O que acontece quando dois homens, um viajando em um carro
luxuoso e outro em um carro velho e modesto, se encontram em uma estrada afastada? O filme argentino Relatos Selvagens (2015) nos faz refletir a respeito da vingança através de uma breve história com este enredo.
Um dos motoristas estava em um bem carro velho e não permitia
a ultrapassagem do Audi que estava na sua cola, pedindo passagem. Depois de finalmente ultrapassá-lo, o motorista refinado lhe dirige um gesto obsceno e faz um xingamento bastante ofensivo. Pouco depois, o motorista do Audi fura um pneu e estaciona perto de uma ponte. Para o seu azar, o homem que ele ofendeu passa por ele e o ataca com uma chave de roda e, apesar do carro ser blindado, o veículo sofre sérios danos.
Uma briga de vida ou morte é iniciada por motivo totalmente
banal. O motorista do Audi mesmo depois de ter se livrado de seu agressor decide retornar para matá-lo, após outra luta, o Audi fica parado na beira do rio com os dois personagens pendurados e o conto se encerra com os dois se explodindo abraçados. A cena final deste relato selvagem é a de um policial que, diante dos corpos carbonizados dos homens, pergunta se foi um crime passional. A posição em que os corpos aparecem mistura a luta animal com o abraço fraterno.
É sobre este tipo de insanidade, a respeito da vingança e da
amargura, que a Palavra de Deus tratando no dia de hoje.
EXPOSIÇÃO
1. O objetivo principal do apóstolo Pedro nesta epístola é
oferecer conforto e esperança aos irmãos que estavam sendo perseguidos por causa da fé de Jesus. Seguir a Cristo era algo extremamente custoso para estas pessoas, uma vez que tal realidade implicava em violência física, ostracismo social e rejeição por parte da própria família. Daí, este tipo de encorajamento era fundamental na vida de nossos irmãos. O sofrimento pode acometer nossas vidas por diversos motivos: sofremos por nossos pecados, sofremos por causa de nossa insensatez, sofremos porque vivemos em um mundo caído. O sofrimento que Pedro está tratando é exatamente aquele que é resultado de fazer o bem, de fazer o que é correto. O contexto imediato da passagem que lemos fala de escravos cristãos que deveriam ser manter leais e perseverantes mesmo diante de um patrão perverso e injusto. Ser cristão não era um passaporte para a rebeldia diante destes maus senhores; pelo contrário, deveriam ser obedientes, refletindo o caráter manso e humilde daquele que os salvou. Muitos escravos eram punidos com açoites e trabalhos pesados. Um escravo não possuía nenhum direito em termos de legislação. Para entendermos qual era a condição de um escravo, o registro do filósofo Aristóteles a respeito da escravidão na Grécia Antiga é muito útil: “os instrumentos são de vários tipos; alguns são vivos, outros inanimados; um escravo, sendo uma criatura viva, é uma ferramenta equivalente às outras. Ele é em si uma ferramenta para manejar ferramentas”. Mesmo assim, um escravo cristão se mantinha trabalhando com dedicação e reverência. O motivo desta submissão está no temor a Deus. O que faziam era uma resposta ao que Deus ensinava por meio do Evangelho. Mesmo chegando a receber severos castigos, eles não se opunham ou cruzavam os braços, mas suportavam injustiças em nome da vontade de Deus. Aqui nesta passagem, portanto, não temos uma defesa da escravidão por si mesma, mas o ensinamento evangélico a respeito de como o crente em Jesus deve se portar em uma sociedade má e injusta. 2. Irmãos, voltemos nossa atenção para o que nos é falado a partir do v. 21: fomos chamados para suportar com paciência as aflições que surgem por termos praticado o bem. Mesmo sendo vítima de um tratamento injusto, um cristão agrada a Deus se responde com paciência a este sofrimento. Note com bastante atenção para o que está sendo falado: somos chamados para viver desta maneira. Como isto é diferente da mensagem pobre da pregação da prosperidade que tem sido trazida na mídia! A verdade é que o nosso sofrimento também glorifica a Deus. Este ensinamento bíblico é a kryptonita do triunfalismo. Geralmente entendemos a palavra “vocação” em um contexto relacionado à nossa profissão. No sentido cristão, vocação é o chamado divino, uma convocação que vem do próprio Deus. Deus chama as pessoas para diversas coisas: ensinar, pregar, cantar, construir casas, vender as coisas, trocar fraldas. Existem tantas vocações quanto aspectos da existência humana. A passagem nos mostra uma destas facetas: sofrer injustamente. 3. De onde vem o princípio para esta vocação? No mesmo v. 19 Pedro menciona o sofrimento de Cristo. É olhando para Jesus que o crente recebe forças para enfrentar a injustiça e lutar contra a amargura. Os cristãos estão unidos a Jesus tanto em seu sofrimento quanto em sua ressurreição. Nosso foco não está apenas no sofrimento que as injustiças deste mundo podem nos impor, mas no que o Senhor Jesus Cristo fez, ensinou e ainda realiza em nossas vidas para glória de Deus Pai. O Calvário é absolutamente crucial para a vida cristã. Se a minha esposa me fere com uma palavra indelicada, eu não preciso ter a última palavra. Eu não preciso retribuir na mesma moeda, porque o pecado dela foi colocado sobre Jesus, e ele sofreu terrivelmente para suportá-lo para ela – e para mim. Jesus levou essa ofensa contra si e contra mim tão a sério, que ele morreu para expor esse mal e remover a culpa da minha esposa. Isso deve me libertar de guardar rancor, acreditando no que aconteceu na cruz. Olhar para trás é essencial, mas não é suficiente. O que Jesus realizou na cruz dura para sempre. Devo ter certeza disso. O que Jesus fez no Calvário consumiu os pecados cometidos contra mim também me capacita para lidar com as injustiças de maneira adequada.
ENSINO/DOUTRINA
Quais opções teríamos diante de um sofrimento injusto? O
que dizer de um profissional que foi demitido por estar doente? Ou de um cônjuge traído? Ou de um filho que trata seus pais com desinteresse? Ou de um amigo que traiu a confiança do outro, não guardando sigilo a respeito de um segredo, por exemplo? Sempre ouviremos falar de condições injustas neste mundo: fome, desigualdade social, disputas pelo poder, pais de família desempregados, crianças doentes. Jesus deixou muito claro que é impossível viver neste mundo e não ser ofendido. No entanto, a maioria de nós fica chocada, perplexa e surpresa quando isso acontece. Qual a nossa reação? Há opções que costumamos adotar: desejo de vingança é um dos caminhos prediletos. Ainda que não venha consumar nosso ato, o desejo ficou ali. Igrejas e famílias se dividem, casamentos são destruídos e o amor morre, esmagado por uma ofensiva de palavras desferidas em meio à dor e à frustração. Ofendidos pelos amigos, pela família e pelos líderes, acertamos o alvo com palavras afiadas pela amargura e pela ira. Embora os fatos possam ser verdadeiros e precisos, a motivação é impura. É daí que brota a raiz de amargura. Uma excelente definição para amargura foi dada pelo Pr. Francis Frangipane: “Amargura é a vingança não realizada”. Talvez até aconteceu uma retribuição pela injustiça, mas pensamos que as medidas tomadas não foram suficientemente justas. A Palavra de Deus nos diz que uma maneira segura de lutarmos contra a amargura é mantermos nossa fé na promessa de Deus acertará as contas de todas as ofensas e injustiças no mundo. Os versículos 22-25 nos ensinam isto. 1. Cristo é o nosso exemplo (v. 21). Ao olharmos para Jesus, somos capacitados para uma vida de paciência diante do sofrimento. Os sofrimentos de Jesus devem aquietar nossos corações diante da crueldade deste mundo. A palavra para “exemplo” possui uma ideia de alguém que está aprendendo a escrever e, para isto, utiliza uma espécie de caderno que possui um conjunto de escritos no alto da página e o aluno tem a missão de copiar na parte debaixo o que está escrito. Precisamos escrever nossas vidas segundo o exemplo de Jesus. 2. Cristo é o nosso substituto (v. 22-24). Jesus viveu em um mundo caído, com pessoas perversas, diante de ofensas sórdidas. Mas não havia pecado em seus lábios. Ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Ele não conheceu pecado. Ele não murmurou diante do sofrimento. Veja o que o Salvador fez: foi ultrajado, mas não revidou o ultraje; quando a injuria acontece, nosso coração acelera, nossa mente entra em agitação, nossos sentimentos clamam por vingança. Jesus não retaliou, Jesus não revidou. O próprio Pedro havia testemunhado isto, ao vê-lo em seu julgamento e morte. Jesus não murmurou. Sendo maltratado, Jesus não ameaçou. Difícil conceber isto, não é mesmo? Aquele que detinha todo o poder para acusar seus acusadores, para vingar os seus algozes, simplesmente ficou em silêncio, como ovelha muda diante de seus tosquiadores, ele não abriu a boca. Jesus entregava-se àquele que julga justamente. É isto que resolve. Sofrimento injusto turva nosso coração, causa mágoa. Mas Jesus não ficou com isto no coração: Ele entregou a Deus, ao Deus justo e todo-poderoso. Ao Deus poderoso que transformar a cruz em vitória. No triunfo que fez com que Jesus carregasse sobre si todos os nossos pecados. Ele é o Servo Sofredor da profecia: nenhum sangue poderia pagar o preço pelos nossos pecados e nos tornar Deus propício a nós. Assim como um escravo esfolado por causa de suas cargas, Cristo se fez servo, assumiu a maldição em nosso lugar, pois está escrito: “Maldito todo aquele que pende do madeiro” (Gl 3.13). 3. Cristo é o nosso Pastor e Bispo (v. 25). Duas palavras muito ricas para descrever Jesus. Uma aponta para o cuidado e a vigilância de Cristo sobre nossas vidas, outra aponta para a liderança e supervisão dEle sobre nós. Todos nós andávamos desgarrados pelo mundo, mas agora somos pastoreados por Jesus. Ele é o bom pastor que dá a vida por suas ovelhas, guiando, protegendo e alimentando. Ele é quem lidera seu povo, a sua igreja, até as mansões celestiais.
APLICAÇÃO
Por estes motivos a Palavra de Deus nos orienta a lutar contra
a amargura em nosso cotidiano.
1. Lide com a amargura presente com os olhos no passado e
no futuro. Se ficamos guardando rancor diante das ofensas que recebemos, no fundo estamos descrendo da fidelidade do juiz. Por isso, nossos olhos precisam estar no passado e no futuro, não apenas no presente. Olhando para o passado, vemos as fiéis promessas de Deus no sentido de que “o juiz de toda a terra finalmente fará justiça”; olhando para o futuro, podemos ter a convicção de que tal promessa será cumprida. promessa de Deus diz: “Sim, uma afronta foi cometida contra você. Sim, ela merece ser severamente punida. Sim, a pessoa ainda não experimentou essa punição. Mas, não, você não pode ser o executor da punição, e você não pode continuar nutrindo essa retribuição pessoal. Por quê? Porque Deus fará com que a justiça seja feita. Deus retribuirá. Você não pode melhorar a justiça dele. Ele enxerga cada aspecto do mal feito contra você – muito melhor do que você consegue enxergar. A justiça dele será mais completa do que qualquer justiça que você possa administrar”.
Nunca se pecou mais gravemente contra alguém do que contra
Jesus. Cada porção de animosidade contra ele foi totalmente imerecida. Jamais viveu alguém que fosse mais digno de honra do que Jesus; e ninguém foi mais desonrado. Se alguém tinha o direito de ficar irado e ser amargo e vingativo, era Jesus. Como ele se controlou quando pessoas, cujas próprias vidas ele sustentava, cuspiram-lhe na face? “[Jesus] não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua boca; pois ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-se àquele que julga retamente (1 Pedro 2:22-23).
Se Cristo venceu a amargura e a vingança pela fé na promessa
futura, quanto mais devemos nós, pois temos muito menos direito a murmurar por sermos maltratados do que ele tinha.
2. Mas nem todos os que nos provocam amargura são ímpios
impenitentes. Há irmãos nossos que falham conosco: como renunciamos ao ressentimento contra aqueles que se arrependem? estamos lidando com outros cristãos, e a promessa da ira de Deus não se aplica porque “nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Romanos 8:1). A resposta é que nós olhamos para a cruz de Cristo. Todos os erros que foram cometidos contra nós por crentes foram vingados na morte de Jesus.
Isso está implícito no fato simples, mas impressionante de que
todos os pecados de todo o povo de Deus foram colocados sobre Jesus. Portanto, o Cristianismo não trata o pecado com leviandade. Não adiciona insulto à nossa ferida. Pelo contrário, leva os pecados contra nós tão a sério que, para fazê-los direito, Deus deu o seu próprio Filho para sofrer mais do que jamais poderíamos fazer alguém sofrer por aquilo que fizeram a nós. Deus compromete-se à vingança contra o pecado, não apenas por meio do inferno, mas também por meio da cruz.
Todo pecado será vingado – severamente, completamente e com
justiça. Ou no inferno, ou na cruz. Os pecados do impenitente serão vingados no inferno; os pecados dos arrependidos foram vingados na cruz. O que isso significa é que não temos nenhuma necessidade ou direito de guardar amargura para com crentes ou descrentes.
Conclusão
No livro O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry narra
que no seu pequeno planeta nascem e crescem os baobás, que precisam ser podados diariamente porque são grandes árvores e podem facilmente ocupar todo o espaço, sem dar lugar para que outras plantas floresçam:
“Ora, havia sementes terríveis no planeta do pequeno príncipe… eram
as sementes de baobás. O solo do planeta estava infestado delas. Ora, se demorar a agir, a pessoa nunca mais consegue se livrar de um baobá. Ele atravanca todo o planeta. Perfura-o com suas raízes. E, se o planeta for minúsculo e os baobás forem muitos, estes explodem aquele.
“É uma questão de disciplina”, me dizia mais tarde o pequeno príncipe.
“Quando termino minha higiene matinal, faço cuidadosamente a limpeza do planeta. Tenho que me virar para arrancar os baobás tão logo os distingo das roseiras, com os quais se parecem muito quando brotos”.
Esta é uma boa ilustração do que pode acontecer com o coração
possuído pela amargura.
A raiva causa danos externos, a amargura traz prejuízos internos.
Ambas são mortíferas e devem ser afastadas. Ser dominado pela ira traz sofrimento às pessoas amadas, e podem nos transformar em pessoas insuportáveis, além, é claro de estarmos ofendendo a Deus por conta de nossa postura. Soli Deo Gloria