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ENGENDRAMENTOS NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DO TRAJE DE

CENA: REFLEXÕES PARA UM ESTUDO NÃO BINÁRIO DO TRAJE DE


CENA CÊNICO

Jurandir Eduardo Pereira Junior1

Resumo: A configuração estrutural que o figurino venha a desenvolver para a cena teatral preserva
em sua maioria, inúmeras marcas sociais em gênero performatizadas pelas roupas. Os signos sociais
das roupas adentram de forma sistemática as dimensões criativas do traje de cena. A referida
comunicação, busca dialogar de forma engendrada com aspectos norteadores da criação do traje de
cena, que enraizadas por metodologias binárias de montagem do traje cênico ressaltam aspectos em
gênero enfatizados pela feminilidade e masculinidade convencionadas na roupa. Convenção esta
que acaba por definir arranjos demarcados por posições firmadas no masculino e feminino ao vasto
campo criativo do traje de cena. Destas formas, algumas questões apresentam-se como emergentes
quando buscamos ampliar essas convenções atribuídas discursivamente aos modos de criação do
traje cênico. O traje de cena, a priori, convenciona-se pelo gênero atribuído a ele? Quais os meios
que naturalizam o discurso binário da roupa em prol do gênero? Como as construções cênicas
observam a função do traje de cena na configuração simbólica da cena?

Palavras-chave: Traje; gênero; roupa; teatro; personagem.

Introdução
O figurino teatral constitui uma das principais composições estéticas que envolvem a cena
teatral ou ação performática dentro da orquestração dos aspectos visuais da cena, seja ela ligada a
performance, a dança, ao teatro, ou ao circo. Em toda intervenção ligada às artes da presença, a
composição de um figurino é notada, ainda que o corpo do performeres esteja envolvido pela nudez
colocada na cena.
Em meio às transformações teatrais, sejam elas colocadas pela ampla modernização do
teatro, ou surgimento do figurinista, ou até mesmo nas modernas elaborações técnicas e poéticas
que foram efetivadas com a solidificação da figura do encenador, o figurino não é mais percebido
como aquele elemento que tem a função apenas de vestir a personagem, pois esta ideia pouco
sinuosa de apenas adornar o performer para a sua intervenção artística torna-se obsoleta diante das
reais necessidades e funcionalidade que o figurino teatral ou traje de cena desempenha na cena
contemporânea.

1
Professor do departamento de artes da Universidade Federal do Maranhão ligado ao curso de Licenciatura em Teatro.
Doutorando em teatro pelo programa de pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina-
UDESC.

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De acordo o “Dicionário do teatro” do Patrice Pavis (2015) com o prólogo destacado para
iniciar a definição de figurino teatral, o autor frisa que “Hoje, na representação, o figurino conquista
um lugar muito mais ambicioso; multiplica suas funções e se integra ao trabalho de conjunto em
cima dos significados cênicos” (p.168).
Sendo assim, a funcionalidade do figurino teatral não encontra-se apenas no ato de vestir a
personagem, pois o figurino é percebido no fazer teatral contemporâneo como um balizador
conceitual cinético dado na cena, pois coloca-se na cena como um espaço de signo em consonância
com a proposta artística desenvolvida na produção cênica.
Ao falar da importância do figurino para a cena contemporânea não negligenciamos a
função primária de vestir o ator/atriz ou o performer, porém o vestir não está apenas no colocar uma
roupa e ir para a cena, as conexões que busco neste texto é o que vem colocado na trama que
constitui estes trajes de cena, mediados por demarcações que evidenciamos ou traçamos nas
sinuosidades no corpo da atriz/ator por meio da vestimenta demarcada no teatro como figurino, mas
que recebe forte influência dos meios de produção provenientes da vestimenta.
É exatamente esta amplitude de pensamento que ao entender que o traje de cena é mais do
que uma simples vestimenta nos possibilita novas conexões diante do pensamento do traje de cena
contemporâneo, abrindo o leque de possibilidades dadas nos argumentos construídos a partir da
vestimenta teatral.
Na apresentação do livro “Diário de pesquisadores: Traje de cena”, um dos autores da obra o
professor e pesquisador em traje cênico Fausto Viana nos coloca novas possibilidades
contemporâneas que podemos traçar ao lançar olhares sobre a produção do traje de cena atual.

O traje de cena, importante ele de comunicação entre o performer e receptor, traz em si os


elementos da antropologia, da etnologia, das artes plásticas e cênicas, da moda, da
arquitetura, do designer e de muitas outras. Ampliando suas áreas de atuação, tem se
expandido até para temas mais contemporâneos, como traje recicláveis e de material
orgânico, ou de materiais radicais, como leds, as balas de revólver, cabelo humano,
acrílicos, gelos, fibras óticas e tantos outros que despontam na mostra Figurinos Radicais,
na quadrienal de praga, em 2011. (VIANA, MUNIZ, 2012, p.10)

Ao reconhecer que os amplos argumentos que o traje de cena nos revela, sobretudo, aqueles
que nos mobiliza ao nos colocar diante das amarras, das dobras, e dos enviezamentos que o
constitui, buscamos desenvolver aqui aspectos que aparecem quando laçamos olhares para a
aproximação entre vestimenta e traje de cena, moda e traje de cena, corpo e produção de traje de
cena perpassando pelo desvendamento do gênero por meio dessas tramas.

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Vale lembrar ao leitor que em alguns momentos ao longo do texto, questões que
atravessaram o autor deste artigo irão sobressair a terceira pessoa dada como primazia na tessitura
do texto, adentrando em argumentos que constituem ampla subjetividade e afeto com os encontros e
passagem que fazem parte do texto, mas, sobretudo, constroem o pesquisador em seu processo de
investigação. Ao ressaltar esta questão vejo que em alguns momentos do texto foi necessário
recorrer a essa quebra na forma textual na busca de uma aproximação mais direta e clara aos olhos
do leitor atento e curioso em saber sobre quais encontros se constituem esse texto.

1. Vestimenta e gênero.
A vestimenta correlata com as questões binárias em gênero nos parece convencionalizadas
desde o nascimento, ou até mesmo bem antes, pois ao se confirmar por olhares biológicos que o
feto gerado pela mãe é do gênero masculino ou feminino toda a estrutura ligada a vestimentas e
direciona para compor relação direta com o gênero definido.
Algumas autoras em suas pesquisas destacam que essa é a primeira “castração” que o corpo
tem na sua relação direta com as concepções fechadas e unilaterais com relação ao gênero. Uma das
pesquisadoras é a professora Berenice Bento2 que desenvolve importantes pesquisas entendendo o
gênero como uma instância importante para pensar as regulamentações sociais do Biopoder. Em
entrevista concedida ao caderno Pagu ela destaca que:

Gênero é hoje um assunto de Estado. Ao produzir as identidades de homem e mulher com a


base na biologia, estamos produzindo identidades de gênero a partir de um processo
extremamente violento, que está vinculado à produção de identidades sexuais. A produção
do sujeito no mundo segue um protocolo de gênero e de sexualidade. (BENTO, 2014.p.12)

Na referida entrevista a autora ainda pontua que a ideia central para pensarmos o gênero de
forma renovada, com barreiras menos fixas“ é libertar o conceito de gênero do Biopoder”( BENTO,
2014, p.12 ). Obviamente, que a autora destaca que essa renovação de perceber e entender o gênero
no eixo das relações sociais de formas mais transitórias não é fácil, porque ela de forma direta
mobiliza mudanças mais profundas em camadas rigidamente protegidas a toda ideia ou forma que
alterar a conduta da norma hegemônica social. Neste aspecto, a pesquisadora é cautelosa ao afirmar:
“Mas não é simples, é complicado. O gênero é um elemento que fundamenta a política do Estado.
Os temas relacionados às populações são sempre tratados em função da ideia do masculino/homem

2
Professora e socióloga da Universidade Federal do Rio Grande do Norte com reconhecida pesquisa nas aéreas de
sexualidades e gênero, com ênfase nos debates das questões trans. Atual coordenadora do Núclelo de Estudos
Interdisciplinares em Divessidade Sexual, Gênero e Direitos Humanos.

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e feminino/mulher.” (p.12, 2014).Vale lembrar que o gênero se fundamenta ainda mais quando
associadas a concepções religiosas.
Dentro desta perspectiva qual seria o papel da vestimenta? Qual o papel que ela pode
representar neste distanciamento do gênero das estruturas hegemônicas de biopoder? Mesmo não
apresentando questões direcionadas a pensar a vestimenta dentro das suas argumentações com
relação ao gênero a professora enfatiza, em algumas passagens da sua entrevista, alguns pontos
sobre a vestimenta quando relacionada a questionamentos trans; recorte do seu estudo.

A solução mais imediata seria aceitar que as pessoas trans pudessem fazer a cirurgia de
transgenitalização, que o Estado pagasse, que pudessem mudar legalmente suas identidades
de gênero (quantas vezes quisessem), que eu pudesse chegar em minha escola vestido “de
menino” e performatizando a masculinidade e ninguém estranhasse. (BENTO, 2014. p.02.
grifo meu)

Vejamos que a autora já coloca a concepção de menino em suspensão ao usar as aspas ao


apresentar o termo, logo, de forma indireta a pesquisadora coloca a vestimenta em suspensão
também. Bento destaca que ao aceitar as configurações transitórias do gênero reconhecendo a
possibilidade de escolher quais e quantas vezes seu gênero pode sofrer alteração,o uso das roupas
nesta colocação transitória não deveria ser percebido enquanto instância de gênero, pois a ideia que
a roupa deva seguir o gênero biológico, constatação dada no social e respaldada por meio de
discursos médicos e científicos, e reafirmados por discursos religiosos, dilui-se ao aceitar o gênero
de forma menos rígida.
Ao passo que modificamos nosso entendimento para as renovações que a autora nos colocar
ao investigarmos o gênero, as instâncias da feminilidade e masculinidade de forma direta são
alteradas, e as nossas percepções justapostas do que é masculino daquilo que seria feminino se torna
ineficaz para as novas possibilidades de representação enquanto indivíduo, sobretudo ao processo
que atravessa as roupas na manutenção do status de feminilidade e masculinidade empregada no
uso e atribuições da vestimenta.
Desta forma, a importância do distanciamento do gênero das estruturas do Biopoder,
sobretudo, perpassa as modificações dos discursos que formam bases nas relações sociais já que
“Quando falamos sobre as relações de poder, quando sugerimos que gênero não deve ser um
assunto da medicina, quando defendemos direitos à autodeterminação de gênero, estamos buscando
libertar o gênero do biopoder” (BENTO, 2014, p.12) ou seja, podemos perceber que a libertação do
gênero também perpassa pelo local da vestimenta, não mais contida na forma binária de observá-la,
nem mesmo renegado a vestimenta, a estruturação de qualquer que seja pressupostos de

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feminilidade e masculinidade. Agora estas instâncias estão sendo colocadas nas formas que está
para além dos dobramentos binários convencionados a ela.
A primeira “castração” do indivíduo, mencionada no início do texto por meio de afirmações
dadas por Bento, nos revela performatividade que estão dadas nas relações e constituição do
individuo. A utilização das cores, sobretudo, azul para meninos, rosa para meninas, assim como
bonecas para meninas e bola para os meninos são enraizamentos convencionados é reiterada pelos
atos performativos de se construir o gênero no estado binário que conhecemos.
Segundo Butler (2013) o gênero é seguido de atos performativo, que ninguém nasce com o
gênero nós apenas o performatizamos através de certos dispositivos que operam na manutenção de
discursos hegemônicos atrelados a ele. A vestimenta encontra-se nessa reeinteração do gênero.
Para pontuar ainda mais a força que essas demarcações em gênero interferem no nosso
processo formativo desenvolvo um parêntese para falar sobre o processo binário das cores.
Apresento o relato da professora Berenice Bento sobre a experiência que ela vivenciou com
professoras do Ensino Básico.

Sobre o que virá depois, eu realmente não sei, eu estou muito preocupada com o que está
acontecendo agora, diante da gente. O espaço da escola é totalmente demarcado pela
questão de gênero: O banheiro, o prato em que as crianças comem. Eu dei um curso de
formação para professores do ciclo básico e, em uma dessas ocasiões, uma professora
contou que um aluno, na hora da refeição, não queria comer porque os pratos azuis estavam
todos ocupados. E ele não podia comer em prato rosa. Uma criança de três ou quatro anos.
Se ele comesse em um prato rosa iriam dizer que ele é bicha. Eu perguntei á professora o
que fizeram: “demos um jeito e conseguirmos um prato branco. (BENTO, 2014, p.13)

Tal relato nos coloca a força que essas demarcações em gênero têm nas percepções que
desenvolvemos ao logo da vida, e nos mostra o ciclo de opressão que vamos construímos ao
convencionalizarmos essas demarcações enquanto fatores decisivos para qualificar quem opera ou
não em nossas vidas, e sobre quais circunstâncias de subalternidade. Ao ambiente da escola essas
questões são anuladas e negligenciadas pelo “entendimento” da macro política que vem anulando
possibilidade de debates sobre essas questões no ambiente formativo da escola, fortalecendo ainda
mais opressões e desrespeito pela singularidade do indivíduo no momento de sua formação.
Ao construir a argumentação sobre feminilidade os primeiros aspectos levantados por
Rolnilk no seu texto é que “Os modos como o macho e fêmea se apresentam, se seduzem, se tocam,
não faz mais sentido: a vida mudou muito, e com isso mudou por completo o que sente o corpo”
(ROLNIK, 1989, p.69). Ao apresentar este olhar a autora nos colocar que as novas incorporações na

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relação do indivíduo alterarão suas representações, na medida em que os sentidos dos corpos
mudaram.
Nesse sentido, os ideais introjetados de masculinidade e feminilidades convencionados no
campo social não nos parecem fazer mais sentidos, mas isso não quer dizer que as convenções ainda
estabilizadas não são mais apresentadas a nós como norma. Pelo contrário, é exatamente sabendo da
existência da ampliação do que sente o corpo, que a vigilância ao corpo é reiterada.
Pensar formas de subterfúgios para visualizar o gênero dado a roupas é perceber que as
novas criações por meio da demanda de pensar a roupa na forma/estrutura Agender3, é uma via de
representação destas questões no campo da criação da vestimenta. E quais os impactos que isso leva
não apenas ao campo social, mas os impactos que isso pode gerar nas ramificações que o processo
da roupa tem com outras estruturas, que no caso do figurino teatral ou traje de cena se vincula a
prática artística das artes cênicas.

1.1 Inclusões históricas no que confere a relação vestimenta e gênero.


No decorrer da história as roupas passaram por várias inclusões no que concerne a
demarcação do gênero pela roupa ou a roupa sendo reconhecida prioritariamente pelo gênero.
Houve um certo período histórico onde a relação roupa e gênero foi pouco evidenciada, pois se
observava uma semelhança anatômica entre o corporal feminino com relação ao masculino, porém
ao longo das décadas a “inegável” diferença não poderia ser desprezadas como descreve Lars
Sevendesen em seu livro “Moda uma filosofia”:

[....] Antes do século XIV, as diferenças entre as roupas para homens e mulheres eram
definivamente pequenas, mas desse ponto em diante a forma das roupas tendeu a ser
relacionada ao gênero, as mulheres usando trajes claramente mais ajustados ao corpo que
antes, enquanto homens começaram a usar malgas sobrepostas com calças curtas. A ideia
de que os corpos das mulheres e dos homens são basicamente semelhantes, mas que o
corpo da mulher – especialmente os genitais – é menos desenvolvido que o do homem, não
foi abandonada até o século XVII. (SVENDSEN, 2010, p.97)

A roupa como um referencial forte para concepção visual do gênero se manteve ao longo
dos séculos, buscando cada vez compartimentar a vestimenta em gênero de forma binarizada entre o
feminino e o masculino. Através da binaridade da roupas, no que confere o gênero, podemos
perceber que existem propósitos bastante específicos onde as definições, importâncias e usos das
roupas são demarcadas pelo gênero. No livro “Moda masculina”, o pesquisador John Hopkins

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Sem distinção de gênero.

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destaca que “Um dos princípios subjacentes que definiu a indumentária masculina através dos
tempos é o do vestir-se para comunicar quem somos em termos de gênero, status social e cultura”
(HOPKINS, 2013,p.16).
Segundo a pesquisadora Maria Alice Ximenes, em passagens do seu livro “Moda e Arte na
reinvenção do corpo feminino do século XX”, em meados do século XIX a figura masculina e todos
os seus adornos são percebidos na esfera da vida pública, enquanto a figura feminina só adentra o
espaço público de forma sistemática e específica tendo como objetivo apenas de sustentar bens
simbólicos que solidificam ainda mais argumentos que centralizam a supremacia masculina.

As boas maneiras da mulher junto à sua maneira de vestir, de produzir uma determinada
aparência, deveriam ser exteriorizadas. Isso somava pontos para que o homem, em
situações sociais, fizesse sua promoção pessoal perante a sociedade. Afinal a família não
representa apenas um patrimônio, como também um capital simbólico.
(XIMENES,2011,p.40)

Ainda de acordo com a autora, o aprisionamento das questões ligadas à figura da mulher
tanto se refere ao isolamento em espaços privados, quanto torturadas em roupas que construíam um
aprisionamento das subjetividades femininas.
[...] ocupa papel fundamental na comunicação subjetiva reprimida, pois é por meio dela que
existe um diálogo da mulher com o mundo exterior. As mulheres estavam em dupla prisão:
ficavam trancadas em um espaço privado e, também, em suas roupas, verdadeiramente
embalagens de tortura, cujo exemplo mais significativo e a roupa interna composta por
espartilhos e saiotes. (XIMENES, 2011, p.46)

Ao longo da história social, alguns dados são bastante evidentes para entendermos como a
construção da vestimenta se colocava aos olhos de quem as projetava. Ainda segundo Ximenes os
desejos masculinos ainda estão incutidos no ato da criação e produção da roupa:

No entanto, a estrutura social ainda é fortemente patriarcal e, apesar dos novos direitos das
mulheres, há, por parte dela, submissão e obediência aos desejos construídos pela fantasia
erótica masculina, evidenciando no vestuário por meio da chegada a Paris do primeiro
costureiro, Charles Frederic Worth. (XIMENES, 2011, p.16)

Ou seja, na produção e criação da vestimenta feminina os entrelaces e olhares rígidos não


apenas na contemplação e subjugação da figura feminina, mas no ato da criação e produção da
vestimenta é dada por uma visão masculina em Paris, que tempos depois irá se tornar um dos
principais celeiros da representação da moda simbólica mundial. Ainda sobre este aspecto a autora
destaca ainda que:

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Essa fantasia pode ser lida por meio da chegada do primeiro grande costureiro em Paris,
Charles Frederic Worth, ditando formas para vestir para as mulheres. Estas, portanto,
passavam a ser redesenhadas por um homem, que lhe dava subsídios não apenas de
sugestões de vestuário, mas utilizava seu olhar de homem e artista para idealizá-las segundo
o desejo masculino subjacente.(XIMENES, 2011, p.28)

Outro dado histórico e que nos parece importante e nos ajuda a pensar a roupa enquanto
símbolo social que cristalizou a supremacia masculina diante dos desejos e do gênero oposto
atribuídos a vestimenta, é o uso das calças, peça originalmente atribuída ao vestuário masculino,
mas que por meio de lutas, e enfrentamento feminista foi incorporada a armário feminino.
Vale ressaltar que a naturalização do discurso que a calça foi pensada apenas para uso dos
homens não se sustenta em nenhum argumento anatômico ou fisiológico, segundo Lars Svendesem
(2010); em sua publicação, Roland Barthes destaca que criamos uma mitificação desta teoria do uso
da calça, pois ele entende que não existem argumentos plausíveis para tal fundamentação. Porém,
ele reconhece que essa mistificação desta teoria do uso e apropriações da calça firmou privações no
que confere, sobretudo, as mulheres.

No século XIX, na França, as mulheres foram de fato proibidas de usá-las, embora as da


classe trabalhadora, em particular, violassem essa proibição. Calções folgados também
eram altamente suspeitos, já que a separação das coxas de uma mulher, mesmo que por um
pedacinho de pano, era considerada francamente obscena. Meninas podiam usar calções até
a puberdade, mas não posteriormente, e as únicas mulheres que os usavam eram as
prostitutas. (SVENDSEN, 2010, p. 98)

Ainda em meados do século XIX o movimento feminista americano começa a desenvolver


ações para inserção da calça no vestuário feminino, efetivando assim movimentos de resistência ao
uso da calça apenas por homens propondo novas formas de admissão da calça como possibilidade
de vestimenta também para as mulheres. Segundo Svendsen (2010), a criação da calça pantalona
franzida, denominada Bloomers, que foi criada e usada pela primeira vez pela feminista norte
americanaAmeliaBloomer, em 1950, causoubastantes transtornos para aquelas que ousaram usar
como forma de resistência. “Calções” folgados também eram altamente suspeitos, já que a
separação das coxas de uma mulher, mesmo que por um pedacinho de pano, era considerada
francamente obscena” (SVENDSEN, 2010, p.98), fazendo com que elas e suas companheiras
deixassem de usar a calça Bloomercom medo das zombarias direcionadas a elas pelo simples fato
de usarem a calça.

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Figura 01

Imagem sem autoria

Porém, essa primeira isenção de modelos Bloomer de calças direcionadas ao uso das
mulheres representou um marco para o desenvolvimento de outras formas que surgiram no decorrer
do período histórico, sobretudo inter-relacionadas com outros acontecimentos do período como foi
o surgimento, uso e apropriação da bicicleta como influente meio de transporte da época.
Segundo o coletivo feminino de ciclista de São Paulo4; em nota colocada em seu site, o
surgimento da bicicleta, e a popularização do seu uso sem distinção de gênero foi bastante
importante para alguns avanços feministas, pois através delas algumas liberações no que confere o
uso de algumas peças do vestuário propriamente definidas e convencionalizadas ao universo
masculino foram sendo apropriadas ao universo das mulheres, como é o caso dos modelos de
calças. O referido coletivo ainda aponta que essa importância dada ao uso das bicicletas no campo
dos avanços feministas já havia sido pontuada por Susan B. Antony5 que chegou a declarar que “Eu
acho que [a bicicleta] fez mais pela emancipação das mulheres que qualquer outra coisa no mundo.
(...) Ela dá à mulher um sentimento de liberdade e auto-confiança”.
A partir da afirmação da sufragista Susan B. Antony podemos perceber que o uso da
bicicleta pelas mulheres foi algo que de forma direta impulsionou a justificativa do uso das calças
pelas mulheres diante das convencionalidades dos discursos machistas e patriarcais do período.

4
Site do coletivo: https://pedalinas.wordpress.com/2011/12/15/a-bicicleta-e-a-calca/
5
Sufragista e importante nome na luta pelos direitos das mulheres no ano de 1985 nos Estados Unidos. Dedicou toda sua
vida na luta pela implementação de diretos civis, lutando pela moradia, pela seguridade com relação às filhos da
mulheres daquele período.

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A invenção e a difusão da bicicleta, porém, que estava bem-estabelecida na altura dos anos
de 1980, justificou o uso de calças pelas mulheres, já que era quase impraticável pedalar
usando saia. De início elas usaram uma espécie de saia-calça, mas pouco a pouco isso deu
lugar a calças comuns. A partir dos anos de 1920 a 1930, tornou-se mais usual o uso de
calças (tanto longas quanto curtas), por mulheres para a prática de esportes e atividades de
lazer.(SVENDSEN, 2010, p. 99)

Vale ressaltar que aceitação do uso da calça no ambiente social de forma geral foi aos
poucos sendo conquistado, pois inicialmente o uso da calça estava apenas restrito a prática de
esporte e atividade de lazer como frisa a citação anterior. A modelagem das calças vai ganhando
diversas formas estruturais com relação ao corpo da mulher, onde a forma na qual conhecemos hoje
é uma evolução de várias concepções que foram sendo atualizadas no decorrer do período histórico
mediante os ganhos e apropriações adquiridas pelos efetivos discursos feministas na busca de
apropriar cada vez mais direitos relacionados a figura da mulher.

1.2 Reconfigurações das metodologias de criação do figurino: Tessituras por meio de outras vias
na contemporaneidade.
Na medida em que vamos tensionando as questões sobre o figurino teatral, vamos também
questionando sobre quais metodologias o conceito está formatado para que assim na nossa
reelaboração conceitual com o objetivo de afinar os conceitos na justa posição com os problemas
em gênero apresentados de formas mais direcionadas na contemporaneidade, buscamos revisitar
essas formas e apropriação ligadas ao figurino, não apenas estudando os efeitos estéticos das roupas
na cena, mas adentrando os percursos de criação, e produção da mesma que antecedem essa
exposição ao público.
Ao observar em uma das colocações do pesquisador Fasto Viana em seu livro “Primeiros
passos para cenógrafos e figurinistas”, percebemos que a justa posição entre figurino e gênero
sempre foi apresentado como instância necessária para a constituição do figurino teatral. Segundo
Viana (2015), antigamente o figurino deveria apontar localização geográfica, o clima ou a época do
ano, a idade da personagem, o sexo do portador: trajes masculinos e femininos, ocupação, posição
social e por fim a hora do dia e ocasião.
A referida constatação não nos coloca nenhuma supressa já que na maioria dos textos
dramáticos teatrais a binaridade é constituinte da personagem, assim como as outras questões que o
figurino deva evidenciar mediante substrato do texto dramático que temos como referência no
momento da montagem.

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A intersecção entre as conexões dadas ao vestuário com a justa posição com o figurino já
são percebidas por alguns pesquisadores na cena contemporânea, partindo do entendimento que as
roupas não são apenas construídas por alinhavos e formas desconexas, pelo contrário ela é fruto de
um emaranhado de informações, que nem sempre estão apenas sobre a pele.

Essa ideia da moda vista como fenômeno cultural, que já é defendida há algum tempo por
diversos autores e especialistas da área e que hoje é reconhecida como tal pelo Ministério
da Cultura, refere-se ao modo, à maneira de viver que através dos gostos, crenças, visões, e
valores auxiliam na construção do estilo de vida dos sujeitos. Ou seja, da mesma forma que
se articula a composição do traje de cena, falar sobre moda é muito mais abrangente do que
falar sobre roupas, é refletir sobre como o comportamento dos indivíduos se constituem, se
engendram e se refletem numa determinada estética, materializada através da roupa,
representando determinada cultura. (HOFFMAN, 2012, p. 169)

Mediante este contexto, o que fica como vias de discussão a partir da nossa análise sobre as
metodologias de criação de figurino, é com qual possibilidade de ordem prática/teórica podemos
subverter essa binaridade com relação ao gênero? Quais vias podemos desenvolver para que o
gênero não venha acontecer de forma marcada pela vestimenta?, já que nas formas convencionais
sobre os pensamentos que norteiam a produção e criação do figurino de forma hegemônica,
sobretudo, no uso teatral são equacionados por divisões binárias fortemente herdadas pelas
construção patriarcal que somos associados ao nascermos.
Sendo assim, ao pensar isso, nos vemos colocados em um cenário de binaridade onde a
generificação não está apenas na constituição do indivíduo corporalmente, ela encontra-se na
percepção estética visual que soma-se a binaridade corporal em gênero que convencionalizamos
como norma corrente em nossa sociabilidade, onde a vestimenta está para o gênero assim como
gênero compreende-se sobre a vestimenta.
Partindo de espaços discursivos expostos por essa linha de produção que se sedimenta no
mercado podemos desenvolver aproximações para solidificar novos olhares às formas de produção
e criação que compõem a vestimenta cênica, prioritariamente, propondo aberturas nas concepções
estéticas teatrais, nos dando assim liberdades para criamos sem prestar contas com o estado de
binaridade dada pela vestimenta, sem ter a obrigação de, por meio do figurino teatral,
compartimentar o gênero na figura da roupa.

Referências

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidades. Rio de Janeiro.


Civilização brasileira. 2003.

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BENTO, Berenice. Brincar de gênero, uma conversa com Berenice Bento. Caderno Bagu.
Julho/dezembro.2014.01-23.<Endereço> www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
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HOPKINS, John. Moda Masculina. Bookman. Porto Alegre. 2013.
HOFFMAN, Ana. Fiapos, retalhos (e sobras) para possíveis entrelaçamentos entre figurino e moda
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VIANA, Fausto. PEREIRA, Dalmir Rogério. Figurino e cenografia para iniciantes. Estação das
letras e cores. São Paulo. 2015.
VIANA, Fausto, MUNIZ, Rosane. Diário de pesquisadores: Traje de cena. Estação das letras e
cores . São Paulo. 2012.
XIMENES, Maria Alice. Moda e arte na reinvenção do corpo feminino do século XIX. Estação das
letras e cores. Rio de Janeiro. 2011.

ENGENDRAMENTS IN THE SCENE COSTUME CREATION PROCESS: REFLECTIONS


FOR A NON - BINARY STUDY OF THE SCENE SCENE COSTUME.

Abstract: The structural configuration that the costume will develop for the theatrical scene
preserves in its majority, numerous social marks in genre performatized by the clothes. The social
signs of clothing enter systematically into the creative dimensions of the costume scene. This
communication seeks to dialogue in a way engendered with guiding aspects of the creation of the
costume of scene, rooted in binary methodologies of assembly of the stage costume emphasize
aspects in gender emphasized by the femininity and masculinity agreed in the clothes. This
convention ends up defining arrangements framed by masculine and feminine positions in the vast
creative field of the costume scene. From these forms, some questions appear as emergent when we
seek to amplify these discursively attributed conventions to the modes of creation of the costume. Is
the costume of the scene, a priori, conventional in the genre attributed to it? What are the means that
naturalize the binary discourse of clothing in favor of the genre? How do the stage constructions
observe the function of the scene costume in the symbolic configuration of the scene?
Keywords: Suit; genre; Clothing; character.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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