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As Grandes Doutrinas da Graça

Um curso de teologia para classes bíblicas ou pequenos grupos

Leandro Lima
© Leandro Lima

Projeto gráfico
Meios Comunicação
Deiverson Ribeiro

Revisão
Adély Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

L732g Lima, Leandro Antônio de, 1975-


As grandes doutrinas da graça: um curso de teologia para classes bíblicas ou pequenos
grupos / Leandro Lima.
– São Paulo: Odisseu, 2007.
4v.

Inclui bibliografia.
isbn 978-85-99704-10-3

1. teologia dogmática. 2. doutrina bíblica. 3. bíblia – teologia – cursos.


4. bíblia – estudo e ensino. 5. dogmatismo. 6. bíblia – comentários. 7. fé.
8. filosofia e religião.
i. Título

cdu 23 cdd 230


per – bpe 07-0851

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.


hebron aseec - Assistência Social Educacional Evangélica e Científica
Rua Ribeiro de Brito, 573, sala 608, Boa Viagem, Recife - PE. cep 51.021-310
Apresentação

“As Grandes Doutrinas da Graça” são estudos bíblicos teológicos para a formação de cris-
tãos firmes bíblica e doutrinariamente. Nos dias atuais, temos visto o crescimento das igre-
jas, porém, nem sempre acompanhado do crescimento espiritual e doutrinário de seus
seguidores. A Bíblia manda os cristãos crescerem “na graça e no conhecimento do Senhor
e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 3.18). Entendemos que uma das razões para não haver esse
crescimento é a falta do verdadeiro estudo bíblico. Os cristãos da Igreja primitiva deseja-
ram entender a “doutrina dos Apóstolos”, perseverando em aprendê-la (At 2.42). Isto é o
que falta hoje para a Igreja. Este é o motivo de tanta confusão doutrinária e ensinamentos
terrivelmente distorcidos sendo propagados como verdade.

Só uma volta ao estudo consistente da Bíblia pode remediar o problema e prevenir futuras
distorções. Por este motivo, estamos oferecendo um curso completo de teologia sistemática,
dividido em quatro volumes, abordando, de forma simples, aspectos essenciais da fé cristã,
segundo a tradição reformada, herdeira da reforma protestante. Mas, o objetivo não é apenas
intelectual. Nem poderia ser, pois, segundo a Bíblia, conhecimento e graça são coisas que
sempre andaram juntas. É preciso crescer na graça e no conhecimento. Este é o objetivo do
curso. Parte do material utilizado foi adaptado do livro “Razão da Esperança — Teologia para
Hoje”, da Editora Cultura Cristã, de autoria do Reverendo Leandro Antonio de Lima.

A idéia deste curso merece um registro. Na qualidade de coordenador da Escola Bíblica


Dominical da Primeira Igreja Presbiteriana do Recife, convidamos o Rev. Leandro para
encerrar o primeiro quadrimestre de 2007 da ebd em nossa Igreja.

Havíamos estudado, neste quadrimestre, uma revista de autoria do Rev. Leandro. Em sua
estada no Recife, estudamos a possibilidade dele escrever algo que fosse mais que uma
lição de ebd, mas que tivesse característica de curso.

Assim nasceu “As Grandes Doutrinas da Graça”, curso composto de 80 lições, divididas em
4 volumes, que almejamos aplicá-las nos 4 semestres de 2008 e 2009.

Iremos dispor o material para outras Igrejas que desejarem ministrar o curso em suas ebds.

Louvo a Deus pela vida do Rev. Leandro, seu trabalho, e tenho certeza que será uma bênção
para tantos quantos acessarem esse material.

No amor do Pai eterno.

Presbítero Josimar Henrique

Coordenador da Escola Bíblica Dominical


Primeira Igreja Presbiteriana do Recife- PE
Sumário
Volume 1
A confiabilidade da Bíblia

1 introdução — a relevância do estudo da teologia 13

2 a relevância da reforma 17

3 revelação progressiva 22

4 o registro da revelação 27

5 a escritura completa 32

A existência de Deus e suas obras

6 a existência de deus 41

7 o conhecimento de deus 51

8 a trindade — aspectos históricos e bíblicos 60

9 a trindade — aspectos teológicos e práticos 67

10 a imutabilidade de deus 74

11 a bondade de deus 82

12 soberania de deus ou livre-arbítrio do homem? 92

13 a doutrina da predestinação 100

14 implicações da doutrina da predestinação 110

15 a santidade de deus 116

16 o enigma do mal 126

17 a doutrina da providência 134

18 milagres — definição e propósitos 142

19 ainda há milagres hoje 149

20 a aliança de deus 156

Bibliografia 167
Outros volumes:

Volume 2
O ser humano criado e decaído

1 criação ou evolução?

2 o homem como ser criado

3 o propósito da criação

4 a queda do ser humando

5 o inimigo das nossas almas

6 o poder da corrupção

7 o significado da morte

8 para onde vão as almas?

9 a cura do humanismo

10 quebrando a maldição

A vinda e a obra de Jesus Cristo

11 o precursor do messias

12 o prometido de israel

13 o evento central da história

14 as naturezas do redentor

15 a necessidade da morte de cristo

16 o substituto dos pecadores

17 a extensão da expiação de cristo

18 evidências, significado e efeito da ressurreição

19 o significado teológico da ascenção de cristo

20 a teologia da cruz e da ressurreição


Volume 3
O significado e a aplicação da Salvação

1 a salvação pela graça

2 a união mística

3 o chamado

4 a regeneração

5 a conversão

6 justificação pela fé

7 a justificação forense em romanos 3–4

8 santificação — definição e propósito

9 meios de santificação

10 a bênção da perseverança

A vinda e a obra do Espírito Santo

11 a pessoa do espírito santo

12 o espírito e o antigo testamento

13 o batismo com o espírito

14 o espírito e as nações

15 plenitude espiritual

16 mantendo a plenitude

17 os dons do espírito — princípios e definições

18 os dons do espírito — descrição

19 o pecado contra o espírito

20 o novo homem espiritual


Volume 4
O significado e a obra da Igreja

1 a igreja verdadeira

2 unidade e diversidade

3 o poder da igreja

4 os sacramentos — o batismo

5 os sacramentos — a santa ceia

6 adoração — princípios fundamentais

7 adoração — distorções

8 o culto — requisitos

9 o culto — elementos

10 a igreja ideal

O fim desta era e o início da vindoura

11 a esperança de israel

12 a esperança da igreja

13 a imortalidade do ser humano

14 sinais do fim dos tempos

15 a última oportunidade do mal

16 a segunda vinda de cristo

17 o milênio

18 a ressurreição final

19 o dia do juízo

20 o destino eterno dos homens


A confiabilidade da Bíblia
1 INTRODUÇÃO — A RELEVÂNCIA DO ESTUDO DA TEOLOGIA
2 A RELEVÂNCIA DA REFORMA
3 REVELAÇÃO PROGRESSIVA
4 O REGISTRO DA REVELAÇÃO
5 A ESCRITURA COMPLETA
1

INTRODUÇÃO — A RELEVÂNCIA DO ESTUDO DA TEOLOGIA


Considerações introdutórias sobre a
relevância do estudo das lições do
curso.

introdução

Costuma-se dizer: “Repetir sem entender é por aí sem considerar atentamente o que está
coisa de papagaio”. Os donos de papagaios ouvindo. O caos da irracionalidade moderna
domesticam os pássaros para que repitam não deveria atingir a fé. Mas infelizmente,
palavras decoradas. As vezes se pensa que hoje em dia, as grandes doutrinas da Palavra
os papagaios estão sendo inteligentes por de Deus estão quase esquecidas.
repetirem aquilo que foram condicionados.
Mas a verdade é que as pobres aves literal- Em geral, as pessoas sabem muito pouco so-
mente “não sabem o que estão falando”. bre os atributos de Deus, as naturezas de Cris-
to, ou sobre o verdadeiro significado do batis-
Pensamos que muitas vezes uma cena se- mo com o Espírito Santo. E quando sabem,
melhante ocorre na igreja. Os líderes eclesi- parecem não ter muito interesse a respeito. Se
ásticos fazem as pessoas engolirem um tipo as questões escatológicas causam discussão,
de cristianismo sem lhes dar explicações por outro lado são apenas superficiais, em
convincentes sobre o que estão ensinando, assuntos selecionados e muito mais voltadas
e sem demonstrar que seus ensinos têm para especulações sobre o milênio ou o arre-
base na Palavra de Deus. E estes “pobres batamento do que para conteúdo substancial.
cristãos” saem por aí repetindo ensinos que
foram condicionados a repetir. Talvez nunca Uma das razões dessa falta de conteúdo tem
pensaram sobre eles. a ver com as obras teológicas publicadas.
Boas obras de teologia, muitas vezes, estão
o papel do discernimento em linguagem inacessível para os não inicia-
dos. Enquanto isso as prateleiras das livrarias
Um cristão deveria ser alguém com discerni- cristãs estão cheias de livros de auto-ajuda,
mento. Não poderia engolir tudo que ouvisse que prometem soluções milagrosas em ape-

introdução — a relevância do estrudo da teologia 13


nas “alguns passos”, mas que não trazem a mensagem da graça, para a mensagem do
verdadeiro crescimento na graça e no conhe- comprometimento bíblico-teológico. Nosso
cimento de Deus (2Pe 3.18). sentido e propósito, como indivíduos e como
igreja, dependem largamente de quão clara-
O fato é que ser cristão hoje está se tornan- mente compreendermos as verdades sobre
do apenas questão de sentimentalismo. E quem Deus é, quem nós somos, e o que o pla-
as vezes, até de gosto pessoal. No senso co- no de Deus para a história envolve. Só assim
mum dos nossos dias, o cristão verdadeiro poderemos dizer por que nossa esperança tem
não é aquele que “sabe” mais, e sim aquele razão (é racional), e qual é essa razão.
que “sente” mais (teve “experiências”). A ên-
fase no sentimentalismo é uma das marcas Mesmo sabendo da complexidade de muitos
do relativismo do mundo pós-moderno. Até dos assuntos aqui considerados, objetivamos
porque, sentimentos são coisas extrema- dialogar sobre questões que fazem parte do
mente subjetivas e relativas. dia-a-dia dos crentes (aqueles que têm fé) e
mesmo dos não-crentes. Não queremos tratar
preparados para responder de assuntos teológicos como se nada tivessem
a ver com a vida prática das pessoas. O que
De acordo com a Bíblia, como cristãos, deve- se pretende é uma análise sincera, de uma
mos estar “sempre preparados para responder perspectiva bíblica, sobre assuntos seleciona-
a todo aquele que nos pedir razão da esperança dos que são vitais para um verdadeiro conhe-
que há em nós” (1Pd 3.15). Esperança é algo que cimento de Deus, e uma vida cristã frutífera.
aponta para o futuro. Mas a certeza do futuro Não importa se nossas fraquezas tenham
se constrói a partir de um passado e de um pre- que ser postas a lume, desde que a verdade
sente sólidos. A fé deve ser bem fundamentada de Deus brilhe ainda mais forte diante de
e amplamente convincente não somente no nossos olhos. É certo que quando confronta-
aspecto emocional, mas também no racional. mos nossas crenças pessoais com a Escritura
Todo cristão sincero deve chegar a um está- percebemos que muitas vezes essas crenças
gio em sua vida em que precisa perguntar a si se demonstram infundadas. A razão é que,
mesmo: “Será que minha religião é verdadei- talvez, jamais tenhamos estudado seriamente
ra?” É claro que respostas pré-fabricadas não o assunto de uma perspectiva bíblica. De qual-
satisfazem e nem devem satisfazer a ninguém. quer forma, nosso apego pela Escritura deverá
Como diz Michael Horton, todo cristão deve- ser maior do que qualquer coisa, até mesmo
ria ser indisposto a aceitar com o coração uma do que nossos gostos pessoais.
1 Ver Michael Horton, fé que falha em convencer sua mente1. Mas a
As Doutrinas da
Maravilhosa Graça,
verdade é que, muitas vezes, a igreja se torna sobre a metodologia
p. 19. o local onde as mentes são menos exigidas. O
fato é que quando os rituais substituem a vida, Para o estudante uma palavra cabe com re-
“verdades”, que podem ou não ser verdadeiras, lação à metodologia adotada. Aqui não se
são decoradas e repetidas quase que com de- lançam questionamentos sobre a Bíblia,
sinteresse pela maioria dos “fiéis”. Infelizmen- mas a partir da Bíblia.
te, os cristãos são acostumados a não pensar a
respeito de sua fé. São como papagaios, ensina- Nossa concepção é que muitos questionamen-
dos a repetir coisas que não entendem, apenas tos e “releituras” da Bíblia já foram feitos e pou-
para causar admiração nos outros. co ou nenhum proveito tem havido para o povo
de Deus, especialmente para os mais simples.
Nestes tempos quando a autojustificação ou a
auto-ajuda têm dominado a pregação, as pu- Este trabalho assume a inerrância e sufici-
blicações e os programas televisionados, preci- ência das Escrituras para a fé cristã e anela
samos desesperadamente de um retorno para por colocar a teologia na linguagem de to-

14 as grandes doutrinas da graça i


dos os crentes. Não entende também que pírito Santo nos guia no estudo dessa Palavra. 2 Alister McGrath
haja uma teologia para a Europa, outra para E isso é a verdadeira espiritualidade entende que a elitização
da teologia tem sido
a África e outra para a América Latina. Teo- uma das coisas mais
logia é teologia em qualquer lugar do mun- A história da igreja tem demonstrado, atra- prejudiciais nesses dias
do, é a busca pelo conhecimento de Deus, e vés dos séculos, que a coisa que mais destrói modernos. ele diz: “O
distanciamento da
Deus é o mesmo em qualquer lugar. a vida e a comunhão autêntica da igreja é a academia das realidades
falsa doutrina. Especialmente os falsos ensi- da vida diária está
Por outro lado, o estudante de teologia nun- nos sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. estritamente ligado, ao
menos na percepção
ca pode se esquecer de um princípio funda- O Senhor Jesus, e especialmente seus Após- popular, com o elitismo
mental: Sua teologia precisa servir para al- tolos demonstraram profunda preocupação da academia” (Alister
guma coisa. Podemos perceber um excesso com essa matéria, e apontavam para o futu- E. McGrath. “Theology
de abstrações teológicas em muitas obras, ro como um tempo muito conturbado nesse and The Futures of
Evangelicalism”.
profundo conhecimento histórico e pesquisa sentido (Mt 24.11; 2Tm 4.3-4). Percebe-se que In The Futures of
séria, porém, pouca aplicação. Enquanto os eles estavam rigorosamente certos, à luz do Evangelicalism. Ed.
“intelectuais” cristãos se deliciam com man- que temos visto hoje. Entendimentos errône- Craig Barholomew,
Robin Parry e Andrew
jares, é possível que o povo simples esteja os acerca de Deus têm minado a verdadeira West, p. 27).
sem o alimento de que tanto precisa2. Preci- religião nos quatro cantos do mundo, intro-
samos mais do que nunca traduzir a teologia duzindo erros e heresias destruidoras na 3 Ver John Stott. A
para a linguagem do povo, uma teologia com vida individual do povo de Deus e também Mensagem de Atos,
p. 87.
aplicação prática. O objetivo desse estudo é em denominações inteiras. Conhecer doutri-
conhecer melhor o Deus das Escrituras para na não é coisa sem importância, é assunto 4 Introdução,
desenvolver um relacionamento melhor com fundamental para os dias em que vivemos. também chamada de
ele, ou seja, teologia para a vida. Prolegômena, trata dos
assuntos introdutórios
sobre o propósito à teologia. Teontologia
Ainda é importante que, por outro lado, se estuda o ser e as obras
tenha em mente que vivemos dias em que o O propósito desse trabalho é colocar numa lin- de Deus. Antropologia é
o estudo do ser humano,
estudo das doutrinas bíblicas tem sido deixado guagem simples e acessível os principais en- criação e queda à luz
em segundo plano. Doutrina tem sido asso- sinamentos da teologia. Abordamos de forma da Escritura. Cristologia
ciada com frieza espiritual. Chavões como: “A breve todas as oito disciplinas da Teologia Sis- estuda a pessoa e a obra
letra mata”, “quem estuda esfria” usados indis- temática (Introdução, Tentologia, Antropolo- de Cristo. Soteriologia
é estudo da salvação
criminadamente ou fora de contexto, têm im- gia, Cristologia, Soteriologia, Pneumatologia, conquistada e aplicada.
pedido muitos crentes de crescer em conheci- Eclesiologia e Escatologia4), concentrando-nos Pneumatologia estuda
mento espiritual. É claro que, se você está len- nos principais temas da teologia que tenham a pessoa e a obra
do Espírito Santo.
do este livro é porque não compactua com esse interesse para os teólogos e também para as Eclesiologia estuda a
pensamento, mas de qualquer forma, importa pessoas em geral. São capítulos avulsos que Igreja e os meios de
relembrar que o conhecimento das doutrinas podem ser estudados em seqüência, ou alea- graça. Escatologia diz
respeito ao estudo das
sempre foi uma das maiores preocupações de toriamente, conforme o interesse ou a necessi- últimas coisas.
Jesus e da Igreja Primitiva. Conhecer as dou- dade de alguém. Nosso interesse não é apenas
trinas bíblicas sempre foi uma das primeiras o conhecimento intelectual sobre essas maté-
marcas da verdadeira espiritualidade na Igreja rias, mas também a aplicação prática delas.
Primitiva (At 2.42)3. Quanto mais conhecemos
Deus e suas obras, conforme ele se revela em Nossa busca é pelo conhecimento que pode
sua Palavra, melhor poderá ser o nosso rela- e deve influenciar o nosso dia-a-dia, dando-
cionamento com ele. Se a vida espiritual é a nos maior firmeza na fé, um relacionamen-
que importa, é interessante lembrar que Jesus to mais estreito com Deus, e uma condição
disse que o Espírito viria para nos guiar a toda sempre pronta para dar, a todo aquele que
a verdade (Jo 16.13). Segundo o entendimento nos pedir, razão da esperança que há em nós,
do próprio Jesus, a Palavra de Deus é a verdade porém, fazendo isso com temor, mansidão e
(Jo 17.17). Dessa forma, entendemos que o Es- boa consciência.

introdução — a relevância do estrudo da teologia 15


2

A RELEVÂNCIA DA REFORMA
A título de introdução ao estudo da
teologia sistemática, entender as
perspectivas básicas da reforma, sua
necessidade e sua relevância para
o estudo da teologia e para a vida
cristã.

introdução

Mais do que nunca a religião está transbor- que é coisa do passado, que não acontece mais
dante de legalismo, superficialismo, sensa- hoje em dia. Mas, basta olhar para o método
cionalismo, comércio, etc. O mesmo clamor de trabalho de muitas denominações, princi-
que originou a Reforma Protestante do sé- palmente em seus programas televisionados
culo xvi se faz presente em nossos dias. para ver que isso acontece hoje com mais fre-
qüência do que gostaríamos de admitir.
Em 1517 um monge que também era professor
de Bíblia colou uma série de proposições na Os homens continuam vendendo a salvação
porta de uma igreja com o fim de iniciar um de- tanto quanto no passado. E o motivo é sim-
bate acadêmico. Não imaginava ele que aquilo ples: é difícil crer na mensagem radical de que
daria início a grande Reforma Protestante. Seu Deus fez todas as coisas para nossa salvação e
nome, evidentemente, era Martinho Lutero. nada deixou para o homem. Os homens estão
sempre querendo dar sua contribuição, seja
A luta de Lutero era contra a venda de indul- com dinheiro, vida santa ou regulamentos
gências por parte da Igreja Católica que pre- eclesiásticos. Estamos sempre querendo pa-
tendia com isso construir a grande catedral gar a salvação que nos é dada gratuitamente.
de São Pedro em Roma. O Papa oferecia Por isso, precisamos mais do que nunca voltar
perdão dos pecados para quem contribuísse à Reforma. A Reforma continua.
financeiramente com o empreendimento.
Alguns vendedores de indulgências diziam sola scriptura
que no exato instante em que se ouvia o ti-
lintar da moeda caindo no cofre, uma alma A Reforma Protestante procurou desenvol-
era livre do purgatório. ver alguns slogans que pudessem ajudar
as pessoas a identificar com facilidade seus
Certamente isso parece algo grosseiro e até principais pontos de vista. O primeiro dos
mesmo humorístico hoje e logo pensamos slogans que identificaram a Reforma foi o

a relevância da reforma 17
1 Para uma abordagem sola scriptura (somente a Escritura)1. É cla- A diferença básica entre a Reforma e Roma
semelhante de alguns
“solas” da Reforma
ro que esta concepção foi tirada da própria com relação à Escritura estava na discussão
veja Michael Horton, Escritura. se a Bíblia produziu a Igreja, ou se a Igreja
Putting Amazing Back produziu a Bíblia. A Reforma cria que Deus
Into Grace. p. 11-20. O Apóstolo Paulo foi um homem tremen- revelou-se a si mesmo para um povo e cha-
damente preocupado com a Escritura. Ele mou este povo para si e lhe deu sua Palavra.
argumenta com os Efésios “jamais deixei Entretanto, a Igreja é sempre falível e sem-
de vos anunciar todo o desígnio de Deus” pre passível de correção quanto à interpreta-
(At 20.27). Paulo estava partindo para Jeru- ção da infalível revelação de Deus.
salém, onde sabia, enfrentaria muitas per-
seguições. Mas, o que Paulo mais temia era Em resumo, a Reforma apregoou que a
o fato de que sabia que após sua partida se Palavra de Deus é infalível e absolutamen-
infiltrariam no meio do rebanho dos Efésios te suficiente para nos ensinar tudo o que
“lobos vorazes que não pouparão o rebanho” precisamos saber sobre a Salvação e sobre
(At 20.30), por isso numa atitude de fé ele o próprio Deus. Além disso ela é a única
diz “agora, pois, encomendo-vos ao Senhor fonte suprema desse conhecimento. Ela
e a palavra da sua graça, que tem poder para é o único lugar aonde devemos ir para ter
vos edificar e dar herança entre todos os que conhecimento pleno a respeito dos fatos
são santificados” (At 20.32). Paulo “ensinou da salvação. Nenhuma outra fonte deve ser
que o poder do evangelho está localizado na aceita ou tentada.
2 R. K. Mc Gregor pregação da Palavra de Deus”2. Nada pode
Wright, A Soberania substituir a Palavra de Deus. solus christus
Banida, p.14.

Talvez, este tenha sido o maior triunfo da Re- Como conseqüência lógica do primeiro
forma Protestante: o triunfo pela Bíblia. Numa “sola” da Reforma vem o segundo, pois “só
época em que praticamente ninguém do povo quando se defende a Escritura somente é que
comum tinha acesso a Palavra de Deus, a Re- estaremos certos de que a igreja se apegará a
3 Michael Horton, Os forma conseguiu colocar a Bíblia na língua co- Cristo somente”3 Cristo é o centro da Escri-
Solas da Reforma, in mum das pessoas e possibilitou que o acesso tura. Ele próprio disse para alguns religiosos
Reforma Hoje, p. 111.
a ela fosse bem mais simples. de sua época: “examinais as Escrituras por-
que julgais ter nelas a vida eterna, e são elas
Entretanto, a Reforma não somente pos- mesmas que testificam de mim” (Jo 5.39). As
sibilitou que as pessoas tivessem acesso Escrituras testificam de Cristo.
à Palavra, mas também que ela, a Palavra
de Deus tivesse o lugar de honra que lhe é No tempo da Reforma, à semelhança dos dias
devido e que todos pudessem interpretá-la atuais, a teologia estava completamente cen-
corretamente. Pode a igreja legislar doutri- trada no homem. Tudo dependia do homem.
nas ou leis morais que não são encontrados Em última instância é o homem que decide se
na Escritura? A Reforma respondeu: “não, vai a Deus, bem como a maneira que lhe con-
somente a Escritura”. Pode a Igreja manter vém. Na idade média, a Igreja era a opção, nos
uma interpretação infalível da Bíblia? Não, a dias atuais, as opções são praticamente inu-
Reforma respondeu, absolutamente não! A meráveis. O pensamento comum é que todos
Reforma tirou o privilégio do clero de inter- vão a Deus de várias formas. É como se Deus
pretar a Bíblia, mas não jogou este privilégio fosse uma grande Home Page da Internet. To-
totalmente nas mãos dos leigos, de forma dos podem acessá-lo de diferentes provedores.
que cada pessoa pudesse dar a interpretação Mas, a Reforma disse não a todas as tentativas
que quisesse. A Igreja como um todo, como humanas de chegar até Deus. Solus Christus,
o Corpo de Cristo deve interpretar a Bíblia. ou seja, somente Cristo pode nos conduzir a
Esse foi o grande lema da Reforma. Deus e nos dar a salvação.

18 as grandes doutrinas da graça i


Percebemos claramente que nos dias atuais, custasse a própria vida (At 20.24). O Evan-
a crença geral enfatiza que a fé em Cristo gelho da Graça de Deus era a boa notícia de
não é absolutamente necessária para a sal- que os pecadores podiam ser salvos através
vação, pois Deus certamente salvará todas as da obra salvadora de Cristo.
pessoas boas, quer tenham crido em Cristo,
quer não. Entretanto, o ensino da Escritu- Na verdade, a Igreja sempre afirmou que a
ra enfatizado pela Reforma é que Cristo é salvação era pela graça, mesmo antes dos Re-
absolutamente necessário para a salvação. formadores. O ensino oficial da igreja dizia
Paulo disse que jamais havia deixado de que a graça era infusa ou derramada como
“anunciar coisa alguma proveitosa, e de vo- um auxílio para nos ajudar a viver uma vida
la ensinar publicamente e também de casa santa, o que eventualmente nos daria o di-
em casa, testificando tanto a judeus como a reito de entrar no paraíso. Entretanto, ao
gregos o arrependimento para com Deus e longo do caminho todos correm o risco de
a fé em nosso Senhor Jesus” (At 20.20-21). perder a graça. Por isso, eram necessários os
Sem Cristo não há salvação. Se alguém não rituais, os exercícios espirituais, as fórmulas
confiar na obra salvadora de Cristo em hipó- piedosas que poderiam ajudar a reconquistar
tese alguma poderá ser salvo. a graça. Então, a visão era que nós somos sal-
vos pela graça, porque ela nos transforma em
sola gratia pessoas santas. Contra isso se levantaram os
Reformadores, dizendo que, na salvação,
Na idade média, as pessoas acreditavam que Deus nos declara justos, no exato instante
a única forma possível de poder agradar a da conversão. A salvação não é um processo,
Deus era vivendo em completa santidade. mas um ato de Deus em nossas vidas. Para a
Pensavam que seu relacionamento com Deus igreja medieval, salvação e santificação eram
dependia inteiramente delas. Lutero foi um uma mesma coisa, mas para a Reforma, a
homem agoniado por estas idéias. Ele pensa- salvação era um ato instantâneo de Deus que
va na justiça e na santidade de Deus e se via nos declarava justos, dando assim, origem ao
tão pecador, de modo que se sentia perdido processo de santificação. A santificação não
e completamente sem chances de alcançar era para que alguém fosse salvo, e sim, por-
a Deus. Foi somente quando entendeu pela que já era salvo.
Escritura que “o justo viverá pela fé” (Rm 1.17),
que toda sua vida de fato se transformou. sola fide

Lutero e a Reforma entenderam que o ho- Lutero não somente entendia que a salvação
mem não precisa se tornar justo para poder era apenas pela graça, mas que a forma ou
alcançar a vida eterna, pois isto, ele jamais método de recebe-la era através da fé unica-
conseguiria, uma vez que ninguém jamais mente. Por isso surgiu mais um slogan na
cumpriu a lei de Deus (Rm 3.10, 20, Gl 3.11), Reforma, o sola fide, ou Somente a Fé.
mas que baseado na justiça de Cristo, Deus
pode e efetivamente declara o homem como A igreja, naquele tempo, não negava que a fé
justo quando ele crê. Este ato de declarar era necessária para a salvação. Mas, era uma
é algo completamente gratuito, pois o ho- fé no poder da Igreja, dizendo respeito muito
mem nada fez para merecer isso, uma vez mais a uma questão de conhecimento e con-
que tudo provém da obra e dos méritos do sentimento. A Reforma, entretanto, apregoou
Senhor Jesus Cristo, dessa forma a justiça que a fé era uma questão de confiança e não
de Cristo é colocada sobre nós como se fos- confiança na eficácia ou no ensino da Igreja,
se nossa. Era isso que Paulo chamava de o mas no poder de Deus que pode salvar plena-
“Evangelho da Graça de Deus” sobre o qual mente os que se aproximam dele, confiando
ele queria testemunhar, mesmo que lhe nos méritos de Cristo.

a relevância da reforma 19
Uma grande distinção que a Reforma fez e A Reforma pôde proclamar Soli Deo Gloria
,que é muito importante para nós hoje, é que porque mais do que ninguém, entendeu o ser
quem salva é Cristo e não a fé. A fé não pode humano. Quando temos uma visão melhor de
ser considerada uma pequena obra que em nós mesmos e de Deus, diminuímos a nossa
última instância tem poder de nos salvar. A fé importância e aumentamos a dele. É interes-
é apenas o instrumento pelo qual nos apro- sante que a Reforma tenha produzido uma era
priamos da salvação, conquistada plenamente de grandes pensadores e artistas, mas nunca
por Cristo. Porém, ainda assim, poderia ficar exaltou o ser humano, antes prostrou o orgu-
a impressão de que a fé é uma pequena obra lho humano diante da majestade de Deus.
necessária para a salvação, não fosse o ensino Mas, hoje as coisas estão muito mudadas. O
inequívoco da Escritura de que, mesmo a fé, é homem é exaltado e Deus diminuído. Nossos
um dom de Deus (Cf Ef 2.8-9; Rm 12.3; Jd 3). cultos e serviços são freqüentemente celebra-
ções de nós mesmos mais do que de Deus, há
Pregar sobre salvação pela fé dentro dos mais entretenimento neles do que adoração.
moldes bíblicos pode ser muito impopular Nunca antes, nem mesmo na era medieval,
nos dias atuais. Dizer que o homem não tem os cristãos tinham sido tão obsessivos consigo
poder algum para se salvar pode ser consi- mesmos. Nunca antes, Deus foi tão esquecido.
derada uma frase praticamente extinta. E Auto-estima, auto-imagem, auto-confiança,
o motivo não é difícil de se identificar. As auto-isso, auto-aquilo, isto tem sido a ênfase
pessoas argumentam: mas ser salvo do quê do cristianismo moderno. Gastamos a maior
e por quê? O fato é que elas não se sentem parte do tempo, como Narciso, contemplando
perdidas. Foi o tempo quando a pregação nossa própria imagem distorcida no espelho,
da Lei desesperava as pessoas de modo que e não a autêntica imagem de Deus.
elas se refugiavam em Cristo. O problema
não é que a Lei não tem mais esse poder, e Mas, tudo isso pode mudar. Já aconteceu
sim, o fato de que a Lei não está mais sendo uma vez, na Reforma e pode acontecer de
ouvida. As pessoas não querem ouvir sobre novo. A Reforma Protestante do século xvi
seus pecados, querem apenas mensagens trouxe liberdade à consciência cristã porque
de auto-ajuda, de “soluções”, não se preocu- restaurou o foco do Evangelho, tirando-o de
pam com a Ira de Deus, não vêem a maldade ser centrado no homem para ser centrado
e a ofensa de seus pecados, por isso, ainda em Deus. Precisamos disso hoje.
confiam em si mesmas. Elas precisam ouvir
a respeito do fogo do Inferno e da deprava- Tanto quanto no tempo de Lutero, precisa-
ção humana, pois somente assim, deixarão mos de Reforma. Precisamos deixar de lado
de confiar em si mesmas e se entregarão a todas as supostas revelações extras, todas
Cristo pela fé, somente. as outras formas de salvação, todo senso
de pagamento, de obras e de orgulho que
soli deo gloria possa haver em nossas igrejas, em nossos
sermões, em nossos livros, e clamar com
Se a Escritura é a única regra de fé e prática grande brado sola scriptura, solus Christus,
e ela nos foi dada por Deus, se Cristo é único sola gratia, sola fide, soli Deo gloria. Chega de
meio de Salvação, se a graça é responsável aceitarmos de boca fechada todos os ataques
por tudo o que temos e somos, e, se a fé que que o Evangelho tem sofrido por supostos
é um dom de Deus é o único instrumento pregadores e evangelistas. Chega de engo-
para nos apropriarmos de tudo isso, então, lirmos tudo o que nos é passado com um ar
Soli Deo Gloria, ou seja “A Deus somente a piedoso, mesmo que seja abertamente con-
glória”. Na estrutura da Reforma não sobra trário ao ensino das Escrituras e aos princí-
espaço para glorificar o homem, toda a gló- pios da Reforma. Que a Reforma continue
ria deve ser rendida a Deus. hoje, este deve ser o nosso maior objetivo.

20 as grandes doutrinas da graça i

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