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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

Prof. Dr. Natalino Salgado Filho


Reitor

Prof. Dr. Marcos Fábio Belo Matos


Vice-Reitor

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO


Prof. Dr. Sanatiel de Jesus Pereira
Diretor

CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Arkley Marques Bandeira
Prof. Dr. Luís Henrique Serra
Prof. Dr. Elídio Armando Exposto Guarçoni
Prof. Dr. André da Silva Freires
Prof. Dr. Jadir Machado Lessa
Profª. Dra. Diana Rocha da Silva
Profª. Dra. Gisélia Brito dos Santos

Capa
Stephane Serejo

Projeto Gráfico
Stephane Serejo

Revisão
Os autores

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

No percurso linguístico [recurso eletrônico]: reflexões e práticas sobre cognição, discurso,


variação e linguística / Ana Lúcia Rocha Silva, Georgiana Márcia Oliveira Santos, Mônica
Fontenelle Carneiro (organizadoras). — São Luís: EDUFMA, 2020.

187 p.: il.

Modo de acesso: World Wide Web

ISBN: 978-65-86619-59-1

1. Linguística – análise do discurso 2. Linguística - cognição I. Silva, Ana Lúcia Rocha. II.
Santos, Georgiana Márcia Oliveira. III. Carneiro, Mônica Fontenelle.

CDD 410
CDU 801.56

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Luciana Palácio de Morais- CRB 13/585
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO

PREFÁCIO

1- A FALA DA MULHER SURDA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA


REPRESENTADA POR OUTRO
Ana Lúcia Rocha Silva; Monica Fontenelle Carneiro

2- ENUNCIAÇÃO: DISCUSSÕES TEÓRICAS, MECANISMOS LINGUÍSTICOS E


TEXTUAIS
Elizabeth Gonçalves Lima Rocha; Leonildes Pessoa Facundes; Lidiany Pereira dos Santos

3- UMA CARTILHA DE ORIENTAÇÃO DO TRABALHADOR SOB A PERSPECTIVA


DA METÁFORA CONCEPTUAL
Jaciara Carvalho Costa; Monica Fontenelle Carneiro

4-BRADOU: UM GLOSSÁRIO DE TERMOS E SOCIOTERMOS DO CORPO DE


BOMBEIROS MILITAR DO MARANHÃO.
José Claudio Bezerra Pereira; Georgiana Márcia Oliveira Santos

5- A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS: UM ESTUDO


DO CAMPO SEMÂNTICO PROFISSÕES EM SÃO LUÍS-MA
Matheus da Silva Lopes; Zuleica de Sousa Barros

6- O BILINGUISMO E A RECONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE LINGUÍSTICA EM


PRAIA-CABO VERDE
Ayla Cristina Lopes Moura; Georgiana Márcia Oliveira Santos

7-A PLURALIDADE DA LIBRAS: EXPERIÊNCIA TRILÍNGUE (YORUBÁ-PORTUGÛES-


LIBRAS) NA EDUCAÇÃO
Wermerson Meira Silva; João Diógenes Ferreira dos Santos

8- QUILOMBO URBANO LUDOVICENSE: O LÉXICO DOS BAIRROS DA LIBERDADE


E FÉ EM DEUS EM SÃO LUÍS/MA
Laryssa Francisca Moraes Porto; Georgiana Márcia Oliveira Santos

9- A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS


Naysa Christine Serra Silva; Thelma Helena Costa Chahini

10- VARIAÇÃO FONÉTICA NO MUNICÍPIO DE PINHEIRO-MA: UMA ANÁLISE


SOCIOLINGUÍSTICA DA REALIZAÇÃO DO /D/ E /T/
Francimone da Graça Barros Dutra; Georgiana Márcia Oliveira Santos

11- O ENSINO DO LÉXICO DA LÍNGUA PORTUGUESA PARA NATIVOS DIGITAIS


Alba Catarina Gama Costa Penha; Veraluce da Silva Lima

12- LÍNGUA PORTUGUESA X LÍNGUA ESTRANGEIRA: PERSPECTIVANDO A


ATUAÇÃO DO PROFESSOR EM SALA DE AULA
Renan Pires Azevedo; Manuela Maria Cyrino Viana

13- TECNOLOGIA E EDUCAÇÃO: AS TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E


COMUNICAÇÃO A SERVIÇO DO MULTILETRAMENTO DE CRIANÇAS DO 4º ANO
DO ENSINO FUNDAMENTAL
Athayanne Yngrith Carvalho Baia; Thays Ingrid Carvalho Baia; Jeanne Ferreira de Sousa da Silva

SOBRE AS ORGANIZADORAS
4

APRESENTAÇÃO

Em meio a uma situação de pandemia que tem provocado um caos na saúde e na


economia mundial, a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em parceria com
Instituições de Ensino Superior, dentre as quais a Universidade Estadual do Maranhão
(UEMA), a Universidade Federal do Piauí (UFPI) e a Universidade Estadual do Piauí
(UESPI), realizou o I Congresso Internacional de Ficção Especulativa (CONIFE) e II
Congresso Internacional de Ficção, Identidade e Discurso (CONIFID), no modo online,
no período de 26 a 28 de agosto de 2020. O evento foi uma iniciativa do Grupo de
Pesquisa FICÇA – Ficção Científica, Gêneros Pós-Modernos e Representações Artísticas
na Era Digital, do Programa de Pós-Graduação em Letras (PGLetras) e do Departamento
de Letras (DELER), ambos da UFMA.
O evento contou com a participação de graduandos, graduados, mestrandos,
mestres, doutorandos, e doutores, todos com apresentação de trabalho, além de pessoas
interessadas nos eixos enfocados, nos quais os debates foram muito profícuos. Os artigos
completos foram reunidos em três livros dedicados aos percursos trilhados: quer
literários, discursivos ou linguísticos.
Este livro, em especial, volume dessa trilogia voltado para os estudos linguísticos,
oferece uma heterogeneidade de temas abordados que propiciam ao leitor viagens
instigantes e enriquecedoras pelo universo do conhecimento científico, mais
especificamente aquelas no âmbito da cognição, do discurso, da variação e do ensino.
Numa breve descrição dos seus treze capítulos constitutivos, destacaremos
aspectos que os caracterizam e demonstram sua relevância.
No primeiro capítulo – A fala da mulher surda vítima de violência doméstica
representada por outro – as autoras analisam as incidências do dialogismo nas vozes não
marcadas e não visíveis, contudo, evidenciadas nos discursos constantes em um Boletim
de Ocorrência, seguido do seu respectivo Inquérito Policial para revelar as diferentes
formas de representação do discurso outro.
O capítulo dois - Enunciação: discussões teóricas, mecanismos linguísticos e
textuais – traz, por sua vez, apresentadas por suas autoras, discussões teóricas
convergentes e divergentes entre os autores: Benveniste e Culioli, sobre o tema
mecanismos linguísticos de regência verbal.
Em Uma cartilha de orientação do trabalhador sob a perspectiva da metáfora
conceptual, o terceiro capítulo, expressões linguísticas metafóricas presentes em um
material instrucional dirigido a trabalhadores da indústria química são analisadas pelas
autoras com o objetivo de evidenciar como esses indivíduos se manifestam
metaforicamente sobre o seu espaço laboral, as suas relações com colegas e com o
trabalho em si.
No capítulo quatro, intitulado: Bradou – um glossário de termos e sociotermos do
Corpo de Bombeiros Militar do Maranhão, os autores realizam um estudo sobre a
terminologia dessa corporação, evidenciando a importância, as peculiaridades e a
variação dessa terminologia em terras maranhenses.
No quinto capítulo, A variação linguística na língua brasileira de sinais: um
estudo do campo semântico PROFISSÕES em São Luís - MA, os autores investigam a
5

variação linguística em Libras ocorrida no campo semântico profissões com o objetivo


de analisar os fatores extralinguísticos condicionantes desse fenômeno nas variantes
catalogadas.
O bilinguismo e a reconstrução da identidade linguística em Praia - Cabo Verde,
o capítulo seis, apresenta uma pesquisa em que as autoras analisam criticamente os usos
tanto da Língua Portuguesa quanto do Crioulo cabo-verdiano na capital da Ilha de
Santiago, Praia, para a reafirmação da identidade linguística africana dos nativos de Cabo
Verde.
No capítulo sete, A pluralidade da LIBRAS: experiência trilíngue (Yorubá-
Português-LIBRAS) na Educação Básica, os autores apresentam alguns sinais-termos
pertencentes ao universo sociocultural e religioso afro-brasileiro e africano, tendo em
vista a premente necessidade de inclusão linguística e cultural da comunidade surda
mediante o conhecimento e uso do léxico trilíngue - Yorubá-Portugûes-Libras.
As autoras do capítulo seguinte, o oitavo, sob o título Quilombo urbano
ludovicense: o léxico dos bairros da liberdade e Fé em Deus em São Luís/MA, voltam-se
para a visão singular dos quilombos urbanos da Liberdade e Fé em Deus, refletidas nas
representatividades conceptuais e denominativas dos quilombolas urbanos desses bairros.
O capítulo nove, intitulado A Variação Linguística da Língua Brasileira de Sinais,
as autoras destacam a natureza heterogênea da Língua Brasileira de Sinais, por apresentar
sinalizações diversas para um mesmo item nos diferentes grupos sociais e/ou localidades
de uso, afirmando haver uma contraposição ao mito de que há sinais certos e sinais
errados na Libras e apontando a variação linguística das sinalizações.
No décimo capítulo, Variação fonética no município de Pinheiro – MA: uma
análise sociolinguística da realização do /d/ e /t/, as autoras realizam uma investigação
sobre a (des)palatização dos fonemas /t/ e /d/ diante de /I/ e de /i/ em Pinheiro, a fim de
confirmarem ou refutarem a ocorrência de tal fenômeno nesse município maranhense.
Nossa sociedade, por excelência, tecnológica tem levado os pesquisadores a se
preocuparem com as ferramentas disponíveis no mundo digital para o ensino. Com base
nesse interesse, os três últimos capítulos desta obra apresentam investigações relativas às
contribuições das tecnologias digitais para o processo de ensino e aprendizagem.
Enquanto no capítulo onze, o Ensino do léxico da língua portuguesa para nativos digitais,
as autoras apontam possibilidades de modernização e adequação dos recursos disponíveis
para a eficácia do processo de ensino-aprendizagem desse público em especial, em ambos
os capítulos doze e treze, intitulados Língua Portuguesa x Língua Estrangeira:
perspectivando a atuação do professor em sala de aula e Tecnologia e Educação: as
tecnologias digitais de informação e comunicação a serviço do multiletramento de
crianças do 4º ano do ensino fundamental, respectivamente, seus autores conduzem o
leitor a reflexões sobre o fazer pedagógico na era digital.
Depois dos destaques relacionados nesta apresentação, fica o convite à leitura dos
trabalhos que compõem este volume organizado com base nos percursos linguísticos que
marcaram o I CONIFE e II CONIFID.
São Luís, novembro de 2020.

As organizadoras
Ana Lúcia Rocha Silva
Georgiana Márcia Oliveira Santos
6

Monica Fontenelle Carneiro


PREFÁCIO

No percurso linguístico, contextualizamos Ferdinand de Saussure

D´une certaine manière, on peut considerer que


les theories linguistiques ont pour objet de
determiner ce qui se passe entre le domaine des
sons (ou des autres moyens d´expression) et le
domaine du contenu ou du sens. La principale
notion proposée à cet effet est celle de signe.
(Bronckart, 2019)

É, a partir do entendimento exposto por Bronckart nessa epígrafe, ao falarmos sobre


teorias da Linguística, que iniciamos nossas reflexões e trazemos para este espaço uma
provocação ou um convite à reflexão, reconhecendo que o alvo pode ser mostrar a
necessidade de pensar a relação entre o domínio dos sons (ou dos outros meios de
expressão), o domínio do conteúdo, ou do sentido, e a tríade também apontada por
Saussure - língua, fala e discurso.
Inicialmente, alinhadas ao posicionamento bronckartiano e aos estudos
saussureanos, ressaltamos o signo e, posteriormente, remetemo-nos às unidades de
análise da linguística - a língua, a fala e o discurso, como norte para uma reflexão
produtiva sobre parte do percurso linguístico anunciado.
O livro intitulado No percurso linguístico: reflexões e práticas sobre cognição,
discurso, variação linguística e ensino reúne resultados de pesquisas científicas
apresentadas em um evento de grande porte – I CONIFE e II CONIFID – realizado em
uma universidade pública nordestina – a UFMA. Ele, até mesmo pelo seu título, nos
convoca a considerar o percurso da linguística. E, ao nos alinharmos a este percurso,
somos quase que levados a trazer à tona pensamentos saussureanos e equívocos históricos
que fazem parte deste percurso e que inevitavelmente mobilizamos.
Observamos no livro que, mesmo com características e objetivos próprios de cada
autor ou de cada capítulo, há um ponto de convergência nesse percurso que une essa
coletânea, diretamente ou não - o estatuto do signo - impregnado em cada particularidade
linguística e em cada pesquisa realizada.
Como, então, não trazer para a reflexão um dos expoentes da linguística - Ferdinand
de Saussure – ao se remeter à categoria de análise signo perfeitamente alinhada aos três
pontos que compõem o livro (cognição, discurso, variação linguística e ensino) se, no
próprio título do livro, há alusão ao percurso linguístico, onde essa categoria saussureana
se movimenta diferentemente?
A reflexão sobre signo, em qualquer um dos pontos citados, contribui para entender
as relações feitas pelos autores dos artigos. Nesse sentido, salientamos que essas relações
não acontecem da mesma maneira entre a língua portuguesa e a língua brasileira de sinais;
da mesma forma, as palavras também podem mudar de significado durante os anos. Em
função de estudos realizados, muitos mitos em torno desse linguista estão sendo desfeitos.
Um dos mais problemáticos é denominá-lo o pai do estruturalismo. Por essa razão, é
importante repensar o conceito de signo e trazê-lo para o seio da Linguística Aplicada, da
contemporaneidade, convocando-nos a atualizar as referências.
7

Ao considerarmos o norte dado pelas organizadoras do livro e a pluralidade


apresentada nesta obra, aproximamos as reflexões saussureanas registradas em seus
manuscritos, como pontos de articulação, para defendermos um percurso da linguística.
O autor suíço falava em uma tríade presente nas discussões sobre a linguística composta
de língua, fala e discurso. Ela tem um papel importante porque derruba o paradigma de
que Saussure era estruturalista. Este autor pensava a língua, o signo como unidade de
análise da linguística. Ele percebeu a língua como um objeto de princípio de uma
linguística geral e como uma única propriedade da linguagem verbal da espécie humana,
sendo a fala e o discurso como práticas linguageiras.
Portanto, pensar Saussure de maneira diferente ou mais ampliada é trazer, mesmo
que não diretamente, tais elementos para a discussão. Isso pode acontecer quando
realizamos uma discussão a partir de investigações com foco na comunicação realizada
através da Língua Brasileira de Sinais (Libras); ou em pesquisas que analisam o discurso
metafórico; ou ainda em situação em que observamos a variação da língua em
movimento, a depender do seu contexto social, histórico, ou de outra natureza, mesmo
que indiretamente estejamos tratando desse conceito.
A linguagem é a possibilidade das línguas como produtos culturais, a visao que
Humboldt vislumbrou e Saussure descreveu com palavras que inventaram novos
conceitos, ainda por descobrir e pesquisar.

Eulália Leurquin e Dora Riestra


Universidade Federal do Ceará, Brasil e
Universidad Nacional de Rio Negro, Argentina
8

1
A FALA DA MULHER SURDA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
REPRESENTADA POR OUTRO

Ana Lúcia Rocha Silva1


Monica Fontenelle Carneiro2

1. INTRODUÇÃO

Com o advento das ideias bakhtinianas, os estudos da linguagem consolidaram-se


como uma teoria no âmbito da análise do discurso que, de acordo com Brait (2006),
fundamenta-se no dialogismo proposto por Bakhtin (1993, 2002, 2003), uma das figuras
reconhecidas como expoentes do mundo intelectual do último século que, tendo vivido
na antiga União Soviética, desenvolveu seus estudos em um cenário de transformações
sociopolíticas intensas e sua obra, ao transpor as fronteiras nacionais, provocou drásticas
modificações no quadro teórico vigente no mundo ocidental.
Segundo esse grande filósofo, pensador e linguista russo, a linguagem se constitui
um meio de interação humana que se caracteriza por ser atravessada por múltiplos
discursos, ou seja, por diversas vozes sociais inter-relacionadas, reproduzindo-se,
parodiando-se, entrecruzando-se, polemizando-se, excluindo-se, enfim, ora convergindo,
divergindo entre si, em permanente relação de natureza dialógica.
O discurso dialógico de Bakhtin contrapõe-se, assim, ao monológico, uma vez que
é entendido como uma ação que se dá entre interlocutores, em determinado contexto
pleno de outras vozes, discursos e alteridades. Com base nesse entendimento, Bakhtin
ressalta que nossa ideia, independentemente de sua natureza, tem sua origem e
constituição no processo de interação, em permanente luta com os pensamentos dos
outros, encontrando, portanto, seu reflexo nas manifestações verbais do nosso
pensamento. (BAKHTIN, 2003).
Assim, o dialogismo proposto por Bakhtin é mais que uma simples característica
da linguagem, pois é entendido como uma visão de mundo. É praticamente impossível
discutir, analisar, compreender o mundo sem as relações estabelecidas por ele com a
história, a sociedade e o homem. Bakhtin entende a linguagem como permeada de
constantes relações vinculadas ao julgamento de valor daqueles participantes de um
processo comunicativo.

1
Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará, Mestra em Linguística pela Federal do Ceará,
Especialista em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Maranhão, Professora do Departamento de
Letras e dos Programas de Pós-Graduação em Letras -PGLetras e PGLB - assim como do Programa de Pós-
Graduação em Direito, todos da Universidade Federal do Maranhão.
2
Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará, Mestra em Linguística pela Federal do Ceará,
Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino das Línguas Materna e Estrangeiras e em Língua Inglesa
pela Universidade Federal do Maranhão, Professora do Departamento de Letras e dos Programas de Pós-
Graduação em Letras -PGLetras e PGLB - assim como do Programa de Pós-Graduação em Direito, todos
da Universidade Federal do Maranhão.
9

Ancorados nesse entendimento, diversos estudos linguísticos têm alcançado


difusão, dentre os quais podemos falar do discurso citado, das marcas linguísticas da
enunciação, da alteridade no discurso, da polifonia, entre outros.
Nossa proposição é analisarmos, neste estudo, as incidências do dialogismo nas
vozes, evidenciadas nos discursos constantes em um Boletim de Ocorrência seguido do
Inquérito Policial. O nosso recorte volta-se para as formas de representação do discurso
outro (doravante RDO).
As evidências que sinalizam a presença de vozes não marcadas e não visíveis,
contudo, possíveis de serem ouvidas, amalgamadas no discurso que ora se apresenta, não
são somente observadas através de marcas linguísticas; porém sem elas não haveria um
discurso atual.
Abordaremos, portanto, nesta investigação, a situação da mulher surda vítima de
violência doméstica, quando busca proteção junto ao poder público, surgindo,
obviamente, a necessidade de se comunicar com os agentes públicos para narrar os fatos
ocorridos e obter ajuda e punição do agressor.
Este trabalho está dividido em 6 partes, excluídas esta introdução, a conclusão, as
referências e os anexos. São elas: 1) Da proteção legal à mulher contra a violência
doméstica e familiar, 2) A população feminina surda e a acessibilidade, 3) Considerações
sobre o dialogismo, alteridade e heterogeneidade; 4) O dialogismo visto na representação
do discurso outro, 5) Sobre a pesquisa e os procedimentos metodológicos adotados, e, por
fim, 6) A representação do discurso outro nas falas das mulheres surdas vítimas de
violência doméstica e familiar: análises e resultados.
Passemos à primeira seção, na qual abordaremos o quadro legal de proteção à
mulher vítima de violência doméstica.

2. DA PROTEÇÃO LEGAL À MULHER CONTRA A VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR

A Lei Federal nº 11.340 de 07 de agosto de 2006, denominada Lei Maria da


Penha, nome recebido em homenagem à farmacêutica Maria da Penha e a luta por ela
enfrentada para ver seu agressor condenado, é um marco normativo em nosso país no que
diz respeito ao combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa lei
coaduna-se com a Constituição Federal de 1988, que indicava que o Estado criasse e
assegurasse mecanismos que coibissem a violência ocorrida entre as relações familiares.
Esse instituto normativo foi oriundo de duas Convenções Internacionais, quais sejam: a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
da ONU (1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher da OEA (1994).
Dentre as contribuições decorrentes dessa lei, destacamos: a prisão do suspeito de
agressão; a violência doméstica passar a ser um agravante para aumentar a pena; a
impossibilidade de substituição da pena por doação de cesta básica ou multas; a ordem
ao agressor para de afastamento da vítima e seus parentes; a assistência econômica no
caso da vítima ser dependente do agressor.
10

Constatamos, portanto, que, com o advento da Lei Maria da Penha, têm sido
criados vários mecanismos de assistência e proteção às mulheres em situação de violência
doméstica e familiar.
No bojo de seus artigos, destacamos o artigo 3º, parágrafo 1º que, como vemos,
garante expressamente às mulheres vítimas de violência doméstica as condições para o
exercício efetivo do direito ao acesso à Justiça.

Art.3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos


direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à
moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à
liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
§ 1º O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos
humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no
sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.

A lei ainda determina que se estabeleçam políticas públicas que visem coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, por meio de um conjunto articulado de
ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não
governamentais, tendo por diretriz maior a integração operacional do Poder Judiciário,
do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública,
assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.
Ressaltamos, também, o art. 11, inciso V, que teve uma nova redação, através da
Lei nº. 13.894 de 2019.

Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e


familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:
V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços
disponíveis, inclusive os de assistência judiciária para o eventual ajuizamento
perante o juízo competente da ação de separação judicial, de divórcio, de
anulação de casamento ou de dissolução de união estável.

A lei confere, desse modo, competência à Autoridade Policial, no sentido de


informar à ofendida do direito que lhe é garantido, ou seja, que a Defensoria Pública deve
patrocinar seus direitos no plano criminal, cível e, sobretudo, na área familiar; pleiteando
a não só guarda dos filhos, se houver, mas também a pensão alimentícia, a partilha de
bens e o divórcio.
Na próxima seção, nosso foco é a mulher surda em situação de violência
doméstica e as condições de acessibilidade.

3. A POPULAÇÃO FEMININA SURDA E A ACESSIBILIDADE

A Lei Maria da Penha, hoje, é o principal normativo que traz mecanismos


específicos a serem adotados pelos órgãos públicos para proteger a mulher vítima de
11

violência doméstica e familiar. Dessa forma, está inclusa, também, a mulher surda.
Vejamos este artigo que segue:

Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação


sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as
oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física
e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

A diferença está na dificuldade de comunicação entre a vítima e os órgãos


competentes, dificuldade essa que, muitas vezes, faz com que a vítima prefira desistir de
seus direitos, calando sua dor, escondendo seu sofrimento.
Sabemos que os surdos preferem as relações endogâmicas (casamento com
membros da mesma comunidade), isso, muito frequentemente, por temerem o
preconceito ou mesmo a exclusão do convívio com seus iguais.

Os membros da comunidade creem, tal como os membros de outras minorias


cultuais, que o casamento deve ser com outro membro pertencente à mesma
minoria: o casamento com uma pessoa ouvinte é totalmente desaprovado. Ou
seja, ainda permanece, implicitamente, o medo do preconceito. [...]
(SANTANA e BERGAMO, 2005, p. 576).

Os anseios peculiares às mulheres ouvintes são os mesmos da mulher surda.

No caso dos surdos, a maioria deseja constituir família com outros surdos. [...]
A mulher surda procura ser valorizada e respeitada por ser mulher e,
principalmente, por ser surda. Ser mulher e ser surda são duas situações que
implicam discernimento sobre direitos de igualdade social. (MARTINS, 2008,
p. 47-48)

3.1 A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS – LIBRAS

Para essa forma de acessibilidade inerente à população surda, retomamos


algumas palavras de Foucault:

Gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou


de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um
léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplos precisos,
que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços
aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um
conjunto de regras, próprias da prática discursiva (FOUCAULT, 2009. p. 54-
55)

A ideia de Foucault nesse excerto, ampara-nos quando pensamos em falar da


LIBRAS que sempre foi usada pela maioria das pessoas surdas; o que nos leva a dizer
12

que o discurso das pessoas surdas sempre existiu. Porém hoje, com o advento da LIBRAS
os laços que impediam os entendimentos dos discursos entre os surdos e os ouvintes
foram desfeitos.
A história da nossa LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais está diretamente
associada à história dos surdos no nosso país. Mistura- se com a história dos surdos no
Brasil. Em decorrência dos movimentos europeus pelo direito dos surdos à educação, algo
que lhes era negado até o século XV, a convite de Dom Pedro II, em 1857, veio ao Brasil
o surdo francês Eduard Huet, figura de grande destaque na luta europeia, para fundar o
Imperial Instituto de Surdos Mudos, a primeira escola voltada para a educação de surdos,
que depois recebeu o nome de Instituto Nacional de Educação de Surdos –INES.
Foi também criada, então, a LIBRAS, junto com o mencionado instituto, como
resultado de uma combinação da Língua Francesa de Sinais e com aqueles gestos já
utilizados pelos surdos brasileiros. Apesar de sua aceitação e expansão no país, teve sua
difusão prejudicada pela proibição imposta, em 1880, como resultado de um congresso
em Milão sobre surdos.
Por conta da persistência do uso e da luta travada pela legitimidade da língua de
sinais, a LIBRAS recuperou seu espaço e a luta pelo seu reconhecimento voltou a ser
travada a partir de1993, com um projeto de lei que buscava regulamentar o idioma no
país. Quase dez anos depois, em 2002, a LIBRAS foi finalmente reconhecida oficializada
e sancionada pela Lei n.10.436, sendo regulamentada em 22 de dezembro de 2005, por
meio do Decreto n. 5626/ 2005.
Avanços consideráveis surgiram a partir dessa Lei, dentre os quais podemos citar
a inserção de LIBRAS como disciplina nos cursos de licenciaturas das IES. Porém,
mesmo sendo normatizada e seu uso difundido, ainda é restrito o número de intérpretes
de LIBRAS disponibilizados para o atendimento da população surda, nos casos em que
se faz necessário o seu acesso à Justiça.
A LIBRAS ainda não é bem difundida entre os ouvintes brasileiros. Mesmo assim,
há várias conquistas que foram registradas nos últimos anos, citamos as que se voltaram
para a regulamentação de leis com foco na propagação do uso da LIBRAS e para a
garantia dos direitos da comunidade surda. São elas: 1) Lei que define o uso de recursos
visuais e legendas na comunicação oficial do governo (2004); 2) Instituição do Dia
Nacional do Surdo, comemorado em 26 de Setembro, considerado o mês dos surdos
(2008) ; 3) a regulamentação da profissão de Tradutor e Intérprete de Libras (2010); 4) a
publicação da Lei Brasileira de Inclusão (ou Estatuto da Pessoa com Deficiência) cujo
foco é a acessibilidade em áreas como educação, saúde, lazer, cultura, trabalho etc.(2015);
e, mais recentemente, a publicação, pela ANATEL, de resolução com as regras para o
atendimento das pessoas com deficiência por parte das empresas de telecomunicações.
Passamos, a seguir, à discussão dos conceitos de dialogismo, alteridade e
heterogeneidade, assim como das relações que se estabelecem entre eles e as análises a
serem apresentadas neste estudo.

4. CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIALOGISMO, ALTERIDADE E


HETEROGENEIDADE
13

Reportando-nos ao dialogismo de Bakhtin que no centro de sua concepção de vida


o outro se apresenta como condição de vida do homem, o autor leciona que “tudo o que
me diz respeito, a começar pelo nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela
boca dos outros [da minha mãe, etc ] com a sua entonação, em sua tonalidade valorativo-
emocional” (Bakhtin, 2003, p.373).
Com o autor russo as ciências da linguagem passaram a teorizar sobre o
dialogismo das vozes e a polifonia. O romance de Dostoièvski foi o ponto de estudo de
Bakhtin, que sinalizou a tendência de Dostoiévski em pensar através de vozes; fato esse
que também pode ser verificado nos próprios artigos que ele publicou. Por meio dos
diálogos imaginários descritos nos artigos, podemos perceber o confronto das vozes.
Para Bakhtin (1929), o dialogismo é constitutivo da linguagem, ou seja, toda
linguagem, em qualquer área, está saturada de relações dialógicas. Segundo o teórico,

[...] a palavra é o produto da relação recíproca entre falante e ouvinte, emissor


e receptor. Cada palavra expressa o “um” em relação com o outro. Eu me dou
forma verbal a partir do ponto de vista da comunidade a que pertenço. O Eu se
constrói constituindo o Eu do Outro por ele é constituído. (BAKHTIN, 1929,
apud Koch, 1998: p.50).

Dessa forma, o diálogo, no sentido mais rigoroso do termo, constitui-se uma das
formas mais importantes da interação verbal. É possível, entretanto, compreender a
palavra “diálogo” em um sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz
alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que
seja. (Bakhtin, 2012, p. 117)
O dialogismo bakhtiniano que se valeu dos escritos de Dostoiévski, a princípio,
aponta para as vozes passadas e futuras; com o passar dos tempos essa noção se valeu de
outros sentidos. Por exemplo, a noção do “já-dito”, do “conhecido” que se atrela ao
dialogismo interdiscursivo. Outra referência à qual podemos fazer é a uma observação
peculiar a qualquer discurso - o comportamento do ouvinte - modernamente, é a
linguística voltada para o dialogismo interlocutivo.
Os estudos bakhtinianos sempre destacaram a importância dos “diferentes tipos e
graus de alteridade da palavra alheia e as diferentes formas de relação com ela -
estilização, paródia, polêmica etc.” (BAKHTIN, 2003, p.368). Essa concepção dialógica,
que fundamenta a ideia da relatividade da autoria individual, destaca, por sua vez, o
caráter coletivo e social da produção de discursos.
Com base nos pressupostos bakhtinianos, a alteridade caracteriza o ser humano.
Nesse entendimento, o dialogismo pode ser definido como a confrontação de expressões
e dos conjuntos de valores, viabilizando diferentes visões de mundo sobre determinado
tópico. O ser humano seria considerado, por conta de não existir isoladamente, um
intertexto, uma vez que a organização de suas experiências resulta de relações que se
entrecruzam com a experiência do outro e se interpenetram. Assim, podemos ressaltar
que os enunciados produzidos por um falante são, permanente e inexoravelmente,
atravessados pelo dizer do outro: assim, o discurso produzido pelo falante constitui e se
constitui também daquele discurso do outro que o atravessa, motivando o discurso do
"eu".
14

Os autores russos Bakhtin (2003) e Volochinov (2017) preocuparam-se em


lecionar sobre o enunciado, focando suas fronteiras entre as palavras próprias e as do
outro onde podem se confundir, causando um embate dialógico.
Volochinov (2017) destaca a inter-relação dinâmica entre o contexto narrativo e o
discurso do outro, focando os diferentes esquemas de transmissão do discurso: direto,
indireto e indireto livre, bem como suas variantes. Dessa forma, foge da análise das
formas do discurso citado para se deter na interação entre os discursos.
Bakhtin (1993) debruça-se nas variantes híbridas, com duplo sentido, duas
“caras”, ocorrências sintáticas do autor, elaboradas com as palavras do outro.
Ao analisar o romance “Problemas da Poética” de Dostoievski, Bakhtin apresenta
três classificações do discurso; dentre eles o discurso bivocal que é o “discurso orientado
para o discurso do outro”, especialmente o tipo ativo aquele que é reflexo do outro, que
influencia de fora para dentro; há uma estreita relação entre a palavra do outro com níveis
de influência deformante. Dos cinco tipos de discurso bivocal, destacamos a réplica do
diálogo; tendo em vista se identificar com o objeto deste trabalho.
Voltamo-nos agora, para a próxima seção, na qual abordamos, o dialogismo à luz
da representação do outro.

5. O DIALOGISMO VISTO NA REPRESENTAÇÃO DO DISCURSO OUTRO

O dialogismo é um estudo que se insere nas abordagens enunciativas, ou seja, na


linguística da enunciação. E quando se fala em enunciação, é imprescindível que
mencionemos um dos grandes nomes pioneiros nesse estudo - Émile Benveniste. O
objetivo maior desse autor foi compreender como passa o discurso da língua para a fala.
Nos seus entendimentos “é a palavra que assegura a comunicação”.
Com as evoluções das abordagens enunciativas, a francesa Jacqueline Authier-
Revuz, desponta com os estudos sobre as heterogeneidades enunciativas.
Neste estudo, pontuaremos sobre um dos seus entendimentos dentro do fio
discursivo.
Pois bem: Authier-Revuz (2004,2011) reporta-se às ideias de Volochinov sobre o
discurso citado - discurso no e sobre o discurso, daí expõe que os modos de representação
do discurso outro estão no plano da língua - uma atividade metalinguageira, ou seja,
discurso sobre o discurso. A autora sinaliza dois aspectos principais que envolvem esse
processo: a separação do plano linguístico daquele do discurso.
Sobre sua escolha pelo uso da expressão Representação do Discurso Outro (RDO),
ela assim se expressa:

é posicionar explicitamente o domínio visado no campo, englobante, da


metadiscursividade (discurso sobre discurso) com a especificação da alteridade
(do discurso outro) pela qual se distingue do auto representação do discurso se
fazendo.
Inscrever o domínio do “discurso outro” e dos modos de sua emergência no
discurso no campo da metalinguagem supõe, evidentemente, não perder de
15

vista - detendo-se nos “espantalhos” das metalinguagens lógicas, ou, no


interior da linguagem natural, nos “arquétipos” dos discursos metalinguísticos
codificados dos gramáticos e linguistas, que têm por objeto a linguagem, em
geral, as línguas e seus “types” - a riqueza da atividade espontânea que se
relaciona a isso. (AUTHIER-REVUZ, 2008, p. 108)

Os postulados de Authier-Revuz sobre a RDO podem estar estruturados em


termos de predicação, modalização, paráfrase e mostração. Sendo realizados através de
quatro zonas: 1-do discurso indireto (DI); 2- da modalização do dizer como discurso
segundo, doravante (MAS) ou “modalização por discurso outro”; segundo a autora,
nessas duas zonas a imagem do discurso outro é construída através da paráfrase; 3- do
discurso direto (DD); e 4- da modalização autonímica de empréstimo (MAE). Nesta zona,
encontra-se uma imagem do discurso outro, construída por meio da exibição das palavras.
Os entendimentos da autora ainda pontuam sobre outra zona de estruturação de
RDO:

a zona original da bivocalidade, incluindo o discurso indireto livre (DIL)” [...]


essa zona se caracteriza por uma heterogeneidade enunciativa particular: a
unidade enunciativa fundamental, na qual embreantes de pessoa, de tempo e
modalidade de enunciação são indissociavelmente associados a uma fonte...”
(AUTHIER-REVUZ, 2008, p. 113)

Depreendemos das postulações dessa estudiosa francesa que: as construções


referentes à representação do discurso outro (RDO) demonstram “a inclusão do outro no
um do dizer: o um fala do outro, reconduzindo-o ao um [...] o um fala segundo o outro,[...]
o um fala com o outro...”. (AUTHIER-REVUZ, 2008, p. 113).
Na próxima seção, apresentamos a descrição da nossa pesquisa e dos
procedimentos metodológicos adotados para a sua realização.

6. SOBRE A PESQUISA E OS PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS


ADOTADOS

Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa cujo corpus é constituído por um


boletim de ocorrência (BO) e relatório do inquérito policial registrados na Delegacia
Especial da Mulher - DEM de São Luís, um caso no qual a vítima da violência doméstica
se trata de uma mulher surda. A escolha do BO, dentre os casos em que a vítima é uma
mulher surda (inclusive são poucos os casos registrados), ocorreu de forma aleatória; o
documento fora fornecido para fins de estudo e todos os dados das pessoas envolvidas
estão omitidos. Usamos nomes fictícios por preservação das identidades.
Continuando, apresentaremos, na próxima seção, nossas análises e a discussão dos
resultados obtidos.
16

7. A REPRESENTAÇÃO DO DISCURSO OUTRO NAS FALAS DAS


MULHERES SURDAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR:
ANÁLISES E RESULTADOS

Para as análises, no campo da RDO, escolhemos a representação integrada do


discurso outro - Discurso Indireto (DI) e a modalização do dizer como discurso outro
(MAS). Como são características específicas dessas RDO(s), encontramos no corpus a
predominância de paráfrases e discursos indiretos.
Objetivando dar ao leitor uma melhor compreensão das análises, convém
esclarecermos o seguinte: as informações constantes do Boletim de Ocorrência foram
dadas pelos policiais, que são nomeados de “comunicantes”. Isto já demonstra que o fato
não fora relatado pela vítima.

FATO COMUNICADO: LESÃO CORPORAL DOLOSA (VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA) (Artigo 129, §9 do CP)
“RELATA O COMUNICANTE QUE ESTAVAM EM RONDA QUANDO A
GUARNIÇÃO SE DEPAROU COM UMA SITUACAO DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA, ONDE O CONDUZIDO TERIA LESIONADO A SUA
COMPANHEIRA; QUE LOGO EM SEGUIDA, TODOS FORAM
APRESENTADOS NESTE PLANTAO ESPECIALIZADO PARA
CONHECIMENTO E PROVIDÊNCIAS.(Anexo 1)

7.1 REPRESENTAÇÃO INTEGRADA DO DISCURSO OUTRO - RDO DISCURSO


INDIRETO

Sabemos que o discurso indireto sofre influência do narrador. No caso em apreço,


a fala da mulher surda vítima de violência recebe influência de seus interlocutores.
Vejamos, pois, os exemplos:

Os Policiais Militares que atenderam a ocorrência, [...] de forma


semelhante, narraram que estavam em seu expediente de trabalho quando
no dia 00/00/2018, por volta das 01hr30min foram acionados por um casal
informando que uma mulher estava sendo agredida fisicamente na Rua
........ Ao chegarem no local a guarnição militar encontrou três pessoas, uma
senhora surda não verbal que estava bastante nervosa, o companheiro desta
e o dono da casa e compadre do casal, onde este testemunhou e informou
que Fulano de Tal havia agredido fisicamente Margarida de Tal,
observando os militares que a vítima estava lesionada e com sangramento
na orelha e o autor estava sob o efeito de bebidas alcoólicas.
[...] Declarou ainda que Margarida de Tal é surda-muda, não sendo
alfabetizada, e que Fulano de Tal é vendedor de juçara, sendo este usuário
de drogas, ficando todos abrigados e dormindo na cozinha da casa da
testemunha. (Anexo 2)

Os excertos do inquérito policial estão permeados de enunciados constantes de


discursos indiretos, sinalizados por construções verbais no pretérito perfeito do
indicativo: “narraram” “foram acionados”, “este testemunhou e informou”
“Declarou” etc.
17

Nesses exemplos, constatamos que o discurso outro, ou seja, o que não foi
proferido pela vítima, contém representações integradas, percebemos a existência de uma
única forma enunciativa, com base nas falas dos outros. A RDO está construída com
várias formas de integração dos outros dizeres, integrantes dos discursos da escrivã, dos
policiais e das testemunhas.

7.2 REPRESENTAÇÃO DO DISCURSO OUTRO - RDO POR MODALIZAÇÃO DA


ASSERÇÃO COMO SEGUNDA (MAS)

O discurso outro é o objeto do dizer, resultando em uma paráfrase discursiva.


Convém reafirmar que paráfrase “é basicamente um processo de criação textual, por meio
de que voltamos atrás na elaboração do texto, repetindo com alterações os seguimentos
que o compõem.” (HILGERT, 1989)

A vítima Margarida de Tal ao ser trazida para esta Delegacia em virtude da


situação de flagrante estava lesionada, com sangramento na região da
orelha conforme o auto de constatação, bastante nervosa gesticulando de
forma explicativa para esta Delegada que o seu companheiro havia
agredido fisicamente quando ela estava deitada na rede. Devido a vítima
possuir necessidades especiais pois é deficiente auditiva não conseguindo
verbalizar, não sendo alfabetizada, conforme a previsão do artigo 192 do
CPP, foi programado oitiva desta em 00/00/2018 onde estava presente uma
Interprete oficial habilitada a compreender a vítima. (grifo nosso) (Anexo 2)

Destacamos do excerto acima: “que o seu companheiro havia agredido


fisicamente quando ela estava deitada na rede.” (fizemos uma transcrição integral para
facilitar o entendimento e destacamos com grifo) a MAS que ocorre quando o enunciador
fala das coisas partindo de um dizer, vemos que a construção enunciativa tem como fonte
o dizer da vítima, de forma gesticulada, porém não fora traduzida por um intérprete da
LIBRAS. Tratam-se de compreensões por meio de gestos capitados pele Delegada.
Para exemplificarmos um pouco mais sobre MAS, recortamos enunciados que
registram momentos do inquérito, diferente do que está acima, contudo, valem-se da fonte
inicial do discurso:

a vítima manifestou-se no sentido de expressar as seguintes informações:


"QUE não apanhou de seu companheiro, tendo se lesionado quando caiu
de uma rede e alguém da rua chamou a polícia militar; QUE não possui
condições financeiras e atualmente está residindo na casa da irmã de seu
companheiro Fulano de Tal; QUE Fulano de Tal já bateu nela uma outra vez;
QUE é apaixonada por Fulano de Tal e não quer mais nenhuma providência
desta Delegacia; QUE Fulano de Tal lhe prometeu que não irá mais consumir
bebidas alcóolicas e está frequentando uma igreja; QUE foi ao IML e realizou
exame de corpo delito. (Anexo 2)

As construções são retiradas da fala da vítima, esclarecemos que nessa fase, havia
uma intérprete de LIBRAS. O discurso da intérprete e de quem escreve está construído
retomando a fala da mulher vítima.
18

Uma vez discutidos os resultados, apresentamos, na seção seguinte, as nossas


considerações finais.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao finalizarmos estas análises, constatamos que o dialogismo postulado por


Bakhtin e retomado por Authier-Revuz através da Representação do Discurso Outro -
RDO, realiza-se de diversas maneiras. Reafirmamos algumas de suas asserções, quando
se expressa sobre a “inclusão do outro no um do dizer”.
Isso ficou comprovado quando exemplificamos os discursos indiretos, ou seja, um
na fala do outro” - nos excertos esposados como exemplos acima, o enunciador (o que
produz os discursos no BO e no inquérito policial) fala do outro (dos policiais, das
testemunhas); “o um fala segundo o outro” - o enunciador se vale da fala da mulher vítima
de violência para deixar registrada a ocorrência.
A fala da mulher surda, vítima de violência doméstica, registrada nos documentos
oficiais, tais como Boletim de Ocorrência e Inquérito Policial não é dela mesma; os
sentimentos causados pela violência que ficaram plantados na sua alma são expressados
por outros; seu discurso, a princípio, apenas, gesticulado fica no Boletim de Ocorrência
da Delegacia entendido por alguém desconhecido. E mesmo em um segundo momento,
quando há um intérprete de LIBRAS, sua fala continua sendo representada por outro.
A vítima, do caso em estudo, tem dificuldades de comunicação por não ser
alfabetizada e também por desconhecer a língua de sinais. Diante dessa circunstância,
tudo o que ela passou durante o ato de violência passa a ser descrito por outro, seu discurso
é representado pela fala dos outros, é silenciado pelo discurso dos policiais, das
testemunhas.
Embora a Lei Maria da Penha tenha trazido grandes avanços quanto à proteção às
vítimas de violência doméstica, a mulher surda que passa pela situação de violência ainda
tem muita dificuldade para denunciar o agressor e vê a punição se efetivar sobre ele.
Urge que o Poder Público crie políticas públicas que beneficiem a população
surda, que possam contribuir com o ingresso das mulheres surdas nas instituições de
ensino; em assim acontecendo elas certamente estarão mais conscientes de seus direitos
junto aos órgãos do governo.
Este assunto é vasto e procuramos mostrar como a linguística pode contribuir com
outros capôs do conhecimento. Esperamos que esse estudo sirva de ponte para que sejam
alcançados grandes objetivos no âmbito dos estudos linguísticos enunciativos coadunados
com os dispositivos normativos legais.
19

9. REFERÊNCIAS

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo


enunciativo do sentido. Porto Alegre/RS: EDIPUCRS, 2004.
______. A representação do discurso outro: um campo multiplamente heterogêneo.
Calidoscópio. Unisinos, vol. 6, n. 2, p. 107-119, mai/ago 2008.
______. Alteridade, Dialogismo e Polifonia dizer ao outro no já-dito: interferência de
alteridades – interlocutiva e interdiscursiva – no coração do dizer. Letras de Hoje,
Porto Alegre, v.46, n.1, p. 6-20. jan/mar, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski (1929). 2. ed. Trad. Paulo
Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. 276p.
______. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão
Tezza [para fins didáticos]. Texto completo da edição americana Toward a philosophy
of the Act. Austin: University of Texas Press, 1993.
______. (VOLOCHINOV, V.N.) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2002.
______. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BENVENISTE, Emile. Problemas de linguística geral. São Paulo: Nacional/EDUSP,
1976
BRAIT, Beth. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros
conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006, p. 9-31.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
________ Lei nº. 10.436, de 24 de abril de 2002. .
________Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad.Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Janeiro: Forense, 2009.
HILGERT, José Gaston. A paráfrase: um procedimento de constituição do diálogo.
São Paulo: USP. Tese de Doutoramento
KOCH, Ingedore. O texto e a construção dos sentidos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1998.
SANTANA, Ana Paula; BERGAMO, Alexandre. Cultura e identidades surdas:
encruzilhadas de lutas sociais e teóricas. Educ. Soc. Vol. 26, n. 91, Campinas: maio /ago.
2005. p. 565-582. 18 p. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/es/v26n91/a13v2691.pdf> acesso em 05 de outubro de 2019.
VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Editora 34,
2017.
20

ANEXOS

ANEXO A

ESTADO DO MARANHÃO
SECRETARIA DE ESTA, DO DE SEGURANÇA PÚBLICA
POLICIA CIVIL
DELEGACIA ESPECIAL. DA MULHER DE SAO LUIS - DEM SAO LUIS
Endereço: Beira-Ma,r 534 - Centro - 65010-070 , Fone: 3214-8649 \ 3214-865 .1
OCORRÊNCIA Nº: xxx/2018 - Registrado em xx de xxxxxx de 2018 às 2: 1 9h

FATO COMUNICADO Data/Hora do Fato: xxxxxxxx às

01:30hs. Segunda-Feira LESAO CORPORAL DOLOSA (VIOLENCIA DOMESTICA)


(Artigo 129 §9 do CP)
LOCAL

Município SAO LUIS Estado: MA


:
Logradour N CEP:
o: Bairro: º RESIDEN
Referênci :
CIA
a: Tp de
Local:
ENVOLVIMENTO: COMUNICANTE/ TESTEMUNHA
ENVOLVIMENTO: COMUNICANTEITESTEMUNHA
ENVOLVIMENTO : VÍTIMA : MARGARIDA DE TAL

São Luís - MA

EXAMES SOLICITADOS : LESAO CORPORAL

ENVOLVIMENTO: AUTOR FULANO DE TAL - SAO LUIS - MA

HISTÓRICO DA OCORRÊNCIA

RELATA O COMUNICANTE QUE ESTAVAM EM RONDA QUANDO A


GAURNICAO SE DEPAROU COM UMA SITUACAO DE VIOLENCIA
DOMESTICA, ONDE O CONDUZIDO TERIA LESIONADO A SUA
COMPANHEIRA; QUE LOGO EM SEGUIDA, TODOS FORAM APRESENTADOS
NESTE PLANTAO ESPECIALIZADO PARA CONHECIMENTO E PROVIDENCIAS .
21

ANEXO B

SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DO MARANHÃO


DELEGACIA GERAL DE POLÍCIA CIVIL
SUPERINTENDÊNCIA DE POLÍCIA CIVIL DA CAPITAL
PLANTÃO DA DELEGACIA ESPECIAL DA MULHER

RELATÓRIO INQUÉRITO POLICIAL Nº xxx/2018-DEM


INCIDÊNCIA PENAL: ARTIGO 129, §9º DO CÓDIGO PENAL
INDICIADO: FULANO DE TAL
VÍTIMA: MARGARIDA DE TAL

Sr (a) Juiz (a),

O presente procedimento policial foi instaurado mediante Auto de Prisão em


Flagrante Delito, lavrado no dia 00/00/2018, na Delegacia do Plantão Especializado em
Atendimento à Mulher, em desfavor de FULANO DE TAL, pela prática do crime previsto no
Artigo 129,§ 9° do código penal, tendo como vítima a companheira deste, MARGARIDA DE
TAL, frente à sua situação de hipossuficiência na relação doméstico familiar.
Os Policiais Militares que atenderam a ocorrência, XXXXXXX e XXXXXXX,
lotados em São Luís, de forma semelhante, narraram que estavam em seu expediente de
trabalho quando no dia 00/00/0000, por volta das 01hr30min foram acionados por um casal
informando que uma mulher estava sendo agredida fisicamente na Rua xxxxxxx. Ao chegarem
no local a guarnição militar encontrou três pessoas, uma senhora surda não verbal que estava
bastante nervosa, o companheiro desta e o dona da casa e compadre do casal, onde este
testemunhou e informou que Fulano de Tal havia agredido fisicamente Margarida de Tal,
observando os militares que a vítima estava lesionada e com sangramento na orelha e o autor
estava sob o efeito de bebidas alcoólicas.
A vítima MARGARIDA DE TAL ao ser trazida para esta Delegacia em virtude da
situação de flagrante estava lesionada, com sangramento na região da orelha conforme o auto
de constatação, bastante nervosa gesticulando de forma explicativa para esta Delegada que o seu
companheiro havia a agredido fisicamente quando ela estava deitada na rede. Devido a vítima
possuir necessidades especiais pois é deficiente auditiva não conseguindo verbalizar, não sendo
alfabetizada, conforme a previsão do artigo 192 do CPP foi programado oitiva desta em
00/00/0000 onde estava presente uma Interprete oficial habilitada a compreender a vítima.
22

SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DO MARANHÃO DELEGACIA


GERAL DE POLÍCIA CIVIL SUPERINTENDÊNCIA DE POLÍCIA CIVIL DA
CAPITAL PLANTÃO DA DELEGACIA ESPECIAL DA MULHER

A testemunha presencial dos fatos, o senhor ............................., afirmou ser amigo


de Margarida de Tal, há 03 anos, sendo inclusive padrinho de uma das filhas desta e devido
Margarida de Tal e a família dela passarem necessidades financeiras e não possuírem local onde
mora, a testemunha ofereceu há 02 meses atrás que Margarida de Tal, o esposo desta, Fulano
de Tal e mais três filhos deste casal ( 11, 13 e 14 anos de idade) passassem a residir na casa
deste. Declarou ainda que Margarida de Tal é surda-muda, não sendo alfabetizada, e que Fulano
de Tal é vendedor de juçara, sendo este usuário de drogas, ficando todos abrigados e dormindo
na cozinha da casa da testemunha.

Narrou a testemunha que em 00/00/0000, por volta das 01hrOOmin, , ele estava
acordado assistindo televisão quando escutou escutando uma discussão pois Fulano de Tal
chegou em casa embriagado, decidindo o Sr. ...... ir até o local ver o que estava acontecendo,
observando que Margarida de Tal estava deitada em um a rede com uma faca de serra. Neste
momento Fulano de Tal disse" essa bandida estava com uma faca para me furar" e na frente
do Sr. ......., Fulano de Tal agrediu fisicamente Margarida de Tal com socos de mão fechada
da orelha direita, causando um corte, sangrando a orelha de Margarida de Tal. Ao presenciar
a agressão Sr. ..... disse que iria chamar a polícia, momento em que Fulano de Tal saiu da
casa, ficando na calçada e por sorte passou uma viatura na rua, presenciando a situação,
efetuando a condução dos envolvidos para esta delegacia. Declarou ainda a testemunha que
Margarida de Tal não possui familiares em São Luís/MA, não sendo esta a primeira vez que
ela é agredida fisicamente pelo companheiro dela, Fulano de Tal, constatando a testemunha
que a vítima Margarida de Tal está lesionada na orelha direita.

Interrogado, FULANO DE TAL afirmou que· que convive com Margarida


de Tal há 16 anos, possuindo o casal 03 filhos (11, 13 e 14 anos de idade) e no dia
00/00/0000, por volta das 01hrOOmin, o interrogado chegou em casa e brigou com a
esposa por causa de uma pasta de dente, onde ela o arranhou, momento que o interrogado
para se defender afastou Margarida de Tal, não sabendo explicar como Margarida de Tal
lesionou-se. Declarou que durante todo o ocorrido Sr........, o dono da casa onde residem,
estava no local e presenciou os fatos.

Em 22/02/2018 a vítima MARGARIDA DE TAL compareceu nesta Delegacia


acompanhada de uma irmã de seu irmã de seu companheiro, onde esta informou que Fulano de
Tal estava solto e que o casal passou a residir na casa desta familiar, conforme endereço
informado na oitiva da vítima. Acompanhada da Intérprete da CIL- Central de nterpretação de
libras (Nome omitido), compromissada na forma da Lei, a vítima manifestou-se no sentido de
expressar as seguintes informações: "QUE não apanhou de seu companheiro, tendo se lesionado
quando caiu de uma rede e alguém da rua chamou a polícia militar; QUE não possui condições
financeiras e atualmente está residindo na casa da irmã de seu companheiro Fulano de Tal ; QUE
Fulano de Tal já bateu nela uma outra vez; QUE é apaixonada por Fulano de Tal e não quer mais
nenhuma providência desta Delegacia; QUE Fulano de Tal lhe prometeu que não irá mais consumir
bebidas alcóolicas e está frequentando uma igreja; QUE foi ao IML e realizou exame de corpo
delito".
A prisão em flagrante foi devidamente comunicada à família do autuado/pessoa por ele indicada,
23

ao Ministério Público, A Defensoria Pública e ao Poder Judiciário, arbitrando-se fiança no valor


de R$ 945,00 ( novecentos e quarenta e cinco reais), não sendo a mesma recolhida.
As afirmações da vítima não condizem com os fatos, haja vista inexistir a necessidade de chamar
a polícia militar durante a madrugada por uma simples queda de uma rede, justificando a
mudança do comportamento da vítima ante ao temor de seu companheiro ficar detido e frente à
sua fragilidade física, social e emocional. Tendo em consideração a oitiva da testemunha Sr. .......
que presenciou a agressão conforme declaração do próprio interrogado, apresentando-se a vítima
nesta delegacia lesionada , sendo o dano físico constatado pelos policiais militares e civis,
realizando a vítima exame de corpo delito, comprovada a materialidade do delito,
determinadas as circunstâncias em que ocorreu e os meios empregados, bem como
individualizada a autoria, resolvo por INDICIAR FULANO DE TAL , pelo crime previsto no
artigo 129, §9° do código penal, cometido conta a sua companheira, MARGARIDA DE TAL.

É o relatório que submetemos a apreciação de Vossa Excelência e do ilustre representante do


Ministério Público. Encontram-se, portanto, encerrados os trabalhos dessa polícia judiciária, que
se coloca à disposição para quaisquer outras diligências que se configurem necessárias.

São Luís/MA, xx de xxxxxxx de xxxx

ASSINATURA DA

DELEGADA DE POLICIA CIVIL


24

2
ENUNCIAÇÃO: DISCUSSÕES TEÓRICAS, MECANISMOS LINGUÍSTICOS E
TEXTUAIS

Elizabeth Gonçalves Lima Rocha3


Leonildes Pessoa Facundes4
Lidiany Pereira dos Santos5

1. INTRODUÇÃO

O termo enunciação é o ponto que une dois grandes teóricos da Linguística


Enunciativa - Émile Benveniste e Antoine Culioli. Neste trabalho queremos discutir o que
cada um concebe por enunciação. O posicionamento assumido por um e por outro teórico
convergem ou divergem? Qual a concepção de sentido decorrente de tais
posicionamentos? Tendo em vista que há uma maior difusão no Brasil da teoria
benvenistiana em relação à culioliana e uma vez filiados à segunda - Teoria das Operações
Predicativas e Enunciativas (doravante TOPE), fundada por Culioli, visamos, neste
trabalho, além de discutir alguns aspectos teóricos, propomos ainda discussões práticas
de análise relacionadas à operacionalização da construção de valores referenciais de
temporalidade como também problematizamos algumas questões ligadas à
operacionalização de mecanismos linguísticos que sustentam o emprego de sintagmas
chegar em e chegar a. Dessa forma, pretendemos mostrar como a TOPE pode contribuir
para a configuração de uma proposta de ensino de base reflexiva de forma que a prática
do professor propicie ao aluno pensar sobre o seu próprio pensar na medida em que
propõe que o ensino leve em consideração a atividade de linguagem, ou seja, a capacidade
humana de construir significação. O ganho, em sala de aula, de se considerar a língua
pela perspectiva da TOPE é que se percebe que as práticas linguageiras não estão
subordinadas exclusivamente às regras que a gramática normativa preconiza e/ou
descreve, antes, a TOPE defende que a comunicação intersubjetiva é sustentada por uma
complexa e dinâmica atividade operativa realizada pelos sujeitos enunciadores. A
dificuldade que os alunos têm de assumir a palavra e de se reconhecer como origem de
seu dizer é efeito de uma concepção de língua(gem) que ainda hoje orienta muitas práticas
de ensino. Como observa Romero (2013, p. 138), mesmo quando a prática pedagógica
tende a se distanciar da “clássica metodologia de definição, classificação e exercitação”
(BRASIL, 1998, p. 29) para se deixar influenciar pelas diretrizes então estabelecidas para
o estudo do léxico, ela é ainda presa a uma concepção de sentido estagnante que deixa à
margem os aspectos reflexivos e criativos da linguagem.
A TOPE define como tarefa do linguista o estudo do funcionamento da linguagem
enquanto atividade significante de representação, referenciação e regulação que se
manifesta na diversidade de línguas. Dessa forma, interessa ao linguista observar o
processo de construção de significação dos enunciados. Adotar este posicionamento em

3
Doutora em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Professora do Colégio
Técnico de Floriano/UFPI. E-mail: bethroccha@gmail.com
4
Professora Assistente na Universidade Estadual do Maranhão/UEMA, na cidade de Timon. Doutoranda
em Linguística, PPGL/UFSCar. E-mail: leonildespessoa@gmail.com
5
Doutora em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Professora Adjunta da
Universidade Federal do Piauí no Curso de Letras Português, na cidade de Picos. E-mail:
lidianysantos1@ufpi.edu.br
25

sala de aula, permite ao professor e, consequentemente ao aluno realizar movimentos que


possibilitam se olhar para a dinamicidade que envolve/sustenta o processo de construção
dos textos. Dessa forma, atenta-se para o papel que as unidades linguísticas ali agenciadas
desempenham nesse processo. A fim de se refletir sobre essas questões, neste trabalho,
observamos produções textuais de alunos realizadas na produção-interpretação do texto
Biografia a fim de observar o processo gerador do deslocamento temporal realizado por
esses alunos nos referidos textos.
Com este tipo de atividade se visa levar o aluno a refletir sobre as modulações
oriundas da escolha entre uma ou outra marca enunciativa de forma que se perceba o
efeito de sentido obtido decorrente das escolhas efetuadas e se essas escolhas
comprometem a produção do gênero em causa, atendendo assim aos propósitos
comunicativos dos sujeitos enunciadores em suas instâncias enunciativas. Nesse sentido,
nossas reflexões têm como objetivo apresentar, considerando-se o objeto próprio da
TOPE, possíveis contribuições da teoria para se pensar o ensino de língua portuguesa de
forma a contribuir para o refinamento da competência comunicativa dos discentes.

2. ENUNCIAÇÃO: QUESTÕES DE CONVERGÊNCIA E DIVERGÊNCIA


ENTRE BENVENISTE E CULIOLI

Benveniste e Culioli são dois teóricos inscritos no quadro referencial da


Enunciação. A tradição linguística normalmente apresenta o segundo como continuador
da proposta teórica do primeiro. A partir da leitura de alguns textos de Benveniste que
constam nas obras Problemas de Linguística Geral I e II (1995,1989) e de textos de Culioli
encontrados nos Tomos I, II e III (1990,1999a, 1999b), quer-se aqui discutir,
considerando-se o que cada um concebe por enunciação, a fim de observar se eles
compartilham o mesmo quadro epistemológico.
A proposta teórica de Benveniste é considerada uma continuação das teorias
estruturalistas. Ele insere a Linguística dentro de uma preocupação semiológica e
antropológica ao defender que a Linguística é o elemento unificador da semiologia e da
semântica. Já Culioli, por outro lado, sua abordagem teórica se aproxima das ciências da
cognição ao definir a linguagem como capacidade humana de construir significação. A
linguagem é, pois uma atividade que corresponde a um material verbal ou a um conjunto
de formas dotadas de entonação, que se apresenta conforme um determinado arranjo e
organização. Assim considerada, a linguagem é uma atividade relativa aos que praticam
e a manifestam (em produção, em compreensão), e que corresponde a uma atividade
fundamental do homem. (DE VOGÜÉ, FRANCKEL e PAILLARD, 2011)

2.1. PONTOS DE DIVERGÊNCIA ENTRE BENVENISTE E CULIOLI

Percorrendo os textos dos dois autores a fim de verificar o que cada um propõe
como objeto de estudo para a Linguística, podemos afirmar que, para Benveniste, o seu
objeto de estudo é a língua na realização do Sujeito; enquanto que, Culioli o seu objeto
é o enunciado, definido como um agenciamento de marcadores de operações abstratas,
ou seja, seu objeto de estudo é a atividade de linguagem. O sentido de um enunciado é
portanto construído por meio de uma complexa e dinâmica atividade operativa da qual as
26

unidades linguísticas são rastros. Considerando-se o que cada um concebe por


enunciação, Benveniste e Culioli não procedem do mesmo movimento epistemológico.
Enquanto, Benveniste define enunciação como um ato individual de apropriação da
língua, para Culioli é um processo que se recupera a partir do enunciado.
Segundo De Vogüé (2011, p. 60) “os dois conceitos de enunciação não coincidem:
um é do registro da linguagem, o outro é o ato por meio do qual um locutor apropria-se
da língua (a coloca em funcionamento)”. A enunciação de Culioli define-se como um
produto de operações de localização abstrata que a submetem a determinações. Correia
explica:

O contraste visível nas posições teóricas na definição de enunciação e na


definição do papel de locutor fazem com que se perceba a existência de uma
concepção diferente da análise linguística e não uma continuidade como
aparentemente seria suposto existir. No contraste entre as duas teorias
enunciativas, Auroux (1992) diferencia-as ao incluir Benveniste na corrente
‘representacionalista da linguagem’ por defender que, no acto de enunciação o
‘eu’ (je’) refere-se ao acto de discurso individual quando é pronunciado,
designando o locutor (Benveniste [1958]1966:261, citado por Auroux
1992b:47), e Culioli na corrente ‘objectivista’, tal como Saussure ou
Bloomfield, por propor uma teoria dos observáveis, como ponto estruturador
da análise linguística. (CORREIA 2002, p. 47)

Do exposto, o conceito de enunciação é claramente divergente entre Benveniste e


Culioli, apresentados e percebidos por Auroux, De Vogüé e Correia, são interpretações
das duas teorias com bases na enunciação, porém concordamos que ambos os autores
defendem objetos distintos. Resumidamente, Benveniste trata a enunciação como um ato
de apropriação da língua por um sujeito, para Culioli é um processo que se recupera a
partir do enunciado, ou seja, o que se pode dizer do sujeito é aquilo que pode ser rastreado
pelo agenciamento de marcas realizado por esse sujeito ao produzir seus enunciados.

2.2 PONTOS DE CONVERGÊNCIA ENTRE BENVENISTE E CULIOLI

A convergência principal, entre os pressupostos teóricos defendidos pelos autores,


está relacionada ao fenômeno de estabilização do sentido das unidades nos enunciados
em termos de uma função integrativa.

Um signo é materialmente função dos seus elementos constitutivos, mas o


único meio de definir esses elementos como constitutivos consiste em
identificá-los no interior de uma unidade determinada onde preenche uma
função integrativa. Uma unidade será reconhecida como distintiva num
determinado nível de puder identificar-se como ‘parte integrante’ da unidade
de nível superior, da qual se torna o integrante (BENVENISTE, 1995, p.133
grifos do autor)

Culioli toma a linguagem como atividade constitutiva no processo enunciativo


entre os sujeitos enunciadores. E retoma a função integrativa, quando estuda o
27

funcionamento das unidades do enunciado, principalmente, quando as define como traços


de operações.

De Vogüé afirma:

É isso que assinala uma continuidade entre Culioli e Benveniste, quando eles
ultrapassam a separação entre língua e fala, para fundamentar a linguagem em
uma heterogeneidade constitutiva, que não é separação, mas integração;
integração do sentido ao dizer que se resolve na clivagem do sentido, sempre
(re)construído. (DE VOGÜÉ, 2011, p.81)

Da interseção do que foi até aqui exposto, podemos ressaltar que Culioli retoma a
tese benvenistiana de que a variação semântica de uma unidade linguística responde a um
funcionamento. O que está em causa é a capacidade de resposta aos problemas que
surgem na observação da Atividade de Linguagem, a qual é defendida na TOPE como
objeto de estudo da Linguística. Na sequência, discutimos dois fenômenos recorrentes
nas práticas linguageiras da atividade de linguagem que são ignoradas justamente porque
as concepções de linguagem que sustentam as práticas de ensino não permitem a reflexão
sobre o uso da língua.

3. MECANISMOS LINGUÍSTICOS QUE ENVOLVEM O EMPREGO DOS


SINTAGMAS CHEGAR EM E CHEGAR A

Nesta seção discutimos alguns mecanismos linguísticos operativos que envolvem


a concorrência de empregos dos sintagmas chegar em e chegar a. As gramáticas
tradicionais se limitam a encarar o problema a partir do critério “certo” e “errado”, o que
é improdutivo do ponto de vista pedagógico e estéril do ponto de vista analítico, por não
dar conta da operacionalidade de ambas as formas.
A gramática tradicional explica que verbos de movimento são regidos pela
preposição A, ao passo que verbos de permanência são regidos pela preposição EM. No
entanto, acreditamos que há algo mais a ser dito sobre a concorrência entre chegar em e
chegar a, para além da oposição semântica entre movimento (A) e permanência (EM), e
que dê conta de sua ampla incidência, a qual extrapola as construções com complemento
de lugar, abordada pela gramática normativa. Para perceber essa amplitude, basta atentar
para as diversas acepções do verbo chegar avançada pelo dicionário Houaiss, versão
eletrônica:

1.atingir o termo de uma trajetória, de um percurso de ida e/ou de vinda (A


flecha não chegou ao alvo); 2. alcançar ou tocar um determinado ponto no
espaço ou no tempo (O menino chega ao ombro do pai); 3. atingir um ponto
extremo; ir ao máximo (Chegar aos limites da paciência); 4. alçar-se a uma
posição vencendo etapas (Chegar a embaixador); 5. alcançar (uma quantia, um
valor); elevar-se, montar, importar (A multa chega a dois salários mínimos);
6. igualar-se, comparar-se, ombrear (A praia é bonita, mas não chega aos pés
de Copacabana); 7. começar a acontecer ou estar iminente (A noite chegou
sorrateira); 8. ser suficiente; bastar (Chega de reclamações); 9. aparecer
concretamente; vir, sobrevir, começar, dar-se (O sucesso do ator finalmente
28

chegou); 10. movimentar, mudando de posição (Chegar a cadeira para trás);


11. levar (uma égua ou lote de éguas) para padreação.

Considerando-se as acepções acima do verbo CHEGAR, vê-se que para alguns


casos é possível a alternância entre as preposições A e EM. Um exemplo é quando se
tem o verbo CHEGAR seguido de complemento de lugar A flecha chegou no/ao alvo. A
alternância do uso tanto de EM quanto de A é possível também na segunda acepção,
“alcançar ou tocar um determinado ponto no espaço ou no tempo” (João chegou na/à
idade adulta), e na terceira acepção, “atingir um ponto extremo; ir ao máximo”, (Chegar
aos/nos limites da paciência), nas quais a preposição não introduz necessariamente
complemento de lugar. As análises que se seguem tentam dar conta dessa diversidade de
ocorrências que suportam ambas as preposições.
Vale lembrar que a preposição é uma classe de palavras relacional, ou seja, as
construções preposicionadas se formulam em termos de relação entre um termo orientado
X e um termo orientador Y (X R(prep) Y). Sendo X o termo que antecede a preposição e
Y, o termo que a sucede.
O tratamento da concorrência entre os sintagmas chegar a e chegar em implica,
entre outros, observar certas propriedades lexicais inerentes a X e a Y (elementos postos
em relação pela preposição). Para a verificação dessa hipótese, procedemos, análise de
enunciados em que as preposições A e EM concorrem, à identificação das propriedades
lexicais dos termos postos em relação pelas preposições.
A partir das acepções elencadas no dicionário Houaiss e citadas acima e dos
princípios teóricos abordados, consideremos a primeira acepção dada por Houaiss A
flecha chegou ao alvo. Percebe-se que o dicionário Houaiss, nessa primeira acepção,
prescreve o uso da preposição A, alvo marca lugar de estada, com destaque para a
permanência, sendo muito comum no emprego cotidiano o EM. De fato, muito embora
as duas preposições sejam aceitas, no registro popular há nítida preferência por EM[1]:

(1) A flecha chegou no/ao alvo.

Analisando-se o enunciado (1) observa-se que, graças ao papel da preposição EM


que é o de atrair X para Y, este marcador faz com que Y (alvo) puxe para si X (flecha
projetada), e o situe em um dos pontos de sua superfície, estruturado-se, assim, Y como
zona de localização de X. A zona de localização Y é homogênea, ou seja, quando Y puxa
X para contê-lo em si, graças à preposição EM, produz-se o interior do domínio da
ocorrência (onde se verifica sua validação), que, neste caso, remete à noção de ACERTO
relativamente ao ato de lançamento da flecha. Ao mesmo tempo, é produzido o
complementar do domínio, ou seja, o exterior (FORA DO ALVO ou ERRO,
relativamente ao ato de lançamento da flecha), repulsado como inexistente, pois vazio da
propriedade de validação.
O exemplo da primeira acepção de chegar, dada por Houaiss, analisado acima, se
constrói com complemento de lugar s se aplica a A flecha chegou no alvo, já que alvo é
ponto terminal de flecha, afetado em um processo de mobilidade, cuja continuidade é
quebrada e, além disso, pela operação de EM, situa flecha em um zona de ACERTO,
relativamente ao ato de lançamento, eliminando-se outras possibilidades.
No entanto, dizíamos que a possibilidade do uso de ambos os sintagmas ocorre
em casos em que não há complemento de lugar. É o que se manifesta se consideramos a
29

acepção 2 de chegar avançada pelo dicionarista (“Alcançar ou tocar um determinado


ponto no espaço ou no tempo”). Tomando um exemplo cabível nessa segunda acepção,
uma pesquisa no buscador Google mostra que a construção Chegou na idade adulta tem
uma frequência significativa (92 entradas, excluídas as similares) comparada com a
frequência de Chegou à idade adulta (160 entradas, excluídas as similares), o que mostra
que o enunciado:

(2) João chegou na idade adulta.

Este enunciado é perfeitamente aceitável. A preposição EM opera a atração de X


por Y e a estruturação deste último termo como zona de localização do primeiro. Ou seja,
o crescimento de João deixa-se situar numa fase compreendida nos limites de um período
ou intervalo determinado de sua existência. Precisamente, a localização de X se dá no
limiar desse intervalo, o qual, ao se deixar demarcar por um início e um fim passíveis de
especificação, se configura como intervalo temporal fechado e, logo, como zona
homogênea de localização. Com isso, abre-se o interior do domínio de validação da
ocorrência, a MATURIDADE, de natureza intermediária, já que contraposto ao exterior
IMATURIDADE, repelido como alteridade do que não é mais o caso, e o exterior
DECREPITUDE, excluído como alteridade do que pode ser, mas ainda não é o caso.
O exemplo anterior, em que o uso tanto de A quanto de EM é possível, cabe na
segunda acepção do verbo chegar, listada por Houaiss, na qual o verbo indica o alcance
de um ponto no tempo. No entanto, vemos que essa concorrência não aparece em outros
exemplos nos quais o ponto no tempo é instanciado de outra forma. De fato, uma pesquisa
no buscador Google6 mostra que, se se encontram 20 entradas (excluídas as similares)
para Chegou aos 18 anos de idade, não há registro nenhum de *Chegou nos 18 anos de
idade. Isso talvez se deixe explicar pelo fato de, devido ao seu estatuto lexical, Y (18
anos) resistir a uma estruturação por zonas, o que não se coaduna com a identidade
semântica de EM. De fato, EM, ao atrair X para Y faz com que este contenha em si aquele,
como zona extensa e homogênea, configurando-se como o universo de X, caso de João
chegou na idade adulta, em que Y (idade adulta) é um intervalo fechado, em oposição a
outras fases da vida, dentro do qual se localiza X (o crescimento de João). Ora, em
Chegou aos 18 anos de idade, Y (18 anos) tem uma outra natureza, já que é elemento
discreto – e não grandeza contínua – de uma série que divide a sucessão temporal em
unidades singulares da ordem numérica cardinal. Nesse sentido, Y (18 anos), enquanto
unidade numérica do tempo, é inextenso, não podendo se configurar como intervalo que
contenha em seus limites (zona de localização) o que quer que seja. É talvez por esse
motivo que o uso de EM, nesse caso, não seja comum.
Os dois exemplos acima parecem mostrar que a concorrência de chegar a e chegar
em requer a estruturação do termo orientador da relação preposicional – Y – como zona
de localização. Essa concorrência não se dá muitas vezes pelo fato do marcador A
determinar Y de maneira bem diversa da estruturação por zonas.

6
No entanto, uma pesquisa no buscador Google indica 90 entradas para Chegou ao alvo contra 50 entradas
para Chegou no alvo (excluídas as similares).
30

É o que mostra a consideração da acepção 4 do verbo chegar, dada por Hoauiss


(“alçar-se a uma posição vencendo etapas”). O dicionarista ilustra essa acepção com o
seguinte exemplo:

(3) Chegou a embaixador.

É evidente que se substituirmos A por EM, não teremos a mesma significação:

(4) Chegou no embaixador.

Em ambos os casos, o processo representado em um e outro têm naturezas bem


diversas. Em (3), o afetado no processo de mutabilidade do progresso profissional P (a
carreira diplomática de alguém) se faz assinalar em um ponto terminal T (embaixador),
categoria mais alta que coroa a ascensão. Em (4), o afetado em um processo de mobilidade
espacial P (o deslocamento de alguém) assinala-se em um ponto terminal T (embaixador),
que, alcançado, quebra a continuidade do movimento. Neste caso, chegar remete, antes,
à sua primeira acepção, conforme o dicionário Houaiss (“atingir o termo de uma trajetória,
de um percurso de ida e/ou de vinda”).
Observa-se que, em (3), a preposição A faz de Y:T (embaixador) o grau de uma
escala hierárquica, já que se entende embaixador como o título superior da carreira
diplomática, a qual pressupõe estágios anteriores como a promoção a terceiro-secretário,
depois segundo-secretário, e assim por diante. Assim, enquanto grau de excelência, Y se
apreende menos como espaço, abstrato ou não, em cuja extensão X está contido (zona de
localização), do que como uma propriedade distintiva que se adequa a X. Agora, o
enunciado (4) Chegou no embaixador, mostra que o termo Y (embaixador), introduzido
pelo marcador EM, representa o centro de um entorno espacial. Chegar no embaixador
significa situar-se perto de onde o embaixador se encontra, portanto, EM estrutura Y
como zona que atrai e localiza X em qualquer ponto da área circunvizinha ao embaixador.
Y, assim, configura-se como a zona homogênea PROXIMIDADE, oposta à zona
DISTANCIAMENTO, repelida como exterior inexistente, enquanto validação da
ocorrência.
A análise da terceira acepção de chegar, dada por Houaiss, (“atingir um ponto
extremo; ir ao máximo”), na qual também é possível a concorrência de A e EM (Chegar
aos/nos limites da paciência), seria desnecessária, pois nos levaria à mesma conclusão
que se pode tirar das análises efetuadas. Essa conclusão sustenta a hipótese de que o uso
tanto de chegar em quanto de chegar a somente é possível quando o termo introduzido
por ambas as preposições se prestar a uma estruturação por zonas.
Como vimos, a gramática tradicional desaconselha o emprego de chegar em,
devendo-se, segundo a norma, empregar a preposição A, muito embora chegar em seja
frequente no uso comum do português brasileiro. Isso tem implicações pedagógicas
nocivas, pois, como consequência, excluem-se os falares dos próprios alunos, que, assim,
se vêem estigmatizados no processo de aprendizado da língua.
Vimos ainda que a gramática de orientação funcionalista, quando atenta para a
concorrência entre as duas preposições, opondo movimento (A) e permanência (EM),
muito embora aporte uma intuição valiosa, requer o refinamento da análise para que se
31

dê conta de casos em que não há complemento de lugar, aos quais se reduzem as


considerações de Neves.
Nesse sentido, nossas análises pretenderam delimitar, de forma precisa e ampla, o
campo de ocorrência de chegar em e chegar a como sintagmas concorrentes desde que o
termo orientador Y, da relação preposicional, se permitir analisar como zona de
localização do termo orientado X.
Frisemos que esse tipo de abordagem considera as formas chegar em e chegar a
como traços de operações de construção do sentido e não como formas desviantes ou
adequadas a um padrão normal. Uma abordagem das preposições que se afasta da
formulação de prescrições de uso e da mera listagem de valores lexicais – caso das
gramáticas tradicionais –, e que atenta para os princípios operativos que regem a variação
cotextual dos itens linguísticos – caso de nossa pesquisa – está mais próxima de uma
prática de análise linguística que trata a linguagem como atividade reflexiva e
construtiva, somente a partir da qual os alunos conseguem intuir o funcionamento da
língua, tanto sobre os textos que produzem como sobre os textos que escutam ou leem.
Nesse sentido, como já afirmamos, a TOPE tem muito a oferecer para o
aperfeiçoamento de tais práticas pedagógicas. Enquanto atividade de produção e
reconhecimento de enunciados, realizada por indivíduos em busca do ajustamento
intersubjetivo e transindividual, a linguagem não teria a rigidez de uma norma coercitiva
emanada de uma soberania de classe, e sim a (re)flexibilidade de uma dinâmica de
bifurcações que buscam um telos.
Não se pode perder de vista que o uso da linguagem diz respeito à autoestima
social, uma vez que a práxis humana se efetiva por meio da troca comunicativa. Trata-se,
pois, de incluir solidariamente as habilidades linguageiras dos falantes reais, por mais
distantes que estejam da norma culta, para fazê-los ver que nelas, em suas habilidades,
nascidas de suas experiências de vida, está a chave para a compreensão dessa atividade
tão comum quanto resistente à ponderabilidade – a linguagem.
Após essa breve explanação sobre a operacionalização que envolve o emprego
dos sintagmas chegar em e chegar a, apresentamos uma discussão sobre os mecanismos
linguísticos relativos à construção de valores temporais envolvidos na produção textual
do gênero Biografia.

4. A CATEGORIA TEMPO NA PERSPECTIVA DA TOPE

No modelo da TOPE proposta por Culioli (1990), tanto o Sujeito como o Tempo
são vistos como parâmetros abstratos definidores de uma situação de enunciação também
abstrata. Culioli (1990) não se resume a uma teoria de sujeitos enunciadores, pois ele se
ocupa das operações abstratas subjacentes à constituição do enunciado e não ao ato de
enunciar em si. Como explica Sousa (2007):

[...] Este não é considerado como resultado de um acto individual de linguagem


produzido num aqui e agora por um enunciador, mas é entendido como o
resultado de um encadeamento de operações que podem ser analisadas no
quadro de um sistema de representação formalizável. (SOUSA, 2007, p. 25)
32

Para a TOPE, a linguagem é tida como um trabalho tanto linguístico quanto


subjetivo porque envolve sujeitos (que elaboram a realidade por meio de suas percepções)
que realizam operações que constroem significados linguísticos com a língua, numa dada
situação (espaço) e num dado momento (tempo). Assim, o que interessa para essa teoria
é o funcionamento da atividade de linguagem, o modo particular de organização e
agenciamento das formas, concepção essa que compreende a variação como um processo
inerente à língua. A linguagem é entendida como atividade simbólica que implica uma
relação entre representação mental, processos referenciais e regulação. Conforme
Campos (1997):

É tarefa do linguista estudar o funcionamento da linguagem enquanto atividade


significante de representação, isto é, enquanto atividade de produção e
reconhecimento de formas linguísticas. A atividade de linguagem é, assim,
encarada como tendo lugar num espaço instersubjectivo em que dois sujeitos
enunciadores – enunciador origem e coenunciador – são condição constitutiva
da própria enunciação. (CAMPOS, 1997, p. 167)

Culioli (1990) explica que o conceito de enunciador está em uma relação de


alteridade para com o coenunciador de tal forma que possa haver aproximação ou
separação entre ambos. Por outro lado, o locutor e o interlocutor estão sempre separados
e não devemos confundir o campo intersubjetivo (no qual o sujeito se refere ao
enunciador) com a mecânica interlocutória, ou seja, a coenunciação para Culioli (1999a)
é o conjunto de relações complexas que envolvem os interlocutores por meio da
linguagem; a referenciação não é polarizada, ou seja, não é nem neutra nem objetiva, ela
(a referenciação) se instaura “num entre”, isto é, no processo mediado pelos sujeitos de
construção e reconstrução de significação.
Para ele, a tradicional separação entre léxico e gramática interfere no
entendimento da Categoria Gramatical Tempo, pois podemos não ter distinção de tempo
no sistema verbal, mas ter uma oposição do tipo antes/agora/depois, ou
ontem/agora/amanhã que terá um papel complementar cada vez que for necessário marcar
a distinção. Culioli (1999a) explica que nossa experiência a mais cotidiana nos mostra
que essa separação gramática-léxico não se sustenta. Sousa (2007) complementa:

Assim, uma categoria como o tempo, por exemplo, resulta da correspondência


entre um conjunto de marcadores e uma representação a que chamamos noção
gramatical. Obtém-se, assim, uma dupla relação não simétrica entre as noções
e os marcadores, o que evidencia uma distanciação desta abordagem em
relação à tradicional concepção de categoria, entendida no sentido de uma
etiquetagem rígida. (SOUSA, 2007, p. 40)

Dessa forma, para Culioli (1999a), a temporalidade vai ser fundada sobre a classe
ordenada de instantes, sobre a construção de localizadores e sobre a construção de
intervalos localizados sobre a classe de instantes. Culioli (1999a) explica que o trabalho
do linguista consiste em mostrar que os sistemas específicos de tempos verbais somente
são casos possíveis de representações (no sentido de traços) que não invalida a invariância
de nossa representação cognitiva da temporalidade. A Temporalidade em termos de
33

categoria pura não existe, pois se trata de um sistema complexo de representação em que
se misturam tempo, aspecto, modalidade e determinação (esta última refere-se às
operações pelas quais nós construímos “ocorrências” de representações nocionais que
situamos no espaço topológico de referência intersubjetiva).
Abordamos o Tempo na visão de Culioli (1990) no texto Biografia, o qual a
princípio parece tão simples de ser elaborado, pois já se parte de uma forma pré-
estabelecida que veicularia um referido sentido temporal, mas quando o aluno está
operando com os elementos linguísticos para produzir o seu texto, e por conseguinte,
construir significação, esse aluno muitas vezes têm dificuldade para agenciar formas que
construam as coordenadas temporais necessárias para a produção de um determinado
gênero textual. Vejamos.

Texto do aluno7

Maria das Graças ou Xuxa como é chamada, nasceu em Santa Rosa, no interior do Rio
Grande do Sul. No entanto, seu pai era militar, sua família mudava de cidade com bastante
frequência. Maria das Graças tem outros quatro irmãos e foi um deles “Bladimir” quem
inventou, em 1998 a loira adicionou ao seu registro civil.
[...]
Hoje a Xuxa mora em São Paulo, trabalha na Emissora Record, fez o “Programa Dancing
Brasil”, sua filha Sasha Meneghel mora nos Estados Unidos (EUA). Alguns meses atrás
quando a “Rainha dos Baixinhos” vinha para a inauguração da “Casa X” quando
estava no seu avião falando com a Sasha “sua filha” o seu avião foi atingido por um
raio mas ela passa bem.

“Alguns meses atrás quando a Rainha dos Baixinhos vinha para a inauguração da Casa X
(T ₁) / quando estava no seu avião (T₂) / falando com Sasha sua filha (T₃) / o seu avião
foi atingido por um raio (T₄) / mas ela passa bem (T₅)”.

No trecho acima, temos T₁ localizando T2 que por sua vez localiza T₃ e este
localiza T₄ e T₄ localiza T₅; porém, entre T₄ e T₅ há uma ruptura temporal. Dessa forma,
reconhecemos duas informações, ou melhor, dois sistemas temporais representados:
Sit₁: S₁ (Xuxa), T₁ (hoje), E₁ (São Paulo) < Xuxa ser X (morar/ trabalhar/ apresentar/ ter
filha) >
Sit₂: S₂ (Xuxa), T₂ (vir), E₂ (a algum lugar) < Xuxa vir para Y (vir inaugurar a Casa X
[onde?])
Podemos perceber que há um T₁ (hoje) determinado e um T₂ (não hoje)
indeterminado. No Sit₂ exige uma determinação do espaço para que fique clara a

7
Submetemos a nossa pesquisa ao Comitê de Ética da UFSCar em maio de 2018 e o número do parecer é
2.679.436
34

informação apresentada pelo aluno. O que acontece é que o aluno ao produzir a Biografia
da Xuxa insere uma informação da notícia veiculada pela mídia em dezembro de 2016:
“Xuxa ao vir para Teresina no dia 05/12/2016, teve o seu avião atingido por um raio e
por isso precisou fazer um pouso de emergência em Brasília e dessa forma a ida a Teresina
foi adiada.”
Dessa forma, o aluno introduz uma informação, porém, não prepara “a cena
enunciativa” para situar a nova referenciação e por isso há esse hiato entre o que estava
sendo predicado e o que passa a ser predicado e, além disso, traz o seu julgamento. Isso
é identificado pela marca “mas” e o tempo presente do verbo “passar” acompanhado de
“bem”: mas ela passa bem.
Entendemos que o presente nesta ocorrência desempenha uma função textual,
modulando o grau de relevância do acontecimento na visão do Sujeito Enunciador que é
o aluno.
Assim, o aluno teria que ter feito essa passagem:

Sit₁: < Xuxa ao vir a Teresina teve o seu avião atingido por um raio > Sit₂ < Xuxa
precisou fazer um pouso de emergência em Brasília e < eu acho/penso/julgo > [ que nada
grave aconteceu e por isso] Sit₃ < Xuxa está/passa/ encontra-se bem >

Faz-se necessário, na prática de sala de aula, a criação de um espaço para que haja
a discussão entre professores e alunos desses “fenômenos” que acontecem no trabalho de
produção textual. Faz-se necessário um trabalho que explore a manipulação dos
mecanismos linguísticos enunciativos e discursivos que subsidiem a compreensão do
aluno para a forma como se dá a construção da significação por meio as relações léxico-
gramaticais que se entrelaçam para a construção de sentido na produção e/ou
interpretação textual e, que, por conseguinte, promova o desenvolvimento da
competência discursiva do discente.
Dessa forma, o texto do aluno exemplifica bem o ensino instrumental da produção
textual; pois, percebemos que na prática, ainda que o ensino de redação leve o aluno a
reproduzir uma dada estrutura/modelo para a obtenção de um determinado gênero (no
caso, a Biografia), questões de deslocamentos como as que apresentamos aqui, às quais
o ensino precisa responder, não encontram lugar nesta abordagem.
E a nossa perspectiva vai de encontro a essa proposta já consolidada nas escolas,
tendo em vista que, apoiando-nos na TOPE, defendemos que o ensino-aprendizagem de
produção textual deva explorar a atividade de linguagem do educando, levando-o a refinar
seus processos linguísticos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta inicial deste estudo foi confrontar os posicionamentos epistemológicos


de dois importantes linguistas - Benveniste e Culioli – no que cada um fundamenta por
enunciação e observar pontos divergentes e pontos comuns entre os linguistas.
35

Em se tratando do ensino de língua, assumir a enunciação em termos operativos,


como propõe Culioli, possibilita realizar ações pedagógicas inclusivas e dinâmicas em
sala de aula uma vez que se leva em consideração a atividade de linguagem que se
manifesta nos textos. No caso do ensino de produção de textos, a proposta analítica aqui
apresentada defende que para além do ensino de coordenadas enunciativas definidas a
priori para a elaboração dos gêneros textuais, posicionamento normalmente adotado nas
aulas de redação, é mais produtivo e eficaz uma prática que leva o aluno a refletir sobre
a atividade de linguagem, ou seja, sobre o trabalho operativo cognitivo que o sujeito-
enunciador realiza no processo de tessitura dos seus textos.
Esse tipo de reflexão revela que aquilo que se projeta como caracterização típica
para a produção dos gêneros, aqui em específico, abordamos o valor de localização
temporal típico das Biografias, não é decorrente do emprego específico de uma ou outra
marca linguística empregada pelo sujeito-enunciador; mas sim, pela operação complexa
de representação, referenciação e regulação entre as marcas linguísticas ativadas pelo
produtor do texto para a construção de sentido pretendido. Por vezes, a caracterização
estabelecida a princípio do que pode ou não aparecer nos gêneros em nada contribui para
o refinamento da capacidade comunicativa dos sujeitos porque não permite que ele reflita
sobre o seu próprio pensar. Dessa forma, acreditamos que este procedimento responde à
produção dos alunos, seja nos exercícios de escrita ou de interpretação textual, que devem
ser referenciais para o trabalho a ser aplicado no ensino com vistas ao desenvolvimento
linguístico-cognitivo dos aprendizes.
Na descrição do campo de ocorrência em que concorrem os sintagmas chegar em
e chegar a, pretendemos também propiciar novos instrumentos para o ensino do uso de
tal marcador em sala de aula, que se afaste das meras prescrições normativas do “certo”
e do “errado”. Foi o que se empreendeu na parte prática deste trabalho, em que a
concorrência entre as formas chegar em e chegar a foi analisada considerando-se ambas
como marcas de operações de construção de sentido, o que permite explorar, criativa e
reflexivamente, a atividade de linguagem realizada pelos alunos em sua prática
linguageira diária.

6. REFERÊNCIAS

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_________. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes, 1989.

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Fundamental. Terceiro e quartos ciclos. Brasília: MEC/SEF, 1998.

CAMPOS, Maria Henriqueta Costa. Tempo, Aspecto e Modalidade. Estudos de


Linguística Portuguesa. Lisboa: Porto Editora, 1997.

CULIOLI, Antoine. Pour une linguistique de l’ énonciation. Tome 1, Paris: Ophrys,


1990.

___________. Pour une linguistique de l’ énonciation. Tome 2, Paris: Ophrys, 1999a.


36

___________. Pour une linguistique de l’ énonciation. Tome 3, Paris: Ophrys, 1999b.

CORREIA, Clara Nunes. Estudo de determinação: a operação de quantificação-


qualificação em sintagmas nominais. Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.

DE VOGÜÉ, FRANCKEL e PAILLARD. Linguagem e enunciação: representação,


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referenciação e regulação. São Paulo: Contexto, 2011.

HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaisss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2009.

ROMERO, Márcia. A atividade de reformulação enunciativa como fundamento para uma


prática reflexiva. In: DEL RÉ, A., KOMESU, F., TENANI, L. & VIEIRA, A. J. (Org.).
Trilhas linguísticas. nº 23, São Paulo: Cultura Acadêmica, p. 137-153, 2013.
SOUSA, Otília da Costa. Tempos e Aspecto: O Imperfeito num corpus de aquisição.
Lisboa: Edições Colibri – Instituto Politécnico de Lisboa, 2007.
37

3
UMA CARTILHA DE ORIENTAÇÃO DO TRABALHADOR SOB A
PERSPECTIVA DA METÁFORA CONCEPTUAL

Jaciara Carvalho Costa8


Monica Fontenelle Carneiro9

1. INTRODUÇÃO

Neste artigo, buscamos, de forma breve, apresentar a análise de algumas


expressões linguísticas presentes em um texto técnico utilizado para instrução laborativa
de trabalhadores da indústria química, tomando como pressuposto teórico a linguística
cognitiva e a Teoria da Metáfora Conceptual. Esse texto técnico de instrução é uma
cartilha desenvolvida pelo Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, em parceria com a
Fundação Jorge Duprat e Figueiredo – FUNDACENTRO, no ano de 2001, para fins de
instrução ao trabalhador, com o objetivo de orientá-lo sobre os riscos ocupacionais a que
está exposto, bem como de alertá-lo sobre as possíveis formas de prevenção de doenças
e preservação de sua saúde, ofertadas por seu empregador e garantidas pelas entidades
governamentais incumbidas do assunto. A cartilha, logo em sua abertura, faz referência
à relação entre o trabalho e a saúde, demonstrando a natureza perigosa de alguns tipos de
trabalhos e que, por essa razão, os trabalhadores precisam estar bem informados acerca
dos riscos que podem afetar sua saúde e da forma como devem se manter seguros diante
de tais riscos.
A estrutura textual de A cartilha O trabalhador do chumbo não é de ferro é, em
certa perspectiva, inovadora nesse mundo técnico-normativo, pois, embora reporte
instruções ao trabalhador, foi elaborada em versos. Assim, diferentemente do que tal
estrutura textual possa inicialmente suscitar, o texto foi desenvolvido por meio de
linguagem objetiva, de modo que somente em alguns pouquíssimos trechos se faz
perceber a linguagem subjetiva.
Para procedermos à análise a que nos propomos nesse trabalho, detivemo-nos em
abordagem pautada na linguística cognitiva (LC), à luz da Teoria da Metáfora Conceptual
- TMC, que tem como principais propagadores Lakoff e Jonhson (1980). Tendo em vista
tais pressupostos teóricos, buscamos demonstrar que, mesmo se tratando de instrução
técnica em uma junção de linguagem objetiva e subjetiva, é possível verificarmos a
presença da metáfora conceptual em diversas partes do texto, confirmando o princípio da
TMC, a qual intenciona evidenciar que a linguagem metafórica está na base da linguagem
humana e vincular a construção do significado às estruturas mentais e à experiência
corporal do ser humano no mundo.

8
Mestra em Letras pela Universidade Federal do Maranhão, Especialista em Educação Especial pela
Faculdade Santa Fé, Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Maranhão. Professora de Língua
Portuguesa no Ensino Fundamental na rede municipal de São Luís – MA. Membro dos Grupos de Pesquisa
GELP-COLIN/UFC-UFMA, GEPELL/UFMA e GEFORLIN/IFMA,atuando nos projetos de pesquisa
MetBib e Mãe Terra.
9
Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará, Mestra em Linguística pela Federal do Ceará,
Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino das Línguas Materna e Estrangeiras e em Língua Inglesa
pela Universidade Federal do Maranhão, Professora do Departamento de Letras e dos Programas de Pós-
Graduação em Letras -PGLetras e PGLB - assim como do Programa de Pós-Graduação em Direito, todos
da Universidade Federal do Maranhão.
38

A estruturação deste artigo foi desenvolvida da seguinte maneira: a)


contextualização das normas técnicas no mundo do trabalho industrial; b) retomada
conceitual da Linguística Cognitiva – LC, e da c) Teoria da Metáfora Conceptual - TMC
; d) descrição da metodologia adotada para a coleta do corpus e análise dos dados; e)
análise e discussão de algumas metáforas conceptuais presentes na Cartilha; finalizando
com f) algumas considerações a que chegamos baseadas nas análises realizadas.

2. UM POUCO DO UNIVERSO TÉCNICO FORMATIVO DO TRABALHADOR


NA INDÚSTRIA BRASILEIRA

A Revolução Industrial iniciada na Europa nos fins do século XVII e início do


século XVIII, chegada ao Brasil somente nas primeiras décadas do século XX, trouxe
transformações tecnológicas e a consequente reestruturação nas instâncias empresariais,
fazendo-se perceber, nesse momento histórico, que as formas modernas de organização
do trabalho não ficaram alheias à relação entre linguagem e trabalho, mas influenciam-
na, positiva ou negativamente, na construção e afirmação da identidade do trabalhador,
como afirma Sousa-e-Silva (2002, p. 61 )

Atualmente, com a automatização e a informatização dos meios de produção,


o funcionamento cotidiano e rotineiro nas diferentes organizações de trabalho
baseia-se cada vez mais nas atividades simbólicas [...] vem implicando
progressivamente todos os níveis hierárquicos nas atividades de fala (Girin,
1990) e os documentos escritos (no papel ou na tela) não param de crescer (...).
Fala-se, cada vez mais, de comunicação externa e interna, de inter-
compreensão; nesse contexto, o mal entendido, o não dito, a interpretação
inadequada, a retenção de informações influem nas relações de trabalho.

Ainda assim, diante desse contexto tão veloz de interação na comunicação iniciada
com Revolução Industrial e que vem se solidificando na sociedade contemporânea, é tema
de escassos estudos conduzidos pelas ciências da linguagem, que ainda tão
espaçadamente se detêm a explicar fatores motivadores do distanciamento entre
linguagem e questões de trabalho, como segue afirmando Sousa-e-Silva (2002, p. 62)

Alguns motivos [...] ajudam a compreender um pouco esse distanciamento. O


primeiro tem a ver com a ideia enganosa daquilo que poderia chamar a
‘transparência da linguagem’, isto é, a crença segundo a qual tudo aquilo que
é dito seria compreendido como tal pelo interlocutor; o segundo está ligado à
história da própria Linguística, cujo domínio da pesquisa ficou longo tempo
voltado para o estudo iminente da língua [...] Finalmente, as atividades do
linguista estiveram, por tradição e durante muito tempo, vinculadas às
instituições escolares.

Dessa forma, ao longo das últimas décadas, pouco a pouco, essa relação vem
sendo abordada em grupos de pesquisa no território brasileiro, entre eles o grupo Atelier
dos programas de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem –
LAEL da PUC- SP e de Pós-Graduação de Letras (Linguística) da UERJ, como ressalta
Sousa-e-Silva (2002).
39

Não podemos deixar de esclarecer também que, com o advento das novas relações
de trabalho que se estabeleceram após a revolução industrial, que, como já suscitado no
início deste texto, no Brasil só tomaram corpo na década de 1934 com o governo Vargas,
o acesso ao conhecimento pelo trabalhador foi fomentado, em especial, pelas ideias
defendidas por Gramschi, tal pensamento é verificado em Galli et al (2011, p. 24) ao
relatarem que “a intelectualidade humana sempre está em ação no desenvolvimento de
atividades, na formação de ideias, na elaboração de novas estruturas, as quais são
contextualizadas e determinadas por mecanismos sociais, por normas e obrigações que
estruturam as instituições”, reforçando as ideias gramschinianas.
Na ebulição dessas transformações sociais envoltas nos princípios
gramschinianos, o Brasil, em 1978, veiculou a primeira coleção de normas técnicas em
defesa da saúde e segurança dos trabalhadores, visto que com o cenário de
industrialização surgiram também os problemas relacionados à segurança, doenças e
agravos causados pelos tipos de atividade decorrentes da implantação de novas ações
laborais. Essa coleção de normas técnicas foi denominada de Normas Regulamentadoras
– NR. De acordo com Galli et al. (2011, p. 32), a partir desse período, essas normas,
juntamente com outras leis complementares, portarias, decretos e convenções
internacionais ratificadas pelo Brasil deram corpo à Política Nacional de Segurança e
Saúde no Trabalho desenvolvida em nosso país.
O governo brasileiro após iniciar gestão em parceria com Organização Mundial
do Trabalho – OIT , em 1964, com o intuito de promover estudos e avaliações na área de
saúde e segurança, instituiu a criação da FUNDACENTRO - Fundação Jorge Duprat e
Figueiredo, que em 1974 foi vinculada pelo Governo brasileiro ao Ministério do
Trabalho. Esse órgão normativo, desde então, funciona em regime tripartite, com
representantes do governo, dos trabalhadores e dos empresários. E, além das Normas
Regulamentadoras, é responsável pela elaboração de uma diversidade de instruções
técnicas de caráter educativo, em matéria de saúde e segurança ocupacional, para
trabalhadores e empresários. Entre esse rol de instruções está a cartilha (ver Figura 1) que
contém o corpus de análise foco deste artigo.

Figura 1 - Capa da Cartilha O trabalhador do chumbo não é de ferro

Em O trabalhador do chumbo não é de ferro, o princípio educativo, com fins


técnicos, é estabelecido logo no início da Cartilha quando seus autores explicam o que é
a entidade discreta trabalho “O trabalho é algo muito importante para as pessoas. Pelo
40

trabalho, homens e mulheres adquirem uma profissão, muitas vezes aprendem atividades
que desenvolvem a inteligência e muitas habilidades” (FUNDACENTO, 2001, p.7).
Como demonstraremos mais à frente, nesse trecho a linguagem metafórica conceptual
está fortemente presente, como característica de nossa experiência com o mundo e da
formação do nosso sistema conceptual ordinário.

3. RETOMADA CONCEITUAL: PRINCÍPIOS NORTEADORES DA


LINGUÍSTICA COGNITIVA- LC

Ainda considerada como ciência relativamente nova, quando comparada a outras


áreas do conhecimento, a Linguística Cognitiva - LC adentrou aos estudos científicos na
década de 1980 como superação à da Linguística Gerativista, de Chomsky. Para Ferraz
(2011) a LC é uma nova vertente da linguística, representada inicialmente por um grupo
particular de estudiosos, entre os quais se destacam George Lakoff, Ronald Langacker,
Leonard Talmy, Charles Fillmore e Gilles Fauconnier. Sua função basilar é explicar como
se dá a aquisição e o processamento da fala (SOUSA, 2017), bem como o desvendamento
da construção do significado das formas (significante), enfatizando que o sentido não
pode ser explicado somente pela linguagem, mas é resultado de uma ação de interação
entre a mente humana e suas experiências com o mundo, conforme discorre Sousa (2017,
p. 11-12)

[...] O significado se constrói através da consideração da realidade da mente e


do uso. [...] A realidade existe, mas não independe de nós. O modo como a
percebemos depende de nossa contingência biológica e cultural, além de nossa
cognição. [...] A experiência é a base para o conhecimento, o contexto participa
da construção da linguagem.

Os seguidores dessa ciência defendem que, para LC, as experiências humanas


adquiridas pela interação corporal com o mundo, bem como as derivadas de cada cultura
da qual o ser humano faz parte, atuam decisivamente na construção da linguagem.

[...] É nessa mescla que se constitui a singularidade da espécie humana e, dentro


da espécie, a singularidade de culturas diferentes, que lidam com o mundo de
forma diferente e de comunicam de formas distintas. (SOUSA, 2017, p. 12)

A construção de linguagem humana compreendida dessa maneira vai de encontro


aos princípios propagados pela corrente da linguística gerativa, para a qual o homem já
traz consigo mecanismo biológico específico e suficientemente responsável pelo
desenvolvimento da linguagem, o qual foi denominado de faculdade da linguagem no
sentido estrito – NFL.
Não podemos desconsiderar a existência e a operação dos aparatos biológicos
necessários à aquisição e ao desenvolvimento da linguagem verbal (fala), contudo, para
os cognitivistas, tais aparatos têm relação direta e indissociável com a interação com o
mundo externo no processo de construção da linguagem humana, como enfatiza Sousa
(2017, p. 13)
41

Temos áreas cerebrais que são predominantemente responsáveis pelas funções


ligadas à linguagem, mas não só essas áreas estão envolvidas no processo. Elas
se relacionam com outras ligadas a nossos sentidos básicos para expressar
reações, sensações e emoções ligas aos eventos pelos quais passamos.

A linguagem humana, assim compreendida, conforme reforça Sousa (2017),


resulta de fatores ligados aos domínios da biologia, cultura e imaginação, pois não
produzimos novas formas (significantes e significado) apenas pelo fato de ser possível,
mas porque elas são resultantes de nossas necessidades comunicativas, uma vez que
precisamos expressar situações e experiências que acontecem a todo tempo em nossas
vidas.
Chegamos assim, tomando por base essa premissa na construção da linguagem, à
diferenciação entre aquilo que a LC definiu como conhecimento de dicionário e como
conhecimento enciclopédico. O primeiro, amplamente utilizado pelos formalista-
gerativistas, considera o significado de um termo dissociado de outras áreas do
conhecimento; enquanto o segundo é a base da LC, que busca associar o contexto à
construção do significado por meio de relações interdisciplinares.
Para a LC, dessa forma, a escrita é fator determinante para o desenvolvimento da
linguagem humana. Para os cognitivistas, a escrita contribui com a categorização e a
construção de significados dos elementos do mundo desenvolvidos pelo homem,
considerando sua interação social e cultural “por meio de um código partilhado,
conseguimos comunicar nossas visões particulares em momentos distintos. [...] Construir
uma significação exige levar em conta o recorte social e interacional” (SOUSA, 2017, p.
16). Assim, ressalta Ferraz (2011, p. 14, grifos da autora)

A Linguística Cognitiva defende que a relação entre palavra e mundo é


mediada pela cognição. Assim, o significado deixa de ser um reflexo direto do
mundo, e passa a ser visto como uma construção cognitiva através da qual o
mundo é apreendido e experienciado. Sob essa perspectiva, as palavras não
contêm significados, mas orientam a construção do sentido.

Diante dessa concisa, mas imprescindível, retomada de conceitos da LC, podemos


concluir que, diferente do que foi disseminado pelo Gerativismo de Chomsky, um termo
linguístico não contém todo o significado em si mesmo, esse significado é construído a
partir do contexto de uso, como afirma Miranda (2002, p. 61) “o significante é apenas
uma pista suscitadora das etapas semântico-cognitivas-sociais da linguagem”. Tanto
assim, que um termo, uma expressão ou sentença podem assumir diferentes significados
dependendo do contexto e de quem os produzem.

4. TEORIA DA METÁFORA CONCEPTUAL – TMC: RETOMANDO ALGUNS


PRINCÍPIOS
42

A metáfora habitualmente era e, para alguns, continua sendo apenas uma figura
estilística, como um adorno da linguagem, sendo há séculos tratada sob a visão
aristotélica. De acordo com essa visão, a metáfora, e outras espécies de linguagem
figurada, são próprias da comunicação poética e da persuasiva (ZANOTTO et al, 2002).
Na década de 1970 aconteceu, o que passou a ser conhecido como uma virada
paradigmática na ciência linguística, pois a metáfora, até então considerada como desvio
da linguagem objetiva, rompe com o pressuposto fundamental do objetivismo linguístico,
que considerava a linguagem como espelho da realidade objetiva, em que o ser humano
tem acesso a verdades absolutas e incondicionais sobre o mundo por meio dessa
linguagem. Assim, a partir de então, a metáfora passa a ser entendida como operação
cognitiva imprescindível na construção de nosso pensamento e de nossa ação linguística
(COSTA; CARNEIRO, 2019, p.144), de forma que para Ortony (1993, p. 2, apud
LAKOFF, JOHNSON, 2002, p. 13) a ideia central desse novo paradigma “é de que a
cognição é resultado de uma construção mental [...] (sendo que) o conhecimento da
realidade tem sua origem na percepção, na linguagem ou na memória, precisa ir além da
informação dada”. Portanto, entende-se que a construção de sentido emerge da interação
entre a informação com o conhecimento preexistente do sujeito (COSTA; CARNEIRO,
2019, p.144).
Em 1980, dessa forma, é lançada a obra “Metaphors we live by” de Lakoff e
Johnson, popularizada como o marco desse novo paradigma, obtendo sua tradução para
o português somente em 2002. Essa obra revoluciou as bases das pesquisas sobre
metáfora, visto que esses autores, debruçaram-se em análises de expressões linguísticas,
e postularam a existência de metáforas conceptuais (MC) responsáveis pelas construções
de nosso pensamento e de nossa ação linguística. Segundo esses autores, as metáforas
conceptuais são presentes em nossas experiências cotidianas, influenciando nossa forma
de pensar e de agir quando nos comunicamos, princípio presente nos estudos da TMC,
como em Zanotto et al. (2002, p. 21) que o ratificam ao expressarem que “a linguagem
cotidiana é densamente metafórica e parcialmente literal”.
Zanotto et al. (2002) reforçam, também, que a análise realizada por Lakoff e
Johnson da metáfora conceptual DISCUSSÃO É GUERRA, presente em diversas
expressões linguísticas do cotidiano, demonstra que as MC “não são aleatórias, mas
formam um todo coerente”. Essa conclusão, de acordo com Costa e Carneiro (2019), foi
estabelecida porque Lakoff e Johnson (2002, p. 46) conseguiram evidenciar que essa MC
faz parte do sistema ordinário do pensamento e da linguagem, pois a identificaram em
diversas expressões linguísticas usadas costumeiramente relacionando discussão à guerra,
com em “Seus argumentos são indefensáveis”; “Jamais ganhei uma discussão com ele”;
“Destruir sua argumentação”. Complementando, esses autores esclarecem que:

É importante perceber que não somente falamos sobre discussão em termo de


guerra. Podemos realmente ganhar ou perder uma discussão. Vemos as pessoas
com quem discutimos como um adversário. Atacamos suas posições e
defendemos as nossas. Ganhamos e perdemos terreno. Planejamentos e usamos
estratégias. Se achamos uma posição indefensável, podemos abandoná-la e
colocar-nos numa linha de ataque. Muitas das coisas que fazemos numa
discussão são parcialmente estruturadas pelo conceito de guerra. Embora não
haja batalha física há uma batalha verbal, que se reflete na estrutura de uma
discussão – ataque, defesa, contra-ataque etc. É nesse sentido que
DISCUSSÃO É GUERRA é uma metáfora que vivemos na nossa cultura; ela
estrutura as ações que realizamos numa discussão. (LAKOFF, JONHSON
2002, p.47, grifos do autor)
43

4.1 DOMÍNIO-FONTE E DOMÍNIO-ALVO

Para fins de encadeamento dos pressupostos teóricos alavancados pela TMC,


trazemos nessa seção alguns conceitos básicos, mas necessários à discussão em torno
dessa teoria.
Começamos, então, pontuando antes de tudo que, conforme descrito por Lakoff e
Johnson (2002), o termo metáfora é o mesmo que conceito metafórico. Passemos, pois,
a discutir como se apresenta estruturalmente uma metáfora conceitual, de acordo com
esses mesmos autores, a MC deve ser grafada em letras maiúsculas no formada
DOMÍNIO ALVO É DOMÍNIO FONTE, como é O AMOR É UMA VIAGEM, enquanto
que as expressões linguísticas que dão origem a essa MC devem ser grafadas em letras
minúsculas como em “Decidimos tomar caminhos diferentes, porque nossa relação
acabou” (FERREIRA, 2008, p. 266) e em “Com tanto amor, seguiremos juntos até o fim”
(CARNERO, 2014, p.82).
Importante ressaltar também que a MC nos levam a compreender uma coisa em
termos de outra (LAKOFF E JOHNSON, 2002), i.e, partimos de um domínio fonte, que
geralmente possui características mais passíveis de mensuração e evidência concreta em
nossa relação com o mundo, para um domínio alvo, que por sua vez apresenta-se com
características mais abstratas. É o que, com certa facilidade, fazemos com o termo
GUERRA (fonte), ou seja, por já conhecermos os adjetivos e condições de existência de
uma guerra, ainda que literalmente não tenhamos experenciado presencialmente uma,
utilizamos aspectos para construir significação para o termo DISCUSSÃO (alvo).

4.2 A TMC E OS TIPOS DE METÁFORAS

Seguindo o que inicialmente apresentamos em Costa e Carneiro (2019),


retomamos aqui, ainda que de forma breve, mas com o intuito de deixar os conceitos mais
aparentes nas análises propostas neste trabalho ora apresentado, a classificação apontada
por Lakoff e Johnson (2002) para as metáforas conceptuais. Sendo elas do tipo estrutural,
orientacional e ontológica.
As MC do tipo DISCUSSÃO É GUERRA foram denominadas por Lakoff e
Johnson (2002) como estruturais porque, segundo tais metáforas, podemos compreender
e experienciar uma coisa em termos de outra, nesse exemplo específico experienciamos
a discussão como se fosse uma guerra. Além desse tipo de MC, os autores registraram
também outros dois tipos: as orientacionais e as ontológicas. Faremos sucinta explanação
acerca de cada uma delas com o intuito de darmos base à análise de nossos dados, que se
fará à luz da metáfora conceitual do tipo ontológica.
Para iniciarmos nossas considerações sobre as MC orientacionais e ontológicas,
cabe-nos reforçar o postulado defendido por Lakoff e Jahnson (2002, p. 57) em
“Metaphors we live by” de que “quando dizemos que um conceito é estruturado por uma
metáfora, queremos dizer que ele é parcialmente estruturado e que ele pode ser expandido
de algumas maneiras e não de outras”. Tal critério é fundamental para a compreensão das
metáforas orientacionais e, em especial, das ontológicas.
44

As metáforas orientacionais, como é sugerido pela própria denominação, em sua


grande maioria, referem-se a conceitos de orientação espacial do tipo: para cima – para
baixo, centro – periférico, dentro – fora, frente – trás etc. Lakoff e Johnson (2002, p. 69-
70) defendem que a metáfora orientacional

[...] organiza todo um sistema de conceitos em relação a um outro. [...] O fato


de o conceito FELIZ ser orientado PARA CIMA leva a expressões como
“Estou me sentido para cima hoje” (I’m felling up today). Tais orientações
metafóricas não são arbitrárias. Elas têm base na nossa experiência física e
cultural.

Cabe enfatizar que, segundo a argumentação desses estudiosos, as MC estruturais


têm sua compreensão fundamentada em nossas bases culturais, uma vez que em cada
cultura um conceito pode ser compreendido de forma diferente, como exemplo cita o par
frente – trás, vejamos:

Embora as combinações binárias para cima – para baixo, dentro – fora, etc
sejam físicas em sua natureza, as metáforas orientacionais baseadas nelas
podem variar de uma cultura para outra. Por exemplo, em algumas culturas, o
futuro está adiante de nós, enquanto, em outras, está atrás de nós. (LAKOFF,
JOHNSON, 2002, p. 60).

Existem também as metáforas ontológicas, que diferente de nos fazer entender


conceitos com base em orientação e espacialização, leva-nos a compreender nossas
experiências a partir de nossa relação com objetos e substâncias, conforme é discutido
por Lakoff e Johnson (2002, p. 76):

Da mesma forma que as experiências básicas das orientações espaciais


humanas dão origem às metáforas orientacionais, as nossas experiências com
objetos físicos (especialmente com nossos corpos) fornecem a base para uma
variedade de extremamente ampla de metáforas ontológicas, isto é, formas de
se conceber eventos, atividades, emoções, ideias etc. como entidades e
substâncias.

Essa espécie de metáfora, de acordo com esses autores, são tão naturais e tão
onipresentes em nosso pensamento que normalmente são consideradas evidentes por si
mesmas. A metáfora MENTE É UM OBJETO QUEBRADIÇO, por exemplo, está
traduzida em expressões linguísticas de nosso cotidiano como em “Seu ego é muito
frágil”/ ( Your ego is vey fragile) ou “Eu estou em pedaços”/ ( I’m going to pieces).
De acordo com Lakoff e Johnson (2002), as metáforas ontológicas, assim como
as orientacionais, servem a propósitos diversos com fins também diversos, no entanto,
têm sempre por objetivo selecionar partes de nossas experiências com objetos e
substâncias, transformando-os em entidades discretas ou substâncias de uma espécie
uniforme, de modo que possamos “[...] referir-nos a elas, categorizá-las, agrupá-las e
quantificá-las – e, dessa forma, raciocinar sobre elas” (2002, p. 74). A partir dessa
compreensão, é que podemos, por exemplo, entender que a experiência vivida
45

socialmente de violência ou atos de cólera entre indivíduos da mesma comunidade ou de


comunidades diferentes, encaminha-nos para a metáfora ÓDIO É UMA ENTIDADE, em
que o substantivo ódio é considerado como uma entidade, e nossas vivências com o
mundo permite-nos quantificá-lo, medi-lo, (“Há tanto ódio nesse mundo”/ There’s so
much hatred in the world).
Lakoff e Johnson (2002) descrevem, contudo, que as metáforas ontológicas mais
facilmente identificáveis são aquelas em que os objetos são tratados como pessoas, isto
é, os objetos são personificados como em enunciados do tipo, “A vida me trapaceou”, “O
câncer finalmente o pegou”. Cabe-nos destacar que

A personificação é, pois, uma categoria geral que cobre uma enorme gama de
metáforas, cada uma selecionando aspectos diferentes de uma pessoa ou modos
diferentes de considerá-la. O que todas têm em comum é o fato de serem
extensões de metáforas ontológicas, permitindo-os dar sentido a fenômenos do
mundo em termos humanos, termos esses que podemos entender com base em
nossas próprias motivações, objetivos, ações e características. (LAKOFF,
JOHNSON, 2002, p. 88-89)

Carneiro (2009) destaca que Lakoff e Johnson (2002) exemplificam as metáforas


ontológicas inclusas nessa categoria da personificação fazendo uso da experiência do
aumento de preços. Assim, recorrendo ao substantivo inflação, personificam o aumento
de preços, isto é, passam a tratá-lo como a entidade inflação. A metáfora conceptual
INFLAÇÃO É UMA ENTIDADE possibilitam diversas referências a essa experiência
que, de outra forma, não seriam possíveis. Na sua explicação, recorrem a exemplos como:
A inflação corrói o poder aquisitivo; Se o governo não enfrentar a inflação, o povo vai
empobrecer cada vez mais; A inflação traz sérios danos à produção.
Encerramos esse tópico, reafirmando que, de acordo com o paradigma da TMC
revelado por Lakoff e Johnson (2002, p. 46), nosso sistema conceptual é
fundamentalmente metafórico, “o que experenciamos e o que fazemos todos os dias são
questão de metáfora”. Inferindo desse modo que, por estar presente essencialmente em
nosso pensamento, o “sistema conceptual humano é metaforicamente estruturado e
definido”. Por fim, para melhor compreensão ao longo de nossas análises, esclarecemos
que, para esses estudiosos, o termo metáfora é o mesmo que conceito metafórico. Nas
seções seguintes discorreremos sobre a metodologia que adotamos nesse trabalho e
procederemos com a análise de grupos de expressões linguísticas extraídos da cartilha
Trabalhador do chumbo não é de ferro, que resultam em conceitos metafóricos.

5. METODOLOGIA

O estudo ora apresentado, está baseado em investigação qualitativa de natureza


exploratória, cujo procedimento metodológico foi baseado em aporte bibliográfico, com
suporte em veículos físicos (livro impresso) e virtuais (artigos dispostos em plataformas
digitais da internet). Inicialmente, selecionamos alguns textos técnicos que abordavam a
relação segurança, saúde e trabalhadores industriais, ao final escolhemos a cartilha O
trabalhador do chumbo não é de ferro como material de coleta de nosso corpus de
análise. Após diversas leituras desse texto técnico, identificamos e destacamos as
46

expressões linguísticas de conceito metafórico, entre elas as que revelam MC do tipo


estruturais, orientacionais e ontológicas. Para o alcance do propósito estimado para esse
artigo, detivemo-nos naquelas que se apresentaram em maior quantidade ao longo do
texto – as ontológicas, selecionado uma em especial, que demonstra, de antemão, a
importância de tais metáforas no contexto de elaboração desse material de instrução e
orientação do trabalhador.

6. ANÁLISE E DISCUSSÃO DE DADOS

Após diversas leituras do texto selecionado, a cartilha O trabalhador do chumbo


não é de ferro, selecionamos três grupos com expressões linguísticas que resultam, em
nossa análise, na metáfora ontológica TRABALHO É ENTIDADE RESPONSÁVEL
PELA QUALIDADE DE VIDA DO TRABALHADOR. A seguir, discorremos sobre
cada uma dessas expressões e sobre como as associamos à metáfora ontológica elaborada.
A fim de esclarecer a forma de apresentação da metáfora ontológica e as
expressões linguísticas que a revelam, seguimos os padrões dispostos por Lakoff e
Jonhson (2002) em sua obra Metaphors we live by:
- escrito em caixa alta, está grafado o conceito metafórico (metáfora ontológica)
e,
- em letras minúsculas, estão registradas as expressões linguísticas associadas ao
conceito metafórico.

 Conceito metafórico: TRABALHO É ENTIDADE RESPONSÁVEL PELA


QUALIDAE DA VIDA DO TRABALHADOR

 Expressões linguísticas:

 “O trabalho também apoia a formação da personalidade”. (MINISTÉRIO DO


TRABALHO; FUNDACENTRO, 2001, p.7);

 “O lado ruim do trabalho que queremos mostrar tem a ver com a saúde de quem
trabalha”. (MINISTÉRIO DO TRABALHO; FUNDACENTRO, 2001, p.7)

 “O trabalho é perigoso à saúde?” (MINISTÉRIO DO TRABALHO;


FUNDACENTRO, 2001, p.12)

Esse grupo de expressões revela o “trabalho” transformado em uma entidade


discreta, relacionando-o a um ser humanizado capaz de servir aos propósitos vitais do ser
humano, desde a capacidade de contribuir para a formação de sua personalidade (1), como
se fosse algo inerente à constituição natural do indivíduo, como, inclusive, à garantia de
sua saúde (2).
Também no enunciado (2), percebemos, com alguma facilidade, como
características abstratas (as virtudes e as não virtudes), atribuídas originalmente a uma
pessoa, são transferidas para a entidade trabalho, de modo que o trabalho é tratado de
forma tão pessoal que é possível creditar seu lado bom e seu lado ruim.
47

Por fim, na expressão (3), ao trabalho é atribuída uma característica geralmente


pretendida ao ser vivo racional ou não racional, isto é, a atitude de ser perigoso, de atacar,
de prejudicar o organismo biológico do outro, construindo mais uma vez a significação
de que o trabalho é compreendido por nós como entidade discreta, visto que a ele são
atribuídos adjetivos não convencionados para objetos, substâncias ou entidades, mas ao
ser humano. Nessa perspectiva, o fato de bom ou ruim está relacionado ao sentimento
humano de se sentir ameaçado em sua vitalidade, algo que naturalmente só pode ser
realizado efetivamente por outro ser e não por algo abstrato como o trabalho, a força de
trabalho.
Após a breve demonstração da forma de como as três formas de manifestação
do pensamento humano, dentre aquelas que foram por nós selecionadas e analisadas,
podem ser relacionadas à metáfora ontológica TRABALHO É ENTIDADE
RESPONSÁVEL PELA QUALIDADE DA VIDA DO TRABALHADOR, podemos
reiterar que cada uma delas integra à relação trabalho e saúde do trabalhador um aspecto
específico, que juntos levam a entendimento mais completo dessa entidade discreta que
é o trabalho na vida do homem.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após breve análise das expressões linguísticas que orientaram a um conceito


metafórico, alcançado após o percurso teórico que fizemos ao longo desse texto, é
possível ratificarmos a máxima percussora da metáfora conceptual ao ser considerada
como mecanismo cognitivo na construção de nossas significações a partir de nossa
interação com o mundo e nossas experiências biológicas e corporais com esse mundo,
reafirmando o postulado da TMC de que nosso sistema ordinário do pensamento é
essencialmente metafórico e parcialmente literal, em outras palavras, o que
experienciamos todos os dias em nossa interação com o mundo se traduz em linguagem
metafórica, porque a metáfora faz parte do modo como conceptualizamos o mundo.
A metáfora ontológica extraída da cartilha O trabalhador do chumbo não é de
ferro acabou por reforçar a compreensão de que nossa experiência com substâncias e
objetos permite-nos tratá-los como entidades discretas detentoras de capacidades e
habilidades humanas. E, assim, sua presença majoritária no texto, embora no presente
trabalho tenhamos analisado apenas um único grupo constituído por três expressões
linguísticas em um universo bem mais extensivo de tais expressões, cumpre com a função
principal desse tipo de texto técnico-instrutivo, que é demonstrar ao indivíduo trabalhador
que ele, em suas experiências biológicas/físicas, sociais e com o mundo em seu entorno,
termina por admitir entidades, objetos e substâncias como detentoras de qualidades e
características próprias do ser humano. De forma que, na sua linguagem cotidiana, as
entidades significadas por esse indivíduo no seu espaço laborativo são apresentadas como
organismos discretos personificados, capazes de manifestarem sentimentos, qualidades,
virtudes e não virtudes etc., e se associam diretamente à formação de sua personalidade e
a suas experiências com o outro no mundo físico e cultural.
48

8. REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Monica Fontenelle. Dos manuais didáticos à compreensão do


aprendiz: a relevância da metáfora no ensino-aprendizagem de Inglês como Língua
Estrangeira (ILE). 2009. 240 f. (Dissertação de Mestrado em Linguística). Programa
de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009.
Disonível em: http://www.reositorio.ufc.br/handle/riufc/q. Acesso em 24 ago. 2020.

COSTA, Jaciara Carvalho; CARNEIRO, Monica Fontenelle. “O trabalhador do chumbo


não é de ferro”: Uma análise à luz da metáfora conceptual. In: PELOSI, Ana Cristina;
CARNEIRO, Monica Fontenelle (Orgs.). Linguagem e Pensamento: pesquisas,
reflexões e práticas. São Luís: EDUFMA, 2019.

FERRARI, Lillian. Introdução à Linguística Cognitiva. São Paulo: Editora Contexto.


2011.
FUNDACENTRO. Histórico. Disponível em
<http://www.fundacentro.gov.br/institucional/historia > Acesso em 18 jul.2019.

GALLI, Alessandra et al. A importância da atualização das normas técnicas nas


questões de saúde e a segurança dos trabalhadores. Educação e Tecnologia – Revista
Técnica-Científica Nacional. Paraná, nº 11, 2011, p. 22-45. Disponível em
<http://revistas.utfpr.edu.br/pb/index.php/revedutec-ct/article/view/1523/915 >. Acesso
em 18 de jul 2019.

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da Vida Cotidiana. Trad. Grupo de


Estudos da Indeterminação e da Metáfora, sob a coordenação de Mara Sofia Zanotto e
pela tradutora Vera Maluf. São Paulo: EDUC-Editora da PUC-SP; Campinas: Editora
Mercado de Letras, 2002 [1980].

MINISTÉRIO DO TRABALHO; FUNDACENTRO. Cartilha do Trabalhador: O


trabalhador de chumbo não é de ferro. 2001. 34 p.

MIRANDA, Neusa Salim. O caráter partilhado da construção da significação. Veredas.


Juiz de Fora, v. 5, n. 2, p. 57-81, 2002.

SOUSA, Fernanda Cunha. O que é a linguística cognitiva? Entretextos. Londrina, v.7,


n.1, jan/dez, 2017.

SOUSA-E-SILVA, Maria Cecília Pérez. A dimensão linguageira em situações de


trabalho. In: SOUSA-E-SILVA, Maria Cecília Pérez; FAITA, Daniel, (orgs).
Linguagem e Trabalho: construção de objetos de análise no Brasil e na França.
Tradução de Inês Polegatto e Délcio Rocha. São Paulo: Editora Cortez, 2002. p. 61-76.

ZANOTTO, Mara et al. Apresentação à edição brasileira. In: LAKOFF, George;


JOHNSON, Mark. Metáforas da Vida Cotidiana. Trad. Grupo de Estudos da
Indeterminação e da Metáfora, sob coordenação de Mara Sofia Zanotto e pela tradutora
Vera Maluf. São Paulo: EDUC-Editora da PUC-SP; Campinas: Editora Mercado de
Letras, 2002 [1980].
49

4
BRADOU: UM GLOSSÁRIO DE TERMOS E SOCIOTERMOS DO CORPO DE
BOMBEIROS MILITAR DO MARANHÃO

José Claudio Bezerra Pereira10


Georgiana Márcia Oliveira Santos11

1. INTRODUÇÃO

O principal elemento motivador do nosso trabalho é a emancipação administrativa


e operacional do Corpo de Bombeiros Militar do Maranhão, doravante CBMMA,
ocorrida em 1993 ̶ ano em que essa corporação deixou de ser subordinada à Polícia
Militar do Maranhão - PMMA e passou a funcionar como um órgão independente dentro
da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Maranhão ̶ uma vez que a hipótese
principal que desencadeou o nosso estudo se sustenta na produção de um léxico
especializado do CBMMA a partir de sua autonomia da PMMA e, consequentemente, do
desmembramento e especificações de suas atividades.
É oportuno destacarmos que, anteriormente a essa emancipação, existiam somente
3 unidades dentro dessa instituição e em, apenas, 2 municípios do Maranhão: o 1º
Grupamento de Bombeiros e a Seção de Combate a Incêndio em Aeronaves, ambas na
capital do Estado - São Luís, e o Grupamento de Bombeiros, em Imperatriz. Atualmente,
contudo, o CBMMA encontra-se em 18 municípios do Estado, mas, somente em São
Luís, essa instituição executa suas atividades em segmentos especializados12 além do
combate ao incêndio, tais como: busca, salvamento terrestre, emergência médica
(atendimento pré-hospitalar), resgate veicular, salvamento aquático e ambiental, incêndio
em aeródromo, resgate de cadáveres.
Acreditando, portanto, que as especificações das atividades do CBMMA geraram
um léxico especializado dentro dessa instituição, nos pautamos, para a análise desse
léxico, no conceito de unidades lexicais terminológicas defendido por Krieger e Finatto
(2004, p. 43). Segundo essas autoras, essas unidades são termos de estruturas linguísticas
que, em sua dualidade sígnica, denominam e circunscrevem cognitivamente objetos,
processos e conceituações pertinentes ao universo das ciências, das técnicas e das
tecnologias, e esclarecem que a palavra realiza esse mesmo processo denominativo e
conceitual, mas, para cobrir toda a abrangência das realidades cognitiva e referencial
apreendidas e construídas pelo homem. No caso em estudo, nossa atenção se voltou,
principalmente, para as unidades lexicais terminológicas de cada quartel especializado do
CBMMA, geradas pelas particularidades das atividades que cada quartel desempenha, e

10
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras – PGLetras pela Universidade Federal do
Maranhão. E-mail: bezerra.jose@discente.ufma.br
11
Doutora e Mestra em Linguística pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Professora do Curso de
Graduação em Letras Português/Espanhol e do Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGLetras.
Coordenadora do Projeto de Estudos e Pesquisas em Línguas, Memórias, Identidades e Culturas -
GELMIC/CNPq e Professora-Pesquisadora do Projeto Atlas Linguístico do Maranhão – ALiMA. E-mail:
georgiana.marcia@ufma.br
12
Utilizaremos tanto a designação segmentos especializados quanto unidades especializadas, batalhões
especializados e quartéis especializados para nos referirmos aos quartéis que compõem o CBMMA e
possuem atividades específicas e diferenciadas dentro dessa instituição.
50

intuímos que nesse léxico especializado há diferenças de uso entre homens e mulheres de
distintas faixas etárias.
As questões de investigação que balizaram nosso estudo para confirmar ou refutar
as hipóteses acima explicitadas são: a) quais são as unidades lexicais que, de fato,
particularizam as relações laborais dos profissionais do CBMMA? b) quais unidades
lexicais são mais frequentes e/ou específicas em cada um dos quartéis especializados? c)
os membros mais novos usam um léxico especializado diferente do usado pelos mais
velhos? d) há diferenças consubstanciais entre o léxico especializado usado por homens
e mulheres do CBMMA?
Consequentemente, esta pesquisa teve como objetivo principal a produção de um
glossário do léxico especializado do Corpo de Bombeiros Militar do Maranhão. Para
tanto, traçamos os seguintes objetivos específicos: a) levantamento de amostra do léxico
especializado do CBMMA com base em narrativas orais livres de profissionais da reserva
ou reformados13; b) elaboração de questionário, organizado em campos semânticos, a
partir dos dados coletados nas narrativas; c) definição do perfil dos informantes; d)
realização de entrevistas com base no questionário elaborado; e) transcrição das
entrevistas realizadas; f) levantamento e seleção dos termos para compor o glossário
especializado do CBMMA; g) análise dos dados com base no perfil dos informantes.
Fundamentamos esta pesquisa, sobretudo, nos estudos da Terminologia e da
Socioterminologia, desenvolvidos por Sager (1990), Cabré (1993), Faulstich (1995),
Isquerdo e Oliveira (2001), Barros (2004), Krieger e Finatto (2004), uma vez que esses
campos de investigação linguística nos possibilitaram o entendimento e a sistematização
das particularidades do léxico do CBMMA.
Metodologicamente, definimos como público-alvo dessa investigação os
profissionais das unidades especializadas de São Luís: o Batalhão de Bombeiros
Marítimos - BBMAR; o Batalhão de Bombeiros de Emergência - BBEM; o Batalhão de
Busca e Salvamento - BBS; o Batalhão de Bombeiros Ambiental - BBA; o 1º Batalhão
de Bombeiros Militar - 1º BBM; a Seção de Combate a Incêndio em Aeródromo - SCI e
a Academia de Bombeiros Militar “Josué Montello” - ABMJM.
São partícipes deste trabalho, tanto profissionais que estão na ativa nos batalhões
especializados quanto aposentados que já atuaram nas atividades operacionais
desenvolvidas em São Luís/MA, assim, envolvemos profissionais atuantes no período
que se estende de 1994 ̶ primeiro ano logo após a emancipação do CBMMA da PMMA
̶ até a atualidade (2019).
Mais especificamente, trabalhamos com militares da ativa com no mínimo 2 anos
e no máximo 30 anos de efetivo serviço, de ambos os sexos: 11 homens e 11 mulheres,
sendo que, entre os homens, 6 são reformados e 5 são da ativa, e as 11 mulheres são
somente da ativa14. Esses 22 sujeitos investigados foram divididos entre 3 faixas etárias:
a faixa etária 1: de 18 a 25 anos; a faixa etária 2: de 30 a 55 anos e a faixa etária 3: de 60
anos em diante.
Para obtenção dos dados, em um primeiro momento, conversamos com militares
reformados os quais, por meio de narrativas orais livres, forneceram elementos
norteadores para a elaboração do questionário usado nas entrevistas realizadas. Esse

13
Militares do CBMMA aposentados, ou seja, que já cumpriram no mínimo 30 de serviço efetivo.
14
Critério adotado em razão de o CBMMA não possuir, até o momento, mulheres na reserva remunerada,
ou seja, aposentadas, dada a inserção um tanto quanto recente de mulheres nessa instituição.
51

questionário foi constituído de 41 questões organizadas em 12 campos temáticos, são


eles: formação, acessórios/equipamentos, alimentação, armamentos, atividades
físicas/treinamentos, documentos oficiais, instalações, formas de tratamento, meios de
comunicação, transporte, produção de documentos e vestuário.
Baseados na hipótese do desenvolvimento de um léxico especializado dentro do CBMMA
após sua emancipação e segmentação de atividades, justificamos a importância do
presente trabalho ressaltando que, segundo as informações que temos até o presente
momento, existe somente um documento denominado IN 004 - Terminologias de
segurança contra incêndio, do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina – CBMSC,
criado em 2018, assim, nunca foi feita antes uma investigação mais abrangente sobre o
léxico especializado do Corpo de Bombeiros no Brasil, ou seja, para além da atividade de
combate a incêndio, e, em especial, sobre o léxico especializado do CBMMA, o que
corrobora a originalidade, pertinência e relevância deste trabalho. Outro motivo que
justifica a realização desta pesquisa é o nosso propósito em potencializar as interações
profissionais estabelecidas entre os segmentos especializados dessa corporação, no
Maranhão, dada a pertença de um dos autores a essa instituição investigada.
O presente trabalho tem sua relevância na medida em que seu resultado servirá de base
para a realização de novas pesquisas sobre o léxico especializado do Corpo de Bombeiros
em outros estados brasileiros focando a necessidade de interação entre os membros de
diferentes unidades do Corpo de Bombeiros no Brasil.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 O LÉXICO

O léxico constitui a principal fonte da memória coletiva dos valores, crenças,


tradições, atividades e demais especificidades que marcam as relações entre os integrantes
de um grupo social e desses com o mundo. Nesse sentido,

O léxico se manifesta em primeira instância como um fenômeno da memória de cada


indivíduo. Mas enquanto vai se alojando ao longo da vida, de maneira ilimitada, como
parte da língua que cada um recebe de sua comunidade linguística, não é um léxico
privado, mas aquela parte do grande acervo da língua histórica que se recebe durante o
aprendizado da língua e sua consequente educação. (LARA, 2006. p. 143).

O léxico de todo e qualquer grupo do qual fazemos parte é constituído em função


da co-atuação de diversos fatores – sociais, culturais, históricos, geográficos, temporais,
profissionais, entre muitos outros – que o impelem a uma dinâmica de (re) constituição
para atender às distintas demandas de interação comunicativa.

2.2 TERMINOLOGIA E TERMO


52

Segundo Barros (2004, p. 34), a cronologia histórica do termo terminologia teve


início, na Europa, em obras importantes como o Dictionnaire des sciences, des lettres et
des arts de Bouillet15, publicado em 1864, que definia terminologia como a “palavra que
designa um conjunto de termos técnicos de uma ciência ou de uma arte e das ideias que
elas representam”.
Para Rondeau (1984, p. 89), a terminologia abrange a delimitação de domínios e
subdomínios; delimitação da amplitude do trabalho (número aproximado de noções a
serem tratadas); estabelecimento e diferenciação de catálogo, compreendendo obras
lexicográficas e não lexicográficas; consultas permanentes de especialistas de área;
apresentação, segundo a ordem sistemática, acompanhada de índice alfabético;
preparação e difusão limitada de um manuscrito provisório, seguido de comentários;
acompanhamento de ilustrações no caso ou na matéria em questão.

Segundo Sager (1990, p. 03), a diversidade de definições atribuídas ao termo


terminologia requisita o entendimento de, ao menos, três noções fundamentais:

(1) A “terminologia” entendida como o sistema conceptual e de designações de alguma


especialidade técnica e cientifica, isto é, como um conjunto de termos técnicos ou
científicos. (2) “terminologia” entendida como o conjunto de métodos e práticas usadas
para coleta, descrição, processamento e apresentação de termos; (3) “terminologia”
entendida como o conjunto de premissas, argumentos e conclusões requeridos para
esclarecer os relacionamentos entre conceitos e termos, o que é fundamental para dar
coerência a atividade terminológica.

Já Cabré (1993, p. 52) nos apresenta a seguinte conceituação para esse termo:

A terminologia é, antes de tudo, um estudo do conceito e dos sistemas conceptuais que


descrevem cada matéria especializada; o trabalho terminológico consiste em representar
esse campo conceptual e estabelecer as denominações precisas que garantirão uma
comunicação profissional rigorosa.

Estabelecendo delimitações e interseções entre linguagens especializadas e


termos, Isquerdo e Oliveira (2001. p. 193) afirmam que as linguagens especializadas se
caracterizam pelo emprego da terminologia, que representa a estrutura conceptual de
determinadas matérias, enquanto os termos denominam os conceitos da rede estruturada
da matéria em questão.
Sintetizando as razões dessa pluralidade de concepções envolvendo o termo
terminologia, importa-nos destacar a oposição existente entre os estudos terminológicos
tradicionais, considerados normatizadores, que desencadearam a Teoria Geral da
Terminologia – TGT desenvolvida por Eugen Wüster, e os que a sucederam e se basearam
num ponto de vista descritivo da linguagem especializada, formando a Teoria
Comunicativa da Terminologia – TCT desenvolvida por Maria Tereza Cabré, e que nos
permitiram, portanto, compreender que “tratar de terminologia técnico-científica é tratar
de questões das línguas e não de um constructo formal idealizado a serviço de uma
comunicação restrita ao âmbito de especialistas” (KRIEGGER; FINATTO, 2004, p. 34).

15
Todas as traduções são de nossa responsabilidade. Em tradução livre: Dicionário de Ciências, Letras e
Artes de Bouillet.
53

Conforme Barros (2004, p. 39), a terminologia possui como referência de estudo


o termo, definido pelos órgãos internacionais de normalização como a “designação, por
meio de uma unidade linguística, de um conceito definido em uma língua de
especialidade. Essa autora ainda nos esclarece que termo é uma unidade lexical com
conteúdo especifico dentro de um domínio, sendo chamado também de unidade
terminológica.
Segundo Barros (2004, p. 40), como signo linguístico das línguas de
especialidade,

O termo pode ser analisado em seus diferentes aspectos: do ponto de vista do


significante e do significado, das relações de sentido que mantem com outros
termos (sinônimos, homônimos, etc.), de seu valor sociolinguístico (usos,
preferencias, conotações, processo de banalização etc.) e outros.

De acordo com Krieger e Finatto (2004, p. 75), o termo é um dos objetos de estudo
da Terminologia, distinto de ponderação e de tratamento. Para essas autoras, termo é um
elemento constitutivo da produção do saber, enquanto componente linguístico, cujas
propriedades favorecem um único significado, ou seja, não permitem ambiguidade na
comunicação especializada.
Ainda, para essas autoras, um nome tem direito à denominação de termo quando
se distingue conceitualmente de outra unidade lexical de uma mesma terminologia, assim,
uma das características do termo é o fato da homonímia não se constituir um risco de
ambiguidade. (KRIEGER; FINATTO, 2004, p. 77).

2.3 SOCIOTERMINOLOGIA

O termo socioterminologia surge depois que Boulanger (1991, p. 25) afirmou em


seu artigo Une lecture sócio-culturelle de la terminologie16, que o ponto de vista
socioterminológico nasce como uma nova corrente, pois “vem atenuar os efeitos
prescritivos exagerados de algumas proposições normativas”
Para Boulanger, o termo socioterminologia refere-se à disciplina que se ocupa da
identificação e da categorização das variantes linguísticas dos termos em diferentes tipos
de situações de uso da língua.
Auger (1993, p. 53) reconheceu a existência de “uma nova corrente chamada
socioterminologia, em reação às escolas hipernormalizadoras desconectadas de situações
linguísticas próprias a cada país; essa corrente busca suas origens no cruzamento da
sociologia da linguagem e da harmonização linguística. ”
Gaudin, em sua tese de doutorado intitulada Pour une socioterminologie – des
problèmes sémantiques aux pratiques institutionnelles17, discute com mais propriedade o
estudo da terminologia voltado para o social ao declarar que

16
Em tradução livre: Uma leitura sociocultural da terminologia.
17
Em tradução livre: Para uma socioterminologia ̶ problemas semânticos para práticas institucionais.
54

a socioterminologia, com o suposto de que deseja ultrapassar os limites de uma


terminologia "de escrivão", deve localizar a gênese dos termos, sua recepção,
sua aceitação, mas também as causas do insucesso e as do sucesso, no âmbito
das práticas linguísticas e sociais concretas dos homens que empregam tais
termos. Essas práticas são essencialmente aquelas que se exercem nas esferas
de atividade. Eis porque a socioterminologia devia reencontrar as reflexões nos
laços que se criam entre trabalho e linguagem. (GAUDIN, 1993, p. 216).

Para Faulstich (1999, p.167), a Socioterminologia é, por sua vez, um campo da


terminologia que se destina a depurar o conhecimento dos estudos especializados,
científicos e técnicos, a auxiliar na planificação linguística e a oferecer recursos sobre as
circunstâncias da elaboração desses discursos ao explorar as ligações entre a terminologia
e a sociedade.
Ratifica, ainda, que é na teoria socioterminológica que se assentam os princípios
e fundamentos que constituem os eixos principais de uma revisão prática que subsidia as
reformulações dos estudos anteriores. Assim, uma teoria socioterminológica envolve,
numa mesma área de conhecimento, diferentes níveis de comunicação que dependem das
circunstâncias de emissão, das características dos interlocutores, do suporte por meio do
qual se dá a comunicação, entre outros.
Faulstich (1995, p. 22-23) esclarece inclusive que, como prática do trabalho
terminológico, a Socioterminologia se fundamenta na análise das condições de circulação
do termo no funcionamento da linguagem; como disciplina descritiva, estuda o termo sob
a perspectiva linguística na interação social.
Nesse sentido, essa autora propõe que a pesquisa socioterminólogica deve pautar-
se nos princípios

1) da sociolinguística, tais como os critérios de variação linguística dos termos


no meio social e a perspectiva de mudança;
2) da etnografia: as comunicações entre membros da sociedade capazes de
gerar conceitos interacionais de um mesmo termo ou de gerar termos diferentes
para um mesmo conceito. (FAULSTICH, 1995, p. 22-23).

Por essa razão, os estudos socioterminológicos focam os diferentes discursos


especializados, sobretudo, aqueles ocorridos em contextos orais, uma vez que partem do
princípio de que os termos em geral sofrem variações que precisam ser consideradas como
fundamentais na preparação de uma obra terminográfica.

Pautando-se, também, nos princípios da etnografia, esses estudos consideram a


interação ocorrida na sociedade, isto é, as heterogeneidades dos seus componentes,
consequentemente, defendem que novos termos são concebidos e que, até mesmo,
diferentes termos são gerados para um mesmo conceito.

A exemplo, em nosso trabalho, no campo semântico alimentação, constatamos


que os integrantes de grande parte das unidades especializadas do CBMMA usam o termo
bob esponja para se referirem ao prato denominado na língua comum de torta, com base
na aparência e no formato desse prato, algo que se propagou dos mais antigos para os
mais novos membros da corporação.
55

No Brasil, os estudos socioterminológicos tiveram início na Universidade de


Brasília – UNB por intermédio das ações do Grupo de Pesquisa Léxico e Terminologia,
coordenado pela professora Enilde Faulstich, o qual tinha o objetivo de estudar e
organizar a Socioterminologia tanto como prática do trabalho terminológico,
fundamentando-se na análise das condições de circulação do termo no funcionamento da
linguagem, quanto como disciplina descritiva, o que permitiria estudar o termo sob a
perspectiva linguística na interação social.

Para Faulstich (2006, p. 29), essa corrente possibilitou criar o postulado máximo
da Socioterminologia, que é ter na base da pesquisa a variação linguística dos termos
gerada no meio social e, por consequência, entender a mudança terminológica como
mecanismo resultante da pragmática discursiva.

3. METODOLOGIA

A pesquisa foi desenvolvida na capital do Estado do Maranhão, São Luís,


sobretudo, pelo fato de, somente na capital, o CBMMA ter trabalhos executados,
especificamente, por unidades operacionais especializadas, a saber: o Batalhão de
Bombeiros Marítimos – BBMAR que trabalha com resgate no mar; o Batalhão de
Bombeiros de Emergência – BBEM que realiza emergências médicas; o Batalhão de
Busca e Salvamento – BBS que executa atividades de busca e salvamento; o Batalhão de
Bombeiros Ambiental – BBA que combate o incêndio florestal e urbano, além de fazer a
captura e o resgate de animais; o 1º Batalhão de Bombeiros Militar - 1º BBM que executa
o serviço de combate a incêndio urbano; a Seção de Combate a Incêndio em Aeródromo
– SCI que combate somente incêndio e ocorrências em aeródromos, e a Academia de
Bombeiros Militar “Josué Montello” - ABMJM, local onde são formados os oficiais da
corporação.

Foram sujeitos desta pesquisa tanto os membros da ativa do CBMMA quanto os


aposentados, ou seja, definimos duas categorias: uma composta pelos aposentados, ou
seja, pelos bombeiros da reserva remunerada, e uma outra composta pelos bombeiros da
ativa com ao menos 2 anos de efetivo serviço em uma das unidades especializadas
investigadas.

Os nossos informantes foram divididos e organizados em três faixa etárias: a faixa


etária 1 – F1: de 18 a 29 anos; a faixa etária 2 – F2: de 30 a 55 anos e a faixa etária 3 –
F3: de 60 anos em diante.

Caracterizamos os grupos de faixa etária da seguinte forma: faixa 1 - de 2 a 10 anos de


serviço; faixa 2 - de 15 a 30 anos de serviço; e faixa 3, militares aposentados.

Primeiramente, fizemos a coleta de dados in loco por intermédio de entrevistas informais


com militares aposentados da corporação, pois eles vivenciaram o período da submissão
do CBMMA à Polícia Militar do Maranhão – PMMA e também o período de
emancipação do CBMMA.

Posteriormente, e com base nesse primeiro momento, elaboramos um questionário


constituído de 41 perguntas organizadas em 12 campos semânticos: formação,
56

acessórios/equipamentos, alimentação, armamentos, atividades físicas/treinamentos,


documentos oficiais, instalações, formas de tratamento, meios de comunicação, meios de
transporte, produção de documentos e vestuário.

Para o tratamento dos dados e produção do glossário, usamos o programa Lexique


Pro, programa gratuitamente disponível na página www.lexiquepro.com e que oferece
diversas possibilidades aos seus usuários como gerenciar, movimentar e criar bases de
dados no formato word ou web; o algoritmo possibilita, ainda, ao usuário criar dicionários
e glossários em sua própria plataforma no formato digital, além de oferecer um índice
exclusivo para impressão.

3.1 AMOSTRA DO GLOSSÁRIO DO CORPO DE BOMBEIROS MILITAR DO


MARANHÃO

ALUNO

Fonte: Autores, 2019

Morf: sintagma substantival.


1. Participante de cursos de formação.
INF. – Durante o curso nós éramos chamados de aluno, cadete. (N.E.B, TS1, M, SCI.)
Variantes: cadete, conscrito, novinho, pelanco, recruta, verdinho, bicho, bisonho,
mocorongo.
Termo utilizado durante os cursos de formação, qualificação e especialização
independentemente do posto ou graduação, os militares são chamados por esses termos
apresentados, no intuito de os diferenciar de quem não está no curso.

ATAQUE DIRETO

Fonte: CBMDF, 2019

Morf: sintagma substantival.


57

1. Procedimento de combate ao princípio do fogo diretamente.


INF. – Iai, a gente usava uma linha para o resfriamento do… o..o isolamento,
propriamente, dito. Quando caía uma labareda em cima da casa de palha, onde tava
molhada, não tinha como formar combustão. Iai, a outra linha dava o ataque direto nas
outras chamas. (EMC, TS2, M, 1º BBM.)
Variante: linha direta.
Termo, usando na situação em que os bombeiros querer combater o fogo diretamente em
sua origem.

BAIXAR

Fonte: Medina, 2019

Morf: sintagma verbal.


1. Adoecer
INF. –...com um tempo aprendemos que estar doente significa baixar, está baixado.
(B.L.R, TS1, F, ABMJM)
Variante: adoecer.
Sociotermo utilizado pelos bombeiros, para dizer que irão adoecer, muito conhecido e
utilizado no Exército Brasileiro e na PMMA.

BRADAR

Fonte: Estonia, 2019

Morf: sintagma verbal


1. Gritar. 2. Alardar. 3. Indicar a entrada de uma ocorrência por meio do toque da sirene.
INF.- Bradô, bradô, o pessoal saía correndo, bradô.
INQ.- Esse bradou é tanto para incêndio, quanto para qualquer outro tipo de
atendimento?
INF.- É, é para incêndio, atendimento. (BLR, TS1, F, ABMJM)
Variante: ocorrência.
Termo conhecido e utilizado em todos os quartéis; entrada de qualquer tipo de ocorrência.
58

CRISTALINA

Fonte: Bis, 2019

Morf: sintagma substantival.

1. Esposa de militar.
INQ. – A esposa de um determinado militar, vocês têm um termo especifico pra esposa?
INF. – Um nome extraoficial? Cristalina?
INQ. – É? Mas esse cristalina desde que você chegou aqui, é comum usar aqui, não?
INF. – É, ainda.
INQ. – Aqui usa cristalina?
INF. – Usa, ainda usa.
INQ. – Caramba, gostei. Tem outro nome ou só cristalina?
INF. – Geralmente usa cristalina. (L.C.A.M., TS3, M, BBMAR)
Variante: esposa.
Sociotermo utilizado por grande parte dos membros do grupo TS2 e TS3.

ETAPA

Fonte: Curtamais, 2019

Morf: sintagma substantival.


1. Refeição individual.
INF. – A etapa é a unidade de comida pra cada pessoa. (J.F.R.C, TS2, M, BBS)
Variantes: alimentação, brau-breu, cota, k3, lanche, obrea e ração.
O sociotermo etapa, diz respeito a alimentação que cada bombeiro recebe durante o
serviço, operações emergenciais e também em ocorrências duradouras, há nas forças
armadas e na PMMA.

MOITA
Morf: sintagma substantival.
1. Bombeiro discreto, reservado, que não se permite sobressair entre os demais.
INF. –......me chamavam muito de moita (risos), por conta do meu perfil mesmo, de ser
mais pacato, na minha, mais por conta disso, eles acabaram me enquadrando de moita.
(B.L.R, TS1, F, ABMJM)
Variante: discreto.
59

Sociotermo muito utilizado no cotidiano dos quartéis. Utilizado no Exército Brasileiro e


na PMMA.

SALA FRIA
Morf: sintagma substantival.
1. Denominação dada pelas praças da SCI à sala do comandante.
INF. –...daí quando o oficial manda chamar um bombeiro em sua sala dizemos a ele: o
comandante tá te esperando na sala fria. (N.E.B., TS1, M, SCI)
Variante: sala do comandante.
Sociotermo exclusivo do SCI, não sendo registrado em outros batalhões de São Luís.

SINISTRO

Fonte: CBMMG, 2019

Morf: sintagma substantival.


1. Qualquer tipo de evento que causa destruição, provocado pela natureza ou pelo homem.
INF. –...aqui no 1º BBM, geralmente somos os primeiros a ser acionados pelo CIOPS
para atender aos sinistros aqui do centro da cidade e redondezas. (E.M.M.C. TS2, M, 1º
BMM)
Variante: desastre.
Termo característico das atividades bombeirísticas, costuma-se dizer que o sinistro ocorre
onde a prevenção falha, ou seja, os acidentes, os incêndios, os desabamentos, etc. Sempre
ocorrem devido a falha humana, por não trabalhar a prevenção.

Considerando a amostra apresentada, constatamos que, até o momento, o léxico


compartilhado nas unidades especializadas do CBMMA tem sido absorvido, em sua
maioria, tanto pelos homens quanto pelas mulheres, o que confirma a participação das
mulheres nos serviços especializados e desconstrói a ideia de que mulheres trabalhariam
somente em setores administrativos.
Verificamos que existem alguns termos que são utilizados e conhecidos por todos,
independentemente da unidade especializada a que os integrantes pertencem, como
bradou, tincheiro, canga, moita, baixado, bizonho, etapa, e tincha.
Dentre os campos semânticos selecionados para compor o nosso questionário, o
campo semântico formas de tratamento mostrou-se bastante produtivo já que gerou vários
termos como, por exemplo, lendia, moita, baixado, bisonho, canga.
Constatamos, ainda, a existência de termos exclusivos de algumas unidades
especializadas. Por exemplo, bacanizado e branca às nuvens, no Batalhão de Busca e
Salvamento – BBS; guardadores da cidade e pressão-pressão, no 1º Batalhão de
Bombeiros Militar - 1º BBM; e agasalha na Academia de Bombeiros Militar “Josué
Montello”.
60

Destarte, mesmo diante da formação do bombeiro ser única, como foi informado
anteriormente, tanto a emancipação quanto a execução das atividades em campos
específicos dentro do CBMMA geraram e geram um léxico especializado. Por
conseguinte, existem as particularidades de cada unidade especializada ou batalhão
especializado nos mais diversos campos, vivenciados no cotidiano por seus membros.
Averiguamos, inclusive, que alguns termos catalogados em determinados
batalhões são oriundos e específicos daquele local de trabalho.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização deste estudo acerca da terminologia do Corpo de Bombeiros


Militar do Maranhão foi motivada pelo próposito de conhecermos as peculiaridades
lexicais em uso e/ou em desuso dessa comunidade. Para tanto, baseamos nossa
investigação nos últimos 26 anos de emancipação administrativa e operacional do
CBMMA, para que pudéssemos fazer um registro do léxico tanto daqueles que um dia
contribuíram para o fortalecimento e para a institucionalização do CBMMA quanto
daqueles que têm pouco tempo de ingresso nessa Corporação.
Nossa pesquisa fundamentou-se na Terminologia e na Socioterminologia e nossos
resultados foram apresentados em gráficos e os dados foram materializados em um
glossário de termos e sociotermos do CBMMA. Os dados foram analisados tendo como
ponto central a catalogação e interpretação das 42 questões elaboradas, dentro de 12
campos semânticos.
Como respostas apresentadas pelos 21 bombeiros participantes desta obra,
catalogamos 70 entradas divididas entre termos e sociotermos, registrados no glossário
do CBMMA, contudo, apresentamos somente uma pequena amostra do nosso glossário.
Dentre os campos semânticos investigados, aqueles que proporcionaram um
número mais significativo de termos e sociotermos, por perpassarem a carreira
operacional e administrativa do bombeiro, portanto, constantemente vivenciadas pelos
entrevistados, foram: formação, acessórios/equipamentos, alimentação, documentos
oficiais, vestuários e peculiaridades.
Considerando, sobretudo, a análise dos dados coletados com os membros das
unidades especializadas do CBMMA em São Luís e a organização do questionário em
campos semânticos, concluímos que:
a) Há um léxico, de fato, especializado e atuante nas interações que se dão
entre os membros do CBMMA;
b) Tanto os homens quanto as mulheres conhecem e fazem uso da maior parte
dos termos coletados;
c) Existem termos para as mais diversas situações experenciadas dentro do
CBMMA, desde aquelas mais gerais voltadas para os diferentes tipos de atendimentos
efetuados pelos bombeiros, a exemplo de bradou, termo usado na comunicação de todos
os batalhões do CBMMA em face da atividade fim da corporação que é a de salvar vidas,
como aquelas relacionadas a questões mais específicas, como o termo etapa para designar
a alimentação daqueles que estão de serviço e tincheiro, que significa pidão, aquele que
fica à espreitar da comida alheia.
61

d) Há, ainda, unidades lexicais especificas de determinado ambiente laboral,


não encontrada em outro quartel, como: guardadores da cidade, pressão-pressão,
bacanizado e branca às nuvens.
e) Na formação, ou seja, no curso obrigatório quando da entrada do bombeiro
na corporação, logo após aprovação em concurso público quer seja para soldado quer seja
para oficial, o militar já passa a conhecer e a usar parte desse léxico, como agasalhar,
bradar e azar militar.
f) As faixas etárias 1 e 2, referentes aos militares da ativa mais novos e com
menos, ou relativo, tempo de trabalho junto à corporação, são as mais produtivas, uma
vez que os bombeiros dessas faixas são os que mais utilizam o léxico especializado do
CBMMA;
Ratificamos que este estudo torna-se um marco para um olhar mais inquietante
sobre os diversos universos existentes na área militar, quer seja nas forças armadas
(marinha, exército e aeronáutica), quer seja nos diferentes campos do Corpo de
Bombeiros e da Polícia Militar, devido à diversidade de atribuições, campos de atuação
e atividades existentes dentro do CBMMA.
Enfim, pudemos confirmar que há, de fato, uma terminologia do CBMMA, o que
ratifica a importância deste estudo para futuras pesquisas no âmbito das ciências do léxico
e, mais especificamente, no âmbito dos estudos da terminologia nas unidades dos Corpos
de Bombeiros no Brasil. Assim, os dados coletados e as conclusões apresentadas atestam
a importância e a relevância do nosso trabalho, uma vez que conseguimos preencher um
espaço existente quanto ao registro do patrimônio lexical do CBMMA e, ao mesmo
tempo, incentivamos pesquisas sobre o léxico usado nas demais instituições do Corpo de
Bombeiros do Brasil a fim de favorecer uma maior interação entre essas Corporações.

5. REFERÊNCIAS

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normalisation terminologique. In Terminogramme, 26-27, 1984, pp. 9-12.
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62

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disciplina. Ciência da Informação. [S.l.], v. 24, n. 3, p. 1-14. dec. 1995. ISSN 1518-
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SAGER, J.C. A Practical Course in Terminology Processing. Amsterdam:


Philadelphia, 1990.
63

5
A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS: UM
ESTUDO DO CAMPO SEMÂNTICO PROFISSÕES EM SÃO LUÍS-MA

Matheus da Silva Lopes18


Zuleica de Sousa Barros19

1. INTRODUÇÃO

O léxico é uma das partes mais importantes de uma língua, afinal, trata-se de seu
repertório vocabular, ou seja, dos signos que a compõem. Dessa forma, o léxico apresenta
não apenas palavras isoladas que possibilitam a comunicação, mas também a própria
história cultural e social de um povo (OLIVEIRA; ISQUERDO, 2001). Essa relação é tão
íntima que, em certas ocasiões, os aspectos históricos e socioculturais mesclam-se com o
vocabulário e tornam-se partes uns dos outros. Dado que a língua é uma das formas de
comunicação e linguagem, é evidente que ela esteja conectada à cultura – ou melhor, que
seja parte desta – uma vez que os usuários categorizam e classificam o mundo e suas
experiências (individuais e coletivas) por meio da língua – mais especificamente, do
léxico.
A língua brasileira de sinais (libras) é uma língua relativamente nova,
considerando que seus estudos linguísticos se iniciaram na década de 80 (BRITO, 2010)
e vêm sendo realizados desde então. Assim, por ser uma língua jovem, cujo
reconhecimento legal se deu há 16 anos (BRASIL, 2002; 2005), ainda existem temas
pouco abordados dentro dessa área e uma carência de materiais que comportem as
discussões acerca do uso e da estruturação linguística da libras.
Dentre os temas que apresentam maior relevância e, curiosamente, poucos
materiais analítico-descritivos, está a variação linguística. As pesquisas sociolinguísticas
sobre as línguas de sinais são de extrema relevância para a compreensão de fatores que
ocasionam o surgimento de variantes pelo país, bem como para catalogar os sinais da
mesma forma como são feitos os registros de palavras em línguas orais. Ademais, ter
conhecimento do processo variacionista em uma língua de sinais pode reforçar seu caráter
linguístico, uma vez que a descrição e análise do tema permite aos pesquisadores e
usuários da língua assimilar as diversas formas de expressão contidas no sistema, bem
como perceber o papel que os condicionadores internos e externos (COELHO et al., 2015)
têm sobre a língua.
Nessa perspectiva, o presente trabalho é motivado pela necessidade de
investigação e análise das variações linguísticas que ocorrem no uso da língua brasileira
de sinais, bem como pela supracitada carência de estudos que fundamentem a temática
escolhida. Sabendo do atual status linguístico que a libras possui, é natural e urgente que

18
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade Federal do Maranhão - UFMA.
Graduado em Letras-Libras pela UFMA. Tradutor/Intérprete de Libras/Língua Portuguesa. Membro do
Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinar em Linguística e Línguas de Sinais (GEPILLS). Membro do
Projeto VarSint: variação morfossintática com base no português maranhense. E-mail:
mthsilva.ms@gmail.com.
19
Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Graduada em Letras pela Universidade
Federal do Maranhão. Professora do Departamento de Letras da UFMA. Coordenadora do Grupo de
Estudos e Pesquisas Interdisciplinar em Linguística e Línguas de Sinais (GEPILLS). E-mail:
zuleicabarros23@gmail.com
64

as pesquisas voltadas a essa língua sejam expandidas para campos ainda pouco
explorados, como o sociolinguístico. Nesse sentido, esta pesquisa objetivou investigar a
variação linguística nos sinais relacionados ao campo semântico profissões a partir dos
fatores condicionantes desse fenômeno visando a criação de um glossário com as
variantes catalogadas. Para atingir tais objetivos, algumas perguntas norteadoras foram
feitas: há diferenças entre a sinalização das profissões feita pelos usuários de libras em
São Luís e os sinais das profissões registrados no dicionário-base (CAPOVILLA et al.,
2017)? Se há variações, essas se encontram dicionarizadas nessa obra de referência?
Quais são os fatores que influenciam as possíveis variações de sinalização das profissões
em São Luís? Homens e mulheres diferem na sinalização dos sinais pesquisados
(advogado, bombeiro, dentista, enfermeiro, motorista e policial)? Essas são questões que
buscamos responder no decorrer do estudo.
Os estudos realizados sobre a libras atestam claramente a diferença regional
encontrada nos estados do Brasil. Essa diferença é marcada pelo uso de sinais variados
para um mesmo referente. O interessante é que alguns sinais das línguas de sinais
apresentam traços socioculturais específicos das comunidades que as utilizam,
evidenciando a realidade dos usuários e a percepção/categorização da realidade feita por
eles (STROBEL E FERNANDES, 1997).
Considerando essas informações, realizamos um estudo sociolinguístico e
lexicológico da libras à luz de autores como Labov (2008), Quadros & Karnopp (2004) e
Coelho et al. (2015), que subsidiam as discussões aqui levantadas e permitem identificar,
analisar e comparar os dados coletados durante as entrevistas com os disponíveis no
Dicionário da Língua de Sinais do Brasil (CAPOVILLA et al., 2017).
Assim, como principal resultado da compararação de alguns sinais do campo
semântico profissões documentados no Dicionário da Língua de Sinais do Brasil
(CAPOVILLA et al, 2017) com os sinais utilizados pela comunidade surda ludovicense,
produziu-se um glossário com as variantes encontradas.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Antes de apresentarmos o percurso metodológico da pesquisa e seus respectivos


resultados, cumpre fundamentarmos o trabalho com os dois campos disciplinares que
possibilitaram as bases científicas desta e de outras pesquisas sobre a língua de sinais.
Trata-se da Lexicologia e da Sociolinguística cujas contribuições foram essenciais para a
compreensão de alguns fenômenos da língua que envolvem também as questões
geográficas e socioculturais da comunidade analisada.
Para Polguère (2018, p. 49), “A Lexicologia é um ramo da Linguística que estuda
as propriedades das unidades lexicais da língua, denominadas lexias” (grifos do autor).
Dessa forma, o autor pondera sobre a dificuldade de isolar a noção de lexia com um
simples conceito, dado que essa mesma noção está interligada a outros aspectos da língua
e, consequentemente, à Lexicologia. Além disso, a justificativa pela escolha do termo
lexia é a complexa e imprecisa definição de palavra numa língua, somada ao fato de que,
ao ter um objeto de estudo, a Lexicologia se circunscreve num campo mais científico e
técnico, com sua própria investigação entre os ramos da Linguística (POLGUÈRE, 2018).
65

Assim, para o autor, a lexia pode ser um lexema ou uma locução, ambas dotados
de significado e com uma importante relação semântica com os demais constituintes da
língua. Nosso intuito aqui não é o de conceituar as noções da Lexicologia já estudadas
por Polguère e outros pesquisadores, mas, sim, delinear algumas questões que servem
como alicerce teórico de nossa pesquisa e que podem ser transpostas à libras, contribuindo
para o aprofundamento em sua estrutura. Nesse sentido, as lexias em língua de sinais
seriam equivalentes aos sinais utilizados para a estruturação de sentenças e posterior
comunicação, levando em conta os variados sentidos que um mesmo sinal pode carregar
dentro da língua que, a depender de seu contexto de uso, gerará uma significação
específica para os interlocutores.
Desse modo, ressaltamos que a Lexicologia e a Semântica trabalham lado a lado
para o estudo e compreensão das particularidades do léxico de uma língua, resultando,
portanto, na chamada Semântica Lexical. É interessante pontuarmos, ainda, que o estudo
das lexias pressupõe uma série de outros apontamentos a elas relacionados e que
permitem o entendimento mais claro do referido objeto de estudo.
Neste trabalho, o olhar estará voltado também para uma perspectiva
sociolinguística, uma vez que seus pressupostos foram utilizados para a construção e –
sobretudo – para a coleta dos dados que compõem esta pesquisa. Desta forma, a
Lexicologia dá suas contribuições para o presente estudo de forma a analisar teoricamente
os dados obtidos, pois estes fazem parte dos usos linguísticos comuns, corriqueiros e,
como tais, estão inseridos no léxico da língua brasileira de sinais.
Por estarmos falando de léxico, entendemos que esta é uma área vasta da língua,
apresentando muitas categorias que se encontram mais abertas à criatividade dos falantes
(POLGUÈRE, 2018) e que são influenciadas por fatores linguísticos e socioculturais
variados (OLIVEIRA & ISQUERDO, 2001; LABOV, 2008), resultando, assim, num
processo de variação linguística. Essa abertura linguística à variação estabelece um link
entre Lexicologia e Sociolinguística, ponte que utilizamos em nosso estudo, direcionando
as noções de ambas as áreas à libras.
No que tange à Sociolinguística, Coelho et al (2015, p. 12) definem esse campo
teórico como “a área da Linguística que estuda a relação entre a língua que falamos e a
sociedade em que vivemos”. A principal ideia da Sociolinguística, da qual um dos
principais expoentes é William Labov com a publicação de sua obra Padrões
sociolinguísticos em 1972, é a de que a língua apresenta variação, sendo esta uma
característica inerente a ela. Isso significa dizer que, pelo fato de ser dinâmica, a língua
apresenta diferentes formas de expressão para os mesmos referentes e, em certas
situações, essas formas deixam de variar e se concretizam em uma mudança linguística.
Isso é corroborado por teorias como a de Saussure (2012), que trabalhou com a langue,
em função da sua “não-variabilidade” em detrimento da parole, de caráter mais individual
e assistemático/variacionista.
A partir de estudos como os empreendidos por Labov (2008), percebeu-se a
relação íntima entre língua e sociedade e seus desdobramentos em nível empírico e
científico. A língua está submetida a forças que estão para além dos limites linguísticos,
chamados de condicionadores (COELHO et al, 2015), que ajudam na ocorrência da
variação. Esses fatores correspondem à idade, escolaridade, condição socioeconômica,
sexo e localidade dos indivíduos, por exemplo, todos eles impactando diretamente no uso
da língua. No entanto, vários autores afirmam que a existência da variação só se dá em
virtude de um padrão estabelecido para a língua e que esse fenômeno não ocorre de forma
66

aleatória e espontânea, mas, como mencionado, depende de influências internas e


externas à língua – dado que esta é um sistema organizado e heterogêneo, cujas regras
permitem ou barram determinadas construções (COELHO et al, 2015).
Além disso, para se investigar a variação, é necessária uma metodologia apurada
e específica, que abrange vários passos – desde a escolha do tema à análise dos dados –
visando confirmar ou refutar hipóteses quanto a determinado aspecto no uso da língua. É
de uma parte desse percurso que nos utilizamos neste trabalho, aplicando-o à libras no
campo semântico selecionado e de acordo com as variáveis que resolvemos controlar em
nossa observação.
Ao aplicarmos os conhecimentos da Sociolinguística e da Lexicologia à libras,
reforçamos não somente seu caráter linguístico, como também pudemos observar
fenômenos semelhantes aos que ocorrem em línguas orais e, mais ainda, especificidades
do sistema espaço-visual ainda pouco explorados no ambiente acadêmico. Da
Lexicologia, trazemos as observações teóricas sobre as lexias e suas propriedades; da
Sociolinguística, a metodologia de coleta e análise que perpassa pela influência dos
fatores socioculturais. Tudo isso aplicado a uma variedade linguística e a um campo
semântico ainda pouco trabalhado nas pesquisas científicas e obras de referência: a
variedade ludovicense em contraste com a variedade apresentada por Capovilla et al
(2017) no Dicionário da Língua de Sinais do Brasil.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Introduzindo a metodologia adotada nesta pesquisa, comentaremos brevemente


sobre os estudos sociolinguísticos enquanto trabalhos metodológicos e
procedimentalmente orientados. Em seguida, apresentaremos as etapas da referida
pesquisa – tais como a escolha do campo semântico, das teorias de referência, dos
informantes e das próprias lexias, entre outros passos – que serão explicitadas de forma
mais detalhada nas seções seguintes.

3.1. SELEÇÃO DO CORPUS PARA A PESQUISA

A seleção do corpus inclui a escolha da localidade, do campo semântico, dos


informantes (e a definição dos critérios para tal escolha), dos itens lexicais e –
resumidamente – a forma como os dados foram coletados.

3.1.1. Localidade da pesquisa


A presente pesquisa foi realizada no município de São Luís, localizado ao norte
do estado do Maranhão, região Nordeste do Brasil. Os procedimentos metodológicos da
pesquisa de campo se desenvolveram na comunidade surda que habita a cidade.
67

3.1.2. Seleção dos informantes


Os informantes foram selecionados após a definição do campo lexical e das lexias
a serem pesquisadas. Os perfis foram construídos a partir de critérios estabelecidos pelos
pesquisadores, conforme diretrizes da pesquisa sociolinguística (TARALLO, 2007;
LABOV, 2008; COELHO et al., 2015).
Os critérios foram os seguintes:

 Sexo: os indivíduos participantes da pesquisa são, respectivamente, 03 (três)


homens e 03 (três) mulheres;
 Idade: todos os entrevistados possuem mais de 18 anos;
 Condição neurossensorial20: todos os entrevistados possuem surdez adquirida,
cujo grau (leve, moderado, severo e profundo) não foi necessariamente
controlado;
 Condição linguística: todos os informantes utilizam a libras como primeira
língua (L1) e são fluentes no código, de modo que, em termos de sinalização, não
houve influência da língua portuguesa;
 Localidade: a maioria dos entrevistados reside no município de São Luís ou não
se afastaram deste por mais de 1/3 da vida (CARDOSO, 2010).

Antes de prosseguir com os demais aspectos metodológicos, é pertinente fazer


algumas ressalvas a respeito dos critérios e suas nomenclaturas. Na variável sexo, a
escolha do nome se dá pelos próprios requisitos da pesquisa sociolinguística, uma vez
que a questão gênero é muito ampla e agrega, entre outros pontos, as identidades de cada
sujeito – ou seja, como ele se percebe e quer ser percebido (HMC, 2016). Dessa forma, a
Sociolinguística trabalha mais no viés biológico, para que não haja muitos equívocos na
recolha e análise dos dados. Somado a isso, esse critério permite verificar se há diferença
na sinalização de indivíduos do sexo masculino e indivíduos do sexo feminino, uma vez
que homens tendem a variar mais do que as mulheres em sociedades ocidentais (LABOV,
1982 apud COELHO et al, 2015, p. 44).
A idade dos informantes foi selecionada como mais de 18 anos em virtude do
tempo de residência na localidade pesquisada, da maturidade linguística e cerebral e do
tempo disponível para realização da pesquisa (segundo semestre de 2019). Assim,
optamos por não trabalhar com nenhum informante menor de idade, o que alteraria
completamente nossa análise devido aos fatores supracitados.
Quanto à condição neurossensorial, os selecionados são, em sua maioria, surdos
adquiridos (isto é, aqueles cuja surdez ocorreu após o nascimento por causas diversas),
mas, como o intuito aqui não é verificar os impactos da surdez no uso da língua, este fato
não foi considerado relevante, assim como o grau da surdez – leve, moderada, severa e
profunda. Na condição linguística, houve um rigor maior com o objetivo de garantir que
nenhum dos surdos tivesse influência direta da fala oral em Língua Portuguesa durante
suas sinalizações. Isso ocorreu porque, em geral, surdos oralizados21 apresentam maior

20
O termo neurossensorial foi escolhido mediante seu amplo uso na área médica para designar uma
deficiência ou perda de um dos sentidos. Assim, por entender que esse vocábulo expressa a mesma condição
à qual aqui nos referimos, optamos por utilizá-lo
21
Que passaram por acompanhamento com profissionais fonoaudiólogos e conseguem articular alguns sons
da Língua Portuguesa oral.
68

interferência de sua L2 na produção de um enunciado em libras. Feitos os devidos


detalhamentos dos critérios fixados para a realização do estudo, passaremos para a
subseção seguinte, que trata da delimitação do campo semântico.

3.1.3. A escolha do campo semântico


A opção pelo campo semântico “profissões” se deu após constatações empíricas
das variações na sinalização de usuários da libras em São Luís. Os sinalizantes
apresentaram algumas diferenças em relação ao léxico previamente registrado por
Capovilla et al. (2017), representando, portanto, uma variedade não catalogada da língua
de sinais do Brasil. Por ser um campo que mostrava um índice interessante de variações,
assim como por pertencer ao campo da linguagem cotidiana, as profissões foram
escolhidas como objeto de estudo desta pesquisa.

3.1.4. A seleção das lexias


A seleção das lexias ocorreu de acordo com o índice empírico de variações. Para
não excedermos os limites deste artigo, estabelecemos uma quantidade máxima de
unidades lexicais a serem pesquisadas: 06 (seis) lexias. Foram elas: advogado (a),
bombeiro (a), dentista, enfermeiro (a), motorista e policial. A justificativa para essas
escolhas vem da observação empírica – a respeito das diferentes formas utilizadas no dia
a dia dos surdos ludovicenses para se referirem a essas profissões – e de observações
científicas – a obra selecionada como referência apresenta para quase todos esses itens
mais de uma possibilidade sinalização. Em pesquisas anteriores (LOPES et al., 2018), os
autores constataram e catalogaram um número significativo de variações para o sinal
motorista na Ilha do Maranhão, o que também despertou atenção para o campo profissões
e, consequentemente, possibilitou a realização deste trabalho.

3.1.5. Instrumentos de pesquisa


Para a realização da pesquisa, alguns instrumentos foram selecionados a fim de
tornar viável o estudo e a coleta dos dados. Os instrumentos foram: questionário
estruturado (GEHARDT E SILVEIRA, 2009), reálias (imagens correspondentes aos itens
lexicais), Termo de Consentimento e Livre Participação e ficha lexicográfica, adaptada
de Faulstich (1990) – sendo esta última para registro formal das variantes catalogadas e
posterior organização do glossário.

3.1.6. Aplicação da pesquisa


A aplicação ocorreu por meio de entrevistas com os informantes surdos de São
Luís, mediadas pelo questionário estruturado. Os encontros foram realizados no segundo
semestre de 2019. Esses espaços foram: um campus do Instituto Federal do Maranhão,
um polo EaD de uma instituição de ensino superior (IES) e a Associação dos Surdos do
Maranhão (ASMA).
Antes da coleta de dados, no entanto, os informantes foram previamente avisados
quanto à natureza do trabalho e foi solicitado que assinassem um termo de consentimento,
permitindo a realização da supracitada entrevista. Essa é uma forma de respaldar ambos,
69

o pesquisador e o entrevistado, e, consequentemente de assegurar que as informações


obtidas não serão divulgadas ou utilizadas para fins que não sejam os da referida pesquisa.
Embora o questionário fosse o veículo principal para obtenção das variantes,
utilizamos também as reálias, que mostravam concretamente o que significava cada item,
de modo a tornar mais fácil para o informante sinalizar a lexia, caso a descrição ou a
pergunta não fossem suficientemente claras para seu entendimento.

3.1.7. Registro dos dados obtidos


Os dados foram registrados em uma ficha lexicográfica criada por Faulstich
(1990), modificada por Prometi (2013) e readaptada para o propósito deste estudo. Assim,
na ficha em questão, os campos a serem registrados eram, basicamente, os seguintes:
 Número da ficha;
 Lexia em Língua Portuguesa;
 Lexia em libras;
 Conceito do item lexical;
 Campo semântico do item;
 Categoria gramatical a que pertence;
 Descrição do sinal;
 Imagem correspondente ao item pesquisado;
 Aplicação em uma frase.

3.1.8. Estrutura do glossário


O glossário disponível na pesquisa original está organizado em 06 (seis) itens
lexicais pertencentes ao campo semântico profissões e listados em ordem alfabética. Cada
uma das variantes possui uma identificação do sexo biológico do informante surdo, bem
como contempla as categorias descritas na ficha lexicográfica. Ademais, há uma
descrição dos parâmetros que compõem os sinais, de modo a tornar sua realização
concreta mais clara, e há uma imagem que acompanha o sinal, explicitando seu
significado.
Fazemos a ressalva que todos os sinais registrados contêm o pesquisador
fotografado durante a realização destes, de modo a não expor a identidade dos
informantes, preservando seu direito à privacidade. Por fim, todos os sinais contêm uma
definição das referidas entradas, com o intuito de tornar o registro o mais completo
possível, possibilitando aos leitores – surdos e ouvintes - se apropriarem não somente da
forma de palavra, mas também de seu conteúdo semântico em Língua Portuguesa.

3.1.9. Composição estrutural do dicionário-fonte


O Dicionário da Língua de Sinais do Brasil (CAPOVILLA et al., 2017) é um
registro lexicográfico da Língua Brasileira de Sinais cujo acervo é bem rico e
diversificado. Trata-se de uma obra com mais de 13 mil verbetes – o que é um
aprimoramento considerável se comparada à 1ª edição, lançada em 2001, que possuía
9.500 entradas. Sua edição mais recente é de 2017 e conta, além da autoria de Fernando
70

César Capovilla e Walkiria Duarte Raphael, com as pesquisas de Antonielle Cantarelli


Martins e Janice Gonçalves Temóteo.
Conforme afirma a edição de 2001, o objetivo do dicionário é “ser instrumento

para a concretização da Educação Bilíngüe no Brasil e o resgate da cidadania do Surdo


Brasileiro” (CAPOVILLA & RAPHAEL, 2001, p. 25 apud TEMÓTEO, 2008). Ademais,
na mesma edição, os autores explicitam seu propósito de, por meio do então dicionário,
incentivar outras pesquisas lexicológicas/lexicográficas nos demais estados brasileiros,
documentando a libras de forma condizente com seu uso cotidiano pelos usuários surdos
(CAPOVILLA & RAPHAEL, 2001, p. 30 apud TEMÓTEO, 2008).
O desenvolvimento do dicionário ocorreu em São Paulo, no Instituto de Psicologia
da Universidade de São Paulo (USP), através de uma extensa pesquisa que contou com a
coleta de dados em diferentes estados da Federação. No documento, é possível verificar
a identificação estadual de cada sinal presente, de modo a visibilizar seu espaço
geográfico de uso. Além disso, Capovilla et al. (2017) apresentam uma descrição
interessante dos morfemas na libras, através dos sinais registrados no dicionário.

Em relação à sua estrutura lexicográfica, o dicionário encontra-se dividido em


ordem alfabética, na qual cada verbete apresenta as seguintes informações:
Imagem digitalizada da realização do sinal;
Imagem correspondente ao significado do verbete;
A palavra em Língua Portuguesa (e um número auxiliar, em caso de variações do
sinal);
 A palavra soletrada em libras por meio da fonte Capovilla-Raphael;
 O significado do verbete;
 Sua correspondência em Língua Inglesa; e
 A escrita visual direta em SignWriting22.
Abaixo, pode-se verificar um exemplo de verbete dicionarizado na obra de
Capovilla et al. (2017):

Figura 1: Exemplo do verbete “doença (1) ” do Dicionário da Língua de Sinais do Brasil (CAPOVILLA
et al., 2017). Extraído de <https://brasil.estadao.com.br/blogs/vencer-limites/usp-lanca-nova-edicao-de-
dicionario-de-libras/>. Acesso em 27 de outubro de 2019.

22
O SignWriting é um sistema de escrita criado por Valerie Sutton em 1974, a partir do DanceWriting, que
tinha como intuito registrar movimentos de dança (BARRETO & BARRETO, 2015). O SignWriting
atualmente é adotado por alguns autores brasileiros e estrangeiros como forma de registro direto das línguas
de sinais, mas, oficialmente, ainda não é o sistema de escrita da libras, sendo seu uso em obras da área uma
escolha do próprio escritor. Em nosso caso, optamos por não o adotar no glossário posteriormente
elaborado.
71

Alguns verbetes trazem, ainda, uma descrição dos principais morfemas que
compõem o sinal e sua ligação semântica com outros sinais que compartilham desses
mesmos morfemas. Ao todo, o dicionário conta com 03 (três) volumes, somando 2.944
páginas.
Por fim, faz-se necessário mencionar que o Dicionário da Língua de Sinais do
Brasil traz um índice semântico, no qual os sinais estão agrupados de acordo com o campo
a que pertencem, facilitando a busca do verbete e o aprendizado por parte do sujeito surdo
(CAPOVILLA & RAPHAEL, 2001 apud TEMÓTEO, 2008).

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Levando em consideração que a variação aqui trabalhada diz respeito ao léxico da


libras, as variantes foram analisadas com atenção aos parâmetros. Os sinais analisados
foram: advogado, bombeiro, dentista, enfermeiro, motorista e policial. Esses sinais foram
descritos em ordem alfabética, explicitando a realização linguística de cada um dos 06
(seis) informantes que participaram do estudo. Neste artigo, optamos por trazer apenas
algumas dessas realizações, a título de informação, focando no item lexical bombeiro, em
virtude da quantidade maior de variação.
A análise foi feita de forma alternada, ou seja, um informante do sexo feminino
seguido por um informante do sexo masculino. Para tanto, convencionamos a seguinte
legenda: I, representando a categoria informante; o número da sequência de entrevistados
(de 01 a 06); e as letras F e M para identificação dos gêneros feminino e masculino,
respectivamente.
Salientamos, ainda, que os sinais aqui apresentados podem ser caracterizados
como “pronúncias” – isto é, articulação – diferentes dos mesmos sinais (XAVIER E
BARBOSA, 2014). Isto significa que, por meio da percepção dos sinais, não há distinção
de significado com a alteração de parâmetros não-distintivos (QUADROS & KARNOPP,
2004), como a configuração de mão, pois o traço semântico não se encontra nessa unidade
mínima em específico.

4.1 ITEM LEXICAL BOMBEIRO E SUAS VARIAÇÕES

O item lexical seguinte é bombeiro, que no Dicionário da Língua de Sinais do


Brasil encontra-se registrado das seguintes formas:
72

Figura 2: Item lexical bombeiro dicionarizado por Capovilla et al (2017).

O primeiro sinal é composto, representando o capacete utilizado pelos bombeiros


e a mangueira que tem como função canalizar a água para extinguir o fogo. Não há, além
desses traços de iconicidade, nenhum aspecto que simule a sonoridade da água ou algo
semelhante. Portanto, trata-se de um sinal icônico (SAUSSURE, 2012; STROBEL E
FERNANDES, 1997), ou seja, um sinal que reflete características visuais que possuem
relação direta com o referente.
Já o segundo sinal, representa apenas o capacete do bombeiro, sendo uma forma
mais simplificada do primeiro sinal.
A seguir, veremos quais foram as realizações dos informantes pesquisados.

4.1.1. Informante I01F


A informante 01 apresentou a seguinte sinalização:

Figura 3: realização do item lexical bombeiro pela informante 01.

Nesse sinal, não há diferença entre o sinal dicionarizado e o sinal obtido por
intermédio da informante. A sinalização é clara e não há traços que exijam movimento
dos lábios para explicitar o conceito. Assim, o sinal descrito pela informante 01
caracteriza-se como padrão, levando em consideração a obra de Capovilla et al. (2017).

4.1.2. Informante I02M


O entrevistado seguinte produziu o sinal abaixo:

Figura 4: realização do item lexical bombeiro pelo informante 02.


73

O caso acima ilustra uma realização não-padrão da lexia apontada. Dois dos
parâmetros diferem totalmente da variedade catalogada pelos autores e as semelhanças
estão na locação, no movimento e na orientação da mão. Além disso, esse sinal é
classificado como simples, uma vez que não há nenhum outro anterior ou posterior que
complemente o seu sentido. A escolha da configuração de mão número 2123 é interessante
porque marca um traço linguístico que não foi percebido nas demais sinalizações,
configurando uma variedade até então não conhecida. Dessa forma, o sinal pode ser
considerado uma variação da entrada (2) do dicionário.

4.1.3. Informante I03F


A informante 03 nos forneceu o seguinte sinal:

Figura 5: realização do item lexical bombeiro pela informante 03.

Esse sinal também coincide com uma das possibilidades que se encontram
dicionarizadas. Embora os parâmetros sejam os mesmos, ainda se trata de um sinal
simples, que não vem acompanhado de nenhum outro que explique o significado contido
no primeiro. Assim, podemos pensar que, para essa informante, uma descrição mais
detalhada do conceito seria facultativa, pois o sinal que remete ao capacete já seria
suficientemente inteligível ao interlocutor.

4.1.4. Informante I04M

23
De acordo com a tabela de configurações de mão do Instituto Nacional de Educação de Surdos (2014),
utilizada como referência para este trabalho. Disponível em
<https://www.google.com/search?q=tabela+de+configura%C3%A7%C3%A3o+de+m%C3%A3o+i
nes&sxsrf=ALeKk01KwayLI1AZhnGESBbTtAGN2U6akg:1597975442361&source=lnms&tbm=is
ch&sa=X&ved=2ahUKEwj2y-
e0mqvrAhU6HbkGHXzjBiUQ_AUoAnoECAwQBA&biw=1360&bih=625#imgrc=ARDpZMcG3K
Xy1M&imgdii=E994UPFdBKGfcM>.
74

O informante 04, ao ser questionado sobre a lexia bombeiro, produziu o seguinte


sinal:

Figura 6: realização do item lexical bombeiro pelo informante 04.

Diferentemente das sinalizações anteriores, esse informante apresenta uma


possível preocupação com o entendimento de seu interlocutor, pois o sinal por ele
realizado é composto por três sinais menores que não apresentam significado em si.
Assim, a descrição “capacete + mangueira + jato de água” torna muito claro o significado
pertencente àquela lexia. É possível que, devido ao seu contato significativo com pessoas
ouvintes (sinalizadoras ou não), esse informante tenha desenvolvido uma ênfase nos
conceitos de sua sinalização, de modo a levar os ouvintes (ou até mesmo outros surdos)
à compreensão clara e direta de seu discurso. Isso é evidenciado, sobretudo, pelo uso de
um sinal icônico que faz referência ao jato de água expelido pela mangueira de um
bombeiro. De forma simultânea a essa articulação manual, a expressão facial remete à
ideia de um barulho forte, de alta pressão – o barulho típico de um grande jato de água.
Portanto, diferente do registro de Capovilla et al. (2017), esse sinal torna todo o
significante visual, não deixando margens aparentes a outras interpretações de sentido.

4.1.5. Informante I05F e Informante I06M


Ambos os entrevistados produziram o sinal que se confere a seguir:

Figura 7: realização do item lexical bombeiro pelos informantes 05 e 06.

A principal diferença entre esse sinal e o sinal registrado é a configuração de mão.


Os demais parâmetros permanecem inalterados. A escolha da configuração 04 em lugar
da configuração 03 pode ser encarada como uma diferença de “pronúncia”, uma vez que
75

é uma alteração simples que não muda o significado do sinal (QUADROS, 2019;
XAVIER, 2006; XAVIER E BARBOSA, 2014).
Esses informantes, aparentemente, não demonstram preocupação em evidenciar
todos os aspectos semânticos contemplados pelo sinal, isto é, não parece haver uma ênfase
ou uma descrição detalhada do que seria um bombeiro, pois não há traços que simulem
sonoridade ou outros elementos visuais mais elucidativos, como sinalizados pelo
informante 04.

4.2. ANÁLISES ESTATÍSTICAS

A partir dos dados analisados, é possível verificarmos alguns aspectos peculiares


que pudemos notar nos sinais apresentados. Esses aspectos dizem respeito à quantidade
de variantes encontradas para cada item lexical: o grupo que mais apresentou variação –
homens ou mulheres – e o parâmetro que mais sofreu alteração durante a articulação dos
sinais. As referidas informações podem ser traduzidas em gráficos e tabelas que mostram
mais claramente as estatísticas obtidas por meio da presente pesquisa.
Na tabela a seguir, podemos conferir a quantidade de variações encontradas para
cada sinal pesquisado e também qual dentre eles apresentou o maior quantitativo de
variação:

Tabela 1: relação de sinais pesquisados e quantidades de variações encontradas para


cada item.
SINAIS PESQUISADOS QUANTIDADE DE VARIAÇÕES
ADVOGADO 03
BOMBEIRO 05
DENTISTA 04
ENFERMEIRO 03
MOTORISTA 02
POLICIAL 02

Assim, de acordo com a tabela, o sinal que mais apresentou variação foi o item
lexical bombeiro (a), conforme demonstrado pelos informantes. Essa quantidade inclui
também a realização linguística que coincide com aquela que está dicionarizada.
Outra estatística revela que os homens entrevistados apresentaram maior variação
do que as mulheres entrevistadas, o que nos leva a crer que, em geral, elas tendem a ser
mais conservadoras do que eles em relação ao uso de formas linguísticas diferentes do
“padrão” (COELHO et al., 2015). A média de variações por item lexical entre os homens
é de 2,3 sinais, enquanto a média das mulheres é de 2 variações por item pesquisado.
Já em termos de unidades mínimas, isto é, os parâmetros, a principal variação se
encontra na configuração de mão dos sinais. Nas seções anteriores, percebemos e
comentamos a respeito desse aspecto e, mais uma vez, reforçamos que, embora essa
variação na CM aconteça, ela não prejudica a carga semântica do sinal, uma vez que não
se trata de um traço distintivo que carrega o significado do item (QUADROS &
KARNOPP, 2004). O motivo para tal situação, no entanto, ainda não é totalmente claro
e não há espaço aqui para tal discussão, porém, esse debate pode ocorrer em trabalhos
futuros, que abordem os traços que configuram variação na libras.
76

Com esse resultado, podemos supor que as configurações de mão, dentre os cinco
parâmetros, representam, teoricamente, o grupo mais aberto à variação na libras. É
possível que isso ocorra por este parâmetro estar mais relacionado ao léxico propriamente
dito, mas é apenas uma suposição da causa desse efeito observado em nosso trabalho.
Uma pesquisa mais aprofundada pode ser feita a partir das informações aqui descritas,
mas, por ora, acreditamos que esta análise cumpra o propósito do presente estudo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resumidamente, os resultados responderam às perguntas de pesquisa iniciais,


demonstrando que os homens têm mais suscetibilidade a utilizar as variações linguísticas
do que as mulheres, uma vez que eles apresentaram maior grau de formas não-padrão
durante a coleta dos dados. Ademais, pudemos notar que, dentre os parâmetros que
compõem os sinais em libras, a configuração de mão foi a que mais variou no decorrer de
nosso estudo, o que pode significar que essa unidade mínima tende a ser mais inventiva
e alterada do que os parâmetros restantes. E, por fim, dentre os itens lexicais pesquisados,
bombeiro apresentou mais possibilidades de realização – algumas mais “explícitas”, isto
é, mais detalhadas, e outras, mais simplificadas.
A libras, assim como outras línguas, apresenta aspectos de variação diatópica, o
que pode ser evidenciado a partir dos dados que coletamos e também da própria obra de
Capovilla et al (2017), tomada como referência nesta pesquisa. Para compor as entradas
do dicionário, a equipe de pesquisa realizou recolha de dados em diversos estados
brasileiros, inclusive no Maranhão, com surdos e intérpretes de libras que atendessem aos
critérios estabelecidos e que foram creditados na versão final da obra. No entanto, apesar
dos evidentes contrastes presentes na língua, o dicionário pouco abordou a variedade
maranhense – aqui representada por São Luís, capital do estado – privilegiando outros
estados do Nordeste, como Ceará, por exemplo e variedades sulistas (como de São Paulo
e Rio Grande do Sul).
As variedades, no entanto, não são exclusivamente diatópicas, mas resultam do
conjunto de fatores extralinguísticos que influenciam a criação de um sinal (COELHO et
al, 2015). Isso pode ser percebido através do formato que o sinal assume, a depender da
localidade, podendo ir facilmente de icônico a arbitrário – o que pode ser temática para
uma outra discussão no futuro. Portanto, cada variedade carrega consigo a marca
identitária de uma comunidade específica que a utiliza, diferenciando-se e, ao mesmo
tempo, assemelhando-se das outras por uma serie de traços que mencionamos aqui e que
podem ser atestados através de outros trabalhos.
Por ora, finalizamos este estudo de forma a não o tornar completamente fechado,
mas de, por meio dele, abrir caminho a futuras pesquisas na área da Lexicologia e da
Sociolinguística que envolvam a libras e suas especificidades. É possível estudar a
influência das configurações de mão na formação dos sinais e elencar os motivos que as
levam a não ser o parâmetro no qual a carga semântica dos sinais descritos aqui está
contida. Essas motivações podem ser objeto de estudo para pesquisas futuras que
agreguem conhecimento e relevância para os trabalhos realizados com a língua de sinais
do Brasil. Relembramos, a tempo, que esta pesquisa é preliminar e, posteriormente,
poderá ser refeita, estendida ou alterada, considerando que a língua é viva e dinâmica e
77

que o processo de variação pode ser o prenúncio de uma mudança no sistema da língua,
que é tão ativo quanto as próprias experiências dos usuários que o utilizam.

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80

6
O BILINGUISMO E A RECONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE LINGUÍSTICA
EM PRAIA-CABO VERDE

Ayla Cristina Lopes Moura24


Georgiana Márcia Oliveira Santos25

1. INTRODUÇÃO

A presença e a influência das línguas africanas no mundo é uma realidade


incontestável, especialmente, onde houve o processo de escravização, no qual pessoas
provenientes de territórios africanos foram levadas à força de suas localidades, misturadas
entre si e forçadas a se comunicar mesmo não conhecendo a língua ou dialeto dos demais.
A partir dessas necessidades e relações de comunicação, surgiram novas línguas e/ou
dialetos de línguas africanas foram introduzidos em línguas já existentes.
Estudar as línguas africanas é uma questão desafiadora, visto que há uma
diversidade delas, mesmo dentro de uma mesma região. Num mesmo país, podemos
encontrar uma variedade linguística de suma importância, uma infinidade de línguas
convivendo e sendo usadas simultaneamente num mesmo ambiente.
Então, a ideia de realizarmos esta pesquisa partiu do interesse sobre línguas
africanas. A temática do multilinguismo no continente africano sempre nos chamou
atenção: ao lermos revistas, ver sites e reportagens, pairava a curiosidade em sabermos
como os falantes utilizavam diversas línguas para comunicar-se com outras pessoas numa
mesma localidade ou em diferentes espaços e situações comunicativas.
Vale ressaltarmos que esta pesquisa foi realizada, de fato, em razão do I Colóquio
Internacional de Políticas Antirracistas no Mundo, o qual ocorreu na Universidade de
Cabo Verde, proposto pela Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-brasileiros, da
Universidade Federal do Maranhão, em parceria com o Governo do Estado do Maranhão
e com a primeira universidade citada, no ano de 2018. Fizemos parte da comitiva desse
evento, o que nos possibilitou a vivência naquele cotidiano bilíngue.
Logo, este trabalho investiga as relações que permeiam as línguas utilizadas em
Cabo Verde, relações estas provenientes da mescla das línguas dos povos africanos com
a Língua Portuguesa, que resultou no Crioulo cabo-verdiano, e o uso concomitante desta
e daquelas línguas. Isto é, trataremos do uso cotidiano da língua local e da imposição da
língua colonizadora nos espaços oficiais (como escolas, universidades, transações
comerciais, etc.). Em suma, esta pesquisa tem como objetivo geral investigar o uso
concomitante da Língua Portuguesa e da Língua Crioula falada pelos cabo-verdianos da
capital da Ilha de Santiago, Praia. Como objetivos específicos temos: verificar em quais
espaços sociais essas línguas são utilizadas; mostrar como se dá o contato entre as duas

24
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras – PGLetras da Universidade Federal do
Maranhão. Email: aylaclmoura@gmail.com
25
Doutora e Mestra em Línguistica pela Universidade Federal do Ceara - UFC. Professora do Curso de
Graduação em Letras Português/Espanhol e do Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGLetras.
Coordenadora do Projeto de Estudos e Pesquisas em Línguas, Memórias, Identidades e Culturas -
GELMIC/CNPq e Professora-Pesquisadora do Projeto Atlas Linguístico do Maranhão. Email:
georgiana.marcia@ufma.br
81

línguas; conhecer como o Crioulo cabo-verdiano surgiu, como se proliferou; e averiguar


o que os cabo-verdianos têm feito para reafirmar a sua identidade linguística africana.
A abordagem do tema é de grande importância e originalidade, uma vez que visa
dar maior relevância aos falares nacionais da nação cabo-verdiana que ainda vive o
processo de construção de sua identidade. O problema foi abordado de acordo com um
referencial teórico que trata dos estudos sobre Cabo Verde, sobre a teoria da origem,
formação e expansão do Crioulo cabo-verdiano, juntamente com a presença da Língua
Portuguesa e seu uso nesse país. Vale destacarmos aqui autores como Carreira (2000),
Veiga (2004), Hernandez (2002; 2005), Lopes (2016), Reis (2018) cujas obras foram de
extrema importância na construção deste artigo.
Para o desenvolvimento desta, realizamos pesquisas bibliográficas em Praia e em
São Luís, em livros, artigos, teses, redes sociais, além de ter sido realizada pesquisa de
campo na cidade de Praia, a partir do contato com habitantes, por meio de observações,
visitas e conversas com pessoas encontradas em contextos informais, pessoas que faziam
parte de ambientes escolares, alunos e professores da Universidade de Cabo Verde.
Esta pesquisa é relevante visto que caracteriza as relações linguísticas e sociais do
povo cabo-verdiano a partir da situação ocasionada pelo uso de uma língua oficial e de
uma língua nacional num mesmo local. Portanto, este trabalho possui um grande valor
bibliográfico, linguístico, cultural e social.

2. CABO VERDE

Para chegarmos a compreender a situação linguística da cidade de Praia, foi


necessário fazernos um apanhado histórico das ilhas que formam o arquipélago de Cabo
Verde, especialmente, da Ilha de Santigado na qual se localiza a referida cidade. Esse
histórico possibilitou-nos tentar entender as lacunas causadas pelo problema gerador
desta pesquisa.
Cabo Verde, oficialmente denominado República de Cabo Verde, é um país
formado por um arquipélago que se distribui em 10 ilhas e alguns ilhéus na região central
do Oceano Atlântico, a cerca de 455 quilômetros da costa do continente africano. O
arquipélago, com seus 403.300 hectares, ficou dividido em ilhas de Barlavento, ao norte
(são elas: Ilha de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal e Boa Vista, e
os ilhéus Branco e Raso), e em ilhas de Sotavento, ao sul (compostas por: Ilha de
Santiago, Maio, Fogo e Brava e os ilhéus Secos).
O “achamento” do arquipélago é consequência da Expansão Ultramarina de
Portugal, da expansão do capitalismo mercantil, a partir da segunda metade do século
XV. O arquipélago foi encontrado através das expedições realizadas pela Coroa
Portuguesa, a qual buscava exploração econômica e dominação política.
A partir daí, o processo de exploração amplia-se, torna-se complexo e articula-se
a uma serie de instrumentos de dominação. O povoamento de Cabo Verde data do século
XV:
82

Em 1460, Antônio de Noli chega ao grupo formado pelas ilhas orientais e


meridionais do arquipélago e, dois anos depois, são encontradas desabitadas,
por D. Fernando, as ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia e São
Nicolau. Pela Carta Régia de 3 de dezembro de 1466, D. Afonso faz ao infante
D. Fernando uma doação perpétua e irrevogável das ilhas de Santiago, Fogo,
Sal, Boa Vista e Maio. (HERNANDEZ, 2002, p. 21)

De início, o povoamento das ilhas foi difícil, haja vista que o clima era rude, não
havia pastos e vegetação propícia para plantio e o acesso por meio marítimo era
dificultoso. Em razão disso, durante muitos anos, grande parte das ilhas se manteve
deserta.
Não somente os portugueses povoaram as ilhas cabo-verdianas de início. Outros
europeus como castelhanos e genoveses foram responsáveis pelo povoamento do
arquipélago, apesar de serem em número menor que os primeiros.
Já em 1462, para a concretização efetiva do povoamento – que se mostrava lento
e difícil –, além do efetivo processo de ocupação portuguesa, recorreu-se ao processo de
escravização de africanos.

2.1 A ILHA DE SANTIAGO

A primeira ilha a ser povoada em Cabo Verde foi a de Santiago, situada numa
região denominada Vila de Ribeira Grande, atualmente chamada de Cidade Velha. Essa
ilha foi dividida em duas capitanias: uma localizada ao sul, dada a Antônio de Noli,
situada na Ribeira Grande; a outra, ao norte, entregue a Diogo Gomes, localizada em
Alcatrazes. Ao rei ficava reservada a propriedade jurídica da terra e para os donatários
cabiam as despesas com o transporte e assentamento dos povoadores e com a exploração
das terras, podendo ainda administrar a justiça e conceder a posse das terras aos seus
colonos – atividades que também poderiam ser realizadas por seus descendentes.
A partir de 1466, a capitania da Vila de Ribeira Grande passa por um pequeno
crescimento em sua população em decorrência do aumento do tráfico de escravizados
para as Índias Ocidentais e para a América (esta última, um pouco mais tarde), visto que
ali era ponto de passagem, chegada e saída deste tipo de “produto”. Por essa função
comercial, a ilha se torna de extrema importância para Portugal pois passa a ser um
entreposto de sujeitos escravizados e, assim, intensifica o processo de acumulação
primitiva do capitalismo na sua fase mercantil.
O comércio escravocrata impulsiona também a permuta de produtos que vão da
costa da ilha até Serra Leoa e ajuda a ampliar a circulação de mercadorias da Europa e da
Ásia. Assim, Santiago passa a apresentar um constante crescimento populacional e
econômico.

Convém assinalar que Santiago concretiza sua posição hegemônica quanto às


demais ilhas pelo papel que desempenha, definindo com base nas regras da
economia colonial. Com a regulamentação dos fatores, como distribuição da
terra e das relações do trabalho, e com a inclinação para o comércio de escravos
e para as atividades agroexportadoras, constitui o núcleo catalisador de todas
83

as atividades econômicas. Além disso, Santiago torna-se o centro político-


administrativo de Cabo Verde, visto que é sobretudo nessa ilha que são criadas
as condições de exercício da ação do Estado português. (HERNANDEZ, 2002,
p. 26)

Por essas razões – além da favorável localização geográfica – Santiago se destacou


em relação às outras ilhas, as quais tiveram um povoamento e desenvolvimento tardio e
em momentos históricos distintos, apresentando ainda características peculiares quanto
às formas de ocupação da terra e à composição social de cada uma delas. Ou seja, o
desenvolvimento do país se deu a partir do povoamento da referida ilha.

Para povoar as duas ilhas (S. Tiago e Fogo) mandou o Infante D. Fernando [...]
no ano 1461 casaes do Algarve em companhia do descobridor António de
Nolle, Diniz Eannes, e Ayres Tinoco, primeiros donatários, os quais valendo-
se do exclusivo, que lhes fôra conferido, resgataram em Guiné grande número
de escravos para o arroteamento das terras: daqui se originaram logo as três
espécies de castas, que há no paiz; - brancos, descendência pura de gente
Europêa; pretos, descendência pura das alianças dos escravos de Guiné,
promovida por seus senhores em seu proveito próprio, e mulatos, descendência
cruzada dos brancos da Europa com as negras de Guiné; e esta última casta
aumentou quando começaram no século 16º a ser mandados para o arquipélago
degredados a cumprir sentença, não descontinuando nunca a introdução da
escravaria da costa. (CARREIRA, 2000, p. 284)

O povoamento de Santiago foi iniciado com brancos (nobres, plebeus,


degredados) e, por conseguinte, com negros africanos. Logo, pelo comércio e trato com
as negras do país, os brancos foram relacionando-se com as mesmas, o que acarretou na
propagação da mistura dessas raças, resultando no processo de mestiçagem.

2.2 POVOS AFRICANOS NA ILHA DE SANTIAGO

Como visto, a rápida e crescente riqueza em Santiago proporcionou o crescimento


de duas vilas: Ribeira Grande e Praia. A partir dos portos dessas vilas é que se deu e
concretizou o processo de escravização de africanos. Por ali passaram e ficaram etnias
(povos) das mais variadas localidades do continente africano.
Os primeiros africanos que foram levados para serem escravizados nas ilhas cabo-
verdianas no final do século XV eram fundamentalmente provindos das regiões que
compreendiam a margem direita do rio Senegal e a esquerda do rio Gâmbia. A margem
norte do Senegal era habitada por populações Berberes (ou Mouros da Mauritânia) com
graus menores e maiores de miscigenação, com coloração pouco acentuada, e alguns
Mouros de cor mais escura (resultado da mescla de Berberes com Jalofos e Tucurores).
Das margens do rio Senegal para sul, os Jolofos dominaram até a altura do Cabo Verde.
Na ponta do Cabo Verde e espalhando-se um tanto para sul até próximo de Portugal (o
Porto d’Ale, dos antigos), ficavam os Lêbús (os Bilêbos); ao sul destes, dominavam os
Sèrères (os Xereos), de Rufisque até um pouco acima da margem direita do rio Gâmbia.
E em todos esses setores, misturados com as referidas etnias acima, sempre se
encontraram Mandingas e Fulas. Já na região de Bolola, existiam os Beafadas, Cocolis,
84

Mandingas e Nalus mais ao sul. Na área que compreende a Guiné, localizavam-se os


Bijagós, Biafadas, Brâmes, Papéis, Manjacos, Felupes, Balantas, Banhuns e Mandingas.
Os Jalofos e os Bambarãs são do Senegal e do Sudão; os Quisis são oriundos da atual
República da Guiné.
Assim, a colonização de Cabo Verde por parte dos africanos foi feita por casais
de Balantas, Papéis, Bijagós, Felupes, Jalofos, Mandingas, Biafadas, Quisis, Banhuns,
Futas, Bambarãs, Bolotas, Manjacos, Cocolis, Nalus, Brâmes, Nalás, Uassoloncas,
Suruás e Tiliboncas. Haja vista que nem todos esses povos estavam situados na área da
Guiné, podiam também ser encontrados em regiões limítrofes como Casamansa, Cacheu,
Geba, Bissau, Senegal, Sudão. “Estas etnias foram enumeradas por Mendes Correa em
1943 e 1945; Silva Teixeira e Grandvaux Barbosa e Pedro Lobo em 1958; e por Padre
Brásio em 1962” (CARREIRA, 2000, p. 302).
É válido ressaltarmos que também houve africanos livres, idos para as ilhas
espontaneamente em companhia de negociantes, missionários e capitães de navios,
“sendo eles das etnias Banhuns, Cassangas e Brames – muitos sendo consagrados cristãos
por sua vontade e já eram falantes da Língua Portuguesa” (CARREIRA, 2000, p. 303).

2.3 LÍNGUAS AFRICANAS EM SANTIAGO-CABO VERDE

É difícil dizermos precisamente quais línguas africanas foram transplantadas para


Cabo Verde, em razão de não haver registros sobre o assunto. Entretanto, obtendo o
conhecimento dos povos africanos que chegarem ali, é possível identificarmos algumas
línguas.
Esses povos faziam parte do grupo linguístico nigero-congolês. Esta é uma família
de línguas considerada a maior das línguas africanas, tanto quanto ao número de falantes,
quanto à área geográfica ou ao número de línguas. Quase todas as línguas da África
subsaariana pertencem a este grupo.
A partir daí, verificamos que as línguas que fazem parte desse grupo e que
correspondem aos locais de origem das etnias africanas levadas a Cabo Verde são:
a) Oeste-atlântico ou Atlântico ocidental: inclui, por exemplo, o Fula, uma língua
falada pelo Sahel e o wolof, falada no Senegal;
b) Mandê: faladas na África Ocidental, que inclui, por exemplo, o bambara, a
principal língua do Mali e o mandinga.
c) Gur: faladas entre outros lugares na Costa do Marfim, Togo, Burkina Fasso e
Mali, e inclui, por exemplo, o mossi, principal língua do Burkina Fasso, falado
pelos mossis.
d) Kru: faladas na África Ocidental, cuja inclui, por exemplo, o bassa, falado na
Libéria e o bété, falado na Costa do Marfim.
e) Benué–congolês inclui, por exemplo, o ioruba e o igbo, falados na Nigéria e o
bem grande ramo das línguas bantas, que inclui, por exemplo, o macua, o
quimbundo, o suaíli, o tsonga e o umbundo.

Sendo assim, é possível termos uma ideia da grande riqueza linguística que
ocorreu em Santiago pelo contato entre os muitos povos, acarretando no processo de
formação de seu povo e, consequentemente, da sua língua nacional.
85

3. CONTATO ENTRE LÍNGUAS EM SANTIAGO

A fim de se melhor compreender o contato entre línguas – no contexto cabo-


verdiano em especial – é necessário que se expliquemos a relação que se estabelece entre
elas desde um ponto de vista social e cultural. Logo, veremos aqui conceitos como
identidade linguística, hábito linguístico e socialização para que se entenda a função que
cada língua compreende.
Dependendo da relação estabelecida entre os falantes e as línguas, estas ganham
diferentes designações em relação às funções que desempenham nas sociedades. Segundo
Reis (2018, p. 16), “das relações entre sujeito e línguas são emanados conceitos de
identidade linguística e de competência linguístico-comunicativa” que nos dão conta do
grau de domínio que o sujeito tem de uma determinada língua e que lhe permite classificá-
la como sua língua materna (LM), sua segunda língua (L2) ou sua língua estrangeira (LE).
Para definição de identidade, usaremos o conceito de Luc Van Campenhout (2003,
p. 303, apud Reis, 2018, p. 16): “é aquilo em que o indivíduo se reconhece e é reconhecido
pelos outros. Em razão disso, a identidade torna-se um elemento primordial da realidade
subjetiva, o qual encontra-se em relação dialética com a sociedade.” Ela é formada por
processos sociais e pode ser mantida, modificada ou remodelada pelas relações sociais.
Em termos sociolinguísticos, o entendimento dessa identidade linguística se
relaciona intrinsecamente com o conceito de hábito linguístico que funciona como
estratégia para ressaltar a capacidade de invenção e de improvisação dos agentes atuantes
que tomam as melhores decisões conforme a evolução das circunstâncias. Ou seja, é uma
capacidade criativa; o hábito está ligado ao mercado pelas suas condições de aquisição e
de utilização, visto que aprendemos a falar, ouvindo um outro determinado falar, fazendo
modificações e construindo uma linguagem própria. Isso acontece por meio da
socialização, a qual é inevitável, e produz a incorporação ativa das crianças ao modo de
vida dos adultos.
Tratamos aqui de socialização pois é necessário que se trate dela para que se
entenda o processo de formação linguística pelo qual passou Cabo Verde. A linguagem
constitui o principal deste progressivo processo de tradução em ambos os sentidos. “Daí
a nossa preocupação em puxar para o nosso estudo a relação entre o desenvolvimento da
consciência linguística e os processos de identidade e de socialização” (REIS, 2018, p.
19).
Com relação ao conceito de socialização, diferencia-se socialização primária de
socialização secundária. A socialização primária é a mais importante para o indivíduo,
visto que é a primeira que se experimenta na infância e por meio dela este se inclui numa
sociedade. Ela é a estrutura básica da socialização secundária e termina quando o conceito
do outro generalizado é estabelecido na consciência do indivíduo. A socialização
secundária requer que já se tenha adquirido vocabulários específicos das funções, ou seja,
que se tenha interiorizado campos semânticos que estruturam interpretações e condutas
de rotina numa área institucional. Esta última só é possível ocorrer após a primeira.

A socialização primária é caracterizada pela aquisição e uso do crioulo,


enquanto a socialização secundária é marcada pela aprendizagem do
português. Sobre esta relação e diferenciação linguística Berger e Luckmann
defendem que se aprende uma segunda língua, construindo sobre a realidade
86

indiscutível da nossa língua materna. Durante longo tempo a pessoa continua


a traduzir na língua original quaisquer elementos da nova língua que for
adquirindo. À medida que esta realidade começa a estabelecer-se por si mesma,
vai-se tornando possível dispensar a tradução. A pessoa mostra-se capaz de
pensar na nova língua. Entretanto, é raro que uma língua aprendida tarde na
vida alcance a inevitável e evidente realidade da primeira língua aprendida na
infância. Daí deriva sem dúvida a qualidade afetiva da língua materna. (REIS,
2018, p. 20).

Isto é, no contato de línguas ocorrido na realidade cabo-verdiana, os habitantes da


região passaram por todos esses processos mencionados acima, visto que já possuíam
suas identidades linguísticas ao chegarem ao território; tiveram que obter novos hábitos
linguísticos pela necessidade de comunicação e, assim, tiveram que criar estratégias para
tal ato; e passaram ainda pela socialização, uma vez que tiveram que adaptar-se ao modo
de vida dos que ali já residiam.
E, em se tratando das relações linguísticas de Cabo Verde, há a confirmação de
dois campos linguísticos distintos e conflituosos: o da “língua oficial” (o Português) e o
da “língua nacional” (o Crioulo).

A situação linguística em Cabo Verde, como já abordado, é caracterizada pela


existência de duas línguas com estatutos e funções diferenciados: o português
é língua oficial e internacional e o crioulo é língua nacional e materna. Ao
primeiro estão reservadas as funções de comunicação formal: administração,
ensino, literatura, justiça. Ao segundo, pelo seu lado, estão reservadas as
funções de comunicação informal, particularmente o domínio da oralidade”.
(VEIGA, 2004, p. 99).

Dentro dessas relações, ocorrem processos de bilinguismo e diglossia que, a saber,


são os fenômenos linguísticos que são consequência do uso concomitante da Língua
Crioula e da Portuguesa em Cabo Verde.
Pegando o conceito de Bloomfield (1933, p. 11 apud Reis, 2018, p. 38), entende-
se bilinguismo pelo “controle nativo de duas línguas”. Ou seja, o indivíduo possui o
controle simultâneo de dois sistemas linguísticos e sobretudo permite a mudança de
códigos, isto é, usa-se alternadamente ambas as línguas numa mesma expressão.
Podemos entender o bilinguismo ainda enquanto:

Faculdade que possui um indivíduo de saber expressar-se numa segunda língua


adaptando-se fielmente aos conceitos e estruturas próprias da mesma sem
parafrasear a língua nativa. A pessoa bilíngue possui a facilidade de saber
expressar-se em qualquer das línguas sem dificuldade cada vez que surge a
ocasião. (TITONE, 1972, p. 13).

Considerando essas duas conceituações, podemos examinar que a situação


linguística cabo-verdiana é de cunho bilíngue, em sua maioria. E para que um indivíduo
seja identificado enquanto bilíngue, ele deverá dominar as duas línguas em concomitância
como se ambas fossem suas línguas maternas. Geralmente, nas situações em que ocorre
87

o bilinguismo, as línguas em contato estão numa relação assimétrica de poder: “Essa


relação entre uma língua dominante ou maioritária e outra dominada ou minoritária, a que
correspondem usos complementares, é denominada diglossia” (LOPES, 2016, p. 58).
A diglossia vem a ser uma manifestação do bilinguismo.

Uma comunidade é diglóssica quando nela coexistem duas variedades da


mesma língua, não demasiado diferenciadas, mas também não tão próximas
como são os registros, uma delas com um estatuto sociopolítico inferior, a
variedade baixa (B) por oposição à alta, mais prestigiada (A), e que são usadas
com funções distintas; a variedade alta não é língua materna de ninguém e não
é falada por qualquer segmento da comunidade nas conversas informais.
(LOPES, 2016, p. 58).

Portanto, em Santiago, ocorre um bilinguismo social extensivo e uma diglossia


relativamente estável. Quanto à sobreposição de uma língua a outra, podemos destacar
que as culturas em contato desfrutam de diferentes graus de prestígios, o que em Cabo
Verde acarretou na sobreposição da Língua Portuguesa sobre a Crioula, uma vez que a
classe europeia era a mais prestigiada. A saber, há a presença das duas línguas sendo
usadas concomitantemente, mas com a valorização da Língua Portuguesa em detrimento
da Língua Crioula, mesmo esta última sendo a materna – falada pela quase totalidade dos
falantes cabo-verdianos – e a outra, a língua segunda – falada apenas por parte da
população, a parte que tem acesso ao sistema educacional.

4. A LÍNGUA CRIOULA

A língua está diretamente relacionada à sociedade, uma vez que é impossível


conceber a existência de uma sem a outra. Isto é, a finalidade básica de uma língua é
servir como produto e expressão da cultura de um povo. Neste artigo, concebemos o
Crioulo cabo-verdiano enquanto língua.
No arquipélago de Cabo Verde, as relações entre línguas se deram a partir do
processo de colonização do país. O contato intenso entre povos distintos acarretou na
coexistência de línguas no mesmo espaço geográfico. Ou seja, os indivíduos
relacionavam-se de formas diferentes e múltiplas a partir das línguas que estavam à sua
volta.
Com isso, pudemos chegar à conclusão de que o grau de dificuldade dos africanos
e europeus em relação à construção e aprendizagem de uma nova língua foi grande. Nesse
contato de línguas ocorrido na realidade cabo-verdiana, os escravizados já possuíam suas
identidades linguísticas ao chegarem ao território, mas tiveram que obter novos hábitos
linguísticos pela necessidade de comunicação e, assim, tiveram que criar estratégias para
tal ato.
É sabido que, naquele momento, a presença das diversas línguas étnicas e da
Língua Portuguesa tornava quase impossível a intercompreensão e instigava uma
necessidade de comunicação tanto entre os escravizados (que falavam línguas distintas)
quanto entre estes e os europeus. Isto é, a diversidade de línguas faladas pelos africanos
88

constituía um enorme embaraço no entendimento entre eles e seus senhores. Por ventura,
ocorreu a mistura ou amalgamento (entrelaçamento) entre essas línguas, produzindo
assim alterações na estrutura de cada uma delas. Tornou-se evidente que a formação de
um meio de comunicação comum entre brancos e negros era mais simples e lógico do que
o uso de muitas línguas concomitantemente. Esse fenômeno linguístico propiciou o
surgimento inicial de um pidgin e, posteriormente, do crioulo cabo-verdiano.
Conforme Romaine (1988, p. 49), pidgin é

Uma espécie de interlíngua criada por várias comunidades em contato para ser
utilizada como língua franca entre elas. Não é a língua materna de nenhum dos
grupos em contato e nem substitui nenhuma delas. É um simples instrumento
de comunicação criado para resolver interações comunicativas pontuais entre
indivíduos de línguas diferentes e mutuamente incompreensíveis. Uma espécie
de língua reduzida que surge do contato prolongado entre grupos de pessoas
que carecem de uma língua comum e que necessitam de algum meio de
comunicação verbal.

A característica maior do pidgin é possuir estrutura e usos sociais reduzidos. E,


para que o mesmo surja, as línguas em contato não devem ser da mesma família
linguística e deve-se manter uma considerável distância social entre os grupos
etnolinguísticos. Em Cabo Verde, sua função rudimentar era também de comunicação
portuária, auxiliando nas trocas comerciais entre mercadores. O pidgin começou por ser
um código restrito, bastante limitado, com um aporte lexical muito reduzido.
Visto que as funções do pidgin se tornam limitadas, ele não sobrevive: morre
assim que somem as circunstâncias pelo qual foi criado. Esta falência também ocorre por
meio das crianças, as quais vão modificando a linguagem dos seus pais e mães, tornando
os sistemas linguísticos mais complexos e vão reestruturando-os, baseando-se em novas
necessidades de comunicação. E, por força da evolução, este falar emergencial passa por
processos de complexificação e reestruturação e, assim, nascem os crioulos.

Para que houvesse intercâmbio de comunicação linguística entre uns e outros,


surgiu o falar de emergência, o pidgin, que se estabilizou, acabando por
converter-se em crioulo. A evolução, entretanto, deu-se constrangidamente,
devido ao duro travão dos africanos, pois, oriundos de várias regiões, eram
falantes de muitas línguas. (LOPES, 1985, p. 11).

Assim, a formação do Crioulo cabo-verdiano foi o resultado da união de muitas


línguas – que não eram dominadas por outras sociedades que não a sua – e da necessidade
de que se chegasse a uma língua comum a todos os povos para facilitar a comunicação.
Esse processo de crioulização é entendido como um processo de
aquisição/desenvolvimento de uma primeira língua. A morfologia e a sintaxe reduzidas
da gramática do pidgin são expandidas, a fonologia é regularizada e o uso da língua já
não se restringe a um domínio específico, mas alarga-se a diferentes situações; “verifica-
se uma expansão dos domínios de emprego do novo sistema linguístico a qual ocorre em
qualquer processo de nativização”. (ROMANIE, 1988, p. 38)
89

Convém salientarmos que o Crioulo do arquipélago se originou de um pidgin de


base lexical portuguesa e com sistema fonético baseado nas línguas africanas. Pelo fator
geográfico, podemos supor que na formação desse crioulo tenha havido o predomínio –
como substrato – das línguas do ramo mandinga, uma vez que o povoamento das ilhas se
deu de início através de povos do grupo Mandinga e também de Jalofos e Fulas, os quais
dominavam as línguas desse ramo.
Acredita-se que o Crioulo de Cabo Verde teria sido uma fase bilíngue inicial,
seguindo-se outra em que o africano já assimilava uma estrutura gramatical simplificada
da Língua Portuguesa. Por consequência, podemos constatar que o surgimento da língua
Crioula, em Cabo Verde, deveu-se à necessidade de comunicação entre os portugueses e
os povos provenientes da África.
Vale ressaltarmos, ainda, que o Crioulo não se dispersou homogeneamente pelo
arquipélago, mas, distribuiu-se em dois grupos: o de Barlavento e o de Sotavento. Já em
1880, Adolfo Coelho distinguia duas formas do crioulo nas ilhas: o crioulo rachado,
fundo, vejo, falado principalmente no interior das ilhas, e o crioulo leve, levinho, falado
nas regiões mais urbanizadas. A variante de Sotavento ficou recomendada como língua-
base pelo Colóquio de São Vicente, em 1979. A partir disso, pode-se considerar a
existência de quatro principais variantes dialetais (do ponto de vista sociolinguístico) que
se apresentam no arquipélago: a variante da ilha de Santiago, a da ilha de Fogo, a da ilha
de São Vicente e a variante da ilha de Santo Antão.
Funcionalmente, o Crioulo foi preenchendo a necessidade dos falantes do
arquipélago e, tomando o português como língua-fonte, os desvios e mutilações sofridas
na morfologia, fonologia e sintaxe, resultaram no falar cabo-verdiano. E este falar sofreu
modificações de uma ilha para outra, especialmente, na fonética.
Segundo Carreira (2000), o Crioulo formou-se nas ilhas de Cabo Verde a menos
de cinquenta anos do seu achamento e dali em diante se propagou e se enraizou na costa
ocidental da África e servia de língua franca entre os europeus e os nativos e entre estes
últimos (esta é uma ideia defendida por muitos estudiosos da atualidade).
No Crioulo de Cabo Verde, os fonemas africanos são mais acentuados e os
vocábulos (talvez entre 90 e 95%) originam-se do português de Portugal, das suas formas
arcaicas já caídas em desuso na então Metrópole.
A atual grafia tida como oficial, proposta em 1998 e consignada num decreto
conhecido por ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Crioulo), é, como o
próprio nome indica, essencialmente um alfabeto, não tendo havido ainda uma
normalização generalizada da representação gráfica das unidades lexicais que tenha como
modelo uma variedade escolhida como padrão. E, apesar do Crioulo cabo-verdiano ser a
primeira língua adquirida pela grande maioria dos falantes, ainda não ocupa posição de
destaque linguístico e social e não é ainda matéria de ensino nas escolas.

5. A PRESENÇA DA LÍNGUA PORTUGUESA

Em se tratando da presença da Língua Portuguesa no arquipélago – tratada, neste


capítulo, como segunda língua (L2) –, é sabido que esse fator se deu pela presença dos
colonizadores portugueses ali, os quais fizeram parte da formação da sociedade cabo-
verdiana.
90

O termo segunda língua surgiu no final da década de 1950 para distinguir todas
as línguas dominadas pelo falante que vão além da sua língua materna. Seu método de
aprendizagem é construído num nível normal quando o falante está inserido num
ambiente em que ela é sistematicamente utilizada.
A Língua Portuguesa é a língua oficial de Cabo Verde. Foi instituída em 1974
quando o processo de descolonização teve seu fim acelerado pela revolução de abril que
ocorreu nesse mesmo ano, derrubando o então regime fascista de Portugal. A partir disso,
a Língua Portuguesa tornou-se oficial tanto em Cabo Verde quanto em Guiné-Bissau,
Angola, São Tomé e Príncipe. Esses países fazem parte dos PALOP – Países Africanos
de Língua Oficial Portuguesa – e possuem relações de cooperação linguísticas,
comerciais, políticas, culturais, educacionais e diplomáticas uns com os outros.
Logo, a partir da ciência sobre a concepção de segunda língua (L2), é válido
dizermos que a língua do colonizador nesse país não pode ser chamada de língua
estrangeira (LE), uma vez que esta última é a língua do país que não o do falante e exige
uma instrução formal e recorrência a outras medidas que compensem a ausência do apoio
contextual do qual a L2 dispõe. Ainda segundo Stern (1984, apud Reis 2018, p. 32), o que
diferencia a L2 da LE são os objetivos e os processos subjacentes às suas aprendizagens.

À situação sociolinguística de Cabo Verde, a língua mais utilizada no cotidiano


é a língua crioula, mas apenas o é na oralidade; na escrita o que predomina é a
língua portuguesa, uma vez que o crioulo cabo-verdiano não tem uma norma
de produção escrita conhecida e dominada por todos. Nas comunicações
oficiais predomina a língua portuguesa e não se pode dizer que conhecemos
melhor o crioulo cabo-verdiano do que a língua portuguesa. Dominamos mais
o crioulo cabo-verdiano do que a língua portuguesa, mas em termos de
conhecimento metalinguístico, uma vez que o crioulo não é matéria de ensino
e nem língua veicular de conhecimentos científicos, não existe espaço para se
fazer o estudo da estrutura e do funcionamento desta língua. O indivíduo
comunica naturalmente, com espontaneidade e fluência, mas tem dificuldades
em explicitar as regras gramaticais subjacentes a sua produção. (REIS, 2018,
p. 24)

Com esta visão, verificamos que o Crioulo cabo-verdiano é a língua materna do


seu povo e a Língua Portuguesa a segunda língua (L2), porém, com reconhecimentos
invertidos.

6. CONTEXTOS REAIS DE USO DAS LÍNGUAS PORTUGUESA E CRIOULA

Os cabo-verdianos têm feito da língua cabo-verdiana a sua língua veicular e a


opção que eles fazem de escolher uma ou outra língua é condicionada por diversos fatores,
especialmente os extralinguísticos.

O critério de utilização não considera o lugar nem o momento em que cada


língua predomina (em casa, na rua, no trabalho, na escola) nem o fato da
relação oralidade/escrita em situações onde a língua mais falada não é
91

normalizada e, portanto, não é utilizado enquanto código escrito. (REIS, 2018,


p. 24)

Com relação ao uso, fazendo um contraponto às duas, podemos destacar o que


apresentamos no quadro a seguir.

Tabela - Caracterização da Língua Crioula e da Língua Portuguesa em Cabo


Verde segundo região geográfica, Praia, 2018.

Língua Crioula Língua Portuguesa


Materna Oficial
Nacional Internacional
Informal Formal
A Nação O Estado
Resistência cultural Dominação cultural
Massas Elite
Oralidade Escrita
Tradição Modernidade

Fonte: Autoras.

Então, é válido dizermos que o Crioulo é habitual no seio familiar, intimista,


casual, entre amigos. A Língua Portuguesa é usual na escrita, no processo de ensino-
aprendizagem escolar, nos meios de comunicação, em obras literárias, no meio acadêmico
ou situações formais de comunicação. No entanto, não podemos dizer que uma não faz
interferência no espaço da outra. Isso dependerá da opção do falante e do contexto
comunicativo.
A partir disso, citamos mais algumas considerações quanto ao contexto
comunicacional e situacional do uso dessas duas línguas:
a) Na família: estando em casa, em um ambiente familiar, o falante cabo-verdiano escolhe
na maior parte das vezes o Crioulo; encontramos poucas situações em que a Língua
Portuguesa era a língua materna; dependendo do grau de instrução, geralmente os mais
novos usam as duas línguas e os mais velhos optam por usar o Crioulo; se o adulto
também é escolarizado, faz-se o uso de ambas as línguas.
b) Na escola: a grande maioria dos professores fala cabo-verdiano entre si em qualquer
parte da escola; durante as reuniões de coordenação, normalmente os coordenadores
iniciam a reunião em Português, mas momentos depois continua prevalecendo o diálogo
em língua cabo-verdiana; os conteúdos programáticos são transmitidos em Língua
Portuguesa; mas tem crescido o número de professores que optam por falar com os alunos
em crioulo.
92

c) No convívio social e nos eventos culturais: nesse contexto, é possível encontrar a


utilização das duas línguas; como exemplo, temos os grupos teatrais nacionais que
apresentam as peças em Português ou em língua cabo-verdiana, muitas vezes dependendo
do tema abordado; nas manifestações folclóricas predomina o Crioulo (como observado
nas músicas dos grupos de Batuko, manifestação folclórica típica do país).
d) Nas atividades religiosas: tem se tornado frequente as celebrações religiosas serem
proferidas em Língua Crioula – o que há poucos anos atrás não acontecia.
e) Nas ocupações administrativas: as duas línguas aparecem com muita frequência; há
uma frequência maior da Língua Portuguesa entre a classe dirigente, mas, atualmente, os
falantes mais jovens, mesmo estando nessa posição, usam o Crioulo.
f) Na comunicação social: no Rádio e na Televisão, a apresentação das notícias é feita em
Língua Portuguesa; todavia, nas reportagens, entrevistas, programas culturais e debates é
frequente ouvirmos o jornalista dirigir-se aos entrevistados em língua cabo-verdiana, bem
como a tendência de ser em Português quando se trata de algum intelectual ou político;
as campanhas contra drogas, alcoolismo, AIDS, aparecem ora em Português, ora em
cabo-verdiano.
g) Na publicidade: hoje é frequente ver e ouvir publicidades em Crioulo cabo-verdiano;
a divulgação de atividades culturais e desportivas, bem como políticas, são feitas em
Crioulo e Língua Portuguesa; o serviço oficial da Rádio Nacional que divulga
informações de emprego, comunicações de falecimento, etc. é feito em Português,
podendo ser ouvidos no mesmo programa convites em Crioulo.
h) Na modalidade escrita: há o predomínio exclusivo da Língua Portuguesa em
documentos oficiais (atas, revistas, entrevistas, reportagens, poemas, poesias, topônimos,
músicas); não obstante, tem aparecido músicas e produções literárias escritas em Crioulo
cabo-verdiano (é comum encontrar várias expressões dessa língua no quotidiano cabo-
verdiano em qualquer jornal ou revista nacional, quer em versão eletrônica quer em
versões impressas) e são publicações recentes.
i) Nos nomes próprios: o nome das ruas aparece sempre em Língua Portuguesa; o nome
das pessoas tem versão bilíngue (por exemplo, “João” é frequente que alguém o chame
de “Djon”).
j) Na comunicação das redes sociais: esta tem ganhado mais adeptos da escrita em Crioulo
cabo-verdiano; os e-mails que apareciam somente em Língua Portuguesa começam a
surgir em Crioulo cabo-verdiano; nas redes sociais há a convivência, na modalidade
escrita, das variantes linguísticas existentes na própria língua cabo-verdiana (perante a
ausência de uma norma ortográfica padrão do Crioulo, os internautas escrevem de acordo
com a variante que eles falam, sem serem questionados pelo interlocutor).
Vale lembrarmos que se desconhece o critério utilizado para a escolha de uma ou
outra língua, tendo em conta que não cabe, no âmbito desta pesquisa, a investigação sobre
as motivações para esses usos linguísticos. Ainda assim, é notório que o nível de
escolaridade e função social desempenhada condiciona o uso de cada uma das línguas:
quanto maior o grau de escolaridade, maior o aumento do uso da Língua Portuguesa e
quanto menor é esse grau, maior o aumento do uso do Crioulo.
Essa descrição nos mostrou que se observa, no momento, uma redistribuição do
uso das duas línguas. Logo, já não se pode falar em exclusividade do uso de cada uma
93

nos seus respectivos espaços de domínio, uma vez que uma pode adentrar ao território da
outra.

6.1 RECONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE LINGUÍSTICA

Sabe-se que a atual situação resultante desse contato permanente da língua cabo-
verdiana e da Língua Portuguesa não é pacífica e as fronteiras do uso de uma e de outra
começam a diminuir. O Crioulo faz parte do símbolo da identidade cabo-verdiana, mas o
Português é a língua que permitiu e permite a concorrência aos postos administrativos.
Pode-se dizer que os falantes cabo-verdianos assumiram a sua língua como língua
nacional, mas em sua maioria não sabem exatamente o que seja uma língua nacional.

Se o português ganha força no domínio das “coisas oficiais”, atuando como


canal privilegiado na comunicação formal, dentro e fora do país, o crioulo
encontra seu espaço de desenvolvimento no domínio da comunicação
informal. Associada às atividades que se desenrolam no dia-a-dia desse povo,
a língua crioula se fortalece como símbolo da nação cabo-verdiana. (DIAS,
2002, p. 7).

Como vimos, a Língua Portuguesa é a língua oficial do sistema educativo e, por


isso, é a utilizada na modalidade escrita, nas questões oficiais. Enquanto que o Crioulo
não é utilizado no sistema de ensino, a ponto de muitos alunos desconhecerem a existência
do ALUPEC – Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano. Isso ocorre pela
ausência de uma normalização dessa língua materna, podendo-se verificar a alternância
no uso das grafias, entre o etimológico e o fonético.
O fato de o Crioulo não ter sua escrita trabalhada nas escolas, nem ser usado nos
contextos oficiais – apesar de ser a língua materna dos cabo-verdianos – atrasou a sua
oficialização. Isto é, para que uma língua possa ser oficial é necessário que passe,
previamente, por um processo de normalização e por um processo de instrumentalização.
A normalização consiste na escolha de uma variedade para servir de norma e a
instrumentalização passa pela criação de meios de fixação e difusão dessa variedade.
Assim, é necessário que a língua seja dotada de uma ortografia, que seja descrita numa
gramática, que haja dicionários que fixem a forma das palavras e definam o seu valor
semântico, etc. É também indispensável que se criem as condições para o seu ensino e
uso literário e que se promova a sua divulgação nos meios de comunicação de massas.
Privilegiar qualquer uma das línguas pode ser observado como uma questão
política. Os consecutivos governos vêm tratando dessa questão, pois têm sido obrigados
a pronunciar-se sobre. Anos após a independência, vem se contando com algum aparato
jurídico-administrativo para definir a política linguística do país: decretos-lei foram
publicados no jornal oficial do Governo. Também, podemos listar os fóruns e colóquios
organizados pelo Governo ou alguma outra instituição (mas que tiveram caráter oficial).
Torna-se, aqui, necessário tratar sobre política linguística, a qual Boyer (1991, p.
70) nos diz que:
94

A gestão oficial de situações de unilinguismo ou plurilinguismo não é apenas


uma gestão, puramente linguística. Ela depende de situações históricas, sócio
étnicas, económicas e demográficas. A política linguística é toda a ação de um
Estado que designa escolhas, orientações e objetivos deste Estado em relação
à gestão das línguas quer em situações de plurilinguismo quer em situações de
unilinguismo. Estas intervenções, às vezes, são inscritas na própria
Constituição, outras vezes suscitadas por uma situação intra ou
intercomunitária preocupante em matéria linguística. E para que elas possam,
realmente, deixar de ser meras declarações é preciso que sejam executadas. A
esta fase chamou de intervenção glottopolitique: trata-se de planificação ou
normalização linguística.

Calvet (1987, p. 154), por sua vez, afirma que a política linguística é:

O conjunto das escolhas conscientes efetuadas no domínio das relações entre


língua e vida social e mais, particularmente, entre língua e vida nacional e a
planificação linguística como a procura e a execução dos meios necessários à
aplicação de uma política linguística. Boyer precisa esta relação estabelecida
por Calvet como uma relação entre língua e vida comunitária ou
intercomunitária no seio por de uma mesma sociedade.

Por isso, considera-se que a expressão política linguística é aplicada à ação de


um Estado onde este designa escolhas, orientações, e objetivos que são deste Estado em
relação à gestão da pluralidade linguística (ou de sua única língua oficial) definidos na
Constituição, isto é, a política linguística é toda a escolha consciente efetuada no domínio
das relações entre a língua e a vida social e mais particularmente entre a língua e a vida
nacional. Em decorrência, devemos ter a compreensão também do que seja a planificação
linguística que vem a ser a procura e a implementação dos meios necessários para a
aplicação de uma política linguística.
Ou seja, a partir desse conhecimento, em Cabo Verde, políticas linguísticas
começaram a ser traçadas. Contudo, se questiona a implementação dessas políticas: o país
já assumiu a coexistência de duas línguas no seio da sociedade e consentiu a intenção do
Governo em ter, futuramente, duas línguas oficiais, através de um conjunto de aparatos
jurídico-administrativos; entretanto os governantes ainda não tornaram efetivas as
políticas que podem assegurar esse anseio.
Enquanto isso, os falantes cabo-verdianos, especialmente os de maior grau de
escolaridade e com maior consciência linguística e política, vem produzindo obras, sites,
textos literários e não-literários, programas de rádio e televisão, postagens em redes
sociais etc. em Crioulo. Como mencionado, eles são escolarizados em Língua Portuguesa
e têm utilizado, à sua maneira, a ortografia da língua oficial para escreverem em Língua
Crioula de forma espontânea, não regulada e, por isso, essa escrita é muito variável. Tudo
isso – embora dessa maneira – para enfatizar e priorizar o uso de sua língua materna,
mesmo com uma escrita ainda não definida. Vale lembrarmos que há produções de
gramáticas escritas em língua cabo-verdiana, ainda que com sua sistemática não sendo
tão clara para os seus usuários, no intuito de analisá-la e valorizá-la (como podemos
observar na obra de Manuel Veiga, de 1980, e em outros trabalhos).
O que falta no caso específico dessa língua é exatamente se chegar ao consenso
para configurar a escrita oficial da Língua Crioula cabo-verdiana. Pois, apesar dela ser a
95

primeira língua adquirida pela grande maioria dos falantes, é uma língua tradicionalmente
oral que ainda não ocupa posição de destaque linguístico e social, especialmente por não
possuir uma escrita sólida e não ser matéria de ensino na maioria das escolas – somente
a pouco tempo possui o que chega próximo a uma grafia oficial. Logo, muitos cabo-
verdianos conscientes política e linguisticamente vem trabalhando para mudar isso a fim
de reconstruir sua identidade linguística.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fazer um estudo sobre a situação linguística de países africanos é uma questão


desafiadora, visto que no continente a variedade linguística é grande e considera-se que a
maior parte das línguas nacionais são orais e não possuem uma escrita sistemática. Esse
episódio não é diferente considerando-se a realidade linguística cabo-verdiana.
Como explanado durante todo o artigo, em Cabo Verde faz-se o uso do Crioulo e,
em determinados casos, faz-se o uso da Língua Portuguesa, porém, somente esta última
recebe o devido prestígio até mesmo por parte de seus próprios falantes.
Por uma concorrência desleal, imposta por motivos de política social e econômica
no país, a língua cabo-verdiana não é utilizada na modalidade escrita. O fato de o Crioulo
ser uma língua de tradição oral que não é ensinada na escola tem várias implicações
negativas em nível de consolidação, uma vez que constatamos que muitos falantes locais
não reconhecem o Crioulo enquanto língua e, por conseguinte, não reconhecem a sua
história e importância. Isso decorre da interferência cultural imposta pelos europeus.
Uma perspectiva de ensino que respeite verdadeiramente a diversidade linguística
e cultural tem que estar atenta a esses fatores, sob pena de favorecer situações de
incomunicabilidade ou de conflito comunicativo extremamente prejudiciais em qualquer
processo de ensino, de aprendizagem e de interação linguística.
No caso do Criolo cabo-verdiano, a contribuição dos avanços tecnológicos, o uso
que estrangeiros e a grande massa de população emigrante faz desse Criolo, e os novos
quadros sociais que se apresentam em Cabo Verde motivam a sua instrumentalização. E
para nosso contentamento, averiguamos que essa nova realidade vem contribuindo para
a valorização da língua materna entre seus falantes. O Crioulo, aos poucos, começa a ser
considerada uma língua nacional prestigiada e prestigiante e passa a ser usada na maioria
das situações sociais, mesmo naquelas em que, por razões políticas, se esperava o uso da
língua oficial. No entanto, a pesada herança do passado colonizador ainda impossibilita
esse uso de forma generalizada.
Por isso, enfatizamos que estudos sobre a língua nacional de Cabo Verde, como
este, podem auxiliar na construção de uma identidade linguística cabo-verdiana autônoma
e incentivar seus falantes a valorizarem sua língua materna, a ponto de a reconhecerem e
a utilizarem como língua oficial, apesar de suas variações de uma ilha para a outra e, por
conseguinte, oficializar a escrita dessa língua. Pois se todos os falantes locais
reconhecerem o crioulo como língua e estimarem sua história e importância para sua
identidade social, terão uma realidade linguística autônoma, uma vez que o processo de
oficialização da língua cabo-verdiana está fortemente condicionado pelas representações
que os falantes têm acerca dela. E o primeiro passo para essa valorização é levar as
crianças a tomarem consciência de que falam duas línguas bem diferenciadas, ambas
legítimas e de igual valor, e que a sua língua Crioula deve também ser apreciada.
96

Confessamos que esta abordagem nos permitiu conhecer mais intensamente a


situação linguística de Cabo Verde e nos fez ter uma maior curiosidade em investigar
ainda mais a bibliografia existente em relação ao tema. Portanto, recomendamos o
desenvolvimento de outros trabalhos sobre o objeto desta pesquisa, os quais possam abrir
espaços para novas descobertas e, assim, arquitetem novos estudos sobre a temática aqui
trabalhada.

8. REFERÊNCIAS

BLOOMFIELD, Leonard. Language. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1933.

BOYER, H. Elementos de sociolinguística: língua, comunicação e sociedade. Paris:


Dunod, 1991.

CALVET, L. A guerra das línguas: as políticas linguísticas. Paris: Payot, 1987.

CANIATO, Benito Justo. Percursos pela África e por Macau. Cotia, SP: Ateliê
Editorial, 2005.

CARREIRA, Antonio. Cabo Verde – formação e extinção de uma sociedade


escravocrata (1460-1878). Praia: Instituto de Promoção Cultural, 2000.

DIAS, Juliana. Língua e poder: transcrevendo a questão nacional. In: Mana [online].
2002, vol.8, n.1, pp.7-27.

HERNANDEZ, Leila. Os filhos da terra do sol: A formação do Estado-Nação em


Cabo Verde. São Paulo: Sumus, 2002.

LOPES, Amalia. As línguas de Cabo Verde: uma radiografia sociolinguística. Praia:


Edições UniCV, 2016.

REIS, Elvira. Cabo Verde: educação linguística e internacionalização de


competências - o crioulo como língua materna em Cabo Verde e suas implicações no
currículo escolar desenvolvida em português. Praia: Novas Edições Acadêmicas, 2018.

ROMAINE, S. Pidgin e língua crioula. Londres: Longman, 1988.

STERN, H. H. Fundamental Concepts of Language Teaching. Oxford: Oxford


University Press, 1984.

TITONE, R. O bilinguismo precoce. Bruxelas: Dessart, 1972.

VEIGA, Manuel. Diskrison strutural di lingua kabuverdianu. Lisboa: Plátano, 1980.


97

7
A PLURALIDADE DA LIBRAS: EXPERIÊNCIA TRILÍNGUE
(YORUBÁ-PORTUGÛES-LIBRAS) NA EDUCAÇÃO BÁSICA
Wermerson Meira Silva (UESB)26
João Diógenes Ferreira dos Santos (UEFS)27

1. INTRODUÇÃO

A Libras nos oferece um campo de pesquisas amplo a ser explorado,


especialmente, quando se trata de abordagens sociolinguísticas que envolvem o legado
africano. Nos estudos contemporâneos, tem se observado as limitações ainda enfrentadas
por sinalizantes de Libras, tradutores, intérpretes e educadore/as que trabalham com
discentes surdos/as a respeito do léxico específico para a área de estudos africanos e afro-
brasileiros que, na maioria de seus registros, é (re)produzido numa língua africana. Sendo
assim, esta pesquisa surge diante da inexistência de léxico em Libras que contemple a
diversidade linguística e cultural afro-brasileira e africana.

Dessa forma, nos dedicamos ao estudo da importância do léxico para as


pessoas surdas; a construção, registro e disseminação de sinais-termos referentes ao
universo sociocultural de legado africano, tendo em vista, a ampliação lexical da Libras
que permita a comunicação e o acesso pleno das pessoas surdas a todas as instâncias
sociais, o que configura uma ação de inclusão linguística e cultural da comunidade surda;
e, o uso do léxico trilíngue na educação de surdos/as.

Para tanto, iniciamos o trabalho no contexto das Religiões de Matrizes


Africanas, especificamente, no Candomblé de nação Kétù, por considerarmos um espaço
que mantém viva a tradição e a cosmovisão de legado yorubano em suas práticas sociais,
culturais e religiosas. Consideramos o Candomblé como uma das construções
civilizatórias dos povos negros em terras brasileiras onde estão preservados elementos
civilizatórios dos povos africanos, entre eles, a ancestralidade – “um dos elementos mais
constantes na cultura africana; fundamental em sua cosmovisão” (OLIVEIRA, 2006. p.
74-121).

No Brasil, a Libras foi reconhecida como meio legal de comunicação e


expressão de pessoas por meio da Lei 10.436 de 24 de abril de 2002, posteriormente
regulamentada pelo Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que oficializa a Libras e,
entre outras providências, estabelece em seu artigo primeiro o reconhecimento da língua,
através do texto legal: “é reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a

26
Doutorando do Programa de Memória: Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e
Sociedade – PPMLS, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Brasil. Mestre em Educação e
Diversidade pela Universidade Estadual da Bahia e professor da Universidade Estadual dos Sudoeste da
Bahia (UESB/DCHEL). wermerson@uesb.edu.br
27
Doutor em Ciências Sociais (PUC-SP), Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraiba,
Professor e Orientador do Programa de Memória: Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem
E Sociedade – PPMLS, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Brasil e Professor da
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS/DCHF). jdiogenes69@gmail.com
98

Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados”


(BRASIL, 2002).

Além da regulamentação legal da Libras, as pessoas surdas conquistaram,


ainda, outros direitos no que se refere à acessibilidade linguística, educacional,
arquitetônica, dentre outros. Considerando e reconhecendo, a Libras como essencial para
o fortalecimento da comunidade surda e para a valorização da identidade do/as surdos/as.

Com isso, esta pesquisa e seus resultados podem, além de auxiliar a


comunicação e promover acesso às pessoas surdas afrodescendentes, auxiliar o/as
profissionais da área de educação de surdos/as (professore/as, tradutore/as e intérpretes
de Libras) a terem um léxico específico nesse campo cultural, o que poderá possibilitar
também atender as exigências estabelecidas pela Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003 que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”
(BRASIL, 2003).

2. PLURALIDADES LINGUISTICAS NO CONTEXTO EDUCACIONAL

A língua traz representações e construções necessárias para a constituição de um


povo e para a construção de comunidades. É através dela que as relações de poder,
consensos, conhecimento, (re)conhecimento e (auto)conhecimento se constroem na
sociedade. Argumento que corrobora com a explicação da pesquisadora que diz que “a
língua se relaciona com a sociedade porque é a expressão das necessidades humanas de
se congregar socialmente, de construir e desenvolver o mundo” (SIGNORINI, 2002, p.
76-77).

É impossível negar a diversidade linguística em nosso país tão diverso,


alimentado, culturalmente falando, pela diversidade étnica no decorrer de sua história.
Nesta ocasião, nos deteremos nas construções civilizatórias dos povos africanos, tendo
ênfase na língua yorubá falada nos terreiros de Candomblé de nação Kétù.

Mesmo na condição de escravizados, os povos africanos que foram traficados de


África para o Brasil entre o ano de 1525 e 1851, conseguiram traçar estratégias de
preservação de suas tradições. Nesse processo, “estima-se que, entre o século XVI e
meados do século XIX, mais de 11 milhões de homens, mulheres e crianças africanos
foram transportados para as Américas, a maioria dos cativos, cerca de 4 milhões,
desembarcou em portos no Brasil” (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006. p. 25).
Esses autores enfatizam que nestes números não estão contabilizadas as pessoas que
morreram durante a captura e a travessia.

De acordo com os autores Albuquerque e Fraga Filho (2006), os povos eram


desembarcados do navio “tumbeiro” nos portos do Rio de Janeiro, Salvador, Recife,
Fortaleza, Belém e São Luiz (Recife e Salvador foram os grandes centros de importação
de pessoas). Depois, direcionadas ao mercado e daí para uma das senzalas espalhadas
pelo território brasileiro. A redistribuição ou alocação das pessoas em condição de
escravidão era feita mediante estratégias, principalmente, no que diz respeito à contenção
de conflitos, revoltas e fugas. Uma dessas estratégias era a separação de pessoas de
mesma etnia que falavam o mesmo idioma. Porém, “isso não impediu que africanos de
99

etnias diferentes se relacionassem e criassem novas alianças. O enfrentamento das


adversidades da escravidão muitas vezes favoreceu a união de grupos étnicos divididos
na África por antigas rivalidades” (ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006. p. 46).

Segundo Ribeiro (2005, p. 102), os escravizados recém-chegados que não eram


redistribuídos “deviam ser utilizados na própria cidade de Salvador ou eram comprados
por senhores da área do Recôncavo baiano”, no intuito de impulsionar “o
desenvolvimento da economia agrícola na capitania da Bahia, principalmente na região
do Recôncavo produtora de açúcar e de fumo” (RIBEIRO, 2005. p. 102). Dados sobre a
escravidão apresentam uma estimativa de desembarque de 1.214.827 africanos nos portos
baianos no período equivalente ao século XVI e à segunda metade do século XIX.
A travessia forçada dos povos africanos encontrava-se organizada em dois
grandes grupos linguísticos, a saber: sudaneses e bantos. Quanto ao grupo dos povos
sudaneses estão: Chade (sul do Egito), Etiópia, Uganda; o grupo sudanês oriental formado
pelos: núbios, nilóticos e báris; e, o grupo sudanês central - Golfo da Guiné, iorubas: oyó,
ijexá, ketu, ijebu, egbá, ifé, oxogbô.; os fon-jejes agregam os daomeanos e os mahi,
conforme Prandi (2000).
Os povos yorubás se localizam no sudoeste da Nigéria, parte do Togo e da
República do Benin, anteriormente chamada de Daomé. Segundo Iyakemin Ribeiro a
influência yorubá “estendeu-se também para além do baixo Níger, em direção ao norte,
adentrando a Terra Nupe (...) A conquista daomeana de parte das terras iorubás (...)
tornando-se pouco nítida a linha divisória entre eles. Os iorubás associam-se em sub-
grupos - Egba, Egbado, Oyo, Ijesa, Ijebu, Ife, Ondo, Ilorin, Ibadan etc” (RIBEIRO, 2005,
p. 37).
Nesse contexto escravista, em que os povos africanos foram submetidos, “logo
percebiam que sobreviver era o grande desafio que tinham pela frente, “teriam que
conviver com o trauma do desenraizamento das terras dos ancestrais”
(ALBUQUERQUE; FRAGA FILHO, 2006, p. 65), um trauma que segundo os
pesquisadores uniu a África e o Brasil. Em decorrência, percebemos que as construções
civilizatórias de legado africano em toda parte do Brasil mantiveram preservados seus
elementos culturais e outros foram construídos e/ou ressignificados nessa nova realidade.
Dessa forma, a língua yorubá se transportou junto ao seu povo, atravessando o Atlântico
e sobrevivendo às perversidades impostas pelas elites escravistas da colônia portuguesa.
Sobre esse assunto, Femi Ojo-Ade, estudioso das culturas e literaturas africanas e
diáspora, explica a dinamicidade que a cultura yorubá possui. Segundo ele, “a cultura
yorubá (...) possui uma delicadeza toda sua, uma complexidade, e uma qualidade que
resultaram em sua permanência e seu aproveitamento em muitos outros locais de presença
e sobrevivência negras” (OJO-ADE, 2012, p. 40).
Mesmo com a negação e proibição dos senhores escravistas, como vimos
anteriormente, os povos africanos encontraram maneiras de driblarem o julgo do
colonizador e “grande parte do patrimônio cultural negro africano” (SODRÉ, 2005, p. 52)
se preservou. Como explica a pesquisadora Oliveira (2020, p. 20), “este patrimônio
cultural do negro no Brasil se preserva e se transmite através da memória ancestral de
legado africano.”
Inclusive suas línguas foram preservadas até os dias atuais e contribuíram para a
formação da língua portuguesa. Suas línguas eram faladas até mesmo dentro da “casa-
grande”, quando as mulheres amamentavam os/as filho/as dos/as brancos/as, ensinando a
100

sua cultura através da sua língua. Com isso, as culturas e as diferentes línguas africanas
vêm sendo utilizadas nos dias de hoje através da arte de contar histórias, cantigas de ninar,
os contos e o jeitinho manso de falar. Consequentemente, as línguas agricanas se fundiram
a partir do contato social através das relações étnicas (FREYRE, 2005).
Entre essas línguas está o yorubá, e a sua popularização e disseminação,
conforme Ribeiro (1996), ocorreu devido à concentração dos yorubás nas áreas urbanas
das cidades de Salvador e Recife. Segundo ela, os yorubás estavam “ligados pela origem
mítica comum, pela prática religiosa e semelhança dos costumes, rapidamente os diversos
grupos nagôs passaram a interrelacionar-se” (RIBEIRO, 2005, p. 126) além de manterem
“o contato com a África, dada a intensa atividade comercial entre a Bahia e a Costa
Africana.”
Esses aspectos fortaleceram as suas tradições, especialmente as religiosas,
dessa forma, ultrapassa, conforme afirmação, “o caráter estritamente religioso, realizando
uma maneira própria de viver na sociedade brasileira” (LOPES, 2005. p. 226).
Consequentemente, os yorubás, “no mesmo campo ideológico cristão do colonizador,
fixaram-se as organizações hierárquicas, formas religiosas, concepções estéticas, relações
míticas, música, costumes, ritos” (SODRÉ, 2005, p. 90). Entre essas construções está o
terreiro de Candomblé que apresenta, segundo Sodré (2005, p. 90).) uma ordem mítica
“(síntese representativa do panteão cósmico africano - orixás, preservação do culto aos
ancestrais e das relações de parentesco)” e; “de ordem linguística, preservação do iorubá
como língua ritualística.”
Essa língua é falada por inúmeras pessoas em toda parte e evidentemente chega
aos espaços escolares. Dessa forma, considerando que a sociedade está relacionada às
diferentes línguas, formadas através da união de diversas etnias e povos, é impossível
ignorarmos a diversidade linguística, sendo esta uma entidade viva, composta por
variantes utilizadas como código pelo ser humano para se comunicarem informar, formar,
trocar informações, difundindo ideias, conceitos e construindo novos entendimentos.
Nesse contexto, a escola passa a ser um espaço de interação social e educacional
para os/as discentes surdos/as e discentes ouvintes, com o intuito de mediar o ensino e a
aprendizagem, sabendo respeitar as diferentes formas de falar e o jeito de cada um,
enriquecendo de forma coletiva as diferenças individuais,

Além de assumir a diversidade cultural como um fator de enriquecimento, deve


igualmente proporcionar o conhecimento e o diálogo de cada cultura consigo
própria e com as outras culturas, no sentido de preparar os indivíduos para uma
atitude social mais justa e fraterna. (RESTE; ANÇÃ, 2011, p. 134).

O papel docente nos dias atuais tem sido fundamental para a construção do
conhecimento, dentro do contexto escolar, criando ações pedagógicas no ambiente de
ensino e aprendizagem que visam e oportunizam a interação coletiva, buscando uma
sociedade mais reflexiva, voltada para a diversidade linguística no processo inclusivo.
Desse modo, concordamos com Bagno, quando este mostra que

defender o respeito à variedade linguística dos estudantes não significa que não
cabe à escola introduzi-los ao mundo da cultura letrada e aos discursos que ela
101

aciona. Cabe à escola ensinar aos alunos o que eles não sabem! Parece óbvio,
mas é preciso repetir isso a todo o momento. (BAGNO, 2011, p. 1).

Sendo assim, é necessário refletir na prática docente um ambiente plural e cujas


variações linguísticas precisam ser respeitadas, não negando o direito do/a discente de
apresentar as suas manifestações culturais enquanto se ensina a forma culta, e evitar, dessa
maneira, a ênfase a um único modo de construir a identidade com base apenas na norma
culta- padrão. Quanto ao tratamento de uma linguagem formal

faz-se necessário o ensino da forma para enriquecer e contribuir com o


desenvolvimento cognitivo do educando, bem como ampliar o seu léxico,
porém não se deve impor bruscamente o padrão sob pena de continuar
promovendo, na sociedade, o complexo de incompetência linguística, que gera
alienação. Seria necessário ao professor falante da forma culta se familiarizar
com a nova realidade escolar, conduzindo o aluno a alternar fala familiar com
a norma culta, em função das situações de interação verbal. (SOUZA, PAUTZ,
2007, p. 2).

Os autores nos chamam atenção para a importância dos/as docentes reconhecerem


a diversidade linguística no contexto escolar, assim como conhecerem costumes, crenças
e tradições populares dos/as discentes, valorizando as culturas da região local, onde as
comunidades estão inseridas. Outro ponto que merece ser assinalado é o trabalho em sala
de aula com conteúdos, materiais didáticos e a realização de avaliações vinculadas às
peculiaridades dos/as alunos/as, discutindo a temática com a realidade escolar, nos
momentos de atividade complementar, de jornadas pedagógicas, da formação em
exercício.
Precisamos pensar na circulação de saberes através do conhecimento que vem
sendo elaborado na prática de políticas reparatórias que podem potencializar as políticas
de reconhecimento e com isso trabalhar no sentido de alcançar os seguintes objetivos:
ensejar a pluralidade sob o respaldo constitucional; circular as experiências dos
movimentos invisibilizados historicamente; fomentar debates sobre a educação pública
enquanto direito; introduzir nos currículos de ensino brasileiro a possibilidade de reler a
história brasileira realizando a crítica à invisibilização de populações historicamente
excluídas.
A interação escolar precisa acontecer como dinâmica das relações do dia-a-dia,
analisando os diferentes contextos, como as estruturas de poder e os modos de
organização do trabalho escolar, compreendendo o papel e a atuação de cada indivíduo.
A visão da escola no contexto social é importante para identificar se através dela ocorrem
aproximações e afastamentos, onde são criados espaços de diferentes aprendizagens,
considerando o que Giroux (1986) diz a respeito de um terreno cultural por diferentes
ângulos: de acomodação, contestação e resistência, uma pluralidade de linguagens e
objetivos conflitantes.

3. METODOLOGIA

Esta pesquisa, de abordagem qualitativa, tem o intuito de observar de forma


reflexiva as memórias dos/as surdos/as egresso/as do Ensino Médio da rede pública do
102

município de Vitória da Conquista-BA a partir de suas experiências com a História e


Cultura Afro-brasileira e Africana.
Os/as participantes foram selecionados/as através do aceite de cartas convites
distribuídas durante um evento promovido pela Central de Interpretação de Libras, do
município de Vitória da Conquista, que oferece o serviço de tradução e interpretação de
Libras, bem como cursos de formação.
Essa central é um serviço que realiza a mediação na comunicação entre pessoas
surdas no atendimento em qualquer serviço público instalado pelo município. Sua criação
é resultado de uma política pública da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da
Presidência da República. Nessa carta convite foi explicado aos/às participantes os
objetivos da pesquisa, bem como, a importância da sua participação no processo de
construção da mesma. Ao mesmo tempo, apresentamos o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido e a Autorização de Uso de Imagem e Depoimentos, conforme a Resolução
Nº 466 de 2012. Após leitura e esclarecimento das possíveis dúvidas, esses documentos
foram assinados e dirigidos ao Comitê de Ética da Pesquisa.
Quanto ao instrumento de pesquisa, foi escolhida a entrevista semiestruturada que
permite ao entrevistado discorrer seus pensamentos, tendências e reflexões sobre os temas
apresentados. Mynaio (2009, p. 64) explica que a entrevista “é uma conversa a dois, ou
entre vários interlocutores, realizada por iniciativa do entrevistador” com a finalidade de
“construir informações pertinentes para um objeto de pesquisa”
As entrevistas foram realizadas na Central de Interpretação de Libras, no período
em que os/as participantes da pesquisa estiveram participando das atividades oferecidas,
tendo em vista a redução de impactos financeiros e desgastes de tempo. Sendo assim, as
entrevistas foram agendadas com antecedência e comunicadas à coordenação da central
eliminando imprevistos que pudessem atrapalhar a realização das mesmas. As entrevistas
foram gravadas em vídeo, transcritas em língua portuguesa e logo após analisadas.
Quanto à análise dos dados obtidos através das entrevistas, seguimos as
orientações teóricas propostas por Thompson (2011), fundamentada na Análise formal ou
discursiva, que segundo o referido teórico “estabelece as bases para um tipo de análise
que está interessada primariamente com a organização interna das formas simbólicas,
com suas características estruturais, seus padrões e relações” (THOMPSON, 2011. p.
369).
Para tanto, adotamos o uso da Análise narrativa “considerada (...) como um
discurso que narra uma sequencia de acontecimentos (...)” (THOMPSON, 2011, p. 373).
Neste sentido, destacamos os personagens definidos em termos de suas relações mútuas
e de seus papeis no desenvolvimento do enredo (THOMPSON, 2011, p. 374), ou seja, a
sequência de acontecimentos contextualizados com a temporalidade dos acontecimentos.
Dessa forma, as narrativas em questão constituem as vivências relatadas pelo/as
participantes da pesquisa a respeito de suas memórias do ensino da História e Cultura
Afro-brasileira e Africana no Ensino Médio.
A partir da análise das narrativas surge o texto que traz um novo saber a respeito
do assunto pesquisado, conforme veremos a seguir nos resultados da pesquisa. Essa etapa
do processo é chamado por Thompson (2011) de interpretação e re-interpretação quando
o pesquisador traz a interpretação do/as participantes da pesquisa; é o momento em que
“estamos reinterpretando um campo pré-interpretado” (THOMPSON, 1995. p. 377). Pela
importância desta etapa, o teórico alerta “por mais rigorosos e sistemáticos que os
103

métodos da analise formal ou discursiva possam ser, eles não podem abolir a necessidade
de uma construção criativa do significado, isto é, de uma explicação interpretativa do que
está representado ou do que é dito” (THOMPSON, 2011. p. 375). Pois estamos diante de
um campo objetivo pré-interpretado pelo/as participantes da pesquisa, sendo assim, “é
necessariamente arriscado, cheio de conflito e aberto a discussão” (THOMPSON, 2011.
p. 376), da qual não podemos perder de vista que existe “a possibilidade de um conflito
de interpretação intrínseco ao próprio processo de interpretação” (THOMPSON, 2011. p.
376).

4. RESULTADOS DA PESQUISA

Entre as análises propostas por esta pesquisa colocamos em discussão os


resultados obtidos na perspectiva da construção, registro e disseminação de sinais-termos
referentes ao universo sociocultural de legado africano, tendo em vista a ampliação lexical
da Libras que permite a comunicação e o acesso pleno das pessoas surdas a todas as
instâncias sociais, o que configura uma ação de inclusão linguística e cultural da
comunidade surda, identificada nas narrativas do/as participantes da pesquisa.
A narrativa do informante 1, aqui identificado pela palavra yorubana “ Òsobo”
nome da capital do Estado Osun (Oxun), localizada na Nigéria, trata das dificuldades
enfrentadas pelos/as discentes surdos/as na educação escolar. Òsobo destaca um fator
preponderante na educação de surdos/as e estudo da Língua de Sinais na sala de aula, que
é o contato com outros/as surdo/as, pois favorece a afirmação identitária de surdos/as. Ele
aponta entre essas dificuldades que refletiam diretamente no ensino/aprendizado, a falta
de tradutor, intérprete de Libras na sala de aula da rede de ensino municipal de Vitória da
Conquista.

No ensino fundamental eu não aprendi... Esse período eu estudei em uma


escola inclusiva que não tinha intérprete. Quando tinha 10 anos de idade
parece, que estudei com ouvintes tudo misturado... que eu fui obrigado. Na
escola que estudei tinha quatro surdos, por não ter a presença do intérprete
parecia não entender claramente o que o professor dizia, então só fazíamos
anotar o que o professor escrevia no quadro, mas o significado do que estava
escrito e compreensão não tínhamos, isso era bastante prejudicial para os
surdos, que não conseguiam se desenvolver, ficávamos preocupados, pois
tínhamos que aprender a leitura labial e a oralizar para termos os mesmos
desempenhos que os ouvintes e sem sucesso, com nove anos que fui inseridos
na sala de aula, já não tinham o intérprete e eu sofria a barreira de comunicação,
até que encontrei uma escola inclusiva, e quando vi os demais surdos
sinalizarem, aquilo me tocou, e então fui aprendendo os sinais do alfabeto, que
aí sim a minha mente abriu para aprender a língua de sinais. Nessa escola tinha
professor e intérprete, mas que não era profissional da área com habilidade em
língua de sinais. O meu primeiro intérprete foi em 2008, quando eu tinha 19
anos de idade, então no primeiro ano do Ensino Médio, importante lembrar,
que até o oitavo ano não tinha intérprete, foi partir daí que tive uma intérprete
só para nos acompanhar nas disciplinas com acesso aos conhecimentos de
forma atrasada. (Òsobo, entrevista realizada em 2020 - antes da pandemia).

Ao nos deter em sua narrativa, nota-se a falta de acessibilidade para os/as


discentes surdos/as nas escolas, incluindo as inclusivas, no que tange a presença de
104

profissionais qualificados para exercerem a função de intérprete e tradutor de Libras


prejudicando a compreensão de conhecimentos e conteúdos. Percebemos também a
prática do método de ensino da oralização, inadequada para a educação de surdos/as.
Em outro momento, Òsobo narra a partir de suas memórias referentes ao ensino
da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana que, de acordo a lei, é obrigatória na rede
pública de ensino e nas escolas inclusivas. Ele reconhece a importância deste componente
curricular, como podemos verificar em sua narrativa a seguir.

Precisamos conhecer e saber a história dos nossos antepassados, de como o


negro, a África, e outras questões, na possibilidade de informar para que os
surdos possam aprender. Os surdos não sabem e podem saber, através dos
conhecimentos ensinados na escola. É uma forma de conhecer e entender e
conhecer bem, a história dos povos africanos, especialmente aqueles que foram
trazidos para o Brasil. (Òsobo, entrevista realizada em 2020 - antes da
pandemia).

Segundo ele, “o conhecimento da História do Brasil precisa incluir a contribuição


dos povos africanos também”. (Òsobo, entrevista realizada em 2020 - antes da pandemia).
Ainda sobre esse assunto, reflete:

por isso a necessidade do trabalho nas escolas com a disciplina para que
possamos aprender de fato essas questões e sentirmos o prazer de conhecer
essas discussões. Com isso poderemos manter uma postura critica a respeito
da História e Cultura Afro-brasileira e Africana algo que nos foi velado por
anos. (Òsobo, entrevista realizada em 2020 - antes da pandemia).

Essa negação à qual ele se refere é consequência do sistema econômico


escravocrata instalado na colônia sob o domínio dos portugueses que, para justificar a
escravização dos povos negros, construíram discursos atribuindo valores negativos às
etnias africanas gerando sentimentos de inferioridade e, muitas vezes, de desumanidade,
de acordo dados de Gennari (2008). Com isso, a sociedade colonial se tornou racista ao
estabelecer uma hierarquia entre os povos e suas culturas direcionando os povos negros
em patamar inferior em relação aos europeus. Comportamento amparado pelas teorias
raciais que classificavam as pessoas através de critérios genéticos, intelectuais e morais:
“Dito de outra forma, a escravidão foi montada para a exploração econômica, ou de
classe, mas ao mesmo tempo ela criou a opressão racial” (ALBUQUERQUE; FILHO,
2006, p. 68).
Esse quadro social excludente se reflete na educação. A educadora Petronilha
Silva (2007), ao discutir o processo de ensino e aprendizagem relacionando as relações
raciais no Brasil, argumenta que

na experiência brasileira, além do que se passou com os indígenas, deve-se ter


presente a situação dos africanos escravizados, de seus filhos e descendentes.
A eles foi negada a possibilidade de aprender a ler, ou se lhes permitia, era com
o intuito de incutir lhes representações negativas de si próprios e convencê-los
105

de que deveriam ocupar lugares subalternos na sociedade. Ser negro era visto
como enorme desvantagem, utilizava-se a educação para despertar e incentivar
o desejo de ser branco. (SILVA, 2007, p. 495).

O desafio está em quebrar todo este histórico de racismo que descaracterizou a


cultura de diversos povos, inclusive a dos povos negros, o que vai refletir no ambiente
escolar. É necessário buscarmos historicamente a construção da discriminação racial que
afetou diretamente os povos africanos no Brasil, e como este racismo foi introjetado nas
políticas educacionais afastando as construções civilizatórias dos povos negros dos
currículos escolares e como este projeto político se processou na vida cotidiana da
população negra que sofreu e ainda sofre silenciamentos. Fato que se transforma em
preocupação para Òsobo que expressa incredibilidade quanto a uma mudança de postura
do sistema educacional brasileiro, como pode ser analisado na narrativa abaixo:

vejo que não há essa preocupação de nos ensinar, e muitos não querem ver, por
isso não têm nenhum conhecimento através de informações e passamos a
reconhecer a história e se interessar por ela, como forma de aprendizagens e
acesso as curiosidades valiosas desse conhecimento, e contextualiza em nossas
raízes, a respeito da escravidão, e sermos conduzidos a outros caminhos de
conhecimentos, como por exemplo esses conhecimentos chegam para os
ouvintes e eles se reconhecem e aprendem a respeito da sua trajetória, e os
surdos estão para atrás sem informações a respeito das relações étnicas raciais,
Por exemplo, se o surdo na inclusão não tem explicação a respeito da história
e cultura afro... Como ele vai entender a sua árvore genealógica, a respeito da
família negra? (Òsobo, entrevista realizada em 2020 - antes da pandemia).

Inúmeros exemplos podem ser apresentados de alvos desses silenciamentos, mas


nesta oportunidade nos detemos na análise da inexistência de léxico linguístico para
trabalhar em sala de aula com a História e Cultura Afro-Brasileira Africana como um
fator de risco para a inclusão de fato destes componentes curriculares. Falta na Libras
registros sistemáticos que contemplam a diversidade linguística e cultural brasileira,
dessa forma, estamos sempre diante de diversas situações desafiadoras que enfrentamos
sem esses registros para transmitir o conteúdo às pessoas surdas enquanto educadores/as
e na tradução e interpretação de temas ligados à Cultura Afro-Brasileira, especialmente
quando se trata da tradição preservada nos terreiros de Candomblé, alvo constante de
ataques racistas e intolerantes, motivo pelo qual nos detemos, pois, esses espaços
guardam a memória viva dos povos africanos, incluindo dos yorubás.
Durante a realização das análises percebemos que Òsobo desconhece sinais-
termos voltados para a cultura afro-brasileira e africana. Dessa forma, voltamos aos dados
da pesquisa de mestrado “Léxico trilíngue da cultura da nação ketu/nagô no Brasil: um
olhar na educação básica do município de Itapetinga-Ba”, realizada no período de 2016 a
2018, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Diversidade, da
Universidade Estadual da Bahia, que teve por objetivo compreender de que forma a língua
Yorubá, representada em Língua de Sinais Brasileira, poderia contribuir no processo de
transmissão e registro das Histórias, Culturas e Identidades aos discentes surdos/as e no
seu desenvolvimento nas atividades do Componente Curricular História e Cultura Afro-
brasileira na Educação Básica, no contexto inclusivo, no município de Itapetinga-BA.
Para tanto, propôs a construção de sinais-termos da língua yorubá falada nos terreiros de
Candomblé de Nação Kétù para Libras, no intuito de colocar em discussão de como essa
iniciativa coletiva pode ser utilizada como instrumento didático contribuindo com o
106

ensino da História da África nas escolas inclusivas, valorizando as pluralidades


linguísticas do ambiente escolar e comunidade local.
Sendo assim, selecionamos os seguintes sinais-termos construídos durante a
realização da referida pesquisa:

1. Sinal-termo Axé - Representado na Figura 1. Significa a força que permite a realização


da vida e assegura a existência, possibilitando os acontecimentos e as transformações.
Segundo Prisco (2012, p. 8), “o termo extrapola seu alcance no âmbito das religiões e
passa a ser compreendido e assimilado na língua portuguesa como a energia irradiante
contaminadora que nasce das ações e práticas dos negros.” Esse sinal-termo tem a
configuração da mão aberta, palma para dentro, tocando o peito, fazendo o movimento
para frente, finalizando com a configuração de mão em “S”, com a expressão facial de
satisfação.

Figura 1:Axé

Fonte: Silva (2018).

2. Sinal-termo Ogum- Está representado na Figura 2. Orixá. Herói civilizador iorubá, um


dos mais antigos; possui ligação com os metais, conhecido como o grande ferreiro. Ele é
o primeiro e abre caminho para os outros Orixás. Guerreiro, bravo, violento e implacável;
protetor dos ferreiros, agricultores, mecânicos e de todos os profissionais que de alguma
forma lidam com o ferro ou metais afins, (VERGER, 2000). Seu vigor e desejo incessante
de guerrear foram decisivos para a criação de seu sinal-termo. O sinal-termo tem
configuração das mãos em “S”, palma para fora. Movimentar as mãos para cima,
levemente, uma vez, com a expressão facial séria.

Figura 2 - Ogun

Fonte: Silva (2018).


107

3. Sinal-termo Oxun - Representado na Figura 3. Orixá. Heroína civilizatória iorubá,


representa o grande poder feminino. Divindade do rio, das águas doces. Controla a
fecundidade. Generosa; vaidosa; paciente e bondosa, mãe que amamenta e ama. Utiliza
em seus ritos o abebé – espelho em armação de metal dourado, simbolizando o útero.
(VERGER, 2000). Como esse objeto é de uso constante do orixá Oxum, somado ainda à
sua vaidade, é que foi criado seu sinal-termo. Nesse sinal-termo, a configuração da mão
esquerda aberta, palma para frente, na altura da cabeça e mão direita em “A”, simulando
o movimento de “PENTEAR”. Olhar fixo para a mão esquerda, com a expressão facial
de imponente.

Figura 3 - Oxun

Fonte: Silva (2018).

4. Sinal-termo do Ewá- Representada na Figura 4. Orixá. Heroína civilizatória iorubá;


Orixá da invisibilidade, conhecida como dona da beleza e da morte. Seus elementos
simbólicos são: florestas e matas, céu, astros e estrelas. É, também, uma guerreira e
caçadora habilidosa. Reconhecida como a senhora das possibilidades e da transformação.
É representada pela cabaça ornamentada com tiras de ráfia, objeto utilizado em seus ritos,
dando origem à criação de seu sinal-termo (VERGER, 2000). O sinal-termo apresenta
uma configuração da mão esquerda em “S”, palma para dentro e mão direita sob a
esquerda, configuração de mão “S”, palma para baixo, com a expressão facial neutra.

Figura 4 - Ewá

Fonte: Silva (2018).


108

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Destacamos a relevância de pesquisas com esta, uma vez que valoriza as culturas
surdas e a cultura do legado afro-brasileiro e africano. É imperioso trazer a história,
memória e a cultura Afro-brasileira e Africana para uma língua que, por longos tempos,
foi excluída, estigmatizada e substituída por uma língua oral-auditiva não pertencente ao
povo surdo. E, ainda, dar visibilidade às pessoas que foram silenciadas por diversos
critérios obtusos relacionados à linguística, à história, à religião, à educação, à cultura,
entre tantos outros.
Baseados nesta discussão, refletimos a respeito da diáspora forçada dos povos
africanos para o Brasil que durou oficialmente três séculos e clandestinamente mais meio
século (1502 a 1860), inúmeros povos desembarcaram neste solo. Todos esses povos
vindos de diversas partes da África foram batizados na religião cristã, mas suas ligações
das antigas crenças permaneceram. Essas associações lhes permitiam manifestar suas
cantigas, rezas e danças que, aos olhos dos senhores, pareciam simples distrações dos
negros e negras nostálgicos/as. Mas, na realidade, tratava-se de reuniões nas quais eles
evocavam suas divindades a exemplo dos Orixás cultuados na tradição Kétù-yorubá vivos
na memória.
Nos dias atuais, diálogos e ações afirmativas a respeito de temáticas sobre as
Histórias, Culturas e Identidades às/aos discentes surdos/as e suas experiências visuais-
motoras nos diferentes contextos sociais e educacionais são de estrema urgência,
principalmente, quando se trata de grupos minoritários que, em geral, não encontram
amparo suficiente na legislação vigente, ou, se o amparo legal existe, não é implementado
de modo eficaz.
Considerando esses grupos minoritários que as escolas precisam adotar posturas
inclusivas que contemplem ao acesso e permanência dos/as estudantes crianças e
adolescentes surdos/as e impeçam que esses/as alunos/as sejam ignorados/as, anulados/as
e marginalizados/as, mas fortaleçam a capacidade de dar significados a objetos, fatos,
fenômenos, expressados de variados modos, para representar o mundo com referências
às nossas origens, memórias individuais e coletivas, aos nossos valores e sentimentos.

6. REFERÊNCIAS

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VERGER, Pierre. Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. Trad. Maria Aparecida
da Nóbrega. São Paulo: Currupio, 2000.
111

8
QUILOMBO URBANO LUDOVICENSE: O LÉXICO DOS
BAIRROS DA LIBERDADE E FÉ EM DEUS EM SÃO LUÍS/MA

Laryssa Francisca Moraes Porto28


Georgiana Márcia Oliveira Santos29

1. INTRODUÇÃO
Após serem retirados de África e trazidos para o Brasil para serem
escravizados/as, uma considerável parcela de negros/as formou quilombos em áreas mais
retiradas, adentrando as matas brasileiras para não voltar ao cativeiro.
Com a grilagem de terras e um dito progresso, principalmente, na Era Vargas, os
descendentes de quilombolas tiveram seus espaços violados, arrancadas de forma, muitas
das vezes, violenta. Braga e Ferreira (2010, p. 7) afirmam que, com o tempo, alguns
descendentes de quilombolas foram forçados a saírem dos seus espaços rurais, já dotados
de organização e formas de subsistência, por diversos motivos ― imposição do progresso,
medidas autoritárias de latifundiários, busca por melhor condição de vida ― e viram-se
obrigados a ocupar lugares em condições subumanas nas grandes cidades. Ressaltamos,
então, três caminhos percorridos por negros/as escravizados/as: (1) de África para o
Brasil; (2) a fuga para a formação de quilombos, sobretudo, em áreas rurais, (3) e a ida
para áreas urbanas30.
Os quilombos são, assim, formas de agrupamento em busca do resgate das origens
africanas, pois neles há uma organização social que se diferencia da opressora ao
promover uma relação assistencial mútua, como explica Carneiro (1988, p. 13-14),

O quilombo, por sua vez, era uma reafirmação da cultura e do estilo de vida
dos africanos. Os quilombos, deste modo, foram – para usar a expressão agora
corrente em etnologia – fenômeno contra-aculturativo, de rebeldia contra os
padrões de vida impostos pela sociedade oficial e de restauração dos valores
antigos.

As comunidades quilombolas conseguem viver com os antigos valores - de


cooperação e ajuda mútua - como forma de redefinição de identidades que lhes são
impostas pelo sistema ou, ainda, pelo que se acredita ser uma identidade nacional. É no
seio do grupo que vivenciou/vivencia violências físicas e morais geradas pelo racismo
que se origina a necessidade de buscas de origens identitárias. Nesse sentido, Hall (2006,
p.85) expõe que

28
Graduanda do curso de Letras Português/Francês da Universidade Federal do Maranhão- UFMA. E-mail:
laryssa.porto@discente.com
29
Doutora e Mestra em Línguistica pela Universidade Federal do Ceara - UFC. Professora do Curso de
Graduação em Letras Português/Espanhol e do Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGLetras.
Coordenadora do Projeto de Estudos e Pesquisas em Línguas, Memórias, Identidades e Culturas -
GELMIC/CNPq e Professora-Pesquisadora do Projeto Atlas Linguístico do Maranhão – AliMA. Email:
georgiana.marcia@ufma.br
30
Vale ressaltar que é necessário conhecer a história de formação de cada quilombo, em contexto rural ou
urbano, respeitando as suas individualidades.
112

Algumas vezes isso encontra uma correspondência num recuo, entre as


próprias comunidades comunitárias, a identidades mais defensivas, em
respostas às experiências de racismo cultural e de exclusão. Tais estratégias
incluem a re-identificação com as culturas de origem.

Assim, mesmo que o sistema ao qual estamos submetidos tente desestabilizar as


relações comunitárias ao individualizar as pessoas, ao tentar cortar os vínculos sociais
entre vizinhos que se fecham em suas casas e apagam a preocupação com o outro, há
resistências, como ressalta uma moradora do bairro Fé em Deus:

As pessoas ainda conseguem sentar na porta. As pessoas ainda conseguem


se dialogar, se preocupar um com o outro quando acontece um acidente,
alguma coisa com alguém. As pessoas ainda conseguem eh... Ah, fulano tá
passando por uma necessidade, ainda consegue juntar, fazer, ah, uma cesta
básica, uma pessoa passando mal no hospital, ou chegou do hospital, tá sem
condição, tá precisando de frauda, isso, aquilo outro. Ainda no bairro, a gente
ainda consegue fazer isso. Esse espírito de solidariedade, de um ajudar o
outro. (K.L.L.S., sexo feminino, 24/01/2020) (Grifos nossos).

Essas relações sociais são mantidas com muita luta entre os moradores da Fé em
Deus e da Liberdade para que a nova geração sustente os hábitos dos seus ancestrais.
Diversas pessoas que assumem lideranças sociais e/ou religiosas para nutrir as culturas
materiais e imateriais, nesses espaços, repassam aos mais novos valores e princípios da
mesma maneira que um dia lhes foram repassados pelos seus antepassados da área rural.

No Maranhão, negros/as pertencentes às áreas quilombolas situadas,


principalmente, na Baixada e no Litoral Maranhense, saíram de seus lugares de origem
a fim de buscarem melhores condições de vida e de trabalho em áreas urbanas. Muitos
relatos revelam que um parente vinha primeiro e, em seguida, buscava os outros para
ocupar espaços em áreas, especialmente, ao longo do Rio Anil.

Em área urbana, os/as negros/as quilombolas maranhenses tentaram manter as


práticas vivenciadas em contexto rural, seja por meio das narrativas contadas aos mais
novos, do convívio com a comunidade ou do saber-fazer, isto é, das práticas passadas de
pai para filho, passadas de geração a geração.
A partir da luta dos grupos de base, no dia 13 de novembro de 2019, a Fundação
Palmares certificou, pela Portaria nº 192, a comunidade Quilombo da Liberdade como
remanescente de quilombola em área urbana da capital maranhense. Essa comunidade é
composta pelos bairros Fé em Deus, Liberdade e Camboa. Esse feito garante diversos
benefícios aos moradores como, por exemplo, isenção na taxa de luz e/ou água,
regularização dos imóveis, entre muitos outros.

2. BAIRRO QUILOMBOLA: Fé em Deus e Liberdade

A Liberdade é um bairro tradicional localizado, assim como a Fé em Deus, à


marquem do Rio Anil. Além de estarem à margem do rio, esses espaços, por muito tempo,
tiveram à margem social, pois ficaram sem bens de serviço essencais como água, acesso
a saneamento e saúde. Além disso, esses bairros eram lembrados apenas pela
113

criminalidade, como fica claro na fala da informante/colaboradora A.F.G. (LB31, sexo


feminino, 22/03/2019) “porque o povo fala tanto, né, da marginalidade, da criminalidade,
mas aqui é um bairro tão bom, tão bom mesmo”.
A mídia, ao criar o imaginário de um espaço não adequado para morar, apaga,
consequentemente, a riqueza e a importância das manifestações socioculturais presentes
nesses bairros. A Liberdade e a Fé em Deus são, portanto, espaços ricos em manifestações
culturais que refletem as axiologias herdadas dos povos negros vindos, principalmente,
da região da Baixada e do Litoral maranhenses.
No que tange às manifestações culturais, o bairro da Liberdade possui vários
grupos de Tambor de Crioula – dança entoada por três tambores e dançada em roda por
mulheres vestidas com saias longas e rodadas, em homenagem a São Benedito; grupos de
bumba-meu-boi, como o do Boi de Seu Leonardo (Boi da Liberdade), Boi de Basílio e o
Boi de Apolônio (Boi da Floresta); bloco tradicionais: Os reis da Liberdade; Bloco Afro
Abieye Maylo e Netos de Nanã; e diversos grupos de cacuriá, a exemplo do Assa Cana,
além de possuir diversas casas de celebração de religião de matriz africana.
Já a Fé em Deus possui diversidades culturais como o Baile de Caixa, o Bumba-
meu-boi e Tambor de Crioula da Fé em Deus, Cacuriá da Fé em Deus - grupos típicos do
São João.
A principal atração no carnaval é a banda da Verdura. Além disso, há festas
religiosas organizadas pelos próprios moradores da comunidade, dentre elas destacamos
os festejos de São Luís Rei de França e Iemanjá os quais são realizados pelo terreiro de
Iemanjá (Jorge Babalaô); de Nossa Senhora Aparecida - organizada pela comunidade
católica; de Nossa Senhora Sant’Ana e Santa Luzia- festejos realizados por casas
religiosas de matriz africana.

3. CONHECENDO A LIBERDADE E A FÉ EM DEUS

A área que daria início ao processo habitacional do bairro da Liberdade era


conhecida como sítio Itamacaca ou Tamacaca. Inicialmente, para fomentar a indústria
regional, foi instalado o Matadouro Modelo, o que motivou o antigo nome do bairro:
Matadouro.
Os bois levados para o abate, em alguns casos, fugiam pelas ruas dos bairros, fato
que ficou marcado na memória de alguns informantes/colaboradores, “do nada, tipo aqui,
passa um boi correndo e aquela multidão atrás” A.F.G. (LB, sexo feminino, 22/03/2019).
O espaço produz memórias e narrativas sobre quem o ocupa. Histórias sobre a
presença de Ana Jansen, do peixe que engole gente – Nemo –, do homem que virava
porco ou da mulher, Ana Porca32, ainda estão presentes nos discursos dos moradores da
Liberdade.

31
Para melhor compreensão do leitor, ao referenciar os informantes, colocaremos as siglas dos bairros o
qual pertencem. LB, para Liberdade; FD, para Fé em Deus.
32
Ana Porca era uma mulher que vivia no bairro da Liberdade. Em nossas entrevistas houve a menção
dessa figura, que morava sozinha, tinha apenas uma lamparina, considerada como feiticeira e virava porca.
O local onde ficava a casa de Ana Porca é abandonado e ninguém nunca conseguiu construir nada no
terreno.
114

Essas narrativas são responsáveis por construir as identidades, pois, segundo Hall
(2006, p. 38), devem ser vistas como múltiplas e a pós-modernidade oferece cada vez
mais possibilidades de trocas, apesar do sujeito a visualizar como uma forma reunida: “a
identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos
inconscientes e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento”
Parte integrante desse território quilombola, o bairro Fé em Deus, é vizinho dos
bairros Liberdade e Monte Castelo. O informante/colaborador C.D.R. (FD, sexo
masculino, 08/01/2020) lembra que antes de ter o nome atual de Fé em Deus, esse bairro
era conhecido como Areal:

O que eu já ouvi falar é que aqui era um areal, um areal, quer dizer que vem
dessa maré aí, aqui tudo era maré, então, era um areal e aí o pessoal foram
habitando, inclusive aqui no começo, essa rua aqui era só ponte, era só ponte,
o povo foi entulhando, entulhando, e foi criando o bairro da Fé em Deus. Mas
o Bairro Fé em Deus ele tem origem cultural, porque Fé em Deus, quando fala
em Fé em Deus, aí neguinho já remete logo ao boi da Fé em Deus ou Terreiro
de Jorge Babalaô, aí deu origem a toda essa diversidade cultural e de
comunidade. INQ. – Antes de ser Fé em Deus, tinha outro nome, ou sempre
foi Fé em Deus? INF. – Areal.

Outro informante/colaborador (A. R., FD, sexo masculino, 30/10/2019) reforça


que esse bairro não possuía condições infraestruturais adequadas para moradia, o que
pode justificar a motivação toponímica do nome inicial Areal.
Nessa rua, quando eu cheguei aqui, era só terra, não tinha pinche, não tinha nada.
Aqui, também, nunca era pinchado, tinha as casas, né, mas era só terra, não tinha queixa,
não tinha nada. Hoje, é tudo quexado até pra... Tem aqui onde eu moro, tem a sede,
travessa Fé em Deus, rua Joaquim Serra, tem travessa dos Prados, tem a São Gabriel,
desceu, tem a estrada de ferro, que hoje é pinchado. Nada era pinchado, tudo era terra.

Ao lembrar de como era esse espaço antes do asfalto, esse colaborador confirma
que o espaço e a memória reproduzem imagens (Halbwachs 1990, p. 133). Assim, o lugar
ocupado recebe marcas da memória do grupo e vice-versa. Cada estrutura do espaço
apresenta um sentido único para quem o habita, como fica claro na fala da colaboradora
(M.M.S.P., FD, sexo feminino, 12/11/2019)
Aqui, onde tá funcionando o CIT, foi a primeira igreja Nossa Senhora da
Conceição, foi aqui. Eu me lembro que meu pai dizia que ele carregou muito tijolo e
muita pedra, porque essa igreja foi uma construção coletiva dos moradores da região, que
aqui era uma quinta, aqui, chamavam de quinta, né. Então, foi uma junção dos moradores,
papai falava com orgulho que ele construiu essa igreja.

Após o Programa de Aceleração do Crescimento - Rio Anil (PAC) ser executado,


os moradores dos bairros Alemanha, Camboa, Liberdade e Fé em Deus tiveram, após dez
anos de lançamento do projeto, alguns benefícios estruturais como apartamentos, CRAS-
Centro de Referência de Atendimento Social- e avenida (FONSECA, 2018, p. 32-33).
Esses benefícios trazidos pelo PAC, como é defendido por Fonseca (2018, p. 32), foi uma
conquista dos agentes sociais contra as palafitas. O investimento em infraestrutura gerou
melhores condições de moradia para centenas de famílias de baixa renda. De acordo com
Fonseca (2018, p. 33):
115

O PAC RIO ANIL promoveu, bem como em todo o território nacional,


investimentos para infraestrutura social e urbana, que constituiu em dar melhores
condições de vida para a população de baixa renda, onde proporcionou, apesar das
críticas, habitações para uma grande maioria da população que morava na margem
esquerda do Rio Anil na cidade de São Luís. O programa fez a realocação das famílias
para prédios residenciais com estrutura urbanizada e infraestruturas básicas, como: rede
de esgoto, poços artesianos e energia elétrica.

Dentre essas melhorias de condições de vida, a construção do conjunto


habitacional Jackson Lago proporcionou a alguns moradores da Fé em Deus, área de lazer
e esporte, acesso à água e energia elétrica. Outro avanço foi a construção da praça e do
CIT- Centro de Iniciação ao Trabalho, além da regulamentação da isenção de taxas de luz
e água.
Porém, colocar essas pessoas em apartamentos infringe as formas de vivência dos
quilombos urbanos, mais especificamente, a disposição de moradias horizontais. Assim,
os negros e negras da Fé em Deus resistem ao distanciamento imposto pela moradia
vertical, os apartamentos, que são consideradas moradias privadas em que, em muitos
casos, os vizinhos nem se conhecem. Como recurso para manter as relações sociais, os
moradores do conjunto de apartamentos da Fé em Deus reúnem-se ao fim da
tarde/começo da noite para conversar, brincar, “sentados na porta”.

4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

4.1 ETNOLINGUÍSTICA
A Etnolinguística é uma subárea da Linguística, cujo objeto de estudo é analisar a
relação entre língua, sociedade e cultura, de forma que, esses objetos de estudos das
ciências Humanas e Sociais não possam ser verificados de caráter isolados, mas sim, de
maneira agregada.
Assim, ao considerarmos estes campos de estudos como interseccionais,
partilhamos a mesma ideia de Silva (2009, p. 24), no qual afirma que

A Etnolinguística concentra-se nos estudos dos usos linguísticos no seio da


vida social, desse modo, explica o significado que as formas linguísticas
adquirem nos contextos em que são utilizadas, e permite descobrir os padrões
interativos que revelam visões do mundo e a forma de relação entre os
indivíduos.

A Etnolinguística entende que as formas linguísticas e sociais se desenvolvem


simultaneamente, compreendendo que o homem é um ser social e é por meio da
linguagem que esse estabelece relação com o seu grupo sociocultural, dado que “cada um
[grupo humano] tende a desenvolver peculiaridade de fala que têm a função simbólica,
em alguma medida, de distinguir o subgrupo do grupo maior no qual seus membros
possam ser também completamente absorvidos” (SAPIR, 1933, p. 15).

4.2 ETNOTERMINOLOGIA
116

A Etnotermonologia constitui uma subárea da Terminologia cujo objetivo é o


signo linguístico dentro de um discurso etnoliterário, ou seja, a partir de um saber que é
criado e compartilhado/herdado por um grupo étnico-cultural. Assim, a Etnoterminologia
busca analisar o signo linguístico de acordo com os discursos etnoliterários, culturais, em
que está inserido.
Segundo essa vertente de estudos terminológicos, uma mesma unidade lexical
pode apresentar diversas acepções dependendo do contexto cultural em que está inserida.
As lexias, no nível do sistema, são plurifuncionais, uma vez que sua função é determinada
pelos seus entornos discursivos. São esses entornos que determinam, então, o estatuto de
vocábulo, termo ou de vocábulo-termo.
O vocábulo-termo — unidade mínima de significação e de análise da
Etnoterminologia — agrega uma multifuncionalidade de papéis configurada pela
convergência de funções de vocábulo e de termo que acumulam. De acordo com Barbosa
(2007, p. 440), “as unidades lexicais do universo do discurso etnoliterário têm um estatuto
próprio e exclusivo”, pois não apresentam os mesmos traços semânticos da língua geral
e nem são utilizadas, com o mesmo semema, nas linguagens especializadas. Cabe à
Etnoterminologia, então, estudar o uso das unidades lexicais e a formação conceptual
considerando a variação cultural.

5. METODOLOGIA

Os loci da pesquisa são os bairros da Fé em Deus e Liberdade.


Antes de irmos a campo, realizamos pesquisas bibliográficas em livros, artigos e
teses para embasamento teórico sobre Etnolinguística, Etnoterminologia e questões sobre
processo identitário e cultural dos quilombos brasileiros/maranheneses.
Para a coleta de dados, selecionamos, inicialmente, oito
informantes/colaboradores na Liberdade e seis informantes/colaboradores na Fé em
Deus33. Como requisitos, os participantes deveriam ser homens e mulheres
autodeclarados(as) negros(as), nascidos(as) na localidade investigada ou moradores(as)
há mais de dez anos na Fé em Deus e na Liberdade e participantes de manifestações
culturais, associação de moradores, grupos religiosos ou sociais com atuação nos bairros
pesquisados.
Após um contato prévio, os informantes foram informados sobre o objetivo da
pesquisa e foi recolhida a assinatura no termo de consentimento. Logo depois, foram
preenchidas as fichas do informante com dados pessoais como nome, endereço, apelido,
tempo de moradia, estado civil, autodeclaração, se a família ou ele/a veio de quilombos
rurais, idade, naturalidade, escolaridade. Também foram realizadas perguntas sobre o
contato do colaborador com os meios de comunicação e com a comunidade e sobre a vida
pessoal.

33
Inicialmente, no período referente a 2018-2019, elencamos oito informantes de duas faixas etárias para
a realização das entrevistas. Ao observarmos que o grau de participação e envolvimento com as atividades
no bairro é o fator mais significativo, elegemos apenas seis informantes no bairro da Fé em Deus com
participação em seguimentos cultural, religioso ou social no bairro.
117

Como instrumento de coleta de dados, após estudos do trabalho de Santos (2013),


utilizamos um questionário etnoterminológico adequado ao contexto urbano. Começamos
a pesquisa de campo em 2018, na Liberdade. Ao percebermos que algumas questões não
alcançavam o objetivo pretendido, as substituímos e/ou acrescentamos outras ao
questionário aplicado na Fé em Deus, em 2019.
O questionário do trabalho de 2018, constava de 60 questões, porém, ao
observarmos que algumas delas não alcançaram os propósitos almejados, mantivemos,
em 2019, apenas 53 questões e as organizamos nos seguintes campos semânticos:
territorialidade; convívio e comportamento social; música; dança; diversão, lazer e
jogos; vestuário e acessório; religião e crenças; comida e identidade-negritude.
As entrevistas foram gravadas com o celular, em formato MP3. O drive do gmail,
recurso gratuito do google, serviu como armazenamento dos dados coletados.
Em seguida, todos os materiais sonoros foram transcritos ortograficamente.
Posteriormente, os vocábulos-termos foram analisados a partir da frequência na fala dos
moradores da Liberdade e Fé em Deus, mas também, pelo grau de relevância étnico-
cultural no universo do discurso especializado. As unidades lexicais e conceptuais
representativas dos semas étnicos-culturais do grupo foram armazenadas em fichas
etnoterminológicas, em seguida, foi elaborado o glossário etnoterminológico dos
quilombos urbanos da Liberdade e Fé em Deus.
Como fim principal do trabalho, o glossário foi produzido com o uso do programa
computacional Lexique Pro. É importante frisarmos que a elaboração do glossário
apresentado se deu pela necessidade de divulgarmos particularidades linguísticas que nem
sempre são apresentadas em dicionários de grande circulação, assim, não há repetição de
dados, há descobertas de outros falares que, muitas vezes, são alvo de preconceito
linguístico e/ou total desconhecimento.
No que tange à macroestrutura desse glossário, os vocábulos-termos-entradas
foram organizados por ordem alfabética. A microestrutura consta de vocábulos-termos-
entradas (em negrito); categoria gramatical/sintática (em itálico); definição(ões); contexto
de uso (entre colchetes); dados sobre o colaborador e a qual bairro pertence (entre
parênteses)34; variante(s) (separada(s) por duas barras), se houver. Para distinguir essas
informações, fizemos uma separação com sinais gráficos e tipografias distintas.
Os vocábulos-termos-entradas foram escolhidos pela representividade no sistema
de valor nas/das comunidades da Fé em Deus e da Liberdade, além da frequência na fala
dos informantes/colaboradores. Em alguns casos, há duas definições, numeradas por
ordem crescente, para, dessa forma, representar as diferentes acepções de um mesmo
vocábulo-termo. Em relação ao contexto de uso, destacamos a fala, apenas, de um
informante, a fim de garantir o entendimento do leitor. Em alguns casos, há as siglas INF.-
referente a informante, INQ.- referente a inquiridor-, isso se fez importante para
introduzirmos o contexto de uso do vocábulo-termo e/ou do conceptus.
Vale lembrar que há vocábulos-termos que foram encontrados em apenas uma
localidade e outros que são de uso comum dos moradores de ambos os bairros. Quando
um etnotermo for de uso comum entre os bairros estudados, não colocaremos a
informação referente ao bairro.

34
Quando o etnotermo for encontrado em ambos os bairros, não haverá sinalização referente às siglas do
bairro.
118

6. GLOSSÁRIO ETNOTERMINOLÓGICO DOS BAIRROS DA FÉ EM DEUS E


LIBERDADE

Bairro Quilombola. Sintagma adjetival. Território que compõe a extensão do rio Anil,
composto pela junção dos bairros Camboa, Liberdade, Fé em Deus e Alemanha, e com
diversidades de agremiações culturais, especialmente, de origem negra, como cacuriá,
samba, bloco afro e tambor de crioula. [Então, o bairro da Fé em Deus, juntando de Fé
em Deus até Camboa, eh de Alemanha, Fé em Deus, Camboa, Liberdade, o diferencial é
que você não vê um bairro nessa extensão com tantas agremiações, porque até o último
levantamento que foi feito... eh... me parece que tinham duzentas agremiações ao longo
dessa extensão do rio Anil. Você inclui tribo de índio, você inclui cacuriá, eh... isso eu
falo só da parte junina, quando eu falo da parte de tambor de crioula, eh... escola de samba
a gente tem aqui em cima que é a Império Serrano, afro, inclusive, Neto de Nanã, em
memória ao Neto de Nanã que o pessoal continua com o bloco, né, e fora os outros blocos
e aí a gente tem dança, dança portuguesa, quer dizer, é o diferencial da gente, é essa
diversidade de agremiações ao longo de uma junção de bairros que se tornou um bairro
quilombola] (K.L.L.S., FD, sexo feminino, 24/01/2020).

Café. Substantivo. Substância alucinógena natural usada para o fumo e preparada com
folhas. [Marola. Vários nomes, tem marola...marola, café, um monte de nomes. INQ.-
Café? INF.- É. Tem o... o... dezesseis e vinte, também, dezesseis e vinte, quatro e vinte.
Tem massa. INQ.- Amassa? INF.- É massa, tem café, tem marola, quatro e vinte, boldo.
INQ.- Boldo? INF.- É. Verdinho. Tem vários nomes que colocaram] (R.W.F., FD, sexo
masculino, 04/01/2020). //Variante: Maconha, verdinha, cabobó, massa, dezesseis e vinte,
quatro e vinte, boldo, marola//

Comunidade Substantivo. Grupo de pessoas unidas que moram em um mesmo local e


interagem entre si, trabalham em comunidade, se ajudam mutuamente e vivem em
harmonia. [Comunidade, pra mim, é um pessoal que se une, né?! Que tá pra ajudar o outro]
(M.C.C.S., sexo feminino, 24/04/2019).

LB Substantivo. Denominação atribuída ao quilombo urbano da Liberdade, mais


comumente, pelos próprios moradores para evidenciar algumas características peculiares
a essa localidade. [Ah, eu falo Libercity, eu falo LB, a gente fala de vez em quando,
quando eu tô com a galera, assim, né. Ah, vumbora pra Libercity, ah, vumbora pra LB.
Mas não é muito comum não, só quando tá a gente] (A.T.A.M., LB, sexo feminino,
13/11/2018) //Variantes: Libercity. Freedom. LBD. Bairro do reggae.//

P
119

Preto fugido. Sintagma Substantival. Brincadeira de criança, na qual uma delas é


responsável por encontrar as outras que estão escondidas no mato, até achar o último
brincante. [INF. – Preto fugido é tipo um... um... esconde-esconde só que aí, no mato, né?
Aí, as pessoas vão se esconder nos locais das árvores, atrás das moitas, aí um vai
descobrindo o outro aí ele vai... ele vai... vai descobrindo até tu descobrir o último, aí tu
deixa de ser aquela pessoa que vai procurar, ou então alguém chega, vai lá, bate lá no
local e tu volta a ser novamente...] (C.D.R., FD, sexo masculino, 08/01/2020).

Quilombo. Substantivo. 1 Lugar de morada de vários povos, principalmente, de negros.


2 Um bairro. 3 Espaço que busca a liberdade, a vida livre, agir contra as opressões,
preconceitos ou discriminação e sem muito pensamento capitalista. 4 Local de resistência
e luta do povo negro. 5 Espaço de origem, de raiz e união só de negros. [Fazendo a
retrospectiva, quilombo é uma busca por liberdade, vida livre, não só poder pensar mas
poder agir, melhor, sem opressão, sem discriminação, sem preconceito, com bastante
respeito, humildade e cuidado consigo e com o outro, uma comunidade mais unida e mais
fraterna, sem muitos pensamentos capitalistas e essa coisa maçante] (C.D.R., FD, sexo
masculino, 08/01/2020).

Quilombola Substantivo/Adjetivo. 1. Pessoa descendente de pessoas escravizadas que


tem consciência das opressões vividas pelo povo negro, além disso, sabe que é preciso
lutar pela libertação. 2. Ajuda o outro e transmite uma boa energia, influência. 3. Pessoa
negra que carrega na veia o sangue negro, que nasceu em uma área onde o povo todo se
conhece. [Quilombola é, também, ser resistente contra as questões sociais: o preconceito
externo, a visão marginalizada] (T.A.V., sexo feminino, 28/05/2019).

7. ANÁLISE ETNOTERMINOLÓGICA

7.1 FICHA ETNOTERMINOLÓGICA DO VOCÁBULO-TERMO QUILOMBOLA


Vocábulo-termo: Quilombola Campo Semântico: Identidade e Negritude

Contexto de uso: [Ser quilombola é tu... tu ser envolvido com essas atividade e ser bem sucedido, pode
não ser, não só que seja financeiramente, mas ter uma estima boa, que tu te sinta bem, sabe, que tu vá e
participa, sabe?! E gosta, aquilo já (init.35) coração, te dedica, que tu te sinta bem, eh... uma energia boa,
uma boa fluência, naquela sintonia] (C.D.R. ,FD, sexo masculino, 08/01/2020) [É um negro que tem
consciência que é preciso lutar pela libertação. Pra mim, ser quilombola é isso: é um negro que tem
consciência] (M.M.S.P., FD, sexo feminino, 12/11/2019) [É (init.), viver, vivenciar, continuar aquilo
que desde o princípio, desde o início. Ser quilombola é ser... no nosso linguajar é ser parceiro, é ser
amigo. Saber colocar o meu problema do lado, pra mim ouvir o problema do outro, sabe, sabe?! Sabe?!]
(K.L.L.S., FD, sexo feminino, 24/01/2020) [São descendente de escravo, né, que vem. É carregar o
sangue de negro, é carregar nas veias o sangue de negro. Ser negro, ser negro, ser assumido] (M.C.C.S.,
LB, sexo feminino) [Quilombola é a mesma coisa de ser o negro, né não?!] (E.B.D., LB, sexo

35
Parte do áudio inteligível para a transcrição.
120

masculino)] [Quilombola é, também, ser resistente contra as questões sociais: o preconceito externo, a
visão marginalizada (T.A.V., LB, sexo feminino). [É ter nascido dentro daquela coisa que eu te falei de
um povo que se conhece, todos negros, da mesma raça] (W.L.P.A., LB, sexo masculino).

Semas
Boa energia Negro que tem consciência que Ser parceiro, amigo
é preciso lutar pela libertação

Descendente de Negro Resistencia


escravo

Conceptus Escravo ou escrava refugiado/a em quilombo [De or. controv.] (AULETE,


2011, p. 1143).
Escravo fugido para o quilombo cf. mocamau. ETM orig. contrv.; segundo
Nascentes, do cruzamento de canhambora, termo de orig. tupi, com o quimb.
quilombo segundo Oscar Ribas (1989), cruzamento do mesmo quilombo com o
tb. quimb. kuombola ‘surrupiar, levar às ocultas’ SIN/VAR calhambola,
calhambora, canhambola, canhambora, canhembora (HOUAISS, 2001, p. 2359).

Metaconceptus Pessoa negra de boa energia, descendente de escravos que tem consciência de que
é necessário lutar e resistir contra as visões marginalizadas, e que vive em um lugar
onde todos se conhecem.

Definição 1. Pessoa descendente de pessoas escravizadas que tem consciência das opressões
vividas pelo povo negro, além disso, sabe que é preciso lutar pela libertação. 2.
Pessoa que ajuda o outro e transmite uma boa energia, influência. 3. Pessoa negra
que carrega na veia o sangue negro, que nasceu em uma área onde o povo todo se
conhece.

Fonte: PORTO (2020)

O conceptus exposto nos dicionários Houaiss (2001) e Aulete (2011) apresentam


acepções diferentes das fornecidas pelos quilombolas urbanos ludovicenses da Liberdade
e da Fé em Deus. Enquanto que nesses glossários da língua geral - que são considerados
referências da “norma” do bem falar o português - quilombola é definido como escravo
que fugiu; para os sujeitos desta pesquisa essa definição não os representa.
Ao enfatizar a condição de escravo, os dicionários destacam um sentido
escravocrata, como se a condição subumana vivida pelos negros escravizados por 400
anos fosse voluntária e não uma obrigação sustentada pela igreja, pela ciência - ao criar
teorias de segregação - e por homens/mulheres brancos(as), institucionalmente, até 1888.
Fugidos, como é empregado nos dicionários, não conduz o leitor a refletir que a fuga não
era do trabalho, mas sim, das condições precárias e do direito à vida com seus pares e
costumes. A fuga, para os “negros fugidos” nada mais era que uma forma de resistir ao
sistema que não lhes garantiu, por muito tempo, até mesmo após a “abolição”, acesso à
saúde, educação e serviços básicos. A resistência se fez/faz pela fuga do sistema que
inivisibiliza corpos negros ao arrancar a sua terra e/ou desvalorizar a sua cultura.
Esse vocábulo-termo, assim como as acepções, para alguns quilombolas da Fé em
Deus, ainda é algo distante, apesar de vivenciarem as práticas dos quilombos rurais. Ao
serem questionados sobre o que é ser quilombola, alguns informantes/colaboradores
disseram não conhecer o conceito, ou melhor, não saberem o que é, como é notório na
fala do informante (B.A.R.M., sexo feminino, 15/10/2019) “Eu não sei. Me diz que eu tô
a fim de saber”. Isso é o resultado de um processo educacional que por muito tempo
121

negou os estudos sobre os afro-brasileiros e indígenas, resultando em uma perda


identitária e na ausência de conhecimento sobre a ancestralidade negra/indígena.
Enquanto isso, todos os informantes do bairro da Liberdade souberam
conceptualizar o vocábulo-termo quilombola. As falas sobre a falta de conhecimento do
vocábulo-termo quilombola refletem um processo de ensino-aprendizagem que se
constituiu no apagamento e no embranquecimento do povo brasileiro, ou seja, um
processo educacional com um olhar colonizador que não contribui para uma luta
antirracista.
O não saber o conceito mostra que o vocábulo-termo quilombola, para alguns
sujeitos da pesquisa, ainda está no nível pré-semiótico, pré-conceitual, pois não
conseguem conceptualizá-lo, contudo, as suas práticas refletem um aquilombamento.
Os quilombolas urbanos da Fé em Deus e da Liberdade que conseguiram
conceptualizar o vocábulo-termo quilombola, afirmaram que é hipônimo de negro, dessa
forma, todo quilombola é negro. Além das características fenotípicas, como o tom escuro
da pele, há o traço sêmico da consciência de raça e a luta, principalmente, contra o racismo
e contra todas as formas de opressões contra o povo negro, pois o quilombola “é um negro
que tem consciência que é preciso lutar pela libertação” (M.M.S.P., sexo feminino,
12/11/2019).
Ao enfatizar a luta pela libertação, até os dias atuais, essa informante/colaboradora
lembra de que a Lei Áuria não possibilitou uma libertação, de fato, apenas garantiu o
surgimento do sistema capitalista, nada fez para garantir direitos ao povo negro. O
resultado desse processo histórico é que os piores índices de acesso à moradia,
saneamento básico, saúde, educação, quando os dados são racializados, remetem ao povo
negro. Portanto, para eles, quilombola é um/a negro/a que luta por melhores condições de
vida para o seu povo e vive dentro de uma comunidade em que todos se ajudam
mutuamente.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que os grupos humanos revelam as suas axiologias através da


linguagem especializada, a presente pesquisa buscou conhecer a visão singular dos
quilombos urbanos da Liberdade e Fé em Deus. Com base na aplicação do questionário
que elaboramos pretendemos conhecer as representatividades conceptuais e
denominativas dos quilombolas urbanos da Liberdade e da Fé em Deus.
Assim, a linguagem especializada desenvolvida por esse grupo negro é demarcada
por suas concepções de vida, o que se distancia das práticas linguísticas conceptuais ou
semântico-lexicais da língua geral. Ao estudar essa linguagem especializada, podemos
entender as práticas socialmente construídas por esses grupos.
Entendemos, então, que os quilombos da Fé em Deus e Liberdade são centros de
resistência e manutenção dos saberes, relações sociais, ideologias e modos de vida dos
quilombos rurais. A atribuição formadora do conceptus, especialmente, de quilombo
revela suas concepções contra aculturativo.
9. REFERÊNCIAS
122

A.F.G. Entrevista etnolinguística do bairro da Liberdade: entrevista [março de


2019].Entrevistadora: realizado por Laryssa Francisca Moraes Porto. São Luís, 2019.
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A.T.A.M.. Entrevista etnolinguística do bairro da Liberdade: entrevista [novembro


de 2018]. Entrevistadora: realizado por Laryssa Francisca Moraes Porto. São Luís, 2018.

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campo de atuação. In: ISQUERDO, Aparecida Negri; ALVES, Ieda Maria. (Org.). As
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deslocamentos da África para o Brasil.2010. 9 f. Revisão de Literatura.

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identificada, se Autodefiniu como Remanescente de Quilombo, conforme Declaração de
Autodefinição. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/271636896/dou-secao-1-
14-11-2019-pg-6?ref=feed

C. D. R.. Entrevista etnolinguística do bairro da Fé em Deus: entrevista [04/01/2020].


Entrevistadora: realizado por Laryssa Francisca Moraes Porto. São Luís, 2020.

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FONSECA, C. T. M.. PAC RIO ANIL: uma reforma urbana como estratégia para o
desenvolvimento socioeconômico. 2018. 90 f. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade
Federal do Maranhão, São Luís, 2018.

E.B.D.. Entrevista etnolinguística do bairro da Liberdade: entrevista [fevereiro de


2019]. Entrevistadora: realizado por Laryssa Francisca Moraes Porto. São Luís, 2019.
Mp3 (49 min.). Entrevista concedida para elaboração de relatório de pesquisa.

HALBWACHS, M.. A memória coletiva. 2º ed. São Paulo: Editora Revistas dos
Tribunais LTDA, 1990.

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Mauro de Salles Vilar, elaborado no Instituto Houaiss de Lexicografia e Banco de dados
de Língua Portuguesa S/C Ltda.- Rio Janeiro : Objetiva, 2001.

K. L. L. S. . Entrevista etnolinguística do bairro da Fé em Deus: entrevista


[24/01/2020]. Entrevistadora: realizado por Laryssa Francisca Moraes Porto. São Luís,
2020.

M.C.C.S. . Entrevista etnolinguística do bairro da Liberdade: entrevista [fevereiro de


2019]. Entrevistadora: realizado por Laryssa Francisca Moraes Porto e Georgiana Márcia
Oliveira Santos. São Luís, 2019. Mp3 (1h e 37 min.). Entrevista concedida para
elaboração de relatório de pesquisa.
123

M.M. S. P.. Entrevista etnolinguística do bairro da Fé em Deus: entrevista


[12/11/2019]. Entrevistadora: realizado por Laryssa Francisca Moraes Porto. São Luís,
2019.

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Entrevistadora: realizado por Laryssa Francisca Moraes Porto. São Luís, 2019.

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São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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Linguística, Universidade Federal do Ceará, 2013.

SAPIR, Edward. An Introduction to the Study of Speech. New York: Harcourt Brace, 1921.

SILVA, A. J.. O léxico do Tambor de Mina: uma proposta de glossário da linguagem


afro-religiosa em São Luís. 2009. 139f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –
Universidade Federal do Ceará, Departamento de Letras Vernáculas, Programa de Pós-
Graduação em Linguística, Fortaleza-CE, 2009.

T.A.V. . Entrevista etnolinguística do bairro da Liberdade: entrevista [maio de 2019].


Entrevistadora: realizado por Laryssa Francisca Moraes Porto. São Luís, 2019. Mp3 (45
min.). Entrevista concedida para elaboração de relatório de pesquisa.

W.L.P.A. . Entrevista etnolinguística do bairro da Liberdade: entrevista [fevereiro de


2019]. Entrevistadora: realizado por Laryssa Francisca Moraes Porto. São Luís, 2019.
Mp3 (44 min.). Entrevista concedida para elaboração de relatório de pesquisa.
124

9
A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS

Naysa Christine Serra Silva 36


Thelma Helena Costa Chahini37

1. INTRODUÇÃO

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) é uma língua espaço-visual, oficializada


em 24 de abril de 2002, pela Lei nº 10.436/2002. A partir dessa data, a Libras tornou-se
a segunda forma comunicativa oficializada do Brasil. Anos depois, foi incluída como
disciplina nos cursos de licenciatura e de Fonoaudiologia por meio do Decreto nº 5.626,
de 22 de dezembro de 2005. Por se tratar de uma língua natural – que responde a uma
necessidade comunicativa de um grupo de indivíduos –, sofre as influências culturais,
geográficas e econômicas de cada localidade e/ou grupo social que a utiliza
(MACHADO; WEINNINGER, 2018).
O Brasil, por ser um país multicultural, contém tanto na Língua Portuguesa quanto
na Libras as variações linguísticas que possibilitam a expressão da identidade dos falantes
de cada região. Sabe-se que essa diversidade lexical se dá mediante determinadas
variantes, tais como: grupo social, escolaridade, sexo, idade, profissão, localidade etc.
Na Libras, há um mito entre seus usuários: a existência de sinais errados e sinais
certos. Contrapondo-se a essa ideia, esta pesquisa se respalda na variação linguística da
Língua Brasileira de Sinais, embasando-se teoricamente, sobretudo, nos seguintes
autores: Tarallo (1994), Quadros (2006), Labov (2008) e Bagno (2002, 2007, 2014).
No contexto, o Problema de Pesquisa é: quais os motivos da variação linguística
da Libras? Partindo desse questionamento, o objetivo principal deste estudo foi investigar
os motivos da variação linguística da Libras em relação ao mito do erro e do acerto de
sinais.

2. O MITO DO ERRO E DO ACERTO

Como esclarecido por Saussure (2006, p. 22), a Língua “é definida como a parte
social da linguagem e só um indivíduo não é capaz de mudá-la”, sendo assim, a Libras,
assim como qualquer outra língua, é desenvolvida e modificada a partir da demanda
coletiva, nunca de forma individual. Daí, percebe-se que o conceito de sinalização certa
ou errada não abrange a complexidade da comunicação espaço-visual dos surdos.

No livro Preconceito Linguístico, Bagno (2002) enfatiza que a Língua Portuguesa


no Brasil é expressa de forma completamente diferente de Portugal, devido às diversas

36
Professora e Assistente Social. Mestranda em Cultura e Sociedade – Programa de Pós-Graduação em
Cultura e Sociedade (PGCULT) da Universidade Federal do Maranhão (Ufma). E-mail:
naysachristine1979@gmail.com
37
Professora Associada da Ufma. Docente e Pesquisadora dos Programas de Pós-graduação Mestrado em
Educação (PPGE) e Mestrado Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (PGCULT). E-mail:
thelmachahini@hotmail.com
125

influências, desde a colonização. Ele afirma que o português “brasileiro” possui um


arcabouço lexical regionalizado, ou seja, algumas palavras e expressões são utilizadas por
determinadas parcelas da população falante. No contexto da Libras, os sinais também são
diferentes.

Por exemplo, os sinais utilizados em São Luís para identificar ações, animais,
locais, comidas típicas e expressões culturais (danças, personagens folclóricos e outros)
divergem dos sinais utilizados em outros estados. O sinal de Maranhão, no próprio
Estado, é executado com a configuração de mão em “M”, orientação da mão para o corpo,
ponto de articulação espaço neutro, movimento semicircular e expressão facial neutra. Já
no Rio de Janeiro, o sinal é executado com o mesmo ponto de articulação, o mesmo
movimento e a mesma expressão facial, porém, a configuração de mão é em “W” e a
orientação da mão é para fora. Diante de tal exemplo, qual sinal está certo?

Segundo Labov (2008, p. 125-126),

A mudança linguística é transmitida dentro da comunidade como um todo; não


está confinada a etapas discretas dentro da família. Quaisquer
descontinuidades encontradas na mudança linguística são os produtos das
descontinuidades específicas da comunidade, mais do que os produtos
inevitáveis do lapso geracional entre pais e filhos. Fatores linguísticos e sociais
estão intimamente inter-relacionados no desenvolvimento da mudança
linguística. Explicações confinadas a um ou outro aspecto, não importa quão
bem construídas, falharão em explicar o rico volume de regularidades que pode
ser observado nos estudos empíricos do comportamento linguístico.

Assim, observa-se uma incompatibilidade entre a tentativa de engessamento da


Libras e a sua dinâmica natural quanto ao léxico. Ademais, insta ressaltar que a
comunicabilidade por intermédio da língua sinalizada, como afirma Bagno (2014), tem
influência de fatores socioculturais e sociocognitivos como em qualquer outra língua, que
pode ser oral ou visual-espacial.

3. A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS E A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

A Libras é uma língua desenvolvida por uma demanda humana, o que acontece
com as demais línguas, tanto orais como sinalizadas. Por ser uma língua natural, a Língua
Brasileira de Sinais apresenta um processo recente, gradual e contínuo de expansão e
variação, devido às necessidades comunicativas que surgem no cotidiano de fala entre
seus usuários. Assim, considerando a dimensão continental do país, a mobilidade dos
indivíduos surdos e a experiência com novas variantes, torna-se relevante investigar
transformações linguísticas e também variações existentes.
Seguindo essa perspectiva, Brito et al. (2011) realizaram um estudo cujo propósito
era comparar a sinalização goiana com a sulista mediante participação voluntária de três
surdos e dois ouvintes com formação superior incompleta. Os autores utilizaram como
referência os sinais cadastrados em dicionários de Libras e obtiveram os seguintes
126

resultados: os 50 sinais goianos divergiam em 42% dos sinais do Rio Grande do Sul, 38%
dos sinais de Santa Catarina e 20% dos sinais do Paraná.
Castro Júnior (2011), por sua vez, desenvolveu uma pesquisa sobre variação
linguística na Língua Brasileira de Sinais e como tal fato linguístico acontece sob
interferência da Língua Portuguesa. O autor catalogou seis termos do campo semântico
“política” com o auxílio de surdos e profissionais da Libras que trabalhavam nos poderes
legislativo e executivo. A partir dos dados, verificou, então, que a variação linguística na
Libras é um componente essencial para a dinamicidade dessa língua.

4. METODOLOGIA

Foi desenvolvida uma pesquisa exploratória/descritiva/explicativa, com


abordagem qualitativa, pois a pesquisa exploratória permite maior aproximação entre o
pesquisador e o objeto pesquisado, a pesquisa descritiva possibilita, como a própria
denominação sugere, descrever as características do fenômeno investigado e a pesquisa
explicativa evidencia o porquê do fenômeno (GIL, 2010). A opção pela abordagem
qualitativa, por seu turno, se deu em razão de seu caráter subjetivo perante o objeto
analisado (MINAYO, 2001).
Os participantes foram seis professores/intérpretes de Libras, pertencentes tanto à
rede de ensino pública quanto à rede privada da região metropolitana de São Luís/MA
(quadro 1).

Quadro 1 – Participantes: professores de Libras

Sexo Feminino - 26 anos Rede privada,


1 Surda
Ensino Superior Completo. 6 anos de experiência docente.

Sexo Feminino - 22 anos Rede privada,


2 Ouvinte
Ensino Superior Incompleto. 2 anos de experiência docente.

Sexo Feminino - 23 anos Rede privada,


3 Ouvinte
Ensino Superior Incompleto. 4 anos de experiência docente.

Sexo Masculino - 22 anos Rede privada,


4 Ouvinte
Ensino Superior Incompleto. 6 anos de experiência docente.

Sexo Masculino - 22 anos Rede privada,


5 Ouvinte
Ensino Superior Incompleto. 6 anos de experiência docente.

Sexo Masculino - 30 anos Rede pública,


6 Surdo
Ensino Superior Completo. 10 anos de experiência docente.

Fonte: Dados da pesquisa realizada pelas autoras, em 2020

Os participantes da pesquisa têm o seguinte perfil: dois são surdos e quatro são
ouvintes; dois têm Ensino Superior completo e quatro ainda estão na Graduação; cinco
127

trabalham em instituições de ensino pertencentes à rede privada e um trabalha na rede


pública. Todos atuam como docentes em cursos de extensão.
Percebe-se que os docentes/intérpretes participantes do estudo estão no contexto
de formação inicial da Educação Superior, fato que se contrapõe ao que Quixaba (2011)
afirmara em suas pesquisas: instrutores e professores de Libras na década de 2000 não
possuíam formação superior.
Os dados foram coletados no período de junho a julho de 2020, após a anuência
dos participantes e a assinatura dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e de
Autorização de Uso de Imagem.
Em relação aos procedimentos de coleta de dados, foi indagado aos participantes
se conheciam o sinal “casamento”. Depois que responderam afirmativamente, foi
solicitado que executassem o sinal do rito religioso “casamento”. Na seção a seguir, os
dados obtidos são apresentados sequencialmente.

5. RESULTADOS, ANÁLISE E DISCUSSÕES

Em relação ao rito religioso casamento, os participantes sinalizaram das seguintes


maneiras:
Na sinalização (figura 1), observa-se que a formação do sinal se dá pela
justaposição (festa e casamento), que acontece quando o sinalizante utiliza a união de dois
ou mais sinais sem qualquer alteração nos parâmetros da Língua Brasileira de Sinais para
expressar uma palavra ou uma expressão.

Figura 1 - P1 - Sinalização “Casamento”

Fonte: As autoras, em 2020

Observa-se, na sinalização (figura 2), que a formação do sinal se dá, também, pela
justaposição, mas de modo diferente da execução da figura 1, pois, neste contexto, o
128

participante acrescentou um movimento corporal (cabeça pendente para trás) na


constituição do sinal.

Figura 2 - P2 - Sinalização “Casamento”

Fonte: As autoras, em 2020

Três diferenciações são detectáveis na execução desse sinal: o sinal não é


composto, além de que a amplitude do movimento e a expressão facial não são
identificadas nas figuras 1 e 2 (figura 3).

Figura 3 - P3 - Sinalização “Casamento”

Fonte: As autoras, em 2020


129

Na sinalização (figura 4), tem-se diferenciações distintas quanto ao tipo de


movimento: retilíneo e a ponto de início da constituição do sinal: altura da boca.

Figura 4 - P4 - Sinalização “Casamento”

Fonte: As autoras, em 2020

Essa sinalização (figura 5) é muito semelhante à figura 4, porém, o movimento se


inicia na altura do queixo e finaliza na altura do busto.

Figura 5 - P5 - Sinalização “Casamento”

Fonte: As autoras, em 2020

Na sinalização (figura 6), o sinal também é simples, mas há algumas


características distintas; há uma expressão facial com o sentido de intensificação, o
movimento semicircular é bem curto e quase não se percebe a distância entre as mãos.
130

Figura 6 - P6 - Sinalização “Casamento”

Fonte: As autoras, em 2020

Capovilla e Raphael (2001) catalogaram alguns sinais brasileiros em um


dicionário trilíngue. Quanto ao rito religioso “casamento”, os autores apresentam em sua
catalogação duas execuções distintas: a primeira é indicada com a utilização nos estados
de São Paulo, Ceará, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Paraná e
Distrito Federal; a segunda é indicada com a utilização nos Estados do Rio de Janeiro,
São Paulo e Rio Grande do Sul, conforme figura 7.

Figura 7 - Sinais “Casamento”

Fonte: Capovilla e Raphael (2001)

Em comparação com os sinais catalogados no dicionário trilíngue, as sinalizações


executadas pelos participantes são divergentes no que tange aos parâmetros: os
movimentos, as expressões faciais, o início e o fim da execução no espaço neutro. Outro
destaque para as particularidades maranhenses quanto à sinalização de “casamento” é a
composição por justaposição de festa e casamento. Porém, na catalogação, tal
composição se dá por meio da justaposição dos sinais anel e casamento. No contexto
apresentado, percebe-se que a variação linguística do sinal casamento é um exemplo de
131

variação diatópica, que apresenta modos de “falar” de lugares diferentes, neste caso,
Maranhão e demais Estados (BAGNO, 2007).
No tocante à configuração de mão, é importante destacar que todas as execuções
utilizaram a de número 51, segundo a figura 8, de Felipe (2005). As variáveis
apresentadas foram os parâmetros movimento, direcionalidade e expressão
facial/corporal, que resultaram nas variantes apresentadas nas figuras 1 a 6.

Figura 8 - Tabela de Configurações de mãos

Fonte: Felipe (2005)

Para Tarallo (1994), a variação é tida pela sociedade como uma “confusão”
linguística, ou seja, como um balaio de gatos em que duas (ou mais) formas de se dizer a
mesma coisa se duelam, buscando a ascensão de uma em detrimento de outra
palavra/expressão. Portanto, a língua não é expressa da mesma forma por todos os seus
falantes. Além disso, as línguas, entre elas a Libras, evoluem continuamente, adaptando-
se às novas gerações de indivíduos e a transformações sociais, adquirindo novas
peculiaridades provenientes de comunidades distintas.
A esse respeito, Capovilla (2010, p. 45) pontua:

Crianças surdas não são definidas por sua deficiência auditiva apenas, mas sim,
principalmente, por sua língua materna própria (a Libras) e por sua cultura
própria. O respeito a essa diversidade é essencial para a cidadania e a educação
de qualidade adequada às suas necessidades especiais, direito da criança
132

reconhecido pela Unesco. A atual gestão fez progressos em diversas frentes,


mas é preciso proceder aos ajustes revelados pela pesquisa científica.
(Entrevista ao Simon’s site, 2010).

Assim, o mito “esse sinal é errado” tem sido baseado no preconceito linguístico.
Os jovens, por exemplo, não aceitam utilizar os sinais mais antigos, pois estes já foram
substituídos. Por outro lado, adultos e idosos surdos, por desconhecerem os sinais mais
atuais da Libras, os conceituam como errados.
Outro fator que viabiliza a crença equivocada aqui abordada é a tentativa de
homogeneização dos sinais, sendo o Dicionário de Capovilla e Raphael (2001) um
exemplo dessa tentativa, pois, em sua coletânea, o professor catalogou somente os sinais
referentes aos executados nas regiões sul e sudeste, sem referências aos sinais nas demais
regiões. Esse afunilamento distancia a Libras de uma língua natural e a aproxima de uma
língua artificial, ou simplesmente de um código específico.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retornando ao objetivo principal deste artigo, observou-se que a variação


linguística da Libras ocorre por questões geográficas, o que explica a divergência entre
os sinais apresentados e os sinais catalogados em dicionários de Libras. Sendo assim, o
mito de “esse sinal é errado” não corresponde à realidade da Língua Brasileira de Sinais,
visto que se respalda em preconceitos linguísticos e/ou em desconhecimento de sinais das
variadas regiões do país.
Nesse sentido, percebe-se que há um equívoco entre os falantes, muitas vezes, por
desconhecerem os sinais. Em relação ao rito religioso “casamento”, os sinais
apresentados são exemplos de que a variação linguística da Libras decorre da razão
supracitada, ou seja, do aspecto diatópico, pois há outras sinalizações executadas nos
demais estados brasileiros.
Diante do observado, ressalta-se a importância de novas pesquisas sobre a
variação linguística na Libras, a fim de que novas discussões e trocas de experiências
ocorram, para que o status de língua natural não seja substituído pela codificação de uma
necessidade comunicativa. Isso corroborará para que a Libras seja reconhecida, de fato,
como língua que responde a demandas comunicativas de surdos e ouvintes que a utilizam
cotidianamente.

7. REFERÊNCIAS

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133

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TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 1994.


134

10
VARIAÇÃO FONÉTICA NO MUNICÍPIO DE PINHEIRO-MA: UMA ANÁLISE
SOCIOLINGUÍSTICA DA REALIZAÇÃO DO /D/ E /T/

Francimone da Graça Barros Dutra38


Georgiana Márcia Oliveira Santos39

1. INTRODUÇÃO

A variação linguística é um fenômeno inerente a todas as línguas. Assim, o


Português Brasileiro apresenta diferenças em função, por exemplo, das distintas
localidades de origem dos falantes no território nacional (COELHO et al., 2012, p.40).
Temos, por exemplo, a realização despalatalizada dos fonemas /d/ e /t/ na fala de
maranhenses naturais de alguns municípios da Baixada Maranhense em contraposição à
realização palatalizada desses fonemas em outros municípios do estado, como é o caso
da capital São Luís. Foi isso que nos motivou a investigar a fala do município de Pinheiro,
historicamente, marcada pela despalatalização.
Este artigo é um recorte da pesquisa que vem sendo realizada no Mestrado
Acadêmico de Letras, na UFMA e tem como objetivo investigar a despalatalização dos
fonemas /d/ e /t/ diante de /i/ e de /e/ no município maranhense de Pinheiro com o intuito
de confirmarmos ou refutarmos a despalatalização nesse município.
A estrutura deste artigo é composta, basicamente, por quatro seções:
fundamentação teórica, procedimentos metodológicos, análise de resultados e
considerações finais. Na seção dedicada à fundamentação teórica, tratamos do fenômeno
da despalatalização e da palatalização no Brasil e no Maranhão com algumas
considerações sobre fonemas e alofones, para tanto, nos baseamos nos estudos sobre a
Sociolinguística desenvolvidos, sobretudo, por Cezario e Votre (2008), Labov (2008
[1972]), Mollica e Braga (2003), Monteiro (2000), Oliveira e Silva; Pereira (1998),
Tarallo (2002), dentre outros. Posteriormente, apresentamos os procedimentos
metodológicos adotados e, em seguida, a análise dos dados. Na última seção, fizemos as
devidas considerações finais ressaltando a importância da pesquisa para a compreensão
da variedade do Português Brasileiro.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

38
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras - PPGLetras da Universidade Federal do Maranhão
-UFMA. E-mail: francimonedutra@hotmail.com
39
Doutora e Mestra em Línguistica pela Universidade Federal do Ceara - UFC. Professora do Curso de
Graduação em Letras Português/Espanhol e do Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGLetras.
Coordenadora do Projeto de Estudos e Pesquisas em Línguas, Memórias, Identidades e Culturas -
GELMIC/CNPq e Professora-Pesquisadora do Projeto Atlas Linguístico do Maranhão - AliMA. Email:
georgiana.marcia@ufma.br
135

2.1 O FENÔMENO DA DESPALATALIZAÇÃO E DA PALATALIZAÇÃO NO


BRASIL E NO MARANHÃO

A despalatalização é um fenômeno linguístico que vem sendo estudado na área da


linguística descritiva. O que diretamente se relaciona e proporciona a ocorrência ou não
da despalatalização é a produção dos sons, ou seja, o uso real de uma língua em sua
articulação e produção dos sons fonéticos.
É importante entendemos que os fonemas são unidades sonoras que diferenciam
um som de outro por oposição, estabelecendo um valor no sistema linguístico. Como,
exemplo, temos as palavras dia e tia que apresentam uma oposição distintiva na primeira
unidade sonora. Já as possíveis realizações associadas a um único fonema chamamos de
alofone. Assim, foneticamente, as duas palavras exemplificadas acima podem ser
pronunciadas [dia] ~ [tia] ou [dʒia] ~ [tʃia]. Considerando isso, enfatizamos que os
fenômenos apresentados neste trabalho se referem aos alofones [d] e [t], [dʃ] e [tʒ], que
são possibilidades de realização dos fonemas /d/ e /t/.
Verificamos que os sons [dʃ] e [tʒ] ocorrem antes dos fonemas /i/ e /e/, como se
vê em dia, índio, tarde time, tia, tomate, etc. Esse fato mostra uma variação fonética e,
portanto, interpretamos [dʃ] e [tʒ] apenas como alofones condicionados pelo contexto e
não como fonemas diferentes de /d/ e /t/.
Acrescentamos, também, que os fonemas consonantais /d/ e /t/ diante de /i/ e de
/e/ são, quanto ao modo de articulação, oclusivos, pois são resultantes do bloqueamento
total, mas sempre momentâneo da corrente de ar, em alguma parte da boca. Quanto ao
ponto de articulação, ambos são classificados como linguodentais ou apicodentais, em
que há o contato do ápice da língua com os dentes superiores (LOPES, 2008).
No Português brasileiro, /d/ e /t/, nos contextos especificados, são pronunciados
como linguopalatais, como em [dʒia] e [tʃia], na maior parte do Brasil. É possível
observarmos, todavia, que em alguns estados brasileiros, sobretudo da região Nordeste,
como a Paraíba, Pernambuco, Maranhão (em especial Pinheiro – localidade de inquérito
da nossa pesquisa), os falantes pronunciam os respectivos fones /d/ e /t/ como
linguodentais, ou seja, de forma despalatalizada. Ilari e Basso (2007) ressaltam que o
caráter regional das variedades do PB é marcado, entre outros traços de pronúncia, pela
ausência da palatalização de /d/ e /t/. Para os referidos autores:

A palatização (pronunciados [‘dentʃi], [pra’tʃinhu], [‘dʒisku]) é fenômeno


generalizado em todo o território brasileiro, com exceção do interior de São
Paulo e da região Sul (pronunciado [‘lejte ‘kẽte]; encontrado também em
regiões de Pernambuco, do Ceará, do Maranhão e do Piauí)”. (ILARI; BASSO,
2007, p. 168).

Diante disso, ressaltamos que o processo de palatalização pelo qual passam os


fonemas consonantais /d/ e /t/, de acordo com o que afirma Silva (2002, p. 35), “consiste
no levantamento da língua em direção à parte posterior do palato duro, ou seja, a língua
136

direciona-se para uma posição anterior, mais para a frente da cavidade bucal do que
normalmente ocorre quando se articula um determinado segmento consonantal”.
No que diz respeito à despalatalização, Cagliari (1974) afirma que esse fenômeno
é uma etapa da evolução do som palatal que se dá por meio do enfraquecimento do contato
linguopalatal.

2.2 A TEORIA SOCIOLINGUÍSTICA

A Sociolinguística é uma das subáreas da Linguística que estuda a língua em


uso no seio das comunidades de fala considerando a correlação dos aspectos linguísticos
com os sociais. Essa ciência se faz presente num espaço interdisciplinar, na fronteira entre
língua e sociedade, focalizando precipuamente os empregos linguísticos concretos, em
especial, os de caráter heterogêneo.
Como ciência autônoma e interdisciplinar, a Sociolinguística teve início em
meados do século XX, embora haja vários linguistas que, muito antes dos anos 1960, já
desenvolviam em seus trabalhos teorias de natureza claramente sociolinguística, como é
o caso de Meillet [1866-1936], Bakhtin [1895-1975] e membros do Círculo Linguístico
de Praga. Esses são pensadores que levavam em conta o contexto sociocultural e a
comunidade de fala em suas pesquisas linguísticas, ou seja, não dissociavam o material
da fala do produtor dessa fala, o falante, pelo contrário, consideravam relevante examinar
as condições em que a fala era produzida.
Para subsidiar nosso estudo, focamos na Sociolinguística Variacionista que tem
como principal preocupação a variação linguística que ocorre segundo o meio social no
qual o indivíduo está inserido. É importante ressaltarmos que um dos primeiros estudiosos
a desenvolver um trabalho dentro dessa perspectiva de pesquisa foi o americano William
Labov, o qual “apresentou uma metodologia, tendo como objeto de estudo a fala,
observando seu contexto e indicando ser possível sistematizar o aparente caos linguístico”
(SALGADO, 2009, p. 96).
A partir daí, surgia a Teoria da Variação Linguística cuja principal evidência é
que a língua não é homogênea, a língua em sua essência varia e, portanto, podemos
concluir que existem diversas possibilidades de usos linguísticos em uma mesma língua.
Dessa forma, seguindo os pressupostos estabelecidos por Labov (apud MOLLICA;
BRAGA, 2003), a variação constitui fenômeno universal e pressupõe a existência de
formas linguísticas alternativas denominadas variantes.
Essas variantes podem permanecer estáveis num sistema, durante um período
curto de tempo ou até por séculos, ou podem sofrer mudança. Quando isso acontece, uma
das variantes desaparece, prevalecendo outras formas linguísticas. Vale ressaltarmos que
nem sempre quando há variação, necessariamente, haverá mudança, porém, para que haja
mudança é necessário haver variação.
As variantes, segundo Mollica e Braga (2003, p. 11), seriam “formas alternativas
que configuram um fenômeno variável, tecnicamente chamado de variável dependente”
que, para Labov, são ainda diferentes formas de se dizer a mesma coisa.
Destacamos que o termo variável pode tanto se referir ao fenômeno em variação,
o que denominamos variável dependente, quanto aos grupos de fatores que podem
137

condicionar a variação, que chamamos de variáveis independentes. Monteiro (2000, p.


58) afirma que “as regras variáveis se aplicam sempre quando duas formas estão em
concorrência num mesmo contexto e a escolha de uma depende de uma série de fatores,
tanto de ordem interna ou estrutural como de ordem externa ou social”. Nesse sentido,
dentro de um estudo, caberia ao próprio pesquisador definir sua variável dependente, que
pode ser binária – composta por duas variantes – ou eneária – composta por três ou mais
variantes.
Destacamos que, como este trabalho tem base sociolinguística, analisamos nosso
objeto de estudo considerando-o na perspectiva de variável dependente considerada
binária, pois ponderamos duas variantes, a saber: i) os fonemas /d/ e /t/ diante dos
contextos fonológicos /i/ e /e/ como não palatal e ii) os fonemas /d/ e /t/ diante dos
contextos fonológicos /i/ e /e/ como palatal, ambas verificadas na fala dos informantes do
município de Pinheiro-MA.
Destacamos que Aragão (1999) chama atenção para o fato de o conhecimento
dessas variações poderem ajudar no aprofundamento das análises linguísticas e no melhor
conhecimento das línguas, apesar de que, em algumas áreas que lidam com a descrição
linguística, como a Dialetologia e a Sociolinguística, há a necessidade de se valorizar
ainda mais as variantes regionais e sociais.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E RESULTADOS PRELIMINARES

Considerando que o nosso corpus, constituído por dados de fala do município de


Pinheiro, foi extraído do banco de dados do Projeto ALiMA, julgamos necessário
descrever, mesmo que resumidamente, a metodologia utilizada por esse Projeto.
O projeto ALiMA apoia-se em procedimentos metodológicos da geografia
linguística, método por excelência da Dialetologia, e se insere na categoria dos atlas
linguísticos de terceira geração (cf. CARDOSO, 2010). O Projeto conta com uma rede de
pontos linguísticos formada por 16 municípios maranhenses40.
No total, p projeto ALiMA teve 72 informantes que atenderam ao seguinte perfil:
pessoas de ambos os sexos, nascidas e criadas na localidade investigada, distribuídas
equitativamente em duas faixas etárias – 18 a 30 anos e 50 a 65 anos – e de dois níveis de
escolaridade – apenas fundamental (incompleto), nas localidades do interior, e
fundamental (incompleto) até a antiga 6ª série e superior, nas capitais (RAMOS, ROCHA
e BEZERRA, 2006).

3.1 LÓCUS DA PESQUISA: PINHEIRO

40
Inicialmente, foram selecionados 18 municípios para compor a rede de pontos do ALiMA. Entretanto,
no decorrer da pesquisa, a coordenação do ALiMA decidiu excluir duas localidades – Maracaçumé
(MA06), porque já estava incluso na região compreendida por Turiaçu, e Santa Luzia (MA15), por se tratar
de um município mais novo, criado com o desmembramento de Pindaré-Mirim, espaço geográfico já
contemplado pelo ponto MA16, correspondente a Bacabal.
138

A figura abaixo mostra, via satélite, a localização do lócus de nossa pesquisa.

Figura 1 – Território da pesquisa.

Fonte: Google Maps (2020).

Pinheiro é um município do estado do Maranhão, localizado na microrregião da


Baixada Maranhense, mesorregião Norte Maranhense. O município tem
aproximadamente 82.000 habitantes, segundo estimativa prevista do IBGE para o ano
2017, e área de 1.559 km².
Originou-se de uma fazenda, fundada pelo Capitão-Mor Inácio José Pinheiro que,
pela ausência de pastagens em Alcântara, onde era estabelecido, buscou um local que
melhor atendesse às necessidades do rebanho. Após percorrer a região por vários dias,
encontrou uma vasta planície, apresentando grande lago e, mais ao longe, espessa mata.
De imediato, ali se fixou, providenciando o deslocamento do gado e de pessoal. Com a
influência de outros fazendeiros teve início o povoamento. Os vaqueiros aglomerados
desenvolviam, paralelamente, agricultura de subsistência na orla da mata, gerando sérios
problemas, que foram solucionados após intervenção governamental.
Distrito criado com a denominação de Pinheiro, pela lei provincial nº 370, de 26
de maio de 1855, subordinado ao município de Guimarães. Elevado à categoria de Vila
com a denominação de Pinheiro, pela lei provincial nº 439, de 03 de setembro de 1856,
desmembrado de Guimarães. (BIBLIOTECA ONLINE-IBGE/SA).

3.2 PERFIL DOS INFORMANTES


139

Para a identificação do perfil dos informantes que compõem nosso corpus, e


observando as questões éticas, seguimos o mesmo padrão de codificação adotado pelo
ALiMA.
Nossa amostra é composta por 04 inquéritos com pessoas de ambos os sexos,
nascidas e criadas na localidade, distribuídas equitativamente em duas faixas etárias -18
a 30 anos e 50 a 65 anos e que tenham apenas o nível fundamental (incompleto).
O Quadro 01 apresenta o perfil dos nossos informantes. Assim, na coluna código
do informante, as letras iniciais correspondem à sigla do Estado, seguida pelo número
atribuído à localidade, separado por uma barra diagonal com o número que representa o
perfil do entrevistado: 1 e 2, referem-se aos entrevistados da faixa etária I (18 a 30 anos),
e 3 e 4, aos da faixa etária II (50 a 65 anos); os números ímpares indicam o sexo
masculino, e os pares, o feminino. Todos os informantes possuem o Ensino Fundamental
até a 6ª série.

QUADRO 01: Perfil dos informantes deste estudo.

CÓD. FAIXA
LOCALI- ESCOLA
DO ETÁRIA/IDADE SEXO
DADE -RIDADE
INFOR.
MA1/1 FI EF Masculin
o
MA 3 MA1/2 FI EF Feminino
(Pinheiro) MA1/3 FII EF Masculin
o
MA1/4 FII EF Feminino
Fonte: Elaborado pelas autoras desta pesquisa.

3.3 INSTRUMENTO

Para efeito deste trabalho, selecionamos 15 questões das 159 que contém o QFF
do ALiMA. A seleção dessas questões decorre do fato de elas contemplarem perguntas
que apresentam palavras com os fonemas /d/ e /t/ diante de /i/ e de /e/, objeto de nosso
estudo. No Quadro 02, podemos visualizar melhor as 15 perguntas selecionadas.

QUADRO 02: Questões selecionadas do QFF do ALiMA.

QUESTÃO PALAVRA PERGUNTA


... aquilo assim (mímica), onde se colocam objetos em casa
03 PRATELEIRA (latas de mantimentos na cozinha, enfeites na sala...) ou
produtos para vender nos supermercados, mercearias, etc.?
06 TESOURA ... o objeto com que se corta tecido?
26 LIQUIDIFICADOR ... um aparelho que é usado para fazer vitaminas, suco, etc.?
TOMATE ... aquilo vermelho que vende na feira e que se usa para
30
preparar o molho do macarrão?
140

ELEFANTE ... um animal grande que sempre se vê em circo, tem uma


49
tromba assim (mímica)?
55 NOITE Quando fica tudo escuro e as pessoas vão dormir é a _____?
56 DIA E depois da noite, o que é que vem?
62 TARDE Qual é o contrário de cedo?
INOCENTE Quando um indivíduo é acusado, mas ele não praticou aquele
104
crime, se diz que ele é o quê?
Uma pessoa lhe conta um fato que você/ o (a) senhor (a) acha
106 MENTIRA que não é verdade. Você /o (a) senhor (a) diz que é uma
_____?
116 DENTE E isto? Apontar.
131 TIO O que é que o irmão de seu pai ou de sua mãe é seu?
PRESENTE Quando uma pessoa faz aniversário, o que é que se costuma
145
dar a ela, que vem embrulhado?
150 PERDIDA Quando não se acha uma coisa, ela fica___?
HÓSPEDE Em uma pensão, um hotel, as pessoas de outros lugares que
157
chegam e ficam lá algum tempo são o quê?
Fonte: Elaborado pelas autoras desta pesquisa com base nos dados do ALiMA.

4. O QUE DIZEM OS DADOS DO ALiMA SOBRE A DESPALATALIZAÇÃO


NO MUNICÍPIO DE PINHEIRO

Para verificarmos o número de ocorrências totais quanto à realização


despalatalizada dos fonemas /d/ e /t/, no município de Pinheiro, utilizamos o programa
computacional GoldVarb X (SANKOFF; TAGLIAMONTE; SMITH, 2005), que é um
programa próprio para análise de regras variáveis. Usamos esse programa, pois nos
baseamos na concepção de que a língua é um sistema heterogêneo e porque a variação
que observamos não foi aleatória, mas condicionada por um conjunto de regras
constituído por fatores internos e externos à língua. Os resultados que veremos seguem
rodada binária de dados, tendo como regra de aplicação o emprego da variante
despalatalização.
Mostramos, na Tabela 1, as ocorrências das variantes despalatalização e
palatalização, registradas nos quatro inquéritos realizados na localidade investigada:

Tabela 1 – Distribuição geral dos dados.


Variantes Nº de Ocorrências %
Palatalização 39 65%
Despalatalização 13 21,7%
Não se aplica 8 13,3%
Total 60 100%
Fonte: Elaborada pelas autoras desta pesquisa.

Depois de rodados os dados no programa GoldVarb X, verificamos que das 60


realizações encontradas na fala dos informantes de Pinheiro, 39 foram de palatalização
141

dos fonemas /d/ e /t/, o que representa um percentual de 65%, contra apenas 13 realizações
para a despalatalização dos fonemas em questão, totalizando 21,7%.
Além disso, tivemos 08 realizações que não se aplicaram nem à palatalização nem
à despalatalização, por não responderem ao objeto em análise ou simplesmente pela
ausência de resposta. A essas realizações, nomeamos como Não se aplica. Veja os
exemplos a seguir retirados do corpus analisado.

Exemplo (1)
INQ. – ... um aparelho que é usado para fazer vitaminas, suco, etc.?
INF. –  (MA03/1)

Exemplo (2)
INQ. – Quando um indivíduo é acusado, mas ele não praticou aquele crime,
se diz que ele é o quê?
INF. – Diz que ele é ladrão, num é não?
INQ. – Não, ele não fez, as pessoas não estão dizendo que ele é ladrão não.
Ele não fez aquilo que eles pensam que ele fez, se diz que ele é?
INF. – Num é, num é, num foi acusado, então num é ladrão.
INQ. – Pois é, se ele não é ladrão, então o juiz vai mandar ele de volta pra
casa, porque ele não é?
INF. – Ele foi dispensado, num é?
INQ. – Ele não fez quilo que estão acusando, então eu digo que ele é?
INF. – Ele é, é, é, as veze ele é... tá livre num é? Despacha, manda embora
INQ. – Que ele é?
INF. – Uma boa pessoa, num é? Que o ladrão mesmo, ninguém ia dizer que
é uma boa pessoa né? Agora quando a pessoa faz aquilo que num é certo, ele
fez de errado e às vezes num tá errado, mas ele tá livre num é? E as vezes
pode até mandar ele ir embora e pedir pra ele num fazer mais, num é?
(MA03/3)

Observamos que, no primeiro exemplo, o informante (MA03/1) não pronuncia


adequadamente o item requerido na palavra “liquidificador”, o que torna inviável a
verificação da palatalização/despalatalização do fonema /d/ antes do contexto fonológico
/i/. Já no segundo exemplo, o informante (MA03/3) não consegue responder ao item
solicitado, no caso a palavra “inocente”. Informamos que para tanto, tivemos o cuidado
de analisar as faixas que tratam da retomada das questões.
De acordo com a Tabela 1, constatamos que a despalatalização, nessa localidade,
já não é tão recorrente quanto acreditávamos ser. Como o objetivo geral deste trabalho foi
investigar a despalatalização dos fonemas /d/ e /t/ diante de /i/ e de /e/, no município
maranhense de Pinheiro, a partir dos dados obtidos, constatamos que há uma oscilação
entre a despalatalização e a palatalização com tendência à extinção da variante
despalatalizada, visto que a variante inovadora para esse município, isto é, a palatalizada,
é a mais preferida entre os falantes, sobretudo, mais jovens, e que seu uso vem ganhando
cada vez mais o lugar da variante despalatalizada.
142

Como o enfoque da nossa pesquisa é uma análise sociolinguística da realização


dos fonemas /d/ e /t/ diante de /i/ e de /e/, mostramos abaixo as realizações desses
fenômenos considerando os fatores sociais e linguísticos.

Tabela 2 – Fatores sociais.


Grupo de Fatores Fatores Ocorrências/Total Peso Relativo
Mulher 9/52 0.31
Sexo
Homem 4/52 0.70
Range: 0.39

Faixa I 5/52 0.39


Faixa Etária
Faixa II 8/52 0.61
Input: 0.24 Significância: 0.24 Range: 0.22
Fonte: Elaborada pelas autoras desta pesquisa.

Destacamos que para a análise dos dados acerca do fenômeno da variante


despalatalização no município de Pinheiro, elencamos somente dois fatores sociais – sexo
e faixa etária –, uma vez que, por se tratar de rodadas binárias não teríamos como
selecionar o fator localidade, por termos somente um lócus de pesquisa, tampouco o fator
escolaridade, visto que todos os informantes considerados nesta pesquisa têm o
fundamental incompleto.
Cabe ressaltarmos, também, que, para obtermos o Peso Relativo (PR)41 dos
fatores sociais e dos fatores linguísticos, tivemos que fazer outra rodada estatística,
porque na rodada geral dos dados tivemos um nocaute. Por conta disso, fez-se necessária
a exclusão do fator Contexto Fonológico - as ocorrências T Antes de /i/ átono, que não
apresentaram ocorrências de despalatalização, bem como a exclusão da variante Não se
aplica.
Desta forma, procedendo às análises, verificamos que de acordo com a nova
rodada estatística, os dois fatores sociais examinados apresentam PR que favorecem a
variante tida como regra de aplicação e mostram-se relevantes para as nossas discussões.
No fator sexo, verificamos que os informantes do sexo masculino tendem a fazer
mais uso da variante Despalatalização com PR (0.70), ao passo que as mulheres estão
mais voltadas à utilização da variante Palatalização tendo PR (0.31). Podemos melhor
ratificar essa evidência quando analisamos o resultado do range42 dos PR’s que foi de
0.39. Esses números indicam que a variante Despalatalização, apesar de ser a menos

41
O peso de um fator é calculador pelo GoldVarb X, com base em um conjunto de dados, que indica o
efeito desse fator sobre o uso da variante investigada nesse conjunto.
42
A respeito do range, convém dizer que “A força [de uma variável] é medida pelo range, que é então
comparado com os ranges dos outros grupos de fatores significativos. O range é calculado subtraindo-se o
peso mais baixo mais baixo do peso mais alto. Quando estes números são comparados para cada um dos
grupos de fatores de uma análise, (a diferença de) número mais alto identifica a restrição mais forte. O
número mais baixo identifica a restrição mais fraca [...] range (ou a magnitude do efeito) nos permite situar
um grupo de fator em relação a outro. Ele também pode ser usado para comparar a gramática variável dos
traços linguísticos entre as análises” (TAGLIAMONTE, 2006, p.242)
143

empregada no município de Pinheiro, ainda é a mais utilizada entre os falantes do sexo


masculino e a menos aceita pelos falantes do sexo feminino.
Sendo assim, os resultados preliminares da nossa pesquisa contrariam o que é
postulado pela Sociolinguística Variacionista, quando nos diz que são as mulheres que
tendem a usar a forma padrão com mais frequência que os homens. Cezario e Votre (2008,
p. 149) reforçam ainda que por conta dessa cobrança social, ela teria maior preocupação
em reproduzir as formas linguísticas consideradas de prestígio, dentro de sua comunidade
de fala”.
Nas situações de mudança que consistem nos processos de implementação de uma
variante não-padrão, as mulheres preferem as formas conservadoras, enquanto que os
homens lideram o processo (OLIVEIRA e SILVA; PEREIRA, 1998). Em nosso estudo,
de acordo com os dados, percebemos uma situação contrária, isto é, de a variante ser
prestigiada, os homens estarem na vanguarda. Portanto, podemos inferir que o avanço de
uma variante inovadora, por falantes do sexo masculino ou feminino, parece estar na
dependência do seu status social na região de pesquisa.
No fator Faixa Etária, verificamos que os informantes da Faixa Etária II tendem
a fazer mais uso da variante Despalatalização com PR (0.61), ao passo que os da Faixa
Etária I estão mais voltados à utilização da variante Palatalização tendo PR de (0.39).
Podemos melhor ratificar essa evidência quando analisamos o resultado do range dos
PR’s que foi de 0.22. Esses números indicam que a variante Despalatalização, apesar de
ser a menos utilizada no município de Pinheiro, ainda é a mais utilizada pelos falantes da
Faixa Etária II e a menos aceita pelos falantes da Faixa Etária I, o que corrobora com a
ideia apresentada por Tarallo (2002) quando afirma que “Para atestar a mudança em
progresso [...] é necessário que as variantes sejam correlacionadas aos diversos grupos
etários: maior incidência nas faixas mais jovens e menor frequência nas mais velhas”
(TARALLO, 2002, p. 65-66). Sobre isso, cabe apresentarmos a discussão realizada por
Naro (2004, p. 43):

os falantes mais velhos costumam preservar as formas antigas, o que pode


acontecer também com as pessoas mais escolarizadas, ou das camadas da
população que gozam de maior prestígio social, ou ainda de grupos sociais
que sofrem pressão social normalizadora, a exemplo do sexo feminino de
maneira geral, ou das pessoas que exercem atividades socioeconômicas que
exigem uma boa apresentação para o público.

As análises de regra variável realizadas observam a mudança em tempo aparente,


isto é, mediante análise da aplicação da regra por grupo etário. A conclusão geral é a de
que falantes jovens palatalizam mais do que falantes mais velhos, sugerindo que a
variante Palatalização tende a progredir na comunidade do município de Pinheiro, uma
vez que a tendência natural é que a variante Despalatalização deixe de ser empregada
com o passar dos anos por ser utilizada por pessoas mais idosas. Uma explicação para o
efeito condicionador do grupo etário mais jovem, como já sugerido por Battisti; Dornelles
Filho (2012), está no fato de os jovens de Pinheiro terem, hoje, mais mobilidade
territorial: deslocarem-se com mais frequência a centros urbanos maiores para estudar,
144

trabalhar e, eventualmente, para atividades de lazer, mas retornam a Pinheiro, onde


seguem residindo. Nisso, aumentam as oportunidades de interação com pares de outras
comunidades, tornando sua fala suscetível a inovações, como a palatalização.

Além dos fatores sociais, consideramos igualmente importante investigar os


fatores linguísticos, visto que esses também nos fornecem dados preciosos para a análise
da variante Despalatalização. Dessa forma, selecionamos para esta pesquisa os seguintes
grupos de fatores, conforme Tabela 3: i) Contexto Fonológico - D Antes de /e/ átono, D
Antes de /i/, T Antes de /e/ átono, T Antes de /i/ átono, este último, excluído da rodada
estatística como já fora colocado anteriormente; ii) Posição do Contexto Fonológico –
Início, Meio e Fim.

Tabela 3 – Fatores linguísticos.


Grupo de Fatores Fatores Ocorrências/Total Peso Relativo
D Antes de /e/ átono 5/52 0.77
Contexto Fonológico D Antes de /i/ 5/52 0.20
T Antes de /e/ átono 3/52 0.55
Range: 0.57
Início 1/52 0.89
Posição do Contexto
Meio 4/52 0.83
Fonológico
Fim 8/52 0.15
Input: 0.24 Significância: 0.00 Range: 0.74
Fonte: Elaborada pelas autoras desta pesquisa.

No fator Contexto fonológico, verificamos que a variante Despalatalização foi


favorecida pelo contexto D Antes de /e/ átono (em palavras como tarde) com PR (0.77),
seguida do contexto T Antes de /e/ átono (em palavras como tesoura, prateleira, presente,
tomate,) que apresentou PR (0.55) e, por fim, pelo contexto D Antes de /i/ (em palavras
como dia, liquidificador, perdida) com PR (0.20).
O contexto T Antes de /i/ foi excluído por ter dado nocaute, não apresentando
ocorrências de despalatalização (em palavras como tio, mentira). Cabe ressaltarmos que
selecionamos esses quatro contextos fonológicos porque, nas nossas primeiras
observações da fala dos municípios da Baixada Maranhense, conseguimos detectar o uso
da variante em questão e, após as análises dos dados rodados no programa GoldVarb X,
ratificamos que a variante Despalatalização, no município de Pinheiro, está sendo
predominantemente empregada em função do contexto fonológico D Antes de /e/ átono,
podendo ser ratificado ao observarmos o range dos PR’s que foi de 0.57 e que, nesse
município, os dados investigados direcionam que não ocorre despalatalização diante do
contexto fonológico T Antes de /i/.
No fator Posição do Contexto Fonológico, nossa suposição inicial, de que a
aplicação da regra de despalatalização seria mais frequente na posição final das palavras,
foi refutada com os dados obtidos após a rodada estatística no programa. Segundo os
dados extraídos do programa GoldVarb X, a posição do contexto fonológico que mais
favorece a variante Despalatalização no município de Pinheiro é a posição de início da
palavra (palavras como dia, tesoura) como observado no PR (0.89), indicado na Tabela
3, em Posição do Contexto Fonológico, seguida da posição de meio da palavra (em
145

palavras como prateleira, liquidificador, perdida) com PR de (0.83) e, por fim, a posição
de final da palavra (em palavras como tomate, tarde, presente) com o PR (0.15), bem
abaixo do que esperávamos para este fator.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As variações linguísticas nem sempre são bem aceitas por uma parcela da
sociedade e, infelizmente, atitudes discriminatórias são lançadas, o que corrobora o
chamado preconceito linguístico. O fenômeno da despalatalização é um dos alvos desse
preconceito, pois, muitas vezes, não é entendido como riqueza cultural e torna-se alvo
dessas atitudes.
Bagno (1999) nos fala da necessidade de estudos científicos e de uma abordagem
educacional em favor de uma educação linguística voltada para a inclusão social e para o
reconhecimento e valorização da diversidade sociolinguísta brasileira. Enfatizamos, nesse
sentido, que pesquisas como esta, além de contribuir para o entendimento de fenômenos
linguísticos, podem ajudar a esclarecer melhor as ocorrências da língua e diminuir a visão
errônea de que muitos falantes têm sobre a variação linguística.
Em relação à análise que foi realizada neste trabalho, à luz da Teoria da Variação,
constatamos que tanto os fatores linguísticos quanto os extralinguísticos exerceram
influência na despalatalização/palatalização dos fonemas /d/ e /t/ no município de
Pinheiro, no estado do Maranhão. Desse modo, chegamos às seguintes conclusões: a)
quanto ao fator Sexo, os homens despalatalizaram mais do que as mulheres; b) quanto ao
fator Faixa Etária, os informantes mais idosos foram os que mais despalatalizaram; c) no
grupo de fatores Contexto Fonológico, o contexto D Antes de /e/ átono foi o contexto que
mais favoreceu a despalatalização dos fonemas /d/ e /t/; d) quanto ao fator Posição do
Contexto Fonológico, a posição do contexto fonológico que que mais favoreceu a
despalatalização foi a posição de início da palavra.
Assim, concluímos que a despalatalização dos fonemas /d/ e /t/ diante dos
contextos fonológicos /i/ e /e/ no município de Pinheiro, é um fenômeno variável. Após
análise apurada da aplicação da regra variante, os resultados estatísticos nos permitiram
inferir que a regra variável de despalatalização parece estar sendo mais produzida entre
os falantes do sexo masculino e da II faixa etária, o que nos dá amostras de um possível
enfraquecimento e posteriormente extinção dessa variante em questão, pois são os
falantes mais jovens, da I faixa etária, que parecem conduzir a variante palatalização na
localidade. É importante salientarmos que os resultados aqui apresentados devem ser
encarados como tendências, dada à limitação de nosso corpus.

6. REFERÊNCIAS

ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. A variação fonético-lexical em Atlas


Linguísticos do Nordeste. Revista do Gelme, ano 1, n. 2, 1999.
146

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TARALLO, Fernando. A pesquisa Sociolinguística. São Paulo: Ática, 2002.
148

11
O ENSINO DO LÉXICO DA LÍNGUA PORTUGUESA PARA NATIVOS
DIGITAIS

Alba Catarina Gama Costa Penha43


Veraluce da Silva Lima44

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O objetivo deste artigo é refletir sobre a Linguística Aplicada e sua contribuição


ao ensino de Língua Portuguesa para os nativos digitais, porém, fazemos em primeira
mão uma contextualização do ensino de língua materna e em seguida, discutimos as
estratégias que podem ser desenvolvidas para que a escola possibilite a construção do
conhecimento da língua por parte de aluno, sinalizando algumas mudanças metodológicas
necessárias para que atendam às expectativas dessa nova geração.
Para início de conversa, convém ressaltar que a Linguística Aplicada não é mais
um ramo da Linguística, embora nos deparemos ainda com alguns textos que afirmam
esta premissa, como podemos observar no trecho do texto Linguística e ensino:

...ramo da linguística que se dedica ao estudo de vários aspectos relacionados


à língua em situações de comunicação e interação, tais como o ensino de língua
materna e estrangeira, as crenças, os valores e a questão do processo de
construção de identidades em contextos institucionais variados, entre outros
aspectos. (OLIVEIRA e WILSON apud MARTELOTTA,2011, p.235) – grifo
nosso

Não obstante, devido sua larga interdisciplinaridade, a Linguística Aplicada é


considerada uma ciência social, de base positivista ou interpretativista (MOITA LOPES,
1996). A este respeito, Barros e Franco de Camargo (2016, p. 54) afirmam que:

A interdisciplinaridade da própria Linguística Aplicada mostra que ela não se


enquadra em padrões pré-definidos – inclusive, ela não parou no tempo, pois
tem investigado a linguagem atual e seus usos de diversas formas e em diversos
campos, a fim de melhor compreender a linguagem de grupos sociais que
vivem à margem da sociedade e vêm se expandindo e ganhando força
atualmente.

Outrossim, a sociedade atual a qual a autora se refere atravessou e atravessa


intensas transformações, em um ritmo cada vez mais acelerado e, que, sob a influência da
revolução tecnológica e da mídia, é intitulada com “sociedade do conhecimento”

43
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras - PGLetras da Universidade Federal do Maranhão
- UFMA. e-mail: albacgcpenha@hotmail.com
44
Professora do Mestrado Acadêmico em Letras da Universidade Federal do Maranhão
149

(BESSA, NERY e TERCI, 2003), porém o grande desafio é facilitar o encontro entre o
conhecimento e o aprendiz.
Este aprendiz, mais precisamente o da educação básica, atualmente é considerado
um nativo digital, pois nasceu após a disseminação tecnológica e que, embora possua
facilidade no manuseio das ferramentas digitais disponíveis, necessita de mediação no
processo de construção do conhecimento. Consoante a isto, David Barton e Carmen Lee
(p.23, 2015) afirmam que “a ideia de que os jovens são predominantemente hábeis no uso
de novas tecnologias e de que podem ser considerados “nativos digitais” já existe há
algum tempo (PRENSKY, 2001)” .Então, resta-nos desenvolvermos metodologias de
ensino de língua portuguesa que levem em consideração esta realidade e que possibilitem
uma aprendizagem da língua eficaz.
Outro ponto que deve ser considerado na escolha de metodologias inovadoras de
ensino de língua é a necessidade de adaptação do conteúdo à realidade de um determinado
grupo de alunos, pois o contexto social de uma turma difere de outras. Os livros, embora
sejam recursos didáticos de fundamental importância no processo de construção do
conhecimento, não são, por si só, suficientes, pois não se aproximam da realidade dos
diferentes grupos sociais e não correspondem a todas as necessidades cognitivas destes
grupos, como podemos comprovar no texto abaixo:

um material que, em geral, propõe uma série de instruções para o


procedimento do professor, desconsiderando maiores especificidades
envolvidas na questão do ensino-aprendizagem, como a região onde se localiza
a escola, o perfil do aluno e do professor, as condições histórico-culturais que
cercam e marcam a experiencia com a linguagem, entre muitas outras.
(OLIVEIRA e WILSON apud MARTELOTTA, 2018, p.237)

Dessa forma, levando em consideração a atual configuração social, que está cada
vez mais envolvida com a tecnologia, é de fundamental importância a utilização de
métodos que transformem a educação em uma atividade inovadora de forma que o aluno
participe e se identifique com o processo de aprendizagem. Esta necessidade foi objeto
de discussão por Bacich, Tanzi & Trevisani (2015), na obra Ensino Hibrido, como
podemos ver no texto abaixo:

Crianças e jovens estão cada vez mais conectados às tecnologias digitais,


configurando-se como uma geração que estabelece novas relações com o
conhecimento e que, portanto, requer que transformações aconteçam na escola.
(BACICH; TANZI NETO; TREVISANI, 2015, p.47)

Estas transformações, as quais os autores se referem, devem estar direcionadas às


metodologias adotas pelas escolas e aos objetivos traçados pelo professor na execução de
um conteúdo, assim como também devem contribuir para que o aluno encontre sentido
naquilo que está estudando, acredita-se que desta forma, a aprendizagem será mais
motivadora, significativa e produtiva.
150

Para tanto, objetivamos também discutir neste artigo, perspectivas metodológicas


inovadoras que envolvam os nativos digitais na construção do conhecimento de sua língua
materna.
Primeiramente, apontaremos os desafios do ensino de Língua Portuguesa na escola
que ainda apresenta características do século passado em oposição ao aluno de hoje,
considerado um nativo digital. Num segundo momento, discorreremos sobre o ensino
híbrido que, aliado a metodologias inovadoras, pode contribuir para uma aprendizagem
significativa e eficaz da língua portuguesa para esta sociedade de nativos digitais.

2. OS DESAFIOS DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA UMA


SOCIEDADE DIGITAL

A linguagem é um fator importante para o desenvolvimento mental do ser humano


em seu estágio inicial de crescimento, por meio dela, podemos organizar, planejar e
externar pensamentos, ao passo que possibilita, também, a interação social e aquisição de
informações através das práticas comunicativas. Vygotsky (1996), em suas publicações,
contribuiu muito para as pesquisas sobre ensino e aprendizagem por meio da linguagem
e postulava que o ser humano dá sentido ao mundo pela interação cotidiana com as
pessoas, desde o nascimento.
Dessa forma, é necessário exercitar a linguagem por meio de diversas atividades,
para que se desenvolva o saber linguístico constantemente. Isto posto, é necessário
ponderar a língua vernacular apresentada pelos alunos, bem como convencê-los que o
domínio desta é fundamental para as diversas práticas socias que envolvem a
comunicação e o acesso às informações, para que assim seja possível a defesa de um
ponto de vista e a construção de diferentes visões de mundo.
Ademais, a Língua Portuguesa não é apenas uma área do saber, mas também a
língua materna de todos os brasileiros, com exceção das comunidades de surdos que
possuem a Libras como língua materna e de algumas comunidades indígenas por
possuírem seu próprio dialeto. Dessa forma, o ensino de língua portuguesa deve levar em
consideração o uso cotidiano da língua como ponto de partida para a aquisição da língua
ensinada na escola.
Sabendo disso, a escola, ao longo do tempo, vem se encarregando de transferir os
saberes linguístico aos seus alunos, porém estes, na maioria das vezes, não acham sentido
nesta aprendizagem. Uma das causas do fracasso em relação ao ensino de língua
portuguesa é forma descontextualizada com que repassado aos alunos. As escolas
preocupam-se em ensinar as regras da gramatica normativa, sem apresentar uma
motivação para essa aprendizagem. A este respeito, Malfacini (2015, p 46) considera que:

Mesmo no Século XXI, é comum observarmos, nas escolas, uma prática


pedagógica de Língua Portuguesa voltada exclusivamente para o ensino da
gramática normativa, como um estudo prescritivo. Nele predomina uma visão
analítica da língua, sob a qual estudamos as partes segmentadas de um todo
chamado Gramática, com ênfase para Fonologia, Morfologia e Sintaxe, por
151

meio de frases soltas, descontextualizadas. Um estudo realizado na cidade de


São Paulo (NEVES, 2001), empreendido com 170 professores dos ensinos
fundamental e médio, por exemplo, atesta que 62,67% das aulas de Português
são voltados para exercícios de reconhecimento de classes de palavras e de
funções sintáticas.

Esta forma de ensinar a qual a autora se refere destoa do dinamismo inato dos
nativos digitais. É um erro, quiçá um engodo, impor as práticas pedagógicas de ensino de
Língua Portuguesa usadas no século passado para esta nova geração, pois para que os
conteúdos sejam assimilados e façam sentido, o aluno atual precisa participar ativamente
do processo de construção deste conhecimento. Barton e Lee (2015, p. 167) fazem uma
importante ressalva no que diz respeito ao aprendizado atual:

As pessoas são participantes ativas em sua aprendizagem. Elas têm seus


próprios objetivos individuais localizados num ambiente cultural, e seu
aprendizado é dotado de propósito e autodirigido. Elas têm suas próprias
motivações e constroem seus próprios sentidos e suas conexões com seu
conhecimento prévio. As pessoas assumem diferentes papéis e identidades
dentro de práticas; e mudar a maneira como participam de determinada prática
pode ser uma forma de aprendizagem. (BARTON E LEE 2015, p. 167)

Essa mudança na construção do conhecimento, a qual os autores se referem, deve


acompanhar a transformação social advinda com a expansão da tecnologia digital, pois
percebemos que o ambiente escolar, principalmente a rede pública de ensino, ainda está
alheio ou incipiente na aquisição de novas condições de ensino-aprendizagem. Tal fato
destoa da realidade dos sujeitos que ali interagem, pois estes “levam a vida entrelaçando
recursos on-line e off-line.” (BARTON e LEE 2015, p. 237).
Considerando a inexistência da dicotomia on-line versus off-line no cotidiano dos
nativos digitais, é imperativo conectar o uso da tecnologia digital ao ensino da língua
portuguesa, utilizando, como exemplos de estratégias, o ensino híbrido por meio da
gamificação do ensino do léxico e dos espaços de interação da web 2.0, que correspondem
as redes sociais.
Desta forma, o ensino hibrido por meio da gamificação motiva o exercício da
linguagem, pois segundo Barton e Lee (2015, p. 243) “ao realizar alguma atividade de
escrita on-line, as pessoas leem mais e, principalmente, escrevem mais e estão mudando
a relação entre escrita e leitura.” Neste sentido, a linguística aplicada ao ensino de língua
materna avança em direção a “uma produção de conhecimentos que busque compreender
os usos sociais que se fazem da língua” (OLIVEIRA, 2012, p.07).
Esperamos, pois, que toda ciência direcionada para este campo do saber seja colocada
em prática para que tão logo possamos alcançar os objetivos esperados para o ensino de
língua materna.

3. O ENSINO HÍBRIDO DO LÉXICO NAS AULAS DE LÍNGUA


PORTUGUESA
152

No que diz respeito à Língua Portuguesa, a escola tem a missão de possibilitar ao


aluno o domínio da linguagem oral e escrita, pois esta é essencial para a participação
social efetiva do cidadão. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) afirmam que é
por meio da língua que “[...] o homem se comunica, tem acesso à informação, expressa e
defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo, produz conhecimento.”
(BRASIL, 1998, p. 21) Sendo assim, entendemos que a língua exerce papel fundamental
nas interações comunicativas cotidiana.
Levando em consideração a importância da aprendizagem efetiva da Língua
Portuguesa, percebemos a necessidade de obtenção de novas condições de ensino-
aprendizagem que sejam capazes de motivar os alunos a desenvolverem competências e
habilidades em relação ao uso da língua e não apenas prepará-lo para procedimentos
avaliativos tradicionais como por exemplo as avaliações escolares. É nesse sentido que o
uso da internet, por meio de aplicativos e das redes sociais entre outras virtualidades
podem vir a ser poderosos instrumentos de trabalho nas mãos dos professores na escola.
Em posse disso, as escolas de investimento e planejamento para concretizar o uso
destas virtualidades como metodologias ativas capazes de atrair os jovens a participarem
com mais entusiasmo da construção do conhecimento, fator relevante para um
aprendizado significativo da língua, como afirmam os PCNs

[...] o aluno só alcança a acomodação, ou seja, a fixação do conteúdo se estiver


motivado, interessado verdadeiramente na aula, quer por motivos
profissionais, quer por motivos pessoais. De outra forma, o aluno irá decorar
somente a matéria para uma prova, por exemplo, e em seguida irá esquecer.
(BRASIL, 1997)

Entretanto, para que haja o efeito esperado, é necessário cautela, planejamento e


comunicação aberta entre as partes envolvidas, que são: gestão da escola, educadores,
alunos e pais.
Uma proposta didática que está sendo utilizada em algumas escolas e que pode
possibilitar o uso de tecnologias digitais na construção do conhecimento é o ensino
hibrido. Esta proposta combina aprendizado on-line com o off-line¹, em modelos que
proporcionam momentos em que o aluno estuda sozinho, de maneira virtual, com outros
em que a aprendizagem ocorre de forma presencial, valorizando a troca de informações
em sala de aula. Lilian Bacich, Adolfo Tanzini e Fernando Trevisani discorrem sobre esta
metodologia da seguinte maneira:

No ensino hibrido, o estudante tem contato com as informações antes de entrar


em sala de aula. A concentração nas formas mais elevadas do trabalho
cognitivo, ou seja, aplicação, análise, síntese, significação avaliação desse
conhecimento que o aluno construiu ocorrem em sala de aula, onde ele tem o
apoio de seus pares e do professor. O fato de o estudante ter contato com o
material instrucional antes de adentar a sala de aula apresenta diversos pontos
positivos. (BACICH; TANZI NETO; TREVISANI, 2015, p.15)
153

O ensino hibrido acontece alicerçado em uma tríade composta por: alunos, objeto
do conhecimento e a prática educacional. Trocando em miúdos, o aluno é o sujeito da
ação de aprender, aquele que deve atingir os objetivos propostos. O segundo elemento, o
objeto do conhecimento, neste caso a Língua Portuguesa, com suas variações e
possibilidades de uso a depender do contexto comunicativo. E o terceiro elemento, a
prática educacional, diz respeito à organização da mediação entre o aluno e o objeto do
conhecimento. Para que esta mediação alcance os objetivos propostos e alie o uso da
internet, o professor deverá planejar atividades que aconteçam antes mesmo de o aluno
adentrar na sala de aula. É nesse contexto que podemos aliar ao ensino híbrido, a
gamificação e a interação na rede social Instagram como metodologias ativas de
aprendizagem do léxico da língua portuguesa.

3.1 A GAMIFICAÇÃO NO ENSINO DO LÉXICO

As metodologias ativas colocam o aluno no centro do processo de ensino-


aprendizagem, assim como proporcionam ao estudante a capacidade de refletir e
problematizar a realidade na qual está inserido tendo o professor como mediador e
facilitador de todo esse processo. Nesse percurso, há uma “migração do ‘ensinar’ para o
‘aprender’, o desvio do foco do docente para o aluno, que assume a corresponsabilidade
pelo seu aprendizado” (SOUZA; IGLESIAS; PAZIN-FILHO, 2014, p. 285). (DIESEL,
2017, p.273)
Colocar o aluno como corresponsável pelo seu aprendizado é uma tarefa que exige
engajamento e interesse por parte dele. Pensando nisso, estudiosos como Malone e Lepper
(1987), Lepper e Cordova (1996), Gee (2003); Shaffer (2006), Klopfer (2008) vêm
desenvolvendo estudos sobre o uso e elementos de jogos em todo o processo de
aprendizagem.

[...] os mecanismos encontrados em jogos funcionam como um motor


motivacional do indivíduo, contribuindo para o engajamento deste nos mais
variados aspectos e ambientes. Para os autores, o engajamento é definido pelo
período de tempo em que o indivíduo tem grande quantidade de conexões com
outra pessoa ou ambiente. (FADEL; ULBRITCH; BATISTA e VANZIN,
2017, p. 13)

Dessa forma, jogos podem ser capazes de promover experiências lúdicas que
despertem no aluno o interesse por determinado assunto promovendo uma aprendizagem
efetiva.
Percebemos que, ainda hoje, os livros didáticos de Língua Portuguesa como as
gramáticas ainda trazem atividades tradicionais de estudo do léxico, tais como: “sublinhe
os advérbios”, “circule os substantivos”, “pinte os adjetivos”. Por outro lado, existem
aplicativos em formato de jogos que tem o mesmo objetivo das atividades tradicionais
supracitadas, porém num formato mais engajador.
154

Atualmente, é possível encontrar vários jogos na área de Língua Portuguesa,


especialmente na área dos estudos lexicais. A gamificação tem se expandido bastante para
que a aprendizagem do léxico seja mais divertida e significativa.
Como exemplo de jogos destinados ao estudo do léxico temos:

Figura 1 – Combinando letras

“Combinando letras” (Figura 1) é um jogo que averigua se o participante conhece os


processos de formação de palavras da língua portuguesa. Dessa forma, para que o jogador
obtenha êxito no jogo, precisa ter conhecimento básico de morfologia derivacional.

Figura 2 – Palavras complicadas

“Palavras complicadas” (Figura 2) o participante precisa conhecer ou adivinhar o


significado da palavra para que ele progrida no jogo. Para este tipo de jogo, seria
interessante se a palavra viesse inserida em determinado contexto de uso para que essa
adivinhação fosse realizada, por meio de estratégias de inferências, pois palavras podem
assumir sentido díspares a depender da situação comunicativa.
155

O professor pode sugerir o jogo “Combinando letras”, por exemplo, antes da aula
sobre os processos de formação de palavras, conteúdo pertencente ao estudo do léxico,
mais precisamente à morfologia derivacional. Para que esta atividade componha uma das
etapas do ensino híbrido, deverá ser realizada em ambiente externo à sala de aula, ou seja,
em ambiente virtual antes do estudo do léxico ser iniciado presencialmente, pois desta
forma, o aluno poderá ter uma noção prévia do que irá aprender, além de ter um maior
interesse naquele conteúdo, garantindo seu engajamento e o seu protagonismo no
processo de aprendizagem.

3.2 A INTERAÇÃO COMUNICATIVA NA REDE SOCIAL


INSTAGRAM E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O ENRIQUECIMENTO DO
LÉXICO

Além do uso dos jogos, a interação nas redes sociais é muito produtiva para
práticas de ensino de língua, mas especificamente o ensino do léxico, haja vista que a
escrita é uma das atividades centrais nestes espaços. É fato que a linguagem da internet
contrasta com a norma padrão da língua ensinada nas escolas, porém é mister considerar
a importância deste tipo de linguagem no ensino de língua materna, pois as pessoas têm
apresentado traços típicos da linguagem on-line na comunicação cotidiana.
A título de exemplo, os usuários da rede social Instagram vêm apresentando
consideravelmente em suas realizações linguísticas (BAGNO, 2000) o uso de
anglicismos, principalmente por meio de hashtags. Esta realidade extrapolou os espaços
da web 2.0 e se faz presente nas interações comunicativas face a face, haja vista que não
há dicotomia on-line versus off-line (BARTON e LEE, 2015, p. 237). Por meio deste
fenômeno, podemos ensinar ao aluno aspectos da neologia lexical e morfologia
derivacional da língua portuguesa, mostrando assim, como a língua é dinâmica e
produtiva. Como exemplo

Figura 3 – Anglicismo na linguagem online

Fonte: Intagram
156

Figura 4 – Anglicismo na linguagem online

Fonte: Intagram

Não restam dúvidas que a linguagem contida nos prints acima é característica do
ambiente online, mais precisamente do Instagram, tanto pelo uso das hashtags, como pelo
uso frequente de anglicismos. Na figura 3, os anglicismos shooting, takeover e stories
estão perfeitamente entrelaçados na legenda escrita em língua portuguesa. Pelo contexto,
podemos inferir que shooting significa ensaio fotográfico; takover é utilizada quando
alguém assume a conta de Instagram de outra pessoa, temporariamente; e stories são as
postagens de imagens, vídeos ou textos que somem em 24 horas no Instagram.
Neste espaço, podemos perceber a dinamicidade e produtividade linguística por
meio dos neologismos lexicais advindos de anglicismos que permeiam todo o processo
comunicativo nas legendas. Desse modo, o aluno, inconscientemente, faz uso de muitas
inovações da língua, assim como cria palavras sem saber que há uma lógica e uma
motivação por trás das suas escolhas.
Portanto, mostrar na prática, por meio das realizações linguísticas que os próprios
alunos produzem no Instagram, noções do processo de formação de palavras e/ou da
importação destas para a língua em uso poderá promover um aprendizado mais
significativo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, não há como negar a importância de “mobilizar práticas da


cultura digital, diferentes linguagens, mídias e ferramentas digitais para expandir as
formas de produzir sentidos...” (BRASIL, 2017, p. 490). Neste sentido, muitas pesquisas
em Linguística Aplicada para o ensino de língua portuguesa estão buscando metodologias
que utilizam a internet e suas virtualidades com o propósito de atrair o nativo digital para
o processo de ensino-aprendizagem.
Dessa forma, o uso de metodologias ativas aliadas à tecnologia, como o ensino
híbrido e a gamificação do ensino, podem proporcionar o sucesso esperado na
157

aprendizagem, não somente para a área de Língua Portuguesa com enfoque lexical, como
aqui foi demonstrado, mas para todas as áreas do conhecimento.

5. REFERENCIAS

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159

12
LÍNGUA PORTUGUESA X LÍNGUA ESTRANGEIRA:
PERSPECTIVANDO A ATUAÇÃO DO PROFESSOR EM SALA DE
AULA

Renan Pires Azevedo45


Manuela Maria Cyrino Viana46

1. INTRODUÇÃO

O processo de aquisição de segunda língua (ASL) é permeado por muitas teorias,


algumas inclusive divergentes. Todavia, alguns pesquisadores da área concordam que
embora, a aquisição de segunda língua faça parte da nossa história de uso de línguas, o
estudo sistemático do fenômeno é considerado como relativamente recente, com início
datado a partir da segunda guerra mundial, com objetivo comunicacional entre aliados e
controle de inimigos. Nessa perspectiva, alguns países financiaram estudos acerca do
processo de ASL, consolidando assim uma grande escola linguística estruturalista
americana; sendo este um marco importante para o terceiro grande momento dos estudos
acerca da ASL: o surgimento da teoria behaviorista.
O behaviorismo permaneceu durante algum tempo tentando explicar como se dava
esse processo de aprendizagem de uma segunda língua, mas suas teorias tornaram-se
insustentavéis pelas novas correntes teóricas que buscavam também explicar o fenômeno.
A questão tem sido discutida, ao longo dos anos, sob vieses diversos e hoje é possível
encontrar muitas concepções disponíveis, entretanto nenhuma ainda suficiente para dar
conta da obscuridade presente nesse processo.
O processo de aquisição de segunda língua (ASL) é permeado por muitas
correntes teóricas, que despertaram interesse nesses estudos significativamente nos
últimos anos, e vem sendo alvo de discursões por muitos deles, que discordam e
coadunam em alguns aspectos. Um deles vem a ser o que pode ou não ser considerado
‘erro’ no processo de aprendizagem de uma ASL, cometido por indivíduos que estão no
processo de aquisição de uma segunda língua.
Dessa forma, o presente trabalho objetiva descrever como os professores de lingua
portuguesa e lingua estrangeira vêem o ensino da segunda lingua em sua praxis. Assim
sendo, estruturou-se o trabalho a partir de pesquisa bibliográfica descritiva com base nos
pressupostos de Paiva (2014), Franco (2013), Martins e Braga (2007), entre outros,
optando por abordagem qualitativa e utilizando como instrumento de coleta de dados
entrevistas semiestruradas com professores de Língua Portuguesa e Língua Estrangeira
do Ensino Fundamental das séries iniciais, finais e Ensino Médio atuantes em escolas
municipais da cidade de São Luís-MA.
O trabalho justifica-se pela relevância em estudar as questões, uma vez que, são
essenciais para o entendimento do processo de aquisição de segunda língua.

45
Discente do curso de graduação de letras/libras da Universidade Federal do Maranhão. E-mail:
renanpires29@hotmail.com
46
Professora Ma. do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão. Email:
manuela.viana@ufma.br
160

2. AQUISIÇÃO DE SEGUNDA LÍNGUA

No mundo contemporâneo há um número crescentes de pessoas bilíngues, e tem


sido comum a exposição das crianças, bem cedo, nesse contexto de aprendizagem de
segunda língua (L2), pois, considera-se que esse processo de aquisição de L2 , é, entre
outras coisas um investimento para a vida toda.
Os motivo para a aquisição de uma segunda língua são diversos, como por
exemplo: obter status; estar mais capacitado para o mercado de trabalho, viajar, dentre
outros. Nesse sentido, os estudos sobre o processo de aprendizado e de aquisição de
línguas oferecem várias linhas e abordagens teóricas que podem ser utilizadas para
orientar a investigação dos fenômenos do ensino-aprendizagem nos mais variados
campos de interesse.
Para adentrarmos nas especificiades da aquisição de uma segunda língua, se faz
necessário conhecer o processo de aquisição da linguagem. Essa se estabelece numa
praxis que permeia duas visões que identificam a aquisição da linguagem: a empirista e
a racionalista. A visão empirista tem por base o pressuposto de que todo o conhecimento
adquirido provém da experiência com o ambiente, no caso das crianças, estas nascem sem
nenhum conhecimento linguístico e quando são expostas a uma língua adquirem a
aquisição de forma indutiva. Um exemplo do empirismo podemos citar a Teoria
Behaviorista ou comportamentalismo que surgiu no ano de 1957 por John B. Watson e
posteriormente recebeu a contribuição de Skinner, com o behaviorismo radical.
Essa teoria defende que a aquisição da linguagem ocorre de forma habitual
ocorrida pela interação com o “meio” onde o indivíduo está inserido, as experiências
vividas por eles farão com que desenvolva a linguagem. Nessa visão temos que:

O que acontece quando um homem fala ou responde a uma fala é claramente


uma questão sobre o comportamento humano e, portanto, uma questão a ser
respondida com os conceitos e técnicas da psicologia como uma ciência
experimental do comportamento (SKINNER, 1957, p. 56).

Podemos ainda comentar que existe um outro pressuposto da aquisição da


linguagem ainda nessa teoria, que consiste na relação estímulo-resposta-reforço. Isso
ocorre por exemplo, quando a criança é estimulada através de diversas situações obtendo
como respostas estímulos de forma positiva como os elogios dos adultos que os cercam,
quando ela consegue realizar o que foi solicitado. Nessa perspectiva acredita-se que
assim, a criança busque sempre melhorar a sua linguagem baseando-se no processo de
observação pela fala dos indivíduos de sua convivência, por isso Skinner afirma que
reforço é necessário:

Para Skinner, o reforço é uma condição necessária que auxilia na


aprendizagem da linguagem. Deste modo, uma criança só “adquire
comportamento verbal quando vocalizações relativamente não-padronizadas,
reforçadas seletivamente, assumem gradualmente formas que produzem
consequências apropriadas numa dada comunidade verbal. Na formulação
desse processo, nós necessitamos de mencionar estímulos que ocorram antes
do comportamento a ser reforçado. É difícil, se não impossível, descobrir
161

estímulos que evoquem respostas vocais específicas na criança muito jovem. ”


[Skinner 1957:48-49].

Por outro lado, temos a visão racionalista que se baseia no princípio de que as
crianças nascem com o conhecimento específico sobre a linguagem. Tendo por base nessa
visão a Teoria Gerativista defendida pelo linguista Noam Chomsky, que afirma que o
homem já nasce com conhecimentos linguísticos e não linguísticos por possuírem uma
gramática universal, e que por isso as crianças aprendem a falar rapidamente, pois já
possuem um dispositivo inato para a aquisição da linguagem. Mesmo que as crianças
fiquem expostas a falas fragmentada e incompletas, conseguem internalizar a gramática
de uma determinada língua a partir do acionamento do dispositivo inato contido nela, e
assim poderá começa a falar.
Chomsky afirma que o behaviorismo não consegue explicar como algumas
propriedades linguísticas como a produtividade e a criatividade são utilizadas, pois a
primeira refere-se ao fato de uma criança produzir sentenças gramaticais que jamais
ocorreram antes na sua vivência, e a segunda referente ao fato da linguagem humana ser
independente de estímulos. Para Chomsky (1957:54-68),

É muito difícil acreditar que a criança adquire a língua somente por meio da
imitação de outros usuários ou por meio de uma sequência de respostas sob o
controle de estímulos externos e associações intraverbais. [...] o fato de que
todas as crianças normais adquirem estruturas gramaticais bastante complexas
com uma rapidez imensa sugere que os seres humanos são de algum modo
predestinados a fazer isto.

Continuando nossa fala sobre as concepções de aquisição da linguagem humana,


pensamos ser relevante ainda comentar sobre a hipótese construtivista, defendida pelo
suíço Jean Piaget (1978-1990). Essa concepção acredita que o desenvolvimento do
conhecimento depende da interação entre ambiente e organismo, ou seja, o conhecimento
linguístico não seria algo inato, mas sim desenvolvido por meio desta interação. Acerca
dessa acepção verifica-se que:

A linguagem faz parte de uma organização cognitiva mais geral que mergulha
suas raízes na “ação e nos mecanismos sensório-motores mais profundos do
que o fato linguístico”; em particular, é um dos elementos de um feixe de
manifestações que repousam na função semiótica, na qual participam o jogo
simbólico, a imitação diferida e a imagem mental (INHELDER, 1983, p.170).

Dessa forma, na perspectiva de Piaget, a aquisição da linguagem é vista como


algo além da relação linguísticas. A compreensão do processo cognitivo de aquisição da
linguagem pelo contrutivismo, seria uma adaptação com o objetivo de estruturar a relação
do indivíduo com o seu universo, fazendo associação entre o pensamento e o objeto, e a
partir das suas capacidades cognitivas, o indivíduo seria capaz de aplicá-los em seu meio.
162

Finalizando essa questão corroboramos com o pesamento de Birdsong (2006)


acreditamos também existir variáveis, para além das abordagens teóricas, que podem
influenciar na aquisição de uma segunda lingua. Essas variáveis vão desde a idade de
primeira exposição à língua; a duração de residência em um contexto de L2; a quantidade
de treinamento formal em L2; a motivação, integração com a cultura da L2; a aptidão e,
por fim, estilos e estratégias de aprendizagem.

2.1 LÍNGUA MATERNA E LÍNGUA ESTRANGEIRA

Há muitas variáveis a serem levadas em conta, as quais podem predizer os


resultados de aquisição de uma segunda língua. No entanto, fala-se muito na influência
que a língua materna exerce sobre a segunda língua, no processo de aquisição da mesma.
Estudos apontam que a influência da L1 está presente, principalmente no caso de
estudantes de Língua Estrangeira (LE) e não de estudantes de Segunda Língua. Há,
porém, os defensores da hipótese de que o processo de aquisição de uma segunda língua
não sofre nenhuma influência da Língua Materna (LM).
Apesar de percebermos que existem ideias contrárias sobre a influencia do
processo de aquisição de uma segunda lingua, não iremos evidenciar tal relação nesse
trabalho, embora uma questão importante sobre o assunto é necessario pontuar; se a
segunda língua deve ou não ser aprendida, seguindo-se o modelo de assimilação da
primeira língua. Nesse ponto faz-se necessário, porém sublinhar que o conhecimento da
maneira como o ser humano aprende sua primeira língua é útil quando se ensina uma
segunda língua a crianças pequenas, e que esse conhecimento pode fornecer sugestões
para a melhoria do processo geral de ensino de LE. ( LEFFA, 2016)
Por ser considerada uma área de conhecimento ainda recente, os estudos sobre as
influencias da língua materna na aquisição e desenvolvimento da segunda língua,
encontram-se recheados de controversias e de informações difusas, que só aumentam a
necessidade de trabalhos na área. No entanto, sabe-se que os estudos e descobertas sobre
o processo de aquisição de LM, podem auxiliar de maneira significante as diversas
abordagens e métodos de ensino de LE.
Sendo assim, o conceito de língua materna, ou primeira língua, também reflete
essas mutiplas percepções pelos perquisadores da área, que em sua maioria atrelam o fator
identitário, ao reconhecimento da língua como materna. Na fala de Quadros(1996),
percebemos que a autora define a língua materna como a primeira língua que adquirimos
com nossos pares, podendo chamá-la de L1. A língua materna é marcada por sua origem
e usada por vezes no cotidiano. Ela registra a competência linguística do usuário a partir
da necessidade do conhecimento de mundo e aprendizado de valores, não sendo algo
engessado e pronto, mas passível de complementos nos aspectos linguísticos e extra
linguísticos.
A língua estrangeira (LE) está relacionada ao ambiente e ao contexto em que está
inserido o indivíduo e que aprende uma língua diferente da língua nativa. A segunda
língua por sua vez, é aprendida onde a língua alvo é a língua utilizada socialmente. O
prendizado de uma LE envolve uma reestruturação múltipla, que repercute em diferentes
domínios da mente ( LEFFA, 2016). As relações que tranquilamente acreditávamos
existir entre as frases e o mundo, deixam de existir. Se por exemplo em português dizemos
163

“bom noite” para eventos até próximo ao amanhecer do outro dia, temos que aprender
que em Libras se diz “boa noite” até meia noite e “boa madrugada” para eventos após
esse horario. Percebemos que o domínio de uma LE não é um conhecimento a mais que
se adquire e que se soma ao que já temos, mas algo que precisa penetrar na nossa
intimidade, e que mexe na nossa estrutura afetiva, cognitiva e social.

3. A ATUAÇÃO DO PROFESSOR EM SALA DE AULA

Ao longo do tempo vem sendo gerado a importância de ressaltar a atuação do


professor em sala de aula, não apenas aquele que estimula a produção de conhecimentos
aos seus alunos, mas também aquele que aprende a aprender, pois sua aprendizagem é
proporcional aos seus educandos. Nesse processo de ensino aprendizagem o professor
torna-se o principal ator, pois precisa adquirir diversas competências.
Durante anos a educação foi baseada no professor, centro do saber em sala, não
proporcionando aos alunos indagarem ou raciocinarem por si. Tal prática ao longo do
tempo foi sendo questionada e refletida como não positiva para a formação humana,
fazendo com que os alunos fossem apenas repetidores de informações.
No cenario da atual conjuntura educacional, não somente espera de um professor
que repasse informações ou conteúdos curriculares, mas que conheça o seu aluno, utilize
propostas didaticas diferentes em sala, com ferramentas que motivem o ensino-
aprendizagem; orientando e norteando as habilidades dos alunos. A teoria deve ser aliada
a prática, e a fórmula para o aprendizado e não apenas memorizações. Segundo Cury
(2003, p.127) “A exposição interrogada gera a dúvida, a dúvida gera o estresse positivo,
e este estresse abre as janelas da inteligência. Assim formamos pensadores, e não
repetidores de informações”.
Nesse viéis, o conhecimento de mundo do aluno precisa ser aproveitado e
lapidado. A prática educativa precisa estar vinculada a realidade social do aluno inserido
em uma determinada sociedade e cultura diversificada. Cada aluno tem suas necessidades
e experiências de vida e de mundo diferentes uns dos outros. Freire (1996, p.52) afirma
que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria
produção ou a sua construção”. O professor necessita está disposto a conhecer mais,
aberto a indagações e a compartilhar saberes, afinal, o aprendizado ocorre em todos os
ambientes.
De outra forma também o aluno precisa compreender a correção feita pelo
professor como sendo algo que irá contribuir com seu desenvolvimento e não como um
processo de repreensão. A grande questão e nesse ínterim, entra o papel do professor
como mediador e como ferramenta do processo de aprendizado de uma segunda lingua.
Todo esse pensamento nos remete a uma prática, e esse entendimento precisa ir além da
transmissão de uma mensagem. Esta deve ser feita de forma coerente.
Outro fator importante vinculado a figura do professor é o papel da escola e da
família que possuem funções fundamentais para que esse sucesso aconteça. A escola não
é a detentora do saber, mas é o espaço no qual prepara os alunos para a sociedade onde
está inserido. A escola é o local de informação e conhecimento compartilhado, e a família
precisa dar o suporte necessário para o aluno, percebendo que o primeiro espaço de
conhecimentos iniciais, é dentro do seio familiar e que a escola nunca supre a carência de
164

um lar. Chalita (2004, p.17) afirma que “por melhor que seja a escola, por mais bem
preparados que estejam seus professores, nunca vai suprir a carência deixada por uma
família ausente”.
O diálogo entre a familia, escola( na figura do professor) e o aluno, contribuiem
para que o processo de ensino e aprendizagem possa se consolidar com melhorias nas
atividades curriculares, no uso de recursos tecnológicos mais adequados a realidade
vivida, na relação com a comunidade escolar, nas avaliações externas e na formação
continuada na escola (FREIRE, 1996).

4. ANÁLISE DOS DADOS

A pesquisa em questão se propõe em analisar a aquisição de segunda língua com


docentes que trabalham em diferentes turmas e faixas etárias. Para tanto, foi realizado
uma entrevista semiestruturada com esses profissionais. O objetivo dessas entrevistas é
verificar a impressão dos entrevistados alusivo aprendizagem do aluno no que se refere a
aquisição da seguda língua. Com base nessas impressões verificamos a importância do
uso de metodologias e recursos didáticos adequados para a realidade dos alunos.
Selecionamos três diferentes níveis para a pesquisa: Ensino Fundamental Menor, Ensino
Fundamental Maior e Ensino Médio. Para cada nível, entrevistamos dois docentes: um
que ensine Língua Estrangeira e outro que ensine Língua Portuguesa.
O questionário realizado para o professor de Língua Estrangeira foi: “Como o
aluno aprende uma língua estrangeira?” e “Quais os fatores que você acredita que
contribui para o aprendizado de uma segunda língua?”. E o questionário para os docentes
de Língua Portuguesa foram: “Como o aluno aprende a Língua Portuguesa?” e “Se você
fosse ensinar língua portuguesa como segunda língua, usaria os mesmos recursos e
propostas da sala de aula que ensina hoje? Por quê e explique.”
As perguntas foram entregues ao professores, que sem interferencia do
pesquisador, reponderam as questões e posteriormente entregaram. Disponibilizaremos
cada resposta por nivel de ensino e por língua, primeiro a estrangeira seguida da
portuguesa.
Para o ensino Fundamental Menor, nível Língua Estrangeira, temos na primeira
pergunta: Como o aluno aprende uma língua estrangeira? O professor de Língua
Estrangeira respondeu:

Então, existem 4 modalidades a serem praticadas no ensino de uma nova


língua: leitura, escrita, audição e fala. Tudo isso junto compõe o que a gente
chama de “understanding” que é o compreender. Pra que alguém saiba
fluentemente um idioma é preciso que ele tenha essas 4 habilidades.(
PROFESSOR 1)

Na segunda pergunta do Fundamental Menor, nível Língua Estrangeira: Quais são


os fatores que você acredita que contribui para o aprendizado de uma segunda língua?
O professor 1 de Língua Estrangeira respondeu:
165

Para crianças nessa idade de 8 anos, é mais fácil você ensinar do que uma
criança de 14 ou um adulto de 45. Eles só precisam ter consciência de que
aquilo não é um bicho de sete cabeças. Tanto que se você passar 6 meses
falando diariamente uma média de 2hs em inglês com uma criança é suficiente
pra ela entender basicamente 75% do que diz aquela pessoa nos próximos 6
meses. Linguagem corporal ajuda muito quando se vai ensinar um idioma, pois
você não dá a tradução, então ela não precisa memorizar, mas sim, entender e
aprender. Flashcards também são uma boa, pois ajuda a pessoa a pensar de
maneirar mais rápida, a ser mais ágil no que está aprendendo, a ser mais
imediata. Questões de marcar ajudam essas crianças a manterem a mais a
concentração no entendimento enquanto questões de escrever se tornam mais
cansativas, porém, é importante pra que eles pratiquem escrita. Jogos fazem
toda diferença, eles são super competitivos e fazem tudo pra ganharem uma
disputa, então sem duvidas aposte nisso (pesquisa o Kahoot é uma plataforma
onde os professores criam jogos ou pegam prontos e os alunos respondem nos
celulares). Tem as atividades coloridas também. Ajuda muito. Porque separa
cada coisa na cabecinha deles.Coisas que não ajudam: grande quantidade de
alunos numa sala, falar somente em português com os alunos, professores
desmotivados, cansados e estressados (professores assim costumam punir
muito os alunos e não os deixarem a vontade, ou terem preguiça de fazerem
algo novo e criativo a cada módulo aprendido, ou até mesmo não observarem
que cada aluno tem seu ritmo e sua experiência com a língua então tem mesmo
que um professor tenha 500 alunos, se ele ensina essa faixa etária ele precisa
conhecer cada um e pais que não se comprometem pois não observam deveres
de casa, não cuidam do emocional dos filhos, permitem o mal comportamento
que faz com o que aluno se afaste mais ainda do professor.( PROFESSOR 1)

Para o ensino Fundamental Maior, nível Língua Estrangeira, temos na primeira


pergunta: Como o aluno aprende uma língua estrangeira? O professor 3 de Língua
estrangeira respondeu: “Através de inter-relações entre a língua materna e a nova língua,
por métodos diversos como audiovisual e outros.” (PROFESSOR 3)
Na segunda pergunta do Fundamental Maior, nível Língua Estrangeira: Quais são
os fatores que você acredita que contribui para o aprendizado de uma segunda língua?
O professor 3 de Língua estrangeira respondeu: “ O conhecimento de mundo do aluno, o
acesso a recursos que diversifiquem a aula, formação adequada do professor, entre
outros.” (PROFESSOR 3)
Para o ensino Médio, nível Língua Estrangeira, temos na primeira pergunta: Como
o aluno aprende uma língua estrangeira? O professor 5 de Língua estrangeira respondeu:
“Acredito que a melhor maneira de um aluno aprender uma língua estrangeira é por meio
do contato. O contato pode ser feito por meio de aulas teóricas, práticas, através de
músicas, filmes, séries. Quanto maior o contato, melhor a aprendizagem.” (PROFESSOR
5)
Na segunda pergunta do ensino Médio, nível Língua Estrangeira: Quais são os
fatores que você acredita que contribui para o aprendizado de uma segunda língua? O
professor 5 de Língua portuguesa respondeu:

Vontade, já que ninguém aprende o que não quer; Interesse, pois só terá
sucesso se se mantiver interessado no que almeja; Idade, pois quanto mais
cedo, melhor a aquisição de uma segunda língua; Metodologia adequada, já
que a forma como se ensina é de grande relevância; Perseverança, iniciativa e
comprometimento ao longo do processo. (PROFESSOR 5)
166

Pelo exposto os professores de Língua Estrangeira responderam que não usariam


as mesmas estratégias e recursos para ensinar a Língua Portuguesa da sala que ensina
atualmente. Portanto, usariam outras estratégias e metodologias de acordo com a
necessidade da turma, como as músicas e traduções das mesmas, filmes legendados, uso
do dicionários nas traduções, além de aulas no quadro de forma expositiva.
No que se refere aos docentes de Língua Estrangeira, entre os fatores citados
pelos entrevistados, pode-se citar a Linguagem corporal, fala sem tradução, Flashcards,
questões objetivas, jogos, conhecimento de mundo dos alunos, acesso a recursos,
formação adequada, vontade, interesse, idade, metodologia adequada, perseverança
dentre outros.
Para o ensino Fundamental Menor, nível Língua Portuguesa, temos na primeira
pergunta: Como o aluno aprende a língua portuguesa? O professor 2 de Língua
Portuguesa respondeu:

Existem diversas maneiras pelas quais o aluno aprende a língua portuguesa,


mas gostaria de destacar uma que acho importante: A maneira mais fácil de
aprender a língua portuguesa é associando palavras, frases com os objetivos
sejam eles de brinquedos ou não, que estão sendo lidos. É o que chamamos de
letramento. Quando o aluno é apenas alfabetizado, ele consegue ler (codificar
palavras) mas não compreendê-las. Quando fazemos essa associação dos
objetivos com o que estão sendo lido, ele tende a aprender de maneira mais
rápida.(PROFESSOR 2)

Na segunda pergunta do Fundamental Menor, nível Língua Portuguesa: Se você


fosse ensinar português como segunda língua, usaria os mesmo recursos e propostas da
sala de aula que ensina hoje? Porque e explique. O professor 2 de Língua Portuguesa
respondeu:

Não. Todos sabemos que os recursos e propostas devem ser flexíveis de acordo
com a necessidade da turma. Às vezes a proposta imposta pelo material
didático ou pela lei de diretrizes e bases da educação não atendem à
necessidade de uma turma, desta forma, é necessário que o professor junto ao
seu planejamento faça modificações de modo que o seu ensino atenda toda à
turma, visto que cada aluno carrega uma bagagem social que precisa ser
lapidada na educação formal. (PROFESSOR 2)

Para o ensino Fundamental Maior, nível Língua Portuguesa, temos na primeira


pergunta: Como o aluno aprende a língua portuguesa? O professor 4 de Língua
portuguesa respondeu:

Acredito que o aluno aprende a língua portuguesa de diversas formas mas para
isso é preciso que haja um grande esforço por parte dos atores educativos,
principalmente, professores. Penso que deva haver um equilíbrio entre os
conhecimentos teóricos dos professores juntamente com sua didática que,
consequentemente, pede recursos didáticos e espaços favoráveis ao
aprendizado.( PROFESSOR 4)
167

Na segunda pergunta do Fundamental Maior, nível Língua Portuguesa: Se você


fosse ensinar português como segunda língua, usaria os mesmo recursos e propostas da
sala de aula que ensina hoje? Porque e explique. O professor 4 de Língua portuguesa
respondeu:

Dialogando com a minha realidade de professora de escola pública na qual


recursos didáticos são escassos, buscaria formas mais simples até as mais
complexas. Penso que as conversações são ótimos mecanismos de
aprendizagem e os alunos respondem bem, as músicas e traduções das mesmas,
filmes legendados, uso do dicionários nas traduções, além de aulas no quadro
porque alguns conteúdos são assimilados a partir de aulas expositivas.(
PROFESSOR 4)

Para o ensino Médio, nível Língua Portuguesa, temos na primeira pergunta: Como
o aluno aprende a língua portuguesa? O professor 6 de Língua portuguesa respondeu:

A Língua Portuguesa não se aprende em escola. É aprendida no seio familiar


sem a presença de um professor. Quando ele(a) vai pra escola, irá conhecer a
Língua Portuguesa na modalidade padrão. Isso não significa dizer que ele vai
esquecer a língua que já conhece. Irá apenas conhecer outra variante da língua
pra que ele possa ter maior mobilidade social, já que a Língua Portuguesa na
modalidade padrão possibilita dentro do território brasileiro e permite essa
mobilidade em todos os setores. Então, o aluno aprende Língua Portuguesa
dentro de casa, pois nasceu em uma comunidade linguística que se fala Língua
Portuguesa. Assimila/adquire a gramática que vamos chamar de internalizada.
O aluno vai perceber que determinadas construções não combinam. Na escola
irá conhecer a modalidade padrão da língua. O nível formal é aprendido
naturalmente, não somente com um professor. Os nativos da língua são
doutores, pois pensam, sonham, se comunicam na mesma língua de origem.
Hoje, percebe-se que o ensino da língua não é aquela coisa de certo ou errado,
mas é a adequação ao contexto.(PROFESSOR 6)

Na segunda pergunta do ensino Médio, nível Língua Portuguesa: Se você fosse


ensinar português como segunda língua, usaria os mesmo recursos e propostas da sala
de aula que ensina hoje? Porque e explique. O professor 6 de Língua portuguesa
respondeu:

Eu nunca tive oportunidade de ensinar Língua Portuguesa para estrangeiros ou


como segunda língua. Mas evidentemente, a proposta para ensinar Língua
Portuguesa para pessoas que não são nativas, a estratégia seria diferente, pois
o ensino de uma língua, seja ela qual for, quando colocado como segundo
idioma, mas busca -se somente as questões linguísticas, mas também a social,
cultural. Tudo precisa está inserido para fazer sentido. Não basta somente sobre
as estruturas sintáticas, mas também as gramaticais para que entenda o
contexto sócio-cultural desse idioma.(PROFESSOR 6)

Nos resultados das entrevistas percebemos o esforço feito pelos professores em


fornecer um ambiente de aprendizagem favorável, com o intuito de essa aprendizagem
ser mais eficaz e produtiva. Segundo Borges e Salomão (2003)
168

[...] as relações da criança com os adultos são fundamentais para


o desenvolvimento das habilidades linguísticas, visto constituir-
se como um sistema dinâmico, através do qual ambos
contribuem com suas experiências e conhecimentos para o curso
da interação, estabelecendo uma relação recíproca e
bidirecional. (BORGES; SALOMÃO, 2003, p. 328).

A prática metodológica do professor deve ser mais interativa, dinâmica e que


incentive o aluno na participação desse processo. Para o aprendizado da Língua
Portuguesa se faz necessário esforço por parte dos aprendizes, associação de frases,
palavras e contextos com o que é vivenciado no dia-a-dia, recursos didáticos, ambiente
favorável, e interação com as pessoas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa analisou por meio de duas perguntas, como se dava as formas
e métodos do ensino de dois professores de língua estrangeira e língua portuguesa, que
atuam no ensino fundamental menor, maior e médi. Os dados analisados nos revelou
diferentes formas metodológicas de aplicação, tendo em vista uma boa eficácia na
aprendizagem de seus alunos. Portanto, as metodologias aplicadas pelos professores tem
muita relevância no que se emprega o ensino uma segunda língua, que por diversos
fatores, se torna essencial na vida das pessoas, porem percebe-se a falta de compreensão
quando se refere ao ensino da língua portuguesa como segunda língua.
Contudo, nas análises feitas percebemos que não só a forma com que se transmite
o conhecimento é primordial, mas também como esse aluno vai aplicar de forma precisa
esse conhecimento. Logo, esse trabalho nos mostrou a importância das formas que
ensinamos, assim como a forma que os alunos vão aplicar esse conhecimento.O
aprendizado de uma segunda língua é essencial para a inserção e boa comunicação em
uma sociedade e o uso de recursos dinâmicos, lúdicos e contextualizados ao momento
vivido, se torna imprescindível no ensino de segunda língua.
Percebe-se que para cada nível de ensino, cada faixa etária, cada língua (sendo
L1 ou L2) é necessário metodologias diversas, e o ensino de primeira Língua não é igual
ao ensino de uma segunda. Ao passo que aprendemos uma segunda língua, mudanças em
nossa organização neural vão acontecendo, pois há uma organização estabelecida pela
primeira língua. Além do mais, é necessário para o aprendizado de uma segunda Língua
o contato (imersão na língua) com músicas, filmes, séries, inter-relações e desenvolver as
4 habilidades: ler, escrever, ouvir e falar.

6. REFERÊNCIAS

BIRDSONG, David. Age and second language acquisition and processing: a


selective overview. Language Learning, v. 56, p. 9-49, 2006.
169

BORGES, Lucivanda C. e SALOMAO, Nádia M. R. Aquisição da


linguagem: considerações da perspectiva da interação social. Psicol. Reflex.
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SKINNER, B. F. Verbal behavior. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1957.

_________, B. F. Verbal Behavior. New York : Appleton-Century-Crofts, 1957.


170

13
TECNOLOGIA E EDUCAÇÃO: AS TECNOLOGIAS DIGITAIS DE
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO A SERVIÇO DO MULTILETRAMENTO DE
CRIANÇAS DO 4º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL

Athayanne Yngrith Carvalho Baia47


Thays Ingrid Carvalho Baia48
Jeanne Ferreira de Sousa da Silva49

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos pudemos observar constante e abruptamente grandes


transformações na sociedade, tanto econômica, cultural e historicamente. É visível que já
não somos a mesma sociedade de algumas décadas idas.
O sistema educacional reflete as mudanças sociais, visto ser uma das instituições,
na qual a sociedade revê comportamentos e adquire novas maneiras de aprender. Com o
avanço da globalização surgiram novas formas de interação social, inovação na forma de
nos comunicarmos e novos métodos de ensino aprendizagem. A inserção da tecnologia
no âmbito escolar já mudou a forma de como ensinamos nossos alunos. Se antes os
ensinávamos a utilizar as tecnologias, hoje utilizamos as tecnologias para ensiná-los.
Sabemos que o uso das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação
(TDICs), afeta diretamente no desenvolvimento das crianças. Pensar em desenvolvimento
é lembrar que a linguagem é parte essencial do ser humano e que esta também é afetada
pelo uso das tecnologias. Vivemos na era da Geração Y e dos Nativos digitais, a qual não
é suficiente aprender a ler e escrever somente com lápis e papel. Ao passo que vivemos
em um contexto multicultural, em que nos comunicamos por meio de diferentes
linguagens (verbal, não verbal, gestos, escrita, fotos, vídeos, outros) são necessárias novas
estratégias para compreender e produzir comunicação. Deste modo, fazem-se precisas
novas formas de letramento ou de multiletramentos que atendam aos anseios e avanços
que a tecnologia agrega.
Diante do exposto, a problemática levantada visa responder ao seguinte
questionamento: As Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação são de fato
aliadas de professores e alunos no processo de ensino aprendizagem na promoção do
multiletramento? Seguindo a indagação e em busca de respostas, este trabalho justifica-
se principalmente por nos encontrarmos num contexto multicultural, constituído por uma
pluralidade de aspectos que nos diferenciam, mas que ao mesmo tempo nos aproximam
e também por estarmos cada vez mais cedo conectados aos recursos tecnológicos, o que
afeta diretamente na maneira em que estabelecemos comunicação com os outros e agora
na forma em que ensinamos e aprendemos.

47
Graduanda em Pedagogia pela Faculdade do Maranhão (FACAM). E-mail: carvalhoyngrith@gmail.com
48
Graduada em Pedagogia pela Faculdade do Maranhão (FACAM). E-mail: thatacrvb96@gmail.com
49
Graduada em Letras pela Faculdade Santa Fé, Especialista em Literatura Brasileira pela Universidade
Estadual do Maranhão (UEMA), Mestre pela Universidade Estadual do Piauí (UEPI), Doutoranda em
Educação pela Universidade Lusófona de Tecnologias e Humanidade, em Lisboa-Portugal, Professora da
Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e da Secretaria de Estado de Educação do Maranhão. E-mail:
jeanness01@gmail.com.
171

O referencial teórico do presente trabalho é resultado de pesquisa bibliográfica e


documental embasadas em autores que já abordaram essa temática em seus estudos como
Lévy (2010), Moran e Bacich, (2015), Prensky (2001), Rojo (2012) e outros. E também
por meio da pesquisa de campo, realizada no Centro Educacional Profissional do
Coroadinho (CEPC).
O presente artigo encontra-se organizado da seguinte forma: a seção dois vem
conceituar Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação, abordando também
aspectos históricos e evolutivos, destacamos a importância das TDICs no âmbito
educacional, o que proporciona aos professores a elaboração de um planejamento mais
dinâmico, flexível e contextualizado, possibilitando a interdisciplinaridade entre
conteúdos. Ainda na seção dois, trazemos o conceito de nativos e imigrantes digitais.
Na seção três, evidenciamos os conceitos de multimodalidade e multiletramento
baseados em estudos de Rojo (2012). São também conceituados os letramentos digital,
visual e crítico.
Por conseguinte, na seção quatro apresentamos a análise dos resultados da
pesquisa obtidos através de observações e questionário direcionado aos professores do 4º
ano do Ensino Fundamental do Centro Educacional Profissional do Coroadinho.
Por fim, na seção cinco apresentamos as considerações finais, onde temos uma
visão geral de todo o trabalho executado.
Sabemos que a complexidade dos assuntos tratados requer um estudo mais
aprofundado que considere diferentes aspectos não restritos a este artigo. Porém,
esperamos contribuir para novas reflexões acerca das potencialidades de aprendizagem
promovidas através do uso de recursos tecnológicos.

2. TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO:


CONCEITO E EVOLUÇÃO

O ser humano sempre impôs sua capacidade de criar a serviço do desenvolvimento


de ferramentas que melhorassem sua vida. Assim também descobriu a tecnologia, que
podemos definir como “um conjunto de técnicas, processos, métodos, meios e
instrumentos de um ou mais domínios das atividades humana”. Segundo Kenski (2008)
a tecnologia é tão antiga quanto à humanidade.

As tecnologias digitais surgiram em meados do século XX no contexto da Terceira


Revolução Industrial, também conhecida como Revolução Informacional, caracterizada
pelo avanço de indústrias tecnológicas como a robótica, telecomunicações, informática,
e outras, fato este que propôs mudanças em aspectos econômicos, sociais e culturais, onde
passou a se produzir mais em menos tempo. O grande salto das tecnologias de informação
ocorreu a partir da década de 1990, possibilitando a transmissão e distribuição mais rápida
de informações.

Os avanços da tecnologia da informação têm contribuído para lançar a civilização


em direção a uma sociedade do conhecimento. Perante mudanças, o termo Tecnologias
da Informação (TI) passou a ser utilizado como Tecnologias de Informação e
Comunicação (TIC). As TDICs, termo que vem sendo utilizado frequentemente, fazem
172

parte das TICs, ambas dizem respeito a um conjunto de diferentes mídias. Para Chermann
(1988, p. 42),

[...] as TICs são meios, instrumentos ou recursos, que possuem caráter


instrumental, auxiliando, complementado e facilitando a ação do usuário,
multiplicando as possibilidades de atuação. Como qualquer outro meio, exige
de quem os emprega conhecer suas possibilidades e saber aproveitá-las.

As TICs englobam tecnologias mais antigas como a televisão, rádio, livros


didáticos, jornal e outros, diferenciando-se das TDICs, essa por sua vez usam meios
digitais mais recentes como computador, tablet, celular, smartphones, dentre outros, ou
seja, estas oferecem uma ampliação na forma de interação, comunicação e informação a
sociedade.
Diferentemente dos sistemas mais tradicionais, as TDICs permitem que aquele
que interage com a informação não apenas a receba, mas também a transforme, produza
novas representações e conhecimentos compartilhados, baseados em múltiplos códigos
distribuídos tanto no espaço quanto no tempo, possibilitando ao aprendiz ser construtor
do próprio conhecimento.
Aliada às tecnologias digitais, a internet propicia a troca de comunicação entre
povos que independe de suas posições geográficas. Criada a partir de 1969, designada
como Advanced Research Projects Agency Network ou simplesmente ARPANET,
servindo como instrumento de pesquisa militar no contexto da Segunda Guerra Mundial
e posteriormente difundida em todo o mundo, a internet chega ao Brasil em 1988 e
evoluindo sem precedentes. Em 2007 a internet começa a se popularizar no Brasil e,
seguido do surgimento dos primeiros smartphones e da conexão 3G, passa a estar
disponível também em dispositivos móveis. A internet faz parte de um processo
contemporâneo de comunicação em massa, oferece possibilidade de democratização e
impacta na forma como as pessoas se comunicam, trabalham, ensinam e aprendem.
Tanta inovação vem alterando o modo de pensar e agir da sociedade, resultando
também em transformações econômicas, culturais, e é claro, educacional.

2.1 AS TDICs NO CONTEXTO EDUCACIONAL

Apesar de estar ligada fielmente ao conceito de conectividade, a tecnologia nos é


comum desde os primórdios da evolução humana. É inegável que as transformações
causadas pelo advento das tecnologias digitais na sociedade afetam profundamente a
educação. Instituições de ensino com o foco na Educação a Distância (EAD), vêm
conquistando seu espaço, escolas estão cada vez mais estruturadas com recursos
tecnológicos ao alcance de seus alunos.
Perante tal cenário, observamos a necessidade de ressignificação do âmbito
educacional, visto que é preciso pensar na tecnologia como uma ferramenta de
enriquecimento no processo de ensino e de aprendizagem. Segundo Moran (2012, p.23),
“o aluno formado por internet e multimídia e que está conectado está pronto para aprender
com os colegas a desenvolver atividades significativas a contribuir em cada etapa de um
173

projeto”. É relevante lembrar que os livros didáticos impressos em papel, quadro negro e
giz também são tecnologias presentes há muito tempo em sala de aula, porém numa
perspectiva contemporânea são interessantes recursos inovadores e recentes como
computadores, tablets, lousa digital e internet.
Percebemos o crescimento da aceitação por muitos educadores sobre o uso de
recursos tecnológicos em sua prática pedagógica, a fim de tornar o processo de ensino
aprendizagem algo mais dinâmico e democrático, transformando a sala de aula de um
“lugar do saber” a um ambiente em que haja troca de diálogo, ideia, experiência, com
participação ativa do aluno no processo de aprendizagem “[...] em busca de caminhos e
alternativas possíveis sobre o conhecimento em pauta” (KENSKI, 2003, p. 47).
Outro aspecto da contribuição das TDICs em sala de aula quando têm seu uso e
potencial aplicado positivamente, é proporcionar a pesquisa ativa, tornando o aluno
participante e proativo, sujeito de suas ações, protagonizando o processo de
desenvolvimento do seu aprendizado, pois os bancos de nossas escolas estão sendo
ocupados por estudantes “nativos digitais” que manuseiam com total liberdade e
desenvoltura os recursos tecnológicos.
As discussões sobre a utilização das tecnologias no ambiente escolar como
ferramentas de acesso ao conhecimento têm sido cada vez mais difundidas.
O fato é que nos encontramos em constante mudança e a escola precisa
acompanhar tais transformações de forma que suas práticas sejam significativas e
necessárias aos educadores e educandos.

2.1.1 Os nativos e imigrantes digitais em sala de aula

O termo “nativos digitais” foi adotado por Palfrey e Gasser no livro “Nascidos na
era digital”, diz respeito principalmente àqueles que nasceram após 1980 e que tem
habilidade para usar as tecnologias digitais. Pode-se defini-los como

[...] pessoas que possuem uma persona online, possível graças a recursos
tecnológicos como aparelhos Blackberry ou I-Phone e a rede de
relacionamentos que lhes permitem levar uma vida online e off-line durante
todo o dia. Essa é uma das características que os torna tão diferentes de seus
pais e de outros adultos de gerações mais velhas (PALFREY; GASSER, 2008
apud PESCADOR, 2010, p. 2).

Aos que não se encaixaram nesse grupo e precisam conviver e interagir com esses
nativos e, também precisam aprender a conviver em meio a tantas inovações tecnológicas,
são os chamados “imigrantes digitais” (PALFREY; GASSER, 2011). Os imigrantes
nasceram em outro meio, não dominado pelas tecnologias digitais, sua forma de aprender
foi outra. É notável que a sociedade encontra-se dividida nesses dois grandes grupos
quando tratamos de tecnologia na educação.
A presença da tecnologia junto aos nativos digitais no ambiente escolar traz
mudanças e inovações ao papel do professor, tornando-o ainda mais responsável no
174

processo de ensino aprendizagem. Segundo Guerreiro (2006, p. 99) “inovação é a


capacidade de ver de outro modo, com outro olhar, o objeto já observado e descrito por
muitos”. Este por sua vez, assume novas competências em sua prática pedagógica. Ele
vem deixando de ser transmissor de todo o conhecimento, transformando-se
paulatinamente num criador de métodos que alia as novas tecnologias digitais em sala de
aula a outras técnicas, viabilizando uma aprendizagem democrática e flexível. Sobre isso:

O professor continua sendo uma figura importante na era digital. Porém, sua
postura deixa de ser a de transmissor absoluto do conhecimento, e passa a ser
de facilitador de descobertas, tudo isso em um novo processo de ensino
aprendizagem. Os alunos, que agora não são mais uma plateia receptora,
podem ser definidos como um grupo que participa ativamente da aula,
buscando em seus notebooks (ou celulares, iPhones e outros aparelhos com
acesso a internet) informações sobre o tema da aula, visitando virtualmente os
lugares descritos pelo professor, vendo imagens, textos, vídeos, ou trazendo de
casa uma pesquisa feita na internet. É uma outra forma de ensinar e aprender
(PARNAIBA; GOBBI, 2010, p. 8).

De fato, vivemos em uma época em que nossos estudantes nasceram conectados


com a tecnologia, tendo acesso a vários tipos de informação, em decorrência da
globalização que tem como principais características a multiculturalidade e a
multimodalidade, principalmente na linguagem. Partindo de tal pensamento, com o
advento das novas tecnologias, surge a necessidade de novas formas de comunicação, de
ensinar e aprender. Há uma grande demanda de novas habilidades na forma de se
comunicar e interpretar informações. Consequentemente, não é mais possível e suficiente
falarmos somente em decodificação dos signos, da leitura mecanizada e sem significado,
é necessário falarmos de letramento e dos chamados multiletramentos.

3. MULTIMODALIDADE E MULTILETRAMENTO

Em nossas práticas na sociedade nos comunicamos não apenas por meio de


palavras, mas também de sinais, gestos, imagens, entre outros, caracterizando a
comunicação como multimodal, que agrega diversos modos e recursos, independente do
meio pela qual ela se realize, oral ou escrito, impresso ou digital. Com as inovações
tecnológicas e o avanço das mídias socias tem surgido cada vez mais formas de
representação da linguagem como posts, tweets e memes, que se configuram como
gêneros do discurso. A multimodalidade agrega em si, portanto, as múltiplas linguagens
que utilizamos para estabelecer comunicação.
Além disso, é preciso considerar que o termo multimodalidade apesar de ter se
potencializado por meio dos recursos tecnológicos atuais, já existiam bem antes de
falarmos apenas da linguagem verbal, oral e escrita. Na escrita, por exemplo, ocorre a
multimodalidade quando temos o texto escrito junto a uma imagem, vídeos, desenhos,
fotografias, gráficos e outros. Conforme Dionísio (2005, p.136) a manifestação escrita, a
própria disposição da escrita no papel já é considerada visual. Segundo ela é “[...]
importante mencionar que ao conceber os gêneros textuais como multimodais, não estou
atrelando os aspectos visuais meramente a fotografias, telas de pinturas, desenhos,
175

caricaturas, por exemplo, mas também a própria gráfica do texto no papel ou na tela do
computador”. Estes aparatos visuais também são considerados formas de expressão do
texto e nos auxiliam na leitura, fazendo-nos enxergar que a leitura só será eficiente se o
conjunto dos modos semióticos presentes no texto for interpretado junto e não apenas
com base em uma única modalidade.
Em meio a constante mudança, num mundo em que as novas tecnologias digitais
chegam a todos os cantos, as práticas de leitura tornam-se cada vez mais relevantes. De
acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais da Língua Portuguesa, “cabe à escola
viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que circulam socialmente, ensinar a
produzi-los e a interpreta-los” (BRASIL, 1997, p. 26).
O surgimento de textos midiáticos (escritos, orais ou visuais) e dos hipertextos,
trazem informações com grande rapidez, exigindo dos sujeitos capacidade de ler e
interpretar. O aluno precisa saber ler e interpretar o mundo em que vive. Xavier (2005,
p.171) entende hipertexto como uma forma híbrida, dinâmica e flexível de linguagem que
dialoga com outras interfaces semióticas, adiciona e acondiciona à sua superfície formas
outras de textualidade. Em concordância, Silva afirma que:

A criança, ao ter contato com as diferentes linguagens e ao compreendê-las e


utilizá-las, apropria-se dos recursos de textualidade que lhe permitem
expressar-se com maior clareza e criatividade. A mediação pelas diferentes
linguagens na e pela escola possibilitará o aprendizado de leituras mais críticas
e das mais variadas possibilidades de organização textual. (SILVA, 2010, p.
22).

O constante contato do indivíduo com a variedade textual que circula na


sociedade, proporcionará a ele uma amplitude de saberes que facilitará a leitura de mundo.
Partindo da premissa de que todos os gêneros textuais são multimodais, podemos
afirmar então que os gêneros multimodais estão introduzidos na escola a mais tempo do
que imaginamos, os próprios livros didáticos e paradidáticos são multimodais, ao passo
que trazem em si imagens, palavras, cores e outros elementos.
Os multiletramentos estão diretamente ligados às multimodalidades que o
professor deve vivenciar nas suas práticas. A professora Roxane Helena Rodrigues Rojo,
(2012, p.13) nos leva a esta reflexão, enfatizando que tanto os letramentos quanto os
multiletramentos são essenciais em “nossas sociedades, principalmente urbanas, na
contemporaneidade: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica
de constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e se comunica”.
Sobre multiletramentos, a autora ressalta que,

[...] são interativos; mais que isso, colaborativos; eles fraturam e transgridem
as relações de poder estabelecidas, em especial as relações de propriedade (das
máquinas, das ferramentas, das ideias, dos textos [verbais ou não]) eles são
híbridos, fronteiriços e mestiços (de linguagens, modos, mídias e culturas)
(ROJO 2012, p. 23).
176

Através desse conceito, a autora explica o funcionamento dos multiletramentos.


Ela também chama atenção à chamada “pedagogia dos multiletramentos”, que, segundo
a pesquisadora, tem por objetivos formar um usuário funcional que possua “competência
técnica e conhecimento prático”, criador de sentidos que “entenda como diferentes tipos
de texto e de como as tecnologias operam”, analista e crítico que “entenda que tudo o que
é dito e estudado é fruto de seleção prévia” e finalmente transformador que “usa o que foi
aprendido de novos modos”.
Sob a ótica dos multiletramentos e de um contexto híbrido que não exclui as
formas tradicionais de alfabetização e letramento, pensa-se atualmente nos vários
letramentos despontados da contemporaneidade tal qual o letramento digital, o letramento
visual e o letramento crítico.

3.1 LETRAMENTO DIGITAL

De acordo com Soares (2002), não existe “o letramento”, mas “letramentos”, a


tela do computador se constitui, neste sentido, como um novo suporte para a leitura e
escrita digital. Segundo ela, a tela é considerada como um novo espaço de escrita e traz
mudanças significativas nas formas de interação entre escritor e leitor, entre escritor e
texto, entre leitor e texto e até mesmo entre o ser humano e o conhecimento.
Ao falarmos de multimodalidade e hipertexto, chamamos atenção para o fato de
que não basta inserir tecnologias digitais no contexto educacional. É importante saber o
que fazer com elas antes de tudo, para que ela seja um meio e não um fim.
Em uma compilação das diferentes concepções apresentadas por Lobo Sousa,
Araújo e Pinheiro (2009, p. 118), letramento digital, inclui a capacidade de ler e escrever
na tela e de localizar, filtrar e avaliar informações para construir sentidos em textos
multissemióticos, além de habilidades de interação com a máquina e de reconhecimento
das potencialidades que esse conjunto de experiências tem para a realização de eventos
comunicativos. Portanto, é atrelada ao letramento digital, a capacidade dos indivíduos
utilizarem as tecnologias digitais em ambiente educacional e o uso da linguagem em
ambiente virtual com o objetivo de facilitar o processo de ensino-aprendizagem.

3.2 LETRAMENTO VISUAL

Interpretar uma imagem é complexo, a vista que não somos “alfabetizados” para
ler imagens. Analisar uma foto em uma revista exige movimentos mentais diferentes de
ler uma frase ou uma poesia. De acordo com Kress e Van Leeuwen (1996), existem na
sociedade os “iletrados visuais”, ao passo que o conhecimento escolar é
predominantemente verbal. Podemos entender o letramento visual basicamente como, a
capacidade de ler, entender e utilizar informações visuais para a comunicação. Segundo
Stokes (2002), o letramento visual é definido como a habilidade de ler, interpretar e
entender a informação apresentada em imagens pictóricas ou gráficas, e também de
transforma-la em imagens, gráficos ou formas que ajudem a comunicação. De acordo
com Rocha (2008), é a capacidade de ver, compreender e, finalmente, interpretar e
177

comunicar o que foi interpretado através da visualização. De um modo geral, o letrado


visual olha uma imagem cuidadosamente e tenta perceber as intenções da mesma.
Da mesma maneira que o letramento digital refere-se à habilidade dos usuários
em manejar as tecnologias digitais, o letramento visual diz respeito direto à interpretação
da informação visual, sejam imagens, vídeos, desenhos, pinturas ou outros. O letramento
visual deve preparar os alunos para a dinâmica do mundo on-line e para todos os espaços
que envolvem o processo de ensino aprendizagem.

3.3 LETRAMENTO CRÍTICO

“O letramento crítico busca engajar o aluno em uma atividade crítica através


da linguagem, utilizando como estratégia o questionamento das relações de
poder, das representações presentes nos discursos e das implicações que isto
pode trazer para o indivíduo em sua vida e comunidade” (MOTTA, 2008).

Alguns autores consideram a importância de que ele seja desenvolvido na leitura


de textos multimodais. Para esses autores que corroboram as ideias de Kress e Van
Leeuwen (2006, p. 12) de que as imagens são investidas de ideologia, a dimensão crítica
deve considerar as relações de poder presentes em qualquer texto. Para Callow (2012, p.
74), o letramento crítico oportuniza o leitor a reconhecer as escolhas e perspectivas
apresentadas em um texto por determinado autor e, a saber, analisar os discursos
implícitos sobre poder, gênero e questões sociais, políticas e culturais nos textos
imagéticos. Nesse sentido, Almeida (2011, p. 59), defende uma pedagogia crítica visual
que “visa capacitar os alunos a ler e pensar criticamente e não apenas a reproduzir o que
é lido”, mas habilitá-los a interagir com o texto para interpreta-lo, embora reconheça que
o letramento crítico é um dos desafios da prática docente.
A capacidade crítica é fundamental para que possamos diferenciar o que é certo e
errado em meio à internet.

4. A PESQUISA

Para desenvolvimento da pesquisa buscamos construir um conhecimento baseado


na pesquisa bibliográfica ou documental, que pôde ser realizada em fontes ou obras
primárias ou secundárias. Por pesquisa bibliográfica Fonseca explicita:

A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas


já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros,
artigos científicos, páginas de web sites. Qualquer trabalho científico inicia-se
com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador conhecer o que já
se estudou sobre o assunto. Existem, porém pesquisas científicas que se
baseiam unicamente na pesquisa bibliográfica, procurando referências teóricas
publicadas com o objetivo de recolher informações ou conhecimentos prévios
178

sobre o problema a respeito do qual se procura a resposta (FONSECA, 2002,


p. 32).

Optamos também pela coleta direta de dados realizada através da pesquisa de


campo. “A pesquisa de campo é aquela que recolhe dados in natura, como percebidos
pelo pesquisador. Normalmente, a pesquisa de campo se faz por observação direta,
levantamento ou estudo de caso.” (SANTOS. A. R, 2004).
Quanto ao instrumento da pesquisa, optamos pela observação direta e aplicação
de questionário direcionado a professores do 4º ano do Ensino Fundamental, realizada na
escola/Organização não Governamental (ONG) Centro Educacional Profissional do
Coroadinho, situada na Rua da Mangueira, 222, no bairro Coroadinho em São Luís-MA.

4.1 RESULTADO E DISCUSSÃO

Para apresentação da pesquisa de campo realizada, serão demonstrados através de


gráficos e quadros os resultados obtidos mediante respostas colhidas do questionário
aplicado. Ao todo, foram entrevistadas cinco professoras. A fim de preservar a identidade
e privacidade das mesmas, não serão divulgados nomes, referimos-nos a elas como
Professora A, Professora B e assim sucessivamente.
Gráfico 1: Idade

0.7
0.6
0.5
0.4
0.3
0.2
0.1
0
18 a 25 25 a 30 30 a 35 35 a 40 40 a 45 45 a 50 50 a 55 mais de
55

Fonte: CARVALHO (2019)

A primeira pergunta refere-se à idade. Das cinco entrevistadas, três encontram-se


entre 30 e 35 anos, uma entre 40 e 45 anos e outra entre 50 e 55 anos. Perante constatação,
podemos afirmar que a maioria está inserida no grupo dos “imigrantes digitais”, definidos
por Palfrey e Gasser (2011, p.13), como menos familiarizados com o ambiente digital, os
quais aprenderam ao longo da vida a utilizar as tecnologias como e-mails e redes sociais.
Reafirmamos aqui que alunos nativos digitais são ensinados por professores
imigrantes digitais, havendo diferença na forma em que os mesmos interagem e se
179

comunicam em sociedade. A formação do professor imigrante diferencia-se da forma


como seus alunos, nativos digitais percebem o mundo.

O cérebro dos “nativos” se desenvolveu de forma diferente em relação às


gerações pré-internet. Eles gostam de jogos, estão acostumados a absorver (e
descartar) grande quantidade de informações, a fazer atividades em paralelo,
precisam de motivação e recompensas frequentes, gostam de trabalhar em rede
e de forma não linear (TORI, 2010 p. 218).

Gráfico 2: Você utiliza algum recurso tecnológico digital em suas aulas?

NÃO
SIM
0% 20% 40% 60% 80% 100% 120%

Fonte: CARVALHO (2019)

O item 2 do questionário pergunta as professoras quanto à utilização de recursos


tecnológicos digitais em suas aulas. As respostas foram unanimes e afirmativas. Os
resultados obtidos nesta seção do questionário demonstram que as docentes já buscam
incluir as TDICs no cotidiano escolar, uma vez que perceberam a necessidade e anseio de
seus alunos em aprender de maneira diferente e, também de se reinventarem diante das
mudanças na educação. Durante as observações no campo de pesquisa, percebemos o uso
contínuo de alguns recursos digitais em sala de aula, principalmente notebooks.
Dentre algumas justificativas, vale ressaltar a visão das professoras de que as
tecnologias e os recursos tecnológicos são facilitadores e motivadores na construção de
conteúdos. De acordo com Kenski (2003), as tecnologias proporcionam recursos
didáticos extremamente dinâmicos na exploração do raciocínio no encaminhamento de
reflexões e na apropriação dos conhecimentos. Mediante as respostas designadas no
gráfico, é possível afirmar que as docentes tentam tornar o ensino mais significativo e
eficaz.

Quadro 1: Qual o recurso mais utilizado?

Professora A Notebook, internet, sala de informática.


180

Professora B Televisão, notebook, retroprojetor, celular, sala de informática.

Professora C Retroprojetor, notebook, sala de informática.

Professora D Sala de informática, notebook e data-show

Professora E Retroprojetor, sala de informática, notebook, televisão.

Fonte: CARVALHO (2019)

Após observações e análise das respostas, cabe ressaltar que todas as entrevistadas
utilizam recursos tecnológicos em suas práticas, é frequente a demonstração de conteúdos
por meio do data-show por exemplo, a própria escola instiga o uso através de projetos
realizados durante o ano letivo.
Constatamos também que a sala de informática é um ambiente utilizado por todas
as turmas de 4º ano presentes na escola. As professoras justificam o uso através do projeto
“SEMEANDO LEITORES, LER PRA VIDA”, em que é necessário que haja a inclusão
de recursos tecnológicos, pois um dos principais objetivos desse projeto é oferecer a as
crianças o despertar do gosto pela leitura. O projeto oferece a este público o acesso ao
mundo literário, através do acesso a biblioteca aliada ao uso de recursos tecnológicos
encontrados na sala de informática, buscando a inclusão no mundo da informatização.
Percebemos aqui que, a multimodalidade faz-se presente em sala de aula.
O item 3 visa averiguar os métodos que professores imigrantes digitais buscam
para sanar as dificuldades que encontram no manuseio de tecnologias digitais (Gráfico
3). Os resultados obtidos demonstram que a própria escola busca atualizar seus docentes
no meio tecnológico, oferecendo rodas de conversa e atividades socioeducativas. A
maioria das entrevistadas já participou de cursos de formação e oficinas sobre tecnologia
e continuam buscando se atualizar. É importante salientar, que apesar da idade, o uso de
recursos tecnológicos é constante. Cerca de 100% das entrevistadas, responderam não
possuir dificuldades no uso da tecnologia, tanto para uso profissional, quanto para uso
pessoal.

Gráfico 3: “Sente dificuldade em manusear as tecnologias digitais presentes na escola?


Quais os meios utilizados para sanar tal dificuldade?”
181

NÃO
0% 20% 40% 60% 80% 100% 120%

Fonte: CARVALHO (2019)

O gráfico 4 corresponde ao questionamento a respeito do interesse das crianças


nas aulas quando são utilizados recursos tecnológicos digitais. A resposta também é
unanime e positiva, visto que os alunos nativos digitais são atraídos pela inovação, por
tudo que foge do convencional e se desinteressam muitas vezes com a presença de aulas
monótonas e mecânicas. Segundo relato da Professora C, o uso de alguns recursos tem a
finalidade de “prender a atenção” das crianças perante alguns conteúdos e também ao
perceber o desinteresse da turma “principalmente em revisões” faz-se necessário uma
nova maneira de “passar o conteúdo”.
Seguindo essa lógica, observamos que,

A adaptação e absorção de novas tecnologias além de facilitar a aquisição de


conhecimento cria certa criatividade, juízo de valor, aumento da auto-estima
dos usuários, além de permitir que adquiram novos valores e modifiquem o
comportamento transformando as tarefas árduas, negativas e difíceis em algo
dinâmico, positivo e fácil (SOUZA, 2010, p. 2).

Gráfico 4: As crianças demonstram-se mais interessadas no conteúdo quando são


utilizados recursos tecnológicos?

SIM
0% 20% 40% 60% 80% 100% 120%
182

Fonte: CARVALHO (2019)

A penúltima seção explicitada no quadro 2 faz o seguinte questionamento: As


tecnologias utilizadas ajudam de alguma maneira no processo de ensino aprendizagem
das crianças?
As TDICs na área da educação, principalmente o computador, surgiram como uma
alternativa aliada no processo de ensino e aprendizagem. As mídias e as tecnologias que
atreladas a elas são projetadas como meios, considerando que seu uso e atribuição são
fundamentais para a integração profissional dos futuros cidadãos. As Tecnologias
Digitais de Informação e Comunicação proporcionam a dinamização de conteúdo em
diversas mídias, quando devidamente utilizadas possibilitam um maior interesse do aluno
através do envolvimento de seus múltiplos sentidos.
Para Moran (2012), avançaremos mais se soubermos adaptar os programas
previstos às necessidades dos alunos, criando contextos com o cotidiano, com o
imprevisível, pois com flexibilidade procuraremos adaptar-nos aos aspectos individuais,
respeitando os diversos ritmos de aprendizagem, integrando as diversidades locais e os
contextos culturais. O trabalho de sala de aula com o devido uso das TDICs ganha
agilidade, motivação e qualidade.

Quadro 2: As tecnologias utilizadas ajudam de alguma maneira no processo de ensino


aprendizagem das crianças?

“Sim, esses meios tecnológicos são importantes no processo


Professora A de alfabetização e letramento dos alunos. O objetivo é a
investigação por meio da pesquisa”.

“Acho que sim, se utilizada de forma pedagógica e


Professora B
contextualizada, pois as crianças já tem o convívio pessoal”.

“Sim, pois tendo em vista ser algo que chama e prende a


Professora C atenção, faz parte do convívio da criança e tem que fazer
parte na escola também”.

“Claro, pois as tecnologias são ferramentas facilitadoras da


aprendizagem, além do mais, os alunos já convivem com
Professora D
isso faz tempo e utilizando na escola de maneira positiva a
aprendizagem fica mais fácil”.

“Sim, pois chamam a atenção da turma. As crianças


demonstram mais interesse quando as aulas são na sala de
Professora E
informática ou tem algum recurso em sala de aula. Sendo
assim, a tecnologia pode auxiliar sim na aprendizagem”.
Fonte: CARVALHO (2019)
183

Diante respostas, podemos concluir que as docentes entrevistadas veem o uso de


recursos tecnológicos digitais como algo positivo e facilitador do processo de ensino
aprendizagem.
Na última seção do questionário direcionado as professoras, referida no quadro 3,
a indagação é sobre as TDICs no processo de multiletramento das crianças. Vivemos em
um contexto em que os meios de comunicação ou as mídias nos levam a necessidade de
saber ler, escrever, criar, interpretar, ouvir. Diante mudanças e inovações, vários são os
fatores que estimulam a escola a pensar no processo de ensino aprendizagem numa
perspectiva de desenvolvimento integral do sujeito. O conceito de letramento surgiu
devido à necessidade de uma palavra que nomeasse as práticas de leitura e escrita.
Segundo Magda Soares,

[...] o surgimento do termo literacy (cujo significado é o mesmo que


alfabetismo), nessa época, representou, certamente, uma mudança histórica nas
práticas sociais: novas demandas sociais pelo uso da leitura e da escrita
exigiram uma nova palavra para designá-las. Ou seja: uma nova realidade
social trouxe a necessidade de uma nova palavra (SOARES, 2003, p.29).

Os professores precisam, efetivamente, de novas ferramentas para a prática do


ensino de leitura e escrita, visto que vivemos numa sociedade de múltiplas linguagens,
múltiplas culturas e múltiplas formas de observar o mundo. Os multiletramentos partem
de uma aprendizagem da escrita verbal, mas também da não verbal, baseia-se no
reconhecimento e na participação dos alunos em práticas sociais. Dionísio (2014), parte
da premissa que “multiletrar” é, portanto, “desenvolver cognitivamente nossos alunos”
para as práticas de multiletramento presentes em nossa sociedade. Do ponto de vista da
aprendizagem, o multiletramento desenvolve habilidades diferentes, visto que exigem dos
alunos esforços mentais diversos.

Quadro 3: Você acredita que as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação


(TDICs) sejam aliadas do multiletramento das crianças? Faça um breve comentário:

“Sim, os meios tecnológicos são importantes nas práticas


pedagógicas que buscam o sucesso da turma, mas não deixo os livros
Professora A didáticos e paradidáticos, que também são minhas tecnologias, pois
também trabalham a leitura. Acredito que os dois podem andar
juntos”.

“Podemos dizer que sim, desde que bem aplicadas e conciliadas ao


Professora B conteúdo. Pode abrir portas para novas formas de aprender a ler e
escrever, de se comunicar e de observar o mundo”.
184

“Sim, são aliadas do letramento, pois as crianças de hoje já estão


nascendo em uma era tecnológica bem avançada, dos quais nós mais
Professora C velhos não usufruímos. É dever da escola acompanhar este avanço
fazendo sempre o paralelo com o antigo, pois um serve de base para
o outro”.

“Sim, pois as tecnologias hoje em dia oferecem aos alunos novas


formas de estudar, transformando aquele conteúdo chato em algo
Professora D legal. Elas podem aprender com músicas, através de um vídeo e até
mesmo trocando ideias com seus colegas, mas sem deixar de lado o
livro didático. Acredito que essa mistura é válida”.

“Acredito, pois o interesse dos alunos é enorme quando as aulas são


em vídeo por exemplo. As tecnologias tão aí pra nos ajudar, e na
Professora E escola não é diferente. As crianças hoje além de aprender com livros
didáticos, aprendem também através de jogos no celular, em textos
no computador, ouvindo músicas, etc”.
Fonte: CARVALHO (2019)

Após análise e levantamento de relatos durante a pesquisa de campo, fora possível


observarmos que de fato as professoras entrevistadas utilizam recursos tecnológicos
digitais constantemente, uma vez que a escola incentiva o uso e a interdisciplinaridade de
conteúdos por meio de seus projetos. Vídeo, áudio, imagem, tudo isso é extremamente
sedutor para os alunos.
Porém, observamos também que recursos e métodos tradicionais de alfabetização
e letramento como os livros didáticos impressos que também se caracterizam como textos
multimodais e multissemióticos, não são abandonados e sim aliados aos recursos
midiáticos presentes na escola. Uma vez que é de suma importância reconhecer as
problemáticas existentes na turma para elaborar métodos que alcancem
democraticamente todos os alunos, essa é uma prática favorável nesse processo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com as mudanças advindas das tecnologias na sociedade e também no âmbito


educacional, e com as salas de aula ocupadas cada vez mais por alunos nativos digitais,
surge a necessidade de atualização na maneira em que nos comunicamos, lemos e
interpretamos informações. Podemos afirmar que o avanço e a popularização da internet
ampliaram as formas de acesso e de construção do saber.
Em um país diversificado como o Brasil, a multiculturalidade é um fator
importante da nossa cultura. Assim como nossa sociedade, os textos inseridos no
cotidiano dos nossos alunos também são multiculturais e multimodais, oriundos
principalmente das redes sociais. Com avanços tecnológicos, os textos escritos com uma
forma semiótica apenas, deixaram de ser preferência na produção do conhecimento. Com
185

as tecnologias digitais, têm aparecido novas formas de interação e com isso novos modos
de escrita e leitura têm surgido, sendo necessária a ampliação dos conceitos de leitura e
escrita tradicionais.
Perante tantas mudanças, é indispensável repensarmos nas novas práticas de
leitura que nos levem além da tradicional decodificação e junção de símbolos que formam
palavras. É fundamental pensar no processo de letramento, pautado não só na
alfabetização, mas na leitura e escrita com finalidade social, atuando diretamente nas
habilidades de comunicação do indivíduo.
A sala de aula deve transformar-se num espaço democrático, visando à formação
integral de seus sujeitos, cabendo aos alunos à criação, aprender em ritmo próprio de
acordo com suas capacidades e se envolver em grupos que mais atendam suas
necessidades. Nesse modelo, a ideia é que professores e alunos possam ensinar e aprender
em tempos e locais diversos, além de buscar o desenvolvimento da autonomia dos alunos
para que possam trabalhar em grupos e compartilharem conhecimentos, usando
tecnologias digitais como aliadas nesse processo.

6. REFERÊNCIAS

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187

SOBRE AS ORGANIZADORAS

ANA LÚCIA ROCHA SILVA

Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará. Mestra em Linguística pela Universidade
federal do Maranhão Professora Associada do Departamento de Letras e do Programa de Pós-graduação
em Letras - Mestrado Acadêmico da UFMA, com atuação na área de estudos do discurso e argumentação,
aquisição da linguagem, morfologia derivacional e linguística aplicada ao ensino de língua portuguesa.
Coordenadora do Subprojeto de Letras - Língua Portuguesa do PIBID - São Luís. Graduada em Direito pela
Universidade CEUMA. E-mail: analurochas @ufma.br.

GEORGIANA MÁRCIA OLIVEIRA SANTOS

Doutora e Mestra em Linguística pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Professora do Curso de
Graduação em Letras Português-Espanhol do Departamento de Letras/UFMA e professora Permanente do
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras)/UFMA. Coordenadora do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Línguas, Memórias, Identidades e Culturas – GELMIC/CNPq e professora-pesquisadora do
Projeto Atlas Linguístico do Maranhão/CNPq e do Projeto Atlas Linguístico do Brasil/CNPq. Tem
experiência, sobretudo, na área de lexicologia, lexicografia, terminologia, etnoterminologia,
etnolinguística, dialetologia e geolinguística. E-mail: georgiana.marcia@ufma.br

MONICA FONTENELLE CARNEIRO

Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará, Mestra em Linguística também pela Federal
do Ceará, Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino das Línguas Materna e Estrangeiras e em Língua
Inglesa pela Universidade Federal do Maranhão, Graduada em Letras (Português/Inglês) também pela
Universidade Federal do Maranhão, Professora do Departamento de Letras e dos Programas de Pós-
Graduação em Letras - PGLetras e PGLB - assim como do Programa de Pós-Graduação em Direito e
Instituições do Sistema de Justiça - PPGDir, todos da Universidade Federal do Maranhão; Tem experiência
nas áreas de Letras e Linguística, com especial interesse na Linguística Cognitiva, Psicolinguística e
Linguística Aplicada, e foco voltado para Lingua(gem), Metáfora, Discurso e Ensino/ Aprendizagem de
Línguas Materna e Não Maternas. Participa, como pesquisadora, dos Grupos de Estudos e Pesquisas GELP-
COLIN/UFC, GELP-COLIN/UFMA, GEPELL/UFMA, GEPLA/UFC e GEFORLIN/IFMA. Participa,
também como pesquisadora e cordensdora da equipe brasileira do Projeto Internacional de Pesquisa
MetBib, desenvolvido pelas Universidades de Córdoba e La Rioja, Espanha, em parceria com a John
Benjamins Publishing Company Holanda. Suas publicações incluem capítulos de livros, artigos, bem como
organização de livros. E-mail: mf.carneiro@ufma.br
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