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João Vinícius de Abreu

A missão da igreja através do sacerdócio


universal

Campinas, SP

2020
João Vinícius de Abreu

A missão da igreja através do sacerdócio universal

Monografia apresentada como requisito par-


cial do exame de licenciatura administrado
pelo Presbitério do Pantanal - PPAN, con-
forme disposto na CI-IPB, art. 120, alínea
“a”’.

Seminário Presbiteriano do Sul

Orientador: Prof. Giuliano Coccaro

Coorientador: Rev. Jeferson Novaes da Silva

Campinas, SP

2020
Para Helen, minha companheira de sacerdócio.
Agradecimentos

Agradeço ao sumo-sacerdote, Jesus Cristo, Deus-Filho, meu Senhor! Ele é a própria ima-
gem de Deus na história e a plenitude de tudo o que existe. Agradeço ao Deus-Espírito,
o poder para a igreja demonstrar a imagem de Cristo no mundo. Agradeço ao Deus-Pai,
amoroso, bom e gracioso, que nos chamou para vivermos de maneira santa, justa e irre-
preensível no aqui e agora.

Agradeço a minha amada esposa Helen, a quem também dedico este trabalho. Você
é graça sobre graça em minha vida. Obrigado por ser meu auxílio em dias difíceis e riso
em dias felizes. Obrigado por ser sacerdote junto comigo neste mundo. É um privilégio
compartilhar da missão de Deus no mundo ao seu lado. Obrigado pelas inúmeras leituras,
correções e revisões neste trabalho.

Agradeço aos meus pais, Antonio e Gislaine e minhas irmãs, Isabella e Anna.
Obrigado por não permitirem que eu caminhasse sozinho e por serem meu suporte e
demonstração do cuidado de Deus sobre mim.

Agradeço ao Presbitério do Pantanal - PPAN, por ter me acolhido, sustentado e


sido suporte neste tempo de seminário. Em especial, quero agradecer ao Rev. Jeferson
Novaes, meu tutor e amigo.

Agradeço a Igreja Presbiteriana do Bairro Amambaí, comunidade que me ensinou


sobre quem Jesus é, que confiou em mim para o exercício do ministério, que acompanhou
meus primeiros passos e se fez presente em sustento e oração por mim em todo o meu
tempo de preparo ministerial. Agradeço a Igreja Presbiteriana de Campinas, comunidade
que tive o privilégio de servir durante os primeiros anos do seminário. Agradeço também
a Igreja Presbiteriana Chácara Primavera, comunidade que tenho o privilégio de servir
atualmente e que tem confiado em meus dons e capacidades para o serviço do reino de
Deus.

Agradeço por fim ao Seminário Presbiteriano do Sul. Obrigado por ser um instru-
mento de Deus na minha preparação ministerial. Agradeço aos meus amigos e colegas,
irmãos e companheiros de serviço. Também agradeço a cada professor e professora, fun-
cionário e funcionária. Tenho muita alegria de ser parte desta família e espero honrar
com humildade e responsabilidade a casa de profetas que me instruiu com tanto zelo e
dedicação.
“Tenho em casa uma pintura do italiano Savelli - depois compreendi muito bem quando
soube que ele fora convidado para fazer vitrais no Vaticano. Por mais que olhe o quadro,
não me canso dele. Pelo contrário, ele me renova. Nele, Maria está sentada perto de
uma janela e vê-se pelo volume de seu ventre que está grávida . O arcanjo, de pé ao seu
lado, olhá-a. E ela, como se mal suportasse o que lhe fora anunciado como destino seu e
destino para a humanidade futura através dela, Maria aperta a garganta com a mão, em
surpresa e angústia. O anjo, que veio pela janela, é quase humano: só suas longas asas é
que lembram que ele pode se transladar sem ser pelos pés. As asas são muito humanas:
carnudas, e o seu rosto é o rosto de um homem. É a mais bela e cruciante verdade do
mundo. Cada ser humano recebe a anunciação: e, grávido de alma, leva a mão à
garganta em susto e angústia. Como se houvesse para cada um, em algum momento da
vida, a anunciação de que há uma missão a cumprir. A missão não é leve: cada homem
é responsável pelo mundo inteiro.” Clarice Lispector 1

1
LISPECTOR, C. A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Resumo
A doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes é considerada como uma das
grandes ênfases protestantes. Seus desdobramentos são percebidos em diversas áreas do
conhecimento teológico e esta doutrina ainda incentiva muitas discussões. Neste trabalho
discutimos sobre como essa doutrina pode nos ajudar a compreender melhor o papel da
igreja no cumprimento da missão de Deus no mundo. Fazemos isto através de um pri-
meiro movimento sobre o que é a igreja e o que é a sua natureza missionária. Após isso,
desenvolvemos a missão da igreja e suas principais implicações. Por fim, a doutrina do
sacerdócio universal é apresentada enquanto uma doutrina bíblica que tem capacidade de
auxiliar os membros da igreja cristã a vivenciarem a realidade da missão em seu cotidiano.
Também realizamos neste trabalho um movimento de implicações ministeriais, pensando
na realidade do presbítero ao lidar com essa doutrina.

Palavras-chave: Sacerdócio Universal. Sacerdócio de Todos os Crentes. Missiologia. Te-


ologia da Missão. Missio Dei.
Sumário

I INTRODUÇÃO 13

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

2 ENQUADRAMENTO CONFESSIONAL . . . . . . . . . . . . . . . . 19

3 OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

II DESENVOLVIMENTO 25

4 ECLESIOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

4.1 Definições confessionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

4.2 A essência da igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

4.3 O governo e o poder da igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

4.4 A igreja na narrativa bíblica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

5 MISSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

5.1 O desafio conceitual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

5.2 A missão de Deus: Missio Dei . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

5.3 A natureza missionária da igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

6 SACERDÓCIO UNIVERSAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

6.1 Uma teologia bíblica do sacerdócio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

6.2 A história do conceito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64

7 IMPLICAÇÕES MINISTERIAIS: O SACERDÓCIO UNIVERSAL E


O EXERCÍCIO DA MISSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

7.1 O sacerdócio universal da igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

7.2 Liberando os leigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80

7.3 Formando discípulos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81


7.4 Uma comunidade alternativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

III CONCLUSÃO 87

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
8.1 Resumo das principais ideias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
8.2 Perspectivas para futuras pesquisas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Parte I

Introdução
15

1 Considerações iniciais

Segundo o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, a população


que se declara evangélica no Brasil aumentou de 15,4% para 22,2% nos últimos anos. A
pesquisa constata que o grupo evangélico foi o que mais cresceu no período. Há também
uma notável redução no número de católicos e um aumento daqueles que se declaram sem
religião 1 . Apesar de uma série histórica de aumento quantitativo de adeptos da fé cristã
evangélica no Brasil, há, por outro lado, vários questionamentos quanto à qualidade dessa
fé e as reais mudanças sociais que ela implicaria na sociedade.

O evangelicalismo brasileiro e latino-americano foi formado por um processo histó-


rico complexo e com muitas faces. Bonino (2002) apresenta diversas dessas em sua obra
“Rostos do Protestantismo Latino-Americano”. Uma das tensões que fez parte da forma-
ção do evangelicalismo brasileiro é o dilema entre as alternativas “Reform and Revival”
ou “Reform or Revival”. Reform aqui significa reforma e ação social, e Revival significa
evangelização e avivamento. Esta tensão apresenta duas opções: ou se escolhe por uma
ação baseada na mutualidade entre reforma social e evangelização ou por uma ação em
que se dá ênfase ou à reforma social ou à evangelização. Esta segunda opção acaba ga-
nhando força através da influência do cristianismo liberal (nos termos de Bonino (2002)) e
desenvolvendo um evangelicalismo sectário, individualista e soteriologicamente subjetivo,
com uma ênfase exclusiva na santificação e nas questões intrínsecas.

Há, inclusive, nas palavras de Bonino (2002) uma “carência de perspectiva estru-
tural e política”. A ação contundente, robusta e sustentável de um evangelicalismo não
se desenvolve a partir da sua piedade. Há uma separação entre o cristão e o público, o
comum e o povo, e isso leva a uma tendência de interiorização de si mesmo e das comuni-
dades que ele participa, fazendo com que o evangelicalismo se demonstre profundamente
individualista. O que está fora da igreja é de menor importância do que o que está dentro.

1
cf. “Censo 2010: número de católicos cai e aumenta o de evangélicos, espíritas e sem religião”. Acesso
em 27/07/2020 em https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?id=3idnoticia=2170view=noticia.
16 Capítulo 1. Considerações iniciais

Cunha (2007, p. 44) mostra que o protestantismo brasileiro se desenvolve dentro


de uma relação crítica com a sociedade. Se internamente os protestantes e suas denomi-
nações são sectários, externamente, com a sociedade, eles fazem da mesma forma. Estão
alheios às discussões e se apresentam apenas quando o assunto de alguma forma os ameaça.
Assim, nos anos 90, se experimenta no Brasil uma cultura de expansão do evangelicalismo
brasileiro através do movimento “gospel”, que exporta uma cultura evangélica para dentro
da cultura. Paralelamente ao “mundo” se constrói um outro mundo - o mundo “gospel”,
aquele em que as músicas, vestimentas, palavras e comportamentos são previstos e contro-
lados. Instala-se dessa forma o sectarismo em forma de cultura na identidade evangélica
brasileira. Cavalcante (2008) mostra em seu artigo o desenvolvimento desse tipo de secta-
rismo e divisionismo no pensamento protestante brasileiro. Ao longo dos anos, a herança
protestante de liberdade, criatividade e atividade no mundo se reduz a um pensamento
radicalista para com o mundo e com a realidade.

Mas o fato inconteste é: o cristão está no mundo. Não existe um outro mundo no
qual o cristão está e nem um outro mundo que ele irá construir. É este mundo e o aqui
e agora que necessita de sua presença ativa. É neste mundo que o Cristo se encarnou,
morreu e ressuscitou. É neste mundo que o Cristo enviou sua igreja em missão. Querer
construir um mundo alternativo é viver no devaneio e fantasia de algo que não existe. Uma
vez que Cristo estabeleceu seu reino neste mundo, melhor é, para nós, lidarmos com ele,
aqui e agora, encarando os desafios e oferecendo a realidade do próprio Cristo enquanto
rei.

Ellul (2012) dá início a sua obra “Cristianismo revolucionário” dizendo que “A


comunidade cristã não deve ser fechada”. Ellul (2012, p. 41) mostra a importância de
considerarmos que estamos no mundo, ou seja, inseridos nesta realidade, apesar de não
sermos do mundo, no sentido de pertencemos ao seu zeitgeist e suas idolatrias. Ele diz que
“O cristão engajado na história material deste mundo se engaja aqui como representante
de uma outra ordem, de um outro Senhor (...), obedecendo uma outra exigência (...).”

Isso tudo nos leva a aceitar o imperativo que Barth (1986, p. 19) apresenta: “O
cristão é aquilo em nós que não somos nós, mas Cristo em nós.”. O fato de estarmos aqui
17

e agora implica em uma intenção clara. Somos inseridos para representarmos o próprio
Cristo neste mundo. Pois “A comunidade de Cristo é uma casa aberta para todos os lados”
(BARTH, 1986, p. 20), e a igreja é essa casa. Não somos chamados para nos voltarmos
para nós mesmos. Antes, temos uma vocação bíblica sacerdotal de apresentar a realidade
do único Deus para todas as casas da terra. A nossa identidade enquanto povo inserido e
localizado neste mundo demonstra a nossa missão.

Ao assumir essa vocação, percebemos a necessidade de encararmos nossa atuação


no mundo de maneira que seja coerente com a história bíblica. Enquanto povo de Deus,
respondemos ao chamado missionário de Deus e desenvolvemos práticas coerentes com esse
chamado. É nesse sentido que iremos trabalhar este texto, buscando encontrar através
da doutrina do sacerdócio universal uma abordagem que nos ajuda e perceber nossa
identidade como igreja e que articula nossa ação no mundo aqui e agora.
19

2 Enquadramento Confessional

O texto da Confissão de Fé de Westminster é o “sistema expositivo de doutrina e prática”


da Igreja Presbiteriana do Brasil, conforme CI/IPB Art. 1. Também deve-se assumir que
a CI/IPB em seu Art. 120, alínea-b orienta que o candidato à licenciatura no Presbitério
deve apresentar uma “tese de doutrina evangélica da Confissão de Fé”. Nesta seção, ao
invés de falarmos “Confissão de Fé de Westminster”, para poupar o tempo, chamaremos
apenas de “Confissão”.

Logo, este capítulo se ocupa em oferecer uma justificativa confessional para o item
demandado para o processo de licenciatura.

Apesar do tema “sacerdócio universal” 1


não ser diretamente mencionado no texto
da Confissão, entende-se que este, mesmo assim, está evidente na argumentação e no
texto da Confissão. Segue-se aqui um argumento semelhante ao desenvolvido por Anizor
e Voss (2016, p. 25), afirmando que, ainda que o tema “sacerdócio universal” não esteja
evidenciado de forma direta, ele permeia toda a história bíblica 2 .

Logo, o conceito de “sacerdócio universal” emerge já no início do texto da Con-


fissão, quando esta trata em seu capítulo III, seção III, que pelo “pelo decreto de Deus e
para manifestação da sua glória alguns homens ... são predestinados para a vida eterna...”.
Esta afirmação é corroborada e desenvolvida logo mais na seção V deste mesmo capítulo
que diz

Segundo o seu eterno e imutável propósito e segundo o santo conselho


e beneplácito da sua vontade, Deus antes que fosse o mundo criado,
escolheu em Cristo para a glória eterna os homens que são predestinados
para a vida; para o louvor da sua gloriosa graça, ele os escolheu de sua
mera e livre graça e amor, e não por previsão de fé ...

Essas duas citações trazem à luz que o propósito do decreto de Deus em relação
1
Outros termos correspondentes, embora tenham particularidades dependendo de sua definição e con-
texto de tradição são: sacerdócio de todos os crentes, sacerdócio dos batizados, sacerdócio dos fiéis e
sacerdócio dos leigos.
2
cf. Capítulo 2, A Royal Priesthood: Scripture’s Story in Anizor e Voss (2016)
20 Capítulo 2. Enquadramento Confessional

aos seus escolhidos é: a glória de Deus por toda a eternidade.

Hodge (2016, p. 105) traz à tona esse pensamento dizendo que o “o fim ou motivo
último de Deus, na eleição, é o louvor de sua gloriosa graça”. Também pode-se observar
que aqueles que são escolhidos não o são por méritos ou capacidades prévias, e sim pela
graça e misericórdia de Deus. O crente e a crente são sacerdotes de Deus por causa da
sua identidade enquanto povo chamado pela escolha de Deus para a sua própria glória.

A Confissão, em seu capítulo XIII, trata sobre a santificação, dizendo que aqueles
chamados por Deus são “fortalecidos em todas as graças salvadoras, para a prática da
verdadeira santidade...”. O exercício da santidade na vida do crente e da crente passa pelo
desenvolvimento de sua vocação enquanto um sacerdote, uma vez que tanto em Lv 20.7
3
tanto quanto seu correspondente em 1Pe 1.16 4 , encontra-se evidência para a santidade
como uma representação da essência da própria natureza do povo como povo de Deus. O
sacerdócio universal é evidenciado na natureza do povo como santo, separado, remido e
chamado para desenvolver as boas obras que Deus preparou (cf. Ef 2.8-10 5 ).

Já no capítulo XVI da Confissão, que aborda sobre as boas obras, percebe-se que
as boas obras são aquelas “ordenadas na palavra” (seção I), “fruto e as evidências de
uma fé” (seção II) e “glorificam a Deus” (seção II). As boas obras são a consequência
de um cristão e cristã que entende sua identidade enquanto povo de Deus e seu chamado
enquanto sacerdotes.

Dessa forma, o sacerdócio universal está implicado na Confissão assim como está
implicado em toda a história bíblica. Considerando as evidências confessionais trazidas
aqui, entende-se que o sacerdócio universal é definido por homens e mulheres:

a) Escolhidos por Deus para a sua glória (cf. Cap. III);

b) Chamados para serem santos neste mundo (cf. Cap. XIII);

c) Conduzidos para a prática das boas obras (cf. Cap. XVI).


3
Portanto, santificai-vos e sede santos, pois eu sou o Senhor, vosso Deus. [Lv 20.7, ARA]
4
porque escrito está: Sede santos, porque eu sou santo.[1Pe 1.16, ARA]
5
Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras,
para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais
Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.[Ef 2.8-10, ARA]
21

Esta justificativa confessional pretendeu abarcar o tema central desta tese, que é
o sacerdócio universal de todos os crentes. Temas como a missão e a própria igreja, que
também fazem parte deste trabalho, são discutidos na Seção 4.1.

Pretende-se, nesta exposição de tese, defender a doutrina do sacerdócio universal


enquanto uma abordagem viável e bíblica para o exercício da missão da igreja. Esta
abordagem é útil para desenvolver e possibilitar uma prática mais robusta e qualificada
de todo cristão e toda cristã na missão de Deus no mundo.
23

3 Objetivos e procedimentos

Pretende-se com este trabalho enquadrar três grandes perspectivas teológicas que se rela-
cionam aqui através da lógica dedutiva 1 .

Em termos gerais, passaremos primeiramente para a definição do que é igreja e o


que a constitui, de acordo com a perspectiva da teologia reformada, especificamente pela
teologia calvinista. Esse primeiro movimento será desenvolvido no Capítulo 4.

O segundo movimento trabalhará a o desenvolvimento da missão enquanto uma


atividade da igreja. Essa parte está no Capítulo 5.

O terceiro e último movimento conceitual desenvolverá a interface pela qual a


missão da igreja se realiza no mundo atual. Faremos isso a partir da doutrina do sacerdócio
universal, entendendo que essa é uma abordagem válida a partir das Escrituras e coerente
com a história da igreja e a teologia cristã. Este último movimento está no Capítulo 6.

De maneira geral, este trabalho pretende expor e demonstrar a doutrina do sacer-


dócio universal enquanto uma possibilidade de meio contextual para a igreja cristã exercer
a sua missão no mundo. Ao dizermos possibilidade de meio contextual estamos dizendo
que a lente teórica do sacerdócio universal pode oferecer à igreja atual uma abordagem
pela qual ela desenvolve o seu fim enquanto povo de Deus chamado para exercer sua
missão de fazer discípulos 2 .

Especificamente, pretende-se neste trabalho:

a) Explicar a doutrina da igreja (eclesiologia) e suas principais abordagens através


da perspectiva da teologia reformada;

1
O método dedutivo é definido por Marconi e Lakatos (2003) e se desenvolve através de uma conexão
descendente. Parte-se de uma conjuntura mais abrangente e passa-se a uma conjuntura mais específica.
Popper (2008, p. 30), em sua obra, fala sobre as dificuldades do método indutivo e desenvolve um
forte argumento favorável ao uso do método dedutivo (ou como ele diz, “dedutivo de prova”.)
2
Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide,
portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos
os dias até à consumação do século. [Mt 28.18-20, ARA]
24 Capítulo 3. Objetivos e procedimentos

b) Explicar o papel da igreja enquanto um agente missionário de Deus no mundo;

c) Discutir sobre a igreja enquanto uma entidade corporativa representativa de


Deus no mundo através da doutrina do sacerdócio universal;

d) Demonstrar as responsabilidades e possibilidades para a igreja no exercício de


sua missão no mundo através das implicações que a doutrina do sacerdócio
universal traz.
Parte II

Desenvolvimento
27

4 Eclesiologia

4.1 Definições confessionais

Antes de definirmos o que é a igreja de acordo com os documentos confessionais da Igreja


Presbiteriana do Brasil, a saber, Catecismo Maior, Breve Catecismo e Confissão de Fé de
Westminster, destacam-se aqui as principais definições sobre o que é a igreja em alguns
documentos confessionais protestantes.

As confissões funcionam como balizas que ajudam a constituir o status identitário


da igreja. Elas provam o que a igreja é e o que não é. Os credos e confissões emergem na
história da igreja para posicionar aquilo que os cristãos, em seus respectivos momentos
históricos, precisavam declarar acerca de assuntos que tornavam-se controversos e que
demandavam algum tipo de resposta contundente. Dessa forma, os credos e confissões
também definem a identidade da igreja (TRUEMAN, 2019).

A primeira e mais fundamental declaração confessional da igreja é o Credo Apostó-


lico. Maia (2014) faz uma exaustiva apresentação sobre os itens desse documento e sobre
a sua importância para definir as bases doutrinárias e teológicas da igreja cristã. A afir-
mação do Credo Apostólico que nos interessa já está quase no final de sua declaração. O
texto diz “Creio no Espírito Santo; na santa Igreja católica; na comunhão dos santos...”
. Maia (2014, p. 490) aponta as duas características principais que surgem para a igreja
a partir dessa confissão: Santidade e Catolicidade. Posterior ao Credo Apostólico, temos
o Credo Niceno-Constantinopolitano que evidencia quatro marcas para a igreja: Unidade,
Santidade, Catolicidade e Apostolicidade.

Uma observação importante acerca da redação do Credo Apostólico é a sua es-


trutura em torno da Trindade. É a partir da obra do Espírito Santo que a igreja surge
(FERREIRA; MYATT, 2007).

Dentre as confissões conhecidas dentro da tradição protestante reformada, temos


28 Capítulo 4. Eclesiologia

o texto da Confissão Belga, produzida por Guido de Brés. Além de reiterar as afirmações
dos Credos antigos (Credo Apostólico e Credo Niceno-Constantinopolitano), essa confissão
traz a seguinte declaração:

... Esta santa igreja também não está situada, fixada ou limitada em
certo lugar, ou ligada a certas pessoas, mas ela está espalhada e dis-
persa pelo mundo inteiro. Contudo, está integrada e unida, de coração e
vontade, no mesmo Espírito, pelo poder da fé (BRÉS; URSINUS, 2011).

Entendemos, dessa forma, duas constituições aparentemente antagônicas presentes


na igreja. Ela está dispersa e espalhada, e ao mesmo tempo, integrada e unida. Em cada
canto do mundo onde existe a confissão do Cristo, existe uma assembleia denominada de
seu povo.

Outro documento da tradição reformada é o Catecismo de Heidelberg, escrito por


Zacarias Ursinus. Este documento organiza-se através de perguntas e respostas ao longo
dos 52 domingos do ano. A certa altura, no domingo 21, a resposta sobre a “santa igreja
universal de Cristo” traz a seguinte redação:

Creio que o Filho de Deus reúne, protege e conserva, dentre todo o


gênero humano, sua comunidade eleita para a vida eterna. Isso ele faz
por seu Espírito e sua Palavra, na unidade da verdadeira fé, desde o
princípio do mundo até o fim. Creio que sou membro vivo dessa igreja,
agora e para sempre (BRÉS; URSINUS, 2011).

Esse texto continua na próxima pergunta, ainda no domingo 21, sobre a “comunhão
dos santos” dizendo:

... Todos os crentes, juntos e cada um por si, têm, como membros, co-
munhão com Cristo, o Senhor, e todos os seus ricos dons... Todos devem
sentir-se obrigados a usar seus dons com vontade e alegria para o bem
dos outros membros (BRÉS; URSINUS, 2011).

Essas duas afirmações tornam clara a dependência da igreja tanto do Espírito


como de Cristo e coloca também as implicações que cada cristão e cada cristã devem ter
a partir disso. Todos devem usar aquilo que receberam de Deus para o bem dos outros.
4.1. Definições confessionais 29

Um documento confessional mais recente é o Catecismo Nova Cidade, escrito em


parceria pela organização The Gospel Coalition. Esse documento traz em sua pergunta
sobre a igreja a seguinte declaração:

Deus escolhe e preserva para si uma comunidade eleita para a vida eterna
e unida pela fé, que, em conjunto, ama, segue, aprende e adora a Deus.
Deus envia essa comunidade para proclamar o evangelho e prefigurar o
reino de Cristo pela qualidade de sua vida em conjunto e seu amor uns
para com os outros (COALITION; CHURCH, 2017, p. 115).

Essa resposta apresenta igreja como o agente enviado por Deus para a proclamação
do Evangelho e para a demonstração do Reino de Cristo. A vida da igreja irá demonstrar
o próprio reino de Deus.

Segundo o Art. 2 da CI-IPB, a Igreja Presbiteriana do Brasil

tem por fim prestar culto a Deus, em espírito e verdade, pregar o Evan-
gelho, batizar os conversos, seus filhos e menores sob sua guarda e en-
sinar os fiéis a guardar a doutrina e prática das Escrituras do Antigo
e Novo Testamentos, na sua pureza e integridade, bem como promo-
ver a aplicação dos princípios de fraternidade cristã e o crescimento de
seus membros na graça e no conhecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo
(BRASIL, 2019).

É importante notar o aspecto da missão presente dentro das intenções particulares


na definição de igreja pela CI-IPB. A igreja tem por finalidade, segundo essa definição,
pregar o Evangelho, bem como ensinar a doutrina, promover a aplicação dos princípios e o
crescimento. Todas essas intenções podem ser posicionadas dentro do exercício da missão
por parte da igreja.

O Catecismo Maior de Westminster, símbolo de Fé da Igreja Presbiteriana do


Brasil segundo a CI-IPB Art. 1, evidencia em sua discussão sobre a igreja visível e invisível,
na resposta à pergunta 65, sobre os benefícios que desfrutam os membros da igreja invisível,
dizendo que “membros da igreja invisível gozam por Cristo da união e comunhão com Ele
em graça e glória.” (BÍBLIA, 2009, p. 1809).

Essa resposta aponta o estado da igreja enquanto unida a Cristo. A igreja não é
uma agremiação de interesses quaisquer, antes, é a reunião em e por Cristo. É a comunhão
com ele em graça e glória.
30 Capítulo 4. Eclesiologia

A Confissão de Fé de Westminster, por fim, dedica o seu capítulo XXV a explicitar


o que vem a ser a igreja. A definição confessional aqui desenvolve por sua vez o contexto
de igreja visível, dizendo que

A Igreja Visível, que também é católica ou universal sob o Evangelho


(não sendo restrita a uma nação, como antes sob a Lei) consta de todos
aqueles que pelo mundo inteiro professam a verdadeira religião, junta-
mente com seus filhos; é o Reino do Senhor Jesus, a casa e família de
Deus, fora da qual não há possibilidade ordinária de salvação. (PRES-
BITERIANA, 1980).

Hodge (2016, p. 426), ao comentar esse trecho, diz que a promessa de Cristo ao
dar certeza à sua igreja que ela será eficiente em sua missão pelo mundo.

Logo, a igreja visível de Deus no mundo, segundo a Confissão de Fé, é essa que é o
Reino do Senhor Jesus, a casa e a família de Deus. Essas afirmações colocam a igreja no
papel de ser representante de Deus em missão neste mundo: um reino de amor no meio
de reinos perversos.

Na próxima seção, aprofundaremos as definições sobre a constituição da igreja.


Para isso, trabalharemos as definições propostas por Bavinck (2012) e Berkhof (1990) em
suas obras. Serviremos aqui de suas categorias dogmáticas com a finalidade de organização
das ideias e não em sentido exaustivo.

4.2 A essência da igreja

Bavinck (2012, p. 278) diz que a essência característica da igreja é que ela é “o povo de
Deus, a realização do amor eletivo de Deus”. Ele também complementa dizendo que a
igreja recebe benefícios da parte de Deus que a empoderam para a sua missão.

A definição de Bavinck (2012) passa por identificar a igreja enquanto aqueles que
participam de Cristo e de seus benefícios. Essa é situação mais elementar da constituição
da igreja: participação em Cristo e recebimento dos benefícios de Cristo.

A igreja nas Escrituras deriva sua natureza da constituição da sinagoga. Tanto o


termo grego para sinagoga, quanto o termo grego para igreja, eram usados nos dias de
4.2. A essência da igreja 31

Jesus para designar as reuniões praticadas pelos judeus. Na medida em que a comunidade
dos cristãos continua na era apostólica, segundo Bavinck (2012), ela vai se descolando do
termo para sinagoga e passa a identificar-se mais com o termo igreja, indicando que agora
ela torna-se uma reunião independente que substitui o lugar de Israel.

Entretanto, o termo igreja é enriquecido de significado. Não é uma reunião ordiná-


ria e comum. Ela demonstra, na verdade, a reunião de todo o povo de Deus em nome de
Cristo, e onde estão dois ou três reunidos, estes podem reivindicar um “poder” especial
para esta reunião (CLOWNEY, 2003).

Bannermann (2014) mostra que a igreja deve sua origem a uma determinação do
próprio Cristo. A igreja não existe por si mesma ou pelas suas próprias preferências, mas
sim por aquele que a gerou, Cristo. Ao afirmar isso, Bannermann (2014, pos. 748) também
defende que a união da igreja com Cristo liga também os entes que a constituem.

A íntima e misteriosa união que se estabelece pela fé entre o crente e


o seu salvador é uma união que o liga por meio desse salvador a todos
os outros cristãos. Ao tornar-se um com Cristo, ele ao mesmo tempo
também se torna um, em certo sentido, com todos aqueles que são de
Cristo.

Bavinck (2012, p. 301) mostra como a palavra “igreja” pode ter obscurecido o
sentido neotestamentário original do seu termo. O fato mais importante que deve emergir
de uma definição de igreja é a sua constituição enquanto povo de Deus. A igreja é, em
sua essência, uma comunidade do povo que pertence a Deus 1 .

Schmidt (1965, p. 59) mostra quão importante foi o resgate de Lutero quanto
à natureza da igreja enquanto a comunidade dos santos, do povo de Deus, frente ao
catolicismo que percebia a igreja a partir da ênfase em seu aspecto institucional-jurídico-
representativo.

Dentre os benefícios que a igreja herda de Cristo estão os dons que ela recebe.
Esses dons são presentes de Cristo distribuídos pelo Espírito (BAVINCK, 2012).
1
Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus,
edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular;
no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós
juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito. [Ef 2.19-22, ARA]
32 Capítulo 4. Eclesiologia

Bavinck (2012, p. 303) diz

Ele os distribui a cada um individualmente, conforme sua vontade, não


de forma arbitrária, mas em conexão com a medida da fé da pessoa, com
a posição que a pessoa ocupa na igreja e com a missão para a qual foi
chamada (Rm 12.3, 6; 2 Co 10.13; Ef 4.7; 1Pe 34.10), de forma que cada
dom é “uma manifestação do Espírito” (1Co 12.7).

O que consideramos desta primeira seção é que a participação da igreja em Cristo


a leva para o exercício da missão através de seus dons. A essência da igreja é ser uma
comunidade de Cristo movida pelo seu Espírito para os fins que ele mesmo a comissionou.

4.3 O governo e o poder da igreja

Calvino (2009) em sua obra magna, “A Instituição da Religião Cristã”, trabalha em todo
o seu Livro IV sobre questões relacionadas a igreja. O objetivo de Calvino com essa obra
é determinar o que é a verdadeira igreja de Deus em contraste com a falsa igreja. Para
ele, a igreja é o meio pelo qual Deus se serve para nos unir a Cristo.

Dessa forma, o governo e poder da igreja são os instrumentos pelo qual a igreja
mantém o seu propósito de nos unir a Cristo. É através do correto exercício desse poder
que a igreja poderá cumprir esse fim de maneira adequada.

Beeke e Jones (2016) discorrem em sua obra sobre as distinções eclesiásticas pre-
sentes no campo protestante-reformado quanto ao governo da igreja. Ao tratar do caso
do presbiterianismo, ele faz algumas afirmações distintivas importantes para o fim deste
trabalho:

a) O poder, no sentido estrito, da igreja pertence aos oficiais;

b) Os oficias da igreja (presbíteros e diáconos) recebem seu poder comum de


Cristo;

c) A igreja visível é o objeto do poder que Cristo concede à igreja;

d) Os oficiais são os sujeitos do poder dado à igreja visível;


4.3. O governo e o poder da igreja 33

Dessa forma, dentro do sistema presbiteriano de governo, entende-se que os oficiais


da igreja representam o poder do próprio Cristo para governo e cuidado da igreja visível.
De maneira distinta dos congregacionalistas, o presbiterianismo não compreende o poder
como oriundo da comunidade por si, ainda que esta receba o poder derivado de Cristo. De
maneira especial, os oficiais tem responsabilidades da parte de Cristo (BEEKE; JONES,
2016; BERKHOF, 1990).

Isso nos leva para os princípios fundamentais defendidos por Berkhof (1990) para
o governo do sistema presbiteriano:

a) Cristo é o cabeça da igreja e fonte de sua autoridade: Cristo é quem instituiu a


igreja no Novo testamento, é ele também quem instituiu os meios de graça da
igreja (palavra e sacramentos), bem como os oficiais, e deu a estes autoridade.
Por fim, ele está presente na reunião para culto da igreja;

b) Cristo exerce sua autoridade por meio de sua palavra real: Cristo governa a
igreja subjetivamente pelo Espírito e objetivamente pela Palavra de Deus;

c) Cristo como rei revestiu a igreja de poder: A igreja como um todo recebe poder
de Cristo;

d) Cristo providenciou órgãos representativos para o exercício do poder: O voto é


maneira pela qual os representantes são eleitos, porém, eles não recebem sua
autoridade do povo mas sim do próprio Senhor;

e) O poder da igreja reside primeiramente no corpo governante local: O conselho


da igreja assume o papel primário de representatividade do poder da igreja;

Sobre os oficiais, Berkhof (1990, p. 578) diz “É Cristo como Rei que lhes possibilita
(aos oficiais) falar e agir com autoridade”. Reforçando a dependência dos oficiais de Cristo
para o exercício de seu poder bem como o papel representativo de sua autoridade diante
do povo de Deus.

Bannermann (2014) apresenta toda essa situação da fonte do governo da igreja


como “A liderança de Cristo”. Ele afirma que:
34 Capítulo 4. Eclesiologia

a) “Assim, o sistema reformado ou presbiteriano honra a autonomia da igreja local,


apesar de sempre considerá-la sujeita às limitações que lhe podem sobrevir como
resultado de sua associação com outras igrejas, formando uma denominação,
e lhe assegura o mais completo direito de governar os seus interesses internos
por meio dos seus oficiais.”

b) “O poder da igreja não deriva da comissão e da autorização do Estado.”

Quando Bannermann (2014) estipula essas distinções, ele corrobora o que Berkhof
(1990) e Beeke e Jones (2016) estão trazendo enquanto a posição presbiteriana-reformada
sobre o governo da igreja. Poder e governo aqui são tratados enquanto elementos indisso-
ciáveis. O que valida e organiza o governo é o poder e a sua origem. Enquanto está posto
que a origem do poder dos governantes da igreja reside na liderança de Cristo e não nas
particularidades da própria comunidade ou nos desejos e caprichos de qualquer represen-
tante político ou influência pessoal, fica então mais evidente o papel e a organização do
governo para os propósitos da igreja.

Dessa forma, temos então os oficiais da igreja. Berkhof (1990) divide essa categoria
entre oficiais extraordinários e oficiais ordinários. Os primeiros são aqueles que estiveram
no período do Novo Testamento atuando em circunstâncias especiais e antes da organiza-
ção e consolidação da igreja até o encerramento do cânon, são estes os apóstolos, profetas
e evangelistas.

Já os oficiais ordinários, são elencados por Berkhof (1990) como os (a) presbíteros,
(b) mestres e (c) diáconos. A particularidade entre estes não nos interessa nesse momento,
visto que nossa discussão caminha para apresentar a validade do ofício ordinário desses
representantes dentro da constituição da igreja 2 .

Bavinck (2012, p. 382) mostra como estes ofícios existem para a igreja, “Os ofícios
da igreja de Cristo não são um poder governante, mas servil. Eles existem por causa da
igreja”. Um dos papeis mais importantes que os oficiais executam é o de servos do povo
de Deus.
2
Tanto Bavinck (2012) quanto Berkhof (1990) evidenciam as distinções entre cada um destes ofícios
dentro da igreja.
4.3. O governo e o poder da igreja 35

Por fim, talvez um dos principais imperativos para o exercício do poder dos oficiais
da igreja é descrito na carta do apóstolo Paulo aos Efésios 3 , ele diz

E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros
para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfei-
çoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação
do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno
conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da
estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos como meni-
nos, agitados de um lado para outro e levados ao redor por todo vento
de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem
ao erro.

Este texto corrobora o que temos visto até aqui: (a) É Cristo quem concede os
oficiais da igreja; (b) Estes devem atuar como servos dessa; (c) O fim desse serviço é a
edificação, aperfeiçoamento e preparo.

Clowney (2003) oferece uma solução importante quanto ao governo da igreja e


sacerdócio de todos os cristãos, ele diz “Quando os membros da igreja assumem com
seriedade seu chamado individual e corporativo no mundo, eles se sentem mais enstusi-
asmados e precisam da instrução e da direção espiritual para a qual Cristo os designou
co-pastores.”. Percebemos dessa forma que não existe incompatibilidade entre o exercício
do sacerdócio universal e o governo instituído por Cristo para a igreja, antes, os oficiais
da igreja devem ser guardiões do correto exercício do sacerdócio de cada cristão e cristã
no mundo, sendo seus incentivadores, cuidadores e mantenedores.

Concluímos esta seção considerando a implicação do poder e do governo da igreja


para o desenvolvimento de uma igreja adequada a sua missão no mundo. Os representan-
tes oficiais de Cristo na igreja, presbíteros-mestres, presbíteros-regentes e diáconos, são
responsáveis para fazer cumprir as intenções de Cristo na vida da igreja para a benção
do mundo.

Na última seção deste capítulo, iremos tratar sobre a igreja durante toda a narra-
tiva bíblica e sobre como a organização e ajuntamento do povo de Deus no mundo sempre
se desenvolveu de maneira missionária.
3
Ef 4.11-14 emBíblia (2009).
36 Capítulo 4. Eclesiologia

4.4 A igreja na narrativa bíblica

Pensar na igreja em função de sua natureza, propósito e organização ao longo da narrativa


bíblica é uma tarefa com diferentes abordagens. Caso recorramos a compêndios de teologia
sistemática, provavelmente encontraremos as definições dos termos bíblicos e algum ensaio
histórico sobre o desenvolvimento desses termos e o que significam para seu momento.

Entretanto, para esta seção, iremos usar o trabalho de Goheen (2014a) 4


que
desenvolve uma argumentação forte em favor da igreja em toda a narrativa bíblica a
partir da lógica da missão.

Para Goheen (2014a), a vocação do ajuntamento de pessoas em nome de Deus,


tanto no Antigo Testamento, quanto no Novo Testamento, se dá neste ajuntamento como
um canal de benção para as nações. Deus, em toda a história bíblica, tem convocado e
formado um povo para ser seu instrumento para abençoar o mundo.

Perceber a igreja enquanto um agente da missão de Deus no mundo significa dizer,


segundo Goheen (2014a), que ela:

a) Participa da missão de Deus;

b) Dá continuidade à missão de Israel no Antigo Testamento;

c) Dá continuidade à missão do reino de Jesus;

d) Dá continuidade ao testemunho da igreja primitiva;

É interessante notar que nesse resumo de Goheen (2014a) a palavra continuidade


aparece por três vezes. Isso indica para nós que o papel da igreja no decorrer da história
bíblica é sempre um papel de manter o que já acontecia. A igreja não descobriu a missão
apenas quando Jesus a comissionou. Na verdade, a igreja está em missão desde que Deus
a criou, e como temos visto, isto antecede o próprio período neotestamentário.
4
Michael Goheen é um pastor, professor e plantador de igrejas que tem desenvolvido um profícuo
trabalho em missiologia, teologia bíblica e cosmovisão. Diversas de suas obras já tem sua tradução
em língua portuguesa e dentre elas destacamos “A Igreja Missional na Bíblia”, publicada por Edições
Vida Nova e “A Missão da Igreja Hoje”, publicada pela Editora Ultimato. Depois de ensinar em
diversos seminários e escolas teológicas como Dordt College, Redeemer University College, Regent
College e Calvin Theological Seminary, hoje é professor no Missional Trainning Center, uma extensão
do Covenant Seminary.
4.4. A igreja na narrativa bíblica 37

Quando Deus criou o mundo, ele deu aos seus primeiros habitantes uma missão:
ser representantes dele. Isso estava impresso na sua própria imagem, isto é, eles tinham
a imagem de Deus em sua constituição, e também nas ordens que receberam da parte de
Deus: “encher e multiplicar”, “cuidar”, “dar nome aos animais”, entre outras.

Ao observarmos a história do povo de Deus na Bíblia, vemos que após a queda e


a introdução do pecado na história, Deus inicia um plano para restaurar todas as coisas
e para isso conta com um povo que irá desempenhar para todas as nações a esperança
dessa restauração, como Goheen (2014a, p. 229) diz “A identidade missional da igreja
está fundamentada no papel que Deus designou ao seu povo nessa história”.

Existe um papel duplo, segundo Goheen (2014a), que o povo de Deus desempenha
no mundo. Este papel resume de maneira assertiva o propósito e lugar do povo de Deus:
“por ele em favor do mundo”, isso fica melhor definindo quando Goheen (2014a, p. 230)
diz

A igreja é o lugar da obra de renovação divina, e seu povo é o primeiro


a experimentar a salvação divina - não exclusivamente para si mesmo.
A igreja é chamada a ser agente ou instrumento de redenção no mundo
e em favor do mundo, escolhida a fim de convidar outros para a bênção
da aliança que ela experimenta.

Goheen (2014a) também mostra que a igreja neotestamentária não é um elemento


novo inserido na história, mas sim uma continuidade da história que está acontecendo
desde o Antigo Testamento. Esta unidade e continuidade entre as histórias impacta as
diversas matérias teológicas e bíblicas, inclusive o estudo da igreja. Goheen (2014a) diz
“A igreja missional dá prosseguimento à missão de Israel para com as nações” 5 .

Para Goheen (2014a, p. 231) o que significa ser povo de Deus no contexto de Israel
é

Israel é um povo escolhido; de todos os povos da terra, Deus escolhe


Abraão e Israel para serem propriedade exclusiva. O povo de Israel é
um povo redimido, libertado da servião ao faraó e aos deuses do Egito
para servir ao Deus vivo com toda a sua vida. Eles são o povo da aliança,
ligados por Deus a ele mesmo por meio de um relacionamento de aliança;
5
cf. p. 230 e a explicação de Goheen (2014a) para os dois textos paradigmáticos no Antigo Testamento
para a missão de Israel em favor das outras nações: Gn 12.1-3 e Ex 19.3-6.
38 Capítulo 4. Eclesiologia

ele promete ser o seu Deus enquanto eles se comprometem a ser o seu
povo. Israel deve ser uma nação santa, andar no caminho divino da
justiça e da retidão, moldando sua vida pela Torá de acordo com os
propósitos de Deus com a criação. Grande parte da história de Israel
está ligada com a ação de Deus entre eles, na luta de Israel contra a
idolatria. Israel é um povo que conhece a presença de Deus, que desfruta
de um relacionamento continuado com ele. Esse relacionamento exige do
povo sua fiel resposta em obediência, amor, fé e adoração ao seu Senhor
da aliança.

Outro fato marcante na história bíblica a fim de evidenciar a identidade missional


da igreja está na pregação e realização do reino de Deus no momento histórico através da
obra de Jesus. Segundo Goheen (2014a, p. 233), “A igreja missional dá prosseguimento
à missão de Jesus”. Esta comunidade, denominada igreja, assembleia, sinagoga, reunião,
“encarna a intenção original que Deus tinha para a humanidade com a criação” (GOHEEN,
2014a), retomando a história bíblica desde o princípio.

Por fim, temos a igreja enquanto uma comunidade que se volta para fora de si
mesma, para bênção do mundo, e assim ela o faz porque isso faz parte de quem ela é: uma
comunidade abençoada para abençoar. Se queremos que as igrejas sejam mais bíblicas,
elas devem fazer parte da história bíblica, e fazer parte da história bíblica significa ser
missional. Goheen (2014a, p. 236-237) cita quatro situações bíblicas que lançam luz para
as ações da igreja nos dias de hoje enquanto parte dessa narrativa bíblica, são elas:

a) Natureza institucional: A orientação de dois-polos da igreja, com uma face


voltada para dentro e outra voltada para fora;

b) A comunidade que manifesta o reino: A igreja deve se posicionar como uma


comunidade alternativa e que manifesta a sua lealdade não a este mundo mas
ao verdadeiro Rei;

c) Uma comunidade com uma tarefa: A tarefa missionária da igreja deve ser desem-
penhada através da pregação (proclamação) e em boas obras de misericórdia e
justiça;

d) O chamado para todos os povos: A missão da igreja se orienta para todos os


povos. A igreja deve atuar em todas as frentes que Jesus a chamou (At 1.8),
seja em seu contexto local seja em seu contexto mais distante;
4.4. A igreja na narrativa bíblica 39

Para finalizar, Schirrmacher (2015, loc. 1282) mostra que a natureza missionária da
igreja e o empreendimento missionário atual não deve ser apresentado de maneira isolada
e independente do que evidenciamos a partir da Escritura, tanto no Antigo Testamento
quanto no Novo Testamento, que corrobora aquilo que já está evidente na mentalidade
moldada pela perspectiva veterotestamentária. Ele diz que as missões mundiais não “...po-
dem ser apresentadas e praticadas independentemente da história da salvação no Antigo
Testamento e do destino do povo judeu.”.

Esta seção procurou finalizar este capítulo identificando que a igreja através da
narrativa bíblica pode ser percebida a partir de seu caráter missionário. Ser igreja é ser
uma comunidade de benção para o mundo e isso tem origem na própria história bíblica.
Cabe a nós agora entender o que significa de maneira específica esta missão e porque
nós enquanto igreja hoje devemos desempenhá-la. É sobre isto que o próximo capítulo irá
tratar.
41

5 Missão

5.1 O desafio conceitual

Um dos termos mais disputados e desafiantes na teologia é a missão. Por muitas vezes e
por diferentes tradições, o termo missão é apresentado de maneira quase que contraditória
e lidar com as questões que o envolvem nem sempre é uma tarefa simples de se fazer 1 .

Stott (2010) apresenta logo no início de sua obra “A missão cristã no mundo
moderno” duas perspectivas bastante opostas nessa discussão. A primeira, segundo ele, é
uma visão de missão que se concentrava na proclamação verbal do evangelho. Essa visão
compreende o mundo como um “prédio em chamas” e o cristão deve se organizar para
resgatar as pessoas deste prédio prestes a desabar.

Na outra ponta está o que Stott (2010) denomina de ponto de vista ecumênico. O
que está em jogo, de acordo com o autor, é um novo vocabulário de missões. Este ponto
de vista tentou lidar com a missão no aqui e agora enquanto a realização das perspectivas
bíblicas sobre a paz de Deus ao mundo, e se desenvolve, nas palavras de Stott (2010),
como uma “aceleração da mudança social e política”.

Stott (2010) assume uma posição mais equilibrada entre esses dois pólos, conside-
rando que ambas as posições levantam questões importantes, mas a missão não deveria
ser isso ou aquilo, mas talvez, isso e aquilo, com as devidas precauções aos exageros. Pode-
mos inclusive lembrar da tensão comentada na introdução deste trabalho entre “Reform
and Revival” ou “Reform or Revival”. Para tentar resolver isso, Hooft apud Stott (2010,
p. 24) define essas tensões enquanto interpretação horizontal (o ponto de vista ecumênico)
e interpretação vertical (o ponto de vista mais tradicional) e diz

Creio que, com respeito à grande tensão entre a interpretação vertical do


evangelho, que o considera essencialmente interessado na ação salvadora
de Deus na vida dos indivíduos, e a interpretação horizontal do evan-
1
As duas tensões apresentadas de maneira resumida neste trabalho são melhores desenvolvidas por
Dulci (2014).
42 Capítulo 5. Missão

gelho, que o considera interessado principalmente nos relacionamentos


humanos no mundo, devemos evitar este movimento oscilante inicial que
vai de um extremo ao outro, pois isso não corresponde a um movimento
que, por natureza, procura abarcar a verdade do evangelho em sua to-
talidade. Um cristianismo que perdeu sua dimensão perdeu o sal e, não
somente é insípido em si mesmo, mas é inútil para o mundo. Porém,
um cristianismo que usa a preocupação vertical como um meio para es-
capar de sua responsabilidade para com a vida comum do homem é uma
negação da encarnação, do amor de Deus pelo mundo manifestado em
Cristo. [destaque nosso]

Stott (2010, p. 41) nos oferece então um conceito mais amplo de missão que abrange
tanto o evangelismo, a proclamação, quanto a ação social.

A dicotomia entre evangelização e ação social é perigosa pois nos insere em uma
realidade que não nos parece coerentemente bíblica. Ferreira (2005, p. 573) afirma que “É
necessário que a Igreja jamais perca de vista sua missão de proclamar com fidelidade o
Evangelho e que, em sua expressão social, não haja interesse algum, senão puro amor.”.

O Pacto de Lausanne 2 elenca duas ameaças para o exercício da missão no mundo:


conformação com o mundo ou isolamento do mundo. Essas duas ameaças relacionam as
duas tensões trabalhadas até aqui. Quando a igreja se preocupa apenas com a dimensão
vertical de sua missão, o perigo que enfrenta é que se isole do mundo. Quando ela se
preocupa apenas com a dimensão horizontal, o perigo é que esta se conforme, não faça a
diferença e não mantenha seu estado de comunidade de contraste.

O que pode nos ajudar a isso é o que o próprio documento de Lausanne no trecho
no capítulo 6, sobre Evangelização e Missão,

Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim como
o Pai o enviou, e que isso requer uma penetração de igual modo pro-
funda e sacrificial. Precisamos deixar os nossos guetos eclesiásticos e
penetrar na sociedade não-cristã. Na missão de serviço sacrificial da
igreja a evangelização é primordial. A evangelização mundial requer que
a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo. A igreja ocupa
o ponto central do propósito divino para com o mundo, e é o agente que
ele promoveu para difundir o evangelho. Mas uma igreja que pregue a
Cruz deve, ela própria, ser marcada pela Cruz. Ela torna-se uma pedra
de tropeço para a evangelização quando trai o evangelho ou quando lhe
falta uma fé viva em Deus, um amor genuíno pelas pessoas, ou uma
honestidade escrupulosa em todas as coisas, inclusive em promoção e
finanças. A igreja é antes a comunidade do povo de Deus do que uma

2
cf. Lausanne (1974)
5.1. O desafio conceitual 43

instituição, e não pode ser identificada com qualquer cultura em parti-


cular, nem com qualquer sistema social ou político, nem com ideologias
humanas. [destaque nosso]

Na Carta de Manilla 3 , uma reação do grupo de brasileiros presente no Congresso de


Lausanne II em 1989, podemos encontrar algumas afirmações que caminham no sentido
deste equilíbrio prático entre pregação e proclamação do evangelho, bem como com a
preocupação e movimentação para a atuação na sociedade enquanto representantes de
Deus. Esse documento em certo ponto diz “Reafirmamos nosso desejo de ver os valores
de Cristo ativos no nosso país, em nosso contexto histórico e cultural, pois um cristianismo
sem ressonância contextual não mata a sede espritual do povo”.

Esse documento também aponta algumas tendências importantes para o exercício


da missão para os anos seguintes, dizendo

É também na Palavra de Deus que aprendemos que essa missão envolve


todos os crentes e não somente a liderança formal da igreja (Ex 19.5-6
e IPe 2.9). Envolve tanto leigos como clérigos, tanto homens como mu-
lheres, tanto adultos como jovens e crianças, pois cada um é chamado
para ser um sacerdote de Cristo [...] Deve diminuir, nos próximos anos,
o exclusivismo clerical em troca de uma conquista de espaço do laicato.
[...] De fato, o leigo tenderá a dar um grande impulso aos ministérios da
igreja, emprestando sua formação secular aos projetos de envolvimento
com os problemas da sociedade em que está inserido. A igreja começará
a despertar para a ação política, pela qual o crente, conscientizado, des-
cobre que pode participar mais efetivamente das decisões sociais que o
atingem. [destaque nosso]

Nesse desafio proposto pela Carta de Manilla, um conceito importante para inter-
pretarmos a atuação das igrejas no contexto brasileiro é apresentado por Stetzer e Queiroz
(2017, p. 202) como o de igrejas transformacionais. Eles tratam sobre o paradigma da igreja
do “vá e conte” e dizem

A igreja não pode atuar apenas como evangelista local. Agora, ela tem
de ser o missionário capaz de penetrar nas suas complexas realidades
culturais para construir pontes. Estar inserido na cultura local para
mostrar Cristo na vida diária é fundamental.

Para Stetzer e Queiroz (2017, p. 215), na igreja transformacional “a influência


está em fazer as pessoas saírem da condição de frutos da missão para ativos na missão e
3
cf. Lausanne (1989).
44 Capítulo 5. Missão

então para líderes na missão”. Logo, devemos ter um movimento missionário que sintetiza
as duas tensões da missão cristã e que encara a realidade presente dos nossos dias para
empoderar a comunidade toda para o exercício da missão.

Isso desemboca no que iremos conhecer enquanto igreja missional. Esse termo
surge como fruto de uma discussão pujante entre diversos teólogos e missiólogos no século
XX, sendo resultado de diversas contribuições, inicialmente por Lesslie Newbigin e poste-
riormente, de maneira mais contundente, a de Darrell Guder, que, segundo alguns, foi o
que cunhou o termo “igreja missional” nos tempos mais recentes. De lá para cá, diversos
autores têm se debruçado para lidar com as ressonâncias dessa implicação em diversas
áreas da teologia, como Wright (2014) em hermenêutica e teologia bíblica, Bosch (2002)
na própria história dos paradigmas missionários, Goheen (2018) em eclesiologia e missão,
entre outros.

Estamos cientes das questões e debates acerca do uso do termo missionário e


missional 4 , porém aqui, para os fins deste trabalho, missional e missionário serão corres-
pondentes à luz da constatação de que missional é mais abrangente que missionário. Dizer
que algo é missionário é implicitamente dizer que isso é missional.

Logo, o termo igreja missional é uma forma de encararmos a natureza da própria


igreja enquanto missionária, algo que veremos posteriormente ainda neste capítulo 5 .

5.2 A missão de Deus: Missio Dei

Goheen (2014b) em sua obra, “Introducing Christian Mission Today”, trata sobre como
o paradigma de missão nos últimos séculos e mais precisamente no século XX mudou
drasticamente. Ele cita uma passagem de Philip Jenkins que é até um tanto curiosa. Nessa
passagem, Jenkins apud Goheen (2014b, p. 19) diz que a frase “cristão branco” será tão
surpreendente para nós quando falamos de um “budista sueco”. Como essa pequena frase
4
De maneira resumida, essa disputa está no sentido de o termo missionário se referir a missões, princi-
palmente no sentido transcultural e nas questões que se referem ao preparo e envio de pessoas para
este fim, enquanto missional se refere mais ao exercício da vida comum de todo cristão enquanto
agente da missão de Deus.
5
Para saber mais sobre o desenvolvimento da Teologia Missional e do conceito de Igreja Missional, cf.
Goheen (2014b), especialmente o capítulo 2, “Theology of Mission and Missional Theology”.
5.2. A missão de Deus: Missio Dei 45

ele nos mostra que a cara do povo de Deus atualmente não é mais a cara de um americano
ou europeu típico, antes é de uma “mulher que vive em uma aldeia na Nigéria” ou em
uma “favela brasileira”.

Essa constatação diz muito sobre a mudança de paradigma de missão. Durante


muito tempo fomos levados a pensar missão a partir da perspectiva geográfica. Os próprios
departamentos missionários das denominações cristãs lidavam com o termo missões dessa
maneira. Existem missões “transculturais”, aquelas que se empenham em anunciar as
boas notícias para fora do espectro geográfico que conhecemos e as missões “nacionais”,
aquelas que se dedicam em pensar nas problemáticas locais e em anunciar o Evangelho
para dentro deste contexto. Normalmente essa perspectiva está vinculada ao entendimento
do mundo ocidental cristão “levando” o Evangelho para o mundo não-ocidental não-cristão
(GOHEEN, 2014b).

Entretanto, o paradigma de missão popular até o início do século XX não pa-


rece mais dar conta e possivelmente esteja incompleto em sua abordagem, ainda mais se
contarmos os fatos mais recentes: pandemias, contexto digital, globalização, isolamento
social, entre outros, que adicionam elementos que tornam a discussão missiológica mais
complexa. Goheen (2014b) cita sete fatos que nos levam a um novo paradigma de missão,
ele diz:

a) O colapso do colonialismo no século XX;

b) Globalização;

c) Urbanização;

d) Aumento da desigualdade econômica e social;

e) Aumento considerável da população;

f) Ressurgência das religiões pelo mundo;

g) Mudanças culturais tectônicas na cultura ocidental 6 ;

Goheen (2018), ao tratar sobre o pensamento eclesiológico de Lesslie Newbigin,


mostra que toda a vida cristã tem uma dimensão missionária. Newbigin assume uma
6
Para saber detalhadamente como Goheen (2014b) encara esses fatos, confira a partir da p. 20.
46 Capítulo 5. Missão

condição que existe antes da intenção missionária e esta é a dimensão missionária da


igreja. Considerar que missão é apenas a intenção missionária, um empreendimento de
missões transculturais, por exemplo, seria cair no erro de olhar apenas a parte de um
todo. Por outro lado, devemos olhar o todo e também suas partes, logo, as intenções
missionárias devem ter lugar na agenda da igreja. Newbigin nos alerta sobre este erro
e cita a necessidade que esses dois aspectos da missão (a sua dimensão e sua intenção)
ocorram simultaneamente. Ambos precisam um do outro. Uma forma de compreender a
dimensão e a intenção missionária da igreja seria lidar com a sua origem, que é o próprio
Deus em missão.

Bosch (2002, p. 466) mostra que nos últimos 70 anos tivemos uma decisiva mudança
no sentido em que entendemos missão hoje. Essa mudança é representada pelo expressão
missio dei, na tradução, missão de Deus 7 . A missão foi compreendida

como derivada da própria natureza de Deus. Ela foi colocada, pois, no


contexto da doutrina da Trindade, não da eclesiologia nem da soterio-
logia. A doutrina clássica da missio Dei como Deus, o Pai, enviando o
Filho, e Deus, o Pai e o Filho, enviando o Espírito foi expandida no
sentido de incluir ainda outro “movimento”: Pai, Filho e Espírito Santo
enviando a igreja para dentro do mundo. Quanto ao que concerne o
pensamento missionário, essa vinculação com a doutrina da Trindade
constitui uma inovação improtante (Aagarrd 1974:420). A imagem de
missão de Willingen era a da missão como partícipe no envio de Deus.
Nossa missão não tem vida própria: só nas mãos do Deus que envia
pode-se denominá-la verdadeiramente de missão, mormente porque a
iniciativa missionária provém apenas de Deus (BOSCH, 2002, p. 467).

Dessa forma, temos o que Goheen (2014b) aponta ao comentar o trabalho de


Hendrik Kraemer. A missão não pode ser entendida como separada da igreja: a igreja
deve ser missionária e a missão deve ser algo da essência da própria igreja e a igreja
adquire isso a partir da compreensão de que o próprio Deus é um Deus missionário. Bosch
(2002, p. 468) aponta que, a partir dessa abordagem, a missão não é mais primordialmente
uma atividade da igreja, mas sim agora um atributo de Deus e um campo de articulação
na própria Teologia Sistemática. Goheen (2014b, p. 76) mostra que diversas áreas na

7
Para compreender o panorama histórico do surgimento deste termo, cf. em Bosch (2002, p. 467),
Goheen (2014b, p. 82) e González (2009, p. 212).
5.2. A missão de Deus: Missio Dei 47

Teologia Sistemática e na Teologia Bíblica são impactadas pela noção da missão de Deus,
sendo elas:

a) Escritura: A Bíblia é uma narrativa unificada da salvação de Deus na história


e a igreja faz parte dessa história;

b) Escatologia: A igreja deve entender sua participação na missão como um agente


dentro do Reino de Deus. “Missão é o significado do período do ’já mas ainda
não’ do reino.”

c) Cristologia: O ministério de Jesus é revisitado para implicar na esfera do reino


de Deus;

d) Soteriologia: “A salvação realizada por Cristo é restauradora e ampla (...). A


igreja é enviada para incorporar e anunciar uma salvação que é (...) abran-
gente.”

e) Pneumatologia: “O Espírito dá a vida da nova criação à igreja e a capacita


para testemunhar em sua própria vida, palavra e ação.”

Quem lida com este primeiro item (Escritura) é Wright (2014). Em sua obra “A
missão de Deus” podemos observar o desenvolvimento de uma leitura bíblica que consiga
lidar com os imperativos do texto. A Bíblia é um texto que abre para ação - para a missão.
Todo leitor ou leitora da Bíblia, ao se ver diante dessa história, precisa responder a fim
de participar dessa história. Ele desenvolve dizendo:

Uma hermenêutica missional, desse modo, não se contenta em simples-


mente nos chamar a obedecer à Grande Comissão (embora certamente
o inclua como uma questão inegociável) nem mesmo em refletir sobre
as implicações missionais do Grande Mandamento. Porque, por trás de
ambos, ela depara com a Grande Comunicação - com a revelação da
identidade de Deus, de sua ação no mundo e do seu propósito salvífico
para toda a criação. E para que essa comunicação seja plena, precisamos
de toda a Bíblia, em todas as suas partes e gêneros, porque Deus não nos
forneceu menos que isso. Uma hermenêutica missional leva o indicativo
e o imperativo da revelação bíblica igualmente a sério, interpretando um
à luz do outro. (WRIGHT, 2014, p. 61)

Esse movimento de atenção aos imperativos junto com os indicativos de um texto


bíblico nos leva ao que Wright (2014, p. 65) chama de “pressuposição fundamental” da
48 Capítulo 5. Missão

leitura bíblica, ele diz que isso se trata de “aceitar que a cosmovisão bíblica nos situa no
meio de uma narrativa do universo por trás da qual se encontra a missão do próprio Deus
vivo”.

Anderson (2017) nos mostra que a missio Dei está presente desde o início da
narrativa bíblica, já em seus primeiros capítulos. Deus está em missão no mundo desde o
princípio e a nossa participação em sua missão é inerente à nossa condição de existência
humana enquanto criados à imagem de Deus.

Em um sentido mais específico, a igreja enquanto a comunidade dos discípulos


de Jesus existe por ter sido ela mesma atingida pelo Deus em missão. Newbigin (2016,
p. 168) nos diz que “Temos um ministério de reconciliação que nos foi confiado porque
Deus nos reconciliou com Ele. (...) As missões são prova da nossa fé de que o Evangelho
é verdadeiro.”. A igreja é a comunidade dos abençoados que é chamada para abençoar.

Goheen (2018), ao comentar a obra de Lesslie Newbigin, aponta uma distinção


importante que também é citada por Bosch (2002): Missão e missões. Missões é uma
derivação da Missão. Missão é o que a igreja é. “Nossas atividades missionárias só são
autênticas na medida em que refletirem a participação na missão de Deus” (BOSCH, 2002,
p. 468).

Dessa forma, o propósito primeiro das atividades missionárias da igreja deve ser o
serviço à missão de Deus (BOSCH, 2002; WRIGHT, 2012).

Goheen (2014b) conclui que essa abordagem cria dois novos enfoques para a missão:

a) A missão é uma missão de Deus: Toda a ênfase recai sobre o que Deus está
fazendo para a restauração do mundo;

b) A missão é definida em termos da obra da Trindade: A participação na missão


do Deus trino concede à igreja a sua identidade missionária e seu lugar na
história de Deus;

Newbigin (1995) traz novamente a categoria trinitária para encararmos a missão.


Ele nos mostra que é essencial visualizarmos a missão presente na relação trinitária de
Deus para construirmos uma linguagem adequada para a missão, sendo esta a linguagem
5.2. A missão de Deus: Missio Dei 49

da missio Dei.

O Deus Trino em missão significa para a igreja que esta agora “assume seu papel
na missão amorosa do Pai de restaurar a criação assim como cumpre a missão do reino
do Filho e a realiza até os confins da terra pelo poder do Espírito” (GOHEEN, 2014b,
p. 77)

Essa compreensão mais abrangente da missão significa inclusive uma nova lógica
(ou quem sabe uma lógica menos estrita), o que Newbigin (2016, p. 166) afirma dizendo

O verdadeiro significado da históra humana foi revelado. Pelo fato de


que é a verdade, ele deve ser compartilhado universalmente. Não pode
ser uma opinião privada. Quando nós o compartilhamos com todas as
pessoas, damos a elas a oportunidade de conhecer a verdade sobre si
mesmas, de saber quem são porque elas podem conhecer a verdadeira
história da qual sua vida faz parte. (...) Depois disso, a situação nunca
mais poderá ser a mesma.

Assim, Bosch (2002, p. 470) mostra que o caminho do entendimento da missio Dei
é um caminho sem volta. Este “avanço” significa muito para a robustez do entendimento
missionário da igreja e nos dá novas e criativas abordagens para que a igreja represente
seu papel enquanto serva da vontade do Deus missionário neste mundo.

A igreja é, segundo Clowney (2003) a comunidade dos reunidos e reunidores. Reu-


nidos por Cristo para que reúnam mais pessoas. Essa reunião, base da própria etimologia
da palavra igreja, demonstra as intenções do Deus que reuniu para si um povo.

É o que Allen (2015) caracteriza como a quarta marca da igreja. Ampliando o


que normalmente conhecemos na tradição da reforma enquanto as marcas da verdadeira
igreja 8 , ele mostra que a missão (ou a natureza missionária da igreja) é o que constitui
essa quarta marca. Ao responder a pergunta “Como é a igreja?” Allen (2015, loc. 568) diz
“Ela se parece um pouco com o Senhor da igreja - aquele pai que corre, de Lucas 15, cujo
coração palpita e bate com compaixão por aqueles que estão nos confins da terra.”.

Na próxima seção iremos lidar com a natureza missionária da igreja, este organismo
vivo de Deus na história chamado a reunir pessoas de toda língua, povo, tribo, etnia e
8
As marcas da verdadeira igreja são: (1) A pregação do Evangelho, (2) A correta administração dos
sacramentos e (3) O correto uso da disciplina cf. Allen (2015, loc. 360).
50 Capítulo 5. Missão

nação.

5.3 A natureza missionária da igreja

Na última seção do capítulo anterior trabalhamos sobre a igreja na narrativa bíblica


desenvolvendo seu papel missionário no mundo.

E na seção que antecedeu a esta lidamos de maneira mais específica com o para-
digma da missão de Deus no mundo. Esse paradigma, aliado ao que iremos ver agora,
monta o cenário da missão no contexto atual. Uma missão que é entendida a partir da
própria natureza de Deus e que impulsiona o exercício missionário da igreja através de
quem Deus é e quem Deus diz para a igreja que ela deve ser: uma igreja missionária.

Uma das obras marcantes na compreensão e definição da natureza da igreja é a de


Blauw (1966), “A natureza missionária da Igreja”. Nessa obra, o autor trata sobre como
a igreja, em toda a história bíblica, desenvolve em si sua potência missionária.

Para Blauw (1966, p. 28),

Israel foi chamado, em sua eleição por Javé, para ser pregador e exemplo,
profeta e sacerdote para as nações. A presença ativa de Deus em Israel
é sinal e garantia da Sua presença no mundo: e a presença de Israel é,
assim, contínuo apelo às nações do mundo.

O fato de Deus agir e ser presente na história de Israel deve ser um eco para o
mundo inteiro. O único e verdadeiro Deus, que cria e tece a história, está presente no aqui
e agora através da vida de seu povo. Da mesma forma que Israel representa isso para o
mundo, a igreja hoje, no aqui e agora, o faz de maneira semelhante.

Ao comentar o texto de 1 Pedro 2, Blauw (1966, p. 128) diz que o autor, ao usar
referências veterotestamentárias como Ex 19.5-69 e Is 61.610 , deixa evidente que

O plano de Deus para o mundo não é frustrado pela desobediência de


Israel, mas está sendo cumprido no fato de estar a Igreja tomando o
9
Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a
minha propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me sereis reino
de sacerdotes e nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos de Israel. [Ex 19.5-6, ARA]
10
Mas vós sereis chamados sacerdotes do Senhor, e vos chamarão ministros de nosso Deus; comereis as
riquezas das nações e na sua glória vos gloriareis. [Is 61.6, ARA]
5.3. A natureza missionária da igreja 51

lugar e recebendo a honra de Israel. Israel só se realiza autenticamente


em Cristo; para ser mais incisivo - as intenções de Deus quanto a Israel
só se tornam completamente claras na comunidade de Cristo.

Blauw (1966, p. 131) continua dizendo que “A proclamação dos maravilhosos fei-
tos de Deus não ocorre apenas pela palavra e feito; ela já se realiza na existência da
comunidade.” A comunidade performa a proclamação de Deus ao mundo. É isso que es-
sencialmente distingue a natureza da igreja enquanto missionária de qualquer outro tipo
de reunião ou agremiação. A igreja proclama em sua vida e ação o Deus que está vivo e
ativo nela mesma. Goheen (2018) complementa dizendo que “Quando os cristãos levam
a sério sua identidade missionária e procuram viver como um sinal da sombra do rei, sua
desunião se torna literalmente intolerável”.

Ser igreja é ser um agente da missão de Deus. Não existe igreja sem missão. Blauw
(1966, p. 127) chega a dizer que uma teologia da missão não é nada mais do que uma
teologia da igreja, pois “o povo de Deus [é] chamado do mundo, colocado no mundo e
enviado ao mundo.”.

Ser igreja dessa forma é participar da história dessa igreja. É ser parte do que
ela é, missão. É entrar e viver essa história, como Bauckham (2002) aponta dizendo que,
quando aceitamos a autoridade dessa história, referindo-se aqui à história bíblica, nela nos
inserimos e nela habitamos. Vivemos no mundo agora a partir da lógica dessa história.

Isso é poderoso para nós aqui e agora cumprirmos a nossa missão enquanto repre-
sentantes de Deus no mundo, vivendo e convidando pessoas para viver dentro da história
bíblica 11
.

Compreendemos que a teologia da missão e a teologia da igreja se complementam


entre si e que suas divisões são pedagógicas, a fim de elencar e honrar a tradição das
discussões que normalmente são abarcadas pelos seus itens.

A fim de conclusão, não há outra forma de encerrar esta seção se não citando o que
Blauw (1966, p. 136) traz no final de sua obra “Enquanto houver neste mundo homens em
11
Michael W. Goheen em sua aula sobre a história bíblica no programa de Doctor of Ministry do
Missional Trainning Center, ministrada no dia 01 de junho de 2020, disse que a tarefa da igreja agora
é permitir as pessoas que vivam dentro da história bíblica.
52 Capítulo 5. Missão

trevas, sem Deus e sem misericórdia, há de durar a tarefa missionária da Igreja cristã”.
53

6 Sacerdócio Universal

Até aqui temos tratado sobre como uma eclesiologia orientada para a missão e a própria
missão encarregam a igreja de determinadas responsabilidades. A igreja não apenas faz
missões, antes, ela é missão. Essa mudança nos leva a perguntas do tipo: “Como então
podemos, como igreja, ser essa missão?”. Uma resposta que julgamos adequada neste
trabalho é: através do exercício do sacerdócio universal.

Laing (2009, p. 95), ao expor sobre as implicações da missio Dei, mostra que esse
conceito tem nos feito resgatar a nossa identidade como povo de Deus e inextricavelmente
missionários, ele diz que

o envio de discípulos por Cristo é parte integrante da designação destes


como discípulos. Isso permite a recuperação da centralidade da encarna-
ção na missão. Não nos é ordenado simplesmente proclamar uma mensa-
gem, mas incorporá-la como testemunha. (...) A igreja, sendo missioná-
ria em seu próprio caráter, corrige uma tendência predominantemente
evangélica de entender a missão como uma tarefa. O caráter missionário
inerente não começa com a igreja, mas pode ser visto no próprio fun-
damento e constituição do povo de Israel. Exceto por algumas exceções
notáveis, os israelitas não foram enviados em missão. Eles não foram
enviados para a missão, mas foram constituídos no Sinai para serem
missionários como um Reino de Sacerdotes, uma nação sagrada para as
nações vizinhas (por exemplo, Êxodo 19: 3-6). A mensagem não era ape-
nas verbal, mas visível e tangível, pois Israel incorporava a mensagem
da redenção. A natureza encarnacional da missão nos muda de apenas
pensar em como fazer a missão e refletir sobre como podemos ser mais
adequadamente missionários.

Dessa forma, nos ocuparemos neste capítulo de destrinchar o que significa ser-
mos sacerdotes dentro da história bíblica e em como esse conceito nos insere em uma
abordagem de exercício da missão para os nossos dias.

6.1 Uma teologia bíblica do sacerdócio

Esta seção se ocupará de desenvolver um esboço do que podemos chamar de teologia


bíblica do sacerdócio. No primeiro momento, iremos analisar através da obra de Anizor
e Voss (2016) quanto ao que a narrativa bíblica nos revela sobre o sacerdócio universal.
54 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

Depois, iremos sumarizar algumas das principais ideias que se relacionam dentro de uma
teologia bíblica. Após isso, iremos apresentar alguns achados relacionados ao sacerdócio
universal a partir do texto da primeira carta de Pedro no capítulo 2 versículos 4 a 10.

A narrativa bíblica sobre o sacerdócio

Temos visto ao longo deste trabalho que a bíblia é uma narrativa - uma grande história.
Essa grande história bíblica concentra e determina toda a realidade (BARTHOLOMEW;
GOHEEN, 2017). A Bíblia enquanto uma história se desenrola a partir de atos divina-
mente orquestrados e intencionais (cf. 2Tm 3.16) para o testemunho de quem Deus é, o
que ele quer expressar de si mesmo para o seu povo e o que ele está fazendo na nossa
realidade histórica 1 .

Dentro dessa história bíblica, diversos temas são tratados, como reino, evangelho,
missão, entre outros. O sacerdócio (e o sacerdócio universal) é um desses temas que aparece
em toda a narrativa bíblica e se prova enquanto um tema que requer especial atenção dos
leitores bíblicos.

Antes de lidarmos com o sacerdócio universal de maneira específica na história


bíblica, vale uma apresentação sobre o que significa ser sacerdote. O sacerdote é alguém
chamado para ser um representante dos homens a Deus. É alguém que faz uma media-
ção. Este talvez seja o significado mais elementar para esta palavra (BERKHOF, 1990;
MALONE, 2017).

A abordagem de Anizor e Voss (2016, p. 26) entende que o sacerdócio universal


ocorre nos seguintes momentos da história bíblica:

a) Gênesis: Adão como o sacerdote-rei;

b) Êxodo: A fundação de um povo sacerdotal;

c) Salmos: As raízes do sacerdócio real no filho de Davi;

d) Isaías: A restauração através do servo sacerdotal;

e) Evangelhos: O grande sumo sacerdote - O sacerdócio escatológico de Cristo;


1
Um parágrafo semelhante foi utilizado no texto de Exegese também entregue ao presbitério.
6.1. Uma teologia bíblica do sacerdócio 55

f) Epístolas Gerais: O sacerdócio real da igreja

g) Epístolas Paulinas: O serviço para o Evangelho;

h) Hebreus: O sacerdócio e a adoração da nova aliança;

i) Apocalipse: O sacerdócio sofredor e vitorioso;

Anizor e Voss (2016, p. 55) nos oferecem uma figura (Figura 1) que ajuda a com-
preender melhor como se desenvolve essa narrativa bíblica sobre o sacerdócio.

Figura 1 – O padrão do sacerdócio real na narrativa bíblica

Fonte: Anizor e Voss (2016, p. 55) Traduzido pelo autor

Assim como Davies apud Malone (2017, loc. 2632) diz, precisamos entender que
a noção de Israel como uma nação real-sacerdotal não é apenas uma metáfora, mas sim
representa uma rica e forte ideia que perpassa por toda a Escritura.

Um conceito que será adotado aqui para o desenrolar da história bíblica do sacer-
dócio é o que “Cristo é aquele que cumpre o ofício de sacerdote e convida a sua igreja
para participar no seu sacerdócio.” (ANIZOR; VOSS, 2016, p. 26). Essa ideia nos ajuda
a entender que a origem do povo de Deus enquanto sacerdote está no próprio papel de
Cristo como sacerdote e a sua natureza sacerdotal deriva da própria natureza de Cristo,
tal como a missão.
56 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

Gênesis: Adão como o sacerdote-rei

Já vimos no trabalho de Anderson (2017) que a missão de Deus na história está


registrada logo nos primeiros capítulos de Gênesis e que nossa participação nessa missão
é inerente a nossa constituição humana. Anizor e Voss (2016) utiliza-se da imagem do
Éden enquanto um santuário para nos lançar o papel de Adão como sacerdote da parte
de Deus.

Entendendo que Adão assume um papel representativo de toda a humanidade e


dessa forma o relato da criação em Gênesis nos responde questões ontológicas sobre o
nosso lugar na criação de Deus, o texto de Gênesis coloca Adão sobre duas condições
unificadas: sacerdote-rei.

Adão é um rei no sentido de que ele exerce uma autoridade sobre a criação não
humana. Deus concede a Adão autoridade sobre a criação para que esta exerça seu domínio
e cuidado em toda a sua criação (ANIZOR; VOSS, 2016).

Bauckham (2011, p. 7) aponta que a autoridade que Adão deve exercer no mundo
criado deve ser exercitada através de um “cuidado responsável” e não uma dominação.
Esta também deve conter uma orientação teocêntrica para a criação e não antropocêntrica.
O mundo foi criado para a glória de Deus, não do homem 2 .

A “realeza” de Adão sobre a criação traz à espécie humana uma dignidade e


responsabilidade diante da imagem divina contida nela (ANIZOR; VOSS, 2016).

De outro lado, Adão é considerado também um sacerdote. G. K. Beale 3


mostra
que as ideias de templo que são desenvolvidas na história de Israel são, na verdade, um
reflexo do Éden, o primeiro templo de Deus (ANIZOR; VOSS, 2016). Nesse sentido, Adão
é aquele que “cultiva e guarda” (Gn 2.15), o que pode ser traduzido como “servir e guardar
2
Para ver mais sobre a abordagem de Bauckham (2011) acerca do lugar da humanidade na criação, cf.
p. 1-13.
3
As notas da página 161 de Anizor e Voss (2016) mostram pelo menos 7 características apontadas
por Beale para evidenciar que o primeiro tabernáculo de Israel é o Éden, são elas: (1) o jardim é
a morada única da presença de Deus, (2) a árvore da vida é representada pelo candelabro de ouro,
(3) o querubim dourado guardando a arca da aliança reflete o querubim guardião do Éden, (4) Um
imaginário do jardim extenso no templo de Israel, (5) jardim e templo tem entradas voltadsa para
o leste, (6) Ezequiel e o judaísmo antigo mostram o jardim como o primeiro santuário e (7) alguns
templos antigos tem características de um jardim.
6.1. Uma teologia bíblica do sacerdócio 57

(em um sentido de proteção)” no desenvolvimento posterior.

Adão comissionado enquanto sacerdote-rei da parte de Deus diante da criação


coloca a nós, como descendentes de Adão, em responsabilidades paradigmáticas neste
mundo. Somos então, a partir disso, chamados para servir e cuidar deste mundo enquanto
representantes de Deus.

Êxodo: A fundação de um povo sacerdotal

Um outro capítulo importante na história bíblica é a declaração do povo de Deus


como um povo sacerdotal. Se já começamos a entender que as declarações dadas a Adão
são corporativas, agora fica-nos evidente de que de fato Deus está chamando e declarando
um povo para ser seu representante neste mundo.

Um fato que nos chama a atenção na declaração de Deus ao povo de Israel enquanto
“reino de sacerdotes” é que isto deriva de uma iniciativa divina. É ele quem chama e dá
a eles esse privilégio. Não advém de alguma característica peculiar ou potencialidades
notáveis. “Deus estabelece o sacerdócio, nós não.” (ANIZOR; VOSS, 2016, p. 30).

O que Deus exige para a participação do seu povo e cumprimento do seu chamado
enquanto seus sacerdotes é a sua lealdade. Essa lealdade irá levar seu povo a exercer o
cuidado providencial de Deus no mundo, pois o “sacerdote é o mediador da promessa do
cuidado providencial de Deus.” (ANIZOR; VOSS, 2016, p. 36)

A função de mediadores do cuidado de Deus é definida em algumas categorias


trazidas por Anizor e Voss (2016):

a) Discernir: Entendendo que o sacerdócio exige santidade, isto é, separação;

b) Ensinar: O sacerdote deve mediar a palavra de Deus, isto é, a Torá, os ensinos


para a vida em lealdade a Deus;

c) Julgar: A lei deve ser aplicada para ajudar a discernir as coisas da vida;

d) Ler: É tornar as instruções da parte de Deus públicas para todo o povo;

e) Abençoar: É trazer a finalidade de Deus em abençoar seu povo;


58 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

Temos então que Deus estabelece no livro de Êxodo uma nação de sacerdotes no
mundo. Um povo escolhido para uma tarefa especial no mundo de anunciar a benção do
próprio Deus sobre toda a terra.

Salmos: As raízes do sacerdócio real no filho de Davi

O versículo 4 do Salmo 110 oferece uma sentença que merece a nossa atenção: “Tu
és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (BÍBLIA, 2009). O rei aqui
descrito por este Salmo não é apenas um governante militar ou político, mas também um
sacerdote, um representante de Deus. Pode-se entender que a função de autoridade do rei
é também um exercício do seu sacerdócio. Sobre este rei especificamente está revestida
a justiça de Javé e ele é o seu escolhido para dominar e exercer a autoridade do próprio
Deus (BRUEGGEMANN; BELLINGER, 2014, p. 480).

Brueggemann e Bellinger (2014) mostram que o domínio de Jesus, enquanto este


rei que cumpre plenamente as palavras deste Salmo, se manifesta em termos de justiça e
fé para aqueles que precisam e isso evidencia a chegada do reino de Deus. O rei de justiça,
como o próprio nome Melquisedeque anuncia, é o próprio Jesus, e este Salmo, sendo um
salmo messiânico, aponta para o reinado de justiça exercido plenamente por Jesus.

O caráter sacerdotal do trono deste rei aponta para o papel que Jesus exercitará
futuramente. Ele é um rei mas não apenas um rei político. Ele é um rei-sacerdote, um rei
representante da justiça e da graça de Javé para seu povo.

Isaías: A restauração através do servo sacerdotal

Os capítulos 52 e 53 de Isaías oferecem a figura de um servo. Esse servo é declarado


no versículo 13 do capítulo 52 como aquele que “procederá com prudência, será exaltado e
elevado e será mui sublime.” (BÍBLIA, 2009). Já no versículo 12 do capítulo 53, esse servo
“derramou a sua alma na morte” e “pelos transgressores intercedeu” (BÍBLIA, 2009).

Os cânticos do servo no livro de Isaías sempre intrigaram os teólogos bíblicos


quanto à identidade deste servo. Quem seria este Servo apresentado pelo profeta?
6.1. Uma teologia bíblica do sacerdócio 59

Em Atos 8.34 tomamos conhecimento da interação entre o eunuco etíope e Filipe.


Nessa conversa, o eunuco está lendo o cântico de Isaías 52-53, especificamente o trecho
de Isaías 53.7-8. Nesse trecho a pergunta do Eunuco para Filipe é: “A quem se refere o
profeta?”, e a resposta de Filipe identifica Jesus como o servo.

Estudiosos apontam que este Servo em Isaías pode ter uma identidade mista. Myers
(1987) mostra que o escritor dessas canções procura alguém que represente tanto Israel
coletivamente quanto a si mesmo enquanto personagem histórico. Entretanto, esse perso-
nagem histórico representou de forma mais ampla um senso de ideal. Jesus, dessa forma,
foi aquele quem mais cumpriu esse ideal.

Goldingay (2012) em seu artigo fala sobre a variedade de possibilidades para a


identificação desse servo nos cânticos e que essas culminam para a interpretação mista,
levando todos aqueles que leem esta passagem a cumpri-la, em diferentes graus, ele diz

No entanto, passagens como 1 Pedro 2 indicam que o Novo Testamento


também espera a descrição ou visão do servo de Yahweh como aquela que
a igreja cumpre. Ísaías 52.13-53.12 não é cumprido na pessoa de Jesus
de uma maneira que não tem implicações adicionais. A visão do servo
de Yahweh é algo para ser cumprido de novo e de novo. Ela foi cumprida
pelo povo judeu bem como pela igreja. Por sua própria natureza, essa
visão procura levar seus leitores a cumpri-la. [tradução nossa]

O servo então é, ao mesmo tempo, Israel, o Messias, mas também pode ser a
própria igreja, que agora lê esse textos e compreende o seu chamado a partir do servo
sofredor.

Um dos papeis do servo sofredor é o de mediar a benção de Deus para todas as


nações. Anizor e Voss (2016) mostram que em Is 61.1-3 4
temos a declaração do que esse
servo irá mediar para as nações. Já em Is 66.18-21 5
temos um eco desse tema e uma
4
O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas-novas aos
quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a
pôr em liberdade os algemados; a apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso
Deus; a consolar todos os que choram e a pôr sobre os que em Sião estão de luto uma coroa em vez
de cinzas, óleo de alegria, em vez de pranto, veste de louvor, em vez de espírito angustiado; a fim de
que se chamem carvalhos de justiça, plantados pelo Senhor para a sua glória. [Is 61.1-3, ARA]
5
Porque conheço as suas obras e os seus pensamentos e venho para ajuntar todas as nações e línguas;
elas virão e contemplarão a minha glória. Porei entre elas um sinal e alguns dos que foram salvos
enviarei às nações, a Társis, Pul e Lude, que atiram com o arco, a Tubal e Javã, até às terras do mar
mais remotas, que jamais ouviram falar de mim, nem viram a minha glória; eles anunciarão entre as
60 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

expansão: o servo agora irá expandir o seu privilégio sacerdotal para incluir as outras
nações, que poderão contemplar a glória de Deus (ANIZOR; VOSS, 2016, p. 41).

Evangelhos: O grande sumo sacerdote - O sacerdócio escatológico de Cristo

Como temos visto, inclusive retomando a última discussão, o servo que irá retomar
e restaurar o ofício sacerdotal de seu povo, bem como cumpri-lo plenamente, é o próprio
messias, Jesus Cristo. Um paradigma precisa ser claro neste ponto que é ‘‘O sacerdócio
real de Cristo é a base e o padrão para o sacerdócio de todos os crentes” (ANIZOR; VOSS,
2016).

Um texto que nos ajuda a perceber Jesus enquanto esse grande sumo sacerdote
é o de Mc 2.23-28 6 , quando Jesus afirma sua autoridade sobre o sábado. Anizor e Voss
(2016) nos ajudam a perceber três coisas a partir desse texto:

a) Apenas sacerdotes eram permitidos de trabalhar no sábado, desde que isso seja
um trabalho sacerdotal;

b) Apenas sacerdotes eram permitidos de comer o pão consagrado;

c) Jesus e seus discípulos não estavam no templo mas sim em um campo, o que
pode indicar que Jesus como um sacerdote real, é ele mesmo, o local e o espaço
sagrado;

O que percebemos nos relatos sobre Jesus é que ele assume para si funções e
prerrogativas sacerdotais, como oferecer sacrifícios, mediar o perdão dos pecados e limpar
as pessoas para torná-las justas (ANIZOR; VOSS, 2016).

nações a minha glória. Trarão todos os vossos irmãos, dentre todas as nações, por oferta ao Senhor,
sobre cavalos, em liteiras e sobre mulas e dromedários, ao meu santo monte, a Jerusalém, diz o Senhor,
como quando os filhos de Israel trazem as suas ofertas de manjares, em vasos puros à Casa do Senhor.
Também deles tomarei a alguns para sacerdotes e para levitas, diz o Senhor. [Is 66.18-21, ARA]
6
Ora, aconteceu atravessar Jesus, em dia de sábado, as searas, e os discípulos, ao passarem, colhiam
espigas. Advertiram-no os fariseus: Vê! Por que fazem o que não é lícito aos sábados? Mas ele lhes
respondeu: Nunca lestes o que fez Davi, quando se viu em necessidade e teve fome, ele e os seus
companheiros? Como entrou na Casa de Deus, no tempo do sumo sacerdote Abiatar, e comeu os pães
da proposição, os quais não é lícito comer, senão aos sacerdotes, e deu também aos que estavam com
ele? E acrescentou: O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do
sábado; de sorte que o Filho do Homem é senhor também do sábado. [Is 2.23-38, ARA]
6.1. Uma teologia bíblica do sacerdócio 61

Quando Cristo assume esse papel, ele determina um padrão que a sua igreja após
ele irá seguir (ANIZOR; VOSS, 2016). Ele restaura essa identidade para a igreja, cum-
prindo as profecias de Isaías e sendo o servo de fato para que agora, a partir dele, a sua
igreja possa também ser serva para as nações.

Epístolas Gerais: O sacerdócio real da igreja

Um dos textos que tem especial atenção sobre este tema é o de 1 Pedro 2. Há
diversas figuras a serem exploradas nesse texto que nos inserem dentro da realidade do
sacerdócio real que a igreja agora desenvolve. Entretanto, o que podemos observar nesse
texto é a natureza comunitária em que este sacerdócio se desenvolve.

Não estamos falando de um sacerdócio exercido por uma pessoa apenas, mas sim
de uma comunidade que exerce coletivamente essa identidade. A comunidade precede
o indivíduo. Anizor e Voss (2016, p. 47) dizem que “os crentes são a comunidade de
sacerdotes que, pela virtude da eleição de Deus em Cristo e pela santificação do trabalho
do Espírito, juntos participam dos benefícios de acessarem diretamente a Deus”.

O texto de 1 Pedro 2 também mostra o chamado do povo de Deus para declarar as


virtudes de Deus: um chamado para proclamação. O texto também nos fala de sacrifícios
aceitáveis a Deus. A proclamação das virtudes de Deus constitui no evangelismo, na
pregação das boas novas, na contação dos atos redentivos de Deus na história. Os sacrifícios
aceitáveis, por sua vez, constituem na vida que “abunda em boas obras” (ANIZOR; VOSS,
2016, p. 48).

Percebemos aqui como Pedro nos ajuda a lidar com uma tensão que já foi tratada
quando lidamos com os temas da missão. Na eclesiologia desse texto, a comunidade dos
sacerdotes não exercita uma de suas ações em detrimento da outra. Ela proclama as
virtudes de Deus ao mesmo tempo em que oferece sacrifícios aceitáveis.

Epístolas Paulinas: O serviço para o Evangelho

Ainda que Paulo não lide com o tema do sacerdócio universal de maneira tão
explícita como Pedro faz, é possível que encontremos esse tema sendo desenvolvido de
62 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

maneira implícita em suas cartas.

Em Romanos 12, quando Paulo fala sobre o corpo de Cristo, percebemos que o
“sacerdócio real não é apenas uma chamada genérica para a igreja como um todo mas
sim uma chamada para cada membro do corpo” (ANIZOR; VOSS, 2016, p. 49). O que
temos aqui é que, assim como temos visto que o sacerdócio universal é primeiramente
uma identidade comunitária, ele tem implicações individuais e particulares. Cada membro
deve reconhecer o seu papel na constituição dessa identidade sacerdotal do corpo (povo)
de Cristo.

Na carta aos Filipenses, vemos por duas vezes, tanto em Fp 2.177 e 4.188 , que
Paulo utiliza de uma linguagem cúltica-sacerdotal. Vemos inclusive no versículo 18 do
capítulo 4 que os donativos que a igreja passou para ele são uma oferta cúltica e por que
não, sacerdotal. Anizor e Voss (2016, p. 51) notam que, nessa carta, “qualquer serviço
desenvolvido pela fé em nome do evangelho é recebido como um serviço sacrificial e uma
oferta agradável a Deus”.

Hebreus: O sacerdócio e a adoração da nova aliança

Hebreus é um texto neotestamentário que evidencia a grandeza e superioridade de


Cristo sobre as sombras lançadas pelas antigas promessas. Hebreus não é uma invalidação
das promessas do Antigo Testamento, antes, é uma prova do seu cumprimento através da
pessoa e obra de Cristo.

Em Hb 4.169 , temos o que a igreja recebe das mãos de Cristo. Segundo Anizor e
Voss (2016, p. 51),

Como resultado do preeminente sacerdócio de Cristo, os crentes agora


são chamados para entrar no sacerdócio no qual eles oram confiadamente,
conhecendo que irão receber misericórdia e achar graça em tempo opor-
tuno.
7
Entretanto, mesmo que seja eu oferecido por libação sobre o sacrifício e serviço da vossa fé, alegro-me
e, com todos vós, me congratulo. [Fp 2.17, ARA]
8
Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me
veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus. [Fp 4.18, ARA]
9
Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia
e acharmos graça para socorro em ocasião oportuna. [Hb 4.16, ARA]
6.1. Uma teologia bíblica do sacerdócio 63

Anizor e Voss (2016) resumem o ensino de Hebreus acerca do sacerdócio universal


dizendo que:

a) Esse sacerdócio está enraizado no sacrifício sacerdotal de Cristo;

b) Esse sacerdócio traz consigo o privilégio de acessar a Deus e se envolver em seu


chamado para servir;

c) Esse sacerdócio é composto de exortação, ensino, comunhão e prática da san-


tidade e obediência;

Apocalipse: O sacerdócio sofredor e vitorioso

Por fim, o livro de Apocalipse nos constitui para a visão do sacerdócio à luz dos
últimos eventos e do propósito da igreja até esse momento. A figura que entendemos a
partir do texto de Ap 1.5-610 nos mostra que a realidade do povo de Deus continua como
a de sacerdotes na Nova Jerusalém.

Anizor e Voss (2016) mostram que ser um sacerdote no texto de Apocalipse envolve:

a) Prestar atenção nas palavras da profecia de João (Ap 1.3, 22.7,9);

b) Guardar a palavra de Cristo e não negá-lo (Ap 3.8, 10);

c) Guardar a verdade de Deus ainda que isso custe a própria vida (Ap 6.9, 20.4);

d) Proclamar o testemunho de Jesus (Ap 19.10);

Digno de nota é o fato de que o sacerdócio é um exercício escatológico. Ele atinge


o seu propósito na proclamação e mediação da benção de Deus para com as nações no
Apocalipse mas continua quando mantém todo esse povo que foi alcançado pela benção
e misericórdia de Deus agora em adoração e prestando sacrifícios contínuos a Deus.

10
e da parte de Jesus Cristo, a Fiel Testemunha, o Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da
terra. Àquele que nos ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino,
sacerdotes para o seu Deus e Pai, a ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém! [Ap
1.5-6]
64 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

Algumas conclusões sobre uma teologia bíblica do sacerdócio

Resumimos aqui os três principais achados de Anizor e Voss (2016) quanto ao sacerdócio
universal na história bíblica, tecendo alguns comentários sobre eles:

(1) O sacerdócio é escatológico: ele foi refletido no sacerdócio corporativo e profis-


sional de Israel, mas em última instância está enraizado na relação familiar da Igreja com
Cristo, o rei-sacerdote escatológico. Dessa forma, a origem do sacerdócio é o próprio Deus
na pessoa de Cristo, e seu propósito último se relaciona com a nossa própria identidade
com ele. Se somos feitos à sua imagem e semelhança, tal como o relato da criação nos
aponta, somos seus representantes. Devemos ser assim até que ele volte e continuaremos
sendo em seu reino de glória.

(2) As funções mais importantes de um sacerdote são: oferecer sacrifícios espiritu-


ais, serviços no templo e proclamar a palavra de Deus. Boas obras, comunhão fraternal
com outros irmãos e irmãs e anúncio das maravilhas de Deus são responsabilidades claras
dentro da identidade sacerdotal. Nenhum cristão ou cristã deve se eximir dessas respon-
sabilidades.

(3) Todo membro do sacerdócio é chamado para ter um serviço ativo no Evangelho.
Dessa forma, o sacerdócio não é uma prerrogativa de uma classe especial, antes é algo
que constitui a própria igreja. Todo cristão e cristã tem uma responsabilidade derivada
de sua identidade sacerdotal e de sua união com Cristo.

Achados exegéticos: alguns destaques a partir da exegese de 1 Pedro 2.4-10

Trazemos aqui alguns achados exegéticos que se relacionam com o nosso tema que foram
desenvolvidos no trabalho de Exegese a partir do texto de 1 Pedro 2.4-10.

A tradução pessoal desenvolvida para este texto é a seguinte:

(4) Para ele entrando, a pedra que vive, pelos homens certamente re-
jeitada, mas para com Deus eleita e valiosa. (5) E eles como pedras
que vivem construídos casa espiritual para serem sacerdócio santo para
ofertar sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus através de Jesus Cristo
(6) Porque está em toda a Escritura: Veja! Ponho em Sião uma pedra
de fundação eleita e valiosa e aquele que crer nela não será de maneira
nenhuma envergonhado. (7) A vocês, portanto, que creram, é valiosa,
6.1. Uma teologia bíblica do sacerdócio 65

porém, os que não creram: Pedra que rejeitaram os que construíram,


esta tornou-se a principal, de esquina. (8) e pedra de tropeço e rocha
de escândalo os que tropeçam na palavra sendo desobedientes para o
que também foram colocados (9) Vós, porém, sois descendência eleita,
sacerdócio real, nação santa, povo adquirido, a fim de proclamardes as
virtudes daquele que das trevas vos chamou para a sua maravilhosa
luz. (10) O que antes não povo, agora porém, povo de Deus, o que não
recebeu misericórdia, agora porém, recebeu misericórdia. 11

Os destaques teológicos dados para esta passagem são:

A derivação da eclesiologia a partir da cristologia

O primeiro destaque se dá a partir do entendimento que o autor desse texto tem


da constituição eclesiástica. A reunião do povo de Deus não surge do acaso ou de meros
interesses pessoais, mas sim de quem o próprio Cristo é e do papel que ele representa.

É notável que a igreja infelizmente é, para muitos, uma mera agremiação de interes-
ses (sejam políticos, ideológicos, financeiros, de estilo de vida, entre outros). O argumento
que une aqueles que se declaram irmãos e irmãs é apenas baseado em suas preferências
pessoais.

O que resgata-se a partir desse texto é que o povo de Deus é chamado assim não
por causa de si mesmo e de suas preferências, mas sim por causa do próprio Cristo, a
pedra que vive, que energiza o seu povo para viver também. A fala do próprio Jesus em
João 15.5 é categórica aqui: “porque sem mim nada podeis fazer”. Essa eclesiologia tem
como ponto de partida a noção clara de quem Jesus é e o que ele faz pelo seu povo e todos
os atos desempenhados pelo seu povo serão uma reverberação de quem o próprio Cristo
é.

A história de Deus enquanto uma história universal

Outro ponto que notamos a partir desse texto é que Pedro não está contando uma
história nova. Ele faz questão de enfatizar e resgatar a antiga e surpreendente história do
único Deus que criou do nada todas as coisas e que criou e chamou para si um povo.
11
Esta tradução foi desenvolvida pelo autor para o trabalho de exegese também entregue ao PPAN para
o exame de licenciatura.
66 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

Ao criar essa linha de continuidade para a sua audiência, Pedro demonstra o valor
da Escritura não como uma história particularizada de um povo remoto e longíquo, antes,
a história do Deus cósmico - o Deus que chama para si pessoas de toda língua, povo, raça
e nação e dá a cada um desses uma identidade verdadeira: descendência eleita, sacerdócio
real, nação santa e povo adquirido.

A comunidade necessária

Mais um aspecto teológico que podemos evidenciar desse texto é a noção comuni-
tária. Em tempos nos quais somos isolados socialmente, fragmentados culturalmente, em
que temos tudo personalizado para a nossa própria versão e gosto, a comunidade urge
contra a nossa individualização da vida e da nossa experiência com Deus.

Ao tratar em termos corporativos, Pedro aponta para uma realidade presente em


toda a Escritura e convenientemente esquecida pelas nossas mentes individualistas. Nin-
guém é povo sozinho. Não existe povo de Deus sem reunião, sem comunidade, sem vivência
compartilhda. A comunidade é necessária. Jesus é a pedra daqueles que crêem, sempre no
plural, sempre um povo.

O sacerdócio do povo de Deus

O povo formado em Cristo, a pedra que vive, é identificado para agora representar
o próprio Deus (e o próprio Jesus) no mundo.

O sacerdócio do povo de Deus lembra da tarefa religiosa no ordinário da vida de


cada cristão e cristã. Tudo o que eles fazem não deve ser orientado em últimas instâncias
pela cultura da época e seus ídolos, mas sim pela sua relação de identidade e chamado
gerada pela misericórdia de Deus. O povo de Deus é chamado para, no aqui e agora,
oferecer sacrifícios aceitáveis em tudo aquilo que fizerem.
6.2. A história do conceito 67

6.2 A história do conceito

Esta seção parte da seguinte lógica: trataremos da doutrina do sacerdócio universal a partir
de uma perspectiva da teologia histórica; mostraremos como o conceito de sacerdócio
enquanto uma característica da própria igreja foi sendo deixado de lado no decorrer da
história da igreja cristã até que, na Reforma Protestante, pudesse ser resgatado.

Para isso, usamos a lógica da construção. O sacerdócio universal foi estabelecido


como característica da igreja pelo próprio Jesus que garante ao seu povo o estado de sacer-
dócio real, porém, com o passar dos séculos, esse conceito foi sendo desconstruído e uma
ruptura foi instalada na igreja. A Reforma Protestante, entre outros avanços e conquistas,
iniciou um caminho importante, trazendo novamente a discussão do sacerdócio. Entre-
tanto, ainda temos um caminho necessário e novas perspectivas podem ser desenvolvidas
a partir dessa doutrina.

Uma lógica semelhante (como construção) dessa teologia histórica do sacerdócio


foi desenvolvida por Voss (2016) em sua obra “The Priesthood of All Believers and the
Missio Dei”.

A desconstrução

A migração do conceito

Anizor e Voss (2016) notam que o Novo Testamento não trata os líderes ordenados da
igreja enquanto sacerdotes. Há uma divisão neotestamentária quanto aos ofícios de pres-
bíteros e diáconos, mas um tratamento religioso que posicionasse os presbíteros da igreja
enquanto sacerdotes não era comum para as primeiras igrejas.

Inclusive há o argumento que o sacerdócio universal, enquanto uma doutrina


apostólica, encontra ressonância nos escritos dos primeiros pais da igreja. (VOSS, 2016,
loc. 3913) diz que “Em suma, a doutrina apostólica do sacerdócio real recebe testemunho
consistente no segundo e terceiro séculos.”

Essa constatação nos leva à pergunta sobre quando esse novo significado foi estabe-
lecido. Ao nos perguntamos isso, entendemos que quem existe primeiro é a igreja enquanto
68 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

um corpo de sacerdotes cumprindo uma função sacerdotal no mundo. A usurpação do con-


ceito de sacerdote por apenas uma classe “religiosa” é que precisa de justificativa, e não
o contrário.

Anizor e Voss (2016) também chegam a sugerir que a falta do termo sacerdote para
designar uma classe específica de ofícios da igreja pode indicar, inclusive, uma ausência
deliberada por parte dos autores neotestamentários. Não chamar o presbítero ou bispo de
sacerdote é intencional nesse sentido uma vez que esse título só pode ser incoporado a luz
do sumo-sacerdote, Cristo, e de maneira abrangente para toda a igreja.

Pensando até em termos do desenvolvimento teológico-bíblico que estabelecemos


aqui, os sacerdotes institucionalizados (no caso de Israel) existem após o chamado sacerdo-
tal do povo. O sacerdócio é uma determinação característica primeiramente corporativa e
não individual. Para alguns casos e funções específicas o sacerdote cumpria seu papel, mas
não à luz de si mesmo ou do cargo que ocupava, mas sim à luz da identidade sacerdotal
de Israel, que seria futuramente resgatada e evidenciada na pessoa e obra de Cristo. O
único sacerdote em sentido estrito é Cristo e os sacerdotes em sentido amplo são a igreja.

Voss (2016) aponta que a hierarquização do serviço no templo pode ter sido o
motivo da migração nos primeiros séculos de um conceito corporativo para um conceito
estrito e específico. Bosch (2002, p. 559) afirma que a “a clericalização da igreja acompa-
nhou pari passu a sacerdotalização do clero.”.

Parece-nos que as estruturas políticas do império acabaram se tornando o padrão


para a organização eclesiástica (ANIZOR; VOSS, 2016). Quando pensamos na própria
figura do imperador e de seu papel religioso mediatório entre a vontade de Deus e os
homens, percebemos que os líderes-sacerdotes constroem uma noção parecida.

Há uma ruptura sendo estabelecida no mundo. No mundo político, de Roma, o


imperador é o mediador da vontade dos deuses. No mundo religioso, da igreja, o clero é o
mediador da vontade de Deus. Sem ele não existe voz e palavra de Deus (VOSS, 2016).

Entretanto, esse movimento não é drástico. Anizor e Voss (2016) apontam, também,
um segundo desdobramento para essa transição. A necessidade de posicionamento da
6.2. A história do conceito 69

igreja e de unidade dependia, ou pelo menos quis depender, de uma estrutura única de
governança frente às heresias. A expansão da igreja ao redor do mundo não poderia ser
desenvolvida de maneira descentralizada. Comentando sobre Cipriano, Eastwood apud
Anizor e Voss (2016) diz que “o bispo era o zelador da doutrina e o guardião da unidade”,
logo, o cargo de presbítero ou bispo se torna uma forma de exercer governança e autoridade
sobre a igreja a fim de que esta mantenha sua estrutura central de atuação. A continuidade
da pureza da igreja depende do bispo (ANIZOR; VOSS, 2016; VOSS, 2016).

Anizor e Voss (2016) vão então dizer que

Cipriano então representa o começo do declínio da ênfase no sacerdócio


real de todos os crentes e na concomitante ascensão da proeminência
do sacerdócio ministerial. Funções e alcunhas que primeiramente per-
tenciam a todos os Cristãos agora são aplicadas apenas para bispos e
sacerdotes. A ênfase na raça sacerdotal foi sendo reduzida a um clero
sacerdotal que herda sozinho uma dignidade sacerdotal e empunha o
poder da realeza. Os sacrifícios espirituais que uma vez definiram o sa-
cerdócio universal dos crentes agora é substituído pelo sacrifício atual
da eucaristia, que somente os bispos e sacerdotes podem oferecer. Uma
nova era do sacerdócio cristão tinha amanhecido.

Talvez a conta para essa divisão e migração de conceito caia mesmo para Cipriano
de Cartago. Voss (2016) irá dizer que

Antes de Cipriano, o sacerdócio real foi um consistente desenvolvimento


na doutrina patrística. Depois de Cipriano, com exceção de Agostinho,
a doutrina foi reduzida no Oeste para um sacerdócio exclusivamente
clerical ganhando proeminência.

Dessa forma, uma ruptura é instalada e uma divisão começa a ficar mais evidente
no decorrer da história da igreja.

A ruptura é instalada: a divisão entre leigos e clero

Essa nova era do sacerdócio cristão é marcada pela tensão entre leigos e clero. O que se
desenvolve a partir disso é um enfraquecimento da consciência e percepção sacerdotal de
maior parte das pessoas da igreja para um empoderamento de apenas algumas pessoas.
Uma divisão nós-eles se instalou. Nessa perspectiva, o que ocorre é um “rebaixamento” e
uma “marginalização” dos membros do corpo de Cristo em suas funções. Esses cumprem
70 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

funções e ofícios na maior parte do tempo passivos e, quando ativos, são apenas para
sustentar a máquina institucional estabelecida.

O termo empoderamento pode ser interessante para fins de análise. Há, segundo
Kenen Osborne apud Voss (2016) um movimento de desempoderamento nessa época da
igreja. Os leigos são intencionalmente desempoderados de suas atividades para que uma
nova estrutura de poder assuma este lugar.

Para Voss (2016), os três grandes motivos para a instalação dessa ruptura entre
leigos e clero na história da igreja são: (1) hierarquização, (2) sacralização e (3) politização.
A igreja se tornou estruturalmente hierárquica, de tal forma que existem agora pessoas que
exercem cargos “mais próximos de Deus”. A igreja tornou a sacralizar demasiadamente
as coisas e criar camadas de significado que tornavam essa esturutra hierárquica extrema-
mente necessária. Se algo é sagrado e somente uma classe específica que tem prerrogativas
de acessar o que é sagrado, tanto a hierarquia quanto a sacralização se alimentam. O ter-
ceiro motivo, a politização, se dá no sentido de operacionalizar a governança da igreja
dentro dessa esturutra sacramental-sacerdotal. Os líderes da igreja se comportam quase
como semi-deuses. Eles detêm para si um poder divino que não pode ser questionado. O
sistema está montado.

Percebemos no longo período que corresponde à Idade Média essa ruptura sendo
instalada e desenvolvida. Um fato marcante para isso são as reformas realizadas pelo
papa Gregório no início do segundo milênio em 1073 D.C.. Anizor e Voss (2016) inter-
pretam as ênfases da reforma gregoriana indicando que ele acreditava que o clero não
precisava apenas ser diferente, mas também ser visto e percebido como diferente. Dessas
reformas surgem questões como a abstinência do casamento, por exemplo. Leithart (2003)
afirma que as reformas de Gregório removeram as últimas “vestes sacerdotais” dos leigos
e estabeleceram por fim a monopolização clerical do sacerdócio real.

Por fim, Voss (2016) mostra que os efeitos deletérios que a doutrina apostólica
do sacerdócio real sofreu foram: (1) uma redução das responsabilidades sacerdotais e (2)
uma equiparação entre o batismo e a cidadania romana. Sobre este último, o batismo
se torna uma condição para se tornar cidadão romano e vice versa. A igreja se alia ao
6.2. A história do conceito 71

Estado e começa a ser também por ele definido. Ser um cristão batizado não significava
ser ordenado pelo batismo para o exercício de um ofício, mas sim, pertencer a um grupo,
ou uma nação. O conceito de sacerdote foi convinentemente abandonado para dar lugar
a um empoderamento dos que se envaideciam desses cargos e usurpavam da identidade
sacerdotal que pertencia a toda a igreja.

Nesse contexto emerge o movimento reformado, sendo uma voz que surge para
resgatar o conceito apostólico de sacerdócio e que tem ao mesmo tempo que lidar com a
tensão e ruptura instalada e desenvolvida durante os séculos que a precederam.

A Reforma

Se o sacerdócio universal foi sendo desconstruído no período medieval e foi deixando de ser
universal, transformando-se em uma definição estrita de uma classe de pessoas, a Reforma
Protestante surge então como uma voz para buscar reformar esse conceito e iniciar uma
tarefa de trazer ele para o seu lugar devido.

González (2015b, p. 323) nos mostra que

A Idade Média foi seguida pelas Reformas protestante e católica bem


como pela Renascença. Em um sentido, essas duas reformas foram novos
pontos de partida, mas em outro, elas também foram continuações da
Idade Média. Foram esses movimentos (...) que providenciaram meios
para que novamente as pessoas proclamassem e vivessem, em suas novas
circunstâncias, o princípio básico da fé cristã - que Deus estava em Cristo
reconciliando consigo o mundo.

A Reforma Proestante está no bojo de diversas mudanças que ocorreram na Europa


nos últimos séculos da Idade Média. O humanismo renascentista está em ascensão e a volta
às fontes a todo vapor. Textos antigos são revisitados e projetos artísticos e científicos
são resgatados. A ciência, que foi desenvolvida na própria Idade Média, ganha vigor
nos últimos tempos e a face do mundo medieval começa a vislumbrar uma nova era
(GONZÁLEZ, 2015a).

A citação anterior traz à tona um dos grandes impactos da Reforma Protestante:


resgatar a missão de Deus no mundo. A Reforma Protestante não é apenas uma reforma
72 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

da igreja, é uma reforma da missão, ou talvez, como temos visto, por ser uma reforma da
igreja também é uma reforma da missão.

Para George (1993, p. 96), a maior contribuição de Lutero para uma eclesiologia
protestante foi o ensino do sacerdócio de todos os crentes. Essa doutrina resgata o sentido
eclesiológico neotestamentário da igreja enquanto um corpo de sacerdotes no mundo e que
exerce um sacrifício corporativo-individual entre si e para o mundo.

Pensar em sacerdócio universal à luz da Reforma é reintroduzir a vocação e a


responsabilidade de cada um na missão de Deus no mundo (BOSCH, 2002).

McGrath apud Vanhoozer (2017, p. 28) apresenta a ideia do sacerdócio universal


dos crentes como o “gene protestante fundamental”. Este gene nem sempre precisa ser
declarado, mas está ali presente se adaptando e se desenvolvendo entre culturas.

Ao longo dessa próxima seção iremos desenvolver os principais achados da Reforma


Protestante quanto ao Sacerdócio Universal e refletir sobre como a Reforma propôs novas
alternativas para esta doutrina.

Justificação pela fé e sacerdócio

Uma das grandes doutrinas e ênfases protestantes, especificamente por Martinho Lutero,
é o ensino da justificação pela fé. Todo cristão e cristã é justificado por Deus pela fé
que é dom do próprio Deus. Não precisamos de intermediários e temos livre acesso a
Deus. Uma consequência dessa doutrina é que um sacerdote ou qualquer outra autoridade
espiritual não são necessários para mediar qualquer benção especial ou salvação (REEVES;
CHESTER, 2014, p. 208).

Lutero (2017, p. 178) diz que “Aquele que pode dizer “sou um filho de Deus por
meio de Cristo, o que é minha justiça”, e não se desespera, embora imperfeito no tocante
às boas obras, nas quais sempre fracassamos; este indivíduo crê corretamente.”.

Logo, para Lutero, aquele que crê na justificação pela fé em Cristo e pela fé somente
crê corretamente. Isso se apresenta em outra citação de Lutero apud Reeves e Chester
(2014, p. 210) que diz
6.2. A história do conceito 73

Sobre o que é dado a todos os cristãos proclamarem. Não existe outro


batismo que aquele que qualquer cristão pode conceder. Não há outro
memorial da Ceia do Senhor senão aquele que qualquer cristão pode
observar, o qual Cristo instituiu. Não existe outro tipo de pecado senão
aquele que qualquer cristão pode amarrar ou desprender. Não há outro
sacrifício senão o corpo de todo cristão. Ninguém senão um cristão pode
orar. Ninguém senão o cristão pode ser juiz de doutrina. São eles que
tornam o ofício sacerdotal e real.

Nesse trecho, Lutero coloca o desdobramento que a justificação pela fé tem na


experiência da vida cristã. “Ninguém senão o cristão”. Devemos perceber que isso não
torna a perspectiva de Lutero individualista ou particularizada da igreja e do seu corpo,
algo que ficará evidente nos próximos argumentos, mas sim que cada cristão e cristã deve
resgatar sua vocação sacerdotal, pois a sua justificação foi realizada por Cristo de uma
vez por todas.

A comunidade dos santos

Para Bosma (2017), a ênfase de Lutero no sacerdócio universal é um retorno à eclesiologia


escriturística. Lutero considera a igreja como uma “communio sanctorum”, uma comu-
nidade de santos. George (1993, p. 97) afirma que essa comunidade é formada por “um
sacerdócio de amigos que se ajudam, uma família em que as cargas são compartilhadas e
suportadas mutuamente”.

Percebemos aqui um aspecto fundamental do sacerdócio de todos os crentes, e


um aspecto íntimo e familiar, inclusive. O sacerdócio é exercido no ordinário da vida. A
comunidade dos santos tem responsabilidades mútuas entre si. A igreja é essa comunidade
que se suporta mutuamente.

A comunidade dos santos se desenvolve em um sacerdócio mútuo. Lutero, em seus


escritos, constrói a seguinte imagem: todo cristão é sacerdote de alguém. Nessa perspec-
tiva, ele dizia que o sacerdócio de todos os cristãos carrega tanto uma responsabilidade
quanto um privilégio um para com o outro. Ambos derivam da imagem bíblica do corpo
de Cristo. A responsabilidade é marcada pelo cuidado mútuo e interessado e o privilégio
é definido pela co-participação no próprio sacerdócio de Cristo. Esse aspecto está relaci-
onado diretamente à visão eclesiológica de Lutero e aos direitos que pertencem à igreja
74 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

(GEORGE, 1993).

Lutero costumava usar a imagem de um bolo. A igreja é formada por essas diversas
fatias que representam o mesmo sabor. O sabor é demonstrado através do nosso amor
mútuo. Isso é a comunidade dos santos (REEVES; CHESTER, 2014, p. 210). Stevens
(2005) vai chamar esse tipo de sacerdócio de o “sacerdócio uns dos outros”.

A realidade corporativa do sacerdócio e seu exercício mais fundamental dentro


dessa própria realidade é uma das ênfases mais marcantes do conceito de comunidade dos
santos de Lutero (ANIZOR; VOSS, 2016).

Sacerdócio público

Lutero também desenvolveu o tema da vocação em seus escritos. Desse tema emerge o
aspecto público do sacerdócio de todos os crentes em sua teologia. Todo cristão e toda
cristã são chamados para se apropriarem de uma “máscara de Deus” (REEVES; CHES-
TER, 2014). Cada vocação é uma máscara de Deus para este mundo. Toda ocupação,
independente de prestígios, taxonomias, divisões e classes de trabalho, é, em primeira e
em última instância, o próprio Deus agindo neste mundo através de seus representantes.
É o que Alves (1982, p. 19) diz “Cristo se fazendo presente disfarçado.”.

Anizor e Voss (2016) mostram que a implicação de Lutero quanto ao sacerdócio


não se restringia apenas ao exercício dentro da comunidade dos santos, mas também à
expressão desse sacerdócio no mundo através da vocação cristã.

Reeves e Chester (2014) nos mostram que Lutero realocou o lugar da palavra
sacrifício. Ela não significa mais oferecer algo no altar da igreja, mas sim oferecer tudo o
que somos na vida ordinária e comum, onde quer que Deus esteja nos inserindo. Como diz
Reeves e Chester (2014, p. 212), “a vida cotidiana é o lugar sagrado em que oferecemos
sacrifícios de ações de graças a Deus.”.

Lutero (2017, p. 462) diz que “Servir a Deus é, para todos nós, permanecer em sua
vocação e chamado, por mais simples e humilde que seja.”. Quando Lutero aborda sobre
vocação nesse trecho, ele está lidando com o descontentamento de muitos quanto ao seu
6.2. A história do conceito 75

chamado. Algo como “A grama do vizinho é sempre mais verde”. Ao afirmar o que lemos
há pouco, Lutero está destacando a simplicidade e humildade do chamado e sua relação
de obediência a Deus. Deus se manifesta ao mundo através das ações ordinárias em nosso
cotidiano. Não precisamos querer mais do que Deus já tem nos dado.

O sistema sacramental

Uma das maiores dificuldades na eclesiologia de Lutero é com o sistema sacramental da


igreja. Segundo Anizor e Voss (2016), esse sistema é uma fraude por:

a) Não ser encontrado na escritura;

b) Elevar os ordenados a níveis desordenados de poder;

c) Criar uma separação entre clero e leigos;

d) Negar o sacerdócio de cada crente;

Lutero, ao entender que o sistema sacramental e a função do sacerdote neste não


pode ser encontrado na Escritura, não está desabonando ou desmerecendo a função do
pastor dentro da igreja. Ao lidar com o sacramento da ordenação, que “empoderaria”
alguns para o exercício de funções mediatórias entre Deus e os homens, ele não entende
que essa função deva ser abolida, mas sim colocada no seu devido lugar (ANIZOR; VOSS,
2016).

Que lugar seria esse? Podemos entender que a ordenação de pastores e mestres na
igreja deve seguir o serviço à igreja como prerrogativa e não a manutenção e absorção de
poderes. Assim como já notamos neste trabalho, o poder que os ministros ordenados têm
na igreja deriva do próprio Cristo e não de si mesmos.

Isso nos leva ao segundo ponto de Lutero, em que ele diz que não conseguia entender
porque alguém que foi feito sacerdote (nos termos de ser um ministro) não poderia se
tornar um leigo (ANIZOR; VOSS, 2016). Lutero aqui parece enfatizar que o estado de
todo cristão mais básico e essencial é o de sacerdote. Não existem dois estados ou duas
tipologias de cristão, apenas uma.
76 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

Lutero em outro momento irá chamar o sistema clerical de seu tempo de tirano
sobre os leigos e detestável (ANIZOR; VOSS, 2016). Esse sistema criou uma barreira sem
precedentes na história da igreja e trouxe a um estágio de divisões.

Por fim, esse sistema é uma negação do “estado espiritual único” de cada cristão.
Lutero apud Anizor e Voss (2016, p. 71) diz

Não há uma verdadeira e fundamental diferença entre leigos e sacerdotes,


príncipes e bispos, entre um religioso e um secular, a não ser pelo seu
ofício e trabalho, mas não por uma questão de status. Todos eles são
pelo seu estado espiritual verdadeiramente sacerdotes, bispos e papas.

Lutero, nessa citação, enfaticamente afirma a existência de apenas um único estado


espiritual de sacerdote. Porém, além dos bispos e pastores da igreja, o que temos para os
outros? É o que iremos ver a seguir.

O sacrifício espiritual

Outro autor do período da Reforma que tratou deste tema foi o reformador francês João
Calvino. Segundo Crawford (1968), ainda que o termo “sacerdócio de todos os crentes”
ou equivalentes não apareçam nos textos de Calvino, essa é uma ideia que permeia muitas
de suas discussões.

Para Calvino, todo crente tem uma alta e santa responsabilidade para glorificar
a Deus em tudo o que fizer e isso deriva de sua própria vocação e chamado através de
Cristo. De acordo com a leitura que Crawford (1968) faz do Catecismo de Genebra, o
pensamento de Calvino acerca do sacerdócio universal oferece uma visão de que esse é um
privilégio garantido por Cristo e que nos permite aproximarmos de Deus e oferecermos
nós mesmos inteiros a ele.

Essa visão de Calvino reverbera em outro tema de seu pensamento, o “sacrifício


espiritual” (CRAWFORD, 1968, p. 145). Calvino retoma uma imagem da primeira epístola
de Pedro para retratar o povo de Deus como uma oferta litúrgica a Deus. Crawford (1968,
p. 145) diz: “Os cristãos devem oferecer a si mesmos para Deus primeiro e então trazer
para Deus suas orações, agradecimentos, esmolas e outros atos que implicam em uma total
6.2. A história do conceito 77

resposta à graça de Deus”. O sacerdócio está implicado nessa oferta cúltica. Enquanto
sacerdotes oferecemos nossas vidas a Deus, por meio de Cristo, para que possamos ser a
oferta de Deus para o mundo, por meio de Cristo também.

Uma cosmovisão integral

A divisão da igreja em duas castas e duas classes de pessoas (clero e leigos) herda, de certa
forma, a divisão sagrado e profano, notavelmente desenvolvida dentro do cristianismo até
o período pré-reforma.

Os reformadores em geral se esforçaram para romper com essa tensão e resgatar


uma fé robusta e integral, preparada para vivenciar o testemunho cristão em todas as
esferas de atuação.

Gouvêa (2000) mostra que uma das principais características do calvinismo, en-
quanto sistema de pensamento, é observar de maneira peculiar a relação entre fé cristã e
a cultura humana. Ele mostra o calvinismo como uma “biocosmovisão” 12
, ou seja, uma
forma de determinar toda a vida.

Gouvêa (2000, p. 120-121) também afirma que ‘‘No calvinismo não há (...) di-
cotomismo entre Cristianismo e cultura.”, dizendo que “A soberania e iniciativa divinas
englobam o curso da história e da cultura humanas que também se tornam veículos da
revelação de Deus.”.

A partir dessa perspectiva, o cristão, através do calvinismo, se permite “voar para


o mundo” e não para fora dele. Não de maneira irresponsável e acrítica, mas de forma com
que cumpra sua missão onde está. Kuyper (2014) mostra como o calvinismo, enquanto
sistema de pensamento e formação de uma “biocosmovisão” cristã, faz-nos fazer esse voo
para dentro do mundo.

Em vez do voo monástico para fora do mundo é agora enfatizado o dever


de servir a Deus no mundo, em cada posição da vida. Louvar a Deus
12
Kuyper (2014, p. 198) mostra o embate dessa biocosmovisão com o modernismo secular. Ele faz um
importante alerta aqui: “contra este perigo mortal [o modernismo] vocês cristãos não podem defender
com sucesso seu santuário exceto colocando-se em oposição a tudo isso, uma biocosmovisão própria de
vocês, fundada tão firmemente sobre a base de seu próprio princípio, elaborada com a mesma clareza
e brilhante numa lógica igualmente consistente.”
78 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

e servi-lo no mundo tornou-se o impulso inspirador; na Igreja, deveria


ser reunida força para resistir à tentação e ao pecado no mundo. Deste
modo, a sobriedade puritana veio de mãos dadas com a reconquista da
vida toda do mundo (...) (KUYPER, 2014, p. 39).

É o que Knudsen (2014) mostra dizendo que, ao lidarmos com o “mal” do mundo,
não o tratamos como se esse fosse inerente a condição do mundo, mas sim não natural. É
uma depravação, algo contrário à natureza.

O calvinismo então promove uma cosmovisão integral de visão de mundo. Um


mundo onde há pecado e mal, mas onde também há graça e bondade. Um mundo ao
qual Deus amou muito e trouxe redenção. Um mundo que não deve ser particularizado
e segmentado de nossa vida. Um mundo que não é um mal necessário, antes, é o mundo
que Deus nos deu para glorificá-lo e honrá-lo.

O acabamento

Segundo Noll (2000), “Lutero acreditava que a palavra ’reforma’ devia ser reservada para
a promessa de Deus de criar novos céus e nova terra no final dos tempos.”. Da mesma
forma que entendemos que a igreja reformada sempre está se reformando, ainda há muito
a se desbravar quanto ao sacerdócio universal e o exercício dessa doutrina pela igreja.
Mesmo enquanto protestantes e herdeiros diretos da doutrina do sacerdócio, precisamos
ainda questionar e refletir se temos de fato sido uma igreja sacerdotal em nosso tempo
aqui e agora.

É o que McGowan (2015) aponta também dizendo que a “Reforma nunca pode ser
simplesmente um evento no passado, mas também deve ser um movimento constante.”.
Ser reformado não significa desconstruir o passado, mas continuar edificando através dos
fundamentos sólidos e bíblicos que foram estabelecidos anteriormente.

Bosma (2017) lida com o sacerdócio universal tratando-o como uma tarefa inaca-
bada da Reforma. Apesar de ser um tema com uma distinta ênfase protestante na história
da igreja, ele ainda não foi plenamente e satisfatoriamente desenvolvido.
6.2. A história do conceito 79

Lidando com antigos e novos paradigmas

Para Stevens (2005, p. 147), o sacerdócio de todos os crentes tem duas faces: a eclesial
e a diaspórica. A primeira diz respeito à igreja reunida, a segunda, à igreja dispersa em
missão no mundo. Essas duas faces foram discutidas até aqui neste trabalho, sendo que
a última tem sido a de maior atenção. A igreja espalhada no mundo enquanto sacerdócio
de Deus.

O professor Chun Chung, em recente discussão promovida pelo Centro Presbite-


riano Andrew Jumper entitulada “Reformado e Missional” 13
, cria uma relação entre o
termo “missional” e o sacerdócio universal de todos os crentes. Para ele, dizer que a igreja
é missional é trazer uma “nova roupagem” para o sacerdócio universal de todos os crentes
e incorporá-lo de fato na missão da igreja.

Stevens (2005, p. 15) vai dizer que todo o povo de Deus é sacerdotal e “dotado,
comissionado e apontado” para a missão de Deus.

Assim, resgatar o sacerdócio universal para os dias de hoje é lidar com o aspecto
missional da igreja. É dizer que cada cristão, enquanto parte de uma comunidade missio-
nária, é missionário e sacerdote (representante) de Deus no mundo

Estamos lidando com antigos paradigmas (a doutrina reformada do sacerdócio


universal de todos os crentes) e com novos paradigmas (a missão de Deus e a igreja
missional). Apesar de distinções em termos de linguagem e técnica, elas dizem fundamen-
talmente sobre a mesma coisa: a igreja, no mundo, para glória de Deus. Deus tem chamado
e abençoado um povo para chamar e abençoar outros, essa é a natureza da igreja.

Diversos desafios estão diante de nós para o futuro da igreja. Entendemos aqui que
para lidar com esses desafios e responder maneira pujante, robusta e contundente, sendo
gentil e ao mesmo tempo fiel, temos que vencer uma conveniente introversão (BOSCH,
2002) que foi cultivada nos últimos séculos e vivenciar um horizonte de engajamento com
Deus e com a missão que ele tem no mundo. Para isso, o sacerdócio universal pode ser
uma ferramenta útil.
13
Andrew Jumper Live - Reformado e Missional - Filipe Fontes, Chun Chung, Mauro Meister. Acesso
em 27 de julho de 2020. https://youtu.be/1PXsi8wRnXI.
80 Capítulo 6. Sacerdócio Universal

Schirrmacher (2015) apresenta em seu artigo a relação necessária que a missão


deve ter em todas as áreas da teologia. A teologia, quando observada apenas através de
sua interface acadêmica, pode propiciar um cenário inócuo de atuação. Ela não interfere
além de suas próprias discussões. A Figura 2 mostra como a missão deve ser incorporada
no discurso teológico a fim de dar uma dimensão prática para os estudos teológicos.

Figura 2 – A relação da missão com outras áreas

Fonte: Schirrmacher (2015, loc. 1343)

É possível aqui determinar uma relação de mutualidade entre a missão e a teologia,


uma vez que a missão da igreja deriva da própria natureza de Deus, como já temos falado,
e que a teologia é um estudo da revelação de Deus. Logo, a missão é uma característica
da própria teologia e deve ser inseparável de seu estudo. Todo argumento teológico deve
ter sua interface missional-missionária e se perguntar sobre quais imperativos ele dispõe
para seus sujeitos.

Pensando em uma forma de lidar com os imperativos da missão e a tradição refor-


mada, pode ser útil resgatar a declaração de fé da Fraternidade Reformada Mundial 14

14
cf. https://wrf.global/media/attachments/2018/07/01/statement-of-faith-in-portuguese.pdf
6.2. A história do conceito 81

que em seu capítulo X apresenta os seguintes argumentos quanto a Missão e evangelismo:

a) Nosso chamado para sermos testemunhas de Deus com palavras e obras: Temos
que oferecer duas mãos para todas as pessoas: a primeira é a mão que chama
para o arrependimento e reconciliação através de Jesus Cristo; a segunda é a
mão que manifesta a bondade do reino de Deus;

b) A ampliação do chamado à missão: Não podemos ignorar o mundo, pois se


fizermos isso, traímos a missão que Deus nos confiou em servir o mundo;

c) A compaixão dos cristãos pelo mundo: Em meio a pobreza, enfermidades, injus-


tiças, miséria e desordem social humana, somos chamados a termos compaixão
e caminharmos junto daqueles que sofrem;

d) A transformação da comunidade humana: Somos participantes de um processo


de transformação completa da realidade humana que será plenamente realizado
na volta de Cristo;

Esses argumentos lançam luz a uma prática que seja coerente com a doutrina
reformada do sacerdócio universal e a igreja missional. Todo cristão e cristã é chamado
para demonstrar em sua vida a face do próprio Cristo para o mundo.
83

7 Implicações ministeriais: O sacerdócio uni-


versal e o exercício da missão

7.1 O sacerdócio universal da igreja

Temos buscado neste trabalho expor e demonstrar a doutrina do sacerdócio universal


enquanto um meio para a igreja exercer a sua missão no mundo. Bieler (1999, p. 230)
mostra como a igreja e seus membros têm a vocação última de viver uma vida que reflita
sua comunhão com Cristo.

Bieler (1999, p. 229) trata também a respeito de uma emancipação preciosa e


uma exigência custosa para os membros da igreja ao cumprirem sua vocação. Há uma
tentação da igreja de se furtar de sua tarefa na evangelização, se conformando ao mundo
e perdendo sua identidade enquanto povo de Deus enviado ao mundo para ser sal e luz.
Emancipação aqui significa se livrar das ações coercitivas do mundo enquanto sistema.
Exigência significa cumprir as demandas e responsabilidades que a identidade sacerdotal
implica.

Logo, uma consideração é que o sacerdócio universal de todos os crentes pode


ser melhor compreendido à luz de seu elemento corporativo. De certa maneira, o cristão
só é sacerdote no mundo porque faz parte de um “reino de sacerdotes”. Dessa forma,
melhor seria se antes de definirmos o sacerdócio de todos os crentes ou de cada crente,
definissemos e lutássemos pelo sacerdócio da igreja (ANIZOR; VOSS, 2016).

Entender que a igreja é sacerdotal no mundo empodera cada estrutura e função


da igreja à luz de seu chamado mais elementar: abençoar o mundo. A partir dessa ótica
revisitamos os meios mais ordinários da igreja, como um galão que serve água para os
membros e visitantes, e consideramos tudo o que a igreja faz e é ocorre dentro de sua
identidade sacerdotal.

A igreja é o principal agente participante da missão de Deus no mundo. E é o


84 Capítulo 7. Implicações ministeriais: O sacerdócio universal e o exercício da missão

próprio Deus que a estabelece assim. Quando Jesus diz que “sereis minhas testemunhas”,
ele está definindo a condição mais essencial desse organismo na história: a sua face no
mundo. O mundo irá conhecer quem Deus é através da igreja e de suas verdadeiras marcas.

Pensamos que resgatar a imagem sacerdotal da igreja traz benefícios também na


própria ordem eclesiástica. Podemos abandonar os resquícios hierárquicos entre oficiais e
“leigos” da igreja e enfatizar a diversidade de funções no corpo de Cristo para o exercício
de uma mesma missão. Seguindo a argumentação de Paulo em Romanos 12, nenhuma
parte do corpo deve clamar para si maior prestígio do que convém. A cabeça é Cristo - o
sacerdote é Cristo - e por ele ser o sacerdote é que a igreja, e não ofícios específicos dela,
é o seu sacerdote no mundo.

Como bem aponta Anizor e Voss (2016), devemos tomar as visões coroporativas
e individualistas em equilíbrio. Não estamos falando aqui de um corpo despersonalizado
e genérico, antes de uma missão individual e específica condicionada a uma estrutura
anterior. Todo cristão exerce seu sacerdócio porque pertence a igreja sacerdotal, que é
assim por causa de Cristo, o sumo sacerdote.

7.2 Liberando os leigos

Como presbiterianos, pertencemos a uma rica e pujante tradição. A igreja escocesa, da


qual somos oriundos, trouxe importantes e necessários avanços no campo da teologia,
como: uma teologia reformada, um sistema presbiteriano de governo e uma nova relação
entre igreja e estado (MCGOWAN, 2015, loc. 4866).

Pierson (1974), em sua obra de investigação acerca do período de expansão da


Igreja Presbiteriana no Brasil, mostra um cenário que a Igreja Presbiteriana enfrentou
em seus primeiros anos até a sua consolidação. Um cenário em que a força de trabalho
leiga era mais efetiva e os pastores e mestres, até por serem poucos, serviam em suas
funções privativas e também coordenando o trabalho de diversas regiões. Não era incomum
ver pastores que tinham sob sua responsabilidade mais de uma igreja. Os membros da
igreja, que vivenciavam de maneira mais próxima os desafios da sua região, capilarizavam
7.2. Liberando os leigos 85

as funções e trabalhavam a fim de estabelecer os trabalhos da igreja localmente. Dessa


forma, a igreja se expandiu para as regiões urbanas e rurais e pôde se instalar em diversos
pontos no leste de Minas, oeste de São Paulo, entre outras localidades.

Esse passado recente lança luz a uma oportunidade do sacerdócio universal para
os nossos dias. Durante algum tempo, de forma pragmática, pastores incorporaram para
si funções que necessariamente não eram suas. Criou-se convenientemente para a igreja a
noção de que “o pastor é quem faz tudo” e os membros devem apenas sustentar financei-
ramente o pastor e frequentar os cultos.

Essa visão está distante de uma percepção bíblica coerente do sacerdócio da igreja.
Ela distancia os membros do corpo de Cristo de um exercício ativo e criativo no trabalho
do reino de Deus no mundo e encarrega os pastores de um trabalho que muitas vezes não
compete a eles.

Inclusive, segundo Bosch (2002), existe uma mudança inequívoca na igreja. Os


leigos são a base de operação da missão de Deus. Bosch (2002, p. 563) vai dizer que “são
os portadores de ofício [nota: os pastores] que precisam acompanhar os leigos, o povo de
Deus”.

Quando pensamos em “liberar os leigos”, resgatamos o que Stevens (1998) mostra


em sua obra “A hora e a vez dos leigos”. Liberar os leigos é trazê-los de volta para o lugar
que eles devem ter na missão de Deus: um lugar ativo, criativo e responsável enquanto
povo sacerdotal de Deus.

Isso desemboca no que a carta de Paulo aos Efésios no capítulo 4 versículos 11 e 12,
texto já citado neste trabalho, diz que Deus deu a igreja alguns com funções específicas
a fim de aperfeiçoar os santos para a obra do ministério. As funções do pastor existem
para o cumprimento da missão por parte da igreja. O pastor não é o único que faz missão,
mas sim aquele que deve capacitar cada um e cada uma da igreja para que esses também
façam missão.

Resgatar o sacerdócio universal é liberar os leigos para que eles não sejam mais
aprisionados e tentados a viver uma vida cristã abaixo do que Deus tem intencionalmente
86 Capítulo 7. Implicações ministeriais: O sacerdócio universal e o exercício da missão

revelado a eles enquanto sua identidade. É considerar, de fato, seus privilégios e respon-
sabilidades no corpo de Cristo e trazer a tona o poder do Espírito que atua por meio da
igreja e de seus membros.

7.3 Formando discípulos

Bosma (2017, p. 218) irá dizer que “A natureza missionária da igreja significa que todos
os sacerdotes têm o solene dever de fazer discípulos, não somente missionários leigos
ou ordenados.”. Entendendo aqui que “sacerdotes” é um termo referente aos ministros
da igreja, resgatamos então a tarefa mais elementar do pastor-presbítero para a vida da
igreja, que é formar discípulos e equipar os santos para o ministério, como acabamos de
ver.

Precisamos recuperar o modelo neotestamentário de igreja, conforme vemos na


Figura 3. Os líderes da igreja servem para formar a igreja para o exercício de sua missão
de representar Cristo no mundo.

Figura 3 – Visão da Igreja do Novo Testamento

POVO

LÍDERES

Fonte: Stevens (2005, p. 29)

Reafirmarmos a noção presbiteriana e reformada de governo da igreja, como vimos


aqui, porém, essa hierarquia deve servir ao propósito missional da igreja e dos membros que
7.3. Formando discípulos 87

pertencem a ela. A hierarquia, sendo vista de maneira funcional, não serve aos pastores,
mas à missão (STEVENS, 2005).

Bosma (2017) apresenta o contraste de dois cenários. O primeiro mostra o pastor


como responsável por tudo e concentrando todas as funções da igreja para si. O outro
apresenta o pastor como aquele que edifica e treina os membros da igreja para que esses
vão ao alcance dos não-salvos. Para isso, podemos entender que o ministério em Efésios
4.12 pertence, na verdade, aos santos e não somente ao pastor, pois ‘‘quando todos os
membros do Corpo de Cristo estão bem equipados e engajados no ministério, então a
igreja cresce naturalmente.” (BOSMA, 2017, p. 225).

Barth (1960, p. 175) em seu estudo sobre a carta aos Efésios aborda sobre esse
trabalho de preparação. Os pastores e mestres são instrumentos de Deus para a preparação
dos fiéis para o cumprimento da missão. Isso inclusive estava refletido na própria vida
dos destinatários desta carta. “Os de Éfeso foram alcançados pelo evangelismo de certas
pessoas e lucraram através do trabalho de outros.”.

Esse trabalho do pastor serve, segundo Barth (1960, p. 177), como uma forma de
emancipação e empoderamento do povo de Deus para a missão. Esse empoderamento não
deriva de si mesmo, mas sim da força de Deus que os prepara através dos ministros para
o exercício de cada dom e vocação no mundo.

O processo do discipulado cristão envolve o desenvolvimento do reflexo da imagem


de Cristo na vida do crente. Vanhoozer (2018, p. 193) trabalha a ideia de um chamado
implícito, o porte da imagem divina, e um chamado explícito, seguir a Jesus, no discipu-
lado. Os pastores devem se envolver e trabalhar dentro desse “drama”, para que assim
o povo ao qual eles [os pastores] se dedicam seja fiel aos dois chamados que envolvem o
discipulado cristão.

Vanhoozer e Strachan (2016) apresentam a figura da embaixada escatológica para a


igreja, destacando o papel do ministro cristão em formar pessoas teologicamente prepara-
das para encararem os desafios da vida cristã no mundo. Isso se dá através da formação de
uma esperança escatológica. Essa imagem nos lembra de algo que já vimos neste trabalho,
88 Capítulo 7. Implicações ministeriais: O sacerdócio universal e o exercício da missão

que o sacerdócio é também escatológico. Logo, o discipulado e o treinamento desenvolvido


pelos ministros da igreja para o corpo de Cristo também deve estar embarcados dentro
deste contexto. Os pastores nesse sentido participam da

vanguarda de uma procissão de vitória, celebrando o triunfo de Deus


sobre a morte, a destruição e a desintegração, uma procissão desper-
tada pela “processão” do Espírito Santo da parte do Pai e de seu Filho
ressurreto. A igreja é tão somente o início de uma obra de renovação
não apenas urbana, mas também cósmica, antecipando em suas práti-
cas reconciliatórias a reconciliação de todas as coisas. (VANHOOZER;
STRACHAN, 2016, p. 196)

Percebemos, dessa forma, que o ministério pastoral, à luz do sacerdócio universal,


pode ser orientado para o treinamento da igreja para que essa cumpra a sua missão. Isso
não quer dizer que o pastor não irá também cumprir a missão, pois ele, como parte do
povo de Deus, também tem responsabilidades enquanto sacerdote, mas quer dizer que a
responsabilidade específica dele enquanto servo de Deus é a de edificar e treinar os santos
para viverem como sacerdotes em sua vida comum à luz da esperança escatológica.

7.4 Uma comunidade alternativa

Algo que Goheen (2014a) apresenta em sua obra é que a igreja, em seu encontro mis-
sionário com a cultura, deve permanecer enquanto uma comunidade de contraste. É na
performance da igreja enquanto uma comunidade radicalmente oposta à cultura que esta
“encarna a nova vida do reino”.

Goheen (2014a, p. 248) inclusive apresenta algumas sugestões para guiar esse tipo
de comportamento, sendo: (a) uma comunidade de justiça em um mundo de injustiças,
(b) uma comunidade de generosidade e simplicidade, (c) uma comunidade de pessoas que
contribuem generosamente em um mundo egoísta e individualista, (d) uma comunidade
que testemunha de maneira humilde e ousada a verdade em um mundo de incertezas, (e)
uma comunidade de esperança em um mundo desiludido e cansado de consumo, (f) uma
comunidade de alegria e gratidão em um mundo hedonista e, por fim, (f) uma comunidade
que experimenta a presença de Deus em um mundo secular. Todas essas características
nos ajudam a perceber como pode ser a experiência de um povo sacerdotal neste mundo.
7.4. Uma comunidade alternativa 89

A experiência do povo de Deus na história é uma experiência de vivência alterna-


tiva. Entretanto, é possível que experimentemos dificuldades para essa vivência. Bruegge-
mann (1983) mostra que a causa dessas dificuldades está em um processo longo de perda
de identidade e abandono da fé. Ele irá falar sobre o ministério profético que instiga o
comportamento sacerdotal da igreja. A experiência enquanto povo separado de Deus no
mundo é nutrida, alimentada e despertada como uma experiência de percepção de uma
consciência alternativa necessária para o exercício do chamado enquanto povo de Deus no
mundo.

Brueggemann (1983) traz uma inquietação importante: “Devemos perguntar se


nossa consciência e nossa imaginação foram assaltadas e cooptadas pela consciência do
rei, pelo fato de termos sido roubados da coragem e da capacidade de ter um pensamento
alternativo”. Nesse sentido, a experiência de uma comunidade alternativa, isto é, uma
comunidade de sacerdócio, deve sempre se perguntar sobre como ela está se portando no
seu momento histórico. Ela está pensando “alternativamente” ou já está cooptada pelos
ídolos e poderes deste mundo?

Podemos então aqui observar o papel do pastor enquanto um agente que desperta,
agindo profeticamente, a consciência de uma prática sacerdotal e distinta no povo de
Deus. Brueggemann (1983, p. 146) diz “A prática do ministério profético não é algo de
especial feito duas vezes por semana”, mas sim “ela deve ser realizada em e com todos
os atos do ministério” e “refere-se a uma posição e atitude ou a uma interpretação do
mundo, da morte, da palavra de vida que pode levar luz em cada situação.”. O pastor é
um instrumento necessário para a igreja para edificar, treinar e instruir a comunidade de
Deus a manter a sua agenda de contraste neste mundo.

Pensando nos termos que Brueggemann (1983) oferece, o pastor é o que primeiro
imagina profeticamente. É aquele que visualiza o cenário alternativo neste mundo caótico
e escasso de esperança.
Parte III

Conclusão
93

8 Considerações finais

8.1 Resumo das principais ideias

No decorrer deste trabalho, pudemos demonstrar a doutrina do sacerdócio universal en-


quanto uma possibilidade para a igreja exercer a sua missão. Fizemos isso a partir de um
estudo dedutivo, lidando com a doutrina sobre a igreja, posteriormente suas implicações
missionárias e, de maneira mais específica, o sacerdócio universal.

Neste trabalho vimos que a igreja é a reunião do povo de Deus por meio de Jesus
Cristo. Ela é uma comunidade que pertence a Deus. Essa comunidade é governada a partir
de Cristo, por meio de oficiais, para unir o povo de Deus ao próprio Cristo. Dessa forma,
o povo de Deus poderá ser instruído, equipado e cuidado para participar da missão.

A participação da missão evoca a responsabilidade que esse povo tem no mundo


em ser leal ao reino ao qual pertencem e demonstrarem em suas obras e palavras o amor
de Deus ao mundo.

O sacerdócio universal é uma doutrina bíblica que resgata para a igreja o seu
lugar na história enquanto representantes de Deus, derrubando as barreiras clericais e
evidenciando que todo cristão e toda cristã tem responsabilidades na missão de Deus.

Os pastores podem se aproveitar dessa doutrina a fim de prepararem as comuni-


dades que servem a partir da natureza missionária e sacerdotal. Dessa forma, liberando
os leigos para servirem no mundo e equipando-os para que eles cumpram suas responsa-
bilidades de maneira adequada sendo uma comunidade de contraste.

8.2 Perspectivas para futuras pesquisas

A doutrina do sacerdócio universal tem inúmeras aplicações e com certeza este trabalho
age de maneira preliminar e introdutória. Seguem-se algumas perspectivas para trabalhos
futuros e possíveis perguntas de provocação, considerando essas questões apenas como
94 Capítulo 8. Considerações finais

início de uma conversa:

a) A doutrina da vocação à luz do sacerdócio universal: Como se dá a relação entre


o fato de que todo cristão e toda cristã é sacerdote no exercício da vocação
cristã? Existem vocações que não podem ser realizadas? O que o sacerdócio
universal lança de essencial para o exercício da vocação?

b) O mercado de trabalho: Considerando que o mercado de trabalho é uma das


áreas em que a maioria das pessoas está envolvida, como a implicação de que
o cristão é um sacerdote se relaciona com isso? O que cada área revela de
oportunidade e de perigo ao cristão enquanto sacerdote nesse lugar?

c) Liderança e estrutura eclesiástica: Existem estruturas eclesiásticas que precisam


ser revistas a partir da doutrina do sacerdócio universal? O que isso implica
na forma como pastores e membros da igreja se relacionam?

d) E os outros ofícios? Normalmente tratamos do ofício sacerdotal junto com


o ofício profético e real. Como seriam estes outros dois ofícios à luz de uma
perspectiva eclesiológica-missiológica? Como o ofício profético e o ofício real se
desenvolvem na vida da igreja?
95

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