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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

reitor
RÔMULO SOARES POLARI
vice-reitora
MARIA YARA CAMPOS MATOS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTE
diretor
ARIOSVALDO DA SILVA DINIS
vice-diretora
MÔNICA NÓBREGA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
coordenadora
SANDRA LUNA
vice-coordenadora
LUCIANA ELEONORA DE F. CALADO DEPLAGNE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
coordenadora
FERNANDA LEMOS
vice-coordenadora
MARIA LUCIA ABAURRE GNERRE
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA:
Paulo Aldemir Delfino Lopes
CAPA, WEB, ARTE:
François Deplagne (Designer gráfico)
Imagem de Joana D´Arc, miniatura, pergaminho do Século XV

E82 II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba - Sábias, Guerreiras e místicas: Homenagem aos 600 anos
de Joana D´arc – ANAIS / Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne, Fabrício Possebon
(Organizadores). - João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2012.
451p.
ISBN: 978-85-237-0603-6
1.Literatura. 2.Estudos Medievais. I. Deplagne, Luciana Eleonora de F. Calado. II. Possebon,
Fabrício.

UFPB/BC CDU: 82.091

Editora Universitária
João Pessoa - PB
2012
II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA
SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´arc

ANAIS

João Pessoa - PB
11 a 13 de junho de 2012
PROMOÇÃO

GIEM- Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais (CNPq/PPGL/CCHLA/UFPB


Grupo Crenças (PPGCR/CE/UFPB)

APOIO

CAPES
PPGL
CCHLA
PPGCR
ABREM
USINA CULTURAL ENERGISA

ORGANIZAÇÃO

Profª. Drª. Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne – (ABREM/Coordenadora do


GIEM – PPGL – UFPB)
Prof. Dr. Fabrício Possebon – (ABREM/PGCR- PPGL-UFPB)
Prof. Dr. Anderson D´Arc Ferreira (PPGFIL/ABREM)
Profª. Drª. Sandra Luna (Coordenadora do PPGL- UFPB)
Profª. Drª. Cláudia Brochado (UnB/ ABREM/GIEM)
Profª. Drª. Suelma de Sousa Moraes (PPGCR-UFPB)º
Profª. Drª Beliza Áurea (ABREM/PROLIN-UFPB)

SIMPÓSIOS TEMÁTICOS

ST1: O sagrado e o profano no Teatro Medieval


ST2: Cristianismo na Idade Média
ST3: Guerreiras Medievais
ST4: Santas e feiticeiras nas novelas de Cavalaria
ST5: Mulheres escritoras da Idade Média
ST6: Interface do Sagrado com a Filosofia e a Literatura na Mística Medieval
ST7: Faces do medievo nas Literaturas de Língua portuguesa
ST8: A Letra e a voz: música e poesia
EQUIPE DE TRABALHO

(Coordenadores e monitores)
Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne (GIEM/PPGL)
Fabrício Possebon (PPGCR /PPGL)
Suelma de Sousa Moraes (PPGCR)
Beliza Áurea (PROLIN)
Sandra Luna (PPGL)
André Sérgio Trigueiro (PIBIC/CNPq)
Frederico Lima (GIEM)
Danyele Almeida (GIEM)
Maria do Rosário Leite (PPGL)
Gilberto Lucena (GIEM/PPGL)
Siméia de Castro (GIEM)
Anderson D´Arc Ferreira (PPGFIL/ABREM)

COMITÊ CIENTÍFICO

ST1: Sandra Luna


ST2: Fabrício Possebon
ST3: Luciana Campos
ST4: Adriana Zierer
ST5: Cláudia Brochado
ST6: Suelma de Sousa / Anderson D´Arc Ferreira
ST7: Elizabeth Dias Martins
ST8: Beliza Áurea
APRESENTAÇÃO

II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA


SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc

O Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais (PPGL/UFPB) e o Grupo Crenças


(PPGCR/UFPB) têm o prazer de apresentar-lhes os anais da segunda edição do Seminário de
Estudos Medievais da Paraíba. O evento teve o intuito de estimular o debate entre
pesquisadores, professores, estudantes de diversas áreas sobre temas relacionados ao medievo,
em particular, enfocando temas pouco divulgados da Idade Média, como a produção literária
feminina, o lugar dos movimentos hereges e populares, a partir do estudo e tradução de obras
importantes que ofereçam um novo olhar sobre esse período da História. Nessa perspectiva, o
tema proposto para o II Seminário foi: Sábias, Guerreiras e Místicas e homenageou os 600
anos de Joana D´Arc, uma das figuras mais emblemáticas da Baixa Idade Média no Ocidente.
O evento contou com pesquisadores de renome nacional e internacional na área de
Estudos Medievais, que participaram como conferencistas, palestrantes e ministrantes de
mini-cursos. Foram organizadas ainda sessões de comunicação com a participação de
pesquisadores e estudantes da graduação à pós-graduação que puderam apresentar pesquisas
em andamento, assim como resultados de pesquisas desenvolvidas em programas de Pós-
Graduação de diversas áreas.
Neste sentido, o evento cumpriu um dos seus principais objetivos: estimular o
interesse pelos estudos medievais nos cursos de graduação, motivando os graduandos a
apresentarem e discutirem suas pesquisas iniciais a especialistas da área, vindos de várias
regiões do Brasil.
Aproveitamos a ocasião para manifestar nosso agradecimento aos pesquisadores de
diversas instituições brasileiras e estrangeiras que contribuíram a dar mais vitalidade ao
Seminário através de trocas acadêmicas e de laços interinstitucionais fomentados a partir
dessa reunião em torno dos estudos medievais. Além da Paraíba, estiveram presentes
pesquisadores de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Maranhão, Pará, Minas Gerais,
Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo, Brasília, assim como do outros países: Argentina e
Holanda.
Agradecemos também à Fundação CAPES pelo apoio financeiro concedido,
viabilizando a vinda de grande parte dos professores convidados e possibilitando ainda as
publicações dos trabalhos resultantes das discussões ocorridas no Seminário.
Os textos reunidos nesses Anais refletem a pluralidade de temas e abordagens que
foram apresentados no II Seminário de Estudos Medievais da Paraíba. Os anais estão
divididos em quatro sessões: Conferências, Palestras, Mesas-redondas e Comunicação. Ao
final das sessões disponibilizamos os trabalhos apresentados na primeira edição do evento.
Feita a apresentação, desejamos a todo(a)s uma boa leitura e até o próximo Seminário!

Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne


Fabrício Possebon
Organizadores
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II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA
SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 6
Luciana Eleonora de F. Calado Deplagne ................................................................................. 6
Fabrício Possebon ...................................................................................................................... 6
CONFERÊNCIAS .................................................................................................................. 13
UNA TIPOLOGÍA DE LAS MUJERES SABIAS EN LA LITERATURA ESPAÑOLA
MEDIEVAL ............................................................................................................................ 13
Alicia Esther Ramadori ............................................................................................................ 13
MÍSTICA FEMININA NA IDADE MÉDIA HISTORIOGRAFIA FEMINISTA E
DESCOLONIZAÇÃO DAS PAISAGENS MEDIEVAIS ................................................... 27
Lieve Troch ............................................................................................................................... 27
PALESTRAS........................................................................................................................... 40
A MULHER EM CARMINA BURANA .............................................................................. 40
Eduardo Hoornaert .................................................................................................................. 40
MESAS-REDONDAS............................................................................................................. 47
O MOVIMENTO DAS BEGUINAS: INTERFACES E RESSONÂNCIAS EM
EXPERIÊNCIAS SÓCIO-RELIGIOSAS FEMININAS DO PRESENTE ....................... 47
Alder Júlio Ferreira Calado ..................................................................................................... 47
LINGUAGEM MÍSTICA ERÓTICA MEDIEVAL: ASPECTOS PROPEDÊUTICOS 59
Anderson D’Arc Ferreira ......................................................................................................... 59
POSSIBILIDADES DE UMA LEITURA HERMENÊUTICA DAS CONFISSÕES DE
AGOSTINHO DE HIPONA: A FILOSOFIA RICOEURIANA COMO VIA PARA
REINTRODUÇÃO DO SAGRADO NA LEITURA FILOSÓFICA DAS CONFISSÕES75
Andrés Bruzzone ....................................................................................................................... 75
HELOISA E ABELARDO..................................................................................................... 82
Eduardo Hoornaert .................................................................................................................. 82
RUY GONÇALVES E A DISCUSSÃO DO FEMININO NA REGÊNCIA DE D.
CATARINA DE ÁUSTRIA ................................................................................................... 85
Eduardo José de Azevedo Charters Fuentes Morais................................................................ 85
Luisa Stella de Oliveira Coutinho Silva ................................................................................... 85
A INFIDELIDADE DO CORPO FEMININO: IMAGENS DA JUSTIÇA E DA
VIOLÊNCIA NO TEXTO POPULAR IBÉRICO .............................................................. 93
Hermano de França Rodrigues ................................................................................................ 93

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SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
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O HOMEM INTERIOR E O DESPRENDIMENTO NA MÍSTICA DE MEISTER


ECKHART ............................................................................................................................ 105
Carlos Bezerra de Lima Júnior .............................................................................................. 105
VOZES ENTRECRUZADAS: MEDIUNIDADE, HERESIA E SANTIDADE EM
JOANA D’ARC .................................................................................................................... 113
Iracilda Cavalcante de Freitas Gonçalves ............................................................................. 113
“OS CARMINA BURANA: ENTRE O CÂNTICO DOS CÂNTICOS DE SALOMÃO E
A CANTATA DE CARL ORFF” ........................................................................................ 120
Maria da Conceição Oliveira Guimarães .............................................................................. 120
ESPELHO DA LITERATURA, REFLEXO DO SAGRADO – REFLEXÕES
FILOSÓFICAS SOBRE A MÍSTICA DE MARGUERITE PORETE ........................... 127
Maria Simone Marinho Nogueira .......................................................................................... 127
ASPECTOS RELIGIOSOS DO AMOR CONJUGAL NA OBRA "JÚLIA OU A NOVA
HELOÍSA" DE ROUSSEAU: UM RETORNO À IDADE MÉDIA? .............................. 136
Otacílio Gomes da Silva Neto ................................................................................................ 136
A POBREZA COMO EXPRESSÃO MÁXIMA DA VITA VERA APOSTOLICA NOS
ESCRITOS DE CLARA DE ASSIS ................................................................................... 143
Valéria Fernandes da Silva .................................................................................................... 143
IDEIAS RELIGIOSAS NO CRISTIANISMO PRIMITIVO: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA DO PROTO-EVANGELHO DE TIAGO ................................................. 152
Valmir Nascimento de Moura ................................................................................................ 152
Fabricio Possebon .................................................................................................................. 152
ECOS DA FÁBULA E DO BESTIÁRIO MEDIEVAL EM “CONVERSA DE BOIS”,
DE GUIMARÃES ROSA..................................................................................................... 160
Gilberto de Sousa Lucena ...................................................................................................... 160
INÊS DE CASTRO: A FACE FEMININA DO AMOR MEDIEVAL EM PORTUGAL172
Aldinida Medeiros .................................................................................................................. 172
SESSÕES DE COMUNICAÇÕES ..................................................................................... 180
JOANA D'ARC E BRANCA DIAS - PERSONAGENS DA INQUISIÇÃO: DIÁLOGO
ENTRE MÁRTIRES ............................................................................................................ 180
Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos ............................................................................... 180
Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne .................................................................... 180
ÉOWYN OU DERNHELM. UMA ANALISE DO ESTEREÓTIPOS DA MULHER
GUERREIRA NAS OBRAS DE J. R. R. TOLKIEN ........................................................ 187
Adhemar Correa Neto ............................................................................................................ 187
Alessandro Lima Moraes ........................................................................................................ 187

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RED SONJA: A MULHER GUERREIRA NA ERA HIBORIANA ............................... 194


Adriano Everton ..................................................................................................................... 194
Luciana Campos ..................................................................................................................... 194
A INTERPRETAÇÃO DA ÁRVORE DE JESSÉ NA IDADE MÉDIA ......................... 200
Ana Caroline dos Santos ........................................................................................................ 200
Jôkarlla Kataryne Oliveira Alcântara.................................................................................... 200
MORTE CRISTÃ DO MEDIEVO: UMA FORMA DE REPENSAR O
CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO DIANTE DA MORTE ................................... 207
Ana Cândida Vieira Henriques .............................................................................................. 207
Viviane Cristina Cândido ....................................................................................................... 207
O LIRISMO E O MISTICISMO MEDIEVAL EM ADÉLIA PRADO .......................... 214
André Sérgio Soares Guedes Trigueiro .................................................................................. 214
Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne .................................................................... 214
A MULHER E SEU PAPEL NA LITERATURA TROVADORESCA .......................... 224
Alba Caldeira Mello ............................................................................................................... 224
O CONTRASTE ENTRE A MULHER RELIGIOSA E A FEITICEIRA EM
MEMORIAL DO CONVENTO ............................................................................................ 229
Ana Flávia da Silva Oliveira .................................................................................................. 229
Aldinida Medeiros .................................................................................................................. 229
NO DIA QUE ROLAND FALOU COM SOTAQUE NORDESTINO............................ 238
Caroline Sandrise dos Santos Maia ....................................................................................... 238
Nilma Barros Silva ................................................................................................................. 238
Wanderson Diego Gomes Ferreira ........................................................................................ 238
Beliza Áurea ........................................................................................................................... 238
IMAGENS DO FOL AMOR DE LANCELOT E GENEVRA D’ A DEMANDA DO
SANTO GRAAL: DELÍRIOS DE AMOR E VISÕES DE TERROR............................... 243
Elenilda do Rosário Costa...................................................................................................... 243
Alessandra F. Conde da Silva ................................................................................................ 243
HELGA E HONI: A FORÇA FEMININA NOS QUADRINHOS DE “HÄGAR, O
HORRÍVEL” ........................................................................................................................ 252
Elvio Franklin Menezes Teles Filho ....................................................................................... 252
POÉTICA MEDIEVAL E ICONOGRAFIA MODERNA: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA DO CARMINA BURANA E OS CAPRICHOS, DE GOYA ............... 258
Fernanda Alves de Morais ..................................................................................................... 258
Wilder Kleber Fernandes Santana ......................................................................................... 258

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UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA FEMININA NAS GUERRAS GERMÂNICAS DO


IMPÉRIO ROMANO À ERA VIKING ............................................................................. 266
Gustavo Braga Santos ............................................................................................................ 266
AS VALQUÍRIAS NO IMAGINÁRIO VIKING .............................................................. 272
João Paulo Garcia Teixeira ................................................................................................... 272
ENTRE A AGULHA E A ESPADA: AS MULHERES GUERREIRAS NAS CRÔNICAS
DE GELO E FOGO ............................................................................................................... 280
Jackson Franco de Sá Monteiro ............................................................................................. 280
Johnni Langer ......................................................................................................................... 280
Luciana Campos ..................................................................................................................... 280
O CÁLICE DO DIABO: A FIGURA DE SATÃ NAS MULHERES MEDIVAIS
EUROPEIAS ......................................................................................................................... 289
José Lucas Cordeiro Fernandes ............................................................................................. 289
AMOR E TRANSGRESSÃO: UMA LEITURA COMPARATIVA DAS CARTAS DE
SOROR MARIANA ALCOFORADO E DE HELOÍSA .................................................. 297
Késia Mota.............................................................................................................................. 297
Leonardo Barbosa .................................................................................................................. 297
Luciana E. de F. Calado Deplagne ........................................................................................ 297
SUBJETIVIDADE DO HOMEM MEDIEVAL: AÇÃO E INTENÇÃO DO HOMEM
NAS OBRAS DE AGOSTINHO E TOMÁS DE AQUINO .............................................. 304
Khayles N. P. Alves ................................................................................................................ 304
REPRESENTAÇÕES DAS AMAZONAS NA IDADE MÉDIA...................................... 310
Marília Colins ........................................................................................................................ 310
Luciana Campos ..................................................................................................................... 310
FEIA, FORTE E BOA DE BRIGA: AS REPRESENTAÇÕES DE BRITES DE
ALMEIDA, A VALENTE PADEIRA DE ALJUBARROTA, NO IMAGINÁRIO
PORTUGUÊS ....................................................................................................................... 315
Michel Roger Boaes Ferreira ................................................................................................. 315
Luciana Campos ..................................................................................................................... 315
MALDITA SEJA A BELDADE DE ISEU: FEITIÇARIA E IMAGEM ........................ 320
Pâmela Paula Souza Neri ....................................................................................................... 320
O CONVENTO COMO ESPAÇO DE EMANCIPAÇÃO FEMININA EM PORTUGAL
NO SÉCULO XVII ............................................................................................................... 328
Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais Cunha .............................................................. 328

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NAS BRUMAS DE AVALON: UMA LEITURA DO IMAGINÁRIO SIMBÓLICO DA


MULHER/BRUXA NO FILME AS BRUMAS DE AVALON ........................................ 336
Kelliane Felix Gonçalves........................................................................................................ 336
Maylla Rolim de Sousa Araujo ............................................................................................... 336
Rafael Francisco Braz ............................................................................................................ 336
UMA FLOR DE ALTURA? PERFIL IGNORADO DE LEONOR TELES EM UM
ROMANCE DE ANTÓNIO CANDIDO FRANCO .......................................................... 343
Larícia Pinheiro Silva ............................................................................................................ 343
Aldinida Medeiros .................................................................................................................. 343
SUTIÃ DE AÇO: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER GUERREIRA NO FILME
COMO TREINAR SEU DRAGÃO .................................................................................... 351
Ricardo Wagner Menezes de Oliveira .................................................................................... 351
O EROTISMO MÍSTICO NA POESIA DE TERESA DE JESUS: ANIQUILAMENTO
E ÊXTASE NA BUSCA DO ABSOLUTO ......................................................................... 359
Maria Graciele de Lima ......................................................................................................... 359
FACES DO MEDIEVO NO ‘RETÁBULO DE SANTA JOANA CAROLINA’, DE
OSMAN LINS ....................................................................................................................... 368
Rosana Maria Teles Gomes .................................................................................................... 368
INTRODUÇÃO À TEORIA DOS VÍCIOS EM TOMÁS DE AQUINO ........................ 377
Sebastiana Inácio da Silva ..................................................................................................... 377
Maria Simone Marinho Nogueira .......................................................................................... 377
ANAIS DO I SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS NA PARAÍBA ..................... 386
ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE LES SERMENTS DE STRASBOURG .................. 386
Ana Cristina Bezerril Cardoso ............................................................................................... 386
A TRADUÇÃO DA DIDAQUÊ (CATECISMO CRISTÃO DO II SÉC.) ...................... 396
Fabricio Possebon .................................................................................................................. 396
MEDIEVALISMO E MODERNIDADE EM MAURICE VAN WOENSEL ................. 401
Francisco José Gomes Correia (Chico Viana) ...................................................................... 401
A POESIA FEMININA DE AL-ANDALUS NO SÉCULO XII ...................................... 407
Iranice Gonçalves Muniz ........................................................................................................ 407
ANÁLISE SEMIÓTICA DO POEMA CANTAR DE AMOR ........................................... 416
Maria Elizabeth Baltar Carneiro de Albuquerque ................................................................. 416
Maria Nazareth de Lima Arrais ............................................................................................. 416
A DEMANDA DO SANTO GRAAL: UMA PROSA MEDIEVAL NA LITERATURA
DE CORDEL ........................................................................................................................ 426
Maria Nelcimá de Morais Santos ........................................................................................... 426

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"ROSVITA DE GANDERHEIM E LOURDES RAMALHO: O FEMININO NA


DRAMATURGIA OCIDENTAL" ..................................................................................... 436
Petra Ramalho Souto .............................................................................................................. 436
O IMAGINÁRIO MEDIEVAL NOS FOLHETOS DE CORDEL: O PECADO COMO
ETHOS CONTROLADOR ................................................................................................. 444
Renata de Oliveira Pinto ........................................................................................................ 444

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CONFERÊNCIAS

UNA TIPOLOGÍA DE LAS MUJERES SABIAS EN LA LITERATURA ESPAÑOLA


MEDIEVAL

Alicia Esther Ramadori


Universidad Nacional del Sur
Sociedad Argentina de Estudios Medievales
alicia.ramadori@uns.edu.ar

La representación de mujeres sabias aparece tempranamente en la literatura española


medieval. Desde los primeros testimonios en el siglo XIII hasta la culminación del siglo XV,
encontramos una y otra vez manifestaciones de la sabiduría femenina que va adquiriendo
diversas configuraciones en correlación a las variables socioculturales, ideológicas y
discursivas imperantes en los distintos momentos históricos. Así en el siglo XIII encontramos
el modelo de la doncella sabia en el mester de clerecía y en la literatura sapiencial de
procedencia árabe. En relatos caballerescos y ejemplares del siglo XIV, el personaje se
transforma en reinas y damas que aconsejan con sabiduría y prudencia. En el siglo siguiente,
encarna en ancianas que saben condensar sus experiencias de vida en expresiones
proverbiales, las cuales merecen ser compiladas en refraneros o son incluidas en nuevos
géneros discursivos. Propongo, por lo tanto, un recorrido por textos literarios de la Castilla
medieval para mostrar los varios tipos de mujeres sabias que van apareciendo a lo largo de los
siglos XIII al XV, de acuerdo a determinados condicionantes culturales y como resultado de
la interacción entre tendencias tradicionales y nuevas ideologías emergentes. Una vez
descriptos los diferentes paradigmas, estaremos en condiciones de interpretar las valoraciones
inherentes a la condición de “mujer sabia”. Intentaremos responder cuestiones tales como:
¿Cuál es el sentido de la exaltación de la sabiduría femenina? ¿Tiende hacia una equiparación
con el hombre? ¿Significa realmente una visión positiva de la mujer o, por el contrario,
encubre una intrínseca actitud misógina?

1. La sabia erudita y cortesana

La primera mitad del siglo XIII vio surgir en Castilla un movimiento de renovación
cultural que trajo como consecuencia un nuevo concepto de sabiduría caracterizado por la
confianza en la razón y en la experiencia y por una insaciable apetencia de saber. Como
correlato de esta situación surge un nuevo estamento social: los clérigos o intelectuales, cuya
principal función dentro de la sociedad consistirá en la adquisición y transmisión del saber.
Las universidades, nacidas como corporaciones de maestros y estudiantes, serán el centro de
su actividad. (Le Goff, 1965). Una renovación similar alcanza al ámbito literario, en el que se
inicia la tendencia innovadora denominada por sus primeros cultores la “nueva maestría” o
“mester de clerecía”, aludiendo a su novedad y carácter culto. Los textos del mester de

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clerecía son poemas narrativos que comparten una misma configuración discursiva encauzada
en la estrofa de la cuaderna vía (cuartetas de versos de catorce sílabas monorrimos y
consonantes). Se inspiran en fuentes escritas, preferentemente latinas, y han sido concebidos
con sentido artístico así como elaborados retóricamente. Al mismo tiempo, canalizan las
aspiraciones intelectuales de un grupo social que busca imponer paulatinamente sus ideales y
modelos culturales. Uno de los medios de hacerlo es a través de la creación de un nuevo
arquetipo heroico en el que la destreza física y la valentía guerrera han sido reemplazadas por
cualidades más espirituales. (Ramadori, 2001 y 2011).
El protagonista del Libro de Apolonio –poema perteneciente al mester de clerecía-
constituye un acabado ejemplo del nuevo ideal de rey sabio en que las virtudes intelectuales
están íntimamente vinculadas a su cortesía y bondad. El mundo en que se mueve el héroe es
una sociedad refinada y culta, regida por códigos corteses que valoran las buenas maneras, el
cultivo intelectual y artístico, la instrucción escolar. Pero la novedad mayor que aporta el
Libro de Apolonio radica en la plasmación femenina de este modelo sapiencial, representada
por Luciana, esposa de Apolonio, y por su hija Tarsiana.
En la corte del rey Architrastes hace su aparición por primera vez Luciana, hija del
mencionado rey. La joven se destaca por su belleza, discreción y buenas maneras; el poeta la
llama “bien enseñada” (163b). Luciana es encarnación de una sociedad culta, similar a la
creada por la novela cortesana del siglo XII. En este mundo, alejado tanto del campo de
batalla de los cantares de gesta como del ascetismo de la literatura religiosa, sólo cabe el brillo
de la persona cultivada. La intelectualidad de los personajes queda así relacionada
estrechamente con su cortesía. En esta escena de la primera presentación, la música es el
vehículo para la manifestación de la sabiduría de los personajes.

Aguisósse la dueña, fiziéronle logar;


tempró bien la vihuela en un son natural;
dexó cayer el manto, parós’ en un brial:
començó una laude, homne no vïo tal.
Faziá fermosos sones, fermosas deballadas,
quedaba a sabiendas la voz a las vegadas;
faziá a la vihuela dezir puntos ortados,
semejaban que eran palabras afirmadas.
Los altos e los baxos, todos d’ella dizién:
- “¡La dueña e la vihuela tan bien se avinién!”
Lo tenién a fazaña cuantos lo veyén.
Faziá otros depuertos que mucho más valién.
Alabábanla todos, Apolonio callaba […]
(est.178-181a)

La ejecución instrumental de Luciana es ponderada por la corte, sin embargo, merece


las críticas de Apolonio, quien luego se convertirá en su maestro al demostrar que es “músico
acabado”. La superioridad de Apolonio se confirma con la posterior exhibición de su propia
maestría musical que tiene como consecuencia despertar el amor en Luciana y el
reconocimiento unánime de toda la corte.

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Fue levantando ‘l rey unos tan dulces sones,


doblas e deballadas, temblantes semitones;
a todos alegraba la voz los corazones;
fue la dueña tocada de malos aguijones.
Todos por una boca dizién e afirmaban
que Apolo ni Orfeo mejor non violaban;
el cantar de la dueña, que mucho alababan,
contra el d’ Apolonio nada non lo preciaban.
(est.189-190)

En la detallada pintura de la interpretación de ambos personajes y en sus palabras se


trasluce la concepción medieval de la música que valora el conocimiento teórico, la destreza
en la ejecución del instrumento y la capacidad crítica de juzgar en otros esos conocimientos y
habilidades. (Devoto, 1972).
Tarsiana heredará las virtudes intelectuales y la destreza musical de sus padres. A
diferencia de Apolonio cuya instrucción se deduce de sus palabras y hechos, se menciona la
educación recibida por Tarsiana desde sus primeros años. Ésta concuerda con la institución
medieval de los Estudios Generales que se organizaban en dos ciclos correspondientes al
Trivium y al Quadrivium. El poeta destaca el aprendizaje de dos disciplinas representativas de
cada uno de ellos: gramática y música. La elección metonímica de estos saberes se justifica
por la significación que ambos tuvieron en la Edad Media. Recordemos que la gramática se
consideraba el principio y fundamento de las otras artes e integraba tanto el estudio de la
lengua como de la literatura. La música, como ciencia, abarcaba el conocimiento de toda
armonía: la del universo, la del hombre como microcosmos, la del mundo sensible, la de las
matemáticas. (Curtius, 1955).
El desarrollo de la trama justifica, asimismo, el énfasis puesto en estas disciplinas
pues gracias a su práctica, Tarsiana conserva su vida y virginidad. Una detenida lectura de los
discursos con que la joven convence a sus interlocutores revela también la eficaz aplicación
de sus recursos retóricos y su sagacidad dialéctica: primero, suscita cierta piedad en Téofilo,
encargado de matarla, que posibilita la salvación de su vida (est.378-379); luego, logra con
sus prudentes palabras que Antinágoras y los demás hombres respeten su virginidad (est.407-
409); y finalmente obtiene autorización del dueño del burdel para cambiar su oficio por el de
juglaresa (est.422-425). Sus conocimientos musicales son precisamente, los que le permiten
este cambio con el que conseguirá mantener su pureza. A diferencia de Luciana, Apolonio
reconocerá los méritos de la ejecución musical de su hija, que combina la destreza en el
instrumento con el dominio de la teoría: “hobist’ en tu dotrina maestro bien letrado” (496d).
Pero además, en el propósito de salvaguardar su castidad, utilizando sus conocimientos
escolares para ganar dinero, Tarsiana ejemplifica, de manera bastante particular, la
posibilidad de una aplicación pragmática del estudio que permite un ejercicio lucrativo del
saber.
Una situación parecida se da en la Historia de la donzella Teodor. El relato, cuyo
origen se remonta hasta un cuento de Las mil y una noches, se difunde en España en el
contexto de las traducciones de colecciones de sentencias y cuentos de procedencia árabe y
del surgimiento de una importante literatura sapiencial compuesta en castellano, que se
produce en la segunda mitad del siglo XIII bajo los auspicios de Alfonso X el sabio. Desde
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entonces, ha tenido una enorme divulgación en todo el ámbito ibérico, llegando hasta la
literatura de cordel brasilera, como lo prueba el conocido folheto “A Donzela Teodora” de
Leandro Gomes de Barros (1865-1918), el poeta de Paraíba, autor de una recreación poética
de la versión portuguesa en prosa (traducción, a su vez, de un pliego suelto español). La
capacidad de adaptarse a todo tipo de entornos y la extensa pervivencia literaria
particularizan, entonces, a esta obra (Baranda-Infantes, 1995). Básicamente, constituye una
disputa de carácter enciclopédico, pues admite la exposición de toda clase de conocimientos,
entre una joven esclava cristiana y tres sabios de la corte del rey Almanzor. Sin embargo, su
principal atracción quizá se deba al marco narrativo que introduce la materia sapiencial. En él
cobra vida una de las más exquisitas representaciones de la sabiduría femenina.
La Historia de la doncella Teodor comienza con la compra de la joven por un
mercader, quien al ver su hermosura y gentil disposición decide darle una esmerada
educación:

En los reinos de Tunez ouo vn mercader natural de Vngria, el qual entre los
mercaderes era el mas rico que en el mundo se fallasse. E vn dia pasando por
la plaça, vido vender vna donzella christiana que era de las partes de España.
Y viéndola ser muy hermosa, compróla al moro que la traýa. E conociendo
en su gentil disposición e criança que deuía ser fijadalgo, hízole mostrar a
leer y escreuir e todas las sciencias que deprender pudiesse. La qual se dio
tanto a la virtud y estudio que sobrepujo a todos los hombres e mugeres que
en aquel tiempo fuesen, assi en sciencia como en música y otras infinitas
maneras de artes. (p.103)

Más allá de la coincidencia anecdótica de la venta en el mercado de esclavos, resulta


evidente que Teodor y Tarsiana comparten en grado superlativo las mismas virtudes,
educación y dedicación al estudio. En ambas se destaca su pericia musical y las dos exponen
sus conocimientos en contiendas que, a través del juego de preguntas y respuestas, permiten
develar un saber presentado como enigmático. En el caso de Tarsiana, la resolución de
adivinanzas tiene como fin inmediato alegrar a Apolonio pero, en realidad, sirven para la
anagnórisis entre padre e hija, resaltando la filiación también por la posesión de cualidades
intelectuales semejantes. En la historia de Teodor, cumplen una función más axial porque,
cuando el mercador se encuentra arruinado y la venta de la doncella es el único medio para
recuperarse, la sabiduría de la joven será examinada por los sabios de Almanzor para justificar
el alto precio pedido. El triunfo de Teodor sobre los doctos hombres provoca el merecido
reconocimiento de toda la corte y la obtención de beneficios materiales con lo que evita la no
deseada venta. Nuevamente estamos ante una aplicación práctica del saber que acarrea una
mejora pecuniaria.
Aunque los asuntos propuestos en el debate varían en las distintas versiones de su
extensa transmisión, el marco narrativo permanece estable en sus principales puntos. Sucede
así porque la valoración y exaltación de la sabiduría de la doncella es tan importante como la
enseñanza de determinados conocimientos. Ella vence no sólo por tener un caudal mayor de
saberes, sino porque su educación le ha proporcionado un perfeccionamiento interior contra el
que no podrán los sabios del rey. Contrariamente a lo esperado, la joven probará el
insuficiente grado de sabiduría de ese espacio cortesano (Gómez Redondo, 1999: I). Obligada

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a medir sus conocimientos con los hombres, que se muestran como poseedores exclusivos del
patrimonio del saber, supera airosa también el examen iniciático que la introduce en el
reducido círculo de los sapientes. (Goldberg, 1982). Por eso, su último contendiente que se
había manifestado como el más agresivo y soberbio, termina reconociendo:

“Yo os digo, señor, ciertamente que esta doncella sabe mas que yo; e desde
aquí os digo que ella es bastante de disputar con todo el mundo e quedar
vencedora, e que vuestra Alteza le deue dar señaladas mercedes e mucha
honrra” […] E vista por el rey la peticion que la buena e discreta donzella le
fazía, e conosciendo su alteza la razon e justicia que para ello tenía […]
mando al sabio por sentencia que luego en esse punto se desnudasse de todos
sus paños e los diesse e entregasse a la donzella. (pp. 130-131)

En cuanto la contienda implica la transferencia de poder del que interroga al que


contesta acertadamente, en el relato se materializa este traspaso en las recompensas que recibe
Teodor y en la penalidad de la desnudez que corresponde a su vencido contrincante.
Otra doncella sabia que también resulta examinada aparece en un relato ejemplar
intercalado en el Libro del caballero Zifar. En medio de un episodio maravilloso
protagonizado por un Caballero Atrevido, el narrador introduce una digresión moralizadora
contra las mujeres que aman a muchos hombres, ilustrada con un exemplum atribuido a San
Jerónimo sobre las preguntas que hizo un padre a su hija sobre los amores de las mujeres.
Interesa aquí destacar tanto el aprecio que reciben las dotes intelectuales de la joven, como el
papel de examinador que asume el padre al dudar de la verdad de sus saberes.

E dize asy: que vn ome bueno auía vna fija muy fermosa e muy leyda e de
buena palabra e de buen resçebir, e plaziale mucho de dezir e de oyr, e por
todas razones era muy visitada, e era familiar de muchas dueñas quando
yuan a los santuarios en romeria, por muchas plazenterias que les sabia
dezir. E porende quiso el ome bueno saber de estos amores que su fija
mostraua a todos, sy eran verdaderos; e dixole: “Ya mia fija mucho amada e
muy visitada e muy entendida en muchos bienes, dezidora de buenas cosas e
plazenteras, queriades que feziesemos vos e yo vn trebejo de preguntas e de
respuestas, en que tomasemos algunt plazer?”. Respondio la fija: “Ya mi
padre e mi señor, sabet que todo aquello que a vos plaze plaze a mi, e sabe
dios que muy grant deseo auia de ser conbusco en algunt solas, porque
viesesdes sy era en mi algunt buen entendimiento”. “Fija amiga”, dixo el
padre, “decirme hedes verdat a las preguntas que vos feziere?”. “Çertas, sy
dire”, dixo la fija, “segunt el entendimiento que en mi ouiere, e non vos
encubriré ninguna cosa, maguer que algunas de las palabras que yo dixiere
sean contra mi”. (pp. 246-247).

Si bien el interrogatorio se desarrolla en un clima cordial y la joven lo acepta con


buena predisposición, el propósito del diálogo, además de censurar los amores femeninos,
muestra un cuestionamiento de la sabiduría y la inclinación hacia la verdad por parte de las
mujeres. Sin embargo, la joven sale bien librada de la situación y sus respuestas satisfacen
plenamente al padre.
Esta doncella no es la única representación de la mujer sabia que nos ofrece el Libro
del caballero Zifar: encontramos también el tipo de la sabia prudente y consejera.

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2. La sabia prudente y consejera

El Libro del caballero Zifar, relato caballeresco de la primera mitad del siglo XIV,
muestra una complejidad compositiva propia de la época medieval, resultado de la sumatoria
de una estructura de entrelazado que combina distintas historias narradas, la confluencia de
diversos géneros discursivos y la reelaboración de diferentes fuentes. Sin embargo, hay un
principio de unidad que organiza el texto tanto a nivel narrativo como ideológico. Así se
presenta la historia de la recuperación de un linaje, primero, por obra de Zifar que asciende de
esforzado caballero a rey de Mentón; a continuación, por Roboán, el hijo menor que, también
por sus méritos, alcanza la dignidad de emperador y corona el ascenso de su familia. Se
reviste a la aventura caballeresca de altos valores ético-políticos y se le adjudica una nueva
proyección en el ámbito social, en consonancia con el contexto de producción de la obra. Más
allá del debate sobre la fecha de composición –ya sea en los primeros años del siglo XIV o
entre las décadas de 1320 a 1330- no puede negarse su vinculación con un entorno político-
cultural dominado por la figura y pensamiento de la reina María de Molina, esposa de Sancho
IV y dos veces regente durante las minoridades de Fernando IV y Alfonso XI. Frente a los
ideales de la clerecía formada en las universidades y partícipe del proyecto ecuménico y
cientificista de Alfonso X, la pareja regia tuvo que construir un nuevo entramado ideológico,
asociado a la escuela catedralicia de Toledo. Así, la concepción de un saber concebido como
una totalidad a la que se puede acceder a través de la razón y el estudio científico, se sustituye
por la idea de que la sabiduría y el entendimiento del hombre provienen de Dios. La
influencia eclesiástica en el dominio sapiencial también se observa en la subordinación del
conocimiento a la ejecución de las buenas obras, que sólo pueden acabarse con la ayuda de
Dios. (Gómez Redondo, 1999: II).
El protagonismo histórico de doña María en la defensa de este ideario y su proyección
política puede verse reflejado en los personajes femeninos del Caballero Zifar, especialmente
las reinas prudentes que saben aconsejar con discreción y sensatez. Ilustraré este nuevo tipo
de mujer sabia con dos ejemplos que aparecen en distintos momentos y niveles de la
narración. En primer lugar, con Grima la mujer de Zifar, apenas iniciada la historia y luego,
con la reina consejera del exemplum contado por Roboán al conde de Turbia.
En los prolegómenos de la narración sobre Zifar, el primer personaje del que se habla
es su esposa Grima. Al referir el sumario de la historia, se describen las cualidades de la mujer
antes de la presentación del héroe y se la considera igualmente merecedora de los premios con
que Dios los compensa por las vicisitudes y los obstáculos que deben superar en sus
aventuras.

Cuenta la estoria que este cauallero auia vna dueña por mujer que auia
nombre Grima e fue muy buena dueña e de buena vida e muy mandada a su
marido e mantenedora e guardadora de la su casa; pero atan fuerte fue la
fortuna del marido que non podia mucho adelantar en su casa asy commo
ella auia mester. E ouieron dos fijuelos que se vieron en muy grandes
peligros, asy commo oyeredes adelante, tan bien commo el padre e la madre.
E el mayor auia nombre Garfin e el menor Roboan. Pero Dios, por la su
piedat, que es endereçador de todas las cosas, veyendo el buen propósito del
cauallero e la esperança que en el auia, nunca desesperando de la su merçed,
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e veyendo la matenençia de la buena dueña, e quan obediente era a su


marido e quan buena criança fazia en sus fijuelos e quan buenos castigos les
daua, mudoles la fortuna que auian en el mayor e mejor estado que vn
cauallero e vna dueña podrían auer, pasando primeramente por muy grandes
trabajos e grandes peligros. (p.73)

La figura de Grima, enaltecida con virtudes éticas que refieren la benevolencia de su


carácter y sus buenas costumbres, se muestra entonces asociada a su marido y se prepara así la
función de consejera que inmediatamente cumplirá. En las palabras que dirige a Zifar cuando
lo escucha en oración lamentándose de su situación, revela su prudencia y sensatez, al mismo
tiempo que lo persuade de la conveniencia de recibir los consejos de los amigos,
desempeñando simultáneamente ese papel de consejera.

“Amigo señor”, dixo ella, “si pesar es que remedio ninguno non puede ome
auer, dexalo oluidar; ca en los males que por ninguna manera no se pueden
esquiuar, no ay otro remedio sino es dexarlo oluidar e non pensar en ello, e
dexarlo pasar por su ventura. Mas sy cosa es en que algunt buen
pensamiento puede aprouechar, deue ome partir el cuidado con sus amigos,
ca mas pueden pensar e cuidar muchos que vno, e mas ayna pueden açertar
en lo mejor. E non deue ome enfiuzar en su buen entendimiento solo,
commoquier que Dios le de buen seso natural; ca do ay buen seso ay otro
mejor. E porende todo ome que alguna grant cosa quiere començar e fazer,
deue lo fazer con consejo de aquellos de quien es seguro quel consejaran
bien. (pp.79-80)

Zifar, consolado con las palabras de Grima, accede a contar sus preocupaciones, pero
antes se asegura de que su esposa guarde el secreto con el relato de dos cuentos sobre la
amistad. En la moralización que extrae de las narraciones, el caballero distingue a Grima entre
todas las mujeres – que según la común creencia son incapaces de mantener secretos- con la
enumeración de las mismas virtudes con la caracterizó el narrador al comienzo del libro,
destacándose especialmente su sensatez y obediencia. (Ver p.92). Con la separación de los
esposos e hijos, no disminuirá la importancia de la figura de Grima, que continuará
destacándose por su conducta regida por la bondad y la prudencia. Incluso en la dramática
circunstancia del reencuentro con Zifar, su actitud estará determinada por la misma discreción
y lealtad al marido.
En la aventura que Roboán lleva a cabo en el condado de Turbia se ve precisado de
modificar la conducta injusta del conde hacia sus vasallos con el relato de un conocido
cuento, cuyo origen puede remontarse hasta una obra de Séneca, De Clementia. (Rossaroli,
1990). En el relato inserto aparece una reina que, angustiada por la vida pesarosa que lleva su
esposo, le solicita que comparta con ella los motivos por los que siempre está armado y en
continua vigilancia. El rey se niega porque considera que la mujer no puede aconsejarle
ninguna solución a su problema. La respuesta de la reina muestra una discreción de la que
carece su marido: “Señor, non dezides bien”, dixo la reyna, “ca non ha cosa en el mundo por
desesperado que sea, que Dios non puede poner remedio.” (p.393). Al igual que Grima,
resalta el valor del consejo y logra persuadir al rey para que acepte el suyo. Las sensatas
palabras de la mujer inducen al rey a confesar que teme la represalia de sus vasallos porque ha

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sido cruel e injusto con ellos. La reina no duda en dar su consejo al monarca a través de una
analogía con los tratamientos médicos de la enfermedad:

“Señor”, dixo la reyna, “por el mio consejo vos faredes commo fazen los
buenos físicos a los dolientes que tienen en guarda … E a las vegadas con el
contrario guarescen los enfermos de las enfermedades grandes que han. E
pues este vuestro mal e vuestro reçelo tan grande e tan desesperado es que
non cuydades ende ser guarido en ningunt tiempo, tengo que vos conuiene
de fazer el contrario de lo que fezistes fasta aquí, e por auentura que seres
librado deste reçelo, queriendo vos Dios fazer merçed”. (pp.393-394)

La consejera no se limita a decir qué hacer sino que a continuación detalla los pasos
que debe seguir para obtener el perdón de sus súbditos: convocar a sus vasallos, reconocer los
males y desafueros cometidos contra ellos y pedirles perdón mostrando que le pesa
profundamente el mal que les ha ocasionado. Se advierte claramente la correspondencia con
los pasos que deben seguirse en el sacramento de la confesión. (Rossaroli, 1990). Los
prudentes consejos de la mujer no provienen sólo de una sagacidad innata sino también, del
conocimiento y la práctica de principios cristianos. Vemos así encarnado el ideal de sabiduría
que sostiene que el entendimiento en cuanto don divino debe aplicarse para la consecución de
las buenas obras, que sólo con la ayuda de Dios pueden alcanzarse.
El mismo modelo de mujer prudente encontramos en otro relato que integra la
colección de El Conde Lucanor de Don Juan Manuel, el noble escritor cercano también al
entorno ideológico del molinismo. El exemplo L contiene la historia del amor de Saladino por
la mujer de un vasallo, la cual logra rechazarlo con agudeza e ingenio. Ante el requerimiento
amoroso del rey, la dueña “commo era muy buena et de muy buen entendimiento” le propone
un enigma a modo de prueba: “cuál era la mejor cosa que omne podía aver en sí, et era madre
et cabeça de todas las bondades” (p.20κ). Ante su incapacidad y la de los sabios para dar la
respuesta correcta, Saladino comienza un extenso peregrinaje motivado, ya no por la pasión
hacia la mujer sino, por un alto sentido del honor que le exige acabar lo comenzado.
Finalmente obtiene la respuesta acertada de un anciano caballero: ésta es la vergüenza.
Cuando reclama a la mujer la satisfacción de sus deseos como recompensa a la solución
lograda, nuevamente se observa la discreción de la dama que consigue que el soberano se
avergüence de su lujuria:

Cuando Saladín todas estas buenas razones oyó et entendió cómo aquella
buena dueña, con la su bondat et con el su buen entendimiento, sopiera
aguisar que fuesse él guardado de grand yerro, gradesciólo mucho a Dios.
(p.213)

La mujer del vasallo emplea su prudencia e inteligencia para salir con éxito de una
situación complicada; otra vez son las adivinanzas el recurso elegido para sortear la dificultad
e imponer una prueba. Paralelamente actúa como una buena consejera al corregir el mal
comportamiento del rey. En este papel, por un lado, se opone al mal consejero del inicio del
cuento, que avaló la conducta deshonrosa del monarca al estimular su lujuria y, por otro, se
alinea entre los de buen entendimiento, tal como el mismo Patronio es caracterizado por el
conde Lucanor en el marco narrativo.
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Cualquier panorama literario sobre el siglo XIV estaría incompleto sin alguna mención
al Libro de buen amor, obra del mester de clerecía de Juan Ruiz, Arcipreste de Hita. Es un
texto poético que se distingue por su pluralidad connotativa y el acentuado sentido estético,
resultado de la habilidad artística del autor que adapta la tan diversificada materia a una
intencionalidad regida por la ambigüedad y la ironía. Está constituido como una serie de
episodios amorosos articulados por la presencia de un narrador protagonista, que se identifica
con el Arcipreste de Hita. El relato de las aventuras amorosas se alterna con abundantes
disquisiciones doctrinales y digresiones narrativas, en correspondencia con la continua
fluctuación entre lo serio y lo jocoso, el tono admonitorio y la ironía burlesca. En este
contexto, toda la responsabilidad interpretativa se deriva al lector: “Entiende bien mis dichos
e piensa la sentencia” (46a), recomienda el narrador, para insistir a continuación:

La del buen amor son razones encubiertas:


trabaja do fallares las sus señales çiertas;
si la razón entiendes o en el sesso açiertas,
non dirás mal del libro que agora refiertas. (est.68)

La particularidad del Libro de buen amor radica en que extiende al lector las
cualidades intelectuales que, en el mester de clerecía del siglo XIII, se reservaban a los poetas
y a los personajes modélicos. Aunque la principal nota distintiva está dada por la ambigüedad
intencional y la ironía como principal estrategia discursiva, que afectan también la apreciación
de los paradigmas sapienciales; sin embargo, encontramos algunas damas que se caracterizan
por su sensatez y cordura, especialmente al rechazar los requerimientos amorosos del
Arcipreste. En la primera aventura amorosa la mujer se presenta como una “dueña guardada”
(est.ικ), “de buenas costumbres” (est.ι9), que sabe aconsejarse a sí misma y refutar a la
mensajera argumentando con exempla y proverbios, valorándose además de sus cualidades
intelectuales, su erudición:

Como la buena dueña era mucho letrada,


sotil e entendida, cuerda e bien messurada,
dixo a la mi vieja, que le avia enbiada,
esta fabla conpuesta, de Isopete sacada. (96)

La tercera aventura amorosa repite un esquema semejante y la dueña encerrada que la


protagoniza se reviste de las mismas virtudes intelectuales, combinadas con cualidades
sociales y atributos físicos (est.167-169).
A pesar de que el equívoco subyace en toda la obra, no se percibe vacilación en el
tratamiento de estas mujeres cuerdas que rehúsan el amor. El aprecio por este tipo de la dueña
prudente que sabe aconsejarse puede ponerse en correlación con los constantes avisos de
aplicar el buen entendimiento para la correcta comprensión del libro y para el buen obrar. En
este sentido, también el Libro de buen amor queda enlazado con la corriente ideológica que
nace del molinismo.

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3. La sabia experimentada y paremióloga

Entre la complejidad discursiva e intencional del Libro de buen amor, emerge el tercer
tipo de mujer sabia que reconocemos: la vieja que aúna la sabiduría de la experiencia de vida
y la capacidad de transmitirla condensándola en expresiones proverbiales. Esta figura de la
anciana que compendia un conocimiento vital, adquirido a lo largo de la propia existencia, se
transforma en fuente de cognición para su comunidad y, al mismo tiempo, se integra en el
“conjunto venerable receptor de una sabiduría antigua”. (Bizzarri, 2004). Esta idea es la base
de la recopilación del Seniloquium, o Refranes de los viejos, compilación manuscrita del siglo
XV que combina refranes castellanos con glosas latinas, las cuales interpretan los proverbios
desde una perspectiva jurídica: “En primer lugar afirmo que los proverbios se llaman ley
antigua, pues se suele decir «es un antiguo proverbio»… En segundo lugar mantengo que la
vejez o antigüedad debe venerarse o reverenciarse, porque, aquello que los antiguos dicen
debe considerarse como Derecho…” (p.4ι). En Seniloquium se proclama la identidad de los
ancianos con la sabiduría y la prudencia, equiparando su autoridad con la Sagrada Escritura y
llamando al viejo “maestro de doctrina y testigo de vida”. Anteriormente las mismas nociones
habían sido incluidas en el Libro de buen amor (en el episodio de doña Endrina, basado en la
comedia latina Pamphilus)

Esta en los antiguos seso e sabiençia;


es en el mucho tiempo, el saber e la çiençia,
la mi vieja maestra ovo ya conçiencia,
e dio en este pleito una buena sentencia (886)

En distintos lugares del Libro de buen amor aparecen referencias a la vieja como
productora de proverbios populares o refranes, que en la literatura medieval castellana reciben
diversos nombres: fabla, fablilla, pastraña, parlilla, vieso o verso, palabra, retraire, ejemplo,
proverbio, fazaña, conseja, vulgar, brocárdico. (τ’Kane, 1950). La primera mención muestra
la sagacidad de las ancianas en una paremia que se reproduce para autorizar las advertencias
del Arcipreste sobre la correcta comprensión del libro, después del relato del exemplum de los
griegos y los romanos:

Por esto diz’ la pastraña de la vieja ardida:


“σon ha mala palabra si non es a mal tenida” (64ab)

Luego vuelve aparecer en el ámbito de lo real y cotidiano, que constituye el contexto


en el que surgen y se transmiten los proverbios; en este caso, en relación a una de las tareas
habituales que tipifica a la vieja decidora de refranes: el hilado.

Commo dize la vieja, quando beve su madexa,


“Comadre, quien más non puede, amidos morir se dexa” (95ιab)

Mientras que realiza su labor, rodeada de otras mujeres, la vieja se constituye en la voz
de la experiencia que comenta y enjuicia a través de la generalización que le provee la
paremia, aplicándola a una situación específica.

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En la descripción del mes de noviembre, referida a las actividades propias de esa


época invernal del año, el Arcipreste introduce la otra característica estereotípica de esta vieja
formuladora de refranes: “tras el fuego”.

Comía nuezes primeras e asava las castañas;


mandava senbrar trigo e cortar las montañas,
matar los gordos puercos e desfazer las cabañas;
las viejas tras el fuego ya dizen las pastrañas (1273)

Ya tenemos completo el proceso configurador de la imagen de la vieja como el tipo de


sabia experimentada y paremióloga que consagrará el primer refranero impreso bajo el
nombre del Marqués de Santillana:

Iñigo López de Mendoça a ruego del rrey don Juan ordenó estos refranes que
dizen las viejas tras el fuego y van ordenados por el [orden del] a.b.c.

Como prueba el epígrafe, este refranero se compuso para el entorno cortesano del rey.
De esta manera, la vieja decidora de refranes se aleja de su propio ámbito popular y cotidiano
para entrar de lleno en la esfera aristocrática de la cultura cortesana. Pero aunque trascienda
este contexto, la sabiduría que transmiten los refranes adscriptos a las viejas, continúa
constituyendo una intelectualización de experiencias vitales y un código ético por el que se
rige una comunidad específica.
Con los Refranes que dizen las viejas tras el fuego, la sabiduría femenina se ve
nuevamente obligada a competir en el círculo cerrado del conocimiento de los hombres. Sin
embargo, en esta última contienda, el conocimiento de las mujeres no podrá pasar triunfante
la prueba: el saber proverbial de las ancianas es cuestionado en su verdad y la vieja se
transforma en una mediadora de engaños. Paradójicamente (o no) el primer embate proviene
del Libro de buen amor.

Si parienta non tienes atal, toma [de unas] viejas


que andan las iglesias e saben las callejas,
grandes cuentas al cuel[l]o, saben muchas consejas;
con lágrimas de Moisén escantan las orejas (438)

La dueña dixo: “Vieja, mañana madrugueste


a dezirme pastrañas de lo que ayer me fablaste (1410ab)

Trotaconventos, la vieja alcahueta del Arcipreste, preanuncia los nuevos rasgos que
asume el paradigma al encarnarse en la protagonista de La Celestina. Esta célebre obra
testimonia las grandes trasformaciones culturales y económicas producidas a fines del siglo
XV que provocan la fuerte impronta materialista de la sociedad urbana, nuevo ámbito en
donde se desenvuelve el tipo de la sabia experimentada y paremióloga. El primer cambio
significativo se produce cuando la sabiduría de la vieja deja de funcionar como código ético
para guiar la conducta correcta y se transforma en instrumento de persuasión y manipulación.
Celestina siempre tiene presto un proverbio con que autorizar sus interesadas razones, incluso
en sus soliloquios utiliza los refranes para autoconvencerse de su accionar:

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¡Oh buena fortuna, cómo ayudas a los osados y a los tímidos eres contraria.
Nunca huyendo huye la muerte al cobarde! ¡O cuántas erraran en lo que yo
he acertado! ¿Qué hizieran en tan fuerte estrecho estas nuevas maestras de
mi officio sino responder algo a Melibea por donde se perdiera quanto yo
con buen callar he ganado? Por esto dizen quien las sabe las tañe, y que es
más cierto médico el sperimentado que el letrado, y la experiencia y
escarmiento haze a los hombres arteros, y la vieja, como yo, que alce sus
haldas al pasar del vado, como maestra. (V, pp.171-172)

A través del enhebrado de paremias sostiene la idea de la pericia que da la experiencia


por sobre el mismo estudio. También Celestina enuncia el argumento de la sabiduría que da la
vejez, cuando quiere persuadir a los jóvenes para que actúen según su conveniencia: “Óyeme
si no me has oýdo, y mira que soy vieja y el buen consejo mora en los viejos y de los
mancebos es propio el deleite” (VII, p.192). Sin embargo, antes la misma Celestina había
denostado la vejez por sus males, aunque reconociendo que todos quieren vivir con la cita de
un refrán: “Porque, como dizen, biva la gallina con su pepita” (V, p.155). (Bizzarri, 2004).
El tipo de la sabia experimentada y paremióloga, encarnado en la mujer anciana, sufre
un segundo cambio cuando se la despoja de su sabiduría expresada mediante paremias y se la
degrada a ser una simple transmisora de patrañas, dándole a éstas el único sentido de ficciones
vanas, pues no se procura sacar de ellas ningún buen consejo. En voz de las viejas ya no están
los proverbios, sino sólo triviales consejas. Otros textos se sumarán al desprestigio de la
sabiduría de las viejas decidoras de refranes. Así en el Arcipreste de Talavera (1438), tratado
que cuestiona el amor mundano y satiriza las mujeres con la descripción pintoresca de sus
vicios y costumbres, se reducirán sus saberes a “consejuelas de viejas, pastrañas o… fablillas”
(p.204). (Rodríguez Valle, 2008).
Ya es momento de detenernos en este intenso recorrido que emprendimos por la
literatura medieval española tras los pasos de las mujeres sabias y retomar las preguntas que
planteábamos al inicio: ¿Cuál es el sentido de la exaltación de la sabiduría femenina? ¿Tiende
hacia una equiparación con el hombre? ¿Significa realmente una visión positiva de la mujer o,
por el contrario, encubre una intrínseca actitud misógina?
En primer lugar, hemos de destacar lo obvio que fuimos señalando: la apreciación de
la sabiduría de la mujer varía y está condicionada por factores socioculturales e ideológicos
propios de cada momento. En las obras del mester de clerecía y la literatura sapiencial del
siglo XIII, representadas por el Libro de Apolonio y la Historia de la doncella Teodor, la
caracterización de las protagonistas como sabias refleja los ideales culturales de los autores,
especialmente en lo que respeta a la educación y al estudio como factores de superación
espiritual y material. No se establecen grandes diferencias con el modelo masculino, aunque
se asienta la superioridad del hombre sobre la mujer y se suma la castidad como virtud
inherente de la condición femenina. Los relatos caballerescos y ejemplares del siglo XIV,
ilustrados con el Libro del caballero Zifar y El Conde Lucanor, muestran la superación de
esta ideología racionalista y ecuménica sostenida por Alfonso X por un nuevo ideario
propiciado por la prolongada participación política de la reina María de Molina. Las mujeres
sabias se distinguirán por poseer el don divino del entendimiento que aplicarán con prudencia
en la función de consejeras y en la consecución de buenas obras. Tanto Grima, la mujer de
Zifar, y la reina del exemplum de Roboán, como la esposa del vasallo de Saladino en el relato
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de El Conde Lucanor comparten las mismas virtudes de discreción y lealtad, que ponen al
servicio del honor y bienestar de sus maridos. Incluso en un texto ambiguo y polivalente
como el Libro de buen amor también puede encontrarse la exaltación de la sensatez y la
cordura en damas que obran correctamente aconsejándose con su buen entendimiento. En esta
obra comienza a gestarse el tercer tipo de mujer sabia que se identifica con la vieja
experimentada y formuladora de proverbios. Al igual que los otros modelos sapienciales,
prevalece la misma valoración positiva propia de la presentación paradigmática que suponen
todos. Sin embargo, la común subordinación a la figura masculina que de una u otra forma se
desliza en cada uno de ellos, en este caso provoca una devaluación del modelo. En La
Celestina la protagonista es una vieja experimentada y hábil manipuladora del discurso
paremiológico que emplea en beneficio propio, en un mundo femenino que se presenta
independizado de la tutela del hombre. Quizá porque el saber proverbial y la experiencia de
vida de la vieja no puedan someterse a la autoridad varonil ni servir exclusivamente a los
intereses masculinos, terminarán siendo descalificados y ridiculizados. En los siglos
siguientes, la estimación del saber proverbial quedará confinada a la jurisdicción del hombre,
única voz acreditada para proclamarlo.
La representación de la sabiduría femenina subordinada al dominio del hombre ha
llevado a pensar que los textos protagonizados por mujeres sabias no se alejan tanto de la
corriente misógina, de la que son sólo una variante singular. Si bien estos personajes
constituyen una excepción del preconcepto generalizado que considera a la mujer como
simple y necia, las propias palabras de algunas protagonistas como Teodor reforzarían la
perspectiva antifemenina. (Lacarra, 1993). Sin negar la cuota de certeza que subyace en las
inferencias señaladas, hay que recordar que estos textos medievales están concebidos de
acuerdo a una visión masculina de la cuestión. No podemos esperar una formulación
feminista o simplemente femenina del asunto porque las obras literarias responden a los
condicionantes culturales e ideológicos de los contextos de producción y difusión originales,
dominados por los hombres. No obstante, considero que en general las figuraciones de la
mujer sabia en la literatura española medieval muestran una valoración positiva de estos
paradigmas femeninos y, consecuentemente, de la mujer.

Ediciones

Don Juan Manuel. El conde Lucanor. Edición, estudio y notas de Guillermo Serés. Prólogo de
Germán Orduna. Barcelona, Crítica, 1994.
García de Castro Diego, Seniloquium. Traducción y edición crítica de Fernando Cantalapiedra
Erostarbe y Juan Moreno Uclés. Universitat de Valencia, PUV, 2006.
Historia de la Donzella Teodor. Edición de Walter Mettmann. Weisbaden, Akademie der
Wessenschaften und der Literatur, 1962.
Libro de Apolonio. Introducción, edición y notas de Manuel Alvar. Barcelona, Planeta, 1984.
Libro del Caballero Zifar. Edición de Cristina González. Madrid, Cátedra, 1998.
López de Mendoza Iñigo. Marqués de Santillana. Refranes que dizen las viejas tras el fuego.
Edición y estudio de Hugo O. Bizzarri. Kasel, Edition Reichenberger, 1995.
Rojas Fernando de. La Celestina. Edición de Dorothy Severin. Madrid, Cátedra, 1998.
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ISBN: 978-85-237-0603-6

Ruiz Juan, Arcipreste de Hita. Libro de buen amor. Edición de Alberto Blecua. Madrid,
Cátedra, 1996.

REFERÊNCIAS

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MÍSTICA FEMININA NA IDADE MÉDIA HISTORIOGRAFIA FEMINISTA E


DESCOLONIZAÇÃO DAS PAISAGENS MEDIEVAIS

Lieve Troch1
Introdução

Este artigo é uma tentativa de análise de algumas linhas importantes no interior da


mística feminina entre os séculos XI e XV. A perspectiva adotada focalizará – de forma
crítica – as contribuições destas mulheres na área da teologia e, mais parcialmente, também na
área política e econômica. O texto não pretende oferecer uma descrição histórica em geral;
antes, propõe uma aproximação ecléctica e prototípica, em especial, ao atentar para o olhar
feminista: é preciso levar em conta (ainda?) a pesquisa de como estas mulheres contribuiram
para com a construção da história.
Um olhar feminista significa, neste domínio científico e em primeiro lugar, o uso de
uma hermenêutica de suspeita para com as fontes, os autores e a história. Para esta suspeita,
utilizarei publicações 'críticas' sobre a mística feminina das últimas quatro décadas. Essa
hermenêutica de suspeita nos levará a questionar, sobretudo, o lugar ‘dócil’ em que a Idade
Média é usualmente alocada na historiografia. Ocupados com o passado como passado – em
uma busca do proprium medieval – ou com o passado como presente – em busca de raízes
medievais, historiadores deixaram por vezes de perceber o efeito da modernidade ocidental
sobre nossas representações. A medievalística parece ter funcionado, nesse ínterim, como
uma espécie de ‘orientalismo’ a la Said: a Idade Média importa na medida em que constitui
(na negação ou na afirmação) a identidade do Ocidente Moderno Imperial (Kinoshita).
É preciso estabelecer, pois, uma nova gramática do tempo para delinearmos um futuro
diferente para a Idade Média. Eis algumas agendas que se impõem nesse contexto de suspeita:
a desestabilização de identidades hegemônicas, o deslocamento do Cristianismo e a própria
descentralização da Europa (Cohen, 6-7). Como se nota, ainda acreditando na força
pedagógica da História, argumento que é urgente reavaliar a teoria da história da
modernidade, bem como reconstruir novas imagens ‘medievais’ perpassadas por uma energia
emancipatória. σecessitamos “escovar a História à contrapelo”, segundo aquelas palavras
incisivas de Walter Benjamin.
Sem perder de vista tal agenda interpretativa abrangente para a Idade Média, o artigo
aborda três temas mais específicos: (i) no início defino alguns termos para (ii) depois tecer
alguns comentários gerais sobre a hermenêutica do material histórico e do papel das mulheres
no mundo medieval. Por fim, (iii) elaborarei quatro manifestações típicas da mística feminina
no periodo histórico que se estende do século XI até o século XV.

1
Docente da Radboud Universiteit Nijmegen- Holanda e da Pós-Graduação em Ciências da Religião da
UMESP.
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1. Definições e contexto: Idade Média na Europa Ocidental e a Mística feminina

Antes de fornecer uma definição geral de palavras e conceitos, talvez uma rápida
observação possa contribuir para com o desenvolvimento de uma ciência mais
intercontinental.
A história europeia parece até hoje intrigante para os historiadores e os cientistas das
ciências humanas no Brasil. Por um lado, no campo econômico e social, há uma grande
suspeita e distância em relação ao que poderíamos chamar de ‘patrimônio europeu
imperialista’. Por outro lado, nas ciências como a história, teologia, antropologia, filosofia e
ciências da religião, os clássicos europeus são constantemente invocados e, curiosamente,
apenas uma menor atenção está voltada aos recursos intelectuais – e místicos – em seu próprio
continente e de outros continentes como África e Ásia. Interligar pesquisas de diversos
continentes seria, ao que parece, uma tarefa que contribuiria enormemente para a construção
de uma ciência situada para além da ocupação colonial das mentes.

Idade Média e mulheres

A historiografia clássica se utiliza de uma periodização que compreende a Idade


Média como o período que abrange os anos 330 até cerca de 1500 na Europa Ocidental.
Entretanto, os desenvolvimentos dos últimos 40 anos no estudo do período medieval,
especialmente aqueles realizados por mulheres, chamam atenção para a definição do termo
"Idade Média" como uma conotação negativa, ao questionar a periodização convencional da
história da Europa ocidental.
Olhando para o período antes de 330 e depois de 1500, a “Idade Média” na Europa
Ocidental se coloca entre o ‘declínio’ do Império Romano, por um lado, e a forte emergência
dos Estados europeus imperiais e seu retorno filosófico para os clássicos, por outro lado. A
Idade Média abrange, deste modo, o período de transição entre duas manifestações de
dominação imperialista patriarcal e colonial. Tal verificação é importante, na medida em que
aponta para as linhas imperiais mantidas no traçar da historiografia medieval. Descolonizar a
Idade Média de tais linhas é tarefa urgente e acredito que um estudo sobre suas mulheres
místicas pode-nos ser de grande valia neste aspecto.
Quanto à posição das mulheres, podemos destacar dois aspectos notáveis: sabemos
que no tempo da Roma Antiga, o “pater famílias” possuía o direito de matar filhas e também
filhos com deficiência e abortar crianças que não eram desejadas. Sabemos igualmente que o
período do Renascimento e o final da Idade Média, são caracterizados por um massacre
organizado de grandes grupos de mulheres caracaterizadas como bruxas, em uma combinação
de poder religioso e político, juntamente com uma colonização sangrenta da Europa
continental. Além disso, as universidades – redutos de homens – propagaram uma certa forma
de conhecimento e desenvolveram, desta forma, um grande poder político.
Se este intervalo é chamado de Idade Média, é evidente que a periodização da história
da Europa Ocidental é um resultado de uma definição patriarcal e imperialista. Nos últimos 40
anos, há uma publicação ampla sobre o período de 330-1500, especialmente por mulheres
cientistas, a partir de uma perspectiva feminista. Elas mostraram que a influência das
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mulheres na vida social, política, religiosa e econômica nesse período foi bastante forte.
Desde o século XI, mulheres se distinguiram pela auto-definição, auto-representação e auto-
autorização, incluindo a esfera religiosa, e se definiram como parceiras em posição
equivalente a dos líderes poderosos do sexo masculino no campo político e religioso (Lerner,
46-64).
Todavia, como diria Brecht, ‘a história é principalmente a história dos vencedores’:
para a historiografia tradicional, estes séculos após a queda do Império Romano não foram
considerados importantes pelo poder masculino. Desde o início da Idade Média, percebemos
um poder político crescente das mulheres nas grandes decisões e disputas sobre terras,
fronteiras e poder religioso. Por um lado, as mulheres da nobreza emergiram no campo
político: muitas mulheres de diferentes estratos sociais possuíam um papel importante na
cultura, na economia, educação e religião (Bynum). Efetivamente, por volta do século XI até
do século XII, as mulheres preenchem os papéis que tradicionalmente foram atribuídos aos
homens na história. As mulheres eram pregadoras e professoras, um papel assumido mais
tarde pelo clero. Elas estavam na liderança de grandes mosteiros de poder religioso e político
(Lerner, 99).
Além disso, as mulheres lêem mais que os homens na Idade Média: leitura e escrita
foram quase exclusivamente realizadas por mulheres. Como agora se sabe, a maioria dos
homens eram analfabetos (Pernoud, 49). Em contrapartida, mulheres ensinaram meninas e
meninos nos mosteiros. No período medieval, as mulheres ainda detinham uma grande
potência econômica – possuíam cervejarias, fábricas, moinhos, empresas têxteis – e isso
estava, em certas situações, relacionado com o seu poder religioso. Só aos poucos este poder
vai desmoronar-se, já por volta do século XIV.
As universidades que se iniciaram no final do chamado período medieval entraram em
conflito com as mulheres. Em um constante exercício hierárquico de condenação, o
conhecimento das mulheres não foi mais levado a sério, ao ser empurrado para fora do
pensamento intelectual. Seu principal corolário é a vasta perseguição às assim chamadas
'bruxas' (ver Margarete Porete, Joana d'Arc e milhares de outras mulheres).

A 'Mística feminina’

A palavra 'mística' na historiografia da Europa Ocidental se refere imediatamente a um


grande número de nomes de mulheres e apenas a três notáveis nomes do sexo masculino
(Ruysbroeck, Eckhart e João da Cruz). Isto torna evidente a importância das mulheres para a
reavaliação e definição da vida religiosa nesse período. As mulheres místicas desempenharam
um papel importante neste período em que o poder masculino na igreja foi devastado por
conflitos internos e movimentos alternativos emergentes que foram considerados hereges.
Nesse contexto conturbado, muitas mulheres levantaram sua voz e, portanto, possuem uma
influência político-religiosa importante. Várias destas mulheres postulam-se como profetisas e
fazem notáveis afirmações teológicas. Curiosamente, entretanto, o que elas proclamam não é
geralmente definido como teologia, mas como mística. As mulheres desejam afirmar, com seu
estilo próprio de falar, uma maneira distinta da religião proveniente da teologia clássica e
querem dar a sua opinião em discussões teológicas. No entanto, os homens – para garantir a
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sua própria definição teológica – classificam estereotipadamente a teologia das mulheres


como ‘mística’.
A "mística", tal como é praticada por mulheres, é caracterizada por uma linguagem
alegórica, uma linguagem de visões, uma linguagem poética, um modo de vida e
espiritualidade, mas também por uma reformulação teológica da divindade.

2. As fontes e suas interpretações

As fontes

A origem do material sobre a ‘mística’ das mulheres é muito diversificado: muitos


materiais são registrados por confessores e padres que investigavam se as mulheres em
questão eram ortodoxas ou heréticas. É claro que há textos das próprias mulheres ou em seus
contratos escritos. Esse material, contudo, é possível apenas para as esferas sociais mais altas.
Existem também muitos arquivos de movimentos locais em diferentes cidades da Europa que
não foram ainda pesquisados porque, afinal, estudar mulheres no período da Idade Média não
é geralmente uma prioridade.

A interpretação

Existem diversas interpretações do fenômeno da mística feminina dependentes dos


interesses ou da perspectiva dos investigadores. Estudos feministas das últimas décadas estão
focados em uma abordagem crítica, tanto da perspectiva diacrônica quanto sincrônica do
fenômeno medieval. Ciências humanas, de fato, nunca são objetivas e como aponta o
paradigma hermenêutico, essas ciências são afetadas pelo olhar do pesquisador através dos
séculos e da situação atual. Sendo assim, as definições sucessivas e a hermenêutica das fontes
devem ser constantemente examinadas criticamente.
É possível verificar, por exemplo, como os movimentos sociais, a busca atual pela
espiritualidade e a teologia contemporânea estão mais do que nunca interessados na mística
feminina. Esses lugares sociais da produção histórica pode levar, em muitos casos, a uma
romantização de determinados dados.

A forma do material

A definição de ‘mística’ é dada usualmente a uma determinada forma e estilo de textos


históricos, a saber, aqueles que compreendem visões, alegorias, metafóras e poesia em uma
relação específica com o corpo.
Centenas de mulheres entre os séculos XI e XV falam ou escrevem em forma de
alegorias e discutem suas experiências visionárias. Por vezes, tais debates giram em torno até
mesmo de visões que receberam numa idade muito jovem (cerca de 5 anos). Isso significa que
esta forma literária foi considerada obviamente verdadeira em círculos cristãos, a fim de
comunicar algo sobre o divino. Visões geralmente foram consideradas mensagens

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provenientes de Deus. Quando são inescrutáveis, a pessoa que recebe a visão é que deverá
interpretá-la.
As visões – compreendidas como contato imediato com o divino – são um meio, um
estilo, uma forma para aumentar a importância do conteúdo. Não chega a ser surpreendente
que as mulheres façam uso desta forma literária, afinal, no campo teológico, os homens
normalmente eram aqueles que determinavam ‘a verdade’. Para as mulheres ratificarem e
afirmarem a importância de sua voz, precisaram articular seus conteúdos dizendo que a
palavra provinha diretamente de Deus. A visão, portanto, é um conceito estratégico para
garantir à voz teológica feminina uma dimensão divina e, consequentemente, sua autoridade.
As mulheres querem afirmar que sua voz não é o resultado de uma emoção descontrolada,
mas que vem do próprio Deus. Trata-se, pois, de uma maneira de contestar a voz dominante.
A hermenêutica da mística, a meu ver, deve decifrar precisamente estes códigos de modo que
se faça justiça às mulheres místicas que, ao encontrarem uma audaciosa forma de expressão
teológica, abriram uma possibilidade de influência na igreja e no mundo (Lerner).
As alegorias e a poesia fornecem, ao mesmo tempo, chances para (i) experiências
pessoais, bem como (ii) para uma multiplicidade de interpretações. Também é, por vezes, um
modo de não precisar ser muito cauteloso para falar com clareza a respeito de posições
políticas e religiosas. Com efeito, místicas femininas exercitaram de forma muito inteligente
um poder dentro dos limites do que era possível para pessoas ‘de natureza feminina’. σesse
sentido, a mística é muito diversificada e não pode ser captada a partir de dados únicos. Há
diferentes ênfases em estratégia e local: as manifestações e organizações diferem na Europa
meridional e ocidental. A maioria das mulheres construíram círculos em torno delas que, ao
longo do tempo, cresceram e deram-lhes acesso a indivíduos poderosos. Isso geralmente
ocorreu, ainda que cautelosamente, através de confessores ou a partir do poder de seu
mosteiro.

3. Mulheres místicas, seu contexto e sua influência entre os séculos XI e XV

Nos últimos anos muitas pesquisas foram publicadas na área da mística feminina no
período medieval. Seguindo tais estudos, é possível dizer que as mulheres místicas medievais
tiveram um papel importante na vida eclesiástica, religiosa e também política e econômica.
As mulheres se relacionaram com papas, bispos, teólogos e líderes políticos poderosos.
Algumas, inclusive, fizeram isto numa idade muito jovem. Há vários escritos sobre a vida
dessas mulheres, tecidos por suas próprias mãos ou por biógrafos de seu tempo, atraídos pelas
próprias mulheres e a quem elas contaram suas visões.
Não só medievalistas estão interessados na investigação do conteúdo de seus escritos.
Também teólogos e teólogas, voltaram-se para as místicas devido as implicações teológicas
de muitas de suas afirmações. Nas palavras teológicas dessas mulheres do passado, vemos
linhas desenvolvidas por teólogas feministas do presente e, igualmente, por vários teólogos do
sexo masculino: redefinição do divino, relação entre divindade e ecologia, a importância do
corpo na relação com o divino. Muitas das declarações teológicas místicas que estão sendo
trabalhadas de forma paralela por teólogos contemporâneos nos fornecem aberturas para um

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diálogo mais amplo com outras religiões e filosofias como o Hinduísmo e o Budismo. As
ideias das mulheres místicas possuem, deste modo, um significado muito contemporâneo.
Se neste artigo enfatizarei apenas quatro mulheres místicas (no interior de uma longa
fila que haveria de ser considerada com mais detalhe), isso se deve precisamente pelos
diferentes contextos em que elas funcionam enquanto protótipo. Portanto, o contexto social e
econômico preciso em que cada mulher vai operar é de fundamental interesse.
Seria, pois, equivocado tratar essas mulheres apenas como indivíduos ou exceções. Em
outros termos: tais mulheres não são arquétipos, mas protótipos de diferentes contextos em
que uma mística poderia ser ouvida e criada. Vivem em mosteiros, em beguinarias, em ordens
terciárias. Vivem sozinhas, como leigas, viúvas ou, ainda, como mulheres casadas.
Dependendo do contexto, pois, é de se esperar que tais mulheres praticaram várias estratégias
para a sua própria auto-representação e auto-autorização. Vale ressaltar, assim, que essas
mulheres são apenas a ponta de um iceberg, em uma ampla gama de possibilidades dentro da
qual elas se manifestam. As mulheres eram líderes, profetisas, pregadoras, responsáveis da
pastoral litúrgica, escritoras, teólogas. Todas essas funções estão encapsuladas pelo termo
‘mística’.
Passemos a articular essa atuação contextual das mulheres a partir de suas múltiplas
posicionalidades ou territorialidades: o mosteiro com Hildegard van Bingen; as beguinarias
com Hadewijch de Antuérpia e Margareta Porete; as ordens terciárias e a prática de jejum
com Catarina de Siena; a mulher intelectual leiga com C. De Pisan.

Hildegard de Bingen2 (1098-1179): contexto do mosteiro

Hildegard já ‘recebia’ visões na idade de 3-5 anos. Ao que parece, era uma mulher
com problemas de saúde, mas que viveu 81 anos. Ela se apresentou na idade de 8 anos em um
convento localizado próximo a um mosteiro beneditino de homens. Sua tia Jutta, era a líder do
mosteiro feminino e introduziu Hildegard na música e na língua latina. Provavelmente,
Hildegard trabalhou muito no jardim.
Após a morte de sua tia Jutta, Hildegard foi eleita abadessa da parte feminina do
mosteiro beneditino. Entretanto, após um tempo ela desejava operar de forma mais
independente e assim decidiu criar, com suas irmãs, seu próprio convento em Bingen. Antes
da difícil decisão – dada a resistência do abade do sexo masculino – Hildegard estava
assustada e doente. Este padrão de doença em situações de temor já aparecera algumas vezes
em sua vida (Lerner, 57). Não por acaso, ela censura a si mesma às vezes, quando acha que
não poderia sustentar as críticas (Lerner, 51).
Quando fundou o seu próprio mosteiro, muitos adentram ao conselho: Hildegard
começa a desempenhar um papel importante na política e na igreja. Ela, então, escreve
extensivamente em várias áreas: música (lembremo-nos de que ela foi uma compositora muito
famosa!), textos sobre botânica, belos desenhos, tratados teológicos, visões, textos
cosmológicos, interpretações da Bíblia. Ela se destacou por conta de sua erudição. Não por
acaso, ela é a mística mais conhecida do século XII. Sua fama é tão grande que em 1918 seu

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Em 09 de maio de 2012 foi canonizada como santa e em 07 de outubro de 2012 como doctor ecclesiae.
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nome foi dado a uma estrela: asteróide 898 Hildegard, devido à importância cosmológica de
seus textos. Além do reconhecimento de suas visões, ela indaga ao teólogo Bernardo de
Clervaux quanto ao seu reconhecimento enquanto profetisa.
A música que compôs está preservada e disponível até hoje, inclusive, em CD. Eis um
pequeno exemplo de um de seus poemas:

“Seja sol através de seu aprendizado


Seja lua através de sua adaptabilidade
Seja vento através de sua direção rigorosa
Seja ar através de sua suavidade
Seja fogo através da beleza de seu ensino.”

Como já dito, Hildegard era uma abadessa e abadessas tinham um grande poder no
período medieval. Era até comum para algumas mulheres jovens serem líderes de um
convento de freiras e homens, os chamados mosteiros duplos. Sabemos que no século XII,
uma mulher de 26 anos, foi abadessa de um mosteiro duplo na França e recebeu o papa
durante uma visita. Uma certa abadessa esteve a cargo de mais de 5000 homens e mulheres
em um mosteiro duplo na França. Os membros do mosteiro declararam seus votos de
obediência nas mãos dessa mulher (Pernoud, 94).
Até o século XVI, as mulheres eram importantes para a compra e a venda de terras e
propriedades, bem como para o fechamento de contratos. E esse dado vale tanto para
mulheres comuns quanto para abadessas. A partir do século XVI, contudo, as mulheres
deixaram de ser vistas como capazes de competência jurídica (Pernoud, 136).

Hadewijch de Antuérpia (1200-1260) e Margarete Porete (1250-1310): contexto da


beguinaria

Um segundo grupo de místicas não está ligado aos mosteiros, mas às beguinarias
(Begijnhof). Este fenômeno muito difundido em algumas partes da Europa Ocidental não é
tão conhecido em outros países ou, por vezes, é mal interpretado. Duas mulheres beguinas
bem conhecidas como místicas são Hadewijch de Antuérpia (1200-1260) e Margarete Porete
(1250-1310). Elas fazem parte de um grande movimento leigo de mulheres que se
desenvolveram desde o século XII nas cidades e no campo. Elas se chamavam Beguinas. Elas
não viviam em mosteiros, mas individualmente viajaram por diversos países, ou viveram em
comunidades e beguinárias. Até o século XVI na Europa Ocidental, este foi um movimento
muito influente no âmbito religioso.
Com as beguinarias, as mulheres criaram uma espécie de cidade dentro da cidade. A
maioria das casas foram construídas em círculo com um grande pátio e apenas uma única
porta de entrada para esta ‘pequena cidade’. Em seu interior, cada mulher tinha sua própria
casa. As primeiras beguinas, muito provavelmente, eram mulheres ricas que não desejavam
se casar e nem queriam uma vida monástica. Mais tarde vemos que há beguinarias com
mulheres de todas as camadas sociais.
Cada beguinaria era diferente. Existem, contudo, algumas características comuns: cada
beguina trabalhou por seu próprio sustento; o grupo possuia estruturas sociais e democráticas;
as mulheres eram economicamente independentes, autônomas e não vinculadas por regras
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religiosas. Havia uma senhora eleita que coordenava a beguinaria por um certo tempo e,
assim, representava as mulheres no município. A Beguina se comprometia apenas em não se
casar e ela poderia a qualquer momento sair da comunidade. Além disso, a comunidade
nomeava ou expulsava os membros do clero com quem elas desejavam negociar. Beguinas
traduziram a Bíblia e outros textos religiosos, lecionaram, cuidaram de doentes, venderam os
seus talentos, tais como contabilidade, leitura e escrita. A mais antiga beguinaria está em
Aachen, Alemanha (1230). A beguinaria de Breda, nos Países Baixos, data de 1254.
Em relação ao clero, as beguinas tinham tanto aliados como inimigos. Desde seu início
no século 13, elas foram perseguidas em muitos lugares. Em 1311, o Papa condenou as
Beguinas, mas o movimento floresceu ainda mais. Há vereditos do Papa Clemente XI, em que
a música é proibida para as mulheres porque ela prejudicaria sua ‘modéstia natural’. Beguinas
foram proprietárias e tinham seus próprios negócios: indústria têxtil, padarias próprias,
fábricas e cervejarias. Esses bens e alimentos foram repetidamente redistribuídos entre os
pobres da cidade.
Deste movimento, encontramos ainda resquícios, especialmente na Bélgica,
Alemanha, França e Países Baixos. No século XVI, mais e mais restrições foram feitas para as
beguinarias em relação à sua atividade econômica e cada vez mais passaram para o controle
da igreja. Algumas mulheres beguinas foram queimadas na fogueira (como por exemplo,
Margarete Porete).
Hadewijch de Antuérpia é uma grande poetisa e mística do século XIII. Supõe-se que
ela – e Margarete Porete – pertencia a este movimento religioso de Beguinas, mas na verdade
ela foi uma beguina viajante.
Hadewijch escreveu muitas cartas de amor, poemas e visões. Ela fala sobre o amor que
é livre e orgulhoso e que cria autonomia e auto-consciência. Ela conectou canções religiosas
com poesia dos trovadores daquela época. Ela se vê como uma noiva e amante de Deus, e
descreve uma relação muito pessoal de amor com Deus que a leva a uma situação de libertade
e auto-estima. Ela discute seus textos com 'amigas' que estavam em sua volta e que ela
visitava em suas viagens. Sua viagens foram, provavelmente, de uma beguinaria à outra. Ela
escreveu no flamengo antigo, mas é claro a partir de seus escritos que ela domina o latim e o
francês e estava familiarizada com os escritos de muitos eruditos de seu tempo. Ela é uma
inspiração importante para Ruysbroeck e Eckhart, dois importantes místicos do sexo
masculino.
Margarete Porete também escreveu alegorias sobre o amor e a razão. Seus livros foram
lidos em muitos lugares. Depois de algum tempo, eles foram proibidos e Margarete Porete
terminou na fogeira, sob pressão da universidade de Paris.
Milhares de mulheres pertenciaram ao movimento de beguinas no período da Idade
Média e há provas, em muitos arquivos, que foram uma séria ameaça para o clero do sexo
masculino. Em muitas cidades da Bélgica e dos Países Baixos existem arquivos sobre este
fenômeno importante, mas que ainda não estão pesquisados e analisados.

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Catarina de Siena (1347-1380): contexto das ordens terciárias

No sul de Europa viveram mulheres místicas de uma maneira totalmente diferente. Na


Itália, o movimento de Beguinas não era conhecido. As mulheres deste contexto são
principalmente membros de ordens terciárias: trata-se de um movimento de leigos que está
ligado a um movimento de mosteiro como beneditinos, agostinianos, franciscanos,
dominicanos. Os/as terciários/as, no entanto, viviam em casa e não se deixavam enclausurar,
ainda que usassem o hábito. Tais mulheres fizeram esta opção pela mesma razão que as
beguinas: elas não quiseram se casar e, ao mesmo tempo, não desejaram as trancas de um
mosteiro mesmo que mantivessem relações com este.
Uma importante mística terciária foi Catarina de Siena no século XIV: ela é bem
conhecida por sua firme vontade, sua liderança, sua forma extrema do jejum e a influência
que tinha sobre o papado. O clero a chamava de arrogante. Nos textos que sobreviveram,
podemos ler que ela até mesmo chama Deus a prestar contas, por não estar de pleno acordo
com alguns ocorridos da época. Efetivamente, Catarina de Siena começava o jejum sempre
que as coisas não aconteciam como ela esperava. Com seu corpo e a estrategia de jejum
forçava imediatamente seu direito (Lerner, 57-58).
O historiador Rudolph Bell realizou um estudo da vida de 261 mulheres místicas na
Itália entre 1200 e 1800 que foram reconhecidas como santas pela Igreja Católica (Bell,
1990). Nessa sua pequisa, Bell conclui que 170 delas apresentaram sinais de anorexia. Uma
dúzia dos casos são muito bem documentados e esta doença aparece de modo muito claro. As
mulheres, de alguma forma, usaram a estratégia do jejum a fim de alcançarem seus direitos.
Bell chama esse fenômeno de “sancta anorexia”: essas mulheres não possuem outra opção
para se manifestar além de empobrecer seus próprios corpos. Elas vivem do pão e do vinho,
especialmente o pão consagrado, a hóstia. É depois deste ‘santo consumo’ que as mulheres
atingem visões. Curiosamente, esta situação foi vista como prova de santidade e suas visões
foram consideradas divinas. Esta estratégia de empobrecimento do corpo se encaixa na
preocupação medieval com alimentos. Carolyn Walker Bynum, em dois estudos convincentes,
mostra que o alimento em seus extremos de festas e de jejum é um tema muito importante na
religiosidade medieval.
Catarina de Siena usou regularmente esta estratégia de jejum: para não se casar, para
ser capaz de juntar-se a ordem terciária, para desafiar o Papa. Catarina de Siena tinha, por
assim dizer, uma cabeça dura e não quis obedecer a ninguém. Ela foi depois canonizada,
chamada professora de Igreja e Padroeira da Europa, as mais altas condecorações cristãs para
se obter. Esta teimosia e estratégia de jejum usada por Catarina de Siena tem sido um modelo
para as mulheres durante dois séculos.
Na concentração do jejum foi focada a hóstia (Bell, 45). Jejum era uma maneira de
levantar-se contra a posição social de obediência a fim de recuperar a independência (Bell,
80). A família observava o comportamento, por vezes bizarro, como algo não imediatamente
sagrado. Assim sendo, muitas dessas mulheres foram queimadas na fogueira, porque as vezes
não foram suficientemente inteligentes para agir de uma maneira correta em sua estratégia.
Em outros termos, essas mulheres não estabeleceram a paz entre a alma e o corpo (Bell, 136).
Portanto, anorexia é, nesse aspecto, também uma expressão de impotência feminina dentro de
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uma constelação sociocultural determinada. Mas apesar de tal impossibilidade no âmbito


sociocultural, as mulheres desejaram controlar o próprio corpo e impor sua autoridade (Bell,
36). Algumas faziam jejum até que a morte chegasse; outras se curaram com a ajuda de suas
irmãs companheiras.
No fenômeno contemporâneo de anorexia nervosa, reconhecemos situações paralelas:
controle sobre o próprio corpo, por vezes a partir do não aceitar seu corpo ou a partir da raiva.
Pode-se perceber desde o estudo de Bell que muitas dessas mulheres místicas foram vítimas
de violência doméstica ou violência sexual e de lá projetaram fantasias corporais em um
pacote religioso: elas se identificaram com Jesus na cruz e com seu sofrimento, falaram sobre
relacionamento amoroso com Jesus em termos sexuais (Bell, 146-150), sobre Jesus como
noivo. Na confissão, elas usavam uma discussão teológica para lidar com o confessor.
Algumas dessas mulheres comiam pouco para manter suas cabeças mais leves (Bell, 133). O
sofrimento de Jesus é uma categoria central neste grupo de místicas. Catarina de Siena vê sua
própria dieta como um desempenho heróico (Bell, 49). Ela responde principalmente à
obediência e à disciplina que se espera dela e constrói um mosteiro nela mesma (Bell, 64-69).
Algumas mulheres receberam permissão de papas e bispos para longos períodos de jejum
(Bell, 109).

Christine de Pisan (1363-1430): contexto da intelectual leiga

Finalmente, quero destacar uma quarta linha de místicas em mais um contexto


diferente. Como protótipo, refiro-me a Christine de Pisan. Na década de oitenta do século XX,
o livro de Christine de Pisan – A cidade de mulheres – foi redescoberto na Europa e
amplamente lido por mulheres cientistas, autores seculares, grupos de movimentos sociais e
teólogas.
Christine de Pisan ocupa um lugar especial na transição do final da Idade Média para o
início do Renascimento. Ela é um protótipo de mulheres leigas que escrevem. Mulheres
autoras na Baixa Idade Média, tinham que provar-se em três níveis: (i) o escrito é seu próprio
trabalho; (ii) elas tinham direito ao seu próprio pensamento; (iii) seu pensamento está
enraizado em uma forma diferente de conhecimento. Apesar disso, elas eram, por vezes,
vítima de auto-subestimação e auto-censura (Lerner, 47-49). Christine de Pisan é vista por
muitos como a primeira mulher na Europa que pôde sobreviver com as receitas de sua escrita.
Ela representa, por assim dizer, o ponto culminante da escrita mais intelectual que foi usada
por Hildegard de Bingen no século XII. Várias mulheres já tinham escrito, mas muitos textos
foram escritos também por padres e confessores.
Christine de Pisan é uma mulher casada que à primeira vista se apresenta não como
mística. Alguns pesquisadores não reconhecem ela como mística porque ela foi paga por seus
escritos. Ela mesma tinha tomado a decisão de sustentar a família com seus escritos e
conseguiu atingir tal feito. Tal como Hildegard de Bingen, ela tem um estilo múltiplo: um
número muito grande de poemas em diferentes formas, especialmente uma boa parte de
baladas. Além disso, escreveu muitas obras em prosa. Ela participou de várias disputas
intelectuais, particularmente a controvérsia em torno do Roman de la Rose, em que ela se
ressentia da maneira humilhante com que mulheres foram retratadas. Nessas disputas, não
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evitava contestar lideres públicos. Muitas de suas obras são de natureza didática, dirigida aos
príncipes com instruções sobre como governar para manter a paz. Ela também recebeu
comissões para escrever obras históricas.
Alocar Christine de Pisan no grupo de mulheres místicas se deve a três elementos:
- Seus vários escritos se dão a partir de suas próprias experiências e expressam muitos
dos seus sentimentos. Ela própria é a fonte de sua escrita. Isto é particularmente evidente nos
poemas. Esta é uma característica de todas as místicas.
- Christine de Pisan escreve em um estilo visionário, um estilo que é muito
característico da mística feminina. Ela mesma esclarece a decodificação desse estilo
estratégico. Diz ela: “estou sonhando, mas eu estou acordada!”
- Ela também se aventura em debates explicitamente teológicos. Seu livro mais
famoso – O Livro da Cidade de Mulheres – remete claramente sua inspiração no título do
livro de Agostinho, A Cidade de Deus. Christine de Pisan resiste contra os duplos padrões,
critica a igreja que perde a sua santidade pelo acúmulo de grande riqueza e outros excessos, e
ela chama a responsabilidade dos titulares eclesiásticos a se comportarem melhor. Christine
de Pisan interpreta de uma maneira nova e autónoma os dados bíblicos e os mitos gregos. Ela
reage contra a misoginia e os estereótipos das mulheres divulgado por homens de seu tempo.
Proclama três virtudes divinas – Direito, Justiça e Razão. Estas três virtudes femininas
fornecem a ela o contrato para construir uma cidade onde as mulheres vivem de forma segura
e estarão protegidas contra as alegações de homens. As virtudes fornecem respostas às suas
questões e cada resposta é um bloco de construção para a cidade de mulheres. É um livro
fascinante com ideias ainda muito atuais.
Em nenhum lugar Christine de Pisan fala sobre o típico de uma natureza feminina: ela
argumenta que as mulheres são iguais aos homens e como tal devem ser valorizadas.
Apresenta-se claramente como uma leiga, uma mulher fora dos muros do mosteiro e das
ordens terciárias.
Christine de Pisan é uma grande admiradora de Joana d'Arc, embora intelectualmente
se situem em pólos opostos. De Pisan depositava grandes expectativas em Joana d’Arc,
considerando esta última como um instrumento de Deus. Ambas estão sob ataque dos
intelectuais da universidade de Paris que tentavam eliminar a influência dessas mulheres, bem
como as próprias mulheres.
Christine de Pisan pode ser vista, como as outras mulheres mencionadas, um protótipo
de grupos de mulheres que trabalharam de maneira semelhante e que moldaram sua
resistência contra as visões predominantes de homens.

Algumas conclusões

A luta das místicas femininas acontece dentro ou na fronteira das instituições


eclesiásticas em diferentes contextos. Um paralelo entre as mulheres nesses diferentes
contextos é o apelo ético e teológico para uma forma de olhar diferente o mundo, a ética e a
língua divina. Paixão de e por Cristo é o enfoque principal, mas, além disso podemos ver
novas imagens da divindade. Algumas imagens utilizadas são muito reconhecíveis nos novos
desenvolvimentos teológicos dos últimos trinta anos: um discurso metafórico no qual Deus é
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classificado como uma mulher, como amante, como mãe; uma maneira muito aberta de falar
sobre o corpo sexual para aumentar a relação com o divino. Igualmente, há uma grande
atenção à Trindade em que a relação entre as pessoas divinas são estados centrais e distantes
das idéias da teologia clássica. Fala-se de um papel feminino na salvação e mesmo Jesus é
muitas vezes retratado como mãe (Lerner, 90-91). É justamente esta criatividade teológica
que vai ser penalizada nos séculos seguintes.
A mística feminina e os conceitos estratégicos das mulheres no final da Idade Média –
como visões, lidar com seus corpos, o uso de seu intelecto, seu próprio poder e auto-confiança
para dar forma para sua própria vida – não serão mais possíveis a partir do século XV.
De fato, uma forte ofensiva se inicia sob dois ângulos nos séculos XV e XVI: a partir
da igreja e a partir das cidades em crescimento e dos estados.
A ofensiva da igreja é dupla: por um lado, as mulheres que se unem em grupos são
colocadas sob controle do clero: terciárias e beguinas são controladas e limitadas em seu
comportamento. Por outro lado, há uma ‘purificação’ crescente e o clero mantêm um olho
afiado para discernir se as mulheres são sólidas na doutrina ou precisam ser condenadas como
bruxas ou hereges. Milhares de mulheres, então, morrem nas piras funerárias. Há aldeias na
Alemanha onde, depois de uma purificação, só 1 entre 10 mulheres sobreviveram.
Há também uma ofensiva contra a posição das mulheres a partir da sociedade em
transformação: o poder das universidades está crescendo e as universidades exercem uma
grande influência na vida política. O surgimento das universidades mantêm o conhecimento
sob controle. Nesse ínterim, o conhecimento trazido pelas mulheres é visto como perigoso e o
controle das mulheres aumenta. A igreja apoia temporariamente as universidades como um
meio de manter a fé. Este foi realmente o caso, porque o objetivo principal das universidades
no século XV não residia na aquisição de novos conhecimentos, mas na preservação do
conhecimento existente e das doutrinas da igreja. As universidades tiveram muitos privilégios
e poderiam funcionar como um Estado dentro do Estado.
No tumulto da colonização e de cidades e estados emergentes, da Reforma e da
Contra-Reforma, as mulheres foram mutiladas. A voz das mulheres não aparece mais tão
claramente. Engenharia e racionalidade assumem o poder, visões se tornam perigosas ...
Na Idade Média e no início do Renascimento, o contexto social e cultural determinará
se os esforços das mulheres para adquirir auto-controle sobre sua própria vida e
espiritualidade serão avaliados como sagrado ou histérico (Bell, 38). Quão lamentável seria se
a historiografia aceitasse facilmente a determinação histérica.

Referências

Bell, Rudolph M. Sancta Anorexia. Vrouwelijke wegen naar heiligheid, Italië 1200-1800.
Amsterdam: Wereldbibliotheek, 1990, 300p.
Bynum, Carolyn Walker. Holy Feast and Holy Fast. The Religious Significance of Food to
Medieval Women. Berkeley: University of California Press, 1987, 444p.
Bynum, Carolyn Walker. Fragmentation and Redemption. Essays on Gender and the Human
Body in Medieval Religion. Nova York: Zone Books, 1992, 426p.

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Cohen, Jeffrey Jerome. “Introduction – Midcolonial”. In: Jeffrey Jerome Cohen (ed.). The
Postcolonial Middle Ages. Nova York: Palgrave, 2000, p.1-17.
Dickens, Andrea Janelle. The Female Mystic: Great Women Thinkers of the Middle Ages.
Nova York: Tauris, 2009, 248p.
Furlong, Monika. Visions and Longings: Medieval Women Mystics. Nova York: Mowbray,
1996, 248p.
Kinoshita, Sharon. “Deprovincializing the Middle Ages”. In: Rob Wilson & Christopher
Leigh Connery (eds.). The Worlding Project: Doing Cultural Studies in the Era of
Globalization. Berkeley: North Atlantic Books, 2007, p.61-75.
Lerner, Gerda. The Creation of Feminist Consciousness. From the Middle Ages to Eighteen-
seventy. Oxford: Oxford University Press, 1993, 395p.
Pernoud, Regine. Vrouwen in de Middeleeuwen, haar politieke en sociale betekenis. Baarn:
Ambo, 1986, 224p.
Petroff, Elizabeth Alvilda. Body and Soul: Essays on Medieval women and Mysticism.
Oxford: Oxford University Press, 1994, 235p.
Pisan, Christine de. Het boek van de stad der vrouwen. Amsterdam: Feministische uitgeverij
Sara, 1984, 262p.
Wiethaus, Ulrike (ed.). Maps of Flesh and Light: The Religious Experience of Medieval
Women Mystics. Syracuse: Syracuse university Press, 1993, 206p.

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PALESTRAS

A MULHER EM CARMINA BURANA

Eduardo Hoornaert
(UFBa)

1. Acerca da Idade Média


2. Acerca dos goliardos
3. Acerca da mulher na Idade Média
4. A mulher em Carmina Burana
5. Abrindo um espaço maior.

1. Acerca da Idade Média

Existem muitos preconceitos acerca da Idade Média.


- O primeiro está na própria denominação. A Idade Media aparece como um tempo
intermediário entre duas grandes épocas: o império romano e a modernidade. O termo aparece
pela primeira vez em 1469, num escrito do bibliotecário do papa. Empolgado pela ideia da
renascença, ele vê o período anterior como um túnel escuro entre duas eras resplandecentes, a
antiguidade (Grécia, Roma, mas também a bíblia) e renascença (tempos modernos, ou seja, de
renovação). Para ele, a renascença é uma revolução cultural. O termo Idade Média até hoje
serve como saco de pancada dos progressistas. Fala-se em ‘obscurantismo medieval’, ‘atraso
medieval’, decadência, trevas. σum flagrante erro de perspectiva, atribui-se à Idade Média a
inquisição (que se desenvolve na idade moderna), a caça às bruxas (que vitimou 100.000
mulheres entre os séculos XVI e XVIII), o puritanismo (fenômeno da modernidade) e a
repressão da sexualidade.
- τ segundo preconceito consiste em pensar que somos mais ‘avançados’ que os
medievais. Fizemos enormes progressos em termos materiais e tecnológicos, mas a impressão
que tenho é que perdemos em comunicação. Nasci numa cidade medieval (Bruges,
conservada por ter ficado pobre no início da época industrial) e confesso que me sinto bem
quando ando por essas ruelas estreitas, em que as pessoas devem ter vivido muito próximas
uma das outras. Penso que não adianta fazer esse tipo de comparação. Melhor colocar
simplesmente os medievais ao lado dos modernos, nem em baixo nem em cima (como fazem
certos saudosistas). Um exemplo flagrante de nossa arrogância pode ser visto na urbanização
do centro de Paris, onde a linda cidade medieval foi substituída por construções horrorosas,
prepotentes e insípidas. Só se conservou a Notre Dame e a Sainte Chapelle. Isso é um
exemplo que mostra onde estamos hoje em termos de cultura.
- Um terceiro preconceito consiste em dizer que o Brasil é uma formação moderna e
não medieval. Isso é verdade em termos cronológicos, não culturais. O professor Maurice
lutou arduamente contra esse preconceito, e sempre repetia: temos de ativar ‘o intercâmbio
literário medievo-moderno’.

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- Talvez a vida na Idade Media tenha sido mais alegre que na idade moderna.
Insistimos demais no ‘cérebro calculador’, em detrimento do ‘cérebro sensível’. τ riso
medieval até hoje nos dá inveja. É o riso dos goliardos.

2. Acerca dos goliardos

No início do século XIII surge, no cenário católico, uma estranha ‘ordem religiosa’,
que venera Golias como patrono, como nos lembra o professor Maurice, que escreve que o
nome teria vindo de Abelardo, um verdadeiro Golias da ciência livre a desafiar o Davi da
ciência presa, professada pela igreja. Abelardo elabora ao mesmo tempo excelente teologia e
canções amorosas. Ele é um estudioso sério e namora uma aluna. Abelardo é um paradigma
trágico, pois não encontra um caminho dentro do labirinto eclesiástico.
O século XIII é o tempo do florescimento de ordens religiosas. σisso, a ‘ordo
vagorum’ ao mesmo tempo destoa, problematiza e aponta para questões fundamentais. A
igreja não entende essa ‘ordem’ e toma o caminho mais fácil, o de reprimir. A luta começa em
1231 e dura séculos. O clérigo vagante é banido do clero. Ele tem de raspar a cabeça para
fazer desaparecer a tonsura. Ele não pode mais entrar nos conventos e desse modo vive ao
longo dos caminhos, ‘fora da lei’ e livre que nem um pássaro no ar. Essa liberdade traz a
pobreza, O goliardo aproxima-se dos saltimbancos, prestidigitadores, charlatões, acrobatas,
adestradores de macacos ou ursos, bobos e cômicos, vive em tabernas e prostíbulos e tem
contacto com mulheres da vida livre. No final do século XIV, goliardo significa dono de
prostíbulo. Mas o pior castigo é a fome. Será por acaso que ele gosta de dormir em forno de
padaria?
Mas, por que tanto sofrimento? É que o goliardo é fascinado pela ciência. A ciência é
um paraíso de liberdade e grandeza humana, contra o acanhamento da teologia dos conventos.
Ele sabe que a ciência traz liberdade, mas encontra poucos professores livres. Então esse
clérigo deixa o convento e anda pelo mundo à procura da ciência, ou seja, atrás de bons
professores, que são inevitavelmente clérigos. Na época, todos os cientistas são clérigos, e
eles enfrentam o problema do celibato. Mas o goliardo é teimoso, ele ousa mexer com as leis
canônicas que proíbem o amor livre, uma das questões mais espinhosas do direito canônico. O
celibato é protegido pela tonsura e pelo habito, mas muitos tonsurados andam pelo mundo
sem exercer nenhuma função pastoral. Pois, na época, ser clérigo é ser alguém, é ser
considerado culto e inteligente. A roupa de estudante é roupa de clérigo. Mas os bons
professores são raros. Nem todos são como Abelardo. Ulrich von Hütten foge do mosteiro de
Fulda, aparece em Colônia, Erfurt, Frankfurt e Bolonha, sempre à procura da ciência. Em
1348, o papa dá licença de sair do mosteiro por três anos para estudar. Aí muitos viajam a
Roma e povoam as tabernas ao longo dos caminhos. A ‘libertas evagandi’ traz o problema da
vida sexual e o problema da pobreza. Pois o monge fujão vai ao mesmo tempo atrás da
ciência e atrás do evangelho. Ele diz: não me procure entre prelados nos palácios. Estou no
caminho de Jericó, deitado ao lado da estrada, esperando o bom samaritano.
O goliardo exerce um fascínio sobre os conventos e mosteiros. Os monges gostam
quando um goliardo canta e dança no refeitório da abadia depois da janta. O abade fica
revoltado, mas os monges se sentem atraídos. Mesmo prelados se sentem seduzidos. ‘In
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palatio ubique ressonat cantus’. τ goliardo é uma presença trágico-cômica. Ele sabe cantar,
ou seja, domina uma das fundamentais funções eclesiásticas, fundamento da liturgia: cantar.
Sabe rir e exerce a irresistível atração da liberdade.
As virtudes do goliardo contrastam com as virtudes cultivadas nos mosteiros, onde se
valorizam as virtudes feudais: fidelidade (os fiéis), lealdade, voto perpétuo (juramento),
exaltação da autoridade (abade), voluntarismo. O mosteiro exalta o ideal do homem
controlado, discreto e afastado do mundo. Ele se prepara para enfrentar o sofrimento, não o
prazer, fica mais ocupado com afazeres intelectuais e espirituais do que com os carnais. Na
opinião do mosteiro, o goliardo é vagus, cupidus, amator, venustus, instabilis. Exatamente o
contrário do mosteiro. O goliardo canta:

Nunca erit habilis


Qui non est instabilis

Por sua maneira de viver, o goliardo mostra que o convento é uma prisão: chato,
hipócrita, falso, submisso, ignorante, parado. A vagância traz liberdade, novidade, alegria,
ciência. Muitos entram nos mosteiros e depois se decepcionam. Eles têm e interromper o sono
no meio da noite, o que é uma estupidez (o tema volta repetidamente em Carmina Burana). As
vigílias, os jejuns, a rotina, a conformidade, a comida sem gosto, tudo é triste, monótono,
permeado de hipocrisia. Mas para os eclesiásticos, os goliardos têm a marca de Caim na testa.
A condenação eclesiástica, imprimida pelos bispos, os persegue o tempo todo. Rejeitado na
portaria do mosteiro por ser ‘scolaris pauper et vagus’, o goliardo é visto como um morcego,
rejeitado pelos bichos. (veja o morcego no bestiário editado por professor Maurice).
Diante de tanta repressão, o goliardo provoca. Percebamos o tom provocativo na
canção ‘in taberna quando sumus’ (CD 12). Ao mesmo tempo, ele cria uma capa dura de
tenacidade na resistência. O goliardo diz que perdeu todos os livros nas tabernas, em
‘remissionem’ de comida e vinho. Perdeu também a espiritualidade. Trata-se de uma poesia
ácida, dura, persistente. Qualificar essa poesia de paródia é dizer pouco. O goliardo não
admite sentimentalismo e persiste até o fim, como se verifica num precioso documento da
época.
A última confissão de um goliardo (Waddell, ed. 1986, 183).
O confessor diz que basta repetir as palavras do Credo e dizer algo acerca de cada
ponto. Eis a resposta do penitente moribundo:

Credo: no dado (do jogo)


In Deum: nunca vi
Patrem: já tive, mas perdi
Creatorem: estou no poder dele
Coeli: nunca pensei no céu, só penso em vinho
Et terrae: aí está minha alegria
Christum filium eius: gosto mais da taberna
Unicum: os vinhos de Orléans, Rochelle e Auxerre são únicos
Descendit ad ínferos: nunca vi
Ad caelos:
Sedit: ao lado de uma menina, pois é melhor na taberna do que ad dexteram
patris.

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Venturi: aí eu gostaria de voltar. Em Paris há meninas bonitas.
Credo: no vinho
Spiritum sanctum: não conheço
Ecclesiam sanctam: nunca vi
Remissionem: sim, eu troco vinho por chapéu ou capa
Et corporis: os prazeres do corpo eu adoro.
No final, o moribundo acrescenta:
O que mais me angustia, padre, é a vitam aeternam. Ela não tem o menor
valor. Peço a Deus que me poupe da ressurrectionem.
Vitam aeternam. Então me perdoe. Amén. Padre, terminou tudo. Reze por
mim.
(editado por Barbazon-Meón, iv, Paris, 1808).

3. Acerca da mulher na IM

A Idade Média cultiva menos o pudor que a idade moderna. O historiador Norbert
Elias mostra como os corpos ficam mais expostos, com menos privaticidade, na Idade Média
(Elias, τ processo civilizador, 1, ι3 e 169). σão há ‘close’, não há ‘water close’ (WC). σão
há lenço. O escarro, vômito, gordura da carne, a nudez e o sexo são mais expostos. Nos ritos
do casamento, os noivos são levados até a cama nupcial e entram na cama na presença dos
familiares e testemunhas. Ainda no século XVI (1530), Erasmo escreve um livro educativo
para crianças de 8 a 10 anos (De civilitate morum puerilium), que traz uma conversa entre um
rapaz e uma prostituta. τ rapaz ‘educado’ aconselha a mulher a deixar a vida desregrada. Um
texto como esse foi lido durante séculos, aparentemente sem provocar reações. A vergonha é
um produto cultural dos últimos séculos, típico de nosso ‘processo civilizador’ (σorbert
Elias). O puritanismo afasta os corpos. Os europeus diante do ‘abraço brasileiro’.
Uma segunda observação: é difícil saber como a mulher se sente na sociedade
medieval, pois só possuímos pouquíssimos textos escritos por ela. Os letrados são quase
exclusivamente homens. Só conhecemos a mulher por meio de um discurso indireto. Como
lembra o professor Alder Calado em seu trabalho sobre as beguinas, há distorções na
documentação. Por sua simples presença, a mulher lembra que a humanidade é composta de
dois gêneros, algo que o discurso masculino costuma esconder. O homem consegue escrever
longos tratados em que a realidade dos gêneros não aparece. A mulher lembra que somos
sexuados.
Uma terceira observação: o panorama medieval feminina, tal qual aparece nos textos,
é dominado por princesas e freiras. Só elas aparecem. A maioria das santas é da nobreza ou
dos conventos, ou então ligadas a congregações masculinas (OSB). Aparecem as abadessas,
pessoas poderosas. Algumas mulheres escapam, como Hildegarde de Bingen (faleceu em
1179), que escreve tão bem que se torna profetisa da igreja, ou Julian de Norwich (1343-
1416) que se esconde sob um nome masculino e é uma mística de grande qualidade. Há ainda
Matilde de Magdeburgo, Catarina de Siena, e poucas outras. Mas, para a mulher, é perigoso
aparecer.
Em 1310, Marguerite Porete escreve ‘Le miroir des simples âmes’, em que critica o
comportamento masculino. Ela é excomungada e queimada. Igualmente vergonhoso (ainda
para hoje) o destino dado a Joana d`Arc, que salvou a realeza francesa e lhe deu dignidade.
Ela também acaba queimada sob a alegação que se veste em homem e ocupa um lugar
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reservado aos homens. Joana entrou no universo masculino e com isso ameaçou derrubar, sem
o saber, uma série de leis que colocavam a mulher no seu ‘devido lugar’, como a lei da
inferioridade jurídica, a falta de acesso ao patrimônio, a dificuldade de se ‘arranjar’ um
casamento.
τ debate em torno do ‘Roman de la Rose’ (1230-1275), de 22.000 versos, uma das
obras mais lidas e copiadas da literatura (200 manuscritos) ajuda a compreender a posição da
mulher na ideologia medieval dominante. σesse ‘romance’, principalmente na parte redigida
por Jean de Meung, o encontro entre homem e mulher acontece dentro de um jardim fechado
e altamente privatizado, um paraíso de prazer, com música e comidas oferecidas, fechado aos
de fora. Dentro reina o amor, fora a vida cotidiana. O romance mantém silêncio sobre a casa,
a cozinha, a lavagem de roupa etc. A dona de casa não aparece, nem as beguinas (professor
Alder Calado), nem as beatas do Brasil. A luta pela sobrevivência não existe dentro do jardim
das delícias do amor. É uma imagem aristocrática, em que a mulher funciona como ‘rosa a ser
deflorada’. Há um fato estranho na história desse importante documento, um dos mais
importantes de toda a literatura francesa: a igreja, tão ciosa em defender os bons costumes e a
moral, nunca se pronunciou a respeito do ‘roman de la rose’ (passar a gravura do jardim das
delícias).
Mas esse romance não passa sem contestação. Em 1399 (mais de 100 anos depois da
publicação do romance), se inicia a ‘querelle de la Rose’ com o ‘Épître au Dieu d’ amour’ de
Cristina de Pizan (1364-1431). Trata-se da ‘primeira voz de mulher’ na literatura francesa
(Simone de Beauvoir). Mais, estamos diante da primeira disputa escrita na literatura francesa.
Cristina de Pizan se revolta exatamente contra a imagem da mulher como ‘uma rosa a
ser deflorada’, uma flor intacta da primavera (virgindade). Isso nos leva ao tema seguinte.

4. A mulher em Carmina Burana

Será que os clérigos vagantes quebram o imaginário do ‘roman de la rose’? τ


professor Maurice publicou 39 canções de Beuern. A grande maioria trata do amor,
recorrendo a imagens que lembram o famoso romance: primavera, natureza intacta, flores
(floret silva nobilis), tílias ao longo das alamedas, campos, prados, roupas brancas e
imaculadas, lábios róseos, pele alva. O rapaz é um caçador na selva, ele penetra de espada em
riste, procura ‘colher a rosa’ e deflorar as pétalas. A moça entra no campo deserto, na floresta
escura, impelida pelo ócio. Ela é inocente, fica muito admirada quando aparece de repente o
caçador. Ela é pastora inocente. Nas 39 canções só consegui encontrar uma (n. 16), em que
parece que a mulher fala. Ela chora ‘me miseram’. Está grávida e não pode mais aparecer em
canto nenhum, pois todos observam que tem o ventre crescido. Os pais mandaram o jovem
para a França e ele tem de ficar em casa, lamentando o ‘pecado’ e chorando. ‘Ai de mim, que
tristeza’. Ela se sente acanhada. Há ainda a canção 33 (Virgo dum florebam) que
aparentemente expressa o pensamento de uma mulher, mas o tema me parece forçado. Ela
penetrou só na floresta, fica sentada na beira de uma alameda de tílias e de repente aparece o
caçador que a desnuda e deflora.

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Hoy e toe!
Maledicantur tiliae
Iuxta viam positae.

Ela lamenta: o jogo acabou (ludus completur) e curte a decepção. Parece-me um texto
forjado. Talvez a canção 34 (Estuans interius) explica melhor o sentimento do goliardo,
inclusive em relação à mulher. Essa canção apresenta muito bem uma filosofia da
provisoriedade e do prazer passageiro, contra os temas de eternidade e espiritualidade
vigentes nos mosteiros e na casa do bispo. Aí aparece o tema de Vênus: ‘onde Vênus impera,
o labor é suave’, e ainda ‘todos os caminhos levam à câmara de Vênus’. A impressão que se
tem é que os Carmina burana seguem o imaginário do ‘roman de la rose’. σão se fala em
cuidados maternos, educação de crianças, cozinha, limpeza da casa, lavagem da roupa. Nada
disso aparece nas canções. Os goliardos, enfim, permanecem clérigos, são da classe alta,
mesmo vivendo como pobres.

5. Abrindo um espaço maior

Tanto a dura experiência dos goliardos como os limites de seu comportamento diante
das mulheres apelam para considerações mais amplas. Há quem diga que a experiência
goliarda teria sido apenas uma aventura passageira, hoje desde muito varrida pelos ventos da
história e que pode interessar como ‘divertimento’. Enfim, será que o movimento dos goliardo
tem algo a nos dizer hoje? O mesmo se diga da ‘querelle des femmes’, que começa no século
XIV e dura muitos séculos. Será que ela ainda significa algo hoje?
Fica claro que a história dos vagantes nos obriga a estudar uma outra história da Idade
Média. Com ela estamos diante do ‘reverso’ da história. Abandonamos a história de papas,
bispos, abades, mosteiros, obediência, celibato, monaquismo, virtude, santidade, segurança,
para estudar o outro lado: liberdade, procura do conhecimento, arte, música, sexualidade,
insegurança, provisoriedade, pobreza, precariedade, tenacidade, sustento de cada dia.
A relação entre homem e mulher está na mesma linha da relação do ser humano com a
natureza em geral. Desse modo, o capitalismo entra no campo da visão. O homem tem de
aprender a se aproximar da mulher, não numa perspectiva de exploração, mas numa linha de
amizade, respeito. O encontro humano faz parte de inúmeros encontros que temos
continuamente com a natureza. Como nos comportamos diante da natureza? Mulher e homem
são chamados à simbiose, à relacionalidade, como diria Ivone Gebara. Na relação entre um
goliardo e sua namorada na taberna persiste no fundo uma relação de classe. O goliardo,
mesmo estando na taberna com uma mulher, permanece clérigo e tem comportamento de
classe aristocrática. Isso se revela nas canções. Ao goliardo falta fundamentalmente o respeito
pela natureza da mulher. Nesse sentido se pode dizer que o comportamento do goliardo, por
contestador que seja, de certa forma já prepara o capitalismo. Ele demonstra, sem o explicitar,
uma mentalidade desstruidora da natureza: a mulher é uma rosa a ser deflorada. O goliardo
que se ‘aproveita’ da mulher na taberna é o antecessor daquele que, séculos depois, vai
explorar o trabalho escravo dos índios e dos negros, matar e destruir. A razão é que ele só
encara a natureza como fornecedora de bemestar e lucro para si. É importante falar claro: o
erro do goliardo não consiste na relação sexual em si, mas na maneira em que se pratica essa
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relação. O pecado não está na relação com a mulher, mas na falta de uma redefinição dessa
relação numa linha de respeito pela ‘natureza’. Eis, no fundo, a queixa de Heloisa a Abelardo:
‘você tirou proveito de mim, você me abusou’. σão se pode deixar de perceber a amargura da
queixa da mulher grávida na canção 16. Penso que vale a pena relacionar o ‘erro’ do amor
goliardo com o erro do atual capitalismo. São duas expressões do mesmo erro, que consiste
em tentar ‘dominar’ a natureza em proveito próprio. Se o capitalismo provoca uma ruptura na
troca material entre a natureza e a satisfação das necessidades humanas, o mesmo acontece
com o encontro entre homem e mulher exaltado no ‘roman de la Rose’ e, afinal, no amor
goliardo. O namoro goliardo não tem nada de inocente. Não é um passatempo fútil. Há de
haver, em todos os relacionamentos entre homem e natureza, o que Marx chama
‘metabolismo’, Gebara ‘relacionalidade’, Heloisa ‘amizade’. Afinal, essas pessoas tão
diversas entre si dizem a mesma coisa. Marx, Gebara e Heloisa dizem a mesma coisa. Eis o
sentido do que a mulher revela nos versos dos Carmina Burana. Ela merece ser ouvida,
mesmo nos dias de hoje. O estudo dessas canções apela para um fato novo na consciência
coletiva, que ainda está longe de ser compartilhado por todos. Paradoxalmente, se pode dizer
que figuras como Heloisa e as mulheres queixosas dos Carmina Burana preparam o
socialismo do século XXI, que deverá integrar a relacionalidade entre homem em mulher da
mesma forma em que integra a relacionalidade entre homem e natureza em geral.

6. Maurice

Agradeço esta oportunidade para me encontrar com a memória do professor Maurice,


meu amigo de longa data. Como escreveu o professor Chico Viana, ele tinha ‘uma alma
goliarda’. Sem aparentar, Maurice era ‘um monumento de inventiva e erudição’, nas palavras
do mesmo amigo Viana. Ele tinha a vocação de um ‘eterno pesquisador’, como sua esposa
bem sabe. Seus quatro trabalhos são fundamentais, como comprova este seminário. Eles
resistirão ao tempo, caso continuarmos a comentá-los. Maurice tinha intuição. Em seu livro
‘poesia medieval ontem e hoje’ (199κ), ele demonstrou que a Idade Média vive na poesia
popular de nossos dias. Há muito mais Idade Media no Brasil do que diz a vã filosofia.
Maurice percebeu que vivemos em tempos de futilidades e ele repetia: temos de ‘promover o
intercâmbio literário medievo-moderno enquanto é tempo’. σisso ele lutou até o fim.

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MESAS-REDONDAS

O MOVIMENTO DAS BEGUINAS: INTERFACES E RESSONÂNCIAS EM


EXPERIÊNCIAS SÓCIO-RELIGIOSAS FEMININAS DO PRESENTE

Alder Júlio Ferreira Calado


(UFPB)
aldercalado@gmail.com

Introdução

Como em outras incursões precedentes, também nesta, tratamos de revisitar o passado,


a partir dos desafios do presente, e de olho no que o passado tem a dizer também ao futuro,
como também costuma lembrar Eduardo Galeano. Nosso propósito de reavivar traços do
Movimento das Beguinas surge da observação de impetuosas experiências sócio-religiosas
protagonizadas, em distintas partes do mundo atual, por mulheres que se organizam em
comunidades, em grupos, em movimentos, movidas pela sua fé cristã e pela sua vocação
cidadã, numa perspectiva libertária. Referimo-nos a, por exemplo, desde experiências de
religiosas inseridas no meio popular, no Nordeste brasileiro, sobretudo nos anos 70 e 801, ao
não menos impetuoso movimento protagonizado pelas Religiosas dos Estados Unidos,
organizadas sob a sigla LCWR (Leadership Conference of Women Religious).2
Nesse movimento relacional entre passado, presente e futuro, importa assinalar, pelo
menos, um aspecto que só reforçou em nós o propósito de ensaiar uma analogia entre o
Movimento das Beguinas e algumas experiências sócio-religiosas contemporâneas de
missionárias, espalhadas pelo mundo. É bem o que nos ocorre a partir de um ponto extraído
de um resumo cronológico feito por Katharina Wieacker, relativo a uma influente Beguina do
século XIII, Mechthild von Magdeburg (1207-1282), onde se lê:

1260/1261 En un Sínodo diocesano el clero de Magdeburgo retiró el derecho


de autoadministración y autodeterminación en cuestiones eclesiásticas a las
beguinas en Magdeburgo y por lo tanto impedió la influencia de los
dominicos y las subordinaron al clero parroquial. Era un intento de separar
3
espiritualmente a las beguinas del movimiento de pobreza.

Quem vem acompanhando experiências sócio-religiosas femininas contemporâneas,


individuais (as investidas de silenciamento pelo Vaticano em relação, por ex., à religiosa e
teóloga ecofeminista Ivone Gebara) e coletivas (sendo a mais recente e impactante a tentativa
de enquadramento pelo mesmo Vaticano das atividades missionárias da principal organização

1
Cf. cf. por ex., REZENDE, M. Valéria. Vidas rompendo muros: pequenas comunidades religiosas inseridas no
meio popular no Nordeste. Dissertação de Mestrado, João Pessoa, UFPB/PPGL, 1999.
2
Vide “website”: www.lcwr.org/
3
Cf. WIEACKER, Katharina, in http://mechthild-von-magdeburg.de/spanisch/biographie.htm, Acesso em:
04/06/2012.

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das Religiosas dos Estados Unidos, afiliadas à Leadership Conference of Women Religious).
há de perceber semelhanças significativas, guardadas as circunstâncias histórico-contextuais,
entre tais experiências da atualidade e aquelas protagonizadas pelas Beguinas da Idade Média.
Neste e noutros casos de experiências contemporâneas similares, observam-se, com
efeito, traços comuns, tais como: a busca de pronunciar sua palavra, seja diante de uma Igreja
controlada exclusivamente por uma pequena cúpula de homens (a hierarquia eclesiástica, a
começar pelo Vaticano), seja frente aos poderes civis; traços comuns em relação ao empenho
em buscar caminhos de autonomia; sua luta pela construção de outro mundo, possível e
necessário, a partir do protagonismo dos “de baixo”, isto é, a partir dos excluídos, seja nas
relações de espacialidade, de gênero, de etnia, de geração, etc., seja ao interno dos espaços
eclesiásticos, seja no âmbito macro-social, em oposição ao controle das instâncias oficiais,
civis ou eclesiásticas.
A observação desses e de outros traços nessas e noutras iniciativas protagonizadas
pelas mulheres de hoje, é que nos fez evocar traços vivenciados no e pelo Movimento das
Beguinas. Haveria, mesmo, aí algum tipo de afinidade? Que outros traços comuns entre esses
movimentos atuais e o das Beguinas é possível assinalar? Eis o que buscamos desenvolver, a
seguir, começando por reavivar aspectos históricos do período em foco (séc. XII a séc. XV).
Em seguida, cuidamos de recuperar ou de reavivar alguns elementos característicos do
Movimento das Beguinas, alguns elementos históricos, principais características, suas figuras
proeminentes, sua contribuição, também no âmbito macro-social, para além da esfera
estritamente eclesiástica. No tópico seguinte, tratamos de, em meio a uma pluralidade de
experiências femininas contemporâneas, animadas pela fé cristã, descrever aspectos
emblemáticos de duas experiências densas na contemporaneidade: a das Pequenas
Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular (PCIs), no Nordeste do Brasil,
sobretudo nos anos 70 e 80, e a experiência corrente vivida pelas Religiosas nos Estados
Unidos, organizadas na LCWR. Por último, tecemos algumas considerações sobre eventuais
afinidades entre as experiências de hoje e as do Movimento das Beguinas, não sem deixar de
também reconhecer suas descontinuidades.

1. Baixa Idade Média: uma era grávida de alternatividade

Ainda hoje ressoam, embora em menor grau, traços do injusto rótulo por vezes
atribuído à Idade Média como uma era estritamente obscurantista – a famigerada “noite de
mil anos”... Pesquisas históricas mais recentes vêm ajudando a desconstruir e a reparar esse
viés reducionista. Com efeito, notadamente os últimos séculos da Idade Média – a chamada
baixa Idade Média – se apresentam, antes, como um tempo “novidoso”, grávido de
alternatividade; comportam traços surpreendentes, no que diz respeito ao multiforme
protagonismo e inventividade então testemunhados por diferentes sujeitos (coletivos e
individuais), dentre os quais aqui sublinhamos o protagonismo das mulheres orientadas por
sua fé libertária.
Um olhar crítico sobre os últimos séculos da Idade Média haverá, por conseguinte, de
ensejar impactantes achados, inclusive a experimentados pesquisadores e pesquisadoras. Aqui

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evocamos aquela imagem bíblica do velho baú, do qual, a cada visita, se recolhem coisas
velhas e novas. Isto para quem tem olhos para ver...
Diante de um cenário hegemonizado, durante séculos, pela instituição eclesiástica e
seus aterrorizantes aparelhos de opressão e repressão sobre os excluídos desse sistema – os
pobres, as mulheres, os grupos, organizações, movimentos e figuras individuais que aspiram à
liberdade, que não aceitam um sistema de subordinação nas relações humanas e sociais, no
seu empenho em resistirem à bitola ou à régua evocando a imagem do aterrador leito do
Procusto eclesiástico, por não corresponderem às medidas de sua régua, tornando-se assim
alvo sistemático de suspeição, de perseguições, de condenações sumárias, como sucedeu
durante o tenebroso período da Inquisição.
A baixa Idade Média apresenta-se, pois, como um período de grande impulso
renovador. Nele podemos perceber a presença de elementos que se antecipam a períodos
posteriores. Séculos de reconhecida inventividade, fazendo aparecer fatos e situações que
precedem, em séculos, a irrupção da Reforma e de outros traços caracaterísticos da
Modernidade.
Assim aconteceu em relação, por exemplo, a diversos movimentos pauperísticos – os
Cátaros, os Valdenses, os Franciscanos radicais, os Fraticelli, os Goliardos (alvo predileto de
um notável pesquisador da UFPB, o saudoso Prof. Maurice Van Woensel, bem como um
tema de a ser abordado, neste evento, pelo historiador Eduardo Hoornaert, que coordena esta
Mesa), etc.. Movimentos pauperísticos protagonizados, portanto, por vastas massas do povo
dos pobres, animadas por lideranças proféticas a buscarem afirmar sua fé cristã por horizonte
e caminhos opostos aos seguidos e impostos pela religião eclesiástica, tão distante do espírito
do Evangelho.
À riqueza e ao luxo da alta hierarquia eclesiástica e da nobreza, os movimentos
pauperísticos opunham sua vida de simplicidade e de pobreza; aos complicados códigos
canônicos, preferiam a transparência do Evangelho; à voracidade e avidez pelo acúmulo de
bens materiais, preferiam a partiha fraterna dos bens e de sua própria vida em mutirão; aos
lugares de honra e aos privilégios do poder, empenhavam-se no serviço fraterno das pessoas e
grupos socialmente marginalizados; em vez de uma organização imperial de feição piramidal,
como o Império Romano e outros impérios, lutavam por uma organização horizontal de sua
vida social, econômica, política, cultural e religiosa. Sobre tais movimentos há uma
relativamente vasta literatura.4
Os séculos característicos da baixa Idade Média constituem, com efeito, uma era de
precursores e precursoras relevantes, especialmente do ponto de vista de sua criatividade
cultural-religiosa, do que pode ser mencionado como um exemplo as interpretações
formuladas por Joaquim de Fiore, quanto à idade do Espírito, e que tiveram ampla e
duradoura influência entre os movimentos reformadores da época.
No que tange à grade de valores, por exemplo, esses séculos comportam traços
marcantes de inovação e de antecipação à Idade Moderna. Como ignorar sua ânsia de
liberdade, de autonomia, de protagonismo, de autogestão, de valorização do vernáculo, e

4
Ver, por ex. algumas referências bibliográficas em CALADO, Alder Júlio F. Memória Histórica e
Movimentos Sociais: ecos libertários de heresias medievais na contemporaneidade. João Pessoa: Idéia,
1999).
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sobretudo de afirmação das mulheres como sujeitos históricos? Muito lhe tem a dever a
Modernidade, sob distintos aspectos. Muito lhe deve o Movimento de Reforma cujas raízes
estão fortemente fincadas nesse período.

2. Que traços mais fortes marcavam o perfil das Beguinas?

Conforme o acima prometido desde o título, aqui tomamos como alvo de nossa
reflexão apenas o Movimentos das Beguinas, também desse mesmo período. As Beguinas se
apresentam, ao mesmo tempo, como resultado, expressão e protagonistas desse período
histórico. Trata-se de um movimento impetuoso que se dá justamente numa atmosfera de
adversidades aparentemente intransponíveis para os excluídos de então, ao ponto de se
produzir em meio a uma sociedade que tinha ares de misoginia aí reinante. Impacta-nos, com
efeito, a extrema capacidade de resistência das mulheres a um contexto tão adverso.
Resistência por elas exercitada por diferentes vias, seja pelas veredas de sua inventividade
cultural (as sábias), seja pela sua espiritualidade leiga (as místicas), seja pela sua capacidade
de resistência material (por seu trabalho manual de auto-manutenção (as militantes, as
guerreiras).
Dessas formas de resistência, aqui nos limitamos à que combina o exercício de uma
espiritualidade leiga com a sua capacidade de organização autogestionária a serviço dos
excluídos daquela época (os pobres, os doentes, as mulheres abandonadas).
As Beguinas constituem uma página relevante da história das experiências religiosas
marcadas por uma espiritualidade vivida no feminino, em pequenas comunidades chamadas
“Begijnhof”, “Béguinages”, conforme a região de sua atuação (Flandres, Liège, Bruges,
Antuérpia, etc.), animadas por mulheres jovens e adultas, celibatárias, viúvas, algumas
casadas, que, organizadas, sobretudo em meio urbano, combinavam uma vida de oração, de
trabalho autogestionário com o serviço aos pobres, doentes e pessoas marginalizadas da
época, alimentadas por uma espiritualidade singular, de caráter leigo.
Há referências associando as origens das Beguinas a Lambert le Bègue, figura a quem
também se atribui a fundação do Movimento dos Begardos, uma versão masculina de
semelhante experiência, formada por pregadores errantes, no século XII, na Bélgica, a
denunciarem profeticamente os desmandos do clero, e pregando uma conversão ao Evangelho
e ao estilo de vida das comunidades cristãs primitivas. Há, contudo, quem entenda
diversamente, as origens das Beguinas, a exemplo de Alain de Libera, que situa o início do
Movimento das Beguinas, nos arredores de Liège (Bélgica), por volta de 1210.
Segundo este mesmo autor, o Movimento das Beguinas tinha suas singularidades, tais
como: não tinha um santo fundador, não buscava autorização da hierarquia eclesiástica, não
tinha uma constituição ou regulamento, não fazia votos públicos, “seus votos eram uma
declaração de intenção, não um comprometimento irreversível a uma disciplina imposta pela
autoridade, e seus membros podiam continuar suas atividades normais no mundo”.
O Movimento das Beguinas respondia a um forte anseio de seus membros: tendo em
vista as relações então dominantes, nas esfera sócio-política, no terreno das relações de
gênero, nas relações de vida religiosa, em todas sentindo-se sufocada pela dominação
masculina, as Beguinas procuravam, explicitamente ou não, um estilo de vida que lhes
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permitisse uma múltipla autonomia: em relação a um marido, em relação ao patrão, em
relação à autoridade oficial, em relação à autoridade eclesiástica, em todas essas esferas,
reinando a figura masculina...
Tendo origem na Bélgica, as Beguinas foram expandindo-se pelos Países Baixos, por
áreas da Alemanha e da França, preferindo atuar no meio urbano, onde respiravam um ar de
relativa liberdade (em comparação com o meio rural daquela época). José Comblin assim a
elas assim se refere:

As “beguinas” eram moças que não queriam entrar no mosteiro, queriam


dedicar sua vida ao serviço de Deus e do próximo. Até os 30 anos de idade
viviam na casa de uma “beguina” mais velha. Ao completarem 30 anos,
passavam a viver sozinhas numa casinha. Dedicavam a vida ao trabalho e ao
serviço dos pobres, doentes ou anciãos. Realizavam exercícios de piedade
em conjunto, mas cada uma tinha sua vida independente. Formavam às vezes
ruas inteiras de casinhas semelhantes. Em certas cidades formavam como
que uma cidade dentro da cidade (“Begijnhof”, “Béguinage”).5

Este mesmo autor aí faz também referência a estimativas quanto ao número de


beguinas. Por essa região elas foram espalhando-se, aos milhares, havendo quem estime terem
alcançado uma população de 200.000 beguinas, num universo estimado à época em torno de
20 milhões de habitantes.
Eram mulheres que, não preferindo contrair laços institucionais orgânicos com a Igreja
institucional, nem professar votos formais e definitivos – algumas o faziam a título particular,
sem torná-los públicos - desenvolviam atividades sócio-religiosas, formavam uma espécie de
leigas consagradas, como se diz hoje. Combinavam atividades devocionais com trabalhos
manuais e, sobretudo, o cuidado com os pobres e os doentes, os rejeitados daquela sociedade.
Chama a atenção o fato de que, nos primeiros tempos, as Beguinas ressoavam para as
forças dominantes apenas como uma experiência beneficente e útil, ao alcance de seus olhos
inquisitoriais. À medida, porém, que as Beguinas vão se consolidando organicamente,
trabalhando sua identidade de mulheres livres – em relação ao machismo familiar, ao
machismo clerical e ao machismo de outras instâncias oficiais -, passaram a sofrer leituras
pejorativas até começarem a ser perseguidas pela instituição eclesiástica, ao ponto de, em
1311, terem sido condenadas como hereges, no Concílio de Viena (1311).
Aí tiveram lugar as famosas “Clementinas”, como ficaram conhecidas as condenações
feitas pelo Papa Clemente V contra as Beguinas e contra os Begardos, em cima de elementos
aludidos em seus dois Decretos “Ad nostrum” e “Cum de quibusdam mulieribus”. Em ambos,
o Papa Clemente V buscava lançar suspeitas em relação às Beguinas (donde a expressão “de
quibusdam mulieribus” – “sobre certas mulheres”...) e aos Begardos, olhos fitos no conjunto
dos movimentos pauperísticos. O Papa Clemente V temia tais movimentos precursores da
Reforma, inspirados que eram em figuras proféticas como Joaquim de Fiore, que, em sua
teologia, sustentava a famosa interpretação das três idades, na história do Povo de Deus, ao
deduzir da sucessão das 42 gerações citadas no relato bíblico da genealogia de Jesus (cf. Mt 1)
três épocas distintas: a idade do Pai, a idade do Filho e a idade do Espírito Santo,

5
COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998, p. 126
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correspondendo esta a um tempo de liberdade. Justamente um valor a ser reprimido, ante os
olhos dos hierarcas. Não é por acaso que, numa carta enviada ao bispo de Cremona, o Papa
Clemente V expunha sua veemente oposição contra “os que desejam introduzir na Igreja um
tipo de vida abominável que eles chamam de liberdade do espírito”...
Daí para a oficialização de uma caça às bruxas foi um passo, culminando nos
processos mais aviltantes da condição humana, protagonizados pela tenebrosa Inquisição.
Inclusive várias figuras beguinas, entre as quais Margarida de Porète. Além desta, são várias
as figuras de Beguinas: desde a precursora Hildegard de Bingen, passando por Matilde de
Magdeburgo, por Gertrude de Hefta, Marie d´Oignie, Matilde de Hackeborn, Beatriz de
Nazareth, até Hadewijch de Antuérpia e a própria Marguéritte de Porète, de algumas das quais
nos ocuparemos, a seguir, de modo a destacar aspectos de seu respectivo legado. (cf.
COMBLIN, José. Vocação para a Liberdade. São Paulo: Paulus, 1998: p. 125-129).
Começamos pela figura de Hildegard de Bingen (Alemanha) uma beneditina que
viveu entre 1098 e 1179, considerada uma precursora das Beguinas, ao menos no que toca ao
reconhecido potencial intelectual, como escritora, como compositora, como filósofa e como
mística. Como abadessa beneditina, Hildegard de Bingen foi também fundadora de alguns
mosteiros. Como compositora, é de sua autoria um dos mais antigos drama litúrgico, “τrdo
Virtutum”, além de mais de ι0 poemas e cantos litúrgicos Escritora prolífica, escreveu obras
teológicas e textos de temas medicinais e de Botânica. A ela é atribuída um número
expressivo de cartas. Fala-se em três centenas! Fato curioso e atual é o anúncio pelo Papa
Bento XVI de que, ainda este ano, Santa Hildegard de Bingen será proclamada Doutora da
Igreja... (cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Hildegard_of_Bingen).
Notícia que reforça suas multifacetadas potencialidades, que atraíam, em seu tempo, a
admiração de papas, de bispos, de príncipes...
Uma segunda figura de beguina – esta já não uma precursora, mas, antes, uma beguina
propriamente dita – diz respeito ao nome de Matilde de Magdesburgo. Também alemã,
nascida em Magdesburg, que viveu entre 1207 e 1282. Sua biografia resultou
fundamentalmente de seu famoso livro A Luz Resplandecente da Divindade, (em alemão,
“Das flissende Licht des Gottheit”), cujo manuscrito foi encontrado no século XIV, escrito
num Alemão popular da época, e não em Latim, como era o hábito das escritas eclesiásticas.
Um escrito que ela vai compondo, a partir de suas visões, que ela começa a registrar, já à
altura dos seus 43 anos, por recomendação de seu confessor. Diferentemente do estilo
convencional, o seu se acha bastante inspirado no que caracteriza o Cântico dos Cânticos, o
que provoca escândalo ao clero e à alta hierarquia de então, não bastasse o fato de tratar-se de
uma mulher. (cf. www.europsy.org/marc-alain)
Nascida quase meio século depois, merece igualmente destaque a beguina Marguerite
Porète (1260-1310), por seu precioso legado de mística, de perfil profético e de mártir. Sua
prematura condenação à fogueira – aos cinqüenta anos! – não é algo casual. Um testemunho
eloqüente de seu perfil místico e profético pode ser encontrado por meio de sua obra Le
miroir des âmes simples et annéanties. Um exemplar desta obra secretamente guardado por
séculos, foi recentemente (1945), num mosteiro de Monte Cassino.6

6
Cf. www.europsy.org/marc-alain
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Hadewijch de Antuérpia, outra beguina que se tornou célebre, sobretudo graças à sua
capacidade intelectual. Foi desbravadura no uso vernáculo em que produziu textos de
reconhecido valor, tendo sido, não por acaso, considerada uma das fundadoras da íngua
flemenga, uma das primeiras referências no cultivo da língua. Característica que cultivou
conscientemente, ao empreender vários textos no vernáculo, diferentemente da tendência da
época, sempre mais aberta ao Latim enquanto língua oficial. Não correspondia ao propósito
de Hadewjich, que preferia comunicar-se na língua de sua gente, por meio da qual socializava
sua produção.
Não menos importante foi a contribuição – talvez a que mais devamos destacar, dentre
todas, ainda que todas devam ser entendidas de modo entrelaçad0 – das Beguinas no campo
da experiência mística. Área em que também foram profundamente emblemáticas, sobretudo
graças à vivência de uma nova espiritualidade, profundamente marcada por um estilo leigo.
Não por acaso, foi no campo dos leigos e das leigas, que mais influência exerceram as
Beguinas. Assim a elas se refere uma analista;

Dans la spiritualité féminine, une évolution bien plus étonnante au cours de


la seconde moitié du XIIe. siècle permet aux femmes d'échapper à la
négation et au silence.Des groupes de béguines se constituent aux Pays-
Bas,se consacrant au travail et à la prière ; le phénomène alla de Rhénanie en
Italie, avec des formes diverses. La prédication franciscaine s'adressait
délibérément aux laïcs,et les femmes font nombre,dans un climat d'exaltation
qui va parfois jusqu'au paroxysme. C'est dans ce domain, très largement, que
la parole des femmes va désormais se situer.

Forte, também, durante longo período, a influência recíproca entre a mística vivida
pelas Beguinas e a exercida pelo dominicano Mestre Eckhart (1269-13), dominicano que
ensinou na Universidade de Paris, por dois períodos. Isto se deu seja em razão do perfil de
pregador de Mestre Eckhart que se dirigia aos leigos, seja também pelo fato de um enorme
contingente de mulheres, em razão das massivas mortes dos homens envolvidos em guerras,
em cruzadas, etc.
Este e outros detalhes e circunstâncias é que ajudam a melhor compreender o perfil da
proposta do Movimento das Beguinas, em especial seu propósito alternativo, razão por que,
como lembra Régine Pernoud, “Le mouvement des béguine séduit parce qu´il propose aux
femmes d´exister n´étant ni épouse, ni moniales, affranchie de toute domination masculine”.7
Com efeito, há quem sustente que as Beguinas não tinham propriamente uma “Madre
Superiora”, preferindo uma “Grande Dame”, eleita para alguns anos. Cada comunidade de
Beguina define seu próprio estilo de vida. Cultivavam um especial apreço ao trabalho como
um meio de sua emancipação econômica. Cultivam os saberes médicos bem como as artes.
De um número considerável de beguinas que se tornaram mais conhecidas, aqui nos
limitamos a apenas esses nomes, com o propósito de destacar-lhes as principais contribuições,
tanto as de caráter mais diretamente eclesial, quanto as de um alcance social mais
pronunciado.

7
Régine PERNOUD. La Vierge et les saints au Moyen Âge

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Comecemos por estas últimas – as de caráter sócio-histórico. O Movimento das
Beguinas constitui um marco relevante histórico-social, podendo ser destacados, de
passagens, os seguintes pontos, neste âmbito:
- seu aporte inventivo como sujeitos históricos (individuais e coletivos) numa época
marcadamente recheada de prevenções de caráter machista;
- seu lugar de protagonistas relevantes nos processos de mudança, no que se refere a
sua contribuição no mundo das letras;
- seu respeitável aporte no que tange a suscitação de valores alternativos á grade de
valores então hegemônica, seja na esfera social, seja no âmbito econômico, seja na esfera
político-cultural: compromisso com a causa libertária dos excluídos, autonomia, liberdade,
autogestão, alternatividade quanto ao uso do vernáculo, entre outros valores. No caso
específico do âmbito econômico, importa tomar em consideração elementos relevantes
ligados à sua automanutenção. Trabalhavam em atividades diversas, tendo suas próprias
oficinas de tecelagem; cerâmica, copistas (num tempo em que, não havendo imprensa, tinha-
se que copiar os livros)
Não menos relevante foi seu papel instituinte no tocante às suas atividades, do ponto
de vista cristão, razão por que aqui destacamos algumas de suas contribuições:
- no questionamento profético (explícito e implícito) em relação ao monopólio
teológico-pastoral da alta hierarquia eclesiástica MASCULINA;
- sua escolha estratégica de inserção religiosa fora do controle institucional
eclesiástico;
- sua postura de priorização do espírito do Evangelho e do Seguimento de Jesus, à luz
de um Francisco de Assis, de uma Clara, etc.;
- sua dedicação à causa libertadora dos excluídos do seu tempo;
- seu estilo “novidoso” de articular espaços de individualidade e espaços comunitários,
como sendo ambos fundamentais à formação humana e cristã;
- seu empenho formativo, numa perspectiva de alternatividade, implicando no
exercício de uma espiritualidade leiga.
Não é por acaso que a hierarquia eclesiástica vê com desconfiança e desconforto o
Movimento das Beguinas, pelo fato de esse movimento aprsentar claros traços de autonomia,
seja do ponto de vista social (organização em pequenas comunidades fora do cotrole
eclesiástico), seja do ponto de vista econômico (organização pelo trabalho autogestionário),
seja do ponto religioso (não pertencer a conventos nem a congregações)
Apesar de, e para além das perseguições, as Beguinas sobrevivem, até hoje, não sem
fazerem concessões, passando a serem aceitas como pessoas que cuidavam de asilos de moças
pobres. Donde ainda hoje a presença de várias experiências de “Béguinage”, na Bélgica, por
exemplo.

3. Experiências sócio-religiosas contemporâneas, protagonizadas por Mulheres

Em todas as épocas, sempre é possível observar-se comportamentos individuais e


coletivos de transgressão ao establishment, por mais ocultos e invisibilizados que se pretenda
mantê-los. Onde há regras estabelecidas, há também transgressão a essas regras. Onde há
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dominação, sob diferentes formas, também há resistência, também sob diferentes formas.
“Pensamento único” absoluto desponta como algo impossível. Sempre há quem, de algum
modo, a ele escape. Assim, no caso da dominação reinante na baixa Idade Média, assim
também no caso das formas de resitência opostas pelos movimentos pauperísticos e pelo
Movimento das Beguinas. De modo semelhante, nos dias de hoje. Ao “pensamento único”
civil-eclesiástico escapam iniciativas libertárias, seja no campo macro-social, seja ao interno
dos espaços eclesiásticos.
Na contemporaneidade, há um leque de casos ilustrativos de tal resistência. Também
no caso das Mulheres organizadas em grupos e associações de caráter religioso. Incontáveis
são as formas de resistência ao monopólio clerical ainda reinante na Igreja Católica. Há
relatos de experiências múltiplas, tanto no plano individual quanto na esfera mais coletiva.
Desde as formas moleculares de resistência – inclusive aquelas tendo lugar ao interno mesmo
de mosteiros e conventos femininos, até as formas de resistência mais visíveis e coletivamente
assumidas.
Durante os anos que se seguiram ao Concílio Vaticano II (1962-1965), em especial na
América Latina, sob a influência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e da Teologia da
Libertação – duas experiências fortemente latino-americanas -, tiveram lugar relevante
experiências significativas de alternatividade ao modelo eclesiológico dominante.
O processo de construção e de acompanhamento da Conferências Episcopais Latino-
Americanas de Medellín (1968) e de Puebla (1979) propiciaram um importante reviravolta de
expressivas forças eclesiais, conhecidas ora como “Igreja dos Pobres”, ora como “Igreja na
Base”, entre outras. Tratava-se, então, de buscar vivenciar o espírito do Concílio Vaticano II,
bem expresso por pontos tais como o esforço de renovação das estruturas eclesiásticas, o
protagonismo do Povo de Deus (ao qual deve estar suboridanada a hierarquia – é esse o
sentido da Colegialidade!), a abertura da Igreja ao mundo moderno, a outros sujeitos
históricos – o diálogo fraterno com os demais cristãos de outras denominações, com os não
cristãos (Ecumenismo e diálogo inter-religioso). Abertura da Igreja ao diálogo com as
ciências humanas e sociais, a renovação litúrgica, inclusive da adoção do vernáculo, o retorno
às fontes de nossa Fé, donde a importância da Sagrada Escritura, bem como outros pontos.
Ocorre que, mesmo ao interno de respeitáveis referêncais da Teologia da Libertação, a
percepção das mulheres (na Igreja e na sociedade) era pouco ou nada existente. Nelas até se
falva, mas não se trata propriamente de uma palavra de Mulher, sem contar o enorme risco de
outros sujeitos pretenderem falar pelas Mulheres, tornando algo dispensável sua própria
palavra.
No caso das CEBs e das PCIs (Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no
Meio Popular, isto representou – e segue representando! – um enorme desafio, por diversas
razões:
- Se o Concílio Vaticano II apresentava, antes da hierarquia, o Povo de Deus como
principal protagoista da caminhada da Igreja, como entender que tão pouca ou nenhuma
mudança concreta se tenha passado, a não ser como exceções, em função da boa vontade e do
compromisso de algumas figuras de bispos e de padres mais próximos do povo dos pobres?
- Em especial na América Latina, quase todas as experiências pastorais mais
representativas do espírito do Vaticano II, de Medellín e de Puebla eram protagonizadas, em
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grande maioria, pelas mulheres (estas, nas CEBs, chegavam constituir, em diversos casos, em
torno de 80|% de seus membros), por que então dos processos de decisão elas estão fora?
- Se os novos tempos apontavam para uma presença mais concreta entre os pobres, por
força inclusive da evangélica opção pelos pobres, quem eram esses fundamentalmente, senão
as mulheres, em sua maioria?
- No n. 30 do Documento de Puebla, estão elencados os traços mais tocantes do rosto
dos excluídos da América Latina, dentre os quais: os pobres, os índios, os negros, os
camponeses, os operários, os jovens... Aguçando o nosso olhar sobre esse quadro, percebemos
que, nesses e noutros segmentos, as mulheres formam a maioria. O compromisso com a causa
libertadora dos pobres passa, sobretudo, pelo assumir das lutas libertadoras das mulheres,
dentro e fora dos espaços eclesiais.
À medida que uma parte das religiosas e de leigas iam participando dessas trincheiras,
ligadas à “Igreja na Base” – nas Comunidades Eclesiais de Base, as Pequenas Comunidades
de Religiosas Inseridas no Meio Popular, no Conselho Indigenista Missionário, na Pastoral
da Terra, na Pastoral Operária, na Açõ dos Cristãos no Meio Rural, na Ação Católica
Operária, na Pastoral de Juventude do Meio Popular, na Pastoral dos Migrantes, na Pastoral
da Mulher Marginalizada, na Pastoral dos Pescadores, nos Centros de Defesa dos Direitos
Humanos, na Comissão de Justiça e Paz, no Cenrro Ecumênico de Estudos Bíblicos, e em
outras atividades semelhantes, referenciadas pela Teologia da Libertação -, passavam a
compreender, a partir de sua prática, que não podiam silenciar as injustiças, sob pena de
cumplicidade, partissem elas das autoridades do mundo civil ou da hierarquia eclesiástica.
Não se tratava apenas de denunciar tais injustiças de que cotidianamente eram – e
seguem sendo – as mulheres, dentro e fora da Igreja. Urgia avançar para ousar dar passos
concretos na direção de sua superação.
Sempre a partir do denso aprendizado experimentado em sua prática pastoral junto
com o povo dos pobres, em especial as mulheres, passaram a entender a necessidade de irem
construindo alternativas moleculares a esse modelo. Nesse sentido, passaram a investir mais e
melhor em sua formação permanente, assumindo um olhar crítico em relação às instâncias e
métodos de formação propostos pela instituição eclesiástica, em seu atual modelo. Ao mesmo
tempo, cuidaram de assegurar tal investimento formativo quanto às instâncias civis oficiais.
Outro passo relevante nesse processo de formação contínua foi o de investirem
fortemente em sua organização em rede. Já não se querem pessoas conscientes, mas isoladas,
nem grupos bem preparados atuando às soltas. Percebem que é de seu esforço organizativo
em rede que resulta a força de sua união e de sua capacidade transformadora, tanto dentro
quanto fora dos espaços eclesiais.
É assim que passaram a agir, ainda que de forma bem incipiente, nos anos 70 e 80, as
religiosas participantes das Pequenas Comunidades de Religiosas Inseridas no Meio Popular.
Estas eram formadas por religiosas de diferentes congregações que, ousando romper os muros
de suas respectivas instituições, tiveram a coragem de passar a morar na zona rural ou nas
periferias urbanas, em meio ao povo dos pobres, passando a assumir um estilo de vida
simples, buscando manter-se pelo próprio trabalho. Algumas seguiram aceitando ajuda de
suas congregações. Outras ousaram dispensá-la.

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Outra característica importante das PCIs era o fato de priorizarem as atividades diretas
junto com o povo dos pobres, inclusive aquelas e aqueles que não costumavam frequentar os
templos. Embora prestando eventuais serviços à Paróquia, esta não constituía sua prioridade,
o que lhes permitia mais liberdade de ação, e menos controle clerical.
Se já era forte a resistência ao espírito do Concílio Vaticano II, por parte das forças
conservadoras, tal resistência se fortaleceu de modo crescente, a partir do pontificado do Papa
João Paulo II. Com a contribuição efetiva da Cúria Romana, em especial da contribuição do
então Cardeal Ratzinger, arquitetou-se um verdadeiro desmonte das forças progressistas da
Igreja Católica, do que se chama “Igreja dos Pobres” ou “Igreja na Base”, recorrendo-se a
uma série de medidas punitivas, restritivas e de evidente controle de caráter conservador, tais
como:
- silenciamento e outras medidas punitivas contra os teólogos da libertação;
- inibição das atribuições das conferências nacionais e continentais de bispos;
- intervenção em organizações autônomas da vida religiosa;
- advertência aos bispos simpáticos da Teologia da Libertação;
- monitoramento, fiscalização, enquadramento ou fechamento de institutos de
formação na linha da Teologia da Libertação (o fechamento do ITER, em Recife, foi um caso
emblemático);
- política ultra-seletiva de nomeação e transferência de bispos;
- apoio aberto a movimentos reacionários e conservadores (Opus Dei, Legionários de
Cristo, etc.);
- reforma do Código de Direito Canônico e superdimensionamento do Catecismo da
Igreja Católica.
A despeito de toda essa estratégia de desmonte, cumpre reconhecer, de um lado, os
limites daí resultantes para as forças eclesiais identificadas com a “Igreja na Base”, inclusive
as PCIs e grupos similares, e, por outro, da capacidade de resistência de outras forças, a
exemplo de parte considerável das Religiosas dos Estados Unidos, afiliadas à Conferência da
Liderança das Religiosas (LCWR), que reúne milhares de religiosas, atualmente sendo alvo
de perseguição pelo Vaticano.

3. Interfaces e ressonâncias do Movimento das Beguinas em experiências sócio-religiosas


femininas do presente

Não se poderia esperar – e não o prometemos – a verificação apenas de meras


afinidades entre organizações atuando em espaços e tempos remontando a séculos. Cada
época comporta características singulares. Ao mesmo tempo, também pode comportar um
certo grau de afinidades, de interfaces e de ressonâncias, sob alguma perspectiva.
Quanto às dissemelhanças, além dos respectivos contextos históricos, convém
destacar, o perfil mais agressivo das forças hostis de então, sua abrangência aterradora. Mais:
não dá para minimizar o poder tenebroso da forte carga de misoginia com a qual as mulheres,
em especial o Movimento das Beguinas, tinham que lidar.
Com relação a semelhanças, a interfaces e possíveis ressonâncias de uns sobre os
outros sujeitos históricos aqui cotejados, teríamos a destacar os seguintes traços agrupáveis
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em três eixos: um referente às suas formas de organização; outro mais ligado ao lugar em
todos é assugarado ao processo formativo; e um terceiro, mais atinente às suas atividades de
visibilização e enfrentamento ante as forças hegemônicas, em cada uma das épocas
contempladas.
Com relação ao eixo organizativo, podemos destacar os seguintes pontos comuns tanto
ao Movimento das Beguinas quanto a experiências sócio-religiosas femininas do presente;
- opção por critérios próprios de iniciativa relativamente autônoma de organização, de
modo a livrar-se das amarras institucionais dominantes;
- preferência por organizar-se em pequenas comunidades no meio popular;
- adoção de um estilo simples de vida, mais próximo do modo de vida dos pobres;
- investimento em sua automanutenção (sempre que possível), por meio de trabalhos
manuais e artísticos, evitando assim laços de dependência econômica.
- vivência de critérios horizontais de tomada de decisões, pela via de deliberações
colegiadas, em vez de decisões verticalizadas;
- atuação em rede, em vez de limitar-se cada grupo apenas a si mesmo.
Quanto ao eixo formativo, há claros sinais de alternatividade em relação à formação
convencional assegurada pelas instâncias eclesiásticas oficiais. Deste eixo vale destacar, por
exemplo:
- empreender um processo formativo que parta das experiências concretas da vida
cotidiana, em suas mais diferentes dimensões, em vez de superestimar-se ou limitar-se aos
conhecimentos acabados, vindos de cima para baixo ou de fora para dentro;
- exercitar uma formação que se aplique a conectar constantemente a Palavra de Deus
e a realidade concreta do dia-a-dia;
- superar o hiato formativo convencional entre pensar e agir, buscando conectar, na
experiência da vida, as dimensões afetivas, a cognição, a dimensão da vontade e a dimensão
da prática;
- priorização do esforço criativo, de mudança contínua, em vez de mera acomodação
ao já estabelecido, para o que vão encontrar nas artes um elemento impulsionador
extraordinário;
- aplicação ao conhecimento dos instrumentos de dominação das forças adversas: a
familiarização tática com estatutos, códigos, linguagens, idiomas, como ferramenta de
contraposição e de superação do establishment.
No tocante ao eixo de sua visibilização e mobilização frente às forças adversas, vale
destacar, por exemplo:
- profunda inserção no meio dos pobres, não apenas como tática, mas como convicção
de que eles constituem seus verdadeiros aliados, inclusive em momentos de tensão;
- notável discernimento quanto aos momentos de avançar e de recuar, a depender da
correlação de forças domomento;
- potencialização de suas estratégias por meio de encontros periódicos de avaliação e
de planejamento.

João Pessoa, junho de 2012.

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LINGUAGEM MÍSTICA ERÓTICA MEDIEVAL: ASPECTOS PROPEDÊUTICOS

Anderson D’Arc Ferreira


(PPGF- UFPB)1
andersondarc@uai.com.br

I. Introdução

“pictura est laicorum literatura”


(O Nome da Rosa, Primeiro Dia, sexta)

Durante alguns anos de minha vida essa frase de Umberto Eco passou despercebida.
Quando de meus contatos com as Igrejas Históricas de Ouro Preto e Mariana, no Estado de
Minas Gerais, estudando elementos de Arte Sacra, pude entender o real significado das
imagens, pinturas, esculturas, enfim, dos elementos pictográficos no imaginário das pessoas
que se adentravam nos ambientes sacros. Somente depois desse impacto estético e imagético
violento com relação ao Barroco Mineiro é que as imagens iconográficas começaram a se
tornar foco de certa atenção em meu cotidiano. Contudo, esse interesse era meramente pessoal
e descompromissado com a academia, suas regras e estruturas.
Mais de vinte anos depois desse primeiro impacto com o Barroco Mineiro, através de
conversas com as Professoras Suelma de Sousa Moraes, Maria Simone Marinho Nogueira e
Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne, colegas com as quais tenho travado debates
muito frutíferos acerca do medievo, fui provocado a repensar alguns elementos estéticos
dentro da Idade Média e me deparei com a necessidade de pesquisar de forma mais detalhada
a Mística Medieval. Duas esculturas vieram-me de imediato à mente e foram o ponto de
partida para esse trabalho: a escultura da Beata Ludovica Alberoni, feita por Gianlorenzo
Bernini, que se encontra em Roma na Cappella Altieri (San Francesco a Ripa), feita por volta
de 1671-74; a escultura de Santa Teresa d’Ávila, uma escultura de Bernini feita por volta de
1645 a 1652, que se encontra na capela Cornaro, na Igreja de Santa Maria Vitória, em Roma.
A primeira nos mostra a Beata Ludovica deitada em um leito, em estado de êxtase.
Seu corpo se posiciona meio de lado no leito, sua cabeça se reclina no encosto do leito e suas
pernas apresentam-se meio dobradas. Seu rosto modificado, parecendo estar ofegante, e sua
boca entreaberta nos apresentam um semblante transfigurado pelo prazer. Sua mão direita
acaricia seu seio como se estivesse vivenciando um gozo, um orgasmo. A segunda imagem a
de Santa Teresa, nos apresenta a Santa da Igreja apoiada em uma pedra mediante o apoio de
sua mão esquerda, as pernas suspensas, o corpo meio arqueado, a cabeça pendendo para o
lado esquerdo, o rosto com semblante altivo, jovial, sua boca entreaberta. A sensação é a de
que a Santa está sendo consumida por um gozo ininterrupto que lhe consome todas as forças e
a envolve por completo. Ambas as imagens, hodiernamente, poderiam ser enquadradas dentro
de um conjunto de imagens extremamente eróticas, isso se as mesmas não estivessem
narrando um momento íntimo de cada uma dessas religiosas com o Divino. Efetivamente, a

1
Anderson D’Arc Ferreira é Doutor em Filosofia, Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal da Paraíba e suas pesquisas centram-se nos estudos relativos à Filosofia Medieval.
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forma com que cada uma dessas religiosas descreveu em seus escritos seus contatos míticos
com a divindade se assemelham às reações carnais do gozo quando ocorre o encontro entre a
amante e amado. Isso não seria de todo diverso e estranho para os observadores atuais caso o
amado descrito pelas religiosas não fosse Deus. Foi Teresa d’Ávila, foi uma mística cristã do
século XVI, quem nos diz acerca de seus anseios: “toda a miséria do presente é suportável
pela esperança do beijo divino”.
Através das discussões com as professoras acima mencionadas algumas perguntas se
apresentaram como inquietações contundentes à minha mente: Como a expressão de contato
com o divino pode ser descrita em uma linguagem erótica? Como podemos narrar as
experiências subjetivas que temos com o sagrado mediante o uso das expressões que usamos
para descrever o prazer que sentimos quando chegamos ao ápice de uma relação carnal? Qual
é a relação entre o amor e a carne quando efetivamente se pretende dar conta de expressar o
contato mais íntimo de nossa alma com a divindade? Qual é o limiar que me diferencia o gozo
do êxtase?
Nosso presente trabalho não pretende dar conta de responder a todos esses
questionamentos, mesmo porque alguns deles ainda se constituem de fortes indagações
presentes em minhas indagações. O que iremos desenvolver aqui é tão somente o início de
uma investigação que pretende, de forma mais apurada e sistemática, dar conta de responder
aos questionamentos acima descritos. Para que isso possa ocorrer entendemos ser de
fundamental importância compreender o que significa uma linguagem mística erótica e como
ela se insere no medievo cristão. Para tanto nossa reflexão terá de partir de um breve
delineamento do que seja a mística cristã, como ela se estrutura no medievo e como ela se
estrutura como uma linguagem usada pelas religiosas desse período.
Iniciemos nossas pesquisas.

II. Caracterizações Propedêuticas da Mística Cristã Medieval

Para que compreendamos o lócus no qual se insere a linguagem mística erótica do


medievo é necessário estabelecer a compreensão de certos elementos basilares do que seja a
mística, especificamente daquilo que devemos entender por mística no contexto cristão do
medievo.
Dentro da tradição dos primeiros padres do cristianismo o termo ‘mística’ está inserido
dentro do movimento iniciado por Fílon de Alexandria o qual se denomina de ‘gnose’ 2. Esse

2
Fílon de Alexandria é um filósofo judeu-helenístico nascido por volta do ano 20 a.C. e falecido no ano 50 d.C.
Dentre sua imensa contribuição para o cristianismo patrístico e a formação da doxologia cristã primitiva está o
fato de que ele é iniciador do movimento exegético que será adotado pela Escola de Alexandria, mas
especificamente aquilo que foi desenvolvido por Orígenes. Sua maior contribuição está na tentativa de
harmonizar a filosofia grega com os dados da revelação hebraica. Suas influências filosóficas perpassam o
platonismo tardio, o estoicismo, o neoaristotelismo e o neopitagorismo. Sua interpretação exegética permite a
instanciação do método alegórico. Esse método busca aquilo que está oculto nas escrituras sagradas, ou seja,
busca símbolos e conceitos de verdades morais, espirituais e metafísicas que estão implícitas no texto literal.
Assim se instancia seu movimento denominado de gnose, uma aproximação da revelação judaica com concepção
da teoria das ideias de Platão, cujo objetivo era levar os homens a uma verdadeira realidade acessível somente
através do contato direto da alma humana com a emanação divina. O objetivo da gnose é fazer com que o
homem possa voltar-se para a dimensão superior e divina que transcende sua própria alma. Esses movimentos
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movimento foi caracterizado pela mescla de aspectos filosóficos, de herança grega, com
elementos religiosos, de herança hebraica. Contudo, a linha da qual irá derivar o maior peso
semântico na extensão do conceito de mística no medievo é a herança grega.
O termo mística, dentro do contexto cristão, na literatura medieva, foi primeiramente
usado por Pseudo-Dionísio Areopagita. O contexto de surgimento desse termo ocorre quando
o referido autor fala do conceito de ‘teologia mística’. Em suas palavras, a respeito do que
seria essa ‘teologia mística’: “perfeito conhecimento de Deus que se obtém através da
ignorância, em virtude de uma união incompreensível” (De div. Nom. VIII, 3). Mesmo dentro
desse contexto cristão onde o termo é usado pela primeira vez, observamos várias relações
derivadas do conceito grego.
τ termo ‘mística’ usado no âmbito reflexivo do medievo é derivado do termo grego
‘mystérion’, que em sua tradução para a língua portuguesa torna-se a palavra ‘mistério’, que
quer significar certa cerimônia religiosa secreta. Mas a esse conceito temos a junção de outro,
o termo grego ‘mystikós’, que em sua tradução para a língua portuguesa torna-se a palavra
‘místico’, ou seja, aquilo que é relativo aos mistérios, culminando na noção de que esses
conceitos nos remetem a um significado de algo que ocorre ‘escondido’ ou mesmo que seja
algo ‘secreto’. Tal derivação e junção conceitual nos permite inferir que oo termo ‘mistério’
associa a noção de ‘mística’ a algo considerado como obscuro, algo que é impenetrável pelas
faculdades cognitivas humanas, algo que o intelecto humano não tem a capacidade de
conceber, quer esse movimento ocorra no mundo natural, quer no mundo sobrenatural.
Se seguirmos o percurso que até o momento delineamos podemos entender que o
conceito de ‘misticismo’ está ligado à certa noção de uma experiência mística. Essa noção
dentro do ambiente critão também pode ser entendida como sendo oriundo de uma
experiência religiosa. Essa realidade de uma experiência religiosa de contato da alma humana
com certa emanação divina pressupõe que algumas palavras devam ser usadas usadas para
tentar dizer algo em relação à vivência dessa experiência mística, por exemplo, os conceitos
de felicidade, gozo, fruição, salvação, iluminação, êxtase, transbordamento do coração,
retorno ao ser, esvaziamento, arrebatamento, consciência do todo, etc. É nesse contexto que
devemos entender que, em muitos casos, a noção de ‘misticismo’ irá tentar explicar a conduta
humana antes e depois desse contato de nossa alma com o inefável, com a divindade. Na
literatura mística cristã raramente podemos ver uma descrição de como se obter esse contato
místico, essa fruição, felicidade ou gozo que relata o encontro de nossa alma com a divindade,
mas, efetivamente, temos inúmeros relatos do momento e dos sentimentos vividos por essas
almas que se encontraram com os influzos da emanação divina.
O que efetivamente o fenômeno místico cristão quer significar é, primeiramente, um
movimento da alma para um objeto que está além dos limites da experiência empírica. Dentro

são possíveis mediante, por exemplo, a junção da noção do Logos Divino hebraico com a noção do Mundo das
Ideias de Platão, ou, de outra forma, a junção dos dados da Revelação com as ideias acerca da alma, sua origem e
movimentos expressas no livro Timeu de Platão. Irineu de Lião será um dos responsáveis pela importação da
noção de gnose para o ambiente cristão. Nesse momento o cristianismo irá reivindicar para si o título de
verdadeira gnose. A busca por esse sentido oculto, mas correspondente à verdade, e, por conseguinte, emanado
do contato da alma humana com as emanações divinas, estará expresso em todos os movimentos cristãos e
heréticos expressos desde os padres do período apostólico até as formulações de consolidação da dogmática
cristã, como podemos observar no sistema de Agostinho de Hipona.
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do modelo do cristianismo a mística se enquadra dentro da relação com o “mistério” de
Cristo, ou seja, ela busca a relação, conforme nos é relatado no Novo Testamento, com o
desígnio divino “de reunir todas as coisas em Cristo” (Ef. 1,9-10; Cl 1,20-27). Vejamos a
primeira dessas passagens: “9dando-nos a conhecer seu desígnio secreto, estabelecido de
antemão por sua decisão, 10que haveria de se realizar em Cristo ao cumprir-se o tempo: Que
o universo, o celeste e o terrestre, alcançassem sua unidade em Cristo.” (Efésios 1,9-10)3. A
dimensão mística do cristianismo acontece em geral na comunhão, ou seja, na experiência
onde o homem põe dentro de si o corpo de Cristo, mediante a ação do espírito Santo, para
poder ir de encontro ao Pai. Nesse sentido a experiência mística do cristianismo é um
caminho para a união da criatura com o Criador. Essa união acontece mediante uma
experiência religiosa, mística. É aqui que devemos entender a mística como sendo o caminho
para com a união com Deus, o caminho da salvação que, na ética cristã, e mediante uma
prática austera, cultiva-se a presença e a pertença na e da união com o Divino. A vivência da
experiência mística cristã é uma experiência de cunho contemplativo frente à beatitude na
medida em que estar com a divindade significa a posse direta dos atributos divinos, como o
belo, o verdadeiro, o absoluto. A vivência da experiência mística nesse ambiente específico
pode ser entendida como uma postura, como uma busca, como um estudo, como uma atitude.
Todas essas posturas se enquadram dentro daquilo que o mundo cristão comumente denomina
de ‘mística’. Segundo Smith, a noção de mística cristã:

é para ser descrita mais como uma atitude da mente, uma tendência inata da
alma humana, que busca transcender a razão e atingir uma experiência direta
de Deus, e que acredita que é possível para a alma humana estar unida com a
Realidade Última, quando ‘Deus deixa de ser um objeto e se torna uma
experiência’. Misticismo tem sido definido como ‘o sentimento imediato da
unidade do eu com Deus (...) é o esforço para estabelecer a imediaticidade da
vida em Deus como tal – nesta embriaguez-de-Deus, em que o eu e o mundo
são igualmente esquecidos, o sujeito conhece a si mesmo para estar na posse
da maior e mais completa verdade.4

O perfil dessa mística cristã, entretanto, não deve ser considerado como um
movimento único e uniforme. No período patrístico, onde a mística surge no contexto
supracitado de cunho neoplatônico, oriundo da tradição da gnose de Fílon de Alexandria,
teremos, nos relatos produzidos pelos Padres cristãos, uma tríplice acepção do termo: bíblica,
litúrgica e espiritual. Passemos, brevemente, a esboçar alguns elementos dessa tradição
relevantes para nossa pesquisa atual.

2.1. Elementos propedêuticos da acepção de ‘Mística’ no período Patrístico

Na mística do período patrístico evocavam-se alguns aspectos centrais, a saber: o


mistério da Escritura, a mística litúrgica, a visão espiritual da totalidade do existente, a mística
da luz e a mística das trevas. Por mistério da Escritura devemos entender todo o movimento

3
Todas as citações bíblicas que trazemos nesse trabalho foram obtidas mediante a versão da Bíblia da edição da
Bíblia Peregrino, Editora Paulus.
4
SMITH, 1980.
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que narra que a Bíblia é, por essência, mística, portanto, misteriosa. Dessa noção surge a
característica de meditação acerca da Palavra Divina, ou seja, a necessidade da busca do
escondido/misterioso que se encontra sob o texto sacro. Essa prática de alguns padres do
período apostólico e do início das Escolas Catequéticas faz nascer a noção de ‘interior’, visto
como subjetividade, e de uma contemplação adorante. Um exemplo claro dessa vertente pode
ser visto na herança textual e interpretativa do método da Escola de Alexandria, mais
especificamente nos textos, traduções e comentários realizados por Orígenes.
A mística litúrgica desenvolveu uma linha um pouco diversa. Nela existe uma
dicotomia em relação às concepções gregas e cristãs. A contraposição que se instaura ocorre
no choque da noção cíclica do tempo grego com a noção cristã que cria uma visão da
temporalidade mediante a instanciação da história no tempo, associando, contudo, a essa
noção, a dimensão da eternidade. O mistério está em entender a contraposição entre a
eternidade e a finitude. Os ritos que começam a ser desenvolvidos darão ênfase a como o
eterno se torna finito sem perder sua eternidade, ou seja, darão ênfase ao mistério da
encarnação de Cristo.
Outro elemento a ser considerado para o período é o da visão espiritual da totalidade
do existente. No cristianismo que se figura desde o início das comunidades cristãs
percebemos as influências da noção de theoria platônica. A filosofia grega impactava o
ambiente místico e religioso de todo o Império Romano, e com os cristãos primitivos isso não
foi diferente. Desde a formação das comunidades cristãs depois da morte dos discípulos, os
cristãos viram-se diante da pergunta de qual seria o locus da experiência com o divino:
intelectual, conceitual, imagética, mediada ou direta? Diante das várias respostas um aspecto
irá se perpetuar: a noção de ruptura do véu da realidade que dará acesso à ‘totalidade do ser’.
Essa noção tomada pelos cristãos fará com que se rompa com a união intelectiva grega e
instaure-se a união com uma realidade ‘espiritual’, misteriosa, que ultrapassa a condição de
descrição da racionalidade, portanto, uma visão mística.
As sucessivas visões de como se poderia viver a relação com a divindade não pararam
nas supracitadas descrições. O adensamento da relação do humano com o divino propicia o
surgimento de uma mística da luz e de uma mística das trevas. A mística da “luz” deve ser
vista como a revelação cristã que ocorre através da noção do Espírito e dos vários graus em
que ela pode ocorrer. Nesse sentido essa revelação ocorre tendo em vista a suspensão das
faculdades humanas, das mais simples até o esvaziamento total de todas as faculdades
humanas, quer sensoriais, quer intelectivas. Essa noção de tomada completa do humano pelo
contato com o divino, com suspensão de suas faculdades, será instanciada pelo conceito de
êxtase. Essa noção está intimamente ligada à gnose neoplatônica e pode ser vista nos diálogos
dos padres do deserto ou nas conversões de vários dos membros mais ativos das Igrejas
τrientais. Já a mística das “trevas” deve ser vista como um novo grau em relação ao anterior,
conforme o que nos é descrito por Gregório de Nissa, autor que nos relata tal mística mediante
a descrição de três graus de subida em direção a Deus: 1) a luz que nos dá a purificação para
que possamos estar diante de Deus; 2) uma contemplação dos inteligíveis que transcende os
sentidos e aquilo que podemos apreender; 3) mediante as trevas é introduzia outra via, a via
do amor, ou seja, o verdadeiro abandono dos parâmetros intelectivos e a busca da fruição
junto a Deus.
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Podemos entender esses dados descritos até aqui como sendo o primeiro momento de
busca da identidade do cristianismo. As reflexões e discussões que perpassaram esse período
demonstram que mediante a origem do cristianismo narra a vivência de homens e mulheres
que buscavam um encontro com o Cristo, ou seja, buscavam ter uma experiência íntima de
Deus. Essa experiência de Deus deve ser entendida como a busca de uma síntese entre uma
percepção humana, de um lado, e uma fé que avança exponencialmente para além dessa
percepção sensível, de outro. Diante disso o que temos que observar é que essa experiência de
Deus não é um sentimento simples ou mesmo o conjunto de sentimentos que se poderia ter
mediante a presença de Jesus. O que essa experiência íntima, mística, reflete, efetivamente, é
a síntese de todas as faculdades humanas, todos os sentimentos humanos com a fé cristã, a
pertença a Deus. Diante do exposto podemos estabelecer que a forma da cristandade entender
a possível experiência com Deus ocorre sempre de forma indireta, ou seja, essa experiência é
transmitida através de sacramentos, de sinais que são interpretados na e através da fé. Essa
será a herança da mística patrística para a mística na Idade Média.
Se essa herança da mística patrística oriunda do cristianismo primevo pode ser sentida
na mística desenvolvida na Idade Média, ainda nos restam alguns elementos fulcrais para
entendermos o que ocorria no medievo. Para que isso ocorra é necessário compreender a
relação dicotômica entre a noção de interior e a noção de exterior.

2.2. Elementos primevos da dicotomia interior versus exterior na mística cristã medieval

σo âmago da cristandade a voz de São Jerônimo nos coloca a seguinte questão: “à


pergunta sobre o que é mais importante para que haja um ser humano, Platão responde que é o
cérebro; Cristo, que é o coração”. Por mais que tal indagação possa nos parecer distante da
realidade hodierna, seus ecos podem ser ouvidos numa frase que nos parece esclarecedora
acerca da importância do interior e de sua primazia no âmbito da mística cristã desenvolvida
na Idade Média, a saber: “Agostinho estabeleceu, frente ao ceticismo antigo, a absoluta
realidade da experiência interior (na sua prefiguração do cartesiano cogito, ergo, sum). Mas
imediatamente tem lugar a volta para a metafísica: as veritates aeternae são as ideias na
consciência absoluta de Deus.”5.
Quando pensamos no centro da experiência mística cristã pensamos na dualidade ‘eu’
versus ‘mundo’. τ que a experiência mística quer provar é justamente o oposto, ou seja, ela
pretende dar conta de suprimir essa dualidade (eu x mundo). O que deve estar presente em
nossa mente é que a noção cristã da experiência mística é algo que ocorre quando é extinta a
separação das coisas, ou seja, quando a alma humana se une a Deus. Essa união com Deus
possibilita uma compreensão da realidade como sendo única, una. A vivência da experiência
mística é imediata, ela nos dá a união com essa alteridade e nos transforma em uma única
coisa junto a Deus. O grande problema então é coadunar nossa forma de pensar com essa
experiência uma vez que o pensamento humano sempre busca diferenciar as coisas (‘a’ é
diferente de ‘não-a’). A experiência mística rompe com os limites da linguagem e do
pensamento humano na medida em que pretende eliminar o distanciamento entre o homem e

5
HEIDEGGER, 1999.
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Deus. Assim devemos entender que a felicidade, o gozo máximo, o êxtase, somente serão
alcançados quando existir a união do homem com a Divindade.
A experiência mística vislumbra o arrebatamento dos sentidos transportando o homem
para uma experiência que é indescritível, um momento em que se têm um turbilhão de
sensações que transcendem todas as faculdades intelectivas e comunicativas humanas levando
a um desvelamento inabalável da verdade acerca do mundo. Essa experiência é imediata,
assim, ela elimina toda forma de dualismo e dá lugar à unidade, ao acesso à verdade absoluta
e à comunhão para com Deus. σas palavras de Smith: “τ objetivo dos místicos, então, é
estabelecer uma relação consciente com o Absoluto, na qual eles encontram o objeto pessoal
de vida. (...) Essa união que eles procuram é ‘a união da vontade humana com o Divino’.”6
O interessante de se observar é que a mudança almejada pela mística não é algo que
ocorre como a transmutação de fatos fenomênicos, não é efetivamente a mudança da estrutura
da realidade. A mudança na forma com que se apreende a alteridade se dá no homem, na sua
interioridade, na sua relação para com Deus. Na medida em que o homem se liberta da
imediaticidade do mundo fenomênico, não dependendo mais das coisas que estão no mundo,
ele se une a Deus e tudo é significado de outra forma. O que ocorre com a experiência mística
é uma libertação, por parte do humano, da experiência com os dados sensoriais do mundo
fenomênico. É o rompimento das experiências mediadas e a afirmação da imediaticidade das
coisas. σas palavras de Bento Silva Santos: “o homem é uma alma que, voltada para o
exterior, anima seu corpo no espaço e no tempo, na região múltipla do dessemelhante e que,
voltada para o interior, atinge o fundo incriado no qual Deus penetra e habita em sentido
próprio.”7
O que temos de dar relevância para o atual estado de nossa pesquisa é que a mística
pretende romper com as divisões entre o interior e o exterior pois busca algo imediato, uma
experiência da unidade com a divindade. Nas palavras de Leonardo Boff:

Se a mística é uma experiência imediata de Deus, então não poderia ser


expressa por nenhuma mediação, nem palavras, nem símbolos, nem gestos.
Efetivamente a maioria dos místicos nada diz. Vive, vê, contempla, goza,
sofre, participa. Para que dizer se ele é um com o Uno? Quem sabe não diz;
só quem não sabe diz. Mas como o Uno se dá também na palavra, alguns
místicos falaram e nos legaram escritos seus.8

A passagem supracitada nos coloca diante do último elemento de nossa reflexão nesse
ponto, a necessidade de refletir acerca dos limites da linguagem na descrição dessa
experiência mística que une o humano e o sagrado.

2.3. A mística medieval e o limite da linguagem e das expressões humanas

A linguagem humana não é capaz de suportar o fim da dualidade acima descrita, a


saber, o fim da dualidade ‘eu’ versus ‘mundo’. σossa estrutura linguística trabalha com

6
SMITH, 1980.
7
SANTOS, 2012.
8
BOFF, 1991, p. 20.
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proposições expressas mediante um sujeito e o predicado que lhe corresponde. Como a
experiência mística descreve justamente a união do sagrado com o humano, não existe como
estabelecer as relações proposicionais entre sujeito e predicado pois quando isso ocorre esse
elemento instancia uma alteridade e, dessa forma, não há a possibilidade da linguagem
alcançar ou expressar Deus e muito menos narrar o encontro com Ele.
As relações que a linguagem usa são relações de significados, não relações de estados.
Embora a linguagem não nos leve ao estado de contemplação, o uso da linguagem pode
despertar em nós o anseio da busca por tal estado. Os influxos da inteligência humana
expressos em forma linguística podem nos levar a busca de novos significados, de novas
experiências, dentre elas a experiência mística. Mas vale salientar que as palavras não nos
levam à experiência mística, elas apenas nos incitam o desejo de buscar por tal experiência.
O que devemos compreender a essa altura de nossa incursão é que a mística faz uso da
linguagem e das estruturas linguísticas à media em que ela usa a capacidade humana de
transmitir as impressões que se tem ou se vive. Nas belíssimas palavras de Boff:

A linguagem da mística do desnudamento se recolhe no silêncio sacrossanto.


Tudo o que se disser é tagarelice. A experiência não se diz, vive-se. (...) a
linguagem da mística se reveste de paradoxos: Deus é tudo e Deus é nada. O
mundo é infinito e o mundo é finito. As trevas sapo luminosas e a luz é
tenebrosa. O grande saber é não saber e o absoluto saber consiste em não
saber que não se sabe. A questão da dialética nos encaminha assim para o
problema da linguagem própria da mística.9

O que o trecho de Boff tenta salientar é que sempre que a linguagem tenta expressar a
totalidade da experiência mística ela falha. Mesmo podendo somente ativar o caráter
imaginativo da descrição, a linguagem não exprime a experiência mística, ela exprime
somente a alteridade, não aquilo que foi vivenciado pela experiência mística, ou seja, a
unidade com Deus. Por mais que a linguagem tente, ela somente tangencia a experiência
mística, ela nunca consegue atingi-la ou descrevê-la. A esse respeito Malherbe assevera:
“Finalmente, através de todas as formas de que ela poder revestir-se, essa experiência é única:
a verdadeira libertação do humano em Deus. Mas a experiência é incomunicável em sua
pureza, em sua singularidade, em sua intensidade.”10 Ainda, na mesma direção, Boff afirma,
frente à impotência da linguagem em exprimir a experiência mística, que os místicos: “Apesar
de sentirem um com a palavra, sentem que a palavra não constitui a realidade fundamental e
una. Ela tenta balbuciar a experiência da unidade, mas não produz a unidade; pode, no
máximo, evocá-la e despertar em nós o desejo de busca.”11
Apesar dessa limitação, os místicos, ao tentarem transmitir suas experiências, se
utilizam de artifícios linguísticos muito variados para que tal experiência possa ser
apreendida. É nesse sentido que veremos neologismos, metáforas, analogias e vários outros
artifícios que tentarão demonstrar o que foi essa vivência da experiência mística de retorno ao
criador.

9
BOFF, 1991, p. 16.
10
MALHERBE, 2006.
11
BOFF, 1991, p. 20.
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Nesse contexto riquíssimo do cristianismo medieval, onde se pretende dar conta de
narrar aquilo que foi vivenciado por uma experiência mística, observamos o surgimento de
uma linguagem mística erótica. Essa linguagem, em sua maioria, foi produzida pelas
narrativas das vivências místicas das monjas do medievo. Cada uma delas se expressa de uma
forma, mas um elemento se torna central em suas narrativas: a vivência de uma relação de
intimidade para com a divindade, relação essa descrita mediante uma linguagem amorosa
onde a amante e o amado se tornam unos. Passemos, pois, a investigar alguns dos elementos
fulcrais que permeiam tais narrativas.

III. Aspectos introdutórios da Mística erótica no medievo cristão

Uma das imagens mais instigantes acerca de monjas medievais a que tive acesso foi a
iluminura de Santa Gertrudes12. Nela temos dois planos: o superior onde aparece um fogo
saindo de seu coração e formando outro coração com as inscrições que remetem às iniciais da
cruz de Jesus; o plano inferior onde aparece a figura da monja ajoelhada diante de um altar
que dá sustentação a um crucifixo com a imagem de Cristo, onde vemos a emanação de uma
luz que sai do peito de Cristo e se dirigi ao coração da Santa. Em amplos os planos temos a
mesma motivação: a tentativa de expressar a relação entre o coração da Monja e o coração de
Cristo, portanto, uma tentativa de ilustrar uma relação amorosa entre o humano e o divino.
Essa imagem instancia aspectos simbólicos daquilo que é visto como uma espécie de
linguagem amorosa dentro da mística. Essa linguagem é fundamental para entendermos os
padrões do que é a mística erótica no medievo.
A linguagem na mística, como vimos anteriormente, narra uma experiência. A
linguagem amorosa é muito usada na mística na medida em que manifesta a relação amorosa
entre a criatura e o criador. Ao assumir tal característica a linguagem mística amorosa tenta
explicitar a grande paixão ou gozo que é provocado pela posse do amado. Vejamos uma
passagem de Nicolau de Cusa:

Por isso, és o amor infinito que, sem o amante, o amável e o nexo de ambos,
não pode ser visto por mim como amor perfeito e natural. Com efeito, como
posso conceber o amor sumamente perfeito e natural sem o amável e a união
de ambos? No amor contraído experiencio que o fato de o amor ser o
amante, o amável e a união de ambos deriva da essência do amor perfeito.
Mas aquilo que pertence à essência do amor perfeito contraído não pode
faltar ao amor absoluto do qual o amor contraído recebe o que de perfeição
comporta. Mas, quanto mais simples o amor tanto mais perfeito. [...] Aquelas
coisas que ocorrem como sendo três, ou seja, o amante, o amável e o nexo,
são a essência mais simples absoluta. Por isso não são três, mas uma só.13

12
Santa Gertrudes, monja do Mosteiro de Helfta, perto de Eisleben, na Saxônia, Alemanha, nasceu em 1256 e
iniciou sua vida monástica aos 5 anos, tendo por mestra Santa Matilde de Hackeborn. Ela é considerada uma das
maiores místicas medievais. Morreu ainda jovem aos 33 anos de idade.
13
NICOLAU DE CUSA. De visione dei, h VI, Cap. XVII, 72: 1-10 e 73: 1-3, p. 198.
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Em outra passagem o cusano ainda assevera: “Revelam-se mutuamente os seus
segredos os espíritos cheios de amor. E com isso aumenta o conhecimento do amado, o desejo
dele e inflama-se a doçura da alegria.”14
Um exemplo eloquente da linguagem do amor, no que se refere ás místicas medievais,
é a narrativa de Beatriz de Nazaret15, no manuscrito intitulado de Os sete graus (modos) do
amor. No manuscrito citado acima a mística medieval assim nos relata cada um dos sete graus
ou modos do amor: 1) o primeiro grau é o de um amor associado ao desejo ativo do amor; 2)
o segundo grau é o de um amor descrito como serviço gratuito em prol de Deus; 3) o terceiro
grau é aquele onde se insere um amor entendido como a busca de saciação do amor mediante
a honra, o serviço, a obediência e a submissão; 4) o quarto grau apresenta um amor que se
manifesta na perenidade que se torna desperta na alma e conduz os sentidos e a vontade ao
amor de tal modo que se perde o uso dos membros e dos sentidos; 5) o quinto grau que
instancia o amor visto como uma explosão do amor, como uma tempestade que toma de
assalto a alma enamorada e a faz perder-se pelo amor, aspecto narrado como sendo uma
torrente avassaladora que consome, e justamente pelo fato de consumir traz o sofrimento nos
momentos em que ele cessa; 6) o sexto grau que apresenta uma descrição de um amor mais
ponderado, como o da esposa santa em relação ao marido, amor esse que conduz a um
conhecimento mais íntimo e elevado; 7) o sétimo e último grau que postula um amor sublime
que ocorre somente no interior da alma superando toda a humanidade e colocando em união o
amante com a eternidade do amor e o amor eterno, elemento de união que ocorre na
inteligibilidade e nas alturas inacessíveis do abismo da Deidade.
Contudo, comumente, essa linguagem amorosa assumia aspectos próprios da
carnalidade. Aqui um fato é digno de nota: toda a mística recusa a carne pois ela leva a um
movimento que ultrapassa o corpo como símbolo da materialidade e, por isso, tende a romper
definitivamente com essa ‘prisão’ corporal. Contudo, levando-se em conta a união mística
vislumbrada pela linguagem amorosa que ela implica, em relação às pulsões eróticas, o que
ela conduz refere-se à uma sublimação da carne. Entrementes, ao mesmo temo em que essa
linguagem e experiência mística nega a carnalidade, ela retorna à carne, mas a noção a que ela
alude é a uma noção de carnalidade transcendente. O que temos nesse movimento, portanto, é
o uso de uma linguagem que se apresenta como erótica pois sempre traz os dados e as
inferências da carnalidade, ou por recusa, ou por aceitação, via uma noção de sublimação
transcendente.
A linguagem mística amorosa desenvolve todo um vocabulário que comporta um
grande pathos, ou seja, um afeto exagerado que se mescla com os elementos da
cotidianeidade. Essa dinâmica sempre narrará um fogo e um ardor extraordinário que tomam
conta do intelecto, da alma ou do espírito. E é justamente aqui que teremos o influxo do
elemento ‘erótico’.

14
NICOLAU DE CUSA. De visione dei, h VI, Cap. XXV, 117: 7-9, p. 237.
15
Nascida na cidade de Tirlemont, Bélgica, por volta de 1200, ela morre em 1269. Beatriz de Nazaret foi monja
cisterciense e ingressou no convento com 17 anos de idade. Ela foi canonizada pela Igreja e sua iconografia
apresenta uma imagem de uma monja com uma flecha transpassando seu coração e uma pena sendo segurada por
sua mão.
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Durante a Idade Média percebemos que a mística foi usada para tentar descrever a
relação do fiel para com Deus, ou seja, ela buscava desvendar a relação amorosa entre ambas
as partes. Essa tentativa de descrição, em muitos discursos, principalmente nos discursos das
místicas medievais, assume uma linguagem sensual, erótica, principalmente quando a
narrativa descreve a relação amorosa e de fruição de uma mística com Deus. Essa linguagem
de cunho erótico tinha como objetivo a descrição da relação afetiva do amor do fiel para com
Deus. Ora ela se apresenta de forma implícita, ora de explícita.
Um exemplo desses elementos que acabamos de mencionar pode ser notado nas
entrelinhas das palavras de Santa Teresa de Jesus, comumente conhecida como Santa Teresa
d’Ávila, a saber:

Via um anjo ao pé de mim, ao lado esquerdo, em forma corporal [...] Não era
grande, antes pequeno, muito belo, e o rosto tão incendido, que parecia ser
dos anjos mais elevados – desses que parecem abrasar-se todos [...] Vi-lhe
nas mãos um grande dardo de ouro, e na ponta da arma pareceu-me ver um
pouco de fogo. E parecia que mo enfiava pelo coração algumas vezes e me
chegava até as entranhas. Ao tirá-lo, cuidava eu que as levava consigo e me
deixava toda abrasada num grande amor de Deus. A dor era tão forte que me
fazia soltar gemidos; e tão excessiva a suavidade que me deixava aquela dor
infinita, que não se podia desejar que me deixasse nem se contenta a alma
com menos do que Deus. Não é dor corporal, mas espiritual, embora o corpo
não deixe de ter participação e grande. É um trato de amor tão suave que
passa entre Deus e a alma que, suplico eu à sua bondade, faça-o gozar a
quem pensar que estou mentindo.16

Em outra passagem de sua biografia, ela afirma:

Via-lhe nas mãos um comprido dardo de ouro. Na ponta de ferro julguei


haver um pouco de fogo. Parecia algumas vezes metê-lo pelo meu coração a
dentro, de modo que chegava às entranhas. Ao tirá-lo tinha eu a impressão
de que as levava consigo, deixando-me toda abrasada em grande amor de
Deus. Era tão intensa a dor, que me fazia dar os gemidos de que falei. Essa
dor imensa produz tão excessiva suavidade que não se deseja o seu fim, nem
a alma se contenta com menos do que com Deus.17

O uso da linguagem amorosa e mística não ocorre somente nas narrativas das místicas
cristãs. João Crisóstomo (350-407), um dos mais importantes religiosos da Patrística Cristã,
em uma de suas homilias narra que Deus era não somente o esposo ideal das virgens como,
também, apresentava-se como um amante mais ardente do que qualquer homem poderia ser.
Alguns exemplos dessa noção de amante ardente estabelecidas por místicas medievais serão
bem elucidativos para nosso objetivo. Santa Tereza era sempre facilmente transportada para
seus encontros com Jesus de tal forma que um padre chegou a lhe proibir que orasse, mesmo
que mentalmente. Ao padre, Tereza não confessou que tinha ciúmes de Maria Madalena. Mas

16
LEÓN, 1998, p. 171. Caso a narrativa ainda não seja suficiente para a compreensão a que nos referimos seria
interessante observar a narrativa da escultura de Santa Teresa, descrita no terceiro parágrafo de nossa introdução,
local onde associamos a escultura da Santa em todas as expressões que ela demonstra aos sinais de um gozo
carnal.
17
LEÓN, 1998.
69
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confessou seu ciúme a Jesus, e Ele a tranquilizou dizendo que preferia Tereza a Maria
Madalena e que, sempre que Tereza estivesse com ele, ela seria a única 18. Catarina de Siena
(1347-1380) num dos seus frequentes momentos de êxtase diz que recebeu das mãos de Jesus
o seu prepúcio para que ela se tornasse sua esposa. Ela narra o seguinte: “não com um anel de
prata, mas com uma aliança feita de sua própria carne sagrada, pois quando lhe circuncidaram
esse aro foi retirado do seu corpo sagrado”19. Angela de Foligno (1248-1309), ainda casada,
teve visões de Jesus em que mantinha relações amorosas com Ele e, para isso, diante do
crucifixo, quando iria orar, tirava toda a sua roupa20. Já Catarina de Gênova (1447-1510)
afirmava que Jesus lhe beijava a boca21. Para finalizar esses breves exemplos queremos trazer
à baila uma escultura da Beata Ludovica. Torna-se digno de nota que Ludovica conhecia o
prazer sexual pois já fora casada. Na escultura da beata Ludovica exposta na Capela Altieri da
igreja de Francisco a Ripa Grande a imagem nos relata a beata deitada numa cama, retorcida
em uma espécie de espasmo, as mãos sobre os seios, a cabeça reclinada, os olhos e a boca
entreabertos. Ela se apresenta toda coberta em suas vestes e deitada sobre um leito de
mármore. A escultura nitidamente nos mostra uma mulher que sofre fisicamente todos os
sinais de um gozo carnal. A noção do erotismo que observamos ao deter o olhar na referida
escultura pode ser extraída na medida em que o prazer pode ser interpretado na seguinte
sequencia de detalhes explícitos: as pontas dos dedos da mão direita tocando o seio direito e a
mão esquerda pressionando o abdômen; a cabeça voltada para trás, e para o lado, com a boca
permanecendo ligeiramente entreaberta; os olhos serrados.
Consideramos, todavia, que esses exemplos se constituem de fontes secundárias das
narrativas das místicas medievais e somente nos colocam diante da existência dessas
narrativas. De forma mais detalhada veremos os influxos da monja beguina Hadewijch de
Amberes22 através de alguns trechos selecionados de suas narrativas. Cremos que com esses
exemplos iremos lapidar as noções que até o momento demos daquilo que pode ser descrito
como sendo constitutivo de uma mística erótica no medievo.
O primeiro trecho, extraído de suas cartas, nos relata a posição de abandono do eu e
perda da identidade pessoal diante do contato com o divino. Ela nos diz: “Minha única
satisfação seria pensar que, sendo eu humana, experimentava o amor em meu coração amante
e que, sendo Deus tão grande, eu com a privação de toda satisfação podia com minha
humanidade alcançar a divindade (...).” (Hadewijch de Amberes, Cartas, 29). Em outra
passagem ela esboça alguns elementos que demonstram a impossibilidade de respostas
intelectivas para as perguntas suscitadas frente ao encontro com a divindade e o caráter de
carência que a falta do amado traz ao amante: “Como se unem estas duas metades da alma?
Esta pergunta nos levaria muito longe e não ouso dizer mais. Por outra parte, é demasiado o
que me falta para satisfazer ao amor, mas também temo que gente estrangeira venha a semear

18
Livre narrativa da biografia de Tereza apresentada por Guido Ceronetti, L'Occhiale Malinconico.
19
Trecho citado por Diane Ackerman na obra Le livre de l'amour.
20
Trecho extraído das narrativas de Adolf Holl na Obra A mão esquerda de Deus: Uma biografia do Espírito
Santo.
21
Trecho extraído das narrativas de Cioran na obra Précis de décomposition.
22
Nasceu no final do século XII em Amberes, região de Brabante, hoje Bélgica. Sua morte é datada em 1260,
em Nivelles. Seus escritos datam da janela de 1235 a 1244. Pertenceu a uma comunidade de mulheres católicas
laicas conhecidas como beguinas.
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urtigas ali onde deveriam florescer rosas.” (Hadewijch de Amberes, Cartas, 19). A certeza de
que a linguagem é limitada e que nunca conseguirá exprimir a totalidade da experiência
mística pode ser atestada na seguinte passagem:

faz quatro anos na festa da Ascensão por Deus Pai em pessoa no momento
em que seu Filho descia sobre o altar. Ao descer ele me beijou e com este
signo fiquei marcada. E passei a ser uma com ele na presença de seu Pai, que
me recebeu em seu Filho e o recebeu a ele em mim. Recebida na unidade fui
iluminada de tal forma que compreendi esta essência e dela tive
conhecimento mais claro do que se pode ter com palavras ou com razões ou
visões, tratando-se de coisas desta terra, [...] isto poderia passar por
maravilha. Mas embora quando confesso que parecem maravilhas, estou
segura de que não te assombrarás, sabendo que a linguagem celestial supera
a compreensão terrena. Para todo o terreno se encontram palavras e se pode
dizer em neerlandês, mas aqui não me serve o neerlandês nem tampouco
palavras. Apesar de que conheço a língua mais a fundo que se pode, não me
serve para o que acabo de mencionar e não conheço meio de expressá-lo.
(Hadewijch de Amberes, Cartas, 17)

Em um de seus poemas a monja trata dos nomes do amor. Nele temos sete níveis.
Acerca do sétimo ela assevera:

O sétimo nome é Inferno


deste amor do que experimento o tormento,
pois não existe nada que o amor engula e danifique.
E nada que nele cai
e que ele apanha pode livrar-se,
pois não acorda graça alguma.
E como o Inferno todo o arruína,
não se alcança no amor outra coisa
que tortura sem piedade,
nem um instante de repouso, sempre
um novo assalto, perseguição nova,
ser devorado por completo, engolido
em sua essência abismal,
encontrar-se incessantemente no calor e no frio,
na profunda e alta treva do Amor.
Isto supera os tormentos do Inferno.
Ele que tem conhecido ao Amor e suas idas e vindas,
tem experimentado e pode entender
porque é verdadeiramente apropriado
que Inferno seja o mais alto dos nomes do Amor.
(Hadewijch de Amberes, Poemas de rima mixta, 16, lín. 149-168)

Na obra que relata suas visões ele descreve o que Jesus quer dela, o que ele a instrui a
fazer e pensar. Ele a ensina a se tornar um verdadeira amante do amor divino e de sua fruição.
Na narrativa da monja:

Eu, segui dizendo, me darei a ti secretamente, minha mais amada, quando


desejes possuir-me, pois não desejas que ter consolem nem te conheçam
estranhos. Te darei a compreensão de minha vontade e a arte do verdadeiro
Amor e de sentir-te unida a mim, às vezes, nas tormentas do Amor, nos
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momentos nos quais não poderias sustentar-te sem sentir-me, e nos que tua
carga se faz demasiada pesada. Com esta compreensão, transmitirás
sabiamente minha vontade a quantos necessitam conhecê-la através de ti.
Jamais até hoje falaste nada, nem o falarás até o dia em que eu te diga: ‘teu
trabalho já foi cumprido’. Com Amor tens de viver, perseverar e cumprir
minha secreta vontade pois que me pertence e eu te pertenço. E sentir-te em
mim tem de bastar-te, e tu me bastarás a mim. Assim age minha vontade
com a compreensão, minha mais amada amante. Assim gozarás de mim.
Esta é a arvore descrita pelas palavras que te tenho revelado: o chamado
conhecimento do Amor. E pois te tem predicado tantas coisas que te
oprimem até o inferior, quero mostrar-te eu mesmo o que quero de ti. Deves
regressar tranquilamente e fazer o que te tenho recomendado. Se assim o
queres, toma folhas desta árvore: é o conhecimento de minha vontade. E se
te sentes afligida toma uma rosa da copa e da roa uma pétala, é Amor. E se
sentes que não podes sustentar-te toma da rosa o centro, que significa o dom
que te concedo de sentir minha proximidade. Terás sempre o conhecimento
de minha vontade e a experiência de Amor, e na necessidade me sentirás em
fruição. Assim age meu pai comigo, embora seja seu filho. Me desejou na
aflição mas não me abandonou. O sentia na fruição e servia àqueles aos que
me havia enviado. O coração que se fala no centro da rosa é a fruição de
Amor nos sentidos. Ajuda, amada minha, a quantos estão aflitos, fazem o
bem ou o mal contigo, o Amor te confere as forças para isso. Dá tudo, pois
tudo é teu. (Hadewijch de Amberes, Visiones, 1, lin. 383-427)

No que se refere ao desejo de se entregar nos braços do Amado e de sentir-se completa


por ele temos:

Por isso só quero dizer isso: Desejava a plena fruição de meu Amado,
conhecê-lo e saboreá-lo plenamente, com tudo o que o pertence; desejava
gozar em sua totalidade de sua humanidade unida com a minha e que a
minha, alicerçada na sua, fosse mais forte e ganhasse firmeza e possuísse
firmeza, pureza e unidade suficiente para satisfazê-lo plenamente em toda
virtude. Para isso desejava que ele me satisfizesse interiormente com sua
Divindade, em unidade de espírito, e que fosse em mim total e integralmente
o que Ele é, sem restar nada. Pois dentro todos os dons que tenha desejado,
escolho este: satisfazê-lo em todos os grandes sofrimentos. Pois a mais
perfeita satisfação é crescer para ser Deus com Deus, mas isto requer sofrer
penas, dor e exílio e viver sempre em renovados pesares, mas desejando que
tudo chegue e passe sem sofrer e experimentar assim nada mais que o doce
amor, as carícias e os beijos. Assim desejava eu que Deus se me entregasse e
poder dar-lhe satisfação. (Hadewijch de Amberes, Visiones, 7, lin. 21-41)

Tal desejo de entrega também tem o lado da falta, do abandono quando não é possível
estar nessa união. Para ela:

O desejo de Amor me atormentava tão terrível e penosamente que cada um


dos meus membros parecia quebra-se e todas minhas veias se achavam em
violento esforço. O anseio no qual me encontrava não pode ser expresso em
nenhuma língua e por nenhuma pessoa que o conheça, e quanto puder dizer
dele será inaudível para todos aqueles que nunca tenham experimentado o
Amor nas obras do desejo e aos que o Amor nunca tenha reconhecido como
seus. (Hadewijch de Amberes, Visiones, 7, lin. 1-20)

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Se o primeiro momento é marcado pelo sofrimento da falta, quando a presença D’Ele
se torna efetiva é possível saboreá-lo e vivenciá-lo. Ela nos relata esse momento de saciação
da seguinte forma:

Depois disso veio a mim, me tomou por completo em seus braços e me


apertou contra ele; e todos meus membros sentiram os seus em uma
felicidade plena; de acordo com o desejo de meu coração, de acordo com
minha humanidade. Deste modo fui saciada de forma plena e perfeita
exteriormente. Durante um tempo tive forças para suportá-lo; mas em
seguida, depois de muito pouco, perdi ao esplêndido homem em sua forma
externa, o vi desaparecer, desvanecer e dissolver-se por completo na
unidade, de forma que não poderia reconhecê-lo ou percebê-lo fora de mim e
já não poderia distingui-lo de mim mesma. Me parecia como se fôssemos
Um sem diferença. Quer dizer: exteriormente a vista, o gosto, o tato eram
como quando alguém saboreia, vê e sente ao Receber o Sacramento a partir
do exterior. De forma que a amada se une com o amado em plenitude
perfeita da vista e do ouvido, e se perde em um e no outro. (Hadewijch de
Amberes, Visiones, 7, lin. 42-93)

Por fim, como um exemplo da paixão arrebatadora que desnuda a alma e da união
amorosa que a experiência visionária da mística funda em relação à união do interior e
exterior, temos:

fora de meu espírito, de mim mesma e de quanto havia visto n’Ele, e perdida
por completo, caí no seio da fruição de sua natureza de Amor. Ali permaneci
perdida e aterrada sem compreensão nem conhecimento nem visão nem
outro entendimento espiritual que o de ser uma com Ele e gozar dessa
fruição23. [...] Então caí em um abismo sem fundo e saí de meu espírito
nessa hora em que nada podia dizer24; [...] depois, permaneci perdida em
meu Amado, e me fundi nele de maneira que nada restou de mim25.

IV. Considerações Finais

No presente trabalho procuramos mostrar alguns dos elementos que estamos


investigando em nossas pesquisas atuais relativas à Mística no Medievo, especificamente a
linguagem erótica e sensual da mística amorosa. Sabemos que os elementos que levantamos
nesse trabalho são elementos apenas propedêuticos. Contudo, vale salientar que esse texto
demonstra somente um aspecto introdutório de nossas pesquisas, e que, longe de pretender
exaurir o tema, o que pretendemos é compartilhar o sentimento de curiosidade e busca que
esses textos nos infundem.
Durante muito tempo as pesquisas relativas à mística deixaram de frequentar o
ambiente acadêmico brasileiro. Durante muitos anos a mística cristã, principalmente a
medieval, foi vista pelos acadêmicos brasileiros como uma linguagem ideológica que levava o
povo ao vício, à alienação. Tais elementos desenvolveram, mesmo no seio da formação
eclesiástica das dioceses brasileiras, certa repulsa aos místicos, aos místicos medievais e,
23
Hadewijch de Amberes, Visiones, 6, lin. 82-88.
24
Hadewijch de Amberes, Visiones, 13, lin. 255-258.
25
Hadewijch de Amberes, Visiones, 7, lin. 94-97.
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principalmente, às místicas da Idade Média. Entrementes, nos últimos anos, essa realidade
está mudando.
O presente trabalho pretende tão somente mostrar aos pesquisadores acadêmicos, aos
religiosos e aos curiosos em geral que a Idade Média não foi um período de trevas onde a
mística alienava as pessoas. Por detrás da linguagem mística encontramos implicações morais,
epistêmicas, ontológicas, metafísicas e dogmáticas de altíssimo nível. Por isso entendemos
que seria de grande ajuda despertar o interesse dos estudantes em ver, textualmente, como
essa linguagem se instaura, se exprime e ainda é muito atual. Esse foi o foco de nosso trabalho
e é a pretensão que almejamos alcançar.
As conversas com as Professoras Maria Simone, Suelma e Luciana, mencionadas em
nossa introdução, ainda darão muitos trabalhos em conjunto com interfaces dentro dos textos
produzidos pelas místicas medievais. A elas segue o meu agradecimento pela possibilidade de
reorganizar minhas pesquisas e voltar a um tema que ficou em segundo plano durante muitos
anos de meus estudos acerca do medievo.
O que podemos dizer com certeza é que a linguagem envolvente e sensual usada pela
mística amorosa e erótica do medievo envolve elementos muito complexos que de certo
deixam os leitores inebriados. É uma linguagem que une o mundo humano ao divino
mediante a vivência concreta e real da presença e pertença do sagrado no humano. Para
finalizar cito uma passagem de um cardeal da Igreja que viveu a transição do fim da Idade
Média e o início do Renascimento: “pela fé o intelecto aproxima-se do verbo, pelo amor une-
se a ele.” (σICτLAU DE CUSA. De visione dei, h VI, Cap. XXIV, 113: 7-8, p. 233.)

V. Referências

BOFF, L. Introdução. In.: ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos
seletos. Petrópolis: Vozes, 1991.
HEIDEGGER, Martin. Estudios sobre mística medieval. Trad. de Jacobo Muñoz. 2ª ed.
México: Fondo de Cultura Económica, 1999.
LEÓN, Luiz (Edit). Vida de Santa Teresa de Jesus escrita por ela mesma. Tradução de
Rachel de Queiroz. São Paulo: Loyola, 1998.
MALHERBE, J. Sofrer Deus: a pregação de Mestre Eckhart. Aparecida: Editora
Santuário, 2006.
CUSA, Nicolau de. A visão de Deus. 3ª ed. Trad. de João Maria André. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2010.
SANTOS, Bento Silva. O Gottesgeburtszyklus de Meister Eckhart: a mística fundamental do
“nascimento de Deus na alma” (Sermões 101 a 104). In.: Revista Mirabilia. nº 14: Mística e
Milenarismo na Idade Média, Jan-Jun de 2012, p. 124-134.
SMITH, M. The nature and meaning of mysticism. In.: WOODS, R. Understanding
mysticism. Garden City: Image Books, 1980.

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POSSIBILIDADES DE UMA LEITURA HERMENÊUTICA DAS CONFISSÕES DE
AGOSTINHO DE HIPONA: A FILOSOFIA RICOEURIANA COMO VIA PARA
REINTRODUÇÃO DO SAGRADO NA LEITURA FILOSÓFICA DAS CONFISSÕES

Andrés Bruzzone
(USP)
andres.bruzzone@usp.br

Poucas obras tão lidas, comentadas e interpretadas, desde solos tão diferentes, como as
Confissões de Agostinho de Hipona. Poucas obras foram apropriadas com sentidos tão
diversos, muitas vezes desde filosofias franca e irreconciliavelmente opostas. Poucas obras
geraram e geram tantas interpretações “definitivas” que, contudo, nunca conseguem dar conta
do conjunto sem que algo fique sobrando ou faltando.
É livro que nos interpela desde antes da leitura: nos questiona sobre nossa situação
como leitores. Com efeito, como lemos as Confissões de Agostinho no século XXI, nós que
carregamos uma história da filosofia onde não é possível ignorar a Aufklärung, onde não
podemos abrir mão da interdição kantiana que nos impede colocar no terreno da crítica as
questões vinculadas com Deus? Está claro que filosofia e fé têm discursos autónomos e que
não cabe à primeira se ocupar da segunda.
Mas Agostinho nos coloca um problema sério, que Jean-Luc Marion define muito bem
no seu Au lieu de soi – l’approche de Saint Augustin: se lermos como filósofo, estaremos
deixando de fora aquilo que há de mais importante para o próprio Agostinho, que é a busca de
Deus. E se lermos como teólogo, estaremos abdicando da filosofia.
Marion entende que não se pode depurar Agostinho, extirpando a fé de seu texto,
retirando o pensamento filosófico do seu ambiente bíblico e purgando suas implicações
teológicas. Propõe o que ele chama de leitura não-metafísica, sem com isso fazer leitura
teológica, que seria tão imprópria como uma leitura filosófica. Assim, sugere evitar importar
em Agostinho os conceitos e o léxico da metafísica.
O soi que resulta desta leitura é um soi afastado, divorciado do ego: um soi que se
define pelo desejo de beatitude, uma beatitude que o ego não pode alcançar por si, menos
ainda ter em si. Um ego sem essência que “performa, conhece e se apropria da sua existência,
mas para perder seu si”
Não é essa a leitura costumeira nas faculdades de filosofia, onde Agostinho é tratado
como filósofo. “Como se fosse” texto filosófico, tomando para isso a dimensão filosófica que
também está nele, e para isso prescindindo da dimensão querigmática, sem a qual o texto já
não é o mesmo texto. Mas o Agostinho que resulta destas leituras é um Agostinho amputado,
desnaturado. O cientista estuda o funcionamento do corpo a partir de órgãos mortos, mas o
faz sabendo que a vida que lhes falta é o que lhes da sentido. Sem Deus, sem Palavra
revelada, sem absoluto e sem conversão, o que sobra de Agostinho não é menos corpo morto.
Uma alternativa é a leitura que faz recurso à filosofia hermenêutica de Paul Ricoeur,
especialmente a noção de identidade narrativa. Bochet, Alici, Moraes e outros têm
desenvolvido essa via de interpretação, mostrando como deixa em evidência aspectos do texto
agostiniano que outras ferramentas ocultam.
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Na possibilidade de reinstalar a o sagrado na leitura das Confissões, sem sair do campo
filosófico, é onde o encontro de Agostinho com Ricoeur se faz mais rico. Para avançar com
esse argumento será necessário apresentar as definições de identidade narrativa, de ipse e
idem e de caráter, próprios da filosofia de Ricoeur.

Identidade narrativa ricoeuriana

A identidade pessoal é o lugar privilegiado da confrontação entre dois usos maiores do


conceito de identidade: idem e ipse”, diz Ricoeur introduzindo, assim, a questão em Soi-même
comme un autre. De um lado, identidade como mesmidade (mêmeté), idem em latim,
sameness em inglês, Gleichheit em alemão; do outro, a identidade como ipseidade: ipse em
latim, selfhood em inglês, Selbeist em alemão. O mesmo e o si-mesmo.
Mesmidade é um conceito de relação e uma relação de relações. Em primeiro lugar, a
identidade numérica: duas ocorrências de uma mesma coisa designada pelo mesmo nome não
formam duas coisas diferentes, mas uma mesma coisa. A isto corresponde a identificação
como reidentificação do mesmo, o conhecer como reconhecer. Em segundo lugar, a
identidade qualitativa, a semelhança extrema: duas pessoas levam o mesmo vestido, isto é,
roupagens tão semelhantes entre si que são intercambiáveis. A isto corresponde a substituição
sem perda semântica.
A diferença aparece como problema somente quando se introduz a questão da
temporalidade.
Ambos componentes da identidade são irredutíveis entre si, mas não são estrangeiros
um do outro. É na medida em que o tempo é implicado nas ocorrências de uma mesma coisa
que a reidentificação do mesmo pode gerar dúvida ou contestação, e é quando entra em jogo a
semelhança extrema entre duas ou mais ocorrências, como critério indireto para reforçar a
presunção de identidade numérica. Isto pode não apresentar problemas num curto tempo, mas
quando a distância entre ocorrências se faz grande, a certeza diminui, e Ricoeur evoca
processos criminais e, particularmente, os referidos a crimes de guerra.
Aparece então o terceiro componente da identidade, o da continuidade ininterrompida
entre estados de desenvolvimento do que se considera um mesmo indivíduo: crescimento,
envelhecimento, certo, mas também a mudança que ocorre num carvalho, da semente à
arvore, e num animal, do nascimento à morte. E a mesma coisa para um homem. A
demonstração desta continuidade funciona como critério “anexo ou substitutivo” da
semelhança, e repousa sobre a colocação em série ordenada de mudanças menores que,
tomadas uma a uma, ameaçam a semelhança sem destruí-la.
O tempo é, claramente, fator de dessemelhança, de distanciamento, de diferença, e, por
isso, um princípio de permanência no tempo conjura a ameaça que ele representa. Este
princípio pode ser a estrutura de um útil do qual se trocam as peças, mas continua o mesmo,
ou o código genético de um indivíduo biológico: uma ideia de estrutura, a organização de um
sistema, por oposição a um evento, responde a este critério de identidade e confirma o caráter
relacional da identidade.

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Este caráter relacional da identidade está presente em Kant, que classifica a categoria
de substância entre as categorias de relação como condição de possibilidade de pensar a
mudança.
Ricoeur se pergunta se a ipseidade do si pode ser pensada em termos de uma forma de
permanência no tempo que não implique a determinação de um substrato, mesmo no sentido
relacional kantiano. Uma forma de permanência vinculada à pergunta pelo “quem?”,
irredutível ao “quê?”.
Há dois modelos de permanência no tempo disponíveis para falar de nós mesmos: o
caráter e a palavra mantida. Entre ambos reconhecemos uma permanência que dizemos ser
“de nós mesmos”, e Ricoeur entende que a polaridade dos dois modelos resulta do
recobrimento quase total entre as problemáticas do idem e do ipse, enquanto a fidelidade a si
na palavra mantida marca o afastamento extremo entre a permanência do si e a do mesmo,
atestando a irredutibilidade entre elas.
Caráter é o conjunto das marcas distintivas que permitem reidentificar um indivíduo
humano como o mesmo: acumula a identidade numérica e qualitativa, a continuidade
ininterrupta e a permanência. É por isso que o caráter pode constituir o “ponto limite” em que
ipse e idem se aproximam e se recobrem. Neste sentido, o aspecto temporal da disposição
colocará o caráter na via da narrativização da identidade pessoal.
Em primeiro lugar, à noção de disposição se vincula a de hábito, como hábito que está
sendo e que já foi adquirido. O hábito da uma história ao caráter, mas uma história onde a
sedimentação recobre ou até mesmo abole a inovação que a precedera. Cada hábito adquirido
e transformado em disposição se faz traço do caráter – mais um desses traços que, somados,
constituem o caráter.
O segundo elemento que se vincula à disposição são as identificações adquiridas, pelas
quais o outro entra na composição do mesmo. A identidade de uma pessoa ou de uma
comunidade se faz a partir de identificações a valores, normas, ideais, modelos, heróis, nos
quais a pessoa ou a comunidade se reconhecem. Reconhecer-se em e reconhecer-se a: há uma
alteridade assumida, manifesta nas figuras heróicas, mas é uma alteridade que já está latente
na identificação a valores que faz com que se possa colocar uma causa por sobre a própria
vida. Assim, se incorpora ao caráter um elemento de lealdade, fazendo-o se voltar à fidelidade
e ao mantenimento do si.
A pessoa é irredutível ao conceito de idem, mesmo quando ipse e idem se confundem,
quando chegam a se tornar indiscerníveis: o caráter guarda sempre uma história e um fundo
de responsabilidade ética dado pela escolha dos valores de identificação.
O caráter ganha assim identidade numérica, identidade qualitativa, continuidade
ininterrompida na mudança e permanência no tempo, e o faz a partir da estabilidade
emprestada aos hábitos e às identificações adquiridas ou disposições. Há, destaca Ricoeur,
“uma certa adesão do que ao quem” na identidade do caráter ou, dito de outra maneira, “o
caráter é o que do quem”, por um recobrimento do quem pelo que, que provoca um
deslocamento da pergunta “quem sou eu?” para “o que eu sou?”.
Mas não deve se deixar de diferenciar ipse de idem.
Na noção de palavra mantida (parole tenue), Ricoeur encontra o polo oposto à
identidade do caráter: uma manutenção de si (maintien de soi) que não cabe no conceito de

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coisa em geral, senão somente no de quem?, como a constância na amizade. Manter uma
promessa parece um desafio ao tempo, uma negação da mudança: ainda que meu desejo
mude, ainda que eu mude de opinião ou de inclinação, eu manterei a minha palavra.
Um “intervalo de sentido” se abre entre a oposição entre a mesmidade do caráter e a
manutenção de si mesmo na promessa, entre dois modelos de permanência no tempo. A
mediação deve ser procurada na temporalidade, e é aqui que se situa a identidade narrativa,
que oscila entre dois limites: o limite inferior onde idem e ipse se confundem, e um limite
superior onde o ipse coloca a questão da sua identidade sem o suporte do idem.

Identidade narrativa nas Confissões

Não são raras as referências às Confissões como uma autobiografia; às vezes se fala de
“autobiografia espiritual”. Mas há um elemento formal que incomoda de maneira muito
evidente esta abordagem: a quebra da narração a partir dos livros IX e X. Com efeito, o Livro
IX é o último a relatar fatos passados da vida do autor; começa falando da decisão de
Agostinho de se afastar do ensino para dedicar sua vida à reflexão religiosa e dedica a
segunda metade à mãe, Mônica, e à sua morte. Mas, a rigor, a suposta quebra, o que incomoda
o leitor contemporâneo à busca de uma autobiografia, dá-se nos três últimos Livros, própria e
declaradamente exegéticos. É nesta seção final das Confissões que seu autor procura elucidar
o sentido de mistérios como o tempo, da expressão “céu e terra” e a Criação – sem que seja
dado qualquer elemento de ligação aparente com a narração que antecedera.
Como dissemos, alguns autores propõem ler as Confissões com a chave da identidade
narrativa ricoeuriana, e a leitura funciona muito bem. Mas estas leituras, de maneira geral,
colocam a ênfase ou se limitam à noção de ipseidade. Os nove primeiros Livros, aqueles em
que Agostinho fala sobre si, são, assim, entendidos como uma busca da identidade (ipse) pela
narração. Agostinho narra os fatos da sua vida no esforço por reunir, pela força de uma trama
coerente, o disperso, um esforço por dar coerência àquilo que aparece como caótico,
multiforme e vário. Mas a identidade narrativa entendida em termos de ipse não tem como
dar conta dos livros exegéticos e, assim, é necessário mudar de ferramenta de leitura quando
se trata de encarar os três Livros finais.
Com tudo o que a abordagem pela via da identidade narrativa tem de interessante, ela
fica estreita ao deixar de fora estes os Livros finais das Confissões. É mais uma leitura que, de
certa maneira, pressupõe uma quebra na obra. Mas isso não acontece se for incorporada a
noção de idem que, como vimos, faz parte da teoria da identidade narrativa.
Ponto de partida para esta abordagem é o “eu interrogativo” que aparece nas
Confissões: muito distante do sujeito moderno, autofundado e autosuficiente, ele é um
problema que deve ser endereçado. E Agostinho se interroga:

1. Senhor, eu me atormento com esse problema, um problema que está


dentro de mim; para mim mesmo tornei-me terreno de difícil e cansativa
lavra. Não se trata de perscrutar as regiões do céu, nem de medir as
distâncias dos astros, nem de buscar o equilíbrio terrestre; sou eu que me
lembro; de mim é que me lembro; de mim, que sou espírito. Não é de
admirar que esteja longe de mim tudo que eu não sou. Pois que há de mais
perto de mim, que eu mesmo? Não entanto, nem sequer chego a
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compreender a faculdade da memória, sem a qual não poderia pronunciar
meu próprio nome. (Confissões, X, xv, 25)

O eu preserva um fundo que permanece além da capacidade de compreensão, o


autoconhecimento mostra seu limite intransponível. Agostinho tinha já se perguntado “quem
eu sou?” e respondido “um homem”, e estamos aqui ainda no terreno das consequências dessa
resposta. Um homem, corpo e alma, sendo a alma o superior e o mais próximo desse eu,
respondera, e aqui aparece que essa alma, que é o que mais parece com o que ele próprio é,
está fora da sua capacidade de conhecer. Esta descoberta levará a uma torção da pergunta: ele
não mais perguntará “quem eu sou?”, mas “o que eu sou?”. Isto é: a pergunta “quem eu sou?”
é anterior a “o que eu sou?”, que ficara sem resposta.
Isso é o que a nossa leitura busca relacionar com as noções ricoeurianas de ipse e de
idem.

Dire l’identité d’un individu ou d’une communauté, c’est répondre à la


question: qui a fait telle action? qui est l’agent, l’auteur? Il est d’abord
répondu à cette question en nommant quelqu’un, c’est-à-dire en le désignant
par un nom propre. Mais quelle est le support de la permanence du nom
propre? Qu’est-ce qui justifie qu’on tienne le sujet de l’action, ainsi désigné
par son nom, pour le même tout au long d’une vie qui s’étire de la naissance
à la mort? La réponse ne peut être que narrative. Répondre à la question
“qui?”, comme l’avait fortement dit Hannah Arendt, c’est raconter l’histoire
d’une vie. L’histoire racontée dit le qui de l’action. L’identité du qui n’est
donc elle-même qu’une identité narrative. (RICOEUR, 1985, pp. 442-443)

Por esta via podemos interpretar o esforço agostiniano nas Confissões como uma
tarefa de explicitação da aporia do uno e do diverso da identidade e a solução (ainda parcial)
pela narração. Ou, como diz Ricoeur, para resolver a antinomia sem solução entre a
postulação de um sujeito idêntico a si mesmo na diversidade de seus estados, de um lado, e a
ideia de que este sujeito idêntico nada é senão uma ilusão substancialista, do outro.
A identidade que Agostinho procura será, em certo sentido, identidade idem: a
identidade daquilo que não muda, aquilo que é sempre idêntico a si mesmo, que não é em uma
hora isso, em uma outra aquilo -a forma de identidade do Idipsum. Mas há, no processo de
aproximação às condições que permitirão atingir esse estado do ser, uma identidade ipse em
jogo: é a identidade daquele que percorre com a memória o fio de sua vida, ciente de ser ele
um mesmo, mas confrontado com a mudança, a multiplicidade, a fragmentação.
Trata-se de uma identidade fraturada, que carrega aporias e carências. Há uma busca
da identidade que se dá na passagem do movimento a um repouso somente atingível num
plano de transcendência. Com efeito, fica claro ao leitor das Confissões que uma identidade
perfeita não pode ser atingida no plano mortal. Identidade daquilo que é igual a si mesmo, que
não muda nem deixa de ser, encontra-se somente na Trindade, no Idipsum. Ao homem cabe a
busca da identidade como imagem, e como tal ele não pode abandonar certo estado de
provisoriedade, a imperfeição da criatura temporal, mutável.
Deus é a possibilidade de eliminar as contradições que o tempo impõe, única saída
para as aporias que restam no final do Livro X, quando o percurso narrativo foi completado e
aquilo que a narração podia organizar foi organizado, aquilo que podia ser reinterpretado à luz
do texto sagrado já faz parte de uma história de vida.

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A solução narrativa é suficiente no que diz respeito ao plano temporal, da identidade
ipse: é dada a resposta à pergunta “quem sou?”, e esta resposta chega pela narração dos fatos
de uma vida, iluminados pela palavra sagrada da Escritura. Mas a identidade idem, vinculada
à pergunta “o que eu sou”, continua assombrando Agostinho: não há repouso enquanto não
tiver alcançado a sua forma verdadeira, estável e una, imutável. Para isso, a narração não
basta: precisa do recurso à palavra revelada.
Agostinho recorre ao mediador entre Deus, que é uno, e ele próprio, criatura, temporal,
que é “muitos, em muitas coisas e através de muitas coisas” (XI, xxix, 39), a fim de alcançar
Deus e ser reconstituído. Se propõe seguir somente Deus, “esquecido do passado e não
distraído, mas atraído, não para aquelas coisas que hão de vir e passar, mas para aquelas
coisas que estão adiante de mim, não com a dispersão, mas com atenção” (idem). O prêmio
será contemplar as delícias divinas, “que não vêm nem passam” (idem). Ele se lamenta
porque seus anos decorrem entre gemidos, porque está disperso no tempo “cuja ordem
ignoro”, porque seus pensamentos, “as entranhas mais íntimas da alma” são “dilaceradas por
tumultuosas vicissitudes” (idem), busca se unir a esse Deus que invoca, que chama para
dentro de si.
O recurso à eternidade, por via da mediação crística, é a única esperança de solução
para a dispersão, que é fruto da condição temporal enquanto tal. Como criatura jogada no
tempo, o homem está condenado à dispersão, pois ser no tempo é ser disperso, e isso é algo
que o ordenamento dos fatos, a organização narrativa, não pode resolver.
Agostinho narra a história de uma conversão e sua busca de uma transcendência que
exige ele buscar Deus. Faz esta busca no mundo das criaturas, às que interroga, e voltando-se
para si como mais uma criatura, buscando na memória e se deparando com aquilo que é mais
interior que o próprio interior. E é esta busca o que o leva a se interrogar por aquilo que é
distintivo da criatura, isto é, a condição temporal. Explicitada esta questão, resta encaminhar a
via da mediação, e o texto se volta para a leitura das Escrituras.
É a estabilidade do idem o que o narrador das Confissões busca. O objetivo é uma
reforma do caráter, no sentido ricoeuriano. Lembremos que no caráter repousam a identidade
numérica, a identidade qualitativa, a continuidade no tempo e o princípio de permanência no
tempo, tudo por meio da ideia de traço distintivo. E o que Agostinho procura é, justamente,
uma mudança substancial: quer que aqueles traços distintivos deixem de ser os que o
caracterizavam, que sejam substituídos por outros, novos.
Dar conta da identidade como idem e como ipse aparece, então, como a tarefa
agostiniana nas Confissões. O ipse é apresentado nos nove Livros iniciais, enquanto o idem
permanece no horizonte da investigação como promessa. Se o texto pode dar conta do ipse, é
a tarefa do texto, o esforço da reforma, o que põe Agostinho a caminho desse idem que se
busca, será o fruto do exercício espiritual. O ipse opera no texto, o idem no autor e no leitor,
no qual ainda se faz a fusão entre ambos.
A solução agostiniana busca aproximar as duas formas da identidade: o ipse e o idem.
Agostinho, que se pergunta “o que eu sou?” e “quem eu sou?”, não deixa uma pergunta de
lado em benefício da outra, mas busca a conciliação de ambas no encontro com Deus.
Somente olhando com Deus e como Deus, isto é, toda a vida num olhar só, sem antes nem

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depois, é que ipse e idem se recobrem perfeitamente, se fundem, se fazem uma coisa só.
Identidade.

Conclusões

Dissemos que procurávamos na filosofia hermenêutica ricoeuriana, mais


especificamente na noção de identidade narrativa, uma via que nos permitisse a reinserção do
sagrado na leitura das Confissões de Agostinho, sem abandonar o campo da filosofia filha da
Aufklärung. Entendemos que o caminho está traçado e que a proposta funciona.
Na nossa leitura, que toma como chave de interpretação a identidade narrativa
desenvolvida por Paul Ricoeur em Soi-même comme un autre, com as noções de ipse, idem e
caráter, as Confissões recuperam a integridade harmónica das partes na argumentação que
outras abordagens retiram. Uma busca da identidade que se dá em dois planos, o plano
temporal, do homem, nos Livros onde Agostinho fala sobre si, e o plano transcendente, da
Palavra revelada, nos três Livros finais, exegêticos, funciona como fio condutor.
Fé e filosofia são par para nós, mas não são um par para o autor das Confissões. A
hermenêutica abriu uma via que, talvez, pode nos permitir preservar a autonomia dos
discursos sem amputar a obra nem abrir mão da filosofia.
O exercício se mostra, assim, profícuo e enriquecedor.

Referências

AGOSTINHO, S. Confissões. Trad. de João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa


Pimentel. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004
ALICI, L. L’altro nell’io – in dialogo con Agostino. Roma: Città Nuova, 19994
BOCHET, I. Le firmament de l’Écriture, l’herméneutique augustinienne, Paris: Institut
d’Études Augustiniennes, 2004
BOCHET, I. Augustin dans la pensée de Paul Ricoeur, Paris: Editions facultés jésuites de
Paris, 2004
MARION, J-L. Au lieu de soi – l’approche de Saint Augustin. Paris: PUF, 2008.2
MORAES, S. A dialética entre o conhecimento de si e o conhecimento de Deus no livro X das
Confissões de Santo Agostinho. João Pessoa: Editorial Universitária UFPB, 2011.
RICOEUR, P. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990
RICOEUR, P. Temps et récit, III. Le temps raconté, Paris : Seuil (Poche), 1985, pp. 442-443.

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HELOISA E ABELARDO

Eduardo Hoornaert
(UFBa)

1. O estereótipo ocidental.
2. Abelardo
3. Heloisa.
4. A vitória aparente de Abelardo
5. A luta de Heloisa continua.

1. O estereótipo ocidental

Desde Agostinho, impera no Ocidente um estereótipo: a perfeição consiste em lutar


contra a natureza. O famoso teólogo enfia a espada da culpabilidade, fundo na consciência
cristã. Ele afirma que a humanidade é uma ‘massa damnata’, marcada pelo ‘pecado original’,
que a natureza é corrompida e que nós temos de nos salvar por meio de nossa força de
vontade, apoiada pela graça de Deus. Esse estereótipo tem longa vida e se difunde de mil
maneiras. Entre elas destaca-se uma imagem da mulher copiada da imagem de Maria virgem e
mãe, nunca mulher sexuada. Maria não combina com Vênus. Por isso, a mulher decente anda
com véu na cabeça, com roupa digna, vai à igreja e só pratica sexo dentro do casamento. O
amor livre é proibido.
Isso costuma se exemplificar por meio de casos de convivência ‘pura’ entre homem e
mulher que a história do cristianismo registra. Temos os casos de Jesus e Maria Madalena (a
novidade é Dan Brown), Bento e Escolástica, Agostinho e sua santa mãe Mônica (que o
converte), Crisóstomo e Olímpia, Francisco e Clara de Assis (Leonardo Boff), Francisco de
Sales e Jeanne de Chantal; João da Cruz e Teresa de Ávila. Convivências espirituais, sem
encontros sexuais propriamente ditas. Virgens consagradas, diaconisas, freiras. Bernardo de
Clairvaux, que é contemporâneo de Abelardo (e discorda dele), é símbolo desse estereótipo:
ele ama Maria com um amor todo espiritual.

2. Abelardo

Contra esse pano de fundo destaca-se a história de Heloisa e Abelardo. Ele é professor
brilhante na universidade de Paris. Tem uns 40 anos e tem de observar o celibato, pois só
clérigos celibatários podem ensinar. Aparece uma aluna muito inteligente, de 17 anos, que
mora na casa de seu tio, o cônego Fulbert e Abelardo, que sente atração por ela, consegue
hospedagem na casa do cônego que, não desconfiando de nada, lhe confia a sobrinha para que
ele a forme na ciência. Na realidade, os dois namoram e, como não pode deixar de ser, nasce
um filho (Astrolábio). Apavorado, Abelardo manda Heloisa para a casa de sua irmã na
Bretanha e pensa arreglar a coisa propondo um casamento secreto. Assim ele pensa continuar
a ensinar (publicamente continuaria celibatário) e dar satisfação ao cônego que não entende
amor fora do casamento. Mas a artimanha pega mal. O cônego manda castrar o teólogo, que
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se refugia num convento e manda Heloisa também para o convento. Mas os estudantes
pressionam Abelardo para que ele volte a ensinar e assim ele volta a Paris. Heloisa percebe
que Abelardo, no fundo, só pensa em carreira e quer guardá-la como esposa escondida sob a
capa religiosa. Ela não aceita a situação, quer ser amiga, não ‘esposa’ refugiada em convento.
Certo dia, para consolar um amigo que passa por desavenças semelhantes, Abelardo escreve a
‘história de minhas desventuras’. τ texto cai nas mãos de Heloisa no convento e ela começa
mandando cartas para ele. Aí nasce uma das mais extraordinárias correspondências de que se
tem conhecimento na história da literatura mundial.

3. Heloisa

O valor dessa correspondência está na sinceridade desconcertante de Heloisa. Ela age


por amor e o critica abertamente, escrevendo sem rodeios que ele teve relações com ela ‘mais
por concupiscência que por afeição verdadeira’ e que ele a procurou ‘pelo gosto do prazer,
mais do que pelo amor’. Ela não aceita o argumento falso de que o amor a Deus seja superior
ao amor por seu homem. Na carta 3, ela escreve uma das frases mais desconcertantes da
história do cristianismo, que copio aqui em latim: In omni autem – Deus scit – vitae meae
statu, te magis offendere quam Deum vereor, tibi placere amplius quam Ipsi appeto. ‘Receio
mais ofender a ti que a Deus, quero mais agradar a ti que a Deus’. Heloisa desmascara o
‘amor a Deus’, ela compreende que Deus funciona, no discurso de Abelardo, como
subterfúgio do amor à carreira, à glória, ao status. Eis o Deus da igreja e da hipocrisia clerical.
Heloisa constata que Abelardo está preso, não está livre, ou seja, não consegue ou não quer se
livrar. Ela prefere o nome de amiga, mesmo de concubina ou prostituta, ao falso nome de
‘esposa’. ‘σão é o amor a Deus que me levou ao convento...Eu não tenho vocação religiosa’.
Mesmo assim (e isso caracteriza as condições da vida naquele tempo) ela continua abadessa
até sua morte aos 63 anos. Mas não hesita escreve que pensa o tempo todo em Abelardo, na
hora das rezas e dos ofícios no mosteiro. É por amos que ele resolve não falar mais do assunto
(a partir da quinta carta) por sentir que Abelardo não tem condições de falar com franqueza
sobre o assunto. O resto da correspondência trata de questões ligadas à disciplina interna no
mosteiro do Paráclito, onde ela é abadessa. Ela respeita a fragilidade de Abelardo, É por
isso que fica no mosteiro, sem ter vocação para tanto. Sua vida é um longo grito de amor
ferido, de amor ardente, de fidelidade na ternura, é uma expressão pura de ‘natureza’
ofendida, mas não traída. Ela não aceita Deus como fuga da verdade. Abelardo está todo
quebrado por dentro. Ele navega entre o sucesso como professor e o fracasso como amante.
Isso faz toda a diferença com Heloisa, que fica forte no sofrimento. Ela rejeita o dilema: ou
‘esposa de Cristo’ ou ‘porta do diabo’.

4. A vitória aparente de Abelardo

Como escrevi cima, a partir da quinta carta Heloisa não trata mais do amor, ela acolhe
os conselhos dados por Abelardo para o bom andamento da vida no mosteiro do Paracleto.
Fica calada a respeito de seus sentimentos. Abelardo morre aos 63 anos, socorrido pelos
monges de Cluny. Se nome funciona em todos os livros de teologia medieval e o ‘caso’ com
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Heloisa aparece como um ‘pecado de juventude’. A ideia do pecado aumenta ainda a
autoridade da igreja e é desse modo que a igreja costuma apresentar a história de Heloisa e
Abelardo, como uma história picante, um ‘divertimento’ erótico.

5. A luta de Heloisa continua

Na realidade, a luta de Heloisa é fundamental. Ela coloca o amor acima da carreira, da


vocação religiosa, da aceitação na sociedade. Afinal, ela diz a quem quiser ouvir: ‘Eu amo e
ponto final’. σão me venha com uma conversa sobre o amor de Deus, que é (nesse caso)
símbolo de uma vida contra a natureza. Se Heloisa concorda em não comentar mais o amor a
partir da quinta carta, não é por submissão, mas por respeito a Abelardo em sua fragilidade.
Ele sabe disso. Hoje, Heloisa sai do enquadramento medieval e se torna símbolo da atual luta
a favor do respeito pela natureza. Ela defende a natureza sexual do ser humano, ela fala como
mulher, simplesmente. Não entra no dilema Eva-Maria, mas unifica as imagens de Maria e de
Vênus. Afinal, Vênus é imagem de uma força da natureza. Com pessoas como Heloisa, Vênus
faz sua entrada no recinto cristão e declara: a mulher não é só virgem e mãe (Maria), ela é
igualmente natureza sexuada (Vênus). Heloisa não é a ‘rosa a ser deflorada’ do Roman de la
Rose. Quando ela diz a Abelardo:’Eu te amo, ponto final’, não é por submissão, mas pelo
princípio do amor. Heloisa abandona a culpabilização do corpo humano e, por sua atitude,
rejeita a castração praticada por seu tio cônego e tudo que essa castração simboliza. No fim da
vida, ela pede ao abade de Cluny (que socorreu Abelardo no final da vida) uma ajuda para seu
filho Astrolábio que passa por dificuldades financeiras. Aí se revela mãe.

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RUY GONÇALVES E A DISCUSSÃO DO FEMININO NA REGÊNCIA DE D.
CATARINA DE ÁUSTRIA

Eduardo José de Azevedo Charters Fuentes Morais


(UFPB)
eduardo.charters@gmail.com
Luisa Stella de Oliveira Coutinho Silva
(Universidade de Lisboa)
luisastella@gmail.com

Introdução

Na Idade Média podemos considerar a presença de dois principais poderes na política:


o poder eclesiástico, concentrado nas mãos do Papa e o poder secular, nas mãos dos reis e dos
senhores feudais. Após a reforma religiosa realizada por Gregório VII, em função da simonia
e do nicolaísmo (TOUCHARD, 1991), a Igreja Católica passou a discutir a relação da Igreja e
o Estado, tendendo pela defesa da superioridade do papa sobre o rei. Dessa forma, o debate
político nesse período suscitava discussões em função da verdadeira origem do poder.
As afirmações do Papa Gregório VII pela Carta de Hermann de Metz sobre a
supremacia divina, supostamente dada por Deus ao seu escolhido desde o original Pedro,
levou a diversos conflitos com o poder real de vários países da Europa, tendo culminar
importância na construção do pensamento político europeu, como os problemas políticos
decorrentes dos modelos do reinado de Henrique VIII na Inglaterra, das insurreições de
Lutero e especificamente as ideias de William de Occam e Marsílio de Pádua.
É no tempo da reforma gregoriana que surgiram os primeiros teóricos da monarquia
(TOUCHARD, 1991): na França podemos citar Abbon de Fleury no século X (MOSTERT,
1987) e Ivo de Chartres no século XI; em Inglaterra citamos John de Salisbury, que acreditava
que o poder papal é sempre maior do que o real, diminuindo a dignidade do rei.
Portanto, há de se observar que há uma fundamentação por parte do clero na
justificação de um poder real, assim como o clero manteve as suas manifestações dirigidas ao
rei e aos príncipes. Ademais, houve em função dos monarcas um grande apoio no pensamento
político por parte dos legistas e canonistas. A teoria dos canonistas baseia-se na lei justa, feita
pelo ministro de deus (rei) para o bem comum.
Com o renascimento urbano, formaram-se as primeiras reuniões urbanas sociais. Essas
podem ser politicamente classificadas, segundo a carta que lhe eram outorgadas, como
comuna, cidades livres ou regime consular (TOUCHARD, 1991).
Esse reflorescimento urbano trouxe muitas mudanças. Agora, já não era a fidelidade
pessoal, base do sistema feudal, que garantia a coesão do grupo, mas o juramento coletivo.
Essa mudança aconteceu ao mesmo tempo em que engendrou uma laicização da sociedade
Diz Jean Touchard (1991) que não se pode negar que nasceu, assim, uma nova
ideologia, nos meios urbanos, no final do século XIII, a qual se opunha à ordem feudal e a

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tudo o que esta implicava. Caracterizava-se por certa liberdade de espírito, por certo
relativismo, certo cepticismo; o ideal do homem honesto tendia a substituir o do cavaleiro.
Acompanhando esse desenvolvimento das ideias na História, há de se notar que o
poderio intelectual que deriva ao político prático não para com a atuação de Gregório VII.
Após sua morte, sucedeu uma grande movimentação intelectual, como Higo de S. Vítor,
Bernardo de Lervaux... Vamos entrando, aos poucos, no Renascimento.
E é nesse declínio1 dos ideais que continuou o movimento da “laicização sem
equilíbrio”, nas palavras de Jean Touchard (1991, p. 224). Nesse momento político que
surgem as opiniões de William de Occam e Marsílio de Pádua, para assegurar o direito de
Luís da Baviera.
Em Portugal, essas mudanças aconteceram de forma muito diferente e, de forma
relativamente mais lenta do que nos outros períodos.
É nesse período de profundas mudanças na Europa e, especificamente, em Portugal
que a discussão sobre o feminino e o papel social da mulher vai se movimentar de forma cada
vez mais efervescente na vida cotidiana pública. A exemplo, podemos citar as obras
publicadas O "Espelho de Cristina", de Cristina de Pisan (1987); o "Tratado em Loor de las
Mugeres, y de la Ca∫tidad, One∫tidad, Con∫tancia, silencio, Iu∫ticia: Com Otras muchas
Particularidades, y varias Hi∫torias", de Christoval Africano (1592); o "Espelho de Casados",
de João de Barros; entre muitos outros. Entretanto, vamos ressaltar, em especial, uma obra
publicada e dedicada ao reinado de uma mulher, a rainha portuguesa D. Catarina de Áustria,
qual seja, "Dos Privilegios & Praerogativas q ho Genero Feminino tẽ por Direito Comữ &
Ordenações do Reyno mais que ho Genero Masculino", do jurista português Ruy Gonçalves
(1992), publicada no ano de 1557.

1. O Renascimento em Portugal

Ao contrário do que se passava em vários países, Portugal ia ao inverso das posições


mais avançadas: progressivamente as ideias “heréticas” foram afastadas do reino, enquanto
que a tendência a um posicionamento católico e inquisitorial foi se desenvolvendo com
perseverança.
Nesse espírito, o Tribunal da Inquisição foi estabelecido em Portugal em 1536, no
reinado de D. João III e D. Catarina de Áustria, através da Bula Cum ad nihil magis, assinada
pelo Papa em 23 de maio. Nela, nomeavam-se como inquisidores: os bispos de Lamego,
Ceuta e Coimbra, e concedia a D. João III a possibilidade de nomear um quarto inquisidor-
geral. A cerimônia de publicação da bula realizou-se em 22 de outubro na igreja catedral na
presença do rei, cardeal, o cabido, o inquisidor-geral, o clero e o povo (BETHENCOURT,
1996).
Assim, o rei D. João III esteve envolvido desde o início na criação do Tribunal da
Inquisição, fazendo questão de estar presente na cerimônia inaugural, junto da sua rainha, e
fundamentando a necessidade da existência da Inquisição em função da difusão do judaísmo.
O primeiro auto de fé em Lisboa ocorreu no Paço da Ribeira em 1540. Foi a própria Coroa

1
Declínio no sentido de fim, e não de perda de importância.
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que se encarregou da apresentação da bula citada e criou as condições de sua execução. O
próprio irmão do rei veio a ser inquisidor-geral em 1539, o cardeal D. Henrique.
O Renascimento parecia estar diferente nesse país. Concorda Teófilo Braga (2009, p.
264) que:

O acordar da intelligencia e o acordar da consciencia. O retemperar-se a


alma humana nas fontes vivas da natureza! o triumpho do senso commum
sobre todos os erros e extorsões seculares, eis a grande revolução moral
completada no século XVI, resumida nas duas palavras: Renascença e
Reforma. Reflectiu-se a revolução em todos os factos da ordem social, e
particularmente na esphera do sentimento, no domínio das creações
artisticas. O estudo da influencia da Renascença e da Reforma nas
literaturas da Europa está feito; de Portugal nada se sabe; parece que o
ruído da tempestade não chegou cá, e muito menos, que nenhuma acção
externa exercem nas manifestações do génio nacional. Repugna à rasão este
silencio. (…) Alguma causa poderosa abafava esse movimento? Era o
catholicismo intolerante, que se levantava contra a tendencia critica da
rasão.

Para completar essa fixação no catolicismo, juntamos um dos grandes acontecimentos


católicos: o Concílio de Trento, ocorrido entre 1545 e 1563. Portugal participou ativamente
desse encontro, enviando representantes e pondo em prática as disposições desse grande
encontro anti-reforma. Os seus representantes foram: Frei Baltazar Limpo, da ordem do
Carmo, bispo do Porto; padre Frei Jorge de Santiago, da ordem dos Pregadores; padre Frei
Jerónimo d’Azambuja, também da ordem dos Pregadores; padre Frei Gaspar dos Reis, da
ordem dos Pregadores, entre outros prelados que enviaram seus mandados (no pontificado de
Paulo III) (CASTRO, 1944). Logo que o bispo do Porto retornou, D. João III mandou que o
mesmo se reunisse com letrados para estudarem maneiras de pôr em prática os objetivos do
Concílio.
Não é de se estranhar que a regência da rainha D. Catarina, a seguir ao reinado de D.
João III e representando seu neto D. Sebastião na menoridade, seja uma continuação de
intransigência, censura e perseguição a todas as manifestações culturais, espirituais e
religiosas suspeitas de poderem abrir caminho a infiltração e aos desvios da ortodoxia católica
(CRUZ, 2006). Tal repressão também foi levada para o ultramar, pois o Brasil foi reprimido
através do governador Mem de Sá, sob suas ordens, inclusive, proibindo as práticas sociais e
religiosas índias.
E assim, Portugal ia ao avesso das modernas ideias renascentistas, e já no século XVI
havia uma grande “limpeza” de erasmistas, espiritualistas ou homens da cultura 2. O
humanismo em Portugal teve que andar por muito tempo em lentos passos.

2
Só para ilustrar, podemos citar o processo contra os professores do Colégio das Artes e concentrou em acusações sobre
humanistas de destaque internacional como Diogo de Teive e George Buchanan, que “apenas” perderam seus cargos,
enquanto o Frei Valentim da Luz foi queimado.
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2. A publicação de "Dos privilegios & praerogativas q ho genero feminino tẽ por direito
comữ & ordenações do reyno mais que ho genero masculino" durante a regência de D.
Catarina de Áustria

É no reinado de D. Catarina de Áustria que foi publicada uma obra que veio a ser
considerada posteriormente, por alguns, como o primeiro livro “feminista” português
(PINHO, 1986 e SILVA, 2002). Trata-se da citada obra escrita em 1557 pelo aluno de
Coimbra e advogado da Casa de Suplicação no âmbito da Corte Rui Gonçalves, Dos
Privilegios & Praerogativas q ho Genero Feminino tẽ por Direito Comữ & Ordenações do
Reyno mais que ho Genero Masculino (Gonçalves, 1992).
A obra foi dedicada a D. Catarina de Áustria, com os detalhes que podemos ver no seu
prólogo, que diz:

Muyto alta e muyto Podero∫a Raynha no∫∫ a Senhora. (...) porque a∫∫i como
ha muitas cou∫as em que os homẽs ∫am de milhor condiçam, a∫∫i outras
muytas tem as molheres mayores, & mais ∫upremas prerogatiuas que os
homẽs, pelo que me pareceo curio∫idade jindigna de reprehen∫am, ajuntar
algữas virtudes em que as molheres forão jguaes & precederam aos homẽs,
& algữs Priuilegios & Prerogatiuas com que ∫am mais priuilegiadas &
fauorecidas em dereito (cou∫a mais trabalho∫a que ...), tratando ∫omente do
que acho ∫cripto em ∫eu louuor & vtilidade, pois há tantos que e∫creueram
ho contrario. A qual jnuençam & trabalho me na atreuo defender dos graues
& excellentes auctores que e∫creueram a contraria opiniam, ∫enam
e∫perando que V. A. (∫ereni∫sima ∫enhora) por me fazer mercê, & dar
atruimento pera e∫creuer outras cou∫as mais jmportantes aa ∫ua Republica,
ho aceite em ∫eruiço, & aproue cõ a ∫ombra de ∫ua real proteiçam, de que
nacera ou∫ar e∫ta obra ∫ahir em publico, e ficar tam ∫egura & ∫em receo, que
nam temeraa reprehen∫am algữa humana, & a V. A. como aa mais excellẽte
& ∫uprema Prince∫a & ∫enhora do mữdo, conuẽ defender & aprouar tudo ho
que ∫e escreuer em louuor do gênero feminino, pera que outros de mais
erudiçã & doctrina po∫∫am dar fim & perfeiçam a e∫tes meus princípios &
cometimentos, que nam ∫am mais que as amo∫tras do muyto que podem
e∫creuer ne∫ta materia. (GONÇALVES, 1992, p. 4).

Na época, estava no início da regência do reino, enquanto, como dito, da menoridade


de seu neto, D. Sebastião. A própria obra é precedida, na capa, do brasão das armas reais
portuguesas e castelhanas da rainha D. Catarina (SILVA, 1906). Talvez não seja por acaso
que o livro veio à tona no exato ano do início da regência da rainha, pois doutra maneira,
como poderia o autor pedir a rainha aprovação e patrocínio para a sua defesa do gênero
feminino, num reinado de homens?
O livro está dividido em duas partes. Na reabilitação da mulher devido ao pensamento
misógino predominante na época, traz a primeira parte, através de categorias de virtudes,
exemplos de mulheres que podem ser colocadas no mesmo nível dos homens, ou até
possuírem mais virtude que esses. Sobre esse momento diz Pinho (1986, p. 209): "(...)
pretende Rui Gonçalves reabilitar e dignificar a figura da mulher, erguendo-a ao justo nível do
prestígio do homem neste pequeno tratado dos privilégios e prerrogativas do sexo feminino
(...)".

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Para cada virtude, de um rol não taxativo, que passa por Doctrina e ∫aber, Con∫elho,
Fortaleza e magninimidade, Deuação & temor de Deos, Liberalidade e Magnificẽcia,
Clemencia & mi∫ericordia, Ca∫tidade, Amor conjugal e τuçio∫idade, ele exemplifica com
inúmeras mulheres ilustres da História Mundial, detentoras dessas virtudes e muito mais e em
algumas até inclui o exemplo de D. Catarina, como acontece na categoria do Conselho.
Vejamos:

pre∫ente a todos os cõ∫elhos & de∫pachos jmportanti∫simos a ∫ua Republica,


& dahi vẽ ∫erẽ ∫eus Reynos e ∫enhorios gouerna dos pelo real juyzo Del Rey
no∫∫o ∫eñor, juntamẽte com o de V. A. em tatá ju∫tiça, paz, & a∫∫o∫∫ego &
tranqüilidade, q todas as nações alheas de ∫eu jmperio tẽ muyta razam dauer
enueja a va∫allos ∫ubjeitos a ∫eñores, por cujo ∫aber, cõ∫elho & prudência,
quando ho mữdo ∫e abra∫a em discen∫ões & guerras, elle ∫oos gozão da que
todas as outras nações carecem. (GONÇALVES, 1992, p. 14).

Não deixa passar sem mencionar, novamente, D. Catarina quando discorre sobre
Doctrina e ∫aber. Em suas palavras diz que sobre todas as princesas e excelentes mulheres
que menciona todos naturais do Império e do mundo podem observar e ter memória do
excelente governo e real cuidado que a Rainha tem em seus reinos e senhorios. Enfatiza as
atuações da rainha, desde que vem

ajudando a el Rey no∫∫o ∫eñor em todos os de∫pachos, a∫∫inando os perdões


& outras cou∫as jmportantes a admini∫traçã da ju∫tiça, & cõi∫∫o fica a ∫ua A.
mais tempo pera acudir aas guerras q cõtinuamente traz Africa, e A∫ia, & ao
grade zelo q tem de mãdar enfinar & doctrinar a fee de no∫∫o Senhor Ie∫u
Chri∫to, & ho culto diuino em ∫eus Reynos e ∫enhorios, & em outras partes
remoti∫simas, & muyto jncognitas, & bárbaras. (GONÇALVES, 1992).

Não há dúvidas, assim e mais uma vez, da grande influência exercida por D. Catarina
nos assuntos de política junto ao seu marido, o rei.
Na segunda parte, diferente da inicial, aparece-nos o autor “falando como juri∫ta”.
τrganizando alfabeticamente, “τs quaes priuilegios & benefícios do gênero feminino vão
ne∫ta parte po∫tos pela ordem do A B. C. Quanto aos vocábulos de latim pera ∫e poderem leeer
& achar com mais facilidade & menos cofu∫ao” (GτσÇALVES, 1992, p. 35) mostra na
legislação portuguesa benefícios que favoreciam o sexo feminino, embora Pinho (1986, p.
214) defenda que “as prerrogativas dessa parte por um lado mostram “pelo reverso da
medalha” a inferioridade situacional das mulheres, pois as estruturas sociais não permitiam
que usufruíssem dos mesmos direitos que os homens – fragilidade que simulavam proteger
concedendo falsas regalias”.
Nessa parte, os privilégios ou direitos que as mulheres possuem a mais do que os
homens são demonstrados sobre os mais diversos aspectos, no direito de propriedade, de
testar... São algumas situações em que as mulheres aparentemente são privilegiadas em certas
situações jurídicas, como, por exemplo, comentários à regra jurídica de como as mulheres
honradas e que vivem honestamente não poderem ser presas por dívidas de coisa civil.

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O que nessa passagem é encarado como privilégio pode ser visto também, hoje em dia,
como um instrumento de subordinação da mulher ao homem, porque é dessa forma que o
modelo da mulher desejada pelo homem era privilegiado, pois diz Clement (1993):

From these few examples, it should be evident that while Gonçalves defends
the superiority of women in Part I, the Law that he describes in Part II
circunscribes women as much as it protects them, linking and subordinating
them to the men in their lives and basing its positions implicity on that it
perceives to be women’s moral and physical inferiority.

Notemos que, as mulheres consideradas desonestas não eram merecedoras de tal


privilégio, pois defende Ruy Gonçalves (1992, p. 52) que:

e∫ta prerogatiua & priuilegio pertence aa molher quando he hone∫ta, &


continente, & viue pudica, & ca∫tamente, porq ∫e for jnhone∫ta & viuer
de∫one∫tamente em tal ca∫o ∫era pre∫a por diuida ciuil ∫em gozar do beneficio
do gênero feminino ∫egundo afirmam os doctores comữmente.

Mas a ideia de uma introdução portuguesa do feminismo com o livro de Rui


Gonçalves não é pacífica. Há quem defenda o contrário (HESPANHA, 1995), que Gonçalves
apenas escreveu tal obra com o intuito de aceder ao favor real da rainha. Do que não há
dúvidas, afinal, e concordamos com Cordeiro de Almeida (2005), é que a obra de Gonçalves
permitia uma nova discussão sobre a condição feminina no século XVI.

Conclusão

Portugal, ao contrário da Europa, em geral, passou por um processo lento, misturado


na passagem da Idade Média para o Renascimento. O poder e forte repressão da igreja em
oposição à reforma, materializou-se em Portugal sob o poder régio, através do poder das
justiças eclesiástica e inquisitorial. O reinado de D. Catarina de Áustria, a filha de Joana a
Louca e neta dos Reis Católicos, mostra bem a forte maneira de pensar do medievo,
movimento já ultrapassado em vários outros períodos da história ocidental europeia, o que
ilustra a sua subordinação às doutrinas do catolicismo.
Por outro lado, o enfoque deste artigo coloca em discussão a pertinência de se poder
intitular 'Dos Privilegios & Praerogativas q ho Genero Feminino tẽ por Direito Comữ &
Ordenações do Reyno mais que ho Genero Masculino' como uma obra essencialmente
feminista, já que a modernidade também ressalta a posição da mulher na sociedade e discute,
na literatura, sobre o seus comportamentos. A mulher portuguesa do século XVI não pode ser
comparada com a mulher do século XXI. A sua posição pode ser caracterizada, hoje, como
inferior, silenciosa e subordinada ao poder do pai e do marido. Exemplos não faltam (SILVA,
2012). Ademais, o assunto suscita discussões sobre gênero que até hoje ainda não foram
pacificadas; mas dessa movimentação dos discursos e através de sua publicidade tem servido
como instrumento de atuação no mundo, através, por exemplo, de políticas públicas3.

3
No Brasil, por exemplo, podemos citar a lei Maria da Penha (LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.
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A subordinação das mulheres no período seiscentista sugeridas através das
observações de Pinho (1986) e de Clement (1993), entretanto, colocam-nos num debate de
gênero de outra natureza. No auge de um ataque à Igreja Católica, o reforço do poder moral
da igreja, através da inquisição e do favorecimento das prerrogativas de Ruy Gonçalves são
muito bem-vindas à consolidação do poder regente de D. Catarina, pois se afigura mulher
virtuosa e católica, que auxiliou em muito o seu marido, o rei D. João III. A tarefa real não
poderia ser mais subversiva, mostrando em duas faces a poderosa mão da igreja católica.
Portanto, uma das possibilidade hermenêuticas da obra em estudo é que ela teria sido, não
fundamentalmente uma apologia ao feminino, mas um instrumento de manipulação no
cenário político.
Ademais, Portugal era fortemente dominado por representações do feminino de
inspirações religiosas judaico-cristãs, o que nos permite questionar, ou vislumbrar o poder, ou
influência de ideias e práticas circulantes como a do culto mariano, o que materializa a
justificação e força das normas em vigor, que subjugam a mulher a um mesmo ideal, ou
representação, com, por exemplo, o arquétipo da santa-mãezinha, entre outros (SILVA, 2008),
todos marcantes para a constituição da mulher brasileira, herdeira em terça parte da cultura
portuguesa.

Referências

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τne∫tidad, Con∫tancia, silencio, Iu∫ticia: Com τtras muchas Particularidades, y varias
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no Império Português XVI-XVIII. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005.
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Comữ & Ordenações do Reyno mais que ho Genero Masculino. Lisboa: Biblioteca Nacional
de Lisboa, 1992.
HESPANHA, Manuel Antonio. O Estatuto Jurídico da Mulher na Época da Expansão. In:
MOURA, Vasco Graça (dir.). Oceanos: Mulheres no Mar Salgado. Lisboa: Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Nº 21. Jan – Mar 1995.
MOSTERT, Marco. The Political Theology of Abbo of Fleury: a Study of the Ideas about
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1987.
PINHO, Sebastião Tavares. O Primeiro Livro “Feminista” Português (Séc. XVI). In: A
mulher na sociedade portuguesa : visão histórica e perspectivas actuais / actas do
colóquio. Coimbra : Instituto de História Económica e Social, 1986, vol. II.
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Paraíba: História e Direito no Brasil Colonial. 2012. Inédito.
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João Pessoa: Monografia (Curso de Ciências Jurídicas) - Centro Universitário de João Pessoa,
2008.
SILVA, Maria Regina Tavares. Feminismo em Portugal. Lisboa: Comissão para a Igualdade
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TOUCHARD, Jean. História das Idéias Políticas da Grécia ao fim da Idade Média.
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A INFIDELIDADE DO CORPO FEMININO: IMAGENS DA JUSTIÇA E DA
VIOLÊNCIA NO TEXTO POPULAR IBÉRICO

Hermano de França Rodrigues


(UFPB/PPLP)
hermanorg@gmail.com

O artefato romanesco Brancalinda narra a trajetória de uma mulher cujo


comportamento, moralmente reprovável, conspurca os preceitos ordenadores de um universo
social construído sob a ótica masculina. A personagem, também denominada Claralinda, é
uma jovem casada, de beleza abissal, que ignora, sem melindres, os preceitos matrimoniais de
fidelidade. Ardilosamente, aproveita a ausência do marido para ceder às investidas de um
cavalheiro que, embevecido por sua formosura, almeja possuí-la sexualmente. Sem nenhum
pundonor, a ignominiosa esposa arquiteta, juntamente com o seu apreciador, o ato de
adultério. É ela, inclusive, que fornece as diretrizes para a realização do ritual de perfídia.
Surpreendentemente, a participação do amante é desvanecida na sedução que a astúcia
feminina institui. Somos induzidos a enxergar o homem como uma pobre vítima que não
conseguiu esquivar-se dos encantos atrativos de uma arrebatadora mulher. Observemos o
seguinte excerto:

_Clarinda, linda Clara, tu és linda como o sol


Eu quero ficar contigonas pontas do teu lençol
_Nas pontas de meu lençol, hoje sim, amanhã não;
Meu marido não está em casa, foi p’ra feira d’Ascensão.

Reside, já na denominação que recebe, a idealização que torna a personagem principal


um ser sedutor. Seu nome é construído mediante a união de elementos adjetivais, branca
(clara) e linda, que passam a caracterizá-la fisicamente. É um ente majestoso que,
metaforicamente, detém a claridade (ou brancura) suntuosa do astro solar. Esse estereótipo
ecoa de uma formação discursiva, presente no imaginário do século XVIII, que tangenciou os
ideais da escola romântica. Foi em plena efervescência do Romantismo português que muitos
escritores e poetas, como Almeida Garrett, por exemplo, se voltaram à coleta e produção de
textos populares. Em muitos deles, introjetaram tortuosamente os princípios estéticos que
circulavam na época. Entre eles, a divinização da mulher, descrita sempre em sua beleza
esplendorosa e acentuada brancura. Esse último atributo está ligado a um ponto de vista
étnico. Tanto no texto em questão, como no simulacro cultural que dele emana, a cor é um
traço fustigador da individualidade social do homem. As mulheres brancas eram aquelas que
se mostravam dignas de encômios por representarem o padrão europeu, além de figurarem nas
camadas mais “consideradas” da sociedade.
Seria conveniente, aqui, um questionamento acerca da conduta feminina. Não estaria a
mulher, num patamar superior, visto que ludibria um ente, legitimado pelas leis naturais,
como seu dono? No universo semiótico e semiológico da narrativa, irrompe-se um arquétipo
feminino que vaticina a esse sexo a necessidade de adaptar-se a determinados paradigmas,
ideologicamente desenhados, peremptórios para sua aceitação e participação numa esfera
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institucional que nega as diferenças includentes entre os gêneros. Ao assumir o status
angariado pelo vínculo conjugal, a mulher reserva para si comportamentos éticos que devem
ser mantidos e reverenciados em favor, não de seu bem-estar e satisfação, mas em prol da
dignidade masculina. Caso venha a violar um modelo de comportamento instituído como
indispensável e identificador da boa índole, o olhar que o corpo social lhe encaminhará será
contornado por repulsa e reprovação. No romance, a conduta desrespeitosa de Claralinda põe
em declínio a sua virtuosidade. Ela burla todos os preceitos religiosos que prescrevem a
fidelidade da esposa para com o marido. Desonra-o insidiosamente enquanto este se encontra
apartado do lar, em virtude do exercício de atividades laborais, atreladas à caça ou ao
comércio, a depender da versão examinada. Numa ótica argumentativa, a imagem de um
homem trabalhador constitui um forte argumento em prol da desaprovação da mulher.
Acentua a natureza pérfida daquela que, impregnada de ingratidão, despreza as virtudes de um
cônjuge dedicado à provisão da família. Na balança social, a transgressão às leis da
honestidade e do pudor desequilibra as relações entre homem e mulher. O brio daquele
sobrepuja a falta de caráter desta. Observemos a diagramação:

A crueldade da protagonista é tamanha que, em alguns textos, o plano elaborado por


ela para a efetivação de seus desejos carnais aparece circunscrito num terreno de imprecação
ao consorte distante. Na intenção de que a relação extraconjugal se efetive sem empecilhos,
chega a praguejar a morte do companheiro, desejando que raios iníquos caiam sobre ele,
partindo-lhe a língua, e que uma faca perfure o seu coração. Tal atitude, além de corroborar a
vileza da infiel mulher, deixa latente o temor que alimenta em ser descoberta em sua
transgressão. Isso porque a traição, nesse âmbito, não denota uma autonomia ou sublevação
do eu feminino, mas simplesmente traduz uma subserviência a um parâmetro social que
determina o pensar e o agir do indivíduo conforme o papel desempenhado. O medo ergue-se,
assim, como o estágio de consciência do erro, ou melhor, demarca o reconhecimento de que
uma sanção se fará necessária, se o desvio vier à tona. Atentemos para os fragmentos
seguintes:

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_Uma noite não é nada para eu estar contigo,
Se não fosse pelo medo que eu tenho de meu marido
τ meu marido foi p’r’à caça p’r’à caça de Aragão
Más raios lhe parta a língua, um cutelo o coração

Numa leitura menos tímida, poderíamos dizer que, inconscientemente, a mulher anseia
atingir, no homem, aquilo que denota, nela, índices da deficiência, da falta. A língua remete
ao domínio da expressão, do discernimento, da fala crível e descomedida. O coração, por sua
vez, contém-se na simbologia do acolhimento e da união. Na condição de traidora,
Brancalinda perde os signos da decência e suas palavras, consequentemente, infundem o
desasseio moral, sinalizando para si mesma o seu erro. Esse conflito interno, talvez explique o
desejo de que forças danosas da natureza extraíam a língua do marido, cujas palavras ainda se
mantêm sóbrias e abstêmias de engodos. Os sentimentos do parceiro conservam os afetos que
resguardam a relação conjugal. Seu coração permanece intacto, firme e incorruptível. Essa
imagem de excelência social humana, possivelmente, se institui como reflexo especular por
meio do qual a esposa desleal se vê em sua essência adversa. O coração feminino, nesse caso,
revela-se condescendente à desavença matrimonial.
O amante não adentra no universo de conspiração, instaurado pela esposa infiel,
imbuído de coragem e destemor. Ele também receia pelo desvelamento do adultério,
certamente, devido ao fato de sua participação, no crime contra a honra de um bom homem,
exigir uma punição tão severa quanto aquela dirigida à fêmea traidora, ou seja, a morte. Ao
declarar à Claralinda a veleidade de tê-la durante uma noite serena e tranquila, sem a
iminência de um flagrante, o cauteloso rapaz já antevê os riscos que um relacionamento com
uma mulher maritalmente comprometida pode trazer. A expressão qualificativa sem temor,
associada ao vocábulo noite, encerra uma informação pressuposta que sustenta nossas
inferências. Essa estrutura conduz-nos à constatação de que o amante já tinha conhecimento
de que a mulher, objeto de sua cobiça, fruía de ocasiões favoráveis à quebra da fidelidade
conjugal. Supunha, certamente, que esses momentos se prestavam a encontros furtivos, sem
sustos e sobressaltos. É por conhecer tais indicações que o astuto comparsa expõe a sua
cúmplice a ânsia de tê-la, sexualmente, numa ocasião em que a escuridão lhes fosse generosa
e não, denunciante. A intimidade como a interpela, denominando-a de meu amor sem ser
repreendido, alude a uma traição que já se processava através de gestos, olhares e
complacências. Observemos os seguintes versos:

_Brancalinda, Brancalinda Brancalinda, meu amor;


quem me dera estar contigo uma noite sem temor!

Chegada a noite do tão esperado encontro, a falsa esposa abriga o amásio sob os tão
desejados lençóis. As horas passam e, à meia-noite, a tranqüilidade dos algozes é
interrompida pela presença imponente do marido que, inesperadamente, bate à porta. Um
dado que nos chama atenção, aqui, é a referência cronológica meia-noite. É sabido que as
forças sobrenaturais caminham junto às camadas populares desde a Antiguidade. Tornaram-se
mais sólidas e mais fantásticas na Idade Média quando o maniqueísmo cristão passou a
influenciá-las diretamente. Os eventos naturais, biológicos, culturais, econômicos foram
obrigados a ocupar dois polos: o do bem e o do mal. Quanto mais abstruso o elemento, mais
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superstições o envolviam. Uma delas, por exemplo, recai sobre o caráter místico de
determinadas horas ou frações do dia. O folclore reserva para as doze horas às insígnias da
revelação, da intervenção divina, do aparecimento das entidades sobre-humanas.
Provavelmente, a incorporação desse elemento temporal esteja relacionada à aparição
imprevista do marido. É como se forças sobre-humanas se colocassem como coadjuvantes na
tentativa de levá-lo a descobrir o ato desonroso:

Onze horas, meia-noite marido à porta bateu;


Bateu uma, bateu duas, Claralinda não falou

As insistentes investidas do esposo contra a porta despertam, inicialmente, o silêncio


dos que se encontram, em conduta libidinosa, dentro do recinto. Essa ausência de ruídos é
duplamente significativa: para os que transgridem a moralidade, sinaliza a aflição, o
desespero para elaborar evasivas, o prenúncio da descoberta; para o fiel marido pode ser um
sinal de que algum mal acomete a estimada esposa ou um indício de uma possível traição.
Institui-se, a partir de então, um jogo em que fatos e mentiras se digladiam. Observe o trecho
que se segue:

_Claralinda está doente, ou tem lá outros amores;


ando à procura das chaves para abrir os corredores

O primeiro subterfúgio da mulher desleal é tentar justificar a delonga em atender


aquele a quem deve, numa postura transigente, explicações de seus atos. A escapatória
utilizada é a declaração de que perdera as chaves e, portanto, necessitara de tempo para
procurá-las. O astucioso esposo refuta a desculpa ardilosa da indigna companheira, colocando
em relevo o valor atribuído por ela ao simples objeto. Apregoa, com severidade, que as
chaves, se feitas de ouro ou prata, são provenientes do dinheiro que ele detém e, por isso, o
esforço descomedido em encontrá-las não tem fundamento.
Essa fala coloca em cena um instrumento dominatório de natureza estritamente
masculina. Como a narrativa incorpora traços identitários de uma sociedade patriarcal, o
homem se ergue como o detentor dos bens, o provedor da esposa, o fundador da instituição
familiar. A mulher, reclusa ao lar e, por isso, impossibilitada de exercer atividades laborais
fora do ambiente doméstico, deixa-se submeter à proeminência econômica do homem,
passando a concebê-la, socialmente, como fator de sobrevivência e dignidade. O intento do
implacável marido é anular, por intermédio da constatação de sua posição abastada, a
argumento inconsistente de seu cônjuge. Recuperemos os versos seguintes:

Pois se elas eram de prata, meu dinheiro me custou;


Se elas eram de ouro meu dinheiro as pagou

Outros vestígios da infidelidade da esposa são duramente contestados pelo


desconfiado esposo. De imediato, interroga-a sobre a presença de um cavalo em seus
domínios. Como réplica, recebe da oprobriosa mulher uma fala envolta, mais uma vez, em
esquivas. Ela, habilmente, afirma que o estranho animal consiste num presente dirigido a ele
por seu sogro. Dentro do lar inóspito, depara-se com um casaco, alheio a seu uso, que incita

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sua curiosidade e suspeita. Prontamente, pede a companheira explicações sobre a vestimenta.
O inocente homem é agraciado com a resposta de que aquele indumento, concluído naquele
instante, é um regalo produzido por sua gentil e abnegada mulher. Chega, também, a
questioná-la sobre um chapéu, enfeitado a galão, que lhe chama visivelmente a atenção. No
intuito de deixar latente sua condição de boa esposa, assevera ser, este, mais um mimo
engendrado por suas próprias mãos para o saudoso esposo:

_De quem é aquele cavalo que na minha loja guinchou?


_É para ti, meu marido, que meu pai te comprou.
_De quem é aquele casaco qu’está ali dependurado?
_É para ti, meu marido mesmo agora acabado
_De quem é aquele chapéu enfeitado a galão?
_É para ti, meu marido, feito pelas minhas mãos

Em todas as versões analisadas, os falsos “presentes” conduzidos ao marido traído


procedem, inventivamente, dos familiares de sua estimada mulher, geralmente o pai e irmão,
por se tratarem de instrumentos circunscritos ao universo masculino e que, logicamente, não
poderiam ser produzidos por uma frágil esposa: cavalo, armas, espadas. Além disso, a
inserção dos atores familiares se revela congruente ao período sócio-histórico, altamente
conservador, que tangencia o romance. Seria execrável que uma mulher, legitimamente
casada, recebesse visitas de outros homens na ausência do marido. Tal conduta poderia
macular fortemente a sua honra, levando-a a uma reprovação social. Somente parentes
poderiam fazê-lo e, com isso, salvaguardar a reputação requerida pelo status feminino.
Observemos o trecho abaixo:

De quem é aquele cavalo branco que na minha estrebaria entrou?


_É vosso, meu D. Alberto, que meu pai vo-lo mandou.
De quem é aquelas armas que no meu cabinete estão?
_São vossas, meu D. Alberto, que vos manda meu irmão

Enquanto os sinais se situaram na ordem do material, do inanimado, a ardilosa esposa


conseguiu, com argúcia, se esquivar. Todavia, o marido, falto de confiança, surpreende-se
com mais um elemento: uma respiração mais prolongada que advém de seu quarto. Ao
indagá-la quem estaria a suspirar em seu leito, a ignominiosa companheira, tomada pelo
temor, perde o ânimo e desfalece, esmorecendo-se ao chão. O marido, então, tem a
comprovação do adultério. Há versões em que o amante é flagrado e a mulher, diante do
ocorrido, confessa seu ato vergonhoso, assumindo toda responsabilidade pela traição e
rogando, humildemente, que ela seja punida, com a morte, em vez do desonroso cavaleiro
com quem manteve relações extra-matrimoniais:

De quem é aquele suspiro que no meu leito suspirou?


Claralinda não falou, caiu no chão e desmaiou.

_Quem é aquele cavaleiro que no meu quarto suspirou?


Diz-me tu, ó Brancalinda, como para aqui entrou
_Não mates o cavaleiro, que não tem culpa de nada;
Antes mate Brancalinda, que traição te tem armada

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Como se percebe, nos fragmentos acima, a mulher não demonstra ter o menor respeito
ou apreço para com o marido. Não há preocupação, por parte dela, de tentar justificar seu
grave desvio de conduta. Coloca-se, aliás, em defesa da vida do amante e ignora
completamente o valor de sua existência. Em termos humanos, tal comportamento pode
parecer enobrecedor uma vez que uma vida é dada em prol de outra. Entretanto, no que diz
respeito às conformações sociais, o gesto ratifica o caráter pérfido da esposa, visto que trai
duplamente o seu cônjuge: desonra-o em sua ausência e, o mais estarrecedor, envergonha-o
diante de seus olhos.
A punição dirigida aos algozes varia de texto para texto. Em algumas peças, o bondoso
esposo atende a súplica da desonesta mulher e decide não matar o inescrupuloso cavaleiro.
Entretanto, prenuncia ao traidor um castigo: será alvo de igual falsidade. Vivendo ao lado de
uma adúltera, resta-lhe apenas a surpresa de encontrar, sob os seus lençóis, um ignóbil
estrangeiro. Sofrerá, portanto, a mesma ação ignominiosa que praticou. É preciso não deixar
de falar que o amante, a depender do texto, ostenta o papel temático de amigo. Não é a esmo
que detinha informações sobre o cotidiano do casal. Sabia, inclusive, que a bela Claralinda
passava noites sem a companhia do marido. Esses subsídios discursivos dão relevo ao
deslustre e infâmia dos companheiros que se deixaram levar pelo prazer carnal e suplantaram
a lealdade do casamento e a concórdia da amizade. A nobreza de caráter reside naquele que
rebaixa a dignidade e eleva os sentimentos, salvaguardando a vida de um ser movido pelo
fingimento e abjeção. Vejamos os seguintes versos:

_Eu não mato o cavaleiro, ele que coma o seu pão;


Nem te mato, Brancalinda, sempre te tive afeição

E quem é aquele homem que na minha cama está?


_É vosso amigo seu, qu’aqui o veio visitar.

Deixá-la a mercê do olhar reprovador da família constitui a sanção mais recorrente. É


uma forma de marcá-la negativamente no seio social, de oprimi-la perante os seus e, com isso,
torná-la paradigma do que deveria ser impraticável. Em algumas narrativas, o austero marido
lança-a ante o ser paterno para que este tome conhecimento da vida licenciosa da filha, cujo
comportamento, assaz questionável, avilta a sociedade. Com isso, o enunciador nega a
hombridade da figura do pai que se vê, nesse momento, em presença do fracasso de seus
valores e princípios. A educação que dirigiu aos descendentes se mostrou, então, ineficiente e
debilitada. Notemos os seguintes versos:

Hei-de-t’ir levar a teu pai, e hei-de-lhe dizer assim:


Aqui tem a sua filha, que não me quer só a mim.

Os consanguíneos de uma adúltera também padecem de uma forte estigmatização


social. Em determinadas comunidades, prevalece a ideologia da corrupção do sangue, ou seja,
se uma mulher envereda pelo caminho da libertinagem e infidelidade conjugal, toda a
genealogia feminina, a qual ela pertence, será considerada “degenerada”, pervertida, propensa
ao vício e à insídia. Para amainar o repúdio externo, a transgressão deve ser incisivamente

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rebatida e a infratora deve receber, com severidade, a punição que lhe cabe. Somente assim, o
fato servirá como exemplo para todas aquelas que estiverem religiosamente comprometidas
com um homem. No romance, acontece algo análogo. O marido almeja exterminar a desleal
esposa diante das irmãs dela, a fim de que estas, ao presenciarem o castigo, temam fazer o
mesmo com os seus cônjuges:

_Vai chamar as tuas manas, que te despeçam p’ra o fim;


Que não sejam p’ra’os seus maridos como tu fostes p’ra mim

A performance dos atores, no enunciado, simula o drama da contrafação conjugal sob


uma projeção locucionária em primeira pessoa. Os actantes discursivos se apropriam da
expressão narratológica e, na condição aparente de enunciadores, conduzem os
acontecimentos numa perspectiva marcadamente subjetiva. O resultado é um espetáculo
social que escapa à exterioridade do mundo e adquire, na enunciação, um revestimento
ideológico específico. A moral, a ética e a condescendência humanas passam a endossar os
conceitos institucionais de uma sociedade regida pelas leis culturais que determinam direitos
aos homens e deveres às mulheres. A embreagem, linguisticamente marcada, afugenta os
atores para uma zona antrópica identitária onde o engodo feminino impõe-lhes uma
aproximação que define a direção discursiva de seus enunciados.
A plateia antropológica assiste, assim, a uma encenação que se desenvolve a partir de
seus reclamos e protestos. Não há um distanciamento manifesto entre a instância do dito
actancial e as vozes portadoras dos dizeres sociais, projetadas pelos entes enunciantes. Com
isso, o adultério, altercação temática da narrativa, transita de sua existência testemunhal para
o palco da vivência imediata. O conluio entre a mulher infida e seu comparte situa-se num
patamar enunciativo onde as falam seguem o percurso incongruente dos desejos. As paixões
trazem à tona a preleção proibida através da qual o marido (homem vitimado pelos interesses
escusos) faz-se presente, embora esteja fisicamente afastado desse círculo confabulatório. O
receio, a apreensão e o medo presentificam-no, conceitualmente, nas falas que instauram a
trama atroz. Como contrapeso, assim que envereda pelo caminho da revelação, promove uma
ruptura na vicissitude dos acontecimentos, fundando uma enunciação, assenhorada por
julgamentos e suposições, que impele vítima e traidores para uma mesma zona de confronto e
identificação.
Os pais, o irmão e as irmãs de Brancalinda não apresentam um trajeto narrativo
explícito e autônomo. Apresentam-se como seres desprovidos de faculdade elocutiva, cuja
existência depende da expressão delineada pelos atores-enunciadores que os instituem,
discursivamente, como enunciatários. Em termos persuasivos, exercem a função de foro
directivo, conduzindo os pontos de vista dos sujeitos enunciantes para uma “jurisdição”
instauradora de uma dada verdade. Os familiares masculinos são colocados, estrategicamente,
como vozes de apoio. Eles fundamentam uma enunciação, erguida sobre alicerces
fraudulentos, que carece, portanto, de argumentos “apropriados” para que o engodo se
mantenha. Culturalmente, não obtemperam as insígnias que a eles são atribuídas. O cavalo, as
espadas, o capote e o chapéu fundam um campo semântico que gira em torno do ser homem.
Como meio de torná-las espacialmente válidas, a adúltera encaminha essas “provas” para os

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únicos indivíduos socialmente aptos a visitá-la na ausência de seu senhor. É uma solução
bastante sagaz.
O companheiro traído designa a figura do sogro e das cunhadas como vozes de
contestação e anseio de consciência. Ao materializá-las em seu discurso, intenta negar a
nobreza de caráter de toda uma linhagem, em cujo receptáculo reside um membro corrompido
e infeccioso, capaz de fazer propagar o ato vergonhoso. Concorre para os pais a função de
estabelecer os limites comportamentais dos que estão sob os seus cuidados e compete,
especificamente, aos filhos mais velhos o exemplo para os mais jovens. No texto, esses
encargos sociais são claramente contestados quando a mulher infiel é exposta aos olhos da
censura e exprobração de seus familiares. Diante de tal acontecimento, os progenitores
consignam o seu malogro enquanto instrutores e as irmãs se veem destituídas de sua
compostura e alinho moral. Observemos os excertos abaixo:

_Meu sogro e minha sogra, aí têm sua filha,


Qu’eu não a mandei matar pelo bem qu’eu le queria.

_Vai chamar as tuas manas, que te despeçam p’ra’o fim;


Que não sejam p’ra’os seus maridos como tu fostes p’ra mim.

Um texto, em particular, registra uma informação bastante curiosa. A mulher, prestes a


ser extirpada pelo crime que cometera, manifesta o seu status elevado como forma de aplacar
a ira do rigoroso marido. Talvez, para ela, a procedência privilegiada (filha de um doutor)
configure um instrumento angariador de respeito e clemência. Além disso, para reforçar o
clima de comoção, alia a posição social à jovialidade da qual desfruta. Consequentemente,
projeta-se como uma mulher socialmente merecedora de indulto e portadora de uma
ingenuidade que a impulsiona ao pecado. Argumentativamente, exime-se de qualquer
culpabilidade “intencional”. A pouca idade constitui, nesse prisma, o fator determinante para
que ceda à tentação do espírito e aos desejos da carne. Constatemos os versos que se seguem:

_Nós éramos três irmãs, todas filhas dum doutor;


Eu por ser a mais novinha é que caí neste clamor.

O romance detém um revestimento espacial nada anódino. Os espaços aprisionam as


vozes que confirmam aquilo que as palavras, em sua superficialidade concreta, escondem. A
primeira orientação locativa que nos chama a atenção é a feira de Ascensão. O evento faz
parte das comemorações que integram a Quinta-feira de Ascensão, um rito religioso católico,
preservado em território português, que celebra a elevação de Jesus Cristo aos Céus, depois de
quarenta dias de sua ressurreição. No calendário lusitano, a solenidade ocorre trinta e nove
dias após o domingo da Páscoa e tem, como atrativo maior, uma feira onde a população
estabelece atividades comerciais dos mais variados tipos. Prolonga-se por vários dias e
perdura a noite toda. Esses designativos são de extrema importância para compreendermos os
motivos que, na narrativa, levam o cônjuge a afastar-se de seu lar. Provavelmente, dirige-se à
festividade para instituir, aí, um fazer laboral, o que justificaria sua longa ausência do corpo
familiar e explicaria, sobretudo, o fato de a esposa permanecer restrita ao ambiente doméstico.
Na linha histórica que se irrompe no texto, a participação de uma mulher casada em cerimônia
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pública, sem o acompanhamento do esposo, constituiria uma grave violação do protocolo
social.
Por edificar-se, preponderantemente, como referência religiosa, o local atribui ao
homem traído uma semântica cultural positiva. Embreado nesse topos, passa a compartilhar
dos valores ideológicos que nele circulam. O enunciador constrói, assim, a imagem de um
indivíduo laborioso e detentor de devoção e fé. Tais atributos situam-se, naturalmente, como
signos de pertença e aceitação. Aqueles que não reverenciam os costumes sagrados
conservam-se, portanto, distantes desse espaço. É o caso dos pícaros amantes que,
enunciativamente, posicionam-se numa debreagem, tanto em relação ao ambiente físico (a
feira), quanto aos ensinamentos sacros que dele emanam.
Em dadas versões, a ancoragem espacial feira de Ascensão cede lugar para campos de
Aragão. Com isso, a peça restaura seu pacto discursivo com a Idade Média. O reino de
Aragão foi um dos territórios cristãos erigidos na Península Ibérica, durante a longa batalha
pela expulsão dos mouros. Anexado ao Estado de Pamplona em 925, conseguiu sua
independência apenas em 1305. Seu último rei, Fernando de Aragão II, mediante himeneu
com Isabel de Castela, unificou os reinos numa monarquia centralizadora que deu origem à
moderna nação espanhola. O enunciador funda esse locus como uma região onde o espírito de
caça é revivido. É bom lembrar que príncipes e nobres feudais consideravam a prática de
perseguição aos animais selvagens um esporte de diversão e confraternização entre os seus. A
depender do animal a ser capturado, os fidalgos-caçadores passavam horas e, mesmo dias,
embrenhados nas florestas, buscando aprisionar ou exterminar a presa selecionada. No
romance, D. Alberto (em outras compilações, Conde Alberto), homem marcado pela desonra
matrimonial, dedica-se a tal oficio. Aliás, arreda-se de sua esposa e de sua casa para executá-
lo. O título honorífico que carrega, Dom ou Conde, coloca-o entre os membros de uma classe
social abastada e, nessa condição, como já fizemos questão de assinalar, usufrui da caça como
ocupação ligeira e agradável. Nas versões onde a nomeação não é registrada, possivelmente, o
caçador encalce os animais para a provisão da família. É uma leitura que não pode ser
descartada, dado o itinerário temporal e espacial do romance.
Seja um ilustre fidalgo ou um simples “plebeu”, o marido de Brancalinda extrai dos
campos de Aragão, locação onde se encontra culturalmente embreado, atributos que o
engrandecem em força física e brio. A ação que perpetra acentua seu ânimo, virilidade e
coragem, tornando-o um personagem completamente indômito. Não é por acaso que o
adultério é tramado sob a luz da apreensão, do receio e do medo, em tal grau que os traidores
temem por suas próprias vidas. Em relação a estes, Aragão se ergue como uma referência
tópica que separa radicalmente a intrepidez e a covardia, o duelo físico e o combate
conspirativo, a probidade e a depravação. Dele debreados, os atores aleivosos consideram-se
livres para cometer o ato repulsivo e infame.
A habitação do casal, representada em seus cômodos constituintes, como portas,
estrebaria, gabinete, corredores e leito, figura como um metaespaço onde os actantes do
enunciado, antes dispostos em dois pólos locativos distintos, passam a partilhar de uma
mesma zona de embate e subversão de valores. É nesse ambiente que se dá a falência da
lealdade matrimonial. Ironicamente, o espaço instituído pelos parâmetros religiosos como
recinto da decência, da educação e da instrução, subleva-se como lugar de corrupção, dolo e
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fraude. Aquela responsável por preservá-lo, sustê-lo em bases morais sólidas, desencadeia
uma ação que o faz desmoronar, em termos éticos. Na verdade, encontramo-nos diante de
uma instituição que falha, de forma retumbante, em sua função corretiva, seja em relação à
eliminação dos maus costumes, seja no que diz respeito à infusão de conceitos sãos.
É bom observar que, em cada compartimento desse macro espaço, há um vestígio que
compõe o ritual espúrio. O amante deixa o cavalo na estrebaria, adentra na casa da mulher
desejada, percorre o corredor e, aí, despe-se do casaco. Dirige ao gabinete e espolia-se de seus
expedientes bélicos. Ao chegar à alcova, entrega-se ao ato sexual. A exata localização dessas
insígnias projeta um percurso já previsto e conveniente àquele que, habitualmente, se ausenta
de seu lar. Usando-se de uma lógica cultural, espera-se que o marido, ao introduzir-se em seus
domínios, restitua o animal de montaria à cocheira e, de ímpeto, penetre em sua morada. Se
ele retorna de um trabalho fatigante ou de uma caça exaurível, o mais provável é que se prive
das pesadas vestimentas e deposite suas armas no lugar apropriado. A saudade da esposa o
conduzirá, precisamente, ao leito e, lá, saciará suas vontades. Dessa forma, constatamos uma
simetria que põe esposo e amante em posições semelhantes. Quiçá seja essa relação que
promova e sustente o estado de desconfiança que culmina na comprovação do adultério.
Vejamos a ilustração que se segue:

Percurso
“pressuposto” do
marido

Percurso
do
amante

A fixação do tempo, no romance Brancalinda, submete-se às forças incoativas da ação


dramática. O fluxo dialógico confere uma circunstancialidade contígua que reflete à própria
interação do homem com o meio físico, histórico e social. Os atores se contendem num
espetáculo, automatizado pelo concurso falsamente espontâneo de suas vozes, onde a
objetividade dos atos e dos estados se desfaz no caráter estacionário e confinante do presente.
A encenação transita, pois, ancorada no palco do agora, condensando os espaços, travestindo
os sujeitos e recompondo uma realidade que se sujeita à morte para, assim, ressurgir,
majestosamente, em outro ambiente. À semelhança de uma prática antropofágica, o mundo
enunciativo alimenta-se do passado ideológico, para dele extrair os conceitos que, numa
posterioridade, serão convertidos em acontecimentos coevos. O tempo, da forma como se
apresenta na narrativa, permite que os fatos estejam, ilusoriamente, localizados numa zona de
identificação passional entre enunciador e enunciatário.
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Estruturalmente organizada como uma peça para fins representativos, a narrativa
desenvolve-se mediante falas e réplicas que incorrem dos personagens atuantes no enunciado.
A teatralidade, sob o estatuto preponderante do presente do indicativo, urde um cosmos no
qual a vida se refaz conjuntamente com a linguagem. A enunciação revela, aí, o seu lado mais
antropológico. O curso conversacional imprime uma verdade que está em conformidade com
a exterioridade do mundo. Em alguns momentos, porém, esse movimento formal de vozes é
interrompido por uma entidade enunciante/narratológica que, embreada na cena mas debreada
de sua cronologia, promove uma erupção textual marcada por uma visão onipresente e
sequenciadora dos eventos. Estes aparecem materializados em terceira pessoa e comportam
ações que se desenvolvem no pretérito perfeito. Essa peculiaridade recupera um traço
característico do gênero. O romance popular, em sua funcionalidade social, prestava-se
verdadeiramente a rústicas representações teatrais. Nelas, havia um sujeito responsável por
demarcar a progressão vocal dos atores e introduzir comentários acerca de determinados
episódios a fim de assegurar a compreensão do público. Vejamos alguns versos:

Onze horas, meia noite, marido à porta bateu;


Bateu uma, bateu duas, Claralinda não falou

Claralinda, linda clara, caiu no chão, desmaiou

A utilização do pretérito perfeito, além de recompor as circunstâncias fenofísicas da


narrativa, ampara uma noção semântica de distanciamento veridictório que afiança a
ubiquidade discursiva do enunciador/narrador. Espacialmente conscrito numa instância
antrópica de identificação, intervém com uma fala distal que encadeia o acabado e legítimo ao
progressivo e parcial. As referências temporais que esboça são aquelas incompatíveis à
consciência dos atores. O marido desonrado e a mulher adúltera alimentam-se do inesperado,
do improvável e do duvidoso. Qualquer indício de fidúcia em suas falas afetaria a coerência
temática que, isotopicamente, mantém a linha lógica da narrativa. As informações dissonantes
ao diálogo actorial constituem coordenadas axiológicas que revelam a posição do enunciatário
sobre o evento em discussão. Correspondem a pontos de vista que excedem a mera
constatação ou comprovação factual, projetando sobres os enunciados uma orientação
argumentativa a favor daquele que se apresenta como vítima de um ato torpe.
Uma estrutura crônica reentrante nas versões examinadas é a oposição entre o hoje e o
amanhã. A primeira grandeza sustém a acessão da formosa mulher ao apetite amoroso de seu
admirador. Traduz a permissividade, o oportuno, o favorável, isto é, satisfaz as condições
requeridas para a ligação azáfama entre os amantes. Ao dia seguinte – o amanhã – agregam-se
os semas da negação, da recusa, do interditado. Encerra uma significação que comporta a
consciência e culpabilidade feminina ante um circunspecto desvio de conduta. Como
sabemos, o ato de libertinagem é idealizado pelo homem desejoso, mas a consumação é
aquiescida pela mulher que se compraz com os elogios que recebe.

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Considerações Finais

A literatura oral, produto de uma reconstrução coletiva e, por isso, arquetípica,


manifesta uma instabilidade, quer estrutural, quer conceitual, desencadeadora de uma
identidade linguística, antropológica e, sobretudo, histórica. Os gêneros que a transigem
partilham diferenças e similitudes que se desvelam, subitamente, na interação interlocutiva
dos sujeitos responsáveis por sua manifestação. A enunciação assume, simbolicamente, a
função de áugure cujos devaneios trazem as insígnias que nos elevam ao reconhecimento
daquilo que, conscientemente ou não, produzimos.
Em termos conceptuais, a narrativa examinada sustenta uma axiologia puramente
tradicional, decorrente dos valores culturais preservados pelos grupos que dela fazem uso.
Comporta em seu cerne, os princípios ordenadores de uma sociedade pautada em posições,
radicalmente, religiosas, econômicas e morais. A ética é vislumbrada a partir da corrupção da
mulher. O ato de adultério assinala a decomposição de sua índole. Ao marido traído, revestido
em hombridade e bom caráter, é dado o poder se subjugá-la segundo sua vontade. A lei social
prescreve tal soberania.

Referências

BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. A tradição ibérica no romanceiro


paraibano. João Pessoa: Editora Universitária / UFPB, 2000.
_______. O romanceiro tradicional no Nordeste do Brasil: uma abordagem semiótica.
Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Linguística. São Paulo: USP,
1999.
GREIMAS, A. J. Os Atuantes, os Atores e as Figuras. In: Semiótica Narrativa e Textual.
São Paulo: Cultrix, 1977.
RODRIGUES, Hermano de França. Da singularidade do homem à multiplicidade do eu:
Enunciação e Subjetividade no texto literário de expressão popular. Tese de Doutorado -
UFPB. João Pessoa, 2010.

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O HOMEM INTERIOR E O DESPRENDIMENTO NA MÍSTICA DE MEISTER
ECKHART

Carlos Bezerra de Lima Júnior


(UFPB)
carlosbljr@gmail.com

Eckhart foi um místico que nasceu em 1260, em Thüringen. Fundador dos


Gottesfreunde, representado principalmente por Heinrich Seuse, Johannes Tauler, seus
discípulos, e por escritos anônimos alemães. Todos esses nomes se empenhavam em
desenvolver uma mística especulativa, como pouco se fez anteriormente na história do
pensamento humano. Meister Eckhart morreu em 1328, dias antes de ser condenado por
heresia pela igreja. Seus ensinamentos ecoaram através do vulgo e de monges e monjas, para
quem pregou, através de terras germânicas, chegando até mais tarde a Nicolaus Cusanus,
Agrippa von Nettesheim, Paracelsus, Valentin Weigel, Jacob Böhme, entre outros. Eckhart é,
portanto, uma peça importante para que seja montada uma história da mística renascentista.
A mística pode ser considerada uma postura, uma busca, um estudo, um saber, uma
atitude etc. que visa à experiência mística. Logo, a depender da concepção, a mística
coincidiria com uma ética: é o que se considera majoritariamente. Uma rápida definição que
sozinha compreende em si noções fulcrais para o entendimento da mística em sentido geral de
forma muito sucinta é a de Smith (1980, p. 19), que diz que a mística

é para ser descrita mais como uma atitude da mente, uma tendência inata da
alma humana, que busca transcender a razão e atingir uma experiência direta
de Deus, e que acredita que é possível para a alma humana estar unida com a
Realidade Última, quando ‘Deus deixa de ser um objeto e se torna uma
experiência’. Misticismo tem sido definido como ‘o sentimento imediato da
unidade do eu com Deus (...) é o esforço para estabelecer a imediatidade1 da
vida em Deus como tal - nesta embriaguez-de-Deus, em que o eu e o mundo
são igualmente esquecidos, o sujeito conhece a si mesmo para estar na posse
da maior e mais completa verdade.

Quando se fala que “o eu e o mundo são esquecidos”, Smith toca em um ponto de


extrema importância, a saber, a extinção das dualidades. A experiência mística é algo que se
dá quando é extinta a separação das coisas, pois que a alma se une a deus e a realidade é
compreendida como uma única unidade, por isso é imediata, pois a união é a formação de
uma única coisa, de maneira tal que não há mais dois elementos para serem ligados por outra
coisa. Essa extinção das dualidades gera discussões problemáticas quando se entende que
todas as formas de pensar sempre compreendem uma relação de dois elementos, e em
conformidades à linguagem moderna, sujeito com objeto, ou eu com não-eu; porque o que é
levado ao entendimento é que essa dualidade é o problema do homem, pois, se a extinção dela
é a experiência mística, que é a felicidade e a realização do objetivo do homem, então a

1
A palavra “immediateness” não encontra um correspondente direto no português. Aqui foi utilizado
“imediatidade”, mas talvez possa ser traduzido como “imediação” ou até “imediatismo”.
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dualidade é o oposto, é a causa do distanciamento do homem com Deus, é o pecado, o
sofrimento.
As dimensões éticas, epistemológicas e ontológicas de qualquer filosofia se
estabelecem através de discursos aparentemente distintos. Por exemplo, quando se fala de
ética, procura-se discutir em quê consiste a bondade, o que é certo ou errado na vida, a virtude
etc. Quando se fala de metafísica, busca-se uma clareza conceitual do ser, ou da consistência
da realidade. Entretanto, em Meister Eckhart, todas essas supostas disciplinas da filosofia têm
um ponto em comum no qual se tornam uma única coisa, um único discurso, sustentado por
um único ponto, que dele e para ele confluem necessariamente. Esse ponto é o
desprendimento, que talvez deva ser interpretado muito mais como um estado que como uma
ação. Dessa forma, a partir desse estado, um discurso sobre ética necessariamente seria a
mesma coisa que um discurso sobre metafísica, sobre conhecimento, sobre deus. Concorda
Giachini (2006, p. 20) a dizer:

Dividir o pensamento eckhartiano em temas tais como ética, ontologia,


antropologia e outros é uma arbitrariedade. Em Eckhart, cada sermão busca
atingir sempre o todo, fazer com que e deixar que Deus seja gerado na alma
humana. Em cada sermão, o pensamento especulativo de Eckhart parte e
desemboca na unidade, no Um.

Essa unidade é a representação do fim das tensões, do discurso. É o silêncio. Para


Eckhart, a verdade paira sobre o silêncio. Então, para o homem chegar ao silêncio absoluto,
precisa aprender a calar-se: isso significa na filosofia do mestre que ele precisa aprender a
calar a criatura. Veja-se que enquanto místico, Meister Eckhart tem preocupação com a
experiência mística, que é, para ele, a união do homem com deus. Nela, é gerado na alma o
próprio deus, com a dissolução da individualidade do homem.
Essa geração de deus na alma é exatamente o desprendimento: o ponto mais fulcral da
filosofia de Meister Eckhart. É efetivamente um esvaziamento absoluto do homem, quando
ele se livra dos pensamentos, das emoções, enfim, de tudo o que faz dele criatura, separando-o
de deus. É preciso entender que em Eckhart há uma clara distinção entre o homem interior e o
homem exterior2. O homem exterior é aquele que está preso às criaturas. É a criação. Esse
homem é privado da verdade, e está imerso em um mundo no qual tudo é relativo. O homem
exterior está limitado pelos seus sentidos e, por onde for, encontrará apenas sofrimento.
Igualmente é preso ao tempo, é preso na duração. O exterior é o homem servido de seus
sentidos, ou seja, entregue e em relação objetiva com o mundo.
O outro homem é o interior: aquele voltado à austeridade, a deus. O homem interior
trava uma intensa luta contra o exterior, em função de chegar a deus. Esse objetivo do homem
se dá através do desprendimento. O ser humano interior é aquele que não se entrega às
sensações, a não ser quando as usa com algo que tenha como finalidade fortalecer esse
próprio lado do ser humano interior. Em justificativa a isso que foi dito, exprime o próprio
Meister Eckhart (2005, p. 116-117):

2
Nas palavras do mestre, der inner mensche e der üzer mensche.
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os senhores dizem-nos que em cada homem, existem dois tipos de homens.
O primeiro é chamado o homem exterior, isto é, a sensibilidade. Este homem
é servido pelos cinco sentidos (...). O segundo homem é chamado o homem
interior, que é a parte mais íntima do homem. Agora você deve saber que um
homem religioso que ama a Deus usa os poderes da alma no homem exterior
não mais do que os cinco sentidos requerem como uma questão de
necessidade. E o homem interior não foca sua atenção aos cinco sentidos,
exceto na medida em que ele é seu guia e líder. Ele cuida para que eles não
se voltem ao seu objeto de forma bestial, como fazem algumas pessoas que
vivem de acordo com os desejos da carne, os quais são mais
apropriadamente descritos como animais do que como seres humanos.

Dessa forma, o uso dos sentidos a ter como fins a si próprios, ou seja, a ter como fim
sensações ou relações que dependem delas, é o fortalecimento do ser humano exterior. Os
sentidos devem servir ao homem como meios para que ele fortaleça seu lado interior, pois.
Para Eckhart, Deus se une ao homem quando o ser humano interior suprime totalmente o
exterior. Então quando o homem vive nesse âmbito relacional do ser humano exterior, tendo
seu lado interior obstruído pelos sentidos, ele se distancia de Deus, pois que Deus se realiza
no ser humano interior. A natureza exterior retira o homem dele mesmo, animalizando-o.
Então o que há é um jogo em que o ser humano exterior fica cada vez mais escravo da
exterioridade e o interior fica cada vez mais impulsionado para seu interior, na medida em que
são exercitados. Como diz Meister Eckhart (2005, p. 123), “σunca pode haver qualquer
alegria física ou carnal sem perda espiritual, pois a carne cobiça contra o Espírito e o Espírito
contra a carne”.
De maneira muito elucidativa, podem-se explicar melhor esses tipos através das
palavras de Malherbe (2006, p. 21):

O homem exterior é o homem introduzido em sua rede de relações, em sua


vida social, em sua função ou em sua atribuição particular. E o homem em
sua existência mundana é o homem que age, persegue objetivo, realiza uma
obra, experimenta satisfação nas criaturas; o homem interior, em
compensação, é o homem em sua essência singular de filho de Deus, é o
homem na identidade profunda e verdadeira.

Em decorrência da maneira especial que Meister Eckhart tem de ilustrar seus


argumentos através de metáforas muito “palpáveis” pela abstração, vê-se nesse ponto que ele
faz uso de uma. Além dessas e outras, talvez nenhuma passagem de comentadores ou do
próprio mestre consiga transmitir o real significado dessa sistemática divisão do homem entre
homem interior e exterior que essa, do próprio Eckhart (2006, p. 118):

Tomemos uma analogia (...). Uma porta se abre e fecha através de uma
dobradiça. Agora, se eu comparar as partes exteriores da porta com o homem
exterior, posso comparar a dobradiça com o homem interior. Quando a porta
abre ou fecha, as partes exteriores se movem para lá e para cá, mas a
dobradiça permanece imutável em um lugar e não se modifica em nada
como resultado. Por isso, é também aqui, se você só sabe como agir
corretamente.

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Fica muito clara a distinção de duas espécies de instâncias, que Eckhart chama em
alguns sermões de criatura e criador. A criatura é tudo o que é finito, relacional, dualista,
objetivo, temporal. Criador se refere ao infinito, eterno e livre. Sobre a criatura não se pode
afirmar verdades, não há a possibilidade de haver liberdade, pois que há uma relação
estrutural de interdependências mútuas entre as coisas. Então se a parcialidade está contida na
criatura, o criador não admite relatividades, nele tudo é absoluto. Nesse caso, o absoluto é o
mesmo que o nada, e, portanto, é inexprimível através da quantidade ou qualidade.
A diferença entre o homem exterior e interior pode ser entendida de outra maneira, a
saber que o homem exterior está sempre para deus, enquanto que o homem interior está
sempre para a deidade, ou divindade3, a depender da tradução. Isso se explica através da
necessária distinção que se encontra na filosofia de Eckhart existente entre esses dois
elementos, deus e deidade. Como explica Silva (2004, p. 524),

Deus (...) é o mostrar-se da Deidade como Deus (o Pai que gera o Filho e a
força que os une, o Espírito Santo), portanto, é uma imagem. E, na imagem,
há sempre uma distinção (o que ela mesma é, e aquilo para o que ela aponta).
Se há ainda uma distinção em Deus, não será em Deus que o homem deverá
estabelecer morada e permanecer. A bem-aventurança a que o homem anseia
e busca só a encontrará na Unidade da Deidade. E a Deidade está além de
toda imagem e aparência.

A deidade é algo que está para além da linguagem, que é, portanto, indizível, um
mistério insondável, que se apresenta muitas vezes como Deus nas palavras do mestre como
apenas enquanto palavra a cumprir sua função semântica. Ou seja, aquilo que ela se refere não
se pode dizer. Essa distinção é importante, pois explica como o desprendimento lança o
homem em um quadro tão sublime que ele trespassa inclusive a noção de deus. É de ajuda
também a breve explicação dada por Malherbe (2006, p. 22):

Deus é o ser exterior da divindade, ele é a divindade tal como o homem a


pode conceber. A divindade é a natureza inefável de Deus. Deus é a
divindade tal como a pode considerar o homem exterior. A divindade é o ser
íntimo, interior de Deus que não se revela a não ser ao homem interior, além
de toda meditação, no centro da meditação silenciosa.

Pois, o desprendimento aí pode ser traduzido por “desprendimento das criaturas”, de


tudo aquilo que tira dele a liberdade. A obra do mestre está repleta de referências desse
desprendimento inabalável. Para elucidá-lo, Meister Eckhart (2005, p. 36-37) em seu Daz
buoch der götlîchen troestunge diz:

Se, portanto, tu quiseres ter e encontrar plena alegria e consolo em Deus,


faça com que tu sejas despojado de todas as criaturas, de toda a consolação
das criaturas. Por certo, enquanto criaturas te confortam e são capazes de te
confortar, tu nunca encontrarás verdadeiro conforto. Mas, se nada pode te
confortar com exceção de Deus, verdadeiramente Deus vai te consolar, e
com Ele e n'Ele tudo aquilo é deleite. Se tu estás consolado pelo que não é
Deus, tu terás conforto nem aqui nem acolá. Se, no entanto, as criaturas não

3
Nas palavras do mestre, Got e gotheit.
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te consolam e tu não as aprecias, tu encontrarás conforto, tanto aqui como
acolá.

Em outra tradução do mesmo Daz buoch der götlîchen troestunge, vê-se Eckhart
demonstrando exatamente como se dá esse desvencilhar do homem da criatura, irradiando-se
a deus. Eis, então, que diz Eckhart (1991, p. 65-66):

Se fosse possível esvaziar perfeitamente uma vasilha e mantê-la vazia de


tudo o que pode enchê-la, inclusive do ar, a vasilha sem dúvida renegaria e
esqueceria a sua natureza, e o vazio a levantaria até o céu. Da mesma forma
o estar nu, pobre e vazio de todas as criaturas soergue a alma para Deus.

Uma vez que é tirada da vasilha tudo aquilo que dá a ela o que a compõe, ou seja,
todos os atributos ou características, não sobrará nada dela. De outra maneira a dizer: se for
tirada de um objeto todo o seu ser, tornar-se-á o objeto nada. Surpreendentemente, e ainda
mais para a igreja da época, esse nada é, para Eckhart, deus. Então, quando o homem alcança
o desprendimento completo, ele se torna um com deus. Em miúdas palavras, esse é o coração
da mística de Meister Eckhart, que explica o desprendimento a dizer (1998, p. 49):

O desprendimento é isso: é o espírito não afetado por alegria e tristeza, honra


ou desgraça; o desprendimento é como uma montanha de chumbo sendo
golpeada pelo vento. Aqueles que se tornaram imóveis desta forma são
semelhantes a Deus. Para Deus ser divino, ele deve ser imóvel, e daí vem a
sua pureza, sua simplicidade e sua imutabilidade. Portanto, se as pessoas
estão a se tornarem como Deus, na medida em que isso é possível, elas
devem adquirir o desprendimento. Isto levará a pureza; e pureza conduzirá à
simplicidade; e simplicidade conduzirá à imutabilidade. Isso é como as
pessoas tornam-se semelhantes a Deus. Mas esse processo depende da graça
de Deus. Uma vez que a graça divina atrai as pessoas para longe das
preocupações mundanas e transitórias.

Uma montanha de chumbo tem uma magnitude tão imensa que é absolutamente
indiferente ao vento – que lhe nada é capaz de fazer. Essa é a condição da alma desprendida.
Por isso que o homem se iguala a deus, pois assim como esse, o homem se tornará perfeito e
imperturbável pelo que é mundano; e assim permanecerá na alegria e no regozijo eterno,
assim como deus. É notável a centralidade que o desprendimento toma na sua filosofia. Isso
se dá de tal modo que Meister Eckhart chega a literalmente dizer que o desprendimento é
preferível ao amor, por exemplo, para a união do homem a Deus, como se prova na seguinte
passagem do seu Von abegescheidenheit (ECKHART, 1998, p. 47):

Eu louvo o desprendimento mais que o amor. A melhor coisa sobre o amor é


que me obriga a amar a Deus. O desprendimento, por outro lado, força Deus
a me amar. É muito mais nobre eu obrigar Deus a me amar que eu me
obrigar a amar Deus. A razão é que Deus pode se juntar e se unir a mim
muito mais intimamente do que eu possa me unir a ele. O desprendimento
obriga Deus a me amar, porque tudo ama estar em seu lugar natural. O lugar
natural de Deus é onde há harmonia e pureza; e o desprendimento traz essas
qualidades. Portanto, Deus tem necessidade de amar um coração
desprendido.

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Para completar o pensamento, e acentuar ainda mais essa distinção, Eckhart (1998, p.
47-58) adiante diz:

Também louvo mais o desprendimento que o amor porque o amor me obriga


a sofrer todas as coisas em propósito de Deus, enquanto o desprendimento
me faz receptivo de nada, exceto Deus. É muito mais nobre ser receptivo de
nada, exceto Deus, do que sofrer todas as coisas em propósito de Deus.
Quando as pessoas sofrem, elas naturalmente concentram suas mentes nas
causas externas de seu sofrimento. Mas o desprendimento não tem causas
externas. O desprendimento é receptivo de nada, exceto Deus, porque o
processo de algo ser recebido deve evoluir de um receptáculo. O
desprendimento cria um receptáculo espiritual para Deus, porque esvazia o
coração de tudo exceto Deus. E Deus é tão simples e tão sutil que ele pode
facilmente se inserir dentro de um coração desprendido. Portanto, o
desprendimento é receptivo de nada, exceto Deus.

Essas talvez sejam duas das passagens mais expressivas e, para a igreja do século XIV,
berrantes, do pensamento do autor. Na verdade é um trecho caríssimo para toda a mística que
se seguirá a partir de Meister Eckhart, pois supervaloriza o desprendimento, pondo-o em um
nível tão alto que é superior ao amor, e não para por aí. Eckhart (1998, p. 48) também põe
abaixo do desprendimento outros valores fundamentais do cristianismo, como a humildade,
como se vê abaixo:

Eu louvo o desprendimento mais que a humildade. Isto é porque a humildade


pode existir sem o desprendimento, mas o desprendimento perfeito não pode
existir sem humildade perfeita. Na verdade perfeita humildade tende a
destruir a si mesma, enquanto o desprendimento não deixa nada para
destruir. Assim humildade leva em direção ao desprendimento - e duas
virtudes são sempre melhor que uma.

Não somente fundado nesse argumento em função de provar ser o desprendimento


mais importante que a humildade, Meister Eckhart explica melhor essa distinção, deixando
cada vez mais clara a posição dessa espécie de desapego em sua filosofia, como explicita
abaixo (1998, p. 48):

Também louvo o desprendimento mais que a humildade, porque a humildade


perfeita curva-se diante de todas as criaturas, tratando todas as criaturas
como superiores; dessa forma a humildade faz as pessoas se concentrarem
naquilo que é externo a elas mesmas. Mas o desprendimento permanece
dentro de si. Olhar para fora nunca pode ser tão nobre como permanecer
dentro de si mesmo. O desprendimento não se curva diante de coisa alguma,
nem se afirmar acima de coisa alguma. Ele nem deseja estar acima nem
abaixo. Ele pretende ficar em apenas em si mesmo, sem causar nem alegria
nem tristeza a ninguém, sem querer nem igualdade, nem desigualdade com
ninguém, nada desejando em particular. Ele não pretende ser coisa alguma.
Se as pessoas desejam tornar-se algo, não podem estar desprendidas, porque
o desprendimento não quer ser nada. Por esta razão o desprendimento não é
um fardo para ninguém.

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Eckhart também faz menção da superioridade do desprendimento em relação à
misericórdia, concluindo assim sua ideia de que a supremacia do desprendimento em relação
aos principais cultuados valores cristãos, o que constitui uma situação digna de pô-lo talvez
justamente em suspeita de heresia. Entretanto, se entendido o sentido de suas proposições,
com todas as considerações de sua filosofia, entender-se-á que há uma razoabilidade de
julgamento do mestre. Sobre essa superioridade do desprendimento à misericórdia, diz
Eckhart (2005, p. 111):

Também louvo o desprendimento mais que toda a misericórdia, porque


misericórdia significa simplesmente que o homem, saindo de si mesmo,
volta-se para a falha de seus companheiros e por isso seu coração está
perturbado. O desprendimento é livre a partir disso, que permanece em si
mesmo e não se permite ser perturbado por nada, porque, desde que nada
pode perturbar um homem, não é bem com ele. Em suma, se eu considerar
todas as virtudes, verificarei que nada é tão completamente sem defeitos e
assim aplicável a Deus, como é o desprendimento.

Pois, a tomar esses dados em consideração, vê-se que o desprendimento é o centro


para o qual os argumentos do mestre se direcionam. É a meta do homem, e também a meta de
deus. Toda essa importância dada ao desprendimento consta não só no seu Von
abegescheidenheit, mas também ao longo de toda sua obra, em cada sermão, em cada tratado.
É preciso saber que através do desprendimento o homem alcança a unidade com a deidade,
superando inclusive a imagem de deus, como dito anteriormente. Através do desprendimento
o homem atinge a alegria eterna, a verdade absoluta.
Em seu Von edeln menschen, Meister Eckhart enumerará seis degraus da vivência
humana, a começar pela inspiração nos santos do cristianismo (primeiro degrau), a percepção
da exterioridade do que é mundano e a passagem à busca por deus (segundo degrau), o
afastamento completo do que é exterior, com gozo de alegria (terceiro degrau), a tomada do
amor como parâmetro de vida (quarto degrau), a obtenção da paz (quinto degrau) e, por fim, o
desprendimento total (sexto degrau). Dados esses passos para se chegar ao desprendimento,
percebe-se que para Eckhart, o desprendimento é o nível máximo da vivência humana, na
qual o homem cumpre seu destino, cumpre seu objetivo de vida. Assim explica Eckhart
(2005, p. 95):

Na sexta etapa, o homem é deformado e transformado na natureza eterna de


Deus. Como ele tem a plena perfeição e, esquecido de coisas impermanentes
e da vida temporal, é atraído, transportado à imagem de Deus e se torna um
filho de Deus. Não há nenhuma etapa suplementar e nem superior. É o
descanso eterno e bem-aventurança. A finalidade do homem interior e novo
é a vida eterna.

τu seja, o homem é “de-formado”, é tirada dele sua forma, e posta outra, a forma de
deus. E deus o faz de muito bom grado, pois esse é seu objetivo, e também o objetivo do
homem. Logo, deus quer que o homem de desprenda. Deus desvairadamente corre ao homem
quando este se desprende. Como diz Eckhart (2006, p. 1ικ): “Deus carece tanto de nossa
amizade que não pode esperar que lhe façamos pedidos; ele vem ao nosso encontro e nos pede
que sejamos seus amigos, pois de nós ele deseja que queiramos que ele queira nos perdoar”.
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Percebe-se, portanto, que o homem exterior está preso dentro da impermanência e da
relatividade. O homem interior é sua única saída para a conquista da eternidade, do gozo
esplêndido do criador. É o abandono do sofrimento, da morte, de tudo o que é perecível. O
homem interior é aquele que se abre para a experiência mística, dada por deus como graça
divina. É o ato que deus quer, mesmo na eternidade, tanto praticar.
Em Eckhart, o desprendimento é uma forma de experiência mística, e, portanto, é
imediata. Por isso que se compreende, na verdade, o que quer dizer desprendimento. O
homem se unirá à deus, à deidade, quando se livrar de todas as mediações, podendo obter um
contato imediato – que já não poderá ser contato, e nem outra palavra cujo sentido não conote
unidade. O desprendimento é a experiência mística na linguagem de Meister Eckhart. A vida
é celebrada pelo homem interior através do desprendimento. A morte é dada quando o homem
se entrega à exterioridade. E reina o sofrimento. Sendo assim, toda a potência espiritual
encontra seu furor no desprendimento, no qual retorna a criatura ao criador e lá se regozija na
alegria eterna, findando o homem, findando deus, como que jorrando em ato toda sua
infinidade de potência, em um transbordar de significado cuja magnitude encerra a dúvida, o
receio e toda outra espécie de limitação. E se saberá em plenitude que a vida valeu a pena, ou
melhor, que não há pena, há apenas o engano – que já fora abandonado.

REFERÊNCIAS

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from whom God hid nothing. Boston: New Seed Books, 2005.
ECKHART, Meister. In praise of detachment. In: WEYER, R. V. de. Eckhart in a nutshell.
Londres: Hodder and Stoughton, 1998.
ECKHART, Meister. Sermões alemães. Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006. Vols. 1 e 2.
ECKHART, Mestre. O livro da divina consolação e outros textos seletos. Petrópolis: Vozes,
1991.
ECKHART, Meister: On detachment. In: τ’σEAL, D. Meister Eckhart, from whom God
hid nothing. Boston: New Seed Books, 2005.
ECKHART, Meister: The nobleman. In: τ’σEAL, D. Meister Eckhart, from whom God hid
nothing. Boston: New Seed Books, 2005.
FORMAN, R. K. C. Meister Eckhart: The mystic as theologian, an experiment in
methodology. Shaftesbury: Element, 1991.
MALHERBE, J. Sofrer Deus: a pregação de Mestre Eckhart. Aparecida: Editora Santuário,
2006.
SILVA, A. J. Mestre Eckhart, sua vida, sua mística. In: COSTA, M. R. N.; DE BONI, L. A.
(Orgs.). A ética medieval face aos desafios da contemporaneidade. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004.
SMITH, M. The nature and meaning of mysticism. In: WOODS, R. Understanding
mysticism. Garden City: Image Books, 1980.

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VOZES ENTRECRUZADAS: MEDIUNIDADE, HERESIA E SANTIDADE EM
JOANA D’ARC

Iracilda Cavalcante de Freitas Gonçalves


Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Iracildacfg@hotmail.com

Uma doutrina, seja religiosa, política ou filosófica, é um conjunto de discursos


instituídos como verdades, em um dado contexto social, histórico e ideológico, e partilhado
por uma quantidade numerosa de indivíduos. Estes, denominados de adeptos, identificam-se
pela assunção das “mesmas verdades e a aceitação de certa regra – mais ou menos flexível –
de conformidade com os discursos validados” (FτUCAULT, 2000 p. 42).
Todavia, essa pertença doutrinária não está marcada apenas pela aceitação dos
mesmos princípios e a proibição dos que a ela não pertencem. Os sujeitos adeptos são
questionados o tempo todo pelo discurso que sustenta e pelo modo como o produz e o faz
circular em circunstâncias dadas. A doutrina controla, pois, os discursos e os sujeitos que
deles se utilizam, seja para ligá-los entre si, seja para diferenciá-los dos fieis de outros
sistemas doutrinários.
Pelo discurso proferido pelo sujeito, a doutrina identifica a sua pertença aos discursos
validados. Desse modo, princípios formulados em desacordo com as verdades instituídas são
considerados como sendo heresia e, em consequência, seus usuários reconhecidos como
heréticos. Para Foucault, “a heresia e a ortodoxia não derivam de um exagero fanático dos
mecanismos doutrinários, elas lhes pertencem fundamentalmente” (FτUCAULT, 2000, p.
42), ou seja, a heresia é um princípio fundante de qualquer discurso doutrinário: todo discurso
contrário aos princípios selecionados serão classificados, indiscutivelmente, como aberração,
falsidade. Nas palavras de Foucault: “uma teratologia do saber” (FτUCAULT, 2000, p. 33).
Colocada com o status de princípio constitutivo, a heresia passa por um processo de
naturalização, perdendo o efeito de sentido negativo que lhe foi dado, por exemplo, no
contexto da inquisição, instituída pelo sistema religioso católico. Desse modo, somos
convidados a compreender que o problema não é o discurso herético, mas o modo como às
doutrinas, de uma forma geral, tratam os sujeitos que formulam discursos fora da ordem
discursiva estabelecidas por elas.
Como aplicação teórica desses conceitos proposto por Foucault, propomo-nos lançar
um breve olhar na Idade Média, século XV, com o objetivo de observar como nesse momento
histórico o sistema religioso Católico lidava com a questão dos discursos heréticos e,
consequentemente, com o sujeito acusado de formular e fazer circular heresias. Para tanto,
selecionamos, dentre tantos sujeitos acusados como heréticos, o produtor de discursos e
adepto da doutrina Católica (re)conhecido pelo nome de Joana d’Arc, personagem cujos feitos
e ditos circulam no campo dos discurso da história e da Religião.
Os discursos da História e da Religião registram marcas discursivas que denunciam a
trajetória da construção da identidade de herege, atribuída a Joana d’Arc pelo discurso
religioso da Igreja católica na Idade Média. Neste trabalho, tentamos cruzar discursos
produzidos em dois lugares distintos do campo discursivo religioso: o discurso da Igreja
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católica e do Espiritismo. Nosso objetivo é compreender como a doutrina Espírita,
observando discursos que circularam no processo inquisitorial movido contra Joana d’Arc
pelo tribunal inquisitorial, discursiviza o lugar da heresia, construído pelo discurso católico,
para esse sujeito, nesse momento histórico.
Como discurso que constitui parte da doutrina Espírita, figurando enquanto literatura
complementar, utilizamos como referencial a pesquisa realizada pelo adepto Leon Denis
registrada no livro Joana d’Arc Médium. Dele, retiramos enunciados produzidos por Joana e
seus inquisidores, durante seu processo inquisitorial que, aqui, serão utilizadas como objeto
de análise.
Discursos históricos registram que Joana d’Arc foi uma aldeã Francesa, filha de
camponeses, viveu no século XV, mais precisamente em 1429, na aldeia de Domremy, cidade
de Lorena. Aos dezoitos anos, integrou o exército francês na posição de comandante e
venceu batalhas contra os Ingleses. Traída e vendida por franceses, foi presa pelos ingleses e
respondeu a processo movido pelo tribunal da inquisição instituída pela Igreja Católica. Por
não se submeter aos preceitos dessa doutrina, foi condenada como herege a morrer na
fogueira, pena máxima atribuída aos que não se conformavam aos princípios doutrinários
naquele momento histórico. Ficou conhecida com o epíteto de “bruxa”, “feiticeira”, “mártir da
inquisição” “heroína francesa e, por fim, “santa Católica”.
Em que consistiu, para o discurso religioso Católico, a heresia de Joana d’Arc? Como
a Igreja construiu a identidade de herege de Joana d’Arc? São essas perguntas que
buscaremos responder, por meio da análise de discursos proferidos pela ré e seus inquisidores
durante o processo inquisitorial.
Joana d’Arc, acusada de herege, foi submetida a práticas como interrogatórios
sucessivos e sessão de tortura que, mesmo levando-a exaustão, não a fez abdicar de seus
princípios, os quais consideravam autenticamente “cristãos”. A sua imagem de herege foi,
então, construída por meio de um jogo de perguntas e respostas que tinha como objetivo,
sondar a sua compreensão sobre os princípios cristãos e, ao mesmo tempo, condená-la por ser
considerada uma adepta que recusava adotar como seus os princípios doutrinários que a Igreja
adotava. Para a Igreja, Joana colocou-se radicalmente em oposição a ordem social e religiosa
sobre a qual afirma ser fiel atuante, infringindo, assim, os princípios doutrinários sobres os
quais afirmava a sua pertença.
Para o sistema religioso católico, muitos foram os comportamentos, inadequados aos
costumes vigentes, adotados por Joana; dentre eles, o fato de não se portar no lugar de mulher
construído no contexto social e religiosos da Idade Média: usou cabelos curtos e descobertos,
vestiu trajes masculinos, integrou exército na posição de comandante, contexto em que o
único lugar reservado as mulheres era o de “alegrar” o dia a dia dos soldados.
Joana, também, foi acusada de se colocar como missionária divina responsável pelo
resgate da unidade do reino francês, espaço reservado para os grandes comandantes de
exércitos e não para um mensageiro divino, especialmente, revestido de figura feminina.
Segundo relato de Joana, ela foi alçada a posição de missionária divina pelas famosas
vozes que ouvia desde os treze anos de idade. Vejamos textualmente o que diziam as vozes:
“é preciso que vás a socorro do delfim, para que, por teu intermédio, ele recobre o seu reino”.
Assumir estado de graça por aceitar a condição de enviada e escolhida por Deus para salvar a
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França do jugo inglês foi, pois, para a futura heroína, motivo de condenação. Respaldada
pelas vozes, vejamos como Joana, quando questionada, faz referência ao assunto: “vim ao
encontro do rei para salvar a França, guiada por Deus e por seus santos Espíritos” e, ainda:
“Venho da parte do Rei do céu e vos trago o socorro do céu! Em resposta a pergunta do
inquisidor: “Deus odeia os ingleses?” ela responde: “do ódio de Deus aos ingleses nada sei;
mas, Ele quer que os ingleses saiam da França e voltem para seu país” (DEσIS, s/d, p.1ι4).
Sobre a integração de Joana ao exército francês, na posição de comandante, a sua fala
sinaliza e fortalece, ainda mais, a questão da missão divina e do amparo dos mensageiros
divinos à missionária escolhida. Vejamos, para a fala de Joana: “sou uma pobre rapariga, que
não sabe cavalgar, nem guerrear!”, as vozes respondem: “filha de Deus, vai, serei teu amparo”
e, complementa: “Vai, vai, nos te ajudaremos!”.
Embora para a Igreja a posição de adepta assumida por Joana d’Arc tenha sido
colocada em xeque, ela se considerava uma cristã autêntica que tinha o privilégio de ser
guiada por vozes de santos. Esta foi sua resposta aos inquisidores quando questionada sobre
sua fé religiosa: “Sou boa cristã e boa cristã morrerei” e, acerca do santo ao qual afirmava
receber orientações: “S. Miguel me ensinou a bem proceder e a frequentar a Igreja”.
A afirmação de Joana sobre a manutenção de contatos intermitentes com Santos
Católicos, seja por meio de diálogos, seja por meio de visões foi considerada a maior das
heresias, ou porque não dizer a maior delas, uma vez que essa possibilidade, apenas, poderia
ser atribuída a sacerdotes da Igreja. Sobre essa temática, vejamos o diálogo com os seus
inquisidores:

_Toquei em Santa Catarina, que me apareceu visivelmente (DENIS,s/d, p.


40).
_Beijaste ou abraçaste Santa Catarina ou Santa Margarida? (DENIS, s/d, p.
41.)
_Abracei-as ambas.
_Vi S. Miguel e os anjos, com os olhos do meu corpo, tão perfeitamente
como vos vejo. E, quando se afastavam de mim, eu chorava e bem quisera
que me levassem consigo.
_Como explicas que as santas te respondam?
_Quando faço apelo a Santa Catarina ela e Santa Margarida apelam para
Deus e, depois, por ordem de Deus, me dão a resposta.
_Eles aqui estão sem que os vejais (DENIS, s/d, 134).
_Que dizem tuas vozes?
_Dizem-me: ‘σão tenhas medo; responde desassombradamente; Deus te
ajudará’. (DEσIS, s/d, p.155).

Segundo, o discurso da Igreja, outra heresia assumida por Joana diz respeito à questão
da sua relação com os pais. Joana partiu da sua aldeia à França, em cumprimento da sua
missão, sem pedir a permissão dos seus pais e nem tampouco comunicá-los sobre sua decisão.
Procedimento que feriu os princípios da Igreja no que diz respeito ao princípio de horar pai e
mãe. Vejamos o que diz o diálogo travado com seus inquisidores sobre esse assunto:

_Acreditavas proceder bem partindo sem permissão de teu pai e de tua mãe?
_ Sempre obedeci a meu pai e a minha mãe em tudo, exceto no que
respeitava a minha partida (DENIS, s/d, p. 77).
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_Quando deixaste pai e mãe, não consideraste estar cometendo um pecado?!
_Pois que Deus ordenava, era preciso fazer. Mesmo que eu tivesse cem pais
e cem mães e que fosse filha de rei, ainda assim teria partido!” (DEσIS, s/d,
p. 77).

Como se pode observar a obediência de Joana ao seu Deus estava sempre em primeiro
lugar: “pois que Deus ordenava, era preciso cumprir”. Procedimento que considerava
originalmente cristã, uma vez que na sua concepção de adepta da Igreja, Deus deveria sempre
estar em evidência. Essa crença na autoridade suprema ao seu Deus a faz considerar-se como
filha em estado de obediência e não em situação de pecado mortal, como queriam os seus
inquisidores.
Para a Igreja, Joana ao rejeitar a necessidade de desvencilhar-se desse e de outros
pecados, renegou, também o princípio da confissão, fato que se constitui em assumir mais
uma heresia. Vejamos a sua resposta a seguinte pergunta do inquisidor: “_Julgas, pois, inútil
confessar-te, ainda que em estado de pecado mortal?” “_Jamais cometi pecado mortal”,
respondeu Joana.
Imbuída da ideia de obediência ao seu Deus, Joana não compreendia a dimensão das
consequências que tomava a sua “não submissão” aos princípios adotados pelos seguidores
dessa Igreja. Estes a acusaram, também, de utilizar práticas de magia e de sortilégios.
Vejamos o diálogo cujo jogo de palavras tem como objetivo induzi-la a assumir sua
identidade de bruxa e/ou feiticeira

_Defendias o estandarte, ou o estandarte é que te defendia? (DENIS, p.


135).
_Fosse do estandarte ou de Joana a vitória, tudo pertencia a Deus.
_Mas, era no estandarte ou em ti mesma que fundavas a esperança da
vitória?
_Em Deus e em nada mais.
_Todos os meus atos e palavras estão nas mãos de Deus e confio nele
(DENIS, s/d, p. 136).

Segundo relatos de Joana, como já foi dito, desde os treze anos ela deixou-se ser
orientada por vozes de mensageiros considerados divinos. Para ela, estes funcionavam como
os verdadeiros intermediadores entre ela e a divindade. Nem durante o interrogatório com
seus inquisidores, sob os efeitos de práticas de portutra, Joana abriu mão das orientações
desses enviados fez, pois, questão de reafirmar a ascendência das “vozes espirituais” sobre “as
vozes da igreja”. A Igreja, representada pelos sacerdotes, oficialmente alçada a mediadora
entre Deus e os homens, figurou em segundo plano. O ato de não submeter-se aos princípios
dessa doutrina foi considerado uma heresia imperdoável que a levou à fogueira. Observemos
o trecho do diálogo que versa sobre o tema:

_Joana queres submeter-te a Igreja?


_Vim ao encontro do rei para salvação da Franca, guiada por Deus e por seus
santos Espíritos. A essa Igreja, a de lá do Alto, me submeto, com relação a
tudo o que tenho feito e dito!
_Aí está uma palavra bastante grave. Entre ti e Deus, há a Igreja. Queres,
sim ou não, submeter-te a Igreja?

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_Assim, recusas submeter-te a Igreja, recusas renegar as tuas visões
diabólicas?
_Reporto-me a Deus somente. Pelo que respeita as minhas visões, não aceito
o julgamento de homem algum! (DENIS, s/d, p. 137)
_A voz me disse que abjurar é uma traição. A verdade é que Deus me
enviou. O que fiz esta bem feito (DENIS, s/d, p. 143).

Cinco séculos depois, à Joana d’Arc herética a Igreja atribui o status de santa. À
doutrina católica não foi inserida novos princípios; quanto ao discurso de Joana d’Arc, este
permaneceu irretocável o que fez, então, com que esse sistema religioso atribuísse a um dizer
herético o caráter de princípio doutrinário? Como, então, a Igreja produziu a identidade de
santidade para Joana d’Arc?
Para a Igreja, enquanto doutrina religiosa, santificar significa atribuir o epíteto de
adepto doutrinário àquele que, em vida, aceitou as verdades legitimadas e viveu em
conformidade com elas. Conforme Andrade (200κ, p. 241) nessa “instituição, existe um
objetivo claramente definido em suas estratégias de beatificação e canonização: fornecer
modelos de conduta centrados na adesão à fé cristã”. Continua explicando a autora: “o
principal ingrediente para retratar seus escolhidos reside no destaque dado à sua adesão à fé
cristã. As narrativas do Vaticano reforçam sempre o temor a Deus que sempre esteve presente
em suas vidas. (ANDRADE, 2008, p. 254).
A Igreja consagrou Joana d’Arc como santa por meio da identificação de elementos
considerados pela Igreja como estabelecedores desse status; a morte pelo martírio é um deles:
a adepta foi posta para ser queimada na fogueira, ainda, viva; e, mesmo ciente do gênero de
morte a que seria submetida, não a temeu, aceitou-a pacificamente em nome do Deus cuja
ordens estava submetida. Durante o suplício, a mártir pediu para segurar uma cruz e chamou
por Jesus, prática que representou a reafirmação de sua fidelidade a fé religiosa Cristã.
Andrade (2008, p.246) afirma que na valorização do papel do mártir está a “primeira
manifestação da santidade no cristianismo”
Outro princípio de santidade foi a vida de devotamento e de sacrifícios adotada pela
adepta. Joana, conforme relatos históricos, viveu uma vida pautada nos princípios cristã e
sacrificou sua própria vida em prol da liberdade e unificação do povo francês.
Outro ponto fundamental na atribuição da sua identidade de santa, segundo Denis (s/d)
foi o fato de que, conforme os representantes da igreja, Joana, também, produziu “curas
milagrosas” em adeptos da Igreja a cujas preces atendera.
Ao atribuir o título de santa a Joana d’Arc, a Igreja não só aceita como verdade
doutrinária as ideias divulgadas pela adepta como, também, todos os atos praticados por ela.
Entendemos que esses discursos e essas ações recebem valores doutrinários pelo lugar do
dizer que a ela é atribuído, ou seja, o lugar discursivo de santa. Investida dessa posição ela
pode ser considerada uma virgem imaculada, enviada por Deus em missão. Vivência
missionária que, por ser de origem divina, foi passível de ser orientada por mensageiros
divinos. Pelo discurso religioso Católico a desconstrução do discurso herético de Joana d’Arc
passa, portanto, obrigatoriamente pela instituição da noção de santidade.
Em fins do século XIX, a questão de o sujeito poder ouvir vozes e travar diálogos com
seres que ressurgem do além passa a ter um lugar como objeto de estudo em vários campos do

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conhecimento. Nesse momento histórico, uma área de estudo inscrita como pertencendo aos
domínios do saber religioso, filosófico e, também, científico, conhecido com o nome de
Doutrina Espírita, sobressaiu-se por se propor a estudar o fenômeno da comunicação com
seres extraterrestres. Essa possibilidade de intercâmbio foi, então, denominada de
mediunidade e o sujeito capaz de se comunicar com esses seres, intitulados de médium.
Um dos princípios que constitui essa doutrina é, pois, a possibilidade de comunicação
entre os “vivos” e os “mortos”. Para esse domínio do saber, a comunicação com pessoas que
já passaram pelo fenômeno da morte é uma possibilidade real, uma vez que todos os seres
humanos já nascem organicamente preparados para realizar essa espécie de comunicação e
não a perde quando morre, pois durante este processo, apenas o corpo material se decompõe,
o outro, o corpo espiritual, continua a viver em outra dimensão (KARDEC, p. 15).
Ao colocar a mediunidade como um traço da fisiologia humana, o Espiritismo
naturaliza a temática da mediunidade e dos médiuns e os desterritorializa, ampliando o espaço
de atuação, ou seja, todo e qualquer ser humano independente de idade, etnia e fé religiosa
traz em si a possibilidade de se comunicar com entes que passaram pelo fenômeno da morte.
Desse modo, o campo religioso perde a primazia sobre a temática.
Trazendo o caso das vozes de Joana d’Arc, sob o olhar do Espiritismo, tem-se que ela
é uma médium com mediunidade bastante avançada, por meio da qual ela pode não só entrar
em comunicação com seres que estão em outra dimensão através da visão como, também, da
audição e do tato.
Sendo, pois, a mediunidade um princípio que constitui a doutrina Espírita, ela não
possui obviamente o status de heresia como o foi e, ainda é, para o sistema religioso Católico
e outras religiões contemporâneas. Conforme Denis (s/d, p. 68), para o Espiritismo “a
mediunidade tem sido (...), o meio que Deus emprega para elevar e transformar as
sociedades. σo século XV, serviu para tirar a França do abismo”. σessa doutrina, Joana
d'Arc figura, não como herege, bruxa ou feiticeira, mas como uma médium poderosa,
idealizando, assim, o modelo exemplar de mediunidade.
Entendemos que o discurso espírita ao instituir e defender, em fins do século XIX, o
princípio da natureza orgânica da mediunidade, naturaliza o fenômeno e contribui para a
desconstrução da imagem de herege, produzida no século XV pela Igreja Católica para Joana
d’Arc e, paradoxalmente, para a emergência da posição de santidade, construída para a
adepta, pelo discurso católico, no início do século XX. O Espiritismo, enquanto discurso que
se situa entre o religioso e o científico, ao reatualizar essa temática contribui, portanto, com o
debate estabelecido sobre temas que circularam em práticas discursivas, posta em exercício
pelo campo discursivo religioso Cristã na Idade Média, ressignificando-as.

Referências

ANDRADE, Solange Ramos de. A religiosidade Católica e a santidade do mártir. Projeto


História, São Paulo, n.37, p. 237-260, jul. 2008.
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. 6ª ed.
São Paulo: Edições Loyola, 2000. (Leituras filosóficas) 79p.

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KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns e dos doutrinadores / Allan Kardec: tradução de J.
Herculano Pires. São Paulo – LAKE, 2004a.
DENIS, Léon. Joana d'Arc, Médium - Tradução de Guillon Ribeiro, 19ª Edição.

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“OS CARMINA BURANA: ENTRE O CÂNTICO DOS CÂNTICOS DE SALOMÃO E
A CANTATA DE CARL ORFF”

Maria da Conceição Oliveira Guimarães


(Universidade Estácio Natal)
mcoguimaraes@gmail.com

Introdução

O olhar perscrutador em relação ao passado possui o propósito de alimentar o


presente. Amiúde, verifica-se que a prática da recepção de textos por outros textos se reitera
indefinidamente na literatura ao longo dos séculos. Exemplo mais fecundo de ressonâncias da
tradição literária verifica-se em Os Lusíadas quando o poeta recorre ao mito grego para
construir o famoso “Consílio dos Deuses”, prática literária utilizada também no episódio da
“Ilha dos Amores”; em Ulisses, James Joyce referencia precisamente as errâncias do Ulisses
épico de Homero; em A Divina Comédia, Dante edifica sua obra num compêndio onde todo o
conhecimento do mundo clássico é transubstanciado pela cosmovisão de um homem da Idade
Média.
Afeitos esses exemplos sobre as contextualizações literárias de autores clássicos,
segue-se com o objetivo relacional entre passado e presente na análise que ora se apresenta.
No caso em tela, o Cântico dos Cânticos seria o texto que ressoa em os Carmina Burana que,
por sua vez, é apropriado por Carl Orff em sua cantata cênica,“Carmina Burana”. O texto
bíblico, desde a sua provável data, século III a.C., sempre representou o acervo inevitável de
onde se retiravam passagens, versículos ou símbolos que fossem úteis para a produção
literária. A apropriação desse texto por outros escribas certificava a pertinência das críticas
sobre as práticas pouco aceitáveis da Igreja, ou ainda imprimia solidez a exposição de uma
“doença de amor” cantada por poetas como é o caso Ob amoris pressuram em os Carmina
Burana.
σo texto dos Goliardos, além de por à luz o “mal de amor”, doença da alma que não
respeita classe social ou religiosa, reverbera ecos paródicos do credo, das missas, nas
imitações burlescas dos evangelhos. Nas suas canções tabernárias vê-se que colocam em
evidência os desmandos da Igreja, a hipocrisia dos altos prelados eclesiásticos, o paradoxo
entre o que a Igreja prega e o que ela faz. Já Orff ressuscitou os poemas/canções desses
monges para divulgar e popularizar a beleza de indiscutível valor poético e literário.
A observação desses e de outros traços interrelacionados reaviva a transtextualidade,
traço inevitável para o reconhecimento de que num texto sempre há que se notar um
predecessor. No que tange a uma passagem gradativa no espaço temporal, por exemplo, esses
textos comportam virtudes que permanecem e que se extinguem, demonstrando assim, os
desdobramentos mentais e emocionais porque passam os homens em seus diversificados
estratos sociais.

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1. Exegeses do “Cântico dos Cânticos” e dos “Carmina Burana”

a. O poema de Salomão

O Cântico dos Cânticos é parte integrante dos “Livros Poéticos e Sapienciais” da


Bíblia grega e na Bíblia hebraica o mesmo poema é colocado entre os “escritos” que formam
a terceira e a mais recente parte do canon judaico. A autoria dessa ode é atribuída a Salomão,
pois que, mediante contexto histórico e político, esse rei de Israel, o homem mais sábio
daquela época, costumava dedicar cânticos de exaltamento à beleza de suas mulheres. É fato
histórico também que Salomão, filho de Davi, amou muitas mulheres estrangeiras, ligando-se
a elas em casamento, num tempo em que poligamia masculina era enaltecida. Os textos
sagrados registram que ele celebrou núpcias com setecentas mulheres princesas além de
possuir trezentas concubinas ao seu dispor. Entretanto, Sulamita foi a mais amada entre todas
as amadas de Salomão. Então, segundo estudiosos, o Cântico dos Cânticos nada mais foi do
que um hino escrito por Salomão e dedicado à arrebatadora beleza desta mulher.
Se Salomão era sábio, Sulamita era bela, portanto, a paranomásia dos nomes
Salomão/Sulamita tende igualá-los na perfeição, ele em sapiência e ela em beleza. A preferida
de Salomão gozava de uma sensualidade e de uma formosura que não passavam
despercebidas a ninguém. O jogo dialógico entre os amantes é parte em que sobressai os
atributos da esposa egípcia do Salomão histórico. Sulamita autodescreve-se: “Sou morena,
mas formosa,”1 A resposta de Salomão, no mesmo poema dialogado, confirma tal virtude:
Como és bela minha amada,/ como és bela! Nota-se ainda nesse canto, especialmente nos
versos trocados entre Amada e Amado, um perfil físico feminino traçado pelo Amado que é
repleto de um ardor e de uma sensualidade, beirando um erotismo dantes pouco visto: […]Teu
lábios são fita vermelha/ tua fala melodiosa; […]Teu pescoço é torre de Davi,/construída
com defesas;[…] Teus seios são dois filhotes, / filhos gêmeos de gazela,/ pastando entre
açucenas.[…] És toda bela minha amada,/ E não tens um só defeito”2.
Estudiosos veem no texto bíblico uma linguagem sensual, o que é inegável, uma vez
que, para verdade dizer, o início do poema já dá um tom de ternura apaixonada e esta
modulação dominará toda a coleção de poemas, numa languidez própria dos enamorados:
“Que me beije com beijos de sua boca!/ Teus amores são melhores do que o vinho,/ o odor
dos teus perfumes é suave,/ teu nome é como óleo escorrendo,/ e as donzelas se enamoram de
ti…”3
Outros exegetas defendem que esse livro é uma coleção de cantos populares de amor,
usados, talvez, em festas de casamento, onde o noivo e a noiva eram chamados de rei e rainha,
que foram reunidos, formando uma espécie de drama poético, e atribuídos ao rei Salomão,
reconhecido em Israel como patrono da literatura sapiencial. O certo é que O cântico dos
Cânticos é “um belo canto de amor mútuo entre dois amantes, o rei Salomão e Sulamita,

1
Bíblia de Jerusalém, Ct. 1, v .5.
2
Bíblia de Jerusalém, Ct. 1, v .5; 4, vv. 1,3,4,5 e 7.
3
Bíblia de Jerusalém, Ct 1: 2,3.
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Amado e Amada que se juntam e se perdem, se procuram e se encontram”, como refere a
introdução à edição da Bíblia de Jerusalém, (2002:1086).
O fato de esse conjunto de poemas ter origem na celebração do amor de um rei pela
sua consorte ou ainda que tenham sido cantos populares dedicados a esponsais em geral, não
o impede de ter influenciado trovadores e jograis desde tempos remotos até os dias atuais. Um
peculiar exemplo dessa evidência são os Carmina Burana de autoria dos Goliardos.

b. O poema dos goliardos

A poesia fornece uma base para a história da literatura Ocidental e o verso cantado
constitui uma das mais antigas formas de expressão humana. A Idade Média bebera na
tradição literária dos romanos que já recebiam, por sua vez, influências da tradição oral e dos
textos gregos e esses mesmos gregos tiveram outros predecessores, como se pode certificar
através de estudos comparatistas. Tal evidência torna possível a construção de uma ponte a
partir dos poetas greco-romanos em direção à lírica medieval, sem medo de que sejam
cometidos equívocos.
Um erro comum é acreditar-se que o período que vai da decadência de Roma até a
Renascença foi desprovido de cultura ou de qualquer forma de expressão literária. A carência
de textos no início da Idade Média promove tais conclusões errôneas, entretanto, estudiosos
que se debruçaram sobre os pergaminhos remanescentes daquela época demonstram tais
equívocos e apontam a abundância e a riqueza de textos daquela tradição poética.
Os pergaminhos da Idade Média, especificamente no século XIII A.D., época
dominada pelo Teocentrismo, atestam que clérigos descontentes e expulsos dos mosteiros, por
isso marginalizados, juntaram-se aos intelectuais e aos estudantes e formaram um interessante
grupo que resolve popularizar tudo o que consideram irregular nas esferas do poder. Delatam
os crimes, as injustiças, a corrupção, entre outras mazelas da sociedade religiosa, escolhendo a
Literatura e a Música como meio de denúncia. Insatisfeitos, os Monges e outras pessoas de
alto nível cultural expressaram o seu pesar contra o stablishement político-religioso do
medievo e denominaram-se de Goliardos4. Jovens de espírito livre, os Goliardos, que por
razões de princípios, rebelaram-se principalmente com o desvio da atenção dos religiosos
seculares (sacerdotes, bispos e arcebispos), disseminaram na sociedade de então sua
insatisfação através dos poemas intitulados Carmina Burana5. Através de seus textos criticam
o clérigo secular por ter relegado ao segundo plano os assuntos ligados ao espírito, passando a
agir dentro de uma concepção profana, em que, invariavelmente, pregavam a filosofia cristã,
mas estavam longe de praticá-la.
Anárquicos, os Goliardos antagonizavam, sobretudo, com todos aqueles que se
reconheciam importantes nas castas sociais medievais, a exemplo daqueles que se associavam

4
A origem da palavra Goliardo é latina: goliardus; vagantes; outra possível origem, também latina, seria a
referência à gula. Bebiam e comiam em excesso: goliardus; gulosos.
5
Segundo Maurice Van Woensel, “o manuscrito de Carmina Burana consiste em 112 folhas de pergaminho
fino, de 17 por 25 cm, que foram copiados por volta de 1230 na atual Bavaria; a encadernação foi confeccionada
muito tempo depois. Trata-se de uma compilação de canções, provavelmente por três copistas diferentes, e
ilustrada com oito miniaturas e com vinhetas. Certas canções vêm com uma anotação musical rudimentar.
Estudiosos conseguiram reconstituir o que foram as melodias originais delas…” (CB: 17)
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ao poder eclesiástico ou político e principalmente àqueles que estavam subjugados à
mediocridade e à ignorância. Viviam de expedientes, eventualmente a serviço dos ricos, e
seguiam os mestres preferidos, ao mesmo tempo em que ensinavam nos mesmos locais que
professores famosos lecionavam. Com arrazoada crítica antipapal, descreviam o sumo
pontífice como um hipócrita tutor da tradição moral, expoente de uma hierarquia organizada
sob a nova força do dinheiro. Por todas essas razões era quase impossível enquadrar os
Goliardos dentro de uma síntese social determinada, pois quaisquer caracterizações social que
lhes atribuíam gerava suspeita e escândalo entre os conservadores.
Foi sob este contexto histórico-religioso que, pelas mãos dos Goliardos, nasciam os
poemas Carmina Burana. Esse nome “deriva do latim, carmen,ìnis 'canto, cantiga; e bura(m),
em latim vulgar 'pano grosseiro de lã', geralmente escura; por metonímia, designa o hábito de
frade ou freira feito com esse tecido”6. Os Carmina Burana são textos poéticos contidos em
um importante manuscrito do século XIII, o Codex Latinus Monacensis, encontrados durante
a secularização de 1803, no convento de Benediktbeuern, a antiga Bura Sancti Benedicti,
fundada por volta de 740 por São Bonifácio, nas proximidades de Bad Tölz, na Alta Baviera.
O códex compreende 315 composições poéticas, em 112 folhas de pergaminho, decoradas
com miniaturas. Atualmente o manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional de Munique.7
O manuscrito de os Carmina Burana, datado de 1230 e publicado pela primeira vez
em 1847, contém canções, na sua maioria profanas. Essas canções eram escritas em troca de
comida, bebida e abrigo. Possuem teor satírico e erótico, revelando um mundo de orgias,
bebedeiras e jogatinas, em vez dos esperados hinos em louvor a Deus, que seria um ato
próprio de religiosos. O cancioneiro burano reúne em sua temática o trinômio Amor-Vinho-
Jogo, pois os Goliardos baseavam os deleites da vida no vinho, no jogo e, sobretudo, no amor.
Esse trinômio temático desdobra-se em Poemas Líricos ─ bucólicos e amorosos ─ e Satíricos.

c. A cantata cênica de Orff

Carl Orff é mais conhecido pelo triunfo de os Carmina Burana (1937), cantata que
encenou a partir do canto dos Goliardos de mesmo nome. Na década de 1930, o compositor
alemão, Carl Orff, buscava um texto para que pudesse escrever um ciclo coral. Seus esforços
levaram-no aos Carmina Burana. Resultou de seus esforços um estrondoso sucesso pouco
visto na música clássica, grande parte desse sucesso foi atribuído à fidelidade e ao respeito
que dispensou aos elementos temáticos do manuscrito em si mesmo e ainda ao feitio dos
arranjos melódicos moderno que só enriqueceram as melodias medievais.
A cantata cênica de Orff é a primeira de uma trilogia intitulada Trionfi, que também
inclui Catulli Carmina e Trionfo di Afrodite. Essas composições refletem seu interesse pela
poesia medieval latina e alemã. É descrita pelo compositor como "a celebração de um triunfo
do espírito humano pelo balanço holístico e sexual"8. O trabalho foi baseado no verso erótico
do século XIX de um manuscrito chamado Codex latinus monacensis, já referido. Apesar de
moderno em suas composições, Orff soube capturar o espírito da era medieval em sua trilogia.

6
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana
7
Cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana
8
cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Orff
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Com o sucesso de Carmina Burana, Orff abandonou todos os seus trabalhos anteriores, exceto
por Catulli Carmina e En trata.

2. Correlações e receção dos textos

Partindo da provável influência do Cântico dos Cânticos sobre a poesia médio-latina,


notadamente em os Carmina Burana, articula-se neste texto constituintes que configuram essa
interferência literária para demonstrar a pertinência desta análise. Há que se observar um
potencial indicador de intertextualidade no conjunto de versos que abrem o prólogo do texto
bíblico. Os vv. 2-4 dão o tema geral dos poemas, como já o dissemos, e as personagens do
diálogo são distinguidas por Amada e Amado. No entanto, a gama expressiva dos poemas
buranos que se quer comparar ao Cântico dos Cânticos é a terna poesia do amor presente no
poemas Veni, veni, vénias (CB 174) e Chume, chum, Geselle min! (CB 174a)9, uma vez que
ambos fazem parte da cantata de Orff. Trata-se indubitavelmente de uma obra influenciada
pelo Cântico dos Cânticos, porque, em verdade, na sua composição de apenas cinco estrofes é
percetível uma influência determinante da temática amorosa referida no poema bíblico.
Convida-se a observar que esses poemas remetem explicitamente ao cântico atribuído a
Salomão em duas vertentes: a primeira é a descrição física da amada e a segunda parece ser a
imperiosa necessidade amorosa que acomete ambos amantes. No poema Veni, Veni, Venias
(CB174)10, distingue-se perfeitamente cada um dessas faces quando o Amado dirige-se a
Amada:

Venha, venha, venha aqui,


por seu desdém quase morri!
Hyria, hyrie,
nazazá, trillirivos!
Sua face é divina,
seu olhar me fulmina!
Oh tranças tão sedosas,
oh que formas graciosas!
Mais rubra que a rosa,
tal lírio, és formosa,
ninguém iguala tua beleza,
orgulhas-me, ó princesa! 11

Já no poema Chume, Chum, Geselle min! (CB 174a)12, escrito em alemão medieval, é
a Amada que se dirige ao Amado. Faz uso de versos que se repetem, pondo em relevo a
ansiedade da espera e a voluptuosidade própria dos amantes, e por outro lado, suaviza o item
temático da beleza.

Venha, venha, meu amado,

9
Poema escrito em alemão arcaico.
10
Tradução do latim por Maurice vanWoensel.
11
Veni, veni, venias/ ne me mori facias,/ Hyria, hyrie,/nazaza trilirivos!/ Pulchra tibi facies/ oculorum acies,/
capillorum series -/ o quam clara species! Rosa rubicundior/ lilio candidior/ omnibus formosior,/ semper in te
glorior!.
12
Tradução do Alemão por Maurice van Woensel.
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há tanto tempo esperado!
Há tanto tempo esperado,
venha, venha, meu amado.
Doces lábios, cor-de-rosa,
curem minh’alma inditosa!
Curem minh’alma inditosa,
doces lábios cor-de-rosa.13

Nas estrofes do CB 174a são percetíveis ecos da canção medieval dos viajantes
eruditos que também é penetrada pela antiga concepção de beleza da amada. O tom também é
claramente sensual numa referência explícita à personagem Sulamita do Cântico dos
Cânticos, embora a figura com a qual depara-se nos cantos buranos, seja puramente literária.
τ dueto entre os amantes no “Quinto poema” do Cântico dos Cânticos registra o quanto o
texto bíblico influenciou os poetas Goliardos, fundamentalmente na questão do elogio físico-
amoroso-sensual. Comparem-se cada verso dos poemas buranos aqui apresentados aos versos
do texto bíblico para que, efetivamente se consagre a correlação textual. Cântico dos
Cânticos, v. 9: “(…) roubaste meu coração/ com um só de teus olhares”. Carmina Burana, vv.
5-6: “(…) Sua face é divina/ seu olhar me fulmina!”. Cântico dos Cânticos, v. 3: “Teus lábios
são fita vermelha,”. Carmina Burana, v. 5: “ (…) doces lábios cor-de-rosa”. Quanto mais se
apontar paralelos entre os dois textos, bíblico e medieval, mais embrenhar-se-á na questão da
sensualidade e da voluptuosidade. Neles, tornam-se aguçados os sentidos da visão, da
audição, do paladar, do olfato e do tato, a exemplo do arrebatamento dos olhares (v.9), a fala
melodiosa (v. 3), o gosto pelos beijos (v.11), o perfume de suas roupas (vv. 10,11), todas
referências expressas em ambos os textos, bíblico e burano.
Importa perceber, entretanto, que mesmo um texto bíblico, considerado lascivo para
época, havia um teor subjacente que conduz a uma espécie de restauração de vivência bíblica
na experiência cotidiana. Assim é também em relação aos Goliardos, notadamente aos
monges, uma vez que produziam seus textos com o propósito de conferir ao cotidiano uma
verdade que estava camuflada sob a capa de uma beatitude defendida por uma sociedade
político-religiosa extremamente hipócrita.
Em paralelo, observa-se que Orff inclui os dois poemas Carmina Burana, (CB 174 e
CB 174a), em sua cantata cênica. No entanto, todo o prefil de sua peça compreende um
conceito muito difundido na Antigüidade e visível em os Carmina Burana. A Roda-da-
fortuna, símbolizada pela deusa grega, Fortuna, que em movimento contínuo e eterno, traz,
alternadamente, a sorte e o azar a todos humanos. Essa alegoria metaforiza a vida humana,
expostas a constantes transformações. Na peça do compositor alemão, a dedicatória coral à
Deusa da Fortuna, “O Fortuna, velut luna”, tanto introduz como conclui as canções
seculares. O acontecimento simbólico da peça, ensombrado por uma Sorte obscura, divide-se
em três seções: o encontro do Homem com a Natureza, particularmente com o despertar da
Natureza na primavera, “Veris leta facies”, seu encontro com os dons da Natureza, culminado
com o do vinho, “In taberna”; e sua ligação com o Amor “Amor volat undique”, como

13
Chume, chume, geselle min,/ Ih enbite harte din!/ Ih enbite hartedin,/ chume, chum geselle min./ Suzer
rosenvarwer munt,/ Chum und mache mich gesunt,/ Suzer rosenvarwer munt.

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espelhado em “Cour d’amours” na velha tradição francesa, uma forma de serviço
cavalheiresco às damas e ao amor.
A apropriação dos poemas buranos por Carl Orff reafirmou-lhe o perfil emoldurado
pelo movimento da deusa grega Fortuna. Em sua cantata, sente-se que a humanidade está
submetida aos caprichos da roda-da-fortuna, e que o amor e a exuberância da vida estão à
mercê da eterna lei da mutabilidade. Nessa conjuntura, as leis do entusiasmo amoroso são
contrariadas e o homem é submetido a uma luz dura, não sentimental, tornando-se um joguete
de forças impenetráveis e misteriosas. Esse ponto-de-vista é plenamente característico da
atitude antirromântica da obra, seja em relação ao amor fraterno ou ao amor carnal.
Respeitando-se o viés histórico, que permite entender como os símbolos e as imagens
do texto bíblico foram transmitidos através do tempo até os Carmina Burana, o que exige
considerar as diferentes produções em contextos históricos e culturais díspares, Orff imprimiu
em seu corpus critérios essencialmente literários, um conjunto de elementos comuns entre os
textos e melodia que paralisam o corpo e extasiam a alma.

Referências

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução de Euclides Martins Balancini, et al. São
Paulo: Paulus, 2002.
CARMINA BURANA: Canções de Beuern. Apresentação de Segismundo Spina e tradução,
introdução e notas de Maurice van Woensel. São Paulo: Ars Poética, 1994.
CARMINA BURANA. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana>,
acessado em: 05.jul.2012.
Le Goff, Jacques. A Idade Média explicada aos meus filhos. Tradução Hortência Lencastre.
Rio de Janeiro: Agir, 2007.
Orff Carl. Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Orff>, acessado em: 05jul.2012.
Spina, Segismundo. Era Medieval. Era Medieval. 11. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2006.
Zumthor, Paul. Falando de Idade Média.Tradução de Jerusa Pires Ferreira. São Paulo:
Perspectiva, 2009. (Coleção debates).

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ESPELHO DA LITERATURA, REFLEXO DO SAGRADO – REFLEXÕES
FILOSÓFICAS SOBRE A MÍSTICA DE MARGUERITE PORETE

Maria Simone Marinho Nogueira


(UEPB/Principium/CNPq)
mar.simonem@gmail.com

Considerações Iniciais

O Espelho das almas Simples1, apesar de ser o texto místico mais antigo da literatura
francesa, foi durante muito tempo atribuído a uma beata húngara. Somente em 1944, graças
ao trabalho de Romana Guarnieri, a autoria do livro foi restituída a sua verdadeira escritora,
Marguerite Porete que, possivelmente, assumiu o modo de vida das beguinas. O referido
texto possui uma estrutura dialógica, cujos personagens principais são a Dama Amor, a Razão
e a Alma que, na segunda metade do livro assume, se assim podemos dizer, a identidade de
Marguerite, posto que narra, numa espécie de monólogo, a própria experiência da autora de O
Espelho das almas simples. Dito isto, pode-se dizer que neste trabalho procura-se, de forma
introdutória, apresentar a interface do sagrado com a filosofia, a partir de um texto místico,
destacando a metáfora do espelho como reflexo do divino na alma aniquilada.

Marguerite Porete: vida e obra

Em 1 de junho de 1310, na praça de Grèves em Paris, ardem as chamas da fogueira


que queimam um corpo de mulher. Trata-se da figura de Marguerite Porete que acreditava ter
uma tarefa, da qual não abriu mão, apesar do peso, demasiado doloroso, do braço secular que
“prestava serviço” àquela que Marguerite, várias vezes em seu livro, chama de Santa Igreja, a
Pequena2. A referência à fogueira e ao processo inquisitório se faz importante porque as
poucas informações que temos da autora de O espelho nos vêm dos autos desse processo e de
algumas crônicas que o relatam. É por exemplo por meio deles que tomamos conhecimento
do seu nome, certa beguina chamada Marguerite Porete e conhecemos um pouco mais os
detalhes da condenação, como podemos ler numa crônica da época:

1
O título da obra de Marguerite em francês medieval é: Le mirouer dês ames simples et anienties et qui
seulement demeurent em vouloir et desir d’amour. Na tradução para língua vernácula que estamos utilizando a
tradução do título é: O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no
desejo de Amor. Por uma questão de economia linguística sempre que citarmos o título do livro de Marguerite no
corpo do texto, o nomearemos apenas por: O espelho das almas simples e aniquiladas ou simplesmente por O
espelho.
2
Marguerite faz uma diferença entre o que ela chama Santa Igreja, a Pequena (entendida enquanto instituição
religiosa) e Santa Igreja, a Grande (entendida como a força espiritual composta pelas almas aniquiladas).
Segundo TEIXEIRA, 2008: 26, a Santa Igreja, a Pequena, “Enquanto instituição definida e delimitada, (...) não
alcança o mistério das almas aniquiladas. Não capta igualmente a medula que habita o fundo da alma, pois ali
não pode entrar nada de determinado. Daí o auxílio fundamental exercido pela Santa Igreja, a Grande, que vem
constituída pelas almas animadas e preenchidas pelo Amor: as almas aniquiladas. É essa Igreja que sustenta a fé
da Santa Igreja, a Pequena (...)”.
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Na segunda-feira seguinte ardeu naquele lugar [a Praça de Grèves] uma
beguina clériga chamada Marguerite Porete que havia transpassado e
transcendido as divinas escrituras e havia errado nos artigos de fé, e do
sacramento do altar havia dito palavras contrárias e prejudiciais e havia sido
condenada por isso pelos mestres em teologia. (CIRLOT e GARÍ,
1999:224).

O que ela disse para sofrer tal condenação encontra-se no seu livro, O espelho das
almas simples, muito embora no decorrer do processo o que se fez foi julgar frases isoladas,
dissociadas do seu contexto, que por fim foram julgadas como heréticas (quinze proposições)
por uma comissão composta por 21 teólogos, dentre eles alguns representantes das ordens
mendicantes3. Acrescente-se a isso, o silêncio de sua autora durante todo o tempo em que
esteve presa e o fato de escrever sua obra em língua vernácula (francês medieval), tornando-a,
assim, acessível ao público leigo, o que fazia do seu texto, do ponto de vista da ortodoxia da
igreja, perigoso, já que ali, ao pregar a sua ideia de liberdade, afirma que a alma totalmente
livre não se submete a nada, como podemos ler no seguinte excerto:

(...) A herança desta Alma é a perfeita liberdade, cada uma de suas partes
tem o brasão de nobreza. Ela não responde a ninguém a menos que queira, se
ele não é de sua linhagem; pois um nobre não se digna a responder a um
vilão que o chama ou o convida ao campo de batalha. Portanto, quem chama
uma tal alma não a encontra; seus inimigos não conseguem dela nenhuma
resposta. (PORETE, 2008: 148).

É fato que neste e em outros passos do texto, Marguerite deixa explícita a questão da
liberdade (que não será abordada diretamente neste trabalho), que desenvolve ao longo do seu
livro, e que tem relação direta com o tema da aniquilação. Entretanto, nesta e em outras
passagens há acenos implícitos da pessoa Marguerite (mais do que da autora) sobre a
repercussão que poderia ter o seu livro, se levarmos em conta que ele foi escrito,
provavelmente, em meados de 1290 e vai sofrer um primeiro processo entre esta data e 1306,
pelo bispo de Cambrai que proíbe a pregação de Porete e a divulgação da sua obra. Nossa
mística não só não se cala, como continua divulgando o seu livro, enviando-os inclusive para
a avaliação de três teólogos que o aprovam com ressalvas 4. Mediante tal atitude, ela sofre um
segundo processo e é conduzida a Paris onde fica presa, por quase um ano e meio, e, diante do
seu silêncio, é julgada como herética recidiva, relapsa e impenitente e condenada à morte na
fogueira da inquisição, juntamente com o seu livro que também é queimado5.

3
Tais Ordens foram responsáveis pelas orientações espirituais, por exemplo, das beguinas (feitas pelos
dominicanos) e dos begardos (feitas pelos franciscanos). No Concílio de Viena (1311-1312) serão condenados
alguns erros das beguinas e dos begardos e o processo contra Marguerite será amplamente utilizado. Mais
informações sobre este tema podem ser encontradas em GUARNIERI: 2004.
4
São eles, conforme, TEIXEIRA, 2008: 19, Goffredo da Fontaines, da Faculdade Teológica da Sorbonne; um
cisterciense da abadia brabantina de Villiers, chamado Franco e um franciscano inglês, John di Querayn. A
própria Marguerite cita essas três autoridades no seu livro, no capítulo 140 (A aprovação), que vem acrescido da
seguinte nota da tradutora: “A aprovação foi preservada no latim e no inglês médio e acrescentada pelos editores
da edição crítica como o capítulo final”. SCHWARTZ, 200κ: 229.
5
“Segundo a posição do grande inquisidor, todos aqueles que tivessem o livro condenado tinham a obrigação de
entregá-lo às autoridades competentes no prazo de um mês, sob pena de excomunhão”. (TEIXEIRA, 200κ:21).
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Mas do que trata O espelho das almas simples e que tarefa pensa ter Marguerite que
dela não abre mão apesar das insistentes solicitações das autoridades eclesiásticas? Para
responder a estas perguntas é necessário situarmos a nossa pensadora no seu tempo. Ela é
apresentada por alguns estudiosos como sendo uma beguina6. Ela própria num dado passo do
seu livro se autodenomina mendicante e se dirige às beguinas e a outros religiosos:

Amigos, o que dirão as beguinas,/ E a gente da religião,/ Quando ouvirem a


excelência/ De vossa divina canção?/ As beguinas dirão que eu erro,/ Padres,
clérigos e pregadores,/ Agostinianos, e carmelitas,/ E os freis menores, /
Porque escrevi sobre o estado/ Do amor purificado. (PORETE, 2008: 201-
202)7

Mesmo assim, não se tem certeza de ela ter sido realmente uma beguina, apesar de ter
assumido um modo de vida que condiz em alguns aspectos com tal classe8. De qualquer
forma, apesar dos poucos dados da vida de Marguerite, O espelho das almas simples
denuncia, de algum modo, que ela era não só letrada, como também uma mulher culta. Ela é
não só a autora, mas também a escritora da sua obra e nela há uma tripla influência: a da
literatura profana, religiosa e filosófica. Assim, encontramos no seu texto tanto referências
advindas dos trovadores medievais, destacando-se aí a ideia do amor cortês, quanto às
referências advindas da mística do pseudo-Dionísio, como a linguagem apofática, até as
referências às Sagradas Escrituras.
É, portanto, em meio ao cruzamento destas influências que se destaca o tema central
de O espelho: um guia espiritual que deve conduzir as almas que são capazes de mergulhar no

6
“Marguerite Porrete foi uma beguina, teria pertencido, segundo consta, ao Movimento Beguinal, um movimento
que se desenvolveu como alternativa de vida religiosa leiga na Renania e Países Baixos. As beguinagens
começam a aparecer no final do século XII. São formadas por pequenas casas agrupadas. Constituem-se
comunidades com promessa (e não voto) de pobreza, obediência e castidade, inseridas num contexto social
urbano. Nessas comunidades, as mulheres vivem do próprio trabalho: tecelagem, bordado, costura, ensinamento
de crianças e serviço de damas idosas. O Movimento Beguinal está inserido no movimento de renovação da vida
religiosa que, a partir do século X, se espalha por todos os países da Europa Ocidental. No entanto, é um
movimento que permanece marginal, fora do controle institucional, pois não obedecia a uma regra aprovada”.
(MARIAσI, 2011:59). τu, ainda como escreve uma outra estudiosa: “Referia-se a si mesma como uma
mendiant creature, e era chamada de béguine por tantas fontes independentes que essa designação pode ser
considerada como certa. Tudo indica que Porete tenha levado um estilo de vida béguine, de mendicância e
errância. Ela estava imersa na cultura e espiritualidade europeia cristã do final da Idade Média, uma mulher – ou
pseudomulier – como queriam seus inquisidores – à margem da vida religiosa institucional e, por sua condição
feminina, também excluída dos estudos formais, embora suponha-se que tivesse alto nível de educação, o que
sugere que pertencia às altas classes”. (SCHWARTZ, 2011:63).
7
Ao comentar tal passagem, CIRLOT e GARÍ, 1999: 231, explicam que não é impossível que com o nome de
beguinas Marguerite se refira a um grupo bem concreto delas, talvez, inclusive, a suas antigas companheiras de
santa Isabel. De toda forma, acrescentam: “(...) formada o no entre ellas, todo parece indicar que en su madurez
Margarita no pertence a ningún grupo de mujeres religiosas viviendo em uma comunidad más o menos
institucionalizada, sino a esas otras beguinas «independientes», viviendo solas a lo sumo com uma o dos mujeres
más, construyendo de forma autónoma su vida y también su obra”.
8
Alguns aspectos porque, como nos faz pensar CIRLτT e GARÍ, 1999: 231: “¿Era entonces uma mendicante,
como se llama a sí misma em outro momento del Espejo? ¿Andaba vagando por los caminos em um signo de
pobreza voluntaria siguiendo el modo de vida de aquellos y aquellas a los que la época dio el nombre de
«giróvagos»? Algo puede haber de eso, pero em todo caso no estamos ante uma indigente: el número de libros
que parecen circular de su obra a principios del siglo XIV (...) hablan no sólo de uma mujer culta sino también
capaz de sufragar el altísimo coste que suponía la elaboración de manuscritos”.
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abismo do mistério ao aniquilamento de si e a “posse” de Deus que se estabelece no nada da
alma inundada de amor e Marguerite sabe que nem todos entenderão o conteúdo do seu livro.
Por isso, já no Prólogo, chama a atenção dos seus leitores, logo depois da personagem Amor
rogar que todos ouçam com aplicação do vosso entendimento interior sutil e com grande
diligência, senão entenderão mal se não estiverem assim dispostos. Logo, a tarefa que
Marguerite pensa ter significa mais do que pôr em prática uma certa teoria mística. Sua tarefa
consiste, também, na divulgação desta experiência a todos que sejam capazes de vivê-la.
Deste modo, não exagera Guarnieri quando afirma sobre O espelho, que este, sob a forma de
um tratado didático, revela, implicitamente, uma autobiografia mística. (Cf. GUARNIERI,
2004: 265).
Neste sentido, não é ao acaso que logo na abertura do livro, antes do Prólogo,
Marguerite advirta os leitores, ao mesmo tempo em que expõe a importância do Amor, da Fé
e da Razão:

Vós que este livro lereis,/ Se bem o quiserdes entender,/ Pensai no que vos
direi,/ Pois ele é difícil de compreender;/ À humildade, que da Ciência é a
guardiã/ E das outras virtudes amai,/ Deveis vos render./ Teólogos e outros
clérigos,/ Aqui não tereis o entendimento/ Ainda que tenhais as ideias claras/
Se não procederdes humildemente;/ E que Amor e Fé conjuntamente/ Vos
façam suplantar a Razão,/ Pois são as damas da mansão. (PORETE, 2008:0)

Já nesta abertura, Porete não só esclarece que o seu livro é de difícil compreensão,
como também indica a importância da humildade como necessária para o entendimento do
que vai ser “dito”, tanto que esta é colocada como a guardiã do saber (da ciência). Além
disso, e já antecipando, de alguma forma, os problemas que terá com as autoridades
eclesiásticas, a autora/escritora adverte aos teólogos e outros clérigos que por mais que estes
tenham as ideias claras, se não tiverem humildade, ou seja, se não forem capazes de
ultrapassar a razão, nada entenderão. Ao destacar a força do amor e da fé como aquelas que
conduzirão, humildemente, as almas ao aniquilamento, diz, de alguma forma, que o livro trata
de uma gradação pela qual passarão as almas para sua total libertação e fusão com o divino.
Neste caminho ascensivo, Marguerite divide o seu livro em 140 capítulos precedidos
por uma espécie de canção de abertura seguida de um prólogo, sendo encerrada por uma
aprobatio. Ao longo do texto, a autora demonstra toda a sua cultura letrada, mesclando, em
termos de estilo, a prosa e o verso e, em termos de conteúdo, seus conhecimento sobre o amor
cortês que encontramos, por exemplo, no Romance de Alexandre e no Romance da rosa; a
literatura religiosa, como o Speculum virginum; e a literatura filosófica, como o
neoplatonismo (sobretudo pseudo-Dionísio), Gregório de Nisa, Agostinho e a mística
cisterciense. Neste caminho, sete graus se configuram antes de alcançar o estado perfeito.
Passemos, então, a eles e a sua relação com a imagem do espelho.

O espelho como reflexo do divino na alma aniquilada

Podemos dizer que O espelho das almas simples divide-se em duas partes. Uma
maior, que vai do capítulo 1 até o 122, e uma menor, que vai do capítulo 123 até o 139. Na
primeira parte, apresentada em forma de diálogo, o texto gira em torno do caminho que deve
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ser percorrido pelas almas até alcançarem o estado máximo da liberdade que está relacionado
à humildade e à aniquilação. Nesta parte, Marguerite parece tomar a distância necessária entre
narrador e aquilo que é narrado, quando a narrativa não é, necessariamente, uma experiência
de vida daquele que narra. Nesses capítulos, como já frisamos, três personagens principais se
destacam: a Razão, o Amor e a Alma, no entanto, outros personagens, que podemos chamar
de secundários ou esporádicos, também aparecem, como, por exemplo: a Fé, a Verdade, a
Justiça Divina e a Esperança. Por sua vez, na segunda parte do livro nenhum dos personagens
da primeira parte falam. O que ouvimos/lemos é a própria autora que se coloca na sua obra,
inclusive falando na primeira pessoa.
Entretanto, a mudança brusca da estrutura do livro não nos permite entender as duas
partes de forma isoladas, ou seja, as duas fazem parte de um todo intitulado O espelho das
almas simples e aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor.
Assim, é como se uma parte completasse a outra, não sendo à toa, portanto, que encontramos
reflexos de uma na outra. Por exemplo, já no Prológo, em meio a dois personagens (Amor e
Alma) aparece um “terceiro” intitulado “Autora”. σa primeira parte, no capítulo 96 a Alma se
autodefine como uma mendicante que buscou Deus na criatura e deste modo permaneceu
aprisionada em si mesma. No capítulo seguinte (o 97), a personagem Alma assume a condição
de autora ou a autora se revela na personagem já que afirma de forma poética:

E, contudo, diz essa Alma que escreveu este livro, eu era tão tola no tempo
em que o escrevi, (...) que me aventurei em algo que não se pode fazer, nem
pensar, nem dizer, não mais do que aquele que quisesse encerrar o mar em
seu olho, ou carregar o mundo na ponta de um junco, ou iluminar o sol com
a lanterna ou com uma tocha. Eu era mais tola do que seria quem quisesse
fazer isso. (PORETE, 2008:163).

Logo depois ela complementa essa ideia com alguns versos que falam sobre o ato de
escrever e sobre o estado de perfeição buscado, encerrando este capítulo com a ideia de que
tal estado só acontece quando a alma permanece no puro nada.
Ora, o estado do puro nada é o grau máximo da aniquilação da alma, é o estado do
nada querer, do nada saber, do nada dizer e, porque não, do nada escrever. Mas Marguerite
escreve e opta não só pela escrita, como também pela divulgação disto que foi escrito. Logo,
mesmo dizendo negativamente, no capítulo 132 (portanto, na segunda parte do seu livro) o
que significa estar no puro nada: “Essa é uma obra miraculosa, sobre a qual nada se pode
dizer, a menos que se minta” (PτRETE, 2008: 221), podemos falar, como afirmam Cirlot e
Garí (1999: 236), que Marguerite sente a necessidade de expressar as razões que a levaram a
escrever sobre o que nada se pode dizer. Neste sentido, a narrativa, sobretudo a que é descrita
à distância, se recobre de sentido, uma vez que agora, na segunda parte do seu livro,
Marguerite fala como alguém que vivenciou a experiência do aniquilamento da alma e como
tal, revestida da plenitude divina, se sente na obrigação de dividir o estado do puro nada ao
qual chegou. Neste sentido, Aqueles que lerem O espelho terão não só o relato de uma teoria,
mas a escritura/testemunho de quem só conseguiu teorizar sobre o caminho de ascensão das
almas que buscam a fruição do divino porque uma prática assim o proporcionou. Talvez, por
isso, escreva a autora, pela boca da personagem Amor (ainda na primeira parte do seu livro,

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“(...) vós reconhecereis neste livro a vossa prática”). (PτRETE, 200κ:164). Vejamos, então,
como esta prática se mostra no reflexo do espelho.
Como dissemos, O espelho descreve sete degraus que devem levar as almas a um
experienciar do divino. Já no Prólogo, por exemplo, nossa pensadora afirma que “Há sete
estados nobres de existência por meio dos quais a criatura recebe o ser, se ela se dispõe a
passar por eles antes de alcançar o estado perfeito”. (PτRETE, 200κ:32). Tais degraus vão
sendo denunciados ao longo do texto poretiano, mas é no capítulo 118, através da personagem
Alma que estes estados são descritos de forma mais rigorosa. Como o que mais interessa para
o nosso trabalho é o sexto estado, relataremos de forma breve, os sete graus e depois
voltaremos para o sexto. Deste modo, vejamos como a própria Marguerite apresenta estes
estágios:

O primeiro estado (...) é aquele no qual a Alma (...) tem a intenção de


observar em sua vida (...) os mandamentos de Deus, por Ele ordenados na lei
(...). O segundo estado (...) é aquele no qual a Alma considera o que Deus
aconselha a seus amados especiais e que vai mais além do que aquilo que
ordena (...). O terceiro estado é aquele no qual a Alma se considera no
sentimento do amor da obra de perfeição, no qual seu espírito decide (...)
multiplicar nela tais obras (...). O quarto estado é aquele no qual a Alma é
absorvida pela elevação do amor nas delícias do pensamento na meditação e
abandona todos os trabalhos externos e a obediência a qualquer outro pela
elevação da contemplação (...). O quinto estado é aquele no qual a Alma
considera que Deus é, Ele por meio de quem todas as coisas são, e ela não é,
se não é onde todas as coisas são. O sexto estado é aquele no qual a Alma
não se vê mais, qualquer que seja o abismo de humildade que tenha em si;
nem vê Deus, qualquer que seja a altíssima bondade que Ele tenha (...).
Quanto ao sétimo estado, Amor guarda em si para nos dar na glória eterna, e
dele não teremos compreensão até que nossa alma tenha deixado nosso
corpo9. (PORETE, 2008: passim).

Como podemos perceber, cada grau ou estado corresponde a um exercício de


despojamento que deve culminar na aniquilação da alma. Deste modo, no primeiro estado, a
Alma, observadora dos mandamentos de Deus, ama-o com todo seu coração e também ao
próximo como a si mesma. No segundo, a Alma vai além daquilo que é ordenado por Deus e,
assim, se abandona e despreza as riquezas, as honras e as deliciais. No terceiro grau, a
vontade da Alma só ama as obras da bondade e por isso as coloca em primeiro lugar. No
quarto estágio, a Alma está ofuscada pelas delícias do Amor e só consegue vê-lo. No quinto
degrau, a Alma se vê e compreende a bondade divina. No sexto, por sua vez, a Alma não mais
se vê e no sétimo e último, como podemos ler no excerto acima, nada podemos dizer, pois só
acontece na vida eterna. Nesta direção, percebemos que no sexto grau, o mais elevado que o
homem pode ter em vida, a Alma não se vê mais, o que parece contraditório com a imagem
do espelho, já que o sentido de tal imagem remete, necessariamente, à visão.
Ora, na continuação do que foi citado em relação ao sexto grau, diz a Alma, ainda no
capítulo 118, depois de afirmar que esta não vê mais nada: “Mas Deus se vê nela por sua
majestade divina, que, por si, clarifica essa Alma de tal forma que ela não vê nada que não

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O espelho. 118: passim (grifos nossos).
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seja Deus mesmo, Aquele Que é, no qual todas as coisas são”. (PτRETE, 200κ:194). Neste
estado, continua o texto, “(...) a alma está liberada de todas as coisas, pura e clarificada”.
(PORETE, 2008:194). Em primeiro lugar, podemos perguntar o que significa dizer que a
Alma não vê a si mesma, mas Deus se vê nela? Em segundo lugar, por que a alma, livre de
todas as coisas, é pura e clarificada? Comecemos pela segunda questão e tentemos relacioná-
la à imagem do espelho ou do que pode significar tal imagem.
Uma alma pura significa uma alma pautada na humildade e, portanto, livre de todas as
coisas que a liga ao mundo exterior e também interior, já que no sexto grau, a alma se
encontra despojada da sua própria vontade. Para chegar a este despojamento o estágio anterior
(o quinto) se mostra como importante, pois, como nos esclarece Marguerite, falando através
da Alma, ainda que haja um certa compreensão divina neste estado, já não há, como no sexto,
vontade alguma:

(...) ela não se preocupa mais com a guerra da natureza, pois sua vontade foi,
com despojamento, recolocada no lugar de onde foi tomada, onde por direito
ela deve estar. Agora essa Alma é nada, pois vê seu nada por meio da
abundância da compreensão divina, que a faz nada e a coloca no nada. E
assim ela é tudo (...). (PORETE, 2008:192).

Ora, ser nada é condição para o aniquilamento da alma que só se torna realmente
aniquilada quando chega ao sexto grau, pois no quinto ela ainda está na abundância da
compreensão divina, como já foi demonstrado. No sexto estágio, por sua vez, por maior que
seja o abismo da humildade que tenha em si e por maior que seja a bondade de Deus, a alma
não possui mais nenhum tipo de compreensão, aí sim, ela se encontra no puro nada. Nesta
pureza e clarificação, ou seja, sem nenhum empecilho, a alma se torna espelho, isto é,
superfície limpa e lisa capaz de refletir o que tem diante de si: o divino.
Neste reflexo do divino, a alma nadificada encontra-se, por um momento, no mais alto
estágio que pode alcançar em vida, o experenciar do Longeperto que é descrito em O espelho
como superabundante e arrebatador e é chamado de centelha pela forma de abertura e rápido
fechamento. σeste ponto, a vontade do eu é “transformada” na vontade divina e o ser da alma
é substituído pelo ser simples e aí como nos diz o texto poretiano: “(...) mais alto ninguém
pode ir, nem mais profundamente descer, nem mais desnudo pode estar” (PτRETE,
2008:227). Em meio a este desnudamento, que é uma imagem sem imagem, como pode Deus
se vê na alma transformada em espelho, se nem ela própria se vê? Uma passagem de O
espelho pode nos ajudar a responder esta questão. Refere-se ela à Alma aniquilada:

Tudo para ela é uma única coisa, sem um porquê, e ela é nada no uno.
Agora ela não tem mais nada a fazer por Deus, nem Deus por ela. Por quê?
Porque Ele é e ela não é. Ela não retém mais nada em si, no seu próprio
nada, pois isso lhe basta, ou seja, Ele é e ela não é. Portanto, ela está
despojada de todas as coisas, pois está sem ser, lá onde estava antes de ser.
Assim ela tem de Deus o que Ele tem e é o que Deus mesmo é, por meio da
transformação do amor, no ponto que estava antes de fluir da bondade de
Deus. (PORETE, 2008: 225).

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A alma não se vê porque ela própria tornou-se espelho cristalino e, como espelho, ela
reflete Deus. No entanto, mesmo afirmando que Deus se vê por si nela, para ela, sem ela;
Alma e Deus, na verdade, tornaram-se espelhos um do outro, posto que se a alma pudesse se
ver, se veria como Deus, assim como Deus se vê nela. Ela e Deus tornaram-se um só: espelho
cristalino e uno. Esse uno é, conforme Marguerite, “quando a Alma é recolocada naquela
Deidade simples, que é um Ser simples de fruição transbordante, na plenitude do saber sem
sentimento, acima do pensamento” (PτRETE, 200κ:22ι).
Podemos acrescentar, para concluir, embora não tenhamos tratado disso neste
trabalho, que a metáfora do espelho (n’O Espelho de Marguerite) transgride um determinado
modo de pensar até então estabelecido e nesta transgressão a personagem Alma, se faz autora,
se faz escritora e se faz mulher que segue uma única regra, aquela que a devolverá para Deus:
a regra da aniquilação. Para viver isto e dividir esta experiência (numa atitude de doação que
só uma alma liberta de todo querer, de todo poder e de toda saber é capaz), Marguerite travou
e, segundo ela mesma, venceu a luta contra todos os poderes, como podemos ler já no final do
seu livro:

Tal Alma professa a sua religião e obedece às suas regras. Qual é a sua
regra? É que ela seja reconduzida pela aniquilação ao estado inicial, onde
Amor a recebeu. Ela passou no exame de sua provação e venceu a guerra
contra todos os poderes. (PORETE, 2008:226).

REFERÊNCIAS

Fonte Primária

PORETE, Marguerite. O espelho das almas simples e aniquiladas e que permanecem somente
na vontade e no desejo do amor. Tradução e notas de Sílvia Schwartz. Petrópolis/RJ: Vozes,
2008.

Fontes secundárias

CIRLOT, Victoria e GARÍ, Blanca. La mirada interior. Escritoras místicas y visionarias em


La edad media. Barcelona: Ediciones Martínez Roca, 1999.
GUARNIERI, Romana. Donne e Chiesa tra mística e istituzioni (secoli XIII-XV). Roma:
Edizioni di Storia e Letteratura, 2004.
MARIAσI, Ceci Baptista. “A loucura da fé”. In:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/a-loucura-da-fe/ acessado em 5 de junho de 2011
às 10:20hs.
______. “Marguerite Porete: a alma entre aniquilamento e nobreza”. In: Revista do Instituto
Humanitas Unisinos. São Leopoldo, edição 385, 19 de dezembro de 2011, 57-65.
______. “Mística e Teologia: Desafios contemporâneos e contribuições”. In: Atualidade
teológica. Ano XIII, n. 33, setembro a dezembro de 2009, 260-380.

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SCHWARTZ, Sílvia. “Marguerite Porete: Mística, Apofatismo e Tradição de Resistência”.
In: Numem: Revista de estudos e pesquisa da religião. Juiz de Fora, v. 6, n. 2, 109-126.
______. “Marguerite Porete e a “teologia” do feminino divino”. In: Revista do Instituto
Humanitas Unisinos. São Leopoldo, edição 385, 19 de dezembro de 2011, 63-68.
TEIXEIRA, Faustino. Apresentação de O espelho. In: O espelho das almas simples e
aniquiladas e que permanecem somente na vontade e no desejo do amor. Petrópolis/RJ:
Vozes, 2008: 17-29.

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ASPECTOS RELIGIOSOS DO AMOR CONJUGAL NA OBRA "JÚLIA OU A NOVA
HELOÍSA" DE ROUSSEAU: UM RETORNO À IDADE MÉDIA?

Otacílio Gomes da Silva Neto


(UEPB)
otacilio.uepb@hotmail.com

τ que os pensadores do século XVIII, também conhecido como “Século das Luzes”,
pensavam da Idade Média? Essa pergunta nos parece importante porque é preciso dizer algo
sobre o significado da questão posta no final do título desse trabalho. Quando formulamos a
questão “um retorno à Idade Média?” o nosso escopo é sofístico. Pois, o que significa
eventualmente um “retorno à Idade Média”? Para problematizar essa questão, temos que
recorrer a três outras não menos relevantes para o nosso estudo: o que esses intelectuais
pensavam sobre o período medievo? Será que o que eles pensavam corresponde ao que foi o
período medievo, efetivamente? O que a obra: Júlia ou Nova Heloísa (1760) de Rousseau tem
haver com essa questão? Esse é o caminho que nós pretendemos seguir ao longo desse
trabalho.

Os Philosophes e a Moyen Âge

Observando boa parte da literatura francesa do século XVIII, percebemos indiferença


e desprezo dos intelectuais para com a expressão Moyen Âge. Quais as razões para isso? No
verbete Endemoninhados do Dicionário Filosófico (1752) de Voltaire, é narrada à ignorância
com que se tratavam pessoas com manifestações como a epilepsia. Esse filósofo francês inicia
a narrativa apresentado as conseqüências naturais que resultam do não afundamento de um
corpo de um epilético na superfície da água, e os desdobramentos dessa manifestação no
imaginário popular:

Acontecia frequentemente que os epiléticos, tendo as fibras e os músculos


secos, pesavam menos do que um volume semelhante de água e boiavam
quando eram metidos num banho. Gritava-se: Milagre! Dizia-se: É um
possuído ou um feiticeiro (VOLTAIRE, 1978, p.163).

Causas naturais eram tratadas como sobrenaturais. Segundo os Enciclopedistas, essa


era a tônica no período medieval. Boa parte das manifestações tidas como manifestações
demoníacas eram resolvidas na base: ou do exorcismo, ou da demonização. Nos dois casos,
cabia à autoridade religiosa resolver, conforme a continuidade da citação:

Ia-se procurar água benta ou um carrasco. Era a prova indubitável de que o


demônio se assenhorara do corpo da pessoa que boiava, ou então de que ela
se tinha oferecido a ele. No primeiro caso era exorcizada; no segundo,
queimada (VOLTAIRE, 1978, p.163).

Um dos motivos do desprezo à Moyen Âge, segundo enciclopedistas como Voltaire,


diz respeito à forma supersticiosa como essas coisas eram tratadas. Disso resulta nos adjetivos
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pejorativos nos quais a Idade Média era associada: l’ignorance, curiosité grossière,
barbarism, superstitions. Em contraposição, esses intelectuais se vangloriavam em ser os
novos missionários da civilization, partidários que denunciavam les idolâtres odieux et
ridicules, pois, conclui desdenhosamente o já citado Voltaire: “Foi assim que raciocinamos
durante quinze ou dezesseis séculos...” (VτLTAIRE, 19ικ, p.163).
Aliado ao desprezo estava à indiferença desses intelectuais para com o pensamento
medievo, conforme o já citado Voltaire: “Passemos em branco o período que medeia entre a
república romana e nós” (VτLTAIRE, 19ικ, p.102). τra, isso é como se a Idade Média fosse
um período em que em absolutamente nada contribuiu para o gênero humano. Era um tempo
que deveria ser esquecido da história.

Questionamentos ao iluminismo francés

A que se deve tal atitude apresentada nos parágrafos anteriores? Talvez porque a
Europa ainda guardasse em determinados domínios marcas intempestivas dos abusos
cometidos pela religião cristã, como na França do século XVIII. Tudo bem, as fogueiras
medievais foram substituídas pelo suplício da roda no Antigo Regime; mas, mais tarde não
seriam substituídas pela guilhotina? Não há dúvida de que a Igreja oficial não tolerasse
determinadas obras literárias e atitudes que fossem contrárias aos seus dogmas. Mas, durante
a Revolução Francesa, foi diferente na querela entre girondinos e jacobinos?
O próprio Voltaire ao fazer tantas críticas risíveis aos judeus, não terminaria por ser
intolerante para com aqueles em que ele acusa de serem intolerantes? Na época, foi notória a
atitude dos representantes das comunidades judaicas que acabaram por questionar Voltaire
por causa de sua postura mordaz contra o judaísmo, ao afirmarem que: “... não basta não
queimar os homens: é possível queimá-los com a caneta e esse fogo é ainda mais cruel na
medida em que seu efeito permanece até as gerações futuras” (BUCCI, 2009, p.214).

Rousseau e o período medievo

Como foi o posicionamento de Rousseau para com o período medievo? No seu


primeiro Discurso, intitulado: Discurso sobre as ciências e as artes (1750), Rousseau, em
comum com os enciclopedistas demonstra uma continuidade em matéria de indiferença e
desprezo ao pensamento medieval, ao escrever que: “A Europa tinha retornado a cair na
barbárie dos primeiros tempos. Os povos dessa parte do mundo, hoje tão esclarecida, viviam
há alguns séculos em estado pior do que a ignorância” (RτUSSEAU, 19κ3, p.334). Essa
parece ser uma das poucas referências diretas de Rousseau à Idade Média. Embora sua obra
apresente temas filosóficos comuns à época como: anticlericalismo, crítica aos milagres,
superstições, dogmas como o pecado original, revelação divina, etc., características essas
também atribuídas ao período medieval.
Em 1760, é publicado o romance Júlia ou A Nova Heloísa. Quais seriam os objetivos
de Rousseau em escrever esse romance? O tema da moralização dos costumes é uma
constante na obra de Rousseau. Como ele quer fazer isso? Um dos efeitos da retórica
rousseauísta é o de contrapor costumes antigos com costumes do seu tempo. Conforme
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Rousseau, o melhor país ainda é: “onde encontramos homens antigos nos tempos modernos”
(ROUSSEAU, 1995, p.68).
Para fundamentar a sua proposta de moralização dos costumes, ele evoca, de um lado,
homens do passado, personagens moralmente exemplares como Catão, Sócrates, Jesus Cristo;
e de outro, ele propõe a construção metafórica do homem em seu estado de natureza na
Primeira Parte do Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da desigualdade entre os
homens (1754), esse homem sendo: simples, feliz, livre, inocente, para servirem de modelo
para os homens do seu tempo.
Se os tempos antigos já apresentavam sinais de decadência dos costumes, quando o
humano abandonou as virtudes guerreiras e rústicas pelo cultivo das ciências e das artes, o
que pensar dos tempos presentes e, mais escatologicamente, o que esperar do futuro? O
próprio Rousseau faz uma provocação aos homens do presente no Prefácio do já mencionado
Discurso sobre a Desigualdade, segundo a qual:

Descontente com teu estado presente, por motivos que anunciam à tua infeliz
posteridade maiores descontentamentos ainda, quem sabe gostarias de
retrogadar. Tal desejo deve constituir o elogio dos teus antepassados, a
crítica de teus contemporâneos e o temor daqueles que tiveram a infelicidade
de viver depois de ti (ROUSSEAU, 1983, p.237).

Rousseau precisa de bases para sustentar as suas idéias. Essas bases têm como uma
das orientações: resgatar imagens e costumes que nos fazem lembrar o passado, para iluminar
e denunciar a corrupção moral do presente, ainda que se utilizando das armas da própria
civilização como a escrita de romances, com o intuito de mostrar as feridas dessa mesma
civilização. Não seria agradável escrever romances como a Nova Heloísa, mas é preciso
escrevê-los para demonstrar que uma vida policiada, civilizada, marcada pelas falsidades e
aparências, não tornam as pessoas felizes.
Nesse aspecto, uma pergunta nos parece fundamental: Rousseau retornou à Idade
Média quando escreveu a Nova Heloísa? A pergunta inicial reaparece com essa roupagem. Já
vimos que o nosso autor tende a ver o passado como modelo moral e o presente como
decadência dos costumes. A Idade Média cabe nesse passado? No Discurso sobre as ciências
e as artes, não. O que dizer da Nova Heloísa? Eis o que vamos investigar, agora.

A Nova Heloísa, o amor, e a inspiração medieval

Havia na Paris do século XVIII, a circulação de diversos romances eróticos e


libertinos que atraíam parte do público. Geralmente esses eram romances anônimos que
devido à dose de sedução e aventuras que iam de encontro à moral cristã, azeitavam o gosto
da sociedade do Antigo Regime. Subitamente, um olhar de um não clérigo que já começava a
romper com os Philosophes da época, começava a observar com desconfiança esse gosto
dessa sociedade de forma perspicaz:

As grandes cidades precisam de espetáculos e os povos corrompidos de


romances. Vi os costumes de meu tempo e publiquei estas cartas. Ah! se

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tivesse vivido num século em que tivesse de jogá-las ao fogo (ROUSSEAU,
1995, p.23).

Exercício sofístico de um autor que já foi considerado “médico do mundo”. τ olhar de


Rousseau já detectava que havia algo de nebuloso na sociedade do seu tempo. Era preciso
fazer o diagnóstico desse mal e combatê-lo com os remédios adequados a essa mesma
sociedade: o romance. Não que a publicações de romances fossem boas em si mesmas, mas
era preciso que se publicassem romances para mostrar quão perigosos eles eram para os
costumes.
Daí toda a catarse empregada no primeiro Prefácio da Nova Heloísa em que nosso
autor chamava a atenção do leitor para com o estilo “desagradável” da obra. Desagradável,
por quê? Segundo Rousseau:

Este livro não é feito para circular na sociedade e convém a pouquíssimos


leitores. O estilo desagradará às pessoas de gosto, o assunto alarmará as
pessoas severas, todos os sentimentos não serão naturais para aqueles que
não acreditam na virtude. Deve desagradar aos devotos, aos libertinos, aos
filósofos, deve chocar as mulheres fáceis e escandalizar as mulheres
honestas. A quem agradará, então? Talvez somente a mim: mas certamente
não será indiferente a ninguém (ROUSSEAU, 1995, p.23).

A obra pode ser desagradável para muitos, mas não passará por despercebida para
todos os que a tiveram lido. Quais as razões para isso? Em que sentido o enredo, os lugares,
os personagens, podem chocar os leitores? Costumes esquecidos no passado podem refrescar
a memória do presente. Mas, a Nova Heloísa é um romance contemporâneo ao escritor, não é
um romance que se passa em tempos passados como a Idade Média, o que ele pode ter de
medieval?
Rousseau nos adverte que: “Esta coletânia, com seu gótico tom, convém melhor às
mulheres do que os livros de filosofia” (RτUSSEAU, 1995, p.24). A expressão: Gótico tom
pode ser uma das arestas que precisávamos para fundamentar a nossa tese, segundo a qual: a
Nova Heloísa é um romance que tem no amor cristão medieval uma das suas fontes de
inspiração. Uma nota da Moretto (tradutora do romance) nos chama a atenção para a definição
da expressão Ghotique presente no Dicionário da Academia (1ι62), segundo a qual: “o que
parece demasiadamente antigo e fora de moda” (RτUSSEAU, 1995, p.24). Explicação pobre
que revela o desejo de superação da cultura e arte góticas. Então, o “Gótico tom” a que
Rousseau se refere parece ter a intenção de mostrar que pode haver bons valores no Gótico,
valores esses ignorados pelos seus contemporâneos.
Outra fonte de fundamentação da nossa tese mencionada no parágrafo anterior, diz
respeito ao próprio nome do romance: Júlia ou A Nova Heloísa, que tem clara relação com a
história de Abelardo e Heloísa, ressurgida romanticamente na época de Rousseau. Saint-
Preux, personagem principal do romance, se apaixona por Júlia, quando aquele é convidado
pelo pai desta, o senhor D’Etange, a morar em sua residência para ser o seu preceptor. σão há
castrações nem fugas para conventos ou investiduras clericais. Mas, o romance que se inicia
entre eles dois e que permanece ao longo da obra, com seus descaminhos, tem inspiração na

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história de Abelardo e Heloísa, conforme a Carta XXIV da Primeira Parte, escrita por Sain-
Preux à Júlia:

Quando as cartas de Heloísa e de Abelardo caíram em vossas mãos, sabeis o


que vos disse dessa leitura e da conduta do Teólogo. Sempre lamentei
Heloísa; possuía um coração feito para amar, mas Abelardo sempre me
pareceu um miserável digno de sua sorte e com tão pouco conhecimento do
amor quanto da virtude. Após tê-lo julgado, devo imitá-lo? Infeliz daquele
que prega uma moral que não quer praticar! Aquele cuja paixão cega até este
ponto em breve é punido por ela e perde o gosto pelos sentimentos aos quais
sacrificou sua honra (ROUSSEAU, 1995, p.89).

A menção a Abelardo como Teólogo é pejorativa. Pois, se tiveram pensadores


escolásticos com orientação filosófica um pouco mais distante do pensamento teológico-
dogmático oficial, um deles foi Abelardo. Para Gandillac: “σa história do pensamento
medieval, Pedro Abelardo representa antes a tendência racionalista do que a corrente mística”
(GANDILLAC, 2001, p.198-199). Como vimos, Saint-Preux não quer ser comparado a
Abelardo de forma alguma, mas menciona bem Heloísa. Júlia é a nova Heloísa, ela tem um
coração aberto para o verdadeiro amor. Não o amor traiçoeiro, enganador, inescrupoloso, de
uma Manon Lescaut, por exemplo. Ao passo que, Saint-Preux quer passar-lhe segurança ao
querer compartilhar esse amor de uma maneira virtuosa, digna de um homem de honra,
demonstrando que tem autênticos sentimentos para com sua amada. Não há espaço para
intrigas, infidelidades e traições. Ambos se amam verdadeiramente.
A Nova Heloísa desperta no leitor sentimentos de pureza, inocência, verdade, honra,
fidelidade. Virtudes que apenas a sociedade e a desigualdade nela presente podem abalar.
Quando um nobre inglês amigo dos amantes chamado Milorde Eduardo tenta intermediar a
união conjugal dos dois junto ao pai de Júlia, tal união não é aceita pelo Sr. D’Etange, que a
considera um ultraje: o amor se mede pelo título e pela fortuna, assim pensavam aristocratas
como ele. Quem é Saint-Preux? Um homem sem família, origem, fortuna. Um casamento
“escandoloso” como esse não podia ser aceito por nobres aristocratas: “Proibo-vos, por toda a
vida, de vê-lo e de falar-lhe e isto, tanto para a segurança dele quanto para a vossa”
(ROUSSEAU, 1995, p.164), adverte o barão à sua filha.
A filha não aceitou a advertência do pai e fugiu com seu amor para serem felizes para
sempre. Isso poderia ser verdadeiro talvez em outros romances, mas não na Nova Heloísa.
Mesmos consternados, os amantes se separam a pedido dos pais da amada, Júlia se casa com
o Barão de Wolmar onde constroem um casamento estável e respeitoso, com filhos lindos e
felizes. Júlia e Saint-Preux continuam nutrindo paixão um pelo outro no decorrer do romance
e Wolmar não é enganado por nenhum dos dois quanto a esse sentimento. O próprio fidalgo
convida Saint-Preux a ser o preceptor dos filhos do casal. Em absolutamente nada os
casamentos são marcados pela infidelidade. Os laços de consaguinidade aristocratas são
respeitados. Os filhos obedecem aos pais contra a sua própria vontade, e são felizes por isso.
A linhagem e a fortuna se mantiveram como critérios para um bom casamento, o amor não se
consumou, mas o dever venceu. A boa filha e a boa esposa superaram os desejos da amante.
Saint-Preux reconhece os valores da amada. Ele não a ganhou, mas é preferível não ganhá-la,
do que “perdê-la para o mundo”.
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Com isso, Rousseau apresenta uma galeria de mulheres que atendem aos pré-requisitos
do que ele entende por costumes virtuosos que as mulheres francesas deveriam atender: elas
são serviçais, boas esposas, fiéis, verdadeiras, fervorosas cristãs, obedientes e respeitosas a
qualquer custo. Por tudo isso, a Nova Heloísa pode não ser um bom romance, para a
sociedade. Mas, quem disse que esse bom é um bem em si?

Nunca uma moça casta leu um romance, e coloquei neste um título


suficientemente arrojado para que, ao abri-lo, se saiba o que esperar. Aquela
que, apesar deste título, ousar ler uma única página, é uma moça perdida:
mas que não impute sua perda a este livro, o mal fora feito de antemão. Visto
que iniciou, que acabe de ler: não tem mais nada a pôr em risco
(ROUSSEAU, 1995, p.24).

Valores cristãos são afirmados nesse romance: a fidelidade ao amor conjugal, a


castidade, a honra ao pai e a mãe, a devoção cristã. Isso numa época em que era moda
produzir romances eróticos, libertinos e contestadores da própria moral cristã. Os intelectuais
estavam numa peregrinação às avessas: do cristianismo ao deísmo, do deísmo ao ateísmo.
Mas, quem disse que na Idade Média os valores mencionados acima eram cegamente
observados? A que passado Rousseau se refere como espelho e modelo para o presente?
Quem disse que a sociedade medieval era casta e pura?

Considerações finais

Aqui chegamos ao ponto final do nosso trabalho. Nele encontramos mais


interrogações do que respostas. Rousseau tende a desprezar o período medieval em sintonia
com o pensamento da época. Isso nos diz alguma coisa de característico da época, mas nos diz
muito pouco do que foi o período medieval, efetivamente. Rousseau tem uma tendência em
ver no passado valores perdidos no presente. Há uma possibilidade de que na Nova Heloísa
seja salvaguardada uma visão mais ponderada do período medievo, dadas as características
que mencionamos no parágrafo precedente. Mas, o que há de real, de histórico, nessas
características de inspiração gótica, pretensamente louvadas por Rousseau?
Conforme Régnier-Bohler, algumas narrativas escritas em período medieval no
tocante a vida familiar, apresentam uma dinâmica oposta àquilo que a realidade o era,
efetivamente. Dessa forma:

Ordenadas segundo uma firme estruturação familiar, as narrativas medievais


traem, à flor do texto, os problemas internos das famílias, sugerindo – o que,
aliás, pode ter obsedado a consciência da época feudal – a obsessão das
rivalidades entre herdeiros com ambições comparáveis (RÉGNIER-
BOHLER, 2009, p.340).

Ainda assim, não se pode distanciar ou ocultar completamente a literatura da


realidade: intrigas, adultérios, ciúmes, assassinatos, mentiras, sodomias, tudo isso também é
parte dos tempos medievos:

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Se as referências familiares possuem uma complexidade extrema, é possível
delas destacar aqui alguns eixos e, em primeiro lugar, a freqüência dos
enredos sexualizados: seduções do tipo incestuoso (pai/filha,
madrasta/enteado, cunhado/cunhada), rivalidades em torno da mesma
mulher, calúnias de natureza sexual que acarretam o exílio das jovens mães,
em suma, um conjunto de querelas domésticas que outras narrativas,
prudentemente, ocultam por meio de uma exemplaridade por vezes um
pouco rígida (RÉGNIER-BOHLER, 2009, p.340).

Por mais que moralistas tentem impor regras de conduta religiosas na tentativa de
maquiar a realidade, sempre haverá uma literatura que apresente, nos seus mais diversos
domínios, a “vida como ela é”. σo período medieval: crimes, traições e corrupções, adjetivos
considerados sob uma ótica, cristã, claro, acontecem como em qualquer período da história.
Nesse caso, se nossa tese está correta, na Nova Heloísa, Rousseau apresenta não
apenas uma visão idealizadora da sociedade de seu tempo, mas apresenta também uma visão
romantizada do passado ao acreditar que o amor conjugal, tal qual é apresentado em sua obra,
fosse uma regra absoluta nos tempos medievos, em que: serenidade, inocência, simplicidade,
transparência e fidelidade dos cônjuges, fossem imagens reais de um passado perdido.
Isso demonstra que, Rousseau não apenas desprezou a Idade Média no Discurso sobre
as ciências e as artes, mas idealizou uma forma de amor conjugal que não tem respaldo
absoluto nos tempos da hegemonia da fé cristã na Europa. Essa humanidade dos tempos
passados parece tão medíocre quanto à dos tempos presentes. Então, se não há saída, para que
adianta escrever romances inspirados em tempos passados idealizados, passados esses que
serviriam como modelos morais para o presente? O que realmente aprendemos lendo a Nova
Heloísa? τ próprio Rousseau nos responde: “Aprendemos a amar a humanidade. σas grandes
sociedades somente aprendemos a odiar os homens” (RτUSSEAU, 1995, p.27).

Referências

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Vida, vício, virtude. São Paulo: Editora Senac, 2009.
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Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
A POBREZA COMO EXPRESSÃO MÁXIMA DA VITA VERA APOSTOLICA NOS
ESCRITOS DE CLARA DE ASSIS

Valéria Fernandes da Silva


(Faculdade Teológica de Brasília)1
shoujofan@gmail.com

Em 1212, a jovem Clara abandonou a casa de sua família para se juntar a Francisco de
Assis e seus frades, tornando-se a primeira “franciscana”. Depois da morte do fundador, em
1226, e durante o primeiro século da Ordem, sua voz foi uma das mais poderosas na defesa da
pobreza conforme aquilo que a santa acreditava ser a vontade do poverello. A todos os papas,
Clara reforçava a necessidade de receber o maior de todos os privilégios, o da pobreza, para
que ela e suas irmãs, no mosteiro de São Damião, nunca pudessem ser constrangidas a receber
nenhuma propriedade de quem quer que fosse.
À Clara são atribuídos poucos escritos, quatro cartas à Princesa Inês de Praga (ou da
Boêmia), uma Bênção, o Testamento e a Forma de Vida.2 As quatro cartas para Inês de Praga
sugerem, uma correspondência maior, assim como outras fontes sobre Clara e as mulheres
franciscanas são indício de uma escritora mais ativa, especialmente, na promoção da pobreza
que lhe era tão cara. Então, por que tão poucos escritos conhecemos da santa? Acreditamos,
e defendemos esta idéia em nossa Tese de doutorado, que a ordem de destruição dos
documentos sobre Francisco de Assis em 1266 atingiu da mesma forma os documentos
ligados à Clara.
Em 1266, o Capítulo Geral da Ordem Franciscana estabeleceu que somente as
biografias escritas por Boaventura seriam tidas como legítimas e oficiais, banindo todas os
demais escritos biográficos, que deveriam ser destruídos. Neste ímpeto de controlar a heresia
dentro das fileiras da Ordem Primeira, é muito provável que documentos diversos sobre e de
autoria de Clara possam ter sido escondidos e perdidos, como, também, destruídos. Afinal,
uma das questões que agitava os franciscanos na época era exatamente o ideal de pobreza
defendido pelo fundador e como ela deveria ser cumprida pelos membros da ordem.
A insistência de Clara na importância de ser pobre e na necessidade de permanecer
vivendo comunitariamente em pobreza norteia todos os escritos atribuídos à santa, desde suas
cartas para Inês até a forma de vida, a única escrita por uma mulher aprovada pela Santa Sé
até o século XIII. A resistência de Clara, ao longo de toda a sua vida religiosa (1212-53),
pode ser percebida em múltiplos documentos, como a Legenda de Santa Clara, de autoria de
Tomás de Celano, na qual a pobreza está associada ao perfeito segmento de Jesus Cristo:

1
Doutora em História pela UnB, professora da Faculdade Teológica de Brasília e do Colégio Militar de Brasília.
2
Há também uma carta para a beguina Ermentrudes de Bruges, cuja autenticidade é alvo de disputa, pois o
compilador dos Annales Minorum, de Lucas Wading, diz ter encontrado duas cartas da santa para esta co-irmã,
mas só apresenta o texto de uma. Esta carta parece ser a junção dos dois documentos.
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Quando tentou convencê-la a aceitar algumas propriedades que oferecia com
liberalidade pelas circunstâncias e perigos dos tempos, ela resistiu com
ânimo fortíssimo e não concordou, absolutamente. Respondeu o Papa: “Se
temes pelo voto, nós te desligamos do voto”, mas ela disse: “Pai santo, por
preço algum quero ser dispensada de seguir Cristo para sempre”. (Legenda
de Santa Clara)

Este fragmento, que corresponde a parte de uma conversa entre a santa e o papa
Gregório IX, mantém-se fiel ao que pode ser lido em várias passagens dos escritos da própria
Clara, como em sua primeira carta à Inês de Praga quando ela declara que “Creio firmemente
que sabeis que o reino dos céus não é prometido e dado pelo Senhor senão aos pobres,
porque, quando se ama uma coisa temporal, perde-se o fruto da caridade.”
A firmeza de Clara em afirmar a pobreza como traço fundamental para a salvação
aproxima-se perigosamente de princípios defendidos dentro de alguns círculos heréticos dos
séculos XII, XIII e XIV, mas, ao mesmo tempo, é uma radicalização daquilo que estava
estabelecido entre os seguidores da chamada vita apostolica ou vita vera apostolica.

Vita Vera Apostolica: O Caminho do Meio?

Ernest W. McDonnell em seu texto clássico The Vita Apostolica: Diversity or Dissent,
defende que a vita apostolica se assentaria em três princípios básicos: imitação da vida dos
cristãos primitivos, em simplicidade, penitência e busca pelas coisas espirituais; o amor à
Deus e pelo próximo enfatizando tanto o serviço aos pobres (viúvas, leprosos, órfãos,
doentes), quanto o proselitismo; e a pobreza, imitação de Cristo, o ganho do sustento com as
próprias mãos, a aceitação de esmolas. (MCDONNELL, 1955, p. 15) Pobreza, penitência e
pregação centradas no modelo oferecido pelos Evangelhos sintetizam bem o que os
defensores da vita apostolica, oferecendo um tripé de sustentação para uma nova, vigorosa e
plural forma de vivência da espiritualidade.
Os primeiros indícios da vita apostolica começaram a aparecer ainda no século XI,
mas seu grande impulso se deu no século XII e no século XIII com homens como Norbert de
Xanten, Robert D’Abrissel, Pedro Valdo, Francisco de Assis.3 Esse processo de rejeição dos
bens terrenos e da opção por uma forma mais ou menos radical de pobreza é concomitante ao
rápido processo de monetarização da economia, da expansão do comércio. A riqueza,
inclusive da Igreja, era cada vez mais visível e incomodava muitos fiéis.
Durante os séculos XI, XII e XIII, a vita apostolica teve adversários e defensores.
Autoridades monásticas colocavam em dúvida a seriedade das novas formas de vida religiosa
tipicamente urbanas e não claustrais. Cônegos questionavam o direito dos frades e leigos de
pregarem. A familiaridade com as mulheres era usada como acusação aos pregadores, vide as
preocupações do próprio Francisco de Assis para que seus frades não entrassem em mosteiros

3
Ernest W. McDonnell defende em seu texto que os princípios da vita apostolica estariam presentes até as bases
da Reforma Protestante em personagens como Jan Huss e John Wycliff. (MCDONNELL, 1955, p. 15)
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de mulheres. Ainda assim, a vita apostolica foi acolhida e defendida por autoridades
eclesiásticas, como Jacques De Vitry, que via com grande positividade a experiência das
beguinas e dos menores (homens e mulheres), e o próprio Papa Inocêncio III, que buscou
reconhecer as novas ordens e reintegrar grupos que tinham sido colocados na heresia, como os
Humiliati. Foi Inocêncio III que aquiesceu em conceder à Clara o primeiro Privilégio da
Pobreza. Este fato é relembrado por Clara em seu Testamento:
Pra maior segurança, tive a preocupação de conseguir do senhor papa Inocêncio, em
cujo tempo começamos, e dos seus outros sucessores, que corroborassem com os seus
privilégios a nossa profissão da santíssima pobreza, que prometemos ao Senhor e ao nosso
bem-aventurado pai, para que em tempo algum nos afastássemos dela de maneira alguma.
McDonnell enfatiza que a reforma religiosa – começada nos dias de Gregório VII e
concluída com Inocêncio III – era religiosa e teológica nas suas origens, mas que só se tornou
realmente efetiva na medida em que as forças sociais a traduziram em práticas.
(MCDONNELL, 1955, p. 17) Os costumes eclesiásticos anteriores permitiam que os
religiosos nada tivessem de si, mas administrassem bens da Igreja, alguns mosteiros eram
riquíssimos. Os praticantes mais radicais da vita apostolica defendiam uma abstenção total de
qualquer posse, de qualquer bem. É esse o tipo de pobreza a defendida por Clara de Assis.
Estabelecido isso, é preciso situar as mulheres dentro desse novo paradigma de vida
religiosa. Assim como os homens, as mulheres se viram atraídas pela vita vera apostolica.
Nesse sentido, o caso de Clara não é singular, mas se encontra dentro de um processo de
renovação religiosa muito mais amplo, sobre essa questão Herbert Grundmann escreve:

É freqüente nas fontes a informação de que jovens, particularmente da


nobreza, rejeitavam casamentos vantajosos, geralmente enfrentando o
desdém de seus pais, porque não desejavam nenhum noive senão Jesus
Cristo. Elas preferiam não serem “protegidas”, mas optavam por viver em
pobreza e fora do seu mundo social de origem como resultado da sua
convicção religiosa. (GRUNDMANN, 2002, p. 84)

Antes de entrar para a vida religiosa, Clara vivia em penitência e pobreza dentro de
sua casa. Este é o testemunho de vários dos depoentes em seu processo de canonização. Mas
isso não era suficiente, permaneciam os constrangimentos familiares, a possibilidade de um
casamento para ampliar as riquezas da família. Todas essas questões impediam a vivência
integral da vita vera apostolica. A fuga, o confronto com a família, a resistência e,
finalmente, a aceitação a contragosto por parte dos parentes da vocação religiosa de Clara,
foram passos seguidos por outras mulheres antes e depois dela.
Não é nosso interesse romantizar a vida religiosa feminina, mas é preciso marcar que
para algumas mulheres a comunidade religiosa (convento, mosteiro, casa de beguinas, etc.)
era um espaço de subjetivação e construção de uma identidade que pudesse escapar aos
poderes masculinos, o pai (o tio, no caso de Clara), o marido, e até o controle dos religiosos
homens. Grundmann enfatiza que a renúncia da posição social e da riqueza não se fazia
geralmente por necessidade ou coação, mas por livre escolha. O autor ressalta que é difícil
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saber com precisão a qual grupo social as beguinas pertenciam, mas no caso das franciscanas
e cistercienses, grande parte era da nobreza ou dos grupos patrícios das cidades.
(GRUNDMANN, 2002, p. 85)
A vita vera apostolica teve nas mulheres, de todos os tipos, grandes entusiastas.
(BRENON, 1992, p. 83-84) Seja como penitentes, hereges, beguinas, monjas, elas
contribuíram criativamente, e foram agentes diretas no estabelecimento de novas formas de
vida religiosa.
É preciso ressaltar que a vita vera apostolica somente acelerou a entrada de mulheres
na vida religiosa, especialmente buscando as novas ordens e movimentos que estivessem
ancorados nas premissas da nova espiritualidade, isto é, a imitação dos apóstolos e do próprio
Cristo. É preciso marcar, também, que as comunidades masculinas fossem mais abundantes,
a vida religiosa feminina floresceu desde os princípios da Igreja Cristã, e foi marcada pela
diversidade.
Quanto à regra, não havia também uma unidade, mesmo os mosteiros onde a regra
beneditina era utilizada, os costumes, a vontade do fundador ou fundadora da casa, mesmo a
vontade das monjas, cuja maioria absoluta era recrutada nas fileiras da nobreza, prevalecia.
(PARISSE, 1994, p. 190) Os mosteiros eram casas voltadas para a oração e, também, a
educação de jovens, e a representação da comunidade religiosa como lugar de reclusão
absoluta não existia. As abadessas e monjas podiam empreender viagens autorizadas, algo
assegurado e prescrito pela regra de São Bento, seguida por boa parte dos mosteiros de
mulheres antes do século XIII. (LECLERQ, 1980, p. 67) Além das viagens para fundar outros
mosteiros ou por motivos diversos, as monjas até o século XII não eram proibidas de pregar e
o caso mais notável é o de Hildegard de Bingen que pregava em praça pública. (LECLERQ,
1980, p. 67 e PERNOUD, 1994, p. 94)4

Diversidade para os Homens, Modelo Único para as Mulheres

Ernest W. McDonnell termina seu texto com uma afirmação muito completa sobre o
panorama espiritual do século XIII. Segundo este historiador,

(...) o século XIII foi uma era de ceticismo e fé, discussão e repressão,
espiritualidade e secularismo, diversidade e unidade. Mas a autonomia
religiosa, a liberdade de pensamento, depende da divisão dos interesses, não
somente da diversidade de método. A igreja, ao contrário de certas seitas,
podia ser elástica e inclusiva. (MCDONNELL, 1955, p. 28)

McDonnell, um especialista em beguinas, pouco se atém à questão das mulheres no


texto que estamos utilizando. A questão da adesão das mulheres à vita apostolica é abordada

4
Régine Pernoud, na biografia que escreveu sobre Hildegard de Bilgen, discorre sobre as quatro viagens de
pregação da religiosa, a última empreendida quando ela já estava com mais de 70 anos. (PERNOUD, 1994, p.
118)
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de passagem, assim como a resistência das ordens. Joan Mueller, em seu livro sobre o
Privilégio da Pobreza, defende que a aceitação das mulheres nos movimentos e ordens novas,
era um primeiro passo que precedia a exclusão ou tentativa de exclusão.5
A partir do momento em que os franciscanos começaram a se organizar como uma
ordem, estabelecendo conventos, a manutenção de casas femininas começou a se tornar um
peso. (MUELLER, 2006, p. 16) Mas a chave para compreender o “peso” que as mulheres
representavam repousa na emergência de discursos misóginos e na imposição da clausura às
religiosas. Um exemplo de discurso que depreciava as mulheres é o conhecido fragmento de
Prüfening:

O sexo feminino, sobre cuja proteção escrevemos aqui, possui quatro


grandes inimigos: dois deles encontram-se nele mesmo, a saber, a
concupiscência da carne e a curiosidade própria das mulheres; dois vêm de
fora, o desenfreado prazer dos homens e a insaciável cobiça do demônio para
fazer o mal. Acrescente-se que, diferentemente do homem, a mulher pode
perder a virgindade pela violência. (PRÜFENING, apud LECLERQ, 1980,
p. 7)

As mudanças foram lentas e, como já pontuamos, houve resistência. O próprio


Privilégio da Pobreza é uma forma de resistência das irmãs de São Damião. Sobre a questão
das mudanças ocorrida na representação social de religiosa ao longo da Idade Média, Régine
Pernoud nos diz:

É raro e mesmo excepcional que uma religiosa, tendo escolhido a vida


contemplativa, deixe seu convento sem com isso abandonar a sua vocação,
(...) Bem mais surpreendentes são as viagens que realizou com o propósito
da pregação. Sem dúvida, a clausura das religiosas no tempo de Hildegard
era bem menos severa e restrita do que se tornaria depois, quando da
constituição do Periculoso, do Papa Bonifácio VIII, no final do século XIII
(...) iria constrangê-las a uma existência exclusivamente confinada. Tal
severidade se vai acentuar ainda mais: nos séculos XVI e XVII, só serão
permitidas às mulheres a fundação de ordens de total reclusão. A vida de
uma religiosa do século XII transcorre num contexto bem diferente.
(PERNOUD, 1994, p. 94)

O processo de Reforma da Igreja iniciado no século XI, e que de certa forma é


concomitante à ascensão da vita apostolica, foi um processo baseado em discursos
falogocêntricos e orientados por homens (papas, bispos, imperadores, abades, etc.). Sobre
isso, Jane Schulenbrug escreve que as “(...) abadessas (...) perderam não somente sua
liberdade de movimento, mas também a sua antiga influência” e, ainda que continuassem
sendo convocadas por reis e imperadores, “(...) não participavam das assembléias
reformadoras”. (SCHULENBURG, 1988, p. 115)

5
As tentativas de exclusão normalmente fracassavam, como no caso dos Cistercienses que decidiram excluir as
mulheres em 1213, ou dos Dominicanos em 1228. Não raro, a decisão tornava-se letra morta ou era revertida
por uma autoridade superior. O próprio papa Gregório IX reverteu a decisão do Capítulo Dominicano em 1238.
(BOLTON, 1980, p. 151-152)
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A necessidade da clausura para as religiosas, ancorada em discursos sobre a debilidade
moral e física das mulheres, foi se tornando central na vida religiosa feminina. Assim, no
século XII, “(...) começam a aparecer as determinações mesquinhas sobre portas, chaves,
muros e grades” e a “clausura transforma-se numa prisão”. (ROTZETTER, 1994, p. 141)
No tocante à clausura, a questão começa a se deslocar, então, “da ‘periferia’ para o ‘centro’
de um campo discursivo”, (BACZKO, 1985, p. 298) tornando-se um dos eixos de
estruturação da vida religiosa feminina.
Cria-se um círculo vicioso. Enclausuradas, as mulheres não podem esmolar, nem
pregar, dois eixos da vita vera apostolica. A defesa do afastamento entre homens e mulheres,
começa a impedir que persistam os mosteiros duplos, ou que religiosos possam se abrigar em
mosteiros de mulheres ou usarem essas casas como bases em suas viagens de pregação ou
mesmo que para aí retornem depois de esmolar. Os novos moldes da clausura impedem,
também, as mulheres de administrarem diretamente os bens dos mosteiros, precisando de
procuradores. As casas de mulheres passam a ser um peso. A saída é limitar o número de
religiosas, ou de casas de mulheres.
A preocupação das ordens era menos com, o que chamamos perigo moral ou espiritual
que as mulheres poderiam representar, e muito mais com o seu peso econômico. (LECLERQ,
1980, p. 89) Afinal, nos diz Leclerq, “(...) a clausura se torna um bem em si mesma, e o
primeiro de todos, aquele em função do qual outros são sacrificados, a começar pela
pobreza: a vida claustral exige a existência de rendas e reduz a possibilidade de trabalho.”
(LECLERQ, 1980, p. 86)
A clausura, se seguida nos moldes propostos pelas autoridades masculinas, tornava as
religiosas absolutamente dependentes da boa vontade dos seus patronos laicos e religiosos,
assim como de procuradores que deveriam gerir seus bens. Sem autonomia e a possibilidade
de romper a clausura, tornava-se muito mais fácil controlar a prática religiosa feminina,
impondo sérios limites à independência dos mosteiros de mulheres.6
Outra questão, que teve repercussão sobre Clara e suas irmãs foi a tentativa de
imposição da Regra de São Bento a todas as religiosas. Quando da conversão de Clara, estava
em andamento um projeto de uniformização da vida religiosa feminina a partir do modelo
beneditino na leitura cisterciense. O cardeal Hugolino, futuro Gregório IX, era protetor dos
franciscanos e, também, das mulheres religiosas. Ele será responsável por levar adiante o
projeto de normatização da vida religiosa feminina tendo a Regra de São Bento como
parâmetro e a clausura como condição essencial para a vivência religiosa. A Itália termina
sendo o laboratório para essa primeira iniciativa e as franciscanas, organizadas em mosteiros
independentes, são alvo da ação do cardeal. (MUELLER, 2006, p. 18-20)

6
O canône LXIV do IV Concílio de Latrão toca na questão da simonia e vai condenar especialmente os
mosteiros femininos por essa prática. O texto se inicia com duras palavras: “O pecado da simonia se
desenvolveu de tal maneira entre as monjas, que sob o pretexto da pobreza não admitem senão a um número
mínino de irmãs que não possuem dinheiro. [...]” (Lateranense IV, LXIV, p. 200)
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A Pobreza como síntese da vita apostolica

Durante toda a sua vida como religiosa, Clara lutou para garantir que as irmãs em São
Damião poderiam viver em pobreza. As cartas sobreviventes à Inês de Praga, sugerem que a
santa ajudou a co-irmã a obter o mesmo privilégio para as irmãs de seu convento. O direito
de permanecer franciscana, de viver a vita apostolica, passava pela pobreza e Clara sustentou
seus argumentos remetendo-se a uma autoridade maior, a do próprio Francisco. Assim, a
regra que Clara viu ser aprovada pouco antes de sua morte começa da seguinte maneira “A
Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres, que o bem-aventurado Francisco instituiu, é
esta: (...)”. (Forma de Vida de Santa Clara 1).
As irmãs são pobres e seguem uma forma de vida instituída não por Clara, mas por
Francisco. Esse recurso a uma autoridade maior era uma estratégia para a obtenção de
legitimidade. Ainda que Clara já fosse muito famosa por toda Itália e além, Francisco já era
santo e, além disso, homem. Curiosamente, nenhuma forma de vida de Francisco para as
irmãs resistiu aos séculos, isso, claro, se realmente ela foi escrita ou verbalizada. Em seu
Testamento, Clara volta a insistir:

(...) faça com que sempre o seu pequeno rebanho (cfr. Lc 12,32), que o
Senhor Pai gerou em sua Igreja pela palavra e o exemplo do nosso bem-
aventurado pai São Francisco para seguir a pobreza e a humildade do seu
Filho dileto e da Virgem, sua gloriosa Mãe, observe a santa pobreza que
prometemos a Deus e a nosso bem-aventurado pai Francisco e nela digne-se
encorajá-las e conserva-las. (Testamento)

A questão da pobreza é retomada em vários pontos do Testamento de Clara, assim


como o seu compromisso de seguir o exemplo de Francisco, ele mesmo um seguidor de Cristo
e sua Mãe, ambos pobres. Em carta à Inês, Clara louva a escolha dos esponsais com Cristo, e
recomenda que a princesa “Veja como por você ele se fez desprezível e o siga, sendo
desprezível por ele neste mundo”. (II Carta à Inês de Praga)
A pobreza e a penitência, que também não pode ser esquecida, são características
indissociáveis da vita apostolica defendida por Clara. A pobreza promove a união com o
esposo celeste, que também se fez pobre, permite a aproximação do modelo de perfeição para
as mulheres e Maria, que é louvada não somente por ser Virgem, mas especialmente por ser
Mãe e pobre.
É através da pobreza que Clara, assim como Inês, almejam chegar a salvação. Para
que isso se concretize, é preciso resistir a qualquer pressão, mesmo que ela possa vir do
próprio papa. Na mesma carta, Clara recomenda a Inês que “(...) não confie em ninguém, não
consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, que seja tropeço no caminho, para
não cumprir seus votos ao Altíssimo na perfeição em que o Espírito do Senhor a chamou.” (II
Carta à Inês de Praga)

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As quatro cartas não têm data precisa. Os estudiosos geralmente inferem datas a partir
de indícios discursivos. Por exemplo, a II Carta fala de Frei Elias,7 ministro geral entre 1234-
39. E ao sugerir que Inês “não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito”,
parece que Clara está fazendo referência a forte pressão exercida pelo papa Gregório IX para
que Inês aceitasse propriedades para o seu mosteiro em 1235. A resistência da princesa em
aceitar o decreto do papa, fez com que este recuasse dois anos depois. Além de poderem
viver em pobreza, outro pedido de Inês foi concedido: as irmãs de Praga poderiam trabalhar
em um hospital. Tal decisão mostra que havia ainda terreno para negociação, que as
deliberações papais não eram irrevogáveis e que as mulheres tentaram negociar condições,
ainda que constrangidas por uma instituição cada vez mais falocêntrica.
Por fim, na sua forma de vida Clara reforça várias vezes a necessidade da pobreza.
Sua insistência pauta todo o texto, deixando outros aspectos, como a clausura tão cara aos
papas, em segundo plano. O texto, também, reforça para as irmãs que a resistência a qualquer
autoridade que deseje desviá-las da santa pobreza é legítima. Escreve Clara: “Rogo-vos,
senhoras minhas, e vos aconselho a que vivais sempre nessa santíssima vida e pobreza.
Guardai-vos bastante de vos afastardes dela de maneira alguma pelo ensinamento de quem
quer que seja”. (Forma de Vida de Clara de Assis)
Quando os próprios frades se negaram a aceitar o Testamento de Francisco com a
aquiescência do papa Gregório IX, Clara se manteve firme na sua decisão de acatar a vontade
do fundador. Em tempos de ingerência na vida religiosa feminina e de exercício máximo do
poder papal durante a Idade Média a postura de Clara precisa ser vista como um ato de
subversiva resistência em relação ao que se esperava das mulheres religiosas no século XIII:
clausura, obediência e silêncio. Impossibilitada de exercitar plenamente a vita apostolica,
Clara centralizou seus esforços na manutenção da pobreza evangélica. De uma forma muito
contundente, venceu, pois ao morrer teve sua forma de vida, síntese de seus ideais, aprovada.
Algo singular até então, pois foi a primeira mulher a ter uma regra aprovada e reconhecida
pela Igreja.

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“(...) siga o conselho de nosso venerável pai, o nosso Frei Elias, ministro geral.” (II Carta à Inês de Praga)
150
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Ages. Athens: University of Georgia, 1988, p. 102-125.

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Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
IDEIAS RELIGIOSAS NO CRISTIANISMO PRIMITIVO: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA DO PROTO-EVANGELHO DE TIAGO

Valmir Nascimento de Moura


(UFPB)
valmirnmoura@yahoo.com.br
Fabricio Possebon
(UFPB)
fabriciopossebon@gmail.com.br

OS PRESSUPOSTOS BAKHTINIANOS

De acordo com Bakhtin, a natureza da linguagem é dialógica, sempre está voltada para
o outro e nasce dessa relação com o outro. Os homens se humanizam por meio/na linguagem.
É nela e por ela, no processo dialógico, que os sujeitos são histórica e ideologicamente
construídos. É por meio da interação verbal que os seres humanos constroem sua identidade e
consciência, por meio dela participam das lutas de classe.
A língua, no olhar de Bakhtin, é o lugar de formação de sujeitos que participam
ativamente das realidades que os cercam. O sujeito bakhtiniano é um ser psicossocial que se
manifesta por meio da interação. Nessa interação, produz enunciados orais ou escritos, que se
enquadram em determinados gêneros discursivos. Estes também apreendidos socialmente. É
um sujeito histórico e ideologicamente situado que constrói a identidade com relação à
dinâmica de alteridade.
Uma das características mais importantes da teoria bakhtiniana da linguagem é a
responsividade ativa dos sujeitos durante a interação. O sujeito bakhtiniano nunca é passivo,
ele constrói a significação durante o processo de interação por meio de negociações. Dessa
forma, o sentido nunca é exclusivamente dado pelo autor ou se encontra simplesmente no
texto. O significado é construído na interação entre os sujeitos ativos que estão em dialogo. A
partir dessa responsividade ativa, surgem as réplicas do discurso, uma vez que, o sujeito se
posiciona em relação ao enunciado manifesto. Há o princípio de apropriação do enunciado do
outro para formular o próprio. Daí, a língua se torna o lugar de luta de classes, de afirmação
do indivíduo. Não entendamos aqui, classe, como classe social, mas sim como classe
ideológica.
Os sujeitos reproduzem o social na medida em que participam ativamente dele. É
nessa relação dinâmica de alteridade que é construída também a realidade.
Segundo Souza (2005, p. 325) “na perspectiva bakhtiniana, a verdade não se encontra
no interior de uma pessoa, mas está na interação dialógica entre as pessoas que a procuram
coletivamente”. Por este ângulo devemos considerar as cosmogonias míticas do passado como
também as ideias religiosas do presente verdades, pois para um determinado grupo de pessoas
elas o são.

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Os mitos, mais que uma concepção equivocada dos que os consideram fantasia, ficção
e ilusão, são uma forma de representação de verdade, construção ideológica de um grupo de
indivíduos que a procuram. Eles criam a realidade em que os homens vivem, tal qual a ciência
e a filosofia.

OS INÍCIOS DA LITERATURA CRISTÃ

O Cristianismo não nasce como uma religião autônoma. No princípio era considerado
apenas como uma das seitas (facções) judaicas milenaristas. Tal como tais apresentava a
esperança na figura de um messias e um juízo escatológico cataclísmico e fenômenos
cósmicos extravagantes. No judaísmo, essa concepção messiânica e apocalíptica começara a
ganhar forças no período do cativeiro judaico na Babilônia nos VI a.C.. Na mensagem
profética desse tempo há uma mudança substancial de conteúdo. Enquanto os profetas
anteriores pregavam a mudança de atitude dos israelitas, estes anunciavam uma nova era que
se inauguraria com eventos prodigiosos do Deus de Israel e substituiria a anterior. Essa nova
era seria perfeita e feliz para os judeus e traria a condenação para as nações inimigas. Esse
novo mundo seria regido por rei designado por Deus que o governaria em seu nome. Esse rei
era denominado de o Messias, isto é, o ungido. É possível observar essa esperança em uma
obra redigida no século I a.C., os Salmos de Salomão. No capítulo 17, há uma prece para que
o messias, filho de Davi, venha logo e esmage “os dominadores injustos e purifique Jerusalém
da presença dos pagãos”. Deus governará então seu povo com equidade, pois, “Ele é um rei
justo (...) e sob seu reinado não haverá injustiça, porque todos serão santos e seu rei será o
messias”.
Jesus era judeu e como tal, vivia sobre a influência de seu tempo e de seu mundo. Seus
seguidores encontraram motivos para identificá-lo como o messias esperado. No texto dos
evangelhos há referencias a essa identificação por meio de passagens veterotestamentárias de
profetas que foram interpretadas como referentes a ele. Ainda nos evangelhos é possível ver
os discursos escatológicos e apocalípticos que teriam sido pronunciados por Jesus e que
faziam parte da esperança judaica.
O cristianismo nasce tendo o Antigo Testamento como escritura. Há inúmeras citações
dele por todo o Novo Testamento. O cristianismo nasce como religião do livro e aos poucos
vai produzindo uma gama de literatura da qual uma pequena parte se tornará sua Escritura, o
Novo Testamento.
No primeiro período formativo da literatura cristã antiga, encontramos, sobretudo, a
tradição oral. Inicialmente, os seguidores de Jesus utilizavam-se da memória para narrar os
atos de seu mestre tal como também comunicar seus ensinamentos. Nesse primeiro momento,
a mensagem cristã era baseada na paixão, morte e ressurreição de Cristo, como também em
suas aparições como ressurreto.
No final do primeiro século e início de segundo, surge a necessidade de se refletir
sobre outros temas que não eram tão importantes naquele primeiro momento de pregação
evangelística. Nasce então uma gama de textos que procuram desenvolver as ideias religiosas
cristãs não contempladas por este primeiro momento.
Segundo Moraldi (2008, p. 25),
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as obras mais antigas surgiram pelos mesmos motivos e com as mesmas


finalidades da literatura canônica, fundamentavam-se nas mesmas tradições
e correspondiam às mesmas necessidades; e não há duvida que no começo
estavam ao lado dos escritos que foram”canonizados”: a catequese primitiva
não era só amparada só por estes.

No período formativo da literatura cristã antiga surgem, como gêneros literários,


várias cartas cristãs, que uniam as comunidades cristãs que viviam em localidades diferentes e
longínquas; inúmeros evangelhos; vários atos dos apóstolos, isto é, os feitos que os apóstolos
realizaram após a ressurreição de Jesus; diversos apocalipses; além de regras eclesiásticas,
apologias, relatos de martírios, tratados teologicos, comentários etc.
Esses textos se tornam importantes, pois mostram que nem todos pensavam da mesma
forma, alguns divergem da tradição estabelecida posteriormente e nos mostram uma teologia
alternativa. Eles podem ainda mostrar os fatos vistos por um outro ângulo.
Esses pontos divergentes podem nos levar a compreender o que acontecia no
Cristianismo primitivo, uma vez que, não é notório, que havia divergência de opiniões entre
vários grupos. Para ilustrar, basta só relembrar uma passagem bíblica que se encontra na Carta
do Apóstolo Paulo aos Gálatas capítulo 1, versículos 6 a 9. Na ocasião havia um grupo que
não concordava com a mensagem do apóstolo e estava manifestando esse pensamento às
igrejas da Galácia. Ressaltemos que este grupo era formado por cristãos que possuíam
praticas judaicas. No livro de atos dos apóstolos canônico essa divergência haveria produzido
o primeiro concílio cristão para debater os assuntos concernentes da inclusão dos gentios, isto
é, dos não judeus, e como estes deveriam se comportar.
Com o estabelecimento de um Canon, que veio a ser determinado no sec. IV d.C. a
Igreja veio a rejeitar todos outros textos que foram estimados por cristãos em épocas
anteriores. O Canon procura limitar as crenças e ideias religiosas.
No ano 360, o sínodo de Laodicéia, no artigo 59, proibia que fossem lidos os salmos e
livros não canônicos na igreja. A partir de então surgem várias listas apontando quais obras
seriam apócrifas. Uma das listas mais extensas é o chamado Decreto Gelasiano já no sec. VI.
Nele está escrito assim:

“Todas as outras obras (Isto é, as que não fazem parte do cânon) escritas e
difundidas por hereges e cismáticos não são aceitas pela igreja católica,
apostólica, romana. Consideramos oportuno mencionar algumas como nos
veem a mente, as quais os católicos devem evitar:” (apud. MτRALDI, 200κ,
p. 21).

Daí cita em torno de 60 obras.


Tudo o que não fosse considerado canônico tornou-se apócrifo. Nesse momento,
juntaram-se tanto obras que eram utilizadas na igreja em épocas anteriores quanto outras que
para ela eram aberrantes, como por exemplo, os textos gnósticos.
Esse é provavelmente um dos motivos que o Protoevangelho não logrou fama no
Ocidente.

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ANÁLISE DA OBRA

O nome Proto-evangelho, que quer dizer, primeiro evangelho, foi atribuído a esse
escrito pelo humanista francês Guillaume Postel apenas no século XIV (KLAUCK, 2007,
pág, 86). Postel, em viagem a Jerusalém, descobriu que um texto era utilizado na liturgia e
lido nas igrejas de lá. Fez uma versão latina, a qual foi impressa em Bale em 1552 e reparada
em Estrasburgo em 1570. A princípio, a publicação da obra trouxe consigo controvérsias. Em
uma delas, Postel foi acusado de ser o seu autor tendo a composto com o intuito de escarnecer
a religião cristã (BRUNET, 1848, pág.112). Em 1564, é publicado pela primeira vez o texto
grego, sem a preocupação de se saber de onde o manuscrito viera, contudo, notou-se grande
divergência entre o texto grego e a tradução latina publicada por Postel. O nome dado por
Postel, segundo Brunet (1848, pag.113), parece ter sido forjado, pois ele não se encontra em
nenhum manuscrito grego conhecidos.
No testemunho mais antigo do texto, o Papiro Bodner V, datado entre o século III e
início do século IV d.C, o título é “σascimento de Maria: Revelação de Tiago”. τs
manuscritos gregos posteriores trazem algumas diferenças como as palavras “História” ou
“Relato” fazendo hora menção ao nome de Tiago, hora não (CULLMANN, 2003, pág.423).
No capítulo XXV, o autor do protoevangelho se identifica como Tiago. Contudo é
obra de um autor anônimo que se vale de um pseudomino para conseguir autoridade. É uma
forma comum de se escrever na literatura cristã da época. O desconhecimento de algumas
instituições judaicas e da geografia da Palestina afasta a possibilidade de ser originário da
região. Contudo, o autor possui um grande conhecimento do Antigo Testamento e conhece
também a forma literária judaica do midrash. Com base nisso, pensamos ser um autor cristão,
nascido e educado em um ambiente judaico, ou judaizante, mas que não habitava nem
conhecia diretamente a Palestina. Quanto à origem, discute-se a possibilidade da Síria ou
Egito. Quanto à língua, parece ser mesmo o grego a original, mas não se descarta a
possibilidade de uma língua semítica.
O testemunho textual mais antigo que temos hoje é o do papiro Bodner V, que data do
III século e apresenta o conteúdo do texto, salvo as variações e abreviações, muito similar às
evidencias posteriores.
Klauck (200ι, pg. κ6) afirma que “o Proto-evangelho surgiu entre 150 e 200 d.C”. Isso
se deve ao fato de que desde Orígenes (os irmãos do Senhor podem ser filhos do primeiro
casamento de José, apoiando-se no Evangelho de Pedro e no livro de Tiago) e Clemente de
Alexandria (a virgindade de Maria foi verificada pelas parteiras) esse documento é conhecido
e Justino (Jesus nasceu em uma gruta) mostra algum contato com suas ideias (CULLMANN,
2003, pág.423).
O nosso texto conta com 25 capítulos que podem ser divididos em três partes e um
pequeno epílogo.
A primeira parte vai do Cap I ao XVI e narra a história do nascimento de Maria até o
momento do nascimento de Jesus. Os pais de Maria, Joaquim e Ana, eram pessoas ricas e
piedosas, entretanto sofriam por não terem filhos. Em um determinado dia de se oferecer
sacrifício um homem chamado Rubem ou Rubel – dependendo da versão do manuscrito –
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humilha Joaquim por causa disso. Este, inconformado, após verificar que todos os homens
justos de Israel possuíam prole, dirige-se para o deserto. Ana, sua mulher, se lamenta pelos
acontecimentos a Deus. Este a ouve e envia-lhe um anjo anunciando que ela seria mãe,
Joaquim também é avisado por um anjo desse novo fato. Cumprido os meses de gestação,
Ana dá a luz a uma menina e põe-lhe o nome de Maria. Quando Maria completa três anos,
para cumprir a promessa que sua mãe fizera, é levada ao templo para servir a Deus. Ela mora
lá até o aparecimento de uma preocupação: a menarca. A menstruação era vista como
impureza para os judeus e Maria não poderia mais permanecer no templo. Os sacerdotes
resolvem então passar a tutela de Maria para um dos viúvos do povo. A sorte recai sobre José.
Ele acolhe a menina, levando-a para casa. Cabe resaltar que o texto atribui filhos a José de seu
primeiro casamento e que esses são os considerados irmãos de Jesus. Ao chegar, José deixa a
Maria e vai cuidar dos afazeres de sua profissão.
Um dia, ao buscar água um anjo lhe aparece e anuncia que ela foi escolhida por Deus
para ser a mãe do salvador. Quando chega ao sexto mês de gestação, José volta de seus
trabalhos e encontra Maria grávida. Ele questiona, ela alega inocência. Pretendendo
abandoná-la, um anjo lhe aparece e explica o ocorrido. Passado algum tempo, o escriba Anás
visita José, vê Maria grávida. Ao voltar da casa de José, leva o caso ao sumo sacerdote. Maria
e José são convocados a passar pela prova das águas amargas e fica então provada a inocência
de ambos.
A segunda parte vai do capitulo XII a XX. Narra o nascimento de Jesus e as
circunstancias desse nascimento. Quando se aproxima o dia do nascimento do menino, vem o
edito de Augusto ordenando o censo dos habitantes de Belém. José e Maria partem para se
recensear e no meio do caminho Maria começa a sentir que é chegado o momento do parto. O
lugar está deserto, mas José encontra uma caverna onde Maria poderia ficar enquanto ele
procuraria uma parteira. Ao voltar com a parteira o menino já havia nascido. A parteira ao ver
um sinal milagroso acredita que ali nascera o salvador. Entretanto, Salomé, outra mulher que
a parteira contara o milagre não creu e pede provas. Após um exame ginecológico, Salomé
comprova a virgindade de Maria, mas por causa da incredulidade foi castigada, tendo a mão
queimada. Mas, ao tomar o menino nos braços, a mão lhe é restituída.
A terceira parte vai do XXI ao XIV. Essa parte inicia-se com os magos do oriente,
seguido do infanticídio e o assassinato de Zacarias, pai de João Batista, por ordem de
Herodes. Tanto Maria como Isabel ocultam seus filhos para que não morram. Ao se procurar
por João Batista, encontra apenas Zacarias que é sacerdote e está no templo. Este é morto e
esta parte do livro se encerra com a escolha de Simeão para o lugar de Zacarias no sacerdócio.
O capitulo XV é um epílogo em que o autor se apresenta como Tiago e explica as
circunstâncias em que compôs a obra.
Como interpretar todas essas informações? O que podemos inferir de tudo isso.
Como vimos, a obra é produto do sec. II e do segundo momento da produção da
literatura cristã antiga, isto é, do desenvolvimento das ideias religiosas estabelecidas do
primeiro momento.
O que historicamente está acontecendo no segundo século para o cristianismo?
Primeiramente podemos destacar que o início de um movimento antijudaico dentro do próprio
cristianismo, que estende também para os judeu-cristãos. Essa forma de compreender o
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Cristianismo pode ser deduzida do pensamento paulino. Entretanto, ganhou motivações
maiores que as propostas por esse autor.
Inácio de Antioquia, em sua carta aos magnésios, diz:

κ. “não vos deixeis enganar por doutrinas heterodoxas nem por velhas
fábulas que são inúteis. Com efeito, se ainda vivemos segundo a lei,
admitimos que não recebemos a graça (...). 10. Contudo, tornamo-nos seus
discípulos [discípulos de Cristo] abraçamos a vida segundo o cristianismo.
Quem é chamado com nome diferente desse, não é de Deus. Jogai fora o
mau fermento, velho e ácido, e transformai-vos no fermento novo, que é
Jesus Cristo (...). É absurdo falar de Jesus Cristo e, ao mesmo tempo,
judaizar. Não foi o cristianismo que acreditou no judaísmo, e sim o judaísmo
no cristianismo (...). (PADRES APOSTÓLICOS, 2008, pag. 93)

Na carta aos filadelfienses, Inácio critica o judaísmo e parece mostrar que o


cristianismo vivido por um circunciso é algo inferior:

6.1. Se alguém vos interpreta o judaísmo, não o escuteis, porque é melhor


ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaísmo de
incircunciso. Se ambos não falam a respeito de Jesus Cristo, são para mim
estelas e túmulos de mortos, sobre os quais estão escritos somente nomes de
homens. (PADRES APOSTÓLICOS, 2008, pag. 111).

É também nesse século que o gnosticismo começa a se desenvolver dentro do


Cristianismo. Dentro desse expoente gnóstico destacamos Marcião. Ele também desenvolveu
um antijudaísmo fundamentado nos pensamentos e ideias paulinas. Marcião rejeitou por
completo o Antigo Testamento e estabeleceu seu próprio cânone e fundou uma igreja
gnóstica. A teologia marcionista, expõe um sistema dualista. Para ele há dois deuses. O do
antigo testamento que instituiu as leis e é mau o deus do novo testamento que instituiu a graça
e é bom. Jesus manifesta o Deus bom e Javé para se vingar entrega-o aos seus perseguidores.
O mundo está sob o domínio de Javé e os fieis serão perseguidos até o final dos tempos
quando o deus bom se mostrará, receberá os fieis em seu reino. Os outros homens, a matéria,
e o Deus criador, isto é, Jave serão destruídos.
Podemos ainda citar deste período Cerinto. Ele ensinava que o mundo foi criado por
um demiurgo que ignorava o verdadeiro Deus. Segundo ele, o Cristo desceu do céu sobre
Jesus no ato do batismo. Temos ainda Valentino, Menandro, Satornil e vários outros nomes
que desconsideram o Antigo Testamento. Não queremos sintetizar o pensamento gnóstico por
completo mais uma coisa fica saliente:
Aversão ao Deus do Antigo Testamento que é um deus criador. Para eles a matéria é
má e um deus bom e verdadeiro não a criaria; Consequentemente, a Lei (Torá), aos Escritos
do Antigo Testamento. Esses são desconsiderados, sendo supridos por outras formas de
compreender o mundo criado e o próprio Cristo.
Essa forma de pensamento separasse radicalmente da forma como os apóstolos
pensavam e de como o Jesus dos evangelhos canônicos pensava. Lembremos nesse ponto, que
o cristianismo nasce da esperança judaica fundamentada no messias e num fim do mundo. Os
primeiros cristãos, judeus de Jerusalém, constituíam uma seita apocalíptica dentro do

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judaísmo palestino. A compreensão do mundo era baseada na visão judaica do mundo que
estimava um Deus de nome impronunciado e que criara todas as coisas.
Em resposta ao pensamento antissemita dessa forma cristã de pensar, e do gnosticismo
em desenvolvimento – ambos desvalorizavam os ritos judaicos, o Protoevangelho aponta para
a piedade judaica dos pais de Maria. Joaquim apresentava suas ofertas para Deus nos períodos
determinados e era tipo por justo. Quando Maria e José são acusados de pecado, por estar ela
grávida, o modo de validação da inocência deles é provado por meio de um ritual judaico
instituído no livro de levítico. O ritual mostra que esse Deus utiliza-se desse recurso
ritualístico para inocentá-los.
Um dos mitos principais atestados no Protoevangelho é sem dúvida o da
partenogênese. É outra resposta ao gnosticismo. Miraculosamente, Maria engravida do
Espírito Santo. Num gnosticismo posterior, como no Evangelho de Felipe, por exemplo, verso
16, isso é algo totalmente impossível. Lá está disposto: “Alguns dizem que Maria concebeu
por obra do Espírito Santo. Mas eles estão enganados. Não sabem o que dizem. Quando uma
mulher alguma vez concebeu por obra de outra mulher?”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto do protevangelho nasce numa relação de conflitos ideológicos em que o autor


expressa a realidade de sua comunidade ideológica. Parece-nos ter sido composto para
responder as exigências que afetaram essa comunidade ideológica, isto é, a defesa de um
cristianismo de base judaica, ou judaizante. Ele reafirma as origens judaicas de Cristo e de sua
família, com cumprimentos de rituais. Há piedade judaica dos ancestrais de Jesus é ressaltada.
O texto embora traga um relato sobre o mito da partenogênese, o material utilizado
diverge do material canônico. Podemos inferir nesse ponto que a ideia religiosa de fato existe
e que no caso desse texto, ao modelo, dos canônicos, possui base no Antigo Testamento. A
família de Jesus é apresentada, seus irmãos são os filhos que José tivera em seu primeiro
casamento. Essa ideia também existia nos tempos de Jerônimo, tal como a ideia de que esses
seriam de fato filhos de José e Maria. Entretanto, a teoria de Jerônimo de que estes seriam ser
entendidos como primos, ganhou popularidade e prevaleceu sobre as demais no Ocidente. O
texto de forma secundária, demonstra o pensamento de copulação de seres angelicais com
humanos, uma interpretação judaica comum de Gêneses 6. E ainda explica onde Adão estaria
enquanto Eva era tentada. Todos esses fatos narrados não se encontram no material canônico.
Conclui-se que há lutas de classe ideológicas que convergem e divergem em alguns
pontos.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 14ª ed. São Paulo: Hucitec,
2010.
BRUNET, Gustave. Les Évangiles Apocryphes. Paris: Frank, Libraire-éditeur, 1848

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ISBN: 978-85-237-0603-6
CULLMANN, O. Infancy Gospels. In: SCHNEEMELCHER, Wilhelm. New Testament
Apocrypha. Vol I. 2 ed. Louisville: Westminster John Knox Press, 2003. p. 414-469
KLAUCK, Hanns-Josef. Evangelhos apócrifos. São Paulo: Loyola, 2007
MORALDI, Luigi. Evangelhos apócrifos. 6ª Ed. São Paulo: Paulus, 2008
PADRES APOSTÓLICOS. Coleção Patrística. Vol 1. 4 ed. São Paulo: Paulus, 2008
PÉREZ. Gonzalo A. e GRANADOS, Paloma R. (org.). Apócrifos cristianos: El
Protoeangelio de Santiago. Vol. 3. Madrid: Editorial Ciudad Nueva, 1997
SOUZA, Solange Jobim e. Mikhail Bakhtin e Walter Benjamin: Polifonia, alegoria e o
conceito de verdade no discurso da ciência contemporânea. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin,
dialogismo e construção de sentido. 2ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005.

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ECOS DA FÁBULA E DO BESTIÁRIO MEDIEVAL EM “CONVERSA DE BOIS”,
DE GUIMARÃES ROSA

Gilberto de Sousa Lucena1


(UFPB)

Dois gêneros literários remotos e sua filiação ao conto “Conversa de Bois”

A análise aqui proposta do conto “Conversa de Bois” – do escritor mineiro João


Guimarães Rosa (1908-1967) – decorre de um motivo nele explorado a nosso ver essencial no
conjunto da produção ficcional rosiana. Nos referimos à temática do fabuloso ou maravilhoso.
Temos, neste caso, uma narrativa concebida nos moldes das fábulas clássicas ou mesmo da
literatura medieval dos bestiários nas quais se permite aos animais o atributo da racionalidade
aliada à consequente capacidade de falar, agir e até exercer influência na vida dos humanos.
Enquanto gênero ou forma literária, a fábula se define como sendo uma “narrativa
curta, não raro identificada com o apólogo e a parábola, em razão da moral, implícita ou
explícita, que deve encerrar”, geralmente tendo como protagonistas “animais irracionais, cujo
comportamento [...] deixa transparecer uma alusão, via de regra satírica ou pedagógica, aos
seres humanos” (MτISÉS, 19ικ, p.226). Em outras palavras, a fábula tem por meta “instruir”
o homem sendo que da sua “didática” ou “pedagogia” é possível se extrair preceitos e lições
morais que visam o aperfeiçoamento da conduta humana. A vida dos tempos modernos parece
encarar o gênero fabular de modo distinto. É como se o homem de hoje sentisse a real
necessidade de buscar, no plano sobrenatural ou místico da sua existência, “explicações” e
“justificativas” para sua razão de ser ou de estar no mundo. σessa busca, até de forma
inconsciente, o indivíduo sente a falta no seu dia a dia da experiência com o fabuloso. Daí a
possibilidade de, através da fábula, tornar a vida menos tediosa “mediante a aceitação e
assimilação do fantástico, do maravilhoso, a exemplo da personificação dos animais que, no
plano fabulatório, se tornam os genuínos representantes dos ‘vícios’ e ‘virtudes’ do ser
humano” (LUCENA, 2012, p.43).
O mesmo podemos afirmar sobre o gênero literário medieval dos bestiários. Incluídos
entre as obras mais copiadas e lidas da Idade Média, aqueles belos volumes ilustrados
contendo relatos ou lendas sobre bichos “exerceram profunda influência na história da cultura
ocidental” (VAσ WτEσSEL, 2001, p.20). σos questionando acerca do que levaria o homem
do medievo a se interessar tanto pelos antigos bestiários, queremos crer que tal fato se deve à
questão do “simbolismo natural e sobrenatural” que envolve cada espécie animal descrita ou
comentada nessas obras. Como no caso da fábula, os livros medievais sobre bichos também
fascinam pelo seu caráter “catequético” e utilitário que, implícita ou explicitamente, fornecem
ao homem de todas a épocas “devotas lições” e “ensinamentos morais ou divinos” (VAσ
WτEσSEL, 2001, p.15). É bem provável que advenha daí a “penetrante influência” dessa
literatura, envolvendo o aspecto simbólico, na vida do ser humano. Admitimos estar a

1
Mestre em Literatura Brasileira, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal da Paraíba e membro do Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais da UFPB
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narrativa de Rosa aqui analisada em consonância com a temática e o conteúdo dos dois
antigos gêneros literários ora evocados.
Ao se referir ao conto “Conversa de Bois”, Álvaro Lins ressalta a “perfeição” daquela
narrativa rosiana enquanto “concepção ficcionista e como arte literária” e chama a atenção
para o fato de que nela os animais não mais são apresentados enquanto meros “elementos
acessórios ou completivos” do enredo, “mas como verdadeiros personagens, aos quais o seu
criador amplamente concedeu ritmo vital e direção autônoma” (LINS, 1963, p.262). São
bastante comentados por críticos, amigos (em cartas) e pessoas do convívio do escritor
(através de seus depoimentos) o fascínio e o carinho de Guimarães Rosa pelos animais, que
com eles se identificava desde a mais tenra infância ao ser precocemente iniciado na literatura
como um escritor de estórias fantasiosas e de suspense, época em que já sentia uma forte
“compulsão para a fábula” (GIRτσ, 2011, p.142). É considerável o repertório de contos ou
de narrativas rosianas em que os animais se fazem presentes como personagens destacados
que se confundem ou se comportam como se fossem gente. Pela incontestável relevância dos
bichos em sua fabulosa literatura, o crítico Alfredo Bosi passou a considerá-la – ao mesmo
tempo – “uma constelação de fantasia e realismo”.

O enredo

“Conversa de Bois” é a estória da viagem de um carro de bois, pelo sertão adentro, que
carrega – além de “umas rapadurinhas pretas”, segundo o narrador – o cadáver de seu
Januário, pai do menino Tiãozinho que segue guiando o agrupamento de bovinos juntamente
com o malvado carreiro Agenor Soronho. Os oito bois que compõem as quatro juntas do carro
são assim denominados: Buscapé, Namorado, Capitão, Brabagato, Dansador, Brilhante,
Realejo e Canindé. Ainda se destacam nesta trama, o enfoque da pobreza – traduzida pela
dependência de Tiãozinho e da sua mãe em relação a Agenor Soronho – e a existência de
estórias dentro da estória, com ênfase em expressões e adágios da sabedoria popular através,
principalmente, da fala do boi Rodapião (verdadeiro catalisador da rebelião dos oprimidos
pelo mal encarado carreiro). Trata-se de uma narrativa em terceira pessoa, cujo espaço é –
como já dito – o cenário rural, com um narrador presente às situações narradas, demonstrando
erudição (chega a fazer citações em latim – conferir CB, p.283) e revelando enorme
conhecimento do ambiente circundante quando se refere a nomes de lugares, de plantas e de
animais que constituem o cenário da trama. Com muita frequência, o narrador utiliza o
discurso indireto livre para se “aliar” ou mesmo se imiscuir ao pensamento do menino
Tiãozinho, inconformado com a situação de opressão vivida por este personagem e os
próprios bois. O tempo da narrativa é marcado pela demora dos acontecimentos. Neste
tocante, podemos destacar o longo percurso – motivo central do conto – em que os bois
conversam entre si a respeito da opressão exercida pelo “homenzão ruivo”, Agenor Soronho,
em relação a eles próprios e ao pobre Tiãozinho.
No curso da estória, o desdobramento desta situação nos levará a compreender o que
no entender de Alfredo Bosi determina a grandeza dos contos de Guimarães Rosa enquanto
ficção reveladora da “dimensão metafísica e atemporal, das realidades vitais”. Tal
dimensionamento se traduz segundo Bosi na extraordinária capacidade do escritor mineiro de
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passar “do fato bruto ao fenômeno vivido, da descrição à epifania, da narrativa plana à
constelação de imagens e símbolos”. Sobretudo por considerar a “mente sertaneja, remexendo
nas relações mágicas e demoníacas que habitam a religião rústica brasileira” (BτSI, 19κ1,
pp.10-11). O autor de História Concisa da Literatura Brasileira nos adverte que – ao
transplantar, de forma letrada, “uma certa visão primitiva ou arcaica das coisas à qual [...]
procurou ser poeticamente fiel” – Guimarães Rosa é extremamente original na “conjuração
rara” do “diálogo de uma solerte cultura linguística e literária com as mais caudalosas fontes
da psique e da mitologia sertaneja”. De acordo com Alfredo Bosi, as coisas, os animais e as
pessoas em seu universo ficcional são tomados por “uma dimensão mais ampla, uma aura que
não é a do dia a dia normal e socializado”, no qual “forças cósmicas, eróticas e sagradas [...]
agem no coração de cada vivente e o empurram para realizar o seu destino”. Ainda segundo
Bosi, o escritor de Cordisburgo busca “na semântica do insólito o seu modo de responder a
situações singulares extremas que fazem contraponto à outra literatura, a de situações típicas e
médias da civilização moderna” (BτSI, 19κ1, pp.11-13). Esta singularidade – também de
certo modo extensiva às fábulas clássicas e à tradição literária dos bestiários medievais – se
revela no conto em apreço: a situação de opressão vivida por Tiãozinho e pelos bois é
suprimida mediante a atitude de solidariedade dos animais para com o garoto. Dessa forma,
constata-se uma identificação entre as partes homem/animal confirmada pela expressão
“bezerro-de-homem” atribuída ao menino por seus companheiros bovinos (conferir CB,
p.314). Em nossa análise, optamos por considerar a caracterização da moral, da solidariedade
e da justiça populares tomando por referência a constatação da existência de uma espécie de
“código de honra” da cultura literariamente representada em “Conversa de Bois”.

Vingança tramada

É necessário atentar para o fato de que, após perder o pai que há muito tempo se
encontrava doente e prostrado, o menino passa a depender de Agenor Soronho para o sustento
da família que – inicialmente – mostra-se prestimoso apenas pelo interesse de tornar-se
amante da mãe de Tiãozinho. Ao longo da viagem, o perverso carreiro atormenta o pobre
menino da mesma forma como maltrata os bois. Percebendo a tristeza e o ódio de Tiãozinho,
os animais passam a urdir planos de vingança após “refletirem” sobre a opressão também
promovida pelo terrível Soronho em relação aos bovinos. Desse modo, reconhecem para si a
possibilidade de derrotar a superioridade do homem. Em solidariedade ao menino, os animais
– de forma brusca e repentina – lançam-se para a frente, fazendo com que Soronho (que nessa
hora estava cochilando em cima do carro) seja esmagado ao cair sob uma das rodas,
“desencarnando” conforme nos assegura o narrador. Como se vê, a vingança ou o “acerto de
contas” se dá por via indireta através de uma ação que envolve a solidariedade dos bois para
com Tiãozinho, que assumem sua vingança contra Agenor Soronho.
Para os casos de reparação de determinado dano moral observado na trama de
“Conversa de Bois”, torna-se pertinente a seguinte afirmação de τswaldo Elias Xidieh: “[...]
no campo da moral rústica os valores referem-se a situações práticas”, esboçando-nos um
“quadro de referência em que, de um lado, está aquilo que a sociedade rústica preconiza e, de

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outro, aquilo que não deve ser feito nem pelo grupo e nem pelas pessoas” (XIDIEH, 1967,
p.κ4). τ sociólogo paulistano enfatiza que, em se tratando desse “quadro de referência”,

[...] expectativas coletivas quanto à hospitalidade, à justiça, à moral dos


costumes, ao direito de propriedade, com os correspondentes sentimentos e
qualidades morais de bondade, boa fé, modéstia, simplicidade e honestidade
em oposição à vileza com os correspondentes sentimentos e defeitos morais
de ganância, malícia, escárnio, hipocrisia, impostura, mentira, etc. (XIDIEH,
1967, p.84).

Está previsto pela moral rústica “um rol de prêmios e castigos, recompensas e
condenações”, conforme a atuação de cada indivíduo. σesse sentido, convém destacar
algumas situações relativas ao conto “Conversa de Bois”. σesta trama, o corpo de valores da
moral rústica esboçado por Oswaldo Elias Xidieh também concorre para a justificativa das
ações de determinados personagens. Aqui o adultério comparece através do relacionamento
amoroso entre o carreiro Agenor Soronho e a mãe de Tiãozinho, cujo pai morto segue viagem
no carro de bois em cima de uma carga de rapaduras. É necessário frisar que seu Januário há
muito tempo “andava penando” de “doença antiga lá dele” (CB, p.2κ9) – nas palavras de
Soronho – “cego e entrevado”, enquanto o malicioso carreiro mantinha um caso amoroso com
sua esposa. Este fato provoca em Tiãozinho rancor e ódio, de acordo com o que afirma o
narrador:

Ah, da mãe não gostava... Era nova e bonita, mas antes não fosse... Mãe da
gente devia de ser velha, rezando e sendo séria, de outro jeito... Que não
tivesse mexida com outro homem nenhum... Como é que ele ia poder gostar
direito da mãe?... Ela deixava até que o Agenor carreiro mandasse nele,
xingasse, tomasse conta, batesse... Mandava que ele obedecesse ao Soronho,
porque o homem era quem estava sustentando a família toda. Mas o carreiro
não gostava de Tiãozinho... E era melhor, mesmo, porque ele também tinha
ojeriza daquele capeta... Ruço. Então... Malvado... O demônio devia de ser
assim, sem tirar e nem pôr... vivia dentro da cafua... só não embocava era no
quartinho escuro, onde o pai ficava gemendo: mas gemia enquanto o
Soronho estava lá, sempre perto da mãe, cochichando os dois, fazendo
dengos... Que ódio... (CB, pp.294-295, itálico nosso).

Neste excerto, em que se torna perceptível através do discurso indireto livre, a voz do
narrador se incorpora à fala e ao sentimento de Tiãozinho considerando a atitude reprovável
de Agenor Soronho. No trecho destacado, nos é possível constatar a quebra da expectativa do
homem rústico no que se refere ao comportamento do semelhante: ao manter um
relacionamento adúltero com a mãe do menino, o carreiro estabelece uma quebra dos
“códigos de honra” que regem a cultura popular. Por isso, estará sujeito a “um rol de castigos”
e de “condenações” – no dizer de Oswaldo Elias Xidieh. O desfecho da narrativa irá apontar
nesse sentido, como poderemos ver mais adiante.
Em “Conversa de Bois” temos um narrador culto, conhecedor do latim, que ao estilo
de um contador de histórias visa prender a atenção do ouvinte ou leitor. Desse modo, prolonga
o curso da narrativa nela inserindo elementos que – à primeira vista – não teriam
relacionamento algum com a trama. A título de ilustração deste procedimento de narrar, serve

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o exemplo lembrado pelo próprio narrador – na forma de flashback – do caso de Didico da
Extrema, “que caiu morto, na frente de seus bois” (CB, p.29ι). Sendo que a voz que narra dá
a palavra a Manuel Timborna, que ao ser solicitado afirma: “Eu até posso contar um caso
acontecido que se deu” (CB, p.2κ3) – estabelecendo um pacto com o narrador, após a
exigência de Timborna: “– Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e
acrescentado ponto e pouco...” (CB, p.2κ3). Como resposta, Manuel Timborna obtém do
narrador a confirmação do contrato: “– Feito. Eu acho que assim até fica mais merecido, que
não seja” (CB, p.2κ3).
Além da existência de sequências em flashback – como a de Didico da Extrema e do
momento em que Tiãozinho relembra, juntamente com o narrador, a “véspera” da morte do
pai (CB, pp.298-299) – as estórias dentro da história (“narrativas de encaixe”, na visão teórica
de Tzvetan Todorov) também comparecem, principalmente através das falas do boi Rodapião.
Aquele que nunca para “quieto” e conta, reconta, remói, rumina estórias, num movimento
circular, cíclico, à maneira de um pião rodando – como, aliás, seu próprio nome evoca.
Reforçando este aspecto do processo narrativo, temos a frequência repetitiva das reflexões e
estórias dos demais bois, em forma de rememorações, funcionando – conforme já mencionado
– como elemento retardador do clímax da narrativa sugerindo, indubitavelmente, o ato de
ruminar, uma peculiaridade atinente aos bovinos, elemento essencial na fatura do conto. Neste
tocante, destaque-se a seguinte passagem da trama:

Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e
chão solto... Bateu aqui embaixo e berrou triste, porque não pôde se levantar
mais do lugar das suas costas...
– E foi?
Ajudar eu não podia e nem ninguém... Chamei os outros, que não vinham e
não estavam de se ver... Aí olhei p’ra o céu, e enxerguei coisa voando... E
então espiei p’ra baixo e vi que já tinham chegado e estavam chegando
desses urubus, uns e muitos... E fui-m’embora, por não gostar de tantos
bichos pretos, que ficaram rodeando aquele boi Rodapião (CB, p.308 –
itálicos nossos).

De modo claro, se sobressai no trecho acima – como índice da rítmica nele envolvida
– a figura sintática do polissíndeto, através da repetição do conectivo e, conforme destacamos.
Tal figura sintática relaciona-se com a atribuição de “maior expressividade ao significado” da
mensagem, a ponto de a própria “lógica da frase” (em nosso caso, lógica do discurso
narrativo) poder ser “substituída pela maior expressividade que se dá ao sentido”
(PASCHOALIN e SPADOTO, 1989, pp.365-367). Aqui, a sugestão que nos ocorre é da
circularidade ou do movimento cíclico e contínuo – como é o ato de ruminar dos bovinos – do
discurso narrativo. A constante presença de reticências reforça este argumento. Por meio da
fala do boi Brilhante (excerto destacado) – “Contei minha história, agora vou cochilar...” (CB,
p.309) – nos vem, mais uma vez em flashback, a lembrança de um momento em que os bois
foram levados segundo o narrador “p’ra longe” na busca de um “bebedouro” (CB, pp.306-
307). Este episódio (uma estória dentro da história), prolongador por excelência do curso da
narração, antecede o encontro do carro de bois de Agenor Soronho com o “carro quebrado” da
“Estiva, com o João Bala carreando...” (CB, p.309) e que despencara do Morro-do-Sabão (o

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nome do lugar sugere o sentido escorregadiço provocado pelo saponáceo que poderia
concorrer para o despencar ou escorregar do carro da Estiva). Aqui, a “tomada de
consciência” dos bois pela vingança em relação ao malévolo Soronho toma forma mais
delineada. Acostumados aos maus tratos do carreiro, os bois presenciam o desespero de João
Bala contando o acidente, ao mesmo tempo em que Agenor Soronho “está olhando mesmo
de-propósito, todo de-luxo com os estragos do carro do outro” (CB, p.309). Bem dizendo seus
bois Camurça e Melindre, diz João Bala:

Abaixo de Deus, eu tiro o chapéu p’ra eles dois, porque foram que me
salvaram... [...] porque Melindre mais Camurça sojigavam o chão com os
cascos, mas não entregavam o corpo... Eu mesmo nunca vi bois p’ra terem
tanto poder desse jeito (CB, p.310).

Ao contrário do que se dá com Tiãozinho e a boiada, frequentemente maltratados por


Agenor Soronho, podem ao longo da viagem observar o caráter nada generoso do carreiro.
Advém daí um forte desejo de vingança em relação àquele homem malvado. Nesse sentido,
atente-se para a linguagem depreciativa de Soronho para com Tiãozinho, os bois ou até se
referindo ao pai morto do menino cujo cadáver também seguia viagem no carro:

Aí é que Agenor Soronho está mesmo com o demo: – vam’bora, lerdeza. Tu


é bobo e mole; tu é boi?... Carece de ficar aí a vida inteira, feito estaca de
dentro d’água, feito esteio de moinho?... [...] Mas não precisa de correr, que
não é sangria desatada... Tu não vai tirar o pai da forca, vai?... Teu pai já está
morto, tu não pode pôr vida nele outra vez. [...] também a gente cansa de ter
paciência com um guia assim, que não aprende a trabalhar... Ói, seu
mocinho, tu agora mesmo cai de nariz na lama... – E Soronho ri, com
estrépito e satisfação (CB, p.304).

Devido ao tom humilhante da sua fala, o carreiro só alimenta o ódio e o desejo de


vingança de Tiãozinho. Por meio do discurso indireto livre o narrador vem reforçar esse ponto
de vista:

Tiãozinho olhou, assim meio torto. “Teu pai já morreu, tu não pode pôr vida
nele outra vez...” Por que é que não foi seu Agenor carreiro quem a morte
veio buscar? Havia de ter sido tão bom... (CB, p.304).

Enlameado até a cintura, Tiãozinho cresce de ódio. Se pudesse matar o


carreiro... Deixa eu ficar grande... Hei de dar conta deste danisco... Se uma
cobra picasse seu Soronho... Tem tanta cascavel nos pastos... Tanta urutú,
perto de casa... Se uma onça comesse o carreiro, de noite... Um onção
grande, da pintada... Que raiva... (CB, p.305).

Em seu sofrimento, Tiãozinho alimenta – em silêncio – o desejo de ver Agenor


Soronho pagando pelos maus tratos infligidos a ele, ao cadáver de seu pai e aos bois, bem
como pelo reprovável relacionamento amoroso mantido por Soronho com sua mãe. Assim, o
“senso de justiça” popular encontra, nas reações do menino e dos bois do carro, os agentes
que possibilitam a sua prática. Segundo Oswaldo Elias Xidieh,

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O senso de justiça tem, no mundo rústico, um embasamento facilmente
destacável pela observação e pela análise de situações de vida rústica em
relação aos meios geográfico e social, e que, na ausência de qualquer
tentativa ou possibilidade de complicação teórica, repousa na identidade de
origem de todos os seres – são todos filhos de Deus – e nas finalidades
práticas de cada uma das coisas e criaturas que formam e rodeiam o mundo
dos viventes (XIDIEH, 1967, p.87).

É na prática da justiça que os componentes do universo rústico justificam sua honra e,


por extensão, sua condição de dignidade perante a comunidade. Sendo ela, a justiça,
configurada como fundamental na manutenção da existência de padrões ideais de vida.
Oswaldo Elias Xidieh também defende que

[...] o senso de justiça da sua moral se elabora, em vista de coisas e situações


imediatas e inequívocas, traduz-se em conceitos que o grupo admite como
permanente e põe em veiculação “profanamente”, mas que [...] vão conectar-
se, em última instância, ao campo do sagrado e do sobrenatural (XIDIEH,
1967, p.87).

σo âmbito da cultura popular, tanto o mal como o bem se apresentam “como coisas
que podem ou não podem ser feitas, que são ou não são necessárias, que têm ou não
finalidade, cabimento ou fundamento” (XIDIEH, 196ι, p.κι). Quanto a esta questão, o
sociólogo paulistano conclui que

[...] provavelmente, esse quadro de valores [...] elaborou-se, de um lado,


devido à situação do grupo no meio rural, onde a necessidade anula ou
abranda qualquer veleidade ou possibilidade de se estabelecerem distinções
sociais que cheguem a negar a condição de pessoa para os indivíduos que o
integram e, de outro, pela aceitação da natureza com a sua ordem (XIDIEH,
1967, pp.87-88).

Em “Conversa de Bois” podemos assimilar a prática do “senso de justiça” nos


seguintes termos: aquela “junta da guia, com simetria perfeita” (CB, p.302), está a evocar a
unidade de “pensamento” ou de ação dos bois – solidários com Tiãozinho – em relação à justa
vingança a ser por eles praticada sem que o menino precise esperar a chegada do dia
(“Quando crescer, quando ficar homem”), para “ensinar” a Agenor Soronho: “Ah, isso vai...
Há-de-tirar desforra boa, que Deus é grande...” (CB, p.296). Vemos, neste caso, a justiça ser
feita por via indireta haja vista terem os bois solidariamente se identificado com Tiãozinho,
em função do sofrimento causado pelo perverso Agenor Soronho a ambas as partes (o menino
e os animais). No início do clímax da narrativa – onde “A subida brava acabou, com fadiga
para todos e glória para Agenor Soronho” (CB, p.312) – tem-se de acordo com a voz que
narra “trezentos e cinquenta metros de silêncio” (CB, p.313). σeste ponto, o narrador
estabelece prolongado suspense2 intermediando um comentário3 sobre a paisagem circundante

2 O termo é aqui usado no sentido a ele atribuído por Nádia Battella Gotlib: “técnica narrativa que consiste em
‘suspender’ a ação, adiando o desfecho e, assim, instigando a tensão [...] ou a curiosidade do leitor” (conferir
GOTLIB, 1991, p.95).
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com “reflexões” e “falas” dos bois, através – num primeiro momento – da fala do boi Capitão.
Embora longo, o excerto revela-se fundamental para justificar nosso ponto de vista:

– Onde está o homem-do-pau-cumprido-com-o-marimbondo-na-ponta? Está


trepado no chifre do carro...
– E o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-na-frente-dos-bois?
– O bezerro-de-homem-que-caminha-adiante vai caminhando devagar... E
ele está babando água dos olhos...
Aqui, no tabuleiro, o caminho está ainda pior que ruim, [...] os bois avançam
de sobremão. Calados. [...] Aí, de coice a guia, por via cruzada, vem com
outra informação:
– O homem está dormindo, assentado bem na ponta do carro... O pau-
comprido-com-o-marimbondo-na-ponta também está dormindo... Por isso é
que ele parou de picar a gente.
Pela mesma nota [...] viaja a conversa dos bois dianteiros:
– O bezerro-de-homem está andando mais devagar ainda. Ele também está
dormindo. Dorme caminhado, como nós sabemos fazer. Daqui a pouco ele
vai deixar cair o seu pau-comprido que nem um pedaço quebrado de canga...
Já babou muita água dos olhos... Muita...
Os guardas do cabeçalho devolvem a fala:
– O homem está escorregando do chifre-do-carro... Vai muito pouco de cada
vez, mas nós temos a certeza: o homem está pendendo para fora do chifre-
do-carro... Se ele cair, morre...
Outra vez, pelo itinerário alternado, de focinho a focinho, é transmitida a
visão da guia:
– O bezerro-de-homem quase cai nos buracos... Ele está mesmo dormindo...
Daqui a pouco, ele cai... Se ele cair, morre... (CB, p.313).

A partir deste episódio, tem início a “tomada de consciência” dos bois no que se refere
à vingança cada vez mais próxima. A presença de reticências nas falas dos animais está,
reiteradamente, reforçando o sentido da continuidade de alocução dos bois no modo como o
próprio narrador se refere: “de focinho a focinho”. Identificando-se, até biologicamente, com
Tiãozinho – “bezerro-de-homem” que “baba” muita água pelos olhos – os animais “refletem”
de modo lógico, como gente que raciocina, acerca da possibilidade de Soronho morrer (“Se
cair” do “chifre-do-carro”) efetuando-se, assim, a vingança desejada por Tiãozinho e pelos
próprios bois devido ao tratamento a eles dispensado pelo malvado carreiro. Em estado de
alerta – “τs guardas do cabeçalho” estão atentos a tudo – a boiada, silenciosamente, espera
pelo momento grave da desforra. σo “remoer”/“tresmoer” (CB, p.2κ6)4 de informações
passadas de um animal para outro – “de focinho a focinho, é transmitida a visão da guia” –
“por via cruzada” é urdido o plano para se eliminar Agenor Soronho. Tendo o boi Dansador
avisado que só “às vezes” os “bois-de-carro” têm de “obedecer ao homem” (CB, p.314). τs
animais estão convencidos de que o “pensamento de bois é grande e quieto”, ao mesmo tempo
em que temem que Tiãozinho entenda a “conversa” deles. Filosoficamente, no ponto de vista

3 O comentário-tática do narrador, usado para aumentar o suspense na trama, compreende o seguinte trecho: “Aqui,
no tabuleiro, o caminho está ainda pior que ruim, como o facão alto e escorregoso no meio, separando as regueiras
feitas pelas enxurradas e pelas rodeiras de outros carros e carretões” (CB, p.313).
4 O verbo “remoer” é aqui utilizado nas acepções de: “repetir muitas vezes a mesma coisa” e de “encasquetar-se

(com ideias fixas, problemas, etc.)”. Conferir o verbete “remoer” em LUFT, 1988, p.480.
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dos animais – “no mato-escuro-de-todos-os-bois”, onde “o homem caminha por fora” – seu
mundo se caracteriza pela equidade; em cujo lugar “não há dentro e nem fora”, podendo os
bois superar a hegemonia do homem pela conscientização da igualdade entre todas as
criaturas:

– Mhú. Hmoung... Boi... Bezerro-de-homem... Mas, eu sou o boi Capitão...


Moung... Não há nenhum boi Capitão... Mas, todos os bois... Não há
bezerro-de-homem... Todos... Tudo... Tudo é enorme... Eu sou enorme... Sou
grande e forte... Mais do que seu Agenor Soronho... Posso vingar meu pai...
Meu pai era bom. Ele está morto dentro do carro... Seu Agenor Soronho é o
diabo grande... Bate em todos os meninos do mundo... Mas eu sou enorme...
[...] Sou aquele-que-tem-um-anel-branco-ao-redor-das-ventas... Não, não,
sou o bezerro-de-homem... Sou maior do que todos os bois e homens juntos.
[...] Sim, sou forte... Somos fortes... Não há bois... Tudo... Todos... [...] Não
há bois-de-carro... (CB, pp.314-315).

A consciência de justiça da(s) voz(es) que narra(m) – misto de boi e Tiãozinho –


encontra-se embutida no excerto acima por intermédio do fato de, para a justiça ser feita, os
animais poderem suplantar a hegemonia do homem, aqui representada pelo poder que Agenor
Soronho tem sobre o menino e os bois. No fluxo narrativo do trecho destacado, é patente uma
confusão de vozes – todas emitidas ao mesmo tempo – tornando-se impossível afirmar se
tratar de um discurso saído da boca de um único ser – “todos falam” (CB, p.316)5. Dá-se,
também, uma total identificação dos animais com Tiãozinho. As onomatopeias do início do
excerto são índices da intenção do narrador em dar voz aos bois, numa espécie de “reflexão”
pungente acerca da intenção que os move:

Boi σamorado: “– Mú-úh... Mú-úh... Sim, sou forte... Somos fortes... há


bois-de-carro... σão há mais nenhum boi σamorado...”
– Boi Brabagato, boi Brabagato... Escuta o que os outros bois estão falando...
Estão dôidos?...
Boi Brabagato: “– Bhúh... Não me chamem, não sou mais... Não existe boi
Brabagato... Tudo é forte. Grande e forte... Escuro, enorme e brilhante...
Escuro-brilhante... Posso mais do que seu Agenor Soronho...”
Boi Dansador: “– Que estão falando, todos? Estão loucos?... Eu sou o boi
Dansador... Boi Dansador...” (CB, p.315).

Para, finalmente, a voz anônima e ambígua de outro boi afirmar de modo inexorável:

– Mas, não há nenhum boi Dansador... Não há o-que-tem-cabeça-grande-e-


murundú-nas-costas... Sou mais forte do que todos... Não há bois, não há
homens... Somos fortes... Sou muito forte... Posso bater para todos os lados...
Bato no seu Agenor Soronho... Bato no seu Soronho, de cabresto de vara de
marmelo, de pau... Até tirar sangue... E ainda fico mais forte... Sou Tião...
Tiãozinho... Matei seu Agenor Soronho... Torno a matar... Está morto esse
carreiro do diabo... Morto matado... Picado... Não pode entrar mais na nossa

5Para uma maior compreensão dessa questão, é necessário considerar o trecho mais extenso da “conversa” dos bois:
onde fica claro o fato de que toda a boiada conversa sem primazia de falas deste ou daquele animal. O excerto
destacado (CB, pp.314-315), fala do boi Capitão, acaba sendo prolongado por outras falas dos bois Brabagato,
Dansador etc.
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cafua. Não deixo... Sou Tiãozinho... Se ele quiser embocar, mato outra vez...
Mil vezes... Se a minha mãe quiser chorar por causa dele, eu também não
deixo... Ralho com a minha mãe... Ela só pode chorar é pela morte do meu
pai... Tem de cuspir no seu Soronho morto... Tem de ajoelhar e rezar o terço
comigo, por alma do meu pai... Quem manda agora na nossa cafua sou eu...
Eu, Tiãozinho... Sou grande, sou dono de muitas terras, com muitos carros
de bois, com muitas juntas... Ninguém pode mais nem falar no nome do seu
Soronho... Não deixo... O mais forte de todos... Ninguém pode mandar em
mim... Tiãozão... Tiãozão... Oung... Hmong... Múh... (CB, p.315).

A ideia de aparente desordem no modo de narrar – “σão há bois, não há


homens...”/“Posso bater para todos os lados...” – refletindo um discurso em que se confundem
o ser Tiãozinho com o(s) ser(es) boi(s), é gradativamente substituída por um juízo preciso e
definitivo de intenções. Em princípio, a desordenação – até no nível da construção frasal, com
orações justapostas em sua maioria exprimindo sentidos pouco concatenados, bem como a
dificuldade de se determinar o sujeito que fala (se boi ou menino) – parece querer fornecer a
sugestão de uma espécie de confusão mental reinante na “conversa”. Que, por sua vez, torna-
se expressão do drama de consciência vivido pelas partes envolvidas no mesmo conflito em
função da decisão por vingança. O discurso, inicialmente marcado por elementos vinculados à
realidade bovina, acaba confluindo para a consideração de fatos ou episódios diretamente
relacionados com a vida e o sofrimento de Tiãozinho. A identificação dos bois com o menino
torna-se completa (“Sou Tiãozinho”): a revolta da boiada justifica-se pela reparação dos atos
praticados por Agenor Soronho (a ser “Morto matado”) em relação à família de Tiãozinho.
Como consequência, a voz que fala – misto de boi e menino – no malvado carreiro bateria “de
cabresto de vara de marmelo, de pau... Até tirar sangue”. Mataria, até “Mil vezes”, o terrível
Soronho para que não pudesse mais entrar na “cafua” com a intenção de namorar a esposa do
“cego e entrevado” pai de Tiãozinho, agora morto. τ jovem guia até então triste e submisso
ao carreiro, torna-se – na espécie de delírio provocado pelo afã de vingança – “grande” e
poderoso (“σinguém pode mandar em mim”), num processo gradativo crescente:
“Tiãozinho”, “Tião”, “Tiãozão”. Dessa forma, em uníssono de “vozes” bovinas, a desforra se
torna iminente:

E todos falam.
– Se o carro desse um abalo maior...
– Se nós todos corrêssemos, ao mesmo tempo...
– O homem-do-pau-comprido rolaria para o chão.
– Ele está na beirada...
– Está cai-não-cai, na beiradinha...
– Se o bezerro, lá na frente, de repente gritasse, nós teríamos de correr, sem
pensar, de supetão...
– E o homem cairia...
– Daqui a pouco... Daqui a pouco...
– Cairia... Cairia.
– Agora. Agora.
– Mûung. Mûng.
– ... Rolaria para o chão (CB, pp.316-317).

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Esse “coro” de bois em afinação6, no qual não lhes falta a faculdade do raciocínio
lógico dito humano – uma das características do gênero da fábula – urde o plano de vingança
que já nos encaminha para o desfecho da trama. Soronho, em “sono sereno”7, após o
solavanco provocado pelos bois em “algazarra” – “se jogaram para diante, de uma vez” (CB,
p.317) – tem o pescoço colhido pela “roda esquerda” do carro, sem tempo para “xingo ou
praga”. τ narrador nos garante que “não se pôde saber ao certo se o carreiro despertou ou não,
antes de desencarnar” (CB, p.31ι).
Em função da sua religiosidade – que para o homem popular inspira sempre temor e
respeito em relação ao que é por ele considerado sagrado (podendo “premiar” ou “castigar”,
conforme nos ensina Oswaldo Elias Xidieh) – Tiãozinho ao ser despertado a tempo de ver o
que ocorrera com Agenor Soronho, segundo o narrador “arrepelando-se todo” e “chorando
como um doido”, lamenta:

– Meu Deus. Como é que foi isto?... Minha Nossa Senhora... [...] Eu tive a
culpa... Mas eu estava meio cochilando... Sonhei... Sonhei... E gritei... Nem
sei o que foi que me assustou... [...] Minha Virgem Santíssima que me
perdoe... Meus boizinhos bonitos que me perdoem... Coitado do seu Agenor.
Quem sabe se ele ainda pode estar vivo?... – Fazer promessa. Todos os
santos. Rezar depressa (CB, pp.317-318).

σo âmbito da comunidade rústica o “senso de justiça”, embora não sendo exclusivo da


cultura popular, é compreendido – conforme já advertido anteriormente – enquanto critério de
reparação de determinado dano ou ofensa praticados por alguma parte em relação à outra. No
entanto, o reparo se dá levando-se em consideração o “sentido de igualdade primordial” entre
os seres. Trata-se de um princípio sagrado e indiscutível, não sendo permitidas distinções que
privilegiem determinada parte em detrimento de outra. Lição que podemos assimilar do que
ocorre com Agenor Soronho na trama, justa represália a ele infligida por ter vivido
maltratando e humilhando Tiãozinho, sua família e os bois do carro.

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo (Org.). O Conto Brasileiro Contemporâneo. 4ª Edição. São Paulo: Cultrix,
1981.
GIRτσ, Luís Antônio. “Antes de Rosa Ser Rosa”. In: Época. Rio de Janeiro: Editora Globo,
Edição 693 – 29 de Agosto de 2011, pp.141-145. (“Mente Aberta”).
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. 6ª Edição. São Paulo: Ática, 1991. (Série
Princípios, 2).

6
Esta expressão nos foi motivada pela existência, na clássica tragédia grega (geralmente no início ou no final do
drama), da figura do Corifeu ou do Coro. Compreendido como um porta-voz consciente das intenções morais de
cada história. σesse sentido, não deixa de ser sintomático o fato de em “Conversa de Bois” esse “coro” dos bois
(unissonamente) ser também movido por intenções moralizantes – no que se refere à reparação, em forma de
advertência – na prática da justiça nos moldes populares.
7
Atentar para a maestria do autor relativa à semântica do nome do personagem que, por si só, fornece a sugestão
de seu comportamento sopitante nesse momento decisivo do conto.
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LINS, Álvaro. Os Mortos de Sobrecasaca: Ensaios e Estudos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1963. (Coleção Vera Cruz – Literatura Brasileira, 44).
LUCENA, Gilberto de Sousa. Mosaico de Falas: Da Cultura Popular e do Foco Narrativo em
Sagarana. João Pessoa: Programa de Pós-Graduação em Letras/Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes/Universidade Federal da Paraíba, 2012. [Tese de Doutorado].
LUFT, Celso Pedro. Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. 7ª Edição. São Paulo:
Scipione, 1988.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 2ª Edição, revista. São Paulo: Cultrix,
1978.
PASCHOALIN, Maria Aparecida & SPADOTO, Neuza Terezinha. Gramática: Teoria e
Exercícios. São Paulo: FTD, 1989.
ROSA, João Guimarães. Sagarana. 9ª Edição (Póstuma). Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio Editora, 1967. (Coleção Sagarana, 1).
VAN WOENSEL, Maurice. Simbolismo Animal na Idade Média: Os Bestiários. João Pessoa:
Editora Universitária/UFPB, 2001.
XIDIEH, Oswaldo Elias. Narrativas Pias Populares. São Paulo: Instituto de Estudos
Brasileiros/USP, 1967.

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INÊS DE CASTRO: A FACE FEMININA DO AMOR MEDIEVAL EM PORTUGAL

Aldinida Medeiros
(UEPB)
aldinidamedeiros@gmail.com

Inês de Castro morre para a vida e nasce para a História em 1355. Desde então, a
língua e a literatura eternizaram-na. Ela que antes fora imortalizada pelas ações de Pedro,
dentre as quais mandou esculpir duas majestosas arcas tumulares, expostas até hoje no
Mosteiro de Santa Maria, em Alcobaça, consideradas ícones da arquitetura portuguesa. Indo
além, não é exagero afirmar que Inês de Castro bem poderia ser personagem de uma peça
shakespeariana, pois sua morte está registrada em trovas, crônicas, romances, poemas,
rimances e óperas, como uma triste e real tragédia de amor. Por tudo isso, afirmamos que Inês
de Castro é a face que melhor representa o amor medieval na cultura e na literatura
portuguesas.
É a partir das encenações feitas pelos grupos de teatro popular nas aldeias portuguesas,
desde um certo tempo após o episódio inesiano, impossível de precisar, que surge uma frase,
hoje de uso corrente não só dos brasileiros – embora seja um ditado bem popular no Brasil –
mas de muitos falantes da língua portuguesa: “Agora é tarde, Inês é morta”1. Apenas nesta
frase ela é morta, pois a vívida memória inesiana mostra a força do amor que vai além da
morte.
Agnes, Inês, Heloísa, Isolda. No Ocidente, ficção e realidade têm em comum estas
protagonistas de amores impossíveis; amores que vão além da vida: o mito do amor-paixão.
No ensaio O amor e o Ocidente, Dennis de Rougemont (1988) aponta Tristão e Isolda como a
obra que origina o mito do amor na Europa ocidental. Portanto, foi no cenário entre o amor
profano e o amor místico, mencionado por Georges Duby em Idade Média, Idade dos homens
(2001) que a Europa medieval conheceu o amor de Tristão e Isolda. Vale salientar que, de
acordo com o historiador, a lenda, no início, dizia respeito apenas à figura de Tristão.

1. Tristão e Isolda, Pedro e Inês: o amor no Ocidente medieval

Assim como muitas outras lendas que circulavam pelas cortes europeias, notadamente
na Normandia, França, nos ducados de Anjou e Aquitânia, como parte dos acontecimentos
sociais e das festas oferecidas por Henrique Plantageneta, bardos do País de Gales e da
Cornualha recitavam lendas que atiçavam a imaginação dos cavaleiros ali presentes. Em
Heloísa, Isolda e outras damas no século XII (1995), Duby explica que

No centro dessas histórias figuravam assim um filtro, as misturas, as


infusões, o ‘vinho com ervas’ [...] cujo segredo as mulheres transmitiam
umas às outras. Se por acaso vier a beber dessa poção, fica-se prisioneiro

1
Segundo texto mímeo do Historiador Jorge Pereira de Sampaio, a frase teria surgido nas encenações populares,
quando uma personagem diz a D. Pedro, numa peça, que agora a sua Inês estava vingada e a personagem D.
Pedro responde: mas agora é tarde, Inês é morta. A frase tornou-se um dito popular de uso corrente no Brasil.
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dela. [...] Mostrar os efeitos nefastos de um desejo nascido dessa maneira. E
portanto ingovernável, destinava-se a alimentar, na sociedade cortês,
salutares reflexões sobre a ordem e a desordem, e em especial sobre essa
perturbação cuja causa são as turbulências da sexualidade (DUBY, 1995, p.
86-87).

Mais que explicar o contexto no qual surgiram as lendas como a de Tristão e Isolda,
interessa-nos também lembrar a semelhança de tudo isso com a realidade medieval
portuguesa do período referente a Pedro e Inês. Assim como Tristão quebra a “ordem” regular
de obediência ao seu soberano, traindo-o, Pedro quebra também a ordem de obediência ao pai,
vivendo uma relação extraconjugal com Inês, mesmo quando esta segue exilada para
Albuquerque e ele vai constantemente visitá-la. É a força do amor paixão, o amor que é cortês
para a literatura e que se torna também o amor que vai além da morte.
Rougemont (1988) afirma que, a paixão, quando ultrapassa o instinto, faz surgir a
linguagem e assim ambas podem ser vistas como formas – ou criações – literárias; uma
espécie de condição retórica para sacralizar esses sentimentos que, se existissem sem deles
haver registros, não seriam reconhecidos. Subjaz ao mito, instaurado pela lenda celta, o
tantrismo vindo do Oriente, ainda que se encontre aí também uma forte carga de maniqueísmo
cristão, que impregna o lado oriental do globo. É por isso a declaração de Rougemont,
segundo o qual

[...] o amor cortês nasceu no século XII, em plena revolução da psique ocidental.
Surgiu do mesmo movimento que fez remontar à meia-luz da consciência e da
expressão lírica da alma o Princípio feminino da sacti, o culto da mulher, da mãe, da
Virgem. Participa dessa epifania da Anima que representa, a meu ver, no homem
ocidental, o regresso de um Oriente simbólico (ROUGEMONT, 1988, p. 92).

Desse modo, este teórico assegura que, quanto mais apaixonado for o homem, maiores
possibilidades existem para que se reinventem as figuras da retórica amorosa, como em
Tristão e Isolda; amor e morte, amor mortal: motivo não só de lenda, como também de
poesia. E se isso não é o motivo original de toda a poesia, é, ao menos, o que há de mais
universal em termos de subjetividade na Literatura, no Ocidente.
Existem várias versões da lenda celta, entretanto, independente de qual das versões –
Beroul, Thomas, Bérdier ou Gottfried – seja tomada para análise, em Tristão e Isolda, no
primeiro momento da narrativa, o amor nasce sob o signo da proibição e, portanto, é
escondido, impetuoso, um amor selvagem. Depois, extingue-se o poder do filtro mágico e o
sentimento passa a ser decaído e amargurado, porque consciente do adultério. Todavia, ainda
assim, sobrepõe-se o desejo dos amantes, impelindo-os aos encontros amorosos.
Há, desse modo, uma evolução de um sentimento de culpa inicial para um sentimento
de desejo incontestável e impossível de deter, que cada vez mais legitima os direitos da
paixão. Esta, vista como uma desordem e, efetivamente, corrosiva. É o sentimento que leva à
desgraça, ao degredo ou, inevitavelmente à morte. Os direitos desta paixão avassaladora são
admissíveis, porém são postos em causa, sobretudo pelo matrimônio – nesse caso o de Isolda
e Marcos – por ser o casamento uma ordem social, um mecanismo de regulação e não só,
como aponta Duby: “[...] controle, codificação: a instituição matrimonial se encontra, por sua
própria posição e pelo papel que ela assume, encerrada numa firma estrutura de ritos e
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interditos.” (DUBY, 2001, p. 11). Também com Pedro e Inês, o casamento deste com
Constança Manuel, acordo diplomático entre os pais, foi um empecilho para o seu amor por
Inês.
No século XII, a regulação dos casamentos pela Igreja chega a ser arbitrária,
considerando a união para satisfação do dever conjugal era considerada pecaminosa, pois,
visava apenas o prazer carnal, o desejo. Por conseguinte, também a figura feminina medieval
será caracterizada como o ser que tenta o homem a realizar o desejo carnal. A mulher é, então,
personificada em Eva, pecadora, tentadora, mulher-demônio e culpada pelo pecado original.
A partir desse arquétipo, Eva concentra em si todos os vícios que trazem símbolos tidos como
femininos: a luxúria, a gula, a sensualidade e a sexualidade. O outro lado da dicotomia, a
redenção, o arquétipo da mulher-anjo e caminho para a salvação é a figura de Maria, a
redentora, Mãe do Salvador que se contrapõe à Eva por não ter máculas ou pecados.
Esta concepção dualística da mulher, construída através dos séculos, tornou-se deveras
acentuada no período de ascensão da Igreja Católica e por ela foi assegurada, permitindo,
assim, a permanência dos homens no poder e legitimando uma submissão feminina que
sufocava qualquer tentativa de subversão da ordem estabelecida pelos homens. A doutrina
cristã, no centro das regulações religiosas, estendia-se também às regulações sociais e, por
isso, pregava como ideal a união numa intenção apenas procriadora, para multiplicar os
“filhos de Deus”. O prazer era considerado pecado até mesmo nas relações que visavam à
procriação, pois fora do casamento, a paixão amorosa, vista como doença, podia levar até a
morte. Isto vem de uma tradição latina e ocidental, com origem na tradição judaico-cristã,
porém, não quer dizer que outras culturas vejam esse tema dessa forma, muito embora seja
mais comum a percepção por esse ângulo, que se cristalizou através de outras doutrinas
religiosas.
De qualquer modo, a Igreja – Católica, principalmente – fechava os olhos para
relações extraconjugais e paixões vividas fora do casamento, se isso lhe fosse conveniente.
George Duby também nos apresenta este cenário em Heloísa Isolda e outras damas do século
XII (2001), no capítulo sobre Leonor de Aquitânia e seu casamento desfeito com o rei francês.
A própria Igreja tratou de encontrar as desculpas “plausíveis” para que Leonor pudesse
contrair novas núpcias, livrando-se do marido anterior pela desculpa de parentesco.
Observando todos estes aspectos, podemos disso tudo concluir, de acordo com o
ensaio de Duby, que a lenda de Tristão e Isolda faz do amor cortês um amor-paixão,
tornando-se primeira manifestação do amor no Ocidente como hoje conhecemos, mas ressalta
que o troubadorismo provençal – que, consequentemente, expande-se à vizinha Península
Ibérica – acaba por trazer muito desse mito, o da impossibilidade de concretizar o amor.
Embora muitos estudiosos da lenda celta tomem a figura de Tristão como cavaleiro,
atribuindo seu amor por Isolda como um modelo de amor típico dos romances de cavalaria,
em diversos aspectos encontramos características do trágico no amor dos jovens irlandeses.
Acreditamos que o aspecto trágico não exclui o cavaleiresco da lenda. Tristão é um
cavaleiro condicionado pelo desregramento do amor, e sua conduta, se comparada ao código
de honra do cavaleiro medieval fica caracterizada, na cultura européia, como uma forma de
“loucura amorosa”, de modo que,

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A visão de quase toda a literatura da baixa Idade Média é, portanto, o Amor:
o amor profano, responsável pela imensa produção lírica e pela novela
palaciana, o amor sagrado, fermento das representações litúrgicas de toda
esta época, em que a devoção a Cristo e o conhecimento de suas verdades
constituem o núcleo da produção dramática medieval (SPINA, 1997, p. 39).

E não só da baixa Idade Média, vale salientar. Se Seomara da Veiga Ferreira retoma
esse mito no seu romance sobre Pedro e Inês, e João Aguiar o faz em outro romance, A
catedral verde – no qual também alude às questões da identidade portuguesa como em Inês de
Portugal – busca também essa visão medieval do amor, retomando o mito Tristão e Isolda.
Com base nesses exemplos, as imagens de Tristão e Pedro, Inês e Isolda continuam a permear
a produção romanesca contemporânea, conforme podemos apreender nas palavras do próprio
João Aguiar:

Amor absoluto é inusitado em época descartável


Gosto da história de "Tristão e Isolda", de um velho romance medieval, e de
Wagner. É uma das minhas óperas preferidas»
Porquê a abordagem do tema «Tristão e Isolda.» neste romance feito no
ano 2000? Precisamente por ser, de facto, uma coisa tão inusitada, tão
completamente estranha nesta nossa época. O amor absoluto, total,
obsessivo, exclusivo, numa época eminentemente descartável.
O ser amado também já é descartável? Sim, hoje em dia descarta-se o ser
amado com uma certa facilidade. Por isso mesmo Tristão e Isolda é uma
ideia exótica.
Wagner é aqui o desafio? Claro. Por outro lado, existe também uma
questão de gosto pessoal: eu gosto muito da história, de um velho romance
medieval, e gosto de Wagner. Uma das minhas óperas preferidas de Wagner
é Tristão e Isolda, que considero uma obra-prima do verdadeiro erotismo em
música (AGUIAR, Entrevista a João Aguiar, 31/03/2001). Grifo do
entrevistador.

Conforme se pode observar nas palavras de João Aguiar, o mundo vive um tempo de
amor descartável, o que está relacionado a uma certa perda da visão de amor como um
sentimento verdadeiro e duradouro, que durante muito tempo foi alimentado por histórias
reais como a de Abelardo e Heloísa. Destarte, é compreensível que essas mudanças na
sociedade e no modo do homem ver e sentir a vida, na contemporaneidade, seja, fatores de
busca desses mitos, de se buscar nas lendas o que já não se encontra na realidade. E vem daí o
fato de constatarmos como o mito inesiano continua sendo alimentado coletivamente como
componente cultura e estar tão fortemente presente no romance.
Voltando a da lenda celta, esta dá início, então, ao mito que vai aparecer sob a forma e
história de diversos casais, que desde a Idade Média simbolizam o amor trágico, o amor-
paixão, o amor que é levado à plenitude, ainda que traga como consequência a morte. São os
chamados “amores eufóricos”, que sobrepujam as questões políticas e sociais apenas para que
os amantes concretizem o intenso desejo de estarem juntos.
Se Pedro e Inês continuam a figurarem na literatura portuguesa contemporânea, é
porque há ainda largo espaço para a circularidade cultural desse mito do amor que supera tudo
e se estende além da morte. No oriente há uma famosa história de amor, a história de Layla e
Manjunan. Semelhante a Pedro, que vai às últimas conseqüências, Manjunan ama até a
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loucura. Layla configura-se, assim como Inês, sua amada eterna. Os casais que vivenciaram
amores impossíveis – Abelardo e Heloísa, Pedro e Inês -, seja qual for o motivo de
impedimento do amor, serão sempre mitos referenciais para a literatura tratar este tema,
conforme acentua Jabouille (1993): “τ mito é a estrutura profunda e universal que suporta a
narrativa […] (p. 21)”, de modo que a “[…] narrativa tradicional, mantém, ao longo dos
tempos, um valor paradigmático, actualizado em cada realização singular” (p. 21).

2. O romance histórico contemporâneo vai à fonte do amor medieval

Diz António Cândido Franco, em A rainha morta e o rei saudade, “[...] próprio dos
mitos é vestirem acessórios diferentes, repetindo o essencial” (2005, p. 13). Com base nesta
afirmação, acreditamos que os diversos romances históricos que retomam o mito inesiano –
compreendam-se aqui as imagens míticas de Pedro e Inês – reelaboram estas figuras
construindo, sob novas focalizações, outras “roupagens” interpretativas na ficção
contemporânea.
Os elementos da ficção são constantemente refigurados no romance contemporâneo
num tipo de inovação própria da modernidade, na qual trabalhar sobre os ecos da história
origina um vasto discurso e inúmeras citações, criando jogos de sentidos e interpretações.
Narra-se também para lembrar. A narrativa literária, composta de citações e recordações que
envolvem sujeitos ficcionais, busca a desconstrução da palavra, para, então, reconstruí-la; e
essa busca se dá através de várias reescritas, acentuando-as, por isso é que se narra
reescrevendo. No caso de Pedro e Inês, reescreve-se tanto a lenda como a História. De tudo
isso, observamos que há uma constante retomada da Idade Média pela literatura
contemporânea. Inês de Castro é quem melhor representa a face feminina do amor medieval
na literatura portuguesa.
Essa constante retomada da imagem inesiana esta, via de regra, associada a dois
componentes que perpassam os textos literários: a memória, visto que se relembra sempre um
fato passado, e a saudade, como não poderia deixar de ser, como forte componente de
Portugal, conforme assegura Cândido Franco entrevistado por Medeiros: “Mas sem Pedro,
que é força da saudade, não havia sequer memória de Inês, que é o amor puro e inefável”
(MEDEIROS, Entrevista. Jornal Tinta Fresca, 10/02/2005).
Esta aura inesiana é tão marcadamente forte na cultura de Portugal que Inês chega a
ser mencionada como um profeta, um messias, por Faustino da Fonseca:

A Ignez da lenda é o novo symbolo da mulher amante, esposa e mãe,


prophetisada pelos trovadores, tendo no cancioneiro o seu evangelho.
Esperavam-na os poetas como a um Messias, como a um redemptor da
tyrannia que lhes esmagava o sentimento.
Martyrisada pela barbárie medieval, é Ignez immediatamente idealisada por
quantos choram na sua desdita, a propria desventura, e lhe vão entoando o
responso de esperança nas canções do seu amor. (FONSECA, 1910, p. 13).

Portanto, se “esperavam-na como a um profeta”, esse mito é também uma espécie de


catarse do povo português. Esse povo que precisa buscar sempre algo profético, não no futuro,

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mas sim no passado. Ressaltamos, portanto, que a pátria lusitana, parece que desde a sua mais
remota origem, vive em busca do que não está no presente.
Maria Leonor Machado de Sousa (2004, p. 12) diz, sobre a história de Inês de Castro,
que “[...] é um caso invulgar de interpenetração da crônica e da literatura. Ao tratá-la, os
historiadores mais objectivos tornaram-se poetas”. Convém, então, ressaltar que, desde a
Idade Média, Inês de Castro aparece como tema literário; e sua morte adquiriu dimensões que
vão muito além das fronteiras de Portugal. A literatura espanhola, por exemplo, é uma das
literaturas europeias que registra um grande número de textos inesianos. Antes mesmo de se
firmarem a língua e a literatura na Espanha – quando os reinos de Aragão, Leão e Castela
ainda tinham seus dialetos –, já havia textos em “línguas peninsulares”, no contexto ibérico, a
tratarem da figura de Inês.
Sobre os textos produzidos no século XIV, na Península Ibérica, Sousa (2004, p. 40)
aponta que “são fundamentalmente quatro espanhóis, além de cinco romances velhos de uma
tradição comum, dos quais só um conhecemos em texto português”. τ poema escrito pelo
judeu Ibn Bilia é o texto em língua portuguesa que primeiro menciona o episódio. Apesar de
saber-se que deve ter sido escrito ainda no mesmo século em que se deu a morte de Inês, não
se pode precisar sua data, como afirma Sousa (2004). Mas, ainda nos séculos XIV e XV, o
episódio é mencionado em diversos textos que servirão de fontes aos que virão nos séculos
seguintes.
Os séculos XVI e XVII serão ricos, principalmente, na produção de rimances. Deste
período, destacam-se, no século XVI, as Trouas que Garcia de Resende fez à morte de Dona
Ynes de Castro, datada de 1516. Depois das Trovas, também a Castro, de António Ferreira –
poeta de destaque do Renascimento português – e o Canto VII, de Os lusíadas. Este conjunto
de textos e duas tragédias espanholas tiveram grande repercussão na literatura portuguesa:
Nise laureada e Nise lastimosa, de Jeronimo Bermudez.
Outro fator que também mostra a força do mito inesiano é a existência de várias
óperas dedicadas à Inês; dentre essas, exemplificamos a primeira, escrita por Gaetano
Andreozzi, que foi estreada em 1793, em Florença. Outra, de Giuseppe Francesco Bianchi,
seria apresentada no ano seguinte: Inês de Castro, em Nápoles, 1794. Ainda em Nápoles,
apresentada sob autoria de Giuseppe Farinelli, uma ópera, homônima às anteriores, seria
apresentada em 1806. Pier Antonio Coppola é também um italiano que escreve, em 1841,
outra ópera intitulada Inês de Castro (SOUSA, 2004).
Vários textos em outros gêneros literários vão se seguindo, sob diversas autorias,
entretanto, dois, da autoria do espanhol Lope de Vega também ganham destaque: Doña Ynes
de Castro, em 1618, e um Romance, em 1621; este, como parte da publicação intitulada Don
Lope Cardona, do mesmo autor. Mais adiante, dá-se destaque para o drama do espanhol Luís
Vélez de Guevara, Reinar despues de morrir2, de 1644. Em Lisboa, esta comédia famosa de
Guevara data uma publicação de 1652. O século XVII é, também, riquíssimo em publicações
inesianas, agora não só na Península Ibérica, mas em diversos países da Europa, dando início

2
Os textos literários desta página e vários textos dos séculos XV, XVI e XVII estão mencionados em
MEDEIROS, Aldinida. Inês de Castro no romance contemporâneo português. Tese de doutorado. Natal:
Univesidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010. 209 páginas.
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a uma tradição que até hoje “aimenta” a literatura, pois o romance histórico contemporâneo
não cessa de recorrer à imagem da Colo de Garça.
Também importantes para firmar e divulgar o tema foram as crônicas medievais. Os
cronistas mais referendados são Fernão Lopes, Rui de Pina – de quem se diz ter-ser
apropriado e feito uso das crônicas de Lopes – e Acenheiro. Bem mais recente, já do século
XVIII são as crônicas de Duarte Nunes de Leão, uma espécie de compilação das crônicas
anteriores. Sem criarmos análise de valor para nenhum dos cronistas, pois o enfoque aqui é
outro, o que interessa-nos é afirmar que, assim como as Trovas de Garcia de Resende foi um
texto importante, também os cronistas soubera, cada um ao seu modo, referenciar o amor de
D. PedroI de Portugal por Dona Inês de Castro.

Considerações finais

Considerando tudo o que acima expusemos, é preciso levar em conta que o discurso da
História é, em certos aspectos, limitado, pois o passado só pode ser conhecido através do que
foi textualizado. Ou seja, só sabemos do passado aquilo que está escrito ou o que os achados
arqueológicos permitem conhecer. Assim, a História é feita de muitos silêncios e não é tão
objetiva quanto parece. Não há apenas um único ponto de vista sobre o passado, e por isso é
que se faz necessário conhecermos os vários pontos de vista, para perceber os fatos e tirar
conclusões acerca deles. Bucando o período medieval como fonte, o romance pós modernos
realiza suas leituras dos tempos medievais e reafirma Inês de Castro como mito.
Ela é a face feminina do amor medieval em Portugal e continua a render teatro, prosa e
poesia após mais de seis séculos de sua morte, isto era a parte previsível de nosso estudo.
Outrossim, constatamos, através do romance histórico contemporâneo, as variadas imagens
que a ficção criou para Pedro, colocando-o num plano também de protagonista e que vai,
tanto da figura do herói cavalheiresco como ao vingador sanguinário, isto foi o inovador que
estas obras apresentaram. Essa é a inovação do romance histórico. Trovas, crônicas
medievais, lenda, romance, toda a literatura inesiana redimensiona essa História. E
acreditamos na literatura, por também acreditarmos nas palavras de Austina Bessa-Luís, em
Advinhas de Pedro e Inês: “A História é uma ficção controlada. A verdade é coisa muito
diferente, e jaz encoberta debaixo dos véus da razão prática e da férrea mão da angústia
humana” (19κ3: p. 224).

Referências

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de Inéditos de História Portuguesa, tomo V. Lisboa: Officina da Academia Real das
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______. Entrevista a João Aguiar. In: Diário de Notícias, 31/03/2001. Disponível em:
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BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. 3. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1983.
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SESSÕES DE COMUNICAÇÕES

JOANA D'ARC E BRANCA DIAS - PERSONAGENS DA INQUISIÇÃO: DIÁLOGO


ENTRE MÁRTIRES

Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos


(PIBIC-UFPB)
direito.letras@gmail.com1
Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne
(Orientadora) (UFPB)2

1 Breve histórico da Inquisição

A Inquisição compreendia tribunais ad hoc, surgiu inicialmente por volta do século


XII, como meio de combate as crenças praticadas pelos albigenses, a criação/concepção de
existência de um Deus do bem e outro do mal, deixou a Igreja Católica incomodada. Assim,
para averiguar e contornar tal movimento herético, a Igreja Católica decidiu por instituir o
Tribunal da Santa Inquisição, criação esta definida a partir do Concílio de Verona3.
O movimento teve maior destaque a partir do início do século XVI, quando Martinho
Lutero, monge católico, precisamente em 1517, lançou em frente a Igreja de Wittenberg as
suas 95 teses que questionavam certos procedimentos até então adotados pela Igreja Católica.
A partir de tais questionamentos, a Igreja Católica posicionou-se de forma contrária aos
questionamentos feitos por Lutero, e perante o confronto sem retratação, o questionador
acabou por ser excomungado.
Sem o ofício que até então praticava, o de monge, Lutero partiu para difundir as suas
concepções por toda a Alemanha. Surgia então o movimento hoje conhecido por Reforma
Protestante, movimento este que teve a adesão de inúmeros governantes europeus, se
expandindo principalmente pela França, Suíça e Holanda.
Em resposta a Reforma Protestante, a Igreja Católica gerou a Contra Reforma
Protestante, instituída pelo Concílio de Trento4, movimento que se mostrou efetivo até
meados do século XVIII, presente em todos os continentes do globo terrestre. Com o
surgimento destes movimentos surgiu a diferenciação no termo “cristão” antes unificado,
passou a ser concebido por: “cristãos católicos” e “cristãos protestantes”.

1
Graduando em Letras Portuguesas (UFPB). Graduando em Direito (Unjpê). Participante do Grupo de Pesquisa
Interação, Dialogismo e Subjetividade em Gêneros Discursivos Orais (PIBIC-UFPB-DLCV). Membro do Grupo
CIDADI, linha de pesquisa Análise Dialógica de Gêneros Discursivos Verbo-Visuais da Esfera Midiática.
Email: direito.letras@gmail.com
2
Professora Adjunto I do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Doutora em Letras (UFPE-Universite Blaise Pascal). Coordenadora de projetos de pesquisa voltados
para estudos de literatura, medievo, poesia feminina, tradução. Email: lucianaeleonora@yahoo.com.br
3
Constituído em 1184 com a finalidade única de instituir o Tribunal da Inquisição.
4
Constituído em 1545 com a finalidade discutir a Reforma Protestante liderada por Martinho Lutero que se
instalara, bem como, demais movimentos insurgentes que ameaçavam rebelar-se. Tratou também de temáticas
quanto os livros canónicos, apócrifos e perpétua virgindade de Maria.
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A finalidade do movimento eclesiástico era punir os hereges, aqueles que não seguiam
a fé católica, assim os métodos punitivos variavam, podendo ser desde prisões, torturas, até
mesmo a pena de morte, geralmente mediante a fogueira. Este último foi o procedimento final
utilizado para contra Joana D’arc, uma das maiores personagens da Idade Média.
Por serem Estados ligados a Igreja Católica, a Inquisição se deu de modo mais
frequente e intenso nos países ibéricos, Portugal e Espanha, e suas respectivas colônias, tanto
africanas quanto americanas. Relatos historiográficos relatam processos e condenações aqui
no Brasil.
A Inquisição teve imensa projeção, meio pelo qual ampliou seu objeto inicial,
passando a perseguir não somente os cristãos-protestantes, mas também judeus, muçulmanos
(por meio das Cruzadas), mulheres e homossexuais.
Os procedimentos e processos de repressão persistiram até meados do século XIX,
quando passaram a surgir as constituições dos Estados Modernos, juntamente com a
concepção de estado dissociado de religião, conceitos estes oriundos da Revolução Francesa.
Nos dias atuais a Igreja Católica tem uma congregação denominada, Congregação para
a Doutrina da Fé5, esta corresponde a um remodelamento das entidades instituídas durante a
Inquisição. É a partir da referida congregação que se ratificam os dogmas e são editadas
diretrizes basilares da fé cristã católica. Atualmente a Congregação para a Doutrina da Fé é
compreendida como uma das congregações de maior destaque dentro do Estado do Vaticano.

2 A Inquisição na Literatura

A Inquisição surge como tema forte na literatura, dos mais diferentes países, dizemos
isto por ter sido um movimento de grande amplitude, duração e consequências humanísticas.
Sendo esse um dos pontos principais do nosso trabalho, passaremos então a apresentar a
Inquisição presente na obra em estudo.

2.1 A Inquisição na Literatura Brasileira - O Santo Inquérito

Escrita em 1966, por Dias Gomes, a obra ‘τ Santo Inquérito’ foi publicada de forma
definitiva no ano de 1985. Inicialmente a obra fora redigida com o intuito de ser tornada peça
teatral, todavia, após o enorme sucesso gerado, a peça fora transformada em livro.
A peça fora elaborada a partir de um episódio histórico, ou lendário, ocorrido
precisamente em 1750 na Paraíba. Distribuída em dois atos e composta por sete personagens,
dois centrais (Branca Dias) e cinco coadjuvantes (Augusto Coutinho, Simão Dias, Visitador
do Santo Ofício, Notário e o Guarda).

5
Corresponde a uma das nove congregações unidas a Cúria Romana, entidade ligada a Santa Sé, governo do
Vaticano. Hoje, diferente do período medieval, tem por objetivo defender a fé, a tradição e os dogmas católicos,
consolidados ao longos dos tempos, como assim prevê o art. 48 da Constituição Apostólica Pastor Bonus:
“Função própria da Congregação da Doutrina da Fé é promover e tutelar a doutrina sobre a fé e os costumes em
todo o mundo católico: é portanto da sua competência tudo o que de qualquer modo se refira a essa matéria.”
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Elementos como a boa fé, a sinceridade e a pureza da personagem Branca Dias
trazidos pelo autor, contradiz com o antigo modo de fazer peça teatral que eram realizadas
pelos antigos românticos.
O narrar trazido por Dias Gomes demonstra que a comunicação exercida pelas pessoas
dentro de uma sociedade se torna bastante relativizada, tudo a depender do contexto em que
está inserida, sujeitos, momento histórico e situação envolvida.

3 Joana D’arc e Branca Dias – Personagens da Inquisição: diálogo entre mártires

3.1 Joana D’arc

Figura lendária nos estudos medievais, Joana D’arc se tornou uma mártir do período
para a história da França do século XV. Inicialmente compreendida como herege e,
consequentemente, condenada pela Igreja Católica a morte, nos dias atuais a antiga condenada
e excomungada foi transformada em heroína e padroeira da França.
Mesmo tendo sido morta aos 19 anos de idade, ainda muito jovem, Joana D’arc ficou
de forma perpétua fixada na história política da França, e não pela condenação da Inquisição,
mas sim pelo heroísmo apresentado durante a Guerra dos Cem Anos, na qual, tomou a frente
das tropas francesas e, ao fim, conquistou a guerra.
Como sabemos, o heroísmo de Joana D’arc não atribuiu a ela, de forma imediata,
honras nem glórias, mas sim, inveja e temor da elite da época. Primeiro, por está se
emergindo uma nova classe social, daqueles que venceram a guerra, e, segundo, motivado
pelo fato de que as estratégias desenvolvidas por Joana D’arc foram as responsáveis para o
triunfo francês perante a guerra, atos que davam a ela mais notoriedade do que aos altos
generais franceses derrotados em combate. Ressalta-se que tal destaque atingido por Joana
D’arc perante as tropas e o governo francês era uma humilhação aos homens que não
conseguiram atingir o seu feito.
τ fato de ser mulher, constitui como um fator negativo para a história Joana D’arc,
dizemos isso pois, na época em que a personagem histórica viveu a mulher não detinha nem
vez, nem voz. Joana D’arc então se apresenta como uma ruptura ao modelo vigente até então,
demonstrando assim que mesmo mulher e jovem, tem a capacidade de apresentar os seus
atributos a sociedade, esta, patriarcal, totalitária e estratificada.
Vencida a guerra, nada de honras militares e de Estado foram destinadas aquela que
deu a França a vitória da Guerra dos Cem Anos. Ao revés, o que fora destinado a ela foi a
perseguição. Inicialmente fora a ela imputadas suspeitas de bruxaria. Após a realização do
processo de inquirição foi entrega aos ingleses, que fizeram todo o seu julgamento, ao fim,
condenaram-a por feitiçaria às penas da fogueira, na modalidade de auto-de-fé.
Como mencionado acima, a ‘culpa’ atribuída inicialmente a Joana D’arc fora retirada,
e depois dado a ela o valor merecido. Passou assim de herege para santa da Igreja Católica,
oficialmente declarada pelo Vaticano, em 1920, e respectivamente padroeira do seu país. País
este que fora protegido por ela, e que o igual tratamento não fora direcionado em seu favor.

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3.2 Branca Dias – personagem histórica

Figura emblemática da literatura e da história do Brasil é Branca Dias, uns a


consideram personagem mítica, outros como fatos reais de uma vítima do extremismo
radicado pela Igreja Católica por meio do Tribunal do Santo Ofício em terras brasileiras.
Adotada a hipótese de sua existência, a sobra de dúvida ainda persiste, mas agora
quanto ao eixo temporal. Pesquisas divergem quanto à precisão temporal em que viveu
Branca Dias, umas dizem ter sido no início do século XVI, outras apresentam o século XVIII
como período provável de sua existência.
Aos que apontam o início do século XVI, afirmam que Branca Dias, personagem real
e vítima da perseguição inquisitorial, nasceu em Portugal, possivelmente no ano de 1515.
Caso que causa estranheza é o fato de ter sido denunciada pela própria mãe ao Tribunal do
Santo Ofício, devido uma suspeita de reconversão ao judaísmo, fato que a levou a prisão, e
posteriormente, a chegada de toda a sua família ao Brasil.
Com a chegada da Inquisição ao Brasil logo é vigiada, bem como, todos os seus
familiares, e a suspeita de reconversão ao judaísmo é retomada, fato que a levou de volta a
Portugal para que fosse julgada, e morta pela modalidade de punição auto-de-fé. Punição
similar aquela adotada contra Joana D’arc a séculos anteriores.
A Branca Dias vivente no século XVIII é apresentada como paraibana, da região de
Gramame, que ainda jovem fora perseguida e morta pelo Tribunal do Santo Ofício aqui no
Brasil, e “assim Branca Dias Paraibana, foi julgada e condenada à morte pela Inquisição,
acusada de professar sua fé no judaísmo”. (NISKIER, 2007).
Mesmo sendo perseguida, a jovem não se conformou, e assim, buscou forças no
judaísmo para encontrar a tranquilidade em face da desigual luta que travava. Nestes termos
complementa NISKIER, 2007:

Branca Dias não se conformou com as perseguições. Ela buscou consolo na


sua crença, em tudo o que o judaísmo representava em seu coração,
afirmando que nunca foi desonroso morrer por uma causa justa: a defesa do
direito, da justiça e da liberdade, como preconizou o profeta Isaías. Para
concluir que estará no céu, ao lado de todos os seus irmãos, ao alcance da
sua grande e insubstituível fonte de inspiração. [...].Uma das nossas mais
corajosas heroínas.

Os fatos de ser judia ainda nos dias de hoje é mera especulação, certamente o que
levará a condenação foi a cobiça do padre Bernardo, que ao vê-la nadar no rio, encantou-se
com quão beleza, e devido a seu ofício, de sacerdote, via impossível a concretização do seu
amor pela jovem. O amor vira doença, então o sacerdote imputa a Branca Dias práticas
heréticas para que a mesma seja punida pelo Tribunal do Santo Ofício.
Os dois não podem se unir, devido o sacerdócio e também pelo fato da jovem não
aceitá-lo, então o evento da morte vem como meio de amenizar a fixação do padre em relação
a ela.
Esta caracterização de Branca Dias adotada por estes que creem que ela viveu no
século XVIII apresenta-se similar à compreendida e relatada por Dias Gomes na sua obra O
Santo Inquérito, que trataremos a seguir.
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3.3 Branca Dias – personagem literária

Inserida num contexto histórico preso aos anos de 1750, precisamente no estado da
Paraíba, nordeste do Brasil, está a Branca Dias narrada por Dias Gomes, na sua obra ‘O Santo
Inquérito’.
Logo no primeiro ato, nos é apresentado o Padre Bernardo invocando as pessoas para
o início do processo contra Branca Dias. Ocorre um embate entre o Direito Positivo e o
Direito Divino, como podemos verificar na seguinte consideração:

Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. Os que invocam os


direitos do homem acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus,
esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade têm o dever
sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem subvertê-la, pois
quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir. (GOMES,
1985, pág. 26)

A divergência entre Direito Positivo e Direito Divino é algo recorrente quando se


entram em polos distintos o Estado e a Religião. Aqui a invocação pelos direitos do homem
(Direito Positivo) podemos conceber como o direito à vida, a liberdade de expressão, direitos
estes que estavam sendo cerceados. Em contraste, os direitos da fé (Direito Divino) ligam-se
aos preceitos de ter como rei e senhor o Deus apresentado pelo Cristianismo, aqui
Catolicismo.
Desde o início é visível o transtorno do Padre Bernardo que apresenta Branca Dias
como estando nua, caso que não ocorre. Vê-se que o problema não se encontra nas atitudes
apresentadas pela jovem, mas sim como ela é vista pelo sacerdote. Os seus olhos lascivos
impõe a jovem os males alegados, mas de onde veio a distorção alegada pelo padre? Vejamos
o seguinte fragmento:

É verdade que uma vez — numa noite de muito calor — eu fui banhar-me no
rio... e estava nua. Mas foi uma vez. Uma vez somente e ninguém viu, nem
mesmo as guriatãs que dormiam no alto dos jeribás! Será por isso que eles
dizem que eu ofendi gravemente a Deus? Ora, o senhor Deus e os senhores
santos têm mais o que fazer que espiar moças tomando banho altas horas da
noite. Não, não é só por isso que eles me perseguem e me torturam. Eu não
entendo... Eles não dizem... só acusam, acusam! E fazem perguntas, tantas
perguntas! (GOMES, 1985, págs. 27-28)

O fato de tê-la visto uma única vez banhando-se no rio, fez com que a figura de
Branca Dias perante a mente do sacerdote fosse permanentemente de pecado, de luxúria.
Todavia, o ato da jovem não trazia consigo características de luxúria, mas sim de um simples
ato de tomar um banho. No entanto, a luxúria estava sim fixada no pensamento do padre, fato
este que fez enchê-la de culpa com o intuito de condená-la.
A partir de tal afirmação de Branca Dias, a palavra é dada ao Visitador, responsável
pelo julgamento de Branca Dias junto ao Tribunal do Santo Ofício. Buscando enquadrá-la
como cristã-nova (judia) o julgador passa a tecer indagações ligadas ao judaísmo.
Diante de tal questionamento, a jovem continua sem compreender o que se passava,
não é a toa que desabava ao questionar:
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[...] Por que me fazem todas essas perguntas, por que me torturam? Eu sou
uma boa moça, cristã, temente a Deus. Meu pai me ensinou a doutrina e eu
procuro segui-la. Mas acho que isso não é o mais importante. O mais
importante é que eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me dão
prazer. No vento que me fustiga os cabelos, quando ando a cavalo. Na água
do rio, que me acaricia o corpo, quando vou me banhar. No corpo de
Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de
carne-seca, bem apimentado, com muita farofa, desses que fazem a gente
chorar de gosto. Pois Deus está em tudo isso. [...]. (GOMES, 1985, pág. 29)

Ao citar como compreende por Deus, a jovem na sua inocência se complica,


majorando o grau de condenação, quando o apresenta como sendo a existência/vivência do
prazer, como vemos no seguinte trecho: “No corpo de Augusto, quando roça no meu, como
sem querer.” (GOMES, 1985, pág. 29).
Toda e qualquer afirmação feita por Branca Dias era levada para uma segunda
interpretação forçada, que só tinha o intuito de demonstrá-la como mulher envolvida pelo
maligno, e que mesmo sendo tentada uma conversão, nada foi conseguido.
Dá para observar o interesse do padre na moça quando o mesmo diz: “Branca... você é
um dos tesouros do Senhor. Preciso cuidar de você.” (GOMES, 1985, pág. 37). É
incompreensível como uma pessoa tão distanciada dos costumes da igreja, tão cheia de
suspeitas, como elencava o padre, pode ser um tesouro, tesouro este que deve ser zelado por
ele. O interesse surge a partir do primeiro diálogo, interesse este doentio não sugira como
salvação para moça, mas sim uma verdadeira perdição, rumo a morte.
Logo no segundo encontro, o padre a leva para o templo, fato que a incomoda pela
pouca presença de luz. Entretanto, sendo perspicaz o sacerdote logo diz que as sombras
refletem o recolhimento, indicando de forma sorrateira do que a jovem necessita.
Devido à extensão da narrativa, nos restringimos a debates pontuais presentes no ato
primeiro. Todavia, a presença de perseguição descabida por parte do Padre Bernardo em
relação à Branca Dias persiste de forma contundente por todo o limiar da história. Atingindo o
ápice com a condenação e morte da personagem Branca Dias.

4 Considerações Finais

Como bem pudemos apreciar, tanto Joana D’arc como Branca Dias foram mortas pela
Inquisição, por diferentes motivos, mas com a punição idêntica, o auto-de-fé.
A mulher até pouco tempo não detinha nem vez, nem voz, perante a sociedade em que
vivia. O destaque alcançado por essas personagens gerava cobiça, inveja e desconfiança a
sociedade machista e patriarcal.
Ambas as personagens correspondem a modelos de mulher diferentes, fato notório
devido às circunstâncias distintas em que viveram, uma França revolucionária e um Brasil
colônia, mas que, cada uma a sua forma, combateu o modelo social vigente à sua época.
Joana D’arc com a sua técnica e estratégia desbancou os grandes generais franceses, e
com a sua visão de exército entregou a França uma vitória perante sua maior rival, a
Inglaterra.
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Branca Dias, com a sua pureza e sutileza, não realizara nada contra si, nada que
voltasse os olhos da Inquisição para os seus atos. Entretanto, fora presa, passou por todos os
ritos inquisitoriais que buscavam de toda a forma a confissão. Nada confessou, pois nada
devia. Esta autoafirmação demonstra uma mulher forte nos seus ideais, posição esta que nem
os métodos da Inquisição subverteram.

Referências

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Acesso em: 06 de maio de 2012.
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<http://pt.wikipedia.org/wiki/Congrega%C3%A7%C3%A3o_para_a_doutrina_da_F%C3%A
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ÉOWYN OU DERNHELM. UMA ANALISE DO ESTEREÓTIPOS DA MULHER
GUERREIRA NAS OBRAS DE J. R. R. TOLKIEN

Adhemar Correa Neto


(UFMA)
Alessandro Lima Moraes
(UFMA)

1. INTRODUÇÃO

Na atualidade diversos tipos de fontes vem sendo utilizadas pelos historiadores para o
estudo historiográfico, é comum a pratica de analises de filmes, iluminuras, fotografias e até
mesmo quadrinhos para a analise historiográfica em diversos sentidos, isso leva o historiador
a ter que lidar com um tipo de instrumental, para tanto deve-se ter determinados cuidados ao
analisar esse instrumental "Saber interpretar signos visuais tornou-se mais que uma
necessidade para os acadêmicos e profissionais do ensino, mas uma necessidade." (LANGER,
2004, p.1).
O texto histórico já não é a única fonte de pesquisa do historiador no caso desta
pesquisa as fontes utilizadas foram obras de cunho literárias e filmes que são encaixadas no
novo instrumental historiográfico oferecido a analises.

2. O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DAS OBRAS

Tendo Tolkien em destaque a priori, é extremamente necessário que se faça uma


análise e abordagem do processo que resultou na concepção da obra, tendo em vista, um
maior embasamento para a temática que vai ser aos poucos abordada nos capítulos seguintes.
John Ronald Reuel Tolkien nasceu em três de janeiro de 1982, em Bloemfontein, África do
Sul, filho de pais ingleses que haviam emigrado para lá. Em 1896, um mês depois do seu
quarto aniversário quando estava em Birmingham na Inglaterra, seu pai veio a óbito. Sua mãe,
Mabel, foi sua primeira professora o ensinando a interpretar as palavras sua morte em 1904,
consolidou os estudos de Tolkien. A escola acabou por ser o único elemento estável na vida
de J.R.R. Tolkien. σa escola King Edward’s fez grandes amigos, três em especial: Chistopher
Wiseman, G.B Smith, e Rob Gilson, e acabaram por criar o “Clube de Chá da Sociedade
Barroviana” conhecido como TCBS (Tea Club and Barrovian Society), um pequeno clube
com base no amor pelas lendas e sagas heroicas. Em 1911 Tolkien ingressou na Universidade
de Oxford para estudar inglês e literatura, mas este período idílico acabou com a eclosão da
Primeira Grande Guerra em 1914, em dezembro do mesmo ano os quatro amigos se
encontraram na casa de Wiserman para um evento chamado o “Conselho de Londres” nesse
encontro Tolkien vivenciou uma provável revelação, percebendo de certa forma que queria
ser um escritor criativo. Este foi o ímpeto por trás da criação da Terra-Média. O “Conselho de
Londres” coincidiu com o processo de criação do primeiro idioma élfico de Tolkien, até o

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momento ele já dominava: o latim, o grego, o inglês arcaico, e vários outros idiomas indo-
europeus.
Todos os amigos íntimos de Tolkien combateram na Batalha de Somme da Primeira
Grande Guerra e quase todos morreram, isso teve uma grande influência na sua obra
principalmente depois de ler uma correspondência do seu amigo Rob Gilson nas trincheiras da
guerra:

Sou um grande admirador, de todo o meu coração, e meu maior consolo é


saber que, se eu for morto hoje à noite, ainda haverá um grande membro do
TCBS para dar voz ao que eu sonhei e àquilo que nós concordamos. Pois a
morte de um dos seus membros não pode dissolver o TCBS. Estou
determinado. (Rob Gilson membro da TCBS, 1914)

Em vários “momentos calmos” da guerra, Tolkien aproveitava para escrever histórias


num caderno, histórias que chamou de “O Livro dos Contos Perdidos” (The Book of Lost
Tales) nesse momento nasceu os primeiros textos sobre a Terra-Média, O Silmarillion, aquilo
que ele começou a escrever nas trincheiras só foi publicado depois de sua morte, pelo filho
Christopher.
Depois da Primeira Grande Guerra, a literatura medieval parecia ser totalmente
relevante novamente. Ela estava de fato abordando questões de que as pessoas ou tinham
esquecido ou achavam que fossem antiquadas. O que atingiu Tolkien feito um raio foi a
Gramática Finlandesa, de Sir Charles Eliot, porque era um idioma muito diferente daqueles
que Tolkien dominava. Isso o inspirou a criar o quenya, o primeiro idioma élfico, mas Tolkien
também ficou muito interessado pelo idioma galês, produzindo outro idioma élfico, o sindarin
que de certa forma é como o galês em sua estrutura fonética. Até então em 1920 ele já tinha
dois idiomas bem desenvolvidos, J.R.R Tolkien escreveu uma história de fantasia para
explicar quem falava esses idiomas, por que eles se diferiam e como se desenvolveram até o
formato dado a eles. Esse é o começo e a semente da história que se transformou em O
Silmarillion.
Tolkien retornou a Oxford em 1925, como professor de anglo-saxão, e 12 anos se
passaram até a publicação oficial de “O Hobbit” em 1937, que se tornou um sucesso
praticamente imediato, o curioso é que a obra teve seu feedback feito por Rayner Unwin, o
filho de 10 anos do editor de Tolkien que deu sua calorosa aprovação do ainda não publicado
“O Hobbit”. A popularidade de “O Hobbit” levou Stanley Unwin, seu editor, a pedir mais
histórias sobre hobbits. Tolkien, com 45 anos de idade, começou a escrever a “continuação de
τ Hobbit”, mas recorreu a seus antigos textos e antigas paixões, que seria a tentativa de criar
uma mitologia propriamente inglesa desejo fortemente compartilhado por seu amigo C. S.
Lewis, criador de “As Crônicas de Nárnia”. Tolkien compartilhava da idéia de que a
Inglaterra não tinha mitologia, apenas contos-folclóricos, e se apropriavam muito da mitologia
alheia, tendo como base justamente a noção de que a história que todos consideram inglesa é a
do Rei Arthur, quando na verdade as fontes são variadas e o maior número delas vem da
França, pensando dessa forma Tolkien achava que não deveria fazer parte do folclore e nem
da mitologia inglesa. Ele lamentava fortemente o fato de que qualquer mitologia que a
Inglaterra pudesse ter tido havia sido erradicada pela invasão da Normandia de 1066.

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No prefácio para o “O Senhor dos Anéis” Tolkien comenta sobre sua inspiração e
fonte para escrever a obra.

Tinha alguma esperança de que outras pessoas ficassem interessadas nesse


trabalho especialmente por ser o fruto de uma inspiração primordialmente
lingüística e por ter sido iniciada a fim de fornecer o plano de fundo
histórico necessário para as línguas élficas. (Tolkien, 2000, pág XI.)

Inspirado pela filosofia, pelos estudos das línguas germânicas, sagas nórdicas e
poesias anglo-saxões, Tolkien também comenta sobre a forma como o autor não consegue
evitar a sua própria experiência e lugar social em suas obras.

É claro que um autor não consegue evitar ser afetado por sua própria
experiência, mas os modos pelos quais os germes da história usam o solo da
experiência são extremamente complexos, e as tentativas de definição do
processo são, na melhor das hipóteses, suposições feitas a partir de
evidências inadequadas e ambíguas. (Tolkien, 2000, pg. XIII.)

Fica claro a partir do comentário de Tolkien, que todo escritor coloca elementos
pessoais em seus livros, no caso específico de Tolkien, a forma como ele “cria as pessoas” de
Rohan instintivamente sabemos que ele entendia de cavalo. Rohan está intrinsecamente
relacionada a tradições anglo-saxões dos séculos IX e X. A cultura é facilmente reconhecível,
o palácio de Rohan chamado de Melduseld é o mesmo nome do palácio de Beowulf, que é um
poema épico escrito em língua anglo-saxã. Rohan passa a ser então basicamente um Beowulf
com cavalos acrescentados. A maioria dos nomes das pessoas em Rohan tem os nomes
relacionados a cavalos.

Eoh  Cavalo (Inglês Arcaico)


Éomer  Provavelmente seria alguém famoso em termos de cavalos.
Éowyn  Provavelmente seria alguém que se alegra com cavalos

Antes da Primeira Grande Guerra, Tolkien se associou a algo chamado “Cavalo do Rei
Eduardo”, era um batalhão, foi sua primeira e maior experiência com cavalos. Essa
experiência mostra mais do que meras abstrações por trás da idéia de Rohan. Os Rohirrim são
uma forma de preencher os desejos de Tolkien, porque eles são muito parecidos com os
anglo-saxões, mas com cavalos.
Tolkien tinha uma teoria de que “se” os ingleses tivessem tido uma cavalaria eles
nunca teriam perdido a batalha de Hastings, porque no momento em que os cavaleiros
atravessaram o mar, vindos da França, eles acabaram com os ingleses. A invasão normanda
segundo a visão de Tolkien foi uma grande catástrofe, o afluxo da cultura normanda impediu
um florescimento total da mitologia inglesa, desta forma, os cavaleiros de Rohan são uma
imagem dos anglo-saxões não como eles foram, mas como provavelmente teriam sido, e
talvez se tivessem retido mais a cultura dos cavaleiros eles poderiam não ter perdido em
Hastings, e a atual civilização inglesa não teria sido tão afrancesada como foi, algo que
Tolkien considerava um completo desastre.
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3. A PERSONAGEM ÉOWYN

Éowyn nasceu em 2995 da Terceira Era, em Rohan, filha de Théodwyn, a amada irmã
do Rei Théoden, e de Éomund, um dos grandes Marechais da Terra dos Cavaleiros. Era
também a irmã mais nova de Éomer, que viria a tornar-se o Terceiro Marechal da Terra dos
Cavaleiros e Rei de Rohan.
Descrita como uma mulher bela, com longos cabelos louros, olhos cinzentos e pele
branca como a neve, era esguia e alta, tendo uma graça e uma altivez herdadas do sul, de
Morwen de Lossarnach, a quem os rohirrim haviam chamado Brilho do Aço.
Seu pai, Éomund, odiava os orcs e amava os cavalos. Em 3002, Éomund atacou um
grupo de orcs que atravessavam suas terras com um grupo pequeno e sem cautela. Isto o
conduziu a uma armadilha, na qual foi morto.
Sua mãe, Théodwyn,ficou doente e morreu pouco depois, para a grande tristeza do rei,
que acolheu em sua casa os filhos da irmã, chamando-os de filho e filha.O filho do Rei,
Théodred, na época com 24 anos, recebeu bem seus primos e tratou-os como irmãos mais
novos, tendo nascido uma grande amizade entre eles. Todavia, ao crescer num ambiente tão
masculino e militarizado quanto Edoras, Éowyn começou a demonstrar grande interesse a
respeito de espadas e cavalos. Alguns anos depois, ela já sabia cavalgar e empunhar uma
espada com destreza.
Todos estavam felizes, até o dia em que Gríma Língua de Cobra, um servo
de Saruman, assumiu o posto de conselheiro do rei. Éowyn esteve sempre ao lado de Théoden
e assistiu com tristeza a decadência física e mental de seu tio. O homem forte e orgulhoso que
ela amava como um pai estava cada vez mais fraco, e isso a entristecia e fazia nascer em si
um ódio secreto, mas forte, contra Gríma, que ela via como o principal responsável pela
decadência de Théoden.
Quando Gandalf veio a Edoras, em 3019, Éowyn tinha poucas esperanças de que algo
mudasse. Mas o mago curou o rei de sua apatia, e lhe mostrou como o mundo caminhava a
passos largos para a guerra contra Mordor. Théoden mandou que o exército dos rohirrim fosse
preparado, e deu a regência do Reino de Rohan para Éowyn, e nisso demonstrou mais amor
por ela do que em qualquer outro gesto, pois nunca antes uma mulher havia ocupado o posto
de regente naquele reino. O Rei Théoden e o exército de Rohan foram para o Abismo
de Helm esperar o ataque dos orcs. Éowyn nada teve a ver com essa batalha, pois estava
ajudando o povo de Rohan a se esconder dos orcs. Os exércitos do Oeste foram vitoriosos e os
orcs dizimados.
Todos festejaram a vitória, mas ainda havia uma batalha para se travar. Uma batalha
que denominaria o destino de todos. Os rohirrim partiriam novamente para lutar, mas dessa
vez nos Campos de Pellenor, em Gondor. Um dia antes da partida dos exércitos de Rohan
para a guerra, Aragorn, Gimli, Legolas, o guardião do norte Halbarad e os filhos de Elrond,
Elrohir e Elladan partem para as Sendas dos Mortos. Neste ponto, Éowyn já sentia uma
grande admiração por Aragorn, e quando soube que ele desejava usar tal caminho tentou
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dissuadi-lo de todas as formas, e chegou até a se oferecer a acompanhá-los, mas isso lhe foi
negado.
O rei ordenou novamente que Éowyn fosse a regente e protegesse o povo durante sua
ausência. Mas ela já estava decidida que lutaria e, secretamente, vestida como um homem e
usando o pseudônimo de Dernhelm, cavalgou com o exército de Rohan em direção a capital
de Gondor, Minas Tirith, juntamente com Meriadoc Brandebuque, um hobbit e integrante da
Sociedade do Anel que nada sabia sobre sua verdadeira identidade. Quando os rohirrim
atacaram as hordas de orcs, Éowyn estava entre eles, e lutou com bravura (mas
anonimamente) até o momento que o rei foi abatido. O Rei dos Bruxos de Angmar, o capitão
dos Nazgûl, atacou Théoden e ela se pôs entre eles. O Nazgûl riu de sua valentia, já que
pensava tratar-se de um homem, mas quando tirou seu capacete e revelou ser mulher,
irrompeu em fúria e medo, pois uma antiga profecia diria que ele nunca poderia ser morto
pela mão de um homem, e Éowyn não era um homem. Conta-se que nesse feito Éowyn teve
ajuda de seu companheiro, Merry.
Éowyn matou o Nazgûl, mas caiu vítima do hálito negro e ficou às portas da morte.
Quando a guerra termina, seu irmão Éomer acha seu corpo e pensa que ela está morta,
entretanto, o Príncipe Imrahil de Dol Amroth vem ao auxílio dos rohirrim e diz que Éowyn
não faleceu. Éomer já havia partido, e só descobre que sua irmã estava viva quando ela
chegou às Casas de Cura. Foi o próprio Aragorn que a curou, usando a erva chamada athelas
ou folha-do-rei.
Alguns dias após a partida dos exércitos de Rohan e Gondor em direção ao Portão
Negro, Éowyn levanta-se da cama e exige falar com o diretor, pois queria lutar ao lado de seu
povo e morrer com dignidade. O diretor então a leva ao regente de Gondor. Foi nessa ocasião
que Éowyn conheceu Faramir, e durante sua estadia nas Casas de Cura, os dois se apaixonam.
Ela renuncia ao trono de Rohan para que pudessem se casar e os dois beijaram-se sobre as
muralhas de Minas Tirith
Foi em 3020 da Terceira Era, que ocorreu o casamento de Éowyn e Faramir. Em 3019,
ela era conhecida no Reino de Gondor como “Senhora Branca de Rohan” e passou a viver nas
colinas de Emyn Arnen. Viveu como Princesa de Ithilien e amiga do Rei Elessar. Não existem
registros de sua morte, apenas de seu único filho: Elboron.

4. ANÁLISE DOS ESTEREÓTIPOS

A personagem Éowyn é estruturada em diversos estereótipos da mulher no período


medieval principalmente no que se refere a mulheres guerreiras, partindo desse pressuposto
faz-se necessário uma abordagem histórica da origem dos estereótipos que serão analisados.
Os costumes e tradições dos povos formadores da sociedade européia de certa forma
condicionaram a ótica da mulher no medievo. “A interpenetração de certos hábitos dos celtas,
romanos e germânicos com a cultura cristã teve peso considerável na concepção medieval da
mulher.” (MACEDτ, 1990, pg. 9)
Em Roma no período Imperial consagrou-se a idéia da inferioridade natural da mulher,
as mesmas não poderiam atuar em funções públicas, políticas e administrativas, limitando-as
a casa. A liberdade assim como em vários outros povos, dependia da posição social que a
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mulher ocupava. Um fato importante é que mesmo quando era “livre”, tinha a autonomia
pessoal limitada pelos interesses da família diferentemente do que ocorria entre os celtas. Na
sociedade celta, juridicamente houve uma “equiparação entre os sexos” e em alguns casos até
um avanço feminino, a mulher quando solteira tinha autonomia na realização do matrimônio o
que não acontecia na sociedade romana, o “Estado” que representava a coletividade,
sobrepujava os interesses individuais retirando desse modo qualquer forma de autonomia.
Umas das principais origens do estereótipo da mulher no período medieval foi o relato
de Felipe de Novare que por ser um nobre e ter recebido uma educação refinada teve seu
discurso aclamado:

O cavaleiro achava que a virtude a ensinar deveria ser a obediência. O sexo


frágil, segundo ele, foi feito para obedecer. Outras virtudes complementares
deveriam impedir que as filhas fossem ousadas, faladeiras, ambiciosas. Não
era bom, julgava, que uma mulher soubesse ler e escrever, a não ser que
entrasse para a vida religiosa. Caso fosse instruída estaria à mercê de rodeios
e galanteios dos homens. Assediada, a dama dificilmente resistiria ao desejo
de responder aos admiradores; manteria uma correspondência e sabe o diabo
mais o quê. Uma moça deveria isso sim, saber fiar e bordar. Se fosse pobre,
teria necessidade do trabalho para sobreviver. Rica, ainda assim deveria
conhecer o trabalho para administrar e supervisionar o serviço dos seus
domésticos e dependentes. (Macedo, 1990, Pg 25.)

No lar e fora dele fiar e borda eram uma função restritamente feminina servindo como
uma separação da sociedade masculina e guerreira contrapondo o lado da espada e o lado da
roca. A sociedade medieval nutriu um desprezo generalizado pelas mulheres, à atitude de
desprezo dos homens pelas mulheres, consideradas ao mesmo tempo perigosas e frágeis, era
justificada por todos os meios, até pela etimologia da palavra que as designava, a palavra
latina que designava o sexo masculino, “Vir”, lembrava “Virtus”, isto é, força, retidão,
enquanto Mulier, o termo que designava o sexo feminino lembrava Mollitia, relacionada à
fraqueza, à flexibilidade, à simulação. Entretanto, é errado conjugar toda a ótica da mulher
para esse viés, as diferenças sociais foram sempre tão fortes quanto às diferenças de sexo. Não
é possível comparar, condessas e castelãs com servas e camponesas livres, ricas burguesas
com artesãs, domésticas ou escravas.
No que concerne a personagem Éowyn, ela alegoricamente é uma guerreira pautada
em alguns estereótipos, dentre eles o de mais fácil análise é a transição da mulher guerreira
para uma curadora (Santa) passando nessa transição, uma percepção de que ser uma guerreira
não faz parte da natureza feminina, o que ocasiona também uma dualidade.
Guerreira e Virgem  Santa e Mãe; Guerreira = Escuridão  Santa = Luz
σesta passagem do livro, “O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei” fica consagrado o
estereótipo no momento da declaração de Faramir (Regente de Gondor):

E eu (Faramir) a amo. Já senti pena da sua tristeza. Mas agora, mesmo que
você não sentisse tristeza alguma, nem medo, e não lhe faltasse nada (...)
ainda assim eu a amaria. Éowyn você não me ama? Naquele momento o
coração de Éowyn mudou, ou então finalmente percebeu a mudança. E de
repente seu inverno passou e o sol brilhou para ela. (Tolkien, 2000, pg 244.)

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Assim como nesta passagem:

Estou em Minas Anor, a Torre do Sol – disse Éowyn -; e eis que a Sombra
partiu! Não serei mais uma escudeira, nem competirei com os grandes
Cavaleiros, e deixarei de me regojizar apenas com canções de matança. Serei
uma curadora, e amarei todas as coisas que crescem e não são estéreis
(Tolkien, 200, pg 244.)

A análise dos estereótipos é extremamente importante para uma maior compreensão


da mulher no período medieval assim como é de extrema importância para compreender a
transposição desses estereótipos para obras literárias.

5. CONCLUSÃO

Podemos concluir dessa breve analise que, o estereótipos quanto a mulher na idade
media foram determinados principalmente pelo meio social, a posição de mulher variava de
acordo com a sociedade em que estava inserida, as tradições católicas de certa forma vieram a
desvalorizar a figura feminina dentro da sociedade, levando ao caráter mais submisso. Vemos
que a condição de guerreira era uma posição de difícil acesso a mulher na época medieval
pois as relações sociais dificultavam o advento de uma classe feminina voltada para a guerra
visto que, segundo a mentalidade medieval a submissão da mulher para com o homem era
fundamental para a manutenção da hierarquia social.

6. REFERENCIAS

MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Media, São Paulo: Editora Contexto, 1990.
LANGER, Johnni. Metodologia para Analise de Estereótipos em Filmes Historicos, São
Paulo: Revista Historia Hoje, 2004
TOLKIEN, J R R. O Senhor dos Aneis - A Sociedade do Anel: Primeira Parte/tradução de
Lenita Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 2º ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2000.
TOLKIEN, J R R. O Senhor dos Aneis As Duas Torres: Segunda Parte/tradução de Lenita
Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 2º ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2000.
TOLKIEN, J R R. O Senhor dos Aneis O Retorno do Rei: Terceira Parte/tradução de Lenita
Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 2º ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2000.
TOLKIEN, J R R. O Hobbit. Tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta. - 3º
ed. - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
TOLKIEN, J R R. O Silmarillion; organizado por Christopher Tolkien; tradução Waldéa
Barcellos. – 4º ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

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RED SONJA: A MULHER GUERREIRA NA ERA HIBORIANA

Adriano Everton
NEMIS/UFMA
Luciana Campos

A origem de red Sonja

“Por Mitra”. Quando esta frase é pronunciada em qualquer história envolvendo os


personagens criados por Robert Howard logo constatamos a presença de red Sonja na corrente
aventura. Seja como coadjuvante de Conan, o bárbaro, ou numa aventura solo, red Sonja é a
representação da mulher guerreira no universo howardiano. Ao contrário de Conan, a
demônia da hircância foi criada especificamente para as histórias em quadrinhos, para
possibilitar o protagonismo das HQs para o dono da espada selvagem. Mesmo sendo uma
coadjuvante, Sonja é uma personagem literalmente “forjada no calor da batalha”.
Convém ressaltar que Red Sonja é uma personagem modificada, mas que foi inspirada
na personagem homonina “red Sonya of rogatino” presente no livro de Howard “The shadow
of the vulture”. A personagem foi criada por Roy Thomas nos anos de 1970 quando a Marvel
ainda era a detentora dos direitos autorais dos personagens de Robert Howard. Mesmo com
essa desambiguação de personagens a marca “Red Sonja” ainda é assunto de pendências
judiciais, porém, o foco desse trabalho é trajetória do demônio nas HQs.
Nas HQs, Sonja é filha de um mercenário aposentado e vivia feliz com a sua família
na hircânia. Entretanto, a aspiração guerreira era nítida em sue personalidade. Mercenário
aposentado, o pai do futuro demônio, ensinava seus outros filhos o manejo da espada, algo
que era proibido para Sonja, pela sua identidade feminina. Mesmo assim, de forma escondida,
a então jovem ruiva passou a treinar, às escondidas, às lições repassadas pelo seu pai aos seus
irmãos. Sonja era proveniente de uma família com uma relativa felicidade, mas algo deveria
acontecer para que o seu potencial guerreiro finalmente viesse à tona.
Em certa ocasião, seu pai foi convidado por outros mercenários para agir em um
“trabalho”, mas em virtude da negativa do hircaniano, os mercenários promoveram um
massacre nas terras da família de Sonja. Toda a sua família foi cruelmente assassinada,
passando pelos seus pais até seus irmãos. Sobrevivente, a ruiva ainda foi vítima de inúmeros
abusos de natureza física e sexual. Depois de promover um sangrento massacre da família dos
hircanianos, os mercenários colocam fogo na propriedade e fogem deixando Sonja para
sucumbir perante as chamas. Contudo, é nesse momento que a sorte de Sonja muda seu curso.
Enrolada em um lençol molhado, milagrosamente, Sonja consegue sobreviver ao
incêndio à casa de seus pais. Depois de conseguir escapar de sua antiga casa, após sofrer uma
série abusos físicos e sexuais Sonja caiu desfalecida e em seu ultimo fôlego deparou-se com o
momento que mudaria a sua vida, seu encontro com a deusa Mitra.
Apiedando-se dos abusos sofridos por Sonja, Mitra propõe um pacto para a jovem em
que fica estipulado que, em troca de uma vida de guerreira e da proteção da deusa, Sonja não
poderia ser envolver com nenhum homem a menos que ele a vencesse em uma batalha. Sem
titubear, Sonja aceita o acordo e, instantaneamente, com a benção de Mitra a ruiva ressurge
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em uma nova identidade, mais poderosa e mestra no manejo da espada, esta é a origem de
Red Sonja.

Cronologia e Indumentária

Ás vésperas de completar 40 anos de aventuras nas HQs, a primeira aparição de Red


Sonja data de 19ι3 na revista “Conan, the barbarian,” de número 23. A personagem surgiu
como uma mera coadjuvante, ou como muitos gostam de relatar como um correspondente
feminino ao dono da espada selvagem.
Quando a sua indumentária, apesar do modelo clássico perdurar por esses 40 anos de
histórias sem modificações, a hircaniana já teve seu corpo coberto por outro tipo de roupa.
Nas primeiras edições de Conan, o bárbaro, em que Red Sonja aparece com uma blusa de
malha e com uma calça curta de seda vermelha.
O biquíni que cobre até hoje o corpo de Sonja foi idealizado pelo ilustrador espanhol
Esteban Maroto, modelo que ganhou fama na revista “savage sword of Conan” de número 1,
em que além de ganhar a sua indumentária é nessa revista que encontramos a primeira história
solo da ruiva.
No que se refere a sua vestimenta, Sonja tem uma aparência simples. Ela usa uma
espécie de biquíni que é recoberto de micro plaquetas de metal. As plaquetas recobrem apenas
o traje expondo as formas do corpo de Sonja quase que o tempo todo, sendo exceção apenas
às situações de frio extremo como visto na série “Wrath of the gods” em que no início da
história ela está trajando um casaco que não deixa de exibir seu corpo talhado por Mitra.
O traje de Sonja, e a maneira como ele está exposto permitem muitas interpretações,
neste momento, a bordo dos estudos de Peter Burke, e de seu livro testemunha ocular, mais
precisamente do segundo capítulo, em que o autor trata sobre iconografia e iconologia, o qual
defende a ideia que para as imagens serem “lidas” faz-se necessário um conhecimento prévio
do conteúdo a ser analisado. No caso da indumentária de Red Sonja fica nítida a relação de
correspondência de seu traje com as armaduras do tempo medieval.
Em outra corrente de interpretação, o metal do traje do demônio da hircânia pode
remeter aos materiais usados na construção de trajes para ambientes hedônicos, sendo
exemplificado pela festividade do carnaval, e afins. Este tipo de interpretação tem em vista
apenas o caráter sexual da personagem, de modo a desprezar todo o caráter aventureiro das
histórias da era hiboriana.
A correspondência do metal do traje da ruiva com se faz presente pela semelhança
com as armaduras medievais, tanto aquelas de cota de malha quanto a armadura de placa
completa. Em uma analise mais ousada, observa-se que o traje de Red Sonja faz uma espécie
de fusão dos dois estilos. Como todos os leitores e fãs tanto das histórias e do potencial físico
de Red Sonja devem ter observado, o metal de seu traje é ligado de uma forma pouco vista.
Sua “armadura”, na verdade, se resume em pequenas placas interligadas com anéis de metal
bem semelhantes àqueles que são utilizados em armaduras de cota de malha. Outro elemento
observado nas armaduras de cota de malha é percebido em Red Sonja, a liberdade de seus
movimentos. Neste caso, essa liberdade é representada pela própria falta de cobertura em seu
corpo, e lógico, pelo apelo sensual da personagem.
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Outro ponto que merece atenção é o fator criativo envolvendo o desenvolvimento da
indumentária da personagem. Esteban Maroto aplicou ao traje uma ideia inovadora,
realizando uma hibridização entre os estilos de armadura e os aplicou num traje que ao
mesmo tempo protege o corpo da heroína e presenteia os leitores com o atraente corpo da
guerreira. Com este conceito, o traje de Red Sonja valoriza ainda mais o caráter divino que
envolve a personagem, isto porque a singularidade do uniforme, e também seu caráter
moderno ratifica a proteção de mitra na forma de um artefato único.

“Whath of the gods”

Nesta minissérie publica pela dynamite entertanmeit no ano de 2010, está disposta em
cinco edições que não contém histórias paralelas, como costumeiro em outros títulos de outras
editoras de quadrinhos. As revistas da minissérie “Wrath of the gods” contém apenas a
aventura do demônio da hirkânia em si, contendo apenas a divisão de acordo com a parte da
história. Nesta minissérie é contada como Red Sonja enfrenta um de seus mais poderosos
inimigos.
A história começa com Sonja em meio a sua jornada na era hiboriana. Em terras
geladas, a guerreira encontra o jovem Gamble, ruivo como ela, a criança aparece sentada na
porta de uma taverna a qual foi impedido de entrar, num gesto de boa vontade da heroína, ela
o convida para entrar na taverna para se proteger de uma nevasca que se aproximava.
Entretanto, uma descoberta sobre sua origem esperava a guerreira de cabelos vermelhos no
interior da taverna.
Ao adentrar a taverna com o pequeno Gamble, Sonja e o menino são recepcionados de
forma hostil pelas pessoas daquele lugar que não aceitavam pessoas da etnia budini naquele
lugar. Correndo perigo, Red Sonja tinge o chão da taverna com o sangue daqueles que lhe
ameaçavam. Depois de disso, o jovem Gamble explica para a heroína o porquê de eles serem
chamados pela alcunha de budini.
Já devidamente acomodados na taverna, Gamble conta para Sonja que eles são
oriundos de uma etnia chamada budini, que tinha por principal característica física a
coloração vermelha nos cabelos. A criança ainda disse que seu povo não tinha a tradição
guerreira e que foi massacrado por outros povos até encontrar asilo em um lugar que estava
fora dos mapas hiborianos, em um lugar chamado wodinaz. Entretanto, mesmo em seu
refúgio o povo budini estava em perigo.
Após revelar sua história para Red Sonja, Gamble também revela a sua missão, que
seria encontrar um guerreiro budini que cumpriria a profecia libertando o seu povo das forças
opressoras. Relutante quando a história do garoto, Red Sonja tem o seu espírito heroico
inflamado pelo lindo rubi que Gamble oferece em troca dos serviços do demônio da hircânia.
Com este belo incentivo, a guerreira parte com Gamble para wodinaz.
Após um complicado caminha pelo interior de uma montanha, Red Sonja e Gamble se
deparam uma wodinaz desolada dominada por monstros de todas as espécies comandados um
poderoso mago, Loki. Depois de uma intensa batalha, Sonja acaba enfeitiçada por Loki,
porém, um novo aliado se junta a heroína e Gamble, se trata do “semideus”, Thor.

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Cabe resaltar que o Thor dessa história tem uma descrição física distinta das histórias
da Marvel. Em “Wrath of the gods”, o Thor descrito tem sua aparência fiel à mitologia
nórdica, sendo um homem com uma grande altura e força, além dos cabelos e barba ruivos,
neste caso especial isto tem mais haver com os budinis. Entretanto, um dos objetos
característicos de Thor é uma das peças chaves da trama.
Em “Wrath of the gods”, os roteiristas produziram um visão alternativa envolvendo
elementos do panteão nórdico. Na minissérie, Thor aparece como o maior inimigo de Odin,
mesmo sendo seu filho. Na história, Odin tem como pretensão eliminar os budinis por
conhecer a profecia que aponta um guerreiro budini como o seu sucessor em wodinaz. Neste
momento, observa-se uma referência ao panteão grego, mais precisamente a Zeus e o titã
Cronos, o qual devorava seus filhos com o temor que um deles lhe tomasse o posto de rei de
todos os deuses, e que foi vencido por Zeus, e logo depois sendo exilado com outros titãs para
o tártaro. Outro elemento importante é o fato de Loki e Odin aparecerem como aliados,
entretanto, com o decorrer da história a relação conflituosa entre eles ficam em evidência.
Para derrotar Odin e salvar os budini, Thor precisa de uma arma poderosa quanto um
deus, para isso ele precisa juntar a pedra de ardinos com o cajado de Odin para obter um
martelo poderoso o suficiente para realizar a sua missão. Thor ainda conta com a ajuda de Red
Sonja, que é decisiva para a derrota de Odin e o estabelecimento da ordem em wodinaz. Ao
final da história, mesmo com Thor lhe oferecendo o trono de rainha, Sonja pega o rubi
concedido por Gamble e parte de volta para a sua jornada. Nesta minissérie, apesar da
distorção em relação à mitologia nórdica, muitos aspectos sobre Red Sonja ficaram explícitos
e serão analisados no tópico a seguir.

A “não amazona” e a “mulher cavaleiro”

Por meio da leitura de “Wrath of the gods”, alguns aspectos da personagem de Roy
Thomas fazem menção a outros tipos de lendas envolvendo mulheres guerreiras, como no
caso das amazonas, e outros tipos de guerreiros como a cavalaria medieval. Em uma breve
análise contata-se que Red Sonja possui semelhanças como também diferenças com estes
tipos de guerreiros. Primeiramente, a relação da ruiva com as Amazonas será objeto de
estudo.
De acordo com o dicionário de mitologia grega e Romana, de Georges Hacquard, as
amazonas eram povo mítico, predominantemente feminino, o qual só interagia com seres do
sexo masculino para fins reprodutivos, de modo que, esta interação tinha o objetivo de
garantir a perpetuação daquela civilização, ou seja, só indivíduos femininos eram aceitos,
costume que acarretava, por meio de sacrifícios, a eliminação seres masculinos. Outro
costume das amazonas era a amputação do seio direito com o objetivo de garantir um melhor
manejo do arco. Por se tratar de um povo em que predomine a figura da mulher guerreira,
constata-se referências e, principalmente, diferenças com a personagem do universo
howardiano.
O primeiro ponto de correspondência entre Red Sonja e as amazonas se refere ao
distanciamento em relação ao gênero masculino. Apesar desta característica ser presente nos
dois referenciais o distanciamento quanto aos homens ocorre por motivos distintos. No caso
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das amazonas, a recusa pela presença masculina é inerente a sua cultura, no caso de Red
Sonja o abstração do gênero masculino ocorre por conta do pacto com a deusa Mitra, que só
permite que um homem se relacione carnalmente com a guerreira se vencê-la em batalha, algo
que só ocorre com as amazonas quando estas buscam reproduzir-se. Outra diferença entre
Sonja e as amazonas ocorre por causa da mutilação do seio direito, algo visivelmente não
praticado pelo demônio da hircânia. E por último, ao contrário das amazonas que vivem seu
reino, Red Sonja leva uma vida peregrina. Quanto à vida peregrina, ao mesmo tempo em que
esta característica se difere das amazonas faz menção a outro tipo de corpo guerreiro, a
cavalaria.
No que se refere à relação de Red Sonja com a cavalaria medieval, depreendem-se
semelhanças em aspectos fundamentais para a constituição do modo de operação de ambos,
principalmente no que tange os chamados ideais da cavalaria. Mesmo se tratando de uma
mulher visivelmente viril, Red Sonja exibe traços de generosidade e justiça. Conforme visto
em uma das primeiras passagens de “Wrath of the gods”, ao conhecer Gamble, e este alertá-la
da tempestade, ela prontamente o convida para entrar junto com ela na taverna. A ajuda aos
mais fracos é um dos traços que norteiam os valores da cavalaria ainda tão presente no
imaginário atual.
De acordo com o dicionário temático medieval, a cavalaria tem um código que norteia
as ações deste corpo guerreiro, dentre os principais preceitos deste código estão à proteção
para os mais fracos, e contra a injustiça em geral, característica também inerente ao demônio
da hircânia. Entretanto, não para neste quesito a correspondência de Red Sonja com a
cavalaria.
Quanto à indumentária, é percebia outra referência a cavalaria em Red Sonja. Citado
anteriormente, o conceito do traje da guerreira horwardiana consiste numa hibridização entre
os dois tipos armaduras utilizadas pelos cavaleiros, à cota de malha e a armadura de placa
completa. Outro aspecto de correspondência entre Red Sonja e a cavalaria também se refere à
vassalagem.
Como uma legítima representação do feudalismo, a cavalaria também em sua
constituição as relações de vassalagem, de modo que todo cavaleiro tinha obrigações com seu
senhor, sobretudo, no que se refere aos ideais de proteção do corpo guerreiro. No caso de Red
Sonja, esta relação de vassalagem tem a sua equivalência demonstrada em sua relação com a
deusa Mitra. Neste exemplo, Mitra concede proteção para a guerreira em troca da obediência
dos seus preceitos que se assemelham aos seguidos pela cavalaria medieval. A seguir nas
considerações finais mais ponderações sobre a personagem da época de Conan, o bárbaro.

Considerações Finais

Criada a partir de um próprio personagem do universo de Robert Howard, a Red


Sonya, Red Sonja, com muita ação e doses de sensualidade, com o passar das décadas
conquistou uma legião de leitores que perpetuaram a figura do demônio da Hircânia do
imaginário dos fãs das histórias em quadrinhos.
A importância e a relevância da personagem já lhe garantiram espaço em plataformas
midiáticas diferentes dos quadrinhos. Sendo o principal exemplo disso o seu filme
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“Guerreiros de fogo” produzindo nos anos 19κ0. σos quadrinhos, Red Sonja já protagonizou
ferozes batalhas e também notabilizou pelo “crossover” protagonizado junto com o Homem-
Aranha. Entretanto, Red Sonja não á apenas uma mulher ruiva com trajes mínimos no campo
de batalha, existem muitas referências de outros tipos de guerreiros na construção desse
personagem.
Entre as suas discrepâncias em relação às amazonas e suas semelhanças em relação à
cavalaria, surge um elemento novo, a comparação de Red Sonja com o próprio Conan, o
bárbaro. Preparada para ser uma mera auxiliar nas aventuras do anti-herói, a guerreira mesmo
com todo o espaço conquistado com o passar das décadas, ainda se apresenta como um
correspondente feminino ao cimério.
Por fim, entende-se assim com outras plataformas midiáticas merecem atenção e
estudo, os quadrinhos são parte importante na construção do imaginário da sociedade atual e,
dessa forma também devem ser estudados, pois, como produtos de uma determinada época, as
HQs reproduzem ideias e valores do seu tempo, além de compor o um dos pilares para o
entretenimento como é conhecido na atualidade.

REFERÊNCIAS

Armaduras disponível em http://www.armaduras.com.br/armaduras.php


BOYER, Régis. Mulheres virs. In. BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de Mitos Literários; Ed.
UNB, 1997.
Burke, Peter. Testemunha ocular: história e imagem/ Peter Burke ; tradução Vera Maria
Xavier dos Santos ; revisão técnica Daniel Aarão Reis filho. – Bauru, SP ; EDUSC, 2004
Carlos Manoel de Hollanda Cavalcanti. As mil faces do herói: o mito, o cavaleiro e suas
razões androcêntricas nas HQ’s de aventura. História, imagem e narrativas. No 2, ano 1,
abril/2006 – ISSN 1808-9895
Flori, Jean. Cavalaria in: Le Goff & Schmitt. Dic. Temático do ocidente medieval. Sp: edusc.
2002.
HACQUARD, Georges. Dicionário da Mitologia Gregas e Romana. Lisboa: Edições ASA,
1996.
LANJER, Johnni. O ensino de História Medieval pelos quadrinhos. História, imagem e
narrativas. No 8, abril/2009 – ISSN 1808-9895
Red Sonja disponivel em www.wikipedia.com
Red Sonja disponivel em universohq.com.br
Redsonja. Whath of the gods. Dynamitte entertanmeit

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A INTERPRETAÇÃO DA ÁRVORE DE JESSÉ NA IDADE MÉDIA1

Ana Caroline dos Santos2


(UEPB)
Anacaroline_018@yahoo.com.br
Jôkarlla Kataryne Oliveira Alcântara3
(UEPB)
Jokarlla_kataryne@hotmail.com

Introdução

Temos por objetivo mostrar neste trabalho A interpretação da Árvore de Jessé. O que
representa esta árvore e a quem está relacionada. Sabemos que o nome Jessé surgiu a partir do
nome original Isai que significa “homem servidor de Jessé”; Jessé é o pai do rei Davi. Há
inúmeras citações na Bíblia onde o próprio Deus remete-se a Davi e a sua descendência, é
possível constatar o nascimento de Jesus a partir da profecia encontrada no livro de Isaías
(11,1): “Virá um descendente do rei Davi, filho de Jessé, que será como um ramo que brota de
um toco, como um broto que surge das raízes”. Em suma, a árvore de Jessé é uma
representação da passagem de uma geração carnal a uma geração espiritual.

A criação do Mundo

É a partir do livro de Gênesis, que temos conhecimento sobre a origem do mundo. É


segundo este livro que vemos a criação do homem e da mulher, o homem aqui é representado
por Adão e a mulher por Eva.
Deus fez o homem e a mulher a sua imagem e semelhança. Ambos foram colocados
no jardim do Éder, quando Deus mostrou-lhes tudo que tinha criado, possibilitando a
desfrutar de tudo que havia sido feito, exceto a árvore que estava no meio do jardim: “A
mulher respondeu para a serpente: ‘σós podemos comer dos frutos da árvore do jardim. Mas
do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: ‘ Vocês não comerão dele nem o
tocarão, do contrário vocês vão morrer” (Gênesis, 3,2-3 p.16). Em desobediência a Deus, a
mulher se deixou influenciar pelas palavras da serpente (que aconselhara a comer do fruto da
árvore proibida para a obtenção do conhecimento), visto que o fruto era apetitoso, comeu e
ofereceu ao marido que também aprecio o fruto. A partir deste momento, o homem e a mulher
obtiveram discernimento, ou seja, o conhecimento do bem e do mal e percebendo que
estavam despidos, logo, envergonharam-se e buscaram pelo jardim alguma maneira de cobrir-
se:
Então a mulher viu que a árvore tentava o apetite, era uma delícia para os olhos e
desejável para adquirir discernimento, pegou o fruto e o comeu: depois o deu também ao

1
Texto apresentado para publicação na Universidade Federal da Paraíba
2
Aluna matriculada no curso de Letras Espanhol na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
3
Aluna matriculada no curso de Letras Espanhol na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
200
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marido que estava com ela, e também ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois, e eles
perceberam que estavam nus. Entrelaçaram folhas de figueira e fizeram tangas (Bíblia
Sagrada, p.16, 2007).
O homem e a mulher ao perceberem que Deus estava no jardim sentiram-se
envergonhados e logo Deus percebeu que sua ordem havia sido descumprida lançando sobre
eles sua ira. Da ira de Deus e do conhecimento do bem e do mal o pecado passa de geração
em geração, de descendência em descendência, desde Adão e Eva até os dias atuais.

Santa Ana mãe da Virgem Maria

Santa Ana foi a mãe da virgem Maria e avó de Jesus. Era filha do sacerdote Natã e de
Maria. Suas irmãs chamavam-se Maria de Cleófas, mãe de Salomé e Sapé, mãe de Santa
Isabel, que gerou João Batista. Casou-se com Joaquim e durante muito tempo prevaleceu
estéril concebendo Maria em idade avançada. Santa Ana morreu tempo depois de Maria, aos
(3) três anos de idade, ser consagrada a Deus no templo. No século XVI a igreja católica
consagrou Santa Ana como padroeira das mulheres grávidas e protetora dos navegantes.

O nascimento de Maria

Para se chegar ao nascimento de Jesus Cristo, é preciso conhecer a sua descendente,


Maria conhecida como imaculada Virgem Maria. Maria filha de Joaquim e de Ana foi fruto
de um milagre, pois sua mãe (hoje concebida pela Igreja católica como santa) era estéril e não
poderia dá a luz a uma criança. Maria aproximadamente aos 3 anos de idade, seus pais
atendendo aos preceitos da lei judaica, foi levada ao templo em Jerusalém para ser
consagrada e apresentada a Deus. Maria cresceu junto às paredes do templo humano. Maria
em sua juventude acreditava muito em Deus e seguindo seus preceitos, ela queria guarda-se, e
consagrar sua vida para Deus. Tudo o que ela fazia era de bom grado aos olhos do Senhor.
Segundo ela, sempre que fosse fazer algo, o faria bem feito, pois como Deus deu-lhe o dom
da vida, ela teria que retribuir tudo isso com perfeição. Aproximadamente aos seus 14 anos,
Maria recebe em sua casa a visita de José (o qual muito lhe admirava), porém no principio ela
não tinha pretensões para com José e sempre o tratava como amigo. José encantou-se pela
figura de Maria, uma jovem bela, meiga e serva do Senhor. Depois de muito tentar querer
viver do lado de Maria, José ao ver que a jovem guardava-se para o Senhor, decidiu pedir
Maria em casamento aceitando a sua inteira preservação para Cristo. Naquele tempo as jovens
judias eram obrigadas a casar cedo, em média entre seus 14 e 16 anos. Visto que Maria já
alcançava essa idade José resolve pedi-la em casamento. Maria sabendo que José era um
homem bom e trabalhador aceita o seu pedido, e os dois seguem uma vida casta buscando
seguir os ensinamentos de Deus.
Em certa tarde, Maria descansava no seu quarto quando apareceu-lhe um anjo, e falou
“Alegra-te cheia de graça, o Senhor está contigo”4. Maria assustada, não esboçou reação,
então o anjo falou: “σão tenhas medo Maria, porque você encontrou graça diante de Deus”

4
Evangelho de São Lucas I, 28.
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(Lucas 1,30) e revelou que Deus tinha lhe concebido um filho: “Eis que darás a luz um filho
e o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado filho do altíssimo, e o
Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; Ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o
seu reino não terá fim! (Lucas, 1, 31-33). Ao saber que Maria estava grávida, mesmo antes de
viverem juntos, José pensou em abandoná-la em silêncio. Foi quando em sonho o anjo do
Senhor lhe apareceu e falou que Maria iria conceber um filho através da ação do Espírito
Santo e que José teria a missão de dar um nome a Jesus, tornando-o descendente de Davi e
fazendo com que dessa maneira se cumprisse a profecia. Quando recebeu a tarefa, José a
cumpriu com responsabilidade: escutou atentamente o anjo e tomou Maria como esposa.
Diante dessa passagem bíblica podemos nos perguntar: Mas como pode surgir alguém
pura, se sua ascendência possui pecado? Para alguns teólogos ou estudiosos da Marialogia 5,
para que Jesus Cristo viesse ao mundo, ele teria que ser concebido por alguém pura, é
portanto devido a vontade de Deus que surge uma virgem sem pecado e sem mancha para dá a
luz a seu filho, ou seja, Maria já foi livrada do pecado mesmo antes de nascer. A isenção do
pecado das origens é uma graça que somente a virgem Maria e Jesus Cristo conceberam. Isso
quer dizer que Maria não foi atingida pelo pecado original e nem pelas consequências que ele
poderia gerar, pois ela foi a escolhida por Deus para ser a mãe do Salvador. Mas para que
Maria fosse concebida sem pecado, fazia-se necessário e justo que sua mãe, Santa Ana
também fosse gerada de pais sem pecados, visto que o pecado se passa de pai para filho,
teríamos a conclusão de que toda a família e descendência de Maria fosse única e
exclusivamente extraída do pecado original. Mas dúvidas surgem quando pensamos sobre a
existência de Adão e Eva, eles realmente existiram? E se existiram eles realmente pecaram? A
descendência de Maria não vem de Adão e Eva? Essas questões podem ter inúmeras
respostas vindas de estudiosos de Maria, da própria igreja, dos cientistas entre outros
estudiosos.
O fato de Maria não portar consigo a mancha original fez com que sua natureza
humana tivesse um poderoso equilíbrio a ponto de torná-la decidida a sempre fazer o que era
verdadeiro, correto e santo. Como o pecado não a escravizou Maria era portadora do
entendimento e da sabedoria, o que contribuíram para que ela tivesse lucidez diante da tomada
de decisões.

A interpretação da Árvore de Jessé

O tema que envolve a árvore de Jessé é a anunciação da vinda de Jesus Cristo para
salvação da humanidade. Jessé era o pai do rei Davi que em como citamos está em vários
trechos bíblicos e o nascimento de Jesus Cristo se dá pela descendência de Davi: “Virá um
descendente do rei Davi, filho de Jessé, que será como um ramo que brota de um toco, como
um broto que surge das raízes”. Também citado em Isaías (IX, 6) o nascimento de Cristo : “
Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre seus ombros, e o
seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz”. A

5
Conjunto de estudos teológicos a cerca de Maria
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genealogia de Jesus Cristo encontra-se no Evangelho de São Mateus no qual mostra toda a
descendência de Abrão até o nascimento de Jesus:

Abraão gerou a Isaque; Isaque, a Jacó, a Judá e a seus irmãos; Judá gerou de
Tamar a Perez e a Zera; Perez gerou a Esrom; Esrom, a Arão(...) Jacó gerou
José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo.De sorte
que todas as gerações, desde Abraão até Davi, são catorze; desde Davi, são
catorze(...)6

Se formos analisar literalmente o que representa a genealogia de Jesus na Bíblia no


Evangelho de Lucas, o evangelista interpreta como um nascimento virginal de uma linhagem
de Adão até Abraão, ou seja, a genealogia em Lucas mostra o alcance da Salvação em Jesus a
partir de José, levando até a sua origem. Já no evangelho de Mateus, o seu maior interesse é
em apresentar o Messias como salvador da humanidade. E a genealogia para ele era vista
como uma forma divinamente aceita na descendência do Messias. Tendo conhecimento que a
genealogia passada não continham nomes de mulheres, esse teria o motivo para aceitar que
Jesus mesmo nascido de uma virgem, fazia parte de descendência de Davi, porque José
também fazia parte, e ele foi o pai de Jesus.
Na Idade Média aproximadamente nos séculos XII a representação da árvore de Jessé
continha seis figuras dentre elas encontrava-se Jessé (deitado ou adormecido, brotando de
suas costas uma árvore), os descendentes, a Virgem, o menino Jesus, o Espírito Santo e os
profetas. Já no século e XIII a árvore modifica. Os reis antepassados de Cristo estão sentados.
No século XV a árvore surge com ramos dos dois lados e os reis ocupam outro lugar. Ainda
no século XV Nossa Senhora tem nos braços o menino Jesus, saindo do cálice de uma flor e
envolvida por uma aureola. Antigamente o Espírito Santo era representado por sete pombos
ao redor de Maria. Ainda no século XIII a direita da árvore é agregada com 12 profetas com
os olhos levantados para o céu. Todas essas representações da árvore de Jessé simboliza a
passagem da geração carnal (Jessé) á espirituais (Virgem e Cristo). A partir daí a Virgem
Maria toma maior importância e surgem maiores devoções a Imaculada. A ideia ou a verdade
da consagração foi reconhecida há muito tempo. Desde a idade média já exaltavam a Maria
como pura e santa. Para que esta ideia se consagrasse foi necessário que o franciscano Duns
Scoto em meados do século XIII, explicou o porque da Virgem Maria ser preservada do
pecado original(o pecado de Adão e Eva). O franciscano afirmou que seria de necessidade que
Deus livra-se Maria do pecado, pois como a virgem daria a luz a seu filho, Jesus. Fazia-se
evidente a onipotência de Deus, preservando a Maria. A própria Maria confirma ser
imaculada, Ela mesma afirma o Dogma da sua “Imaculada Conceição” quando aparece a
Santa Bernadete, em Lourdes, dizendo: “Eu sou a Imaculada Conceição.” E nós costumamos
afirmar o que foi dito pela Virgem Maria quando dizemos: ”Ó Maria, concebida sem pecado
rogai por nós que recorremos a vós.”.
São muitas as igrejas que tem a representação da árvore de Jessé. Entre elas a catedral
de Seviila, onde vários sevillanos trabalharam e projetaram com cerâmicas e azulejos e na
Virgem foi colocada uma coroa.

6
São Mateus ( 1,2-17)
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Outra grandíssima obra localiza-se na cidade do Porto em Portugal, que sempre foi
rota de comércio. Do Brasil vinham ouro e madeiras para enfeitar as igrejas locais, como é o
caso da igreja de S Francisco, a igreja ostenta 200kg de ouro recobrindo o altar, colunas e
pilares. O ponto mais alto da decoração é a árvore genealógica de Jessé, que mostra a
descendência de Cristo (os galhos da árvore apoiam mais ou menos 12 figuras que culminam
em Jesus ao lado da sua mãe e seu pai):

(I. S.Francisco, Portugal)

A basílica de St Denis é uma das principais igrejas com estilo gótico, foi umas das
primeiras construídas. A igreja é um enorme prédio e localiza-se ao norte de Paris. Esta igreja
a demais dos valores estéticos possui também a representação da árvore de Jessé.

Representação da árvore de Jessé(Basílica St Denis, França)


A igreja de Santa Maria do Castelo em Olivença pertence a território espanhol e está
situada dentro do castelo de Olivença, foi construída em meados do século XIII e foi
reconstruída no século XV. Também é uma das igrejas que possui a representação da árvore
de Jessé:
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Igreja de Santa Maria do Castelo ( Olivença)

Considerações Finais

No trabalho exposto tentamos relatar a interpretação da árvore de Jessé, buscando


informações que nos levem a um olhar crítico e um olhar representativo da genealogia de
Jesus. É importante termos em mente, que o real sentido da árvore genealógica de Jessé, é o
de representar por símbolos ou através de imagens, toda a descendência de Cristo desde Adão
e Eva, no qual surge o pecado e trazem consigo toda uma geração pecadora na qual, o pecado
é hereditário, e em um determinado momento, esse mesmo pecado rompe-se com o
nascimento de uma virgem que é preservada do pecado original e dá a luz ao Salvador da
humanidade.

Referências

Árvore de Jessé. In: Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora,2003-2012.[consultada em


03/06/12] disponível em : http://www.infopedia.pt/$arvore-de-jesse
KUPKA, Claudio, P. A árvore de Jessé. Disponível em:
<dnaj.org.br/dnaj/images/stories/arquivos_diversos/a_arvore_de_jesse.pdf> acessado em
07/06/2012
Breviário de Isabel, a católica. Disponível em:< http://www.moleiro.com/pt/livros-de-
horas/breviario-se-isabel-a-catolica/miniatura/863>acessado em 03/06/2012
ROSCHINI, Gabriel Pe. Mariologia. Disponível em
<pt.scribd.com/doc/13908369/MARIOLOGIA> acessado em 05/06/12
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GONÇALVES, Flávio. A <<árvore de Jesísé>>na arte portuguesa. Porto, 1986. Disponível
em: < http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2047.pdf> acessado em 07/06/12
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CHRISTIAN, Duquoc.Cristologia.In: Ensaio Dogmático I.2ºed.SãoPaulo:Loyola,2008,p.17
TASKER, R.V.G. Mateus: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2008, p.24 -27
MORRIS. L. L. Lucas: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 96 – 97
BIBLIA. Genesis. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo: Paulus, 1991, p. 16.

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MORTE CRISTÃ DO MEDIEVO: UMA FORMA DE REPENSAR O
CRISTIANISMO CONTEMPORÂNEO DIANTE DA MORTE

Ana Cândida Vieira Henriques


(UFPB)
anacandidavh@gmail.com
Viviane Cristina Cândido
(orientadora) (UFPB)
candido.c.viviane@gmail.com

Introdução

A morte enquanto fenômeno natural é caracterizada pela cessação da vida, pela


falência múltipla dos órgãos vitais que compõem o complexo corpo humano. Ela se apresenta
como uma realidade viva que ceifa a vida de toda a humanidade e do seu destino, o homem
não consegue se esquivar. Por sermos seres mortais, estamos predestinados a este fim, a um
morrer enigmático que nos amedronta durante toda a vida. O medo do desconhecido, do que
há por vir, nos persegue desde nosso nascimento, nos condenando a um existir angustiante,
tudo isso é inerente à nossa própria condição humana, pois está no cerne da constituição do
ser.
O homem, desde a época mais arcaica de existência, faz indagações acerca de sua
natureza humana e divina. Esforça-se para desvendar sua origem, sua função no universo e
também seu destino final. Pela sua natureza humana, é dotado de inteligência e capacidade de
discernimento quanto ao que acontece consigo, com os outros e com o mundo. Sua
consciência atesta a vivacidade da morte na vida, ambas se misturam, se confundem, uma
começa quando a outra termina, despertando temores e angústias que perduram por toda
existência humana.
Nesse viés, pretendemos direcionar nosso olhar para uma investigação contextualizada
acerca das atitudes diante da morte e do morrer, numa perspectiva cristã medieval. Em nosso
trabalho, faremos um recorte histórico enfatizando a dimensão antropológica e cultural da
morte, visando apontar as diferenças no tocante ao tratamento da morte no cristianismo
medieval e moderno. Desta forma, desejamos trazer à tona um objeto oculto e estigmatizado
pela sociedade contemporânea, pois o tema da morte, em nosso contexto, é sistematicamente
extirpado desde as simples conversas do cotidiano até os ambientes mais propícios, como os
acadêmicos, onde deveria ser abordado com mais frequência.

Cristianismo: Teologia Ressurreicionista

A concepção cristã acerca da mortalidade do homem atesta que a morte não é o fim,
apenas uma ruptura entre as dimensões materiais e imateriais da existência humana. Para o
cristianismo, a ressurreição de Jesus se tornou o dogma central da religião por ser uma
verdade inquestionável e é nesse dogma que a doutrina cristã se ampara. A ressurreição

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simboliza a vitória da vida sobre a morte. Os preceitos cristãos conservam uma lealdade em
relação ao homem para além da morte, revelando um Deus que ressuscita os mortos, que dá
vida plena e abundante a todos os crentes. Desta forma, como ponto de partida, estabelece a
superação da morte atenuando a angústia humana sofrida.
As concepções e preceitos cristãos são amparados por uma teologia ressurreicionista
que propõe uma vida posterior à morte como a verdadeira vida. Essa proposição de
imortalidade vem como aporte às atitudes do homem durante sua jornada temporal baseadas
na obediência. A observância de preceitos que corroborem para uma conduta ilibada
favorecerá ao homem a chance de alcançar a tão sonhada salvação, e esta por sua vez,
conduzirá o cristão a gozar das benesses celestiais.
A doutrina cristã, ao longo do tempo, sofreu influencia quanto à ampliação da ideia de
ressurreição. Algumas concepções influenciaram para tanto, como foi o caso do modelo
dualista platônico e agnóstico, no qual o homem é composto por dois princípios, um espiritual
(alma) e outro material (corpo). Esta noção de uma vida após a morte, a princípio, foi
influenciada pelas culturas egípcia e persa. Estes povos tinham a crença numa “mansão dos
mortos” 1, onde os mortos viviam como “sombras”, distantes de Deus e dos próprios homens
(BLANK, 2000, p.67).
Diante de tais influências teológicas, a ideia de ressurreição dos mortos surge
semelhante ao que se concebe hoje com relação à ressurreição do corpo. No contexto sócio
histórico do antigo testamento, ainda não se tinha um conhecimento claro e exato acerca da
noção de julgamento, céu e inferno. Estes conceitos surgiram pelas constantes discussões
sobre a ressurreição no início do cristianismo. A partir destes conceitos surge a noção de um
“Reino de Deus”. Essa noção está atrelada a uma literatura apocalípta ricamente representada
por imagens, símbolos e elementos míticos, na qual este reino é misteriosamente revelado.
Essa linguagem simbólica foi facilmente entendida pelas comunidades daquela época, onde os
símbolos se faziam presentes no cotidiano das pessoas.
Por séculos, através da catequese cristã, foi repassado um modelo tradicional daquilo
que acontece na morte do ser humano. Renold Blank (2000) sequencia muito bem esta
concepção quando diz que,

Na morte, a alma se separa do corpo e entra numa nova dimensão, chamada


eternidade. Nesta nova dimensão, a alma da pessoa está sendo julgada por
Deus no assim chamado juízo particular. Conforme o resultado deste juízo, a
alma ou entra diretamente no inferno, ou, depois de ter passado talvez certo
tempo no purgatório, entra no céu. Ela aguarda, numa situação de felicidade
ou de tormento, a chegada do juízo final. Quando o momento deste segundo
juízo chegar, acontecerá também a ressurreição do corpo e, de novo
conforme o resultado dos dois julgamentos, a alma humana, agora reunida
com o seu corpo, passará para toda a eternidade numa situação de felicidade
total, chamada céu, ou de tormento inimaginável, chamado inferno
(BLANK, 2000, p.75).

1
Também conhecida como Scheol ou Xeol. Em hebraico significa túmulo, cova ou abismo. No Cristianismo, é a
destinação comum de todos os homens, bons e maus.
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Blank (2000) passeia pelo campo tradicional de um modelo que colabora para atender
as expectativas religiosas ensinadas e interiorizadas por gerações de cristãos. A morte,
segundo a crença da maioria dos cristãos, só atinge o corpo. Esta constatação pode ser vista
pela deterioração do cadáver, através das exumações. Mais como manter viva uma fé numa
vida após a morte diante de um corpo sem vida? Para explicar este fato, o modelo
antropológico binário – antigamente chamado de dualista - vem preenchendo esta lacuna de
uma forma satisfatória. Para este modelo, a alma é imortal, constitui a essência humana, e na
morte, esta alma se separa do corpo para dar prosseguimento à outra vida, agora numa
dimensão espiritual sem vínculos materiais.
A bíblia, por sua vez, oferece aos cristãos outra concepção antropológica sobre o
fenômeno da morte. Para ela, o ser humano é uma unidade indivisível, na morte a alma não se
separa do corpo. Com isso descarta o dualismo ontológico grego, baseado nos dois princípios,
corpo e alma. A partir de enfoque bíblico, o artigo “Alma e imortalidade” de Herbert Haag
confere essa versão bíblica quando diz que,

O Antigo e Novo Testamento concordam totalmente na concepção de que


Deus criou o homem como uma unidade psicofísica. Nesta unidade, que é a
sua essência, Deus o destinou para uma existência incorruptível (...). Em
nenhum caso, no testemunho dos textos bíblicos, a noção “alma” significa
um ser puramente espiritual que, em si mesmo, independentemente do corpo
já possui a imortalidade ou a incorruptibilidade. A noção “alma” é, para o
antigo e novo testamento, a designação para o ser humano, que é marcado de
maneira global pela sua natureza espiritual e que, por causa disso, é aberto
para Deus (...) (HAAG, 1969 apud BLANK, 2000, p.82).

Com base em discussões e posicionamentos dessa natureza na teologia, chegou-se a


uma nova compreensão acerca dos acontecimentos com o homem na morte. Essa nova
concepção tem no seu cerne a crescente conscientização de que, de fato, a alma não pode ser
separada do corpo, mas sim, entendida como princípio integrativo do ser humano. A
concepção filosófica de Tomás de Aquino, de que o ser humano é uma única substância e,
portanto indivisível, pois se dividida e separada, deixa de ser aquela substância, veio
contribuir sobremaneira para uma superação do modelo dualista e para uma nova descoberta
do modelo bíblico (BLANK, 2000, p. 82-90).
A escatologia cristã contemporânea teve que enfrentar um novo desafio, formular um
novo modelo que pusesse fim as contradições do modelo antigo acerca da ressurreição na
morte. O grande desafio foi responder às questões relacionadas à sobrevivência do homem na
morte, diante da realidade inegável do cadáver. Para tanto, novos pressupostos filosóficos e
científicos elaborados nas últimas décadas do século XX, mais precisamente na década de 70,
permitiram uma nova resposta a essas indagações.
No novo modelo, o homem na sua morte entra numa nova dimensão atemporal
chamada eternidade. Nesse momento, o tempo deixa de existir como dimensão existencial
deste homem, significando que a sua morte é o fim dos tempos. Diante disso, já que não há
tempo, também não pode haver nenhuma passagem transcorrida entre um acontecimento e
outro. Desse modo, o momento da morte é o mesmo do final dos tempos na eternidade.
Portanto, acontece como a Igreja sempre declarou, a ressurreição do corpo acontece no final
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dos tempos, e esse final dos tempos se realiza na morte, então ambos acontecem
simultaneamente. Na visão cristã, a morte humana não representa uma aniquilação, mas sim
uma profunda transformação de todo ser, tendo sua identidade total e global preservada, visto
que o homem é constituído como uma única substância (BLANK, 2000, p.105-110).

Atitudes diante da morte: do medievo à modernidade

A morte tanto possui uma dimensão biológica quanto uma dimensão social, visto que,
comporta os fatos relativos à vida humana. Ao longo dos séculos, as atitudes diante da morte
e do morrer sofreram uma grande transformação sociocultural desde a idade média até os dias
atuais, marcando profundamente toda a sociedade pós-moderna. Estas mudanças ocorreram
de uma maneira lenta, quase imperceptível, mas de uma forma concreta, contribuindo para um
quadro de negação da morte na contemporaneidade ocidental.
Desde a antiguidade até a idade média, a morte adquiriu um caráter familiar e
doméstico. Era encarada como parte integrante da existência humana, pois desde seu
nascimento, a própria cultura já se encarregava de fornecer uma consciência de sua finitude.
Na antiguidade ocidental, percebemos uma atitude paradoxal quanto à familiaridade da morte,
pois ao mesmo tempo em que a consideravam familiar, praticando cultos nas sepulturas,
temiam uma proximidade, mantendo os mortos a distância. Por essa razão os cemitérios eram
situados à beira das estradas, fora da cidade, longe das aglomerações (RODRIGUES, 2006,
p.106-107).
σo entanto, de acordo com Philippe Ariès (2003, p.3ι), “τs mortos entrarão nas
cidades, de onde estiveram afastados durante milênios”. A coexistência entre os vivos e os
mortos se torna real, o mundo dos vivos se mistura ao mundo dos mortos, tornando a morte
cada vez mais familiar. Desta forma, igreja e cemitério se fundem, proporcionando uma
convivência pacífica entre vivos e mortos. Algumas mudanças sutis foram surgindo no fim da
idade média, apresentando conotações dramáticas e pessoais quanto à familiaridade
tradicional com a morte, principalmente entre as classes instruídas. Segundo Ariès (2003),

(...) é preciso ter presente que esta familiaridade tradicional implica uma
concepção coletiva da destinação. O homem desse tempo era profunda e
imediatamente socializado. A família não intervinha para atrasar a
socialização da criança. Por outro lado, a socialização não separava o
homem da natureza, na qual só podia intervir por milagre. A familiaridade
com a morte era uma forma de aceitação da ordem da natureza, (...). Com a
morte, o homem se sujeitava a uma das grandes leis da espécie e não
cogitava em evitá-la, nem em exaltá-la. Simplesmente a aceitava, apenas
com a solenidade necessária para marcar a importância das grandes etapas
que cada vida devia sempre transpor (ARIÈS, 2003, p. 46-47).

Percebemos que existia até então uma consciência coletiva quanto à finitude humana,
uma grande resignação quanto ao destino coletivo das espécies, uma consciência de que um
dia morreremos. A partir do século XV é que começa uma nova concepção acerca do juízo
final, o qual será concebido de forma individual e no leito de morte. Esse rito adquire um
aspecto dramático, pois, carregado de emoção, o moribundo trava uma luta individual através

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de uma grande ação cósmica. Nesse momento, o indivíduo revê toda sua trajetória de vida,
reconhecendo-se como ser único e responsável pela sua própria história.
Quanto aos costumes diante da morte, estes se diferenciam entre as classes sociais,
sendo essa diferenciação desde o ritual que precede a morte até o local estabelecido para as
sepulturas. Um novo sentido então é dado à morte através do homem da sociedade ocidental,
ela tende a adquirir um aspecto dramático quando se refere à morte do outro. Além do caráter
dramático, a morte também adquire um sentido erótico através das iconografias, mais
precisamente no fim do século XV. Começam a associá-la ao amor, na medida em que através
das imagens o homem tem seu corpo violado. Da mesma forma que o ato sexual era
considerado uma transgressão por arrebatar o homem do seu mundo racional, do seu cotidiano
e lançá-lo num mundo irracional, violento e cruel, assim era também a morte. Contudo, ainda
estava longe de se tornar apavorante e obsessiva, continuava familiar e domada (ARIÈS,
2003, p.64-65).
No período medieval, as práticas rituais relativas à morte eram compostas por
cerimônias tradicionais na qual o moribundo era a figura central. Estas cerimônias
transcorriam com simplicidade, sem dramaticidade e sem exageros nos gestos emotivos. O
quarto onde se encontrava o jacente tornava-se palco de uma cerimônia pública e organizada,
onde a família, os parentes, os amigos e inclusive as crianças faziam-se presentes. O ritual
realizava-se através de uma evocação triste e discreta do moribundo. Logo após, o mesmo
pedia perdão a todos que ali estavam e os recomendavam a Deus. Em seguida, pedia perdão a
Deus através de preces para depois recomendar sua própria alma. Por último, era a vez do ato
sacramental, onde o sacerdote ministrava a absolvição em remissão aos pecados cometidos,
aspergindo água benta no jacente (ARIÈS, 2003, p. 32-33).
Os funerais eram compostos por quatro fases fundamentais. A primeira fase das
exéquias iniciava-se imediatamente após a morte e era marcada pelas expressões dramáticas
de dor. Consistia em atitudes carregadas de dramaticidade exagerada, pois os participantes
“rasgavam suas roupas, arrancavam a barba e os cabelos, ralavam o rosto, beijavam
apaixonadamente o cadáver, caíam desmaiados e, no intervalo de seus transes, faziam elogios
ao defunto” (ARIÈS, 19ιι apud RτDRIGUES, 2006, p.105).
A segunda fase consistia na absolvição do cadáver pelo sacerdote. A terceira fase era o
cortejo fúnebre, no qual a família e os amigos o acompanhavam até o local da inumação. A
quarta e última fase era a inumação, que consistia num curto ato sem nenhuma solenidade
(RODRIGUES, 2006, p.105).
Alguns costumes precediam e sucediam os funerais. Antes do funeral, os familiares
tinham um cuidado todo especial com o cadáver. Eles banhavam o corpo, cortavam as unhas,
aparavam o cabelo, vestiam a mortalha, entrelaçavam os dedos das mãos e colocava um
rosário. Depois o corpo ficava exposto sobre uma mesa durante dois ou três dias para o último
adeus dos familiares e amigos, estes por sua vez caracterizados pela vestimenta de luto.
Após o funeral, eles costumavam fechar as janelas da casa, cobriam os espelhos,
paralisavam os relógios, acendiam velas e aspergiam água benta pela casa. Essas eram as
práticas habituais daquela época e os familiares as cumpriam religiosamente. Quanto às
manifestações de luto, os familiares se vestiam usualmente com vestimentas totalmente
negras e não participavam de nenhuma atividade social, até que ocorresse a cicatrização da
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ferida causada pela dor da perda e da separação. Todas estas interdições eram cuidadosamente
respeitadas até a reintegração dos familiares à vida normal em sociedade (MARANHÃO,
1998, p.8-9).
Já na contemporaneidade, as práticas e costumes antigos foram sendo tolhidas e
substituídas pela proibição da dor. Esse novo comportamento tem como finalidade poupar a
coletividade da dor e de qualquer ato que possa incomodá-la. O luto que era regido por regras
coletivas, passa a ser relegado a iniciativa individual, exigindo do indivíduo enlutado um
equilíbrio emocional quanto a expressão de seus sentimentos. Toda e qualquer expressão de
exaltação emocional coletiva foi eliminada, desta forma, o luto se privatizou, sendo praticado
somente pelos parentes mais próximos (RODRIGUES, 2006, p.164).
A morte que era tão presente e familiar, agora se tornara vergonhosa e objeto de
interdição. Ela vai sendo apagada do convívio das pessoas, vai se esvaziando quanto ao seu
sentido e distanciando-se cada vez mais da vida da sociedade ocidental contemporânea. Ela se
torna um tema proibido, algo inominável. Parece que essa nova atitude diante da morte tem a
finalidade de preservar a felicidade, pois as pessoas não estão encontrando mais um padrão de
comportamento adequado diante dela. Pela nova postura de negação da morte, a sociedade já
não consegue mais suportar sua ritualização. Os ritos fúnebres foram neutralizados e
modificados na sua essência com a intenção de esconder a morte.
Todas essas mudanças de atitudes tiveram como causa a transferência da morte para os
hospitais. Com isso, os ritos que precediam a morte foram exterminados, agora o enfermo não
é mais dono do seu destino, um novo ator desponta no cenário, o médico. Ele é quem ditará as
regras a partir de agora, amparado por uma tecnologia que tende a prolongar a vida, nem que
para isso o enfermo viva de maneira inconsciente. Os preparativos do funeral, que antes era
missão dos familiares, passam para a responsabilidade de terceiros. A família não deseja mais
arrumar o cadáver como antigamente, delega essa tarefa que era tão familiar para outras
pessoas que nem sequer viram nem conviveram com o morto.
O cortejo fúnebre, que antes começava no seio da família, rodeado pelos parentes e
amigos, transmigrou para as casas funerárias, especializadas na prestação de serviços
eminentemente funerários. Se antes o defunto ficava exposto por dias na sala de sua casa,
agora ele não passará mais que algumas poucas horas diante das pessoas que ali se encontram
para despedir-se. Torna-se cada vez mais comum o caixão no qual o defunto se encontra ficar
fechado, longe dos olhares. Uma tendência quanto ao uso do caixão, segundo Rodrigues
(2006, p.114) é que “(...) a generalização do uso de caixões, em que os mortos serão fechados
e subtraídos aos olhares (não se trata simplesmente da ocultação do rosto, mas da ocultação
do cadáver)”.
As exéquias após a morte permanecem até hoje, porém sem alguns atributos
específicos do passado. As quatro fases posteriores à morte do indivíduo são o luto, a
absolvição, o cortejo e por fim, o enterro. No que se refere ao luto, não carregam mais a carga
dramática, que era uma atitude exclusivamente ritualizada e se dava imediatamente após a
morte. Quanto à absolvição, agora se realiza com o morto e não com o moribundo. O cortejo
continua sem a presença de um religioso, e com relação à inumação, não houve mudanças
significativas, continua sendo realizada de forma simples, rápida e discreta (ARIÈS, 2003,
p.107-109).
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Conclusão

As atitudes diante da morte passaram por inúmeras transformações na sociedade cristã


ocidental contemporânea. O temor e a negação invadiram extensões inteiras dessa civilização.
Percebemos uma verdadeira revolução das práticas funerárias acontecerem a partir dos
séculos XIX e XX, através de uma grande reformulação dos pensamentos e sentimentos a ela
relacionada. A morte que sempre foi exaltada e desejada no período medieval vai perdendo no
dia a dia todo o encantamento e valor que lhes foram atribuídos, passando a ser encarada com
aparente indiferença.
Apesar das mudanças lentas, percebemos claramente como o tratamento da morte no
cristianismo medieval difere do tratamento moderno. Verificamos pela história da morte e
pelo comportamento dos novos cristãos, desenvolvidos a partir de investigações científicas,
que as atitudes diante da morte sofreram grandes alterações no decorrer do tempo que
corroboraram para um quadro contemporâneo de negação da morte. Diante disso,
compreendemos que a morte ocupa um lugar essencial e central em nossas vidas, justificando
a importância do seu estudo para a existência humana, pois, como bem diz Edgar Morin, “É
impossível conhecer o homem sem lhe estudar a morte, porque, talvez mais do que na vida, é
na morte que o homem se revela. É nas suas atitudes e crenças perante a morte que o homem
exprime o que a vida tem de mais fundamental”.

Metodologia

Como nosso objeto de estudo refere-se a um fenômeno oculto pela sociedade, fizemos
uso da pesquisa exploratória quanto aos objetivos, pois a mesma visa proporcionar maior
familiaridade com o problema com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses.
Com relação aos meios técnicos, a pesquisa bibliográfica forneceu o suporte necessário
através de livros de autores clássicos e contemporâneos. Quanto à abordagem do problema,
percebemos uma relação dinâmica entre o mundo real e mundo dos sujeitos, exigindo uma
compreensão dos significados do fenômeno através da pesquisa qualitativa, que nos
proporciona um solo fértil para interpretações, descrições e comparações.

REFERÊNCIAS

ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.


BECKER, E. A Negação da Morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976.
BLANK, Renold J. Escatologia da pessoa: vida, morte e ressurreição. São Paulo: Paulus,
2000.
MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte. São Paulo: Brasiliense, 1998.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da morte. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.

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O LIRISMO E O MISTICISMO MEDIEVAL EM ADÉLIA PRADO

André Sérgio Soares Guedes Trigueiro


(UFPB)
andressgt@hotmail.com
Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne
(Orientadora/UFPB)
lucianaeleonora@yahoo.com.br

Mesmo não sendo uma particularidade medieval, não se pode negar a dificuldade
encontrada pela mulher, também nesse período, para afirmar-se ou simplesmente adentrar-se
no território das letras, enquanto sujeito da enunciação. Apesar do testemunho das trobairitz,
como é o caso da Condessa de Dia, percebemos que a poesia trovadoresca foi
predominantemente praticada por homens. Nesse sentido, apesar dos trovadores terem, em
muitos casos, exaltado as mulheres e expressado sua poética através de um eu-lírico feminino,
assumindo a posição de uma delas, como é o caso das cantigas de amigo, temos, em grande
parte, a voz do outro a respeito delas e não a própria voz feminina a falar e a imprimir mais
fortemente o seu universo na literatura: “τcupar o território do escrito é para a mulher da
Idade Média uma grande empresa, acompanhada da consciência de uma infracção ou de uma
audácia, de uma timidez ligada à incapacidade do sexo” (RÉGσIER-BOHLER, 1990, p. 525).
Quando praticada por mulheres, a posição do eu-lírico assumia uma autoridade
feminina, invertendo os papéis sexuais de objeto de desejo inatingível e exaltado, mas
passivo, observado nas cantigas dos trovadores, para um papel ativo em que o eu-lírico
feminino se torna o “pregador”, aquele que roga o amor do “amigo”. Contrariamente ao que
acontece com a “senhora”, enaltecida por suas qualidades físicas e morais, o “amigo” ora é
descrito pelo eu-lírico como um traidor, não merecedor do amor cortês, ora se torna um objeto
de desejo, cobiçado e seduzido pelo eu-lírico feminino. É certo que, apesar de se constituírem
uma espécie de paródia, de reverso do código de amor cortês, as cantigas das trobairitz não
inovaram do ponto de vista formal e temático.
Consideramos que ainda não é na literatura como a concebemos hoje e, dentro dela, na
lírica trovadoresca que vemos nascer uma escrita marcadamente feminina, onde a mulher
assume a consciência do ato de escrever e afirma sua identidade como autora. É
principalmente na dita espiritualidade feminina ou Mística feminina medieval que vão surgir
autoras mais conscientes do seu papel de escritoras, como são os casos de Hildegarda de
Bingen, no século XII, e Beatriz de Nazaré, Hadewich de Amberes e Margarida Porète, nos
séculos XIII e XIV. Incluímos, entre as místicas, a escritora leiga Christine de Pizan, que
escreveu entre os séculos XIV e XV obras de denúncia contra o poder patriarcal, sendo
considerada a primeira feminista ocidental, com sua obra A Cidade das Damas.
Essas mulheres demonstravam possuir grande cultura literária e conhecimento
teológico, tinham consciência do seu papel ativo na transmissão de uma mensagem divina,
pois se sentiam eleitas pela graça de Deus e impelidas a escrever por uma força superior a elas
que, portanto, legitimava sua produção e vocação, tinham consciência que atingiam um
público específico que as incentivava e estavam conscientes de que a condição feminina
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implicava em oposição por parte da sociedade, o que pode ser constatado nas expressões de
modéstia e humildade das quais elas faziam uso: “τ espanto dos contemporâneos foi grande
ao verem estas mulheres manifestarem-se no terreno teológico e abarcarem a amplitude das
questões religiosas” (RÉGσIER-BOHLER, 1990, p. 541).
Em linhas gerais, o misticismo medieval defende a união íntima e direta do ser
humano com Deus através da vida contemplativa, que ultrapassa o uso da razão. É uma
experiência subjetiva da alma:

Mística é então, nesse contexto, discurso sobre a relação com Deus daquele
que faz um percurso que implica o envolvimento num trabalho de
despojamento de si, para deixar-se transformar pelo totalmente Outro que,
em sua grandeza e liberdade, é absolutamente transcendente, impossível para
o entendimento e o querer humanos (MARIANI, 2009, p. 371).

Através da meditação, mergulha-se no mais fundo da alma humana em busca da


imagem de Deus. Já na contemplação, busca-se fundir o ser do homem com o ser de Deus. O
pesquisador e tradutor Pablo María Bernardo, em uma das notas da introdução do livro Deus,
amor e amante, no qual as cartas da mística Hadewijch de Amberes estão traduzidas, revela a
dificuldade de se definir o termo “mística”:

[...] de uso tão freqüente quanto impreciso, obriga a recordar o sentido


tradicional que tem na literatura espiritual cristã. Refere-se a uma
experiência de Deus de ordem interior e se relaciona estreitamente com a
palavra contemplação, que expressa nova maneira de operar de espírito
humano e de suas faculdades, por um dom de Deus que pode ser transitório,
porém que, normalmente, vai-se enraizando no ser profundo do homem para
transformá-lo e divinizá-lo (1989, p. 7).

Apesar da diversidade das formas de expressão, a mística feminina é marcada pela


enunciação das experiências espirituais das mulheres em suas próprias línguas (alemão,
francês, flamengo, italiano), e não em Latim. Não havia mediadores entre elas e Deus, o
transmissor da mensagem. Elas comunicavam essa união e intimidade com Deus, como é o
caso das beguinas, através de descrições de êxtases, relatos de visões e expressões de
desnudamento da alma. Veja-se, por exemplo, o início da Carta I, na qual Hadewijch de
Amberes chama a destinatária de irmã e filha:

Como Deus ao passar entre nós manifestou o claro amor, outrora ignorado,
iluminando com a claridade do amor todos os aspectos da condição humana,
digne-se também iluminar-te e pôr-te na luz dessa claríssima claridade que o
permite ser transparente, tanto para si mesmo como para seus amigos e seus
amantes íntimos (1989, p. 33).

O uso da linguagem verbal, como o uso de metáforas relacionadas ao corpo e aos


sentidos, não era suficiente para expressar a ligação do ser humano com o seu Criador. Por
extrapolar a racionalidade, a linguagem corporal, como o grito e o pranto, era amplamente
utilizada.
Em muitos casos elas diziam não se sentirem aptas para a escrita, o que acentua o dom
dado por Deus para escrever e realça certa espontaneidade percebida nos escritos:
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Os textos da espiritualidade feminina são documentos indispensáveis para a


consciência de uma subjectividade. Relacionar esta última com esta
linguagem de mulheres é não só escutar a palavra que circula, criadora de
laços do grupo, mas também sopesar a própria existência da pessoa. O
sujeito – personagem que a crítica literária contemporânea acha
simultaneamente fascinante, enigmática e por vezes bem embaraçosa para o
percurso hermenêutico – é rei nestas obras, ainda que atravessado e
trabalhado por Deus, como muitas dessas mulheres afirmam, visitadas pela
graça, submissas e ancilares (RÉGNIER-BOHLER, 1990, p. 583).

2. Hadewijch de Amberes e o movimento das beguinas

Uma dessas místicas que se diziam visitadas de forma especial pela graça de Deus
desde a infância é Hadewijch de Amberes. Ela escreveu, durante o século XIII, suas Visões,
Poemas e Cartas, nas quais, com muita frequência e intensidade, fala do Amor-Deus, da
Trindade e da condição humana: “Es en las Cartas donde Hadewijch puede desarrollar mejor
todos los recursos de su lengua y La riqueza de su teología espiritual” (ÉPINEY-BURGARD;
BRUNN, 2007, p. 165).
Sua desenvoltura com a palavra e seu conhecimento geral parece indicar que ela foi
educada num convento ou numa comunidade de beguinas, fato comum às crianças da época:

O fato, porém, de que, junto a esta sabedoria recebida por canais


sobrenaturais, demonstre tão grande conhecimento da literatura profana, a do
amor cortesão, por exemplo, nos confirma que sua educação não se deu
exclusivamente em ambiente fechado. Suas cartas mostram-na
desempenhando a função de mestra espiritual, e suas discípulas conhecem
seus dons eminentes apesar do pouco que lhe respondem. Em torno dela,
calúnias, e em sua comunidade, divisões. As dificuldades não parecem ter-
lhe sugerido, em nenhum momento, a idéia de passar a outro convento, como
fizeram tantas beguinas (Bernardo, 1989, p. 8).

O período compreendido como Baixa Idade Média (século XI ao XV), sobretudo o


século XII, viu nascerem novas ordens religiosas, como os Cistercienses e os Mendicantes,
Ordens Militares, com o envio de Cruzadas à Terra Santa, e movimentos de contestação
insatisfeitos com o espírito monástico e com a burocratização hierárquica, a opulência e o
domínio do alto clero da Igreja, como foi o caso dos goliardos, dos cátaros e das beguinas.
Hadewijch fez parte do movimento das beguinas nos Países Baixos, que era formado por
mulheres piedosas que queriam servir a Deus e ao próximo, sobretudo à causa dos pobres e
necessitados, mas não queriam estar sob o rígido controle das comunidades dirigidas por
homens, como os mosteiros.
Em relação à poética dessas místicas, em especial da flamenca Hadewijch, em muitos
pontos se aproximam com traços da lírica trovadoresca, do ponto de vista formal e temático,
como a menção à estação primaveril, da renovação da natureza, a divisão das estrofes, a
variedade de ritmos, a utilização do envoi, finalizando o poema. Em relação ao tema do Amor,
as pesquisadoras Georgette Épiney-Burgard e Émilie Zum Brunn observam:

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El amor (Minne) es cantado bajo aspectos que reflejan la polivalencia de esta
palabra. Esse amor (feminino em neerlandés y en alemán) es presentado
como una persona: dama, reina, maestra suprema, cuya fuerza y riqueza se
alaban, y que impone su ley. A este tema del amor personificado se unen
imágenes de la vida caballeresca: la aventura (avounture), la calbagada, la
justa, la cacería donde el amor persigue y se deja perseguir. Aparecen
también esos enemigos que la poesía cortesana llama los losengiers,
maledicentes que tratan de destruir el amor y que, en Hadewijch, que les da
una significación más elevada, son los extranjeros (vremde) que se niegan a
conocer al amor y se oponen a quienes lo sirven.(2007, p.158)

3. Adéçoa Prado: “Assim na terra como no céu”

3.1 Notas sobre os traços estilísticos de Adélia Prado

A escritora Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu no dia 13 de dezembro de 1935,


numa pequena cidade mineira chamada Divinópolis. Casou-se com José Assunção de Freitas
em 1958. Em 1973, a professora de escola pública e dona-de-casa Adélia Prado envia uma
carta e os originais de seus novos poemas ao poeta e crítico literário Affonso Romano de
Sant'Anna, que gosta do que lê e comenta com o já consagrado poeta Carlos Drummond de
Andrade. Este sugere ao editor da Imago, Pedro Paulo de Sena Madureira, que publique um
livro dela. Ele recebe os originais do próprio Drummond e empolga-se com os poemas. Em
1976, com quarenta anos de idade e mãe de cinco filhos, é lançado no Rio de Janeiro
Bagagem, o primeiro livro de poemas da até então desconhecida poeta Adélia Prado.
A título de informação, os livros de poesia lançados por Adélia Prado até o presente
momento foram: Bagagem (1976), O coração disparado (1978), Terra de Santa Cruz (1981),
O pelicano (1987), A faca no peito (1988), Oráculos de Maio (1999) e A duração do dia
(2010).
Sobre ela, escreveu Drummond em uma crônica de 1975: "Adélia é lírica, bíblica,
existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus.
Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis” (INSTITUTO MOREIRA SALLES, 2000). O
comentário do poeta nos deixa antever o cotidiano e o sagrado presentes na obra de Adélia
Prado.
Sua linguagem é marcada pela hierofania, pelo onírico, pela espontaneidade, pela
ironia, pelo humor e por certa coloquialidade, o que não exclui uma cuidadosa elaboração
artística e um domínio da língua, mas que, antes, ressaltam o seu estilo e o tom da sua poesia.
O conceito de hierofania, que podemos aplicar à poesia de Adélia Prado, foi definido
pelo pesquisador Mircea Eliade como o ato de manifestação do sagrado para se referir a uma
consciência fundamentada da existência do sagrado, quando se manifesta através dos objetos
habituais de nosso cosmos como algo completamente oposto do mundo profano. No livro O
sagrado e o profano (1992, p. 13), Eliade explica:

Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até a
mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra
coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do
meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma
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pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista
profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos
olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda se
numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma
experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como
sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma
hierofania.

Assim, a poética adeliana pode ser considerada uma poética mística, pois, como
defende o Prof. Dr. Josias da Costa Júnior, no artigo Religião e literatura na poética mística
de Adélia Prado: “É nesse sentido que a poética de Adélia Prado é religiosa, pois tem a
capacidade e a sensibilidade de captar essa dimensão sagrada do mundo nas coisas mais
simples e corriqueiras” (2012, p. 12ι).
Em sua concepção de poesia, perpassa uma noção de experiência do divino através do
corpo e das relações humanas. Trabalhos como do Arauto da Palavra que corta, o Poeta
(2011) e O desejo no olhar: o gozo outro na poesia de Adélia Prado (1999) mostram como o
corpo é assumido como um espaço sagrado.
Além da relação com o sagrado, podemos perceber nos seus poemas uma forte
presença do cotidiano de uma vida simples, da paisagem local, das vicissitudes da vida, da
incompletude da natureza humana, do amor carnal, do erotismo, da relação entre um homem e
uma mulher e do convívio entre o ser humano e seus semelhantes, partindo para reflexões
mais profundas e metafísicas.
Os poemas de Adélia Prado apresentam como traços estilísticos a ressignificação das
palavras, a reflexão metalinguística, a sacralização do banal e a dessacralização do divino, a
experiência de ser mulher e o caráter narrativo. A escritora escolheu o verso livre, e não a
métrica regular, como a melhor forma para a sua expressão poética, que tem “um ritmo às
vezes lento, de tom reflexivo, que se expressa ao sabor da conversa, da prosa cotidiana”
(OLIVEIRA, 2012, p. 25).

3.2 A poesia oracular de Adélia Prado

O poema escolhido para a análise faz parte do livro Oráculos de Maio, cujo título
remete a uma ligação do plano físico com o espiritual, do mundo natural com o sobrenatural.
Na Antiguidade, o oráculo poderia ser a resposta dada por uma divindade a quem a consultava
geralmente acerca do futuro ou poderia se referir à própria divindade. Pode também se referir
a uma palavra inspirada ou infalível. O mês de maio é associado às noivas e à Virgem Maria,
sendo esta última muito aludida em alguns poemas do livro, mas pode ser associado à
primavera, como tempo de renovação das flores e exuberância da natureza.
O livro é composto de cinquenta e sete poemas divididos em seis seções: a primeira
seção, cuja epígrafe é “Quero vocativos para chamar-te, ó maio”, tem por título Romaria e
abriga a maior parte dos poemas, trinta e cinco; a segunda, Quatro poemas no divã, tem
quatro poemas; a terceira chama-se Pousada e também tem quatro poemas; a quarta chama-se
Cristais, com seis poemas; a quinta, Oráculos de Maio, que dá título ao livro, tem sete
poemas; e a sexta e última, com apenas um poema de mesmo título da seção, Neopelicano,

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tem por epígrafe um versículo bíblico: “Então se lhes abriram os olhos e o reconheceram, mas
ele desapareceu (Lc 24, 31)”.
No poema O poeta ficou cansado, que abre o livro, podemos perceber algumas
características do período medieval, especialmente as ligadas ao misticismo. Nele, o eu-lírico
se coloca como o arauto de Deus, o seu mensageiro. Na Idade Média, o arauto era o oficial
que fazia proclamações solenes e anunciava a guerra e a paz. O arauto é uma espécie de porta-
voz; é um mensageiro, aquele que carrega e anuncia uma mensagem. Anunciando-se como
tal, o eu-lírico se equipara a um profeta ou místico e o poema passa a ter status de mensagem
divina, passa a ser uma espécie de oráculo. Vejamos o poema:

1. Pois não quero mais ser Teu arauto.


2. Já que todos têm voz,
3. por que só eu devo tomar navios
4. de rota que não escolhi?
5. Por que não gritas, Tu mesmo,
6. a miraculosa trama dos teares,
7. já que Tua voz reboa
8. nos quatro cantos do mundo?
9. Tudo progrediu na terra
10. e insistes em caixeiros-viajantes
11. de porta em porta, a cavalo!
12. Olha aqui, cidadão,
13. repara, minha senhora,
14. neste canivete mágico:
15. corta, saca e fura,
16. é um faqueiro completo!
17. Ó Deus,
18. me deixa trabalhar na cozinha,
19. nem vendedor nem escrivão,
20. me deixa fazer Teu pão.
21. Filha, diz-me o Senhor,
22. eu só como palavras (2007, p. 9).

A intertextualidade com a Bíblia Sagrada é uma das marcas da autora. Em sua obra, é
comum encontrarmos citações de versículos bíblicos e é recorrente o diálogo e a alusão a
personagens e histórias bíblicas e da tradição da igreja romana (Maria e os santos). Além
disso, devemos levar em consideração que o ocidente medieval era dominado pela visão de
mundo da Igreja Católica Romana. Por isso recorreremos ao texto bíblico e à tradição sempre
que estes forem justificados e importantes para a análise do poema.
O poema é uma espécie de lamento ou queixa que o eu-lírico faz a Deus, lembrando
textos bíblicos do Antigo Testamento como os livros de Salmos, de Jó e de Jonas. Neles, as
personagens dirigem suas súplicas, suas queixas e seus questionamentos diretamente a Deus,
que os ouve e lhes responde. Tanto o eu-lírico do poema quanto os profetas bíblicos e as
místicas medievais revelam em seus escritos uma proximidade e uma intimidade muito
grande com a divindade, o que os coloca numa posição privilegiada em relação aos seres
humanos comuns e dão a eles uma visão de mundo diferenciada dos demais.

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No primeiro verso, a voz de enunciação feminina1 diz que não quer mais ter a função
de mensageira de Deus; função que os profetas bíblicos e as místicas medievais exerciam e
reivindicavam pra si em seus escritos. No terceiro capítulo do livro primeiro de Samuel, da
Bíblia Sagrada, é dito: “Enquanto Samuel crescia, o Senhor estava com ele, e fazia com que
todas as suas palavras se cumprissem. Todo o Israel, desde Dã até Berseba, reconhecia que
Samuel estava confirmado como profeta do Senhor” (2000, p. 212). E, na Carta VII, escreve
Hadewijch de Amberes: “Saúdo-te, querida, com o amor que é Deus e com o que sou eu, que
também é Deus de alguma maneira” (p. ι3).
Nos três versos seguintes, ela questiona os motivos de ter que desempenhar essa
função, já que não é diferente de ninguém e é igual a todos aqueles que podem falar. Apesar
de desempenhá-la, a tarefa de levar a mensagem de Deus não era uma escolha sua; ela não
tinha escolhido a direção daquele navio. O que nos remete à história de Jonas, que, ao ser
mandado por Deus à grande cidade de Nínive para pregar contra ela, toma um navio em outro
sentido a fim de não cumprir a ordem divina (Bíblia Sagrada, 2000, p. 735).
Ela continua a contender com Deus (v. 5-8) e, com ousadia, pergunta por que Ele
mesmo não realiza aquele trabalho de gritar “a miraculosa trama dos teares” - o fazer poético
seria como tecer ou fabricar tecidos e o poeta é o arauto que grita para “vender” esse “tecido”
poético. Já que Ele é tão poderoso e, se Ele gritasse, sua voz seria ouvida em toda e qualquer
parte do mundo, por que Ele precisa de um mediador, de um ser cuja voz é limitada?
Nos versos seguintes (9-16), o poeta é visto como um caixeiro-viajante, um
representante comercial que viaja de cidade em cidade divulgando e vendendo um produto.
Ela diz a Deus que esse tipo de atividade está ultrapassado para a presente época. Ao falar de
um vendedor que oferece um canivete mágico e apresenta todas as suas utilidades e
qualidades, podemos pensar no papel, na relevância e no rebaixamento do artista e da arte, e,
mais especificamente, no do poeta e na poesia, nos dias de hoje. O que leva ao
questionamento se ofício do poeta, tão antigo quanto o dos caixeiros-viajantes, seria ainda
necessário e relevante em um mundo pragmático e de incrível progresso econômico e
tecnológico. No sistema capitalista atual, até as mais variadas formas de arte são
transformadas em produto e o artista torna-se um vendedor sujeito às regras e às imposições
do mercado, e não aos ditames de sua própria consciência e criatividade.
σos seis últimos versos, em forma de prece (“Ó, Deus”), ela pede ao ser que lhe
inspira a poesia para sair da linha de frente e fazer um trabalho mais reservado para Ele, um
trabalho doméstico: ser sua cozinheira ou padeira, dando forma a um produto palpável e
comestível.
Em “me deixa fazer Teu pão” (v. 20), podemos dizer que temos uma hierofania. τ pão
não é um pão comum, mas um pão sagrado; o pão de Deus. Não sendo um ser de carne e osso
e respondendo às indagações do eu-lírico, Deus diz: “eu só como palavras”.
A resposta do Senhor ao eu-lírico nos remete ao Evangelho de João, que fala acerca de
Jesus Cristo, o Filho de Deus, logo na sua abertura: “σo princípio era aquele que é a Palavra.
Ele estava com Deus, e era Deus” (2000, p. κ4ι). E nos remete também ao episódio narrado
nos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), no qual Jesus é levado para o deserto e é

1
Ou o eu-lírico.
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tentado pelo diabo. Ao ser desafiado por ele a transformar pedras em pães, “Jesus respondeu:
‘σem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus’” (2000,
p. 769). Aqui, é Deus quem alimenta o homem da sua palavra, num gesto unilateral. No
poema, há uma complementaridade. O poeta é alimentado por Deus e deve alimentá-Lo. As
palavras de Deus que inspiram (alimentam) o poeta-arauto e que este deve anunciar ao
mundo, ao passar por ele, devem também servir e voltar como alimento para Deus.
O uso de metáforas relacionadas ao ato de comer, de se alimentar, com a finalidade de
expressar a relação e a intimidade com o outro, com o divino, foi também bastante explorado
pelas místicas medievais, como podemos comprovar em um poema de Hadewijch
(RÉGNIER-BOHLER, 1990, p. 578):

Este laço une aqueles que amam


de forma que um penetra inteiramente no outro,
na dor ou no repouso ou na ira de amor,
e come a sua carne e bebe o seu sangue:
o coração de cada um devora o outro coração,
o espírito assalta o espírito e invade-o por inteiro,
como nos mostrou Aquele que é o próprio amor,
tornando-se o nosso pão e o nosso alimento,
e desfazendo todos os pensamentos do homem.
Ele deu-nos a conhecer que nisto
está a mais íntima união de amor:
comer, saborear, ver interiormente.
Ele come-nos, nós julgamos comê-lo,
e sem dúvida que o fazemos.

Portanto, a conclusão do poema nos leva a entender que o ofício do poeta é essencial e
que ele foi escolhido para uma função difícil e nobre, assim como os profetas bíblicos e as
místicas medievais sabiam-se escolhidos por Deus e ligados a Ele por uma união interior,
profunda e sobrenatural. Por mais que os tempos mudem, o poeta será sempre fundamental
para o equilíbrio entre o mundo material e o mundo espiritual. É preciso de um mediador para
que a comunicação e o ciclo não sejam interrompidos.

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A MULHER E SEU PAPEL NA LITERATURA TROVADORESCA

Alba Caldeira Mello


(UFMG)

O Trovadorismo foi uma época pródiga em composições recheadas de pistas sobre a


vida da Europa feudal. Para se entender a importância da literatura medieval seria interessante
abolir preconceitos e desconstruir o conceito de que aquele tempo teria representado um
período de trevas. Ainda torna-se de suma importância colocar a figura feminina (tanto de eu
lírico quanto de poeta) em seu devido lugar.
Para entendermos melhor a Idade Média, levaremos em consideração a dominação
católica na Europa. Essa dominação não se restringe só às esferas religiosa e moral. Segundo
Erich Auerbach, (AUERBACH, 1974, p. 105)1 devemos a essa instituição uma clara e viva
influência na vida intelectual e social do medievo. A mulher foi estigmatizada pela Igreja
como símbolo do mal, da perdição e, assim como as crianças, era um ser relegado a plano
inferior ou sem expressão no imaginário medieval.
A figura feminina nas chamadas cantigas trovadorescas era, basicamente, representada
pelos topos da amiga, (cantigas de amigo), da amada (‘senhor’ – cantigas de amor), da
soldadeira (sirventés), da jogralesa e principalmente de Maria, a mãe de Deus, a virgem
venerada e compadecida (cantigas de Santa Maria). São comuns as figuras da mãe e da filha
(CUNHA, 2006, p. 185)2 e das atividades que envolviam o dia-a-dia daquelas mulheres:
costurar, cozinhar, rezar, cuidar da casa dos senhores, dos filhos, da limpeza das igrejas e
também um eterno esperar. Esperar pelo casamento com algum nobre, se ricas; ou esperar
pelo amado que se fora nas cruzadas. Também há o tema da mal casada, pois se as mulheres
eram “artigos” de troca nos arranjos casamenteiros, existiam os amantes, por quem cantariam
e chorariam quando o dia irrompesse, terminando assim o idílio (albas).
É comum encontrar nas cantigas elementos do cotidiano medieval feminino tais como
a ida à fonte, o manto com o qual cobrem o corpo ou a cabeça, a linha com que cozem, o
cervo que aparece à beira do rio, a chegada do amanhecer ou a espera do anoitecer, o cantar
dos pássaros (albas em galego-português), a figura dos vigias (albas provençais
principalmente).
Outro detalhe, mas não menos importante, no Trovadorismo é a questão do louvor à
mulher casada. Segundo Rodrigues Lapa, na sua famosa obra Lições de Literatura Portuguesa,
(LAPA, 1955, p. 12), além de os trovadores “endereçarem o seu grande amor a mulheres
casadas: a puella da anterior poesia goliardesca dava agora lugar à domina; e os poetas
desfeminizavam o objecto das suas homenagens, adoptando o termo conhecido midons < mi
dominus”. Esse fato explica-se pela pouca importância social da donzela.
Finalizando esta introdução, é significativo lembrar que cantigas medievais são, por
excelência, do âmbito da oralidade, que não deve em nenhum momento ser desprezado. Ou
seja, o ambiente de recepção eram os salões de festas dos castelos feudais, que reunia toda a
1
AUERBACH, Erich – Introdução aos estudos Literários (pp105)
2
CUNHA, Viviane – Da Grécia antiga à România Medieval: Revista do CESP – v. 26, nº36 – jul.-dez.2006.
p.185.
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população vizinha (principalmente nobres e agregados) em uma sociedade pouquíssimo
letrada. Suas letras não eram complicadas, porém bem elaboradas e retratariam, com possível
autenticidade, a sociedade em que fora gerada. Sendo assim, as repetições contínuas em
público dessas cantigas, preservou-as, levando-as a serem compiladas, algum tempo depois.
σa obra “A Letra e a Voz”, Paul Zumthor (ZUMTHOR, 1993, p.23), alerta, entretanto, da
necessidade de nos atermos aos escritos, à importância do fato de esses textos terem sido
reproduzidos, mesmo sendo textos da tradição oral. O autor chama a atenção para que
busquemos sempre o texto para comentá-lo e analisá-lo, segundo fontes históricas e a própria
teoria da literatura. Sendo assim, guardemos a imaginação para aproximar do contexto de sua
produção, ou melhor, do momento de recepção das cantigas naquele tempo. Portanto
estaríamos mais próximos daquela a quem ora mais queremos conhecer de perto, apesar de
toda a distância que o tempo nos separa: a mulher medieval.
Não se pretende fazer um estudo estilístico acurado neste trabalho, apenas
despretensiosos comentários sobre os gêneros, seus temas e alguns símbolos recorrentes.

Mulheres medievais à frente de sua época – As trobairitz

Começaremos citando a importância das trobairitiz. Segundo Viviane Cunha,


(CUNHA 2007, p. 35), teriam sido nobres damas feudais, pertencentes ao sudeste da França
medieval, que escreviam suas cantigas em occitano (dialeto próprio daquela região).
Dessas trovadoras existem 46 canções catalogadas. Os poemas reproduzem o código
de amor dos trovadores no entanto, mais diretas. Dentre essas mulheres poderosas,
poderíamos citar, de acordo com Martim de Riquer (RIQUER, 1999, p. 1325 a 1330),
Castelozza (três composições seguramente atribuídas), Alienor D’Aquitânia, Comtessa de Dia
(século XIII; a mais importante delas, com um corpus de 4 cansós) e Azalaïs de Porcairagues,
cujas composições reunem um corpus considerável. Os nomes das trobairitz carregam seus
topônimos, ou seja, onde teriam morado ou nascido.
Essas canções possuem todos os traços do grande canto cortês, respeitando um
“senhal”, com o uso de pseudônimos (chamavam o amado de ‘joglar’ e eram por eles assim
chamadas). São um gênero de poesia, geralmente em forma de debate (poesia dialogada).
Esse amor trovadoresco, como a tradição nos ensina, possui graus diferentes de representação,
sendo revelados por etapas. São canções chorosas, cujo lamento se refere sempre a um
homem a quem amam, podendo ou não ser correspondidas. Inverte-se o tema da cantiga de
amor, pois o eu lírico (e o autor) é (são) femininos, e há o sofrimento de amor: a coita
amorosa, própria das cantigas de amor, cujo eu lírico é sempre masculino.
Enfatizamos aqui o caráter único dessa poesia: ser de autoria feminina e de ser uma
poesia direta. Falando assim abertamente de seu desamor, o eu lírico se dirige ao jogral na
tornada, que é o arremate da poesia. Do ponto de vista formal, percebe-se aí o uso da
pontuação, para dar maior entonação à cantiga.

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A arte das soldadeiras (sirventés)

As soldadeiras eram mulheres que cantavam e interpretavam em troca de pagamento,


soldo, daí seu codinome. O sirventés foi um subgênero diretamente ligado às cantigas de
escárnio e maldizer. Nessas cantigas há muito erotismo e mesmo palavras obscenas a respeito
da sexualidade feminina, realçando a natureza pecaminosa das relações humanas.
Na lírica galego-portuguesa, dentro do tema, encontramos a figura de uma soldadeira
de nome Maria Balteira - Maria Pérez, uma mulher amplamente citada em cantigas de
maldizer, que teria a sua existência situada no século XIII. Provavelmente, seria uma dama de
índole “duvidosa” e cobiçada por homens poderosos, religiosos e invejada pelas mulheres por
sua rara beleza. Com fama de prostituta, de acordo com o estudo de Ana Paula Ferreira
(FERREIRA, 1993, p. 155), a Balteira, porém, consegue ajuntar fortuna e terminar seus dias
com tranquilidade, recolhida a um convento, com direito a enterro patrocinado por ela mesma
e com pompas de nobreza. Segundo a história, Maria Pérez teria acompanhado o rei Afonso
X em sua luta contra o rei da Tunísia. Menendes Pindal acredita que o rei a usava como
chamariz para suas conquistas contra os muçulmanos.
Encontra-se nessas cantigas satírica a figura dos religiosos, por vezes envolvidos com
o amor, normalmente sendo injuriados pelos trovadores, revelando uma forte crítica ao clero.
Além disso, existe nessas cantigas uma variedade de símbolos atribuídos ao relacionamento
sexual, tendo em vista a fama da mulher que é cantada. Aqui a figura da mulher é rechaçada,
conforme o código da poesia trovadoresca satírica em vigor. Em composições de outros
autores como Pero da Ponte, Fernan Velho, Pero Garcia de Burgalez dentre outros sátiros, há
uma certa reincidência dos termos: madeira, dados, adubar, maleta, cadeado – possivelmente,
alegorias sexuais, remetendo às funções da dama mal falada.

Cantigas de Santa Maria – a poesia religiosa

Existe um corpus de 420 cantigas catalogadas nesse estilo. Dentre os principais nomes
de poetas destacamos os nomes de Gautier de Coinci (precursor dos milagres – compôs
canções paralitúrgicas) e o de Afonso X (O Sábio), dentre vários. O eu lírico pode ser um
padre ou mesmo um jogral que na hierarquia trovadoresca era considerado inferior ao
trovador. Nessas cantigas a figura de Maria é ligada aos milagres que realiza entre os jograis e
as pessoas que peregrinavam, por exemplo, pelo caminho de Santiago. É uma poesia de cunho
religioso que fez grande sucesso, que pode ser justificado pelo grande número de exemplares
encontrados.

Costurando e tecendo seu destino - As canções de tela

Por trazerem em seu cerne episódios narrativos de guerras são também chamadas de
chansons d’histoire. Algumas foram encontradas em romances conhecidos da Idade Média,
tais como o Guillaume de Dole e o Roman de la Violette. Acredita-se que as chansons de toile
sejam uma criação aristocrática, porém difundidas popularmente. O eu lírico dessas
composições são nobres damas aristocráticas, e as canções são narradas em terceira pessoa,
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sendo algumas dialogadas. A língua em que essas cantigas são mais encontradas é o langue
doil.
Em uma dessas canções de tela temos o tema de uma moça que trabalhava em um
quarto, e conta-se que chorava ao fazer trabalhos de agulha na torre do castelo. Embora haja
um narrador em terceira pessoa, nas estrofes seguintes aparece o diálogo dela com a mãe,
quando relata seu amor e que, provavelmente, estaria grávida de seu amado. A moça está
sonolenta em seu trabalho, despertando assim a curiosidade materna. A mãe pede para a filha
mostrar o seu corpo, constatando assim a gravidez já adivinhada. Ao ser inquirida se o moço
seria capaz de desposá-la, ela responde não saber. No decorrer da cantiga a mãe a exorta a
procurá-lo e a jovem obtém dele, finalmente, o esperado pedido de casamento.

Aubes: Albas – manhãs indesejadas

As albas são cantigas medievais (provençais, espanholas, alemãs e galego-


portuguesas) em que o despertar dos amantes se dá por meio de um aviso de um vigia ou
pelos pássaros de que os primeiros raios da manhã anunciam um novo dia. Em língua
portuguesa pouco há, em termos de bibliografia, a respeito desse gênero trovadoresco. Em
algumas tradições europeias (galego-portuguesa) a figura do vigia é substituída pelo pousar
ou o cantar de um pássaro próximo à janela dos amantes.
Talvez, o mais famoso diálogo da história literária seja o diálogo entre Romeu e
Julieta, em que os amantes prenunciam seu afastamento ao ouvirem o canto de uma cotovia,
desejando fosse o de um rouxinol, pássaro que possui o hábito de cantar à chegada da noite.
Essa separação é marcada, provavelmente, pela incerteza do reencontro. O homem medieval
ia para as lutas, e a mulher não escolhia com quem se casava. Um mau casamento, em termos
sentimentais, era o mais comum naquela época, conforme a literatura e a história nos atestam,
pois feito em torno de interesses alheios a si, os jovens não poderiam questionar. Dentro desse
contexto um amor adúltero poderia facilmente se constituir.
Entretanto, temos também as albas com indícios de soldados prontos a se levantar para
as cruzadas ou defender seus superiores, em que os mais valentes correm a avisar aos que
ainda dormem, ou encontram-se ainda sonolentos.

Não apenas “virgens, viúvas e esposas”

Finalizando este breve estudo, a imagem de mulher que triunfa na Idade Média é, sem
dúvida, aquela que retrata a sua castidade e opõe à figura da mulher “perigosa e feiticeira”,
tão propalada naquele tempo. σo entanto, a literatura ‘lembrou-se’ de contribuir com a poesia
para que soubéssemos hoje um pouco mais do universo feminino, desmitificando um pouco
essa imagem redutora de mulher, que temos notícia.
Mesmo que nessa literatura a figura feminina esteja, quase que constantemente, ligada
ao religioso, ao amor proibido, ao espaço no castelo, às atividades cotidianas e à “antítese
santa/prostituta”, o feminino perpassa também o trabalho autoral, como visto neste artigo, o
que demonstra existirem mulheres intelectuais que conseguiram fazer frente à hegemonia
clerical masculina do medievo.
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O CONTRASTE ENTRE A MULHER RELIGIOSA E A FEITICEIRA EM
MEMORIAL DO CONVENTO

Ana Flávia da Silva Oliveira


(UEPB)
ana.flavia37@yahoo.com.br
Aldinida Medeiros
(UEPB)
aldinidamedeiros@yahoo.com.br

O romance histórico possibilita uma nova forma de ver a História, porque, entre outros
aspectos, põe em cena novos personagens que ficaram à margem da versão oficial da
historiografia, apresentando, assim, grande importância para a literatura atual, mais que isto, é
um gênero que tem estado em evidência na contemporaneidade. E tem como uma de suas
principais características, trazer para a prosa de ficção o componente híbrido que constitui
romance e História.
O Memorial do Convento (1999), objeto de análise de nosso trabalho, é um dos
romances históricos de José Saramago de maior destaque no âmbito da literatura de língua
portuguesa. Percebemos que nele, predomina, dentre outros aspectos, o dialogismo social3,
que da voz aos excluídos, tal como Blimunda e Baltasar, conforme veremos adiante; e o
hibridismo, através dos quais se juntam ficção e realidade para mostrar “[...] uma outra versão
da mesma História, tantas vezes ouvidas e decoradas.”(MARIσHτ, 1999, p. 234).
O romance apresenta o fato histórico da construção do Convento de Mafra, edificado
no século XVIII no decorrer do reinado de D. João V, e traz várias figuras históricas, mas
dentre elas o nosso estudo aborda a personagem da rainha D. Maria Ana Josefa, retratada na
obra como uma mulher submissa e religiosa e, buscando na história a veracidade, mas
também propiciando as teias da ficção, este romance nos permite ainda evidenciar a figura de
Blimunda, personagem criada pelo autor, dotada de poderes sobrenaturais, que em destaque
como personagem e em características, contrapõe-se à figura da rainha.
Sabendo-se que os estudos sobre o romance histórico contemporâneo apontam a
focalização heterodoxia e a desconstrução de referentes como algumas das muitas
características deste gênero, buscaremos, em Memorial do Convento (1999), evidenciar duas
“forças místicas” distintas: a fé da rainha – motivo da construção do convento – e o lado
místico daquela que a Igreja4 considera como feiticeira, Blimunda, sendo as duas personagens
femininas de maior destaque no romance. Com isso, elucidaremos aspectos de como o
romance histórico contemporâneo de José Saramago faz a sua releitura da história,
considerando-se que “[...] o pano de fundo histórico introduz-se na trama graças à presença
das personagens históricas, mesmo que em posição secundária. [...]”. (ZILBERMAσ, 2003, p.
122).

3
O conceito de dialogismo social que adotamos em Memorial do Convento é o mesmo estudado pelo teórico
russo Mikhail Bakhtin, que se refere às varias vozes sociais que dialogam, de forma, divergente, entre si em cada
discurso.
4
Todas as menções se referem à Igreja Católica.
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As personagens femininas subvertem a ordem de destaque no romance de Saramago.
Diferente do que acontece no seu congênere tradicional, a rainha não é a mulher forte e
destemida da história; estas características são atribuídas à personagem Blimunda,
representante da classe popular.

O contraste constantemente marcado entre Baltazar e Blimunda, D. João e


D. Maria Ana, representa a existência simultânea de duas historias, a oficial
e a anulada, a conhecida e a desconhecida [...].
A História que Saramago constrói, difere da repetição mais ou menos
romanceada do estabelecido, para da voz [...] a uma focalização tão
heterodoxia quanto subversiva – a edificação do convento de Mafra não
mostra só a riqueza do rei, mas também e, prioritariamente, a exploração dos
trabalhadores. (MARINHO, 1999, p. 237).

O que percebemos aqui é que há um contraponto entre as duas principais personagens


femininas. A rainha é vista como uma mulher submissa, medrosa e beata, que vive para
satisfazer as vontades do marido. Acreditando que nasceu para ser rainha e que nada poderia
mudar seu destino, D. Maria Ana vê, em um determinado momento na doença do marido e na
sua morte, se viesse a acontecer, a possibilidade se livrar daquela vida monótona que levava.
A verdade é que ela tinha grande simpatia pelo cunhado, o infante D. Francisco, irmão de D.
João V, com quem sonhava frequentemente.
Para ela, tais sonhos, “[...] são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que
nem ao confessor confesso, [...].” (SARAMAGτ, 1999, p. 112). σo entanto, casando-se com
o cunhado, por conseguinte à possível morte do marido, não se livraria do seu destino, o de
ser rainha, visto que a intenção de D. Francisco era tornar-se rei, ao passo que D. Maria Ana
continuaria com seu título de nobreza. No decorrer da narrativa, D. Maria Ana expõe os seus
sentimentos de mulher conformada e sem personalidade, como mostra o trecho a seguir:

[...] Prouvera que ele morra, que eu quero ser rei e dormir com vossa
majestade, já estou farto de ser infante, Farta estou eu de ser rainha e não
posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve o
meu marido, não vá ser pior outro que venha [...], Maus são todos os
homens, a diferença só está na maneira de o serem [...]. (SARAMAGO,
1999, p. 112).

É importante ressalvar que o casamento real foi arranjado, por motivações políticas,
como era costume àquela época, portanto, ela teve que se adaptar ao novo país visto que seu
país de origem é a Áustria. O narrador, na primeira frase do romance a descreve ironicamente:
“D. João, [...], irá esta noite ao quarto de sua mulher, D Maria Ana Josefa, que checou a mais
de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje ainda não emprenhou.”
(SARAMAGO, 1999, p. 11). A partir desse fragmento é possível se ter uma imagem de como
viria a ser construída a personagem no decorrer da narrativa.
A religião não só serve de justificativa à postura da rainha, como também comanda,
orienta e direciona-a em suas funções, na condição de mulher, sendo ela religiosa em uma
época em que a Igreja ditava as regras de boa conduta das famílias, apontando como elas
deveriam ou não agir, o que, indiretamente, significa afirmar que ao homem era ou é dado o
poder absoluto e a mulher apenas o direito de procriar, tanto é, que o casal vivia em aposentos
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separados, só se encontrando duas vezes por semana para cumprir, ele porque é compromisso
de marido, com suas obrigações conjugais, para eles um “simples” ritual. Mesmo sendo algo
comum para época, a submissão da rainha ao marido5 é de tal modo exagerada que acredita
ela não desejar nada além do que deseja o rei, como ilustra a passagem que segue, na qual o
narrador descreve “uma noite de amor” do casal:

Vestem a rainha e o rei camisas compridas, que pelo chão arrastam, a do rei
somente a fímbria bordada, a da rainha bom meio palmo mais, para que nem
a ponta dos pés se veja, o dedo grande e os outro, das impudicícias
conhecidas talvez seja esta a mais ousada. D. João V conduz D. Maria Ana
ao leito, leva-a pela mão como no baile o cavaleiro à dama, e antes de
subirem os degrauzinhos, cada um de seu lado, ajoelham-se e dizem as
orações acautelantes necessárias, para que não morram no momento do acto
carnal, sem confissão, para que desta tentativa venha a resultar fruto, e sobre
este ponto tem D. João V razões dobradas para esperar, confiança em Deus e
no seu próprio vigor, por isso estar dobrando a fé com que ao mesmo Deus
impetra sucessão. Quanto a D. Maria Ana, é de crer que esteja rogando os
mesmos favores, se por ventura não tem motivos particulares que os
dispensem e sejam segredo do confessionário. (SARAMAGO, 1999, p. 15-
16).

Tomando o trecho citado, deve-se ressaltar que o casamento real está em função de se
manter o poder monárquico, uma vez que as obrigações matrimoniais, como denomina o
narrador, tinham por objetivo gerar o filho desejado para a sucessão do trono.
Já no que se refere à Blimunda, esta é uma mulher que foge aos padrões, ao tipo
comum da época: é guerreira e não teme os desafios impostos pela vida pobre e “injusta” que
leva ao lado do marido Baltasar. O casal pode representar o amor de forma simples, assim
como tantos casais das camadas populares que se unem por um amor verdadeiro, sem as
imposições dos interesses. A jovem conheceu aquele que seria para sempre o grande amor da
sua vida no mesmo dia em que a mãe foi para a África.
A união desse casal foi abençoada pelo padre protetor, Bartolomeu de Gusmão, que
recebe esta denominação por proteger Blimunda, para que seus poderes não fossem
descobertos pelos inquisidores, e o casal passou a morar junto, mesmo sem os ritos religiosos
e sociais do casamento, a partir do dia em que se conheceram, não se preocupando com
convenções religiosas nem sociais. E, ao contrario do que acontecia com a rainha, as
descrições das relações amorosas do casal são totalmente diferentes, por que aí destaca-se
uma relação em que a entrega é mútua em função de um amor que surgiu de uma forma
mágica e inexplicável. A união foi consumada em uma cena repleta de simplicidade, mas que
não se compara, em termos de cumplicidade, ao que acontece no leito real, como nos mostra o
seguinte fragmento:

[...] Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que
não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por
dentro, Se eu ficar onde durmo, Comigo.

5
Embora seja século XVIII, os vestígios Medievais se fazem presente na relação do casal real, reconstituída por
Saramago, ainda se encontra sob os moldes da Idade Média.

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Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e
Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornaram muito mais
velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio
e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no
peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto
ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não
correu mais sangue. (SARAMAGO, p. 54-55).

Como é possível perceber, o narrador faz um jogo sinuoso quando intercala a


descrição da relação do casal com os conflitos existentes além daquele ambiente, os conflitos
da guerra. É como se o narrador considerasse e/ou pretendesse demonstrar que enquanto do
lado de fora o sangue derramado destrói e separa pessoas, do lado de dentro o sangue sela
uma união que jamais seria desfeita.
Como mostra o estudo desenvolvido por Cristina Vieira, acerca da construção da
personagem romanesca, mais especificamente no que se refere ao Processo Narratológico, –
entende-se por processo narratológico as diversas categorias que compõe o texto narrativo,
dentre eles, o ato em si de contar, ou seja, a narração, – vários são os procedimentos pelos
quais se constrói uma personagem. Para autora a personagem pode ser definida, dentre outras
coisas, pela a ação a qual ela vai executar, em outras palavras, a ação cria a personagem no
sentido de que se ela for de grande impacto o personagem certamente crescerá dentro dela.
Sendo assim, “a personagem romanesca pode, portanto, ganhar maior autonomia face à
acção.” (VIEIRA, 2008, p. 236). Isso porque,

[...] a acção é um macro-processo narratológico sempre responsável por


parte da construção de qualquer personagem romanesca. Até a obra centrada
na mundividência do protagonista continua a sujeitar este ao processo
construtivo da acção, mesmo que esta acção seja caótica ou rotineira, [...].
(VIEIRA, 2008, p. 234).

Interessa-nos aqui, todavia, a diferenciação que ela apresenta entre personagem


protagonista e secundária. Nesse sentido Blimunda pode ser considerada a protagonista do
romance, pois é uma personagem autônoma, responsável pelo andamento das sequências que
protagoniza e ainda ocupa lugar de destaque em algumas ações secundárias. Isso se justifica
pelo fato de que “os protagonistas vão-se destacando das demais personagens por aparecerem
em sequências que dispensam a comparticipação de outras personagens, [...].” (VIEIRA,
2008, p. 241). Enquanto isso as personagens secundárias e as figurantes não detêm tão grande
autonomia no interior da narrativa.
A maior amostra da autonomia da personagem que representa a classe popular do
Memorial do Convento (1999) se dá quando Baltazar desaparece na passarola. Blimunda
passa a dedicar seus dias a procurar seu grande amor e durante nove anos a procura se deu de
forma incansável e com uma garra e vontade que sua história seria tida como eminentemente
verdadeira e não fictícia, se não soubéssemos que se trata, tão somente, de uma criação do
autor. Porém, para Saramago “fingindo, passam então as histórias a ser mais verdadeiras que
os casos verdadeiros que elas contam,” (SARAMAGτ, 1999, p. 134). Daí é possível concluir
que a história da heroína pode ser tão ou mais verdadeira do que a mais verdadeira das
histórias. Tudo isso pode ser percebido a partir da leitura do seguinte trecho:
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Durante nove anos, Blimunda procurou Baltazar. Conheceu todos os


caminhos do pó e da lama, abranda areia, a pedra aguda, tantas vezes a geada
rangente e assassina, dois nevões de que só saiu viva porque ainda não
queria morrer. Tisnou-se do sol como um ramo de árvore retirado do lume
antes de lhe chegar a hora das cinzas, arregoou-se como um fruto estalado,
foi espantalho no meio de searas, aparição entre os moradores das vilas,
sustos nos pequenos lugares e nos casais perdidos. (SARAMAGO, 1999, p.
343).

A busca solitária de Blimunda, também caracteriza sua condição de protagonista,


dentro do que Cristina Vieira expõe sobre personagem protagonista. Para esta teórica “Este
procedimento [a sequência de longos passeios solitários] é amplamente usado na construção
dos protagonistas dos romances do romantismo europeu, assolados por densas solidões”
(VIEIRA, 2008, p. 241, acréscimo nosso). Percebemos então que esta é uma característica que
persiste nos romances históricos contemporâneos.
Assim, ao contrario da rainha, que via na morte do marido uma “porta” para a
liberdade, ela não podia imaginar sua vida sem Baltazar o qual, na verdade era a razão de seu
viver, e o sonho de encontrá-lo com vida era o que a mantinha viva. E nem a idade, já
avançada, a impede de cruzar um país de ponta a ponta sem nenhuma companhia e
dependendo da boa vontade das pessoas que a encontravam pelo caminho.
É importante frisar que a personagem se completa ou não através da ação, portanto,
Cristina Vieira defende “que a sequencialização do romance se deve à personagem, e não
propriamente à intuição do leitor.”. (200κ, p, 243). Por esse motivo, o relevo que Blimunda
obtém está diretamente relacionado com o planejamento da ação. E, como o romance em
estudo é, ou foi, planejado para desconstruir o seu referencial histórico, pode-se constatar que
são as ações, pensadas e estruturadas pelo romancista, que dá a dimensão do alcance que
obterá a personagem. No caso de Blimunda, ela torna-se protagonista porque as ações das
quais ela participa foram elaboradas para serem desempenhadas por um personagem que não
seria outra coisa se não o/a protagonista, já que o objetivo é reverenciar o lado popular da
História.
Se por um lado cabe a Blimunda o papel de protagonista, por outro lado é a rainha que
desempenha o papel de personagem secundária, porém, ela não pode ser considerada
antagonista da feiticeira, também chamada Sete-Luas. Isso porque, segundo Vieira (2008), a
personagem antagonista deve ocupar um lugar equivalente ao do protagonista em ações
opostas dentro da narrativa, o que não acontece nesse caso, pelo contrário, o espaço que a
personagem real ocupa é o de personagem secundária juntamente com as demais personagens
que compõe a classe da realeza o que a torna ainda mais irrelevante dentro da narrativa. Daí
observarmos, conforme Vieira, que “a participação de uma personagem em ações secundarias,
funcionado como mero suporte das principais, faz dela uma personagem secundária.”.
(VIEIRA, 2008, p. 247), o que significa dizer que a personagem da rainha só existe para
justificar uma referência histórica e, consequentemente, a presença de uma outra personagem
que inverte a ordem do destaque, ofuscando o status que a alteza tem no plano social, no caso
Blimunda.

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A focalização é um dos fatores responsável pela subversão da ordem, no que se refere
ao relevo das personagens, principalmente em se tratando de romances contemporâneos em
que se enfatiza a focalização múltipla. Porém, é a focalização heterodoxa que, segundo Vieira
(2008), predomina de forma exclusiva no romance moderno e contemporâneo, e podemos
considerá-la, no romance de Saramago, como o processo narratológico utilizado pelo narrador
para subverter a ordem das personagens femininas, pois para a teórica essa focalização
“constrói sempre personagens apócrifas, que fogem aos modelos canônicos familiares ou
relevantes para uma sociedade, sejam esses modelos políticos, econômicos ou outros.”
(VIEIRA, 2008, p. 305).
Percebe-se, portanto que, enquanto a focalização múltipla se faz presente no Memorial
do Convento (1999), dando vozes tanto aos personagens referenciais quanto as puramente
fictícias, a focalização heterodoxa inverte a ordem dentro do contexto narrativo não só das
personagens, mas também dos acontecimentos, colocando em primeiro plano a história
popular fictícia ao invés da história real oficial.
É, justamente, o que acontece com D. Maria Ana Josefa e Blimunda, duas personagens
em que a segunda, fazendo ela parte da classe popular, normalmente não seria colocada em
primeiro plano, esse espaço caberia a primeira personagem por ser esta, teoricamente, a mais
importante na história. A ordem de seus lugares sociais dentro da narrativa é invertida. A
mulher do povo, Sete-Luas, ganha status de rainha, isso do ponto de vista do narrador e da
elaboração das sequências narrativas.
Desse modo, a verdadeira rainha, personagem verídica da história, é posta como
personagem secundária. Isso só é possível de ocorrer porque a focalização heterodoxia
“permite que personagens individuais ou colectivas habitualmente marginalizadas ganhem
estatuto diferencial, relegando para segundo plano diegético personagens a que habitualmente
seria dado o relevo principal: [...]”. (VIEIRA, 200κ, p. 305). Logo, podemos dizer que a
inversão de destaques que há entre Blimunda e a rainha acontecem pela focalização
heterodoxa propagado pelo narrador e autor Saramago, pois, esta “[...] constrói, [...]
personagens apócrifas e inverte a ortodoxa distribuição dos relevos diegéticos. [...].”.
(VIEIRA, 2008, p. 305).
Outro ponto que devemos considerar é a posição da Igreja em relação às duas
personagens. A rainha, por ser devota, temer e respeitar as leis da Igreja, é, possivelmente,
considera a mulher ideal, a esposa perfeita, que dedica ao marido à mesma devoção que
consagra ao próprio Deus. Por mais que esse seja um perfil típico dos casamentos reais da
época, o leitor atento perceberá a crítica de Saramago à subordinação mantida pela Igreja. O
trecho a seguir delineia bem os anseios religiosos da rainha:

[...] D. Maria Ana, como razões acrescentadas de recato, tem a mais a


maníaca devoção com que foi educada na Áustria, e a cumplicidade que deu
ao artifício franciscano, assim mostrando ou dando a entender que a criança
que em seu ventre se está formando é tão filha do rei de Portugal como do
próprio Deus, a troca de um convento. (SARAMAGO, 1999, p. 31).

Quanto a Blimunda, essa nunca se preocupou em respeitar as convenções sociais e


muito menos as impostas pela Igreja. Não conhecia perigos em suas ações, a sua união

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ilegítima e transgressora com Baltasar representa a sua ousadia e coragem, se pensarmos que
viviam em uma época em que a inquisição pregada pela Igreja punia, quase sempre com a
morte, todos que não seguissem seus mandamentos. E mesmo ela tendo sido vítima
indiretamente da inquisição, uma vez que sua mãe foi condenada, não se submeteu a tais
comandos.
A protagonista, entretanto, contou com o fato de ter sido considerada louca pela Igreja,
principalmente quando ela passou a procurar incansavelmente seu marido, após ele ter
levantado voo acidentalmente na maquina voadora. Mas, desde cedo, Blimunda era “mau
vista” pela ordem religiosa. Sua mãe foi condenada, pela inquisição, por bruxaria e, por
conseguinte, Blimunda passou a ser alvo de desconfiança por parte do poder religioso. Foi
graças à proteção do padre Bartolomeu que seus poderes sobrenaturais não foram descobertos.
Dessa forma a inquisição não chegou até ela.
Nos tempos de andanças, em que Sete-Luas “[...] já era conhecida de terra em terra, a
pontos de não raro a preceder o nome de Voadora, por causa da história que contava. [...]”
(SARAMAGO, 1999, p. 343), a Igreja tentava se aproximar e subordiná-la aos seus preceitos,
porém, ela não aceitava, recusava-se, por exemplo, confessar-se:

[...] A esses mandava dizer que fizera promessa de só se confessar quando se


sentisse pecadora, não poderia encontrar resposta que mais escandalizasse se
pecadores todos nós somos, porém, não era raro que falando sobre isto com
outras mulheres as deixasse pensativas, afinal, que faltas são assas nossas, as
tuas, as minhas se nós somos, mulheres, verdadeiramente, o cordeiro que
tirará o pecado do mundo, no dia em que isto for compreendido vai ser
preciso começar outra vez tudo [...]. (SARAMAGO, 1999, p. 344).

Enfim, a forma particular como Saramago elabora a personagem, chama a atenção


pela sua sensibilidade. Sensibilidade esta que não é sinônimo de fraqueza, pelo contrário,
enquanto retribuía com afeto e gratidão aos que lhe faziam o bem, também se defendia
corajosamente daqueles que tentavam fazer-lhes o mau. Basta nos recordamos da primeira
noite em que ela passa fora de casa, quando sai a procura de Baltasar, vendo-se obrigada a
matar um frade para defender a sua honra, ocasião em que se refugiou nas ruínas de um
convento, após ter constatado que Baltasar havia de fato desaparecido e tendo a protagonista
recuperado apenas os seus pertences, acreditando ela estar em segurança por ter sido o lugar
recomendado pelo próprio frade, ainda no cair da tarde quando a encontro-o solitária a vagar
pela estrada desabitado.
Ao mesmo tempo em que se mostra guerreira e destemida, é uma mulher afetuosa, que
encontra no amor por Baltazar toda a força que necessita para lutar por justiça, sinônimo de
liberdade. Sua busca infatigável por seu amado, ocasionada pelo desaparecimento do mesmo,
não a torna fraca nem submissa, ao contraio, serve mais para mostrar que os dois eram,
verdadeiramente, felizes e sem ele a vida parece perder toda a graça, no entanto, não perde a
razão, porque ela transforma a procura em sua razão de viver.
Enquanto D. Maria Ana Josefa acreditava está no “desaparecimento” do marido um
“caminho” para a felicidade, Blimunda nunca desistiu de Baltasar, em sua caminhada, muitas
vezes foi maltratada, mas ao invés de se virar contra a quem a maltratava retribuía ajudando a
essas pessoas. A Voadora nunca se abateu e, afinal de contas, foi essa força de vontade e o seu
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amor por Sete-Sóis que fizeram com que alcançasse o seu objetivo maior. Blimunda o
encontrou nove anos após o seu sumiço. Baltasar havia sido capturado pelos inquisidores, e na
ocasião em que o reencontro, na sétima passagem por Lisboa, estava sendo cumprida a sua
sentença em um auto-de-fé, ele seria queimado na fogueira. “E uma nuvem fechada está no
centro do seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-
Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Bluminda.”. (SARAMAGτ,
1999, p. 347).
O que podemos perceber na construção das duas personagens é uma clara e consciente
manipulação das ações, por parte do romancista, com o objetivo de (re)escrever a história
partindo de um pressuposto de que se vai mostrar o lado de quem “fez” realmente a história e
não o lado de quem “a escreveu”. τ embate ente a mulher nobre, devota da fé cristã-católica e
a mulher considerada feiticeira, a mulher simples, da classe popular é evidente e marca o
contraste no romance histórico de Saramago. A construção do convento de Mafra é a história
oficial, “escrita” que Saramago resgata, porém a história só existe porque alguém construiu o
convento, e esses foram os populares, portanto quem fez a história acontecer. Sendo assim, a
heroína do romance se ajusta a essas ações para dar significado real aos acontecimentos,
imortalizando, dessa forma, uma classe que encontra na literatura o lugar e o destaque que não
lhes foi dado na historiografia.

REFERÊNCIAS

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histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000). São Paulo: Ed. UNESP, 2010, p. 30-43.
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Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1991, p. 141-182.
______. A intertextualidade, a paródia e os discursos da História. In.: HUCTHEON, Linda.
Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de
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“Memorial do convento” de José Saramago. In.: BτECHAT, M. C. B.; τLIVEIRA, P. M.;
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Horizonte: FALE/UFMG, 2000, p. 161-177.
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SOARES, Maria de Lourdes. O romance de José Saramago: um novo paradigma do romance
histórico?. In.: BOECHAT, M. C. B.; OLIVEIRA, P. M.; OLIVEIRA, S. M. P.(Orgs.).
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VIEIRA, Cristina da Costa. Processos narratológicos. In.: ______. A construção da
personagem romanesca. Lisboa: Colibri, 2008, p. 227-325.
ZILBERMAN, Regina. O romance histórico – teoria & prática. In.: BORDINI, Maria da
Glória. (Org.). Lukács e a literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 109-139. (Coleção
Teoria da Literatura; 1).

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NO DIA QUE ROLAND FALOU COM SOTAQUE NORDESTINO

Caroline Sandrise dos Santos Maia


(UFPB)
carolinesandrise@gmail.com
Nilma Barros Silva
(UFPB)
nilma-jp@hotmail.com
Wanderson Diego Gomes Ferreira
(UFPB)
wanderdiego@hotmail.com
Beliza Áurea

Introdução

O presente trabalho discorrerá sobre a narrativa de Roldão no folheto de cordel e sua


tradição discursiva, ligada à memória da La Chanson de Roland, canção de gesta medieval
francesa, revisitada por várias literaturas da idade média, entre elas o romanceiro, no século
XIV. A Canção de Rolando é parte do núcleo narrativo Carolíngio, que tem Carlos Magno e
os doze pares de França como tema fundante. Discutiremos a desterritorialização de Rolando
e sua reterritorialização como Roldão, nos sertões nordestinos.
Vale relembrar que o poema da canção de gesta pontua o fim heroico dos pares e de
Rolando, sobrinho de Carlos Magno, que morrem ao lutar contra os sarracenos na batalha de
Roncesvales. A Canção é baseada numa batalha real que ocorreu em 15 de Agosto de 778
entre a retaguarda do exército Franco, comandada por Rolando, e um grupo de montanheses
bascos. Apesar de a Canção ter como pano de fundo uma história real, alguns fatos não foram
reproduzidos com fidelidade, ou seja, o cancioneiro utiliza-se de sua liberdade poética para
acrescentar e/ou suprimir fatos, visto que não tem compromisso com o fato real. Sendo assim,
ele trabalha a partir da lembrança, fazendo com que o poema passe a contar a trama pelo fio
da memória e por ser literatura pode ser centrado em devaneios, acoplando na canção
elementos do imaginário medieval. Podemos citar como exemplo desta modificação na
Canção, o fato de que os bascos passam a ser representados como muçulmanos, alguns nomes
foram modificados e certos personagens foram acrescentados.

No dia que Roland falou com sotaque nordestino

A temática da literatura de cordel é diversificada, tudo é motivo para os cordelistas


escreverem seus versos, basta que tal tema seja interessante para seus leitores. Segundo
Câmara Cascudo, a História de Carlos Magno e os doze pares de França, retratada na Canção
de Rolando, foi um dos livros de cabeceira dos grandes poetas do passado. Essa era uma
leitura frequente nas fazendas e engenhos nordestinos, familiares, amigos e empregados
reuniam-se no fim do dia para ouvirem as histórias lidas muitas vezes pela única pessoa

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alfabetizada do lugar. Através do Nomadismo das palavras (Zumthor), esse tema se difundiu,
fazendo com que o rei da França e seus paladinos virassem personagens de muitos folhetos de
cordéis, permanecendo no imaginário nordestino até os dias atuais. “σa voz a palavra se
enuncia como lembrança, memória-em-ato de um contato inicial.” (ZUMTHτR, 1997, p.13)
A memória vem das vozes, são elas que repassam a memória coletiva. A voz, segundo
Zumthor, constrói o imaginário, pois não tem o compromisso da letra. Por isso, ela se
reterritorializa nos locais que se faz presente.
No processo de reterritorialização, os personagens da Canção de Rolando sofreram
mudanças. Eles foram adaptados ao ambiente e sentimentos nordestinos, religiosidade,
misticismo e aos acontecimentos mais recentes. Deste modo, o herói do folheto serve como
porta-voz dos hábitos e costumes nordestinos, agindo de acordo com a ética do seu ambiente
social.
A grande aceitação de Carlos Magno e os pares de França nos sertões nordestinos se
dá pelos valores que eles carregam, representando o equilíbrio e o fim das injustiças sociais
nessa região. O poeta popular procura escrever sobre temas que agradem os ouvintes e
escolhem os fatos mais interessantes, para a partir deles produzir seus relatos. Por isto, nos
folhetos que analisamos, não encontramos nada que remeta à morte dos Pares, fato este
narrado na Canção de Rolando, pois representaria a vitória do mal.
Analisaremos a seguir trechos do cordel Roldão no Leão de Ouro e da Canção de
Rolando, para evidenciar as similitudes existentes em ambas. Entre os componentes que
aparecem no ciclo carolíngio e se repetem na literatura popular nordestina estão o combate, a
busca contínua por aventura, o relato de proezas, as provas, os ardis, dilemas e a luta contra
seres monstruosos, como os gigantes.
Nas canções de gesta, a honra do herói depende da lealdade para com o seu senhor.
Tal característica ficou evidente na Canção de Rolando, quando ao ser designado por Ganelão
para comandar a retaguarda do exército franco, Rolando aceita mesmo sendo contra sua
vontade, já que era do agrado do Rei Carlos. Como vemos nos seguintes versos:

O conde Rolando, quando se ouve designar, fala como um perfeito cavaleiro:


“Senhor padrasto, devo agradecer-vos muito; vós me designastes para a
retaguarda. Carlos, o rei que domina a Doce França, não perderá, que eu
saiba, nem palafrém, nem corcel, nem mulo nem mula que deva cavalgar,
nem rocim nem besta de carga sem que as espadas lutem por eles.” Ganelão
responde: “Dizeis a verdade, sei muito bem.” (A CAσÇÃτ DE RτLAσDτ,
1988, v. 751 a 760)

Ganelão, o traidor, indica Rolando para ficar na retaguarda, pois tinha conhecimento
que os Sarracenos atacariam os retardatários do exército franco. O herói medieval honrado, ao
ser escolhido para uma tarefa, não a recusa, visto que a honra é uma virtude muito
significativa da época. Rolando luta com todas as forças para defender os interesses do seu
Senhor, os interesses do Bem.
Já na literatura de cordel, a honra do herói depende da sua coragem. Em Roldão no
Leão de Ouro, destacamos o seguinte trecho: “A minha resolução/ É seguir pra Timorante/
Creio que é esta ocasião:/ τu eu perco a minha vida,/ τu Angélica sai da Prisão!”
(FERREIRA, 2007, 09). Nesses versos percebemos a coragem de Roldão, que de tão
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destemido não tem medo da morte e está disposto a perder a vida para libertar Angélica, presa
por causa de um sonho da madrasta. No sonho, um estrangeiro inimigo roubaria a princesa
para casar-se com ela. A madrasta adverte Abderaman, que por precaução prende a filha na
cova Tristeféa.
Outra passagem da Canção de Rolando que demonstra toda a honra do Conde é
quando ele percebe que os Sarracenos atacariam a retaguarda. Olivier, temendo uma derrota,
visto que o exército franco possuía menor quantidade de homens, pediu para o amigo tocar o
olifante, com a intenção de avisar aos outros franceses sobre o ataque, mas teve o pedido
negado. Rolando diz:

‘σão agrada ao Senhor Deus que por minha falta meus parentes sejam
censurados e que a Doce França caia na humilhação. Mas eu darei grandes
golpes com Durindana, minha boa espada que está cingida aqui do lado.
Vereis sua lâmina toda ensanguentada. Os infiéis pagãos se reuniram aqui
para sua desgraça; garanto-vos que estão todos condenados a morrer. ’ (A
CANÇÃO DE ROLANDO, 1988, v. 1059 a 1069)

Para o herói, tocar o olifante seria um sinal de fraqueza, de covardia. Tal atitude não
agradaria a Deus, pois os franceses e sua família ficariam conhecidos como fracos. Na ética
guerreira é melhor morrer lutando do que ser reconhecido como um covarde.
Nas Canções de gesta o mal é representado pelos Sarracenos, pagãos e mouros, assim
como pelos gigantes, dragões e bruxas, criaturas do imaginário medieval. Na Canção de
Rolando, o Emir pede ajuda aos gigantes para vencer os cristãos “‘Carlos é feroz, seus
guerreiros valentes. Jamais vi um exército com mais ímpeto. Mas pedi o auxílio dos barões de
τcian, Turcos, Enfruns, Árabes e Gigantes.’” (A CAσÇÃτ DE RτLAσDτ, 19κκ, v. 350κ a
3519).
O mal, nos cordéis que trazem as histórias do ciclo carolíngio, continua representado
pela figura dos mouros, turcos e pagãos, bem como pelos gigantes, bruxas e dragões.

Roldão que ia passando/ Tinha subido a escada/ Mas o gigante deu fé/
Embaraçou-lhe a passada/ Botou-lhe o alfanje no peito:/ - Quem é você,
camarada?/ Brutamonte então gritou: - Me prendam este soldado/ E o levem
para a forca/ Que vai morrer enforcado!/ Roldão puxou a espada/ Deu tudo
por acabado. (FERREIRA, 2007, p.20)

Nos versos acima, Roldão tenta escapar da cova Tristeféa após ter libertado Angélica
e é surpreendido pelo Gigante Brutamonte. Mais uma vez, o mal aparece na vida do herói
para adiar sua felicidade com Angélica. Como foi mencionado anteriormente, essas provações
são constantes tanto na gesta quanto no cordel.
O tema que envolve o herói Roldão é muito recorrente na literatura popular. Em
decorrência disto, encontramos outros títulos que abordam o ciclo Carolíngio. Foram eles: O
Príncipe Roldão e a Princesa Lídia, do autor paraibano José Costa Leite. A Prisão de
Oliveiros e A Batalha de Oliveiros com Ferrabrás, que são do autor Leandro Gomes de
Barros, nascido no Município de Pombal por volta do ano de 1865. A Grande Paixão de
Carlos Magno pela Princesa do Anel Encantado, do autor Zacarias José dos Santos, nascido
no município de Marcação no interior de Sergipe. A Vitória do Príncipe Roldão no Reino do
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Pensamento, de Severino Gonçalves de Oliveira, conhecido no meio literário como Cirilo de
Oliveira, do estado de Pernambuco. Roldão no Leão de ouro, nosso corpus, do autor João
Melchíades Ferreira da Silva, nascido em Bananeiras. As Bravuras de Roldão e a Mala do
Defunto, do autor Zé Barbosa, nascido em Fortaleza e residente em Teresina. E A História de
Carlos Magno e os Dozes Pares de França, do autor João Lopes Freire, não encontramos
maiores informações sobre o autor.

Considerações Finais

τ tema “Carlos Magno e os 12 pares de França” chegou aos sertões nordestinos por
intermédio dos colonizadores e obteve grande aceitação da população, por esta região ser
vítima de injustiças sociais. Partindo deste pensamento, concluímos que o núcleo narrativo
Carolíngio está presente no imaginário coletivo nordestino através dos cordéis, mantendo viva
a imagem do herói medieval da Canção de Rolando.
Na literatura de cordel, o herói passa por diversas provações. Esses obstáculos são os
combates que o mesmo precisa vencer para atingir seus objetivos, realizar sua missão. Ao
completar essa tarefa, ao herói é quase sempre dado a paga de casar-se com a princesa e
conquistar riquezas para que assim a noção de gratificação a quem faz o bem, o certo, seja
disseminada na escrita e na oralidade popular, tendo em vista que a mesma possui um alto
índice de aceitação pelos leitores em geral.

REFERÊNCIAS

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Alves, 1988.
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2007.
BARROS, Leandro Gomes de. A prisão de Oliveiros e seus companheiros. São Paulo:
Luzeiro, 2007.
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Barbosa, 1973.
NEMER, Sylvia. O ideal cavalheiresco: entre o romanceiro medieval, o cordel e o
cinema. Intermídias 7 – Dossiê Jerusa Pires Ferreira.

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<http://www.intermidias.com/txt/ed7/textos/CINEMA_Silvia%20Nemer.pdf> Acesso em: 10
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ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e
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Acesso em: 10 jun. 2012.
<http://www.cibertecadecordel.com.br > Acesso em: 11 jun. 2012.
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IMAGENS DO FOL AMOR DE LANCELOT E GENEVRA D’ A DEMANDA DO
SANTO GRAAL: DELÍRIOS DE AMOR E VISÕES DE TERROR

Elenilda do Rosário Costa


(UFPA)
helen__costa@hotmail.com
Alessandra F. Conde da Silva1
(UFPA)
afcs77@hotmail.com

1-Introdução

O amor cortês foi bem traduzido nos romances medievais e, por não raras vezes, vê-se
que esse amor levou ao desespero, à paixão sem medida e até mesmo ao desejo de morte
mediante a não concretização do sentimento. Lancelot, o cavaleiro do rei Arthur suspirou e
sofreu a dor de amar uma mulher que jamais poderia ser sua. O cavaleiro nutria pela rainha
Genevra, a esposa do rei, um amor, que podemos chamá-lo de cortês. Ora, o amor cortês
apresentava muitas funções, entre elas, atribuir uma relativa valorização feminina 2. É claro
que havia uma pedagogia para os homens, posto que o amor cortês, mediante os jogos da
corte e os gracejos, buscava ensinar aos homens regras comportamentais que lhes freassem os
instintos. Neste sentido, o amor cortês contribuiria para fazer com que os homens não se
perdessem de seus reais objetivos (cristãos).
Por outro lado, uma vez que havia a ideia de que o amor só se realizaria fora do
casamento, uma tensão existia: a Igreja precisou frear os impulsos anticristãos pertencentes às
teorias do amor cortês. Notemos que em novelas de cavalaria como A demanda do Santo
Graal, o amor cortês não é representado via matrimônio entre Genevra e Artur, mas na
relação adulterina entre aquela e o melhor cavaleiro do rei: Lancelot.
Para Rossiaud (2002, p. 4κ5), no caso de Lancelot, “(...) embora pecador, ele não traz
em si o mal, mas o “pegou” de Genevra, já que o adultério é um (...) crime considerado
essencialmente feminino”. A personagem de Genevra como representação feminina ecoa a
moral religiosa e social da época Medieval, não como elevação, mas como um modelo a ser

1
Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo (Orientadora)
2
Para Duby (1990, p. 349-350) o amor cortês permitiu que os homens que se queriam civilizados [tivessem] que
reconhecer que a mulher não é apenas um corpo de que alguém se apodera para dele gozar um instante ou que se
semeia para que ele alimente descendente e prolongue a duração de uma linhagem. Eles aprenderam que importa
também conquistar o seu coração, quer dizer, assegurar-se do seu bem querer, e que para isso é ter em conta a
inteligência, a sensibilidade e as virtudes singulares do ser feminino. Assim, “o amante não devia servir um
homem, seu igual, mas um ser que ele tinha por inferior, uma mulher. Eles vinham assim reforçar a ideia
vassálica sobre a qual repousava na época todo o edifício político” (DUBY, 1990, p. 344). Georges Duby (1990,
p. 59-93), aponta o amor cortês como um “remédio ideológico” para as contradições internas à nobreza.
Rigorosamente, para o autor (1990, p. 74) o amor cortês seria um jogo – mas um jogo realizado entre os homens
e que tem nas mulheres apenas personagens coadjuvantes. Neste sentido, o Amor Cortês é simultaneamente um
produto do sistema feudal e de uma sociedade fundamentalmente masculina no que se refere ao exercício do
poder social e político.
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temido. E é desta forma que o amor cortês é tomada pela Igreja, detentora do discurso
imperativo da época: o amor cortês é utilizado como mecanismo doutrinário.
Assim, o adultério nas novelas de cavalaria servia como exemplo moral-religioso,
portanto como algo que não deveria ser realizado e, a Igreja, como produtora ideológica,
traçava a imagem que a sociedade deveria ter. Além do que, escolher deixar esses
acontecimentos na novela era uma autoafirmação para os monges, que envolvidos com o texto
tinham maior consciência de que era melhor permanecer longe das mulheres, haja vista que
tinham a imagem de Genevra, que era o símbolo da mulher traidora e transmissora do pecado.
O Medievo traz à tona, então, uma imagem matizada do feminino: a mulher
socialmente vista sob clivagens diversas é refletida na Literatura de cavalaria e, para que
possamos clarear essa escuridão passemos ao estudo de imagem e representação.

2 - Imagem & Representação

O homem medieval encontrou muitas formas de falar do pecado, pois, vivia


efetivamente em um mundo de imagens e muitos significados, de pinturas de mulheres, de
animais, de doenças. Todas essas imagens eram meios de representar o pecado
constantemente. Produções como A Demanda do Santo Graal apresentam forte teor
alegórico3 e a imagem é a representação mais forte para refletir esse ideal. Segundo Umberto
Eco (1989, p. ι3) “a mentalidade simbolística inseria-se curiosamente no modo de pensar do
medieval” e, desta forma, a imagem era algo perfeito para refletir uma doutrina, uma ideia.
Na novela de cavalaria referida acima há muitas imagens e representações sobre
muitas personagens. A imagem de Genevra representava o símbolo do pecado, haja vista que
morreu sem arrependimento pelo adultério que cometera; seu amor devotado ao cavaleiro
estava acima da fidelidade ao marido e também era a imagem do sofrimento que o amor
carnal imputaria ao homem. Morgana representava a mulher que disputa o poder temporal,
aquela que tinha o poder mágico-pagão pelos mecanismos sociais coercitivos, por isso
considerada diabólica. Arthur não é somente identificado como o marido traído, mas como
um senhor também traído por seu vassalo. Assim sendo, vê-se que as imagens, aqui
mencionadas, são representações de uma realidade visível e sensível, externa à consciência do
homem.
No que diz respeito à representação, há sempre uma confusão em razão “da
ambiguidade do termo” (GIσZBURG, 2001, p. κ5). De acordo com Carlo Ginzburg (2001, p.
κ5), a “representação” proporciona à realidade a oportunidade de ser pintada e do mesmo
modo “torna visível a realidade representada” (GIσZBURG, 2001, p. κ5); trata-se, na
verdade, da evocação da ausência ao mesmo tempo em que sugere a presença. As imagens

3
Segundo Santo Agostinho, alegoria é “a palavra que soa de um modo, mas acaba significando outra coisa
diferente. Por exemplo, Cristo é chamado cordeiro (Jo 1,29); acaso é Ele animal? Cristo é chamado leão (Apo
5,5); acaso é Ele fera? É chamado pedra (ICor 10,4); acaso é Ele dureza? É chamado monte (Dan 2,35); acaso é
Ele elevação de terra? E, assim, há muitas palavras que soam de um modo, mas são entendidas de outro e a isto
se chama alegoria (AGUSTINHO apud LAUAND 2011, p.22).
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que o cavaleiro da charrete desenhava nas paredes do quarto no castelo de Morgana 4 são um
bom exemplo disso. Tais imagens evocavam a ausência da rainha Genevra, da mesma forma
que a colocava presente ali, de modo que ele a olhava e a admirava todos os dias.
A representação da qual tratamos é a chamada representação mimética, pois é por
meio dela que a passagem da realidade acontece, de forma que a sua percepção é
consequência da interpretação. A realidade é (re)elaborada adquirindo certas características
simbólicas e interpretativas. As imagens construídas por Lancelot (tanto a de seus feitos
guerreiros quanto às de sua amada) são representações da realidade que um dia ele viveu e, é
deste evento representativo que trataremos logo mais, entendendo melhor a força do símbolo
ou da imagem presentes nas novelas de cavalaria, tomando como demonstração o episódio
262 d’A demanda do Santo Graal – [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot
e conhecerom sua fazenda e da raĩa].

3 – Entrando na camara

O episódio a que nos referimos no tópico anterior trata do momento em que Lancelot é
aprisionado por Morgana, a irmã do rei. Enclausurado, o cavaleiro colocou nas imagens,
desenhadas por ele, suas lembranças de amor e seus feitos guerreiros, alimentando-se, desta
forma, dos momentos venturosos.
Um dia, tempos depois de Lancelot ser liberto por Morgana, Mordret e seus irmãos
são levados até ao castelo da irmã de Rei Artur. Recuperando-se de alguns ferimentos,
Mordret, um dos sobrinhos de Morgana, ao oitavo dia chega até a câmara que Lancelot
estivera preso e, encontra “feitos de Lancelot eram i pintados” (DSG, 1995, p. 211). A
princípio, ele não compreende o que estava vendo e chama seus irmãos para que vejam e sua
tia para que lhes explique o significado daquelas imagens. Morgana, de imediato se nega a
relatar tal fato, porém com a insistência dos sobrinhos, ela decide contar, declarando sua
revolta em tais palavras: “ca maior pesar nom me poderia fazer como fazer tal escanho a tam
alto homem como meu irmão e amar-lhe sua mulher e jazer-lhe com ela.” (DSG, 1994, p.
211). Diz ainda que, por sentir tão grande amor pelo cavaleiro, o fez prisioneiro ali por volta
de um ano e meio. Foi neste período que ele “pintou com sua mão todos seus feitos, dês que
foi cavaleiro até que foi aqui preso. E cada menhãã, tanto que se erguia, abraçava e beijava as
mãos da rainha tam de coraçom como se fosse ela meesma” (DSG, 1994, p. 211). Galvam, ao
ouvir toda história contada por sua tia, recusou-se a acreditar, pois tão bom cavaleiro era
Lancelot que não poderia cometer tal traição. Sua tia, por fim, pede aos cavaleiros que ao
chegar à corte, contem tudo que ouviram e viram naquela câmara.
Na verdade, as palavras ditas por Morgana expressaram muito mais sua amargura por
não ser correspondida com o amor de Lancelot do que pretensão em elevar a honra de seu
irmão Arthur. O que o cavaleiro representou naquelas imagens não foram nada mais que suas
emoções e carências amorosas, informando (quiçá) à Morgana que o seu coração pertencia a
uma única mulher. No entanto, as imagens que dedicara à Genevra, atingiram as emoções de

4
No episódio [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot e conhecerom sua fazenda e da raĩa]
(DSG, 1995, p. 211 ), o cavaleiro desenha imagens de seus feitos guerreiros e da sua amada Genevra e prega
estes desenhos nas paredes da câmara em que ele estava preso.
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Morgana com efeito contrário, porque Lancelot não as construiu tentando “provocar” a irmã
do rei, mas as construiu, simplesmente para expressar seu amor e para não esquecer o rosto de
sua amada Genevra.
A narrativa descrita acima revela algumas funções que Vladimir Propp traçou em um
inventario de 31 funções5 na obra Morfologia do conto Maravilhoso. Faremos a análise de
alguns desses elementos iterativos, ligados a uma ideia primeira: a presença da imagem
mimética e o seu papel de preservar as lembranças de Lancelot. Utilizaremos, no quadro
abaixo, quatro funções de Propp, a saber: proibição, transgressão da proibição, carência e
reparação da carência ou dano.
Quadro A, Episódio 262 [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot e
conhecerom sua fazenda e da raĩa]

Função
Episódio Função (Propp) Representação
(Demanda)
Como eles entrarom
Não pode viver o
na camara u jouvera
amor com Genevra,
preso Lancelot e Proibição X
posto que ela
conhecerom sua
estivesse ausente.
fazenda e da raia
Lancelot transgride a
Desenha imagens de
Transgressão da proibição de viver o
- Genevra na parede da
proibição amor mediante a
câmara.
fruição da imagem.
Lancelot sente falta
- Carência X
da rainha (ausência)
Lancelot desenha a
Ele se vale da
imagem da rainha na
Reparação do representação da imagem
- parede de forma a
dano/carência da amada: visão angelical
fruí-la, isto é, torná-la
da rainha
presente.

Neste 1º quadro devemos observar o uso das imagens numa perspectiva particular do
cavaleiro. A primeira função, das muitas descritas por Propp, a aparecer aqui é a proibição6.
Lancelot é proibido de viver o amor com Genevra, por ela ser casada e por ele ser cavaleiro
do rei. A seguir, vê-se a transgressão da proibição7. Lancelot não deveria envolver-se com
Genevra, porém transgrediu a regra, neste caso, mediante a fruição da imagem. A
representação é clara nos desenhos de Genevra desenhados nas paredes da câmara. Ora, se a
proibição foi transgredida é por que houve um motivo para isso, e tal motivo se deve a

5
Segundo Propp, as funções são grandezas que não mudam nas narrativas, o que muda são, por exemplo, os
nomes dos personagens. “a repetição das funções é surpreendente” (PRτPP, 2001, p. 16).
6
Na obra Morfologia do conto maravilhoso é a função II. Impõe-se ao herói uma proibição (PROPP, 2001, p.
19).
7
Função III. A proibição é transgredida (PROPP, 2001, p. 20).
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carência8que Lancelot sentia pela ausência da rainha. Mas, no decorrer do episódio temos a
reparação da carência9 sentida por Lancelot quando ele desenha a imagem da rainha de
modo a querer torná-la presente. Neste momento há a representação da pessoa amada, uma
visão angelical de Genevra que Lancelot simula nos seus desenhos.
O quadro 2, exposto abaixo, revelará o uso das imagens numa perspectiva social, ou
seja, vê-se o que os outros (Mordret e seus irmãos; Morgana) pensam sobre as imagens
produzidas por Lancelot.
Quadro B10, episódio 262 [Como eles entraron na camara u jouvera preso Lancelot e
conhecerom sua fazenda e da raĩa]

Episódio Função (Propp) Função (Demanda) Representação


Como eles entrarom
na camara u jouvera Morgana age de
preso Lancelot e Antagonista forma velada e X
conhecerom sua desvelada (ludíbrio)
fazenda e da raia
Lancelot é
aprisionado por
Morgana que, em
O antagonista causa seguida (A), coloca
- X
dano cavaleiro contra
cavaleiro, mostrando
as imagens na parede
(B)
É comunicado aos
sobrinhos de Morgana conduz os
- Comunica-se o dano Morgana a traição de sobrinhos a contemplar
Lancelot e as imagens na parede.
Genevra(B).
Reparação do dano:
Morgana deixa o
mandam o herói
cavaleiro sair do X
embora ou deixam-no
castelo (A)
ir

O quadro apresenta funções que revelam características do personagem. Morgana é a


representação da vilã da história, ou seja, é a antagonista11, pois age de forma velada (quando
de alguma forma faz com que seus sobrinhos cheguem à câmara em que esteve preso
Lancelot) e desvelada (quando Mordret ordena que lhe explique tais imagens e ela se nega,
por pouco tempo, para em seguida revelar o segredo e aconselhar que contem para o rei

8
Função VIII-A. Falta alguma coisa a um membro da família, ele deseja obter algo (PROPP, 2001, p. 23).
9
Função XIX. O dano inicial ou a carência são reparados (PROPP, 2001, p. 31).
10
O caso da revelação (uso das imagens numa perspectiva social: o que os outros fazem da imagem produzida
por Lancelot).
11
Função III. A proibição é transgredida - nesta função aparece um novo personagem que é chamado
antagonista do herói (PROPP, 2001, p. 20).
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Artur). Assim sendo, como diz a função, a antagonista causa dano ao herói12 (Lancelot e
sociedade); à Lancelot por mantê-lo preso em seu castelo e à sociedade, por que aconselhou
aos sobrinhos que relatassem ao rei o suposto adultério da rainha e de Lancelot. A partir de
então, o dano é comunicado13. Comunicado e reparado14, na medida em que se diz que
Morgana causou dano a Lancelot por mantê-lo preso, da mesma forma reparou esse dano no
momento em que o manda embora.
Em resumo, as imagens de Genevra desenhadas na parede, permitiram que o cavaleiro
apaixonado mantivesse presente, mediante a representação imagética, as lembranças dos
amores vividos com a rainha. Nestas representações ela é vista de forma angelical, bela. É
claro, como vimos, que o conhecimento de tais quadros, permitiram à Morgana e a seus
sobrinhos descortinarem os segredos dos amantes, revelando-o ao rei Artur, causando, então,
a destruição do reino de Logres.
Como haverei de analisar dois episódios d’A demanda do Santo Graal, o caso que
trataremos a seguir, diz respeito à imagem do sonho de Lancelot. Esta é a mensagem futura do
seu destino. A passagem revela seus antepassados, gozando das maravilhas do paraíso. Estes
o avisam de que se persistir na vida de pecado, será merecedor dos castigos do inferno.

4 – Sonho: Visões de terror

Os episódios 201 e 202 [Da visam que viu Lancelot] e [Da outra visam que viu
Lancelot.] contam que durante o sono Lancelot teve três visões. Na primeira delas ele vê um
rio cheio de cobras e vermes: “o mais feo e o mais espantoso que nunca vira” (DSG, 1995,
p.158). Desse rio saem sete homens coroados e felizes e, logo após, sai um homem magro,
pobre e cansado sem tal coroa. Os sete homens são exaltados pelos anjos e levados para o céu,
diferente do pobre que ficou. Na segunda visão que está presente no episódio 202 [Da outra
visam que viu Lancelot] Lancelot vê Morgana, “mui fea e espantosa” (DSG, 1995, p.159). A
irmã do rei Arthur estava escoltada por milhares de demônios que levaram o cavaleiro a um
“vale mui fundo e mui escuro e mui negro” (DSG, 1995, p.159). Ali, Lancelot viu uma
“cadeira em que siia a rainha Genevra toda nua e suas mãos ante seu peito” (DSG, 1995,
p.160); estava ela queimando fortemente.
E, na ultima visão, o cavaleiro vê em uma horta seus pais, o rei Bam de Benoic e a
rainha Helena, os quais lhe dizem que se permanecer numa vida de pecado, ele não terá nada
a alcançar naquele lindo lugar. Vejamos que o discurso cristão perpassa todas as visões, haja
vista que por trás de cada uma delas há mensagens a serem decodificadas. A princípio, temos
um homem que é pecador e, portanto não merecedor do reino dos céus. Depois, entregado aos
diabos dá a ideia de que ele será castigado e, por fim, o inconsciente do cavaleiro se sente
culpado até porque, seus próprios pais o chamam de pecador. O sonho lhe incomoda, na
medida em que parece ter sentido para Lancelot, como diz Vieira (1694, p.22) “o vicioso

12
Função VIII. O antagonista causa dano ou prejuízo a um dos membros da família (PROPP, 2001, p. 21).
13
Função IX. É divulgada a notícia do dano ou da carência, faz-se um pedido ao herói ou lhe é dada uma
ordem, mandam-no embora ou deixam-no ir. (PROPP, 2001, p. 24)
14
Função XIX. O dano inicial ou a carência são reparados. (PROPP, 2001, p. 31)
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sonha como vicioso, o santo como santo”. Assim sendo todas as visões parecem que vão se
cumprir em sua vida.
Neste sentido, ligados a ideia da imagem, vamos nos deter ao estudo das visões 2 e 3,
segundo as funções de Propp.
Quadro A15, episódio 202 [Da outra visam que viu Lancelot]
Episódio Função (Propp) Função (Demanda) Representação
Morgana, no inferno, A imagem dos
Função do doador/
Da outra visam que agarra Lancelot demônios, a culpa e os
Um ser hostil tenta
viu Lancelot dando-o aos pecados (enquanto
aniquilar o herói
demônios. alegoria).
O herói é Lancelot encontra
transportado ou com Genevra (alvo
- conduzido ao lugar da sua busca) no X
onde se encontra o inferno, conduzido
objeto que procura pelo sonho.
Por parte dos
O herói sofre
- demônios e da sua X
perseguição
própria consciência.
O herói é salvo da Lancelot é acordado
- X
perseguição do sonho

Nesta fase da narrativa, temos um sonho infernal tido por Lancelot; aqui vemos
aparecer a função do doador16. O doador é um ser que entra na narrativa para prover algo ao
herói, ajudando-o a superar algum dano sofrido; no entanto, antes que o herói possa receber
algo deste, ele deve passar por algumas situações que o levarão ao “galardão”. σeste sentido,
cabe a Lancelot ser aniquilado por um ser hostil, que no episódio é a figura de Morgana, a
própria representação do inferno, agarrando-o e entregando-o aos demônios. Num olhar
cristão, estar no inferno é ter a privação de Deus e da vida; numa representação maior para
Lancelot se trata da culpa pelos pecados cometidos pelo “boo cavaleiro” (DSG, 1995, 212).
Não se pode esquecer que a Igreja era o centro de tudo na Idade Média e, portanto, estar no
inferno sofrendo significa não ter vivido de acordo com os preceitos da Igreja.
Seguindo o passeio pelo inferno, na visão do cavaleiro, temos o deslocamento17 de
Lancelot de um espaço a outro. Genevra, a sua amada, está também no inferno por ter traído o
seu marido. Sabemos que Lancelot está sendo perseguido18 tanto pelos diabos do inferno
quanto por sua própria consciência de pecador. Mas para felicidade do herói, e para finalizar
os comentários sobre este 1º quadro, Lancelot é salvo da perseguição19 quando é despertado

15
O caso do sonho infernal (o uso das imagens numa perspectiva alegórica sobre Morgana e os demônios) –
plano maior da narrativa.
16
Função XII. O herói é submetido a uma prova; a um questionário; a um ataque etc., que o preparam para
receber um meio ou um auxiliar mágico. (PROPP, 2001, p. 25).
17
Função XV. O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura
(PROPP, 2001, p. 30).
18
Função XXI. O herói sofre perseguição (PROPP, 2001, p. 33).
19
Função XXII. O herói é salvo da perseguição (PROPP, 2001, p. 33).
21
O caso do sonho infernal – plano menor da narrativa.
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de seu sono. Passemos a observar agora, o quadro B numa perspectiva alegórica sobre
Genevra, a partir do uso das imagens.
Quadro B20, episódio 202: [Da outra visam que viu Lancelot]
Episódio Função (Propp) Função (Demanda) Representação
O Herói é
Transportado, Levado Lancelot é levado de
ou Conduzido ao um reino (do plano
Da outra visam que
Lugar onde se dos demônios) a X
viu Lancelot
Encontra o Objeto outro reino (local em
que Procura que está Genevra).
(Carência).
Lancelot encontra A visão da rainha
com Genevra (alvo toda “escabelada e
- A carência é reparada da sua busca) no nua, com língua de
inferno, conduzido serpente”: visão
pelo sonho. infernal da rainha.

Podem ser encontradas nesta passagem duas funções de Vladimir Propp. No sonho de
Lancelot, ele se vê transportado21 de um plano a outro da narrativa. Neste outro local ele vê
Genevra queimando, ardentemente, sentada numa cadeira de fogo; imagem infernal. O sonho
o conduz ao seu “objeto” de procura – na realidade – realizando, ao menos naquele plano, a
reparação da carência22. É claro que a visão da rainha queimando e com língua de serpente
servirá para amedrontar o cavaleiro. A rainha o admoesta a abandonar o pecado e voltar ao
caminho da salvação. A imagem da rainha serve à causa religiosa, imperativamente.

4 – Considerações finais

No presente trabalho buscou-se observar a função das imagens nos dois episódios da
Demanda aqui estudados. A presença marcante da rainha Genevra tanto nas imagens postas
na parede, quanto nas visões de Lancelot, mostram faces recorrentes da velha dicotomia –
santo x profano. Ela é tanto vista como anjo, quanto como demônio. Seguindo a linha
alegórica cristã, ela é vista como pecadora; já, Lancelot, apaixonado, desenha-a bela e
angelical. É claro que nos dois episódios, duas outras mensagens podem ser lidas. Falamos do
conhecimento de Morgana e dos sobrinhos sobre o caso adulterino de Genevra, mediante a
apreciação das imagens desenhadas por Lancelot. No segundo episódio, as imagens cristãs, no
sonho do cavaleiro, além de pintarem uma Genevra demoníaca, servem para estabelecer o
pensamento cristão. É a força da alegoria. A representação serve quer à causa do amor, quer à
causa religiosa.

22
Função XV. O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura
(PROPP, 2001, p. 30)
23
Função XIX. O dano inicial ou a carência são reparados (PROPP, 2001, p. 31)

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REFERÊNCIAS

DUBY, Georges. A propósito do Amor Chamado Cortês. (1990). In: ______. Idade Média,
idade dos homens − do amor e outros ensaios. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. P. 59-65
ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval; tradução Maria Sabino Filho. Rio de
Janeiro: Globo, 1989.
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira – nove reflexões sobre a distância. São Paulo:
Companhia das letras, 2001.
LAUAND, Jean. Tomás de Aquino e o papel do corpo na realização do homem. Notandum.
Porto: CEMOrOC-Feusp / IJI-Universidade do Porto. 2011, p. 22.
MEGALE, H. A Demanda do Santo Graal. Texto sob os cuidados de Heitor Megale. São
Paulo: T. A. Queiroz, 1988.
PROPP, Vladimir I. Morfologia do Conto Maravilhoso. CopyMarket.com, 2001.
ROSSIAUD, Jacques. Sexualidade.In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São
Paulo: EDUSC, 2002.
VIEIRA, A. Xavier dormindo e, Xavier acordado: dormindo (...) Lisboa: Miguel Deslandes,
1964.

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HELGA E HONI: A FORÇA FEMININA NOS QUADRINHOS DE “HÄGAR, O
HORRÍVEL”

Elvio Franklin Menezes Teles Filho


(UFC – Valknut: Grupo de Estudos Vikings)
elviofranklin@hotmail.com

A utilização das Histórias em Quadrinhos como ferramenta de aprendizado histórico


ainda não é bem reconhecida pelos pais e educadores. A ideia de que as HQs são simples
meios de comunicação com o único objetivo de divertir (ou perverter, como se pensou nos
anos 1950) ainda está bastante em vigor no mundo de hoje. Pensando nisto tornam-se
necessários maiores esclarecimentos acerca desta forma de arte e seus benefícios no meio
educacional.
As primeiras Histórias em Quadrinhos (HQs) surgiram em fins do século XIX e início
do XX, primeiramente com temáticas humorísticas e em formas de tirinhas curtas, somente
nas décadas seguintes iniciou-se uma produção de quadrinhos com histórias mais longas e
bem elaboradas. Após a década de 1930, com o crack na bolsa de valores surgiram gêneros
como ficção científica, quadrinhos policiais e de aventura. Heróis como Flash Gordon, Dick
Tracy e Tarzan, tiveram sua estreia neste período. No entanto as tirinhas continuaram a ter sua
publicação garantida em jornais e periódicos de todo o mundo.
Em 1973 um nova-iorquino encorpado e barbudo cria no porão de sua casa uma das
tirinhas mais famosas e uma das personagens mais carismáticos da história das HQs. Criado
por Richard Arthur Allan Browne, o Dik Browne, Hägar, o Horrível torna-se imediatamente
fenômeno mundial. Ambientado na Era Viking (790 – 1066 d.C), Browne nos apresenta um
Viking beberrão e sua família, sua esposa Helga, seus dois filhos Honi e Hamlet, seu cão de
estimação Snert e seu melhor amigo Lucky Eddie.

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A análise de imagens não é um objetivo novo na pesquisa histórica. A décadas os
historiadores vem se empenhando em utilizar pinturas, fotografias, esculturas, filmes, entre
outras, como fontes de pesquisa e análise. As imagens podem ser um forte indício do
pensamento de uma época ou das formas de representações de uma camada social, pode nos
dar pistas de como as pessoas pensavam ou deixavam de pensar, pode nos mostrar algo que
muitas vezes o texto escrito não consegue. O ser humano vem produzindo imagens desde o
início de sua existência e, diferente do que se pode pensar, ele não simplesmente reproduz
imagens do que ele ver ou reconhece, ele cria e essas criações não são arbitrárias, elas tem
uma intencionalidade, um objetivo. As imagens não são a realidade histórica em si, mas
trazem porções dela, traços, aspectos, símbolos, representações, dimensões ocultas,
perspectivas, induções, códigos, cores e formas nela cultivadas. Muitas vezes os quadrinhos
(assim como outras formas de arte) falam mais do seu criador e da época em que foram
criados do que do momento em que estão ambientados. Isto acontece nas tirinhas de Hägar,
Dik Browne utiliza-se da ambientação na Era Viking para nos apresentar aspectos da
sociedade e da família americana contemporânea.
As imagens que Browne utiliza para representar o cotidiano dos vikings vem de uma
tradição que deu origem à maioria das representações de vikings na atualidade, o romantismo
oitocentista.

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“Respondendo aos diversos anseios nacionalistas, as antigas paisagens e os


personagens medievais foram resgatados para construir identidades modernas” (LAσGER,
2001, p. 223). Foi no século XIX com a obra do músico Richard Wagner que estas
representações foram amplamente instauradas, seguidas posteriormente por pintores,
escultores, diretores de cinema e teatro, escritores, entre muitos outros artistas de todos os
gêneros. Nos quadrinhos não foi diferente. A partir da década de 1960 artistas como o
americano Frank Frazetta, grande ilustrador da adaptação das histórias de Conan, O Bárbaro
(Robert E. Howard) para quadrinhos, ajudaram a dar continuidade a essas imagens. (imagem
acima).
Em Hägar, O Horrível podemos perceber vários destes estereótipos, tendo como
principal exemplo o fato de a maioria das personagens (inclusive o cão Snert e Kuaak, a pata
de estimação de Helga) usarem capacetes com cornos, seguindo a tradição oitocentista. No
entanto não se pode condenar o trabalho de um artista por utilizar estes estereótipos, como já
foi comentado, há uma intencionalidade em cada uma dessas representações, Browne
precisava que o público leitor reconhecesse Hägar como um viking e para isso utilizou de
elementos de conhecimento geral que remetessem à esses povos. Inclusive muitas das
imagens criadas por Browne correspondem com uma proximidade grande à alguns símbolos e
imagens dos povos escandinavos, obviamente com alguns exageros, marca registrada dos
quadrinhos humorísticos.
No decorrer da leitura das tirinhas de Hägar podemos perceber a importância das
personagens femininas nas historinhas, especialmente em Helga e Honi, respectivamente
esposa e filha do viking.

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Helga é a representação da dona de casa americana do século XX em diante, ao
mesmo tempo independente ao ponto de ter grande controle sobre o marido, mas sem nunca
abandonar seus deveres domésticos, apesar de sentir alguma vontade de ter uma vida mais
livre, entretanto jamais renegaria os cuidados e carinhos aos filhos e o amor pelo marido,
mesmo sendo este um grande fanfarrão. Seu aspecto parece ter sido parcialmente baseado na
personagem Brünhild, valkiria e uma das protagonistas da Volsunga Saga, bem como em
mulheres da ópera de Wagner. Corpulenta e sempre com seus loiros cabelos trançados e farto
busto, muitas vezes aparece usando o característico avental de dona de casa, mas também
costuma, dependendo da ocasião, usar indumentária de guerra, como cota de malha, escudo e
espada.

Já Honi, a belíssima filha de Hägar, nos remete a uma jovem americana sempre
apaixonada e que aos 16 anos, segundo seu pai, já estava passando da idade para casar, e este
é exatamente seu maior medo, estar velha demais para conseguir um marido, com a ajuda da
mãe ela está sempre em busca deste marido. Honi está sempre vestida para a guerra,
contrapondo seu perfil de moça apaixonada, usa sempre uma saia de conta de malha (!),
escudo e espada ou lança, usa também, diferente do resto de sua família, um elmo com asas,
referência direta às valkírias da tradição oitocentista

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Assim, podemos perceber como os quadrinhos, bem como outras formas imagéticas,
podem ser utilizados em larga escala e com um ótimo aproveitamento no ensino e na pesquisa
histórica. A observação sobre a feminilidade nas HQs de Dik Browne realizada neste trabalho
é apenas um breve exemplo de utilização dos quadrinhos para analisar aspectos históricos de
uma época e de uma sociedade, neste caso de duas épocas ao mesmo tempo, a Era viking e a
sociedade americana do século XX e XXI. A importância de se fazer uso de meios que
possam estar mais próximos dos estudantes se faz presente, de forma que desta maneira os
mesmos poderão mais facilmente compreender as temáticas abordadas em sala de aula ou em
material didático. Além disso, a leitura de quadrinhos, independente da idade do leitor,
estimula a leitura e a observação, bem como de um olhar crítico acerca de alguns assuntos e
mostra além de tudo que diversão não deve jamais estar longe de aprendizado.

REFERÊNCIAS

BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
CALAZANS, Flávio. História em Quadrinhos nas Escolas. São Paulo: Paulos, 2004.
FERRO, Marc. História e Cinema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
LUYTEN, Sonia M. Bibe. O Que é História em Quadrinhos. 2. Ed. - São Paulo:
Brasiliense, 1987.
LANGER, Johnni. O Ensino de História Medieval Pelos Quadrinhos. In: História, imagem
e narrativas, Nº 8, abril/2009.

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ISBN: 978-85-237-0603-6
_____. Guerreiras na Era Viking? Uma análise dos quadrinhos “Irmãs de Escudo” (Série
NORTHLANDERS). In: Roda da Fortuna: revista eletrônica de Antiguidade e Medievo 1,
2012.
_____. Guerreiras de Odin: as valquírias na mitologia viking. Deuses, monstros, heróis:
ensaios de mitologia e religião viking. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2009c,
pp. 59-78.
_____. Fúria Odínica. A criação da imagem oitocentista sobre os vikings. In: Varia História,
Belo Horizonte, nº 25, Jul/01, p. 214-230.
VILELA, Túlio. Os Quadrinhos na Aula de História. In: Como Usar as Histórias em
Quadrinhos na Sala de Aula / Alexandre Barbosa, Paulo Ramos, Túlio Vilela, Angela Rama,
Waldomiro Vergueiro, (orgs.). 4. Ed. – São Paulo: Contexto, 2010 – (Coleção Como Usar na
Sala de Aula).

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POÉTICA MEDIEVAL E ICONOGRAFIA MODERNA: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA DO CARMINA BURANA E OS CAPRICHOS, DE GOYA

Fernanda Alves de Morais


(IESP/UFPB)
fernnandamorais@hotmail.com
Wilder Kleber Fernandes Santana
(UFPB)
wildersantana92@gmail.com

Considerações Iniciais

Venturosamente, por volta de 1937 o compositor Carl Orff (1895-1984), um estudioso


da poesia medieval alemã, arranjou a cantata cênica Carmina Burana, um grande sucesso
baseado no manuscrito Codex latinus monacensis, encontrado no Covento de Benediktbeuern,
na Alemanha, em 1803. O códice do século XIII que continha 315 composições poéticas, foi
denominado Carmina Burana, que em latim significa “Canções de Beuern” e atualmente
encontra-se na Biblioteca Nacional de Munique. Utilizando-se das poesias musicalizadas,
Orff se tornou um dos compositores alemães mais renomados do século XX, principalmente
através da canção poética O Fortuna, velut luna, uma poesia musicalizada de invocação à
deusa da fortuna, e que já foi tema de grandes eventos culturais e artíticos de todo o mundo.
Foi através de Carl Orff que o Carmina Burana passou a ser conhecido publicamente, pois até
então apenas os estudiosos de língua germânica tinham acesso aos comentários e críticas
referentes à obra.
Aqui no Brasil também se teve um grande estudioso que contribuiu bastante para a
popularização do Carmina Burana, Maurice van Woensel, professor da Universidade Federal
da Paraíba, que com muita dedicação traduziu a obra do latim clássico para o português. De
acordo com WOENSEL (1994, p.14):

No ofício de traduzir poesia, invariavelmente se enfrenta a questão: É


possível verter um texto poético para uma língua sem que se percam
elementos vitais da obra original? De fato, ao ser vertido para outro idioma,
uma poesia perde fatalmente boa parte de sua riqueza estética: melodia
verbal, jogo de contrastes fônicos, sutilezas e ambiguidades léxicas e
sintáticas.

Porém, nota-se que, na presente tradução, o autor manteve uma relevante


razoabilidade na tentativa de recriação da poesia original e consequentemente recuperou os
efeitos poéticos, que não foram poucos, já que os Goliardos atribuiam muitas alusões e
citações da Bíblia e da mitologia greco-romana em seus versos.
Anos mais tarde, na Idade Moderna, mais precisamente nos finais do século XVIII, “o
Shakespeare do pincel” como era conhecido o espanhol Francisco José de Goya y Lucientes
(1746 – 1826), pintou um conjunto de 80 telas intitulado de Os Caprichos, na qual ele
representa uma sátira da sociedade espanhola, principalmente da nobreza e do clero. Suas

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produções artísticas incluem uma ampla variedade representativa de retratos, paisagens, cenas
mitológicas, tragédia, comédia, sátira, farsa, homens, deuses e demônios, feiticeiros, e um
pouco do obsceno. Em 1785 tornou-se o pintor oficial do monarca Carlos IV e sua família,
passando a receber grandes encomendas da aristocracia.
Os Caprichos possuem imagens produzidas através de uma técnica inovadora de
pintura de água forte, água tinta e retoques de ponta seca. Goya, muito relacionado aos
iluministas, compartilha as suas reflexões sobre os defeitos da sua sociedade. Eram contrários
ao fanatismo religioso, às superstições, à Inquisição e algumas ordens religiosas, aspirando a
leis mais justas. Tudo isso criticou humoristicamente nas pinturas. Para se proteger das
condenações da Igreja, Goya atribuiu certo tipo de ambiguidade nas interpretações das suas
telas. Porém, temendo as impressões dos outros contemporâneos iluministas, o pintor retirou a
edição precipitadamente por temor à Inquisição. As obras só estiveram à venda 14 dias, e em
1803 Goya decidiu oferecer as pranchas e os 240 exemplares ao rei, em troca de uma pensão
vitalícia de doze mil reais anuais para o seu filho. Com o sucesso de Os Caprichos, Goya
passou a ser considerado por muitos estudiosos, como um dos precursores da arte moderna.
De acordo com BAUDELAIRE (apud WACHT, 2007, p. 64):

Na Espanha, um homem extraordinário abriu horizontes novos ao espírito do


cômico. Goya é sempre um grande artista e com frequência um artista
aterrador. Acrescentou a esse espírito satírico espanhol, primariamente
alegre e jocoso, que teve o seu dia à época de Cervantes, algo muito mais
moderno, uma qualidade muito apreciada na época atual, um amor pelo
indefinível, um senso de contrastes violentos, do aterrador da natureza, dos
traços humanos que adquiriram características animais. É estranho que este
anticlerical tenha sonhado tão frequentemente com bruxas, aquelarres,
magia negra e muitas coisas mais.

MALRAUX (1988, p. 118) considerou Goya como figura central no desenvolvimento


da arte moderna, afirmando que nas suas primeiras caricaturas, o pintor ignora e destrói o
estilo moralista dos caricaturistas anteriores.
Contudo, segue o presente artigo de forma que a primeira parte aborda a
caracterização da poesia do Carmina Burana, através dos conceitos de WOENSEL (1994). O
segundo capítulo relata a forma pela qual foi realizada a produção das pinturas, Os Caprichos,
e o terceiro e último capítulo está subdividido: no tópico inicial há uma analogia no tocante às
produções artísticas dos Goliardos e de Francisco Goya, e nos tópicos finais foram realizadas
análises comparativas de dois poemas goliardos e duas telas de Goya.

A poética dos Carmina Burana

A maioria dos poemas do Carmina Burana foi escrito em latim medieval pelos
clérigos vagantes da Idade Média, os Goliardos. Tal denominação se deu por uma analogia
feita ao gigante “Golias”, um inimigo da fé cristã. A palavra Goliardo tem ainda outra
provável origem, a do latim "gula", pela comida e bebida consumida em excesso pelos
Goliardos. Segundo SPINA (apud WOENSEL, 1994, p.11):

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Os goliardos, uma classe que viveu na marginalidade, fugindo dos mosteiros,
dos centros de ensino e devotando-se a uma vida boêmia e contestatória,
puseram em relevo nas suas canções tabernárias os desmandos da Igreja, a
hipocrisia dos altos prelados eclesiásticos, como se tentassem uma reforma
da disciplina religiosa, prenunciando a ideologia luterana e calvinista do
século XVI.

A obra é dividida em poesias de caráter satírico e moral; cantos primaveris e de amor;


e cantos orgiásticos e festivos. A maioria dos poemas buranos caracterizam as regras da
versificação pós-clássica, apresentando ritmo acentual com um número fixo de sílabas. Após
uma reconstrução melódica dos versos, notou-se que algumas das composições foram
destinadas ao canto, como a cantata arranjada pelo compositor Carl Orff O Fortuna,
Imperatrix Mundi, citada anteriormente. Os textos mostram a diversidade da produção
goliardesca, apresentando canções amorosas e de erotismo, as paródias blasfemas da liturgia e
também a poesia moralística referente aos tribunais eclesiásticos que visavam apenas a busca
do poder. Assim diz o CB nº 10 (Soa alto, em campo aberto): “A morte agora reina sobre os
prelados que não querem administrar os sacramentos sem obter recompensas (...) São
ladrões, não apóstolos, e destroem a lei do Senhor.”(WOENSEL, 1994, p. 29).
Na Idade Média só existiam as escolas eclesiásticas que visavam formar clérigos,
porém muitos deles não se limitavam apenas à devoção teocêntrica, revelando todos os seus
desejos e pensamentos através das canções satíricas. Os Goliardos costumavam deslocar-se
pelas várias universidades europeias nascentes, expandindo suas ideias progressistas que se
inseriam entre os adversários do crescente absolutismo da Igreja e do sistema monárquico.
Pode-se dizer que os Carmina Burana foram uma das primeiras obras que contestaram
a sociedade medieval, denunciando o absolutismo clerical, além de ter iniciado a reforma da
Igreja, séculos antes de Martinho Lutero (1483 – 1546) e João Calvino (1509 – 1564). E como
muitos destes clérigos andantes foram excomungados, eles passavam a viver boemiamente
nas tabernas, sustentando-se com as apresentações de tais poemas satíricos e amorosos,
atuando no mercado literário paralelo.
Embora a temática dessa produção poética tenha sido os prazeres da vida, sobretudo o
trinômio bebida, jogo e amor, há vários poemas que também criticavam com veemência os
costumes do sistema, visto que o alvo predileto de um poema goliardo era, sem dúvida, o
clero secular. Os poetas goliardos escreveram paródias do credo, paródias das missas e
mesmo imitações burlescas dos evangelhos; nas suas canções tabernárias, colocam em relevo
os desmandos da Igreja, a hipocrisia dos altos prelados eclesiásticos, os paradoxos entre o que
a Igreja prega e o que ela fazia, numa tentativa de reforma na disciplina religiosa,
prenunciando idéias que posteriormente (século XVI) fariam parte do Luteranismo e do
Calvinismo.
Ao ler as composições poéticas presentes no Carmina Burana, o leitor pode imaginar
que tais textos referem-se ao contexto social moderno, ou até mesmo contemporâneo, visto
que o conteúdo das poesias possui recursos satíricos presentes até nos textos atuais. A poesia
satírica dos Goliardos na Idade Média, por seis séculos permaneceu escondida, pois eram
consideradas obras subversivas e, por isso, proibidas. Nesta época, a Igreja Católica era
considerada o canal entre Deus e os homens e consequentemente, o clero possuía plenos
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poderes sobre toda a sociedade. Nesta sociedade teocêntrica, o medo de pecar e, portanto, de
desagradar a Deus, torna o homem medieval passivo, impotente e, por isso, dominado pelo
que a Igreja determina como norma de conduta pessoal e social: o feudalismo religioso,
assim, endossa e reproduz as relações vassalagem/servidão, essência do sistema feudal. A esse
poder de determinar o pensamento e as ações de toda a sociedade, acrescenta-se ao clero
medieval um outro tipo: o poder econômico. Tanto que já no século X, a Igreja tornou-se a
classe mais poderosa econômica-política e social.

Os Caprichos de Francisco Goya

A composição artística Os Caprichos, estética e historicamente, consiste numa série de


80 gravuras do pintor espanhol Francisco Goya, na representação categórica de uma sátira da
sociedade espanhola de finais do século XVIII, principalmente da nobreza e do clero. Dividiu-
se em as gravuras mais realistas e satíricas, com críticas à razão e ao comportamento dos
padres e líderes, na primeira parte, enquanto na segunda metade representou o emblema de
gravuras no nível do fantástico. Mostrou, pelo absurdo e pelo horror, visões delirantes de
seres estranhos. Percebemos bastante, em suas reflexões, os defeitos da sua sociedade.
O pintor Francisco Goya criticou estes e outros males de forma radicalmente nova,
inaugurando uma visão materialista em contraposição à crítica social paternalista realizada na
Idade Moderna, que encaminhava os seus esforços a reformar a conduta errônea do homem,
principalmente no que diz respeito a leis clericais, no ato da inquisição. De acordo com
COVRE (2010, p. 09):

O desenho foi para Goya uma distração que possibilitava representar suas
impressões “das coisas bizarras, engraçadas, grotescas e poderosas que via”
Hughes (p.207, 2007). Mas não foi um mero desenhista. Para Chabrun
(p.101, 19ι4), foi “um desenhador”. Seus desenhos não são meros esboços,
rascunhos apressados ou estudos de quadros. Os desenhos de Goya possuem
mais que uma descrição de um fato, eles possuem a opinião do próprio Goya
sobre as personagens representadas.

Tal série pictórica influenciou conseguintes gerações de artistas de movimentos


bastante divergentes, a exemplo do Romantismo francês, o Impressionismo, o
Expressionismo alemão ou o Surrealismo.

A relação entre Francisco Goya e os Goliardos

Embora de épocas distintas, Francisco Goya e os Goliardos possuem várias


características em comum, representadas em suas produções artísticas. Na Idade Medieval,
em pleno século XIII, o sistema de ensino, monopolizado pela Igreja e pela cultura antiga
cristianizada, era responsável pela formação de jovens que futuramente iriam ingressar no
serviço religioso. Porém, muitos dos estudantes possuíam perspectivas racionalistas que
levantavam suspeitas sobre o pensamento dogmático da Igreja, e o que até então era
indiscutível passou a ser problemático. Esse grupo de mestres e estudantes, tidos como

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hereges1, simpatizantes de uma ideologia diferente daquela inculcada pela classe dominante,
eram os Goliardos. Os clérigos vagantes, assim como Goya, satirizavam com veemência a
vida e o comportamento dos freires, a sociedade em geral e a Inquisição, na Idade Medieval e
na Idade Moderna, respectivamente. Foi no século XVIII, que Goya criticou estes e outros
males sem seguir uma ordem rigorosa. As obras do artista da corte, denunciavam de maneira
sofrida e contundente horrores inerentes a Idade Moderna em pleno século das luzes.
É verídica a percepção de que, nestas épocas, as artes invariavelmente se tornaram
espaços alternativos de manifestação de preocupação religiosa. Desta maneira, a criação
artística tinha por mérito a penetração na qualidade oculta das coisas. Para TILLICH (2000, p.
53):

A arte nos faz conscientes de algo que, de outro modo, não atingiríamos. Ela
é, portanto, uma das formas pelas quais o ser humano é capaz de transcender
sua finitude (...) Por meio dela, aquilo que está enraizado no fundamento do
ser é descoberto. Esse é o grande milagre da arte.

O grande valor da arte, consequentemente, é a sua capacidade de expressar as


referências que determinada época, cultura ou movimento possui. Contudo, embora em
períodos diferentes, os Goliardos, através do Carmina Burana, e Goya, através de Os
Caprichos, representaram a manifestação contrária a uma sociedade exclusivamente regrada
aos costumes absolutistas da Igreja Católica, e mais que isso, intensificando a relevância do
surgimento do Iluminismo e de outros movimentos reformadores.

O poema A mesma mão que dá propina e a tela 23 Aquellos polvos

Exponha-se um trecho do poema A mesma mão que dá propina, dos Goliardos:

A mesma mão que dá propina


faz pecar qualquer cristão
desavenças elimina,
a grana chama a razão,
os discordantes ela afina,
ao conflito dá solução.
O juízo dos prelados
depende dos ducados
Juízes, vossa sentença
a grana não dispensa! (...)

(...)Quando a grana é quem manda,


a justiça enfraquece,
toda causa que desanda
vitoriosa aparece,
o pobre perde seu direito
quando a grana faz o pleito;

1
Eram considerados hereges, pela Igreja Católica, aqueles que possuíam doutrina ou linha de pensamento
contrários ou diferentes do sistema religioso padrão. Para acompanhar uma assertiva de Georges Duby, “todo
herético tornou-se tal por decisão das autoridades ortodoxas. Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos
outros” (DUBY, 1990, p. 177).
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seu processo já naufragou
se ao juiz nada pagou
a justa causa declina
só por falta de propina. (CB nº 1)

Tal poema satiriza a avareza dos prelados e, em particular, à corrupção dos juízes e
tribunais eclesiásticos desta época. É uma comparação plena feita aos líderes religiosos
católicos da Idade Média. A Semântica do poema traz que a mão trazendo propina faz do
homem piedoso um ímpio; o dinheiro, quando ministrado de forma errônea, resulta em
alianças, torna-se conselheiro e aparador de arestas.
Em A mesma mão que dá propina/ faz pecar qualquer cristão/ desavenças elimina/ a
grana chama a razão é feita uma analogia plena entre os ricos e os pobres, estando estes
últimos na posição dos derrotados, que são injustiçados e nunca têm direitos. Já aqueles, os
ricos, que estão envolvidos com a Igreja, tomam o dinheiro como fonte de paz: estes detêm a
razão e o conhecimento, segundo a Igreja Católica, e isto é criticado veementemente pelos
Goliardos. O juízo dos prelados/ depende dos ducados/ Juízes, vossa sentença/ a grana não
dispensa! Nestes versos, percebe-se uma acusação aos graves erros cometidos pelos juízes,
que, por dinheiro, julgavam as sentenças, muitas vezes condenando pessoas inocentes. Já na
última estrofe, a justiça do prelado é colocada como injustiça, em (des) cumprimento às leis.
O dinheiro é visto, no ângulo da ganância humana, como sujeito causador dos males.
Em relação a célebre coleção de obras satíricas, Os Caprichos, na tela de numeração
23, Aquellos polvos, o pintor Francisco Goya expõe indignação e reprovação para com a
ganância dos inquisidores do seguinte modo: pinta um prisioneiro com as mãos atadas, e
cabeça baixa, como se estivesse em plena reverência a excelência católica, ou como se este
fosse um ato de autoculpa, na densidade do ter que revelar, ainda que não haja nada a ser
dito. Sentado em uma plataforma, de frente para o líder religioso, além de estar perante a
população (com algemas e amarraduras, estando sua cabeça afundada no peito em símbolo de
vergonha), o homem é obrigado a ouvir a leitura de sua declaração/sentença. Do púlpito para
a presença de uma grande camada eclesiástica se constrói um sentimento de pavor e tensão,
na espera do que provavelmente aconteceria: o castigo de declaração de morte, ao réu.
Aquellos polvos (os pós), traz semanticamente a ideia de que ele, o acusado, trouxe essa lama,
ou seja, trouxe o pó/lama – a sujeira de outra cultura, ou de outra prática que não fosse a
clerical.

O poema Soa alto, em campo aberto e a tela 52 No hubo remedio

Segue um trecho do poema Soa alto, em campo aberto dos Goliardos:

(...) Aos prelados, a morte espera,


nenhum deles de graça opera,
nas ordens sacras ingressando,
fazem votos, por Deus jurando;
uma vez no trono sentados
esquecem logo os votos sagrados;
a rosa vira planta vulgar,
um covil em vez de altar!
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ladrões, maus legisladores,
da lei de Deus destruidores (...) (CB nº 10)

O poema, mais precisamente o trecho apresentado, retrata o interesse absurdo dos


prelados em vender os dons espirituais, como é ressaltado no exemplo da venda das
indulgências. O clero demonstrava, de acordo com as más atitudes da Igreja Católica, uma
veemente contradição em relação às juras sagradas antes realizadas. Na linguagem clara do
poema, podemos notar que, segundo os goliardos, os prelados faziam da casa de Deus, um
comércio, um refúgio de salteadores, ferindo assim a ordem e a lei cristã. É notória a sátira
contra a sovinice clerical, principalmente no que se refere ao ato da venda de vantagens
espirituais.
A interpretação do poema goliardesco é totalmente refletida na análise da tela 52 de
Goya, No hubo remédio (Não há remédio), a qual retrata uma mulher pobre, que considerada
bruxa, é condenada à fogueira pelo Tribunal da Santa2 Inquisição. A característica da mulher
herética, ou seja, possuída pelo demônio, é capaz de produzir tanto medo quanto ansiedade
nas pessoas que a condenaram e, por conseguinte, a acompanham para a morte.

Considerações Finais

Através do estudo elaborado, compreende-se como se deu a construção ideológica,


pictórica e literária das críticas estabelecidas entre duas épocas: a média e a moderna, no
campo da arte. A representação de como a sociedade foi vítima em épocas remotas é para que,
na atualidade, o ser humano possa modificar os costumes que ainda deixam marcas. Quando a
Inquisição é posta em temática, objetiva-se que sua representação estética e semântica
sensibilize o ser humano em seu mais íntimo nível, no propósito de que ele entenda todo o seu
processo de hierarquização apostólica, no território da conduta de expressão.
Independente de a poesia goliardesca ser secularmente anterior às produções pictóricas
de Francisco de Goya, estes eixos, quando unidos em perspectiva criticista e inovadora,
requerem mudança, apelam (através da arte literária e imagética) para que as más condutas
humanas sejam modificadas. Não se defende que o único polo antagônico a uma boa vivência
social aqui expresso seja o das práticas da Igreja Católica, em seu esconderijo dogmático, mas
que este, por ser tão desumano, inundou o homem em seu excesso de angústia e proibições.
Portanto, na interação entre palavra e imagem, poesia e pintura (e considerando-se que
a história e a literatura são, em grande escala, veículos representativos e/ ou simbólicos da
gênese humana) que se estabelece, neste produto, linhas de crítica e protesto contra os falsos
testemunhos da Igreja, através do tempo.

2
Esta palavra, se observada no contexto histórico, é totalmente adversa às próprias práticas da Igreja. É utilizada
para firmar a própria Igreja como “imaculada”, sem erros, a que detém poder, mas também para servir de
cobertor de seus absurdos. Bakhtin (1996, p. 9) destaca que a própria Igreja, a princípio, em determinadas festas
religiosas, permitia que o sagrado fosse dessacralizado.
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Referências

COVRE, B. Os Caprichos de Goya. Revista Os triunfos do Carnaval – MAES. Espírito


Santo: UFES, 2010.
HUGHES, R. Goya. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MALRAUX, A. As vozes do silêncio II. Coleção Vida e Cultura. São Paulo: Livros do
Brasil, 1988.
ROSENFIELD, K. H. A história e o conceito na literatura medieval. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
SARAIVA, A. & LOPES, O. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1975
SPINA, S. A lírica trovadoresca. São Paulo: EDUSP, 1991.
TILLICH, P. História do pensamento cristão. Trad. Jaci Maraschin. São Paulo: ASTE,
2000.
WACHT, P. Os fantasmas de Goya. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
WOENSEL, M. Carmina burana. São Paulo: Ars poética, 1994.

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UMA ANÁLISE DA INFLUÊNCIA FEMININA NAS GUERRAS GERMÂNICAS DO
IMPÉRIO ROMANO À ERA VIKING

Gustavo Braga Santos


(UFMA)
ogustavo.com@gmail.com

INTRODUÇÃO

O Livro Germânia, publicado em 98 d.C., de Publius Cornelius Tacitus, serve como


um tipo de "tutorial" de como viver como um germano. Pois o escritor descreve os hábitos
desse extenso povo (alimentação, religião, cerimônias, relações de poder, casamento, criação
dos filhos, etc.) composto de dezenas de tribos diferentes e que possuem diferenças entre si
também. O texto é dividido em duas partes: uma que se refere aos germanos em geral (I -
XXVII) e outra que aborda cada povo germânico, sua história e relação com o Império
Romano e outras tribos (XXVIII - XLVI).
Entre os tópicos descritivos de Tácito, está a figura feminina, com suas admiradas
capacidades prognósticas, responsável pelo bem estar da família e do lar, e por incentivar seus
maridos e filhos em tempos de guerra.

EM TEMPOS DE GUERRA

No capítulo VII da obra, Reis, Chefes e Mulheres, é mostrado por Tácito o papel da
mulher em tempos de batalha, que fazia ouvir seu lamurio, em conjunto com o de suas
crianças, nas adjacências das formações militares.
Elas permaneciam ali para prestar a seus filhos e esposos, o apoio de que
necessitavam, tratando de seus ferimentos e lhes trazendo comida.
“Da constância de suas preces e oferecimento de seus seios”. τ incentivo por parte das
mulheres em tempos de guerra também é presente no capítulo VIII, Veleda e Aurínia, na qual
se mostra o valor da mulher como prova de fidelidade por parte de cidades germânicas, das
quais são demandadas, ao invés de homens, mulheres nobres, devido a seu valor. Eles as
acreditam como tendo algo de santidade e providência: “σão desprezam seus conselhos nem
desatendem suas previsões” (TÁCITτ, 9κ, Cap.VIII)
Como extrema expressão do poder feminino, ressaltamos Veleda, vidente líder dos
Bructeros e instigadora de uma rebelião contra o Império Romano, então comandado por
Vespasiano; por muito tempo adorada como deusa, da qual falaremos com mais minúcia no
curso do trabalho.

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Outras mulheres eram também consideradas deidades terrestres, como Aurínia, porém
não contemporaneamente nem no mesmo lugar que Veleda. E não o eram simplesmente por
lisonja ou por mero "endeusamento", mas por merecimento.

ÚNICA ESPOSA

As vestes femininas se resumiam geralmente a um vestido simples, sem mangas e com


a parte superior do peito descoberta, como descrito no capítulo XVII da obra, Vestuário. Além
disso, Tácito aponta os germanos como sendo um dos poucos povos bárbaros que, por via de
regra, tomavam para si uma esposa somente; excetuando os casos em que o homem era
solicitado por muitas esposas por motivo de nobreza.

BOIS, CAVALO, FRÂMEA E GLÁDIO

No capítulo XVIII, Do Matrimonio, são expostas as etapas de uma união nupcial, que
era dividida em diversos rituais ou cerimônias, não detalhadamente descritas por Tácito, mas
que podemos citar:
Primeiramente, é o marido quem oferece dote à mulher, não o inverso (lembrando que
estamos trabalhando a partir do ponto de vista romano). O dote é direcionado, sobretudo para
os pais e parentes da noiva, não para o adorno da nubente ou para a satisfação de sua vaidade,
e sim para a manutenção e enriquecimento da família. Eram estes: “bois e um cavalo arreado
e um escudo com a frâmea¹1 e o gládio²2” (TÁCITτ, 9κ, Cap. XVIII).
Com o aceite por parte da família, é a vez da mulher de oferecer regalos ao noivo:
Armas são ganhas pelo prometido, sendo este um dos mais importantes rituais da união, “um
designo dos deuses”, no qual a mulher afirma de forma indireta não se julgar alheia aos
eventos de guerra e de coragem de seu companheiro. A mulher é advertida de seus deveres
para com o marido no curso das próprias cerimônias matrimoniais, e aconselhada a ser
“companheira de trabalhos e perigos do marido, com quem deve sofrer e lutar não só na paz
como na luta; os bois jungidos, o cavalo equipado, as armas doadas, assim lhe ensinam.”
(TÁCITO, 98, Cap. XVIII)

1
De acordo com o capítulo VI, A Direção da Arte Bélica, era uma arma germânica de fino e curto ferro, usada
na agricultura para fins bélicos quando necessário. Era de fácil manejo, podendo tanto ser utilizada de perto
como de longe, dependendo das circunstâncias.
2
Arma relativamente curta, no início porque eram feitas de bronze e mais tarde porque elas eram, raramente,
usadas para penetrar armaduras de ferro. A lamina era a espada de perfuração da Roma clássica, o gládio,
possuía somente dois pés de comprimento, no entanto, nos anos de crepúsculo do império o gládio foi
substituído por uma longa e cortante espada bárbara.
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O ADULTÉRIO

Segundo descrito no capítulo XIX, Mulheres e Libertos, era escasso o número de


adultérios comparado ao montante populacional, mas quando ocorriam, o marido possuía
permissão imediata para punir a esposa: “de cabelos cortados, desnuda na presença dos
parentes, o marido a expulsa de casa e a persegue, de açoite por toda a aldeia; não há na
verdade perdão, não encontrará marido, nem tendo beleza, nem tendo riqueza.” (TÁCITτ, 9κ,
Cap. XIX).
Há cidades em que só as virgens se casam e que um é o limite fixado de vezes que
uma mulher pode votar.
Ensina-se à mulher a ser, em conjunto com o marido, como uma só vida e uma só
alma, para que não exceda os limites do pensamento e seu desejo não seja muito intenso.

O BEM DA FAMÍLIA

τ bem da família é muito valorizado nessa sociedade, logo “limitar o número dos
filhos ou matar algum nascido é considerado infâmia, pois os bons costumes valem aí mais do
que as boas leis.” (TÁCITτ, 9κ, Cap. XIX).
Em relação aos filhos, segundo o capítulo XIX, Mulheres e Libertos, as mães não
abrem mão de sua alimentação para amas. A puberdade dos jovens germanos é prolongada
comparada à romana, pois os garotos conheciam tarde as mulheres e as meninas não eram
casadas tão cedo, devendo seu nubente ser igual em corpo, idade e força. Como aponta o
historiador italiano Antonio Piccarolo: “abstendo-se de toda relação sexual. Uma das
coisas mais feias e reprováveis para eles é ter relação com mulheres antes dos vinte
anos.”
A casa dos tios é tão estimável como a do pai. Logo, os filhos e irmãos são herdeiros e
sucessores do pai sem necessidade de testamento. Não há vantagem para eles em não
constituir família, pois a velhice é mais agradável para quem possui mais parentes.

OS ESCRAVOS

No capítulo XXV, A Direção Dos Lares, seria de se esperar que o papel da mulher
fosse abordado mais detalhadamente. Porém, o capítulo se trata da relação senhor/escravo,
que Tácito compara à romana. Do lado romano o escravo era oprimido, cruelmente
maltratado, considerado objeto de estrita propriedade e uso; enquanto que o escravo
germânico era muito semelhante ao liberto, com a diferença de que não possuía autoridade
nem mesmo dentro de sua casa, enquanto aquele a tinha, a pesar de nenhuma na cidade.
Possuía a posse (porém não a propriedade) de sua casa, sua família e uma terra para lavrar,

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tendo que pagar um tributo em grãos, gado ou em vestes para o seu senhor, enquanto as
mulheres e os filhos prestavam outros serviços à casa.
“Raras vezes espancam o escravo ou o amarram, ou forçam-no a trabalhar: porque
matam-nos, não por castigo, nem severidade, mas quando cegos de paixão ou de cólera como
se fora algum inimigo, ainda que o façam sem nenhuma penalidade.” (TÁCITτ, 9κ, Cap.
XXV).

"ÀS MULHERES O PRANTO"

Com a morte de um importante guerreiro germânico, era feito seu funeral, não muito
pomposo. O corpo do ilustre homem era incinerado, sem vestes ou perfumes, lançando-se ao
fogo somente suas armas e por vezes seu cavalo.
Às mulheres era reservado o pranto; aos homens a memória:

Erigem a sepultura de relvas: desprezam a vanglória do lavor dos


monumentos como coisa grave e molesta aos defuntos. Deixam bens as
lágrimas e os prantos, e tardiamente a dor e a tristeza. O pranto convém às
mulheres e a recordação aos homens. (TÁCITO, 98, Cap. XXVII)

AS PROFETISAS GERMÂNICAS

Não obstante este trabalho ser concentrado numa sacerdotisa de fato, ou seja,
considerada uma por numerosas tribos germânicas da época, às mulheres em geral eram
atribuídas capacidades mágicas, mesmo que não gozassem de qualquer proeminência social
nesse sentido.
O capítulo VIII da Germânia de Tácito (98 d.C), Veleda e Aurínia, aponta o papel das
mulheres no incentivo ao combate e o crédito dado a elas por seu poder antevidente:

Rememora-se que exércitos indecisos foram incentivados pelas mulheres, da


constância de suas preces e oferecimento de seus seios, e pelo cativeiro
pressentido próximo, de que se arreceiam muito mais para as suas mulheres
do que para eles próprios, de tal modo se demanda com mais eficácia o
compromisso das cidades, delas exigindo-se entre as presas moças nobres.
Acreditam ainda que elas tenham algo de santidade e de previdência, não
desprezam seus conselhos nem desatendem suas previsões.
Vimos sob o divino Vespasiano, Veleda considerada pela maioria, por longo
tempo, como deusa; e adoraram, também, algures, Aurínia e outras deusas,
não por lisonja, nem para endeusá-las. (TÁCITO, 98, Cap.VIII)

Nota-se que até mesmo eram preferíveis mulheres a homens para serem exigidas como
demonstração de fidelidade entre as cidades.

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Uma das sacerdotisas mais influentes do primeiro século da Era Comum foi Veleda,
da qual mais informação se possui em relação a outras mulheres deificadas pelas tribos
germânicas da época.
Veleda era uma Volva, da tribo germânica dos Bruteros³3 que conquistou alguma
proeminência durante a rebelião dos Bátavos de 69-70 d.C., encabeçada pelo líder bátavo
romanizado Gaius Julius Civilis, quando ela corretamente previu o sucesso inicial dos
rebeldes contra as legiões romanas.
O nome pode não o seu de fato, mas sim um nome profissional, um título genérico
para uma profetisa (σórdico antigo "vala"), significando “aquela que vê”. A antiga população
germânica via uma divindade profética nas mulheres e as consideravam profetisas tão
verdadeiras como deusas viventes. Na segunda metade do primeiro século d.C., Veleda era
considerada como uma deidade pela maioria das tribos da Germânia central e gozava de
ampla influência.
Ela vivia numa torre próxima ao Rio Lippe, afluente do Rio Reno. Os habitantes do
acampamento romano da colônia de Claudia Ara Agrippinensium (atual cidade de Colõnia,
Alemanha) aceitaram sua arbitragem num conflito contra os Tenteros, uma tribo não-federada
da Germânia (fora da fronteira do Império Romano). Em seu papel como árbitra, os
mensageiros não eram admitidos a sua presença; um intérprete levava a ela as mensagens e
reportava seus oráculos.
Civilis, o líder bátavo, originalmente ofereceu sua força como aliado de Vespasiano
durante a disputa de poder romano em 69 d.C., mas quando viu a frágil condição das legiões
da Germânia romanizada ele se revoltou abertamente. Não é claro se Veleda meramente
profetizou a rebelião ou efetivamente incitou-a; dada a adoração dos Germanos a ela como
uma deusa, remota em sua torre, a distinção pode não ter sido clara à época. No começo do
ano 70 d.C, a revolta foi aderida por Julius Classicus e Julius Tutur, líderes dos Trevires, que,
como Civilis, eram cidadãos romanos.
A guarnição romana de Novaesium (hoje Neuss, Alemanha) se rendeu sem mesmo
lutar, assim como fez a guarnição de Castra Vetera (perto da moderna Xanten em
Niederrhein, Alemanha). O comandante da guarnição romana Munius Lupercus, foi enviado a
Veleda, no entanto, ele foi morto na viagem, evidentemente numa emboscada. Mais tarde,
quando o tri remo pretoriano foi capturado, ele foi mandado Rio Lippe acima como um
presente para Veleda.
Uma grande demonstração de força por parte de nove legiões romanas comandadas
por Gaius Licinius Mucianus causou o colapso da rebelião. Civilis foi encurralado em sua
casa na ilha da Batávia, no baixo Rio Reno, por uma força comandada por Quintus Petilius

3
Os Bruteros foram outrora comarções dos Tenteros: mas agora segundo a narrativa ocuparam suas terras os
Chamavos e Angrivários, depois de terem expulsado e destruído totalmente os Bruteros com o consentimento
das nações circunvizinhas, ou por ódio que lhe votavam conseqüente de sua soberba ou pelo desejo (prazer) da
presa ou por alguma mercê particular que foram servidos de fazer-nos os deuses; já que também não nos
negaram o gosto de semelhante espetáculo
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Cerialis; seu destino é desconhecido, mas em linhas gerais Cerialis tratou os rebeldes com
surpreendente lenidade, a fim de reconciliá-los às regras romanas e ao serviço militar. No
caso de Veleda, ela foi mantida em liberdade por vários anos.
Em 77 d.C os romanos a capturaram, talvez como refém, ou para oferecerem-na asilo.
Seu raptor foi Rutilius Gallicus. Um epigrama grego, achado na Ardea, a alguns quilômetros a
sul de Roma, satiriza seus poderes proféticos. Veleda pode ter agido a favor de Roma quando
negociou a aceitação de um rei pro - Roma pelos Bruteros em 83 ou 84 d.C. Ela
evidentemente já havia falecido à época em que Tácito escreveu sua Germânia em 98 d.C.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os povos germânicos são responsáveis pela construção de boa parte da História e


genealogia da Europa, pois não havia fronteiras para seu avanço, tendo cada país europeu
atualmente uma fatia do seu legado.
Por intermédio de tão valorosa fonte como a obra de Publius Cornelio Tacitus, fazem-
se acessíveis informações de igual valor, além do conhecimento da realidade de parte do
território europeu da época e os hábitos de vida dos germânicos e romanos.
Em relação à mulher, é sempre importante destacá-la como detentora de boa parte da
matéria para o funcionamento de qualquer grupo social. À mulher germânica, além de
pertencer a edificação de seu lar, pertencia também o futuro. E tal mulher, tendo Veleda como
exemplo, se mostra de imenso poder sobre a história de um povo, mesmo que não esteja na
linha de frente ou que não necessite mostrar seu rosto. Mas está lá, por trás, emitindo suas
parcelas de autoridade no funcionamento da sociedade.

REFERÊNCIAS

GLÁDIO. <Disponível em: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/234721/gladius>


<Acesso em: 09 jul. 2012.>
TÁCITO, Publius Cornélio. Germânia, 2001. <Disponível em: http://www.ebooks
brasil.org/eLibris/germania.html> <Acesso em: 01 jun. 2012>.
VELEDA. <Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Veleda> <Acesso em: 01 jun.
2012.>

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AS VALQUÍRIAS NO IMAGINÁRIO VIKING

João Paulo Garcia Teixeira


(UFC/Valknut)
joaopaulohansen@hotmail.com

Quando falamos sobre as Valquírias, geralmente a primeira imagem que vem na


mente, de pessoas que não tem um estudo aprofundado na mitologia nórdica é aquela imagem
mais conhecida que se tem das Valquírias - guerreiras que são servas de Odin e que durante
uma batalha, elas levam os guerreiros mortos para o Valhalla, para lá banquetear esperando o
Ragnarok ( o destino final dos deuses )- porém, quando passamos a ter um estudo mais
aprofundado do assunto, especificadamente sobre as Valquírias, percebemos que na verdade
essa é apenas uma de várias outras interpretações que se existiu sobre as mesmas. É esse o
objetivo do presente trabalho, mostrar as várias formas nas quais, essas entidades foram
representadas e imaginadas pelos povos germânicos, desde o período pré- viking e passando
por todo o período viking1 e para isso irei usar como base alguns trabalhos do prof. Johnni
Langer, de Hilda R. E Davidson entre outros, bem como a utilização de algumas das
principais sagas existentes sobre os Vikings.
A sociedade viking era dividida em dois grupos, os karls(homens livres) e os
Thrall(escravos), a maior parte dos homens livres, que eram fazendeiros, comerciantes,
agricultores, eram mais adeptos ao culto aos deuses Vanir2, justamente os deuses ligados a
fertilidade e a prosperidade, e já os membros da aristocracia eram mais ligados aos culto do
deus Odin, a quem as Valquírias estão ligados. Essa ligação da aristocracia com os deus Odin
e juntamente com ele as Valquírias acabou gerando uma hipótese relacionada as questões de
interesse social e político, “σossa principal hipótese é a de que o mito das Valkyrjor esteve
vinculado a certos fatores sociais relacionados com a aristocracia e a realeza – com
finalidades de legitimação dos poderes políticos e sociais destas mesmas classes.”(LAσGER,
Jonnhi.2009,p.59).
Existem algumas divergências entre historiadores, a respeito de quantas formas
diferentes as Valquírias foram imaginadas, alguns dizem em três imagens, outros falam em
quatro, porém em todas essas formas diferentes na qual as Valquírias foram representadas,
elas sempre foram ligadas como entidades relacionadas a guerra, a conflitos.

Na descrição de Snorri3 da vida no além para os guerreiros, há certos seres


que formam um elo entre Odim e os aniquilados, e entre os mundos dos

1
Período que é compreende a expansão viking, começa no ano de 793 com o ataque ao mosteiro de Lindisfarne
e se estende até 1066, quando começam as conversões dos pagãos para o cristianismo.
2
Um dos “clãs” pertencentes a religião nórdica, na qual temos os Æsir, que são deuses que residem em
Ásgarðr,e são os deuses relacionados com as guerras. Formam também o principal panteão dos deuses nórdicos,
nos Æsir incluem-se ai deuses como: Odim,Thor,Heimdall,Loki, Baldr entre outros. Os Vanir são deuses
relacionados a prosperidade e a fertilidade, possuíam um grande conhecimento em magia, viviam em Vanaheim,
entre os deuses pertencentes aos Vanir estavam: Frey, Freyja, Njord.Além desses dois clãs, existiam ainda as
Norns, os Jotnar, dragões e outros seres que hoje em dia são ligados a fantasia.
3
Snorri Sturluson foi um poeta islandês que viveu de 1178 até o ano de 1241, é conhecido como o escritor da
Edda em Prosa que é considerada uma das importantes fontes sobre a mitologia nórdica, possui também a autoria
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vivos e dos mortos. São espíritos femininos chamados de Valquírias, que
aguardam os guerreiros em Valhalla; e nenhuma descrição dos deuses da
batalha estaria completa sem ela. (DAVIDSON, Hilda.2004, p.50)

E o presente trabalho irá explorar todas essas imagens das Valquírias, não se
prendendo ao trabalho de apenas um desses historiadores e as suas conclusões a respeito das
Valquírias.
A palavra Valkyrjor significa “a que escolhe os mortos”, porém desde tempos
remotos, os germanos pagãos já acreditavam em uma entidade, que também era relacionada a
guerra, que se chamava Wælcyrge, palavra essa que também significava “a que escolhe os
mortos”.

As Wælcyrge: Valquírias sanguinárias

As wælcyrge, correspondem a representação mais antiga das Valquírias, e nessa


imagem elas aparecem como entidades sanguinárias, “ferozes espíritos femininos seguindo os
comandos do deus da guerra, espalhando a desordem, participando de batalhas, agarrando e
talvez até devorando os mortos”(DAVIDSτσ, Hilda.2004,p.51).Elas também apareciam em
sonhos para guerreiros antes das batalhas, a principal fonte que conta sobre essa representação
das Valquírias é um poema chamado passagens das lanças (Darraðarljóð), que está presente
na Saga de Njal, e nesse poema ele conta que em um sonho de um guerreiro, que estava
prestes a travar uma batalha, um grupo de mulheres foram vistas tecendo uma espécie de
tapeçaria, que era feita com as entranhas de pessoas mortas:

A urdidura é feita de entranhas humanas;


Cabeças humanas são usadas como pesos;
As varas do tear são lanças encharcadas de sangue;
As hastes são firmes,
E flechas são as lançadeiras.
Com espadas nos tecemos.
A teia da batalha (Saga de Njal.Retirado de LANGER, Johnni.2009.p.61)

Tecemos, tecemos a teia da aliança,


Enquanto vai adiante o estandarte dos bravos.
Não deixaremos que ele perca a vida;
As Valquírias têm o poder de escolher os aniquilados... (Saga de
Njal.Retirado de DAVIDSON,Hilda. 2004,p.54)

Na primeira estrofe escrita acima, nós podemos ver claramente a questão das entidades
sanguinárias, geradoras de carnificina em batalhas. As wælcyrge também aparecem em alguns
manuscritos cristãos anglo-saxões a partir do século VIII como por exemplo o sermo lupi,
Corpus Christi entre outros, também tendo as características sobrenaturais e sanguinárias, em
listas de seres praticantes do mal, junto com pecadores e bruxos.

da Heimskringla, na qual fala sobre os reis escandinavos , é autor de várias fontes sobre os escandinavos
utilizados hoje em dia.
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Já na segunda estrofe, é visível também a imagem das Valquírias como agentes do
destino da batalha, na qual elas escolhem quais guerreiros irão morrer e assim tendo um certo
controle sobre os vencedores e os derrotados , função essa parecida com a das Norns4.Uma
hipótese existente sobre essa imagem tão violenta das Valquírias, está relacionado com as
sacerdotisas dos antigos cultos para os deuses da guerra germânicos. “Como a maioria desses
cultos eram muito violentos, contando em algumas vezes com sacrifícios humanos após os
conflitos, o mito de seres femininos sangrentos poderia ser uma lembrança desse aspecto
religioso.” (LANGER, Johnni. 2009, p. 61). Sem falar que na maioria das vezes esses
sacrifícios humano, a pessoa escolhida para morrer ocorria aleatoriamente, e dessa forma se
criava uma situação na qual, parecia que os deuses teriam escolhido os que iriam se sacrificar
por intermédio das sacerdotisas.

As Valquírias como as guerreiras de Odin

Foi com o período viking que as Valquírias tiveram a sua representação menos
violenta como foi no passado, a partir de agora as Valquírias se apresentam na sua forma mais
famosa, conhecida e popular. Aqui apresentam duas funções, são as guerreiras, que são
enviadas por Odin para as batalhas para lá escolherem os guerreiros que irão morrer e serão
levados para o Valhalla, e chegando lá passam a exercer uma outra função que é a de servir
bebidas aos guerreiros no Salão dos Mortos(Valhalla), como se fossem taberneiras. Existem
algumas fontes que trazem justamente essa representação das Valquírias, vestidas com
armaduras e possuindo nomes que se referem a batalhas como a Edda poética, porém quando
passamos para o lado iconográfico, dificilmente encontramos alguma imagem que relacione
as Valquírias como guerreiras, vestidas para a guerra, na sua maioria, as imagens que se
conhecem são de mulheres com vestidos e portando um corno de bebidas para servir a
alguém, imagem essa de submissão ao homem.

Em uma sociedade dominada por uma visão totalmente masculina, a


representação da jornada de um guerreiro do mundo dos vivos para o mundo
dos mortos não podia ser questionada ou abalada. Caso uma valkyrja fosse
representada portando armas e montando cavalos (a exemplo dos guerreiros
das estelas), ela seria um elemento contra a ordem de legitimação dos
triunfos da realeza e dos heróis. Assim, a sua imagem como serviçal reforça
as representações de uma grande recompensa para uma vida marcial
masculina, além de manter a ordem odinísta. (LANGER, Johnni.2009,
p.64)(Ver anexo no final)

4
As Norns são deusas pertencentes a mitologia nórdica, e são responsáveis pelo destino tanto dos homens
quanto dos deuses, temos a Urð que é uma espécie de guardiã do passado, é representada como uma mulher bem
velha, que guarda o passado, temos a Verðandi que representa o presente, é representado como uma mulher na
qual os acontecimentos são tecidos por seus pensamentos e temos Skuld que representa o futuro, é representada
por uma virgem e é responsável pelo destino.
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As Valquírias como donzelas-cisnes e protetoras dos heróis

Uma outra representação das Valquírias é a das donzelas-cisnes, nesse caso ocorre
uma espécie de “domesticação” das Valquírias, elas apresentam um aspecto de cisnes,em
algumas fontes que falam sobre a representação das donzelas-cisnes, elas são pegas como
esposas de filhos de reis e passam a ter uma vida comum, um exemplo de fonte sobre as
mesmas, é a Balada de Volundr (Vöundarkviða). Essa relação entre Valquírias donzelas-
cisnes e o casamento com filhos de reis servem como uma forma de legitimação do poder
daquele rei, em todas as narrativas na qual as donzelas-cisnes estão inseridas elas aparecem
como filhas de reis e são casadas com outros filhos de reis que mostram ser guerreiros bravos
e sem nenhum temor, bem como o simbolismo do animal, que vem da sua cor branca,
vincula-se com a manifestação do poder e graça da luz(LANGER, Johnni.2009,p.65).
Na Völsunga Saga, em um curto capítulo, nós podemos ver também as Valquírias
servindo como protetoras do destino do herói, nesse caso especificamente nós falamos do
herói Helgi e da Valquíria Sigrun, na qual depois de se conhecerem e se apaixonarem um pelo
outro, Sigrun passa a proteger Helgi nas suas aventuras, a exemplo de uma travessia que era
feita por Helgi, onde deu uma forte tempestade deixando o mar extremamente agitado, e
quando estavam prestes a morrer devido a tempestade, aparece Sigrun e os salva, levando-os
para um porto seguro em terra firme. Além disso, temos também a presença de Sigrun,
durante as batalhas travadas pelo seu amado Helgi, sempre tendo o mesmo, aos seus olhos e o
protegendo de qualquer ameaça contra sua vida, a exemplo de quando o herói Helgi trava um
batalha em um lugar chamado Frekastein, um dura batalha, onde muitos homens foram
mortos tanto do lado de Helgi quanto do seu inimigo, até que surgem um grupo de donzelas
cavalgando no ar acima deles e uma dessas mulheres era Sigrun, e a partir dai Helgi se lança
para o seu inimigo, o rei Hodbrodd, e o mata.
As duas partes se encontravam no lugar chamado Frekastein e lá se travou uma dura
batalha. Helgi avançou através das tropas inimigas. Muitos homens tombaram mortos. Então
eles viram um grande grupo de donzelas cavalgando com escudos, e era como se estivessem
olhando para as chamas. Estava lá a princesa Sigrun. O rei Helgi se lançou contra o rei
Hodbrodd e o matou sob os estandartes. (Völsunga Saga Traduzida do islandês antigo.
MOOSBURGER,Théo de Borba,2009,p.57)

As Valquírias na Völsunga Saga

Continuando a falar sobre a Saga dos Volsungos, nós já falamos sobre a relação entre
o herói Helgi e a Valquíria Sigrun, porém ainda nessa saga nós temos a aparição de uma outra
Valquíria, nesse caso a Brynhyldr (Brynhild), que foi imortalizada nas óperas de Richard
Wagner, e se tornou a Valquíria mais famosa que se existiu, na saga, após o herói Sigurd,
matar e comer o coração do dragão Fafnir, ele passa a ouvir a língua dos pássaros e descobre
que no alto da montanha Hindarfiall está uma Valquíria que se chama Brynhyldr, ele vai até
lá, consegue encontra-la, nesse momento, ela conta o motivo de estar presa, pois desobedeceu
a Odin e a partir daí a história tem o seu desfecho, com os dois se apaixonando, porém certos
de que esse é um amor proibido, nesse encontro entre Sigurd e Brynhyldr ela acaba ensinando
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para o herói o que sabe sobre as runas e também o aconselhando sobre o convívio, como o
que poderia ou não acontecer, dependendo das decisões tomadas por Sigurd.

Runas da fala deves conhecer

Se queres que ninguém


Com ódio repague-te danos
Tens de agitá-las,
Misturá-las
Dispô-las todas juntas
Naquele foro

Runas de ajuda deves usar


Se quiseres obter auxílio
E retirar da mulher a prole.
Deves na palma cortá-las
E segurar na mão dela
E pedir às donzelas ajuda. (Völsunga Saga Traduzida do islandês antigo.
(MOOSBURGER, Théo de Borba, 2009, p. 82, 83)

Ainda na Saga dos Volsungos, é possível ver uma dualidade, presente na questão do
papel da mulher na sociedade escandinava, de um lado nós temos a irmã de Brynhyldr, que se
chama BekkHyldr5, que sempre foi submissa ao seu marido, e sempre se empenhou em fazer
as atividades domésticas e de um outro lado nós temos a Brynhyldr, que usa cota de malha,
elmo, espada, que não se preocupa com afazeres de casa e também não perde a oportunidade
da ir a uma batalha,motivo esse dado por ela ao herói Sigurd para os dois não poderem ficar
juntos, pois como ela mesmo diz ela é uma mulher da guerra, mostrando assim uma imagem
de não sujeição ao homem.

também verificamos que as donzelas-cisnes foram capturadas e tornaram-se


simples mulheres com a união matrimonial: ‘casar-se com um homem é,
para uma Valquíria, pura punição infligida por τdin’(BτYER, 199ιb: ι46).
Tornando-se apenas reprodutoras da prole real, elas deixam de ser uma
ameaça ao ideal guerreiro. (LANGER, Johnni. 2009, p.72)

Com o passar do tempo, nós fomos vendo as várias formas, nas quais as Valquírias
foram imaginadas pelo povo germânico, começando com as Wælcyrge na antiguidade, no
período viking, passando a ser seletoras dos guerreiros nas batalhas e receptoras dos mortos
nas batalhas no Valhalla, passando por donzelas-cisnes, protetoras dos heróis, guerreiras e
filhas de reis. No período viking esse mito pode ser um pouco explicado pelo fato de os mitos
e as tradições serem feitas oralmente, e certamente sempre houve uma intenção dos
contadores de dignificar e glorificar certas histórias, e para isso eles tiveram que também

5
Brynhyld, o radical Bryn significa “cota de malha” e isso nós podemos relacionar com a atividade de guerreira,
na qual Brynhyldr se dedicava.
Bekkhyldr, o radical Bekk significa “banco”, e isso nós podemos relacionar com atividade, na qual Bekkhyldr se
empenhava em fazer que era os trabalhos domésticos.
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dignificar a imagem das Valquírias, não deixando elas terem a mesma imagem da antiguidade
como agentes sanguinárias e maléficas. Ao mesmo tempo nós temos a questão da ligação das
Valquírias com a aristocracia, em nenhuma das narrativas você vê as Valquírias sendo
retratadas como escravas, camponesas ou outro membro das classe baixa, mais sim, sempre
sendo ligada a filhas de reis e pertencendo a realeza, muitas vezes isso serviria para legitimar
os poderes da classe alta e da realeza, pois o rei casado com uma Valquíria daria a impressão
de que o próprio Odin teria legitimado aquele rei, como se o rei tivesse sido aprovado por
Odin.
Com isso, o mito legitima o poder real, o poder do Konungr(rei) e da classe dos Jarls
em geral, em detrimento das outras divisões sociais. Colabora coma criação de vínculos
odinistas com os guerreiros vivos, a exaltar os feitos gloriosos dos heróis mortos, a
estabelecer uma conexão sobrenatural com o poder da classe guerreira e a realeza, a minoria
dominante. (LANGER, Johnni. 2009, p.72)

ANEXOS

Fig. 1: Pingente de prata (BOYER, 2004, p.29). Esse pingente representa uma das
únicas imagens que mostram as Valquírias como guerreiras.Uma portando um escudo e de
elmo, e a outra com uma cota de malha(o que dá pra entender sobre o quadriculado embaixo)

Fig. 2: As Valkyrjas, de Ferdnand Lekke, 1889. Depois das óperas de Richard Wagner,
principalmente depis de “τ Anel do σibelungos”, as Valquírias passaram a ser vistas com
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uma imagem bem fantasiosa de uasr elmos com chifres ou com asas, como dá para perceber
nessas imagens das Valquírias, na qual todas elas usam esses tipos de elmo.

Fig. 3: Estatueta de uma Valquíria. (Disponível em: http://www.elo7.com.br/estatueta-


valquiria/dp/21D462)
Já nessa imagem de Valquíria, nós podemos ver a imagem mais comum eu se tem a
mesma, nesse caso, com um vestido, e segurando um corno de hidromel, para servir a
alguém, possivelmente um guerreiro no Valhalla

Fig. 4: Brynyldr, de Arthur Rackham. (Disponível em


http://pt.encydia.com/es/Valquiria) A imagem ao lado, mostra a Valquíria eternizada por
Wagner nas suas óperas, que popularizou a maioria dos estereótipos existentes, nesse caso
vemos, como fantasioso a cota de malha, esse elmo com imensas asas na lateral, ou seja todo
o seu equipamento militar na condiz com a realidade.

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FONTES

Elder Edda. Séc. X-XIII. Versão em Nordico Antigo e tradução em inglês por Benjamin
Torpe.
Saga dos Volsungos (anônimo do século XIII)/Organização e tradução de Théo de Borba
Moosburger. São Paulo, Hedra, 2009.
STURLUSON, Snorri. The Prose Edda: Tales from the norse mythology.Introdução, tradução
e notas de Arthur Gilchrist Brodeur. New York,Dover publications. 2006

REFERÊNCIAS

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José Olympio. 1997.
COTTERELL, Arthur. Enciclopédia de mitologia clássica, nórdica e celta. China, central
livros. 1998
DAVIDSON, Hilda Roderick Ellis. Deuses e mitos do norte da Europa. São Paulo: Madras,
2004.
DAVIDSON, Hilda Roderick Ellis. Escandinávia. Verbo, 1987.
GRANT, John. Introdução a mitologia Viking. Lisboa: Editorial Estampa, 2000
GRAHAM-CAMPBELL, James. Os Viquingues: origens da cultura escandinava I e II.
Madrid: Del prado, 1997.
LANGER, Johnni. Fúria Odínica: a criação da imagem oitocentista sobre os Vikings. Varia
História, UFMG, n. 25, 2001
LANGER, Johnni. Simbolos religiosos dos Vikings: guia iconográfico. História, imagens e
narrativas. N.11, 2010
LANGER, Johnni. Deuses, Monstros e heróis: ensaios sobre mitologia e religião Viking.
Brasília, Editora da UNB,2009
LANGER, Johnni. Guerreiras na era Viking? Uma análise do quadrinho “Irmãs de escudo”
(Série Northlanders). Roda da Fortuna: Revista eletrônica de Antiguidade e Medievo. N.1,
2012.
LAσGER, Johnni.”A morte de τdin?” As representações do Ragnarok na arte das ilhas
Britanicas (séc. X). Medievalista. N.11, 2012
PAGE, Raymond Ian. Mitos Nórdicos. São Paulo: Centauro, 1999.

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ENTRE A AGULHA E A ESPADA: AS MULHERES GUERREIRAS NAS CRÔNICAS
DE GELO E FOGO

Jackson Franco de Sá Monteiro


(UFMA)
Johnni Langer
Luciana Campos
jack_francodesa@yahoo.com

A Nova História Cultural, o romance de fantasia e o medievo no imaginário


contemporâneo

A Nova História

Anteriormente limitados às fontes tradicionais (documentos escritos e achados


arqueológicos), os historiadores no século XX, principalmente a partir da segunda metade,
incorporaram novos tipos de fontes na analise do passado, assim como abrangeram seus
objetos de estudo. Parte desse processo de renovação no trabalho historiográfico deve-se à
corrente teórica francesa denominada Escola do Annales. Responsável pela aproximação da
história com demais ciências humanas; por abordar a história como processos de curta, média
e longa duração ("la longue durée"), fundamental para compreender o conceito de
mentalidades, que muito contribuirá no desenvolvimento da Nova História Cultural.
Segundo Sandra Pesavento, “pode-se dizer que a proposta da História Cultural seria,
pois, decifrar a realidade do passado por meio das suas representações, tentando chegar
àquelas formas discursivas e imagéticas pelas quais os homens expressam a si próprios e o
mundo” (PESAVEσTτ, 2005, p. 42).
Com as mudanças na maneira de abordar a história, tornou-se necessário uma
reformulação no arcabouço epistemológico do historiador, desenvolvendo conceitos mais
adequados aos novos objetos e problemáticas propostas pela Nova História Cultural. Dois
deles foram fundamentais na elaboração deste artigo.
O primeiro é o de representações. Para Sandra Pesavento as representações

“construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como


fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência.
São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força
integradora e coerciva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos
dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a
realidade” (PESAVEσTτ, 2005, p. 39).

O segundo conceito é o de imaginário. Que podemos entender por um conjunto de


ideias e representações coletivas que dão sentido ao mundo e desperta algum tipo de
sentimento.

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Os romances fantásticos e o medievo no imaginário contemporâneo

Existem várias categorias de romances que podem ser enquadrados em um gradiente


de maior ou menor teor histórico. No romance histórico, a narrativa reconstroi personagens e
acontecimentos históricos (Ivanhoe, Guerra e Paz, Operação Valquíria), era comumente
utilizado por autores românticos para uma reinterpretação de fatos e personagens da história
nacional, numa idealização e revalorização do passado (Olga, O Guarani, As Minas de Prata).
Mesmo em romances completamente ficcionais, muitos autores optam por utilizar
representações que remetem a uma determinada época. A idade média, por exemplo, serve
como parâmetro na composição do universo de muitos romances fantásticos, como a série
Crônicas de Gelo e Fogo, abordada neste artigo.
Tal quais os romances de ficção cientifica e de terror, os romances de fantasia, como a
série em questão, são um subgênero do Gênero Ficção. Caracteriza-se pela presença de seres
mitológicos (dragões, elfos, orcs), magia e outras formas sobrenaturais, e segundo Tuttle,
em Writing fantasy and science fiction, é a criação de mundos “(…) talvez o que mais
diferencia fantasia e ficção científica de outros gêneros”.1, Moorcock, em Wizardry & Wild
Romance2, explica que:

This dream-scenery is fundamental to the success of any romantic work,


(…); it is often the substance of such work, and no matter how well drawn
their characters or good their language writers will appeal to the dedicated
reader of romance according to the skill by which they evoke settings,
whether natural or invented. Their work may not be judged by normal
criteria but by the ‘power’ of their imagery and by what extent their writing
evokes that ‘power’, whether they are trying to convey ‘wildeness’,
‘strangeness’ or ‘charm’; whether, like Melville, Ballard, Juenger, Patrick
White or Alejo Carpentier, they transform their images into intense personal
metaphors (…).(MOORCOK, , pg 46)

Há também subgêneros da Fantasia: Sword and Sorcery, Low Fantasy, High Fantasy,
etc. O subgênero Sword and Sorcery, desenvolvido por Robert Ervin Howard, é caracterizado
pela ênfase nas batalhas entre o herói (dos quais Conan, o bárbaro, é o mais famoso) e
monstros, magos, deuses, etc. Howard foi um dos grandes influenciadores do gênero, tanto na
narrativa quanto na estética das personagens, que marcou a estética de muitos filmes nas
décadas de 60 e70, assim como HQs e jogos até os dias de hoje.
A diferenciação entre Low e High Fantasy decorre de onde a fantasia se desenvolve.
Se no próprio mundo do leitor, é denominada Low Fantasy (Harry Potter, Percy Jackson &

1
Tuttle, L., Writing fantasy and science fiction. Writing handbooks. (London, 2001, p.30).
2
Este cenário de sonho é fundamental para o sucesso de qualquer trabalho romântico; (…) é com frequência a
substância de tal trabalho, e, não importa quão bem elaborados sejam os personagens ou quão boa seja a
linguagem, escritores serão atraentes para os leitores fiéis de romances de acordo com a habilidade com que
evoquem a ambientação, seja natural ou inventada. Seus trabalhos podem não ser julgados por um critério
normal mas pelo “poder” de suas imagens e em que medida sua escrita evoca este “poder”, estejam eles tentando
transmitir o “selvagem”, “estranhamento” ou “charme”; se, como Melville, Ballard, Juenger, Patrick White ou
Aleko Carpentier, eles transformam suas imagens em intensas metáforas pessoais (…).

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the Olympians), e High Fantasy se em um diferente do real, os quais Tolkien definiu como
“Mundos Secundários” (Middle Earth do universo Tolkieniano, Westeros e Essos das
Crônicas de Gelo e Fogo).
Grande parte dos componentes dos universos desenvolvidos pelos autores de Fantasia
advém de influências dos mitos e lendas do folclore de variados povos: gregos, egípcios,
ameríndios, mas principalmente celtas e germanos. As ambientações, assim como o grau de
tecnologia dos povos e a maneira que estão estruturadas as sociedades descritas de alguns
mundos secundários refletem tempo e lugares da nossa própria história. Quando tais
mundos se assemelham à Europa Medieval e têm grande ênfase em batalhas, tal romance é
denominado Fantasia Medieval ou, preferivelmente, Fantasia Épica. A série abordada
enquadra-se nessa categoria, uma vez que a sociedade no continente de Westeros assemelha-
se à da Europa Central na época dos reinos germânicos, com o poder centralizado nas mãos de
um rei, porém com senhores vassalos poderosos encarregados da manutenção das terras que
controlam (e um dia reinaram), do povo que as habita e do recolhimento dos impostos. O grau
de tecnologia também é correspondente ao da Europa medieval, inclusive no quesito bélico,
sendo as batalhas ainda travadas corpo a corpo com uso de armas brancas e o corpo protegido
por armaduras. Não possuem o conhecimento da pólvora e fabricação de armas de fogo,
limitando-se ao uso do arco e balestra (capaz de perfurar armaduras) como armas de longo
alcance e o trebuchet como principal arma de cerco.

Uma analise das mulheres no medievo por meio de uma comparação com as
personagens guerreiras das Crônicas de Gelo e Fogo

O universo criado por George R.R. Martin esta repleto de personagens femininas
fortes e marcantes, dispostas a lutar, em alguns casos, literalmente, por aquilo que acreditam e
por aqueles que amam; Catelyn Stark, Senhora de Winterfell, mesmo abalada
pisicologicamente após a morte do marido e incerta quanto à segurança de suas filhas,
mantem-se aparentemente segura, alicersando emocionalmente seu filho Robb, que ao herdar
a posição do pai, reúne seus vassalos e marcha em busca de vingança. E a rainha Cersei, que
para manter a salvo seus filhos e, principalmente, seu posto de Rainha Regente, age
deliberadamente não se importando com os sofrimentos daqueles que estão em seu caminho.
Neste artigo buscamos fazer um panorama do real papel da mulher de elite na
sociedade medieval nos constantes estados de guerra por meio de uma comparação com as
personagens (literalmente) guerreiras das Crônicas de Gelo e Fogo.

Arya Stark – O ideal e a real dama medieval

Filha de Lord Eddard Stark, Senhor de Winterfell e protetor do Norte. Como toda
jovem nobre, recebera uma educação distinta, voltada para torna-la uma lady e exercer bem
seu papel de esposa, o que incluía os trabalhos com agulha, para os quais, diferentemente de
sua irmã mais velha, Sansa, não apresentava nenhum talento ou interesse. Arya preferia
acompanhar os treinos de seus irmãos, cavalgar e perambular por Winterfell que cumprir com
os ensinamentos ministrados pela septã (religiosa responsável pela educação das garotas
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nobres). Foi presenteada com uma espada feita sob medida para ela por seu meio-irmão John
Snow, de quem era particularmente próxima, e nomeou-a “Agulha”. Dedicou-se ao treino da
esgrima como jamais se dedicara aos trabalhados de tricô. Ao mudar-se para Porto Real,
capital dos Sete Reinos, recebeu treinamento particular de Syrio Forel, um espadachim da
cidade livre de Braavos, que lhe ensinou o tradicional estilo de esgrima braavosii conhecido
como dançarino de água (Water dancer), que diverge do estilo clássico de Westeros. Os
acontecimentos que levariam à guerra pelo trono real, como a morte do Rei Robert e de seu
pai, Lord Eddard, levaram-na a fugir e sobreviver por conta própria no hostil reino em guerra.
Os ensinamentos de Syrio Forel, que dera a vida para salvá-la, foram determinantes para que
sobrevivesse às adversas situações que se sucederam.
Desta forma, Arya apresenta um perfil contrário àquele idealizado das mulheres de
elite tanto da sociedade de Westeros quanto da Europa medieval. Os registros do período
informam mais sobre a ideologia dominante do que sobre a possível realidade, pois fornecem
uma representação idealizada da mulher aristocrata medieval. Representação esta, condizente
com o discurso de retidão moral pregado pela igreja, que era exteriorizada por meio da
moderação da dama ao demonstrar suas emoções e interesses, aparência (alguns bispos
proibiam o uso da maquiagem), alimentação (visando à fertilidade), gestos, vestimentas, etc.
Porém a austeridade excessiva também não era bem vista, pois uma dama devia cuidar da
aparência e vestir-se de acordo com seu status social.
A mulher era educada desde a infância para o papel de esposa. Havia tutores que
auxiliavam na educação (religiosa, literária e cientifica) das jovens, mas cabia à mãe verificar
o conteúdo da instrução. As mulheres casavam-se muito cedo, visando a fertilidade e devido à
baixa expectativa de vida na Idade Média (aproximadamente quarenta anos), enquanto os
homens podiam unir-se matrimonialmente numa idade mais avançada. Com efeito, a família
planeava os casamentos desde o nascimento das crianças e a escolha do cônjuge era feita pelo
pai, desconsiderando a vontade da nubente. O casamento -sobretudo entre os nobres- era um
contrato entre famílias, possuía um carácter prático e essencialmente materialista, tendo por
objetivo reforçar alianças ou apaziguar antigas desavenças, visando preservar ou ampliar o
patrimônio fundiário familiar, principal fonte de riqueza na Europa medieval.
Entretanto, a dama medieval não se limitou a ser apenas a esposa subserviente tecendo
enclausurada em seu castelo ou ao que era idealizado nas canções de cavalaria.
Na prática, algumas mulheres tiveram poderes amplos e foram administradoras
eficientes, uma faceta de sua existência que a literatura medieval tentou esconder, mas que
aparece nos documentos administrativos e judciais. (Farguet. Revista História Viva Especial,
n° 32, pg 33).
De acordo com Macedo (1997), entre os anos de 1152 e 1284, na região de
Champagne dos 279 detentores de domínios territoriais, 58 eram mulheres.
A palavra dama (do latim domina) remete ao domínio que ela exercia no feudo sob a
autoridade do marido e poder inconteste de todos os assuntos relacionados ao feudo durante
as constantes ausências do senhor. Portava uma bolsa e um malho de chaves pendurados na
cintura como simbolos de seu poder. Entre seus encargos estavam, além da educação das
crianças, a administração da propriedade, garantir o bem estar dos familiares e hospedes,
obter provisões para o castelo e manter em ordem a economia do feudo, que produzia a
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maioria dos produtos consumidos no domínio senhorial (pães, cerveja, queijos, vinhos e
carnes, entre outros). Em tempos de guerra, eram responsáveis por levantar o valor cobrado
pelo resgate caso o marido caísse refém e por assumir a defesa da família se este fosse morto
em combate.

As mulheres da Ilha dos Ursos e Brienne de Tarth – Mulheres no campo de batalha

Arya Stark foi impelida a lutar devido às terríveis circunstâncias decorrentes do


interresse pela posse do Trono de Ferro. Porém, não foi a única nobre a lançar mão à espada
nas Crônicas de Gelo e Fogo. As mulheres da Casa Mormont, assim como Brienne, herdeira
da ilha de Tarth, não se limitaram ao uso de armas apenas para defesa pessoal. Participaram
ativamente na guerra, atuando em campo de batalha.
A remota Ilha dos Ursos está localizada no norte da baía do gelo, no litoral ocidental
de Westeros. A Casa Mormont, vassala aos Stark, recebeu a soberania sobre a ilha após o rei
Rodrick Stark tê-la ganho em um luta corpo a corpo, anexando-a aos domínios do Norte. Tem
como brasão um urso negro sobre um fundo de pinheiros e as palavras da Casa são: “Aqui
permanecemos”. A ilha é pobre em recursos, porém rica em madeira, até mesmo o hall dos
Mormonts é construído de grandes troncos de arvóres. Os habitantes vivem ao longo da costa
e sobrevivem basicamente da pesca. Em tempos idos, a ilha sofria com as constantes
inscursões saqueadoras dos homens das Ilhas de Ferro e as ainda eventuais incursões dos
selvagens da Costa Gelada (Frozen Shore). Devido a essas condições, as mulheres da ilha dos
Ursos recebem treinamentos no manuseio de armas para defenderem a si mesmas, as crianças
e idosos, enquanto os homens encontram-se pescando no mar. No portão da fortaleza
Mormont está gravada uma imagem representando uma mulher vestida em pele de urso
amamentando um bebê em um braço e com um machado de batalha no outro em referência a
cultura guerreira desenvolvida pelas mulheres da ilha.
A Casa Mormont é chefiada por Lady Maege Mormont, que junto com sua herdeira,
Dacey Mormont, respondeu ao chamado de Robb Stark para travarem guerra contra os
Lannisters. Maege faz parte do concelho de guerra de Robb e Daecy fez parte de sua guarda
pessoal, lutando ao seu lado com sua maça, até ser assassinada no Casamento Sangrantento
(Red Wedding), tornando Alysane, sua irmã mais nova, herdeira da Casa Mormont.
Brienne of Tarth, conhecida como a Donzela de Tarth (Maid of Tarth), ou Brienne, a
Bela, é a única filha viva de Lord Selwyn Tarth a Estrela da Tarde (Evenstar), Senhor da Ilha
de Tarth. Devido à morte prematura de seu irmão mais velho, Brienne tornou-se a herdeira do
Salão do Entardercer (Evenfall hall). Lord Selwyn tentou casá-la por três vezes, tarefa que
teria sido complicada devido à sua aparência (que lhe rendeu o sarcastico apelido de Brienne,
a Bela), porém Tarth é rica, então não faltaram propostas. Brienne não desejava a vida de lady
e rejeitou a todos. Foi treinada por vontade própria pelo mestre de armas de Tarth e em pouco
tempo se destacou pela habilidade e porte avantajado (mais alta e forte que a maioria dos
cavaleiros). Sagrou-se cavaleiro e tornou-se membro pessoal da guarda de Renly Baratheon, a
quem amava, após vencer Loras Tyrell, o Cavaleiro das Flores, em um torneio.
Após a morte de Renly, Brienne passa a servir Lady Catelyn Stark, que ao receber a
notícia de que seus filhos estavam mortos, a encarrega de escoltar Jaime Lannister até Porto

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Real (parte do acordo feito com Tyrion Lannister, que em troca libertaria suas filhas). Ao
chegar a seu destino, mesmo sabendo da morte de Catelyn, Jaime pede que Brienne encontre
as filhas de Lady Stark, que já não se encontravam na capital do reino e presenteia-lhe com
sua espada forjada com aço valiriano, Cumpridora de Promessas (Oathkeeper). Brienne acaba
sendo executada a mando da própria Lady Stark (ressuscitada), que não acredita em sua
história e ao propor que Brienne mate Jaime para provar sua lealdade, esta se recusa e então é
enforcada.
Tal como as mulheres da Ilha dos Ursos, as mulheres da nobreza no medievo recebiam
treinamento militar, principalmente no manejo de armas de longo alcance (arco, balestra, etc.)
para poderem defender os castelos e outras fortificações caso o senhor e seus cavaleiros se
encontrasem ausentes.

Nesta iluminura de Walter de Milemete (Mestre, estudioso, eclesiástico e pároco do


Condado da Cornualha, famoso por seu manuscrito destinado a apreimorar a educação do Rei
Edward III) mulheres defendem uma fortificação (suas roupas e penteados são indicativos
sociais de que pertencem à aristocracia).
Stefan Ingstrand menciona em Éowyn under Siege: Female Warriors During the
Middle Ages que3:

3
Fontes das Europa medieval mencionam um surpreendente número de mulheres iclanadas marcialmente
durante os séculos X, XI, XII e XIII, mais do que as fontes de períodos anteriores e posteriores.

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Medieval European sources mention a surprising number of martially
inclined women during the tenth, eleventh, twelfth, and thirteenth centuries,
more than sources from earlier or later eras do. (2009)

A maioria das mulheres descritas nas fontes medievais é pertencente à aristocracia,


com excessão da que é provavelmente a mais conhecida guerreira do medievo, Joana D’Arc.
Dentre as que se destacaram por seus feitos podemos citar: Æthelflæd, filha de Alfred, o
Grande, conhecida como “Lady of Mercians”, governou a região da Mercia após a morte de
seu marido. Comandou pessoalmente suas tropas expulsando os vikings dinamarqueses de
todo território ao longo do rio Humber. Leonora de Aquitânia, Matilda de Canossa, dentre
outras, também ficaram marcadas na história como mulheres poderosas e grande estrategistas.
Questiona-se qual seria o real papel da maioria destas mulheres, tanto das nobres como de
Joana D’Arc, se limitado a exercer a liderança de suas tropas ou participando efetivamente
dos combates. Porém, há fontes que registraram participação femina realmente combatendo:
uma mulher carregava o estandarte dos Flamengos em campo de batalha quando Carlos VI
marchou contra Flandres (seu filho, Carlos VII, confiou a uma jovem pastora a liderança de
seus exércitos). Durante a Cruzada dos Reis, o cronista mulçumano Imad ad-Din al-Isfahani4
menciona que duas mulheres estavam entre os guerreiros cristãos mortos em campo de
batalha e posteriormente soube que quatro mulheres haviam tomado parte do ataque.
Among the Franks there were indeed women who rode into battle with cuirasses and
helmets, dressed in men's clothes; who rode out into the thick of the fray and acted like brave
men although they were but tender women, maintaining that all this was an act of piety,
thinking to gain heavenly rewards by it, and making it their way of life. Praise be to him who
led them into such error and out of the paths of wisdom! On the day of battle more than one
woman rode out with them like a knight and showed (masculine) endurance in spite of the
weakness (of her sex); clothed only in a coat of mail they were not recognized as women until
they had been stripped of their arms. Some of them were discovered and sold as slaves.
(GABRIELI .1969, 207)

As Serpentes do Deserto e a cultura Roynar - Representações de mulheres guerreiras no


imaginário popular

Os Rhoynares viviam em Cidades-Estados ao longo da vasta hidrovia do rio Rhoyne,


Quando os Valyrianos deram inicio à sua expanção, o Principe Garin liderou 250,000
Rhoynares para a morte ao tentar conter os senhores dos dragões. A rainha
guerreira Nymeria uniu as Cidades-Estado e liderou a fuga dos Rhoynares através do narrow
sea toWesteros, passando pelos Degraus (Stepstones) até Dorne. Nymeria casou-se com o lord
Dornense Mors Martell de Lança Solar (Sunspear) e o ajudou a consolidar seu poder sobre
toda a região de Dorne. Os dornenses adotaram muito da cultura rhoynar, que praticam gual

4
Imad ad-Din al-Isfahani, poeta, escritor e historiador. Em suas obras historiográficas descreu a reconquista de
Jerusalem pelos exércitos liderados por Saladino. Sua obra Relampago da Síria narra a vida e os feitos do sultão
curdo a partir de 11ι5. Em sua obre faz duras criticas à generosidade de Saladino para com os “francos”
derrotados. Também esteve presente na terceira cruzada, quandos os cristãos reconquistam Jerusalém.

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primogenitura, garantindo filho mais velho os títulos do pai, não importando se é homem ou
mulher, seus lideres recebem o título de Principe e Princesa. Os Rhoynares também sofreram
influência dos Andalos, converteram-se à fé nos Sete, pois seus antigos deuses estavam
diretamente associados ao rio Rhoyne, do qual agora estavam muito distantes.
As serpentes do deserto (Sand Snakes) são as oito filhas bastardas que o
príncipe Oberyn Martell (The Red Viper) teve com diversas mulheres, de septãs a nobres e
prostitutas. Sand é o nome dado aos bastardos em Dorne, região mais meridional de Westero e
que possui traços culturais singulares devido à influência do Roynares. As quatro mais velhas
são tão belas como letais, com habilidades que variam tanto quanto à aparência. Nymmeria é
extremamente hábil com facas, Obara com lança e chicote, Sarella é capitã de seu próprio
navio e Tyene é famosa por seus venenos e poções.
As serpentes do deserto, diferentemente das outras personagens analisadas, são
discritas como muito belas, característica comum às personagens guerreiras modernas.
Tolkien em The Lord of the Rings desenvolve a personagem Éowín, que derrota o mais
terrível dos servos de Sauron. O modelo icônico de heroínas retratadas como belas, sensuais,
audaciosas e extremamente hábeis na arte da guerra, foi popularizado na obra de Robert
Howard, repleta de belas guerreiras como Valéria e Red Sonja.

Conclusão

Ao longo da história a guerra foi definida, pela maioria dos povos, como uma
atividade masculina. Porém, tanto no medievo quanto nos dias de hoje, nos momentos críticos
e que houve necessidade de efetivo humano, mulheres atuaram em batalhas. Na URSS
durante a 2ªGG, por exemplo, muitas participaram de regimentos de combate aéreo, sendo o
temido 46° regimento de Bombardeio da Guarda Taman, conhecido com as “Bruxas da
Noite”, composto inicialmente apenas por mulheres.
Apesar de a participação de mulheres em batalha na idade média ser bem
documentada, eram um evento incomum e extremamente restrito, limitado na maioria das
vezes à defesa de uma fortificação na ausência de homens para defendê-las e na ordenação do
teatro de guerra.
Com excessão dos regimentos femininos dos reis de Dahomei, no oeste africano,
relatos de mulheres guerreiras tendem a ser lendários. Porém, tais representações são uma
constante no imaginário social das mais diversas culturas ao longo do tempo e ainda hoje
estão presentes em diversos romances, filmes, jogos de RPG e vídeo-games, HQs, mangás,
etc.

REFERÊNCIAS

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GABRIELI, Francesco. Arab Historians of the Crusades. (Berkeley: University of California
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ISBN: 978-85-237-0603-6
O CÁLICE DO DIABO: A FIGURA DE SATÃ NAS MULHERES MEDIVAIS
EUROPEIAS

José Lucas Cordeiro Fernandes


(UFC) 1
zelucasfernandes@hotmail.com

“Mal magnífico, prazer funesto, venenosa e enganadora, a mulher foi


acusada pelo outro sexo de ter introduzido na terra o pecado, a desgraça e a
morte [...] O homem procurou um responsável pelo sofrimento, para o
malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher.”
Jean Delumeau

A mulher mediveal sofria com inúmeras acusações pejorativas, ela é constatemente


associada ao mal, a destruição do homem e as tentações diabólicas, como as “agentes de
Satã”. Esses elementos são imbuidos na mentalidade medieval graças a uma série de
discursos, mas principalmente o da Igreja que atua com afinco para tornar a imagem da
mulher cada vez mais próxima à Lúcifer. Mas essa ideia da mulher maligna e diabolizada
surge com esses discursos medievais misóginos?A misoginia, a recusa ao sexo feminino, não
surge propriamente na Idade Média, é sem dúvida um produto do mundo Antigo, de uma série
de apropriações das ideías da antiguidade.2 A própria divisão dos sexos, a demostração da
diferenciação dos mesmos, feita por Platão e Aristóteles vão alimentar violentamente
inúmeros discursos, assim como Hipócrates e Galeno, que vão influenciar principalmente os
discursos médicos, onde podemos observar que a cristalização desses personagens foi tão
forte que as referências de suas obras são usadas durante a Idade Média e Moderna, para
justificar teorias e preceitos.
A mulher é vista em tal posição, pois as sociedades em que vivem colocam a mulher
constatimente em uma posição inferior. Quando a mulher estava ao lado do homem na
tentativa de sobrevivência, seu status era semelhante ao dele, mas com a sedentarização, o
surgimento da agricultura, do maior valor as guerras, a figura do homem foi tomando
destaque e assumindo uma posição de superioridade em relação à mulher, tal fato que vai
refletir na hierarquia social das inúmeras sociedades antigas e medievais. Essa diferença entre
gêneros passou a ser usada em elementos ideológicos, com intuito de demonstrar e manter a
superioridade do homem sobre a mulher. Logo, os discursos são reflexos da sociedade e que
por consequência vai voltar a influenciar a sociedade e povoar o imaginário, permitindo uma
continuidade e progressão da força pejorativa contra a mulher, ou seja, uma influência do real
para imaginário, assim como do processo reverso3, onde podemos ver na Idade Média um dos
cumes mais altos dessa montanha tão antiga.

1
Graduando em História pela Universidade Federal do Ceará. O presente trabalho é orientado pela Professora
Ms. Luciana de Campos.
2
Ver: BLOCH, Howard. A misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de Janeiro, Ed
34, 1994.
3
Sobre aspectos do imaginário, ver: BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1985.
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A relação da mulher com o Diabo surge nesse âmbito dos discursos da antiguidade,
como podemos observar na obra de Tertuliano, O Adorno das Mulheres:

Tu dás à luz na dor e na angústia, mulher, sofres a atração do teu marido e


ele é teu senhor. E ignoras que Eva tu és? Está viva ainda, neste mundo, a
sentença de Deus contra teu sexo. Vive como impõe, como acusada. És tu a
porta do diabo. Foste tu que quebraste o selo da árvore; foste a primeira a
deserdar a lei divina; foste tu que iludiste aquele que o diabo não pode
atacar; foste tu que tão facilmente venceste o homem, imagem de deus. Foi
tua paga, a morte, que causou a morte do próprio filho de deus.
(ALEXANDRE, 1990, p.511).

Podemos observar que no início do discurso do cristianismo, a mulher vem como


grande culpada de trazer o mal para mundo, através da figura de Eva, a primeira “agente” de
Lúcifer. Ela é um grande exemplo de como é uma das percepções sobre a mulher medieval.
Ela surge em vários momentos como exemplo da força maligna da mulher e como a mesma
gerou uma descendência maligna, uma maldição que caí sobre todas as mulheres, ela traz
inúmeros elementos da fraqueza da mulher, da inferioridade em relação ao homem, da mente
fraca para a tentação do Diabo, da sua perversidade, tudo sendo justificada pela bíblia, o
escrito base do cristianismo, ou seja, os discursos misóginos tinham nos escritos sagrados a
base para as suas observações, mostrando-nos o nascimento da mulher e como a mesma
condenou a humanidade e quais são os castigos divinos para sua fraqueza em relação ao
demônio.

O homem então disse:


Esta, por fim, é osso dos meus ossos
E carne da minha carne.
Esta será chamada Mulher,
Porque do homem foi esta tomada. (Gn. 2,23)

A mulher foi criada do homem, da sua carne, da sua costela, por isso, que ela será
vista como as filhas da luxúria, pois da carne vieram e a carne está ligada, sendo mais
próxima do terreno, do material e do corporal, a mulher é mais propensa ao pecado por ter a
alma mais distante de Deus. O corpo, a carnalidade é a ferramenta máxima da mulher, a
tentação suprema em relação ao homem, são seus atrativos físicos que pervertem a mente dos
homens com maior facilidade, e por isso que em De planctu ecclesia de 1330 se afirmava:
“não há nenhuma imundice para qual a luxúria não conduza”, ou como Vilém Flusser
comenta em sua História do Diabo: “τ maior dos pecados é a luxúria, pois ela leva a todos os
outros.”. Lúcifer usa o “segundo sexo” em uma tentativa de corrupção dos homens, usando o
corpo e a carnalidade para atraí-los ao pecado.
Lúcifer não pensa na mulher como sua ferramenta maior, pois Satã tenta atacar os
homens primeiro, afinal ele é um grande senhor, que naturalmente prefere dominar o homem
primeiro, a sua inferior: a mulher. Em peças medievais, como A Queda do Homem de Chester,
nos mostra essa ideia de que “a resistência de Adão da tentação realça a própria fraqueza de
Eva” (RUSSEL, 2003, p.246), pois Adão não cedeu a Satã, forçando o mesmo a procurar a
segunda opção nos ouvidos de Eva. Ela cedeu a lábia de Lúcifer, e com ele aprendeu, usando

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sua “lábia” para convencer Adão, ou seja, o demônio perverte Eva que por sua vez perverte
Adão, mostrando sua capacidade com as palavras, na arte de seduzir.

a mulher [viu] que aquela árvore era para se comer, e agradável


aos olhos [...]; tomou do seu fruto, e comeu,
e deu também a seu marido
e ele comeu com ela. ( Gn. 3,6)

Por essas falhas da mulher e o do homem, Deus os condena, assim como toda sua
ascendência. O pecado original, a culpa de desobedecer a Deus e acabar com o paraíso
terrestre é o castigo d’Ele sobre todos os filhos do homem, ou seja, todos os homens nascem
com um pecado, e de certa forma do pecado4, mas tudo por culpa da mulher, que será punida:
“‘ Aumentarei grandemente a dor da tua gravidez; em dores de parto darás à luz filhos, e terá
desejo ardente de teu esposo, e ele te dominará. ’” (Gn. 3,16). A dor do parto, a angústia e a
submissão ao homem é castigo divino por causa dela ser a principal responsável pela queda
do homem e do fim do paraíso terrestre. A primeira frase de Tertuliano na passagem
supracitada reflete bem esse princípio das escrituras sagradas, Deus permite que mulher viva,
mas ela está condenada eternamente pelo pecado de abraçar a serpente, esta que estará ao seu
lado por toda a vida, pois o mundo sujo é aberto à força do Satã, onde o homem deve
trabalhar para redimir a culpa da mulher.5
A imagem de Eva é importante, pois ela foi usada e expropriada para todas as
mulheres, ou seja, a compreensão da imagem dela é de certa forma uma compreensão de uma
das imagens na mulher no medievo. A utilização de Eva como o início de uma generalização
era comum em discursos misóginos, pois ela é a justificativa máxima, como já foi comentado.
Observando a passagem de De planctu ecclesiae, material feito a pedido do papa João XXII
para o franciscano Álvaro Pelayo, vemos:

Queixa primeira, ao menos ao nível da consciência clara: Eva foi o começo e


a mãe do pecado. Ela significa para seus infelizes descendentes “a expulsão
do paraíso terrestre”. A mulher é então doravante “a arma do Diabo”, “a
corrupção de toda a lei”, a fonte de toda a perdição. Ela é “uma fossa
profunda”, “um poço estreito”. “Ela mata aqueles a quem enganou”; “a
flecha de seu olhar transpassa os mais valorosos”. Seu coração é “a rede do
caçador”. É “uma morte amarga” e por ela fomos todos condenados [...].
(DELUMEAU, 2009, p. 482)

Na passagem acima podemos observar os inúmeros elementos de apropriação da Eva e


a generalização em relação a todas as mulheres. “Eva foi o começo e a mãe do pecado”, a
culpa primeira é dela que além de ceder ao demônio cometeu o primeiro pecado. Ela
condenou todo seu sexo e com isso tornou todas as mulheres “armas de satã”. τbservamos
que nesse trecho há uma semelhança com a obra de Tertuliano, ou seja, mostra que a ideia da
mulher demonizada e da Eva “mãe do pecado” vem desde antiguidade. “Assim, a Idade

4
σo caso comentamos da relação pecado e sexo, onde observamos que o sexo era visto como “sujo” e que ele
em si era um pecado.
5
Sobre o castigo dado ao homem, ver: Gn. 3:17-20
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Média cristã, em uma medida bastante ampla, somou, racionalizou e aumentou as queixas
misóginas recebidas das tradições que era a herdeira.”
A mulher é às vezes considera como não somente uma ferramenta, mas como o
instrumento máximo de Satã, pois as forças dos discursos teológicos estavam cada vez mais
fortes, aumentando a imagem da mulher como um demônio, como podemos ver no trecho de
Marborde, bispo de Rennes no século XI:

Dentre as incontáveis armadilhas que nosso inimigo ardiloso armou [...] a


pior é aquela que quase ninguém pode evitar é a mulher, funesta capa de
desgraça, muda de todos os vícios, que engendrou no mundo inteiro os mais
numerosos escândalos [...]. A mulher, doce mal, ao mesmo tempo favo de
cera e veneno, que com um gládio untado de mel corta o coração até dos
sábios. (LEFEVRE, 1966, p. 82)

O ponto mais interessante dessa passagem é que podemos compreender o medo e a


demonização da mulher. A mulher é doce, mas má, bela e terrível, a mulher é um cálice cheio
de líquidos malignos, de temperos do demônio, mas tudo isso está guardado dentre de um
cálice de ouro puro. O medo da mulher vem da capacidade de sua tentação em relação aos
homens, do seu poder persuasivo e sua capacidade de disfarçar e esconder seus sentimentos,
de controlar o ambiente doméstico, o lar, espreitando o homem na fraqueza de seu sono e de
seu cansaço.6 Logo, a mulher é uma armadilha perfeita, pois dela nada se identifica ou se
percebe, mas ela está em todo lugar, como necessidade do homem e da carne, dominar a
mesma é improvável, pois o seu revestimento de ouro nos leva a tentar para o pecado sem
perceber o demônio por traz. Odon, abade de Cluny no século X demonstra bem isso:

A beleza física não vai além da pele. Se os homens vissem o que está sob a
pele, a visão das mulheres lhes viraria o estômago. Quando nem sequer
podemos tocar com a ponta do dedo um cuspe ou esterco, como podemos
desejar abraçar esse saco de excrementos? (LEFEVRE, 1966, p. 83).

A mulher “é um verdadeiro diabo”, como dizia Petrarca em suas frases contra o


casamento e a ligação eterna com mulher e filhos, pois é extremamente perigoso, visto que se
“tem uma esposa feia, dela se desinteressa e a odeia, sé é bela, tem um terrível medo dos
galantes [...] beleza e virtude são incompatíveis [...]” 7. A beleza da mulher é que permite que
a mesma possa de forma tentadora e silenciosa afetar o coração do homem, ao mesmo tempo
com um “doce beijo [ela] [...] destila o veneno no silêncio do seu coração!”, a mulher pode de
forma sutil envenenar aquele que a ama, por isso que ela é tão perigosa, o ser “mais distante
da imagem de Deus.”
A mulher é o homem são semelhantes perante Deus? Ambos são frutos da inspiração
divina? Estas questões pertinentes são pensadas pelo grande Santo Agostinho, que as
responde de forma bem interessante, e bem atrelada à corrente dos monges misóginos. Ele

6
O grande espaço de poder da mulher era a esfera doméstica, pois era ela quem controlava tudo que acontecia
na casa. σesse espaço a mulher poderia através de “lágrimas e palavras” controlar e mudar a direção de muitas
decisões e até fazer grandes conflitos.
7
Texto de Roger de Caen, século XI In: DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente, 1300-1800: uma
cidade sitiada. São Paulo, SP: Companhia de Bolso, 2009.
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mostra que a ligação de igualdade ensinada nos evangélicos tem uma ressalva máxima, pois o
homem, e somente ele, é a plena imagem de Deus, mas não a mulher, esta que tem apenas a
alma ligada com Deus, mas seu corpo é o eterno obstáculo de aproximação da razão, logo,
“inferior ao homem a mulher deve ser submissa.”. τ decreto Graciano (1140-50),
influenciado por Santo Agostinho e Santo Ambrósio traz elementos da imagem de Deus e da
mulher:

Essa imagem de Deus está no homem (adão), criado único, fonte de todos os
outros humanos, tendo recebido de Deus poder de governar, como seu
substituto, pois é a imagem do Deus único. E por isso que a mulher não é a
imagem do Deus único.

Percebemos que a imagem da mulher não é semelhante à imagem de Deus, pois a


mulher como vemos nos escritos sagrados não é fruto do mesmo sopro divino de Adão, mas
sim da sua costela, da sua carne, comprovando que a mulher é fruto de outra fonte divina, esta
que não reflete a imagem do Deus único. Essa percepção da imagem da mulher submissa e
inferiorizada reflete em algumas práticas e discursos, por exemplo: Paulo, determinava que as
monjas devessem cobrir os cabelos como sinal de submissão em relação ao homem, mas
também para evitar revelar a grande arma de sedução das mulheres, o cabelo, evitando dar
ferramentas para o Diabo dentro das paredes dos monastérios. Nos também podemos observar
nos discursos de São Tomás de Aquino essas posições pejorativas, que baseado em Coríntios
fala: “Eu não permito à mulher ensinar e governar o homem.”. Logo podemos perceber que a
posição da mulher, devido à força de Igreja, era bem abaixo ao do homem, servindo
exclusivamente para servir e tentar o homem, como um teste da pureza do seu espírito.
A Demanda do Santo Graal é bem clara em mostrar como a tentação da mulher é uma
prova da pureza do espírito, pois é o cavaleiro eleito que resiste às tentações diabólicas da
mulher. Galaaz e Borz quando chegam ao castelo do rei Brutos encontram a figura da “mais
formosa donzela do reino de Logres” (DSG, p. 9ι), que se apaixona pelo puro dos puros, o
Galaaz, passando a desejá-lo em seus braços. Esse desejo alimenta as tentativas da mulher
contra Galaaz, pois mesmo ciente da não correspondência do sentimento por parte do nobre
cavaleiro ela “saiu de seu leito em trajes de dormir, [...], foi a Galaaz, ergueu o cobertor e
deitou-se ao lado dele”. (DSG, p.99). Assustado com tal aproximação noturna Galaaz
comenta: “Ai, donzela! Quem vos mandou aqui certamente mau conselho vos deu; [...] mais
devo recear perigo de minha alma do que fazer vossa vontade”. (DSG, p.100). A donzela,
ardilosa, e cheio de desejo por Galaaz ameaça tirar sua vida caso o mesmo não se deite com
ele, forçando- o a carregando a culpa da morte da donzela: “e tereis por isso maior pecado do
que se me tivésseis convosco, porque sois a razão da minha morte”. (DSG, p.101). Com isso
Galazz cedeu, mas na condição de que a mesma não se matasse.8
Nessa passagem observamos como é à força da mulher em relação ao homem, mesmo
sendo ele o mais puro de todos os cavaleiros. Este momento da Demanda do Santo Graal o
escrito é pejorativo em relação à mulher. Primeiro, ela se apaixona pela beleza de Galaaz, o

8
Ver: GOMES, Janaina Nazzari. Reflexões sobre o desejo e a ideologia na misoginia medieval. Revista do
corpo discente do programa de pós-graduação em História da UFRGS. P. 264; MEGALE, Heitor. A
DEMANDA DO SANTO GRAAL. Manuscrito do século XIII. São Paulo: T.A. Queiroz/EdUSP, 1988 .
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que não problema, mas esse amor se tornou desejo e luxúria, pois a mesma vai à noite para se
deitar com ele. Quando ele nega, a mulher se enche de raiva e orgulho o ameaçando, ou seja,
observamos três pecados fundamentais dos princípios cristãos, vemos como a luxúria pode
levar para outros pecados. Galaaz, mesmo cedendo não se tornou impuro, pois a vida da
donzela é mais importante que a castidade no código dos cavaleiros. Essa atuação da mulher
pode ser vista com uma atuação diabólica, como se um demônio estivesse impulsionando a
mesma a tentar as virtudes de Galaaz, na obra essa concepção do Diabo fica a caráter
imaginativo do leitor, mas é bem fácil relacionar a atitude da mulher ao Diabo, pois
“Evidencia-se [...] a tentativa de elevar o caráter correto e tenaz do homem frente a um
espírito descontrolado e irracional que quer induzir, como Eva, o homem ao pecado.” 9, se a
serpente influenciou Eva pode muito bem ter influenciado a mais bela donzela de Logres.
Uma ressalva na produção do discurso sobre Eva é o trabalho de Hidelgarda de Bigen
que vai conseguir reduzir, mesmo por pouco tempo essa culpa de Eva, mas Hidelgarda sabia
que escrevia no universo de homens é por isso manteve sua escrita com elementos oriundos
da tradição masculina, como a afirmação da maior suscetibilidade de Eva em relação ao
demônio, como podemos ver no Scivias:

A alma inocente de Eva [...] foi invadida pelo diabo através da sedução da
serpente para a sua própria queda. Porque isso? Por que ele sabia que a
suscetibilidade da mulher seria mais facilmente conquistada do que a força
do homem; e vendo Adão, ardendo com tanta veemência em seu amo por
Eva, sabia que se ele, o diabo a conquistasse, Adão faria qualquer coisa que
ela dissesse. (PIERONI, 2007, p.52)

Hidelgarda traz uma Eva bem diferente, mostrando que a queda do paraíso terrestre é
culpa de Satã, que por desejar a sua própria queda influenciou Eva, esta que foi sua escolha
por causa do amor entre Adão e Eva, ele sabia que convencendo a mulher o homem a seguiria
por causa do seu amor. Vemos que a mulher cedeu ao demônio, mas o homem não sofreu a
tentação da mulher e sim o fez por amor, essa interpretação da queda é bem diferente e
peculiar, assim como a própria representação de Eva no Scivias, como uma nuvem cheia de
estrelas. Hidelgarda serve para mostrar que os discursos misóginos eram uma corrente
ideológica que teve muita influência no imaginário, mas não uma totalidade dos discursos.
Observando todos esses discursos de monges, literatos e mais futuramente os discursos
médicos, como Ambroise Paré, e os jurídicos, como o Anônimo de Artois, compreendemos
que eles serão instrumentos de forte subjugação da mulher na sociedade, além de serem
responsáveis ideologicamente pela “caça as bruxas”, ou seja, o discurso da antiguidade foi
passado para a Idade Média, que com seus monges derivados da grande força do cristianismo,
aumentaram violentamente esses discursos misóginos, que só foram fortalecidos pelos
médicos, juristas e novos monges na Idade Moderna, proporcionando um aumento violento da
força pejorativa contra a mulher. Hoje, século XXI, ainda podemos dizer que tal força ainda
tem seus resquícios, não para demonizar ou a relacionar com magia, mas sim para por a
mulher em uma posição inferior a do homem. A proposta do trabalho era mostrar através de

9
GOMES, Janaina Nazzari. Reflexões sobre o desejo e a ideologia na misoginia medieval. Revista do corpo
discente do programa de pós-graduação em História da UFRGS. P. 264
294
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fontes como o demônio e a mulher andavam de mão juntas, vendo desde Eva e do mundo
antigo essa demonização como instrumento da formação do discurso e da prática misógina,
observando como esse “imaginário do discurso” foi capaz de povoar uma realidade com o
intuito de subjugar a mulher.

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AMOR E TRANSGRESSÃO: UMA LEITURA COMPARATIVA DAS CARTAS DE
SOROR MARIANA ALCOFORADO E DE HELOÍSA

Késia Mota
(PPGL/UFPB)
Leonardo Barbosa
(UFPB)
Luciana E. de F. Calado Deplagne

1 Introdução

Mariana Alcoforado, freira portuguesa do século XVI, relaciona-se com um oficial


francês que estava em Portugal a trabalho. Heloísa, do século XII, francesa, amante e depois
esposa de Abelardo, torna-se religiosa depois que o seu grande amor é castrado violentamente
pelos inimigos. As duas mulheres escreveram cartas em que expressam seu amor latente aos
seus amados.
Duas mulheres que abraçaram a vida religiosa, capazes, no entanto, de conhecer o
amor e experimentar a sexualidade. Mariana, sendo freira, tem um amante que depois a
decepciona; Heloísa, mulher cética, depara com a necessidade de se tornar freira depois que o
marido é castrado pelos inimigos e decide ser ordenado à vida religiosa, anulando o
casamento.
A solidão da separação, experiência comum a ambas, promove a elaboração de cartas
em que o amor unilateral é relatado. Quatro séculos de distância não alteram muito a
expressão do sentimento feminino a respeito da decepção amorosa. Nem mesmo a diferença
quanto aos costumes, em relação ao tempo, nem em relação ao espaço tornam as expressões
das duas mulheres muito diferentes.
Através deste trabalho, as cartas serão comparadas. Espera-se demonstrar que a
estrutura linguística tem fortes semelhanças. Estas semelhanças podem estar assentadas no
fato de que a expressão do amor feminino é universal e eterno. A representação do amor pelo
olhar feminino hoje, em pleno século XXI, seria a mesma? Esta é uma intrigante questão que
pode ser considerada em um trabalho posterior.

2 Mariana Alcoforado

Mariana Alcoforado (1640-1723) nasceu em Beja, Portugal. Vivendo num convento


de Nossa Senhora da Conceição, da Ordem de Santa Clara, desde os 12 anos de idade, foi
escrivã e vigária. Em 1663, com 23 anos de idade, portanto, teria conhecido o Marquês De
Chamilly, oficial francês a serviço em Portugal por ocasião das guerras da Restauração. As
cartas da religiosa, conhecidas como Cartas portuguesas, foram publicadas na França em
1669. São as cartas que Mariana escreveu ao amante, relato unilateral da relação amorosa.
(ALCOFORADO, 2010)
As Cartas portuguesas, ou Cartas de amor de uma religiosa portuguesa escritas ao
cavaleiro de C são relatos de uma tórrida e às vezes até piegas paixão, mas isso não
desqualifica a escrita da freira, na verdade torna mais interessante o relato, por se tratar de
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uma religiosa e de um tempo em que estes relacionamentos estavam ainda mais suscetíveis à
repressão. Tensão, melancolia e amor desesperado predominam na narrativa. Afinal, uma
freira que sentia o Eros em constante ebulição certamente se atormentava diante dos dilemas
do profano versus divino, em uma vida espiritual tentada pelos prazeres carnais.
A história destas cartas começa quando vêm à tona, pela primeira vez em 1669, em
Paris, supostamente de um autor anônimo, numa edição francesa, com o título Lettres
portugaises traduites em français, publicadas pelo livreiro Claude Barbin. Desconfia-se, no
entanto, se a autoria é verdadeiramente da freira. Nesta edição, o editor francês fez a seguinte
apresentação:

Consegui, à custa de muitos trabalhos e dificuldades, recuperar uma cópia


correta da tradução de cinco cartas portuguesas que foram escritas a um
nobre gentil-homem que servia em Portugal. Todos os que conhecem os
sentimentos do coração humano são unânimes ou em louvá-las ou em
procurá-las com tanto empenho que julguei prestar-lhe um bom serviço
imprimindo-as. Desconheço em absoluto o nome daquele que as traduziu;
mas pareceu-me que não cairia no seu desagrado publicando-as. É difícil que
não acabassem por aparecer com erros de impressão que as teriam
desfigurado. (ALCOFORADO, 2010: 09-10)

O editor, a princípio, ocultou a autoria das cartas, talvez para que a curiosidade
instigasse as pessoas a se interessar por elas. Esta era uma prática comum entre os editores da
época. Mas não existe certeza a respeito disso. Chegaram a creditar a autoria a um tal de
Guilleragues, na segunda edição, publicada no mesmo ano, só que desta vez na Alemanha,
editado por Pierre Marteau. Mas, independentemente disso, grandes autores se interessaram
pelas missivas, como Rainer Maria Rilke, Stendhal, Rousseau, Saint-Beuve e outros.
Polêmicas à parte, sabe-se que realmente existiu em Beja, Portugal, uma freira chamada
Mariana Alcoforado. Em 1810, num antigo exemplar das cartas, encontrado na França,
confirmou-se a autoria numa nota que afirmava que a religiosa Mariana Alcoforado as
escreveu e que o destinatário era o conde de Chamilly, chamado então de Conde de Saint-
Léger. (ALCOFORADO, 2010)

3 Heloísa

A história de Heloísa deve ser contada a partir da história de Abelardo, seu grande
amor. Grande professor de filosofia, Le Goff (1993) o chama de "glória do meio parisiense",
primeira grande figura do meio intelectual da modernidade (século XII). Dedicado à vida
intelectual, aos 39 anos já era considerado o maior professor da França. Foi nessa época que
surgiu Heloísa em sua vida. Aos 17 anos, a jovem já era erudita, sua sabedoria era conhecida
em toda a França. Até então celibatário, Abelardo não consegue evitar o interesse por uma
mulher tão inteligente. O relacionamento amoroso entre os dois intelectuais foi realmente
inevitável.
Abelardo torna-se professor de Heloísa e é hospedado pelo tio da moça, Fulbert.
Vivendo na mesma casa, apaixonados, a experiência sexual entre eles é vivida intensamente,
até que são descobertos. Neste momento, Heloísa está grávida. Abelardo leva a amante para a

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casa da irmã, fora de Paris, para que o bebê nasça. Esta cunhada de Heloísa é quem cria o seu
filho, Astrolábio.
Acreditando que Abelardo, em Paris, enquanto Heloísa estava distante, havia rejeitado
a sua sobrinha, Fulbert fica irritado. Para aplacar a fúria de Fulbert, mesmo contra a vontade
de Heloísa, que não aceita a ideia do casamento, Abelardo casa-se com ela. No entanto, a
contrariedade de Fulbert não é realmente aplacada. Abelardo é castrado em vingança.
Desesperado, o filósofo acredita estar sendo punido por Deus e decide anular o casamento
para abraçar a vida religiosa. Heloísa, cética, fica ainda mais indignada com Deus, mas segue
o conselho do marido e se torna freira. De acordo com o filme Em nome de Deus (1988), que
relata a experiência do casal, Heloísa coloca uma pena, caída de um pássaro numa tarde em
que estava muito feliz ao lado de Abelardo, no interior de uma imagem de Cristo e fica
apegada a esta imagem, não pelo Cristo, mas pelo pequeno objeto que representa o seu grande
amor, único senhor a quem ela pretende devotar adoração, Abelardo. Em devoção a Abelardo,
Heloísa se torna uma boa freira, dedicada aos serviços da igreja; torna-se abadessa em 1129.
A correspondência entre Heloísa e Abelardo, depois da separação, de acordo com
Zumthor (2002), começa quando Abelardo escreve uma carta a um amigo, chamada Historia
calamitatum1. Esta carta teria sido escrita em 1132, quando Abelardo estava com 53 anos.
Heloísa tem acesso a estas cartas e escreve uma carta ao seu grande amor, uma Consolatio.
Depois disso, ocorre uma troca de correspondências entre o casal. São três cartas em que os
dois relembram os momentos de amor que viveram. Depois destas cartas amorosas, o casal
troca correspondências de caráter impessoal, sobre questões administrativas relacionadas ao
monastério de Paracleto, que Heloísa comanda. Por fim, Abelardo envia uma Regra para as
religiosas do monastério liderado por Heloísa.
Segundo Zumthor (2002: 03), é acordo para a maioria dos medievalistas que a
Correspondência entre Abelardo e Heloísa constitui um dossiê organizado, "uma 'obra', na
medida em que essa palavra implica intenção e estruturação".
Para a análise a que este trabalho se propõe, interessam as cartas amorosas,
especialmente as que Heloísa emitiu ao seu grande amor, Abelardo. Importa analisar a
linguagem e a forma como o amor é representado nestas cartas.

4 Leitura comparativa das cartas de Soror Mariana Alcoforado e de Heloísa

As cartas de Mariana Alcoforado e as de Heloísa, apesar de relatarem eventos situados


em diferentes momentos históricos e diferentes contextos socio-culturais, possuem
consideráveis semelhanças que merecem ser apontadas em uma análise comparativa. As
cartas das duas religiosas, igualmente, apresentam diversas antíteses, compreendem
sentimento de insegurança, possuem um tom pessimista, expressam uma tentativa de conciliar
matéria e espírito, abordam temas religiosos, revelam indiferença em relação à morte e
sentimento de culpa cristão.
Quanto à estrutura dos relatos, é possível analisar através de diferentes abordagens,
inclusive o amor cortês. A cortesia tão bem difundida na época em que viveram Abelardo e

1
História das minhas calamidades. As cartas são todas escritas em latim, língua utilizada pelos intelectuais, no
séc. XII, em seus escritos. Heloísa era fluente em latim e em grego.
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Heloísa ainda permaneceu no período das cartas de Mariana Alcoforado. Entretanto, a freira
portuguesa não foi agraciada pelo amor cortês do conde de Chamilly. Ela era ao mesmo
tempo amante e amada, como se pode inferir do seguinte trecho de uma das suas cartas:

Os seus impertinentes protestos de amizade e as delicadezas ridículas da sua


última carta mostraram-me que recebera todas as que lhe escrevi e que elas
não provocaram no seu coração nenhuma emoção, apesar de as ter lido.
Ingrato! E ainda sou tão louca que me sinto desesperada por não poder
pensar que elas lhe não tinham chegado e que não lhas tinham entregado!
Detesto a sua sinceridade! Acaso lhe tinha pedido que me dissesse
sinceramente a verdade? Por que não me deixou a minha paixão? Tudo o que
tinha a fazer era não me escrever: eu não procurava ser esclarecida.
(ALCOFORADO, 2010: 61–62)

Mariana, ao dizer que não necessitava de esclarecimentos, demonstra submissão, uma


relação de vassalagem na qual o que mais a interessava era servir, entregar-se a essa paixão.
Quando o conde detalha os assuntos que Mariana considera sórdidos, o sentimento da mulher
que ama confunde-se com uma suposta condição de mulher amada e traída pelo seu amante.
Heloísa, no entanto, é realmente uma mulher que ama e é amada. Zumthor (2002: 11)
comenta que Abelardo chega a ser desviado do seu ensinamento. O filósofo compôs canções
de amor para Heloísa. A jovem entendia o mundo cortês como mundo da felicidade, mulher
que ama e é amada, lisonjeada. É interessanto notar que Abelardo exerce papel de vassalo não
apenas no campo ideológico, mas também social, porque, sendo Heloísa de uma classe social
mais favorecida, tanto que Abelardo se propõe a dar lições teológicas e filosóficas apenas em
troca de moradia, que foi sob o mesmo teto que sua amada, e por comida.
Depois da terrível castração, ainda existe amor entre o casal. É um novo tipo de
expressão do amor, para um homem que se tornou eunuco, mas é amor. Na sua carta ao
amigo, a Historia calamitatum, Abelardo se refere a Heloísa como irmã em Cristo, mais do
que uma esposa (ZUMTHOR, 2002: 77). Heloísa, em resposta, demonstra se sentir agradada
em receber o epíteto de amiga: "O nome de esposa parece mais sagrado e mais forte,
entretanto o de amiga sempre me pareceu mais doce." (ZUMTHOR, 2002: 94). Isto revela
que o amor não deixou de existir e ser correspondido, apenas tomou uma nova forma e passou
a conviver com a separação.
O amor cortês não está vinculado a dogmas nem a doutrinas filosóficas. A vassalagem
não se confunde com a idolatria, pois a relação que se estabelece está mais associada ao Eros
platônico. A mulher estava excluída desta espécie de contemplação. O feminino é objeto e
não sujeito, porém não seria possível explicar esta manifestação do amor sem a figura da
mulher. A condição feminina já vinha evoluindo, sobretudo na nobreza. O cristianismo
concedeu uma respeitabilidade desconhecida no paganismo. Foi no exercício poético, na
produção lírica trovadoresca, que o amor cortês assumiu o seu termo. A maioria dos poetas
tinha formação cristã, mas, ao mesmo tempo, almejava uma ideologia que não era de origem
romana. Esta concepção de amor era reprovada pelas autoridades eclesiásticas.

τ termo ‘amor cortês’ reflete a diferença medieval entre corte e villa. Não o
amor villano – copulação e procriação –, mas sim um sentimento elevado,
próprio das cortes senhoriais. τs poetas não o denominaram ‘amor cortês’;
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usaram outra expressão: fin’amors, quer dizer, amor purificado, refinado.
Um amor que não tinha por fim o mero prazer carnal. (PAZ, 1994: 70)

Ao contrário de Heloísa, Mariana não conhece o amor purificado, refinado. As suas


cartas revelam a ideia de que o homem a possuiu por mero desejo de satisfação carnal. Talvez
o sentimento de Mariana não seja comparável ao de Heloísa, embora as cartas tenham
estruturas discursivas muito parecidas. No seguinte trecho da quarta carta, está claro que o
amor de Mariana não é correspondido, pois a religiosa expressa a sua mágoa pelo silêncio do
ex-amante:

As religiosas, mesmo as mais severas, têm pena do estado em que me


encontro e que até lhes inspira uma certa consideração e um certo respeito
por mim. Toda a gente está impressionada com o meu amor. Só tu
permaneces nessa profunda indiferença, sem me escrever senão cartas frias,
cheias de banalidades: metade do papel vem em branco e parece que estás
morto por acabar depressa. (ALCOFORADO, 2010: 49)

É possível inferir que o sentimento de Mariana tenha natureza mais de obsessão que de
amor, efetivamente. Talvez um estudo psicanalítico revelasse que a sua mágoa estivesse
fundada mais na rejeição do amante, no abandono, na falta dos anteriores momentos de
paixão e mesmo no sentimento de culpa da religiosa que cometeu o pecado da fornicação, que
verdadeiramente no amor. Esta hipótese poderia provocar um outro trabalho de análise
literária. O poeta Rainer Maria Rilke comenta:

[...] é evidente nessa intensa amante [a freira portuguesa Marianna


Alcoforado] e em seu vergonhoso parceiro: que essa relação mostra
definitivamente como, por parte da mulher, tudo o que foi realizado,
suportado, finalizado no amor se contrapõe à absoluta inacessibilidade ao
amor por parte do homem. Numa analogia banal, ela recebe o diploma da
arte de amar, enquanto ele carrega no bolso um gramática elementar dessa
disciplina, da qual colheu uns poucos vocábulos, suficientes apenas para
construir sentenças ocasionais, tão belas e emocionantes como as conhecidas
sentenças das primeiras páginas de métodos de língua para iniciantes.
(RILKE, 2007: 252)

Na relação de Heloísa e Abelardo, o conhecimento da sexualidade ocorre


simultaneamente para ambos. Embora mais velho, Abelardo jamais conhecera o sexo, assim
como Heloísa, ainda muito jovem. O sexo era a expressão do sentimento que havia aflorado
igualmente para os dois amantes. Mas a mutilação do membro do apaixonado Abelardo
transforma a condição do casal. Segundo Zumthor (2002), o amor encontrou um obstáculo
absoluto por natureza. Embora consciente disso, Heloísa conserva o amor mesmo sem o
outro. "Heloísa vangloria-se de que na falta do prazer a ternura pode ainda fundar uma união.
Ela toma inteiramente para si o sacrifício do corpo" (ZUMTHOR, 2002: 15).
A respeito da separação, a reação das duas religiosas é também diferente, o que denota
o sentimento de cada uma delas. Heloísa, mesmo distante de Abelardo, ainda o ama. Ela
revela que sofre mais por causa da violência que o marido sofreu que pela perda, que é a sua
própria dor de mulher abandonada: "[...] sofro incomparavelmente mais pela maneira por que
te perdi do que pela própria perda". (ZUMTHOR, 2002: 94)
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Mariana, porém, sofre pela perda mais do que pela maneira pela qual perdeu o amante.
Talvez ela mesma, nos momentos de paixão experienciada, estivesse prevendo a separação.

Conjuro-te a que me digas por que é que te empenhaste em me encantar


como fizeste, se já sabias que me havias de abandonar? Por que é que
puseste tanto empenho em me tornar infeliz? Por que não me deixaste em
paz no meu convento? Tinha-te feito algum mal?
Perdoa-me! Eu não te culpo de nada! [...] (ALCOFORADO, 2010: 19)

Quanto às antíteses, comuns em textos tão carregados de emotividade, as duas


expressaram seus sentimentos contraditórios com palavras contraditórias. Observe-se as
palavras de Heloísa: "Tu só, e não um outro, tu só, que és a causa única da minha dor, me
trarás a graça do consolo." (ZUMTHOR, 2002: 94) São semelhantes às seguintes palavras de
Mariana: "Ama-me sempre e faze-me sofrer ainda maiores males". (ALCOFORADO, 2010:
20).
No tocante à abordagem da temática religiosa, enquanto Mariana abdica da religião –
"[...] estou encantada por ter feito por ti tudo quanto fiz contra toda a espécie de decoro. A
minha religião e a minha honra, faço-as consistir unicamente em te amar loucamente por toda
a minha vida [...] (ALCOFORADO, 2010: 26) –, Heloísa expressa o desinteresse pela vida
clerical – "Somente uma ordem tua, e não sentimentos de piedade, me conduziram desde a
primeira juventude aos rigores da vida monástica". (ZUMTHOR, 2002: 99). A primeira
deseja abandonar a vida religiosa em consequência da aventura sexual; a segunda ingressa no
convento aconselhada pelo seu amado, fazendo a vontade dele, portanto.
Nos discursos de ambas, ocorre a indiferença em relação à morte. Mariana,
amaldiçoando a condição em que se encontra, abandonada, afirma: "Estou viva, infiel que
sou!, e tanto para conservar a minha vida como para perdê-la! [...] Não valerá mais a morte do
que o estado a que me reduziste?" (ALCOFORADO, 2010: 37-38). Heloísa, desejando vida
longa a Abelardo, seu grande amor e senhor, ressalta a importante existência deste homem ao
declarar que não deseja viver sem que ele esteja vivo, através seguintes palavras: "Possamos
nós morrer antes! O simples pensamento de tua morte já é para nós uma espécie de morte".
(ZUMTHOR, 2002: 113)

5 Considerações finais

O amor revela seus contrastes em Mariana Alcoforado e em Heloísa diante do conflito


entre a religiosidade e o prazer carnal. Entretanto, o que prevalece em Alcoforado é o
sentimento de abandono e não propriamente o desejo de amar. Em Heloísa sobressai a
condescendência as vontades de Abelardo ainda que isso signifique a separação física.

REFERÊNCIAS

ALCOFORADO, Mariana. Cartas portuguesas. Porto Alegre: L&PM, 2010.


DONNER, Clive. Em nome de deus. [Filme]. Direção de Clive Donner. Inglaterra, 1988.
PAZ, Octavio. A dupla chama. São Paulo: Siciliano, 1994.

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RILKE, Rainer Maria. Cartas do poeta sobre a vida: a sabedoria de Rilke. BAER, Ulrich
(org).Mota, Milton Camargo (trad). São Paulo: Martins, 2007.
ZUMTHOR, Paul. Correspondência de Abelardo e Heloísa. Trad. Lúcia Santana Martins.
2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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SUBJETIVIDADE DO HOMEM MEDIEVAL: AÇÃO E INTENÇÃO DO HOMEM
NAS OBRAS DE AGOSTINHO E TOMÁS DE AQUINO

Khayles N. P. Alves
(UFPB)
khayles.nobrega@gmail.com

Introdução

Quando se fala em Renascimento, alguns conceitos são imediatamente trazidos à nossa


memória, tais como antropocentrismo, cientificismo e secularização. Entre as inovações
culturais surgidas no campo filosófico, ganha destaque a figura do indivíduo, do homem
autêntico e dinâmico. Essa nova concepção do humano seria sustentada por fundamentos
filosóficos resgatados da literatura clássica grego-romana, que ganhava forte disseminação na
Europa e contrastaria profundamente com a ideia medieval do ser humano enquanto membro
de uma grande hierarquia universal imutável, elemento de uma coletividade engessada por
imposições sociais, morais e religiosas. No entanto, como não se pode falar de fronteiras bem
definidas entre determinadas fases da História, e sim da observação de uma mudança gradual
do pensamento humano, torna-se imprescindível à compreensão da noção de indivíduo
moderno buscar suas raízes na obra dos pensadores medievais.
Se, por um lado, assim como na Antiguidade, a liberdade do homem medieval é
restrita à obediêcia a uma lei transcedental, seja divina ou natural, autores como Agostinho de
Hipona (354-430) e Tomás de Aquino (1252-1226) trazem em seus escritos o gérmen da
autonimia do homem: ao concederem destaque à subjetividade, esses autores patrísticos
acabam transformando a ação humana em critério determinante dos acontecimentos, fugindo
da concepção de destino predeterminado comumente atribuída à visão de mundo medieval.

1. A noção de liberdade na obra de Agostinho

Após converter-se ao catolicismo, Agostinho passou a nortear sua vida e seu


pensamento pela fé cristã, propondo-se a alcançar o entendimento da mesma pela razão. Suas
Confissões, uma espécie de exame de consciência fundamentado na verbalização dos próprios
pensamentos, atos e inquietudes, tornaram-se uma obra antológica para a compreensão da
visão de mundo medieval e ilustram, com a vida, as escolhas e os questionamentos do autor, o
percurso de sua filosofia.
Nos escritos permeados de orações suplicando por inspiração divina, que lembram a
invocação das musas feita pelos poetas clássicos, Agostinho conjectura sobre a metafísica do
ser, da verdade e do bem, contrapondo suas conclusões à narração das próprias inclinações
sensuais, expressas em relatos envolvendo desde sua infância até o período posterior a sua
conversão. Assim, em sua intenção de alcançar pureza e imortalidade por meio da
autodecifração hermenêutica,

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Agostinho não propõe o problema do homem em abstrato, ou seja, o
problema da essência do homem em geral: o que ele propõe é o problema
mais concreto do eu, do homem como indivíduo irrepetível, como pessoa,
como indivíduo, poder-se-ia dizer com terminologia posterior. (REALE &
ANTISIERI, 2003, p. 89)

As Confissões podem ser divididas em três partes de acordo com seu conteúdo: os
livros de I a IX expõem a vida passada de Agostinho, o livro X fala de sua situação atual
como cristão convicto, e os livros de XI a XIII discorrem sobre o primeiro capítulo do
Gênesis, procurando desvendar racionalmente as obscuridades do texto bíblico – pelo que
suplica por revelação divina. Na primeira parte, é estabelecido o confronto entre a vontade
divina e a vontade da carne, que levará Agostinho à descoberta do homem como indivíduo.
No livro VII, Agostinho descreve seu contato com o neoplatonismo, mas sem deixar claro por
meio de que obras, já que as descreve traduzindo-as em versículos da Bíblia.
Ao aproximar as ideias neoplatônicas das cristãs, o autor declara que os textos dos
filósofos gregos o prepararam para poder aceitar as verdades religiosas, sem, contudo, fazer
menção ao ponto mais importante, a figura de Jesus. Nas palavras de Strefling, “o melhor que
a sabedoria antiga pôde fazer era ver a finalidade da humanidade: a união com Deus. Os
filósofos não viram qual era o meio para alcançar essa finalidade – Cristo” (STREFLIσG,
2007, p. 268). Por meio do ensino filosófico, Agostinho pôde estabelecer as bases racionais
para a compreensão e aceitação consciente dos dogmas religiosos, uma vez que o mesmo o
induzira a buscar uma verdade incorpórea, mas apenas a Bíblia apontaria para a solução desse
mistério.
Refletindo sobre a origem do mal, Agostinho se firma no pressuposto da
incorruptibilidade divina, que devia estender-se, em parte, a suas criações: para serem
corruptíveis, é preciso que todas as coisas sejam boas. Se fossem perfeitamente boas, seriam
incorruptíveis, como Deus; se fossem más, não poderiam ser corruptíveis, pois só se corrompe
o que é bom. Assim, conclui Agostinho que, do ponto de vista metafísico-ontológico, não
existe mal, mas um bem imperfeito: mesmo coisas que parecem más sob nossa ótica são
componentes de um todo, cuja harmonia deriva do conjunto, sendo boas por cumprirem com
um propósito positivo.
Para Agostinho, mal não em substância maléfica, mas advém do uso inadequado do
próprio livre-arbítrio humano, que produz “perversão da vontade desviada da substância
suprema” (AGτSTIσHτ, 2004, p. 190) para algo inferior. Em O livre arbítrio, Agostinho
parte de uma noção de justiça para explicar por que Deus teria concedido ao homem a
oportunidade de pecar: a justiça é boa, e portanto, vem de Deus. Nada mais justo do que
recompensar a prática do bem e punir a do mal. Contudo, não seria justo recompensar a
prática do bem se esta fosse uma condição inescapável da própria existência humana; para
que seja justamente recompensada, ela deve partir da vontade livre (Id., 1995, pp. 74-75).
Assim, Deus concede ao homem a possibilidade de ter uma vontade voltada para o bem, o que
pode ser comprovado pelo próprio fato de que usá-la para o pecado resulta em justo castigo:
não havendo nada na natureza do homem nem fora dela que o force a pecar, o pecado torna-se
voluntário (Ibid., p. 203).

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O livro VIII das Confissões é dedicado justamente ao conflito que se encerra na
vontade de Agostinho, já então pendente para a Verdade de Deus, mas ainda aprisionada pelo
hábito pecaminoso:

A luxúria provém da vontade perversa; enquanto se serve à luxúria, contrai-


se o hábito; e, se não se resiste a um hábito, origina-se uma necessidade. (...)
Assim, duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal e
outra espiritual, batalhavam mutuamente em mim. (...) O hábito, que
combatia tanto contra mim, provinha de mim, porque, com atos da vontade,
eu chegava onde não queria. (...) com efeito, a lei do pecado é a violência do
hábito, pela qual a alma, mesmo contrafeita, é arrastada e presa, mas
merecidamente, porque, querendo, se deixa escorregar. (Id., 2004, pp. 209-
211)

Como para os estóicos, é possível e necessário domar as paixões, pois sua força advém
do hábito, mas a vontade fortalecida pode escapar-lhes e subjugá-las. No último capítulo,
quando finalmente passa por uma experiência definitiva de conversão, Agostinho declara ter
apaziguado esse conflito: a vontade submissa à Sabedoria divina é moderada e abstém-se das
paixões, danosas, por um estado de plenitude, de felicidade.
Em A Vida Feliz, Agostinho explica que feliz é aquele que possui tudo que deseja. Se
a vontade se volta para coisas sujeitas ao acaso e às vicissitudes da vida, ou a pessoa deseja
cada vez mais, permanecendo insatisfeita, ou é infeliz pelo medo de perder o que possui. Para
ser feliz, portanto, é necessário desejar e possuir um bem permanente e inalterável. Sendo
Deus o único a corresponder a esses critérios, é feliz, portanto, quem possui Deus. O que é
necessário para possuir Deus? A resposta parte, novamente, dos fundamentos neoplatônicos:
sendo o homem constituído de corpo e de alma, ambos precisam ser alimentados, e o alimento
da alma é a ciência. Assim como a doença física causa falta de apetite, a alma desnutrida fica
fastiosa. No entanto, mais danosa ainda à saúde espiritual é a gula, que, incitando um apetite
descomedido, ocasiona má digestão. Para ser feliz, não basta adquirir conhecimento, é preciso
ser equilibrado, para não se dissipar em excessos nem contentar-se abaixo de sua plenitude. A
moderação do espírito, portanto, é a sabedoria (Id., 1998, pp.128-156).
Até aqui, notamos claramente o raciocínio estóico de que Agostinho se apropriou,
contudo, reiterando o que nos ensina nas Confissões, o bispo soluciona a questão pelo uso de
princípios cristãos: a Bíblia ensina que a Sabedoria de Deus é Jesus, que Jesus é o próprio
Deus e que é também a Verdade, logo, a justa medida da alma é Deus. Deus está em nós,
assim como está em todas as coisas, e portanto, a verdade encontra-se em nós. Para conhecê-
Lo, portanto, é preciso que o homem se volte para si mesmo, para sua alma.
Como a alma não é matéria e não pode ser apreendida pelos sentidos, não é da
natureza do que se pode perceber e entender. A alma se encontra no plano do inteligível, e,
portanto, conhece a si mesma pelo método da reflexão. Assim, quanto mais nos conhecemos,
mais a imagem de Deus pode resplandecer em nós:

Conhecer a si mesmo, como o conselho de Sócrates nos convida a fazer, é


conhecer-se como imagem de Deus. Nesse sentido, nosso pensamento é
memória de Deus, o conhecimento que aí o encontra é inteligência de Deus e
o amor que procede de ambos é amor a Deus. Logo, há no homem algo mais
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profundo que o homem. O retiro do seu pensamento (adbitum mentis) nada
mais é que o segredo inesgotável do próprio Deus; como a sua, nossa vida
interior mais profunda não é senão o desenvolvimento, dentro de si, do
conhecimento que um pensamento divino tem de si e do amor que tem por
si. (GILSON, 2007, pp. 150-151)

2. A noção de intenção na obra de Tomás de Aquino

O pensamento desenvolvido por Tomás de Aquino apregoa que a mente humana


interpreta o mundo de acordo com o intelecto, não sendo cabível direcionar a busca da
verdade com base na revelação divina, de cunho espiritual. Do mesmo modo, mistérios como
encarnação e trindade devem ser aceitos, mas sua natureza sobrenatural não nos oferece
possibilidade de compreensão racional. Contudo, assim como trazem enigmas inacessíveis, as
Escrituras também contêm aspectos inteligíveis e demonstráveis. Assim, Aquino se propõe a
apresentar uma explicação lógica para um considerável número de questões teológicas.
Se, por um lado, a filosofia deveria se fundamentar em uma epistemologia empírica, e
a teologia na revelação concedida por Deus, por outro, em ambos os domínios, o
compromisso com a verdade se faz necessário. Gilson ressalta que “a verdade da filosofia se
uniria à verdade da revelação por uma cadeia ininterrupta de relações verdadeiras e
inteligíveis, se nosso espírito pudesse compreender plenamente os dados da fé” (GILSτσ,
2007, p. 656), o que implica que todas as vezes que uma conclusão filosófica discordar do
dogma cristão, há indícios incontestáveis de que a mesma seja falsa: a contradição evidencia
um erro, e como o erro não pode estar contido na revelação divina, dado o caráter perfeito de
Deus, só pode se achar na filosofia.
Para Aquino, ao invés de passar por uma longa preparação filosófica, a discussão
deveria partir de um fundamento teológico bem estabelecido (CANTOR & KLEIN, 1969,
p.15). A primeira revelação concedida por Deus ao homem é a de sua existência, porém, falta-
lhe evidência, uma vez que ela não se manifesta em matéria. Aquino, contudo, considera falsa
a afirmação de que Deus, por seu caráter imaterial, só possa se fazer conhecido por meio da
fé. Para ele, se a pessoa de Deus não pode ser demonstrada pelos sentidos, seus efeitos
sensíveis podem ser comprovados (AQUINO, 2011).
Aquino oferece cinco vias de comprovação da existência de Deus, todas seguindo a
mesma lógica: parte-se da constatação de que um determinado ser substancial não contém em
si explicação satisfatória da própria existência. O mais evidente desses argumentos se
fundamenta no princípio aristotélico do motor imóvel: existe movimento no universo, e todo
movimento tem uma causa. A causa do movimento deve ser exterior ao ser: este não pode ser,
sob a perspectiva de um mesmo movimento, o motor e a coisa movida. Assim, aquilo que está
em movimento é movido por um motor, que é movido por outro motor e assim
sucessivamente. Do mesmo modo, o movimento não pode ser infinito, ou não haveria nada
que explicasse seu início do movimento. A existência do movimento compreende, portanto,
uma Primeira Causa, que não pode ser outra senão Deus, que é eterno.
Na questão de número 83 da primeira parte de sua obra máxima, a Suma Teológica, na
qual elabora quatro tópicos por meio dos quais pretende conduzir o leitor à compreensão de
sua lógica, Aquino teoriza sobre o livre-arbítrio humano. A estrutura de cada questão da
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Suma consiste em elencar argumentos que confirmam uma determinada hipótese e, em
seguida, argumentos contrários a ela, chegando, por fim, à conclusão do próprio Aquino.
Assim, primeiramente, Aquino se propõe a demonstrar que o homem é dotado de livre
arbítrio. A justificativa escolhida pelo próprio Aquino é: sendo racional, o homem
necessariamente é dotado de livre-arbítrio pois, ao contrário dos animais, que são impelidos
pelo instinto natural, o julgamento do homem pode ser direcionado para diversos objetos.
Estabelecida essa conclusão, surge um novo ponto a ser esclarecido: o livre arbítrio é
um poder, uma ação ou um hábito? Se fosse um hábito, haveria de ser um hábito natural, pois
é natural do homem ter livre-arbítrio. No entanto, as coisas para as quais nos inclinamos
naturalmente, como o desejo da felicidade, não se submetem ao livre-arbítrio. Além disso,
hábito diz respeito a nossa disposição para as coisas, e o livre-arbítrio é indiferente quanto a
escolher bem ou mal. Não é, portanto, um hábito; resta-lhe ser uma potência. Mas, sendo
potência, trata-se de potência apetitiva ou cognoscitiva? Aquino ressalta que tanto o desejo
quanto o julgamento têm seu peso na tomada de uma decisão, porém, o julgamento é
influenciado pelo desejo. Dessa forma, o livre-arbítrio, ele é uma potência apetitiva.
Por fim, já que se trata de uma potência apetitiva, distingue-se ela da vontade? Embora
escolher e querer pareçam atos diferentes, Aquino nos explica que a vontade é o desejo por
alguma coisa, enquanto o livre-arbítrio é o poder de escolher o que se deseja. Contudo, como
o desejo e a escolha se orientam para um mesmo fim, conclui o autor que vontade e livre-
arbítrio consistem em uma só potência.
No segundo volume da primeira parte da Suma Teológica, Aquino dedica as questões
de número 6 a 21 à discussão sobre os atos praticados pelo homem. Uma novidade é
introduzida pelo autor na questão 12: a noção de intenção. Para ele, existem três tipos de ação:
primeiramente, existem as ações que realizamos com fim nelas mesmas, como o estudo da
filosofia. Há também as coisas que fazemos para alcançar um determinado fim, como tomar
medicamentos para reestabelecer a saúde. Existem, ainda, conseqüências acarretadas por
nossos atos voluntários, as quais podem ser intencionais ou não.
Quanto à moralidade, vemos na questão 18 que as ações humanas também podem ser
classificadas em boas, más ou indiferentes, levando-se em consideração os elementos de sua
execução, ou seja, a intenção com que foram feitas e as circunstâncias com que foram postas
em prática. Assim, mesmo uma boa ação, como dar esmola, torna-se má quando a intenção
não condiz com seu teor: quem o faz por ostentação, por exemplo, comente uma má ação. Por
outro lado, uma má ação pode ser justificada por sua boa intenção, como roubar para dar aos
pobres. Em caso de erro, isto é, de alguém que se orienta por uma crença equivocada, sua
intenção é avaliada de acordo com sua consciência: em caso de negligência, como o adultério
cometido voluntariamente, o agente é considerado culpado; em caso de ignorância, como um
homem que se casa com uma mulher sem saber que esta já era esposa de outro homem, não
lhe é imputado pecado (KENNY, 1990, pp. 213-214). A moralidade de um ato pode ser,
ainda, afetada por suas conseqüências, contudo, as mesmas podem, como vimos, ser ou não
ser intencionais.

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Conclusão

Ao considerar que o mal do mundo resulta de uma deturpação da vontade divina em


função da escolha humana, Agostinho deixa clara a noção de absoluta liberdade humana para
agir de acordo com escolhas subjetivas. Além disso, a busca pelo conhecimento interior
enquanto forma de conhecer a Deus evidencia o princípio da formação da noção do indivíduo
antropocêntrico moderno, uma vez que coloca a descoberta da interioridade pessoal de cada
homem como paradigma para aferição das verdades universais.
Do mesmo modo, ao considerar o livre-arbítrio humano como a capacidade de
escolher de acordo com sua própria vontade e ao problematizar a moral com base em critérios
subjetivos, baseados na intenção individual, e não apenas consequência dos atos dos homens,
a obra de Tomás de Aquino já contem questões que fundamentarão o pensamento
individualista da Modernidade.
Notamos, portanto, que as noções de subjetividade que culminarão no surgimento do
indivíduo voluntarioso, célebre característica do pensamento moderno, não são produto
exclusivo do processo de secularização renascentista. Ainda na Idade Média, com o
aproveitamento da filosofia clássica por parte de autores patrísticos, começa a ser delineada
uma ideia de liberdade, individualidade e subjetividade que, ainda que devesse ser orientada
por principios divinos, não está subordinada a eles.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO. Confissões. Trad. Jaime Oliveira dos Santos e A. Ambrósio de Pina. São
Paulo: Nova Cultural, 2004.
______. O livre-arbítrio. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995.
______. Solilóquios; A vida feliz. Trad. Audary Fiorotti e Nair de Assis Oliveira. São Paulo:
Paulus, 1998.
AQUINO, Tomás de. Summa Theologica. Disponível em: <http://www.newadvent.org/summa/index.html>.
Acesso em: 18 Dez. 2011.
CANTOR, Norman F.; KLEIN, Peter L. (ed.). Medieval thought: Augustine & Thomas
Aquinas. Toronto: Blaisdell Publishing Company, 1969.
GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
KENNY, Anthony. História concisa da filosofia ocidental. Lisboa: Temas e Debates, 1999.
REALE, Giovanni; ANTISSIERI, Dario. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. Sâo
Paulo: Paulus, 2003.
STREFLING, Sérgio Rocardo. A atualidade das Confissões de Agostinho. In:
Teocomunicação, Porto Alegre, v. 37, n. 156, p. 259-272, jun. 2007.

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REPRESENTAÇÕES DAS AMAZONAS NA IDADE MÉDIA

Marília Colins
NEMIS/UFMA
mariliacolins@yahoo.com.br
Luciana Campos

Amazonas na Antiguidade

As amazonas gregas compunham uma sociedade de mulheres guerreiras, que estariam


localizadas na região da Trácia ou das costas meridionais do Mar Negro (Cáucaso).
Themiscrya seria o nome da sua cidade hipotética, que estava situada além do Mar Negro, as
margens do rio Termodonte. Eram filhas de Ares (deus grego da guerra e filho de Zeus) e da
ninfa Harmonia. Veneravam a deusa Ártemis (deusa grega virgem que representa a força
feminina).
A sociedade das amazonas era geralmente dividida em duas tribos, e cada uma possuía
sua própria rainha. Enquanto uma tribo guerreava, a outra mantinha-se sedentária, como uma
forma de proteger o povo.
As rainhas mais famosas são: Hipólita, que teve seu cinturão roubado por Hércules (há
versões que narram que este o recebeu como um presente), e Pentesiléia, que lutou na guerra
de Tróia, e foi assassinada por Aquiles.
Para Plutarco, e posteriormente para Heródoto, as amazonas seriam ancestrais dos
saurômatas.

Eram descendentes de três carregamentos de amazonas capturadas por


Hércules durante seu Nono Trabalho; elas romperam seus grilhões e
mataram os marinheiros que lhes haviam designado como guardiães, mas,
como nada sabiam de navegação, elas chegaram à deriva até o Bósforo
cimério, onde desembarcaram em Cremni, o país dos citas livres. Lá, elas se
apoderaram de uma manada de cavalos selvagens, montaram-nos e se
dedicaram a saquear o país. Pouco depois, os citas, descobrindo por meio de
alguns cadáveres que caíram em suas mãos que os invasores eram mulheres,
enviaram um grupo de jovens rapazes para que dessem às amazonas amor,
em vez de guerra. Não foi difícil, mas as amazonas consentiram em se casar
com eles somente depois de eles se mudarem para margem oriental do rio
Tanis, onde seus descendentes, os saurômatas, continuam vivendo,
conservando certos costumes amazônicos, como aquele que obriga cada
mulher ter matado no campo de luta pelo menos um homem antes de
escolher seu marido. (GRAVES, 1955, p.688)

Heródoto narra que os saurômatas (descendentes da união das amazonas com os citas)
deram continuidade aos costumes de seus antepassados, que concediam à mulher certa
posição na sociedade. Tanto que uma jovem saurômata não podia pensar em casar, antes de
ter matado um inimigo.
As amazonas pertenciam ao domínio da transgressão. Segundo Boyer, os gregos
concebiam as amazonas como “bárbaras”, no sentido que estas ignoravam e transgrediam as
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leis da pólis. Não conheciam a navegação, nem a cultura de cereais, e eram denominadas
como devoradoras de carne.
Enquanto as virtudes femininas gregas eram a obediência e o pudor, as amazonas
desprezavam esses valores. Segundo os gregos, estas eram a mulher como expressão da
animalidade. Eram guerreiras, caçadoras, montavam cavalos, sabiam manejar o arco, o dardo,
o escudo e o machado de combate. Alimentavam-se de carne crua.

Figura 1: Amazona enfrenta guerreiro, vaso grego da Apúlia, século IV a.C. Fonte da
imagem: http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Ficheiro:Amazons5113.jpg

A terminologia amazonas causa muita controvérsia. A teoria mais descrita estar ligada
a prática que as amazonas possuíam de retirar um dos seios (“a”, sem + “mazos”, seio), com o
objetivo de manejar melhor o arco, e deslocar a sua força para o ombro e o braço. Havia
também um aspecto simbólico na mutilação do seio: permaneciam mulheres por um lado e
tornavam-se homens por outro. Porém, a iconografia existente as mostra com os seios
intactos. Outra explicação para o termo amazonas é que este derivaria do nome de um povo
iraniano, Há-mazan, que seria traduzido como “guerreiros”.

Figura 2: Amazona preparando para a batalha (Rainha Antíope ou Hipólita?), ou Vênus


Armada, Pierre-Eugène-Emile Hébert, França, 1828 -1893. Fonte: http://www.nga.gov/fcgi-
bin/tinfo_f?object=69968
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Para manter sua espécie, as amazonas se relacionavam com homens uma vez por ano.
As relações aconteciam de forma aleatória e no escuro, para que não reconhecessem o
parceiro. De certa forma, eram elas que violentavam e “usavam” os homens. Se ocorresse
uma gestação, as crianças do sexo feminino eram criadas com as mães, e os meninos ou eram
entregues aos pais ou tornavam-se escravos.
Homero denominava essas guerreiras como “antianeirai” (mulheres-homens). O
prefixo anti possui sentido duplo: significa que ao mesmo tempo em que as amazonas são
iguais aos homens, também são suas inimigas. Elas procuram eliminação ou redução do
macho.

Ninguém ouve dizer que as Amazonas combatem entre si, ou que enfrentam
outros povoados femininos. É sempre em relação ao homem que se exerce
sua pugnacidade. E é por isso que recusam o casamento, que seria encarado
por elas como uma sujeição. (BOYER, 1997, p. 745)

Estas guerreiras causavam uma mistura de temor e admiração, repulsa e sedução nos
homens. Elas os assustavam por possuírem força igual ou superior a deles, e ainda os tratavam
como seres descartáveis. Apresentavam uma rivalidade exaltada, que era uma característica
masculina. “As mulheres matadoras de homens: desejam tomar o lugar do homem, rivalizar
com ele ao combatê-lo, em vez de completá-lo... Essa rivalidade esgota a força essencial
própria da mulher, sua qualidade de amante e mãe, o calor da alma.” (DIES, 20ι)
Como não existiam mulheres guerreiras na sociedade grega, o mito das amazonas
pode ter sido utilizado como uma espécie de símbolo das gregas contra opressão, visto que a
sociedade grega era regida por meio das regras do patriarcado, e as mulheres eram
consideradas seres inferiores, e não possuíam o direito de participar da vida política.

Amazonas na Idade Média

As amazonas no período medieval eram apresentadas como pertencentes a uma nação


sinistra, pois a doutrina cristã se sentia desconfortável diante dessa crença que atribuía às
mulheres características distintas daquelas aconselhadas pela Igreja. Além disso, a Bíblia não
faz menção desse mito.
Tradicionalmente a localização das amazonas estava próxima à região das portas
caspianas, o que podia inferir que estas fariam parte dos povos impuros presos além do portão
de bronze. As portas caspianas, edificadas por Alexandre, o grande, fizeram cerca de vinte e
dois povos prisioneiros, entre eles os sármatas, que seriam descendentes das amazonas. Esses
povos eram identificados como povos de Gog e Magog.
Em um tratado publicado no século XV, Breidenbach afirmou que as amazonas seriam
as mensageiras do diabo, e que a rainha destas se tornaria a “capitã das gentes imundas”. A
partir daí, se põe em evidência o lado repugnante das amazonas, e elas passam a matar os
filhos, que antes eram entregues aos pais.
Outra solução encontrada foi a transformação destas guerreiras em um grupo de
mulheres exóticas, que vivendo sozinhas, “eram incapazes de prover todas as suas
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necessidades”, e por isso, viam a necessidade de recorrer ao auxílio de homens. E em alguns
casos, chegavam a se tornar boas cristãs.
Marco Pollo faz uma descrição do reino de Resmacoron, e narra que neste reino havia
uma ilha habitada somente por mulheres (ilha Fêmea) e uma ilha habitada exclusivamente por
homens (ilha Macho). Ele descreve que essas amazonas não são tão “aterradoras”, e que
durante três meses por ano, elas se comportavam como boas esposas, e criavam seus filhos até
atingirem a idade de quatorze anos, e os seus vizinhos eram os responsáveis pala sua
alimentação.
Para além do reino de Resmacoron, a cinquenta milhas em alto-mar, se encontram ao
sul duas ilhas, distantes entre si por cerca de trinta milhas. Numa habitam homens sem
mulheres e ela se chama em sua língua ilha Macho, e na outra, ao contrário, habitam mulheres
sem homens, e esta ilha se chama Fêmea. Os que habitam essas ilhas formam uma
comunidade e são cristãos. As mulheres nunca vão à ilha dos homens, mas os homens vão à
ilha das mulheres e com elas vivem por três meses consecutivos. Cada um mora em sua casa
com sua esposa, e, em seguida, retorna à ilha Macho, onde fica durante o resto do ano. As
mulheres conservam seus filhos do sexo masculino até os quatorze anos para em seguida
enviá-los aos pais. As mulheres dão de comer à sua progenitura e cuidam de certos frutos da
ilha, enquanto os homens conseguem alimentos para eles mesmos, seus filhos e suas
mulheres. São excelentes pescadores e pescam uma infinidade de peixes, que vendem frescos
ou secos aos negociantes; eles obtêm lucros importantes com o peixe, embora reservem uma
quantidade para eles mesmos. Alimentam-se de leite, carne, peixe e arroz. Existe, nesse mar,
grande abundância de âmbar, e grandes cetáceos podem ser pescados nessas águas. Essa gente
não tem rei, mas reconhece como senhor seu bispo, porque são submetidos ao bispo de
Scoiram, e possui sua própria língua.
Niccolò de Conti, mercador viajante tal como Marco Polo, também narra a lenda das
ilhas paralelas, e as localiza a menos de mil e quinhentos metros da ilha de Socotora. Nestas
ilhas, tanto os homens visitam as mulheres como vice-versa; no entanto, nos dois casos os
visitantes devem voltar às suas casas antes do período de seis meses; do contrário a morte
sobrevém.
Mandeville descreve que a terra das amazonas estaria próxima a terra da Caldéia. Esta
se chamaria terra de Feminia, local onde só residem mulheres. Elas não vivem sozinhas por
obrigação, mas porque não querem ser governadas por um homem. Relata-se que num
determinado período, o país foi governado por um rei, e ocorriam casamentos. Mas sucedeu
que esse rei, chamado Colopeus, foi morto em batalha contra os de Escítia. Com o rei,
morreram todos os homens de boa linhagem. Assim que a rainha e as damas ficaram sabendo
da morte de seus maridos, desesperaram-se, e armaram-se matando o restante dos homens do
país. Depois disso, nenhum homem tem a permissão de viver entre elas por mais de sete dias,
e também não permitem que uma criança do sexo masculino seja criada entre elas. Quando
precisam de um homem, as amazonas vão até as terras vizinhas e encontram seus amantes, e
podem conviver com eles até dez dias. Se nascer um menino, este ou é enviado ao pai ou é
morto. Se for menina, esta terá o seio queimado. Se ela pertencer a alta linhagem, perderá o
seio esquerdo para carregar melhor o escudo, e se pertencer a uma linhagem inferior, terá o

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seio direito queimado para melhor disparo com o arco. O reino é governado por uma única
rainha, que é eleita a partir de critérios, como: melhor habilidade com as armas.
No que diz respeito às representações iconográficas, as amazonas medievais também
são retratadas com os dois seios intactos.

REFERÊNCIAS

BOYER, Régis. Mulheres virs. In. BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de Mitos Literários; Ed.
UNB, 1997.
BRANDÃO, Junito de Souza. Volume 3. Editora Vozes, 1987.
CHEVALIER, Jean / GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números - 17ª edição – Rio de Janeiro; José
Olympio, 2002.
MAGASICH - AIROCA, Jorge & DE BEER, Jean – Marc. América mágica: Rio de Janeiro;
Paz e Terra, 2000.
MANDEVILLE, Jean de. Viagens de Jean de Mandeville./ Tradução, introdução e notas
Susani Silveira Lemos França – Bauru, SP: EDUSC, 2007.
POLO, Marco. 1254-1323? Viagens de Marco Polo = II Milione/Marco Polo; posfácio de
Carlos Guilherme Mota; (tradução N. Meira; revisão Jonas Pereira dos Santos). – São Paulo,
Clube do Livro, 1989.
SALLES, Catherine. As Subversivas e sedutoras amazonas. Revista história Viva – Mistérios
da Arqueologia. Ed.: 77.

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FEIA, FORTE E BOA DE BRIGA: AS REPRESENTAÇÕES DE BRITES DE
ALMEIDA, A VALENTE PADEIRA DE ALJUBARROTA, NO IMAGINÁRIO
PORTUGUÊS

Michel Roger Boaes Ferreira


(UFMA – NEMIS)
michelboaes@hotmail.com
Luciana Campos
(UFMA – NEMIS – ABREM)

INTRODUÇÃO

O imaginário popular possui episódios muito emblemáticos e lendas ligadas à efetiva


participação de mulheres no campo de batalha, no entanto essas histórias e/ou mitos são
tendenciosamente relegados a um segundo plano, pois na tradição popular a virilidade é um
atributo melhor vinculado à figura masculina. Brites de Almeida, a Padeira de Aljubarrota, é
uma dessas personagens cujo feito de ter assassinado sete soldados do Reino de Castela com
uma pá, contado em prosa e cantado em versos, não se sabe até que ponto é lenda ou
representação de um fato realmente ocorrido.
O nome Brites de Almeida é de certo modo um nome comum no território português,
no entanto quando está junto do título A Valente Padeira de Aljubarrota, inspira até hoje forte
apelo à luta pela liberdade, muito embora não seja uma unanimidade, já que a veracidade dos
seus feitos é bastante contestada, mas ainda assim seu nome jamais foi esquecido, pois ainda é
usado para evocar nos lusitanos o espírito de luta contra alguma ameaça a identidade desse
povo.

A BATALHA DE ALJUBARROTA: A GUERRA REAL POR TRÁS DO POSSÍVEL


MITO

O contexto dos feitos de Brites de Almeida transporta a mentalidade atual para o


Reino de Portugal na segunda metade do século XIV, mais especificamente para a Batalha de
Aljubarrota, ocorrida no dia 14 de agosto de 1385. Explicando-se grosso modo, esse conflito
foi o desfecho de uma longa crise entre os reinos de Portugal e Castela por conta da disputa da
coroa portuguesa.
Fernando I de Portugal morreu em 1383 sem deixar nenhum filho homem, apenas a
infanta D. Beatriz, esposa do rei D. João de Castela, logo, isso daria direito ao rei de Castela
anexar o território português aos seus domínios, no entanto, houve uma forte desaprovação do
povo português, sobretudo entre as classes mais abastadas diante dessa possibilidade de
anexação dos territórios portugueses por outro reino, acarretando na perda de sua
independência diante do governo de um rei estrangeiro (FUNDAÇÃO ALJUBARROTA,
2012, p. 3).

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Com a morte de Fernando I de Portugal, a regência provisória foi delegada a rainha D.
Leonor Teles que era acusada pelas camadas mais alvoroçadas da população de ser simpática
à anexação de Portugal por Castela. Como fora dito anteriormente, a população não via
nenhuma benesse na regência de um soberano estrangeiro e aclamou o mestre de Avis, D.
João, filho de D. Pedro I de Portugal, como regedor e defensor do Reino, todavia o rei D. Juan
I de Castela não desistiu do seu direito sobre Portugal e ordena um cerco e, posteriormente,
uma invasão a aquele território por terra e mar.
Os primeiros combates ocorreram em julho de 1384 e a batalha que serve como
contexto para este ensaio ocorreu no ano seguinte, em 14 de agosto, após a invasão do
território português pelos exércitos de Castela.
Não é adequado, nem se faz conveniente explicitar aqui os pormenores das táticas
empregadas pelos exércitos nos campos da referida batalha, já que o tema é bastante extenso e
merece um estudo exclusivo, contudo é importante salientar que, de acordo com os relatos de
(HERCULANO, 1875) os trinta mil soldados de Castela não foram páreo para as estratégias
de combate do contingente português de sete mil e trezentos homens. A cavalaria do invasor
foi desbaratada pelos besteiros, arqueiros e pelas dificuldades do terreno estreito e cheio de
paliçadas. As linhas de infantaria avançaram desordenadamente e foram flanqueadas pelos
besteiros e infantes portugueses; assim, vendo suas forças serem destruídas, os castelanos
iniciaram uma fuga sem cobertura das linhas de retaguarda, resultando numa enorme matança
desses combatentes.
Alguns soldados conseguiram encontrar esconderijo e escape momentâneo da fúria
dos soldados portugueses que os perseguiam em casas das redondezas de Aljubarrota; e é
nesse ponto que aparece Brites de Almeida.

SURGE A VALENTE PADEIRA DE ALJUBARROTA: VERSÕES DO MITO SOBRE


A PARTICIPAÇÃO DE BRITES DE ALMEIDA NA BATALHA DE ALJUBARROTA

Relatos tratados como uma mera lenda, porém defendidos como fatos reais por muitos
portugueses, principalmente os habitantes da Vila de Aljubarrota, dão conta de que sete
soldados castelanos foram perseguidos e mortos pela padeira a golpes de pá.
Outros relatos afirmam que os sete soldados estavam escondidos na sua casa que
estava desguarnecida, pois a padeira estaria nas ruas perseguindo os fugitivos. Quando Brites
chegou à sua casa, teria desconfiado da presença de estranhos, encontrou os invasores dentro
do forno e os intimou a saírem, mas não tendo sua ordem atendida ela se armou com um tipo
de pá tradicionalmente utilizada para se retirar os pães do forno, e desferiu violentos golpes
contra os cansados e atemorizados soldados até que todos eles estivessem mortos. O trecho a
seguir ilustra bem os possíveis acontecimentos daquele dia:

Tu, Brites, ouves o fragor da batalha e não te aguentas, o teu antigamente


vem à tona. Corres para o campo da peleja, recolhes a espada de um
moribundo e tratas de juntar-te à tropa portuguesa e à arraia-miúda que
perseguem os fugitivos, quem manda em Portugal são os portugueses, quero
lá saber de Leonor Teles, a grande p***, e de Beatriz filha da p***![grifos
do autor].

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Desgrenhada, esfarrapada, ensanguentada, ao anoitecer chegas a casa.
Estranhas que a porta do forno da padaria esteja fechada quando tens a
certeza que a deixaste aberta. Tratas de reabri-la e dentro do forno vês sete
soldados castelhanos que fingem dormir. Agarras na pá de ferro e começas a
despachá-los, um a um. (PEREIRA, 2012, p.1).

Alexandre Herculano afirma que a menção mais antiga à Padeira de Aljubarrota


remete aos escritos do Frei Francisco Brandão, datados de 1642, onde é registrado o costume
de guardar a pá de metal com cabo de madeira que pertenceu a Brites nas dependências do
Paço do Concelho. E no que diz respeito à veracidade ou não dos feitos da padeira, o mesmo
autor escreve:

Se a padeira de Aljubarrota é um mito, uma invenção popular do século xv,


nem por isso a desprezemos. Um povo que dá a uma mulher ódio bastante
contra os opressores estranhos para haver de matar a sangue frio sete desses
inimigos; um povo que assim simbolizava o seu modo de sentir a tal respeito
devia saber sustentar a independência nacional. Todavia não seremos nós
que desterremos para o mundo dos fantasmas a famosa Brites de Almeida,
forneira de Aljubarrota. (HERCULANO, 1875).

Quer seja lenda ou realidade, a figura da pá está presente no brasão de armas de


Aljubarrota e é exibida encabeçando procissões realizadas no dia 14 de agosto, data de
aniversário da grande batalha.
No Arquivo da Torre do Tombo de Portugal existe o Auto Novo, e Curioso da
Forneira de Aljubarrota, em que se contem a vida, e façanhas desta valerosa Matrona
(COSTA, 1743, p. 1-8) que fala sobre os principais acontecimentos da vida pessoal de Brites
de Almeida e que trata de descrevê-la fisicamente, além de expor o seu comportamento
perante os lusitanos do século XIV. Ela teria nascido em 1350 na cidade de Faro, filha de uma
família bastante humilde e desde criança demonstrava ser uma pessoa de extrema coragem.
Seus pais possuíam uma taverna e trabalhavam numa modesta vinha para prover seu próprio
sustento.
A diplomacia não era o forte de Brites que comumente resolvia seus problemas de
forma pouco cortês “(...) por qualquer cousa partia huma cabeça, o que fez muitas vezes (...)”
(COSTA, 1743, p.1). Ela possuía na adolescência, de acordo com o autor, vigor físico que não
era próprio das meninas da sua idade, mas dos meninos, o que lhe valeu o apelido de Maria
Rapaz, já que muitas vezes ignorava os convites das outras meninas para brincarem de
boneca, preferindo brincar com meninos e “(...) só se inclinava a formar pendências, a fingir
desafios, e a jugar murros, e bofetadas, fazendo-se tão temida não só das raparigas, mas ainda
dos rapazes, que em ella apparecendo, todos fogião.” (CτSTA, 1ι43, p.1).
Aos 26 anos ficou órfã de pai e mãe, as causas não foram citadas pelo escritor, e então
gozando de maior liberdade vendeu alguns dos seus bens, investiu o dinheiro em aulas de
jogo do pau, um tipo de esgrima com bastões de madeira praticado na Idade Média em
Portugal, e na compra de espadas. A essa altura ela já era descrita pelo povo como mulher
corpulenta, feia, de nariz adunco, seis dedos em cada mão, boca muito rasgada e cabelos
crespos. Estaria então destinada a ser uma mulher destemida, valente e, de certo modo,

317
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desordeira, sem jeito para desenvolver qualquer atividade apropriada para mulheres ditas
normais.
Os costumes da adolescência de propor e aceitar duelos continuavam mais presentes
do que nunca em sua vida, suas habilidades com a espada se faziam notáveis e eram
admiradas e temidas por muitos. E diz-se que um desses expectadores, o soldado Hypomenes,
nutriu tão profunda admiração por Brites que a solicitou como esposa, causando-lhe espanto,
pois até então ninguém havia tido coragem para tal, tanto devido a sua aparência
masculinizada, quanto pela sua fama de mulher violenta, a antítese da mulher servil, frágil e
obediente ao homem.
Ela afirmou que aceitaria a proposta de Hypomenes, desde que ele a derrotasse num
duelo de esgrima, no entanto ele acabou ferido mortalmente e os expectadores do duelo
passaram a perseguir Brites pelo crime de ter assassinado um oficial do exército. Ela fugiu
para a praia e embarcou num batel para fugir dos seus perseguidores. Em alto mar foi
capturada por piratas mouros e em seguida vendida como escrava para um homem rico em
Argel, onde permaneceu por alguns anos até empreender fuga para Aljubarrota, um vilarejo
que hoje faz parte da cidade de Alcobaça, distrito de Leiria, onde arrumou emprego como
ajudante de uma velha padeira que faleceu algum tempo depois. Brites se tornou dona da
padaria em meados da década de 1380 e se casou com um lavrador local com quem teve
filhos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tratar historiograficamente um tema que envolve uma personagem cuja existência


encontra muito mais respaldo na memória coletiva e nas quadrinhas populares do que
necessariamente em fontes escritas é trilhar por um caminho movediço. Lidar com relatos
orais é uma tarefa que exige bastante cuidado por parte do historiador, pois diante da ausência
de maiores detalhes da vida da personagem aqui descrita, a mitificação encontra terreno
bastante fértil na mentalidade popular.
É perda de tempo a tentativa de formar um discurso dito racional sobre a origem desse
mito, porque em primeiro lugar muitos desses elementos discursivos sobre Brites induzem os
ouvintes a perceber a história da padeira sob a perspectiva do exagero acerca dos seus feitos
na Batalha de Aljubarrota. Em segundo lugar, não se sabe ainda da existência documentos
contemporâneos a Batalha de Aljubarrota que possam dar conta da vida da padeira.
O descrédito pode em parte ser atribuído não à grandiosidade da narração de suas
habilidades de guerreira, mas ao fato de se tratar de uma mulher que vivia num contexto
bastante masculinizado e, para aquele contexto, era extremamente absurdo uma mulher
possuir um objeto caro como uma espada, receber aulas de esgrima, mostrar livremente suas
perícias de espadachim em público desafiando e derrotando homens treinados na arte do
combate com armas brancas, como no suposto caso do seu duelo contra o soldado
Hypomenes.
Este ensaio não tem a pretensão de explicar os elementos estereotipados como
estúpidos, selvagens e absurdos contidos na narrativa. A intenção é de trazer à tona o mito
sobre uma mulher do medievo que se comportava de modo avesso aos padrões da sociedade
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lusitana e seria responsável por feitos inatingíveis para a maioria das mulheres daquela época,
como ter escolhido seu próprio marido, ser mais hábil com a espada do que com os afazeres
domésticos, possuir força física suficiente para desafiar homens em combate.
O fato de ela ter executado os soldados extenuados e em fuga que procuraram abrigo
em sua padaria pode ser visto, sob um olhar parcial, como algo covarde, mas há de se lembrar
de que a situação era de guerra e fazer prisioneiros não era prioridade, já que o grande
exército de Castela, apesar da estratégia vexaminosa, foi disposto a tomar a força o trono
português e encontrou um contingente menor que seu, mas que possuía um nível de
organização superior. Perseguir e matar os soldados espanhóis significava para aquele povo
desferir um duro golpe no rei estrangeiro que queria tomar a coroa lusitana e, acima disso,
manter um português como regente e defensor de Portugal.
Obviamente aos olhos de uma sociedade fortemente masculinizada a narrativa sobre
Brites não passa de uma grande tolice, mas se assim não o fosse, o mito não teria tanta
repercussão em Portugal, sobretudo na Vila de Aljubarrota; parafraseando DETIENNE (1992,
p. 46-47) o mito é o elemento irracional que confronta a razão, é algo incrível, grosseiro,
selvagem, infame, absurdo, em suma, algo que traz aversão para aquele que ouve, mas ao
mesmo tempo é capaz de exercer sedução e motivar até os dias atuais os moradores da Vila de
Aljubarrota a se lembrarem da padeira como uma heroína durante a procissão que comemora
a vitória portuguesa sobe os castelanos.

REFERÊNCIAS

COSTA, Diogo da. Auto Novo, e Curioso da Forneira de Aljubarrota, em que se contem a
vida, e façanhas desta valerosa Matrona. Lisboa, 1743. Acessado em 7 de maio de 2012.
Disponível em < http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4311394>.
DETIENNE, Marcel. A Invenção da Mitologia. Rio de Janeiro: José Olympio/UnB, 1992.
FUNDAÇÃO ALJUBARROTA. A Batalha de Aljubarrota – Contexto político anterior à
Batalha de Aljubarrota. Acessado em 8 de maio de 2012. Disponível em:
<http://www.fundacao-aljubarrota.pt/archive/doc/A_Batalha_de_Aljubarrota.pdf>
HERCULANO, Alexandre. História de Portugal: desde o começo da monarchia até o fim do
reinado de Affonso III. Oitava edição definitiva conforme as edicões da vida do auctor / dir.
por David Lopes. – Lisboa, 1875. Acessado em 5 de maio de 2012. Disponível em: <
http://purl.pt/12112>

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MALDITA SEJA A BELDADE DE ISEU: FEITIÇARIA E IMAGEM1

Pâmela Paula Souza Neri


(UFPA)
pamelaletras@yahoo.com.br2

1- Introdução

Uma das obras medievais mais adaptadas tanto em caráter literário, quanto em mídias
diversas foi Tristão e Isolda. A Demanda do Santo Graal apenas faz referências ao romance
do casal. Todavia, os poucos trechos evidenciam o julgamento de valor que considera a
esposa do Rei Marc maldita e adúltera. Assim, para compreender a visão dada a ela na novela
de cavalaria, é preciso desnudar toda a narrativa do amor entre Tristão e a filha do rei
Gormond. Em Tristão e Isolda de Joseph Bérdier, versão baseada no texto de Béroul, do
século XII, conheceremos a visão de feiticeira atribuída a ela, consequência de seu forte
envolvimento com a mãe, rainha da Irlanda, praticante da arte da magia e responsável pelo
“filtro do amor”, fator desencadeador do final trágico dos amantes. τutro ponto abordado no
trabalho trata da época em que a narrativa foi divulgada, visto que o século XII foi marcado
pela imposição moral da Igreja. O resultado, o bom desempenho dos romances de cavalaria
que abordam a temática das paixões proibidas na realidade. O mito surge onde a paixão é
sonhada, onde o amor fora das convenções é reprimido e a mulher é considerada “portadora
da morte” e do inferno na terra.
De tempos em tempos a concepção do amor modifica a capacidade de pensamento. A
bem da verdade, a paixão possibilita a vontade de querer e desejar. Na Idade Média a paixão
fora dos padrões da época tinha forte repreensão pela sociedade e a igreja, indissociáveis na
época. Partindo desse pressuposto, o artigo pretende comparar a representação de Isolda na
Demanda e em Tristão de Isolda de Joseph Bédier à luz das teorias de Carlos Ginzburg. De
igual modo, com os conceitos de Jacques Le Goff e George Duby, contextualizar o mito,
como vez de uma realidade não palpável, prática comum e assídua no século XII.

2- Tristão e Isolda: Uma narrativa, várias versões.

O mito de Tristão e Isolda tem a sua concepção baseada em lendas que circuncidavam
o imaginário do povo celta do noroeste europeu, sendo escrita de modo mais definitivo em
obras de autores normandos no século XII. No século procedente foi incluída no Ciclo
Arturiano, no qual Tristão passa a incorporar o grupo de cavaleiros da távola redonda a
serviço do Rei Artur. O casal, inclusive para muitos teóricos que se debruçam sobre a matéria
da Bretanha, fomenta inspiração para outra trágica história medieval, a de Lancelot e a Rainha
Genevra. As primeiras obras literárias sobre a lenda chegaram à literatura moderna como dois
fragmentos em versos: O primeiro foi escrito por Béroul, com uma biografia quase

1
Artigo orientado pela professora Alessandra Conde, da Universidade Federal do Pará. Mestre em Estudos
literários pela UFES.
2
Aluna do curso de Letras da Universidade Federal do Pará, campus Universitário de Bragança.
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inexistente, entre 1160 e 1190, com um teor mais popular e grotesco, possuindo pouca
influência do amor cortês, que inclusive, permeia de modo bem mais acentuado o segundo
fragmento escrito por Tomás da Inglaterra por volta de 1170 (GOMES, 2012, p 6-10).
A primeira versão em prosa da lenda celta data entre 1230 e 1240 com a denominação
de Tristão em Prosa, sem autor, escrita em francês antigo, tendo sua primeira parte baseada
nos poemas de Tomás e Béroul, seguido por uma mistura com a lenda arturiana. A obra
apresenta uma forte influência da primeira prosificação do ciclo Arturiano, denominado de
Ciclo do Lancelot-Graal, terminada por volta de 1230, não apresentando nenhuma referência
a Tristão. A Demanda do Santo Graal também denominada de Ciclo da Post-Vulgata, já
apresenta Tristão como um dos cavaleiros da Távola redonda (BAUMGARTNER, 1975, p.
13).
Para entendermos melhor a proposta, conheceremos a visão dada por Joseph Bédier ao
mito celta. Em linhas básicas, o romance inicia do seguinte modo. No primeiro capítulo,
ocorre a descrição do nascimento de Tristão, que recebeu esse nome da mãe Blanchefleur em
alusão à profunda tristeza pela morte de seu marido Rivalen. Embora educado por Rohalt,
aprendeu com Gorvenal todos os ensinamentos que transformam um menino em cavaleiro.
Todavia, o desenlace inicia quando Tristão é raptado por mercadores irlandeses que o deixam
na Cornualha, onde conhece o Rei Marc, seu tio. É nesse momento que a história ganha seu
nó narrativo, uma vez que o tio, após várias aventuras do cavaleiro em seu reino, o designa a
buscar Isolda, prometida ao Rei em matrimônio. Todavia, durante uma tempestade na volta
para a Cornualha, Brangien que era responsável pelo feitiço amoroso preparado pela mãe da
Rainha da Cornualha, entrega-o para Tristão e Isolda. A partir daí, a narrativa se desenvolve
com a descoberta do amor adúltero do casal e a morte trágica que os escreve nas linhas tristes
de exemplos mal fadados das paixões não vividas por completo.

3.1- Representação e abstração: imagem, discurso e feitiçaria.

Para Le Goff (1995, p. 43), a representação é a tradução mental de uma realidade


exterior percebida e ligada ao processo de abstração. O imaginário faz parte de um campo da
representação e, como expressão do pensamento, se manifesta por imagens e discursos que
pretendem dar uma definição da realidade. Mas as imagens e discursos sobre o real não são
exatamente o real ou, em outras palavras, não são expressões literais da realidade, como um
espelho.
O termo representação em todas as áreas das ciências humanas, especialmente nos
estudos medievais está constantemente pontuando construções de análise. Essa afirmação é
defendida por Carlos Ginzburg (2001 p. 85-86), se por um lado, a representação coloca-se no
lugar do objeto representado, assim indicando ausência, por outro, torna clara a realidade
representada, indicando a presença. Ginzburg cita como exemplo os manequins de madeira
usados nos funerais reais na França e Inglaterra. Ora o manequim era depositado no catafalco
de madeira, ora o leito fúnebre real vazio era coberto por um lenço que representava o rei
morto. A presença mimética no primeiro exemplo está ausente no seguinte. Em Tristão e
Isolda a representação mimética e não mimética pode ser salientada, principalmente no que
diz respeito à protagonista. σo capítulo intitulado “A sala das imagens”, Tristão por padecer

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de extrema saudade de sua amada resolve construir um universo mimético, onde reconta por
meio de imagens e estátuas suas aventuras, assim como as alegrias e tristezas de seu amor por
Isolda. No trecho que segue temos um exemplo de representação mimética, aquela que,
segundo Ginzburg, resulta na representação fidedigna do ser representado:

A segunda sala estava ainda mais ricamente ornada do que a primeira. O


centro era ocupado por uma imagem de Isolda, a loura, de tamanho natural:
as proporções e as cores, o rosto, o aspecto e a estatura estavam reproduzidos
com tanta arte que, ao vê-la, ninguém poderia duvidar que a vida não lhe
corresse no corpo. Dos seus lábios, por meio de um mecanismo engenhoso,
escapava-se um hálito tão doce que o seu perfume enchia a sala. Estava tão
magnificamente vestida como convinha a uma rainha. Trazia uma larga
sobreveste de escarlate bordado, apertada na cintura por um cinto de placas
de prata do qual pendia uma escarcela. A cabeça, donde caíam duas longas
tranças louras, estava ornada com um circulo de ouro onde se engastavam
pedras de todas as cores; um rico colar enfeitava-lhe a garganta, que parecia
levantar-se e respirar. Na mão direita segurava um cetro terminado nas flores
mais delicadamente trabalhadas. A mão esquerda, adornada com um anel de
jaspe verde, desenrolava uma tira onde se liam estas palavras: “Tristão, pega
neste anel e guarda-o por amor de mim, a fim de te recordares as nossas
alegrias e as nossas dores” (BÉDIER, 1995, p 1κ3).

Durante a ação explicitada, a representação mimética, aquela que possui semelhança


com o objeto que substitui, é explicitada pelas várias imagens e esculturas de Isolda. Da
mesma forma, a não mimética, constituída de um por um objeto que não possui analogia com
ser representado, de tal modo, é ornamentada pelo anel. Isolda durante as incontáveis
despedidas diz ao amado:

Quando estiver triste, belo e doce amigo, ele far-me-á pensar em ti e o meu
coração encher-se-á de alegria. Eu tenho um anel de prata, com o engaste de
jaspe verde, cuja pedra possui uma virtude maravilhosa. Dar-to-ei e tu usá-
lo-ás sem cessar no dedo, pois de cada vez que o olhares verás a minha
imagem na tua lembrança como se eu estivesse presente ao teu lado
(BÉDIER 1995, p 183).

O simbolismo do amor presente no anel fica evidente quando Tristão, já mortalmente


ferido, pede para que Gorvenal a busque. Todavia, ele apodera-se de algo concreto,
porquanto, entrega o anel para o fiel amigo como uma forma de prova, uma autoridade, para
fundamentar sua argumentação, conseguir que Isolda o visite no seu leito de morte.
Carlos Ginzburg fala da imagem como autoridade para uma determinada verdade,
dando como exemplo os funerais reais em que o monarca, até então passando pelo longo
processo de embalsamamento, era substituído por um manequim durante o funeral. O
historiador nos ressalta que

“a morte não constitui o fim da vida do corpo no mundo: não é o fato


biológico, mas o ato social, os funerais que separam os que vão dos que
ficam”. Hertz mostra que a morte, toda a morte, é um acontecimento
traumático para a comunidade [...] que pode dominada por ritos que

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transformam o acontecimento biológico num processo social (GINZBURG,
2001, p. 88).

O uso desses manequins era uma linguagem de autoridade, para mostrar aos súditos
que a morte havia visitado o reino. O homem precisa ver, possuir a capacidade de tocar; o não
visto mesmo quando apenas imaginado, necessita de uma criação (imitação) na realidade para
tornar a sua existência lógica.

3.2- O discurso como construção abstrata de representação: Isolda pelo olhar dos outros

Carlos Ginzburg discute sobre o poder do discurso para construir uma determinada
realidade, haja vista que o historiador é um crítico agressivo no que tange ao discurso do pós-
modernismo, que rodeia o relativismo e o positivismo, pois o primeiro abre caminho para uma
realidade objetiva dos fatos. No outro extremo, o relativismo compreende uma concepção
voltada para as fontes históricas limitando o caminho para a realidade objetiva, consequência
da natureza subjetiva, narrativa e discursiva das fontes. O teórico critica o conceito de verdade
relativa, porquanto, para o pós-modernismo, a verdade não existe ou é relativa. Uma
contradição construindo algo absoluto: a verdade é relativa (GINZBURG, 2002 p. 67). Cícero
(ano, p. 81) ao falar sobre o limite da verdade dentro de um fato nos diz:

[...] um indivíduo conhecedor das práticas retóricas pode escrever tanto


sobre o presente vivenciado quanto sobre o passado cuja maior ou menor
escassez de vestígios condicionava a maior ou menor veracidade do relato. O
método de trabalho do historiador não mais se centra no estabelecimento de
uma verdade que corresponda diretamente à tradução literária de sua
apreensão pessoal da realidade, mas à ueritas (verdade) entendida em termos
de fides, credibilidade emprestada à narrativa. Enquanto construção retórica,
a verdade se situa no plano da plausibilidade que o leitor encontra no relato,
e não necessariamente na exata correspondência entre realidade e discurso.

O autor ao falar sobre a verdade do relato, afirma que o narrador de um determinado


contexto não precisa necessariamente ter experimentado e vivenciado o que é relatado,
todavia busca elementos que condicionem a sua narrativa como verdadeiros, elementos esses
retirados da retórica, como a argumentação e a autoridade que determinado fato carrega.
De tal modo, a retórica empresta palavras e dá credibilidade à narrativa. A bem da
verdade, não é permitido por um fator, intrinsicamente cronológico, voltar ao passado para
confirmar os fatos. O uso retórico resolve à problemática. σo lugar do verbo “ver”, tem-se os
recursos linguísticos, estilísticos, inferências, embelezamentos, entre outros. Assim, a verdade
não estaria no fato, mas na retórica usada para expressá-lo, um tipo de autoridade que o
legaliza3. Como indaga Carlos Ginzburg em Relações de força. História, retórica, prova:

O que é a verdade? Um exército móbil de metáforas, metonímias,


antropomorfismos, em resumo: uma suma de relações humanas que foram
reforçadas poética e retoricamente, que foram deslocadas e embelezadas e
que, após um longo uso, parecem a um dado povo, sólidas, canônicas e

3
Lima, Francisco Chagas Vieira Jr. A Crítica do Relativismo Histórico em Carlo Ginzburg. História e-
História. Campinas: Grupo de Pesquisa Arqueológica histórica da UNICAMP. 2009
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vinculatórias [...] o verdadeiro significa servir-se das metáforas usuais
(GINZBURG apud LIMA, 2009, p. 24).

Isolda na narrativa de Bédier é por várias vezes condicionada como feiticeira, todavia,
em nenhum momento é descrita alguma ação em que a filha da Rainha da Irlanda faça algum
tipo de feitiço ou algo sobrenatural. Sua identidade mágica se dá apenas através da mãe, pois
nas duas ocasiões que Tristão por ela é curado, Isolda apenas acompanha o processo. Nas
últimas páginas do romance, Tristão chama por sua amada, pois acredita que apenas a sua
presença trará a cura para o seu mal, visto que de modo sobrenatural, embora como já dito,
sem uma descrição de alguma ação mágica, sua amante o arrancou por duas vezes dos abraços
da morte. O trecho nos diz o seguinte:

Toma este anel de jaspe verde que me confiou Isolda, a loura, para que seja
entre nós um sinal de reconhecimento. Quando chegares à corte, mal lhe
apresentes este anel, ela reconhecer-te-á como meu mensageiro e achará
maneira de falar-te comodamente sem que ninguém vos possa ouvir. Depois
de a teres saudado da minha parte, diz-lhe que não há para mim nenhuma
esperança de cura se ela não me vier tratar em pessoa. A menos que me
reconforte com um beijo da sua boca, terei de ir desta para melhor com
grande desgosto meu. Recorda-lhe que, por amor dela, me expulsaram e
exilaram vergonhosamente em terra estrangeira: passei por tantas dores e
lutei tanto que já só tenho um sopro de vida, muito débil (BÉDIER, 1995, p.
185).

A chegada da amada de Tristão tarda por causa de uma tempestade e sua esposa Isolda
das mãos brancas o engana, já que foi acordado que se Isolda a loira, estivesse no barco seria
estiado uma vela branca. Entretanto, sua esposa o diz que a cor é preta. Quase como um
suspiro Tristão pronúncia as seguintes palavras: “Isolda, não quisestes vir para junto de mim!
Por vosso amor tenho de morrer hoje!” (BÉDIER, 1995, p. 190)”. τ “Romance de Don
Tristan de Leonís y de La reina Iseo”, que de tanto amor se guardaron”, faz parte de uma
coletânea de 1861, intitulada Romancero General coleccion de romances castellanos; Tristão
é atingido por uma lança deferida por seu tio e no leito de morte roga pela presença de Isolda
para curá-lo, como descreve o trecho: (CRESPO; FERNÁNDEZ, 2007, p. 117)

Mal se queja don Tristán, que la muerte le aquejaba; preguntando por Iseo,
muy tristemente lloraba: “¿ Qué es de ti la mi señora? Mala sea tu tardanza,
que se mis ojos te viesen, sanaría esta mi llaga”. Llegó allí la reina
Iseo, la su linda enamorada, cubierta de paños negros, sin del Rey dársela
nada: “¡Quien vos hirió, don Tristán, heridas tenga de rabia, y que no
hallase maestro que supiese de sanallas!”

O cavaleiro vê a amada Isolda, ornada com vestimentas pretas, que em uma


interpretação simbólica, significaria um presságio da morte que segue o lamento, assim como
na versão de Bédier, o não regresso de Isolda seria comunicada por uma vela da mesma cor, o
que nos permiti uma leitura intertextual. Todavia, o que nos interessa discutir nesse tópico é
como o poder da retórica embasado na autoridade da hereditariedade, pode pelo discurso
elevar uma pessoa a determinada denominação, no caso da personagem analisada, em
feiticeira. Jacques Le Goff em O maravilhoso e o cotidiano no ocidente medieval trata entre
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muitos assuntos, da autoridade que condiciona os marginalizados nascidos na sociedade da
época, ou seja, os que não se encaixam na natureza perfeita criada pelos preceitos do clero.
Todo o nascimento que resulta em algum desequilíbrio para a ordem natural era questionado e
condenado por um tipo de autoridade (auctoritates), cerceadora de qualquer tentativa de fuga
da índole herdada por tal nascimento, de modo que, tal tentativa, simbolizava uma atitude
contra a ordem estabelecida por Deus (LE GOFF, 1985 p. 172). Desse modo, o ser que hoje
“é”, está condicionado pela hereditariedade de quem “foi” e o concebeu. σão existia
remissão. Obviamente, esses preceitos de conduta nasciam da memória de uma comunidade,
aliada a um discurso que autorizava determinada pessoa a ser considerada marginalizada
dentro da sociedade em que vivia.
Isolda tem o poder da magia, não porque o manifesta, mas porque é filha de uma. Por
duas vezes salvou Tristão de modo sobrenatural, mas nunca praticou nenhuma ação mágica
diretamente. Tristão tanto em Bédier, quanto no romance explicitado acima, roga pela
presença da amada, pois acredita que isso trará a cura para suas dores. O que é perceptível é
que a representação de Isolda como feiticeira é condicionada tanto pelo poder da imagem,
como pelo discurso que comunica ao ponto de tornar real e concreto algo que não
necessariamente possui uma veracidade no real. A linguagem, seja ela de que caráter for,
consegue através de signos tornar palpável o que aparentemente morava apenas no
imaginário.

4- Demanda do Santo Graal: O mito do amor cortês

A Demanda do Santo Graal apenas contextualiza a história do casal. No entanto, na


sua primeira descrição sobre Isolda são proferidas as seguintes palavras: “maldita seja a
beldade de Iseu” (1995, p. 35), sendo essa representação mantida durante todas as outras que
a procedem. Tristão que na novela de cavalaria é levado a cavaleiro da távola redonda, não
alcança a perfeição necessária para se tornar cavaleiro do Graal por seu envolvimento com a
esposa do Rei Marc. Isolda como uma representação do que é profano, colocou-se no
caminho, impedindo que Tristão, totalmente condizente com o ideal de amor cortês, se
tornasse o “cavaleiro perfeito”.
Para Marisa Bocalatto (1996), é comum que se acredite em uma ligação indissolúvel
entre o amor cortês e o platônico. Contudo, George Duby (1989, p. 10), descontrói o
conceito mais difundido do amor cortês, pois a pureza inquestionável do conceito para ele é
ilusório. O equívoco segundo o autor está sacramentado no entendimento errôneo que se tem
sobre o amor platônico, pois a vassalagem é o respeito incondicional pela pessoa amada, mas
não anula o desejo, pautado no imaginar. Em Tristão e Isolda de Bédier e na maior parte das
versões, o envolvimento do casal, que releva a própria fidelidade matrimonial de Isolda, assim
como a de Tristão para com o tio, é consequência da ação do filtro do amor, que os dois
tomam por engano. Entretanto, em uma versão anônima, sem data registrada, Isolda não toma
a porção feita pela mãe por engano, muito pelo contrário, usa de ardileza ao dá-la para
Tristão, que sem saber a ingere tornando-se ligado a ela para sempre:

Isolda chamou Abrangia e ordenou-lhe que lhe trouxesse vinho [...]. Nesse
momento o rosto da jovem iluminou-se num sorriso furtivo: tinha entre as
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mãos o meio mais seguro de fazer nascer em Tristão o amor e liga-lo para
sempre a Isolda [...] Rainha Isolda tomai está bebida [...] Quanto a Tristão
esse julgou ser um vinho de eleição oferecido ao Rei Marcos. Como homem
cortês e bem educado, deitou a porção na taça estendeu-a a Isolda, que
bebeu a até se fartar. Quando pousou a taça ainda meio cheia, Tristão
pegou nela e a esvaziou a até a última gota (TRISTAO E ISOLDA, 1992, p.
46-48).

É possível uma interpretação intertextual entre o episódio e a narrativa bíblica do


pecado no jardim do Éden, pois o fruto proibido foi dado por Eva a Adão. Em todas as
versões, Tristão, embora de modo mais acentuado ou não, está perfeitamente condicionado ao
ideal de Amor cortês, pois na medida do possível mostra ser um homem fiel ao seu tio e
acima de tudo totalmente condicionado à vassalagem destinada à amada. Entretanto, Isolda
nas versões de Béroul, Thomas da Inglaterra e a anônima aqui apresentada, se mostra ardilosa
e retentora do pecado, o que na Demanda legitima sua imagem de maldita e o seu papel na
não eleição de Tristão a cavaleiro perfeito.
George Duby (2001, p. 116) indaga como poderia um período embasado na contenção
do corpo e do desejo, criar tantos exemplos de “Isoldas” e “Genebras”. Para o autor

os gestos e os sentimentos atribuídos aos heróis e às heroínas dessa literatura


não eram destituídos de relação com as condutas dos homens e das mulheres
que os poetas se aplicavam em divertir [...] E tivesse possível identificar-se
com eles em sonho. Não eram inimitáveis, brincou-se de imitá-los. Como a
vida dos santos, a literatura de divertimento propunha modelos.

Duby nos explica na citação acima, que o contexto do século XII não permitiria
normalmente, mediante a forte contenção moral imposta pela Igreja, à difusão de textos
tratando do adultério. Tal assunto era proibido. No entanto, os textos de cavalaria parecem
ocultar certa cumplicidade com os que viviam ou apenas sonhavam com uma realidade
aparentemente distante.

Conclusão

A representação de Isolda como feiticeira e maldita, respectivamente em Bédier e na


Demanda do Santo Graal, com tudo, foi marcada e cristalizada ora fomentada no real, o seu
envolvimento com Tristão, ora pautada no imaginário de Tristão e dos personagens da
narrativa, por sorte que, Isolda era feiticeira, porque era filha de uma. Sobre esse discurso
recai toda a mentalidade de uma época marcada pela força da hereditariedade, misoginia e
crenças no imaginário, sobrepostos pela imposição da Igreja. A figura feminina, construída
aqui pelas características da Rainha Isolda, retrata a mulher medieval. Embora concebida pelo
olhar masculino, não foge do real, pois a feiticeira, vista do âmbito do gênero, possui o papel
de fundadora da feminilidade, um dos pilares da concepção da mulher na história.

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O CONVENTO COMO ESPAÇO DE EMANCIPAÇÃO FEMININA EM PORTUGAL
NO SÉCULO XVII

Paula Cristina Ribeiro da Rocha de Morais Cunha


(UFPB)
pcrisrocha@gmail.com

Desenvolvimento de uma produção escrita de autoria feminina no meio conventual

As pesquisas que se debruçam sobre a autoria no século XVII em Portugal


comprovam que a produção literária teve, no meio conventual, grande vigor. Na História da
literatura portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, mesmo que se aluda aos
escritos das religiosas em termos que não os encarecem, não deixa de se assinalar a atividade
intelectual dessas mulheres que habitavam os conventos:
É de notar que a marcha para a emancipação intelectual e social das mulheres
conheceu na fase final do Barroco um dos seus momentos mais dramáticos, na aristocracia e
alta burguesia. Durante os reinados de D. Pedro II e D. João V, cheios de famosos escândalos
conventuais, como os das próprias aventuras deste último em Odivelas, travou-se uma luta
difícil entre as freiras, que procuravam por todas as formas iludir a clausura, ao menos pelo
namoro versejante e confeiteiro, e as autoridades morigeradoras. (Saraiva e Lopes, 1987, p.
478)
Na medida em que as religiosas tinham acesso à cultura livresca, os conventos
tornavam-se para elas espaços de alguma liberdade, numa sociedade patriarcal em que fazer
os votos significava, muitas vezes, proteger os interesses patrimoniais das famílias mais do
que a existência de autênticas vocações devotas.
A consulta da edição da Fundação Calouste Gulbenkian História e antologia da
literatura portuguesa: século XVII, nº 32, de agosto de 2005, faz-nos perceber que existiu, de
fato, neste período um clima favorável para a constituição de uma comunidade de freiras-
escritoras que tiveram acesso à edição, ou, pelo menos, à divulgação de suas obras, as quais
circulavam em manuscritos (quando não eram resultado do cumprimento das incumbências da
vida conventual), e ao reconhecimento social. Nesta antologia, que se faz acompanhar de um
breve estudo crítico, são elencadas obras de autoria de religiosas que produziram uma
literatura versando o gênero dramático, a moral, a alegórica, a narrativa ficcional, a
epistolografia, a autobiografia, etc. De entre o vasto número de autoras-freiras que
compuseram obras de índole diversa, vale a pena referir Sóror Maria do Céu, com Enganos do
bosque, desenganos do rio, Aves ilustradas, Triunfo do Rosário, entre outras,
predominantemente do gênero dramático, publicadas em castelhano, pertencendo, por isso,
também à literatura espanhola. Ana Hatherly traduziu para português e apresentou os cinco
autos que compõem o Triunfo do rosário, numa edição de 1992. Vale referir outras autoras,
como Soror Madalena da Glória, com Brados do desengano contra o profundo sono do
esquecimento, Reino da Babilónia, Orbe celeste; Soror Clara do Santíssimo Sacramento,
autora de Autobiografia, obra com edição de 1984 pela Imprensa Nacional Casa da Moeda,
prefaciada e transcrita por João Palma-Ferreira. Destaque-se Soror Violante do Céu, autora de
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Rimas várias, obra publicada em Rouen em 1646, e de Parnaso lusitano de divinos e
humanos versos, obra póstuma publicada em 1733. Soror Violante do Céu escrevia em
português e em castelhano, o que era comum na época, foi uma autora aclamada e muitas das
suas composições integram Fénix renascida (1716-28) e Postilhão de Apolo, os principais
cancioneiros do barroco português. Margarida Vieira Mendes dedicou a Rimas várias um
importante estudo na edição crítica de 1993.
Interessa esclarecer a menção a estas escritoras-freiras: a sanha de recuperação de
obras de autoria feminina cumpre um dos objetivos da agenda crítica feminista ou ginocrítica,
termo cunhado por Elaine Showalter, ainda por realizar na pátria daquelas que escreveram na
língua de Camões, isto é, o resgate de obras de autoria de mulheres que permita gizar uma
genealogia literária feminina em Portugal.
Portugal faz parte do grupo de países que se perfilaram no movimento da Contra-
Reforma, em resposta à Reforma Protestante, iniciada por Lutero a partir de 1517. Não
obstante, segundo José Hermano Saraiva, não terá existido neste país um movimento alargado
à sociedade da época, tendo “o objecto anti-reformista” em Portugal sido substituído pela
“questão judaica” (Saraiva, 2003, p. 1κ2). Convém lembrar que a Bula da Inquisição foi
concedida a Portugal em 1536. Hermano Saraiva descreve o cenário intelectual seiscentista
português na contracorrente dos ideais reformistas europeus:

Durante uma parte do século XVI e ao longo de todo o século XVII, a


Inquisição conseguiu manter a actividade cultural portuguesa isolada do
movimento das idéias europeias, movimento que precisamente nessa época
foi extremamente intenso e inovador. À ampla e aberta importação cultural
da época do humanismo sucedeu um perigoso e muito restrito fio de
contrabando de idéias e livros. Mas à acção isoladora associou-se a acção
intimadora: o escritor sabia que entre ele e o prelo, estava a Inquisição; o
primeiro leitor seria o censor. (Saraiva, 2003, p. 184)

As ordens religiosas, cujos membros eram, frequentemente, autores de obras de cunho


moralizante que viam na escrita uma forma de propagação da doutrina católica, detinham o
privilégio do ensino. Justifica-se, assim, o desenvolvimento de uma literatura produzida no
espaço conventual, versada em gêneros tidos por menores, como cartas, autobiografias, vidas
de santos, etc, tematizando o amor ao divino, mas também o humano, como é o caso de Rimas
várias, de Soror Violante do Céu, ou de Lettres portugaises, as famosas cinco cartas
atribuídas a Soror Mariana Alcoforado e endereçadas ao Cavaleiro de Chamily, com quem a
religiosa teria vivido uma paixão arrebatadora.
Apesar do rigor da vida conventual, a relativa privacidade e autonomia que o
afastamento da vida civil e a possibilidade de emancipação intelectual ofereciam a estas
religiosas faz com que não seja negligenciável o seu papel no desenvolvimento de gêneros
que assimilam a experiência do vivido e de uma expressão que encontra novas soluções para o
código do amor cortês. É, portanto, o domínio do privado que aparece plasmado nestes textos
de mulheres, as quais usam a escrita para escaparem à clausura e ao destino que lhes estava
reservado pela sociedade da época: o casamento imposto, motivado por conveniências
políticas, com vista à manutenção do patrimônio das famílias. Por isso, para muitas, os
conventos eram vistos como espaços de libertação: do jugo do pai e, posteriormente, do jugo
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do marido. Só que estas não eram mulheres quaisquer: eram filhas de bom nascimento que as
políticas matrimoniais mantinham afastadas da fortuna das famílias, numa época em que
vigorava a lei do morgadio. Os contratos nupciais exigiam o pagamento de dote por parte da
família da noiva, o que representava uma ameaça ao patrimônio familiar e prejudicava a
fortuna que era, por direito, do filho varão. Assim, quando o ingresso no convento era
deliberado, o claustro podia significar uma autêntica vocação religiosa, a escapatória a um
casamento indesejado ou a vontade de prosseguir estudos que a vida religiosa proporcionava,
pois os conventos ofereciam, para além de livros, alguma privacidade e independência, o que
Virginia Woolf irá reivindicar para as mulheres, em 1929, no célebre texto A room of one’s
own (1929): “(...) a woman must have money and a room of her own if she is to write fiction
(...).” (WττLF, 2004, p. 4)
Por outro lado, é necessário ter em conta que os espaços conventuais eram palco de
concursos e de múltiplos eventos abertos à comunidade civil, nos quais as freiras podiam
lançar motes para os palacianos glosarem, o que lhe proporcionava um contacto com o
ambiente cultural da época:

(...) os conventos, intensamente povoados, beneficiavam de um clima


palaciano de promiscuidade profana hoje difícil de compreender.
Verdadeiros palácios de fé, neles se sucediam as festas conventuais abertas à
alta sociedade de ambos os sexos. Encarada numa dimensão de
sociabilidade, que hoje em parte se perdeu, a literatura constituía um dos
grandes motivos de atracção dessas festas que culminavam nos concursos
poéticos, onde cavalheiros glosavam os motes propostos pelas freiras. Sem
dúvida que essas manifestações de inventiva poética proporcionaram, senão
um clima literário, pelos menos uma certa familiaridade das religiosas com
práticas de índole artística. (COUTO, 2003, p. 45)

É de referir, ainda, que os próprios confessores instavam algumas freiras, sobretudo as


místicas, isto é, aquelas que experienciavam a união com o divino, a escreverem as famosas
autobiografias, gênero com foros de autonomia na época, onde deviam relatar as suas vidas
antes e depois de ingressarem no convento. Com efeito, o espaço concedido à escrita nos
conventos advinha da necessidade de obras edificantes, que as freiras deviam escrever para
ensinamento, ilustração e recreio das outras religiosas:
Efectivamente, a quase totalidade da centena de mulheres recenseadas com obra
escrita no século XVII são freiras, que, desde tratados sobre a pedra filosofal, a obras de
retórica e eloquência, a tratados sobre Arquitectura Civil, Matemática ou Filosofia, versaram
os mais diversos assuntos e cultivaram um amplo leque de géneros e formatos literários:
teatro, poesia, romance, literatura de feição espiritual e mística. (Galhardo, Labirintos do eros,
68-69)
Não se pense, no entanto, que a questão de gênero fica resolvida. Ser mulher, na
sociedade misógina de seiscentos, significava não aceder ao espaço público, cuja produção
cultural era protagonizada pela “aristocracia ociosa” ou por clérigos que deviam compor uma
literatura de cunho moralizante. Não obstante, como mostra ainda Anabela Galhardo Couto, o
espaço conventual, a condição nobre e o celibato libertavam estas mulheres dos
constrangimentos da vida matrimonial e da reprodução biológica, o que fazia delas excepções

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em relação às restantes, surgindo, ademais, a escritora como uma figura “dessexualizada”: “É
assim que o seu talento é encarado num plano de excepção face ao ser comum e ao gênero
feminino, sendo a escritora, dessexualizada, elevada a uma dimensão mítica e encarada como
criatura prodigiosa (...). (Couto, Labirintos do eros, p. 72-73) D. Francisco Manuel de Melo,
um dos autores mais renomados do barroco em Portugal, refere-se a Soror Violante do Céu
como “10ª musa”, mulher de “raro engenho”, e à sua obra Rimas como “rimas de uma
deidade”.
Percebe-se, também, que um dos traços caracterizadores da literatura de autoria
feminina é o elemento intimista de cunho autobiográfico, dimensão que será assimilada nos
romances sentimentais do romantismo, e que tem, por certo, raiz nesta forma de escrita que as
mulheres inauguram e que a distingue da literatura canônica. Para além disso, estas autoras
conquistaram o espaço possível de liberdade intelectual, num meio que, se as enclausurava,
lhe ocasionava meios, tempo e formas de expressão, apesar do fervor religioso que se
respirava no período contra-reformista, e que ressuma, diga-se também, na maioria destas
obras.
σo ensaio “Literatura de autoria feminina: um patrimônio da palavra a reinventar” que
já citamos, Anabela Galhardo Couto elenca, para além de Soror Violante do Céu (a qual tem
sido alvo de estudos e cuja obra já conheceu várias edições, ainda que não lhe seja concedido
o espaço merecido na história literária), Soror Maria do Céu, Soror Madalena da Glória, uma
galeria de autoras-freiras cuja produção continua inédita e que ajuda a traçar um quadro mais
completo do barroco em Portugal, período marcado pela presença da Inquisição e pela
hegemonia de um sentimento religioso de preservação da ortodoxia católica, que tem,
possivelmente, nos sermões de Padre Antônio Vieira a expressão máxima. O resgate destas
obras de autoria feminina, que permanecem inéditas em acervos de bibliotecas, contribui para
se “compreender o relacionamento da mulher com o saber e a escrita, com a mentalidade da
época e seus condicionalismos” (p. 49), como nos lembra ainda Galhardo, mas também ajuda
a perceber como as mulheres se organizavam em comunidades que, de algum modo, faziam
parte do tipo de organização social do século XVII. Trata-se, frequentemente, de textos de
menor valor literário que informam sobre a vida das religiosas nos conventos, mas nos quais
um olhar atento pode perceber ânsias, sentimentos e conflitos interiores, os quais puderam ser
expressos em obras que existiram à margem da cultura hegemônica e que dão, por vezes,
testemunho de uma sensibilidade nova de mulheres que ansiavam por uma vivência plena
numa sociedade que as constrangia, e que tinha na clausura conventual, nas políticas
matrimoniais e na censura inquisitorial mecanismos eficazes de repressão e controlo
ideológico.
O resgate desse enorme manancial de obras que se encontram depositadas em
bibliotecas mostra, ainda, que Mariana Alcoforado (muito provavelmente, uma personagem
com uma carga de investimento mítico que tem servido a mal disfarçados desígnios
nacionalistas e ideológicos, como mostra Anna Klobucka em Mariana Alcoforado: formação
de um mito cultural) não é um caso isolado de autoria, mas que existe uma produção
importante que merece ser estudada, ao lado de nomes como D. Francisco Manuel de Melo ou
mesmo Padre Antônio Vieira. A título ilustrativo, registrem-se os nomes de outras religiosas
que deixaram autobiografias, não raro, de grande merecimento literário: Soror Isabel do
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Menino Jesus, Soror Francisca do Livramento, Soror Maria da Assunção, Soror Maria
Michaela de S. Bernardo, Soror Rosa Maria de Santa Catarina, Antónia Margarida de Castelo
Branco ou Soror Clara do Santíssimo Sacramento, Madre Maria Perpétua da Luz, Madre
Mariana da Purificação. Anabela Couto menciona, ainda, autoras não religiosas cujas obras a
história literária não registrou: Mariana de Luna, D. Luísa Coutinho, Ana de Lima, Isabel
Senhorinha da Silva, Brites de Sousa e Melo, Ângela de Azevedo. (Couto, Os labirintos de
eros, p. 49)
Se é verdade que a obra destas autoras permanece desconhecida ou desvalorizada,
apesar dos importantes estudos de investigadoras como Ana Hatherly, Margarida Vieira
Mendes, João Palma-Ferreira, Isabel Morujão, Anabela Galhardo Couto e consideráveis
pesquisas no âmbito de mestrado e de doutorado, vale lembrar que o barroco enquanto
período da historiografia literária continua a sofrer do estigma do excesso e do rebuscamento
ao nível das idéias e da expressão, período tido como decadente em relação ao classicismo e
obscuro frente ao racionalismo iluminista.
Como exemplo da escritora consciente da ousadia que constitui a mulher que escreve e
a transgressão que a escrita significa, atente-se nos versos iniciais de Parnaso lusitano de
divinos e humanos versos, de Soror Violante do Céu, traduzidos para português da versão
original em castelhano:

Grande ousadia é que ao Divino


Escolha por assunto humano canto
Mas maior, Senhor, que aspire a tanto
A humildade de um engenho feminino.
(Soror Violante do Céu, 1733)

A autora faz uso do tópico da humildade para insinuar o seu canto feminino ao divino,
estratégia que os escritores clássicos já empregavam para encarecerem o seu talento, ao
mesmo tempo em que se colocavam num estatuto de inferioridade que fazia sobressair a sua
competência artística. Esta estratégia será comum na escrita das mulheres ainda no século
XX, as quais, se, por um lado, receiam ainda o peso de uma tradição literária que desvaloriza
a escrita de mulheres, apodando-a de adocicada ou de exercícios que lembram as prendas
manuais, por outro lado, sentem que não têm por modelos obras de mulheres que lhes
permitam filiarem-se numa tradição feminina. Sandra Gilbert e Susan Gubar, em Madwoman
in the attic, equacionam a questão da autoria feminina em termos de “ansiedade de autoria”, o
medo de não poder criar que a escritora experiencia, por contraste com a “angústia da
influência”, segundo Harold Bloom, que os autores, edipianamente, sentem em relação aos
predecessores.

Do século XVII ao século XX

Atentemos, agora, em duas composições, um madrigal de Soror Violante do Céu,


incluído em Rimas várias, e o primeiro parágrafo da carta primeira de Mariana Alcoforado
dirigida ao Cavaleiro de Chamilly:

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Enfim fenece o dia,


enfim chega da noite o triste espanto
e não chega desta alma o doce encanto;
Enfim fica triunfante a tirania,
vencido o sofrimento,
sem alívio meu mal, eu sem alento,
a sorte sem piedade,
alegre a emulação, triste a vontade,
o gosto fenecido,
eu infelice, enfim, Lauro esquecido.
Quem viu mais dura sorte?
Tantos males, amor, para uma morte?
Não basta contra a vida
esta ausência cruel, esta partida?
Não basta tanta dor? Tanto receio?
Tanto cuidado, ai triste, e tanto enleio?
Não basta estar ausente,
para perder a vida infelizmente?
Se não também cruel neste conflito
me negas o socorro de um escrito?
Porque esta dor que a alma me penetra
não ache o maior bem na menor letra,
ai bem fazes, amor, tira-me tudo!
Não há alívio, não, não haja escudo
que a vida me defenda!
Tudo me falte, enfim, tudo me ofenda,
tudo me tire a vida,
pois eu a não perdi na despedida.
(Soror Violante do Céu, 1646)

Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!,


foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que
esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável
à crueldade da ausência que o causa. Há-de então este afastamento, para o
qual a minha dor, por mais subtil que seja, não encontrou nome bastante
lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos onde já vi
tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de alegria,
que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há? Ai!,
os meus estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes
restam, e chorar é o único uso que faço deles, desde que soube que te havias
decidido a um afastamento tão insuportável que me matará em pouco tempo.
(Alcoforado, [1969] 2004)

Em ambos os textos os sujeitos líricos femininos exprimem a dor da perda, da


ausência do amado, tópico presente também na poética maneirista e barroca, em formulações
que têm ressonâncias das cantigas de amigo, embora na composição trovadoresca a voz
enunciativa seja o travestimento lírico feminino de um autor masculino. Nas composições que
trazem inscrito o ponto de vista da mulher e que são de sua autoria, afirma-se um sujeito
feminino que ama e se comporta como ser desejante e de textos que são a expressão de
sentimentos autênticos ou partem de experiências efetivamente vividas. É evidente que a
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expressão artística não se pauta por critérios de verdade ou de falsidade. Não obstante, a
muitas obras barrocas perdem-se em jogos de palavras e artificiosismos linguísticos que
parecem esvaziar a literatura da função de movere. Por essa razão, parece-nos que estes
excertos podem exemplificar uma sensibilidade distinta que projeta o vivido na arte, própria
de um sujeito individualizado que será característico da estética romântica.
Para terminar, gostaríamos de trazer um excerto de Novas cartas portuguesas (1972),
obra do século XX que glosa as Cartas portuguesas seiscentistas, tida como edifício do
pensamento feminista. Em Novas cartas, a estratégia epistolar, gênero profusamente cultivado
por mulheres, é usada pelas autoras, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho
da Costa, para dialogarem com a sociedade repressora dos anos setenta em Portugal, quando
no resto da Europa e nos Estados Unidos se vivia a libertação dos símbolos da sociedade
patriarcal. A clausura servir-lhes-á de mote para denunciarem um sistema político que
mantém os indivíduos e, sobretudo, as mulheres à margem dos direitos cívicos e humanos de
uma sociedade democrática: “Considerai a cláusula proposta, a desclausura”, pois “há sempre
uma clausura pronta a quem levanta a grimpa contra os usos.” (Barreno, [1972] 2010: 6)
Ainda que o tom combativo desta obra não encontre paralelismo nos textos das religiosas que
vimos seguindo, é possível estabelecer pontos de convergência entre eles, se atendermos às
várias vozes femininas que irrompem em Novas cartas e que aspiram à universalidade, indo
ao ponto de, ficcionalmente, atribuírem textos a Mariana Alcoforado e outras mulheres,
religiosas ou não, traçando uma genealogia autoral feminina que se traduz na expressão
íntima de sentimentos, frustrações e pensamentos que lhes devolva o direito a uma voz que a
história não registrou.

Eis-nos de luta
expostas
sem vencer os dias

as verilhas
certas
no passo retomado

o rever das casas e das causas


o revolver das coisas
que dormiam

Diária é a escolha
o movimento insano
o sossego manso e mais pesado
daquilo que desperta e não quebramos

daquilo que rasgamos


e dobramos
carta por carta em seu perfil exacto

Fêmeas somos
fiéis à nossa imagem
oposição sedenta que vestimos
mulheres pois sem procurar vantagem
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mas certas bem dos homens que cobrimos

E jamais caça
seremos

ou objecto
dado

nem voluntário odor


de bosque seco

vidro dizemos
pedra
caminhada

em se chegar a nós
de barca
ou vento

Remota viração que se reparte


esta que usamos em cumprir
sustento

de pressuposta amarra
em que ficamos

apartadas dos outros


e tão perto
(Novas cartas portuguesas, 1972)

Referências

ALCOFORADO, Mariana. Cartas portuguesas. Ed. Bilingue. Tradução de Eugénio de


Andrade. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004 [1669].
BARRENO, Maria Isabel, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. ed. anotada. Ana
Luísa Amaral (org.). Novas cartas portuguesas. Alfragide: D. Quixote, 2010.
COUTO, Anabela Galhardo. Literatura de autoria feminina: um patrimônio da palavra a
reinventar. In: Zília Osório de castro (dir.), António Ferreira de Sousa e Marília Favinha
(orgs.). Falar de Mulheres: Da Igualdade à Paridade. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.
CÉU, Soror Violante do. Rimas várias de Soror Violante do Céu. Lisboa: Ed. Presença, 1993.
COUTO, Anabela Galhardo. Labirintos de Eros: ruptura e transgressão no discurso amoroso
de Violante do Céu. In: EDFELDT, Catharina, COUTO, Anabela Galhardo (orgs.) Mulheres
que escrevem, mulheres que lêem: repensar a literatura pelo género. Lisboa: 101 Noites, s/d.
SARAIVA, António José, LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 14.ª ed.. Porto:
Porto Editora, 1987.
WOOLF, Virginia. A room of one’s own. England: Penguin Books, 2004.

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NAS BRUMAS DE AVALON: UMA LEITURA DO IMAGINÁRIO SIMBÓLICO DA
MULHER/BRUXA NO FILME AS BRUMAS DE AVALON

Kelliane Felix Gonçalves


UEPB
Maylla Rolim de Sousa Araujo
UEPB
Rafael Francisco Braz
UEPB

Introdução

Dentre o vasto leque de seres estranhos criados pela fantasia humana, a bruxa ocupa
lugar entre os mais populares. Sua universalidade é percebida através de sua aparição de
diferentes formas em diferentes culturas. Mas apesar de aparecer de maneiras diferentes por
influencia da cultura local, a bruxa guarda sempre uma “identidade” que a torna reconhecível.
A imagem da bruxa foi se constituindo ao longo dos tempos, desde os cultos
primitivos à deusa mãe-natureza, as antigas lendas célticas, a feiticeira medieval fabricada
pela Inquisição, e foi ganhando força, ao longo do tempo, através de representações artísticas
e, sobretudo, na literatura alimentada pela tradição oral.
Este presente artigo tem por objetivo fazer uma análise da imagem da mulher/bruxa na
figura de Morgana e Viviane no filme As Brumas de Avalon.

Imagem, Imaginário, Símbolo e Arquétipo

Para falar sobre a imagem da mulher/bruxa é necessário que falemos um pouco sobre
imagem, imaginário, símbolo e arquétipo.
Um dos elementos mais importantes do imaginário é o símbolo, sendo assim grande
parte dos autores “relaciona o símbolo com o mundo do imaginário.” (GIRARD, 1997: 25).
O simbolista Marc Girard em sua obra Os símbolos na Bíblia (1997) classifica o
símbolo em quatro classes distintas, apresentando-as da quarta classe para a primeira. Para ele
a quarta classe cabe ao símbolo das ciências exatas, como por exemplo, os “símbolos
matemáticos”. Nessa categoria

não só o simbolizante, mas também o simbolizado são abstratos: numa


equação, f denota todas as formas funcionais possíveis, e x, todos os
números possíveis. [...] Nessa categoria [...] existe, portanto, [...] uma
dualidade de tipo abstrato-abstrato ou abstrato-concreto. São ajustadas duas
coisas que, por si, não se encontram junto. [...] aquilo que nas ciências exatas
é chamado ‘símbolo’ equivale, nem mais nem menos, a sinal (não natural,
mas puramente convencional).(GIRARD, 1997: 27)

A terceira classe de símbolo para Marc Girard (1997) cabe aos sinais distintivos.
Como por exemplo, a bandeira de um país ou de uma região. Aqui nessa categoria também

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são ajustadas duas coisas que, por si, não estão juntas. O fundamento da analogia existe na
realidade, mas é limitado. Trata-se de símbolos totalmente convencionais. [...] Quanto à
escolha da foice e do martelo como emblema soviético, ela decorre diretamente do programa
operário rural da revolução bolchevique de 1917. Em suma, na bandeira, um simples desenho
concreto representa uma realidade complexa e abstrata (território, nação e até história e
cultura). [...] A dualidade vai sempre do concreto (figura) ao abstrato (por exemplo, honra,
poder, valor). (GIRARD, 1997: 28)
A segunda classe de símbolo para Marc Girard (199ι: 29) “abarca todos os emblemas
enraizados de alguma forma num simbolismo mais profundo” que ganham proporções
universais. Como a representação da paz com uma pomba, de coragem comum leão e do
cristianismo, ou do Cristo, com uma cruz. Nessa categoria de símbolo se encontra uma
dualidade do tipo concreto-abstrato.
A primeira classe de símbolo abarca principalmente os símbolos oníricos (que dão
estrutura aos sonhos) e os símbolos míticos y religiosos. Nessa categoria a dualidade é do tipo
concreto-concreto.
Tomemos o símbolo das asas […] digamos que as asas evocam logo a idéia de vôo, de
leveza, de libertação da escravidão da gravidade, de evasão do domínio da matéria e, portanto,
a idéia de ascensão do homem para o mundo da plena liberdade e da transcendência. [...] Os
onirólogos constatam, entre os humanos, a frequência relativa dos sonhos noturnos de
levantar vôo: o símbolo das asas jaz, portanto, no fundo do subconsciente de cada pessoa,
antes mesmo que a imaginação individual consciente dos poetas e dos literatos se apodere
dele. [...] pertence ao símbolo fundamental das asas tudo o que possui um equipamento de
vôo, isto é, a capacidade de elevar-se. (GIRARD, 1997: 31)
Nesta primeira classe de símbolos não só o simbolizante é concreto, como também o
simbolizado. Mesmo se tratando de símbolos míticos e religiosos que trazem em si realidades
concretas que escapam do sentido. Ainda assim se trata de simbolizados concretos, pois
Girard (1997: 32) fala que “as realidades divinas correspondem ao que existe de mais
concreto, tão concreto que se tornam complexas e inapreensíveis para nossos espíritos
limitados, excessivamente inclinados para a análise e a abstração”.
Assim, vemos que o símbolo carrega em si simbolizante e simbolizado. E que o
símbolo não é arbitrário, pois está ligado a cultura e vivencias de determinada sociedade.
Assim, “τs símbolos são esquemas de ações intencionais, produzidas nas interações entre os
homens em dada situação social ou no interior do texto de um discurso.” (LAPLANTINE &
TRINDADE, 1997: 19).
Outro elemento importante para o imaginário é a imagem. As imagens são construídas
a partir de experiências visuais e informações anteriores. Para Laplantine & Trindade (1997)
as imagens são criadas como parte do ato de pensar e se constituem a partir de como vemos as
coisas ao nosso redor.
Para Laplantine & Trindade (1997) o símbolo se sobrepõe a imagem, pois,

Enquanto a imagem está mais diretamente identificada ao seu objeto


referente – embora não seja sua reprodução, mas a representação do objeto –
, o símbolo ultrapassa o seu referente e contém, através de seus estímulos

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afetivos, meios para agir, mobilizar os homens e atuar segundo suas próprias
regras normativas (LAPLANTINE & TRINDADE , 1997: 13)

Nesse contexto o imaginário emerge do inconsciente universal e a imagem é produto e


produtora do imaginário. Pois mesmo sendo individuais, ou seja, a imagem que uma pessoa
tem sobre um objeto ou pessoa não é a mesma que outra pessoa tem sobre o mesmo objeto ou
pessoa, estão carregadas de sentidos afetivos universais ou arquétipos ligados a estrutura do
inconsciente.
Para Jung (2002) além das memórias pessoais temos também as possibilidades
herdadas da imaginação humana. Essa memória inata constitui as ideias mitológicas e
universais que ele chama de arquétipos.
Os arquétipos forma uma raiz comum a toda humanidade e é dai que emerge a
consciência. A partir disso Jung reconhece duas camadas no inconsciente: a pessoal e a
impessoal que ele denomina o inconsciente coletivo.
Para ele o inconsciente coletivo corresponde a uma imagem do mundo que foi sendo
criada com o passar do tempo e levou eras para se formar. É a parte da psique que armazena e
transmite a herança psicológica comum a toda a humanidade. Essa herança psicológica é o
que ele chama de arquétipo.

Arquétipos são conceitos vazios, não preenchidos. São formas universais


coletivas, básicas e típicas da vivência de determinadas experiências
recorrentes, que expressam a capacidade criativa única e autônoma da
psique. São conteúdos coletivos todos os instintos e formas básicas de
pensamento e sentimento, tudo aquilo que consideramos como universal e
que pertence ao senso comum.(JUNG, 2002: 136)

Assim, entende-se por arquétipo o potencial para repetir determinada experiência e


não a experiência em si.

Arquétipo da “Grande Mãe”

O surgimento desse arquétipo pode ser observado ao longo da história da humanidade,


desde os cultos primitivos a deusa mãe-natureza ou a Grande Deusa.
O arquétipo da Grande Mãe assume três formas. São elas a Mãe Bondosa, a Mãe
Terrível e a Mãe Bondosa-Má. Esta última “permite a união de atributos positivos e
negativos”. (σEUMAσσ, 2006: 33)
No filme As Brumas de Avalon percebemos que a deusa é representada pelo bem e o
mal, ou seja, ela é o equilíbrio entre os dois. Percebemos isso quando Viviane pede que
Morgana ouça a voz da deusa e lhe diz “A Deusa é tudo que há na natureza e tudo na natureza
é sagrado. Ela é tudo o que é belo e também tudo o que é horrível”. E também quando fala
que “A Deusa mantém tudo em equilíbrio: o bem e o mal, a morte e o renascimento, o
predador e a presa”.
Campbell (1990) fala que “τs mitos da Grande Deusa ensinam a ter compaixão por
todas as criaturas. Assim você chega a avaliar a verdadeira santidade da própria terra, que é o

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corpo da Deusa”, pois como disse Viviane “a Deusa é tudo o que há na natureza e tudo na
natureza é sagrado”.
Assim, percebemos que em As Brumas de Avalon a deusa é representada pelo
arquétipo da Mãe Bondosa-Má.

O feminino representa o que [...] chamamos de formas da sensibilidade. Ela


é espaço e tempo, e o mistério para além dela é o mistério para além de todos
os pares opostos. Assim, não é masculina nem feminina. Nem é nem deixa
de ser. Mas tudo está dentro dela, de modo que os deuses são seus filhos.
Tudo quanto você vê, tudo aquilo em que possa pensar, é produto da Deusa.
(CAMPBELL, 1990: 177)

Segundo Campbell (1990: 1ι6) “A ideia da Deusa se relaciona ao fato de que você
nasceu de sua mãe” e segundo ele as sociedades primitivas reverenciavam a figura da Deusa,
a Mãe-Terra e isso estava relacionado ao fato de que essas sociedades viviam efetivamente da
agricultura.

A mulher dá a luz, assim como da terra se originam as plantas. A mãe


alimenta, como o fazem as plantas. Assim, a magia da mãe e a magia da
terra são a mesma coisa. Relacionam-se. A personificação da energia que dá
origem às formas e as alimenta é essencialmente feminina. A Deusa é a
figura mítica dominante no mundo agrário da antiga Mesopotâmia, do Egito
e dos primitivos sistemas de cultura do plantio. (CAMPBELL, 1990: 177)

No filme objeto desta análise percebemos que o culto a deusa estava ligado sim a
agricultura, quando Artur e Morgana, ainda crianças, passeiam a cavalo e presenciam um
ritual da colheita oferecido a deusa.
“E quando você tem uma Deusa como criador, o próprio corpo dela é o universo. Ela
se identifica com o universo. Ela é toda a esfera dos céus que abarca a vida.” (CAMPBELL,
1990: 177). Assim compreendemos o respeito e a devoção que Viviane mostra a Morgana
com relação a Deusa.

Deusa Primitiva. Seu corpo como o próprio universo.

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As Brumas de Avalon

A palavra bruma que é sinônima de nevoeiro que, por sua vez, é símbolo do
indeterminado, de uma fase de transição que ainda não se distinguiu.
Chevalier & Gheerbrant (2009) classifica esse símbolo como “o período transitório
entre dois estados”. E para eles o nevoeiro precede as “revelações importantes; é o prelúdio da
manifestação”.
Em As Brumas de Avalon as brumas marcam a passagem do mundo humano, no caso
a Bretanha que estava sendo invadida não só pelos saxões, mas também pelo cristianismo que
desde o princípio da trama já ameaçava o predomínio da deusa, e o Outro Mundo, ou seja,
Avalon a ilha sagrada da Deusa.
As brumas marcam também a passagem de Morgana de seu mundo de bruxa, com
poderes, dados pela deusa, e rituais, oferecidos à deusa, ao mundo dos humanos, pois depois
que Morgana da às costas a Viviane e a todos os seus ensinamentos os poderes a abandonam e
ela não consegue mais voltar a Avalon e fica perdida nas brumas.

Avalon enredada por suas brumas.

Viviane e Morgana a imagem da mulher/bruxa

Morgana é conhecida como Fada Morgana e seu nome tem origem celta e significa a
mulher que veio do mar.
Morgana é peça principal no filme As Brumas de Avalon, pois é ela quem retrata a
história do rei Artur, seu meio irmão que nasceu para livrar o povo da Bretanha das mãos dos
saxões e garantir que a Deusa de Avalon continuasse a ser cultuada mesmo com a ameaça do
cristianismo que já era vivo e ganhava força.
Morgana é sacerdotisa de Avalon e está presente em quase todos os episódios, pois é
ela que trilha o destino de seu irmão, até quando não se dá conta disso. Morgana é levada por
sua tia Viviane a Dama do lago para Avalon e lá é treinada para substituir a tia.
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Viviane, por sua vez, é a mais importante sacerdotisa de Avalon e é a responsável por
entregar a espada sagrada, Excalibur, forjada em Avalon, a Artur e fazê-lo prometer que
quando fosse rei da Bretanha reinaria respeitando os cultos católicos e os cultos de Avalon.
A imagem de Viviane e Morgana é facilmente associada a bruxas, pois elas realizavam
rituais que já não eram tão comuns e eram dotadas de poderes mágicos com os quais
manipulava o destino dos demais. Vemos isso quando Morgana dá um amuleto a Guinevere
que faz com que Artur a deixe dormir com Lancelot para que tenham o filho que não se gera
de seu matrimônio.

Características míticas e simbólicas de culturas pagã e cristã

Durante todo o filme percebemos características míticas e simbólicas de culturas pagã


e cristã.
Um dos pontos principais encontrados é a transição de religiões em que se adorava
uma deusa feminina, para adoração de deuses masculinos até finalmente chegar ao estágio
onde os dois interagem em uma mesma religião.
Em As Brumas de Avalon percebe-se desde o início o medo que as sacerdotisas de
Avalon têm a respeito do cristianismo, pois até então as mulheres eram respeitadas como
guias espirituais e religiosos e adorava-se a uma deusa.
Com o cristianismo passa-se a adorar um deus (masculino) e os líderes religiosos são
homens. É possível ver essa transição através de Lancelot que diz a sua mãe Viviane que no
mundo dele os homens não precisam esperar por ordens das mulheres e ao final se casa
somente com a benção do cristianismo.
A terceira fase de transição é mostrada já no final, quando Avalon desaparece e
Morgana passeia pelo convento cristão enquanto fala que por muito tempo acreditou que a
deusa havia desaparecido nas brumas, mas depois percebeu que ela só mudou de forma. É a
partir daí que apresenta-se a Virgem Maria. Uma humana tão pura que foi digna de ser a mãe
de Deus. Como fala Campbell (1990: 1κ3) “a Deusa reaparece, sob a forma de um espetáculo
casto e puro, escolhido por Deus para sua ação.”

Conclusão

Assim, percebemos que tanto a bruxa, quanto a Grande Mãe fazem parte do
inconsciente coletivo da humanidade, pois diversas culturas e religião se usam de suas
características para representá-las.
Como fadas, sacerdotisas ou bruxas suas características principais sobrevivem ao
longo dos anos e se estendem por distintos povos, distintas culturas e distintas religiões.

Referências

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Palas Athenas, São Paulo: 1990.


CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. José Olympio, Rio
de Janeiro: 2009.
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GIRARD, Marc. Os símbolos na bíblia. Paulus, São Paulo: 1997
JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2 ed. Vozes, Petrópolis: 2002.
LAPLANTINE, François & TRINDADE, Liana. O que é imaginário. Brasiliense, São Paulo:
1997.
NEUMANN, Erich. A grande mãe: um estudo fenomenológico da constituição feminina do
inconsciente. Cultrix, São Paulo: 2006.

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UMA FLOR DE ALTURA? PERFIL IGNORADO DE LEONOR TELES EM UM
ROMANCE DE ANTÓNIO CANDIDO FRANCO

Larícia Pinheiro Silva


(UEPB)
laricia.anjo@gmail.com
Aldinida Medeiros
(UEPB)
aldinidamedeiros@yahoo.com.br

O romance de António Candido Franco, Vida ignorada de Leonor Teles (2009), retrata
a história de Leonor Teles, que fazia parte da família dos Teles de Meneses, composta por
fidalgos, os quais tiveram certa influência na corte portuguesa, principalmente, por ter na sua
linhagem um conselheiro real, Afonso Teles de Meneses, assim como também condes e
nobres que sempre serviram na dinastia Afonsina.
Segundo as crônicas medievais de Fernão Lopes (2000), Leonor Teles era uma mulher
esbelta e fogosa como a Vênus, além de ser ardilosa para conseguir o seu intento, chegando a
ser fria e repleta de artimanhas para obter o desejado. Casou-se primeiro com um fidalgo
chamado João Lourenço da Cunha senhor do morgado de Pombeiro com o qual teve um filho,
Álvaro da Cunha, e os deixou para passar uma temporada na corte com sua irmã, Maria Teles.
Desse passeio, a Lisboa, hospedando-se no paço da infanta D. Beatriz de Castro, Leonor não
mais retorna, deixando a criança juntamente com o pai abandonados, por causa do rei D.
Fernando, filho de D. Pedro e Constança Manuel. O rei ordena que se desfaça o casamento
dela com o fidalgo e então a desposa.
Após certo tempo como rainha, Leonor descobre o casamento da irmã com o cunhado,
o infante João, filho de D. Pedro e de Inês de Castro, ficando perplexa por não concordar com
esse enlace matrimonial, acaba induzindo o príncipe a matar sua esposa para que assim o
mesmo deixasse Portugal, tirando-os do seu caminho no reinado. Depois planejou matar João
de Avis e Gonçalves Vasques de Azevedo em nome do rei, por fim, tenta tronar sua filha
rainha de Portugal e Castela. Depois de um período foi proposto pelo conselho um novo
enlace da rainha Leonor Teles com o novo possível substituto do falecido rei D. Fernando seu
irmão bastardo João de Avis. Ficando assim conhecida a jovem dos Teles de Meneses através
das crônicas medievais de Fernão Lopes (2000).
O romance histórico contemporâneo mostra um fato histórico, mas não através de uma
descrição como o conhecemos, pois traz uma nova visão sobre os acontecimentos, com uma
releitura do ocorrido, como demonstra esse romance que configura uma nova personalidade
para Leonor Teles: sensível, delicada, e sem busca pelo poder, nem vingança. Conforme
explica Antônio Esteves (2010), em um ensaio sobre romance histórico: “Segundo mudam as
concepções do romance e suas relações com a sociedade, também muda o romance histórico,
da mesma maneira que ele se vê afetado pelas mudanças epistemológicas que se verificam na
concepção de história”. (ESTEVES, 2010, p. 2ι).
Assim, o romance histórico contemporâneo traz uma nova visão dos acontecimentos,
não ficando detido a maneiras de produção do período clássico do romance histórico, pois cria
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uma nova forma de retratar a História, diferente do que vinha sendo feito, já que trata de uma
inovação na maneira de tornar ficção com aspectos históricos. Além de ter-se uma nova
perspectiva sobre a posição do povo nessa história a qual está sendo contada, surgem, então,
as pessoas secundárias, como a criada da protagonista, ganhando um enfoque maior nessa
narrativa de Franco (2009), e até a própria Leonor, a qual ficou em algumas obras em segundo
plano, torna-se a protagonista e a heroína.
Em seu ensaio O romance histórico em Portugal (1999), Maria de Fátima Marinho
parte dos estudos de Lukács (2011) sobre o romance histórico, e afirma:

Georges Lukacs [sic] considera que antes de Scott, os romances que se


ocupavam de épocas diferente das dos seus autores se limitavam a uma
escolha puramente exterior de temas e de ambientes, sem nenhuma espécie
de consciência dos grandes movimentos históricos-sociais [...]. (MARINHO,
1999, p. 13).

Além disso, há a função trans-temporal entre o tempo (presente) do romancista e o


tempo (passado) sobre aquilo que escreve. Considerando essa colocação de Maria de Fátima
Marinho (1999), pode-se perceber que os autores, atualmente, ao escolher sobre o tema a ser
abordado na produção, incrementam os costumes da época aos quais suas personagens vão
retomar, pois isso auxilia a se ter uma melhor compreensão do enredo, trazendo certos
comentários sobre fatos sociais e históricos que vai retomando no decorrer da narrativa.
Principalmente, numa obra como essa de Franco (2009), a qual os conflitos histórico-sociais
são tão essenciais para podermos melhor compreender determinados acontecimentos.
No romance de Franco (2009), Leonor Teles ganha um novo perfil, em relação a
outros romances de outros escritores que a tratam sempre como aleivosa. Cândido Franco traz
a sua história retratando-a desde cedo, começando pelo período da morte dos pais, sendo
criada pelos tios: Guiomar Pacheco e João Afonso Telo (conde de Barcelos e o primeiro
privado do rei Fernando - conselheiro real) na companhia de sua irmã, Maria Teles, e das
primas. Era descrita como uma menina recatada, tímida que gostava de evitar o convívio
social, detestava festas, reuniões festivas, pois preferia o isolamento da sua alcova onde
costumava ficar com sua criada Maria Peres, também confidente e companheira:

Leonor olhou-a sem surpresa. Maria conhecia-a melhor do que qualquer


outro. Ainda assim, estava longe de perceber o vulcão que ardia dentro dela
e sobretudo desconhecia aquele sentido interior que lhe activava a visão
mediúnica. A sua discrição era incondicional. Maria Peres era porém para
ela nessa época a única ponte com o mundo.
— Digo-vos para vosso cuidado. Este mundo me ofende e ensandece. Não
lhe pertenço nem o quero.
— Falais assim por causa do agravo com vossos irmãos? (FRANCO, 2009,
p. 55).

Assim, notamos o quanto Leonor confiava na sua aia, pois a ela contava seus desejos
mais íntimos como o fato de não gostar de viver neste universo social, almejando dele um
distanciamento. Neste sentido do universo particular de Leonor, na qual sua aia tem
importante papel, lembramos as palavras de Fátima Marinho (1999), ao afirmar que o
romance histórico português reconstrói “[…] uma época através dos seus fragmentos
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textualizados, os autores vão-se movimentando entre personagens referenciais e personagens
inventadas, dando primazia a umas ou a outras consoante as suas convicções. [...]”
(MARINHO, 1999, p. 21).
Na ficção de Cândido Franco (2009), antes de Leonor casar-se e conhecer o infante, a
infanta D. Beatriz de Castro, filha de D. Pedro com Inês de Castro, convida as primas e a irmã
de Leonor para a corte, onde ficariam como suas damas de companhia e a mais nova dos
Teles de Menezes as acompanha. Mas por ser muito recatada e reclusa, acaba voltando para a
estância dos tios, os quais a levam para um convento, porém, não passa no teste para se tornar
freira. Tempo depois os tios arranjam um casamento com João Lourenço da Cunha, um
morgado rico que vivia em Pombeiro, afastado da corte.
É nítida a oposição entre a personagem do romance e a rainha descrita nas crônicas
medievais que queria um maior envolvimento social e riqueza, já segundo Franco (2009) a
protagonista só espera ficar só no seu paraíso imaginário, e através desse e outros argumento
o autor consegue compor um novo perfil da personagem, por meio dessa configuração
ficcional tornando sua narrativa mais real:

O terceiro argumento assenta na natureza de cada componente da retórica,


pois a argumentatividade, a figuratividade e a arquitectura dispositiva são
propriedades essenciais à construção da ficção, cada uma por razões
específicas [...]. (VIEIRA, 2008, p. 137).

Com todas as características expostas por Franco (2009) mostra sua forma de
argumentação para conseguir uma construção da figuração da sua protagonista de modo a
enobrecer sua heroína, e dar-lhe um novo perfil, através desses novos traços da personagem
que ele esboça mostrando-a mais sensível, delicada, mas com a mesma independência e
coragem. Assim, auxilia no enaltecimento do romance e torna-o próximo do real. Isto
corresponde ao que aponta Marinho, que cada romancista vai escrever a sua versão, “[...] uma
outra versão da mesma História, tantas vezes ouvidas e decoradas.” (MARIσHτ, 1999, p.
234).
A Leonor da ficção de Antônio Franco (2009) gostava de refletir sobre a vida, amava a
natureza e os seres vivos. Diferente das moças de sua idade, não desejava casar, pois
acreditava não ter sido feita para isso. Era a mais nova e a menor das donzelas dos Teles de
Meneses. Apresentava a pele branca, cabelos ruivos, olhos verdes como esmeraldas, muito
delicada, sensível, religiosa, vegetariana, carinhosa, porém, fingia aspereza quando tinha de
comparecer no conselho, reuniões ou qualquer coisa que a levasse ao convívio com outras
pessoas. Preferia ficar invisível aos olhos dos demais, para não ter de se relacionar com eles e
que não pudessem observá-la, além de almejar uma independência possibilitando controlar a
sua vida sem as interferências dos demais, ocultando tais desejos ao conhecer o infante D.
Fernando:

— Que mãos, Leonor! Nunca as vi assim tão brancas.


— Ninguém lhes tocou antes de ti.
— Parecem escupidas em mármore raro.
— Por ti o desenterrei.
— E que olhos Leonor! Têm a beleza e a profundidade do mar.

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— Polidos foram para ti, Fernando.
— Os teus olhos são jóias raras.
— Guardadas ficaram para que tu as visses.
— E os cabelos, Deus meu! São um incêndio de Sol e de luz.
— Acesos foram para ti.
— Que lábios tão apetitosos!
— São teus.
— A brancura da pele do teu pescoço seduz mais que pérola.
— É tua. (FRANCO, 2009, p. 178).

Este foi o primeiro encontro íntimo entre o infante Fernando e Leonor Teles a sós em
Alcobaça, na casa onde viveram Pedro e Inês, além de ser a primeira vez que a via sem sua
capa preta de veludo a qual a deixava quase invisível ao resto do mundo. Assim percebemos
em Vida ignorada de Leonor Teles (2009) a descrição feita dessa mulher diferente da
conhecida até esse momento através das produções de Fernão Lopes (2000), no romance o
discurso do autor está voltado para a desconstrução desse ser que até o momento ficou
marginalizada. Franco (2009) apresenta Leonor como um ser místico e romântico, distinta da
figura histórica que foi tida como uma pessoa sem nenhum caráter, nem princípios e através
desse novo perfil pode mostrar o oposto, como ter casado com o infante não por interesse
mais por amor:

— E as pintas... as pintas do teu rosto são mais belas e profundas que as


luzentes estrelas do verão.
— ...
— E que hálito, Santa Maria!
— Sopra para ti.
— E o teu peito, Leonor... Que peito! Nunca o descobri mais alvo e
delicioso.
— Esperava por ti.
— E o teu perfume! O teu perfume embriaga mais que mirra e incenso.
— Sê certo, que só para ti o destilei.
— Que perfeito é o teu corpo, meu amor!
— Dele haverás quanto quiseres.
— Leonor... Leonor... Morro nos teus braços. (FRANCO, 2009, p. 178-
179).

Nesse fragmento mostra o quanto D. Fernando e D. Leonor Teles se amaram, no


romance, diferentemente da descrição nas crônicas de Fernão Lopes (2000) que coloca a
protagonista como uma mulher interesseira casando-se com o infante só para tornar-se rainha
sem o amar. Mas antes do casamento entre o infante e Leonor foi sua irmã Maria Teles, viúva
de fidalgo bem apessoado da corte morto numa guerra com o qual tem um filho, que tem um
caso com Fernando, pois o conhece no paço da infanta D. Beatriz de Casto e como era
costume da época as mulheres, as quais já foram casadas eram alvos fáceis para as volúpias, o
infante por ser fogoso gostava de aproveitar desses favores e muito deitou com ela, isso revela
os costumes da época como aponta Esteves (2010):

Embora narrativas fictícias tratadas de fatos ou de personagens históricas


tenham existido praticamente desde a Antiguidade, costuma-se apontar o
nascimento desse gênero no início do século XIX, durante o romantismo,
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pelas mãos de Walter Scott (1771-1832). Foi resultado de uma série de
eventos históricos, como a Revolução Francesa e as consequentes
campanhas napoleônicas, que levou o homem da época ao despertar de certa
consciência de sua condição histórica. E coube a Scott, no processo de
afirmação do romance como epopeia da burguesia, criar essa nova variante
narrativa, cujos personagens, ao mesmo tempo que estão profundamente
inseridos no fluxo da história, atuam de modo que seu comportamento
explicite as peculiaridades da época apresentada. (ESTEVES, 2010, p. 31).

Com isso, notamos as diversas retomadas de costumes da época em estudo, no


romance, não apenas essa questão dos prazeres com as viúvas, mas das mancebias, dos paços
como a sua maneira de ser organizado e ornamentado, e a questão das jovens fidalgas serem
encaminhadas aos paços das princesas para servirem de companhia. O infante após certa viaje
acaba com sua mancebia com Maria Teles, a qual se sentindo rejeitada pede ao tio para trazer
a irmã de modo que essa possa ajudá-la a superar sua solidão, no entanto, tudo não passava de
uma artimanha sua para vingar-se do futuro rei. Mas o infante ao conhecer Leonor apaixona-
se e manda desfazer a união dela com João Lourenço, visto que o casamento da jovem não se
havia consumado, para ele, Fernando, casar-se com ela. Isso deixa Maria Teles desapontada,
então, ela retoma um antigo envolvimento com um dos irmãos do infante de modo que
ninguém percebesse o quanto ela estava revoltada com aquela situação e planeja matar o rei:

— Fernando!... Fernando, meu amor!


— Leonor... Leonor... Que desgraça aqui se ordenou em nosso desfavor?
— Santa Maria val! Estás vivo e entendes a portuguesa faladura!
— Mas que aflição aqui se vazou, diz-me?
— Alguém armou o braço de peçonha para te matar na alcáçova de
Santarém.
— Pardiez! Por quê? Não posso crer. Que fiz eu?
— Sossega, só a traição pode estar por trás dum tal golpe.
— E que novas de mim houve após tal perfídia?
— Morreste e voltasse à vida!
— Ó alto Deus, que me concedes a graça que a meu pai deste. Bendito seja
Ele.
— Bendito seja Ele, que nos mostrou que aquele que morre pode voltar à
vida. [...]
— Recordas por onde tua alma andou fugida?
— Lembro apenas de ter despertado ao teu contacto.
— Não quero perder o teu amor.
— Sem ti, Leonor não teria regressado.
— Não posso viver sem a tua adoração. É ela que me move. (FRANCO,
2009, p. 219-220).

Esse momento é quando Leonor consegue por meio do seu mundo invisível trazer D.
Fernando a vida, após o atentado cometido por Maria Teles, dessa forma o autor inocenta a
protagonista de ter tentado matar seu marido, pois é através de um veneno na carne do rei que
a irmã da rainha envenena o infante. Ao refazer-se do atentado o rei passa o trono para
Leonor, quando ele estivesse morto, para ela governar independente mesmo sem ter um rei ao
lado e divide toda sua riqueza de modo a deixar sua amada e sua filha, amparadas e

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protegidas, além de arranjar o casamento da filha com o rei de Castela para acabar com as
inimizades.
Sem deixar de notar a grande relação de poder existente no fato citado posteriormente
que foi a quase morte de El-rei Fernando, resolvendo definir sua herança de modo a acabar
com os conflitos de guerra e até visando à questão econômica da filha e da esposa após sua
morte:

— Filha, mais do que falar me parecia que havíamos de pôr um espaço de


paz na desordem desta guerra.
— [...].
— Senhora, se assim sóis teúda [sic], sabei que daqui não iremos sem
havermos o reino que meu pai me deixou por sua morte, pois outro filho de
vós não havia. E daqui não iremos sem termos nossa vingança do mestre
pelos tão nojosos gestos que ora se fazem em tantas cidades e vilas do reino
e de que vós tendes melhor notícia do que nós.
— Grão mal fazeis dessa guisa a vossa mãe. Cismava eu na vossa lembrança
e na vossa pouca idade para vos abraçar como filha e não para vos falar
como rainha, disputando convosco a herança de vosso pai. (FRANCO, 2009,
p. 307-308).

Mostra nesse fragmento este conflito de interesses, tanto sociais como econômicos
após a morte de D. Fernando, através de uma conversa entre a rainha Leonor Teles e sua filha,
rainha de Castela, que trata da vontade do rei de Castela de governar Portugal. Depois do
falecimento de D. Fernando, começa uma briga pelo poder, alguns fidalgos convencem seu
meio irmão, o conde de Avis a casar com a rainha e governar o trono, porém, ela não aceita,
criando-se um motim. O rei de Castela genro de Leonor exige o trono, mas ela deixa bem
claro que não dará, ele a convida para uma conversa e ao não conseguindo seu intento, a
prende. Depois manda a esposa para convencer a mãe, no entanto, também não obtendo nada,
deixam-na reclusa numa masmorra.
Muitos anos depois Leonor com a morte do genro é libertada, ela volta para Alcobaça
onde ficava a casa construída por Fernando para eles dois amarem-se, perto da de Pedro e
Inês, mas tudo tinha mudado e a casa não mais a pertencia. Ela cruza o mar seguindo para
uma ilha, ficando lá dentro de uma caverna, longe de tudo e de todos, até que um dia avista o
Mestre de Avis, neste momento o rei de Portugal. Leonor volta para falar com El-rei o qual
tenta dissuadi-la a ficar com ele, ela recusa, segue para terras desconhecidas e perigosas de
onde não mais volta nem se tem notícias, mesmo com todas as tentativas do Mestre para
reencontrá-la.
Com isso notamos quão diferente é este perfil traçado por Franco (2009) daquela
Leonor descrita nas crônicas medievais ou em textos que têm por fonte o cronista português
Fernão Lopes (2000):

E, durante assi per tempo, a rainha nom perdia cuidado da fazenda do infante
e de sua irmã, pensando todavia que per tal casamento se lhe poderia seguir
desfazimento de sua honra e estado. E, pera desviar isto de todo ponto, azou
de fazer entender ao infante que lhe prazeria de o ver casado com a infanta
Dona Beatriz, sua filha. E falou todo seu cuidado com D. João Afonso Telo,
seu irmão, que lhe era muito obediente por muitas mercês que dela recebia,
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que encaminhas-se como o infante houvesse disto algum conhecido.
(LOPES, 2000, p. 74-75).

Lopes, por conseguinte os cronistas que o tomam como fonte, descreve Leonor como
uma mulher interesseira, fria e sem sensibilidade, ressaltando sobretudo seu desejo pelo
poder, ficando mais evidente seu ato de planejar a morte da própria irmã, Maria Teles, sem
sentir nenhum remorso.
Essas diferenças entre a Crônica e modo de escrever o romance histórico
contemporâneo – as quais podemos denominar como liberdade do romancista – evidencia
essa nova maneira de se produzir ficção com conteúdo historiográfico, através da qual alguns
personagens não conhecidos ou pouco conhecidas, ganham uma oportunidade de poder ser
conhecidas, como as pessoas que estão por trás dos grandes e poderosos, como é o caso de
Maria Peres e João Afonso Telo, aqui com maior destaque no romance de Cândido Franco
(2009):

— Desconfia, já que a maravilha dum casamento del-rei de Portugal com


uma Teles de Meneses é esmola por de mais grossa para ser verdadeira. Mas
fica atenta, porque o amor é cego e não vê o que nós vemos.” (FRAσCτ,
2009, p. 170).

Dessa forma, demonstra a importância do tio de Leonor que é um personagem


secundário, mas contribui para a ocorrência de fatos significativos dessa história. Assim, o
autor dá voz ao povo, ou a personagens que sempre estiveram no âmbito secundário das
narrativas, para poder mostrar sua intervenção em alguns fatos.
Franco (2009) faz uma retomada de um fato histórico e uma releitura na qual a sua
mundivisão é que determina os fatos do enredo. Através dessa obra sempre poderão
rememorar transmitindo para as pessoas que conhece o seu saber e as relações sociais
decorrentes deste período da existência de Leonor, retomando questões históricas desde o
reinado de D. Pedro, D. Fernando e até a revolução que culmina na dinastia de Avis, com D.
João de Avis sendo conduzido ao trono por nobres e populares.
Nesse sentido, há toda uma retomada da História e Memória de Portugal. E como
aponta Le Goff (19κ2): “[...] a memória colectiva formada por diferentes estratos sociais sofre
na Idade Média profundas transformações” (LE GτFF, 1982, p. 27). Percebemos que a
narrativa sempre aborda questões ligadas ao personagem e sua convivência com diferentes
grupos sociais e até o isolamento, mostrando diversos aspectos da cultura do reinado
Português de D. Fernando, suas crenças, bem como os costumes durante aquele período.
No romance de Cândido Franco, D. Fernando governa tudo sozinho e após sua quase
morte Leonor começa a acompanhá-lo nas decisões do reino. Ao contrário disso, nas Crônicas
a rainha, com grande sede de poder, sempre acompanha seu marido e sempre o auxiliava nas
decisões, além dele não ter sido envenenado por Maria Teles. Em ambos ele organiza a união
da sua filha com o rei de Castela, mas o diferencial é que em Lopes (2000) é uma decisão em
comum acordo planejada de certa forma por a rainha de Portugal, enquanto Franco (2009)
coloca como sendo de responsabilidade exclusiva do rei. O que mostra essa disparidade entre
a historicidade e a ficção, de acordo com Esteves (2010) e Marinho (1999) vendo essa mescla
entre fatos reais historicamente expostos e os que são apenas criação do imaginário do autor
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que os utilizou para dar uma maior coerência e coesão para narrativa, como o fato da omissão,
no romance, da prisão do Mestre de Avis e ao mesmo tempo a morte de João Fernandes
Andeiro.
Enfim, como podemos notar, a obra literária de Franco (2009) demonstra não apenas a
narração de um fato histórico, mas inova na maneira de fazê-lo, promovendo uma releitura da
História que acaba por trazer inovação na produção de sentido, dentro daquilo que aponta
Luckács (2011) em seu estudo sobre o romance histórico.
Além de proporcionar uma oportunidade para os personagens secundários de
expressarem-se de sua perspectiva sobre os acontecimentos, como afirma Marinho (1999) e
Esteves (2010), como o autor vem revelar a respeito “dessa” Leonor Teles, a qual até então
não era conhecida, se não através das crônicas medievais que têm como fonte Fernão Lopes
(2000).
Vista sempre como uma mulher sem coração, incapaz de demonstrar qualquer amor, a
Leonor de Cândido Franco recebe um perfil que retoma, em certos aspectos, uma visão
romantizada, com algumas das características presentes em alguns romances do início do
século XX. Esta é uma escolha do autor, que opta por uma linha mais saudosista da História,
sem a necessidade de se ver obrigado aos estatutos de uma romance mais verossímil, porque
histórico, respeitando o contrato mimético, mas privilegiando a ficção com uma Leonor Teles
Flor de Altura.

REFERÊNCIAS

ESTEVES, Antônio R.. O romance histórico brasileiro contemporâneo. São Paulo: Ed.
UNESP, 2010.
FRANCO, António Candido. Vida ignorada de Leonor Teles. Lisboa: Ésquilo, 2009.
GOFF, Jacques Le. História e memória: memória. II v. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1982.
LUKÁCS, György. O romance histórico. (tradução Rubens Enderle). São Paulo: Boitempo,
2011.
LOPES, Fernão. Crónicas de Fernão Lopes: Introdução e notas por Maria Ema Tarracha
Ferreira. Lisboa: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 2000.
MARINHO, Maria de Fátima. O romance histórico em Portugal. Porto: Campo das Letras,
1999.
VIEIRA, Cristina da Costa. A construção da personagem romanesca. Lisboa: Colibri, 2008.

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SUTIÃ DE AÇO: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER GUERREIRA NO FILME
COMO TREINAR SEU DRAGÃO

Ricardo Wagner Menezes de Oliveira


(UFC/Valknut)1
rwmenezes@hotmail.com.br

Figura 1: Poster do filme no Brasil. Detalhe para o elmo de Soluço feito a partir do protetor de
seios de sua mãe.

Pensar em viking é pensar em bárbaros robustos com enormes machados nas mãos e
elmos com um par de chifres prontos para velejar e pilhar alguma aldeia, no entanto esta
imagem que temos é fruto de muito tempo de representações. Desde 793 d.C. até os dias
atuais, a imagem dos vikings vem sendo construída e reconstruída de acordo com vivências,
ideologias e intenções de povos e épocas diversos. Na realidade, apenas uma porção
relativamente pequena de seus membros se atirava aos saques e às aventuras de colonização.
Em sua maioria, o povo viking se dedicava à agricultura, à pecuária, à pesca e ao comércio
nas terras localizadas ao extremo norte e nordeste da Europa, principalmente em uma região
conhecida como Escandinávia. Eles colonizaram a Islândia, a Normandia, a Grã-Bretanha, a
Groelândia, a Irlanda e até a América do norte 500 anos antes do período das “Grandes
σavegações”.
τ termo “viking” ainda é motivo de debate entre estudiosos, porém a origem mais
provável é que seja um desenvolvimento da palavra vik que significa baía/enseada, local onde
os navios eram atracados para que pudessem descansar ou emboscar outras embarcações. De
qualquer forma, a palavra viking moderna é proveniente do termo em nórdico antigo vikingr,
utilizado para designar piratas, aventureiros e mercenários.

1
Graduando em História pela Universidade Federal do Ceará. Coordenador do Valknut: Grupo de Estudos
Vikings.
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Durante muitos anos os povos vikings comercializaram, saquearam e colonizaram
diversos territórios pelo mundo. Muito se discute acerca das razões que levaram os
escandinavos a realizar suas incursões, sendo consideradas mudanças climáticas e
superpopulação (DUBY 1980), divergências legais e sociais, condições mercantis, tecnologia
náutica avançada e até disputas por poder. (LANGER, 2009)
Sua sociedade era estratificada, cada região possuía sua organização, porém não
possuía estrutura muito rígida, de forma que a mobilidade social era algo comum, podendo
um fazendeiro se tornar nobre e um escravo comprar sua liberdade. Acima de todos estava o
rei, chamado de Kunungr. Este seguia a tradição germânica de ser o primeiro entre os iguais,
seguido pelos nobres Jarls, chefes locais que forneciam suporte militar ao rei, a camada mais
numerosa dos Karls, composto por homens livres em geral e por último os escravos chamados
de Thrall, que foram algumas das mercadorias mais populares para o comercio com os árabes.
A educação das crianças vikings era responsabilidade do pai e às vezes de um poeta
(Skald) que o ajudava contando histórias e lendas para as crianças. O trabalho infantil era
comum e variava de acordo com o sexo e a idade da criança. As crianças iam gradativamente
sendo apresentadas às atividades que cabiam ao seu sexo, como a arte da ferraria para homens
e a tecelagem para as mulheres. A infância durava até por volta dos 15 anos, quando os
meninos começavam a sua participação na política e nas guerras e as meninas se preparavam
para se casar.
A mulher viking gozava de uma ampla liberdade, se comparada com a mulher
europeia em geral. Podia possuir terras e outros bens, cultivar, comercializar e era dela a
escolha de casar ou não com o pretendente designado pelo pai, tinha o direito de pedir
divórcio e poderia até possuir um status elevado herdando bens de um marido falecido.
Entretanto poderia perder a liberdade e a vida caso cometessem crimes, como o adultério, que
dava direito ao seu marido de executa-la. Eram destinadas a ela as tarefas domésticas
(GRAHAM-CAMPBELL, 1997).
O papel da mulher era cuidar dos afazeres domésticos cuidando das crianças,
preparando os alimentos, limpando a casa, lavando a roupa, dedicando-se a tecelagem sendo
também de sua responsabilidade ordenhar as vacas, fazer queijo e manteiga, preparar
remédios e tratar dos doentes e feridos (MALTARO, 2005).
Na ausência do marido, a mulher tem total controle sobre os bens da casa, sendo
atribuído a ela o símbolo das chaves (LANGER, 2010), além de assumir as responsabilidades
do marido nos assuntos externos da casa.
Não existe nenhuma evidência arqueológica da existência de mulheres vikings
guerreiras, há sim escavações nas quais foram encontrados corpos de mulheres sepultadas
junto a armas e armaduras, mas a presença de tais artefatos está ligada à representação um
status social elevado desta mulher, uma vez que possuir tais equipamentos custava caro. Da
mesma forma, não há menção a mulheres guerreiras na maioria das sagas islandesas, tanto de
família quanto as contemporâneas2, salvo alguns casos de autodefesa, como o famoso caso da

2
As sagas de famílias e as sagas contemporâneas possuem um caráter mais crível, pois o termo saga advém do
verbo Sjá que significa “aquilo que foi visto”, portanto ligada a memoria.
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Freydís Eiríkdóttir, tendo aparições apenas nas sagas lendárias3, nas quais a representação
feminina está voltada para o modelo mítico das valquírias (LANGER, 2012). Existe na obra
Germânia de Tácito algumas passagens em que se fala de mulheres em guerras, mas essas
também estão ligadas a autodefesa ou casos raros e até mesmo a mitos.
Reza a tradição que, muitas vezes, quando as batalhas perigavam o fracasso se
aproximava, as mulheres restauravam as linhas rompidas, obrigando o esquadrão a retornar a
frente, quando em fuga, com a persistência das suas súplicas, opondo-lhes feitos e
amedrontando-os com o cativeiro como consequência (...) (TÁCITO).4
As representações modernas no cinema, nas HQs e outras produções culturais de
massas acerca da mulher viking estão recheadas de fantasia. Atendendo às necessidades de
mercado, a indústria se volta ao apelo da sensualidade e da violência em suas produções,
destinando seus produtos para o público jovem.

Figura 2: Reprodução da personagem Figura 4: Xena, a Princesa Guerreira. Figura 3: Capa do HQ Red Sonja.
Freya do filme "Outlander, Guerreiro
vs Predador".

Símbolo desta tendência é a HQ criada em 19κ2, por Roy Thomas, chamada “Red
Sonja”. Inspirada nos contos de Robert E. Howard, Red Sonja é uma guerreira de força e
destreza descomunais, ela se equipa com armas enormes e uma espécie de biquíni de metal
como armadura, atingindo, em cheio, os objetivos de vendas e fixando a imagem da mulher
sensual e belicosa. τutros exemplos dessa imagem é a série de TV “Xena, a princesa
guerreira” de 1995, a personagem Freya do filme “τutlander: Guerreiro vs Predador” de 200κ
e, não se pode desconsiderar no que concerne à cultura de massas, os diversos jogos de RPG,
que tem grande popularidade entre os jovens (LANGER 2012).
Todas estas representações modernas tiveram duas grandes influências. A primeira, de
cunho mais ideológico, surgiu com o feminismo pós-Segunda Guerra, quando as mulheres,

3
As sagas lendárias, como o nome já sugere, diverge das outras sagas por está repleta de elementos fantasiosos,
portanto menos digna de confiança no que se refere ao real.
4
Temos esta passagem como ligada à lendas, posto que Tácito utiliza os termos “Reza a tradição”.
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que ocuparam os mais diversos setores econômicos enquanto os homens haviam sidos
enviados para a batalha, foram sendo empurradas de volta ao trabalho doméstico depois que a
guerra terminou e os soldados quiseram ocupar seus antigos postos de trabalho. Este
sentimento da mulher como capaz de realizar as mesmas tarefas que o homem, mesmo
utilizando sapatos de salto alto, logo fora absorvido e ascendeu às produções de sua época.
Um bom exemplo é o filme “The Saga of the Viking Woman” de 195ι, na qual as mulheres
vikings são postas como intrépidas e completamente independentes, construindo seu próprio
navio e indo se aventurar nos mares até encontrar a grande serpente marinha. Temos também
o filme “The Viking Queen” de 196ι que, apesar de se tratar de Boudica, uma líder celta que
tenta resistir à invasão romana na Grã-Bretanha, é chamada de viking por sua posição de
guerreira. τutra personagem que não se pode esquecer é Éowyn*, da trilogia literária “τ
Senhor dos Anéis” de 1955 escrito pelo aclamado J. R. R. Tolkien, onde ela mesmo sendo
uma dama da corte de seu povo, desobedece seu tio e rei e se traveste de guerreiro, monta um
cavalo e cavalga para batalha.
A segunda grande influência está ligada ao romantismo oitocentista na produção
artística e as aspirações nacionalistas dos estados nacionais em formação do Séc. XIX. Os
pintores e músicos desta época buscaram realizar em suas obras um enaltecimento de um
passado glorioso e que pudessem se orgulhar e se identificar.
As modernas imagens sobre os bárbaros europeus foram criadas com o romantismo
oitocentista. Respondendo aos diversos anseios nacionalistas, as antigas paisagens e os
personagens medievais foram resgatados para construir identidades modernas: os celtas para
os franceses; os teuto-saxões para os alemães e os vikings para os escandinavos (LANGER,
2009).
Para os artistas escandinavos, os ancestrais vikings foram logo sendo resgatados e
acabaram estrelando a maioria das produções destes anos. Grandes pintores como Peter Arbo,
Johanes Flintoe e W.G. Collingwood realizaram belíssimos trabalhos com representações do
povo escandinavo, tendo como a mais popular e famosa pintura de sua época a tela “Funeral
de um viking” de 1κ93 do pintor Francis Dicksee, porém esta pintura apresenta os vikings
com uma grande carga de estereótipos, onde guerreiros enormes portando elmos com chifres
empurram um navio-tumulo incendiado com o corpo de um líder dentro.
Mas de todos os artistas que ganharam fama e reconhecimento, o mais importante foi
o maestro, compositor e teatrólogo alemão W. Richard Wagner, que compôs uma grande
quantidade de musicas e óperas, que ficaram conhecidas em todo o mundo e se tornaram a
maior referencia da imagem dos vikings para o mundo moderno. “Foi somente com Richard
Wagner que se instaurou a moderna representação dos mitos germânicos e, ao mesmo tempo,
fundiram-se representações específicas advindas do mundo celta” (LAσGER, 2009). Richard
Wagner, juntamente com o pintor T. Pixis, que pintou os cenários de suas óperas, criaram
uma atmosfera que ilustra o imaginário viking até o nossos dias com a composição do “Ciclo
do Anel”, uma narrativa adaptada de uma das mais famosas sagas lendárias, a Volsungasaga.
Escrita no Séc. XIII essa saga conta a trajetória de um herói Sigurðr, o matador de
dragão e relata a participação de três mulheres que estão diretamente ligadas à história do
herói: Brynhilðr, Guðrun e Grimild. Na narrativa, Brynhilðr (uma das personagens centrais do
“Ciclo do Anel” de Wagner) se apresenta como uma guerreira divina que portava
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equipamento de guerreiro completo, mas que desobedeceu a uma ordem de Odin e recebeu
como punição a proibição de lutar e agora teria de se casar e assumir as atividades domésticas
(MALTARO, 2005), entretanto seu passado guerreiro foi que a deixou famosa e esta foi a
imagem que ficou. Wagner a imortalizou em suas operas e desde então sempre se recorre a ele
quando se busca a imagem de uma guerreira viking. As outras duas estão presentes mais na
esfera doméstica, sempre ligadas às tarefas familiares e à magia. Também assumem o papel
de incitadoras de conflitos e manipuladoras, utilizando-se dos mais diversos meios para
convencer seus maridos e parentes a fazer o que elas quisessem.

Figura 5: Anton Van Rooy como Wotan na Figura 6: Atriz desconhecida interpretando
ópera de Wagner. Brynhilðr na ópera de Wagner.

A recente produção cinematográfica “Como Treinar seu Dragão” (2010) conta a


história de Soluço (Hiccup, no original), um garoto viking que sonha em conseguir renome
em sua vila, mas para isso ele deve matar um dos vários dragões, arqui-inimigos de seu povo.
Ele entra para o grupo de aprendizes guerreiros e encontra vários amigos, incluindo Astrid,
uma jovem garota dedicada a aprender as artes vikings de como matar um dragão.
Esse filme é um caso interessante no que diz respeito às representações modernas da
mulher viking. Apesar de reproduzir muitos estereótipos, a animação, baseada em uma série
de nove livros da escritora infantil Cressida Cowell, atingiu uma boa receptividade pelo
público e este fator contribuiu para reforçar o imaginário coletivo. O enredo deste filme segue
cheio de uma grande mistura de estereótipos, tanto glorificantes como pejorativos, por um
lado tratando a sociedade viking como destemidos matadores de dragões, hábeis artesãos e
exímios guerreiros e por outro lado representa os vikings como uma sociedade de guerreiras e
guerreiros sedentos por batalhas, péssimos em diplomacia e com costumes pouco refinados.

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Figura 7: Stoico, o Imenso. Pai de


Soluço, ele encarna o estereótipo do
viking oitocentista.

Nesta produção, as mulheres que aparecem em diversas cenas, são sempre


representadas por mulheres corpulentas, com armas, elmos chifrudos e armaduras, entretanto
o maior foco é dado à Astrid.

Figura 8:Mulheres vikings em campo de batalha trajando armaduras e protetores


metálicos nos seios.

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Estando sempre vestida para batalha, Astrid mantém a postura agressiva mesmo
quando está em uma conversa amistosa, mudando de postura apenas quando se apaixona por
Soluço. Logo vemos uma referência com a Brynhilðr da Volsungasaga, que muda da esfera
guerreira para a doméstica ao se casar com Sigurðr. Mas as semelhanças não param por aí: já
para o desfecho final do enredo, Soluço se vê sem solução para seu problema, e é quando
Astrid, ao conversar com ele, começa a insuflar algumas ideias de modo indireto, instigando
Soluço a cometer uma atitude desesperada e ao mesmo tempo heroica, manipulando-o, atitude
semelhante ao que fizeram Brynhilðr, Guðrun e Grimild.
Outro ponto importante é o lado sensual da personagem, que, apesar de ser uma
produção inspirada em livros infantis, se faz muito presente, pois já esta sendo comum para as
animações contemporâneas incluir um pouco de atrativo para o público jovem e adulto.
Temos como exemplo disso a primeira cena em que Astrid é apresentada ao público, na qual a
vila está queimando sobre o ataque de dragões e Astrid aparece caminhando de forma sensual
ao lado de outros jovens guerreiros mal encarados enquanto uma bola de fogo explode logo
atrás dela.

Figura 9: Astrid como a mulher sensual e belicosa.

Sob este contexto, Astrid representa um grande misto de estereótipos e referências às


diversas mulheres guerreiras que se fazem presentes na cultura popular e no imaginário. Ora
representando a participação secundária, mas não menos importante, das mulheres incitadoras
de conflitos das narrativas escandinavas, ora representando o produto moderno de grande
sucesso que é a mulher sensual e belicosa, Astrid se torna uma rica fonte de estudo acerca da
imagem da mulher viking, podendo ser usada como uma importante ferramenta na
desconstrução de estereótipos.

REFERÊNCIAS

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SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
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O EROTISMO MÍSTICO NA POESIA DE TERESA DE JESUS: ANIQUILAMENTO
E ÊXTASE NA BUSCA DO ABSOLUTO

Maria Graciele de Lima


(UECE)
limagraciele@hotmail.com

Introdução

Ler poesia é um trabalho desafiador e instigante. Mais ainda quando se trata de poesia
místico-erótica e que se encontra dentro do que se pode chamar de escrita feminina, pois, as
sutilezas e inesperados encontros subjetivos desafiam os trabalhos de análise interpretativa.
A produção escrita de Teresa de Jesus foi vasta: desde seu diário, até textos sobre as
muitas fundações de mosteiros sob sua orientação, cartas, meditações, entre outros tipos de
textos. Para este trabalho, no entanto, destacamos sua poesia místico-erótica, evidenciando
dois aspectos dentro da experiência de encontro com o Amor Maior e que saltam aos olhos: o
aniquilamento e o êxtase.
Importa realizar uma leitura da referida obra com o objetivo de compreender de que
maneira a poética em questão possui sua identidade intensamente marcada pelas experiências
que a autora viveu como monja carmelita descalça, o que imprime ao seu trabalho as marcas
da inegável experiência mística. Esta se liga aos caminhos do erotismo, formando dois
aspectos que se entrelaçam no mesmo conjunto subjetivo cheio de arrebatamentos, desde seu
nascedouro até seu todo poético.
Além disso, é válido ressaltar o reconhecimento de que a obra literária é vestida do
que habita a alma, não somente de quem produz Literatura, mas, também (e especialmente),
de quem a aprecia. Neste sentido, as leituras são inesgotáveis e importantes no que concerne à
ideia de que, lendo e analisando, descobre-se cada vez mais do universo explorado.
Para tanto, a teoria de Georges Bataille sobre o erotismo sagrado1 oferece apoio à
discussão aqui apresentada e guia as reflexões propostas. Sendo de cunho filosófico, o ensaio
O erotismo (2004) escrito pelo teórico mencionado traz um conjunto de pareceres sobre o
tema em questão construindo/desconstruindo caminhos interpretativos.

Mística e erotismo: a busca do insondável e da plenitude

Todo ser humano, salvas raras exceções, possui o desejo de transcender. Tal desejo
tem buscado sua realização das mais incontáveis maneiras, desde a expressividade física (as
danças ritualísticas de algumas tribos indígenas, por exemplo) até a experiência com o
inefável por meio da vivência mística, como também não se pode esquecer, por meio da
prática artística. Assim, é importante elucidar uma compreensão teórica sobre mística, aqui

¹ No presente trabalho, usa-se a expressão “erotismo místico” por se encontrar ligada à ideia de contato com o
mistério sagrado.
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relacionada a uma experiência vivida pelo humano que é pautada no desejo de contato com o
inefável, o divino.

Desde que tomou consciência das realidades que existem ao seu redor e de
que têm um nexo entre eles mesmos, os humanos foram místicos. E o fato de
muitos terem perdido o uso da mística quando encontraram algumas
explicações racionais não acabou com ela(CORRÊA PEDROSO, s/d, p. 4).

Significa dizer que desejar o além de si é natural no humano. Trata-se de uma espécie
de insatisfação mediante o conhecido e uma necessidade irresistível de tocar o desconhecido2.
Nesse sentido, mudam-se as épocas e os conceitos, mas esse aspecto da subjetividade humana
tende a permanecer como elemento de sua identidade íntima.
Segundo Miralles (2011, s.p.), “o termo grego μυ ός, mystik€s, indicava a
iniciação a um mistério religioso, na experiência sentida como incomunicável ou inefável”.
Esse tipo de vivência tem motivado a construção de uma história religiosa humana repleta de
beleza e entrega anímica e que, por essa razão, tem propiciado o aparecimento de obras
artísticas de raro valor.
Quando se trata de experiência mística, é necessário mencionar que esta não depende
necessariamente de uma instituição religiosa. O ser humano tem em sua potencialidade
simbólica um aspecto naturalmente capaz de buscar a transcendência. Na Idade Média, por
exemplo, grupos de pessoas que não se adequavam às propostas de vida mística da Igreja de
Roma e, ao mesmo tempo, não podiam conter seu desejo de transcendência, organizavam
comunidades espiritualmente afins, comumente perseguidas pela Inquisição, como foi o caso
das Beguinas3 e dos Alumbrados4.
Sobre o erotismo, consideramos que a palavra “[...] surgiu no século XIX, a partir do
adjetivo erótico, este derivado do grego Eros, deus do desejo sexual no sentido mais amplo.”
(MORAE; LAPEIZ, 1983, p. 109). Erotismo refere-se, de maneira ainda mais ampla, a uma
energia impulsionadora de experiências subjetivas que, segundo Bataille (2004), pode ser
categorizada sob três aspectos: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e o erotismo
sagrado. (p. 26). A esse “erotismo sagrado”, chamaremos, neste trabalho, de erotismo místico
pelo fato de ele se dar por meio da experiência mística.
Em O que é erotismo (1983), Lúcia Castello Branco traz à tona o mito da criação de
Eros que está contido no diálogo de Platão intitulado O Banquete.

2
σeste contexto, ‘o conhecido’ relaciona-se a tudo o que é palpável e físico e ‘o desconhecido’ refere-se ao
inefável e inacessível ao plano terreno.
3
“τ movimento das Beguinas surgiu por volta de 11ι0 na região da Bélgica. Eram “mulheres religiosas” que
viviam sem uma regra determinada, assumindo apenas um “propósito de vida”. Em geral formavam
comunidades, onde se dedicavam à oração, ao trabalho manual e a obras de assistência.” BRUσELLI, Delir.
Clara de Assis e o movimento religioso feminino nos séculos XII e XIII. In: Ciclo franciscano, 2002, p. 18.
Disponível em <http://www.pem.ifcs.ufrj.br/CicloFranciscano.pdf>. Acesso em: 18 out. 2011.
4
Alumbrados foi o nome dado a um movimento espiritual que possuía forma de vida independente das
exigências eclesiais. Nele havia a presença de muitos cristãos novos e sua mística muito se assemelhava à
mística do Judaísmo. GÓES, Clara de. Aspectos da espiritualidade feminina em Teresa d’Ávila. In: Ciclo
franciscano, 2002, p. 141. Disponível em <http://www.pem.ifcs.ufrj.br/CicloFranciscano.pdf>. Acesso em: 18
out. 2011.
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[...] antes do surgimento de Eros, a humanidade se compunha de três sexos:
o masculino, o feminino e o andrógino. Os seres andróginos eram redondos e
possuíam quatro mãos, quatro pernas, duas faces, dois genitais, quatro
orelhas e uma cabeça. Esses seres, por sua própria natureza, se tornaram
muito poderosos e resolveram desafiar os deuses, sendo, por isso, castigados
por Zeus, que decidiu cortá-los em duas partes. Assim, eles ficaram fracos e
úteis, porque seriam mais numerosos para servirem aos deuses (CASTELLO
BRANCO, 1983, p. 66).

Ainda em O que é erotismo, enfatiza-se que esses seres incompletos lançaram-se à


procura de suas metades e quando se encontraram, entrelaçaram-se intensamente desejosos de
se unirem por toda a eternidade. Desse reencontro, nasceu Eros, o irresistível impulso de
busca pela antiga perfeição.
Evidentemente o mito agora citado não se distancia de nenhuma forma de vivência
erótica, pois toda ela está pautada no desejo de “reencontro”, senão, simplesmente no desejo
do “encontro perfeito”. σesse contexto, pode-se enquadrar a necessidade que o ser humano
possui de viver uma experiência mística.
Mas, o que é desejado num processo de experiência mística? Este questionamento
considera que o ser humano é, em essência, incompleto e, portanto, desejoso da completude.
É dentro dessa característica inerente à natureza humana que se percebe o papel do divino
como paradoxo do incompleto, isto é, o divino é a extrema completude. Nesse caso, não pode
estar preso a um determinado gênero. Deus, no caso do cristianismo, não pode ser homem e
nem mulher, mas uma divindade andrógina, completa, perfeita.
Se o divino é a essência da completude e é também mistério, desperta assim, o
interesse de ser conhecido. E como é capaz de minimizar a incompletude humana, provoca o
que se pode chamar de amor, um querer estar junto e dentro, assim como o desejo de também
o sentir dentro. É, portanto, essa completude, o que é desejado na experiência mística.
No Libro de La vida (1974a, p. 55), Teresa de Jesus expressa essa vivência quando
trata de “[...] un sentimiento de la presencia de Dios, que en ninguna manera podía dudar que
estaba dentro de mí, u yo toda engolfada en El.”5 τ “estar dentro” e o estar “toda engolfada
n’Ele” sugere que a experiência de contato com a “presença de Deus” provoca o sentimento
de completude porque nesse instante é possível embrenhar-se n’Ele, e portanto, ir além de si.
Se for possível estar embrenhada em Deus, a extrema completude, pode-se dizer que há o
experimentar de uma parte dessa inteireza pelo fato de existir a fusão, o entrelaçamento
próprio da experiência do erotismo místico. É erótico porque é fusão e é místico porque é o
tocar e o experimentar o mistério divinal.
Quando esse encontro entre a alma e o Divino acontece, surge para a alma o
sentimento de bastar-se, “Solo Dios basta” 6 (JESUS, 1974b, p. 514). É a confiança e calmaria
após a vivência da euforia do encontro e do entrelaçamento, a plenitude do gozo místico que
acontece por “[...] unas vias que solo quien goza de ello lo entiende”7 (1974a, p. 34). Assim

5
“[...] um sentimento da presença de Deus, que de nenhuma maneira podia duvidar que estava dentro de mim e
eu toda engolfada n’Ele.” [tradução nossa].
6
“Só Deus basta” [tradução nossa].
7
“[...] caminhos que somente quem o goza é que o entende.” [tradução nossa].
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sendo, é preciso considerar que a experiência à que chamamos de mística é uma das vias pelas
quais o ser humano pode viver o erotismo, essa busca incessante pela transcendência.
Entretanto, para compreender essa busca, é necessário levar em consideração que, por
ser mística, não é óbvia. Como afirma Bataille (2004, p. 5ι), “o erotismo e a religião são
inacessíveis para nós na medida em que não os situamos resolutamente no plano da
experiência interior.” Essa afirmação deixa claro o caráter interior e íntimo da experiência
citada, embora não haja necessariamente uma ligação entre vida mística e religião, mesmo
que a primeira, na maioria dos casos, esteja relacionada à segunda.

Poesia e experiência místico-erótica

Para se referir ao perfil de escrita de Teresa de Jesus, é necessário considerar algumas


características de sua mística que é norteada pelo amor esponsal apresentado no livro bíblico
chamado Cântico dos Cânticos e atualizado na ideia de um matrimônio anímico entre Jesus e
as almas que lhe são fieis. De fiel, a alma feminina entregue a Jesus, passa a ser esposa,
amando-o e conhecendo os gozos espirituais que lhes são revelados por meio da oração e do
conhecimento evangélico do Amado. “A mística nupcial se refere preferentemente ao
simbolismo do amor e das bodas. Cristo é o noivo(como em Jo 3, 29) e a alma fiel é a noiva
(2Cor 11,2 e Ef 5,25)”8. Assim, a experiência mística teresiana nasce da entrega da alma-
noiva ao mistério do amor divino, buscado na figura de Jesus Cristo, sendo este, o principal
exemplo de vida mergulhada no mistério.
Sendo Jesus o noivo divino, seu comportamento torna-se o principal inspirador do que
se compreende por mística. Ora, uma das formas mais expressivas de contato com o mistério
sagrado é a oração, especialmente aquela em que a pessoa aceita mergulhar no mais íntimo de
si para aí encontrar o Amor Maior. Nesse sentido, a conduta de Jesus pode ser considerada o
modelo mais expressivo para os cristãos, por razão de sua constante prática da oração. Assim,
o Esposo Divino é amado, admirado e seguido pela esposa, alma humana, que é aprendiz
imperfeita, mas aspirante da perfeição. Sobre a vida de oração de Jesus, é possível saber que

[…] there were mystical experiences of Jesus. There was his baptism in the
Jordan when the Spirit descended like a dove and the voice of the Father was
heard. There was his transfiguration on the mountain […] when his clothes
became dazzling white and there appeared to him Moses and Elijah speaking
of his departure [...] which he was to accomplish at Jerusalem. There was his
prayer at the Last Supper when he gave them his body and blood. There was
his dark night of agony in Gethsemane when he sweated blood; and there
was his prayer on the cross when he forgave his enemies and with the
psalmist cried out: ‘Lama Sabachthani(JτHσSTτσ,1996, p. 15).9

8
Disponível em:<http://www.procasp.org.br/arquivos/Artigos%20PDF/esponsais4.pdf.> Acesso em: 20 abr.
2011.
9
[...] houve experiências místicas de Jesus. No seu batismo no Jordão quando o Espírito Santo desceu em forma
de pomba e a voz do Pai se fez ouvir. Na sua transfiguração na montanha [...] quando suas roupas tornaram-se
brancas e brilhantes e apareceram-lhe Moisés e Elias falando-lhe de sua partida que haveria de se cumprir em
Jerusalém. Ele orou na Última Ceia quando deu seu corpo e sangue. Orou na sua noite escura de agonia no
Getsêmane quando suou sangue; e ele orou na cruz quando perdoou seus inimigos e com o salmista, exclamou:
‘Lama Sabactani’. [Tradução nossa]
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Portanto, a identidade da vida mística tem em seu modus vivendi a prática constante da
oração, uma das atividades primordiais à espiritualidade cristã inspirada na conduta do
próprio Jesus, que mesmo em momentos profundamente difíceis, buscou o contato oracional
com o Divino.
Para Teresa de Jesus e para outros mais escritores que viviam (ou vivem) a experiência
mística, torna-se impossível não levar para a sua obra literária muito desse conhecimento
divino10. Por essa razão, Teresa de Jesus poetisa é a mesma Teresa de Jesus carmelita e vice-
versa. Mas, é válido dizer que embora sua escrita traga muito de sua pessoa, justamente por
ser literária, segue por caminhos impossíveis de ser conhecidos plenamente porque tem em si
a liberdade de significar e de motivar outras liberdades de interpretação.

Aniquilamento e êxtase na poesia de Teresa de Jesus

Teresa de Cepeda e Ahumada é o nome de nascimento de Teresa de Jesus. Por haver


nascido na cidade de Ávila, Espanha, ficou conhecida como Teresa d’Ávila. Para os católicos
de Roma ela é Santa Teresa d’Ávila, doutora da Igreja. σo presente trabalho, referimo-nos a
ela como Teresa de Jesus, o nome que ela mesma adotou ao se tornar monja carmelita.
O fenômeno chamado de erotismo constitui-se como um universo possuidor de muitas
faces e expressões, desde o apelo à vida até o mergulho na ânsia de morte. Suas faces, por se
formarem na incompletude, muitas vezes se escondem no que parece não lhe pertencer. Mas,
vale dizer que dentro do âmbito do erotismo, os conceitos são elásticos. Assim, morte e vida
são aspectos do mesmo fenômeno que é o de se perder na busca da completude absoluta, ou
seja, é possível enxergar dentro desse fenômeno a face da vida que somente é quando morre,
assim como também é possível tratar da morte que só é quando gera vida: “Do erotismo, é
possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte” (BATAILLE, 2004, p. 19).
No caso da experiência mística, o fenômeno do erotismo pode ser descrito como
aquele que possui duas fases, que não necessariamente acontecem em sequência. A primeira
fase (consideremos especialmente aquela a qual se referem os poemas de Teresa de Jesus) diz
respeito ao aniquilamento. Entenda-se esse aniquilamento como a entrega do ser ao Nada para
que possa ser capaz de encontrar o Tudo. É o esvaziamento da alma amante para que nela
habite unicamente o Amado, aquele que comete a violação a fim de habitá-la.

É somente na violação – à altura da morte – do isolamento individual que


aparece essa imagem do ser amado que tem para o amante o sentido de tudo
o que é. Para o amante, o ser amado é a transparência do mundo
(BATAILLE, 2004, p. 34).

Entre muitos poemas que trazem a ideia de aniquilamento para a entrega ao Amor
Maior, podemos citar Muero porque no muero11:

10
τ termo “conhecimento” aqui está empregado no sentido bíblico de “coabitar”, de “ter vida conjugal”, e não no
sentido puramente intelectual. Assim como se pode ver em “Como acontecerá isso, pois não conheço homem?”
(Lc 1, 34)
11
Morro porque não morro [tradução nossa]
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Vivo sin vivir en mi


Y tan alta vida espero
Que muero porque no muero.
Vivo ya fuera de mí
Después que muero de amor,
Porque vivo en el Señor
Que me quiso para Sí.12 (JESUS, 1974b, p. 502)

No poema acima, a alma reconhece a morte como sendo o fim de algo que nela mesma
(a alma) já não satisfaz, pois espera uma “alta vida” e para alcançá-la, morre em si mesma,
aniquila-se para viver fora dela, isto é, no seu Senhor. Dessa forma, saborear o Absoluto é
entrar em comunhão com o Amado, o Divino esposo. No que concerne à referida comunhão,
é possível dizer que aí se encontra a outra fase que pertence à experiência mística: o êxtase.
Ao tratar do termo êxtase, não raro, surge a ideia de orgasmo, como uma espécie de
fim (objetivo e/ou culminância) de uma experiência no âmbito físico, embora, neste contexto,
não se esteja desconsiderando a importante função psicológica da citada experiência. Trata-se
do que Bataille (p. 156) cita como “pequena morte”, a ultrapassagem dos últimos limites em
busca da continuidade naturalmente perdida, ausente do fazer-se humano, mas é válido
afirmar que existem outras vivências de transposição de limites que, mesmo possuindo parte
de suas expressões no corpo físico, podem ser consideradas essencialmente psíquicas. Das
vivências dessa natureza, este trabalho se refere às que podem ser chamadas de êxtase místico
e neste contexto, restringimo-nos a citar a escrita de religiosos católicos da Igreja de Roma,
como uma forma de situar a escrita de Teresa de Jesus dentro de outras manifestações da
escrita sobre o êxtase espiritual.
No que se refere à escrita teresiana sobre êxtase místico, pode-se dizer que quando a
carmelita trata da sensação de estar toda “engolfada” em Deus e Deus dentro de sua alma, está
tratando de um sentimento de êxtase, pois, naquele instante, o Absoluto lhe preenche as
lacunas anímicas e lhe farta do mais precioso que é a sua presença amorosa. Nesse sentido, é
possível considerar que o êxtase místico se dá no momento do encontro da alma amante com
o Amor Maior que lhe preenche as incompletudes. Sendo uma relação entre humano e divino,
carnal e espiritual, é uma relação que supera o natural das coisas terrenas. É, portanto, uma
vivência que toca o que se pode chamar de sobrenatural.
Assim, para tratar do bastar-se no Amado, escolhemos o poema Nada te turbe13 que se
tornou uma espécie de referência da escrita poética teresiana. O texto se desenrola num tom
de bênção, aconselhamento e a defesa da totalidade absoluta presente em Deus:

Nada te turbe,
Nada te espante,
Todo se pasa,
Dios no se muda,
[…]
Quien a Dios tiene

12
Vivo sem viver em mim/ e tão alta vida espero/ que morro porque não morro./ Vivo já fora de mim/ depois
que morro de amor,/ porque vivo no Senhor/ Que me quis para si. [tradução nossa]
13
Nada te perturbe [tradução nossa]
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Nada le falta:
Sólo Dios basta.
[…]
¿Ves la gloria del mundo?
Es gloria vana;
nada tiene de estable,
Todo se pasa.
Aspira a lo celeste,
que siempre dura;
fiel y rico en promesas,
Dios no se muda.
[…]
siendo Dios su tesoro,
Nada le falta.
[…]
aunque todo lo pierda,
SóloDios basta.14 (JESUS, 1974b, p. 514)

Os versos 6, 7 e 8 declaram que o Amado é tudo e basta. Já nos versos seguintes, a


alma amante, da qual o eu-lírico se veste, defende que tudo é vão e passageiro, somente Deus
é imutável e quem τ tem por tesouro, jamais sofrerá faltas, pois, “Sólo Dios basta”.
Ao compararmos as leituras dos dois poemas, deparamo-nos com a ideia de que a
alma que canta ao seu Amado quer morrer enquanto ser imperfeito a fim de exaltar o que é
perfeito e, dessa forma n’Ele viver, tendo-o por tesouro para, assim, completar-se
amorosamente, pois sabe que essa aspiração lhe dará o que é verdadeiramente estável, fiel,
rico em promessas, enfim, bastante para responder a todas as incompletudes da alma humana.

Considerações finais

A poesia de Teresa de Jesus é portadora de intensos rasgos místicos e eróticos.


Embora produzida, cronologicamente, no chamado Siglo de Oro, carrega muito do
arrebatamento espiritual próprio da época anterior conhecida como Idade Média. Apesar de,
muitas vezes, a referida época ser considerada uma parte infrutífera na história da
humanidade, o período medieval, na verdade, assistiu a um largo percurso de experiências
políticas e religiosas que, evidentemente, tiveram continuidade nas épocas posteriores, em
cada momento novo, entretanto, vestindo-se das novas necessidades culturais.
A partir desse pensamento e do que foi discutido, é possível compreender a existência
de aspectos místicos e eróticos na poesia teresiana e como esses aspectos traduzem o processo
da busca edo contato com o Absoluto. Nesse sentido, pode-se conceber a Literatura como
linguagem carregada de possibilidades interpretativas e capaz de provocar sempre novos
olhares, sem que os já existentes, necessariamente, esgotem-se.

14
Nada te perturbe,/ nada te espante,/ tudo passa,/Deus não muda,/A paciência tudo alcança;/Quem a Deus
tem/Nada lhe falta:/Só Deus basta./[...] Vês a glória do mundo?/ É glória vã;/ Nada tem de estável/ Tudo
passa./Aspira ao que é celeste,/ Que sempre dura;/ Fiel e rico em promessas,/ Deus não muda./ [...]Venham-lhe
desamparos,/ Cruzes, desgraças;/ Sendo Deus seu tesouro,/ Nada lhe falta./Ide, pois, bens do mundo;/Ide,
destinos vãos;/ Mesmo que tudo se perca,/ Só Deus basta.[Tradução nossa]
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É necessário ainda lembrar que o cerne dos aspectos místicos e eróticos da poesia
teresiana desenrola-se através do aniquilamento e do êxtase como sendo fases de um mesmo
fenômeno, o chamado erotismo místico. Nos poemas Muero porque no muero e Solo Dios
basta, o aniquilamento é morte para se chegar à vida e o êxtase é a vida plena porque cheia da
completude absoluta.
Portanto, estudar poesia místico-erótica é uma atividade inesgotável, afinal, trata-sede
perceber e relatar possibilidades metafóricas, voos subjetivos. Nesse sentido, nenhuma análise
é completa e, por essa razão, mais possibilidades interpretativas podem e merecem surgir.

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INTERNACIONAL MULHER E LITERATURA. HOMENAGEADAS: ESCRITORAS
NEGRAS, 14., 2011, Brasília. Anais eletrônicos… Brasília: Unb, 2011.
Disponívelem:<http://www.telunb.com.br/mulhereliteratura/anais/
wpcontent/uploads/2012/01/alicia_silvestre.pdf>. Acessoem: 11 out. 2011.

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II SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA PARAÍBA
SÁBIAS, GUERREIRAS E MÍSTICAS
Homenagem aos 600 anos de Joana D´Arc
ISBN: 978-85-237-0603-6
ORDEM DOS CARMELITAS DESCALÇOS. Fundamentos, governo e presença no
mundo. Disponível em:<http://www.carmelo.com.br/default.asp? pag=p000045.> Acesso
em: 16 out. 2011.

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FACES DO MEDIEVO NO ‘RETÁBULO DE SANTA JOANA CAROLINA’, DE
OSMAN LINS

Rosana Maria Teles Gomes


(IFPE)
telesrosana@uol.com.br

O teocentrismo favoreceu ao homem do Medievo uma visão de mundo aperspectívica.


Isso significa que as coisas não eram vistas como pertencentes a um lugar, um indivíduo, um
tempo apenas, pensava-se na vida para além do presente. Pensava-se na vida em continuidade.
Acreditava-se que o ser humano era parte integrante do cosmos; estava, então, inserido em um
contexto de harmonia muito maior do que a capacidade humana poderia alcançar.
Um objetivo característico da sociedade medieval era garantir a salvação da alma.
Disso decorria uma postura de resignação perante as intempéries da vida material. As orações
se multiplicavam, gerando uma energia coletiva, uma ânsia de equilíbrio. A fé em Deus e a
certeza de que não se estava só no mundo acarretavam uma maior espiritualidade e faziam
nascer uma coragem superior ao desânimo e aos possíveis momentos de revolta. E a arte,
como não podia deixar de ser, refletia essa cosmovisão.
Todavia, esse modo espiritualizado de olhar a vida foi se perdendo desde o
Renascimento, visto que nesse período o teocentrismo foi substituído por uma postura
predominantemente antropocêntrica. Em decorrência, as questões do espírito pouco a pouco
foram deixando de ter o devido valor, e o homem começou a contemplar o mundo por meio
de uma visão mais fragmentada, mais material, mais ligada ao momentâneo. Contudo, alguns
artistas têm buscado retomar o valor atribuído ao universo espiritual, numa provável tentativa
de renegar a supervalorização do poder, do consumo, do meramente corpóreo, traços tão
comuns ao homem contemporâneo. Esse é o caso de Osman Lins.
A influência do Medievo é bastante visível na obra desse escritor, a exemplo de
Retábulo de Santa Joana Carolina, texto pertencente a Nove, novena. O título da narrativa já
permite perceber uma relação com o Catolicismo. Retábulo é uma espécie de quadro religioso
colocado no altar de uma igreja. No caso do texto osmaniano, o quadro tem natureza narrativa
e traz relatos da vida de Joana Carolina, figura para quem o retábulo é dedicado. O texto foi
estruturado em doze mistérios, em analogia aos mistérios medievais, nos quais se exploravam
os elementos teatrais da liturgia. Pode-se até afirmar que essas partes da narrativa de Osman
Lins constituem pequenos quadros, os quais, juntos, formam o quadro maior que é o retábulo.
Cada mistério é narrado por um personagem diferente, o que dá à obra uma visão
globalizante, não unilateral, aperspectívica. Assim, o leitor, ou mais precisamente o
contemplador, sabe de Joana a partir de uma ótica múltipla.
Cada mistério é ornado com um parágrafo inicial que suscita aspectos do cosmos ou
da cultura, como se o autor intencionasse retratar a relação entre o homem e o Universo. No
primeiro ornamento, o qual inicia não só o primeiro mistério como também toda a narrativa,
tem-se uma “pintura” cujo tema são os elementos cósmicos. Nesse parágrafo, é apresentada
ao leitor a composição do Universo. A inclusão da distância, do peso e dos números revela
uma cosmovisão semelhante à que se tinha na Idade Média. Para o homem medieval, o
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número era subjacente ao ritmo cósmico, por isso a matemática era a disciplina que compunha
o quadrivium, uma vez que aritmética, geometria, música e astronomia eram consideradas
subdivisões da matemática.
Após a apresentação dos elementos constitutivos do Universo, narra-se uma cena de
nascimento, o de Joana Carolina.

Acompanhei, durante muitos anos, Joana Carolina e os seus. Lá estou, negra


e moça, sopesando-a (tão leve!), sob o olhar grande de Totônia [...]. Totônia
acabará seus dias na pobreza [...]. Para enlutar os filhos, Joana Carolina, já
viúva, comprará fazenda negra a crédito. (LINS, 1994: 72-73)

A voz narrativa é da parteira, uma negra amiga da família da criança. Por ela, toma-se
conhecimento de alguns dados acerca das condições de vida de Joana: nasceu franzina, pobre,
tinha uma mãe revoltada com os homens, um pai omisso e irmãos com um destino já previsto,
não haveria brilho. Na fala da negra, bem como na dos outros narradores dessa história, a
linha temporal é aperspectívica. As formas verbais “acompanhei”, “estou” e “acabará”
testemunham que o tempo da narrativa busca se aproximar da temporalidade cósmica, na qual
presente, passado e futuro se fundem.
O segundo mistério é ornado com um parágrafo que, de certa forma, mostra aspectos
culturais do homem, seu modo de lidar com uma das necessidades primárias, a habitação.
Nele, há a visão de que, apesar das paredes, o homem continua ligado ao cosmos e, como
parte integrante, a ele retorna, dele regressa. O nascimento, o amadurecimento não cortam,
não devem cortar essa espécie de cordão. Observa-se também a condição de vida retratada, a
pobreza de uma casa cuja mobília é mesa, cama e fogão, apenas os utensílios essenciais. Nada
além.
Considerando-se esse ornato uma sequência do primeiro, percebe-se que existe um
vínculo semântico entre eles. No anterior, foi exibida uma pintura do cosmos, a que sucedia
uma cena de nascimento, da vida acontecendo; neste, a temática foi o desenvolvimento
humano. O homem em busca de proteção, de adequação às condições, ao passo que se mostra
capaz de fazer ressurgirem cidades, por meio de seu nome. A importância da palavra começa
a ser delineada.
Neste mistério, o foco narrativo está centrado no tesoureiro da igreja. É ele quem traz
detalhes da infância de Joana, do seu vínculo com a igreja, do seu espírito solidário, da sua
natureza sublime. Com ele, inclusive, descobre-se em Joana uma certa tendência à reclusão,
uma forma de existir e ser diferente dos outros que encontravam no material satisfações,
prazeres. A sua satisfação estava em duas coisas que não exigiam gastos: acompanhar
enterros de crianças e brincar com os escorpiões que encontrou no quintal. Como se vê, a
menina Joana lidava desde cedo com a penúria, inclusive nas alternativas de divertimento. A
espontaneidade no trato com escorpiões evoca uma ideia de evolução espiritual, visto que
aquilo que às outras pessoas parece assustador, a ela parece simples, natural. A alusão ao
escorpião pode simbolizar uma vida de sacrifícios; no caso de Joana, enfrentada com firmeza
e equilíbrio.
O ornato que anuncia o terceiro mistério retrata outra necessidade humana: a
comunicação. A temática é de encontro, diálogo com os iguais e com Deus. A dupla aparição
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do vocábulo “perguntas” em relação a apenas uma de “respostas” deixa nítido o limite
humano em questionar mais do que compreender. A enumeração de palavras relacionadas à
Igreja – “templo”, “rezas”, “sermões”, “procissões”, “sinos” – denuncia uma aura de
religiosidade que envolve o lugarejo onde Joana passa sua vida.
O mistério é apresentado sob a ótica de Jerônimo José, marido de Joana. É ele quem
relata o primeiro encontro entre os dois, ou talvez, quando e como ele a encontrou. Ela estava
doente, com trajes brancos, como habitualmente convém a um anjo. Para protegê-la, cobriram
seu corpo com uma toalha de crochê decorada de centauros. Seriam eles uma indicação de
que a doença representava a natureza humana em Joana, a sua porção de pecado? O fato é que
ela ficou quase cega, sem forças, e em busca da cura, a mãe fez até promessa de andar pelas
ruas, em procissão e com velas. O milagre aconteceu. Foi nesse contexto que Jerônimo viu a
pessoa por quem se encantou. Na realidade, Joana seria uma vítima desse homem, como ele
mesmo afirma. Vítima da fraqueza que lhe era própria, da sua “falta de vida”, da pouca
proteção.
No caso do quarto mistério, a ornamentação retrata o vento e toda a sua força, o seu
vínculo com os oceanos, com as folhagens, com os animais voantes, com bichos de grande
porte. Sugere que o vento, por um lado, faz parte do ritmo cósmico, quando se presentifica
nas folhagens, nas artérias, no caminho para o voo e envolve a Terra. Por outro, está
associado à instabilidade da vida. Ele também é cólera de redemunhos, de tornados e pastor
de dinossauros. Por esse prisma, ele pode ser a manifestação da quebra de rotina, de mudança,
de imprevisibilidade. Ele pode, então, sinalizar o tormento, tanto que o quarto mistério,
narrado por Álvaro, filho de Joana, mostra uma vida de privações e perdas. Perda de dinheiro,
de sons, de saúde, de vida, de Maria do Carmo, única filha de Joana até então. Neste mistério,
a tristeza é atemporal, porque ela está simultaneamente no passado, no presente e no futuro.
Está, por exemplo, nos meninos, ao sentirem o odor dos próprios corpos cobertos de úlcera.
Em semelhança ao ornamento do quarto mistério, o do quinto trata de um elemento da
natureza, a água, e seu poder também é abordado em duas vertentes: a calmaria e a cólera. A
água é apresentada como símbolo de vida, de origem, ao mesmo tempo em que é colocada
como anunciadora ou provocadora de calamidades. É exposta em sua ambivalência: doce e
salgada, alto – chuva – e baixo – mar; fecunda, mas, na mesma proporção, engolidora. À
simbologia da água funde-se a do peixe, representação do espírito, pois Cristo andou sobre as
águas; mas também do impuro, já que ele pode viver nas águas subterrâneas.
σa narrativa em questão, eles − água e peixe − ora manifestam a fertilidade, ora a
absorção. No relato feito por dona Totônia, a revolta, a amargura e uma certa falta de
esperança são visíveis. O seu marido não fora um homem presente, na realidade, destacava-se
apenas como varão. Nisso era bom, tanto que ela não resistia, mesmo sabendo que poderia ter
mais um filho, mais uma marca desse homem com perfil de visitante noturno, não de
companheiro ou de pai.

[...] parecia andar no mundo só para aprender artes noturnas [...], de modo
que eu cedia sempre à sua ordem, me abria igual ao mar Vermelho diante de
Moisés – sabendo que em nove meses teria mais um filho com boca e
intestinos, e nenhum níquel a mais – e ele me atravessava com as suas hostes

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de fogo e de alegria, desfraldadas nos mastros as bandeiras mais vivas.
(LINS, 1994:81)

A referência a Moisés e ao Mar Vermelho estabelece uma relação de intertextualidade


com as Sagradas Escrituras. Em Êxodo, 14:15-21, livro bíblico, consta “E tu [...] estende a
mão sobre o mar e divide-o, para que os filhos de Israel passem pelo meio do mar em seco.
[...] Então, Moisés estendeu a mão sobre o mar, e o Senhor [...] fez retirar-se o mar, que se
tornou terra seca, e as águas foram divididas”. Assim como o mar abriu-se para a passagem de
Moisés e do povo de Israel, dona Totônia se abria para que seu marido passasse, com fogo e
alegria, e deixasse aberto o caminho para os filhos deles dois.
O sexto mistério tem um ornato montado numa estrutura dialógica, que discute as
ações do homem e a relação deste com os que, numa escala de valores, são considerados
inferiores − os outros animais. σeste ornato, a discussão apontada permite perceber uma
influência do Medievo. No fato de que os animais aparecem em locais invertidos,
possivelmente há um intertexto com os adynata, de Carmina Burana (SCHUMANN, nº 37,
apud CURTIUS, 1996:142), em que a inversão da ordem natural exemplifica o “mundo às
avessas”: “o gado fala; o boi é atrelado atrás do carro; o capitel e a base da coluna estão
trocados; um insensato ignorante se faz prior” (CURTIUS, 1996:142). τs adynata serviam
para se fazer censura ou lamentar os costumes da época. No texto osmaniano, a inversão
denuncia o fato de o homem, em necessidade, tornar-se capaz de tudo para suprir suas
carências.
Este mistério comprova que o homem é passível de inverter ou deturpar valores, basta
que se toque nos seus anseios, nos seus brios, na sua precisão. O narrador é um senhor de
engenho que desejou Joana, e para realizar seu objetivo feriu a ética, o bom senso. Ele,
inclusive, se descreve semelhante ao Diabo, com o aspecto físico de despertar repulsa. Outro
sinal de relação com o imaginário medieval, no qual Satanás era de aparência horrenda, suja,
muitas vezes retratado com chifres, além de estar associado à lascívia. É como esse senhor de
engenho se vê. O seu perfil é de um homem luxurioso, que deita com qualquer mulher, tem
vinte e dois filhos, quase todos de mães diferentes. Ele foi responsável por muitas das
desgraças enfrentadas por Joana.

Mais de sete anos passou aqui em Serra Grande. Quando se foi, tinha
envelhecido vinte[...].Vinha, de dentro dela, uma serenidade como a que
descobrimos nas imagens de santo, as mais grosseiras. Um som de
eternidade. [...]Nunca me pediu um grão de milho, uma folha de capim.
Como podia viver? Multiplicava os pães, os peixes? Absurda mulher. (LINS,
1994:86)

Mais um intertexto com a Bíblia. Uma referência ao episódio em que Jesus multiplica
os pães e os peixes e consegue matar a fome de quase cinco mil homens. Joana conseguia,
dentro das parcas condições e com muito sacrifício, evitar que seus cinco filhos morressem de
fome. Enquanto ela − por firmeza, trabalho e fé − multiplicava o pão, o patrão − por desejo −
multiplicava os filhos. Ele procurava nas outras mulheres o que elas jamais poderiam ser:
Joana Carolina. E como ela ignorou todos os seus cortejos, ele, à maneira do mundo às
avessas, colocou-a para morar na estrebaria.
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Sétimo mistério. A temática é o tecer. Uma vestimenta? O texto? O ornamento,
centralizado no vocábulo “lã”, suscita leituras. A disposição das palavras na frase e das frases
no texto expressa um trabalho de tecelão. Parece coerente o ornato se referir à tecedura do
texto, posto que o trabalho do escritor é comparado ao de um tecelão. Ao passo que este
entrelaça os fios, aquele entrelaça as palavras, para compor o tecido verbal. Com ela – a
palavra – o escritor ata, une, ordena, cria, ilumina, ressuscita. À maneira dos fios que,
dispersos, trazem a marca do informe e, unidos, ganham o brilho da urdidura, a palavra, lã
essencial, enredada, oferece a vida ao vácuo. Na analogia escritor/geômetra, evidencia-se um
pensamento contíguo ao dos estudiosos medievais, os quais destacavam na geometria a
necessidade de rigor e harmonia, elementos imprescindíveis ao trabalho com a forma.
Este mistério é narrado por Laura, filha de Joana. O relato foca tanto o sofrimento da
mãe quanto o seu desvelo no trato com os filhos. O período do qual fala a narrativa de Laura
fora entremeado por provações, e a principal delas era a luta diária contra a morte. Como
comiam pouco, era comum que os filhos, mais frágeis, adoecessem. Joana não tinha com
quem contar. Cuidava dos filhos sozinha, com remédios caseiros, em condições limitadas,
cansada, mas a atenção e a determinação eram tão intensas que ela conseguia se pôr em pé e
continuar a sua missão. Viviam com tudo pela metade: “meia laranja, meio pão[...], um sapato
no pé e outro guardado. Só calçávamos os dois quando ela nos levava à cidade, para receber
seu ordenado, três léguas para ir e três para voltar” (LIσS, 1994:κ9). Essa era outra provação
para Joana, ir todos os meses ao centro da cidade, andar seis léguas, considerando-se ida e
volta. Ela corria riscos, expunha-se ao sol e à chuva, preocupava-se com os filhos que ficavam
em casa. Além de tudo isso, ela ainda enfrentou a morte de outra filha, também chamada
Maria do Carmo.

[...] Maria do Carmo [...] morrera daquela doença cujo nome não soubemos.
Nela é que mamãe está aplicando o clister, com a bexiga de boi na
extremidade do canudo de carrapateira. [...] Sou eu a de tranças. Nô, Álvaro
e Téo não aparecem. Mas estavam aí amontoados conosco nessa peça, todos
queimando de febre. Tínhamos sido obrigados a deixar a casa onde
morávamos, ir para essa na mata: aí se isolavam os bexiguentos. Não
tínhamos bexigas. Mas estávamos de cama, todos, com doença forte e que
podia alastrar-se. (LINS, 1994:92)

O Medievo se presentifica nesse excerto transcrito. O isolamento dos bexiguentos, a


consequente solidão na doença, o medo da contaminação remetem ao contexto em que a peste
negra foi vivenciada. Foram milhares de mortos e a rapidez com que a doença se propagava
levou muitos a praticamente se encarcerarem, por receio de contraírem a doença. Contudo,
como consta em Georges Duby (1999:κ9), “pessoas apresentavam-se como voluntárias para
enterrar os mortos, tratar dos doentes. Sabiam muito bem que arriscavam sua vida, mas o
faziam. Os laços de solidariedade estreitaram-se diante da calamidade”. σão foi esse o caso
de Joana; era só que ela cuidava dos filhos, da casa, da vida, até da morte. Nunca, porém,
perdera a firmeza e, ao contrário de muitos, não alardeava a sua realidade, por vezes, de
miséria.
A marca do medieval também está na materialização que Laura faz do retábulo, como
se ela estivesse diante dele; apontando para ele. τ trecho “Sou eu a de tranças. σô, Álvaro e
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Téo não aparecem. Mas estavam aí amontoados conosco nessa peça [...]” (LIσS, 1994:92)
sugere que o retábulo está exposto, no altar, para contemplação dos cidadãos do estado, do
país, do mundo. Talvez o ornamento que antecede este mistério retrate o retábulo sendo
tecido. Os fios podem corresponder aos anos vividos por Joana, os quais, unidos, atados por
um artesão com rigor e técnica digna de um geômetra, constituem esse grande quadro que é o
Retábulo de Santa Joana Carolina.
Os substantivos enumerados que compõem o ornato do oitavo mistério retratam o
ambiente de um engenho de açúcar, sem deixar de mencionar a hierarquia senhor/servo.
Apesar de os verbos não serem empregados nessa enumeração, os substantivos reunidos dão
ao ornato uma ideia de ação, comuns ao dia a dia em um engenho, onde a produção é
constante. τs “utensílios” do trabalho, nos quais se incluem as pessoas, estão
permanentemente em cena, daí a possibilidade de omissão de formas verbais. Quando se
mostra o açúcar, por exemplo, já se tem o produto da ação, do mesmo modo que, quando se
fala em senhor, já se pressupõe o subordinado a servir. Este mistério, narrado por uma negra,
põe em cena o abuso de poder de quem muito tem diante daqueles cuja vida foi sempre servir.
Dona Totônia morrera na casa de Joana, seu único arrimo. Com ela findava também a alegria
dos netos. Só quando a avó os visitava eles tinham algumas mordomias: bolo, doces, o que
festejar.
O nono mistério traz um ornato em que a palavra é mais que o eixo temático, é vista, é
sentida, é trabalhada. Cultuada. Esse culto à palavra teve um início sutil no ornato do segundo
mistério. No do sétimo, o elemento cultuado foi – plasticamente – sendo tecido diante de seus
adoradores. Nesse nono mistério, a palavra irrompe com uma força extraordinária, divina, e se
impõe como o Verbum. “σo princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
Deus. [...] A vida estava nele e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as
trevas não prevaleceram sobre ela” (JτÃτ, 1:1-5). Assim como Deus enviou Seu Filho à
Terra e permitiu que Ele se fizesse Verbo e habitasse entre os homens, faz o artista com o
ornato que anuncia o nono mistério, entrega a Palavra, para que ela, com sua luz, ilumine as
trevas do caos.
Nessa visão acerca da palavra, vislumbra-se mais um indício da influência do
Medievo. Os homens da Idade Média viam-na como a encarnação de Deus; ela era o oposto
do profano, portanto. Além disso, só por meio dela tornou-se possível a existência do livro,
para eles, também sagrado, pois a Bíblia era o modelo de escrita que eles guardavam. A
disposição das palavras nesse ornato e a variação de tamanho da letra empregada também
trazem características do Medievalismo. A exploração do elemento visual era muito intensa;
os pergaminhos e as iluminuras exigiam habilidade e rigor. Muitos textos eram escritos em
colunas, com letras ornadas, como se fossem, de fato, desenhadas.
A primeira coluna do ornato que apresenta o nono mistério é composta por letras que
aparentemente estão soltas. Contudo, um olhar atento percebe que elas formam palavras e que
todas têm vínculo semântico com a temática abordada no texto da segunda coluna. Na ordem
em que foram dispostas, aparecem: palavra – capitular – palimpsesto – caligrafia – hieróglifo
– pluma – códice – livro – pergaminho – alfabeto – papel – pedra-estilete – iluminura –
escrita. Todos esses vocábulos estão relacionados ao uso da palavra, seja indicando um

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utensílio o qual permite que ela tome forma no espaço vazio, seja indicando a própria criação.
Alguns desses vocábulos, inclusive, eram comuns ao contexto medieval.
Neste mistério, a narrativa é feita a duas vozes, ora a de Cristina, ora a de Miguel, ora
a dos dois em uníssono. Eles contam a perseguição de que foram vítimas. Fugiram de casa
porque o pai dela, o Senhor Antônio Dias, era homem de posses e não queria que a filha
casasse com alguém que não estivesse no nível da família. Como os dois se amavam muito,
deixaram para trás fortuna, proibições, materialismo, medo; levaram apenas o amor, o único
bem do casal. Sabendo da fuga, o pai da moça colocou para encontrar os amantes capangas
que nunca tinham perdido uma rês.
É em uma igreja vazia, de uma cidade abandonada, que o casal se entrega ao amor e,
diante do altar, oficializa o casamento, feito por eles e testemunhado por Deus. É notável a
presença forte do Catolicismo nessa cena; presença, aliás, que perpassa todo o Retábulo. Os
amantes saem da igreja, ninho de um amor puro e intenso, e vão, sem rumo, apenas indo. Na
ânsia de fuga da morte para ele e do castigo para ela, os dois acabam chegando à casa de
Joana, a que lhes dá abrigo, proteção, confiança. Não demora mais que uma noite para os
capangas descobrirem os fugitivos. Mas Joana, com sua firmeza e precisão no uso da palavra,
consegue dos “caçadores” a promessa de entregar o casal ao pai da moça, desde que a vida
seja garantida.
Nesse contexto, as palavras proferidas, chamando atenção para os bens do espírito,
tocam tanto o pai de Cristina que ele faz uma carta na qual pede Joana em casamento, pois
desde que ficara viúvo, ninguém tinha falado a ele do alto e com justiça. Mas ela não pôde
aceitar o pedido, não poderia jamais. Consagrou-se ao marido, já morto há anos, no entanto
bem vivo no coração da esposa. A consagração foi para toda a vida. “[...] muito me honra a
sua proposta, amável e generosa. Ela significa, se eu a aceitasse, amparo e estabilidade pelo
resto dos meus dias. Mas, então, o que seria de minha alma?” (LIσS, 1994:105).
O mistério seguinte, o décimo, tem um ornamento que destaca o planeta, o homem e
questões culturais. As alterações no planeta, os terremotos, os vulcões podem sinalizar
grandes mudanças na vida humana. Por outro lado, também suscitam as marcas da passagem
do homem pela Terra. Uma fusão entre os processos de transformação do planeta e as
civilizações. Este mistério é contado por várias vozes. São, provavelmente, mulheres que
moram nas proximidades da casa de Joana, pessoas da comunidade. Um traço cultural é
notável, as conversas sobre a vida alheia, com suposições muitas vezes contadas como
verdades incontestáveis. Ou ainda, o comentário acerca de algo que não se sabe exatamente
como foi, onde, quando, nem com quem.
De certo, sabe-se que Joana, mesmo sem prever, salvara a vida de um garoto. Era um
menino com deficiência física e que dormia em um banco próximo a uma porta na qual ele
batia durante o sono. O vizinho, incomodado, parece ter falado em matar o menino. Mas
Joana, tomando conhecimento de que o menino dormia em um banco alto, com risco de cair e
se machucar, decidiu cortar os pés da cama improvisada. Foi com esse gesto que impediu que
o garoto fosse vítima de uma bala saída da arma desse homem que diziam já ter matado
muitos. O gesto foi associado a um milagre. A essa altura, Joana já estava velha, e a velhice
vinha lhe tirando a saúde, a mobilidade, os dentes, a memória, o sono. Joana estava chegando
ao fim do ciclo.
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O décimo primeiro mistério é ornado com um parágrafo em estrutura de adivinhação,
como se intencionasse sugerir uma premunição. O elemento fogo é o objeto temático deste
ornato. Ele devora tudo, vive a consumir outrem. No entanto, ele também é símbolo uraniano
da purificação, da iluminação, por isso ele também evoca a ideia de vida. No contexto da
narrativa osmaniana, o fogo manifesta a ascensão espiritual de Joana, a sua purificação,
relatada pelo padre da comunidade.
A vida de Joana foi uma chama, no sentido de que ela agia com pureza d’alma, mas
firme, sempre a iluminar os que estavam a seu redor. Por vezes, foi a vida quando o contexto
era de morte, a esperança e a obstinação, quando tudo levava ao desespero. Diante do padre,
Joana deseja se confessar. O quê? Disse o padre que quem muito fala, muito erra, e ela quase
não falava. Durante os seus oitenta e seis anos, agiu, ouviu, viveu, em parcas condições.
Chegara a sua hora, o vento estava fortalecendo o fogo que era a luz de Joana na hora da
partida. Os cavalos já estavam a galope, para conduzir o carro apolíneo no qual ela seria
conduzida à vida espiritual. Joana partira sem o peso da morte, com a leveza do espírito.
“Populus, qui ambulabat in tenebris, vidit lucem magnam” (Ibid: 112-113).
Mistério final. Não há parágrafo para ornamentá-lo, a “lucem magnam” já abrilhanta
este mistério. A voz narrativa é múltipla, coletiva. Um coro fecha os mistérios e a passagem
de Joana pela Terra. Este mistério deixa claro um tom de revolta. Sem dúvida, há muito o que
denunciar, a omissão dos poderosos, a opressão, as condições subumanas em que muitas
pessoas vivem. A fome, o trabalho escravo, o egoísmo, a miséria que parece genética. A seca
até de lágrimas. A fartura de dor.
Terá sido este, então, o objetivo do tecelão desse Retábulo, suscitar a indignação
diante da violência que massacra, que mata os menos favorecidos? Para Joana, “quantas vezes
o mundo [...] foi estéril e cegante, uma cidade de sal [...]? Quantas vezes [...] viver mais um
ano, um dia, um instante, foi como avançar sobre as afiadas lâminas de faca?” (Ibid: 115). O
círculo de Joana se fecha. Ela vai acompanhada com o silêncio tão característico seu, o
silêncio dos sem voz social. A ela é oferecido um buquê que serve de ornato ao fim deste
mistério. τ ramalhete, à maneira de todo o Retábulo, é “tecido” com palavras, que dão às
flores a estabilidade, para sempre estarem com Joana.
τ Retábulo de Santa Joana Carolina é “urdido com fios medievais”. Todo o texto se
assemelha a uma hagiografia. A santa, inclusive, não tem voz narrativa. Todas as suas falas
são reproduzidas pelos diversos narradores. São eles que em micro-histórias, com começo e
fim, independentes umas das outras, exibem a sublimação de Joana, um anjo que veio à Terra
para cumprir uma missão. Ao mesmo tempo, essa estruturação do texto confere um olhar
aperspectívico para ela, e através dela, para o mundo do qual ela fazia parte. As cenas
retratadas revelam pobreza, penúria e, em se tratando de Joana, a solidariedade como um traço
comum. Um quadro bem semelhante ao que a sociedade medieval enfrentava. Ao senhor de
engenho, corresponde o senhor feudal. O trabalho na terra era praticamente o mesmo, com
charrua, carro de boi, empregado, sol. Em contrapartida, a fé, a reza, a Igreja, a proteção de
Deus, a lei de “agir sempre como se o impossível não fosse” (Ibid: 97).
Aos doze mistérios protagonizados por Joana Carolina, em uma quase paixão, podem
ser comparados os Passos de Cristo. O numeral doze tem uma vasta simbologia para os
cristãos. Doze são os apóstolos; doze são os filhos de Israel; doze estrelas na cabeça tem a
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mulher que sente as doze dores de parto, no Apocalipse (12:1-2); doze também é o numeral da
Jerusalém celeste: “Tinha grande e alta muralha, doze portas, e, junto às portas, doze anjos, e,
sobre elas, nomes inscritos, que são os nomes das doze tribos dos filhos de Israel” (21:12).
Doze é o número do Zodíaco, “roda da vida”, segundo ressalta Durand (2001:324). Conforme
convém a uma santa, Joana não morre, ela cumpre o seu ciclo, seus doze mistérios, em
contiguidade ao fechamento do círculo anual. Por esse prisma, é possível afirmar que ela volta
ao seu estado primeiro, luz, anjo. Em sendo luz, é a representação divina na Terra.
Por fim, não seria arriscado afirmar que Retábulo de Santa Joana Carolina é o texto de
σove, novena que encerra com mais precisão os objetivos de τsman Lins: “caminhar para a
conquista de uma visão singular e intensa do Universo” e “criar uma obra que, na sua
totalidade, transmita essa visão e seja, ao mesmo tempo, a história nova da sua conquista”
(LINS, 1979:132).

REFERÊNCIAS

Bíblia de Estudo Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.


Bíblia Sagrada. Trad. dos Monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico. São
Paulo: Parma, 1971.
CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Europeia e Idade Média Latina. São Paulo: Hucitec
Edusp, 1996.
DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: UNESP, 1999.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário: introdução à arquetipologia
geral. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LINS, Osman. Nove, novena: narrativas. 4ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
______. Evangelho na Taba. Outros Problemas Inculturais Brasileiros. São Paulo: Summus,
1979.

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INTRODUÇÃO À TEORIA DOS VÍCIOS EM TOMÁS DE AQUINO

Sebastiana Inácio da Silva


(UEPB/Principium/CNPq)
diana_davi123@hotmail.com
Maria Simone Marinho Nogueira
(UEPB/Principium/CNPq)
mar.simonem@gmail.com

INTRODUÇÃO

Partindo das leituras introdutórias para a elaboração do Trabalho de Conclusão de


Curso (TCC), surgiu a ideia de se trabalhar a questão dos vícios em Tomás de Aquino. No
início surgiram muitos questionamentos no que se refere ao tema, visto que o maior número
de trabalhos encontrados sobre a Suma Teológica aborda a questão das virtudes. Desta forma,
o tema sobre os vícios se torna importante, dentre outras coisas, pelo fato de ser pouco
discutido e, por isso, o número de produções sobre tal assunto é escasso. Os vícios capitais é
um assunto que faz parte também da ética e, portanto, é relevante ser investigado.
Nesse trabalho foram elencados e descritos de forma breve os sete vícios capitais
elencados por Tomás de Aquino no De Malo e na Suma Teológica. O artigo está dividido em
duas partes: a primeira, 1. OS VÍCIOS CAPITAIS: breve incursão e a segunda, 2. OS SETE
PECADOS CAPITAIS E SUA DESCRIÇÃO. A primeira parte faz uma introdução acerca
dos vícios, sua importância e o que significa vício capital e qual a origem do termo; a segunda
parte apresenta a descrição dos vícios e do comportamento do sujeito viciado ou pecaminoso,
além de mostrar como cada vício gera outros à medida em que o homem vai dando vazão as
concupiscências. Como foi enfatizado, ainda estamos em fase de pesquisa acerca do tema, o
que impede de chegar a algumas conclusões.
Para a concretização desse trabalho, utilizamos a pesquisa bibliográfica. É importante
ressaltar que temos por objetivos específicos refletir sobre os vícios capitais e sobre o que
deles derivam e descrever de forma breve cada um deles.

1. OS VÍCIOS CAPITAIS: BREVE INCURSÃO

Aqui falaremos acerca dos vícios capitais de forma mais descritiva, a partir da
compreensão tomista, abordada no De Malo. Na enumeração de Tomás, os vícios capitais são:
vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Hoje em lugar da vaidade, a Igreja coloca
a soberba e em lugar da acídia, a preguiça. Os vícios capitais segundo Tomás de Aquino
“recebem esse nome por derivar-se de caput: cabeça, líder, chefe (em italiano ainda hoje há a
derivação: capo, capo-máfia); sete poderosos chefões que comandam outros vícios
subordinados”. (LAUAND, 2004, p. 67).
Os vícios capitais indicam a sua posição, em relação ao comando dos vícios que
decorrerão deles, dependendo do tipo de vício que seja cometido e a que fim se quer chegar.

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Além de ser o princípio, é o que tem a direção de todo animal, conforme cita na Suma
Teológica:

[…] Metaforicamente, todo princípio chama-se cabeça, e também os homens


que dirigem os outros e os governam são ditos a cabeça dos outros. Portanto,
chama-se vício capital, de um modo enquanto deriva de cabeça em sentido
próprio; assim chama-se pecado capital o que pune a pena capital […] Se diz
vício capital aquele que dá origem a outros vícios, principalmente enquanto
causa final, que é a origem formal, como já foi dito. Assim o vício capital
não é somente o princípio de outros vícios, mas ainda os dirige e de certo
modo os guia. (ST, I – II, q. 84, a.3, rep.)1.

τ vício capital, segundo Tomás, deriva de “cabeça,” do latim capite e tem três
significados distintos: cabeça como parte do corpo dos animais, cabeça como qualquer
princípio e, por último, cabeça no sentido de governante ou chefe do povo. Para ilustrar essas
ideias ele cita alguns versículos das Escrituras em que aparece cada um desses significados
para a palavra cabeça. Quando Tomás aplica o termo capite, seja em qualquer dos três
sentidos, ele está querendo chegar à questão de um pecado poder derivar-se de outro de quatro
modos: pela supressão da graça, por modo de inclinação, propiciando-lhe matéria para outro
pecado e quanto à finalidade.
O primeiro modo de um pecado derivar-se de outro é através da supressão da graça.
Vejamos o que diz Aquino: “a graça mantém o homem afastado do pecado, como se lê em I
Jo 3,9. Todo aquele que é nascido de Deus não peca porque a semente de Deus permanece
nele [...]” (DM, 2004, p. ι9). τ pecado que suprime a graça é causado pelos pecados que se
seguem. Contudo, qualquer pecado pode culminar na causa de outro pecado e assim por
diante.
O segundo modo do pecado derivar-se de outro é a inclinação, ou seja, um pecado
causa um hábito ou uma disposição para pecar, cada pecado causa sempre outro semelhante
quanto a sua espécie. O terceiro modo é a causa de propiciar matéria para outro pecado
através da derivação, como o caso da gula que gera matéria para a luxúria e a avareza que
culmina com a discórdia. O quarto e último modo é um pecado causar outro quanto à
finalidade. Se dá quando um homem para obter o fim de um pecado acaba cometendo outro
pecado. Tomás cita o exemplo da avareza que causa a fraude, que é o desejo desmedido de
ganhar dinheiro. Por isso, quando um pecado causa outro, tendo os seus subordinados, é
denominado de capite (cabeça).
Um pecado pode dirigir-se a outro pecado de dois modos: por parte do sujeito que
peca, estando sua vontade mais voltada ao fim de um pecado do que a outro; e o modo que
decorre das próprias características dos fins, isto é, são tão articulados que se dirigem a um
mesmo fim, como o caso do engano que é proveniente da fraude e dirige-se a acumular
riquezas que é a finalidade da avareza.

1
A partir daqui citaremos a Suma Teológica utilizando as letras ST para identificar melhor, visto que
utilizaremos, também, citações do De Malo. Quando a referência for da Suma Teológica incluiremos ST e
quando for do De malo, DM. As citações do De malo são retiradas da tradução de LAUAND, 2004, as da Suma
teológica são da seleção de textos de Os pensadores, 2004.
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2. OS SETE PECADOS CAPITAIS E A SUA DESCRIÇÃO

Nesse tópico aborda-se os vícios capitais a partir da obra de Tomás de Aquino


denominada De Malo, que segundo Lauand:

Parecem ser questões disputadas em Roma durante o ano letivo 1266-7 ou,
segundo outros críticos contemporâneos, em Paris, no ano letivo de 1269-70.
Boa parte desse tratado é dedicada aos pecados capitais e se articula com a
discussão dos mesmos na segunda parte da Summa Theológica (escrito não
entes do De Malo). (LAUAND, 2004, p. 71)

Dessa forma, cita-se nesse texto, trechos da Suma Teológica e do De Malo, para que
seja compreendida a questão dos vícios capitais nas duas obras.
Tomás de Aquino inicia o artigo sobre a descrição dos vícios capitais discorrendo
acerca da soberba (superbia). Para ele, a soberba tem três significados: o apetite desordenado,
um certo desprezo atual de Deus e um certo desprezo da natureza corrompida a esse desprezo,
que é o início de todo pecado. Embora sejam verdadeiros, esses significados não são
“segundo a intenção do sábio, que disse: 'o começo de todo pecado é a soberba'. […] eis
porque se deve dizer que a soberba […] é o começo de todo pecado. (ST, I – II, q. 84, rep.). É
possível observar que a soberba, na visão tomista, é um vício que atenta contra a excelência
divina, portanto, tido como o princípio de todo pecado. A soberba é também uma não
submissão do homem a Deus e, sem essa submissão, o homem quer sua própria excelência
nas coisas desse mundo.
No que se refere à vaidade, Tomás inicia dizendo que para discutir sobre essa questão
é necessário conhecer o significado de glória e em seguida a vaidade, que ele chama de
vanglória “glória vã” (DM, 2004, p. κ2) e só a partir disso verificar se a vaidade é pecado. A
glória pode ser considerada de três formas: 1. no bem de alguém que se manifesta às
multidões, 2. o bem de alguém que se manifesta a poucos ou a um só e 3. no bem de alguém
considerado por ele próprio. Já a vaidade (vanglória), a palavra vão admite três significados:
vão é aquilo que não tem subsistência (às coisas falsas chamamos vãs), é aquilo que carece de
solidez e consistência, vão é algo que não é capaz de realizar o fim devido.
Baseado nesses significados, Tomás vai falar da vaidade a partir de três sentidos:
quando alguém se gloria falso (de um bem que não tem), quando alguém se gloria de um bem
que passa facilmente e quando a glória não se dirige ao devido fim. Finalmente, ele responde
que a vaidade em qualquer uma das suas formas é pecado. Após afirmar a natureza
pecaminosa da vaidade, ele passa a enumerar as filhas da vaidade. São filhas da vaidade:
desobediência, jactância, hipocrisia, contenda, pertinácia, discórdia e presunção de novidades.
A lista de filhas da vaidade reforça de forma clara a afirmação de que um vício é cabeça e
mãe de outro vício.
As filhas da vaidade são os vícios pelos quais o homem tenta manifestar a sua própria
excelência. Essa manifestação pode se dar de maneira direta ou indireta, de forma direta tem-
se como exemplo a jactância, a presunção de novidades e a hipocrisia; e de forma indireta se
dá de quatro formas: 1º - através da inteligência e pertinácia, 2º - da novidade e da discórdia,
3º – contemplada e 4º - a desobediência.

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A inveja para Tomás é pecado mortal, suas filhas são: murmuração, detração
(difamação), ódio, exultação pela adversidade, aflição pela prosperidade. Movido pela inveja,
o homem tende a fazer coisas contra a ordem moral para atingir de forma danosa ao próximo.
Portanto, a inveja é vício capital e nesse impulso ela proporciona princípio e termo final. O
princípio é o desejo de impedir a glória do outro, essa glória entristece o invejoso que começa
a depreciar o bem do outro falando mal de forma disfarçada. O intuito principal do invejoso é
o ódio pela superioridade do outro e o desejo maldoso para com a vítima da sua inveja.
Também quando o invejoso não consegue alcançar o propósito de destruir a glória do
próximo, ele se entristece e aí é gerada mais uma filha da inveja, denominada aflição pela
prosperidade do próximo.
A acídia é um pecado que tem como suas filhas: desespero, pusilanimidade, torpor,
rancor, malícia, divagação da mente. Tomás vai dizer que a acídia, segundo João Damasceno,
é uma tristeza e o objeto da tristeza é o mal presente. E o próprio Tomás também afirma que
“[...] e como os homens fazem muitas coisas por causa do prazer – para obtê-lo ou movidos
pelo impulso do prazer - assim também fazem muitas coisas por causa da tristeza: para evitá-
la ou arrastados pelo peso da tristeza [...]” (DM, 2004, p. 94) também movem os homens e
isso é a acídia. Também é usado o pensamento de Aristóteles que afirma ser desaconselhável
ao homem viver muito tempo apenas em tristeza e sem prazer, pelo risco de não encontrando
as alegrias do espírito ir buscar as alegrias do corpo. É possível compreender a acídia como
sendo uma forma de depressão, na linguagem contemporânea, um estado de espírito que
repercute em sintomas psicossomáticos. Para ilustrar esse comentário vejamos o que diz o
texto:

Por sua vez, a luta contra os bens do espírito que, pela acídia, entristecem, é
rancor, no sentido de indignação, quando se refere aos homens que nos
encaminham a eles: é malícia, quando se estendem aos próprios bens
espirituais, que a acídia leva a detestar. E quando movido pela tristeza, um
homem abandona o espírito e se instala nos prazeres exteriores, temos a
divagação da mente pelo ilícito [...]. (DM, 2004, p. 94-95).

Agora será tratado sobre a ira. Tomás inicia essa questão falando sobre uma
controvérsia acerca da ira por parte dos filósofos estóicos e peripatéticos. Para os estóicos,
toda ira era viciosa, já os peripatéticos defendiam que algumas iras eram boas. Para
compreender essa discussão é preciso levar em conta que toda paixão pode ser considerada
sob dois aspectos: “formal e material”. (Cf. DM, 2004, p. 95). A ira quando inflamada por
uma causa nobre ou uma vingança de acordo com a ordem da justiça, seria uma atitude
virtuosa. Porém, quando a ira provém de uma vingança fora da ordem jurídica e pretende mais
o extermínio de quem comete o erro do que a punição do erro cometido, isso já é irar-se
contra o irmão. A discussão dos estóicos e peripatéticos não é nesse viés.
A argumentação dos estóicos é deficiente porque não distingue o que é melhor em
termos abstratos e o que é melhor para uma pessoa concreta. Não reparam no fato de que a ira
e outras paixões semelhantes podem se relacionar com a razão no sentido antecedente e
consequente. Assim, não consideraram acertadamente a ira e as outras paixões.

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A ira, assim como os outros vícios capitais, e como já dissemos, possui suas filhas.
Tomás diz que as filhas da ira “apontadas por Gregório (Mor. XXXI, 45) são seis [...]: rixa,
perturbação da mente, insultos, clamor, indignação e blasfêmia”. (DM, 2004, p. 99). A ira é
vício capital porque ela pode ser considerada de três modos: de acordo com o que ela é no
coração, na boca e nas ações. De acordo com o que a ira é no coração, surge dela um vício
que tem seu fundamento na injustiça sofrida, pois o dano sofrido faz com que surja a ira e o
que sofre o dano requer vingança; a ira também surge no falar, seja contra Deus ou contra o
próximo; outro grau de ira nas palavras é quando alguém fala palavras injuriosas para o
próximo com o objetivo de insultá-lo. Por fim, quando a ira chega ao seu ápice causa a rixa e
assim derivam dela, por exemplo, ferimentos e homicídios.
A avareza, de acordo com o Aquinate quanto a sua significação originária, está ligada
a uma desordenada ambição de dinheiro:

[…] Como diz Isidoro no livro das Etimologias (X, 9), avarus é como que
avidus aeri, ávido de dinheiro (cobre), em consonância com a palavra
correspondente em grego filargiria, amor à prata. Ora, sendo o dinheiro uma
matéria específica, parece que a avareza é também um vício específico,
segundo a imposição originária do nome. Mas, por extensão, avareza é
tomada também como desordenada cobiça de quaisquer bens e, nesse
sentido, é um pecado genérico, pois todo pecado é um voltar-se
desordenadamente a algum bem passageiro. (DM, 2004, p. 100).

Assim é possível compreender a avareza no sentido que Tomás vai trabalhar na


sequência. Ele vai afirmar que, como o pecado é o oposto da virtude, é preciso considerar que
a justiça e a generosidade (liberalitas), cada uma das suas formas fala acerca das posses ou do
dinheiro.
As filhas da avareza, de acordo com Gregório (Mor. XXXI, 45) “[...] a traição, a
fraude, a mentira, o perjúrio, a inquietude, a violência e a dureza de coração." (DM, 2004, p.
102). A dureza de coração é o oposto da misericórdia, nesse caso, o avaro endurece seu
coração e não utiliza os seus bens para auxiliar misericordiosamente uma pessoa necessitada.
O avarento, por sua vez, também fica inquieto em cuidar dos seus bens, preocupado em cada
vez juntar mais, nunca saciando o seu desejo, além de ser capaz de atos violentos ou
enganosos para lucrar e adquirir mais bens materiais. Um exemplo de avareza citado por
Tomás de Aquino é o caso de Judas que se tornou traidor de Cristo.
Já a gula, de acordo com o Aquinate, refere-se às paixões e é o oposto da temperança
no que tange aos prazeres do comer e do beber. Ele afirma que o vício da gula, segundo
Gregório, nos tenta de cinco maneiras: “levando-nos a antecipar a hora de comer, a exigir
alimentos caros, a reclamar requintes no preparo da comida, a comer mais do que o razoável e
a desejar os manjares com o ímpeto de um desejo desmedido” (DM, 2004, p. 104). Podemos
observar que as razões enumeradas aí não constituem o alimentar-se por necessidade, mas o
desejo incontinente de sentir prazer. Quando estamos famintos não precisamos de comidas
requintadas para saciar a fome, nem de alimentos caros, ou bem preparados, o alimento mais
simples sacia a fome de um indivíduo, sem ser necessariamente com esses atributos
elencados.

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A gula, por sua vez, também tem suas filhas que são: imundície, embotamento da
inteligência, alegria néscia, loquacidade desvairada, expansividade debochada. É interessante
observar o que diz Tomás acerca da gula:

[…] Quanto à razão, cuja agudeza se torna obtusa pelo excesso de


quantidade ou de solicitude no comer, pois quando se perturbam as potências
inferiores corporais pelo consumo desordenado de alimentos também a razão
fica obstruída e, assim, o embotamento da inteligência é considerado filho da
gula. (DM, 2004, p. 105).

Pelo exposto, fica claro que Tomás de Aquino considera o prazer pelo excesso de
alimentos um prejuízo à inteligência. O homem movido pelo desejo descontrolado de comida
não consegue refletir e perde o controle até dos seus membros, ficando impedido de usar a
razão.
Tomás de Aquino também discorre um pouco acerca da desordem nos atos da vontade,
surgindo daí a alegria néscia, causado pelo adormecimento da razão. A desordem no falar
(loquacidade desvairada) e a expansividade debochada são outros problemas apontados, como
a razão é a responsável por ponderar o falar, o homem se dispensa em falatórios sem nexo e
pela falta de razão também perde o controle dos membros exteriores começando a agir com
certa desordem.
A luxúria tem como matéria os prazeres sexuais. O indivíduo luxurioso é aquele que
se encontra dissolvido nos prazeres, e são os prazeres sexuais os que mais dissolvem a alma
do homem. Tomás da Aquino vai afirmar que a ordem das coisas se divide para um fim, e
assim como o alimento destina-se a conservar a vida do indivíduo, o uso dos atos sexuais tem
o objetivo de conservar a espécie do gênero humano. A luxúria é viciosa porque afasta o
indivíduo da ordem da razão e transgride essa ordem e esse modo da razão, portanto é
considerada por Tomás como vício e pecado capital. No caso da luxúria ele vai afirmar que
ela é pecado e vício capital, vejamos o que diz o texto:

[…] É o caso da luxúria que, por definição, transgride a ordem e o modo da


razão no que diz respeito aos atos sexuais. E assim, sem dúvida, a luxúria é
pecado. […] Vício capital é aquele cujo fim é muito desejável, de tal modo
que, por desejá-lo; o homem é levado a cometer muitos pecados e todos têm
origem naquele vício principal. Ora o fim da luxúria é o prazer sexual, que é
o máximo. E sendo este prazer o que exerce maior atração ao apetite
sensível, quer pela veemência, quer pela conaturalidade dessa
concupiscência, é manifesto que a luxúria é vício capital. (DM, 2004, p.
107).

Observamos que Tomás de Aquino mostra nesse trecho um pouco da diferença que há
entre pecado e vício capital. Ali fica claro que pecado e vício capital são coisas distintas e
precisam ser explicados (embora este não seja o objetivo deste estudo). Sendo assim,
voltemos à questão da luxúria. A luxúria como os outros vícios capitais também possui as
suas filhas, são oito o número de suas filhas, vejamos: cegueira da mente, irreflexão,
inconstância, precipitação, amor de si, ódio de Deus, apego ao mundo, e desespero em relação
ao mundo futuro. Para o Aquinate é evidente que,

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[...] quando uma alma está voltada para um ato de faculdade inferior, as
faculdades superiores se debilitam e se desorientam em seu agir. No caso da
luxúria, por causa da intensidade do prazer, a alma se ordena às potencias
inferiores, isto é, a razão e a vontade, sofrem uma deficiência (DM, q. 15, a.
4).

O prazer sexual exerce sobre o homem o poder de afastá-lo da razão e dessa forma
prejudica sua reflexão e seus atos são voltados para a perversão dos atos razoáveis. A razão,
segundo Tomás, dirige os atos humanos de quatro formas: 1. Julgar retamente a respeito do
fim, como princípio do agir; 2. A deliberação, que fica obstruída pela concupiscência do amor
libidinoso; 3. O juízo sobre como se deve agir é impedido pela luxúria e o homem é levado a
um juízo precipitado sem esperar o juízo da razão; 4. Mandar o que se deve fazer, o homem
não persiste naquilo que tinha decidido, portanto, é inconstante.
O homem movido pela luxúria não se preocupa com os outros, é egoísta, desenvolve o
ódio por Deus, se apega ao mundo e se desespera em relação ao mundo futuro, ou seja, as
preocupações de um indivíduo luxurioso são apenas com a sua satisfação egoísta, deixando de
lado a espiritualidade e o amor ao próximo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esperamos que esse texto sirva de ponto de partida para uma maior investigação
acerca dos vícios. Sabemos que não é possível contemplar cada particularidade acerca desse
assunto num trabalho de tal porte, porém, o que foi abordado é fruto das leituras introdutórias,
como dissemos, com vistas a um Trabalho da Conclusão de Curso (TCC). Esse trabalho
também pode servir como ponto inicial de futuras pesquisas sobre o tema, entre alunos de
graduação em Filosofia que se interessem por temas voltados à ética na Filosofia Cristã
Medieval. Essa pesquisa, embora introdutória, revela possibilidades de se desenvolver ao
longo dos próximos estudos, visto que é um assunto que oferece inúmeras potencialidades no
que se refere a futuras investigações. Além disso, como pudemos perceber, a teoria dos vícios
em Tomás de Aquino revela um profundo estudo e conhecimento sobre o ser humano e, como
tal, mantém-se atual.

REFERÊNCIAS

CUNHA, Paulo Ferreira. O comentário de Tomás de Aquino ao livro V da Ética a Nicômaco


de Aristóteles. Faculdade de Educação da USP, 2002. Disponível em:
http://www.hottopos.com/videtur14/paulo2.htm> Acessado em 08 de abr. de 2012. 18 h.
SILVA, Cláudio Henrique. Virtudes e vícios em Aristóteles e Tomás de Aquino:
oposição e prudência. Boletim do CPA, nº 5/6, Campinas São Paulo, 1998. Disponível
em: http://venus.ifch.unicamp.br/cpa/boletim/boletim05/08silva.pdf Acessado em 08 de
abr. de 2012. 17 h 50.
TOMÁS DE AQUINO. Os sete pecados capitais. Tradução e estudos introdutórios de Luiz
Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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TOMÁS DE AQUINO. A Suma Teológica. Seleção de textos. São Paulo: Nova Cultural,
2004.

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ANAIS DO I SEMINÁRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS NA PARAÍBA

ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE LES SERMENTS DE STRASBOURG

Ana Cristina Bezerril Cardoso1

O desejo de conhecer a origem da língua que ensinamos foi o que nos motivou a
realizar este trabalho. Quanto mais o tempo passa, quanto mais experiência e conhecimento
gramatical e lingüístico adquirimos, mais necessidade sentimos de voltar às origens. Como
compreender o estado presente da língua sem compreender sua formação, seu começo?
Embora não seja fácil de se determinar um momento exato para o nascimento da língua
francesa, podemos dizer que foi a partir dos Juramentos de Strasbourg que a língua francesa
passou a existir “oficialmente” como tal.
Os Juramentos de Estrasburgo datam do século IX, e são considerados o primeiro
documento da língua francesa. Trata-se de um documento curto, mas de extrema importância
para a consolidação do francês. Eles estão registrados dentro da obra, Histoire des fils de
Louis, le Pieux, do historiador Nithardo. Esse livro foi escrito todo em latim salvo o trecho
dos Juramentos de Estrasburgo que está em proto-francês e em alemão. Objetivamos
compreender o porquê de esse registro ter sido realizado nessa língua e não em latim, como
era o costume da época.
Para um melhor entendimento do momento histórico em que foram proferidos os
Juramentos de Strasbourg do século IX, voltaremos no tempo. Nossa história dos Juramentos
começará então com o surgimento da Francia no final do século VIII.

Carlos Magno e os Juramentos de Estrasburgo

Em 768 morre Pepino, o Moço, e o reino franco é divido entre seus filhos Carlomano
e Carlos Magno. Em 771, Carlomano falece e Carlos Magno assume o poder de um reino
franco unificado.
Grande conquistador, Carlos Magno tomou a Itália dos lombardos, combateu contra os
muçulmanos na Península Ibérica e conquistou a Saxônia. Cristão fervoroso, guerreou
levando sempre consigo o cristianismo aos povos conquistados. No ano de 800, em Roma, foi
coroado imperador pelo Papa vindo a falecer em 814.
Além da expansão do cristianismo, Carlos Magno criou escolas e promoveu a
renascença carolíngia, uma tentativa de revalorização das letras greco-latinas que haviam
perdido valor durante todo o período das invasões germânicas, época em que os dialetos
germânicos logicamente predominavam. Os merovíngios, descendentes de Clóvis, assim
como os próprios carolíngios, eram povos de língua germânica, teudisca lingua. Segundo
Renée Balibar (apud PERRET, 2003, p.34), existia, à época de Carlos Magno uma grande
diferença de status entre as línguas germânicas, “línguas dos senhores”, que gozavam de

1
Prefessora substituta de língua francesa do DLEM- UFPB e-mail: accardoso101@hotmail.com
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grande consideração, e o falar dos povos romanos: “falar dos servos e dos vencidos” e “jargão
agrícola”.
Foi justamente graças à renascença carolíngia, com a retomada dos estudos de textos
em latim clássico, que surgiu a consciência de que a língua falada pelo povo havia sofrido
tantas modificações que já não podia ser mais reconhecida como latim, conforme se pode
ratificar pelas palavras de Perret (2003, p.35):
Avec Charlemagne, qui rétablit l’Empire d’τccident, une influence civilisatrice et la
renaissance des lettres latines furent paradoxalement à l’origine de l’apparition d’une nouvelle
langue écrite, qui deviendra le français. Charlemagne reconstitua un empire d’τccident qui
comportait le territoire de la France (à l’exception de la presqu’île bretonne), celui de
l’Allemagne et une grande partie de celui de l’Italie (un peu plus bas que Rome), vaste espace
qu’il administrait et gouvernait efficacement: il tentait aussi de redonner à ses peuples la
civilisation qu’ils avaient perdue.2
Ainda se pode verificar uma reforma na organização educacional da época, instaurada
pelo monge Alcuíno, segundo também se pode confirmar na passagem a seguir (Idem,
ibidem, loc.cit):

Il fit venir d’Angleterre (York) le moine Alcuin pour mettre en place un


enseignement en latin pour les moines qui n’arrivaient plus à comprendre le
texte de la Vulgate (nom donné à la traduction de la Bible en latin par saint
Jérôme, vers 400). Sur son conseil, l’empereur mit en place un enseignement
à trois niveaux.. Au niveau supérieur, l’école palatine d’Aix-la-Chapelle
formait les élites intellectuelles; au niveau intermédiaire, des écoles
épiscopales ou monastiques, dont l’abbaye Saint-Martin-de-Tours, dirigée
par Alcuin, formaient les adolescents. Dans les campagnes, une initiation des
enfants au calcul et à la grammaire aurait dû être faite par les curés, mais cet
enseignement de premier niveau ne put s’établir durablement.
C’est alors que les nouveaux lettrés, qui avaient réappris le latin classique,
commencèrent à se moquer des barbarismes du latin mérovingien de leurs
prédécesseurs. Mais, tandis que la langue simplifiée, pleine de termes
populaires des scribes mérovingiens, était encore accessible au peuple, les
lettrés carolingiens prirent conscience que la langue parlée avait tellement
évolué qu’il était maintenant impossible de faire comprendre un texte de vrai
latin à qui ne l’avait pas étudié”(PERRET, 2003, p.35)3.

2
Uma influência civilizadora e o renascimento das letras latinas, provocados por Carlos Magno, que
restabeleceu o Império do Ocidente, foram paradoxalmente a origem do aparecimento de uma nova língua
escrita que viria a ser o francês. Carlos Magno reconstituiu um Império do Ocidente reunindo o território da
França (com exceção da quase ilha bretã), o da Alemanha e uma grande parte do território da Itália (um pouco
mais abaixo de Roma), vasto espaço que ele administrava e governava com eficácia: ele tentava também dar
novamente a esses povos a civilização que eles haviam perdido.
3
Ele trouxe da Inglaterra (York) o monge Alcuin para implantar um ensino de latim para os monges que não
conseguiam mais compreender o texto da Vulgata (nome dado à tradução da bíblia em latim por São Jerônimo,
por volta do ano 400). Sob seu conselho, o Imperador instaurou um ensino em três níveis. O nível superior da
escola palatina de Aix-la-Chapelle formava as elites intelectuais; o nível intermediário, das escolas episcopais ou
monásticas, entre elas a abadia de Saint-Martin-de-Tours dirigida por Alcuino formavam os adolescentes. No
campo, uma iniciação das crianças ao cálculo e à gramática, teria sido realizada pelos padres, mas esse ensino de
primeiro nível não pôde se estabelecer de forma duradoura. Foi então que os novos letrados, que tinham
reaprendido o latim clássico, começaram a zombar dos barbarismos do latim merovíngeo de seus predecessores.
Mas, enquanto que a língua simplificada repleta de termos populares dos escribas merovíngeos ainda era
acessível ao povo, os letrados carolíngeos tomaram consciência de que a língua falada havia evoluído tanto, que
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Como ressalta e explica Perret, por volta do ano 800, o latim do norte da Gália, isto é,
da Francia, já possuía características bastante particulares e não se confundia mais com o
verdadeiro latim. Tanto é assim que, em 813, os bispos, reunidos em Concílio na cidade de
Tours, decidiram que os padres deveriam fazer seus sermões na língua materna do povo, “in
rusticam romanam linguam”, ou seja, em língua românica. σa realidade, esta data marca o
primeiro reconhecimento oficial da língua românica que viria, posteriormente, a ser o francês
propriamente dito. Contudo, o que era considerado assunto importante e sério como história,
filosofia e teologia era escrito em latim.
Segundo Wright (apud PERRET, 2003, p.35), teria ocorrido uma reforma na
pronúncia do latim durante o período carolíngio e esse fato teria favorecido a própria crise da
língua latina. Melhor dizendo, a pronúncia do latim escrito, que se apoiava nos falares da
época e de cada região, com a reforma carolíngia, deveria tornar-se homogênea, posto que era
a língua oficial do Império. O latim deveria então ser lido pronunciando-se todas as letras, o
que evidentemente não foi possível e o tornou incompreensível para o povo. “En voulant
éduquer les foules, on avait recrée une élite” (WALTER, 19κκ, p.6ι).4
Essa língua românica falada no século IX, que provém do latim e de outras línguas
indo-européias, como o gaulês e o frâncico, já nessa época, havia sofrido tantas modificações
que seria impossível não lhe conceder o status de língua independente do latim,
diferentemente do italiano ou o espanhol, por exemplo, que ainda estavam bem próximos da
língua latina.
Como observa Perret (2003, p.37), não houve descontinuidade entre o latim falado por
Júlio César e a língua falada na Frância do século X. O que houve, com efeito, foram
mudanças resultantes de influências recíprocas entre a língua do invasor romano e os vários
dialetos existentes na Gália, desde a invasão de César até a época de Carlos Magno. Foi o
retorno às origens que evidenciou a existência de duas línguas: o latim - língua oficial -, e
uma língua materna - a língua românica.
Durante a Idade Média, essa romana lingua abrigava grande variedade de dialetos; no
final do século XII, pode-se, no entanto, perceber um uso comum entre eles no momento em
que surge a chamada langue d’oïl no σorte do território, a langue d’oc no Sul e ainda dialetos
franco-provençais na região de Lyon, Genebra e Grenoble (WALTER, 1988, p.52). Essa
língua vulgar não obedecia à regra alguma, assim continuando até o século XVI quando foi
normatizada.
Os primeiros escritos que atestam a existência dessa língua românica, desse proto-
francês, são vocabulários. Tritter, na sua Histoire de la langue française (1999, p.15), afirma
que, desde os séculos VII e VIII, se escreveu em proto-francês, à época roman primitif;
todavia, devido a tantas guerras e percalços, poucas foram as provas que chegaram aos dias
atuais. Os testemunhos mais antigos da existência de uma língua românica escrita são na
realidade os glossários, dentre os quais o mais famoso é o Glossário de Reichenau, do final do
século VIII e início do século IX, que traduz em língua românica aproximadamente 1.300
termos latinos difíceis da Vulgata de São Jerônimo, a versão latina da Bíblia. Não se trata de

era impossível, naquele momento, fazer compreender um texto em verdadeiro latim a quem não o tinha
estudado.
4
Desejando educar a massa, havíamos recriado uma elite.
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um texto e sim de um léxico. Do mesmo gênero são as Glossas de Kassel, as Glossas de Paris,
o Vocabularius optimus, entre outras.
Sem desmerecer os glossários, é, porém, em 14 de fevereiro de 842 5 que começa
oficialmente a história da língua francesa com os Juramentos de Estrasburgo. Desse famoso
texto existem duas cópias apócrifas conservadas na Biblioteca Nacional da França. A mais
antiga6 é do final do século IX (Vide fac-símile, figura 1) e a outra é uma cópia7 incompleta
da precedente feita no século XV (HAGÈGE, 1996, p.19). Considerado a certidão de
nascimento do que viria a ser o francês, esse documento foi escrito em língua românica e em
língua tedesca, ou seja, alemã.
Os Juramentos de Estrasburgo são o marco que consolidou a existência de uma língua
francesa. Trata-se de um documento “curto mas precioso”, como bem assinala Vasconcelos
nas suas Lições de filologia portuguesa (s.d., p.208).
Segundo Walter (1993, p.12-13 apud http://www.restena.lu), durante a Idade Média
(século V- X) só se escrevia em latim, língua oficial da Igreja e do poder. Os Juramentos de
Estrasburgo são o testemunho oficial da importância conferida às línguas vulgares ao
reproduzir essas línguas por escrito. A autora reconhece a pouca espontaneidade do juramento
como também sua forma ritual; no entanto afirma que nem por isso a língua vulgar deixa de
revelar uma situação geolingüística nova que aparece no momento da divisão do Império de
Carlos Magno. Um bloco romano e um bloco germânico tomaram consciência coletiva de
suas diferenças. Esse sinal de relativa heterogeneidade cultural estava prestes a transformar-se
em clivagem política. Les Serments de Strasbourg sont le symptôme d'une fracture
géopolitique et géolinguistique dans l'Europe du IXe siècle8 (idem).
Esse fato histórico chegou até os tempos atuais graças ao historiador Nithardo, outro
neto de Carlos Magno. Sua obra Histoire des fils de Louis le Pieux9 foi toda escrita em latim,
salvo o trecho dos Juramentos de Estrasburgo, que foi transcrito nas línguas em que foram
pronunciados, ou seja, língua românica e língua alemã. O documento é um texto jurídico de
apenas algumas linhas, que não somente tem importância para a história da língua francesa,
visto que contém numerosos indícios da evolução da língua, como também possui grande
valor histórico-político para a França, já que estabeleceu a primeira unidade do país como
nação.
Michel Zink comenta no seu livro Littérature française du Moyen Âge (1992, p.26),
que os Juramentos de Estrasburgo não pertencem de forma alguma à literatura, mas nem por
isso deixam de merecer atenção:

5
Em todos os livros que pesquisamos, a data oficial dos Juramentos de Estrasburgo é o dia 14 de fevereiro do
ano de 842, ou seja, a data correspondente no calendário atual ao 16º dia das calendas de março do calendário
romano, aquele adotado por Nithardo.
6
Manuscrito latino n° 9768 do cadastro da Biblioteca Nacional da França.
7
Arquivos latinos n° 14663 do cadastro da Biblioteca Nacional da França.
8
Os Juramentos de Estrasburgo são o sintoma de uma fratura geopolítica e geolingüística na Europa do século
IX.
9
Adotaremos a edição da coleção Les Classiques de l'Histoire de France au Moyen Age, Paris, Librairie
ancienne Honoré Champion, editor, 1926, páginas 101 à 109 (apud http://www.langue-fr.net/d/origines/serment-
strasbourg).

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non seulement parce qu’ils constituent le premier monument de la langue


française, mais encore parce qu’ils invitent à réfléchir sur leur nature de
texte. Prêter serment en langue vulgaire est une chose. Reproduire ce
serment sous la forme d’un texte en langue vulgaire à l’intérieur d’un
ouvrage à caractère historico-politique, en latin bien entendu, comme le fait
Nithard, en est une autre.10

Figura 1.: Fac-símile do manuscrito dos Juramentos de Estrasburgo do final do século IX


da Biblioteca National da França. (TRITTER, 1999, capa).

Segundo Houaiss (2001, p.1693) o elemento latino de composição jur-, originalmente,


deve ter tido sentido de “fórmula religiosa”, daí o emprego do plural jurā, “o que diz a
fórmula da justiça”. Jūs orāre, jūs jūrāre significa ‘pronunciar a fórmula sacra que engaja’. τ
verbo jurar deriva do latim jurō que quer dizer: pronunciar a fórmula ritual dos juramentos.
Fazer um juramento é, por conseguinte, assumir um compromisso solene e sagrado. Essa
promessa ou afirmação é pronunciada geralmente em público e pode ter caráter pessoal ou
recíproco.
O ato de jurar tem como condição sine qua non a boa-fé. O caráter sagrado do
juramento está bem explícito no termo francês que designa juramento, ou seja, serment que

10
Não somente porque eles constituem o primeiro monumento da língua francesa, mas também porque eles são
um convite à reflexão sobre sua própria natureza como texto. Fazer juramento em língua vulgar é uma coisa.
Reproduzir esse juramento sob a forma de um texto em língua vulgar no interior de uma obra com caráter
histórico-político, em latim claro, como o fez Nitardo, é outra coisa.
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vem do latim sacramentum, de sacrare, tornar sagrado. O primeiro registro escrito desse
vocábulo na língua francesa data justamente de 842, ano dos Juramentos de Estrasburgo
(LAROUSSE, 1993 p. 1727).
Na Teogonia (HESÍODO, 1944, p. 60-1, v. 775-808) encontramos a explicação
mitológica da origem do grande juramento dos deuses. Para honrar e recompensar Estige,
filha mais velha de Oceano e Tétis, pelo auxílio que esta lhe prestou, Zeus a transformou no
hórkos, o grande juramento dos deuses. Quando qualquer um dos imortais queria se unir
através de um juramento solene, Zeus enviava a mensageira Íris para trazer num jarro uma
porção da água do Estige, que corria fria de um alto e abrupto rochedo. A água era o próprio
hórkos dos deuses e possuía potência divina carregada de malefícios para aqueles que não
cumpriam o juramento. O perjúrio era uma falta muito grave que era punida terrivelmente
pelos deuses. Benveniste (1985, p. 176) comenta que o castigo pelo perjúrio não era um
assunto humano. Segundo ele, “nenhum código indo-europeu antigo prevê sanções para o
perjúrio”. τ perjúrio era um delito contra os deuses, logo, supunha-se que o castigo viesse
deles. O ato de se comprometer com um juramento era “sempre se expor de antemão à
vigança divina, visto que se implora aos deuses que ‘vejam’ ou ‘ouçam’, que estejam, em
todo caso, presentes ao ato de comprometimento” (BEσVEσISTE, 19κ5, p. 1ι6).
Outro exemplo do valor sagrado do juramento e do poder que o jurar possuía na
cultura grega está na Ilíada de Homero. No canto III é feito um juramento e no canto IV esse
juramento é quebrado. A quebra do juramento traz uma condenação à morte para todos
aqueles que violaram o pacto sacrossanto.

Canto 3 :Anúncio do juramento feito por Heitor:


“τra, guerreiros Troianos, grevados Acaios, vos digo / o que vos manda
propor Alexandre, fautor desta guerra:/ Pede que todos os homens Aqueus e
Troianos deponham / as belas armas na terra, nutriz de infinitos guerreiros,
/para que possa no meio do campo lutar com o discípulo / de Ares, o herói
Menelau, por Helena e suas riquezas. / O que provar que é mais forte,
vencendo o adversário na luta, / leve consigo os tesouros e a casa conduza
consorte. / Com juramento firmemos nós outros a paz duradoura”.
(HOMERO, 2005, p.106, v. 86-94)

Canto 4: Idomeneu diz a Agamémnone:


“Filho de Atreu, Agamémnone, fiel companheiro hei de ser-te, / tal como
sempre me viste e de acordo com o meu juramento. / Trata, porém, de
espertar os demais combatentes Aquivos, / para que logo comece a batalha,
uma vez que as sagradas / juras os Teucros violaram. A Morte a eles todos
espera, / por terem sido os primeiros a os pactos violar sacrossantos”.
(HOMERO, 2005, p.125, v. 266-71)

O caráter sacro no ato de jurar permaneceu no século IX e pode ser constatado através
dos Juramentos de Estrasburgo de 842. Fazer um juramento significava prometer a Deus. Ao
transcrever os Juramentos nas línguas em que foram pronunciados, Nithardo reproduziu ipsis
verbis as promessas feitas pelos netos de Carlos Magno. A escolha do historiador pela
manutenção das línguas originais dos Juramentos dentro do seu livro todo em latim teria
como possíveis explicações: primeiro, as línguas faladas eram as línguas vulgares e, para

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serem compreendidos, os Juramentos tiveram que ser ditos em língua românica e tedesca;
segundo, o desejo de o autor manter-se fiel aos acontecimentos.
Para melhor entender a situação histórica em que foram proclamados os Juramentos de
Estrasburgo, retornaremos ao ano de 814, ano em que Carlos Magno faleceu depois de coroar
seu único filho varão sobrevivente, Ludovicus Pius ou Luís I, o Piedoso. Segundo Hagège
(1996, p.13) Luís I já teria resolvido a sua sucessão desde 817, 23 anos antes da sua morte.
Ele teria legado aos seus filhos Lotário, Pepino e Luís II, do seu primeiro casamento com
Ermengarda, o governo de um reino dividido. Pepino e Luís II seriam subordinados a Lotário,
que seria o imperador depois da morte do progenitor. Porém, esse projeto de sucessão não foi
realizado porque, em 838, Pepino faleceu antes mesmo do seu pai. Luís I ficara viúvo em 818,
e contraíra segundas núpcias em 819 com Judite da Baviera. Desse segundo matrimônio
nasceu Carlos, o Calvo. Assim sendo, em 840, quando da morte de Luís I, o Piedoso, cada
um de seus filhos vivos lutou pela conquista do Império Carolíngio (Vide figura 2).
Família de Carlos Magno

Pepino o Moço
(715 - 768)

Carlos Magno Carlomano


(744 - 814) (751 - 771)

Carlos Pepino Luís o Piedoso


(772 - 811) (773 - 810) (778 - 840)

Casa-se em 794 com Casa-se 819 com


Ermengarda (+ 818) Judite da Baviera

Lotário I Pepino Luís II o Germânico Carlos o Calvo


(795 - 855) (+ 838) (808 - 876) (823 - 877)

Figura 2.: Árvore genealógica da família de Carlos Magno.

Depois de muitas discórdias, Carlos, o Calvo, e Luís II, o Germânico, filhos de Luís I,
o Piedoso, decidiram se juntar para selar aliança contra Lotário, o irmão mais velho. Eles
assinaram um tratado em latim como de costume e, em seguida, fizeram um juramento. Os
Juramentos de Estrasburgo foram pronunciados em proto-francês e em língua tedesca pelos
dois monarcas. Cada um jurou na língua do outro, ou seja, Carlos, o Calvo, em língua alemã e
Luís, o Germânico, em língua românica, a fim de que todos compreendessem. Já os soldados
juraram fidelidade nas suas próprias línguas. Como comenta Hagège (1996, p. 16), a fronteira
lingüística entre uma zona ocidental de língua romana e uma zona oriental de língua
germânica já havia sido fixada entre os séculos IV e VI, momento da romanização dos francos
ocidentais. A única unidade lingüística entre essas duas partes do antigo império de Carlos
Magno era feita pelo latim, mas tratava-se, contudo, de um código escrito adotado pela Igreja
e pela administração, e não de uma língua falada pelo povo.

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Os Juramentos de Estrasburgo são, em resumo, o pacto no qual Carlos, o Calvo, Luís
II, o Germânico e seus respectivos soldados, juraram ajuda e fidelidade mútuas contra
Lotário.
Foi através dos Juramentos de Estrasburgo de 14 de fevereiro de 842 que Carlos, o
Calvo, e Luís, o Germânico, pressionaram Lotário e conseguiram a divisão do Império. A
querela entre os três irmãos só foi realmente resolvida um ano mais tarde, em 843, com o
Tratado de Verdun que dividiu o Império em três partes, como se pode ver na figura 3. Carlos,
o Calvo, ficou com a Frância ocidental; Luís, o Germânico, com a Frância oriental; e Lotário,
que detinha o título de Imperador, com o centro da Itália indo até a Frísia. Na realidade, o
Império deixado por Luis I, o Piedoso, já estava de uma certa maneira esfacelado, pois faltava
aos povos que o compunham, três elementos essenciais para a unificação; interesse, cultura e
língua comuns.

Figura 3.: A divisão do Império Carolíngio depois do Tratado de Verdun. (GRIMAL, 1960,
p.14).

O território que constituiria a França atual alcançou uma verdadeira unidade com o
Tratado de Verdun, visto que, até então, só tinha sido dividido em pequenos reinos gauleses
ou então tinha feito parte do Império romano, do Império franco e do Império germânico.
Pode-se afirmar, então, que os Juramentos de Estrasburgo de 14 de fevereiro de 842
são, sem sombra de dúvidas, considerados um monumento, o primeiro, da língua francesa. A
grande importância do documento é confirmada pelo enorme interesse e a vasta bibliografia
que tem suscitado desde muito tempo. Seria tarefa hercúlea citar todos os estudos já
realizados sobre o tema. No entanto, não se pode deixar de lembrar a tese de Tabachovitz
Étude sur la langue de la version française des Serments de Strasbourg (TABACHOVITZ,
1936), os artigos de Castellani, Le problème des Serments de Strasbourg (CASTELLANI,
1956), de Hilty Les Serments de Strasbourg (Hilty, 1973), de Deloffre A propos des serments
de Strasbourg de 842: les origines de l'ordre des mots du français (Deloffre,1980), de
Droixhe Les Serments de Strasbourg et les débuts de l'histoire du français (Droixhe,1987), o
livro de Balibar L’institution du français. Essai sur le colinguisme des Carolingiens à la

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Republique (Balibar, 1985), e o livro de Cerquiglini La naissance du français
(Cerquiglini,1991). 11

REFERÊNCIAS

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Universitaires de France, 1997.
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Bottmann. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
BRANCO, Bernardes. Diccionario Português-Latino. 3ª ed. Lisboa: Livraria Rerreira, 1897.
BURNEY, Pierre. L’orthographe / Que sais-je ? Paris: PUF,1970.
CALLOU, Dinah. e LEITE, Yonne. Iniciação à fonética e à fonologia. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1990.
CARRETER, Fernado Lázaro. Diccinario de terminos filologicos. Madrid: Editorial Credos,
1953.
CERQUIGLINI, Bernard. La naissance du français / Que sais-je ? Paris: PUF,1993.
CÍCERO. Epistulae ad Familiares XXI. apud http://www.thelatinlibrary.com
FARACO, C. A. (1991) Lingüística histórica. São Paulo: Ática.
FARIA, Ernesto.org. Dicionário escolar latino-português. Rio de Janeiro: MEC, 1955.
GREVISSE, Maurice. Le bon usage. Paris-Louvain-la-Neuve : Duculot, 1993.
GRIMAL, Henri. e MOREAU, Lucien. Histoire de France. Paris: Nathan, 1960.
HACQUARD, Georges. Florilège du Moyen Age. Paris: Librairie Hachette, 1949.
HAGÈGE, Claude. Le Français, histoire d’un combat. Le livre de poche. Paris: Éditions
Michel Hagège, 1996.
______. Le français et les siècles. Paris: Éditions Odile Jacob, 1987.
RAYNAUD DE LAGE, Guy. Introduction à l’ancien français 2ª ed. revista e corrigida por
Geneviève Hasenohr, Paris: SEDES, 2000.
HÉSIODE. Théogonie – Les travaux et les jours – Le bouclier. Texte établi et traduit par Paul
Mazon. Paris: Les belles lettres, 1944.
HILTY, Gerald. Les serments de Strasbourg. In Melanges de linguistique française et de
philology et literature mediévales, p. 511-524. Paris: Klincksieck, 1973.
HOMERO. Ilíada (em versos). Trad. Carlos Alberto Nunes. 5ª ed, Rio de Janeiro: Ediouro,
2005.
HUCHON, Mireille. Histoire de la langue française. Le Livre de Poche. Paris: Librairie
Générale Française, 2002.
MICHAËLIS VASCONCELOS, Carolina de. Lições de filologia portuguesa. Lisboa: Martins
Fontes, s.d.

11
Embora não tenhamos tido acesso às obras citadas, elas são referendadas em Wagner (1995, p. 6), conforme
consta nas referências.
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PERRET, Michèle. Introduction à l’histoire de la langue française. Paris: Armand Colin,
2003.
ROUQUIER, Magali. Vocabulaire d’ancien français. Lassay-les Châteaux: Colin, 2005.
RUHLEN, Merritt. L´origine des langues. France: Belin,1997.
TRITTER, Jean-Louis. Histoire de la langue française. Paris: Ellipses, 1999.
WAGNER, Robert-Léon. Textes Littéraires Français. Textes d’étude (ancien et moyen
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WAGNER, R. L. & PINCHON, J. Grammaire du Français. Paris: Hachette, 1962.
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A TRADUÇÃO DA DIDAQUÊ (CATECISMO CRISTÃO DO II SÉC.)

Fabricio Possebon1
possebon@usp.com

Introdução

O texto grego da Didaquê foi encontrado em 1873, na Biblioteca de Constantinopla, e


apresentado ao público cerca de dez anos depois. As edições críticas que apareceram
normalmente o dividem em 16 capítulos, de tamanhos desiguais, mas respeitando os assuntos
tratados. Quanto ao conteúdo, pode-se dividir o texto em três partes: a primeira (do capítulo 1
ao 6) apresenta o conceito de um caminho, que teologicamente pode ser da vida ou da morte:
“Há dois caminhos, um da vida e outro da morte, e muita diferença entre os dois caminhos”,
Didaqué, I,1. Segue uma série de prescrições para aquele que vai seguir o caminho da vida,
começando por Deus:

O caminho da vida é este: primeiro amarás Deus, o que te fez; em seguida, o


teu próximo como a ti mesmo; todas as coisas quantas quiseres que não
sucedam a ti, também não as faças ao outro. (Didaqué, I,2)

E uma série de advertências para o que segue o caminho da morte. Os valores cristãos
são defendidos nesta primeira parte, como a humildade, a caridade, o temor a Deus, etc. A
segunda parte (do capítulo 7 ao 15) trata da organização da comunidade, sob diversos
aspectos, a saber, como celebrar o batismo:

E a respeito do batismo, assim batizai, todas estas palavras dizendo, batizai


em nome do pai e do filho e do espírito santo, na água corrente.
Se não tiveres água corrente, com outra água batiza, e se não puderes na
água fria, na quente [batiza].
Se ambas não tiveres, derrama na cabeça, três vezes, água, em nome do pai e
do filho e do espírito santo. (Didaqué, VII, 1, 2, 3)

Como jejuar:

Antes do batismo, jejuem o que batiza e o batizado e se alguns outros


puderem, e ordenas que o batizado jejue um ou dois [dias].
E os jejuns vossos não sejam com os hipócritas, pois jejuam no segundo
[dia] da semana, e no quinto; mas jejuai vós, no quarto e no parasceve.
(Didaqué,VII, 4, VIII, 1)

Como orar o Pai-nosso, que abaixo veremos, e como fazer a eucaristia:

Primeiro a respeito do cálice, rendemos graças a ti, ó pai nosso, pela sacra
vinha de Davi, o filho teu. A ti a glória para a eternidade.

1
Professor do PPG em Ciências das Religiões e do PPGL. E-mail: possebon@usp.br
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E a respeito do pedaço [de pão e de peixe]: rendemos graças a ti, ó pai nosso,
pela vida e conhecimento, o qual tu nos fizeste conhecer, por meio de Jesus,
o filho teu. A ti a glória para a eternidade. (Didaqué, IX, 2, 3)

Há, finalmente, um tratamento para os apóstolos, profetas, bispos e diáconos, ou seja,


como identificá-los, como recebê-los e até como expulsá-los, se for o caso. A última parte
contém apenas o capítulo 16, dedicado exclusivamente ao tema da volta do Senhor, isto é, a
parusia. Num tom apocalíptico, anunciam-se os sinais que mostrarão a chegada dos novos
tempos: expansão do céu, o som da trombeta e a ressurreição dos mortos.
As especulações à respeito de datação e autoria são as mais controversas, pois é no
próprio texto que devem ser encontradas tais informações. Assim, a primeira grande discussão
é quanto às fontes da Didaquê. Seria ela uma fonte dos textos evangélicos ou o contrário, os
evangelhos é que lhe serviram de modelo. Há passagens similares em todos os textos, assim a
solução que parece razoável é adimitir que tanto a Didaquê quanto os evangelhos tiveram uma
fonte comum, talvez o suposto texto conhecido como “Q”. A partir desses pontos de vista,
deve-se supor para a Didaquê a mesma idade dos textos evangélicos, ou seja, do ano 70 a 90
depois de Cristo. A lacuna existente entre a morte de Cristo (no ano de 33, tradicionalmente
aceito) e a redação dos primeiros textos (excetuando as cartas) é explicada pelo próprio
conceito de parusia. Acreditava-se que a vinda do Senhor seria imediata, portanto não se
sentia necessidade do registro dos ensinamentos, todavia como o tempo passava e nada
ocorria, entendeu-se que a vinda era certa, mas em hora incerta, portanto devia-se guardar a
memória de Cristo com o devido ensinamento.
Outros pesquisadores, entretanto, não aceitam uma data tão recuada para a Didaquê e,
de maneira geral, a situam no segundo século. É a opinião mais aceita, a qual colocamos no
título de nosso trabalho.
Quanto à autoria e local da redação, as incertezas se avolumam, mas algo parece
razoável: foi escrita por um líder de uma comunidade primitiva, em algum lugar em que essas
comunidades já haviam sido relativamente bem estabelecidas. Não faz sentido a Didaqué ser
uma obra de um cristão isolado, em algum retiro. As comunidades cristãs primitivas, por si
só, são uma grande discussão. Imaginamos terem existido, organizadas idealmente em torno
de um sistema de produção comum, em que todos dividem os trabalhos e, na hora das
refeições, sentam-se juntos à mesa, oram e repartem os alimentos. Os membros da
comunidade escolheriam aqueles que tivessem maior conhecimento e autoridade moral para
serem os líderes e as decisões eram tomadas em comum acordo. Esse modelo ideal tem
alimentado muitos sonhos, embora saibamos as limitações práticas de sua realização.

Questões pontuais na tradução

As questões são inúmeras, todavia vamos nos limitar a algumas mais singulares. O
texto grego, escrito naquela variante chamada koiné, não apresenta grandes dificuldades,
todavia alguns termos-chaves são particularmentes importantes.
O título Didaqué é um termo comum que significa “instrução”, “ensinamento”.
Quando as traduções possíveis para o termo mostram-se limitadoras, ou seja, parecem não
corresponder a toda a amplitudde de significados, então se prefere manter o original grego,
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efetuando-se uma mera transcrição com o alfabeto latino. É o caso aqui, pois o sentido
verdadeiro do termo implica um ensinamento que não é o comum, mas pautado pela revelação
cristão. Seguimos a tradição, mantendo Didaqué, cuja grafia também pode ser Didaquê.
τ subtítulo da obra indica a quem se destina: “Ensinamento do Senhor, por meio dos
doze apóstolos, aos povos”. τ termo grego tà éthna significa “povos”, “nações”,
“estrangeiros”, “pagãos”, “gentios”, “convertidos”. Com tal abrangência, não nos foi possível
saber exatamente a quem se destina a obra. Nossa opção de tradução foi neutra, deixando ao
leitor a indeterminação da passagem.
No capítulo IX, que trata da chamada eucaristia, há dois pontos de nota: o primeiro é o
próprio termo eucaristia, transcrição quase literal do grego eukharistía. Seu significado é
“agradecimento”, todavia um “agradecimento ritual”, ao que parece. Preferimos manter a
neutralidade do “agradecimento” a invocar o termo “eucaristia”, como é entendido hoje pela
Igreja, o que já significa uma longa evolução e interpretação do rito. Não estamos seguros o
quanto o rito primitivo subsiste na modernidade. No terceiro versículo do mesmo capítulo, há
o termo “pedaços”. Mas pedaço do quê? Passagens evangélicas citam “pedaço de pão” e, em
Marcos 6, 43, “pedaço de pão e peixe”. τptamos por essa última solução, por entendermos ser
o Evangelho de Marcos omais antigo, embora reconheçamos que, materialmente falando, o
uso do pão no rito não apresenta dificuldade, mas o peixe, sim.
τ capítulo XV começa assim: “Designai para vós mesmos, bispos e diáconos, dignos
do senhor, homens humildes, não ávidos por dinheiro, verdadeiros e experimentados, pois a
vós eles celebrarão a liturgia dos profetas e mestres”. Qual seria o significado de “bispos” e
“diáconos” nessa comunidade cristã primitiva? τs termos modernos evocam já todo um
paramento, uma hierarquia e formalismo, estranhos ao mundo primitivo. Todavia, com qual
termo moderno poder-se-ia traduzir as idéias da Didaqué? “Chefes”, “guias”, “líderes” são
muitos vagos. σossa solução foi deixar “bispos e diáconos”.

Sobre outras traduções disponíveis no mercado

Conhecemos duas traduções, ambas em catálogo, nas livrarias: DIDAQUÉ. O


catecismo dos primeiros cristãos para as comunidades de hoje. Tradução do Pe. Ivo Storniolo
e Euclides Martins Balancin, publicado pela editora Paulus, com muitas edições, e Didaqué.
Catecismo dos primeiros cristãos. Prefácio, tradução do original grego e comentário de
Urbano Zilles, pela editora Vozes, em muitas edições também. A primeira, como o próprio
subtítulo diz, propõe um texto em linguagem simples e coloquial, com amplo uso do pronome
de tratamento “você”, aproximando assim leitor e texto. Já a segunda segue o paradigma da
norma culta e procura, na medida do possível, aproximar o texto traduzido da tradição já
conhecida das traduções bíblicas em língua portuguesa. O texto, portanto, se apresenta como
familiar para aqueles já acostumados com a Bíblia. Recomendamos ambas as edições, quer
pela qualidade das traduções, quer pelas notas e explicações que acompanham o texto.

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Sobre a nossa tradução

Nossa tradução, por outro lado, pretende aproximar o leitor ao texto original grego.
Assim, muitas vezes, a ordem das palavras não parecerá familiar. Deliberadamente
escolhemos o vocabulário menos usual e conhecido da tradição das traduções portuguesas,
pois queremos “romper” os modelos mentais já existentes, os quais, muitas vezes, favorecem
uma leitura fluente, todavia sem uma reflexão mais aprofundada. Sirva de exemplo a oração
do Pai Nosso. É bem conhecido, pela consagrada tradução de Almeida, o texto de Mateus,
VI, 9-13:

Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o teu nome; venha o teu reino;
faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia
dá-nos hoje; e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado
aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do
mal [pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém]!

Mas em nossa tradução, Didaqué, VIII, 2:

Ó pai nosso, o qual estás no céu, santificado seja o nome teu, venha o reino
teu, faça-se a vontade tua, tanto no céu como sobre a terra. O pão nosso
cotidiano dá-nos hoje, e quita-nos da dívida nossa, como também nós
quitamos aos devedores nossos, e não nos conduzas à tentação, mas liberta-
nos da maldade, porque tua é a força e a glória, para a eternidade.

Ao propor um texto aparentemente novo, pretendemos que o leitor seja “desperto” do


automatismo e reflita um pouco mais sobre o contéudo doutrinário.
Chamamos, finalmente, a atenção do leitor para o fato de o texto original oscilar entre
segunda pessoa do singular e segunda do plural, como, por exemplo, na Didaqué, XIII, 4 e 5:

Se vós não tiverdes profeta, dai aos mendigos.


Se tu fizeres comida, a primícia tomando dá, segundo o mandamento.

A tradução respeitou essas “estranhezas” e também outras oscilações entre modos e


tempos verbais. A base do texto grego utilizada foi a edição de Funk/Bihlmeyer de 1924.

Conclusão

Muitas são as questões e as possibilidades envolvidas na tradução de um texto antigo,


todavia nosso artigo se restringiu a uns poucos pontos cruciais. As informações sintetizadas
neste artigo foram colhidas de nossa obra: DIDAQUÉ: ENSINAMENTO DOS DOZE
APÓSTOLOS. I - Parte: Texto original, tradução e comentários por Fabricio Possebon e
Severino Celestino da Silva. II – Parte: Análise de textos sagrados por Severino Celestino da
Silva e Paidéia e Didaqué: formação, ensinamento e instrução humanos por Sérgio Pereira da
Silva. Editora Universitária UFPB.

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REFERÊNCIAS

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BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian
Literature. Traduzido e adaptado ao inglês por William Arndt e Wilbur Gingrich. Chicago:
University of Chicago Press, s.d.
BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA. Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do
Brasil, 2006.
RUSCONI, Carlos. Dicionário do Grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 2003.

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MEDIEVALISMO E MODERNIDADE EM MAURICE VAN WOENSEL

Francisco José Gomes Correia (Chico Viana)1

Inicialmente quero louvar a iniciativa dos responsáveis por este evento. Nada mais
adequado para homenagear Maurice do que um congresso cujo tema seja a Idade Média. Esse
período histórico o fascinava, e não apenas por razões afetivas ou estéticas. Maurice tinha
consciência de que o essencial das manifestações artísticas do Brasil, e especialmente do
Nordeste, enraíza-se no Medievo.
E tinha razão. Segundo Afrânio Coutinho, a literatura brasileira nasce sob o signo do
Barroco. E o que é o Barroco, se não o efeito da cultura medieval sobre a visão de mundo
herdada do Classicismo? Barroco é dualismo, agonia, antítese; o que anima a alma barroca é o
impulso cristão de contestar o racionalismo e o humanismo da Grécia e de Roma. Para
contestá-los procuramos os modelos teocêntricos de vida e arte vigentes na Idade Média, de
cujo imaginário se embebeu nosso espírito latino.
Maurice tinha consciência disso. Sabia, ainda, que o mais característico desse período
se refugiara nos rincões interioranos do Brasil. Daí sua admiração pela cultura popular,
depositária de mitos, lendas, histórias que, em seu dramatismo simples, revivem a saga de reis
e rainhas; os amores trágicos de casais fadados à eterna separação; os conflitos íntimos de
religiosos divididos entre os apelos de Deus e os do mundo; mas sobretudo as artimanhas do
homem simples para sobreviver num mundo violento e desigual.
Segundo o professor Eduardo Hoornaert, Maurice

“...entra no rol dos medievalistas brasileiros (..) com uma originalidade: ele
sempre procurou aplicar os estudos medievais à realidade nordestina. Isso já
se percebe na sua dissertação de mestrado, de 1978, que é uma análise de A
Pedra do Reino de Ariano Suassuna e onde aparece um sertão habitado com
sonhos medievais. Maurice acerta de cheio: há uma correspondência entre
cultura nordestina e cultura medieval”. (HττRσAERT, p. 1)

Certo dia Maurice me falou que ia submeter ao CNPq um projeto de pesquisa sobre a
influência da poesia medieval na poesia moderna, e me perguntou se eu queria participar. Eu
sabia pouco dos seus estudos e quase nada conhecia da Idade Média. Mas defendera havia
dois anos tese sobre a melancolia em Augusto dos Anjos, o que me levara a ler, por exemplo,
sobre a acedia nos mosteiros. Determinado poema de Augusto me fizera pesquisar sobre a
barcarola e outras espécies medievais que chegaram aos dias de hoje. A esses rudimentos de
informação acrescentei leituras de Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Onestaldo de
Pennafort, e me senti em condições de preparar um plano de trabalho e me propor como
pesquisador-adjunto. Deu certo; o CNPq aprovou nosso projeto, intitulado “Precursores
medievais da poesia moderna; leitura e tradução de textos”, no qual trabalhamos por cerca de
5 anos.
Durante esse período muito aprendi com o homem e com o erudito. Maurice era uma
pessoa de convivência fácil, amena, porém firme em suas opiniões. Embora fosse especialista

¹ Professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba. viacor@uol.com.br


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nos assuntos que estudávamos, acolhia com respeito minhas propostas. Cada um seguia com
independência o seu caminho – eu, investigando os elementos temáticos e formais que
atestavam a influência do Medievo em alguns dos nossos poetas modernos; ele, entre outras
inúmeras tarefas, pesquisando a poesia dos goliardos – uma de suas paixões.
Maurice produziu muitos trabalhos na área dos estudos medievais. O mais importante
deles, certamente, foram as traduções de Carminha Burana, publicadas em 1994 pela Editora
Ars Poética. Na apresentação que escreveu para essa obra, o eminente medievalista
Segismundo Spina saudou-a com entusiasmo: “Felizmente a bibliografia brasileira pode
orgulhar-se de ingressar no campo da erudição literária medieval com a presente tradução
(...)”. E frisava, adiante: “Maurice Van Woensel (...) é a pessoa mais autorizada no Brasil a
falar sobre esse movimento poético medieval”.
A expressão Carmina Burana significa “canções de Beuern”, pois foi na abadia
beneditina de Benediktbeuern, na Baviera, que se encontrou o manuscrito posteriormente
musicado por Carl Orff. Esse manuscrito continha poemas e canções compostos pelos
goliardos, ou clérigos vagantes. Os goliardos eram religiosos que, no século XIII, vagavam
pelas estradas do Medievo executando suas canções. Alguns deles tinham uma espécie de
vida dupla, pois, ao mesmo tempo em que cantavam nas ruas e tabernas, participavam dos
ofícios litúrgicos.
A goliardia é um desses fenômenos que atestam a multiplicidade da visão de mundo
medieval. Os clérigos vagantes não eram rebeldes apenas no plano artístico; vinculavam suas
críticas e sátiras a uma ostensiva rebeldia de comportamento, adeptos que eram das tavernas e
de outros ambientes que à Igreja soavam suspeitos. Não eram apenas contestadores
intelectuais de um ambiente em que não raro surpreendiam o excesso dogmático conjugado à
hipocrisia e ao abuso de poder; buscavam por meio do comportamento anárquico denunciar
tais excessos.
A tarefa de traduzir os Carmina Burana demandava não apenas o esforço de um
pesquisador, mas também o discernimento de um erudito e a sensibilidade de um poeta. Era
preciso paciência e persistência para coligir os originais e escolher, entre as muitas versões
existentes, aquela que melhor representasse o espírito da goliardia. Mas era preciso,
sobretudo, conhecer a cultura medieval cristã e, dentro dela, os aspectos da vida nos mosteiros
capazes de esclarecer a tensão revelada nos textos – muitos deles paródias bíblicas.
Para traduzir os Carmina Burana, enfim, era preciso sintonizar-se com ímpeto de
rebeldia dos clérigos sem ignorar as determinações da hierarquia monacal, a fim de
surpreender no embate entre essas instâncias o sentido maior da revolução goliárdica. Era
preciso sentir os motivos e os propósitos desses aventureiros da fé, ressentidos com a ausência
das prebendas e ansiosos por mudar a ordem das coisas. Era preciso ter, em alguma medida,
uma alma goliarda.
O fato de muitos dos textos compostos pelos goliardos serem paródias dos hinos
litúrgicos explica o tom aparentemente solene de algumas letras, que nada tinham de piedoso.
E como poderiam ter, se o objetivo das canções era, muitas vezes, combater os abusos das
autoridades religiosas? Ou ironizar aspectos da liturgia, contrapondo a eles o prazer da
embriaguez nas tabernas? Como uma pequena amostra, veja-se a estrofe XIII do poema “Me
arde dentro do coração”: “A lamparina de minha alma/com vinho se acende,/esse néctar ela
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sorve,/da terra ela ascende;/pra mim, o vinho da taberna/não tem rival,/nada a ele se
compara/na mesa episcopal” (p. 121).
Quem lê os versos de Carmina Burana se espanta com a atualidade da crítica aos
(maus) costumes da época – por sinal, muito parecida com a nossa. Naquele tempo também
havia, por exemplo, corrupção no Judiciário: “Quando é a grana que impera/ o direito
degenera./ Ao indigente é negado/ o direito comprovado;/ para o rico não falta juiz/ a vender-
se por pratas vis;/ para o rico, o juiz bonzinho/ sempre dá algum jeitinho;”. E a juventude, tal
como hoje, não gostava de estudar: “nos tempos bons de outrora/ se estudava a toda hora;/ aos
noventa, tão-somente,/ aposentavam um discente./ Mas agora, aos dez de idade,/ jovens
passam por abades,/ bancam eles os professores:/ de cegos, cegos condutores.”.
Não foi à toa que Maurice van Woensel se saiu tão bem da empreitada. Ex-padre, ele
conhecia as normas clericais e o aparato litúrgico, que, mesmo passados tantos séculos, não
deixam de refletir o velho ambiente dos mosteiros. Maurice era um espírito livre, aberto aos
apelos do mundo e capaz, portanto, de se sensibilizar com as inovações trazidas pela
goliardia. Em alguma medida, vibravam nele a inquietação e o impulso contestatório próprios
dos clérigos marginais – no sentido genuíno dessa palavra.
Outro trabalho importante seu foi a tradução de composições do bestiário medieval.
Elas estão no livro Simbolismo animal medieval: Os Bestiários. Um safári literário à procura
de animais fabulosos, que foi editado pela Editora Universitária da Universidade Federal da
Paraíba.
A tradução desses textos absorveu Maurice nos seus últimos anos de vida. Certa vez
ele me disse que o trabalho vinha sendo feito havia anos, mas o nosso projeto lhe deu o ensejo
de terminá-lo. Visando à publicação desse “livro de bichos”, ele inclusive mantivera contatos
com uma editora do Sul do país. Pouco mais de três meses após essa conversa o livro veio a
público – publicado pela editora da UFPB, como foi dito – e se confirmou como inestimável
obra de pesquisa e de criação artística.
De pesquisa e criação, sim, pois não se sabe o que mais admirar nesse trabalho: se o
levantamento das fontes, com a rigorosa caracterização tipológica dos bestiários – se o
esforço de recriação poética com que Maurice procura verter para o português o ritmo e as
imagens através das quais a alegoria animal aparece como reflexo dos defeitos e das virtudes
humanas. Nesse livro o exegeta minucioso convive com o versejador bem-humorado, o que
dá à obra uma leveza que não nos deixa sentir, na amplitude do acervo pesquisado, o peso da
erudição.
Os bestiários constituem uma das melhores concretizações do preceito de Horácio
segundo o qual a arte deve “ensinar deleitando”. Trata-se de textos alusivos, que tomam os
bichos como imagens, metáforas, representações deformadas dos seres humanos. E assim
permitem ao homem um distanciamento que o torna desarmado para absorver, sem maiores
defesas narcísicas, as intenções críticas e moralizantes que neles se expressam.
Não é difícil reconhecer em certos termos e construções dos textos traduzidos o
espírito agudo e bem-humorado do autor. Em algumas passagens parece-me que eu o ouço
falar, repetindo expressões e imagens que me eram ditas em conversas amenas e informais –
às vezes ao som de um bom vinho, de uma rodada de salgadinhos ou de uma tépida fondue de
queijo. Maurice não era desses que, escrevendo, sacrificam a naturalidade do colóquio em
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prol da correção ou de uma obtusa e falsa profundidade. Seu texto é corredio, pitoresco, e
reflete a bonomia que era uma das marcas de seu espírito. Não é à toa que subintitulou o seu
livro de “um safári literário”, propondo ao leitor, em vez de um roteiro acadêmico e erudito,
uma excursão zoológica.
Excursão para aprender o que então se aprendia pela voz dos clérigos, poetas, reis,
que, utilizando os bichos como motivos ou modelos, davam lições como estas – e aqui retiro
aleatoriamente do livro um ou outro exemplo. Vejam como, num bestiário medieval francês,
faz-se referência à lebre: “Minha vida é dos cães fugir,/ pois minha carne é deliciosa;/ quanto
mais alguém possuir,/ tanto mais vê gente invejosa.”. τu à águia: “Sou o rei de todas as aves;/
eu vôo a tamanha altura/ que percebo o sol sem entraves./ Ver a Deus, que boa ventura!”.
Essas quadras, referidas aqui mais por sua brevidade, constituem um exemplo típico da
estrutura dos bestiários, nos quais à descrição dos animais segue-se uma reflexão de caráter
didático ou moral – sempre com o intuito, repita-se, de condenar o pecado e exaltar a
grandeza de Deus.
O livro não se limita a exposição e comentário. Com o rigor de um historiador da
literatura, Maurice mostra como esse tipo de composições atravessa o Medievo, a
Renascença, os estilos de época posteriores ao Barroco, e chega à modernidade. É claro que,
na visão dos autores modernos, essa espécie literária veio a adquirir outra configuração. Não
interessava mais a referência animal como instrumento de edificação das almas, e sim como
objeto lúdico ou reflexivo a partir do qual o homem melhor dimensiona a sua humanidade. Na
pena de um Manuel Bandeira, de uma Cecília Meireles, de um João Cabral de Melo Neto e
outros, conforme demonstra Maurice, a pintura dos bichos serve à caracterização às vezes
jocosa, às vezes dramática, de situações em que o homem encontra no ser vivo irracional um
espelho, mesmo que deformado, da sua própria natureza.
Como o trabalho de Maurice é o de um intérprete literário e o de um historiador
erudito, ler a sua pesquisa sobre os bestiários é adentrar o universo cultural da Idade Média e
depreender-lhe hábitos, práticas sociais e filosofia de vida. A pretexto de orientar os homens
sobre o que não deve ser feito, essas composições deixam entrever o que se faz ou, o que dá
quase no mesmo, o que se é tentado a fazer em detrimento da moral e dos bons costumes. Na
medida em que aparecem como um espelho do comportamento humano, constituem uma
forma de catarse ou exorcismo.
O homem da Idade Média debatia-se entre os apelos divinos e as chamadas tentações
bestiais. Devia triunfar sobre essas últimas, mas a batalha sabe-se que não era fácil. Os
bestiários constituíam uma tentativa jocosa e irônica de ele se defrontar com a besta que nele
habita, identificando literalmente num bicho os traços que o diminuíam e amesquinhavam
perante a divindade. Juntamente com a literatura dos goliardos, eles constituem um veio
paródico que revela o outro lado, leigo e mais humano, de um universo ensombrecido por
exigências tirânicas e medos irracionais.
O grande mérito do trabalho de Maurice é extrapolar esse referencial místico-
moralizante e apresentar as composições ligadas aos animais como uma espécie literária que
transcende as épocas históricas; remontando à Bíblia, ela atravessa o Medievo, chega ao
Classicismo através dos livros de emblemas, ou mesmo de Camões, e a partir de Apollinaire
atinge a Modernidade.
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ISBN: 978-85-237-0603-6
É óbvio que, nas realizações modernas, o espírito, a figuração, o molde
narrativo/descritivo com que se apresentam os bichos diferem em muito da forma como eles
apareciam nos textos medievais. Se antes a preocupação era de ordem basicamente instrutiva
e moral, e os animais apareciam como símbolos de defeitos humanos, com o tempo eles foram
adquirindo autonomia em relação às fraquezas que deviam representar e servindo a
caracterizações positivas da vida e da natureza. Como bem observa Maurice, parece ter
concorrido para isso a preocupação ecológica dos tempos modernos, em função da qual
ocorreu uma espécie de reabilitação simbólica de alguns vilões clássicos – como, por
exemplo, o lobo mau.
Pela originalidade do tema e pela forma como o autor o domina e desenvolve – com
uma leveza quase coloquial e o bom humor de um scholar sem preconceitos –, esse livro
seguramente se constitui em referência para quem quer conhecer ou estudar os bestiários. Ao
subintitulá-lo de um “safári literário”, como dissemos, Maurice se propôs uma espécie de guia
nessa excursão por entre a selva de bichos. Poucos teriam feito melhor, e assim ficamos a
dever-lhe não apenas nós, os viajantes, mas também os próprios bichos, que o autor
generosamente resgata nesse painel da literatura de todos os tempos.
Por tudo que produziu, Maurice se constitui, de fato, em referência sobre os estudos
medievais entre nós. Mas seus trabalhos sobre esse período histórico, tão mal compreendido
por intelectuais que ainda tendem a vê-lo como uma época de retrocesso e trevas, não se
limitaram ao âmbito acadêmico ou artístico. Ele também foi capaz de transmitir o seu
entusiasmo a toda uma geração de alunos, bolsistas, orientandos, que hoje de alguma forma
prolongam o seu legado. Como bem lembra Eduardo Hoornaert, Maurice “soube dialogar
com a geração emergente na Universidade Federal da Paraíba e formar um grupo de jovens
que, com ele e por meio dele, assimilou uma nova visão da Idade Média, e chegou a produzir
em tempo record alguns bons trabalhos”. (HττRσAERT, p. 2)
Peço licença para encerrar este depoimento transcrevendo parte do texto que elaborei
por ocasião da sua morte. Não acho palavras que possam defini-lo melhor do que essas,
escritas num momento de saudade e comoção:

O que eu aprendi com o intelectual foi muito pouco em relação ao que


aprendi com o homem. Maurice Van Woensel era um compêndio de
tolerância, generosidade e bom humor. Poucos conheci (vá lá o plural, para
não dizerem que quero mitificar meu ex-amigo) com tal pureza de espírito.
Sabia ser firme sem ser rude, sério sem ser antipático, alegre sem ser frívolo.
Jamais ouvi dele um juízo malévolo sobre alguém. No máximo, quando por
força de um comentário meu ele era obrigado a se manifestar, ria encabulado
e sem jeito como se procurasse desculpar o outro.

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A baixeza ou a indignidade alheia pareciam desconcertá-lo. Imagino que o


intrigava que as pessoas antepusessem a má vontade, a antipatia, o rancor a
sentimentos como a fraternidade e a concórdia. O lado mesquinho e hostil do
semelhante, ele parecia afrontosamente desconhecer. Estaria nesse desdém,
já que ninguém é santo, o seu único traço de arrogância. Uma arrogância
gentil.

Muito obrigado.
REFERÊNCIA

HOORNAERT, Eduardo. A obra medievalista de Maurice van Woensel. (Texto enviado ao


autor através da internet).

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A POESIA FEMININA DE AL-ANDALUS NO SÉCULO XII

Iranice Gonçalves Muniz

Introdução

O presente ensaio tem como objeto de estudo a poesia feminina de al-Andalus. Por al-
Andalus se conhece o território da Península Ibérica que desde o ano 711 a 1492 esteve
dominado pelos mulçumanos. Hoje denominada comunidade autônoma de Andaluzia na
Espanha. O objetivo principal é resgatar a presença feminina, na poesia, no século XII.
As mulheres poetisas de al–Andalus se atreveram a romper as regras de seu tempo, a
partir do século IX até o século XIII, em plena Idade Média, com suas poesias do tipo épico,
lírico, amoroso e satírico. Pois, em al-Andalus era possível uma cultura mulçumana: mais
aberta, mais livre. Devido a esse atrevimento, essas poesias passaram a ser um sopro de luz na
alma feminina, que sem sombra de dúvidas abriram portas para atualidade .
A poesia de al-Andalus deixa marcas que semeia o imaginário de liberdade e
igualdade de algumas mulheres. Teresa Garulo em uma importante antologia catalolou trinta e
nove poetisas de al-Andalus, oito dela viveram no século XII.
Sem desmerecer a contribuição das trinta e uma poetisas de al-Andalus, catalogadas
por Garulo, principalmente às oito, que viveram no século XII, tomo como referência a poesia
de Hafsa Bint al-Hayy ar-Rakuniyya [1135-1191] devido o maior número de poemas. Hafsa
foi uma poetisa hispanoárabe famosa no século XII, e de quem se conserva o maior número
de poemas registrados. O registro e a conservação desses poemas deve-se em parte ao
interesse da família do poeta (seu amante), Abu Ya’far Ibn Said, por ela [ GARULτ,199κ].
Dividimos este trabalho em três breves partes: no primeiro item procuramos de forma
sintética descrever, a contribuição árabe no território al-Andalus na Idade Média. No
segundo lance tentamos situar, as mulheres e a poesia de al-Andalus no século XII, e por
último apresentamos Hafsa: poetisa de al-Andalus, suas poesias estão em espanhol
respeitando a tradução (do árabe para o castellaño) feita por Teresa Garulo.

1. Contribuição árabe no território Al-Andalus na Idade Média

A idade Média é reconhecida a partir da queda do Império Romano até o


Renascimento no século XV. Porém, a unidade da Idade Média como período histórico é
objeto de contestação por parte de diferentes historiadores. Segundo HAUSER ela se divide em
três períodos culturais muito distintos: a economia natural da fase inicial da Idade Média; a
cavalaria galante da Idade Média; e a cultura burguesa urbana do final da Idade Média. Para o

1
Doutoranda em Direito Público pela Universidade Pompeu Fabra – Barcelona, Espanha.
2
Para Le Goff, a bela Idade Média é a de incomparável eclosão artística: é a época do gótico. Uma arte
introduzida na igreja abacial de Saint-Denis [Le Goff 2008:59].
É de salutar importância destacar aqui que a divisão do trabalho, a cidade, as novas instituições, são os traços
essenciais da nova paisagem intelectual da cristandade ocidental no fim do século XII. Sobre o tema ver Le
Goff, Os Intelectuais da Idade Média, [2006:8]
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autor, as divisões entre essas três épocas são muito mais profundas do que marcam o começo
e o fim da Idade Média como um todo [HAUSER, 2003:123-124].

HAUSER destaca que:

Os acontecimentos que separam esses períodos – o surgimento da cavalaria


aristocrática, a par da mudança da economia natural para a economia
monetária urbana, o despertar da sensibilidade lírica e a ascensão do
naturalismo gótico, a emancipação da burguesia e o começo do capitalismo
moderno – são mais importantes para explicar a moderna concepção de vida
do que todas as realizações espirituais da Renascença [HAUSER, 2003:123].

LE GOFF, em sua obra Os Intelectuais da Idade Média, acrescenta que “fazer o


novo, serem homens novos – disso os intelectuais do século XII tiveram vivo sentimento [LE
GOFF, 2006:34].
Do ponto de vista transformador, à al-Andalus do século XII devemos a introdução
dos textos de Aristóteles no ocidente através das traduções latina de filósofos árabes. Não se
pode negar que com a chegada dos árabes à Península Ibérica algo mudou, ou seja, a al-
Andalus, não foi mais a mesma. Eles influenciaram as letras, as artes, a filosofia e as ciências.
Segundo Le Goff,

[..]junto com as especiarias e a seda, trazidas de Damasco, de Bagdá, de


Córdoba, os manuscritos trazem ao ocidente cristão a cultura grego-árabe, e
são na verdade, um intermediário, numa instância inicial. As obras de
Aristóteles, de Euclides, de Ptolomeu, de Hipócrates de Galeno
acompanharam no Oriente os cristãos heréticos – Originais árabes, versões
árabes dos textos gregos, originais gregos são então traduzidos,
freqüentemente por equipes ou por uma pessoa isoladamente. Os cristãos do
Ocidente utilizam-se de assistentes espanhóis que viveram sob o domínio
mulçumano, os moçárabes, como também, utilizam-se de judeus e até
mesmo de mulçumanos [Le Goff, 2006:38]

As obras científicas de al-Andalus eram traduzidas para o latim, do mesmo modo


como se conheciam os contos orientais. Assim, a “Espanha” miscigenada do século XII, no
mínimo era bilíngüe, já que os setores eruditos saberiam não só o andaluz, como o árabe
clássico, o hebraico e o latim[SLEIMAN, 2000:36-40]. E neste sentido SLEIMAN argumenta
que:

O elemento que influenciara o pensamento artístico e filosófico da Europa


não seria outro senão o andaluz: na sua versão madura resultante da mescla
dos três seguimentos que compunham a Andaluzia – cristãos, judeus e
mulçumanos [SLEIMAN, 2000:36].

Para GARULO, no território Al-Andalus era possível uma cultura mulçumana: mais
aberta, mais livre, e diferente dos béberes do norte da África, diferente da dinastia abácida

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que ficou em Damasco e Bagdá, acredita-se que ali era mais livre, e tanto que possibilitou
durante séculos aquela convivência de tolerância.
Em palavras de GARULO,

normalmente, as pessoas acham que por estar em território europeu, essa foi
uma fatia não árabe, ou menos árabe, e é o contrário. Toda música e a poesia
que se desenvolveu em al-Andalus era uma fusão de elementos do oriente,
que foram sintetizados junto com as culturas cristã e judaica que estavam ali
também, há anos, mesmo antes da chegada dos mulçumanos”. Assim,
grande era a influencia da poesia árabe na poesia medieval provençal
européia [GARULO,1998]. [Tradução Livre]

Pois bem, entre o século XI e XII se registra um grande número de mulheres, na vida
literária, e não só aristocráticas mas, também as escravas [GARULO, 1998]. E isto se dá,
segundo MARIN, devido ao desenvolvimento das artes e das ciências, ao notável esplendor
cultural que se produz em ambos os séculos. Nossa atenção estará voltada para as poetisas do
século XII.

2. As mulheres e a poesia de al-Andalus no século XII

No ocidente, no século XII, nos encontramos com uma surpreendente quantidade de


Mulheres de fama e renome, por méritos próprios, como a historiadora Anna Comnena autora
da obra “la Alexada”, a filósofa Eloísa, a escritora Maria de Francia, a rainha Leonor de
Aquitania ou a mística e música Hildegarda Von Bingen [MARIN 2000:46].
É neste mesmo século XII, que surge uma forte corrente antimarital. As mulheres se
libertam, o casamento é objeto de descrédito, tanto nos meios nobres (o amor cortês, o amor
carnal ou esperitual, só existe fora do casamento: Tristão e Isolda, Lancelote e Genoveva)
como nos meios dos colégios, nos quais se cria uma teoria do amor natural (Romance da rosa
de Jean de Meung já no século XIII) [Le Goff: 2006-64].
As mulheres de al-Alndalus não estavam excluídas da sociedade, e portanto,
participavam da vida cultural através das poesias do canto e do ensino. Como partícipe dessa
sociedade é que podemos dizer que elas influenciaram, também, outras culturas, devido em
parte, o prestígio da cultura de al-Andalus extrapolar as fronteiras ibéricas [SLEIMAN, 2000]

Para Garulo [1986....] as relações comerciais e os casamentos mistos promoveram o contato entre os cristãos e
mulçumanos. Os casamentos foram numerosos e os encontramos na própria aristocracia: governadores árabes se
casaram com nobres cristãs, reis mouros se casaram com princesas espanholas e reis cristãos se casaram com
filhas de emires árabes. Quiçá isto tenha contribuído para uma convivência de tolerância.
Sobre o estudo metódico e sistemático da gramática e do léxico árabe-andaluz, veja CORRIENTE, Fraderico, A
Grammatical Sketch of the Spanish Arabic Dialect Bundle. Prólogo de Emilio Garcia Gomes, Madrid, Instituto
Hispano-Árabe de Cultura, 1977. Segundo Seiman [2000: 47,48] o árabe- andaluz seria uma forma de neo-árabe
em várias interferências estáticas, sendo a mais notável delas a substrática, como conseqüência do impacto do
romance dos autóctones da península sobre o neo-árabe de uma minoria, quando, entre os séculos VII e IX, este
foi substituindo aquele.
Numa sociedade em que o prestígio maior recai sobre os teóricos homens, em sua maioria seguidores de
Aristóteles, para quem a mulher era um ponto inferior ao homem.

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Sabe-se hoje, que em al-Andalus, entre os séculos XI e XII se documenta um número
elevado de mulheres que participavam da vida cultural. MARIN contabilizou 296 nomes neste
período, segundo a autora a maioria são: poetisas, pedagogas, cantoras [MARIN, 2000:47].
Segundo SLEIMAN a mescla dos três segmentos presente em al-Andalus – cristãos,
Judeus e mulçumanos no século XII é o elemento que influenciara o pensamento artístico e
filosófico da Europa [SLEIMAN 2000:36].
Em se tratando das poetisas de al-Andalus,Teresa Garulo em uma importante antologia
aponta que somente encontrou “trinta e nove mulheres de quem se pode dizer que eram
poetisas ou que compunham versos ou de que se conservem poemas”.
A pesquisa de GARULO, Diwãn de lãs poetisas de Al-Andalus, aponta que durante o
século XII em al-Andalus viveram em torno de poetisas (que tem registros): 1.Amat al-Aziz,
1153-1235; 2. Asma al-Aniriyya, que escreveu um verso ao califa almohade Abd al- Munin
(1130 – 1163); 3. Hafsa Bint al-Hayy ar-Rakuniyya, partencia a uma família nobre e era
conhecida em Granada como uma mulher bela, inteligente e culta; Hamda Bint Ziyad, seu pai
era professor de literatura; 4. Muhya al-Garnatiyya nada se sabe sobre sua vida no século XII;
5. Nazhun Bint al-Qalaiyya, são poucos os poemas conservados, era natural de Granada, não
se conhece a data de nascimento nem de sua morte, sabe-se que viveu em meados do século
XII; 6. Qasmuna Bint Isma’il al Yahudi pertenceu a uma família de grande tradição literária
em árabe; 7. As-Silbiyya, não se conhece o real nome dessa poetisa, sabe-se que escreveu uns
versos ao califa almoade Abu Yusuf Ya qub al-Mansur para se queixá-se da atuação dos
governadores de sua cidade e do encarregado dos impostos (1184-1199) e Warqa bint Yintãn,
nada se registra dessa poetisa exceto seu nome.
A pesquisadora assinala que: maioria das poetisas de al-Andalus exerceu suas
atividades literárias em Córdoba, Sevilla e Granada por se tratar de cidades mais importantes
de al-Andalus. Entretanto, o que se sabe da maior parte dessas poetisas de al-Andalus se
limita a poucos registros de suas existências. São poucas as poetisas que têm dados
bibliográficos.
Para a pesquisadora GARULO, as fontes árabes na maioria das vezes não indicam a
idade, o estado civil, e tão pouco revela se viveram muitos ou poucos anos. Sabe-se que a
grande maioria das poetisas são mulheres livres, e com freqüência pertencem à linhagem de
famílias importantes ou nobres.
No século XII a poesia parece mais livre. As poetisas dão a impressão de se mover
mais espontaneamente em suas manifestações literárias e isto se observa no relativo encanto e
leveza de alguns poemas, especialmente nos poemas de amor. Entretanto, em determinados
poemas algumas poetisas recorrem ao estilo antigo para queixar-se dos governantes e dos
males causados a sua pátria [GARULO, 1998:51].
Também no século XII já se sentia – sobretudo nas poesias de al-Andalus o imaginário
feminino das poetisas, e fortemente na poesia de Hafsa a necessidade de uma identidade
própria de mulher, com sentimentos de desejos e ciúmes compartidos com seu amado.
Entretanto, esses sentimentos às vezes colocam na sombra, indevidamente, o
comportamento feminino nas obras medievais [GARULO, 1998]. O amor, o ciúme o desejo e
o protesto estão presentes na poesia feminina de al-Andalus, principalmente na poesia de
Hafsa fonte de inspiração para este ensaio.
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3. Hafsa: poetisa de al-Andalus

Hafsa bint a Hayy [1135-1191], é a poetisa árabe–andaluza que mantém o maior


volume de sua produção poética, ao todo, são 17 poemas, registrados e conservados até
nossos dias, graça, principalmente, ao interesse de seus biógrafos e da família do poeta Abu
Ya’far Ibn Said. Segundo GARULτ para alguns autores sua obra é literatura de alta
qualidade. Seus biógrafos elogiam sua cultura e a denominam de mestre do seu tempo
[GARULO, 1998].
Hafsa, conhecida como a poetisa al-Rakuniyya, era filha de uma família nobre de
origem beréber, nasceu em Granada, na Espanha no ano de 1135, segundo a maioria de seus
biógrafos, e ali passou sua infância e juventude. Em um contexto de intensa agitação política,
Hafsa assistiu a queda do império Almorávide e a instauração do Califato Almohades. Ela
viveu em um ambiente cortesã e conheceu o poeta Abu Ya’far ibn Said, e com ele manteve
uma forte e complicada relação afetiva. [GARULO, 1998:].
Hafsa era uma mulher conhecida em sua região. E, em 1156 chega a Granada o
Governador almohade, o príncipe Abu Said Utmãn, filho do Califa Abd al-Mumin, que logo
se apaixonou pela poetisa, no início foi rechaçado por ela, mas, logo depois se converteu em
sua amante. Esta situação originaria um conflituoso triangulo amoroso (a poetisa – o poeta – e
o príncipe, governador de Granada).
A poetisa era tida como uma mulher inteligente, bela e culta. A inteligência e cultura
de Hafsa, não só lhe permitiram freqüentar as rodas dos poetas e nobres e desenvolver uma
intensa atividade literária e educativa que lhe possibilitou alcançar a fama, como também lhe
permitiram participar de missões diplomáticas. Por exemplo, participou em 1158 de uma
missão diplomática com um grupo de poetas e nobres de Granada ante o califa Abd al-
Um’min, em Rabat. Se nesta ocasião ela recitou alguns de seus poemas não se têm notícias
[GARULO, 1998].
Herdeira da tradição poética árabe, Hafsa, ao contrário do que era habitual, foi capaz
de expressar, com grande beleza, os seus verdadeiros sentimentos [GARULO, 1998]. Os 17
poemas que restam foram traduzidos para o espanhol pela pesquisadora Teresa Garulo como
um presente feminino que nos legou o século XII.
Estes poemas, segundo a pesquisadora GARULO são resultado do relacionamento da
poetisa entre os seus dois amantes, o príncipe Abu Said Utmãn e o poeta Abu Yafar ibn Said,
período em que desenvolveu uma intensa troca de poemas de amor, e que foram preservados
até os nossos dias [GARULO 1998:74-84].
O período em que viveu a poetisa Hafsa, como dito antes existiu uma forte corrente
anti-matrimonial. τ século XII foi um período em que a mulher se “liberta”, em que não é
mais considerada uma propriedade do homem ou uma máquina de fazer filhos, em que não se
pergunta mais se ela tem uma alma – é o século do rápido desenvolvimento marial no
ocidente [LE GOFF, 2006:64].
Hafsa freqüentava a Corte dos almoades em Granada. Sabe-se que ela teve um lugar
de destaque em al-Andalus, com vários episódios. Como poetisa, a maior parte de seus
poemas são poemas de amor dirigidos ao poeta Abu Ya’far ibn Said, embora haja alguns
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satíricos, quase todos relacionados aos sentimentos de amor, ciúmes e desejos [GARULO,
1998].
O episódio mais marcante na vida dessa poetisa foi seu amor com o poeta Abu ya’far
Said, cujo dramatismo atraiu a atenção de quase todos os seus biógrafos. Segundo GARULO,
o biógrafo Di Giacomo acredita que esta relação amorosa deve ter começado por volta do ano
1154, com altos e baixos, até a morte do poeta em 1163, e que essa relação foi uma das causas
da execução do mesmo (executado a mando do Governador de Granada). Muitos dos seus
poemas são frutos dessa relação amorosa [GARULO,1998], alcançando o máximo de
inspiração nos que se lamenta da prisão e morte de seu amado e amante. Este fato a poetisa
registra no seguinte poema:

Por vestirme de luto me ameazan


por um amado que me ham muerto com la espada
!Que Dios tenga clemência com quien sea
liberal con sus lágrimas,
o con quien llore por aquél que mataron sus rivales,
y que las nubes de la tarde,
con generosidad como la suya,
rieguen las tierras donde quiera que vaya!

Vislumbra-se aqui a irreverência da poetisa Hafsa, que nos seus versos vai além da
poesia . Sabe-se, hoje, que não só de poesia nos falam os poetas e as poetisas do século XII
muito mais do que os desinformados pretendem minimizar sob o rótulo de “medieval” na
acepção vulgar do termo. No século XII segundo CAMPOS,

a livre concepção de amor de seus poetas, desrecalcando a repressão


religiosa e alçando a mulher a posição de relevo e de dignidade que lhe eram
negadas na sociedade patriarcal, pode ser lida como signo subversivo de
ideologias mais generosas, direcionadas para o futuro [CAMPOS,1987:29].

GARULO destaca que HAFSA foi uma mulher extemamente famosa em Granada,
esta afirmação está apoiada no fato de que uma nobre dama granadina pedira um autógrafo à
poetisa e ela escreveu de seu punho e letra o seguinte verso:

Dama de la hermosura y la nobleza,


cierra los párpados, benévola,
ante las líneas que trazó mi cálamo,
y míralas con ojos de cariño,
sin prestar atención a los defectos
del contenido y de la letra.

Hafsa sentiu-se viúva e colocou luto por seu também amante o poeta Abu Yafar ibn Said apesar das ameaças do
Governador. E, se retirou da corte e se dedicou ao ensino. Em 1184 aceitou o convite do Califa Yaqud al-Manur
e partiu para Marrakech para dirigir a educação das princesas almohades. Ali permaneceu até sua morte em
1191.
Poema de num. 17 (na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:84].
Poema de num. 1(na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:74]
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Em um poema dirigido ao poeta Abu ya’far Said a poetisa de Granada se mostra em pé
de igualdade com seu amado e amante:

Tu que reclamas ser el primero en el amor


y en la pasión de las mujeres,
tu poema ha llegado
mas no me satisfacen tus palabras.
Desesperar de conseguir al amado
¿romperá las riendas de quien reclama amor?
Completamente te equivocas,
y no te vales tu nobleza;
desde que estás en la carrera
te ha acompañado el éxito
hasta que has tropezado
y te avergüenza descubrir tu cansancio.
Por Dios, en todo tiempo muestran
las nubes su llovizna y los azahares
abren a cada instante sus corolas.
Si conociera mis razones
Apartarías de mí la espada del reproche.

Hafsa é a mostra da mulher independente e culta da época de esplendor de al-Andalus,


esta poetisa foi muito respeitada, apesar de suas aparentes liberdades, em sua época e por
biógrafos posteriores, que a consideraram como uma grande poetisa [GARULO, 1989].
Os poemas de amor que são dirigidos ao poeta Abu Yafar Said expressam também o
sentimento de desejos. Esse sentimento foi uma marca fundamental na poesia feminina de Al-
Andalus, porque a partir daí se conhece uma nova versão da mulher como um ser capaz de
amar, não só fisicamente como espiritualmente [GARULO, 1989].

Elogio aquellos lábios porque sé


Lo que digo y conosco de lo que hablo,
Y les hago justicia, no miento ante Dios:
En ellos he bebido una saliva
Más deliciosa que el vino.

Herdeira da tradição poética árabe, mesmo assim, Hafsa é capaz de expressar, com
grande beleza e leveza, seus sentimentos reais em uma linguagem espontânea [GARULO,
1989:81].

A Abu Ya’far
Van a verte mis versos,
Deja a sus perlas que adornen tus orejas.
Así el jardín, pues no puede ir a verte,
Te envía su perfume.

Seu amante, o poeta Abu Yafar ibn Said, que havia sido amigo e secretário do príncipe, fez deste objeto de suas
sátiras e participou de uma rebelião política contra o Governador Abu Said e acabou sendo preso e executado
em Málaga em 1163.
Poema de num. 8 (na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:81]
Poema de núm. 9 (na numeração de Garullo), traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:81]
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Rigorosamente contemporânea, a granadina Hafsa vive e parece aproveitar desse
ambiente “novo” do século XII quiçá, devido a sua formação cultural, e o espaço propício em
território al-Andalus, seus sentimentos jorram em versos que nos parecem atrevidos em busca
da liberdade e da igualdade entre mulheres e homens. Por exemplo, num outro poema de
amor, dirigido a seu amante e poeta Abu Yafar ibn Said se coloca :

A Abu Ya’far
¿Voy a verte o vienes a mi casa?
Mi corazón siempre se inclina a tus deseos.
Te encontrarás a salvo de la sed
y del ardor del sol
cuando me des la bienvenida:
mis labios son aguada dulce y fresca,
y dan las ramas de mis trenzas densas sombra.
Contéstame deprisa; no es un favor, oh, mi Yamil,
hacer que espere tu Butayna.

Existe um poema de Hafsa, o único, segundo GARULO, que tem um corte satírico que
pode indicar-nos o que havia convertido a poesia satírica no fim do século XII, mas também,
nos indica a coragem de uma mulher contrapondo as normas, se enfrenta a um homem, neste
caso de certo renome por sua atividade poética e sua cultura e o faz sem o menor recato
utilizando-se de total liberdade de expressão em plena idade média, que faz com que cada
parte e cada palavra do poema contribua para esta leitura:

Dili a esse poeta de quien nos há librado


el que se haya caído sobre mierda:
vuelve a tu pozo, hijo de mierda,
igual que hace la mierda.
Y si vuelves a vernos algún día,
verás, oh tú, el más despreciable y vil,
sin discusión, de entre los hombres
que esa es la suerte que te espera
si andas medio dormido.
¡Barba que ama la mierda y odia el ámbar,
que permita dios que nadie vaya a verte
hasta que te hayan enterrado.

A sátira na Idade Média foi demasiado violenta. A Sátira serviu, ora como instrumento
de ataque ao clero, à Cúria romana, ora ao ataque político, ora para expressar os sentimento
mais brutais do ser humano [SPINA: 1973: 43].
É certo que a poesia amorosa e satírica de al-Andalus que se há conservado em Hafsa
e em outras poetisas da Idade Média é mais que suficiente para confirmar a liberdade que
gozava a mulher de al- Andalus. As produções poéticas destas poetisas abriram uma janela ou
dera um sopro de luz na alma feminina, que a história oficial não deve se furtar.
No mínimo, a poesia de al-Andalus ajudou a desenvolver uma nova visão do papel
feminino na Europa, por que a mulher era muito mal considerada, a mulher era tida, dentro da
tradição cristã mais antiga e da Idade média, como um ser incapaz de amar verdadeiramente,

Poema de num. 13, traduzido do árabe para o espanhol por GARULO [1998:83].
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mais como alguém ligado à perdição do homem, sobretudo do homem puro. Essa idéia de que
o homem puro pode ser também guiado pela mulher, pelo amor, pelo afeto feminino é uma
marca al-Andalus”. Essa visão vai entrar, pelo menos é uma das vias, na nova concepção de
amor e da mulher que vai se espalhar na Europa a partir do século XII.
Sabemos que a poesia lírica, cujo primeiro foco, tão disputado pelos arabistas, teria
sido a Andaluzia dos princípios do século XI, com as formas dos cantos moçárabe
[SPINA,1973:22]. E que contribuição das mulheres na cultura ocidental é um tema de
fundamental importância quando se fala de Idade Média, principalmente na al-Andalus. A
presença dessas mulheres na poesia de al-Andalus está marcada pela “liberdade de seus
versos”, e, transcende as fronteiras de Andaluzia e da Idade Média através dos tempos,
causado interesses em vários pesquisadores da atualidade.

Considerações finais

Apesar dos estereótipos que temos das mulheres islâmicas não sem razão houve em al-
Andalus poetisas importantes que escreveram com suma liberdade e em considerável
competência com os poetas homens . Pois bem, o fato de haver mulheres poetisas, como
Hafsa, nos faz ver a ruptura dos cânones, ou as transgressões do que era habitual ou correto na
Idade Média. Assim, o mérito da poesia de Hafsa enquanto poetisa medieval é exatamente a
sua sensibilidade frente aos sentimentos humanos como amor, ciúmes e desejos que tanto os
homens como as mulheres são portadores. Podemos dizer, com GARULO [1998], que o século
XII marca a era do esplendor de al-Andalus e, Hafsa foi altamente respeitada em seu tempo e
ainda ronda entre muitas mulheres poetisas de todo o mundo. Porém, não podemos esquecer,
em nenhum caso que Hafsa foi uma mulher de família nobre com um status que se distancia
do comum das mulheres de sua região e do seu tempo.

REFERÊNCIAS

CAMPOS, Augusto de: Mais provençais, São Paulo, Editora Schwarcz Ltda.,1987.
Di Giacomo, L.: Une poétse andalouse du temps des Almoades: Hafsa bint al-Hayy al
Rakuniyya, Madrid, Hesperis, 1947. 9-101.
GARULO T: Diwan de las poetisa de al-Andalus, Madrid, 1986, pp.71 -88 .
HAUSER, Arnold: História Social da Arte e da Literatura, Martins Fontes, São Paulo, 2003.
(Trad. Álvaro Cabral).
LE GOFF, Jacques, Os Intelectuais na Idade Média, Rio de Janeiro, José Olympio editora,
2006.
______. Uma longa Idade Média, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008.
MARIN, Manuela, Mujeres em al-Ándalus, Madrid, CSIC, 2000, p.165.
SPINA, Segismundo, Iniciação na cultura literária medieval, Rio de Janeiro, Grifo, 1973.

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ANÁLISE SEMIÓTICA DO POEMA CANTAR DE AMOR

Maria Elizabeth Baltar Carneiro de Albuquerque1


Maria Nazareth de Lima Arrais2

1 Trovadorismo

Ao sermos convidadas a participar do Grupo Interdisciplinar de Estudos Medievais


(GIEM), o desafio estava posto. A distância temporal nos instigou a conhecer o sentido de
nossos dizeres de amor e nos levou a pesquisar sobre esse universo que delegou aos homens a
conquista feminina e às mulheres o pudor e a descrição nos gestos de amor.
Ao iniciarmos os estudos sobre o “amor cortês”, percebemos que algumas questões se
impunham como necessárias para compreendermos um período e uma sociedade por meio de
sua produção literária: o trovadorismo.
O Trovadorismo surgiu no século XII como a primeira manifestação lírica da Idade
média. No âmbito da poesia, surgem as Cantigas, enquanto na prosa as Novelas de Cavalaria.
Os poemas produzidos eram cantados por poetas e músicos e recebiam o nome de
Cantigas, porque eram acompanhados por instrumentos de corda e sopro. Essas cantigas, no
caso da literatura galego-portuguesa, mais tarde, foram reunidas em Cancioneiros: o da Ajuda,
o da Biblioteca Nacional e o da Vaticana.
No Trovadorismo galego-português, as cantigas eram classificadas em dois gêneros
literários: Satíricas (Cantigas de Maldizer e Cantigas de Escárnio), cujo objetivo era
ridicularizar e criticar pessoas de forma sutil ou grosseira, a vida social e a política da época,
sempre num tom de irreverência; e as Líricas (Cantigas de Amor e cantigas de Amigo), tendo
como temática o amor.
As Novelas de Cavalaria, originárias das canções de gesta francesas, havia sempre a
presença do cavaleiro medieval, concebido segundo os padrões da Igreja Católica, que
lutavam para defender a honra cristã. O cavaleiro medieval, nessa concepção, opunha-se ao da
corte, sedutor e envolvido em amores ilícitos.
Compreender a diversidade trovadoresca significa perceber que vários poetas-
cantadores desempenhavam funções diversas nas sociedades em que circulavam, como Santos
(2007, p.1) tão bem expressa:

Um dos temas mais importantes que formam os grandes gêneros da literatura


é o Amor – fulcro da poesia lírica -, e a Luta – núcleo da matéria épica. O
Amor, na lírica trovadoresca é apresentado sempre como a tentativa de união
entre o homem que solicita a mulher que nega. A Luta está presente à volta
do desenrolar dos feitos realizados tanto por deuses do paganismo germânico
das epopéias nórdicas, como nas canções de gesta na luta contra o infiel, no
qual o fulcro é a defesa da fé cristã. Amor e luta vão se encontrar no final do
século XII nos romances de aventura das novelas cortesãs, cavaleirescas, ou

¹Professora do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba. Doutoranda do


Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba.
² Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba
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seja, a vrase amour dos Trovadores do Sul da França alimentará a prosa sob
a cor do amor cortesão, a fine amour estimulado pela cortesia.

Certamente, os trovadores medievais ajudaram a escrever um dos capítulos da História


da Cultura da idade Média, transformando sua própria vida em uma obra de arte.

1.1 Discorrendo sobre o Amor Cortês

O amor cortês surge no sul da França, na região da Provença, no século XII, como um
modelo de relação e de conjunção de sentimentos e corpos entre o homem e a mulher. A
condição feminina na época medieval é vista por alguns autores, como uma promoção da
mulher, já que a dama é quem ocupa o centro desse amor.
Essa criação literária é fruto do poder que a corte dava aos poetas em alimentar seus
sonhos e que levassem para longe suas inquietações e ciladas da vida diária. Evidentemente, a
corte foi o lugar onde o jogo do amour courtois (amor cortês) ou fin’amours (fino amor)
tomou forma. τs homens procuravam tratar as mulheres “com um refinamento, demonstrando
sua capacidade de capturá-las, não pela força, mas por carícias verbais e manuais [...]”
(DUBY, 1993).

Percebe-se então que, os modos de sentir e suas formas de expressão


indicam o Amor Cortês como um momento inovador na complexa história
humana, onde “A súplica amorosa é calcada no modelo feudo-vassálico, [...]
o poeta está ao serviço da dama como o vassalo ao do senhor [...]”
(RÉGNIER-BOHLER, 2006, p. 48).

As relações de fidelidade entre o Senhor Feudal e os Vassalos, na sociedade medieval,


são expressas na literatura, onde a dama ocupava o lugar do senhor para quem o vassalo
prestava cortesia. Na canção de amor, o homem expressa o seu amor pelo “senhor”. Percebe-
se que a fidelidade secreta do amor cortês contrasta com a fidelidade vassálica, esta declarada
publicamente, enquanto que o nome da dama é preservado.

[...] ao falar de seus próprios casos amorosos, mesmo que de maneira


cifrada, o trovador trai a sua própria Dama; ao falar dos casos alheios,
destinados a ensinar os aprendizes do amor a trilhar o caminho da cortesia, o
trovador acaba se comportando como um daqueles losengiers – fofoqueiros
da vida amorosa que estão sempre prontos a tornar público um segredo de
amor (BARROS, 2008, p. 7)

Dessa forma, o Amor Cortês desempenha uma função social e lúdica na sociedade da
corte que emerge a partir da sociedade feudal. Representa uma revolução imaginária dos
modos de pensar e de sentir, sem deixar os padrões repressores de seu tempo.

O que se convencionou chamar de jogo do amor cortês apresenta-se como


uma doutrina da sedução, na medida em que corresponde a regras de conduta
amorosa e determina o que deve ou não ser dito por aqueles que desejam a
arte de seduzir (DOMINGUES, 2006, p. 12).

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Portanto, a posição submissa da mulher passa a ser uma fonte de inspiração de um
amor capaz de reconduzir a personalidade do homem diante da autoridade que o
descaracteriza. Daí, o amor cortês que surgiu e desapareceu na Idade Média ainda ecoa na
literatura até os nossos dias, nos nossos dizeres cotidianos de amor, “como objeto de
avaliação e abordagens interpretativas muito vivas” (RÉGσIER-BOHLER, 2006, p. 54) como
atestamos através do poema “Cantar de Amor” de Manuel Bandeira, objeto de análise desse
estudo.
Antes de fundamentarmos o poema, é relevante destacar que a “expressão
trovadoresca na Moderna Poesia Brasileira é uma realidade” como assevera Almeida (1993,
p. 125). É o caso de Manuel Bandeira, em que ele próprio comenta sua inspiração para
compor o poema e seu amor pelo medievalismo:

τ ‘Cantar de Amor’ foi fruto de meses de leitura dos cancioneiros. Li tanto e


tão seguidamente aquelas deliciosas cantigas, que fiquei com a cabeça cheia
de ‘velidas’ e ‘mha senhor’ e ‘nula ren’ [...]. τ único jeito de me livrar dessa
obsessão era fazer uma cantiga [...] (BANDEIRA apud ALMEIDA, 1993, p.
143)

2 Percurso gerativo da significação

Na sintaxe da estrutura fundamental estão as relações de oposição que podem ser


representadas pelo quadrado semiótico idealizado por Greimas, apresentando eixos
semânticos com dois tipos de relação lógica:

1. Contradição. É a relação que existe entre dois termos da categoria binária


asserção/negação. Esta relação é descrita como a oposição entre a presença e a ausência de
um sema.
2. Contrariedade. Dois semas de um eixo semânticos são contrários se um deles implica o
contrário do outro.

As relações estabelecidas na estrutura fundamental fazem surgir mais quatro termos


numa posição superior, que são os metatermos. Estes resultam em um octógono, originando a
terminologia octógono semiótico, utilizada nos trabalhos do brasileiro Cidmar Pais, cujos
estudos, baseados na semiótica greimasiana, dão, na atualidade, uma visão ampla do que seja
a ciência semiótica. Vejamos um exemplo através do octógono semiótico:

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Classe Social

Nobreza Plebe

alta baixa

não-plebe não-nobreza

Ø
Na semântica fundamental percebemos as qualificações semânticas euforia versus
disforia. Por eufórico tem-se a qualificação positiva e por disfórico, a qualificação negativa.
Ainda existe a aforia que se refere à qualidade de neutro.
A sintaxe narrativa apresenta um sujeito à procura do seu objeto de valor. A relação
entre sujeito e objeto, comumente, situa-se no eixo do desejo. A busca do sujeito pode,
também, situar-se no plano puramente cognitivo, na busca de um saber.
Os actantes ou sujeitos da narrativa, quando separados do objeto de valor, estão em
relação de disjunção e quando unidos estão em relação de conjunção. Disjunção,
transformação e conjunção de actantes são as fontes básicas de qualquer desenvolvimento
narrativo.
A semântica narrativa está voltada para os valores do sujeito semiótico. O enunciado
narrativo que liga o sujeito-objeto subdivide-se em dois grupos: enunciados de estado que
designam o estado em que se encontra um sujeito; e enunciados do fazer que seria o
movimento, na tentativa do sujeito passar de um estado para outro. Os enunciados de estados
podem ser de dois tipos: conjunto, quando o sujeito está em relação de conjunção com o
objeto, ou disjunto, quando o sujeito está separado do objeto. A passagem de um enunciado
de estado a um outro (da disjunção à conjunção, por exemplo) implica uma transformação
que toma a forma de um enunciado do fazer e que teve a intervenção de um sujeito do fazer.
O sujeito age de maneira a transformar um estado: ele faz-fazer.
Desta forma, a relação entre o sujeito e o objeto se situa no eixo do desejo, quando o
sujeito se põe à procura de um objeto, isto é, quando ele exerce um fazer transformador para
atingir um estado de conjunção (ou disjunção) com o objeto.
Na sintaxe discursiva ocorre, segundo Greimas, o processo de localização dos atores
narrativos no tempo e no espaço da enunciação e do enunciado. O discurso, ao ser construído,
é, pressupostamente, estabelecido um contrato fiduciário entre enunciador e enunciatário,
determinando, dessa forma, a veracidade ou não do texto.
A semântica discursiva tem como componente a tematização - elementos abstratos
presentes no texto - e de figurativização - elementos concretos presentes no texto - que
revestem um esquema narrativo. As figuras do texto formam uma rede, uma trama e para
entender esta trama é necessário conhecer primeiro o nível temático, que, como o nível
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figurativo, são palavras e expressões que apresentam traços comuns de significação e que
podem ser agrupados. Esses traços comuns podem ser reduzidos a uma oposição semântica. É
a partir desta oposição que se constrói a estrutura fundamental.

3 Análise do poema “Cantar de Amor”

Segmentação:

Sg 1 – Pedido de inspiração para o canto de amor;


Sg 2 – declaração de amor;
Sg 3 – demonstração do sentimento de angústia;
Sg 4 – desejo de morte;
Sg 5 – aceitação do sofrimento de amor.

Na análise da segmentação do texto observamos a existência de um monólogo lírico


em que o enunciador cria seu poema, numa linguagem poética, ludicamente, reconstruída,
como observamos na epígrafe que introduz o poema de Bandeira:

‘Quer’eu en maneyra de proençal


Fazer agora hum cantar d’amor ... (D.Dinis)!

A análise se centraliza no fazer do sujeito semiótico (S1), figurativado por um eu-


lírico, tendo como Objeto de Valor (Ov) o amor da dama que, de acordo com o modelo
atuacional, encontra-se em harmonia com a natureza do discurso:

“Mha SEσHτR, com’oje dia son,


Atan cuitad’e sem cor assi!
E par Deus non sei que farei i,
Ca non dormho à mui gran sazon.

Temos assim, na narrativa do poema, um contrato, que chamamos de “contrato de


amor”.

D1 (destinador) Ov D2 (Destinatário)

O amor Dama

Eu-lírico Sujeito

Ao eu-lírico compete um Querer-Poder-Amar-Sofrer e é o seu Querer que determina


o percurso narrativo e preside a sua realização. O destinatário irá confirmar seu Querer à
vontade do destinador, cujo Poder o sujeito se valerá. A argumentação poética percorrerá o
caminho por ela traçado: o amor cortês.
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É portanto um sujeito (S1) de um Poder-Amar-Sofrer, observado no refrão, que reitera
o sentimento de angústia do eu-lírico:

Mha senhor, ai meu lum’e meu ben,


Meu coraçon non sei o que tem.

O enunciador (eu-lírico) está embreado no discurso, uma vez que se instaura num
agora.

E par Deus non sei que farei i,

Vivendo um amor cortês, o enunciador tem como objetivo principal a conquista da


mulher por quem sofre de amor. Deixando-se dominar pela emoção, o eu-lirico perde a razão
até chegar a um momento de profunda angústia em que a morte seria uma saída, caso não
conquistasse o amor da mulher amada.

Ca non dormho à mui gran sazon.

[...]

Noite dia no meu coraçon


Nulha ren se non a morte vi,

O vocativo expresso no refrão mostra o desejo reiterado da conquista do amor da


mulher a quem ele caracteriza com atributos positivos.

Mha senhor, ai meu lum’e meu ben,


Meu coraçon non sei o que tem.

A temporalização no discurso é marcada pelas palavras noite e dia, indicando uma


continuidade do sofrimento. Ininterruptamente, o enunciador é invadido pelo sofrimento que o
faz sofrer, sentindo-se assim prisioneiro desta vida.

Dês oimais o viver m’é prison

O discurso, pela projeção do tempo do agora, projeta um aqui subentendido. No


momento presente, ele enuncia seu sofrer que é manifestado num tempo anterior. Está
portanto, em processo.
No poema podemos encontrar o tema amor presente em todo o texto no sentimento do
eu-lírico em relação ao desejo.

‘Quer’eu en maneyra de proençal


Fazer agora hum cantar d’amor ... (D.Dinis)!

Conectado ao tema amor está o tema sofrimento. Amar para o eu-lírico implica sofrer
justificado pelo tipo de construção amor cortês um amor ainda não efetivado, mas
esperançoso, intensamente almejado.

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A morte também flui como tema, uma vez que não conseguir a mulher amada provoca
no eu lírico o desejo de não viver, porque lhe é angustiante a ausência de quem ele ama.

Nulha ren se non a morte vi,

Ao tema morte faz emergir o tema vida. A presença da mulher amada é sinônimo de
vida, bem, luz.

Mha senhor, ai meu lum’e meu ben,

O quadrado semiótico de Greimas nos apresenta eixos semânticos com dois tipos de
relação lógica:

1. Contradição. É a relação que existe entre dois termos da categoria binária


asserção/negação. Esta relação é descrita como a oposição entre a presença e a ausência de
um sema. Desta forma, um sema S1, “amor” é oposto a seu não-S1 “desamor/desilusão”
contraditório (S1), “desamor”, “desilusão” (no qual o sema “amor está distante”).

2. Contrariedade. Dois semas de um eixo semântico são contrários se um deles implica o


contrário do outro. τ contrário de S1 “amor”, é S2 “desamor” (desilusão). τ resultado é uma
constelação de quatro termos, na qual um novo tipo de relação, implicação ou
completariedade surge entre os termos S1, e S2 ou S2 e S1 (“amor” implica “não desamor”,
“desamor” implica em “não amor”. Este quadrado é visualizado abaixo:

Asserção Negação
(amor) (desamor)
S1 S2

S1 S2
(não-desamor) (não amor)
Não-asserção não-negação

No quadrado semiótico acima, visualizamos a estrutura elementar da significação. As


relações estabelecidas pelos quatro termos, na estrutura fundamental, fazem surgir mais
quatro termos numa posição superior, que são os metatermos. Estes resultam em um octógno,
originando a terminologia octógno semiótico.

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Tensão dialética
Amor cortês

Amor correspondido Amor idealizado

vida morte

Amor não-idealizado amor não-correspondido

Assim como nas cantigas, no poema estudado, encontramos os principais sintomas da


paixão trovadoresca, sofrer pelo amor não correspondido, irrealizável, a “coita” que só lhe
resta

Noite dia no meu coraçon


Nulha ren se non a morte vi,
E pois tal coita non mereci,
Moir’eu logo, se deus mi perdon

Percebemos então que a adesão ao amor cortês se efetiva. “A alegoria do deus Amor
serve para revelar a submissão ao sentimento que, doravante, é a única razão de viver do
poeta” (RÉGσER-BOHLER, 2006, p. 49)
O tema global, a significação de uma narrativa, por exemplo, o tema Amor em relação
ao desamor (amor distante, não correspondido). Estas categorias de oposição semânticas se
articulam em euforia (valor positivo = amor) ou disforia (valor negativo = desamor/amor
distante) e formam a base do texto, constituindo relações lógicas elementares que são
analisadas em forma de quadrados semióticos.

Considerações Finais

Ao estudarmos as cantigas de amor e as regras do código do amor cortês, encontramos


a importância literária dessa produção e a ideologia que dominava o universo cultural da
França do século XII e que inspira poetas do século XXI a focalizar o Amor Cortês em seus
poemas.
O poema analisado é tema relevante para Trovadorismo, retomado por autores da
poesia modernista brasileira a exemplo de Manuel Bandeira. Apresenta um eu-lírico que sofre

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por amor a uma mulher que não se apresenta como sujeito semiótico, posicionando-se apenas
como enunciatária do discurso. Ela, embora seja motivo de sofrimento para ele, é também
motivo de vida, portanto, almejada. Há no discurso os temas amor vs desamor, vida vs morte..
A emoção e o sentimento são melhores expressos na língua comum do povo, como é o
caso do poema aqui estudado. O modo de falar de uma língua, sua estrutura, o ritmo e o som
expressam a personalidade do povo que a utiliza.

Referências

ALMEIDA, L.A.de. O trovadorismo português na moderna poesia brasileira. Recife: Fasa,


1993.
BARROS, J. D’Assunção. τs trovadores medievais e o amor cortês – reflexões
historiográficas. Alhqeia, v. 1, n. 1, p. 1-15, abr./maio 2008.
BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: EDUSC, 2003
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995.
DOMINGUES, A.B.F.F. Na corte do amor: um estudo semiótico do Tratado do Amor
Cortês. 2006. 188 f. Tese (Coordenação de Pós-Graduação em Letras) – Instituto de Letras,
Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2006
DINIZ, Maria Lucia V.P. Semiótica: um novo paradigma para a leitura do verbal, não-verbal
e sincrético. Disponível em: <> Acesso em: 09 fev. 2006
DUBY, G.; PERROT, M. História das mulheres do Ocidente. Lisboa: Afrontamento, 1993.
ELIOT, T.S. De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1996.
ORLANDI, Eni Pulcineli. Discurso e leitura. Campinas: Ed.Unicamp, 1993.
PAIS, Cidmar Teodoro. Literatura oral, literatura popular e discursos etno-literários. In:
ESTUDOS em literatura popular. João Pessoa: Editora Universitária, 2004.
POUND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 2006.
O QUE é cordel. Disponível em: <http://www.cordelon.hpg.ig.com.br> Acesso em: 25 jan.
2006.
RÉGNIER-BOHLER, D. Amor cortesão. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, Jean-Claude.
Dicionário temático do ocidente medieval. São Paulo: Edusc, 2006.
ROCHA, K. I. Semiótica discursiva: figuratividade literária. Rabiscos de primeira, v. 4, n.
4, p. 18-21, mar. 2004.
SANTOS, L. Q. dos. O fino amor. Disponível em:
<www.nemed.he.com.br/lab/2007_ligia_quirino.pdf> Acesso em: 6 out.2008

Cantar de Amor – Manuel Bandeira

‘Quer’eu en maneyra de proençal


Fazer agora hum cantar d’amor ... (D.Dinis)!

“Mha SEσHτR, com’oje dia son,


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E par Deus non sei que farei i,
Ca non dormho à mui gran sazon.

Mha senhor, ai meu lum’e meu ben,


Meu coraçon non sei o que tem.

Noite dia no meu coraçon


Nulha ren se non a morte vi,
E pois tal coita non mereci,
Moir’eu logo, se deus mi perdon

Mha senhor, ai meu lum’e meu ben,


Meu coraçon non sei o que ten.

Dês oimais o viver m’é prison:


Grave di’aquel en que naci!
Mha senhor, ai rezade por mi,
Ca per’ço sem e per’a razon

Mha senhor, ai meu lum’e meu ben,


Meu coraçon non sei o que ten.”

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A DEMANDA DO SANTO GRAAL: UMA PROSA MEDIEVAL NA LITERATURA
DE CORDEL

Maria Nelcimá de Morais Santos1

A Demanda do Santo Graal, possivelmente, uma das mais famosas e populares das
novelas de cavalaria, tem sua origem na obra “Perceval ou Le conte du Graal” de Chrétien de
Troyes escrito no século XII. Chrétien de Troyes escreveu cinco romances sobre os
personagens da Távola Redonda e esse último trabalho ficou inacabado. O clérigo Robert de
Boron, no final do século XII, desenvolveu o tema Cálice Sagrado, a partir do romance
inacabado de Chrétien, ligando-o à tradição arturiana e introduzindo tal elemento de
cristianização. Uma lenda que, inicialmente foi glosada em versos e pertencia às canções de
gesta francesas - poemas medievais cantados em linguagem popular – narrava os feitos
heróicos dos reis e de seus cavaleiros e apresentava Percival como cavaleiro que "daria fim à
Demanda do Graal".
Essas canções, de caráter noticioso, narravam de perto o acontecido, tendo como
predominante o cavaleiro medieval que está diretamente incluído no combate em defesa da
Europa Ocidental, sempre instigando a fé cristã e obtendo a aprovação da população em favor
do movimento. Por volta de 1220, na França, o tema é colocado em prosa e essa lenda, que
antes era pagã situa-se como cristianizada; e é transformada em novela de cavalaria, mística e
simbólica. Os cavaleiros passavam por situações perigosíssimas para defender o bem e o mal.
Percival, anteriormente o escolhido, é substituído pelo cavaleiro Galaaz na busca pelo Santo
Graal, transformando alguns símbolos, dentre eles: o Vaso e a Espada, em objetos de valor
místico. Ana Maria Machado (199ι:01) diz que “inúmeras versões foram feitas para outras
línguas, e cada país europeu somou suas próprias lendas às aventuras do Rei Artur e seus
cavaleiros”.
O tema estudado é bastante utilizado nos escritos da literatura e cobiçado entre os
críticos literários. Por ser bastante complexo, deixa asas para uma vasta interpretação. Beliza
(2001:145) encontra na Demanda do Santo Graal brechas para enfocar a presença feminina
no universo cavalheiresco, quando observa que “a mulher representa a passagem para a
atividade do cavaleiro como herói combatente e, assim, introduzi-lo a uma das mais
relevantes ordens da sociedade medieval: a ordem do terceiro estado”. Ela ainda faz o
seguinte comentário:

A demanda é a busca da experiência humana com o Feminino enquanto vaso


procriador da vida. Buscá-lo, demandá-lo é procurar a nutrição: “abastecer
tôdalas mesas” [ com o ] manjar “Característica do estágio matricial, o
Grande Feminino, representado pelas oposições da vida e da morte, de Eva e
da Virgem Maria [...]

1
Cordelista e pesquisadora do GIEM. E-mail: nelcima@hotmail.com
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Aos olhos de Zilma, A Demanda do Santo Graal é um texto de cunho religioso, onde
a autora enfatiza com grande exaltação o herói Galaaz na busca pelo Cálice Sagrado – o cálice
que Jesus usava na santa ceia.
Não tinha ouro nem prata
O penhor da Caridade
O Cálice da Aliança
Relíquia da Cristandade!
A taça que guarda o sangue
Que salvou a humanidade.

Os cavaleiros, na sua maioria, eram homens voltados para a comunhão, onde apenas
um deles, Galaaz, obteve a sua realização. Jovem reconhecido como o "puro dos puros", o
próprio Messias, simboliza um novo Cristo, atingindo o fim almejado depois de inúmeras
aventuras – algumas relatadas no desfecho do cordel de Zilma Ferreira Pinto - que põem à
prova todas as suas virtudes.

Tinha o porte de um Apolo


O rosto de um querubim
A força dos santos mártires
E a proteção de Merlim
Galaaz é o seu nome
E o Santo Graal o seu fim.

O poema inicia-se com a descrição do espaço desencadeador da narrativa, seguido das


características que envolvem a história e seus elementos heróicos. Seu personagem principal é
Galaaz que ao lado de Boors e Percival recebia instruções de Merlim, um feiticeiro. A busca
pelo Santo Graal inicia-se quando Galaaz chega à Corte do Rei Artur. Era um domingo de
Pentecostes e o jovem toma posse de um assento, conhecido como cadeira perigosa junto aos
cavaleiros da Távola Redonda. Posteriormente acontece um milagre: o jovem herói consegue
arrancar uma espada, ação impedida por outros cavaleiros, porque essa era uma das provas
para avaliar o poder de Galaaz. A partir deste momento, os cavaleiros partiram para a
demanda do Santo Graal enfrentando inúmeros obstáculos comuns aos combates medievais.
Somente doze deles chegaram a Corberique e assim, como o Santo Graal não podia ser visto
por todos os cavaleiros, ficou apenas Galaaz. O feitiço que perdurava no recinto é quebrado e
o jovem encontra o Vaso Sagrado. Ao adentrar na sala do castelo, o jovem é dominado por
uma força espiritual que o encoraja a retirar a Relíquia, momento no qual surgem vozes
angelicais, Em seguida, Galaaz é transportado para longe do castelo, onde o esperam Boors e
Percival. Ao narrar toda a sua experiência aos seus amigos, pairou no meio deles uma
comoção e logo fizeram adoração a Deus em agradecimento pelo objetivo alcançado. E
preparando-se para regressarem a Logres, onde o Rei Artur e toda a sua corte os esperavam;
foram presos na cidade de Serraz, terra de povo pagão. Ficaram presos, mas não se
desgrudaram da Relíquia. Foram absolvidos, entretanto impedidos de continuar o recurso de
volta à Corte. O rei de Serraz, faz de Galaaz o seu herdeiro e, aclamado soberano, o herói
torna-se um rei prisioneiro; até o dia de sua morte. Em seguida, uma mão desce das nuvens e
arrebata o Santo Graal para o céu, motivando a conversão dos pagãos. Depois de algum
tempo, Percival também morre e somente Boors volta à Corte do Rei Artur para narrar os
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fatos históricos. A demanda do Santo Graal, a partir daí, passou a ser instrumento de literatura
para os trovadores medievais. O poema é concluído com as justificativas de Zilma, onde
afirma veemente, a sua fidelidade com o texto-matriz e apresenta uma despedida emocional,
na qual o leitor/ouvinte vai sentir a veracidade da narrativa.

A DEMANDA DO SANTO GRAAL NA LITERATURA DE CORDEL

Na busca pela relação existente entre a nossa literatura popular e a medieval, vários
vestígios são encontrados, nos quais se percebe que é inegável essa existência. Há inúmeros
registros de que a nossa literatura tem ramificações de nossos antepassados lusitanos. Para
Maurice (199κ:13), “nunca houve ruptura entre as tradições literárias do Velho Mundo e seus
brotos ultramarinos em nossas plagas: mesmo à distância, e desenvolvendo uma linguagem e
expressividade própria sob o sol tropical, as nossas letras continuam florescendo enquanto
ramo importante, na família neo-românica”.
Campos (1988, p. 257), um poeta moderno que transpôs em riquíssimos versos muitos
poemas dos troubadors, ficou curioso e perplexo ao comprovar os pontos de semelhança entre
a poética dos trovadores medievais - pioneiros da poesia moderna - e, por outro lado, a arte
dos poetas populares do Nordeste, afirma que:
Essa poesia caminha inexoravelmente para a absolescência, à medida que as tradições
rurais vão sendo engolidas pelas novas modalidades da arte popular urbana trazidas pelos
modernos meios de comunicação de massa – o rádio, a televisão, o cinema – não necessita de
muletas, nem de caridade. Anda por seus próprios pés. Possui técnicas e excelências nada
desprezíveis e por vezes surpreende o poeta cultivado não só pela diretidade de sua
linguagem, como pela sutileza e achados imprevistos.
No poema popular, A Demanda do Santo Graal, vários aspectos podem evidenciar a
relação entre as literaturas medieval e popular, pois o folheto é produzido com uma adaptação
onde são preservados alguns caracteres herdados do texto-matriz, a novela de cavalaria
portuguesa. São respectivamente:

1- a religiosidade – nas amostras que evidenciam a presença do religioso, prática comum do


poeta popular. Galaaz não é citado com as aventuras próprias de um combate, apenas citações
dos seus valores positivos, para fazer crer no leitor que eles tornam o homem habilitado para a
purificação da alma.

A Galaaz não faltava


Nenhuma das qualidades
Instruído por Merlim
Na ciência e na Bondade
Era um anjo justiceiro
Uma flor de castidade.

Linduarte Pereira (2006, p. 2) faz a seguinte reflexão: “τ motivo dessa expressiva


religiosidade dos cordelistas se dá pela força coercitiva que procede do meio onde estão
inseridos. Se impressionam pela criatividade”.

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2- o maravilhoso – o poema é recheado de expressões relatando o maravilhoso, são dados


concretos que permitem acompanhar toda uma concepção de mundo além do modelo retórico.
 Merlim: feiticeiro, imortal, conselheiro. Deduz-se pela leitura do poema que ele conhecia os
segredos do céu e da terra, da vida e da morte, do homem e dos deuses.

Merlim era um feiticeiro


Talvez um mago bretão.
Ninguém sabe a sua idade,
Mas naquela ocasião
Era jovem e se encontrava
Naquele país pagão.

 Cálice: encantado e desencantado por um herói, trazido por mãos


sobrenaturais, deslumbrante, acompanhado de duendes e feiticeiros.

O Santo Graal lá se achava


Como nos tempos primeiros
Esperando que chegasse
O maior dos cavaleiros
Rodeada de duendes
Guardada por feiticeiros.

 Espada: um símbolo enaltecido no poema, um objeto que através dos versos, abaixo,
detectamos a sua nobreza. Utensílio medieval “heroizado”, cujo poder é imensurável
tornando-se a prova concreta de que Galaaz é mesmo o herói escolhido para a demanda. “σa
composição do combate cumpre a espada o papel de objeto ritual, sacral e simbólico”
(JERUSA, 1993, p. 97).

Espada miraculosa
Muito mais que Escalibur
Com ela o herói vencia
Feitiçaria e tabu
Contra a força dessa espada
Não podia Belzebu.

São nestes elementos que se evidenciam traços que admitem detectar uma relação
entre os ciclos carolíngios e os arturianos.
A referência se faz inequívoca pela aura de encantamento e magia que resumam da
Matiére de Bretagne revelada em seus constitutivos básicos, num texto como A Demanda do
Santo Graal, e que difusa, mas efetivamente comparece nos apontados Clarimundos,
Amadises e Palmerins. Observa-se, aqui como lá, toda a máquina sobrenatural, a freqüência
de situações, em que as mais perigosas tarefas são confiadas ao herói, a presença do amor
como força impelente à demanda de aventuras, tendo como prêmio a bela noiva meta e
conquista. Tudo isto nos fala, não somente da matéria arturiana, mas de uma complexa teia de
varias tendências imbricadas, do mito ao ponto popular (JERUSA, 1993, p. 42).

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3- o exagero: o poema já é iniciado com uma expressão exagerada, recurso típico do poeta
popular, com o intuito de intensificar a narrativa; método usado, geralmente, na amplificação
épica.

Eu vou contar uma história


Que é mais que uma epopéia
Tem Jesus e tem milagres
Mas não foi na Galiléia
Foi passada na Bretanha
Uma nação européia.

Outros versos também comprovam uma constante hiperbólica. Vejamos:

Enfrentaram mil perigos


Por mil caminhos andaram
Impossível descrever
Os feitos que praticaram
Mas somente doze deles
A Corberique chegaram

”Essa colocação de exagero, para afirmação de proezas, é a própria essência do


fenômeno cavalheiresco, o que também parece coincidir perfeitamente com as tendências
mais espontâneas do sertanejo, em seus relatos orais ou disputas, cantadas, quando para
sobrepujar os heroísmos e convencer os ouvintes são os extremos conduzidos dentro deste
tom superlativo e amplificados”, Jerusa (1993:κ4)
Estabelecendo uma forma de engrandecer a figura do jovem heróico, glorificando o
seu heroísmo, vemos:
 Galaaz - dotado de qualidades que elevam o seu poder, chegando a ser comparado com
Jesus Cristo por sua perfeição inigualável.

Tinha o porte de um Apolo


O rosto de um querubim
A força dos santos mártires
E a proteção de Merlim
Galaaz é o seu nome
E o Santo Graal o seu fim.

4- as redondilhas - No medieval, a escrita se organizava de forma rítmica e reiterada. Eram


usados refrões na elaboração de documentos, nos rituais, na composição de hinos com a
intenção de facilitar a compreensão e memorização de seus conteúdos, esta última, presente
no verso é chamada de função mnemotécnica. A poesia palaciana apresenta seu próprio ritmo
e melodia, obtidos a partir da métrica, da rima, das sílabas tônicas e átonas. Os versos mais
comuns no Cancioneiro Geral são as redondilhas: redondilha maior (versos de sete sílabas
poéticas) e redondilha menor (versos de cinco sílabas poéticas). Na literatura de cordel, as
redondilhas fazem parte da métrica utilizada pelos poetas. Todas as estrofes do poema, em

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discussão, são reconhecidas como estrofes de rimas isométricas e classificadas como rimas
ABCBDB, são versos formados em redondilha maior ou setissílabas.
O poema A Demanda do Santo Graal é uma novela de cavalaria em cordel.
Adaptando um texto erudito, substituindo a forma proseada pelo verso, a autora procurou
reescrevê-lo com bastante fidelidade, embora utilizando os recursos característicos do poeta
popular: restringir ou intensificar conteúdos.

Não mudei a narrativa


Nada inverti da mensagem
Em tudo exalto a bravura
O bem, a fé e a coragem
De um cavaleiro que foi
De Jesus Cristo a imagem.

Para Sílvia Nemer (2005:02), referindo-se ao cordel A História do imperador Carlos


Magno e os doze pares da França, “os poetas populares costumam escolher as passagens
que mais lhe agradam para, a partir destas, produzir o seu relato que pressupõe reduções,
supressões, adoções ou ênfase sobre determinados aspectos do texto-matriz”.
Num trabalho acrescido do charme da linguagem poética onde se percebe uma
construção versos / imagens, a autora, com a sua criatividade, vai tecendo o poema, às vezes,
restringindo ou intensificando conteúdos, que para ela convém apresentar. Diz-se que,
nenhum poeta começa um bom folheto indo direto ao assunto, sem acrescer um charme
estilístico; é a função estética do folheto, um elemento de atração, da qual um dos resultados é
o ludismo e o entretenimento. “É precisamente este processo de juntar a história, isto é, os
fatos históricos e a liberdade de invenção que dá ao poeta a flexibilidade na sua narração e a
oportunidade de criar arte por meio de seus próprios talentos (CURRAσ, 19ι3)”.
A Demanda do Santo Graal, publicado em 1978, é um poema composto em sextilhas
com versos tradicionais, rimados e metrificados cuidadosamente nas 79 estrofes distribuídas
por 27 páginas. A capa em xilogravura, confeccionada por Pádua Belmont, artista plástico,
compositor e cantor da música popular, já expressa um teor medieval, onde se configura um
cavaleiro e o “Cálice Sagrado”. Esta reflete uma síntese do conteúdo e sugere um
acontecimento medieval, aonde vai abrindo um leque para nossa imaginação.

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Sua composição deixa evidência das três partes que a compõem. A primeira parte vai
da 1ª à 23ª estrofe. Nas duas primeiras, a autora faz um imenso suspense, nas quais,
inconsciente ou não, talvez pelo fato de ser historiadora, induz o leitor a revisar o seu
conhecimento geográfico; é uma verdadeira busca ao mapa-múndi, para entender o espaço
desencadeador da narrativa medieval.

Eu vou contar uma história


Que é mais que uma epopéia
Tem Jesus e tem milagres
Mas não foi na Galiléia
Foi passada na Bretanha
Uma nação européia.

Foi passada na Bretanha


Mas ali não começou
Começou na Palestina
Na Europa terminou
Era um cálice encantado
Que um herói desencantou.

Na estrofe nº6, a autora suspende uma descrição para chamar a atenção do


leitor/ouvinte, apresentando, numa verdadeira afirmação, a relação do cálice com a taça que
pertencia à Ceia Sagrada.

O leitor já tem ouvido


Falar da ceia sagrada
O Santo Graal é a taça
Por Jesus abençoada
E servida aos doze apóstolos
Por Jesus depois guardada.

Volta à narração para na estrofe nº13 falar sobre o Rei Artur e seus cavaleiros na
Távola Redonda. A segunda parte expressa a chegada do jovem Galaaz, o herói, à Corte, que
surge no poema a partir da 24ª estrofe. Nelas encontramos não somente versos, mas
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versos/imagens que sugerem um desencadeamento de combate real. Na estrofe de nº35, a
autora volta a suspender a narrativa para mostrar ao leitor/ouvinte que o herói era
familiarizado com aquele local.

O que o herói não sabia,


Talvez não saiba o leitor
É que se achava no Reino
Do seu falecido avô
De onde fora retirado
Quando criança menor.

Estas interrupções fazem parte das características do poeta popular, quando querem
expor as suas próprias idéias sobre o assunto em questão.
Na estrofe de nº 75, a narração da demanda é encerrada. A partir daí, vemos a
conclusão do poema que, nesta, Zilma, emocionalmente, apresenta as relações do poeta
popular com o medieval, através das omissões, da fidelidade, da exaltação e da sua paixão
pelo medievalismo.

Galaaz foi o modelo


Do cavaleiro cristão.
Esta foi a sua história
A qual não faltou vilão
E que eu contei resumida
De uma velha tradução.

Não contei com os detalhes,


Mas contei o essencial.
Teve bem e teve glória
Quem achou o Santo Graal.
Deixo Galaaz gozando
A glória celestial.

Não mudei a narrativa,


Nada inverti da mensagem.
Em tudo exalto a bravura,
O Bem, a Fé e a coragem
De um cavaleiro que foi
De Jesus Cristo a imagem.

De Sir Boorz e Percival


Paladinos verdadeiros!!
Não queria despedir-me
De nenhum desses guerreiros
Da corte do Rei Artur
Os galantes cavaleiros!!

Não queria despedir-me,


Mas me despeço afinal,
O lápis treme na mão
Botando o ponto final
Tão comovida me deixa
A história do Santo Graal.
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A autora

Poetisa e trovadora, autora de cantigas e romanceiros, Zilma Ferreira Pinto tem obtido
vários prêmios, como o “Prêmio σacional de Poesia - 1999” – da Academia Friburguense de
Letras com o romanceiro Isabel Nossa Princesa. Zilma nasceu na antiga Vila de Tacima,
distrito de Araruna, localizada na região do Curimataú do estado da Paraíba. Licenciada em
História pela UFPB, exerceu o magistério no interior e na capital do estado. Iniciou, na
literatura, com o livro Cancioneiro Experiencial (1987), pelo qual já se notava a sua
inspiração trovadoresca, este, que pôs em evidência o seu estilo. Membro da Academia
Paraibana de Poesia (cad. 15), do Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica, da
Associação Paraibana de Imprensa e da União Brasileira de Trovadores (PB), além de autora,
a professora Zilma é também uma estudiosa da Literatura de cordel.
Vários depoimentos são encontrados sobre o trabalho desta poetisa. A prof. Neuma
Fechine cita no prefácio do Cancioneiro Experimental :“τs poemas aqui reunidos, embora
estejam na sua maioria umbilicados formalmente à estética tradicional, notadamente no que
concerne à observância métrica e rítmica, traz inovações à sua produção de significâncias que
os filiam à poética modernista... feitos sobretudo para serem cantados, por serem melodiosas
cantigas que se mesclam a cadência encantadora das paralelísticas medievais, ibéricas, e dos
motes da nossa “cantoria de viola”. τutro depoimento que deve ser registrado é o da escritora
e historiadora Socorro Xavier (2002, p. 181): “[...] surgiram outras publicações, diversificadas
entre a poesia, a ficção e as pesquisas histórico-antropológicas e de Genealogia”. “Igualmente
diversificada ainda tem sido, a produção poética, elaborada, com igual maestria, em duas
fontes inspiradoras: a poesia erudita e a poesia popular e regionalista, notadamente o cordel”.
Antônio Soares (199ι) também faz uma referência à autora dizendo que “Zilma se evade ou
se aerifica nas asas da alucinação emocional... Ora, é uma alucinação cósmica... Ora, uma
alucinação estilo medieval”. Segundo estes e outros subscritos, é evidente a existência de uma
relação medieval x Zilma, seja na prosa, seja no verso.

CONCLUSÃO

Ao concluir este trabalho, quero registrar mais uma vez a comprovação de que narrar
um grande feito histórico, em verso, é uma grande arte do poeta popular. Ele vai tecendo o
seu texto com restrições pela necessidade de limitação de páginas, suprimindo, adicionando
ou enfatizando trechos que possa achar mais interessante, sempre preservando a origem do
texto-matriz. Jerusa denomina este processo de “servilismo ao texto matricial”. Fazendo
adequação à poética da Literatura de cordel, a poetisa usou rimas e ritmos que fracionaram a
comunicação, dando uma verdadeira volta à Idade Média. Entretanto, numa adaptação textual
que a torna compreensível a todo leitor. Não podemos negar que das epopéias, dos
romanceiros e dos trovadores ficaram marcas impressas de grande valor na poesia ocidental
concretizadas até os nossos dias.

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No poema, A Demanda do Santo Graal, vê-se uma construção poética que coloca
num mesmo nível o clássico e o popular tendo como objeto de suas reflexões a relação entre o
humano e o divino. Um tema que, por mais que façamos a sua leitura constante, observamos
grandes dificuldades de nos concentrarmos em apenas um trecho ou um personagem dessa
narrativa. Isso ocorre, certamente, pela magia com que ela nos envolve, interferindo em
variadas faces do poema e nos fazendo sentir ora num reino encantado, ora numa batalha onde
prevalece uma doutrina com religiosidade profunda.

REFERÊNCIAS

ÁUREA, Beliza. Da demanda do Santo Graal à busca de si - mesmo. In: LEON, A.de.;
MALDORADO, S.C. (orgs.). Saberes emergentes. João Pessoa: Manufatura / PPGS, 2001.
CURRAN, Marck J. A literatura de cordel: antes e agora. Recife: Universidade Federal de
Pernambuco. 1973.
______. Jorge Amado e a literatura de cordel. Salvador: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1981.
FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel. São Paulo: HUCITEC, 1993.
LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean Claude. Dicionário temático do Ocidente. São Paulo:
Edusc, 2006.
MALORY, Thomas. O Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda. São Paulo: Scipione,
1997.
MENDONÇA, M. B. de. Uma voz feminina no mundo do folheto. Brasília: Thesaurus:
1993.
NEMER, Sílvia. O ideal cavalheiresco: entre o romanceiro medieval, o cordel e o cinema.
2005. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2005.
PINTO, Zilma Ferreira. A Demanda do Santo Graal. Literatura de cordel. João Pessoa,
1978.
RODRIGUES, Linduarte Pereira. O apocalipse na literatura de cordel: uma abordagem
semiótica. 2006. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Paraíba, 2006.
SOARES, Antônio. Cadernos Psicoliterários, n. 5, João Pessoa, 1997.
WOENSEL, Maurice Van; VIANA, Chico. Poesia medieval ontem e hoje: estudos e
tradições. João Pessoa: Ed. Universitária, 1988.

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"ROSVITA DE GANDERHEIM E LOURDES RAMALHO: O FEMININO NA
DRAMATURGIA OCIDENTAL"

Petra Ramalho Souto


(UFPB)
petraramalho@gmail.com

No presente artigo serão abordados os pontos de encontro e/ou divergência entre


textos da escritora medieval Rosvita de Ganderheim (935-1000) e de Lourdes Ramalho
(1922-), dramaturga norte-rio-grandense radicada na Paraíba há mais de 30 anos.
Será focalizado neste trabalho a presença de traços de crítica social - e em especial as
questões de gênero que perpassam essa crítica. Serão analisados dois textos, a saber:
Sabedoria, de Rosvita de Ganderheim e Guiomar, sem rir, sem chorar de Lourdes Ramalho.
Rosvita e Lurdes estão distantes no tempo e no espaço – a primeira viveu na
Alemanha medieval e a segunda ainda vive no Nordeste brasileiro –, mas ambas apresentam
em suas obras críticas ácidas contra a dominação masculina sobre a mulher.
As mulheres, desde a Antiguidade é representada como um ser dicotomizado (ou santa
ou prostituta) e, em geral, como um ser inferior -em qualidades físicas e morais- ao homem.
Segundo a tradição cristã, as mulheres, só poderiam se equiparar moralmente aos homens
enquanto fossem virgens, ou seja, tivesse virtus ("virtude", também associada à virilidade.).

"As virgenes (virgens) são vistas pela antiguidade cristã como equiparadas
ao homem, vir, e por isso elas podem possuir virtus (=virtude, ou, antes,
masculinidade) e como se diz em conexão com os padrões de pensamento
neopitagóricos e estóicos, superar sua `feminilidade´ (=carne, fraqueza,
imperfeição)"1

Portugal, país eminentemente católico que no século XVI estava no primeiro lugar da
lista dos conquistadores marítimos, não oferecia às mulheres boas condições de expansão na
vida pública. Apesar de serem relatados casos de mulheres independentes que viviam em boas
situações financeiras e administravam negócios e terras sem ajuda de qualquer figura
masculina, as portuguesas medianas -até meados do século XVIII- eram dependentes e
encarceradas.

"No século XVI, as donzelas portuguesas só saíam para irem às igrejas, e de


véu sobre o rosto para não serem vistas; as esposas eram escravas do lar,
numa terra onde os mouros permaneceram demasiadamente e à qual legaram
preconceitos e restrições nefastas em relação às mulheres"2

1
LOBO, Luiza. A gênese da representação feminina na literatura ocidental: Bíblia, Cabala, Idade Média In:
“Seminário σacional Mulher e Literatura”. ι: 199ι. σiterói – Rio de Janeiro. Universidade Federal Fluminense.
VIANNA, Lúcia Helena e PORTO, Maria Bernadete (orgs.). Niterói: EdUFF. 1999. 2v, p. 569-571.
2
MAIA, João Domingues.”Questões femininas na obra de Gil Vicente” In: Flores verbais. Jürgen Heye (org.).
Rio de Janeiro. Editora 34. p. 335-361. 1993. Disponível em: http://www.ipn.pt/opsis/litera/letras/ensaio41.htm.
Acessado em 21/11/03.
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Segundo cronistas da época, as mulheres casadas nascidas em famílias mais abastadas
que saíssem desacompanhadas de amas ou escudeiros poderiam adquirir má fama. Viúvas e
noivas ou esposas de homens que se demorassem em missões deveriam se vestir luto e não
aceitar outros homens como amantes ou maridos. As mulheres portuguesas viviam, então, sob
o signo de Eva e só poderiam ser plenamente feliz (de acordo com as representações da
época) e salva dos pecados, depois que contraíssem núpcias e fossem mães.

1. Hrosvitha de Ganderheim (935-1000)

A história das origens de Rosvita - ou Hrotsvit ou Hrotvitha ou Hroswita ou Rosvita


ou Rosvita - de Ganderheim é pouco conhecida. Sabe-se que é, provavelmente, filha de uma
família rica e que foi Canonesa do monastério Beneditino de Ganderheim (Alemanha).
Ficou conhecida como a primeira mulher poeta alemã e primeira dramaturga
conhecida no Ocidente depois da Era Clássica.
Além de estudos matemáticos, Rosvita deixou um legado de uma obra literária escrita
em Latim, em vários gêneros: crônicas, lendas religiosas, peças em prosa rimada e poemas
históricos.
Apesar da versatilidade, Rovista ficou famosa na história da literatura ocidental pelos
seus textos dramáticos. As seis peças que chegaram aos dias de hoje - descobertas no Século
XVI foram: Gallicianus, Dulcitibus, Sabedoria, Callimachus, Abraão e Paphnutius. As três
primeiras são consideradas peças de martírio, pois retratam a luta entre ideais cristãos e
pagãos, durante a qual os/as que defendem as idéias cristãs são martirizados(as) e mortos(as).
Nelas, Rosvita propaga as idéias cristãs, como por exemplo a salvação da alma pelo sacrifício
do corpo.

2.1 Sabedoria de Rosvita de Ganderheim

2.1.1 Sobre o texto

Em Sabedoria- peça escrita em Latim e dedicada, assim como todas de Rosvita, a


Gerberga, a abadesa de Ganderheim - Rosvita apresenta uma versão para a história de Santa
Sabedoria e de suas três filhas: Fé, Esperança e Caridade, que, acusadas de praticar a fé cristã
num reino onde deuses pagãos eram adorados, são martirizadas até a morte. De forte
influência popular, a peça oscila entre o cômico e o trágico e apresenta a mulher como ser
superior ao homem em sabedoria e nobreza. Nesta peça Rosvita também apresenta, com fins
claramente didáticos, princípios matemáticos que ela própria desenvolveu.

2.1.2 Trecho de Sabedoria

Nesse trecho da cena IV do texto Sabedoria, Rosvita apresenta o debate entre o


Imperador Adriano e a sua heroína, Sabedoria, que ao chegar em nas terras governadas por
Adriano, enfrenta a ordem religiosa da cidade para manter sua fé cristã. Rosvita também

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estabelece uma relação de desigualdade intelectual entre o Imperador e Rosvita, ao apresentar
o Imperador como um déspota ignorante da sabedoria que sua opositora demonstra.

ADRIANO: Ilustre matrona, com bons modos convido-te a dar culto aos
deuses, para que possas gozar de nosso favor.
SABEDORIA: Não pretendo de modo algum prestar culto a teus deuses,
nem morro de vontade de ganhar o teu favor.
ADRIANO: Até aqui, refreei minha ira, e não me movi de indignação contra
ti. Antes, pelo teu bem e o de tuas filhas, adoto uma conduta de amor
paterno.
SABEDORIA (sussurrando): Não vos deixeis, minhas filhas, enganar pelas
seduções ardilosas desse Satanás; antes, fazei como eu: rejeitai-as.
FÉ: Rejeitamos e, valorosamente, desprezamos essas coisas frívolas.
ADRIANO: Que é que tu estás cochichando?
SABEDORIA: Falava um pouco a minhas filhas.
ADRIANO: Pareces ser de alta estirpe, mas quero saber com mais exatidão
sobre tua pátria, tua família e teu nome.
SABEDORIA: Embora a nobreza do sangue seja, entre nós, de pouca
importância, no entanto, não nego ter uma origem ilustre.
ADRIANO: O que não me surpreende.
SABEDORIA: Pois, de fato, foram meus pais os mais eminentes gregos e
meu nome é Sabedoria.
ADRIANO: A nobreza refulge em teu rosto e a sabedoria do nome brilha na
face.
SABEDORIA: Em vão bajulas, não nos dobramos a tuas falas persuasivas.
ADRIANO: Dize, que vieste fazer entre nós?
SABEDORIA: Nenhuma outra coisa a não ser conhecer a doutrina da
verdade, para o aprendizado mais pleno da fé que combateis e para consagrar
minhas filhas a Cristo.
ADRIANO: Dize os nomes delas.
SABEDORIA: A primeira se chama Fé; a segunda, Esperança; a terceira,
Caridade.
ADRIANO: Quantos anos têm?
SABEDORIA: (sussurrando) Agrada-vos, ó filhas que perturbe com um
problema aritmético a este tolo?
FÉ: Claro, mamãe. porque nós também ouviremos de bom grado.
SABEDORIA: Ó Imperador, se tu perguntas a idade das meninas: Caridade
tem por idade um número deficiente que é parmente par; Esperança, também
um número deficiente, mas parmente ímpar; e Fé, um número excedente mas
imparmente par.
ADRIANO: Tal resposta me deixou na mesma: não sei que números são!
SABEDORIA: Não admira, pois, tal como respondi, podem ser diversos
números e não há uma única resposta.
ADRIANO: Explica de modo mais claro, senão não entendo.
SABEDORIA: Caridade já completou 2 olimpíadas; Esperança; 2 lustros;
Fé, 3 olimpíadas.
ADRIANO: E por que o número 8, que é 2 olimpíadas, e o 10, que é 2
lustros são números deficientes? E por que o 12, que perfaz 3 olimpíadas, se
diz número excedente?
SABEDORIA: Porque todo número, cuja soma de suas partes (isto é, seus
divisores) dá menor do que esse número, chama-se deficiente, como é o caso
de 8. Pois os divisores de 8 são: sua metade - 4, sua quarta parte - 2 e sua
oitava parte - 1, que, somados, dão 7. Assim também o 10, cuja metade é 5,

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sua quinta parte é 2 e sua décima parte, 1. A soma das partes do 10 é
portanto, 8, que é menor do que 10. Já, no caso contrário, o número diz-se
excedente, como é o caso do 12. Pois sua metade é 6, sua terça parte, 4, sua
quarta parte, 3, sua sexta parte, 2 e sua duodécima parte, 1. Somadas as
partes, temos 16. Quando, porém, o número não é excedido nem inferado
pela soma de suas diversas partes, então esse número é chamado número
perfeito. É o caso do 6, cujas partes - 3, 2, e 1 - somadas, dão o próprio 6. Do
mesmo modo, o 28, 496 e 8128 também são chamados números perfeitos.
ADRIANO: E quanto aos outros números?
SABEDORIA: São todos excedentes ou deficientes.
ADRIANO: E o que é um número parmente par?
SABEDORIA: É o que se pode dividir em duas partes iguais e essas partes
em duas iguais, e assim por diante, até que não se possa mais dividir por 2,
porque se atingiu o 1 indivisível. Por exemplo, 8 e 16 e todos que se
obtenham a partir da multiplicação por 2, são parmente pares.
ADRIANO: E o que é parmente ímpar?
SABEDORIA: É o que se pode dividir em partes iguais, mas essas partes já
não admitem divisão (por 2). É o caso do 10 e de todos os que se obtêm,
multiplicando um número ímpar por 2. Difere, pois, do tipo de número
anterior, porque naquele caso, o termo menor da divisão é também divisível;
neste, só o termo maior é apto para a divisão. No caso anterior, tanto a
denominação, como a quantidade, são parmente pares; já aqui, se a
denominação for par, a quantidade será ímpar; se a quantidade for par, a
denominação será ímpar.
ADRIANO: Não sei o que é isto de denominação e quantidade.
SABEDORIA: Quando os números estão em "boa ordem", o primeiro se diz
menor e o último, maior. Quando, porém, se trata da divisão, a denominação
é quantas vezes o número se der. Já o que constitui cada parte é o que
chamamos quantidade.
ADRIANO: E o que é imparmente par?
SABEDORIA: É o que - tal como o parmente par - pode ser dividido não só
uma vez, mas duas e, por vezes, até mais. No entanto, atinge a
indivisibilidade (por 2) sem chegar ao 1.
ADRIANO: Oh! que minuciosa e complicada questão surgiu a partir da
idade destas menininhas!
SABEDORIA: Nisto deve-se louvar a supereminente sabedoria do Criador e
a Ciência admirável do Artífice do mundo: pois, não só no princípio criou o
mundo do nada, dispondo tudo com número, peso e medida, como também
nos deu a capacidade de poder dispor de admirável conhecimento das artes
liberais, até mesmo sobre o suceder do tempo e das idades dos homens.
ADRIANO: Muito agüentei a tua "calculeira" para fazer com que me
obedeças.
SABEDORIA: Em que?
ADRIANO: No culto aos deuses.
SABEDORIA: Nisto, certamente não consinto.
ADRIANO: Se teimares, sofrerás torturas.
SABEDORIA: O corpo sim, podes fustigar com suplícios; mas a alma, não
conseguirás forçar a ceder.3

3
http://www.hottopos.com/spcol/rosvita.htm-acessado em maio de 2007, às 22h42

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2. Lourdes Ramalho: a mulher do povo

Maria de Lourdes Nunes Ramalho, ou Lourdes Ramalho, nasceu a 23 de agosto de


1923 em Jardim do Seridó, próxima a Caicó/RN em uma família de artistas e intelecutais [3].
Foi estimulada desde jovem a escrever para o colégio pequenas peças e tendo sido uma delas
o motivo de sua expulsão de um dos colégios onde estudou, por tratar de maneira polêmica de
temas ligados à religião católica.
Lourdes Ramalho teve oportunidade de crescer em contato com cantadores de viola,
cordelistas e contadores de história, o que lhe permitiu captar procedimentos próprios da
literatura popular que viriam a aparecer mais tarde em sua obra dramática. A professora, poeta
e dramaturga foi assistida por sua mãe -a também professora e dramaturga Ana Brito- em seus
primeiros estudos. Com incentivo dela e de seus familiares aprendeu desde menina a amar a
terra e o povo e a registrar no papel, de forma dramatizada, hábitos, falares e visões de mundo
de mulheres e homens comuns da sua região, foram feitas ainda na adolescência, com o
incentivo da mãe e de outros familiares, também envolvidos com teatro. Sua paixão pelo
teatro toma impulso e novos rumos a partir da década de 1970, momento em que são
retomadas as propostas da dramaturgia nacional-popular difundida na década anterior, que
ganhara força com a estréia de Ariano Suassuna no Sudeste do país, com o Teatro Popular do
Nordeste (TPN), o Teatro de Arena de São Paulo e os CPC's. Na esteira desse processo,
desponta no cenário teatral do país a autora cujos textos teatrais recriam, criticamente, o
universo da gente comum do sertão nordestino, enfatizando as relações de tensão e opressão
estabelecidas neste contexto social e, de outro lado, a riqueza cultural do universo popular da
região.
Fundadora do Centro Cultural Paschoal Carlos Magno e do Teatro Ana Brito, ambos
sediados em Campina Grande-PB, Lourdes Ramalho já escreveu quase uma centena de textos
teatrais em prosa e verso - alguns ainda não publicados - que vão da farsa à tragédia, passando
pelo drama e a comédia, incluindo um repertório infanto-juvenil. Entre Fogo-fátuo e
Guiomar, a filha da mãe... – texto que atualiza o desabafo contundente de Guiomar, sem rir
sem chorar –, existe dezenas de outros textos, alguns já consagrados pelo público e pela
crítica especializada, a exemplo de As velhas, Frei Molambo, ora pro nobis, A feira e outros
como O trovador encantado, Chã dos esquecidos, Charivari, A mulher da viração, Romance
do conquistador, Os mal-amados, que demonstram a diversidade de estilos e revelam a
proposta central da dramaturgia de Lourdes Ramalho: privilegiar a representação das
experiências de mundo e de vida do seu povo desvendamento as raízes ibéricas existentes no
universo cultural do Nordeste brasileiro.
Premiada em vários concursos de dramaturgia e festivais de teatro, nacionais e
internacionais, Lourdes Ramalho – aclamada como a grande dama da dramaturgia nordestina
– é atualmente a maior representante da dramaturgia de autoria feminina paraibana.

2.1 Sobre Guiomar, sem rir, sem chorar

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Guiomar, sem rir, sem chorar - texto publicado pela primeira vez em 1980 juntamente
com outros dois textos da dramaturga: A eleição e Frei Molambo, ora pro nobis – é um
monólogo protagonizado por Guiomar, "uma mulher do povo, atrevida e corajosa, resolve,
com sua linguagem desabrida, denunciar as 'maracutaias' dos políticos, os crimes dos
poderosos contra os pequenos, pelos quais não sofrem uma ave-maria de penitência."4
Veja o que diz o texto:

(Espécie de sala de investigação. Birô, duas cadeiras, no proscênio simulacro


de bandeira com sugestivas cores. Sobre o birô, alinhados, estandartes
multicoloridos. Música soturna, algo marcial. Pisca-pisca iluminando a cena,
lembrando carro de polícia. Guiomar passa ao fundo. Ar de quem procura,
passa e volta, num crescendo de angústia, até vir a correr desabalada, sempre
perseguida pelo pisca-pisca e pela música, até que ambos param. Luz geral.
Ela também pára e se aproxima do birô, onde "vê" alguém sentado.)
É aqui a sala do meritíssimo que me mandou essa intimação?
Ah, não é intimação – é convite? – Bem, convite a gente pode ou não aceitar,
enquanto este... – Mas se o senhor diz que NÃO é intimação e SIM convite –
fica por convite mesmo, muito embora, com a devida vênia, se eu tivesse
sabido antes não teria comparecido de jeito nenhum. – Entretanto,
CONVIDADA ou INTIMADA – aqui estou eu... de PÉ.
Ah, posso sentar? – Ainda bem, pois as pernas me tremem.
Por quê? – Ora, tremem porque tremem – já não é boa razão?
– Sim, acho que estou mesmo um pouco nervosa... Por quê?
– Em primeiro lugar, porque tenho nervos, é lógico, depois, por ter sido
intimada por um tal de presidente Bandeira... – ora, se "presidente" por si já
não é POUCA MERDA – imagina carregando um "Bandeira" na frente...
Sim, o meritíssimo já explicou que se trata de um "convite", só não entendo
é porque me intimaram – por quê? – eu andar detratando do governo? – A
pensar desse modo, o governo é quem anda detratando de mim. – Saiba o
meritíssimo que sou uma pessoa de responsabilidade, precavida nas minhas
afirmações, que levo uma vida retraidíssima, NA MINHA – e não vou
admitir que meu pobre mas honrado nome seja retaliado em praça pública
pelos inimigos da pátria e dos verdadeiros patriotas.
Eu andar batendo boca por aí? – Com a devida vênia – um caluniador barato
desses merecia responder processo perante corte marcial. – Logo eu, que sou
uma criatura discretíssima, NA MINHA. Imagine, que nem com essa
abertura escrachada que anda por aí, eu tenho coragem de arriscar o menor
comentário. – Eu, hein? – Não digo nem que "bolacha é redonda" pra não
ver o sol nascer quadrado. – De repente vem uma reviravolta, que nesta terra
TUDO é possível – e o freguês sem quê nem pra quê sai circulação – Por
que digo isso? – Então o senhor não sabe que até bem pouco tempo atrás,
sem que houvesse prévia "intimação ou convite" – metiam uma carapuça
preta na cabeça do suplicante, davam uma jeriquita nele – e proto? – O que
acontecia depois? – O senhor que é o senhor não sabe – quanto mais eu... –
Lavagem cerebral limpa muito mais que intestinal, não é verdade?
É como acabei de falar, sou uma criatura discretíssima, NA MINHA,
portanto não atino o motivo deste... convite – pois se existe no mundo uma
criatura NA DELA – sou eu. – Vida alheia, fofoca, coluna social – nem

4
RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Teatro popular: três textos (A eleição, Guiomar – sem rir, sem chorar,
Frei Molambo – ora pro nobis)". [Campina Grande]: [s.n.], [c. 1980];

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política me interessa. – Pra melhor lhe dizer, nem jornal leio, isto é, leio
atrasado, quando encontro algum a caminho do banheiro, é por isso que só
falo de assuntos passados há tempos. Pois bem, no banheiro, de enciclo
PEIDA pra baixo, leio tudo. – E quem não lê? – Principalmente com essa
"massificação" de hoje que deixa os intestinos preguiçosos, sem coragem de
raciocinar... – Conheço gente que naquele honroso departamento faz tricô,
joga paciência, reza terço... – Sei até de um médico importantíssimo que faz
seus estudos "anatômicos" naquele indispensável gabinete fisiológico... (...)

(Música, dança e o cartaz.)

– Eu dou, tu dás, ele dá


Tá certo a conjugação?
Mas pra quem dá – que azar
O que lhe dão fica pidão. (...)
Peraí, meritíssimo, não me casse a palavra, que castrados já vivemos todos
nós. – Não, não é falando mal do governo, que governista sempre fui e sou –
suba quem subir. – Mas acho que este país deveria seguir o exemplo da
China, onde o casal paga baita de multa por cada "coisa fofa" que bota no
mundo, medida que, por si, já deixa o casal sem fogo pra fornicação... – Mas
aqui, neste torrão abençoado por Deus, o cabra quanto mais FAZ mais
vontade tem – é PLANTANDO e o governo garantindo – com bons auxílios-
natalidade, gordos salários-família – e haja a superprodução de brasileirinhos
bicolores, tricolores, com cara de tudo, menos de índio, pois a raça anda em
fraco extermínio... (Abre outro estandarte.)

Mulher nos teatros lourdiano e rosvitiano

As peças escritas por Lourdes Ramalho (muitas delas ainda inéditas), as mais
encenadas e famosas pelos prêmios que ganharam, a exemplo de Guiomar, a filha da mãe...
(2003), As velhas (1975) e A feira (1976), são protagonizadas por personagens femininas.
- Em Sabedoria, Rosvita representa a mulher como ser superior, nobre e mais
inteligente que o homem.

O teatro de Lourdes Ramalho e as raízes ibéricas: o ensino e o riso

Os textos apresentados atro de Loudes Ramalho é marcadamente um teatro de raízes


populares, um teatro no qual a autora buscou registrar a cultura ibérica medieval deixada por
portugueses e espanhóis no Brasil no século XVI, período de início do processo de
colonização. Além disso, o teatro lourdiano é visivelmente influenciado pela experiência
pedagógica da autora.
A junção dessas duas características, além da constante busca pelo ensinamento
através do riso, aproxima o teatro lourdiano do teatro de Rosvita de Gandersheim.

Considerações finais

As personagens femininas que protagonizam os textos apresentados no presente artigo,


são apresentadas como seres superiores ao homem em qualidades intelectuais e morais.

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Sabedoria, protagonista do texto de Rosvita de Ganderheim, é uma mulher cristão e culta, que
enfrenta por meio da força da fé e do conhecimento o imperador Adriano que a quer demovê-
la de sua crença cristã. Sabedoria com tranquilidade, bom-humor e elegância demonstra a
Adriano que se mantêm fiel ao Deus cristão que ela cultua, apesar de presenciar o martírio e a
morte de suas três filhas. Guiomar é também uma professora, mulher esclarecida e
conhecedora da História do Brasil, portanto, pessoa com autoridade para falar dos fatos que
critica. σo seu embate com o delegado que a “convida” para uma visita ao posto policial,
Guiomar, apesar de demonstrar certo receio de sofrer castigos físicos, não se acovarda e -com
muita ironia e bom-humor- desconstrói as palavras do seu opositor.
Essas personagens são, portanto, representantes das mulheres que são silenciadas, mas
que não se intimidam diante daqueles que a querem subjulgar. Seguem crenças e têm opiniões
que diferem das estabelecidas como regra, mas demonstram um grande conhecimento e força
interior para o enfrentamento do conflito com seus opositores.

Bibliografia

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de


François Rabelais. Brasília: HUCITEC, 1993;
“Rosvita e o Restabelecimento do Teatro no τcidente” (trad. e introdução L.J. Lauand).
http://www.hottopos.com/spcol/rosvita.htm. acessado em 25 de novembro, às 20h43;
CARVALHO, Luciana Gonçalves de. O Diabo e o Riso na Cultura Popular. ENFOQUES -
revista eletrônica dos alunos do PPGSA - ISSN 1678-1813. acessado em 25 de novembro, às
21h42;
http://www.lourdesramalho.com.br/obra/index.htm. acessado em 25 de novembro, às 21h39;
GARRETAS, Maria-Milagros Rivera. "Hrostsvitha de Gandersheim: la sonrisa, la risa y la
carcajada" In Textos y espacios de mujeres. Europa siglo IV-XV. Icaria Editorial. Barcelona.
1995;
LE GOFF, Jaques & SCHIMIT, Jean-Claude. Masculino/Feminino In "Dicionário temático do
Ocidente Medieval". EDUSC. São Paulo. 2002;
LOBO, Luiza. A gênese da representação feminina na literatura ocidental: Bíblia, Cabala,
Idade Média In: “Seminário σacional Mulher e Literatura”. ι: 199ι. σiterói – Rio de Janeiro.
Universidade Federal Fluminense. VIANNA, Lúcia Helena e PORTO, Maria Bernadete
(orgs.). Niterói: EdUFF. 1999. 2v, p. 569-571.
MAIA, João Domingues.”Questões femininas na obra de Gil Vicente” In: Flores verbais.
Jürgen Heye (org.). Rio de Janeiro. Editora 34. p. 335-361. 1993. Disponível em:
http://www.ipn.pt/opsis/litera/letras/ensaio41.htm. Acessado em 21/11/03.
RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Teatro popular: três textos (A eleição, Guiomar – sem
rir, sem chorar, Frei Molambo – ora pro nobis)". [Campina Grande]: [s.n.], [c. 1980];
http://www.ppe.uem.br/publicacao/sem_ppe_2003/Trabalhos%20Completos/pdf/052.pdf,
acessado em 24 de julho de 2008, às 20h43;
http://www.hottopos.com/spcol/rosvita.htm-acessado em maio de 2007, às 22h42.
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O IMAGINÁRIO MEDIEVAL NOS FOLHETOS DE CORDEL: O PECADO COMO
ETHOS CONTROLADOR

Renata de Oliveira Pinto


(PPGL/UFPB)
renataolipinto@gmail.com

Introdução

A semiótica é uma ciência que tem por objeto de estudo a significação, que é
entendida como articulações do sentido. O sentido, por sua vez, apresenta-se através de um
percurso gerativo, que é formado por três níveis: o fundamental, o narrativo e o discursivo.
Tendo em vista que este artigo consiste numa análise das estruturas discursivas, teceremos,
então, algumas considerações sobre elas.
Tomando por base essa teoria semiótica, extraímos do acervo do PPLP (Programa de
Pesquisa em Literatura Popular) o corpus composto pelo folheto de cordel O Dinheiro (O
Testamento do Cachorro), da autoria de Leandro Gomes de Barros, e fizemos uma análise das
estruturas discursivas, ressaltando os temas e as figuras que recobrem a narrativa, além das
relações de pessoa, tempo e espaço existentes nela.

Análise do corpus

No cordel em análise, o sistema temporal bifurca-se em tempo linguístico, que remete


à instância enunciativa, situando o enunciador em relação aos acontecimentos; e o tempo
crônico, que organiza a enunciação a partir de marcos referenciais logicamente instalados no
enunciado.
O que predomina no texto em questão é o tempo linguístico, uma vez que o tempo
crônico, materializado linguisticamente por marcos cronológicos socialmente determinados,
aparece figurativizado apenas uma única vez, na expressão nesse século, que serve para situar
historicamente a narrativa, dando a impressão de que o discurso que procede da voz do
enunciador goza de um respaldo veridictório e detém credibilidade. Não é à toa que os fatos
enunciados fazem parte de um mundo no qual o enunciador se situa.
No que concerne ao tempo linguístico, depreendem-se alguns vestígios que,
materializados no enunciado, denunciam a proximidade, a identificação do enunciador com os
preceitos socioculturais que constituem o discurso. Inicialmente, faz uso do tempo presente
quando pretende corroborar a tese de que o dinheiro é um “agente do mal”, capaz de
corromper as pessoas e o mundo. Assinalando, por intermédio de elementos verbais no
presente, a natureza desleal do dinheiro e, consequentemente, da ganância, o enunciador visa
convencer seu possível enunciatário de que o apego excessivo e irracional aos bens
monetários foi e continua sendo o grande ordenador da sociedade. Um outro fator que
comprova essa embreagem é a sentença neste mundo, que remete para alguém que está
falando no momento. Esses artifícios foram empregados para a criação de um efeito de
verossimilhança.
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“τ dinheiro neste mundo


σão há força que o debande(...)”

O enunciador, para fazer valer suas crença e tornar seu leitor cúmplice de seu dizer,
irrompe-se, mais uma vez, no enunciado por meio de uma embreagem. Nesse momento,
continua a discorrer a cerca da importância do dinheiro e da dominação que este exerce sobre
as pessoas. Estruturalmente, tal fenômeno se deixa observar no aparecimento das marcas de
primeira pessoa que explicita a intervenção do enunciador no enunciado. Todavia, vale
ressaltar que o enunciador se mantém sempre distanciado, ou melhor, debreado da
enunciação, uma vez que a enunciação, apresentando-se como uma instância linguística
pressuposta pela própria existência do enunciado, mostra-se impossível de ser apreendida
inteiramente, recuperada em sua integridade enunciativa, o que pode ser feito, apenas, é uma
investigação das marcas que se presentificam no enunciado. No universo semiótico, em
questão, o enunciador recria a enunciação; ele a enuncia num tempo passado, resgata algo que
está na memória, por isso o uso de verbos no pretérito.

“Eu já vi narrar um fato


Que fiquei admirado,
Um sertanejo me disse
Que nesse século passado
Viu enterrar um cachorro
Com honras de um potentado”

O pretérito imperfeito aparece, argumentativamente, construído nas passagens que se


referem ao episódio da corrupção das autoridades religiosas. Com a utilização desse tempo
verbal, o enunciador pretende enfatizar o estado contínuo de fragilidade moral e debilidade
religiosa que delineiam as ações de uma instituição cristã, a Igreja Católica, dentro de uma
determinada região, o Nordeste brasileiro, e num dado período histórico, quando, na verdade,
deveria defender os princípios de desapego material, necessários para a salvação da alma,
após a morte. São atributos momentâneos, mas que se agregam, pelo caráter durativo do
imperfeito, estaticamente a doutrina católica. Dessa forma, a degeneração da igreja é
fortemente acentuada, visto que ela foi e continua sendo corrupta. Observemos no texto:

“Que o vigário tinha feito /


(...)Que não era de direito”
“A questão ficava feia
Desenterrava o cachorro
O vigário ia pra cadeia”

Embora a gramática tradicional reserve para o modo subjuntivo noções semânticas


ligadas à incerteza, dúvida, imprecisão, não é o que ocorre no cordel em análise. Neste, o
pretérito do subjuntivo não traduz ações vagas e duvidosas, mas reafirma o conteúdo
proposicional que recobre toda a estrutura linguística. Em uma das estrofes que compõem o
texto, aparece a expressão “E se não fosse o dinheiro?”, na qual o elemento verbal difunde o
conteúdo pressuposto de que a importância do dinheiro não é algo exclusivo do momento de
fala do enunciador, mas que este “recurso” já se revelou relevante em outras ocasiões.
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“E eu julguei que isso fosse


Um cachorro desgraçado”

Outro tempo que aparece materializado na tessitura do texto é o imperativo. Este


enfatiza, marca e evidencia a imponência, a superioridade do vigário, enquanto autoridade
religiosa, sobre o Inglês. A fala imperativa do astuto padre se irrompe em tom de obrigação e
de imposição. É ele que comanda e direciona a negociação, não dando espaço para que o
estrangeiro estabeleça condições. σão há duvida de que a intenção do “bondoso” religioso é
obter fundos que vão beneficiar a si próprio:

“Leve-o para o cemitério.


Que vou o encomendar
Isto é, traga o dinheiro
Antes dele se enterrar,
Estes sufrágios fiados
É factível não salvar”

Assim com o tempo, a categoria espacial no cordel O dinheiro (o testamento do


cachorro) divide-se em espaço linguístico, que abarca o lugar axial do discurso, onde o
enunciador se posiciona em relação à enunciação, e em espaço tópico, caracterizado pela
instauração, no enunciado, de pontos referenciais em torno dos quais o enunciador e os
interlocutores se situam e localizam os objetos que os rodeiam.
Instituído sobre os revezes da memória, o espaço linguístico, no texto em questão,
constitui-se a partir da sucessão e encadeamento de três enunciações. Em cada instância
enunciativa, a relação entre aquele que enuncia e o meio em que se situa muda
consideravelmente. Na primeira, ao recuperar os fatos que se encontram na esfera da memória
e, por conseguinte, interagindo com o tempo passado, o enunciador se instaura,
linguisticamente, por meio de uma debreagem, ou seja, mantém-se distante da cena
enunciativa que começa a projetar-se em sua voz. É a partir desse momento que se inicia o
processo de encapsulamento do próprio enunciador, visto que, por situar-se no espaço do
aqui, esse regate mnemônico se torna possível e não contraria às próprias leis da física.
Observe os seguintes trechos:

“τ dinheiro neste mundo”


“Essas questões muito sérias”
“Eu já vi narrar um fato/ que fiquei admirado”
“τ meu informante disse-me/ que o caso tinha se dado”

O uso dos dêiticos este e essas, apesar de remeterem a pontos espacialmente distintos
em relação ao enunciador, fazem com que este esteja preso, por intermédio de uma
embreagem, a uma enunciação presente que, por sua vez, dá origem a uma voz que se
desenvolve no espaço do lá. Esta ganha feições veridctóricas ao ser colocada, apenas
ilusoriamente, numa outra cena enunciativa historicamente determinada. Ademais, a
expressão eu já vi narrar um fato, ao mesmo tempo que marca a fusão do sujeito com espaço
da enunciação, assinala o seu distanciamento em relação ao espaço do enunciado.

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O espaço tópico permite situar e caracterizar os atores que se assentam no enunciado.
Ocorre por meio de pontos referenciais que encerram implicações sócio-culturais e
linguisticamente argumentativas, deixando transparecer determinadas intenções do sujeito
enunciador. Apresentam essas características: o mundo (parte humanamente corrompida da
Terra); cemitério e a Igreja.
O mundo constitui o meta-espaço. Todos os atores o ocupam e nele se constroem,
incorporando, inclusive, os outros espaços. Essa demarcação espacial é utilizada com um
duplo propósito. Inicialmente está relacionado a uma visão cultural segundo a qual a Terra
está habitada por pessoas de má índole, que representam a maioria, e por indivíduos justos e
incorruptíveis, que compreendem uma pequena minoria. Fazem parte da parcela “podre” da
sociedade as autoridades religiosas, jurídicas e todas aquelas que têm a ambição como valor
principal. Em contraposição, o enunciador e os seus semelhantes (aqueles que respaldam suas
ações na honestidade) pertencem à parcela benevolente desse mundo. Observem os trechos a
seguir:

“τ homem tendo dinheiro “τ bacharel por dinheiro


Mata até o próprio pai É macaco por banana”
A justiça fecha os olhos “porque perante o dinheiro
A polícia lá não vai” Tudo ali se torna mole
“A moça tendo dinheiro Porque não há objeto
Sendo feia como a morte Que sobre os seus pés não
Caracteriza-se, enfeita-se role.”
Sempre melhora de sorte.”

Outra conotação atribuída ao espaço mundo encontra-se na dualidade entre o mundo


celeste, ocupado por Deus e o mundo terreno, habitado pelos homens. Estes se desviam do
bom caminho quando se sujeitam ao apego monetário, quando elegem o dinheiro, tanto como
o ponto de partida para suas ações terrenas quanto como o alvo a ser atingido. Nesse sentido o
dinheiro aparece como o próprio sentido da vida. Todavia, Deus se revela como o único ser
que não se deixa levar pelo dinheiro, visto que seus objetivos vão de encontro à valorização
do materialismo, e sim, procura a salvação da humanidade, fazendo-a acreditar que os valores
religiosos se sobrepõem aos valores da carne.

“τ dinheiro só não pode


Privar o dono de morrer,
Parar o vento no ar
E proibir de chover.
O resto se torna fácil
Para o dinheiro fazer.”

Como se percebe no trecho acima que o poder do dinheiro sucumbi ao poder de Deus
que aparece figurativizado nas ações que não podem sofrer intervenção do homem, como, por
exemplo, a morte, o movimento dos ventos e o caráter vivificador das chuvas.
É uma cultura no nosso país que, após a morte, a alma precisa ser velada com rituais
litúrgicos, para que encontre a salvação e os corpos precisam ser sepultados em locais
apropriados, os cemitérios, uma vez que a morte é considerada uma passagem para a vida
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eterna. Vale salientar, no entanto, que mesmo a morte, que é um acontecimento comum entre
todos os povos, quaisquer que sejam sua raça, sua idade ou origem, mesmo assim, a questão
monetária se apresenta como um fator diferenciador, ou seja, nas famílias cujo poder
aquisitivo se mostra elevado, estas, mesmo após o falecimento de algum de seus entes,
possuem um tratamento diferenciado. Essa questão é validada pela atitude da Igreja que, para
aqueles que possuíam vários bens e dizimavam generosas quantias, seus corpos podiam até
ser sepultados dentro do próprio templo. Entra aí, então, o caráter ambicioso da instituição
católica que é criticada pelo enunciador, pois na narrativa, o vigário aceita realizar o enterro
de um cachorro com todos os rituais dignos de um humano por uma acentuada quantia em
dinheiro. Eis os excertos que asseveram:

“Leve-o para o cemitério, “E lá chegou o cachorro


Que vou encomendar O dinheiro na frente,
Isto é, traga o dinheiro Teve momento o enterro,
Antes dele se enterrar, Missa de corpo presente,
Estes sufrágios fiados Ladainha e seu rancho
É factível não salvar.” Melhor do que certa gente.”

No folheto O dinheiro (o testamento do cachorro), evidencia-se a presença de temas


que, correlacionados às figuras, alicerçam uma reflexão sobre algo muito presente na
sociedade, que é a busca descomedida pelo dinheiro e o poder que este exerce sobre as
pessoas. O enunciador, então, faz uso do contexto social nordestino para apresentar um
discurso fundamentado na crítica à ambição, que se apresenta como o tema que permeia toda
a narrativa, pois o dinheiro, figura que recobre esse tema, exerce grande influência no
mecanismo da sociedade, fazendo com que esta se organize e atue segundo os seus domínios,
mesmo que isso viole as leis jurídicas que a regem. Os exemplos comprovam a afirmativa:

“τ dinheiro neste mundo


Não há força que o debande,
Nem perigo que o enfrente,
Nem senhoria que o mande.
Tudo está abaixo dele
Só ele é quem é o grande.”

“Porque só mesmo o dinheiro


Tem maior utilidade,
É o farol que mais brilha
Perante a sociedade.
O código dali é ele
A lei é a sua vontade.”

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Como tema decorrente da ambição, surge a corrupção, representada pelas
atitudes de homens que, mesmo possuidores de uma estável vida financeira, tais como
juízes e procuradores, como demonstra o texto, são impulsionados por uma incessante
busca por uma maior aquisição monetária, o que os leva a corromper-se em favor do
dinheiro e, para isso, realizam ações totalmente condenáveis consoante às leis que
administram a sociedade, uma vez que, mesmo os culpados de crimes são absolvidos
devido ao elevado poder aquisitivo que detêm, porquanto disponibilizam elevadas
quantias monetárias para os julgadores da causa a fim de que eles votem pela sua
inocência. “Cédulas de quinhentos fachos” figurativiza esse tema. τs trechos são
demonstrativos:

“τ homem tendo dinheiro


Mata até o próprio pai,
A justiça fecha os olhos
A polícia lá não vai,
Passam-se cinco ou seis meses
Vai indo o processo cai.”
“Compra cinco testemunhas
Que depõem a seu favor,
Aluga dois escrivães
E compra o procurador,
Faz dois doutores de prata,
Pronto o homem, meu senhor”
“Essas questões muito sérias
Que vão para o tribunal,
Ali exigem os papéis
Que levem prova legal,
Cédulas de quinhentos fachos,
É o papel principal.”

O tema estima representa o sentimento que o ator inglês nutre pelo seu cachorro
que havia morrido, que o leva a procurar o padre para que ele realizasse o sepultamento
do animal com todas as pompas religiosas nem que, para isso, tivesse que pagar uma
alta soma em dinheiro, uma vez que o considerava como um ente querido. “Um milhão”
é a figura desse tema. Eis o trecho:

“Um inglês tinha um cachorro


De uma grande estimação
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse então:
Mim enterra esse cachorra
Inda que gaste um milhão .”

Religiosidade é um tema que aparece na atitude do Inglês, que se mostra uma


pessoa religiosa por querer que seu estimado cachorro fosse enterrado com rituais
católicos. Esse mesmo tema é utilizado pelo enunciador como uma forma de criticar a
ambição presente entre os integrantes do sistema eclesiástico, que, no texto, são
representados pelo padre e pelo bispo, uma vez que se desviam dos preceitos religiosos

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da instituição católica a qual pertencem. No que concerne ao vigário, este se corrompe
no momento em que celebra o sepultamento de um animal em troca de uma
considerável quantia em dinheiro, o que é totalmente condenável pela Igreja. E o bispo
também se corrompe, pois, no momento em que vai utilizar-se de sua superior posição
hierárquica para repreender o vigário, ao ser informado da quantia paga pelo inglês para
a realização da cerimônia e do valor a ele destinado, troca imediatamente de opinião e
passa a apoiar a atitude de seu inferior. Os exemplos a seguir comprovam: lá chegou o
cachorro

O dinheiro foi na frente,


Teve momento o enterro,
Missa de corpo presente,
Ladainha e seu rancho
Melhor do que certa gente.”
(...)
“Mandou chamar o vigário
Pronto, o vigário chegou
Às ordens, sua excelência...
O bispo lhe perguntou:
Então que cachorro foi,
Que seu vigário enterrou?”
“Foi um cachorro importante
Animal de inteligência
Eles antes de morrer
Deixou à vossa excelência
Dois contos de réis em ouro...
Se errei, tenha paciência.”
“σão foi erro, Sr. Vigário,
Você é um bom pastor
Desculpe eu incomodá-lo
A culpa é do portador,
Um cachorro como este
Já vê que é merecedor.”

Um outro tema diretamente ligado à ambição é o interesse, principalmente em


relação ao casamento, pois, relata o texto, mesmo moças não possuidoras de uma beleza
exterior que agrada aos olhos masculinos, ainda assim, se estas apresentarem uma
favorável situação financeira, conseguem pretendentes e um bom casamento. Essa
situação era muito comum nas cidades interioranas da região do Nordeste, pois as
moças filhas de coronéis ou de destacados fazendeiros possuíam bons dotes, o que
atraía os rapazes para se casarem com elas. A passagem a seguir comprova a afirmativa:

“A moça tendo dinheiro


Sendo feia como a morte
Caracteriza-se, enfeita-se,
Sempre melhora de sorte,
Mas de mil aventureiros
A desejam por consorte.”

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Considerações Finais

No folheto analisado, o Sujeito enunciador aparece, no primeiro momento,


próximo do enunciado quando se apresenta como um Sujeito de um saber sobre os
valores dos atores no enunciado. No segundo momento, ao narrar uma história que se
encontra em sua memória, ele se mantém afastado, debreado do espaço do enunciado.
O folheto de cordel ostenta uma variedade temática e, uma delas, é uma forte
crítica ao sistema socioeconômico existente. Pode-se considerar as narrativas
ideologicamente marcadas por valores que não dignificam o homem, como a ambição e
o amor descomedido ao dinheiro. Apesar do texto analisado ter sido escrito numa época
remota, percebe-se que a busca por grandes quantias monetárias não advém da
atualidade, como consequência do capitalismo e, sim, inerente à personalidade humana.
O poeta expõe a história do testamento do cachorro para criticar esse sistema e as
atitudes de alguns eclesiásticos que, movidos pela ambição, “esquecem” dos votos de
fidelidade e zelo dos preceitos religiosos e realizam ações condenáveis pelos dogmas da
Igreja católica, como enterrar um animal com rituais que são direcionados aos humanos.
Tais críticas são ratificadas pelo percurso temático figurativo.

Referências

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 1990.
BARROS, Leandro Gomes de. O dinheiro (o testamento do cachorro). Fortaleza:
Tupynanquim, 2005.
BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. O Discurso Semiótico. In: ALVES,
Eliane Ferraz et alii (org). Linguagem em Foco. João Pessoa: Editora Universitária/
Ideia, 2001. pp. 133-157.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2001.

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