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Espiritismo, Educação, Gênero e

Sexualidades:

Um Diálogo com as Questões Sociais

Alexandre Júnior

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Índice

Introdução___________________________________________04

Capítulo I

O Espiritismo e as questões sociais______________________08

A existência de Deus__________________________________ 08

A imortalidade da alma_________________________________13

A reencarnação_______________________________________15

A comunicabilidade dos Espíritos________________________18

O progresso_________________________________________ 21

Ciência, Filosofia e Moral_______________________________ 24

Capítulo II

Educação Espírita como prática para a liberdade__________ 31

Educação Como redenção da sociedade__________________ 42

Educação Como reprodução da sociedade________________ 46

Educação como transformação da sociedade______________ 49

Como um currículo progressista pode ser atendido por uma


tendência pedagógica liberal?
___________________________51

Capítulo III

O Corpo Educado: As vidas que importam e as Lágrimas


Permitidas __________________________________________ 57

Cultura _____________________________________________ 60

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Políticas de Identidade_________________________________ 66

O Corpo Educado_____________________________________ 70

Capítulo IV

Gênero, Sexualidades e espiritualidade___________________ 77

Gênero e Sexualidades: Como Questão de Performance


Social_______________________________________________85

Gênero e Sexualidades: Como Questão de Performance


Espiritual____________________________________________ 92

Referências Bibliográficas ____________________________ 99

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Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidades:
Um diálogo com as questões sociais

Introdução

A ideia de um Movimento Espírita que dialogue de forma sóbria com as


questões sociais, sempre me motivou a perspectiva da crítica ao modelo atual
de Espiritismo que praticamos no Brasil.

Dentro deste cenário de realidades, o amor tem cor, tem orientação


sexual, tem gênero, tem poder aquisitivo.

Uns podem amar e serem amados, outros precisam pedir permissão para
existir, uns podem dialogar com os Espíritos desencarnados, outros possuem a
sua espiritualidade negada, uns podem ser quem são, outros precisam
simplesmente abster-se daquilo que é.

O que valida a condição de ser na sociedade são construções culturais


instituídas a partir de classe, gênero e raça.

Percebe-se em algum momento, que algumas pessoas imaginam que os


espaços religiosos estão imunes à reprodução destes comportamentos
excludentes e preconceituosos.

Este livro discute, a partir da visão do autor, como o Movimento Espírita


Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado não está isento das práticas
preconceituosas, sejam elas LGBTQIAP+fóbicas, machistas, racistas,
misóginas, sexistas ou xenofóbicas.

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Construímos diálogos a partir da nossa experiência no referido movimento
e com o objetivo de poder discutir e trazer a reflexão acerca de: Como a
comunidade LGBTQIAP+ é tratada dentro dos espaços espíritas brasileiros?
Quantos sofreram e sofrem violência das mais diversas ordens? E uma pergunta
não menos importante: Como uma doutrina que tem suas bases fincadas na
espiritualidade e na espiritualização institui conceitos que julgam, estabelecem e
ditam como as pessoas devem se comportar a partir dos corpos e das
consequentes genitálias que estes corpos possuam?

Baseamo-nos na Educação como processo construtor de uma


sociedade mais equânime, e entendemos o Espiritismo como uma doutrina
progressista. Daí perguntamos: Como então trabalharmos uma educação
progressista em um movimento espírita, que tem o conservadorismo como base
de suas ações metodológicas e sistemáticas?
Para isso, é fundamental dizermos de que Espiritismo estamos partindo
para fundamentar as nossas discussões e digressões. Desta forma, usamos
Kardec, em seu livro, O Que é Espiritismo para robustecer a nossa teoria:

O espiritismo é ao mesmo tempo uma ciência de observação e


uma doutrina filosófica. Como ciência prática, ele consiste nas
relações que se podem estabelecer com os espíritos; como
filosofia, ele compreende todas as consequências morais que
decorrem dessas relações. (KARDEC, 2009)

Dando continuidade aos nossos pensamentos, nos referimos a (Kardec,


2009), “O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, da origem e da
destinação dos Espíritos, e das suas relações com o mundo corporal”. Enquanto
ciência, a sua função é intercambiar as duas margens do rio da vida: a margem
dos encarnados e a dos desencarnados. Ao mesmo tempo que, como filosofia,
o seu objetivo é despertar e provocar comportamentos éticos que colaborem na
construção de um ser humano comprometido com o seu progresso moral e que
consequentemente, entenda a sua responsabilidade com o bem-estar da
sociedade na qual encontra-se inserido. Dessa forma tem a função de

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transformação social e toda a sua base é instituída em ações que facultem a
mudança interior e o bem comum.

E para a edificação de uma sociedade justa e igualitária, temas como


família, sexo, sexualidades, gênero, relações étnico-raciais, religião e política
não devem ficar relegadas a segundo plano ou serem considerados assuntos
“anti-doutrinários”, assumindo caráter proibitivo e pecaminoso. A abordagem
dessas temáticas sob a luz da doutrina espírita faz com que se construa uma
base de entendimento crítica e participativa, bem como, promove a
desconstrução e a invalidação da vivência de preconceitos de vários matizes.
Quando estudamos o Espiritismo, deparamos em seu escopo com
conceitos como: a existência de Deus, a imortalidade da alma, a reencarnação,
a comunicabilidade dos espíritos, o progresso; que aqui serão discutidos e que
em nenhum momento possuem o objetivo de justificar mazelas, desigualdades
e injustiças sociais. Violência, desemprego, fome, racismo, intolerância religiosa,
machismo, xenofobia, LGBTQIAP+fóbia, sexismo, misoginia estão presentes de
forma estrutural na sociedade contemporânea.
Pesquisar o Espiritismo em todas as suas possibilidades é buscar a
origem causal das estratificações sociais, não apenas do ponto de vista físico,
mas também, do ponto de vista das relações históricas e espirituais. Entender
este processo é importante, afinal quem fomos, implica diretamente em quem
somos.
A partir desse raciocínio nos perguntamos: será o movimento espírita,
espiritualista em sua teoria e materialista em sua prática vivencial? Será, pois,
que se vivêssemos o Espiritismo espiritualista, haveria espaço para sermos
racistas, xenofóbicos, machistas, LGBTQIAP+fóbicos, sexistas ou misóginos?
Trabalharíamos o assistencialismo que produz o “mendigo de estimação” e
confere “pseuda” consciência tranquila de quem terá uma casa numa suntuosa
e ociosa “colônia espiritual”?
Pois bem, a imortalidade da alma, a reencarnação e o progresso são
integrantes de uma rede de leis naturais que quando estudadas pela visão
espírita, têm a função de nos fortalecer o entendimento de que somos seres
espirituais que atravessam uma condição de materialidade transitória. Nesse
sentido, por mais que sejamos alcançados por dores da alma, temos a convicção

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de que elas são passageiras, uma vez que perene é o amor. Também são
eternos, todos os sentimentos que nos aproximam dele, nos fortalecendo para
que a cada dia sejamos mais fraternos e solidários.
Essa compreensão da doutrina espírita põe por terra a existência apenas de
obsessões intermináveis, umbrais sombrios e dolorosos, como lugares
circunscritos, que se assemelham ao tão famigerado e divulgado inferno.
Reestabelece a ordem das coisas e propõe que temos sim a oportunidade de
sermos felizes, postulando que o Espiritismo, sob nenhuma circunstância,
defende o sofrimento sem fim, bem como não usa nenhum de seus princípios
como balizadores ou justificadores para o sofrimento, a desigualdade e a
injustiça social.
Tendo como referencial teórico as obras de Kardec, defenderemos a tese
que temas como gênero e sexualidades podem ser tratados a partir de uma
perspectiva Kardeciana, sem desabonar a doutrina ou retirar do seu construto a
ciência e a filosofia, muito menos as questões morais.
Basear-nos-emos na educação como um processo legítimo a qual recorre a
doutrina espírita para a sua elaboração teórica e o seu desdobramento na
prática. Apresentaremos, a perspectiva de educação utilizada para uma
compreensão ampla do que somos.
Discutiremos aqui os conceitos que formam a doutrina Espírita.

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Capítulo I

O Espiritismo e as Questões Sociais

A existência de Deus

As relações sociais no Brasil nos mantêm sempre perto das religiões


hegemônicas e faz com que uma parte significativa de nosso povo tenha
construído a sua concepção de Deus a partir dessa realidade. O Deus que nos
fora apresentado durante cerca de dezoito séculos é sinônimo de punição,
castração, demonização e proibições das mais diversas ordens. Essa
compreensão causa um grande impacto na formação da cultura e da sociedade
brasileira.
Em abril de 1857, com o lançamento de O Livro dos Espíritos, ampliamos
a nossa percepção com relação a Deus, que deixa de ser aquele que pune e
castiga e passa a ser um autêntico parceiro na criação e na vivência do bem,
sinônimo de bondade e justiça. Na primeira pergunta deste mesmo livro, (Kardec,
2007): “Que é Deus?”, acompanhada da respectiva resposta, “Inteligência
suprema causa primária de todas as coisas”, provoca esta revisão conceitual
expressiva.
O espírita deveria entender que não existe uma intervenção divina para
infringir a dor pela dor e o castigo pelo castigo, são recursos terapêuticos e
educativos que chegam até nós quando a nossa forma de viver nos afasta da lei
básica da vida: o amor, a solidariedade e a luta para a construção de uma
sociedade mais justa e equânime. Tal raciocínio se mostra nitidamente quando

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Kardec indaga aos Espíritos, na pergunta 621 de O Livro dos Espíritos, (Kardec,
2007) “Onde está escrita a lei de Deus?”, e eles respondem: “Na consciência”.
A resposta enfatiza que essa consciência amplia no ser humano a
concepção de justiça e de igualdade, ao mesmo tempo em que apresenta a
possibilidade da conquista de si mesmo, revelando a tendência inata e o
compromisso da ascensão moral. Dessa maneira, o fato de sermos imperfeitos,
mas sermos perfectíveis, faz emergir a certeza de que não fomos criados para
sofrer, mas para progredir. Essa afirmação muda completamente o destino dos
moradores da Terra, tornando-os espíritos em evolução, transformando o
planeta em escola espiritual e os grupos sociais em salas de aulas específicas.

Não acreditamos em um Deus antropomórfico, ou seja, não damos a ele


a condição ou a forma humana, atribuindo-lhe sentimentos que nos são próprios.
Baseando-nos ainda na pergunta número 1 do O livro dos Espíritos, como
chamamos Deus de “pai”, sendo ele a inteligência suprema e a causa primária
de todas as coisas?

Essa compreensão fala mais de nós do que de Deus, pois, nos afastar de
um entendimento adequado, denuncia o grau de religião que nos invade no
exercício reflexivo sobre a deidade. Para completar a análise do quadro de
equívocos, vale ressaltar que o conceito de paternidade divina não emana da
própria doutrina, visto o que discutimos com relação a já citada pergunta. O que
nos resta é aprofundar a discussão buscando fonte original do Espiritismo e
abandonando as influências que o movimento espírita, em algum momento e de
alguma forma, tenha por ventura recebido de religiões que são mais antigas que
preponderavam e/ou preponderam.

Essa realidade faz-nos crer na necessidade do estudo sério e


comprometido, e para isso recorremos Kardec, em O Livro dos Médiuns,
Capítulo III Do Método:

Dissemos que o Espiritismo é toda uma Ciência, toda uma


Filosofia. Quem desejar conhecê-lo seriamente deve, pois, como
primeira condição, submeter-se a um estudo sério e persuadir-

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se de que, mais do que qualquer outra ciência, não se pode
aprendê-lo brincando. (Kardec, 2017)

Para discutirmos Deus, devemos nos perguntar: como o estamos


estudando em nosso movimento espírita?
A partir da colocação kardeciana referida acima, não há dúvida de que,
para compreender Deus segundo o espiritismo, precisamos quebrar alguns
paradigmas religiosos e seguir Kardec no que diz respeito ao método de
observação e experimentação, pois do contrário estaremos nos entregando, sem
esforço algum, a conformações preguiçosas que rejeitam a pesquisa, o estudo
e a discussão séria.
Na concepção espírita Deus não é humano, não está para nós assim como
Gepeto estava para Pinóquio, ou seja, não somos marionetes da divindade,
obedecendo a imperativos da vida que são alheios à nossa participação ou
determinados antes de nascermos. Não estamos simplesmente seguindo o
fluxo, esperando a hora de provar e expiar, como se tivéssemos sido criados
apenas com essa intenção. Exercemos o nosso livre arbítrio e não estamos
soltos no universo, pois as leis que nos regem não foram criadas com a proposta
de nos podar ou punir. Elas existem com o objetivo de serem parceiras em nosso
progresso; estão ombreados: Deus, as leis, nós e o progresso.
A heteronomia inexiste no Espiritismo, ou seja, não estamos sempre
sujeitos às leis ou vontades exteriores. Sendo assim, o objetivo é que nos
tornemos cada dia mais autônomos diante das leis que regem o universo, que
opera a possibilidade de estarmos juntos e fez surgir o conceito sobre o
encadeamento “do átomo ao arcanjo”.
Para darmos continuidade ao nosso pensamento nos valeremos de Leon
Denis no livro No invisível, quando ele nos fala:

O Espiritismo oferece está inapreciável vantagem de, ao mesmo


tempo, satisfazer à razão e ao sentimento. Até agora essas duas
faculdades da alma se têm conservado em luta aberta, num
perpétuo conflito. Daí uma causa profunda de sofrimento e de

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desordem para as sociedades humanas. A Religião, apelando
para o sentimento e excluindo a razão, caía muitas vezes no
fanatismo e no erro. A Ciência, procedendo em sentido contrário,
permanecia inerte e seca, impotente para regular a conduta
moral. Qual não será a superioridade de uma doutrina que vem
restabelecer o equilíbrio e a harmonia entre essas duas forças,
uni-las e imprimir-lhes um impulso uniforme para o bem?!

Se o tema em pauta é a ligação da intimidade do ser espiritual com Deus,


este comentário de Léon Denis no livro No Invisível contempla a perspectiva
espírita em torno da nossa relação com Deus. Nos favorece uma
compreensão de um princípio de religiosidade que não está vinculada a
nenhum culto externo e que pode ser sentido na intimidade, e desta maneira
não oferece um padrão a ser seguido, respeitando a cada um segundo a sua
maneira de sentir e viver está espiritualidade que é intima, pessoal e
intransferível.
Para nos ajudar a refletir sobre a temática, utilizamos como referência o
livro, O Mais Profundo Religar, do Escritor Espírita, Sérgio Aleixo, que dialoga
conosco nos seguintes termos:

Nunca a ideia religiosa foi tão necessária. Mas não no sentido


de serem constituídas mais religiões, e sim no de se reconhecer
finalmente onde está de fato a religião mesma, isto é, o religar;
cujos fundamentos não são necessariamente tão-só místicos,
mas hoje, quando podem, mesmo racionais e científicos (Aleixo,
2003)

As duas citações localizam a ideia religiosa na compreensão da moral que


o Espiritismo apresenta em sua estrutura. Não falamos aqui de moralidade ou
de ações moralizantes, mas sim da filosofia moral e da intencionalidade que
associa a doutrina às nossas ações cotidianas, inserindo o Espiritismo em uma
perspectiva concreta para superarmos uma práxis puramente contemplativa.

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A compreensão deste processo de vivência comportamental que faz com
que a nossa relação com Deus seja interligada a nossa intimidade, forjando a
consciência divina em nós e ampliando o nosso senso de responsabilidade com
o coletivo. Isso nos faz entender e viver a proposta de que o bem precisa e deve
ser comum a todos, não só a alguns ou a uma certa casta.
Nos utilizaremos de Léon Denis, no livro O Progresso, para darmos
continuidade as nossas reflexões:

É assim que, no lugar de um universo criado do nada, governado


pela fantasia e pela graça, no lugar de uma monarquia absoluta,
a ciência nos apresenta, no infinito dos espaços e dos tempos,
a imensa república dos mundos, governada por leis imutáveis,
acima das quais plana essa Razão consciente, que se conhece,
que se possui e que é Deus. (Denis, 2012)

Deus está na intimidade, se encontra consciente em nossa razão, que se


torna autônoma à medida que o conhecemos, percebemos e o possuímos. É
Deus na exata ação da vida pulsante, facultando a compreensão de nós, sobre
nós mesmos, que se eleva quando exaltamos o amor a partir de cada uma
destas possibilidades descobertas, em cada ação, cada oportunidade de
aprendizado que vai se dando à medida que enquanto espíritos vamos nos
educando através da proposta da filosofia moral, que aproxima tal qual nos fala
(Freire, 2011) “a nossa teoria da nossa prática”, nasce o reino, o reino segundo
Pires, que é aqui, junto com Deus que está em nós.

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A Imortalidade da Alma

Para começarmos as nossas considerações, traremos Kardec, no O Livro


dos Médiuns para consubstanciar a nossa escrita:

Admitimos a existência da alma e da sua individualidade após a


morte, é necessário admitir também: 1º) Que a sua natureza é
diferente da corpórea, pois ao separar-se do corpo ela não
conserva as propriedades materiais; 2º) Que ela possuía
consciência própria, pois lhe atribuímos a capacidade de ser feliz
ou sofredora, e que tem de ser assim, pois do contrário ela seria
um ser inerte e de nada nos valeria a sua existência.
(Kardec,2017):

Na pergunta 153 de O Livro dos Espíritos, (Kardec,2007), indaga: “Em que


sentido se deve entender a vida eterna?” Os Espíritos respondem: “É a vida do
Espírito que é eterna; a do corpo é transitória, passageira. Quando o corpo
morre, a alma retorna a vida eterna.”
Entendendo a Terra como espaço de progresso e conquistas, o Espiritismo,
de forma imortalista, nos apresenta uma visão espiritual na qual a morte é um
fenômeno biológico e a vida é um fenômeno espiritual. Isto é, aquilo que somos,
a nossa essência, não se encerra com o túmulo, pois, somos espíritos imortais.

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Essa percepção muda completamente a forma de encararmos a morte, e
estabelece a certeza de não sermos apenas corpo e matéria, pois existe a
continuidade da vivência dos afetos, dos saberes, e das experiências
construídas através dos tempos, aliviando a alma cansada ao preenchê-la com
esperançar, além de facultar a maioridade espiritual, na qual assumimos a
responsabilidade por aquilo que somos, e, principalmente, pelo que queremos e
venhamos a ser.
Tal proposta abre caminho para a conclusão de que não há determinismos,
visto que criamos o nosso futuro à medida que vivemos e interagimos com o
nosso presente, a partir de uma ação social, sem esquecer que sofremos as
ações e consequências que nos são impetradas a partir de ações do estado e
dos atores que possuem o poder financeiro, político e religioso em suas mãos.
Essa compreensão da vida, estimula o discernimento humano, nos
fazendo perceber que somos seres espirituais vivendo uma transitoriedade
material e não seres materiais vivendo uma transitoriedade espiritual, estabelece
uma ideia de vida, em uma perspectiva espiritualista, como tudo aquilo que
transcende o que respira, sem perder de vista as nossas relações com o mundo
social. As ações do bem e do amor, como sendo a nossa matéria prima para a
felicidade e para a construção do bem comum. Por fim, a paz como um
sentimento interior a ser conquistado por cada um de nós.
A consciência da vida futura e da imortalidade da alma, nos provoca
motivação para a vivência da doutrina espírita como uma doutrina
comportamental, assim como justifica e valida a ação do amor como sendo a
ferramenta da qual devemos nos utilizar para alcançarmos o progresso. Vale a
pena amar! É urgente que amemos.

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A Reencarnação

Revisitando Kardec no livro A Gênese, nos deparamos com esta citação


que consideramos oportuno compartilhá-la com os nossos amigos leitores:

"Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raça e


de casta, já que o mesmo Espírito pode renascer, rico ou pobre,
grande senhor ou proletário, mestre ou subordinado, livre ou
escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados
contra a injustiça da servidão e da escravatura, contra a sujeição
da mulher à lei do mais forte, não existe nenhum que supere em
lógica, o fato material da reencarnação. Desse modo, assim
como a reencarnação fundamenta numa lei da natureza o
princípio da fraternidade universal, também fundamenta na
mesma Lei o princípio da igualdade dos direitos sociais e, por
consequência, o da liberdade." (Kardec, 2007),

Fica evidente na citação acima, que a reencarnação, segundo o


entendimento espírita, não institui procedimentos que validam as desigualdades
sociais, como a instauração de um processo que privilegie um em detrimento de
outros. Nesse sentido, nenhuma hegemonia cultural, econômica ou social
opressora, deverá encontrar a sua razão de existir na forma de se conceber a
reencarnação tendo o Espiritismo como referencial teórico.
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A função da pluralidade das existências é nos fazer alcançar a felicidade e
para isso se faz necessário que quebremos paradigmas que nos foram impostos
por interpretações equivocadas do Espiritismo como, por exemplo, a ideia de
que o sofrimento está intimamente ligado ao processo reencarnatório.
Não estamos encarnados apenas para sofrer, não progredimos apenas
através da dor e da desdita. Neste axioma, verdadeiramente, o mecanismo de
aprendizado se dá através do amor. Sofremos quando inadvertidamente nos
afastamos dele.
Na Revista Espírita de 1858, Kardec nos apresenta as seguintes
ponderações sobre a temática:
Em sua justiça Deus não poderia ter criado umas almas mais
perfeitas que outras; entretanto, com a pluralidade das
existências, a desigualdade que vemos nada mais conterá de
contrário à mais rigorosa equidade. (...) Admitamos as
existências sucessivas e tudo estará explicado conforme à
justiça de Deus. Aquilo que não se pôde fazer numa existência,
far-se-á em outra. Assim, ninguém escapará à lei do progresso
e todos serão recompensados segundo o mérito real e ninguém
será excluído da felicidade suprema a que pode aspirar, sejam
quais forem os obstáculos encontrados em sua rota. (Kardec,
2019)

Kardec deixa evidente em ambas as citações quando fala em “rigorosa


equidade e que todos os Espíritos também tendem à perfeição, e Deus lhes
proporciona os meios de consegui-la,” que a reencarnação é a ação da justiça
divina oportunizando a todas, todos e todes. As mesmas possibilidades de
crescimento, de aprendizado, de refazimento, de acesso a novos saberes, vão
em outras situações nos proporcionando a possibilidade de conquistas íntimas
ainda não alcançadas, caracterizando as desigualdades sociais que compõem a
nossa sociedade como ações humanas.
Precisamos então discutir qual a verdadeira razão de ser da reencarnação
e de que forma se torna parceira no processo evolutivo humano. Não devemos
assimilá-la como a ação criminosa de Deus a chicotear, através de dores e

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sofrimentos os Espíritos equivocados, que selaram seu futuro e viverão no
umbral.
A reencarnação tem uma ação educativa ao invés de punitivista, divina e
diametralmente oposta a demoníaca, libertadora e antagônica a qualquer tipo de
postura aprisionante. Sua ação sobre nós é de possibilidades de aprendizado,
através de sucessivas oportunidades, nas quais, vamos, por intermédio dos
embates sociais, concordando e discordando, formatando-nos como cidadãos
cósmicos, seres universais, criaturas divinas, constituindo-nos naquilo que
somos.
É dessa forma que vamos compondo as diferenças que nos formam, isto
é, a reencarnação pode ser tida como a responsável pela suscitação em nós
daquilo que nos torna diferentes uns dos outros.
Reiteramos a compreensão de que as diferenças são constituídas pela
sociedade. Os preconceitos e as violências de qualquer ordem, não são
justificadas pela reencarnação, mas sim, fomentadas a partir dela. De forma a
explicar as distinções a partir das vidas sucessivas, num processo que tem como
objetivo validar a vivência destas variedades comportamentais como
possibilidades de crescimento íntimo, e não como posturas dignas de
preconceito, bem como, a aceitação do compromisso de que os novos
aprendizados e a construção de novos saberes são fontes de motivação e
conquistas, na concepção de um ser humano crítico, e ciente das lutas contra
toda expressão de desigualdade e injustiça social.

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A Comunicabilidade dos Espíritos

Nos inspiraremos em Kardec para começarmos as nossas digressões


sobre a temática da mediunidade:

No Espiritismo, a questão dos Espíritos está em segundo lugar,


não constituindo o seu ponto de partida. E é esse, precisamente,
o erro em que se cai e acarreta o fracasso em certas pessoas.
Sendo os espíritos simplesmente a alma dos homens, o
verdadeiro ponto de partida é então a existência da alma.
(KARDEC, 2017)

No livro O Que é O Espiritismo, Kardec nos orienta, (Kardec, 2009) “O


objetivo providencial das manifestações é convencer os incrédulos de que tudo
não termina para o homem com a vida terrestre, e de dar os crentes ideias mais
justas sobre o futuro.”
Com as referidas citações de Kardec percebemos o quanto estamos
distantes da verdadeira consciência da real utilidade da mediunidade na prática
espírita.
Pensamos que os fenômenos de mesas girantes cabiam àquela época,
mas não agora. O que deve nos convidar a doutrina espírita deve ser a sua
filosofia e não a fenomenologia. A mediunidade na casa espírita, salvo raríssimas

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exceções, não obedece aos imperativos da ciência, com método,
experimentação e observação, invariavelmente é mística.
Discutiremos esse fato a partir da busca pela construção de uma realidade
diferente, onde o objetivo seja revisto e a forma de se estudar e praticar a
mediunidade sejam questionadas, suscitando a razão em detrimento da crença.
O reflexo desse processo e consequente prevalência do misticismo se reflete no
próprio Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado,
ao insistir na adoção de “ídolos”, que, não por coincidência, são médiuns, os
quais não podem ser questionados, visto que, supostamente, carregam a pluma
da infalibilidade e do saber pleno e total, mesmo que Kardec tenha nos advertido
em vários momentos de que esse tipo de médium inexiste.
O Espiritismo defende a imortalidade da alma e tem calçada na
comunicabilidade dos espíritos toda a sua base. Através dessa relação vai se
estabelecendo a gênese metodológica dos alicerces que originam a doutrina
espírita. Pensando nisso, Kardec nos lembra que o primeiro ponto no Espiritismo
não é a comunicabilidade dos espíritos e sim a existência da alma. Essa
concepção abre espaço para a discussão acerca da filosofia espírita, da sua
relação com o mundo dos Espíritos, instituindo a organização funcional da
mediunidade na esfera espírita.
O que temos visto é o médium ganhar status de ator principal, e a filosofia
e a ciência, enquanto experimentação e observação, assumem o papel de
coadjuvante. Esta opção é imprudente e incoerente, visto que, sem o
balizamento oferecido pela ciência e o conhecimento ofertado pela filosofia, fica
difícil avaliar a forma com que utilizamos a mediunidade. Além disso,
empobrecemos a qualidade, já que relaxamos na avaliação do fenômeno em si,
e do produto que nos é oferecido através dele. Em verdade, não são essas as
orientações dadas por Kardec quando o assunto é a relação entre nós e os
Espíritos desencarnados que nos trazem informações merecedoras de análise
crítica.
Continuamos consultando o Livro dos Médiuns, para robustecer as
nossas discussões:

“É muito simples o meio de evitar estes inconvenientes. Basta


começar pela teoria. Nela, todos os fenômenos são passados

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em revista, são explicados e se pode conhecê-los e
compreender a sua possibilidade, as condições em que podem
ser produzidos e os obstáculos que podem encontrar. Dessa
maneira, qualquer que seja a ordem em que as circunstâncias
nos fizeram vê-los, nada terão que possa nos surpreender. E há
ainda outra vantagem: a de evitar muitas decepções ao
experimentador. Prevenido quanto às dificuldades, pode manter-
se vigilante e poupar-se das experiências à própria custa.”
(Kardec, 2017)

Percebemos que trabalhar a mediunidade, segundo Kardec, exige de nós


disciplinas e princípios científicos. Então, torna-se imperiosa a cautela, o
experimento, a observação sistêmica para não acreditar em todo fenômeno e no
seu produto, sem antes colocar os fatos à disposição de exaustiva pesquisa,
inquirição e métodos, para só depois, aceitarmos a forma e o conteúdo das
comunicações.
Sentimos a carência de trabalhos mediúnicos que nos remetam à
metodologia Kardeciana, que ofertem a possibilidade de construirmos literatura
sobre a atualidade, que discutam as questões sociais, que sejam inspiradas em
O Livro dos Espíritos, onde vários médiuns espalhados pelo mundo, veiculem
informações sobre machismo, gênero, sexualidades, imigração, políticas,
geopolítica, racismo, intolerância religiosa, globalização, consumismo,
capitalismo, sexismo, xenofobia e outros temas relevantes. Isso oportunizaria o
acesso ao pensamento dos espíritos desencarnados sobre o mundo complexo
do século 21.

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O Progresso

Continuamos aludindo Kardec na fomentação de nossas discussões,


buscando oferecer respaldo as nossas digressões, nesta citação
especificamente nos referimos ao O Livro dos Espíritos:

O homem não pode permanecer perpetuamente na ignorância,


porque deve chegar ao fim determinado pela providência; ele se
esclarece pela própria força das circunstâncias. As revoluções
morais, como as revoluções sociais, se infiltram pouco a pouco
nas ideias, germinam ao longo dos séculos e depois explodem
subitamente, fazendo ruir o edifício carcomido do passado, que
não se encontra mais de acordo com as necessidades novas e
as novas aspirações. (...) A humanidade progride através dos
indivíduos que se melhoram pouco a pouco e se esclarecem;
quando estes se tornam numerosos, tomam a dianteira e
arrastam os outros. De tempos em tempos surgem os homens
de gênio que lhes dão um impulso e, depois, homens vestidos
de autoridade, instrumentos de Deus, que em alguns anos a
fazem avançar de muitos séculos. (KARDEC, 2007).

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A assimilação do progresso segundo o Espiritismo é perceber a justiça divina
em sua essência e em sua ação. É possível compreender que diante dessa lei,
somos todos iguais, angariando em nossa trajetória exatamente aquilo que
produzimos com a prática do amor e do bem comum. Essa verdade se
estabelece independentemente de religião, etnia, orientação sexual, gênero,
condição financeira, nível social, grau de instrução. Isto é, você não evolui
apenas se for espírita, dado que todos estão imersos nos princípios e nas leis
que juntas conspiram para que sejamos, sem exceção, seres humanizados,
irmanados e autênticos trabalhadores de uma causa comum.
Porém, uma parte significativa dos espíritas não teve acesso a este
conhecimento e estabelece condições para que os humanos se tornem melhores
do que aquilo que são em suas atuais conjunturas. O que de fato é um espanto,
já que somos todos espíritos e obedecemos aos mesmos imperativos e as
mesmas leis.
Convém lembrar que este processo não se dá de forma isolada, surge então,
que a sociedade precisa ser pensada para que os seres que aqui vivem
encontrem viabilidade no seu processo de progresso. Haja visto, as
desigualdades sociais não são ação das leis naturais, e não podemos justificá-
las através dos conceitos espíritas, cabendo ao ser humano edificar uma
sociedade mais igual e desta maneira oferecer as mesmas condições para todas,
todos e todes os moradores da Terra de conseguirem dar continuidade a sua
trajetória de ascensão espiritual.
Recorremos a Léon Denis no livro O Progresso para continuarmos os
nossos pensamentos:

Do ponto de vista social, o progresso é a caminhada para um


estado de coisas cada vez mais de acordo com a justiça e a
razão; é a aplicação, no seio das sociedades humanas, das leis,
dos princípios suscetíveis de realizarem nelas a maior soma de
ordem, de bem-estar, de liberdade, de fraternidade, de
aproximá-las o mais possível do estado de perfeição. Eis o que
é o progresso! (Dennis,2012)

22
Na referida citação, fica evidente que o melhoramento, dar-se-á assim que
os seres humanos captarem as suas áreas de atuação e interação com o social.
Precisamos admitir que não haverá mundo de regeneração no futuro enquanto
o de hoje for feito de fome, violência, desigualdade, injustiça social e preconceito.
A regeneração se dará em forma de progresso dos seres com relação a Terra e
não da Terra com relação aos seres. Não acontecerá a partir de uma hecatombe.
Esse processo despenderá esforços no que tange à transformação pessoal, com
envolvimento obrigatório com as questões sociais.
Dessa forma aprenderemos através da prática do amor, como nos é ensinado
pela doutrina espírita.
O progresso dar-se-á para nós provocado pelo nosso trabalho na construção
da equidade social e não pelos desencarnados atuando como santos, trazendo
auxílios para aqueles que só pedem e não trabalham, ou que conhecem de
doação de donativos, mas não se dispõem à doação de amor e sentimentos.
Estabelecemos, assim, de que Espiritismo estamos falando, e,
principalmente, de que Espiritismo estamos partindo. Com tal pressuposto serão
viáveis as construções teóricas que se darão daqui em diante.
Uma vez que a doutrina espírita é robustecida em leis naturais, portanto não
é dada às interpretações, porém o mesmo não acontece com o movimento
espírita, que é produto da ação humana e incide em equívocos que são da sua
própria natureza.
Tendo como referencial teórico as obras de Kardec, defenderemos a tese
que temas como gênero e sexualidades podem ser tratados a partir de uma
perspectiva Kardeciana, sem desabonar a doutrina ou retirar do seu construto a
ciência e a filosofia, muito menos as questões morais.
À época, Kardec abordou de maneira muito evidente e objetiva: a igualdade
de direitos entre a mulher e o homem, reconhecendo a importância da discussão
de gênero.
O Espiritismo propõe que os amores se dão a partir daquilo que nos constitui
como espíritos, e não daquilo que nos forma enquanto matéria, corpo físico,
expressando um conceito que hoje conhecemos como orientação sexual.
Embasaremos a nossa discussão em Kardec e usaremos a educação como
um processo legítimo a qual recorre a doutrina espírita para a sua elaboração

23
teórica e o seu desdobramento na prática. Apresentaremos, assim como fizemos
com os fundamentos do Espiritismo, a perspectiva de educação utilizada para
uma compreensão ampla do que somos.
Partimos da orientação, aqui já citada, de que começaremos daquilo que
somos, Espíritos imortais, preexistentes ao nosso atual momento, para
estabelecermos as discussões de forma a contemplar a nossa essência mais
espiritual, visto que não somos materialistas abordando questões de ordem
espiritual, mas espíritas discutindo questões que ultrapassam os limites da
matéria densa.

Ciência, Filosofia e Moral.

Kardec se refere ao Espiritismo como ciência, filosofia e moral, a mesma


percepção não encontramos em parte do Movimento Espírita Brasileiro
Hegemônico Federativo Institucionalizado. Poderíamos debater quais as razões
para que no Brasil o Espiritismo tenha vindo a assumir um papel mais religioso
tradicional, ortodoxo e conservador, diferente daquilo que realmente é.
Falaremos aqui sobre algumas possibilidades.
Em primeiro lugar, a aceitação da Federação Espírita Brasileira das obras de
Jean Baptiste Roustaing, mesmo sabendo que no dia 16 de agosto de 2019 a
FEB tenha retirado de seu estatuto os referidos estudos, falamos do efeito deles
na formação do movimento espírita brasileiro. Lembrando que em vários pontos
divergem das obras Kardecianas, tanto na maneira que foram constituídas, ou
seja, com a utilização de uma única médium, como no conteúdo filosófico, que
diverge em vários pontos da doutrina espírita.
A aceitação dos Quatro Evangelhos de Roustaing, também chamados de
forma nada modesta de “A Revelação da Revelação”, influencia o surgimento de
uma visão do Espiritismo como uma religião convencional, tornando os centros
espíritas templos religiosos tradicionais, e afastando das práticas espíritas o
caráter científico e filosófico da doutrina.
Existe outra reflexão a ser construída, para analisar por que o Espiritismo
tem um caráter tão religioso no Brasil. Há quantos anos o movimento espírita,

24
está sendo alimentado de conhecimentos, produzidos praticamente por dois
médiuns? Praticamente um século, onde bebe-se de apenas duas fontes,
produzindo falta de criticidade sobre as suas obras. Ou seja, passamos a aceitar,
as obras em nome de quem escreve, bem como rejeitamos as obras de acordo
com quem escreve.
Pensemos no Brasil como um centro espírita, e, vejamos qual o efeito de
lermos basicamente dois médiuns. Este fenômeno foi e é reforçado pelo
Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado, quando
estabelece como princípio pedagógico/metodológico, o apostilamento do ensino
espírita. Neste formato cria-se a possibilidade de se escolher a literatura, e
montar o material pedagógico segundo a própria compreensão, ou seja, neste
caso específico, com forte influência de Jean Batista Roustaing, e das obras de
Chico Xavier e Divaldo Pereira Franco, em detrimento de obras de José
Herculano Pires e Deolindo Amorim por exemplo. Além do distanciamento do
estudo das obras consideradas básicas do espiritismo, como de toda a Revista
Espírita, o que nos faz crer, e poder dizer, que existe um espiritismo à brasileira,
como diz Sandra Jacqueline Stoll em Espiritismo à Brasileira – Edusp (Editora
da Universidade de São Paulo) 1ªedição 2003.
Estes são argumentos que nos mostram de forma construtiva, que o
Espiritismo no Brasil, possui as suas características próprias, e que se montam
a partir de uma elite intelectual, e segundo os próprios dados do IBGE – Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, uma doutrina formada, em sua esmagadora
maioria, por pessoas de classe média alta, brancas e com alto nível de
escolaridade.
As consequências foram a construção de um movimento espírita no Brasil,
que acaba por perder a sua principal característica; a criticidade, fazendo com
que a prática espírita se distancie da sua razão de existir inicial; a sociedade.
Este afastamento fica evidente quando encontramos dificuldades ainda no
século XXI de abordamos as temáticas sociais sob a ótica espírita, visto que,
algumas federativas ainda se manifestam neste sentido. Ganha contornos de
religião tradicional, quando se entende que a “evolução” se dará a partir de
práticas de “caridade” que farão com que a “reforma intima” aconteça. Porém,
não há consenso que este processo contempla o entendimento do Ser em três
perspectivas, são elas: Espiritual, material e social.

25
A partir daqui sempre que falarmos de Identidade Espiritual, referiremos ao
seguinte conceito:
Robustecemos a nossa discussão no O Livro dos Médiuns, (KARDEC,2019)
“Não basta para fazer um espírita esclarecido, como a crença em Deus não basta
para fazer um teólogo”, Do ponto de vista filosófico, não é garantia de que este
Ser, compreenda-se Espírito, ver-se espírita não é ver-se Espírito.
A proximidade com o Espiritismo em sua composição filosófica não é
condição para a sua vivência, ou seja, conhecer a doutrina em sua essência não
significa, vivê-la em sua essência.
Defendemos a teoria de que seja necessário bem mais do que apenas
conhecimento, precisa-se da criação de uma identidade particular e não a
criação de uma identidade como espírita, mas, como espírito.
Entender-se espírito, relacionar-se socialmente como espírito, faz com que
todas as relações oferecidas pela epistemologia espírita, tenham significância
prática, vivencial e comportamental. Assim, viveríamos na sociedade nos
tornando um agente de transformação da mesma, tornando-nos parceiros da lei
divina, ressignificando as nossas relações com a deidade e nos fazendo viver as
leis divinas e naturais como parceiras no processo do progresso da humanidade.
Muitos poderão questionar, como criar uma identidade espiritual, se somos
“espíritos encarnados?” A Resposta é simples:
Durante a trajetória do Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo
Institucionalizado, até os dias de hoje, as perspectivas discursivas filosóficas
espíritas, perpassam os conceitos de vida e de morte como sendo fenômenos
físicos e espirituais, criando um distanciamento das humanidades que nos
compõem, separando as perspectivas a partir de que situação estejamos
vivendo a cada momento, ou seja, ou falamos como encarnados ou como
desencarnados, (como se fôssemos dois), o que acaba validando o apego de
uma parte muito significativa do movimento espírita apenas a literatura
“mediúnica”, e uma tentativa de silenciamento e invisibilização a autores e
autoras “vivos e vivas”, “encarnados e encarnadas ”, “pesquisadores e
pesquisadoras”, como José Herculano Pires, Deolindo Amorim, Dora Incontri,
Wilson Garcia, Célia Arribas, Ana Cláudia Laurindo e Sergio Aleixo por exemplo.
Não somos dois espíritos, um em cada situação, somos espíritos, e enquanto
tal, vivenciamos várias experiências, inclusive a da vida na matéria.

26
O que aqui defendemos é a necessidade de vivermos em nossas práticas
cotidianas aquilo que o Espiritismo estabelece em suas premissas básicas,
construirmos uma forma de interação social, onde os conceitos de
espiritualidade sejam levados em consideração na construção das nossas
relações e não apenas quando estivermos sendo “espíritas”, dentro de nossos
centros espíritas e ou nos espaços destinados às “pregações” do cotidiano da
vivência desta aparente “ doutrina religiosa”, ou quando “ascendermos ao mundo
espiritual.”
Perceberíamos assim a relação de igualdade, por exemplo, instituída pela
vivência de uma Identidade espiritual, que estabelecesse na forma de interação
social as percepções que só o espírito que acredita na imortalidade da alma vive,
levando em consideração a atual encarnação, ligada ao princípio de
reencarnação e principalmente, com plena convicção de que esta forma de viver
lhe faz criar uma identidade, faculta que este ser espiritual se Identifique espírito,
independente em que momento experiencial ele esteja e valide as suas ações a
partir destas vivencias comportamentais.
Precisamos levar em consideração, que a Identidade espiritual, não invalida
as lutas identitárias, une-se a elas, pois compreende que é na matéria que se dá
a necessidade de viver-se as realidades sociais que formam cada povo. O
Espiritismo nos amplia esta possibilidade, fazendo com que as realidades sejam
compreendidas de acordo com a vivência material, e conceitos como identidade,
cultura, e corpo, por exemplo, enriquecem a discussão, por entendermos que
enquanto seres espirituais, obedecemos a imperativos físicos e sociais na
formatação das nossas diferenças enquanto seres humanos.
O Espiritismo, nos oferece recursos, para a compreensão dos fenômenos
que sem a sua visão espiritualista, reencarnacionista e imortalista, seriam
restritos ao imperativo da matéria. A reencarnação, a vida após a morte, tornam
factual a luta, e, amplificam a possiblidade real da construção de um mundo feito
de igualdade e justiça social, onde não haja o domínio do forte sobre o fraco, do
rico sobro o pobre, do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro e povos
originários, do hetero sobre o LGBTQIAP+, ou do espírita sobre o Umbandista
ou o candomblecista.

27
Kardec, sabia disso, fala nisso, mas por ser um homem de ciência e a
discussão de identidade não ser um debate para o século XIX, não pôde ele,
tratar nominalmente do assunto.
Fica evidente por exemplo, no primeiro capítulo do Livro dos Médiuns, Há
Espíritos Ou Existem Espíritos? Ele indaga, e esclarece que a doutrina é para
quem acredita nos espíritos, criou-se uma percepção, e defendo aqui a ideia do
Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado como
uma das causas, e a inserção cada vez maior da literatura mediúnica em
detrimento da discussão da filosofia social espírita como causa, do fato da
compreensão deste: Existem espíritos? Ou do Há espíritos? Apenas como uma
prova de que estes espíritos se comunicam, e não que somos espíritos, e que
como tal, devemos viver mesmo que encarnados, como encarnados e fazendo
parte da sociedade, isso acarretaria como nos diz Deolindo Amorim, na produção
de um movimento espírita, formador de espíritas, que interagem, propõem e
interferem nas questões sociais.
Apresentamos desta maneira, entre outras, três características marcantes
deste movimento espírita brasileiro, que são elas: o materialismo, o
conservadorismo e a contemplação.
O materialismo é ratificado, pela não vivência da identidade espiritual, a visão
do Espiritismo como religião tradicional favoreceu a uma ideia de que os
ambientes espíritas estivessem imunes das realidades sociais, o que não é, sob
nenhuma circunstância verdade. Os espaços sociais, sejam eles quais forem,
serão sempre reflexo daquilo que é a sociedade, e não o contrário, ou seja, se o
racismo é estrutural, se há a LGBTQIAP+fóbia, esta realidade é vivenciada por
toda a sociedade, os espaços espíritas, não estariam e não estão, imunes a esta
realidade social, precisamos entender por exemplo, que o Brasil nos dias atuais
é o quinto país em números de feminicídio do mundo e o país que mais mata a
comunidade LGBTQIAP+ do mundo.
O movimento espírita brasileiro é materialista, quando valida os
preconceitos, não luta contra eles de forma orgânica, e não tem, por exemplo,
uma campanha “oficial” contra os preconceitos. É materialista quando institui em
suas relações sociais internas e externas o processo de hierarquização dos
corpos, no seu “modus operandis”, falamos de um país onde estão
estabelecidas, uma das maiores desigualdades sociais do nosso planeta; este

28
comportamento materialista, faz com que perguntemos, dentro do Movimento
Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado onde estão: Os
corpos Negros? Onde estão os corpos indígenas? Qual a importância dos corpos
femininos? Onde estão os corpos homossexuais? Onde estão os corpos
transexuais? Etc...
Estas indagações nos levam às perspectivas que nos encaminham a
nossa próxima reflexão, este referido movimento é “contemplativo”. Esta
afirmativa se dá com base na maneira equivocada de como a ideia da
reencarnação, da vida futura, da causa e efeito e de como interagimos enquanto
espíritos desencarnados com o mundo social espírita.
A prática da invisibilização das temáticas sociais é validada pela ação do
conservadorismo extremo que forma o Movimento Espírita Brasileiro
Hegemônico Federativo Institucionalizado, desta maneira, as pautas por eles
defendidas afastam qualquer possibilidade de diálogo com as minorias sociais,
ficando relegado ao seu papel prático apenas a assistência seja ela material ou
espiritual, instituindo inclusive quais corpos possuem direitos e quais corpos não
possuem direito de praticar este espiritismo dentro dos ambientes espíritas.
Respaldados e dando mais atenção à interpretações de literaturas
mediúnicas, sem a compreensão de que as realidades ali estabelecidas
contemplam o ponto de vista de um espírito desencarnado, a sua vivência, as
experiências adquiridas por ele em sua trajetória no mundo espiritual, passamos
a acreditar em um mundo espiritual, feito de “colônias espirituais” que nos
lembram o céu, e os umbrais que nos lembram o inferno, e para isso fazemos
vistas grossas ao que diz o Espiritismo, sobre céu e inferno serem estado de
consciência.
Vive-se então a cultura que se cria, a partir, destas literaturas, que estes
mundos das “colônias espirituais”, serão vividos a partir de comportamentos
individualistas de uma caridade sem envolvimento social, alheia de empatia e
que basta eu dar minha cota de caridade, efusivamente confundida com
assistencialismo, e completa de ações que têm como objetivo, manter a nossa
consciência tranquila de que fizemos a nossa parte, e desta maneira iremos
desfrutar deste mundo espiritual de belos jardins e ainda mais encantamento.
A contemplação é vivenciada pela simples ideia de que basta a caridade
e a oração sem prática de envolvimento com as questões sociais, esta ação,

29
individual que beira o egoísmo, faz com que seus seguidores acreditem, na tão
necessária ainda para o nosso país, ação assistencialista, mas critiquem,
discordem e apoiem governos que são contra políticas públicas de assistência e
promoção social.
Assim sendo, criou-se uma cultura que basta fazer a caridade, mesmo
que sem empatia e envolvimento social, que produziremos a ‘reforma íntima”,
este íntima é confundida com “sozinho”, e tudo será resolvido e um lugarzinho
será me ofertado em meu desencarne, mesmo que este comportamento seja
diametralmente diferente do que nos estabelece toda a terceira parte de O Livro
dos Espíritos. Neste caso, pelo medo de discutir a política, estamos enquanto
movimento, produzindo políticas de isolamento e distanciamento social, que
validam as práticas de injustiça e desigualdade social, num país em que todas
as ações de inclusão e vivência da diversidade faz toda a diferença.
Lembremos o que nos diz o saudoso Paulo Freire: “Não existe
neutralidade, existem ideologias, inclusivas, ou excludentes, qual é a sua?”
A Educação nos apresenta o Espiritismo como uma filosofia
comportamental e não apenas como uma doutrina contemplativa, conservadora
e materialista. Entendemos também que o Espiritismo tal qual nos ofertou a
parceria entre Kardec e os espíritos que com ele interagiram, está totalmente
munido de competências para que possamos como nos diz Herculano Pires,
através da educação Espírita, instituirmos o reino de Deus na terra.
A discussão sobre a educação se dará sob a perspectiva Espírita, levando
em consideração e como ponto de partida, a nossa existência espiritual.
Mostraremos também que não há embasamento teórico espírita que
respalde o machismo, sexismo, LGBTQIAP+fóbia, misoginia, racismo, racismo
religioso, fome, desemprego, violência, desigualdades e injustiças sociais de
qualquer ordem.
Continuaremos, a partir daqui, falando sobre educação.

30
Capítulo II
Educação Espírita Como Prática Para a Liberdade

Reiteramos as nossas considerações apresentado uma citação de Léon


Denis no livro, O Problema do Ser, do Destino e da Dor:

A educação, sabe-se, é o mais poderoso fator do progresso, pois


contém em gérmen todo o futuro. Mas, para ser completa, deve
inspirar-se no estudo da vida sob suas duas formas alternantes,
visível e invisível, em sua plenitude, em sua evolução
ascendente para os cimos da natureza e do pensamento. (Denis,
2010)

Tratar a educação em uma perspectiva imortalista e reencarnacionista é


dever do movimento espírita. De acordo com a proposta de Léon Denis, que
consta na citação acima, a educação enquanto fator de progresso, precisa ser
vivenciada a partir de duas vertentes: a visível e a invisível. Divergindo do filósofo
francês, uma parte significativa do movimento espírita, insere o processo
pedagógico em um panorama distorcido. Segundo este conceito a educação
deve estar voltada para a vivência no mundo dos espíritos desencarnados,
apartando-se das demandas imprescindíveis à vida do espírito na sua condição
encarnada.
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A função da educação, em uma perspectiva espírita, (reencarnacionista,
imortalista, espiritualista), seria a de munir os espíritos com recursos para a
construção do reino de amor aqui na Terra, auxiliando o reencarnante na busca
e na descoberta da sua identidade espiritual. O sujeito na vivência do corpo
físico precisa entender a sua relação com as demandas inerentes à sua condição
de encarnado, que estão sujeitas às influências da cultura, da identidade, do
corpo, do acesso à educação formal ou não formal. Além disso, existe a
interferência do modo de funcionamento social, em um arranjo coletivo com suas
próprias demandas e formações.
Tudo isso atua substancialmente na formação da individualidade que
somos. Negar esta realidade é um processo alienante que tem como objetivo
reproduzir espaços de poder através da manutenção dos princípios de
heteronomia, que em nada fazem vinculação com a perspectiva da educação em
uma ação espírita.
Desta maneira, recorremos a José Herculano Pires, em seu livro Pedagogia
Espírita, para continuarmos as nossas ponderações:

Encarada numa perspectiva espírita, a Educação nos apresenta


dois aspectos fundamentais: é o processo de integração das
novas gerações na sociedade e na cultura do tempo, mas é
também o processo de desenvolvimento das potencialidades do
ser na existência, com vistas ao seu destino transcendente.
(Pires, 2008)

Herculano é sábio ao perceber o papel da educação como agente no


processo de integração das novas gerações ao contexto do seu tempo. Pensar
o Espiritismo como pedagogia, é exatamente disponibilizar a possibilidade de
entender as nossas potencialidades, é saber, não imaginar, ou, muito menos
crer. Enfatizando que a vida além do corpo biológico nos proporciona material
de estudo, a reencarnação nos faculta a aprendizagem e os grupos sociais são
as salas de aula nesta linda escola chamada Terra, e nesta maravilhosa viagem
de despertar magníficos chamada vida.

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Vendo o Espiritismo numa perspectiva educativa e pedagógica,
chegamos à conclusão de que não estamos na dimensão material apenas
passando férias.
Kardec em seu livro, O Livro dos Espíritos, nos elucida e convida a pensar:

O homem bem compenetrado do seu destino futuro não vê na


existência corpórea mais do que uma rápida passagem. É como
uma parada momentânea numa hospedaria precária. Ele se
consola facilmente de alguns aborrecimentos passageiros,
numa viagem que deve conduzi-lo a uma situação tanto melhor
quanto mais atenciosamente tenha feito os seus preparativos
para ela. (Kardec, 2007)

Os preparativos feitos pelos seres encarnados, em seus processos de


socialização, terão viabilidade a partir da educação a que tenham acesso. Sendo
assim, recorremos mais uma vez a Kardec e ao O Livro dos Espíritos, para que
possamos embasar teoricamente as nossas argumentações:

Não a educação intelectual, mas a educação moral, e não


ainda, a educação moral pelos livros, mas aquela que consiste
na arte de formar os caracteres, a que dá os hábitos; porque a
educação é um conjunto de hábitos adquiridos (Kardec,2007)

Como mudar hábitos? A partir de que perspectiva encaramos as


realidades do mundo? Como identificarmos o que precisa ser mudado? O que
nos é imposto como verdades absolutas, mas, que são apenas a força da
opressão para que tenhamos corpos dóceis e sejamos fiéis seguidores daquilo
que nos é ofertado como educação, mas na realidade é opressão? Qual o
objetivo de uma educação que não nos convida a questionar nem a desenvolver
um comportamento autônomo, do ponto de vista da razão e do sentimento?

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Dando prosseguimento as nossas elucubrações, convidamos a autora
Dora Incontri, com seu livro, A Educação Segundo o Espiritismo, para podermos
consubstanciar a nossa escrita:

Educação é toda influência exercida por um Espírito sobre outro,


no sentido de despertar um processo de evolução. Essa
influência leva o educando a promover autonomamente o seu
aprendizado moral e intelectual. Trata-se de um processo sem
qualquer forma de coação, pois o educador apela para a vontade
do educando e conquista-lhe a adesão voluntária para uma ação
de aperfeiçoamento. Educar é, pois, elevar, estimular a busca
da perfeição, despertar a consciência, facilitar o progresso
integral do ser. (Incontri, 2000)

Permitir-se influenciar e ser influenciado não é uma tarefa fácil, levando


em consideração a relação da educação heterônoma a que fomos expostos
durante a nossa trajetória de espíritos, e de espíritas. Por tanto, como diz o título
da autora estadunidense, Bell Hooks, (Hooks,2017), “Ensinando a Transgredir.
A educação como prática para a liberdade”. É necessário transgredir e viver a
educação como prática para a liberdade, confirmando que se quisermos
construir uma sociedade autônoma é necessário transformar o mundo para
sermos parte integrante deste mundo, em uma perspectiva espiritualista que se
projeta para além das imposições do capitalismo, como se a Terra fosse uma
máquina e nós, seres humanos apenas as engrenagens. Como nos ensina
(Bauman,2004), em seu livro Identidade, quando essas engrenagens não
servem mais, elas se tornam “lixo humano.”
Este processo não impõe violência em sua atuação, mas, em sentido
inverso, respeita, entende e contempla as diferenças, os momentos, os
despertares de consciência. Enfim, é um novo modelo de organização social que
considera, acolhe e entende as intimidades humanas, percebendo as variações
sem se preocupar em punir um suposto desvio da “norma” ou impor objetos de
validação das dores de uns e dos sabores de outros.

34
Assim, este modelo suscitado pela educação espírita tem por fim viabilizar
as conquistas, equipar os sujeitos para que possam dar conta de suas próprias
vidas e demandas, estimulando a busca pela perfeição num processo de
despertar de consciência.
Desta maneira, buscando fortalecer nosso pensamento nos valemos de
(Lionço e Diniz, 2009), no livro, Homofobia e Educação: Um Desafio ao Silêncio,
quando fazem o seguinte comentário: “A educação é uma ferramenta política
emancipatória, que deve superar processos discriminatórios socialmente
instaurados, a fim de transformar a realidade pela reafirmação da ética
democrática”. Descriminalizar a política também é um dever da educação
espírita. Tratar a vida democrática e o acesso às políticas públicas de Educação,
Saúde, Moradia, Segurança, Alimentação, Cultura e Lazer também são
responsabilidade do Estado e devem ser contempladas pela ação da educação,
principalmente quando esses direitos são negados a uma parte maciça da
sociedade.
Pensando nesta necessidade de desmistificar a discussão política, e
ratificarmos a ideia de que sem a produção e consequente aplicação destas
mesmas políticas públicas, não haverá mundo de regeneração, recorremos a
autora Alagoana Ana Cláudia Laurindo em seu livro, Deus e Política: O Enredo
da Morte no Brasil, (Laurindo, 2021), “Para refazer o caminho precisamos
retomar o aprendizado negado. Ou teremos um país politizado ou seremos um
povo inteiro enterrado. Nunca foi pecado sempre foi política! Eis a única
revelação não lida”.
Quando trazemos está pertinente colocação trazida pela referida autora,
explicitamos a ideia de que uma educação descentrada da ação política social,
não ajuda a formar os sujeitos críticos e livres pensadores. Faz-nos crer, que a
ação no mundo social que foi impetrada para o povo como “pecado”, “obsessão”
na realidade sempre foram formas de opressão e políticas de manutenção de
status quo.
Esconder, não discutir e ou ignorar os conflitos sociais não faz com que
eles deixem de existir. Criar uma bolha de alienação não nos torna melhores,
nos ancoramos no que diz o celebre escritor brasileiro, (Amorim, 1991), em seu
livro, O Espiritismo e os Problemas Humanos, “Somos ainda deste mundo,
pertencemos à sociedade, temos compromissos na Terra e, por isso mesmo,

35
não podemos fugir às contingências do meio cósmico e do meio social.”
Precisamos, então, de uma Pedagogia Espírita que nos veja espíritos, que nos
entenda espíritos, mas que em sua diagnose para a atuação no meio social
perceba e opere com a nossa valência de espíritos encarnados, equipando-nos
de recursos para bem vivermos todas as contingências que fazem parte da
constituição coletiva. Dessa maneira nos valemos da identidade espiritual
enquanto essência, mas sabemos do nosso compromisso de estarmos atentos
às condicionalidades do mundo físico.
E continua (Amorim, 1991), “O Espiritismo tem como fim precípuo a
espiritualização do homem na sociedade.” Ou seja, o objetivo do Espiritismo é
criar uma sociedade que se ame, é tornar as pessoas autônomas, é lutar contra
as heteronomias que validam poderes.
Isso significa que a construção do reino de Deus na Terra não será
possível, sem igualdade e justiça social, sem a implantação de políticas públicas
que produzam as condições justas, que contemplem as minorias sociais, para
que cada ator envolvido na construção deste reinado, tenha chance de ter êxito
em sua “missão”, bem como, para que não se utilizem das leis de reencarnação
e de causa e efeito para validar as diferenças e tornar dóceis, os corpos que têm
direito a lutar por uma vida melhor.
Sobre isso, nos propõe Kardec, na Revista Espírita de 1868:

O Espiritismo conduz precisamente ao fim a que se propõem


todos os homens progressistas. É, pois, impossível que, mesmo
sem se conhecerem, eles não pensem da mesma maneira sobre
certos pontos e que, quando se conhecerem, não se deem as
mãos para caminhar juntos, na mesma rota, ao encontro de seus
inimigos comuns, os preconceitos sociais, a rotina, o fanatismo,
a intolerância e a ignorância. (Kardec, 2018)

Sendo o Espiritismo progressista em sua constituição, cabe então aos


movimentos espíritas, por entendermos que não há apenas um movimento
espírita, e, por não haver a necessidade da chancela de nenhuma
institucionalização e ou federalização para a prática do Espiritismo, a criação de

36
recursos pedagógicos que combatam os inimigos que deveriam ser comuns a
todos os espíritas e a suas representatividades: os preconceitos sociais, a rotina,
o fanatismo, a intolerância e a ignorância. Este raciocínio é corroborado pela fala
de (Amorim,1991): “O Espiritismo é progressista, afirma a liberdade espiritual e
não crê na subordinação do homem a qualquer determinismo absoluto”.
Perguntamos então: Se o Espiritismo é progressista, o movimento espírita
tem o mesmo perfil? Ampliando o tema para o campo da educação surge outra
pergunta que norteará a nossa discussão a partir daqui: Como pode um currículo
progressista ser trabalhado por uma metodologia liberal?
A importância dessa reflexão é pensarmos o movimento espírita a partir
do próprio Espiritismo, e não a partir das pessoas que o fazem. Ao invés de
reproduzirmos pensamentos conservadores, que são dos seres humanos e não
do Espiritismo, evitemos fazer “malabarismos filosóficos” para introduzir enxertos
na doutrina espírita.
Fica evidente a necessidade da compreensão da doutrina dos espíritos
enquanto pedagogia e filosofia moral, para que assim possamos nos manter fiéis
aos seus fundamentos e tenhamos condições de discutir as nossas práticas. Isso
deve acontecer a partir de um pressuposto filosófico espírita distanciado de
qualquer conduta personalista.
Trazemos a discussão o Professor Carlos Cipriano Luckesi, com seu livro,
Filosofa da Educação, para que possamos construir uma relação entre a
Educação e a práxis do movimento espírita:

A educação dentro de uma sociedade não se manifesta como


um fim em si mesma, mas sim como um instrumento de
manutenção, ou transformação social. Assim sendo, ela
necessitada de pressupostos, de conceitos que fundamentem e
orientem os seus caminhos. A sociedade dentro da qual ela está
deve possuir alguns valores norteadores de sua prática.
(Luckesi, 2011):

A realidade prática do Movimento Espírita Brasileiro hegemônico


Federativo Institucionalizado, que usa de seu poder de produção literária para a

37
reprodução dos conhecimentos e manutenção do status quo, conforme acontece
com a demonização de temas político-sociais. A “política da não política” é uma
forma disfarçada de agir politicamente.
Partindo deste pressuposto, indagamos: por que seria inadequado discutir
temáticas progressistas como as demandas LGBTQIAP+, a invisibilização das
pautas da luta antirracista, as ações de enfrentamento à violência contra a
mulher, a descriminalização do aborto? Até que ponto a metodologia utilizada
não foi e não é pensada para inviabilizar tais pautas e silenciar as vozes da
alteridade?
Esse tipo de debate deveria fundamentar uma revisão epistemológica,
tendo em vista as contradições no método de produção de conhecimento
adotado pelo mesmo movimento espírita. Historicamente ele tem servido para
validar a posição social hegemônica: heterossexual, branca, classe média.
Questionamos aqui o formato pedagógico utilizado pelo movimento
espírita para a transmissão dos seus ensinamentos. Neste conjunto de práticas
temos: as palestras públicas sem interação; os longos seminários sem
participação do público; a repetição de temas e de oradores; a ausência de
comunicadoras negras e comunicadores negros, homossexuais e ou
transexuais; a idolatria a médiuns; os livros aceitos como verdade absoluta sem
crítica, o que nos leva a crer em uma política moralizante com relação às
oportunidades de se ocupar um lugar de fala.
Todas estas constatações, que para nós são vistas como práticas
heterônomas, são fatos que nos fizeram questionar a metodologia utilizada pelo
movimento e propiciar uma discussão sobre tendências pedagógicas que
revelem a doutrina espírita como ela é em sua constituição, ou seja, que
resgatem a sua metodologia e prática originais, destacando a autonomia do ser
espiritual como consequência da sua compreensão e vivência, proporcionando
uma discussão com as demandas de nosso tempo.
Nunca é demais enfatizar que partimos do pressuposto da Pedagogia
Espírita como um processo de construção da autonomia, segundo Paulo Freire,
em seu livro, Pedagogia da Autonomia, (Freire, 2011): “a promoção da
ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas
precípuas da prática educativa-progressista é exatamente o desenvolvimento da
curiosidade crítica, insatisfeita, indócil.” Em consequência, a função do

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Espiritismo é instigar, promover, despertar, acolher o sujeito crítico, no sentido
de torná-lo autônomo em suas próprias demandas. Para isso, o processo
pedagógico que envolve as práticas espíritas precisa de uma base progressista,
algo muito diferente de um arsenal de reprodução de conteúdos que visem
apenas à manutenção de uma religião institucionalizada, preocupada em manter
a hegemonia de suas ações catequéticas, antipedagógicas e anti-doutrinárias.
Não seremos autônomos se não formos motivados a esta realidade, o
Espiritismo nos ensina e nos convida a este processo de vir a ser, a partir das
experiências que nos são disponibilizadas através do dispositivo das
encarnações sucessivas, que nada possuem de punitivas, mas são verdadeiras
oportunidades de construção de saberes, e de transformação do Ser.
Mais uma vez recorremos ao livro Pedagogia Espírita, (Pires,2008),
“Educação é um ato de amor, pelo qual uma consciência formada procura elevar
uma consciência em formação.” Amorosidade e afetividade são os meios da
construção deste Ser espiritual autônomo, senhor de suas próprias emoções,
ações, pensamentos e sentimentos. A dor e o sofrimento, não são meios para a
obtenção da “evolução espiritual”, embasadas em uma “reforma íntima” egoísta
e sem envolvimento com o que acontece ao nosso redor, sem imbricamento com
as questões sociais, sem a preocupação e a prática de políticas que pensem no
bem comum. As dores e os sofrimentos são mecanismos terapêuticos e
pedagógicos com o objetivo de despertar o espírito para o verdadeiro caminho
da ascendência do Ser espiritual, que é o amor.
Com relação ao ensino, Allan Kardec é cirúrgico em seu comentário, no
O Livro Dos Médiuns:

Que os adeptos não se assustem com a palavra ensino. Não se


ensina apenas do alto da cátedra ou da tribuna, mas também na
simples conversação. Toda pessoa que procura persuadir outra
por meio de explicações ou de experiências, ensina. O que
desejamos é que esse esforço dê resultados. Por isso julgamos
nosso dever dar alguns conselhos, que poderão ser
aproveitados pelos que desejam instruir-se a si mesmos e que

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terão aqui o meio e chegar mais segura e prontamente ao alvo.
(Kardec,2017)

Abordamos aqui a questão do ensino, sem nenhum interesse em construir


uma cátedra, porém trazendo um olhar pedagógico para os processos de
oportunização que se dão no âmbito do movimento espírita.
Sobre o ato de ensinar justifica Paulo Freire em seu livro, Pedagogia da
Autonomia, (Freire, 2011): “É neste sentido que ensinar não é transferir
conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá
forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado”. Se assim o fosse,
perderíamos o existir, os animais vivem, os espíritos existem. Ainda sobre isso,
no seu livro Pedagogia Espírita, nos diz (Pires, 2008): “A Educação Espírita visa
ao desenvolvimento pleno do indivíduo, considerando-o interexistente.” A
educação espírita é integral, visa munir de recursos o sujeito em todas as
dimensões existenciais, espiritual, físico, emocional, afetivo e social, situando
este ser espiritual na cultura do seu tempo.
Como então trabalharmos uma educação progressista em um movimento
espírita, que tem o conservadorismo como base de suas ações metodológicas e
sistemáticas?
Fomos buscar conceitos que fortaleçam a nossa escrita no Livro, Filosofia
da Educação de (Luckesi,2011): “Não é nem pode ser a prática educacional que
estabelece os seus fins. Quem o faz é a reflexão filosófica sobre a educação
dentro de uma dada sociedade.”
Assim sendo, pensar a proposta de movimento espírita, sem pensar nas
diferenças que compõem a sociedade brasileira é estabelecer um sistema que
não consegue adequação, que não avalia e não valida as clivagens que formam
a sociedade brasileira. Este projeto não é nada pedagógico.
Em seu livro Gênero, Patriarcado e Violência, (Saffioti,2015), nos fala:
“Numa sociedade como a brasileira, com clivagens de gênero, raças/etnias em
interação e de classes sociais, o pensamento, refletindo estas subestruturas
antagônicas, é sempre parcial.” Considerando a parcialidade implicada no
Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado é que
pretendemos repensar um fenômeno coletivo caracterizado pela pluralidade.

40
É preciso que haja comunicação com a sociedade brasileira respeitando
as diversidades que a compõem dando margem a um processo de construção
de responsabilidades sociais que levem a população a se declarar e a lutar,
assumindo o papel de ser um agente de combate a toda e qualquer injustiça
social. A militância espírita não deve ser apenas assistencialista, passando a
compor capacidades de propor discussões e políticas que celebrem as
diferenças, materializando um projeto pedagógico inclusivo e progressista que
seja fiel às realidades do seu tempo.
Sendo assim, utilizaremos alguns conceitos sobre educação compilados
por Carlos Cipriano Luckesi em seu livro Filosofia da Educação, para pensarmos
e repensarmos as ações do movimento espírita a partir de uma perspectiva
educacional e pedagógica.
Apresentaremos, a princípio, três possibilidades de enquadre conceitual
procurando estabelecer uma identificação com o que é oferecido aos espíritas
em suas instituições:
1. Educação como redenção da sociedade.
2. Educação como reprodução da sociedade.
3. Educação como transformação da sociedade.

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Educação como redenção da sociedade.

Começaremos a nossa reflexão a partir do pensamento de Carlos


Cipriano Luckesi, em seu livro, Filosofia da Educação:

Concebe a sociedade como um conjunto de seres humanos que


vivem e sobrevivem em um todo orgânico e harmonioso, com
desvios de grupos e indivíduos que ficam à margem deste todo.
Ou seja, a sociedade está “naturalmente” composta com todos
os seus elementos; o que importa é integrar em sua estrutura
tanto os novos elementos (novas gerações), quanto os que, por
qualquer motivo, se encontram à sua margem. Importa, pois,
manter e conservar a sociedade, integrando os indivíduos no
todo social. (Luckesi,2011)

Podemos enxergar o Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico


Federativo Institucionalizado nesta paisagem? Serão os não espíritas os
desviados? Onde se encontram as minorias sociais neste quadro?
Nas produções de conhecimentos que se dão a partir de uma perspectiva
redentora, de uma reencarnação que existe como fim em si mesma, nota-se uma
visão reducionista em que a vida pretende punir para redimir. Há o
estabelecimento de uma “reforma Intima” que valida está educação da

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Redenção, supressora do debate a respeito de questões sociais, por entender
que as populações à margem da sociedade precisam se adequar ao padrão
“espírita de ser”.
Nesse universo conceitual não há proposta de acolhimento. Morre-se o
amor! Barganha-se o amor com o assistencialismo, ainda necessário, mas
ofertado sem equilíbrio e discernimento. O assistencialismo pelo
assistencialismo acaba sendo promotor desta tendência pedagógica de ação
excludente, elitista e egoísta, carente de organização ou sistematização para
intervir nesta sociedade plural.
Para que seja implantada uma proposta pedagógica adequada ao
mosaico da realidade social brasileira, o movimento federativo, deveria ajudar as
localidades na identificação do seu perfil próprio, da sua identidade regional,
territorial, social e cultural. Na sua práxis, qualquer movimento espírita, seja ele
conservador ou progressista que não respeite estas peculiaridades não sabe
acolher as diferenças, muito menos utilizar uma comunicação efetiva. Falaremos
mais sobre isso no capítulo intitulado: “O Corpo Educado as Vidas que Importam
e as Lágrimas Permitidas”, onde apresentaremos os conceitos de cultura,
identidade e corpo.

Revisitando às lições de Allan Kardec, é válido destacar mais um ponto


importante da sua contribuição, no O Livro dos Espíritos:

804. Por que Deus não deu as mesmas aptidões a todos os


homens? — Deus criou todos os Espíritos iguais, mas cada um
deles viveu mais ou menos tempo, e por conseguinte realizou
mais ou menos aquisições; a diferença está no grau de
experiência e na vontade, que é o livre-arbítrio: daí decorre que
uns se aperfeiçoam mais rapidamente, o que lhes dá aptidões
diversas. A mistura de aptidões é necessária a fim de que cada
um possa contribuir para os desígnios da Providência, nos
limites do desenvolvimento de suas forças físicas e intelectuais;
o que um não faz, o outro faz, e é assim que cada um tem a sua
função útil. Além disso, todos os mundos sendo solidários entre
si, é necessário que os habitantes dos mundos superiores, na

43
sua maioria criados antes do vosso, venham habitar aqui para
vos dar exemplo. (Kardec, 2007)

Ora, se somos diferentes, dentro de nossas igualdades, como operar de


uma única maneira e desejar uma resposta positiva de todos se os recursos
utilizados nem sempre são coerentes?
Quando nos referimos ao processo de comunicação, por exemplo,
fazemos as tradicionais perguntas, o quê? Como? Quando? Onde? Por quê? E
por nem sempre percebermos estas indagações serem levadas em
consideração, altercamos, é um objetivo velado ou explícito se comunicar para
alguns? Quando inexiste um processo educacional genuíno a reprodução dos
conteúdos tem prevalência, determinando as concepções de uma parte
significativa dos espíritas tradicionais, pessoas que transmitem informações sem
uma análise crítica das ideias. A esse respeito já exemplificamos o caso de obras
psicografadas que são consideradas verdades absolutas, sem a contribuição de
estudos e críticas que as validem.
Continua (Luckesi, 2011) na obra Filosofia da Educação, “Importa, por
último, notar que essa tendência redentora da educação se faz presente ainda
hoje. Quantos não são aqueles que trabalham em educação e consideram
ingenuamente os seus atos como atos isentos de comprometimentos com a
política e totalmente voltados para a redenção da sociedade?” Quando se ignora
o Ser na construção do processo pedagógico, está educação proposta não
encontra consonância em sua prática com a realidade social.
Nos valeremos do livro, Pedagogia Espírita de (Pires, 2008), para
continuarmos as nossas análises:

“É evidente que as dimensões da educação decorrem das


dimensões do homem. Se o homem pode ser encarado, tanto
espiritual como socialmente, numa perspectiva de sucessões
dimensionais, então o processo educativo também será
susceptível dessa visualização. E é precisamente numa teoria
dimensional do homem que vamos buscar as possibilidades de

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uma formulação teórica da educação nesse sentido.
Formulação, aliás, que pode levar-nos a maiores possibilidades
metodológicas na colocação filosófica do processo educacional”.

Ou seja, partimos para a construção do ser a partir de um processo


pedagógico inflexível e não construímos o projeto pedagógico de acordo com o
ser humano que participará deste processo de ensino/aprendizagem. Neste
último caso temos o cenário desejável, aquele que leva em consideração a
cultura, economia e a realidade social vigente.
Em seu livro, A Educação Segundo o Espiritismo, a Escritora Dora
Incontri, nos adverte:

É importante nos indagarmos até que ponto a Educação tem


poder? O que aparentemente está em contradição com o poder
da Educação é a liberdade individual. Por isso, pensam os
conservadores que quanto mais se restringir a liberdade, maior
é o poder de moldarmos o outro, dentro da concepção errônea
de que educar seja fazer a personalidade do educando, de fora
para dentro... (Incontri, 2000)

Nesta argumentação de Dora Incontri, repensamos o poder da Educação


e consequentemente do Espiritismo, que não possuem enquanto fins em si
mesmos, o objetivo de modelar aos espíritos humanos, tal qual verdadeiros
artesões do barro, a moldarem as suas obras primas. O barro é inanimado, e
ganha vida pelas mãos e alma do oleiro, os espíritos obedecem ao imperativo
da interexistencialidade, não conseguiremos nos tocar em alma, como se
fôssemos meras telas brancas, livros sem letras, ou almas sem existência.

45
Educação como reprodução da sociedade.

Nos valemos do livro, Filosofia da Educação, de Carlos Cipriano Luckesi


para continuarmos refletindo:

A segunda tendência de interpretação do papel da educação na


sociedade é a que afirma que a Educação faz, integralmente,
parte da sociedade e a reproduz. Diversa da tendência anterior,
(educação como redenção da sociedade), aborda a Educação
como uma instância dentro da sociedade e exclusivamente ao
seu serviço. Não a redime de suas mazelas, mas a reproduz no
seu modo vigente, perpetuando-a, se for possível. (Grifos meus).
(Luckesi,2011):

Quando analisamos as práticas pedagógicas disponibilizadas pelo


Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado,
constatamos a sua falta de sintonia com a proposta kardeciana do livre pensar.
Como exemplo, podemos citar o ensino a partir de apostilas, que possuem o
objetivo de reproduzir conceitos e que não levam em consideração, na sua
estruturação pedagógica, as diversidades socioculturais que compõem o Brasil
em toda a sua continentalidade.
Fica evidente que este fenômeno é real. Em boa parte do movimento
espírita o processo pedagógico tem como fim comunicar de dentro para fora,
multiplicar, reproduzir conceitos que estão estabelecidos com base em um

46
“modus operandi” único, elaborado há mais de um século. Nesse esquema
existem ferramentas pedagógicas usadas para “formar e modelar” espíritos
enquadrados em um determinado sistema, o fim deste processo pode ser o
surgimento de seres acríticos, incapazes de expressarem um padrão de conduta
alheio a toda e qualquer realidade social não hegemônica.
O filósofo francês Michel Foucault, em seu livro, A Ordem do Discurso,
adverte:

À primeira vista, as “doutrinas” (religiosas, políticas, filosóficas)


constituem o inverso de uma “sociedade de discurso”: Nesta, o
número dos indivíduos que falavam, mesmo se não fosse fixado,
tendia a ser limitado; e só entre eles o discurso podia circular e
ser transmitido. A doutrina, ao contrário, tende a difundir-se; e é
pela partilha de um só e mesmo conjunto de discursos que
indivíduos, tão numerosos quanto se queira imaginar, definem
sua pertença recíproca. Aparentemente, a única condição
requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a
aceitação de certa regra – mais ou menos flexível – de
conformidade com os discursos validados; se fossem apenas
isto, as doutrinas não seriam tão diferentes das disciplinas
científicas, e o controle discursivo trataria somente da forma ou
do conteúdo do enunciado, não do sujeito que fala. (Foucault,
2014)

Reproduz e aguarda-se que os pares, os que concordam, os que se


sentem contemplados façam parte do grupo. A pedagogia espírita tem como
objetivo possibilitar que os sujeitos envolvidos em suas práticas se munam de
recursos para a construção da autonomia, levando todas e todos a darem conta
de suas demandas íntimas, sociais, afetivas, humanas e espirituais. Esta
pedagogia se desdobra mediante o respeito à subjetividade, sem a pretensão de
moldar o sujeito a partir de um projeto fixo e descontextualizado.
Ainda acrescenta (Luckesi, 2011): “A escola, pois, age por valores e
otimiza, ao máximo, o sistema dentro do qual está inserida e ao qual serve. Não

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é a escola que institui a sociedade, mas, é o contrário, a sociedade que institui a
escola para o seu serviço.”
O processo de reprodução não leva em conta as demandas de ordem
íntima, não usa a educação para transformar as pessoas de acordo com as
expectativas e subjetividades do sujeito. Em sentido oposto, tem como fim trazer
os sujeitos até uma perspectiva defendida em suas bases, o que é antagônico à
proposta autônoma, libertária e libertadora do Espiritismo.
Ações como o apostilamento do conhecimento espírita, a invisibilização
de autores como José Herculano Pires, Deolindo Amorim, Humberto Mariotti, o
investimento maciço em obras psicografadas – onde algumas explanam uma
vida de contemplação e “caridade” na terra para viver a verdadeira vida nas
colônias espirituais. Eventos caros - com temas e expositores repetidos, com
foco apenas no aspecto religioso da doutrina. Ocultação e exclusão das
temáticas sociais e das minorias sociais. São ações seletivas que reproduzem
conceitos e buscam a adesão dos que estão no mesmo plano ideológico. Estas
ações reforçam um caráter heterônomo, ignorando o Espiritismo como uma
filosofia que tem como fim educar os espíritos para a construção do reino de
Deus na Terra, já que se trata de uma filosofia comportamental, performática e
não contemplativa.
Desta maneira, percebemos, que do ponto de vista educacional e
metodológico, o movimento espírita precisa romper a bolha dos velhos
paradigmas para atuar na construção de um Ser espiritual que cumpra sua
função de agente transformador da sociedade, em um processo de metamorfose
coletiva comprometido com o bem comum. Somente assim, poderíamos viver a
ideia da formação de uma sociedade que se ame, tendo a doutrina dos espíritos
como fonte inspiradora deste processo pedagógico.

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Educação como transformação da sociedade.

O livro, Filosofia da Educação, de Carlos Cipriano Luckesi, continua nos


servindo de roteiro e estabelecendo as nossas observações:

A terceira tendência é a que tem por perspectiva compreender a


Educação como mediação de um projeto social. Ou seja, por si,
ela nem redime nem reproduz a sociedade, mas serve de meio,
ao lado de outros meios, para realizar um projeto de sociedade;
projeto que pode ser conservador ou transformador. No caso,
essa tendência não coloca a Educação a serviço da
conservação. Pretende demonstrar que é possível compreender
a Educação dentro da sociedade, com os seus determinantes e
condicionantes, mas com a possibilidade de trabalhar pela sua
democratização. (Luckesi, 2011):

Neste processo encontramos o espaço onde o movimento espírita deveria


estar situado em suas práxis. Questionamos desde o começo deste livro se
enquanto organização institucional e federativa, o Espiritismo tem com o passar
do tempo, propiciado mecanismos e processos educativos que permitam aos
espíritas vinculados a estas respectivas instituições adesas, formas, maneiras e
possibilidades de munir os seus frequentadores de senso crítico, de autonomia,
tal qual nos ensina Kardec?

49
Nos embasamos no que diz Allan Kardec, no O Livro Dos Médiuns:

Para se proceder, no ensino do Espiritismo, como se faz nas


ciências ordinárias, seria necessário passar em revista toda a
série de fenômenos que podem produzir-se, a começar dos mais
simples até chegar, sucessivamente, aos mais complicados.
Ora, isso é impossível, porque não se pode fazer um curso de
Espiritismo experimental como se faz um curso de Física ou de
Química. Nas Ciências Naturais opera-se sobre a matéria bruta,
que se manipula à vontade e quase sempre se consegue
determinar os efeitos. No Espiritismo, tem-se de lidar com
inteligências dotadas de liberdade e que provam, a cada
instante, não estarem sujeitas aos nossos caprichos. É
necessário, pois observar, esperar os resultados e colhê-los na
ocorrência. (Kardec,2017)

Aproximar a discussão espírita de uma prática pedagógica que tenha


como objetivo o ser humano pertencente a cultura do seu tempo, interagindo
com a diversidade social que compõem as mais variadas culturas. Interagindo,
ouvindo, construindo e oferecendo recursos para que estes atores sociais
possam ser protagonistas de suas existências e tenham a condição crítica e
autônoma de produzirem a partir de suas ações individuais e coletivas, uma
sociedade mais justa e mais igual, a partir da perspectiva da Educação Espírita
como Prática Para a Liberdade, no sentido da oferta ético amorosa da Pedagogia
Espírita.
O Espiritismo prima pela educação, amplia as possibilidades, ofertando
aos espíritos a oportunidade de ascensão, porém, sem deixar de perceber, de
registrar e de trabalhar a ideia de que: “Não haverá mundo de regeneração sem
igualdade e justiça social”.
A autonomia como recurso capaz de promover os seres humanos a partir
da autoeducação e das vivências das suas próprias responsabilidades na
construção deste mundo que acontecerá como ação espiritualista, imortalista,
reencarnacionista. Que acontecerá com o advento da identidade espiritual,
moradores físicos do planeta Terra, responsáveis pelo bem-estar social uns dos

50
outros, sem contemplação e com ações práticas, o Reino de Deus se
estabelecerá a partir de nós.

Como um currículo Progressista pode ser atendido por uma tendência


Pedagógica Liberal?

Dizemos que o Espiritismo enquanto proposta educacional apresenta um


currículo progressista, porém, a sua prática é liberal. Vamos falar do que se trata
uma tendência Pedagógica Liberal! Para isso usaremos o Livro, Filosofia da
Educação, de Carlos Cipriano Luckesi:

O termo liberal não tem o sentido de “avançado”, democrático”,”


aberto”, como costuma ser usado. A doutrina liberal apareceu
como justificação do sistema capitalista que, ao defender a
predominância da liberdade e dos interesses individuais da
sociedade, estabeleceu uma forma de organização social
baseada na propriedade privada dos meios de produção,
também denominada Sociedade de Classes. A pedagogia
liberal, portanto, é uma manifestação própria desse tipo de
sociedade. (Luckesi,2011):

Quando aludimos que o movimento espírita brasileiro é basicamente


liberal, nos referimos às suas práxis, e imediatamente nos reportamos ao que
Kardec fala da prática espírita no sentido de ter como objetivo promover livres
pensadores, pessoas críticas, capazes de articular a sociedade e transformá-la
em mais igualitária e justa!

51
Porém, não podemos deixar de observar, que a tendência pedagógica
escolhida contempla o sistema opressor capitalista e a ideologia que a classe
dominante identifica como sua. Usando uma pedagogia da reprodução dos
conteúdos, que tem como objetivo ratificar o poder da classe que chamamos de
hegemônica, de forma, que a luta de classe é vivenciada dentro dos espaços
espíritas.
Este movimento em sua hegemonia, detêm o poder, este poder que
envolve o conhecimento, determina a quantidade de seguidores, luta pela
perpetuação do formato e consequente manutenção do status quo. A educação
se torna escrava dos que escravizam, escravizam mentes, monopolizam e
distorcem conhecimentos, e fazem com que o Espiritismo seja heterônomo e não
produza mentes livres, e autônomas.
Percebemos este fenômeno social e o quanto está distante da proposta
Kardeciana, sobre isso, recorremos a Allan Kardec, na Revista Espírita de 1867:

Em sua acepção mais larga, o livre-pensamento significa: livre-


exame, liberdade de consciência, fé raciocinada; simboliza a
emancipação intelectual, a independência moral, complemento
da independência física; não quer mais escravos do
pensamento, quanto não os quer do corpo, porque o que
caracteriza o livre-pensador é que pensa por si mesmo, e não
pelos outros; em outros termos, sua opinião lhe é própria. Assim,
pode haver livres-pensadores em todas as opiniões e em todas
as crenças. Neste sentido, o livre-pensamento eleva a dignidade
do homem, dele fazendo um ser ativo, inteligente, em vez de
uma máquina de crer. (Kardec, 2018):

Nos referimos ao processo que se dá nos ambientes espíritas, e como


eles não funcionam no sentido de proporcionar aos seus frequentadores as
ferramentas pedagógicas necessárias para que se tornem sujeitos críticos,
autônomos, e quanto estamos reproduzindo estas condições dentro do
movimento espírita a mais de um século. Produzir pensamentos e as relações
destes com a atualidade requer independência, liberdade intelectual, tudo que
52
não vivemos nas hostes espíritas, o que nos diz, que estamos vivendo um
Espiritismo que pedagogicamente não é Kardeciano, já que o próprio Kardec,
como nos mostra o texto acima, nos convida a sermos livre pensadores,
construtores de liberdades que nos permitam alçar voos em busca da nossa
ascensão e autonomia.
O Espiritismo possui e aplica em sua prática um currículo progressista,
falamos anteriormente de forma breve o que significa a pedagogia liberal, apenas
para situar o leitor em torno desta teoria, falaremos aqui sobre o que significa e
a que se atem a pedagogia progressista e poderemos a partir desta perspectiva
construir os pontos de convergência, as interseccionalidades entre a doutrina
espírita enquanto proposta educacional progressista e a pedagogia progressista.
Sobre a pedagogia Progressista nos fala Luckesi em seu livro Filosofia da
Educação:

(...) é usado aqui para designar as tendências que, partindo de


uma análise crítica das realidades sociais, sustentam
implicitamente as finalidades sociopolíticas da educação.
Evidentemente a pedagogia progressista não tem como
institucionalizar-se em uma sociedade capitalista; daí ser ela um
instrumento de luta dos professores ao lado de outras práticas
sociais. (Luckesi, 2011):

Partiremos de uma reflexão do movimento espírita a partir de uma


perspectiva social, para compreendermos do que estamos falando, já que os
grupos sociais reproduzem aquilo que a sociedade carrega em sua estrutura e
base, portanto não à toa por exemplo, dizemos que o machismo, o racismo e a
homofobia são estruturais, e os ambientes espíritas não estão imunes a esta
reprodução social. Os conceitos do capitalismo e as decorrências deste modo
de atuação política também são sentidos e instituídos dentro dos espaços
espíritas, desta forma, o Espiritismo no Brasil nunca pode exercer a sua
peculiaridade progressista ficando restrito a defesa desta tendência a um seleto
grupo de pensadores, que por não necessitarem de holofotes e se acharem

53
comprometidos com esta verdade, compreendem e defendem o Espiritismo em
uma perspectiva progressista, destacaremos aqui alguns destes pensadores,
Kardec, Léon Dennis, José Herculano Pires, Mariotti, Deolindo Morim, Sérgio
Aleixo, Wilson Garcia, Dora Incontri, Ana Cláudia Laurindo, Célia Arribas, Sinuê
Miguel..
Percebemos uma peculiaridade entre estas escritoras e estes escritores,
eles prezam por suas autonomias criativas e por serem livres pensadores. O
simples fato de serem invisibilizados, pelo Movimento Espírita Brasileiro
Hegemônico Federativo Institucionalizado, mostra que o Sistema Capitalista
também atua na intimidade deste “Movimento Espírita”.
Assim como meritocracia em um país sem igualdade e justiça social é
uma falácia, um sistema educacional progressista em um regime político
capitalista também é. Desta maneira, percebemos que as suas produções são
estabelecidas a partir do capitalismo e distanciamento das questões sociais.
Chamamos de capitalista, pois, há uma visível máquina financeira por trás
da institucionalização do Espiritismo no Brasil, a venda de livros, seminários
caríssimos, e vale salientar que quando cobramos e operacionalizamos os
preços dos eventos espíritas, estamos sim, fazendo política, e política de classe,
política capitalista e dizendo quem pode e quem não pode participar, fazemos
uma seleção prévia a partir do capital. Se assim não fosse, e a perspectiva fosse
de facilitar e viabilizar o conhecimento espírita, não daríamos apenas pão, sopa
e cestas básicas, tornaríamos a literatura espiritista, mais acessível às camadas
menos favorecidas da sociedade.
Este fenômeno é de fácil compreensão, embora sob o risco de nos
tornarmos ainda mais repetitivos, achamos pertinente a suscitação desta
discussão. As elaborações discursivas possuem a sua gênese a partir do poder,
do conhecimento dentro das especificidades permitidas e da hierarquização dos
corpos. O poder que se institui de forma verticalizada e que se cumpre sem
questionamentos. O conhecimento que é estabelecido a partir de literaturas
mediúnicas que também não são questionadas, construídas por médiuns
inquestionáveis. E as relações destes poderes se tocam quando se institui a
validação dos corpos que podem ou não podem fazer parte deste sistema.
Nota-se que estas concepções de corpos válidos são instituídas
exatamente pelo sistema capitalista vigente, daí não vermos ou vermos poucos

54
corpos negros, corpos femininos e corpos LGBTQIAP+ com protagonismos.
Voltaremos a falar sobre os corpos em nosso próximo capítulo; O Corpo
Educado: as Vidas que Importam e as Lágrimas Permitidas.
Falaremos um pouco das consequências desta forma de se fazer
Espiritismo.
Quando questionamos o formato pedagógico que utilizamos para a
prática diária de nossas instituições espíritas, é por entendermos que toda
prática pedagógica implica uma ação e toda ação, implica uma reação.
Com a utilização de uma pedagogia liberal, e consequente reprodução
dos conteúdos, percebemos quanto o movimento espírita brasileiro se distanciou
de Kardec. A ideia da reencarnação e da causa e efeito como ações validadoras
dos preconceitos é um exemplo, mas acreditamos que o que marca ainda mais,
é a utilização dos conceitos umbral, obsessor e obsessões, que juntas criam a
pedagogia do medo, da culpa, e incide sobre os seus adeptos um processo de
educação pelo medo, pelo temor, desvirtuando muitas vezes a própria
epistemologia espírita.
Soma-se a isso, uma proposta de “reforma íntima” que de tão íntima
chega a ser egoísta, cria a ideia de conquista do seu espaço nas esferas
celestes, pensamento egoísta porque, uma vez conquistado este status celestial
vivido nas colônias espirituais, os outros, os retardatários da evolução, “os
mendigos de estimação”, os que não conseguiram “crescer” que deem conta
de suas demandas, é a verdadeira ideia do cada um por si, como se fosse
possível existir mundo de regeneração sem igualdade e justiça social.
Não é possível a formação deste Mundo de regeneração e nestas
condições, enquanto houver desigualdade e injustiça social, simplesmente por
não desfrutarmos das mesmas condições sociais para as nossas realizações
pessoais. Enquanto uns nascem com todas as condições favoráveis como
educação, saúde, moradia, lazer, segurança, direitos que deveriam ser de todas
de todos e de todes, outros nascem em condição de miséria. Não há justiça, em
uma justiça que determinasse o bem-estar espiritual de ambos a partir das
mesmas conquistas ou dos mesmos insucessos. Daí a necessidade de um
Espiritismo e uma espiritualidade engajada com as lutas sociais, progressista em
sua gênese, para darmos ampla condição de sucesso em nossas oportunidades
encarnatórias, lembrando que não nascemos para dar errado, ou não estamos

55
encarnados apenas para sofrermos, mas precisamos de uma realidade social
que nos ajude a vencer as nossas más inclinações e não as potencialize.
A Educação Espírita, tem como objetivo a espiritualização do ser humano
na Terra, a formação de um espírito autônomo, senhor de suas próprias
emoções e ações, este processo é de vir a ser, e para que se venha a ser, é
necessário a liberdade da prática, nem todas as tentativas na busca de ser e
viver aquilo que se é, alcançarão êxito. A confiança de que esse processo é
educativo e não punitivo, que o objetivo é o aprendizado e não a culpabilização,
desta forma, o Espiritismo colabora na estruturação do Ser espiritual interligando
a sua relação com o mundo social no qual ele está inserido.
Ratifica-se assim a necessidade do Espiritismo como um processo
educativo progressista, revisar e ressignificar conceitos que nos aproximem da
dor como a fonte da transformação do ser humano, e subalternizam a pedagogia
do amor, é urgente e capital para a formação de uma sociedade mais justa e
mais igual.
Concluímos que não será um cataclisma que mudará a ação das pessoas
no mundo que fazem parte, não será uma hecatombe geológica que
transformará a sociedade, ou desencadeará a transição da Terra em um Mundo
de regeneração. A educação amorosa é capaz de promover a transformação
social, assim como nos diz (Pires, 2008): “Só o amor educa, só a ternura faz as
almas crescerem no bem.” Eis a Pedagogia que liberta e constrói e está
diretamente ligada à essência do Espiritismo e em Jesus de Nazaré.
A pedagogia do amor, não estabelece relação com o materialismo e com
o capitalismo, não se guia pelo capital, e não se fortalece fragilizando e
extinguindo corpos, em detrimentos de outros. É espiritualista, entende a fundo
o conceito de reencarnação, como a ação do próprio amor em forma de
oportunidade de aprendizados, que são constantes, e ininterruptos, e que
contemplam a todos os espíritos indistintamente de condição de progresso, ou,
em que plano da espiritualidade se encontre. A Pedagogia do Amor, não
estabelece a dor, o sofrimento, o medo e a culpa como fontes redentoras do
espírito, mas abraça aos espíritos que sofrem, não há ideologia na pedagogia do
amor, na pedagogia do amor, que é uma ação progressista em seu próprio devir,
que suscita o vir a ser a partir da prática e da oportunidade.
A ideologia da pedagogia do amor é amar!

56
A importância da educação na construção dos nossos diálogos com
gênero e sexualidades a partir de uma perspectiva espírita, espiritualista,
imortalista, reencarnacionista, conhecer alguns conceitos é importante para a
construção desta narrativa, portanto a partir daqui trabalharemos a temática: O
Corpo Educado: As Vidas que Importam e as Lágrimas Permitidas.

Capítulo III
O Corpo Educado: As Vidas que Importam e as Lágrimas Permitidas.

Os imbricamentos entre o Espiritismo e a educação, nos trazem a este


lugar de construções e análises de narrativas, de reflexões acerca de nossas
digressões até aqui estabelecidas e de como servirão de base para as nossas
futuras elucubrações.

Partindo de uma análise social do movimento espírita, percebemos que


para construirmos uma discussão sobre gênero e sexualidades precisamos de
uma leitura de mundo, que para fazê-la o Espiritismo se une a outras ciências
em parceria, para poder dar conta das demandas sociais atuais.

Partimos do Espiritismo, respeitamos a sua epistemologia, não o


descaracterizamos, mas entendemos a importância de um diálogo
interdisciplinar, que contemple as temáticas sociais e transversalize com os
conceitos Espíritas. E desta forma poderemos colaborar na formação do Ser
dentro da cultura do seu tempo, sem alienações, a partir da realidade e não da
edificação de um Mundo paralelo ao real, e que se reproduz como se o
movimento espírita fosse um apêndice da sociedade e não parte integrante da
mesma.

Em um país continental como o Brasil, unificar ações sem levar em


consideração a multiculturalidade e a Interculturalidade que compõem o nosso
povo, é um processo colonial, que não respeita costumes, hábitos e não interage
com as mudanças e consequentemente se torna incapaz de compor propostas
educacionais que contemplem a realidade de uma sociedade. Daí a necessidade

57
de discutirmos conceitos sociais que nos permitam conhecer o nosso povo, e
criar proposições e medidas que colaborem para o bem comum.

O Espiritismo não está alheio a esta realidade, e como diz (Kardec ,2017),
em O Livro dos Médiuns, “O Espiritismo, se relaciona com todos os problemas
da humanidade.”

Antes de qualquer altercação, precisamos falar sobre o “mito da


polêmica”, que é a ação criada por muitas pessoas espíritas de que os temas
sociais não devem ser discutidos dentro de seus ambientes, sob pena das
mesmas fazerem baixar o “padrão vibratório” das pessoas. Aproveitamos esta
oportunidade para dizermos que não há produção de polêmicas nas discussões
das temáticas sociais, e sim, invisibilização, subalternização de narrativas, e
instituir como polêmica é um projeto de poder hegemônico para manter as
problematizações onde o Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo
Institucionalizado sempre fez questão de manter, embaixo do tapete.

Estudos como Decoloniais e Culturais são importantes para as nossas


reflexões, nos valemos de (Costa, Torres, Grosfuguel, Apud Wynter, 2003), no
livro Decolonialidade e Pensamento Afrodiaspórico, para continuarmos a nossa
jornada de busca por conhecimento, e construções de saberes, “A colonização
no âmbito do saber é produto de um longo processo de colonialidade que
continuou reproduzindo as lógicas econômicas, políticas, cognitivas, da
existência, da relação com a natureza, etc.”, Nos dão a possibilidade de uma
forma sociocultural, de entendermos para que espírito estamos falando.

O Espiritismo pode sim dialogar com as ciências humanas, compreender


o mundo social contemporâneo e o Ser espiritual da atualidade, construir
propostas pedagógicas e formas de comunicação que respeitem a
espiritualidade hodierna, desta maneira, a forma de nos comunicarmos tornar-
se-á muito mais eficaz no que diz respeito a fomentação de um ser espiritual
ciente de suas responsabilidades sociais, e que produzirá políticas de justiça e
igualdade social, promovendo um livre pensar que desencadeará uma ação
decolonial com relação ao pensamento supremacista vigente.

Pensando nisso, percebemos que alguns conceitos são importantes para


a compreensão das discussões de gênero e sexualidades, e neste capítulo

58
falaremos um pouco sobre eles, que são minorias sociais, cultura, identidade e
corpo.

Trabalharemos este capítulo como uma estrada intermediaria entre


Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidades, que tem como objetivo palmilhar
os nossos conhecimentos e favorecer uma imersão no universo do gênero e das
sexualidades de uma forma humana, sem a pretensão de encerrar o debate,
mas, com a proposta de problematizar, e desta maneira propormos a
naturalização dos temas aqui citados, e a construção de um diálogo com as
questões sociais.

59
A identidade Cultural

Não daremos conta de entender as tensões sociais, sem estudarmos as


origens das mesmas. Conhecer as socio dinâmicas em suas diferenças, e em
suas constituições é importante para que possamos fomentar as políticas
públicas que contemplem cada povo dentro de suas especificidades e
peculiaridades, que só a compreensão da cultura que forma está sociedade pode
favorecer, ou seja, conhecer de que povo estamos falando, quais os seus
costumes, é de vital importância para a produção de medidas de justiça e
igualdade social.

Para darmos continuidade as nossas reflexões, recorremos a Filósofa


Brasileira, Marilena Chauí em seu livro Repressão Sexual essa nossa
(des)conhecida.

Assim, a cultura passa a ser encarada como um conjunto de


práticas (artes, ciências, técnicas, filosofia, os ofícios) que
permite avaliar e hierarquizar o valor dos regimes políticos,
segundo um critério de evolução. No conceito de cultura
introduz-se a ideia de tempo, mas de um tempo muito preciso,
isto é, contínuo, linear e evolutivo, de tal modo que, pouco a
pouco, cultura torna-se sinônimo de progresso. Avalia-se o
progresso de uma civilização pela sua cultura e avalia-se a
cultura pelo progresso que traz a uma civilização. (Chauí, 1984)

60
Como oferecer uma proposta pedagógica, sem identificar a realidade
sociocultural de quem estamos dialogando? Conhecer a realidade estabelece a
prática. A forma de fazermos espiritismo no Brasil ainda é colonial, ou seja,
determina os seus hábitos, costumes, princípios, técnicas, filosofia, sendo assim,
cria e estipula uma cultura própria, que não se institui no sentido educativo do
termo.

As culturas existentes na sociedade não são respeitadas, e ou,


visibilizadas, pelo fato de os pensamentos coloniais serem estruturantes na
edificação da base de suas ações.

O Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo


Institucionalizado, não consegue desenvolver a dialogicidade com as minorias
sociais, impõe a sua cultura em detrimento das outras, e por isso, se faz elitista
e excludente em seu exercício. Os motivos que o levaram a isso já explicitamos
no decorrer da obra, mas a forma da vivência educacional, é sem sombra de
dúvidas uma das mais marcantes.

Nos inspiramos no artigo do Professor Francisco Porfírio chamado


Minorias Sociais e as lutas por direitos:

Historicamente, os grupos minoritários são aqueles que, por


algum motivo, geralmente ligado ao preconceito de cor, classe
social ou gênero, ficaram excluídos da
sociedade, marginalizados, e não tiveram a plenitude de seus
direitos básicos garantidos. Nesse sentido, podemos colocar a
população negra, por exemplo, na condição de minoria, pois,
durante o colonialismo europeu, os africanos foram capturados
e vendidos como escravos. Francisco Porfírio Mestre em
Filosofia. (Porfírio, 2009)

Quando abordamos o conceito minorias sociais, não estamos nos


referindo ao quantitativo, ou seja, não falamos do tipo de pessoas que formam
maioria na sociedade, mas sim, de categorias sociais com menos acessos a

61
políticas públicas e a direitos estabelecidos. Embora a categoria mulher seja
maioria com relação a quantidade de homens na sociedade brasileira, elas
pertencem às minorias sociais, embora a categoria pessoas pretas, sejam
maioria no quantitativo da realidade brasileira, fazem parte das minorias sociais
e possuem menos acesso a direitos e políticas públicas, assim como a categoria
LGBTQIAP+ possuem menos direitos e menos acessos a políticas públicas.

Outra característica das minorias sociais é a fragilidade com relação a


tornarem-se vítimas de violência, e o descaso do estado na busca dos
violentadores, perceba que todos os exemplos citados aqui são vítimas reais da
violência na sociedade brasileira. Falaremos mais sobre isso quando abordamos
o conceito Corpo.

Nos valemos da Filósofa estadunidense, Angela Davis, em seu livro,


Mulheres, Cultura e Política, para darmos sequência em nossa escrita:

Hoje, óbvio, o mundo não pertence de fato aos seus habitantes.


Há aquelas pessoas – um minúsculo segmento da população –
que usurpam grande parte da riqueza no mundo capitalista,
enquanto outras – a vasta maioria – têm proporcionalmente
pouco. Nessa maioria, um número expressivo nem sequer
possui o suficiente para sobreviver. Famílias inteiras andam
pelas ruas sem casas, sem empregos, sem garantias de que
terão comida para a próxima refeição. (Davis, 2017):

Uma reflexão importante a ser feita é sobre as pessoas que compõem as


minorias sociais; e são assim categorizadas pela condição de pobreza a que
estão submetidas. Vivem abaixo da linha da pobreza, na miséria extrema, onde
lhes falta o básico para a sobrevivência. Estas pessoas não possuem os seus
direitos constitucionais garantidos, e o Estado em muitas situações se nega a
cumprir com seu papel.

Este fenômeno é validado pelo Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico


Federativo Institucionalizado, que se especializou no assistencialismo, mas fato
estranho acontece na atualidade, onde uma parcela muito significativa destes

62
espíritas, se coloca a favor do “assistencialismo caridoso espírita”, mas são
terminantemente contra qualquer política pública de distribuição de renda,
erradicação da fome, da miséria, e que promova a dignidade humana.

Invoco aqui o que já falamos antes, a necessidade do diálogo com a


antropologia, com a sociologia, para que possamos entender de onde surge a
sanha desvairada da manutenção do “mendigo de estimação”?

Em seu livro Os Setes Saberes Necessários à Educação do Futuro, Edgar


Morin, nos ajuda na construção de nossos argumentos:

Diz-se justamente A Cultura, diz-se justamente as culturas. A


cultura é constituída pelo conjunto dos saberes, dos fazeres, das
regras, das normas, das proibições, das estratégias, das
crenças, das ideias, dos valores, dos mitos, que se transmite de
geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a
existência da sociedade e mantém a complexidade psicológica
e social. Não há sociedade humana, arcaica ou moderna,
desprovida de cultura, mas cada cultura é singular. Assim,
sempre existe a cultura nas culturas, mas a cultura existe apenas
por meio das culturas (Morin,2014) ...

Esta fala de Edgar Morin nos faz resgatar a discussão sobre cultura, e
alerta para a ideia de não existir apenas uma cultura, mas a pergunta que nos
invade é: Como surgem as culturas Hegemônicas? Aproveitemos esta
discussão para falarmos das várias culturas que formam a cultura brasileira, em
sua pluralidade, e também para compreendermos que seria muita ingenuidade
imaginarmos que as composições da cultura da supremacia, não se refletisse
nos ambientes espíritas.

A vivência religiosa convencional de “mundo lá dentro”, e “mundo lá fora”,


fez com que algumas pessoas acreditassem que os ambientes espíritas estariam
livres dos preconceitos e das violências que são repercutidas no comportamento
das sociedades às quais fazem parte os seus povos, os espaços sociais nada

63
mais são do que lugares de reprodução das culturas, escolas, centros espíritas,
igrejas e templos, sofrem a ação do Ser espiritual nas suas práticas!

Vale salientar, e segundo (Laraia, 2020), em seu livro, Cultura um


Conceito Antropológico, “A cultura é dinâmica.” Compomos as percepções que
norteiam por exemplo, a sociedade brasileira no que diz respeito a Machismo,
Sexismo, LGBTQIAP+fóbia, racismo que são estruturais em suas gêneses, e
que compõem o cenário social brasileiro, pois qualquer processo cultural, está
sempre em mutação.

Avaliamos que a ideia colonial é um fator que contribui para que os


privilégios da parte hegemônica da sociedade sejam mantidos, entendemos
então, que é urgente uma visão espírita que colabore com as políticas
Decoloniais, desta forma compreender este conceito, é importante para
descolonização das ideias do espiritismo brasileiro e dos conteúdos
heterônomos oferecidos há mais de um século.

As políticas Decoloniais possuem o objetivo de descontruir o universo dos


privilégios, e a partir de um processo de contracultura oferecer às vozes
silenciadas pelo sistema capitalista e globalizado, a possibilidade de viverem as
suas próprias culturas, sem o risco de sofrerem violências, cancelamentos,
invisibilização, apagamentos e morte.

As mais variadas formas de preconceito são naturalizadas e reproduzidas


durante a história da humanidade, e encontram espaço nas camadas
favorecidas por estas impetrações de violência, de subalternização, costumes,
hábitos, culturas, corpos e vidas.

O que torna a cultura plural, e faz surgir a partir das minorias sociais, uma
cultura de resistência ao processo colonizador que impõe a Necropolítica e dita
as vidas que importam e as lágrimas que precisam ser amparadas pelo Estado
e as que não são permitidas.

É fundamental apresentarmos o conceito de cultura para analisarmos os


posicionamentos e a forma com que o movimento espírita no Brasil se relaciona
com as questões sociais, validam as culturas hegemônicas, não abrem espaço
para a vivência das mudanças culturais que se instauraram no país e no mundo

64
do século XIX para cá, fazendo com que possamos compreender o fenômeno
ultraconservador que demarca as literaturas e a estrutura do Espiritismo em
terras brasileiras.

O Espiritismo não é omisso diante das desigualdades e injustiças sociais.

O surgimento de Coletivos Espiritas Progressistas se contrapondo a esta


pedagogia da reprodução dos conteúdos, dos quais destaco aqui: Ágora
Espírita, Coletivo Girassóis Espíritas Pelo Bem Comum, Instituto de Filosofia
Espírita Herculano Pires, ABREPAZ, CEJUS, Transformação Social e Espíritas
à Esquerda, têm colaborado no debate das temáticas sociais, e na construção
de uma visão decolonial, de combate à Necropolítica e no estabelecimento de
ações antirracistas, antimachistas, antiLGBTQIAP+fóbicas.

Atuando na fomentação de debates, de extrema relevância e necessários


para a suscitação de ações concretas e Políticas Sociais e Afirmativas que
tragam a lume um movimento espírita instrumentalizado para a produção de
diálogos com as ciências humanas, ofertando assim a condição de intervir no
meio social contemporâneo, vindo a cumprir um papel educativo, produtor de
autonomia e libertador para aqueles que por ele sejam tocados!

A ação destes coletivos, oferecem uma outra possibilidade, além do


Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado,
facultando condições de atuação a partir de um olhar político social pedagógico.

65
Políticas de Identidades

Começamos as nossas elucubrações com a participação de (Hall, 1977),


em seu livro, Identidade Cultural na Pós-modernidade, “Novas identidades
sociais tornaram-se visíveis, provocando, em seu processo de afirmação e
diferenciação, novas divisões sociais e o nascimento do que passou a ser
conhecido como ‘Políticas de Identidades”. Talvez as pautas identitárias não
deem conta de discutir com justiça e equidade todas as diferenças que
constituem um povo, porém uma coisa é certa, a invisibilização destas pautas
causa dores e violências a muitas intimidades em nossa sociedade.

Recorremos a Bauman em seu livro Identidade, para consubstanciamos


os nossos pensamentos:

Quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam


parecer “natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação”
se torna cada vez mais importante para os indivíduos que
buscam desesperadamente um “nós” a que possam pedir
acesso. (Bauman,2005)

Quando as culturas são violentadas, subalternizadas, silenciadas e


canceladas imperativamente, sem dar escolhas aos seus entes participantes, há
uma necessidade destes sujeitos se buscarem, para que se encontrem, se
organizem, lutem, se validem, se reconheçam a partir de pertencimentos
negados pela história e pelos sistemas opressores que validam o que pode e o
que não pode ser considerado como ações comportamentais “normais” da
sociedade, são os criadores da “norma”.

66
Daí surgem os estereótipos, e muitos que não fazem parte das definições
que o sistema institui como sendo ação reguladora da cultura hegemônica,
encontram na busca dos seus pares, o único caminho para a existência de suas
intimidades e a manutenção de suas subjetividades. É quando existir passa a
ser uma questão de resistência!

Quando encontramos pensamentos contrários às Políticas Identitárias


pensamos exatamente serem contra o existir de várias populações e de várias
culturas representativas.

O Espiritismo trata das questões do espírito, de suas relações com o


mundo social, em contrapartida é bom que expliquemos, que ele não é
contemplativo, ou seja, não trata de uma vida de adoração enquanto espírito
encarnado, onde viveremos de oração, passe e água fluidificada, esperando e
enquanto aguarda, manutenindo os “mendigos de estimação”, almejando a hora
de aportar em uma colônia espiritual.

Em que pese, a oração, o passe, a água fluidificada, assim como, toda a


terapêutica oferecida pelas casas espíritas, funcionam, mas não são, ou não
deveriam ser muletas, onde pessoas sem senso crítico, comprometimento social
e perspectiva de mundo progressista, as utilize e se tornem dependentes.

O Espiritismo é uma doutrina performática, e às ações que emanam da


sua compreensão deve se dar no campo social, na troca e na partilha, no
estabelecimento das relações sociais.

Convidamos Kardec, em O Livro dos Espíritos, par elucidar algumas


questões:

779 - O Homem tira de si mesmo a energia progressiva ou o


progresso não é mais do que o resultado de um ensinamento? –
O homem se desenvolve por si mesmo, naturalmente, mas nem
todos progridem ao mesmo tempo e da mesma maneira; é então
que os mais adiantados ajudam os outros a progredir, pelo
contato social. (Kardec,2007): ...

67
As identidades, plurais, Interculturais e multiculturais, são a forma de
romper com as hierarquias sociais, e enquanto espírito, ter a oportunidade de
ser talhado pela diversidade que nos contempla enquanto essência, e mesmo
assim poder fazer parte do mundo social a nossa volta, não sermos vistos como
páreas, não sermos excluídos, invisibilizados, violentados e mortos. Como
Kardec apresenta, é pelo contato social!

Quando falamos do Espiritismo em uma perspectiva educacional, nos


referimos a um processo autônomo, as identidades nos oportunizam a
autonomia no sentido de sermos quem somos.

São necessárias a Educação Espírita como Prática da Liberdade, e a


constituição do respeito e da dignidade humana.

Paulo Freire, em seu livro, Pedagogia da Autonomia, nos mostra como a


autonomia tem um caráter preponderante para a construção de uma sociedade,
justa e igual:

A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é


processo de vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste
sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada
em experiências estimuladoras da decisão e da
responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas de
liberdade. (Freire,2011)

Vir a ser, requer liberdade, acesso a uma compreensão filosófica que se


oponha à “pedagogia do medo, da culpa e da obsessão”.
Taxar a reencarnação como uma “ação punitiva”, o terror do “mundo de
expiação e provas”, o horror dos “umbrais” são fatores que contribuem para que
o Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado, em
seu processo heterônomo de praticar o Espiritismo, não permita que estas
identidades, que não são mais do que as próprias expressões do espírito, não
possam ser quem são dentro dos ambientes espíritas, em uma perspectiva onde

68
a reencarnação fomenta as diferenças que nos constituem enquanto seres
espirituais.
Negar está diversidade é negar o próprio Inter existir. Tolher as
expressões identitárias, é tolher as subjetividades, é limitar o espírito em suas
práticas vivenciais, comportamentais. É aniquilar a liberdade que o Espiritismo
defende.
Esta autonomia como processo de vir a ser, é contemplada pela certeza,
que a reencarnação é um processo educativo, e que as possibilidades de
aprendizados são ofertadas de maneira que tenhamos o direito de sermos quem
verdadeiramente somos, isto significa não temer a ação prática do viver,
entendendo o processo da existência como pedagógico e não punitivo.
O Ser espiritual que não concebe a sua ação no mundo, as constantes
relações entre as culturas, que não consegue perceber a sua imersão neste
universo de pluralidades, que não enxerga as lutas de classe que se dão nestas
relações, é fruto das impressões que a cultura predominante exprime sobre ele.
Não há como desassociar a política, o capitalismo, a globalização das
relações entre os Seres, precisamos lembrar, que quando fazemos parte da
parcela que não sofre as opressões, fica mais fácil entender que elas não
existem.
Bauman, em seu livro Identidade, colabora com as interações que
estamos desenvolvendo:

No outro polo se abarrotam aqueles que tiveram negado o


acesso à escolha da identidade, que não têm direito de
manifestar as suas preferências e que no final se veem
oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros –
identidades de que eles próprios se ressentem, mas não tem
permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar.
Identidades que estereotipam, humilham, desumanizam,
estigmatizam. (Bauman,2005)

69
Refletimos sobre o processo de progresso da humanidade, e de sujeição
do espírito encarnado a imperativos que são estabelecidos como regras, onde
este Ser precisa ser obediente, mesmo que as bases que componham estas
regras sejam diametralmente opostas ao que verdadeiramente é este Ser.
É assim que funciona o Brasil dos brancos, dos héteros, dos machos, dos
conservadores, e dos “homens de bem”.
Não pensemos que os ambientes religiosos estão livres desta realidade
materialista que não leva em consideração a essência do que se é, para impetrar
opressões e assim se tenha do outro o que se deseja que ele seja.
Oxalá o Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo
Institucionalizado estivesse livre destas opressões, mas bem sabemos que os
espaços sociais são reflexos destes povos que formam as culturas, que validam,
e condenam as identidades, reproduzem a Necropolítica, matam e adoecem os
corpos que “ousam” transgredir a “norma”.
Falaremos sobre os corpos que formam as culturas e estas identidades e
de como eles se relacionam nestas tensões sociais, e do quanto as normas os
cobram para que sejam simplesmente aquilo que as convenções sociais os
permitem ser, lembramos que em nossas pesquisas não encontramos respaldo
Kardeciano para a validação das já referidas opressões.

70
O Corpo Educado

Todas as discussões constituídas até aqui, foram feitas no sentido de


preparar o leitor para imersão na discussão de gênero e sexualidades, sem a
ideia do pecado, ou que o Espiritismo é contra, ou ainda, que estas temáticas
são para pessoas obsidiadas, ou o que é bem pior; fala sobre pessoas
obsidiadas. Liberto das amarras do preconceito, poderemos navegar por este
universo de uma forma mais ampla e como nos ensina a doutrina espírita, livre.
Falar do corpo, é muito importante para o entendimento de gênero, falar
sobre o corpo no país com a composição social como a do Brasil é
imprescindível.
Para compreendermos sobre as tensões que envolvem estas temáticas,
convidamos a fazer parte da conversa, (Saffioti ,2015), com seu livro, Gênero,
Patriarcado, Violência. “Numa sociedade como a brasileira, com clivagens de
gênero, de distintas raças/etnias em interação e de classes sociais, o
pensamento, refletindo estas subestruturas antagônicas, é sempre parcial.”
Num país como o nosso, com tantos contrastes entre seu povo, num
universo tão culturalmente rico e plural, falar de corpo precisa atender às
diversidades que formam estes sujeitos, as suas culturas, as suas identidades,
e como isso marca seus corpos, e estabelece os julgamentos, pela indumentária
física com a qual este espírito hoje interage com o social à sua volta.
Subestimar a vida física e supervalorizar a vida na “espiritualidade”,
fomenta alienação! A Identidade Espiritual precisa ser compreendida, porém, a
partir da vivência deste sujeito espiritual no mundo físico, compreendendo a sua
jornada de espírito, a interexistencialidade.

71
Assim o corpo que este espírito ocupa, tem papel preponderante nas
relações que se estabelece na construção de quem ele é!
Para fomentar as nossas relações com a temática, trazemos a
participação da Professora Guacira Lopes Louro e seu livro, O Corpo Educado:

Os corpos são significados pela cultura e, continuamente, por


ela alterados. Talvez devêssemos nos perguntar, antes de tudo,
como determinada característica passou a ser reconhecida
(passou a ser significada) como uma "marca" definidora da
identidade; perguntar, também, quais os significados que, nesse
momento e nessa cultura, estão sendo atribuídos a tal marca ou
a tal aparência. (Louro,2019)

O Estado, a sociedade e a religião refletem em suas posturas, quais


corpos merecem viver, quais vidas importam, por quem se deve chorar, e quem
precisa aceitar a sua própria desdita. Os que precisam aceitar as próprias dores,
sem direito a direitos, são os que não possuem permissão de chorar! São corpos
marcados por toda a sorte de violências, do Estado, da Família, da Sociedade,
e das religiões, são sujeitos que possuem inclusive a própria espiritualidade
negada.
A cultura da reprodução dos conteúdos, é responsável direta, por
transmitir de geração para geração, os costumes, hábitos, conhecimentos e
saberes que estabelecem a dor na intimidade das pessoas que vivem à margem
da sociedade e consequentemente fazem parte das minorias sociais.
Os corpos são significados e marcados pela cultura, a luta Identitária, tem
como objetivo validar as subjetividades subalternizadas, invisibilizadas, mortas
e violentadas pelo Estado e pela sociedade machista, patriarcal, racista,
LGBTQIAP+fóbica, Sexista, xenofóbica, e pelas religiões que admitem um Deus
que escolhe quem pode segui-lo e quem não pode segui-lo. Assim se marca os
corpos que terão acesso à espiritualidade e os que serão negados deste direito.

72
Assim como nos revela e Filósofa Estadunidense, (Butler, 2019), em seu
livro, Quadros de Guerra, Quando a Vida é Passível de Luto, “Assim há “sujeitos”
que não são exatamente reconhecíveis como sujeitos e há “vidas” que
dificilmente – ou, melhor dizendo, nunca – são reconhecidas como vidas.”
Percebemos o quanto é importante estabelecermos este diálogo e as reflexões
que dele emanam.
As relações identitárias são ignoradas pelo Movimento Espírita Brasileiro
Hegemônico Federativo Institucionalizado, porque, em nenhum momento este
mesmo movimento, fez ou faz alguma reflexão sobre as minorias sociais, sobre
os corpos sem casas, sem segurança, sem saúde, sem educação, sem
esperança de esperançar, sem vida. Se especializou no assistencialismo,
desvirtuou a compreensão sobre a “caridade”, e faz qualquer “malabarismo
filosófico”, para não discutir sobre estes corpos, e todos os esforços oriundos
destes mesmos malabarismos para mantê-los, dóceis, subalternizados,
necessitados, sem direitos, de preferência fora de seus ambientes, ou
subjugados, na condição de atendidos dos trabalhos assistencialistas.
Destacamos aqui os corpos pobres, sem acesso a direitos constitucionais,
e sob a orientação de que: “Centro espírita não é lugar para se falar de política”,
não entendendo que não falar de política é fazer política, não vendemos o céu,
vendemos a ilusão das casas com enormes jardins, nas “colônias espirituais”,
nos disseram e dizem até hoje, que basta que façamos a nossa parte,
produziram uma “reforma íntima” que de tão ‘íntima”, é egoísta, não se preocupa
com o bem comum, e com bem-estar social.
Precisamos conversar agora sobre outros corpos, bom que se diga, que
o mesmo corpo pode em nome da cultura hegemônica, ocupar vários espaços
de subalternização, violência e silenciamento.
Falamos dos corpos negros, dos povos originários, LGBTQIAP+, os
corpos mulheres, os corpos periféricos, os corpos crianças e os corpos idosos,
quando se nasce em um país extremamente violento para estes corpos, nascer
mulher, mulher negra, negro, LGBTQIAP+, ou indígena, é simplesmente nascer
sob risco de morte.
Expressamos que o Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico
Federativo Institucionalizado é materialista na sua essência funcional, na sua
práxis, julgam a partir dos corpos, estabelecem o espaço que os corpos possuem

73
na prática institucional, sem levar em consideração, quem são estes espíritos.
Pode ser competente, inteligente, bondoso, mas se este corpo for LGBTQIAP+
não pode ministrar passes, palestras, cursos, participar de mediúnica,
“Evangelização Infantil”, (Entendemos Educação Infanto-Juvenil), se for mulher
os espaços do centro espírita são hostis, se for negro precisa ter uma condição
financeira privilegiada, caso contrário este corpo só tem valor para recebimento
das ações assistencialistas da casa, ou seja, este corpo é um corpo assistido e
não um corpo atuante da instituição.
Sabemos que há espaços onde esta não é a realidade, se não é,
maravilhoso, nos preocupemos, onde existe estes espaços, lembro que falamos
anteriormente, quando não fazemos parte de determinadas realidades sociais
que marcam corpos, e ferem intimidades, é fácil dizer que: “Não existe.” “Não
vejo isso”. “Estamos todos no mesmo barco”. “Somos todos irmãos”. “O Espírito
não tem sexo”. Estas frases na realidade, possuem o objetivo de escamotear as
realidades sociais, e de validar o status quo.
São estas mesmas frases que levam muitas pessoas a banalizarem e
minimizarem dores íntimas. São estas frases que justificam o aumento
exponencial do conservadorismo no Brasil, é este conservadorismo capitalista e
globalizado, que determina valor do corpo e produz o que (Bauman, 2004), em
seu livro, Identidade, chama de: “Lixo Humano”, ou para ser mais preciso,
“pessoas rejeitadas” – pessoas não mais necessárias ao perfeito funcionamento
do ciclo econômico, e, portanto, de acomodação impossível numa estrutura
social compatível com a economia capitalista”.
As “minorias” não se “acomodam” na estrutura social, a estrutura social
não foi feita e não pensa nas “minorias”, cada corpo tem seu lugar determinado
neste processo, criar tensão para sair destes espaços de marginalidade e
assumir as identidades que se fazem próprias, nada mais é, que não aceitar a
norma como padrão, é questionar quem instaurou o meu lugar no mundo tendo
como base o meu corpo? Como uma doutrina essencialmente espiritualista
consegue compactuar com isso? Não seria negligenciar a vivência da identidade
que nada mais é, do que a própria expressão do espírito?
Partindo das perguntas acima, dizemos que em nossas pesquisas não
encontramos em toda doutrina espírita Kardeciana, princípios que sejam

74
embasados na reencarnação, ou na causa e efeito, ou em qualquer conceito
base do Espiritismo, que validem, as desigualdades e as injustiças sociais.
Entendemos então, que os preconceitos de qualquer ordem, pertencem
ao entendimento humano, não é natural ou divino, é um “malabarismo filosófico”
tentar tornar a condição “cármica” um conceito espírita. A maldade humana, o
egoísmo e o orgulho, o capitalismo, a globalização e a política liberal, estes sim
são os responsáveis diretos por todas as mazelas humanas.
Dessa feita, quando usamos de qualquer um dos conceitos espíritas para
a validação de seja qual for a ordem de desamparo social, dizendo frases do
tipo: “Para estar passando fome, alguma coisa de ruim fez no passado! Para
nascer “veado”, boa coisa não foi! Para nascer negro e pobre, deve ter
negligenciado a riqueza no passado”! Estas frases perpetuam a ideia do “olho
por olho e dente por dente”, negam a responsabilidade social e desvirtuam os
conceitos espíritas, para que a consciência de alguns se mantenha adormecida
e não seja cobrada.
Com o conceito de corpo, encerramos a discussão que antecede a nossa
relação com gênero e sexualidades, faremos discussões de uma ideia plural da
existência humana, buscaremos a naturalização das diversas formas de
expressão de gênero, descontruiremos a ideia do binário, e espiritualizaremos a
discussão.
O Espiritismo não é, e não será, responsável em motivar as sanhas dos
preconceituosos de qualquer ordem; que busquem as suas motivações em suas
intimidades; e não cometam desonestidade intelectual, dando ao Espiritismo
este peso e esta responsabilidade que não lhes pertence.
Quando trouxemos a educação para dentro das nossas discussões é por
entendermos que sem uma compreensão educativa, pedagógica, libertadora e
libertária, não romperemos com todos os imperativos da sociedade opressora,
que impetra sobre os corpos educados, pela repetição dos açoites, que insistem
em taxar as vidas que importam, e que muitas vezes para se manterem vivos,
estes corpos, não possuem a permissão para derramarem suas lágrimas,
precisam sofrer sem chorar.
São todas, todos e todes aqueles que em nome de seus subempregos
suportam calados as dores de serem desrespeitados em suas intimidades; são
todas, todos e todes aqueles que em nome de não sofrerem violências em suas

75
existências negligenciam e escamoteiam o seu próprio “Eu” e vivem papéis,
performances daquilo que não são, para agradar a sociedade que precisam fazer
parte. São todas, todos, e todes aqueles que tombam com seus corpos mortos,
mas a única performance que conseguem fazer, é de viver e de serem quem
são, são interrompidos de seus papéis de vida, porque a sociedade não aceita
os seus corpos como protagonistas das suas próprias Histórias.
O Espiritismo pode e deve interferir nestas relações, estabelecendo
condições para que em seus espaços, as pessoas entendam as suas
identidades espirituais, mas tenham convicção da naturalidade da vida, e da
necessidade de se viver, experienciar, oportunizar cada parte da trajetória deste
espírito como oportunidades naturais de aprendizado.
Começamos este livro falando sobre o Espiritismo, na realidade porque
gostaríamos de mostrar de que Espiritismo partimos para a produção de nossas
reflexões.
Se você chegou até aqui, lhe convido a continuar, a pensar de forma livre
sob uma doutrina espírita amorosa, afetuosa, acolhedora, espiritualista,
imortalista, reencarnacionista, progressista, pedagógica, libertadora, libertária
que estabelece no amor a fonte do progresso humano, estabelece a dor e o
sofrimento como terapêuticas e pedagógicas, o amor, é a verdadeira ferramenta
de progresso da humanidade, como nos diz, (Freire, 2011), “Amar é um ato de
Coragem”.
Que tenhamos a coragem de em nome do amor, entender que a função
do Espiritismo é: Ajudar na transformação consciente e participativa da
sociedade, em uma sociedade que se ame.
A partir daqui discorreremos sobre Gênero e Sexualidades.

76
Capítulo IV
Gênero, Sexualidades e Espiritualidade

Estabeleceremos a nossa discussão com uma indagação que


consideramos importante para a fundamentação das nossas reflexões atuais,
com tudo que fora exposto até aqui: Como pode uma doutrina espiritualista,
partindo do senso comum, julgar, exigir, e demarcar a trajetória de espíritos
reencarnantes, observando seus corpos a partir das suas genitálias?

Esta pergunta evidencia em sua análise, o que apresentamos como um


movimento espírita embasado em princípios de materialidade, que para
constituir as suas ações estabelecem os julgamentos dos corpos para tal.

Este questionamento demarca posicionamentos com relação a forma com


que o Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado
infere a sua relação com as temáticas de gênero e sexualidades.

O mesmo movimento utiliza-se de uma política que aqui chamarei de


“Negação da Espiritualidade”, que é a ação da negação às pessoas LGBTQIAP+
ao acesso dentro dos ambientes espíritas a participarem de suas rotinas devido
às suas orientações sexuais, identidades e expressões de gênero.

Esse processo se executa nas práticas exercidas e tem como objetivo


julgar estes corpos a partir das genitálias e só conceder a vivência da
espiritualidade a aqueles que se submeterem a norma, num processo
compreendido como heterossexualidade compulsória.

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A partir do momento que os corpos que possuem pênis assumirem os
seus devidos papéis de homens/macho, e os corpos possuidores de vaginas
atenderem a regra normativa compatível, segundo esta compreensão daquilo
que cabe a mulher/fêmea, estes corpos terão suas credenciais de pertencimento
e de “merecimento” a espiritualidade permitida.

Esta reflexão nos faz trazer à baila outros questionamentos que a serem
feitos, ilustrarão como o Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo
Institucionalizado, naturaliza a norma e segue padrões de heteronormatividade
em toda a sua práxis, constatando o que até aqui defendemos.

Como podemos pensar na inclusão da mulher no cenário geral das


sociedades, por exemplo, quando produzimos eventos em homenagem ao Dia
Internacional da Mulher, sem a representatividade de uma mulher sequer?

Esta discussão nos lembra em muito a opinião de Allan Kardec, na


Revista Espírita de 1866:

Com a doutrina espírita, a igualdade da mulher não é mais uma


simples teoria especulativa; não é mais uma concessão da força
à fraqueza, é um direito fundado nas mesmas leis da natureza.
Dando a conhecer estas leis, o Espiritismo abre a era da
emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da
fraternidade. (Kardec,2018)

Ora, se a citação acima nos mostra o que pensa o Espiritismo acerca da


igualdade de direitos entre o homem e a mulher, destacamos, que não
conseguimos visualizar um princípio desta ação como um “direito fundado nas
mesmas leis da natureza”, como nos adverte o insigne Senhor Allan Kardec, na
prática usada pelo referido movimento.

Ainda refletindo a citação, e fazendo as comparações com o que vivemos


de realidade dentro do Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo
Institucionalizado, desde a sua fundação em 2 de janeiro de 1884, ou seja há
137 anos, nunca houve uma mulher presidenta da FEB - Federação Espírita

78
Brasileira. Este fato nos diz muito sobre as observações que estamos propondo
a partir das ações promovidas por este ente federativo e os seus afiliados.

Quando vemos nas casas espíritas as mulheres vinculadas aos trabalhos


assistenciais, como a confecção de sopas, bazares, responsáveis pela limpeza
das mesmas, e uma maior dificuldade para ocupação dos cargos de liderança,
encontramos facilmente os motivos que validam estes comportamentos dentro
da própria estrutura que coordena o movimento.

Percebemos a partir deste olhar crítico pedagógico, que as práticas


promovidas pelo referido movimento não contemplam as questões de gênero e
sexualidades, bem como não se voltam para a produção de processos
pedagógicos que venham a contemplar, daí, fica evidente a falta de envolvimento
do Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado com
as questões sociais.

Estas reflexões deram corpo à nossa próxima pergunta: Como um


movimento que se baseia na caridade e na igualdade promovida por este
sentimento, produz seminários com 11 participantes e apenas uma destas é
mulher?

Ratificamos a necessidade e continuamos a questionar a igualdade dos


direitos entre os homens e as mulheres e mais uma vez recorremos a Kardec,
ainda na Revista Espírita de 1866:

Depois de ter reconhecido que elas tinham alma, reconheceram-


lhes o direito à conquista de graus da ciência. Já é alguma coisa.
Mas a sua libertação parcial é apenas resultado do
desenvolvimento da urbanidade, do abrandamento dos
costumes ou, se quiser, de um sentimento mais exato da justiça.
É uma espécie de concessão que lhes fazem e, é bom dizer, que
lhes rendem o mais possível. (Kardec, 2018)

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A pergunta que não quer calar, são estas ações e práticas apenas um
senso de urbanidade, e não a busca pela igualdade natural apresentada por
Kardec no livro citado?

Somos apenas mantenedores deste processo que tem como base o


machismo e o patriarcado e são vivenciados em todos os grupos sociais, já que
se trata de ações estruturais e estruturantes de nossa sociedade?

Entendemos a relevância destes atos e precisamos discutir, problematizar


e refletir sobre estas posturas, pois, quando excluímos as principais atrizes das
discussões que estão sendo elaboradas sobre elas mesmas, criamos políticas
que não contemplam a sua pluralidade e as suas realidades diversas. Portanto
como debates que envolvem a própria mulher, dão-se, deixando esta mesma
mulher de fora?

Confesso, o que preocupa é quando a “concessão” pode acabar? Já que


se trata da ação de homens, há uma compreensão de falta de garantias de que
estes poucos lugares estarão disponíveis para estas mulheres, caso estes
homens mudem de ideia e cerceiem as “concessões”.

Damos continuidade às nossas reflexões perguntando: Como um evento


pode falar sobre mães e ser composto por cinco homens?

Ainda nos valemos de Kardec, na Revista Espírita de 1866, para


fomentarmos as reflexões que julgamos necessárias:

Criou Deus as almas masculinas e femininas? Fez estas


inferiores àquelas? Eis toda a questão. Se assim for, a
inferioridade da mulher está nos designíos divinos e nenhuma lei
humana poderia aí interferir. Ao contrário, criou-as iguais e
semelhantes e as desigualdades, fundadas pela ignorância e
pela força bruta, desaparecerão com o progresso e o reinado da
justiça. (Kardec, 2018)

80
Tratamos destes exemplos com a seriedade que merece, e dizemos que
muitos mais podem facilmente serem achados de forma abundante nas redes
sociais, o que invalida a necessidade de citarmos nominalmente.

Esta amostragem tem o papel de assentarmos as nossas teorias em


alicerces sólidos, já que entendemos estarem aí contido o machismo e o
patriarcado nosso de cada dia. São estas compreensões e vivências do cotidiano
que criam as demandas e posturas que alimentam a LGBTQIAP+fóbia, o
feminicídio e as violências que destas relações emanam.

Nota-se que este padrão de comportamento gera outras discussões que


precisam ser compreendidas além do sexo biológico, tratado como órgão
reprodutor feminino e masculino. Esta leitura equivocada das relações de
gênero, levando em consideração apenas a condição biológica do ser humano,
cria precedentes e margens para discussões descabidas como a da ideologia de
gênero, que são alimentadas a partir do binarismo e são amplamente
decantadas dentro do Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo
Institucionalizado, neste caso específico, citamos a fala reproduzida pelo
conhecido médium Divaldo Franco, no 34º Congresso Espírita do Estado de
Goiás em Fevereiro de 2018, que demonstra em sua explanação não conhecer
absolutamente nada acerca da temática que elegeu para explanar.

Aliás, há uma fantasia vivida por alguns espíritas, que médium,


conferencista, expositor espírita, tem competência para abordar qualquer tema,
o que aqui defendemos contundentemente não ser verdade.

Traremos ao debate do referido assunto pessoas que dedicam sua vida a


pesquisarem, citamos aqui a entrevista à Pública Agência de Jornalismo
Investigativo, intitulada, Existe “ideologia de gênero”? Da doutora em Educação
Jimena Furlani, que desenvolveu extensa pesquisa sobre o assunto, e explica
os equívocos do conceito:

A ideologia de gênero é um termo que apareceu nas discussões


sobre os Planos de Educação, nos últimos dois anos, e tem sido
apresentado a nós como algo muito ruim, que visa destruir as
famílias. Trata-se de uma narrativa criada no interior de uma

81
parte conservadora da Igreja Católica e no movimento provida e
pró-família que, no Brasil, parece estar centralizado num site
chamado Observatório Interamericano de Biopolítica.(...) Uma
retórica que afirma haver uma conspiração mundial entre ONU,
União Europeia, governos de esquerda, movimentos feminista e
LGBT para “destruir a família”, mas que, em última análise,
objetiva, sim, propagar um pânico social e voltar as pessoas
contra aos estudos de gênero e contra todas as políticas
públicas voltadas para as mulheres e a população LGBT,
sobretudo nas questões relacionadas aos chamados novos
direitos humanos, por exemplo, no uso do nome social, no direito
à identidade de gênero, na livre orientação sexual. (Furlani,
2016),

Percebamos que os argumentos que sustentam a “Ideologia de Gênero”,


nada tem de ciência, muito menos de Espiritismo ou de Espiritualidade, coaduna
com fundamentalismo religioso e tem a ideia de descaracterizar pessoas, feri-las
em suas intimidades, apagá-las, invisibiliza-las, negar a sua existência, retirar
destes corpos o direito de existir e negar-lhes as suas espiritualidades.

Se apegam a este conceito para por exemplo, justificarem a negação das


discussões das temáticas sociais dentro dos espaços espíritas, que desta
maneira exercem apenas a função de “templo religioso”, fugindo do papel social
que toda instituição espírita deveria ter, sob pena do objetivo do debate da
“Ideologia de gênero” seja transformar as pessoas em homossexuais, com a
instituição de uma prática que chamo de “Política de Gaysificação”.

Trato de “Política de Gaysificação” o processo implantado pelo Movimento


Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado, de não discutir
Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidades: Um Diálogo com as Questões
Sociais, por entender que as proximidades com as argumentações possam em
algum momento, “converter”, uma pessoa Heterossexual em Homossexual.

Assim como não existe conversão de pessoas LGBTQIAP+ em pessoas


heterossexuais, num processo vulgarmente conhecido como “Cura Gay”, a
“Política da Gaysificação” também não encontra nenhum respaldo científico.

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Não há argumento embasados no rigor da ciência para esta ideia, as
pessoas não se tornam gays ou héteros por discutirem as questões que
envolvem gênero e sexualidades, trata-se de uma alegação estapafúrdia, sem
nenhum compromisso científico e que diminui o Espiritismo, já que se trata de
uma defesa enviezadamente religiosa e descompromissada com as bases
filosóficas e científicas da doutrina espírita.

Podemos tratar dos efeitos para o Movimento Espírita Brasileiro


Hegemônico Federativo Institucionalizado destas ideias sem base, e da
ausência da discussão das temáticas de gênero e Sexualidades e nos
embasaremos na fala da Filósofa Judith Butler em seu livro, Corpos em Aliança
a Política das Ruas, para apresentarmos algumas consequências destas ações
no campo prático cotidiano dos espaços espíritas.

Podemos encarar essas manifestações de massa como uma


rejeição coletiva da precariedade induzida social e
economicamente. Mais do que isso, entretanto, o que vemos
quando os corpos se reúnem em assembleia nas ruas, praças
ou em outros locais públicos é o exercício - que se pode chamar
de performativo – do direito de aparecer, uma demanda corporal
por um conjunto de vidas vivíveis. (Butler, 2019)

Uma delas é tornar os ambientes hostis à comunidade LGBTQIAP+,


fazendo com que muitas pessoas para participarem destes espaços abram mão
de Serem quem são, e de Aparecerem. Companheiras, companheiros, casais,
pessoas casadas que escondem a sua vida para não sofrerem represálias, e
para poderem fazer parte dos trabalhos promovidos pelos espaços espíritas,
sem nenhum tipo de impeditivo.

As pessoas não vivem se não Aparecem, este Aparecer para o mundo, é


um Aparecer Social, precisa e deve ser precedido de acolhimento e
pertencimento, como poderemos nos sentir vivos, se para Pertencermos
precisamos matar quem somos, para sermos aceitos?

Outra consequência da inviabilização da discussão das referidas


temáticas, é a não construção de literatura, de palestras, de seminários, de

83
conteúdos que levem informações às pessoas espíritas, afastando-as da
ignorância, do apego a fé irracional, da falta de conhecimento e do senso
comum. Em contrapartida, ações pedagógicas sobre gênero e sexualidades
impossibilitariam a disseminação de pensamentos como a “Ideologia de
Gênero”.

Outro efeito da insensibilidade às dores das pessoas LGBTQIAP+, é a


invisibilização das violências sofridas e das marcas que carregam em seus
Corpos e em suas intimidades. Marcas estas que demarcam histórias, vidas,
trajetórias, que são maculadas em suas particularidades pela ação de várias
formas de violência, das psicológicas até às físicas, com a retirada das vidas.
Lembramos que não “poder” Aparecer quem é, caracteriza uma violência
profunda na alma de quem precisa esconder-se em essência.

Podemos dizer que esta forma de fazer Espiritismo exige que estes
Corpos sejam educados, determina as vidas que importam, bem como elegem
as lágrimas que são permitidas.

Passamos pela heterossexualidade compulsória como a relação


estabelecida por corpos homens/macho e corpos mulheres/fêmea, quando se
exige comportamentos destes corpos a partir de suas genitálias.

Entendemos que esta exigência de comportamentos estabelecidas a


partir da vagina e do pênis, operam sobre os corpos femininos a opressão do
machismo e do patriarcado, alimentando as violências que culminam com o
feminicídio, tornando o Brasil o 5º colocado nesta modalidade de crime.

Quando abordamos a homossexualidade, precisamos compreender as


diferenças que também emanam sobre esta relação e que são instituídas a partir
do julgamento dos corpos. Quando nos referimos aos corpos homens gays e
aos corpos mulheres lésbicas e entendemos as exigências que lhe são
atribuídas através de seu sexo e os conflitos entre aquilo que o gênero expressa
e o que a sociedade exige.

Falamos que esta relação já demonstrada anteriormente sobre as


questões do corpo homem/macho e da mulher/fêmea, também precisam ser
levadas em consideração e serem trazidas à discussão quando nos referimos ao

84
assunto gênero, além da necessidade de discutirmos como tornar possível a
vivência destes corpos dentro de espaços sociais religiosos sem sofrerem
violências e ou preconceitos.

Desta maneira, vamos a partir daqui discutir de que maneira podemos


entender as questões de gênero e sexualidades como uma questão de
performance, e entender um pouco como podemos propiciar, viabilizar às
pessoas a se sentirem contempladas, visibilizadas, Pertencentes e Aparecidas
dentro dos ambientes Espíritas, sem a necessidade da descaracterização
daquilo que se é, para poder ser aceito dentro dos referidos espaços.

Gênero e Sexualidades Como Questão de Performance Social

Já falamos em outro momento, inspirados em Paulo Freire, e


resgataremos esta discussão neste momento, sobre a ideia de “vir a ser”, este
retorno calculado tem como ideia buscar o diálogo com a educação para a
compreensão das questões de gênero e sexualidade.

Pois bem, “vir a ser” requer liberdade, confiança nos grupos sociais que
fazemos parte. Como sermos, se somos tolhidos da liberdade de nos colocarmos
para fora? Como sermos, se os espaços sociais dos quais fazemos parte não
nos permite a possibilidade de vivermos quem verdadeiramente somos?

“Vir a ser” requer que confiemos que mesmo que a experiência não sendo
exitosa, seremos acolhidos, recebidos, compreendidos, que nos deixarão
“aparecer” até que as nossas ações de “vir a ser” sejam bem-sucedidas, e o
processo de aparecimento não seja traumático ou através de imposição.

Entendendo gênero como uma questão de performance social, estes


sujeitos precisam de espaços para a vivência de suas performances, como já
estabelecemos em nossas reflexões, os espaços espíritas em sua maioria são

85
ambientes hostis para as pessoas LGBTQIAP+, então, onde estas pessoas
serão elas mesmas?

Daí a necessidade de conversarmos abertamente sobre gênero, abrir as


discussões sobre a diversidade e poder oferecer conhecimento com base
espírita para que possamos produzir ambientes capazes de receber e promover
a possibilidade de aparecerem, de serem e de possuírem afeto e acolhimento
neste processo de “vir a ser”.

Sendo assim, em primeiro momento gostaríamos de apresentar a ideia de


gênero como performance social, a forma com que os sujeitos se veem no
mundo, chamamos de identidade de gênero, as suas interações com o mundo
social, chamamos de expressão de gênero, de modo, que as pessoas podem
possuir uma identidade de gênero, porém terem todas as possibilidades de
várias expressões de gênero.

Importante entendermos que estas expressões são possíveis, porque


para nós, gênero é uma questão de performance social e espiritual, contempla
as pessoas em suas mais variadas pluralidades, em uma ode à diversidade. Não
partimos para a construção destes conceitos tendo como base o binarismo ou a
condição genética, ou a percepção de gênero a partir do sexo biológico, ou dos
órgãos genitais.

Pretendemos estabelecer uma percepção espiritualista e espírita das


discussões de gênero partindo dos princípios de autores como, Guacira Lopes,
Louro e Judith Butler, entendendo que existe muito mais espiritualidade em seus
textos que se possa compreender. Sendo assim, a percepção de naturalidade
acerca das mais variadas identidades e expressões de gênero são sim
contempladas a partir de uma perspectiva espírita, compreendendo-as como
formas de expressão do Espírita a partir do corpo.

Judith Butler em seu livro, Problemas de Gênero. Feminismo e Subversão


da Identidade, elucida e nos convida a refletir:

Concebida originariamente para questionar a formulação de que


a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à

86
tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos
biológicos, o gênero é culturalmente construído:
consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo nem
tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo. Assim a
unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela distinção
que abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo.
(Butler, 2019)

É crucial esta percepção de gênero que vai além das relações e


compreensões estabelecidas com as questões do binarismo, para podermos
entender a opressão da sociedade patriarcal e machista, na construção da
heterossexualidade compulsória, as exigências aos corpos que se dão a partir
desta forma de autoritarismo e que relega a construção daquilo que são as
pessoas a partir de que corpos estamos falando.

Este diálogo é reestabelecido para que possamos perceber que a maneira


de entender gênero do ponto de vista espírita não diverge em nenhum momento
da forma como Butler nos oferta está reflexão, já que a forma de se exprimir no
mundo, é simplesmente a forma de expressão do Espírito.

A naturalidade defendida e vivenciada quando a discussão parte da


heterossexualidade precisa também ser compreendida, quando falamos de
Bissexualidade, Homossexualidade, Transexualidade, ou com as pessoas
Travestis.

Por sermos plurais, diversos e capazes de várias possibilidades quando


a leitura que a nós é feita, parte do pressuposto das nossas constituições de
intimidade, obedecendo o imperativo da interexistencialidade, e os componentes
psicológicos, afetivos, intelectuais, sociais, emocionais.

Julgar as pessoas a partir dos corpos e das genitálias é simplesmente


negar, todas estas constituições que são formadoras do humano.

Por isso a naturalidade na forma de atuação de Ser no mundo, e das suas


mais variadas identidades e expressões de gênero. (Butler, 2019), deixa
estabelecido este pensamento, em seu livro, Problemas de Gênero. Feminismo
e Subversão da Identidade, “Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em
87
seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a interpretação cultural do
sexo”. Quando trouxemos a discussão das questões que envolvem a percepção
de cultura, é que partindo deste ponto reflexivo, podemos dizer que não é
possível cravar que a categoria homem e a categoria mulher no mundo, são
categorias iguais, principalmente, tendo como pressuposto para esta avaliação
o corpo físico, e desconsiderando todas as subjetividades que nos formam.

Se nem com relação ao corpo físico temos disposições iguais,


obedecemos a imperativos climáticos e biológicos que nos tornam diferentes, se
a discussão das diversidades contemplarem a Identidade Cultural não
pararemos de discutir.

Desta maneira, os costumes e hábitos que nos formam e vão delimitando


e estabelecendo quem somos, vão fazendo com que nos procuremos a partir
das descobertas que vamos fazendo, quando vamos assumindo as nossas
posturas identitárias e encontrando outras pessoas como nós ao nosso derredor.

Sobre isso nos fala a Psicóloga nascida em Lisboa e com raízes em


Angola, São Tomé e Príncipe, Grada Kilomba no seu maravilhoso livro Memórias
da Plantação – Episódios de Racismo Cotidiano:

Só quando se reconfiguram as estruturas de poder é que as


muitas identidades marginalizadas podem também, finalmente,
reconfigurar a noção de conhecimento: Quem sabe? Quem pode
saber? Saber o que? E o saber de quem? (Kilomba, 2020)

Esta fala da Grada Kilomba, contempla muito estas tensões que são
fomentadas a partir das questões das culturas que vão formando as identidades
e estabelecendo em algum ponto os comportamentos que são excluídos pela
norma e que se buscam como uma estratégia de sobrevivência.

Falar sobre gênero e sexualidades é compreender estas tensões que se


instituem em uma estruturação cultural, que não é estática, as pressões que os
habitantes fazem dentro de suas culturas, constroem as demandas de cada
povo, daí convém saber-se que as necessidades de cada grupo que compõem

88
as sociedades, mesmo que as suas demandas sejam encontradas dentro de
uma mesma realidade comportamental, não são as mesmas.

O que uma mulher Brasileira, branca, classe média, precisa para que a
sua identidade de gênero seja respeitada, não é a mesma que uma mulher negra
periférica. Quando falamos na categoria mulher, ser preta e periférica também
são recortes para sabermos que tipo de atenção e acesso a políticas públicas
estas mulheres terão.

Quando nos referimos a estas diferenças, mostramos a influência da


cultura hegemônica sobre os corpos que foram, por esta mesma sociedade,
instituídos como “normais”, consequentemente os corpos considerados
“anormais” padecerão o que se determina para estas pessoas.

A identidade de gênero demarca a forma como estes corpos se enxergam


com relação ao mundo, e a necessidade que possuem de poderem viver de
acordo com a sua respectiva identidade. As expressões de gênero contemplam
como estes corpos se expressam com este mundo.

Podemos dizer que uma mulher Transexual que não teve acesso a
transição, sofre opressões do Estado, da Família ou da Religião, para manter
sua expressão de gênero masculina, ela não perdeu a sua identidade de gênero
como mulher, embora seja forçada por vários motivos a expressar-se como
homem.

Esta discussão é muito importante, pois, muitas dores, assassinatos e


suicídios, fazem com que, segundo dados da ANTRA – Associação Nacional de
Travestis e Transexuais, os corpos transexuais no Brasil possuam uma
expectativa de vida de 35 anos, enquanto a expectativa em nosso País é de mais
que o dobro.

O que nos faz refletir sobre alguns discursos normatizados dentro do


Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado, um
deles é a ideia de que “estes temas são polêmicos”. Digo que trazer gênero e
sexualidade a lume, é tratar de colocar a candeia sob o alqueire, é iluminar as
vivências a partir do conhecimento, é tirar de debaixo do tapete, do tapete da
invisibilização, do preconceito e da injustiça onde sempre foi colocado.

89
Nunca é demais lembrar que estas posturas de invisibilização,
naturalizam e fomentam as violências, pois entendemos, que apenas a
educação poderá oferecer a condição de uma vivência amorosa, acolhedora e
respeitosa.

Desta maneira defendemos que a educação é o melhor caminho para que


os preconceitos sejam dirimidos, ignorar esta realidade é compactuar com a
perpetuação das injustiças e violências.

Entender que o Espiritismo não coaduna com nenhum tipo de injustiça


social é importante, mas precisamos, assim como nos diz a filósofa
Estadunidense Angela Davis, “Numa sociedade racista não basta não ser
racista, é preciso ser antirracista”. Estabelecer políticas e posicionamentos que
nos apresente a construção de uma práxis que seja antirracista,
antilgbtqiap+fóbica, anti-misógina, anti-injustiça, e anti-desigualdade social.

Estas reflexões são importantes no sentido de produzir aos espíritas,


conhecimento que seja capaz de fomentar uma sociedade engajada com as
pautas progressistas e capazes de promover uma política Identitária que
compreenda a diversidade como algo natural e espiritual.

O Movimento Espírita Progressista com a atuação de coletivos tem


proposto esta discussão e conseguido estabelecer uma relação do Espiritismo
com a Antropologia, Sociologia, Filosofia, Pedagogia, Psicologia e a partir destes
contatos construir literatura, e discussões pelas redes sociais que contemplam a
produção de conhecimento que oportunizará mais pessoas terem acesso a um
Espiritismo comprometido com as temáticas sociais.

Enxergamos assim um descortinar de possibilidades e de construções de


saberes e conhecimentos que perpassa pela visão do Espiritismo Progressista
e que tem a possibilidade de oferecer compreensões, percepções
entendimentos que ofertem a comunidade LGBTQIAP+ o direito a exercer a sua
Espiritualidade em todos os aspectos dentro do universo espírita.

Esta fala da Judith Butler no livro, Corpos que Importam: Os Limites


Discursivos do “Sexo”, nos inspira a continuar com as nossas interpelações:

90
Há alguma maneira de vincular a questão da materialidade do
corpo performatividade de gênero? Como a categoria “sexo”
figura no interior da relação? Consideramos primeiramente que
a diferença sexual é muitas vezes invocada como uma questão
de diferenças materiais. Entretanto, a diferença sexual é sempre
uma função de diferenças materiais que são, de alguma forma,
marcadas e formadas por práticas discursivas. (Butler, 2020):

Nestas palavras de Butler estão registradas as impressões e relações


estabelecidas a partir de uma visão que contempla apenas a materialidade e
despreza as outras capacidades do humano.

Quando perguntamos se podemos estabelecer juízo sobre quem são as


pessoas apenas tendo como base seus corpos, é porque não temos o objetivo
de levar em consideração deste humano outras questões formadoras como o
intelectual, o social, o espiritual, o emocional e o afetivo por exemplo. Por isso,
indagamos como abordar todas as questões que envolvem gênero e
sexualidades sem levar em consideração o paradigma do espírito?

A partir daqui, argumentaremos sobre: Gênero e Sexualidades Como


Questão de Performance Espiritual, no sentido de construir uma discussão que
contemple o ser humano em todas as suas possibilidades, nos utilizaremos da
compreensão da Educação Integral, para estabelecermos compatibilidade e
oferecermos na forma de conceber a referida temática coerência, e apresentar
o Espiritismo como esta ferramenta intermediária na apresentação de uma
prática embasada no espírito e que convida as pessoas que assim o entendem,
a uma vivência afetuosa, acolhedora e afetiva com as diferenças.

91
4.2. Gênero e Sexualidades Como Questão de Performance
Espiritual

Dando prosseguimento as nossas análises, recorremos a Professora


Guacira Lopes Louro e o seu livro, O Corpo Educado, Pedagogias da
Sexualidade:

Nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por


força, a identidade. E, aparentemente, o corpo é inequívoco,
evidente por si; em consequência, esperamos que o corpo dite
a identidade, sem ambiguidades nem inconstância. (Louro,
2019)

O Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo


Institucionalizado tem propiciado uma forma muito peculiar de perceber as
questões relativas a gênero e sexualidades, que é a de validar o corpo em
detrimento do espírito. Pois bem, defendemos aqui que as expressões de gênero
e sexualidades nada mais são do que a ação do próprio espírito em se mostrar
para o mundo a partir de si mesmo e tendo o corpo como seu agente instrumental
para isso.

Partimos do pressuposto que este mesmo movimento espírita é


materialista em sua ação julgadora quando desconsidera o espírito e evidencia

92
as inferências e julgamentos a partir de que corpo estamos falando.
Reproduzindo assim, aquilo que a cultura machista e patriarcal estabelece como
norma. Exibe a ação do “profano e do santo”, também a partir de que maneira
estes corpos se relacionam entre si na esfera social à qual fazem parte.

Estes pensamentos validam o processo de hierarquização dos corpos,


perpetuam injustiças e desigualdades sociais e fazem com que dirigentes e
representantes do referido movimento em um processo de nítida falta de
conhecimento, deturpem a epistemologia espírita como forma de justificar as
suas perspectivas pessoais como sendo do Espiritismo.

Um outro efeito desta postura é a marginalização e demonização das


discussões das questões de gênero e sexualidades, bem como a proibição
destas mesmas temáticas dentro dos espaços espíritas. O que não se leva em
consideração é que quando se marginalizam os debates, automaticamente se
se faz a mesma coisa com os corpos envolvidos.

Precisamos de forma pedagógica e sistemática oferecer possibilidades de


desmistificação deste processo.

A sexualidade das pessoas não deve ser encarada como uma coisa feia,
pecaminosa e que se não obedecer a determinados padrões em detrimento de
outros deve ser escondida, escamoteada ou sublimada.

Entender sexo não apenas como coito ou como aparelho sexual,


sexualidade como a extensão dos afetos e sentimentos por si e pelo ser que se
deseja, pelo ser que se ama. Desconstruir as relações LGBTQIAP+ como
doença e entender que há afetos verdadeiros e amor real nas já citadas relações,
seria um caminho real para a desconstrução da LGBTQIAP+fóbia.

Em um momento político-social de intolerância, perseguição e


preconceito seja religioso, de classe ou de gênero, torna-se imperioso o
aprofundamento da discussão acerca das temáticas de gênero e sexualidades.

Perceber a sexualidade como o belo em favor do magnifico, que não


significa a usurpação da condição do agente humano que há em você, não lhe
marginaliza, não faz de você um animal; lhe sensibiliza; lhe aproxima do amor;
e das práticas que emanam dele.

93
A sexualidade precisa e deve ser conversada e precisamos colaborar
para a desconstrução do sexo como ferramenta pecaminosa e satanizada e dar-
lhe a importância que lhe é devida na formação de uma sociedade justa, igual e
respeitosa.

Como pode uma doutrina que tem em suas bases o amor, ser contra a
este mesmo amor?

Nos faz inquerir: É amor pode?

Precisamos promover discussões, seminários, congressos sobre os


temas aqui defendidos e nos aproximarmos dos pesquisadores especializados
nas referidas temáticas, para desta maneira oportunizarmos reflexões e estudos
que façam relação com a doutrina espírita, mas que não tenha como objetivo
primordial a criação de dogmas embasados em posicionamentos arcaicos,
religiosos, anticientificistas, autoritários, moralistas, e contrários ao amor.

Quando fazemos referência à orientação sexual ou à identidade das


pessoas precisamos estabelecer uma relação de respeito à diversidade que não
será composta a partir das minhas perspectivas com relação à temática, mas
sim, com aquilo que o outro é, como ele se vê no mundo e qual a forma de ele
amar, ser amado e se sentir feliz neste mesmo mundo.

O Espiritismo precisa e deve ser usado como uma ferramenta que


fomente a quebra de tabus e toda a sorte de preconceitos que em algum
momento provoque dor e sofrimento a toda e qualquer intimidade humana, e
desta maneira, cumpra com o papel de fundar uma sociedade que se ame.

Percebemos que diante da realidade do Movimento Espírita Brasileiro


Hegemônico Federativo Institucionalizado, que além de reproduzir os
preconceitos e violações comuns à sociedade atual, do ponto de vista da
construção de estudos e escritos que inviabilizassem os referidos preconceitos,
não alcança resultados positivos, já que em sua base estruturante tem como
objetivo, a partir de construções insipientes e superficiais, discutir por que as
pessoas são, Homossexuais, Bissexuais, Transexuais ou Travestis, e não
estabelecer a naturalização destas expressões.

94
Parte muito significativa dos estudos partem do pressuposto que estas
identidades de gênero não são normais, consequentemente vivem em busca de
teorias que justifiquem a antinaturalidade das mesmas, daí surgirem
pensamentos e bizarrices das mais diversas e sem nenhum tipo de
comprometimento com as ciências humanas.

Este comportamento funciona como uma espécie de “autorização”,


“validação”, “legalidade” que o ente federativo oferece à comunidade
LGBTQIAP+, como sendo a forma de “oficializar” a ideia de: “Vocês existem,
porém não são normais, por isso, dentro de nossos espaços precisam parecer
normais e agir como tal”.

É a partir da busca da “legalidade do existir”, que surgem de forma


preconceituosa e nada científica conceitos como a ideia de que o Ser
homossexual homem é apenas um espírito que viveu durante muito tempo uma
experiência como mulher e agora vive uma experiência como homem, por que
abusou sistematicamente da sua condição de mulher, com abusos
principalmente na área do sexo, o mesmo se dando no caso do Ser mulher e
lésbica. Tornando, ser LGBTQIAP+, apenas uma forma de “pagar o que se
deve”, “carmas”, “expiações”. O que determina que estes corpos e estas vidas
são constituídas para a dor desde o momento da sua concepção. É
extremamente doloroso acreditar ser possível que pessoas nasçam com o único
objetivo de “sofrerem e pagarem”.

É imperioso que estas pessoas possam ser alcançadas pelo amor, e


terem as mesmas condições e possibilidades oferecidas a todas as outras, desta
forma, ser heterossexual não é uma condição qualificante para a boa índole e
pertencer à comunidade LGBTQIAP+ não é condição qualificante para a
“imoralidade”.

Outra forma de validar os preconceitos usando a doutrina espírita como


pano de fundo, são as famosas e famigeradas obsessões que durante muito
tempo têm validado dentro dos centros espíritas e em nome da “disciplina” o
desamor e violência à intimidade humana travestida no poder de mandatários
reacionários, machistas, LGBTQIAP+fóbicos e preconceituosos, que em nome
da boa e velha “moralidade” usurpam o poder de Deus e decidem de antemão

95
quem tem acesso aos “Espíritos Superiores”, e às velhas e tradicionais “colônias
espirituais”, que invariavelmente pertencem aos não menos tradicionais
“senhores de engenho”, brancos, héteros, classe média e defensores da “moral
e dos bons costumes”.

Todo este “malabarismo filosófico” é filho dileto dos preconceitos já aqui


citados, pois, creditar tudo que não for heterossexual ao patamar do antinatural
é muito mais fácil do que democratizar o amor e entender como natural toda a
forma de produzi-lo e vivê-lo.

Sendo assim, o Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo


Institucionalizado vivência em suas bases a reprodução de um conservadorismo
que não vemos na doutrina espírita e que se reflete na condução e na construção
do Espiritismo Institucionalizado no Brasil.

Defendemos a naturalidade dos gêneros, e das orientações sexuais, por


entendermos que elas nada mais são do que a expressão do espírito a partir do
corpo, é ele o senhor das vontades e das inclinações e se vale do corpo para ser
no mundo aquilo que é em essência, os preconceitos nascidos a partir do
julgamento dos corpos, são julgamento da matéria e não são constituídos a partir
da necessidade de existir que é do espírito e alimenta a Identidade Espiritual.

Os seres somam experiências que completam o humano que são, e


somam estas experiências a partir das diversas vivências que lhe são
concedidas, sendo assim, a experiência heterossexual soma a construção deste
ser humano, mas as experiências homossexuais, bissexuais, Transexuais,
Assexuais, Pansexuais, Travestis se somam a este universo de construção de
sujeitos, sem demarcar moralidade em cada momento da transição deste
espírito, na construção deste Ser ascensional, formado e forjado a partir de todas
as oportunidades de aprendizados.

Por isso, entendemos que as culturas determinam aquilo que chamam de


natural e de antinatural, neste caso uma cultura machista, patriarcal construída
a partir de classes hegemônicas, que estabelecem aquilo que lhes oferece
supremacia e os tornam legisladores de suas próprias causas, são assim até os
dias de hoje.

96
Precisamos democratizar e oferecer acesso gratuito e irrestrito à
espiritualidade, não devemos impor condições ou sanções embasadas na
sexualidade das pessoas para obterem a permissão de contatarem com o mundo
espiritual. Não se precisa de chancela de ninguém ou de nenhum ente federativo
para podermos ler o mundo a partir do Espiritismo, quebram-se os grilhões,
afeiçoam-se os espíritos terráqueos a partir da vivência da empatia e da
possibilidade da autonomia de ser quem se é, e de forma alguma temer
represálias dos humanos ou da divindade por viver-se em intimidade.

Recorremos mais uma vez a Allan Kardec, na Revista Espírita de 1868,


para estabelecermos relação entre o seu pensamento e as nossas construções
filosóficas:

O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõem todos


os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem
se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que,
quando se conhecerem, não se deem a mão para marchar em
conjunto ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos
sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.
(Kardec, 2018)

É imprescindível que os terráqueos que se propõem ao progresso, se


busquem, se encontrem e deem as mãos, para que de forma organizada e
sistemática marchem em favor das minorias sociais, compreendam a
necessidade da prática de políticas públicas efetivas, de uma fraternidade viva e
comprometida com a igualdade e justiça social, que defendam amplamente a
ideia de que sem igualdade e justiça social não haverá regeneração.

Partimos assim para a conclusão desta obra, ao menos por enquanto, já


que a inquietude deve ser nosso barco, no mar revolto da existência, e que o
leme nos faça navegar em direção a um mundo mais justo, mais igual, equânime.

No livro, Pedagogia da Autonomia, o benemérito Professor Paulo Freire,


nos faz refletir sobre a autonomia a partir de uma educação progressista:

97
Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a
criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas
precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o
desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil.”
(Freire, 201

Não seremos ingênuos ao ponto de imaginarmos que a partir de hoje os


espaços espíritas serão destituídos de preconceitos de qualquer ordem, que as
pessoas negras serão melhor recebidas, que as mulheres terão lugar de
destaque, que a comunidade LGBTQIAP+ terá livre acesso às tarefas cotidianas
das casas espíritas, não podemos acreditar neste engodo, mas segue a luta por
esta visão crítica e tão necessária para os dias de hoje, nós faremos ouvir,
lutaremos por espaço, não baixaremos a cabeça, e desenvolveremos a
inquietude, e que ela seja indócil, crítica e insatisfeita.

Já que o mundo ideal não nos será oferecido gratuitamente, que mais
espaços de fala, de discussão e de luta sejam instituídos. Que toda esta
realidade que macula, machuca, fere, adoece e mata a comunidade LGBTQIAP+
e que faz com que o Brasil seja durante 13 anos consecutivos o país que mais
mata esta comunidade no mundo, seja mais um motivo para que sejamos
resistência e que está resistência mude a realidade deste país.

Pela não existência de uma revolução social, democrática e justa, é irreal


sermos chamados de “Coração do Mundo e Pátria do Evangelho”, está alcunha
nada mais é do que uma mão que escraviza e um discurso colonial que busca
validar as desigualdades e a supremacia do branco sobre o negro, do hétero
sobre a comunidade LGBTQIAP+, do homem sobre a mulher, do cristão sobre
as religiões de Matriz Africana.

Que não matemos a utopia e que não percamos a esperança de


esperançar e que enquanto esperancemos lutemos com todas as forças para
que o Espiritismo represente o amor, a igualdade, a fraternidade e a liberdade
entre as pessoas.

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Que vivamos, sem a necessidade de perguntar, ou lutar pela validação do
amor. Por não mais precisarmos indagar, para poder viver sem medo de morrer:
É amor, pode?

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