
orcs dizimados.
Todos festejaram a vitória, mas ainda havia uma batalha para se travar. Uma batalha
que denominaria o destino de todos. Os rohirrim partiriam novamente para lutar, mas dessa
vez nos Campos de Pellenor, em Gondor. Um dia antes da partida dos exércitos de Rohan
para a guerra, Aragorn, Gimli, Legolas, o guardião do norte Halbarad e os filhos de Elrond,
Elrohir e Elladan partem para as Sendas dos Mortos. Neste ponto, Éowyn já sentia uma
grande admiração por Aragorn, e quando soube que ele desejava usar tal caminho tentou
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dissuadi-lo de todas as formas, e chegou até a se oferecer a acompanhá-los, mas isso lhe foi
negado.
O rei ordenou novamente que Éowyn fosse a regente e protegesse o povo durante sua
ausência. Mas ela já estava decidida que lutaria e, secretamente, vestida como um homem e
usando o pseudônimo de Dernhelm, cavalgou com o exército de Rohan em direção a capital
de Gondor, Minas Tirith, juntamente com Meriadoc Brandebuque, um hobbit e integrante da
Sociedade do Anel que nada sabia sobre sua verdadeira identidade. Quando os rohirrim
atacaram as hordas de orcs, Éowyn estava entre eles, e lutou com bravura (mas
anonimamente) até o momento que o rei foi abatido. O Rei dos Bruxos de Angmar, o capitão
dos Nazgûl, atacou Théoden e ela se pôs entre eles. O Nazgûl riu de sua valentia, já que
pensava tratar-se de um homem, mas quando tirou seu capacete e revelou ser mulher,
irrompeu em fúria e medo, pois uma antiga profecia diria que ele nunca poderia ser morto
pela mão de um homem, e Éowyn não era um homem. Conta-se que nesse feito Éowyn teve
ajuda de seu companheiro, Merry.
Éowyn matou o Nazgûl, mas caiu vítima do hálito negro e ficou às portas da morte.
Quando a guerra termina, seu irmão Éomer acha seu corpo e pensa que ela está morta,
entretanto, o Príncipe Imrahil de Dol Amroth vem ao auxílio dos rohirrim e diz que Éowyn
não faleceu. Éomer já havia partido, e só descobre que sua irmã estava viva quando ela
chegou às Casas de Cura. Foi o próprio Aragorn que a curou, usando a erva chamada athelas
ou folha-do-rei.
Alguns dias após a partida dos exércitos de Rohan e Gondor em direção ao Portão
Negro, Éowyn levanta-se da cama e exige falar com o diretor, pois queria lutar ao lado de seu
povo e morrer com dignidade. O diretor então a leva ao regente de Gondor. Foi nessa ocasião
que Éowyn conheceu Faramir, e durante sua estadia nas Casas de Cura, os dois se apaixonam.
Ela renuncia ao trono de Rohan para que pudessem se casar e os dois beijaram-se sobre as
muralhas de Minas Tirith
Foi em 3020 da Terceira Era, que ocorreu o casamento de Éowyn e Faramir. Em 3019,
ela era conhecida no Reino de Gondor como “Senhora Branca de Rohan” e passou a viver nas
colinas de Emyn Arnen. Viveu como Princesa de Ithilien e amiga do Rei Elessar. Não existem
registros de sua morte, apenas de seu único filho: Elboron.
No lar e fora dele fiar e borda eram uma função restritamente feminina servindo como
uma separação da sociedade masculina e guerreira contrapondo o lado da espada e o lado da
roca. A sociedade medieval nutriu um desprezo generalizado pelas mulheres, à atitude de
desprezo dos homens pelas mulheres, consideradas ao mesmo tempo perigosas e frágeis, era
justificada por todos os meios, até pela etimologia da palavra que as designava, a palavra
latina que designava o sexo masculino, “Vir”, lembrava “Virtus”, isto é, força, retidão,
enquanto Mulier, o termo que designava o sexo feminino lembrava Mollitia, relacionada à
fraqueza, à flexibilidade, à simulação. Entretanto, é errado conjugar toda a ótica da mulher
para esse viés, as diferenças sociais foram sempre tão fortes quanto às diferenças de sexo. Não
é possível comparar, condessas e castelãs com servas e camponesas livres, ricas burguesas
com artesãs, domésticas ou escravas.
No que concerne a personagem Éowyn, ela alegoricamente é uma guerreira pautada
em alguns estereótipos, dentre eles o de mais fácil análise é a transição da mulher guerreira
para uma curadora (Santa) passando nessa transição, uma percepção de que ser uma guerreira
não faz parte da natureza feminina, o que ocasiona também uma dualidade.
Guerreira e Virgem Santa e Mãe; Guerreira = Escuridão Santa = Luz
σesta passagem do livro, “O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei” fica consagrado o
estereótipo no momento da declaração de Faramir (Regente de Gondor):
E eu (Faramir) a amo. Já senti pena da sua tristeza. Mas agora, mesmo que
você não sentisse tristeza alguma, nem medo, e não lhe faltasse nada (...)
ainda assim eu a amaria. Éowyn você não me ama? Naquele momento o
coração de Éowyn mudou, ou então finalmente percebeu a mudança. E de
repente seu inverno passou e o sol brilhou para ela. (Tolkien, 2000, pg 244.)
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Assim como nesta passagem:
Estou em Minas Anor, a Torre do Sol – disse Éowyn -; e eis que a Sombra
partiu! Não serei mais uma escudeira, nem competirei com os grandes
Cavaleiros, e deixarei de me regojizar apenas com canções de matança. Serei
uma curadora, e amarei todas as coisas que crescem e não são estéreis
(Tolkien, 200, pg 244.)
5. CONCLUSÃO
Podemos concluir dessa breve analise que, o estereótipos quanto a mulher na idade
media foram determinados principalmente pelo meio social, a posição de mulher variava de
acordo com a sociedade em que estava inserida, as tradições católicas de certa forma vieram a
desvalorizar a figura feminina dentro da sociedade, levando ao caráter mais submisso. Vemos
que a condição de guerreira era uma posição de difícil acesso a mulher na época medieval
pois as relações sociais dificultavam o advento de uma classe feminina voltada para a guerra
visto que, segundo a mentalidade medieval a submissão da mulher para com o homem era
fundamental para a manutenção da hierarquia social.
6. REFERENCIAS
MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Media, São Paulo: Editora Contexto, 1990.
LANGER, Johnni. Metodologia para Analise de Estereótipos em Filmes Historicos, São
Paulo: Revista Historia Hoje, 2004
TOLKIEN, J R R. O Senhor dos Aneis - A Sociedade do Anel: Primeira Parte/tradução de
Lenita Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 2º ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2000.
TOLKIEN, J R R. O Senhor dos Aneis As Duas Torres: Segunda Parte/tradução de Lenita
Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 2º ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2000.
TOLKIEN, J R R. O Senhor dos Aneis O Retorno do Rei: Terceira Parte/tradução de Lenita
Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 2º ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2000.
TOLKIEN, J R R. O Hobbit. Tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 3º
ed. - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
TOLKIEN, J R R. O Silmarillion; organizado por Christopher Tolkien; tradução Waldéa
Barcellos. – 4º ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
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RED SONJA: A MULHER GUERREIRA NA ERA HIBORIANA
Adriano Everton
NEMIS/UFMA
Luciana Campos
Cronologia e Indumentária
Nesta minissérie publica pela dynamite entertanmeit no ano de 2010, está disposta em
cinco edições que não contém histórias paralelas, como costumeiro em outros títulos de outras
editoras de quadrinhos. As revistas da minissérie “Wrath of the gods” contém apenas a
aventura do demônio da hirkânia em si, contendo apenas a divisão de acordo com a parte da
história. Nesta minissérie é contada como Red Sonja enfrenta um de seus mais poderosos
inimigos.
A história começa com Sonja em meio a sua jornada na era hiboriana. Em terras
geladas, a guerreira encontra o jovem Gamble, ruivo como ela, a criança aparece sentada na
porta de uma taverna a qual foi impedido de entrar, num gesto de boa vontade da heroína, ela
o convida para entrar na taverna para se proteger de uma nevasca que se aproximava.
Entretanto, uma descoberta sobre sua origem esperava a guerreira de cabelos vermelhos no
interior da taverna.
Ao adentrar a taverna com o pequeno Gamble, Sonja e o menino são recepcionados de
forma hostil pelas pessoas daquele lugar que não aceitavam pessoas da etnia budini naquele
lugar. Correndo perigo, Red Sonja tinge o chão da taverna com o sangue daqueles que lhe
ameaçavam. Depois de disso, o jovem Gamble explica para a heroína o porquê de eles serem
chamados pela alcunha de budini.
Já devidamente acomodados na taverna, Gamble conta para Sonja que eles são
oriundos de uma etnia chamada budini, que tinha por principal característica física a
coloração vermelha nos cabelos. A criança ainda disse que seu povo não tinha a tradição
guerreira e que foi massacrado por outros povos até encontrar asilo em um lugar que estava
fora dos mapas hiborianos, em um lugar chamado wodinaz. Entretanto, mesmo em seu
refúgio o povo budini estava em perigo.
Após revelar sua história para Red Sonja, Gamble também revela a sua missão, que
seria encontrar um guerreiro budini que cumpriria a profecia libertando o seu povo das forças
opressoras. Relutante quando a história do garoto, Red Sonja tem o seu espírito heroico
inflamado pelo lindo rubi que Gamble oferece em troca dos serviços do demônio da hircânia.
Com este belo incentivo, a guerreira parte com Gamble para wodinaz.
Após um complicado caminha pelo interior de uma montanha, Red Sonja e Gamble se
deparam uma wodinaz desolada dominada por monstros de todas as espécies comandados um
poderoso mago, Loki. Depois de uma intensa batalha, Sonja acaba enfeitiçada por Loki,
porém, um novo aliado se junta a heroína e Gamble, se trata do “semideus”, Thor.
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Cabe resaltar que o Thor dessa história tem uma descrição física distinta das histórias
da Marvel. Em “Wrath of the gods”, o Thor descrito tem sua aparência fiel à mitologia
nórdica, sendo um homem com uma grande altura e força, além dos cabelos e barba ruivos,
neste caso especial isto tem mais haver com os budinis. Entretanto, um dos objetos
característicos de Thor é uma das peças chaves da trama.
Em “Wrath of the gods”, os roteiristas produziram um visão alternativa envolvendo
elementos do panteão nórdico. Na minissérie, Thor aparece como o maior inimigo de Odin,
mesmo sendo seu filho. Na história, Odin tem como pretensão eliminar os budinis por
conhecer a profecia que aponta um guerreiro budini como o seu sucessor em wodinaz. Neste
momento, observa-se uma referência ao panteão grego, mais precisamente a Zeus e o titã
Cronos, o qual devorava seus filhos com o temor que um deles lhe tomasse o posto de rei de
todos os deuses, e que foi vencido por Zeus, e logo depois sendo exilado com outros titãs para
o tártaro. Outro elemento importante é o fato de Loki e Odin aparecerem como aliados,
entretanto, com o decorrer da história a relação conflituosa entre eles ficam em evidência.
Para derrotar Odin e salvar os budini, Thor precisa de uma arma poderosa quanto um
deus, para isso ele precisa juntar a pedra de ardinos com o cajado de Odin para obter um
martelo poderoso o suficiente para realizar a sua missão. Thor ainda conta com a ajuda de Red
Sonja, que é decisiva para a derrota de Odin e o estabelecimento da ordem em wodinaz. Ao
final da história, mesmo com Thor lhe oferecendo o trono de rainha, Sonja pega o rubi
concedido por Gamble e parte de volta para a sua jornada. Nesta minissérie, apesar da
distorção em relação à mitologia nórdica, muitos aspectos sobre Red Sonja ficaram explícitos
e serão analisados no tópico a seguir.
Por meio da leitura de “Wrath of the gods”, alguns aspectos da personagem de Roy
Thomas fazem menção a outros tipos de lendas envolvendo mulheres guerreiras, como no
caso das amazonas, e outros tipos de guerreiros como a cavalaria medieval. Em uma breve
análise contata-se que Red Sonja possui semelhanças como também diferenças com estes
tipos de guerreiros. Primeiramente, a relação da ruiva com as Amazonas será objeto de
estudo.
De acordo com o dicionário de mitologia grega e Romana, de Georges Hacquard, as
amazonas eram povo mítico, predominantemente feminino, o qual só interagia com seres do
sexo masculino para fins reprodutivos, de modo que, esta interação tinha o objetivo de
garantir a perpetuação daquela civilização, ou seja, só indivíduos femininos eram aceitos,
costume que acarretava, por meio de sacrifícios, a eliminação seres masculinos. Outro
costume das amazonas era a amputação do seio direito com o objetivo de garantir um melhor
manejo do arco. Por se tratar de um povo em que predomine a figura da mulher guerreira,
constata-se referências e, principalmente, diferenças com a personagem do universo
howardiano.
O primeiro ponto de correspondência entre Red Sonja e as amazonas se refere ao
distanciamento em relação ao gênero masculino. Apesar desta característica ser presente nos
dois referenciais o distanciamento quanto aos homens ocorre por motivos distintos. No caso
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das amazonas, a recusa pela presença masculina é inerente a sua cultura, no caso de Red
Sonja o abstração do gênero masculino ocorre por conta do pacto com a deusa Mitra, que só
permite que um homem se relacione carnalmente com a guerreira se vencê-la em batalha, algo
que só ocorre com as amazonas quando estas buscam reproduzir-se. Outra diferença entre
Sonja e as amazonas ocorre por causa da mutilação do seio direito, algo visivelmente não
praticado pelo demônio da hircânia. E por último, ao contrário das amazonas que vivem seu
reino, Red Sonja leva uma vida peregrina. Quanto à vida peregrina, ao mesmo tempo em que
esta característica se difere das amazonas faz menção a outro tipo de corpo guerreiro, a
cavalaria.
No que se refere à relação de Red Sonja com a cavalaria medieval, depreendem-se
semelhanças em aspectos fundamentais para a constituição do modo de operação de ambos,
principalmente no que tange os chamados ideais da cavalaria. Mesmo se tratando de uma
mulher visivelmente viril, Red Sonja exibe traços de generosidade e justiça. Conforme visto
em uma das primeiras passagens de “Wrath of the gods”, ao conhecer Gamble, e este alertá-la
da tempestade, ela prontamente o convida para entrar junto com ela na taverna. A ajuda aos
mais fracos é um dos traços que norteiam os valores da cavalaria ainda tão presente no
imaginário atual.
De acordo com o dicionário temático medieval, a cavalaria tem um código que norteia
as ações deste corpo guerreiro, dentre os principais preceitos deste código estão à proteção
para os mais fracos, e contra a injustiça em geral, característica também inerente ao demônio
da hircânia. Entretanto, não para neste quesito a correspondência de Red Sonja com a
cavalaria.
Quanto à indumentária, é percebia outra referência a cavalaria em Red Sonja. Citado
anteriormente, o conceito do traje da guerreira horwardiana consiste numa hibridização entre
os dois tipos armaduras utilizadas pelos cavaleiros, à cota de malha e a armadura de placa
completa. Outro aspecto de correspondência entre Red Sonja e a cavalaria também se refere à
vassalagem.
Como uma legítima representação do feudalismo, a cavalaria também em sua
constituição as relações de vassalagem, de modo que todo cavaleiro tinha obrigações com seu
senhor, sobretudo, no que se refere aos ideais de proteção do corpo guerreiro. No caso de Red
Sonja, esta relação de vassalagem tem a sua equivalência demonstrada em sua relação com a
deusa Mitra. Neste exemplo, Mitra concede proteção para a guerreira em troca da obediência
dos seus preceitos que se assemelham aos seguidos pela cavalaria medieval. A seguir nas
considerações finais mais ponderações sobre a personagem da época de Conan, o bárbaro.
Considerações Finais
REFERÊNCIAS
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A INTERPRETAÇÃO DA ÁRVORE DE JESSÉ NA IDADE MÉDIA1
Introdução
Temos por objetivo mostrar neste trabalho A interpretação da Árvore de Jessé. O que
representa esta árvore e a quem está relacionada. Sabemos que o nome Jessé surgiu a partir do
nome original Isai que significa “homem servidor de Jessé”; Jessé é o pai do rei Davi. Há
inúmeras citações na Bíblia onde o próprio Deus remete-se a Davi e a sua descendência, é
possível constatar o nascimento de Jesus a partir da profecia encontrada no livro de Isaías
(11,1): “Virá um descendente do rei Davi, filho de Jessé, que será como um ramo que brota de
um toco, como um broto que surge das raízes”. Em suma, a árvore de Jessé é uma
representação da passagem de uma geração carnal a uma geração espiritual.
A criação do Mundo
1
Texto apresentado para publicação na Universidade Federal da Paraíba
2
Aluna matriculada no curso de Letras Espanhol na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
3
Aluna matriculada no curso de Letras Espanhol na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
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marido que estava com ela, e também ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois, e eles
perceberam que estavam nus. Entrelaçaram folhas de figueira e fizeram tangas (Bíblia
Sagrada, p.16, 2007).
O homem e a mulher ao perceberem que Deus estava no jardim sentiram-se
envergonhados e logo Deus percebeu que sua ordem havia sido descumprida lançando sobre
eles sua ira. Da ira de Deus e do conhecimento do bem e do mal o pecado passa de geração
em geração, de descendência em descendência, desde Adão e Eva até os dias atuais.
Santa Ana foi a mãe da virgem Maria e avó de Jesus. Era filha do sacerdote Natã e de
Maria. Suas irmãs chamavam-se Maria de Cleófas, mãe de Salomé e Sapé, mãe de Santa
Isabel, que gerou João Batista. Casou-se com Joaquim e durante muito tempo prevaleceu
estéril concebendo Maria em idade avançada. Santa Ana morreu tempo depois de Maria, aos
(3) três anos de idade, ser consagrada a Deus no templo. No século XVI a igreja católica
consagrou Santa Ana como padroeira das mulheres grávidas e protetora dos navegantes.
O nascimento de Maria
4
Evangelho de São Lucas I, 28.
201
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(Lucas 1,30) e revelou que Deus tinha lhe concebido um filho: “Eis que darás a luz um filho
e o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado filho do altíssimo, e o
Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; Ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o
seu reino não terá fim! (Lucas, 1, 31-33). Ao saber que Maria estava grávida, mesmo antes de
viverem juntos, José pensou em abandoná-la em silêncio. Foi quando em sonho o anjo do
Senhor lhe apareceu e falou que Maria iria conceber um filho através da ação do Espírito
Santo e que José teria a missão de dar um nome a Jesus, tornando-o descendente de Davi e
fazendo com que dessa maneira se cumprisse a profecia. Quando recebeu a tarefa, José a
cumpriu com responsabilidade: escutou atentamente o anjo e tomou Maria como esposa.
Diante dessa passagem bíblica podemos nos perguntar: Mas como pode surgir alguém
pura, se sua ascendência possui pecado? Para alguns teólogos ou estudiosos da Marialogia 5,
para que Jesus Cristo viesse ao mundo, ele teria que ser concebido por alguém pura, é
portanto devido a vontade de Deus que surge uma virgem sem pecado e sem mancha para dá a
luz a seu filho, ou seja, Maria já foi livrada do pecado mesmo antes de nascer. A isenção do
pecado das origens é uma graça que somente a virgem Maria e Jesus Cristo conceberam. Isso
quer dizer que Maria não foi atingida pelo pecado original e nem pelas consequências que ele
poderia gerar, pois ela foi a escolhida por Deus para ser a mãe do Salvador. Mas para que
Maria fosse concebida sem pecado, fazia-se necessário e justo que sua mãe, Santa Ana
também fosse gerada de pais sem pecados, visto que o pecado se passa de pai para filho,
teríamos a conclusão de que toda a família e descendência de Maria fosse única e
exclusivamente extraída do pecado original. Mas dúvidas surgem quando pensamos sobre a
existência de Adão e Eva, eles realmente existiram? E se existiram eles realmente pecaram? A
descendência de Maria não vem de Adão e Eva? Essas questões podem ter inúmeras
respostas vindas de estudiosos de Maria, da própria igreja, dos cientistas entre outros
estudiosos.
O fato de Maria não portar consigo a mancha original fez com que sua natureza
humana tivesse um poderoso equilíbrio a ponto de torná-la decidida a sempre fazer o que era
verdadeiro, correto e santo. Como o pecado não a escravizou Maria era portadora do
entendimento e da sabedoria, o que contribuíram para que ela tivesse lucidez diante da tomada
de decisões.
O tema que envolve a árvore de Jessé é a anunciação da vinda de Jesus Cristo para
salvação da humanidade. Jessé era o pai do rei Davi que em como citamos está em vários
trechos bíblicos e o nascimento de Jesus Cristo se dá pela descendência de Davi: “Virá um
descendente do rei Davi, filho de Jessé, que será como um ramo que brota de um toco, como
um broto que surge das raízes”. Também citado em Isaías (IX, 6) o nascimento de Cristo : “
Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre seus ombros, e o
seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz”. A
5
Conjunto de estudos teológicos a cerca de Maria
202
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genealogia de Jesus Cristo encontra-se no Evangelho de São Mateus no qual mostra toda a
descendência de Abrão até o nascimento de Jesus:
Abraão gerou a Isaque; Isaque, a Jacó, a Judá e a seus irmãos; Judá gerou de
Tamar a Perez e a Zera; Perez gerou a Esrom; Esrom, a Arão(...) Jacó gerou
José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo.De sorte
que todas as gerações, desde Abraão até Davi, são catorze; desde Davi, são
catorze(...)6
6
São Mateus ( 1,2-17)
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Outra grandíssima obra localiza-se na cidade do Porto em Portugal, que sempre foi
rota de comércio. Do Brasil vinham ouro e madeiras para enfeitar as igrejas locais, como é o
caso da igreja de S Francisco, a igreja ostenta 200kg de ouro recobrindo o altar, colunas e
pilares. O ponto mais alto da decoração é a árvore genealógica de Jessé, que mostra a
descendência de Cristo (os galhos da árvore apoiam mais ou menos 12 figuras que culminam
em Jesus ao lado da sua mãe e seu pai):
A basílica de St Denis é uma das principais igrejas com estilo gótico, foi umas das
primeiras construídas. A igreja é um enorme prédio e localiza-se ao norte de Paris. Esta igreja
a demais dos valores estéticos possui também a representação da árvore de Jessé.
Considerações Finais
Referências
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MORTE CRISTÃ DO MEDIEVO: UMA FORMA DE REPENSAR O
CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO DIANTE DA MORTE
Introdução
A concepção cristã acerca da mortalidade do homem atesta que a morte não é o fim,
apenas uma ruptura entre as dimensões materiais e imateriais da existência humana. Para o
cristianismo, a ressurreição de Jesus se tornou o dogma central da religião por ser uma
verdade inquestionável e é nesse dogma que a doutrina cristã se ampara. A ressurreição
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simboliza a vitória da vida sobre a morte. Os preceitos cristãos conservam uma lealdade em
relação ao homem para além da morte, revelando um Deus que ressuscita os mortos, que dá
vida plena e abundante a todos os crentes. Desta forma, como ponto de partida, estabelece a
superação da morte atenuando a angústia humana sofrida.
As concepções e preceitos cristãos são amparados por uma teologia ressurreicionista
que propõe uma vida posterior à morte como a verdadeira vida. Essa proposição de
imortalidade vem como aporte às atitudes do homem durante sua jornada temporal baseadas
na obediência. A observância de preceitos que corroborem para uma conduta ilibada
favorecerá ao homem a chance de alcançar a tão sonhada salvação, e esta por sua vez,
conduzirá o cristão a gozar das benesses celestiais.
A doutrina cristã, ao longo do tempo, sofreu influencia quanto à ampliação da ideia de
ressurreição. Algumas concepções influenciaram para tanto, como foi o caso do modelo
dualista platônico e agnóstico, no qual o homem é composto por dois princípios, um espiritual
(alma) e outro material (corpo). Esta noção de uma vida após a morte, a princípio, foi
influenciada pelas culturas egípcia e persa. Estes povos tinham a crença numa “mansão dos
mortos” 1, onde os mortos viviam como “sombras”, distantes de Deus e dos próprios homens
(BLANK, 2000, p.67).
Diante de tais influências teológicas, a ideia de ressurreição dos mortos surge
semelhante ao que se concebe hoje com relação à ressurreição do corpo. No contexto sócio
histórico do antigo testamento, ainda não se tinha um conhecimento claro e exato acerca da
noção de julgamento, céu e inferno. Estes conceitos surgiram pelas constantes discussões
sobre a ressurreição no início do cristianismo. A partir destes conceitos surge a noção de um
“Reino de Deus”. Essa noção está atrelada a uma literatura apocalípta ricamente representada
por imagens, símbolos e elementos míticos, na qual este reino é misteriosamente revelado.
Essa linguagem simbólica foi facilmente entendida pelas comunidades daquela época, onde os
símbolos se faziam presentes no cotidiano das pessoas.
Por séculos, através da catequese cristã, foi repassado um modelo tradicional daquilo
que acontece na morte do ser humano. Renold Blank (2000) sequencia muito bem esta
concepção quando diz que,
1
Também conhecida como Scheol ou Xeol. Em hebraico significa túmulo, cova ou abismo. No Cristianismo, é a
destinação comum de todos os homens, bons e maus.
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Blank (2000) passeia pelo campo tradicional de um modelo que colabora para atender
as expectativas religiosas ensinadas e interiorizadas por gerações de cristãos. A morte,
segundo a crença da maioria dos cristãos, só atinge o corpo. Esta constatação pode ser vista
pela deterioração do cadáver, através das exumações. Mais como manter viva uma fé numa
vida após a morte diante de um corpo sem vida? Para explicar este fato, o modelo
antropológico binário – antigamente chamado de dualista - vem preenchendo esta lacuna de
uma forma satisfatória. Para este modelo, a alma é imortal, constitui a essência humana, e na
morte, esta alma se separa do corpo para dar prosseguimento à outra vida, agora numa
dimensão espiritual sem vínculos materiais.
A bíblia, por sua vez, oferece aos cristãos outra concepção antropológica sobre o
fenômeno da morte. Para ela, o ser humano é uma unidade indivisível, na morte a alma não se
separa do corpo. Com isso descarta o dualismo ontológico grego, baseado nos dois princípios,
corpo e alma. A partir de enfoque bíblico, o artigo “Alma e imortalidade” de Herbert Haag
confere essa versão bíblica quando diz que,
A morte tanto possui uma dimensão biológica quanto uma dimensão social, visto que,
comporta os fatos relativos à vida humana. Ao longo dos séculos, as atitudes diante da morte
e do morrer sofreram uma grande transformação sociocultural desde a idade média até os dias
atuais, marcando profundamente toda a sociedade pós-moderna. Estas mudanças ocorreram
de uma maneira lenta, quase imperceptível, mas de uma forma concreta, contribuindo para um
quadro de negação da morte na contemporaneidade ocidental.
Desde a antiguidade até a idade média, a morte adquiriu um caráter familiar e
doméstico. Era encarada como parte integrante da existência humana, pois desde seu
nascimento, a própria cultura já se encarregava de fornecer uma consciência de sua finitude.
Na antiguidade ocidental, percebemos uma atitude paradoxal quanto à familiaridade da morte,
pois ao mesmo tempo em que a consideravam familiar, praticando cultos nas sepulturas,
temiam uma proximidade, mantendo os mortos a distância. Por essa razão os cemitérios eram
situados à beira das estradas, fora da cidade, longe das aglomerações (RODRIGUES, 2006,
p.106-107).
σo entanto, de acordo com Philippe Ariès (2003, p.3ι), “τs mortos entrarão nas
cidades, de onde estiveram afastados durante milênios”. A coexistência entre os vivos e os
mortos se torna real, o mundo dos vivos se mistura ao mundo dos mortos, tornando a morte
cada vez mais familiar. Desta forma, igreja e cemitério se fundem, proporcionando uma
convivência pacífica entre vivos e mortos. Algumas mudanças sutis foram surgindo no fim da
idade média, apresentando conotações dramáticas e pessoais quanto à familiaridade
tradicional com a morte, principalmente entre as classes instruídas. Segundo Ariès (2003),
(...) é preciso ter presente que esta familiaridade tradicional implica uma
concepção coletiva da destinação. O homem desse tempo era profunda e
imediatamente socializado. A família não intervinha para atrasar a
socialização da criança. Por outro lado, a socialização não separava o
homem da natureza, na qual só podia intervir por milagre. A familiaridade
com a morte era uma forma de aceitação da ordem da natureza, (...). Com a
morte, o homem se sujeitava a uma das grandes leis da espécie e não
cogitava em evitá-la, nem em exaltá-la. Simplesmente a aceitava, apenas
com a solenidade necessária para marcar a importância das grandes etapas
que cada vida devia sempre transpor (ARIÈS, 2003, p. 46-47).
Percebemos que existia até então uma consciência coletiva quanto à finitude humana,
uma grande resignação quanto ao destino coletivo das espécies, uma consciência de que um
dia morreremos. A partir do século XV é que começa uma nova concepção acerca do juízo
final, o qual será concebido de forma individual e no leito de morte. Esse rito adquire um
aspecto dramático, pois, carregado de emoção, o moribundo trava uma luta individual através
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de uma grande ação cósmica. Nesse momento, o indivíduo revê toda sua trajetória de vida,
reconhecendo-se como ser único e responsável pela sua própria história.
Quanto aos costumes diante da morte, estes se diferenciam entre as classes sociais,
sendo essa diferenciação desde o ritual que precede a morte até o local estabelecido para as
sepulturas. Um novo sentido então é dado à morte através do homem da sociedade ocidental,
ela tende a adquirir um aspecto dramático quando se refere à morte do outro. Além do caráter
dramático, a morte também adquire um sentido erótico através das iconografias, mais
precisamente no fim do século XV. Começam a associá-la ao amor, na medida em que através
das imagens o homem tem seu corpo violado. Da mesma forma que o ato sexual era
considerado uma transgressão por arrebatar o homem do seu mundo racional, do seu cotidiano
e lançá-lo num mundo irracional, violento e cruel, assim era também a morte. Contudo, ainda
estava longe de se tornar apavorante e obsessiva, continuava familiar e domada (ARIÈS,
2003, p.64-65).
No período medieval, as práticas rituais relativas à morte eram compostas por
cerimônias tradicionais na qual o moribundo era a figura central. Estas cerimônias
transcorriam com simplicidade, sem dramaticidade e sem exageros nos gestos emotivos. O
quarto onde se encontrava o jacente tornava-se palco de uma cerimônia pública e organizada,
onde a família, os parentes, os amigos e inclusive as crianças faziam-se presentes. O ritual
realizava-se através de uma evocação triste e discreta do moribundo. Logo após, o mesmo
pedia perdão a todos que ali estavam e os recomendavam a Deus. Em seguida, pedia perdão a
Deus através de preces para depois recomendar sua própria alma. Por último, era a vez do ato
sacramental, onde o sacerdote ministrava a absolvição em remissão aos pecados cometidos,
aspergindo água benta no jacente (ARIÈS, 2003, p. 32-33).
Os funerais eram compostos por quatro fases fundamentais. A primeira fase das
exéquias iniciava-se imediatamente após a morte e era marcada pelas expressões dramáticas
de dor. Consistia em atitudes carregadas de dramaticidade exagerada, pois os participantes
“rasgavam suas roupas, arrancavam a barba e os cabelos, ralavam o rosto, beijavam
apaixonadamente o cadáver, caíam desmaiados e, no intervalo de seus transes, faziam elogios
ao defunto” (ARIÈS, 19ιι apud RτDRIGUES, 2006, p.105).
A segunda fase consistia na absolvição do cadáver pelo sacerdote. A terceira fase era o
cortejo fúnebre, no qual a família e os amigos o acompanhavam até o local da inumação. A
quarta e última fase era a inumação, que consistia num curto ato sem nenhuma solenidade
(RODRIGUES, 2006, p.105).
Alguns costumes precediam e sucediam os funerais. Antes do funeral, os familiares
tinham um cuidado todo especial com o cadáver. Eles banhavam o corpo, cortavam as unhas,
aparavam o cabelo, vestiam a mortalha, entrelaçavam os dedos das mãos e colocava um
rosário. Depois o corpo ficava exposto sobre uma mesa durante dois ou três dias para o último
adeus dos familiares e amigos, estes por sua vez caracterizados pela vestimenta de luto.
Após o funeral, eles costumavam fechar as janelas da casa, cobriam os espelhos,
paralisavam os relógios, acendiam velas e aspergiam água benta pela casa. Essas eram as
práticas habituais daquela época e os familiares as cumpriam religiosamente. Quanto às
manifestações de luto, os familiares se vestiam usualmente com vestimentas totalmente
negras e não participavam de nenhuma atividade social, até que ocorresse a cicatrização da
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ferida causada pela dor da perda e da separação. Todas estas interdições eram cuidadosamente
respeitadas até a reintegração dos familiares à vida normal em sociedade (MARANHÃO,
1998, p.8-9).
Já na contemporaneidade, as práticas e costumes antigos foram sendo tolhidas e
substituídas pela proibição da dor. Esse novo comportamento tem como finalidade poupar a
coletividade da dor e de qualquer ato que possa incomodá-la. O luto que era regido por regras
coletivas, passa a ser relegado a iniciativa individual, exigindo do indivíduo enlutado um
equilíbrio emocional quanto a expressão de seus sentimentos. Toda e qualquer expressão de
exaltação emocional coletiva foi eliminada, desta forma, o luto se privatizou, sendo praticado
somente pelos parentes mais próximos (RODRIGUES, 2006, p.164).
A morte que era tão presente e familiar, agora se tornara vergonhosa e objeto de
interdição. Ela vai sendo apagada do convívio das pessoas, vai se esvaziando quanto ao seu
sentido e distanciando-se cada vez mais da vida da sociedade ocidental contemporânea. Ela se
torna um tema proibido, algo inominável. Parece que essa nova atitude diante da morte tem a
finalidade de preservar a felicidade, pois as pessoas não estão encontrando mais um padrão de
comportamento adequado diante dela. Pela nova postura de negação da morte, a sociedade já
não consegue mais suportar sua ritualização. Os ritos fúnebres foram neutralizados e
modificados na sua essência com a intenção de esconder a morte.
Todas essas mudanças de atitudes tiveram como causa a transferência da morte para os
hospitais. Com isso, os ritos que precediam a morte foram exterminados, agora o enfermo não
é mais dono do seu destino, um novo ator desponta no cenário, o médico. Ele é quem ditará as
regras a partir de agora, amparado por uma tecnologia que tende a prolongar a vida, nem que
para isso o enfermo viva de maneira inconsciente. Os preparativos do funeral, que antes era
missão dos familiares, passam para a responsabilidade de terceiros. A família não deseja mais
arrumar o cadáver como antigamente, delega essa tarefa que era tão familiar para outras
pessoas que nem sequer viram nem conviveram com o morto.
O cortejo fúnebre, que antes começava no seio da família, rodeado pelos parentes e
amigos, transmigrou para as casas funerárias, especializadas na prestação de serviços
eminentemente funerários. Se antes o defunto ficava exposto por dias na sala de sua casa,
agora ele não passará mais que algumas poucas horas diante das pessoas que ali se encontram
para despedir-se. Torna-se cada vez mais comum o caixão no qual o defunto se encontra ficar
fechado, longe dos olhares. Uma tendência quanto ao uso do caixão, segundo Rodrigues
(2006, p.114) é que “(...) a generalização do uso de caixões, em que os mortos serão fechados
e subtraídos aos olhares (não se trata simplesmente da ocultação do rosto, mas da ocultação
do cadáver)”.
As exéquias após a morte permanecem até hoje, porém sem alguns atributos
específicos do passado. As quatro fases posteriores à morte do indivíduo são o luto, a
absolvição, o cortejo e por fim, o enterro. No que se refere ao luto, não carregam mais a carga
dramática, que era uma atitude exclusivamente ritualizada e se dava imediatamente após a
morte. Quanto à absolvição, agora se realiza com o morto e não com o moribundo. O cortejo
continua sem a presença de um religioso, e com relação à inumação, não houve mudanças
significativas, continua sendo realizada de forma simples, rápida e discreta (ARIÈS, 2003,
p.107-109).
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II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA
SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
Conclusão
Metodologia
Como nosso objeto de estudo refere-se a um fenômeno oculto pela sociedade, fizemos
uso da pesquisa exploratória quanto aos objetivos, pois a mesma visa proporcionar maior
familiaridade com o problema com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses.
Com relação aos meios técnicos, a pesquisa bibliográfica forneceu o suporte necessário
através de livros de autores clássicos e contemporâneos. Quanto à abordagem do problema,
percebemos uma relação dinâmica entre o mundo real e mundo dos sujeitos, exigindo uma
compreensão dos significados do fenômeno através da pesquisa qualitativa, que nos
proporciona um solo fértil para interpretações, descrições e comparações.
REFERÊNCIAS
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Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
O LIRISMO E O MISTICISMO MEDIEVAL EM ADÉLIA PRADO
Mesmo não sendo uma particularidade medieval, não se pode negar a dificuldade
encontrada pela mulher, também nesse período, para afirmar-se ou simplesmente adentrar-se
no território das letras, enquanto sujeito da enunciação. Apesar do testemunho das trobairitz,
como é o caso da Condessa de Dia, percebemos que a poesia trovadoresca foi
predominantemente praticada por homens. Nesse sentido, apesar dos trovadores terem, em
muitos casos, exaltado as mulheres e expressado sua poética através de um eu-lírico feminino,
assumindo a posição de uma delas, como é o caso das cantigas de amigo, temos, em grande
parte, a voz do outro a respeito delas e não a própria voz feminina a falar e a imprimir mais
fortemente o seu universo na literatura: “τcupar o território do escrito é para a mulher da
Idade Média uma grande empresa, acompanhada da consciência de uma infracção ou de uma
audácia, de uma timidez ligada à incapacidade do sexo” (RÉGσIER-BOHLER, 1990, p. 525).
Quando praticada por mulheres, a posição do eu-lírico assumia uma autoridade
feminina, invertendo os papéis sexuais de objeto de desejo inatingível e exaltado, mas
passivo, observado nas cantigas dos trovadores, para um papel ativo em que o eu-lírico
feminino se torna o “pregador”, aquele que roga o amor do “amigo”. Contrariamente ao que
acontece com a “senhora”, enaltecida por suas qualidades físicas e morais, o “amigo” ora é
descrito pelo eu-lírico como um traidor, não merecedor do amor cortês, ora se torna um objeto
de desejo, cobiçado e seduzido pelo eu-lírico feminino. É certo que, apesar de se constituírem
uma espécie de paródia, de reverso do código de amor cortês, as cantigas das trobairitz não
inovaram do ponto de vista formal e temático.
Consideramos que ainda não é na literatura como a concebemos hoje e, dentro dela, na
lírica trovadoresca que vemos nascer uma escrita marcadamente feminina, onde a mulher
assume a consciência do ato de escrever e afirma sua identidade como autora. É
principalmente na dita espiritualidade feminina ou Mística feminina medieval que vão surgir
autoras mais conscientes do seu papel de escritoras, como são os casos de Hildegarda de
Bingen, no século XII, e Beatriz de Nazaré, Hadewich de Amberes e Margarida Porète, nos
séculos XIII e XIV. Incluímos, entre as místicas, a escritora leiga Christine de Pizan, que
escreveu entre os séculos XIV e XV obras de denúncia contra o poder patriarcal, sendo
considerada a primeira feminista ocidental, com sua obra A Cidade das Damas.
Essas mulheres demonstravam possuir grande cultura literária e conhecimento
teológico, tinham consciência do seu papel ativo na transmissão de uma mensagem divina,
pois se sentiam eleitas pela graça de Deus e impelidas a escrever por uma força superior a elas
que, portanto, legitimava sua produção e vocação, tinham consciência que atingiam um
público específico que as incentivava e estavam conscientes de que a condição feminina
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implicava em oposição por parte da sociedade, o que pode ser constatado nas expressões de
modéstia e humildade das quais elas faziam uso: “τ espanto dos contemporâneos foi grande
ao verem estas mulheres manifestarem-se no terreno teológico e abarcarem a amplitude das
questões religiosas” (RÉGσIER-BOHLER, 1990, p. 541).
Em linhas gerais, o misticismo medieval defende a união íntima e direta do ser
humano com Deus através da vida contemplativa, que ultrapassa o uso da razão. É uma
experiência subjetiva da alma:
Mística é então, nesse contexto, discurso sobre a relação com Deus daquele
que faz um percurso que implica o envolvimento num trabalho de
despojamento de si, para deixar-se transformar pelo totalmente Outro que,
em sua grandeza e liberdade, é absolutamente transcendente, impossível para
o entendimento e o querer humanos (MARIANI, 2009, p. 371).
Como Deus ao passar entre nós manifestou o claro amor, outrora ignorado,
iluminando com a claridade do amor todos os aspectos da condição humana,
digne-se também iluminar-te e pôr-te na luz dessa claríssima claridade que o
permite ser transparente, tanto para si mesmo como para seus amigos e seus
amantes íntimos (1989, p. 33).
Uma dessas místicas que se diziam visitadas de forma especial pela graça de Deus
desde a infância é Hadewijch de Amberes. Ela escreveu, durante o século XIII, suas Visões,
Poemas e Cartas, nas quais, com muita frequência e intensidade, fala do Amor-Deus, da
Trindade e da condição humana: “Es en las Cartas donde Hadewijch puede desarrollar mejor
todos los recursos de su lengua y La riqueza de su teología espiritual” (ÉPINEY-BURGARD;
BRUNN, 2007, p. 165).
Sua desenvoltura com a palavra e seu conhecimento geral parece indicar que ela foi
educada num convento ou numa comunidade de beguinas, fato comum às crianças da época:
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El amor (Minne) es cantado bajo aspectos que reflejan la polivalencia de esta
palabra. Esse amor (feminino em neerlandés y en alemán) es presentado
como una persona: dama, reina, maestra suprema, cuya fuerza y riqueza se
alaban, y que impone su ley. A este tema del amor personificado se unen
imágenes de la vida caballeresca: la aventura (avounture), la calbagada, la
justa, la cacería donde el amor persigue y se deja perseguir. Aparecen
también esos enemigos que la poesía cortesana llama los losengiers,
maledicentes que tratan de destruir el amor y que, en Hadewijch, que les da
una significación más elevada, son los extranjeros (vremde) que se niegan a
conocer al amor y se oponen a quienes lo sirven.(2007, p.158)
Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até a
mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra
coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do
meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma
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pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista
profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos
olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda se
numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma
experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como
sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma
hierofania.
Assim, a poética adeliana pode ser considerada uma poética mística, pois, como
defende o Prof. Dr. Josias da Costa Júnior, no artigo Religião e literatura na poética mística
de Adélia Prado: “É nesse sentido que a poética de Adélia Prado é religiosa, pois tem a
capacidade e a sensibilidade de captar essa dimensão sagrada do mundo nas coisas mais
simples e corriqueiras” (2012, p. 12ι).
Em sua concepção de poesia, perpassa uma noção de experiência do divino através do
corpo e das relações humanas. Trabalhos como do Arauto da Palavra que corta, o Poeta
(2011) e O desejo no olhar: o gozo outro na poesia de Adélia Prado (1999) mostram como o
corpo é assumido como um espaço sagrado.
Além da relação com o sagrado, podemos perceber nos seus poemas uma forte
presença do cotidiano de uma vida simples, da paisagem local, das vicissitudes da vida, da
incompletude da natureza humana, do amor carnal, do erotismo, da relação entre um homem e
uma mulher e do convívio entre o ser humano e seus semelhantes, partindo para reflexões
mais profundas e metafísicas.
Os poemas de Adélia Prado apresentam como traços estilísticos a ressignificação das
palavras, a reflexão metalinguística, a sacralização do banal e a dessacralização do divino, a
experiência de ser mulher e o caráter narrativo. A escritora escolheu o verso livre, e não a
métrica regular, como a melhor forma para a sua expressão poética, que tem “um ritmo às
vezes lento, de tom reflexivo, que se expressa ao sabor da conversa, da prosa cotidiana”
(OLIVEIRA, 2012, p. 25).
O poema escolhido para a análise faz parte do livro Oráculos de Maio, cujo título
remete a uma ligação do plano físico com o espiritual, do mundo natural com o sobrenatural.
Na Antiguidade, o oráculo poderia ser a resposta dada por uma divindade a quem a consultava
geralmente acerca do futuro ou poderia se referir à própria divindade. Pode também se referir
a uma palavra inspirada ou infalível. O mês de maio é associado às noivas e à Virgem Maria,
sendo esta última muito aludida em alguns poemas do livro, mas pode ser associado à
primavera, como tempo de renovação das flores e exuberância da natureza.
O livro é composto de cinquenta e sete poemas divididos em seis seções: a primeira
seção, cuja epígrafe é “Quero vocativos para chamar-te, ó maio”, tem por título Romaria e
abriga a maior parte dos poemas, trinta e cinco; a segunda, Quatro poemas no divã, tem
quatro poemas; a terceira chama-se Pousada e também tem quatro poemas; a quarta chama-se
Cristais, com seis poemas; a quinta, Oráculos de Maio, que dá título ao livro, tem sete
poemas; e a sexta e última, com apenas um poema de mesmo título da seção, Neopelicano,
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tem por epígrafe um versículo bíblico: “Então se lhes abriram os olhos e o reconheceram, mas
ele desapareceu (Lc 24, 31)”.
No poema O poeta ficou cansado, que abre o livro, podemos perceber algumas
características do período medieval, especialmente as ligadas ao misticismo. Nele, o eu-lírico
se coloca como o arauto de Deus, o seu mensageiro. Na Idade Média, o arauto era o oficial
que fazia proclamações solenes e anunciava a guerra e a paz. O arauto é uma espécie de porta-
voz; é um mensageiro, aquele que carrega e anuncia uma mensagem. Anunciando-se como
tal, o eu-lírico se equipara a um profeta ou místico e o poema passa a ter status de mensagem
divina, passa a ser uma espécie de oráculo. Vejamos o poema:
A intertextualidade com a Bíblia Sagrada é uma das marcas da autora. Em sua obra, é
comum encontrarmos citações de versículos bíblicos e é recorrente o diálogo e a alusão a
personagens e histórias bíblicas e da tradição da igreja romana (Maria e os santos). Além
disso, devemos levar em consideração que o ocidente medieval era dominado pela visão de
mundo da Igreja Católica Romana. Por isso recorreremos ao texto bíblico e à tradição sempre
que estes forem justificados e importantes para a análise do poema.
O poema é uma espécie de lamento ou queixa que o eu-lírico faz a Deus, lembrando
textos bíblicos do Antigo Testamento como os livros de Salmos, de Jó e de Jonas. Neles, as
personagens dirigem suas súplicas, suas queixas e seus questionamentos diretamente a Deus,
que os ouve e lhes responde. Tanto o eu-lírico do poema quanto os profetas bíblicos e as
místicas medievais revelam em seus escritos uma proximidade e uma intimidade muito
grande com a divindade, o que os coloca numa posição privilegiada em relação aos seres
humanos comuns e dão a eles uma visão de mundo diferenciada dos demais.
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No primeiro verso, a voz de enunciação feminina1 diz que não quer mais ter a função
de mensageira de Deus; função que os profetas bíblicos e as místicas medievais exerciam e
reivindicavam pra si em seus escritos. No terceiro capítulo do livro primeiro de Samuel, da
Bíblia Sagrada, é dito: “Enquanto Samuel crescia, o Senhor estava com ele, e fazia com que
todas as suas palavras se cumprissem. Todo o Israel, desde Dã até Berseba, reconhecia que
Samuel estava confirmado como profeta do Senhor” (2000, p. 212). E, na Carta VII, escreve
Hadewijch de Amberes: “Saúdo-te, querida, com o amor que é Deus e com o que sou eu, que
também é Deus de alguma maneira” (p. ι3).
Nos três versos seguintes, ela questiona os motivos de ter que desempenhar essa
função, já que não é diferente de ninguém e é igual a todos aqueles que podem falar. Apesar
de desempenhá-la, a tarefa de levar a mensagem de Deus não era uma escolha sua; ela não
tinha escolhido a direção daquele navio. O que nos remete à história de Jonas, que, ao ser
mandado por Deus à grande cidade de Nínive para pregar contra ela, toma um navio em outro
sentido a fim de não cumprir a ordem divina (Bíblia Sagrada, 2000, p. 735).
Ela continua a contender com Deus (v. 5-8) e, com ousadia, pergunta por que Ele
mesmo não realiza aquele trabalho de gritar “a miraculosa trama dos teares” - o fazer poético
seria como tecer ou fabricar tecidos e o poeta é o arauto que grita para “vender” esse “tecido”
poético. Já que Ele é tão poderoso e, se Ele gritasse, sua voz seria ouvida em toda e qualquer
parte do mundo, por que Ele precisa de um mediador, de um ser cuja voz é limitada?
Nos versos seguintes (9-16), o poeta é visto como um caixeiro-viajante, um
representante comercial que viaja de cidade em cidade divulgando e vendendo um produto.
Ela diz a Deus que esse tipo de atividade está ultrapassado para a presente época. Ao falar de
um vendedor que oferece um canivete mágico e apresenta todas as suas utilidades e
qualidades, podemos pensar no papel, na relevância e no rebaixamento do artista e da arte, e,
mais especificamente, no do poeta e na poesia, nos dias de hoje. O que leva ao
questionamento se ofício do poeta, tão antigo quanto o dos caixeiros-viajantes, seria ainda
necessário e relevante em um mundo pragmático e de incrível progresso econômico e
tecnológico. No sistema capitalista atual, até as mais variadas formas de arte são
transformadas em produto e o artista torna-se um vendedor sujeito às regras e às imposições
do mercado, e não aos ditames de sua própria consciência e criatividade.
σos seis últimos versos, em forma de prece (“Ó, Deus”), ela pede ao ser que lhe
inspira a poesia para sair da linha de frente e fazer um trabalho mais reservado para Ele, um
trabalho doméstico: ser sua cozinheira ou padeira, dando forma a um produto palpável e
comestível.
Em “me deixa fazer Teu pão” (v. 20), podemos dizer que temos uma hierofania. τ pão
não é um pão comum, mas um pão sagrado; o pão de Deus. Não sendo um ser de carne e osso
e respondendo às indagações do eu-lírico, Deus diz: “eu só como palavras”.
A resposta do Senhor ao eu-lírico nos remete ao Evangelho de João, que fala acerca de
Jesus Cristo, o Filho de Deus, logo na sua abertura: “σo princípio era aquele que é a Palavra.
Ele estava com Deus, e era Deus” (2000, p. κ4ι). E nos remete também ao episódio narrado
nos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), no qual Jesus é levado para o deserto e é
1
Ou o eu-lírico.
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tentado pelo diabo. Ao ser desafiado por ele a transformar pedras em pães, “Jesus respondeu:
‘σem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus’” (2000,
p. 769). Aqui, é Deus quem alimenta o homem da sua palavra, num gesto unilateral. No
poema, há uma complementaridade. O poeta é alimentado por Deus e deve alimentá-Lo. As
palavras de Deus que inspiram (alimentam) o poeta-arauto e que este deve anunciar ao
mundo, ao passar por ele, devem também servir e voltar como alimento para Deus.
O uso de metáforas relacionadas ao ato de comer, de se alimentar, com a finalidade de
expressar a relação e a intimidade com o outro, com o divino, foi também bastante explorado
pelas místicas medievais, como podemos comprovar em um poema de Hadewijch
(RÉGNIER-BOHLER, 1990, p. 578):
Portanto, a conclusão do poema nos leva a entender que o ofício do poeta é essencial e
que ele foi escolhido para uma função difícil e nobre, assim como os profetas bíblicos e as
místicas medievais sabiam-se escolhidos por Deus e ligados a Ele por uma união interior,
profunda e sobrenatural. Por mais que os tempos mudem, o poeta será sempre fundamental
para o equilíbrio entre o mundo material e o mundo espiritual. É preciso de um mediador para
que a comunicação e o ciclo não sejam interrompidos.
Referências
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A MULHER E SEU PAPEL NA LITERATURA TROVADORESCA
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A arte das soldadeiras (sirventés)
Existe um corpus de 420 cantigas catalogadas nesse estilo. Dentre os principais nomes
de poetas destacamos os nomes de Gautier de Coinci (precursor dos milagres – compôs
canções paralitúrgicas) e o de Afonso X (O Sábio), dentre vários. O eu lírico pode ser um
padre ou mesmo um jogral que na hierarquia trovadoresca era considerado inferior ao
trovador. Nessas cantigas a figura de Maria é ligada aos milagres que realiza entre os jograis e
as pessoas que peregrinavam, por exemplo, pelo caminho de Santiago. É uma poesia de cunho
religioso que fez grande sucesso, que pode ser justificado pelo grande número de exemplares
encontrados.
Por trazerem em seu cerne episódios narrativos de guerras são também chamadas de
chansons d’histoire. Algumas foram encontradas em romances conhecidos da Idade Média,
tais como o Guillaume de Dole e o Roman de la Violette. Acredita-se que as chansons de toile
sejam uma criação aristocrática, porém difundidas popularmente. O eu lírico dessas
composições são nobres damas aristocráticas, e as canções são narradas em terceira pessoa,
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sendo algumas dialogadas. A língua em que essas cantigas são mais encontradas é o langue
doil.
Em uma dessas canções de tela temos o tema de uma moça que trabalhava em um
quarto, e conta-se que chorava ao fazer trabalhos de agulha na torre do castelo. Embora haja
um narrador em terceira pessoa, nas estrofes seguintes aparece o diálogo dela com a mãe,
quando relata seu amor e que, provavelmente, estaria grávida de seu amado. A moça está
sonolenta em seu trabalho, despertando assim a curiosidade materna. A mãe pede para a filha
mostrar o seu corpo, constatando assim a gravidez já adivinhada. Ao ser inquirida se o moço
seria capaz de desposá-la, ela responde não saber. No decorrer da cantiga a mãe a exorta a
procurá-lo e a jovem obtém dele, finalmente, o esperado pedido de casamento.
Finalizando este breve estudo, a imagem de mulher que triunfa na Idade Média é, sem
dúvida, aquela que retrata a sua castidade e opõe à figura da mulher “perigosa e feiticeira”,
tão propalada naquele tempo. σo entanto, a literatura ‘lembrou-se’ de contribuir com a poesia
para que soubéssemos hoje um pouco mais do universo feminino, desmitificando um pouco
essa imagem redutora de mulher, que temos notícia.
Mesmo que nessa literatura a figura feminina esteja, quase que constantemente, ligada
ao religioso, ao amor proibido, ao espaço no castelo, às atividades cotidianas e à “antítese
santa/prostituta”, o feminino perpassa também o trabalho autoral, como visto neste artigo, o
que demonstra existirem mulheres intelectuais que conseguiram fazer frente à hegemonia
clerical masculina do medievo.
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Referências
O romance histórico possibilita uma nova forma de ver a História, porque, entre outros
aspectos, põe em cena novos personagens que ficaram à margem da versão oficial da
historiografia, apresentando, assim, grande importância para a literatura atual, mais que isto, é
um gênero que tem estado em evidência na contemporaneidade. E tem como uma de suas
principais características, trazer para a prosa de ficção o componente híbrido que constitui
romance e História.
O Memorial do Convento (1999), objeto de análise de nosso trabalho, é um dos
romances históricos de José Saramago de maior destaque no âmbito da literatura de língua
portuguesa. Percebemos que nele, predomina, dentre outros aspectos, o dialogismo social3,
que da voz aos excluídos, tal como Blimunda e Baltasar, conforme veremos adiante; e o
hibridismo, através dos quais se juntam ficção e realidade para mostrar “[...] uma outra versão
da mesma História, tantas vezes ouvidas e decoradas.”(MARIσHτ, 1999, p. 234).
O romance apresenta o fato histórico da construção do Convento de Mafra, edificado
no século XVIII no decorrer do reinado de D. João V, e traz várias figuras históricas, mas
dentre elas o nosso estudo aborda a personagem da rainha D. Maria Ana Josefa, retratada na
obra como uma mulher submissa e religiosa e, buscando na história a veracidade, mas
também propiciando as teias da ficção, este romance nos permite ainda evidenciar a figura de
Blimunda, personagem criada pelo autor, dotada de poderes sobrenaturais, que em destaque
como personagem e em características, contrapõe-se à figura da rainha.
Sabendo-se que os estudos sobre o romance histórico contemporâneo apontam a
focalização heterodoxia e a desconstrução de referentes como algumas das muitas
características deste gênero, buscaremos, em Memorial do Convento (1999), evidenciar duas
“forças místicas” distintas: a fé da rainha – motivo da construção do convento – e o lado
místico daquela que a Igreja4 considera como feiticeira, Blimunda, sendo as duas personagens
femininas de maior destaque no romance. Com isso, elucidaremos aspectos de como o
romance histórico contemporâneo de José Saramago faz a sua releitura da história,
considerando-se que “[...] o pano de fundo histórico introduz-se na trama graças à presença
das personagens históricas, mesmo que em posição secundária. [...]”. (ZILBERMAσ, 2003, p.
122).
3
O conceito de dialogismo social que adotamos em Memorial do Convento é o mesmo estudado pelo teórico
russo Mikhail Bakhtin, que se refere às varias vozes sociais que dialogam, de forma, divergente, entre si em cada
discurso.
4
Todas as menções se referem à Igreja Católica.
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As personagens femininas subvertem a ordem de destaque no romance de Saramago.
Diferente do que acontece no seu congênere tradicional, a rainha não é a mulher forte e
destemida da história; estas características são atribuídas à personagem Blimunda,
representante da classe popular.
[...] Prouvera que ele morra, que eu quero ser rei e dormir com vossa
majestade, já estou farto de ser infante, Farta estou eu de ser rainha e não
posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve o
meu marido, não vá ser pior outro que venha [...], Maus são todos os
homens, a diferença só está na maneira de o serem [...]. (SARAMAGO,
1999, p. 112).
É importante ressalvar que o casamento real foi arranjado, por motivações políticas,
como era costume àquela época, portanto, ela teve que se adaptar ao novo país visto que seu
país de origem é a Áustria. O narrador, na primeira frase do romance a descreve ironicamente:
“D. João, [...], irá esta noite ao quarto de sua mulher, D Maria Ana Josefa, que checou a mais
de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.”
(SARAMAGO, 1999, p. 11). A partir desse fragmento é possível se ter uma imagem de como
viria a ser construída a personagem no decorrer da narrativa.
A religião não só serve de justificativa à postura da rainha, como também comanda,
orienta e direciona-a em suas funções, na condição de mulher, sendo ela religiosa em uma
época em que a Igreja ditava as regras de boa conduta das famílias, apontando como elas
deveriam ou não agir, o que, indiretamente, significa afirmar que ao homem era ou é dado o
poder absoluto e a mulher apenas o direito de procriar, tanto é, que o casal vivia em aposentos
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separados, só se encontrando duas vezes por semana para cumprir, ele porque é compromisso
de marido, com suas obrigações conjugais, para eles um “simples” ritual. Mesmo sendo algo
comum para época, a submissão da rainha ao marido5 é de tal modo exagerada que acredita
ela não desejar nada além do que deseja o rei, como ilustra a passagem que segue, na qual o
narrador descreve “uma noite de amor” do casal:
Vestem a rainha e o rei camisas compridas, que pelo chão arrastam, a do rei
somente a fímbria bordada, a da rainha bom meio palmo mais, para que nem
a ponta dos pés se veja, o dedo grande e os outro, das impudicícias
conhecidas talvez seja esta a mais ousada. D. João V conduz D. Maria Ana
ao leito, leva-a pela mão como no baile o cavaleiro à dama, e antes de
subirem os degrauzinhos, cada um de seu lado, ajoelham-se e dizem as
orações acautelantes necessárias, para que não morram no momento do acto
carnal, sem confissão, para que desta tentativa venha a resultar fruto, e sobre
este ponto tem D. João V razões dobradas para esperar, confiança em Deus e
no seu próprio vigor, por isso estar dobrando a fé com que ao mesmo Deus
impetra sucessão. Quanto a D. Maria Ana, é de crer que esteja rogando os
mesmos favores, se por ventura não tem motivos particulares que os
dispensem e sejam segredo do confessionário. (SARAMAGO, 1999, p. 15-
16).
Tomando o trecho citado, deve-se ressaltar que o casamento real está em função de se
manter o poder monárquico, uma vez que as obrigações matrimoniais, como denomina o
narrador, tinham por objetivo gerar o filho desejado para a sucessão do trono.
Já no que se refere à Blimunda, esta é uma mulher que foge aos padrões, ao tipo
comum da época: é guerreira e não teme os desafios impostos pela vida pobre e “injusta” que
leva ao lado do marido Baltasar. O casal pode representar o amor de forma simples, assim
como tantos casais das camadas populares que se unem por um amor verdadeiro, sem as
imposições dos interesses. A jovem conheceu aquele que seria para sempre o grande amor da
sua vida no mesmo dia em que a mãe foi para a África.
A união desse casal foi abençoada pelo padre protetor, Bartolomeu de Gusmão, que
recebe esta denominação por proteger Blimunda, para que seus poderes não fossem
descobertos pelos inquisidores, e o casal passou a morar junto, mesmo sem os ritos religiosos
e sociais do casamento, a partir do dia em que se conheceram, não se preocupando com
convenções religiosas nem sociais. E, ao contrario do que acontecia com a rainha, as
descrições das relações amorosas do casal são totalmente diferentes, por que aí destaca-se
uma relação em que a entrega é mútua em função de um amor que surgiu de uma forma
mágica e inexplicável. A união foi consumada em uma cena repleta de simplicidade, mas que
não se compara, em termos de cumplicidade, ao que acontece no leito real, como nos mostra o
seguinte fragmento:
[...] Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que
não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por
dentro, Se eu ficar onde durmo, Comigo.
5
Embora seja século XVIII, os vestígios Medievais se fazem presente na relação do casal real, reconstituída por
Saramago, ainda se encontra sob os moldes da Idade Média.
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Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e
Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornaram muito mais
velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio
e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no
peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto
ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não
correu mais sangue. (SARAMAGO, p. 54-55).
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A focalização é um dos fatores responsável pela subversão da ordem, no que se refere
ao relevo das personagens, principalmente em se tratando de romances contemporâneos em
que se enfatiza a focalização múltipla. Porém, é a focalização heterodoxa que, segundo Vieira
(2008), predomina de forma exclusiva no romance moderno e contemporâneo, e podemos
considerá-la, no romance de Saramago, como o processo narratológico utilizado pelo narrador
para subverter a ordem das personagens femininas, pois para a teórica essa focalização
“constrói sempre personagens apócrifas, que fogem aos modelos canônicos familiares ou
relevantes para uma sociedade, sejam esses modelos políticos, econômicos ou outros.”
(VIEIRA, 2008, p. 305).
Percebe-se, portanto que, enquanto a focalização múltipla se faz presente no Memorial
do Convento (1999), dando vozes tanto aos personagens referenciais quanto as puramente
fictícias, a focalização heterodoxa inverte a ordem dentro do contexto narrativo não só das
personagens, mas também dos acontecimentos, colocando em primeiro plano a história
popular fictícia ao invés da história real oficial.
É, justamente, o que acontece com D. Maria Ana Josefa e Blimunda, duas personagens
em que a segunda, fazendo ela parte da classe popular, normalmente não seria colocada em
primeiro plano, esse espaço caberia a primeira personagem por ser esta, teoricamente, a mais
importante na história. A ordem de seus lugares sociais dentro da narrativa é invertida. A
mulher do povo, Sete-Luas, ganha status de rainha, isso do ponto de vista do narrador e da
elaboração das sequências narrativas.
Desse modo, a verdadeira rainha, personagem verídica da história, é posta como
personagem secundária. Isso só é possível de ocorrer porque a focalização heterodoxia
“permite que personagens individuais ou colectivas habitualmente marginalizadas ganhem
estatuto diferencial, relegando para segundo plano diegético personagens a que habitualmente
seria dado o relevo principal: [...]”. (VIEIRA, 200κ, p. 305). Logo, podemos dizer que a
inversão de destaques que há entre Blimunda e a rainha acontecem pela focalização
heterodoxa propagado pelo narrador e autor Saramago, pois, esta “[...] constrói, [...]
personagens apócrifas e inverte a ortodoxa distribuição dos relevos diegéticos. [...].”.
(VIEIRA, 2008, p. 305).
Outro ponto que devemos considerar é a posição da Igreja em relação às duas
personagens. A rainha, por ser devota, temer e respeitar as leis da Igreja, é, possivelmente,
considera a mulher ideal, a esposa perfeita, que dedica ao marido à mesma devoção que
consagra ao próprio Deus. Por mais que esse seja um perfil típico dos casamentos reais da
época, o leitor atento perceberá a crítica de Saramago à subordinação mantida pela Igreja. O
trecho a seguir delineia bem os anseios religiosos da rainha:
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ilegítima e transgressora com Baltasar representa a sua ousadia e coragem, se pensarmos que
viviam em uma época em que a inquisição pregada pela Igreja punia, quase sempre com a
morte, todos que não seguissem seus mandamentos. E mesmo ela tendo sido vítima
indiretamente da inquisição, uma vez que sua mãe foi condenada, não se submeteu a tais
comandos.
A protagonista, entretanto, contou com o fato de ter sido considerada louca pela Igreja,
principalmente quando ela passou a procurar incansavelmente seu marido, após ele ter
levantado voo acidentalmente na maquina voadora. Mas, desde cedo, Blimunda era “mau
vista” pela ordem religiosa. Sua mãe foi condenada, pela inquisição, por bruxaria e, por
conseguinte, Blimunda passou a ser alvo de desconfiança por parte do poder religioso. Foi
graças à proteção do padre Bartolomeu que seus poderes sobrenaturais não foram descobertos.
Dessa forma a inquisição não chegou até ela.
Nos tempos de andanças, em que Sete-Luas “[...] já era conhecida de terra em terra, a
pontos de não raro a preceder o nome de Voadora, por causa da história que contava. [...]”
(SARAMAGO, 1999, p. 343), a Igreja tentava se aproximar e subordiná-la aos seus preceitos,
porém, ela não aceitava, recusava-se, por exemplo, confessar-se:
REFERÊNCIAS
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VIEIRA, Cristina da Costa. Processos narratológicos. In.: ______. A construção da
personagem romanesca. Lisboa: Colibri, 2008, p. 227-325.
ZILBERMAN, Regina. O romance histórico – teoria & prática. In.: BORDINI, Maria da
Glória. (Org.). Lukács e a literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 109-139. (Coleção
Teoria da Literatura; 1).
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NO DIA QUE ROLAND FALOU COM SOTAQUE NORDESTINO
Introdução
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alfabetizada do lugar. Através do Nomadismo das palavras (Zumthor), esse tema se difundiu,
fazendo com que o rei da França e seus paladinos virassem personagens de muitos folhetos de
cordéis, permanecendo no imaginário nordestino até os dias atuais. “σa voz a palavra se
enuncia como lembrança, memória-em-ato de um contato inicial.” (ZUMTHτR, 1997, p.13)
A memória vem das vozes, são elas que repassam a memória coletiva. A voz, segundo
Zumthor, constrói o imaginário, pois não tem o compromisso da letra. Por isso, ela se
reterritorializa nos locais que se faz presente.
No processo de reterritorialização, os personagens da Canção de Rolando sofreram
mudanças. Eles foram adaptados ao ambiente e sentimentos nordestinos, religiosidade,
misticismo e aos acontecimentos mais recentes. Deste modo, o herói do folheto serve como
porta-voz dos hábitos e costumes nordestinos, agindo de acordo com a ética do seu ambiente
social.
A grande aceitação de Carlos Magno e os pares de França nos sertões nordestinos se
dá pelos valores que eles carregam, representando o equilíbrio e o fim das injustiças sociais
nessa região. O poeta popular procura escrever sobre temas que agradem os ouvintes e
escolhem os fatos mais interessantes, para a partir deles produzir seus relatos. Por isto, nos
folhetos que analisamos, não encontramos nada que remeta à morte dos Pares, fato este
narrado na Canção de Rolando, pois representaria a vitória do mal.
Analisaremos a seguir trechos do cordel Roldão no Leão de Ouro e da Canção de
Rolando, para evidenciar as similitudes existentes em ambas. Entre os componentes que
aparecem no ciclo carolíngio e se repetem na literatura popular nordestina estão o combate, a
busca contínua por aventura, o relato de proezas, as provas, os ardis, dilemas e a luta contra
seres monstruosos, como os gigantes.
Nas canções de gesta, a honra do herói depende da lealdade para com o seu senhor.
Tal característica ficou evidente na Canção de Rolando, quando ao ser designado por Ganelão
para comandar a retaguarda do exército franco, Rolando aceita mesmo sendo contra sua
vontade, já que era do agrado do Rei Carlos. Como vemos nos seguintes versos:
Ganelão, o traidor, indica Rolando para ficar na retaguarda, pois tinha conhecimento
que os Sarracenos atacariam os retardatários do exército franco. O herói medieval honrado, ao
ser escolhido para uma tarefa, não a recusa, visto que a honra é uma virtude muito
significativa da época. Rolando luta com todas as forças para defender os interesses do seu
Senhor, os interesses do Bem.
Já na literatura de cordel, a honra do herói depende da sua coragem. Em Roldão no
Leão de Ouro, destacamos o seguinte trecho: “A minha resolução/ É seguir pra Timorante/
Creio que é esta ocasião:/ τu eu perco a minha vida,/ τu Angélica sai da Prisão!”
(FERREIRA, 2007, 09). Nesses versos percebemos a coragem de Roldão, que de tão
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destemido não tem medo da morte e está disposto a perder a vida para libertar Angélica, presa
por causa de um sonho da madrasta. No sonho, um estrangeiro inimigo roubaria a princesa
para casar-se com ela. A madrasta adverte Abderaman, que por precaução prende a filha na
cova Tristeféa.
Outra passagem da Canção de Rolando que demonstra toda a honra do Conde é
quando ele percebe que os Sarracenos atacariam a retaguarda. Olivier, temendo uma derrota,
visto que o exército franco possuía menor quantidade de homens, pediu para o amigo tocar o
olifante, com a intenção de avisar aos outros franceses sobre o ataque, mas teve o pedido
negado. Rolando diz:
‘σão agrada ao Senhor Deus que por minha falta meus parentes sejam
censurados e que a Doce França caia na humilhação. Mas eu darei grandes
golpes com Durindana, minha boa espada que está cingida aqui do lado.
Vereis sua lâmina toda ensanguentada. Os infiéis pagãos se reuniram aqui
para sua desgraça; garanto-vos que estão todos condenados a morrer. ’ (A
CANÇÃO DE ROLANDO, 1988, v. 1059 a 1069)
Para o herói, tocar o olifante seria um sinal de fraqueza, de covardia. Tal atitude não
agradaria a Deus, pois os franceses e sua família ficariam conhecidos como fracos. Na ética
guerreira é melhor morrer lutando do que ser reconhecido como um covarde.
Nas Canções de gesta o mal é representado pelos Sarracenos, pagãos e mouros, assim
como pelos gigantes, dragões e bruxas, criaturas do imaginário medieval. Na Canção de
Rolando, o Emir pede ajuda aos gigantes para vencer os cristãos “‘Carlos é feroz, seus
guerreiros valentes. Jamais vi um exército com mais ímpeto. Mas pedi o auxílio dos barões de
τcian, Turcos, Enfruns, Árabes e Gigantes.’” (A CAσÇÃτ DE RτLAσDτ, 19κκ, v. 350κ a
3519).
O mal, nos cordéis que trazem as histórias do ciclo carolíngio, continua representado
pela figura dos mouros, turcos e pagãos, bem como pelos gigantes, bruxas e dragões.
Roldão que ia passando/ Tinha subido a escada/ Mas o gigante deu fé/
Embaraçou-lhe a passada/ Botou-lhe o alfanje no peito:/ - Quem é você,
camarada?/ Brutamonte então gritou: - Me prendam este soldado/ E o levem
para a forca/ Que vai morrer enforcado!/ Roldão puxou a espada/ Deu tudo
por acabado. (FERREIRA, 2007, p.20)
Nos versos acima, Roldão tenta escapar da cova Tristeféa após ter libertado Angélica
e é surpreendido pelo Gigante Brutamonte. Mais uma vez, o mal aparece na vida do herói
para adiar sua felicidade com Angélica. Como foi mencionado anteriormente, essas provações
são constantes tanto na gesta quanto no cordel.
O tema que envolve o herói Roldão é muito recorrente na literatura popular. Em
decorrência disto, encontramos outros títulos que abordam o ciclo Carolíngio. Foram eles: O
Príncipe Roldão e a Princesa Lídia, do autor paraibano José Costa Leite. A Prisão de
Oliveiros e A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, que são do autor Leandro Gomes de
Barros, nascido no Município de Pombal por volta do ano de 1865. A Grande Paixão de
Carlos Magno pela Princesa do Anel Encantado, do autor Zacarias José dos Santos, nascido
no município de Marcação no interior de Sergipe. A Vitória do Príncipe Roldão no Reino do
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Pensamento, de Severino Gonçalves de Oliveira, conhecido no meio literário como Cirilo de
Oliveira, do estado de Pernambuco. Roldão no Leão de ouro, nosso corpus, do autor João
Melchíades Ferreira da Silva, nascido em Bananeiras. As Bravuras de Roldão e a Mala do
Defunto, do autor Zé Barbosa, nascido em Fortaleza e residente em Teresina. E A História de
Carlos Magno e os Dozes Pares de França, do autor João Lopes Freire, não encontramos
maiores informações sobre o autor.
Considerações Finais
τ tema “Carlos Magno e os 12 pares de França” chegou aos sertões nordestinos por
intermédio dos colonizadores e obteve grande aceitação da população, por esta região ser
vítima de injustiças sociais. Partindo deste pensamento, concluímos que o núcleo narrativo
Carolíngio está presente no imaginário coletivo nordestino através dos cordéis, mantendo viva
a imagem do herói medieval da Canção de Rolando.
Na literatura de cordel, o herói passa por diversas provações. Esses obstáculos são os
combates que o mesmo precisa vencer para atingir seus objetivos, realizar sua missão. Ao
completar essa tarefa, ao herói é quase sempre dado a paga de casar-se com a princesa e
conquistar riquezas para que assim a noção de gratificação a quem faz o bem, o certo, seja
disseminada na escrita e na oralidade popular, tendo em vista que a mesma possui um alto
índice de aceitação pelos leitores em geral.
REFERÊNCIAS
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Alves, 1988.
BARROS, Leandro Gomes de. A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás. São Paulo: Luzeiro,
2007.
BARROS, Leandro Gomes de. A prisão de Oliveiros e seus companheiros. São Paulo:
Luzeiro, 2007.
BARBOSA, Zé. As Bravuras de Roldão e a mala do defunto. São Paulo: Luzeiro, 2007.
BORGES, Maria do Carmo F. B. O Maravilhoso em A Canção de Rolando. Maringá, 2011.
<http://www.ple.uem.br/defesas/pdf/mcfborges.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2012.
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FREIRE, João Lopes. A História de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Rio de
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KUNZ, Martine. Cordel, criação mestiça. In Cultura Cri-ti-ca, Revista Cultural da Apropuc-
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Barbosa, 1973.
NEMER, Sylvia. O ideal cavalheiresco: entre o romanceiro medieval, o cordel e o
cinema. Intermídias 7 – Dossiê Jerusa Pires Ferreira.
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ISBN: 978-85-237-0603-6
<http://www.intermidias.com/txt/ed7/textos/CINEMA_Silvia%20Nemer.pdf> Acesso em: 10
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IMAGENS DO FOL AMOR DE LANCELOT E GENEVRA D’ A DEMANDA DO
SANTO GRAAL: DELÍRIOS DE AMOR E VISÕES DE TERROR
1-Introdução
O amor cortês foi bem traduzido nos romances medievais e, por não raras vezes, vê-se
que esse amor levou ao desespero, à paixão sem medida e até mesmo ao desejo de morte
mediante a não concretização do sentimento. Lancelot, o cavaleiro do rei Arthur suspirou e
sofreu a dor de amar uma mulher que jamais poderia ser sua. O cavaleiro nutria pela rainha
Genevra, a esposa do rei, um amor, que podemos chamá-lo de cortês. Ora, o amor cortês
apresentava muitas funções, entre elas, atribuir uma relativa valorização feminina 2. É claro
que havia uma pedagogia para os homens, posto que o amor cortês, mediante os jogos da
corte e os gracejos, buscava ensinar aos homens regras comportamentais que lhes freassem os
instintos. Neste sentido, o amor cortês contribuiria para fazer com que os homens não se
perdessem de seus reais objetivos (cristãos).
Por outro lado, uma vez que havia a ideia de que o amor só se realizaria fora do
casamento, uma tensão existia: a Igreja precisou frear os impulsos anticristãos pertencentes às
teorias do amor cortês. Notemos que em novelas de cavalaria como A demanda do Santo
Graal, o amor cortês não é representado via matrimônio entre Genevra e Artur, mas na
relação adulterina entre aquela e o melhor cavaleiro do rei: Lancelot.
Para Rossiaud (2002, p. 4κ5), no caso de Lancelot, “(...) embora pecador, ele não traz
em si o mal, mas o “pegou” de Genevra, já que o adultério é um (...) crime considerado
essencialmente feminino”. A personagem de Genevra como representação feminina ecoa a
moral religiosa e social da época Medieval, não como elevação, mas como um modelo a ser
1
Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo (Orientadora)
2
Para Duby (1990, p. 349-350) o amor cortês permitiu que os homens que se queriam civilizados [tivessem] que
reconhecer que a mulher não é apenas um corpo de que alguém se apodera para dele gozar um instante ou que se
semeia para que ele alimente descendente e prolongue a duração de uma linhagem. Eles aprenderam que importa
também conquistar o seu coração, quer dizer, assegurar-se do seu bem querer, e que para isso é ter em conta a
inteligência, a sensibilidade e as virtudes singulares do ser feminino. Assim, “o amante não devia servir um
homem, seu igual, mas um ser que ele tinha por inferior, uma mulher. Eles vinham assim reforçar a ideia
vassálica sobre a qual repousava na época todo o edifício político” (DUBY, 1990, p. 344). Georges Duby (1990,
p. 59-93), aponta o amor cortês como um “remédio ideológico” para as contradições internas à nobreza.
Rigorosamente, para o autor (1990, p. 74) o amor cortês seria um jogo – mas um jogo realizado entre os homens
e que tem nas mulheres apenas personagens coadjuvantes. Neste sentido, o Amor Cortês é simultaneamente um
produto do sistema feudal e de uma sociedade fundamentalmente masculina no que se refere ao exercício do
poder social e político.
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temido. E é desta forma que o amor cortês é tomada pela Igreja, detentora do discurso
imperativo da época: o amor cortês é utilizado como mecanismo doutrinário.
Assim, o adultério nas novelas de cavalaria servia como exemplo moral-religioso,
portanto como algo que não deveria ser realizado e, a Igreja, como produtora ideológica,
traçava a imagem que a sociedade deveria ter. Além do que, escolher deixar esses
acontecimentos na novela era uma autoafirmação para os monges, que envolvidos com o texto
tinham maior consciência de que era melhor permanecer longe das mulheres, haja vista que
tinham a imagem de Genevra, que era o símbolo da mulher traidora e transmissora do pecado.
O Medievo traz à tona, então, uma imagem matizada do feminino: a mulher
socialmente vista sob clivagens diversas é refletida na Literatura de cavalaria e, para que
possamos clarear essa escuridão passemos ao estudo de imagem e representação.
3
Segundo Santo Agostinho, alegoria é “a palavra que soa de um modo, mas acaba significando outra coisa
diferente. Por exemplo, Cristo é chamado cordeiro (Jo 1,29); acaso é Ele animal? Cristo é chamado leão (Apo
5,5); acaso é Ele fera? É chamado pedra (ICor 10,4); acaso é Ele dureza? É chamado monte (Dan 2,35); acaso é
Ele elevação de terra? E, assim, há muitas palavras que soam de um modo, mas são entendidas de outro e a isto
se chama alegoria (AGUSTINHO apud LAUAND 2011, p.22).
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que o cavaleiro da charrete desenhava nas paredes do quarto no castelo de Morgana 4 são um
bom exemplo disso. Tais imagens evocavam a ausência da rainha Genevra, da mesma forma
que a colocava presente ali, de modo que ele a olhava e a admirava todos os dias.
A representação da qual tratamos é a chamada representação mimética, pois é por
meio dela que a passagem da realidade acontece, de forma que a sua percepção é
consequência da interpretação. A realidade é (re)elaborada adquirindo certas características
simbólicas e interpretativas. As imagens construídas por Lancelot (tanto a de seus feitos
guerreiros quanto às de sua amada) são representações da realidade que um dia ele viveu e, é
deste evento representativo que trataremos logo mais, entendendo melhor a força do símbolo
ou da imagem presentes nas novelas de cavalaria, tomando como demonstração o episódio
262 d’A demanda do Santo Graal – [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot
e conhecerom sua fazenda e da raĩa].
3 – Entrando na camara
O episódio a que nos referimos no tópico anterior trata do momento em que Lancelot é
aprisionado por Morgana, a irmã do rei. Enclausurado, o cavaleiro colocou nas imagens,
desenhadas por ele, suas lembranças de amor e seus feitos guerreiros, alimentando-se, desta
forma, dos momentos venturosos.
Um dia, tempos depois de Lancelot ser liberto por Morgana, Mordret e seus irmãos
são levados até ao castelo da irmã de Rei Artur. Recuperando-se de alguns ferimentos,
Mordret, um dos sobrinhos de Morgana, ao oitavo dia chega até a câmara que Lancelot
estivera preso e, encontra “feitos de Lancelot eram i pintados” (DSG, 1995, p. 211). A
princípio, ele não compreende o que estava vendo e chama seus irmãos para que vejam e sua
tia para que lhes explique o significado daquelas imagens. Morgana, de imediato se nega a
relatar tal fato, porém com a insistência dos sobrinhos, ela decide contar, declarando sua
revolta em tais palavras: “ca maior pesar nom me poderia fazer como fazer tal escanho a tam
alto homem como meu irmão e amar-lhe sua mulher e jazer-lhe com ela.” (DSG, 1994, p.
211). Diz ainda que, por sentir tão grande amor pelo cavaleiro, o fez prisioneiro ali por volta
de um ano e meio. Foi neste período que ele “pintou com sua mão todos seus feitos, dês que
foi cavaleiro até que foi aqui preso. E cada menhãã, tanto que se erguia, abraçava e beijava as
mãos da rainha tam de coraçom como se fosse ela meesma” (DSG, 1994, p. 211). Galvam, ao
ouvir toda história contada por sua tia, recusou-se a acreditar, pois tão bom cavaleiro era
Lancelot que não poderia cometer tal traição. Sua tia, por fim, pede aos cavaleiros que ao
chegar à corte, contem tudo que ouviram e viram naquela câmara.
Na verdade, as palavras ditas por Morgana expressaram muito mais sua amargura por
não ser correspondida com o amor de Lancelot do que pretensão em elevar a honra de seu
irmão Arthur. O que o cavaleiro representou naquelas imagens não foram nada mais que suas
emoções e carências amorosas, informando (quiçá) à Morgana que o seu coração pertencia a
uma única mulher. No entanto, as imagens que dedicara à Genevra, atingiram as emoções de
4
No episódio [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot e conhecerom sua fazenda e da raĩa]
(DSG, 1995, p. 211 ), o cavaleiro desenha imagens de seus feitos guerreiros e da sua amada Genevra e prega
estes desenhos nas paredes da câmara em que ele estava preso.
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Morgana com efeito contrário, porque Lancelot não as construiu tentando “provocar” a irmã
do rei, mas as construiu, simplesmente para expressar seu amor e para não esquecer o rosto de
sua amada Genevra.
A narrativa descrita acima revela algumas funções que Vladimir Propp traçou em um
inventario de 31 funções5 na obra Morfologia do conto Maravilhoso. Faremos a análise de
alguns desses elementos iterativos, ligados a uma ideia primeira: a presença da imagem
mimética e o seu papel de preservar as lembranças de Lancelot. Utilizaremos, no quadro
abaixo, quatro funções de Propp, a saber: proibição, transgressão da proibição, carência e
reparação da carência ou dano.
Quadro A, Episódio 262 [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot e
conhecerom sua fazenda e da raĩa]
Função
Episódio Função (Propp) Representação
(Demanda)
Como eles entrarom
Não pode viver o
na camara u jouvera
amor com Genevra,
preso Lancelot e Proibição X
posto que ela
conhecerom sua
estivesse ausente.
fazenda e da raia
Lancelot transgride a
Desenha imagens de
Transgressão da proibição de viver o
- Genevra na parede da
proibição amor mediante a
câmara.
fruição da imagem.
Lancelot sente falta
- Carência X
da rainha (ausência)
Lancelot desenha a
Ele se vale da
imagem da rainha na
Reparação do representação da imagem
- parede de forma a
dano/carência da amada: visão angelical
fruí-la, isto é, torná-la
da rainha
presente.
Neste 1º quadro devemos observar o uso das imagens numa perspectiva particular do
cavaleiro. A primeira função, das muitas descritas por Propp, a aparecer aqui é a proibição6.
Lancelot é proibido de viver o amor com Genevra, por ela ser casada e por ele ser cavaleiro
do rei. A seguir, vê-se a transgressão da proibição7. Lancelot não deveria envolver-se com
Genevra, porém transgrediu a regra, neste caso, mediante a fruição da imagem. A
representação é clara nos desenhos de Genevra desenhados nas paredes da câmara. Ora, se a
proibição foi transgredida é por que houve um motivo para isso, e tal motivo se deve a
5
Segundo Propp, as funções são grandezas que não mudam nas narrativas, o que muda são, por exemplo, os
nomes dos personagens. “a repetição das funções é surpreendente” (PRτPP, 2001, p. 16).
6
Na obra Morfologia do conto maravilhoso é a função II. Impõe-se ao herói uma proibição (PROPP, 2001, p.
19).
7
Função III. A proibição é transgredida (PROPP, 2001, p. 20).
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carência8que Lancelot sentia pela ausência da rainha. Mas, no decorrer do episódio temos a
reparação da carência9 sentida por Lancelot quando ele desenha a imagem da rainha de
modo a querer torná-la presente. Neste momento há a representação da pessoa amada, uma
visão angelical de Genevra que Lancelot simula nos seus desenhos.
O quadro 2, exposto abaixo, revelará o uso das imagens numa perspectiva social, ou
seja, vê-se o que os outros (Mordret e seus irmãos; Morgana) pensam sobre as imagens
produzidas por Lancelot.
Quadro B10, episódio 262 [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot e
conhecerom sua fazenda e da raĩa]
8
Função VIII-A. Falta alguma coisa a um membro da família, ele deseja obter algo (PROPP, 2001, p. 23).
9
Função XIX. O dano inicial ou a carência são reparados (PROPP, 2001, p. 31).
10
O caso da revelação (uso das imagens numa perspectiva social: o que os outros fazem da imagem produzida
por Lancelot).
11
Função III. A proibição é transgredida - nesta função aparece um novo personagem que é chamado
antagonista do herói (PROPP, 2001, p. 20).
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Artur). Assim sendo, como diz a função, a antagonista causa dano ao herói12 (Lancelot e
sociedade); à Lancelot por mantê-lo preso em seu castelo e à sociedade, por que aconselhou
aos sobrinhos que relatassem ao rei o suposto adultério da rainha e de Lancelot. A partir de
então, o dano é comunicado13. Comunicado e reparado14, na medida em que se diz que
Morgana causou dano a Lancelot por mantê-lo preso, da mesma forma reparou esse dano no
momento em que o manda embora.
Em resumo, as imagens de Genevra desenhadas na parede, permitiram que o cavaleiro
apaixonado mantivesse presente, mediante a representação imagética, as lembranças dos
amores vividos com a rainha. Nestas representações ela é vista de forma angelical, bela. É
claro, como vimos, que o conhecimento de tais quadros, permitiram à Morgana e a seus
sobrinhos descortinarem os segredos dos amantes, revelando-o ao rei Artur, causando, então,
a destruição do reino de Logres.
Como haverei de analisar dois episódios d’A demanda do Santo Graal, o caso que
trataremos a seguir, diz respeito à imagem do sonho de Lancelot. Esta é a mensagem futura do
seu destino. A passagem revela seus antepassados, gozando das maravilhas do paraíso. Estes
o avisam de que se persistir na vida de pecado, será merecedor dos castigos do inferno.
Os episódios 201 e 202 [Da visam que viu Lancelot] e [Da outra visam que viu
Lancelot.] contam que durante o sono Lancelot teve três visões. Na primeira delas ele vê um
rio cheio de cobras e vermes: “o mais feo e o mais espantoso que nunca vira” (DSG, 1995,
p.158). Desse rio saem sete homens coroados e felizes e, logo após, sai um homem magro,
pobre e cansado sem tal coroa. Os sete homens são exaltados pelos anjos e levados para o céu,
diferente do pobre que ficou. Na segunda visão que está presente no episódio 202 [Da outra
visam que viu Lancelot] Lancelot vê Morgana, “mui fea e espantosa” (DSG, 1995, p.159). A
irmã do rei Arthur estava escoltada por milhares de demônios que levaram o cavaleiro a um
“vale mui fundo e mui escuro e mui negro” (DSG, 1995, p.159). Ali, Lancelot viu uma
“cadeira em que siia a rainha Genevra toda nua e suas mãos ante seu peito” (DSG, 1995,
p.160); estava ela queimando fortemente.
E, na ultima visão, o cavaleiro vê em uma horta seus pais, o rei Bam de Benoic e a
rainha Helena, os quais lhe dizem que se permanecer numa vida de pecado, ele não terá nada
a alcançar naquele lindo lugar. Vejamos que o discurso cristão perpassa todas as visões, haja
vista que por trás de cada uma delas há mensagens a serem decodificadas. A princípio, temos
um homem que é pecador e, portanto não merecedor do reino dos céus. Depois, entregado aos
diabos dá a ideia de que ele será castigado e, por fim, o inconsciente do cavaleiro se sente
culpado até porque, seus próprios pais o chamam de pecador. O sonho lhe incomoda, na
medida em que parece ter sentido para Lancelot, como diz Vieira (1694, p.22) “o vicioso
12
Função VIII. O antagonista causa dano ou prejuízo a um dos membros da família (PROPP, 2001, p. 21).
13
Função IX. É divulgada a notícia do dano ou da carência, faz-se um pedido ao herói ou lhe é dada uma
ordem, mandam-no embora ou deixam-no ir. (PROPP, 2001, p. 24)
14
Função XIX. O dano inicial ou a carência são reparados. (PROPP, 2001, p. 31)
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sonha como vicioso, o santo como santo”. Assim sendo todas as visões parecem que vão se
cumprir em sua vida.
Neste sentido, ligados a ideia da imagem, vamos nos deter ao estudo das visões 2 e 3,
segundo as funções de Propp.
Quadro A15, episódio 202 [Da outra visam que viu Lancelot]
Episódio Função (Propp) Função (Demanda) Representação
Morgana, no inferno, A imagem dos
Função do doador/
Da outra visam que agarra Lancelot demônios, a culpa e os
Um ser hostil tenta
viu Lancelot dando-o aos pecados (enquanto
aniquilar o herói
demônios. alegoria).
O herói é Lancelot encontra
transportado ou com Genevra (alvo
- conduzido ao lugar da sua busca) no X
onde se encontra o inferno, conduzido
objeto que procura pelo sonho.
Por parte dos
O herói sofre
- demônios e da sua X
perseguição
própria consciência.
O herói é salvo da Lancelot é acordado
- X
perseguição do sonho
Nesta fase da narrativa, temos um sonho infernal tido por Lancelot; aqui vemos
aparecer a função do doador16. O doador é um ser que entra na narrativa para prover algo ao
herói, ajudando-o a superar algum dano sofrido; no entanto, antes que o herói possa receber
algo deste, ele deve passar por algumas situações que o levarão ao “galardão”. σeste sentido,
cabe a Lancelot ser aniquilado por um ser hostil, que no episódio é a figura de Morgana, a
própria representação do inferno, agarrando-o e entregando-o aos demônios. Num olhar
cristão, estar no inferno é ter a privação de Deus e da vida; numa representação maior para
Lancelot se trata da culpa pelos pecados cometidos pelo “boo cavaleiro” (DSG, 1995, 212).
Não se pode esquecer que a Igreja era o centro de tudo na Idade Média e, portanto, estar no
inferno sofrendo significa não ter vivido de acordo com os preceitos da Igreja.
Seguindo o passeio pelo inferno, na visão do cavaleiro, temos o deslocamento17 de
Lancelot de um espaço a outro. Genevra, a sua amada, está também no inferno por ter traído o
seu marido. Sabemos que Lancelot está sendo perseguido18 tanto pelos diabos do inferno
quanto por sua própria consciência de pecador. Mas para felicidade do herói, e para finalizar
os comentários sobre este 1º quadro, Lancelot é salvo da perseguição19 quando é despertado
15
O caso do sonho infernal (o uso das imagens numa perspectiva alegórica sobre Morgana e os demônios) –
plano maior da narrativa.
16
Função XII. O herói é submetido a uma prova; a um questionário; a um ataque etc., que o preparam para
receber um meio ou um auxiliar mágico. (PROPP, 2001, p. 25).
17
Função XV. O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura
(PROPP, 2001, p. 30).
18
Função XXI. O herói sofre perseguição (PROPP, 2001, p. 33).
19
Função XXII. O herói é salvo da perseguição (PROPP, 2001, p. 33).
21
O caso do sonho infernal – plano menor da narrativa.
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de seu sono. Passemos a observar agora, o quadro B numa perspectiva alegórica sobre
Genevra, a partir do uso das imagens.
Quadro B20, episódio 202: [Da outra visam que viu Lancelot]
Episódio Função (Propp) Função (Demanda) Representação
O Herói é
Transportado, Levado Lancelot é levado de
ou Conduzido ao um reino (do plano
Da outra visam que
Lugar onde se dos demônios) a X
viu Lancelot
Encontra o Objeto outro reino (local em
que Procura que está Genevra).
(Carência).
Lancelot encontra A visão da rainha
com Genevra (alvo toda “escabelada e
- A carência é reparada da sua busca) no nua, com língua de
inferno, conduzido serpente”: visão
pelo sonho. infernal da rainha.
Podem ser encontradas nesta passagem duas funções de Vladimir Propp. No sonho de
Lancelot, ele se vê transportado21 de um plano a outro da narrativa. Neste outro local ele vê
Genevra queimando, ardentemente, sentada numa cadeira de fogo; imagem infernal. O sonho
o conduz ao seu “objeto” de procura – na realidade – realizando, ao menos naquele plano, a
reparação da carência22. É claro que a visão da rainha queimando e com língua de serpente
servirá para amedrontar o cavaleiro. A rainha o admoesta a abandonar o pecado e voltar ao
caminho da salvação. A imagem da rainha serve à causa religiosa, imperativamente.
4 – Considerações finais
No presente trabalho buscou-se observar a função das imagens nos dois episódios da
Demanda aqui estudados. A presença marcante da rainha Genevra tanto nas imagens postas
na parede, quanto nas visões de Lancelot, mostram faces recorrentes da velha dicotomia –
santo x profano. Ela é tanto vista como anjo, quanto como demônio. Seguindo a linha
alegórica cristã, ela é vista como pecadora; já, Lancelot, apaixonado, desenha-a bela e
angelical. É claro que nos dois episódios, duas outras mensagens podem ser lidas. Falamos do
conhecimento de Morgana e dos sobrinhos sobre o caso adulterino de Genevra, mediante a
apreciação das imagens desenhadas por Lancelot. No segundo episódio, as imagens cristãs, no
sonho do cavaleiro, além de pintarem uma Genevra demoníaca, servem para estabelecer o
pensamento cristão. É a força da alegoria. A representação serve quer à causa do amor, quer à
causa religiosa.
22
Função XV. O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura
(PROPP, 2001, p. 30)
23
Função XIX. O dano inicial ou a carência são reparados (PROPP, 2001, p. 31)
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idade dos homens − do amor e outros ensaios. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. P. 59-65
ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval; tradução Maria Sabino Filho. Rio de
Janeiro: Globo, 1989.
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância. São Paulo:
Companhia das letras, 2001.
LAUAND, Jean. Tomás de Aquino e o papel do corpo na realização do homem. Notandum.
Porto: CEMOrOC-Feusp / IJI-Universidade do Porto. 2011, p. 22.
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ROSSIAUD, Jacques. Sexualidade.In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São
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VIEIRA, A. Xavier dormindo e, Xavier acordado: dormindo (...) Lisboa: Miguel Deslandes,
1964.
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HELGA E HONI: A FORÇA FEMININA NOS QUADRINHOS DE “HÄGAR, O
HORRÍVEL”
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A análise de imagens não é um objetivo novo na pesquisa histórica. A décadas os
historiadores vem se empenhando em utilizar pinturas, fotografias, esculturas, filmes, entre
outras, como fontes de pesquisa e análise. As imagens podem ser um forte indício do
pensamento de uma época ou das formas de representações de uma camada social, pode nos
dar pistas de como as pessoas pensavam ou deixavam de pensar, pode nos mostrar algo que
muitas vezes o texto escrito não consegue. O ser humano vem produzindo imagens desde o
início de sua existência e, diferente do que se pode pensar, ele não simplesmente reproduz
imagens do que ele ver ou reconhece, ele cria e essas criações não são arbitrárias, elas tem
uma intencionalidade, um objetivo. As imagens não são a realidade histórica em si, mas
trazem porções dela, traços, aspectos, símbolos, representações, dimensões ocultas,
perspectivas, induções, códigos, cores e formas nela cultivadas. Muitas vezes os quadrinhos
(assim como outras formas de arte) falam mais do seu criador e da época em que foram
criados do que do momento em que estão ambientados. Isto acontece nas tirinhas de Hägar,
Dik Browne utiliza-se da ambientação na Era Viking para nos apresentar aspectos da
sociedade e da família americana contemporânea.
As imagens que Browne utiliza para representar o cotidiano dos vikings vem de uma
tradição que deu origem à maioria das representações de vikings na atualidade, o romantismo
oitocentista.
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Helga é a representação da dona de casa americana do século XX em diante, ao
mesmo tempo independente ao ponto de ter grande controle sobre o marido, mas sem nunca
abandonar seus deveres domésticos, apesar de sentir alguma vontade de ter uma vida mais
livre, entretanto jamais renegaria os cuidados e carinhos aos filhos e o amor pelo marido,
mesmo sendo este um grande fanfarrão. Seu aspecto parece ter sido parcialmente baseado na
personagem Brünhild, valkiria e uma das protagonistas da Volsunga Saga, bem como em
mulheres da ópera de Wagner. Corpulenta e sempre com seus loiros cabelos trançados e farto
busto, muitas vezes aparece usando o característico avental de dona de casa, mas também
costuma, dependendo da ocasião, usar indumentária de guerra, como cota de malha, escudo e
espada.
Já Honi, a belíssima filha de Hägar, nos remete a uma jovem americana sempre
apaixonada e que aos 16 anos, segundo seu pai, já estava passando da idade para casar, e este
é exatamente seu maior medo, estar velha demais para conseguir um marido, com a ajuda da
mãe ela está sempre em busca deste marido. Honi está sempre vestida para a guerra,
contrapondo seu perfil de moça apaixonada, usa sempre uma saia de conta de malha (!),
escudo e espada ou lança, usa também, diferente do resto de sua família, um elmo com asas,
referência direta às valkírias da tradição oitocentista
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Assim, podemos perceber como os quadrinhos, bem como outras formas imagéticas,
podem ser utilizados em larga escala e com um ótimo aproveitamento no ensino e na pesquisa
histórica. A observação sobre a feminilidade nas HQs de Dik Browne realizada neste trabalho
é apenas um breve exemplo de utilização dos quadrinhos para analisar aspectos históricos de
uma época e de uma sociedade, neste caso de duas épocas ao mesmo tempo, a Era viking e a
sociedade americana do século XX e XXI. A importância de se fazer uso de meios que
possam estar mais próximos dos estudantes se faz presente, de forma que desta maneira os
mesmos poderão mais facilmente compreender as temáticas abordadas em sala de aula ou em
material didático. Além disso, a leitura de quadrinhos, independente da idade do leitor,
estimula a leitura e a observação, bem como de um olhar crítico acerca de alguns assuntos e
mostra além de tudo que diversão não deve jamais estar longe de aprendizado.
REFERÊNCIAS
BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
CALAZANS, Flávio. História em Quadrinhos nas Escolas. São Paulo: Paulos, 2004.
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LUYTEN, Sonia M. Bibe. O Que é História em Quadrinhos. 2. Ed. - São Paulo:
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LANGER, Johnni. O Ensino de História Medieval Pelos Quadrinhos. In: História, imagem
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_____. Guerreiras na Era Viking? Uma análise dos quadrinhos “Irmãs de Escudo” (Série
NORTHLANDERS). In: Roda da Fortuna: revista eletrônica de Antiguidade e Medievo 1,
2012.
_____. Guerreiras de Odin: as valquírias na mitologia viking. Deuses, monstros, heróis:
ensaios de mitologia e religião viking. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2009c,
pp. 59-78.
_____. Fúria Odínica. A criação da imagem oitocentista sobre os vikings. In: Varia História,
Belo Horizonte, nº 25, Jul/01, p. 214-230.
VILELA, Túlio. Os Quadrinhos na Aula de História. In: Como Usar as Histórias em
Quadrinhos na Sala de Aula / Alexandre Barbosa, Paulo Ramos, Túlio Vilela, Angela Rama,
Waldomiro Vergueiro, (orgs.). 4. Ed. – São Paulo: Contexto, 2010 – (Coleção Como Usar na
Sala de Aula).
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POÉTICA MEDIEVAL E ICONOGRAFIA MODERNA: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA DO CARMINA BURANA E OS CAPRICHOS, DE GOYA
Considerações Iniciais
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produções artísticas incluem uma ampla variedade representativa de retratos, paisagens, cenas
mitológicas, tragédia, comédia, sátira, farsa, homens, deuses e demônios, feiticeiros, e um
pouco do obsceno. Em 1785 tornou-se o pintor oficial do monarca Carlos IV e sua família,
passando a receber grandes encomendas da aristocracia.
Os Caprichos possuem imagens produzidas através de uma técnica inovadora de
pintura de água forte, água tinta e retoques de ponta seca. Goya, muito relacionado aos
iluministas, compartilha as suas reflexões sobre os defeitos da sua sociedade. Eram contrários
ao fanatismo religioso, às superstições, à Inquisição e algumas ordens religiosas, aspirando a
leis mais justas. Tudo isso criticou humoristicamente nas pinturas. Para se proteger das
condenações da Igreja, Goya atribuiu certo tipo de ambiguidade nas interpretações das suas
telas. Porém, temendo as impressões dos outros contemporâneos iluministas, o pintor retirou a
edição precipitadamente por temor à Inquisição. As obras só estiveram à venda 14 dias, e em
1803 Goya decidiu oferecer as pranchas e os 240 exemplares ao rei, em troca de uma pensão
vitalícia de doze mil reais anuais para o seu filho. Com o sucesso de Os Caprichos, Goya
passou a ser considerado por muitos estudiosos, como um dos precursores da arte moderna.
De acordo com BAUDELAIRE (apud WACHT, 2007, p. 64):
A maioria dos poemas do Carmina Burana foi escrito em latim medieval pelos
clérigos vagantes da Idade Média, os Goliardos. Tal denominação se deu por uma analogia
feita ao gigante “Golias”, um inimigo da fé cristã. A palavra Goliardo tem ainda outra
provável origem, a do latim "gula", pela comida e bebida consumida em excesso pelos
Goliardos. Segundo SPINA (apud WOENSEL, 1994, p.11):
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Os goliardos, uma classe que viveu na marginalidade, fugindo dos mosteiros,
dos centros de ensino e devotando-se a uma vida boêmia e contestatória,
puseram em relevo nas suas canções tabernárias os desmandos da Igreja, a
hipocrisia dos altos prelados eclesiásticos, como se tentassem uma reforma
da disciplina religiosa, prenunciando a ideologia luterana e calvinista do
século XVI.
O desenho foi para Goya uma distração que possibilitava representar suas
impressões “das coisas bizarras, engraçadas, grotescas e poderosas que via”
Hughes (p.207, 2007). Mas não foi um mero desenhista. Para Chabrun
(p.101, 19ι4), foi “um desenhador”. Seus desenhos não são meros esboços,
rascunhos apressados ou estudos de quadros. Os desenhos de Goya possuem
mais que uma descrição de um fato, eles possuem a opinião do próprio Goya
sobre as personagens representadas.
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hereges1, simpatizantes de uma ideologia diferente daquela inculcada pela classe dominante,
eram os Goliardos. Os clérigos vagantes, assim como Goya, satirizavam com veemência a
vida e o comportamento dos freires, a sociedade em geral e a Inquisição, na Idade Medieval e
na Idade Moderna, respectivamente. Foi no século XVIII, que Goya criticou estes e outros
males sem seguir uma ordem rigorosa. As obras do artista da corte, denunciavam de maneira
sofrida e contundente horrores inerentes a Idade Moderna em pleno século das luzes.
É verídica a percepção de que, nestas épocas, as artes invariavelmente se tornaram
espaços alternativos de manifestação de preocupação religiosa. Desta maneira, a criação
artística tinha por mérito a penetração na qualidade oculta das coisas. Para TILLICH (2000, p.
53):
A arte nos faz conscientes de algo que, de outro modo, não atingiríamos. Ela
é, portanto, uma das formas pelas quais o ser humano é capaz de transcender
sua finitude (...) Por meio dela, aquilo que está enraizado no fundamento do
ser é descoberto. Esse é o grande milagre da arte.
1
Eram considerados hereges, pela Igreja Católica, aqueles que possuíam doutrina ou linha de pensamento
contrários ou diferentes do sistema religioso padrão. Para acompanhar uma assertiva de Georges Duby, “todo
herético tornou-se tal por decisão das autoridades ortodoxas. Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos
outros” (DUBY, 1990, p. 177).
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seu processo já naufragou
se ao juiz nada pagou
a justa causa declina
só por falta de propina. (CB nº 1)
Tal poema satiriza a avareza dos prelados e, em particular, à corrupção dos juízes e
tribunais eclesiásticos desta época. É uma comparação plena feita aos líderes religiosos
católicos da Idade Média. A Semântica do poema traz que a mão trazendo propina faz do
homem piedoso um ímpio; o dinheiro, quando ministrado de forma errônea, resulta em
alianças, torna-se conselheiro e aparador de arestas.
Em A mesma mão que dá propina/ faz pecar qualquer cristão/ desavenças elimina/ a
grana chama a razão é feita uma analogia plena entre os ricos e os pobres, estando estes
últimos na posição dos derrotados, que são injustiçados e nunca têm direitos. Já aqueles, os
ricos, que estão envolvidos com a Igreja, tomam o dinheiro como fonte de paz: estes detêm a
razão e o conhecimento, segundo a Igreja Católica, e isto é criticado veementemente pelos
Goliardos. O juízo dos prelados/ depende dos ducados/ Juízes, vossa sentença/ a grana não
dispensa! Nestes versos, percebe-se uma acusação aos graves erros cometidos pelos juízes,
que, por dinheiro, julgavam as sentenças, muitas vezes condenando pessoas inocentes. Já na
última estrofe, a justiça do prelado é colocada como injustiça, em (des) cumprimento às leis.
O dinheiro é visto, no ângulo da ganância humana, como sujeito causador dos males.
Em relação a célebre coleção de obras satíricas, Os Caprichos, na tela de numeração
23, Aquellos polvos, o pintor Francisco Goya expõe indignação e reprovação para com a
ganância dos inquisidores do seguinte modo: pinta um prisioneiro com as mãos atadas, e
cabeça baixa, como se estivesse em plena reverência a excelência católica, ou como se este
fosse um ato de autoculpa, na densidade do ter que revelar, ainda que não haja nada a ser
dito. Sentado em uma plataforma, de frente para o líder religioso, além de estar perante a
população (com algemas e amarraduras, estando sua cabeça afundada no peito em símbolo de
vergonha), o homem é obrigado a ouvir a leitura de sua declaração/sentença. Do púlpito para
a presença de uma grande camada eclesiástica se constrói um sentimento de pavor e tensão,
na espera do que provavelmente aconteceria: o castigo de declaração de morte, ao réu.
Aquellos polvos (os pós), traz semanticamente a ideia de que ele, o acusado, trouxe essa lama,
ou seja, trouxe o pó/lama – a sujeira de outra cultura, ou de outra prática que não fosse a
clerical.
Considerações Finais
2
Esta palavra, se observada no contexto histórico, é totalmente adversa às próprias práticas da Igreja. É utilizada
para firmar a própria Igreja como “imaculada”, sem erros, a que detém poder, mas também para servir de
cobertor de seus absurdos. Bakhtin (1996, p. 9) destaca que a própria Igreja, a princípio, em determinadas festas
religiosas, permitia que o sagrado fosse dessacralizado.
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Referências
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UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA FEMININA NAS GUERRAS GERMÂNICAS DO
IMPÉRIO ROMANO À ERA VIKING
INTRODUÇÃO
EM TEMPOS DE GUERRA
No capítulo VII da obra, Reis, Chefes e Mulheres, é mostrado por Tácito o papel da
mulher em tempos de batalha, que fazia ouvir seu lamurio, em conjunto com o de suas
crianças, nas adjacências das formações militares.
Elas permaneciam ali para prestar a seus filhos e esposos, o apoio de que
necessitavam, tratando de seus ferimentos e lhes trazendo comida.
“Da constância de suas preces e oferecimento de seus seios”. τ incentivo por parte das
mulheres em tempos de guerra também é presente no capítulo VIII, Veleda e Aurínia, na qual
se mostra o valor da mulher como prova de fidelidade por parte de cidades germânicas, das
quais são demandadas, ao invés de homens, mulheres nobres, devido a seu valor. Eles as
acreditam como tendo algo de santidade e providência: “σão desprezam seus conselhos nem
desatendem suas previsões” (TÁCITτ, 9κ, Cap.VIII)
Como extrema expressão do poder feminino, ressaltamos Veleda, vidente líder dos
Bructeros e instigadora de uma rebelião contra o Império Romano, então comandado por
Vespasiano; por muito tempo adorada como deusa, da qual falaremos com mais minúcia no
curso do trabalho.
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Outras mulheres eram também consideradas deidades terrestres, como Aurínia, porém
não contemporaneamente nem no mesmo lugar que Veleda. E não o eram simplesmente por
lisonja ou por mero "endeusamento", mas por merecimento.
ÚNICA ESPOSA
No capítulo XVIII, Do Matrimonio, são expostas as etapas de uma união nupcial, que
era dividida em diversos rituais ou cerimônias, não detalhadamente descritas por Tácito, mas
que podemos citar:
Primeiramente, é o marido quem oferece dote à mulher, não o inverso (lembrando que
estamos trabalhando a partir do ponto de vista romano). O dote é direcionado, sobretudo para
os pais e parentes da noiva, não para o adorno da nubente ou para a satisfação de sua vaidade,
e sim para a manutenção e enriquecimento da família. Eram estes: “bois e um cavalo arreado
e um escudo com a frâmea¹1 e o gládio²2” (TÁCITτ, 9κ, Cap. XVIII).
Com o aceite por parte da família, é a vez da mulher de oferecer regalos ao noivo:
Armas são ganhas pelo prometido, sendo este um dos mais importantes rituais da união, “um
designo dos deuses”, no qual a mulher afirma de forma indireta não se julgar alheia aos
eventos de guerra e de coragem de seu companheiro. A mulher é advertida de seus deveres
para com o marido no curso das próprias cerimônias matrimoniais, e aconselhada a ser
“companheira de trabalhos e perigos do marido, com quem deve sofrer e lutar não só na paz
como na luta; os bois jungidos, o cavalo equipado, as armas doadas, assim lhe ensinam.”
(TÁCITO, 98, Cap. XVIII)
1
De acordo com o capítulo VI, A Direção da Arte Bélica, era uma arma germânica de fino e curto ferro, usada
na agricultura para fins bélicos quando necessário. Era de fácil manejo, podendo tanto ser utilizada de perto
como de longe, dependendo das circunstâncias.
2
Arma relativamente curta, no início porque eram feitas de bronze e mais tarde porque elas eram, raramente,
usadas para penetrar armaduras de ferro. A lamina era a espada de perfuração da Roma clássica, o gládio,
possuía somente dois pés de comprimento, no entanto, nos anos de crepúsculo do império o gládio foi
substituído por uma longa e cortante espada bárbara.
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O ADULTÉRIO
O BEM DA FAMÍLIA
τ bem da família é muito valorizado nessa sociedade, logo “limitar o número dos
filhos ou matar algum nascido é considerado infâmia, pois os bons costumes valem aí mais do
que as boas leis.” (TÁCITτ, 9κ, Cap. XIX).
Em relação aos filhos, segundo o capítulo XIX, Mulheres e Libertos, as mães não
abrem mão de sua alimentação para amas. A puberdade dos jovens germanos é prolongada
comparada à romana, pois os garotos conheciam tarde as mulheres e as meninas não eram
casadas tão cedo, devendo seu nubente ser igual em corpo, idade e força. Como aponta o
historiador italiano Antonio Piccarolo: “abstendo-se de toda relação sexual. Uma das
coisas mais feias e reprováveis para eles é ter relação com mulheres antes dos vinte
anos.”
A casa dos tios é tão estimável como a do pai. Logo, os filhos e irmãos são herdeiros e
sucessores do pai sem necessidade de testamento. Não há vantagem para eles em não
constituir família, pois a velhice é mais agradável para quem possui mais parentes.
OS ESCRAVOS
No capítulo XXV, A Direção Dos Lares, seria de se esperar que o papel da mulher
fosse abordado mais detalhadamente. Porém, o capítulo se trata da relação senhor/escravo,
que Tácito compara à romana. Do lado romano o escravo era oprimido, cruelmente
maltratado, considerado objeto de estrita propriedade e uso; enquanto que o escravo
germânico era muito semelhante ao liberto, com a diferença de que não possuía autoridade
nem mesmo dentro de sua casa, enquanto aquele a tinha, a pesar de nenhuma na cidade.
Possuía a posse (porém não a propriedade) de sua casa, sua família e uma terra para lavrar,
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tendo que pagar um tributo em grãos, gado ou em vestes para o seu senhor, enquanto as
mulheres e os filhos prestavam outros serviços à casa.
“Raras vezes espancam o escravo ou o amarram, ou forçam-no a trabalhar: porque
matam-nos, não por castigo, nem severidade, mas quando cegos de paixão ou de cólera como
se fora algum inimigo, ainda que o façam sem nenhuma penalidade.” (TÁCITτ, 9κ, Cap.
XXV).
Com a morte de um importante guerreiro germânico, era feito seu funeral, não muito
pomposo. O corpo do ilustre homem era incinerado, sem vestes ou perfumes, lançando-se ao
fogo somente suas armas e por vezes seu cavalo.
Às mulheres era reservado o pranto; aos homens a memória:
AS PROFETISAS GERMÂNICAS
Não obstante este trabalho ser concentrado numa sacerdotisa de fato, ou seja,
considerada uma por numerosas tribos germânicas da época, às mulheres em geral eram
atribuídas capacidades mágicas, mesmo que não gozassem de qualquer proeminência social
nesse sentido.
O capítulo VIII da Germânia de Tácito (98 d.C), Veleda e Aurínia, aponta o papel das
mulheres no incentivo ao combate e o crédito dado a elas por seu poder antevidente:
Nota-se que até mesmo eram preferíveis mulheres a homens para serem exigidas como
demonstração de fidelidade entre as cidades.
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Uma das sacerdotisas mais influentes do primeiro século da Era Comum foi Veleda,
da qual mais informação se possui em relação a outras mulheres deificadas pelas tribos
germânicas da época.
Veleda era uma Volva, da tribo germânica dos Bruteros³3 que conquistou alguma
proeminência durante a rebelião dos Bátavos de 69-70 d.C., encabeçada pelo líder bátavo
romanizado Gaius Julius Civilis, quando ela corretamente previu o sucesso inicial dos
rebeldes contra as legiões romanas.
O nome pode não o seu de fato, mas sim um nome profissional, um título genérico
para uma profetisa (σórdico antigo "vala"), significando “aquela que vê”. A antiga população
germânica via uma divindade profética nas mulheres e as consideravam profetisas tão
verdadeiras como deusas viventes. Na segunda metade do primeiro século d.C., Veleda era
considerada como uma deidade pela maioria das tribos da Germânia central e gozava de
ampla influência.
Ela vivia numa torre próxima ao Rio Lippe, afluente do Rio Reno. Os habitantes do
acampamento romano da colônia de Claudia Ara Agrippinensium (atual cidade de Colõnia,
Alemanha) aceitaram sua arbitragem num conflito contra os Tenteros, uma tribo não-federada
da Germânia (fora da fronteira do Império Romano). Em seu papel como árbitra, os
mensageiros não eram admitidos a sua presença; um intérprete levava a ela as mensagens e
reportava seus oráculos.
Civilis, o líder bátavo, originalmente ofereceu sua força como aliado de Vespasiano
durante a disputa de poder romano em 69 d.C., mas quando viu a frágil condição das legiões
da Germânia romanizada ele se revoltou abertamente. Não é claro se Veleda meramente
profetizou a rebelião ou efetivamente incitou-a; dada a adoração dos Germanos a ela como
uma deusa, remota em sua torre, a distinção pode não ter sido clara à época. No começo do
ano 70 d.C, a revolta foi aderida por Julius Classicus e Julius Tutur, líderes dos Trevires, que,
como Civilis, eram cidadãos romanos.
A guarnição romana de Novaesium (hoje Neuss, Alemanha) se rendeu sem mesmo
lutar, assim como fez a guarnição de Castra Vetera (perto da moderna Xanten em
Niederrhein, Alemanha). O comandante da guarnição romana Munius Lupercus, foi enviado a
Veleda, no entanto, ele foi morto na viagem, evidentemente numa emboscada. Mais tarde,
quando o tri remo pretoriano foi capturado, ele foi mandado Rio Lippe acima como um
presente para Veleda.
Uma grande demonstração de força por parte de nove legiões romanas comandadas
por Gaius Licinius Mucianus causou o colapso da rebelião. Civilis foi encurralado em sua
casa na ilha da Batávia, no baixo Rio Reno, por uma força comandada por Quintus Petilius
3
Os Bruteros foram outrora comarções dos Tenteros: mas agora segundo a narrativa ocuparam suas terras os
Chamavos e Angrivários, depois de terem expulsado e destruído totalmente os Bruteros com o consentimento
das nações circunvizinhas, ou por ódio que lhe votavam conseqüente de sua soberba ou pelo desejo (prazer) da
presa ou por alguma mercê particular que foram servidos de fazer-nos os deuses; já que também não nos
negaram o gosto de semelhante espetáculo
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Cerialis; seu destino é desconhecido, mas em linhas gerais Cerialis tratou os rebeldes com
surpreendente lenidade, a fim de reconciliá-los às regras romanas e ao serviço militar. No
caso de Veleda, ela foi mantida em liberdade por vários anos.
Em 77 d.C os romanos a capturaram, talvez como refém, ou para oferecerem-na asilo.
Seu raptor foi Rutilius Gallicus. Um epigrama grego, achado na Ardea, a alguns quilômetros a
sul de Roma, satiriza seus poderes proféticos. Veleda pode ter agido a favor de Roma quando
negociou a aceitação de um rei pro - Roma pelos Bruteros em 83 ou 84 d.C. Ela
evidentemente já havia falecido à época em que Tácito escreveu sua Germânia em 98 d.C.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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AS VALQUÍRIAS NO IMAGINÁRIO VIKING
1
Período que é compreende a expansão viking, começa no ano de 793 com o ataque ao mosteiro de Lindisfarne
e se estende até 1066, quando começam as conversões dos pagãos para o cristianismo.
2
Um dos “clãs” pertencentes a religião nórdica, na qual temos os Æsir, que são deuses que residem em
Ásgarðr,e são os deuses relacionados com as guerras. Formam também o principal panteão dos deuses nórdicos,
nos Æsir incluem-se ai deuses como: Odim,Thor,Heimdall,Loki, Baldr entre outros. Os Vanir são deuses
relacionados a prosperidade e a fertilidade, possuíam um grande conhecimento em magia, viviam em Vanaheim,
entre os deuses pertencentes aos Vanir estavam: Frey, Freyja, Njord.Além desses dois clãs, existiam ainda as
Norns, os Jotnar, dragões e outros seres que hoje em dia são ligados a fantasia.
3
Snorri Sturluson foi um poeta islandês que viveu de 1178 até o ano de 1241, é conhecido como o escritor da
Edda em Prosa que é considerada uma das importantes fontes sobre a mitologia nórdica, possui também a autoria
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vivos e dos mortos. São espíritos femininos chamados de Valquírias, que
aguardam os guerreiros em Valhalla; e nenhuma descrição dos deuses da
batalha estaria completa sem ela. (DAVIDSON, Hilda.2004, p.50)
E o presente trabalho irá explorar todas essas imagens das Valquírias, não se
prendendo ao trabalho de apenas um desses historiadores e as suas conclusões a respeito das
Valquírias.
A palavra Valkyrjor significa “a que escolhe os mortos”, porém desde tempos
remotos, os germanos pagãos já acreditavam em uma entidade, que também era relacionada a
guerra, que se chamava Wælcyrge, palavra essa que também significava “a que escolhe os
mortos”.
Na primeira estrofe escrita acima, nós podemos ver claramente a questão das entidades
sanguinárias, geradoras de carnificina em batalhas. As wælcyrge também aparecem em alguns
manuscritos cristãos anglo-saxões a partir do século VIII como por exemplo o sermo lupi,
Corpus Christi entre outros, também tendo as características sobrenaturais e sanguinárias, em
listas de seres praticantes do mal, junto com pecadores e bruxos.
da Heimskringla, na qual fala sobre os reis escandinavos , é autor de várias fontes sobre os escandinavos
utilizados hoje em dia.
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Já na segunda estrofe, é visível também a imagem das Valquírias como agentes do
destino da batalha, na qual elas escolhem quais guerreiros irão morrer e assim tendo um certo
controle sobre os vencedores e os derrotados , função essa parecida com a das Norns4.Uma
hipótese existente sobre essa imagem tão violenta das Valquírias, está relacionado com as
sacerdotisas dos antigos cultos para os deuses da guerra germânicos. “Como a maioria desses
cultos eram muito violentos, contando em algumas vezes com sacrifícios humanos após os
conflitos, o mito de seres femininos sangrentos poderia ser uma lembrança desse aspecto
religioso.” (LANGER, Johnni. 2009, p. 61). Sem falar que na maioria das vezes esses
sacrifícios humano, a pessoa escolhida para morrer ocorria aleatoriamente, e dessa forma se
criava uma situação na qual, parecia que os deuses teriam escolhido os que iriam se sacrificar
por intermédio das sacerdotisas.
Foi com o período viking que as Valquírias tiveram a sua representação menos
violenta como foi no passado, a partir de agora as Valquírias se apresentam na sua forma mais
famosa, conhecida e popular. Aqui apresentam duas funções, são as guerreiras, que são
enviadas por Odin para as batalhas para lá escolherem os guerreiros que irão morrer e serão
levados para o Valhalla, e chegando lá passam a exercer uma outra função que é a de servir
bebidas aos guerreiros no Salão dos Mortos(Valhalla), como se fossem taberneiras. Existem
algumas fontes que trazem justamente essa representação das Valquírias, vestidas com
armaduras e possuindo nomes que se referem a batalhas como a Edda poética, porém quando
passamos para o lado iconográfico, dificilmente encontramos alguma imagem que relacione
as Valquírias como guerreiras, vestidas para a guerra, na sua maioria, as imagens que se
conhecem são de mulheres com vestidos e portando um corno de bebidas para servir a
alguém, imagem essa de submissão ao homem.
4
As Norns são deusas pertencentes a mitologia nórdica, e são responsáveis pelo destino tanto dos homens
quanto dos deuses, temos a Urð que é uma espécie de guardiã do passado, é representada como uma mulher bem
velha, que guarda o passado, temos a Verðandi que representa o presente, é representado como uma mulher na
qual os acontecimentos são tecidos por seus pensamentos e temos Skuld que representa o futuro, é representada
por uma virgem e é responsável pelo destino.
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As Valquírias como donzelas-cisnes e protetoras dos heróis
Uma outra representação das Valquírias é a das donzelas-cisnes, nesse caso ocorre
uma espécie de “domesticação” das Valquírias, elas apresentam um aspecto de cisnes,em
algumas fontes que falam sobre a representação das donzelas-cisnes, elas são pegas como
esposas de filhos de reis e passam a ter uma vida comum, um exemplo de fonte sobre as
mesmas, é a Balada de Volundr (Vöundarkviða). Essa relação entre Valquírias donzelas-
cisnes e o casamento com filhos de reis servem como uma forma de legitimação do poder
daquele rei, em todas as narrativas na qual as donzelas-cisnes estão inseridas elas aparecem
como filhas de reis e são casadas com outros filhos de reis que mostram ser guerreiros bravos
e sem nenhum temor, bem como o simbolismo do animal, que vem da sua cor branca,
vincula-se com a manifestação do poder e graça da luz(LANGER, Johnni.2009,p.65).
Na Völsunga Saga, em um curto capítulo, nós podemos ver também as Valquírias
servindo como protetoras do destino do herói, nesse caso especificamente nós falamos do
herói Helgi e da Valquíria Sigrun, na qual depois de se conhecerem e se apaixonarem um pelo
outro, Sigrun passa a proteger Helgi nas suas aventuras, a exemplo de uma travessia que era
feita por Helgi, onde deu uma forte tempestade deixando o mar extremamente agitado, e
quando estavam prestes a morrer devido a tempestade, aparece Sigrun e os salva, levando-os
para um porto seguro em terra firme. Além disso, temos também a presença de Sigrun,
durante as batalhas travadas pelo seu amado Helgi, sempre tendo o mesmo, aos seus olhos e o
protegendo de qualquer ameaça contra sua vida, a exemplo de quando o herói Helgi trava um
batalha em um lugar chamado Frekastein, um dura batalha, onde muitos homens foram
mortos tanto do lado de Helgi quanto do seu inimigo, até que surgem um grupo de donzelas
cavalgando no ar acima deles e uma dessas mulheres era Sigrun, e a partir dai Helgi se lança
para o seu inimigo, o rei Hodbrodd, e o mata.
As duas partes se encontravam no lugar chamado Frekastein e lá se travou uma dura
batalha. Helgi avançou através das tropas inimigas. Muitos homens tombaram mortos. Então
eles viram um grande grupo de donzelas cavalgando com escudos, e era como se estivessem
olhando para as chamas. Estava lá a princesa Sigrun. O rei Helgi se lançou contra o rei
Hodbrodd e o matou sob os estandartes. (Völsunga Saga Traduzida do islandês antigo.
MOOSBURGER,Théo de Borba,2009,p.57)
Continuando a falar sobre a Saga dos Volsungos, nós já falamos sobre a relação entre
o herói Helgi e a Valquíria Sigrun, porém ainda nessa saga nós temos a aparição de uma outra
Valquíria, nesse caso a Brynhyldr (Brynhild), que foi imortalizada nas óperas de Richard
Wagner, e se tornou a Valquíria mais famosa que se existiu, na saga, após o herói Sigurd,
matar e comer o coração do dragão Fafnir, ele passa a ouvir a língua dos pássaros e descobre
que no alto da montanha Hindarfiall está uma Valquíria que se chama Brynhyldr, ele vai até
lá, consegue encontra-la, nesse momento, ela conta o motivo de estar presa, pois desobedeceu
a Odin e a partir daí a história tem o seu desfecho, com os dois se apaixonando, porém certos
de que esse é um amor proibido, nesse encontro entre Sigurd e Brynhyldr ela acaba ensinando
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para o herói o que sabe sobre as runas e também o aconselhando sobre o convívio, como o
que poderia ou não acontecer, dependendo das decisões tomadas por Sigurd.
Ainda na Saga dos Volsungos, é possível ver uma dualidade, presente na questão do
papel da mulher na sociedade escandinava, de um lado nós temos a irmã de Brynhyldr, que se
chama BekkHyldr5, que sempre foi submissa ao seu marido, e sempre se empenhou em fazer
as atividades domésticas e de um outro lado nós temos a Brynhyldr, que usa cota de malha,
elmo, espada, que não se preocupa com afazeres de casa e também não perde a oportunidade
da ir a uma batalha,motivo esse dado por ela ao herói Sigurd para os dois não poderem ficar
juntos, pois como ela mesmo diz ela é uma mulher da guerra, mostrando assim uma imagem
de não sujeição ao homem.
Com o passar do tempo, nós fomos vendo as várias formas, nas quais as Valquírias
foram imaginadas pelo povo germânico, começando com as Wælcyrge na antiguidade, no
período viking, passando a ser seletoras dos guerreiros nas batalhas e receptoras dos mortos
nas batalhas no Valhalla, passando por donzelas-cisnes, protetoras dos heróis, guerreiras e
filhas de reis. No período viking esse mito pode ser um pouco explicado pelo fato de os mitos
e as tradições serem feitas oralmente, e certamente sempre houve uma intenção dos
contadores de dignificar e glorificar certas histórias, e para isso eles tiveram que também
5
Brynhyld, o radical Bryn significa “cota de malha” e isso nós podemos relacionar com a atividade de guerreira,
na qual Brynhyldr se dedicava.
Bekkhyldr, o radical Bekk significa “banco”, e isso nós podemos relacionar com atividade, na qual Bekkhyldr se
empenhava em fazer que era os trabalhos domésticos.
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dignificar a imagem das Valquírias, não deixando elas terem a mesma imagem da antiguidade
como agentes sanguinárias e maléficas. Ao mesmo tempo nós temos a questão da ligação das
Valquírias com a aristocracia, em nenhuma das narrativas você vê as Valquírias sendo
retratadas como escravas, camponesas ou outro membro das classe baixa, mais sim, sempre
sendo ligada a filhas de reis e pertencendo a realeza, muitas vezes isso serviria para legitimar
os poderes da classe alta e da realeza, pois o rei casado com uma Valquíria daria a impressão
de que o próprio Odin teria legitimado aquele rei, como se o rei tivesse sido aprovado por
Odin.
Com isso, o mito legitima o poder real, o poder do Konungr(rei) e da classe dos Jarls
em geral, em detrimento das outras divisões sociais. Colabora coma criação de vínculos
odinistas com os guerreiros vivos, a exaltar os feitos gloriosos dos heróis mortos, a
estabelecer uma conexão sobrenatural com o poder da classe guerreira e a realeza, a minoria
dominante. (LANGER, Johnni. 2009, p.72)
ANEXOS
Fig. 1: Pingente de prata (BOYER, 2004, p.29). Esse pingente representa uma das
únicas imagens que mostram as Valquírias como guerreiras.Uma portando um escudo e de
elmo, e a outra com uma cota de malha(o que dá pra entender sobre o quadriculado embaixo)
Fig. 2: As Valkyrjas, de Ferdnand Lekke, 1889. Depois das óperas de Richard Wagner,
principalmente depis de “τ Anel do σibelungos”, as Valquírias passaram a ser vistas com
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uma imagem bem fantasiosa de uasr elmos com chifres ou com asas, como dá para perceber
nessas imagens das Valquírias, na qual todas elas usam esses tipos de elmo.
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FONTES
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Torpe.
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Britanicas (séc. X). Medievalista. N.11, 2012
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ENTRE A AGULHA E A ESPADA: AS MULHERES GUERREIRAS NAS CRÔNICAS
DE GELO E FOGO
A Nova História
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Os romances fantásticos e o medievo no imaginário contemporâneo
Há também subgêneros da Fantasia: Sword and Sorcery, Low Fantasy, High Fantasy,
etc. O subgênero Sword and Sorcery, desenvolvido por Robert Ervin Howard, é caracterizado
pela ênfase nas batalhas entre o herói (dos quais Conan, o bárbaro, é o mais famoso) e
monstros, magos, deuses, etc. Howard foi um dos grandes influenciadores do gênero, tanto na
narrativa quanto na estética das personagens, que marcou a estética de muitos filmes nas
décadas de 60 e70, assim como HQs e jogos até os dias de hoje.
A diferenciação entre Low e High Fantasy decorre de onde a fantasia se desenvolve.
Se no próprio mundo do leitor, é denominada Low Fantasy (Harry Potter, Percy Jackson &
1
Tuttle, L., Writing fantasy and science fiction. Writing handbooks. (London, 2001, p.30).
2
Este cenário de sonho é fundamental para o sucesso de qualquer trabalho romântico; (…) é com frequência a
substância de tal trabalho, e, não importa quão bem elaborados sejam os personagens ou quão boa seja a
linguagem, escritores serão atraentes para os leitores fiéis de romances de acordo com a habilidade com que
evoquem a ambientação, seja natural ou inventada. Seus trabalhos podem não ser julgados por um critério
normal mas pelo “poder” de suas imagens e em que medida sua escrita evoca este “poder”, estejam eles tentando
transmitir o “selvagem”, “estranhamento” ou “charme”; se, como Melville, Ballard, Juenger, Patrick White ou
Aleko Carpentier, eles transformam suas imagens em intensas metáforas pessoais (…).
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the Olympians), e High Fantasy se em um diferente do real, os quais Tolkien definiu como
“Mundos Secundários” (Middle Earth do universo Tolkieniano, Westeros e Essos das
Crônicas de Gelo e Fogo).
Grande parte dos componentes dos universos desenvolvidos pelos autores de Fantasia
advém de influências dos mitos e lendas do folclore de variados povos: gregos, egípcios,
ameríndios, mas principalmente celtas e germanos. As ambientações, assim como o grau de
tecnologia dos povos e a maneira que estão estruturadas as sociedades descritas de alguns
mundos secundários refletem tempo e lugares da nossa própria história. Quando tais
mundos se assemelham à Europa Medieval e têm grande ênfase em batalhas, tal romance é
denominado Fantasia Medieval ou, preferivelmente, Fantasia Épica. A série abordada
enquadra-se nessa categoria, uma vez que a sociedade no continente de Westeros assemelha-
se à da Europa Central na época dos reinos germânicos, com o poder centralizado nas mãos de
um rei, porém com senhores vassalos poderosos encarregados da manutenção das terras que
controlam (e um dia reinaram), do povo que as habita e do recolhimento dos impostos. O grau
de tecnologia também é correspondente ao da Europa medieval, inclusive no quesito bélico,
sendo as batalhas ainda travadas corpo a corpo com uso de armas brancas e o corpo protegido
por armaduras. Não possuem o conhecimento da pólvora e fabricação de armas de fogo,
limitando-se ao uso do arco e balestra (capaz de perfurar armaduras) como armas de longo
alcance e o trebuchet como principal arma de cerco.
Uma analise das mulheres no medievo por meio de uma comparação com as
personagens guerreiras das Crônicas de Gelo e Fogo
O universo criado por George R.R. Martin esta repleto de personagens femininas
fortes e marcantes, dispostas a lutar, em alguns casos, literalmente, por aquilo que acreditam e
por aqueles que amam; Catelyn Stark, Senhora de Winterfell, mesmo abalada
pisicologicamente após a morte do marido e incerta quanto à segurança de suas filhas,
mantem-se aparentemente segura, alicersando emocionalmente seu filho Robb, que ao herdar
a posição do pai, reúne seus vassalos e marcha em busca de vingança. E a rainha Cersei, que
para manter a salvo seus filhos e, principalmente, seu posto de Rainha Regente, age
deliberadamente não se importando com os sofrimentos daqueles que estão em seu caminho.
Neste artigo buscamos fazer um panorama do real papel da mulher de elite na
sociedade medieval nos constantes estados de guerra por meio de uma comparação com as
personagens (literalmente) guerreiras das Crônicas de Gelo e Fogo.
Filha de Lord Eddard Stark, Senhor de Winterfell e protetor do Norte. Como toda
jovem nobre, recebera uma educação distinta, voltada para torna-la uma lady e exercer bem
seu papel de esposa, o que incluía os trabalhos com agulha, para os quais, diferentemente de
sua irmã mais velha, Sansa, não apresentava nenhum talento ou interesse. Arya preferia
acompanhar os treinos de seus irmãos, cavalgar e perambular por Winterfell que cumprir com
os ensinamentos ministrados pela septã (religiosa responsável pela educação das garotas
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nobres). Foi presenteada com uma espada feita sob medida para ela por seu meio-irmão John
Snow, de quem era particularmente próxima, e nomeou-a “Agulha”. Dedicou-se ao treino da
esgrima como jamais se dedicara aos trabalhados de tricô. Ao mudar-se para Porto Real,
capital dos Sete Reinos, recebeu treinamento particular de Syrio Forel, um espadachim da
cidade livre de Braavos, que lhe ensinou o tradicional estilo de esgrima braavosii conhecido
como dançarino de água (Water dancer), que diverge do estilo clássico de Westeros. Os
acontecimentos que levariam à guerra pelo trono real, como a morte do Rei Robert e de seu
pai, Lord Eddard, levaram-na a fugir e sobreviver por conta própria no hostil reino em guerra.
Os ensinamentos de Syrio Forel, que dera a vida para salvá-la, foram determinantes para que
sobrevivesse às adversas situações que se sucederam.
Desta forma, Arya apresenta um perfil contrário àquele idealizado das mulheres de
elite tanto da sociedade de Westeros quanto da Europa medieval. Os registros do período
informam mais sobre a ideologia dominante do que sobre a possível realidade, pois fornecem
uma representação idealizada da mulher aristocrata medieval. Representação esta, condizente
com o discurso de retidão moral pregado pela igreja, que era exteriorizada por meio da
moderação da dama ao demonstrar suas emoções e interesses, aparência (alguns bispos
proibiam o uso da maquiagem), alimentação (visando à fertilidade), gestos, vestimentas, etc.
Porém a austeridade excessiva também não era bem vista, pois uma dama devia cuidar da
aparência e vestir-se de acordo com seu status social.
A mulher era educada desde a infância para o papel de esposa. Havia tutores que
auxiliavam na educação (religiosa, literária e cientifica) das jovens, mas cabia à mãe verificar
o conteúdo da instrução. As mulheres casavam-se muito cedo, visando a fertilidade e devido à
baixa expectativa de vida na Idade Média (aproximadamente quarenta anos), enquanto os
homens podiam unir-se matrimonialmente numa idade mais avançada. Com efeito, a família
planeava os casamentos desde o nascimento das crianças e a escolha do cônjuge era feita pelo
pai, desconsiderando a vontade da nubente. O casamento -sobretudo entre os nobres- era um
contrato entre famílias, possuía um carácter prático e essencialmente materialista, tendo por
objetivo reforçar alianças ou apaziguar antigas desavenças, visando preservar ou ampliar o
patrimônio fundiário familiar, principal fonte de riqueza na Europa medieval.
Entretanto, a dama medieval não se limitou a ser apenas a esposa subserviente tecendo
enclausurada em seu castelo ou ao que era idealizado nas canções de cavalaria.
Na prática, algumas mulheres tiveram poderes amplos e foram administradoras
eficientes, uma faceta de sua existência que a literatura medieval tentou esconder, mas que
aparece nos documentos administrativos e judciais. (Farguet. Revista História Viva Especial,
n° 32, pg 33).
De acordo com Macedo (1997), entre os anos de 1152 e 1284, na região de
Champagne dos 279 detentores de domínios territoriais, 58 eram mulheres.
A palavra dama (do latim domina) remete ao domínio que ela exercia no feudo sob a
autoridade do marido e poder inconteste de todos os assuntos relacionados ao feudo durante
as constantes ausências do senhor. Portava uma bolsa e um malho de chaves pendurados na
cintura como simbolos de seu poder. Entre seus encargos estavam, além da educação das
crianças, a administração da propriedade, garantir o bem estar dos familiares e hospedes,
obter provisões para o castelo e manter em ordem a economia do feudo, que produzia a
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maioria dos produtos consumidos no domínio senhorial (pães, cerveja, queijos, vinhos e
carnes, entre outros). Em tempos de guerra, eram responsáveis por levantar o valor cobrado
pelo resgate caso o marido caísse refém e por assumir a defesa da família se este fosse morto
em combate.
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Real (parte do acordo feito com Tyrion Lannister, que em troca libertaria suas filhas). Ao
chegar a seu destino, mesmo sabendo da morte de Catelyn, Jaime pede que Brienne encontre
as filhas de Lady Stark, que já não se encontravam na capital do reino e presenteia-lhe com
sua espada forjada com aço valiriano, Cumpridora de Promessas (Oathkeeper). Brienne acaba
sendo executada a mando da própria Lady Stark (ressuscitada), que não acredita em sua
história e ao propor que Brienne mate Jaime para provar sua lealdade, esta se recusa e então é
enforcada.
Tal como as mulheres da Ilha dos Ursos, as mulheres da nobreza no medievo recebiam
treinamento militar, principalmente no manejo de armas de longo alcance (arco, balestra, etc.)
para poderem defender os castelos e outras fortificações caso o senhor e seus cavaleiros se
encontrasem ausentes.
3
Fontes das Europa medieval mencionam um surpreendente número de mulheres iclanadas marcialmente
durante os séculos X, XI, XII e XIII, mais do que as fontes de períodos anteriores e posteriores.
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Medieval European sources mention a surprising number of martially
inclined women during the tenth, eleventh, twelfth, and thirteenth centuries,
more than sources from earlier or later eras do. (2009)
4
Imad ad-Din al-Isfahani, poeta, escritor e historiador. Em suas obras historiográficas descreu a reconquista de
Jerusalem pelos exércitos liderados por Saladino. Sua obra Relampago da Síria narra a vida e os feitos do sultão
curdo a partir de 11ι5. Em sua obre faz duras criticas à generosidade de Saladino para com os “francos”
derrotados. Também esteve presente na terceira cruzada, quandos os cristãos reconquistam Jerusalém.
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primogenitura, garantindo filho mais velho os títulos do pai, não importando se é homem ou
mulher, seus lideres recebem o título de Principe e Princesa. Os Rhoynares também sofreram
influência dos Andalos, converteram-se à fé nos Sete, pois seus antigos deuses estavam
diretamente associados ao rio Rhoyne, do qual agora estavam muito distantes.
As serpentes do deserto (Sand Snakes) são as oito filhas bastardas que o
príncipe Oberyn Martell (The Red Viper) teve com diversas mulheres, de septãs a nobres e
prostitutas. Sand é o nome dado aos bastardos em Dorne, região mais meridional de Westero e
que possui traços culturais singulares devido à influência do Roynares. As quatro mais velhas
são tão belas como letais, com habilidades que variam tanto quanto à aparência. Nymmeria é
extremamente hábil com facas, Obara com lança e chicote, Sarella é capitã de seu próprio
navio e Tyene é famosa por seus venenos e poções.
As serpentes do deserto, diferentemente das outras personagens analisadas, são
discritas como muito belas, característica comum às personagens guerreiras modernas.
Tolkien em The Lord of the Rings desenvolve a personagem Éowín, que derrota o mais
terrível dos servos de Sauron. O modelo icônico de heroínas retratadas como belas, sensuais,
audaciosas e extremamente hábeis na arte da guerra, foi popularizado na obra de Robert
Howard, repleta de belas guerreiras como Valéria e Red Sonja.
Conclusão
Ao longo da história a guerra foi definida, pela maioria dos povos, como uma
atividade masculina. Porém, tanto no medievo quanto nos dias de hoje, nos momentos críticos
e que houve necessidade de efetivo humano, mulheres atuaram em batalhas. Na URSS
durante a 2ªGG, por exemplo, muitas participaram de regimentos de combate aéreo, sendo o
temido 46° regimento de Bombardeio da Guarda Taman, conhecido com as “Bruxas da
Noite”, composto inicialmente apenas por mulheres.
Apesar de a participação de mulheres em batalha na idade média ser bem
documentada, eram um evento incomum e extremamente restrito, limitado na maioria das
vezes à defesa de uma fortificação na ausência de homens para defendê-las e na ordenação do
teatro de guerra.
Com excessão dos regimentos femininos dos reis de Dahomei, no oeste africano,
relatos de mulheres guerreiras tendem a ser lendários. Porém, tais representações são uma
constante no imaginário social das mais diversas culturas ao longo do tempo e ainda hoje
estão presentes em diversos romances, filmes, jogos de RPG e vídeo-games, HQs, mangás,
etc.
REFERÊNCIAS
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(série NORTHLANDERS) Roda da Fortuna: revista eletrônica de Antiguidade e Medievo
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Artes, Religiões e Ciências, 2010.
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O CÁLICE DO DIABO: A FIGURA DE SATÃ NAS MULHERES MEDIVAIS
EUROPEIAS
1
Graduando em História pela Universidade Federal do Ceará. O presente trabalho é orientado pela Professora
Ms. Luciana de Campos.
2
Ver: BLOCH, Howard. A misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de Janeiro, Ed
34, 1994.
3
Sobre aspectos do imaginário, ver: BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1985.
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A relação da mulher com o Diabo surge nesse âmbito dos discursos da antiguidade,
como podemos observar na obra de Tertuliano, O Adorno das Mulheres:
A mulher foi criada do homem, da sua carne, da sua costela, por isso, que ela será
vista como as filhas da luxúria, pois da carne vieram e a carne está ligada, sendo mais
próxima do terreno, do material e do corporal, a mulher é mais propensa ao pecado por ter a
alma mais distante de Deus. O corpo, a carnalidade é a ferramenta máxima da mulher, a
tentação suprema em relação ao homem, são seus atrativos físicos que pervertem a mente dos
homens com maior facilidade, e por isso que em De planctu ecclesia de 1330 se afirmava:
“não há nenhuma imundice para qual a luxúria não conduza”, ou como Vilém Flusser
comenta em sua História do Diabo: “τ maior dos pecados é a luxúria, pois ela leva a todos os
outros.”. Lúcifer usa o “segundo sexo” em uma tentativa de corrupção dos homens, usando o
corpo e a carnalidade para atraí-los ao pecado.
Lúcifer não pensa na mulher como sua ferramenta maior, pois Satã tenta atacar os
homens primeiro, afinal ele é um grande senhor, que naturalmente prefere dominar o homem
primeiro, a sua inferior: a mulher. Em peças medievais, como A Queda do Homem de Chester,
nos mostra essa ideia de que “a resistência de Adão da tentação realça a própria fraqueza de
Eva” (RUSSEL, 2003, p.246), pois Adão não cedeu a Satã, forçando o mesmo a procurar a
segunda opção nos ouvidos de Eva. Ela cedeu a lábia de Lúcifer, e com ele aprendeu, usando
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sua “lábia” para convencer Adão, ou seja, o demônio perverte Eva que por sua vez perverte
Adão, mostrando sua capacidade com as palavras, na arte de seduzir.
Por essas falhas da mulher e o do homem, Deus os condena, assim como toda sua
ascendência. O pecado original, a culpa de desobedecer a Deus e acabar com o paraíso
terrestre é o castigo d’Ele sobre todos os filhos do homem, ou seja, todos os homens nascem
com um pecado, e de certa forma do pecado4, mas tudo por culpa da mulher, que será punida:
“‘ Aumentarei grandemente a dor da tua gravidez; em dores de parto darás à luz filhos, e terá
desejo ardente de teu esposo, e ele te dominará. ’” (Gn. 3,16). A dor do parto, a angústia e a
submissão ao homem é castigo divino por causa dela ser a principal responsável pela queda
do homem e do fim do paraíso terrestre. A primeira frase de Tertuliano na passagem
supracitada reflete bem esse princípio das escrituras sagradas, Deus permite que mulher viva,
mas ela está condenada eternamente pelo pecado de abraçar a serpente, esta que estará ao seu
lado por toda a vida, pois o mundo sujo é aberto à força do Satã, onde o homem deve
trabalhar para redimir a culpa da mulher.5
A imagem de Eva é importante, pois ela foi usada e expropriada para todas as
mulheres, ou seja, a compreensão da imagem dela é de certa forma uma compreensão de uma
das imagens na mulher no medievo. A utilização de Eva como o início de uma generalização
era comum em discursos misóginos, pois ela é a justificativa máxima, como já foi comentado.
Observando a passagem de De planctu ecclesiae, material feito a pedido do papa João XXII
para o franciscano Álvaro Pelayo, vemos:
4
σo caso comentamos da relação pecado e sexo, onde observamos que o sexo era visto como “sujo” e que ele
em si era um pecado.
5
Sobre o castigo dado ao homem, ver: Gn. 3:17-20
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Média cristã, em uma medida bastante ampla, somou, racionalizou e aumentou as queixas
misóginas recebidas das tradições que era a herdeira.”
A mulher é às vezes considera como não somente uma ferramenta, mas como o
instrumento máximo de Satã, pois as forças dos discursos teológicos estavam cada vez mais
fortes, aumentando a imagem da mulher como um demônio, como podemos ver no trecho de
Marborde, bispo de Rennes no século XI:
A beleza física não vai além da pele. Se os homens vissem o que está sob a
pele, a visão das mulheres lhes viraria o estômago. Quando nem sequer
podemos tocar com a ponta do dedo um cuspe ou esterco, como podemos
desejar abraçar esse saco de excrementos? (LEFEVRE, 1966, p. 83).
6
O grande espaço de poder da mulher era a esfera doméstica, pois era ela quem controlava tudo que acontecia
na casa. σesse espaço a mulher poderia através de “lágrimas e palavras” controlar e mudar a direção de muitas
decisões e até fazer grandes conflitos.
7
Texto de Roger de Caen, século XI In: DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente, 1300-1800: uma
cidade sitiada. São Paulo, SP: Companhia de Bolso, 2009.
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mostra que a ligação de igualdade ensinada nos evangélicos tem uma ressalva máxima, pois o
homem, e somente ele, é a plena imagem de Deus, mas não a mulher, esta que tem apenas a
alma ligada com Deus, mas seu corpo é o eterno obstáculo de aproximação da razão, logo,
“inferior ao homem a mulher deve ser submissa.”. τ decreto Graciano (1140-50),
influenciado por Santo Agostinho e Santo Ambrósio traz elementos da imagem de Deus e da
mulher:
Essa imagem de Deus está no homem (adão), criado único, fonte de todos os
outros humanos, tendo recebido de Deus poder de governar, como seu
substituto, pois é a imagem do Deus único. E por isso que a mulher não é a
imagem do Deus único.
8
Ver: GOMES, Janaina Nazzari. Reflexões sobre o desejo e a ideologia na misoginia medieval. Revista do
corpo discente do programa de pós-graduação em História da UFRGS. P. 264; MEGALE, Heitor. A
DEMANDA DO SANTO GRAAL. Manuscrito do século XIII. São Paulo: T.A. Queiroz/EdUSP, 1988 .
293
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que não problema, mas esse amor se tornou desejo e luxúria, pois a mesma vai à noite para se
deitar com ele. Quando ele nega, a mulher se enche de raiva e orgulho o ameaçando, ou seja,
observamos três pecados fundamentais dos princípios cristãos, vemos como a luxúria pode
levar para outros pecados. Galaaz, mesmo cedendo não se tornou impuro, pois a vida da
donzela é mais importante que a castidade no código dos cavaleiros. Essa atuação da mulher
pode ser vista com uma atuação diabólica, como se um demônio estivesse impulsionando a
mesma a tentar as virtudes de Galaaz, na obra essa concepção do Diabo fica a caráter
imaginativo do leitor, mas é bem fácil relacionar a atitude da mulher ao Diabo, pois
“Evidencia-se [...] a tentativa de elevar o caráter correto e tenaz do homem frente a um
espírito descontrolado e irracional que quer induzir, como Eva, o homem ao pecado.” 9, se a
serpente influenciou Eva pode muito bem ter influenciado a mais bela donzela de Logres.
Uma ressalva na produção do discurso sobre Eva é o trabalho de Hidelgarda de Bigen
que vai conseguir reduzir, mesmo por pouco tempo essa culpa de Eva, mas Hidelgarda sabia
que escrevia no universo de homens é por isso manteve sua escrita com elementos oriundos
da tradição masculina, como a afirmação da maior suscetibilidade de Eva em relação ao
demônio, como podemos ver no Scivias:
A alma inocente de Eva [...] foi invadida pelo diabo através da sedução da
serpente para a sua própria queda. Porque isso? Por que ele sabia que a
suscetibilidade da mulher seria mais facilmente conquistada do que a força
do homem; e vendo Adão, ardendo com tanta veemência em seu amo por
Eva, sabia que se ele, o diabo a conquistasse, Adão faria qualquer coisa que
ela dissesse. (PIERONI, 2007, p.52)
Hidelgarda traz uma Eva bem diferente, mostrando que a queda do paraíso terrestre é
culpa de Satã, que por desejar a sua própria queda influenciou Eva, esta que foi sua escolha
por causa do amor entre Adão e Eva, ele sabia que convencendo a mulher o homem a seguiria
por causa do seu amor. Vemos que a mulher cedeu ao demônio, mas o homem não sofreu a
tentação da mulher e sim o fez por amor, essa interpretação da queda é bem diferente e
peculiar, assim como a própria representação de Eva no Scivias, como uma nuvem cheia de
estrelas. Hidelgarda serve para mostrar que os discursos misóginos eram uma corrente
ideológica que teve muita influência no imaginário, mas não uma totalidade dos discursos.
Observando todos esses discursos de monges, literatos e mais futuramente os discursos
médicos, como Ambroise Paré, e os jurídicos, como o Anônimo de Artois, compreendemos
que eles serão instrumentos de forte subjugação da mulher na sociedade, além de serem
responsáveis ideologicamente pela “caça as bruxas”, ou seja, o discurso da antiguidade foi
passado para a Idade Média, que com seus monges derivados da grande força do cristianismo,
aumentaram violentamente esses discursos misóginos, que só foram fortalecidos pelos
médicos, juristas e novos monges na Idade Moderna, proporcionando um aumento violento da
força pejorativa contra a mulher. Hoje, século XXI, ainda podemos dizer que tal força ainda
tem seus resquícios, não para demonizar ou a relacionar com magia, mas sim para por a
mulher em uma posição inferior a do homem. A proposta do trabalho era mostrar através de
9
GOMES, Janaina Nazzari. Reflexões sobre o desejo e a ideologia na misoginia medieval. Revista do corpo
discente do programa de pós-graduação em História da UFRGS. P. 264
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fontes como o demônio e a mulher andavam de mão juntas, vendo desde Eva e do mundo
antigo essa demonização como instrumento da formação do discurso e da prática misógina,
observando como esse “imaginário do discurso” foi capaz de povoar uma realidade com o
intuito de subjugar a mulher.
REFERÊNCIAS
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AMOR E TRANSGRESSÃO: UMA LEITURA COMPARATIVA DAS CARTAS DE
SOROR MARIANA ALCOFORADO E DE HELOÍSA
Késia Mota
(PPGL/UFPB)
Leonardo Barbosa
(UFPB)
Luciana E. de F. Calado Deplagne
1 Introdução
2 Mariana Alcoforado
O editor, a princípio, ocultou a autoria das cartas, talvez para que a curiosidade
instigasse as pessoas a se interessar por elas. Esta era uma prática comum entre os editores da
época. Mas não existe certeza a respeito disso. Chegaram a creditar a autoria a um tal de
Guilleragues, na segunda edição, publicada no mesmo ano, só que desta vez na Alemanha,
editado por Pierre Marteau. Mas, independentemente disso, grandes autores se interessaram
pelas missivas, como Rainer Maria Rilke, Stendhal, Rousseau, Saint-Beuve e outros.
Polêmicas à parte, sabe-se que realmente existiu em Beja, Portugal, uma freira chamada
Mariana Alcoforado. Em 1810, num antigo exemplar das cartas, encontrado na França,
confirmou-se a autoria numa nota que afirmava que a religiosa Mariana Alcoforado as
escreveu e que o destinatário era o conde de Chamilly, chamado então de Conde de Saint-
Léger. (ALCOFORADO, 2010)
3 Heloísa
A história de Heloísa deve ser contada a partir da história de Abelardo, seu grande
amor. Grande professor de filosofia, Le Goff (1993) o chama de "glória do meio parisiense",
primeira grande figura do meio intelectual da modernidade (século XII). Dedicado à vida
intelectual, aos 39 anos já era considerado o maior professor da França. Foi nessa época que
surgiu Heloísa em sua vida. Aos 17 anos, a jovem já era erudita, sua sabedoria era conhecida
em toda a França. Até então celibatário, Abelardo não consegue evitar o interesse por uma
mulher tão inteligente. O relacionamento amoroso entre os dois intelectuais foi realmente
inevitável.
Abelardo torna-se professor de Heloísa e é hospedado pelo tio da moça, Fulbert.
Vivendo na mesma casa, apaixonados, a experiência sexual entre eles é vivida intensamente,
até que são descobertos. Neste momento, Heloísa está grávida. Abelardo leva a amante para a
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casa da irmã, fora de Paris, para que o bebê nasça. Esta cunhada de Heloísa é quem cria o seu
filho, Astrolábio.
Acreditando que Abelardo, em Paris, enquanto Heloísa estava distante, havia rejeitado
a sua sobrinha, Fulbert fica irritado. Para aplacar a fúria de Fulbert, mesmo contra a vontade
de Heloísa, que não aceita a ideia do casamento, Abelardo casa-se com ela. No entanto, a
contrariedade de Fulbert não é realmente aplacada. Abelardo é castrado em vingança.
Desesperado, o filósofo acredita estar sendo punido por Deus e decide anular o casamento
para abraçar a vida religiosa. Heloísa, cética, fica ainda mais indignada com Deus, mas segue
o conselho do marido e se torna freira. De acordo com o filme Em nome de Deus (1988), que
relata a experiência do casal, Heloísa coloca uma pena, caída de um pássaro numa tarde em
que estava muito feliz ao lado de Abelardo, no interior de uma imagem de Cristo e fica
apegada a esta imagem, não pelo Cristo, mas pelo pequeno objeto que representa o seu grande
amor, único senhor a quem ela pretende devotar adoração, Abelardo. Em devoção a Abelardo,
Heloísa se torna uma boa freira, dedicada aos serviços da igreja; torna-se abadessa em 1129.
A correspondência entre Heloísa e Abelardo, depois da separação, de acordo com
Zumthor (2002), começa quando Abelardo escreve uma carta a um amigo, chamada Historia
calamitatum1. Esta carta teria sido escrita em 1132, quando Abelardo estava com 53 anos.
Heloísa tem acesso a estas cartas e escreve uma carta ao seu grande amor, uma Consolatio.
Depois disso, ocorre uma troca de correspondências entre o casal. São três cartas em que os
dois relembram os momentos de amor que viveram. Depois destas cartas amorosas, o casal
troca correspondências de caráter impessoal, sobre questões administrativas relacionadas ao
monastério de Paracleto, que Heloísa comanda. Por fim, Abelardo envia uma Regra para as
religiosas do monastério liderado por Heloísa.
Segundo Zumthor (2002: 03), é acordo para a maioria dos medievalistas que a
Correspondência entre Abelardo e Heloísa constitui um dossiê organizado, "uma 'obra', na
medida em que essa palavra implica intenção e estruturação".
Para a análise a que este trabalho se propõe, interessam as cartas amorosas,
especialmente as que Heloísa emitiu ao seu grande amor, Abelardo. Importa analisar a
linguagem e a forma como o amor é representado nestas cartas.
1
História das minhas calamidades. As cartas são todas escritas em latim, língua utilizada pelos intelectuais, no
séc. XII, em seus escritos. Heloísa era fluente em latim e em grego.
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Heloísa ainda permaneceu no período das cartas de Mariana Alcoforado. Entretanto, a freira
portuguesa não foi agraciada pelo amor cortês do conde de Chamilly. Ela era ao mesmo
tempo amante e amada, como se pode inferir do seguinte trecho de uma das suas cartas:
τ termo ‘amor cortês’ reflete a diferença medieval entre corte e villa. Não o
amor villano – copulação e procriação –, mas sim um sentimento elevado,
próprio das cortes senhoriais. τs poetas não o denominaram ‘amor cortês’;
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usaram outra expressão: fin’amors, quer dizer, amor purificado, refinado.
Um amor que não tinha por fim o mero prazer carnal. (PAZ, 1994: 70)
É possível inferir que o sentimento de Mariana tenha natureza mais de obsessão que de
amor, efetivamente. Talvez um estudo psicanalítico revelasse que a sua mágoa estivesse
fundada mais na rejeição do amante, no abandono, na falta dos anteriores momentos de
paixão e mesmo no sentimento de culpa da religiosa que cometeu o pecado da fornicação, que
verdadeiramente no amor. Esta hipótese poderia provocar um outro trabalho de análise
literária. O poeta Rainer Maria Rilke comenta:
5 Considerações finais
REFERÊNCIAS
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RILKE, Rainer Maria. Cartas do poeta sobre a vida: a sabedoria de Rilke. BAER, Ulrich
(org).Mota, Milton Camargo (trad). São Paulo: Martins, 2007.
ZUMTHOR, Paul. Correspondência de Abelardo e Heloísa. Trad. Lúcia Santana Martins.
2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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SUBJETIVIDADE DO HOMEM MEDIEVAL: AÇÃO E INTENÇÃO DO HOMEM
NAS OBRAS DE AGOSTINHO E TOMÁS DE AQUINO
Khayles N. P. Alves
(UFPB)
khayles.nobrega@gmail.com
Introdução
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Agostinho não propõe o problema do homem em abstrato, ou seja, o
problema da essência do homem em geral: o que ele propõe é o problema
mais concreto do eu, do homem como indivíduo irrepetível, como pessoa,
como indivíduo, poder-se-ia dizer com terminologia posterior. (REALE &
ANTISIERI, 2003, p. 89)
As Confissões podem ser divididas em três partes de acordo com seu conteúdo: os
livros de I a IX expõem a vida passada de Agostinho, o livro X fala de sua situação atual
como cristão convicto, e os livros de XI a XIII discorrem sobre o primeiro capítulo do
Gênesis, procurando desvendar racionalmente as obscuridades do texto bíblico – pelo que
suplica por revelação divina. Na primeira parte, é estabelecido o confronto entre a vontade
divina e a vontade da carne, que levará Agostinho à descoberta do homem como indivíduo.
No livro VII, Agostinho descreve seu contato com o neoplatonismo, mas sem deixar claro por
meio de que obras, já que as descreve traduzindo-as em versículos da Bíblia.
Ao aproximar as ideias neoplatônicas das cristãs, o autor declara que os textos dos
filósofos gregos o prepararam para poder aceitar as verdades religiosas, sem, contudo, fazer
menção ao ponto mais importante, a figura de Jesus. Nas palavras de Strefling, “o melhor que
a sabedoria antiga pôde fazer era ver a finalidade da humanidade: a união com Deus. Os
filósofos não viram qual era o meio para alcançar essa finalidade – Cristo” (STREFLIσG,
2007, p. 268). Por meio do ensino filosófico, Agostinho pôde estabelecer as bases racionais
para a compreensão e aceitação consciente dos dogmas religiosos, uma vez que o mesmo o
induzira a buscar uma verdade incorpórea, mas apenas a Bíblia apontaria para a solução desse
mistério.
Refletindo sobre a origem do mal, Agostinho se firma no pressuposto da
incorruptibilidade divina, que devia estender-se, em parte, a suas criações: para serem
corruptíveis, é preciso que todas as coisas sejam boas. Se fossem perfeitamente boas, seriam
incorruptíveis, como Deus; se fossem más, não poderiam ser corruptíveis, pois só se corrompe
o que é bom. Assim, conclui Agostinho que, do ponto de vista metafísico-ontológico, não
existe mal, mas um bem imperfeito: mesmo coisas que parecem más sob nossa ótica são
componentes de um todo, cuja harmonia deriva do conjunto, sendo boas por cumprirem com
um propósito positivo.
Para Agostinho, mal não em substância maléfica, mas advém do uso inadequado do
próprio livre-arbítrio humano, que produz “perversão da vontade desviada da substância
suprema” (AGτSTIσHτ, 2004, p. 190) para algo inferior. Em O livre arbítrio, Agostinho
parte de uma noção de justiça para explicar por que Deus teria concedido ao homem a
oportunidade de pecar: a justiça é boa, e portanto, vem de Deus. Nada mais justo do que
recompensar a prática do bem e punir a do mal. Contudo, não seria justo recompensar a
prática do bem se esta fosse uma condição inescapável da própria existência humana; para
que seja justamente recompensada, ela deve partir da vontade livre (Id., 1995, pp. 74-75).
Assim, Deus concede ao homem a possibilidade de ter uma vontade voltada para o bem, o que
pode ser comprovado pelo próprio fato de que usá-la para o pecado resulta em justo castigo:
não havendo nada na natureza do homem nem fora dela que o force a pecar, o pecado torna-se
voluntário (Ibid., p. 203).
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O livro VIII das Confissões é dedicado justamente ao conflito que se encerra na
vontade de Agostinho, já então pendente para a Verdade de Deus, mas ainda aprisionada pelo
hábito pecaminoso:
Como para os estóicos, é possível e necessário domar as paixões, pois sua força advém
do hábito, mas a vontade fortalecida pode escapar-lhes e subjugá-las. No último capítulo,
quando finalmente passa por uma experiência definitiva de conversão, Agostinho declara ter
apaziguado esse conflito: a vontade submissa à Sabedoria divina é moderada e abstém-se das
paixões, danosas, por um estado de plenitude, de felicidade.
Em A Vida Feliz, Agostinho explica que feliz é aquele que possui tudo que deseja. Se
a vontade se volta para coisas sujeitas ao acaso e às vicissitudes da vida, ou a pessoa deseja
cada vez mais, permanecendo insatisfeita, ou é infeliz pelo medo de perder o que possui. Para
ser feliz, portanto, é necessário desejar e possuir um bem permanente e inalterável. Sendo
Deus o único a corresponder a esses critérios, é feliz, portanto, quem possui Deus. O que é
necessário para possuir Deus? A resposta parte, novamente, dos fundamentos neoplatônicos:
sendo o homem constituído de corpo e de alma, ambos precisam ser alimentados, e o alimento
da alma é a ciência. Assim como a doença física causa falta de apetite, a alma desnutrida fica
fastiosa. No entanto, mais danosa ainda à saúde espiritual é a gula, que, incitando um apetite
descomedido, ocasiona má digestão. Para ser feliz, não basta adquirir conhecimento, é preciso
ser equilibrado, para não se dissipar em excessos nem contentar-se abaixo de sua plenitude. A
moderação do espírito, portanto, é a sabedoria (Id., 1998, pp.128-156).
Até aqui, notamos claramente o raciocínio estóico de que Agostinho se apropriou,
contudo, reiterando o que nos ensina nas Confissões, o bispo soluciona a questão pelo uso de
princípios cristãos: a Bíblia ensina que a Sabedoria de Deus é Jesus, que Jesus é o próprio
Deus e que é também a Verdade, logo, a justa medida da alma é Deus. Deus está em nós,
assim como está em todas as coisas, e portanto, a verdade encontra-se em nós. Para conhecê-
Lo, portanto, é preciso que o homem se volte para si mesmo, para sua alma.
Como a alma não é matéria e não pode ser apreendida pelos sentidos, não é da
natureza do que se pode perceber e entender. A alma se encontra no plano do inteligível, e,
portanto, conhece a si mesma pelo método da reflexão. Assim, quanto mais nos conhecemos,
mais a imagem de Deus pode resplandecer em nós:
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Conclusão
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. Confissões. Trad. Jaime Oliveira dos Santos e A. Ambrósio de Pina. São
Paulo: Nova Cultural, 2004.
______. O livre-arbítrio. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995.
______. Solilóquios; A vida feliz. Trad. Audary Fiorotti e Nair de Assis Oliveira. São Paulo:
Paulus, 1998.
AQUINO, Tomás de. Summa Theologica. Disponível em: <http://www.newadvent.org/summa/index.html>.
Acesso em: 18 Dez. 2011.
CANTOR, Norman F.; KLEIN, Peter L. (ed.). Medieval thought: Augustine & Thomas
Aquinas. Toronto: Blaisdell Publishing Company, 1969.
GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
KENNY, Anthony. História concisa da filosofia ocidental. Lisboa: Temas e Debates, 1999.
REALE, Giovanni; ANTISSIERI, Dario. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Sâo
Paulo: Paulus, 2003.
STREFLING, Sérgio Rocardo. A atualidade das Confissões de Agostinho. In:
Teocomunicação, Porto Alegre, v. 37, n. 156, p. 259-272, jun. 2007.
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REPRESENTAÇÕES DAS AMAZONAS NA IDADE MÉDIA
Marília Colins
NEMIS/UFMA
mariliacolins@yahoo.com.br
Luciana Campos
Amazonas na Antiguidade
Heródoto narra que os saurômatas (descendentes da união das amazonas com os citas)
deram continuidade aos costumes de seus antepassados, que concediam à mulher certa
posição na sociedade. Tanto que uma jovem saurômata não podia pensar em casar, antes de
ter matado um inimigo.
As amazonas pertenciam ao domínio da transgressão. Segundo Boyer, os gregos
concebiam as amazonas como “bárbaras”, no sentido que estas ignoravam e transgrediam as
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leis da pólis. Não conheciam a navegação, nem a cultura de cereais, e eram denominadas
como devoradoras de carne.
Enquanto as virtudes femininas gregas eram a obediência e o pudor, as amazonas
desprezavam esses valores. Segundo os gregos, estas eram a mulher como expressão da
animalidade. Eram guerreiras, caçadoras, montavam cavalos, sabiam manejar o arco, o dardo,
o escudo e o machado de combate. Alimentavam-se de carne crua.
Figura 1: Amazona enfrenta guerreiro, vaso grego da Apúlia, século IV a.C. Fonte da
imagem: http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Ficheiro:Amazons5113.jpg
A terminologia amazonas causa muita controvérsia. A teoria mais descrita estar ligada
a prática que as amazonas possuíam de retirar um dos seios (“a”, sem + “mazos”, seio), com o
objetivo de manejar melhor o arco, e deslocar a sua força para o ombro e o braço. Havia
também um aspecto simbólico na mutilação do seio: permaneciam mulheres por um lado e
tornavam-se homens por outro. Porém, a iconografia existente as mostra com os seios
intactos. Outra explicação para o termo amazonas é que este derivaria do nome de um povo
iraniano, Há-mazan, que seria traduzido como “guerreiros”.
Para manter sua espécie, as amazonas se relacionavam com homens uma vez por ano.
As relações aconteciam de forma aleatória e no escuro, para que não reconhecessem o
parceiro. De certa forma, eram elas que violentavam e “usavam” os homens. Se ocorresse
uma gestação, as crianças do sexo feminino eram criadas com as mães, e os meninos ou eram
entregues aos pais ou tornavam-se escravos.
Homero denominava essas guerreiras como “antianeirai” (mulheres-homens). O
prefixo anti possui sentido duplo: significa que ao mesmo tempo em que as amazonas são
iguais aos homens, também são suas inimigas. Elas procuram eliminação ou redução do
macho.
Ninguém ouve dizer que as Amazonas combatem entre si, ou que enfrentam
outros povoados femininos. É sempre em relação ao homem que se exerce
sua pugnacidade. E é por isso que recusam o casamento, que seria encarado
por elas como uma sujeição. (BOYER, 1997, p. 745)
Estas guerreiras causavam uma mistura de temor e admiração, repulsa e sedução nos
homens. Elas os assustavam por possuírem força igual ou superior a deles, e ainda os tratavam
como seres descartáveis. Apresentavam uma rivalidade exaltada, que era uma característica
masculina. “As mulheres matadoras de homens: desejam tomar o lugar do homem, rivalizar
com ele ao combatê-lo, em vez de completá-lo... Essa rivalidade esgota a força essencial
própria da mulher, sua qualidade de amante e mãe, o calor da alma.” (DIES, 20ι)
Como não existiam mulheres guerreiras na sociedade grega, o mito das amazonas
pode ter sido utilizado como uma espécie de símbolo das gregas contra opressão, visto que a
sociedade grega era regida por meio das regras do patriarcado, e as mulheres eram
consideradas seres inferiores, e não possuíam o direito de participar da vida política.
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seio direito queimado para melhor disparo com o arco. O reino é governado por uma única
rainha, que é eleita a partir de critérios, como: melhor habilidade com as armas.
No que diz respeito às representações iconográficas, as amazonas medievais também
são retratadas com os dois seios intactos.
REFERÊNCIAS
BOYER, Régis. Mulheres virs. In. BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de Mitos Literários; Ed.
UNB, 1997.
BRANDÃO, Junito de Souza. Volume 3. Editora Vozes, 1987.
CHEVALIER, Jean / GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números - 17ª edição – Rio de Janeiro; José
Olympio, 2002.
MAGASICH - AIROCA, Jorge & DE BEER, Jean – Marc. América mágica: Rio de Janeiro;
Paz e Terra, 2000.
MANDEVILLE, Jean de. Viagens de Jean de Mandeville./ Tradução, introdução e notas
Susani Silveira Lemos França – Bauru, SP: EDUSC, 2007.
POLO, Marco. 1254-1323? Viagens de Marco Polo = II Milione/Marco Polo; posfácio de
Carlos Guilherme Mota; (tradução N. Meira; revisão Jonas Pereira dos Santos). – São Paulo,
Clube do Livro, 1989.
SALLES, Catherine. As Subversivas e sedutoras amazonas. Revista história Viva – Mistérios
da Arqueologia. Ed.: 77.
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FEIA, FORTE E BOA DE BRIGA: AS REPRESENTAÇÕES DE BRITES DE
ALMEIDA, A VALENTE PADEIRA DE ALJUBARROTA, NO IMAGINÁRIO
PORTUGUÊS
INTRODUÇÃO
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Com a morte de Fernando I de Portugal, a regência provisória foi delegada a rainha D.
Leonor Teles que era acusada pelas camadas mais alvoroçadas da população de ser simpática
à anexação de Portugal por Castela. Como fora dito anteriormente, a população não via
nenhuma benesse na regência de um soberano estrangeiro e aclamou o mestre de Avis, D.
João, filho de D. Pedro I de Portugal, como regedor e defensor do Reino, todavia o rei D. Juan
I de Castela não desistiu do seu direito sobre Portugal e ordena um cerco e, posteriormente,
uma invasão a aquele território por terra e mar.
Os primeiros combates ocorreram em julho de 1384 e a batalha que serve como
contexto para este ensaio ocorreu no ano seguinte, em 14 de agosto, após a invasão do
território português pelos exércitos de Castela.
Não é adequado, nem se faz conveniente explicitar aqui os pormenores das táticas
empregadas pelos exércitos nos campos da referida batalha, já que o tema é bastante extenso e
merece um estudo exclusivo, contudo é importante salientar que, de acordo com os relatos de
(HERCULANO, 1875) os trinta mil soldados de Castela não foram páreo para as estratégias
de combate do contingente português de sete mil e trezentos homens. A cavalaria do invasor
foi desbaratada pelos besteiros, arqueiros e pelas dificuldades do terreno estreito e cheio de
paliçadas. As linhas de infantaria avançaram desordenadamente e foram flanqueadas pelos
besteiros e infantes portugueses; assim, vendo suas forças serem destruídas, os castelanos
iniciaram uma fuga sem cobertura das linhas de retaguarda, resultando numa enorme matança
desses combatentes.
Alguns soldados conseguiram encontrar esconderijo e escape momentâneo da fúria
dos soldados portugueses que os perseguiam em casas das redondezas de Aljubarrota; e é
nesse ponto que aparece Brites de Almeida.
Relatos tratados como uma mera lenda, porém defendidos como fatos reais por muitos
portugueses, principalmente os habitantes da Vila de Aljubarrota, dão conta de que sete
soldados castelanos foram perseguidos e mortos pela padeira a golpes de pá.
Outros relatos afirmam que os sete soldados estavam escondidos na sua casa que
estava desguarnecida, pois a padeira estaria nas ruas perseguindo os fugitivos. Quando Brites
chegou à sua casa, teria desconfiado da presença de estranhos, encontrou os invasores dentro
do forno e os intimou a saírem, mas não tendo sua ordem atendida ela se armou com um tipo
de pá tradicionalmente utilizada para se retirar os pães do forno, e desferiu violentos golpes
contra os cansados e atemorizados soldados até que todos eles estivessem mortos. O trecho a
seguir ilustra bem os possíveis acontecimentos daquele dia:
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Desgrenhada, esfarrapada, ensanguentada, ao anoitecer chegas a casa.
Estranhas que a porta do forno da padaria esteja fechada quando tens a
certeza que a deixaste aberta. Tratas de reabri-la e dentro do forno vês sete
soldados castelhanos que fingem dormir. Agarras na pá de ferro e começas a
despachá-los, um a um. (PEREIRA, 2012, p.1).
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desordeira, sem jeito para desenvolver qualquer atividade apropriada para mulheres ditas
normais.
Os costumes da adolescência de propor e aceitar duelos continuavam mais presentes
do que nunca em sua vida, suas habilidades com a espada se faziam notáveis e eram
admiradas e temidas por muitos. E diz-se que um desses expectadores, o soldado Hypomenes,
nutriu tão profunda admiração por Brites que a solicitou como esposa, causando-lhe espanto,
pois até então ninguém havia tido coragem para tal, tanto devido a sua aparência
masculinizada, quanto pela sua fama de mulher violenta, a antítese da mulher servil, frágil e
obediente ao homem.
Ela afirmou que aceitaria a proposta de Hypomenes, desde que ele a derrotasse num
duelo de esgrima, no entanto ele acabou ferido mortalmente e os expectadores do duelo
passaram a perseguir Brites pelo crime de ter assassinado um oficial do exército. Ela fugiu
para a praia e embarcou num batel para fugir dos seus perseguidores. Em alto mar foi
capturada por piratas mouros e em seguida vendida como escrava para um homem rico em
Argel, onde permaneceu por alguns anos até empreender fuga para Aljubarrota, um vilarejo
que hoje faz parte da cidade de Alcobaça, distrito de Leiria, onde arrumou emprego como
ajudante de uma velha padeira que faleceu algum tempo depois. Brites se tornou dona da
padaria em meados da década de 1380 e se casou com um lavrador local com quem teve
filhos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
COSTA, Diogo da. Auto Novo, e Curioso da Forneira de Aljubarrota, em que se contem a
vida, e façanhas desta valerosa Matrona. Lisboa, 1743. Acessado em 7 de maio de 2012.
Disponível em < http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4311394>.
DETIENNE, Marcel. A Invenção da Mitologia. Rio de Janeiro: José Olympio/UnB, 1992.
FUNDAÇÃO ALJUBARROTA. A Batalha de Aljubarrota – Contexto político anterior à
Batalha de Aljubarrota. Acessado em 8 de maio de 2012. Disponível em:
<http://www.fundacao-aljubarrota.pt/archive/doc/A_Batalha_de_Aljubarrota.pdf>
HERCULANO, Alexandre. História de Portugal: desde o começo da monarchia até o fim do
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por David Lopes. – Lisboa, 1875. Acessado em 5 de maio de 2012. Disponível em: <
http://purl.pt/12112>
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II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA
SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
MALDITA SEJA A BELDADE DE ISEU: FEITIÇARIA E IMAGEM1
1- Introdução
Uma das obras medievais mais adaptadas tanto em caráter literário, quanto em mídias
diversas foi Tristão e Isolda. A Demanda do Santo Graal apenas faz referências ao romance
do casal. Todavia, os poucos trechos evidenciam o julgamento de valor que considera a
esposa do Rei Marc maldita e adúltera. Assim, para compreender a visão dada a ela na novela
de cavalaria, é preciso desnudar toda a narrativa do amor entre Tristão e a filha do rei
Gormond. Em Tristão e Isolda de Joseph Bérdier, versão baseada no texto de Béroul, do
século XII, conheceremos a visão de feiticeira atribuída a ela, consequência de seu forte
envolvimento com a mãe, rainha da Irlanda, praticante da arte da magia e responsável pelo
“filtro do amor”, fator desencadeador do final trágico dos amantes. τutro ponto abordado no
trabalho trata da época em que a narrativa foi divulgada, visto que o século XII foi marcado
pela imposição moral da Igreja. O resultado, o bom desempenho dos romances de cavalaria
que abordam a temática das paixões proibidas na realidade. O mito surge onde a paixão é
sonhada, onde o amor fora das convenções é reprimido e a mulher é considerada “portadora
da morte” e do inferno na terra.
De tempos em tempos a concepção do amor modifica a capacidade de pensamento. A
bem da verdade, a paixão possibilita a vontade de querer e desejar. Na Idade Média a paixão
fora dos padrões da época tinha forte repreensão pela sociedade e a igreja, indissociáveis na
época. Partindo desse pressuposto, o artigo pretende comparar a representação de Isolda na
Demanda e em Tristão de Isolda de Joseph Bédier à luz das teorias de Carlos Ginzburg. De
igual modo, com os conceitos de Jacques Le Goff e George Duby, contextualizar o mito,
como vez de uma realidade não palpável, prática comum e assídua no século XII.
O mito de Tristão e Isolda tem a sua concepção baseada em lendas que circuncidavam
o imaginário do povo celta do noroeste europeu, sendo escrita de modo mais definitivo em
obras de autores normandos no século XII. No século procedente foi incluída no Ciclo
Arturiano, no qual Tristão passa a incorporar o grupo de cavaleiros da távola redonda a
serviço do Rei Artur. O casal, inclusive para muitos teóricos que se debruçam sobre a matéria
da Bretanha, fomenta inspiração para outra trágica história medieval, a de Lancelot e a Rainha
Genevra. As primeiras obras literárias sobre a lenda chegaram à literatura moderna como dois
fragmentos em versos: O primeiro foi escrito por Béroul, com uma biografia quase
1
Artigo orientado pela professora Alessandra Conde, da Universidade Federal do Pará. Mestre em Estudos
literários pela UFES.
2
Aluna do curso de Letras da Universidade Federal do Pará, campus Universitário de Bragança.
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inexistente, entre 1160 e 1190, com um teor mais popular e grotesco, possuindo pouca
influência do amor cortês, que inclusive, permeia de modo bem mais acentuado o segundo
fragmento escrito por Tomás da Inglaterra por volta de 1170 (GOMES, 2012, p 6-10).
A primeira versão em prosa da lenda celta data entre 1230 e 1240 com a denominação
de Tristão em Prosa, sem autor, escrita em francês antigo, tendo sua primeira parte baseada
nos poemas de Tomás e Béroul, seguido por uma mistura com a lenda arturiana. A obra
apresenta uma forte influência da primeira prosificação do ciclo Arturiano, denominado de
Ciclo do Lancelot-Graal, terminada por volta de 1230, não apresentando nenhuma referência
a Tristão. A Demanda do Santo Graal também denominada de Ciclo da Post-Vulgata, já
apresenta Tristão como um dos cavaleiros da Távola redonda (BAUMGARTNER, 1975, p.
13).
Para entendermos melhor a proposta, conheceremos a visão dada por Joseph Bédier ao
mito celta. Em linhas básicas, o romance inicia do seguinte modo. No primeiro capítulo,
ocorre a descrição do nascimento de Tristão, que recebeu esse nome da mãe Blanchefleur em
alusão à profunda tristeza pela morte de seu marido Rivalen. Embora educado por Rohalt,
aprendeu com Gorvenal todos os ensinamentos que transformam um menino em cavaleiro.
Todavia, o desenlace inicia quando Tristão é raptado por mercadores irlandeses que o deixam
na Cornualha, onde conhece o Rei Marc, seu tio. É nesse momento que a história ganha seu
nó narrativo, uma vez que o tio, após várias aventuras do cavaleiro em seu reino, o designa a
buscar Isolda, prometida ao Rei em matrimônio. Todavia, durante uma tempestade na volta
para a Cornualha, Brangien que era responsável pelo feitiço amoroso preparado pela mãe da
Rainha da Cornualha, entrega-o para Tristão e Isolda. A partir daí, a narrativa se desenvolve
com a descoberta do amor adúltero do casal e a morte trágica que os escreve nas linhas tristes
de exemplos mal fadados das paixões não vividas por completo.
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de extrema saudade de sua amada resolve construir um universo mimético, onde reconta por
meio de imagens e estátuas suas aventuras, assim como as alegrias e tristezas de seu amor por
Isolda. No trecho que segue temos um exemplo de representação mimética, aquela que,
segundo Ginzburg, resulta na representação fidedigna do ser representado:
Quando estiver triste, belo e doce amigo, ele far-me-á pensar em ti e o meu
coração encher-se-á de alegria. Eu tenho um anel de prata, com o engaste de
jaspe verde, cuja pedra possui uma virtude maravilhosa. Dar-to-ei e tu usá-
lo-ás sem cessar no dedo, pois de cada vez que o olhares verás a minha
imagem na tua lembrança como se eu estivesse presente ao teu lado
(BÉDIER 1995, p 183).
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transformam o acontecimento biológico num processo social (GINZBURG,
2001, p. 88).
O uso desses manequins era uma linguagem de autoridade, para mostrar aos súditos
que a morte havia visitado o reino. O homem precisa ver, possuir a capacidade de tocar; o não
visto mesmo quando apenas imaginado, necessita de uma criação (imitação) na realidade para
tornar a sua existência lógica.
3.2- O discurso como construção abstrata de representação: Isolda pelo olhar dos outros
Carlos Ginzburg discute sobre o poder do discurso para construir uma determinada
realidade, haja vista que o historiador é um crítico agressivo no que tange ao discurso do pós-
modernismo, que rodeia o relativismo e o positivismo, pois o primeiro abre caminho para uma
realidade objetiva dos fatos. No outro extremo, o relativismo compreende uma concepção
voltada para as fontes históricas limitando o caminho para a realidade objetiva, consequência
da natureza subjetiva, narrativa e discursiva das fontes. O teórico critica o conceito de verdade
relativa, porquanto, para o pós-modernismo, a verdade não existe ou é relativa. Uma
contradição construindo algo absoluto: a verdade é relativa (GINZBURG, 2002 p. 67). Cícero
(ano, p. 81) ao falar sobre o limite da verdade dentro de um fato nos diz:
3
Lima, Francisco Chagas Vieira Jr. A Crítica do Relativismo Histórico em Carlo Ginzburg. História e-
História. Campinas: Grupo de Pesquisa Arqueológica histórica da UNICAMP. 2009
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vinculatórias [...] o verdadeiro significa servir-se das metáforas usuais
(GINZBURG apud LIMA, 2009, p. 24).
Isolda na narrativa de Bédier é por várias vezes condicionada como feiticeira, todavia,
em nenhum momento é descrita alguma ação em que a filha da Rainha da Irlanda faça algum
tipo de feitiço ou algo sobrenatural. Sua identidade mágica se dá apenas através da mãe, pois
nas duas ocasiões que Tristão por ela é curado, Isolda apenas acompanha o processo. Nas
últimas páginas do romance, Tristão chama por sua amada, pois acredita que apenas a sua
presença trará a cura para o seu mal, visto que de modo sobrenatural, embora como já dito,
sem uma descrição de alguma ação mágica, sua amante o arrancou por duas vezes dos abraços
da morte. O trecho nos diz o seguinte:
Toma este anel de jaspe verde que me confiou Isolda, a loura, para que seja
entre nós um sinal de reconhecimento. Quando chegares à corte, mal lhe
apresentes este anel, ela reconhecer-te-á como meu mensageiro e achará
maneira de falar-te comodamente sem que ninguém vos possa ouvir. Depois
de a teres saudado da minha parte, diz-lhe que não há para mim nenhuma
esperança de cura se ela não me vier tratar em pessoa. A menos que me
reconforte com um beijo da sua boca, terei de ir desta para melhor com
grande desgosto meu. Recorda-lhe que, por amor dela, me expulsaram e
exilaram vergonhosamente em terra estrangeira: passei por tantas dores e
lutei tanto que já só tenho um sopro de vida, muito débil (BÉDIER, 1995, p.
185).
A chegada da amada de Tristão tarda por causa de uma tempestade e sua esposa Isolda
das mãos brancas o engana, já que foi acordado que se Isolda a loira, estivesse no barco seria
estiado uma vela branca. Entretanto, sua esposa o diz que a cor é preta. Quase como um
suspiro Tristão pronúncia as seguintes palavras: “Isolda, não quisestes vir para junto de mim!
Por vosso amor tenho de morrer hoje!” (BÉDIER, 1995, p. 190)”. τ “Romance de Don
Tristan de Leonís y de La reina Iseo”, que de tanto amor se guardaron”, faz parte de uma
coletânea de 1861, intitulada Romancero General coleccion de romances castellanos; Tristão
é atingido por uma lança deferida por seu tio e no leito de morte roga pela presença de Isolda
para curá-lo, como descreve o trecho: (CRESPO; FERNÁNDEZ, 2007, p. 117)
Mal se queja don Tristán, que la muerte le aquejaba; preguntando por Iseo,
muy tristemente lloraba: “¿ Qué es de ti la mi señora? Mala sea tu tardanza,
que se mis ojos te viesen, sanaría esta mi llaga”. Llegó allí la reina
Iseo, la su linda enamorada, cubierta de paños negros, sin del Rey dársela
nada: “¡Quien vos hirió, don Tristán, heridas tenga de rabia, y que no
hallase maestro que supiese de sanallas!”
Isolda chamou Abrangia e ordenou-lhe que lhe trouxesse vinho [...]. Nesse
momento o rosto da jovem iluminou-se num sorriso furtivo: tinha entre as
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mãos o meio mais seguro de fazer nascer em Tristão o amor e liga-lo para
sempre a Isolda [...] Rainha Isolda tomai está bebida [...] Quanto a Tristão
esse julgou ser um vinho de eleição oferecido ao Rei Marcos. Como homem
cortês e bem educado, deitou a porção na taça estendeu-a a Isolda, que
bebeu a até se fartar. Quando pousou a taça ainda meio cheia, Tristão
pegou nela e a esvaziou a até a última gota (TRISTAO E ISOLDA, 1992, p.
46-48).
Duby nos explica na citação acima, que o contexto do século XII não permitiria
normalmente, mediante a forte contenção moral imposta pela Igreja, à difusão de textos
tratando do adultério. Tal assunto era proibido. No entanto, os textos de cavalaria parecem
ocultar certa cumplicidade com os que viviam ou apenas sonhavam com uma realidade
aparentemente distante.
Conclusão
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REFERENCIAS
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O CONVENTO COMO ESPAÇO DE EMANCIPAÇÃO FEMININA EM PORTUGAL
NO SÉCULO XVII
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em relação às restantes, surgindo, ademais, a escritora como uma figura “dessexualizada”: “É
assim que o seu talento é encarado num plano de excepção face ao ser comum e ao gênero
feminino, sendo a escritora, dessexualizada, elevada a uma dimensão mítica e encarada como
criatura prodigiosa (...). (Couto, Labirintos do eros, p. 72-73) D. Francisco Manuel de Melo,
um dos autores mais renomados do barroco em Portugal, refere-se a Soror Violante do Céu
como “10ª musa”, mulher de “raro engenho”, e à sua obra Rimas como “rimas de uma
deidade”.
Percebe-se, também, que um dos traços caracterizadores da literatura de autoria
feminina é o elemento intimista de cunho autobiográfico, dimensão que será assimilada nos
romances sentimentais do romantismo, e que tem, por certo, raiz nesta forma de escrita que as
mulheres inauguram e que a distingue da literatura canônica. Para além disso, estas autoras
conquistaram o espaço possível de liberdade intelectual, num meio que, se as enclausurava,
lhe ocasionava meios, tempo e formas de expressão, apesar do fervor religioso que se
respirava no período contra-reformista, e que ressuma, diga-se também, na maioria destas
obras.
σo ensaio “Literatura de autoria feminina: um patrimônio da palavra a reinventar” que
já citamos, Anabela Galhardo Couto elenca, para além de Soror Violante do Céu (a qual tem
sido alvo de estudos e cuja obra já conheceu várias edições, ainda que não lhe seja concedido
o espaço merecido na história literária), Soror Maria do Céu, Soror Madalena da Glória, uma
galeria de autoras-freiras cuja produção continua inédita e que ajuda a traçar um quadro mais
completo do barroco em Portugal, período marcado pela presença da Inquisição e pela
hegemonia de um sentimento religioso de preservação da ortodoxia católica, que tem,
possivelmente, nos sermões de Padre Antônio Vieira a expressão máxima. O resgate destas
obras de autoria feminina, que permanecem inéditas em acervos de bibliotecas, contribui para
se “compreender o relacionamento da mulher com o saber e a escrita, com a mentalidade da
época e seus condicionalismos” (p. 49), como nos lembra ainda Galhardo, mas também ajuda
a perceber como as mulheres se organizavam em comunidades que, de algum modo, faziam
parte do tipo de organização social do século XVII. Trata-se, frequentemente, de textos de
menor valor literário que informam sobre a vida das religiosas nos conventos, mas nos quais
um olhar atento pode perceber ânsias, sentimentos e conflitos interiores, os quais puderam ser
expressos em obras que existiram à margem da cultura hegemônica e que dão, por vezes,
testemunho de uma sensibilidade nova de mulheres que ansiavam por uma vivência plena
numa sociedade que as constrangia, e que tinha na clausura conventual, nas políticas
matrimoniais e na censura inquisitorial mecanismos eficazes de repressão e controlo
ideológico.
O resgate desse enorme manancial de obras que se encontram depositadas em
bibliotecas mostra, ainda, que Mariana Alcoforado (muito provavelmente, uma personagem
com uma carga de investimento mítico que tem servido a mal disfarçados desígnios
nacionalistas e ideológicos, como mostra Anna Klobucka em Mariana Alcoforado: formação
de um mito cultural) não é um caso isolado de autoria, mas que existe uma produção
importante que merece ser estudada, ao lado de nomes como D. Francisco Manuel de Melo ou
mesmo Padre Antônio Vieira. A título ilustrativo, registrem-se os nomes de outras religiosas
que deixaram autobiografias, não raro, de grande merecimento literário: Soror Isabel do
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Menino Jesus, Soror Francisca do Livramento, Soror Maria da Assunção, Soror Maria
Michaela de S. Bernardo, Soror Rosa Maria de Santa Catarina, Antónia Margarida de Castelo
Branco ou Soror Clara do Santíssimo Sacramento, Madre Maria Perpétua da Luz, Madre
Mariana da Purificação. Anabela Couto menciona, ainda, autoras não religiosas cujas obras a
história literária não registrou: Mariana de Luna, D. Luísa Coutinho, Ana de Lima, Isabel
Senhorinha da Silva, Brites de Sousa e Melo, Ângela de Azevedo. (Couto, Os labirintos de
eros, p. 49)
Se é verdade que a obra destas autoras permanece desconhecida ou desvalorizada,
apesar dos importantes estudos de investigadoras como Ana Hatherly, Margarida Vieira
Mendes, João Palma-Ferreira, Isabel Morujão, Anabela Galhardo Couto e consideráveis
pesquisas no âmbito de mestrado e de doutorado, vale lembrar que o barroco enquanto
período da historiografia literária continua a sofrer do estigma do excesso e do rebuscamento
ao nível das idéias e da expressão, período tido como decadente em relação ao classicismo e
obscuro frente ao racionalismo iluminista.
Como exemplo da escritora consciente da ousadia que constitui a mulher que escreve e
a transgressão que a escrita significa, atente-se nos versos iniciais de Parnaso lusitano de
divinos e humanos versos, de Soror Violante do Céu, traduzidos para português da versão
original em castelhano:
A autora faz uso do tópico da humildade para insinuar o seu canto feminino ao divino,
estratégia que os escritores clássicos já empregavam para encarecerem o seu talento, ao
mesmo tempo em que se colocavam num estatuto de inferioridade que fazia sobressair a sua
competência artística. Esta estratégia será comum na escrita das mulheres ainda no século
XX, as quais, se, por um lado, receiam ainda o peso de uma tradição literária que desvaloriza
a escrita de mulheres, apodando-a de adocicada ou de exercícios que lembram as prendas
manuais, por outro lado, sentem que não têm por modelos obras de mulheres que lhes
permitam filiarem-se numa tradição feminina. Sandra Gilbert e Susan Gubar, em Madwoman
in the attic, equacionam a questão da autoria feminina em termos de “ansiedade de autoria”, o
medo de não poder criar que a escritora experiencia, por contraste com a “angústia da
influência”, segundo Harold Bloom, que os autores, edipianamente, sentem em relação aos
predecessores.
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Eis-nos de luta
expostas
sem vencer os dias
as verilhas
certas
no passo retomado
Diária é a escolha
o movimento insano
o sossego manso e mais pesado
daquilo que desperta e não quebramos
Fêmeas somos
fiéis à nossa imagem
oposição sedenta que vestimos
mulheres pois sem procurar vantagem
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mas certas bem dos homens que cobrimos
E jamais caça
seremos
ou objecto
dado
vidro dizemos
pedra
caminhada
em se chegar a nós
de barca
ou vento
de pressuposta amarra
em que ficamos
Referências
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NAS BRUMAS DE AVALON: UMA LEITURA DO IMAGINÁRIO SIMBÓLICO DA
MULHER/BRUXA NO FILME AS BRUMAS DE AVALON
Introdução
Dentre o vasto leque de seres estranhos criados pela fantasia humana, a bruxa ocupa
lugar entre os mais populares. Sua universalidade é percebida através de sua aparição de
diferentes formas em diferentes culturas. Mas apesar de aparecer de maneiras diferentes por
influencia da cultura local, a bruxa guarda sempre uma “identidade” que a torna reconhecível.
A imagem da bruxa foi se constituindo ao longo dos tempos, desde os cultos
primitivos à deusa mãe-natureza, as antigas lendas célticas, a feiticeira medieval fabricada
pela Inquisição, e foi ganhando força, ao longo do tempo, através de representações artísticas
e, sobretudo, na literatura alimentada pela tradição oral.
Este presente artigo tem por objetivo fazer uma análise da imagem da mulher/bruxa na
figura de Morgana e Viviane no filme As Brumas de Avalon.
Para falar sobre a imagem da mulher/bruxa é necessário que falemos um pouco sobre
imagem, imaginário, símbolo e arquétipo.
Um dos elementos mais importantes do imaginário é o símbolo, sendo assim grande
parte dos autores “relaciona o símbolo com o mundo do imaginário.” (GIRARD, 1997: 25).
O simbolista Marc Girard em sua obra Os símbolos na Bíblia (1997) classifica o
símbolo em quatro classes distintas, apresentando-as da quarta classe para a primeira. Para ele
a quarta classe cabe ao símbolo das ciências exatas, como por exemplo, os “símbolos
matemáticos”. Nessa categoria
A terceira classe de símbolo para Marc Girard (1997) cabe aos sinais distintivos.
Como por exemplo, a bandeira de um país ou de uma região. Aqui nessa categoria também
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são ajustadas duas coisas que, por si, não estão juntas. O fundamento da analogia existe na
realidade, mas é limitado. Trata-se de símbolos totalmente convencionais. [...] Quanto à
escolha da foice e do martelo como emblema soviético, ela decorre diretamente do programa
operário rural da revolução bolchevique de 1917. Em suma, na bandeira, um simples desenho
concreto representa uma realidade complexa e abstrata (território, nação e até história e
cultura). [...] A dualidade vai sempre do concreto (figura) ao abstrato (por exemplo, honra,
poder, valor). (GIRARD, 1997: 28)
A segunda classe de símbolo para Marc Girard (199ι: 29) “abarca todos os emblemas
enraizados de alguma forma num simbolismo mais profundo” que ganham proporções
universais. Como a representação da paz com uma pomba, de coragem comum leão e do
cristianismo, ou do Cristo, com uma cruz. Nessa categoria de símbolo se encontra uma
dualidade do tipo concreto-abstrato.
A primeira classe de símbolo abarca principalmente os símbolos oníricos (que dão
estrutura aos sonhos) e os símbolos míticos y religiosos. Nessa categoria a dualidade é do tipo
concreto-concreto.
Tomemos o símbolo das asas […] digamos que as asas evocam logo a idéia de vôo, de
leveza, de libertação da escravidão da gravidade, de evasão do domínio da matéria e, portanto,
a idéia de ascensão do homem para o mundo da plena liberdade e da transcendência. [...] Os
onirólogos constatam, entre os humanos, a frequência relativa dos sonhos noturnos de
levantar vôo: o símbolo das asas jaz, portanto, no fundo do subconsciente de cada pessoa,
antes mesmo que a imaginação individual consciente dos poetas e dos literatos se apodere
dele. [...] pertence ao símbolo fundamental das asas tudo o que possui um equipamento de
vôo, isto é, a capacidade de elevar-se. (GIRARD, 1997: 31)
Nesta primeira classe de símbolos não só o simbolizante é concreto, como também o
simbolizado. Mesmo se tratando de símbolos míticos e religiosos que trazem em si realidades
concretas que escapam do sentido. Ainda assim se trata de simbolizados concretos, pois
Girard (1997: 32) fala que “as realidades divinas correspondem ao que existe de mais
concreto, tão concreto que se tornam complexas e inapreensíveis para nossos espíritos
limitados, excessivamente inclinados para a análise e a abstração”.
Assim, vemos que o símbolo carrega em si simbolizante e simbolizado. E que o
símbolo não é arbitrário, pois está ligado a cultura e vivencias de determinada sociedade.
Assim, “τs símbolos são esquemas de ações intencionais, produzidas nas interações entre os
homens em dada situação social ou no interior do texto de um discurso.” (LAPLANTINE &
TRINDADE, 1997: 19).
Outro elemento importante para o imaginário é a imagem. As imagens são construídas
a partir de experiências visuais e informações anteriores. Para Laplantine & Trindade (1997)
as imagens são criadas como parte do ato de pensar e se constituem a partir de como vemos as
coisas ao nosso redor.
Para Laplantine & Trindade (1997) o símbolo se sobrepõe a imagem, pois,
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afetivos, meios para agir, mobilizar os homens e atuar segundo suas próprias
regras normativas (LAPLANTINE & TRINDADE , 1997: 13)
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corpo da Deusa”, pois como disse Viviane “a Deusa é tudo o que há na natureza e tudo na
natureza é sagrado”.
Assim, percebemos que em As Brumas de Avalon a deusa é representada pelo
arquétipo da Mãe Bondosa-Má.
Segundo Campbell (1990: 1ι6) “A ideia da Deusa se relaciona ao fato de que você
nasceu de sua mãe” e segundo ele as sociedades primitivas reverenciavam a figura da Deusa,
a Mãe-Terra e isso estava relacionado ao fato de que essas sociedades viviam efetivamente da
agricultura.
No filme objeto desta análise percebemos que o culto a deusa estava ligado sim a
agricultura, quando Artur e Morgana, ainda crianças, passeiam a cavalo e presenciam um
ritual da colheita oferecido a deusa.
“E quando você tem uma Deusa como criador, o próprio corpo dela é o universo. Ela
se identifica com o universo. Ela é toda a esfera dos céus que abarca a vida.” (CAMPBELL,
1990: 177). Assim compreendemos o respeito e a devoção que Viviane mostra a Morgana
com relação a Deusa.
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As Brumas de Avalon
A palavra bruma que é sinônima de nevoeiro que, por sua vez, é símbolo do
indeterminado, de uma fase de transição que ainda não se distinguiu.
Chevalier & Gheerbrant (2009) classifica esse símbolo como “o período transitório
entre dois estados”. E para eles o nevoeiro precede as “revelações importantes; é o prelúdio da
manifestação”.
Em As Brumas de Avalon as brumas marcam a passagem do mundo humano, no caso
a Bretanha que estava sendo invadida não só pelos saxões, mas também pelo cristianismo que
desde o princípio da trama já ameaçava o predomínio da deusa, e o Outro Mundo, ou seja,
Avalon a ilha sagrada da Deusa.
As brumas marcam também a passagem de Morgana de seu mundo de bruxa, com
poderes, dados pela deusa, e rituais, oferecidos à deusa, ao mundo dos humanos, pois depois
que Morgana da às costas a Viviane e a todos os seus ensinamentos os poderes a abandonam e
ela não consegue mais voltar a Avalon e fica perdida nas brumas.
Morgana é conhecida como Fada Morgana e seu nome tem origem celta e significa a
mulher que veio do mar.
Morgana é peça principal no filme As Brumas de Avalon, pois é ela quem retrata a
história do rei Artur, seu meio irmão que nasceu para livrar o povo da Bretanha das mãos dos
saxões e garantir que a Deusa de Avalon continuasse a ser cultuada mesmo com a ameaça do
cristianismo que já era vivo e ganhava força.
Morgana é sacerdotisa de Avalon e está presente em quase todos os episódios, pois é
ela que trilha o destino de seu irmão, até quando não se dá conta disso. Morgana é levada por
sua tia Viviane a Dama do lago para Avalon e lá é treinada para substituir a tia.
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Viviane, por sua vez, é a mais importante sacerdotisa de Avalon e é a responsável por
entregar a espada sagrada, Excalibur, forjada em Avalon, a Artur e fazê-lo prometer que
quando fosse rei da Bretanha reinaria respeitando os cultos católicos e os cultos de Avalon.
A imagem de Viviane e Morgana é facilmente associada a bruxas, pois elas realizavam
rituais que já não eram tão comuns e eram dotadas de poderes mágicos com os quais
manipulava o destino dos demais. Vemos isso quando Morgana dá um amuleto a Guinevere
que faz com que Artur a deixe dormir com Lancelot para que tenham o filho que não se gera
de seu matrimônio.
Conclusão
Assim, percebemos que tanto a bruxa, quanto a Grande Mãe fazem parte do
inconsciente coletivo da humanidade, pois diversas culturas e religião se usam de suas
características para representá-las.
Como fadas, sacerdotisas ou bruxas suas características principais sobrevivem ao
longo dos anos e se estendem por distintos povos, distintas culturas e distintas religiões.
Referências
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UMA FLOR DE ALTURA? PERFIL IGNORADO DE LEONOR TELES EM UM
ROMANCE DE ANTÓNIO CANDIDO FRANCO
O romance de António Candido Franco, Vida ignorada de Leonor Teles (2009), retrata
a história de Leonor Teles, que fazia parte da família dos Teles de Meneses, composta por
fidalgos, os quais tiveram certa influência na corte portuguesa, principalmente, por ter na sua
linhagem um conselheiro real, Afonso Teles de Meneses, assim como também condes e
nobres que sempre serviram na dinastia Afonsina.
Segundo as crônicas medievais de Fernão Lopes (2000), Leonor Teles era uma mulher
esbelta e fogosa como a Vênus, além de ser ardilosa para conseguir o seu intento, chegando a
ser fria e repleta de artimanhas para obter o desejado. Casou-se primeiro com um fidalgo
chamado João Lourenço da Cunha senhor do morgado de Pombeiro com o qual teve um filho,
Álvaro da Cunha, e os deixou para passar uma temporada na corte com sua irmã, Maria Teles.
Desse passeio, a Lisboa, hospedando-se no paço da infanta D. Beatriz de Castro, Leonor não
mais retorna, deixando a criança juntamente com o pai abandonados, por causa do rei D.
Fernando, filho de D. Pedro e Constança Manuel. O rei ordena que se desfaça o casamento
dela com o fidalgo e então a desposa.
Após certo tempo como rainha, Leonor descobre o casamento da irmã com o cunhado,
o infante João, filho de D. Pedro e de Inês de Castro, ficando perplexa por não concordar com
esse enlace matrimonial, acaba induzindo o príncipe a matar sua esposa para que assim o
mesmo deixasse Portugal, tirando-os do seu caminho no reinado. Depois planejou matar João
de Avis e Gonçalves Vasques de Azevedo em nome do rei, por fim, tenta tronar sua filha
rainha de Portugal e Castela. Depois de um período foi proposto pelo conselho um novo
enlace da rainha Leonor Teles com o novo possível substituto do falecido rei D. Fernando seu
irmão bastardo João de Avis. Ficando assim conhecida a jovem dos Teles de Meneses através
das crônicas medievais de Fernão Lopes (2000).
O romance histórico contemporâneo mostra um fato histórico, mas não através de uma
descrição como o conhecemos, pois traz uma nova visão sobre os acontecimentos, com uma
releitura do ocorrido, como demonstra esse romance que configura uma nova personalidade
para Leonor Teles: sensível, delicada, e sem busca pelo poder, nem vingança. Conforme
explica Antônio Esteves (2010), em um ensaio sobre romance histórico: “Segundo mudam as
concepções do romance e suas relações com a sociedade, também muda o romance histórico,
da mesma maneira que ele se vê afetado pelas mudanças epistemológicas que se verificam na
concepção de história”. (ESTEVES, 2010, p. 2ι).
Assim, o romance histórico contemporâneo traz uma nova visão dos acontecimentos,
não ficando detido a maneiras de produção do período clássico do romance histórico, pois cria
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uma nova forma de retratar a História, diferente do que vinha sendo feito, já que trata de uma
inovação na maneira de tornar ficção com aspectos históricos. Além de ter-se uma nova
perspectiva sobre a posição do povo nessa história a qual está sendo contada, surgem, então,
as pessoas secundárias, como a criada da protagonista, ganhando um enfoque maior nessa
narrativa de Franco (2009), e até a própria Leonor, a qual ficou em algumas obras em segundo
plano, torna-se a protagonista e a heroína.
Em seu ensaio O romance histórico em Portugal (1999), Maria de Fátima Marinho
parte dos estudos de Lukács (2011) sobre o romance histórico, e afirma:
Assim, notamos o quanto Leonor confiava na sua aia, pois a ela contava seus desejos
mais íntimos como o fato de não gostar de viver neste universo social, almejando dele um
distanciamento. Neste sentido do universo particular de Leonor, na qual sua aia tem
importante papel, lembramos as palavras de Fátima Marinho (1999), ao afirmar que o
romance histórico português reconstrói “[…] uma época através dos seus fragmentos
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textualizados, os autores vão-se movimentando entre personagens referenciais e personagens
inventadas, dando primazia a umas ou a outras consoante as suas convicções. [...]”
(MARINHO, 1999, p. 21).
Na ficção de Cândido Franco (2009), antes de Leonor casar-se e conhecer o infante, a
infanta D. Beatriz de Castro, filha de D. Pedro com Inês de Castro, convida as primas e a irmã
de Leonor para a corte, onde ficariam como suas damas de companhia e a mais nova dos
Teles de Menezes as acompanha. Mas por ser muito recatada e reclusa, acaba voltando para a
estância dos tios, os quais a levam para um convento, porém, não passa no teste para se tornar
freira. Tempo depois os tios arranjam um casamento com João Lourenço da Cunha, um
morgado rico que vivia em Pombeiro, afastado da corte.
É nítida a oposição entre a personagem do romance e a rainha descrita nas crônicas
medievais que queria um maior envolvimento social e riqueza, já segundo Franco (2009) a
protagonista só espera ficar só no seu paraíso imaginário, e através desse e outros argumento
o autor consegue compor um novo perfil da personagem, por meio dessa configuração
ficcional tornando sua narrativa mais real:
Com todas as características expostas por Franco (2009) mostra sua forma de
argumentação para conseguir uma construção da figuração da sua protagonista de modo a
enobrecer sua heroína, e dar-lhe um novo perfil, através desses novos traços da personagem
que ele esboça mostrando-a mais sensível, delicada, mas com a mesma independência e
coragem. Assim, auxilia no enaltecimento do romance e torna-o próximo do real. Isto
corresponde ao que aponta Marinho, que cada romancista vai escrever a sua versão, “[...] uma
outra versão da mesma História, tantas vezes ouvidas e decoradas.” (MARIσHτ, 1999, p.
234).
A Leonor da ficção de Antônio Franco (2009) gostava de refletir sobre a vida, amava a
natureza e os seres vivos. Diferente das moças de sua idade, não desejava casar, pois
acreditava não ter sido feita para isso. Era a mais nova e a menor das donzelas dos Teles de
Meneses. Apresentava a pele branca, cabelos ruivos, olhos verdes como esmeraldas, muito
delicada, sensível, religiosa, vegetariana, carinhosa, porém, fingia aspereza quando tinha de
comparecer no conselho, reuniões ou qualquer coisa que a levasse ao convívio com outras
pessoas. Preferia ficar invisível aos olhos dos demais, para não ter de se relacionar com eles e
que não pudessem observá-la, além de almejar uma independência possibilitando controlar a
sua vida sem as interferências dos demais, ocultando tais desejos ao conhecer o infante D.
Fernando:
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— Polidos foram para ti, Fernando.
— Os teus olhos são jóias raras.
— Guardadas ficaram para que tu as visses.
— E os cabelos, Deus meu! São um incêndio de Sol e de luz.
— Acesos foram para ti.
— Que lábios tão apetitosos!
— São teus.
— A brancura da pele do teu pescoço seduz mais que pérola.
— É tua. (FRANCO, 2009, p. 178).
Este foi o primeiro encontro íntimo entre o infante Fernando e Leonor Teles a sós em
Alcobaça, na casa onde viveram Pedro e Inês, além de ser a primeira vez que a via sem sua
capa preta de veludo a qual a deixava quase invisível ao resto do mundo. Assim percebemos
em Vida ignorada de Leonor Teles (2009) a descrição feita dessa mulher diferente da
conhecida até esse momento através das produções de Fernão Lopes (2000), no romance o
discurso do autor está voltado para a desconstrução desse ser que até o momento ficou
marginalizada. Franco (2009) apresenta Leonor como um ser místico e romântico, distinta da
figura histórica que foi tida como uma pessoa sem nenhum caráter, nem princípios e através
desse novo perfil pode mostrar o oposto, como ter casado com o infante não por interesse
mais por amor:
Esse momento é quando Leonor consegue por meio do seu mundo invisível trazer D.
Fernando a vida, após o atentado cometido por Maria Teles, dessa forma o autor inocenta a
protagonista de ter tentado matar seu marido, pois é através de um veneno na carne do rei que
a irmã da rainha envenena o infante. Ao refazer-se do atentado o rei passa o trono para
Leonor, quando ele estivesse morto, para ela governar independente mesmo sem ter um rei ao
lado e divide toda sua riqueza de modo a deixar sua amada e sua filha, amparadas e
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protegidas, além de arranjar o casamento da filha com o rei de Castela para acabar com as
inimizades.
Sem deixar de notar a grande relação de poder existente no fato citado posteriormente
que foi a quase morte de El-rei Fernando, resolvendo definir sua herança de modo a acabar
com os conflitos de guerra e até visando à questão econômica da filha e da esposa após sua
morte:
Mostra nesse fragmento este conflito de interesses, tanto sociais como econômicos
após a morte de D. Fernando, através de uma conversa entre a rainha Leonor Teles e sua filha,
rainha de Castela, que trata da vontade do rei de Castela de governar Portugal. Depois do
falecimento de D. Fernando, começa uma briga pelo poder, alguns fidalgos convencem seu
meio irmão, o conde de Avis a casar com a rainha e governar o trono, porém, ela não aceita,
criando-se um motim. O rei de Castela genro de Leonor exige o trono, mas ela deixa bem
claro que não dará, ele a convida para uma conversa e ao não conseguindo seu intento, a
prende. Depois manda a esposa para convencer a mãe, no entanto, também não obtendo nada,
deixam-na reclusa numa masmorra.
Muitos anos depois Leonor com a morte do genro é libertada, ela volta para Alcobaça
onde ficava a casa construída por Fernando para eles dois amarem-se, perto da de Pedro e
Inês, mas tudo tinha mudado e a casa não mais a pertencia. Ela cruza o mar seguindo para
uma ilha, ficando lá dentro de uma caverna, longe de tudo e de todos, até que um dia avista o
Mestre de Avis, neste momento o rei de Portugal. Leonor volta para falar com El-rei o qual
tenta dissuadi-la a ficar com ele, ela recusa, segue para terras desconhecidas e perigosas de
onde não mais volta nem se tem notícias, mesmo com todas as tentativas do Mestre para
reencontrá-la.
Com isso notamos quão diferente é este perfil traçado por Franco (2009) daquela
Leonor descrita nas crônicas medievais ou em textos que têm por fonte o cronista português
Fernão Lopes (2000):
E, durante assi per tempo, a rainha nom perdia cuidado da fazenda do infante
e de sua irmã, pensando todavia que per tal casamento se lhe poderia seguir
desfazimento de sua honra e estado. E, pera desviar isto de todo ponto, azou
de fazer entender ao infante que lhe prazeria de o ver casado com a infanta
Dona Beatriz, sua filha. E falou todo seu cuidado com D. João Afonso Telo,
seu irmão, que lhe era muito obediente por muitas mercês que dela recebia,
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que encaminhas-se como o infante houvesse disto algum conhecido.
(LOPES, 2000, p. 74-75).
Lopes, por conseguinte os cronistas que o tomam como fonte, descreve Leonor como
uma mulher interesseira, fria e sem sensibilidade, ressaltando sobretudo seu desejo pelo
poder, ficando mais evidente seu ato de planejar a morte da própria irmã, Maria Teles, sem
sentir nenhum remorso.
Essas diferenças entre a Crônica e modo de escrever o romance histórico
contemporâneo – as quais podemos denominar como liberdade do romancista – evidencia
essa nova maneira de se produzir ficção com conteúdo historiográfico, através da qual alguns
personagens não conhecidos ou pouco conhecidas, ganham uma oportunidade de poder ser
conhecidas, como as pessoas que estão por trás dos grandes e poderosos, como é o caso de
Maria Peres e João Afonso Telo, aqui com maior destaque no romance de Cândido Franco
(2009):
REFERÊNCIAS
ESTEVES, Antônio R.. O romance histórico brasileiro contemporâneo. São Paulo: Ed.
UNESP, 2010.
FRANCO, António Candido. Vida ignorada de Leonor Teles. Lisboa: Ésquilo, 2009.
GOFF, Jacques Le. História e memória: memória. II v. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1982.
LUKÁCS, György. O romance histórico. (tradução Rubens Enderle). São Paulo: Boitempo,
2011.
LOPES, Fernão. Crónicas de Fernão Lopes: Introdução e notas por Maria Ema Tarracha
Ferreira. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 2000.
MARINHO, Maria de Fátima. O romance histórico em Portugal. Porto: Campo das Letras,
1999.
VIEIRA, Cristina da Costa. A construção da personagem romanesca. Lisboa: Colibri, 2008.
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SUTIÃ DE AÇO: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER GUERREIRA NO FILME
COMO TREINAR SEU DRAGÃO
Figura 1: Poster do filme no Brasil. Detalhe para o elmo de Soluço feito a partir do protetor de
seios de sua mãe.
Pensar em viking é pensar em bárbaros robustos com enormes machados nas mãos e
elmos com um par de chifres prontos para velejar e pilhar alguma aldeia, no entanto esta
imagem que temos é fruto de muito tempo de representações. Desde 793 d.C. até os dias
atuais, a imagem dos vikings vem sendo construída e reconstruída de acordo com vivências,
ideologias e intenções de povos e épocas diversos. Na realidade, apenas uma porção
relativamente pequena de seus membros se atirava aos saques e às aventuras de colonização.
Em sua maioria, o povo viking se dedicava à agricultura, à pecuária, à pesca e ao comércio
nas terras localizadas ao extremo norte e nordeste da Europa, principalmente em uma região
conhecida como Escandinávia. Eles colonizaram a Islândia, a Normandia, a Grã-Bretanha, a
Groelândia, a Irlanda e até a América do norte 500 anos antes do período das “Grandes
σavegações”.
τ termo “viking” ainda é motivo de debate entre estudiosos, porém a origem mais
provável é que seja um desenvolvimento da palavra vik que significa baía/enseada, local onde
os navios eram atracados para que pudessem descansar ou emboscar outras embarcações. De
qualquer forma, a palavra viking moderna é proveniente do termo em nórdico antigo vikingr,
utilizado para designar piratas, aventureiros e mercenários.
1
Graduando em História pela Universidade Federal do Ceará. Coordenador do Valknut: Grupo de Estudos
Vikings.
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Durante muitos anos os povos vikings comercializaram, saquearam e colonizaram
diversos territórios pelo mundo. Muito se discute acerca das razões que levaram os
escandinavos a realizar suas incursões, sendo consideradas mudanças climáticas e
superpopulação (DUBY 1980), divergências legais e sociais, condições mercantis, tecnologia
náutica avançada e até disputas por poder. (LANGER, 2009)
Sua sociedade era estratificada, cada região possuía sua organização, porém não
possuía estrutura muito rígida, de forma que a mobilidade social era algo comum, podendo
um fazendeiro se tornar nobre e um escravo comprar sua liberdade. Acima de todos estava o
rei, chamado de Kunungr. Este seguia a tradição germânica de ser o primeiro entre os iguais,
seguido pelos nobres Jarls, chefes locais que forneciam suporte militar ao rei, a camada mais
numerosa dos Karls, composto por homens livres em geral e por último os escravos chamados
de Thrall, que foram algumas das mercadorias mais populares para o comercio com os árabes.
A educação das crianças vikings era responsabilidade do pai e às vezes de um poeta
(Skald) que o ajudava contando histórias e lendas para as crianças. O trabalho infantil era
comum e variava de acordo com o sexo e a idade da criança. As crianças iam gradativamente
sendo apresentadas às atividades que cabiam ao seu sexo, como a arte da ferraria para homens
e a tecelagem para as mulheres. A infância durava até por volta dos 15 anos, quando os
meninos começavam a sua participação na política e nas guerras e as meninas se preparavam
para se casar.
A mulher viking gozava de uma ampla liberdade, se comparada com a mulher
europeia em geral. Podia possuir terras e outros bens, cultivar, comercializar e era dela a
escolha de casar ou não com o pretendente designado pelo pai, tinha o direito de pedir
divórcio e poderia até possuir um status elevado herdando bens de um marido falecido.
Entretanto poderia perder a liberdade e a vida caso cometessem crimes, como o adultério, que
dava direito ao seu marido de executa-la. Eram destinadas a ela as tarefas domésticas
(GRAHAM-CAMPBELL, 1997).
O papel da mulher era cuidar dos afazeres domésticos cuidando das crianças,
preparando os alimentos, limpando a casa, lavando a roupa, dedicando-se a tecelagem sendo
também de sua responsabilidade ordenhar as vacas, fazer queijo e manteiga, preparar
remédios e tratar dos doentes e feridos (MALTARO, 2005).
Na ausência do marido, a mulher tem total controle sobre os bens da casa, sendo
atribuído a ela o símbolo das chaves (LANGER, 2010), além de assumir as responsabilidades
do marido nos assuntos externos da casa.
Não existe nenhuma evidência arqueológica da existência de mulheres vikings
guerreiras, há sim escavações nas quais foram encontrados corpos de mulheres sepultadas
junto a armas e armaduras, mas a presença de tais artefatos está ligada à representação um
status social elevado desta mulher, uma vez que possuir tais equipamentos custava caro. Da
mesma forma, não há menção a mulheres guerreiras na maioria das sagas islandesas, tanto de
família quanto as contemporâneas2, salvo alguns casos de autodefesa, como o famoso caso da
2
As sagas de famílias e as sagas contemporâneas possuem um caráter mais crível, pois o termo saga advém do
verbo Sjá que significa “aquilo que foi visto”, portanto ligada a memoria.
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Freydís Eiríkdóttir, tendo aparições apenas nas sagas lendárias3, nas quais a representação
feminina está voltada para o modelo mítico das valquírias (LANGER, 2012). Existe na obra
Germânia de Tácito algumas passagens em que se fala de mulheres em guerras, mas essas
também estão ligadas a autodefesa ou casos raros e até mesmo a mitos.
Reza a tradição que, muitas vezes, quando as batalhas perigavam o fracasso se
aproximava, as mulheres restauravam as linhas rompidas, obrigando o esquadrão a retornar a
frente, quando em fuga, com a persistência das suas súplicas, opondo-lhes feitos e
amedrontando-os com o cativeiro como consequência (...) (TÁCITO).4
As representações modernas no cinema, nas HQs e outras produções culturais de
massas acerca da mulher viking estão recheadas de fantasia. Atendendo às necessidades de
mercado, a indústria se volta ao apelo da sensualidade e da violência em suas produções,
destinando seus produtos para o público jovem.
Figura 2: Reprodução da personagem Figura 4: Xena, a Princesa Guerreira. Figura 3: Capa do HQ Red Sonja.
Freya do filme "Outlander, Guerreiro
vs Predador".
Símbolo desta tendência é a HQ criada em 19κ2, por Roy Thomas, chamada “Red
Sonja”. Inspirada nos contos de Robert E. Howard, Red Sonja é uma guerreira de força e
destreza descomunais, ela se equipa com armas enormes e uma espécie de biquíni de metal
como armadura, atingindo, em cheio, os objetivos de vendas e fixando a imagem da mulher
sensual e belicosa. τutros exemplos dessa imagem é a série de TV “Xena, a princesa
guerreira” de 1995, a personagem Freya do filme “τutlander: Guerreiro vs Predador” de 200κ
e, não se pode desconsiderar no que concerne à cultura de massas, os diversos jogos de RPG,
que tem grande popularidade entre os jovens (LANGER 2012).
Todas estas representações modernas tiveram duas grandes influências. A primeira, de
cunho mais ideológico, surgiu com o feminismo pós-Segunda Guerra, quando as mulheres,
3
As sagas lendárias, como o nome já sugere, diverge das outras sagas por está repleta de elementos fantasiosos,
portanto menos digna de confiança no que se refere ao real.
4
Temos esta passagem como ligada à lendas, posto que Tácito utiliza os termos “Reza a tradição”.
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que ocuparam os mais diversos setores econômicos enquanto os homens haviam sidos
enviados para a batalha, foram sendo empurradas de volta ao trabalho doméstico depois que a
guerra terminou e os soldados quiseram ocupar seus antigos postos de trabalho. Este
sentimento da mulher como capaz de realizar as mesmas tarefas que o homem, mesmo
utilizando sapatos de salto alto, logo fora absorvido e ascendeu às produções de sua época.
Um bom exemplo é o filme “The Saga of the Viking Woman” de 195ι, na qual as mulheres
vikings são postas como intrépidas e completamente independentes, construindo seu próprio
navio e indo se aventurar nos mares até encontrar a grande serpente marinha. Temos também
o filme “The Viking Queen” de 196ι que, apesar de se tratar de Boudica, uma líder celta que
tenta resistir à invasão romana na Grã-Bretanha, é chamada de viking por sua posição de
guerreira. τutra personagem que não se pode esquecer é Éowyn*, da trilogia literária “τ
Senhor dos Anéis” de 1955 escrito pelo aclamado J. R. R. Tolkien, onde ela mesmo sendo
uma dama da corte de seu povo, desobedece seu tio e rei e se traveste de guerreiro, monta um
cavalo e cavalga para batalha.
A segunda grande influência está ligada ao romantismo oitocentista na produção
artística e as aspirações nacionalistas dos estados nacionais em formação do Séc. XIX. Os
pintores e músicos desta época buscaram realizar em suas obras um enaltecimento de um
passado glorioso e que pudessem se orgulhar e se identificar.
As modernas imagens sobre os bárbaros europeus foram criadas com o romantismo
oitocentista. Respondendo aos diversos anseios nacionalistas, as antigas paisagens e os
personagens medievais foram resgatados para construir identidades modernas: os celtas para
os franceses; os teuto-saxões para os alemães e os vikings para os escandinavos (LANGER,
2009).
Para os artistas escandinavos, os ancestrais vikings foram logo sendo resgatados e
acabaram estrelando a maioria das produções destes anos. Grandes pintores como Peter Arbo,
Johanes Flintoe e W.G. Collingwood realizaram belíssimos trabalhos com representações do
povo escandinavo, tendo como a mais popular e famosa pintura de sua época a tela “Funeral
de um viking” de 1κ93 do pintor Francis Dicksee, porém esta pintura apresenta os vikings
com uma grande carga de estereótipos, onde guerreiros enormes portando elmos com chifres
empurram um navio-tumulo incendiado com o corpo de um líder dentro.
Mas de todos os artistas que ganharam fama e reconhecimento, o mais importante foi
o maestro, compositor e teatrólogo alemão W. Richard Wagner, que compôs uma grande
quantidade de musicas e óperas, que ficaram conhecidas em todo o mundo e se tornaram a
maior referencia da imagem dos vikings para o mundo moderno. “Foi somente com Richard
Wagner que se instaurou a moderna representação dos mitos germânicos e, ao mesmo tempo,
fundiram-se representações específicas advindas do mundo celta” (LAσGER, 2009). Richard
Wagner, juntamente com o pintor T. Pixis, que pintou os cenários de suas óperas, criaram
uma atmosfera que ilustra o imaginário viking até o nossos dias com a composição do “Ciclo
do Anel”, uma narrativa adaptada de uma das mais famosas sagas lendárias, a Volsungasaga.
Escrita no Séc. XIII essa saga conta a trajetória de um herói Sigurðr, o matador de
dragão e relata a participação de três mulheres que estão diretamente ligadas à história do
herói: Brynhilðr, Guðrun e Grimild. Na narrativa, Brynhilðr (uma das personagens centrais do
“Ciclo do Anel” de Wagner) se apresenta como uma guerreira divina que portava
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equipamento de guerreiro completo, mas que desobedeceu a uma ordem de Odin e recebeu
como punição a proibição de lutar e agora teria de se casar e assumir as atividades domésticas
(MALTARO, 2005), entretanto seu passado guerreiro foi que a deixou famosa e esta foi a
imagem que ficou. Wagner a imortalizou em suas operas e desde então sempre se recorre a ele
quando se busca a imagem de uma guerreira viking. As outras duas estão presentes mais na
esfera doméstica, sempre ligadas às tarefas familiares e à magia. Também assumem o papel
de incitadoras de conflitos e manipuladoras, utilizando-se dos mais diversos meios para
convencer seus maridos e parentes a fazer o que elas quisessem.
Figura 5: Anton Van Rooy como Wotan na Figura 6: Atriz desconhecida interpretando
ópera de Wagner. Brynhilðr na ópera de Wagner.
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Estando sempre vestida para batalha, Astrid mantém a postura agressiva mesmo
quando está em uma conversa amistosa, mudando de postura apenas quando se apaixona por
Soluço. Logo vemos uma referência com a Brynhilðr da Volsungasaga, que muda da esfera
guerreira para a doméstica ao se casar com Sigurðr. Mas as semelhanças não param por aí: já
para o desfecho final do enredo, Soluço se vê sem solução para seu problema, e é quando
Astrid, ao conversar com ele, começa a insuflar algumas ideias de modo indireto, instigando
Soluço a cometer uma atitude desesperada e ao mesmo tempo heroica, manipulando-o, atitude
semelhante ao que fizeram Brynhilðr, Guðrun e Grimild.
Outro ponto importante é o lado sensual da personagem, que, apesar de ser uma
produção inspirada em livros infantis, se faz muito presente, pois já esta sendo comum para as
animações contemporâneas incluir um pouco de atrativo para o público jovem e adulto.
Temos como exemplo disso a primeira cena em que Astrid é apresentada ao público, na qual a
vila está queimando sobre o ataque de dragões e Astrid aparece caminhando de forma sensual
ao lado de outros jovens guerreiros mal encarados enquanto uma bola de fogo explode logo
atrás dela.
REFERÊNCIAS
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II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA
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Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
LAσGER, Johnni. Guerreiras na Era Viking? Uma análise dos quadrinhos “Irmãs de Escudo”
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O EROTISMO MÍSTICO NA POESIA DE TERESA DE JESUS: ANIQUILAMENTO
E ÊXTASE NA BUSCA DO ABSOLUTO
Introdução
Ler poesia é um trabalho desafiador e instigante. Mais ainda quando se trata de poesia
místico-erótica e que se encontra dentro do que se pode chamar de escrita feminina, pois, as
sutilezas e inesperados encontros subjetivos desafiam os trabalhos de análise interpretativa.
A produção escrita de Teresa de Jesus foi vasta: desde seu diário, até textos sobre as
muitas fundações de mosteiros sob sua orientação, cartas, meditações, entre outros tipos de
textos. Para este trabalho, no entanto, destacamos sua poesia místico-erótica, evidenciando
dois aspectos dentro da experiência de encontro com o Amor Maior e que saltam aos olhos: o
aniquilamento e o êxtase.
Importa realizar uma leitura da referida obra com o objetivo de compreender de que
maneira a poética em questão possui sua identidade intensamente marcada pelas experiências
que a autora viveu como monja carmelita descalça, o que imprime ao seu trabalho as marcas
da inegável experiência mística. Esta se liga aos caminhos do erotismo, formando dois
aspectos que se entrelaçam no mesmo conjunto subjetivo cheio de arrebatamentos, desde seu
nascedouro até seu todo poético.
Além disso, é válido ressaltar o reconhecimento de que a obra literária é vestida do
que habita a alma, não somente de quem produz Literatura, mas, também (e especialmente),
de quem a aprecia. Neste sentido, as leituras são inesgotáveis e importantes no que concerne à
ideia de que, lendo e analisando, descobre-se cada vez mais do universo explorado.
Para tanto, a teoria de Georges Bataille sobre o erotismo sagrado1 oferece apoio à
discussão aqui apresentada e guia as reflexões propostas. Sendo de cunho filosófico, o ensaio
O erotismo (2004) escrito pelo teórico mencionado traz um conjunto de pareceres sobre o
tema em questão construindo/desconstruindo caminhos interpretativos.
Todo ser humano, salvas raras exceções, possui o desejo de transcender. Tal desejo
tem buscado sua realização das mais incontáveis maneiras, desde a expressividade física (as
danças ritualísticas de algumas tribos indígenas, por exemplo) até a experiência com o
inefável por meio da vivência mística, como também não se pode esquecer, por meio da
prática artística. Assim, é importante elucidar uma compreensão teórica sobre mística, aqui
¹ No presente trabalho, usa-se a expressão “erotismo místico” por se encontrar ligada à ideia de contato com o
mistério sagrado.
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relacionada a uma experiência vivida pelo humano que é pautada no desejo de contato com o
inefável, o divino.
Desde que tomou consciência das realidades que existem ao seu redor e de
que têm um nexo entre eles mesmos, os humanos foram místicos. E o fato de
muitos terem perdido o uso da mística quando encontraram algumas
explicações racionais não acabou com ela(CORRÊA PEDROSO, s/d, p. 4).
Significa dizer que desejar o além de si é natural no humano. Trata-se de uma espécie
de insatisfação mediante o conhecido e uma necessidade irresistível de tocar o desconhecido2.
Nesse sentido, mudam-se as épocas e os conceitos, mas esse aspecto da subjetividade humana
tende a permanecer como elemento de sua identidade íntima.
Segundo Miralles (2011, s.p.), “o termo grego μυ ός, mystik€s, indicava a
iniciação a um mistério religioso, na experiência sentida como incomunicável ou inefável”.
Esse tipo de vivência tem motivado a construção de uma história religiosa humana repleta de
beleza e entrega anímica e que, por essa razão, tem propiciado o aparecimento de obras
artísticas de raro valor.
Quando se trata de experiência mística, é necessário mencionar que esta não depende
necessariamente de uma instituição religiosa. O ser humano tem em sua potencialidade
simbólica um aspecto naturalmente capaz de buscar a transcendência. Na Idade Média, por
exemplo, grupos de pessoas que não se adequavam às propostas de vida mística da Igreja de
Roma e, ao mesmo tempo, não podiam conter seu desejo de transcendência, organizavam
comunidades espiritualmente afins, comumente perseguidas pela Inquisição, como foi o caso
das Beguinas3 e dos Alumbrados4.
Sobre o erotismo, consideramos que a palavra “[...] surgiu no século XIX, a partir do
adjetivo erótico, este derivado do grego Eros, deus do desejo sexual no sentido mais amplo.”
(MORAE; LAPEIZ, 1983, p. 109). Erotismo refere-se, de maneira ainda mais ampla, a uma
energia impulsionadora de experiências subjetivas que, segundo Bataille (2004), pode ser
categorizada sob três aspectos: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e o erotismo
sagrado. (p. 26). A esse “erotismo sagrado”, chamaremos, neste trabalho, de erotismo místico
pelo fato de ele se dar por meio da experiência mística.
Em O que é erotismo (1983), Lúcia Castello Branco traz à tona o mito da criação de
Eros que está contido no diálogo de Platão intitulado O Banquete.
2
σeste contexto, ‘o conhecido’ relaciona-se a tudo o que é palpável e físico e ‘o desconhecido’ refere-se ao
inefável e inacessível ao plano terreno.
3
“τ movimento das Beguinas surgiu por volta de 11ι0 na região da Bélgica. Eram “mulheres religiosas” que
viviam sem uma regra determinada, assumindo apenas um “propósito de vida”. Em geral formavam
comunidades, onde se dedicavam à oração, ao trabalho manual e a obras de assistência.” BRUσELLI, Delir.
Clara de Assis e o movimento religioso feminino nos séculos XII e XIII. In: Ciclo franciscano, 2002, p. 18.
Disponível em <http://www.pem.ifcs.ufrj.br/CicloFranciscano.pdf>. Acesso em: 18 out. 2011.
4
Alumbrados foi o nome dado a um movimento espiritual que possuía forma de vida independente das
exigências eclesiais. Nele havia a presença de muitos cristãos novos e sua mística muito se assemelhava à
mística do Judaísmo. GÓES, Clara de. Aspectos da espiritualidade feminina em Teresa d’Ávila. In: Ciclo
franciscano, 2002, p. 141. Disponível em <http://www.pem.ifcs.ufrj.br/CicloFranciscano.pdf>. Acesso em: 18
out. 2011.
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[...] antes do surgimento de Eros, a humanidade se compunha de três sexos:
o masculino, o feminino e o andrógino. Os seres andróginos eram redondos e
possuíam quatro mãos, quatro pernas, duas faces, dois genitais, quatro
orelhas e uma cabeça. Esses seres, por sua própria natureza, se tornaram
muito poderosos e resolveram desafiar os deuses, sendo, por isso, castigados
por Zeus, que decidiu cortá-los em duas partes. Assim, eles ficaram fracos e
úteis, porque seriam mais numerosos para servirem aos deuses (CASTELLO
BRANCO, 1983, p. 66).
5
“[...] um sentimento da presença de Deus, que de nenhuma maneira podia duvidar que estava dentro de mim e
eu toda engolfada n’Ele.” [tradução nossa].
6
“Só Deus basta” [tradução nossa].
7
“[...] caminhos que somente quem o goza é que o entende.” [tradução nossa].
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sendo, é preciso considerar que a experiência à que chamamos de mística é uma das vias pelas
quais o ser humano pode viver o erotismo, essa busca incessante pela transcendência.
Entretanto, para compreender essa busca, é necessário levar em consideração que, por
ser mística, não é óbvia. Como afirma Bataille (2004, p. 5ι), “o erotismo e a religião são
inacessíveis para nós na medida em que não os situamos resolutamente no plano da
experiência interior.” Essa afirmação deixa claro o caráter interior e íntimo da experiência
citada, embora não haja necessariamente uma ligação entre vida mística e religião, mesmo
que a primeira, na maioria dos casos, esteja relacionada à segunda.
[…] there were mystical experiences of Jesus. There was his baptism in the
Jordan when the Spirit descended like a dove and the voice of the Father was
heard. There was his transfiguration on the mountain […] when his clothes
became dazzling white and there appeared to him Moses and Elijah speaking
of his departure [...] which he was to accomplish at Jerusalem. There was his
prayer at the Last Supper when he gave them his body and blood. There was
his dark night of agony in Gethsemane when he sweated blood; and there
was his prayer on the cross when he forgave his enemies and with the
psalmist cried out: ‘Lama Sabachthani(JτHσSTτσ,1996, p. 15).9
8
Disponível em:<http://www.procasp.org.br/arquivos/Artigos%20PDF/esponsais4.pdf.> Acesso em: 20 abr.
2011.
9
[...] houve experiências místicas de Jesus. No seu batismo no Jordão quando o Espírito Santo desceu em forma
de pomba e a voz do Pai se fez ouvir. Na sua transfiguração na montanha [...] quando suas roupas tornaram-se
brancas e brilhantes e apareceram-lhe Moisés e Elias falando-lhe de sua partida que haveria de se cumprir em
Jerusalém. Ele orou na Última Ceia quando deu seu corpo e sangue. Orou na sua noite escura de agonia no
Getsêmane quando suou sangue; e ele orou na cruz quando perdoou seus inimigos e com o salmista, exclamou:
‘Lama Sabactani’. [Tradução nossa]
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Portanto, a identidade da vida mística tem em seu modus vivendi a prática constante da
oração, uma das atividades primordiais à espiritualidade cristã inspirada na conduta do
próprio Jesus, que mesmo em momentos profundamente difíceis, buscou o contato oracional
com o Divino.
Para Teresa de Jesus e para outros mais escritores que viviam (ou vivem) a experiência
mística, torna-se impossível não levar para a sua obra literária muito desse conhecimento
divino10. Por essa razão, Teresa de Jesus poetisa é a mesma Teresa de Jesus carmelita e vice-
versa. Mas, é válido dizer que embora sua escrita traga muito de sua pessoa, justamente por
ser literária, segue por caminhos impossíveis de ser conhecidos plenamente porque tem em si
a liberdade de significar e de motivar outras liberdades de interpretação.
Entre muitos poemas que trazem a ideia de aniquilamento para a entrega ao Amor
Maior, podemos citar Muero porque no muero11:
10
τ termo “conhecimento” aqui está empregado no sentido bíblico de “coabitar”, de “ter vida conjugal”, e não no
sentido puramente intelectual. Assim como se pode ver em “Como acontecerá isso, pois não conheço homem?”
(Lc 1, 34)
11
Morro porque não morro [tradução nossa]
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No poema acima, a alma reconhece a morte como sendo o fim de algo que nela mesma
(a alma) já não satisfaz, pois espera uma “alta vida” e para alcançá-la, morre em si mesma,
aniquila-se para viver fora dela, isto é, no seu Senhor. Dessa forma, saborear o Absoluto é
entrar em comunhão com o Amado, o Divino esposo. No que concerne à referida comunhão,
é possível dizer que aí se encontra a outra fase que pertence à experiência mística: o êxtase.
Ao tratar do termo êxtase, não raro, surge a ideia de orgasmo, como uma espécie de
fim (objetivo e/ou culminância) de uma experiência no âmbito físico, embora, neste contexto,
não se esteja desconsiderando a importante função psicológica da citada experiência. Trata-se
do que Bataille (p. 156) cita como “pequena morte”, a ultrapassagem dos últimos limites em
busca da continuidade naturalmente perdida, ausente do fazer-se humano, mas é válido
afirmar que existem outras vivências de transposição de limites que, mesmo possuindo parte
de suas expressões no corpo físico, podem ser consideradas essencialmente psíquicas. Das
vivências dessa natureza, este trabalho se refere às que podem ser chamadas de êxtase místico
e neste contexto, restringimo-nos a citar a escrita de religiosos católicos da Igreja de Roma,
como uma forma de situar a escrita de Teresa de Jesus dentro de outras manifestações da
escrita sobre o êxtase espiritual.
No que se refere à escrita teresiana sobre êxtase místico, pode-se dizer que quando a
carmelita trata da sensação de estar toda “engolfada” em Deus e Deus dentro de sua alma, está
tratando de um sentimento de êxtase, pois, naquele instante, o Absoluto lhe preenche as
lacunas anímicas e lhe farta do mais precioso que é a sua presença amorosa. Nesse sentido, é
possível considerar que o êxtase místico se dá no momento do encontro da alma amante com
o Amor Maior que lhe preenche as incompletudes. Sendo uma relação entre humano e divino,
carnal e espiritual, é uma relação que supera o natural das coisas terrenas. É, portanto, uma
vivência que toca o que se pode chamar de sobrenatural.
Assim, para tratar do bastar-se no Amado, escolhemos o poema Nada te turbe13 que se
tornou uma espécie de referência da escrita poética teresiana. O texto se desenrola num tom
de bênção, aconselhamento e a defesa da totalidade absoluta presente em Deus:
Nada te turbe,
Nada te espante,
Todo se pasa,
Dios no se muda,
[…]
Quien a Dios tiene
12
Vivo sem viver em mim/ e tão alta vida espero/ que morro porque não morro./ Vivo já fora de mim/ depois
que morro de amor,/ porque vivo no Senhor/ Que me quis para si. [tradução nossa]
13
Nada te perturbe [tradução nossa]
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Nada le falta:
Sólo Dios basta.
[…]
¿Ves la gloria del mundo?
Es gloria vana;
nada tiene de estable,
Todo se pasa.
Aspira a lo celeste,
que siempre dura;
fiel y rico en promesas,
Dios no se muda.
[…]
siendo Dios su tesoro,
Nada le falta.
[…]
aunque todo lo pierda,
SóloDios basta.14 (JESUS, 1974b, p. 514)
Considerações finais
14
Nada te perturbe,/ nada te espante,/ tudo passa,/Deus não muda,/A paciência tudo alcança;/Quem a Deus
tem/Nada lhe falta:/Só Deus basta./[...] Vês a glória do mundo?/ É glória vã;/ Nada tem de estável/ Tudo
passa./Aspira ao que é celeste,/ Que sempre dura;/ Fiel e rico em promessas,/ Deus não muda./ [...]Venham-lhe
desamparos,/ Cruzes, desgraças;/ Sendo Deus seu tesouro,/ Nada lhe falta./Ide, pois, bens do mundo;/Ide,
destinos vãos;/ Mesmo que tudo se perca,/ Só Deus basta.[Tradução nossa]
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É necessário ainda lembrar que o cerne dos aspectos místicos e eróticos da poesia
teresiana desenrola-se através do aniquilamento e do êxtase como sendo fases de um mesmo
fenômeno, o chamado erotismo místico. Nos poemas Muero porque no muero e Solo Dios
basta, o aniquilamento é morte para se chegar à vida e o êxtase é a vida plena porque cheia da
completude absoluta.
Portanto, estudar poesia místico-erótica é uma atividade inesgotável, afinal, trata-sede
perceber e relatar possibilidades metafóricas, voos subjetivos. Nesse sentido, nenhuma análise
é completa e, por essa razão, mais possibilidades interpretativas podem e merecem surgir.
REFERÊNCIAS
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ORDEM DOS CARMELITAS DESCALÇOS. Fundamentos, governo e presença no
mundo. Disponível em:<http://www.carmelo.com.br/default.asp? pag=p000045.> Acesso
em: 16 out. 2011.
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FACES DO MEDIEVO NO ‘RETÁBULO DE SANTA JOANA CAROLINA’, DE
OSMAN LINS
A voz narrativa é da parteira, uma negra amiga da família da criança. Por ela, toma-se
conhecimento de alguns dados acerca das condições de vida de Joana: nasceu franzina, pobre,
tinha uma mãe revoltada com os homens, um pai omisso e irmãos com um destino já previsto,
não haveria brilho. Na fala da negra, bem como na dos outros narradores dessa história, a
linha temporal é aperspectívica. As formas verbais “acompanhei”, “estou” e “acabará”
testemunham que o tempo da narrativa busca se aproximar da temporalidade cósmica, na qual
presente, passado e futuro se fundem.
O segundo mistério é ornado com um parágrafo que, de certa forma, mostra aspectos
culturais do homem, seu modo de lidar com uma das necessidades primárias, a habitação.
Nele, há a visão de que, apesar das paredes, o homem continua ligado ao cosmos e, como
parte integrante, a ele retorna, dele regressa. O nascimento, o amadurecimento não cortam,
não devem cortar essa espécie de cordão. Observa-se também a condição de vida retratada, a
pobreza de uma casa cuja mobília é mesa, cama e fogão, apenas os utensílios essenciais. Nada
além.
Considerando-se esse ornato uma sequência do primeiro, percebe-se que existe um
vínculo semântico entre eles. No anterior, foi exibida uma pintura do cosmos, a que sucedia
uma cena de nascimento, da vida acontecendo; neste, a temática foi o desenvolvimento
humano. O homem em busca de proteção, de adequação às condições, ao passo que se mostra
capaz de fazer ressurgirem cidades, por meio de seu nome. A importância da palavra começa
a ser delineada.
Neste mistério, o foco narrativo está centrado no tesoureiro da igreja. É ele quem traz
detalhes da infância de Joana, do seu vínculo com a igreja, do seu espírito solidário, da sua
natureza sublime. Com ele, inclusive, descobre-se em Joana uma certa tendência à reclusão,
uma forma de existir e ser diferente dos outros que encontravam no material satisfações,
prazeres. A sua satisfação estava em duas coisas que não exigiam gastos: acompanhar
enterros de crianças e brincar com os escorpiões que encontrou no quintal. Como se vê, a
menina Joana lidava desde cedo com a penúria, inclusive nas alternativas de divertimento. A
espontaneidade no trato com escorpiões evoca uma ideia de evolução espiritual, visto que
aquilo que às outras pessoas parece assustador, a ela parece simples, natural. A alusão ao
escorpião pode simbolizar uma vida de sacrifícios; no caso de Joana, enfrentada com firmeza
e equilíbrio.
O ornato que anuncia o terceiro mistério retrata outra necessidade humana: a
comunicação. A temática é de encontro, diálogo com os iguais e com Deus. A dupla aparição
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do vocábulo “perguntas” em relação a apenas uma de “respostas” deixa nítido o limite
humano em questionar mais do que compreender. A enumeração de palavras relacionadas à
Igreja – “templo”, “rezas”, “sermões”, “procissões”, “sinos” – denuncia uma aura de
religiosidade que envolve o lugarejo onde Joana passa sua vida.
O mistério é apresentado sob a ótica de Jerônimo José, marido de Joana. É ele quem
relata o primeiro encontro entre os dois, ou talvez, quando e como ele a encontrou. Ela estava
doente, com trajes brancos, como habitualmente convém a um anjo. Para protegê-la, cobriram
seu corpo com uma toalha de crochê decorada de centauros. Seriam eles uma indicação de
que a doença representava a natureza humana em Joana, a sua porção de pecado? O fato é que
ela ficou quase cega, sem forças, e em busca da cura, a mãe fez até promessa de andar pelas
ruas, em procissão e com velas. O milagre aconteceu. Foi nesse contexto que Jerônimo viu a
pessoa por quem se encantou. Na realidade, Joana seria uma vítima desse homem, como ele
mesmo afirma. Vítima da fraqueza que lhe era própria, da sua “falta de vida”, da pouca
proteção.
No caso do quarto mistério, a ornamentação retrata o vento e toda a sua força, o seu
vínculo com os oceanos, com as folhagens, com os animais voantes, com bichos de grande
porte. Sugere que o vento, por um lado, faz parte do ritmo cósmico, quando se presentifica
nas folhagens, nas artérias, no caminho para o voo e envolve a Terra. Por outro, está
associado à instabilidade da vida. Ele também é cólera de redemunhos, de tornados e pastor
de dinossauros. Por esse prisma, ele pode ser a manifestação da quebra de rotina, de mudança,
de imprevisibilidade. Ele pode, então, sinalizar o tormento, tanto que o quarto mistério,
narrado por Álvaro, filho de Joana, mostra uma vida de privações e perdas. Perda de dinheiro,
de sons, de saúde, de vida, de Maria do Carmo, única filha de Joana até então. Neste mistério,
a tristeza é atemporal, porque ela está simultaneamente no passado, no presente e no futuro.
Está, por exemplo, nos meninos, ao sentirem o odor dos próprios corpos cobertos de úlcera.
Em semelhança ao ornamento do quarto mistério, o do quinto trata de um elemento da
natureza, a água, e seu poder também é abordado em duas vertentes: a calmaria e a cólera. A
água é apresentada como símbolo de vida, de origem, ao mesmo tempo em que é colocada
como anunciadora ou provocadora de calamidades. É exposta em sua ambivalência: doce e
salgada, alto – chuva – e baixo – mar; fecunda, mas, na mesma proporção, engolidora. À
simbologia da água funde-se a do peixe, representação do espírito, pois Cristo andou sobre as
águas; mas também do impuro, já que ele pode viver nas águas subterrâneas.
σa narrativa em questão, eles − água e peixe − ora manifestam a fertilidade, ora a
absorção. No relato feito por dona Totônia, a revolta, a amargura e uma certa falta de
esperança são visíveis. O seu marido não fora um homem presente, na realidade, destacava-se
apenas como varão. Nisso era bom, tanto que ela não resistia, mesmo sabendo que poderia ter
mais um filho, mais uma marca desse homem com perfil de visitante noturno, não de
companheiro ou de pai.
[...] parecia andar no mundo só para aprender artes noturnas [...], de modo
que eu cedia sempre à sua ordem, me abria igual ao mar Vermelho diante de
Moisés – sabendo que em nove meses teria mais um filho com boca e
intestinos, e nenhum níquel a mais – e ele me atravessava com as suas hostes
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de fogo e de alegria, desfraldadas nos mastros as bandeiras mais vivas.
(LINS, 1994:81)
Mais de sete anos passou aqui em Serra Grande. Quando se foi, tinha
envelhecido vinte[...].Vinha, de dentro dela, uma serenidade como a que
descobrimos nas imagens de santo, as mais grosseiras. Um som de
eternidade. [...]Nunca me pediu um grão de milho, uma folha de capim.
Como podia viver? Multiplicava os pães, os peixes? Absurda mulher. (LINS,
1994:86)
Mais um intertexto com a Bíblia. Uma referência ao episódio em que Jesus multiplica
os pães e os peixes e consegue matar a fome de quase cinco mil homens. Joana conseguia,
dentro das parcas condições e com muito sacrifício, evitar que seus cinco filhos morressem de
fome. Enquanto ela − por firmeza, trabalho e fé − multiplicava o pão, o patrão − por desejo −
multiplicava os filhos. Ele procurava nas outras mulheres o que elas jamais poderiam ser:
Joana Carolina. E como ela ignorou todos os seus cortejos, ele, à maneira do mundo às
avessas, colocou-a para morar na estrebaria.
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Sétimo mistério. A temática é o tecer. Uma vestimenta? O texto? O ornamento,
centralizado no vocábulo “lã”, suscita leituras. A disposição das palavras na frase e das frases
no texto expressa um trabalho de tecelão. Parece coerente o ornato se referir à tecedura do
texto, posto que o trabalho do escritor é comparado ao de um tecelão. Ao passo que este
entrelaça os fios, aquele entrelaça as palavras, para compor o tecido verbal. Com ela – a
palavra – o escritor ata, une, ordena, cria, ilumina, ressuscita. À maneira dos fios que,
dispersos, trazem a marca do informe e, unidos, ganham o brilho da urdidura, a palavra, lã
essencial, enredada, oferece a vida ao vácuo. Na analogia escritor/geômetra, evidencia-se um
pensamento contíguo ao dos estudiosos medievais, os quais destacavam na geometria a
necessidade de rigor e harmonia, elementos imprescindíveis ao trabalho com a forma.
Este mistério é narrado por Laura, filha de Joana. O relato foca tanto o sofrimento da
mãe quanto o seu desvelo no trato com os filhos. O período do qual fala a narrativa de Laura
fora entremeado por provações, e a principal delas era a luta diária contra a morte. Como
comiam pouco, era comum que os filhos, mais frágeis, adoecessem. Joana não tinha com
quem contar. Cuidava dos filhos sozinha, com remédios caseiros, em condições limitadas,
cansada, mas a atenção e a determinação eram tão intensas que ela conseguia se pôr em pé e
continuar a sua missão. Viviam com tudo pela metade: “meia laranja, meio pão[...], um sapato
no pé e outro guardado. Só calçávamos os dois quando ela nos levava à cidade, para receber
seu ordenado, três léguas para ir e três para voltar” (LIσS, 1994:κ9). Essa era outra provação
para Joana, ir todos os meses ao centro da cidade, andar seis léguas, considerando-se ida e
volta. Ela corria riscos, expunha-se ao sol e à chuva, preocupava-se com os filhos que ficavam
em casa. Além de tudo isso, ela ainda enfrentou a morte de outra filha, também chamada
Maria do Carmo.
[...] Maria do Carmo [...] morrera daquela doença cujo nome não soubemos.
Nela é que mamãe está aplicando o clister, com a bexiga de boi na
extremidade do canudo de carrapateira. [...] Sou eu a de tranças. Nô, Álvaro
e Téo não aparecem. Mas estavam aí amontoados conosco nessa peça, todos
queimando de febre. Tínhamos sido obrigados a deixar a casa onde
morávamos, ir para essa na mata: aí se isolavam os bexiguentos. Não
tínhamos bexigas. Mas estávamos de cama, todos, com doença forte e que
podia alastrar-se. (LINS, 1994:92)
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utensílio o qual permite que ela tome forma no espaço vazio, seja indicando a própria criação.
Alguns desses vocábulos, inclusive, eram comuns ao contexto medieval.
Neste mistério, a narrativa é feita a duas vozes, ora a de Cristina, ora a de Miguel, ora
a dos dois em uníssono. Eles contam a perseguição de que foram vítimas. Fugiram de casa
porque o pai dela, o Senhor Antônio Dias, era homem de posses e não queria que a filha
casasse com alguém que não estivesse no nível da família. Como os dois se amavam muito,
deixaram para trás fortuna, proibições, materialismo, medo; levaram apenas o amor, o único
bem do casal. Sabendo da fuga, o pai da moça colocou para encontrar os amantes capangas
que nunca tinham perdido uma rês.
É em uma igreja vazia, de uma cidade abandonada, que o casal se entrega ao amor e,
diante do altar, oficializa o casamento, feito por eles e testemunhado por Deus. É notável a
presença forte do Catolicismo nessa cena; presença, aliás, que perpassa todo o Retábulo. Os
amantes saem da igreja, ninho de um amor puro e intenso, e vão, sem rumo, apenas indo. Na
ânsia de fuga da morte para ele e do castigo para ela, os dois acabam chegando à casa de
Joana, a que lhes dá abrigo, proteção, confiança. Não demora mais que uma noite para os
capangas descobrirem os fugitivos. Mas Joana, com sua firmeza e precisão no uso da palavra,
consegue dos “caçadores” a promessa de entregar o casal ao pai da moça, desde que a vida
seja garantida.
Nesse contexto, as palavras proferidas, chamando atenção para os bens do espírito,
tocam tanto o pai de Cristina que ele faz uma carta na qual pede Joana em casamento, pois
desde que ficara viúvo, ninguém tinha falado a ele do alto e com justiça. Mas ela não pôde
aceitar o pedido, não poderia jamais. Consagrou-se ao marido, já morto há anos, no entanto
bem vivo no coração da esposa. A consagração foi para toda a vida. “[...] muito me honra a
sua proposta, amável e generosa. Ela significa, se eu a aceitasse, amparo e estabilidade pelo
resto dos meus dias. Mas, então, o que seria de minha alma?” (LIσS, 1994:105).
O mistério seguinte, o décimo, tem um ornamento que destaca o planeta, o homem e
questões culturais. As alterações no planeta, os terremotos, os vulcões podem sinalizar
grandes mudanças na vida humana. Por outro lado, também suscitam as marcas da passagem
do homem pela Terra. Uma fusão entre os processos de transformação do planeta e as
civilizações. Este mistério é contado por várias vozes. São, provavelmente, mulheres que
moram nas proximidades da casa de Joana, pessoas da comunidade. Um traço cultural é
notável, as conversas sobre a vida alheia, com suposições muitas vezes contadas como
verdades incontestáveis. Ou ainda, o comentário acerca de algo que não se sabe exatamente
como foi, onde, quando, nem com quem.
De certo, sabe-se que Joana, mesmo sem prever, salvara a vida de um garoto. Era um
menino com deficiência física e que dormia em um banco próximo a uma porta na qual ele
batia durante o sono. O vizinho, incomodado, parece ter falado em matar o menino. Mas
Joana, tomando conhecimento de que o menino dormia em um banco alto, com risco de cair e
se machucar, decidiu cortar os pés da cama improvisada. Foi com esse gesto que impediu que
o garoto fosse vítima de uma bala saída da arma desse homem que diziam já ter matado
muitos. O gesto foi associado a um milagre. A essa altura, Joana já estava velha, e a velhice
vinha lhe tirando a saúde, a mobilidade, os dentes, a memória, o sono. Joana estava chegando
ao fim do ciclo.
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O décimo primeiro mistério é ornado com um parágrafo em estrutura de adivinhação,
como se intencionasse sugerir uma premunição. O elemento fogo é o objeto temático deste
ornato. Ele devora tudo, vive a consumir outrem. No entanto, ele também é símbolo uraniano
da purificação, da iluminação, por isso ele também evoca a ideia de vida. No contexto da
narrativa osmaniana, o fogo manifesta a ascensão espiritual de Joana, a sua purificação,
relatada pelo padre da comunidade.
A vida de Joana foi uma chama, no sentido de que ela agia com pureza d’alma, mas
firme, sempre a iluminar os que estavam a seu redor. Por vezes, foi a vida quando o contexto
era de morte, a esperança e a obstinação, quando tudo levava ao desespero. Diante do padre,
Joana deseja se confessar. O quê? Disse o padre que quem muito fala, muito erra, e ela quase
não falava. Durante os seus oitenta e seis anos, agiu, ouviu, viveu, em parcas condições.
Chegara a sua hora, o vento estava fortalecendo o fogo que era a luz de Joana na hora da
partida. Os cavalos já estavam a galope, para conduzir o carro apolíneo no qual ela seria
conduzida à vida espiritual. Joana partira sem o peso da morte, com a leveza do espírito.
“Populus, qui ambulabat in tenebris, vidit lucem magnam” (Ibid: 112-113).
Mistério final. Não há parágrafo para ornamentá-lo, a “lucem magnam” já abrilhanta
este mistério. A voz narrativa é múltipla, coletiva. Um coro fecha os mistérios e a passagem
de Joana pela Terra. Este mistério deixa claro um tom de revolta. Sem dúvida, há muito o que
denunciar, a omissão dos poderosos, a opressão, as condições subumanas em que muitas
pessoas vivem. A fome, o trabalho escravo, o egoísmo, a miséria que parece genética. A seca
até de lágrimas. A fartura de dor.
Terá sido este, então, o objetivo do tecelão desse Retábulo, suscitar a indignação
diante da violência que massacra, que mata os menos favorecidos? Para Joana, “quantas vezes
o mundo [...] foi estéril e cegante, uma cidade de sal [...]? Quantas vezes [...] viver mais um
ano, um dia, um instante, foi como avançar sobre as afiadas lâminas de faca?” (Ibid: 115). O
círculo de Joana se fecha. Ela vai acompanhada com o silêncio tão característico seu, o
silêncio dos sem voz social. A ela é oferecido um buquê que serve de ornato ao fim deste
mistério. τ ramalhete, à maneira de todo o Retábulo, é “tecido” com palavras, que dão às
flores a estabilidade, para sempre estarem com Joana.
τ Retábulo de Santa Joana Carolina é “urdido com fios medievais”. Todo o texto se
assemelha a uma hagiografia. A santa, inclusive, não tem voz narrativa. Todas as suas falas
são reproduzidas pelos diversos narradores. São eles que em micro-histórias, com começo e
fim, independentes umas das outras, exibem a sublimação de Joana, um anjo que veio à Terra
para cumprir uma missão. Ao mesmo tempo, essa estruturação do texto confere um olhar
aperspectívico para ela, e através dela, para o mundo do qual ela fazia parte. As cenas
retratadas revelam pobreza, penúria e, em se tratando de Joana, a solidariedade como um traço
comum. Um quadro bem semelhante ao que a sociedade medieval enfrentava. Ao senhor de
engenho, corresponde o senhor feudal. O trabalho na terra era praticamente o mesmo, com
charrua, carro de boi, empregado, sol. Em contrapartida, a fé, a reza, a Igreja, a proteção de
Deus, a lei de “agir sempre como se o impossível não fosse” (Ibid: 97).
Aos doze mistérios protagonizados por Joana Carolina, em uma quase paixão, podem
ser comparados os Passos de Cristo. O numeral doze tem uma vasta simbologia para os
cristãos. Doze são os apóstolos; doze são os filhos de Israel; doze estrelas na cabeça tem a
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mulher que sente as doze dores de parto, no Apocalipse (12:1-2); doze também é o numeral da
Jerusalém celeste: “Tinha grande e alta muralha, doze portas, e, junto às portas, doze anjos, e,
sobre elas, nomes inscritos, que são os nomes das doze tribos dos filhos de Israel” (21:12).
Doze é o número do Zodíaco, “roda da vida”, segundo ressalta Durand (2001:324). Conforme
convém a uma santa, Joana não morre, ela cumpre o seu ciclo, seus doze mistérios, em
contiguidade ao fechamento do círculo anual. Por esse prisma, é possível afirmar que ela volta
ao seu estado primeiro, luz, anjo. Em sendo luz, é a representação divina na Terra.
Por fim, não seria arriscado afirmar que Retábulo de Santa Joana Carolina é o texto de
σove, novena que encerra com mais precisão os objetivos de τsman Lins: “caminhar para a
conquista de uma visão singular e intensa do Universo” e “criar uma obra que, na sua
totalidade, transmita essa visão e seja, ao mesmo tempo, a história nova da sua conquista”
(LINS, 1979:132).
REFERÊNCIAS
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INTRODUÇÃO À TEORIA DOS VÍCIOS EM TOMÁS DE AQUINO
INTRODUÇÃO
Aqui falaremos acerca dos vícios capitais de forma mais descritiva, a partir da
compreensão tomista, abordada no De Malo. Na enumeração de Tomás, os vícios capitais são:
vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Hoje em lugar da vaidade, a Igreja coloca
a soberba e em lugar da acídia, a preguiça. Os vícios capitais segundo Tomás de Aquino
“recebem esse nome por derivar-se de caput: cabeça, líder, chefe (em italiano ainda hoje há a
derivação: capo, capo-máfia); sete poderosos chefões que comandam outros vícios
subordinados”. (LAUAND, 2004, p. 67).
Os vícios capitais indicam a sua posição, em relação ao comando dos vícios que
decorrerão deles, dependendo do tipo de vício que seja cometido e a que fim se quer chegar.
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Além de ser o princípio, é o que tem a direção de todo animal, conforme cita na Suma
Teológica:
τ vício capital, segundo Tomás, deriva de “cabeça,” do latim capite e tem três
significados distintos: cabeça como parte do corpo dos animais, cabeça como qualquer
princípio e, por último, cabeça no sentido de governante ou chefe do povo. Para ilustrar essas
ideias ele cita alguns versículos das Escrituras em que aparece cada um desses significados
para a palavra cabeça. Quando Tomás aplica o termo capite, seja em qualquer dos três
sentidos, ele está querendo chegar à questão de um pecado poder derivar-se de outro de quatro
modos: pela supressão da graça, por modo de inclinação, propiciando-lhe matéria para outro
pecado e quanto à finalidade.
O primeiro modo de um pecado derivar-se de outro é através da supressão da graça.
Vejamos o que diz Aquino: “a graça mantém o homem afastado do pecado, como se lê em I
Jo 3,9. Todo aquele que é nascido de Deus não peca porque a semente de Deus permanece
nele [...]” (DM, 2004, p. ι9). τ pecado que suprime a graça é causado pelos pecados que se
seguem. Contudo, qualquer pecado pode culminar na causa de outro pecado e assim por
diante.
O segundo modo do pecado derivar-se de outro é a inclinação, ou seja, um pecado
causa um hábito ou uma disposição para pecar, cada pecado causa sempre outro semelhante
quanto a sua espécie. O terceiro modo é a causa de propiciar matéria para outro pecado
através da derivação, como o caso da gula que gera matéria para a luxúria e a avareza que
culmina com a discórdia. O quarto e último modo é um pecado causar outro quanto à
finalidade. Se dá quando um homem para obter o fim de um pecado acaba cometendo outro
pecado. Tomás cita o exemplo da avareza que causa a fraude, que é o desejo desmedido de
ganhar dinheiro. Por isso, quando um pecado causa outro, tendo os seus subordinados, é
denominado de capite (cabeça).
Um pecado pode dirigir-se a outro pecado de dois modos: por parte do sujeito que
peca, estando sua vontade mais voltada ao fim de um pecado do que a outro; e o modo que
decorre das próprias características dos fins, isto é, são tão articulados que se dirigem a um
mesmo fim, como o caso do engano que é proveniente da fraude e dirige-se a acumular
riquezas que é a finalidade da avareza.
1
A partir daqui citaremos a Suma Teológica utilizando as letras ST para identificar melhor, visto que
utilizaremos, também, citações do De Malo. Quando a referência for da Suma Teológica incluiremos ST e
quando for do De malo, DM. As citações do De malo são retiradas da tradução de LAUAND, 2004, as da Suma
teológica são da seleção de textos de Os pensadores, 2004.
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2. OS SETE PECADOS CAPITAIS E A SUA DESCRIÇÃO
Parecem ser questões disputadas em Roma durante o ano letivo 1266-7 ou,
segundo outros críticos contemporâneos, em Paris, no ano letivo de 1269-70.
Boa parte desse tratado é dedicada aos pecados capitais e se articula com a
discussão dos mesmos na segunda parte da Summa Theológica (escrito não
entes do De Malo). (LAUAND, 2004, p. 71)
Dessa forma, cita-se nesse texto, trechos da Suma Teológica e do De Malo, para que
seja compreendida a questão dos vícios capitais nas duas obras.
Tomás de Aquino inicia o artigo sobre a descrição dos vícios capitais discorrendo
acerca da soberba (superbia). Para ele, a soberba tem três significados: o apetite desordenado,
um certo desprezo atual de Deus e um certo desprezo da natureza corrompida a esse desprezo,
que é o início de todo pecado. Embora sejam verdadeiros, esses significados não são
“segundo a intenção do sábio, que disse: 'o começo de todo pecado é a soberba'. […] eis
porque se deve dizer que a soberba […] é o começo de todo pecado. (ST, I – II, q. 84, rep.). É
possível observar que a soberba, na visão tomista, é um vício que atenta contra a excelência
divina, portanto, tido como o princípio de todo pecado. A soberba é também uma não
submissão do homem a Deus e, sem essa submissão, o homem quer sua própria excelência
nas coisas desse mundo.
No que se refere à vaidade, Tomás inicia dizendo que para discutir sobre essa questão
é necessário conhecer o significado de glória e em seguida a vaidade, que ele chama de
vanglória “glória vã” (DM, 2004, p. κ2) e só a partir disso verificar se a vaidade é pecado. A
glória pode ser considerada de três formas: 1. no bem de alguém que se manifesta às
multidões, 2. o bem de alguém que se manifesta a poucos ou a um só e 3. no bem de alguém
considerado por ele próprio. Já a vaidade (vanglória), a palavra vão admite três significados:
vão é aquilo que não tem subsistência (às coisas falsas chamamos vãs), é aquilo que carece de
solidez e consistência, vão é algo que não é capaz de realizar o fim devido.
Baseado nesses significados, Tomás vai falar da vaidade a partir de três sentidos:
quando alguém se gloria falso (de um bem que não tem), quando alguém se gloria de um bem
que passa facilmente e quando a glória não se dirige ao devido fim. Finalmente, ele responde
que a vaidade em qualquer uma das suas formas é pecado. Após afirmar a natureza
pecaminosa da vaidade, ele passa a enumerar as filhas da vaidade. São filhas da vaidade:
desobediência, jactância, hipocrisia, contenda, pertinácia, discórdia e presunção de novidades.
A lista de filhas da vaidade reforça de forma clara a afirmação de que um vício é cabeça e
mãe de outro vício.
As filhas da vaidade são os vícios pelos quais o homem tenta manifestar a sua própria
excelência. Essa manifestação pode se dar de maneira direta ou indireta, de forma direta tem-
se como exemplo a jactância, a presunção de novidades e a hipocrisia; e de forma indireta se
dá de quatro formas: 1º - através da inteligência e pertinácia, 2º - da novidade e da discórdia,
3º – contemplada e 4º - a desobediência.
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A inveja para Tomás é pecado mortal, suas filhas são: murmuração, detração
(difamação), ódio, exultação pela adversidade, aflição pela prosperidade. Movido pela inveja,
o homem tende a fazer coisas contra a ordem moral para atingir de forma danosa ao próximo.
Portanto, a inveja é vício capital e nesse impulso ela proporciona princípio e termo final. O
princípio é o desejo de impedir a glória do outro, essa glória entristece o invejoso que começa
a depreciar o bem do outro falando mal de forma disfarçada. O intuito principal do invejoso é
o ódio pela superioridade do outro e o desejo maldoso para com a vítima da sua inveja.
Também quando o invejoso não consegue alcançar o propósito de destruir a glória do
próximo, ele se entristece e aí é gerada mais uma filha da inveja, denominada aflição pela
prosperidade do próximo.
A acídia é um pecado que tem como suas filhas: desespero, pusilanimidade, torpor,
rancor, malícia, divagação da mente. Tomás vai dizer que a acídia, segundo João Damasceno,
é uma tristeza e o objeto da tristeza é o mal presente. E o próprio Tomás também afirma que
“[...] e como os homens fazem muitas coisas por causa do prazer – para obtê-lo ou movidos
pelo impulso do prazer - assim também fazem muitas coisas por causa da tristeza: para evitá-
la ou arrastados pelo peso da tristeza [...]” (DM, 2004, p. 94) também movem os homens e
isso é a acídia. Também é usado o pensamento de Aristóteles que afirma ser desaconselhável
ao homem viver muito tempo apenas em tristeza e sem prazer, pelo risco de não encontrando
as alegrias do espírito ir buscar as alegrias do corpo. É possível compreender a acídia como
sendo uma forma de depressão, na linguagem contemporânea, um estado de espírito que
repercute em sintomas psicossomáticos. Para ilustrar esse comentário vejamos o que diz o
texto:
Por sua vez, a luta contra os bens do espírito que, pela acídia, entristecem, é
rancor, no sentido de indignação, quando se refere aos homens que nos
encaminham a eles: é malícia, quando se estendem aos próprios bens
espirituais, que a acídia leva a detestar. E quando movido pela tristeza, um
homem abandona o espírito e se instala nos prazeres exteriores, temos a
divagação da mente pelo ilícito [...]. (DM, 2004, p. 94-95).
Agora será tratado sobre a ira. Tomás inicia essa questão falando sobre uma
controvérsia acerca da ira por parte dos filósofos estóicos e peripatéticos. Para os estóicos,
toda ira era viciosa, já os peripatéticos defendiam que algumas iras eram boas. Para
compreender essa discussão é preciso levar em conta que toda paixão pode ser considerada
sob dois aspectos: “formal e material”. (Cf. DM, 2004, p. 95). A ira quando inflamada por
uma causa nobre ou uma vingança de acordo com a ordem da justiça, seria uma atitude
virtuosa. Porém, quando a ira provém de uma vingança fora da ordem jurídica e pretende mais
o extermínio de quem comete o erro do que a punição do erro cometido, isso já é irar-se
contra o irmão. A discussão dos estóicos e peripatéticos não é nesse viés.
A argumentação dos estóicos é deficiente porque não distingue o que é melhor em
termos abstratos e o que é melhor para uma pessoa concreta. Não reparam no fato de que a ira
e outras paixões semelhantes podem se relacionar com a razão no sentido antecedente e
consequente. Assim, não consideraram acertadamente a ira e as outras paixões.
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A ira, assim como os outros vícios capitais, e como já dissemos, possui suas filhas.
Tomás diz que as filhas da ira “apontadas por Gregório (Mor. XXXI, 45) são seis [...]: rixa,
perturbação da mente, insultos, clamor, indignação e blasfêmia”. (DM, 2004, p. 99). A ira é
vício capital porque ela pode ser considerada de três modos: de acordo com o que ela é no
coração, na boca e nas ações. De acordo com o que a ira é no coração, surge dela um vício
que tem seu fundamento na injustiça sofrida, pois o dano sofrido faz com que surja a ira e o
que sofre o dano requer vingança; a ira também surge no falar, seja contra Deus ou contra o
próximo; outro grau de ira nas palavras é quando alguém fala palavras injuriosas para o
próximo com o objetivo de insultá-lo. Por fim, quando a ira chega ao seu ápice causa a rixa e
assim derivam dela, por exemplo, ferimentos e homicídios.
A avareza, de acordo com o Aquinate quanto a sua significação originária, está ligada
a uma desordenada ambição de dinheiro:
[…] Como diz Isidoro no livro das Etimologias (X, 9), avarus é como que
avidus aeri, ávido de dinheiro (cobre), em consonância com a palavra
correspondente em grego filargiria, amor à prata. Ora, sendo o dinheiro uma
matéria específica, parece que a avareza é também um vício específico,
segundo a imposição originária do nome. Mas, por extensão, avareza é
tomada também como desordenada cobiça de quaisquer bens e, nesse
sentido, é um pecado genérico, pois todo pecado é um voltar-se
desordenadamente a algum bem passageiro. (DM, 2004, p. 100).
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A gula, por sua vez, também tem suas filhas que são: imundície, embotamento da
inteligência, alegria néscia, loquacidade desvairada, expansividade debochada. É interessante
observar o que diz Tomás acerca da gula:
Pelo exposto, fica claro que Tomás de Aquino considera o prazer pelo excesso de
alimentos um prejuízo à inteligência. O homem movido pelo desejo descontrolado de comida
não consegue refletir e perde o controle até dos seus membros, ficando impedido de usar a
razão.
Tomás de Aquino também discorre um pouco acerca da desordem nos atos da vontade,
surgindo daí a alegria néscia, causado pelo adormecimento da razão. A desordem no falar
(loquacidade desvairada) e a expansividade debochada são outros problemas apontados, como
a razão é a responsável por ponderar o falar, o homem se dispensa em falatórios sem nexo e
pela falta de razão também perde o controle dos membros exteriores começando a agir com
certa desordem.
A luxúria tem como matéria os prazeres sexuais. O indivíduo luxurioso é aquele que
se encontra dissolvido nos prazeres, e são os prazeres sexuais os que mais dissolvem a alma
do homem. Tomás da Aquino vai afirmar que a ordem das coisas se divide para um fim, e
assim como o alimento destina-se a conservar a vida do indivíduo, o uso dos atos sexuais tem
o objetivo de conservar a espécie do gênero humano. A luxúria é viciosa porque afasta o
indivíduo da ordem da razão e transgride essa ordem e esse modo da razão, portanto é
considerada por Tomás como vício e pecado capital. No caso da luxúria ele vai afirmar que
ela é pecado e vício capital, vejamos o que diz o texto:
Observamos que Tomás de Aquino mostra nesse trecho um pouco da diferença que há
entre pecado e vício capital. Ali fica claro que pecado e vício capital são coisas distintas e
precisam ser explicados (embora este não seja o objetivo deste estudo). Sendo assim,
voltemos à questão da luxúria. A luxúria como os outros vícios capitais também possui as
suas filhas, são oito o número de suas filhas, vejamos: cegueira da mente, irreflexão,
inconstância, precipitação, amor de si, ódio de Deus, apego ao mundo, e desespero em relação
ao mundo futuro. Para o Aquinate é evidente que,
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[...] quando uma alma está voltada para um ato de faculdade inferior, as
faculdades superiores se debilitam e se desorientam em seu agir. No caso da
luxúria, por causa da intensidade do prazer, a alma se ordena às potencias
inferiores, isto é, a razão e a vontade, sofrem uma deficiência (DM, q. 15, a.
4).
O prazer sexual exerce sobre o homem o poder de afastá-lo da razão e dessa forma
prejudica sua reflexão e seus atos são voltados para a perversão dos atos razoáveis. A razão,
segundo Tomás, dirige os atos humanos de quatro formas: 1. Julgar retamente a respeito do
fim, como princípio do agir; 2. A deliberação, que fica obstruída pela concupiscência do amor
libidinoso; 3. O juízo sobre como se deve agir é impedido pela luxúria e o homem é levado a
um juízo precipitado sem esperar o juízo da razão; 4. Mandar o que se deve fazer, o homem
não persiste naquilo que tinha decidido, portanto, é inconstante.
O homem movido pela luxúria não se preocupa com os outros, é egoísta, desenvolve o
ódio por Deus, se apega ao mundo e se desespera em relação ao mundo futuro, ou seja, as
preocupações de um indivíduo luxurioso são apenas com a sua satisfação egoísta, deixando de
lado a espiritualidade e o amor ao próximo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esperamos que esse texto sirva de ponto de partida para uma maior investigação
acerca dos vícios. Sabemos que não é possível contemplar cada particularidade acerca desse
assunto num trabalho de tal porte, porém, o que foi abordado é fruto das leituras introdutórias,
como dissemos, com vistas a um Trabalho da Conclusão de Curso (TCC). Esse trabalho
também pode servir como ponto inicial de futuras pesquisas sobre o tema, entre alunos de
graduação em Filosofia que se interessem por temas voltados à ética na Filosofia Cristã
Medieval. Essa pesquisa, embora introdutória, revela possibilidades de se desenvolver ao
longo dos próximos estudos, visto que é um assunto que oferece inúmeras potencialidades no
que se refere a futuras investigações. Além disso, como pudemos perceber, a teoria dos vícios
em Tomás de Aquino revela um profundo estudo e conhecimento sobre o ser humano e, como
tal, mantém-se atual.
REFERÊNCIAS
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TOMÁS DE AQUINO. A Suma Teológica. Seleção de textos. São Paulo: Nova Cultural,
2004.
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O desejo de conhecer a origem da língua que ensinamos foi o que nos motivou a
realizar este trabalho. Quanto mais o tempo passa, quanto mais experiência e conhecimento
gramatical e lingüístico adquirimos, mais necessidade sentimos de voltar às origens. Como
compreender o estado presente da língua sem compreender sua formação, seu começo?
Embora não seja fácil de se determinar um momento exato para o nascimento da língua
francesa, podemos dizer que foi a partir dos Juramentos de Strasbourg que a língua francesa
passou a existir “oficialmente” como tal.
Os Juramentos de Estrasburgo datam do século IX, e são considerados o primeiro
documento da língua francesa. Trata-se de um documento curto, mas de extrema importância
para a consolidação do francês. Eles estão registrados dentro da obra, Histoire des fils de
Louis, le Pieux, do historiador Nithardo. Esse livro foi escrito todo em latim salvo o trecho
dos Juramentos de Estrasburgo que está em proto-francês e em alemão. Objetivamos
compreender o porquê de esse registro ter sido realizado nessa língua e não em latim, como
era o costume da época.
Para um melhor entendimento do momento histórico em que foram proferidos os
Juramentos de Strasbourg do século IX, voltaremos no tempo. Nossa história dos Juramentos
começará então com o surgimento da Francia no final do século VIII.
Em 768 morre Pepino, o Moço, e o reino franco é divido entre seus filhos Carlomano
e Carlos Magno. Em 771, Carlomano falece e Carlos Magno assume o poder de um reino
franco unificado.
Grande conquistador, Carlos Magno tomou a Itália dos lombardos, combateu contra os
muçulmanos na Península Ibérica e conquistou a Saxônia. Cristão fervoroso, guerreou
levando sempre consigo o cristianismo aos povos conquistados. No ano de 800, em Roma, foi
coroado imperador pelo Papa vindo a falecer em 814.
Além da expansão do cristianismo, Carlos Magno criou escolas e promoveu a
renascença carolíngia, uma tentativa de revalorização das letras greco-latinas que haviam
perdido valor durante todo o período das invasões germânicas, época em que os dialetos
germânicos logicamente predominavam. Os merovíngios, descendentes de Clóvis, assim
como os próprios carolíngios, eram povos de língua germânica, teudisca lingua. Segundo
Renée Balibar (apud PERRET, 2003, p.34), existia, à época de Carlos Magno uma grande
diferença de status entre as línguas germânicas, “línguas dos senhores”, que gozavam de
1
Prefessora substituta de língua francesa do DLEM- UFPB e-mail: accardoso101@hotmail.com
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grande consideração, e o falar dos povos romanos: “falar dos servos e dos vencidos” e “jargão
agrícola”.
Foi justamente graças à renascença carolíngia, com a retomada dos estudos de textos
em latim clássico, que surgiu a consciência de que a língua falada pelo povo havia sofrido
tantas modificações que já não podia ser mais reconhecida como latim, conforme se pode
ratificar pelas palavras de Perret (2003, p.35):
Avec Charlemagne, qui rétablit l’Empire d’τccident, une influence civilisatrice et la
renaissance des lettres latines furent paradoxalement à l’origine de l’apparition d’une nouvelle
langue écrite, qui deviendra le français. Charlemagne reconstitua un empire d’τccident qui
comportait le territoire de la France (à l’exception de la presqu’île bretonne), celui de
l’Allemagne et une grande partie de celui de l’Italie (un peu plus bas que Rome), vaste espace
qu’il administrait et gouvernait efficacement: il tentait aussi de redonner à ses peuples la
civilisation qu’ils avaient perdue.2
Ainda se pode verificar uma reforma na organização educacional da época, instaurada
pelo monge Alcuíno, segundo também se pode confirmar na passagem a seguir (Idem,
ibidem, loc.cit):
2
Uma influência civilizadora e o renascimento das letras latinas, provocados por Carlos Magno, que
restabeleceu o Império do Ocidente, foram paradoxalmente a origem do aparecimento de uma nova língua
escrita que viria a ser o francês. Carlos Magno reconstituiu um Império do Ocidente reunindo o território da
França (com exceção da quase ilha bretã), o da Alemanha e uma grande parte do território da Itália (um pouco
mais abaixo de Roma), vasto espaço que ele administrava e governava com eficácia: ele tentava também dar
novamente a esses povos a civilização que eles haviam perdido.
3
Ele trouxe da Inglaterra (York) o monge Alcuin para implantar um ensino de latim para os monges que não
conseguiam mais compreender o texto da Vulgata (nome dado à tradução da bíblia em latim por São Jerônimo,
por volta do ano 400). Sob seu conselho, o Imperador instaurou um ensino em três níveis. O nível superior da
escola palatina de Aix-la-Chapelle formava as elites intelectuais; o nível intermediário, das escolas episcopais ou
monásticas, entre elas a abadia de Saint-Martin-de-Tours dirigida por Alcuino formavam os adolescentes. No
campo, uma iniciação das crianças ao cálculo e à gramática, teria sido realizada pelos padres, mas esse ensino de
primeiro nível não pôde se estabelecer de forma duradoura. Foi então que os novos letrados, que tinham
reaprendido o latim clássico, começaram a zombar dos barbarismos do latim merovíngeo de seus predecessores.
Mas, enquanto que a língua simplificada repleta de termos populares dos escribas merovíngeos ainda era
acessível ao povo, os letrados carolíngeos tomaram consciência de que a língua falada havia evoluído tanto, que
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Como ressalta e explica Perret, por volta do ano 800, o latim do norte da Gália, isto é,
da Francia, já possuía características bastante particulares e não se confundia mais com o
verdadeiro latim. Tanto é assim que, em 813, os bispos, reunidos em Concílio na cidade de
Tours, decidiram que os padres deveriam fazer seus sermões na língua materna do povo, “in
rusticam romanam linguam”, ou seja, em língua românica. σa realidade, esta data marca o
primeiro reconhecimento oficial da língua românica que viria, posteriormente, a ser o francês
propriamente dito. Contudo, o que era considerado assunto importante e sério como história,
filosofia e teologia era escrito em latim.
Segundo Wright (apud PERRET, 2003, p.35), teria ocorrido uma reforma na
pronúncia do latim durante o período carolíngio e esse fato teria favorecido a própria crise da
língua latina. Melhor dizendo, a pronúncia do latim escrito, que se apoiava nos falares da
época e de cada região, com a reforma carolíngia, deveria tornar-se homogênea, posto que era
a língua oficial do Império. O latim deveria então ser lido pronunciando-se todas as letras, o
que evidentemente não foi possível e o tornou incompreensível para o povo. “En voulant
éduquer les foules, on avait recrée une élite” (WALTER, 19κκ, p.6ι).4
Essa língua românica falada no século IX, que provém do latim e de outras línguas
indo-européias, como o gaulês e o frâncico, já nessa época, havia sofrido tantas modificações
que seria impossível não lhe conceder o status de língua independente do latim,
diferentemente do italiano ou o espanhol, por exemplo, que ainda estavam bem próximos da
língua latina.
Como observa Perret (2003, p.37), não houve descontinuidade entre o latim falado por
Júlio César e a língua falada na Frância do século X. O que houve, com efeito, foram
mudanças resultantes de influências recíprocas entre a língua do invasor romano e os vários
dialetos existentes na Gália, desde a invasão de César até a época de Carlos Magno. Foi o
retorno às origens que evidenciou a existência de duas línguas: o latim - língua oficial -, e
uma língua materna - a língua românica.
Durante a Idade Média, essa romana lingua abrigava grande variedade de dialetos; no
final do século XII, pode-se, no entanto, perceber um uso comum entre eles no momento em
que surge a chamada langue d’oïl no σorte do território, a langue d’oc no Sul e ainda dialetos
franco-provençais na região de Lyon, Genebra e Grenoble (WALTER, 1988, p.52). Essa
língua vulgar não obedecia à regra alguma, assim continuando até o século XVI quando foi
normatizada.
Os primeiros escritos que atestam a existência dessa língua românica, desse proto-
francês, são vocabulários. Tritter, na sua Histoire de la langue française (1999, p.15), afirma
que, desde os séculos VII e VIII, se escreveu em proto-francês, à época roman primitif;
todavia, devido a tantas guerras e percalços, poucas foram as provas que chegaram aos dias
atuais. Os testemunhos mais antigos da existência de uma língua românica escrita são na
realidade os glossários, dentre os quais o mais famoso é o Glossário de Reichenau, do final do
século VIII e início do século IX, que traduz em língua românica aproximadamente 1.300
termos latinos difíceis da Vulgata de São Jerônimo, a versão latina da Bíblia. Não se trata de
era impossível, naquele momento, fazer compreender um texto em verdadeiro latim a quem não o tinha
estudado.
4
Desejando educar a massa, havíamos recriado uma elite.
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um texto e sim de um léxico. Do mesmo gênero são as Glossas de Kassel, as Glossas de Paris,
o Vocabularius optimus, entre outras.
Sem desmerecer os glossários, é, porém, em 14 de fevereiro de 842 5 que começa
oficialmente a história da língua francesa com os Juramentos de Estrasburgo. Desse famoso
texto existem duas cópias apócrifas conservadas na Biblioteca Nacional da França. A mais
antiga6 é do final do século IX (Vide fac-símile, figura 1) e a outra é uma cópia7 incompleta
da precedente feita no século XV (HAGÈGE, 1996, p.19). Considerado a certidão de
nascimento do que viria a ser o francês, esse documento foi escrito em língua românica e em
língua tedesca, ou seja, alemã.
Os Juramentos de Estrasburgo são o marco que consolidou a existência de uma língua
francesa. Trata-se de um documento “curto mas precioso”, como bem assinala Vasconcelos
nas suas Lições de filologia portuguesa (s.d., p.208).
Segundo Walter (1993, p.12-13 apud http://www.restena.lu), durante a Idade Média
(século V- X) só se escrevia em latim, língua oficial da Igreja e do poder. Os Juramentos de
Estrasburgo são o testemunho oficial da importância conferida às línguas vulgares ao
reproduzir essas línguas por escrito. A autora reconhece a pouca espontaneidade do juramento
como também sua forma ritual; no entanto afirma que nem por isso a língua vulgar deixa de
revelar uma situação geolingüística nova que aparece no momento da divisão do Império de
Carlos Magno. Um bloco romano e um bloco germânico tomaram consciência coletiva de
suas diferenças. Esse sinal de relativa heterogeneidade cultural estava prestes a transformar-se
em clivagem política. Les Serments de Strasbourg sont le symptôme d'une fracture
géopolitique et géolinguistique dans l'Europe du IXe siècle8 (idem).
Esse fato histórico chegou até os tempos atuais graças ao historiador Nithardo, outro
neto de Carlos Magno. Sua obra Histoire des fils de Louis le Pieux9 foi toda escrita em latim,
salvo o trecho dos Juramentos de Estrasburgo, que foi transcrito nas línguas em que foram
pronunciados, ou seja, língua românica e língua alemã. O documento é um texto jurídico de
apenas algumas linhas, que não somente tem importância para a história da língua francesa,
visto que contém numerosos indícios da evolução da língua, como também possui grande
valor histórico-político para a França, já que estabeleceu a primeira unidade do país como
nação.
Michel Zink comenta no seu livro Littérature française du Moyen Âge (1992, p.26),
que os Juramentos de Estrasburgo não pertencem de forma alguma à literatura, mas nem por
isso deixam de merecer atenção:
5
Em todos os livros que pesquisamos, a data oficial dos Juramentos de Estrasburgo é o dia 14 de fevereiro do
ano de 842, ou seja, a data correspondente no calendário atual ao 16º dia das calendas de março do calendário
romano, aquele adotado por Nithardo.
6
Manuscrito latino n° 9768 do cadastro da Biblioteca Nacional da França.
7
Arquivos latinos n° 14663 do cadastro da Biblioteca Nacional da França.
8
Os Juramentos de Estrasburgo são o sintoma de uma fratura geopolítica e geolingüística na Europa do século
IX.
9
Adotaremos a edição da coleção Les Classiques de l'Histoire de France au Moyen Age, Paris, Librairie
ancienne Honoré Champion, editor, 1926, páginas 101 à 109 (apud http://www.langue-fr.net/d/origines/serment-
strasbourg).
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Não somente porque eles constituem o primeiro monumento da língua francesa, mas também porque eles são
um convite à reflexão sobre sua própria natureza como texto. Fazer juramento em língua vulgar é uma coisa.
Reproduzir esse juramento sob a forma de um texto em língua vulgar no interior de uma obra com caráter
histórico-político, em latim claro, como o fez Nitardo, é outra coisa.
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vem do latim sacramentum, de sacrare, tornar sagrado. O primeiro registro escrito desse
vocábulo na língua francesa data justamente de 842, ano dos Juramentos de Estrasburgo
(LAROUSSE, 1993 p. 1727).
Na Teogonia (HESÍODO, 1944, p. 60-1, v. 775-808) encontramos a explicação
mitológica da origem do grande juramento dos deuses. Para honrar e recompensar Estige,
filha mais velha de Oceano e Tétis, pelo auxílio que esta lhe prestou, Zeus a transformou no
hórkos, o grande juramento dos deuses. Quando qualquer um dos imortais queria se unir
através de um juramento solene, Zeus enviava a mensageira Íris para trazer num jarro uma
porção da água do Estige, que corria fria de um alto e abrupto rochedo. A água era o próprio
hórkos dos deuses e possuía potência divina carregada de malefícios para aqueles que não
cumpriam o juramento. O perjúrio era uma falta muito grave que era punida terrivelmente
pelos deuses. Benveniste (1985, p. 176) comenta que o castigo pelo perjúrio não era um
assunto humano. Segundo ele, “nenhum código indo-europeu antigo prevê sanções para o
perjúrio”. τ perjúrio era um delito contra os deuses, logo, supunha-se que o castigo viesse
deles. O ato de se comprometer com um juramento era “sempre se expor de antemão à
vigança divina, visto que se implora aos deuses que ‘vejam’ ou ‘ouçam’, que estejam, em
todo caso, presentes ao ato de comprometimento” (BEσVEσISTE, 19κ5, p. 1ι6).
Outro exemplo do valor sagrado do juramento e do poder que o jurar possuía na
cultura grega está na Ilíada de Homero. No canto III é feito um juramento e no canto IV esse
juramento é quebrado. A quebra do juramento traz uma condenação à morte para todos
aqueles que violaram o pacto sacrossanto.
O caráter sacro no ato de jurar permaneceu no século IX e pode ser constatado através
dos Juramentos de Estrasburgo de 842. Fazer um juramento significava prometer a Deus. Ao
transcrever os Juramentos nas línguas em que foram pronunciados, Nithardo reproduziu ipsis
verbis as promessas feitas pelos netos de Carlos Magno. A escolha do historiador pela
manutenção das línguas originais dos Juramentos dentro do seu livro todo em latim teria
como possíveis explicações: primeiro, as línguas faladas eram as línguas vulgares e, para
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serem compreendidos, os Juramentos tiveram que ser ditos em língua românica e tedesca;
segundo, o desejo de o autor manter-se fiel aos acontecimentos.
Para melhor entender a situação histórica em que foram proclamados os Juramentos de
Estrasburgo, retornaremos ao ano de 814, ano em que Carlos Magno faleceu depois de coroar
seu único filho varão sobrevivente, Ludovicus Pius ou Luís I, o Piedoso. Segundo Hagège
(1996, p.13) Luís I já teria resolvido a sua sucessão desde 817, 23 anos antes da sua morte.
Ele teria legado aos seus filhos Lotário, Pepino e Luís II, do seu primeiro casamento com
Ermengarda, o governo de um reino dividido. Pepino e Luís II seriam subordinados a Lotário,
que seria o imperador depois da morte do progenitor. Porém, esse projeto de sucessão não foi
realizado porque, em 838, Pepino faleceu antes mesmo do seu pai. Luís I ficara viúvo em 818,
e contraíra segundas núpcias em 819 com Judite da Baviera. Desse segundo matrimônio
nasceu Carlos, o Calvo. Assim sendo, em 840, quando da morte de Luís I, o Piedoso, cada
um de seus filhos vivos lutou pela conquista do Império Carolíngio (Vide figura 2).
Família de Carlos Magno
Pepino o Moço
(715 - 768)
Depois de muitas discórdias, Carlos, o Calvo, e Luís II, o Germânico, filhos de Luís I,
o Piedoso, decidiram se juntar para selar aliança contra Lotário, o irmão mais velho. Eles
assinaram um tratado em latim como de costume e, em seguida, fizeram um juramento. Os
Juramentos de Estrasburgo foram pronunciados em proto-francês e em língua tedesca pelos
dois monarcas. Cada um jurou na língua do outro, ou seja, Carlos, o Calvo, em língua alemã e
Luís, o Germânico, em língua românica, a fim de que todos compreendessem. Já os soldados
juraram fidelidade nas suas próprias línguas. Como comenta Hagège (1996, p. 16), a fronteira
lingüística entre uma zona ocidental de língua romana e uma zona oriental de língua
germânica já havia sido fixada entre os séculos IV e VI, momento da romanização dos francos
ocidentais. A única unidade lingüística entre essas duas partes do antigo império de Carlos
Magno era feita pelo latim, mas tratava-se, contudo, de um código escrito adotado pela Igreja
e pela administração, e não de uma língua falada pelo povo.
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Os Juramentos de Estrasburgo são, em resumo, o pacto no qual Carlos, o Calvo, Luís
II, o Germânico e seus respectivos soldados, juraram ajuda e fidelidade mútuas contra
Lotário.
Foi através dos Juramentos de Estrasburgo de 14 de fevereiro de 842 que Carlos, o
Calvo, e Luís, o Germânico, pressionaram Lotário e conseguiram a divisão do Império. A
querela entre os três irmãos só foi realmente resolvida um ano mais tarde, em 843, com o
Tratado de Verdun que dividiu o Império em três partes, como se pode ver na figura 3. Carlos,
o Calvo, ficou com a Frância ocidental; Luís, o Germânico, com a Frância oriental; e Lotário,
que detinha o título de Imperador, com o centro da Itália indo até a Frísia. Na realidade, o
Império deixado por Luis I, o Piedoso, já estava de uma certa maneira esfacelado, pois faltava
aos povos que o compunham, três elementos essenciais para a unificação; interesse, cultura e
língua comuns.
Figura 3.: A divisão do Império Carolíngio depois do Tratado de Verdun. (GRIMAL, 1960,
p.14).
O território que constituiria a França atual alcançou uma verdadeira unidade com o
Tratado de Verdun, visto que, até então, só tinha sido dividido em pequenos reinos gauleses
ou então tinha feito parte do Império romano, do Império franco e do Império germânico.
Pode-se afirmar, então, que os Juramentos de Estrasburgo de 14 de fevereiro de 842
são, sem sombra de dúvidas, considerados um monumento, o primeiro, da língua francesa. A
grande importância do documento é confirmada pelo enorme interesse e a vasta bibliografia
que tem suscitado desde muito tempo. Seria tarefa hercúlea citar todos os estudos já
realizados sobre o tema. No entanto, não se pode deixar de lembrar a tese de Tabachovitz
Étude sur la langue de la version française des Serments de Strasbourg (TABACHOVITZ,
1936), os artigos de Castellani, Le problème des Serments de Strasbourg (CASTELLANI,
1956), de Hilty Les Serments de Strasbourg (Hilty, 1973), de Deloffre A propos des serments
de Strasbourg de 842: les origines de l'ordre des mots du français (Deloffre,1980), de
Droixhe Les Serments de Strasbourg et les débuts de l'histoire du français (Droixhe,1987), o
livro de Balibar L’institution du français. Essai sur le colinguisme des Carolingiens à la
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Republique (Balibar, 1985), e o livro de Cerquiglini La naissance du français
(Cerquiglini,1991). 11
REFERÊNCIAS
11
Embora não tenhamos tido acesso às obras citadas, elas são referendadas em Wagner (1995, p. 6), conforme
consta nas referências.
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PERRET, Michèle. Introduction à l’histoire de la langue française. Paris: Armand Colin,
2003.
ROUQUIER, Magali. Vocabulaire d’ancien français. Lassay-les Châteaux: Colin, 2005.
RUHLEN, Merritt. L´origine des langues. France: Belin,1997.
TRITTER, Jean-Louis. Histoire de la langue française. Paris: Ellipses, 1999.
WAGNER, Robert-Léon. Textes Littéraires Français. Textes d’étude (ancien et moyen
français). Genève: DROZ, 1995.
WAGNER, R. L. & PINCHON, J. Grammaire du Français. Paris: Hachette, 1962.
WALTER, Henriette. Le Français dans tous les sens. Paris: Éditions Robert Laffont, S.A.,
1988.
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ZINK, Gaston. Que sais-je? L’ancien français. 5ª ed. Paris: Presses Universitaires de France,
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ZINK, Michel. Littérature française du Moyen Âge. 1ª ed. “Quadrige”. Paris: Presses
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< http://www.agence.francophonie.org > Acessado em 22 jan. 2007.
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A TRADUÇÃO DA DIDAQUÊ (CATECISMO CRISTÃO DO II SÉC.)
Fabricio Possebon1
possebon@usp.com
Introdução
E uma série de advertências para o que segue o caminho da morte. Os valores cristãos
são defendidos nesta primeira parte, como a humildade, a caridade, o temor a Deus, etc. A
segunda parte (do capítulo 7 ao 15) trata da organização da comunidade, sob diversos
aspectos, a saber, como celebrar o batismo:
Como jejuar:
Primeiro a respeito do cálice, rendemos graças a ti, ó pai nosso, pela sacra
vinha de Davi, o filho teu. A ti a glória para a eternidade.
1
Professor do PPG em Ciências das Religiões e do PPGL. E-mail: possebon@usp.br
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E a respeito do pedaço [de pão e de peixe]: rendemos graças a ti, ó pai nosso,
pela vida e conhecimento, o qual tu nos fizeste conhecer, por meio de Jesus,
o filho teu. A ti a glória para a eternidade. (Didaqué, IX, 2, 3)
As questões são inúmeras, todavia vamos nos limitar a algumas mais singulares. O
texto grego, escrito naquela variante chamada koiné, não apresenta grandes dificuldades,
todavia alguns termos-chaves são particularmentes importantes.
O título Didaqué é um termo comum que significa “instrução”, “ensinamento”.
Quando as traduções possíveis para o termo mostram-se limitadoras, ou seja, parecem não
corresponder a toda a amplitudde de significados, então se prefere manter o original grego,
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efetuando-se uma mera transcrição com o alfabeto latino. É o caso aqui, pois o sentido
verdadeiro do termo implica um ensinamento que não é o comum, mas pautado pela revelação
cristão. Seguimos a tradição, mantendo Didaqué, cuja grafia também pode ser Didaquê.
τ subtítulo da obra indica a quem se destina: “Ensinamento do Senhor, por meio dos
doze apóstolos, aos povos”. τ termo grego tà éthna significa “povos”, “nações”,
“estrangeiros”, “pagãos”, “gentios”, “convertidos”. Com tal abrangência, não nos foi possível
saber exatamente a quem se destina a obra. Nossa opção de tradução foi neutra, deixando ao
leitor a indeterminação da passagem.
No capítulo IX, que trata da chamada eucaristia, há dois pontos de nota: o primeiro é o
próprio termo eucaristia, transcrição quase literal do grego eukharistía. Seu significado é
“agradecimento”, todavia um “agradecimento ritual”, ao que parece. Preferimos manter a
neutralidade do “agradecimento” a invocar o termo “eucaristia”, como é entendido hoje pela
Igreja, o que já significa uma longa evolução e interpretação do rito. Não estamos seguros o
quanto o rito primitivo subsiste na modernidade. No terceiro versículo do mesmo capítulo, há
o termo “pedaços”. Mas pedaço do quê? Passagens evangélicas citam “pedaço de pão” e, em
Marcos 6, 43, “pedaço de pão e peixe”. τptamos por essa última solução, por entendermos ser
o Evangelho de Marcos omais antigo, embora reconheçamos que, materialmente falando, o
uso do pão no rito não apresenta dificuldade, mas o peixe, sim.
τ capítulo XV começa assim: “Designai para vós mesmos, bispos e diáconos, dignos
do senhor, homens humildes, não ávidos por dinheiro, verdadeiros e experimentados, pois a
vós eles celebrarão a liturgia dos profetas e mestres”. Qual seria o significado de “bispos” e
“diáconos” nessa comunidade cristã primitiva? τs termos modernos evocam já todo um
paramento, uma hierarquia e formalismo, estranhos ao mundo primitivo. Todavia, com qual
termo moderno poder-se-ia traduzir as idéias da Didaqué? “Chefes”, “guias”, “líderes” são
muitos vagos. σossa solução foi deixar “bispos e diáconos”.
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Sobre a nossa tradução
Nossa tradução, por outro lado, pretende aproximar o leitor ao texto original grego.
Assim, muitas vezes, a ordem das palavras não parecerá familiar. Deliberadamente
escolhemos o vocabulário menos usual e conhecido da tradição das traduções portuguesas,
pois queremos “romper” os modelos mentais já existentes, os quais, muitas vezes, favorecem
uma leitura fluente, todavia sem uma reflexão mais aprofundada. Sirva de exemplo a oração
do Pai Nosso. É bem conhecido, pela consagrada tradução de Almeida, o texto de Mateus,
VI, 9-13:
Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome; venha o teu reino;
faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia
dá-nos hoje; e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado
aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do
mal [pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém]!
Ó pai nosso, o qual estás no céu, santificado seja o nome teu, venha o reino
teu, faça-se a vontade tua, tanto no céu como sobre a terra. O pão nosso
cotidiano dá-nos hoje, e quita-nos da dívida nossa, como também nós
quitamos aos devedores nossos, e não nos conduzas à tentação, mas liberta-
nos da maldade, porque tua é a força e a glória, para a eternidade.
Conclusão
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REFERÊNCIAS
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II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA
SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
MEDIEVALISMO E MODERNIDADE EM MAURICE VAN WOENSEL
Inicialmente quero louvar a iniciativa dos responsáveis por este evento. Nada mais
adequado para homenagear Maurice do que um congresso cujo tema seja a Idade Média. Esse
período histórico o fascinava, e não apenas por razões afetivas ou estéticas. Maurice tinha
consciência de que o essencial das manifestações artísticas do Brasil, e especialmente do
Nordeste, enraíza-se no Medievo.
E tinha razão. Segundo Afrânio Coutinho, a literatura brasileira nasce sob o signo do
Barroco. E o que é o Barroco, se não o efeito da cultura medieval sobre a visão de mundo
herdada do Classicismo? Barroco é dualismo, agonia, antítese; o que anima a alma barroca é o
impulso cristão de contestar o racionalismo e o humanismo da Grécia e de Roma. Para
contestá-los procuramos os modelos teocêntricos de vida e arte vigentes na Idade Média, de
cujo imaginário se embebeu nosso espírito latino.
Maurice tinha consciência disso. Sabia, ainda, que o mais característico desse período
se refugiara nos rincões interioranos do Brasil. Daí sua admiração pela cultura popular,
depositária de mitos, lendas, histórias que, em seu dramatismo simples, revivem a saga de reis
e rainhas; os amores trágicos de casais fadados à eterna separação; os conflitos íntimos de
religiosos divididos entre os apelos de Deus e os do mundo; mas sobretudo as artimanhas do
homem simples para sobreviver num mundo violento e desigual.
Segundo o professor Eduardo Hoornaert, Maurice
“...entra no rol dos medievalistas brasileiros (..) com uma originalidade: ele
sempre procurou aplicar os estudos medievais à realidade nordestina. Isso já
se percebe na sua dissertação de mestrado, de 1978, que é uma análise de A
Pedra do Reino de Ariano Suassuna e onde aparece um sertão habitado com
sonhos medievais. Maurice acerta de cheio: há uma correspondência entre
cultura nordestina e cultura medieval”. (HττRσAERT, p. 1)
Certo dia Maurice me falou que ia submeter ao CNPq um projeto de pesquisa sobre a
influência da poesia medieval na poesia moderna, e me perguntou se eu queria participar. Eu
sabia pouco dos seus estudos e quase nada conhecia da Idade Média. Mas defendera havia
dois anos tese sobre a melancolia em Augusto dos Anjos, o que me levara a ler, por exemplo,
sobre a acedia nos mosteiros. Determinado poema de Augusto me fizera pesquisar sobre a
barcarola e outras espécies medievais que chegaram aos dias de hoje. A esses rudimentos de
informação acrescentei leituras de Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Onestaldo de
Pennafort, e me senti em condições de preparar um plano de trabalho e me propor como
pesquisador-adjunto. Deu certo; o CNPq aprovou nosso projeto, intitulado “Precursores
medievais da poesia moderna; leitura e tradução de textos”, no qual trabalhamos por cerca de
5 anos.
Durante esse período muito aprendi com o homem e com o erudito. Maurice era uma
pessoa de convivência fácil, amena, porém firme em suas opiniões. Embora fosse especialista
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Muito obrigado.
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A POESIA FEMININA DE AL-ANDALUS NO SÉCULO XII
Introdução
O presente ensaio tem como objeto de estudo a poesia feminina de al-Andalus. Por al-
Andalus se conhece o território da Península Ibérica que desde o ano 711 a 1492 esteve
dominado pelos mulçumanos. Hoje denominada comunidade autônoma de Andaluzia na
Espanha. O objetivo principal é resgatar a presença feminina, na poesia, no século XII.
As mulheres poetisas de al–Andalus se atreveram a romper as regras de seu tempo, a
partir do século IX até o século XIII, em plena Idade Média, com suas poesias do tipo épico,
lírico, amoroso e satírico. Pois, em al-Andalus era possível uma cultura mulçumana: mais
aberta, mais livre. Devido a esse atrevimento, essas poesias passaram a ser um sopro de luz na
alma feminina, que sem sombra de dúvidas abriram portas para atualidade .
A poesia de al-Andalus deixa marcas que semeia o imaginário de liberdade e
igualdade de algumas mulheres. Teresa Garulo em uma importante antologia catalolou trinta e
nove poetisas de al-Andalus, oito dela viveram no século XII.
Sem desmerecer a contribuição das trinta e uma poetisas de al-Andalus, catalogadas
por Garulo, principalmente às oito, que viveram no século XII, tomo como referência a poesia
de Hafsa Bint al-Hayy ar-Rakuniyya [1135-1191] devido o maior número de poemas. Hafsa
foi uma poetisa hispanoárabe famosa no século XII, e de quem se conserva o maior número
de poemas registrados. O registro e a conservação desses poemas deve-se em parte ao
interesse da família do poeta (seu amante), Abu Ya’far Ibn Said, por ela [ GARULτ,199κ].
Dividimos este trabalho em três breves partes: no primeiro item procuramos de forma
sintética descrever, a contribuição árabe no território al-Andalus na Idade Média. No
segundo lance tentamos situar, as mulheres e a poesia de al-Andalus no século XII, e por
último apresentamos Hafsa: poetisa de al-Andalus, suas poesias estão em espanhol
respeitando a tradução (do árabe para o castellaño) feita por Teresa Garulo.
1
Doutoranda em Direito Público pela Universidade Pompeu Fabra – Barcelona, Espanha.
2
Para Le Goff, a bela Idade Média é a de incomparável eclosão artística: é a época do gótico. Uma arte
introduzida na igreja abacial de Saint-Denis [Le Goff 2008:59].
É de salutar importância destacar aqui que a divisão do trabalho, a cidade, as novas instituições, são os traços
essenciais da nova paisagem intelectual da cristandade ocidental no fim do século XII. Sobre o tema ver Le
Goff, Os Intelectuais da Idade Média, [2006:8]
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autor, as divisões entre essas três épocas são muito mais profundas do que marcam o começo
e o fim da Idade Média como um todo [HAUSER, 2003:123-124].
Para GARULO, no território Al-Andalus era possível uma cultura mulçumana: mais
aberta, mais livre, e diferente dos béberes do norte da África, diferente da dinastia abácida
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que ficou em Damasco e Bagdá, acredita-se que ali era mais livre, e tanto que possibilitou
durante séculos aquela convivência de tolerância.
Em palavras de GARULO,
normalmente, as pessoas acham que por estar em território europeu, essa foi
uma fatia não árabe, ou menos árabe, e é o contrário. Toda música e a poesia
que se desenvolveu em al-Andalus era uma fusão de elementos do oriente,
que foram sintetizados junto com as culturas cristã e judaica que estavam ali
também, há anos, mesmo antes da chegada dos mulçumanos”. Assim,
grande era a influencia da poesia árabe na poesia medieval provençal
européia [GARULO,1998]. [Tradução Livre]
Pois bem, entre o século XI e XII se registra um grande número de mulheres, na vida
literária, e não só aristocráticas mas, também as escravas [GARULO, 1998]. E isto se dá,
segundo MARIN, devido ao desenvolvimento das artes e das ciências, ao notável esplendor
cultural que se produz em ambos os séculos. Nossa atenção estará voltada para as poetisas do
século XII.
Para Garulo [1986....] as relações comerciais e os casamentos mistos promoveram o contato entre os cristãos e
mulçumanos. Os casamentos foram numerosos e os encontramos na própria aristocracia: governadores árabes se
casaram com nobres cristãs, reis mouros se casaram com princesas espanholas e reis cristãos se casaram com
filhas de emires árabes. Quiçá isto tenha contribuído para uma convivência de tolerância.
Sobre o estudo metódico e sistemático da gramática e do léxico árabe-andaluz, veja CORRIENTE, Fraderico, A
Grammatical Sketch of the Spanish Arabic Dialect Bundle. Prólogo de Emilio Garcia Gomes, Madrid, Instituto
Hispano-Árabe de Cultura, 1977. Segundo Seiman [2000: 47,48] o árabe- andaluz seria uma forma de neo-árabe
em várias interferências estáticas, sendo a mais notável delas a substrática, como conseqüência do impacto do
romance dos autóctones da península sobre o neo-árabe de uma minoria, quando, entre os séculos VII e IX, este
foi substituindo aquele.
Numa sociedade em que o prestígio maior recai sobre os teóricos homens, em sua maioria seguidores de
Aristóteles, para quem a mulher era um ponto inferior ao homem.
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Sabe-se hoje, que em al-Andalus, entre os séculos XI e XII se documenta um número
elevado de mulheres que participavam da vida cultural. MARIN contabilizou 296 nomes neste
período, segundo a autora a maioria são: poetisas, pedagogas, cantoras [MARIN, 2000:47].
Segundo SLEIMAN a mescla dos três segmentos presente em al-Andalus – cristãos,
Judeus e mulçumanos no século XII é o elemento que influenciara o pensamento artístico e
filosófico da Europa [SLEIMAN 2000:36].
Em se tratando das poetisas de al-Andalus,Teresa Garulo em uma importante antologia
aponta que somente encontrou “trinta e nove mulheres de quem se pode dizer que eram
poetisas ou que compunham versos ou de que se conservem poemas”.
A pesquisa de GARULO, Diwãn de lãs poetisas de Al-Andalus, aponta que durante o
século XII em al-Andalus viveram em torno de poetisas (que tem registros): 1.Amat al-Aziz,
1153-1235; 2. Asma al-Aniriyya, que escreveu um verso ao califa almohade Abd al- Munin
(1130 – 1163); 3. Hafsa Bint al-Hayy ar-Rakuniyya, partencia a uma família nobre e era
conhecida em Granada como uma mulher bela, inteligente e culta; Hamda Bint Ziyad, seu pai
era professor de literatura; 4. Muhya al-Garnatiyya nada se sabe sobre sua vida no século XII;
5. Nazhun Bint al-Qalaiyya, são poucos os poemas conservados, era natural de Granada, não
se conhece a data de nascimento nem de sua morte, sabe-se que viveu em meados do século
XII; 6. Qasmuna Bint Isma’il al Yahudi pertenceu a uma família de grande tradição literária
em árabe; 7. As-Silbiyya, não se conhece o real nome dessa poetisa, sabe-se que escreveu uns
versos ao califa almoade Abu Yusuf Ya qub al-Mansur para se queixá-se da atuação dos
governadores de sua cidade e do encarregado dos impostos (1184-1199) e Warqa bint Yintãn,
nada se registra dessa poetisa exceto seu nome.
A pesquisadora assinala que: maioria das poetisas de al-Andalus exerceu suas
atividades literárias em Córdoba, Sevilla e Granada por se tratar de cidades mais importantes
de al-Andalus. Entretanto, o que se sabe da maior parte dessas poetisas de al-Andalus se
limita a poucos registros de suas existências. São poucas as poetisas que têm dados
bibliográficos.
Para a pesquisadora GARULO, as fontes árabes na maioria das vezes não indicam a
idade, o estado civil, e tão pouco revela se viveram muitos ou poucos anos. Sabe-se que a
grande maioria das poetisas são mulheres livres, e com freqüência pertencem à linhagem de
famílias importantes ou nobres.
No século XII a poesia parece mais livre. As poetisas dão a impressão de se mover
mais espontaneamente em suas manifestações literárias e isto se observa no relativo encanto e
leveza de alguns poemas, especialmente nos poemas de amor. Entretanto, em determinados
poemas algumas poetisas recorrem ao estilo antigo para queixar-se dos governantes e dos
males causados a sua pátria [GARULO, 1998:51].
Também no século XII já se sentia – sobretudo nas poesias de al-Andalus o imaginário
feminino das poetisas, e fortemente na poesia de Hafsa a necessidade de uma identidade
própria de mulher, com sentimentos de desejos e ciúmes compartidos com seu amado.
Entretanto, esses sentimentos às vezes colocam na sombra, indevidamente, o
comportamento feminino nas obras medievais [GARULO, 1998]. O amor, o ciúme o desejo e
o protesto estão presentes na poesia feminina de al-Andalus, principalmente na poesia de
Hafsa fonte de inspiração para este ensaio.
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Vislumbra-se aqui a irreverência da poetisa Hafsa, que nos seus versos vai além da
poesia . Sabe-se, hoje, que não só de poesia nos falam os poetas e as poetisas do século XII
muito mais do que os desinformados pretendem minimizar sob o rótulo de “medieval” na
acepção vulgar do termo. No século XII segundo CAMPOS,
GARULO destaca que HAFSA foi uma mulher extemamente famosa em Granada,
esta afirmação está apoiada no fato de que uma nobre dama granadina pedira um autógrafo à
poetisa e ela escreveu de seu punho e letra o seguinte verso:
Hafsa sentiu-se viúva e colocou luto por seu também amante o poeta Abu Yafar ibn Said apesar das ameaças do
Governador. E, se retirou da corte e se dedicou ao ensino. Em 1184 aceitou o convite do Califa Yaqud al-Manur
e partiu para Marrakech para dirigir a educação das princesas almohades. Ali permaneceu até sua morte em
1191.
Poema de num. 17 (na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:84].
Poema de num. 1(na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:74]
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Em um poema dirigido ao poeta Abu ya’far Said a poetisa de Granada se mostra em pé
de igualdade com seu amado e amante:
Herdeira da tradição poética árabe, mesmo assim, Hafsa é capaz de expressar, com
grande beleza e leveza, seus sentimentos reais em uma linguagem espontânea [GARULO,
1989:81].
A Abu Ya’far
Van a verte mis versos,
Deja a sus perlas que adornen tus orejas.
Así el jardín, pues no puede ir a verte,
Te envía su perfume.
Seu amante, o poeta Abu Yafar ibn Said, que havia sido amigo e secretário do príncipe, fez deste objeto de suas
sátiras e participou de uma rebelião política contra o Governador Abu Said e acabou sendo preso e executado
em Málaga em 1163.
Poema de num. 8 (na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:81]
Poema de núm. 9 (na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:81]
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Rigorosamente contemporânea, a granadina Hafsa vive e parece aproveitar desse
ambiente “novo” do século XII quiçá, devido a sua formação cultural, e o espaço propício em
território al-Andalus, seus sentimentos jorram em versos que nos parecem atrevidos em busca
da liberdade e da igualdade entre mulheres e homens. Por exemplo, num outro poema de
amor, dirigido a seu amante e poeta Abu Yafar ibn Said se coloca :
A Abu Ya’far
¿Voy a verte o vienes a mi casa?
Mi corazón siempre se inclina a tus deseos.
Te encontrarás a salvo de la sed
y del ardor del sol
cuando me des la bienvenida:
mis labios son aguada dulce y fresca,
y dan las ramas de mis trenzas densas sombra.
Contéstame deprisa; no es un favor, oh, mi Yamil,
hacer que espere tu Butayna.
Existe um poema de Hafsa, o único, segundo GARULO, que tem um corte satírico que
pode indicar-nos o que havia convertido a poesia satírica no fim do século XII, mas também,
nos indica a coragem de uma mulher contrapondo as normas, se enfrenta a um homem, neste
caso de certo renome por sua atividade poética e sua cultura e o faz sem o menor recato
utilizando-se de total liberdade de expressão em plena idade média, que faz com que cada
parte e cada palavra do poema contribua para esta leitura:
A sátira na Idade Média foi demasiado violenta. A Sátira serviu, ora como instrumento
de ataque ao clero, à Cúria romana, ora ao ataque político, ora para expressar os sentimento
mais brutais do ser humano [SPINA: 1973: 43].
É certo que a poesia amorosa e satírica de al-Andalus que se há conservado em Hafsa
e em outras poetisas da Idade Média é mais que suficiente para confirmar a liberdade que
gozava a mulher de al- Andalus. As produções poéticas destas poetisas abriram uma janela ou
dera um sopro de luz na alma feminina, que a história oficial não deve se furtar.
No mínimo, a poesia de al-Andalus ajudou a desenvolver uma nova visão do papel
feminino na Europa, por que a mulher era muito mal considerada, a mulher era tida, dentro da
tradição cristã mais antiga e da Idade média, como um ser incapaz de amar verdadeiramente,
Poema de num. 13, traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:83].
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mais como alguém ligado à perdição do homem, sobretudo do homem puro. Essa idéia de que
o homem puro pode ser também guiado pela mulher, pelo amor, pelo afeto feminino é uma
marca al-Andalus”. Essa visão vai entrar, pelo menos é uma das vias, na nova concepção de
amor e da mulher que vai se espalhar na Europa a partir do século XII.
Sabemos que a poesia lírica, cujo primeiro foco, tão disputado pelos arabistas, teria
sido a Andaluzia dos princípios do século XI, com as formas dos cantos moçárabe
[SPINA,1973:22]. E que contribuição das mulheres na cultura ocidental é um tema de
fundamental importância quando se fala de Idade Média, principalmente na al-Andalus. A
presença dessas mulheres na poesia de al-Andalus está marcada pela “liberdade de seus
versos”, e, transcende as fronteiras de Andaluzia e da Idade Média através dos tempos,
causado interesses em vários pesquisadores da atualidade.
Considerações finais
Apesar dos estereótipos que temos das mulheres islâmicas não sem razão houve em al-
Andalus poetisas importantes que escreveram com suma liberdade e em considerável
competência com os poetas homens . Pois bem, o fato de haver mulheres poetisas, como
Hafsa, nos faz ver a ruptura dos cânones, ou as transgressões do que era habitual ou correto na
Idade Média. Assim, o mérito da poesia de Hafsa enquanto poetisa medieval é exatamente a
sua sensibilidade frente aos sentimentos humanos como amor, ciúmes e desejos que tanto os
homens como as mulheres são portadores. Podemos dizer, com GARULO [1998], que o século
XII marca a era do esplendor de al-Andalus e, Hafsa foi altamente respeitada em seu tempo e
ainda ronda entre muitas mulheres poetisas de todo o mundo. Porém, não podemos esquecer,
em nenhum caso que Hafsa foi uma mulher de família nobre com um status que se distancia
do comum das mulheres de sua região e do seu tempo.
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Augusto de: Mais provençais, São Paulo, Editora Schwarcz Ltda.,1987.
Di Giacomo, L.: Une poétse andalouse du temps des Almoades: Hafsa bint al-Hayy al
Rakuniyya, Madrid, Hesperis, 1947. 9-101.
GARULO T: Diwan de las poetisa de al-Andalus, Madrid, 1986, pp.71 -88 .
HAUSER, Arnold: História Social da Arte e da Literatura, Martins Fontes, São Paulo, 2003.
(Trad. Álvaro Cabral).
LE GOFF, Jacques, Os Intelectuais na Idade Média, Rio de Janeiro, José Olympio editora,
2006.
______. Uma longa Idade Média, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008.
MARIN, Manuela, Mujeres em al-Ándalus, Madrid, CSIC, 2000, p.165.
SPINA, Segismundo, Iniciação na cultura literária medieval, Rio de Janeiro, Grifo, 1973.
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ANÁLISE SEMIÓTICA DO POEMA CANTAR DE AMOR
1 Trovadorismo
O amor cortês surge no sul da França, na região da Provença, no século XII, como um
modelo de relação e de conjunção de sentimentos e corpos entre o homem e a mulher. A
condição feminina na época medieval é vista por alguns autores, como uma promoção da
mulher, já que a dama é quem ocupa o centro desse amor.
Essa criação literária é fruto do poder que a corte dava aos poetas em alimentar seus
sonhos e que levassem para longe suas inquietações e ciladas da vida diária. Evidentemente, a
corte foi o lugar onde o jogo do amour courtois (amor cortês) ou fin’amours (fino amor)
tomou forma. τs homens procuravam tratar as mulheres “com um refinamento, demonstrando
sua capacidade de capturá-las, não pela força, mas por carícias verbais e manuais [...]”
(DUBY, 1993).
Dessa forma, o Amor Cortês desempenha uma função social e lúdica na sociedade da
corte que emerge a partir da sociedade feudal. Representa uma revolução imaginária dos
modos de pensar e de sentir, sem deixar os padrões repressores de seu tempo.
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Portanto, a posição submissa da mulher passa a ser uma fonte de inspiração de um
amor capaz de reconduzir a personalidade do homem diante da autoridade que o
descaracteriza. Daí, o amor cortês que surgiu e desapareceu na Idade Média ainda ecoa na
literatura até os nossos dias, nos nossos dizeres cotidianos de amor, “como objeto de
avaliação e abordagens interpretativas muito vivas” (RÉGσIER-BOHLER, 2006, p. 54) como
atestamos através do poema “Cantar de Amor” de Manuel Bandeira, objeto de análise desse
estudo.
Antes de fundamentarmos o poema, é relevante destacar que a “expressão
trovadoresca na Moderna Poesia Brasileira é uma realidade” como assevera Almeida (1993,
p. 125). É o caso de Manuel Bandeira, em que ele próprio comenta sua inspiração para
compor o poema e seu amor pelo medievalismo:
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Classe Social
Nobreza Plebe
alta baixa
não-plebe não-nobreza
Ø
Na semântica fundamental percebemos as qualificações semânticas euforia versus
disforia. Por eufórico tem-se a qualificação positiva e por disfórico, a qualificação negativa.
Ainda existe a aforia que se refere à qualidade de neutro.
A sintaxe narrativa apresenta um sujeito à procura do seu objeto de valor. A relação
entre sujeito e objeto, comumente, situa-se no eixo do desejo. A busca do sujeito pode,
também, situar-se no plano puramente cognitivo, na busca de um saber.
Os actantes ou sujeitos da narrativa, quando separados do objeto de valor, estão em
relação de disjunção e quando unidos estão em relação de conjunção. Disjunção,
transformação e conjunção de actantes são as fontes básicas de qualquer desenvolvimento
narrativo.
A semântica narrativa está voltada para os valores do sujeito semiótico. O enunciado
narrativo que liga o sujeito-objeto subdivide-se em dois grupos: enunciados de estado que
designam o estado em que se encontra um sujeito; e enunciados do fazer que seria o
movimento, na tentativa do sujeito passar de um estado para outro. Os enunciados de estados
podem ser de dois tipos: conjunto, quando o sujeito está em relação de conjunção com o
objeto, ou disjunto, quando o sujeito está separado do objeto. A passagem de um enunciado
de estado a um outro (da disjunção à conjunção, por exemplo) implica uma transformação
que toma a forma de um enunciado do fazer e que teve a intervenção de um sujeito do fazer.
O sujeito age de maneira a transformar um estado: ele faz-fazer.
Desta forma, a relação entre o sujeito e o objeto se situa no eixo do desejo, quando o
sujeito se põe à procura de um objeto, isto é, quando ele exerce um fazer transformador para
atingir um estado de conjunção (ou disjunção) com o objeto.
Na sintaxe discursiva ocorre, segundo Greimas, o processo de localização dos atores
narrativos no tempo e no espaço da enunciação e do enunciado. O discurso, ao ser construído,
é, pressupostamente, estabelecido um contrato fiduciário entre enunciador e enunciatário,
determinando, dessa forma, a veracidade ou não do texto.
A semântica discursiva tem como componente a tematização - elementos abstratos
presentes no texto - e de figurativização - elementos concretos presentes no texto - que
revestem um esquema narrativo. As figuras do texto formam uma rede, uma trama e para
entender esta trama é necessário conhecer primeiro o nível temático, que, como o nível
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figurativo, são palavras e expressões que apresentam traços comuns de significação e que
podem ser agrupados. Esses traços comuns podem ser reduzidos a uma oposição semântica. É
a partir desta oposição que se constrói a estrutura fundamental.
Segmentação:
D1 (destinador) Ov D2 (Destinatário)
O amor Dama
Eu-lírico Sujeito
O enunciador (eu-lírico) está embreado no discurso, uma vez que se instaura num
agora.
[...]
Conectado ao tema amor está o tema sofrimento. Amar para o eu-lírico implica sofrer
justificado pelo tipo de construção amor cortês um amor ainda não efetivado, mas
esperançoso, intensamente almejado.
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A morte também flui como tema, uma vez que não conseguir a mulher amada provoca
no eu lírico o desejo de não viver, porque lhe é angustiante a ausência de quem ele ama.
Ao tema morte faz emergir o tema vida. A presença da mulher amada é sinônimo de
vida, bem, luz.
O quadrado semiótico de Greimas nos apresenta eixos semânticos com dois tipos de
relação lógica:
Asserção Negação
(amor) (desamor)
S1 S2
S1 S2
(não-desamor) (não amor)
Não-asserção não-negação
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Tensão dialética
Amor cortês
vida morte
Percebemos então que a adesão ao amor cortês se efetiva. “A alegoria do deus Amor
serve para revelar a submissão ao sentimento que, doravante, é a única razão de viver do
poeta” (RÉGσER-BOHLER, 2006, p. 49)
O tema global, a significação de uma narrativa, por exemplo, o tema Amor em relação
ao desamor (amor distante, não correspondido). Estas categorias de oposição semânticas se
articulam em euforia (valor positivo = amor) ou disforia (valor negativo = desamor/amor
distante) e formam a base do texto, constituindo relações lógicas elementares que são
analisadas em forma de quadrados semióticos.
Considerações Finais
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por amor a uma mulher que não se apresenta como sujeito semiótico, posicionando-se apenas
como enunciatária do discurso. Ela, embora seja motivo de sofrimento para ele, é também
motivo de vida, portanto, almejada. Há no discurso os temas amor vs desamor, vida vs morte..
A emoção e o sentimento são melhores expressos na língua comum do povo, como é o
caso do poema aqui estudado. O modo de falar de uma língua, sua estrutura, o ritmo e o som
expressam a personalidade do povo que a utiliza.
Referências
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A DEMANDA DO SANTO GRAAL: UMA PROSA MEDIEVAL NA LITERATURA
DE CORDEL
A Demanda do Santo Graal, possivelmente, uma das mais famosas e populares das
novelas de cavalaria, tem sua origem na obra “Perceval ou Le conte du Graal” de Chrétien de
Troyes escrito no século XII. Chrétien de Troyes escreveu cinco romances sobre os
personagens da Távola Redonda e esse último trabalho ficou inacabado. O clérigo Robert de
Boron, no final do século XII, desenvolveu o tema Cálice Sagrado, a partir do romance
inacabado de Chrétien, ligando-o à tradição arturiana e introduzindo tal elemento de
cristianização. Uma lenda que, inicialmente foi glosada em versos e pertencia às canções de
gesta francesas - poemas medievais cantados em linguagem popular – narrava os feitos
heróicos dos reis e de seus cavaleiros e apresentava Percival como cavaleiro que "daria fim à
Demanda do Graal".
Essas canções, de caráter noticioso, narravam de perto o acontecido, tendo como
predominante o cavaleiro medieval que está diretamente incluído no combate em defesa da
Europa Ocidental, sempre instigando a fé cristã e obtendo a aprovação da população em favor
do movimento. Por volta de 1220, na França, o tema é colocado em prosa e essa lenda, que
antes era pagã situa-se como cristianizada; e é transformada em novela de cavalaria, mística e
simbólica. Os cavaleiros passavam por situações perigosíssimas para defender o bem e o mal.
Percival, anteriormente o escolhido, é substituído pelo cavaleiro Galaaz na busca pelo Santo
Graal, transformando alguns símbolos, dentre eles: o Vaso e a Espada, em objetos de valor
místico. Ana Maria Machado (199ι:01) diz que “inúmeras versões foram feitas para outras
línguas, e cada país europeu somou suas próprias lendas às aventuras do Rei Artur e seus
cavaleiros”.
O tema estudado é bastante utilizado nos escritos da literatura e cobiçado entre os
críticos literários. Por ser bastante complexo, deixa asas para uma vasta interpretação. Beliza
(2001:145) encontra na Demanda do Santo Graal brechas para enfocar a presença feminina
no universo cavalheiresco, quando observa que “a mulher representa a passagem para a
atividade do cavaleiro como herói combatente e, assim, introduzi-lo a uma das mais
relevantes ordens da sociedade medieval: a ordem do terceiro estado”. Ela ainda faz o
seguinte comentário:
1
Cordelista e pesquisadora do GIEM. E-mail: nelcima@hotmail.com
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Aos olhos de Zilma, A Demanda do Santo Graal é um texto de cunho religioso, onde
a autora enfatiza com grande exaltação o herói Galaaz na busca pelo Cálice Sagrado – o cálice
que Jesus usava na santa ceia.
Não tinha ouro nem prata
O penhor da Caridade
O Cálice da Aliança
Relíquia da Cristandade!
A taça que guarda o sangue
Que salvou a humanidade.
Os cavaleiros, na sua maioria, eram homens voltados para a comunhão, onde apenas
um deles, Galaaz, obteve a sua realização. Jovem reconhecido como o "puro dos puros", o
próprio Messias, simboliza um novo Cristo, atingindo o fim almejado depois de inúmeras
aventuras – algumas relatadas no desfecho do cordel de Zilma Ferreira Pinto - que põem à
prova todas as suas virtudes.
Na busca pela relação existente entre a nossa literatura popular e a medieval, vários
vestígios são encontrados, nos quais se percebe que é inegável essa existência. Há inúmeros
registros de que a nossa literatura tem ramificações de nossos antepassados lusitanos. Para
Maurice (199κ:13), “nunca houve ruptura entre as tradições literárias do Velho Mundo e seus
brotos ultramarinos em nossas plagas: mesmo à distância, e desenvolvendo uma linguagem e
expressividade própria sob o sol tropical, as nossas letras continuam florescendo enquanto
ramo importante, na família neo-românica”.
Campos (1988, p. 257), um poeta moderno que transpôs em riquíssimos versos muitos
poemas dos troubadors, ficou curioso e perplexo ao comprovar os pontos de semelhança entre
a poética dos trovadores medievais - pioneiros da poesia moderna - e, por outro lado, a arte
dos poetas populares do Nordeste, afirma que:
Essa poesia caminha inexoravelmente para a absolescência, à medida que as tradições
rurais vão sendo engolidas pelas novas modalidades da arte popular urbana trazidas pelos
modernos meios de comunicação de massa – o rádio, a televisão, o cinema – não necessita de
muletas, nem de caridade. Anda por seus próprios pés. Possui técnicas e excelências nada
desprezíveis e por vezes surpreende o poeta cultivado não só pela diretidade de sua
linguagem, como pela sutileza e achados imprevistos.
No poema popular, A Demanda do Santo Graal, vários aspectos podem evidenciar a
relação entre as literaturas medieval e popular, pois o folheto é produzido com uma adaptação
onde são preservados alguns caracteres herdados do texto-matriz, a novela de cavalaria
portuguesa. São respectivamente:
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Espada: um símbolo enaltecido no poema, um objeto que através dos versos, abaixo,
detectamos a sua nobreza. Utensílio medieval “heroizado”, cujo poder é imensurável
tornando-se a prova concreta de que Galaaz é mesmo o herói escolhido para a demanda. “σa
composição do combate cumpre a espada o papel de objeto ritual, sacral e simbólico”
(JERUSA, 1993, p. 97).
Espada miraculosa
Muito mais que Escalibur
Com ela o herói vencia
Feitiçaria e tabu
Contra a força dessa espada
Não podia Belzebu.
São nestes elementos que se evidenciam traços que admitem detectar uma relação
entre os ciclos carolíngios e os arturianos.
A referência se faz inequívoca pela aura de encantamento e magia que resumam da
Matiére de Bretagne revelada em seus constitutivos básicos, num texto como A Demanda do
Santo Graal, e que difusa, mas efetivamente comparece nos apontados Clarimundos,
Amadises e Palmerins. Observa-se, aqui como lá, toda a máquina sobrenatural, a freqüência
de situações, em que as mais perigosas tarefas são confiadas ao herói, a presença do amor
como força impelente à demanda de aventuras, tendo como prêmio a bela noiva meta e
conquista. Tudo isto nos fala, não somente da matéria arturiana, mas de uma complexa teia de
varias tendências imbricadas, do mito ao ponto popular (JERUSA, 1993, p. 42).
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3- o exagero: o poema já é iniciado com uma expressão exagerada, recurso típico do poeta
popular, com o intuito de intensificar a narrativa; método usado, geralmente, na amplificação
épica.
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discussão, são reconhecidas como estrofes de rimas isométricas e classificadas como rimas
ABCBDB, são versos formados em redondilha maior ou setissílabas.
O poema A Demanda do Santo Graal é uma novela de cavalaria em cordel.
Adaptando um texto erudito, substituindo a forma proseada pelo verso, a autora procurou
reescrevê-lo com bastante fidelidade, embora utilizando os recursos característicos do poeta
popular: restringir ou intensificar conteúdos.
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Sua composição deixa evidência das três partes que a compõem. A primeira parte vai
da 1ª à 23ª estrofe. Nas duas primeiras, a autora faz um imenso suspense, nas quais,
inconsciente ou não, talvez pelo fato de ser historiadora, induz o leitor a revisar o seu
conhecimento geográfico; é uma verdadeira busca ao mapa-múndi, para entender o espaço
desencadeador da narrativa medieval.
Volta à narração para na estrofe nº13 falar sobre o Rei Artur e seus cavaleiros na
Távola Redonda. A segunda parte expressa a chegada do jovem Galaaz, o herói, à Corte, que
surge no poema a partir da 24ª estrofe. Nelas encontramos não somente versos, mas
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versos/imagens que sugerem um desencadeamento de combate real. Na estrofe de nº35, a
autora volta a suspender a narrativa para mostrar ao leitor/ouvinte que o herói era
familiarizado com aquele local.
Estas interrupções fazem parte das características do poeta popular, quando querem
expor as suas próprias idéias sobre o assunto em questão.
Na estrofe de nº 75, a narração da demanda é encerrada. A partir daí, vemos a
conclusão do poema que, nesta, Zilma, emocionalmente, apresenta as relações do poeta
popular com o medieval, através das omissões, da fidelidade, da exaltação e da sua paixão
pelo medievalismo.
A autora
Poetisa e trovadora, autora de cantigas e romanceiros, Zilma Ferreira Pinto tem obtido
vários prêmios, como o “Prêmio σacional de Poesia - 1999” – da Academia Friburguense de
Letras com o romanceiro Isabel Nossa Princesa. Zilma nasceu na antiga Vila de Tacima,
distrito de Araruna, localizada na região do Curimataú do estado da Paraíba. Licenciada em
História pela UFPB, exerceu o magistério no interior e na capital do estado. Iniciou, na
literatura, com o livro Cancioneiro Experiencial (1987), pelo qual já se notava a sua
inspiração trovadoresca, este, que pôs em evidência o seu estilo. Membro da Academia
Paraibana de Poesia (cad. 15), do Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica, da
Associação Paraibana de Imprensa e da União Brasileira de Trovadores (PB), além de autora,
a professora Zilma é também uma estudiosa da Literatura de cordel.
Vários depoimentos são encontrados sobre o trabalho desta poetisa. A prof. Neuma
Fechine cita no prefácio do Cancioneiro Experimental :“τs poemas aqui reunidos, embora
estejam na sua maioria umbilicados formalmente à estética tradicional, notadamente no que
concerne à observância métrica e rítmica, traz inovações à sua produção de significâncias que
os filiam à poética modernista... feitos sobretudo para serem cantados, por serem melodiosas
cantigas que se mesclam a cadência encantadora das paralelísticas medievais, ibéricas, e dos
motes da nossa “cantoria de viola”. τutro depoimento que deve ser registrado é o da escritora
e historiadora Socorro Xavier (2002, p. 181): “[...] surgiram outras publicações, diversificadas
entre a poesia, a ficção e as pesquisas histórico-antropológicas e de Genealogia”. “Igualmente
diversificada ainda tem sido, a produção poética, elaborada, com igual maestria, em duas
fontes inspiradoras: a poesia erudita e a poesia popular e regionalista, notadamente o cordel”.
Antônio Soares (199ι) também faz uma referência à autora dizendo que “Zilma se evade ou
se aerifica nas asas da alucinação emocional... Ora, é uma alucinação cósmica... Ora, uma
alucinação estilo medieval”. Segundo estes e outros subscritos, é evidente a existência de uma
relação medieval x Zilma, seja na prosa, seja no verso.
CONCLUSÃO
Ao concluir este trabalho, quero registrar mais uma vez a comprovação de que narrar
um grande feito histórico, em verso, é uma grande arte do poeta popular. Ele vai tecendo o
seu texto com restrições pela necessidade de limitação de páginas, suprimindo, adicionando
ou enfatizando trechos que possa achar mais interessante, sempre preservando a origem do
texto-matriz. Jerusa denomina este processo de “servilismo ao texto matricial”. Fazendo
adequação à poética da Literatura de cordel, a poetisa usou rimas e ritmos que fracionaram a
comunicação, dando uma verdadeira volta à Idade Média. Entretanto, numa adaptação textual
que a torna compreensível a todo leitor. Não podemos negar que das epopéias, dos
romanceiros e dos trovadores ficaram marcas impressas de grande valor na poesia ocidental
concretizadas até os nossos dias.
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No poema, A Demanda do Santo Graal, vê-se uma construção poética que coloca
num mesmo nível o clássico e o popular tendo como objeto de suas reflexões a relação entre o
humano e o divino. Um tema que, por mais que façamos a sua leitura constante, observamos
grandes dificuldades de nos concentrarmos em apenas um trecho ou um personagem dessa
narrativa. Isso ocorre, certamente, pela magia com que ela nos envolve, interferindo em
variadas faces do poema e nos fazendo sentir ora num reino encantado, ora numa batalha onde
prevalece uma doutrina com religiosidade profunda.
REFERÊNCIAS
ÁUREA, Beliza. Da demanda do Santo Graal à busca de si - mesmo. In: LEON, A.de.;
MALDORADO, S.C. (orgs.). Saberes emergentes. João Pessoa: Manufatura / PPGS, 2001.
CURRAN, Marck J. A literatura de cordel: antes e agora. Recife: Universidade Federal de
Pernambuco. 1973.
______. Jorge Amado e a literatura de cordel. Salvador: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1981.
FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel. São Paulo: HUCITEC, 1993.
LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean Claude. Dicionário temático do Ocidente. São Paulo:
Edusc, 2006.
MALORY, Thomas. O Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. São Paulo: Scipione,
1997.
MENDONÇA, M. B. de. Uma voz feminina no mundo do folheto. Brasília: Thesaurus:
1993.
NEMER, Sílvia. O ideal cavalheiresco: entre o romanceiro medieval, o cordel e o cinema.
2005. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2005.
PINTO, Zilma Ferreira. A Demanda do Santo Graal. Literatura de cordel. João Pessoa,
1978.
RODRIGUES, Linduarte Pereira. O apocalipse na literatura de cordel: uma abordagem
semiótica. 2006. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Paraíba, 2006.
SOARES, Antônio. Cadernos Psicoliterários, n. 5, João Pessoa, 1997.
WOENSEL, Maurice Van; VIANA, Chico. Poesia medieval ontem e hoje: estudos e
tradições. João Pessoa: Ed. Universitária, 1988.
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"ROSVITA DE GANDERHEIM E LOURDES RAMALHO: O FEMININO NA
DRAMATURGIA OCIDENTAL"
"As virgenes (virgens) são vistas pela antiguidade cristã como equiparadas
ao homem, vir, e por isso elas podem possuir virtus (=virtude, ou, antes,
masculinidade) e como se diz em conexão com os padrões de pensamento
neopitagóricos e estóicos, superar sua `feminilidade´ (=carne, fraqueza,
imperfeição)"1
Portugal, país eminentemente católico que no século XVI estava no primeiro lugar da
lista dos conquistadores marítimos, não oferecia às mulheres boas condições de expansão na
vida pública. Apesar de serem relatados casos de mulheres independentes que viviam em boas
situações financeiras e administravam negócios e terras sem ajuda de qualquer figura
masculina, as portuguesas medianas -até meados do século XVIII- eram dependentes e
encarceradas.
1
LOBO, Luiza. A gênese da representação feminina na literatura ocidental: Bíblia, Cabala, Idade Média In:
“Seminário σacional Mulher e Literatura”. ι: 199ι. σiterói – Rio de Janeiro. Universidade Federal Fluminense.
VIANNA, Lúcia Helena e PORTO, Maria Bernadete (orgs.). Niterói: EdUFF. 1999. 2v, p. 569-571.
2
MAIA, João Domingues.”Questões femininas na obra de Gil Vicente” In: Flores verbais. Jürgen Heye (org.).
Rio de Janeiro. Editora 34. p. 335-361. 1993. Disponível em: http://www.ipn.pt/opsis/litera/letras/ensaio41.htm.
Acessado em 21/11/03.
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Segundo cronistas da época, as mulheres casadas nascidas em famílias mais abastadas
que saíssem desacompanhadas de amas ou escudeiros poderiam adquirir má fama. Viúvas e
noivas ou esposas de homens que se demorassem em missões deveriam se vestir luto e não
aceitar outros homens como amantes ou maridos. As mulheres portuguesas viviam, então, sob
o signo de Eva e só poderiam ser plenamente feliz (de acordo com as representações da
época) e salva dos pecados, depois que contraíssem núpcias e fossem mães.
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estabelece uma relação de desigualdade intelectual entre o Imperador e Rosvita, ao apresentar
o Imperador como um déspota ignorante da sabedoria que sua opositora demonstra.
ADRIANO: Ilustre matrona, com bons modos convido-te a dar culto aos
deuses, para que possas gozar de nosso favor.
SABEDORIA: Não pretendo de modo algum prestar culto a teus deuses,
nem morro de vontade de ganhar o teu favor.
ADRIANO: Até aqui, refreei minha ira, e não me movi de indignação contra
ti. Antes, pelo teu bem e o de tuas filhas, adoto uma conduta de amor
paterno.
SABEDORIA (sussurrando): Não vos deixeis, minhas filhas, enganar pelas
seduções ardilosas desse Satanás; antes, fazei como eu: rejeitai-as.
FÉ: Rejeitamos e, valorosamente, desprezamos essas coisas frívolas.
ADRIANO: Que é que tu estás cochichando?
SABEDORIA: Falava um pouco a minhas filhas.
ADRIANO: Pareces ser de alta estirpe, mas quero saber com mais exatidão
sobre tua pátria, tua família e teu nome.
SABEDORIA: Embora a nobreza do sangue seja, entre nós, de pouca
importância, no entanto, não nego ter uma origem ilustre.
ADRIANO: O que não me surpreende.
SABEDORIA: Pois, de fato, foram meus pais os mais eminentes gregos e
meu nome é Sabedoria.
ADRIANO: A nobreza refulge em teu rosto e a sabedoria do nome brilha na
face.
SABEDORIA: Em vão bajulas, não nos dobramos a tuas falas persuasivas.
ADRIANO: Dize, que vieste fazer entre nós?
SABEDORIA: Nenhuma outra coisa a não ser conhecer a doutrina da
verdade, para o aprendizado mais pleno da fé que combateis e para consagrar
minhas filhas a Cristo.
ADRIANO: Dize os nomes delas.
SABEDORIA: A primeira se chama Fé; a segunda, Esperança; a terceira,
Caridade.
ADRIANO: Quantos anos têm?
SABEDORIA: (sussurrando) Agrada-vos, ó filhas que perturbe com um
problema aritmético a este tolo?
FÉ: Claro, mamãe. porque nós também ouviremos de bom grado.
SABEDORIA: Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade
tem por idade um número deficiente que é parmente par; Esperança, também
um número deficiente, mas parmente ímpar; e Fé, um número excedente mas
imparmente par.
ADRIANO: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são!
SABEDORIA: Não admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos
números e não há uma única resposta.
ADRIANO: Explica de modo mais claro, senão não entendo.
SABEDORIA: Caridade já completou 2 olimpíadas; Esperança; 2 lustros;
Fé, 3 olimpíadas.
ADRIANO: E por que o número 8, que é 2 olimpíadas, e o 10, que é 2
lustros são números deficientes? E por que o 12, que perfaz 3 olimpíadas, se
diz número excedente?
SABEDORIA: Porque todo número, cuja soma de suas partes (isto é, seus
divisores) dá menor do que esse número, chama-se deficiente, como é o caso
de 8. Pois os divisores de 8 são: sua metade - 4, sua quarta parte - 2 e sua
oitava parte - 1, que, somados, dão 7. Assim também o 10, cuja metade é 5,
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sua quinta parte é 2 e sua décima parte, 1. A soma das partes do 10 é
portanto, 8, que é menor do que 10. Já, no caso contrário, o número diz-se
excedente, como é o caso do 12. Pois sua metade é 6, sua terça parte, 4, sua
quarta parte, 3, sua sexta parte, 2 e sua duodécima parte, 1. Somadas as
partes, temos 16. Quando, porém, o número não é excedido nem inferado
pela soma de suas diversas partes, então esse número é chamado número
perfeito. É o caso do 6, cujas partes - 3, 2, e 1 - somadas, dão o próprio 6. Do
mesmo modo, o 28, 496 e 8128 também são chamados números perfeitos.
ADRIANO: E quanto aos outros números?
SABEDORIA: São todos excedentes ou deficientes.
ADRIANO: E o que é um número parmente par?
SABEDORIA: É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas partes
em duas iguais, e assim por diante, até que não se possa mais dividir por 2,
porque se atingiu o 1 indivisível. Por exemplo, 8 e 16 e todos que se
obtenham a partir da multiplicação por 2, são parmente pares.
ADRIANO: E o que é parmente ímpar?
SABEDORIA: É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas partes já
não admitem divisão (por 2). É o caso do 10 e de todos os que se obtêm,
multiplicando um número ímpar por 2. Difere, pois, do tipo de número
anterior, porque naquele caso, o termo menor da divisão é também divisível;
neste, só o termo maior é apto para a divisão. No caso anterior, tanto a
denominação, como a quantidade, são parmente pares; já aqui, se a
denominação for par, a quantidade será ímpar; se a quantidade for par, a
denominação será ímpar.
ADRIANO: Não sei o que é isto de denominação e quantidade.
SABEDORIA: Quando os números estão em "boa ordem", o primeiro se diz
menor e o último, maior. Quando, porém, se trata da divisão, a denominação
é quantas vezes o número se der. Já o que constitui cada parte é o que
chamamos quantidade.
ADRIANO: E o que é imparmente par?
SABEDORIA: É o que - tal como o parmente par - pode ser dividido não só
uma vez, mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a
indivisibilidade (por 2) sem chegar ao 1.
ADRIANO: Oh! que minuciosa e complicada questão surgiu a partir da
idade destas menininhas!
SABEDORIA: Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do Criador e
a Ciência admirável do Artífice do mundo: pois, não só no princípio criou o
mundo do nada, dispondo tudo com número, peso e medida, como também
nos deu a capacidade de poder dispor de admirável conhecimento das artes
liberais, até mesmo sobre o suceder do tempo e das idades dos homens.
ADRIANO: Muito agüentei a tua "calculeira" para fazer com que me
obedeças.
SABEDORIA: Em que?
ADRIANO: No culto aos deuses.
SABEDORIA: Nisto, certamente não consinto.
ADRIANO: Se teimares, sofrerás torturas.
SABEDORIA: O corpo sim, podes fustigar com suplícios; mas a alma, não
conseguirás forçar a ceder.3
3
http://www.hottopos.com/spcol/rosvita.htm-acessado em maio de 2007, às 22h42
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Guiomar, sem rir, sem chorar - texto publicado pela primeira vez em 1980 juntamente
com outros dois textos da dramaturga: A eleição e Frei Molambo, ora pro nobis – é um
monólogo protagonizado por Guiomar, "uma mulher do povo, atrevida e corajosa, resolve,
com sua linguagem desabrida, denunciar as 'maracutaias' dos políticos, os crimes dos
poderosos contra os pequenos, pelos quais não sofrem uma ave-maria de penitência."4
Veja o que diz o texto:
4
RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Teatro popular: três textos (A eleição, Guiomar – sem rir, sem chorar,
Frei Molambo – ora pro nobis)". [Campina Grande]: [s.n.], [c. 1980];
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política me interessa. – Pra melhor lhe dizer, nem jornal leio, isto é, leio
atrasado, quando encontro algum a caminho do banheiro, é por isso que só
falo de assuntos passados há tempos. Pois bem, no banheiro, de enciclo
PEIDA pra baixo, leio tudo. – E quem não lê? – Principalmente com essa
"massificação" de hoje que deixa os intestinos preguiçosos, sem coragem de
raciocinar... – Conheço gente que naquele honroso departamento faz tricô,
joga paciência, reza terço... – Sei até de um médico importantíssimo que faz
seus estudos "anatômicos" naquele indispensável gabinete fisiológico... (...)
As peças escritas por Lourdes Ramalho (muitas delas ainda inéditas), as mais
encenadas e famosas pelos prêmios que ganharam, a exemplo de Guiomar, a filha da mãe...
(2003), As velhas (1975) e A feira (1976), são protagonizadas por personagens femininas.
- Em Sabedoria, Rosvita representa a mulher como ser superior, nobre e mais
inteligente que o homem.
Considerações finais
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Sabedoria, protagonista do texto de Rosvita de Ganderheim, é uma mulher cristão e culta, que
enfrenta por meio da força da fé e do conhecimento o imperador Adriano que a quer demovê-
la de sua crença cristã. Sabedoria com tranquilidade, bom-humor e elegância demonstra a
Adriano que se mantêm fiel ao Deus cristão que ela cultua, apesar de presenciar o martírio e a
morte de suas três filhas. Guiomar é também uma professora, mulher esclarecida e
conhecedora da História do Brasil, portanto, pessoa com autoridade para falar dos fatos que
critica. σo seu embate com o delegado que a “convida” para uma visita ao posto policial,
Guiomar, apesar de demonstrar certo receio de sofrer castigos físicos, não se acovarda e -com
muita ironia e bom-humor- desconstrói as palavras do seu opositor.
Essas personagens são, portanto, representantes das mulheres que são silenciadas, mas
que não se intimidam diante daqueles que a querem subjulgar. Seguem crenças e têm opiniões
que diferem das estabelecidas como regra, mas demonstram um grande conhecimento e força
interior para o enfrentamento do conflito com seus opositores.
Bibliografia
Introdução
A semiótica é uma ciência que tem por objeto de estudo a significação, que é
entendida como articulações do sentido. O sentido, por sua vez, apresenta-se através de um
percurso gerativo, que é formado por três níveis: o fundamental, o narrativo e o discursivo.
Tendo em vista que este artigo consiste numa análise das estruturas discursivas, teceremos,
então, algumas considerações sobre elas.
Tomando por base essa teoria semiótica, extraímos do acervo do PPLP (Programa de
Pesquisa em Literatura Popular) o corpus composto pelo folheto de cordel O Dinheiro (O
Testamento do Cachorro), da autoria de Leandro Gomes de Barros, e fizemos uma análise das
estruturas discursivas, ressaltando os temas e as figuras que recobrem a narrativa, além das
relações de pessoa, tempo e espaço existentes nela.
Análise do corpus
O enunciador, para fazer valer suas crença e tornar seu leitor cúmplice de seu dizer,
irrompe-se, mais uma vez, no enunciado por meio de uma embreagem. Nesse momento,
continua a discorrer a cerca da importância do dinheiro e da dominação que este exerce sobre
as pessoas. Estruturalmente, tal fenômeno se deixa observar no aparecimento das marcas de
primeira pessoa que explicita a intervenção do enunciador no enunciado. Todavia, vale
ressaltar que o enunciador se mantém sempre distanciado, ou melhor, debreado da
enunciação, uma vez que a enunciação, apresentando-se como uma instância linguística
pressuposta pela própria existência do enunciado, mostra-se impossível de ser apreendida
inteiramente, recuperada em sua integridade enunciativa, o que pode ser feito, apenas, é uma
investigação das marcas que se presentificam no enunciado. No universo semiótico, em
questão, o enunciador recria a enunciação; ele a enuncia num tempo passado, resgata algo que
está na memória, por isso o uso de verbos no pretérito.
O uso dos dêiticos este e essas, apesar de remeterem a pontos espacialmente distintos
em relação ao enunciador, fazem com que este esteja preso, por intermédio de uma
embreagem, a uma enunciação presente que, por sua vez, dá origem a uma voz que se
desenvolve no espaço do lá. Esta ganha feições veridctóricas ao ser colocada, apenas
ilusoriamente, numa outra cena enunciativa historicamente determinada. Ademais, a
expressão eu já vi narrar um fato, ao mesmo tempo que marca a fusão do sujeito com espaço
da enunciação, assinala o seu distanciamento em relação ao espaço do enunciado.
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O espaço tópico permite situar e caracterizar os atores que se assentam no enunciado.
Ocorre por meio de pontos referenciais que encerram implicações sócio-culturais e
linguisticamente argumentativas, deixando transparecer determinadas intenções do sujeito
enunciador. Apresentam essas características: o mundo (parte humanamente corrompida da
Terra); cemitério e a Igreja.
O mundo constitui o meta-espaço. Todos os atores o ocupam e nele se constroem,
incorporando, inclusive, os outros espaços. Essa demarcação espacial é utilizada com um
duplo propósito. Inicialmente está relacionado a uma visão cultural segundo a qual a Terra
está habitada por pessoas de má índole, que representam a maioria, e por indivíduos justos e
incorruptíveis, que compreendem uma pequena minoria. Fazem parte da parcela “podre” da
sociedade as autoridades religiosas, jurídicas e todas aquelas que têm a ambição como valor
principal. Em contraposição, o enunciador e os seus semelhantes (aqueles que respaldam suas
ações na honestidade) pertencem à parcela benevolente desse mundo. Observem os trechos a
seguir:
Como se percebe no trecho acima que o poder do dinheiro sucumbi ao poder de Deus
que aparece figurativizado nas ações que não podem sofrer intervenção do homem, como, por
exemplo, a morte, o movimento dos ventos e o caráter vivificador das chuvas.
É uma cultura no nosso país que, após a morte, a alma precisa ser velada com rituais
litúrgicos, para que encontre a salvação e os corpos precisam ser sepultados em locais
apropriados, os cemitérios, uma vez que a morte é considerada uma passagem para a vida
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eterna. Vale salientar, no entanto, que mesmo a morte, que é um acontecimento comum entre
todos os povos, quaisquer que sejam sua raça, sua idade ou origem, mesmo assim, a questão
monetária se apresenta como um fator diferenciador, ou seja, nas famílias cujo poder
aquisitivo se mostra elevado, estas, mesmo após o falecimento de algum de seus entes,
possuem um tratamento diferenciado. Essa questão é validada pela atitude da Igreja que, para
aqueles que possuíam vários bens e dizimavam generosas quantias, seus corpos podiam até
ser sepultados dentro do próprio templo. Entra aí, então, o caráter ambicioso da instituição
católica que é criticada pelo enunciador, pois na narrativa, o vigário aceita realizar o enterro
de um cachorro com todos os rituais dignos de um humano por uma acentuada quantia em
dinheiro. Eis os excertos que asseveram:
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Como tema decorrente da ambição, surge a corrupção, representada pelas
atitudes de homens que, mesmo possuidores de uma estável vida financeira, tais como
juízes e procuradores, como demonstra o texto, são impulsionados por uma incessante
busca por uma maior aquisição monetária, o que os leva a corromper-se em favor do
dinheiro e, para isso, realizam ações totalmente condenáveis consoante às leis que
administram a sociedade, uma vez que, mesmo os culpados de crimes são absolvidos
devido ao elevado poder aquisitivo que detêm, porquanto disponibilizam elevadas
quantias monetárias para os julgadores da causa a fim de que eles votem pela sua
inocência. “Cédulas de quinhentos fachos” figurativiza esse tema. τs trechos são
demonstrativos:
O tema estima representa o sentimento que o ator inglês nutre pelo seu cachorro
que havia morrido, que o leva a procurar o padre para que ele realizasse o sepultamento
do animal com todas as pompas religiosas nem que, para isso, tivesse que pagar uma
alta soma em dinheiro, uma vez que o considerava como um ente querido. “Um milhão”
é a figura desse tema. Eis o trecho:
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da instituição católica a qual pertencem. No que concerne ao vigário, este se corrompe
no momento em que celebra o sepultamento de um animal em troca de uma
considerável quantia em dinheiro, o que é totalmente condenável pela Igreja. E o bispo
também se corrompe, pois, no momento em que vai utilizar-se de sua superior posição
hierárquica para repreender o vigário, ao ser informado da quantia paga pelo inglês para
a realização da cerimônia e do valor a ele destinado, troca imediatamente de opinião e
passa a apoiar a atitude de seu inferior. Os exemplos a seguir comprovam: lá chegou o
cachorro
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Considerações Finais
Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1990.
BARROS, Leandro Gomes de. O dinheiro (o testamento do cachorro). Fortaleza:
Tupynanquim, 2005.
BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. O Discurso Semiótico. In: ALVES,
Eliane Ferraz et alii (org). Linguagem em Foco. João Pessoa: Editora Universitária/
Ideia, 2001. pp. 133-157.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2001.
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