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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo – SP)

B222p Baptista, Lívia Márcia Tiba Rádis; Tonelli, Fernanda; Alexandre, Diego
(orgs.).
Pedagogias decoloniais e ensino plural de espanhol no Sul Global /
Organizadores: Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista, Fernanda Tonelli e
Diego Alexandre.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2023;
figs.; quadros.
E-book: 7Mb; PDF.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-866-4

1. Ensino de Línguas. 2. Formação de Professores. 3. Prática Pedagógica.


I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:


1. Educação. 370
2. Formação de professores – Estágios. 370.71
3. Métodos de ensino instrução e estudo– Pedagogia. 371.3
4. Linguagem / Línguas – Estudo e ensino. 418.007
Copyright © 2023 – Dos organizadores representantes dos autores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Revisão: Joana Moreira
Editoração: Vinnie Graciano
Capa: Acessa Design

PARECER E REVISÃO POR PARES


Os capítulos que compõem esta obra foram submetidos
para avaliação e revisados por pares.

CONSELHO EDITORIAL:
Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève – Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UNB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UNB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG – Belo Horizonte)

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Pedagogias decoloniais e pluralidade do espanhol: no caminho de
outras utopias possíveis 8
Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista
Fernanda Tonelli
Diego Alexandre

A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL LATINO-


AMERICANA: POR UMA EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA DECOLONIAL 18
Acassia dos Anjos Santos Rosa (UFS)
Daiane Santos Rodrigues (UFS)
Mariana Augusta Conceição de Santana Fonseca (UFS)

PERSPECTIVAS DECOLONIAIS PARA O ENSINO DAS LITERATURAS


HISPÂNICAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA
ESPANHOLA 44
Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza (UEL/UNIOESTE)

PERCURSOS OUTROS POR UM ITINERÁRIO DECOLONIAL: A LÍNGUA


ESPANHOLA NO CURRÍCULO DO NOVO ENSINO MÉDIO SERGIPANO 61
Antônio Carlos Silva Júnior (CODAP/UFS)
PERSPECTIVAS CRÍTICAS PARA O ENSINO DE ESPANHOL NA
ESCOLA: UMA REFLEXÃO DIDÁTICA SOBRE O TRANSLINGUISMO NO
CONTEXTO DO FUTEBOL 88
Antonio Ferreira da Silva Júnior (UFRJ)
Heloise Cosme de Sousa (UFRJ)
Júlia Cheble Puertas (UFRJ)
Marcelo Henrique Silva dos Santos (UFRJ)

O ENSINO DECOLONIAL DE ESPANHOL A PARTIR DA APRENDIZAGEM


BASEADA EM PROJETO NA EDUCAÇÃO BÁSICA 115
Camila de Souza Santos (UFMG)

MEMÓRIAS DA PANDEMIA DA COVID-19: IMAGINÁRIOS E


REPRESENTAÇÕES DECOLONIAIS NA SELEÇÃO DE MATERIAIS
E PRODUÇÃO DE PROPOSTAS DIDÁTICAS PARA O ENSINO DE
ESPANHOL NO BRASIL 136
Carla Dameane Pereira de Souza (UFBA)

EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA CUIR: PROPOSTAS PARA UM ENSINO


“RARO”, “TORCIDO” E DECOLONIAL DE LÍNGUA ESPANHOLA 159
Daniel Mazzaro (UFU)

POSSIBILIDADES DE SULEAR A EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA DO


ESPANHOL: A LITERATURA DA GUINÉ EQUATORIAL SOB OLHARES
EPISTÊMICOS E ONTOLÓGICOS DECOLONIAIS 184
Doris Cristina Vicente da Silva Matos (UFS)
Jakelliny Almeida Santos (PG-UFS)

“COMO (NÃO) ENSINAR O ESPANHOL...? – REVISITANDO O


CONCEITO DE LÍNGUA NACIONAL NA SALA DE AULA 209
Fernando Zolin-Vesz (UFMT)

EXPERIÊNCIAS EDUCACIONAIS PANDÊMICAS: EM BUSCA DE


MOVIMENTOS DECOLONIAIS PARA O ENSINO DE LÍNGUA
ESPANHOLA 219
Itamaray Nascimento Cleomendes dos Santos (PPGLinC/UFBA)
REFLEXÕES SOBRE UM MATERIAL DIDÁTICO PARA ALUNOS LGBTQIA+
ELABORADO A PARTIR DE UMA POSIÇÃO DECOLONIAL 242
Jorge Rodrigues de Souza Júnior (IFSP)

GÊNERO COMO DISPOSITIVO DECOLONIAL NA SALA DE AULA DE


ESPANHOL: UM OLHAR PARA O TRABALHO DE FABIÁN CHÁIREZ 264
José Veranildo Lopes da Costa Junior (UFPB)

ENTRE SENTIPENSARES E ARANDUS: PRÁTICAS DE ENSINO DO


ESPANHOL COMO LÍNGUA LADINO-AMEFRICANA 288
Natan Gonçalves Fraga (IFPR)

ABRINDO AS JANELAS DA LIBERDADE: ENSINO DE ESPANHOL À


POPULAÇÃO PRIVADA DE LIBERDADE 310
Thayane Silva Campos (UFRN)

EDUCAÇÃO MULTILETRADA E LÓCUS DE ENUNCIAÇÃO: ALGUNS


MEANDROS POSSÍVEIS PARA A AULA DE ESPANHOL 335
Tiago Alves Nunes (UFBA)
Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista (UFBA/PPGLinC/CNPq)

NOSSAS AUTORAS E AUTORES 361

SOBRE A ORGANIZAÇÃO 369


PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

APRESENTAÇÃO

Pedagogias decoloniais e pluralidade do espanhol:


no caminho de outras utopias possíveis

Este espaço de apresentação/prefácio cumprirá sua função de in-


troduzir em que consiste a nossa publicação, sendo entretecido de fa-
las que, em sua pluralidade e densidade, anunciam perspectivas outras
para o espanhol como língua cuja heterogeneidade constitutiva ocupa
vastos territórios. Uma língua que se transforma nas múltiplas práticas
de linguagem materializadas, ao construir sentidos e ao pintar com co-
res das mais diversas as telas possíveis de um mundo utopicamente de-
sejado, expandindo a palavra, nas lutas de resistências e de existências
que carregam em si outras vias de narrar e de narrar-se.
Sendo assim, aqui reportamos como cada autora e cada autor, par-
tícipe desta publicação, se percebe parte dessa trajetória, como se ins-
creve nela e como grava suas presenças e corporalidades na coleção
de vozes e textos constitutivos das vias plurais que se fazem presentes
nas “Pedagogias decoloniais e ensino plural de espanhol no Sul Global”,
que de modo esperançado toma forma, cor, tom e corpo.
Registramos as respostas de nossas autoras e autores que, sin-
gularmente, compõem essa constelação de textos, demarcando pos-
sibilidades para a proposição de uma educação emergente, profunda-
mente conectada com as pessoas e com a utopia como fonte-vida para

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

uma outra ética de mundo, ser, saber e poder. Por isso, suas vozes des-
tacam de que modo compreendem a importância de seu capítulo–e,
concretamente, do tema nele abordado–para o aqui e o agora.
Dito isso, passamos para o capítulo de abertura de autoria
de Acassia dos Anjos Santos Rosa, Daiane Santos Rodrigues e Mariana
Augusta Conceição de Santana Fonseca, intitulado “A representação fe-
minina na produção audiovisual latino-americana: por uma educação
linguística decolonial”. O tema em foco se torna parte deste conjunto
de texto e escrita e segundo as autoras:

A importância do capítulo parte do fomento de uma edu-


cação linguística decolonial que busca combater injustiças
sociais históricas, contra as fronteiras opressivas impostas
socialmente, referente ao gênero e suas interseccionalida-
des na América-Latina.
Acassia dos Anjos Santos Rosa
Abordar temáticas que estão próximas à realidade dos nos-
sos aprendizes, contribui para uma educação mais inclusi-
va e que dá ouvidos aos temas marginalizados pelos conhe-
cimentos eurocêntricos, evidenciando práticas decoloniais
vinculadas à educação linguística.
Daiane Santos Rodrigues

Quanto ao capítulo seguinte, intitulado “Perspectivas decolo-


niais para o ensino das literaturas hispânicas na formação de profes-
sores de língua espanhola”, consoante sua autora Adriana Aparecida
de Figueiredo Fiuza,

Não há dúvida sobre o relevante papel do ensino das litera-


turas hispânicas na formação de professores de língua es-
panhola que atuarão na educação básica no Brasil. Por esse
motivo, são importantes as reflexões sobre as abordagens
teóricas e as práticas decoloniais que adotamos nos cursos
de Letras.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

O capítulo de Antônio Carlos Silva Júnior, intitulado “Percursos


outros por um itinerário decolonial: a língua espanhola no currículo
do Novo Ensino Médio”, por sua vez, enfatiza como a língua espanhola
encontra seu lugar na escola e nas palavras do autor:

Com todos os impactos gerados nos últimos anos pela


reforma do Ensino Médio e a invisibilização da língua es-
panhola na Educação Básica brasileira, torna-se relevan-
te pensar estratégias outras para a educação linguística
em espanhol desde uma experiência de propositura cur-
ricular decolonial e reforçar seu papel educacional, social
e político na escola.

Na sequência, o capítulo assinado por Antonio Ferreira da Silva


Júnior, Heloise Cosme de Sousa, Júlia Cheble Puertas e Marcelo Henrique
Silva dos Santos, intitulado “Perspectivas críticas para o ensino de es-
panhol na escola: uma reflexão didática sobre o translinguismo no con-
texto do futebol”, trata das práticas translíngues como parte de uma
proposta de ensino crítico e decolonial, e, conforme seus autores:

Diante da polissemia do entendimento por “ensino “críti-


co” de línguas, o capítulo contribui com a reflexão sobre
a produção de materiais didáticos translíngues e a des-
construção de pensamentos coloniais na aula de espanhol
na Educação Básica.
Antonio Ferreira da Silva Júnior
A relação entre o futebol e o ensino de espanhol torna
o nosso trabalho relevante por serem assuntos que geram
discussão e fazem com que vejamos como a translingua-
gem se aplica fora do contexto de ensino.
Heloise Cosme de Sousa
O tema do futebol é de extrema importância porque
faz com que pensemos a translinguagem de uma manei-
ra mais aplicada, além de ser atual e de grande interesse
dos alunos.
Júlia Cheble Puertas

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Nosso trabalho apresenta grande relevância e originalida-


de não só para ensino de espanhol como língua adicional,
mas também é um caminho para pesquisas futuras relacio-
nadas ao âmbito da translinguagem. A associação do fute-
bol ao translinguismo é um tema profícuo que provocará
debates entre os discentes e docentes.
Marcelo Henrique Silva dos Santos

No próximo capítulo, de autoria de Camila de Souza Santos, inti-


tulado “O ensino decolonial de espanhol a partir da aprendizagem ba-
seada em projeto na Educação Básica”, a autora relata sua experiência
e sua prática e, neste sentido, ela nos diz que:

Eu escrevi meu capítulo com o objetivo de compartilhar


com outros docentes da área de espanhol em torno dos de-
safios de se promover a Interculturalidade em sala de aula
por meio de projetos.

Carla Dameane Pereira de Souza, autora do capítulo “Memórias


da pandemia da covid-19: imaginários e representações decoloniais
na seleção de materiais e produção de propostas didáticas para o en-
sino de espanhol no Brasil”, se volta para a pandemia que nos afetou
e entende a importância de seu texto, considerando que

Todos nós, como humanidade, enfrentamos a pandemia


da COVID-19 e dela somos sobreviventes. Meu capítulo
é importante por trazer à baila a memória recente des-
sa pandemia. Suas representações no imaginário cultu-
ral e seus impactos na educação, em especial, no ensino
de língua espanhola no Brasil.

O capítulo “Educação Linguística CUIR: propostas para um ensino


“raro”, “torcido” e decolonial de língua espanhola”, de autoria Daniel
Mazzaro nos desafia a confrontar as perspectivas tradicionais e seus

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

desdobramentos nas identidades de gênero e sexualidade e, sendo as-


sim, para o autor

A importância de “Educação Linguística Cuir” está na pro-


posta de “estranhar” convicções, moralidades e fixações
relacionadas ao sexo, gênero e sexualidade por meio
de uma atividade de leitura crítica em língua espanhola
sobre os muxes, uma concepção de sexo/gênero da cultura
zapoteca (México), a fim de desafiar as perspectivas tradi-
cionais e promover uma compreensão mais inclusiva e di-
versa da linguagem e identidades de gênero e sexualidade.

Já o capítulo “Possibilidades de sulear a educação linguística


do espanhol: a literatura da guiné Equatorial sob olhares epistêmicos
e ontológicos decoloniais”, de Doris Cristina Vicente da Silva Mato
e Jakelliny Almeida Santos apresenta uma proposta de educação lin-
guística suleada. Nesse sentido, ao referir-se ao capítulo, as autoras
afirmam

A importância está em visibilizar uma proposta de educa-


ção linguística decolonial por meio da literatura hispano-
-africana da Guiné Equatorial, possibilitando que outras
histórias e escrevivências tenham espaço nos estudos
hispânicos, suleando saberes e contemplando múltiplas
ontoepistemologias.

Para Fernando Zolin-Vesz, autor do capítulo “Como (não) ensi-


nar o espanhol…?- Revisitando o conceito de língua nacional na sala
de aula”, sua temática é importante pois

Em tempos em que os pilares fundadores da concepção


de Estado-Nação são constantemente abalados pela con-
juntura que constitui o mundo contemporâneo, revisi-
tar a concepção de língua nacional, um daqueles pilares,

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

mostra-se ainda mais imperante, principalmente em sala


de aula.

O capítulo de Itamaray Nascimento Cleomendes dos Santos inti-


tulado “Experiências educacionais epidêmicas: em busca de movimen-
tos decoloniais para o ensino de língua espanhola”, a autora ressalta
a necessidade de revisitarmos nossas práticas e em suas palavras:

Pensarmos em uma educação decolonial para o ensino


de espanhol significa desaprendermos as bases com as
quais a educação brasileira se constituiu e advogar, me-
diante os diversos recursos, muitos dos quais ainda hege-
mônicos, uma dialética de resistência a esses pilares.

Jorge Rodrigues de Souza Júnior, autor do capítulo “Reflexões


sobre um material didático para alunos LGBTQIA+ elaborado a partir
de uma posição decolonial”, problematiza o material didático e os ten-
sionamentos que esse promove e, sendo assim, entende que

O tema em destaque no capítulo é de extrema importân-


cia para o debate sobre a heteronormatividade e de outros
padrões normativos impostos desde uma posição eurocên-
trica. Uma postura decolonial como a abordada pelo texto,
ao sulear saberes e sentidos relacionados às diversas for-
mas de vida e de corpos, possibilita um espaço democrático
de discussão sobre a diversidade de identidades de orien-
tação sexual em nossa sociedade.

O capítulo de José Veranildo Lopes da Costa Junior, intitula-


do “Gênero como dispositivo decolonial na sala de aula de espanhol:
um olhar para o trabalho de Fabián Cháirez”, discute a categoria gê-
nero como mecanismo estruturante do poder e, desse modo, segundo
seu autor,

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

O capítulo publicado é relevante para a compreensão


da categoria gênero enquanto mecanismo que estrutu-
ra as bases de um projeto de poder colonial. Na América
Latina, especialmente, nossa discussão pode contribuir
com práticas de ensino de língua espanhola que coloquem
no centro da sala de aula o respeito aos direitos humanos
e a possibilidade de ser e existir em um mundo marcado
pela pluralidade.

O seguinte capítulo, de autoria de Natan Gonçalves Fraga, inti-


tulado “Entre sentipensares e arandus: práticas de ensino de espanhol
como língua ladino-amefricana” nos leva a discutir as práticas de lin-
guagem na sala de aula e nas palavras de seu autor:

Espero que meu capítulo contribua para que o concei-


to de arandu se faça presente em nossa práxis docen-
te, que traga a reflexão/ação sobre formas outras de ser,
conhecer e aprender deslegitimadas pela colonialidade,
e que nos provoque sobre as ideologias que estão presentes
nas práticas de linguagem em nossas salas de aula.

Quanto ao capítulo “Abrindo as janelas da liberdade: ensino de es-


panhol à população privada de liberdade”, Thayane Silva Campos foca-
liza o ensino de espanhol como possibilidade em um contexto ainda
pouco visibilizado e, neste sentido, para a autora,

Atuar com o ensino do espanhol na educação prisional


é perceber que além de possibilitar o acesso desse pú-
blico a uma nova língua, também é necessário dialogar
com os educadores sobre a existência de um campo de atu-
ação dentro das prisões abrindo, assim, las ventanas de la
libertad.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

O capítulo de Tiago Alves Nunes e Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista,


“Educação multiletrada e lócus de enunciação: alguns meandros pos-
síveis para a aula de espanhol” se defende uma educação decolonial
e para tanto reafirma o lócus de enunciação como fundamental. Desse
modo, é necessário

Compreender a importância do lócus de enunciação no fo-


mento de práticas multiletradas no ensino e aprendizagem
de espanhol favorece desenvolver habilidades e competên-
cias que enriquecem o repertório sociocultural e linguísti-
co de modo crítico do alunado.

Por fim, o capítulo que encerra nossa coletânea, de autoria


de Valdiney da Costa Lobo, intitulado “Educação linguística de ree-
xistência no ensino remoto da UNILA: práticas decoloniais”, traz para
nossa publicação a experiência de suas práticas nesse universo e, con-
soante o autor,

O tema do meu capítulo pode vir a contribuir para se re-


pensar a educação linguística de espanhol, em contextos
síncronos e assíncronos, desde uma perspectiva reflexiva
e crítica, evidenciando dois aspectos: a produção de ma-
teriais didáticos na opção decolonial e as práticas linguís-
tico-discursivas que enunciam da(s) fronteira(s) e além
dela(s).

Desse modo percebemos que todos os capítulos dialogam entre


si e expandem nossa leitura de vida-mundo para além da linearidade
e obviedade; reforçam a pluralidade de pedagogias decoloniais emer-
gentes nos mais diversos contextos educativos em que o espanhol toma
parte e alcança protagonismo. O diagrama a seguir sintetiza esse diálo-
go entre os autores e suas ideias:

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Diagrama 1 – Intersecções entre as temáticas dos capítulos

Fonte: Os organizadores (2023).

Como se nota, as temáticas exploradas no livro se articulam en-


tre si e respondem às demandas de uma pedagogia decolonial voltada
ao ensino de espanhol. De modo mais amplo, as ideias apresentadas
na obra, quando “costuradas”, representam uma proposta de currículo
decolonial – objeto fundamental à construção de uma outra escola e de
sujeitos que possam, a essa instituição, lhe dar vida e sentido. Assim,
mais do que a noção de currículo educativo decolonial, nota-se o hori-
zonte de um caminho utópico desejável e possível que podemos trilhar.
E que estamos trilhando.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Longe de uma única via para a educação e para o ensino de espa-


nhol e de línguas, se desenham possibilidades desafiadoras para res-
ponder às inúmeras e complexas “demandas demandadas” (BAPTISTA,
2022) que se fazem sentir em um país tão complexo como o nosso, in-
serido no Sul Global. Acreditamos, portanto, não ser possível transfor-
mar sem agir, sem confrontar e modificar as colonialidades do ser, sa-
ber e poder, especialmente, no que diz respeito à educação como amplo
movimento social, do qual somos instados a participar cotidianamente.
Agregando-se, para tanto, práticas decoloniais/contracoloniais.
Agradecemos a vocês, autoras e autores, pela parceria e pela par-
tilha, por se somarem a esta proposta, tornando-a exequível, concreta,
sonora, pulsante de vida. Igualmente desejamos que a leitura se amplie
e que essa publicação se presentifique e se corporifique.

Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista


Fernanda Tonelli
Diego Alexandre
Junho de 2023

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA PRODUÇÃO


AUDIOVISUAL LATINO-AMERICANA: POR UMA
EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA DECOLONIAL

Acassia dos Anjos Santos Rosa (UFS)


Daiane Santos Rodrigues (UFS)
Mariana Augusta Conceição de Santana Fonseca (UFS)

Introdução

Segundo Freitas (2021), no âmbito escolar, a concepção de ensinar


está relacionada ao domínio de determinados conhecimentos, no geral
disciplinares. No caso das línguas estrangeiras, muitas vezes, se valo-
riza apenas o domínio da estrutura gramatical ou mesmo habilidades
que envolvem a compreensão e expressão oral. Porém, sabemos que o
estudo de uma língua não pode ser reduzido ao domínio de habilida-
des, visto que seu uso está intrinsecamente relacionado com a socie-
dade, possibilitando o contato com emoções, identidades, memorias,
valores, culturas, entre outras. Sendo assim, escolhemos para nosso
trabalho o termo educação linguística que, segundo Freitas (2021), en-
globa, além do ato de ensinar, outras concepções não necessariamente
limitadas aos conhecimentos disciplinares. Dessa forma, é fundamen-
tal que a educação linguística não se centre em vozes hegemônicas,
diversificando suas representações em sala de aula.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

A proposta de educação linguística aqui analisada se situa no cam-


po da Linguística Aplicada (doravante, LA) que se caracteriza como
uma área que acolhe o sulear (SILVA JÚNIOR; MATOS, 2019), que per-
mite diálogos com outras ciências e que dispõe de um compromisso so-
cial bastante relevante, uma vez que abre espaço para epistemologias
outras. Sendo assim, este capítulo se centra na LA da desaprendizagem
(FABRÍCIO, 2006), a qual é marcada por seu caráter indisciplinar, a par-
tir das teorias transgressivas que atravessam fronteiras convencionais
para desenvolver uma nova agenda de pesquisa. A noção de transgres-
são permite questionar e problematizar o pensamento, os conceitos
e ação tradicionais, o que acaba por nos auxiliar a compreender o pro-
cesso de opressão, gerando espaço para atuação e mudança.
Por meio da Linguística Aplicada suleada, a linguagem é tida
como um processo dinâmico e como um trabalho coletivo, bem como
tem um papel crucial na construção de teorias a partir das práticas so-
ciais dos grupos minoritarizados1 e, assim, leva a novas configurações
sobre as formas de compreender o mundo. Dessa maneira, a LA tem a
necessidade de se envolver com os contextos históricos, culturais, ge-
ográficos e políticos para que seja problematizada com base em seus
propósitos de uso da linguagem.

Após tantas transformações e fases de (re)construção


de suas identidades, influenciadas por fatores sociais,
históricos, ideológicos e políticos, ensinar uma língua es-
trangeira passou a ser caracterizado como um ato não só
linguístico, mas também sociopolítico [...]. Assim, a lín-
gua como prática social e os sujeitos como parte de um
contexto real de sociedade passaram a constituir um dos
cernes da educação linguística, questionando o (não) lu-
gar do Sul e difundindo práticas decolonizadas. (SILVA
JÚNIOR; MATOS, 2019, p. 102).

1 Utilizamos o termo minoritarizados para indicar que nem sempre tais grupos (negros, mu-
lheres, indígenas...) são minorias em números, mas passam por um processo de silencia-
mento, sofrendo a ação de serem minoritarizados.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

A partir dessas reflexões, acreditamos na necessidade de uma


educação linguística em espanhol que contemple as vozes do Sul, su-
leando os debates dentro e fora da sala de aula. Nesse sentido, a pers-
pectiva decolonial amplia as possibilidades epistêmicas, promovendo
a integração dos grupos marginalizados e minoritarizados em relação
ao gênero, à sexualidade, à raça, etc. (MOITA LOPES, 2006) nas pesqui-
sas, nos materiais didáticos e na atuação do professorado em classe.
Diante do exposto, neste capítulo apresentamos os resultados
do projeto de extensão “Educação linguística em espanhol: um olhar
para a representação feminina na produção audiovisual latino-ame-
ricana”, mais especificamente os obtidos da mostra “La periferia gri-
ta, nosotras(os) queremos escucharla” realizada em fevereiro de 2022
na Universidade Federal de Sergipe. A ação buscou vídeos produzidos
e/ou protagonizados por mulheres cis e trans, que descrevem e denun-
ciam injustiças e preconceitos por elas vividos. A análise, aqui apre-
sentada, ocorreu a partir dos seguintes questionamentos: i. o que é ser
mulher; ii. quais violências as mulheres sofrem e iii. quais os modos
de autoafirmação e visibilização das identidades femininas. Antes
da análise, fizemos um breve levantamento teórico sobre o que enten-
demos sobre a perspectiva decolonial e suleada que nos fundamenta
em nossas ações.

A perspectiva decolonial e suleada

Esta seção apresenta algumas considerações relevantes sobre


a decolonialidade e as concepções baseadas na criticidade e desconstru-
ção de ideais hegemônicos da sociedade moderna. Iniciamos a discus-
são a partir da definição da perspectiva decolonial tratada por Mignolo
(2015, p. 11):

Una práctica político-intelectual que se distingue por ha-


cer la crítica de la modernidad desde [...] su exterior: que se
atreve, en definitiva, a cuestionar las palabras en que se sos-

20
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tiene el mundo moderno: belleza, ciencia, civilización,


democracia, desarrollo, Estado, ley, mercado, objetividad,
progreso, razón, universalismo (MIGNOLO, 2015, p. 11).

O autor conceitua a perspectiva decolonial como uma práti-


ca questionadora a ser seguida em vários âmbitos sociais, uma vez
que a decolonialidade surgiu pela necessidade de propor ferramentas
para desconstruir padrões históricos impostos pelo eurocentrismo.
Entender a colonialidade é interpretar toda uma disposição profunda
e duradoura das relações racistas de poder impostas pelo colonialis-
mo (QUIJANO, 2009). Essa matriz colonial do poder é “uma estrutura
complexa de níveis entrelaçados”, sendo que esses níveis controlam
a sociedade moderna através de sua economia, autoridade, natureza,
gênero, sexualidade e conhecimento (MIGNOLO, 2010, p. 12).
Desse modo, a raça se tornou o elemento de análise das gran-
des questões contemporâneas e a base para o pensamento decolonial.
O fato de as questões raciais serem o eixo do controle de poder surgiu
durante a constituição do continente americano. Para Quijano (2009),
na época da colonização, conquistadores e conquistados eram marca-
dos pelas diferenças fenotípicas que situavam a uns em situação de su-
perioridade e a outros na de inferioridade racial. A ideia de raça surgiu
baseada nessas diferenças e se tornou o principal elemento constituti-
vo das relações de poder, deste modo, não se tinha conhecimento dessa
concepção racial antes da vinda dos europeus à América.

De acordo com a interpretação do Movimento Negro e de


vários estudiosos do campo das relações raciais no Brasil,
raça é entendida, aqui, como uma construção social e his-
tórica. Ela é compreendida também no seu sentido políti-
co como uma ressignificação do termo construída na luta
política pela superação do racismo na sociedade brasileira.
Nesse sentido, refere-se ao reconhecimento de uma dife-
rença que nos remete a uma ancestralidade negra e africa-
na. Trata-se, portanto, de uma forma de classificação social

21
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

construída nas relações sociais, culturais e políticas brasi-


leiras (GOMES, 2011, p. 02).

Conforme Quijano (2000), a partir das relações sociais dos diferen-


tes grupos, apareceram novas identidades: índios, negros e mestiços,
na medida em que elas se configuravam, se formavam assim, as rela-
ções de dominação. À vista disso, raça e identidade racial se estabele-
ceram como instrumentos de classificação social da população, em que
algumas identidades foram associadas às hierarquias raciais e outras
à servidão. É nesse contexto que surge o processo de colonialidade
na América, em um panorama histórico escravocrata, que subalterniza
os países, mesmo quando se tornam ex-colônias. A perspectiva decolo-
nial surge, então, para expor e problematizar resquícios da colonização
fundamentada na racialização (MALDONADO-TORRES, 2007).
Em face disso, segundo Botelho (2020, p. 73), os estudos decolo-
niais emergiram por meio de discussões sobre a modernidade do ponto
de vista da América Latina. Além da Filosofia, da Antropologia e de ou-
tras teorias, os grupos culturais, de saberes locais indígenas e afrodes-
cendentes da América Latina, são base para o pensamento decolonial.
Dessa forma, percebemos que a perspectiva decolonial também surgiu
dos que estão na margem2, zona em que as fronteiras opressivas es-
tabelecidas por categorias como raça, gênero, sexualidade e domina-
ção de classe são questionadas, desafiadas e descontruídas (KILOMBA,
2019, p. 68).
Além de o prisma decolonial surgir dos sujeitos da periferia, in-
telectuais latino-americanos igualmente constituíram um grupo fun-
damental para defender o argumento pós-colonial, o chamado Grupo
Modernidade/Colonialidade (GM/C). O coletivo foi integrado no final

2 Os termos “margem” e “centro” foram usados, em 1952, por bell hooks (2019), e, posterior-
mente, utilizados por Kilomba (2019), em Memórias da Plantação. Estar na margem é ser
parte do todo, mas fora do corpo principal. Os negros, afrodescendentes, indígenas, mesti-
ços, chicanos etc. fazem parte da margem.

22
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

dos anos 90 e é conhecido por apresentar a noção “giro decolonial”,


termo cunhado por Maldonado-Torres.

Assumindo uma miríade ampla de influências teóricas,


o M/C atualiza a tradição crítica de pensamento latino-a-
mericano, oferece releituras históricas e problematiza ve-
lhas e novas questões para o continente. Defende a opção
decolonial – epistêmica, teórica e política – para compre-
ender e atuar no mundo, marcado pela permanência da co-
lonialidade global nos diferentes níveis de vida pessoal
e coletiva (BALLESTRIN, 2013, p. 89).

Nesse sentido, o giro decolonial estimula o questionamento


e uma desobediência epistêmica, com o intuito de sair da lógica da mo-
dernidade, porém não negando as suas contribuições (BOTELHO, 2020,
p. 80). Para isso, ele promove o espaço para teorias outras. Seguindo
essa lógica, a perspectiva é semelhante ao conceito de “SULear” (orien-
tar para o Sul), que traz outras vozes latino-americanas para o deba-
te e questionamento da hegemonia ocidental (KLEIMAN, 2013). Esse
termo representa o posicionamento crítico às representações geradas
pelo “pensamento eurocêntrico dominante a partir do qual o Norte
passou a ser apresentado como referência universal” (SILVA JÚNIOR,
2022, p. 339).
De acordo com Moita Lopes (2006), corroborado por Kleiman
(2013), contemplar “as vozes do Sul” é buscar promover a construção
de conhecimento de outras vozes, isto é, de outros indivíduos que se
posicionam na periferia ou à “margem do eixo euro-norte-americano
de produção de conhecimentos” (KLEIMAN, 2013, p. 41). Essa concep-
ção foi pensada para a elaboração de um programa de pesquisa a fim
de mudar as estruturas elitistas e arcaicas. A partir desse ponto de vista,
o “norteamento” se torna o “suleamento”, nas palavras de Paulo Freire
(1992), de nossa atividade acadêmica. Vale ressaltar, que o Sul não ne-

23
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

cessariamente é geográfico, mas epistêmico (SILVA JÚNIOR; MATOS,


2019).
Nesse sentido, este trabalho busca seguir essa perspectiva, expan-
dindo nosso olhar “para aqueles que são colocados em uma posição
de desprestígio nas variadas e injustas hierarquias sociais, culturais,
políticas e econômicas” (SILVA JÚNIOR, 2022, p. 348). Como o tema
central deste capítulo se insere na análise da representação feminina
na produção audiovisual latino-americana, especificamente na mostra
intitulada “La periferia grita, nosotras(os) queremos escucharla”, nos pro-
pomos abordar as questões das mulheres de forma que são explorados
diversos aspectos, partindo de suas realidades como indígenas, negras,
trans, cis, lésbicas etc. Com a implementação da mostra, foi possí-
vel abrir lacunas para as mulheres envolvidas na ação denunciassem
as diferenças raciais e as de gênero como legitimação da inferiorização
em diversas arestas da ótica moderna/colonial. Desse modo, os discur-
sos decoloniais utilizados por essas mulheres confrontam os valores
tradicionais impostos pelo poder patriarcal.
Conforme Gonzalez (1988, p. 78), toda linguagem é epistêmi-
ca e ela deve contribuir para o entendimento de nossa realidade.
Assim, percebemos como a linguagem é a principal atuante para todo
ato de resistência. Dessa forma, “as/os da margem” podem se encontrar
na condição humana e conhecer, questionar, expressar-se e contar suas
histórias, rompendo os obstáculos impostos pela concepção colonial.
A decolonialidade é uma direção programática, um propósito global,
horizontal e de longa duração que se busca alcançar (VERONELLI, 2015,
p. 37). Sendo assim, nós, como educadoras e linguistas aplicadas, temos
o nosso papel de continuar nessa caminhada, abrindo espaço para ou-
tros saberes, outras línguas/linguagens, outras culturas, para que essas
possam expressar-se e recuperar a sua história escondida de maneira
que surjam por meio de um ato político (KILOMBA, 2019).

24
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Em nossa análise, focaremos nas representações de mulhe-


res na América Latina, buscando novas formas de recriar e repensar
as concepções decoloniais, sobretudo as feministas. Lugones (2008, p.
94) aponta que as mulheres nem sempre foram vistas como tal, sendo
a raça fator decisivo para sua situação social: “Las hembras no-blan-
cas eran consideradas animales en el sentido profundo de ser seres ‘sin
género’3, marcadas sexualmente como hembras, pero sin las caracte-
rísticas de la femineidad”. Assim, mulheres foram marcadas por sua
raça, sexualidade e classe social, em constituições coloniais do gênero.
A fim de superar tais fronteiras opressivas históricas (KILOMBA, 2019),
corroboramos com a Red de Feminismo Descolonial (2014) ao afirmar
que buscamos raízes epistêmicas e filosóficas que nos permitam desco-
brir, recriar e repensar o pensamento colonial feminista.

Rescatar la tradición intelectual feminista, desde ‘abajo y a


la izquierda’, implica mucho más que elaborar un análisis
feminista utilizando las referencias y criterios epistemo-
lógicos establecidos. Se requiere de una epistemología fe-
minista descolonizante, que no reproduzca las dicotomí-
as y binarismos que se encuentran en la base de la lógica
epistémica denominada occidental (RED DE FEMINISMOS
DESCOLONIALES, 2014, p. 461).

Reiteramos a importância de ouvirmos outras vozes para perceber-


mos que não há apenas uma concepção sobre o ser mulher, mas várias
possibilidades que se compõem e se contrapõem dependendo da situa-
ção que tal mulher se encontre. Nesse sentido, ressaltamos que a pers-
pectiva decolonial busca a superação de colonialidades estabelecidas,
tais quais: a do poder (MIGNOLO, 2010; QUIJANO, 2009), a do saber e a
do ser (MALDONADO-TORRES, 2007) e as suas reproduções, das quais
destacamos: a colonialidade de gênero (LUGONES, 2008) e a da lingua-
3 Nota original da autora: “Es importante distinguir entre lo que significa ser pensado como
si no se tuviera género en virtud de que uno es un animal, y lo que implica no tener, ni
siquiera conceptualmente, ninguna distinción de género. Es decir, el tener un género no es
una característica del ser humano para toda la gente” (LUGONES, 2008, p. 94).

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

gem (VERONELLI, 2015). Com isso, salientamos o papel da educação


linguística para a difusão dessa perspectiva decolonial para o feminis-
mo, visto que não é uma concepção fechada, mas sim um espaço aberto
para reflexões e recriações.

Por uma educação linguística decolonial: o caso de um proje-


to de extensão

Entendemos a língua como sendo um “fenômeno histórico que se


constitui e se renova na vida e através de seus falantes” (MENDES,
2022, p. 131), sendo uma prática não apenas social, mas também polí-
tica e ideológica. Dessa forma, a educação linguística, seja na educação
básica, seja na formação de professores, se caracteriza como um pro-
cesso amplo que não se limita à sala de aula, tampouco a regras e es-
truturas gramaticais.

Entendemos por educação linguística o conjunto de fa-


tores socioculturais que, durante toda a existência de um
indivíduo, lhe possibilitam adquirir, desenvolver e ampliar
o conhecimento de/sobre sua língua materna, de/sobre
outras línguas, sobre a linguagem de um modo mais ge-
ral e sobre todos os demais sistemas semióticos (BAGNO;
RANGEL, 2005, p. 36).

Reiteramos que a educação linguística em espanhol não se limi-


ta a instruir a aquisição de uma nova língua, é necessária a reflexão
de fatores externos à linguagem escrita, explorando multimodalidades
e fatores socioculturais, em outras palavras, é uma busca pela formação
integral dos envolvidos. Freitas ressalta as dimensões a serem conside-
radas num processo de educação linguística:

(1) da competência linguístico-discursiva do estudante


por meio da produção de sentidos, de textos e de reflexões
sobre a língua e sobre a linguagem; (2) do pensamento

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

crítico sobre questões socialmente relevantes que se ma-


terializam em textos verbais, imagéticos e verbo-visuais
(FREITAS, 2021, p. 6).

No fragmento anterior, Freitas (2021) destaca que a materializa-


ção dos textos, que veiculam questões socialmente relevantes, pode
ocorrer em diversas modalidades, que não apenas os textos verbais.
Dessa forma, em uma educação linguística em espanhol, é importante
a seleção de textos que, além de carregarem uma multiplicidade cultu-
ral, possam explorar diversas modalidades textuais, a fim de proporcio-
nar múltiplas possibilidades de identificação e compreensão dos textos.
Assim, consideramos as multiplicidades existentes: “a multipli-
cidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de cons-
tituição dos textos por meio dos quais ela se informa e se comunica”
(ROJO; MOURA, 2012, p. 13). Bagno e Rangel (2005) detalham que não
apenas a estética dos textos deve ser observada, mas principalmente,
as representações e apagamentos que elas carregam. A partir da pro-
posta da educação linguística pode-se proporcionar múltiplos saberes,
dos quais:

[...] evidentemente, também fazem parte as crenças, su-


perstições, representações, mitos e preconceitos que cir-
culam na sociedade em torno da língua/linguagem e que
compõem o que se poderia chamar de imaginário linguís-
tico ou, sob outra ótica, de ideologia linguística Inclui-se
também na educação linguística o aprendizado das normas
de comportamento linguística que regem a vida dos di-
versos grupos sociais, cada vez mais amplos e variados,
em que o indivíduo vai ser chamado a se inserir (BAGNO,
RANGEL, 2005, p. 36).

A partir disso, escolhemos trabalhar com textos audiovisuais,


em especial os que representem mulheres latino-americanas em re-
des socais e plataformas digitais disponíveis na internet. Consideramos

27
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

que textos audiovisuais proporcionam a difusão de uma multiplicidade


de vozes e discursos (ROJO; MOURA, 2012), potencializando a divul-
gação de estéticas, culturas e ideologias subalternizadas. Assim sur-
giu a proposta do projeto de extensão intitulado “Educação linguística
em espanhol: um olhar para a representação feminina na produção au-
diovisual latino-americana” que teve como objetivo mobilizar licencian-
das e licenciandos para elaborar e implementar mostras audiovisuais
de representação feminina latino-americana na perspectiva decolonial
e suleada. Com isso, pretendíamos escutar vozes comumente silencia-
das e marginalizadas, estimulando uma formação de docentes que pre-
param seu material questionando as colonialidades estabelecidas.
A ação de extensão ocorreu entre abril de 2021 e março de 2022
e contou com a participação de dez alunos e alunas de graduação, duas
colaboradoras, discentes de pós-graduação e uma professora coor-
denadora do projeto. O projeto foi dividido em três fases: a primeira
foi constituída da formação e base teórica a ser estudada. Nessa fase
lemos textos que tratavam sobre temas como: decolonialidade, sulear,
feminismo e feminismo negro, sendo uma fase que gerou vários debates
e aprofundamento nos assuntos abordados. A segunda fase se consti-
tuiu na divisão do grupo em três subgrupos, responsáveis por organizar
mostras audiovisuais de mulheres latinas para a comunidade interna
e externa à UFS. Além dos estudantes de graduação, cada mostra con-
tou com a supervisão das pós-graduandas e da professora coordenado-
ra. A terceira e última fase constituiu-se da implementação das mos-
tras elaboradas pelos discentes, intituladas: 1. Mulheridades: las voces
de la revolución; 2. La periferia grita, nosotras(os) queremos escucharla
y 3. Mujer(es) indígena(s): el origen de nuestros pueblos.
As divisões das mostras são baseadas nas áreas culturais latino-a-
mericanas propostas por Pizarro (2004), que considera questões de tra-
dição e cultura para o estudo e compreensão da América Latina. Para
Rosa (2022, p. 27), a compreensão das áreas propostas por Pizarro é uma
forma de “ampliar as possibilidades de estudo para a América Latina,

28
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

a partir de outros olhares que não geográficos, e que fujam dos reducio-
nismos e estereótipos, muitas vezes atribuídos a este espaço”.
As mostras tiveram duração de cerca de duas horas cada, com no
mínimo quarenta minutos para debate. Os gêneros escolhidos para
exibição foram audiovisuais a fim de explorar as multimodalidades
presentes nos textos, auxiliando na compreensão das identidades fe-
mininas retratadas na América Latina que, vão além do texto escrito,
já que são representadas nos corpos, nas vozes e expressões femininas
frequentemente apagadas e renegadas.
Dessa forma, buscamos visibilizar as lutas feministas na América
Latina na contemporaneidade, como também os desafios gerados pelas
colonialidades que reiteradamete oprimem e matam essas mulheres.
Especificamente na mostra La periferia grita, nosotras(os) queremos es-
cucharla, que escolhemos para este trabalho, vemos a questão da raça
totalmente relacionada com as lutas e resistências dessas mulheres,
as quais estão descritas na próxima seção.

A mostra: decolonizando práticas docentes

A mostra intitulada La periferia grita, nosotras(os) queremos es-


cucharla foi produzida por duas graduandas e um graduando dos cur-
sos de Letras com habilitação em espanhol da Universidade Federal
de Sergipe (UFS). A elaboração da mostra foi supervisionada por uma
estudante de mestrado do curso de pós-graduação em Letras (PPGL/
UFS), sob a orientação da Profa. Dra. Acassia dos Anjos Santos Rosa.
A implementação da mostra ocorreu de forma remota no dia 17 de fe-
vereiro de 2022, por meio da plataforma Google Meet, e foi aberta a toda
comunidade interna e externa da UFS. Vale destacar que, ao lançar-
mos as inscrições via o Sistema Integrado de Gestões de Atividades
Acadêmicas (SIGAA/UFS), o público-alvo estimado se limitava aos alu-
nos e às alunas do curso de Letras com habilitação em espanhol da UFS,
no entanto, tivemos a grande surpresa pela procura de alunos e alunas

29
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de outras áreas, como, por exemplo, jornalismo, história e audiovisual,


totalizando cinquenta inscritos.
O título escolhido La periferia grita, nosotras(os) queremos es-
cucharla, foi uma tentativa de expressar a importância de ouvirmos
outras vozes, evitando invisibilizações de uma população que se movi-
menta e se expressa em uma luta constante pelos seus direitos de igual-
dade. Buscamos, desta forma, contemplar “as vozes do Sul” (MOITA
LOPES, 2006; KLEIMAN, 2013). Como mediadora da mostra, foi convi-
dada uma mulher trans, aluna de graduação e participante do projeto.
Assim, a mostra priorizou a diversidade de corpos do meio periférico,
considerando os que estão à margem (KILOMBA, 2019) evidenciando
corpos trans, cis, lésbicas, negros, e como esses corpos são excluídos
alvos de preconceitos de gênero ou racial.
Para compor o material transmitido, os graduandos e as graduan-
das envolvidos e envolvidas buscaram vídeos relacionados à temática,
totalizando quatro vídeos, sendo duas canções e duas entrevistas, des-
critos a seguir:

● A primeira canção apresentada se intitula: 1. Ser el grito, canta-


da por Eme, cantautora e ativista peruana, que se define como
não-binarie e trans. Seu repertório é composto, principalmente,
por músicas andinas e crioulas, tradicionais da costa do Peru.
● Já a segunda canção selecionada, tem como título: 2. Ni una a me-
nos, do grupo argentino Chocolate Remix, reguetón lésbico e fe-
minista. A canção leva o mesmo nome do movimento feminista
iniciado na Argentina que defende a proteção das mulheres frente
à violência machistas que frequentemente acaba em feminicídio.
● Na sequência, o vídeo escolhido foi uma entrevista: 3. Mujeres
trans quieren un mundo más libre e igual que tem como entrevis-
tadas mulheres trans que explicam como as famílias as recebe-
ram e todas as lutas que as enfrentavam no seu contexto social.
Os temas abordados no vídeo são: transexualidade, discrimina-

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ção, deficiência física e HIV de países como Honduras, México


e Estados Unidos.
● Por fim, o último vídeo utilizado, 4. Ser mujer y negra
en Latinoamérica, apresenta relatos de mulheres negras que lutam
pelo direito de igualdade racial em seus países e que são referên-
cias para outras mulheres. As entrevistadas são: Shirley Campbell
(costarriquenha), Mariah Rafaela Silva, (brasileira) e Jennifer
Parker (estadunidense).

Para análise, consideramos os pontos centrais dos vídeos, tais


quais: i. o que é ser mulher; ii. quais violências as mulheres sofrem
e iii. quais os modos de autoafirmação e visibilização das identidades
femininas.
Entre outras discussões, a mostra buscou debater o que é ser mu-
lher na América Latina e como este conceito é visibilizado ou não. Para
isso, ao longo da apresentação foram representadas mulheres jovens,
idosas, cis, trans, negras, brancas, com deficiência física e HIV de países
como Peru, Argentina, Honduras, México, Brasil, Costa Rica e Estados
Unidos–este último do norte geográfico, mas com representações fe-
ministas de um Sul epistêmico (SILVA JUNIOR; MATOS, 2019). São mu-
lheres que mesmo com todas as ações de preconceitos e exclusão social
vivenciadas, não deixam que ninguém as silencie, revelando uma gran-
de força feminina, conforme o seguinte fragmento:

ser la carne innegable


ser la cuerpa que no entiende
ser en vida resistência
ser y hacer herencia
(Vídeo 1: música Ser el grito, Eme e Ruth Torres)

A canção Ser el grito expressa as múltiplas lutas cotidianas en-


frentadas pelas mulheres que são obrigadas a ‘ser resistência’ para
sobreviver. Ao usar a palavra feminina “Corpa” a canção levanta

31
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

questionamentos e inquietações, visto que usa o feminino em uma pa-


lavra dicionarizada como masculina, repensando o uso da linguagem
(VERONELLI, 2015). Ao mesmo tempo, o videoclipe da canção apresen-
ta várias imagens de mulheres trans, com roupas e maquiagens colori-
das, visibilizando corpos, constantemente silenciados, propondo rup-
turas do saber e do ser (MALDONADO-TORRES, 2007). A música Ser el
grito apresenta, ainda, diferentes pessoas do movimento LGBTQIA+
gritando pelas ruas e mostrando seus corpos, para toda sociedade.
Ser mulher também foi caracterizado por um prisma da diversi-
dade no terceiro vídeo apresentado. A entrevista realizada pelo Centro
de Informação da ONU, com o título Mujeres trans quieren un mundo
más libre e igual, apresenta uma diferença etária, visível pela apre-
sentação dos corpos das personagens, como também uma diversidade
de personalidades perceptível pela exposição das metas de vida destas
mulheres. Muitas se apresentam como sonhadoras e resistentes mesmo
diante de muitas adversidades e violências vividas. Assim, as mulheres
são retratadas como resilientes diante das adversidades e tentativas
de minoritarização social, buscando a desconstrução da colonialidade
do poder (MIGNOLO, 2010; QUIJANO, 2009).
No quarto vídeo, Ser mujer y negra en Latinoamérica, fica evidente
a luta pela amplificação do orgulho étnico racial e celebração a suas
identidades. Há um incentivo a união das mulheres, na medida em que
há um estímulo a denúncias perante situações de discriminação racial.
A diversidade de representações sobre as possibilidades de ser mulher
na América Latina apresentada nos vídeos contribui para a decoloniali-
dade do gênero (LUGONES, 2008). Ser mulher, então, não configura ape-
nas uma concepção patriarcal de submissão da mulher, mas sim, mu-
lheres diversas que enfrentam violências diversas por serem quem são.
O segundo ponto analisado versa sobre os tipos de violência so-
fridos pelas mulheres representadas na mostra, que vão desde violên-
cias sexuais à raciais, passando por violação de direitos como o registro

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

do nome social e liberdade de ir e vir. Percebemos que as violências


não são iguais para todas as mulheres, como é o caso das mulheres
LGBTQIA+, sobretudo as trans:

Y ser el grito grito


un grito en cuerpo
que el silencio nada cambia
y nos cansamos de escondernos.
(Vídeo 1: música Ser el grito, Eme)

Na última linha do fragmento percebemos a repressão social so-


frida pelas pessoas LGBTQIA+, expressada pelo desabafo dos que já es-
tão cansados de se esconder, em outras palavras, de poder ser quem
são, conforme explicita a Red de Feminismo Descolonial (2014). O vídeo
Mujeres trans quieren un mundo más libre e igual ressalta que para as mu-
lheres trans ser mulher é passar por situações de violação e discrimi-
nação durante toda a sua vida, iniciando pelo desprezo da sua família:

Empieza la discriminación a muy temprana edad, a vives


desde el primer contacto con tu familia. Se puede decir
que se percatan que tú no vas a ser exactamente un hom-
bre a lo largo de tu vida (Karen).
Desafortunadamente para mi familia esta noticia no fue
muy alentadora, no fue buena y aun así, con todo que yo
me esforzaba lo logré hacer con que me entendieran (Alice)
(Vídeo 3: Mujeres trans quieren un mundo más libre e igual)

Destacamos que nem sempre a violência vem de longe, a violência


cotidiana começa dentro da comunidade em que vivem ou até mesmo
no ambiente familiar, a partir do momento que as mulheres passam
a compreender quem são. Não seguir os padrões normativos as fazem
passar por inúmeras formas de violência como o abandono, o julga-
mento e a agressão física, que podem gerar consequências devastado-
ras por toda vida dessas mulheres.

33
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Yo, a la mitad del camino, decidí irme por el camino de las


drogas y todo eso me llevó a las calles y trabajaba como
trabajadora sexual y hasta había mucho dinero, había
muchísimo dinero. Hay muchos riesgos en la calle. A mí,
me golpearon, me violaron y vivo con VIH desde ese mo-
mento (NICKY). (Video 3: Mujeres trans quieren un mundo
más libre e igual)

Percebemos, assim, que as formas de violência sofridas pelas


mulheres as levam a caminhos de mais violência e opressão, em bus-
ca de meios de sobrevivência os quais são aceitas, como por exemplo,
o mundo das drogas e prostituição. Destacamos que as fronteiras opres-
sivas atuam de acordo com a raça, o gênero, a sexualidade e a classe
(KILOMBA, 2019), colocando mulheres em situações de mais agressi-
vidade e violência.
A canção 2, Ni uma a menos, em toda sua extensão aborda ques-
tões de violência de gênero e direitos das mulheres. O título da canção
é o mesmo que carrega o movimento feminista na Argentina, motivo
para mencionar movimentos sul-americanos que lutam e se consti-
tuem por mulheres, a exemplo dos movimentos argentinos “Encuentros
Nacionales de Mujeres y en la Campaña Nacional por el Derecho al Aborto
legal, seguro y gratuito” e “Madres y Abuelas de Plaza de Mayo” e do mo-
vimento chileno “Un violador en tu camino”. A canção faz uma denúncia
aos crimes de violência sexual e física, criticando os que põem a culpa
da agressão na vítima por estar usando uma roupa curta ou o ambiente
que a mulher frequenta. A seguir, os primeiros versos da canção:

No hay excusa para cubrir al que abusa


Aquí llegó pa’ molestarte esta intrusa
Todas las que mataste hoy son mi musa
Yo voy a aclararte esas ideas confusas, mente obtusa,
que importa si llevaba escote o blusa?
El problema no es la ropa que usa
Que no eres el culpable y que yo soy una ilusa

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Culpable, es todo aquel que no acusa


Complicidad se llama este juego, ya dejemos de hacernos
los ciegos
Vamos cabrón que yo no valgo tu ego, vamos que aquí
nos están prendiendo fuego. (Video 2: música Ni una
a menos, Chocolate Remix)

Na canção apresentada podemos observar que há um incentivo


à denúncia de crimes sexuais e outras formas de violência contra a mu-
lher. Outro ponto marcante é a constituição de seu videoclipe, gravado
em 2017, que mostra várias agressões contra uma personagem princi-
pal, gerando cenas marcantes de dor e sofrimento e percebe-se o alerta
e a mensagem a ser transmitida.
As imagens representadas no vídeo clipe vão descrevendo como
as mulheres que sofrem agressões físicas e carregam tais marcas
não apenas sobre o corpo, mas também na alma, perdendo a alegria
de viver. Essas questões são perceptíveis pela característica multimodal
que o vídeo carrega (ROJO; MOURA, 2012).
O vídeo 4 “Ser mujer y negra en Latinoamérica” denuncia formas
de racismo contra as mulheres negras e todo seu processo de apaga-
mento social. Ao assistirmos o vídeo, percebemos o importante discur-
so presente na entrevista e as indagações relatadas de injustiça, crítica
ao racismo desenvolvida pelos governantes e o preconceito. Nesse sen-
tido, ressaltamos a importância de uma educação linguística (FREITAS,
2021) que busque uma formação em sintonia com os problemas sociais
que afetam o cotidiano dos estudantes, em busca de decolonização
dos feminismos, conforme apontado pela Red de feminismos descolo-
niales (2014).
Para a resistência contra as colonialidades impostas socialmente,
é preciso a compreensão e afirmação das identidades minoritarizadas.
Desta forma, no terceiro e último ponto da análise dos vídeos selecio-
nados para a mostra, buscamos compreender quais os modos de au-

35
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

toafirmação e visibilização das identidades femininas. Nas imagens


presentes no videoclipe da canção Ser el grito, há a bandeira LGBT, sim-
bolizada pela bandeira com as cores do arco-íris, como também a ban-
deira do transgênero, com listras rosa e azul. Destacamos assim, a com-
preensão de que nosso corpo e a nossa identidade devem ser expostos
e respeitados sem que haja uma repressão do orgulho LGBTQIA+.
O vídeo 2, Ni una a menos apresenta um alerta de que não deve-
mos desculpar a um abusador e que as vestimentas não são motivos
para que a mulher seja ou esteja querendo ser abusada. E que ‘culpado,
são aqueles que não acusam’, pois apoiam homens agressores e que
não respeitam a liberdade feminina. Deste trecho, é importante ponde-
rar que não podemos culpabilizar a vítima pela denúncia não realizada,
visto que na maior parte das vezes, a vítima está fragilizada, com medo
do agressor e sem apoio para realizar a denúncia. Dessa maneira, en-
tendemos que “os culpados” aos que a letra se refere são pessoas ex-
ternas à agressão, que poderiam denunciar, mas se omitem. Seguindo
com a composição, destacamos o refrão que faz questionamentos sobre
a mulher sair ou está sozinha em determinados locais, bem como o jul-
gamento sobre o que ela está usando no seu corpo.

Si se fue de casa, ni una menos


Si se puso minifalda, ni una menos
Si se pintó los labios, ni una menos
Ni una menos
Ni una menos
Ni una menos
Si baila reggaetton, ni una menos
Si te dejó por otro, ni una menos
Si vuelve tarde a casa, ni una menos
Ni una menos
Ni una menos
Ni una menos (Vídeo 2: música Ni una a menos,
Chocolate Remix)

36
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

No fragmento anterior, observamos a denúncia e a relevância


da mulher ter liberdade ao sair de casa, ao usar uma saia curta, ao estar
com batom nos lábios, ao dançar ou até mesmo terminar um relacio-
namento e iniciar outro. São fatores que por diversas vezes, são consi-
derados, por parte da sociedade, como mecanismos intencionais, para
que a mulher seja culpada por ter sido assediada ou até mesmo mor-
ta. E com a repetição da frase “nenhuma a menos”, destacamos como
se fosse um grito de que, independentemente de como esteja a mulher,
essas atitudes de violência de gênero devem ser dirimidas da sociedade,
em uma decolonização do gênero (LUGONES, 2008). A letra da canção
também faz um convite para que as mulheres façam o que quiserem
com o seu corpo.

Vamos mujer baila hasta abajo, menea con esa pollera de tajo
Ponte si quieres una tanga debajo, haz con tu cuerpo lo que
quieras qué carajos.
Vamos mujer baila hasta abajo, menea con esa pollera de tajo
Ponte si quieres una tanga debajo, haz con tu cuerpo lo que
quieras qué carajos. (Vídeo 2: música Ni una a menos,
Chocolate Remix)

No quarto vídeo, “Ser mujer y negra en Latinoamérica”, as entre-


vistas apresentam, entre outras formas de lutar, para o posicionamento
político em prol de políticas públicas que busquem dirimir as diferenças
raciais presentes em nossa sociedade, visto que a raça é fator imperan-
te nas relações de opressão impostas pelo colonialismo, conforme ex-
plicita Quijano (2000). Uma ação prática apontada é a retirada das está-
tuas que simbolizam a repressão e genocídio vivenciado nas Américas.

Tirar abajo todas las estatuas de Colón, Sarmiento,


de Bolívar, de toda la gente que significó, que son referen-
tes hoy en día, pero en realidad son genocidas. (Jennifer
Parker). (Vídeo 4: Ser mujer y negra en Latinoamérica)

37
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

A proposta de retirar as estátuas dos colonizadores e personalida-


des que, de algum modo, contribuíram para o genocídio nas Américas,
representa a busca pela desconstrução de vozes hegemônicas imperan-
tes, sobretudo as brancas, dando espaço a outras vozes e representa-
ções, com vistas para o Sul, numa perspectiva suleada (MOITA LOPES,
2006; KLEIMAN, 2013; SILVA JUNIOR; MATOS, 2019; SILVA JUNIOR
2022). Ainda nesse vídeo, as entrevistadas denunciam a falta de leis
e regulamentações que possam coibir ações racistas que afetam diaria-
mente a população negra.

Nuestros países, la mayoría, Brasil es una excepción, no te-


nemos leyes que penalicen el racismo. El racismo camina
impune por las calles de nuestros países, no tenemos leyes.
Cualquiera dice lo que le da la gana o hace lo que le da
la gana y no se puede castigar por injuria racial (Shirley
Campbell).
(Vídeo 4: Ser mujer y negra en Latinoamérica)

Desta forma, é fundamental uma consciência política que ressalte


ações inclusivas e ações preconceituosas e colonizadoras que possam
gerar identificação por parte da sociedade que se encontra em lugar
de privilégio social. Ao final da exposição dos vídeos, tivemos aber-
tas as discussões com os ouvintes, que relataram como os vídeos fo-
ram significativos e fortes para tocarem e chamaram a atenção atra-
vés do audiovisual. Após a realização da mostra foi possível perceber
a identificação das participantes, muitas se reconheceram e consegui-
ram compreender o seu lugar e importância de adesão a movimentos
de lutas contra hegemônicas.
A partir da implementação da proposta, podemos afirmar que o
projeto pode contribuir tanto no âmbito profissional dos discentes en-
volvidos, como no âmbito pessoal, uma vez que houve sensibilização
às pautas apresentadas. Consideramos que a perspectiva decolonial
é algo a ser vivido, não apenas um componente curricular escolar,

38
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

mas faz parte de uma percepção de compreensão do mundo, compon-


do, o que denominamos educação linguística (FREITAS, 2021).
Percebemos, assim, que o trabalho em grupo favoreceu bastan-
te as trocas de conhecimento, como também a identificação que esses
alunos e alunas passaram a ter com o material exibido, passando a se
ver e se permitir conhecer o outro, no material apresentado. Por fim,
consideramos que a dimensão audiovisual dos vídeos gerou sensibi-
lização na medida em que potencializou a compreensão do que se es-
cutava, via e sentia. Deste modo, foi possível observar as representa-
ções de diversas mulheres, sejam cis ou sejam trans e suas lutas diárias,
em busca da ruptura de colonialidades estabelecidas.

Considerações finais

O caminho trilhado durante o projeto e a exposição da mostra


contribuiu para abrir novos horizontes para trabalharmos com os es-
tudos decoloniais na formação dos graduandos e graduandas. Podemos
(re)pensar a vida dos nossos estudantes e abordamos temáticas rela-
cionadas ao social e contribuindo para que outras pessoas sejam ouvi-
das e diferentes narrativas compartilhadas, sendo relevante evidenciar
aspectos históricos que auxiliem a compreensão da estrutura colonial
que hierarquiza e organiza nossa sociedade e ainda mantém em uma
relação subalternizada, marcada pela racialização (QUIJANO, 2009;
MALDONADO-TORRES, 2007). As produções audiovisuais seleciona-
das para a mostra buscaram expor a exclusão, a violência de gênero
e racial vivenciadas pelas mulheres latino-americanas, na mesma me-
dida, evidenciaram a luta por igualdade de gênero e justiça social que as
militantes da causa feminina requerem.
Após análise, percebemos que a mostra possibilitou a discussão
sobre: i. o que é mulher; ao longo da apresentação foram represen-
tadas mulheres jovens, idosas, cis, trans, negras, brancas, com defici-
ência física e HIV de países como Peru, Argentina, Honduras, México,

39
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Brasil, Costa Rica e Estados Unidos, buscando formas de desconstrução


da colonialidade do saber e do ser (MALDONADO-TORRES, 2007); ii.
quais violências as mulheres sofrem, que vão desde violências sexuais
à raciais, passando por violação de direitos como o registro do nome
social e liberdade de ir e vir, propondo rupturas da colonialidade po-
der (MIGNOLO, 2010; QUIJANO, 2009); e, por fim, iii. quais os modos
de autoafirmação e visibilização das identidades femininas, nos quais
é importante a participação em lutas coletivas para o fortalecimen-
to das identidades com símbolos e representações sobre as bandeiras
as quais as mulheres se identificam, buscando a desconstrução da co-
lonialidade de gênero (LUGONES, 2008). Além disso, é fundamental
o registro de abusos como denúncias que ajudem a encontrar os agres-
sores. Por fim, ressaltamos que se faz necessária a criação de políticas
públicas inclusivas que contribuam para a ruptura das fronteiras opres-
sivas (KILOMBA, 2019).

Referências

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

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42
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Referências dos vídeos utilizados na mostra

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jun. de 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dNe23z088SY.
Acesso em: 18 abr. 2022.
CINU México. Mujeres trans quieren un mundo más libre e igual. YouTube.
1 vídeo (2min 46 seg.). 1 de dez. de 2020. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=ujOEoycqTQA. Acesso em: 19 abr. 2022.
DW Historias Latinas. Ser mujer y negra en Latinoamérica. YouTube.
1 entrevista (26min 01 seg.).1 de jul. de 2020. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=5yIusaXd9jg. acesso em: 19 abr. 2022.
EME Música. Ser el grito. YouTube. 1 videoclipe (4 min 24 seg.) 29 de
jun de 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-Ciwa_
WjDEw&t=24s. Acesso em: 18 abr. 2022.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

PERSPECTIVAS DECOLONIAIS PARA O ENSINO


DAS LITERATURAS HISPÂNICAS NA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DE LÍNGUA ESPANHOLA

Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza (UEL/UNIOESTE)

Considerações iniciais – Por onde começar a pensar o capítulo?

A pergunta que compõe esta seção tem relação com a própria pro-
posta decolonial com sua prática única de decolonizar o pensamento,
ao propor um formato diferente de se fazer pesquisa e também de divul-
gá-la. Em outras palavras, questionar-se sobre por onde começar o ca-
pítulo e explicitar esse questionamento para quem lê é antes de tudo
uma prática decolonial, que rompe com a estrutura do texto acadêmico
tradicional, bem como escrever sobre suas experiências em primeira
pessoa, especificando um sujeito decolonial, na medida em que her-
damos um formato universitário europeu, que propõe uma estrutura
rígida do trabalho acadêmico.
Escrever esse texto me traz muitas lembranças da época da minha
própria formação como estudante de Letras na Universidade Estadual
Paulista (UNESP), campus de Assis – SP e de como meus professores
e minhas professoras de Literaturas de Língua Espanhola foram im-
portantes para o sólido processo de leituras e formação didática, pre-
ocupando-se com as articulações entre literatura, história, sociedade,

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

crítica literária e ensino. A minha geração de professores dá um passo


a mais nas questões pedagógicas ao estabelecer uma ponte entre o que
se ensina nas universidades e o que se leva para as escolas na educa-
ção básica.
Dito tudo isso, passo agora para as considerações iniciais do texto,
na tentativa de me aproximar do tema proposto aqui.
Não há dúvida sobre o relevante papel que desempenha o ensino
das literaturas hispânicas na formação de discentes que atuarão como
professoras e professores de língua espanhola na educação básica
no Brasil. Por esse motivo, tornam-se relevantes as discussões de nossas
práticas e abordagens nessas disciplinas nos cursos de Letras nos quais
trabalhamos. O presente capítulo parte de minha inquietação como
docente no ensino superior, sempre ministrando disciplinas voltadas
para a área de literatura, e tem por objetivo refletir acerca da formação
inicial de professores de língua espanhola nos cursos de Licenciatura
em Letras, principalmente, em relação ao papel que exercem as litera-
turas hispânicas neste processo.
Essa (auto)reflexão sobre o ensino das Literaturas Hispânicas
é algo que vem permeando minha prática docente desde quando iniciei
a carreira como professora no curso de Letras – Espanhol, primeiramen-
te, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), no cam-
pus de Foz do Iguaçu e, na sequência, no campus de Cascavel. Agora,
já em outra instituição, na Universidade Estadual de Londrina (UEL),
a mesma inquietação continua no sentido de buscar novas possibili-
dades e perspectivas para as aulas de Literaturas de Língua Espanhola,
com o objetivo de contribuir para a formação de novos leitores, que se
apropriem de uma visão crítica, politizada e, se se pode afirmar assim,
democrática da literatura.
Importante também destacar que o ensino das literaturas é algo
que sempre esteve presente nos cursos de licenciatura em Letras –
Espanhol, como tratam Mario González e Silvia Inés Cárcamo, no ar-

45
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tigo “Los estudios sobre Literatura Española en Brasil en el siglo XX”,


publicado no ano 2000 no Anuario brasileño de estudios hispánicos.
No respectivo texto, os autores apresentam um panorama históri-
co do surgimento das disciplinas de Literaturas de Língua Espanhola
nas universidades brasileiras, bem como do desenvolvimento
das pesquisas na área, apontando para as contribuições dos programas
de pós-graduação aos estudos de Literaturas Hispânicas, sobretudo
da Literatura Espanhola que, a princípio, se sobrepunha aos estudos
da Literatura Hispano-americana.
No entanto, torna-se primordial salientar que os estudos lite-
rários de obras em língua espanhola apareciam como uma espécie
de mundo à parte da formação docente, uma vez que eram discipli-
nas voltadas mais para o exercício da crítica literária, desvinculando-
-se muitas vezes das atividades de formação docente. Nesse sentido,
muitos estudantes não conseguiam estabelecer um vínculo das obras
que liam com a sua futura prática pedagógica na educação básica, dan-
do inclusive uma impressão de hierarquia entre pesquisadores da área
de literatura e professores de língua espanhola da educação básica, ex-
plicitando uma dicotomia dentro do próprio curso de Letras.
No texto “En torno al sentido de la enseñanza de las literaturas
de lengua española en la universidad brasileña” (2018), González refina
o debate sobre o ensino das literaturas, ao ponderar que “el prestigio
era de la Literatura” (GONZÁLEZ, 2018, p. 35). Em otras palabras, isso
significa que na década de 1960, nos cursos de Letras, era comum que os
estudos literários se sobrepusessem ao ensino da língua espanhola,
como preconiza González, ao afirmar que os conhecimentos linguísti-
cos tinham por objetivo principal “que los alumnos entendiesen al profe-
sor de Literatura, pudiesen leer los textos y que después usasen esa lengua
en sus intervenciones y trabajos sobre Literatura” (GONZÁLEZ, 2018, p.
34).

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Tal constatação sobre as dificuldades de se valorizar o ensino


da língua espanhola não é nova e, no texto “Literatura e Formação
de Professores” (2012), Silvia Cárcamo traz outra reflexão acerca
do processo de ensino das literaturas de línguas estrangeiras e mencio-
na a necessidade de buscar novas metodologias, novos temas e víncu-
los com a realidade dos alunos que estão na universidade e necessitam
passar por uma formação de leitores, já que estarão mediando conteú-
dos culturais na sala de aula.
Uma tentativa de modificar essa realidade da dicotomia entre te-
oria e prática foi a inserção das Práticas como Componente Curricular
(PCC) nos cursos de licenciatura. A partir das Resoluções CNE/CP 1/2002
e CNE/CP 2/2002 (BRASIL, 2002a, 2000b), a prática docente precisa es-
tar presente durante todo o período de formação, ultrapassando a tra-
dicional formação 3+1 das licenciaturas, marcada por três anos de for-
mação teórica e um ano de formação prática, normalmente, no último
ano do curso, com os estágios obrigatórios na educação básica.
Com as novas diretrizes, os cursos de Letras tiveram que refor-
mular seus projetos pedagógicos para propiciar o contato com as ques-
tões práticas desde o início, e, assim sendo, disciplinas que antes eram
apenas teóricas tiveram que estabelecer uma ponte que levasse esse
conhecimento para a sala de aula na escola. Foi o caso das literaturas
hispânicas em muitos cursos das universidades brasileiras. Na terceira
parte do capítulo apresento uma experiência docente com as práticas
como componente curricular em uma abordagem decolonial, na tenta-
tiva de criar possibilidades para levar a literatura de língua espanhola
para a educação básica.
Após essa breve contextualização histórica, passo à discussão
a respeito do pensamento decolonial e sua contribuição para ressignifi-
cações da abordagem do ensino das literaturas e das culturas de língua
espanhola nos cursos de Letras – Espanhol.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

O pensamento decolonial e o feminismo

Conforme discorre Luciana Ballestrin (2013) no artigo “América


Latina e o giro decolonial”, o Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C),
formado por diversos intelectuais da América Latina a partir dos anos
de 1990, trouxe um importante movimento epistemológico para a reno-
vação crítica, ao reivindicar “a radicalização do argumento pós-colonial
no continente por meio da noção de ‘giro decolonial’” (BALLESTRIN,
2013, p. 89). Tal movimento teve por objetivo a atualização do pensa-
mento crítico em relação à América Latina, possibilitando releituras
da história e das culturas que envolvem o continente, defendendo a
“opção decolonial” – epistêmica, teórica e política – para compreender
e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global
nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva” (BALLESTRIN, 2013,
p. 89).
Rompendo com os estudos pós-coloniais e subalternos, por con-
siderar ser necessário buscar uma episteme que desse conta de tra-
tar especificamente das questões do espaço e da história da América
Latina, Walter Mignolo (1998), um dos fundadores do Grupo M/C,
propõe uma reflexão acerca da pós-colonialidade, ao questionar
se o conceito de descolonização seria suficiente para abarcar e explicar
o contexto latino-americano. Para explicar sua ponderação, Mignolo
se apoia nas ideias de Roberto Fernández Retamar e considera que a
categoria de “posoccidentalismo” seria mais pertinente para referir-se
ao nosso continente “en vez de “posmodernismo” y “poscolonialismo”
(MIGNOLO, 1998, p. 03).
Catherine Walsh é quem sugere o termo “decolonial” em uma
nota de rodapé do livro Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes
de resistir, (re)existir y (re)vivir (2017). Nessa publicação, a autora afir-
ma que

Dentro de la literatura relacionada a la colonialidad del po-


der, se encuentran referencias —incluyendo en este mismo

48
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

libro— tanto a la descolonialidad y lo descolonial, como


a la decolonialidad y lo decolonial. Su referencia dentro
del proyecto de modernidad/colonialidad inicia en 2004,
abriendo así una nueva fase en nuestra reflexión y discu-
sión. Suprimir la “s” es opción mía. No es promover un an-
glicismo. Por el contrario, pretende marcar una distinción
con el significado en castellano del “des” y lo que puede
ser entendido como un simple desarmar, deshacer o rever-
tir de lo colonial. Es decir, a pasar de un momento colonial
a un no colonial, como que fuera posible que sus patrones
y huellas desistan en existir. Con este juego lingüístico, in-
tento poner en evidencia que no existe un estado nulo de la
colonialidad, sino posturas, posicionamientos, horizontes
y proyectos de resistir, transgredir, intervenir, in-surgir,
crear e incidir. Lo decolonial denota, entonces, un camino
de lucha continuo en el cual se puede identificar, visibilizar
y alentar “lugares” de exterioridad y construcciones alter-
-(n)ativas (WALSH, 2017, p. 24-25).

É também Walsh (2017) quem enfatiza que o ativismo é uma


questão prioritária para os estudos decoloniais, uma vez que permite
que se leve a teoria para a prática, em outras palavras, a autora consi-
dera que muito mais que teorizar sobre a decolonialidade é necessário
viver a prática decolonial por meio das lutas e da construção de uma
experiência diversa, que forma parte de um projeto de vida.
Outro autor importante para os estudos decoloniais é o peruano
Aníbal Quijano, que partilha o conceito de colonialidade do poder para
explicar a permanência do sistema colonial na modernidade/contem-
poraneidade. Nesse sentido, Luciana Ballestrin pondera que Quijano
“exprime uma constatação simples, isto é, de que as relações de colo-
nialidade nas esferas econômica e política não findaram com a destrui-
ção do colonialismo” (BALLESTRIN, 2013, p. 99), o que permite enten-
der como esse pensamento colonialista ainda está presente nas mais
variadas esferas, entre elas, a da educação.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

María Lugones, por sua vez, expande os conceitos de Quijano


ao discutir a interseccionalidade entre raça, classe, gênero e sexuali-
dade. Lugones considera que “Quijano presupone una compresión pa-
triarcal y heterosexual de las disputas por el control del sexo y sus recursos
y productos. Quijano acepta el entendimiento capitalista, eurocentrado
y global de género” (LUGONES, 2008, p. 78). Desta maneira, a autora
parte em direção a um feminismo decolonial, contra hegemônico e vi-
sibilizando a pluralidade das mulheres da América Latina.
Esse é um ponto teórico que me interessa para o desenvolvimento
de minha prática docente, que pretende abrir, inserir, ainda que nas
fissuras das ementas dos cursos, obras e autores que permitem esta-
belecer discussões a partir da interseccionalidade, pensando as inter-
-relações entre as categorias de gênero, raça/etnia, classe social e de
orientação sexual (COLLINS; BILGE, 2021) para a análise da produção
das literaturas hispânicas.

Experiências da formação decolonial para o ensino das lite-


raturas hispânicas

Diante do exposto, é possível observar a necessidade de uma mu-


dança de perspectiva para a literatura e seu ensino. A decolonialidade,
com sua proposta mais inclusiva, crítica e democrática poderia ser um
caminho para embasar teoricamente e também possibilitar práticas
de superação da visão colonial, eurocêntrica, falocêntrica, que se per-
petuava nas aulas de literatura e de língua espanhola.
Passo agora a comentar um pouco acerca da minha prática docen-
te no âmbito da pós-graduação e também no da graduação em Letras
– Espanhol, neste último contexto, trazendo como experiência o cur-
so de extensão, intitulado Español en línea: curso de formação em lín-
gua e cultura espanholas, oferecido para professores das redes estadual
e municipal de ensino e estudantes de graduação em Letras Espanhol
e ministrado por três alunas orientandas, uma de Mestrado e duas

50
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de Doutorado, sob minha orientação e supervisão. Além dessa, tam-


bém trago a experiência das aulas de Literaturas Hispânicas na licen-
ciatura em Letras, nas quais pude trabalhar com textos teóricos e li-
terários tanto nas aulas como no desenvolvimento das Práticas como
Componente Curricular.
No curso Español en línea: curso de formação em língua e cultu-
ra espanholas a proposta das aulas era trabalhar a língua espanhola
por meio da cultura, portanto, a literatura tinha um caráter importan-
te, pois fazia o papel de mediadora nesse processo. O objetivo principal
era promover o conhecimento sócio-histórico das diferentes expres-
sões culturais do contexto hispânico e o aperfeiçoamento dos conhe-
cimentos linguísticos dos participantes do curso em relação à língua
espanhola. O curso ocorreu no contexto da pandemia e se justificou
pela necessidade de atualizar os conhecimentos de professores de lín-
gua espanhola da educação básica e alunos em formação dos cursos
de Letras Espanhol do estado do Paraná durante esse período, ocorren-
do no formato remoto, com aulas síncronas e assíncronas via Google
Meet e Google Classroom.
A proposta tinha como ênfase a abordagem sobre gênero, lite-
ratura de mulheres, escrita de autoria feminina e as relações sociais
que permeiam esses debates. Por esse motivo, os conteúdos foram orga-
nizados a partir de três grandes temas: “Musas y ritmos: voces latino-a-
mericanas”, “Ni una menos: recortes literarios sobre violencia de género” e
“Porciones gastronómicas y literarias latinoamericanas”. No capítulo irei
referir-me somente ao primeiro tema, que trouxe como recorte o can-
cioneiro latino-americano de autoria feminina, como é o caso da can-
tautora chilena Violeta Parra (1917-1967), com canções como “Qué
he sacado con quererte”, e da argentina Mercedes Sosa (1935-2009), com
“Duerme negrito”.
Uma primeira questão que levanto é que, assim como Lidiane
Cossetin Alves (2021), entendo que a letra das canções pode ser vis-

51
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ta como literatura no sentido de que há uma preocupação estética


em suas composições, que funciona em harmonia (ou não) com a me-
lodia da música. Nesse sentido, Cossetin Alves (2021, p. 17) propõe:
“a aproximação da lírica canônica, aquela considerada formal, metri-
ficada, acadêmica, à lírica subalterna, caracterizada pela poesia canta-
da, popular, escrita para ser musicada”. Enfatizando ainda essa autora
(2021, p. 17) afirma que “a necessidade de aproximação de ambas líricas
se dá pela supremacia canônica da primeira em detrimento da segunda
nos campos de estudos literários”.
É certo que as relações entre canção e literatura já foram pautadas
anteriormente por outros pesquisadores. No entanto, as ponderações
de Cossetin Alves (2021) vão no fluxo da decolonialidade ao compa-
rar a forma como normalmente a poesia cantada é subalternizada pela
crítica literária tradicional, em relação a lírica canônica, representada
pela escrita de autores, na maioria das vezes masculinos, que fazem
parte do cânone literário. Portanto, essa visão torna-se um gesto deco-
lonial em relação ao modo de compreender aquela produção artística.
Nesse caso, considero que ao trazer a canção latino-americana
de mulheres para o centro das discussões acadêmicas também pos-
sibilitamos um gesto decolonial ao valorizar essa produção artística
de grupos duplamente marginalizados, como o sujeito latino-america-
no e as mulheres desse mesmo espaço. Nesse sentido, as ideias do femi-
nismo decolonial me interessam para a análise das letras das canções
dessas autoras, apontando para uma crítica feminista e deslocando en-
foques e saberes já cristalizados. É o que ocorre quando nos questiona-
mos na canção de ninar “Duerme negrito”, aparentemente uma música
destinada ao público infantil, mas que apresenta um contexto difícil
da infância latino-americana, quando a mãe se faz ausente e deixa o fi-
lho para alguém cuidar porque precisa trabalhar para sustentar a casa.
Nestes termos afirma o sujeito lírico:

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Duerme, duerme negrito


que tu mama está en el campo, negrito
Te va a traer codornizes para ti
Te va a traer rica fruta para ti
Te va a traer carne de cerdo para ti
Te va a traer muchas cosas para ti
(https://www.vagalume.com.br/mercedes-sosa/duerme-
-negrito.html).

Interessante trazer essas questões para o cerne das reflexões, in-


terpelando esse modelo patriarcal que joga para as mulheres a respon-
sabilidade do cuidado e do próprio sustento, como é o caso da “mama”
da canção. Além disso, é possível também interrogar sobre quem é essa
mulher latino-americana, delineada na letra da canção. Trata-se de uma
mulher de qual classe social, etnia e orientação sexual? É uma mulher
subalternizada, explorada pela sociedade? São muitas perguntas que se
levantam e que se relacionam com o contexto latino-americano.
Outro termo a ser pensado é “negrito”, diminutivo de negro,
que caracteriza o bebê da canção de ninar pelo seu tamanho, mas tam-
bém como uma forma carinhosa de se dirigir a ele, tarefa desempe-
nhada por uma “niñera” que lhe cuida para que a mãe possa trabalhar
e trazer seu alimento –, “codornices”, “rica fruta” e “carne de cerdo”,
como referido na canção. Igualmente, a identidade dessa “niñera” pre-
cisa ser questionada, seria alguém da família, seria uma avó, uma vizi-
nha, uma amiga que se dispõe a ajudar essa mulher que precisa buscar
o sustento? Que mulher é essa que na solidariedade e no afeto se co-
loca no lugar da mãe para ninar seu filho? Tal acontecimento poderia
ser visto como um fato corriqueiro no espaço da América Latina, se re-
porta ao cotidiano de várias mulheres e aparece denunciado na letra
da tradicional canção de ninar.
Diferente forma de continuar com essa perspectiva foi tra-
zer o mito de La llorana por meio da canção homônima da mexicana
Chavela Vargas (1919-2012), possibilitando uma aproximação a vá-

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

rias versões do mito no México, passando inclusive por uma referência


ao mito de Malinche, a indígena escravizada, tradutora do conquistador
Hernán Cortés (1485-1547), considerada simbolicamente a mãe do pri-
meiro mestiço na América Latina e muitas vezes condenada pela histó-
ria masculina como a grande traidora da pátria e causadora da derrota
do império asteca para os conquistadores espanhóis.
Como pondera Milagros Palma sobre o aspecto mítico, “la Llorona
es un personaje emblemático de la cosmogonía mestiza en América Latina.
De este personaje se conoce su llanto que recorre caminos, pueblos, barrios
de ciudades en América latina. El llanto de la llorona se escucha desde
México hasta la Tierra de Fuego” (PALMA, 2012, p. 285). Dessa maneira,
se configura na voz dos povos latino-americanos que lamenta simbo-
licamente o encontro conflituoso entre o “novo” e o “velho” mundo.
Assim sendo, o sujeito lírico declara:

No sé qué tienen las flores, Llorona


Las flores del Campo Santo
No sé qué tienen las flores, Llorona
Las flores del Campo Santo
Que cuando las mueve el viento, Llorona
Parece que están llorando
Que cuando las mueve el viento, Llorona
Parece que están llorando
(https://www.letras.com/chavela-vargas/399792/).

Ao trazer toda essa história observamos como podemos ampliar


a visão da história dos perdedores e desconstruir o que se cristalizou
sobre a história hegemônica, eurocêntrica da América e, sobretudo,
ressignificar o que já foi dito e pensado sobre a história da América
Latina e das mulheres.
Outra experiência que relato para reflexão é a das práticas como
componente curricular na disciplina de Literatura Hispano-americana,
quando trabalhamos com os contos do escritor uruguaio Horacio

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Quiroga (1878-1937) do livro Cuentos de la selva. Publicado em 1918,


na Argentina, constitui-se um clássico infantil com um total de oito
contos sobre animais ou grupos de animais, cujo espaço é o da selva
da região de Misiones, próxima à fronteira do Brasil. Historicamente,
Misiones é uma região considerada periférica na Argentina, por estar
longe de centros urbanos como Buenos Aires e Córdoba e por ser deno-
minada como selva argentina desde tempos passados, trazendo o em-
bate já tão discutido e polêmico desde o século XIX entre civilização
e barbárie, na qual a civilização era representada pela cidade e a barbá-
rie pelo campo, pelo indígena e o gaúcho.
Aqui encontramos um ponto de contato muito interessante para
abordar a destruição do espaço da selva no conto “La guerra de los ya-
carés” (2018) e de como os animais se organizam em grupo para resistir
à passagem de um navio a vapor que acabaria com a comida e exter-
minaria sua espécie, entre outras. Curiosamente nesse conto pode-
mos fazer uma leitura invertida já que são os jacarés que precisamente
são os “civilizados” na narrativa, pois são eles que apresentam um dis-
curso que nos dias atuais seria considerado de sustentabilidade para
o meio ambiente. Em La guerra de los yacarés, o narrador proporciona
um discurso de manutenção da vida animal e humana, em uma relação
compassiva de gratidão e amizade. Essa relação se rompe quando o ser
humano decide ocupar o espaço natural dos jacarés com a travessia
da grande embarcação, trazendo fome e morte para a fauna.
Após uma leitura crítica dos contos, aproximando-nos de uma
leitura decolonial ao pensarmos na importância das representações
dos personagens na narrativa, os alunos prepararam material didáti-
co, por meio de gravações de audiolivros de Cuentos de la selva, para
serem levados à sala de aula aos alunos da educação básica, seja
no espaço do estágio curricular obrigatório, seja em suas futuras atu-
ações como professor de língua espanhola. Ressalto que a leitura de-
colonial se dá em face da possibilidade de se estabelecer uma análise
do conto que reitera as mazelas do sistema de exploração das riquezas

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

da América Latina, promovido desde o início da colonização. Essa lei-


tura crítica do sistema colonialista possibilitaria colocar em paralelo
as desventuras que ocorrem na ficção, em virtude da invasão do espaço
dos jacarés e a própria história da colonização do território latino-ame-
ricano, marcada por saques das riquezas naturais, escravização e geno-
cídio dos povos originários. Essa possibilidade de leitura na sala de aula
constitui um gesto decolonial que contribui para uma formação escolar
mais contextualizada e, deste modo, mais circunspecta.
A pergunta que não quer calar: como trazer a decolonialidade
para os estudos da disciplina Literatura Espanhola? A resposta é uma
tentativa de muitos anos de aproximar uma visão e uma leitura mais
crítica por parte dos estudantes de Letras em formação, ao mesmo tem-
po em que se busca ressignificar autores e obras e a inclusão de uma
perspectiva de gênero e de obras que dialogam com a história e a me-
mória do mesmo modo em que se tenta desconstruir leituras que a crí-
tica tradicional cristalizou ao longo do tempo. Também é necessário
abarcar, nesse sentido, obras, autoras e autores fora do cânone literário
que ainda contribuem para esse processo.
O mais importante do meu ponto de vista é olhar para essa pro-
dução literária, para essa cultura sempre desde um prisma crítico,
brasileiro, latino-americano. É o enfrentamento que fazemos dessa li-
teratura a partir da nossa visão de mundo, comparando, interagindo
e apresentando uma criticidade em relação a esses autores e sua produ-
ção, evidenciando inclusive que temos uma produção crítica nossa para
analisar a literatura espanhola. Quando penso nessas teorias me repor-
to a nomes como o de Antonio Candido (2012), mas também a de pro-
fessoras/professores e pesquisadoras/ pesquisadores quer sejam os de
universidades, quer os da educação básica, que se dedicam aos estudos
literários e ao ensino da língua espanhola no Brasil.
Para poder dar conta desse assunto, inseri no programa da dis-
ciplina conteúdos que pudessem abordar os sujeitos marginalizados

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

do cânone literário, bem como suas respectivas obras. Assim sendo,


as mulheres da Geração de 98 e da Geração de 27 da literatura espa-
nhola se fizeram presentes nas minhas aulas. Como ponderam Rodrigo
Corrêa Martins Machado e Ivanete Bernardino Soares,

Numa leitura decolonial do campo de ensino de literatura,


especificamente, pode se configurar como um início revolu-
cionário o próprio ato de ouvir os sujeitos subalternizados
que foram por séculos desautorizados nos rituais de leitura
escolares (e não só). Para tanto, há que se considerar que a
determinação do cânone e também a atuação da crítica li-
terária, durante séculos, se pautou em modelos e critérios
eurocêntricos para decidir o que deve ou não ser visto como
literatura, a partir da ótica de uma série de fatores histó-
ricos mobilizados seletivamente (MACHADO; SOARES,
2021, p. 996).

Apesar de a literatura espanhola ser uma literatura europeia,


não podemos fazer uma leitura rasa e superficial no sentido de descon-
siderar seu estudo, dadas as complexas relações já mencionadas aqui.
Corroboro o pensamento de Machado e Soares, que afirmam que:

[...] não se trata de propor a renúncia ao cânone estabe-


lecido, em nome das literaturas consideradas periféricas,
mas de reivindicar a convivência, em particular no espaço
escolar, das múltiplas manifestações culturais represen-
tativas da sociedade. Assim, assumimos a compreensão
da leitura como ferramenta para a plena democratização
cultural, possibilitando a distribuição equitativa dos bens
simbólicos (MACHADO; SOARES, 2021, p. 996).

Para mim torna-se crucial essa percepção de necessidade de am-


pliação do cânone, ao abordar autoras que não se encontram nos manu-
ais da história da literatura, portanto, menos conhecidas ou totalmente
desconhecidas como é o caso de Carmen de Burgos (1867-1932), Sofía

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Pérez Casanova (1861-1958), Rosario de Acuña (1850-1923), María


Teresa León (1903-1988), Rosa Chacel (1898-1994) e Concha Méndez
(1898-1986). Trabalhar com a biografia e a obra dessas mulheres é uma
maneira de reconhecer sua produção artística e intelectual, ler seus
poemas, romances e autobiografias é possibilitar o exercício de uma
leitura e uma crítica decolonial, já que lemos, interpretamos e compre-
endemos do lugar de onde estamos, com o arcabouço teórico que pro-
duzimos, portanto, com uma leitura mais crítica em relação à literatura
produzida no hemisfério norte.

Conclusões

Para concluir, gostaria de ponderar que essas reflexões não aca-


bam e nem se esgotam nesse texto, haveria que continuar no exercício
do relato, inclusive em primeira pessoa, para enfatizar o gesto decolo-
nial que nos permite questionar essa abordagem tradicional, conser-
vadora e por vezes despolitizada do ensino das literaturas, ao tangen-
ciar questões importantes como as relações de gênero, raça e classe
social, evidenciando processos históricos de subalternizações. Tal prá-
tica pedagógica possibilitaria uma visão mais crítica sobre a socieda-
de, uma vez que permitiria aos graduandos uma formação pautada
em princípios mais inclusivos e democráticos.

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60
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

PERCURSOS OUTROS POR UM ITINERÁRIO


DECOLONIAL: A LÍNGUA ESPANHOLA NO
CURRÍCULO DO NOVO ENSINO MÉDIO SERGIPANO

Antônio Carlos Silva Júnior (CODAP/UFS)

La historia es una paradoja andante.


La contradicción le mueve las piernas.
Quizá por eso sus silencios dicen más que sus palabras y
con frecuencia sus palabras revelan, mintiendo, la verdad.
(La paradoja andante, Eduardo Galeano, 2007)

Com essas palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano publi-


cadas no jornal argentino “Página 12”, no final de 2007, inicio o relato
dos percursos outros que segui por um itinerário decolonial para o cur-
rículo sergipano. Galeano afirma que a história é um paradoxo movido
por contradições, cujos silêncios dizem mais que suas palavras e es-
tas, constantemente, mentem sobre a verdade. Por ser andante, está
em um constante movimento conflituoso entre a verdade dissimulada
e o silêncio significativo. Os percursos outros pelos quais me propus
explorar, diferentes dos traçados pelo paradoxo andante, represen-
tam um movimento de contraposição aos paradoxos da história colo-
nial, às hegemonias opressoras e aos silenciamentos e invisibilizações
das desigualdades.

61
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Visto isso, este capítulo tem como objetivo traçar diálogos entre
a proposta de Itinerário Formativo de Língua Espanhola do currículo
do novo Ensino Médio sergipano e a perspectiva decolonial, fazendo
um relato autoetnográfico a partir da minha participação no processo
de redação do documento.
Com a revogação da lei nº 11.161/2005 (BRASIL, 2005), a chamada
lei do espanhol, a partir da promulgação da lei nº 13.415/2017 (BRASIL,
2017) da reforma do Ensino Médio, a presença da língua espanhola
no currículo da Educação Básica brasileira se tornou uma incerteza.
A primeira consequência da reforma foi a exclusão da língua espanho-
la da Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018a) como
componente curricular obrigatório, a segunda exclusão ocorreu nos úl-
timos editais do Programa Nacional do Livro e do Material Didático
(PNLD) e a terceira, já anunciada, está prevista para ocorrer em 2024
no novo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Apesar desses retrocessos, em Sergipe, a elaboração de um novo
currículo para o Ensino Médio, a partir de 2019, se deu por meio
do Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum
Curricular (ProBNCC) com a participação de redatores formadores
das quatro áreas do conhecimento, incluindo uma vaga para a língua
espanhola, garantindo sua presença no documento estadual.
A proposta do Itinerário Formativo de Língua Espanhola para
esse novo currículo é ofertada em três semestres do Ensino Médio, to-
talizando uma carga horária de 120 horas e com matrícula obrigatória
para os/as estudantes. Em sua composição, há três sugestões de uni-
dades curriculares denominadas atividades integradoras e intituladas
“Hispanismo en foco”, “Mosaico hispánico: identidades de clase, género,
raza y etnia” e “Entre palabras, colores y escenas hispánicos”. Os objetos
de conhecimento que constituem cada uma dessas atividades integra-
doras evidenciam seu caráter decolonial e a propositura de uma educa-

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ção linguística em espanhol que coloca em pauta a pluralidade cultural


e visibiliza as vozes do Sul.
Os percursos são outros, pois, para promover um processo
de educação linguística em espanhol que se pretende decolonial, fa-
z-se necessário fortalecer suas bases epistemológicas e buscar cami-
nhos que possibilitem práticas emancipatórias. Com isso, na próxima
seção descreverei como ocorreu o processo de elaboração da proposta
do Itinerário Formativo de Língua Espanhola e, em seguida, apresenta-
rei as principais informações que caracterizam cada uma das atividades
integradoras do itinerário e os pontos de encontro com a perspectiva
decolonial.

Construção da proposta do Itinerário Formativo de Língua


Espanhola

“Para quê ensinar e aprender língua espanhola no Ensino Médio?


O que significa ensinar e aprender língua espanhola em nosso contex-
to?” (SERGIPE, 2022, p. 33). Foi a partir dessas perguntas que a propos-
ta de atividades integradoras que constituiriam o Itinerário Formativo
de Língua Espanhola do novo Ensino Médio sergipano começou a ser
concebida. No documento, essas perguntas são apresentadas como
pontos de partida para que, ao respondê-las, haja uma reflexão sobre
“o papel da língua espanhola na Educação Básica, quais temas podem
ser abordados e quais estratégias podem ser utilizadas” (SERGIPE,
2022, p. 34).
Apesar da ausência da língua espanhola como componente curri-
cular obrigatório da Formação Geral Básica na BNCC (BRASIL, 2018a),
documento nacional vigente na contemporaneidade, no início do pro-
cesso de elaboração, percebi que essa ausência motivava um movimen-
to de retomada de discussões já levantadas e aprofundadas por outros
documentos da Educação Básica com o intuito de reforçar sua impor-

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tância para o processo histórico de inserção e consolidação da língua


espanhola nas escolas brasileiras.
Nesse sentido, para responder àquelas questões motivadoras, res-
gatei algumas problematizações e orientações presentes nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental (BRASIL,
1998) e Médio (BRASIL, 2000) sobre o ensino de línguas estrangeiras
e nas Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCEM)
(BRASIL, 2006) no que se refere aos conhecimentos de espanhol. A re-
tomada desses documentos serviu para fundamentar algumas escolhas
feitas na elaboração do itinerário e demonstrar que a proposta traria
elementos já defendidos nos últimos vinte anos, como a contribui-
ção das línguas estrangeiras para a formação geral dos/as estudantes,
a pluralidade da língua espanhola e o seu papel educativo na escola,
ratificando que não se trataria de uma proposta inédita, mas que res-
gata concepções importantes para a educação linguística em espanhol
no Brasil.
Outro argumento que contribuiu na concepção do itinerário está
relacionado ao discurso da BNCC (BRASIL, 2018a) sobre seu compro-
misso com a educação integral e o projeto de vida dos/as estudantes,
visto que, se a língua espanhola faz parte do currículo da escola, evi-
dentemente, também pode participar desse processo de autoconheci-
mento e de desenvolvimento de valores éticos, sociais, cognitivos e so-
cioemocionais junto aos outros componentes curriculares.
No processo de criação, ao mesmo tempo em que buscava diálo-
gos com a BNCC (BRASIL, 2018a), apesar das ausências e silenciamen-
tos, havia uma necessidade de encontrar fissuras e brechas (WALSH,
2016) que possibilitassem olhares outros (MATOS, 2022). Assim como
Walsh (2016, p. 66), acredito que “as fissuras e brechas se transforma-
ram em parte da minha localização e lugar. São parte integral de como
e onde me posiciono. Também são constitutivas de como concebo,

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

construo e assumo minha práxis”1. Por isso, ao ter a oportunidade de re-


alizar um trabalho de extrema importância para a educação linguística
em espanhol aqui em Sergipe, vislumbrei esse lugar de representativi-
dade de um coletivo docente com uma trajetória de conquistas proces-
suais a partir de 2005, mediante a promulgação da lei nº 11.161/2005
(BRASIL, 2005), e de retrocessos com a reforma do Ensino Médio esta-
belecida pela lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017).
A ausência da língua espanhola na BNCC (BRASIL, 2018a), conse-
quência dessa reforma, afeta uma rede de políticas educacionais desde
uma esfera macro à micro, influenciando o nosso lugar, como docentes
de língua espanhola, e nossa práxis pedagógica. Agir nessa conjuntura
representa reexistir, buscar novas possibilidades de presença e “poder
contribuir para a construção de sujeitos mais sensíveis ao diálogo in-
tercultural e receptivos a outras realidades, a outras formas de dizer,
de fazer e de ser e estar no mundo” (MATOS, 2022, p. 285).
Nesse exercício de tentativa de diálogos e necessidade de resistên-
cia, as atividades integradoras do itinerário foram concebidas com base
nas seguintes características:

[...] contemplam Temas Contemporâneos Transversais


da BNCC; podem ser articuladas com as dimensões
de Projeto de vida; propõem um trabalho que propicia a in-
terdisciplinaridade; mobilizam a utilização de diferentes
gêneros discursivos em espanhol; favorecem a contextu-
alização dos conhecimentos linguísticos; levam em consi-
deração os campos de atuação social indicados pela BNCC
e problematizam aspectos históricos, sociais, políticos,
econômicos, geográficos, artísticos e culturais que envol-
vem uma língua (SERGIPE, 2022, p.34).

1 Texto original: Las fisuras y grietas se han convertido en parte de mi localización y lugar. Son
parte integral de cómo y dónde me posiciono. También son constitutivas de cómo concibo,
construyo y asumo mi praxis.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

No Itinerário Formativo de Língua Espanhola, entre


as possibilidades de Temas Contemporâneos Transversais, a escolha
pelo Multiculturalismo, a Diversidade Cultural e a Educação em Direitos
Humanos fundamentou a proposta e indicou os caminhos para a or-
ganização dos objetos de conhecimento sugeridos. Em cada atividade
integradora, é possível experienciar um processo de ampliação de co-
nhecimentos sobre a diversidade cultural hispânica, seu processo his-
tórico de formação, suas singularidades, suas vozes e seus coletivos,
além de um autoconhecimento acerca da realidade local dos/as estu-
dantes, mobilizando reflexões que os/as aproximam das suas diferen-
ças e semelhanças.
Com relação ao multiculturalismo, busquei ampliar sua com-
preensão com base em Candau (2008) que defende o multiculturalis-
mo aberto e interativo, acentuando a interculturalidade. Por sua vez,
Paraquett (2019, p. 126) compreende a interculturalidade como base
epistemológica e trabalha “por uma educação de base intercultural,
onde predomine a convivência equânime das diferenças que nos cons-
tituem como seres sociais”.
A partir do reconhecimento dessa diversidade, emergem as rela-
ções de poder e as desigualdades sociais que foram construídas histori-
camente. Com isso, faz-se necessário pensar em uma educação linguís-
tica em espanhol que coloca os direitos humanos em pauta.

Educar para os direitos humanos, como parte do direito


à educação, significa fomentar processos que contribuam
para a construção da cidadania, do conhecimento dos di-
reitos fundamentais, do respeito à pluralidade e à diver-
sidade de nacionalidade, etnia, gênero, classe social, cul-
tura, crença religiosa, orientação sexual e opção política,
ou qualquer outra diferença, combatendo e eliminando
toda forma de discriminação (BRASIL, 2013, p. 165).

66
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Para tanto, corroboro com a noção de que é também na escola,


incluindo nas aulas de língua espanhola, que o respeito às diversidades
e o combate às discriminações podem ser construídos desde o conta-
to com as diferenças. Conhecer distintas nacionalidades, etnias, rela-
ções de gênero, classes sociais, culturas, crenças religiosas, orientações
sexuais, opções políticas, entre outras identidades, constitui uma das
demandas da escola e de uma proposta curricular voltada para a plura-
lidade e possibilita uma expansão das nossas visões de mundo.
Outro aspecto que influenciou diretamente no processo de elabo-
ração do itinerário foi a necessidade de articulação com o que a BNCC
(BRASIL, 2018a) define como eixo central da organização das práti-
cas escolares, o Projeto de vida dos/as estudantes. De acordo com esse
documento,

[...] o projeto de vida é o que os estudantes almejam,


projetam e redefinem para si ao longo de sua trajetória,
uma construção que acompanha o desenvolvimento da(s)
identidade(s), em contextos atravessados por uma cultura
e por demandas sociais que se articulam, ora para promo-
ver, ora para constranger seus desejos (BRASIL, 2018a, p.
472-473).

Para atender essa demanda, a proposta do Itinerário Formativo


de Língua Espanhola aponta caminhos que viabilizam a construção
de um projeto em consonância com seu desenvolvimento pessoal,
social e profissional, com foco no autoconhecimento, na autoestima,
na motivação, na tomada de decisão, na colaboração, na responsabi-
lidade, na consciência social, no exercício da empatia, no reconheci-
mento da diversidade, na criatividade, na empatia, no desenvolvimen-
to do pensamento crítico, no planejamento, no foco e na resiliência
(SERGIPE, 2022).
Com o devido cuidado para que não houvesse um reforço do dis-
curso neoliberal do projeto de vida fundamentado na responsabiliza-

67
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ção do indivíduo, do empreendedorismo e de preceitos empresariais


(FREITAS, 2018), as referidas habilidades socioemocionais e cidadãs fo-
ram articuladas com a proposta de cada atividade integradora com base
em objetos de conhecimento que estimulassem o desenvolvimento
da criticidade, da ética e da autonomia.
No que se refere ao tratamento dado aos conhecimentos linguísti-
cos, há uma defesa por sua contextualização de acordo com as escolhas
possibilitadas pela autonomia docente e isso se mantém nas três ativi-
dades. O não estabelecimento de aspectos lexicais e gramaticais espe-
cíficos não representa sua invisibilidade, mas o reconhecimento de que
é possível incluir seus estudos com base nas temáticas em foco e nos
textos escolhidos pelo/a docente. O documento explica que,

Quanto aos estudos dos conhecimentos linguísticos, torna-


-se significativo contemplá-los de forma contextualizada
a partir dos textos escolhidos, sejam orais ou escritos, fa-
zendo com que o léxico e a gramática constituam as práti-
cas de linguagem propostas para a compreensão e discus-
são das temáticas (SERGIPE, 2022, p. 238).

Apesar da Base e da “engenharia de ‘alinhamento’ (bases / ensi-


no / avaliação / responsabilização) da reforma empresarial, eliminando
a diversidade e deixando pouco espaço para a escola ou para o magis-
tério criar” (FREITAS, 2018, p. 81), o itinerário é pensado como propos-
ta aberta e flexível que viabiliza a autonomia docente a partir da sua
realidade e experiência e da oportunidade de criar possibilidades para
a produção e a construção de conhecimentos (FREIRE, 1996).
Após ter acesso à proposta preliminar do itinerário que foi ini-
ciado pela então redatora de língua espanhola do magistério estadual
em Sergipe, a professora Maria Auxiliadora Souza, percebi que o foco
dado evidenciava elementos artístico-culturais dos países hispânicos.
A partir dessa ideia, dei continuidade ao trabalho incluindo possibili-
dades que direcionassem a proposta para o Sul e para suas vozes.

68
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

[...] um Sul que não é apenas geográfico, geopolítico e ideo-


lógico, mas também epistêmico. Um giro que nos posiciona
de frente para nosso horizonte, nossa realidade e, também,
amplia nosso olhar voltando-nos para aqueles que são co-
locados em uma posição de desprestígio nas variadas e in-
justas hierarquias sociais, culturais, políticas e econômicas
(SILVA JÚNIOR, 2022, p. 348).

Com base no que foi explanado sobre o processo de construção


da proposta do Itinerário Formativo de Língua Espanhola do currícu-
lo do novo Ensino Médio sergipano e nas problematizações colocadas
em pauta, nas próximas seções, apresentarei as concepções que fun-
damentam as três atividades integradoras em prol de um itinerário
decolonial.

Atividade Integradora A – Hispanismo en foco

Na rede estadual sergipana, a língua espanhola só é contemplada


no Ensino Médio e essa atividade representa, para muitos/as dos/as es-
tudantes, o primeiro contato com o idioma. A primeira proposta de ati-
vidade integradora para o Itinerário Formativo de Língua Espanhola
possui carga horária de 40 horas para um semestre e, como unidade
curricular2, sugere-se o Núcleo de Estudos na perspectiva de propor-
cionar um aprofundamento dos temas através de pesquisas que pode-
rão fundamentar as discussões realizadas, condizentes com o campo
das práticas de estudo e pesquisa.

2 “Unidades curriculares são os elementos com carga horária pré-definida cujo objetivo é
desenvolver competências específicas, seja da Formação Geral Básica, seja dos Itinerários
Formativos. Além da tradicional organização por disciplinas, as redes e escolas podem es-
colher criar unidades que melhor respondam aos seus contextos e às suas condições, como
projetos, oficinas, atividades e práticas contextualizadas, entre outras situações de traba-
lho” (BRASIL, 2018b, p. 14).

69
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Entre as possibilidades de eixos estruturantes3 indicados nos


“Referenciais curriculares para a elaboração de itinerários formativos”
(BRASIL, 2018c), optou-se pela investigação científica e a mediação e in-
tervenção sociocultural, incluindo habilidades das competências gerais
da BNCC (BRASIL, 2018a) e específicas das áreas de Linguagens e suas
Tecnologias e de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
O objetivo dessa atividade integradora é “apresentar bases intro-
dutórias importantes para os estudos hispânicos, possibilitando a ini-
ciação de discentes no processo de educação linguística em espanhol”
(SERGIPE, 2022, p. 236). Nessa orientação, o foco está na compreensão
do hispanismo, ou melhor dizendo hispanismos, e toda sua pluralida-
de, seu processo histórico de formação e aspectos sociais, políticos,
econômicos, geográficos e culturais que o influenciaram.

Compreender o hispanismo e concebê-lo como foco de-


manda uma desconstrução de visões reduzidas e estereo-
tipadas sobre o contexto hispânico que não é homogêneo,
mas sim plural. Para tanto, é preciso abandonar a perspec-
tiva eurocêntrica que continua reproduzindo colonialida-
des, colocando a Espanha no centro das discussões e dei-
xando outras histórias, povos e suas culturas à margem
(SERGIPE, 2022, p. 236).

O documento promove um diálogo com Zolin-Vesz e Barcelos


(2014), sobre a necessidade da visibilização da América Latina e des-
construção de estereótipos, e com Chimamanda Adichie (2009), acer-
ca do perigo da história única. Esse posicionamento corrobora com as
ideias difundidas pelo pensamento decolonial para resistir e descons-
truir padrões estabelecidos injustamente pela lógica colonial, questio-

3 “[...] os Itinerários Formativos organizam-se a partir de quatro eixos estruturantes


(Investigação Científica, Processos Criativos, Mediação e Intervenção Sociocultural e
Empreendedorismo) [...]. Tais eixos estruturantes visam integrar e integralizar os diferen-
tes arranjos de Itinerários Formativos, bem como criar oportunidades para que os estudan-
tes vivenciem experiências educativas profundamente associadas à realidade contemporâ-
nea, que promovam a sua formação pessoal, profissional e cidadã” (BRASIL, 2018c, p. 3).

70
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

nando o lugar da América Latina e as relações de poder que privilegiam


a Europa e reforçam sua hegemonia (QUIJANO, 2005).
Nessa direção, no que concerne aos conhecimentos sobre o hispa-
nismo, sinalizo que, “os estudos sobre a construção de suas identidades
devem levar em consideração a história anterior à chegada dos europeus
e colocar toda a diversidade que compõe os povos originários em evi-
dência, seja das Américas ou da África” (SERGIPE, 2022, p. 237, grifo
nosso). Aproveito para problematizar o uso do termo chegada, nesse
fragmento do documento, ao invés de invasão, cuja carga semântica
expressaria com mais coerência o que representou esse fato histórico.
Krenak (2019, p. 8) explica que

A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizan-


do o resto do mundo estava sustentada na premissa de que
havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao en-
contro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa
luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sem-
pre foi justificado pela noção de que existe um jeito de es-
tar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção
de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em dife-
rentes períodos da história (KRENAK, 2019, p. 8).

Em um movimento de contraposição a essa supremacia eurocên-


trica, o itinerário é iniciado por uma atividade integradora que valoriza
a história dos povos originários de Abya Yala e expõe todo processo
de dominação que constitui o hispanismo e a língua espanhola como
coloniais. A seguir, o quadro com os objetos de conhecimento sugeri-
dos ilustra essa perspectiva outra de contar a história reconhecendo
a pluralidade das civilizações que aqui já habitavam e escancarando
o processo de invasão e exploração europeia.

71
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Quadro 1 – Atividade Integradora A

Atividade Integradora A: Hispanismo en foco


Objetos de Conhecimento

● A importância das línguas e sua relação com o mundo: pluralidade lin-


guística frente às hegemonias;
● Países hispânicos e a diversidade da língua espanhola;
● Civilizações pré-colombianas: as grandes civilizações indígenas
da Mesoamérica (os olmecas, os toltecas, os teotihuacanos, os zapote-
cas, os mixtecas, os astecas e os maias) e dos Andes (os incas, moches,
chibchas, cañaris);
● Processo de invasão e domínio da América;
● Colonização espanhola de terras americanas e africanas;
● Independências dos países da América espanhola: resistência e lutas
anticoloniais;
● Identidades latino-americanas;
● África hispanofalante: Guiné-Equatorial;
● Espanha: suas comunidades e línguas;
● Países latino-americanos: desconstruindo estereótipos;
● Brasil: país latino-americano;
● As relações entre o Brasil e os países hispânicos;
● Gêneros discursivos: mapas, infográficos, pinturas, fotografias, contos,
lendas, crônicas, cartas, publicações digitais, notícias, filmes;
● Conhecimentos linguísticos: estudo de léxico e de aspectos gramaticais
que colaborem na compreensão dos textos e temas discutidos.
Fonte: Sergipe (2022, p. 237).

A série de objetos de conhecimento propostos evidenciam


uma contraposição ao pensamento único e à lógica de um único mundo
possível, ressaltando o direito à abertura para um pensamento-outro
(MIGNOLO, 2007) que vai desde os povos originários do que hoje co-
nhecemos como América Latina, a Guiné Equatorial, as lutas anticolo-
niais, até a própria Espanha em uma perspectiva plural.

72
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Outro aspecto enfatizado é a desconstrução de estereótipos so-


bre a América Latina e a relação entre os países hispânicos e o Brasil
como país latino-americano, resgatando histórias que não foram con-
tadas e ampliando os conhecimentos sobre suas raízes, diversidades,
semelhanças, diferenças e conflitos. Compreender as múltiplas histó-
rias que o hispanismo carrega antes mesmo da sua difusão significa
reconhecer as diferentes bases da formação desse povo e o processo
de exploração que as terras e a população autóctone sofreram.

Atividade Integradora B – Mosaico hispánico: identidades


de clase, género, raza y etnia

A segunda proposta de atividade integradora para o Itinerário


Formativo de Língua Espanhola também possui carga horária de 40 ho-
ras para um semestre. Na expectativa de que seja uma continuidade
e ampliação das experiências efetivadas no Núcleo de Estudos da ati-
vidade anterior, como unidade curricular, sugere-se a Oficina com o in-
tuito de gerar um maior engajamento e colaboração dos/as estudantes
na construção coletiva dos seus conhecimentos. Dois campos de atua-
ção social são mobilizados: o campo da vida pessoal e o campo de atu-
ação na vida pública, expandindo as vivências de estudo e pesquisa
para o encontro consigo e com o outro. Entre as possibilidades de eixos
estruturantes, optou-se pela mediação e intervenção sociocultural e pe-
los processos criativos, incluindo habilidades das competências gerais
da BNCC e específicas das áreas de Linguagens e suas Tecnologias e de
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
Seu objetivo é “dar visibilidade às identidades de classe, gênero,
raça e etnia que são colocadas à margem da sociedade, problematizan-
do essas relações de poder e cumprindo o compromisso sociopolítico
inerente ao processo de educação linguística em espanhol” (SERGIPE,
2022, p. 246). Essa segunda atividade evidencia identidades sociais
que são subalternizadas e/ou invisibilizadas em consequência do pro-

73
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

cesso histórico colonial de exploração que foi aprofundado na ativida-


de anterior.
Ao dialogar com Davis (2016), o documento destaca que

As identidades sociais de classe, gênero, raça e etnia


constituem a estrutura da nossa sociedade e merecem
espaço na sala de aula de espanhol em prol de uma edu-
cação que enxerga a necessidade da não hierarquização
das opressões e o quanto é preciso considerar a intersecção
de raça, classe e gênero para possibilitar um novo modelo
de sociedade (SERGIPE, 2022, p. 246).

Como o próprio título da atividade indica, nesse mosaico his-


pânico, classes, gêneros, raças e etnias enriquecem sua diversidade.
A seguir, o quadro com os objetos de conhecimento sugeridos reforça
a importância de visibilizar e dar ouvidos a essas identidades que tanto
foram/são marginalizadas em nossa sociedade.

Quadro 2 – Atividade Integradora B

Atividade Integradora B – Mosaico hispánico: identidades


de clase, género, raza y etnia
Objetos de Conhecimento

74
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Classe:

● Periferias latino-americanas: vozes e práticas marginalizadas de dife-


rentes comunidades;

Gênero e Sexualidade:

● Igualdade nas relações de gênero: por uma educação antissexista


e antimachista;
● Diversidade sexual: respeito às diferenças sexuais e combate à homofobia;

Raça e Etnia:

● Vozes negras e representatividade: por uma educação antirracista;


● Branquitude e privilégios;
● Povos Indígenas: lutas e resistências na América Latina contemporânea;
● Migrantes e refugiados hispânicos: heranças étnicas e processos de inte-
gração social.
● Gêneros discursivos: publicações digitais, notícias, reportagens, infográ-
ficos, fotografias, pinturas, grafites, publicidades, propagandas, memes,
figurinhas, filmes, músicas, poesias;
● Conhecimentos linguísticos: estudo de léxico e de aspectos gramaticais
que colaborem na compreensão dos textos e temas discutidos.
Fonte: Sergipe (2022, p. 247).

Entre as competências gerais da Educação Básica presentes


na BNCC (BRASIL, 2018a, p. 9-10), duas fazem menção ao respeito e à
promoção dos direitos humanos, das quais destaco a nona:

9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de con-


flitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo
o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhi-
mento e valorização da diversidade de indivíduos e de gru-
pos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencia-

75
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

lidades, sem preconceitos de qualquer natureza (BRASIL,


2018, p. 10).

Nesse amplo exercício de respeito de qualquer natureza é que


a referida atividade integradora se configura como decolonial ao con-
templar classificações sociais geradas pelo padrão colonial na constru-
ção da diferença e da superioridade e nas relações de exploração/domi-
nação/conflito (QUIJANO, 2014a). A identificação por classe, gênero,
sexo, raça e etnia é uma marca da diferença colonial, uma consequência
das colonialidades.
O documento justifica que a separação em blocos foi feita ape-
nas para fins didáticos e que reconhece a importância de se “colocar
em pauta a interseccionalidade dessas identidades que sofrem um pro-
cesso de tríplice discriminação e que não podem ser compreendidas
isoladamente, mas, sim, de forma articulada, enxergando e combaten-
do opressões” (GONZALEZ, 1982).
Apesar da falta de aprofundamento sobre a diversidade sexual
e de gênero na BNCC (BRASIL, 2018a), a atividade proposta contem-
pla essas identidades e discussões dentro do itinerário confrontando
a invisibilidade na Base por uma educação antissexista, antimachis-
ta e anti-homofóbica. Vale ressaltar que, além do combate à homo-
fobia, é importante que outras violências contra a diversidade sexual
sejam colocadas em pauta para ampliar essas discussões e visibilizar
as identidades LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneras,
Travestis, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais, Pansexuais, Não-
binárias e mais).
A perspectiva evidenciada pelos objetos de conhecimento propos-
tos também é condizente com o que indicam “as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em atendimento
às leis 10.639/2003 e 11.645/2008” (SERGIPE, 2022, p. 246) e em re-

76
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

conhecimento ao que Ferreira (2016, 2022) chama de afrolatinidade,


“termo designado para nomear os aspectos culturais, históricos e ge-
opolíticos que tratam da herança negra advinda da diáspora africana
nas Américas” (FERREIRA, 2022, p. 20).
Ao longo da história, as relações de poder que surgiram com o co-
lonialismo foram mantidas e reproduzidas pelas colonialidades, origi-
nando as desigualdades. Quijano (2014b, p. 757) explica que “o racismo
e o etnicismo foram inicialmente produzidos na América e posterior-
mente reproduzidos no resto do mundo colonizado, como fundamentos
da especificidade das relações de poder entre a Europa e as populações
do resto do mundo”4. Por essa razão, é de suma importância que vozes
negras, indígenas e imigrantes ganhem espaço em um currículo volta-
do para a educação linguística em espanhol para valorizar suas identi-
dades e histórias, dar visibilidade a suas lutas e denunciar as violências
que sofrem.
Em uma discussão sobre a emancipação social dos chamados gru-
pos marginalizados (pela classe social, sexualidade, gênero, raça, etc.),
Moita Lopes (2006, p. 96) defende a construção da “compreensão da vida
social com eles em suas perspectivas e vozes, sem hierarquizá-los”.
A partir dessas considerações, é possível constatar que essa ati-
vidade integradora do itinerário contempla as chamadas vozes do Sul
em seus objetos de conhecimento, as vozes dos grupos marginalizados,
mas isso não garante que a proposta seja efetivada de maneira sulea-
da, pois dependerá dos textos escolhidos, dos significados a eles dados,
das problematizações das temáticas e da práxis docente enxergando
essas vozes com olhos do Sul (SILVA JÚNIOR; MATOS, 2019).

4 Texto original: El racismo y el etnicismo fueron inicialmente producidos en América y re-


producidos después en el resto del mundo colonizado, como fundamentos de la especifici-
dad de las relaciones de poder entre Europa y las poblaciones del resto del mundo.

77
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Atividade Integradora C – Entre palabras, colores y escenas


hispánicos

A terceira e última proposta de atividade integradora para


o Itinerário Formativo de Língua Espanhola também possui carga
horária de 40 horas para um semestre e representa a última etapa
do processo. Como unidade curricular, sugere-se o Núcleo de Criação
Artística a fim de promover o contato com e a criação de diferen-
tes manifestações artístico-culturais. Dois campos de atuação social
são evidenciados: o campo das práticas de estudo e o campo artístico,
estimulando a compreensão, a produção e a socialização dessas mani-
festações. Entre as possibilidades de eixos estruturantes, optou-se pela
investigação científica e pelos processos criativos, incluindo habilidades
das competências gerais da BNCC (BRASIL, 2018a) e específicas da área
de Linguagens e suas Tecnologias.
Com o intuito de oportunizar o contato com diferentes manifesta-
ções artístico-culturais hispânicas, essa atividade integradora objetiva

[...] promover uma educação linguística em espanhol


que valorize a compreensão e o reconhecimento da rele-
vância das mais diversas manifestações artísticas e cultu-
rais, possibilitando que os estudantes compreendam a sua
diversidade, desenvolvam uma visão crítica e histórica e se
expressem por meio das artes de forma ativa e criativa
(SERGIPE, 2022, p. 258).

Para ampliar o repertório cultural dos/as estudantes, a propos-


ta sugere práticas culturalmente sensíveis (MENDES, 2011) nas quais
eles/as sejam expostos/as a uma variedade de manifestações culturais
e produções artísticas, como a “literatura em verso ou prosa, pintu-
ras, esculturas, fotografias, histórias em quadrinhos, grafites, músicas,
danças, teatro, cinema, televisão, séries, entre outras” (SERGIPE, 2022,
p. 258). A seguir, o quadro com os objetos de conhecimento sugeridos
confirma.

78
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Quadro 3 – Atividade Integradora C

Atividade Integradora C – Entre palabras, colores y escenas hispánicos


Objetos de Conhecimento

● Hispanismo em prosas e versos;


● Artes plásticas: cores e formas das subjetividades;
● Vozes e ritmos de todos os cantos: tradições e contemporaneidade;
● Expressões artísticas de diferentes comunidades;
● Artes de rua: espaço de reexistência;
● Hispanismo nas telas do cinema: entre a realidade e a ficção;
● Seriados hispânicos e seus reflexos socioculturais;
● Gêneros discursivos: literatura oral e escrita, em verso e prosa, pinturas,
esculturas, fotografias, histórias em quadrinhos, grafites, músicas, dan-
ças, teatro, cinema, televisão, séries e outros;
● Conhecimentos linguísticos: estudo de léxico e de aspectos gramaticais
que colaborem na compreensão dos textos e temas discutidos.
Fonte: Sergipe (2022, p. 259).

As sugestões constituem uma proposta decolonial ao passo


que incluem diferentes manifestações artístico-culturais para além da-
quelas convencionadas e rotuladas como de prestígio e dão espaço para
a arte produzida no contexto da comunidade escolar.

A partir dos objetos de conhecimento propostos, convém


expandir as discussões relacionando as manifestações ar-
tístico-culturais apresentadas com aquelas já conhecidas
e vivenciadas pelos estudantes em suas comunidades, se-
jam elas urbanas, do campo, ribeirinhas, indígenas, qui-
lombolas, ciganas, entre outras. É de suma importância
que os docentes contemplem e estimulem o contato não só
com produções convencionadas como canônicas e valori-
zadas, mas também com obras populares e marginalizadas

79
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

que muitas vezes são silenciadas e sofrem com o precon-


ceito (SERGIPE, 2022, p. 260).

A partir dessa diversidade, a fruição, a compreensão, a expressão


individual e o trabalho coletivo farão parte dessa última etapa do itine-
rário. Nessa perspectiva, corroboro com Matos (2014, p. 169) que res-
salta a necessidade de se desconstruir estereótipos que reduzem pro-
duções artístico-culturais a simples curiosidades, “costumes, hábitos
ou traços exóticos de um país ou uma cultura em particular”.
Vale ressaltar que o fato dessa atividade ter como o foco mani-
festações artístico-culturais não significa que as outras não poderão
incluir esses tipos de produções em suas práticas, já que a arte em geral
possibilita o diálogo com aspectos históricos, sociais, políticos, econô-
micos, geográficos e culturais que envolvem uma língua.

Implicações da trajetória

Ao longo deste capítulo, tracei diálogos entre a proposta


de Itinerário Formativo de Língua Espanhola do currículo do Novo
Ensino Médio sergipano, publicado em 2022, e a perspectiva decolo-
nial, fazendo um relato autoetnográfico a partir da minha participação
no processo como redator do documento.
Para contextualizar a experiência vivenciada, descrevi como ocor-
reu a concepção da proposta, desde as questões motivadoras e o resgate
de algumas discussões levantadas por documentos históricos impor-
tantes da Educação Básica brasileira, como os PCNEF (BRASIL, 1998),
PCNEM (BRASIL, 2000) e as OCEM (BRASIL, 2006), até a busca por fis-
suras e brechas (WALSH, 2016) na BNCC (BRASIL, 2018a) que possibi-
litassem olhares outros (MATOS, 2022) para a elaboração do itinerário.
Além disso, apresentei as características que o constituem e indiquei
os temas contemporâneos transversais escolhidos: o Multiculturalismo,
a Diversidade Cultural e a Educação em Direitos Humanos.

80
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Como estratégia para problematizar e ampliar algumas concep-


ções da BNCC (BRASIL, 2018a), evidenciei as referências que embasa-
ram a opção pelo multiculturalismo aberto e interativo e a intercultu-
ralidade (CANDAU, 2008; PARAQUETT, 2019) e o cuidado para que a
proposta contribuísse com o Projeto de vida dos/as estudantes sem re-
forçar o discurso do neoliberalismo e da reforma empresarial da educa-
ção (FREITAS, 2018).
Em sua composição, o itinerário é formado por três sugestões
de unidades curriculares denominadas atividades integradoras e inti-
tuladas “Hispanismo en foco”, “Mosaico hispánico: identidades de clase,
género, raza y etnia” e “Entre palabras, colores y escenas hispánicos”.
Ao apresentar as concepções que embasaram a elaboração de cada uma,
evidenciei seu objetivo, alguns conceitos e os objetos de conhecimento
para ressaltar seu caráter decolonial em prol de uma educação linguís-
tica em espanhol que coloca em pauta a pluralidade cultural e visibiliza
as vozes do Sul.
Quanto a sua natureza interdisciplinar, o itinerário viabiliza o diá-
logo com as artes, a educação física e outras línguas, incluindo a língua
portuguesa, línguas indígenas e africanas na visibilização de suas his-
tórias sendo contadas desde suas próprias perspectivas, através da sua
literatura oral ou escrita nas diversas possibilidades de registro. A área
de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas com a História, Geografia,
Filosofia e Sociologia também pode contribuir para o “aprofundamento
de aspectos históricos, sociais, políticos, econômicos, geográficos e cul-
turais que perpassam esse processo de educação linguística” (SERGIPE,
2022, p. 237).
Também foi possível constatar que os procedimentos metodo-
lógicos que fundamentam a proposta do itinerário também seguem
uma perspectiva decolonial ao propiciar práticas horizontalizadas en-
tre docentes, estudantes e comunidades. No âmbito das estratégias
recomendadas está a escuta atenta e valorização dos conhecimentos

81
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

prévios dos/as estudantes, sua participação ativa nos processos de in-


vestigação, debates e produções, práticas colaborativas, diagnóstico
da realidade da instituição educacional e/ou da comunidade e ações
que ultrapassam as paredes da sala de aula. Em Pedagogia da Esperança,
Freire (1992) faz uma autocrítica ao reconhecer que, apesar da experi-
ência como educador, por vezes partia da sua leitura de mundo, do seu
tema, da sua palavra e reconhece a importância de valorizar a leitura
de mundo dos grupos ou da classe social a quem falava, voltando-se
para o Sul da sua sala de aula, os/as estudantes.
As referências utilizadas para a elaboração de cada uma das ati-
vidades integradoras e as sugestões de material de apoio confirmam
seu caráter decolonial ao indicar propostas de materiais didáticos
de distintos países, variados museus que conservam acervos para a pre-
servação da história de seus povos e territórios, textos literários e ví-
deos de diferentes gêneros, origens, vozes e línguas, além de uma sele-
ção de textos e questões que estiveram presentes no Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM) ao longo dos anos e de sugestões bibliográ-
ficas para ampliar as possibilidades de aprofundamento docente sobre
os objetos de conhecimento de cada atividade integradora.
Vale ressaltar que, durante o processo de desenvolvimento desse
itinerário formativo, em prol de uma educação linguística decolonial
em espanhol no Ensino Médio sergipano, há margem para a inserção
de outras discussões, viabilidade de práticas de letramentos a partir
dos eixos organizadores da BNCC (BRASIL, 2018a) – leitura, oralidade,
escrita, conhecimentos linguísticos e dimensão intercultural – e flexi-
bilidade para a elaboração das atividades, para a organização dos obje-
tos de conhecimento e para a escolha dos textos e dos aspectos temáti-
cos, textuais e/ou linguísticos que podem ser evidenciados.
Se você chegou até aqui, significa que completou comigo esses
percursos outros para construir um itinerário decolonial no qual a lín-
gua espanhola pudesse permanecer no currículo do novo Ensino Médio

82
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

sergipano. Espero que o trajeto tenha mobilizado reflexões que te aju-


daram a ampliar suas perspectivas sobre a educação linguística em es-
panhol nesse contexto de incertezas e reexistência.

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87
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

PERSPECTIVAS CRÍTICAS PARA O ENSINO


DE ESPANHOL NA ESCOLA: UMA REFLEXÃO
DIDÁTICA SOBRE O TRANSLINGUISMO
NO CONTEXTO DO FUTEBOL

Antonio Ferreira da Silva Júnior (UFRJ)


Heloise Cosme de Sousa (UFRJ)
Júlia Cheble Puertas (UFRJ)
Marcelo Henrique Silva dos Santos (UFRJ)

Introdução

Com o intuito de promover um debate sobre perspectivas críti-


cas para o ensino de espanhol, propomos neste texto uma reflexão so-
bre esse tema pelo viés da Linguística Aplicada e selecionamos o tema
do translinguismo1 para problematizá-lo como um caminho teórico-
-prático possível para pensar o ensino da língua espanhola na esco-
la. O presente capítulo surge como resultado de uma análise relativa
à prática docente no ambiente escolar e é fruto de indagações de tópi-
1 Nos estudos referentes ao tema dos contatos linguísticos temos identificado uma maior
ocorrência de termos tais como alternância de códigos, interações bilíngues, trânsitos lin-
guísticos, translinguagem, translinguismo. Apesar da diferença entre os conceitos aponta-
da por alguns autores, todos propõem novos paradigmas para pensar a área dos estudos da
Linguagem e se preocupam, portanto, com a fluidez e negociação de sentidos nas situações
interacionais. Neste capítulo, empregamos esses vocábulos como sinônimos a partir do
momento que compreendemos a língua como um conjunto de recursos mobilizados pelo
usuário. Devido ao caráter didático assumido nesta reflexão, optamos por adotar o translin-
guismo por uma ótica pedagógica proposta por Zolin-Vesz (2016).

88
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

cos tais como o contato linguístico, a diversidade cultural e os trânsitos


linguísticos. Assumimos, neste capítulo, uma concepção translíngue
na aula de espanhol no contexto escolar e apresentamos uma unida-
de didática planejada para estudantes do Ensino Médio, direcionan-
do um olhar crítico para os trânsitos linguísticos presentes no âmbito
futebolístico.
No que tange à escolha da temática, nos chamou a atenção que,
embora o translinguismo seja um assunto difundido a partir da década
de 1990, na área do hispanismo brasileiro ainda são escassos os estu-
dos em torno dessa temática (ZOLIN-VESZ, 2016). Por isso, julgamos
necessário descrever esse fenômeno linguístico e esperamos dar subsí-
dios aos docentes de língua espanhola e de outros idiomas em sua apli-
cabilidade no espaço escolar, uma vez que o cerne deste texto se centra
nas falas decoloniais, isto é, nas produções linguísticas das minorias
e dos sujeitos translíngues, que possuem seus discursos estigmatizados
pela sociedade.
Com vistas a desenvolver nossa proposta, organizamos este capí-
tulo em três seções. Como forma de inserir a temática do translinguismo
em consonância com as perspectivas críticas para o ensino de espanhol,
na primeira seção, evidenciamos nosso vínculo epistemológico com a
Linguística Aplicada e recuperamos investigações sobre as abordagens
críticas para o ensino de línguas. Após isso, na segunda seção, trazemos
alguns estudos relativos aos trânsitos linguísticos na língua espanhola
destacando a importância de ter mais reflexões acerca da abordagem
translíngue. No terceiro bloco, apresentamos subseções para descre-
ver a unidade didática desenhada para o Ensino Médio com o objeti-
vo de estimular os docentes a ressignificar suas práticas do ambiente
educacional. Por último, tecemos algumas considerações finais acerca
do trabalho crítico aventado.

89
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Perspectivas críticas para o ensino de espanhol na escola

Durante muito tempo, a área de ensino de espanhol no Brasil li-


mitou-se a adoção de métodos de ensino internacionais e de modelos
pedagógicos que tinham como foco o produzido nas principais univer-
sidades espanholas (SILVA JÚNIOR, 2022). Nenhum desses métodos di-
dáticos dialogava diretamente com o perfil do aluno brasileiro e com
os preceitos do que foi sendo construído cientificamente pela área so-
bre o que implica ensinar língua no contexto escolar.
Muito tempo se levou para o surgimento dos primeiros debates aca-
dêmicos sobre as abordagens críticas de ensino (SILVA JÚNIOR, 2022).
No campo da educação linguística, muitos são os caminhos de inter-
pretação do termo crítico, entre eles a pedagogia crítica com explícita
influência das reflexões de Paulo Freire, a teoria social crítica, os estu-
dos de letramento crítico e, por fim, os conceitos advindos dos estudos
sociais e culturais. Neste capítulo, entendemos por abordagem crítica
no ensino de espanhol as práticas que conciliam a aprendizagem lin-
guística e os aspectos socioculturais, que incluem o exercício de criti-
cidade e de conscientização política com foco na emancipação e empo-
deramento dos sujeitos.
Podemos afirmar que as Orientações Curriculares para o ensi-
no médio (BRASIL, 2006), política educacional e também linguística
que destinou pela primeira vez um espaço para a reflexão específica
sobre o ensino de espanhol na educação básica brasileira, foi um marco
inicial no debate das perspectivas críticas de ensino, principalmente,
quando pensamos a proposta de aproximação do professor de línguas
às teorias da leitura crítica e dos letramentos críticos.
Antes de abordar brevemente nosso entendimento a respei-
to do ensino crítico, faz-se importante situar as bases epistemológi-
cas dos autores deste capítulo. Nesse sentido, nos alinhamos a uma
Linguística Aplicada comprometida socialmente com situações da vida
profissional do professor de línguas e das práticas pedagógicas decor-

90
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

rentes de suas escolhas na tentativa de auxiliar e compreender os pro-


blemas e os desafios de distintas experiências de ensino. Com isso, bus-
camos elaborar a construção de conhecimentos com diálogo na ação
e intervenção junto aos sujeitos investigados, contemplando a produ-
ção de vozes e de saberes de diferentes origens em busca da descoloni-
zação do conhecimento (KLEIMAN, 2013).
De acordo com Quijano (2000), a Linguística Aplicada brasileira
foi construindo no decorrer do tempo práticas e sentidos contrários
aos princípios de um colonialismo em prol da valorização de histórias
locais e da produção de conhecimentos responsáveis por questionar
o eurocentrismo, o domínio imperialista-global do capitalismo e as
epistemologias do norte. Portanto, como linguistas aplicados da área
de língua espanhola, almejamos pensar as marcas históricas do sujeito
e de como nossas trajetórias impactam na seleção e na ressignificação
de novas abordagens e perspectivas para o ensino.
Nessa linha de pensamento, seguindo a defesa de Kleiman
(2013) do desenvolvimento de uma agenda de pesquisa de frontei-
ra, a Linguística Aplicada brasileira conseguiu definir seus interesses
e questionamentos de pesquisa apesar do que se considera como co-
nhecimento valorizado na investigação ocidental. Isso dialoga total-
mente com a produção discursiva que vem sendo adotada nas escolas
e universidades para a elaboração, por exemplo, de materiais didáti-
cos de espanhol que considerem as realidades e as necessidades locais
em detrimento dos desenhos de unidades pedagógicas que ainda prio-
rizam determinados centros hegemônicos da língua e de poder.
Kleiman (2013, p. 54-55) propõe um projeto de descolonialidade
em nossos locais de trabalho quando se assume

[...] uma pesquisa acadêmica que entende as histórias lo-


cais como mecanismo de (re)configuração de outras identi-
dades e sistemas de conhecimentos por sujeitos que estão
na periferia em relação aos centros de poder, contrapõe-se

91
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

a teorias que caracterizam essas identidades como debili-


tadas, dilaceradas, fragilizadas. É uma postura fortalecedo-
ra dos sujeitos, portanto, ética.

Ao questionar a base científica racional e ocidentalizada, Kleiman


(2013) nos auxilia no entendimento de uma proposta de Linguística
Aplicada mais interventiva na compreensão das realidades sociais
de grupos por meio da produção de novos saberes locais em oposição
aos globais. Nesse aspecto, também compartilhamos o pensamento
de Rajagopalan (2003, p. 106), quando o pesquisador compreende o pa-
pel do linguista aplicado como o de um ativista político, mais crítico
e sensível às questões políticas, culturais e sociais. Para o autor, espe-
ra-se que o nosso papel seja o de

[...] um ativista, um militante, movido por certo idealis-


mo e convicção inabalável de que, a partir da sua ação,
por mais limitada e localizada que ela possa ser, seja possí-
vel desencadear mudanças sociais de grande envergadura
e consequência.

Os problemas de linguagem e de ensino das línguas estão pro-


fundamente relacionados em torno de questões de poder e para isso
faz-se necessário assumir posturas, escolhas e práticas pedagógicas
marcadas de posicionamento histórico e político. Damianovic (2005)
também destaca o papel do linguista aplicado como um pedagogo críti-
co preocupado com as desigualdades da sociedade e em busca de cons-
trução de pautas políticas, pedagógicas e morais para agir no mundo
real e permitir que qualquer sujeito acesse aos bens comuns da vida
em sociedade. A partir dessa conscientização crítica do papel do lin-
guista e educador linguístico, passamos a refletir a seguir acerca do que
pauta nossa concepção de trabalho crítico na aula de espanhol no con-
texto escolar.
No entendimento de que trabalhar com a linguagem é uma forma
de agir politicamente (RAJAGOPALAN, 2003), cabe ao educador lin-

92
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

guístico assumir uma responsabilidade ética, política e crítica ao sele-


cionar textos para organizar seu trabalho pedagógico como uma forma
de alcançar a justiça social e desenvolver um pensamento crítico sobre
o entorno a partir da aproximação do aprendiz ao código linguístico
e cultural da língua estrangeira. De acordo com Rajagopalan (2003, p.
111), “ao educador linguístico cabe a tarefa de estimular a visão crítica
dos alunos, de implantar uma postura crítica, de constante questiona-
mento de certezas”. A educação linguística crítica parte dos contex-
tos sócio-históricos dos estudantes e de suas experiências para propor
problematizações da vida cotidiana em prol da transformação e eman-
cipação do sujeito como ser social, projetando a defesa de um ensino
culturalmente relevante em que o foco do trabalho seja a comunicação
oral, leitura e escrita em língua estrangeira. Transformar a sala de aula
em “arenas de discussão” (SIQUEIRA, 2018, p. 206) possibilita a pro-
moção de um trabalho crítico com a linguagem que tende a atravessar
os muros da escola aproximando cada vez mais a sala de aula ao mun-
do real.
Na tentativa de problematizar uma educação crítica de língua es-
panhola, recorremos a Tilio (2017), pesquisador que reflete a respeito
da polissemia do termo crítico e opta por assumir seu sentido pautado
nas desigualdades, nas diferenças e nas hierarquias construídas nas re-
lações sociais. Tilio (2017) destaca que duas teorias críticas – pedago-
gia crítica e letramento crítico – são aquelas que mais se evidenciam
nas práticas pedagógicas de uma educação que visa a ser crítica. O autor
assume a vertente australiana do letramento crítico em que o conhe-
cimento é ideológico e (re)construído nas relações de poder em jogo
nas práticas sociais (TILIO, 2017). O foco da compreensão está em como
os significados se formam, circulam e se expandem na vida social.
Tilio (2017) propõe um diálogo entre a concepção de linguagem
sociointeracional e os princípios que regem o letramento crítico para
a proposição de uma aprendizagem sociocultural ou de uma postura
pedagógica comprometida com as práticas de ensino de leitura, escrita,

93
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

oralidade e outras linguagens por meio de diferentes textos que circu-


lam. Tal perspectiva crítica de ensino requer a construção e a negocia-
ção de sentidos pela interação social demandando do sujeito o empo-
deramento diante de determinadas situações sociais e a flexibilidade
para agir socialmente nas mais variadas práticas discursivas.
Como forma de implementar um ensino de espanhol a partir da óti-
ca do letramento crítico, nos apoiamos nos princípios de Tilio (2017),
quando ele propõe algumas premissas que se pautam nos interesses
dos estudantes e sua comunidade, mas sem impor uma abordagem
metodológica única. Entre tais apontamentos estão: auxiliar os apren-
dizes a interrogar o sentido de normalidade; desenvolver uma educa-
ção comprometida com a transformação e justiça social, questionando
os sentidos naturalizados; gerar estranhamentos por meio da cons-
trução de uma base consistente de conhecimentos; fomentar espaços
de debate e de autorreflexão; construir e adaptar o trabalho pedagógico
aos interesses e desenvolvimento dos estudantes no decorrer do pro-
cesso e possibilitar de modo crescente experiências que favoreçam
o crescimento individual, social, acadêmico e intelectual dos estudan-
tes. Tais pressupostos pautam-se no fundamento do letramento crítico
como um compromisso pedagógico que possibilita a transformação.
Na linha do pensamento de fronteira (KLEIMAN, 2013) e sob
uma opção decolonial para o ensino de espanhol, a partir dos encami-
nhamentos apresentados para uma educação crítica buscamos exem-
plificar, a seguir, o planejamento de ações didáticas significativas para
o contexto brasileiro da educação básica por meio de uma proposta
de sensibilização intercultural e de descolonização de materiais di-
dáticos levados para a sala de aula a partir da postura crítica diante
do tema dos contatos linguísticos no universo do futebol. Entendemos
que o educador linguístico (na figura de um pedagogo crítico) deve estar
atento às inquietações e os questionamentos da realidade pedagógica
e pode convidar seus alunos para o questionamento das práticas educa-
cionais cristalizadas e pautadas em princípios de colonialidade, sendo

94
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

que elas acabam por impor valores e ideologias que apagam as realida-
des e as identidades locais no contato e na aprendizagem da língua es-
trangeira. A seguir, inserimos o debate da abordagem translíngue como
uma maneira de promover o ensino crítico de espanhol e descolonizar
o conhecimento do idioma na escola.

Trânsitos linguísticos e o ensino da língua espanhola

Em seu artigo “Educação linguística na liquidez da sociedade


do cansaço: o potencial decolonial da perspectiva translíngue”, Rocha
(2019) explora as distintas peculiaridades em torno da sociedade con-
temporânea além de abordar as reflexões acerca da educação linguís-
tica na atualidade e seus encadeamentos nas relações interpessoais,
lançando luz sobre a condição líquida e pós- disciplinar.
A globalização possibilitou não só a difusão mundial da tecnologia
de forma igualitária, mas também repercutiu em fatores sociais, eco-
nômicos, políticos e linguísticos2. Em consonância com Rocha (2019),
Rosa (2020) assume a translinguagem como uma ferramenta potente
nas práticas socioeducativas críticas. Ambas as autoras afirmam que as
práticas translíngues apresentam as condições pós-humana e pós-co-
lonial. Para Rosa (2020), é uma perspectiva situada como pós-humana
no sentido de ser multilíngue3, heterogênea, situada e abarcar ações di-
versas e contextualizadas. E, ainda, assume uma natureza pós-colonial

2 Consideramos como fatores de cunho social, econômico, político e linguístico, alguns con-
teúdos como: a música, a gastronomia, futebol, as artes etc.
3 A educação multilíngue é uma das premissas para o fortalecimento de práticas pedagógicas
direcionadas para um ensino crítico de línguas. Segundo Siqueira (2022, p. 110), existe uma
efervescência de termos que se alternam no que o autor entende como “virada multilíngue”
nas políticas linguísticas. No âmbito educacional, a partir de uma perspectiva multi- ou
pluri- e/ou translíngue, deve-se acompanhar uma valorização dos indivíduos que empre-
gam várias línguas e com diferentes propósitos comunicativos na vida cotidiana em uma
sociedade marcada por muitas línguas. Ao priorizar uma educação multilíngue, os estudan-
tes podem adentrar “mundos (multi) (pluri) (inter)culturais plenamente constituídos por
diferentes cheiros, cores, sabores e afetos que só a diversidade tem o poder de nos propor-
cionar” (SIQUEIRA, 2022, p. 133).

95
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

porque considera as relações de poder presentes na vida contemporâ-


nea em uma realidade pós-colonial.
Ainda em relação ao translinguismo e considerando o seu teor
transformativo, Canagarajah (2017) propõe uma dualidade para as prá-
ticas translíngues: caráter restritivo e caráter expansivo. Essas práticas
assumem uma vertente redutiva quando há a restrição da comunicação
motivada. Por sua vez, demonstram um teor expansivo à medida que há
o favorecimento do multilinguismo crítico estabelecido pelo enfoque
da transliguagem.
O fenômeno da globalização impactou sobremaneira os âmbitos
culturais, econômicos, sociais e linguísticos. A utilização da internet
e a maior ocorrência de emprego de gêneros discursivos multimodais
pode ter potencializado a profusão de muitos contextos plurilíngues
em que os sujeitos translíngues utilizam como artifício comunicacional
recursos semióticos que os ajudam na expansão dos seus repertórios
linguísticos.
No que diz respeito à noção de língua, Rosa (2020) afirma que se
faz necessário descentralizar o seu ensino da carga hegemônica, tra-
dicional e normativista imposta pelos distintos manuais linguísticos,
gramáticas e dicionários e desvincular do aprendiz de uma língua
estrangeira a busca incessante pela perfeição inalcançável de um fa-
lante ideal. Tal visão também dialoga com a proposição de pedagogia
translíngue proposta por Zolin-Vesz (2016), pesquisador preocupa-
do em romper com a prática monolíngue da sala de aula com vistas
à promoção de um ensino crítico de espanhol que gere no aprendiz
uma consciência multilíngue decorrente do seu trânsito entre múlti-
plas línguas e diversos textos.
De outro modo, se faz necessário atribuir à noção de língua
um teor plural, heterogêneo, multimodal e identitário. Desse modo, re-
cuperamos o entendimento de Almeida Filho (2007) sobre língua como
forma de ampliar o entendimento de tal conceito:

96
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Aprender uma língua nessa perspectiva é aprender a sig-


nificar nessa nova língua e isso implica entrar em relações
com outros numa busca de experiências profundas, válidas,
pessoalmente relevantes, capacitadoras de novas compre-
ensões e mobilizadora para ações subsequentes. Aprender
língua estrangeira assim é crescer numa matriz de relações
interativas na língua alvo que gradualmente se desestran-
geiriza para quem a aprende (ALMEIDA FILHO, 2007, p.15)

Nesse sentido, a língua pode ser caracterizada como uma ferra-


menta multilíngue, contextualizada e democrática que ocupa lugares
distintos na sociedade sem que haja preocupação com aspectos nor-
mativistas como certo/errado e proporciona ao discente uma formação
crítica contribuindo assim para sua cidadania.
Com vistas a abordar a linguagem em uso desde uma perspectiva
translíngue, Rosa (2020) propõe que a concepção de translinguagem
tem ganhado cada vez mais força no cenário linguístico.

O termo translinguagem vem sendo bastante discutido


no âmbito de línguas estrangeiras/adicionais no Brasil,
não só nos estudos sobre bilinguismo (de onde se origi-
na a discussão) ou no contexto de educação formal bilín-
gue português-inglês ou em situação de fronteira, mas em
outros contextos como os oferecidos pela internet (ROSA,
2020, p. 5).

No entendimento de Rosa (2020), o prefixo “trans” assume um ca-


ráter híbrido, visto que abrange e acolhe duas línguas que convivem
e coexistem em um mesmo espaço. A expansão da Internet e do mundo
globalizado disseminou novas formas de letramento e diferentes práti-
cas de linguagem que, por sua vez, demandaram, segundo Rosa (2020),
em novos debates para a cibercultura e para os trânsitos linguísticos.
O translinguismo possui grande influência nas práticas sociais dos di-
ferentes sujeitos da sociedade fazendo-se presente em seu cotidiano.

97
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Com relação ao lugar que ocupa o translinguismo no ensino, Reis


e Grande (2017) afirmam que essa perspectiva questiona as práticas
monolíngues e proporciona a ruptura com posturas tradicionais de en-
sino possibilitando aos sujeitos imersos na prática translíngue o uso
de seus repertórios linguísticos. Rocha (2019), além disso, defende
uma educação linguística crítica e decolonial e assegura que a translin-
guagem é uma ferramenta potente na construção de práticas linguís-
ticas-sociais democratizadoras, além de auxiliar a formação da critici-
dade discursiva.
Ainda sobre o prisma da translinguagem e com um olhar crítico
acerca dessa perspectiva no ensino, Fernandes e Salgado (2020) bus-
cam ressignificar o conceito de língua como um sistema homogêneo
e político e propõem uma pedagogia multilíngue a partir do observado
em uma pesquisa ancorada nos trânsitos linguísticos de estudantes bra-
sileiros aprendizes de espanhol de uma escola pública de Minas Gerais,
tomando como base uma rede social, o Facebook. O estudo de Fernandes
e Salgado (2020) objetivou desconstruir o olhar tradicional de língua
como código a fim de repensar a linguagem como prática social dan-
do importância às performances identitárias dos sujeitos translíngues.
A perspectiva desses indivíduos resulta da alternância de duas ou mais
línguas do falante em uma determinada situação comunicativa.
Neste capítulo, assumimos essa concepção para um trabalho crí-
tico de ensino de espanhol e propomos uma unidade didática a partir
dos discursos de celebridades do meio esportivo (jogadores de futebol
e técnico) considerando as interações intermediadas por esses sujei-
tos translíngues na sociedade e problematizando a visão da popula-
ção em geral sobre esses discursos plurilíngues que ecoam linguisti-
camente. Como a sociedade entende o uso do portunhol como recurso
linguístico? Tal prática é aceita ou estigmatizada? O portunhol tem a
mesma dimensão quando é falado por todos os falantes? Essas e ou-
tras indagações serão questionadas no material didático proposto para
uma abordagem crítica do tema.

98
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Uma proposta crítica de unidade didática: translinguismo


no futebol

A perspectiva translíngue, conforme abordamos anteriormente,


funciona, de acordo com Rosa (2020), como um recurso relevante para
realidades educativas mais democráticas e também como uma estraté-
gia para uma prática linguística crítica, já que essa fornece uma ruptura
nos discursos estáveis influenciados pelo monolinguísmo.
Essa concepção é capaz de oferecer novas interações, como es-
paços translíngues, que podem ser entendidos para romper as bar-
reiras de diversas dicotomias, permitindo aos indivíduos envolvidos
a liberdade para a utilização dos seus repertórios linguísticos (REIS;
GRANDE, 2017).
Além disso, o translinguismo auxilia o aluno a conectar questões
afetivas ao encontro de uma possível integralidade de seu repertório
linguístico e cultural, formando assim um espaço de interação entre
o conhecimento acerca do seu país de origem e o de um país hispanofa-
lante, por exemplo, auxiliando no processo de conhecimento linguísti-
co e também da consciência social, cultural e histórica do aluno.
Ao considerar o conceito de translinguismo, propomos uma uni-
dade didática que tem como objetivo apresentar discussões sobre diver-
sidade cultural, multilinguísmo, empréstimos linguísticos, portunhol
e preconceito linguístico, a partir de diferentes gêneros discursivos, in-
seridos em uma temática atual e atrativa para estudantes adolescentes:
o futebol e sua inevitável globalização. Tendo em vista essa propos-
ta, as aulas se transformariam em “arenas de discussões” (SIQUEIRA,
2018) sobre temas enriquecedores com base em gêneros discursivos
presentes no cotidiano dos discentes.
A fim de ilustrar tal prática, empregamos como input linguístico
da unidade fragmentos do gênero audiovisual entrevista, apresentando
exemplos disponíveis no Youtube, de jogadores e técnicos de futebol,

99
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

além de trabalhar com o gênero discursivo comentário, que podemos


encontrar no Youtube. A unidade didática visa redimensionar as con-
cepções que o corpo discente tem em torno do universo da língua es-
panhola lançando luz às vozes que ecoam no discurso e na vivência
desses alunos. Cabe considerar os desafios que eles enfrentam ao longo
da aprendizagem de uma língua estrangeira, principalmente da língua
espanhola, muitas vezes, vista como mais fácil ou mais simples, o que
acaba influenciando a experiência dos alunos nas aulas de espanhol.
As entrevistas4 selecionadas são com jogadores de futebol internacio-
nais, como os jogadores brasileiros Vinicius Junior e Marcelo Vieira
e o argentino Paulo Dybala, além do técnico de futebol português
Jorge Jesus.
As entrevistas envolvem a presença de duas línguas: o espanhol
e o português. Um dos fatores que nos chamou a atenção nos víde-
os diz respeito aos comentários depreciativos destinados aos joga-
dores brasileiros e também ao técnico português. Notamos em uma
das entrevistas que o jogador Vinicius Junior e o técnico Jorge Jesus,
por exemplo, sofreram muitas críticas negativas devido ao uso do por-
tunhol, enquanto que o jogador argentino, Paulo Dybala, recebeu co-
mentários positivos quanto à sua produção linguística. Os comentários
dos vídeos revelam que o portunhol é visto, em muitos casos, como
um dialeto marginalizado e estigmatizado sempre quando se refere
aos brasileiros, ou aos falantes da língua portuguesa, porém, quando
algum estrangeiro, neste caso, falante de espanhol, utiliza essa forma
de comunicação não recebe tantas críticas, pois seu ato comunicativo
é visto como um ato de esforço. Esses pensamentos, infelizmente, já es-
tão enraizados de forma histórica e social no imaginário popular.
A atuação dos profissionais de futebol se configura, de acordo
com Milanovic (2006), como um âmbito de trabalho globalizado, vis-

4 As entrevistas podem ser acessadas nos seguintes endereços eletrônicos: <https://www.


youtube.com/watch?v=CXnN8Qchqtw> e <https://www.youtube.com/watch?v=c5kzE-
COOmfo&t=13s>.

100
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

to que, segundo o autor, é bastante comum que um jogador brasileiro


ou de outra nacionalidade consiga um emprego no exterior. Isso possi-
bilita que os profissionais da área do futebol sejam, prototipicamente,
considerados sujeitos translíngues. Estatisticamente, Milanovic (2006)
nos apresenta, a partir da informação publicada pelo Observatorio
de Jugadores Profesionales de Fútbol, que dos 2.600 futebolistas profis-
sionais que jogam nas melhores ligas europeias, a inglesa, a espanho-
la, a italiana, a alemã e a francesa, quase 800 são expatriados, ou seja,
nascidos ou recrutados em um país diferente daquele de onde jogam.
Diante desse cenário, podemos concluir que o tema futebol é de ex-
pressiva valia para discussões acerca do translinguismo e com bastante
potencial para o desenvolvimento de um trabalho crítico sobre o tema.
Com relação aos gêneros discursivos escolhidos para a unidade
didática, a entrevista se configura como uma comunicação pessoal
que possui um objetivo informativo. Contudo, ela, em suas diferen-
tes concepções, se caracteriza como uma técnica de interação social
que rompe com o isolamento grupal, individual e social e, além dis-
so, é utilizada como instrumento para a pluralização de vozes e para
a distribuição democrática de informação (MORIN, 1973, apud NETO;
SANTOS, 2017, p. 245). Já o comentário se afasta um pouco do gênero
anterior com relação ao seu objetivo. Enquanto observamos um caráter
informativo na entrevista, o comentário apresenta muito mais uma ti-
pologia argumentativa. No entanto, ambos são muito úteis para infor-
mar e apoiar os alunos em suas próprias argumentações sobre um de-
terminado assunto, dividindo, assim, suas opiniões e enriquecendo
as discussões.
O gênero comentário vem sendo muito utilizado nos dias atuais
devido ao crescimento do uso da Internet e das redes sociais, tendo
em vista que a partir dele, os indivíduos são capazes de se posicionar
sobre um tema e de defender um ponto de vista. Silva (2015) argumenta
que, por possuir um conteúdo opinativo, o comentário é, muitas vezes,
confundido com o gênero crítica, que apresenta juízo de valor emitido

101
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

pelo autor, normalmente de uma obra, como no cinema, na dança e na


literatura.
Após justificar nossas escolhas, nos dedicamos nas subseções
seguintes ao detalhamento das etapas da unidade didática, que como
abordamos tem como objetivo principal incitar discussões sobre di-
versos temas relacionados ao translinguismo no universo do futebol.
A proposta foi desenhada para cinco encontros expositivos e indutivos
com duração média de cinquenta minutos cada, voltada para estudan-
tes do Ensino Médio.

Primeira aula: atividade de apresentação do tema

Na primeira aula, nos dedicamos a uma atividade de contextuali-


zação do tema com objetivo de favorecer uma boa relação entre profes-
sor e alunos, de modo que eles possam trocar experiências e construir
juntos sentidos acerca da globalização no futebol e de como o as-
sunto pode impactar na comunicação. Essa introdução será realizada
por meio de perguntas sobre globalização em geral e sobre os impactos
dela no âmbito do futebol. Um dos objetivos da primeira aula é de-
senvolver perguntas que façam os alunos pensarem criticamente como
o futebol é um mercado globalizado e como tal fato afeta os trânsitos
linguísticos, já que, a partir dos intercâmbios culturais dos jogadores,
muitas vezes, esses se tornam sujeitos translíngues.
Questões de cunho pessoal como: ¿Te gusta el fútbol?; ¿Sueles
ver los partidos?; Y las entrevistas de los jugadores después de los parti-
dos, ¿qué te parece? podem facilitar o interesse do grupo quando o as-
sunto é futebol.
Após o primeiro momento de reflexão gerado a partir das respostas
das perguntas introdutórias, apresentamos um texto5 publicado pelo

5 O texto intitulado “O futebol no contexto da globalização” pode ser acessado no seguinte


endereço eletrônico: <https://jornal.usp.br/atualidades/o-futebol-no-contexto-da-globa-
lizacao/>. Acesso em: 25 abr. 2022.

102
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

colunista e professor Pedro Dallari, no jornal da Universidade de São


Paulo (USP), como forma de embasar a discussão quanto ao tema pro-
posto. Nesse texto, o colunista trata da globalização no futebol de ma-
neira clara e objetiva ao expor seu ponto de vista sobre as vantagens
e desvantagens desse fenômeno para o futebol. Sendo assim, o texto
facilita o debate sobre a relação entre globalização, futebol e lingua-
gem. Com base em algumas declarações do colunista, elaboramos mais
questionamentos para aproximar os estudantes do assunto.
Podemos propor uma conversa com o intuito de que os alunos par-
ticipem e se sintam confortáveis para discutir e expor suas ideias sobre
o tema. Portanto, essa tarefa foi pensada para ser realizada pelo profes-
sor em língua espanhola, já que ele se configura como o principal input
linguístico dos alunos durante o curso. Com relação aos estudantes,
fica consentida a possibilidade de respostas tanto em espanhol quanto
em português, ficando a critério de cada aprendiz a escolha da língua
para o debate: (1) En el texto, Pedro Dallari afirma que “O futebol é hoje
uma expressão do mundo globalizado”. ¿Estás de acuerdo con esta afirma-
ción? ¿Por qué?; (2) Al final del fragmento del texto, Pedro Dallari nos pre-
senta un aspecto negativo de la globalización en el fútbol: “um aspecto ne-
gativo seria o caráter de negócio que tomou conta do mundo futebolístico,
principalmente com a exploração de jogadores que são levados de um país
para outro ainda muito jovens”. ¿Estás de acuerdo con este aspecto nega-
tivo? Justifica la respuesta. Para ti, ¿cuáles son las ventajas y desventajas
de la globalización en el mundo del fútbol?; (3) ¿Crees que la globalización
afecta el lenguaje de los personajes involucrados en este medio? ¿Cómo
el intercambio de jugadores, incluso desde muy jóvenes, como ejemplifica
el columnista y profesor Pedro Dallari, influye en los tránsitos lingüísticos?
A partir de tais questionamentos, será possível um debate acerca
do tema que irá guiar os alunos para as próximas discussões propostas
na segunda e terceira aula. Após esse primeiro momento, nos dedica-
mos, na segunda parte da unidade, a apresentar uma breve biografia

103
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de personalidades conhecidas no meio futebolístico que fazem parte


dos quatro vídeos de entrevistas expostos nas aulas seguintes.
Na breve biografia, exibimos a foto, o nome, a profissão, a ida-
de, a nacionalidade e o clube aos quais os jogadores ou técnico per-
tencem. Para a unidade didática, selecionamos as seguintes persona-
lidades: Vinícius Júnior, jogador brasileiro que nos dias de hoje atua
no Real Madrid; Paulo Dybala, jogador argentino que joga pelo clube
italiano Roma; o técnico de futebol português Jorge Jesus, atualmente
treinador do clube turco Fenerbahçe e, por fim, o jogador, também bra-
sileiro, Marcelo Vieira, que está no clube brasileiro Fluminense6. Antes
de apresentar a imagem com as informações pessoais dos atletas, ques-
tionamos os alunos se eles já conheciam ou não essas personalidades.
Após esta segunda etapa, perguntamos aos alunos se eles sabiam
o porquê da escolha dessas pessoas e também se eles acreditam que há
um motivo específico para a seleção. A partir das respostas comparti-
lhadas, discutimos sobre os clubes de cada um, Nesse momento, pro-
blematizamos o fato de haver um relevante intercâmbio cultural e lin-
guístico desses jogadores, já que eles, muitas vezes, vivem em outros
países e convivem com atletas de outras nacionalidades. Tendo em vis-
ta essa realidade, discutimos como esse fator impacta o repertório lin-
guístico de cada um.

Segunda aula: discussões a partir do gênero entrevista

A segunda aula da unidade é dedicada à apresentação das entre-


vistas dos jogadores Vinícius Júnior e Paulo Dybala. O primeiro jogador
é entrevistado por um jornalista espanhol e o segundo por uma jorna-
lista brasileira. A segunda aula tem como objetivo orientar os alunos

6 É importante sinalizar que, por se tratar de um campo laboral bastante globalizado, os su-
jeitos retratados nos vídeos foram descritos como jogadores e treinador dos clubes que es-
tavam atuando na época da revisão final deste capítulo (maio de 2023). Portanto, na descri-
ção apresentada aos alunos informamos que o atleta Paulo Dybala atuava no clube italiano
Juventus, Marcelo estava no clube espanhol Real Madrid e, por fim, Jorge Jesus treinava no
Flamengo.

104
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

para que eles possam discutir, por meio das entrevistas em formato
de vídeo, temas tais como translinguismo, sujeitos translingues, re-
pertórios linguísticos, portunhol, diversidade linguística, preconceito
linguístico etc.
Após a exibição dos vídeos, propomos alguns questionamentos
sobre acontecimentos da entrevista: (1) ¿Sueles utilizar dos lenguas
al mismo tiempo? Si la respuesta es sí, ¿cuándo las utilizan? ¿Cómo crees
que ha sido tu desempeño en estas situaciones?; (2) ¿Qué opinas sobre
el desempeño lingüístico del jugador Vinícius Jr. en esta muestra de la en-
trevista? ¿Y del jugador argentino?; (3) ¿Qué te parece el título del primer
video: “Vinicius Jr. entrevista em espanhol “meteli goli”? ¿Y qué te parece
la descripción literal del video que consta en YouTube: “Vinicius Junior
o portunhol pós jogo do Real Madrid”?; (4) ¿Qué entiendes por portuñol?
¿Ves este concepto como positivo o negativo? ¿Por qué?; (5) ¿Qué te parece
el título del segundo video: “Dybala se arrisca no português e impressiona
repórter”? ¿Y la descripción: “Em entrevista exclusiva ao Esporte interati-
vo, Dybala se arriscou no português e impressionou nossa repórter Clara
Alburquerque”?; (6) ¿Crees que la comunicación de los videos fue eficaz?;
(7) En el video del jugador argentino, ¿qué te parece la actitud de la entre-
vistadora? ¿Por qué ella sigue hablando en español, si el jugador la con-
testa en portugués? ¿Harías lo mismo que esta entrevistadora?; (8) ¿Qué
te parecen las felicitaciones que atribuye la entrevistadora al jugador:
“Parabéns pelo português”? ¿Harías lo mismo?; ¿Y qué te parece la res-
puesta del jugador: “Próxima vez vou falar melhor”?; (9) En tu opinión,
¿hay muestras de contactos lingüísticos en los dos videos? Si sí, ¿cuáles?
As perguntas anteriores podem proporcionar uma proveitosa
conversa com relação ao termo portunhol, ao fato dele, prototipica-
mente, ser visto de forma negativa, mas a possibilidade de ser enten-
dido sob um outro ponto de vista, podendo ser interpretado como
um estágio integrante do processo de aquisição de uma língua. Outro
ponto a respeito do portunhol que podemos trabalhar é o fato desse
termo ser predominantemente empregado para representar a prática

105
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

linguística de falantes lusófonos falando espanhol e não o contrário,


ou seja, um hispanofalante falando português. Levando em conta que o
portunhol se configura como uma mistura entre as línguas portugue-
sa e espanhola, nos cabe um questionamento: por que esse termo
não é tão utilizado para representar o uso da mescla dessas duas lín-
guas por falantes de espanhol ao interagir em português, como aconte-
ce com o vídeo do jogador Dybala? Podemos questionar os estudantes
sobre o termo ser majoritariamente empregado a, principalmente, bra-
sileiros falando espanhol e, de maneira, recorrente e pejorativa.
Além disso, outro ponto que podemos discutir é o motivo de ser-
mos críticos com o nosso desempenho linguístico em espanhol, mas não
termos o mesmo pensamento crítico com relação à competência lin-
guística de estrangeiros interagindo em português. Podemos proble-
matizar também, a partir do título e da descrição dos dois vídeos, como
o esforço realizado pelo jogador Vinícius Júnior, ao falar o espanhol,
é menosprezado, enquanto que o empenho demonstrado por Dybala,
por sua vez, é exaltado, tanto no título do vídeo quanto na descrição.
Com relação ao translinguismo, as atividades nos incitam a uma
discussão com relação aos sujeitos translingues e aos empréstimos
linguísticos presentes na fala dos indivíduos, já que tal perspectiva
compreende as línguas como um bloco único e compartilhado e não
como construtos separados. Além disso, uma aula que tenha em vista
conceitos sobre o translinguismo nos possibilita romper as barreiras
linguísticas, permitindo aos indivíduos a liberdade para utilizar os seus
repertórios linguísticos.

Terceira aula: discussões a partir do gênero comentário

Na terceira aula, apresentamos alguns comentários e opiniões


selecionados do Youtube de cada um dos vídeos com o intuito de pro-
mover e ampliar o debate das primeiras aulas da unidade. Como forma
de iniciar o encontro, podemos reexibir as entrevistas e propor certos

106
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

questionamentos para introduzi-los ao gênero comentário: ¿Cómo cre-


es que fue la repercusión de la entrevistas por los telespectadores?; ¿El gé-
nero comentario es un género que sueles utilizar? Si sí, ¿cuándo lo utilizas?
No vídeo do jogador brasileiro Vinicius Jr., alguns dos comentá-
rios que encontramos foram: “Misturou espanhol com carioquês “mete-
li o goli”; “Vinícius parece aqueles adolescentes que quer falar espanhol
sem saber kkkk”; “Vinicius Jr. falando espanhol é engraçado pacas kkkkk”.
Já no vídeo do jogador argentino, observamos comentários positivos
pelo fato do jogador “tentar” falar português. No entanto, no vídeo
do jogador argentino, apesar dos comentários favoráveis ao jogador,
a repórter brasileira, que realiza a entrevista, ao falar espanhol, recebe
um comentário positivo, mas também sofre críticas pejorativas em re-
lação a sua prática linguística, assim como Vinícius Jr., como podemos
ver nos seguintes comentários: “Foi uma mistura de tudo mas tentou!
Simpatia pura de ambos”; “Ele se esforçando pra falar em português,
tá melhor que a repórter falando em espanhol kkkkk”; “Mano, ela pediu
para ele falar em português, mas daí quando ele começou a falar ela res-
pondeu em espanhol aí ele se confundiu tudo kkk”.
Como podemos ver, o gênero comentário está inserido no cotidia-
no dos jovens e, como sinalizamos, apresenta uma tipologia argumen-
tativa que expressa a opinião dos espectadores com relação aos vídeos,
gerando, assim, uma discussão bem enriquecedora. Se assumimos a re-
presentação de dois sujeitos translíngues, por que os comentários se di-
ferenciam tanto? Será que o fator racial influencia nesses comentários?
(levando em conta que o Vinícius Jr. é um jovem negro, enquanto que o
jogador de Dybala é um jovem branco), por que os comentários feitos
por brasileiros são mais críticos com o jogador brasileiro e são mais
carinhosos e compreensivos com o argentino? Por que não há o mesmo
tipo de reconhecimento do esforço que é feito por cada um em falar
e dar uma entrevista em uma língua estrangeira?

107
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

A partir dos questionamentos, podemos instigar os alunos a pen-


sarem em temas que tocam no âmbito translíngue e em muitas outras
questões que, normalmente, não são desenvolvidas em uma aula de es-
panhol no contexto escolar. Outro fator que acreditamos ser de impor-
tância com relação ao gênero discursivo, é o fato dele ser prototipica-
mente argumentativo, sendo possível desenvolver tal tipologia com os
alunos a partir de temas presentes em nosso cotidiano. Além disso, va-
mos propor essas discussões tocando em um tema tão presente na vida
dos jovens, o futebol. Consideramos que nesta, assim como nas aulas
anteriores, a participação dos alunos pode contribuir para o desenvol-
vimento de estruturas de opinião, de acordo e desacordo e de expressar
gostos em espanhol.

Quarta aula: revisitando conceitos e reflexão crítica

Ainda como parte da unidade didática, propomos uma quarta aula


com o objetivo de aprofundar as discussões e a apresentação da pro-
posta de trabalho final a ser realizada na aula seguinte. Na quarta
aula, selecionamos duas outras entrevistas7. A primeira é a do jogador
brasileiro Marcelo Vieira que dialoga, em português, com uma repór-
ter também brasileira, mas no meio da interação em português acaba
se confundindo, o que resulta em uma mistura do português com o es-
panhol e o outro vídeo é uma conversa do técnico português Jorge Jesus
para um repórter hispanofalante durante o campeonato Libertadores
da América.
A partir das entrevistas, propomos alguns questionamentos, le-
vando em conta o que discutimos nas aulas anteriores: (1) ¿Cuáles
son las semejanzas y diferencias entre estos dos videos y los otros que vi-
mos en las últimas clases?; (2) Llevando en consideración todo lo que he-
mos visto en nuestras clases, ¿te consideras un sujeto translíngüe? ¿Por

7 As entrevistas podem ser acessadas nos seguintes endereços eletrônicos: <https://www.


youtube.com/watch?v=O1guUlj641U&t=20s> e <https://www.youtube.com/watch?v=87iE-
gUm9_6Y&t=8s>.

108
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

qué?; (3) En tu opinión, ¿cuáles son las ventajas y desventajas de la globa-


lización para el lenguaje?; (4) ¿Cómo evaluarías el desempeño del jugador
Marcelo y del técnico Jorge Jesus en la entrevista?; (5) En nuestra segunda
clase, hemos discutido acerca del portuñol, después de toda nuestra dis-
cusión, ¿sigues con la misma opinión que tenías en relación al portuñol?
¿Sigues considerando este concepto como algo negativo?
Após esse primeiro momento, apresentamos, assim como fizemos
na última aula, o gênero discursivo comentário. Primeiramente, nos va-
lemos dos exemplos do vídeo do técnico português Jorge Jesus, tais
como: “Grande portunhol do JJ”. Em um segundo momento, apresenta-
mos outros da entrevista do jogador brasileiro Marcelo Vieira: “Marcelo
tá tanto tempo fora do Brasil que está desaprendendo a falar português”.
Após a exposição das amostras, pedimos aos alunos que apresentem
suas opiniões a respeito dos fragmentos das entrevistas e argumen-
tem a favor ou contra determinado comentário, baseado na discussão
anterior.
Na última parte da aula, discorremos sobre a proposta de avalia-
ção do trabalho crítico realizado na unidade. Essas produções podem
ser realizadas em trio ou em quarteto pelos alunos e deverão ser ex-
postas no próximo encontro, fazendo com que eles próprios possam
protagonizar discussões sobre muitos dos pontos discutidos no mate-
rial didático. A ideia é que os próprios alunos apresentem os questiona-
mentos e os desdobramentos do tema central.
Pretendemos com esta proposta que os alunos busquem vídeos
ou textos inseridos em algum gênero discursivo, podendo ser o gêne-
ro entrevista ou comentário, de maneira que dialoguem com o assun-
to principal da unidade didática: o translinguismo. Podemos orientar
aos estudantes a elaboração de uma apresentação por meio de sli-
des do gênero escolhido, comentando suas principais características,
os pontos de interlocução com o debate sobre o translinguismo e dos

109
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

sujeitos translingues e de fatores que estão relacionados à diversidade


linguística, expondo sempre o ponto de vista crítico do grupo.

Quinta aula: apresentações dos estudantes

A ideia do último encontro é a apresentação oral dos trabalhos


dos estudantes em sala de aula, com o intuito de verificar como eles
compartilham e constroem conhecimentos, enriquecendo os temas
discutidos na unidade didática. Nossa intenção, mais uma vez, além
de avaliar os alunos com relação à apresentação oral, é fazer com que
eles se desenvolvam como sujeitos pensantes no sentido de observar
o poder da argumentação com relação ao tema proposto e também
no que diz respeito ao gênero discursivo selecionado.
O professor pode organizar a exibição dos trabalhos por um sor-
teio, no qual será decidida a sequência de apresentações. Cada grupo
pode dispor de quinze minutos para sua exposição e mais cinco minutos
reservados para os questionamentos dos colegas de turma. Almejamos
que, a partir de perguntas, os estudantes proponham um debate de modo
crítico sobre a temática translíngue por meio dos gêneros selecionados.
Após as exposições e os debates, iniciamos a segunda parte da aula
que consiste em um debate sobre o ponto de vista de cada grupo sobre
a translinguagem e como esse tema se apresenta no gênero discursivo
escolhido através do comportamento de possíveis sujeitos translingues.
Isto é, será nosso papel, como professores conduzir de maneira crítica
uma discussão com relação aos pontos positivos e negativos das intera-
ções de cada grupo, tendo em vista a opinião de todos os participantes.
Podemos, inclusive, nos apoiar nos pressupostos sinalizados por Tilio
(2017) para o desenvolvimento da ampliação de um trabalho crítico
a partir da leitura dos textos apresentados. Acreditamos que o debate
funcionará como uma importante estratégia para cada estudante en-
tender o ponto central de questionamento, tornando-os, mais uma vez,
sujeitos críticos e, principalmente, sujeitos decoloniais, ou seja, indi-

110
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

víduos que se distanciam de uma hegemonia linguística do espanhol


e observam a translinguagem, o portunhol e os empréstimos linguísti-
cos por meio de outro viés.

Considerações finais

O presente capítulo teve como objetivo promover uma reflexão


sobre concepções críticas de ensino de espanhol na escola sob a óti-
ca da Linguística Aplicada e com isso desenhar uma unidade didática
em que a prática translíngue funcionasse como um tema central para
abordar discussões que incitem a justiça social dos sujeitos envolvidos.
Desse modo, ressaltamos a importância da translinguagem em sala
de aula por meio da seleção do universo do futebol e de gêneros dis-
cursivos que atravessam tal contexto para inserção dessa problemática
em turmas de espanhol do Ensino Médio.
Pretendemos, como professores, formar sujeitos com o pensa-
mento crítico apurado e capazes de argumentar sobre diversos temas,
tendo em vista seu conhecimento de mundo e a possibilidade de adqui-
rir mais conhecimentos nas trocas cotidianas mediadas pelas práticas
sociais. Assumimos que um fator diferencial de nossa unidade didática
está em propor uma discussão de temas que permeiam o translinguis-
mo, como o decolonialismo, a multilinguagem e a diversidade linguís-
tica de uma maneira possível e contextualizada por meio do futebol
e da globalização, tópicos estes presentes em nossa sociedade e de
interesse dos estudantes da educação básica. Deste modo, considera-
mos que essa unidade didática se desenvolve de uma maneira orgânica
e proveitosa, fazendo com que os alunos estejam inseridos no contexto
da diversidade linguística e de empréstimos linguísticos.
Com isso, presumimos que esta reflexão venha a contribuir
com a formação de professores de línguas por meio de uma proposta
de unidade didática viável, flexível e possível para os cenários de ensi-
no presencial, remoto ou híbrido. Como pesquisadores da Linguística

111
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Aplicada e docentes de espanhol, a partir dessa unidade didática temos


o intuito de desconstruir pensamentos coloniais, desenvolver sujeitos
pensantes e menos influenciáveis por ideias de hegemonia linguística
e também propor uma reflexão a partir de conceitos, muitas vezes, pe-
jorativos que ainda circulam em diferentes contextos de ensino de es-
panhol, além de oferecer outros caminhos possíveis para a preparação
de material didático para os professores de espanhol.

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114
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

O ENSINO DECOLONIAL DE ESPANHOL A


PARTIR DA APRENDIZAGEM BASEADA EM
PROJETO NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Camila de Souza Santos (UFMG)

Introdução

Este capítulo tem como principal objetivo refletir sobre o ensi-


no decolonial de língua espanhola, tendo por base uma experiência
de aprendizagem corporificada na metodologia ativa aprendizagem
baseada em projetos. Trata-se de uma observação em torno de uma
proposta pedagógica desenvolvida no projeto “Semana de Culturas
Hispânicas” aplicada às turmas do ensino fundamental II de uma es-
cola privada de Minas Gerais. Inicialmente, será apresentado o projeto
Semana de Culturas Hispânicas, em seguida, será ilustrada a funda-
mentação teórica do artigo, posteriormente, a metodologia do presen-
te trabalho e, por fim, a exposição das reflexões escritas no relatório
final gerado por uma das professoras organizadoras e duas convidadas
estrangeiras.
Antes de iniciar a apresentação dessa semana cultural, é impor-
tante ressaltar que a instituição de educação focalizada mantém o en-
sino da língua espanhola como um componente curricular obrigatório
e, apenas no ensino fundamental II, devido à origem dos fundadores

115
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

do colégio, tendo em vista que, em Minas Gerais, a oferta desse idioma


é opcional na educação básica.
A Semana de Culturas Hispânicas1, projeto sobre o qual se discuti-
rá, acontece há muitos anos na instituição em questão e recebia o nome
de “Semana de la Hispanidad”, entretanto, a partir de seu planejamen-
to em 2020, mudou sua identidade, passando a ser reconhecida como
“Semana de Culturas Hispánicas”. Essa identificação não foi escolhida
de maneira desproposital, pois ela já manifesta o pensamento deco-
lonial que se busca trabalhar na formação dos estudantes envolvidos.
Essa alteração parte do pluricentrismo que constitui o mundo hispânico
e que o expressa claramente no plural dos termos “culturas” e “hispâ-
nicas”. Essas palavras denotam novos espaços em que o saber, o ser e o
poder, bem como novas epistemes do conhecimento e da experiência
cultural podem nascer: destacar a pluralidade do mundo hispânico pode
ser uma oportunidade de não essencializar culturas diversas, de valori-
zar as múltiplas influências, os diversos sotaques, os diferentes modos
de conceber a vida, às múltiplas crenças e as diferentes visões do fazer
político (WALSH, 2009). Cumpre evidenciar que a alteração mencio-
nada foi positivamente avaliada pela coordenação da área de línguas
e pela supervisão pedagógica do ensino fundamental II na ocasião, pois
a pluralidade de ser, de existir e de saber são valores são partilhados
nas metas educativas da instituição.
Esse projeto acontece no mês de outubro devido à celebração do
“Dia da Hispanidade” que tem como referência o dia 12 de outubro.
No ponto de vista do colonizador, trata-se de um marco que rememora
a chegada dos espanhóis à América, no entanto, em outros países hispâ-
nicos, a exemplo da Argentina, se celebra o Dia da Diversidade Cultural,
na Nicarágua o Dia da Resistência dos Povos Indígenas, e, finalmente,
na Bolívia, desde 2011, é comemorado o Dia da Descolonização. Essas

1 Não houve restrição institucional de publicação de trabalhos que envolvessem a reflexão


sobre o relatório final do evento por tratar-se de uma ação pedagógica de interesse público,
contudo, há restrições de divulgação de imagens referentes aos trabalhos desenvolvidos
pelos alunos ao longo do evento pela Lei de Proteção de Dados (LGPD).

116
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ressignificações desse evento de encontro no mundo hispânico nos re-


forçam uma vez mais a valorização das perspectivas que historicamen-
te estiveram subalternizadas no processo de conformação cultural
da América. Tal fato deve ser sempre relembrado a nossos estudantes
e, exatamente na abertura do evento, as professoras organizadoras in-
teragiram com os estudantes a fim de levá-los a pensar em “quem nar-
ra” e que o que se “narra” na pluralidade de vozes que tecem o sentido
dessa data.
A cada ano, a Semana de Culturas Hispânicas traz um tema di-
ferente. A edição de 2020 abordou a migração como base de reflexão
dos trabalhos dos alunos e a edição de 2021 trabalhou as diversidades
nos países hispânicos. Por tratar-se de planejamentos e de participan-
tes diferentes nas edições, serão discutidas reflexões sobre o evento
de 2020 através da análise do relatório final que inclui apontamentos
da docente encarregada de desenvolver o planejamento, coordenar
o projeto e coletar as avaliações das duas participantes que enviaram
suas percepções acerca desta iniciativa.
A organização do projeto começou no final do primeiro semestre
do ano de 2020. Por tratar-se do primeiro ano da pandemia de covid-19
e da antecipação de férias letivas na educação básica de Minas Gerais
para maio, as professoras regentes da disciplina de língua espanhola
se reuniram no mês de julho para começar a elaboração do documen-
to norteador do processo. Esse incluía: definição de tema, do período
de realização, do calendário de orientações de trabalhos dos alunos e do
cronograma de atividades; seleção de leituras de apoio; planejamento
da divulgação do evento e indicação dos recursos tecnológicos a serem
utilizados, tais como os da comunidade virtual, suporte de unificação
de reuniões por turmas, pois o evento deveria acontecer na modalidade
on-line. Isso posto, nesse planejamento, decidiu-se que as séries ini-
ciais do fundamental II, 6º e 7º ano, deveriam desenvolver seus traba-
lhos considerando a decolonialidade do ser, do saber e do poder a partir

117
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de níveis de abstração mais simples se comparados aos alunos do 8º


e do 9º ano, séries finais da etapa.
Em 2020, foi decidido o tema Migração e Acolhimento do Mundo
Hispânico no Brasil. O 6º ano organizou um pequeno livro de narra-
tivas em que os alunos se colocaram no lugar de crianças imigrantes.
O objetivo desse trabalho foi incentivar os aprendizes a conhecerem
e a vivenciarem uma experiência imigrante, ainda que de forma fictí-
cia. Assim sendo, eles pesquisariam o assunto, baseando-se em filmes,
em pequenas histórias, em materiais que os possibilitassem reconhe-
cer que a experiência migratória pode ser diversa em função de fatores
como: distância ou proximidade cultural e linguística, razões de migra-
ção, se forçada por questões humanitárias ou econômicas, por realiza-
ção profissional, por desejo de viver a um local diferente.
Os alunos do 7º ano foram convidados a fazer pratos típicos de pa-
íses hispânicos em seus trabalhos e divulgar os sabores que a cultura
imigrante transporta para diferentes espaços. Esse público de aprendi-
zes teve a oportunidade de participar de duas oficinas de receitas típicas
ministradas por duas imigrantes convidadas para o projeto. Na primei-
ra oficina, uma imigrante equatoriana conversou com os alunos, de-
monstrando a os desafios de empreender em outro país de residência,
no caso, o Brasil. Essa palestrante também mostrou a mistura de cultu-
ras manifestada em suas receitas e os estudantes acompanharam a fa-
bricação de uma pizza equatoriana-brasileira. A outra oficina contou
com a participação de uma imigrante venezuelana que ensinou os estu-
dantes a fazerem arepas2 e que os apresentou a cachapa, demonstrando
como a diversidade da Venezuela se faz presente nessa receita.
Os alunos do 8º e do 9º ano, conjuntamente, foram convocados
a pensar em propostas de fomento à inclusão de imigrantes e de refu-
giados no Brasil. Esse público de estudantes produziu podcasts, vídeos
interativos, infográficos, documentos de orientação (para abrir contas
2 Mais informações sobre as arepas disponíveis em: <https://www.tuasaude.com/arepa/>.
Acesso em: 23 jan. 2023.

118
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

em bancos por exemplo), a elaboração de textos que pudessem compor


marcos legais sobre o acolhimento de imigrantes e de refugiados. Essa
última proposta, previa a possibilidade de levar as proposições desta-
cadas pelos estudantes a assembleias populares3. O objetivo do traba-
lho com essas séries finais do fundamental II foi ampliar a concepção
de culturas para além das comidas, danças, bebidas típicas que vêm
junto com os imigrantes. E, sobretudo, considerar o acesso aos direitos
básicos ofertados às populações deslocadas por crise.
Embora, fossem produzidos em um contexto ficcional, esses ma-
nuscritos poderiam pautar reflexões para a inclusão imigrante. Nesse
sentido, a proposta contemplava um levantamento de ações que foram
realizadas, que estavam em cursos e que eram demandadas pela popu-
lação imigrante. Ao longo de seu processo de preparação, os estudantes
do 8º e do 9º ano puderam acompanhar palestras online de convidados
integrantes do Coletivo de Mulheres Migrantes Cio da Terra, de repre-
sentantes das organizações não governamentais como o Refúgio 343 e
de uma imigrante e pesquisadora venezuelana que veio ao Brasil desen-
volver seu trabalho investigativo sobre literatura hispano-americana.
Finalmente, convém destacar que a Semana de Culturas Hispânicas
contou com suporte técnico da área de tecnologia informacional da ins-
tituição. Os funcionários desse departamento prontamente atenderam
as demandas das docentes do projeto e criaram uma comunidade virtu-
al na plataforma Yammer4 para que os alunos de 6º a 9º ano publicassem
seus trabalhos e apreciassem as produções de seus colegas. Por motivos

3 De acordo com as orientações dadas, os documentos deveriam ser redigidos em espanhol


para que o acolhimento não passasse a ideia de que quem chega obrigatoriamente deve
aprender o português. O acolhimento em línguas passa pela negociação de sentidos no
idioma do outro para que ele possa abrir-se ao português sem, no entanto, abandonar sua
língua materna, o espanhol, ao longo de sua vivência no Brasil.
4 Maiores informações sobre essa plataforma disponíveis em: https://www.microsoft.com/
es-es/microsoft-365/yammer/yammer-overview. Acesso em: 23 jan. 2023.

119
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de proteção de dados da instituição educativa, as fotos da comunidade


virtual não poderão ser anexadas no presente neste artigo5.

Fundamentação teórica
Metodologias ativas

Metodologias ativas são estratégias de ensino que conferem


ao aluno o papel ativo e central em seu processo de aprendizagem.
Tratam-se de maneiras de ensinar que podem colaborar com o desen-
volvimento do senso crítico do aluno (FILATRO; CAVALCANTI, 2018)
uma vez que são processos que envolvem a vivência prática da aprendi-
zagem (DEWEY, 1967). Essas metodologias, por sua vez, podem susten-
tar-se em uma progressão cognitiva, isto é, buscam sensibilizar o aluno
a partir do que ele sabe e o desafiam a alcançar um nível superior de co-
nhecimento através da descoberta e da construção autônoma de seu
percurso de aprendizagem (VYGOTSKY et al., 2010).
As metodologias ativas podem incluir processos de ação diferen-
tes como: a sala de aula invertida ou flipped classroom, o ensino híbrido
ou blended learning, a instrução por pares ou peer instruction, aprendi-
zagem baseada em projetos (ABP) e a aprendizagem baseada em pro-
blemas (PBL). A seguir, serão apresentados cada um dos modelos
A sala de aula invertida ou Flipped Classroom é uma metodologia
na qual os alunos se encontram em alguns momentos em sala de aula,
em outros estudando de forma autônoma em suas casas através de um
conteúdo direcionado que o professor disponibiliza. É uma metodolo-
gia que propõe incentivar a cultura de estudo extraclasse no aprendiz.
O professor cria um material que leve o estudante a executar passos
para aprender, a gravação de vídeos de aulas também é uma estratégia
e caso haja alguma dúvida, saná-la em uma conversa com o professor.
Ao final do acompanhamento autônomo de conteúdos e da resolução

5 A Lei de Proteção de Dados (LGPD) vigente na instituição resguarda a circulação de ima-


gens dos estudantes ou de trabalhos realizados pelos mesmos.

120
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de exercícios, o estudante volta à sala e esclarece suas dúvidas com o


professor (BERBEL, 2011).
O ensino híbrido realiza a mistura da aprendizagem presencial
com a aprendizagem online (FILATRO; CAVALCANTI, 2018). Nessa me-
todologia, é pensado um modelo de aprendizagem organizado em eta-
pas, em momentos nos quais o aprendiz encontra-se em sala para
compreender a proposta, discutir ideias com seus colegas e, ao mes-
mo tempo, ter a liberdade de apropriar-se das tecnologias digitais para
cumprir uma meta do encontro. Na etapa de planejamento das tare-
fas, funções podem ser distribuídas entre os estudantes e, em algum
momento, pode haver o trabalho de pesquisa e de produção individual
como parte de um objetivo coletivo. Sempre que os grupos considera-
rem necessário, o contato presencial é recomendado.
Na instrução por pares, peer instruction ou team instrucction, o con-
teúdo proposto pelo professor. O docente planeja um material que será
lido ou ouvido por eles, em duplas ou grupos, esses estudantes discu-
tem os pontos indicados e na sequência são acompanhados pelo pro-
fessor na verificação do conteúdo estudado (FILATRO; CAVALCANTI,
2018).
A aprendizagem baseada em projetos envolve a resolução de de-
mandas atuais do entorno dos estudantes. Nesse sentido, uma questão
é apresentada aos estudantes e, em grupos, eles pensam em estratégias
que podem colaborar para o encaminhamento de soluções. Essa me-
todologia engloba a Aprendizagem Baseada em Problemas, pois esta
consiste no desenvolvimento de um produto a partir da elaboração
de projetos desenhados como resposta às demandas específicas de um
contexto, situação (FILATRO; CAVALCANTI, 2018).
Como é possível observar, todas as ações anteriormente descri-
tas visam colaborar com o agenciamento do aluno em seu processo
de aprendizagem. São formas que posicionam o professor como me-
diador e o aluno autônomo em seu lugar de descoberta. Na experiên-

121
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

cia da Semana de Culturas, a metodologia adotada foi a aprendizagem


baseada em problemas e a grande questão do projeto foi a inserção
de migrantes hispânicos no Brasil. O roteiro norteador do projeto geral
buscava guiar diferentes ênfases nas séries do ensino fundamental II,
sempre com o objetivo de promover uma participação justa de migrantes
nas diversas culturas brasileiras. Assim sendo, os alunos do 6º ano bus-
caram colocar-se no lugar de migrantes e criar um livro com narrati-
vas de crianças migrantes os desafios de construírem novas vidas. O 7º
ano, por sua vez, buscou reconhecer a gastronomia como uma expres-
são do outro na mesa brasileira, buscando destacar as representações
de existir e de resistir através dos ingredientes de receitas migrantes.
Além disso, essa experiência possibilita também que os estudantes vi-
venciem a internacionalização em casa através da gastronomia.
Por fim, no 8º e no 9º ano, os alunos foram conduzidos a desen-
volver seus produtos a partir dos desafios que se colocam à integra-
ção social de migrantes e refugiados no acesso aos direitos básicos
como: saúde, educação, moradia, alimentação, trabalho. Além disso,
esses aprendizes tiveram a oportunidade de reconhecer a necessidade
do acolhimento emocional dos imigrantes, tendo em vista, que essa
é uma população, infelizmente, é suscetível à xenofobia, ao racismo,
à misoginia dentre outros tipos de violência simbólica e física. Foi tam-
bém uma oportunidade para que os estudantes, ouvindo as vozes
dos migrantes, pudessem reconhecê-los como sujeitos ativos de sua
reconstrução social, afastando-se da visão reducionista que os coloca
como sujeitos a quem tudo falta (LÓPEZ, 2018; ANUNCIAÇÃO, 2018).

Decolonialidade

Para que se possa compreender o movimento decolonial


na produção do conhecimento, torna-se necessário ter em mente
é a colonialidade, conceito que emerge do colonialismo. Nas palavras

122
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de Maldonado–Torres (2007), a relação colonialismo e colonialidade


se dá da seguinte forma:

O colonialismo denota uma relação política e econômi-


ca, na qual a soberania de um povo está no poder de ou-
tro povo ou nação, o que constitui a referida nação em um
império. Diferente desta ideia, a colonialidade se refere
a um padrão de poder que emergiu como resultado
do colonialismo moderno, mas em vez de estar limi-
tado a uma relação formal de poder entre dois povos
ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o co-
nhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas
se articulam entre si através do mercado capitalista
mundial e da ideia de raça. Assim, apesar do colonia-
lismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive
ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos,
nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura,
no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspi-
rações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa
experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonia-
lidade na modernidade cotidianamente (MALDONADO-
TORRES, 2007, p. 131, grifos da autora).

Assim, as formas de ser, de poder e de estar no mundo coloni-


zado, até então, foram estruturadas em torno dos valores outros que,
historicamente, se colocaram no lugar de descobridores e que defini-
ram, no campo das ideias, o seu papel de produtor dos bons costumes,
das práticas de maior sucesso, a exemplo, da América Latina, um con-
tinente que, sendo novo aos olhos colonizadores, apropriou-se de cri-
térios de seus ditos “descobridores” para direcionar os discursos que,
por muito tempo, narraram sua história.
Nessa direção, Oliveira e Candau (2010) destacam que “[...] a co-
lonialidade do poder reprime os modos de produção de conhecimento,
os saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado e impõe no-

123
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

vos.” Considerando essa posição, é possível observar que, há não muito


tempo, qualquer outra fonte de ser, de saber e de poder, de outros mun-
dos são silenciados pela dita “civilização” que marcou as relações entre
culturas nas regiões que, na perspectiva colonial, foram “descobertas”
pelos colonizadores. De forma bastante lúcida, Freire (2020) demons-
tra como a colonialidade se coloca no processo de luta de emancipa-
ção política no que se refere à linguagem como instrumento de difusão
de ideias:

Obviamente que, para as nações em construção de autono-


mia, o problema da língua é absolutamente crucial, porque
esse negócio de língua em primeiro lugar é uma abstra-
ção, porque o que é concreto mesmo é a linguagem. Esse
negócio de língua portuguesa, linguística, isso é abstra-
ção, o concreto é a maneira como a gente fala, o discurso
de gente, e esse é de classe. Discurso de classe está subme-
tido às mudanças culturais de classe, às influências.
Agora veja, o problema da linguagem é que ela sofre di-
retamente do erro da cultura ou da classe. Por isso é que
uma das primeiras providências que o colonizador faz é
tentar impor a sua linguagem sobre o colonizado, e é fan-
tástico como o colonizado se defende manhosamente con-
tra “vamos usar da língua para dificultar muito”. Contra
a língua estrangeira invasora, o colonizado se defende
falando e mantendo a sua língua que o colonizador cha-
ma de puro bastardo dialeto, porque ele convence de que
ele tem um momento de liberdade, que é aquele em que
se expressa na sua forma de ser e de falar, que é a sua lin-
guagem. Ora, então a questão da linguagem é fundamental
(FREIRE, 2020, p. 136-137).

Vale enfatizar que também Freire (2020) discutiu os desafios


de manter o poder a partir da língua dos povos colonizados já que
em muitos países onde a diversidade étnica é a grande a decisão sobre

124
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

a oficialidade de qualquer idioma pode dificultar o processo de mobi-


lização social e difusão do conhecimento. À vista disso, o autor enfa-
tiza que o processo de emancipação deve voltar-se também para o da
valorização das línguas locais, por meio do ensino das mesmas para
que o bilinguismo ou plurilinguismo sejam fomentados como expres-
são da identidade nacional desses países. Para o autor, ainda que seja
uma estratégia de institucionalização da emancipação nacional, trata-
-se de uma decisão que constitui uma ação colonizadora “adocicada”,
o que reforça a importância de processos institucionais que mantenham
acesso o plurilinguismo como uma prática de educação decolonial.
A institucionalização do ensino multicultural, fundamentado
em leis, também consiste em um passo importante para que práti-
cas de decolonialidade se materializem no Brasil. Tal é o caso da Lei
10.639/036 que institui o ensino da cultura afro-brasileira na educa-
ção básica, com a proposição de conteúdos curriculares que destacam
a contribuição do povo negro na constituição da história e da cultura
brasileira, além de estabelecer, no calendário escolar, o dia 20 de no-
vembro como Dia da Consciência Negra.
A necessidade de incluir nos componentes curriculares o ensi-
no da Cultura Afro-Brasileira e Africana, alterou as Lei de Diretrizes
e Bases da Educação, LDB 9.3947 por meio da Lei 11.645 que buscou
garantir o ensino da cultura indígena nos currículos das disciplinas
de História, Artes e Literatura. Assim sendo, a Lei 11.645/088 é reco-
nhecida pela institucionalização da “História e Cultura Afro-Brasileira
e Indígena” na educação básica do Brasil.
Essa institucionalização em forma de leis é um passo importan-
te para que se possa compreender a constituição das identidades bra-

6 Texto disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso


em: 20 mar. 2022.
7 Texto disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 20
mar. 2022.
8 Texto disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.
htm. Acesso em: 20 mar. 2022.

125
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

sileiras a partir das vozes subalternizadas envolvidas na conformação


da nossa história e da nossa cultura. Entretanto, é importante levar
em conta a forma como essas vozes ressoam nas práticas estabelecidas
por lei, pois como nos alerta Maher (2007), a abordagem liberal da re-
lação entre culturas tende a tratar como cristalizados, estereotipados
os traços destacados de uma cultura como os da população negra sem-
pre vista como escrava, lutadora de capoeira e os indígenas, por sua
vez, quase sempre imaginados de forma restrita com penachos na ca-
beça, realizando rituais como a famosa “dança da chuva”.
A decolonialidade é, portanto, um movimento que envolve o pen-
samento crítico que se dá a partir de uma profunda reflexão acerca
das relações de poder estabelecidas historicamente na América Latina
e outros continentes. Trata-se da criação de uma nova agenda de pen-
samento que parte das vozes dos colonizados no registro de suas iden-
tidades, na construção de suas histórias, na reconstrução radical do ser,
do saber e do poder (OLIVEIRA; CANDAU, 2010). É o reordenamento
de uma ordem social e geopolítica do conhecimento que se manifes-
ta na diferença colonial e que joga luz nas perspectivas dos invisibi-
lizados, dos marginalizados e na emergência do poder dos que foram
explorados pelas potências coloniais, que formaram descendências
e marcaram a história dos países do chamado Sul Global9 (GOMES,
2012), não apenas no sentido econômico, mas histórico e social tam-
bém (MIGNOLO, 2003).
Esse reordenamento na geopolítica do conhecimento, ou seja,
nas concepções atuais de ser, poder e saber, tem mobilizado questio-
namentos em volta da história e conformação dos países do chamado
Sul Global. Nessa perspectiva, o Sul é concebido, sobretudo, a partir
da exploração colonial que reverberou questões sociais tais como as de
desigualdade de gênero e de raça. Deste modo, torna-se urgente a es-

9 Em uma perspectiva histórica, o termo sul global se refere às regiões do mundo cujo sa-
ber-poder viveu uma relação desigual em processos históricos de colonização (cf. GOMES,
2012).

126
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

cola assumir a função de um espaço agenciador de reflexões acerca


das relações de ser, saber e poder e promover uma maior compreensão
de um novo reordenamento no discurso que conta a história dos paí-
ses marcados pela relação exploratória da colonização. É nesse sentido,
que a partir da edição de 2020, a Semana de Culturas Hispânicas altera
seus pressupostos teóricos-metodológicos para materializar uma prá-
tica crítica de educação linguística na perspectiva decolonial. Conceitos
como decolonialidade do ser, do poder e do saber, assim como a com-
preensão clara de interculturalidade orientam a condução dos traba-
lhos do 6º ao 9º do ensino fundamental de forma mais marcada, no 8º
e 9º ano.
Na próxima seção, será tratada a concepção de interculturalidade
a partir das reflexões elencadas por Maher (2007).

Interculturalidade

Para trabalhar a relação entre culturas, Maher (2007) levanta


uma reflexão sobre os conceitos de cultura e de multiculturalismo.
A autora chama a atenção para as tensões que perpassam a relação
intercultural, e, nesse sentido, ela busca mostrar as instabilidades
que envolvem o contato cultural e as complexas negociações de sen-
tido ao redor das culturas em interação. Ademais, a autora demons-
tra que cultura não corresponde a uma noção estável, homogênea,
e tampouco, hierarquizável. De modo paralelo, a Maher (2007) indica
que não se pode restringir e cristalizar a cultura às danças, às comidas
e às músicas de um país. Ao mencionar Chidi e Behamondes (2001),
Maher (2007) expõe que

[...] Quando se trabalha com as culturas, portanto, temos


que nos precaver para não apresentar os atores dessas
culturas como representantes exemplares das mesmas.
Temos que buscar as matrizes comuns, mas também
abrir espaço para a diversidade de expressões, para

127
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

a possibilidade e para a existência real de divergências


e criações individuais e coletivas que variam no tempo e no
espaço (CHIODI; BEHAMONDES, 2001, p. 58 apud MAHER,
2007, p. 262, destaques da autora do artigo).

Deste modo, Maher (2007) reforça o fato de que as culturas con-


figuram-se como negociações instáveis. Em termos práticos, a concep-
ção adotada pela autora assinala o movimento constante das práticas
envolvidas em função do espaço, das diversidades ao redor das relações
interculturais no decorrer do tempo e das tensões que podem emergir
para além da mera e pura compilação de arquétipos culturais.
O multiculturalismo, por sua vez, pode ser compreendido em duas
vertentes de sua face conservadora. Uma dessas chamada de multicultu-
ralismo liberal propõe que, desde que se promovam condições de igual-
dade, as culturas podem disputar os mesmos espaços. A ênfase dessa
vertente focaliza o mérito e o esforço individual dos membros de uma
cultura no alcance de seus objetivos. Já a outra vertente do multicultu-
ralismo conservador tende a destacar as diferenças e tornarem cristali-
zados determinados comportamentos de indivíduos que compartilham
da mesma cultura. Assim sendo, em grupo de indivíduos participan-
tes de uma cultura, se espera a mesma postura de todos. Se um grupo
de indivíduos é negro, espera-se que todos compartilhem os mesmos
valores acerca da luta por direitos ou tenham o mesmo nível de poli-
tização, adotem as mesmas decisões, dividam entre si a mesma visão
acerca de sua condição social e cultural (KUBOTA, 2004).
Ademais, há também o multiculturalismo crítico ou intercultu-
ralidade, concebido por Maher (2007) como uma concepção de rela-
ção entre culturas não centrada em essencialismos ou cristalizações,
mas em experiências nas quais as culturas se relacionam de modo di-
nâmico e diverso. A autora destaca que sempre há uma luta de poder
entre as culturas e que nessas assimetrias, há um diálogo que constrói
um entrelugar entre elas. Um entrelugar em constante mutação com o

128
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tempo, que atende aos interesses de diversos grupos e, portanto, é bas-


tante complexo.
Dentre os fatores que auxiliam a materialização da intercultura-
lidade, é importante haver o empoderamento dos indivíduos partici-
pantes de uma cultura que deve sustentar-se nos seguintes pontos: a)
politização dos grupos para que compreendam o sentido de sua luta
em um contexto maior; b) a criação de legislação para que se garanta
a efetividade dos direitos dos sujeitos; e c) a educação do entorno para
evitar que se cristalize as culturas a partir de estereótipos, para que se
evite a fetichização da diferença cultural e para que se compreenda me-
lhor a relação dinâmica que se estabelece entre as diferentes culturas.
Nessa perspectiva, buscou-se realizar as orientações de projetos
da Semana de Culturas Hispânicas edição 2020, pois ao serem convo-
cados para participar de oficinas de gastronomia, os estudantes não es-
tavam compreendendo apenas uma forma de alimentação típica de um
país, mas também a diversidade de ingredientes que compõem as re-
ceitas e que, por sua vez, expressa a diversidade de relações intercultu-
rais e intraculturais de uma receita. Ao organizarem um livro de con-
tos de migrantes, os alunos eram convidados a conhecer a diversidade
de pontos de vistas de outros estudantes que compõem uma cultura
e que estão marcados por diferenças de gênero, de raça, de classe social,
de preferências culturais e que sentiam de formas diversas os impac-
tos de uma migração forçada. Por fim, os alunos que foram convidados
a pensar o acolhimento cultural dos que chegam trazendo sua diver-
sidade linguística, étnica e social puderam engajar-se na promoção
da interculturalidade através do acesso à cidadania no Brasil. Junto
ao exercício da cidadania intercultural, era extremamente necessário
a escuta dos migrantes, deste modo, a proposta do projeto visou tanto
construir caminhos para a interculturalidade, quanto fomentar práti-
cas de decolonialidade na experiência vivenciada pelos alunos em sua
aprendizagem.

129
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Metodologia
Delineamento metodológico

Esta investigação define-se como uma pesquisa qualitativa,


por trazer como meta característica a “contribuir com revelações so-
bre conceitos existentes ou emergentes que podem ajudar a explicar
o comportamento social humano” (YIN, 2016). No caso específico desta
investigação, busca-se compreender os conceitos de interculturalidade
e de decolonialidade no processo educativo a partir de uma experiência
pedagógica desenvolvida em uma instituição de ensino básico, especi-
ficamente, no componente curricular de língua espanhola (YIN, 2016;
GIL 2019).

Objeto de análise

As análises do presente trabalho centram-se em anotações


de campo de uma das professoras orientadoras dos trabalhos apresen-
tados no projeto “Semana de Culturas Hispânicas” que versam sobre
o planejamento e sobre a condução dos produtos apresentados nesse
projeto. Ademais, há informações no relatório final que foram revela-
das nas avaliações que duas participantes migrantes fizeram do pro-
jeto a partir de sua interação com os estudantes. A fim de resguardar
as mesmas, o presente trabalho considerará a avaliação delas não em
forma de discurso direto, mas por meio de questões gerais que ambas
apontaram positiva e negativamente.

Análise de dados e considerações finais

Nesta seção, se discutirá os conceitos de educação decolonial


e interculturalidade a partir do balanço realizado do evento Semana
de Culturas Hispânicas e registrado nos diários de campo de uma
das professoras orientadoras do evento, além da análise de relatos
de duas participantes migrantes entrevistadas logo após a realização

130
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

do projeto, avaliando essa ação educativa. Essa seção está organizada


nas seguintes categorias: concepções de cultura migrante que os es-
tudantes possuem, apropriação das tecnologias digitais para a “imer-
são no tema migração e acolhimento do mundo hispânico”, desenvol-
vimento das etapas dos projetos e avaliação das participantes sobre
o projeto.
Sobre as concepções de cultura dos estudantes, foi possível ob-
servar, nos temas de suas propostas, que é bastante comum uma com-
preensão, muito restrita às danças, comidas, roupas e festas típicas
dos imigrantes. Dessa forma, foi possível ver avaliações de experiên-
cias orientadas por uma tendência conservadora do multiculturalismo
(MAHER, 2007; KUBOTA, 2004). Essa interpretação restrita de cultura
demonstrou que, embora a educação do entorno (MAHER, 2007) pre-
vista no projeto de orientação geral, contasse com um carácter mais
crítico, de pensamento mais complexo entorno das culturas, ainda
se percebe a necessidade de um trabalho mais incisivo, mais claro para
os alunos acerca das complexas relações de poder envolvidas na produ-
ção e interação intercultural. Justamente por isso foi pedido à convida-
da oficineira que explanasse um pouco sobre os sujeitos representados
nos ingredientes da receita e sobre a diversidade de sabores que com-
põem sua cultura. Igualmente, a convidada demonstrou as variações
que uma receita pode ter em função de novas combinações de ingre-
dientes que surgem das preferências dos diversos paladares que des-
frutam desses sabores.
Uma demanda que surgiu nessa experiência foi a realização de um
trabalho interdisciplinar com os alunos, ou seja, relacionar conheci-
mentos de disciplinas como geografia, literatura e história, junto à lín-
gua espanhola para que possam entender como as condições regionais
e sociais de um local influenciam a cultura gastronômica de sua popu-
lação. A título de ilustração, poderia se considerar a presença de “pata-
cones” na comida colombiana, venezuelana, panamenha, equatoriana,
alude às condições climáticas e de relevo desses países, à venda inter-

131
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

nacional desse produto, às histórias e lutas de trabalhadores nas lavou-


ras bananeiras, como nos mostra Gabriel García em suas obras como
“Vivir para contarla” e “Cien años de soledad”10.Nessa direção, urge
a necessidade de se incluir no projeto orientações que busquem mobi-
lizar a experiência de aprendizagem dos alunos pelas searas de vários
campos do conhecimento. Isso poderia enriquecer o caráter decolonial
dessa prática, pois são as vozes do sul, escritores sul-americanos, nar-
rando a história de seu povo. Seria a compreensão da comida a partir
do lugar de onde ela surge. É o Sul Global explanando-se para o mundo.
A partir do que foi enfatizado pelos estudantes, observou-se a necessi-
dade de aprofundamento teórico nas orientações dos projetos e nos fe-
edbacks que o professor oferece aos alunos em suas etapas de produção.
Um ponto ressaltado nos diários de campo foi a concepção so-
bre a relação intercultural que os alunos têm diante de um estrangeiro
que é imigrante por situação de refúgio ou por motivações econômicas.
Embora houvesse um empenho muito grande, especialmente nos pro-
jetos do 8º e do 9º ano, para que os imigrantes de crise fossem vistos
como sujeitos ativos de sua nova situação, os estudantes os viam pu-
ramente vítimas de interesses tirânicos de terceiros. Pessoas marcadas
pela “falta” de direitos básicos, de um lugar para viver, tais visões cor-
roboram uma falsa compreensão do Brasil como a solução para os pro-
blemas de outras nações. Igualmente, foi possível observar que, embora
as diretrizes gerais do projeto se esforçassem em promover uma visão
mais crítica acerca das relações interculturais, o material de sensibili-
zação colaborou com essa visão estereotipada e totalizadora da pobreza
imigrante por não ampliar essas concepções prontas dos alunos. Houve
a leitura e atividades de compreensão de uma reportagem que trata-
va da migração de nacionais de Honduras para os Estados Unidos e o
tratamento desumano que estavam recebendo na ocasião. Por outro
10 Talvez os estudantes não tenham nível de proficiência em espanhol para compreender em
profundidade as obras, mas na contextualização ilustrada aqui, conhecimentos de história
e de geografia discutidos em sala de aula podem ajudá-los a realizar uma conexão dessas
obras com o tema para que, posteriormente, se há interesse aconteça a leitura. Pode haver
outras obras mais simples, contos mais simples que abordem esse assunto.

132
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

lado, faltou mostrar aos estudantes os protestos que imigrantes e seus


descendentes fazem nos Estados Unidos para serem tratados como
cidadãos, para não serem vistos como exóticos, como sub-humanos,
como pessoas que não chegam para somar-se à diversidade do país.
São inegáveis os esforços empreendidos para que essa visão estigma-
tizante dos estudantes pudesse ser superada, tendo em vista que duas
das imigrantes palestrantes no projeto estavam engajadas em um cole-
tivo em Belo Horizonte. De toda a forma, chegou-se à conclusão de que
aprimoramentos são muito demandados para que se possa caminhar
para essa superação dos estereótipos direcionados à população imi-
grante dos países do Sul Global.
Ainda que todos esses desafios estejam colocados à mesa,
no balanço geral de avaliação do evento, o aproveitamento pedagógico
da Semana de Culturas Hispânicas apresentou um saldo positivo, tendo
em vista que as restrições procedimentais na preparação dos estudan-
tes puderam ser trabalhadas nas próprias oficinas com as atividades
que as participantes imigrantes ofereceram. Nesse sentido, em suas
ponderações, as palestrantes ressaltaram o valor significativo desse
projeto para elas, uma vez mostrou-se como um pequeno passo para
a superação de estereótipos e de preconceitos direcionados às suas co-
munidades no Brasil.
Outro ponto que ficou claro para as oficineiras, foi a preparação
prévia dos estudantes e a orientação de perguntas que não fossem
íntimas ou constrangedoras. Nesse critério, é possível afirmar que os
estudantes foram preparados ao terem que pesquisar sobre os países
das palestrantes e expor perguntas prévias nos fóruns de interação onli-
ne. Com isso, as expositoras selecionaram as perguntas que consideram
relevantes, os alunos, por sua vez, compreenderam que existem limites
na interação com o outro e que é preciso respeitar espaços, não gene-
ralizar ideias, pensar criticamente sobre o acolhimento de imigrantes.

133
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Finalmente é importante destacar que é desafiador desenvol-


ver projetos de educação decolonial e intercultural crítica em tempos
de valorização de uma educação neoliberal (FREIRE, 2020; KUBOTA,
2004; MAHER, 2007). Assim sendo, é sempre necessário demonstrar
as questões de linguagem que perpassam as relações de ser, poder e fa-
zer na aprendizagem de línguas. Nesse sentido, torna-se fundamental
demonstrar aos estudantes que a aprendizagem de línguas não se limi-
ta às questões vocabulares, mas sobretudo, sobre a mobilização desses
recursos nas resoluções e encaminhamentos de interesse social e co-
letivo relacionados aos envolvidos na experiência de migração forçada
(OLIVEIRA; CANDAU 2010).

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YIN, Robert. K. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Trad. Daniel Bueno.
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135
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

MEMÓRIAS DA PANDEMIA DA COVID-19: IMAGINÁRIOS


E REPRESENTAÇÕES DECOLONIAIS NA SELEÇÃO DE
MATERIAIS E PRODUÇÃO DE PROPOSTAS DIDÁTICAS
PARA O ENSINO DE ESPANHOL NO BRASIL1

Carla Dameane Pereira de Souza (UFBA)

Primeira memória: da pandemia e seus desdobramentos


na educação

En estos meses de pandemia estoy enseñando un curso de ma-


temática a ocho estudiantes de primaria y secundaria, a pe-
dido de sus padres, que son de Zárate, en el distrito de San
Juan de Lurigancho. Con el programa “Aprendo en casa”
del Ministerio de Educación tienen dificultades para ingresar
al Gmail.com y a las aulas virtuales. Otros no tienen inter-
net y tienen que buscar para compartir. Para una educación
online, es indispensable el servicio de internet, un ordena-
dor, tablet o laptop, audífonos con micrófonos y una cámara
web. Mis alumnos carecen de estos materiales. Yo refuerzo
sus temas y conjuntamente desarrollamos sus tareas; luego,
finalizada la clase, las envío al Gmail de su tutor y a su aula
virtual. Ellos solo aprenden de modo personal. Más triste

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior–Brasil (CAPES)–Código de Financiamento 001.

136
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

es el caso de mi alumno Grissángel, de 12 años, que estu-


diaba en colegio particular. Luego lo cambiaron a la escuela
estatal y no recibía sus clases por falta de responsabilidad
y organización en la escuela estatal, que no se comunicaba
con sus padres, y eso lo condujo a no cumplir con las clases
y las tareas. Él venía para aprender algo de mi enseñanza.
Pero, según el dictamen del Ministerio de Educación, va a pa-
sar al siguiente año escolar sin haber recibido clases. Harían
clases de recuperación en los meses de enero y febrero del año
2021. Una tristeza para nuestros niños, que pierden enseñan-
zas con esta pandemia. (Jair Antony Jiménez Sairitupac, in-
geniero industrial, octubre, 2020) (JIMÉNEZ QUISPE, 2021,
p. 210).

O relato testemunhal de Jair Antony Jiménez Sairitupac com o


qual inicio este capítulo forma parte do livro Nuevo coronavirus y buen
gobierno Memorias de la pandemia de Covid-19 en Perú (2021), pu-
blicado pelo jornalista, antropólogo e retablista peruano Edilberto
Jiménez Quispe. Tal como em Chungui Violencia y trazos de memoria
(2005), em que registra e denuncia eventos de violência e abusos con-
tra os direitos humanos durante o Conflito Armado Interno do Peru
(1980-2000), em Nuevo coronavirus y buen gobierno, Jiménez Quispe
apresenta-nos um repertório amplo e diverso de experiências narra-
das, em testemunhos literários e visuais, sobre a forma como peruanos
e peruanas enfrentaram a covid-19, revelando nestas páginas situações
de vulnerabilidade, de desespero e pessimismo em relação ao futu-
ro. Entretanto, há também passagens em que esse contexto inóspito
para a sobrevivência da humanidade se revela otimista graças às ações
de pessoas que encontram nas dificuldades um tipo de ânimo sanador,
como este que caracteriza o fazer do intelectual comprometido em dia-
logar com as pessoas, em registrar as percepções e as narrativas de cada
um em relação à experiência individual e coletiva no período de isola-
mento social e, ao mesmo tempo, em transpor essa narrativa literária
para outra modalidade, a visual.

137
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Figura 1 – “Va a pasar al siguiente año escolar sin haber recibido clases”.

Fonte: Jiménez Quispe (2021, p. 211).

O desenho produzido por Jiménez Quispe para acompanhar


e dialogar com o testemunho de Jair Antony Jiménez Sairitupac revela
o tempo/espaço de um professor, que envia as tarefas aos seus estu-
dantes, através dos recursos tecnológicos de que dispõe. Um desses es-
tudantes, poderia ser o Grissángel (citado no testemunho), que chora
por sua impossibilidade de concretizar o que lhe fora pedido. O aluno
sofre, na companhia solidária de um cachorro. Seu caderno e lápis estão
jogados ao chão e são índices da impotência de não poder se comunicar
e acessar a educação que lhe é de direito. O que tem a sua frente é o si-
mulacro de um computador, estampado em um amplo tecido suspenso
por dois “seres Corona”, figuras humanas com cabeças que remetem
à representação visual do coronavírus SARS-CoV-2.

138
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Trazer a este capítulo o testemunho recolhido por Jiménez Quispe


abre um debate que cinge de forma definitiva o modo como a socieda-
de, como cada comunidade, a partir de sua localização geopolítica, en-
frentou os impactos da covid-19, em especial os profissionais da educa-
ção que tiveram que, emergencialmente, se adaptar ao ensino de forma
remota. Os autores José António Moreira e Eliane Schlemmer (2020),
em seu artigo “Por um novo conceito e paradigma de educação digital
onlife”, delimitam conceitos fundamentais para que, no contexto da edu-
cação mediada pelas Tecnologias Digitais de Informação Comunicação
e Expressão (TDICE)2, consigamos apreender tais categorias, entre elas,
o Ensino Remoto ou Ensino a Distância, a Educação a Distância ou eLe-
arning. Eles apresentam a proposição de um novo conceito e paradigma
de Educação Digital a que denominam de OnLife, termo cuja origem
advém do Projeto Onlife, lançado pela Comissão Europeia, e em cujo
Manifesto, The Onlife Manifesto, segundo os autores:

[...] se defende o fim da distinção entre o offline e o online,


concluiu-se que as TD e as redes de comunicação não podem
ser encaradas como meras ferramentas, instrumento, recur-
so, apoio, mas forças ambientais que, cada vez mais, afetam
a nossa auto- conceção (quem somos), as nossas interações
(como socializamos), como ensinamos e como aprendemos,
enfim, a nossa concepção de realidade e as nossas intera-
ções com a realidade. Sendo que, em cada um dos casos,
as TD possuem significado em termos éticos, legais e polí-
ticos provocando o enfraquecimento da distinção entre rea-
lidade e virtualidade; o enfraquecimento da distinção entre
humano, máquina e natureza; a reversão de uma situação
de escassez para abundância de informação; e a passagem
da primazia das propriedades, individualidades e relações
binárias para a primazia das conectividades, processos e re-
des (MOREIRA E SCHLEMMER, 2020, p. 25).

2 Na esteira de Gonzalo Abio (2017, p. 23), optamos pela sigla TDICE, de Lacerda Santos
(2014).

139
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Se do ponto de vista teórico, essas reflexões nos auxiliam em nosso


caminho formativo a fim de enfrentar as dificuldades inerentes às novas
modalidades de ensino advindas com o contexto de isolamento social,
em especial, ao ensino remoto, já do ponto de vista prático, pudemos
observar que as dificuldades se apresentam para além do operacional
e das possibilidades, aplicabilidades e performance das ferramentas
e perspectivas metodológicas baseadas nas TDICE. Há um problema
muito maior, o da inclusão digital que, pelo menos em grande parte
dos países do Sul Global, não é uma realidade para todas as pessoas.
A realidade da testemunha que se expõe como sujeito ativo, a fim
de ajudar as crianças de sua comunidade, na periferia de Lima, Peru,
em seus processos de aprendizagem face às dificuldades econômico-
-sociais, coloca para o leitor desse testemunho, em especial para nós,
profissionais da educação, um dos grandes desafios que enfrentamos
ao longo dos anos de 2020 e 2021. A promessa de nos adaptarmos
emergencialmente para cumprir com nossos cronogramas letivos, atra-
vés do uso dos Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA) e da ex-
ploração pedagógica dos mais diversos recursos tecnológicos que esti-
vessem ao nosso alcance, garantiria que os processos de aprendizagem
dos/das estudantes não fossem sacrificados pela pandemia e por seus
desdobramentos sentidos no âmbito social e econômico? Como garan-
tir um paradigma de educação Onlife face às enormes desigualdades
que nos atravessam como comunidade global?
Essa indagação se fez presente durante as aulas ministradas
nos componentes curriculares Estágios Supervisionados I e II de
Língua Espanhola do curso de Letras Espanhol da Universidade Federal
da Bahia (UFBA), nos semestres 2021.13 e 2021.24 e no semestre 2022.15,
3 No semestre 2021.1 em LETA77 Estágio Supervisionado I de Língua Espanhola estiveram
matriculadas as estudantes Francisca Cláudia dos Santos e Gabriele Aquino Pinheiro.
4 No semestre 2021.2 em LETA78 Estágio Supervisionado II de Língua Espanhola estive-
ram matrículas Bruna Caroline Gondim Bergemann Oliva, Francisca Cláudia dos Santos,
Gabriele Aquino Pinheiro e Viviane Carina Soares Gomes. Esta última havia realizado seu
Estágio Supervisionado I de Língua Espanhola com a Profª. Draª. Lívia Márcia Tiba Rádis
Baptista, também professora da Área de Língua Espanhola–Formação de Professor, do
Instituto de Letras da UFBA.
5 No semestre 2022.1 em LETA77 Estágio Supervisionado I de Língua Espanhola estiveram
matriculadas Giovana Andrade de Jesus Oliveira e Sibele Nepomuceno Matos.

140
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

nos quais respectivamente acompanhei de perto um grupo de estudan-


tes em seus processos iniciais de formação à docência6. Essa indagação,
no contexto a que me refiro, atravessava duas instâncias. A primeira
se relacionava com a situação das discentes em suas possibilidades
de acompanhar as aulas, em seu formato virtual, e em se comprome-
ter com as atividades prático-teóricas inerentes ao estágio supervisio-
nado. A segunda se relacionava com as possibilidades de intervenção
junto às escolas e colégios para a realização dos estágios em períodos
nos quais a manutenção das atividades de ensino esteve restrita ao re-
moto. No caso do Ensino de Espanhol como Língua Estrangeira, conta-
mos com o fato da escassa oferta do componente nas escolas de ensino
básico da rede pública de Salvador, o que no período da pandemia le-
vou-nos a pensar em estratégias alternativas para que os estágios pu-
dessem acontecer, virtualmente7.
Nas próximas etapas do texto, irei abordar de modo mais deta-
lhado de que forma as memórias da pandemia da covid-19, registradas
em variadas categorias artísticas e midiáticas, entre elas a literária, a vi-
sual e a multimodal, nas quais aspectos da andinidade se fazem visíveis
através de seus imaginários e representações culturais e linguísticas,
ocuparam um lugar de reflexão nas aulas de Estágio Supervisionado

6 Todas as discentes citadas neste capítulo autorizaram a reprodução dos materiais produzi-
dos por elas nas disciplinas de Estágio Supervisionado no período mencionado, (2021.1 a
2022.1), assim como a citação identificada de seus nomes. A autorização foi solicitada atra-
vés de Formulários Doc. do Google, nos quais elas sinalizam: “Manifesto ciência de e con-
cordância para que os materiais didáticos (planos de aula) assim como conteúdos presen-
tes nos projetos didáticos e relatórios finais de estágio produzidos nas disciplinas LETA77
Estágio Supervisionado I de Língua Espanhola (Semestre 2021.1 e 2022.1) e LETA78 Estágio
Supervisionado II de Língua Espanhola (Semestre 2021.2) sejam reproduzidos pela Profª.
Draª. Carla Dameane Pereira de Souza em artigos acadêmicos que venha a escrever a fim
de divulgar o trabalho de formação de professores de Língua Espanhola na Universidade
Federal da Bahia. Também a autorizo a citar-me nominalmente em seus artigos como auto-
ra ou coautora dos materiais que venha a reproduzir.”
7 No Semestre Letivo Suplementar (2020) e nos semestres 2021.1 e 2021.2 da UFBA os
Estágios Supervisionados foram realizados como atividades de extensão oferecidas à comu-
nidade externa. No Semestre Letivo Suplementar (2020) e no semestre 2021.1 estas ações
foram coordenadas, orientadas e supervisionadas por mim e pela Profª. Draª. Lívia Márcia
Tiba Rádis Baptista quando assumimos juntas o componente curricular LETA78 Estágio
Supervisionado II de Língua Espanhola. No semestre 2021.2 assumi este componente inte-
gralmente, ficando responsável pela coordenação, orientação e supervisão dos estágios.

141
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de Língua Espanhola. Nessas aulas foram realizadas oficinas para


a pesquisa, seleção de materiais, produção de planos e propostas didá-
ticas com a finalidade de abordar o contexto de enfrentamento da co-
vid-19 em alguns países hispano-falantes. Considerando a diversidade
de imaginários e representações culturais e linguísticas encontrada, di-
funde-se tanto as possibilidades quanto o resultado da implementação
dessas propostas em ações de extensão realizadas durante os referidos
estágios.

Segunda memória: a diversidade en línea e o risco do silen-


ciamento e da invisibilidade das práticas discursivas do Sul
Global

Durante o Semestre Letivo Suplementar da UFBA, em 2020,


com uma turma de LETA78 Estágio Supervisionado II de Língua
Espanhola, discutimos amplamente com as estudantes as opções
de execução da prática de ensino e optamos8 por oferecer cursos vol-
tados à comunidade externa, em especial, aos estudantes do ensi-
no médio da rede pública, que se preparavam para o Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM). Nesse ano de 2020 o ENEM teve seu forma-
to alterado assim como as datas de sua realização. Após a concreti-
zação da proposta 16029–Curso Espanhol em Foco: do ENEM para
o mundo (2020 Semestre Letivo Suplementar), repetimos a experiência
no semestre 2021.1 com a proposta 16664–Curso Espanhol em Foco 2:
do ENEM para o mundo e em 2021.2 com duas propostas 17468–Curso
Espanhol em Foco 3: do ENEM para o mundo e 9455–Espanhol em Foco
3: do ENEM para o mundo Edição Itaberaba, essa última pensada es-
pecificamente para atender estudantes de dois colégios do município
de Itaberaba, na Bahia.

8 No Semestre Letivo Suplementar 2020 e no Semestre 2021.1 a Profª Draª. Lívia Márcia Tiba
Rádis Baptista e eu dividimos a carga horária ministrando juntas o componente curricular
LETA78 Estágio Supervisionado II de Língua Espanhola.

142
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

De modo geral, a proposta do curso “Espanhol em Foco: do ENEM


para o mundo”, em suas distintas edições, teve como foco principal in-
crementar a compreensão leitora em espanhol dos estudantes inscritos
através de um diálogo intercultural e da sensibilização dos participan-
tes em relação aos aspectos inerentes às línguas culturas hispânicas
e hispano-americanas, recorrentes nas provas de língua espanhola
do ENEM. Os estágios aconteciam remotamente, através de encontros
síncronos e atividades assíncronas, algumas dessas envolvendo o uso
de redes sociais ou a exploração didática de aplicativos de comunicação
instantânea como o WhatsApp. As estagiárias avaliavam os participan-
tes de forma processual e, nas edições 17468–Curso Espanhol em Foco
3: do ENEM para o mundo e 9455–Espanhol em Foco 3: do ENEM para
o mundo Edição Itaberaba, elaboraram um simulado que foi aplicado
como atividade de encerramento do curso.
Em todas as edições desenvolvemos uma proposta de formação
orientada por uma abordagem teórico-prática em que trouxemos o le-
tramento crítico (BAPTISTA, 2010, p. 120-122)9 como ponto de parti-
da para discussões que permitissem o entendimento das estudantes
com relação ao trabalho com os gêneros textuais em suas aulas, em diá-
logo com questões das provas de Língua Espanhola do ENEM de edições
anteriores a 202110. Essa formação que começava com o mapeamento
dos gêneros com maior recorrência nas provas ou com os temas nelas
presentes, se desenvolveu de maneira que as estudantes eram condu-
zidas a pesquisar seus próprios materiais e a elaborar sequências a fim
de explorar os gêneros textuais e os conteúdos linguísticos e culturais
ali presentes.

9 A partir das considerações de Baptista (2010, p. 120-127) em torno do letramento crítico e


ensino de espanhol.
10 Estou utilizando a primeira pessoa do plural uma vez que este trabalho se realizou de forma
dialogada entre mim e a Profª. Draª. Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista, especialmente no
Semestre Letivo Suplementar (SLS) 2020 e no Semestre 2021.1 quando dividimos a carga
horária ministrando juntas o componente curricular LETA78 Estágio Supervisionado II de
Língua Espanhola.

143
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

A pesquisa de materiais em rede levou-nos a explorar mais os gê-


neros multimodais encontrados na internet. As estudantes eram in-
citadas a compor suas sequências combinando as questões de provas
do ENEM, já aplicadas, com outros materiais compostos por mostras
da língua espanhola, contemplando temas afins ou mesmo para dar foco
a determinado gênero textual multimodal. Com o objetivo de desen-
volver a competência digital das estudantes, elas deveriam lidar com a
pesquisa de informações/materiais em rede, com a procura de formas
mais adequadas de se comunicar com seus alunos, remotamente, com a
criação e/ou adaptação de conteúdos, com o cuidado em relação à segu-
rança dos conteúdos e dados gerados antes, durante e após a realização
dos estágios, além de demonstrarem iniciativa com relação à resolução
de problemas.
Tendo em vista a complexidade dos materiais encontrados e das
possibilidades de produção e realização de tarefas, fez-se necessário
pensar no desenvolvimento de uma “competencia semiopedagógica”,
que, em conformidade com os estudos de ABIO (2017, p. 42):

[…] hace referencia “a la conciencia de los profesores sobre


las affordances, o sea, las posibilidades o potencialidades se-
mióticas que ofrecen cada modo y medios, así como las com-
petencias necesarias para preparar tareas adecuadas me-
diadas por las tecnologías para el aprendizaje de lenguas”
(Guichon; Cohen, 2016). Los profesores de lenguas tienen
que aprender a cómo usar las diversas herramientas que sean
más apropiadas para cada situación de aprendizaje y asegu-
rar que las interacciones ocurran con los modos o semiosis
más adecuados.

Orientadas a este aprendizado em relação ao uso apropriado


e contextualizado das ferramentas digitais, as discentes puderam ex-
plorar materiais e experimentá-los em sala de aula antes de levarem
suas propostas ao curso. Em uma das oficinas realizadas com as discen-

144
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tes, propusemos como ponto de partida o trabalho com spots publici-


tários de campanhas para a prevenção da covid-19 a partir de distintas
perspectivas geopolíticas, no âmbito das línguas-culturas hispânicas
e hispano-americanas. A proposta de atividade estava em diálogo
com a contextualização e uso dos Temas Contemporâneos Transversais
(TCTs), presentes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de 2017,
nas etapas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental e na eta-
pa do Ensino Médio (em nosso caso com foco no Ensino Médio)11.
Como os TCTs não estão associados a um único componente curricular
e podem ser trabalhados de forma interdisciplinar, no caso do ensino
de Língua Espanhola o tratamento de um tema atual como a Pandemia
da covid-19 abria possibilidades para a exploração de questões relacio-
nadas às ciências biológicas, à saúde e ao cuidado coletivo, em diálogo
com uma perspectiva intercultural, crítica e decolonial.
Para Fernanda Tonelli (2021, p. 60), “a educação intercultural
atravessa toda a experiência de ensino e aprendizagem do indiví-
duo, pois se nutre de outras experiências educativas, sendo pensada
e praticada a partir de diferentes lugares”. Em se tratando do ensino
e aprendizagem de línguas, segundo esta autora “pensar a partir da óti-
ca intercultural, crítica e decolonial significa ampliar o entendimento
do indivíduo sobre si e sobre o outro a partir do diálogo construído ‘sob
bases culturais distintas e frequentemente conflitantes’ como indica
Maher (2007, p. 258), reflexão e ação para transformação” (TONELLI,
2021, p. 60).
Do ponto de vista da formação do professor, em especial do pro-
fessor de espanhol como língua estrangeira, ao sermos impelidos pela
diversidade de recursos e materiais que se colocavam ao nosso dispor,
foi possível trazer para a sala de aula problemáticas associadas às re-

11 Cf.: BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Temas


Contemporâneos Transversais na BNCC Contexto Histórico e Pressupostos
Pedagógicos. Brasília, DF: MEC, 2019. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.
gov.br/images/implementacao/contextualizacao_temas _contemporaneos.pdf. Acesso em:
16 maio 2022.

145
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

presentações de imaginários presentes em sua formação na qual os res-


quícios da colonialidade indicavam os caminhos pelos quais guiavam
suas escolhas por determinados materiais em detrimento de outros.
Sobre isso, pensamos com Tonelli (2021, p. 61) que:

[...] a colonialidade se expressa, entre outras formas, na va-


lorização de estudos literários e linguísticos relacionados
a uma ideia de erudição e civilidade atreladas à tradição
artística e acadêmica vindas de lugares historicamente pri-
vilegiados. Como consequência prática, é comum ver nos
cursos de licenciaturas uma densidade de conteúdos rela-
cionados à área de Letras advindos do Norte global e pou-
cas referências a práticas de linguagens e pedagógicas
pensadas a partir do Sul Global (TONELLI, 2021, p. 61).

Ponderando as referências das discentes em relação aos resquí-


cios de colonialidade presentes em sua formação, decidimos aproveitar
a diversidade de materiais e recursos disponibilizados nas redes sociais,
em sites de periódicos de notícias, em podcasts e, como no caso do li-
vro de Edilberto Jiménez Quispe, em produções literárias e artísticas,
para trabalharmos as práticas culturais e discursivas pensadas a partir
do Sul Global. Assumindo o risco que toda escolha exige, com respeito
ao tema de minha pesquisa sobre escrituras performáticas andinas, se-
lecionei materiais que visibilizavam os sujeitos andinos e suas línguas/
culturas, contrapondo estes materiais a outros, produzidos em contex-
tos geopolíticos distintos, porém atravessados por um tema que afetou
toda a humanidade: a pandemia da covid-19.

Terceira memória: há algo de familiar na alteridade

A riqueza de elementos linguísticos e culturais e os recursos


de composição narrativa dos vídeos, com duração máxima de 30 se-
gundos, presentes na campanha “El Covid no mata solo, no seamos cóm-

146
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

plices” do Governo do Peru12 chamaram a minha atenção. Por essa ra-


zão, selecionei vários desses vídeos para trabalhá-los em sala de aula,
como ponto de partida para um exercício de pesquisa que as próprias
discentes poderiam realizar de forma autônoma. Nos encontros em que
os spots publicitários desta campanha foram analisados, efetivou-se
um exercício de letramento crítico, através da identificação das carac-
terísticas do gênero multimodal, das referências externas presentes
na página do YouTube e internas, com relação à assinatura da cam-
panha e a sua composição audiovisual. Nos spots foram identificadas
as marcas identitárias – mais de uma língua e cultura em interação
– presentes naquelas mostras. Em uma delas, um grupo de pessoas,
familiares, compadres e amigos se encontram para uma Pachamanca.
O nome de um prato típico da região serrana do Peru denomina tam-
bém o encontro que se realiza para degustá-lo. A Pachamanca, na pu-
blicidade, é um momento de reencontro no qual as pessoas transgridem
às orientações de isolamento social. A partir dessa situação, o especta-
dor pode observar os aspectos geográficos que contornam o encontro,
ao ar livre, com a Cordilheira dos Andes ao fundo, as pessoas senta-
das no chão, servindo-se de modo informal e confraternizando. Logo,
ocorre uma ruptura na narrativa, a voz in off de um narrador se incor-
pora ao spot e retoma partes do diálogo da anfitriã da Pachamanca
com o seu compadre, enquanto este aparece sendo entubado em um
leito de UTI: “Juana decía que lo peor del virus ya había pasado. Ahora
su compadre no puede decir lo mismo. El Covid no mata solo, no seamos
cómplices”13.
Em contraste com esta campanha, outro spot publicitário foi tra-
balhado para que as estudantes pudessem analisar os elementos rela-
cionados às questões que envolvem os diferentes imaginários passíveis
de representação no contexto da pandemia, em especial, considerando

12 Esta campanha foi realizada pelo ex-presidente Martín Vizcarra, em 2020.


13 CAMPAÑA “El Covid no mata solo, no seamos cómplices” do Ministerio de Comercio
Exterior y Turismo do Peru. YouTube. 2020. (30s). Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=Wk7zvGDnbXs. Acesso em: 18 abr. 2022.

147
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

às reuniões sociais, às especificidades culturais e de alcance de cada


campanha. A campanha sanitária “El último regalo”14, do Governo
de Canárias, na Espanha, também destaca as reuniões familiares como
encontros que transgrediam às orientações gerais quanto ao distancia-
mento social no estado. No spot selecionado comemora-se o aniversá-
rio do avô, “el abuelo”, e a família se reúne em um apartamento para
esta celebração. São pessoas de classe média que conversam, bebem,
cantam os “Parabéns” e depois se sentam para a entrega dos presen-
tes. Um deles, o último, cinge a narrativa: trata-se de um respirador.
Como metáfora do contágio a partir do contato que teve com seus pa-
rentes, o respirador como último presente marca o momento da narra-
tiva em que o espectador pode ver na cama da UTI, o senhor “abuelo”
ser entubado com aquele aparelho.
Após o trabalho de apresentação e análise desses materiais
em sala de aula remota, as discentes deveriam elaborar propostas
de sequências didáticas cujo tema envolvesse a situação da covid-19
e na qual estivessem presentes gêneros textuais multimodais, a partir
de uma perspectiva intercultural, crítica e decolonial. O recorte temá-
tico ficava a critério das estudantes, porém foram levantadas algumas
possibilidades como: a desigualdade social na pandemia, a pandemia
e a preservação do meio ambiente, a pandemia e os cuidados coletivos,
a pandemia e o autocuidado, a pandemia e os direitos humanos, trân-
sitos e migrações em tempos de pandemia, a pandemia e as minorias
étnicas e de gênero, entre outras.
No caso das aulas de LETA77 Estágio Supervisionado I de Língua
Espanhola ministradas no semestre 2022.1, essa oficina se reali-
zou com o foco nas campanhas de vacinação do Ministério da Saúde
do Paraguai. Através dos spots em vídeos disponibilizados no YouTube,
foi possível observarmos como as campanhas de vacinação naquele país

14 CAMPAÑA DE SANIDAD El último regalo. Gobierno de Canarias. Presicanarias. YouTube.


2020. (1min17s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fwkk9UHR0ro. Acesso
em: 18 de abr. 2022.

148
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

concentraram-se em alcançar distintos públicos. Trabalhamos com um


spot direcionado para o público jovem15 com a hashtag #vacúnatepor-
paraguay e um spot direcionado para as populações originárias do país,
neste caso, os Chulupíes, mas também para todos os paraguaios16,
destacada pela hashtag #mevacuné. Embora ambas sejam campanhas
que busquem conscientizar e engajar os paraguaios a se vacinarem
para estarem imunes à covid-19, há grandes diferenças entre os dois
vídeos: os sujeitos que aparecem, a paisagem, a performance identitá-
ria. De um lado, jovens em sua maioria brancos e que aparentam ser de
classe média, em um ambiente urbano apresentando seus argumentos
à importância de vacinar-se e, do outro, uma paisagem rural, autorida-
des da comunidade chulipíes falando em sua própria língua, homens,
mulheres e crianças chulipíes vacinando-se como gesto de autocuidado
e cuidado coletivo. Além dos vídeos, foi possível explorar outros mate-
riais da campanha disponíveis no site criado pelo Ministério da Saúde
do Paraguai totalmente voltado para o Plano de Vacinação daquele
país17.
O trabalho com esses materiais nas aulas de Estágio Supervisionado
de Língua Espanhola abre um debate em torno de questões que envol-
vem a alteridade, aquilo que é próprio a outro sujeito marcando sua di-
ferença, como algo familiar. As situações de crise pelas quais atraves-
samos como humanidade marca a nossa condição de igualdade, salvo
as diferentes formas como cada sociedade enfrenta essas crises, devido
ao poder econômico que detêm. Sabemos que a pandemia da covid-19
foi uma experiência vivida por todos nós, que a enfermidade deixou

15 CAMPAÑA VACÚNATE POR PARAGUAY. Todos los jóvenes de 12 años o más ya pueden vacu-
narse contra el #COVID19. Gobierno de Paraguay. Ministerio de Salud Paraguay. Youtube.
2021. (30s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pdxWb1tW-jg. Acesso em:
13 abr. 2022.
16 CAMPAÑA VACÚNATE POR PARAGUAY. “Es importante aplicarse la primera dosis de la va-
cuna contra COVID-19” (en nivaclé). Gobierno de Paraguay. Ministerio de Salud Paraguay.
Youtube. 2021. (42s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=93MBVNuV-
8NY. Acesso em: 13 de abr. 2022.
17 O leitor pode acessar o site através do link https://www.vacunate.gov.py/index.html. Acesso
em: 14 maio 2022.

149
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

vítimas fatais e sobreviventes a ela em todos os contextos geopolíticos,


da mesma forma em que a vacina se coloca como o lugar da esperança
de salvação, ao garantir nossa imunidade.
A covid-19, como Tema Contemporâneo Transversal (TCT),
tem estado presente nas aulas de Estágio Supervisionado e ao longo
de dois anos o trabalho com esse tema deu-se de forma síncrona à pre-
sença do vírus e da doença entre nós: primeiro foi possível explorar
a problemática da descoberta da doença, os desafios do período de iso-
lamento social e o luto coletivo18; depois, foi possível trazer questões
relacionadas ao cotidiano das pessoas, afetado por este período de iso-
lamento, os novos hábitos, o uso obrigatório das máscaras e a confi-
guração de novas relações e experiências intermediadas pela tecnolo-
gia; logo, pudemos explorar a descoberta das vacinas, as campanhas
de vacinação e a esperança renovada da humanidade diante do retorno
ao convívio coletivo presencial.
Acredito que, como professora pesquisadora envolvida direta-
mente com as disciplinas de formação de professores de espanhol como
língua estrangeira, tal tema estará presente em nossas aulas pelos pró-
ximos anos. O que não nos faltam são as inúmeras memórias que foram
registradas sobre este período, seja sob a forma de testemunho, como
no caso do livro de memórias de Edilberto Jiménez Quispe, seja sob a
forma de narração audiovisual ou imagética, como no caso das cam-
panhas publicitárias que vários governos e seus ministérios da saúde
fomentaram. Há também canções, podcasts e performances disponí-
veis na internet e que podem ser exploradas em sala de aula, alinhadas
a outras perspectivas de alcance temático e epistemológico. No caso
de meu trabalho, o objetivo é o de visibilizar sujeitos andinos e outras
minorias étnicas, suas línguas e culturas, com a finalidade de fornecer

18 No dia 14 de maio de 2022, quando eu escrevi este capítulo, o número acumulado de óbitos
pela COVID-19 no Brasil era de 664.872, segundo o site Coronavírus Brasil. Disponível em:
https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 14 maio 2022.

150
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

um olhar intercultural, crítico e decolonial às discentes em sua forma-


ção docente inicial.

Memórias finais: o que pôde ser feito na prática

Para finalizar este capítulo, deixo à apreciação dos leitores dois


planos de aula elaborados por discentes sobre o tema proposto e a partir
de uma perspectiva intercultural, crítica e decolonial.19 São resultados
genuínos, trabalho autoral das discentes colocando em prática o que
foi aprendido em um contexto muito particular, já que os planos eram
elaborados para o contexto remoto, em diálogo com as provas do Exame
Nacional do Ensino Médio, o ENEM. Em 2021.1, a discente Gabriele
Aquino elaborou o plano “La pandemia en las clases de ELE – Los cui-
dados colectivos” para a disciplina LETA77 Estágio Supervisionado I de
Língua Espanhola. O plano se deu motivado pela possibilidade de re-
alização de um projeto construído em dupla com Francisca Cláudia
dos Santos. Porém, no semestre de 2021.2, a discente colocou em práti-
ca este plano em parceria com a discente Viviane Carina Soares Gomes,
realizando, por isso, mudanças na sequência didática. O plano foi exe-
cutado durante o curso de extensão “Espanhol em Foco 3: Do Enem para
o mundo”. O curso realizou-se de 14/09/2021 e 11/11/2021, com dois
encontros semanais realizados remotamente, através da plataforma
Google Meet, atingindo um total de 12 participantes.
Como será possível observar através dos planos, o direcionamen-
to da aula, partindo de uma perspectiva de se desenvolver o letramento
crítico dos estudantes, aproximava-o da língua estrangeira recorrendo
a uma temática familiar, com mostras das línguas/culturas de países
hispano-falantes. Foram planos pensados com o objetivo de desenvol-
ver as habilidades de compreensão e produção oral e escrita na língua
estrangeira alinhavando-as ao desenvolvimento de um olhar intercul-
tural, crítico e decolonial; o enriquecimento da bagagem linguística
19 Todas as discentes citadas neste capítulo autorizaram o uso dos materiais produzidos por
elas nas disciplinas de Estágio Supervisionado no período mencionado (2021.1 a 2022.1).

151
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

e cultural das e dos estudantes fomentado por um debate necessário


sobre as diferentes memórias da covid-19, incluindo as suas.

Universidade Federal da Bahia

Instituto de Letras

SEMESTRE 2021.1

DISCIPLINA: LETA77 – ESTÁGIO SUPERVISIONADO I DE LÍNGUA ESPANHOLA

CURSO: ESPANHOL EM FOCO: APRENDENDO ATRAVÉS DOS TEXTOS

ESTAGIÁRIA: GABRIELE AQUINO PINHEIRO


PLANO DE AULA 4
DATA: 04 Mayo 2021
TEMAS La pandemia en las clases de ELE – Los cuidados colectivos
1. Conocer los cuidados colectivos en la pandemia.

2. Discutir con los estudiantes sobre la Pandemia y los cuida-


dos colectivos generados por el COVID-19.

OBJETIVOS 3. Desarrollar la argumentación y la exposición de ideas en la


lengua española.

4. Desarrollar la comprensión lectora y oral y la producción


oral y escrita en lengua española.

5. Desarrollar la literacidad crítica y la competencia digital


en lengua extranjera.
Conversar acerca de lo que los alumnos entienden y viven so-
bre la pandemia a partir de sus experiencias personales y los
cuidados generados por el virus.

Presentar spots acerca del asunto, además conocer un aspecto


PROCEDIMENTOS cultural de España, el juego pito pito gorgorito.
METODOLÓGICOS
Explorar un poco algunos carteles direccionados a la con-
cienciación de las personas ante el COVID-19 y analizar, jun-
to con los estudiantes, las características del COVID-19 y de
los carteles como género textual multimodal.

Terminar la clase realizando una tarea de producción escrita/


artística.

152
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Dar informes y presentar el tema del aula. 5 min

SEQUÊNCIA Comenzar la clase cuestionando a los alumnos: ¿Qué


DE ATIVIDADES es la pandemia para ellos? ¿Creen que realmente
existe un virus?
¿Cómo se cuidan en la pandemia? ¿Cómo la pande- 15 min
mia ha afectado sus vidas? ¿Ya dejaron de llevar mas-
carilla o usar el alcohol en gel porque creías que no
serían afectados por el virus?
Presentaré dos spots para que nosotros podamos
reflexionar acerca de los cuidados colectivos duran-
te la pandemia, a partir de campañas publicitarias.
Preguntarles cuáles son los principales elementos
persuasivos que están presentes en las situaciones
20 min
presentadas.
Comentar sobre los aspectos culturales presentes
en los Spots, producidos en distintos países y aclarar
un poco acerca del juego Pito pito gorgorito que está
en uno de los spots.
Trabajar algunos carteles que muestran los cuida-
dos individuales y colectivos, observar los elementos
que componen los carteles como los mensajes, los co-
lores, las imágenes. Cuestionarles: ¿hay mucho o poco 20 min
texto? ¿Las informaciones son concisas o extensas?
¿Hay textos no verbales? ¿Símbolos? ¿Logotipos?
¿Cuál de ellos te parece más atractivo? ¿Por qué?
Presentar las principales características de los carte-
les como género textual multimodal.
25 min
Trabajar qué es el COVID-19 como y cuando surgió,
sus características y riesgos.
Para finalizar la clase pediré que los estudiantes pien-
sen en algo que más afectó a la vida de las personas
y sus propias vidas con la pandemia para la creaci-
ón de un cartel (pueden utilizar aplicaciones como
(CANVA, PICSART, TIKTOK, KWAI) expresando lo que
desean, además de traer un mensaje de conciencia- 30 min
ción para todos. El en cartel no necesariamente pre-
cisan contener una imagen puede ser frases, dibujos
etc., que ellos puedan se expresan y usar la creativi-
dad en este momento. A partir de eso pueden también
subir las producciones en sus redes sociales.

153
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

La computadora, el Moodle (plataforma digital), el spot (El


covid no mata solo–No seamos Cómplices–Reunión en El
RECURSOS
Barrio–Parte 2) y (El impactante vídeo de Sanidad para con-
DIDÁTICOS
cienciar sobre el coronavirus – Esto no es un juego), Carteles
informativos.
Participación en clase, producción oral y producción escrita/
AVALIAÇÃO
artística.
COVID-19. Prevención y consejos para la ciudadanía.
Comunidad de Madrid. Disponible en:

https://w w w.comunidad.madrid/ser vicios/salud/co-


vid-19-prevencion-consejos-ciudadania. Accedido el:
04 mayo 2021.

#ESTONOESUNJUEGO​. El impactante vídeo de Sanidad


REFERÊNCIAS para concienciar sobre el coronavirus”. Gobierno de España.
Ministerio de Sanidad. YouTube. 2020. (20s). Disponible en:
https://www.youtube.com/watch?v=WPOE8ynRsXw. Accedido
el: 04 mayo 2021.

CAMPAÑA DE SANIDAD. El Covid no mata solo, no seamos


cómplices. Gobierno del Perú. YouTube. 2020. (30s). YouTube.
2020. (30s). Disponible en: https://www.youtube.com/watch?-
v=8wQU-TZw4uY. Accedido el: 04 mayo 2021.

154
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Universidade Federal da Bahia

Instituto de Letras

SEMESTRE 2021.2

DISCIPLINA: LETA78 – ESTÁGIO SUPERVISIONADO II DE LÍNGUA ESPANHOLA

CURSO: ESPANHOL EM FOCO 3: DO ENEM PARA O MUNDO

ESTAGIÁRIAS: GABRIELE AQUINO E VIVIANE GOMES


PLANO DE AULA 2
DATA 16 Septiembre 2021
TEMAS La pandemia en las clases de ELE – Los cuidados colectivos
Conocer los cuidados colectivos en la pandemia.

Discutir con los estudiantes la Pandemia y los cuidados colecti-


vos generados por el COVID-19.

Desarrollar la argumentación y la exposición de ideas en la len-


OBJETIVOS gua española.

Desarrollar la comprensión lectora y oral y la producción oral


y escrita en lengua española.

Desarrollar la literacidad crítica y la competencia digital en len-


gua extranjera.
Aclarar dudas acerca de la actividad asíncrona del día 14.09.2021

Presentar vídeo acerca del asunto del aula, la Campaña


de Sanidad El Covid no mata solo, no seamos cómplices, de Perú.

Conversar acerca de lo que los alumnos entienden y viven sobre


PROCEDIMENTOS la pandemia a partir de sus experiencias personales y los cuida-
METODOLÓGICOS dos colectivos para evitar el contagio por el virus.

Explorar los elementos visuales de los carteles direccionados


a la concienciación de la gente con relación al COVID-19 y ana-
lizar, junto con los estudiantes, los carteles como género textual
multimodal.

155
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Tiempo
Aclarar dudas acerca de la actividad asíncrona del día
previsto:
14.09.21 y presentar el tema del aula.
15 min.
Comenzar la clase presentando un video de publicidad
Institucional del Gobierno del Perú para que podamos
reflexionar acerca de los cuidados colectivos durante
la pandemia, a partir de las campañas publicitarias.
Orientar a los alumnos a que asistan al video po- T i e m p o
niendo la atención en sus elementos narrativos (dó- previsto:
nde se pasa la situación, quienes participan de la si- 20 min.
tuación, si hay un mensaje en la situación).
Transmitir el video una segunda vez y pedirles
que identifiquen cuáles son las palabras que no co-
nocen y apúntenlas en el chat.
Cuestionar a los alumnos sobre: ¿Qué es la pandemia
para ellos? ¿Creen que realmente existe un virus?
Tiempo
¿Cómo la pandemia ha afectado sus vidas? ¿Conocen
previsto:
los cuidados colectivos necesarios para evitar el con-
20 min.
tagio durante la pandemia? ¿Además de estos cuida-
dos, conocen otros?
SEQUÊNCIA
A continuación, leerán en la pantalla dos frases
DE ATIVIDADES que están en desorden, acerca de la pandemia, para
que puedan ordenarlas y decir lo piensan sobre ellas.
Presentar a los estudiantes los dos carteles que fue-
ron la fuente de las palabras desordenadas donde
muestran los cuidados individuales y colectivos,
observar los elementos que componen los carteles
como los mensajes, los colores, las imágenes. Tiempo
Preguntarles cuáles son los principales elementos previsto:
persuasivos que están presentes en las situaciones 60 min.
presentadas.
¿hay mucho o poco texto? ¿Las informaciones
son concisas o extensas? ¿Hay textos no verbales?
¿Símbolos? ¿Logotipos? ¿Cuál de ellos te parece
más atractivo? ¿Por qué?
Presentar las principales características de los carte-
les como género textual multimodal.
Tiempo
Cierre de la clase para informativos y aclaramiento
previsto:
de las dudas.
05 min.

156
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Plataforma Google Meet, La computadora, el vídeo de publi-


RECURSOS
cidad: El covid no mata solo–No seamos Cómplices–Reunión
DIDÁTICOS
en El Barrio–Parte 2) y los carteles informativos.
Participación en clase, producción oral y producción escrita/
AVALIAÇÃO
artística.
Comunidad de Madrid. “COVID-19. Prevención y consejos para
la ciudadanía”. Disponible en: https://www.comunidad.madrid/
servicios/salud/covid-19-prevencion-consejos-ciudadania.
Accedido el 04 de mayo. 2021.
REFERÊNCIAS
Gobierno del Perú. “Campaña de Sanidad El Covid no mata solo,
no seamos cómplices”. YouTube. 2020. (30s). Disponible en: ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=8wQU-TZw4uY. Accedido el:
04 de mayo. 2021.

Referências

ABIO, Gonzalo. “Formación digital de profesores. Una revisión del tema con
énfasis en los modelos de competencias/ literacidades digitales”. In: BAPTISTA,
Lívia Márcia Tiba Rádis; MAYRINK, Mônica Ferreira. Dossiê: Tecnologias da
informação e comunicação no ensino de língua espanhola e na formação de
professores de espanhol. Revista Caracol, n. 13, p. 20-55, 2017. Disponível
em: https://www.revistas.usp.br/caracol/article/view/122901/124761. Acesso
em: 17 maio 2022.
BAPTISTA, Lívia Márcia Tiba Rádis. Traçando caminhos: letramento,
letramento crítico e ensino de espanhol. In: BARROS, Cristiano Silva de;
COSTA, Elzimar Goettenauer de Marins (org.). Espanhol: Ensino Médio,
col. Explorando o ensino. Espanhol, v. 16, p. 119-136, 2010. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/docman/abril-2011-pdf/7836-2011-espanhol-capa-
pdf/file. Acesso em: 09 mar. 2022.
JIMÉNEZ QUISPE, Edilberto. Nuevo coronavirus y buen gobierno. Memorias
de la pandemia de Covid-19 en Perú. 1. ed. Lima: IEP, 2021.
MOREIRA, José António; SCHLEMMER, Eliane. Por um novo conceito e
paradigma de educação digital onlife. Revista UFG, v. 20. p. 2-35, 2020.
Disponível em: https://revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/63438/36079.
Acesso em: 20 de abr. 2022.

157
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

TONELLI, Fernanda. Encaminhamentos para uma formação docente


intercultural crítica e decolonial. Revista Abehache, n. 19, p. 56-69, 2021.
Disponível em: https://revistaabehache.com/ojs/index.php/abehache/article/
view/371/297. Acesso em: 12 maio 2022.

158
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA CUIR: PROPOSTAS


PARA UM ENSINO “RARO”, “TORCIDO” E
DECOLONIAL DE LÍNGUA ESPANHOLA

Daniel Mazzaro (UFU)

Considerações iniciais

Na conferência de encerramento do I Colóquio Linguagem, Gênero


e Sexualidade (I CLiGeSex), realizado na modalidade remota no mês
de março de 2022, o professor Leandro Colling comenta, a respeito
da existência de um queer decolonial, que a primeira fase da Teoria
Queer no Brasil, ou seja, aquilo que veio em meados da década de 1990
para o país e que pensava em uma intersecção entre gênero e sexu-
alidade já foi vencida. Hoje, em função dos estudos decoloniais e da
ampliação do feminismo negro no Brasil, tem sido produzidas tantas
alterações nos estudos que não é possível chamá-lo de queer. Colling
(2022), então, faz uma provocação, a partir da tese de Daniel dos Santos
Colin (2019), sugerindo chamá-la de deCUlonial, porque o mais interes-
sante que tem ocorrido no campo dos estudos acadêmicos, e no campo
das artes isso é bem nítido, é a produção de uma intersecção de gênero,
sexualidade, raça e outros marcadores sociais.
De fato, o termo queer presente nos sintagmas “teoria queer” e
“perspectiva queer”, dentre outros, aponta para um relevante percur-

159
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

so histórico. Enquanto no século XVI, época de seu primeiro registro


na língua inglesa, queer carregava significados como “estranho”, “pe-
culiar” e “excêntrico”, no século XIX o termo se popularizou e se con-
solidou como uma forma de insulto homofóbico. Já no final do século
XX, especificamente nos últimos anos da década de 1980 e meados
da de 1990, o vocábulo passou a ser reivindicado por grupos ativistas
estadunidenses, que inverteram “o desconforto político e subjetivo
que o termo provocava” (BORBA, 2020, p. 11) e reforçaram suas críti-
cas às políticas LGBT correntes à época visando não à aceitação, mas à
construção de resistência a regimes de normalidade.
Se a etimologia de queer aponta para o prefixo protoindo-euro-
peu terkw-, que, conforme observa Rodrigo Borba (2020, p. 14), “acre-
dita-se, deu origem ao verbo latino torquere, ou seja, ‘torcer’ ou ‘gi-
rar’”, o nascimento da teoria e da perspectiva queer objetivava quase
que exclusivamente o questionamento da cis-heteronormatividade
e dos processos que a sustentam, levando-nos a “desconfiar de rela-
ções naturalizadas entre desejos e práticas sexuais (e.g., um homem
que deseja/faz sexo com outro), de um lado, e identidade (e.g., ho-
mossexual), de outro” (BORBA, 2020, p. 14). Como resumem Elizabeth
Sara Lewis, Rodrigo Borba, Branca Falabella Fabrício e Diana de Souza
Pinto (2017, p. 3) na introdução de Queering Paradigms IVa: insurgên-
cias queer ao sul do Equador, “[n]a academia estadunidense, um fa-
tor importante no desenvolvimento da Teoria Queer foi a contesta-
ção à institucionalização dos women’s studies (estudos das mulheres)
e dos gay and lesbian studies (estudos gays e lésbicos)”.
Entretanto, na América Latina, os estudos sobre gênero e sexu-
alidade não se institucionalizaram da mesma forma que nos Estados
Unidos; “portanto, não houve a mesma necessidade de contesta-
ção realizada pela Teoria Queer no Norte” (LEWIS et al., 2017, p. 3).
De fato, “as trajetórias latino-americanas tendem a falar do sujeito
gay ao mesmo tempo que questionam a estabilidade da categoria ‘gay’
e os sistemas normativos” (LEWIS et al., 2017, p. 3), algo que podemos

160
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

inferir da fala de Colling (2022), ampliando os “sistemas normativos”


para uma interseccionalidade com outras formas de normativização.
Nessa esteira, adotarei a grafia cuir para “romper com o discurso colo-
nial angloamericano e destacar a deslocalização geopolítica” (LEWIS
et al., 2017, p. 5) e, de forma especial, me referir à imbricação de clas-
se, raça, gênero, sexualidade, religião, etnia, casta etc., elemento bas-
tante característico dos estudos de gênero e sexualidade do Sul1.
É também no contexto latinoamericano que aflora uma das
maiores distorções que a teoria e a perspectiva cuir têm enfrentado,
especialmente no âmbito da educação: a chamada “ideologia de gêne-
ro”. A noção de “ideologia de gênero”, conforme Miskolci e Campana
(2017), apareceu nas discussões da Igreja Católica Latino-Americana
e na V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano do Caribe
(Celam) de 2007 e tomou grandes proporções no continente devido
ao livro La ideología de género: O el género como herramienta de poder,
do advogado autoidentificado como “pró-família” argentino Jorge
Scala e publicado em 2010. Nessa obra, o termo é definido como
um sistema de pensamento fechado e intrinsecamente falso que dei-
xaria pessoas e sociedades frustradas e infelizes por defender que as
diferenças entre o homem e a mulher não correspondem a uma natu-
reza fixa, mas a construções culturais e convencionais feitas de acor-
do com os papéis estereotipados que as sociedades designam aos se-
xos. Para o autor, isso era suficiente para equiparar os estudos queer,
por exemplo, ao nazismo e ao comunismo, e, como consequência, fo-
ram atrelados aos governos de esquerda latino-americanos. No Brasil,
o Programa Escola sem Partido ficou conhecido como um movimen-

1 Cuir e cuirizar são termos usados frequentemente em países hispano-falantes como algo
mais que uma simples maneira de “espanholizar” a palavra “queer”. No Brasil também se
tem acercado a essa nomenclatura, como Colling (2022) exemplifica em sua fala. Inclusive,
a antropóloga brasileira Larissa Pelúcio propõe uma “Teoria Cu” para problematizar “as for-
mas nas quais temos localmente absorvido, discutido, adaptado e ressignificado as Teorias
Queer do Norte” (LEWIS et al., 2017, p. 4) por meio de uma brincadeira com a ideia “de
que para o Norte, nós aqui do Sul (e nossas produções acadêmicas) frequentemente somos
vistxs como sendo o ‘cu do mundo’, um local geográfico desprezado, como o cu anatômico”
(LEWIS et al., 2017, p. 4).

161
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

to contra perspectivas contemporâneas a respeito do que se enten-


de sobre os termos sexo, gênero e sexualidade e que não são, supos-
tamente, compartilhadas pelos pais ou, pela maioria dos cidadãos,
além de não respeitarem “o direito dos pais a que seus filhos recebam
a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”
(MAZZARO; MARINS-COSTA, 2020, p. 195).
A proposta deste texto, nesse sentido, é apresentar algumas
reflexões e propostas de uma educação linguística cuir no contexto
da língua espanhola para o Ensino Médio de forma a problematizar
convicções, moralidades e fixações relacionadas à tríade sexo-gêne-
ro-sexualidade. Para isso, na próxima seção, apresento uma breve de-
finição de educação linguística cuir aprofundando suas perspectivas
decoloniais. Em seguida, sugiro e problematizo parte de uma sequ-
ência didática elaborada por mim a partir de um texto sobre os mu-
xes–outro gênero/sexo ao lado do masculino e do feminino na cultura
zapoteca (México)–e que pode ser aplicada ou adaptada pelx docente.
Por fim, retomo o debate sobre a “ideologia de gênero” e faço minhas
considerações finais.

O que seria uma educação linguística cuir?

Para o desafio de conceituar a educação linguística, recor-


ro ao verbete escrito pela professora e pesquisadora Luciana Maria
Almeida de Freitas e publicado no volume 9, número 1, da Revista Sede
de Ler, em 2021. Ao problematizar o termo educação, Freitas (2021)
reflete que “o que está em pauta não é o desenvolvimento da cognição
pelo domínio de certos conhecimentos [...], mas algo que vai além do
‘instruir’ e envolve o ‘formar’” (FREITAS, 2021, p. 5). Trata-se, por-
tanto, de uma perspectiva integral de educação, um processo escolar
mais amplo que articula “o direito ao conhecimento, às ciências e tec-
nologias com o direito às culturas, aos valores, ao universo simbólico,
ao corpo e suas linguagens, expressões, ritmos, vivências, emoções,

162
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

memórias e identidades diversas”, conforme citação da professora


a partir de Miguel Arroyo (2012, p. 44).
Nesse contexto, a educação linguística é uma das diversas áreas
do conhecimento presentes na escola para uma aproximação à pers-
pectiva integralizadora do currículo que está organizado discipli-
narmente por meio de componentes curriculares que infelizmen-
te nem sempre dialogam entre si. Essa perspectiva integralizadora
pode ser vista na primeira conceituação produzida no Brasil da noção
de educação linguística:

Entendemos por educação linguística o conjunto de fa-


tores socioculturais que, durante toda a existência de um
indivíduo, lhe possibilitam adquirir, desenvolver e ampliar
o conhecimento de/sobre sua língua materna, de/sobre
outras línguas, sobre a linguagem de um modo mais ge-
ral e sobre todos os demais sistemas semióticos. Desses
saberes, evidentemente, também fazem parte as crenças,
superstições, representações, mitos e preconceitos que cir-
culam na sociedade em torno da língua/linguagem e que
compõem o que se poderia chamar de imaginário lingüís-
tico ou, sob outra ótica, de ideologia lingüística. Inclui-se
também na educação linguística o aprendizado das normas
de comportamento linguístico que regem a vida dos di-
versos grupos sociais, cada vez mais amplos e variados,
em que o indivíduo vai ser chamado a se inserir (BAGNO;
RANGEL, 2005, p. 63).

No artigo Tarefas da educação linguística no Brasil, publicado


em 2005, Marcos Bagno e Egon de Oliveira Rangel, como bem observa
Freitas (2021), entendem a educação linguística como um processo
que ocorre tanto dentro como fora da escola ao longo da vida dos su-
jeitos e com foco em um conjunto de saberes sobre linguagem e so-
bre língua que nem sempre são adquiridos e desenvolvidos de forma
consciente.

163
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Resumidamente, a concepção de língua adotada pelos autores


pode ser definida como “um conjunto de representações simbólicas
do mundo físico e mental que é compartilhado pelos membros de uma
dada comunidade humana como recurso comunicativo [...] [que] ser-
ve para a interação e a integração sociocultural dos membros des-
sa comunidade”, como esclarece Bagno (2014, p. 22). Isso quer dizer
que se trata de uma perspectiva que põe ênfase nas representações
simbólicas partilhadas pelos membros de uma sociedade, como são as
crenças, superstições, representações, mitos e preconceitos citados
anteriormente.
Portanto, como consequência dessas definições, os autores
destacam que a principal tarefa da educação linguística é promover
a reflexão e a ação capazes de articular as demandas sociais, a peda-
gogia de educação e as políticas públicas de ensino de línguas. Para
isso, destacam-se algumas áreas específicas de investigação que têm
“maior vocação para contribuir para a constituição de uma política
de educação linguística” (BAGNO; RANGEL, 2005, p. 69), a saber: le-
tramento, português brasileiro, norma, variação e mudança linguísti-
ca, reflexão linguística, literatura, direitos linguísticos.
Uma educação linguística queer, por sua vez, e conforme resu-
mo em Mazzaro (2021), ao repousar sobre a concepção de linguagem
na teoria performativa de Austin sob o olhar crítico de Derrida – para
quem, além de ser constativa e descritiva, a linguagem faz aconte-
cer alguma coisa graças à possibilidade de repetição e estilização
dos enunciados -, lida com o gênero não como uma característica in-
dividual, nem uma posse, mas algo construído cotidianamente, rei-
teradamente, por meio de ações que tomam as convenções sociais
como script para se realizar de forma ritualizada. Como elucida Tomaz
Tadeu da Silva (2014, p. 94), “é de sua repetição e, sobretudo, da pos-
sibilidade de sua repetição, que vem a força que um ato linguístico
desse tipo tem no processo de produção da identidade”. Mais que isso,
a linguagem “pode ser sempre retirada de um determinado contexto

164
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

e inserida em um contexto diferente” (SILVA, 2014, p. 94), de modo


que a repetição deve ser entendida como citacionalidade. Em outras
palavras, as manifestações da linguagem, seja em forma de enuncia-
dos verbais, corporais ou icônicos, não são produtos cuja origem ple-
na e exclusiva é do sujeito que a profere ou “é”, mas são recolocações
do tipo “recorte e colagem” de enunciados previamente proferidos ou
“sidos”.
É a partir desse pensamento que Butler define gênero como “uma
espécie de imitação persistente, que passa como real” (BUTLER, 2010,
p. 8), levando sempre em conta o falocentrismo e a heterossexuali-
dade compulsória, que funcionam como “regimes de poder/discurso
com maneiras frequentemente divergentes de responder às questões
centrais do discurso do gênero” (BUTLER, 2010, p. 10). Com isso, a lin-
guagem tem papel central, pois é ela uma das responsáveis “em confe-
rir ou retirar sentidos das múltiplas formas de vivenciar a sexualidade
e desejos sexuais, incluindo aí a heterossexualidade” (BORBA, 2020,
p. 17), pois é produtora e mantenedora de identidades. As identida-
des, vale a pena reforçar, são práticas significantes (ou, como prefere
Butler (2010), são “estilizações”) repetidas do corpo que citam discur-
sos anteriores, o que as fazem culturalmente reconhecíveis (BORBA,
2020).
Dado que as identidades se constroem e se mantêm na lingua-
gem, e que pela linguagem circulam e se mantêm crenças, supers-
tições, representações, mitos e preconceitos, a educação linguística
não pode tomar a língua como mero instrumento de comunicação,
mas também de criação e de constituição subjetiva do pensamen-
to. Isso significa que uma educação linguística queer prima pela
crítica enquanto prática na qual colocamos em questão os limites
de nossos modos de conhecimentos mais certos. Ou seja, ela configu-
ra uma perspectiva sobre modos de conhecimento estabelecidos e or-
denados que não se assimilam imediatamente à função ordenadora.
Na perspectiva queer, a relação será crítica na medida em que não se

165
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

conformará com nenhuma categoria dada; pelo contrário, constituirá


uma relação problematizadora com o próprio campo de categorização,
remetendo-se aos limites dentro dos quais essas práticas se formam.
É nesse caminho de compreensão da crítica como prática que expõe
os limites do próprio horizonte epistemológico que a prática crítica
implica em uma transformação do “eu” na sua relação com a regra
de conduta compreendida como natural e essencial humana ou, pelo
menos, do indivíduo em questão, porque, por mais que as práticas
significantes sejam repetidas, nunca são uma cópia tal e qual; assim,
a repetição nos oferece também a possibilidade de mudança.
Por essa razão, não se trata de doutrinar ou impor um caminho
compulsório, mas refletir sobre o mundo e sua frequente constituição
de regras naturalizadas por repetição. Como explica Deborah Britzman
(2016, p. 18), a Teoria Queer “ofrece a la educación técnicas para crear
sentido y remarcar aquello que descarta o no puede siquiera soportar
conocer”, de modo que a relação entre o conhecimento e a ignorân-
cia não seja tomada como oposicional nem binária, mas que estas “se
implican mutuamente, estructurando e imponiendo formas particulares
de conocimiento y formas de ignorancia” (BRITZMAN, 2016, p. 18). Isso
é muito importante para que o indivíduo indague sobre sua própria
constituição, além de por que e como outros saberes não se consti-
tuem socialmente como relevantes.
Nesse mesmo sentido, a pedagogia decolonial, como também
apontei em Mazzaro (2021), aposta em ações fortemente enraizadas
nas memórias coletivas de povos subalternizados indígenas e afro-
descendentes não apenas como parte da manutenção da existência
e ser dessas identidades, mas como outro rumo a ser tomado na edu-
cação para que possamos “vivir de luz y libertad en medio de las ti-
nieblas” (WALSH, 2013, p. 26). Assim, ao se interessar por “outros”
pensamentos, a pedagogia decolonial abre caminho e condições para
o re- e o in- surgimento de práticas pedagógicas que “hacen cuestionar

166
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

y desafiar la razón única de la modernidad occidental y el poder colonial


aún presente, desenganchándose de ella” (WALSH, 2013, p. 28).
A decolonização dos estudos queer se dá a partir do momen-
to em que o tomamos como um campo localizado em uma geogra-
fia e cultura específicas, e não como uma noção universal, conforme
aponta Héctor Domínguez-Ruvalcaba em seu livro Latinoamérica
Queer: cuerpo y política queer en América Latina (2019). Ao tomar
a região latinoamericana e sua diáspora cultural como um territó-
rio de ação e conversação política sobre temas relacionados com as
sexualidades transgressoras e as concepções do corpo, Domínguez-
Ruvalcaba (2019) mostra que o campo do queer na América Latina
inclui ações políticas, agendas acadêmicas, movimentos artísticos
e desenvolvimento econômico ao implicar uma dinâmica cultural
complexa na qual os corpos têm conduzido e têm sofrido transfor-
mações por práticas, significados e políticas de sexualidade inerentes
aos processos históricos da região. Nesse sentido, ao mesmo tempo
que o campo dos estudos queer é específico, porque foca nas impli-
cações culturais da sexualidade e do corpo, é também muito amplo,
já que intervém nos processos culturais em geral e os afeta. Como
consequência, a política, as normas, os gostos, a economia e a lin-
guagem estão imbricados e não podem ser pensados sem referência
ao gênero e à sexualidade.
O queer, explica Domínguez-Ruvalcaba (2019, p. 17),

[...] es una forma de entender la política del cuerpo. Esto im-


plica una crítica a la cultura hegemónica, al sistema legal y a
la estructura de género. La noción de cuirizar (que bien pue-
de entenderse como amariconar, enjotecer, desviar, pervertir,
torcer…) significa entender lo desviado como sujeto de cam-
bio histórico en el ámbito cultural y el político.

Isso significa considerar o queer como ponto de desestabilização,


como falha por meio da qual se desafia a ordem daquilo que se con-

167
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

sidera natural, normal ou legítimo em relação ao corpo, ao sexo e ao


gênero. Trata-se de um processo de ressignificação das concepções
e normas que controlam o corpo na cultura, especificamente a latino-
americana, no nosso caso.
Nesse sentido, a educação linguística trata, por exemplo,
não apenas de conhecer as regras de gênero das palavras de uma lín-
gua, mas de questionar o uso e o constante abuso delas para excluir
determinados sujeitos do uso da própria língua. Esse saber está rela-
cionado, amiúde, à produção das diferenças e ao trabalho com a insta-
bilidade e a precariedade de grande parte das identidades. A educação
linguística queer, portanto, deve ser entendida como uma metodolo-
gia imprescindível para lutas sociais, políticas, ontológicas e epistê-
micas de libertação (no sentido freiriano) das questões que envolvem
o sexo, o gênero e a sexualidade; lutas em que todxs participantes
desse cenário pedagógico exercem suas pedagogias de aprendizagem,
desaprendizagem, reaprendizagem, reflexão e ação (WALSH, 2013)
com, na e pela língua(gem).
Mais que isso: uma educação linguística que se pretende cuir e,
portanto, decolonial, precisa levar em conta que é marcada por uma
tensão implícita na articulação das dissidências queer associadas
com a modernidade na maioria dos debates do século XX sobre o gê-
nero e a sexualidade. Esses debates, por sua vez, têm sido realizados
em um diálogo transnacional, o que implica uma política de tradução
cultural e uma metodologia de pensamento crítico que, ao descons-
truir o sistema de gênero, questiona as bases da nação e do Estado,
sem ignorar o fato de as maquinarias de consumo e descarte do neo-
liberalismo complicam os processos de libertação do corpo e expres-
sões queer. Por essa razão, “los estudiosos y creadores queer latino-
americanistas translocan los discursos y las prácticas culturales entre
los debates radicales occidentales y las realidades problemáticas de la
población latinoamericana queer” (DOMÍNGUEZ-RUVALCABA, 2019,
p. 19), de modo a fazer um intercâmbio colaborativo de ideias, políti-

168
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

cas e representações que avançam e retrocedem cada vez mais entre


localidades e lugares historicamente situados e culturalmente espe-
cíficos cruzando múltiplas fronteiras e não apenas entre nações.
Na próxima seção, apresentarei atividades que tocam em algumas
dessas características e tecerei considerações a respeito de sua apli-
cação nas aulas de língua espanhola para o ensino médio brasileiro.

Como isso poderia ser feito?

A pedagogia queer, conforme Guacira Lopes Louro (2015, p. 74),


“supõe um movimento de abandono das regras da prudência, da ordem,
da sensatez [...] [e] implica perturbar a familiaridade do pensamento
e pensar fora da lógica segura”. Nesse sentido, uma forma de abordar
a temática do sexo, gênero e sexualidade de forma cuir é perturbar
a familiaridade do pensamento de gênero naturalmente desenvolvido
a partir do estudo de textos que trazem à baila formas sócio-históri-
cas indígenas e/ou afrodescendentes de identificação que vão além
dos binarismos homem vs. mulher e heterossexuais vs. homossexuais.
O estudo desses textos visa, acima de qualquer coisa, a desenvolver
um olhar crítico e “desnormatizante” dos sexos, gêneros e sexualidades
de forma interdisciplinar, “a fim de evitar ditar e restringir as formas
de viver e de ser, e também de manter naturalizados exclusões, precon-
ceitos e outras violências”, além de “incorporar questionamentos de-
coloniais a respeito de outras epistemes que compõem a inteligibilida-
de do gênero para além da (suposta) neutralidade anatômica do sexo”
(MAZZARO, 2021, p. 1067).
Trago uma proposta de atividade que pode ser desenvolvida no en-
sino médio brasileiro a partir de um artigo publicado no portal Ciencia
UNAM, da Universidad Nacional Autónoma de México, em 2019, sobre
os muxes. Antes da leitura do artigo, porém, sugiro algumas perguntas
a serem feitas aos/às alunos/as para ativar conhecimento prévio e for-
mular hipóteses sobre o texto:

169
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

1- ¿Conoces la palabra muxes? ¿A qué palabra de la lengua española


se parece?
2- Vas a leer un artículo publicado en el portal de una gran universi-
dad mexicana, y su título es: Los Muxes, el Tercer Género.
2a–¿En cuál de las secciones crees que este texto figura y por qué?

Imagem 1: Cabeçalho da página web em que se encontra o artigo

Fonte: SANTILLÁN (2019)

2b- ¿Qué características crees que tienen los muxes?

Após breve discussão sobre as possíveis relações entre as palavras


muxes e género e a seção em que se encontra o artigo, os/as alunos/as
podem lê-lo em silêncio para averiguar se suas hipóteses se confirmam,
se refutam ou se ao menos são abordadas de alguma forma2:

2 Por questões de limites da publicação, apresentamos a primeira parte do texto, o qual


recomendamos o acesso por parte dx docente e/ou dx estudante diretamente da página
da Universidad Nacional Autónoma de México para realizar a leitura e as atividades que pro-
pomos.

170
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

171
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Uma vez verificadas as hipóteses, x professorx pode passar para


a análise do texto de diferentes formas e em diferentes níveis. Para este
trabalho, apresento algumas perguntas que focam na temática do tex-
to3 e são, em sua maioria, do tipo inferenciais, ou seja, não requerem
apenas a localização de informações, mas a relação de fragmentos
do artigo com outras partes do texto, com os conhecimentos sociocul-
turais dxs alunxs e com outras produções, de modo a que seja possível
avaliar situações e depreender ideologias e intenções.

1- Observa este fragmento del texto y discute con tus compañe-


ros las siguientes preguntas:
“Los muxes son hombres que nacieron biológicamente hombres,
pero que adoptan roles de mujer, porque les gusta, pero no están
en competencia con otras mujeres.” (1er párrafo)
a) La palabra hombres aparece dos veces en esta cita. ¿Tienen el mis-
mo sentido? ¿Por qué otra palabra cambiarías cada una de ellas?
b) De acuerdo con el artículo, ¿qué se opone a biológicamente en las
descripciones de los muxes?

3 O estudo do gênero discursivo e do conhecimento linguístico serão abordados em outros


trabalhos.

172
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

2- A partir de las descripciones sobre los muxes en el texto, con-


testa las siguientes preguntas:
a) ¿Quiénes son las mujeres principales? ¿Con base en qué la doc-
tora Natividad Gutiérrez Chong usa ese término en el segundo
párrafo?
b) ¿Qué roles acercan los muxes a las mujeres? ¿Y qué roles
los distinguen?
c) ¿Por qué los muxes no son sinónimos de homosexuales?
3- Observa este fragmento del texto y discute con tus compañe-
ros lo que se pide:
“La doctora destaca que la sexualidad no es sólo biológica, sino
que está regulada y construida por la sociedad, la cultura, los va-
lores, la ética, la religión.” (10º párrafo)
a) Da ejemplo de la regulación y construcción de la identidad muxe
en la cultura zapoteca.
b) Da ejemplos de la regulación y construcción de las identidades
heterosexual y homosexual en tu cultura.
4- Más allá del artículo. Lee los siguientes fragmentos de dife-
rentes textos y discute con los compañeros lo que se pide.
I. Utilizo la expresión matriz heterosexual para designar la rejilla*
de inteligibilidad** cultural a través de la cual se naturalizan
cuerpos, géneros y deseos. He partido de la idea de dos inves-
tigadoras feministas para describir un modelo de conocimiento
hegemónico*** de inteligibilidad de género, el cual da por sen-
tado que para que los cuerpos sean coherentes y tengan sentido
debe haber un sexo estable expresado mediante un género esta-
ble (masculino expresa hombre, femenino expresa mujer) que se
define históricamente y por oposición mediante la práctica obli-
gatoria de la heterosexualidad.

173
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Fragmento adaptado de BUTLER, Judith. El género en disputa:


el feminismo y la subversión de la identidad. Barcelona: Paidós,
2007. p. 292.
Vocabulario4
* rejilla: Pequeño conjunto de barras metálicas o de madera enlaza-
das que se ponen en las ventanas y otras aberturas de los muros
para seguridad o adorno. En el texto, se refiere a la estructura fija
que las sociedades siguen para comprender los cuerpos, géneros
y deseos (sexualidades).
** inteligibilidad: Que es inteligible, que puede ser entendido.
*** hegemónico: De superioridad jerárquica, que es supremo.

II. Los discursos como tal son “organizaciones históricamente es-


pecíficas del lenguaje”, y se presentan como plurales, pero a la
vez están teñidos de coloratura de género*. Identidad y género
son dos conceptos inseparables hasta el punto de que las reglas
que gobiernan las identidades, en tanto abstractas, son estruc-
turadas desde la “matriz heterosexual” de la jerarquía de géne-
ro. Las significaciones que gobiernan los discursos no son actos
“naturales”, sino, naturalizados gracias a la iterabilidad** de sus
discursos.

Fragmento de DELLA VENTURA GONZÁLEZ, Aitor Francisco.


Género, identidad y performatividad en Judith Butler. Tesina
de Grado de Filosofía. Facultad de Humanidades de la
Universidad de La Laguna. San Cristóbal de La Laguna, Santa
Cruz de Tenerife, España, 2015. p. 25.
Vocabulario
* están teñidos de coloratura de género: Significa que los discursos
de género recibieron una apariencia de perfección que evita con-
secuencias negativas, como errores o mala comprensión.
** iterabilidad: Que se repite.

4 Outra possibilidade é trabalhar o vocabulário deste e do próximo texto de forma inferencial,


seja por composição das palavras, seja por análise das metáforas.

174
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

III.
BEAUVOIR (2019)

a) De acuerdo con el Texto I, ¿los muxes serían considerados


un género coherente? ¿Por qué?
b) De acuerdo con los Textos II y III, explica por qué los muxes
son el tercer género/sexo. Para ayudarte en esta tarea, piensa
en las siguientes cuestiones:
– ¿Cuándo se ha dado esa denominación (tercer género/sexo)
a los muxes: antes o después de la llegada de los europeos?
¿Por qué?
– ¿Por qué tercero? ¿Qué relación tiene eso con la jerarquía
de género?
c) A partir de las informaciones de los Textos I y II, ¿cómo se dan
los géneros? Ilustra con informaciones del artículo sobre
los muxes.

As perguntas em 1 aproximam x estudante à autora do artigo


enquanto analisa a escolha de algumas palavras que são chave para
a compreensão do seu ponto de vista. Em 1a, por exemplo, x estudan-

175
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

te é convidadx a pensar na polissemia da palavra hombre, que pode


ser tanto um ser animado racional, como na primeira aparição no texto,
quanto persona del sexo masculino, como na segunda aparição. Assim,
o primeiro hombres poderia ser substituído por personas e indígenas,
por exemplo, enquanto o segundo, por varones. Já em 1b, o debate é so-
bre a oposição biológicamente vs. rol quando se descrevem os muxes
como pessoas biologicamente masculinas (foco no corpo “natural”)
que exercem o papel de mulheres (foco na cultura).
As perguntas da questão 2 “torcem” as oposições homem vs.
mulher e natural vs. cultural, provocando um estranhamento. Em 2a,
questiona-se o adjetivo principal para caracterizar as mulheres que po-
dem ser mães, ou seja, as “dadoras de vida”, termo usado pela doutora
Natividad Gutiérrez Chong ao elevar a maternidade ao papel principal
das mulheres na cultura zapoteca e que, nesse sentido, se distinguem
dos muxes. Em 2b, x alunx repete a informação de que as mulheres
são mães, enquanto os muxes não, mas precisa desenvolver mais a des-
crição desses gêneros dizendo que a vestimenta e os enfeites são algo
que pode aproximar os muxes das mulheres, além de poderem se casar
com outro homem. Em 2c, é pedida a comparação entre muxes e ho-
mossexuais, e as informações no texto estão na seção Identidad y re-
conocimiento, da qual se pode depreender que os homossexuais ado-
tam apenas o papel do sexo/gênero oposto, enquanto os muxes jogam
com diferentes papéis, constituindo, assim um gênero/sexo a parte.
Essa compreensão de homossexualidade, entretanto, é, no mínimo,
equivocada, porque reduz todo um espectro de interseções entre iden-
tificações e desejos a uma única possibilidade de vivência dos gêneros
e sexualidades.
As perguntas da questão 3 levam os/as discentes a relacionar par-
tes do texto com a citação destacada do décimo parágrafo e também
a trazer para a discussão as representações que têm das sexualidades
em seu próprio contexto sociocultural. Em 3a, pede-se para exemplificar
a regulação e a construção da identidade muxe, o que pode ser respon-

176
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

dido com informações como as de que os muxes não competem com as


mulheres, embora possam vestir-se e ver-se como tais, porque não po-
dem ser mães. Além disso, há expectativas quanto ao papel que exer-
cem na família e nas festividades, como o de cuidadores dos pais e de
reprodutores da zapotequidad contemporânea na produção de enfeites
e elaboração de comidas e roupas para as festas, especialmente a das
velas. Já em 3b, xs alunxs passam a analisar a própria cultura exem-
plificando regulações e marcas da construção da heterossexualidade
e da homossexualidade, que frequentemente estão relacionadas com a
cisgeneridade. No primeiro caso, podem aparecer enunciados como di-
zer aos bebês que, quando crescerem, poderão namorar/casar com x
vizinhx (sendo quase sempre a outra criança do gênero oposto); no se-
gundo caso, a relação homo-trans é tão comum quanto a relação héte-
ro-cis, ao ponto de a maioria das regulações ter a ver com a insinuação
(ou medo, fobia) de um menino se comportar como menina ou vice-ver-
sa, então poderiam aparecer enunciados como “olha como essa menina
se veste, parece um menino”, “menino não cruza as pernas para se sen-
tar” etc. Ainda no segundo caso, podem aparecer também regulações
dentro do próprio imaginário homossexual, como “gay que é gay gosta
da Madonna” ou “como assim, uma lésbica que não ouve Ana Carolina
nem Bethânia e nem Adriana Calcanhotto?”, da mesma forma que há
expectativas na heterossexualidade, como “tem certeza de que você es-
colhe o rosa, Fulano?”.
Por fim, as perguntas na questão 4 trabalham com a intertextu-
alidade. Devido a seu caráter de expansão e aprofundamento do tema
por meio de três outros textos ou fragmentos de textos, essas pergun-
tas podem constituir uma atividade à parte, inclusive em outro dia de
aula e conjugadas com outras reflexões (MAZZARO, 2020). O Texto I é
um fragmento da obra mais conhecida da filósofa estadunidense Judith
Butler no qual se define o conceito de “matriz heterossexual”; o Texto
II é o fragmento de uma monografia de final de curso de Filosofia
na qual o pesquisador define brevemente o conceito de discurso e de-

177
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

fende sua relação com a identidade e o gênero; por fim, o Texto III é
a capa e contracapa do livro mais conhecido da filósofa francesa Simone
de Beauvoir, O segundo sexo.
Em 4a, pede-se que o/a aluno/a compreenda do Texto I que
a coerência que se espera dos sujeitos para que sejam compreendidos
nas sociedades ocidentais, principalmente, é que o comportamento
ou representação social (gênero) caminhe na mesma direção que o sexo
(corpo) e, consequentemente, também os desejos (sexualidade). Nesse
sentido, o muxe não seria um gênero coerente, porque apesar de serem
homens (corporalmente dizendo ou, como podemos inferir do frag-
mento de Butler, enquanto ao sexo), possuem características atribuídas
às mulheres, ou seja, são vistos como femininos.
Para os debates de 4b, deve-se observar que a denominação de ter-
ceiro gênero/sexo é típica da cultura ocidental-europeia, que se reflete
na hierarquização: primeiro, homem-masculino e, em segundo, mu-
lher-feminino–daí o binarismo ou a dicotomia. E, nessa esteira binária,
o terceiro gênero/sexo, no caso do artigo analisado os muxes, é definido,
por um lado, como tendo características de um e de outro e, por outro
lado, como exercendo papéis próprios. Nesse sentido, o uso dos ordi-
nais marca a hierarquia não apenas social, mas também do conheci-
mento, que fere a compreensão do mundo dentro da matriz heteros-
sexual, que é dicotômica: tudo pode (e deve) ser dividido em homem/
masculino ou mulher/feminino. Assim, determinadas roupas, profis-
sões e papéis exercidos na sociedade são, pelo menos no pensamento
hegemônico (ocidental, europeu, é sempre importante lembrar), divi-
didos nessas duas categorias.
Finalmente, em 4c discute-se como se constroem os gêneros.
Segundo o Texto II, são os discursos que, por repetição, dão a impres-
são de que os gêneros são naturais quando são, como a linguagem,
historicamente organizados e naturalizados. É o que o termo “matriz
heterossexual”, no Texto I, defende: gêneros e sexualidades se cons-

178
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

troem com base em uma grade de entendimento (“rejilla de inteligibili-


dad”) cultural que naturaliza corpos, gêneros e desejos a partir do dis-
curso hegemônico de que esses elementos devem ser coerentes entre
si, ou seja, determinado corpo deve se comportar/ser de determinado
modo e ter determinados desejos. De certa forma, essa reflexão foi feita
na atividade 3, mas, agora, é possível estabelecer relações entre as for-
mas de regulação com a linguagem e o discurso. Assim, ao retomarem
as características dos muxes no artigo, xs alunxs podem ver lugares
comuns relacionados aos outros gêneros, como o que, segundo citação
feita pela doutora Agueda Gómez Suárez no antepenúltimo parágrafo
do texto, alguns muxes não se casam com um homem porque eles que-
rem que lavem os pratos e a roupa, e isso já não é o papel doméstico
tradicional.
Além disso, no penúltimo parágrafo do artigo, é possível encontrar
um exemplo de discurso de naturalização dos gêneros, já que a grande
maioria diz que nasce muxe, e não que foram socialmente converti-
dos ou porque foram vítimas de uma agressão sexual. Esse argumento,
no entanto, é lido de uma forma menos fenomenológica pelos estudos
queer: a “conversão” não parte de um gênero ou de uma sexualidade
para outra, mas de um discurso para outro. Isso significa que quando
nascemos o que já está ou já existe são discursos a respeito dos gêne-
ros e das sexualidades (das identidades, por fim) e, além de existirem,
esses discursos estão em ação nas práticas sociais, na cultura, nos valo-
res, na ética, na religião etc., constituindo e mantendo a naturalização
das identidades.
É nesse lugar do “sempre foi desse jeito” que a educação lin-
guística cuir age, “torciendo” certezas e propondo não respostas fixas,
mas apontando caminhos a partir de reflexões de exemplos “raros”
que fogem à concepção do que nos é natural.

179
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Considerações finais

A breve atividade didática aqui apresentada teve o intuito de ilus-


trar uma possibilidade de materialização prática do que chamo de edu-
cação linguística cuir. Por meio de um artigo jornalístico que aborda
uma cultura estranha (no sentido queer de estrangeira, outra), elaborei
atividades sobre algo que é da ordem do cotidiano de jovens e adultos:
os gêneros e as sexualidades. No entanto, ao invés de lidar com o tex-
to como fonte de conhecimento a respeito do tema, propus perguntas
que abandonam as regras da prudência, da ordem e da sensatez espe-
radas de uma aula de línguas e fui más allá da leitura para encontrar
e aprender informações (o que pressupõe crer no texto). O caminho
que tracei implicou, como diz Louro (2015), perturbar a familiaridade
do ensino e da aprendizagem de línguas e pensar fora da lógica segura
dos métodos.
É aí que me parece que se localiza o medo daqueles que acusam
profissionais que se colocam a abordar determinados assuntos a partir
de outro lugar de “ideólogos” e “doutrinadores”. Como foi observado
anteriormente (MAZZARO; MARINS-COSTA, 2020), discursos suposta-
mente neutros como os da Escola sem Partido se baseiam na naturali-
zação de um ponto de vista sobre as identidades, que é a da formação
física “dada” no momento do nascimento e da tradição da família em li-
dar com esses corpos. Por outro lado, um olhar queer/cuir revela que a
naturalização se faz de diversas maneiras – como simplificando nega-
tivamente o ponto de vista de quem defende outros posicionamentos,
silenciando e/ou exterminando culturas que não seguem determinadas
regras (naturalizadas, é bom reforçar) e deturpando ou julgando ma-
nifestações que não se encaixam às fórmulas hegemônicas–mas todas
essas formas se dão por meio da linguagem.
Dessa forma, convido a todxs xs profissionais da linguagem
que sejam desobedientes às amarras que impõem uma falsa neutrali-
dade do debate sobre gênero – porque, isso sim, é fazer sua ideologia

180
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

– e levem xs alunxs a tirar o pó das ideias simples por meio de textos


inoportunos, perguntas inconvenientes e respostas inapropriadas.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

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183
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

POSSIBILIDADES DE SULEAR A EDUCAÇÃO


LINGUÍSTICA DO ESPANHOL: A LITERATURA
DA GUINÉ EQUATORIAL SOB OLHARES
EPISTÊMICOS E ONTOLÓGICOS DECOLONIAIS

Doris Cristina Vicente da Silva Matos (UFS)


Jakelliny Almeida Santos (PG-UFS)

Considerações iniciais

Neste capítulo, que visa contribuir para construção de uma educa-


ção linguística potencialmente decolonial, partimos de que é inadiável
pensar e repensar as práticas pedagógicas considerando as perspectivas
contemporâneas das sociabilidades humanas. Em diálogo com algumas
categorias dos estudos decoloniais, acolhemos as epistemes que bus-
cam compreender as diferentes formas de colonialidade do poder,
do saber, do ser e da linguagem, de modo que raça-gênero-capitalismo
e suas interseccionalidades sejam consideradas como alguns dos indi-
cadores do pensamento colonial e eurocêntrico.
Além disso, ressaltamos que a literatura possui potencial para
contribuir com os interesses críticos dos estudos contemporâneos apli-
cados da linguagem, uma vez que é um instrumento de comunicação
que reflete aspectos sociais, tais como a língua e a cultura, em que
a obra está inserida (SOUZA; COSSON, 2011). A partir dela somos ca-

184
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

pazes de nos conectar com um campo artístico específico e percorrer


saberes outros.
Partindo dessas premissas, este estudo pretende apresentar par-
te dos resultados de uma pesquisa realizada no âmbito do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)1, da Universidade
Federal de Sergipe (UFS), cujo objetivo foi desenvolver os conceitos
de decolonialidade e interculturalidade crítica, sob uma bibliogra-
fia transdisciplinar, com foco na produção de materiais didáticos su-
leadores. O projeto de pesquisa contou com três planos de trabalho
e neste capítulo constam parte das reflexões referentes ao plano cen-
trado nas literaturas africanas de língua espanhola. Conforme Salvo
(2003), o termo adequado para designar a produção negra em língua
espanhola fora da Espanha e no contexto da África é hispano-africana
ou hispano-negro-africana. Desse modo, o uso do termo afro-hispânico,
em linhas gerais, refere-se à produção afrodescendente em outros ter-
ritórios que produzem em espanhol, a exemplo da América hispânica
(QUEIROZ, 2007).
Pensando em contemplar os saberes do Sul presentes na litera-
tura hispano-africana da Guiné Equatorial, neste trabalho, localizado
na área da Linguística Aplicada (LA), propomos uma educação linguís-
tica por meio do estudo interpretativista de textos literários sob a ótica
dos estudos decoloniais. A LA que contemplamos é entendida como in-
disciplinar (MOITA LOPES, 2006), fronteiriça (KLEIMAN, 2013) e sule-
adora (SILVA JR; MATOS, 2019).
Essas redes de conhecimento estão coadunadas com epistemo-
logias e ontologias outras que contemplem saberes outros, tal como
os estudos decoloniais (WALSH, 2005; QUIJANO, 2005; MALDONADO-
TORRES, 2007) em intersecção com as perspectivas coloniais de raça-

1 O projeto de pesquisa em que este trabalho está inserido chama-se “Decolonialidade e


Interculturalidade Crítica na Formação de Professores de Espanhol: suleando pesquisas
e práticas curriculares na universidade”, desenvolvido pela professora Doris Matos, no
período de 2020-2021, sob apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). Edital nº PID8776-2020.

185
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

-gênero-capitalismo (AKOTIRENE, 2019). Dessa maneira, este trabalho


objetiva desenvolver uma proposta de educação linguística, em diálogo
com a decolonialidade, estabelecendo relações com as colonialidades
e suas interseccionalidades, por meio da literatura hispano-africana
da Guiné Equatorial.
Selecionamos três obras, “Los ríos hablan”, de Raquel Ilonbé (1978
apud QUEIROZ, 2007, p. 57); “Cántico”, de Donato Ndongo Bidyogo
(1984 apud Blog Poéticas); e “La hija de las tribos”, de Trifonia Melibea
Obono (2019). Analisamos os textos sob as epistemes suleadoras,
de modo que a abordagem possa ser uma amostra de possibilidades
outras para uma educação linguística em espanhol. Para tanto, desen-
volvemos uma metodologia qualitativa e interpretativista e o capítulo
está assim dividido: essas considerações iniciais, a seção das epistemo-
logias em que o trabalho está ancorado; em seguida, a proposta de edu-
cação linguística; e, por último, as considerações inconclusivas desse
projeto e suas referências.

O colonialismo espanhol e as colonialidade em Guiné


Equatorial

A penetração da Espanha na África ocorreu por volta de 1497 e,


desde o princípio, é caracterizada por movimentos invasores, violentos
e colonizadores. Os espanhóis adentraram o continente pelo Marrocos
e, posteriormente, as conquistas estenderam-se por Melilha, Canárias,
parte do Saara (conhecido por Saara Espanhol) e algumas ilhas do Golfo
da Guiné. Atualmente, embora sejam reconhecidas como comunidades
autónomas, o arquipélago das Ilhas Canárias e os enclaves de Ceuta

186
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

e Melilha2, que se localizam no litoral do Marrocos, permanecem


sob controle político da monarquia espanhola.
O período colonial no território da atual Guiné Equatorial iniciou
com a chegada da coroa portuguesa, no dia primeiro de janeiro de 1471,
na ilha de Ano-Bom. Os lusitanos dominaram cerca de três séculos, as-
sim, as ilhas do Golfo da Guiné tornaram-se postos de tráfico de es-
cravos para às colônias portuguesas na América do Sul e outros paí-
ses, como França e Espanha, como constatou Ndongo Bidyogo (1977)
em suas investigações.
As colonizações também deram espaço para tratados internacio-
nais e, evidentemente, esses acordos foram realizados tomando como
princípio os interesses dos colonizadores. Assim, em 1778, foi assinado
o Tratado El Pardo entre Portugal e Espanha estabelecendo uma troca
de territórios; Portugal cedeu as ilhas de Annobón e Bioko, anteriormen-
te denominada Fernando Poo, pelas terras situadas na América do Sul
as quais, mais tarde, foram integradas ao Brasil, atualmente correspon-
dentes aos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul (NDONGO
BIDYOGO, 1977; QUEIROZ, 2007).
A princípio, a coroa espanhola teve maior interesse pelas colônias
da América do Sul, entretanto, quando essas lograram a independên-
cia, a Espanha enxergou possibilidades lucrativas a partir do pequeno
território africano:

Entre 1820 y 1850, cuando la mayoría de las colonias ame-


ricanas han asegurado su independencia de España, ésta
vuelve sus ojos hacia la Guinea como una forma de entrar
en el lucrativo tráfico de esclavos. Para España el negocio

2 Em Ceuta e Melilha existem barreiras fronteiriças, erguidas nos anos 90 pela Espanha, que
representam a primeira fronteira da Europa na África e demarcam o território sob domí-
nio político da monarquia espanhola. A princípio eram cercas, mas à medida que a imi-
gração, tida como ilegal, cresceu, a fronteira foi reforçada com muros. Após os reforços
de obstáculos, estruturais e militaristas, as imigrações diminuíram tornando o Governo de
Mariano Rajoy modelo de controle imigratório. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2017/02/27/album/1488207932_438823.html#foto_gal_11. Acesso em: 10 mai. 2022.

187
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

es doble; por una parte, proveer a sus colonias del Caribe,


Cuba y Puerto Rico, de mano de obra para las plantaciones
azucareras y tabacaleras; y, por otra parte, abastecer de es-
clavos el mercado algodonero del sur de los Estados Unidos
(SALVO, p. 17 2003).

Espanha iniciou a colonização na Guiné Equatorial em um ter-


ritório relativamente pequeno, a ilha Fernando Poo. Contudo, no que
diz respeito à escravização de povos africanos na região do Golfo
de Guiné, outras forças colonizadoras europeias chegaram primeiro.
Nesse período, o Império Britânico mantinha assentamentos no mes-
mo território, especificamente na ilha Fernando Poo, e, apesar de ter
se oposto ferozmente ao tráfico de escravos, aplicando leis e patrulhan-
do o Oceano Atlântico, nunca repatriou as pessoas africanas localiza-
das nos navios de carga humana (SALVO, 2003).
Estamos de acordo com Ndongo Bidyogo (1977) quando afirma
que o governo britânico usou a evasiva justificativa de estarem em de-
sacordo com a escravização enquanto, na verdade, nutria interesses
econômicos. Compreendemos que se não houve prioridade em recon-
duzir as(os) escravizadas(os) à vida que foi lhes foi roubada, a huma-
nidade dessas pessoas africanas foi anulada nesse processo (FANON,
2003).
Concomitantemente, a colonialidade do ser retoma e reafirma
essa concepção desumana e animalesca que a colonização atribui ao ser
colonizado (WALSH, 2005). Aqui no Brasil, contamos com as reflexões
de Paulo Freire (2019) que, ao refletir sobre a educação bancária, pre-
conizou sobre o humanitarismo falso, visto que o interesse do opressor
é preservar as circunstâncias as quais beneficiam e mantêm a sua ge-
nerosidade não genuína.
Em 12 de outubro de 1968 a Guiné Espanhola tornou-se inde-
pendente politicamente da Espanha, adotando o nome de República
da Guiné Equatorial – antes Guiné Espanhola – e passando a ser ofi-

188
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

cialmente um país governado pelo seu primeiro presidente eleito,


Francisco Macías Nguema, de 1968 a 1979, e a partir desse momento
o espanhol foi utilizado como língua oficial. Entretanto, o que era para
ter sido o início de uma fase democrática transformou-se em uma di-
tadura de extrema-direita, contendo violações aos direitos humanos
e marcada pelo anti-intelectualismo (NGOM, 1993).
Por ordem de Nguema, políticos, artistas, professoras(es), in-
telectuais e todas as pessoas que se opuseram ao seu governo foram
perseguidas, presas e executadas. Aquelas que escaparam exilaram-se
em países vizinhos ou na Espanha. Os outros partidos, que faziam par-
te da oposição, foram deslegitimados tornando o seu o único, Partido
Único Nacional de Trabalhadores. De acordo com Mbaré Ngom (1993),
professor especialista em literatura hispano-africana cuja nacionali-
dade é guinéu-equatoriana, Macías Nguema suspendeu as garantias
constitucionais, uniu em uma só pessoa o Poder Legislativo, Executivo
e Judiciário e em poucos meses o povo guinéu-equatoriano viven-
ciou uma das ditaduras mais ferozes que já aconteceu no continente
africano.
Durante esse período, na Guiné Equatorial, não houve publica-
ções de livros, produção artística ou intelectual e, a partir desse con-
texto, iniciou o que Ndongo Bidyogo (1977) chama de Años del Silencio,
período caracterizado por perseguições que despolitizavam os direi-
tos democráticos e a liberdade de expressão da população guinéu-e-
quatoriana. Compreendemos que, embora não estejamos mais falando
do processo de colonização, mas de uma Guiné Equatorial independen-
tista que sofreu um golpe, as colonialidades estão presentes na estru-
tura dessa sociedade. Sobre a concepção de colonialismo e colonialida-
de, Maldonado-Torres (2007, p 131) aponta que:

O colonialismo denota uma relação política e econômica,


na qual a soberania de um povo está no poder de outro
povo ou nação, o que constitui a referida nação em um im-

189
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

pério. Diferente desta ideia, a colonialidade se refere a um


padrão de poder que emergiu como resultado do colonia-
lismo moderno.

Com essa definição é possível compreender que o colonialismo


não é um acontecimento que pode ser extinto a partir de ações políti-
cas. Em contrapartida, sua presença permanece nas estruturas das so-
ciedades por meio das colonialidades. Dessa maneira, ao relacionarmos
a rejeição do governo guinéu-equatoriano com relação a determinados
saberes produzidos pela sociedade, entendemos essas ações como re-
sultado do colonialismo moderno cimentado na estrutura da sociedade.
Para sermos mais específicas, esta produção de saber que é subordina-
da, concerne à colonialidade do saber que se refere à rejeição do inte-
lecto, história e cultura de povos não-europeus, como afirmou Quijano
(2005). Portanto, a colonialidade do saber está relacionada à negação
do conhecimento de determinados grupos sociais, ou seja, à rejeição
da epistemologia não-eurocêntrica.
Nesse contexto, esta sociedade também precisa lidar com a colonia-
lidade do poder, uma vez que há poderes que oprimem saberes os quais
estão em discordância com seus interesses. De acordo com Quijano
(2005), a colonialidade do poder está ligada ao domínio invasivo do ima-
ginário do outro, ou seja, o discurso imposto pelo colonizador emerge
profundamente na estrutura social do colonizado. Essa observação
foi feita, anteriormente, por Fanon (2003) quando afirmou que aos
olhos dos colonizadores, os colonizados são corruptos e corrompidos.
Durante a ditadura de Francisco Macías Nguema, de 1968 a 1979,
o ensino da língua espanhola também foi proibido, uma vez que era
uma língua concebida como imperialista, o que refletiu na negação
da produção intelectual, artística e científica hispano-africana da Guiné
Equatorial. Atualmente, embora seja reconhecida como república,
o país é governado pelo ditador Teodoro Nguema Obiang Mbasogo,
que está no governo há 44 anos – em 2023 – que comandou a execu-

190
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ção do tio, o ex-presidente Francisco Macías, para ocupar a presidência


(NDONGO BIDYOGO, 1977).
Atualmente, a história da Guiné Equatorial está sendo construída
sob um contexto corrupto,repressivo e antidemocrático.É relevante ques-
tionar o destino do dinheiro público, uma vez que a população está po-
sicionada no 138º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH
Global de 2014), de acordo com o Plano Nacional de Desenvolvimento
Urbano (PNDU), sendo que esse país é o terceiro maior produtor
de petróleo da África. Para compreendermos essa dimensão, é consi-
derável relacionarmos essas questões exploratórias às raízes coloniais
que deu origem à atual política do país.
Do mesmo modo, as atitudes opressoras do atual governo da Guiné
Equatorial, sob comando de Obiang, coadunam com a colonialidade
do saber. Afinal, ela está relacionada com a rejeição epistêmica produ-
zida pelas(os) originárias(os) desse país, uma vez que a colonialidade
do saber, segundo Quijano (2005), trata-se dos saberes do Norte que es-
tão em posição de validar ou invalidar outros saberes como, por exem-
plo, os do Sul. Nessa circunstância, é crucial retomarmos que o Sul que
estamos nos referimos não é geográfico, como pontuam Silva Junior
e Matos (2019), mas um Sul epistemológico.
Os direitos humanos também são marcas de subordinação na so-
ciedade guinéu-equatoriana, posto que as denúncias realizadas por or-
ganizações não governamentais são frequentes, mas o governo nega
todas as acusações3. Acrescentamos que um dos critérios para o país
ingressar à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)
foi desenvolver leis para punir a violência contra as mulheres guinéu-
-equatorianas, contudo, até 2022 nenhuma lei foi promulgada. Assim,
determinados grupos sociais seguem em vulnerabilidade, e enquan-
to as mulheres cis são violentadas e concebidas como propriedade

3 Organizações denunciam violência e discriminação contra mulheres na Guiné Equatorial.


Disponível em: https://observador.pt/2021/08/16/organizacoes-denunciam-violencia-e-
-discriminacao-contra-mulheres-na-guine-equatorial/ Acesso em: 12 maio 2022.

191
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

dos homens, as mulheres trans, assim como outras pessoas LGBTQIA+4,


não são reconhecidas como pessoas de direitos civis.
Ressaltamos que a CPLP é uma organização internacional forma-
da por países lusófonos e na Guiné Equatorial, especificamente na Ilha
de Ano-Bom, além do espanhol e das línguas originárias, os anobonen-
ses utilizam com maior frequência uma variação do português deno-
minado “Fá d’Ambô” que significa “fala de Ano-Bom”. Esse idioma é a
hibridação entre português, espanhol e línguas originárias.
Diante disso, compreendemos que as diversas formas de opressão
dentro do contexto deste país são expressadas na sociedade de modo
interseccional. Assim, da mesma forma que as colonialidades não agem
entre si, mas articulando a sua essência opressiva e segregadora, o pa-
triarcalismo presente nesta sociedade age em articulação com o ca-
pitalismo, resgatando memórias coloniais de gênero e sexualidades.
Sobre isso, a professora negra estadunidense Crenshaw (2015) afirma
que pensar a partir da interseccionalidade possibilita que tenhamos
sensibilidade analítica para compreender as relações de poder diante
das identidades.
Dito isto, identificamos que em 2019, o presidente da Guiné
Equatorial assinou o Decreto 94/2019 (OBONO, 2020) que estabele-
cia a regulamentação, na cidade de Malabo – atual capital da Guiné
Equatorial – da prostituição e homossexualidade, sob a justificati-
va de controle da integridade moral e física, bem como da proteção
das famílias. Considerando essas situações de inferioridade relaciona-
das à inexistência dos direitos civis das(os) pessoas pertencentes à co-
munidade LGBTQIA+, percebemos que além das opressões interseccio-
nais, tais ações contribuem para a negação da identidade sociocultural
dos indivíduos subalternizadas(os) (PARAQUETT, 2010). Conforme so-

4 A sigla LGBTQIA+ refere-se às seguintes condições de ser e existir no mundo: lésbicas, gays,
bissexuais, transsexuais, queer, intersexuais, assexuais e + que representa outras possibili-
dades de identidades de gênero e ou orientações sexuais, tais como pansexuais, não-biná-
ries e outres.

192
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

frem desaprovação, essas pessoas, e suas identidades que representam


quem elas são, tornam-se invisíveis por meio da colonialidade do ser
(WALSH, 2005).
Contudo, destacamos que nesse debate o fator raça é compre-
endido de maneira diferente da que concebemos em nosso contexto
brasileiro, uma vez que a África também é um continente multicultu-
ral e plurilíngue, além de povoado com diversas etnias negras. Obono
e Camps (2018) apresentam que a sociedade guinéu-equatoriana está
posicionada sob dois marcos civilizatórios/ideológicos, a herança cristã
católica, oriunda do regime colonial, e as bases da etnia bantu, de tradi-
ção africana e que antecede o período escravista5.
Entretanto, como dito no início deste capítulo, o racismo, a miso-
ginia e a exploração da forma que existe hoje na África – e em outros
países – é um projeto de natureza branca, cisgênera, capitalista e co-
lonial. Além disso, atualmente é comum que pessoas conservadoras
guinéu-equatorianas, assim como o presidente, afirmem que a homos-
sexualidade não é coisa de africano, mas de homens brancos (OBONO,
2020). Diante disso, Obono e Camps (2018) apontam que o colonialis-
mo e as questões hierárquicas de gênero determinam as sociedades.
Ressaltamos que estamos dialogando sobre uma sociedade ne-
gra, africana, cujas identidades foram influenciadas e silenciadas pelo
colonialismo espanhol. Diante desse atual contexto, concordamos
com Landulfo e Matos (2021), que contam com a colaboração da litera-
tura africana, em língua italiana, para compreender parte dos reflexos
do colonialismo em comunidades que foram colonizadas pela Europa.
Diante disso, expressamos que os saberes do Sul que serão apre-
sentados neste capítulo são potencialmente decoloniais, uma vez

5 Os bantus ou bantos formam um multicultural grupo étnico-linguístico da África, especial-


mente na região subsaariana. Na Guiné-Equatorial essas etnias são representadas pelos
fang, compondo quase 86% da população; os bubi, cerca de 6,46 %, os ndowés ou combes,
3,55%; os bisio ou bujeba, compondo aproximadamente 1,14%. Há outros grupos em detri-
mento das miscigenações entre os colonizadores e nativos, como os annoboneses ou pagalos
que compõem cerca de 1,64%. (QUEIROZ, 2007).

193
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

que proporcionam a ruptura de pensamentos e atitudes segregadoras


sob a percepção de verdades únicas (ADICHIE, 2019). Como dito ante-
riormente, selecionamos uma literatura que se configura como escrevi-
vências. À vista disso,

Entendemos que as histórias contadas por mulheres [e


homens] nascidas [e nascidos] em países que são margi-
nalizados e compreendidos como periféricos oportunizam
o desenvolvimento do pensamento decolonial e colocam
essas [e esses] escritoras [e escritores], majoritariamen-
te negras [e negros], em destaque (LANDULFO E MATOS,
2021, p. 135).

Dessa maneira, ao seguirmos a narrativa do trabalho das pesqui-


sadoras, ao contemplarmos escritos hispano-africanos que levantam
questões relacionadas ao colonialismo e às suas colonialidades (do po-
der, do saber, do ser, da linguagem e outras) estamos lidando com um
recurso epistêmico que possibilita incluir outras identidades, nesse
caso, de outros contextos da língua espanhola.
Salientamos que os textos selecionados para análise foram pro-
duzidos em língua espanhola e, nesse contexto, já não a concebemos
como a língua do colonizador, mas como a língua utilizada pelos povos
subjugados pelo sistema político dominador. Dessa maneira, enxerga-
mos o uso da língua espanhola, no contexto guinéu-equatoriano, a par-
tir de um processo político-linguístico ressignificativo. Tal aspecto está
atrelado à outra forma do colonialismo moderno, conhecida como a co-
lonialidade da linguagem, pensamento proposto por Veronelli (2015)
como foi dito anteriormente, por meio de suas reflexões que atraves-
sam os escritos de Franz Fanon.
Sobre esse contexto linguístico, Matos (2020) estuda sobre
o significado social e político do uso das línguas de origem europeias
por descendentes de africanas(os) e indígenas subalternizadas(os)
por processos colonizatórios. A autora compreende que fazer uso da

194
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

língua do colonizador é um posicionamento de luta, uma vez que as


comunicações são necessárias para seguir resistindo. Ela retoma o pro-
cesso violento de imersão das línguas europeias em contextos coloniais
e afirma que “propagar uma imagem de união supostamente pacífica,
contribui ainda mais para o apagamento de diversas histórias, prevale-
cendo os discursos colonialistas” (MATOS, 2020, p. 228).
Dessa maneira, contamos com a literatura como um recurso his-
tórico-cultural que transmite informações singulares acerca de uma
sociedade ou período histórico. Para além disso, é por meio da episte-
me presente nessas obras, em articulação com os estudos decoloniais,
que podemos nos conectar com outros saberes os quais foram e são si-
lenciados pelas concepções coloniais. Portanto, por meio deste estudo,
apresentamos uma proposta didática que envolve epistemologias e on-
tologias suleadoras no contexto da língua espanhola, as quais advogam
pelo processo cognitivo dos grupos tidos como periféricos e marginais.
Na próxima seção, seguiremos com uma proposta que une a literatura
às questões que acabamos de problematizar.

Uma proposta de educação linguística do espanhol potencial-


mente decolonial

A escritora e professora Conceição Evaristo, desde seus estudos


acerca da literatura afro-brasileira, pontua que a experiência das pesso-
as afro-descentes possibilita um modo particular de produção do texto
literário. Evaristo apresenta reflexões pautadas na interferência do es-
critor enquanto o sujeito autoral da voz que enuncia a literatura. A par-
tir disso, Evaristo (2009) conceitua a percepção de o que vem a ser uma
‘literatura negra’ e, também, o que a concebe na contemporaneidade,
‘as escrevivências’. O primeiro conceito refere-se a uma escrita que di-
reciona a perspectiva literária para um universo não hegemônico e o
segundo trata-se das produções literárias da e para as implicações ide-
ológicas e experienciadas por quem a escreve.

195
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Com os textos selecionados para esta proposta de educação lin-


guística ocorre o mesmo fenômeno, uma vez que são obras que expres-
sam as vivências de pessoas pretas da e na Guiné Equatorial. Conforme
Souza e Cosson (2011), a literatura se trata de uma parte singular
da linguagem e sua pluralidade possibilita a descrição do mundo tor-
nando-o compreensível a partir das palavras. Ao adotarmos a literatura
guinéu-equatoriana para possibilitar uma educação linguística poten-
cialmente decolonial, estamos reconhecendo, enquanto professoras
e cientistas sociais, que as narrativas expostas nessas obras podem pro-
mover compreensão de partes das sociabilidades que emergem desse
país subalternizado pelas perspectivas hegemônicas.
Do mesmo modo, as pesquisadoras Landulfo e Matos (2021) par-
tem do pensamento decolonial ao direcionar a educação linguística
do italiano a partir de um saber não brancocêntrico e não eurocentra-
do. Além disso, reconhecemos a necessidade de ter o cuidado adequado
ao trabalhar com o texto literário no âmbito da educação linguística.
Assim, neste trabalho, concebemos a língua a partir da sua concepção
intercultural (PARAQUETT, 2010) e a literatura a partir do seu contexto
social (SOUZA; COSSON, 2011). Dito isso, é por meio da leitura de tex-
tos literários (doravante TL) de duas escritoras e um escritor prove-
nientes da ex-colônia espanhola, Guiné Equatorial, que contemplare-
mos uma proposta de educação linguística potencialmente decolonial.
A seleção dos textos se deu porque são de origem guinéu-e-
quatoriana, foram originalmente produzidos em língua espanhola e,
principalmente, porque a partir das diversas temáticas expostas neles
é possível perceber similitudes do colonialismo espanhol e das vivên-
cias desses povos africanos. Além disso, embora os textos tenham sido
produzidos em períodos políticos distintos, buscaremos abordar as co-
lonialidades cimentadas nessas produções.
O primeiro texto é o da escritora, cantora e pintora Raquel
Ilonbé, pseudônimo de Raquel del Pozo Epita, nascida em 1939 na ci-

196
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

dade de Corisco, em Guiné Equatorial, e falecida em 1992 na capital


da Espanha, Madri. Próximo de completar o primeiro ano de vida,
Ilonbé mudou-se para Espanha ao lado da sua mãe, de nacionalida-
de guinéu-equatoriana, e do seu pai, de origem espanhola. De acordo
com Queiroz (2007, p. 80), embora ela não tenha vivenciado diretamen-
te os tormentos do primeiro período ditatorial e, consequentemente,
o exílio “a escritora pôde desenvolver uma obra permeada pelos ele-
mentos dessa origem híbrida, estabelecendo a partir de sucessivas visi-
tas ao país natal uma temática caracterizada por influências culturais
ibéricas e bantas”.
Em 1978 Ilonbé foi responsável pelo primeiro livro de poemas
publicado por uma mulher guinéu-equatoriana, Ceiba, cujo poe-
ma que selecionamos para esta proposta de atividade compõe parte
da obra, “Los ríos hablan” (ILONBÉ, 1978, apud QUEIROZ, 2007, p. 57).
Na época da sua publicação, a Guiné Equatorial vivenciava novas rup-
turas no sistema político, uma vez que iniciava o governo do atual pre-
sidente, Teodoro Obiang.

por qué yo le oigo tan claro


y otros no le oyen nada.

O TL de Raquel Ilonbé inicia exclamando que, segundo a afirmati-


va de uma terceira pessoa – apresentada como “alguém” – os rios nun-
ca falam e que a única função deles é seguirem o seu curso/caminho.
Essa afirmação é apresentada com sentimento de tristeza e, possivel-
mente, indignação; isso porque o eu lírico sentiu a necessidade de ir
até o rio questionar essa condição dele: de nunca falar. Além disso, di-
ferentemente do que foi dito no início do TL, o eu lírico assegura que é
possível escutar com clareza o que é dito pelo rio e não compreende
como não conseguem escutá-lo.
Partimos da possibilidade de que os rios podem ser considerados
os grupos de pessoas subordinadas e subalternizadas pelo colonialismo
moderno e ‘esse alguém’ – que não escuta o que o rio diz – representa

197
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

os que estão em posição de validar ou invalidar as narrativas das vozes


periféricas. Para além disso, ‘esse alguém’ afirma a inexistência das vo-
zes dos rios quando proclama que os rios não falam e seguem a sua
trajetória sem dizer uma palavra. Procedendo da leitura que estamos
realizando, essas falas inexistentes, de certo, são as vozes das pessoas
marginalizadas que, de maneira mais coerente, foram e são silenciadas
pelas colonialidades de tal modo que se tornam invisibilizadas. Dessa
maneira, elas possuem voz sim, todavia não ocupam os espaços ade-
quados para serem escutadas, assim, permanecem nesse não lugar.
No que tange ao silenciamento e subordinação de determinados
grupos em relação a outros, certamente, torna-se emergente a retoma-
da do suleamento. As Epistemologias do Sul coadunam para que pos-
samos trabalhar, também, com o conhecimento empírico dos grupos
sociais tidos como periféricos e não somente com o brancocêntrico
e eurocêntrico, tal como advogam Landulfo e Matos (2021). Recorrer
às epistemologias do sul tem a nos dizer que não se trata de jogar a tra-
dição eurocêntrica no lixeiro da história, mas de abrir outros espaços
analíticos para saberes ignorados, invisibilizados e/ou novos saberes.
Dessa maneira, pensar, agir e propor uma educação linguística a partir
do Sul epistêmico é, portanto, viabilizar reparações cognitivas episte-
mológicas e ontológicas dos grupos oprimidos pelas colonialidades.
As colonialidades são mecanismos capazes de perpassar longos
períodos históricos de modo que, embora o período colonial tenha
sido finalizado, o colonialismo moderno se faz presente (QUIJANO,
2005). O TL de Ilonbé retoma a colonialidade da linguagem que vai
além da imposição da língua do colonizador, posto que se refere à re-
pulsividade das linguagens e dizeres dos povos colonizados e, conse-
quentemente, a limitação de comunicação racional entre os envolvidos
(VERONELLI, 2015). Reafirmamos nossa narrativa com base, também,
na reflexão realizada por Queiroz (2007); apesar de o pesquisador
não utilizar a perspectiva decolonial propriamente dita, ele aponta
que esse poema demonstra a busca de uma mulher negra pela sua iden-

198
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tidade. Com efeito, os estudos realizados por Queiroz são exemplares


que direcionam a compreensão e aproximação do contexto linguístico
e literário hispano-africano.
Diferentemente de Ilonbé, que foi criada na Espanha desde crian-
ça, Donato Ndongo Bidyogo vivenciou de perto a opressão dos dois
períodos ditatoriais da Guiné Equatorial e, conforme foi apresenta-
do anteriormente, foi um dos perseguidos(as) por possuir concep-
ções ideológicas contrárias ao governo. O escritor e jornalista nasceu
em Niefang, Guiné Equatorial, em 1950 e, atualmente, encontra-se
em exílio na Espanha. Dentre suas obras, selecionamos dois fragmen-
tos do poema intitulado Cántico – publicado em 1984 na obra Antología
de la literatura guineana:

Yo describo la triste historia


de un mundo poblado de blancos
negros
rojos y
amarillos
que saltan de charca en charca
sin hablarse ni mirarse (DONATO, 1984, p. s/p).

O TL refere-se à voz de um poeta diante das adversidades viven-


ciadas pelo seu povo, as quais ele, enquanto integrante dessa socie-
dade, posiciona-se de maneira contrária à realidade. No início dessa
estrofe, o poeta apresenta a triste história de um mundo onde pessoas
brancas, pretas, vermelhas e amarelas – representando diversas etnias
– ocupam o mesmo espaço, mas não se comunicam. Segundo Paraquett
(2010), ao refletir sobre os escritos de García Martínez, essa situação
pode ser compreendida a partir da perspectiva de multiculturalismo
que se refere à coexistência de diversas culturas no mesmo espaço, en-
quanto a interculturalidade concebe a relação ativa entre essas culturas.
Além disso, de que modo essa história é compreendida como tris-
te? Quais referências estão sendo tomadas para defini-la como tris-

199
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

te? A partir disso, observamos que esse poema apresenta possíveis


reflexões sobre as colonialidades, uma vez que as etnias em questão
não se comunicam e seguem seu percurso sem se olharem (ni mirar-
se). Historicamente, há grupos sociais que não possuem notoriedade
para ser escutados, como constatou Fanon (2003) e observou Veronelli
(2015); suas vozes estão ecoando, todavia, segundo a ótica eurocêntri-
ca, não há espaço para suas narrativas.
A falta de comunicação entre os povos, em detrimento de suas
etnias e outras sociabilidades, é resposta da hierarquização da ideia
de raças que têm influência direta do colonialismo, capitalismo e glo-
balização (QUIJANO, 2005). A ausência do olhar, nesse contexto, pode
ser associada à invisibilidade que determinados grupos sociais ocupam
em relação a outros. Com efeito, compreendemos que o poeta não está
fazendo uma crítica somente ao sistema político da Guiné Equatorial.
Vejamos outro fragmento para seguirmos com essa leitura: “Yo canto
con mi pueblo; una vida pasada bajo el cacaotero; para que ellos merien-
den cho-co-la-te” (NDONGO BIDYOGO, 1984, s/p).
Nesse fragmento fica evidente que o questionamento à subalter-
nidade vivenciada pelo povo é direcionado a outras partes do conti-
nente africano e não exclusivamente ao território guinéu-equatoriano.
Em “una vida pasada bajo el cacaotero” está sendo feita uma referência
à exploração do cacau, que é uma prática comercial ilegal e recorrente
em diversos territórios africanos. Na Costa do Marfim, por exemplo,
crianças são conduzidas ao trabalho infantil nos campos de planta-
ção de cacau para coleta do fruto que é redirecionado para produção
de chocolate de grandes indústrias.
De certo que as pessoas que realizam esse trabalho em situação
análoga à escravidão não recebem o chocolate para degustar, afinal,
é um alimento cuja comercialização não foi pensada para o consumo
delas. Contudo, o eu lírico afirma, com tom irônico – uma vez que des-

200
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

creve o nome da iguaria com pausas – que passam a vida debaixo do pé


de cacau para que eles “merienden cho-co-la-te”.
Diante disso, as colonialidades são refletidas na constância
da opressão por meio do capitalismo que hierarquiza povos, afinal,
quem possui poder aquisitivo para manter essa e outras formas de ex-
ploração no território africano? Do mesmo modo, Quijano (2005) in-
siste no reconhecimento de um novo padrão de poder mundial, ca-
pitalismo/moderno e eurocêntrico. A partir disso, levantamos mais
um questionamento: por que propor tais discussões no âmbito dos es-
tudos linguísticos para educação? Compreendemos que essas e outras
abordagens são relevantes, tanto para o processo de formação docente
de futuras(os) professoras(es) de espanhol, como para educação bási-
ca, posto que ao tecer tais diálogos possibilitaremos outras óticas além
da visão eurocêntrica e hegemônica (SILVA JR; MATOS, 2019).
Ressaltamos que Ndongo Bidyogo é um escritor que se dedica
a expressar sua inconformidade, e a de outras(os) exiladas(os) e não
exiladas(os), com relação à condução dos anteriores e atual governo
da Guiné Equatorial. A subordinação que o povo africano vivenciou
em detrimento das colonizações é, de maneira evidente, reafirma a pre-
sença de uma estrutura social baseada a partir das noções de sub-ra-
ça e sub-humanidade (FANON, 2003; WALSH, 2005; MALDONADO-
TORRES, 2007).
Assim como Ndongo Bidyogo, a próxima escritora da Guiné
Equatorial a ser apresentada, Trifonia Melibea Obono, coloca seu po-
sicionamento político por meio da escrita. Ela nasceu em Afaetom,
Evinayong, Guinea Ecuatorial, em 1982 e atua como politóloga, escri-
tora, professora e pesquisadora sobre questões de gênero no contexto
africano. Algumas das obras de Obono, como o romance La Bastarda,
são proibidas de circularem comercialmente em seu país devido suas
abordagens homoafetivas. Na obra “Yo no quería ser madre: vidas forza-
das de mujeres fuera de la norma” (OBONO, 2019), da qual selecionamos

201
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

os fragmentos para este trabalho, há trinta relatos de mulheres gui-


néu-equatorianas. Para este momento, selecionamos o relato “La Hija
de las Tribus”:

Cuando mi hermana salía o se marchaba al hospital, de re-


pente, de noche, sentía que me tocaba. Me tocaba, me me-
tía cosas, hasta que le puse freno. Ponerle freno fue lo
peor que me pasó. Mi cuñado, para vengarse de mí, contó
en todo el barrio que soy Satán, lesbiana; todo el entorno
se puso en mi contra (OBONO, 2019, p. 34).

Esse relato apresenta um homem que violentava sexualmen-


te a cunhada e, aparentemente, com frequência; de acordo com o TL,
quando a vítima resistiu à violência que sofria, o violentador a difamou
diante da comunidade. Essa atitude gerou rejeição por parte da família
e da sociedade em relação ao convívio com a vítima. Nessa situação,
precisamos considerar o silenciamento da voz da vítima, que é uma mu-
lher, uma vez que o texto não menciona que ela teve espaço para relatar
o que sentia e sofria. Nesse caso, somente o violentador, que não rece-
beu o devido rótulo pela sociedade, foi escutado. Por isso a interseccio-
nalidade torna-se necessária como uma categoria de análise que cruza
sistemas de opressão, visto que ela busca compreender as identidades
submersas em espaços subalternizados por segmentações colonialis-
tas, a exemplo do racismo e machismo (AKOTIRENE, 2019).
É relevante mencionar a associação do corpo lésbico a algo sa-
tânico o que reforça, mais uma vez, a colonialidade do ser (WALSH,
2005). Nesse contexto, não se é mais alguém, a mulher lésbica passa
a ser alguma coisa ou nada. Evidentemente, o que foi dito pelo violen-
tador surtiu efeito tão massivo que transformou a vida dessa mulher.
Observamos que esse homem tinha conhecimento da validação do seu
discurso nessa sociedade, visto que ele utilizou o não da vítima como
impulso para desonrá-la.

202
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Ya no podía entrar en la casa de nadie. Si me veían pasar,


cerraban las viviendas. En el barrio la gente normal tiene
amigas, vecinas, conocidas. Las amigas y conocidas de las
chicas del barrio recibieron la orden familiar de no verme
porque las iba a transformar. Algunas familias castigaron
a sus hijas entendiendo que, si eran mis amigas, es por-
que también practicaban el lesbianismo (OBONO, 2019, p.
34-35).

A vítima ocupou um lugar de rejeição e de culpa, não por ser cul-


pabilizada pela violência, mas pela sua condição de existência. Ser lés-
bica tornou-a desprezível e isso, diante do relato, é compreendido como
algo contagioso. Observamos a segregação com a vítima e outras mu-
lheres próximas a ela, considerando o fato de que elas foram castigadas
para que não viessem “a praticar” o “lesbianismo”, como se fosse pos-
sível “tornar-se” algo que está atrelado à sua condição de existência.
O castigo nem sempre se restringe às proibições, ele chega à agressão
física e psicológica, como pontuou o Colectivo Somos Parte del Mundo,
que representa a comunidade LGBTQIA+ na Guiné Equatorial – entida-
de não governamental (OBONO, 2020).
Além disso, a vítima usa o termo “lesbianismo”, ou seja, um sufixo
que reforça a ideia de enfermidade. Logo, reafirmamos que a concepção
de ser uma pessoa homoafetiva dentro das percepções conservadoras
coloniais do contexto guinéu-equatoriano é concebida como doença
ou possessão demoníaca (OBONO, 2019, 2020).
Historicamente as identidades sociais sofreram rupturas pelas co-
lonialidades a exemplo do saber, no caso deste relato ocorre o mesmo,
uma vez que há legitimação no discurso de um homem e o silencia-
mento da voz de uma mulher (QUIJANO, 2005). Deslegitimação, seja
relacionada à voz ou à existência, fere a pessoa deslegitimada e, conse-
quentemente, as suas identidades. Desse modo, os dizeres de um ho-
mem cis gênero, dentro do contexto deste relato, possui, evidentemen-

203
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

te, maior relevância e credibilidade que o de uma mulher lésbica e essa,


sem dúvidas, são intersecções de opressões.
Ao retomarmos o atual contexto político na República da Guiné
Equatorial, de certo, iremos resgatar as origens coloniais do desprezo
aos corpos LGBTQIA+, às mulheres e outros grupos sociais (OBONO;
CAMPS, 2018). Pensando nisso, neste trabalho, contamos com as vo-
zes guinéu-equatorianas para possibilitar que estudantes do espanhol
possam refletir a partir de outros olhares. A universidade é uma fon-
te de conhecimento e ao abrir as portas para saberes subalternos, su-
bordinados, periféricos, marginalizados e do Sul proporcionará outras
perspectivas de conhecimentos (KLEIMAN, 2006). Compreendemos,
tal como Evaristo (2009), que a dificuldade do meio acadêmico em lidar
com textos que contam memórias está relacionada com o fato de pen-
sarem que são apenas memórias. Para nós, neste espaço, o saber tido
como periférico é cultura, é ciência, é ancestralidade, é ontologicamen-
te epistêmico.

Considerações inconclusivas

Neste capítulo, desenvolvemos uma proposta de educação linguís-


tica do espanhol a partir da leitura potencialmente decolonial de frag-
mentos de textos literários. As obras, de duas autoras e de um autor
da República da Guiné Equatorial, apresentam um percurso histórico
desde a colonização, seguindo pela fase independentista e logo após
a ditatorial e, a última, o contexto ditador e opressivo atual.
O primeiro, um poema, manifesta a sensibilidade da autora ao ex-
pressar-se enquanto uma mulher negra, criada na Espanha, em busca
da sua identidade miscigenada imersa em um hibridismo cultural; o se-
gundo, outro poema, exerce papel de denúncia de um poeta que clama
pelos direitos civis e liberdade de seu povo diante de um mundo forja-
do em injustiças econômicas e raciais; o terceiro e último, um relato,
categorizado como literatura de testemunho, ressalta as vozes do Sul

204
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

na contemporaneidade guinéu-equatoriana. Vozes que são marginali-


zadas e silenciadas pela força opressora oriunda das raízes coloniais
de uma sociedade patriarcal e misógina.
Com essa abordagem, queremos apresentar que há diversas ma-
neiras de sulear as leituras e os nossos pensamentos, especialmente,
ao partirmos do Sul epistêmico. Afinal, as vozes que estão à margem
carregam conhecimentos próprios que são únicos e, sem escutá-las,
não seremos capazes de movimentar as cadeias coloniais que nos pren-
dem ao pensamento hegemônico europeu.
Além disso, ao possibilitar a criticidade a partir de epistemolo-
gias e ontologias suleadoras no processo de educação linguística, es-
tamos assumindo o posicionamento de rejeição às concepções únicas
(ADICHIE, 2019), a exemplo de uma África pobre, faminta e repleta
de doenças. Assim, este estudo possibilita que outras vertentes hispâ-
nicas – e não somente a do branco europeu – tenham espaço nos es-
tudos do espanhol. De certo, o que queremos é que os nossos pensa-
mentos sejam suleados constantemente e que, no futuro, possamos
contemplar hemisférios epistêmicos e ontológicos múltiplos.

Referências

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

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208
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

“COMO (NÃO) ENSINAR O ESPANHOL...?


– REVISITANDO O CONCEITO DE LÍNGUA
NACIONAL NA SALA DE AULA

Fernando Zolin-Vesz (UFMT)

Em perspectiva(s)

Antes de embrenhar-me pelas discussões que sustentam a perspec-


tiva apresentada neste capítulo, creio ser pertinente esclarecer de que
modo tal proposta é configurada aqui como possível pedagogia decolo-
nial. Nessa seara, refiro-me à busca por alternativas para a construção
e a compreensão do mundo e da vida social no que tange às relações so-
ciais extremamente desiguais geradas pelo sistema colonial do qual so-
mos herdeiros (ZOLIN-VESZ; ARAÚJO; RABÊLO; FIGUEIREDO, 2019).
Por esse viés, o qualificador “decolonial” não constitui o “arcabouço
teórico” que ampara a proposta, mas o prisma em que é desenvolvida,
na busca por alternativas em direção a uma sociedade menos estratifi-
cada e mais igualitária. De igual modo, caminha para o distanciamento
da compreensão eurocêntrica de pedagogia que concebe o “não euro-
peu” como “não ser”, ou “um ‘não eu’ que necessita de ‘adestramento’
pedagógico” (SAUL; SILVA, 2014, p. 2.068), acepção que tem fartamente
alimentado a ótica com a qual entendemos educação e, em particular,
o ensino de línguas (cf. ZOLIN-VESZ, 2021).

209
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Dadas essas considerações preliminares, para emoldurar este ca-


pítulo, inicio pelo topo da notícia a seguir, retirada do sítio eletrônico
espanhol El periódico e publicada em 22 de março de 2014. A notícia
se refere ao lançamento da canção Boig per tu, música composta em ca-
talão na década de 1990 pelos membros da banda de rock Sau e regra-
vada pela cantora Shakira em seu álbum lançado no ano de 2014.

Imagem 1 – Notícia de lançamento da canção Boig per tu

Fonte: www.elperiodico.com/es/gente/20140322/boig-per-tu-shakira-incendia-
-red-3210090. Acesso em: 30 mar 2022.

Meu interesse aqui se centra na repercussão que o lançamento


dessa canção obteve em redes sociais, particularmente a hostilida-
de de alguns comentários em relação à notícia publicada pelo sítio
eletrônico.

Imagem 2 – Hostilidade de alguns comentários

210
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Fonte: www.elperiodico.com/es/gente/20140322/boig-per-tu-shakira-incendia-
-red-3210090. Acesso em: 30 mar 2022.

Embora não teça uma análise pormenorizada de cada comentá-


rio, uma vez que não constitui meu objetivo, interessa-me aqui tra-
zer à baila a seguinte indagação: de que modo comentários hostis
gerados pela publicação da notícia de que a cantora Shakira regravou
uma música composta em catalão podem constituir objeto de interesse
na sala de aula de espanhol? Este é o mote que alinhava o capítulo.
A fim de responder a tal indagação, inicio com outro questionamento,
agora retirado das Orientações Curriculares para o Ensino Médio, do-
cumento publicado pela Secretaria de Educação Básica do Ministério
da Educação no ano de 2006: “como ensinar o Espanhol, essa língua
tão plural, tão heterogênea, sem sacrificar as suas diferenças nem as
reduzir a puras amostragens sem qualquer reflexão maior a seu respei-
to?” (BRASIL, 2006, p. 134). Essa indagação parece-me revelar uma pre-
ocupação recorrente nas pesquisas e nas políticas educacionais para
ensino de espanhol no país: a operação de redução da língua, em que

211
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

a variação aparece apenas como fenômeno marginal, e não como cons-


titutivo do cenário linguístico (cf. KRAUSS, 2013).
A despeito de que tal panorama tenha sido amenizado com a cria-
ção do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) pelo Ministério
da Educação, em que um dos pontos avaliados é a heterogeneida-
de linguístico-cultural apresentada nos livros (cf. SANTOS, 2021),
de modo geral ainda tal discussão centra-se na famigerada heteroge-
neidade do espanhol enquanto língua nacional. Essa afirmação pode
ser observada inclusive no começo do questionamento apresenta-
do nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio: “como ensi-
nar o Espanhol...?”, grafado no singular e com letra inicial maiúscula.
O resultado aponta não apenas o apagamento da multiplicidade e da
complexidade linguística características dos nossos tempos, mas prin-
cipalmente, no caso de um país como a Espanha, para o ofuscamento
de importantes dissimetrias entre o espanhol, alçado ao posto de língua
nacional, e línguas como o catalão, o galego e o vasco (cf. SILVA, 2011).
É nesse panorama, assim, que a hostilidade a respeito da regravação
de uma música composta em catalão parece-me constituir importante
objeto de interesse para a sala de aula de espanhol. Em última instância,
o que defendo é uma revisita ao conceito de língua nacional que ainda
ampara “o Espanhol” que se pretende ensinar em sala de aula, mesmo
quando se prega uma suposta heterogeneidade linguística que sugere
camuflar a manutenção de uma concepção de ensino de língua que,
insistentemente, tem nos conduzido aos meandros da homogeneidade.
Portanto, para a compreensão do conceito de língua (nacional),
o surgimento da noção de Estado-Nação consiste em elemento impres-
cindível. Bauman (2016) atribui a concepção do Estado-Nação à der-
rocada do chamado ancien régime, cuja característica principal era a
descentralização dos poderes político e econômico, os quais se encon-
travam nas mãos dos senhores feudais, proprietários das terras.
De acordo com o autor, o regime teria entrado em processo de falência
por força de fatores tais como o aumento da transição populacional de-

212
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

vido ao renascimento comercial, além de guerras, aumento de impos-


tos e disseminação de doenças. Tal cenário produziu um sentimento
de caos e incerteza na sociedade.
Dessa conjuntura de desesperança e medo, surgem as sementes
que possibilitam a estruturação do Estado moderno: o Estado-Nação
propõe “[...] a substituição do caos e da incerteza por uma harmonia
pré-desenhada e pela ordem planejada e controlada” (BAUMAN, 2016,
p. 20). Em nome dessa segurança e dessa estabilidade, o Estado mo-
derno ambicionava interferir em todos os aspectos da vida humana,
a fim de monitorá-la, registrá-la, regulamentá-la, administrá-la e con-
trolá-la. Nesse aspecto, destaca Bauman (2016), a conditio sine qua non
do Estado-Nação apresenta dois princípios fundamentais: (1) demar-
car seus territórios e delimitar suas fronteiras físicas, sendo necessário
um governo que os resguardasse e (2) homogeneizar os grupos sociais
dentro de seu território, oferecendo segurança aos indivíduos que cons-
tituem sua população. Desse modo, ainda de acordo com o autor, nas-
ce a relação de pertencimento entre cidadãos e território: o conceito
de nação engloba os cidadãos pertencentes a um mesmo território e os
define como “nacionais” em contraposição aos “não nacionais”.
Assim, desponta o conceito de nacionalidade, derivado da pre-
tensa construção de comunidades homogêneas, sem interferências
exteriores, organizadas geopoliticamente e com fronteiras geográfi-
cas definidas, a qual afirma a concepção de território vinculada à no-
ção de Estado-Nação. Assegura-se, por conseguinte, a consolidação
das línguas nacionais, as quais Mignolo (2003) associa o surgimento
“em cumplicidade com o Estado e com instituições que regulamenta-
vam os usos e os abusos da língua” (MIGNOLO, 2003, p. 345). É sob
esse pressuposto que, de acordo com esse autor, surgem tanto a defini-
ção de língua nacional quanto a concepção de Estado-Nação: a figura
dos “não nacionais” é apresentada como ameaça à estabilidade nacio-
nal, pois deteriora, corrompe e corrói a homogeneidade que se espera
do Estado-Nação e da língua (nacional). Tal é o caso do constante pavor

213
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

que os famigerados estrangeirismos ainda provocam (FARACO, 2007),


geralmente associados à língua inglesa e ao imperialismo norte-ame-
ricano, vistos “[...] como obra diabólica dos Estados Unidos que não
encontraria limites para exercer seu poder econômico, bélico, político
e cultural sobre o conjunto das nações” (ASSIS-PETERSON; COX, 2013,
p. 154).
Além disso, a definição de língua nacional também limita o círculo
de línguas que podem ser usadas nas interações sociais de determinado
território, bem como justifica a imposição da língua de comunidades
dominantes sobre línguas e comunidades minoritárias, que dividem
um mesmo território. Este parece ser o ponto central que envolve a de-
limitação do conceito de língua nacional no caso de um Estado-Nação
como a Espanha: conforme apontado previamente, a assimetria entre
o espanhol e línguas como o catalão, o galego e o vasco. É essa de-
sigualdade a causadora da hostilidade dos comentários gerados pela
publicação da notícia de que a cantora Shakira regravou uma música
composta em catalão. E é essa mesma desigualdade que pode consti-
tuir-se como interesse da sala de aula de espanhol, ponto que discuto
na seção que segue.

Em prospectiva – “como (não) ensinar o Espanhol...?”

Para buscar responder tanto à indagação que não apenas subin-


titula esta seção, mas intitula o capítulo, como também ao questio-
namento a respeito dos comentários hostis vinculados à notícia sobre
a regravação, pela cantora Shakira, da música Boig per tu, reproduzo
o ponto lançado à baila na seção anterior:

[...] o que defendo é uma revisita ao conceito de língua na-


cional que ainda ampara o Espanhol que se pretende ensi-
nar em sala de aula, mesmo quando prega-se uma suposta
heterogeneidade linguística que parece camuflar a manu-
tenção de uma concepção de ensino de língua que, insis-

214
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tentemente, tem nos conduzido aos meandros da homoge-


neidade (ZOLIN-VESZ, neste volume).

Dada a conjuntura de assimetrias que envolve o cenário linguís-


tico da Espanha, como apresentado por Silva (2011), a simples ruptura
com a divisão entre um suposto espanhol da Espanha e um suposto
espanhol das Américas, discussão há muito tempo travada no cená-
rio brasileiro de ensino e aprendizagem de espanhol segundo a autora,
não me parece ser mais suficiente: julga-se necessário o debate a res-
peito da concepção de língua nacional, ou melhor, da acepção de ensino
de língua que apregoa homogeneidade por meio da imposição do en-
sino de determinadas línguas (aquelas classificadas/categorizadas/ou-
torgadas como nacionais e, portanto, entendidas como mais legítimas
do que as outras que também integram aquele cenário linguístico).
Tal compreensão pode abrir espaço para o questionamento do pa-
pel do ensino de línguas na (re)produção e na legitimação de desigual-
dades sociais. Quando mantemos uma concepção de língua definida
pela homogeneidade, ensinamos, de igual modo, que haveria determi-
nadas formas únicas (“mais corretas”, portanto) de ser/estar no mundo
de acordo com cada instância da vida social. É esse modo de compre-
ender a vida e o mundo social, herdeiro de todo um conjunto de enten-
dimentos oriundos do processo colonial, que legitima verdades únicas
e, assim, as desigualdades sociais. A meu ver, enquanto não inquirir-
mos essa concepção de língua na escola, a qual perpetua indagações
que interrogam “como ensinar o Espanhol...?”, entendido como a lín-
gua (nacional) a ser “naturalmente” ensinada, sendo grafado inclusi-
ve no singular e com letra inicial maiúscula, pouco adianta tratarmos
de diversidade linguística, por exemplo, pois o que mantém o precon-
ceito linguístico, de modo geral, é o modo de pensar que alicerça a con-
cepção de homogeneidade nas práticas de linguagem, herdeira, como
abordei previamente, da constituição do conceito de Estado-Nação.

215
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Embora o ensino de línguas tenha se constituído historicamente


como espaço para a (re)produção de desigualdades sociais e até mesmo
de preconceito linguístico (cf. ZOLIN-VESZ, 2013), acredito que igual-
mente possa assegurar a busca por alternativas para a construção e a
compreensão do mundo e da vida social. Mais ainda: o ensejo de trans-
formação social em direção a uma sociedade menos hostil, cujos cida-
dãos, ao menos, não agridem gratuitamente uma cantora apenas pelo
fato de regravar uma música em uma língua que, apesar de constituir
o cenário linguístico daquele Estado-Nação, não é alçada ao posto
de língua nacional.
Desse modo, a proposta deste capítulo vincula-se à discussão
que venho diligenciando desde Zolin-Vesz (2014): a construção de uma
sala de aula pautada na equidade, a qual, em vez de a resposta correta
singular, convoca múltiplas práticas de linguagem como incremento
para a formação não apenas em diversidade linguística de nossos alu-
nos, mas também sobre a multiplicidade de modos de ser/estar no mun-
do que as práticas de linguagem nos proporcionam e que extrapolam
qualquer tentativa de homogeneização. Mais especificamente, em vez
de questionarmos “como ensinar o Espanhol?”, delimitado ao escopo
da concepção de língua nacional, indagamo-nos “como não ensinar
o Espanhol?”, ao menos não essa concepção homogênea de espanhol
que, conforme apresentada no início deste capítulo, funciona apenas
como gatilho para comentários hostis e a perpetuação do preconceito
linguístico. Talvez as músicas gravadas pela cantora Shakira possam
ser abordadas na sala de aula de espanhol com o propósito de ensinar
nossos alunos muito mais do que apenas pronúncia, vocabulário e/ou
alguma regra de gramática normativa da língua: suas músicas podem
ensinar sobre a multiplicidade dos modos de ser/estar no mundo para
além de homogeneizações capitaneadas pela promessa de estabilidade
que o famigerado Estado-Nação não parece dar mais conta nos dias
atuais (cf. BAUMAN, 2016).

216
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Referências

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217
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ZOLIN-VESZ, Fernando. Como ser feliz em meio ao portunhol que se produz


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218
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

EXPERIÊNCIAS EDUCACIONAIS PANDÊMICAS:


EM BUSCA DE MOVIMENTOS DECOLONIAIS
PARA O ENSINO DE LÍNGUA ESPANHOLA

Itamaray Nascimento Cleomendes dos Santos (PPGLinC/UFBA)

Primeiros acercamentos

A pandemia de covid-19 vem demandando outras formas de ser


e viver, atenuando crises e requerendo outras maneiras de agir nos dife-
rentes contextos da vida, dentre os quais se encontra a educação. O co-
tidiano escolar se viu afetado em todos os âmbitos que o constitui, im-
pondo desafios a professores e estudantes e estabelecendo dinâmicas
outras quanto às formas de viver o processo educacional, no momen-
to atual, majoritariamente mediado pelas tecnologias. Muito embora
os recursos tecnológicos já façam parte há um certo tempo da realidade
educativa, eles só passaram a ser intensamente utilizados no contexto
da pandemia, devido, sobretudo, ao fechamento das escolas que opor-
tunizou o desenvolvimento remoto das aulas.
Com isso, o uso de recursos e de plataformas virtuais foi massi-
vamente demandado. Consequentemente, os professores precisaram
se adaptar e aprender a manejar essas ferramentas quase que instanta-
neamente, um processo marcado por muitas complexidades que envol-
vem para além de fatores educacionais.

219
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

A pandemia intensificou crises existentes e corroborou a ressig-


nificação do espaço-tempo e da reorganização familiar, já que muitos
pais de família perderam seus empregos, bem como muitos familiares
passaram a distanciar-se dos idosos, a fim de evitar que esses se infec-
tassem com a covid-19. Ademais, a convivência com as incertezas e in-
seguranças causadas por um vírus ainda muito desconhecido foi mol-
dando os comportamentos e as formas de se viver em sociedade.
Tal realidade contribuiu para se repensar a vida, ou melhor, o sen-
tido dessa frente a sua fragilidade, fato por vezes ignorado pelo ser hu-
mano no seu cotidiano, na dinâmica do dia a dia e na sua pretensa so-
berania que fizeram ecoar a exigência de se redescobrir e de se criar
outras formas de pensar, ser e viver a vida.
Essa demanda também foi reivindicada no âmbito da educação,
em todos os seus aspectos: em que se, por um lado, essa nova realidade
representou uma série de reveses à práxis pedagógica, por outro, ge-
rou um contexto de possibilidades, o que de acordo com Có, Amorim
e Finardi (2020), requisitou dos docentes formas outras de ensinar
e aprender, especificamente no que tange às práticas de linguagem.
Portanto, a pandemia fomentou ressignificações no cotidia-
no escolar, em sua plenitude, no tocante à importância das práticas
de língua(gem), o papel da afetividade nas aulas, a potencialização
de propostas educacionais e a criação de movimentos decoloniais
que confrontam as lógicas mercantilistas e hegemônicas da educação
contemporânea.

Vivendo a docência em meio à pandemia de covid-19

Quando a pandemia de covid-19 começou me encontrava como


docente na modalidade de educação profissional em uma instituição
pública, na qual as atividades educacionais foram pausadas em algu-
mas semanas para que pudéssemos compreender melhor o contexto
e estabelecermos um plano de ação. As instâncias educacionais do país

220
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

não estavam seguras sobre como conduzir esse novo cenário diante
de tanta insegurança e indagações para dirimir os impactos de uma
pandemia sem precedentes no processo de ensino e aprendizagem.
Diante dessa conjuntura, foi instituída a modalidade remota para
a continuidade das atividades escolares, sendo nós, os professores, res-
ponsáveis pela escolha dos recursos tecnológicos a serem utilizados.
Essa modalidade impôs desafios ao nosso fazer pedagógico,
ao implicar um giro de 180° na nossa maneira de ensinar e de apren-
der. Pessoalmente, realizei cursos de aperfeiçoamento à distância para
aprender a utilizar as ferramentas virtuais e desenvolver materiais di-
dáticos para o ensino remoto.
A reconfiguração educacional e o ambiente criado pela covid-19
foram responsáveis por promover incertezas e intensificação infor-
mativa, os quais levaram muitos professores à exaustão profissional
e pessoal:

Tudo que é novo desacomoda e inquieta até se tornar co-


nhecido. Devido à pandemia, tudo teve que acontecer
sem muito planejamento. Somadas todas as questões de-
safiadoras já sabidas, os professores tiveram que dar conta
também de uma mudança drástica na sua prática de sala
de aula. A maioria sequer havia recebido formação para
trabalhar remotamente, muitos nem acesso à internet
de qualidade tinham. Tudo isso contribuiu para o aumento
do estresse. E para além de todas as mudanças ocorridas,
havia ainda todos os temores pessoais, novas precauções
e lutos trazidos pela pandemia. Imagine que o professor
é aquele acrobata que roda vários pratinhos ao mesmo
tempo. Todos estão ao seu alcance e nenhum deles pode
cair (JARLICH, 2021, sp.).

De acordo com a psicóloga Carla Jarlich (2021), esses fatores con-


tribuíram para uma piora na saúde mental dos professores, refletidos

221
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

em quadros de ansiedade, fadiga mental, além de outras problemáticas


apontadas por Dallacosta e Castro (2021) ao sinalizarem o acometi-
mento da Síndrome de Burnout (doravante, SB) em docentes e discen-
tes do ensino superior.
A síndrome já é uma realidade latente na docência e se encon-
tra nas estatísticas das profissões mais afetadas pela SB, como indi-
cam Dallacosta e Castro (2021) e diversos estudos na área. Desse modo,
a condição desencadeia “exaustão emocional, falta de realização pes-
soal no trabalho e despersonalização” (DALLACOSTA; CASTRO, 2021,
p. 2) o que afeta significativamente o cotidiano dos atores sociais.
Isto posto, além das novas exigências profissionais foi preciso
atenção redobrada à saúde mental, a fim de conduzir tanto a vida como
a prática docente de forma saudável, na medida do possível.
Na busca por uma prática docente dinâmica e engajada, neces-
sitamos um estudo mais particularizado sobre o processo educativo
em ambiente não presencial. Inicialmente a tarefa se mostrou desa-
fiadora, pois foi fundamental entender como desenvolver aulas com a
total mediação das tecnologias, levando em consideração possíveis di-
ficuldades e potencialidades da dinâmica remota.
As práticas precisaram ser pensadas também para um tempo
em tela (TT) saudável, uma vez que ser exposto a interfaces tecnoló-
gicas em um período prolongado afeta o processo cognitivo, principal-
mente em crianças e adolescentes. Conforme Queiroz (2020, p. 3), “ris-
cos posturais e osteoarticulares são também verificados em associação
ao TT [...] são comuns também, as lesões de esforço repetitivo (LER),
as tenossinovites e tendinites e as cervicobraquialgias”. Ademais:

A emissão da luz azul pelas telas de celulares, smartfo-


nes, tablets e computadores pode provocar fototoxicida-
de, como, por exemplo, síndrome do olho seco (SOS) [...]
No Brasil, alguns especialistas cunharam o termo “autismo
virtual” para explicar um conjunto de sintomas apresen-

222
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tados pelas crianças e adolescentes e que se aproximam


dos quadros do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA)
[...] O médico ressalta que estudos já comprovam que é
o exagero no uso de telas que causa alterações comporta-
mentais e alterações no funcionamento do cérebro, poden-
do promover “aumento dos transtornos comportamentais,
transtorno de ansiedade, transtorno opositivo-desafiador,
déficit de atenção, transtornos de leitura, baixo rendi-
mento escolar” (CAMPOS, 2019, s/p), entre outros efeitos
(QUEIROZ, 2020, p. 5).

Outro aspecto importante a ser destacado durante o planejamen-


to das aulas se refere à possibilidade de intempéries que um sistema
de ensino remoto impõe, tais como: a falta de internet, a dificuldade
de uso das ferramentas, a ausência dessas e a não participação em voz
e em imagem por parte de estudantes, devido a diferentes fatores:

Essas grandes transformações provocadas na educação


pelo ensino remoto evidenciaram desigualdades que até
então, pareciam camufladas pelo acesso ao ensino de for-
ma presencial nas salas de aula. Alguns aspectos se torna-
ram ainda mais visíveis, como a desigualdade social, tec-
nológica e econômica. Na educação, a perda da interação
presencial e direta entre alunos e professores ressignifi-
cou a consciência social tão importante em meio escolar
(COSTA; NASCIMENTO, 2020, p. 2).

Desse modo, planejar as aulas tornou-se um processo engenhoso


quanto às variáveis que envolvem o ensino não presencial. Esse mo-
mento representou um misto de sensações que foi desde a da frus-
tração por objetivos não concretizados, a da esperança a partir de um
novo olhar sobre a prática docente e a da conquista ao ter os desafios
superados.

223
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Esse misto de sensações se intensificava com o fator espaço-tem-


po, modificado pelo isolamento social. Segundo Santos e Santos (2020),
transformações fazem parte do nosso dia a dia, contudo mudanças
oriundas de condições adversas como a pandemia, inimaginável até en-
tão, passaram a testar o processo de adaptabilidade do ser humano.
Para as autoras, o espaço-tempo foi ressignificado, o lar passou a ser
a escola e o trabalho, o que culminou na reorganização da rotina fa-
miliar. Ambiente muitas vezes não adequado para a realização das ati-
vidades docente e discente, conforme descrito por alguns estudantes,
e que por isso, justificavam a não abertura de câmera ou de áudio du-
rante as aulas.
O espaço-tempo precisou ser reconfigurado, de modo a contribuir
com as excessivas exigências do contexto em questão, particularmente,
foi possível estruturar melhor o tempo a partir de um planejamento
prévio, ainda que em alguns casos fossem realizados ajustes.
Com as aulas não foi diferente, organizar a temporalidade do cum-
primento das atividades de modo síncrono e assíncrono e dos momen-
tos de atendimento para tirar dúvidas foi fundamental, principalmente
na tentativa de transformar o processo de ensino e aprendizagem mais
significativo e interessante, além de torná-lo funcional e afetivo, a fim
de diminuir o distanciamento físico.
A necessidade do desenvolvimento assertivo de propostas peda-
gógicas para o ensino remoto e os diversos contextos discentes exigiu
de nós professores a elaboração de estratégias para a construção de ma-
teriais didáticos que atendessem às demandas em questão. Aos poucos,
estudando conceitos e recursos para o ensino não presencial; a apren-
dizagem com os acertos e com os equívocos asseguraram ser possível
desenvolver um processo de ensino e aprendizagem remoto autêntico
e significativo.
Dentre minhas principais preocupações, se destacou o desenvol-
vimento de propostas que contribuíssem para o enfrentamento do con-

224
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

texto pandêmico e de igual modo, pudessem contemplar as especifici-


dades dos atores da aprendizagem.
Ao observar o engajamento dos estudantes nas propostas, mes-
mo diante das dificuldades desse período, evidenciou-se a viabilização
de uma aprendizagem significativa, da possibilidade de manter-se mo-
tivado e aprendendo em contextos tão adversos, como o da pandemia.
Tal evidência promoveu maior tranquilidade e confiança no processo
de ensino e aprendizagem no período pandêmico.
O modelo remoto possibilitou a realização de algumas atividades
para além das fronteiras, com a participação de profissionais de outras
regiões do país e da América Latina, objetivando fomentar um diálogo
intercultural, tendo como centro temáticas promotoras de enfrenta-
mento à pandemia.
Esse processo de criação pedagógica para possibilidade educa-
tiva remota foi importante para o rompimento de preconceitos dian-
te do formato não presencial e para o enriquecimento de repertórios
de aprendizagem para os estudantes, como aponta Costa e Nascimento
(2020):

Cordeiro (2020) afirma que reaprender a ensinar e reapren-


der a aprender são desafios em meio ao isolamento social
na educação do país. De fato, a pandemia fez com que pro-
fissionais aprendessem a ministrarem suas aulas de for-
ma diferente das que eram realizadas presencialmente.
Os educadores tiveram que se reinventar para conseguir
dar aula à distância através do ensino remoto e os alu-
nos a vivenciarem novas formas de aprender, sem o con-
tato presencial e caloroso da figura do professor (COSTA;
NASCIMENTO, 2020, p. 1).

Portanto, o ensino remoto ampliou nosso escopo de possibili-


dades e de inovação, sobretudo, ao demonstrar o desenvolvimento
dos estudantes de forma motivada e autônoma, os quais se utilizaram

225
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

da criatividade para construírem suas próprias estratégias de aprendi-


zagem. Dessa forma, entendo ser possível um ensino remoto signifi-
cativo, afetivo e empático, apesar do distanciamento presencial e das
potencialidades decorrentes da modalidade presencial.

Educação mediada pelas tecnologias: entre o vislumbre do di-


gital e as amplitudes coloniais

A pandemia de covid-19 alçou a educação mediada pelas tecnolo-


gias como a melhor via, até então, para prosseguimento das atividades
educacionais, apesar da realidade desse modelo educacional não ser vi-
venciada da mesma maneira por todos os estudantes, muitos dos quais
apresentam uma realidade distante da apropriada para um processo
de aprendizagem satisfatório.
O uso das tecnologias na educação é uma discussão recorrente
dos anos 1980, que propôs a inserção das Tecnologias da Informação
e Comunicação (TICs) nas escolas. Assim, de acordo com Bruzzi (2016),

[…] estamos assistindo já há algumas décadas, o surgimen-


to de uma nova forma de organização econômica, social,
política, cultural e educacional que atualmente chama-
mos de sociedade da informação (SI), que comporta novas
maneiras de trabalhar, de comunicar-se, de relacionar-se,
de aprender, de pensar, em suma de VIVER e CONVIVER.
Somente na atualidade demos crédito das transformações
às tic, sendo que na verdade, as tic, há pelo menos três sé-
culos têm assumido uma dupla condição de causa e efeito
em nossas escolas, e se tornaram fatores determinantes
para a transformação da atual sociedade (BRUZZI, 2016, p.
479).

Esse modo de viver e constituir a vida deu-se com o surgimento


de uma nova ordem social com a internacionalização e a interdepen-
dência dos mercados, bases da atual globalização econômica, respon-

226
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

sáveis pelo intenso câmbio de informação e conhecimento e, por possi-


bilitar que a educação conseguisse romper limites e fronteiras através
das tecnologias, contribuindo com a democratização da aprendiza-
gem para aqueles que não tinham a oportunidade de realizar o estudo
presencial.
A educação mediada pelas tecnologias se consolidou e estabeleceu
processos de democratização do conhecimento. Porém, apesar de um
maior alcance educacional por meio dessa modalidade, necessitamos
discutir o fato de muitos estudantes e até professores se encontrarem
à margem do processo em sua plenitude.
De acordo com Bruzzi (2016), não basta a tecnologia, é preciso
que haja as condições necessárias para a aprendizagem mediada por ela,
ou seja, é imperativo pensarmos em todo o complexo que envolve o pro-
cesso de uso e aprendizagem através das tecnologias. Esses fatores são,
de forma geral, negligenciados e terminam por amplificar as desigual-
dades de uma sociedade marcada por suas sequelas históricas.
Com a pandemia de covid-19, essas iniquidades foram dilatadas.
Macedo (2021, p. 265) aponta as desigualdades digitais relativas a “cri-
térios de renda, além da articulação com marcadores sociais da dife-
rença, como raça, gênero e idade”. Tais desigualdades se apresentam
em dados estatísticos através da pesquisa TIC Domicílios1 de 2019 e elu-
cidam o abismo social do Brasil: cerca de 20 milhões de lares do país
não possuem acesso à internet; um a cada quatro brasileiros não usam
a internet, ademais a área rural e as classes D e E representam pouco
mais de 50% de domicílios com acesso. Macedo (2021) ainda salienta
as desigualdades em torno do aspecto de classe social:

Ao fazermos a intersecção com classe, apareciam desigual-


dades muito expressivas: enquanto nas classes econômi-

1 A TIC Domicílios é uma pesquisa realizada anualmente desde 2005 e tem como objetivo
fazer o mapeamento do acesso das residências urbanas e rurais do Brasil às tecnologias
de informação e comunicação – TIC, e contribuir para a análise da realidade de acesso e a
proposição de políticas de melhorias.

227
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

cas A e B a presença da internet beirava os 100% em 2019,


nas classes D e E, o acesso caía para 50%. Em relação à posse
de equipamentos, as desigualdades também eram grandes:
enquanto nas classes A e B a posse de computador era um
item frequente (95 e 85%, respectivamente), nas classes
D e E, a presença do computador caía para 14% (Centro
Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade
da Informação, 2019; Parreiras e Macedo, 2020) (MACEDO,
2021, p. 266).

Os dados revelam as dimensões da desigualdade no que se refere


à divergência de acesso à internet entre as classes sociais no país. Para
além da desigualdade exposta por classe, mais alarmante é a incidência
do abismo digital quando o aspecto é racial. Nesse sentido, consoan-
te a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua
(IBGE, 2020) que investigou no ano de 2018 a situação da Tecnologia
da Informação e Comunicação, revelou que somente “48% da popula-
ção indígena, 55% das pessoas pretas e 57% das pessoas pardas utili-
zaram computador pelo menos uma vez na vida, expondo as diferenças
de acesso à tecnologia no país” (FERREIRA, 2020, p. 14).
As constatações se intensificaram com a pandemia, principalmen-
te em âmbito escolar, que passou a ter sua total dependência nas tec-
nologias. Paralelo a isso, Ferreira (2020) ainda reflete sobre a distância
entre as escolas públicas e as escolas privadas quando menciona a pre-
paração tanto dessas últimas quanto a de seus estudantes em termos
de posse de equipamentos tecnológicos de qualidade, acesso à internet
e o uso constante desses recursos.
O preparo mencionado anteriormente por parte das institui-
ções privadas possibilitou a seus atores escolares maiores habilida-
des em seguir com as atividades em formato remoto, em detrimento
de poucas escolas públicas que lograram realizar esse feito com igual
agilidade (FERREIRA, 2020). Soma-se a isso o fato de que “dificilmente,
seus alunos (em sua maioria negra e pobre) contam com pacotes de da-

228
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

dos suficientes, computadores ou com o apoio pedagógico familiar”


(FERREIRA, 2020, p. 14).
Para a autora, essas disparidades diante da educação mediada
pelas tecnologias ilustram o apartheid digital, entendido por Bonilla
e Oliveira (2011, p. 24) como “as desigualdades quanto ao acesso
de grandes contingentes populacionais às Tecnologias da Informação
e Comunicação (TIC)”.
O apartheid digital não é um fenômeno isolado, uma vez que “não
afeta apenas as pessoas que estão nos pilares da exclusão socioeco-
nômica, mas também outros grupos, como os indivíduos portadores
de necessidades especiais” (COSTA, 2011, p. 111). Para o autor, as ex-
clusões se somam, isso porque “além de fatores como raça (WILSON
et al., 2003; CASTELLS, 2003), gênero e idade, é a questão da renda
(status social), que converge diretamente com o tempo de escolariza-
ção” (COSTA, 2011, p. 111).
O apartheid digital no Brasil se vê perpassado pelo racismo, o qual
segundo Ferreira (2020) coloca de modo majoritário a população negra
na exclusão tecnológica e, consequentemente, na exclusão socioeconô-
mica. De acordo com essa autora,

[...] para a população brasileira negra e pobre, essa situação


de exclusão não surge como fruto da atual crise sanitária
gerada pelo novo coronavírus. Considerando a historiogra-
fia da educação escolar brasileira percebe-se a constituição
de um sistema educacional excludente que se inicia des-
de o período colonial até o presente momento para aten-
der aos interesses econômicos (NUNES, 2014). O racismo
vem se reinventando e se atualizando para manter sempre
a estrutura social segmentada e organizada basicamente
em função da origem étnica, perpetuando desigualdades
educacionais e sociais no Brasil (FERREIRA, 2020, p. 15).

229
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Tal reinvenção do racismo procedente do histórico colonial


do país que estabeleceu a ordem social de cada indivíduo de acordo
com sua etnia, subjugou e subalternizou negros e indígenas, mostra,
apesar da temporalidade, as faces mais cruéis da desigualdade.
O abismo de acesso tecnológico resulta ainda em outro abismo,
relacionado ao letramento ou domínio digital. Conforme explicita
Macedo (2021), o letramento digital também é disforme em nosso país,
tendo em vista que nem todos os usuários possuem domínio dos recur-
sos tecnológicos para saber utilizá-los, principalmente ao atentarmos
para o fato de que

O texto eletrônico nos coloca diante de uma outra realida-


de textual que para ser construído precisa explorar as pos-
sibilidades renovadoras, como a intertextualidade, com os
hipertextos; a multissemiose, tais como palavras, ícones
animados, efeitos sonoros, diagramas e tabelas tridimen-
sionais; a não linearidade e a interatividade [...] Modifica-
se a forma como o texto é apresentado ao leitor, o que revela
uma revolução não só do suporte como da própria estrutu-
ra do texto. Estamos diante de uma outra cultura que exi-
ge diferentes habilidades: além do letramento, agora, para
escrever e ler em ambientes on-line, é necessário também
saber manipular o computador, o tablet, o smartphone,
os programas de acesso, os aplicativos, buscar e encontrar
as informações que deseja. O escritor/leitor se torna, antes
de tudo, um navegador (COUTO; OLIVEIRA; ANJOS, 2011,
p. 148).

Isso constitui uma problemática para a educação remota, dado


que esse letramento envolve a diversificação de usos e “relaciona-se
com diferenças ligadas à escolaridade, ao capital cultural, à idade,
ao tipo de inserção” (MACEDO, 2021, p. 266).

230
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Para Bruzzi (2016), o formato mediado pelas tecnologias requer


muito mais que a própria tecnologia:

É necessário ter passado por um processo formati-


vo, com apoio de profissionais dos mais diversos perfis,
e que sejam realmente especialistas com visão diferen-
ciada, uma visão transdiciplinar. Afinal se pensarmos
apenas em tecnologia, há 360 anos convivemos com ela
e nossas escolas não mudaram muito neste mesmo perí-
odo. Tanto uma escola, como um professor que queiram
com as TIC provocar mudanças, necessitam de um novo
perfil (BRUZZI, 2016, p. 479).

Ainda de acordo com Bruzzi (2016) a partir de Moraes (2010), esse


novo perfil precisa levar em consideração as multiplicidades de habili-
dades requeridas no âmbito digital.
Por isso, para se estabelecer um formato remoto satisfatório é in-
dispensável o domínio digital tanto de estudantes quanto de profes-
sores, consoante Bruzzi (2016), é preciso um privilégio cultural capaz
de compreender os instrumentos de conhecimento, por exemplo, ao re-
alizar uma pesquisa na internet.
Conforme sinaliza Ferreira (2020), a educação remota mantém
as desigualdades e potencializa o histórico colonial de exclusão socio-
cultural do povos negro e indígenas no país:

Não se trata apenas do não acesso às tecnologias de infor-


mação e comunicação, mas a um letramento digital insu-
ficiente, a atualização da negação dos direitos humanos,
da cidadania e da dinâmica de geração de novos direitos
para esta população. Ao apontar que as escolas e as secre-
tarias de educação vêm realizando esforços para ofertar
a educação remota em meio à pandemia, mas sem consi-
derar o consequente fortalecimento do apartheid digital,
que destacadamente incide sobre a população negra brasi-

231
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

leira, não afirmo que estas instituições criaram os proces-


sos excludentes, mas ratifico que estes são por elas repro-
duzidos (FERREIRA, 2020, p. 20).

À face do exposto, saliento o lado camuflado da modalidade re-


mota, o de desigualdade social, cultural e intelectual que subalterniza
estudantes e impõe, por vezes, o discurso de incapacidade cognitiva
e invalida seu processo de aprendizagem, ao esconder o incipiente pro-
cesso formativo do domínio digital, o qual excede o seu poder fazê-lo,
mediante histórico de silenciamento e exclusão dos povos minorizados
à participação nas dinâmicas sociais, culturais e educacionais privile-
giadas do país.

Experiências educacionais pandêmicas, ensino de língua es-


panhola e caminhos decoloniais

O cenário de ensino remoto representa um contexto de dualida-


de, por um lado, tem-se o reforço das desigualdades sociais e por ou-
tro, permite rumos inovadores para o processo educacional em direção
a possibilidades e potencialidades diversas de ensinar e aprender.
Durante a pandemia, atuei na educação profissional com turmas
do ensino médio e do ensino superior, nas quais as aulas ocorriam
na modalidade síncrona e assíncrona.
A princípio, foi necessário estabelecer com os estudantes
uma maior dialogicidade, objetivando a compreensão das disponibili-
dades e dificuldades concernentes a aspectos como espaço-tempo, fer-
ramentas e expectativas sobre a aprendizagem de espanhol em moda-
lidade remota, para então desenvolver um trabalho de maior dimensão,
como a elaboração de um projeto. Essa dinâmica foi fundamental para
toda a trajetória educacional no período pandêmico, pois alicerçou
a relação entre professor e estudantes e entre o próprio grupo discente,
assim como fortaleceu o processo de ensino e aprendizagem.

232
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

De acordo com Có, Amorim e Finardi (2020), com a pandemia,


nós, professores, precisamos (re)pensar as aulas de modo a constituir
formas outras de ensinar e aprender, em que penso ser imprescindível
contemplar a criatividade, a empatia e a busca por caminhos decolo-
niais, como formas de enfrentamento às lógicas e discursos que silen-
ciam vozes e vidas, assim como instituem e reforçam as desigualdades
sociais.
A busca por um ensino que considere a decolonialidade reside
no fato da escola, o currículo e a educação se fundarem sob a racionali-
dade colonial, conforme aponta Baptista (2019):

Contemporaneamente, a perspectiva colonial de conheci-


mento, caracterizada por uma relação hierarquizada de sa-
beres e de produção de conhecimento, que passou a assina-
lar, de forma binária, saberes de ordem superior e inferior,
respectivamente, dominantes e subordinados ou subalter-
nizados, se vê confrontada como perspectiva única e legí-
tima de conhecimento, sobretudo por meio de uma crítica
do processo histórico de silenciamento e de violência epis-
têmica erigido na modernidade/colonialidade e consolida-
do a partir do colonialismo (BAPTISTA, 2019, p. 125).

Assim, as marcas coloniais se veem refletidas em todo o teci-


do educacional, em diversos aspectos e nas mais variadas formas.
Portanto, a construção de caminhos decoloniais podem viabilizar pro-
cessos de compreensão e enfrentamento de discursos e práticas colo-
niais e possibilitar a concepção de modos outros de viver e ser.
As experiências apresentadas a seguir são referentes à proposta
do Projeto Podcast, realizado com estudantes do ensino médio de di-
ferentes cursos profissionais. A atividade visava a construção de pod-
casts através da investigação de informações e da troca de perspectivas
e experiências. O Projeto previu também a produção artística das ca-
pas dos programas de rádio. Para tanto, foram desenvolvidas etapas

233
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de compreensão da ferramenta e o seu funcionamento, organização


dos grupos e escolha do tema. Em seguida, os estudantes começaram
o processo de investigação do tema e discussão sobre os conteúdos,
logo após, a construção da representação gráfica do arquivo de áudio
(as capas), a gravação do programa e, por fim, a apresentação do conte-
údo e as discussões.
Os podcasts tiveram temáticas distintas, dentre as quais a crise
migratória na Europa, a batalha de Acosta Ñu e a defesa da produção
científica brasileira. Todas as gravações e discussões foram realizadas
em língua espanhola, assim como o relatório da experiência deles.
Os estudantes se debruçaram para construir os podcasts tanto
nas suas investigações quanto na elaboração do arquivo de áudio. Cada
grupo armazenou sua gravação em uma plataforma por eles escolhida.
A atividade se mostrou desafiadora por vários fatores: por ser pro-
posta pela primeira vez, pelo desconhecimento de muitos estudantes
do formato e pela necessidade total de recursos tecnológicos. Em di-
versos relatos, os estudantes exprimiam esse desafio, por ser algo di-
ferente de experiências anteriores, ao mesmo tempo que explicitavam
a oportunidade de acesso ao podcast, que, para eles, era um recurso
inovador, e, a partir de então, parte do seu repertório de aprendizagem.
Vale salientar a importância dessa reflexão, quando atentamos para
as discussões anteriores sobre o abismo e o letramento digital, ao tra-
tarmos principalmente de uma instituição pública.
De acordo com Freire (2015), em sua investigação, a maioria
dos receptores dos podcasts fazem parte da camada privilegiada da so-
ciedade brasileira e possuem grau de instrução elevado. Portanto, a uti-
lização do programa de áudio como ferramenta educacional em uma
escola pública é, de certo modo, um rompimento com essa realidade
excludente, à medida que possibilita o acesso a outros letramentos di-
gitais e se utiliza de um recurso fortemente capitalista e hegemônico
para viabilizar processos decoloniais.

234
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Para uma estudante, foi importante deixar o tema livre, pois se-
gundo ela, isso permitiu uma visão ampla das perspectivas da turma.
Ela ainda indicou a relevância de tratar os fatos históricos, questioná-
-los e investigar o que há por trás deles.
Nesse contexto, foi perceptível ainda a compreensão das iniquida-
des e das desigualdades herdadas e amplificadas no nosso país, que se
dá através da compreensão da história e de suas narrativas, conforme
o constatado nas discussões em torno da Batalla de Acosta Ñu apresen-
tada por um dos grupos. Em termos gerais, a batalha designou um con-
flito armado entre Brasil, Argentina e Uruguai, formando a Tríplice
Aliança contra o Paraguai ocorrida no ano de 1869, após o exército pa-
raguaio atacar o Brasil e invadir o estado de Mato Grosso. Na batalha,
o exército paraguaio era formado por mais de três mil crianças e ado-
lescentes, razão pela qual o embate também é conhecido como Batalla
de Los Niños, já que resultou na morte de todos os infantes.
Por meio das investigações, o grupo dos estudantes relatou a par-
ticipação expressiva de crianças negras colocadas à frente do mas-
sacre assim como a presença massiva de adultos negros e indígenas
na Guerra do Paraguai. Mediante tais fatos iniciou-se uma discussão
sobre os enredos ocultos da eleição e do massacre desses povos. Assim,
reflito acerca da necessidade de se inquirir a história e suas narrativas
conforme aponta Belinga (2020):

Uma descolonização das humanidades, de uma insurrei-


ção intelectual face à autoridade de preconceitos invasivos
e onipotentes. O desafio é contribuir para uma renovação
do modo de dizer sobre os subjugados de ontem, sobre
o mundo (BELINGA, 2020, p. 1047).

Em se tratando da história de um país como o Brasil, é fundamen-


tal esse tipo de insurreição e de renovação dos dizeres sobre os subjuga-
dos, considerando que as narrativas constituintes da história do nosso
país vieram majoritariamente de vozes hegemônicas. Com isso, temos

235
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

os dizeres sob ótica dos colonizadores, sem que as vidas negras e indí-
genas, pudessem narrar sua própria história. Portanto, estamos diante
de uma indispensável reivindicação reflexiva sobre as narrativas que se
configuraram como verdades absolutas.
Nessa mesma direção, entendo ser esse o movimento realizado
pelos estudantes tendo em vista à descolonização do saber, do conhe-
cimento histórico que chegou até nós, cujo processo,

[...] começa, inevitavelmente, pelo reconhecimento de que


todo ser humano é produtor de cultura, que todos os gru-
pos humanos possuem seus códigos, símbolos e valores
e que devem ter acesso de forma equânime aos meios
de comunicação do conhecimento e isso inclui a escola e o
conteúdo curricular (SILVA, 2021, p. 204).

Trata-se, então, de reconhecer que vidas e narrativas foram ne-


gligenciadas propositalmente e de reconhecer que essas vidas produzi-
ram culturas, no sentido mais amplo de seu significado, as quais foram
deslegitimadas pela contação colonial.
Para outra estudante, antes de iniciar o projeto, ela pensava
ser algo engenhoso e que precisaria de muito investimento, contudo,
ao longo do processo, foi possível constatar ser de menor complexida-
de. Além disso, ela relatou ter aprendido mais sobre a América Latina,
seus fatos históricos e políticos e, dessa forma, conseguiu compartilhar
experiências, de modo que pudesse refletir e evoluir como ser humano.
Nesse ponto, observamos o relato de um processo de aprendi-
zagem significativo, entrando em contradição com as representações
em torno do ensino mediado pelas tecnologias, no que se refere às dú-
vidas sobre a aprendizagem remota. Desse modo, saliento a

Necessidade de alerta de que seja assumida uma postura


crítica diante das tecnologias, visto que estão amplamente
articuladas ao capital global e, particularmente, têm sido

236
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

inseridas de modo cada vez mais imperioso no sistema


educacional (FRANÇA, 2021, p. 211).

Assim sendo, entendi que nós, professores, precisamos viabilizar


momentos de reflexão sobre o uso das tecnologias para fins educa-
cionais, permitindo que o próprio estudante aponte, revise e discuta
a importância, os entraves e potencialidades desse uso para seu próprio
desenvolvimento.
Outros estudantes elucidaram os desafios envolvendo a utilização
de novos recursos de compartilhamento de conhecimentos, atentando
para o fato de o contexto escolar ser ainda muito tradicional e apre-
sentar certa resistência em romper com a linearidade das suas práticas.
As dificuldades dos estudantes evidenciam como as tecnologias
ainda são restritamente utilizadas na educação presencial pública,
marcada historicamente pela lógica capitalista e colonial, que contri-
buem com o processo de exclusão social e distanciamento das dinâmi-
cas e produções privilegiadas da sociedade.
O limitado uso de recursos tecnológicos nas escolas públicas
se dá por diferentes fatores, tais como a falta desses, o sucateamento
de materiais, problemas de gestão, ausência e ou fragilidade de políti-
cas de atualização tecnológica para professores, insegurança docente
em manejar as tecnologias em sala de aula, dentre outros. Apesar des-
se complexo cenário, essas debilidades também revelam a necessidade
da realização de movimentos para incrementar o uso de ferramentas
e recursos tecnológicos no cotidiano educacional público, em ato de re-
sistência, tendo em vista que a partir da pandemia, e, por conseguinte,
a dependência e o protagonismo de uma educação não presencial, re-
mota e/ou híbrida, passamos a estar “envolvidos em novos letramen-
tos, novas práticas, novos meios de construir conhecimento e de es-
tabelecer comunicação e, por que não, de fazer acontecer a educação”
(CANI et al., 2020, p. 30).

237
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Como professores, é fundamental que através da nossa práxis


pedagógica viabilizemos formas outras de aprender, muitas das quais
estão ainda em esferas muito privilegiadas. Assim, conforme aponta
Souza (2016), o podcast serve para romper a padronização do processo
de construção do saber,

[...] colocando diferentes formas de se construir o pen-


samento, construção coletiva de pauta, debate de ideias
e respeito à diversidade de pensamento. Distanciamos
da ideia de classificação, pois entendemos os espaços vir-
tuais e produção de conteúdo, no nosso caso o podcast,
como meios potenciais de quebra de paradigmas (SOUZA,
2016, p. 71).

Diante disso, é possível observarmos usos da linguagem a par-


tir do digital e de seus recursos como contextos ainda excludentes,
o que faz repensar “o papel das práticas de linguagem e sua relação
com os sujeitos, inserindo-os no contexto da colonialidade do poder”
(BAPTISTA, 2019, p. 129).
Discussões como essas no espaço escolar podem contribuir para
a compreensão desses usos como (re)produtores da colonialidade
da linguagem, como menciona Baptista (2019) e possibilitar seu en-
frentamento. Nesse âmbito, o podcast configurou-se como propos-
ta de reflexão das dimensões exercidas pela colonialidade presentes
no cotidiano educacional, ao contribuir para a revisitação de narrativas
e a construção coletiva, possibilitando um processo de aprendizagem
significativo, crítico e engajado.

Caminhos (in)conclusos

A realidade do formato remoto veio como uma avalanche tanto


para nós, professores, como para os estudantes e mostrou-se desa-
fiadora, por um lado, e, por outro, potencializadora. (Re)pensar a sala
de aula completamente mediada pelas tecnologias era até então im-

238
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

pensado, mas aos poucos se revelou uma realidade possível, principal-


mente no que se refere à promoção de acesso às ferramentas e conhe-
cimentos privilegiados, em busca de movimentos de ruptura com as
lógicas coloniais herdadas.
Como indica Baptista (2019, p. 126) essas práticas “têm nos ser-
vido para desalojar certos lugares teóricos, em busca de uma compre-
ensão outra das diversas realidades educacionais em que nos movemos
e com a quais nos deparamos cotidianamente”, as quais “nos desafiam
a considerar a colonialidade da linguagem como uma dimensão da co-
lonialidade do poder” (BAPTISTA, 2019, p. 126).
Conforme já discutido anteriormente, a proposta de podcast con-
tribuiu para a criação de possibilidades outras de ensinar e aprender
ao permitir o estabelecimento de movimentos decoloniais em torno
a diferentes problemáticas e aspectos do processo de ensinar e aprender.
De acordo com Souza (2016, p.71), “o podcast toma o senti-
do de instrumento educacional para além do conhecimento previsto
no currículo”, o que permite diálogos com práticas de letramento di-
gital e conhecimentos que se produzem no ambiente digital; ademais,
contribui para a construção coletiva.
Dessa maneira, evidencia-se a necessidade de (des)constru-
ções sobre o ensino de língua(gem) e caminhos outros para o ensino
e aprendizagem que viabilizem a superação de paradigmas, promovam
a inclusão e fomentem as práticas de linguagem como práticas sociais.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

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241
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

REFLEXÕES SOBRE UM MATERIAL DIDÁTICO


PARA ALUNOS LGBTQIA+ ELABORADO A
PARTIR DE UMA POSIÇÃO DECOLONIAL

Jorge Rodrigues de Souza Júnior (IFSP)

Introdução

Neste trabalho discuto a elaboração de um material didático es-


pecialmente pensado para utilização em um curso de línguas estran-
geiras oferecido gratuitamente à população LGBTQIA+1, além de ou-
tros grupos sociais minorizados, por uma ONG na cidade de São Paulo.
É importante contextualizar o lugar e o público, dado que para esse
trabalho buscou-se dar protagonismo aos saberes e às realidades desse
público. E, desse modo, deslocar saberes e sentidos fortemente vincu-
lados às posições hegemônicas de matriz eurocêntrica, e as legitima-
ções de determinadas identidades (e o silenciamento de outras), comu-
mente realizadas em materiais didáticos de língua estrangeira.
A constatação de posições hegemônicas altamente vinculadas
ao mercado e à legitimação e naturalização de determinadas identida-
des em temas e práticas de livros didáticos de língua estrangeira é re-
alizada com base em trabalhos anteriores em que discuti essa questão
1 A sigla designa várias identidades sexuais: lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, traves-
tis, queer, intersexuais e assexuados. O sinal + indica outras identidades não abarcadas
nesses grupos, mas também representativas.

242
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

(SOUZA JUNIOR, 2010, 2016). Em Souza Junior (2010), analisou-se,


a partir do marco teórico da Análise do Discurso Materialista, duas
coleções de materiais didáticos de ensino de espanhol para brasilei-
ros, elaborados para utilização em contextos formais de aprendizagem
dessa língua. Constatou-se, a partir de sua estruturação e seu funcio-
namento discursivos, o apagamento da relação que se poderia estabe-
lecer entre os diferentes temas apresentados pelas unidades didáticas
como culturais e a materialidade linguístico-discursiva dos enunciados
nessas unidades (os referentes às atividades de compreensão e produ-
ção escrita e às de compreensão e de produção oral). A análise permi-
tiu mostrar que a formulação e a disposição de saberes nas unidades
didáticas constituíam um determinado efeito de sentido2, presente
com alguma frequência em materiais didáticos de ensino de línguas:
ao modo de uma “colagem”, operava neles uma sobreposição de dife-
rentes discursos que não convocavam à interpretação, dado que tais
atividades eram propostas apenas para o trabalho com aspectos gra-
maticais da língua estudada (ou, quando muito, a uma interpretação
apenas da materialidade linguística dos enunciados, dos aspectos for-
mais da língua).
Em Souza Junior (2016), centrando-se numa reflexão que ti-
nha como propósito alçar cultura como objeto discursivo, debateu-se
como os temas culturais eram tratados em materiais didáticos. Nesse
trabalho, constatou-se um silenciamento das condições de produção

2 A Análise do Discurso Materialista propõe a noção de “efeito de sentidos entre interlocu-


tores” para discutir que o sentido não está atrelado ao significante, mas sim é fruto da ide-
ologia que, em atuação em determinada formação discursiva, produzirá o efeito de evidên-
cia como se determinado sentido fosse compreendido por todos (e como se não houvesse
outros sentidos possíveis). É na relação entre as condições de produção e a materialidade
linguística que se analisam os efeitos de sentidos possíveis num determinado enunciado, e
quais sentido são excluídos na relação estabelecida com o interlocutor (ou interlocutores
previstos, como é o caso do material didático). É nesse lugar que ocorre o contato entre a
língua e a ideologia, sendo a materialidade da ideologia o discurso e a materialidade do
discurso a língua.

243
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

dos discursos aí “citados”3, sob o efeito de um silenciamento da hetero-


geneidade de hábitos e de modos de consumo – esses fortemente vin-
culados – das sociedades e dos sujeitos que poderiam ali ser represen-
tados; de outro modo, lugares e sentidos denominados como culturais
eram vinculados a estereótipos, como os referentes a etnias, a grupos
sociais e a nacionalidades, por exemplo, apresentados sob um efeito
de evidência, como se fossem universais. Esse funcionamento discur-
sivo produz, como efeito de sentido, uma legitimação e naturalização
de certos hábitos e práticas sociais (geralmente vinculados a grupos
hegemônicos), o que produz uma universalização, como se fossem
de todos, e não específico e restrito a certas classes sociais (SOUZA
JUNIOR, 2016); certificou-se, também, que tal funcionamento constrói
“evidências que produzem a neutralização de conflitos – sociais, étni-
cos, políticos, dentre os principais” (SOUZA JUNIOR, 2016, p. 16).
Tais hábitos e práticas sociais eram geralmente associados à cul-
tura, ou aos “apartados culturales”, geralmente presentes em mate-
riais didáticos. Em tal funcionamento discursivo, “a cultura” associada
à língua é produzida “mercadologicamente”, pela produção de totali-
zações – “ao modo de uma metonímia [...] – que a apresentam como
um produto, como algo dado e fechado, desde um lugar que a relaciona
a processos de consumo” (SOUZA JUNIOR, 2016, p.16) fortemente vin-
culados a saberes hegemônicos de matriz eurocêntrica. A partir da legi-
timação desses saberes, as práticas de ensino propostas que remetiam
cultura a consumo não passavam pela materialidade linguístico-discur-
siva da língua, pois cultura era apresentada e representada sem relação
com aquela, de forma isolada: “’a cultura’ funcionava como um lugar
outro da língua” (SOUZA JUNIOR, 2016, p. 17).
A partir de pesquisas sobre materiais didáticos e de trabalhos
que discutem esse funcionamento discursivo específico que realiza

3 Faço menção, aqui, ao efeito de colagem de enunciados de vários autores, textualizados


nesses materiais, sem menção aos lugares de autoria, às condições de produção desses
enunciados e ao legado histórico das produções discursivas textualizadas – reunidos ape-
nas sob o efeito do tema comunicativo.

244
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

uma dicotomia entre língua e cultura, em um curso de espanhol ofe-


recido gratuitamente ao público LGBTQIA+ da cidade e região metro-
politana de São Paulo, buscamos elaborar um material que não repro-
duzisse tal dicotomia. Ou seja, desde meu lugar de professor, e também
de pesquisador, em conjunto com outros professores voluntários, pen-
samos em um material que inserisse diversos temas da realidade desse
público, cuja abordagem discursivo-cultural da língua espanhola pu-
desse realizar o espaço da diferença entre as línguas e a consequente
identificação com essa língua estrangeira a ser aprendida, além de des-
locar essas práticas comuns em materiais didáticos altamente vincula-
das com uma matriz eurocêntrica de saberes e sentidos. Nesse trabalho
com a diferença, constato a importância de destacar e problematizar
a cultura da língua estrangeira enquanto objeto discursivo, produzido
historicamente, e da impossibilidade de realização de uma dicotomia
entre língua e cultura. Dessa forma, penso como necessária a reflexão
sobre os sentidos presentes no termo cultura, sua presença e circu-
lação em práticas de ensino de línguas e o efeito discursivo de apre-
sentá-la desde lugares que a considerem como algo fechado e estere-
otipado. Tal reflexão estará pautada a partir de autores dos Estudos
Culturais, dos Estudos Decoloniais e, também, da Análise do Discurso
Materialista4.

Saberes e corpos LGBTQIA+–deslocamentos decoloniais


em ensino de língua espanhola

Como já citado, o material que aqui discutirei foi elaborado para


utilização em um curso de línguas estrangeiras oferecido gratuitamen-
te à população LGBTQIA+, além de outros grupos sociais minoriza-
dos, com prioridade de matrícula para travestis, transexuais e negros,
em uma ONG na cidade de São Paulo. Com alunas e alunos de diversas

4 Ademais do fato de estarmos vinculados teoricamente à AD Materialista, tal teoria, em seu


imbricamento com a Linguística, as Ciências Sociais e a Psicanálise, propicia e possibilita
colocar em relação a reflexão sobre cultura realizada nos Estudos Culturais e nos Estudos
Decoloniais, como as relacionadas a sujeito, língua e cultura.

245
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

regiões da Grande São Paulo, antes da pandemia os cursos eram ofere-


cidos gratuitamente no período noturno durante a semana e aos sába-
dos à tarde, para dois níveis (Básico 1 e Básico 2). Com grande procura,
os cursos sofriam algumas limitações, como o espaço disponível para
as aulas e o número de professores voluntários. O material do curso e o
de papelaria eram fornecidos gratuitamente aos alunos.
Para a elaboração do material, uma equipe reuniu-se especi-
ficamente para essa finalidade, coordenada pelo autor deste texto.
Entretanto, é digno de destaque que o que se discutirá aqui é mais
o que Orlandi (2008) denomina de função-autor5 desse material do que
o trabalho de autoria de um sujeito (como o autor deste trabalho),
ou de um grupo de sujeitos (como os demais professores envolvidos)
em específico.
Vale ressaltar que, aqui, mobilizo um gesto de interpretação, con-
forme a Análise do Discurso Materialista o considera: diferentes ma-
terialidades significam de modo distinto nos sujeitos, o que confere
à significação das palavras como resultado das condições de produção
discursivas e das formações discursivas em funcionamento, que deter-
minam os sentidos que se interpretam em tal gesto. Assim, cada gesto
se ajusta à materialidade analisada, o que ressignifica, segundo Orlandi
(2013), os instrumentos teóricos mobilizados e o batimento entre des-
crição/interpretação, ao invés de adotar uma metodologia única e pré-

5 A organização textual, que tem como resultado a aparente unidade do texto, é produzida
sob o efeito de um trabalho de autoria que confere, a uma dispersão de sentidos que re-
metem a diferentes posições e à dispersão de diversos discursos produzidos alhures, a um
efeito de unidade realizado por um trabalho de organização denominado por Orlandi (2008,
p.54) de função-autor. A partir da AD materialista, relativiza-se a função da intenção do
sujeito e questiona-se sua autonomia através da busca dos mecanismos discursivos que, em
sua relação com a ideologia, produzem tal autonomia (ORLANDI, 2008, p. 69-70). A Análise
do Discurso Materialista considera que o lugar de onde o sujeito fala como enunciador (a
função-autor de todo enunciado) funciona como regulador de sentidos, ao promover a apa-
rente unidade que a estrutura de um texto convoca, a unidade como efeito imaginário de
uma dispersão de discursos e sentidos produzidos ao longo da história. Por esse paradigma,
seria material de interpretação e de análise, por parte do analista do discurso, “o processo
de produção das evidências” (cf. ORLANDI, 2004, p. 44) dos sentidos, e não especificamente
as evidências em si mesmas, enquanto materialidade – mas o que dá base a elas e de quais
lugares são produzidas.

246
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

via para todos os corpora de análise. Dessa forma, mesmo deixando


como objetivo que o que se analisa é a função-autor desse material,
não há como desconsiderar que, pelo fato de eu estar envolvido em sua
elaboração e de ser seu usuário na sala de aula, a discussão aqui em-
preendida estará afetada a partir dessa posição, ciente de que outros
sujeitos mobilizariam outros gestos de interpretação a partir de outras
questões que aqui não se colocam.
Caracteriza-se essa função-autor por uma resistência decolonial
dado que reivindica conceitos de identidade, de alteridade e de sexua-
lidade que vão de encontro a uma matriz eurocêntrica imposta por pa-
drões culturais tomados como universais, pensado pelo viés da diver-
sidade, em relação a diversos temas sociais e políticos, através de um
deslocamento em relação ao que é considerado cultura e à presença
dos sentidos relacionados a esse termo numa aula de língua estrangei-
ra, especificamente a espanhola.
Antes de tratar do recorte que selecionei para este trabalho, cabe
mencionar que o gesto de autoria desse material didático pode ser con-
siderado aderente à Abordagem Comunicativa, dado que cria situações
comunicativas com o propósito didático de utilização em sala de aula.
Entretanto, o giro colonial aqui adotado, os temas suleares em relação
a saberes e modos de vida (KLEIMAN, 2013) que se vinculam às epis-
temologias do sul (SANTOS; MENESES, 2010), vão contra os métodos
da Abordagem Comunicativa. Também se verá, na análise do material,
que os temas nele abordados se aliam à discussão que KLEIMAN (2010)
define como letramentos não-escolares (ou letramentos locais), a par-
tir da legitimação de saberes e modos de vida dos sujeitos-aprendizes
de nossos cursos6.
Dado o recorte e a extensão deste artigo, selecionei algumas
atividades propostas em diferentes unidades do curso de Espanhol –

6 Ressalto a adaptação dos termos tratados por KLEIMAN (2010), dado que o trabalho da
autora se ocupa de temas escolares e da aquisição da escrita em contexto formal de apren-
dizagem.

247
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Básico 1 para esta discussão. Nesse gesto de interpretação aqui mo-


bilizado, estão em seu cerne reflexões tomadas dos Estudos Culturais
e Decoloniais e da Análise do Discurso Materialista7.
Como premissa, adotamos que o material deveria promover
uma interlocução com o perfil esperado do aluno de nossos cursos.
Isso requeria abolir, numa postura contra-hegemônica, associações
simplistas de formas de vida sem problematizações, por vinculações
às formas estereotipadas de profissões e de identidades reguladas pelo
consumo (cf. SOUZA JUNIOR, 2016).
Adotando o conceito que Santos e Meneses mobilizam como
ecologia de saberes8 (2010), numa contraepistemologia que dá prota-
gonismo a povos e visões de mundo do lado de cá do globo e que dá
“consistência epistemológica ao pensamento pluralista e propositi-
vo” (idem, p. 56), produzimos, nesse curso, um gesto de intervenção
a partir de uma memória sobre o ensino de línguas (não reproduzindo
as práticas que mencionei na Introdução deste trabalho) e de nossa
experiência docente. Ao mesmo tempo, articulando tal conceito com o
de pensamento fronteiriço (MIGNOLO, 2003), produzimos uma interlo-
cução com os nossos alunos, desde sua realidade, ocupada de modo pe-

7 Cabe considerar que o trabalho aqui realizado é um recorte pautado por um gesto de in-
terpretação realizado à luz de discussões propostas por autores dos Estudos Culturais,
Decoloniais e Discursivos, e que caberia analisar, em outro momento, os temas aqui mobi-
lizados a partir do enfoque teórico da Teoria Queer, não contemplado neste trabalho.
8 Aqui articulo esse conceito com o que Mignolo (2003) denomina de pensamento fronteiri-
ço. E o trago aqui pois o considero como produtivo, dada a impossibilidade de desarticular
saberes já cristalizados historicamente, numa memória discursiva que estrutura e dá base
aos diversos sentidos (PÊCHEUX, 1999), uma memória tomada pelo senso comum como
uma memória social. Assim, um método de reflexão que colocasse em relação, em terri-
torialidades que passaram por processos de colonização, a relação entre os conhecimen-
tos globais e os conhecimentos locais, necessário para refletir sobre os processos sociais e
históricos na América Latina. Para Mignolo (2003), são os conhecimentos globais aqueles
articulados desde o Norte, atravessados pela diferença imperial (a diferença entre os im-
périos hegemônicos e aqueles que entraram em decadência, como Portugal e Espanha) e
historicamente legitimados sob o imaginário da civilização ocidental, impossíveis de serem
silenciados, pois são legitimados institucionalmente pelo Estado e por demais instituições
(como a academia e o Judiciário). Os conhecimentos locais são historicamente silenciados e
atravessados pela diferença colonial (entre colonizador e colonizado), ademais de afetados
pela diferença imperial.

248
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

riférico em diversos contextos (não somente geográfico, mas também


econômico, social e sexual). Periferias cujos conhecimentos locais estão
atravessados por conhecimentos globais (MIGNOLO, 2003).
Deste modo, é muito representativo uma atividade realizada
a partir de um mosaico de imagens de diferentes personalidades, (ne-
gras, idosas, transsexuais, travestis e drag queens), de atuações diversas
(cantores, ativista social, cineasta, atores) e de diferentes nacionalida-
des, inclusive brasileiros. O intuito dessa atividade era o de introduzir
o tema da descrição física, numa unidade cujos temas eram a descrição
física e a de personalidade, além dos verbos de afeição. Assim pauta-
mos essa unidade pela diversidade de diversos tipos: sexuais, raciais,
de gênero, etária; e, também, demos protagonismo a corpos poucos
presentes nos materiais didáticos, principalmente o corpo negro e o
de diversas identidades LBGTQIA+, esse último representado, na ativi-
dade, por transexuais, travestis e drag queens.
Observou-se, no desenvolvimento dessa atividade, um certo es-
tranhamento por parte dos sujeitos-aprendizes: estavam deslocados
os sentidos que comumente abarcam essa temática, que remetem
a corpos padronizados fisicamente, a partir de padrões de beleza física
tomados de referências vinculadas ao mercado, à heteronormativida-
de e à vinculação de identidades a determinadas formas de consumo.
Tal vinculação e padronização, realizados por modos de estabilização
instalados pela colonialidade do poder9 (QUIJANO, 2000), que ocorreram
por efeito de um forte gesto de controle dessas identidades por parte
do poder econômico, realizado através de diversos processos determi-
nados pela globalização – que se dá a partir dos anos 90 –, produziu

9 A formulação de Quijano (2000) sobre a colonialidade do poder contempla três conjun-


tos de categorias: o de raça, trabalho e gênero/sexualidade; o de exploração, dominação e
conflito no mundo moderno/colonial; e o último, composto pelo trabalho, gênero/sexuali-
dade, a autoridade e a subjetividade na economia capitalista. Todos esses conjuntos foram
determinantes na constituição de um trabalho de homogeneização e de regularização ao
impor um padrão tomado do modelo civilizatório europeu, sendo que tal modelo também
se reafirmou nesse processo numa relação de alteridade com as categorias que existiam nos
espaços que passaram por colonização.

249
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

identidades e modos de vida associados às formas de consumo: cor-


pos caucasianos, magros ou de estética esportiva; roupas que remetem
ao ambiente corporativo e/ou empresarial ou ao ambiente da moda co-
mercial; homens e mulheres vestidos conforme o que se espera dos pa-
drões cisgêneros estipulados pela sociedade, com pouca diversidade
ou representatividade.
Assim, apresentar um corpo marcadamente deslocado dos sen-
tidos historicamente vinculados aos padrões de masculinidade ou de
feminilidade impostos aos sujeitos, como modelos para descrição física
em uma atividade de língua estrangeira, promove uma ecologia de sabe-
res que decolonializa identidades vinculadas a padrões pautados pelo
que Mignolo (2003) denomina de conhecimentos globais. Tal desloca-
mento se dá pela apresentação não somente visual de corpos histori-
camente deslocados, mas também de sentidos que se vinculam a de-
terminado vocabulário, que também funcionam discursivamente como
marcas de identidade (especialmente aqueles que denominam a cor
da pele, a forma e a textura do cabelo, a forma física, os acessórios
de beleza).
Se vincula a diversidade de termos e de formas de vida específi-
cas, também, a relações de alteridade em jogo entre os sujeitos aborda-
dos no material e os sujeitos-aprendizes. Tais relações têm mais a ver
com o movimento de cultura como modo de vida característico10, con-
forme Eagleton (2011) o define, porém contraditório e sem laço com o
10 Consolidado o processo de formação dos estados nacionais europeus, e o fortalecimento
das rotas exploratórias de territórios colonizados pela Europa, cultura como modo de vida
característico, para Eagleton, emerge de uma série de sentidos que desassociam cultura do
modelo de civilização dos Estados nacionais europeus. Esse modelo, que universalizava ou
naturalizava modos de vida específicos a partir de grupos hegemônicos, abre para sentidos
que remetem a “uma diversidade de formas de vida específicas, cada uma com suas leis
evolutivas próprias e peculiares” (Von Herder (1968) apud EAGLETON, 2011, p. 23). Isso
instaura uma série de sentidos no funcionamento da memória discursiva de cultura, o que
propiciará, no futuro, sustentação a movimentos de valorização de formas de vida especí-
ficas no século XX, tais como o feminismo, os ativismos negro e gay. Entretanto, como os
sentidos apenas possuem uma estabilidade imaginária, sendo contraditórios em sua rela-
ção com a história, o termo cultura se ressignifica após a exaustão do termo na sua relação
metonímica com modo de vida característico (exaustão essa que levou a uma noção muito
próxima de comunitarismo, conforme Bauman (2012).

250
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

comunitarismo11 a que Bauman (2012) faz referência, pois na atividade


está deslocado o processo mencionado por esse último que recupera
e valoriza uma identidade e que, ao mesmo tempo, produz um fecha-
mento. Nela, a identidade e a alteridade desses sujeitos cuja cultura
se manifesta como modo de vida característico (e por que não dizer, es-
pecífico), ali representados, são ressignificados a partir da diversidade
apresentada no material (como conjunto) e no batimento entre a iden-
tificação de si por parte dos alunos e a do outro ali presente (também
materializado) na unidade didática.
No quadro a seguir, trago para discussão um diálogo, elabora-
do especialmente para o material e proposto não apenas como leitu-
ra, mas também para audição (uma gravação da leitura desse diálogo
acompanhava a sua transcrição), na mesma unidade referente à descri-
ção física e de personalidade. Nele, dois personagens comentam sobre
um terceiro personagem que desperta, em um deles, uma atração física.

Quadro 1 – Diálogo entre dois homens

4. Escucha y lee el siguiente diálogo.


Antonio y Pablo están esperando a Juan delante del cine:
Antonio: – Pablo, ¿ya le enviaste un mensaje a Juan preguntándole dó-
nde está?
Pablo: – Sí, pero no me contesta. No sé lo que le ha pasado.
Antonio: – Mientras tanto, aprovechemos para mirar alrededor. Mira,
hay un muchacho al otro lado de la calle que no para de mirarnos. Aquel
alto, moreno, guapo, muy atlético. ¿Qué te parece?
Pablo: – Le sienta muy bien la chaqueta.

11 Num reforço de certos sentidos sobre cultura como modo de vida característico, e na refle-
xão que cada comunidade cultural realizou para refletir sobre os aspectos culturais que a
definiam, surge a noção de comunitarismo (cf. Bauman, 2012). Para esse autor, tal termo
atuou como uma coerção sobre o sujeito, na oposição construída entre os diferentes tipos
de cultura (Bauman, 2012, p. 63). Isso produziu um fechamento, decorrente do processo de
pluralização estabelecido na comparação e na oposição entre diferentes culturas, o que le-
vou cada uma delas a uma totalidade, fechada em si mesma, sem relação uma com as outras.

251
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Antonio: – Dale, dale, pero mira, ¡qué guapo es!


Pablo: – ¿En serio? No es mi tipo, a mí me caen bien los chicos gor-
dos, los osos. Además, hay algo raro en él, me parece un chico triste,
un poco simpático. Le falta un poco más de pluma, me parece un simu-
lacro de macho. Me caen bien los chicos afeminados.
Antonio: – Pero a mí me caen bien los chicos que se visten a la moda,
los que van de hombres. Además, tiene un físico que me cae bien: mo-
reno, de pelo negro, corto y liso, alto, delgado, ojos marrones. No sé
de dónde sacaste que es un chico triste. Para mí, me parece elegante,
simpático, un poco antipático, verdad, pero no triste.
Pablo: – ¡Qué va! Tiene un aire de, no sé qué, de soberbio.
Antonio: – Jejeje, ya noto que te cae mal. Pero a mí sí me cae bien.
Pablo: – Prefieres el estereotipo de gay macho.
Y a ti, ¿qué te parece? ¿Es común llevar en cuenta estereotipos para
clasificar a las personas? Discute con tu compañero.
5. Toma nota de las palabras que describan características físicas
y de personalidad presentes en el diálogo.

Fonte: Autoria própria.

Como conteúdo comunicativo, a atividade em questão trabalha,


além do tema da descrição física e do estado de ânimo, diferentes termos
linguísticos usados por homossexuais masculinos; como tema linguís-
tico, a expressão de gostos pessoais. Vale observar que, mesmo em um
grupo considerado por muitos como homogêneo (ou visto de forma es-
tereotipada como tal), como o dos homossexuais masculinos, há diver-
sas identidades marcadas politicamente como específicas dentro desse
grupo, como a chamada comunidade ursina (los osos em espanhol), e os
afeminados (opostos aos modos de vida padronizados como masculinos
e heterossexuais) presentes nesse diálogo. A comunidade ursina é co-
nhecida por deslocar padrões sexuais e de beleza considerados como
padrões por grupos hegemônicos homossexuais, e por esse motivo seus

252
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

membros são chamados de ursos (osos), por valorizar elementos que re-
metem ao físico desse animal, deslocados do padrão considerado atra-
ente por outros grupos homossexuais: corpos gordos, peludos e toma-
dos como masculinos12. Ao mesmo tempo, o corpo ursino ali descrito
é também contraditório aos sentidos valorizados por essa comunidade,
por ser um corpo afeminado (com trejeitos lidos e interpretados como
femininos). Tais sentidos, propostos na atividade, mobilizam uma re-
flexão sobre o quanto podem ser contraditórios e heterogêneos grupos
que são tomados como homogêneos por outros, explicitando o quanto
há de diversidade neles (não só entre os homossexuais, mas também
entre os ursos).
Em tal atividade observam-se sentidos que expõem o que Mignolo
(2003) denomina de pensamento fronteiriço: saberes que são valoriza-
dos globalmente, como os padrões de beleza e de corpos valorizados
pela mídia comercial (e que também são apropriados pela comunidade
homossexual), confrontados por saberes específicos (e por que não di-
zer, minorizados), localmente valorizados por um subgrupo de um gru-
po, os ursos.
Nesse sentido, os padrões de beleza dos dois personagens são di-
ferentes entre si: Antonio comunga dos sentidos valorizados e tomados
como padrão (cujo funcionamento discursivo produz uma naturaliza-
ção deles, pela ação de saberes hegemônicos legitimados globalmente):
“alto, moreno, guapo, muy atlético. [...] Pero a mí me caen bien los chicos
que se visten a la moda, los que van de hombres”. Pablo, o outro perso-
nagem da atividade, apresenta gostos contrários ao de Antonio, o que
instala uma diferença não somente entre os dois, mas também entre

12 Diga-se, de passagem, que no reforço de tais sentidos enquanto elementos específicos desse
grupo, produz-se o que Bauman (2012) chama de comunitarismo: um fechamento identitá-
rio, quase estereotipado, que funciona como um índice de pertencimento a tal comunidade
e que, ao mesmo tempo, produz um afastamento com outras comunidades. Tais elementos
que se reconhecem como pertencentes à comunidade ursina são reforçados por membros
da própria comunidade, o que produz um funcionamento discursivo estereotipado deles; ao
mesmo tempo, talvez como reação a tal funcionamento, tais sentidos são interpretados de
modo quase caricatural por parte de membros de outros grupos homossexuais masculinos.

253
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

os padrões hegemônicos expressos pela afirmação de Antonio e os pa-


drões afirmados por Pablo: “a mí me caen bien los chicos gordos, los osos.
[…] Le falta un poco más de pluma, me parece un simulacro de macho.
Me caen bien los chicos afeminados”.
Nas falas de Pablo, nas quais se ressaltam corpos de homens afe-
minados como padrão (por exemplo, ao dizer “le falta un poco más de
pluma”, no sentido de faltar trejeitos femininos nesse corpo) marca-se
o quanto parte-se de um padrão o gosto expresso por Antonio: “Prefieres
el estereotipo de gay macho”, colocando-o em discussão. Ao mesmo
tempo em que se deslocam os saberes legitimados como padrões para
a abordagem do tema comunicativo de descrição física e de estado
de ânimo (e por que não vinculados ao que o Mignolo (2003) deno-
mina de conhecimentos globais), apresentam-se elementos discursivos
que expressam diversidade e heterogeneidade em grupos já desloca-
dos, mas que funcionam imaginariamente como homogêneos (marca-
dos como diferentes se comparados com as práticas sexuais legitima-
das na sociedade, a heteronormatividade).
A atividade em questão coloca em destaque o quanto que cultura,
nesse caso como modo de vida característico como acepção principal,
funciona discursivamente e pela/na língua, ao marcar-se por senti-
dos e por termos linguísticos que produzem identificação com grupos
sociais e o pertencimento dos sujeitos ali presentes com tais grupos.
Esses sentidos, considerados minoritários a partir de saberes legitima-
dos por formações ideológicas13 que reforçam os sentidos que tomam

13 As formações ideológicas (conceito da Análise do Discurso Materialista), a partir da pers-


pectiva que considera a luta de classes e a produção do capital, se definem como um com-
plexo de práticas e de ações relacionadas à luta de classes, onde as posições ideológicas
estão em confronto, mantendo entre elas relações de antagonismo, de aliança ou de domi-
nação. No caso mencionado, as formações ideológicas naturalizam a heteronormatividade
como padrão por legitimações produzidas por diversas instituições, gerando, como efeito,
formações discursivas que dão base e sustentação a discursos que definirão, como algo evi-
dente e universal, os sentidos inerentes a essa prática. Assim, impõem-se os sentidos que
constituem a heteronormatividade a relações afetivas, sexuais e familiares, construindo pa-
drões que seriam (ou deveriam) ser aceitos por todos, sem outra possibilidade de realização.

254
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

a heteronormatividade14 como padrão, se vinculam a formações discur-


sivas que também estão em funcionamento na cotidianidade dos sujei-
tos-aprendizes de nosso curso, o que produz identificação/desidenti-
ficação com os sentidos presentes no diálogo. Mormente a isso, como
efeito de sentido, tais discursos mobilizaram os sujeitos-aprendizes
de nosso curso a voltar-se à sua experiência de sujeitos da comunida-
de LGBTQIA+ e a realizarem uma reflexão sobre os sentidos presentes
em sua vivência e o batimento desses com os padrões sexuais marcados
pela heteronormatividade em nossa sociedade.
A terceira atividade que trago para esse recorte é de uma unida-
de mais avançada no curso que a anterior, cuja proposta é o tema co-
municativo das vestimentas e de seus acessórios e os diferentes tipos
de penteados. Ressalto que o esperado como material de discussão des-
ses temas também foi deslocado para outro lugar de abordagem. A par-
tir de fotos retiradas de uma rede social de um ativista transsexual e de
uma cantora travesti, propõe-se uma atividade oral para que os alunos
identifiquem e discutam o tema comunicativo da unidade. O destaque
dessa atividade é o de apresentar referências que vão deslocar senti-
dos que possam aderir-se ao que se considera como masculino e femi-
nino em termos de aparência e de vestuário, com a presença de corpos
que também não obedecem a esse binarismo (ou que pelo menos tras-
ladam a referência para outro lugar de consideração). Esse redirecio-
namento de sentidos produzido pela textualização dessas identidades
no material, para abordagem de um dos temas mais marcados hegemo-
nicamente pelo binarismo masculino/feminino (a aparência), produz
uma descontinuidade que instala uma ecologia de saberes que reivin-
dica um outro olhar de compreensão e de debate desses temas, desde
outros saberes que se instalam nesse gesto de interlocução, girando
uma chave de compreensão e de interpretação sobre uma das catego-
rias instauradas pelo dispositivo da colonialidade do poder (Quijano,
2000), a de gênero/sexualidade.

14 Que rementem à heterossexualidade e que são tomados como referência e norma sexual.

255
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Formas de trabalho específicas, como as relacionadas às artes;


vestimentas que se relacionam às atividades sem relação com o âmbito
do trabalho corporativo ou do familiar, tomados como modelo, além
da diversidade de aparências, peles e cores (estas também dos acessó-
rios e vestimentas), produzem deslocamentos dos saberes legitimados
pela colonialidade do poder, ressignificam os elementos por ela instau-
rados e promovem reflexões de saberes desde outros lugares de discus-
são, a partir de um pensamento fronteiriço (Mignolo, 2003) para inter-
pretar o tema comunicativo proposto. A proposição desses elementos
que materializam a diversidade de formas de vida e de relações sociais
em relação ao tema da unidade remete aos sentidos de cultura como
modo de vida característico – e o rechaço de estipular identidades es-
tereotipadas como cultura, dada à movência de sentidos que as iden-
tidades aqui presentes instalam e ao diálogo que se estabelece entre
elas e as diferentes identidades dos sujeitos-aprendizes que utilizam
o material (numa relação intensa entre identidade e alteridade).
A quarta atividade que aqui discuto mobiliza, como tema comuni-
cativo, saberes relacionados à família, alimentação, amizade e esportes
e como tema linguístico a expressão dos verbos de afeição.

Quadro 2 – La vida de Ana

La vida de Ana
Ana es una chica venezolana, que vive en Maracaibo, ciudad al nores-
te del país. Su vida es muy tranquila, pues tiene una rutina sencilla.
A sus amigos les parecen interesantes algunos de los gustos que tiene.
¿Vamos a ver lo que le gusta a Ana?
Familia: Le gusta mucho su familia, pues Ana reconoce la importancia
que sus padres han tenido en su educación. Ellos se llaman Pablo y Carlos
(sí, sus padres son homosexuales). También tiene un perro, que se llama
Paco, y a todos los tres les encanta pasear con Paco los fines de semana.
A Paco no le gusta quedarse sin atención: es un perro muy juguetón.

256
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Comidas: A Ana le gustan los platos típicos de Venezuela, principal-


mente los del desayuno: las arepas rellenas con carne, los frijoles,
las frutas típicas como el mango y la banana y, claro, un café muy fuerte.
Los amigos: A Ana le encanta salir con sus amigos, sin formalidades,
pues queda con sus amigos casi todos los días: es común hacer visitas
sin anuncios previos, quedarse en casa con ellos sin nada para hacer
o a veces una salida a un bar. Sin embargo, no le gustan las bebidas
muy fuertes – no le caen bien la vodca y el whisky.
Deportes: Le gustan mucho el fútbol, el rugby y también el ciclismo;
le gusta mucho dar unas vueltas en bici en el lago de la ciudad. En gene-
ral, le caen bien las actividades al aire libre.

Fonte: Autoria própria.

Conforme o Quadro 2 anterior, o texto La vida de Ana, elabora-


do para o material, propõe ao leitor conhecer a rotina da personagem
principal. Nele nota-se um deslocamento da noção de família legiti-
mada socialmente como padrão (a heterossexual), dado que a família
da personagem é formada por dois pais homossexuais. A contradição
discursiva15 instalada é produtiva, ao apresentar uma formação paren-
tal distinta da que é esperada pelos padrões pautados pelos conheci-
mentos globais (Mignolo, 2003), a partir do estereótipo mobilizado pela
descrição de uma rotina esperada de um adolescente que esteja prestes
a entrar na idade adulta, com uma família “padrão” (composta por pais
heterossexuais): uma rotina familiar como qualquer outra, a vivência
com os amigos e a prática esportiva “comum” de alguém que apenas
se diferencia por ser criada por pais homossexuais.

15 A contradição, enquanto funcionamento discursivo, é constitutiva de toda formação discur-


siva. Para Pêcheux, “toda prática discursiva está inscrita no complexo contraditório-desi-
gual-sobredeterminado das formações discursivas que caracteriza a instância em condições
históricas dadas” (PÊCHEUX, 2009, p. 197). Ao afirmar que uma menina criada por pais
homossexuais possui uma rotina familiar como a de qualquer outra família, silenciam-se
sentidos de determinadas formações discursivas que rechaçam a homossexualidade e que
poderiam classificar a relação familiar da atividade como fora dos padrões por ser de uma
pessoa criada por uma família homossexual.

257
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Além desse efeito de sentido que configura a rotina de Ana como


a de qualquer pessoa16 de sua faixa etária, desloca-se o foco sobre
sua criação por pais homossexuais e o eixo da atividade gira em torno
da presença de variados termos linguísticos relacionados ao vocabulá-
rio das comidas, das frutas, das bebidas e dos esportes. Essa contradição
– o reforço de sentidos legitimados em um contexto não legitimado,
deslocando-os – é um importante gesto de instalar uma ecologia de sa-
beres que vai ressoar na identificação dos sujeitos-aprendizes com os
sentidos presentes na atividade, além de produzir um gesto de legiti-
mação dessas vivências como sendo semelhantes às de quaisquer ou-
tras. Como afirma Martinez (2009), há nos materiais didáticos a tendên-
cia a recorrer a estereótipos frequentes, como a família mononuclear,
com dois filhos, sem espaço para outros tipos de famílias; na mesma
linha desse autor, quando discute o pouco espaço que atividades polê-
micas ou assuntos trágicos (como o desemprego ou a morte) possuem
em materiais didáticos, a citação a bebidas alcoólicas e o hábito de sair
para um bar são também deslocamentos que visam mobilizar os este-
reótipos morais de representações sociais, ao mesmo tempo que esta-
belece um diálogo com a rotina dos sujeitos-aprendizes de nosso curso,
num movimento de identificação-contraidentificação com os sentidos
ali presentes. Na especificidade e na diversidade de tais hábitos, na sua
relação com uma rotina, estabelece-se uma valorização de formas espe-
cíficas de certas vivências e a sua legitimação, configurando-as com os
sentidos de cultura como modo de vida específico.

À guisa de conclusão

Neste trabalho, mobilizei algumas reflexões sobre a função-autor


(ORLANDI, 2008) de um material didático de língua espanhola, espe-
16 Cabe destacar, aqui, que essa “normalização” ou lugar comum de definir o que é normal para
todos também é uma posição discursiva, e por que não, contraditória, em relação ao des-
locamento proposto pela atividade. Dado que adotamos uma posição decolonial, essa uni-
versalização também é um efeito de sentido que reforça saberes hegemônicos. Entretanto,
como gesto de interpretação, é válida para discussão dos diversos sentidos materializados
nessa enunciação para o propósito geral do material.

258
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

cialmente elaborado para utilização em um curso oferecido gratuita-


mente por uma ONG na cidade de São Paulo à população LGBTQIA+,
além de outros grupos sociais minorizados, com prioridade de matrí-
culas para pessoas transsexuais, travestis e negras. Consequentemente,
ao analisar a função-autor desse material, também ressoam diversos
sentidos que configuram um efeito-leitor dele – “que se dá no reconhe-
cimento – identificação do sujeito, gesto de interpretação – de uma
leitura no meio das outras” (ORLANDI, 2008, p. 70). No caso que aqui
discuto, os sentidos projetados pelo possível leitor desse material:
os sujeitos-aprendizes de nosso curso.
Dada a imensurável tarefa de identificar os sentidos que configu-
rariam os diversos gestos de leitura decorrentes do efeito-leitor proje-
tado de cada um dos sujeitos-aprendizes, foram analisados, na textu-
alização desse material, os diversos sentidos propostos para deslocar
fortemente aqueles que geralmente se vinculam aos saberes hegemô-
nicos de matriz eurocêntrica, funcionamento discursivo recorrente
nos livros didáticos de língua estrangeira. Para tal tarefa considerei
fundamental a não-dicotomia entre língua e cultura, na reflexão sobre
os diferentes sentidos que ressoam no termo cultura, produzidos his-
toricamente, visando mobilizá-los na discussão sobre as atividades
que compõem o nosso corpus. Nesse gesto de interpretação, vinculo
cultura à língua, e considero cultura o lugar de identificação, por parte
dos sujeitos-aprendizes, com os sentidos possíveis presentes nas di-
versas práticas de ensino de uma língua estrangeira – sentidos esses
que marcam, nesse material, cultura como modo de vida característico.
Nessa linha de vinculação de cultura com a língua, conjuntamente
foram mobilizados sentidos que produziram, nas atividades propostas
aqui discutidas, deslocamentos decoloniais, conforme esse último ter-
mo é considerado por Walsh (2009):

No pretendemos simplemente desarmar, deshacer o re-


vertir lo colonial; es decir, pasar de un momento colonial

259
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

a un no colonial, como que fuera posible que sus patro-


nes y huellas desistan de existir. La intención, más bien,
es señalar y provocar un posicionamiento -una postu-
ra y actitud continua- de transgredir, intervenir, in-sur-
gir e incidir. Lo decolonial denota, entonces, un camino
de lucha continuo en el cual podemos identificar, visibi-
lizar y alentar “lugares” de exterioridad y construcciones
alternativas (WALSH, 2009, p. 14-15).

Ao mesmo tempo, tal “postura e atitude contínua” remete à eco-


logia de saberes proposta por Santos e Meneses (2010), ao instaurar
uma contraepistemologia que promove uma orientação a grupos consi-
derados marginalizados pela sexualidade, como o dos nossos sujeitos-
-aprendizes. Reivindicar esse lugar, de fato, não apaga uma memória
sobre os sentidos construídos ao longo da história pela colonialidade
do poder (QUIJANO, 2005) e que legitimaram a sexualidade a partir
da heterossexualidade; daí a necessidade de atuar num pensamento
fronteiriço (MIGNOLO, 2003) que ressignifique os saberes estabilizados
globalmente e os redirecione para conhecimentos locais (nesse caso,
para os saberes que constituem a identidade do coletivo LGBTQIA+).
Como disse anteriormente, o material aqui discutido, pensado
pelo viés da diversidade, converte-se em uma resistência decolonial,
dado que reivindica conceitos de identidade, de alteridade e de sexu-
alidade, que vão de encontro a uma matriz eurocêntrica. Projetou-se,
nessa elaboração, uma interlocução entre as atividades propostas pelo
material e as vivências desses diferentes sujeitos-aprendizes de nosso
curso (também inspirada nessas), sujeitos esses deslocados de várias
centralidades (tanto geográficas, econômicas, raciais e sexuais).
Em tal interlocução, a partir dessa mobilização de determinados
saberes e culturas, ao deslocar associações simplistas de formas de vida
sem problematizações, formas estereotipadas de profissões e de identi-
dades reguladas pelo consumo, realiza-se um processo de interpelação

260
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

que mobiliza o aprendiz a ocupar determinadas posições, se identifi-


que com determinados sentidos e formule seus gestos de interpretação
(legitimando certos sentidos, silenciando outros) nesse contato com a
língua estrangeira – e com o outro.
A partir das considerações de Revuz (1998, p. 227) a de “apren-
der uma língua é sempre, um pouco, tornar-se um outro”; de Kleiman,
sobre produzir o “suleamento” de saberes, ao promover o “debate
e questionar a hegemonia ocidental do Norte” (KLEIMAN, 2013, p. 40),
na discussão sobre saberes e sentidos linguísticos da língua espanhola
que mobilizam um olhar sobre sexualidades não legitimadas e não-he-
gemônicas, propiciam, para mim, uma tarefa de aprendizagem dessa
língua que permitirá, aos sujeitos-aprendizes que dela participem, re-
conhecer-se no outro e nos sentidos ali presentes – e produzir o rico
espaço da diferença (entre línguas e entre si e o outro). Tais sentidos,
agora legitimados, estruturam processos de identificação e de reflexão
sobre suas subjetividades e sobre formas de vidas que, se antes eram
geralmente silenciadas e deslocadas, agora estão em consonância
com suas vivências e com um modo de ser LGBTQIA+ em periferias
de sociedades periféricas como a brasileira.

Referências

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

MARTINEZ, Pierre. Didática de línguas estrangeiras. Trad. Marcos


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SOUZA JUNIOR, Jorge Rodrigues. A literatura no ensino de espanhol a
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SOUZA JUNIOR, Jorge Rodrigues. Cultura enquanto objeto discursivo:
considerações e lineamentos sobre seu papel em práticas de ensino de
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262
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Tese (Doutorado em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-


Americana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2016.
WALSH, Catherine. Intercuturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (de)
coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar;
Ediciones Abya-Yala, 2009.

263
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

GÊNERO COMO DISPOSITIVO DECOLONIAL


NA SALA DE AULA DE ESPANHOL: UM OLHAR
PARA O TRABALHO DE FABIÁN CHÁIREZ

José Veranildo Lopes da Costa Junior (UFPB)

Introdução

Em sua obra, o físico estadunidense Thomas Kuhn (2017), ao cen-


trar-se, sobretudo, no conceito de paradigmas, coloca em debate a es-
trutura das revoluções científicas, mostrando que a história da ciência
é a disciplina que se ocupa em registrar “quando e por quem cada fato,
teoria ou lei científica contemporânea foi criada ou inventada” (KUHN,
2017, p. 60). À vista disso, ao nos determos em uma historiografia da ci-
ência – principalmente no âmbito das exatas, que têm como núcleos
de estudo a matemática, a química e a física –, percebemos que ho-
mens brancos, heterossexuais, ocidentais e oriundos das grandes me-
trópoles do Norte Global são os principais responsáveis por narrá-la.
Isso não significa dizer que outros grupos não tenham se dedicado
ao universo científico, mas tal fato implica reconhecer que o campo
epistemológico é dominado por um setor hegemônico que, sistemati-
camente, tem contribuído com a subalternização de pesquisadores/as
que destoam de um padrão normativo.
Dessa forma, a ciência reflete os seus “autores”, os quais são mar-
cados pelo eurocentrismo, pela branquitude, pela heterossexualidade

264
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

compulsória, pelo cristianismo e, também, pela sustentação de uma ló-


gica neoliberal que estrutura as atuais sociedades capitalistas. Na con-
tramão desse perfil, no seio do pós-estruturalismo, a partir do ques-
tionamento dos fundamentos tradicionais da filosofia, surgem novas
teorias críticas mais sensíveis às pautas identitárias, aos contextos so-
ciais e à própria noção de política.
Autores como o pensador peruano Aníbal Quijano (2005) e a es-
critora aimará boliviana Julieta Paredes (2010) têm chamado a atenção
para o desenvolvimento de uma ciência feita na América Latina pelo
e para os povos latino-americanos, o que corresponde a uma tentativa
de entender o Sul pelas lentes do próprio Sul e não mais através dos pa-
râmetros adotados pelo Norte Global, especialmente os Estados Unidos
e os países que compõem o continente europeu.
Em um texto já clássico para as ciências sociais, Quijano (2005, p.
117) aponta que o projeto de poder colonial se institui a partir da “clas-
sificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça,
uma construção mental que expressa a experiência básica da domi-
nação colonial”. Além desse fator, Quijano (2005, p. 118) defende que
“as novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça fo-
ram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura glo-
bal de controle do trabalho”, reforçando a importância da exploração
capitalista como parte do projeto de poder/ser colonial. Embora seja
um elemento pouco contextualizado por Quijano (2005), o referido
autor menciona que as divisões de gênero fazem parte de uma matriz
colonial, pois raça e gênero têm uma estreita relação com o modo eu-
rocêntrico de produzir conhecimento.
Por outra perspectiva, se as ciências humanas e sociais estão ten-
tando construir um saber mais horizontal e, por consequência, me-
nos colonial, a partir de uma crítica ao meio de produção epistémico
fundamentado no eurocentrismo (QUIJANO, 2005), pontuamos que a
sala de aula se torna um espaço de reflexão que gera a desconstrução

265
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

das estruturas de poder através da consciência da língua e da lingua-


gem por meio de uma educação linguística (FREITAS, 2021).
Por essa razão, o lócus de enunciação (BAPTISTA, 2021, p. 1117),
enquanto dispositivo decolonial, “materializa uma práxis contrária
à ordem hegemônica estabelecida ao viabilizar um conjunto de práti-
cas e ações que impulsionam pedagogias decoloniais”. Em seu traba-
lho1 Lívia Baptista (2021, p. 1122) explica o conceito em questão “como
um espaço sócio-histórico de enunciação, apropriado pelos sujeitos e,
consequentemente, instaurador de uma perspectiva outra de conhe-
cimento dos enunciadores”. Ainda de acordo com a autora, o lócus
de enunciação precisa ser “ocupado pelo sujeito subalternizado, invisi-
bilizado ou historicamente apagado” (BAPTISTA, 2021, p. 1121), sendo
caracterizado por:

[...] gerar uma cartografia distinta do saber/poder na qual


e para a qual as práticas de linguagem, ou ainda se se
prefere, os usos sociais da linguagem são cruciais, já que
por meio dessas podemos situar o ego, as vozes, confrontar
lugares de fala e de escuta, inverter, subverter e combater
as narrativas lineares da colonialidade (BAPTISTA, 2021,
p. 1122).

Em consonância com o exposto por Baptista (2021), entendemos


que o lócus de enunciação permite a um conjunto de sujeitos social-
mente silenciados pelo projeto de poder/ser colonial a possibilidade
de ocupar novos espaços discursivos através das práticas linguageiras
que se formam. Tal perspectiva realiza-se por meio do combate às narra-
tivas coloniais, ou seja, “como um espaço catalizador e potencializador
de discursos e práticas de linguagem que, sob a forma de práxis deco-

1 A Revista Abehache lançou em 2021 um dossiê temático intitulado “Hispanismos e reen-


contros”, com o objetivo de revisar temas de interesse dos/as pesquisadores/as da língua
espanhola. No referido número, Lívia Baptista publicou o artigo “Lócus de enunciação,
decolonialidades e produção de saberes: algumas inflexões a partir do Sul Global”, onde
atualiza a discussão sobre o lócus de enunciação.

266
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

loniais, reconfiguram o espaço enunciativo do Sul Global” (BAPTISTA,


2021, p. 1117).
No caso do hispanismo brasileiro, pesquisadores/as filiados/as,
sobretudo, à Linguística Aplicada (LA) têm promovido a formação
de lócus de enunciação (BAPTISTA, 2021) nos mais diferentes con-
textos, como resposta a um projeto de poder/ser colonial que silen-
cia uma parcela do tecido social. Considerando algumas produções
que tematizam gênero e sexualidade a partir de uma postura decolo-
nial, citamos, por exemplo, os trabalhos de Almeida (2021, 2022) inti-
tulados, respectivamente, “Por uma Educação Linguística Queer: es-
tranhando conceitos e práticas” e “Colonialidade de gênero”; o artigo
de Paraquett (2021), “Educação de saias coloridas: aprender espanhol
com mulheres da América Latina”; e um interessante ensaio nomeado
“Epistemologias transviadas da Linguística Aplicada na (desen)forma-
ção de professores(as) de línguas estrangeiras”, de Paraquett e Bezerra
(2021), sendo estes algumas das referências recentes que ajudam a pre-
encher uma lacuna sobre gênero e decolonialidade no nosso campo
de pesquisa.
Pensando, pois, na urgência de discutir uma educação linguística
(FREITAS, 2021) de natureza decolonial, neste capítulo, pretendemos
promover uma aproximação entre o lócus de enunciação (BAPTISTA,
2021) e o processo de ensino-aprendizagem de língua espanhola,
em escolas brasileiras. Com base em uma pintura de autoria do artista
plástico Fabián Cháirez, a proposta de ensino que aqui compartilhamos
tem como epicentro a reconstrução da história do México e dos seus
heróis históricos.
No caso do nosso manuscrito, a discussão de gênero e sexualida-
de, pautada mais detalhadamente no próximo tópico, assume o desafio
de desconstruir um dos dispositivos do projeto de poder/ser colonial.

267
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Gênero como dispositivo decolonial

Segundo Aníbal Quijano (2005), o poderio colonial se estabelece


a partir de três fatores: a raça, a exploração capitalista e as divisões
de gênero. O autor peruano detalha de que forma a colonialidade utili-
za-se da raça e do capitalismo como mecanismos que dão sustentação
ao poder colonial e compartilha alguns comentários sobre a relação en-
tre gênero e sexualidade em torno desse mesmo programa. De forma
geral, acreditamos que a discussão sobre gênero e decolonialidade me-
rece maior atenção por parte dos pesquisadores das ciências humanas
e sociais, porque entendemos que é preciso “investigar o que a colonia-
lidade do gênero apagou, destruiu ou invisibilizou” (GOMES, 2018, p.
77) e quais as relações instituídas entre gênero e poder colonial.
Há mais de três décadas, a historiadora norte-americana Joan
Scott tem colocado em debate a importância de pensar gênero como
categoria de análise no âmbito das ciências. Em um texto bastante co-
nhecido, Scott (1995)2 mostra como essa expressão foi sendo entendida
ao longo da história. Segundo a pesquisadora, “na gramática, o gênero
é compreendido como uma forma de classificar fenômenos, um siste-
ma socialmente consensual de distinções e não uma descrição objetiva
de traços inerentes” (SCOTT, 1995, p. 72). Scott (1995) também comen-
ta que o movimento feminista nos Estados Unidos é um dos principais
responsáveis por “enfatizar o caráter fundamentalmente social das dis-
tinções baseadas em gênero” (SCOTT, 1995, p. 72) e, nesse momento,
a referida palavra transforma-se em uma resposta ao “determinismo
biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”
(SCOTT, 1995, p.72). Assim como Quijano (2005), Scott (1995) defende
que o poder hegemônico se ampara em três eixos: classe, raça e gênero.
Para a autora:

2 Uma crítica pertinente ao texto de Scott (1995) pode ser lido no trabalho de Gomes (2018).
Para buscá-lo, consultar a lista de referências deste capítulo.

268
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

O interesse pelas categorias de classe, de raça e de gênero


assinalava, em primeiro lugar, o envolvimento do/a pesqui-
sador/a com uma história que incluía as narrativas dos/as
oprimidos/as e uma análise do sentido e da natureza de sua
opressão e, em segundo lugar, uma compreensão de que
as desigualdades de poder estão organizadas ao longo de,
no mínimo, três eixos (SCOTT, 1995, p. 73).

Segundo o exposto por Scott (1995), através da discussão sobre


gênero, considerando ainda as intersecções entre as categorias de raça
e classe, podemos questionar o modo como o poder hegemônico atua
sob o corpo de homens e mulheres. Scott (1995) recorda que, em um
primeiro estágio do ativismo norte-americano, gênero foi compreen-
dido como sinônimo de mulheres, em virtude da sua vinculação à luta
feminista. Nas últimas décadas, gênero “tornou-se uma palavra par-
ticularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática sexu-
al dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens” (SCOTT,
1995, p. 75).
Por sua vez, a socióloga brasileira Berenice Bento (2017, p. 109)
afirma que “todos nascemos cirurgiados” e explica a ideia da seguin-
te forma:

Quando você nasce, já existe um conjunto de expectativas


para um corpo que está na barriga da mulher, inclusive
a grande expectativa em torno do sexo. Você vê aquelas
máquinas passando lá (ultrassom) e os médicos dizem coi-
sas como ‘é uma bebê’. No momento em que o médico diz as
palavras mágicas, é como se você tivesse o dom de criar
a criança. Aquela frase ‘parabéns, mamãe, você vai ter
uma menina’, ‘parabéns, mamãe, você vai ter um menino’,
desencadeia um conjunto de expectativas materializadas
em cores e brinquedos. Quando essa criança nasce, ela não
é um corpo, uma natureza, um conjunto de células, mas sim
um corpo generificado, cirurgiado no sentido de que já há

269
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

uma cultura de expectativas por aquele corpo; ele não está


livre dos imperativos (BENTO, 2017, p. 109).

O olhar de Bento (2017) para a maternidade mostra que o corpo


cirurgiado é construído antes do nascimento do bebê, a partir do mo-
mento em que um conjunto de práticas discursivas começa a moldar
o comportamento da criança e da família a respeito da feminilida-
de ou da masculinidade. Em uma sociedade que caminha em direção
à hierarquização dos conceitos de classe, raça e gênero (SCOTT, 1995),
os papéis sociais atribuídos aos homens e às mulheres são definidos
pela heterossexualidade compulsória e pela impossibilidade de perfor-
mar outros modos de ser que destoem do padrão socialmente estabele-
cido. Para Bento (2017):

A criança, quando nasce, se tem uma vagina, vai usar a cor


rosa, vai ter um conjunto de imperativos apontando como
a criança deve se comportar. Então, você tem uma produção
em série de brinquedos, discursos, religiões sobre a femi-
nilidade ou uma masculinidade inteligível. É uma cirurgia
discursiva, porque o médico que diz ‘você tem uma meni-
na’ está escrevendo uma gramática de gênero, em um léxi-
co social que já está fadado. O que eu afirmo é que não tem
nada a ver com biologia ou natureza. Como é possível al-
guém falar de biologia quando nós pensamos em todos en-
sinamentos, toda a repressão, todos os dispositivos de poder,
todas as instituições dizendo o que é de menina e o que é
de menino? (BENTO, 2017, p. 109, grifo nosso).

Ao defender que práticas discursivas assumem o objetivo de mol-


dar o comportamento dos corpos em sociedade, Bento (2017) é asser-
tiva ao citar que essas práticas se tornam dispositivos de poder de na-
tureza repressiva. Percebe-se, portanto, que gênero se converte em um
dispositivo colonial criado para hierarquizar o corpo, as subjetividades
e as performances de gênero.

270
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Interpretar gênero como um dispositivo decolonial, considerando


sua relação com a raça e os meios de produção neoliberais, implica en-
tender que “a colonialidade usa a raça e o sistema sexo/gênero em seu
processo de desumanização” (GOMES, 2018, p. 78). Assim, é preciso
reconhecer que a colonialidade se utiliza do gênero como dispositivo
que aciona um projeto de poder/ser doloroso para sujeitos que não
se encaixam nos parâmetros aceitos pela heterossexualidade com-
pulsória. Por estes motivos, nas próximas páginas do nosso capítulo,
buscamos apresentar uma problematização teorizada a partir da sala
de aula, pois acreditamos que, enquanto professores, devemos descon-
figurar uma colonialidade de gênero e sexualidade que machuca e fere
muitos dos nossos estudantes.

Um olhar para a obra de Fabián Cháirez na sala de aula


de espanhol

Os estudos decoloniais promovem uma ruptura no modus operan-


di de fazer ciência no mundo moderno, sobretudo a partir de uma revi-
são dos paradigmas que movem a própria prática científica, baseados
no eurocentrismo e no ocidentalismo. Em uma publicação em que ex-
ploramos o pensamento de Thomas Kuhn, tratamos sobre o paradigma
tradicional e o emergente no contexto da formação docente e afirma-
mos que “os paradigmas de ensino denunciam as práticas pedagógicas
e justificam as escolhas metodológicas dos profissionais da educação”
(COSTA JUNIOR, 2018, p. 101). Em outros termos, na escola, quando
consideramos as questões de gênero e sexualidade, outros paradigmas
podem se formar. Para exemplificar, citamos dois: um de natureza ex-
cludente/conservadora e outro inclusivo/progressista.
Por um lado, práticas pedagógicas conservadoras são aquelas que,
baseadas em conceitos binários, como ‘homem’ e ‘mulher’ ou ‘masculi-
no’ e ‘feminino’, acabam acionando um dispositivo colonial de gênero
que repreende pessoas que não se encaixam nos parâmetros estabe-
lecidos pela heterossexualidade compulsória. Por outro lado, práticas

271
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

pedagógicas mais inclusivas são aquelas que tendem a desconstruir es-


ses mesmos binarismos de gênero e buscam desarticular o dispositivo
que ampara o projeto de poder/ser colonial.
Silva Júnior e Matos (2019, p. 102), ao abordarem as práticas deco-
loniais na educação linguística, mostram como, em determinados mo-
mentos da história, os materiais didáticos “reproduziam uma imagem
reduzida e estereotipada do idioma em questão, priorizando a represen-
tação do colonizador, do estrangeiro distante, europeu, estaduniden-
se, branco, heterossexual”. Em contraste a esta realidade, nos últimos
anos, nota-se que esses materiais passaram por modificações signifi-
cativas, sobretudo, ao se tornarem mais representativos e inclusivos.
Nesse sentido, entendemos que o projeto colonial tenta ocupar
espaço em diversas instâncias sociais, inclusive na escola, outra repre-
sentação de uma instituição moderna. No âmbito dos materiais didá-
ticos, Silva Júnior e Matos (2019, p. 106) apresentam uma indagação
importante: “Será que todos os alunos que temos se veem represen-
tados nos materiais apresentados em classe? Quais temas vêm sen-
do debatidos no ambiente escolar?”. Certamente, as respostas para
os questionamentos apontados pelos estudiosos sinalizam a necessi-
dade da escola e dos autores de materiais didáticos se comprometerem
com a representatividade (de raça, de gênero, de classe, etc.) e, tam-
bém, com o combate às desigualdades sociais, dentre elas, as de gênero
e sexualidade.
A partir desse ponto de vista, o ensino de língua espanhola deve
abandonar uma postura conservadora, exemplificada pela abordagem
da gramática distante de contextos reais de comunicação, e adotar
uma perspectiva de língua e de linguagem crítica e política. Tonelli
(2021, p. 58, grifo do autor) defende que, quando as práticas de ensino
de língua utilizam-se de uma abordagem colonial, “é frequente encon-
trar [...] a relação direta entre língua e nação expressa na representa-
ção de uma população homogênea que, a priori, compartilha uma única
língua”. Ainda nessa mesma linha de raciocínio, Silva Júnior e Matos

272
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

(2019, p. 102) argumentam que “ensinar uma língua estrangeira pas-


sou a ser caracterizado como um ato não só linguístico, mas também
sociopolítico e seus materiais começaram a dialogar com o que está
fora da escola, mas que se reflete dentro dela”. Tonelli (2021) e Silva
Júnior e Matos (2019) parecem defender que o ensino de línguas assu-
me uma conotação política, sob a qual o processo de ensino-aprendi-
zagem pode ocorrer em consonância com as demandas de um mundo
que se encontra fora dos muros da escola, mas que precisam ser refle-
tidas dentro dela.
Nos entornos da instituição escolar, segundo um relatório divul-
gado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), em maio de 2019 o Brasil chegou
a registrar uma morte por homofobia a cada 23 horas3, sendo conside-
rado por diversas associações um dos países que mais mata homosse-
xuais na América Latina. Para além desse dado, devemos reconhecer
que somos ainda uma nação que pouco trata de gênero e sexualidade
com os nossos jovens. Falar sobre sexo, por exemplo, é um tabu para
uma parcela significativa da população nacional.
Em função do contexto descrito anteriormente, defendemos que a
escola deve ser um espaço de discussão sobre gênero e sexualidade,
sem tabus e preconceitos, uma vez que a experimentação da sexuali-
dade é o drama da ocidentalidade e da colonialidade. Nesse sentido,
Almeida (2018, p. 146) sustenta que “o ensino de línguas [...] deve
ser feito conjugado a seus valores sociais, culturais, políticos e ideoló-
gicos de modo que a disciplina se torne meio para a formação de cida-
dãos”. Em uma abordagem similar à de Almeida (2018), Tonelli (2021,
p. 59) propõe o conceito de interculturalidade crítica decolonial que,
por sua vez, “rompe com a narrativa de simples troca entre culturas
que minimiza as relações que subjazem essas trocas e faz emergir no-
vas formas de pensar e ser”. Os dois autores, pelo viés do letramen-
to queer (ALMEIDA, 2018) ou da interculturalidade crítica decolonial

3 Fonte: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/05/17/brasil-registra-uma-morte-
-por-homofobia-a-cada-23-horas-aponta-entidade-lgbt.ghtml. Acesso em: 13 jan. 2022.

273
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

(TONELLI, 2021), caminham por um mesmo lugar: a construção de uma


sala de aula de língua espanhola culturalmente sensível ao descobri-
mento do outro e de novas formas de ser, existir e resistir no complexo
mundo por nós habitado.
Acreditamos que uma das formas de desconfigurar o dispositivo
colonial na escola se dá pela consciência crítica e reflexiva da língua e da
linguagem. Enquanto sujeitos discursivos, temos contato com inúme-
ras práticas linguageiras que tentam definir quem somos, o que somos
e o que podemos ser diante de categorias binárias de gênero e sexu-
alidade. Durante parte da nossa vida, também escutamos que meni-
nos são mais fortes e meninas são frágeis, ou que meninos vestem azul
e meninas vestem rosa4. Se é verdade que a língua e a linguagem são ca-
pazes de nos repreender e oprimir, em contrapartida, “aliviar a dor e o
sofrimento também pode ser feito por meio das diversas linguagens
e os usos que fazemos dela” (SILVA JÚNIOR; MATOS, 2019, p. 106).
Nesse contexto, o lócus de enunciação (BAPTISTA, 2021) assu-
me a tarefa de reconfigurar práticas docentes na sala de aula, através
de perspectivas decoloniais de ensino-aprendizagem de uma língua,
possibilitando ao aluno desconstruir uma estrutura colonial de língua
e linguagem que o impede de ser e viver para além da rígida heterosse-
xualidade compulsória.
Como mencionado anteriormente, Baptista (2021) afirma que o
lócus de enunciação se constitui a partir dos lugares de fala e das ex-
periências de dor de sujeitos subalternizados, oprimidos e socialmente
silenciados. Em sala de aula, o lócus de enunciação (BAPTISTA, 2021)
promove o empoderamento social de sujeitos que vivem à margem
da sociedade, mas também dá a um conjunto de pessoas a possibilida-
de de acessar lugares de dor, tornando-os mais sensíveis ao sofrimen-
to do outro. Isso nos remete ao conceito de representatividade, afinal

4 A frase fora proferida publicamente por Damares Alves, ministra da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos no governo Jair Bolsonaro. Fonte: https://g1.globo.com/politica/
noticia/2019/01/03/em-video-damares-alves-diz-que-nova-era-comecou-no-brasil-meni-
nos-vestem-azul-e-meninas-vestem-rosa.ghtml . Acesso em: 18 jan. 2022.

274
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de contas, de que forma corpos brancos são representados em nossa


sociedade? Quais os espaços destinados aos corpos pretos nos mate-
riais didáticos que utilizamos em sala de aula? Há representação para
corpos indígenas? E gays? E as mulheres? E as travestis?
Ainda em relação à representatividade, precisamos reavaliar
as narrativas que nos contam sobre a nossa própria história. Quando
pensamos em heróis nacionais, quais imagens projetamos? Aprendemos
na escola que a história também pode ser revelada pelo olhar de he-
róis pretos, indígenas, homossexuais, pobres, mulheres e dissidentes?
Ou cultivamos a única representação de que nossos heróis são homens,
brancos e heterossexuais?
Considerando um processo de reconstrução histórica, no México,
destaca-se a figura de Emiliano Zapata Salazar como um dos mais im-
portantes líderes políticos da chamada Revolução Mexicana de 1910,
que contrariou a ditadura de Porfirio Díaz e criou um movimento de va-
lorização dos povos indígenas. Sobre o zapatismo, Andrade e Fernandes
(2021) sustentam que:

O zapatismo enquanto fenômeno cultural performatiza


outras discursividades, outras poéticas e outras estéticas
em geral, de modo a construir espaços alternativos de iden-
tificação simbólica e imaginária, uma vez que não se vê re-
presentado pelas práticas culturais hegemônicas, que par-
tem de um funcionamento da memória ligado ao processo
colonizador (ANDRADE; FERNANDES, 2021, p. 1159).

Com traços de resistência popular, o zapatismo se opôs ao regime


autocrático de Porfirio Díaz, constituindo-se como um espaço de reivin-
dicação política, mantendo uma agenda cultural que colocou no cen-
tro do debate as práticas colonizadoras hegemônicas. No entanto, essa
agenda cultural-política unificou-se “em torno de um projeto de resga-
te e valorização dos povos ameríndios” (ANDRADE; FERNANDES, 2021,
p. 1159) e dos territórios populares sem, necessariamente, preocupar-

275
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

-se com as questões de gênero e sexualidade que, à época da Revolução


Mexicana, constituíam-se em um tabu ocidental. Nessa conjuntura his-
tórica, cabe reforçar a pergunta: qual imagem cultivamos sobre os he-
róis que contam a nossa história?
Para ilustrar, apresentamos uma foto de Emiliano Zapata:

Imagem 01 – Emiliano Zapata Salazar

Fonte: Banco de imagens do Google.

Em um primeiro momento5, em sala de aula, o professor


de espanhol pode projetar imagens de Emiliano Zapata explicando para
os alunos a importância política desse herói nacional para a Revolução

5 Recentemente publicamos no livro “Leitura literária em línguas estrangeiras/adicionais:


perspectivas sobre ensino e formação de professores”, organizado pelo Prof. Dr. Antonio
Andrade, um artigo intitulado “Osvaldo Bazán vai à escola: uma proposta anti-homofóbica
de letramento literário na aula de espanhol”. Neste texto, apresentamos uma sequência
didática que tem como objeto de estudo uma narrativa escrita por Osvaldo Bazán. Baseado
na proposta de sequência didática (SD) básica, de Rildo Cosson, utilizamos a obra de Fabián
Chairéz na etapa de motivação. Outras ideias sobre como abordar a obra de Chairéz em sala
de aula podem ser conferidas no manuscrito em questão.

276
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Mexicana de 1910. O docente também pode propor associações entre


o movimento revolucionário mexicano e as lutas de resistência ocor-
ridas no Brasil. Em diálogo direto com as aulas de história, é possí-
vel perguntar quais as principais revoltas populares vistas em nosso
país. Conhecem a Revolta da Armada? A Guerra de Canudos? A Revolta
da Vacina? A Revolta de Juazeiro? A Revolução Constitucionalista?
A Cabanagem? A Inconfidência Mineira? Quem são os principais lí-
deres políticos desses movimentos? Conhecem Antônio Conselheiro?
Assistiram ao filme que conta a história de Marighella? O professor
ainda tem a oportunidade de caminhar pelas revoltas que ocorreram
na América Latina. Na Argentina, conhecem o peronismo? Perón é um
líder político? Na Colômbia, sabem o que representa o massacre da ba-
naneira? Na Bolívia, Evo Morales é considerado um líder popular? Qual
a importância de Morales para os povos indígenas?
Em um segundo momento da aula, o professor de espanhol pode
trabalhar o imaginário dos alunos em torno das características físicas
dos líderes políticos. Para isso, são possíveis perguntas para discussão:
a foto de Emiliano Zapata corresponde à imagem de um herói políti-
co? Quais as características físicas de um herói nacional? São homens?
São fortes? São masculinos? Vocês conhecem algum líder político in-
dígena? Preto? Homossexual? Conhecem mulheres que participaram
das lutas populares? Já ouviram falar sobre Olga Benário Prestes?
Conhecem algum herói nacional gay?
Após iniciar este debate, o docente deve apresentar aos alunos
o trabalho de Fabián Cháirez. Faz-se interessante explicar que se trata
de um jovem artista plástico, nascido em Chiapas, um estado do Sul
que faz fronteira com a Guatemala, em 13 de dezembro de 1987, e que,
por essa razão, os estudantes poderão se conectar com a atualidade
do seu projeto artístico, sobretudo, pelo uso de redes sociais, como
a conta do artista no Instagram (@fabian_chairez).

277
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

É importante que, antes de levar a obra de Cháirez para a esco-


la, o docente conheça características do projeto artístico em questão.
Quando propomos a abordagem de materiais literários em sala de aula,
por exemplo, costumamos afirmar que o professor só pode debater
um texto literário que tenha sido plenamente lido por ele. De forma
similar, ao sugerir um trabalho com uma pintura, o professor precisa
estudar os traços e características dessa obra. Isto posto, Hachén (2020)
faz uma análise da arte de Cháirez:

La prolífera obra de Cháirez navega mares sinuosos, for-


zando los límites y haciendo caer los pilares de la mas-
culinidad. Atrevida, contestataria y cruda está poblada
de cuerpos morenos que escapan a los arquetipos bina-
rios, monjas y curas lascivos, dagas desveladas, luchadores
de masculinidades interpeladas y femineidades irreveren-
tes. Es, sin duda, una obra que, en conjunto, provoca re-
acciones disímiles, pero nunca pasa inadvertida. Recuerdo
machos férreos vestidos de quinceañeras, desnudeces
bellas y procaces, artificios sexuales y apelaciones polémi-
cas a las tradiciones más arraigadas (HACHÉN, 2020, p. 09).

Em linhas gerais, o projeto artístico de Fabián Cháirez redesenha


as masculinidades com traços de feminilidade, tendo como resultado
a redefinição da imagem de personagens históricos, aproximando-os
de um mundo feminino. Para exemplificar, apresentamos uma pintura
de Emiliano Zapata:

278
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Pintura 01 – La Revolución, de Fabián Cháirez

Fonte: Imagem retirada do site fabianchairez.com/product/la-revolucion.

Com as duas imagens de Emiliano Zapata projetadas, o profes-


sor precisa motivar os alunos a realizarem uma análise comparativa
entre a fotografia original do líder mexicano em contraposição com a
pintura ‘La Revolución’. O próprio título da obra de Cháirez merece re-
flexão. Qual a revolução proposta pelo artista plástico? A Revolução
Mexicana de 1910 da forma como nos contam ou a reconstrução da his-
tória do México sob o olhar revolucionário de homens feminilizados?
Hachén (2020) avalia o quadro anterior com as seguintes palavras:

La figuración ecuestre muestra al líder mexicano desnudo,


con sombrero rosado, recorrido por una cita con los colores
de la bandera y tacones en forma de revólveres. El cuerpo
“afeminado” (u “homosexualizado”) dialoga con la mas-
culinidad presupuesta. El caballo, por su lado, hace os-
tentación de su “bravía” con su genitalidad en excitación.
Sin paisaje ni contexto alguno esta representación de La

279
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Revolución mexicana se escapa de la historia oficial para


dar lugar a una nueva concretización que centra su mirada
en las ausencias (HACHÉN, 2020, p. 09).

Pelas características da obra de Cháirez, já apontadas por Hachén


(2020), dentre as quais destacam-se uma feminilização do corpo
de Emiliano Zapata a partir da utilização de um sapato de salto alto,
mas também por uma performance relacionada ao feminino6, não é di-
fícil imaginar que ‘La Revolución’, exposta no importante Palacio de las
Bellas Artes, na Cidade de México, causou ruído na sociedade daquele
país7. Um texto8 publicado por Carmem Morán Breña (2019) no Jornal
El País sintetizou os protestos de grupos favoráveis e contrários à ex-
posição de Fabián Cháirez. O primeiro grupo aponta a liberdade das ar-
tes como característica que sustenta a exposição do artista mexicano.
O segundo, defende que Cháirez não faz artes, mas provoca a sociedade
com obras tidas como ‘desrespeitosas’.
Em um terceiro momento da aula de espanhol, o professor pode
questionar se os alunos conhecem obras de arte que foram censuradas
ao longo da história. Também é válido perguntar qual a opinião dos es-
tudantes sobre ‘La Revolución’, de Fabián Cháirez. Como prática de lei-
tura crítica, os discentes podem ler o texto “Zapata en femenino: la po-
lémica en México cuestiona la función del arte”, publicado no Jornal
El País. A aula, nesse direcionamento, tem a possibilidade de propor-
cionar dois tipos de discussão. Primeiramente, abordar uma reflexão

6 A obra de Cháirez é apenas uma das muitas (e múltiplas) representações do feminino. Dito
isto, não se pode pensar que a feminilização é vivida, pensada e expressa de uma única
maneira, tal como propõe Cháirez.
7 No Brasil, a recepção de um quadro intitulado Criança Viada, de Bia Leite, exposto pelo
Banco Santander, no Rio Grande do Sul, obteve uma recepção parecida com a obra de Fabián
Cháirez no México. Uma análise do episódio pode ser lida em uma publicação nossa: COSTA
JUNIOR, J. V. L da; SILVA, R. R. da. Linn da Quebrada e Criança Viada: uma leitura das artes
do presente a partir da filosofia deleuze-guattariana. Revista Estação Literária, v. 20, p.
191-203, 2018. Disponível em: https://www.uel.br/revistas/uel/index.php/estacaoliteraria/
article/view/31036/23403. Acesso em: 21 abr. 2022.
8 Fonte: https://elpais.com/cultura/2019/12/18/actualidad/1576696416_401418.html. Acesso
em: 19 jan. 2022.

280
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

sobre o estatuto das artes do tempo presente, a partir de temas como:


O que é arte? É possível definir o conceito de artes? O que é censura
no campo das artes? A arte incomoda? Em seguida, levar o debate para
a temática da educação para a diversidade, considerando o conceito
de interculturalidade crítica decolonial (TONELLI, 2021), com vistas
a problematizar gênero e sexualidade como dispositivos decoloniais.
A seguir, recuperamos parte do texto disponível no portal jorna-
lístico mencionado:

Quadro 01 – Excerto do texto “Zapata en femenino: la polémica en México


cuestiona la función del arte”

Muy macho o bisexual


En los últimos días, los defensores del Zapata afeminado, es decir, de la
libertad en el arte, gritaban en las calles: Si Zapata viviera con noso-
tros estuviera. El ripio da qué pensar. Preguntados dos expertos, el es-
critor Pedro Ángel Palou, autor de la novela histórica Zapata, editada
por Booket y el historiador Felipe Ávila, que publicó Zapata. Lucha
por la tierra, la justicia y la libertad (Crítica), ambas versiones no pue-
den ser más dispares.
Palou habla del caudillo del Sur como un hombre alejado de tesis con-
servadoras y de una probable bisexualidad. Menciona una relación
con el yerno del dictador mexicano Porfirio Díaz, Ignacio de la Torre.
“Así que el lema sí Zapata viviera con nosotros estuviera no es históri-
camente muy lejano. Sí Zapata viviera apoyaría las libertades, los dere-
chos humanos, a las minorías”, dice en un correo electrónico.
Por teléfono, Ávila está de acuerdo en que Zapata apoyaría “a los indí-
genas, a los campesinos, la igualdad entre hombres y mujeres, los de-
rechos humanos, los derechos de los niños, la protección del medioam-
biente... pero no estoy tan seguro de si apoyaría los derechos de cuarta
generación, son más recientes, otro contexto distinto al que él vivió”,
dice. Y cita el aborto, por ejemplo, “y las minorías étnicas, religiosas
y sexuales”. Porque, dice, su cultura fue tradicional, machista y rural.
“Era el estereotipo del macho mexicano, tuvo muchas mujeres. No ten-

281
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

go el menor indicio de que fuera homosexual, algo que he comentado


con otros expertos zapatistas, como John Womack. Los historiadores
serios no encuentran indicios de eso”.
Palou se emociona más trayendo a Zapata hasta nuestros días: “No
era muy propenso al arte, pero sí a la estética, de allí su gusto por vestir
bien. La mascada azul que tiene puesta el día en que conoce a Pancho
Villa era de seda azul, por ejemplo, y se mandó a bordar en oro un som-
brero charro para la ocasión. Amaba la música. Tuvo también varias
mujeres además de Josefa Espejo. Manuel Palafox, su secretario lo trai-
cionó por celos. La muerte de Zapata es una venganza de él, una especie
de crimen pasional. Guajiros al servicio de Carranza en Chinameca, sí,
pero delatado por Palafox. ¡Mucha tela de donde cortar!

Fonte: El País.
Disponível em: https://elpais.com/cultura/2019/12/18/actuali-
dad/1576696416_401418.html. Acesso em: 19 jan. 2022.

Com o texto em mãos, o professor pode propor aos alunos


uma leitura coletiva que amadureça o debate realizado nos momentos
anteriores. Nesse caso, tem-se como objetivo pedagógico a interpre-
tação minuciosa do texto jornalístico. Nota-se que um dos subtítulos
do manuscrito é ‘Muy macho o bisexual’ e, a partir daí, o professor deve
favorecer a interpretação dos efeitos de sentido de uma oração que se
constrói por meio de uma oposição: da imagem de Zapata como um ho-
mem muy macho ou bisexual. O subtítulo revela um binarismo de gê-
nero em torno da figura do líder mexicano e aponta para um trabalho
colonial com a linguagem. O dicionário da Real Academia Española (do-
ravante RAE) apresenta pelo menos 17 significados para o termo ma-
cho, dentre os quais destacamos 039:

Hombre en que supuestamente se hacen patentes las ca-


racterísticas consideradas propias de sexo, especialmente
la fuerza y la valentía;

9 Fonte: https://dle.rae.es/macho?m=form . Acesso em: 20 jan. 2022.

282
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Para dirigirse a una persona de sexo masculino;


Dicho de una cosa: Fuerte, vigorosa.

A partir das acepções terminológicas anteriores, inferimos que os


efeitos de sentido no título ‘Muy macho o bisexual’ fortalecem um bi-
narismo de gênero que se arquiteta em torno da conjunção coordena-
tiva adversativa (o, em espanhol, e ou, em português) e reforça a ideia
de que o homem heterossexual é o macho, enquanto esta característica
não é estendida aos homens que são, por exemplo, bissexuais. Cabe
ainda uma reflexão sobre o advérbio muy em espanhol, o qual funciona
como um intensificador da qualidade de macho atribuída a Emiliano
Zapata. Portanto, o subtítulo do Jornal El País estimula uma estrutu-
ra colonial de língua e linguagem presente nos significados da pala-
vra macho no Dicionário da RAE. Por outro lado, quando pesquisamos
o significado da palavra bisexual, no mesmo dicionário, encontramos
apenas 03 acepções10:

Dicho de una persona: inclinada sexualmente hacia indivi-


duos de uno y otro sexo;
Perteneciente o relativo a la bisexualidad o a los bisexuales;
Dicho de un organismo. Que posee ambos sexos.

Embora haja uma limitação conceitual para a palavra bisexual,


percebemos que, diferentemente do termo macho, o qual é caracteriza-
do por adjetivos como fuerte, valente e vigoroso, a bissexualidade não é
descrita com adjetivos qualificativos. Tendo debatido os significados
das palavras macho e bisexual a partir do dicionário da RAE, e após discu-
tir os efeitos de sentido do uso desses mesmos termos no artigo do jor-
nal El País, o professor pode retomar a pintura ‘La Revolución’ e ques-
tionar de que modo a obra do artista mexicano desestabiliza os usos
coloniais que fazemos com a estrutura da língua, a partir dos funcio-
namentos discursivos impressos no artigo jornalístico. Algumas suges-
tões de perguntas são: Adjetivos como fuerte, valente e vigoroso podem
10 Fonte: https://dle.rae.es/bisexual?m=form. Acesso em: 20 jan. 2022.

283
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ser empregados para qualificar sujeitos bissexuais? O texto do jornal


associa a imagem do bissexual a características femininas?
Após o trabalho em torno do título do artigo, o professor pode in-
terpretar a opinião dos dois autores sobre uma possível bissexualidade
em Emiliano Zapata. O foco da problematização volta-se para a ima-
gem de um herói nacional que destoa da heterossexualidade compulsó-
ria. Desse modo, por meio dos efeitos de sentido mobilizados no artigo
do Jornal El País, da terminologia do dicionário da RAE e da abordagem
da pintura de Fábian Cháirez, a aula de espanhol transforma-se em um
espaço para desarticular o dispositivo colonial de gênero e sexualidade
através da consciência crítica e reflexiva em torno do uso da língua e da
linguagem a partir de um lócus de enunciação (BAPTISTA, 2021) que dá
visibilidade a sujeitos silenciados e apagados da história oficial.

Considerações finais

Nos últimos anos, a área de Linguística e Literatura tem trazido


importantes contribuições sobre o caráter (de)colonial da língua e da
linguagem. Partindo do pensamento de Aníbal Quijano (2005) e de
Joan Scott (1995), colocamos em pauta como as categorias de gênero
e sexualidade tornam-se dispositivos hegemônicos que dão sustenta-
ção a um projeto de poder/ser colonial.
Além da discussão teórica, também sugerimos um diálogo entre
os estudos decoloniais e a sala de aula de língua espanhola. A partir
de uma pintura intitulada ‘La Revolución’, de Fabián Cháirez, mostra-
mos como o professor de espanhol pode trabalhar o nosso imaginário
sobre a reconstrução da história pelo olhar de sujeitos que não cos-
tumam fazer parte de uma narrativa oficial, mas que integram o que
Baptista (2021) nomeia de lócus de enunciação.
Neste capítulo, não nos propusemos a apresentar uma sequên-
cia didática detalhada em torno da obra de Cháirez. No entanto, nos-
sa proposta tentou preencher pelo menos duas lacunas pedagógicas:

284
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

i. em uma aula de espanhol, a partir do trabalho com uma pintura


de Fabián Cháirez, o professor é capaz de reconfigurar o lócus de enun-
ciação (BAPTISTA, 2021), permitindo que vozes subalternizadas ocu-
pem lugares de fala mais participativos no Sul Global; e ii. a aborda-
gem da obra do artista plástico mexicano reveste a aula de espanhol
de representatividade, podendo incentivar alunos que destoam do pa-
drão heteronormativo a serem protagonistas de suas próprias histórias
de vida e, também, sujeitos que constroem e reconstroem a história
nacional.

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287
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ENTRE SENTIPENSARES E ARANDUS:


PRÁTICAS DE ENSINO DO ESPANHOL
COMO LÍNGUA LADINO-AMEFRICANA

Natan Gonçalves Fraga (IFPR)

Introdução

Aprender a ser professor/a de línguas (no meu caso, de língua es-


panhola) não acontece somente no espaço e tempo de nossa forma-
ção acadêmica. Perpassa, continuamente, pelo afeto que temos para
com a(s) língua(s), pelo desejo em ser professor/a, pelas vivências
escolares, pela observação de professoras/es que passaram e passam
em nossas vidas e influem sobre a nossa cosmovisão do que é ser do-
cente. Todos esses elementos, em diálogo com minha formação acadê-
mica e com a minha prática em sala de aula, que se iniciou antes do meu
ingresso na graduação, me constituíram e me constituem professor.
A formação acadêmica, se acrítica e não significativa, pode nos le-
var ao sectarismo (FREIRE, 1980) pedagógico que, por não propor um di-
álogo entre os conceitos teóricos/científicos e cotidianos/espontâneos
(VIGOTSKI, 2009), pode conduzir o/a professor/a em formação a buscar
para si a identidade que encontramos muitas vezes no senso comum:
que se limita a ensinar a língua somente como instrumento de comu-
nicação, para a mera promoção acadêmica e profissional. Em muitos
momentos, vejo que minha formação inicial teve essa característica

288
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tão colonial; no entanto, devido ao encontro com professoras/es e com


reflexões de radicalidade freireana (FREIRE, 1980), que tive e tenho,
aprendi e aprendo o que é ser docente. E esse aprendizado diz respeito
aos estudos teóricos que realizo; à minha inserção e interação no mun-
do e no ambiente escolar (como estudante e professor); à reflexão sobre
minhas práticas profissionais, pessoais e em sociedade; à minha práxis
docente; às políticas linguísticas vigentes; aos meus eus. É inevitável
que as experiências de vida componham a identidade do/a professor/a
de línguas. A questão, contudo, é esta: qual a posição/reflexão/(trans)
formação que temos perante essas vivências? Não há ensino de línguas
de forma neutra, uma vez que a língua não se limita a ser um mero ins-
trumento de comunicação: língua é cultura, identidade, discurso, ter-
ritório, história, política, performatividade (URZÊDA-FREITAS, 2011).
Assim, ensinar línguas é um ato político e, por isso, estar no mundo
e com o mundo faz parte da (form)ação docente.
Minhas vivências e experiências como professor de língua es-
panhola e sujeito têm construído em minha práxis docente o desejo
de pensar e agir na perspectiva da decolonialidade1. Tenho lido, ouvido
e refletido cada vez mais sobre uma pedagogia outra, mais humana, li-
bertadora, de epistemes periféricas, decolonial. Assim, minha proposta
é trazer, neste texto, tentativas de práticas decoloniais em minhas au-
las de língua espanhola, desenvolvidas no Instituto Federal do Paraná
(IFPR), Campus Campo Largo, que é hoje o meu lugar de trabalho;
bem como entremear relatos das influências que tive para chegar a es-

1 Entre tantas definições de decolonialidade, identifico-me com a de Leroy (2021, p. 181-


182), quando ele explica que a decolonialidade é o “sentipensar, corazonar e sulear para
fora da modernidade/colonialidade com os oprimidos, os excluídos, os marginalizados, os
subalternizados, os escravizados, os explorados, os esfarrapados, os condenados, os mino-
ritarizados; para fora de um mundo que oprime, invisibiliza e racializa, a todo momento,
quem está fora da lógica moderna/colonial [...] “estar fora de”como um ato de constante
libertação e emersão, que nos exige vigilância e atenção, pois somos produtos e processos
das colonialidades, de um mundo colonizado e racializado [...]”.

289
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

sas práticas, desde os meus estudos acadêmicos até o meu aprendizado


cotidiano com sentipensares2, arandus3 e minhas vivências pessoais.

(Do)minar a língua

– Você fala espanhol muito bem!


– Obrigado!
– Eu aprendi a falar primeiro o quéchua. É a minha língua.
Depois, fui obrigada a aprender a falar espanhol. Mas apesar
da imposição, você já percebeu que não é toda hora que a
gente fala espanhol aqui...
– Sim, já escutei a senhora falando em quéchua com as outras
pessoas.
– A gente é obrigado a saber espanhol para trabalhar, para
estudar, para ter conta no banco, para não enganarem
a gente, para ser cidadão. Mas apesar dessa invasão, a gente
não deixa o espanhol nos dominar.

O diálogo contado aconteceu comigo quando fiz uma viagem pela


Bolívia. Tive a oportunidade de passar uns dias num povoado cha-
mado Yotala, próximo à cidade de Sucre. A senhora do diálogo, Doña
Margarita, era a avó de uma amiga, uma cholita4 orgulhosa das tradi-
ções de sua nação indígena. Tivemos muitas conversas nos dias em que
estive nesse povoado. A conversa exposta me marcou muito e me fez re-

2 O termo sentipensar, criado pelo filósofo Saturnino de la Torre, significa “o processo me-
diante o qual colocamos para trabalhar conjuntamente o pensamento e o sentimento [...],
é a fusão de duas formas de interpretar a realidade, a partir da reflexão e do impacto emo-
cional, até convergir num mesmo ato de conhecimento a ação de sentir e pensar” (TORRE
apud MORAES, 2002, p. 03).
3 Segundo a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), a palavra arandu, em Guarani,
significa “ouvir o tempo, vivenciar, conhecer com a experiência de vida, na relação intrínse-
ca com o ambiente” (APIB, 2020, Online).
4 O termo cholita, na Bolívia, é utilizado para definir a mulher boliviana indígena com a ves-
timenta típica (geralmente as cholitas usam o cabelo preso em duas longas tranças, a típica
saia volumosa e às vezes o chapéu, que varia de acordo com a nação indígena à qual ela per-
tence). Antigamente esse termo era usado de forma depreciativa. Atualmente é sinônimo
de orgulho e empoderamento, além de incluir uma conotação carinhosa.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

fletir sobre essa língua, que faz parte de mim e de minha profissão. Será
que quando buscamos falar com fluência uma língua adicional, a domi-
namos ou ela nos domina?
Desde quando eu era estudante de espanhol, o que mais me cau-
sava motivação nas aulas eram os conteúdos culturais. Estudei com um
livro produzido na Espanha, e justamente por isso os aspectos culturais
e linguísticos predominantes eram os do espanhol peninsular. Contudo,
minha professora era chilena e nos trazia muito do Chile nas aulas.
Apesar de sua partilha em suas vivências e elementos linguísticos, e de
nos levar a festas da comunidade chilena, ela nunca provocou verbal-
mente a reflexão sobre a invisibilidade da América Latina. Este foi o
seu arandu compartilhado comigo: a visibilidade e a representação,
sem a verbalização direta das questões que isso levanta, já têm muito
poder5.
Há visibilidades que mais apagam e/ou distorcem a realidade,
fruto de ideologias coloniais. Por isso é importante pensar e analisar
sobre o lugar que nos é imposto e sobre o lugar que deixa de ocupar
essa visibilidade. Quando algo era mostrado acerca da América Latina
no livro didático com o qual estudei espanhol, ora se referia aos estere-
ótipos ora se referia às curiosidades exóticas. Já a visibilidade dada pela
minha professora tomava um espaço diferente, pois partia de outra
perspectiva, ocupava um lugar de ressignificação. Causava-me afeto,
desejo e surpresa pelo novo, que até então me era distorcido e invisi-
bilizado. A América Latina para mim era invisível até aquele momento.
Foi a professora Nilza, por meio do ensino do espanhol, que semeou
em mim: a língua é a materialização dos aspectos culturais das comu-
nidades que a têm como língua materna.
Chego à minha graduação ainda motivado por todos os elementos
culturais apresentados. Quero entendê-los mais, principalmente sobre

5 Santa Clara e Ferreira (2018) em sua pesquisa sobre materiais didáticos de línguas estran-
geiras, afirmam que todas as linguagens utilizadas em sala de aula são carregadas de ideo-
logias que exercem influência na construção das identidades das e dos estudantes.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

a sua função no aprendizado do espanhol. Desde então, nunca tinha


ido a um país de fala espanhola, e apesar do desejo, sabia que minha
realidade socioeconômica não me permitia. Embora o senso comum
dissesse que o objetivo de aprender uma língua seria para conseguir
um melhor emprego, ou melhor comunicação para viagens internacio-
nais, minha vivência como estudante me mostrava que aprender es-
panhol era como aprender a utilizar um binóculo: conforme eu manu-
seasse as lentes, enxergaria coisas antes nunca vistas por mim a olho
nu. Por esse motivo, escolhi para o meu trabalho de conclusão de cur-
so pesquisar sobre a importância dos elementos culturais no processo
de ensino e aprendizagem do espanhol como língua adicional. Nessa
época, eu já lecionava em escolas de idiomas, algo que foi muito re-
levante para entender melhor as minhas leituras e aplicar em minha
prática os aprendizados da minha pesquisa. Entretanto, ainda sentia
que faltava ir além.
Ao concluir a graduação, comecei a lecionar em escolas de edu-
cação básica. Isso me trouxe uma estabilidade financeira que me opor-
tunizou conhecer países latino-americanos. Desde então, nas minhas
férias de verão eu me planejava sempre para fazer uma viagem, estilo
mochilão6, por algum país da América Latina. Eu dizia que trabalhava
para mochilar. Foi, assim, com essas viagens, mais etnocêntricas que tu-
rísticas, que me dei conta de quão invisível era a América Latina, tan-
to nos livros didáticos que utilizei como estudante e professor, quanto
em minha formação docente. Tais experiências (juntamente com estu-
dos meus sobre os novos documentos oficiais acerca do ensino de es-
panhol no Brasil, surgidos após a chamada Lei do Espanhol 11.161/05)
trouxeram-me à luz a colonização linguística no ensino de espanhol
6 Desde 2007, comecei a fazer mochilões por países da América Latina. Diferentemente dos
mochilões convencionais, em que os viajantes passam por muitos países, eu faço um país
por viagem. Geralmente passo um mês percorrendo algumas cidades de algum país latino-
-americano. O turismo pelo turismo fica como segundo plano, pois a prioridade é conhecer
mais sobre a cultura e o cotidiano desses países. Por isso, na maioria das viagens, hospe-
dei-me em casas de famílias e amigos, e buscava fazer amizades com pessoas que moras-
sem nas cidades em que eu estava. Os países na América Latina que pude conhecer foram:
Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Chile, Peru, Equador, Venezuela, Colômbia e México.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

como língua adicional (ELA) no Brasil. Em vista disso, decido pesquisar


no mestrado sobre a (in)visibilidade da América Latina nos livros didá-
ticos de língua espanhola. Foram muitos os arandus aprendidos nes-
sas viagens latino-americanas que me influenciaram a chegar ao tema
da minha pesquisa de mestrado. No entanto, o que mais me marcou
foi o diálogo que tive com Doña Margarita.
Dominar uma língua. Quando Doña Margarita me trouxe esse
arandu, refleti primeiramente sobre o que estava vivendo na Bolívia.
Via um país que mostrava em muitos cenários percorridos por mim
uma resistência aos modos de ser, pensar e agir impostos pela colo-
nialidade. Depois, trouxe essa reflexão para a minha práxis docente:
que América Latina eu estava visibilizando em minhas aulas? Que dis-
cursos em espanhol estavam (do)minando (em) minhas aulas? Essas
reflexões me mostram o quão político é (e deve ser) o papel do/a do-
cente de ELA.
Urzêda-Freitas (2011) discorre sobre a não neutralidade da lín-
gua, construída pela indissociabilidade de seus elementos socio-histó-
rico-culturais. Parto dessa ideia para refletir sobre o sujeito (do)minar
a língua ou a língua lhe (do)minar. Nesse sentido, a política, a cultu-
ra, a história, o corpo, o território, o discurso, a performatividade e as
identidades são os instrumentos para o (do)minar, isto é: abrir “mi-
nas” e extrair o que de precioso há nelas. Por mais que nos afirmem
o contrário, concordo com Doña Margarita: (do)minar a língua é utili-
zá-la a nosso favor e impedir as suas explorações. A cosmovisão da co-
lonialidade opera por meio da língua do colonizador e essa tem sido
um instrumento colonial/moderno para a manutenção da hegemonia
eurocêntrica. Para tanto, relaciono ao conceito de colonialidade da lin-
guagem, trazido por Veronelli e Daitch (2021), uma vez que por muitos
anos o ensino de espanhol no Brasil, devido à ausência de políticas lin-
guísticas e educacionais, teve esse espaço ocupado pela Espanha de for-
ma hegemônica, invisibilizando e inferiorizando os elementos linguís-

293
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ticos, culturais, históricos, sociais e políticos do espanhol na América


Latina e de seu povo:

A colonialidade da linguagem é o termo que estou propon-


do para nomear um processo que acompanha a colonialida-
de do poder. É um aspecto do processo de desumanização
das populações colonizadas-colonializadas através da ra-
cialização. O problema que a colonialidade da linguagem
propõe é a relação entre raça/linguagem. Uma vez que a ra-
cialização é inseparável da apropriação e redução eurocên-
tricas do universo das populações colonizadas, a relação
raça/linguagem é praticada dentro de uma filosofia, ide-
ologia e política eurocêntricas que incluem uma política
linguística. Desde seu interior, o imenso aparato epistêmi-
co-ideológico da modernidade permite que a imaginação
colonial pressuponha os colonizados-colonializados como
seres menos-que-humanos, expressiva e linguisticamente
(VERONELLI; DAITCH, 2021, p. 91-92).

Portanto, tem sido um ato de colonialidade linguística todo o en-


sino da língua espanhola, como língua materna ou adicional, consi-
derando o viés colonial/moderno e da colonialidade da linguagem
– que materializa em seus discursos a inferiorização (por qualquer ca-
racterística linguística e cultural) do espanhol latino-americano, falado
por grupos e nações colonizadas e racializadas. Apesar da hegemonia
do espanhol peninsular, vejo – a partir de meus estudos no mestrado,
e também na pesquisa em andamento do doutorado – uma mudança
no ensino do ELA no Brasil, sobre a qual reflito a seguir.

“Não sou produto para o mercado”

– Bom, agora que todos nos apresentamos, quero que me


respondam a seguinte pergunta: por que você está estudan-

294
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

do espanhol? Peço que cada um compartilhe conosco as suas


motivações.
– Professor, eu entrei nesse curso porque eu tenho o sonho
de conhecer a Espanha e porque quero me preparar para
o mercado de trabalho. Sei que falar línguas pode me dar
mais oportunidades profissionais.
– Eu não sei se gosto de espanhol, mas como quero fazer co-
mércio exterior, é importante saber falar línguas. E para o mer-
cado de trabalho é preciso saber falar espanhol de verdade.
– Professor, diferente deles, eu quero estudar espanhol por-
que eu gosto muito do idioma. Mercado de trabalho? Eu não
vim aqui aprender espanhol pra ser produto de prateleira.
Eu sou gente, não sou produto para o mercado!

O diálogo transcrito aconteceu em uma aula inaugural de uma


turma de escola de idiomas em que eu lecionava. A expressão “mercado
de trabalho” sempre esteve muito presente nas escolas de idiomas onde
trabalhei, pois muitas delas utilizam desta propaganda: que aprender
a falar línguas traz melhores oportunidades de trabalho. A crítica do es-
tudante sobre o mercado de trabalho dialogava muito com as minhas
inquietações de docente e pesquisador, principalmente nessa época
em que eu estava desenvolvendo a pesquisa de mestrado sobre a invisi-
bilidade da América Latina nos livros didáticos de espanhol, sob o viés
da interculturalidade. Estava eu atendendo a demanda do sistema ca-
pitalista, ao trazer um ensino de ELA que preparava os estudantes a se-
rem produtos comercializados no mercado de trabalho? Lembro-me
de que, com o surgimento do Mercosul, as escolas de idiomas se apoia-
vam muito nesse discurso capitalista e lotavam as salas de estudantes
de espanhol, porém na época em que aconteceu esse diálogo com os
estudantes, o cenário já havia mudado e minha práxis docente também,
mudanças essas que resultaram principalmente de ações políticas.
As políticas educacionais e linguísticas para o ensino do ELA
no Brasil, que surgem de forma sólida após a criação da Lei 11.161/05,

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

mais conhecida como “Lei do espanhol”, tomam uma posição com ca-
racterísticas decoloniais, colocando-se contra a hegemonia do espanhol
peninsular e o sistema colonial/moderno. Surgem políticas linguísticas
que visam a um ensino do ELA que contemple a diversidade cultural
latino-americana sob o viés da interculturalidade, para a integração e a
formação da(s) identidade(s) latino-americana(s). Essas ações políticas
mudam o rumo do ensino de ELA no Brasil, dando início à promoção
de práticas suleares7, possibilitando um processo de ensino e aprendi-
zagem decolonial. Tomo como ponto de partida a Lei 11.161 de 2005,
sobre a obrigatoriedade da oferta do ensino de ELA na educação bá-
sica. É a partir da criação dessa lei que surgem políticas linguísticas
com a finalidade contra-hegemônica de sulear um ensino do espanhol
no Brasil que atenda às necessidades e à realidade dos nossos apren-
dizes, rompendo com o monopólio do ensino do espanhol peninsular.
Algumas dessas políticas são as Orientações Curriculares para o Ensino
Médio (OCEM) e o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD).
As OCEM dedicam, no caderno de Linguagens e suas Tecnologias,
um capítulo exclusivo para o ensino de ELA. O capítulo intitulado
Conhecimentos de Espanhol (BRASIL, 2006, p. 127-164) evidencia que o
ensino de língua espanhola no Brasil tem por objetivo a integração
e identidade latino-americana. Aliás, o documento critica a hegemo-
nia do espanhol peninsular e orienta para um ensino indissociado
da diversidade cultural que contemple a língua espanhola, sob o viés
intercultural:

Essa relação foi marcada também, ao longo das últimas dé-


cadas, por uma hegemonia do Espanhol peninsular, que se
impôs, por várias razões, tanto a professores hispanofalan-
tes latino-americanos quanto a professores e estudantes
brasileiros, levando à consolidação de preconceitos, à ca-

7 O termo sulear, utilizado por Freire (2015) em sua Pedagogia da esperança, representa uma
mudança ideológica em relação à palavra nortear. O uso do termo busca valorizar primeiro
as epistemes locais e do nosso Sul Global.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

muflagem das diferenças locais e ao apagamento de dife-


rentes culturas e manifestações linguísticas que configu-
ram a diversidade identitária do universo hispanofalante
(CAMARGO apud BRASIL, 2006, p. 128).
[...] os objetivos a serem estabelecidos para o ensino
de Língua Espanhola no nível médio devem contemplar
a reflexão – consistente e profunda – em todos os âmbitos,
em especial sobre o “estrangeiro” e suas (inter)relações
com o “nacional”, de forma a tornar (mais) conscientes
as noções de cidadania, de identidade, de plurilinguismo
e de multiculturalismo, conceitos esses relacionados tanto
à língua materna quanto à língua estrangeira. Para tanto,
é necessário levar em conta não só a língua estrangeira,
mas, também, a realidade local/regional onde se dá o seu
ensino (BRASIL, 2006, p. 149).

Já o PNLD, entre os anos de 2006 a 20158, tornou-se, para a con-


solidação do ensino do ELA na educação básica, uma política pública
e linguística que visava a contemplar, nos livros didáticos seleciona-
dos, a diversidade cultural do espanhol e as necessidades do aprendiz
brasileiro numa perspectiva intercultural. A diversidade cultural e a
interculturalidade faziam parte dos critérios de seleção, pois, segundo
o PNLD, os manuais de espanhol precisavam contemplar:

[...] em uma concepção de ensino de língua estrangei-


ra associada à formação de cidadãos engajados com o
seu entorno e com o de outras realidades socioculturais
no Brasil e em outros países. O foco na formação do lei-
tor crítico e a viabilização do acesso a diversas situações
de uso da língua, bem como de seus propósitos sociais, fo-
ram elementos fundamentais para a constituição dos cri-
térios de avaliação adotados, que se reportam a uma visão

8 A última seleção de livros didáticos de ELA foi no ano de 2018. Apesar disso, o guia de sele-
ção de 2018 teve embasamento educacional e critérios diferentes dos anos de 2006, 2011 e
2015. Por isso, não citamos a última seletiva do PNLD para os manuais de espanhol.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de escola defensora do acesso ao conhecimento, da valori-


zação da pluralidade do patrimônio sociocultural brasilei-
ro, bem como dos aspectos socioculturais de outros povos
(BRASIL, 2015, p. 07).

Ambos os documentos oficiais, OCEM e editais do PNLD, eviden-


ciam que o ensino de língua espanhola na educação básica no Brasil
não deveria limitar-se a seus elementos linguísticos, sendo preciso
considerar uma abordagem que contemplasse a diversidade sociocul-
tural de forma intercultural (até então desconsiderada), dando visibili-
dade à América Latina.
O construto teórico desses documentos oficiais mostra-nos ainda
uma mudança no ensino de ELA, que antes tinha uma abordagem euro-
cêntrica, com elementos linguísticos, funcionais e socioculturais do es-
panhol peninsular. Nesse sentido, propõe-se a não ter mais um norte,
e sim um sul, com uma concepção de ensino de epistemologias do Sul
e para o Sul, por meio da decolonialidade e de um pensamento dialógi-
co entre nações irmãs do continente latino-americano a partir de lín-
guas também irmanadas. Assim, abre-se espaço à reflexão e ao diálogo
com as teorias da Linguística Aplicada, em interface com a educação
decolonial, com a práxis docente, com a América Latina e a perspectiva
da interculturalidade no ensino da língua espanhola.
No entanto, volto à parte em que mostro a fala do meu estudante,
que me foi um importante arandu. Na época, estava pesquisando e len-
do trabalhos para a escrita da minha dissertação de mestrado sobre
os temas que os documentos oficiais propunham. Em diálogo com meus
estudos e prática docente, esse arandu me fez questionar: é suficiente
contemplar a diversidade linguística e cultural latino-americana sob o
viés intercultural para combater uma educação que busca preparar es-
tudantes para serem “produtos expostos nas prateleiras do mercado
de trabalho”? Termino o meu mestrado e minhas leituras seguem, jun-

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tamente com o tempo e com minhas vivências como docente. Essas,


por sua vez, me conduzem à resposta: não, não é suficiente!
Tivemos um grande avanço nas políticas do ensino de ELA na pri-
meira década dos anos 2000, e apesar do retrocesso que vivemos, com a
revogação da Lei do Espanhol, as ações políticas de avanço reverbe-
ram até hoje. Porém, é preciso ir além para que tenhamos um ensino
decolonial: é preciso questionar/entender qual América Latina é (in)
visibilizada e (des)construída nesse processo de ensino e com isso con-
frontar e agir.
Nesse espaço em que o espanhol deu início a uma aprendizagem
sulear, não cabe uma concepção cuja formação histórico-político-cul-
tural seja exclusivamente europeia e branca, mas sim uma Améfrica
Ladina9, que revela de “dentro” as conexões entre as experiências de re-
sistências dos povos originários e da diáspora (GONZALEZ, 1988). Além
disso, é preciso desconstruir esta América Latina de perspectivas colo-
nialistas, as quais rechaçam os espaços periféricos em prol de fortalecer
a hegemonia dos grandes centros de prestígio. Para tanto, esse espa-
ço de visibilidade e construção de uma Améfrica Ladina indissociada
do ensino de espanhol não pode se limitar a uma prática intercultural
funcional ou relacional, mas sim a uma pedagogia intercultural crítica,
pois, na concepção de Walsh (2010):

Con esta perspectiva, no partimos del problema de la di-


versidad o diferencia en sí, sino del problema estructu-
ral-colonial-racial. Es decir, de un reconocimiento de que
la diferencia se construye dentro de una estructura y ma-
triz colonial de poder racializado y jerarquizado, con los
blancos y “blanqueados” en la cima y los pueblos indígenas
y afrodescendientes en los peldaños inferiores. Desde esta

9 O conceito de Améfrica Ladina (González, 1988) contempla uma América Latina não defi-
nida e determinada pela colonialidade, mas uma América Latina outra, africana e andina,
invisibilizada, marginalizada, subalterna, periférica, contra-hegemônica. Revela as cone-
xões entre as experiências de resistências e os saberes ancestrais dos povos originários e da
diáspora, dando visibilidade às histórias secularmente apagadas.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

posición, la interculturalidad se entiende como una herra-


mienta, como un proceso y proyecto que se construye des-
de la gente -y como demanda de la subalternidad-, en con-
traste a la funcional, que se ejerce desde arriba. Apuntala
y requiere la transformación de las estructuras, institucio-
nes y relaciones sociales, y la construcción de condiciones
de estar, ser, pensar, conocer, aprender, sentir y vivir dis-
tintas (WALSH, 2010, p. 78).

Ou seja, um ensino de epistemologias do Sul e para o Sul nas aulas


de ELA não pretende possibilitar um diálogo sem reflexão e criticidade
entre as culturas do/a aprendiz brasileiro/a com a diversidade cultu-
ral latino-americana do espanhol, tampouco visibilizar uma América
Latina pelas lentes coloniais, onde há uma imposição da colonialidade
do poder, do saber e do ser (QUIJANO, 2005), mas sim construir visi-
bilidade a uma Améfrica Ladina tendo como base a interculturalidade
crítica, sob a perspectiva decolonial.
Estas conclusões me levaram a pensar em práticas outras em sala
de aula, as quais compartilho na seção seguinte.

Ataca+ama

– Bea, que linda e forte essa peça que vocês apresentaram!


Gosto da proposta de vocês apresentarem na rua, para que as
pessoas possam ter acesso à arte.
– Sim, Natan, queremos que a arte e a consciência política
cheguem para todos.
– Eu aprendi muito com essa peça. Não sabia que no Chile
a educação pública não era gratuita. Sempre foi assim?
– Não, meus pais fizeram o ensino superior de forma gratuita,
mas isso foi antes do Pinochet tomar o poder...

300
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

– Eu ouvi mesmo algumas pessoas criticando a peça porque


vocês estavam criticando a ditadura. Essas pessoas acabaram
indo embora.
– Sim. Há muitos conservadores no Chile... Você já ouviu falar
no deserto de Atacama?
– Sim, quero muito conhecer!
– Sabia que é o deserto mais seco do mundo? E mesmo assim
há épocas em que nascem flores! Isso acontece com intervalo
de anos. Quando o clima sai da sua rota normal, com o fenô-
meno “el niño”, chove no deserto e as sementes jogadas por lá,
adormecidas, despertam e acontece o inesperado: um deser-
to florido. Deixa eu te mostrar uma foto que tenho no meu
celular.
– Nossa! Realmente é lindo! Para mim era impossível ver flo-
res brotando num deserto.
– Sim, Natan. O Atacama é o lema do nosso grupo de tea-
tro. Mesmo quando olhamos ser impossível nascer flores,
lançamos as sementes, pois sabemos que a chuva virá, ainda
que tarde, mas virá e essas sementes brotarão e farão um de-
serto florido. Além disso, a palavra Atacama é o nosso lema,
pois vemos nela a junção de duas palavras “ATACA+AMA”.
Com nossa arte atacamos o sistema, mas usamos a arte para
levar essa crítica e reflexão às pessoas com o amor.

A história contada anteriormente aconteceu em uma viagem


que fiz pelo Chile, em que fiquei hospedado na casa de uma amiga
que era atriz. Isso me oportunizou conhecer muito da cultura e da arte
chilena. Anos depois, começo a ler sobre decolonialidade e ver total
relação com minhas pesquisas e reflexões docentes. Ao mesmo tempo
em que essas novas leituras abrem a minha visão, elas também me tra-
zem um desânimo ao me mostrar o quão difícil é entender, agir e ser
decolonial neste sistema-mundo. No entanto, minha memória resgata
esse arandu da minha amiga chilena, que me veio como sopro de ânimo:
flores que brotam no deserto, “ATACA+AMA”. São palavras tão antôni-

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

mas, mas me parecem tão decoloniais, pois elas juntas unem uma força
que rompe com essa binaridade colonialista.
Consolado por esse arandu, me motivo a planejar práticas deco-
loniais em minhas aulas, as quais prefiro chamar de tentativas, e que
têm assumido como tema a Améfrica Ladina, que contemplam as mi-
norias e visões outras de mundo. Juntamente, essas tentativas buscam
desconstruir as visões e concepções hegemonicamente eurocêntricas
que invisibilizam, hierarquizam, racializam e desvalidam os temas pro-
postos. Assim, essas tentativas se inspiram nessa junção “ATACA+AMA”:
do ataque à opressão e hegemonia dominante, por meio da reflexão,
do diálogo, da criticidade e da visibilidade no processo de ensino
e aprendizagem, e do amor como uma das bases para uma educação
linguística que compartilha da visão de língua como ideologia e que
assim visa a uma sociedade mais igualitária, mais equitativa, mais hu-
mana, mais inclusiva.
Compartilho a seguir algumas das minhas sementes de Atacama.

Atividade 1

Esta atividade apresenta algumas informações biográficas


de mulheres militantes pelos direitos humanos na América Latina.
Estas mulheres são: Sara Gomes, Virginia Brindis de Salas, as irmãs
Mirabal, Violeta Parra, Rigoberta Menchú, Comandanta Ramona, Lélia
Gonzalez, Frida Kahlo, Maria Victoria Santa Cruz, Domitila Chúngara,
Dolores Cacuango e Christina Hayworth. Na sua maioria são mulheres
negras e indígenas. A última citada, Christina Hayworth, é uma mulher
transsexual. As informações biográficas estão incompletas. A atividade
inicial é ler e observar como são produzidas as biografias e completar
com as ações que faltam nos espaços em branco contidos nesses textos.
Antes, pergunto às/aos estudantes se conhecem essas mulheres, e se
sim, peço que falem o que sabem delas. Nesta primeira etapa, busco
trazer a visibilidade dessas mulheres para os/as estudantes. Após, abro

302
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

espaço para falarmos sobre a vida dessas personalidades e lanço per-


guntas, tais como: vocês já tinham ouvido falar delas? Vocês concor-
dam que elas são/foram importantes? De qual delas você mais gostou/
se identificou? Por que nunca ouvimos falar dessas mulheres?
A próxima tarefa dada é preparar uma apresentação oral con-
tando mais da biografia de uma dessas mulheres. Depois das apresen-
tações, abro espaço para uma conversa com os/as estudantes e inicio
com as seguintes indagações: por que nunca ouvimos falar dessas mu-
lheres? Porque, quando conhecemos a biografia de pessoas reconhe-
cidas como importantes para a história da sociedade, estas são quase
sempre homens?

Atividade 2

Esta atividade apresenta nove imagens de lugares da Venezuela10,


sem dizer a que país pertencem. Pergunto a eles/as de que país
são aqueles lugares, divido a sala em grupos e peço que respondam
à minha pergunta formulando frases com a perífrase (no) creo que /
(no) me parece que. As imagens utilizadas são opostas às da visão co-
lonial que se tem sobre a América Latina. Assim, muitos/as estudantes
acreditam que as imagens são de países do norte global. Após a re-
velação de que todos os lugares expostos estão na Venezuela, lanço
as seguintes perguntas: por que não pensamos que esses lugares po-
deriam estar na América Latina, em específico, na Venezuela? O que
nos causa o espanto ao descobrir que esses lugares são venezuelanos?
O que sabemos da Venezuela? Em grupos, peço que descrevam em es-
panhol as imagens. A próxima tarefa dada é pesquisar e apresentar so-

10 Os nove lugares da Venezuela apresentados nas imagens são: Los Roques (ilha localizada
no Caribe venezuelano), Salto Ángel (catarata mais alta do mundo), Medanos de Coro (o
único deserto da Venezuela), Pico Bolívar (pico nevado situado na Cordilheira dos Andes, o
mais alto da Venezuela), Colonia Tovar (cidade fundada por alemães, caracterizada por sua
arquitetura germânica), Isla de Margarita (ilha situada no Caribe venezuelano), Pico Espejo
(com acesso por teleférico, é um pico nevado localizado na Cordilheira dos Andes), Caracas
(a imagem retrata a parte moderna da capital venezuelana) e Valencia (conhecida como a
capital industrial venezuelana, é uma das cidades mais populosas do país).

303
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

bre lugares desconhecidos da América Latina que acreditavam não ser


latino-americanos.

Atividade 3

A atividade se intitula Pachamama nos regala la vida. Antes, com-


partilho, com os/as estudantes, imagens que representam Pachamama
e lhes pergunto: quem é Pachamama11? Por que ela nos presenteia
com a vida? A atividade é composta de afirmações que os/as alunos/as
precisam ler e marcar se são verdadeiras ou falsas. Para realizá-las, os/
as estudantes podem pesquisar na internet. As informações referem-
-se ao significado do nome e quem é Pachamama; às práticas culturais
e políticas que a envolvem; à sua importância e relevância na América
Latina. Fazemos a correção da atividade e, juntamente a isso, abro es-
paço para os/as estudantes comentarem sobre essas novas informações
dadas e as pesquisas realizadas por eles/as. Depois, a turma deve retirar
oito palavras das frases afirmativas que mais representam a Pachamama
e justificar suas escolhas. Por fim, como tarefa de casa, os/as estudan-
tes devem fazer uma pesquisa sobre práticas socioculturais na América
Latina que envolvem a Pachamama.

Atividade 4

A atividade é um texto que relata a rotina de uma mulher, casa-


da, professora e com filhos. A descrição da rotina mostra o machismo
estrutural com a ausência do marido na rotina de sua esposa, em es-
pecífico, na divisão das tarefas com os cuidados da casa e com os fi-
lhos. No relato, o marido só aparece no momento do jantar. A proposta
linguística da atividade é completar o texto com os verbos de rotina

11 A tradução mais próxima para Pachamama seria Mãe Terra, divindade andina. O seu nome
é a junção das palavras da língua quéchua pacha, que significa terra, universo, tempo, lu-
gar; e mama, que significa mãe. Para as nossas mentes coloniais, Pachamama é a natureza.
Presente e viva até hoje na América Andina, Pachamama é o modo como os quéchuas e
aimarás “entendiam a relação humana com a vida, com a energia que engendra e mantém a
vida, hoje traduzida como mãe terra” (MIGNOLO, 2017, p. 6-7).

304
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

que faltam. Após, os/as estudantes precisam responder a três pergun-


tas: O que você pensa sobre a rotina da professora Carolina? É igual
à de muitas mulheres que você conhece? Por que o marido só aparece
na rotina ao final? Você acha que o marido deveria estar mais presente
na rotina da família? Por que, mesmo trabalhando fora, é a Carolina
que prepara as refeições, cuida da casa, leva e traz os filhos da escola,
e não o seu marido?

Atividade 5

A atividade é um texto que descreve o cotidiano de Catarina,


uma amiga minha da Guatemala, militante da Via Campesina12 e de
uma organização de mulheres viúvas que surgiu em um conflito arma-
do interno na Guatemala. A proposta desse texto é introduzir o tema
das ações de rotina em espanhol, porém que parte de uma cosmovi-
são latino-americana contra-hegemônica. A respeito do texto, discu-
to com os/as alunos/as as novas informações trazidas por essa amiga,
comparamos com as nossas e lhes ensino, com base no texto e nas
comparações feitas, algumas ações do cotidiano dos estudantes e tam-
bém as horas em espanhol. Ao final, os/as alunos/as devem respon-
der às seguintes perguntas: o que mais lhe chamou atenção na rotina
de Catarina? As atividades que ela desenvolve são importantes para
uma sociedade melhor? O que é Via Campesina?
Apesar de as perguntas das atividades antes descritas estarem
em português, todas elas, como todas as práticas propostas, são em es-
panhol. Ademais, tenho buscado usar nas aulas materiais com elemen-
tos que vão contra a ideologia colonial, que de alguma maneira pro-
blematizam e tomam a atenção dos/as estudantes, em vista do espaço

12 A Via Campesina é uma organização internacional de movimentos camponeses. Segundo


o site oficial da Via Campesina, essa articulação internacional luta a favor da soberania
alimentar; justiça climática e ambiental; solidariedade internacional; direitos dos campo-
neses; agroecologia e sementes camponesas; terra, água e territórios; e dignidade para mi-
grantes e trabalhadores assalariados. Ademais, lutam contra as empresas transnacionais e
agronegócios; o capitalismo e livre comércio; e o patriarcado (VIA CAMPENSINA, Online).

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

que ocupam em minhas aulas. Quando uso imagens para dar exem-
plos ou ilustrar, utilizo de pessoas ou personalidades negras e indí-
genas. Devido a isso, já fui questionado em aula, por exemplo, se as
pessoas brancas são minoria nos países latino-americanos. Os textos
e enunciados utilizados por mim para o aprendizado da língua espa-
nhola, partem, muitas vezes, de elementos socioculturais periféricos,
que tem despertado a curiosidade dos/as estudantes. Alguns me per-
guntam, outros/as pesquisam sobre, e eu tenho provocado o diálogo
para que todas/os participem, reflitam, desenvolvam sua consciência
crítica e compartilhem seus pensamentos e descobertas.

Para finalizar

– Jael, que legal esse sistema de transporte público de bondi-


nho aqui em La Paz...
– Sim, ele é muito prático porque em La Paz tem muitas la-
deiras, e sem contar a vista! Olha que lindo andar com essa
vista...
– Então... esse bairro que estamos perpassando... essas pes-
soas não são pobres, né! Porque daqui de cima dá pra ver que
elas têm carro e que são casas bem estruturadas...
– Não são pobres, não. É um bairro de classe média. Já foi
um bairro mais pobre, mas com o passar dos anos no governo
do Evo Morales muitos melhoraram de vida. Mas porque você
está perguntando isso?
– É que as casas são de tijolo à vista. Por que as pessoas
não rebocam e pintam as suas casas?
– Pra quê? Se essa cor é tão linda!

Esta história, que aconteceu comigo quando fui para La Paz, capi-
tal da Bolívia, revelou-me o quão lento é o processo de desconstrução
e o quanto a colonialidade é enraizada. A necessidade de classificar so-
cialmente os espaços que eu avistava de cima, no bondinho; de ques-

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

tionar o fato de as casas serem de tijolo à mostra... Quando ela me disse


“essa cor é tão linda”, senti uma flor brotar no meu deserto do Atacama.
Nesse processo de desconstrução, penso como possível o concei-
to ch’ixi, de Cusicanqui (2018), como um caminho epistemológico para
reconstruir. A palavra ch’ixi, de origem aimará, é a cor cinza como re-
sultado da justaposição das cores branca e preta. São pontos brancos
e pretos que não se fundem, mas se entrelaçam formando a cor cinza.
Cores opostas que coexistem formando o ch’ixi. São duas coisas ao mes-
mo tempo, formando, juntas, o uno. A proposta desse conceito epis-
temológico de Cusicanqui não funde e nem concilia opostos, mas sim
assume essas contradições e as habita. Um mundo ch’ixi é a composição
de diversas identidades, com suas múltiplas vozes, com a consciência
de suas contradições, com a contraposição de uma homogeneização,
a fim de criar forças para reencontrarmos e recuperar outras formas
de ver o mundo. Ou seja, são os opostos mantidos e, como gesto decolo-
nizador, “rescatarlos de los envoltorios capitalistas, consumistas y alie-
nantes a los que la historia del capital los ha condenado; el liberalismo,
el multiculturalismo estatal y del Banco Mundial, el reformismo, etc.”
(CUSICANQUI, 2018, p. 148). É a reconfiguração a partir do ponto local,
não do zero.
Há muito ainda por aprender e há muito para que a decoloniali-
dade seja uma ação real e sólida. Não há uma fórmula e nem um mo-
delo sobre como fazer que nossas aulas de ELA sejam decoloniais (se-
ria muito colonial se assim o fosse). No entanto, espero que este texto
de partilha de meus arandus e sentipensares – e de minhas tentati-
vas de práticas decoloniais em sala de aula – seja pelo menos uma flor
que brote no deserto.

Referências

APIB. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. 2020. Disponível em


https://www.facebook.com/watch/?v=1290840487789345. Acesso em: 10
maio 2023.

307
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

BRASIL. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Guias de Livros


Didáticos/PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Brasília: MEC,
2015. Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/
acoes-e-programas/programas/programas-do-livro/pnld/guia-do-livro-
didatico/guia-pnld-2015. Acesso em: 10 maio 2023.
BRASIL. Lei Nº 11.161, de 05 de agosto de 2005. Dispõe sobre o ensino
de língua espanhola. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
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BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Orientações
curriculares para o ensino médio: linguagens, códigos e suas tecnologias.
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GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo
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LEROY, Henrique Rodrigues. Dos sertões para as fronteiras e das fronteiras
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MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 32, n. 94, p. 1-18, 2017.
MORAES, Maria Cândida; TORRE, Saturnino de la. Sentipensar sob o olhar
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In: LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais – perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p.
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308
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

SANTA CLARA, Michele Padilha; FERREIRA, Aparecida de Jesus. Identidades


sociais de gênero com intersecção de raça e de classe no livro didático de
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del Convenio Andrés Bello, 2010.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ABRINDO AS JANELAS DA LIBERDADE: ENSINO DE


ESPANHOL À POPULAÇÃO PRIVADA DE LIBERDADE

Thayane Silva Campos (UFRN)

Era uma vez um grupo de jovens estudantes – não falo


de faixa etária porque jovem, como se sabe, é um esta-
do de espírito. Toda sexta-feira eles entravam numa sala
de aula a distância. 16h clavados. De um lado da tela,
los chicos aprendices de español, do outro, jovens estudan-
tes de um curso universitário de espanhol. Era bonito vê-los
reunidos em uma sala da APAC como estudantes de um
novo idioma.
Assim os meses se passaram com ganhos de parte a parte.
Os professores-alunos de Espanhol deixavam a segurança
de suas salas de aula também virtuais para aventurarem-se
na busca por oferecer boas aulas, criativas, estimulantes,
aulas que encantassem seus jovens aprendizes. Alunos
de verdade, com muitas ganas de aprender e também
de colocar o aprendizado em prática, hablando e treinando
as frases que acabaram de ler e ouvir.
Alunos que surpreendiam seus professores a cada encontro
pelas lições de vida, participação atenta, pelas brincadeiras,
alegria contagiante e pela VONTADE, essa palavra que resu-
me muitos sentidos em nossas vidas. Vontade de ser, vontade
de estar no mundo, de avanzar en la vida pese a las dificulta-

310
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

des, e, enfim, muita vontade e gosto pelo saber. Porque, como


disse o grande educador brasileiro, o pernambucano Paulo
Freire, Quem ensina aprende ao ensinar. E quem aprende
ensina ao aprender.
Por Stella Galvão (Viva a los chicos, a nuestros chicos)

Começo este capítulo com um texto escrito para o último dia em


que estivemos na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados
(APAC) de Macau (RN), com o projeto de extensão “Oficinas de Língua
Espanhola para Privados de Liberdade” referente ao ano de 2021.
Dia em que a estagiária Stella Galvão conseguiu colocar em palavras
um pouco do que vivenciamos ao propor que os privados de liberdade,
ou recuperandos1, como são conhecidos no formato da APAC, pudes-
sem assumir o papel de alunos aprendizes da língua espanhola, em vez
de presos criminosos.
“Vontade” foi a palavra da vez de um projeto que ainda não ti-
nha muito claro o que fazer com um grupo, em média, de 16 alunos,
que possuía graus de escolaridade e instrução totalmente diferentes.
“Vontade” esteve presente mesmo quando os estudantes recebiam
um papel e não conseguiam ler naquela língua estrangeira, que era
mais estrangeira ainda por não conseguir ser decodificada por aqueles
que nunca souberam como ler. “Vontade” de aprender, vontade de sa-
ber, vontade de mudar.

Explicando o que é a Associação de Proteção e Assistência


aos Condenados (APAC)

Criada em 1974, em São José dos Campos (SP) por Mário Ottoboni,
a APAC é um modelo de unidade prisional gerida pelo Estado e pela so-
ciedade civil, que se voluntaria a participar, mobilizando e enfatizando
a volta do privado de liberdade ao convívio social. A Associação conta

1 Neste relato também usarei o termo reeducando, discentes, e alunos para me referir às
Pessoas Privadas de Liberdade.

311
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

com uma Metodologia própria a fim de contribuir para que os recupe-


randos não tenham reincidência no crime e consigam reerguer-se após
cumprir pena, mesmo carregando para sempre as marcas de um dia ter
sido preso.
De acordo com dados da Federação Brasileira de Assistência
aos Condenados (FBAC), atualmente no Brasil são 622 APACs3 em fun-
cionamento, que administram Centro de Reintegração Social (CRS)
sem policiais, e 80 APACs em processo de implantação. Atualmente,
no Rio Grande do Norte, estado onde atuo, há apenas uma Associação
em funcionamento, localizada na cidade de Macau, e uma outra em im-
plantação, na cidade de Macaíba.
Sem o intuito de descrever detalhadamente a Metodologia da APAC
e me aprofundar nos pontos positivos e negativos das Associações, cos-
tumo resumir para leigos que se trata de uma prisão sem grades, onde
o preso4, então visto como um bandido criminoso em outras unida-
des prisionais5, recebe olhares mais humanos na APAC e pode traçar
um caminho de estudo, trabalho e disciplina. Além disso, para estar
na Associação, o recuperando precisa ter o apoio da família, que o visita
sempre e tem a oportunidade de construir com ele um caminho mais
esperançoso.
Minha história6 com a APAC começou em 2017, quando ainda
morava no meu estado de origem, Minas Gerais, e pude atuar dentro
da Associação da cidade de Viçosa como professora de espanhol e for-

2 O número se refere a dados consultados em abril de 2022.


3 Há APACs femininas e masculinas. No caso específico deste relato, o trabalho foi realizado
apenas na APAC masculina.
4 Por acreditar que esta nomeação não é nem um pouco humanizadora, uso-a aqui apenas
para retratar a forma como a própria sociedade define ao privado de liberdade.
5 Nestas páginas, a fim de diferenciar a APAC de outros tipos de unidades prisionais, optei
por me referir a essas outras unidades como sistema comum, termo comumente utilizado
na literatura da área.
6 Para mais informações ler a tese “Un pueblo sin piernas pero que camina”: Formação Inicial
de Professores de Espanhol na Educação de Jovens e Adultos Privados de Liberdade, dispo-
nível em https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/31677.

312
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

madora de professores para esse contexto de ensino. No entanto, nestes


escritos me deterei em relatar o trabalho que realizei em 2021, no pri-
meiro ano de coordenação de um projeto de extensão e como docente
do curso de Licenciatura em Língua Espanhola da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN).

Construindo as janelas da liberdade

O projeto de extensão universitária “Oficinas de língua espanho-


la para privados de liberdade” surgiu em 2021 com o objetivo de atu-
ar em duas frentes complementares: possibilitar ao futuro professor
do curso de Licenciatura em Língua Espanhola uma atuação no con-
texto da educação prisional e oferecer aos recuperandos de uma APAC
a oportunidade de aprender uma língua estrangeira.
A primeira frente vem da constatação de que, como nos apon-
ta Campos (2019), os cursos de Licenciatura em Língua Espanhola
não contemplam as escolas das unidades prisionais como campo de es-
tágio ou de futura atuação do aluno em formação. Isso impossibilita
que ao chegar para atuar em uma escola do sistema prisional o docente
esteja preparado para lidar com as particularidades da educação de jo-
vens e adultos para o contexto prisional. Também desconsidera a atu-
ação em tal contexto de ensino como possível local de trabalho do fu-
turo professor. Além disso, a não oferta de oportunidades de ocupação
na educação prisional pode impedir a desmistificação de imaginários
com relação às prisões e aos privados de liberdade no Brasil, o que di-
minuiria os preconceitos para com essa população.
A segunda frente vem do fato de todo cidadão privado de liberda-
de ter direito a estudar. Isso está presente no artigo 26º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), no artigo 205º da Constituição
Federal de 1988, e no artigo 18º da Lei de Execução Penal de 1984.
No entanto, direito não parece ser sinônimo de garantia de cumpri-
mento, já que o acesso à educação não chega a todas as PPL. Tomando

313
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

essa realidade como base e a minha experiência na APAC de Viçosa,


criei o referido projeto para atuação na unidade prisional de Macau
com o intuito de contribuir para essas duas frentes e possibilitar im-
portantes experiências ao futuro professor de espanhol e aos recupe-
randos que estão cumprindo pena na Associação.

A APAC de Macau e o projeto de extensão

Em 2021 a Associação contava com dezesseis recuperandos cum-


prindo pena no regime fechado7. Esse número variava para mais ou para
menos, dependendo da chegada de novos recuperandos e da saída da-
queles que já haviam cumprido pena. No entanto, nunca ultrapassava
os vinte. Havia uma heterogeneidade muito grande entre eles, desde
a idade, sendo o mais novo na casa dos 20 e o mais velho na casa dos 60.
Outro fator de diferença era o da instrução escolar. Cinco dos recupe-
randos não haviam sido alfabetizados e grande parte dos que tiveram
a oportunidade de frequentar uma escola não tinham muita destreza
na leitura e na escrita. Apenas um dos reeducandos se destacava, já que
em tempos remotos havia terminado o magistério e carregava na baga-
gem um histórico de ser um excelente leitor e escritor.
Junto a isto, ainda contávamos com o fato de que as oficinas
não poderiam ser presenciais, tendo em vista que vivíamos a pandemia
da covid-19 e todas as atividades presenciais estavam suspensas, tanto
na Universidade quanto na APAC. Apesar desse cenário, que misturava
mais do que nunca aprendizes com níveis bem diferentes de instrução
e do próprio desafio de oferecer aulas a distância, sem esse contato pre-
sencial com os alunos, as oficinas remotas nos possibilitaram uma am-
pliação do projeto, virando também um campo de estágio para discen-
tes da disciplina de Estágio Supervisionado em Língua Espanhola III8.

7 Obrigatoriedade de permanecer todos os dias em uma unidade prisional, sem direito a saí-
das.
8 Disciplina do 8º período do curso, que obriga o aluno a cumprir horas práticas em um seg-
mento da educação.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Desse modo, ao longo de 2021, o número de extensionistas e de esta-


giários foi crescendo à medida que o projeto era mais divulgado e re-
conhecido em nível local. Nossa equipe iniciou os trabalhos contando
com a minha coordenação, a participação de três alunos voluntários
e de três estagiários, e finalizou o primeiro ano de projeto com sete
voluntários e seis estagiários.

O formato do projeto: ensino, pesquisa e extensão

As oficinas eram aplicadas semanalmente, com duração de 1h30,


pelo Google Meet. A cada semana um professor-aluno9 ou uma dupla
de professores-alunos era responsável por elaborar a oficina, possibi-
litando um sistema de rodízio de atuação. Esse rodízio era usado para
que os alunos tivessem contato com todos os extensionistas do projeto
e para que tais extensionistas tivessem a oportunidade de atuar minis-
trando aulas ao público privado de liberdade. Além disso, também exis-
tia a obrigatoriedade de que aqueles que não fossem ministrar as aulas
naquele dia assistissem às oficinas, para que pudessem ver a didática
adotada pelo(s) professor(es), estivessem a par da temática trabalhada
e em contato mais próximo com os recuperandos, mesmo com esse sis-
tema remoto.
Na prática, esse sistema de rodízio permitiu o desenvolvimento
dos extensionistas como professores em formação, não apenas na prá-
tica do uso da língua espanhola, mas também na criação de uma ideia
sobre as particularidades do ensino aos privados de liberdade. Outro
ponto importante foi o vínculo que os alunos criaram com os profes-
sores-alunos, já que mesmo aqueles que não tinham elaborado a aula
do dia participavam de algum modo. Esse ponto foi chave para o de-
senvolvimento do nosso trabalho, já que estávamos distantes fisica-
mente. A presença de todos do projeto em todas as oficinas mostrou

9 Forma de me referir aos alunos do curso de Licenciatura em Língua Espanhola que eram
voluntários do projeto. Ao longo do texto, como sinônimo, também usarei extensionistas,
docentes e professores em pré-serviço.

315
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

o nosso comprometimento, profissionalismo e carinho com eles, ca-


racterísticas primordiais para pessoas que são muitas vezes esquecidas
e desvalorizadas.
Com relação à elaboração das oficinas, as aulas eram sempre vol-
tadas para alguma temática que envolvesse a América Latina ou que
discutisse sobre realidades vivenciadas por nossos povos, fosse no pas-
sado ou fosse no presente. Eram ministradas em língua espanhola e não
eram voltadas para o ensino da gramática. A partir da minha experiên-
cia, percebi que sistematizar de maneira contínua a gramática não fa-
zia muito sentido para um público em grande parte semianalfabeto
e que tem a língua como uso e não como regras. Além disso, a proposta
do projeto tinha como foco principal o contato com a cultura do outro
e um olhar diferente para a nossa cultura, com o intuito de proporcio-
nar reflexões profundas sobre quem somos, não priorizando o código
linguístico.
Sendo assim, as primeiras temáticas foram escolhidas previa-
mente para que começássemos o projeto com um leque de possibili-
dades. No entanto, ao longo das semanas, novas temáticas foram sur-
gindo tendo em vista o contexto da APAC e o que estava acontecendo
no Brasil, na América Latina e no mundo. É importante ressaltar que,
ao escolher os temas das oficinas, nossos objetivos eram os seguintes:
escolher algo que fizesse sentido para a realidade de um privado de li-
berdade, principalmente no que diz respeito à possibilidade de escutar
deles informações sobre o dia a dia na Associação e levar informações
do mundo aqui fora considerando que éramos um importante canal
de comunicação extramuros.
A estrutura do plano de aula baseava-se em Campos (2019), divi-
dindo-se em três partes. A primeira, o Calentamiento, momento em que
o professor-aluno levava perguntas iniciais para serem contestadas pe-
los recuperandos e que tinha relação com a temática da aula. Era nesse
momento que descobríamos o conhecimento que o aluno já tinha sobre

316
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

o tema que seria exposto e, também, conseguíamos conhecê-lo melhor.


A segunda parte é o que chamávamos de Explicación, que era a hora
que os estudantes tinham contato com um assunto novo e que alterna-
va entre uma parte mais expositiva e outra mais dinâmica: envolvendo
jogos e afins, no intuito de que houvesse uma participação dos reedu-
candos, sem deixar a palavra apenas com o professor. Por fim, a ter-
ceira e última parte do plano era sempre a Práctica, momento em que
os alunos colocavam em prática o que foi aprendido, seja no momen-
to da aula ou recebendo uma proposta de atividade para ser realizada
ao longo da semana e enviada posteriormente para nós. Essa parte final
funcionava como maneira de colocar em evidência que o que eles es-
tavam aprendendo podia ser aplicado na vida deles e, também, como
maneira de refletir sobre o que foi ensinado naquele dia.
O material escolhido para as aulas foi sempre dinâmico, com muitas
imagens e vídeos, considerando os diferentes graus de instrução que tí-
nhamos em sala. Apesar disso, não deixamos de levar textos escritos,
incentivando aqueles que sabiam ler a ajudar aos colegas que tinham
mais dificuldades. Com isso, criamos uma rede de apoio e percebemos
que o conhecimento se dá em conjunto, com cada um acrescentando
a sua bagagem.
Também é importante ressaltar que os planos eram elabora-
dos pensando sempre em um ou mais objetivos para aquela oficina e,
se possível, com funções linguísticas destacadas, para poder sistemati-
zar algo de língua, mas sem tornar isso uma demanda obrigatória.
Após elaborar o plano de aula, o(s) professor(es) me avisavam,
para que eu pudesse revisar e instruir sobre algo particular que precisa-
va ser modificado ou sugerir formas de abordagem distintas das previa-
mente determinadas. O intuito dessa orientação do plano era permitir
que o material continuasse tendo a identidade de quem o elaborou,
corrigir possíveis erros, sugerir mudanças a partir da experiência prévia
que eu já tinha com o público em questão e, até mesmo, deixar que os

317
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

extensionistas cometessem equívocos para poderem amadurecer com a


prática. Sempre os lembrava que o plano era deles e não meu, com isso,
não fazia sentido modificá-lo muito.
Além das orientações dos planos de aula, eu dava o feedba-
ck das oficinas, sinalizando algumas atitudes dos professores-alunos
que poderiam mudar, como o fato de se preocuparem em cumprir todo
o plano de aula e acabarem deixando que os alunos falassem menos.
Como não somos um projeto com um plano de curso a cumprir, podí-
amos suprimir partes do plano de aula, se fosse para dar mais voz aos
estudantes. Também já tive que chamar a atenção dos extensionistas
(principalmente dos mais novos no projeto) por não priorizarem o que
os recuperandos diziam, ao estarem ansiosos com o que deveriam
ministrar.
Apesar de poder contar com a experiência prática da sala de aula,
sabemos que nesse universo não existe prática sem teoria e vice-versa.
Por isso, além do planejamento e aplicação das oficinas, nosso projeto
contava com um grupo de estudos quinzenal para poder discutir teo-
rias e metodologias de ensino que nos ajudassem no trabalho com os
privados de liberdade.
A cada encontro do grupo de estudos tínhamos um artigo para
ser discutido, com perguntas norteadoras para serem pensadas ao lon-
go da leitura ou com uma leitura mais livre. Os temas dos artigos tran-
sitavam entre educação prisional, ensino de língua espanhola, educa-
ção em direitos humanos, ensino de literatura, decolonialidade, entre
outros. O objetivo era contribuir para que os extensionistas criassem
o hábito de ler textos teóricos, associando-os à parte prática do projeto,
pensando no que se relacionava ou não com a nossa realidade. Dessas
leituras também surgiam ideias de temáticas para as oficinas e formas
de aplicar as atividades. Além disso, o encaixe entre teoria e prática
era tão natural que virou costume escrever resumos científicos para
apresentar trabalhos em congressos, propor oficinas e palestras sobre

318
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

o ensino de espanhol à população privada de liberdade aos discentes


do curso de Licenciatura em Língua Espanhola e até a escrita de arti-
gos no formato de relato de experiência como forma de divulgar o que
fazíamos.
Desse modo, ensino, pesquisa e extensão caminharam jun-
tos ao longo do primeiro ano de projeto, permitindo que voluntários
e estagiários naturalizassem a prática docente sempre ligada à teoria
e que vissem na extensão um importante pilar que permite a interação
da universidade com a população em geral.

Do plano de aula à aplicação da aula: um novo jeito de pen-


sar o ensino de espanhol

Como explicitado na seção anterior, ao escolher as temáticas


para as aulas de língua espanhola, nos preocupávamos em propor algo
que fizesse sentido para os alunos, pensando principalmente em auxi-
liá-los a ter, pelo menos, uma noção da língua para uso em seu dia a dia.
Com isso, algumas aulas se destinaram a discutir sobre a rotina deles
e em ampliar o grupo lexical que envolvia partes da casa e tipos de mora-
dia. Nesse momento, optamos por pedi-los que tirassem fotos da APAC,
como forma de usar como exemplo os ambientes que a Associação pos-
suía, além de pedir que eles descrevessem os objetos que cada cômodo
tinha, para também trabalhar esse vocabulário nas aulas.
Depois de saber nomear os ambientes e os itens do lugar onde
viviam, escolhemos falar de uma outra realidade que se fazia bastan-
te presente na época e que precisava ser discutida de alguma forma:
a pandemia da covid-19.

Plano de aula: “El cuidado con la salud y la Covid”

Proposto depois de dois meses do início das nossas aulas, o plano


pretendia trabalhar a temática da covid, com os cuidados de proteção,
além do vocabulário de materiais de primeiros socorros.

319
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Como discussão no Calentamiento, além de incentivar os alunos


a dizerem quem são os profissionais que trabalham em um hospital
e em um posto de saúde, também se discutiu sobre quem acabava sendo
procurado em caso de doenças na falta de auxílio médico. Essa última
pergunta gerou duas discussões importantes: a figura do curandeiro
e da mãe/avó como referência para auxiliar em determinadas enfer-
midades. Isso porque é comum em cidades do interior, principalmente
em lugares com dificuldade de acesso à médicos e hospitais, a busca
por pessoas acostumadas a usar ervas medicinais para o tratamento
de alguma doença. Em alguns lugares, essas figuras acabam por ser
o mais próximo que a comunidade possui de um médico, desse modo,
era preciso considerar sua existência na sala de aula. Não significa
que estamos desconsiderando a formação de um médico ou enfermeiro,
mas é que na sala de aula precisamos valorizar diversos contextos e sa-
bíamos que o público com o qual lidamos poderia levantar essas ques-
tões. Outro ponto que pensávamos que poderia surgir como discussão
para esse momento inicial da aula foi com relação à automedicação,
uma prática comum entre nós, brasileiros.

Posteriormente, como forma de se aproximar ainda mais da expe-


riência deles com a temática, o plano de aula previa perguntar em que
lugar da APAC os medicamentos eram armazenados. Nessa parte,
em específico, um dos recuperandos explicou que os medicamentos
ficavam no almoxarifado, onde tinha uma caixa de primeiros socor-
ros da qual ele era o responsável. Descobrimos, assim, que esse alu-
no era quem cuidava dos outros reeducandos quando um deles estava
com algum problema. Sua prática não invalidava a presença de um mé-
dico ou enfermeiro, quando era preciso, mas indicava como cada um ali
assumia um papel de acordo com o seu perfil. Sendo assim, nessa aula
descobrimos enfermeiro, cozinheiro, professor etc., todos contando
quais eram suas habilidades e como as usavam para o bem do próximo
na Associação.

320
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Para a parte de “Explicación”, o plano de aula continha um vídeo


em que se apresentavam os objetos que, no geral, fazem parte de uma
caixa de primeiros socorros. O objetivo era que os alunos vissem o ví-
deo e anotassem ou guardassem na memória as palavras que tinham
conseguido escutar. Na prática, depois de escutar o vídeo e dizer as pa-
lavras, a professora escreveu no quadro virtual o nome de todo o voca-
bulário que aparecia, para sistematizar essa parte. Em seguida, como
forma de fixar ainda mais o léxico, a docente propôs levar imagens
de itens que compõem uma caixa de primeiros socorros, para que os
alunos dissessem os nomes.

A segunda parte da “Explicación” foi sobre a covid-19, com a pro-


posta de passar um vídeo sobre uma criança que estava vivendo con-
finada, mostrando as diversas atividades que ela realizava para passar
o tempo. Nesse momento, o objetivo do vídeo, além de fazer com que
eles relatassem as atividades que a criança realizava – retomando o vo-
cabulário aprendido em outras aulas – era o de propor uma discussão
mais aprofundada sobre a pandemia, para que eles pudessem dizer
de que maneira foram impactados. Essa reflexão foi muito importante,
pois os privados de liberdade foram vítimas invisíveis da pandemia.

Apesar de essa não ser uma realidade da APAC, no sistema co-


mum as PPL, sem poderem receber visitas, tiveram problemas quan-
to ao acesso a materiais de higiene pessoal, que ficam sempre a car-
go dos familiares. Não se podia pensar em isolamento social dentro
do sistema prisional porque isso é inexistente, além da própria prática
de lavar as mãos com frequência e permanecer de máscara. Os privados
de liberdade ainda tinham que contar com a consciência dos profissio-
nais que trabalhavam nas unidades prisionais, pois se estes não tomas-
sem os devidos cuidados, poderiam levar o vírus para dentro dos muros
da prisão. Não temos até hoje dados concretos sobre o que isso repre-
sentou de vidas perdidas, já que há subnotificação dos óbitos e dos ca-
sos de covid-19 dentro do sistema prisional.

321
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Apesar de a APAC oferecer melhores condições para realidades


como a da pandemia, algo que teve um impacto muito grande na vida
dos recuperandos foi a falta das visitas dos familiares, que depois
de um tempo passaram a ser online, como forma de tentar diminuir
um pouco a saudade. Vale lembrar também que nem todos já estavam
na Associação quando a pandemia começou, logo, alguns dos que esta-
vam ali tendo essa aula viveram de perto o medo da contaminação e da
morte em um ambiente sujo e hostil como costuma ser o do sistema
prisional comum.

Sendo assim, na prática, esse momento da aula surgiu para que os


alunos fizessem esses relatos, expressando, inclusive, a gratidão por es-
tarem vivos e com familiares também vivos. Já outros lamentaram a per-
da de entes queridos e a esperança na primeira dose da vacina, que na
época estava por chegar.

Para finalizar a parte da explicação, como forma de unir o apren-


dizado do vocabulário e apresentar informações sobre os cuidados para
prevenção da covid-19 em língua espanhola, o plano previu passar
uma música colombiana intitulada “Una canción para prevenir el COVID-
19”10. A partir da compreensão da música, os alunos deveriam dizer in-
formações como os sintomas da covid; quais as pessoas têm mais risco;
em caso de sintomas o que deve ser feito etc. Ao contestar cada pergun-
ta, a professora ia sistematizando o vocabulário aprendido nessa parte
da aula, mostrando imagens e a forma de escrita das palavras.

Como parte prática elaborou-se um jogo criado pela professora


intitulado “¿Se puede o no se puede?”, em que a docente mostrava ima-
gens e os alunos deveriam responder se a situação que aparecia era per-
mitida ou não no contexto da pandemia, sendo que a resposta deveria
ser seguida de uma justificativa.

10 Vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Y4h9d53wQ0k>

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

O que o plano de aula e a aula “El cuidado con la salud y la


Covid” nos mostram?

1) Propor como tema de discussão o cuidado com a saúde e o covid


foi tratar de um tema atual para a época, que fazia sentido para os alu-
nos, não nos preocupando apenas em ensinar vocabulário em língua
espanhola, mas também em discutir ações de combate e proteção ao ví-
rus, colocando a aula de língua como lugar desse aprendizado.
2) Pedir para os recuperandos falarem sobre o lugar em que arma-
zenavam os medicamentos e quais eram os itens que possuíam na caixa
de primeiros socorros da APAC foi incentivar que falassem da realida-
de em que viviam, em vez de criar situações hipotéticas para inserir
tal vocabulário.
3) Tocar no tema do que mudou na vida deles com a pandemia
também foi considerar a realidade vivida naquele momento presen-
te, permitindo que os alunos trouxessem angústias e desabafos sobre
o impacto disso em suas vidas. Afinal, a sala de aula também é lugar
de escuta, de cuidado com o outro, principalmente quando os profes-
sores são o contato que eles têm com o mundo extramuros e uma fonte
de informação sobre o que se passa no Brasil e em outros países.
Para Barcelos (2010),

[...] esse cuidado com o outro se manifesta através do cui-


dado com as histórias de todos os participantes, do olhar
para nossas emoções, do experienciar emoções e do reco-
nhecer que elas fazem parte do processo de ensinar, apren-
der, aprender a ensinar e do aprender a formar professores
(BARCELOS, 2010, p. 62).

4) Usar materiais didáticos que prezassem pelo uso de textos ver-


bais e orais foi um cuidado que sempre tivemos que ter, tendo em vista
que nem todos os discentes eram alfabetizados e que não queríamos

323
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

excluir nenhum recuperando das aulas de espanhol. Sendo assim, a es-


colha do material a levar era sempre considerando esta realidade.
Desse modo, ao elaborar um plano de aula para jovens e adul-
tos privados de liberdade, faz-se importante considerar o que Cunha
e Araújo (2015) destacam:

Trata-se de pensar um processo didático capaz de contri-


buir para superar a concepção imposta aos alunos de que
o conteúdo que lhes é ensinado não tem relação com as
suas experiências de vida. Para tanto, se fazem necessá-
rias mudanças no ensino, onde o ponto de partida e de
chegada lhe seja importante, significativo, que tenha rela-
ção com as suas vivências, com os seus valores e com seus
pontos de vista, criando condição peculiar ao ser humano
(CUNHA; ARAÚJO, 2015, p. 361).

Plano de aula: “Vivencia en contexto prisional” – texto


“Intramuros”, extraído do livro Primavera con una esquina
rota, de Mario Benedetti

A temática deste plano de aula se justifica por alguns pontos


que na época discutimos no grupo de estudos. O primeiro condiz com a
vontade em levar para sala de aula um texto literário e uma vontade
maior ainda da literatura latino-americana chegar aos recuperandos,
incluindo o Brasil nisso, evidentemente. O segundo foi a necessidade
de levar temáticas que tivessem relação com o contexto de privação
de liberdade, com o objetivo de ter contato com uma realidade que eles
compreendessem.
Desse modo, falar sobre um contexto de privação de liberdade
na Ditadura, como o texto de Mario Benedetti trata, foi uma forma de fa-
zê-los estar mais próximos da realidade que lhes pertencia. E, como
terceiro ponto para escolha dessa temática, também inserir discussões

324
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

sobre as Ditaduras na América Latina, tendo em vista que não se trata


apenas de um tema do passado que não pode ser esquecido, mas do
momento presente e do momento futuro, já que vivemos uma jovem
democracia, como bem nos lembra Paraquett:

[...] se precisa, minimamente, do dobro do tempo de duração


de uma ditadura para que se comece a pensar que ela se foi.
Considerando que a nossa completou maior idade em 1985
(21 anos), apenas depois de 42 anos (ou seja, em 2027),
será possível falar em democratização (PARAQUETT, 2019,
p. 82).

Como foi exposto no plano de aula, trabalhar com o texto


“Intramuros” tinha como objetivo principal identificar o que havia
de comum entre o personagem e os recuperandos, possibilitando talvez
alguma identificação com a história. Outro objetivo estabelecido foi o
de seguir trabalhando com os verbos no presente do indicativo.
Como Calentamiento, foi proposta a retomada do tema da aula
passada, que se destinou a falar sobre Frida Kahlo e suas pinturas. Essa
retomada também era uma prática comum nas aulas do projeto, já que
possibilitava que os alunos relembrassem o que havia sido trabalhado
e que o docente daquela aula fizesse uma conexão com a aula passada
e a que estava sendo ministrada. Dessa forma, tanto discentes quanto
docentes conseguiam ver uma coerência e uma relação com as temá-
ticas apresentadas, em vez de vê-las como aulas soltas, já que não tí-
nhamos conteúdos obrigatórios a cumprir. Nesse sentido, a relação es-
tabelecida foi a de Frida Kahlo como uma artista que pintou e escreveu
sobre os acontecimentos da sua vida. Em seguida, os alunos teriam
que responder se conseguiam pensar sobre a possibilidade de escrever
ou retratar, de alguma maneira, a realidade que viviam dentro da APAC,
refletindo sobre a emoção que isso causaria. Por fim, o docente apresen-
tou o escritor Mario Benedetti, considerando o que viveu na Ditadura
Militar uruguaia e como isso ficou retratado em sua produção literária.

325
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Após apresentar o autor uruguaio, a proposta foi a de contextu-


alizar o livro Primavera con una esquina rota, indicando época da es-
crita, contexto político e social, significado do nome do livro, relação
da história do livro com a vida de Benedetti etc. Essa contextualização
foi uma constante em nossas aulas, para que os reeducandos compre-
endessem que os textos criados em seus diferentes gêneros discursi-
vos “são produtos da atividade humana e, como tais, estão articula-
dos às necessidades, aos interesses e às condições de funcionamento
das formações sociais no seio das quais são produzidos” (BRONCKART,
2012, p. 72). E no caso específico, ao saber sobre o período de produção
da obra de Benedetti e sobre do que se tratava o livro, foi possível apro-
ximar os recuperandos dessa obra, já que existia algo em comum com a
realidade deles: a prisão.
Depois de uma leitura oral do capítulo “Intramuros”, seguida
de um resumo sobre o que seria lido, foi proposta uma discussão so-
bre os elementos apresentados ao longo da história. Posteriormente,
os alunos seriam convidados a comparar a realidade deles com a do tex-
to literário.
Em seguida foram trabalhadas algumas expressões que apare-
ciam no capítulo para depois o uso de verbos no presente ser colocado
em prática, a partir de um jogo online com frases em que se relatavam
ações e explicava o que faziam, geralmente, em determinadas situações.
Como tarefa final do plano e com o objetivo de colocar em prática
o discutido em sala, os alunos foram convidados a escrever uma carta
para Deus, descrevendo um aspecto da sua realidade na APAC. Como
desafio, os recuperandos deviam tentar escrever cerca de cinco linhas
como mínimo e para os que não sabiam escrever, a proposta foi a de re-
tratar a realidade deles por meio de um desenho e escrever algumas
palavras-chave com a ajuda dos companheiros que conseguiam escre-
ver. Apesar do pedido do docente para que a escrita fosse em espanhol,

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

havia um comentário na parte final do plano que a escrita na língua


alvo naquele momento não era a mais importante.

O que o plano de aula e a aula “Vivencia en contexto pri-


sional” – texto “Intramuros”, extraído do livro Primavera
con una esquina rota, de Mario Benedetti nos mostra?

1) Falar sobre a realidade deles nesse processo de comparação


com o personagem da história foi um momento emocionante e de
grande importância para entender os seres humanos que ali estavam.
Mais uma vez preciso ressaltar que ter esse espaço de escuta para eles
foi fundamental, pois possibilitou momentos de desabafo sobre o pro-
cesso de estar preso, uma realidade que não pode ser deixada de lado
quando lidamos com esse público.
2) Propor uma aula sobre um capítulo da obra de Benedetti
foi debruçar-se não apenas no texto literário, mas também na temá-
tica das Ditaduras na América Latina. Mesmo que este não tenha sido
o foco principal da aula, era impossível ler sobre a realidade de um pre-
so político sem falar sobre a ditadura uruguaia e, por que não, também
a nossa. Abordar temáticas como esta permite uma educação em direi-
tos humanos, que de acordo com Candau e Sacavino:

Promove o sentido histórico, a importância da memó-


ria em lugar do esquecimento. Supõe quebrar a “cultura
do silêncio” e da invisibilidade e da impunidade presente
na maioria dos países latino-americanos, aspecto funda-
mental para a educação, a participação, a transformação
e a construção de sociedades democráticas. Exige manter
sempre viva a memória dos horrores das dominações, co-
lonizações, ditaduras, autoritarismos, perseguições políti-
cas, torturas, escravidões, genocídios, desaparecimentos.
Implica saber reler a história com outras chaves e olhares
capazes de mobilizar energias de coragem, justiça, espe-

327
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

rança e compromisso que favoreçam a construção e exer-


cício da cidadania (SACAVINO, 2000a; MAGENDZO, 2000
apud CANDAU; SACAVINO, 2012, p. 62).

Sendo assim, nossa preocupação maior estava em levar para a sala


de aula temáticas que se relacionassem com a realidade dos recuperan-
dos, mas que também proporcionassem um olhar crítico sobre o passa-
do e o presente, como forma de contribuir para um futuro com cidadãos
mais críticos e cientes de seus direitos.
3) Abordar o presente do indicativo nesta aula veio de uma ne-
cessidade que os professores em pré-serviço apontaram no projeto so-
bre querer trabalhar a gramática de uma maneira mais sistematizada
com os recuperandos. Quando isso aconteceu, tendo em vista a minha
experiência com o público privado de liberdade, eu logo pensei que não
teríamos muito êxito, pois falaríamos de algo muito pouco palpável
para esse público. No entanto, acredito que no processo de formação
de professores é importante considerar a opinião do aprendiz, neste
caso, a dos professores do projeto, e dá-los a oportunidade de vivenciar
erros e acertos na prática docente.
Não foi nenhuma surpresa para mim quando os recuperandos
se sentiram perdidos nas explicações sobre o presente do indicativo
e pedir que eles construíssem frases soltas utilizando esse tempo ver-
bal não resultou em êxito. Após a aplicação dessa aula os extensionistas
do projeto tiveram a clareza de que a gramática poderia estar presente
na sala de aula, mas de maneira mais sútil e sem uma sistematização
como a que geralmente temos nos cursos de língua.
4) Trabalhar com privados de liberdade, principalmente na APAC,
significou levar em consideração, inclusive na temática das aulas, a re-
ligião e as diversas formas de demonstrar fé e crenças. Por regra, todas
as atividades da Associação devem começar e finalizar com a oração
do Pai Nosso. Isso significava que nossas aulas se iniciavam com os

328
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

alunos em pé, fazendo a oração e terminavam desse mesmo modo.


Evidentemente que isso nos levou a trabalhar em uma das primei-
ras aulas o Pai Nosso em espanhol. Fizemos também uma outra aula
em que retomamos essa oração de uma maneira mais profunda, fazen-
do uma leitura discursiva do significado de suas palavras. Essas aulas
permitiram que uníssemos a língua espanhola com a realidade deles
de uma maneira prática e levando o uso do espanhol para o dia a dia
de cada um.
Quando comecei meu trabalho na APAC, em 2017, e fui apresen-
tada a essas regras percebi que precisava me despir de preconceitos,
pois sempre defendi uma educação laica e que não tivesse nenhuma
interferência religiosa. Preparar uma aula sobre uma oração não pas-
sava pela minha cabeça. Mas adentrar os muros desse espaço prisional
me fez ver que o mais importante era adequar as aulas à necessidade
dos alunos, e ignorar a religiosidade deles seria ir contra o ensino hu-
manizador que tanto prego. Desse modo, além da oração inicial e final,
todos os professores do projeto têm o cuidado em pensar como encai-
xar a crença dos recuperandos em nossas aulas.
Nessa atividade em questão, como tarefa prática os alunos foram
convidados a escrever uma carta a Deus, como alusão ao personagem
de Benedetti, que escreve uma carta a sua esposa. Nessa carta eles de-
veriam contar um aspecto da realidade da APAC que lhes parecesse
conveniente. Como resultado da tarefa, recebemos 11 atividades que se
mesclavam entre desenhos e conversas com Deus, sendo que a grande
maioria foi escrita em espanhol.
Na imagem a seguir podemos ver uma carta escrita por um dos re-
cuperandos, pedindo paciência e sabedoria para conseguir a liberdade
e voltar para a família (imagem 1).

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Imagem 1 – Carta a Deus

Fonte: Acervo pessoal.

Como trabalhos realizados, também tiveram muitos que opta-


ram por escrever e desenhar, mostrando o talento que possuem na arte
do desenho. Dentre os trabalhos retratados estão: chaveiro, marcenei-
ro, escultor, carpinteiro (imagem 2), artesão, pedreiro e grafiteiro.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Imagem 2 – O Carpinteiro

Fonte: Acervo pessoal.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Concluindo as janelas da liberdade

De forma resumida, este relato trouxe um pouco da experiência


do ensino de língua espanhola para recuperandos da APAC de Macau.
Com a limitação das páginas, não foi possível esmiuçar tudo o que
o projeto de extensão se propôs a fazer no ano de 2021. No entanto,
deixo nessas linhas finais a essência do que para mim representa ensi-
nar à privados de liberdade.
Como professora universitária de um curso de Licenciatura, vejo
a necessidade de abrir espaços de pesquisa, extensão e ensino que con-
templem a educação prisional como campo de atuação do futuro pro-
fessor, já que “não existe ainda uma política pública de educação defi-
nida para o sistema penitenciário, identificando suas particularidades
e seus problemas e tentando contribuir para a busca de soluções”
(JULIÃO, 2007, p. 30).
Ao trabalhar com as PPL, devemos considerar todo o conhecimen-
to, crenças e histórias que esses indivíduos carregam, fazendo da sala
de aula um espaço de conexão com esses saberes e com os saberes
que serão levados para as aulas. É preciso entender que

[...] desenvolver uma postura comprometida com as mu-


danças do processo de ressocialização do apenado, exige
despir-se de valores e preconceitos com relação a religiosi-
dade, a sexualidade, a raça e a condição social, permitindo
a ele a relacionar o que está aprendendo com os conhe-
cimentos e experiências que já possui (CUNHA; ARAÚJO,
2015, p. 363).

Não exigir a escrita em língua espanhola foi uma forma que en-
contramos no projeto de ganhar mais adesão nas atividades. Como pro-
pusemos um curso sem provas avaliativas, as atividades são realizadas
de maneira opcional. Acredito que limitar o uso da língua espanhola
é uma forma de contribuir para que menos recuperandos escrevam;

332
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

no entanto, isso não impede de incentivá-los ao uso da língua. Na prá-


tica, o que temos são discentes bastante empolgados em tentar escre-
ver na língua espanhola. Além disso, vale ressaltar que um dos funcio-
nários da APAC me procurou em um determinado momento de 2021
para dizer que os reeducandos estavam tão interessados nas aulas
do projeto que ao final do dia, na hora que tinham de descanso, se reu-
niam em conjunto para fazer as atividades e ajudar uns aos outros. Essa
foi a prova perfeita para ter certeza de que estávamos seguindo o ca-
minho certo.
Em consonância com o exposto antes, as propostas de atividades
pós-aula sempre contemplavam todos os alunos, independente de sa-
berem escrever ou não. Dessa forma, se não foi pela escrita, eles pu-
deram realizar as tarefas por meio de desenhos, sendo propostas mais
livres e menos engessadas. Essa é uma outra maneira de levar em con-
sideração o contexto de privação de liberdade, em que a heterogenei-
dade é tão grande que não faz sentido limitar a produção dos alunos
para um modelo apenas.
Diante de tudo que foi exposto nestas páginas, não poderia dei-
xar de terminar este relato evocando o nosso querido educador Paulo
Freire: “Há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa
e a esperança. A esperança de que professor e alunos juntos podemos
aprender, ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir
aos obstáculos a nossa alegria” (FREIRE, 1996, p. 72).

Referências

BARCELOS, Ana Maria Ferreira. Reflexões, crenças e emoções de professores


e da formadora de professores. In: BARCELOS, Ana Maria Ferreira; COELHO,
Hilda Simone Henriques (org.). Emoções, reflexões e (trans)form(ações) de
alunos, professores e formadores de professores de línguas. Campinas:
Pontes Editores, 2010. p. 57-81.

333
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos. Por


um interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado e Péricles
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CANDAU, Vera Maria Ferrão; SACAVINO, Susana Beatriz. Educação em direitos
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334
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

EDUCAÇÃO MULTILETRADA E LÓCUS


DE ENUNCIAÇÃO: ALGUNS MEANDROS
POSSÍVEIS PARA A AULA DE ESPANHOL

Tiago Alves Nunes (UFBA)


Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista (UFBA/PPGLinC/CNPq)

Introdução

Ter presentes a diversidade de língua(gens), de modalidades e de


culturas no âmago do ensino, particularmente no de línguas, assim
como considerar vários outros eixos importantes, tais como: as TDICS
(Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação), o trabalho
com temáticas sociais relevantes por meio das práticas discursivas,
os conhecimentos da formação e do funcionamento da língua na pro-
moção da ampliação de repertórios linguístico e socioculturais não são
novidades nas discussões relacionadas à aprendizagem e ao ensino
de línguas materna ou não materna, sobretudo nos estudos hispânicos
brasileiros nas últimas décadas. Nesse sentido, por meio de uma pes-
quisa simples, é possível encontrar diversos materiais científicos e prá-
ticos na área, com diversas epistemologias e propostas metodológicas.
Nos estudos dos multiletramentos, em especial no que se refere
ao ensino de línguas não maternas, o contexto também não é diferente,
visto que há bastantes artigos científicos que desenvolvem trabalhos

335
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

a partir da pedagogia dos multiletramentos e, ainda, das investigações


em multimodalidade, em particular com propostas de compreensão
desse tipo de investigação, análise e produção de materiais.
Desse modo, o principal objetivo deste texto é proporcionar
uma ampliação do pensamento da práxis pedagógica baseada em uma
educação multiletrada desde os loci de enunciação dos interactantes
na aula de espanhol, com especial foco ao(à) aluno(a), por meio de um
esforço pedagógico distanciado de acepções essencialistas de língua,
de cultura, de modalidades e de linguagens. Esse trabalho justifica-se
porque o ensino da língua espanhola tem passado pelo que chamamos
de chagas pedagógicas, sobretudo no contexto do ensino público, o que
se observa em políticas públicas destrutivas do multi/plurilinguismo
em geral no Brasil.
Como exemplo dessas políticas destrutivas do multi/plurilinguis-
mo no país, podemos citar a retirada da obrigatoriedade da oferta do es-
panhol no Ensino Médio e a omissão da menção a essa língua na Base
Nacional Comum Curricular (BNCC), bem como o projeto de sua ex-
clusão como opção de língua estrangeira no Novo Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM), evidenciado na Minuta do Parecer do Novo
ENEM, elaborado pela Comissão Bicameral de Avaliação da Educação
Básica. Tais orientações ratificam a negação de certas línguas como
um direito, como um recurso e afirmam a diversidade linguística como
um problema, usando os termos de Ruiz (1984).
A despeito dessa maré contra o multi/plurilinguismo e, em es-
pecial, contra o espanhol no Brasil, este artigo se constrói por mean-
dros outros, com o objetivo de subsidiar a reflexão do ensino resistente
que ainda há, com foco na discussão de como uma educação multile-
trada pode contribuir para o processo de ampliação dos repertórios lin-
guísticos e socioculturais dos e das discentes. Para tanto, discutimos,
num primeiro momento, as bases da educação multiletrada (ROJO,
2009; ROJO; MOURA, 2012; CAZDEN et al., 2021) e em que consiste
essa opção epistemológica educativa; em um segundo, tratamos do ló-

336
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

cus de enunciação (BAPTISTA, 2019, 2021; ARGÜELLO PARRA, 2015),


sua pertinência para a educação em geral e sua importância para a edu-
cação multiletrada do espanhol de modo particular e, por fim, mos-
tramos, de modo mais prático, como essas reflexões podem permear
possíveis rotas dos processos educativos por meio das práticas de lin-
guagem em sala de aula de espanhol oriundas do “Sul” do Sul Global.

Educação multiletrada: uma opção de meandro oportuno


e possível

A prática de leitura e produção de textos escritos, orais, multisse-


mióticos, na aula de língua não materna, possui pontos caros a serem
avaliados enquanto aos objetivos dos cursos, da modalidade de ensino
e, ainda, dos(as) discentes. Tendo como base a conjuntura da educação
pública, o ensino e a aprendizagem do espanhol figuram como exclu-
ídos das discussões da BNCC, ainda que, em outras áreas, tais como
a História, a Geografia, constroem-se objetos do conhecimento liga-
dos ao hispanismo, a exemplo do seguinte objeto nesta última disci-
plina: “Identidades e interculturalidades regionais: Estados Unidos
da América, América espanhola e portuguesa e África” (BRASIL, 2018,
p. 390)1. O ensino de língua espanhola, nesse contexto, é um dos meios
não só para se conhecer as práticas discursivas nessa língua e desenvol-
ver os repertórios linguísticos e socioculturais, mas também se consti-
tui em uma ocasião excelente para fomentar, na própria língua espa-
nhola, a diversidade de semioses e de culturas, cerne de uma educação
multiletrada.
Antes, compreendamos alguns pontos até chegar à ideia de
“multi”. O letramento tem sido estudado e aprofundado em relação
ao impacto social e desenvolvimento das práticas de leitura e escri-

1 Há outros questionamentos, aqui, a serem feitos, tais como: o porquê da exclusividade dos
Estados Unidos da América na discussão sobre identidades e interculturalidades, enquanto
para outros, notadamente nações do Sul Global, são postos em grupos, qual seja, a América
Espanhola e, ainda, um continente inteiro formado por cinquenta e quatro países, como é o
caso da África.

337
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ta (KLEIMAN, 1995), tendo relação, ainda, com a alfabetização. Desse


modo, enquanto a alfabetização designa a aquisição e desenvolvimen-
to da leitura e escrita do ponto de vista mais mecânico, motor e estru-
tural, o letramento, de modo geral, consiste na ideia de “um conjun-
to de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico
e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para fins específicos”
(KLEIMAN, 1995, p. 19).
Avançando na discussão, se as práticas sociais são variadas, úni-
co também não poderia ser o letramento; daí pensar-se em letramen-
tos, de forma pluralizada, já que a sociedade é diversa e essas práticas
são contextualizadas, a fim de que se desenvolvam habilidades, dentro
da leitura e da escrita, de modo situado, com finalidades específicas.
Pensa-se, assim, no letramento digital, musical, matemático e tantos
outros. Tendo o espanhol como língua não materna nesse universo so-
cial e discursivo, o sujeito aprendiz, para além de compreender o modo
como se estruturam os textos do ponto de vista da textualidade, deve
conhecer como na língua espanhola se constroem sentidos, ademais
de saber manusear o suporte em que certo gênero está sendo veiculado.
Desde os Novos Estudos do Letramento (NEL), e a partir de um
ponto de vista mais antropológico, Brian Street (2014) caracteriza o le-
tramento com base em um modelo autônomo e ideológico. O modelo
autônomo, por um lado, centra-se no indivíduo e está ligado a capa-
cidades mais estruturais de desenvolvimento e envolvimento em prá-
ticas de linguagem, com tendência a uma desconexão de questões
sociais valiosas, mais neutra e técnica. Já, por outro lado, o modelo
ideológico se caracteriza, conforme assevera Street (2014, p. 14), como
“uma prática ideológica, envolvida em relações de poder e incrustada
em significados e práticas culturais específicas”. Essa última perspec-
tiva é significativa no processo de educação em língua não materna
por possibilitar a ampliação dos repertórios linguísticos e sociocultu-
rais, fazendo com que o(a) aprendiz corra por afluentes outros em dire-
ção a conhecimentos outros e diversos, os quais devem ser lidos, toma-

338
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

dos e experienciados de modo crítico, dentro das condições ideológicas


de existência e produção do artefato comunicativo, considerando a sua
própria situacionalidade social, histórica, política e subjetiva, nunca
em um processo de assujeitamento, sempre de agentividade conscien-
te, ética e crítica.
Com o desenvolvimento das TDICs, tanto no seu nível técnico
quanto no uso dessas pelas sociedades, questionou-se o papel da edu-
cação nesse contexto de diversidade de tecnologias e de linguagens,
passando pela conexão mais encurtada entre os povos, sobretudo
por causa da internet. Ademais, as mudanças sociais na vida profissio-
nal, pessoal e da sociedade de modo geral ajudaram esse processo, para
além dessa questão tecnológica, do ponto de vista político igualmente.
Assim, o Grupo de Nova Londres, formado por vário(a)s teórico(a)s2,
sobretudo da educação, discute a missão desta, explicando que é im-
portante que todo processo educativo possa proporcionar que o(a)s
estudantes participem das esferas de vida pública, econômica e social
(CAZDEN et al., 2021).
Em 1996, o referido Grupo, baseado nessas premissas citadas, pu-
blica o manifesto intitulado A pedagogy of multiliteracies: designing so-
cial futures (Uma pedagogia dos multiletramentos: desenhando futuros
sociais). Em tal manifesto, o grupo advoga que uma pedagogia dos mul-
tiletramentos, no processo de educação, e no nosso caso uma educação
em língua, leve em consideração a multiplicidade de modos semióticos
e a diversidade cultural e linguística, de maneira que perguntas como
as seguintes precisam ser feitas quando da organização das práticas
pedagógicas, no nosso caso, em língua espanhola no âmbito da educa-
ção básica em particular: “de que maneira nós podemos garantir que as
diferenças culturais, de linguagem e de gênero não sejam barreiras
para o sucesso educacional? Quais são as implicações dessas diferenças
para uma pedagogia do letramento?” (CAZDEN, et al., 2021, p. 14). Para
2 O Grupo de Nova Londres é formado pelo(a)s seguintes pesquisadore(a)s: Courtney Cazden,
Allan Luke, Norman Fairclough, Mary Kalantzis, Gunther Kress, Carmen Luke, Sarah
Michaels, Martin Nakata, Bill Cope e Jim Gee.

339
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

além disso, é válido que se questione: que práticas de linguagem são as


dominantes pelos materiais de ensino; que culturas são mais valori-
zadas dentro do rol do universo do “mundo” hispânico (por exemplo,
será que prevalece a dicotomização espanhol peninsular e espanhol
da América, colocando-se de lado o espanhol da/na Ásia, da/na África,
por exemplo?). Assim, a pluriversalidade é algo primordial dentro
de uma pedagogia dos multiletramentos e, portanto, de uma educação
multiletrada.
Do ponto de vista da educação em espanhol no contexto brasilei-
ro, a pluriversalidade indica a variabilidade de linguagens, de línguas
intimamente relacionadas às culturas do hispanismo, assegurando
suas singularidades, distanciando-se de ideias monoculturais, mono-
linguísticas e folclóricas de cultura.
Por meio de uma educação multiletrada, pretende-se, assim, for-
mar sujeitos que pensem a partir da/sobre a língua e a linguagem des-
de um ponto de vista pluriversal, ligando as seguintes características,
pensando numa pedagogia para a promoção dos multiletramentos:

Figura 1 – Mapa dos multiletramentos

Fonte: Rojo (2012).

340
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

De acordo com tal perspectiva, os sujeitos precisam ter o conheci-


mento técnico dos meios pelos quais as práticas de linguagem são ope-
radas, a fim de que se compreenda de que maneira os modos e os textos
geram sentidos. Além disso, o entendimento de dita produção de sen-
tidos não pode ser de forma ingênua, é necessário que se construam
significados de forma crítica, sabendo situar social, política e cultural-
mente as práticas de linguagem, entendendo que essas não são forjadas
nem consumidas em um vácuo ideológico. A partir disso, então, o su-
jeito usa o que foi aprendido em outras práticas de linguagem que pos-
sam avançar criticamente e transformar seu contexto social, histórico,
político e cultural. Portanto,

Uma pedagogia por design, na qual os estudantes preci-


sam se apropriar dos designs digitais disponíveis, isto é,
precisam, é claro, ter conhecimento prático e competência
técnica para ser um “usuário funcional”, mas somente isso
não basta: é preciso também ser um leitor, um analista crí-
tico desses designs disponíveis (textos, infográficos, víde-
os de diversos tipos, esquemas, imagens estáticas, games
etc.). Mas uma pedagogia dos multiletramentos não se es-
gota nos designs disponíveis: ela busca conhecê-los e ana-
lisá-los criticamente para, a partir deles, chegar ao rede-
sign, isto é, a uma produção que se apropria do disponível
conhecido para “criar sentidos transformados e transfor-
madores (ROJO, 2017, p. 9).

É por isso que o conceito de lócus de enunciação é tão relevan-


te e necessário para a consecução das práticas de linguagem, posto
que esse processo transformador de que falamos não se deve apenas
a um contexto situado externo, mas também ao das constituições iden-
titárias, que abrangem os territórios simbólicos que formam e que to-
cam os sujeitos, fazendo com que reconstruam si mesmos(as) e seu
entorno por meio das práticas de linguagem oriundas de uma reflexão
ética, crítica e situada. No nosso caso, é a língua espanhola um dos me-

341
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

andros que conduz por caminhos outros na compreensão do ser, de si


e dos outros.
Para esse modelo de pedagogia, Cazden et al. (2021) pensam
em quatro dimensões que não necessariamente acontecem ao mesmo
tempo, de modo linear: a prática situada, a instrução aberta, o enqua-
dramento crítico e a prática transformada. A seguir, explicamos, mais
objetivamente, em que consiste cada uma dessas:

Tabela 1 – Multiletramentos–componentes pedagógicos

Essa dimensão diz respeito a proporcionar, aos alunos e às


alunas, imersão em múltiplas práticas, alinhadas às neces-
Prática situada
sidades, às identidades afetivas e, por fim, às identidades
socioculturais.
Essa dimensão diz respeito à proposição de todas as ativi-
dades, tarefas e exercícios propostos por parte do(a) profes-
Instrução aberta sor(a) para poder atingir seus objetivos baseado nos do(a)s
aluno(a)s; assim, essas práticas não se alheiam ao(à) apren-
diz, este(a) precisa ter consciência de sua aprendizagem.
Nessa dimensão, a criticidade do(a)s discentes é o ponto
chave. Esses e essas devem ser capazes de compreender
Enquadramento
os designes disponíveis de modo crítico, pensando nas cons-
crítico
truções ideológicas que manipulam a produção e a recepção
dos mais variados eventos comunicativos.
Nessa dimensão, a partir dos conhecimentos construídos,
os sujeitos precisam desenvolver outras práticas sociais, so-
Prática
bretudo de linguagem, ou seja, devem ser capazes de produ-
transformada
zir novas práticas baseadas numa perspectiva não da repli-
cação, mas da criação.
Fonte: baseado em Rojo (2012) e Cazden et al. (2021).

O lócus de enunciação: um meandro outro para a construção


da práxis pedagógica descolada em língua espanhola

As práticas discursivas são variadas do ponto de vista de sua cons-


trução semiótica, cultural, política, social, entre outros âmbitos. E se

342
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ditas práticas são heterogêneas, diversificadas também serão os loci


de onde se enuncia. Em primeiro lugar, a enunciação é a ação, a re-
alização das linguagens dentro das práticas. Sendo assim, é por de-
mais pertinente pensar o lócus de enunciação, ou seja, o lugar, no caso
epistêmico, de onde se enuncia, além de compreender a construção
do pensamento do enunciador e, também, do papel de quem conso-
me as práticas de linguagens oriundas dos variados enunciados e lócus
de enunciação.
Nesse contexto, pensando desde a educação em língua, sobretudo
não materna, em geral percebe-se que essa é construída colonialmente,
que esteve e está pensada formalmente do ponto de vista de uma cliva-
gem que desconsidera a diversidade de línguas e linguagens bem como
as relações socioculturais entre os mais variados territórios e territo-
rialidades, por mais que a construção discursiva dos currículos, sobre-
tudo a BNCC, assevere o contrário.
Nesse contexto, a argumentação da BNCC é complexa e questio-
nável quando o referido documento instaura apenas uma língua es-
trangeira como obrigatória, o inglês, ratificando a hegemonia dessa
língua e relegando desde um lugar de não privilégios a um não lugar
as tantas outras línguas tão valiosas, tal como é o caso do espanhol,
que deixa de ser ofertado como componente obrigatório, para a pro-
moção de uma cidadania mais ampliada, pluriversal. Pergunta-se, en-
tão, de que lócus enunciativo se constroem essas ideias de currículo?
Estão pensadas as práticas escolares, pedagógicas baseadas em ideias
coloniais? Concordamos com Argüello Parra (2015, p. 111) quando esse
autor diz que:

[…] desde esta perspectiva, los proyectos educativos insta-


lados y controlados por los sistemas formales actúan como
extensiones matriciales, esto es, como aplicaciones locales
de diseños con pretensión universal que procuran asegurar
la reproducción de la colonialidad.

343
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Assim, é fundamental repensar o lócus de enunciação nas práticas


pedagógicas de espanhol, em particular, quando se pensa no ensino
básico público, posto que, conforme assevera Baptista (2021, p. 67-68),

[...] uma problematização do lócus de enunciação implica


uma discussão ampla sobre a interrelação entre sujeitos,
lugar de enunciação e epistêmico e produção de conheci-
mentos de forma localizada, nas ditas periferias de mundo
e periferias epistêmicas.

Compreender as nuances da colonialidade do saber, nesse caso,


é por demais interessante, já que essa concepção está diretamente rela-
cionada a um entendimento colonial de educação, em especial, em lín-
guas e linguagens. Vejamos os seguintes pontos, baseados em Nunes
(2021), para visualizar melhor o dito sobre os focos do ponto de vis-
ta da linguagem quando se pensa numa educação colonial em línguas
não maternas: relação entre as línguas: foco no código, na estrutura;
entendimento de língua como nação; fronteiras rígidas entre códigos
e culturas; foco no universal; dicotomias e binarismos–ex.: centro/pe-
riferia, norte/sul, masculino/feminino etc.; foco no monolinguismo;
foco no purismo linguístico; diversidade de línguas, linguística e de
linguagem como problema; promoção de uma língua como integração
social; identidades essencialistas; práticas discursivas baseadas na su-
bordinação e hierarquização social.
A partir desse contexto mais amplo, ratificamos e endossamos
as ideias de Baptista (2021) quando a autora explica que a concepção
de lócus de enunciação tem relação com a ideia de que o conhecimento
é fomentado desde um lugar geopolítico, em particular, em uma geopo-
lítica do conhecimento. Assim,

[...] o lócus de enunciação tem a ver [...] com o espaço


geopolítico em que os sujeitos enunciam e como nesse
são apagados os lastros da localização social, política, his-
tórica dos sujeitos bem como são desconsiderados os di-

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

versos atravessamentos de gênero, de classe, etnia, raça,


por exemplo, com a instauração de um Ego não situado
e universal (BAPTISTA, 2021, p. 1119).

A importância de se compreender esses aspectos se dá porque


são eles que basilam os percursos formativos fora e dentro da sala
de aula, no nosso caso, de língua espanhola. Assim, conhecer e levar
em consideração o lócus de enunciação dos sujeitos envolvidos dire-
tamente na prática pedagógica, quais sejam, os e as docentes e os e as
discentes, bem como o lócus de enunciação das práticas de linguagem
no desenvolvimento das atividades e tarefas é oportuno, dado que a
tendência de existência de um lugar epistêmico anticolonial corrobo-
ra para uma prática que inclua as periferias, os saberes mais variados,
a pluriversalidade, ou seja, uma práxis pedagógica descolada das várias
colonialidades.

Figura 2 – Práxis pedagógica descolada

Fonte: Elaborado pelo autor.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Chamamos aqui de práxis pedagógica descolada aquela baseada


em outro trabalho desenvolvido (BAPTISTA; NUNES, 2021) e relacio-
nada com uma educação em línguas, lançando mão da decolonialida-
de e do lócus de enunciação. É claro que dentro de cada âmbito posto
há outros temas e temáticas pertinentes, os quais constroem as carac-
terísticas dos variados loci.
Quando se fala em lócus de enunciação docente, reflitamos so-
bre o papel desses(as) professores(as) que estão no “coração da escola”,
de que lugar epistêmico eles e elas enunciam, que percursos étnico-ra-
ciais, históricos, sociais, políticos e de formação eles e elas têm passa-
do ao longo de sua jornada pessoal e profissional. Além disso, pensar
o território desde onde se enuncia é relevante, a fim de se compreen-
der as construções discursivas que forjam as territorialidades. Assim,
por exemplo, ao dar aula numa escola pública regular na periferia
de Fortaleza (CE) não se parte das mesmas construções epistêmicas
que as de uma escola da rede privada de Copacabana (RJ) ou as de um
Instituto Federal de Belém (PA). As condições sociais são bastante di-
ferentes, e, assim, o lugar de onde se enuncia influencia no fomento
do que se pensa ser professor ou professora, dos objetivos empreendi-
dos etc. De certo, é oportuno que, para uma práxis pedagógica descola-
da em línguas, o(a) docente reflita sobre seu papel e seu lugar epistêmi-
co de modo situado, sob risco de fomentar, ainda mais, práticas coladas
às diversas colonialidades.
O(a)s discentes, por sua vez, precisam ser “vistos(as)” pelo(a) do-
cente como um sujeito que também tem seu lugar social construído
ou em construção e que, por conta de sua formação social e escolar,
pode ter seus discursos calcados em um lócus de enunciação colo-
nial, porque, conforme nos alerta Grosfoguel (2007), o lugar epistêmi-
co não se confunde com o lugar social, e esse se adequa ao/à profes-
sor(a), como já salientado. O(a)s aluno(a)s precisam ser ouvidos(as),
suas narrativas precisam ser contadas e ouvidas, suas vozes necessitam
ser ecoadas e compartilhadas, a fim de que se possa conhecer, de fato,
o lócus de enunciação deles(as) e, de posse disso, possa-se (re)afirmar

346
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

e des/re/construir suas múltiplas identidades, levar em consideração


suas práticas de linguagens e ampliá-las, bem como proporcionar di-
versidades de semioses para que consigam ampliar os seus repertórios
linguísticos, socioculturais e de linguagens. Assim, o(a) aluno(a) deve
ser entendido(a) como os centros do processo, de modo que a práxis
pedagógica possa ser pensada a partir dele(a), com ele(a) e para ele(a).
Outro ponto que se deve ter estreito cuidado é com a qualidade
das práticas de linguagem que se desenvolvem em sala de aula. Por si
só, tratar de temáticas sensíveis, como é o caso do racismo, da prote-
ção ao meio ambiente, ou seja, de temas caros à sociedade, não avaliza
que se está sendo anticolonial. É preciso rodar a chave da escolha te-
mática por si para a qualidade e produtividade da prática pedagógica
e de linguagem.
Quando falamos em qualidade e produtividade, é para se repen-
sar que fomentar uma práxis pedagógica descolada em línguas per-
passa pela reflexão da escolha do lócus de enunciação dos(as) auto-
res(as) dos textos levados para a aula. É importante levar o Sul Global
para as práticas pedagógicas, porém mais pertinente ainda é mostrar
que dentro do Sul há seus Nortes e Suis. Ir além da relação espanhol
europeu versus espanhol latino-americano, como se a língua espa-
nhola e suas realizações existissem apenas nesses cenários, apagando
as práticas de linguagem fronteiriças, as que se dão dentro do Norte
Global como insurgências, as que se desenvolvem na África e na Ásia,
por exemplo, tanto do ponto de vista da construção formal da língua
quando das práticas sociais e culturais mediadas pelas linguagens,
é fundamental. Nesse contexto, a língua não pode ser usada como
um fator de “integração” por si, mas como um dispositivo de reflexão,
compreensão e fomento da pluriversalidade e da alteridade.
Nesse aspecto, a diversidade semiótica dos textos deve ser um
ponto de atenção, posto que, com o mundo cada vez mais conectado
tecnologicamente e com o desenvolvimento das capacidades comuni-
cativas via digital, a possibilidade de que se conheça e se tenha acesso

347
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

aos mais variados eventos comunicativos é sempre latente. Daí que,


nesse contexto, conhecer as variabilidades de produção de sentidos
das diversas linguagens, tanto do ponto de vista de sua produção, como
do de consumo, é primordial para um ser letrado na sociedade con-
temporânea. Aqui, não é bastante saber a construção formal da língua,
inclusive muito pertinente para o processo de expansão dos repertórios
linguístico e socioculturais, mas como as semioses, os modos podem
(combinados, ou não) produzir efeitos de sentido nas práticas de lin-
guagem produzidas e/ou consumidas.
A partir dessa perspectiva, pensamos que uma prática pedagógi-
ca em língua descolada das colonialidades perpassa, conforme afirma
Argüello Parra (2015), pelo enfrentamento às colonialidades do ser
e do saber. Contudo, acrescentamos que essas devem ser ancoradas
ao entendimento dos loci de enunciação dos(as) docentes, dos(as)
discentes bem como das práticas comunicativas empreendidas, a fim
de que uma educação em língua espanhola, no nosso caso, possa fun-
cionar como meandros que levam a compreender o seguinte: a relação
entre as línguas deve ser tomada como expansão de repertórios lin-
guísticos; o entendimento das práticas comunicativas precisa ser desde
o viés translíngue, com foco na pluriversalidade, na dissidência epistê-
mica de dicotomias e binarismos, tais como a de centro/periferia etc.,
no plurilinguismo; ademais, é oportuno entender a diversidade de lín-
guas e linguagens como possibilidade de maior compreensão acerca do
“eu” e do “outro”, além de que as identidades não podem ser tomadas
como essencialistas, de sorte que se respeitem as identidades linguís-
ticas, sociais etc.; finalmente, as práticas discursivas devem ser basea-
das na construção, no respeito e na negociação da produção de senti-
do e, por fim, deve-se levar em consideração as práticas de linguagem
insurgentes.
Os caminhos que buscam a pluriversalidade, a partir dos me-
andros da decolonialidade, do lócus de enunciação e de uma educa-
ção multiletrada tem que ver com a opção de tentar se desvencilhar
das amarras coloniais, ou pelo menos mitigá-las. A tarefa é complexa,

348
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

requer persistência e os resultados não são instantâneos. O aprendiza-


do da língua espanhola, levando em consideração a diversificação se-
miótica, a compreensão dos loci de enunciação docente, discente e das
práticas de língua e linguagem, constitui um pequeno passo no intento
de formar grietas, nos termos de Catherine Walsh (2017), nas coloniali-
dades, em particular, do ser e do saber.
A seguir, por meio de algumas práticas de linguagens, mostra-
mos de que modo essas discussões são pertinentes, sobretudo quando
tomamos a educação em línguas como ferramenta de enfrentamento
às chagas pedagógicas que as colonialidades deixaram e tem deixado
na sociedade.

O Sul do Sul Global no hispanismo – práticas de lingua-


gem além dos mares latino-americanos e europeus: a Guiné
Equatorial no centro

A opção de cruzar outros mares para ir em busca de práticas de lin-


guagem em espanhol é, justamente, por acreditar que, dentro do que
chamamos de Sul Global, em que dito Sul é epistêmico, uma opção
de trabalho contra epistemes do Norte Global, também há seus “Suis”,
de modo que nós somos nossos próprios algozes epistêmicos, muitas
vezes, quando invisibilizamos os nossos.
Há muitos países falantes de espanhol, seja de jure, seja de fac-
to. As diversas práticas de linguagens desses países todos merecem
ter suas centralidades na aula de língua espanhola no contexto bra-
sileiro, já que um dos papéis da escola consiste em ampliar o conheci-
mento das práticas de letramentos e, assim, possibilitar a que o alunado
possa ter acesso às diversas variedades linguísticas, culturais, sociais,
políticas, uma vez que esses âmbitos estão, de certa forma, em simbio-
se. Portanto, é relevante que, para além do espanhol peninsular e da
América Latina – que é diverso e, muitas vezes, apenas algumas prá-

349
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ticas de nações hegemônicas na região são valorizadas3 – se adentrem


às salas de aulas as práticas de linguagem dessa língua em Curaçao,
nas Filipinas, no Saara Ocidental, no Marrocos, na Guiné Equatorial,
por exemplo, regiões historicamente invisibilizadas quanto à produção
de conhecimento e de centralidade da língua espanhola, inclusive, su-
balternizadas pelo próprio Sul Global.
A Guiné Equatorial, enquanto nação de complexo cenário so-
ciolinguístico e que possui o espanhol como uma de suas línguas ofi-
ciais juntamente com o português e o francês (LEVISKI; TIMBANE,
2020), nos estudos e práticas de linguagem em sala de aula, no Brasil,
tem sido, de modo geral, invisibilizada. Ademais, além dessas lín-
guas, outras são vastamente faladas no território guinéu-equatoria-
no, a saber: fang, bubi, seki, kwasio, balengue, ngumba, gyele, yassa
etc. À título de exemplo, no panorama do hispanismo, em uma rápi-
da análise dos Anais das últimas três edições do Congresso Brasileiro
de Hispanistas, nos anos de 2016, 2018 e 2020, não figura um trabalho
sequer em que a Guiné Equatorial tenha suas práticas de linguagem
em espanhol em foco, seja no âmbito da Linguística, da Linguística
Aplicada ou da Literatura.
Trazendo algumas dessas práticas de linguagem em espanhol
da Guiné Equatorial para servir como exemplo de fomento de uma edu-
cação multiletrada e, ainda, um lócus de enunciação outro dessa dita
prática, citamos, em primeiro lugar, trecho do poema “Los caminos
de mi lengua”, do escritor Justo Bolekia Boleká (2012, p. 7-8), a seguir:

En mi lengua existen palabras labradas con ritos


Y también glándulas que merman mi anhelo;
En mi lengua sobreviven todavía las huestes de mi padre;

3 Há que se comentar que, historicamente, dentro da própria América Latina, há países com
maior hegemonia política e, por causa disso, suas variedades sociolinguísticas e culturais
são maiormente desenvolvidas e fomentadas em sala de aula, como é o caso do México e da
Argentina. Assim, pouco se vê, por exemplo, discussões relativas às práticas de linguagem
de países tais como Honduras, Nicarágua e El Salvador. Conforme salientado em outra parte
deste texto, somos, enquanto nações do Sul Global, muitas vezes, nossos próprios algozes
epistêmicos.

350
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Tö’a á batappa4,
Y también las sartas gestadas por mi ya alejada madre,
Tö’a í harityóbbo5;
En mi lengua vive mi memoria ya embozada,
Porque hoy hallo la razón de mi callado destierro,
Mi buscada partida.
Son huéspedes victoriosos y comensales gloriosos;
[…]
En mi lengua te hablé.
En ella te poseí y te busqué:
Ritos sutiles y mermados,
Apariencias veladas y gemidos de un alfabeto,
Mientras mi cabeza busca su reposo:
¿Y cuál fue mi lengua?
¿Cuál será cuando calle mi propia historia,
Mi propia vida,
O cuando nadie albergue mis ritos?

No poema, Boleká desenvolve, em muitas partes, o que sua língua


bubi é para ele e como ela constrói seus atos de vida. Como muitos ou-
tros países da África bem como suas etnias, a Guiné Equatorial possui
uma cultura oral muito forte e fomentada no seio das famílias e das co-
munidades em suas diversas práticas sociais de linguagem, e essa ideia
fica clara tão logo no começo do poema, quando se diz: “en mi len-
gua existen palabras labradas con ritos”. É a prática da vida cotidiana
na oralidade que forja o léxico em bubi, segundo o autor. É sua língua
que faz com que o autor reviva suas memórias familiares e sentimentos
complexos. Para além disso, há nas palavras da poesia um certo medo
do futuro em relação à ancestralidade de sua língua, quando se fala
que: “¿Y cuál fue mi lengua?/¿Cuál será cuando calle mi propia histo-
ria/Mi propia vida/O cuando nadie albergue mis ritos?”.

4 Decimos “los clanes”.


5 Decimos “los linajes maternos”.

351
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Esse poema em questão é bastante rico para se trabalhar a poesia


guinéu-equatoriana e sua construção enquanto arte própria, práticas
translíngues. Além disso, leva a refletir sobre a pertinência da língua
para a construção da identidade de um povo de modo geral e individu-
alizado, além de fomentar a compreensão e a relevância da oralidade
para a cultura bubi e guinéu-equatoriana. Em entrevista dada a Chema
Caballero (2017, s/p), Boleká também fala da oralidade em sua cultura
e em sua vida em particular:

R. Cuando escribo intento presentar las cosas más dramá-


ticas de forma amena, divertida para que la gente se ría.
Al final, estoy contando tragedia: el drama de los perso-
najes, el drama de la vida. Pero eso se debe quizás al arte
del lenguaje que encontramos en África donde se cuen-
ta una historia y los oyentes son adultos, niños, madres,
abuelas… en un mismo espacio. El narrador no se preocupa
en explicar a los niños lo que significa, solamente cuenta
su historia y cada uno interpreta lo que quiere interpretar
en función de sus vivencias, de sus experiencias […].
P. ¿La oralidad sigue teniendo mucho peso en Guinea?
R. Depende del contexto en el que has crecido. Hay escri-
tores que han crecido en África, pero no han vivido la ora-
lidad en su contexto familiar o comunitario. Yo sí lo he
vivido, me alegro de ello. Mis abuelas y, sobre todo, mi ma-
dre eran muy exigentes con respecto a la narración. Llega
un momento en el que dicen: te toca a ti hoy. Empiezas
a contar y te dicen: ¿así vas a contar los cuentos a la gen-
te, así…? Tienes que divertirte, que la gente esté conten-
ta. Así empiezas a contar y entonces a la hora de escribir
ya había algo ahí.

Para endossar essa discussão, também sugerimos o documen-


tário “La Ñ se viste de Negro”6, de Susi Alvarado. Nele, há vários(as)

6 O documentário pode ser assistido em sua integralidade no seguinte link: https://www.


youtube.com/watch?v=o0uj7oPJiiQ. Acesso em: 01 jun. 2022.

352
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

consagrados(as) escritores(as) e artistas guinéu-equatorianos(as)


que contam a história de seu país, sua relação com a língua espanho-
la, bem como suas produções culturais, em sua maioria a literatura
em espanhol a partir das vivência nesse território africano e em exí-
lio em meio à complexa realidade sociopolítica ditatorial dessa nação,
que a vivencia desde 1979, há mais de quatro décadas, tendo Teodoro
Obiang Nguema Mbasogo como presidente-ditador desde então.
Para acessar e conhecer melhor um quesito da cultura hispâni-
ca africana, saindo do eixo hegemônico peninsular-sul-americano
do hispanismo, recorremos à poesia, à entrevista e a um documentário
do âmbito da Guiné Equatorial, lançando mãos de diversas semioses,
a fim de compreender a língua espanhola no seio da cultura guinéu-
-equatoriana e, ainda, sua relação com outras línguas que constro-
em as identidades desse povo. Aqui, não tratamos de pontos formais
da variedade do espanhol, mas é possível e deve-se fazer esse trabalho
em conjunto com as questões dos multiletramentos, já que esses advo-
gam por uma diversidade de linguagens e de culturas. Tratar de alguns
pontos da cultura e linguagem desse país africano de fala hispânica
é partir de um lócus enunciativo outro que tenta visibilizar práticas
de linguagem que não são de nações hispânicas hegemônicas, as quais,
em geral, figuram nas propostas didáticas.
Além disso, o tratamento dado é à exaltação às características so-
cioculturais que formam essa nação, abordando os problemas sociopo-
líticos, porém jamais reduzindo sua existência em temáticas como o ra-
cismo, algo muito comum quando se fala em países africanos em certas
propostas. A temática não é conteúdo em si, de modo que apenas
a existência dela no material não encarga uma prática anticolonial
ou intercultural; pode ocorrer, nessas práxis, inclusive, reafirmações
coloniais, a depender do trato, pois, dando as devidas ressalvas de con-
texto, conforme assevera Grosfoguel (2006), o lugar social não coincide
necessariamente com o lugar epistêmico.

353
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Para seguir nessa temática de outro lócus de enunciação nas prá-


ticas de linguagem em sala de aula de espanhol, sugerimos o trabalho
com as imagens, em sua maioria caricaturas, produzidas pelo guinéu-
-equatoriano Ramón Esono Ebalé. Esse artivista utiliza o pseudônimo
de Jamón y Queso e suas obras, de modo geral, são desenhos de existên-
cia e resistência contra o regime político de seu país, cujo foco se vol-
ta para os desmandos do presidente-ditador Teodoro Obiang. Ebalé
foi preso em Malabo, em setembro de 2017, por acusações de contrafa-
ção e lavagem de dinheiro pelo governo guinéu-equatoriano. Em março
de 2018, Ebalé foi solto; em virtude de forças internacionais de agentes
humanitários, o Ministério Público retirou as queixas e ele foi inocen-
tado. Dita prisão teve que ver com perseguição política, pois Ebalé, além
de outros materiais, publicou a novela gráfica “La pesadilla de Obi”,
juntamente com outros dois artistas, cujos pseudônimos são Chino
e Tenso Tenso. O comic, que tem o presidente-ditador Obiang como
protagonista, descortina as ações infelizes de seu governo. A seguir,
mostramos algumas obras de Ebalé.

Figura 3 – Desenho do artista Ramón Esono Ebalé

Fonte: https://www.indexoncensorship.org/wp-content/uploads/2018/08/ramon-6.jpg

354
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Figura 4 – Caricatura produzida por Ramón Esono Ebalé

Fonte: https://www.indexoncensorship.org/wp-content/uplo-
ads/2018/08/IMG_4690.png

Por meio do desenho, da caricatura, pode-se desenvolver habi-


lidades de leitura de textos multimodais de imagens paradas, tendo
como foco, em primeiro lugar, explorar o modo de composição da obra,
a sintaxe visual e, em segundo lugar, aprofundar questões ligadas
à semântica visual (NUNES; BAPTISTA, 2016) e ao lócus de enuncia-
ção do autor que produziu a obra e os efeitos dessas características
na própria prática de linguagem, atentando para os possíveis caminhos
de acesso ao sentido que essas informações, juntamente com as ca-
racterísticas pictóricas, intertextuais e interdiscursivas, sugerem. É in-
dispensável, além disso, conectar a discussão a temáticas pertinentes
da realidade histórica e situada dos contextos de vivência do alunado
e comparar com outras práticas discursivas, a fim de que se ampliem
os repertórios linguísticos e socioculturais. As práticas de pós-leitura
e a discussão também são endossadas, uma vez que o(a)s educando(a)
s, desde uma perspectiva multiletrada, necessita(m) produzir a partir
de, ou seja, agir e intervir, por meio das linguagens, em seus contextos
socioculturais, existindo e resistindo.

355
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Outra prática de linguagem que funciona muito bem em sala


de aula é a musical. Há vários materiais que congregam práticas pe-
dagógicas para a promoção de ampliação dos repertórios linguístico
e socioculturais na aula de espanhol como língua não materna, tanto
do ponto de vista da estrutura linguística quanto do de temáticas re-
levantes. Aqui, seguindo a título de exemplos para a promoção de uma
educação multiletrada, a partir de loci de enunciação outros e semioses
outras, sugerimos a canção “Carta al presidente”, do rapper guinéu-e-
quatoriano Negro Bey, cuja letra pode encontrada facilmente em sites
de música.
Além da escuta da canção e da sua análise enquanto texto mul-
tissemiótico (som, batida, ritmo, intensidade, timbre etc.), é pertinente
assistir ao videoclipe e fomentar os multiletramentos a partir da ima-
gem em movimento. Esse trabalho conectado entre semioses se dá
de modo substancial no videoclipe, uma vez que há o som, a imagem
fixa e em movimento em sua maioria, a palavra escrita, como é o caso
do clipe da música em questão.

Figura 5 – Clipe de “Carta al presidente”, de Negro Bey

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=7MleHYf4seI

356
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

A canção “Carta al presidente” é, antes de qualquer coisa, um grito


por melhores condições de vida na Guiné Equatorial. Negro Bey descor-
tina as facetas da falta de governabilidade do presidente, já que a can-
ção é um manifesto e um pedido de ajuda a esse mandatário. A letra
traz bastante volume de problemáticas sociais vividas pelos guinéu-
-equatorianos, o que, de certa forma, também são problemas que nós,
brasileiros, vivemos; assim, há uma identificação com a nossa realida-
de. Esse pode ser um meandro pelo qual a prática pedagógica pode ir,
além da construção formal dos gêneros canção e videoclipe e dos pon-
tos linguísticos que podem ser, igualmente, trabalhados, não deixando
de lado a força que o rap tem enquanto ferramenta do povo da periferia
para “gritar” suas angústias, em especial, as sociais.
Ademais, o trabalho com o videoclipe, com a leitura desse tipo
de prática de linguagem, é importante pelo fato de congregar várias
semioses, isto é, há a música (som), a letra, a imagem em movimento,
que por si já é complexa, pois há cores diversas, primeiro e segundo
planos, além da ação dos interactantes dentro da cena, que podem agir
de acordo com a melodia, ou não, quando sobe o timbre com voz de rai-
va, desespero, pedido etc., o que se evidencia nas cenografias e en-
cenações mais fortes e contundentes, por exemplo, do clipe de carta
al presidente. Todas essas questões são passíveis de serem analisadas
e, para tanto, é oportuno que se desenvolvam habilidades específicas
de leitura, notadamente as multiletradas, passando pelo conhecimento
profundo da prática, pela crítica feita à produção e, por fim, pela pro-
dução e ação por meio de outras linguagens, o que Cazden et al. (2021)
chamam de redesign, a partir da tomada de consciência de seu próprio
lócus de enunciação.

Considerações finais

Ao longo deste escrito, defendemos a relevância de se ter a edu-


cação multiletrada como uma opção para uma práxis descolada em sala

357
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

de aula na educação em língua espanhola, levando em consideração


aspectos ligados ao lócus de enunciação dos envolvidos no processo
de ampliação dos repertórios linguístico e socioculturais, notadamente
o(a) docente e o(a)s discentes bem como as práticas de linguagem es-
colhidas para serem trabalhadas.
A educação multiletrada soma-se a outras práticas pedagógicas
que têm como foco a emancipação do(a) educando(a) para a cidadania,
tendo a língua, no nosso caso, o espanhol, como ferramenta de conheci-
mento de variadas realidades, colocando em cena as realidades histori-
camente subalternizadas pelas pedagogias ancoradas em perspectivas
que têm a episteme do Norte Global como primordial. Compreender
a linguagem enquanto uma complexa rede de semioses é de suma im-
portância para o(a) docente na contemporaneidade; ademais, para con-
sumir e produzir esse tipo de linguagem de modo crítico é necessário
desenvolver habilidades específicas.
Na última parte deste texto, tratamos de algumas práticas de lin-
guagem em espanhol fora do eixo do Norte Global e, ainda, fora do nor-
te do Sul Global, trazendo experiências de artistas guinéu-equatoria-
nos(as) para o centro da questão, a fim de se mostrar que outras culturas
hispânicas, além das que, em geral, aparecem nos manuais e nas práti-
cas cotidianas, são oportunas e devem figurar em sala de aula de modo
situado.
Longe e muito mais do que possuir planos didáticos redondos,
prontos, é interessante conhecer as realidades de vivências e experi-
ências do alunado, a fim de que se possa traçar objetivos claros de edu-
cação em língua espanhola, de modo que o lócus de enunciação dessas
pessoas seja respeitado, compreendido e trabalhado para a promoção
da ampliação de repertórios linguísticos e socioculturais que os tenham
como protagonistas de práxis descoladas de colonialidades várias.
O(a) professor(a) precisa, portanto, compreender seu papel, seu lócus
de enunciação em sua práxis bem como o de seus discentes e o das prá-

358
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

ticas de linguagem que levará para a sala de aula, sempre lutando pe-
dagogicamente para a formação cidadã em língua.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

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360
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

NOSSAS AUTORAS E AUTORES

Acassia dos Anjos Santos Rosa é doutora em Estudos Linguísticos


(UFMG), mestra em Letras e graduada em Letras Português/Espanhol (UFS).
Professora Adjunta de Língua Espanhola na Universidade Federal de Sergipe
e coordenadora do projeto de extensão Educação linguística em espanhol:
um olhar para a representação feminina na produção audiovisual latino-
americana. Pesquisadora no grupo de pesquisa Diálogos Interculturais
e Linguísticos, atuando principalmente nos seguintes temas: formação
de professores de espanhol, letramentos críticos, educação intercultural,
decolonialidade, América Latina e materiais didáticos.

Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza é Professora do Programa de Pós-


Graduação em Letras – Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e do curso de Licenciatura em Letras –
Espanhol da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Doutora em Letras pela
Universidade Estadual Paulista (UNESP – Assis/SP). Desenvolveu pesquisa de
Pós-Doutorado na Universidad Complutense de Madrid com bolsa do CNPq
com o tema Mulheres da luta antifranquista na narrativa espanhola contempo-
rânea. É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq–Nível 2 e integrante
do projeto de pesquisa Identidades en movimiento, flujos, circulacion y trans-
formaciones culturales en el espacio atlántico (siglos XIX y XX) da Universidad
Autónoma de Madrid (PID2019-106210GB-I00), além de coautora do livro
Escrituras de autoria feminina e identidades ibero-americanas (2020).

Antônio Carlos Silva Júnior é Professor de língua espanhola do Colégio de


Aplicação (CODAP) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutorando do
Programa de Pós-graduação em Língua e Cultura (PPGLinC) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA), mestre em Letras (Estudos Linguísticos) pela UFS,
especialista em Língua Espanhola pela Faculdade Pio Décimo – Sergipe e

361
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

graduado em Letras Espanhol pela UFS. Foi Redator Formador de Currículo e


Gestão de Língua Espanhola no PROBNCC – Etapa Ensino Médio de Sergipe e
integra os Grupos de Pesquisa PROELE: Formação de professores de espanhol
em contexto latino-americano (UFBA), DInterLin – Diálogos Interculturais
e Linguísticos (UFS) e GPEA: Grupo de Pesquisa em Práticas Educativas e
Aprendizagens na Educação Básica (CODAP/UFS).

Antonio Ferreira da Silva Júnior possui Graduação em Letras (Português-


Espanhol), Mestrado e Doutorado em Letras Neolatinas pela UFRJ.
Especialização em Língua Espanhola Instrumental pela UERJ. Estágio de Pós-
Doutorado em Linguística Aplicada pela PUC-SP e em Educação pela USP. É
professor de Língua Espanhola da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
atuando no Colégio de Aplicação e no Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Faculdade de Letras (Estudos Linguísticos/Espanhol). Vice-
líder do Grupo de Pesquisa “Laboratório Interdisciplinar Latino-Americano”
(UFRJ-CNPq). Tem experiência na área de Linguística Aplicada com ênfase nos
seguintes temas: formação de professores de espanhol, ensino de espanhol
na educação profissional, licenciaturas nos Institutos Federais, narrativas
docentes e línguas para fins específicos.

Camila de Souza Santos é graduada, mestra e doutoranda em Estudos


Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi professora
de Português como Língua Adicional (PLA) no Programa Estudantes-Convênio
de Graduação (PEC-G) na UFMG de 2014 a 2016 e de 2018 a 2019. Atuou como
professora de PLA nos Módulos de Preparação e Acolhimento do Programa Mais
Médicos para o Brasil, de 2015 a 2018, e no Programa de Incentivo à Formação
Docente, ministrando disciplinas de PLA de graduação da UFMG de 2018 a
2019. Foi professora de espanhol na rede de ensino privado de Contagem-
MG, entre 2020 e 2022, e, atualmente, colabora com o projeto de extensão
Pró-Imigrantes da UFMG, onde também atua na formação de professores para
o acolhimento em línguas.

Carla Dameane Pereira de Souza é Warmi Danzaq (Nina Sonqo de Ayacucho)


pela Escuela de la Danza de las Tijeras Puquio Ayacucho Perú. Doutora em
Estudos Literários: Literaturas Modernas e Contemporâneas (2013) com Pós-
Doutorado na Área de Antropologia Visual, na Linha de Pesquisa Performance
y Antropología de lo Sensorial, pela Pontificia Universidad Católica del Perú

362
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

(PUCP) (2018-2019). Professora do Instituto de Letras da Universidade Federal


da Bahia vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da
UFBA. Líder do grupo de pesquisa Rede de Estudos Andinos. É pesquisadora na
área de Estudos da Performance, Artes Cênicas, Literaturas e Culturas Andinas.

Daiane Santos Rodrigues é mestranda em Estudos Linguísticos na linha


de pesquisa- linguagem: identidade e práticas sociais (PPGL/UFS). É Pós-
Graduada em Língua Portuguesa pela Faculdade Jardins (2020) e graduada em
Letras Espanhol pela Universidade Federal de Sergipe (UFS/2017). É Membro
dos grupos de pesquisas: DInterLin: Diálogos Interculturais e Linguísticos
da UFS e do grupo PROELE: Formação do professor de espanhol em contexto
latino-americano da UFBA. Atua como colaboradora do projeto de extensão:
Educação linguística em espanhol: um olhar para a representação feminina
na produção audiovisual latino-americana. Tendo interesse nas seguintes
áreas: Ensino-aprendizagem do espanhol, leitura, literatura, identidade
cultural, (re)construção de identidades socioculturais, questões étnico-raciais,
literacidade, linguagem, interculturalidade. decolonialidade e elaboração de
materiais didáticos.

Daniel Mazzaro é licenciado em Espanhol e Português pela Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre e doutor em Linguística do Texto
e do Discurso pelo POSLIN-UFMG e fez estágio de pós-doutorado na UFMG
(2017-2018), UFU (2021) e UFF (2022). É Professor Adjunto no Instituto de
Letras e Linguística (ILEEL) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU),
onde ministra principalmente disciplinas de Prática de Ensino e Estágio
Supervisionado em Língua Espanhola. Atua no Programa de Pós-Graduação
em Estudos Linguísticos (PPGEL) da UFU na linha “Linguagem, sujeito e
discurso”. É líder do grupo de pesquisa EDQueer (Estudos Discursivos na
perspectiva Queer) e participa do grupo de pesquisa EDAEL (Estudos do
Discurso Aplicados à Educação Linguística), da UFMG.

Doris Cristina Vicente da Silva Matos é Professora Associada da Universidade


Federal de Sergipe e atua na graduação, no Departamento de Letras Estrangeiras
e no Programa de Pós-Graduação em Letras. É Doutora em Língua e Cultura
pela Universidade Federal da Bahia, Mestre em Letras pela Universidade Federal
Fluminense, Especialista em Língua Espanhola Instrumental para Leitura pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Graduada em Letras (Português/

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Espanhol) pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é presidenta da


Associação de Linguística Aplicada do Brasil – ALAB – (triênio 2023-2025) e foi
presidenta da Associação Brasileira de Hispanistas – ABH – (biênio 2016-2018).
Lidera o Grupo de Pesquisa DInterLin: Diálogos Interculturais e Linguísticos
(UFS) e integra o GT Transculturalidade, Linguagem e Educação da ANPOLL.
Desenvolve pesquisas e orienta dissertações/teses na área de Linguística
Aplicada, focando em questões de língua/linguagem, formação de professores,
materiais didáticos, currículo, decolonialidade e interculturalidade.

Fernando Zolin-Vesz é professor do Departamento de Letras e do Programa


de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem (PPGEL), na Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT). Líder do Grupo de Pesquisa Linguagens e
Descolonialidades – GPLeD (UFMT/CNPq), dedica-se a pesquisas relacionadas
às práticas linguísticas e a construção de (des)colonialidades no mundo
contemporâneo. É organizador das coletâneas Linguagens e Descolonialidades:
arena de embates de sentidos (2016) e Linguagens e Descolinialidades – volume 2:
Práticas linguageiras e produção de (des)colonialidades no mundo contemporâneo
(2017), ambas publicadas pela Pontes Editores.

Heloise Cosme de Sousa possui Graduação em Letras (Português/ Espanhol) e


Mestrado em Letras Neolatinas/Estudos Línguísticos em Língua Espanhola pela
UFRJ. Atualmente é doutoranda em Letras Neolatinas/Estudos Línguísticos em
Língua Espanhola pela mesma universidade. Atua como professora de língua
espanhola em uma rede privada de ensino. Foi bolsista (CAPES) no projeto
PIBID, atuou como monitora no projeto de línguas CLAC da UFRJ e também
foi bolsista (PIBIC) de Iniciação Científica. Atualmente participa do grupo de
pesquisa intitulado: “Descrição e aquisição de gramáticas do espanhol e do
português”.

Itamaray Nascimento Cleomendes dos Santos é licenciada em Letras/


Língua Espanhola e Literaturas de Língua Espanhola pela Universidade do
Estado da Bahia – UNEB, Campus I (2015). Mestra (2018) e doutoranda em
Língua e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura da
Universidade Federal da Bahia – PPGLinC/UFBA. Atualmente é professora da
educação básica, ministrando aulas na rede pública e privada de Salvador,
Bahia. É integrante do Grupo de Pesquisa Decolonialidade, Linguagem,
Identidade e Educação (DECOLIDE). Estuda temas relacionados as áreas de

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

formação de professores, currículo, políticas educacionais, cotidiano escolar


e prática docente.

Jakelliny Almeida Santos é mestranda em Estudos Linguísticos (Linguagem:


Identidade e Práticas Sociais) pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e
graduada em Letras Português-Espanhol pela mesma instituição. É integrante
do Grupo de Pesquisa DInterLin: Diálogos Interculturais e Linguísticos.

Jorge Rodrigues de Souza Júnior é doutor em Letras pela Universidade de


São Paulo– USP (2016) e mestre em Linguística Aplicada pela Universidade
Estadual de Campinas – UNICAMP (2010). É professor de Educação Básica,
Técnica e Tecnológica do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), campus São
Paulo, desde 2013. Nessa instituição, ministra aulas de espanhol para o Ensino
Médio e Tecnológico Superior, além de disciplinas da área de Linguística no
curso de Licenciatura em Letras. Desenvolve trabalho voluntário em ONG e
associações civis: foi presidente da Associação de Professores de Espanhol
do Estado de São Paulo (APEESP) por duas gestões (2016-2018; 2018-2020)
e presidente da Associação Brasileira de Hispanistas (2020-2022). Em suas
pesquisas, dedica-se ao ensino de espanhol para brasileiros, em diversos
contextos, pela perspectiva teórica da Análise do Discurso Materialista, dos
Estudos Decoloniais e da Glotopolítica.

José Veranildo Lopes da Costa Junior é doutor em Letras pela Universidade


do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Possui Mestrado em Linguagem e
Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Especialização
em Ciências da Linguagem–com ênfase em Ensino de Língua Portuguesa pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Licenciatura em Letras–Língua
Espanhola pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Desde 2021, atua
como professor adjunto do Departamento de Letras da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB/Campus Litoral Norte), na área de Língua e Literaturas
de Língua Espanhola. É também docente permanente do Programa de Pós-
Graduação em Linguagem e Ensino da UFCG. Tem desenvolvido e orientado
pesquisas sobre Literatura Latino-americana, Estudos culturais com foco
nos marcadores de gênero e sexualidade, Ensino de literatura e formação de
professores de espanhol e português.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Júlia Cheble Puertas possui Graduação em Letras (Português/Espanhol)


pela UFRJ e Mestrado em Letras Neolatinas/Estudos Linguísticos em Língua
Espanhola pela mesma universidade. Atualmente, é doutoranda em Letras
Neolatinas/Estudos Linguísticos em Língua Espanhola na UFRJ, com bolsa da
CAPES e atua como professora substituta de Língua Espanhola no departamento
de Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da UFRJ, ministrando a disciplina
de Espanhol III para o curso de Graduação em Letras Português/Espanhol e
para o curso de Graduação de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ. Atuou
como monitora e como monitora-chefe de espanhol no projeto CLAC da UFRJ
e também foi bolsista (CNPq) de Iniciação Científica. E, atualmente, participa
do grupo de pesquisa intitulado: “Descrição e aquisição de gramáticas do
espanhol e do português”.

Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista é Professora Titular da Universidade


Federal da Bahia (UFBA), docente permanente do Programa de Pós-Graduação
em Língua e Cultura (PPGLinC/UFBA) e do Curso de Letras do Instituto de
Letras da UFBA, área de Espanhol. Bolsista de Produtividade em Pesquisa
do CNPq (LL/LA). Líder do Grupo de Pesquisa do CNPq Decolonialidade,
Linguagem, Identidade e Educação (DECOLIDE). Membro do Comitê do PIBIC
de Linguística, Letras e Artes da UFBA.

Marcelo Henrique Silva dos Santos possui Graduação em Letras (Português


-Espanhol) pela UFRJ e Mestrado em Letras Neolatinas–Estudos Linguísticos
em Língua Espanhola pela mesma instituição, sendo (Bolsista CAPES). Foi
bolsista (CAPES) no projeto PIBID, atuou como monitor e como monitor-
chefe de espanhol no projeto CLAC da UFRJ. Além disso, possui intercâmbio
universitário pela Universidad Nacional de Itapuá em Bilinguismo Castellano
Guarani (Programa AUGM). Atualmente, participa do grupo de pesquisa
intitulado: “Descrição e aquisição de gramáticas do espanhol e do português”,
atua como professor de língua espanhola em uma rede privada de ensino,
ministra aulas em um curso de idiomas online, desenvolve trabalhos de versão
e tradução de textos com os pares (português- espanhol) e também trabalha
com aulas de espanhol para fins específicos.

Mariana Augusta Conceição de Santana Fonseca é doutoranda em Estudos


Linguísticos (UFS), mestra em Linguística e graduada em Letras Espanhol
(UFS). Foi professora substituta do Departamento de Letras Estrangeiras

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

(DLES/UFS). Membro do grupo de pesquisa: DInterLin: Diálogos Interculturais


e Linguísticos da UFS e do grupo PROELE: Formação do professor de espanhol
em contexto latino-americano da UFBA. Atua como colaboradora do projeto
de extensão PIBIX: Educação linguística em espanhol: um olhar para a
representação feminina na produção audiovisual latino-americana.

Natan Gonçalves Fraga é Professor de Língua Espanhola no Instituto Federal


do Paraná (IFPR). Doutorando em Letras pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR) desde 2022; mestre em Letras pela Universidade Estadual de Londrina
(UEL); especialista em Metodologia de Ensino em Língua Portuguesa e
Estrangeira pela Faculdade Internacional de Curitiba e licenciado em Letras pela
Universidade Ibirapuera. Membro dos grupos de pesquisa LAMER (Laboratório
Multidisciplinar de Estudos em Relações Étnico-Raciais e Diversidade), do
IFPR; e Formação de Professores de Línguas, da UFPR. Coordenador do Centro
de Línguas do IFPR Campus Campo Largo. Desenvolve pesquisas na área de
Linguística Aplicada, com foco nos seguintes temas: educação linguística em
espanhol; materiais didáticos; América Latina; interculturalidade crítica e
decolonialidade.

Thayane Silva Campos é doutora em Linguística Aplicada ao Ensino/


Aprendizagem de Línguas Estrangeiras pelo POSLIN/UFMG, tendo realizado
o mestrado e a graduação pela mesma instituição. Atualmente é professora
adjunta do curso de Licenciatura em Língua e Literaturas Espanhola no
Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas (DLLEM) da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Sua experiência docente
transita pelo ensino de língua e literatura espanhola, formação de professores
em pré-serviço e formação continuada, ensino de português como língua
estrangeira a nível universitário e para fins específicos. Trabalhou na produção
e análise de livros didáticos para escolas regulares brasileiras e para cursos
de idioma. Atua principalmente em pesquisas na área da educação prisional,
é membro da Rede de Apoio ao Egresso do Sistema Penitenciário (RAESP-
RN), coordenadora adjunta do projeto de extensão “Motyrum Penitenciário:
educação popular em direitos humanos no sistema prisional do Rio Grande do
Norte” e coordenadora do projeto de extensão “Ventanas de la libertad: ensino
de espanhol e formação de professores para o contexto prisional” (antigo
“Oficinas de Língua Espanhola para privados de liberdade”).

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

Tiago Alves Nunes é Professor Adjunto da área de espanhol da Universidade


Federal da Bahia. Doutor em Letras pelo Programa de Pós-graduação em
Língua e Cultura da Universidade Federal da Bahia – PPGLinC/UFBA. Mestre em
Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade
Federal do Ceará – PPGL/UFC e graduado em Letras Português/Espanhol
e respectivas literaturas pela mesma universidade. Vice-líder do Grupo de
pesquisa Decolonialidade, Linguagem, Identidade e Educação (DECOLIDE).
Trabalhou na Secretaria de Educação do Estado do Ceará, na Coordenadoria
Regional de Desenvolvimento da Educação 1, como assistente educacional e
formador de professores da área de linguagens. Atua na área da Linguística
Aplicada, na interface linguagem, educação e sociedade, dedicando-se aos
seguintes temas: ensino e aprendizagem de línguas, multiletramentos,
narrativas, território, educação e (de)colonialidades.

Valdiney da Costa Lobo é doutor pelo Programa Interdisciplinar de Linguística


Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PIPGLA-UFRJ). Professor
da área de Letras e Linguística da Universidade Federal da Integração Latino-
Americana (UNILA). Foi professor efetivo de língua espanhola do Colégio
Universitário Geraldo Reis – COLUNI – UFF, supervisor de estágio do curso de
Letras da UFF (Português/Espanhol) e do Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (PIBID). Foi coordenador de estágio do curso de Letras
(Português/Espanhol). Da UNILA, atualmente é coordenador institucional do
Programa Residência Pedagógica na mesma instituição. Membro do Grupo de
Pesquisa Política, Linguagem e Cidadania (UNILA), atuando na linha Educação
Intercultural e Letramentos.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

SOBRE A ORGANIZAÇÃO

Diego José Alves Alexandre é professor de Didática e Ensino de Espanhol


na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde coordena projetos de
pesquisa, extensão e ensino voltados à reflexão sobre língua estrangeira no
Brasil. Em 2022, venceu o prêmio Mario González, concedido pela Associação
Brasileira de Hispanistas (ABH), como melhor trabalho em Linguística no
âmbito do hispanismo (biênio 2020-2022). É doutor em Linguística pela
UFPB, mestre em Educação pela UFPE e graduado em Letras português/
espanhol também pela UFPE. Suas pesquisas giram em torno da história dos
materiais de espanhol produzidos no Brasil, da Historiografia da Linguística,
Políticas Linguísticas e Glotopolítica. Tem especial interesse em estudos
decoloniais, tendo participado, ao longo do ano de 2020, do DECOLIDE/UFBA
(Decolonialidade, Linguagem, Identidade e Educação, coordenado pela Profa.
Dra. Lívia Baptista. Atualmente é líder do grupo de pesquisa HEMEPOL/UFRN
(Historiografia, Ensino, Memória e Políticas Linguísticas) e também roteiriza
e dirige o HEMEPOL entre.vistas, um Podcast que abriga conversas sobre
diferentes linhas de pesquisa com professores-pesquisadores do Brasil.
E-mail: diegojalexandre@gmail.com

Fernanda Tonelli trabalha como professora de língua espanhola no


Instituto Federal de São Paulo – câmpus Capivari. Através de trabalho no
IFSP, conquistou, em 2021, o primeiro lugar no concurso “Colégio del año en
Español”, promovido pelo Escritório de Educação da Embaixada da Espanha
no Brasil. Coordenou o projeto de Português Língua Adicional em Rede no
IFSP durante os anos de 2021 e 2022. É doutora em Linguística e Língua
Portuguesa pela Unesp-Araraquara, com estágio doutoral no Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em Linguística
pela UFSCar e Especialista em Planejamento, Implementação e Gestão da
EaD, pela UFF. Graduada em Letras–Português/Espanhol pela UFSCar. Suas

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E ENSINO PLURAL DE ESPANHOL NO SUL GLOBAL

pesquisas de Mestrado e Doutorado têm como temática significados sobre o


componente (inter)cultural no ensino/aprendizagem português e espanhol
línguas estrangeiras. Foi professora de Espanhol no curso de graduação em
Letras da Universidade Federal de São Carlos durante 2013. No ano acadêmico
de 2014/2015, foi professora de língua portuguesa na Utah State University,
Estados Unidos, pelo Programa FLTA (Foreign Language Teaching Assistant),
da Capes/Fulbright. Seus focos de interesse são: cultura, interculturalidade
crítica, estudos culturais latino-americanos, decolonialidade, formação de
professores, espanhol e português línguas não maternas.
E-mail: fernanda.tonelli@ifsp.edu.br

Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista é Professora Titular da Universidade


Federal da Bahia (UFBA), docente permanente do Programa de Pós-Graduação
em Língua e Cultura (PPGLinC/UFBA) e do Curso de Letras do Instituto de
Letras da UFBA, área de Espanhol. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq (LL/LA). Desenvolve e orienta trabalhos voltados para os processos de
constituição identitária, na perspectiva crítica e decolonial/contra-colonial,
contextos de diáspora e migração e multiletramentos críticos e pedagogias
críticas e decoloniais no Brasil e na América Latina. Entre seus temas e
problemáticas se volta para o ensino de línguas (português e espanhol) e
formação de professores bem como pedagogias críticas e decoloniais no Brasil
e no contexto latino-americano, educação linguística, práticas discursivas,
translinguagem e estudos críticos de linguagem. Orienta em nível de Iniciação
científica, Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado. Líder do Grupo de Pesquisa
do CNPq Decolonialidade, Linguagem, Identidade e Educação (DECOLIDE).
Membro do Comitê do PIBIC de Linguística, Letras e Artes da UFBA. Professora
visitante na Universidade Autônoma da Baixa Califórnia e da Universidade
Autônoma Benito Juárez de Oaxaca México, com foco em perspectivas críticas e
decoloniais da linguagem no Brasil e no México bem como em decolonialidade/
contracolonialidade, formação docente, linguagens, discurso e educação.
Membro do GT da Anpoll Práticas identitárias em Linguística Aplicada.
E-mail: liviarad@yahoo.com

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