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Campinas, SP
2020
João Vinícius de Abreu
Campinas, SP
2020
Para Helen, minha companheira de sacerdócio.
Agradecimentos
Agradeço ao sumo-sacerdote, Jesus Cristo, Deus-Filho, meu Senhor! Ele é a própria ima-
gem de Deus na história e a plenitude de tudo o que existe. Agradeço ao Deus-Espírito,
o poder para a igreja demonstrar a imagem de Cristo no mundo. Agradeço ao Deus-Pai,
amoroso, bom e gracioso, que nos chamou para vivermos de maneira santa, justa e irre-
preensível no aqui e agora.
Agradeço a minha amada esposa Helen, a quem também dedico este trabalho. Você
é graça sobre graça em minha vida. Obrigado por ser meu auxílio em dias difíceis e riso
em dias felizes. Obrigado por ser sacerdote junto comigo neste mundo. É um privilégio
compartilhar da missão de Deus no mundo ao seu lado. Obrigado pelas inúmeras leituras,
correções e revisões neste trabalho.
Agradeço aos meus pais, Antonio e Gislaine e minhas irmãs, Isabella e Anna.
Obrigado por não permitirem que eu caminhasse sozinho e por serem meu suporte e
demonstração do cuidado de Deus sobre mim.
Agradeço por fim ao Seminário Presbiteriano do Sul. Obrigado por ser um instru-
mento de Deus na minha preparação ministerial. Agradeço aos meus amigos e colegas,
irmãos e companheiros de serviço. Também agradeço a cada professor e professora, fun-
cionário e funcionária. Tenho muita alegria de ser parte desta família e espero honrar
com humildade e responsabilidade a casa de profetas que me instruiu com tanto zelo e
dedicação.
“Tenho em casa uma pintura do italiano Savelli - depois compreendi muito bem quando
soube que ele fora convidado para fazer vitrais no Vaticano. Por mais que olhe o quadro,
não me canso dele. Pelo contrário, ele me renova. Nele, Maria está sentada perto de
uma janela e vê-se pelo volume de seu ventre que está grávida . O arcanjo, de pé ao seu
lado, olhá-a. E ela, como se mal suportasse o que lhe fora anunciado como destino seu e
destino para a humanidade futura através dela, Maria aperta a garganta com a mão, em
surpresa e angústia. O anjo, que veio pela janela, é quase humano: só suas longas asas é
que lembram que ele pode se transladar sem ser pelos pés. As asas são muito humanas:
carnudas, e o seu rosto é o rosto de um homem. É a mais bela e cruciante verdade do
mundo. Cada ser humano recebe a anunciação: e, grávido de alma, leva a mão à
garganta em susto e angústia. Como se houvesse para cada um, em algum momento da
vida, a anunciação de que há uma missão a cumprir. A missão não é leve: cada homem
é responsável pelo mundo inteiro.” Clarice Lispector 1
1
LISPECTOR, C. A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Resumo
A doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes é considerada como uma das
grandes ênfases protestantes. Seus desdobramentos são percebidos em diversas áreas do
conhecimento teológico e esta doutrina ainda incentiva muitas discussões. Neste trabalho
discutimos sobre como essa doutrina pode nos ajudar a compreender melhor o papel da
igreja no cumprimento da missão de Deus no mundo. Fazemos isto através de um pri-
meiro movimento sobre o que é a igreja e o que é a sua natureza missionária. Após isso,
desenvolvemos a missão da igreja e suas principais implicações. Por fim, a doutrina do
sacerdócio universal é apresentada enquanto uma doutrina bíblica que tem capacidade de
auxiliar os membros da igreja cristã a vivenciarem a realidade da missão em seu cotidiano.
Também realizamos neste trabalho um movimento de implicações ministeriais, pensando
na realidade do presbítero ao lidar com essa doutrina.
I INTRODUÇÃO 13
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
2 ENQUADRAMENTO CONFESSIONAL . . . . . . . . . . . . . . . . 19
3 OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
II DESENVOLVIMENTO 25
4 ECLESIOLOGIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
5 MISSÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
6 SACERDÓCIO UNIVERSAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
III CONCLUSÃO 87
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
8.1 Resumo das principais ideias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
8.2 Perspectivas para futuras pesquisas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Parte I
Introdução
15
1 Considerações iniciais
Há, inclusive, nas palavras de Bonino (2002) uma “carência de perspectiva estru-
tural e política”. A ação contundente, robusta e sustentável de um evangelicalismo não
se desenvolve a partir da sua piedade. Há uma separação entre o cristão e o público, o
comum e o povo, e isso leva a uma tendência de interiorização de si mesmo e das comuni-
dades que ele participa, fazendo com que o evangelicalismo se demonstre profundamente
individualista. O que está fora da igreja é de menor importância do que o que está dentro.
1
cf. “Censo 2010: número de católicos cai e aumenta o de evangélicos, espíritas e sem religião”. Acesso
em 27/07/2020 em https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?id=3idnoticia=2170view=noticia.
16 Capítulo 1. Considerações iniciais
Mas o fato inconteste é: o cristão está no mundo. Não existe um outro mundo no
qual o cristão está e nem um outro mundo que ele irá construir. É este mundo e o aqui
e agora que necessita de sua presença ativa. É neste mundo que o Cristo se encarnou,
morreu e ressuscitou. É neste mundo que o Cristo enviou sua igreja em missão. Querer
construir um mundo alternativo é viver no devaneio e fantasia de algo que não existe. Uma
vez que Cristo estabeleceu seu reino neste mundo, melhor é, para nós, lidarmos com ele,
aqui e agora, encarando os desafios e oferecendo a realidade do próprio Cristo enquanto
rei.
Isso tudo nos leva a aceitar o imperativo que Barth (1986, p. 19) apresenta: “O
cristão é aquilo em nós que não somos nós, mas Cristo em nós.”. O fato de estarmos aqui
17
e agora implica em uma intenção clara. Somos inseridos para representarmos o próprio
Cristo neste mundo. Pois “A comunidade de Cristo é uma casa aberta para todos os lados”
(BARTH, 1986, p. 20), e a igreja é essa casa. Não somos chamados para nos voltarmos
para nós mesmos. Antes, temos uma vocação bíblica sacerdotal de apresentar a realidade
do único Deus para todas as casas da terra. A nossa identidade enquanto povo inserido e
localizado neste mundo demonstra a nossa missão.
2 Enquadramento Confessional
Logo, este capítulo se ocupa em oferecer uma justificativa confessional para o item
demandado para o processo de licenciatura.
Essas duas citações trazem à luz que o propósito do decreto de Deus em relação
1
Outros termos correspondentes, embora tenham particularidades dependendo de sua definição e con-
texto de tradição são: sacerdócio de todos os crentes, sacerdócio dos batizados, sacerdócio dos fiéis e
sacerdócio dos leigos.
2
cf. Capítulo 2, A Royal Priesthood: Scripture’s Story in Anizor e Voss (2016)
20 Capítulo 2. Enquadramento Confessional
Hodge (2016, p. 105) traz à tona esse pensamento dizendo que o “o fim ou motivo
último de Deus, na eleição, é o louvor de sua gloriosa graça”. Também pode-se observar
que aqueles que são escolhidos não o são por méritos ou capacidades prévias, e sim pela
graça e misericórdia de Deus. O crente e a crente são sacerdotes de Deus por causa da
sua identidade enquanto povo chamado pela escolha de Deus para a sua própria glória.
A Confissão, em seu capítulo XIII, trata sobre a santificação, dizendo que aqueles
chamados por Deus são “fortalecidos em todas as graças salvadoras, para a prática da
verdadeira santidade...”. O exercício da santidade na vida do crente e da crente passa pelo
desenvolvimento de sua vocação enquanto um sacerdote, uma vez que tanto em Lv 20.7
3
tanto quanto seu correspondente em 1Pe 1.16 4 , encontra-se evidência para a santidade
como uma representação da essência da própria natureza do povo como povo de Deus. O
sacerdócio universal é evidenciado na natureza do povo como santo, separado, remido e
chamado para desenvolver as boas obras que Deus preparou (cf. Ef 2.8-10 5 ).
Já no capítulo XVI da Confissão, que aborda sobre as boas obras, percebe-se que
as boas obras são aquelas “ordenadas na palavra” (seção I), “fruto e as evidências de
uma fé” (seção II) e “glorificam a Deus” (seção II). As boas obras são a consequência
de um cristão e cristã que entende sua identidade enquanto povo de Deus e seu chamado
enquanto sacerdotes.
Dessa forma, o sacerdócio universal está implicado na Confissão assim como está
implicado em toda a história bíblica. Considerando as evidências confessionais trazidas
aqui, entende-se que o sacerdócio universal é definido por homens e mulheres:
Esta justificativa confessional pretendeu abarcar o tema central desta tese, que é
o sacerdócio universal de todos os crentes. Temas como a missão e a própria igreja, que
também fazem parte deste trabalho, são discutidos na Seção 4.1.
3 Objetivos e procedimentos
Pretende-se com este trabalho enquadrar três grandes perspectivas teológicas que se rela-
cionam aqui através da lógica dedutiva 1 .
1
O método dedutivo é definido por Marconi e Lakatos (2003) e se desenvolve através de uma conexão
descendente. Parte-se de uma conjuntura mais abrangente e passa-se a uma conjuntura mais específica.
Popper (2008, p. 30), em sua obra, fala sobre as dificuldades do método indutivo e desenvolve um
forte argumento favorável ao uso do método dedutivo (ou como ele diz, “dedutivo de prova”.)
2
Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide,
portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos
os dias até à consumação do século. [Mt 28.18-20, ARA]
24 Capítulo 3. Objetivos e procedimentos
Desenvolvimento
27
4 Eclesiologia
o texto da Confissão Belga, produzida por Guido de Brés. Além de reiterar as afirmações
dos Credos antigos (Credo Apostólico e Credo Niceno-Constantinopolitano), essa confissão
traz a seguinte declaração:
... Esta santa igreja também não está situada, fixada ou limitada em
certo lugar, ou ligada a certas pessoas, mas ela está espalhada e dis-
persa pelo mundo inteiro. Contudo, está integrada e unida, de coração e
vontade, no mesmo Espírito, pelo poder da fé (BRÉS; URSINUS, 2011).
Esse texto continua na próxima pergunta, ainda no domingo 21, sobre a “comunhão
dos santos” dizendo:
... Todos os crentes, juntos e cada um por si, têm, como membros, co-
munhão com Cristo, o Senhor, e todos os seus ricos dons... Todos devem
sentir-se obrigados a usar seus dons com vontade e alegria para o bem
dos outros membros (BRÉS; URSINUS, 2011).
Deus escolhe e preserva para si uma comunidade eleita para a vida eterna
e unida pela fé, que, em conjunto, ama, segue, aprende e adora a Deus.
Deus envia essa comunidade para proclamar o evangelho e prefigurar o
reino de Cristo pela qualidade de sua vida em conjunto e seu amor uns
para com os outros (COALITION; CHURCH, 2017, p. 115).
Essa resposta apresenta igreja como o agente enviado por Deus para a proclamação
do Evangelho e para a demonstração do Reino de Cristo. A vida da igreja irá demonstrar
o próprio reino de Deus.
tem por fim prestar culto a Deus, em espírito e verdade, pregar o Evan-
gelho, batizar os conversos, seus filhos e menores sob sua guarda e en-
sinar os fiéis a guardar a doutrina e prática das Escrituras do Antigo
e Novo Testamentos, na sua pureza e integridade, bem como promo-
ver a aplicação dos princípios de fraternidade cristã e o crescimento de
seus membros na graça e no conhecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo
(BRASIL, 2019).
Essa resposta aponta o estado da igreja enquanto unida a Cristo. A igreja não é
uma agremiação de interesses quaisquer, antes, é a reunião em e por Cristo. É a comunhão
com ele em graça e glória.
30 Capítulo 4. Eclesiologia
Hodge (2016, p. 426), ao comentar esse trecho, diz que a promessa de Cristo ao
dar certeza à sua igreja que ela será eficiente em sua missão pelo mundo.
Logo, a igreja visível de Deus no mundo, segundo a Confissão de Fé, é essa que é o
Reino do Senhor Jesus, a casa e a família de Deus. Essas afirmações colocam a igreja no
papel de ser representante de Deus em missão neste mundo: um reino de amor no meio
de reinos perversos.
Bavinck (2012, p. 278) diz que a essência característica da igreja é que ela é “o povo de
Deus, a realização do amor eletivo de Deus”. Ele também complementa dizendo que a
igreja recebe benefícios da parte de Deus que a empoderam para a sua missão.
A definição de Bavinck (2012) passa por identificar a igreja enquanto aqueles que
participam de Cristo e de seus benefícios. Essa é situação mais elementar da constituição
da igreja: participação em Cristo e recebimento dos benefícios de Cristo.
Jesus para designar as reuniões praticadas pelos judeus. Na medida em que a comunidade
dos cristãos continua na era apostólica, segundo Bavinck (2012), ela vai se descolando do
termo para sinagoga e passa a identificar-se mais com o termo igreja, indicando que agora
ela torna-se uma reunião independente que substitui o lugar de Israel.
Bannermann (2014) mostra que a igreja deve sua origem a uma determinação do
próprio Cristo. A igreja não existe por si mesma ou pelas suas próprias preferências, mas
sim por aquele que a gerou, Cristo. Ao afirmar isso, Bannermann (2014, pos. 748) também
defende que a união da igreja com Cristo liga também os entes que a constituem.
Bavinck (2012, p. 301) mostra como a palavra “igreja” pode ter obscurecido o
sentido neotestamentário original do seu termo. O fato mais importante que deve emergir
de uma definição de igreja é a sua constituição enquanto povo de Deus. A igreja é, em
sua essência, uma comunidade do povo que pertence a Deus 1 .
Schmidt (1965, p. 59) mostra quão importante foi o resgate de Lutero quanto
à natureza da igreja enquanto a comunidade dos santos, do povo de Deus, frente ao
catolicismo que percebia a igreja a partir da ênfase em seu aspecto institucional-jurídico-
representativo.
Dentre os benefícios que a igreja herda de Cristo estão os dons que ela recebe.
Esses dons são presentes de Cristo distribuídos pelo Espírito (BAVINCK, 2012).
1
Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus,
edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular;
no qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para santuário dedicado ao Senhor, no qual também vós
juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito. [Ef 2.19-22, ARA]
32 Capítulo 4. Eclesiologia
Calvino (2009) em sua obra magna, “A Instituição da Religião Cristã”, trabalha em todo
o seu Livro IV sobre questões relacionadas a igreja. O objetivo de Calvino com essa obra
é determinar o que é a verdadeira igreja de Deus em contraste com a falsa igreja. Para
ele, a igreja é o meio pelo qual Deus se serve para nos unir a Cristo.
Dessa forma, o governo e poder da igreja são os instrumentos pelo qual a igreja
mantém o seu propósito de nos unir a Cristo. É através do correto exercício desse poder
que a igreja poderá cumprir esse fim de maneira adequada.
Beeke e Jones (2016) discorrem em sua obra sobre as distinções eclesiásticas pre-
sentes no campo protestante-reformado quanto ao governo da igreja. Ao tratar do caso
do presbiterianismo, ele faz algumas afirmações distintivas importantes para o fim deste
trabalho:
Isso nos leva para os princípios fundamentais defendidos por Berkhof (1990) para
o governo do sistema presbiteriano:
b) Cristo exerce sua autoridade por meio de sua palavra real: Cristo governa a
igreja subjetivamente pelo Espírito e objetivamente pela Palavra de Deus;
c) Cristo como rei revestiu a igreja de poder: A igreja como um todo recebe poder
de Cristo;
Sobre os oficiais, Berkhof (1990, p. 578) diz “É Cristo como Rei que lhes possibilita
(aos oficiais) falar e agir com autoridade”. Reforçando a dependência dos oficiais de Cristo
para o exercício de seu poder bem como o papel representativo de sua autoridade diante
do povo de Deus.
Quando Bannermann (2014) estipula essas distinções, ele corrobora o que Berkhof
(1990) e Beeke e Jones (2016) estão trazendo enquanto a posição presbiteriana-reformada
sobre o governo da igreja. Poder e governo aqui são tratados enquanto elementos indisso-
ciáveis. O que valida e organiza o governo é o poder e a sua origem. Enquanto está posto
que a origem do poder dos governantes da igreja reside na liderança de Cristo e não nas
particularidades da própria comunidade ou nos desejos e caprichos de qualquer represen-
tante político ou influência pessoal, fica então mais evidente o papel e a organização do
governo para os propósitos da igreja.
Dessa forma, temos então os oficiais da igreja. Berkhof (1990) divide essa categoria
entre oficiais extraordinários e oficiais ordinários. Os primeiros são aqueles que estiveram
no período do Novo Testamento atuando em circunstâncias especiais e antes da organiza-
ção e consolidação da igreja até o encerramento do cânon, são estes os apóstolos, profetas
e evangelistas.
Já os oficiais ordinários, são elencados por Berkhof (1990) como os (a) presbíteros,
(b) mestres e (c) diáconos. A particularidade entre estes não nos interessa nesse momento,
visto que nossa discussão caminha para apresentar a validade do ofício ordinário desses
representantes dentro da constituição da igreja 2 .
Bavinck (2012, p. 382) mostra como estes ofícios existem para a igreja, “Os ofícios
da igreja de Cristo não são um poder governante, mas servil. Eles existem por causa da
igreja”. Um dos papeis mais importantes que os oficiais executam é o de servos do povo
de Deus.
2
Tanto Bavinck (2012) quanto Berkhof (1990) evidenciam as distinções entre cada um destes ofícios
dentro da igreja.
4.3. O governo e o poder da igreja 35
Por fim, talvez um dos principais imperativos para o exercício do poder dos oficiais
da igreja é descrito na carta do apóstolo Paulo aos Efésios 3 , ele diz
E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros
para evangelistas e outros para pastores e mestres, com vistas ao aperfei-
çoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação
do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno
conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da
estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos como meni-
nos, agitados de um lado para outro e levados ao redor por todo vento
de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem
ao erro.
Este texto corrobora o que temos visto até aqui: (a) É Cristo quem concede os
oficiais da igreja; (b) Estes devem atuar como servos dessa; (c) O fim desse serviço é a
edificação, aperfeiçoamento e preparo.
Na última seção deste capítulo, iremos tratar sobre a igreja durante toda a narra-
tiva bíblica e sobre como a organização e ajuntamento do povo de Deus no mundo sempre
se desenvolveu de maneira missionária.
3
Ef 4.11-14 emBíblia (2009).
36 Capítulo 4. Eclesiologia
Quando Deus criou o mundo, ele deu aos seus primeiros habitantes uma missão:
ser representantes dele. Isso estava impresso na sua própria imagem, isto é, eles tinham
a imagem de Deus em sua constituição, e também nas ordens que receberam da parte de
Deus: “encher e multiplicar”, “cuidar”, “dar nome aos animais”, entre outras.
Existe um papel duplo, segundo Goheen (2014a), que o povo de Deus desempenha
no mundo. Este papel resume de maneira assertiva o propósito e lugar do povo de Deus:
“por ele em favor do mundo”, isso fica melhor definindo quando Goheen (2014a, p. 230)
diz
Para Goheen (2014a, p. 231) o que significa ser povo de Deus no contexto de Israel
é
ele promete ser o seu Deus enquanto eles se comprometem a ser o seu
povo. Israel deve ser uma nação santa, andar no caminho divino da
justiça e da retidão, moldando sua vida pela Torá de acordo com os
propósitos de Deus com a criação. Grande parte da história de Israel
está ligada com a ação de Deus entre eles, na luta de Israel contra a
idolatria. Israel é um povo que conhece a presença de Deus, que desfruta
de um relacionamento continuado com ele. Esse relacionamento exige do
povo sua fiel resposta em obediência, amor, fé e adoração ao seu Senhor
da aliança.
Por fim, temos a igreja enquanto uma comunidade que se volta para fora de si
mesma, para bênção do mundo, e assim ela o faz porque isso faz parte de quem ela é: uma
comunidade abençoada para abençoar. Se queremos que as igrejas sejam mais bíblicas,
elas devem fazer parte da história bíblica, e fazer parte da história bíblica significa ser
missional. Goheen (2014a, p. 236-237) cita quatro situações bíblicas que lançam luz para
as ações da igreja nos dias de hoje enquanto parte dessa narrativa bíblica, são elas:
c) Uma comunidade com uma tarefa: A tarefa missionária da igreja deve ser desem-
penhada através da pregação (proclamação) e em boas obras de misericórdia e
justiça;
Para finalizar, Schirrmacher (2015, loc. 1282) mostra que a natureza missionária da
igreja e o empreendimento missionário atual não deve ser apresentado de maneira isolada
e independente do que evidenciamos a partir da Escritura, tanto no Antigo Testamento
quanto no Novo Testamento, que corrobora aquilo que já está evidente na mentalidade
moldada pela perspectiva veterotestamentária. Ele diz que as missões mundiais não “...po-
dem ser apresentadas e praticadas independentemente da história da salvação no Antigo
Testamento e do destino do povo judeu.”.
Esta seção procurou finalizar este capítulo identificando que a igreja através da
narrativa bíblica pode ser percebida a partir de seu caráter missionário. Ser igreja é ser
uma comunidade de benção para o mundo e isso tem origem na própria história bíblica.
Cabe a nós agora entender o que significa de maneira específica esta missão e porque
nós enquanto igreja hoje devemos desempenhá-la. É sobre isto que o próximo capítulo irá
tratar.
41
5 Missão
Um dos termos mais disputados e desafiantes na teologia é a missão. Por muitas vezes e
por diferentes tradições, o termo missão é apresentado de maneira quase que contraditória
e lidar com as questões que o envolvem nem sempre é uma tarefa simples de se fazer 1 .
Stott (2010) apresenta logo no início de sua obra “A missão cristã no mundo
moderno” duas perspectivas bastante opostas nessa discussão. A primeira, segundo ele, é
uma visão de missão que se concentrava na proclamação verbal do evangelho. Essa visão
compreende o mundo como um “prédio em chamas” e o cristão deve se organizar para
resgatar as pessoas deste prédio prestes a desabar.
Na outra ponta está o que Stott (2010) denomina de ponto de vista ecumênico. O
que está em jogo, de acordo com o autor, é um novo vocabulário de missões. Este ponto
de vista tentou lidar com a missão no aqui e agora enquanto a realização das perspectivas
bíblicas sobre a paz de Deus ao mundo, e se desenvolve, nas palavras de Stott (2010),
como uma “aceleração da mudança social e política”.
Stott (2010) assume uma posição mais equilibrada entre esses dois pólos, conside-
rando que ambas as posições levantam questões importantes, mas a missão não deveria
ser isso ou aquilo, mas talvez, isso e aquilo, com as devidas precauções aos exageros. Pode-
mos inclusive lembrar da tensão comentada na introdução deste trabalho entre “Reform
and Revival” ou “Reform or Revival”. Para tentar resolver isso, Hooft apud Stott (2010,
p. 24) define essas tensões enquanto interpretação horizontal (o ponto de vista ecumênico)
e interpretação vertical (o ponto de vista mais tradicional) e diz
Stott (2010, p. 41) nos oferece então um conceito mais amplo de missão que abrange
tanto o evangelismo, a proclamação, quanto a ação social.
A dicotomia entre evangelização e ação social é perigosa pois nos insere em uma
realidade que não nos parece coerentemente bíblica. Ferreira (2005, p. 573) afirma que “É
necessário que a Igreja jamais perca de vista sua missão de proclamar com fidelidade o
Evangelho e que, em sua expressão social, não haja interesse algum, senão puro amor.”.
O que pode nos ajudar a isso é o que o próprio documento de Lausanne no trecho
no capítulo 6, sobre Evangelização e Missão,
Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim como
o Pai o enviou, e que isso requer uma penetração de igual modo pro-
funda e sacrificial. Precisamos deixar os nossos guetos eclesiásticos e
penetrar na sociedade não-cristã. Na missão de serviço sacrificial da
igreja a evangelização é primordial. A evangelização mundial requer que
a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo. A igreja ocupa
o ponto central do propósito divino para com o mundo, e é o agente que
ele promoveu para difundir o evangelho. Mas uma igreja que pregue a
Cruz deve, ela própria, ser marcada pela Cruz. Ela torna-se uma pedra
de tropeço para a evangelização quando trai o evangelho ou quando lhe
falta uma fé viva em Deus, um amor genuíno pelas pessoas, ou uma
honestidade escrupulosa em todas as coisas, inclusive em promoção e
finanças. A igreja é antes a comunidade do povo de Deus do que uma
2
cf. Lausanne (1974)
5.1. O desafio conceitual 43
Nesse desafio proposto pela Carta de Manilla, um conceito importante para inter-
pretarmos a atuação das igrejas no contexto brasileiro é apresentado por Stetzer e Queiroz
(2017, p. 202) como o de igrejas transformacionais. Eles tratam sobre o paradigma da igreja
do “vá e conte” e dizem
A igreja não pode atuar apenas como evangelista local. Agora, ela tem
de ser o missionário capaz de penetrar nas suas complexas realidades
culturais para construir pontes. Estar inserido na cultura local para
mostrar Cristo na vida diária é fundamental.
então para líderes na missão”. Logo, devemos ter um movimento missionário que sintetiza
as duas tensões da missão cristã e que encara a realidade presente dos nossos dias para
empoderar a comunidade toda para o exercício da missão.
Isso desemboca no que iremos conhecer enquanto igreja missional. Esse termo
surge como fruto de uma discussão pujante entre diversos teólogos e missiólogos no século
XX, sendo resultado de diversas contribuições, inicialmente por Lesslie Newbigin e poste-
riormente, de maneira mais contundente, a de Darrell Guder, que, segundo alguns, foi o
que cunhou o termo “igreja missional” nos tempos mais recentes. De lá para cá, diversos
autores têm se debruçado para lidar com as ressonâncias dessa implicação em diversas
áreas da teologia, como Wright (2014) em hermenêutica e teologia bíblica, Bosch (2002)
na própria história dos paradigmas missionários, Goheen (2018) em eclesiologia e missão,
entre outros.
Goheen (2014b) em sua obra, “Introducing Christian Mission Today”, trata sobre como
o paradigma de missão nos últimos séculos e mais precisamente no século XX mudou
drasticamente. Ele cita uma passagem de Philip Jenkins que é até um tanto curiosa. Nessa
passagem, Jenkins apud Goheen (2014b, p. 19) diz que a frase “cristão branco” será tão
surpreendente para nós quando falamos de um “budista sueco”. Como essa pequena frase
4
De maneira resumida, essa disputa está no sentido de o termo missionário se referir a missões, princi-
palmente no sentido transcultural e nas questões que se referem ao preparo e envio de pessoas para
este fim, enquanto missional se refere mais ao exercício da vida comum de todo cristão enquanto
agente da missão de Deus.
5
Para saber mais sobre o desenvolvimento da Teologia Missional e do conceito de Igreja Missional, cf.
Goheen (2014b), especialmente o capítulo 2, “Theology of Mission and Missional Theology”.
5.2. A missão de Deus: Missio Dei 45
ele nos mostra que a cara do povo de Deus atualmente não é mais a cara de um americano
ou europeu típico, antes é de uma “mulher que vive em uma aldeia na Nigéria” ou em
uma “favela brasileira”.
b) Globalização;
c) Urbanização;
Bosch (2002, p. 466) mostra que nos últimos 70 anos tivemos uma decisiva mudança
no sentido em que entendemos missão hoje. Essa mudança é representada pelo expressão
missio dei, na tradução, missão de Deus 7 . A missão foi compreendida
7
Para compreender o panorama histórico do surgimento deste termo, cf. em Bosch (2002, p. 467),
Goheen (2014b, p. 82) e González (2009, p. 212).
5.2. A missão de Deus: Missio Dei 47
Teologia Sistemática e na Teologia Bíblica são impactadas pela noção da missão de Deus,
sendo elas:
Quem lida com este primeiro item (Escritura) é Wright (2014). Em sua obra “A
missão de Deus” podemos observar o desenvolvimento de uma leitura bíblica que consiga
lidar com os imperativos do texto. A Bíblia é um texto que abre para ação - para a missão.
Todo leitor ou leitora da Bíblia, ao se ver diante dessa história, precisa responder a fim
de participar dessa história. Ele desenvolve dizendo:
leitura bíblica, ele diz que isso se trata de “aceitar que a cosmovisão bíblica nos situa no
meio de uma narrativa do universo por trás da qual se encontra a missão do próprio Deus
vivo”.
Anderson (2017) nos mostra que a missio Dei está presente desde o início da
narrativa bíblica, já em seus primeiros capítulos. Deus está em missão no mundo desde o
princípio e a nossa participação em sua missão é inerente à nossa condição de existência
humana enquanto criados à imagem de Deus.
Dessa forma, o propósito primeiro das atividades missionárias da igreja deve ser o
serviço à missão de Deus (BOSCH, 2002; WRIGHT, 2012).
Goheen (2014b) conclui que essa abordagem cria dois novos enfoques para a missão:
a) A missão é uma missão de Deus: Toda a ênfase recai sobre o que Deus está
fazendo para a restauração do mundo;
da missio Dei.
O Deus Trino em missão significa para a igreja que esta agora “assume seu papel
na missão amorosa do Pai de restaurar a criação assim como cumpre a missão do reino
do Filho e a realiza até os confins da terra pelo poder do Espírito” (GOHEEN, 2014b,
p. 77)
Essa compreensão mais abrangente da missão significa inclusive uma nova lógica
(ou quem sabe uma lógica menos estrita), o que Newbigin (2016, p. 166) afirma dizendo
Assim, Bosch (2002, p. 470) mostra que o caminho do entendimento da missio Dei
é um caminho sem volta. Este “avanço” significa muito para a robustez do entendimento
missionário da igreja e nos dá novas e criativas abordagens para que a igreja represente
seu papel enquanto serva da vontade do Deus missionário neste mundo.
Na próxima seção iremos lidar com a natureza missionária da igreja, este organismo
vivo de Deus na história chamado a reunir pessoas de toda língua, povo, tribo, etnia e
8
As marcas da verdadeira igreja são: (1) A pregação do Evangelho, (2) A correta administração dos
sacramentos e (3) O correto uso da disciplina cf. Allen (2015, loc. 360).
50 Capítulo 5. Missão
nação.
E na seção que antecedeu a esta lidamos de maneira mais específica com o para-
digma da missão de Deus no mundo. Esse paradigma, aliado ao que iremos ver agora,
monta o cenário da missão no contexto atual. Uma missão que é entendida a partir da
própria natureza de Deus e que impulsiona o exercício missionário da igreja através de
quem Deus é e quem Deus diz para a igreja que ela deve ser: uma igreja missionária.
Israel foi chamado, em sua eleição por Javé, para ser pregador e exemplo,
profeta e sacerdote para as nações. A presença ativa de Deus em Israel
é sinal e garantia da Sua presença no mundo: e a presença de Israel é,
assim, contínuo apelo às nações do mundo.
O fato de Deus agir e ser presente na história de Israel deve ser um eco para o
mundo inteiro. O único e verdadeiro Deus, que cria e tece a história, está presente no aqui
e agora através da vida de seu povo. Da mesma forma que Israel representa isso para o
mundo, a igreja hoje, no aqui e agora, o faz de maneira semelhante.
Ao comentar o texto de 1 Pedro 2, Blauw (1966, p. 128) diz que o autor, ao usar
referências veterotestamentárias como Ex 19.5-69 e Is 61.610 , deixa evidente que
Blauw (1966, p. 131) continua dizendo que “A proclamação dos maravilhosos fei-
tos de Deus não ocorre apenas pela palavra e feito; ela já se realiza na existência da
comunidade.” A comunidade performa a proclamação de Deus ao mundo. É isso que es-
sencialmente distingue a natureza da igreja enquanto missionária de qualquer outro tipo
de reunião ou agremiação. A igreja proclama em sua vida e ação o Deus que está vivo e
ativo nela mesma. Goheen (2018) complementa dizendo que “Quando os cristãos levam
a sério sua identidade missionária e procuram viver como um sinal da sombra do rei, sua
desunião se torna literalmente intolerável”.
Ser igreja é ser um agente da missão de Deus. Não existe igreja sem missão. Blauw
(1966, p. 127) chega a dizer que uma teologia da missão não é nada mais do que uma
teologia da igreja, pois “o povo de Deus [é] chamado do mundo, colocado no mundo e
enviado ao mundo.”.
Ser igreja dessa forma é participar da história dessa igreja. É ser parte do que
ela é, missão. É entrar e viver essa história, como Bauckham (2002) aponta dizendo que,
quando aceitamos a autoridade dessa história, referindo-se aqui à história bíblica, nela nos
inserimos e nela habitamos. Vivemos no mundo agora a partir da lógica dessa história.
Isso é poderoso para nós aqui e agora cumprirmos a nossa missão enquanto repre-
sentantes de Deus no mundo, vivendo e convidando pessoas para viver dentro da história
bíblica 11
.
A fim de conclusão, não há outra forma de encerrar esta seção se não citando o que
Blauw (1966, p. 136) traz no final de sua obra “Enquanto houver neste mundo homens em
11
Michael W. Goheen em sua aula sobre a história bíblica no programa de Doctor of Ministry do
Missional Trainning Center, ministrada no dia 01 de junho de 2020, disse que a tarefa da igreja agora
é permitir as pessoas que vivam dentro da história bíblica.
52 Capítulo 5. Missão
trevas, sem Deus e sem misericórdia, há de durar a tarefa missionária da Igreja cristã”.
53
6 Sacerdócio Universal
Até aqui temos tratado sobre como uma eclesiologia orientada para a missão e a própria
missão encarregam a igreja de determinadas responsabilidades. A igreja não apenas faz
missões, antes, ela é missão. Essa mudança nos leva a perguntas do tipo: “Como então
podemos, como igreja, ser essa missão?”. Uma resposta que julgamos adequada neste
trabalho é: através do exercício do sacerdócio universal.
Laing (2009, p. 95), ao expor sobre as implicações da missio Dei, mostra que esse
conceito tem nos feito resgatar a nossa identidade como povo de Deus e inextricavelmente
missionários, ele diz que
Dessa forma, nos ocuparemos neste capítulo de destrinchar o que significa ser-
mos sacerdotes dentro da história bíblica e em como esse conceito nos insere em uma
abordagem de exercício da missão para os nossos dias.
Depois, iremos sumarizar algumas das principais ideias que se relacionam dentro de uma
teologia bíblica. Após isso, iremos apresentar alguns achados relacionados ao sacerdócio
universal a partir do texto da primeira carta de Pedro no capítulo 2 versículos 4 a 10.
Temos visto ao longo deste trabalho que a bíblia é uma narrativa - uma grande história.
Essa grande história bíblica concentra e determina toda a realidade (BARTHOLOMEW;
GOHEEN, 2017). A Bíblia enquanto uma história se desenrola a partir de atos divina-
mente orquestrados e intencionais (cf. 2Tm 3.16) para o testemunho de quem Deus é, o
que ele quer expressar de si mesmo para o seu povo e o que ele está fazendo na nossa
realidade histórica 1 .
Dentro dessa história bíblica, diversos temas são tratados, como reino, evangelho,
missão, entre outros. O sacerdócio (e o sacerdócio universal) é um desses temas que aparece
em toda a narrativa bíblica e se prova enquanto um tema que requer especial atenção dos
leitores bíblicos.
Anizor e Voss (2016, p. 55) nos oferecem uma figura (Figura 1) que ajuda a com-
preender melhor como se desenvolve essa narrativa bíblica sobre o sacerdócio.
Assim como Davies apud Malone (2017, loc. 2632) diz, precisamos entender que
a noção de Israel como uma nação real-sacerdotal não é apenas uma metáfora, mas sim
representa uma rica e forte ideia que perpassa por toda a Escritura.
Um conceito que será adotado aqui para o desenrolar da história bíblica do sacer-
dócio é o que “Cristo é aquele que cumpre o ofício de sacerdote e convida a sua igreja
para participar no seu sacerdócio.” (ANIZOR; VOSS, 2016, p. 26). Essa ideia nos ajuda
a entender que a origem do povo de Deus enquanto sacerdote está no próprio papel de
Cristo como sacerdote e a sua natureza sacerdotal deriva da própria natureza de Cristo,
tal como a missão.
56 Capítulo 6. Sacerdócio Universal
Adão é um rei no sentido de que ele exerce uma autoridade sobre a criação não
humana. Deus concede a Adão autoridade sobre a criação para que esta exerça seu domínio
e cuidado em toda a sua criação (ANIZOR; VOSS, 2016).
Bauckham (2011, p. 7) aponta que a autoridade que Adão deve exercer no mundo
criado deve ser exercitada através de um “cuidado responsável” e não uma dominação.
Esta também deve conter uma orientação teocêntrica para a criação e não antropocêntrica.
O mundo foi criado para a glória de Deus, não do homem 2 .
Um fato que nos chama a atenção na declaração de Deus ao povo de Israel enquanto
“reino de sacerdotes” é que isto deriva de uma iniciativa divina. É ele quem chama e dá
a eles esse privilégio. Não advém de alguma característica peculiar ou potencialidades
notáveis. “Deus estabelece o sacerdócio, nós não.” (ANIZOR; VOSS, 2016, p. 30).
O que Deus exige para a participação do seu povo e cumprimento do seu chamado
enquanto seus sacerdotes é a sua lealdade. Essa lealdade irá levar seu povo a exercer o
cuidado providencial de Deus no mundo, pois o “sacerdote é o mediador da promessa do
cuidado providencial de Deus.” (ANIZOR; VOSS, 2016, p. 36)
c) Julgar: A lei deve ser aplicada para ajudar a discernir as coisas da vida;
Temos então que Deus estabelece no livro de Êxodo uma nação de sacerdotes no
mundo. Um povo escolhido para uma tarefa especial no mundo de anunciar a benção do
próprio Deus sobre toda a terra.
O versículo 4 do Salmo 110 oferece uma sentença que merece a nossa atenção: “Tu
és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (BÍBLIA, 2009). O rei aqui
descrito por este Salmo não é apenas um governante militar ou político, mas também um
sacerdote, um representante de Deus. Pode-se entender que a função de autoridade do rei
é também um exercício do seu sacerdócio. Sobre este rei especificamente está revestida
a justiça de Javé e ele é o seu escolhido para dominar e exercer a autoridade do próprio
Deus (BRUEGGEMANN; BELLINGER, 2014, p. 480).
O caráter sacerdotal do trono deste rei aponta para o papel que Jesus exercitará
futuramente. Ele é um rei mas não apenas um rei político. Ele é um rei-sacerdote, um rei
representante da justiça e da graça de Javé para seu povo.
Estudiosos apontam que este Servo em Isaías pode ter uma identidade mista. Myers
(1987) mostra que o escritor dessas canções procura alguém que represente tanto Israel
coletivamente quanto a si mesmo enquanto personagem histórico. Entretanto, esse perso-
nagem histórico representou de forma mais ampla um senso de ideal. Jesus, dessa forma,
foi aquele quem mais cumpriu esse ideal.
O servo então é, ao mesmo tempo, Israel, o Messias, mas também pode ser a
própria igreja, que agora lê esse textos e compreende o seu chamado a partir do servo
sofredor.
expansão: o servo agora irá expandir o seu privilégio sacerdotal para incluir as outras
nações, que poderão contemplar a glória de Deus (ANIZOR; VOSS, 2016, p. 41).
Como temos visto, inclusive retomando a última discussão, o servo que irá retomar
e restaurar o ofício sacerdotal de seu povo, bem como cumpri-lo plenamente, é o próprio
messias, Jesus Cristo. Um paradigma precisa ser claro neste ponto que é ‘‘O sacerdócio
real de Cristo é a base e o padrão para o sacerdócio de todos os crentes” (ANIZOR; VOSS,
2016).
Um texto que nos ajuda a perceber Jesus enquanto esse grande sumo sacerdote
é o de Mc 2.23-28 6 , quando Jesus afirma sua autoridade sobre o sábado. Anizor e Voss
(2016) nos ajudam a perceber três coisas a partir desse texto:
a) Apenas sacerdotes eram permitidos de trabalhar no sábado, desde que isso seja
um trabalho sacerdotal;
c) Jesus e seus discípulos não estavam no templo mas sim em um campo, o que
pode indicar que Jesus como um sacerdote real, é ele mesmo, o local e o espaço
sagrado;
O que percebemos nos relatos sobre Jesus é que ele assume para si funções e
prerrogativas sacerdotais, como oferecer sacrifícios, mediar o perdão dos pecados e limpar
as pessoas para torná-las justas (ANIZOR; VOSS, 2016).
nações a minha glória. Trarão todos os vossos irmãos, dentre todas as nações, por oferta ao Senhor,
sobre cavalos, em liteiras e sobre mulas e dromedários, ao meu santo monte, a Jerusalém, diz o Senhor,
como quando os filhos de Israel trazem as suas ofertas de manjares, em vasos puros à Casa do Senhor.
Também deles tomarei a alguns para sacerdotes e para levitas, diz o Senhor. [Is 66.18-21, ARA]
6
Ora, aconteceu atravessar Jesus, em dia de sábado, as searas, e os discípulos, ao passarem, colhiam
espigas. Advertiram-no os fariseus: Vê! Por que fazem o que não é lícito aos sábados? Mas ele lhes
respondeu: Nunca lestes o que fez Davi, quando se viu em necessidade e teve fome, ele e os seus
companheiros? Como entrou na Casa de Deus, no tempo do sumo sacerdote Abiatar, e comeu os pães
da proposição, os quais não é lícito comer, senão aos sacerdotes, e deu também aos que estavam com
ele? E acrescentou: O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do
sábado; de sorte que o Filho do Homem é senhor também do sábado. [Is 2.23-38, ARA]
6.1. Uma teologia bíblica do sacerdócio 61
Quando Cristo assume esse papel, ele determina um padrão que a sua igreja após
ele irá seguir (ANIZOR; VOSS, 2016). Ele restaura essa identidade para a igreja, cum-
prindo as profecias de Isaías e sendo o servo de fato para que agora, a partir dele, a sua
igreja possa também ser serva para as nações.
Um dos textos que tem especial atenção sobre este tema é o de 1 Pedro 2. Há
diversas figuras a serem exploradas nesse texto que nos inserem dentro da realidade do
sacerdócio real que a igreja agora desenvolve. Entretanto, o que podemos observar nesse
texto é a natureza comunitária em que este sacerdócio se desenvolve.
Não estamos falando de um sacerdócio exercido por uma pessoa apenas, mas sim
de uma comunidade que exerce coletivamente essa identidade. A comunidade precede
o indivíduo. Anizor e Voss (2016, p. 47) dizem que “os crentes são a comunidade de
sacerdotes que, pela virtude da eleição de Deus em Cristo e pela santificação do trabalho
do Espírito, juntos participam dos benefícios de acessarem diretamente a Deus”.
Percebemos aqui como Pedro nos ajuda a lidar com uma tensão que já foi tratada
quando lidamos com os temas da missão. Na eclesiologia desse texto, a comunidade dos
sacerdotes não exercita uma de suas ações em detrimento da outra. Ela proclama as
virtudes de Deus ao mesmo tempo em que oferece sacrifícios aceitáveis.
Ainda que Paulo não lide com o tema do sacerdócio universal de maneira tão
explícita como Pedro faz, é possível que encontremos esse tema sendo desenvolvido de
62 Capítulo 6. Sacerdócio Universal
Em Romanos 12, quando Paulo fala sobre o corpo de Cristo, percebemos que o
“sacerdócio real não é apenas uma chamada genérica para a igreja como um todo mas
sim uma chamada para cada membro do corpo” (ANIZOR; VOSS, 2016, p. 49). O que
temos aqui é que, assim como temos visto que o sacerdócio universal é primeiramente
uma identidade comunitária, ele tem implicações individuais e particulares. Cada membro
deve reconhecer o seu papel na constituição dessa identidade sacerdotal do corpo (povo)
de Cristo.
Na carta aos Filipenses, vemos por duas vezes, tanto em Fp 2.177 e 4.188 , que
Paulo utiliza de uma linguagem cúltica-sacerdotal. Vemos inclusive no versículo 18 do
capítulo 4 que os donativos que a igreja passou para ele são uma oferta cúltica e por que
não, sacerdotal. Anizor e Voss (2016, p. 51) notam que, nessa carta, “qualquer serviço
desenvolvido pela fé em nome do evangelho é recebido como um serviço sacrificial e uma
oferta agradável a Deus”.
Em Hb 4.169 , temos o que a igreja recebe das mãos de Cristo. Segundo Anizor e
Voss (2016, p. 51),
Por fim, o livro de Apocalipse nos constitui para a visão do sacerdócio à luz dos
últimos eventos e do propósito da igreja até esse momento. A figura que entendemos a
partir do texto de Ap 1.5-610 nos mostra que a realidade do povo de Deus continua como
a de sacerdotes na Nova Jerusalém.
Anizor e Voss (2016) mostram que ser um sacerdote no texto de Apocalipse envolve:
c) Guardar a verdade de Deus ainda que isso custe a própria vida (Ap 6.9, 20.4);
10
e da parte de Jesus Cristo, a Fiel Testemunha, o Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da
terra. Àquele que nos ama, e, pelo seu sangue, nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino,
sacerdotes para o seu Deus e Pai, a ele a glória e o domínio pelos séculos dos séculos. Amém! [Ap
1.5-6]
64 Capítulo 6. Sacerdócio Universal
Resumimos aqui os três principais achados de Anizor e Voss (2016) quanto ao sacerdócio
universal na história bíblica, tecendo alguns comentários sobre eles:
(3) Todo membro do sacerdócio é chamado para ter um serviço ativo no Evangelho.
Dessa forma, o sacerdócio não é uma prerrogativa de uma classe especial, antes é algo
que constitui a própria igreja. Todo cristão e cristã tem uma responsabilidade derivada
de sua identidade sacerdotal e de sua união com Cristo.
Trazemos aqui alguns achados exegéticos que se relacionam com o nosso tema que foram
desenvolvidos no trabalho de Exegese a partir do texto de 1 Pedro 2.4-10.
(4) Para ele entrando, a pedra que vive, pelos homens certamente re-
jeitada, mas para com Deus eleita e valiosa. (5) E eles como pedras
que vivem construídos casa espiritual para serem sacerdócio santo para
ofertar sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus através de Jesus Cristo
(6) Porque está em toda a Escritura: Veja! Ponho em Sião uma pedra
de fundação eleita e valiosa e aquele que crer nela não será de maneira
nenhuma envergonhado. (7) A vocês, portanto, que creram, é valiosa,
6.1. Uma teologia bíblica do sacerdócio 65
É notável que a igreja infelizmente é, para muitos, uma mera agremiação de interes-
ses (sejam políticos, ideológicos, financeiros, de estilo de vida, entre outros). O argumento
que une aqueles que se declaram irmãos e irmãs é apenas baseado em suas preferências
pessoais.
O que resgata-se a partir desse texto é que o povo de Deus é chamado assim não
por causa de si mesmo e de suas preferências, mas sim por causa do próprio Cristo, a
pedra que vive, que energiza o seu povo para viver também. A fala do próprio Jesus em
João 15.5 é categórica aqui: “porque sem mim nada podeis fazer”. Essa eclesiologia tem
como ponto de partida a noção clara de quem Jesus é e o que ele faz pelo seu povo e todos
os atos desempenhados pelo seu povo serão uma reverberação de quem o próprio Cristo
é.
Outro ponto que notamos a partir desse texto é que Pedro não está contando uma
história nova. Ele faz questão de enfatizar e resgatar a antiga e surpreendente história do
único Deus que criou do nada todas as coisas e que criou e chamou para si um povo.
11
Esta tradução foi desenvolvida pelo autor para o trabalho de exegese também entregue ao PPAN para
o exame de licenciatura.
66 Capítulo 6. Sacerdócio Universal
Ao criar essa linha de continuidade para a sua audiência, Pedro demonstra o valor
da Escritura não como uma história particularizada de um povo remoto e longíquo, antes,
a história do Deus cósmico - o Deus que chama para si pessoas de toda língua, povo, raça
e nação e dá a cada um desses uma identidade verdadeira: descendência eleita, sacerdócio
real, nação santa e povo adquirido.
A comunidade necessária
Mais um aspecto teológico que podemos evidenciar desse texto é a noção comuni-
tária. Em tempos nos quais somos isolados socialmente, fragmentados culturalmente, em
que temos tudo personalizado para a nossa própria versão e gosto, a comunidade urge
contra a nossa individualização da vida e da nossa experiência com Deus.
O povo formado em Cristo, a pedra que vive, é identificado para agora representar
o próprio Deus (e o próprio Jesus) no mundo.
Esta seção parte da seguinte lógica: trataremos da doutrina do sacerdócio universal a partir
de uma perspectiva da teologia histórica; mostraremos como o conceito de sacerdócio
enquanto uma característica da própria igreja foi sendo deixado de lado no decorrer da
história da igreja cristã até que, na Reforma Protestante, pudesse ser resgatado.
A desconstrução
A migração do conceito
Anizor e Voss (2016) notam que o Novo Testamento não trata os líderes ordenados da
igreja enquanto sacerdotes. Há uma divisão neotestamentária quanto aos ofícios de pres-
bíteros e diáconos, mas um tratamento religioso que posicionasse os presbíteros da igreja
enquanto sacerdotes não era comum para as primeiras igrejas.
Essa constatação nos leva à pergunta sobre quando esse novo significado foi estabe-
lecido. Ao nos perguntamos isso, entendemos que quem existe primeiro é a igreja enquanto
68 Capítulo 6. Sacerdócio Universal
Anizor e Voss (2016) também chegam a sugerir que a falta do termo sacerdote para
designar uma classe específica de ofícios da igreja pode indicar, inclusive, uma ausência
deliberada por parte dos autores neotestamentários. Não chamar o presbítero ou bispo de
sacerdote é intencional nesse sentido uma vez que esse título só pode ser incoporado a luz
do sumo-sacerdote, Cristo, e de maneira abrangente para toda a igreja.
Voss (2016) aponta que a hierarquização do serviço no templo pode ter sido o
motivo da migração nos primeiros séculos de um conceito corporativo para um conceito
estrito e específico. Bosch (2002, p. 559) afirma que a “a clericalização da igreja acompa-
nhou pari passu a sacerdotalização do clero.”.
Entretanto, esse movimento não é drástico. Anizor e Voss (2016) apontam, também,
um segundo desdobramento para essa transição. A necessidade de posicionamento da
6.2. A história do conceito 69
igreja e de unidade dependia, ou pelo menos quis depender, de uma estrutura única de
governança frente às heresias. A expansão da igreja ao redor do mundo não poderia ser
desenvolvida de maneira descentralizada. Comentando sobre Cipriano, Eastwood apud
Anizor e Voss (2016) diz que “o bispo era o zelador da doutrina e o guardião da unidade”,
logo, o cargo de presbítero ou bispo se torna uma forma de exercer governança e autoridade
sobre a igreja a fim de que esta mantenha sua estrutura central de atuação. A continuidade
da pureza da igreja depende do bispo (ANIZOR; VOSS, 2016; VOSS, 2016).
Talvez a conta para essa divisão e migração de conceito caia mesmo para Cipriano
de Cartago. Voss (2016) irá dizer que
Dessa forma, uma ruptura é instalada e uma divisão começa a ficar mais evidente
no decorrer da história da igreja.
Essa nova era do sacerdócio cristão é marcada pela tensão entre leigos e clero. O que se
desenvolve a partir disso é um enfraquecimento da consciência e percepção sacerdotal de
maior parte das pessoas da igreja para um empoderamento de apenas algumas pessoas.
Uma divisão nós-eles se instalou. Nessa perspectiva, o que ocorre é um “rebaixamento” e
uma “marginalização” dos membros do corpo de Cristo em suas funções. Esses cumprem
70 Capítulo 6. Sacerdócio Universal
funções e ofícios na maior parte do tempo passivos e, quando ativos, são apenas para
sustentar a máquina institucional estabelecida.
O termo empoderamento pode ser interessante para fins de análise. Há, segundo
Kenen Osborne apud Voss (2016) um movimento de desempoderamento nessa época da
igreja. Os leigos são intencionalmente desempoderados de suas atividades para que uma
nova estrutura de poder assuma este lugar.
Para Voss (2016), os três grandes motivos para a instalação dessa ruptura entre
leigos e clero na história da igreja são: (1) hierarquização, (2) sacralização e (3) politização.
A igreja se tornou estruturalmente hierárquica, de tal forma que existem agora pessoas que
exercem cargos “mais próximos de Deus”. A igreja tornou a sacralizar demasiadamente
as coisas e criar camadas de significado que tornavam essa esturutra hierárquica extrema-
mente necessária. Se algo é sagrado e somente uma classe específica que tem prerrogativas
de acessar o que é sagrado, tanto a hierarquia quanto a sacralização se alimentam. O ter-
ceiro motivo, a politização, se dá no sentido de operacionalizar a governança da igreja
dentro dessa esturutra sacramental-sacerdotal. Os líderes da igreja se comportam quase
como semi-deuses. Eles detêm para si um poder divino que não pode ser questionado. O
sistema está montado.
Percebemos no longo período que corresponde à Idade Média essa ruptura sendo
instalada e desenvolvida. Um fato marcante para isso são as reformas realizadas pelo
papa Gregório no início do segundo milênio em 1073 D.C.. Anizor e Voss (2016) inter-
pretam as ênfases da reforma gregoriana indicando que ele acreditava que o clero não
precisava apenas ser diferente, mas também ser visto e percebido como diferente. Dessas
reformas surgem questões como a abstinência do casamento, por exemplo. Leithart (2003)
afirma que as reformas de Gregório removeram as últimas “vestes sacerdotais” dos leigos
e estabeleceram por fim a monopolização clerical do sacerdócio real.
Por fim, Voss (2016) mostra que os efeitos deletérios que a doutrina apostólica
do sacerdócio real sofreu foram: (1) uma redução das responsabilidades sacerdotais e (2)
uma equiparação entre o batismo e a cidadania romana. Sobre este último, o batismo
se torna uma condição para se tornar cidadão romano e vice versa. A igreja se alia ao
6.2. A história do conceito 71
Estado e começa a ser também por ele definido. Ser um cristão batizado não significava
ser ordenado pelo batismo para o exercício de um ofício, mas sim, pertencer a um grupo,
ou uma nação. O conceito de sacerdote foi convinentemente abandonado para dar lugar
a um empoderamento dos que se envaideciam desses cargos e usurpavam da identidade
sacerdotal que pertencia a toda a igreja.
Nesse contexto emerge o movimento reformado, sendo uma voz que surge para
resgatar o conceito apostólico de sacerdócio e que tem ao mesmo tempo que lidar com a
tensão e ruptura instalada e desenvolvida durante os séculos que a precederam.
A Reforma
Se o sacerdócio universal foi sendo desconstruído no período medieval e foi deixando de ser
universal, transformando-se em uma definição estrita de uma classe de pessoas, a Reforma
Protestante surge então como uma voz para buscar reformar esse conceito e iniciar uma
tarefa de trazer ele para o seu lugar devido.
da igreja, é uma reforma da missão, ou talvez, como temos visto, por ser uma reforma da
igreja também é uma reforma da missão.
Para George (1993, p. 96), a maior contribuição de Lutero para uma eclesiologia
protestante foi o ensino do sacerdócio de todos os crentes. Essa doutrina resgata o sentido
eclesiológico neotestamentário da igreja enquanto um corpo de sacerdotes no mundo e que
exerce um sacrifício corporativo-individual entre si e para o mundo.
Uma das grandes doutrinas e ênfases protestantes, especificamente por Martinho Lutero,
é o ensino da justificação pela fé. Todo cristão e cristã é justificado por Deus pela fé
que é dom do próprio Deus. Não precisamos de intermediários e temos livre acesso a
Deus. Uma consequência dessa doutrina é que um sacerdote ou qualquer outra autoridade
espiritual não são necessários para mediar qualquer benção especial ou salvação (REEVES;
CHESTER, 2014, p. 208).
Lutero (2017, p. 178) diz que “Aquele que pode dizer “sou um filho de Deus por
meio de Cristo, o que é minha justiça”, e não se desespera, embora imperfeito no tocante
às boas obras, nas quais sempre fracassamos; este indivíduo crê corretamente.”.
Logo, para Lutero, aquele que crê na justificação pela fé em Cristo e pela fé somente
crê corretamente. Isso se apresenta em outra citação de Lutero apud Reeves e Chester
(2014, p. 210) que diz
6.2. A história do conceito 73
(GEORGE, 1993).
Lutero costumava usar a imagem de um bolo. A igreja é formada por essas diversas
fatias que representam o mesmo sabor. O sabor é demonstrado através do nosso amor
mútuo. Isso é a comunidade dos santos (REEVES; CHESTER, 2014, p. 210). Stevens
(2005) vai chamar esse tipo de sacerdócio de o “sacerdócio uns dos outros”.
Sacerdócio público
Lutero também desenvolveu o tema da vocação em seus escritos. Desse tema emerge o
aspecto público do sacerdócio de todos os crentes em sua teologia. Todo cristão e toda
cristã são chamados para se apropriarem de uma “máscara de Deus” (REEVES; CHES-
TER, 2014). Cada vocação é uma máscara de Deus para este mundo. Toda ocupação,
independente de prestígios, taxonomias, divisões e classes de trabalho, é, em primeira e
em última instância, o próprio Deus agindo neste mundo através de seus representantes.
É o que Alves (1982, p. 19) diz “Cristo se fazendo presente disfarçado.”.
Reeves e Chester (2014) nos mostram que Lutero realocou o lugar da palavra
sacrifício. Ela não significa mais oferecer algo no altar da igreja, mas sim oferecer tudo o
que somos na vida ordinária e comum, onde quer que Deus esteja nos inserindo. Como diz
Reeves e Chester (2014, p. 212), “a vida cotidiana é o lugar sagrado em que oferecemos
sacrifícios de ações de graças a Deus.”.
Lutero (2017, p. 462) diz que “Servir a Deus é, para todos nós, permanecer em sua
vocação e chamado, por mais simples e humilde que seja.”. Quando Lutero aborda sobre
vocação nesse trecho, ele está lidando com o descontentamento de muitos quanto ao seu
6.2. A história do conceito 75
chamado. Algo como “A grama do vizinho é sempre mais verde”. Ao afirmar o que lemos
há pouco, Lutero está destacando a simplicidade e humildade do chamado e sua relação
de obediência a Deus. Deus se manifesta ao mundo através das ações ordinárias em nosso
cotidiano. Não precisamos querer mais do que Deus já tem nos dado.
O sistema sacramental
Que lugar seria esse? Podemos entender que a ordenação de pastores e mestres na
igreja deve seguir o serviço à igreja como prerrogativa e não a manutenção e absorção de
poderes. Assim como já notamos neste trabalho, o poder que os ministros ordenados têm
na igreja deriva do próprio Cristo e não de si mesmos.
Isso nos leva ao segundo ponto de Lutero, em que ele diz que não conseguia entender
porque alguém que foi feito sacerdote (nos termos de ser um ministro) não poderia se
tornar um leigo (ANIZOR; VOSS, 2016). Lutero aqui parece enfatizar que o estado de
todo cristão mais básico e essencial é o de sacerdote. Não existem dois estados ou duas
tipologias de cristão, apenas uma.
76 Capítulo 6. Sacerdócio Universal
Lutero em outro momento irá chamar o sistema clerical de seu tempo de tirano
sobre os leigos e detestável (ANIZOR; VOSS, 2016). Esse sistema criou uma barreira sem
precedentes na história da igreja e trouxe a um estágio de divisões.
Por fim, esse sistema é uma negação do “estado espiritual único” de cada cristão.
Lutero apud Anizor e Voss (2016, p. 71) diz
O sacrifício espiritual
Outro autor do período da Reforma que tratou deste tema foi o reformador francês João
Calvino. Segundo Crawford (1968), ainda que o termo “sacerdócio de todos os crentes”
ou equivalentes não apareçam nos textos de Calvino, essa é uma ideia que permeia muitas
de suas discussões.
Para Calvino, todo crente tem uma alta e santa responsabilidade para glorificar
a Deus em tudo o que fizer e isso deriva de sua própria vocação e chamado através de
Cristo. De acordo com a leitura que Crawford (1968) faz do Catecismo de Genebra, o
pensamento de Calvino acerca do sacerdócio universal oferece uma visão de que esse é um
privilégio garantido por Cristo e que nos permite aproximarmos de Deus e oferecermos
nós mesmos inteiros a ele.
resposta à graça de Deus”. O sacerdócio está implicado nessa oferta cúltica. Enquanto
sacerdotes oferecemos nossas vidas a Deus, por meio de Cristo, para que possamos ser a
oferta de Deus para o mundo, por meio de Cristo também.
A divisão da igreja em duas castas e duas classes de pessoas (clero e leigos) herda, de certa
forma, a divisão sagrado e profano, notavelmente desenvolvida dentro do cristianismo até
o período pré-reforma.
Gouvêa (2000) mostra que uma das principais características do calvinismo, en-
quanto sistema de pensamento, é observar de maneira peculiar a relação entre fé cristã e
a cultura humana. Ele mostra o calvinismo como uma “biocosmovisão” 12
, ou seja, uma
forma de determinar toda a vida.
Gouvêa (2000, p. 120-121) também afirma que ‘‘No calvinismo não há (...) di-
cotomismo entre Cristianismo e cultura.”, dizendo que “A soberania e iniciativa divinas
englobam o curso da história e da cultura humanas que também se tornam veículos da
revelação de Deus.”.
É o que Knudsen (2014) mostra dizendo que, ao lidarmos com o “mal” do mundo,
não o tratamos como se esse fosse inerente a condição do mundo, mas sim não natural. É
uma depravação, algo contrário à natureza.
O acabamento
Segundo Noll (2000), “Lutero acreditava que a palavra ’reforma’ devia ser reservada para
a promessa de Deus de criar novos céus e nova terra no final dos tempos.”. Da mesma
forma que entendemos que a igreja reformada sempre está se reformando, ainda há muito
a se desbravar quanto ao sacerdócio universal e o exercício dessa doutrina pela igreja.
Mesmo enquanto protestantes e herdeiros diretos da doutrina do sacerdócio, precisamos
ainda questionar e refletir se temos de fato sido uma igreja sacerdotal em nosso tempo
aqui e agora.
É o que McGowan (2015) aponta também dizendo que a “Reforma nunca pode ser
simplesmente um evento no passado, mas também deve ser um movimento constante.”.
Ser reformado não significa desconstruir o passado, mas continuar edificando através dos
fundamentos sólidos e bíblicos que foram estabelecidos anteriormente.
Bosma (2017) lida com o sacerdócio universal tratando-o como uma tarefa inaca-
bada da Reforma. Apesar de ser um tema com uma distinta ênfase protestante na história
da igreja, ele ainda não foi plenamente e satisfatoriamente desenvolvido.
6.2. A história do conceito 79
Para Stevens (2005, p. 147), o sacerdócio de todos os crentes tem duas faces: a eclesial
e a diaspórica. A primeira diz respeito à igreja reunida, a segunda, à igreja dispersa em
missão no mundo. Essas duas faces foram discutidas até aqui neste trabalho, sendo que
a última tem sido a de maior atenção. A igreja espalhada no mundo enquanto sacerdócio
de Deus.
Stevens (2005, p. 15) vai dizer que todo o povo de Deus é sacerdotal e “dotado,
comissionado e apontado” para a missão de Deus.
Assim, resgatar o sacerdócio universal para os dias de hoje é lidar com o aspecto
missional da igreja. É dizer que cada cristão, enquanto parte de uma comunidade missio-
nária, é missionário e sacerdote (representante) de Deus no mundo
Diversos desafios estão diante de nós para o futuro da igreja. Entendemos aqui que
para lidar com esses desafios e responder maneira pujante, robusta e contundente, sendo
gentil e ao mesmo tempo fiel, temos que vencer uma conveniente introversão (BOSCH,
2002) que foi cultivada nos últimos séculos e vivenciar um horizonte de engajamento com
Deus e com a missão que ele tem no mundo. Para isso, o sacerdócio universal pode ser
uma ferramenta útil.
13
Andrew Jumper Live - Reformado e Missional - Filipe Fontes, Chun Chung, Mauro Meister. Acesso
em 27 de julho de 2020. https://youtu.be/1PXsi8wRnXI.
80 Capítulo 6. Sacerdócio Universal
14
cf. https://wrf.global/media/attachments/2018/07/01/statement-of-faith-in-portuguese.pdf
6.2. A história do conceito 81
a) Nosso chamado para sermos testemunhas de Deus com palavras e obras: Temos
que oferecer duas mãos para todas as pessoas: a primeira é a mão que chama
para o arrependimento e reconciliação através de Jesus Cristo; a segunda é a
mão que manifesta a bondade do reino de Deus;
Esses argumentos lançam luz a uma prática que seja coerente com a doutrina
reformada do sacerdócio universal e a igreja missional. Todo cristão e cristã é chamado
para demonstrar em sua vida a face do próprio Cristo para o mundo.
83
próprio Deus que a estabelece assim. Quando Jesus diz que “sereis minhas testemunhas”,
ele está definindo a condição mais essencial desse organismo na história: a sua face no
mundo. O mundo irá conhecer quem Deus é através da igreja e de suas verdadeiras marcas.
Como bem aponta Anizor e Voss (2016), devemos tomar as visões coroporativas
e individualistas em equilíbrio. Não estamos falando aqui de um corpo despersonalizado
e genérico, antes de uma missão individual e específica condicionada a uma estrutura
anterior. Todo cristão exerce seu sacerdócio porque pertence a igreja sacerdotal, que é
assim por causa de Cristo, o sumo sacerdote.
Esse passado recente lança luz a uma oportunidade do sacerdócio universal para
os nossos dias. Durante algum tempo, de forma pragmática, pastores incorporaram para
si funções que necessariamente não eram suas. Criou-se convenientemente para a igreja a
noção de que “o pastor é quem faz tudo” e os membros devem apenas sustentar financei-
ramente o pastor e frequentar os cultos.
Essa visão está distante de uma percepção bíblica coerente do sacerdócio da igreja.
Ela distancia os membros do corpo de Cristo de um exercício ativo e criativo no trabalho
do reino de Deus no mundo e encarrega os pastores de um trabalho que muitas vezes não
compete a eles.
Isso desemboca no que a carta de Paulo aos Efésios no capítulo 4 versículos 11 e 12,
texto já citado neste trabalho, diz que Deus deu a igreja alguns com funções específicas
a fim de aperfeiçoar os santos para a obra do ministério. As funções do pastor existem
para o cumprimento da missão por parte da igreja. O pastor não é o único que faz missão,
mas sim aquele que deve capacitar cada um e cada uma da igreja para que esses também
façam missão.
Resgatar o sacerdócio universal é liberar os leigos para que eles não sejam mais
aprisionados e tentados a viver uma vida cristã abaixo do que Deus tem intencionalmente
86 Capítulo 7. Implicações ministeriais: O sacerdócio universal e o exercício da missão
revelado a eles enquanto sua identidade. É considerar, de fato, seus privilégios e respon-
sabilidades no corpo de Cristo e trazer a tona o poder do Espírito que atua por meio da
igreja e de seus membros.
Bosma (2017, p. 218) irá dizer que “A natureza missionária da igreja significa que todos
os sacerdotes têm o solene dever de fazer discípulos, não somente missionários leigos
ou ordenados.”. Entendendo aqui que “sacerdotes” é um termo referente aos ministros
da igreja, resgatamos então a tarefa mais elementar do pastor-presbítero para a vida da
igreja, que é formar discípulos e equipar os santos para o ministério, como acabamos de
ver.
POVO
LÍDERES
pertencem a ela. A hierarquia, sendo vista de maneira funcional, não serve aos pastores,
mas à missão (STEVENS, 2005).
Barth (1960, p. 175) em seu estudo sobre a carta aos Efésios aborda sobre esse
trabalho de preparação. Os pastores e mestres são instrumentos de Deus para a preparação
dos fiéis para o cumprimento da missão. Isso inclusive estava refletido na própria vida
dos destinatários desta carta. “Os de Éfeso foram alcançados pelo evangelismo de certas
pessoas e lucraram através do trabalho de outros.”.
Esse trabalho do pastor serve, segundo Barth (1960, p. 177), como uma forma de
emancipação e empoderamento do povo de Deus para a missão. Esse empoderamento não
deriva de si mesmo, mas sim da força de Deus que os prepara através dos ministros para
o exercício de cada dom e vocação no mundo.
Algo que Goheen (2014a) apresenta em sua obra é que a igreja, em seu encontro mis-
sionário com a cultura, deve permanecer enquanto uma comunidade de contraste. É na
performance da igreja enquanto uma comunidade radicalmente oposta à cultura que esta
“encarna a nova vida do reino”.
Goheen (2014a, p. 248) inclusive apresenta algumas sugestões para guiar esse tipo
de comportamento, sendo: (a) uma comunidade de justiça em um mundo de injustiças,
(b) uma comunidade de generosidade e simplicidade, (c) uma comunidade de pessoas que
contribuem generosamente em um mundo egoísta e individualista, (d) uma comunidade
que testemunha de maneira humilde e ousada a verdade em um mundo de incertezas, (e)
uma comunidade de esperança em um mundo desiludido e cansado de consumo, (f) uma
comunidade de alegria e gratidão em um mundo hedonista e, por fim, (f) uma comunidade
que experimenta a presença de Deus em um mundo secular. Todas essas características
nos ajudam a perceber como pode ser a experiência de um povo sacerdotal neste mundo.
7.4. Uma comunidade alternativa 89
Podemos então aqui observar o papel do pastor enquanto um agente que desperta,
agindo profeticamente, a consciência de uma prática sacerdotal e distinta no povo de
Deus. Brueggemann (1983, p. 146) diz “A prática do ministério profético não é algo de
especial feito duas vezes por semana”, mas sim “ela deve ser realizada em e com todos
os atos do ministério” e “refere-se a uma posição e atitude ou a uma interpretação do
mundo, da morte, da palavra de vida que pode levar luz em cada situação.”. O pastor é
um instrumento necessário para a igreja para edificar, treinar e instruir a comunidade de
Deus a manter a sua agenda de contraste neste mundo.
Pensando nos termos que Brueggemann (1983) oferece, o pastor é o que primeiro
imagina profeticamente. É aquele que visualiza o cenário alternativo neste mundo caótico
e escasso de esperança.
Parte III
Conclusão
93
8 Considerações finais
Neste trabalho vimos que a igreja é a reunião do povo de Deus por meio de Jesus
Cristo. Ela é uma comunidade que pertence a Deus. Essa comunidade é governada a partir
de Cristo, por meio de oficiais, para unir o povo de Deus ao próprio Cristo. Dessa forma,
o povo de Deus poderá ser instruído, equipado e cuidado para participar da missão.
O sacerdócio universal é uma doutrina bíblica que resgata para a igreja o seu
lugar na história enquanto representantes de Deus, derrubando as barreiras clericais e
evidenciando que todo cristão e toda cristã tem responsabilidades na missão de Deus.
A doutrina do sacerdócio universal tem inúmeras aplicações e com certeza este trabalho
age de maneira preliminar e introdutória. Seguem-se algumas perspectivas para trabalhos
futuros e possíveis perguntas de provocação, considerando essas questões apenas como
94 Capítulo 8. Considerações finais
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