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1

________. A
Capa
2

A
Folha de rosto 1 de 2

Formatado
por
J.P.
3

A
Selo dialógica
4

A
Folha de rosto 2 de 2
5

A
Catalogação
6

A
Sumário 1 de 2
7

A
Sumário 2 de 2
8

A
Dedicatória 1 de 2
9

A
Dedicatória 2 de 2
9

PREFÁCIO
Como você decidiu iniciar a leitura deste livro, suspeito haver da sua parte
algum interesse pela questão da investigação das práticas religiosas. Você pode
ser uma pessoa crente, praticante ou não, ateia, agnóstica ou estar vinculada a
alguma tradição ou filosofia de vida. Não importa. Também é possível que você
esteja começando os estudos na área ou que já pesquise sobre religião ou
teologia há algum tempo.
Pois bem, o que você está encontrará nesta obra de introdução à
epistemologia dos fenômenos religiosos é fruto do empenho não apenas de um
autor, mas de vários autores e várias autoras no Brasil e no exterior. São
pesquisadores e pesquisadoras da teologia, da filosofia, das ciências da religião
e de vários outros campos do conhecimento dedicados ao estudo dos
fenômenos religiosos e de todos os aspectos que os constituem. Como você, são
pessoas para as quais os fenômenos religiosos não parecem em nada
indiferentes e, por isso, elas se dedicam aos estudos das religiões com
motivações como as suas e as de muitos outros indivíduos. Elas são movidas
pela curiosidade para saber, por exemplo, como surgem, como se desenvolvem
e como se organizam ou se caracterizam práticas religiosas e sistemas de crença
ou de perda de crença. Poderíamos enumerar diversas causas que levam
alguém a se dedicar aos estudos dos fenômenos e das práticas religiosas.
Certamente, você seria capaz de contribuir para ampliar essa lista.
Porém, mais do que sanar sua curiosidade, pessoas que se dedicam ao
estudo de temas associados a práticas religiosas, crenças e temas do gênero,
seja em alguma disciplina específica das ciências
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humanas e sociais, seja, particularmente, no campo das ciências da religião –


como essa área é mais conhecida no Brasil –, buscam rigor e método para
desenvolver seu trabalho. Antes, cabe destacar uma postura fundamental que
deve orientar o estudo desses assuntos de natureza acadêmica, isto é, uma
atitude na qual se considera que o estudo da religião não deve ser atravessado
por motivações de crença ou razões de cunho ideológico.
Obras como a que você tem em mãos visam ajudar na formação desse tipo
de postura para o estudo das religiões. Uma contribuição de grande relevância,
porque situa distintas formas em que esses estudos se desenvolvem no âmbito
acadêmico. Aqui, portanto, você encontrará abordagens de cunho filosófico e
teológico ligadas às ciências da religião e a outros temas. A obra situa esses
assuntos considerando suas especificidades e suas perspectivas.
À medida que você for se aprofundando nessa investigação, poderá
observar que o livro deixa entrever horizontes de análise do fenômeno religioso
que guardam entre si tanto interfaces quanto uma profunda diversidade de
natureza teórico-metodológica.
Para o que se pretende como introdução ao debate epistemológico nesse
campo de estudos, o melhor que se pode evidenciar diz respeito à compreensão
das múltiplas formas com que se pode analisar e tratar o objeto do estudo nessa
área. Assim, aqui você encontrará estudos tanto de perfil normativo – como as
abordagens filosófica e teológica – quanto de perfil não normativo – como o
enfoque das Ciências da Religião ou de disciplinas de outras áreas que também
estudam a religião.
Uma questão à qual você deve prestar muita atenção ao iniciar a leitura
diz respeito ao lugar do qual o conjunto de perspectivas de análise do religioso
é examinado. Com toda a honestidade intelectual, o autor se apresenta e se
coloca como alguém que, do ponto de vista de sua formação teológica, procura
compreender os outros saberes que investigam o fenômeno religioso. Alex
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Villas Boas faz parte de uma geração de teólogos e teólogas com uma sólida formação
e um claro compromisso com a reflexão acadêmica e tudo o que isso implica. Por isso,
você estará em boa companhia e experimentará, passo a passo, como o teólogo se abre
à compreensão dos diversos saberes que investigam a religião, sem deixar de
considerar o lugar que lhe é peculiar.
Restam ainda três comentários a fazer. Em primeiro lugar, é preciso
destacar o fato de estarmos avançando consideravelmente no processo de
consolidação da área que envolve os estudos de religião por meio de disciplinas
como Teologia, Ciências da Religião (e suas variações) e Ensino Religioso, entre
outras, as quais contam hoje com grande nível de reconhecimento e
capilaridade. Nesse contexto, os trabalhos acadêmicos têm visibilidade em
eventos que reúnem a comunidade científica da área e são acessíveis a grande
parcela da população, além de ocupar espaço nos setores público e privado, nos
movimentos sociais e nas organizações ligadas a instituições de natureza
religiosa. Também cabe ressaltar, como detalha esta obra, o fato de se ter
constituído, no âmbito governamental, o reconhecimento da docência
científico-acadêmica para além dos magistérios de cunho religioso das distintas
confissões.
Em segundo lugar, ao longo do texto você deve ser levado a refletir sobre
o campo de atuação profissional a que se dedica quem faz parte da comunidade
de investigação sobre religião. De modo geral, atuamos nas áreas de pesquisa,
investigação e docência em diversos níveis (do ensino fundamental à pós-
graduação). Porém, não podemos deixar de sinalizar que o saber, as
competências e as habilidades que adquirimos devem nos tornar capacitados
para o trabalho em consultorias, assessorias e gestão em instituições religiosas,
movimentos sociais e organismos governamentais e não governamentais.
Por fim, antes de você seguir com a leitura e o estudo deste livro, é
necessário lembrar que o debate que aqui se desenvolve merece
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ser continuamente alimentado por todas as pessoas interessadas na


investigação científica do fenômeno religioso, das narrativas de fé ou das
práticas religiosas. Todas as disciplinas que se dedicam a esse estudo, seja em
nosso país, seja no exterior, guardadas as suas especificidades teórico-
metodológicas, precisam ser estudas em suas particularidades e reconhecidas
em sua autonomia epistêmica.
Talvez, como eu, você chegue ao final do livro com a percepção de que os
estudos de religião, mediante as várias disciplinas que a eles se dedicam,
formam um vasto leque de análises em torno de um objeto que, por si, recusa-
se a adotar um olhar unilateral e redutivo. Entre elas, será justamente a da
Ciências da Religião que buscará produzir, como síntese, a diversidade de
saberes sobre a religião. Nesse sentido, sem prejuízo de quaisquer abordagens,
reivindicamos para essa disciplina não um status especial, mas o
reconhecimento de sua tarefa epistemológica, ao assumir, em sua metodologia
interdisciplinar, a missão de oferecer em seu campo um saber especializado, dos
pontos de vista histórico e sistemático, sobre o religioso.

Professor Flávio Senra


Departamento de Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas)
13

APRESENTAÇÃO
Como teólogo de profissão que atua na universidade e, portanto, de forma
inevitável, exerce cotidianamente a função de interlocutor entre diversas áreas
do saber, meu posicionamento é o de alguém que não somente valoriza mas
também aplica o resultado e os métodos de cientistas da religião no exercício
profissional de produção de teologia em diálogo com outras áreas do
conhecimento. Vale ressaltar que tal diálogo é possibilitado e facilitado por uma
saudável relação existente entre os profissionais das ciências da religião e da
teologia.
Some-se a isso a experiência de lecionar teologia em instituições de ensino
superior públicas, dentro e fora do país, nas quais não há curso dessa área1. Por
isso, essas vivências me ajudam a entender a necessidade de uma tradução
dessa ciência para um ambiente público ou, como é conhecida, de uma teologia
pública, que não pressuponha a fé como conhecimento confessional necessário
para que seja entendida.
Isso não necessariamente substitui a teologia confessional, uma vez que
amplia seus labores de interlocução investigativa e de ação comunicativa. Não
se faz teologia somente para um público específico vinculado a uma confissão
religiosa, visto que pensar a religião é também tarefa da sociedade em geral.
Mais do que isso, é necessário que uma crença reflita sobre si, de modo a
entender sua relação com as demais crenças e outras instituições culturais e

_______________
1 A saber: a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em que sou professor visitante no Programa de Pós-
Graduação em História e Teoria Literária; e a Faculdade de Letras da Universidade de Aveiro, em Portugal, na
qual também atuo como professor convidado de Teologia, em um projeto de pesquisa interinstitucional
chamado Mitografias.
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sociais, procurando uma razão pública que possibilite um diálogo em função de


questões que atinjam a todos, especialmente no que diz respeito à dignidade
humana e ao bem comum.
Não é incomum atualmente, nos programas de pós-graduação de
Ciências da Religião no Brasil, bem como nos cursos de graduação nacionais
dessa área, a existência de um grande número de profissionais da área da
teologia. Contudo, a relação entre teólogos e teólogas e cientistas da religião
nem sempre foi – ou é – pacífica, constituindo-se em uma história de tensões de
ambos os lados.
Não obstante, as ciências da religião e a teologia são áreas de
conhecimento que podem enriquecer muito a compreensão do fenômeno
religioso no mundo contemporâneo. Nesse contexto, por um lado, as ciências
da religião dispõem de um caminho mais pavimentado em direção a uma razão
pública; por outro, a teologia tem mais capilaridade como meio de autorreflexão
e autocrítica no espaço interno de uma religião. Além disso, não há motivos
para que ambas não trabalhem juntas.
O primeiro passo para isso, salvo melhor juízo, é reconhecer que há
perspectivas epistemológicas distintas entre uma e outra e que, mais
particularmente, todos os tipos de resistência colocados ou, em certos casos,
impostos pela teologia poderiam ser mais bem entendidos se ela fosse tratada
sempre no plural, como teologias distintas que podem habitar inclusive uma
mesma confissão religiosa. Na medida em que se identificam modelos
epistêmicos distintos entre as ciências da religião e as teologias, é possível
entender melhor quais métodos foram considerados incompatíveis, quais
esbarraram em pressupostos teóricos diversos e quais podem melhor interagir
entre si.
Por isso, a finalidade desta obra é apresentar uma breve introdução ao
desenvolvimento histórico das ciências da religião e, ao mesmo tempo, oferecer
um contato com o debate epistemológico em andamento na área de Ciências da
Religião e Teologia,
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demonstrando como se desenvolveu o debate sobre a epistemologia do


fenômeno religioso e identificando como isso pode ser recebido de modo
positivo na teologia.
Para tanto, a obra está organizada em seis capítulos.
No Capítulo 1, serão apresentadas algumas questões introdutórias de
epistemologia do fenômeno religioso, abordando-se o desenvolvimento desse
campo de conhecimento, bem como a forma como as ciências da religião são
organizadas no Brasil.
Em seguida, no Capítulo 2, serão discutidas as primeiras formas de
investigação reconhecidas como núcleo embrionário do que se chamou, no
singular, de ciência da religião, na Alemanha: a história das religiões e a
antropologia da religião – destacadas, como em uma ruptura, da filologia e da
mitologia comparada.
No Capítulo 3, a atenção será concentrada na sociologia da religião, que
confere sistematicidade e organicidade ao aspecto social no entendimento do
papel da religião. Já no Capítulo 4, a psicologia da religião e a maneira como se
desenvolveu a perspectiva moderna da relação entre interioridade humana e
religião serão os assuntos examinados.
No Capítulo 5, será enfatizada a importância que a filosofia da religião
tem no mundo contemporâneo, apesar de, por vezes, ela não ter sido
considerada no conjunto das subdisciplinas das ciências da religião. Por fim, no
Capítulo 6, a discussão recairá sobre a relação propriamente dita entre as
ciências da religião e a teologia.
Assim, o propósito deste livro é promover o diálogo entre as duas
importantes áreas, as ciências da religião e a teologia, a fim de que a religião
possa ser um importante instrumento de construção cultural e social em prol de
uma sociedade melhor e de uma fé mais lúcida em relação à condição humana.
Boa leitura.

Alex Villas Boas


16

A
17

A
Sobre os recursos 2 de 3
18

A
Sobre os recursos 3 de 3
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INTRODUÇÃO
Antes de traçarmos um panorama introdutório do campo de estudo acadêmico
a que chamamos de Ciências da Religião, é importante ressaltar que, de acordo
com o desenvolvimento histórico, essa nomenclatura passou por variações. A
primeira surgiu no debate acerca das teorias do conhecimento e da nova
compreensão de ciência que colocava em xeque o modo de pensar a religião pela
teologia tradicional: de uma abstração de ideias que transcendia o tempo e o
espaço atrelada a uma missão confessional, passou a ser analisada passou-se a
analisá-la como fenômeno observável desde seu aspecto concreto, ou seja,
empírico – histórico, cultural, social e linguístico.

Esse cenário cultural proporcionou a criação, por volta de 1870, na


Alemanha, de uma área dedicada ao estudo da religião pela função social, a
qual foi chamada de Ciência da Religião (Religionswissenschaft) – muito presente
na Holanda – como possibilidade de um estudo científico da religião sem
finalidades de práticas religiosas.
Após a Segunda Guerra Mundial, no período de 1945 a 1975, nasceu, nos
Estados Unidos, uma tentativa de encontrar uma diversidade de métodos com
abordagens mais empíricas que ficou conhecida como Estudos de Religião (Religious
Studies), pelo fato de entender-se que havia ainda demasiada dependência da tradição
filosófica alemã (ontologia e fenomenologia). Também, com a mesma perspectiva,
apareceram as chamadas Ciências das Religiões ou Ciências Religiosas (Sciences des
Religions ou Sciences Religieuses) na França, porém com um forte acento das ciências
sociais da religião. No mesmo período, seria proposta, no Japão, a Religiologia
20

(Shukyogaku), igualmente utilizada na Polônia e na Rússia. Além disso, podem


ser encontradas aplicações das diversas subáreas das ciências que analisam o
fenômeno religioso de uma crença específica, tais como estudos judaicos,
estudos islâmicos, estudos budistas, estudos hinduístas (Jewish studies, islamic
studies, buddhist studies, hinduism studies) – e de forma semelhante em relação a
outras religiões. Toda essa variedade reflete a complexidade do fenômeno
religioso contemporâneo.
No Brasil, podemos identificar as seguintes denominações para os
estudos nesse campo do conhecimento:

▪ Ciências da Religião – mais usual pela influência da escola norte-


americana (especialmente da psicologia da religião), da escola francesa,
da antropologia da religião e da sociologia da religião (em São Paulo) e
do modelo holandês (em Minas Gerais), pautando-se por uma
pluralidade de métodos e um objeto comum.
▪ Ciência da Religião – como uma busca de unidade epistemológica e
temática, em um momento de redefinição da proposta.
▪ Ciências das Religiões – como ideia de pluralidade de método e
pluralidade de tradições religiosas, sendo uma opção de tradução
possível para Religious Studies –, contudo, não é inexistente o uso do termo
religiologia no Brasil, apesar de pouco conhecido (Senra, 2016).

Em razão dessa variação, e como forma de reconhecer a pluralidade de


propostas na comunidade acadêmica brasileira, convencionou-se o uso da
linguagem inclusiva pelo emprego da denominação Ciência(s) da(s) Religião(ões).
Nesta obra, vamos utilizar apenas Ciências da Religião, dada a nomenclatura
oficial adotada no Brasil.
Nesse sentido, nossa proposta é apresentar o estudo religioso no contexto
de um perfil interdisciplinar entre os campos das Ciências
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da Religião e da Teologia, após a criação, pela Coordenação de


Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)1, em 2016, da Área de
Avaliação autônoma de Ciências da Religião e Teologia.
A criação das áreas de avaliação (vinculadas a grandes áreas de
conhecimento, explicadas mais à frente) tem a finalidade prática de
sistematizar, divulgar, avaliar e fazer a gestão dos investimentos no
desenvolvimento de pesquisas e de produção de conhecimento. A Capes
classifica atualmente nove Grandes Áreas de Conhecimento: (1) Ciências
Exatas e da Terra; (2) Ciências Biológicas; (3) Engenharias; (4) Ciências da
Saúde; (5) Ciências Agrárias; (6) Ciências Sociais Aplicadas; (7) Ciências
Humanas; (8) Linguística, Letras e Artes; e (9) Multidisciplinar. A elas
subordinam-se 49 campos de conhecimento menores, que funcionam como
Áreas de Avaliação. Desse modo, à Grande Área de Conhecimento chamada
Ciências Humanas, também conhecida como Colégio de Humanidades, estão
atreladas nove Áreas de Avaliação: (1) Filosofia; (2) Sociologia; (3)
Antropologia/Arqueologia; (4) História; (5) Geografia; (6) Psicologia; (7)
Educação; (8) Ciência Política e Relações Internacionais e (9) Ciências da
Religião e Teologia (Brasil, 2018a).
Antes, o campo de estudos de religião era uma subdivisão da Área de
Avaliação da Filosofia. A criação de uma área própria reúne as ciências da
religião e a teologia, razão pela qual o debate epistemológico ocorre entre essas
ciências, respeitando-se as especificidades de cada uma e buscando-se interfaces
no âmbito de um modelo interdisciplinar.
O atual contexto aprofunda, portanto, a reflexão epistemológica pelos
estudiosos tanto das Ciências da Religião quanto da Teologia, ambas, agora,
inseridas em uma mesma área de avaliação. Em função dessa nova autonomia,
houve a necessidade de

1
A Capes é um órgão que normaliza e avalia os programas de pós-graduação no país, os principais responsáveis
pela produção de conhecimento no Brasil por meio do Sistema Nacional de Pós-Graduação - SNPG (Brasil, 2019a).
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desenvolver os instrumentais de normatização, a sistematização e os critérios


de avaliação de desempenho e de gestão de recursos, como bolsas de estudantes
e de pesquisadores, fomentos para eventos acadêmicos, entre outras atividades.
É preciso, pois, que haja maior clareza quanto a especificidades e convergências,
uma vez que agora os estudos de dois campos de conhecimento sobre religião
fazem parte de uma única área de avaliação e estão, assim, igualmente
implicados na postura perante a sociedade civil e em sua relevância para a
agenda pública e seus respectivos debates.
Por fim, vale destacar que um dos exemplos mais importantes de
aplicação dos estudos nessa área atualmente é o ensino religioso não
confessional como forma de promover uma reflexão crítica sobre o papel da
religião na sociedade, bem como fomentar a tolerância e o respeito entre
diferentes crenças.
1
EPISTEMOLOGIA DO
FENÔMENO RELIGIOSO
A epistemologia, também conhecida como teoria do conhecimento, carrega uma
máxima que se mantém ao longo dos séculos, apesar de diversas teorias já
elaboradas: procurar conhecer a verdade, ou um dizer verdadeiro, e evitar o
erro. Dito em outras palavras, trata-se de buscar honestidade intelectual em
tudo o que implicar a necessidade de esforço para obter um conhecimento
crítico, mais esclarecido e possível sobre algo (objeto de investigação, temática,
problema), considerando-se diversas perspectivas, a fim de evitar, tanto quanto
possível, o engano, especialmente aquele que vulnerabiliza as pessoas e a
opinião pública e as leva a diversas formas de manipulação ideológica, política,
mercadológica ou mesmo religiosa – inclusive esta somada àquelas.

Acredita-se que tal debate – ainda que, em alguns momentos históricos,


as convicções que ele possa proporcionar sofram algum abalo – é o próprio
exercício de busca de lucidez que está implicado na tarefa de construir-
descontruir-reconstruir as diversas formas de conhecimento para possibilitar
uma vida mais autêntica e menos iludida e ingênua. O que seria de nós se a
medicina e a engenharia não ousassem ir além dos limites de conhecimento de
cada época? A quais doenças fatais ainda seríamos suscetíveis? Que condições
de habitação ainda teríamos? O mesmo vale para a consciência a respeito do
fenômeno religioso e sua produção de conhecimento, como algo que é parte da
realidade humana
24 Epistemologia do fenômeno religioso

e, portanto, ainda que aponte para o infinito, padece ao mesmo tempo da finitude das
coisas.
Immanuel Kant (1999), em sua obra Crítica da razão pura, de 1781, indica a
necessidade de distinguir, porém não dissociar, o conhecimento do
pensamento, uma vez que só é possível conhecer aquilo que está situado nos
limites da razão finita, ou seja, o que está situado no espaço e no tempo, pois,
mesmo sendo possível pensar coisas que transcendem essas dimensões (Deus,
a alma, a eternidade, entre outros exemplos), não é possível deixar de ser
humano e, portanto, condicionado aos limites históricos de compreensão. Se
existe distinção, por exemplo, entre o que é considerado relacionamento
amoroso hoje por nós e aquele vivido pelos nossos avós, é de se imaginar quais
seriam as diferenças de interpretações de um assunto datadas de dois ou dez
mil anos.
Desse modo, o conhecimento estabelece as condições de possibilidade ao
pensamento, de não pensar somente nas coisas em si, como se a pessoa estivesse
aquém do espaço e do tempo, de modo a não se perder em devaneios, ilusões e
afirmações arbitrárias. Entretanto, aceitando o desafio de pensar sobre a
finitude humana, o conhecimento pode ser dilatado pelo pensamento para além
dos limites da consciência, transcendendo-os e evitando que o saber adquirido
se enclausure em um reducionismo estéril.
Nessa nossa compreensão, o conhecimento está a serviço do
discernimento de nossas ações humanas e visa ao bem mais universal ou, ainda,
ao bem comum. Se o conhecimento não servir para a vida, ele passa a ser inútil,
pois é na melhoria desta que aquele tem um papel de discernimento
fundamental.
A epistemologia aplicada às ciências da religião está relacionada à
caracterização científica de fenômenos religiosos. É pelo debate epistemológico
que se configuram os métodos de investigação, revelando-se o caminho
percorrido para se chegar a um produto epistêmico, ou seja, um conhecimento
proposicional de cuja legitimidade haja evidências suficientes. Ao longo do
tempo,
25 Epistemologia do fenômeno religioso

tal debate epistemológico foi se desenvolvendo e estabelecendo relações distintas


com outra área de saber mais tradicional, a teologia. Há nessa história distanciamentos
e aproximações entre as duas áreas que se ocupam da reflexão sobre fenômenos
religiosos. Portanto, o que queremos neste primeiro momento é analisar como se
desenvolveu a epistemologia das ciências da religião no que diz respeito à investigação
desses fenômenos.

Questões introdutórias sobre


1.1

epistemologia
O debate epistemológico visa estabelecer critérios que permitam reconhecer a
distinção entre conhecimento e mera opinião ou crença, a fim de identificar nas
aprendizagens diárias um entendimento mais adequado da realidade em que
vivemos, produzindo, assim, novas percepções que oferecem estratégias
cognitivas mais adequadas para responder a um problema ou a uma questão.
Para que você se familiarize melhor com o debate epistemológico, vamos
elencar em tópicos, a seguir, categorias gerais para a produção de conhecimento
científico:

▪ A questão é um acúmulo de problemas que se torna uma tarefa


investigativa. Em latim, o termo quaestionis foi utilizado pela literatura
escolástica como “pesquisa”.
▪ A pesquisa é a atividade básica da ciência e, para ser qualificada como
científica, necessita de um método.
▪ O método, na pesquisa científica, tem por finalidade construir o
conhecimento por meio de uma disciplina acadêmica.
▪ O conhecimento produzido (produto epistêmico) pelo pesquisador
(sujeito epistêmico) pretende alcançar o estatuto de científico por meio de
um processo (investigação científica) que leva a um fundamento legítimo,
na medida em que se configura como resposta significativa a um
problema específico obtida
26 Epistemologia do fenômeno religioso

pelo cumprimento de todas as etapas do método e reconhecida pela


comunidade acadêmica.
▪ A comunidade acadêmica é constituída por pesquisadores já
reconhecidos como tais, os quais devem fomentar o debate acadêmico. A
produção de conhecimento científico acontece no seio de uma academia
(comunidade acadêmica), pois ninguém faz ciência sozinho. Pode-se falar
em comunidade acadêmica universitária local, nacional ou internacional.
▪ A academia é, por excelência, o lugar de produção de conhecimento e de
debate sobre os novos conhecimentos e os problemas emergentes.

Dessa forma, a epistemologia objetiva identificar o que determina que um


campo de estudos específico (ou uma área de conhecimento) seja considerado
uma ciência, um saber que abrigue uma verdade evidente ou uma evidência
objetiva em seu alicerce fundacional. O debate epistemológico,
tradicionalmente relacionado à filosofia, tende a ser também assumido por
cientistas, o que resulta em fazer da epistemologia, por parte destes últimos,
uma ciência empírica.
Há também outras formas válidas de conhecimento entre os debates dos
eminentes epistemólogos1. Encontram-se entre as principais tendências duas
concepções: (i) como ciência empírica, descritiva, podendo ser autorreferencial,
isto é, elaborada pela prática investigativa; e (ii) como discussão não científica
normativa, podendo ser fundacionalista, isto é, elaborada por uma discussão

1
Epistemólogo é a denominação referente àquele que estuda como o conhecimento é produzido, quais são seus
limites, como deve ser o rigor metodológico e quais são as condições culturais, sociais, econômicas e políticas de
produção de conhecimento de cada época. Tradicionalmente, tal papel era atribuído ao filósofo, porém, com a
mudança de referencial das ciências empíricas, também seus respectivos cientistas começaram a refletir sobre
suas práticas. Com o desenvolvimento das áreas de conhecimento, estabeleceu-se uma saudável relação entre
o debate filosófico e as práticas de investigação de cada área. A interação entre esses dois âmbitos, mais teórica
e mais pragmática, produz uma rica análise sobre a produção de conhecimento e seus limites.
27 Epistemologia do fenômeno religioso

teórica de princípios a serem aplicados na prática investigativa. No âmbito


dessas tendências ocorre o debate sobre o conhecimento científico e a natureza
das ciências humanas. Todas se atêm ao que é conhecimento e aos seus limites
(Dutra, 2003), e não caberia aqui, em uma obra de natureza didática, aprofundar
tais discussões, mas apenas introduzir as questões epistemológicas que se
aplicam à investigação dos fenômenos religiosos.
Contudo, toda teoria do conhecimento está necessariamente imbricada
com um evento social situado em uma cultura específica, de modo que o
sistema de produção de conhecimento de um local (comunidade acadêmica)
deve ser capaz de elaborar parâmetros norteadores para o desenvolvimento de
instrumentos cognitivos adequados à realidade analisada. Com isso, as visões
mais universalistas (a coisa em si, fora do espaço e do tempo) vão perdendo
pertinência em relação ao conhecimento que se destina a uma realidade
específica. A presunção de que um conhecimento produzido em uma realidade
específica é suficiente para qualquer realidade passou a ser muito forte após os
processos de colonização, quando o conhecimento era “importado” de outro
contexto. Lentamente, foi-se percebendo a insuficiência de alguns aspectos da
perspectiva universalista e passou-se a procurar um conhecimento acadêmico
mais contextuai.
A velocidade com que ocorre essa mudança apresenta-se de acordo com
cada área específica, como é o caso da saúde, por exemplo. A ausência do
conhecimento sobre algumas doenças chamadas tropicais por parte da
comunidade acadêmica da Europa, em razão da inexistência ou da pouca
incidência dessas enfermidades por lá, fez com que a academia local procurasse
as próprias soluções, produzindo conhecimento próprio, como aconteceu com
a malária. Assim, é diante da configuração social em que se encontra a
comunidade acadêmica e em função de sua pragmática
28 Epistemologia do fenômeno religioso

de investigação que se elaboram modelos epistemológicos e opções


metodológicas para atender a determinada questão.
Tal postura não tem como finalidade sobrevalorizar o método em
detrimento da realidade nem o resultado empírico em relação ao histórico no
debate epistemológico. A esse fenômeno Dutra (2013), ao analisar o que ocorre
nas ciências humanas, dá o nome de calibragem, ou seja, um ajuste necessário
entre os modelos epistemológicos empregados na pragmática de investigação e
a natureza da realidade analisada. Não há uma receita metodológica para isso,
mas os modelos epistemológicos surgem da própria pragmática do labor
investigativo (Dutra, 2013).
Para epistemólogos que seguem essa linha, todos os eventos ou situações
sociais são resultados de ações pessoais, mesmo quando representados ou
mediados por instituições, e todos os objetos culturais constituintes de uma
cultura específica – incluindo as instituições – são criações humanas, mesmo
que ganhem autonomia e venham a exercer uma força normativa sobre a ação
humana. Entretanto, as situações sociais não resultam da ação de um indivíduo
isoladamente, uma vez que têm um caráter coletivo e institucional, havendo, ao
menos, um envolvimento mínimo colaborativo e comunicativo de mais de um
ser humano.
Para Dutra (2013), qualquer exercício de análise passa pela questão de
quem determina o controle das situações sociais – o comportamento humano
sobre as instituições ou estas sobre aquele. O autor propõe, então, o problema
da calibragem das ciências humanas, ou, dito de outra forma, “o problema de
saber em que medida o entendimento de um evento social ou cultural depende
do entendimento prévio de eventos psicológicos ou mentais, biológicos e de
outros eventos sociais já estudados e caracterizados” (Dutra, 2013, p. 303). Tal
questão representa um desafio maior no que diz respeito às ciências culturais
em relação às ciências naturais, pois qualquer evento social resulta da ação de
seres humanos em
29 Epistemologia do fenômeno religioso

determinado contexto social. Isso ocorre porque a complexidade da influência


da condição humana se constitui pela existência de três fatores: (i) a história
pessoal, com sua (ii) constituição mental e biológica, em conjunto com o (iii)
meio social em que as pessoas habitam (Dutra, 2013). Concepções reducionistas
tendem a eliminar um ou mais desses aspectos.
Assim, as ciências humanas, ao estudarem os eventos sociais, analisam:
(i) determinadas práticas mentais ou psicológicas (das pessoas envolvidas); (ii)
determinados fenômenos naturais ou físicos (ligados aos organismos das
pessoas envolvidas e suas relações com o ambiente natural); e (iii) outros
acontecimentos sociais (aos quais forçosamente os eventos sociais estudados
parecem estar ligados).
Outra calibragem necessária consiste em encontrar uma combinação mais
adequada entre causas remotas e causas próximas de um acontecimento. Há
eventos que podem ser mais bem compreendidos pelas causas próximas,
enquanto outros demandam uma análise de causas mais remotas, sendo
importante não assumir a priori a predileção por algum desses fatores (Dutra,
2013).
Dito isso, queremos identificar como as ciências da religião progridem
com base nas categorias anteriormente mencionadas, especialmente o
entendimento de que uma teoria se desenvolve relacionada a um evento social
situado em uma cultura específica, procurando considerar as calibragens
analisadas.
Ao longo da história, sempre houve interesse em produzir saber sobre
religiões. Todavia, o evento ou a situação social que impulsionou um crescente
interesse por outras religiões ocorreu com a expansão ultramarina europeia
estimulada pelo mercantilismo, com a qual, desde o século XVI, além da
ocupação material do processo colonizador, instalou-se também a ocupação
espiritual. Para a época, a relação entre Igreja e Estado, denominada de regime
de cristandade, unia a imposição de uma cultura civilizatória
30 Epistemologia do fenômeno religioso

à implementação da respectiva religião oficial. A pretensão de expansão


imperial fazia com que a doutrina religiosa assumisse contornos de
universalização excludente. Entretanto, havia entre os missionários jesuítas do
século XVI elementos considerados passos iniciais, com os registros
etnográficos e antropológicos de uma tentativa de compreensão das religiões
existentes no Brasil, porém sem a designação científica elaborada
posteriormente (Valle; Queiroz; Mendonça, 2007).
A necessidade de conhecer os povos colonizados na América, na África e
na Ásia, tidos como exóticos, foi crescendo. Isso ocorreu, evidentemente, por
uma curiosidade investigativa legítima, contudo não se podem desconsiderar
os interesses colonizadores, não raro financiadores de tal empreitada (Wirth,
2013), que resultou na publicação de clássicos confucionistas, manuscritos
avésticos, textos zoroastrianos, obras budistas escritas em páli e até mesmo a
primeira tradução inglesa do Bhagavad Gita, em 1785, por Charles Wilkins (1749-
1836), mais tarde eleito membro da Royal Society – a Real Sociedade de Londres
para o Melhoramento do Conhecimento Natural.
Wilkins, funcionário da Companhia das índias – primeira organização
britânica fundada para conquistar e controlar o fluxo comercial com a Ásia –,
junto com William Jones (1746-1794), filólogo que havia encontrado raízes
comuns entre o sânscrito, o latim e o grego, fundou a Sociedade Asiática de
Bengala2, em 1784 (Patil, 2003).
A cultura específica que favoreceu o surgimento das ciências da religião
é o acúmulo de conhecimento oriundo dos métodos empíricos de observação e
de validação da moderna concepção de ciência, que, em vez de julgar aquelas
religiões como inferiores, reconhece outras formas de civilização, sem um
julgamento apriorístico, como faziam as teologias das religiões oficiais.

2
The Asiatic Society, cujo site oficial é: <http://www.asiaticsocietykolkata.org/>. Acesso em: 7 ago. 2019.
31 Epistemologia do fenômeno religioso

Observa-se, nesse sentido, nos séculos XVII e XVIII, um acúmulo de


conhecimento, especialmente da filologia3 e, consequentemente, no século XIX,
da mitologia comparada4, como se verifica no livro de Ferdinand Stiefelhagen
(1822-1902), Teologia do paganismo: a ciência das religiões antigas e a mitologia
comparada, juntamente com novas pesquisas sobre o paganismo e sua relação mais
próxima com a cristandade5 (Stiefelhagen, 1858, tradução nossa).
Por fim, foi Friedrich Max Müller (1823-1900), professor da Universidade
de Oxford também ligado à mitologia comparada, que, com a publicação do
primeiro volume de Chipsfrom a German Workshop (Müller, 1867a), organizou
vários trabalhos menores para propor, em 1867, o Ensaio sobre ciência da religião
(Essay on the Science of Religion). Nesse ensaio, Müller (1967a, p. 50-63) apresenta
o termo como disciplina própria e aplica o seu exercício comparativo “Cristo e
outros Mestres” – que versa sobre livros como os Vedas e o Avesta, além de
tratar de mestres budistas, de Confúcio, do maia Popol-Vuh e outros – sem
conferir a Jesus Cristo uma predileção ou entendê-lo como espécie de síntese
dos demais sábios anteriores a ele. No segundo volume, (Müller, 1867b)
continua abordando as religiões como exercício de mitologia comparada,
analisando sistemas religiosos, tradições e costumes.
A perspectiva de Müller, com suas demais obras dedicadas às ciências da
religião (Religionswissenschaft), apesar de ele ser criticado por abordar os mitos
como fenômenos naturais, foi decisiva para a institucionalização de uma
disciplina acadêmica com base em um método comparativo, tendo sido a
primeira cátedra chamada

3
Ramo de conhecimento que se dedica ao estudo do desenvolvimento histórico-linguístico de registros escritos,
procurando identificar suas formas originais e seus respectivos significados culturais.
4
Escola que estabelece uma metodologia para comparação de mitos de distintas civilizações com o objetivo de
identificar características semelhantes e diferenças culturais.
5
No original em alemão: Theologie des Heidenthums: die Wissenschaft von den alten Religionen und der
Vergleichenden Mythologie nebst neuen Untersuchungen über das Heidenthum und dessen nàheres Verhaltniss
zum Christenthum.
32 Epistemologia do fenômeno religioso

de História das Religiões, estabelecida na Faculdade de Letras da Universidade


de Genebra, em 1873. Usarski (2006, p. 25) defende, contudo, que a consolidação
das ciências da religião ocorreu com a criação de quatro outras cátedras na
Europa em 1877, especialmente com a contribuição de Cornelius Peter Tiele
(1830-1902), da Universidade de Leyden, e Daniel Chantepie de la Saussaye
(1848-1920) – ao qual se atribui a origem da fenomenologia da religião –, da
Universidade de Amsterdã, considerados por vários especialistas na área como
integrantes da tríade de fundadores dessa área do conhecimento.

O desenvolvimento histórico
1.2

da epistemologia aplicado à ciência


da religião6
A ciência da religião europeia, com forte influência do debate alemão, surgiu
em um momento de demanda pelo saber de outras religiões por meio do contato
estabelecido com povos latino-americanos, africanos e asiáticos após a expansão
europeia ultramarina empreendida por Portugal, Espanha, Holanda, França,
Alemanha e Inglaterra. Esta última financiou os estudos de Müller pela
Companhia Britânica das índias Orientais, tarefa com a qual o autor consolidou
um método de religião comparada, oriunda, sobretudo, da filologia comparada
e da mitologia comparada, as quais desempenharam um papel fundamental no
século XIX. A importância da ciência da religião foi se mostrando cada vez mais
pertinente, com o passar dos anos, em especial com a intensificação da situação
multicultural do mundo em processo de globalização. O outro (diferente) foi
ficando cada vez mais próximo,

6
Toda vez que nos referimos à nomenclatura ciência da religião (no singular), evocamos o desenvolvimento
histórico da escola alemã (Religionswissenschaf). A expressão no plural (ciências da religião) só apareceu no
século XX (e é o padrão que escolhemos utilizar neste livro).
33 Epistemologia do fenômeno religioso

e a necessidade de entendê-lo para com ele conviver tornou-se cada vez mais
premente.
Outro fator de configuração da ciência da religião é que ela se afirmou
negando a teologia do século XIX, ou seja, a proposta alemã 7 era estabelecer a
ciência da religião distanciando-se cada vez mais do modo de proceder dos
estudos teológicos, tensão esta que se acentuou no século XX (Greschat, 2005).
A razão apresentada para tal postura foi a necessidade de “abster-se de
pressupostos e ‘preconceitos’ teológicos” para que assim o cientista da religião
pudesse “pesquisar e descrever cientificamente com neutralidade” (Holstein,
citado por Usarski, 2006, p. 64).
Os eventos sociais desse momento diziam respeito a uma cristandade em
crise, contexto em que a hegemonia cultural, desde a Reforma, no século XVI,
vinha sendo disputada entre católicos e protestantes, especialmente quanto às
chamadas teologias normativas ou magisteriais, no caso católico, vinculadas às
teologias institucionais oficiais (Genovesi, 2008, p. 67-92). Havia nelas, no século
XVII, uma crescente racionalização entre a segunda escolástica católica e a
escolástica protestante, estando esta obstinada em estabelecer, de modo
irrefutável, os princípios reformados e aquela, de forma apaixonada, decidida a
refutá-los, em um embate tanto irresolúvel quanto interminável.
O palco europeu foi o lugar, por excelência, do debate sobre as fontes de
autoridade da mensagem cristã. Soma-se a isso a epistemologia racionalista, que
se impôs com René Descartes (1596-1650) em seu Discurso do método, de 1637,
obra na qual o filósofo estabelece a razão como única autoridade, podendo-se
resumi-la pela observância dos seguintes passos: i) jamais aceitar uma verdade
da qual não se conheça a evidência; ii) dividir um problema a ser examinado
em tantas partes quanto possíveis para melhor resolvê-lo; iii) pôr em ordem os
pensamentos, partindo-se

7
Até esse momento, a ciência da religião era, portanto, uma formulação alemã (mesmo quando transposta para
a Holanda).
34 Epistemologia do fenômeno religioso

dos mais simples para os mais complexos; iv) enumerar e revisar toda a
investigação (Descartes, 1979).
Contudo, foi David Hume (1711-1776) quem promoveu uma
consolidação importante da epistemologia como disciplina, avançando no
debate sobre o racionalismo e desenvolvendo as bases do empirismo, como a
primeira doutrina epistemológica falibilista, ou seja, calcada em resultados
sobre os quais seja possível debater, sendo estes falíveis e, portanto, passíveis
de discussão e de aprofundamento, diferentemente das pretensões infalibilistas,
que pretendem alcançar o saber definitivo. Em seu trabalho Investigações sobre o
entendimento humano e sobre os princípios da moral, publicado pela primeira vez
em 1748, Hume (2003) trata de fundamentar a ciência e depurar a filosofia,
estabelecendo uma crítica à metafísica tradicional, sobretudo às teorias
especulativas mal fundamentadas.
Nesse momento, a epistemologia tradicional que vigorava ainda era
aquela iniciada por Platão (427 a.C.-347 a.C.) e assumida por diversas correntes
cristãs, especialmente as agostinianas no Ocidente. Em linhas gerais, a tradição
platônica se propõe a refletir sobre um saber que se oponha à simples opinião
(doxa) e que seja fundamentado e dotado de garantias de validade científica
(epistèmê). O filósofo distingue, pois, no diálogo Teeteto8, três tipos de
conhecimento:

1. o conhecimento advindo da percepção das sensações (aisthésis) e,


portanto, passível de mudança de opinião e considerado inconsistente
(Platon, 1966,151e-187a9);

8
Diálogo de Platão sobre a natureza do conhecimento (Platon, 1966).
9
Convencionou-se, como citação acadêmica de obras clássicas antigas, a prática da referência marginal, ou seja,
utiliza-se uma referência numérica na margem da obra, independentemente do número de páginas, a fim de
facilitar a leitura dos clássicos, pois eles variam em número de páginas de acordo com a natureza das publicações
(uso acadêmico ou leitura livre). Todas as referências indicadas seguirão esse padrão de citação acadêmica da
obra platônica.
35 Epistemologia do fenômeno religioso

2. o conhecimento entendido como “crença” ou “opinião verdadeira”


(alethés doxa ou ortodoxa) (Platon, 1966,187b-201c);
3. o conhecimento como “crença” ou “opinião verdadeira” acompanhada
de uma explicação racional (logos) ou metafísica (alethés doxa meta logou)
(Platão, 2015a, 201d-210b).

Desse modo, a tradição ocidental chamou de conhecimento científico uma


crença verdadeira e justificada, adotando a fórmula platônica, bem como sua
epistemologia, em que a justificação, elemento mais importante da teoria do
conhecimento, coincide com as formas inteligíveis, ou seja, as formas ou ideias
perfeitas que procuram a essência das coisas, resultando em uma forma de
conhecimento idealizado ou em um doxismo idealista, dada a natureza
corruptível do mundo fenomênico. Assim, no diálogo de Crátilo, para a teoria
platônica, o conhecimento é doxástico (pautado em uma crença que se justifica
em uma ideia perfeita (Platão, 2015b, 438c).
A tentativa de correção dessa idealização do conhecimento já aparece no
Ocidente com a tentativa de empreender um referencial aristotélico e a questão
da empiria, isto é, a veracidade comprovada na realidade. No entanto, o
platonismo, como já afirmava Karl Popper (1974), carrega um potencial
totalitarista que promove a eliminação das opiniões que não coincidem com
aquela tida como ortodoxa e com seus representantes.
Cabe aqui uma breve digressão sobre a epistemologia platônica e seu
método essencialista. A categoria do “espanto” – ou a “admiração” – é a
sensibilidade (pathos) pela qual a realidade afeta o filósofo (Platão, 2015a, 155 d
1-3). Uma vez afetado pela realidade, o filósofo deve procurar a sabedoria que
se esconde por trás do fenômeno, a essência, na qualidade de causa de sua
admiração, para, então, transformá-la em conhecimento que seja capaz de
converter as pessoas para a verdade. De modo muito especial, tal sabedoria se
36 Epistemologia do fenômeno religioso

destina à conversão da pessoa do rei, para, assim, atingir toda a sociedade


(pólis). O obstáculo com que Platão se depara reside no fato de que a sofia, como
logos (exercício de racionalidade) do pathos (sensibilidade perceptiva) da
condição humana, pode ter muitos discursos (logoi). A pluralidade de discursos
pode confundir a sensibilidade humana graças a inúmeras formas de impacto
afetivo no juízo do filósofo, como no caso dos “artistas” que alienam os cidadãos
com comédias e tragédias ou dos sofistas, intelectuais como Górgias, que
divergem sobre o modo como se deve organizar a sociedade. Dessa forma, a
ausência de empatia no logos dos filósofos ocorre em virtude da insistência em
procurar opiniões (doxa) divergentes. A tarefa platônica aponta para a
necessidade de encontrar uma opinião mais correta (ortodoxia) para se chegar a
uma atitude mais adequada (ortopraxia).
A razão das divergências entre os discursos reside no fato de que as
pessoas são afetadas de modos diferentes pela vida. A busca da ortodoxia na
Antiguidade se dava pela via afetiva, sendo a contemplação o modo pelo qual
uma nova sensibilidade se configurava – uma ortopathia –, um processo de
ordenação dos afetos capaz de ser sensível ao que fosse considerado ético e
indiferente ao que fosse considerado antiético, definidos previamente pela
ortodoxia. A contemplação estabelecia a ponte entre sensibilidade e código
moral, a via afetiva para se chegar à doutrina, sendo esta a expressão de uma
ordem perfeita das coisas, ou seja, a Divindade (Theós), na qual residem as
formas perfeitas.

Assim, o filósofo deve ser um teólogo de modo a contemplar [theo-ria] o


sentido de Deus [théos logos] para agir de modo semelhante a Deus
[homoiousios touTheou] (Teedeto, 176b). A verdade seria assim des-velada [a-
letheía] não pela verdade das coisas [phísis], mas para o que está para além das
coisas [meta-phísis], como plano perfeito. Ela encanta e atrai por sua
37 Epistemologia do fenômeno religioso

beleza. [...] Encantados, então, pela verdade, é possível aos homens


estabelecer um diálogo [dia ton logos] no qual, através do sentido de vida de
cada um, possa-se chegar à empatia e ao consenso político. (Villas Boas, 2016,
p. 77-85, grifo do original)

Contudo, Platão sugere, no diálogo O banquete10, que Sócrates, por mais


hábil que seja em mobilizar a sensibilidade dos cidadãos, não pode vencer o
orgulho dos poderosos, o que faz com que os homens desejem ser como os
deuses (hybris) e tornem-se antipáticos a tudo o que contraria seus interesses
(Platão, 2016).
Na explanação de Platão, ocorre a crítica daquilo que ele também
sofisticadamente defende, ou seja, só quem conhece a divindade é capaz de
estabelecer a verdade das coisas e, consequentemente, deve ocupar os espaços
políticos de decisão. Entretanto, aqueles que já ocupam esses espaços vão se
entender como portadores da verdade. Há na epistemologia platônica um flerte
político com a legitimação desses espaços, o que é considerado a causa das arbi-
trariedades que justificam as decisões políticas. Inevitavelmente, a cultura
imperial do Ocidente adotou o platonismo como comportamento político,
englobando essa teoria do conhecimento como um de seus pilares de
sustentação. Com a imperialização do cristianismo, seja no Ocidente, seja no
Oriente, ocorreu uma platonização da fé cristã; além disso, podem-se encontrar
tendências platônicas ou, em última instância, uma metafísica política nas
culturas imperiais que se utilizam da religião para legitimar seu espaço de ação.
O projeto político platônico é essencialmente religioso e adota uma estratégia
afetiva para sedimentar sua execução – em outras palavras, é um caminho que
passa não pelo debate argumentativo, mas pela sedução dos sentimentos
provocados pela religião.

10
O diálogo O banquete (Simpósion) se dedica à natureza do amor e contém a perspectiva política do filósofo
grego a respeito das críticas da cidade (pólis) contra a sua filosofia (Platão, 2016).
38 Epistemologia do fenômeno religioso

O que a crítica de Hume (2003), anteriormente citada, indica é que


deslocar a autoridade para a razão (especialmente a teoria das ideias inatas) é
insuficiente, sendo outra forma de racionalização abstrata que reside
substancialmente na observação interna, ou seja, na introspecção. O pensador
britânico seguiu a linha de John Locke ao reabilitar a sensibilidade como forma
de nos colocar em relação com as coisas externas. Nesse sentido, vale dizer, duas
categorias importantes em Hume (2003) são a percepção e o método
experimental, que compõem o empirismo do pensador.
Outro mérito do filósofo britânico foi aplicar seu método na compreensão
do fenômeno religioso. Em sua obra Investigações sobre o entendimento humano e
sobre os princípios da moral, Hume (2003) questiona as formas de evidências
escolhidas pela grande maioria das teologias oficiais no século XVIII, a saber, os
milagres, insuficientes para a justificação das instituições religiosas cristãs e
responsáveis, ainda, por promover a superstição e o entusiasmo, como
descreveu o filósofo em seu Ensaio XII sobre moral e política (Hume, 1764).
Para Hume (1764), as fontes da superstição – fraqueza, medo, melancolia
e ignorância – e do entusiasmo – esperança, orgulho, presunção, imaginação
efervescente (warm imagination) e ignorância – e os milagres se tornam uma
forma de promover a ignorância11 que une católicos e protestantes. Com a
superstição, geram-se as práticas mais absurdas e frívolas da religião, e o en-
tusiasmo conduz a uma percepção de si mesmo como favorito da divindade –
fonte de fanatismo, cegueira intelectual e recusa de debates éticos. Por isso,
ambos os sentimentos são corruptores da religião (Hume, 1764).
Hume (1889) também se dedicou a realizar uma história natural das
religiões, tendo entendido por natural a recusa de alguma forma de apologia
metafísica para se adotar, então, uma leitura-análise

11
A repetição do termo faz parte do estilo de Hume (1764).
39 Epistemologia do fenômeno religioso

de causa e efeito de fatos históricos. Por esse método de leitura-análise, o autor


trata de um desenvolvimento do monoteísmo com base numa competição entre
as religiões politeístas e suas respectivas crenças, que procurariam uma
divindade superior. O filósofo britânico considera que o monoteísmo, embora
mais defensável racionalmente do que o politeísmo, também tende a ser
intolerante e hipócrita, visto sua pretensa superioridade, apontando, para isso,
os fatos históricos que comprovariam tal postura. Apesar de ter sido acusado
de ateísmo, Hume é, não raro, mais bem identificado como um irreligioso, uma
vez que era cético em relação às instituições religiosas de seu tempo,
especialmente no que diz respeito à má influência das formas de crença que não
promoveriam uma consciência ética (Hume, 1889).
Assim, Hume desenvolveu uma abordagem da religião dentro de um
quadro referencial estritamente científico, despido de apologias, e dedicou-se à
explicação de seu objeto. Com isso, inaugurou toda uma tradição do tratamento
racional da religião que, no âmbito da filosofia, foi retomada por pensadores
posteriores, como Jean-Jaques Rousseau (1712-1778), Immanuel Kant (1724-
1804), Friedrich Schleiermacher (1768-1834), Georg Wilhelm Friedrich Hegel
(1770-1831) e Arthur Schopenhauer (1788-1860). Nessa sequência, inclui-se
também Johann Gottfried Herder (1744-1803), lembrado como o primeiro autor
moderno a destacar a importância de se lançar um olhar histórico para a
filosofia em geral e para as reflexões sobre religião em particular.
Kant (2013) reafirma a autoridade da razão no texto Resposta à pergunta:
que é “esclarecimento”? (Was is Aufklärung?), em que define o espírito do
Iluminismo com o mote latino “Ousa saber” (Sapere aude). Com sua filosofia
crítica, o autor reúne, genialmente, tanto o racionalismo cartesiano quanto o
empirismo britânico, sobretudo o de Hume, defendendo a ideia de que o
conhecimento exige uma base empírica e impõe o desafio de uma teoria do
conhecimento
40 Epistemologia do fenômeno religioso

que questione a metafísica tradicional, propondo uma distinção entre o


transcendente (que vai além da experiência possível) e o transcendental (que
está dentro dos limites da experiência). A crítica de Kant à metafísica tradicional
localiza-se no risco de suscitar afirmações que não se restrinjam aos limites do
conhecimento humano. Nisso residem as arbitrariedades das afirmações
metafísicas abstratas sobre o transcendente. O conhecimento mais digno de
credibilidade é aquele que se manifesta como “fenômeno”, que permite refletir
além do que já se conhecia, mas dentro da imanência fenomenal. O fenômeno é
o que há de imanente na experiência.
Em Fundamentação da metafísica dos costumes (obra publicada pela primeira
vez em 1785), Kant (2009) chega mesmo a dispensar a necessidade das religiões
para advogar a presença de um Reino de Deus que unifique todos os homens
de boa vontade contra as arbitrariedades eclesiais. Em outras palavras, o autor
defende uma religião dentro dos limites da razão, o que não significa uma
redução racional daquela, em princípio, mas a exigência de que ela não dispense
a razão crítica (Kant, 1975).
As ciências da religião, que nascem com os pressupostos de ciência
moderna, acabam sendo atacadas pelas duas teologias normativas de tradições
cristãs, especialmente quando atingem o ponto nevrálgico do problema: a crítica
à pretensa hegemonia ou ao mito da superioridade cristã em relação às demais
religiões, depois de abandonarem a epistemologia que se baseia na metafísica
clássica e de adotarem um método de experimentação racional.
Em suma, as ciências da religião, como integrantes do âmbito da ciência
moderna, adotam, então, para a análise do fenômeno religioso, uma dinâmica
metodológica própria da época iluminista, constituída fundamentalmente de
observação, hipótese, experimentação e exposição aos pares – radicalmente
diferente do método dialético da teologia escolástica, de contraposição de
ideias.
41 Epistemologia do fenômeno religioso

A “briga de métodos” em ciências


1.3

da religião
No contexto em que surgiu uma nova forma de análise racional da religião (isto
é, entre 1873 e 1877, como vimos na Seção 1.1), também houve, como reação,
condenações à modernidade por parte das teologias normativas, considerando-
se os questionamentos das interpretações dogmáticas tanto católicas quanto
protestantes.
Do lado protestante, ocorria a crítica feita pelo idealismo alemão,
especialmente da teologia de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), a qual
enfatiza que o sentimento é unidade originária do pensamento e, assim,
propunha a libertação da pessoa do dogmatismo religioso. Em virtude desse
aspecto, tal corrente ficou conhecida como teologia liberal e teve forte reação com
o que se chamou neo-ortodoxia protestante.
No caso católico, foi estabelecido o questionamento da infalibilidade
papal, que reagiu com o Syllabus, apêndice da encíclica Quanta Cura (QC), do
Papa Pio IX (1864), em que se condenou um total de 80 erros modernos,
incluindo o racionalismo ou qualquer forma de razão que não se dirigisse a
Deus. O contexto de reprovação e de não enfrentamento às críticas
epistemológicas acabou por promover um estado psicológico de uma moderna
“caça às bruxas” aplicada aos pensadores. A partir desse momento, brotaram
os fundamentalismos católicos, com base em uma distorcida compreensão da
infalibilidade papal, e também os protestantes, apoiados na absolutização da
inerrância bíblica.

Crises culturais, crises metodológicas


1.3.1

e novas epistemologias
Apesar de um crescente acúmulo do conhecimento empírico das ciências da
religião, após a Primeira Guerra Mundial, houve
42 Epistemologia do fenômeno religioso

também uma crise cultural europeia que se refletiu como uma crise da
cristandade, com os respectivos sistemas de crença em crescentes processos de
racionalização, seja pela disputa interna à própria cristandade, seja pela crítica
do racionalismo investigativo, ambos insuficientes para lidar com os
sentimentos confusos oriundos do conflito bélico e da crise de unidade no Velho
Continente.
Uma alternativa à epistemologia da nascente ciência da religião nesse
momento era a fenomenologia da religião, que se baseava no pensamento
filosófico de Edmund Husserl (1859-1938) e reunia as críticas feitas às teologias
normativas, tanto por parte de católicos, como é o caso de Franz Brentano (1838-
1917) e do idealismo alemão, quanto por parte da teologia liberal protestante. O
que Husserl realizou no interior do sistema cultural alemão em crise foi ajudar
a compreender que o conhecimento é inseparável da interioridade
compreensiva do espírito.
A pesquisa fenomenológica fundamenta-se no modo próprio de viver e
não se define como algo abstrato e distante da vida, razão pela qual visa
justificar como somos feitos sem prescindir do rigor filosófico ou da filosofia
como “ciência do rigor”. No livro A ideia de fenomenologia, Husserl (2008) faz
uma observação direta da experiência subjetiva, que interage com a consciência
como padrão estrutural cognitivo-emocional-sensorial de nosso
comportamento e do mundo exterior tal e qual este é visto. Desse modo, a
fenomenologia descreve as essências do fenômeno, como objeto que é dado à
consciência desde que aparece e se manifesta nas vivências, sendo estas
imanentes àquela. A tentativa de correlacionar o conjunto de todas as notas que
marcam as experiências constitui sua intencionalidade, a origem do itinerário
entre a “intuição” provocada e o sentido percebido ou o caminho contrário de
como o sentido das coisas pode ser encontrado no ser humano por meio das
vivências.
43 Epistemologia do fenômeno religioso

Rudolf Otto (1869-1937) pretendeu seguir a mesma perspectiva com a


religião. Teólogo alemão e erudito das religiões, trabalhou com a ideia de
sagrado (Das Heilige) ou de numen (essência divina), que constitui o ser em sua
totalidade e está presente em todas as crenças como uma força misteriosa que
vem a ser conhecida nas vivências que estão implicadas na existência, nos
eventos ou nas ações (Otto; Harvey, 1926). Por meio da redução eidética – méto-
do da fenomenologia de Husserl que visa encontrar as questões essenciais nas
vivências da alma ou da interioridade humana –, o cientista da religião deve
desenvolver um sensus numinis – uma sensibilidade ou uma abertura que
permita realizar ou encontrar a experiência do sagrado em seu próprio íntimo.
Soma-se a isso o interesse de Otto pela chamada teoria do monoteísmo primordial,
uma novidade em meio às ideias evolucionistas que tendiam a ver o
monoteísmo como evolução do politeísmo. Aplicando-se o método da
fenomenologia, percorre-se o caminho do fenômeno, (o que aparece das
religiões) até a essência delas, a experiência religiosa ou a experiência do numen.
Tal método considera que os objetos das ciências da religião são a crença e o
fenômeno a serem analisados, sendo este mais amplo e convergente em sua
estrutura com as demais religiões.
A fenomenologia da religião teve grande aceitação, sobretudo, no período
após a Segunda Guerra Mundial, com a necessidade de esperança que surgiu
diante de um racionalismo teológico estéril. Além de Otto, houve outros nomes
importantes que se inseriram nessa corrente: Gerardus van der Leeuw (1890-
1950) e Joachim Wach (1898-1955). Porém, foi com Mircea Eliade (1907-1986)
que a fenomenologia se expandiu, dando maior atenção ao mito como
“estrutura fundamental da vida primitiva” e alargando o horizonte do sagrado
entendido como “horizonte geral do sentido” (Gasbarro, 2013, p. 80, 95).
44 Epistemologia do fenômeno religioso

Tal abordagem, contudo, desencadeou o que ficou conhecido como briga


de métodos, pelo fato de a fenomenologia clássica ter sido acusada de
“criptoteologia”, ou seja, de utilizar de modo indireto categorias de análise da
teologia cristã, como no caso de buscar entender o sagrado com base em uma
perspectiva teológica cristã de Deus. Também o pressuposto de que o
cristianismo teria algo de superior (surplus) foi bastante criticado.
Após a revisão crítica da fenomenologia da religião, iniciou-se um debate
metateórico da ciência da religião, com base no qual se privilegiou uma
abordagem mais empírica, mais igualitária, conferindo-se maior atenção à
história. Greschat (2005) entende que a fenomenologia se desenvolveu como
método de investigação das religiões que procura as concordâncias
fenomenológicas, atentando ao elemento essencial em detrimento dos aspectos
históricos, contextuais e regionais, ao passo que o cientista da religião, mais
empírico, busca saber como algo religioso funciona, enfatizando exatamente o
dado contextuai, geográfico, histórico, linguístico e cultural. Para o cientista da
religião alemão, “Fenomenólogos são cientistas ‘não exatos’”, pois procuram os
“traços elementares” (Greschat, 2005, p. 144, 146) gerais dentro de cada
particular, enquanto os cientistas da religião exatos se atêm ao particular. A
abordagem geral ficou conhecida como ciência sistemática da religião, e a
abordagem do particular, como ciência empírica da religião (Greschat, 2005).
Ainda dentro do contexto de diferentes métodos, também se adotou o que
foi chamado de ateísmo metodológico (Berger, 1985) ou agnosticismo metodológico
(Smart, 1973), com a pretensão de alcançar neutralidade, de modo que o
conhecimento trazido pelo pesquisador seja sempre “colocado em tensão com
o saber acadêmico” (Cruz, 2013, p. 44).
45 Epistemologia do fenômeno religioso

Houve igualmente tensões com as teologias, especialmente as oficiais,


católicas e protestantes. As ciências da religião, sobretudo as da escola alemã,
definiram-se como negação à teologia, ou como filhas antecipadas dela. Dada a
lenta percepção dessa ciência, despretensiosa de hegemonia, alguns chegaram
a falar em desteologização das ciências da religião (Sharpe, 2005). Tal postura
visava à valorização da “multiplicidade metodológica” (Usarski, 2006, p. 40, 63),
procurando-se manter a estrutura aberta e dinâmica, o pluralismo de técnicas
de pesquisa e a aproximação empírica.

Modelos e passos metodológicos


1.3.2

em ciências da religião
Podemos identificar, historicamente, com base na proposta de Stern e
Costa (2017, p. 72), “quatro grandes temas metodológicos comuns à disciplina”.
São eles:

1. Métodos empíricos – Implementam abordagens mais experimentais e,


inicialmente, privilegiavam o paradigma metodológico textual, uma vez
que os textos religiosos eram vistos como fontes empíricas seguras.
Atualmente, o horizonte da pesquisa empírica é mais amplo e se dirige
“aos estudos de pessoas e os significados que elas desenvolvem
culturalmente com os elementos religiosos” (Stern; Costa, 2017, p. 75).
2. Métodos comparativos – Existem desde o início dos estudos das ciências
da religião e procuram identificar diferenças e semelhanças entre
fenômenos religiosos com base em diversas abordagens: fenomenologia
como busca da “‘essência’ das religiões” ou “comparação descritiva de
religiões” com foco nos “processos internos” (Stern; Costa, 2017, p. 76)
dos sistemas religiosos, e não em uma abordagem evolucionista ou
essencialista; história comparada das religiões; neocomparativismo,
como
46 Epistemologia do fenômeno religioso

“retorno à busca iluminista por dados humanos universais” (Stern; Costa,


2017, p. 78) despido de categorias metafísicas descontextualizadas (como
sagrado ou numen).
3. Métodos classificatórios – Permitem identificar características
compartilhadas como critério de organização em grupos (monoteístas,
politeístas), em tipos de análise (mística, ritual, oração), em distinções
básicas de modo indutivo (religiões naturais, éticas, nacionais,
universais), mantendo-se em aberto a pluralidade de referências de
acordo com os resultados da pesquisa. A tendência de classificar pode ser
verificada desde o início dos estudos das ciências da religião.
4. Atitude metodológica em face do objeto – Pressupõe um
comportamento no qual se privilegia a ideia de agnosticismo
metodológico, como postura “neutra”, mediante a análise em perspectiva
externa que garanta a postura de “cientista” de “conhecer sobre o fato da
vida religiosa” (Stern; Costa, 2017, p. 84), sem incorrer no risco de
legitimação de afirmações que não são acessíveis no método científico,
identificadas como prototeologia ou criptoteologia.

Greschat (2005), por sua vez, aponta sete passos metodológicos (que
resumimos a seguir) de como produzir conhecimento como cientista da religião:

1. Identificar problemas – Cientistas trabalham com problemas a serem


resolvidos, e problemas científicos se formulam com perguntas
relevantes para o contexto de investigação de cada ciência. Nesse caso,
deve-se pensar se as questões formuladas dizem respeito ao objeto
religião, ou seja, à interpretação das causas das manifestações do
fenômeno religioso, como atos, ideias e sentimentos religiosos. Essas
indagações devem ser respondidas com a perspectiva das ciências da
religião, ou seja,
47 Epistemologia do fenômeno religioso

deve-se cuidar para que a análise de uma religião esteja colaborando para
seu correto entendimento. Além disso, é preciso levar em conta se o
problema serve para esclarecer um evento para outrem e/ou para as
próprias lideranças e comunidades envolvidas, considerando-se os
efeitos fenomênicos que ele provoca na cultura e na sociedade. Essa tarefa
implica mapear todos os problemas de compreensão quanto forem
possíveis acerca de um fenômeno religioso específico (Greschat, 2005).
2. Escolher um problema – Após um mapeamento da gama de questões
relacionadas a um fenômeno religioso específico, deve-se refletir sobre
qual das possibilidades de investigação realmente interessa ao
pesquisador e por que ela é relevante. Escolhida a linha a ser seguida, é
preciso verificar sua viabilidade como objeto a ser investigado, ou seja,
como resolver o problema e quais as condições para isso – se há e quais
são as bibliotecas e/ou os acervos especializados disponíveis, quais são
os principais autores, que idiomas considerar e quais obras foram
traduzidas. Tudo isso exige que se calcule o prazo para a pesquisa é
suficiente para a investigação do problema escolhido ou se é necessário
mudá-lo (Greschat, 2005).
3. Coletar material – O material é responsável por alimentar a busca de
soluções para problemas científicos. Por isso, deve-se diferenciar entre a
existência do material (ou não, no caso de ser um objeto inédito) e a forma
de sua aquisição. Com relação à existência, deve-se perguntar: Em que
lugar está o material? De onde ele vem? Ele chega por via direta ou por
instâncias intermediárias? Greschat (2005) indica pelo menos três tipos de
origem: (i) o agente, aquele que é ativo na produção de elementos
constitutivos do fenômeno religioso (lideranças institucionais ou
populares, comunidades e intelectuais engajados); (ii) a testemunha, a
pessoa que experimenta o fenômeno e alimenta a crença nele; e (iii) o juiz,
o indivíduo de fora do fenômeno,
48 Epistemologia do fenômeno religioso

que, não raro, faz uso de outra referência religiosa para julgar ou
depreciar uma crença. A análise da forma de aquisição implica o
planejamento da necessidade de realizar viagens para conseguir acesso
ao material ou para realizar uma pesquisa de campo a fim de estudar
seguidores de uma religião em seu ambiente de origem, de modo a
entender a relação entre suas culturas e as respectivas tradições
(Greschat, 2005).
4. Achar uma substância aglutinante – É necessário encontrar princípios de
sistematização que estão presentes nas próprias religiões. Com isso,
tenta-se identificar a história dogmática de uma religião e relacioná-la a
outras sistematizações, quando é o caso de um objeto já estudado
(Greschat, 2005).
5. Achar a solução – A solução de um problema científico surge como
“última de várias respostas a diversas perguntas”; é mais importante
“perguntar cautelosamente” do que “responder precocemente”
(Greschat, 2005, p. 39).
6. Pôr o resultado à prova – Ao descrever determinada religião, é necessário
“confirmar se os aderentes reconhecem sua crença no texto” (Greschat,
2005, p. 41).
7. Comunicar o resultado – É preciso resolver um problema complexo e
expressá-lo em linguagem comum, compartilhando-o com uma
comunidade acadêmica que o legitima ou não (Greschat, 2005).

Em suma, os sete passos metodológicos de Greschat (2005) são uma forma


de descrever sinteticamente a tarefa de investigação de um fenômeno religioso
desde sua aproximação, passando-se pelo exame das condições de viabilidade
da pesquisa, até as tarefas de análise e proposição de resultados, buscando-se
compreender o evento. Essa investigação não se encerra no próprio pesquisa-
dor, visto que passa tanto pela aprovação do grupo que fomenta o fenômeno,
que avalia a fidelidade da observação do cientista,
49 Epistemologia do fenômeno religioso

quanto pela verificação da comunidade científica, que examina a seriedade


metodológica e a coerência investigativa.

O objeto das ciências da religião


1.3.3

e sua relação com o fenômeno religioso


O objeto das ciências da religião é descrever como o fato12 religioso
funciona. Em função desse objeto, considerando-se suas variações iras; o debate
epistemológico se divide entre a análise mais essencial e a análise mais empírica.
E preciso, ainda, considerar o desenvolvimento do conjunto das disciplinas das
ciências da religião (Psicologia da Religião, Sociologia da Religião, História da
Religião, Antropologia da Religião, entre outras), bem como o contexto nacional
do desenvolvimento do debate epistemológico que embasa as opções
metodológicas (Usarski, 2006).
A diversidade de métodos em pesquisa nos estudos de religião reflete a
complexidade que é o fenômeno religioso. Para facilitar a compreensão da ideia,
uma tradição religiosa pode ser ilustrada como um guarda-chuva (Figura 1.1):
cada aba que forma o objeto representa uma variação de uma mesma tradição,
um estilo diferente; o cabo central do objeto, por sua vez, representa o que é
comum a uma tradição religiosa. Nesse sentido, há abas que são mais próximas
umas das outras e há aquelas que são mais distantes. Por mais diferentes que
elas possam parecer, todas participam em alguma medida da mesma unidade
semântica, simbólica e pragmática.

12
A rigor, fato é a realidade, e fenômeno é como aquele se apresenta.
50 Epistemologia do fenômeno religioso

A SEMÂNTICA DO MISTÉRIO COMO BASE DO OBJETO DA S


CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Uma das formas de identificar o elemento comum em uma tradição religiosa é
o que vamos chamar de semântica do Mistério, como modo próprio de
compreensão do mistério da vida e como percepção de experiências doadoras
de sentido, que se consolidam a despeito do absurdo da vida. Dito de outra
maneira, essa semântica vai se firmando concretamente como uma tradição que
fornece sabedoria de vida e é provada de geração em geração.
A doação de sentido, no seio das religiões, é entendida como mistério por
se tratar de uma experiência imprevisível e não controlada da condição
humana. Trata-se da elaboração de uma semântica, de um sentido que se
acumula de geração em geração e visa à criação de uma sabedoria decorrente
dessa perspectiva, que
51 Epistemologia do fenômeno religioso

se consolida desde a experiência subjetiva até o compartilhamento grupai,


resultando em uma prática social comum. Tal semântica religiosa, não raro, é
marcada por uma narrativa oral ou escrita (ou simbólica) que emoldura prática
ritual – uma prática ética e um exercício de autocrítica –, que, por sua vez,
resulta em expressões internas diversas, nas ênfases ou na interpretação que se
faz da própria vivência religiosa que se confessa (Villas Boas, 2011)13.
Um olhar menos atento sobre isso pode incorrer no risco de se criar uma
perspectiva reducionista da complexidade de uma tradição religiosa. Por
exemplo, no catolicismo, há grupos mais tradicionais ou mais liberais,
carismáticos, monges e monjas, freis e freiras, entre os quais também há
subgrupos diferentes, sem contar ainda as diferenças oriundas do contexto,
como o catolicismo da América Latina, o da Europa, o da Ásia etc. Entre os
protestantes, por sua vez, há luteranos, calvinistas, metodistas, batistas, entre
outros, todos os quais se subdividem em diversos outros grupos.
Esse olhar reducionista é mais danoso quando se trata de culpabilizar
uma religião com fins políticos, como acontece com o Islã. Também a tradição
islâmica tem suas abas, as quais, em conjunto, representam a riqueza dos grupos
dessa religião. Há, por exemplo, os xiitas e suas respectivas subdivisões – zaydi,
já’fari, isma‘ii, ibadis, modernistas (Muhammad, 2017) – e os sunitas, divididos
em ortodoxos e não ortodoxos. Entre aqueles, encontram-se grupos filiados ao
sufi (os sufistas), como hanafi, shafi’i, malikis e hanbali; entre estes, que
representam apenas 10% dos sunitas, encontra-se o subgrupo dos salafi-wahhabi,
10% do qual é considerado uma vertente extremista chamada wahhabitas, além
da Irmandade Muçulmana, que representa apenas 5% dos sunitas não
ortodoxos e tem em seu seio os takfiris, os grupos muçulmanos terroristas.

13
Consulte o Capítulo 6.
52 Epistemologia do fenômeno religioso

O Islã tinha, em 2016,1,7 bilhão de adeptos, entre os quais o número de


membros extremistas seguidores do jihadismo (infinitamente menor) não
chegava nem mesmo a 0,1% – a representação precisa é de 0,008% –, e nem todos
são membros do Estado Islâmico (Muhammad, 2017). Porém, vale dizer que
todas essas expressões comungam de uma semântica própria de interpretação
do mistério da vida (a visão islâmica de mundo), que pode ser muito pacífica –
a imensa maioria dos casos – ou muito violenta, como se viu na história das
tradições monoteístas (Muhammad, 2017).

DIFERENÇA BÁSICA ENTRE CIÊNCIAS DA RELIGIÃO E TEOLOGIA


Pode-se entender como diferença básica entre essas duas áreas do conhecimento
o fato de as ciências da religião tentarem reconstruir uma semântica criada por
uma comunidade religiosa e que se organizou como tradição ao longo do
tempo, ao passo que a teologia ora atua como um exercício autocrítico inserido
dentro de uma semântica própria, ora produz essa semântica.
Entretanto, à medida que uma relação interdisciplinar se estabelece (e se
delineia) entre cientistas da religião e teólogos, gradativamente cada um deles
passa a ter a tarefa de colaborar na compreensão do fenômeno pela perspectiva
disciplinar do outro. No Brasil, apesar das tensões inevitáveis que existem em
qualquer área de conhecimento, especialmente em razão de elementos externos
ao debate acadêmico, de motivações políticas e ideológicas, a interação das duas
áreas é constitutiva do campo de estudos sobre religião e pode se configurar
como um caso tipicamente brasileiro, uma vez que tal debate, no país, assume
características e contornos precisos, que serão abordados no Capítulo 6.
53 Epistemologia do fenômeno religioso

A área de Ciências da Religião


1.4

e Teologia no Brasil: um percurso


histórico
Para Edênio Valle (Valle; Queiroz; Mendonça, 2007, p. 192), psicólogo da
religião e um dos cientistas da religião pioneiros no país, o surgimento da
tentativa de compreender uma crença que não seja a da própria pessoa no Brasil
tem início “quase que simultaneamente à chegada dos portugueses, que se
viram diante de um grupo humano, de uma cultura e de uma religião
completamente diferentes de tudo o que eles conheciam”, sendo essa, portanto,
uma fase “pré-científica” dos estudos das religiões, restrita a uma análise
confessional, colonial e não imune a preconceitos.
Além desse contexto, havia, entre os jesuítas que aqui se instalaram,
diversos elementos das ciências da religião, como descrições etnográficas,
antropológicas e etiológicas que começaram com o Padre Anchieta. Houve,
contudo, um período “pós-jesuítico” ligado aos estudos da Faculdade de
Medicina na Bahia, no final do século XIX e início do século XX, com duas
vertentes: i) uma orientação sociológica positivista de Augusto Comte; e ii) uma
orientação médico-psiquiátrica, que se esforçava para compreender de forma
mais científica a religião, embora também não fosse imune a preconceitos mais
ideológicos, e não religiosos.
Com o surgimento da Universidade de São Paulo (USP) em 1934,
iniciaram-se os estudos de sociologia da religião e de antropologia da religião,
acompanhados da chegada dos professores franceses Claude Lévi-Strauss e
Roger Bastide. Contudo, Edênio Valle (Valle; Queiroz; Mendonça, 2007) não
desconsidera os esforços e as iniciativas da teologia para compreender
cientificamente o fenômeno religioso, como ocorreu no Seminário Católico de
Olinda e Recife,
54 Epistemologia do fenômeno religioso

visto a “matriz do cientificismo no Brasil”, segundo o autor (Valle; Queiroz;


Mendonça, 2007. p. 192), além da chegada do protestantismo histórico e das
religiões evangélicas, que trouxeram o desafio de compreender distintas
confissões cristãs desde muito cedo.
Houve ainda, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
na década de 1950, a criação do Departamento de Psicologia da Religião pelo
médico italiano Enzo Azzi, dirigido pelo psicólogo holandês Theodorus van
Kolck. Na USP, por sua vez, havia o Laboratório de Estudos em Psicologia
Social da Religião, do Instituto de Psicologia dessa universidade, cujas
publicações ocorriam desde 1956. Com a dificuldade financeira que a PUC-SP,
naquela ocasião, tinha para contratar novos docentes, houve a fundação, em
1962, da Sociedade Brasileira de Psicologia da Religião, sob a direção de Kolck,
para a formação da qual se reuniram psicólogos, médicos, antropólogos e
sacerdotes católicos, como é o caso de Edênio Valle.
Ao lado da sociologia da religião e da antropologia da religião, que
chegaram a ter um Centro de Estudos da Religião (CER) no Departamento de
Sociologia da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP, a psicologia da
religião teve grande importância nos estudos científicos da área no Brasil, com
a oferta de disciplinas e cursos de graduação em Psicologia e publicação de teses
e dissertações sobre psicologia do comportamento religioso em diversas
universidades brasileiras – além das já citadas (USP e PUC-SP), ela estava
presente também na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nas
Pontifícias Universidades Católicas do Rio de Janeiro (PUC-Rio), do Rio Grande
do Sul (PUC-RS) e de Campinas (PUC-Campinas), além da Universidade de
Brasília (UnB) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), entre outras
(Paiva, 2017; Paiva et al., 2009).
55 Epistemologia do fenômeno religioso

Também não podemos nos esquecer do papel do Instituto de Estudos da


Religião (Iser)14, criado em 1970, que se ligava inicialmente ao Instituto Superior
de Estudos Teológicos (Iset) em Campinas e, depois, em 1979, passou a ser
sediado no Rio de Janeiro. O Iser se dedicou a temas relacionados à religião e à
sociedade, com diversos projetos ligados a temas de meio ambiente e
desenvolvimento, violência e direitos humanos, tendo se engajado nas lutas
pela redução das desigualdades sociais, pelo respeito às diversidades culturais
e religiosas e pela sustentabilidade socioambiental, criando, em 1977, o
periódico científico Religião & Sociedade (2019).
Por sua vez, o surgimento de um estudo de nível superior que se
dedicasse aos estudos de religião no Brasil foi possibilitado com a criação, em
1970, de um curso de Ciências da Religião (nomenclatura original) na
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o qual foi antecedido pela
instauração de um Colegiado de Ciências das Religiões, encampado pelo
Departamento de Filosofia da mesma universidade um ano antes. Mais tarde,
em 1971, foi criado, também na UFJF, o Departamento de Ciências das Religiões,
que foi pioneiro no Brasil e na América Latina, visto que que os demais cursos
dessa área apareceriam mais de uma década depois (Pieper, 2017; Teixeira,
2012).
Em 2019, há 16 ofertas de cursos de Ciências da Religião no Brasil, das 26
que já existiram, e 3 propostas para a abertura de novos cursos estão em
elaboração. A maior parte dos existentes atualmente abriu após o ano 2000.0
crescimento da oferta pode ter sido motivado pela Lei n. 9.475, de 22 de julho
de 1997 (Brasil, 1997), que deu nova redação ao art. 33 da Lei n. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996 (Brasil, 1996) – Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional
–, que apresentou um outro paradigma do ensino religioso, o qual passou a ser
visto como parte integrante da proposta

14
Consulte o site do Instituto. Disponível em: <http://www.iser.org.br/site/>. Acesso em: 9 ago. 2019.
56 Epistemologia do fenômeno religioso

de formação do cidadão. Teve papel também a Resolução CNE/CEB 15 n. 2, de


7 de abril de 1998 (Brasil, 1988), que define o ensino religioso como área de
conhecimento de caráter não confessional.
A segunda década do século XXI é marcada pela Resolução CNE/CEB n.
4, de 13 de julho de 2010 (Brasil, 2010a), e pela Resolução CNE/CEB n. 7, de 14
de dezembro de 2010 (Brasil, 2010b), que asseguram o ensino religioso como
uma das cinco áreas de conhecimento necessárias para o ensino fundamental.
Contudo, também nesse período, ao menos 9 cursos foram desativados (Quadro
1.1), o que revela o desafio de despertar para o interesse e a importância dos
estudos das ciências da religião no Brasil.

QUADRO 1.1 – Curso de graduação em Ciências da Religião no Brasil


Número Instituição de educação superior Unidade da Situação Início
Federação
(UF)
1 Universidade Federal de Juiz de Fora Minas Gerais Ativa16 1970
(UFJF) /
2012
2 Universidade Regional de Blumenau Santa Ativa 1997
(Furb) Catarina
3 Universidade Estadual do Pará Pará Ativa 2001
(Uepa)
4 Universidade do Estado do Rio Rio Grande Ativa 2002
Grande do Norte (UERN) do Norte
5 Instituto de Estudos Superiores do Maranhão Ativa 2003
Maranhão (lesma)

(continua)

15
Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica.
16
Único curso de graduação no Brasil a adotar a nomenclatura Ciência da Religião. No portal eletrônico do
Ministério da Educação - MEC (Brasil, 2019a), consta como data de início o ano de 2012. Porém, esse é o ano da
terceira proposta pedagógica, uma vez que a primeira, iniciada em 1970 e concluída em 1971, originalmente
apresentava a denominação Ciências das Religiões e serviu de base para um projeto de licenciatura que não se
concretizou. Em 1975, foi implementado o curso de Ciência das Religiões, demonstrando-se a preocupação em
tratar de uma espécie de “noção geral” de religião; contudo, esse curso foi fechado em 1977. Por fim, a terceira
proposta foi uma reformulação feita em 1980, que alterava o nome do curso para Ciência da Religião, o qual
evoluiu em 2011 para o projeto que deu início à graduação vigente até hoje (Pieper, 2018).
57 Epistemologia do fenômeno religioso

(Quadro 1.1 – continuação)


6 Centro Universitário Claretiano – São Paulo Ativa 2006
modalidade EaD17
7 Instituto Esperança de Ensino Superior Pará Ativa 2006
(lespes)
8 Universidade Estadual de Montes Claros Minas Gerais Ativa 2007
(Unimontes) – modalidades presencial e EaD
9 Universidade Comunitária da Região de Santa Catarina Ativa 2008
Chapecó (Unochapecó)
10 Centro Universitário Municipal de São José Santa Catarina Ativa 2008
(USJ)
11 Universidade Federal da Paraíba (UFPB)18 Paraíba Ativa 2009
12 Universidade Federal de Sergipe (UFS) Sergipe Ativa 2011
13 Universidade do Estado do Amazonas (UEA)19 Amazonas Ativa 2015
14 Universidade Católica de Pernambuco Pernambuco Ativa 2016
(Unicap) – modalidade EaD
15 Universidade Estadual de Londrina (UEL) – Paraná Ativa20 2016
modalidade EaD
16 Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – Rio Grande Ativa 2017
modalidade EaD do Sul
17 Centro Universitário Internacional (Uninter) – Paraná Ativa 2018
modalidade EaD
Novas propostas
1 Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Espírito Santo Em
proposição
2 Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Minas Gerais Em
proposição
3 Estado do Amapá Amapá Em
proposição

17
Ensino a distância.
18
Único curso no Brasil a adotar a nomenclatura Ciências das Religiões.
19
Proposta de curso como Ciência da Religião.
20
A UEL oferece apenas um programa de formação de segunda licenciatura em Ciências da Religião, ligado ao
Plano Nacional de Formação Professores (Parfor) de educação básica (UEL, 2019). Em 2017, houve a abertura da
segunda turma de licenciatura (Riske-Koch, Oliveira; Pozzer, 2017).
58 Epistemologia do fenômeno religioso

(Quadro 1.1 – conclusão)


Cursos em extinção ou inativos
1 Universidade Estadual do Maranhão (Uema) – Maranhão Inativo 2006
modalidade EaD
2 Universidade do Oeste de Santa Catarina Santa Catarina Inativo 2009
(Unoesc)
3 Faculdade São Bento (FSB) Rio de Janeiro Em 2011
extinção
4 Universidade do Sul de Santa Catarina Santa Catarina Inativo -
(Unisul)21
5 Universidade da Região de Joinville (Univille) Santa Catarina Inativo -
6 Universidade do Contestado (UNC) – Santa Catarina -22 -
modalidade EaD
7 Centro Universitário Leonardo da Vinci Santa Catarina - -
(Uniasselvi) – modalidade EaD23
8 Centro Universitário Ingá – modalidade EaD24 Paraná - -
9 Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Tocantins - -
Paraíso (Fecipar)

Fonte: Elaborado com base em Brasil, 2019b; Riske-Koch; Oliveira; Pozzer, 2017.

Por sua vez, os programas de pós-graduação em Ciências da Religião no


Brasil tiveram início em 1978 com a criação do Programa de Ciências da Religião
da PUC-SP – como foi chamado originalmente, de acordo com Edênio Valle
(Valle; Queiroz; Mendonça, 2007, p. 201), perfazendo 40 anos de existência,
depois dos quais passou a se chamar Ciência da Religião, adotando a postura
teórica alemã (Religionswissenschaft) – e, em seguida, com a criação, em 1979, do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo (Umesp), em São Bernardo do Campo, na ocasião
conhecida como Instituto Metodista de Ensino Superior, segundo Antonio
Gouvêa Mendonça (Valle; Queiroz; Mendonça, 2007).

21
Único curso sobre o qual não há informações disponíveis.
22
Tal como consta na página eletrônica do MEC (e-MEC), assim indicamos o(s) curso(s) “não iniciado(s)” (Brasil,
2019b).
23
Proposta de curso como Ciência da Religião.
24
Proposta de curso como Ciência da Religião.
59 Epistemologia do fenômeno religioso

Naquela ocasião, os programas de pós-graduação em Ciências da


Religião eram alocados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes) na subárea de Teologia, que, por sua vez, era parte da
área de conhecimento de Filosofia. Entretanto, com a consolidação e o
crescimento da área, em razão tanto do número de programas e da produção
científica de docentes e discentes quanto da quantidade e da qualidade de teses
e dissertações defendidas, começou-se a acenar para a possibilidade crescente
de autonomia do setor.
Tal processo avançou até a criação da área autônoma de Ciências da
Religião e Teologia, que teve início por meio da publicação pela Capes da
Portaria n. 174, de 11 de outubro de 2016 (Brasil, 2016a), no Diário Oficial da
União (DOU) de 13 de outubro de 2016, quando foi desmembrada de sua
condição de subcomissão da área de Filosofia (Filosofia/Teologia).
Apesar de sua recente autonomia, o primeiro programa da área foi o
Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio, criado em 1972. Por isso,
a produção de conhecimento no campo de estudos de religião no Brasil já tem
quase meio século de história, razão pela qual se pode dizer que esse campo é
tão antigo quanto o de estudos filosóficos, que surgiu com o primeiro Programa
de Pós-Graduação em Filosofia, em 1970 (Brasil, 2013). Vale ressaltar que, até o
ano 2000, havia 9 programas de Ciências da Religião e Teologia. No entanto, em
quase duas décadas, esse número cresceu em mais de 100%. No começo de 2019,
já existiam 21 programas de pós-graduação da área, sendo 12 de Ciências da
Religião (52,3%) e 9, de Teologia (47,6%).
Os Quadros 1.2 e 1.3 apresentam, de forma sucinta, os programas de pós-
graduação das áreas de Teologia e de Ciências da Religião no Brasil.
60 Epistemologia do fenômeno religioso

QUADRO 1.2 – Programas de pós-graduação em Teologia no Brasil


Instituição Unidade da Nomenclatura Ano Área(s) de
Federação de concentração
(UF) início
Pontifícia Rio de Janeiro Teologia 1972 1. Teologia bíblica;
Universidade Católica 2. Teologia sistemático-
do Rio de Janeiro Pastoral.
(PUC-Rio)
Faculdades EST Rio Grande Teologia 1983 1. Teologia prática;
do Sul 2. História das teologias
e religiões;
3. Tradições e escrituras
sagradas;
4. Teologia fundamental
-sistemática.
Faculdade Jesuíta de Minas Gerais Teologia 1986 1. Teologia da práxis
filosofia e Teologia cristã;
(Faje) 2. Teologia sistemática.
Pontifícia Rio Grande do Teologia 1993 1. Teologia Sistemática
Universidade Católica Sul
do Rio Grande do
Sul (PUC-RS)
Pontifícia São Paulo Teologia 2000 1. Teologia cristã
Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP)
Pontifícia Paraná Teologia 2009 1. Exegese e teologia
Universidade Católica bíblica;
do Paraná (PUC-PR) 2. Teologia sistemático-
pastoral;
3. Teologia ético-social.
Faculdades EST – Rio Grande do Teologia 2012 1. Teologia fundamental
mestrado profissional Sul -sistemática;
2. Teologia prática.
Faculdades Batista do Paraná Teologia 2013 1. Teologia pastoral;
Paraná (Fabapar) – 2. Teologia prática.
mestrado profissional
Universidade Pernambuco Teologia 2015 1. Teologia sistemático
Católica de -pastoral.
Pernambuco (Unicap)

Fonte: Elaborado com base em Brasil, 2016b.


61 Epistemologia do fenômeno religioso

QUADRO 1.3 – Programas de pós-graduação em Ciências da Religião no Brasil


Instituição Unidade da Nomenclatura Ano Área(s) de
Federação de concentração
(UF) início
Pontifícia São Paulo Ciência da 1978 1. Estudo sistemático
Universidade Católica Religião da religião;
de São Paulo (PUC-SP) (originalmente 2. Estudos empíricos
Ciências da da religião.
Religião)
Universidade São Paulo Ciências da 1979 1. Linguagens da
Metodista de São Religião religião;
Paulo (Umesp) 2. Religião, sociedade e
Cultura;
Universidade Minas Gerais Ciências da 1993 1. Filosofia da
Federal de Juiz Religião religião;
de Fora (UFJF) 2. Religião, sociedade e
Cultura;
3. Tradições religiosas e
Perspectivas de diálogo.
Pontifícia Goiás Ciências da 1999 1. Religião, cultura e
Universidade Católica Religião Sociedade.
de Goiás (PUC-Goiás)
Universidade São Paulo Ciências da 2002 1. Ciências sociais,
Presbiteriana Religião religião e sociedade.
Mackenzie
Universidade Pernambuco Ciências da 2009 1. Religião, cultura e
Católica de Religião Sociedade.
Pernambuco (Unicap)
Universidade Paraíba Ciências da 2006 1. Ciências sociais das
Federal da Paraíba Religião religiões, educação e
(UFPB) saúde;
2. Perspectivas histórico
-filosóficas e literárias
das religiões.
Pontifícia Minas Gerais Ciências da 2008 1. Religião e cultura.
Universidade Católica Religião
de Minas Gerais
(PUC-Minas)
Universidade Pará Ciências da 2011 1. Religião, cultura e
Estadual do Pará Religião Sociedade.
(Uepa)
(continua)
62 Epistemologia do fenômeno religioso

(Quadro 1.3 – conclusão)


Instituição Unidade da Nomenclatura Ano Áreas de
Federação de concentração
(UF) início
Faculdade Unida de Espírito Santo Ciências das 2011 1. Religião e
Vitória (FUV) Religiões sociedade.

Universidade Fede- Sergipe Ciências da 2014 1. Práticas e


ral de Sergipe (UFS) Religião fundamentos da
Religião.
Pontifícia São Paulo Ciências da 2014 1. Fenômeno
Universidade Católica Religião religioso.
de Campinas
(PUC-Campinas)

Fonte: Elaborado com base em Brasil, 2016b.

A área, até o ano de 2016, contava com 307 docentes pesquisadores que
atuavam nesses programas. Entre os professores permanentes, 59% (145
docentes) são formados em Teologia e 41% (99 docentes) em outras áreas, a
saber: 22 em Filosofia, 20 em História, 10 em Antropologia, 10 em Educação, 18
em Sociologia, 5 em Psicologia, 4 em Letras e, para cada uma das áreas de
Comunicação, Direito, Geografia e Interdisciplinar, 1 (Brasil, 2017, p. 5-7).
Essa pluralidade de formações permite que as pesquisas, sobretudo nos
programas de Ciências da Religião, se desenvolvam com um perfil
multidisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar. Ao mesmo tempo, revela
que as pesquisas ligadas às ciências da religião no Brasil têm uma forte
influência de cursos das ciências sociais (História, Antropologia e Sociologia –
48 docentes), seguidos da Filosofia da Religião (22 docentes); isoladamente, é a
subdisciplina mais presente nos programas.
Ainda que de forma assimétrica, a área de Ciências da Religião e Teologia
também está presente em todas as regiões do país: Região Nordeste – 4
programas (19%); Região Norte – 1 programa (5%); Região Centro-Oeste – 1
programa (5%); Região Sudeste – 10 programas (47%); e Região Sul – 5
programas (24%).
63 Epistemologia do fenômeno religioso

Dessa forma, podemos observar que, mais ao norte do país (Regiões


Centro-Oeste, Norte e Nordeste), existe apenas um programa de pós-graduação
em Teologia, razão pela qual todos os demais são ligados às Ciências da
Religião. No entanto, na Região Sul, não há programas de Ciências da Religião,
razão pela qual todos eles são de Teologia.
A área de Ciências da Religião e Teologia se subdivide, atualmente, em 8
subáreas, que refletem, de acordo com pesquisa realizada pelo setor, o
desenvolvimento da interdisciplinaridade, como mostra o Quadro 1.4.
64 Epistemologia do fenômeno religioso

QUADRO 1.4 – Subáreas de conhecimento de Ciências da Religião e Teologia


Subáreas Temas correlatos
Ciência da religião Religião, religiões, espiritualidades, tradições de sabedoria,
aplicada ateísmo, agnosticismo, não crentes, não religiosos, não afiliados,
sem religião e espaço público, política, ética, saúde, ecologia,
culturas; temas associados à diversidade, respeito e tolerância;
diálogo inter-religioso; educação e religião.
Ciências da linguagem Métodos e fontes para o estudo da(s) religião(ões),
religiosa espiritualidades, tradições de sabedoria e de suas línguas naturais,
de seu vocabulário e gramática; relações entre linguagem
religiosa, linguagem artístico-literária e linguagem em geral.
Ciências empíricas Fenômenos religiosos, espiritualidades, tradições de sabedoria,
da religião ateísmo, agnosticismo, não afiliação religiosa, sem religião no
"campo"; disciplinas "... da religião", em diálogo com teorias e
métodos de outras ciências constituídas: Sociologia...,
Antropologia..., Psicologia..., História..., Geografia...,
Fenomenologia... (em sentido descritivo).
Epistemologia das Reflexão teórico-metodológica ou metateórica; abordagens
ciências da religião filosóficas sobre o conceito/definição de religião ou sua negação;
psicologia da religião e fenomenologia da religião (em sentido
sistemático).
História das teologias Estudo histórico de ideias e doutrinas religiosas, espiritualidades,
e religiões tradições de sabedoria (história intelectual), de sua(s)
expressão(ões) ou arraiga mento sociocultural.
Teologia Fundamentação da teologia e seu desenvolvimento coerente
fundamental- (sistemático); exposição do dogma (aspecto querigmático); defesa
sistemática ou clarificação atualizada das doutrinas religiosas,
espiritualidades, tradições de sabedoria específicas à tradição
(aspecto apologético); teologia política, teologia filosófica; filosofia
da religião.
Teologia prática Psicologia pastoral; teologia e espaço público; homilética;
capelania e educação na respectiva tradição.
Tradições e Escrituras sagradas e relatos da tradição oral das diversas tradições
escrituras sagradas religiosas, espiritualidades, tradições de sabedoria.
Fonte: Brasil, 2016b, p. 12.

Algumas noções gerais sobre epistemologia foram até aqui abordadas


para facilitar a compreensão de como se aplica a teoria do conhecimento aos
estudos de religião. Dada a complexidade dos fenômenos investigados, emerge
uma consciência maior do papel
65 Epistemologia do fenômeno religioso

da comunidade científica que valida a produção de conhecimento. Isso


demanda do leitor a compreensão dos debates atuais sobre epistemologia
aplicada aos estudos de religião no Brasil, como destacamos anteriormente,
organizados na área de Ciências da Religião e Teologia. Para isso, procuramos
apresentar algumas informações gerais básicas a respeito da área, todas
concernentes ao país, contexto em razão do qual o estudante do setor deve,
desde então, envolver-se em congressos e associações, bem como acessar os
materiais produzidos pelas comunidades acadêmicas brasileiras de cientistas
da religião, teólogos e teólogas.

SÍNTESE
Neste capítulo, vimos que a epistemologia (ou teoria do conhecimento) diz
respeito às condições necessárias para se considerar científico um determinado
conhecimento. Nesse contexto, consideradas as características metodológicas
peculiares que se observam no Brasil, entre as distintas nomenclaturas e
possibilidades de métodos e de perspectivas para a concepção do campo de
estudos religiosos, a mais comum delas é ciências da religião.
Destacamos o debate epistemológico que há na formação das
características das ciências da religião, por meio do qual emergem abordagens
mais essencialistas ou universais e mais históricas ou regionais.
Sobre o lugar dos estudos dos fenômenos religiosos, analisamos o conflito
que essa área tem com a teologia, a qual se revelou crítica à pretensão de
hegemonia das religiões oficiais e, ao mesmo tempo, um sintoma de falência, no
momento em que surgiram as ciências da religião.
Por fim, apresentamos a categorização do fenômeno religioso, que se
desenvolve conforme o desdobramento das subdisciplinas das Ciências da
Religião.
66 Epistemologia do fenômeno religioso

INDICAÇÕES CULTURAIS
BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior. Diretoria de Avaliação. Documento de área: teologia.
Brasília, 2016. Disponível em: <https://capes.gov.br/images/
documentos/Documentos_de_area_2017/44_TEOL_docarea_2016.pdf>.
Acesso em: 12 ago. 2019.
O documento de área cuja leitura aqui recomendamos é instrumento
normativo para regular o funcionamento da produção de conhecimento
na área de Ciências da Religião e Teologia nos programas de pós-
graduação da área no Brasil. Nele constam informações sobre o estágio
atual da área, a regulamentação da avaliação dos programas de pós-
graduação realizada pelo governo federal, além de outras questões
pertinentes à comunidade acadêmica brasileira de cientistas da religião e
de teologia e a pesquisas referentes aos estudos de religião.

RELIGARE: Conhecimento e Religião. Belo Horizonte: TV Horizonte, 2011 –


Programa de televisão. Disponível em: <https://www.youtube.com/user/
flavioaugustosenra/featured>. Acesso em: 12 ago. 2019.
Trata-se de um programa de entrevistas que funciona como projeto de
extensão do Mestrado em Ciências da Religião da PUC-Minas. E editado
e coordenado pelo Professor Flávio Senra. Desde 2011, as entrevistas do
programa Religare podem ser acessadas no canal que Senra mantém no
YouTube. Entre as entrevistas já apresentadas, destacamos as seguintes:

Sobre a epistemologia das ciências da religião:


CAMPOS, F. V. de O. Flávio Senra entrevista Fabiano Victor de Oliveira
Campos. Religare: Conhecimento e Religião, 15 maio 2017. Disponível
em: <https://youtu.be/VTHNEOMOz7w?t=l>. Acesso em: 12 ago. 2019.
67 Epistemologia do fenômeno religioso

Sobre a questão de Deus na filosofia da religião:


PORTUGAL, A. C. Flávio Senra entrevista Agnaldo Cuoco Portugal.
Religare: Conhecimento e Religião, 24 set. 2018. Disponível em:
<https://www. youtube.com/watch?v=wzW7qTeKXRY>. Acesso em:
12 ago. 2019.

Sobre pesquisa em ciências da religião:


SILVA, W. T. da. Flávio Senra entrevista Wellington Teodoro da Silva.
Religare: conhecimento e religião, 10 fev. 2014. Bloco 1. Disponível em:
https:// www.youtube.com/watch?v=wzW7qTeKXRY>. Acesso em: 12
ago. 2019.
________. Religare: Conhecimento e Religião, 10 fev. 2014. Bloco 2.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wzW7qTeKXRY>.
Acesso em: 12 ago. 2019.

Sobre o estudo comparado das religiões:


ALMEIDA, I. A. de. Flávio Senra entrevista Ivan Antônio de Almeida.
Religare: Conhecimento e Religião, 24 jun. 2009. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=wzW7qTeKXRY>. Acesso em: 12 ago.
2019.

Sobre religiosidade, fé e religião:


PANASIEWICZ, R. Flávio Senra entrevista Roberlei Panasiewicz.
Religare: Conhecimento e Religião, 28 abr. 2014. Bloco 1. Disponível em:
https:// www.youtube.com/watch?v=wzW7qTeKXRY>. Acesso em: 12
ago. 2019.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. Analise as seguintes afirmações sobre o conceito de epistemologia e o contexto
de estudos da área.
I. Epistemologia é o nome dado às teorias do conhecimento com base em
critérios do que seria a produção deste em determinada comunidade
científica para maior compreensão da realidade, diferentemente da mera
opinião.
II. Epistemologia é a teoria da verdade que estabelece os critérios de um
conhecimento verdadeiro, e, portanto, inquestionável.
68 Epistemologia do fenômeno religioso

III. O debate epistemológico visa estabelecer um único modelo do que é o


conhecimento, que é universal, uma vez que serve para todos os tempos
e contextos.
IV. O debate epistemológico visa estabelecer o rigor necessário para se
identificar o que é o conhecimento como compreensão do funcionamento
de aspectos da realidade. Por conta da complexidade desta, trabalha-se
com vários modelos epistemológicos, sendo essa uma tarefa inesgotável.
V. O fenômeno é o modo como se manifesta um fato, e o conhecimento visa
à compreensão dessa manifestação.
São verdadeiras as seguintes afirmações:
A] I, III e V.
B] I, II, IV e V.
C] I, IV e V.
D] II, III, IV e V.
E] I, II, III, IV e V.

2. Analise as afirmações a seguir sobre a epistemologia do fenômeno religioso.


I. Sendo uma área tradicionalmente vinculada à teologia, desde o século
XIX, começou a formar-se no Brasil o que hoje chamamos de ciências da
religião.
II. Teve início com Max Müller no século XIX.
III. Diz respeito às diversas formas de abordagem de investigação para a
compreensão mais objetiva dos fatos religiosos.
IV. A ciência da religião, quando surgiu no século XIX, visava investigar o
fenômeno religioso com base em um modelo empírico, contestando o
modelo metafísico da época.
V. Os debates epistemológicos e científicos de outras áreas de conhecimento
influenciam o debate epistemológico da teologia e das ciências da religião
porque todo conhecimento científico visa esclarecer um aspecto da
mesma realidade.
69 Epistemologia do fenômeno religioso

São verdadeiras as seguintes afirmações:


A] I, III, IV e V.
B] I, II, III e IV.
C] II, III e V.
D] III, IV e V.
E] I, II, III, IV e V.

3. Qual é a relação existente entre método e epistemologia?


A] Não existe relação direta entre ambos, uma vez que o debate
epistemológico não pode deixar-se contaminar pelo debate
metodológico. O encontro de ambos compromete a construção do objeto
a ser estudado.
B] Há uma relação indireta, já que um pode influenciar o outro em
determinados contextos. Esse encontro ocorre apenas quando se
estabelece um debate acadêmico filosófico.
C] Independentemente do modelo epistemológico adotado pelo
pesquisador, o método empregado deve ser sempre o mesmo.
D] O método é que determina o debate epistemológico, uma vez que ambos
representam o continuum necessário para a descoberta metafísica de um
objeto não científico.
E] São como duas faces da mesma moeda: a epistemologia estabelece o
debate teórico sobre as condições de possibilidade do que pode ser
considerado conhecimento científico, e o método, por sua vez, estabelece
o caminho prático pelo qual se possibilita a produção de conhecimento.

4. Qual é a nomenclatura adotada no Brasil para os cursos que desenvolvem


estudo sobre religião (na área enfocada no capítulo), reconhecidos pela
Capes:
A] Ciências da Religião e Teologia.
B] Ciência da Religião e Teologia.
C] Ciências das Religiões e Teologia.
D] Ciências da Religião, Ciência da Religião, Ciências das Religiões e
Teologia.
E] Estudos de Religião.
70 Epistemologia do fenômeno religioso

5. A epistemologia do fenômeno religioso visa:


A] oferecer condições para uma certa objetividade discricional e crítica do
fenômeno religioso.
B] mostrar que todas as religiões são verdadeiras.
C] estabelecer qual a religião é verdadeira.
D] superar a visão teológica, ao afirmar as ciências da religião como
conhecimento científico.
E] melhorar o trabalho de evangelização das igrejas.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão


1. Considerando-se que os estudos de religião visam ser um conhecimento
científico (com finalidade pública, portanto), qual seria a contribuição deles
para a sociedade? Em que sentido um conhecimento mais objetivo do
fenômeno ajuda a sociedade a compreender as dinâmicas das religiões?
Compare com outra área de conhecimento a pertinência do conteúdo
produzido. Considere a importância de pensar os aspectos psicológicos,
ideológicos, sociais, políticos e históricos, entre outros, que compõem o
fenômeno religioso contemporâneo.
2. Ao analisar o fenômeno religioso, é possível classificar a religião como algo
positivo sempre ou como um fenômeno ambíguo? Procure fazer uma análise
crítica, distanciando-se de uma apologética ou de uma crítica negativa a
priori, para tentar identificar em quais eventos a religião colabora com
processos que promovem uma melhoria nas formas de vida e em quais
eventos ela presta um desserviço.
71 Epistemologia do fenômeno religioso

Atividades aplicadas: práticas


1. Faça um exercício de imaginação escolhendo uma religião diferente da sua
(caso tenha uma) e aplique a ela os passos metodológicos de Greschat
(conforme a Seção 1.3).
2. Caso tenha uma religião, realize o mesmo exercício com a sua confissão
religiosa. Do contrário, escolha outra religião para fazê-lo, diferentemente da
escolhida na atividade anterior.
3. Com base nos passos metodológicos aplicados nas duas atividades
anteriores, responda:
A] O que há em comum entre as religiões analisadas?
B] O que as diferencia?
C] Como ambas são vistas pela sociedade?
D] Há grupos dentro dessas religiões que pensam de maneira diferente entre
si?
2
HISTÓRIA DAS RELIGIÕES
E ANTROPOLOGIA
DA RELIGIÃO

Neste capítulo, vamos focalizar o desenvolvimento das ciências da religião com


base em duas de suas subdivisões: a história das religiões e a antropologia da
religião, que se formaram como desdobramento dos estudos filológicos de
textos sagrados de outras religiões.
O avanço da filologia (nos séculos XVIII e XIX) no campo das religiões
por parte de indólogos, sinólogos, islamólogos1, entre outros, permitiu o
conhecimento de diversas religiões do Mundo Antigo, como hinduísmo,
budismo, taoísmo, confucionismo e zoroastrismo, entre outras, incluindo o
islamismo.
A obra mais famosa oriunda da ciência nascente na ocasião foi a de
Friedrich Max Müller (1823-1900) – considerado o pai da ciência da religião –,
composta com a colaboração do escocês James Legge (1815-1897). Ambos
organizaram a coleção Livros Sagrados do Oriente (Sacred Books of the East),
de 50 volumes. Müller migrou dos estudos de línguas clássicas ocidentais
(grego e latim) para o estudo do sânscrito, num contexto em que “quem se
ocupava de línguas buscava origens” (Greschat, 2005, p. 51). Concomitante ao
interesse pelas línguas, portanto, era a curiosidade pelo desenvolvimento
histórico e social delas, bem como de seus universos

1
Respectivamente, especialistas em estudos referentes à Índia, à China e ao Islã.
73 História das religiões e antropologia da religião

simbólicos, o que levou Müller e outros a desenvolver estudos de mitologia


comparada. Nesse sentido, os textos sagrados ou as tradições sagradas
transmitidas oralmente se tornaram o objeto primeiro para o desenvolvimento
das ciências da religião como ciências empíricas posteriores, desdobradas em
história das religiões e antropologia das religiões. É delas que vamos tratar nos
tópicos seguintes.

2.1 História das religiões


Sempre houve pessoas interessadas em produzir saber sobre religiões na
história da humanidade desde a Antiguidade. É o caso, por exemplo, do
historiador grego Heródoto (484 a.C.-425 a.C.), que se interessava pelo Egito,
pela Babilônia e pela Pérsia, em razão da invasão da Grécia por esses povos, e
atentava para o pathos de determinada cidade, ou seja, para os problemas que
afligiam determinado povo, fazendo de sua pesquisa também um problema
filosófico, ou seja, que poderia oferecer conhecimento sobre a dor daquele povo.
Assim, o saber sobre as religiões era não mera curiosidade, mas uma tarefa
epistemológica de produzir conhecimento para um problema específico: no
caso, a questão da invasão persa e da perda de autonomia grega (Villas Boas,
2016). Encontram-se nessa lista personagens menos conhecidos – porém não
menos importantes –, como Megástenes (350 a.C. -290 a.C.), diplomata do
império selêucida enviado à índia; autores da época da China Imperial, como
Fa-Hien (337-422) e Hieun-Tsiang (603-664); muçulmanos nos séculos IX a XI,
como Tabari (838-923), Mas’udi (?-956), Al Birumi (973-1050) e Ibn Hazm (994-
1064); e, como observa Frank Usarski (Usarski; Tworuschka, 2014), o historiador
persa Sharastani (1086-1153), que escreveu a obra sistemática mais completa de
todas as religiões conhecidas em seu tempo.
74 História das religiões e antropologia da religião

Contudo, o interesse mais investigativo sobre o assunto surgiria com as


já mencionadas navegações ultramarinas de diversos países europeus, como
Portugal, Espanha, Inglaterra, Holanda, Alemanha e França, que foram
acompanhadas pela necessidade de conhecer as culturas – originalmente
religiosas – dos lugares colonizados. O próprio Max Müller teve suas pesquisas
custeadas pela Companhia Britânica das índias Orientais e pelos governos da
França e, na ocasião, da Prússia. Seu público-alvo era composto
majoritariamente de ingleses interessados em atuar na índia, que foi tomada
pela Europa quando era entendida como uma espécie de fase infantil da
civilização, motivo pelo qual a ideia de superioridade europeia estabelecia o
dever de colonizá-la (Wirth, 2013).
Apesar do contexto de colonização, as pesquisas das antigas religiões
nesse período se desenvolveram principalmente pela filologia, com a tarefa de
traduzir textos sagrados dessas crenças. Surgia com isso também a necessidade
de contextualizar tais traduções, o que implicava uma reconstrução histórica do
ethos2 de produção dos textos analisados, seu habitat original, o que levou
alguns autores a se distanciarem da visão de história da Igreja ou, ainda, de
história da salvação3, a fim de que pudessem elaborar uma historiografia própria
das religiões investigadas (Greschat, 2005).
Nomes como Jean Bodin (1530-1596), Edward Herbert de Cherbury (1583-
1648), Bernard le Bovier de Fontenelle (1657-1757), Giambattista Vico (1668-
1744), Voltaire (1694-1778), Charles de

_____________________
2 Consciência coletiva em relação aos costumes e ao comportamento característico de um grupo.
3 A história da Igreja (ou história eclesiástica) desse período se distinguia da historiografia laica a fim de
considerar como os desígnios divinos teriam sido historicizados, ou seja, como Deus se fez presente na história
da Igreja cristã. Nesse sentido, era uma continuação da história da salvação, que considerava o modo pelo qual
os desígnios salvíficos de Deus teriam se manifestado na história, tradicionalmente abordados pela perspectiva
judaico-cristã (eram considerados histórico-salvíficos dois principais eventos: a Criação e a vinda do Messias).
Atualmente, há leituras mais plurais dessa perspectiva, considerando-se sinais de salvação como atos que
anteciparam o Reino de Deus ou que instauram a justiça, a paz e tudo aquilo que humaniza o ser humano.
75 História das religiões e antropologia da religião

Brosses (1709-1777), bem como autores do Círculo de Göttingen4, como Johann


Gottfried Immanuel Berger (1773-1803), Karl Friedrich Stäudlin (1761-1826) e
Christian Wilhelm Flügge (1773-1827), construíram um conhecimento histórico
das religiões sem juízo de valores, pois releram criticamente a trajetória do
cristianismo, abandonando a narrativa da salvação como a cosmovisão cristã da
história e único referencial de leitura do mundo.
Em vários momentos, nos escritos desses autores surge a expressão
história das religiões como conhecimento obtido por uma historiografia científica
e documental. A própria institucionalização da disciplina na Suíça, em 1873, na
Universidade de Genebra, foi consagrada com a cátedra de História Geral da
Religião. Também em 1879, na França, foi inaugurada o primeiro ensino de
História das Religiões. Em Roma, isso ocorreu em 1884.
Cornelius Petrus Tiele (1830-1902), primeiro professor da cátedra de
Ciência da Religião na Universidade de Leiden, um dos pioneiros da disciplina,
lançaria sua primeira obra, intitulada Outlines of the History of Religion: to the
Spread of the Universal Religions, em 1877. O próprio Max Müller empregaria
o termo história das religiões (1867) para delinear a nova disciplina (Torres-
Londoño, 2013).
Desde cedo, as ciências da religião se desenvolveram sobre duas bases:
de um lado, a história da religião, que se dedicava a crenças singulares, e, de
outro, o que se chamou de história comparada da religião, também conhecida como
fenomenologia da religião ou, ainda, como consideram alguns estudiosos, ciência
sistemática da religião (Greschat, 2005).
Em um primeiro momento, o método mais utilizado foi o dá história
comparada das religiões, mais ligado à tradição filológica e à mitologia
comparada. Em seguida, houve a influência da

_____________________
4 É como ficou conhecido o grupo de professores da Universidade de Gottingen responsáveis pela criação da
fenomenologia, especialmente Adolf Reinach (1883-1917) e Edmund Husserl (1859-1938).
76 História das religiões e antropologia da religião

fenomenologia da religião, especialmente no trabalho de Mirceia Eliade, com o


Tratado de história das religiões, que visava identificar a “essência” de religiões
distintas entre povos, sobretudo da Austrália, da Polinésia, da Melanésia e da
África. Contudo, a abordagem fenomenológica em busca do sagrado foi
severamente criticada por soar como criptocristianismo, ou seja, a análise de
outras religiões com categorias oriundas ou muito próximas do referencial
cristão (Eliade, 1997).
Ao longo do século XX, houve uma crescente produção em história das
religiões de diversas escolas que se distanciariam do método fenomenológico.
Vamos, por isso, abordar algumas das correntes mais renomadas
internacionalmente, que influenciaram de forma acentuada o contexto das
ciências da religião no Brasil.

2.1.1 História da religião5 na França


A França desenvolveu grandes escolas de história das religiões, que podem ser
classificadas em três grandes vertentes: i) história eclesiástica; ii) história do
cristianismo; e iii) história nova (ou história das religiões). Vejamos, a seguir, a
descrição de cada uma delas.

HISTÓRIA ECLESIÁSTICA
Essa tendência, a mais antiga das três aqui citadas, é ligada a uma historiografia
apologética produzida sobretudo por clérigos. Segue o estilo de Eusébio de
Cesareia, ou seja, adota uma leitura de providencialismo histórico6, que ganhou
força sobretudo com o romantismo literário de François-René Chateaubriand
(1768-1848),

_____________________
5 Antes de surgir a "história das religiões", havia a "história da religião" (termo no singular), na França. Foi depois
da história nova, também conhecida como história das religiões – uma vez que contempla várias crenças que os
outros países começaram a adotar o termo religiões, no plural (Torres-Londoño, 2013).
6 Por providencialismo histórico entende-se uma perspectiva teológica em que Deus comanda toda a história,
ou, dito de outro modo, tudo o que ocorre na realidade humana é vontade de Deus. Não raro, tal perspectiva é
acompanhada de uma visão triunfalista da instituição religiosa, que se vê como intérprete oficial da divindade
condutora da história.
77 História das religiões e antropologia da religião

no século XIX (Buarque, 2011). Uma obra famosa que sintetiza essa tendência
francesa no século XX é o trabalho organizado em oito volumes intitulado
História da Igreja de Cristo, de Daniel Rops (1901-1965).

HISTÓRIA DO CRISTIANISMO
Há outra vertente, ainda que ligada à história do cristianismo, que adota, no
entanto, uma postura crítica e se distancia da leitura apologética, ganhando
assim grande prestígio acadêmico, sendo seus adeptos vistos como
historiadores especialistas em cristianismo. Um dos grandes nomes dessa
vertente é Jean Delumeau (1923-), que abordou a temática, sobretudo, da
evolução da consciência religiosa. Foi professor no Collège de France na cátedra
de História das Mentalidades Religiosas no Ocidente Moderno, de 1975 a 1994.

HISTÓRIA NOVA OU HISTÓRIA DAS RELIGIÕES


March Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956) são os principais pioneiros
da terceira vertente francesa de historiadores. Ambos fundaram a revista
intitulada Annales D’Histoire Économique et Sociale, em 1929, a qual, após a
Segunda Guerra Mundial, passou a ser veículo de comunicação da Escola
Prática de Altos Estudos (Ephe).
Importantes historiadores do século XX foram e ainda são filiados a essa
corrente, como Fernand Braudel (1902-1985), Georges Duby (1919-1991),
Jacques Le Goff (1924-2014) e Emmanuel Le Roy (1929-). A também conhecida
École des Annales focalizava o trabalho com o conceito de história das
mentalidades, categoria que representou um dos instrumentos mentais de uma
época, ou seja, uma criação coletiva que atuava sobre grupos e indivíduos em
relação às suas maneiras de sentir e de pensar, mas que também sofria a ação
exercida por eles (Albuquerque, 2007).
Houve igualmente grande aceitação do uso de Histoire des Religions,
expressão homônima do título da obra composta de três
78 História das religiões e antropologia da religião

volumes, publicada na segunda metade do século XX, que aborda desde as


antigas religiões sumérias e árticas, passando pelo budismo chinês, até os
movimentos religiosos do século XX. A autoria desse trabalho é de Henri-
Charles Puech (1902-1986), que também presidiu o trabalho da Revue de
L’Histoire des Religions e ocupou a cadeira de História das Religiões no Collège
de France de 1952 a 1972 (Torres-Londoño, 2013).
Um autor francês que começa a ganhar importância no Brasil e que vale
a pena mencionar é Michel de Certeau (1925-1986), o qual, apesar de ser
religioso, é reconhecido por uma contribuição acadêmica séria. Certeau deu
especial atenção ao papel da religião no mundo moderno e à sua relação com a
cultura, desenvolvendo, sobretudo, a questão da mística na história religiosa e
suas implicações para a cultura contemporânea. Algumas de suas obras mais
conhecidas são: A cultura ao plural (1974), A escrita da história (1975), A invenção
do cotidiano (1980) e A fábula mística (em dois volumes, de 1982 e 2013).

2.1.2 História das religiões na Itália


Na Itália, já em 1920, Raffaele Pettazzoni (1883-1959) fundou a cátedra de
História das Religiões na Universidade de Roma, tendo como objeto o estudo
das religiões inseridas na história. Também foi criador da Escola Romana de
História das Religiões, cuja abordagem, em um primeiro momento, era
veiculada por historiadores clérigos.
Pettazzoni difundiu a ideia de hierologia7 e propôs um método que
sintetizava fenomenologia e história. Embora distinto da leitura e da respectiva
ênfase na essência de Mircea Eliade, o autor vinculava as expressões religiosas
com valores humanos e com

_____________________
7 A hierologia de Pettazzoni pode ser entendida como um estudo das expressões do sagrado pela configuração
histórica empírica, em que se combinam fenomenologia e historiografia.
79 História das religiões e antropologia da religião

atividades práticas (nas esferas econômica e social), ligando o sagrado com a


cultura. Angelo Brelich (1913-1977), seu sucessor na cátedra de História das
Religiões, passou a utilizar o termo sacrologia8. De acordo com as abordagens de
Brelich, diferentemente de Rudolf Otto e Eliade, era necessário conhecer as
religiões para formular um conceito sobre elas. Nesse sentido, a Escola Romana
passava a trabalhar com a etnologia9 para aplicar o método comparativo.
Diferentemente do caso francês, mas com o mesmo espírito de renovação,
na Itália se desenvolveu a Escola de Bolonha – dentro da Faculdade de Ciências
Políticas da Universidade de Bolonha –, promovida por Giuseppe Alberigo
(1926-2007), como uma abordagem crítica da história da Igreja; Alberigo
também foi diretor do Instituto para Ciência Religiosa João XXIII , e seu trabalho
mais famoso é a História do Concílio Vaticano II (Torres-Londoño, 2013).

2.1.3 História das religiões no Brasil


A história das religiões no Brasil, desde que surgiu, em 1990 (Torres-Londoño,
2013), tem tido forte influência das duas escolas europeias mencionadas
anteriormente. Contudo, consolidou-se, em todo o país, como um amálgama de
projetos desenvolvidos no âmbito de programas de pós-graduação em ciências
humanas em geral, em História Social e em Ciências da Religião e Teologia. Tem
como marca característica o fato de ser uma disciplina acadêmica com rigor
científico, e não apologético.

_____________________
8 A sacrologia de Brelich acentuava a primazia dos métodos empíricos da historiografia em detrimento da
importância fenomenológica de que Pettazzoni fazia uso. O sagrado, para essa perspectiva, em sua constituição
histórica, tem elementos semânticos muito peculiares, todos os quais devem ser respeitados.
9 Método aplicado especialmente pela antropologia, visa à adoção de um procedimento mais descritivo –
baseado na observação comparada do fenômeno – do que pautado em categorias previamente estabelecidas.
10 Atual Fundação de Ciências Religiosas João XXIII.
80 História das religiões e antropologia da religião

Há, no entanto, trabalhos historiográficos significativos sobre religiões no


Brasil desde o início do século XX:

▪ O animismofetichista dos negros baianos (1900), de Raimundo Nina


Rodrigues (1862-1906), sobre o candomblé;
▪ Sincretismo religioso afro-brasileiro (1955), de Waldemar Valente (1908-
1992);
▪ As religiões africanas no Brasil (1958), em dois volumes, e diversas outras
obras de Roger Bastide (1898-1974);
▪ Kardecismo e umbanda (1961) e Católicos, protestantes, espíritas (1973), de
Cândido Procópio Ferreira (1922-1987);
▪ Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado
(1974), de Douglas Teixeira Monteiro (1926-1978).

De modo especial, merecem atenção três espaços acadêmicos expressivos


voltados à história das religiões no Brasil:

1. Comissão para o Estudo da História da Igreja na América Latina


(Cehila) – Criada em 1973 pelo filósofo e historiador argentino Enrique
Dussel, reúne uma série de pesquisadores e intelectuais de diversos
países ligados à teologia da libertação. A Cehila é membro da Comissão
Internacional da História Eclesiástica Comparada (Cihec), filiada à
Comissão Internacional de Filosofia e Ciências Humanas (CIPSH), e da
Comissão Internacional de Institutos de Investigação Social e Sócio-
Religiosa (Feres). Metodologicamente, a Cehila abandona o mito de
neutralidade metodológica do pesquisador para se posicionar ao lado das
maiorias oprimidas da América e, por esse viés, faz uma releitura da
história da Igreja (Assmann, 2009). Historiadores expressivos do Cehila
no Brasil presentes desde o início são José Oscar Beozzo e Eduardo
Hoornaert.
2. Grupo de Trabalho (GT) História das Religiões e das Religiosidades –
Historiadores das religiões e das religiosidades
81 História das religiões e antropologia da religião

sempre estiverem presentes na Associação Nacional de Professores


Universitários de História (Anpuh), desdobrando-se na criação desse
grupo de trabalho e também na criação da Revista Brasileira de História das
Religiões (RBHR).
3. Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) – Foi criada em
1999, por iniciativa dos professores da linha de pesquisa religiões e visões
do mundo, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual de São Paulo (Unesp), no campus de Assis, juntamente com
professores de outros programas de pós-graduação de Ciências da
Religião e outras áreas. Atualmente, a ABHR está em sua 16a edição
nacional e em sua 3a edição internacional (ABHR, 2019).

O estudo da história das religiões no Brasil vem crescendo


numericamente em instituições e em amplitude de abordagens, de modo a se
tornar uma área promissora e fundamental para os estudos de religião no Brasil,
pois a categoria história é o elemento fundamental para a revisão de uma
tendência metafísica e idealista de tratar a questão religiosa.

2.2 Antropologia da religião


O que chamamos de antropologia da religião diz respeito à investigação da
“dimensão sociocultural do fenômeno religioso”, mais especificamente “os
elementos básicos da religião como o ritual, a mitologia e o sistemas de crença
em geral” (Guerreiro, 2013, p. 243).
O ethos em que surgem o esforço investigativo da antropologia e a
questão religiosa dentro dela se estabelece pela exigência do contato com novas
culturas que o projeto europeu de expansão colonizadora alcançou,
demandando disso a compreensão daqueles novos povos que destoavam
bastante do conceito de civilização ocidental. O próprio significado de religião se
apresenta como um
82 História das religiões e antropologia da religião

produto da academia europeia (Schmidt, 2007), ligado à noção de fundadores de


tradições religiosas, conjunto doutrinal de ideias determinantes dos aspectos
rituais e morais das crenças. A compreensão de religião dos novos povos estava
vinculada muito mais a uma experiência devida espiritual, a uma manifestação
do divino ou a uma maneira de perceber a vida com base em uma crença.
Esse choque de diferenças levou os estudiosos sobre o tema, em um
primeiro momento, a uma leitura comparada do que seria uma “verdadeira
religião” para esses povos considerados “primitivos”, vistos como portadores
de superstições e feitiçarias. Essas opiniões eram retroalimentadas pelos
financiamentos colonizadores dos missionários católicos e protestantes que
foram revitalizados com a expansão do cristianismo para além do continente
europeu, que sofria com a laicidade estabelecida pela Revolução Francesa (1789)
e pelo projeto iluminista. Este último tendia a ver nas religiões “primitivas” a
figura do bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), isto é, a
representação de que o ser humano, por natureza, é bom, e a sociedade o
corrompe (Rousseau, 2005). Com base nessa perspectiva, as religiões primitivas
eram consideradas superiores em relação à civilização europeia, degenerada
pela desigualdade social. O desenvolvimento da antropologia da religião pode
ser cronologicamente descrito por fases, identificadas como formativa,
moderna e contemporânea, cujas tendências mais importantes destacaremos na
sequência.

2.2.1 Fase formativa


O período inicial e formativo da então chamada antropologia da religião ocorre
sob uma forte influência do projeto iluminista, como mencionado
anteriormente, em especial pela compreensão do bom selvagem de Rousseau,
segundo a qual povos com religiões primitivas (primitive religious) não teriam
se corrompido com o
83 História das religiões e antropologia da religião

projeto de hegemonia das religiões mundiais (world religious), que atuavam


como teocracias, sobretudo o cristianismo – e a cristandade – como religião do
Estado.
Assim, a comparação entre religiões mundiais e religiões primitivas
(Radin, 1957) era utilizada como uma busca pela confirmação da perspectiva
iluminista de uma religião natural distinta daquela que padres, pastores e
teólogos apresentavam como a “verdadeira religião”, constituída por verdades
reveladas por Deus à igreja à qual pertenciam e que negavam friamente e/ou
violentamente as demais crenças.
A disputa por hegemonia religiosa entre católicos e protestantes
fragilizava mais ainda a cristandade, ao mesmo tempo que, contrariamente,
fortalecia o projeto iluminista e seus representantes deístas na busca de
explicações sobre a religião sem o recurso de uma suposta revelação
sobrenatural (Pereira, 2016).
Voltaire (1694-1778), um dos principais críticos da cristandade, tinha
como principal alvo a metafísica em forma de teodiceia, influenciada pela visão
de Gottfried Wilhelm Leibniz (1946-1716), cuja perspectiva era tributária da
transposição da linguagem matemática para uma linguagem metafísica, numa
época em que na matemática se encontrava a “luz”, como exercício da razão, e
na metafísica se encontravam as “trevas”, como proliferação de afirmações
arbitrárias sobre a vontade divina (Leibniz, 1880).
O que Leibniz propôs foi, no entanto, insuficiente para combater as
arbitrariedades, uma vez que, ao final, ele tentou oferecer racionalidade a elas.
Sua metafísica de inspiração matemática acabou por tentar resolver, no mundo
da abstração teórica ideal, uma espécie de equação lógica em que perfeição dos
processos que Deus conduz seria alcançada numa visão de conjunto. Nessa
época, entendia-se a necessidade do mal como pressuposto para que se
manifeste um bem operante da realidade. Nessa perspectiva, o mal que existe
no mundo é o mínimo necessário para que haja o
84 História das religiões e antropologia da religião

máximo de bem e não há, com isso, contradição alguma, por parte de Deus, ao
se atenuar a gravidade do mal pelo triunfo futuro do bem maior:

A metafísica de corte leibniziano é a expressão de uma matemática divina em


que todo mal é necessário para se conseguir um bem maior, sem ainda
adentrar a consciência histórica e social apregoada pelos iluministas, uma vez
que o próprio cristianismo se encontra imerso dentro das estruturas sociais e,
não raro, servindo de instrumento de legitimação. (Villas Boas, 2016, p. 61-62)

Nesse sentido, dados os abusos morais e, sobretudo, políticos em nome


da matemática divina que acabava por justificar o mal no mundo – inclusive a
maldade –, os antropólogos dos séculos XIX e XX foram influenciados pela ideia
de uma religião natural (imune de metafísicas) somada ao espírito evolucionista
que Charles Darwin (1809-1882) havia inaugurado, especialmente em seu livro
The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex (A descendência do homem)
(Darwin, 1871).
Nessa obra, Darwin apresenta causas naturais para a evolução da espécie
que resultariam no ser humano, excluindo, ainda que sem intenção
antirreligiosa, a ação sobrenatural do ato de criação divina. Havia uma busca,
portanto, de uma depuração da influência das religiões mundiais por meio da
identificação de formas mais puras de religiosidade nas chamadas religiões
primitivas. Edward B. Tylor (1832-1917), primeiro professor de Antropologia no
Reino Unido, desenvolveu essa perspectiva evolucionista em sua obra
principal, Cultura primitiva (Primitive Culture), no mesmo ano da publicação de
Darwin. Para Tylor (1873), a religião tem três estágios distintos da perspectiva
de evolução social de Herbert Spencer11,

_____________________
11 Um dos principais filósofos do liberalismo clássico, é considerado o responsável por adaptar a teoria biológica
evolucionista de Darwin para as questões sociais, ao que se convencionou chamar de darwinismo social.
85 História das religiões e antropologia da religião

que dava prioridade à devoção ancestral. Esses estágios são: i) o animismo, que
se caracteriza por dar vida e vontade aos seres naturais; ii) o politeísmo, como
transição do animismo para os seres fictícios que se tornam deuses cujas
vontades controlam todas as coisas; e iii) o monoteísmo, com base no qual a
vontade de Deus controla tudo – os fenômenos naturais e as leis invariáveis
restringindo-se, no entanto, a imaginação dos estados anteriores e
desenvolvendo-se um sentimento universal que visa à coesão social.
Na análise do antropólogo britânico, os sistemas de crença são
investigados como estruturas teológicas concebidas pela razão humana ou de
forma natural (sem ajuda sobrenatural); além disso, concentra-se a atenção na
“continuidade entre as crenças e práticas religiosas dos ‘selvagens’ e dos
‘civilizados’”, ideia da qual o autor retirou o que ficou conhecido como definição
mínima de religião: a “crença em Seres Espirituais” (Tylor, 1873, p. 424, tradução
nossa). Isso ocorreu porque Tylor (1873) entendeu que tal crença estava na base
de todas as religiões, em cuja constituição havia dois elementos: i) a presença da
alma em seres individuais, capazes de continuar sua subsistência após a morte;
e ii) a existência de poderosas divindades que afetam e controlam os
acontecimentos no mundo e na vida humana. Esses dois aspectos foram
mudando de forma na trilogia evolutiva da religião de Tylor, sendo que o
último é mais acentuado no monoteísmo.
Tal visão provocou uma busca pela religião mais primitiva no mundo, a
fim de identificar um estágio pré-religioso, entendido como a ausência de oferta
de sacrifícios ou rituais a uma entidade mais elevada – considerava-se esse
estágio como anterior à religião como magia. Os aborígenes australianos foram
apontados como o povo que se mantinha nesse estágio, o que levou à discussão
do tema totemismo, iniciada por James George Frazer (1854-1941).
O conceito de totem é retirado do grupo ameríndio ototeman (ojíbua, em
português), da região dos grandes lagos da América do
86 História das religiões e antropologia da religião

Norte, pelo inglês John Long, em 1791, sendo apresentado como um espírito
benevolente que protege um grupo (Van Der Leeuw, 1970). Porém, foi o
trabalho O totemismo (assim intitulado na primeira edição da obra, em 1910), de
James George Frazer (1854-1941), que deu grande repercussão ao tema:
estabelece-se no livro uma relação entre a organização clânica ou tribal – a
atribuição ao clã de nomes ou símbolos animais ou vegetais – e a crença no
parentesco entre o totem e o grupo. A magia, de acordo com Frazer (1910),
funciona como uma crença primitiva, promotora de gestos imitativos de leis que
governam o mundo natural, sem a compreensão de um controle por meio de
uma divindade com características pessoais (totemismo). O autor apresenta a
hipótese da passagem da humanidade por três estados intelectuais: i) magia; ii)
religião; e iii) ciência – entendendo esta última como fruto do progresso que
coincide com a racionalização.
O totemismo, que foi uma das categorias antropológicas mais influentes,
moldou toda uma geração de intelectuais, como Emile Durkheim (1858-1917) e
Sigmund Freud (1856-1939). Residia aí também uma tendência evolucionista da
antropologia da religião, que se entendia como ciência das “sociedades
primitivas” (Guerreiro, 2013, p. 254).

2.2.2 Fase moderna


Os autores da antropologia da religião considerados clássicos, como Tylor e
Frazer, bem como William H. Rivers (1864-1922), foram criticados por uma nova
geração de antropólogos, tais como Edward Evan Evans-Pritchard (1902-1973)
e Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que identificaram aqueles como uma geração
intelectualista, cujas abordagens eram demasiadamente hipotéticas e cujos
pressupostos de análise eram ocidentais, o que lhes valeu a definição de teóricos
de gabinete, que não iam a campo (Pereira, 2016).
87 História das religiões e antropologia da religião

Alguns antropólogos importantes da fase moderna, como Bronislaw K.


Malinowski (1884-1942) e Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955),
utilizavam categorias de funcionamento e de estrutura para a compreensão do
fenômeno religioso. Malinowski (1978), por exemplo, em diálogo com a
psicanálise, promoveu uma visão emocionalista da religião: a de que todo ser
humano tem uma necessidade de crença, mesmo os iluministas, uma vez que
estes acreditavam em suas ideias. Malinowski também não dissociava magia de
religião. Pelo contrário, o antropólogo descreveu a conexão dela com os mitos,
assim como desenvolveu pesquisa com base nos resultados de trabalho de
campo.
Apesar de não ser antropólogo da religião – e a despeito de o termo ter
sido utilizado pela primeira vez por Adam Franz Kollar (1718-1783) vinculado
à ideia de ciência das nações –, foi Malinowski quem desenvolveu um novo
método para a etnologia em geral, e da religião em específico, com as obras
Argonautas do Pacífico Ocidental, publicada pela primeira vez em 1922
(Malinowski, 1978), e Um diário no estrito sentido do termo, publicada
postumamente, em 1967 (Malinowski, 1997). Nesses escritos, o autor trabalhou,
especialmente, a noção de observação compartilhada, segundo a qual o observador
cultiva relações pessoais com os informantes locais como modo de
aprendizagem sobre a cultura da região, analisando e participando da vida
social do grupo. A proposta de Malinowski é não somente entender dados
descritivos de forma objetiva, mas também captar subjetividade de quem é
observado em sua amplidão existencial, no “domínio que a vida exerce” sobre
as pessoas de uma cultura.

É nossa tarefa estudar o homem e devemos, portanto, estudar tudo aquilo que
mais intimamente lhe diz respeito, ou seja, o domínio que a vida exerce sobre
ele. Cada cultura possui seus próprios valores; as pessoas têm suas próprias
ambições, seguem seus próprios impulsos, desejam diferentes formas de
felicidade.
88 História das religiões e antropologia da religião

Em cada cultura encontramos instituições diferentes, nas quais o homem busca


seu próprio interesse vital; costumes diferentes através dos quais ele satisfaz
suas aspirações; diferentes códigos de leis e moralidade que premiam suas
virtudes ou punem seus defeitos. Estudar as instituições, costumes e códigos,
ou estudar o comportamento e mentalidade do homem sem atingir os desejos
e sentimentos subjetivos pelos quais ele vive, e sem o intuito de compreender
o que é, para ele, a essência de sua felicidade, é, em minha opinião, perder a
maior recompensa que se possa esperar do estudo do homem. (Malinowski,
1978, p. 38)

Por sua vez, Radcliffe-Brown chama a atenção para as experiências em


que os ritos transmitem simbolicamente os sentimentos constitutivos da
sociedade (Schmidt, 2007).
Ambos os antropólogos, formadores da escola britânica, abandonaram as
discussões sobre origens da religião e dedicaram-se a compreender o papel dela
na vida das pessoas, dando ênfase, cada um a seu modo, às instituições
duradouras.
Outro nome que diverge da abordagem essencialista de Frazer e Tylor é
Franz Uri Boas (1858-1942), da escola norte-americana, interessado nos índios
estadunidenses. Uma vez que estes tiveram seus modos de vida tradicionais
alterados, Boas preferiu focalizar em sua análise sobre eles as diferenças
culturais e as respectivas singularidades, em vez das funções sociais,
enfatizando, portanto, o relativismo cultural e aplicando também a etnologia
como método, indo a campo para entender a religião como um fato dinâmico,
que conserva as tradições, mas acrescenta-lhes novos elementos.
Malinowski e Boas foram os principais defensores da etnologia baseada
em pesquisa de campo, a qual poderia ser resumida como um método
personalizado, de acordo com o objeto/sujeito a ser analisado; indutivo, que
deixa que o próprio ethos organize os dados; dialógico, pois, à medida que os
participantes da cultura/
89 História das religiões e antropologia da religião

religião vão sendo analisados, também se podem discutir as interpretações


feitas sobre eles; e holístico, visto que procura um relato o mais completo
possível sobre aquilo que o domínio vital exerce sobre as pessoas.

2.2.3 Fase contemporânea


Os autores da segunda metade do século XX assumiram as questões já iniciadas
por seus antecessores, avançando, no entanto, para a superação de
reminiscências anticoloniais no pós-guerra.
Um deles, Evans-Pritchard, pretendia realizar uma abordagem contrária
à fenomenologia e aos vestígios dos debates metafísicos sobre a origem das
coisas religiosas. Por isso, preferiu adotar um método para análise do fenômeno
religioso no âmbito do que se chamou de antropologia social. Com isso, sua
pesquisa sobre a religião dos azande, na região do alto Rio Nilo, no Egito, e a
dos nuer, entre a Etiópia e o Sudão do Sul, não visava confirmar nenhuma
grande teoria universal de religiões primitivas, e sim propor o pensamento de
uma teoria que se restringisse aos povos analisados.
Diferentemente da procura de elementos comuns, o antropólogo social
identificou diferenças entre os dois povos investigados, como a presença de
bruxarias e oráculos que tinham uma função social – conceito que tomou
emprestado de Durkheim –, importante na resolução de disputas, conferindo a
essas práticas um princípio lógico e coerente, incluindo um sistema de
explicações no caso do povo azande. Com o povo nuer, por sua vez, Evans-
Pritchard (1968) identificou uma fé monoteística, apesar da presença de
elementos de totemismo, o qual tinha aspecto periférico. Adotou, assim, a
postura do papel do antropólogo de realizar a tradução de uma cultura para
outra.
Claude Lévi-Strauss, por sua vez, criticou a ideia de um totemismo como
fenômeno unitário, posicionamento que julgou ser
90 História das religiões e antropologia da religião

resultado de uma “ilusão” dos antropólogos do século XIX. Atribuiu a


Durkheim, cofundador da escola sociológica francesa, a conversão para a
etnologia no livro, publicado em 1912, intitulado As formas elementares da vida
religiosa (Durkheim, 1989), voltando-se, assim, para os dados provenientes da
observação direta e deixando de lado abordagens compiladoras, como a de
Tylor (Lévi-Strauss, 1976).
Lévi-Strauss também não depreciou o papel da magia, tendo procurado
identificar o funcionamento dela por meio da eficácia simbólica, dando especial
atenção aos mitos e às suas propriedades universais, a saber, a estrutura
simbólica, chamada assim porque permite “acessar o quadro de estruturas
primordial do pensamento humano” (Guerreiro, 2013, p. 254).
Integrante da missão universitária francesa no Brasil em 1934, Lévi-
Strauss tornou-se professor de Sociologia na Universidade de São Paulo (USP),
tendo se dedicado aos mitos ameríndios, compilados em sua tetralogia de 1961
e 1962 chamada Mitologia. O autor elaborou um método linguístico estrutural
para analisar os mitos como metalinguagem, o que permite reformular o que
essas narrativas incorporam como circunstâncias históricas vividas por um
povo, renovando sua estrutura sociocultural.
A operacionalidade dessa reformulação em Lévi-Strauss teve influência
da dialética hegeliana, de modo que, na cultura, os mitos operam teses, antíteses
e sínteses nos padrões binários fundamentais: vida-morte, amor-ódio, aliados-
inimigos e assim por diante. Os mitos, de acordo com Lévi-Strauss, interagem
com as circunstâncias, promovendo novas sínteses de superação das oposições.
Nesses relatos, portanto, estão inscritas as estruturas mentais do ser humano, as
quais, para o antropólogo francês, são as mesmas tanto para o pensamento do
selvagem quanto para o do engenheiro moderno, os quais, apesar dos contextos
diferentes, operam por bricolagem, um amálgama de vários elementos que se
tornam um único objeto, no caso, cultural. Embora, como diferença,
91 História das religiões e antropologia da religião

o selvagem seja fechado em seu mundo no que se refere às opções que lhe são
dadas para construir sua cultura e o engenheiro tenha à disposição a
possibilidade de criar ferramentas novas para construir sua obra, ambos têm a
mesma estrutura. No olhar de Lévi-Strauss, a eficácia simbólica continua
operando do mesmo modo, e isso deveria ajudar a identificar muito mais as
semelhanças do que as diferenças entre religiões e culturas, ambas dimensões
portadoras de estruturas simbólicas (Lévi-Strauss, 1978).
Uma proposta que se distanciou das perspectivas funcionais, estruturais
ou psicológicas foi a abordagem interpretativa do norte-americano Clifford
Geertz (1926-2006), que entendia a religião como sistema de símbolos que
promove uma unidade entre o ethos (maneira de ser e de sentir) de determinado
grupo e a visão de mundo elaborada por esse mesmo grupo. Os métodos utiliza-
dos por Geertz (2008) foram o da hermenêutica e o da semiótica. Assim o
antropólogo estadunidense define religião:

(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas,


penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3)
formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas
concepções com tal aura de factualidade que (5) as disposições e motivações
pareçam singularmente realistas. (Geertz, 2008, p. 67, grifo do original)

Para Geertz, a importância da religião reside na capacidade de servir


como fonte de concepções do mundo, do eu e das relações em si, funções
culturais das quais derivam as funções sociais e psicológicas. Os conceitos
religiosos precisam ser mais abrangentes do que os contextos de debates
metafísicos em que geralmente se inserem, a fim de que constituam uma
estrutura de ideias significativas para as “experiências intelectuais, emocionais
e morais”. Tendo isso em vista, demanda-se da antropologia da religião, por um
lado, “analisar o sistema de significados representados nos
92 História das religiões e antropologia da religião

símbolos, sistema que representa a religião” e, por outro, “relacionar estes


sistemas com os processos sócioestrutural e psicológico” em que o grupo está
inserido (Geertz, 1997, p. 116,117).
Inevitavelmente, essa abordagem abriu caminhos para uma perspectiva
pós-colonial da religião, o que, para muitos, teve início com a obra Orientalismo:
o Oriente como invenção do Ocidente, de Edward Said (1935-2003), que critica o
discurso pejorativo que o Ocidente faz sobre o Oriente e mostra como isso
legitimou a supremacia política ocidental, promovendo estereótipos, rótulos e
debates antagônicos que retroalimentam uma identidade coletiva beligerante
em relação ao Oriente, visto com preconceito e racismo, sem corresponder à
realidade (Said, 2007). A abordagem pós-colonial ajuda a compreender como
culturas e religiões foram investigadas no passado e influenciaram os métodos
de análise em antropologia da religião. O mesmo vale para a Ásia e para as
religiões afro-brasileiras.
Atualmente, os antropólogos da religião procuram estudar a experiência
religiosa individual no contexto de sua configuração social, buscando analisar
a forma como, nesse aspecto, ela é construída, o significado do símbolo
articulador da experiência pessoal e os demais fatos sociais. Para tanto, a
pesquisa, na grande maioria dos casos, baseia-se em dados etnográficos
empíricos em vez de visar à formulação de modelos teóricos para além do que
se extraiu no campo. Isso não exclui a necessidade de interpretar a religião em
relação a outras instituições e a outros âmbitos sociais.
O método privilegiado de pesquisa antropológica, para isso, é o da
observação participativa, com base na qual se estabelece um tempo de
convivência com o grupo analisado. No Brasil, esse campo de pesquisa tem se
desenvolvido tanto no contexto urbano quanto no amazônico (Schmidt, 2007).
93 História das religiões e antropologia da religião

Ademais, tais abordagens da fase contemporânea ajudaram a


compreender o trabalho do antropólogo como tentativa de captar o “ponto de
vista do nativo” a fim de reconhecer a “rede de significados das diferentes
culturas e perceber os sentidos intrínsecos que cada sistema religioso possui”,
além de revelar que “não existe uma religião mais verdadeira que a outra”
(Guerreiro, 2013, p. 246).

SÍNTESE
Com base em contextos nos quais sempre houve algum interesse pelo
conhecimento de diferentes religiões, observamos, neste capítulo, que essa
necessidade se relacionava no início à crescente expansão do colonialismo
europeu e suas navegações ultramarinas, principalmente em razão do contato
com outros povos.
Os estudos pioneiros sobre o assunto, para isso, procuravam fazê-lo pelo
conhecimento de novos idiomas, especialmente mediante textos sagrados. Isso,
como mostramos, teve grande inspiração dos estudos de filologia que eram
aplicados aos mencionados textos e também os influenciou. O interesse pela
aprendizagem de um idioma antigo, portanto, despertava a curiosidade pela
história desse idioma, fato do qual se desdobrou a investigação da história das
religiões.
Dessa fase de influência filológica, conforme analisamos, também
derivou o desenvolvimento dos estudos de mitologia comparada, que mais
tarde inspiraram os estudos de antropologia da religião, os quais, por sua vez,
procuraram compreender os sistemas de crença e os sistemas simbólicos de uma
religião.
Como conclusão, vimos que as duas subdivisões desse estudo – a história
das religiões e a antropologia da religião – deram início ao construto teórico do
que se chamaria de ciência da religião na Alemanha.
94 História das religiões e antropologia da religião

INDICAÇÕES CULTURAIS
A HISTÓRIA de Deus. Direção: Lori McCreary; James Younger. Estados
Unidos: National Géographie Channe; Révélations Entertaiment, 2016. 451 min.
Série de televisão.
Essa série aborda questões religiosas e metafísicas que inquietam o ser
humano, de forma fenomênica e reflexiva, com base na perspectiva de
pessoas comuns. Divide-se em nove episódios (seis na primeira temporada
e três na segunda) e é apresentada pelo ator Morgan Freeman. Os nomes
dos episódios exemplificam os assuntos discutidos: “Para além da morte”;
“Apocalipse”; “Quem é Deus?”; “Criação”; “Por que o mal existe?“; “O
poder dos milagres"; “O escolhido”; “Céu e inferno"; “Provas de Deus”.

AROUND the World in 80 Faiths. Direção: Sian Sait et al. Reino Unido: BBC
Télévision, 2009. Série de televisão.
Dividida em oito episódios, essa série aborda crenças religiosas de todas as
partes do mundo – da Oceania às Américas, passando pela África, pela Ásia
e pela Europa – e é apresentada pelo sacerdote anglicano Peter Owen Jones.
A produção é uma fantástica viagem à diversidade religiosa do mundo
contemporâneo.

HISTÓRIA das religiões. Direção: Michael D’Antonio. Estados Unidos: Europa


Filmes, 1998.617 min. Série de televisão.
Trata-se de outra série que investiga o fenômeno religioso sob a perspectiva
de diferentes religões ao redor do mundo: catolicismo; judaísmo; islamismo;
hinduísmo; xintoísmo; budismo; confucionismo; crenças nativas das
Américas e da África; religiões afro-americanas; mitos do mediterrâneo; e
ceticismo.

As três séries indicadas foram produzidas com intervalos de


aproximadamente uma década. Todas contaram com assessorias de
historiadores e antropólogos da religião.
95 História das religiões e antropologia da religião

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. A Analise as afirmações a seguir e identifique quais representam fatores que
levaram ao surgimento da ciência da religião na Europa no século XIX.
I. O avanço da filosofia e da mitologia comparada, que permitiu a leitura
de textos considerados sagrados por religiões antigas.
II. A necessidade de compreender as religiões como fatores culturais
determinantes para a compreensão de povos que não eram cristãos, na
ocasião do contato com eles.
III. A crítica às teodiceias como teologia, que justificavam os contextos social
e político.
IV. A melhoria da evangelização dos povos não cristãos.
V. O efeito da crise cultural das cristandades.
São verdadeiras as seguintes afirmações:
A] I, II, IV e V.
B] I, II, III e V.
C] II, III, IV e V.
D] III, IV e V.
E] I, II, III, IV e V.

2. Qual área de estudos inaugurou o que chamamos hoje de ciências da religião?


A] História das religiões.
B] Antropologia das religiões,
C] Mitologia comparada.
D] Sociologia da religião.
E] Filosofia da religião.

3. Quem é considerado o pai das ciências da religião?


A] Max Müller.
B] Edmund Husserl.
C] Sigmund Freud.
D] Karl Marx.
E] Friedrich Nietzsche.
96 História das religiões e antropologia da religião

4. Qual é a diferença entre história da religião e história das religiões?


A] A primeira analisa a religião hegemônica oficial, e a segunda procura
pensar historiograficamente a pluralidade de fenômenos religiosos.
B] Não há diferença substancial entre ambas, uma vez que o objeto
estudado, para as duas linhas, distancia-se da análise de fenômenos
religiosos contextuais.
C] A primeira trata da história da Igreja Católica, e a segunda estuda as
outras igrejas cristãs.
D] A primeira é uma abordagem europeia, e a segunda é uma abordagem
latino-americana.
E] A primeira é estritamente uma escola francesa, e a segunda é uma escola
italiana.

5. Quais são considerados os autores clássicos da antropologia da religião?


A] Edward B. Tylor, James George Frazer e Bronislaw K. Malinowski.
B] Edward B. Tylor, James George Frazer e Claude Lévi-Strauss.
C] Heinrich Heine, Émile Durkheim e Max Weber.
D] Karl Marx, Heinrich Heine, Émile Durkheim e Max Weber.
E] Edward B. Tylor, James George Frazer e William H. Rivers.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão


1. Para a sociologia da religião clássica, qual é o papel da religião na sociedade?
Descreva de forma sintética a percepção dos autores clássicos da sociologia
da religião e compare as perspectivas e os contextos de cada um. Pergunte-
se em que medida isso se aplicaria ao/no século XXL
97 História das religiões e antropologia da religião

2. Qual é a relação existente entre cultura e religião para a antropologia das


religiões? Identifique as principais correntes e aponte qual delas mais se
aplica ao seu contexto.

Atividades aplicadas: práticas


1. Procure realizar uma análise cultural de uma religião com a qual você tem
contato, a fim de conhecê-la. Siga os passos indicados.
A] Pesquise as seguintes categorias da religião:
▪ Símbolos – São palavras, gestos, imagens ou objetos que carregam um
sentido que é reconhecido por aquele que partilha daquela crença.
▪ Personagens importantes – São pessoas, vivas ou mortas, reais ou
imaginárias, que apresentam características altamente valorizadas
para os fiéis e, por isso, servem de modelo comportamental.
▪ Ritos – São ações coletivas essenciais para promover o respeito entre
os membros que as celebram. São utilizados símbolos e personagens
(ambos descritos anteriormente) para fortalecer a crença.
▪ Práticas – São assumidas por meio de símbolos, personagens e ritos,
contudo seu sentido só é compreensível por quem é capaz de
interpretar a religião que as sustenta.
▪ Valores – Em uma dimensão mais superficial, são as formas e as
tendências de preferir certas coisas a outras. Em uma dimensão mais
profunda, são as molduras que propiciam experiências constitutivas e
significativas da convivência humana em um grupo.
B] Tente vivenciar o contexto dessa religião.
C] Realize esse mesmo exercício com outra religião ou convide um colega
para fazê-lo e depois elaborem, em conjunto, um exercício de religião
comparada.
98 História das religiões e antropologia da religião

2. Depois de assistir às séries apresentadas na seção “Indicações culturais”


deste capítulo, procure estabelecer uma relação entre a abordagem e os
métodos utilizados em cada uma, verificando se há referência a algum
especialista e quais mudanças de ênfases e de estilos ocorreram de uma
década para outra. Algumas das religiões abordadas nas séries existem em
sua cidade? Quais características delas são idênticas às apresentadas?
3. Pesquise se existe alguma religião específica em sua cidade e elabore uma
análise sobre ela seguindo os passos descritos na Atividade 1.
3
SOCIOLOGIA
DA RELIGIÃO

A sociologia da religião se constrói com base em perguntas que as ciências


sociais levantam sobre o papel que a religião tem nas sociedades modernas e
sobre a relação que existe entre elas, ou seja, entre o comportamento religioso e
a teoria social.
Essa questão foi proposta classicamente por Karl Marx (1818 – 1883),
Émile Durkheim (1858-1917) e Max Weber (1864-1920), entre outros pensadores,
e continua a ecoar nos estudos contemporâneos sobre religião. O propósito
deste capítulo é apresentar esse campo de abrangência da religião que
tradicionalmente se consolidou entre seus estudos clássicos.

3.1 Sociologia clássica da religião


A sociologia que se deteve sobre o fenômeno religioso tendia a acentuar suas
observações sobre a religião como forma histórica de dominação e repressão de
grupos implicados em processos de transformação como tarefa ética (Pierucci,
2000). Contudo, também houve contribuições importantes a respeito do esclare-
cimento do papel social da religião ou das religiões no conjunto da sociedade,
pois, além de serem lidas como formas de legitimação ou de estabilização de
uma configuração política, elas foram interpretadas como estimuladoras e
propulsoras de processos de transformação, resistência e oposição.
100 Sociologia da religião

Em suma, a sociologia da religião não se ocupa da religião em si, mas da


relação entre as origens dos mitos e suas funções sociais, assim como da relação
entre dogmas religiosos e doutrinas. É possível, de acordo com Nunes (2007),
sintetizar o método da sociologia da religião pelo cumprimento das seguintes
tarefas:

▪ compreender o papel da religião nas diferentes sociedades e culturas;


▪ analisar o significado e o impacto da presença e da força das religiões na
história;
▪ identificar as forças sociais que modelam as religiões e reconhecer o papel
destas nos processos sociais.

3.2 Sociologia marxista da religião


Karl Marx inaugurou a reflexão entre religião e sociedade com base no espírito
da ciência moderna, instaurando, então, a sociologia marxista da religião. Uma
leitura popularizada da concepção atribuída a Marx sobre o assunto é a de que
a “religião é o ópio do povo” (Marx, 2015, p. 146). Entretanto, essa compreensão
já era veiculada por vários autores do século XIX, como Immanuel Kant (1724-
1804), Johann Gottfried von Herder (1744-1803), Ludwig Feuerbach (1804-187),
Bruno Bauer (1809-1882) e Moses Hess (1812-1975) – especialmente pelos três
últimos, integrantes do neo-hegelianismo de esquerda.
A famosa afirmativa de Marx já estava presente entre as ideias expressas
por seu amigo, o poeta romântico Heirich Heine (1797 – 1858), no livro Ludwig
Börne, dedicado ao escritor que nomeia a obra: “Bendita seja uma religião que
derrama no amargo cálice da humanidade sofredora algumas doces e
soporíferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, fé e esperança”
(Heine, 1993, p. 162, tradução nossa). É possível encontrar nesse poema
101 Sociologia da religião

a ambiguidade que o cristianismo alemão carregava em seu seio, como aparece


em outra obra do poeta, Contribuição à história da filosofia e da religião na Alemanha
(Heine, 1991), publicada inicialmente em 1834, uma das obras que, segundo o
regime nazista, deveriam ser queimadas.
Além disso, Heine, o poeta da revolução, nutria sérias críticas à religião
organizada do cristianismo, especialmente em razão do ascetismo estéril, da
visão de caducidade do mundo e da distância da realidade dos trabalhadores
que ela carregava; por outro lado, o poeta via a filosofia alemã como a
“primavera do protestantismo”, o que poderia devolver a alegria celebrada das
divindades pagãs, pois resgatava as bênçãos da deusa da sabedoria (Heine,
1993).
Marx citou a mencionada expressão em 1843 na obra Crítica da filosofia do
direito de Hegel: “A angústia religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da
verdadeira angústia e o protesto contra esta verdadeira angústia. A religião é o
suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como
é o espírito de uma situação sem espiritualidade. E o ópio do povo” (Marx;
Engels, 1960, citados por Löwi, 1998, p. 1581, grifo nosso).
Na leitura de Marx, a ambiguidade do poeta está presente: a religião pode
ser, ao mesmo tempo, um anestésico à dor do povo e um protesto, resultado
dialético em razão do qual ela pode atuar ora de um modo, ora do outro.
Contudo, ainda por influência do neo-hegelianismo de Feuerbach, que havia
sido seu professor, Marx entendia Deus como resultado de um conceito
idealista, uma fabricação da imaginação humana, uma alienação da essência
humana, razão pela qual o filósofo não relacionava a religião com a sociedade e
seus respectivos dramas.

1 Cf. Marx, 2015, p. 146.


102 Sociologia da religião

A supressão [Aufhebung] da religião como felicidade ilusória do povo é a


exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem as ilusões
acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que
necessita de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe, a crítica do vale de
lágrimas, cuja auréola é a religião. (Marx, 2010, p. 145-146, grifo do original)

A compreensão propriamente marxiana2 apareceria na obra A ideologia


alemã, publicada em 1846, na qual o filósofo apresentou um novo método de
análise de fatos religiosos, situando a religião em uma das várias formas de
ideologia (Marx; Engels, 1986). Ou seja, o filósofo considerava a religião uma
das manifestações da “produção espiritual” (geistige produktion) de um povo,
resultado, portanto, da criação de ideias, conceitos e teorias (filosofia, direito,
políticas, econômicas) interligados no espírito alemão como formas de
consciência. Para o autor, nesse caso, deve-se examinar a relação entre as formas
de consciência, as relações sociais, a produção material na totalidade e a
reciprocidade da relação entre ideias e sociedade.
Dessa forma, a religião, na concepção de Marx, atrelada à característica
historicista do autor, é vista por ele como um dos fatores de produção cultural
que alienam a consciência das reais causas das misérias humana e social, de
modo que, quando são mudadas as representações sociais de um povo, também
se alteram as representações religiosas. Nesse contexto, Marx, embora
inicialmente acreditasse que a religião era o principal fator de alienação, depois
de aprofundar sua análise, começou a apontar que o problema não é a religião,
mas o “vale de lágrimas” na sociedade, de maneira que a crítica deve incidir
sobre as estruturas política, econômica e social em vez de recair sobre a
existência de Deus e as questões teológicas. Desde então – após a escrita de

2 Com relação aos estudos acerca de Karl Marx, o termo marxiana refere-se à perspectiva do autor propriamente
dita; marxista, por sua vez, é a perspectiva dos intérpretes desse autor e do modo como ele é entendido
historicamente.
103 Sociologia da religião

A ideologia alemã – houve um desinteresse de Marx a respeito do assunto,


razão pela qual ele passou a analisar a influência dos modos de produção.
Segundo Löwi (2015), diferentemente do que se pensa, em nota na obra
O Capital, de 1867, sobre o método histórico analítico, Marx (2019) indica o papel
importante que a religião tinha na organização social à época, mas que foi
perdido na modernidade; porém, ele não estava interessado em se aprofundar
nesse aspecto. A preocupação de Marx com a religião se restringia ao
protestantismo e à relação deste com a burguesia e o capitalismo: a burguesia
cria uma religião adequada ao capitalismo – isto é, como complemento dele –,
representada, nesse caso, pelo protestantismo. Assim, este favorece o
capitalismo porque, como religião, aliena e, como ideologia, oculta o real. Nesse
contexto, a religião, especificamente, interfere diretamente no conflito de classes
– crítica que será a principal contribuição de Marx ao tema (Löwi, 2015; Nunes,
2007).
Entretanto, o maior desenvolvimento da sociologia marxista aconteceu
com Friedrich Engels (1820-1895), que foi educado dentro do pietismo alemão3.
O cristianismo foi analisado por ele na condição de forma cultural mutável ao
longo da história e, portanto, como espaço simbólico que abriga forças
antagônicas. Nesse sentido, Engels assumiu uma postura distinta da maneira
como o comunismo soviético leria a questão religiosa futuramente (Löwi, 1998).
Engels, então, identificou que o cristianismo poderia tanto ser uma instituição
reacionária quanto um fomentador de movimentos revolucionários, como
afirma Löwi (1998). Isso se aplicava ao que se chamou de seitas protestantes: por
um lado, havia posturas de enfrentamento da monarquia dos Stuarts e, por
outro, apoiava-se a monarquia, como é o caso do materialismo de Thomas
Hobbes.

3 Movimento religioso de origem luterana que valorizava a experiência pessoal em detrimento do dogmatismo
da ortodoxia do luteranismo de seu tempo. Durou de 1650 a 1800.
104 Sociologia da religião

A diferença residia nas classes que se abrigavam em seu próprio espaço


simbólico, como na Reforma Protestante. Havia diferenças de postura e de
discurso social entre o alto e o baixo cleros, contexto no qual surgiu o
movimento revolucionário que resultou na guerra dos camponeses liderada
pelo teólogo Thomas Münzer, os quais foram considerados heréticos pela
própria Reforma. Münzer e os campesinos, segundo Engels, queriam instaurar
o milenarista Reino de Deus anunciado pelos profetas sobre a Terra,
apregoando uma sociedade sem diferenças de classe e sem propriedade privada
(Löwi, 1998).
Tal perspectiva levou o sociólogo marxista a estabelecer, inclusive, um
paralelo entre o cristianismo primitivo e o socialismo moderno, identificando o
potencial contestatário, crítico e até mesmo revolucionário da religião, distinto
tanto da análise feita pelo Iluminismo quanto do neo-hegelianismo alemão.
Considerou, para isso, os primeiros cristãos como religião de pobres, excluídos,
perseguidos e oprimidos, em suma, os malditos da sociedade: escravos, homens
e mulheres privados de seus direitos e camponeses endividados.
Apesar de Marx e Engels identificarem o potencial contestatário do
cristianismo, para ambos esse era um fenômeno do passado. Todavia, autores
marxistas representativos, como Rosa Luxemburgo (1871-1919), Bertold Brecht
(1898-1956), Antonio Gramsci (1891-1937), Ernst Bloch (1885-1977), Lucien
Goldmann (1913-1970), Walter Benjamin (1892-1940), Erich Fromm (1900-1980)
e os membros da Escola de Frankfurt, insistiram no potencial transformador das
utopias judaico-cristãs. Nesse sentido, eles valorizaram releituras de autores
cristãos do período primitivo, como Basilio de Cesareia da Capadócia (330-379),
João Crisóstomo (347-407), Joana D’Arc (1412-1431)4, Thomas More (1478-1535),
Joaquim de Fiore (1135-1202), Franz Xaver von Baader (1765-1841), Wilhelm
Weitling (1808-1871)

4
Os quatro primeiros nomes citados nesta lista são considerados santos pela Igreja Católica.
105 Sociologia da religião

e Leon Tolstói (1828-1910), entre outros, além dos cátaros e dos hussitas,
considerando-os uma espécie de protocomunistas apaixonados por denunciar
a injustiça social, na contramão da tendência da vulgarização religiosa por parte
do marxismo histórico. Esses autores marxistas inspiravam a participação dos
cristãos nos movimentos operários – especialmente os socialistas cristãos dos
anos 1930, os padres operários dos anos 1940, os sindicatos cristãos de esquerda
(CFTC) nos anos 1950 – e inauguravam outra perspectiva marxista sobre a
religião. Lucien Goldman, em 1955, chegou a relacionar a valiosa tensão entre
fé cristã e fé marxista em sua obra O deus escondido, utilizando a categoria de
“aposta” como postura de luta que incorpora os riscos de fracasso e de
esperanças de vitória sustentadas por “crença fundamental” na libertação
(Löwi; Barzman, Betto, 1988).

Sociologia da religião
3.3

de Émile Durkheim
O sociólogo francês Émile Durkheim tem um itinerário intelectual que parte do
materialismo e chega ao espiritualismo, unindo teoria do totemismo, teoria
culturalista, teoria da religião e sociologia do conhecimento, presentes
sobretudo em sua obra de maturidade intitulada As formas elementares da vida
religiosa, publicada em 1912 (Durkheim, 1989; Vares, 2015).
Diante da crescente percepção da complexidade religiosa, o sociólogo
entendeu que a pluralidade desse fenômeno é resultado de processos de
mutação histórica. Por essa razão, passou, por meio do método histórico-
comparativo, a analisar suas origens, procurando identificar os elementos mais
primitivos que pudessem servir de fundamento para uma definição sociológica
de religião. Dessa forma, buscou identificar níveis mais superficiais ligados às
crenças, como símbolos e ritos, e um nível mais profundo, como o caráter
106 Sociologia da religião

irracional e subconsciente das ações de indivíduos pertencentes a um grupo.


Também visou comparar os elementos comuns entre as religiões mais
primitivas e as mais complexas, analisando, assim, as sociedades tribais
australianas, com o propósito de identificar as formas elementares da religião
totêmica compostas de símbolos, ritos e crenças comuns a uma coletividade
específica.
Na obra As formas elementares da vida religiosa, Durkheim (1989) confirma
duas ideias que já havia apontado em seu artigo “Da definição dos fenômenos
religiosos”, a saber: i) a religião é um fenômeno humano de natureza particular
e um fato social a ser explicado em termos sociológicos; ii) o componente
religioso é parte da estrutura da personalidade humana inerente a cada
civilização.
Para Durkheim (1989), tais elementos se verificam já no totemismo, como
expressão de religião mais simples, em que o totem cultuado propicia uma
distinção grupai por meio de uma identidade coletiva. O sociólogo analisou,
entre os aborígenes australianos, grupos de parentesco que ocorriam sem laços
consanguíneos. Uma importante contribuição de Durkheim para as
representações do sagrado é o fato de que, em sua visão, elas são também
retratos da vida social, de modo que não é possível afirmar, diferentemente de
Marx e de Weber (de quem trataremos à frente), a existência de “falsas
religiões”, pois “todas respondem, ainda que de maneiras diferentes, a
determinadas condições da vida humana” (Durkheim, 1989, p. 31).
Com isso, o trabalho durkheimiano apresenta alguns pressupostos para
uma nova religiosidade coerente com o mundo moderno, tendo o próprio ser
humano como elemento central. Para Durkheim (1989), a essência da religião
(sem, com isso, filiar-se a alguma teoria essencialista) está na distinção entre o
sagrado e o profano (Durkheim, 1989).
O sagrado, em sua perspectiva, diz respeito a:
107 Sociologia da religião

▪ certa unidade entre crenças e ritos, que se poderia chamar de religião ou


igreja, na medida em que tais crenças são compartilhadas por um grupo;
▪ um aspecto cognitivo/cultural nas crenças e a um aspecto
material/institucional nos ritos;
▪ uma dimensão que possibilita o afastamento das coisas cotidianas, o qual,
por sua vez, permite despertar elementos de interioridade (reações,
sentimentos e emoções) em risco de profanação;
▪ uma possibilidade de ser “puro”, um distribuidor de forças benfazejas
(vida, paz, saúde), ou “impuro”, um distribuidor de forças malfazejas
(maldições, miséria, doença, medo, horror, morte), sendo que essa
conjectura revela o estado afetivo em que se encontra a comunidade;
▪ um conceito plástico que pode ser atribuído a qualquer coisa, de
elementos naturais (árvores, rochas, rios) a humanos (gestos, fórmulas,
palavras), o que significa que a religião não precisa necessariamente de
uma divindade;
▪ distintos padrões de formato: totêmico, teocêntrico, cosmocêntrico ou
antropocêntrico.

O profano, por sua vez, diz respeito ao que é mais comum, rotineiro e
repetitivo, àquilo que não se deve misturar com o sagrado, sob pena, portanto,
de violá-lo; no entanto, isso não significa que não haja comunicação entre os
dois, embora, para isso, exija-se uma iniciação, que pode ser mais ou menos
complexa. Essa distinção é também constitutiva de uma divisão mental que
repercute em uma divisão real, mais especificamente nas dimensões individual
e coletiva da humanidade.
A iniciação refere-se à assimilação das crenças (estados de opinião que
oferecem representações do sagrado) e dos ritos (determinados modos de ação).
Com base nesse conjunto de elementos,
108 Sociologia da religião

particularmente a dimensão ritual, explica-se a manifestação terrena do


sagrado, bem como a relação entre os membros de uma religião. Há ritos que
Durkheim (1989) classifica como negativos (para preservar a separação entre
sagrado e profano) e positivos (para manter o fiel em contato com o sagrado).
Ambos, por meio da exaltação das energias individuais, visam retirar as pessoas
de suas vidas ordinárias para que possam acessar o universo sagrado. Os ritos,
portanto, são responsáveis por manter as crenças vivas, razão pela qual se trata
de dinamização, a qual permite renovar as representações coletivas do sagrado.
Essa dinâmica desperta o iniciado, então, para a percepção da vida coletiva por
meio de um sentimento do divino, que é ora de confusão, ora de temor, mas
também de respeito, devotamento e adoração. Há uma dupla face entre a força
anônima do sagrado e a vida coletiva, de modo que os fatos religiosos
expressam simbolicamente sua origem social.
Em Durkheim, a sociedade revela-se uma máquina de fazer deuses.
Mesmo que ela seja complexa, existem crenças e ritos que podem não ser
religiosos stricto sensu, mas se aproximam muito da dinâmica religiosa de
despertar paixão e sentimentos típicos do sagrado nos rituais primitivos, como
o próprio autor identificou no sentimento efervescente da Revolução Francesa
(Moscovici, 1990).
Para Durkheim, segundo Nunes (2007), o estudo da religião permite
identificar as fontes dos laços sociais, visto que se trata de um possibilitador da
organização coletiva do ser humano. Isso faz com que seja necessário repensar
tais vínculos em uma sociedade laicizada, pois, mesmo que as formas
tradicionais de religião desapareçam, o ser humano será capaz de encontrar
novos símbolos de solidariedade.
Apesar do primado do conhecimento científico no mundo moderno,
graças à autoridade intelectual conferida às ciências (outrora restrita à religião),
estas não precisam competir entre si. Isso ocorre porque, de acordo com Nunes
(2007), o conhecimento
109 Sociologia da religião

científico, para Durkheim, tem origem no conhecimento religioso, na medida


em que ambos compartilham tarefas de classificação, sistematização e
atribuição de sentido à realidade, categorias fundamentais do pensamento.
Ademais, para o sociólogo francês, a ciência moderna é o resultado do avanço
do racionalismo e do individualismo no Ocidente, e esse acento – sobretudo em
relação ao último – resulta em um estado anômico nos países europeus, razão
pela qual a religião, nesse caso, pode ajudar a ciência, pois ambas são
representações coletivas.
O papel da sociologia durkheimiana da religião é não somente revelar o
caráter social da religião, como também identificar possibilidades de
reconstrução de crenças necessárias ao consenso e adequadas à complexidade
das sociedades modernas, uma vez que as crenças tradicionais são insuficientes
para atender à diversidade do mundo moderno.
Com base nisso, a sociologia da religião, então, ajuda a compreender a
evolução histórica de valores, ritos e crenças para apontar, segundo Vares (2015,
p. 12), uma forma de “nova fé de cunho cívico”. Contrariamente aos que
pensaram na “religião antropocêntrica durkheimiana” como “origem dos
movimentos totalitários na Europa”, Durkheim propunha “proteger a
dimensão sagrada da pessoa humana” (Vares, 2015, p. 12). Ao identificar os
elementos constitutivos para uma teoria geral da religião, a grande preocupação
do autor não era a religião em si, mas a compreensão da constituição moral das
sociedades complexas, correlacionando-a à presença do sagrado em símbolos
da esfera civil e laica, emoldurados em um quadro religioso estrutural
(símbolos, narrativas, valores, heróis cívicos). A intenção de Durkheim era
elaborar uma sociologia moral que atendesse à vida moderna, dada a
insuficiência dos valores tradicionais, considerando-se a variedade funcional da
sociedade contemporânea.
110 Sociologia da religião

Para conceitualizar sociedade, Durkheim (1989) destacou a noção de


solidariedade orgânica, ideia segundo a qual há um nível de interdependência
individual nas dimensões social, econômica e, principalmente, moral,
diferentemente da noção de solidariedade mecânica, na qual há uma dimensão
quase inexistente de consciência individual. Nesse viés, as sociedades modernas
ou capitalistas se regem por um contexto de solidariedade orgânica que incide
nas formas de organização social, de modo que as relações sociais são menos
coercitivas, razão pela qual se possibilita ao homem moderno ser mais livre da
“tirania do grupo” e ter maior autonomia de ação e de pensamento – e, portanto,
de escolha. Essa condição é o centro da própria moralidade moderna, ou seja,
do “individualismo moral”.
Aplicando sua teoria social da religião, Durkheim (1975) entende que é
por meio do caráter social do “culto” ao indivíduo que o homem moderno foi
revestido de um aspecto sagrado. O cristianismo, aliás, teria sido responsável
por semear essa dimensão do individualismo moral por ser primeira religião a
deslocar a coerção da pólis para a convicção interior, tarefa mediante a qual
fundou um sistema de crença com base no indivíduo: “O próprio centro da vida
moral foi assim transportado do exterior para o interior e o indivíduo elevado a
juiz soberano de seu próprio comportamento, sem ter de prestar contas senão a
ele próprio e ao seu Deus” (Durkheim, 1975, p. 244-245).
Para o sociólogo da moral, a convicção do indivíduo oferece as condições
necessárias para uma unidade moral nas sociedades modernas, pelo caráter
religioso que assumiu (culto ao indivíduo). Se, antigamente, os elementos de
moralidade tradicional (valores) estavam ligados a um espírito de “disciplina”
e de “abnegação”, a modernidade requer um decoro marcado pelo espírito de
autonomia, especialmente o dogma da autonomia da razão e o rito da análise
livre.
111 Sociologia da religião

Há um deslocamento da coerção da vida coletiva que sustentava o


espírito de disciplina e de abnegação para a necessidade de uma moral que seja
capaz de apresentar sua razão de ser, exigindo, assim, uma educação que
abranja o conteúdo dos valores que são demandados. Cabe acrescentar que é
essa “religião do indivíduo” que possibilita identificar as fragilidades
normativas para que possa haver uma transformação. Mesmo sendo racionais,
laicas e científicas, as sociedades modernas permanecem carregadas de
dimensões irracionais, ritualísticas e religiosas, razão pela qual Durkheim,
segundo Vares (2015, p. 18), “considera a sacralização do humano um avanço
histórico, social e político inestimável para os rumos da civilização”.

Sociologia da religião
3.4

de Max Weber
Max Weber (1864-1920) se interessou pelo estudo da religião depois de
investigar o surgimento do capitalismo burguês. Nesse contexto, ele atribuiu
uma gênese religiosa à modernidade ocidental. De modo especial, o autor tinha
curiosidade pelas transformações na subjetividade de determinados segmentos
sociais constitutivos do capitalismo racional, como as classes médias e baixas
em ascensão, e, de modo mais particular ainda, pela “conduta metódica dos
primeiros empresários modernos” e a doutrina do protestantismo ascético
(Machado, 2013, p. 209).
Como os demais sociólogos clássicos da religião, o interesse por esse
campo de pesquisa não ocorreu pela religião em si mesma, mas pela relação
desta com as mudanças sociais da modernidade. Ou seja, as crenças e as
concepções deveriam ser analisadas em razão das articulações que mantêm com
as atividades cotidianas dos grupos sociais que lhes dão sustentação.
112 Sociologia da religião

Weber precisamente acentua duas principais características da dimensão


sociológica da religião: (i) a geração de um laço social e ao mesmo tempo (2) um
modo de poder. Consequentemente, como apontam Hervieu-Léger e Willaime
(2001), a sociologia weberiana das religiões se dedica a definir tipos de
comunalização religiosa (religiöse Vergemeinschaftung) e tipos de autoridade
religiosa, pois o próprio Weber desenvolve sua sociologia da religião como
parte da sociologia de dominação, dando ênfase, portanto, aos “modos de
exercício de poder religioso”, sendo próprio da atividade religiosa “regular as
relações das potências ‘sobrenaturais’ com os homens” (Hervieu-Léger;
Willaime 2001, p. 83, tradução nossa).
Embora o sociólogo alemão tenha trabalhado com tipos ideais binários,
ele tinha clareza quanto à diferença entre o objeto real e o objeto de
conhecimento. Weber sabia que só se aprende algo do primeiro por meio de
uma construção de conhecimento sempre passível de revisão e
aperfeiçoamento. Ou seja, para o filósofo, esses tipos não existem em estado
puro na realidade, mas são pontos de referência para a observação do fenômeno
religioso no mundo empírico.
Os tipos weberianos podem ser encontrados na diferença entre ética da
responsabilidade e ética da convicção. Weber critica a posição puritana,
indicando-a como representante da segunda ética, ao apontar que os resultados
da ação nem sempre correspondem às intenções do autor, da mesma forma que
alguém sem convicção de um valor pode ter ações muito valorativas. Com isso,
o autor também critica a postura puritana de que o injusto ou o desonesto pode
ser recompensado, ao passo que a exigência de justificação do puritano convicto
acaba demandando a necessidade de uma teodiceia, uma explicação divina da
realidade (Hervieu-Léger; Willaime, 2001).
Com base nessa perspectiva, portanto, a análise weberiana da salvação
incide não sobre a vida eterna, mas sobre o mundo “cá
113 Sociologia da religião

embaixo”, ou seja, os atos religiosos objetivam felicidade e vida longa sobre a


Terra. Os bens de salvação, na linguagem sociológica weberiana, não devem
orientar-se para o além, mas relacionar a este mundo e à busca de um habitus no
presente.
Da característica de pensar a salvação como habitus do mundo presente e
da necessidade de justificativa que promoveu uma racionalização da conduta
em função da ascese empresarial resultou o desencantamento do mundo, o
qual, no âmbito da análise sociológica de Weber, é consequência de uma
racionalidade liberta das ideologias do progresso, a ser aplicada também na
esfera econômica (com separação entre a gestão doméstica e da empresa,
organização racional do trabalho, introdução da contabilidade racional),
legitimadas pela religião. Esta, por sua vez, é a doadora de sentido para essa
racionalização e esse desencantamento, isto é, a forma de obter resultados que
servem de confirmação da salvação, assim como a ética de convicção do dever
inerente ao discurso religioso. Weber, que analisou diversas religiões, identi-
ficou tal dinâmica no calvinismo e publicou os resultados de suas observações
sociológicas na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo (Hervieu-Léger;
Willaime, 2001; Weber, 2004).
A noção de ética em Weber não significa “doutrina ética”, com sistema
conceituai e justificações teóricas. Trata-se de um ethos, ou seja, uma ética
praticada como um sistema de disposições que imprimem uma orientação de
vida, um modo prático de conduta de vida. Ao falar em ética protestante, o autor
se refere à ética puritana de inspiração calvinista que definiu um estilo religioso
com base em um comportamento e em uma mentalidade específica. E, ao falar
em espírito do capitalismo, Weber trabalha com a ideia de racionalidade
econômica. A contribuição weberiana está em identificar uma afinidade entre o
ethos puritano e a racionalidade econômica (espírito do capitalismo), entendida
como espírito empreendedor ocidental. Trata-se, nessa ótica, da análise da
114 Sociologia da religião

“infraestrutura ética da conduta de vida do empreendedor capitalista” (Weber,


2004, p. 113) ou das justificativas religiosas que sustentam sua mentalidade e
sua prática, misturando negócios e piedade de modo intenso e promovendo
uma devoção à atividade profissional produtiva. Dessa forma, passa-se a ver o
trabalho como a uma finalidade em si mesma, uma vocação, em vez de uma
procura por dinheiro de acordo com as necessidades da vida, como outrora.
Para o sociólogo alemão, a expansão do capitalismo moderno está ligada mais
diretamente ao desenvolvimento do espírito capitalista, com molduras
religiosas de uma ascese intramundana, do que às reservas monetárias
alcançadas (Weber, 2004).
A Reforma Protestante, para Weber, era outra espécie de dominação que
gerou uma regulamentação muito mais rígida do indivíduo, particularmente
identificada no calvinismo – mas não o de Calvino, que surgiu a partir do final
do século XVI e início do século XVII, especialmente na Holanda e na Inglaterra.
Para esse calvinismo, a visão de Deus era absolutamente transcendente, a
mediação entre homem e Deus fora abolida, havia iconoclastia dos sentidos e
um individualismo pessimista segundo o qual só Deus seria digno de confiança
e o sucesso do crente no mundo seria interpretado como prova da eleição do
fiel, ao passo que os desocupados seriam a indicação de um sintoma de “falta
do estado de graça” (Weber, 2004, p. 261). O indivíduo moderno estava, pois,
situado em uma racionalidade instrumental e vulnerável à iluminação de uma
autoridade carismática, que retroalimentaria o sistema de crenças de seu
espírito empreendedor. A vocação do intelectual era empreender uma ética da
responsabilidade como forma de pensar que integrasse as consequências
previsíveis possíveis e uma racionalidade do valor como possibilidade de
conduta para um mundo desencantado, apesar de religioso.
Entretanto, outras abordagens contemporâneas aos clássicos da
sociologia da religião foram realizadas pensando-se a religião pelo
115 Sociologia da religião

ponto de vista do sistema social. Nomes como Alexis de Tocqueville (1805-1859)


desenvolveram o tema das virtudes da religião nas sociedades democráticas.
Georg Simmel (1858-1918), por sua vez, propagou a ideia de religiosidade como
forma pura das relações sociais. Maurice Halbwachs (1877-1945) aprimorou o
que chamou de sociologia da memória e, com base nela, registrou o papel da
memória nos grupos religiosos. Gabriel Le Bras (1891-1970) trabalhou com a
ideia de sociologia religiosa e, com isso, implementou a sociologia do
catolicismo na França. Henri Desroche (1914-1994), por seu turno, desenvolveu
uma sociologia da esperança para entender não somente os movimentos
religiosos – como messianismos e milenarismos –, mas também as utopias
sociais.

Tendências contemporâneas
3.5

da sociologia da religião
Após os clássicos e a indicação de declínio dos níveis de religiosidade, os
fenômenos religiosos passaram a ser lidos sociologicamente sob o viés
contemporâneo de que a modernidade resulta em um desencanto ou em uma
redução da vitalidade religiosa.
Houve uma primeira reação da sociologia de inspiração cristã, em que
teólogos, padres e pastores se interessaram pelo debate sociológico com
insistência metodológica pela fenomenologia. Foi o caso de Joachim Wach
(1898-1955), que estabeleceu uma distinção com base na divisão das Ciências da
Religião em duas áreas: i) a história da religião, que procura compreender o
processo pelo qual uma religião chega à sua forma atual; e ii) a ciência sistemá-
tica da religião, que procura investigar um traço universal entre as várias
religiões.
Para além do debate entre fenomenologia (Otto, Eliade, Van der Leeuw)
e história (Pettazzoni e Giuseppe de Lucca), a sociologia de inspiração cristã
procurou compreender a institucionalização
116 Sociologia da religião

da experiência religiosa, preocupada em entender melhor esse fenômeno


ameaçado pelo secularismo. Além do próprio Wach, nomes como Ernst
Troeltsch (1865-1923), Giuseppe Toniolo (1845 – 1918) e Luigi Sturzo (1871-1959)
faziam parte dessa motivação para a tarefa sociológica (Martelli, 1995; Greschat,
2005).
Após a Segunda Guerra Mundial, mais precisamente a partir da década
de 1960, começou a se acentuar outra leitura sobre o avanço da modernidade
com base na teoria da secularização e seus efeitos sobre a religião. Talcott
Parsons (1902-1979) foi um dos primeiros a trabalhar nesse tema.
Sabino Acquaviva (1929-2015) dedicou-se à secularização como
dessacralização; Robert Bellah (1927-2013) incidiu sobre a abordagem simbólica
dos fenômenos religiosos, a qual resultou na religião civil americana; Bryan R.
Wilson (1926-2004) explorou a marginalização da religião em uma sociedade
em crescente racionalização; Thomas Luckmann (1927-2016) abordou a
subjetivação das crenças; e Niklas Luhmann (1927-1998) entendeu a
secularização como autorreferencialidade sistêmica.

As teorias secularista e pluralista


3.5.1

nas visões de Peter Berger e José Casanova


Entre as teorias contemporâneas mais influentes na área das ciências da religião
está a de Peter Berger (1929-2017), popularizada no livro de sua autoria
intitulado O dossel sagrado, de 1967 (Berger, 1985). Ela basicamente apresenta a
separação entre Igreja e Estado como o fim da hegemonia religiosa e o início do
crescimento da pluralidade de crenças, quando surgiria, no fim do dossel, o
quadro de referência sagrada e cósmica da religião e de suas instituições e os
consequentes elementos culturais que protegiam a influência homogênea da
crença tradicional como reguladora social. Inaugurava-se, com isso, a livre
escolha individual da pertença religiosa,
117 Sociologia da religião

fonte de privacidade, subjetividade e relativização dos conteúdos sagrados,


resultando em ceticismo e em indiferença quanto à religião, um efeito da
secularização.
No entanto, em 1994, o sociólogo espanhol José Casanova (1951-), da
Georgetown University, lançou uma teoria baseada na análise de cinco casos da
religião cristã por ele estudados:

1. o desmantelamento de sua influência no poder civil da Igreja na Espanha,


onde era estatal (disestablishment)5;
2. a transformação da Igreja da nação para a sociedade civil, na Polônia;
3. a passagem de Igreja oligárquica para Igreja popular, no Brasil;
4. o itinerário do protestantismo evangélico, de religião civil para seita
fundamentalista da nova direita cristã;
5. a mudança do catolicismo nos Estados Unidos, de privado para
denominação pública.

Com isso, o autor indicou que podem ser identificadas três proposições
(Casanova, 1994, p. 11-40, tradução nossa):

1. “a secularização como diferenciação das esferas seculares das instituições


e normas religiosas”;
2. “a secularização como declínio de crenças e práticas religiosas”;
3. “a secularização como marginalização da religião para a esfera privada”.

Para o sociólogo espanhol, as duas últimas proposições se verificaram


principalmente no caso europeu. No continente americano, a secularização
operou de modo diferente, tendo sido mais bem traduzida a primeira
proposição. Deve-se, nesse caso, entender

5
Establishment é uma expressão pejorativa de língua inglesa que se refere ao grupo que detém o poder
majoritário e a maior influência na máquina estatal. O termo disestablishment, usado por Casanova, sugere o
desmantelamento desse quadro político.
118 Sociologia da religião

secularização como diferença funcional entre instituições que até então sofriam
influência direta das religiões oficiais e depois passaram a atuar como
organizações laicas.
Contudo, isso não significa que não haja outras formas de influência da
religião, como a Igreja do Povo, no Brasil, que considera a atuação dos bispos
nas causas sociais, e a Ação Católica (Juventude Universitária Católica,
Juventude Estudantil Católica, Juventude Operária Católica, entre outras
organizações). Além disso, Casanova (1994) também analisa o papel dos bispos
de criar uma base social em razão do risco do perigo bolchevique na intervenção
militar de 1964. O autor mostra ainda como nos Estados Unidos coexistem a
modernidade científica, tecnológica e econômica e elevados índices de presença
religiosa, ao mesmo tempo que há um pluralismo de crenças e uma militância
política e midiática da direita cristã. O autor conclui que, fora do caso europeu,
ocorre muito mais uma espécie de “desprivatização” da religião moderna após
a década de 1990. Ou seja, a modernização não acarreta obrigatoriamente
redução ou privatização do fenômeno religioso, o que vale para a Europa
contemporânea com seus novos movimentos religiosos e a presença do Islã
(Casanova, 1994).

A influência de novos
3.5.2

movimentos sociais na
secularização e na crise religiosa
A emergência de novos movimentos religiosos é concomitante ao surgimento
de mobilizações sociais que atuam na contracultura (feminismo, ecologia e
direitos humanos) e servem como formas de sobreviver às radicais mudanças
socioculturais e às incertezas geradas com o advento da emancipação das
tradições, da globalização capitalista, da racionalização e do relativismo
cultural. Entre
119 Sociologia da religião

as causas da expansão desses movimentos, podemos encontrar a flexibilidade


moral – especialmente a pessoal –; a busca por verdades espirituais; a procura
por segurança emocional em comunidades afetivas; e a substituição de uma
compreensão de religião organizada em crenças, símbolos e ritos para uma
assimilação de espiritualidade (Mariano, 2013). Esses processos evidenciam
também a crise das instituições religiosas – ou a desinstitucionalização do
religioso.
Destaca-se igualmente a coexistência do surgimento de
fundamentalismos também oriundos da desregulação estatal, havendo, assim,
uma competição religiosa, a qual alimenta ativismos proselitistas que, por sua
vez, acabam por se alinhar a posturas políticas e ideológicas contrárias aos
movimentos de vanguarda. Dito de outro modo, o religioso mais se expande do
que declina no tecido social, por meio de rearranjos.

3.5.3 Atualidade das teorias da secularização


Nomes como Danièle Hervieu-Léger (1947-), Charles Taylor (1931-), assim
como José Casanova, entre outros, têm revisitado e considerado as teorias da
secularização como modernidade religiosa. Nesse sentido, a secularização oferece
um conhecimento que deixa de ser de oferta de um conjunto de referências para
ser experiência de sentido da vida. Por isso, deixa de fazer parte do dia a dia a
ideia de uma pessoa religiosa convertida, a qual passa a ser peregrina, em uma
nova forma de sociabilidade pela religião (Hervieu-Léger, 2008, p. 30). Além
disso, apesar da perda de senso coletivo, a virada subjetiva da religião pode ser
entendida como uma cultura de autenticidade em oposição ao conformismo
religioso tradicional, de modo que a prática e as crenças precisam ser
significativas para o próprio caminho, de forma pessoal e intransferível (Taylor,
2010).
120 Sociologia da religião

David Martin (1929-) ainda revisita a posição inicial sobre a secularização


para entender a resiliência religiosa contemporânea, realizando um profícuo
diálogo entre sociologia e teologia, música e religião, além de ser um dos
pioneiros nos estudos sobre o pentecostalismo na América Latina e sobre a
relação entre religião e violência.
Há que se dizer ainda que já foi notada a especificidade do caso brasileiro
nos estudos sociais a respeito do fenômeno religioso: em nosso país, a religião é
vista como um “ingrediente social tal que sem ele seria insuficiente qualquer
tentativa de descrição ou análise da sociedade brasileira” (Campos, 2013, p.
192).
Podemos classificar as tendências de investigação social sobre religião no
Brasil na qualidade de temáticas fundamentais da seguinte forma:

▪ catolicismo – religião oficial e, portanto, como Igreja de Estado até a


Constituição republicana;
▪ religiões de matriz africana – pesquisadas pelos intelectuais franceses
que atuaram no país;
▪ movimentos pentecostais e neopentecostais;
▪ novos movimentos religiosos.

Não estão ausentes os trabalhos ligados ao protestantismo histórico,


embora apareçam em menor número em relação aos demais, sendo restritos, na
maioria das vezes, aos esforços dos próprios protestantes, como é o caso de
Antônio Gouvêa Mendonça (Campos, 2013). Ademais, no Brasil, a sociologia se
desenvolveu com base num diálogo muito próximo que manteve com as
teologias da libertação, em torno da análise socioestrutural nas décadas de
1960,1970 e 1980 (Boff, 1982).
121 Sociologia da religião

SÍNTESE
Neste capítulo, vimos que a religião é fundamental para entender a
modernidade, uma vez que ajuda a formar um sistema de crenças organizado
que interfere nas relações sociais.
Com base nisso, a sociologia clássica, em seu papel de análise das relações
em sociedade, passou a considerar como preocupação, mais que a religião em
si, a maneira como as crenças religiosas influenciavam, positiva e
negativamente, a conduta social, os modos de produção e os espaços políticos
de decisão da modernidade nascente.
Mostramos também que, para a sociologia clássica, a grande questão a ser
trabalhada era a compreensão da relação funcional entre religiões dominantes
e espaços hegemônicos em uma crescente cultura individualista. Nesse ínterim,
como fio condutor da análise sociológica clássica, também o totemismo se
tornou uma questão influente para alguns autores, especialmente na direção da
busca pelas formas primitivas ou elementares de crenças que imprimiam
diferenças em relação às formas como a religião se apresentava no mundo. A
sociologia clássica ainda identificou um declínio tanto da autoridade e da
influência que os poderes hierocráticos tinham sobre indivíduos e instituições
sociais (políticas, econômicas, jurídicas) quanto da função de coesão e de
regulação moral e social que eles exerciam.
Como complementação da tendência de redução dos níveis de
religiosidade na modernidade apontada pela sociologia clássica, apareceram as
teorias de secularização da sociologia contemporânea. Como vimos, em
determinado momento, verificou-se que o contexto europeu de análise das
teorias da secularização não coincidia com o do continente americano, dos
países do Hemisfério Sul e do Oriente. Para a sociologia contemporânea, a
secularização é uma fase de transformação da religião com base em uma virada
subjetiva, tendo muito mais a ver com a escolha pessoal do que com a pretensa
hegemonia e homogeneidade social de determinada religião.
122 Sociologia da religião

Com influência desse novo contexto religioso, também há formas de


vulnerabilidade social como as recentes maneiras de manipulação de massa e o
surgimento de formas de fundamentalismo potencialmente e/ou efetivamente
violentas, ambos os quais têm retroalimentado uma visão hegemônica de
religião em formas de intolerância religiosa.

INDICAÇÕES CULTURAIS
Produções sobre a sociologia marxista da religião:
DAENS: um grito de justiça. Direção: Stijn Coninx. Bélgica; Holanda;
França, 1992.138 min.

O NASCIMENTO de uma nação. Direção: D. W. Griffith. Estados Unidos,


1915.190 min.

O NASCIMENTO de uma nação. Direção: Nate Parker. Estados Unidos:


Fox Film do Brasil, 2016.120 min.

Produções sobre a sociologia weberiana:


A ONDA. Direção: Dennis Gansel. Alemanha: Constantin Film, 2008.107
min.

TEMPOS modernos. Direção: Charles Chaplin. Estados Unidos, 1936.83


min.

Produções sobre a sociologia durkheimiana:


DECÁLOGO. Direção: Krzysztof Kieslowski. Polônia, 1989. 572 min.

O PAGADOR de promessas. Direção: Anselmo Duarte. Brasil:


Embrafilme, 1962.118 min.

O SENHOR das moscas. Direção: Harry Hook. Estados Unidos, 1990.90


min.

Produções sobre temas da sociologia contemporânea:


DEPROGRAMMED. Direção: Mia Donovan. Canadá: Eye Steel Film,
2015. 85 min.

ONE of us. Direção: Heidi Ewing e Rachel Grady. Estados Unidos:


Netflix; Loki Films, 2017. 403 min. Série de streaming.
123 Sociologia da religião

As produções indicadas incidem sobre a leitura sociológica crítica acerca


da religião e da sociedade, com base na tentativa de olhar o contexto social para
entender o indivíduo. São importantes também por apresentarem uma
linguagem crítica em relação ao fenômeno religioso. No que diz respeito à
sociologia da religião, é possível perceber nas produções a relação que há entre
religião e sociedade, o que inevitavelmente implica “denunciar fatos in-
convenientes da religião e, se o caso for mais particular, os de sua própria
religião” (Campos, 2013, p. 201). Isso não significa que não possa haver
contribuições sociais relevantes da religião para a sociedade, o que, no entanto,
não deve ser confundido com apologia.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. Quais são os autores considerados clássicos da sociologia da religião?
A] Karl Marx, Emile Durkheim e John Stuart Mill.
B] Emile Durkheim, Sigmund Freud e Max Weber.
C] Heinrich Heine, Emile Durkheim e Max Weber.
D] Karl Marx, Heinrich Heine, Emile Durkheim e Max Weber.
E] Karl Marx, Friedrich Engels, Emile Durkheim e Max Weber.

2. Qual das expressões a seguir melhor traduz o papel da religião na


modernidade segundo a sociologia marxista da religião?
A] A religião é fundamental para a organização social, uma vez que
entorpece as práticas espirituais de um grupo social.
B] A religião é o ópio do povo.
C] A religião que se pautava por uma visão de teodiceia na Revolução
Industrial foi utilizada como anestésico da consciência crítica social de
um povo.
D] A religião é um mal na sociedade e trabalha como subterfúgio paliativo
moral.
E] A religião foi fundamental para as grandes transformações de melhoria
social na Revolução Industrial, dado o seu apelo ético.
124 Sociologia da religião

3. Qual das afirmações a seguir melhor traduz o papel da religião na


modernidade segundo a sociologia da religião de Durkheim?
A] A religião é fator fundamental para a produção de solidariedade
orgânica.
B] A religião é ópio do povo e o motor de seus governos.
C] A religião só é capaz de promover solidariedade mecânica.
D] A religião não é capaz de gerar solidariedade orgânica porque foi
fundada em uma cultura coletivista da revolução agrícola.
E] A religião é a única possibilidade de gerar solidariedade mecânica.

4. Qual das afirmações a seguir melhor traduz o papel da religião na


modernidade segundo a sociologia da religião de Weber?
A] A religião é um fator de crítica ética do espírito capitalista.
B] A religião cristã desse período é anticapitalista.
C] O capitalismo moderno pressupõe a existência de uma religião que
promova uma consciência coletiva.
D] A sociedade é uma máquina de produzir deuses, panteão social
administrado pela religião.
E] A religião é um sistema de crença que não se relaciona com o sistema
econômico.

5. Qual alternativa apresenta questões tematizadas pela sociologia da religião


contemporânea?
A] Secularização; relação entre pentecostais e cenário político; regulação de
entorpecentes.
B] Religião como ópio do povo; relação entre cenário político e movimentos
sociais.
C] Secularização, desprivatização da religião, relação entre movimentos
sociais e religião; relação entre pentecostais e cenário político.
D] Pentecostalismo; regulação moral; Igreja e Estado; relação entre
pentecostais e cenário social.
E] Aborto; escola sem partido; homofobia; relação entre Estado e terceiro
setor.
125 Sociologia da religião

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão


1. Qual é o papel da religião na sociedade para a sociologia da religião clássica?
Descreva de forma sintética a percepção dos autores clássicos dessa área de
estudos e compare as perspectivas e os contextos de cada um.
2. Quais relações podem ser identificadas entre: i) religião e movimentos
sociais; e ii) religião e representantes políticos? (Indique nomes e
instituições). Com base nesse mapeamento, qual seria o contexto
contemporâneo brasileiro da relação entre movimentos sociais e
representação política e quais seriam as posições religiosas envolvidas?

Atividade aplicada: prática


1. Faça um levantamento de quais religiões ou tradições de sabedoria religiosa
existem em sua cidade e, se necessário, organize-as por agrupamentos
(muçulmanos, católicos, protestantes, evangélicos, budistas, entre outros).
Escolha três delas para fazer uma análise comparada considerando os
seguintes aspectos:
A] tipo de relação existente entre essas religiões e a cidade em que você vive;
B] o modo como o sistema econômico influencia essas religiões;
C] a maneira como essas religiões influenciam os espaços políticos de
decisão;
D] outras formas de relação entre essas religiões e a sociedade.
4
PSICOLOGIA
DA RELIGIÃO

A relação entre religião e interioridade humana é muito anterior à


moderna denominação de psicologia da religião atribuída ao campo de estudo que
se interessa pela questão religiosa. A interioridade pela qual se interessam as
ciências psicológicas é tradicionalmente chamada no Ocidente de alma (na
literatura latina) e psiché (na literatura grega). No passado, a relação entre a
experiência religiosa e a alma foi tratada pelos místicos.
Na medida em que a psicologia buscou entender a questão religiosa com
base na racionalidade e na cientificidade da dimensão psíquica, passou a atentar
para elementos como a estrutura interna das experiências e as alterações do
estado de consciência, bem como o impacto que elas têm no amadurecimento
afetivo e emocional ou na infantilização da responsabilidade pessoal diante do
fenômeno religioso, ao promover experiências de fuga. Também receberam
atenção questões de culpa e de perdão, assim como a construção das
identidades religiosa, da crença e da descrença, entre tantas outras
possibilidades.
Para compreender esse assunto, faz-se necessário reconhecer a distinção
entre psicólogos ou demais autores que contribuíram para a discussão sobre a
relação entre psicologia e religião e os reconhecidamente chamados de psicólogos
da religião.
127 Psicologia da religião

A proposta deste capítulo não é abordar todo o desenvolvimento da


psicologia da religião, mas mostrar como algumas correntes foram
particularmente importantes para o desenvolvimento da disciplina ou de
questões vinculadas à relação entre psicologia e religião.

Sigmund Freud, religião


4.1

e o mal-estar da civilização
Para Sigmund Freud (1856-1939), a religião se apresenta como
questionamentos sobre sua gênese psicológica e sobre a concepção de Deus.
Apesar de suas ideias terem sido alvo de críticas tanto da religião quanto da
psicologia, Freud é, inegavelmente, alguém que levantou importantes questões
para as duas áreas.
Entretanto, a pergunta sobre a origem psíquica da religião não é
originalmente do psicanalista vienense, uma vez que ela já estava presente, por
exemplo, em um trabalho de Charles Robert Darwin (1809-1882), publicado
primeiramente em 1872 e reeditado em 1890, intitulado The Expression of the
Emotions in Man and Animais, em que o naturalista britânico pretendia mostrar
o limiar entre animais e humanos e como eles carregam uma marca indelével
de sua estrutura primitiva.
Darwin aplicava o que se conhecia por pathomyotomia, uma espécie de
ancestralidade da psicologia segundo a qual, mediante a observação das
expressões corporais – e, de modo especial, dos músculos da cabeça –, era
possível encontrar as influências da mente por analogia com as manifestações
emocionais (Green; Tassinary, 2002).
Adotando a observação como elemento moderno de investigação,
Darwin procurou verificar a diferença entre as emoções animais e humanas,
identificando, por exemplo, o ato do beijo como propriamente de nossa espécie.
Ele registrou que os orangotangos
128 Psicologia da religião

chegam a ter movimentos labiais parecidos com o do beijo (embora não o


executem): quando contrariados na satisfação de suas necessidades ou de seus
desejos (por exemplo, quando lhes é oferecida uma laranja e, em seguida, ela é
retirada de perto deles), os primatas projetam os lábios em forma de bico, como
uma criança amuada. Um movimento labial distinto ocorre quando eles abrem
largamente a boca e, retraindo os lábios de modo a expor bem os dentes,
mostram sua raiva e revelam seu potencial de ataque (pela mordida).
Darwin também realizou um experimento no qual colocou um espelho
no chão de um jardim zoológico, percebendo que os orangotangos mantinham
várias interações com o objeto, entre as quais a de projetar o bico da mesma
maneira descrita anteriormente, como se fossem beijar a imagem refletida –
mesmo quando chegavam a se beijar, o biólogo reputava a causa ao fato de
estarem imitando seres humanos que passeavam pelo zoológico (Darwin, 1890).
Entende o pai do evolucionismo que o amor, embora seja uma
característica tipicamente humana, não é um fenômeno que se manifesta como
um salto brusco na cadeia evolutiva. Para o autor,
0 amor é elemento capaz de provocar uma sensação prazerosa, “um sorriso
gentil e um brilho nos olhos” e “um forte desejo de tocar a pessoa amada” 1
(Darwin, 1890, p. 226, tradução nossa); assim, o beijo se revela mais tipicamente
humano do que qualquer outro afeto. No entanto, ele também pode ser
entendido como herança ancestral proveniente do cuidado materno e das
carícias mútuas entre nossos amantes ancestrais. A prova disso, segundo
Darwin (1890), reside no fato de que tal necessidade de afeto ainda permanece
nos animais, haja vista a maneira como os animais domésticos ou mesmo os dos
zoológicos gostam do afago das pessoas, nas quais se esfregam para obter esse
toque.

1 "A gentle smile and some brightening of the eyes"; "a strong desire to touch the beloved person" (Darwin, 1890,
p. 226).
129 Psicologia da religião

Todavia, apesar de ser característico do ser humano, não se deve


considerar o beijo como algo natural, pois há que se distinguir entre a
necessidade de expressões ternas e a manifestação conforme produzida pela
cultura que traduz esse sentimento. Em suas viagens às Ilhas Galápagos, a
bordo de um navio chamado Beagle, Darwin pôde registrar muitas outras
formas culturais de o ser humano demonstrar ternura – e não o beijo somente –
, as quais também fazem parte do patrimônio de carícias que a história humana
coleciona. O elemento comum a essas formas culturais de afetuosidade,
segundo Darwin, é a simpatia (sympathy):
O sentimento de simpatia é normalmente explicado assumindo-se que,
quando vemos ou ouvimos falar de sofrimento no outro, a ideia de sofrimento
é evocada de forma tão vívida em nossas mentes que nós também sofremos.
Mas essa explicação é quase suficiente, pois não leva em conta a aliança íntima
entre a simpatia e o afeto. Sem dúvida, simpatizamos muito mais
profundamente com uma pessoa amada que com uma pessoa indiferente; e a
simpatia da pessoa amada nos dá alívio muito mais do que a dos outros. No
entanto, certamente podemos simpatizar com aqueles por quem não sentimos
afeição. (Darwin, 1890, p. 229, tradução nossa)
Aqui reside a diferença do propriamente humano: poder reorientar o
afeto para ter empatia com alguém com quem não se mantém sequer um
relacionamento – tocando diretamente na condição humana comum e no caráter
de vulnerabilidade –, bem como ser feliz com a alegria alheia. Darwin chega a
apontar a música como aperfeiçoamento cultural destinado a evocar as forças
emocionais mais profundas, mais poderoso do que a voz de nossos
antepassados. Por fim, vale dizer, ainda, que é do arcabouço do ser humano em
relação à devoção – dimensão de nosso pathos – que deriva, em certo nível, o
afeto. A devoção, embora constituída
130 Psicologia da religião

principalmente por sentimentos de reverência, quando combinada com o medo,


pode também ser notada como expressão do estado de espírito de afeição. Em
um capítulo intitulado “Alegria, alto astral, amor, sentimentos ternos e
devoções”, Darwin identifica esses sentimentos como algo próprio do ser
humano e constata nesses elementos emocionais e afetivos aspectos não
racionais do fenômeno religioso, como constataria Rudolf Otto mais tarde (Otto;
Harvey, 1926), especialmente a convergência entre as experiências emocionais
do amor e da reverência religiosa:

religião e amor estranhamente se combinaram; entretanto, lamentavelmente,


tem sido mantido o fato de que o "beijo sagrado do amor" [holy kiss of love]
difere pouco daquele que dá um homem em uma mulher ou uma mulher neste.
A devoção é principalmente expressa pelo rosto direcionado para o céu e a
pupila dos olhos voltada para cima. (Darwin, 1890, p. 229, tradução nossa)

Diferentemente do que muitos pensam, Darwin tinha grande interesse


pela teologia natural e era fascinado pelo modo como se interpretava a regência
das leis da natureza por parte de Deus. Nesse contexto, ele entende que a base
irracional para a disposição reverenciai ao culto é a mesma que a do beijo entre
amantes, de modo que, quando ele menciona o “beijo sagrado do amor” (Dar-
win, 1890, p. 229), refere-se tanto ao beijo apaixonado quanto ao gesto litúrgico
dos cultos de tradições cristãs, lamentando que a tendência religiosa de sua
época evitasse a aproximação humana do sagrado (Barlow, 1958).
Entretanto, apesar de essa busca por analisar os elementos irracionais da
religião mediante métodos de observação e verificação ter sido um elemento
comum ao espírito da nascente psicologia da religião no século XIX, houve uma
mudança radical na concepção psicológica do fenômeno religioso do século XX,
depois de Freud. Para o autor, a questão irracional da religião era fruto de uma
visão
131 Psicologia da religião

radicalmente distinta de sua época, a respeito da qual discorreu em seus escritos


sobre a civilização. Com base em uma perspectiva desconfiada em relação à
modernidade, ele entende o surgimento do fenômeno religioso como
consequência do aparecimento da civilização moderna e do respectivo mal-
estar que ela então nos teria provocado (Freud, 1974,1996a, 1996b).
O “mal-estar” pode ser concebido como um sentimento de desconforto
gerado em decorrência de se estar inserido numa determinada circunstância.
Freud foi um dos primeiros pensadores a detectar esse desconforto, isto é, a
incompatibilidade entre a civilização moderna e o indivíduo moderno, nos
mencionados escritos sobre a civilização, especialmente nos textos O futuro de
uma ilusão e O mal-estar da civilização (Freud, 1996a).
A leitura de Freud feita pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-
2017) na obra O mal-estar da pós-modernidade apresenta a concepção freudiana de
civilização como uma história da modernidade (Bauman, 1998b).
Na obra O futuro de uma ilusão, Freud, indagando sobre seu tempo, isto é,
os tempos modernos, afirma:

Quando já se viveu por muito tempo numa civilização específica e com


frequência se tentou descobrir quais foram suas origens e ao longo de que
caminho ela se desenvolveu, fica-se às vezes tentado a voltar o olhar para outra
direção e indagar qual o destino que a espera e quais as transformações que
está fadada a experimentar. (Freud, 1996a, p. 3-4)

Para o psicanalista de Viena, a autonomia do homem moderno não


alcançou seu êxito graças a um componente essencial inerente ao próprio
indivíduo, seu inconsciente, o qual o homem não tem predisposição para
controlar. Transcrevemos, a seguir, um trecho maior, dada a riqueza narrativa
do autor:
132 Psicologia da religião

A civilização humana [modernidade], expressão pela qual quero significar tudo


aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere
da vida dos animais – e desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização –
, apresenta, como sabemos, dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui
todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de
controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das
necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários
para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a
distribuição da riqueza disponível. As duas tendências da civilização não são
independentes uma da outra; em primeiro lugar, porque as relações mútuas
dos homens são profundamente influenciadas pela quantidade de satisfação
instintual que a riqueza existente torna possível; em segundo, porque,
individualmente, um homem pode, ele próprio, vir a funcionar como riqueza
em relação a outro homem, na medida em que a outra pessoa faz uso de sua
capacidade de trabalho ou o escolha como objeto sexual; em terceiro, ademais,
porque todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, embora se supo-
nha que esta constitui um objeto de interesse humano universal. É digno de
nota que, por pouco que os homens sejam capazes de existir isoladamente,
sintam, não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a civilização
deles espera, a fim de tornar possível a vida comunitária. A civilização,
portanto, tem de ser defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos,
instituições e ordens dirigem-se a essa tarefa. Visam não apenas a efetuar certa
distribuição da riqueza, mas também a manter essa distribuição; na verdade,
têm de proteger contra os impulsos hostis dos homens tudo o que contribui
para a conquista da natureza e a produção de riqueza. As criações humanas são
facilmente destruídas, e a ciência e a tecnologia, que as construíram, também
podem ser utilizadas para sua aniquilação.
133 Psicologia da religião

Fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma
maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos
meios de poder e coerção. Evidentemente, é natural supor que essas
dificuldades não são inerentes à natureza da própria civilização, mas
determinadas pelas imperfeições das formas culturais que até agora se
desenvolveram. E, de fato, não é difícil assinalar esses defeitos. Embora a
humanidade tenha efetuado avanços contínuos em seu controle sobre a
natureza, podendo esperar efetuar outros ainda maiores, não é possível
estabelecer com certeza que um progresso semelhante tenha sido feito no
trato dos assuntos humanos; e provavelmente em todos os períodos, tal como
hoje novamente, muitas pessoas se perguntaram se vale realmente a pena
defender a pouca civilização que foi assim adquirida. (Freud, 1996a, p. 3-4)

Freud, contudo, reconhece o direito do homem moderno de se orgulhar


de suas realizações, mas evidencia que tais feitos não o tornaram mais feliz. O
pai da psicanálise também não se mostra revoltado com os ideais da sociedade
(moderna), uma vez que sabe da importância que ela exerce sobre a vida
humana. Em seu pensamento social, entende que Eros e Ananque (“amor” e
“necessidade”) são os “pais” da civilização e que, por tais valores, o homem
pode se utilizar da mais alta agressividade (Thanatos) para satisfazer seus
desejos e necessidades. “A liberdade do indivíduo [valorizada como valor
absoluto pela modernidade] não constitui um dom da civilização”, afirma o
autor, visto que, de modo absoluto, os relacionamentos sociais “ficariam
sujeitos à vontade arbitrária do indivíduo [...] o homem fisicamente mais forte
decidiria a respeito deles no sentido de seus próprios interesses e impulsos
instintivos” (Freud, 1996a, p. 61). Nesse sentido, a civilização, para Freud, teria
duas funções específicas: “proteger os homens contra a natureza e ajustar os
seus relacionamentos mútuos”, sendo sua
134 Psicologia da religião

primeira exigência a justiça, ou seja, “a garantia de que uma lei, uma vez criada,
não será violada em favor de um indivíduo” (Freud, 1996a, p. 61).
Desse modo, Freud apresenta lucidez em seu pensamento social, uma vez
que considera que a civilização impõe limites à possível tirania dos indivíduos,
visando a uma acomodação que traga “felicidade” para eles.
Pergunta-se, então: Como foi que tantas pessoas vieram a assumir essa
estranha atitude de hostilidade para com a civilização? Assim o autor responde:
as “paixões instintivas [do homem] são mais fortes que os interesses razoáveis”
(Freud, 1996a, p. 55), razão pela qual “A civilização [modernidade] tem de
utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos
agressivos do homem” (Freud, 1996a, p. 55). Dessa forma, a modernidade
obrigou os indivíduos a respeitar e apreciar a beleza, a limpeza e a ordem
(definidas por Freud como constitutivas da modernidade). Para que o projeto
moderno avance, a liberdade (em categoria absoluta) do indivíduo, voltada
contra a própria modernidade, teria sido combatida com o excesso de ordem,
isto é, a sociedade define como determinada coisa deve ser feita. “A coerção é
dolorosa: a defesa contra o sofrimento gera seus próprios sofrimentos. [...] Os
prazeres da vida civilizada [...] vêm num pacote fechado com os sofrimentos, a
satisfação com o mal-estar, a submissão com a rebelião” (Bauman, 1998b, p. 8).
A modernidade resolveu limitar a liberdade do indivíduo em nome da
segurança de seus projetos.
Não obstante, constata o próprio Freud (1996a, p. 70),

A despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização até hoje não


conseguiram muito. [...] Chega a hora em que cada um de nós tem de
abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou
em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram
acrescentados à sua vida pela má vontade deles.
135 Psicologia da religião

Ademais, não sendo suficientes os esforços de coerção da nova civilização


e sendo obrigado o sacrifício de uma de suas bandeiras mais caras (a liberdade),
o que mais afeta o sentido da existência do homem moderno, baseado em seus
valores, é o que relata o próprio Freud, ao denunciar a traição de sua “primeira
exigência”, exatamente onde começa a desmoronar o sonho do paraíso terrestre,
conforme o trecho a seguir:

É de esperar que essas classes subprivilegiadas invejem os privilégios das


favorecidas e façam tudo o que podem para se liberarem de seu próprio
excesso de privação. Onde isso não for possível, uma permanente parcela de
descontentamento persistirá dentro da cultura interessada, o que pode
conduzir a perigosas revoltas. Se, porém, uma cultura não foi além do ponto
em que a satisfação de uma parte e de seus participantes depende da opressão
da outra parte, parte esta talvez maior – e este é o caso em todas as culturas
atuais –, é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma
intensa hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam possível
pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma quota
mínima. (Freud, 1996a p. 8).

O impulso de liberdade, portanto, acaba se voltando contra as “formas e


exigências específicas da civilização” ou contra a “civilização em geral”.
Ademais, uma impressão pessoal do psicanalista vienense é a de que há um
consenso quanto à insatisfação da civilização (modernidade), isto é, “uma
espécie de mal-estar” (Freud, 1996a, p. 84). O “mal-estar da modernidade”
advém de um excesso de ordem, que impõe pesados sacrifícios às liberdades
individuais, dificultando a felicidade do “paraíso terrestre” como fora pensada
e prometida.
136 Psicologia da religião

A psicanálise de Freud surge, nesse contexto, como “análise do psíquico”,


ou seja, o exame de como funcionam as partes dessa instância. Se a filosofia
questionava o porquê da vida, Freud se deteve no como. Aquela se preocupa com
a reflexão sobre a existência; este tem por meta ajudar a existência.
A época pré-freudiana, imersa no substrato cultural da modernidade,
entendia o ser humano como meramente biológico, uma vez que ele teria
rompido com a metafísica. A antropologia era enfocada de modo mecanicista
(processos de combustão e de oxidação), segundo o qual é necessário separar as
partes (método cartesiano e filosofia empírica) para entender o todo. Verifica-se
a influência dessa tendência em Freud quando ele propõe a divisão do
psiquismo em três partes: id, ego e superego. Contudo, o mérito de sua análise,
apesar da forte influência da filosofia naturalista, está em pressupor que o
homem é não somente biológico, mas também psicológico, ou seja, os
problemas humanos estão enraizados na personalidade de cada pessoa.
Nesse sentido, na tentativa de analisar como funciona o psiquismo
humano, Freud provocou uma mudança radical na visão antropológica: ao
descobrir o inconsciente, derrubou o homem moderno de seu pedestal de
soberania. Assim, com a psicanálise surge o pandeterminismo. Segundo essa
teoria, o ser humano está condicionado, ou seja, ele é determinado pelos
contextos biológico, psicológico e social, de modo que não pode ser livre. Como
o homem é impulsionado pelo princípio do prazer e se depara (se frustra) com
a realidade que o impede de realizar seus desejos, a psicanálise o ajuda a
encontrar a homeostase, isto é, uma atitude de equilíbrio entre os desejos
frustrados (recalques) – os quais podem, não raro, estar na raiz de neuroses – e
as psicoses (privação de poder do ego perante o id), canalizando (sublimando)
137 Psicologia da religião

tal tensão psíquica para outra finalidade que a sociedade julgue como aceitável
(Freud, 1996a) e possa ser terapêutica (curativa) para o paciente. Assim, esforça-
se a psicanálise para trazer à consciência (ego) as vivências reprimidas no
inconsciente (id) – princípio de transferência razão pela qual o consciente passa
a ocupar o lugar do inconsciente. Em resumo: procura-se anular os atos
repressivos no processo de inconscientização.
Dessa forma, a dimensão irracional da religião funciona como uma ilusão
infantilizada da própria condição, ou seja, a religião é uma neurose obsessiva
que promove a regressão do adulto ao mundo idealizado da infância, pois o
neurótico não quer enfrentar as condições difíceis da realidade e da vida tal e
qual elas se apresentam.
No caso de seus pacientes, Freud considerava a religião como uma forma
de alimentar a resistência contra a conscientização acerca da realidade em que
eles viviam. Tributário do totemismo, Freud então retomou a ideia de proteção
clânica, segundo a qual os deuses acabam por ser projetados como pais
bondosos ou divindades todo-poderosas que permitem que os homens e as
mulheres encontrem na religião uma fuga da realidade. Freud dedicou três
escritos especificamente à questão da origem e da natureza da religião: Totem e
tabu (Freud, 1996b); O futuro de uma ilusão (Freud, 1996a); e Moisés e o monoteísmo
(Freud, 1974).
Em Totem e tabu, Freud (1996b) elabora uma interpretação própria do
totemismo vigente na antropologia da religião e na sociologia da religião,
especialmente em Durkheim. A vida em torno do totem é entendida por Freud
como renúncia ao comportamento instintivo, uma vez que o psicanalista
vienense era tributário do evolucionismo darwinista, razão pela qual, para ele,
os homens primitivos eram muito próximos dos animais selvagens,
138 Psicologia da religião

diferentemente do que pensava Rousseau. A questão sexual, para Freud


(1996b), está na origem da necessidade institucional, pois a busca pelas fêmeas
ocorre como uma disputa infindável entre o mais forte do clã e a formação de
machos mais fracos que se unem para destituir aquele que detém o domínio das
fêmeas, a saber, o pai. Segundo Freud (1996b), o totem, como início da
organização social, é a celebração do pacto entre os machos de se respeitarem
ao redor da proteção da divindade que os mantém unidos e de adotarem a
exogamia, isto é, o casamento de um indivíduo com um membro de um grupo
externo, para que não haja briga entre o clã.
Como o médico de Viena também era influenciado pela teoria do
animismo de Tylor, ele julga a magia como uma tentativa de controlar a
realidade, com o que se cria o pacto que institui ritos de sacrifício em relação à
representação do clã, o que representa, ao mesmo tempo, um ato de receber a
substância divina e uma recordação da morte do pai, a qual deve alimentar a
culpa daquele grupo, para que não se repita. Tal remorso sustenta a unidade do
clã e repreende o desejo sexual pelas mulheres da família. Daí a ligação entre
totemismo e tabu como proibições sexuais mantidas pela religião, na medida
em que o animismo evolua para religião (Freud, 1996b).
O que Freud entendia ser sua tarefa era ajudar o paciente e a cultura a
seguir para o estágio mais avançado, o da ciência, que permitiria então superar
a ilusão da religião.
Em seu livro O futuro de uma ilusão, Freud (1996a) situa a religião na
cultura, identificando naquela a finalidade de sublimar os impulsos egoístas
não realizados por meio da satisfação na fantasia que os torna socialmente úteis.
A religião, tal qual a arte, a metafísica ou a teologia e a ciência, deve sublimar
tais impulsos. Contudo, a ciência o faz pela conscientização da realidade, ao
passo que a
139 Psicologia da religião

religião o faz pelo temor do castigo e pelo desejo de consolo, sendo, por isso,
um “aspecto neurótico da cultura” (Zilles, 2004, p. 147).
Chega-se, então, ao momento em que há uma incompatibilidade entre
ciência e religião. Esta já prestou sua contribuição à história, pois desempenhou
“grandes serviços para a civilização” como reguladora moral, ao “domar os
instintos antissociais”; porém não consegue mais tornar “feliz a maioria da
humanidade”, porque reforça a neurose social e a infantilização. Assim, a
religião surge da “necessidade de defesa contra a esmagadora força superior da
natureza” (Freud, 1996a, p. 100); a cultura cria a religião para ajudar os
indivíduos a lidar com a natureza e a realidade, recorrendo a forças
sobrenaturais e personalizando-as. Diante da impotência humana, portanto, os
homens concebem deuses superpoderosos que podem banir o temor e oferecer-
lhes um ideal de vida.
Em Moisés e o monoteísmo, Freud (1974) retoma a proposta de três estágios
de Tylor da evolução da religião – animismo, politeísmo e monoteísmo. O
totemismo anímico cria o símbolo do pai divinizado, que progressivamente é
antropomorfizado, ganhando vários traços humanos, a ponto de ser preciso
constituir o politeísmo, em que vários deuses são necessários para melhor
representar os conflitos humanos.
Por fim, surge o monoteísmo com Moisés, que converteu o pai tirano
assassinado no Deus único e poderoso, aumentando assim a autoestima e a
satisfação do povo judeu. O advento da proibição de imagens, inclusive a de
Deus, foi o início da racionalização no rigor de abstração conceituai. No que diz
respeito ao cristianismo, o inventor do Cristo teria sido Paulo de Tarso,
responsável por mudar a imagem original de Jesus – de um religioso com crítica
social e agitador político para alguém visto como aquele cuja morte é uma
expiação perante o pai pela dívida do pecado original. Para Freud, a morte
vicária do Cristo é a instituição do complexo de
140 Psicologia da religião

Édipo2, pois anestesia a culpa. Nesse sentido, é com a libertação desse complexo
que desaparecerá a religião como neurose obsessiva.
A religião, tal como analisada por Freud, é insuficiente para lidar com o
mal-estar da civilização e acaba por despertar o desejo de um sentimento
oceânico – metáfora segundo a qual a água lançada no Oceano torna-se ele
próprio –, que alimenta o anseio da religião como forma de retirar a
responsabilidade dos indivíduos que se veem dentro da vontade de Deus e,
portanto, incapazes de se autocriticar. A grande ilusão é crer que, dessa forma,
a religião pode realizar melhor a tarefa de regular o indivíduo com o mal-estar
da civilização, processo que seria, por excelência, da ciência, na opinião do
pensador vienense.
Na obra O futuro de uma ilusão, Freud (1996a) cita um verso do poema
Alemanha, um conto de inverno de Heinrich Heine, o mesmo poeta que
influenciou Marx e que o psicanalista chama de “companheiro de descrença”
(Freud, 1996a, p. 46). Nesse texto, Heine faz ao leitor um convite para assumir a
responsabilidade pela realidade alemã. Ataca os grupos responsáveis pela
miséria nos

2
Categoria criada por Freud que evoca a tragédia de Édipo Rei, de Sófocles, como metáfora narrativa para
elucidar o funcionamento da constituição psíquica do sujeito. Na peça grega, Édipo assassina seu pai e se casa
com sua mãe sem ter consciência do parentesco que tinha com eles. Quando Édipo e sua mãe tomam
conhecimento do fato, ela se suicida e ele cega os próprios olhos. Freud identifica nessa peça a dinâmica da
cegueira sobre si e o desvelamento assustador dos movimentos narcísicos do próprio personagem, bem como a
recusa em aceitar a quebra de uma visão idealizada de si ao se deparar com a capacidade de ter atitudes
reprováveis que o egoísmo narcisista é capaz de fazer aparecer. O pai da psicanálise identifica, nesse momento,
o rompimento do egocentrismo primário, em que a pessoa se dá conta de não ser o centro das atenções, como
um processo de simbolização de falta e de alteridade, em que é preciso lidar com o desejo que os pais projetam
sobre os filhos. Na medida em que há uma negação da falta e da alteridade ou o rompimento da relação de
dependência do desejo dos pais, não ocorre a inscrição desses fatos no alegórico que representa o real,
produzindo-se sintomas que se instalam entre o imaginário e o simbólico, como o delírio, a psicose e o fetiche.
Em Freud, a compreensão da morte de Jesus Cristo como cumprimento da vontade do Pai é um mito concorrente
ao de Édipo, o qual não propicia o rompimento da imposição do desejo dos pais sobre os filhos, gerando um
infantilismo cultural e levando, sobretudo, aos sintomas da ilusão, do fetiche e da perversidade, além de outras
patologias sociais.
141 Psicologia da religião

territórios prussianos, os “burgueses” e os “monarquistas militaristas”, ambos


“fariseus da nacionalidade”, e a Igreja, instigadora de um servilismo, sob a
justificativa de uma recompensa no céu, a que o poeta chama de “voz falsa”,
por cantar o “mundo melhor lá de cima” e se dirigir à Terra como “vale de
lágrimas” – essa “antiga canção de ninar do Céu / que embala o povo birrento
/ criança que faz escarcéu” (Heine, citado por Freud, 1996a, p. 46). O eu-poético
critica aqueles que cantam, que falam de beber água, símbolo de penitência, mas
“bebem vinho nos bastidores” (Heine, citado por Freud, 1996a, p. 46)). A “nova
canção” a ser entoada deve ser: “queremos aqui na Terra / Erguer o Reino dos
céus / Queremos a felicidade terrestre”, a qual se deve cantar porque a “virgem
Europa está noiva / Do belo gênio da liberdade” e, portanto, “nós deixaremos
o Céu / para os anjos e os pardais” (Heine, citado por Freud, 1996a, p. 46). O
último verso é como Freud (1996a) encerra o Capítulo IX de seu livro,
pretendendo, com isso, que a ciência cuide da análise da produção dos sintomas
psíquicos, e não a religião, a qual, para ele, é uma ilusão coletiva que deve ser
esvaziada da cultura para que o céu se torne o que de fato pode se constatar
pela observação: o hábitat dos pássaros e uma metáfora para anjos.

Psiquismo e religião
4.2

em Cari Gustav Jung


Cari Gustav Jung (1875-1961), psiquiatra e psicólogo, discípulo predileto de
Freud, criou a psicologia analítica depois de discordar, em 1912, de seu mentor,
segundo o qual os fenômenos inconscientes se explicavam por influências e
experiências infantis ligadas à libido. Para Jung, esta também passaria por uma
transformação que seria complexificada, razão pela qual se opunha ao caráter
exclusivamente sexual da abordagem freudiana, considerando que a libido
constituía, antes, uma energia de caráter universal.
142 Psicologia da religião

Em sua obra Símbolos da transformação, Jung (1999) inicia sua ruptura com
Freud. Nesse livro, o autor analisa como os níveis de complexidade
comportamentais do ser humano são criados por processos internos,
extremamente ligados, no entanto, às relações externas, isto é, sociais – as
experiências que o indivíduo tem ao longo de sua em vida. Entende-se que o ser
humano se constrói numa relação de complexidade psíquica, entre desejos e
proibições, amor e hostilidade, superioridade e inferioridade – opostos que
convivem e procuram se equilibrar, portanto. Para o psicólogo suíço, conforme
a energia vital se dirige para o interior ou para o exterior, delineia-se o
aparecimento de um dos dois tipos psicológicos fundamentais, que se
manifestam no modo de relacionamento social: i) a introversão (menor
capacidade de relacionamento com os outros) ou ii) a extroversão (maior capa-
cidade de relacionamento).
A contribuição de Jung para a análise da complexidade do gênero
humano é sua teoria do inconsciente coletivo, segundo a qual as sociedades
humanas participam de arquétipos comuns; estes, por sua vez, expressam-se
por meio dos mitos, das religiões, da arte, dos sonhos, da loucura e dos
distúrbios psíquicos.
Jung, além de analisar o inconsciente por meio da história pessoal – e
nisso ele concorda com Freud –, também percebeu que o inconsciente das
pessoas (inconsciente pessoal) por ele analisadas, revelado em seus sonhos,
apresentava conteúdos históricos de séculos anteriores e até mesmo de
milênios, aos quais os indivíduos não tinham a menor condição de acesso. Ou
seja, as revelações do inconsciente se mostravam para bem mais além do que o
período de tempo que as pessoas viviam. Isso fez com que Jung desenvolvesse
a teoria do inconsciente coletivo, uma camada do inconsciente individual que
parte do inconsciente da história humana. Tal componente é formado por
arquétipos, verdadeiros patrimônios da cultura humana, desde suas fases mais
primitivas,
143 Psicologia da religião

guardadas no âmago de cada um. Esses arquétipos, que constituem o conteúdo


do inconsciente coletivo, são manifestados em nossos sonhos (Boechat, 2007).
Com base nisso, todos nós podemos ser ou viver o que outros foram e
viveram na história humana, o que depende da trajetória pessoal de cada um,
que vai se formando com as experiências e se tornando complexa e assumindo
novas formas, levando em conta o elo histórico.
Há ainda um dado muito interessante na formação junguiana da
psique3.0 progresso da complexidade psíquica caminha para a integração e a
unificação a uma consciência maior (necessariamente mais heterogênea), que
permite ser mais simples, graças à capacidade de organização interna e de
conciliação dos processos. A maturidade psíquica acontece na incorporação dos
elementos envolvidos: a pessoa, a história e o mundo (Boechat, 2007).
O mérito de Jung foi ter descoberto o religioso no inconsciente. Os
conflitos dessa perspectiva ocorrem em razão da interpretação da religiosidade
na profundeza e na amplitude do psiquismo humano por parte de alguns
junguianos, os quais a veem como “impulso”, relativo ao id. Ou seja, não é o
“eu” quem decide por Deus, mas o id, o que sugere uma espécie de atração
involuntária que força o contato do indivíduo com a divindade. Outra tendência
de alguns junguianos é reduzir a experiência religiosa à autoconsciência e à
autorrealização do ser humano, isto é, uma prática terapeuticamente manejável.
Essa postura é decorrente da crítica de Jung aos teólogos de que o conhecimento
do transcendente dispensa a crença em Deus. Porém, uma outra leitura prefere
ver nessas inquietações religiosas um instinto de verdade (Villas Boas, 2016)
Com instrumental teórico junguiano, pode-se oferecer uma “leitura organizada
e dinâmica da experiência religiosa” (Santos,

3 Referente à estrutura psíquica da interioridade humana, no que diz respeito a seus elementos estruturais como
o pensamento, o sentimento e o comportamento - e à relação entre eles.
144 Psicologia da religião

2004, p. 122) pela categoria do êxtase: “êxtase é um estado de alegria indizível


ou de tristeza profunda. Além do estado de excitação física generalizada ou
estado de apatia extrema, trata-se de uma comoção psíquica que, dependendo
do valor motivacional, exprime sua intensidade no próprio evento” (Santos,
2004, p. 38).
Esse êxtase, entendido na abordagem junguiana, ocorre numa relação do
consciente com o inconsciente, na qual este invade aquele, provocando um
estado alterado de consciência, que passa do mundo das sensações ao mundo
da intuição: “Invasão é quando o lado obscuro, o inconsciente, tem domínio
completo e pode irromper na consciência. [...] A pessoa fica subitamente
alterada por encontrar-se privada de si própria, sente-se perdida.... O fato em si
não é patológico; pertence à fenomenologia humana mais comum” (Jung, 1998,
citado por Santos, 2004, p. 55).
Em Jung, o conceito de consciência remete à ideia de uma superfície que
cobre a vasta área do inconsciente. Na teoria junguiana, a consciência é dotada
de funções que orientam e organizam os fatos ectopsíquicos (relação dos
conteúdos da consciência com os acontecimentos externos, com os quais se entra
em contato por meio das funções sensoriais) e endopsíquicos (relação entre os
conteúdos da consciência e os processos postulados no inconsciente). As
funções ectopsíquicas podem ser classificadas em quatro tipos: i) sensação (diz
o que uma coisa é); ii) pensamento (exprime o que essa coisa é); iii) sentimento
(atribui valor à coisa); iv) intuição (expressa o que não pode ser explicado –
mistério/ místico). As funções endopsíquicas são a memória e a invasão, que se
relacionam com emoções e afetos, trazendo-os do inconsciente à consciência
(Santos, 2004).
Jung, nesse contexto, entende haver duas camadas de inconsciente:
145 Psicologia da religião

1. Inconsciente impessoal (também chamado de inconsciente coletivo) – É


distinto do inconsciente pessoal e universal e pode encontrar seus
conteúdos em toda parte.
2. Inconsciente pessoal – Contém lembranças perdidas, propositalmente
esquecidas (reprimidas) em razão de evocarem sensações dolorosas, que,
por falta de intensidade, não atingiram a consciência, ou seja, conteúdos que
ainda não foram elaborados (amadureceram) para a consciência. Esse
estado corresponde à figura da sombra e é a parte “negativa” da per-
sonalidade – propriedades ocultas e desfavoráveis por serem mal
desenvolvidas, as quais aparecem com frequência nos sonhos (Jung, 1980).
Dito de outro modo:

É tudo o que eu sei, mas em que não estou pensando no momento; tudo aquilo
que um dia estava consciente, mas de que atualmente estou esquecido; tudo
que meus sentidos percebem, mas minha mente consciente não percebe". O
inconsciente coletivo representa a parte "objetiva" do psiquismo, ao passo que
o inconsciente pessoal, a parte "subjetiva". (Jung, 1998, p. 191)

O fator desencadeador de um estado alterado de consciência é a emoção,


que desempenha uma forma de percepção que é o veículo da alteração do
inconsciente – recebem-se imagens arquetípicas do inconsciente, processo de
“revelação” deste. Embora o elemento emocional esteja sempre presente em
nossas experiências, estas não se reduzem às emoções, o que seria confundir
êxtase com superexcitação e, portanto, não passaria de uma experiência
emocional, tendo apenas características psicológicas, sem participação no
processo de revelação (percepção de arquétipos) (Santos, 2004).
Essa percepção não passa pelos sentidos, mas assume a forma de intuição
na consciência, por meio do sentimento, o que desvela um senso de valor. A
intuição leva a pessoa a sentir que algo será revelado – ela precede a revelação,
antevendo-se o que se passa,
146 Psicologia da religião

sentindo-se que o que está por vir é valioso, ou seja, um valor que, ao ser
percebido de fato, retorna à razão, quando se amplia a consciência com o que
foi revelado, resultado de um valor descoberto. Esse processo de
conscientização e de mudança de comportamento pode ser considerado uma
experiência de sentido, tal como é descrito pela logoterapia 4.
Em outras palavras, o êxtase – processo que se inicia com um sentimento
(de alegria ou angústia intensa) – alcança a intuição como percepção do
inconsciente, chegando à reflexão e à mudança de comportamento – em seu
estágio final, é essencialmente racional, isto é, lógico. Jung menciona que os
valores se revelam como experiências ao serem racionalizados, isto é,
percebidos pela consciência, e por isso são compreendidos como realidades
profundas. A título de comparação, o que é denominado valor em Jung pode ter
uma correlação com o conceito de sentido frankliniano, visto que, na perspectiva
junguiana, o valor é um princípio de orientação e, para a logoterapia, o sentido
é um valor encarnado na existência. Esse é o processo de individuação segundo
o qual o inconsciente alimenta o self (Santos, 2004; Sudbrack, 2001).
Essa aproximação psicológica implica, então, que a intuição, somada ao
desejo individual do que pode ser revelado (Mistério), é que fundamenta uma
experiência religiosa, na qual razão e emoção andam juntas. No entanto, aquela
depende desta para fazer (perceber o) sentido:

A emoção pode ser a manifestação valorativa de uma experiência racional. O


sentimento nos leva ao pensar e a valorizar os conteúdos do pensamento. A
emoção pode ser o resultado do intenso valor dado a um conteúdo racional. A
emoção necessita de razão para que a ansiedade e a angústia não façam a
pessoa

4 Criada por Viktor Emil Frankl (1905-1997), com prestígio internacional, é uma abordagem psicoterapêutica
realizada mediante análise existencial com o uso da categoria do logos, entendido como "sentido da vida".
147 Psicologia da religião

sucumbir. Assim sendo, emoção não é inimiga da razão. A emoção expressa a


força do conteúdo construído pela razão. A emoção é combustível para o
religioso perceber as profundas descobertas da razão. (Santos, 2004, p. 172)

A emoção, na experiência religiosa, leva a pessoa sentir a presença de


Deus, a figura do numinoso, entendido como “força ou essência divina
inominável”, e a razão, por sua vez, faz pensar nessa presença de Deus
evidenciada na prática. Dessa intrínseca conexão é que podemos passar da
experiência religiosa como prova de Deus a uma de sentido mais radical (isto é,
que doa sentido e reorienta a existência com base nesse acontecimento). Aqui,
êxtase, no sentido junguiano, tem mais proximidade com a experiência de Deus
do que com a do Sagrado, conforme apresentamos na aproximação filosófica da
fenomenologia.
O êxtase, em Jung, acontece no cotidiano, nas vivências humanas, ou seja,
vivemos pelo sentido de nossas experiências, sendo que a síntese dos produtos
conscientes e inconscientes (conteúdo dos arquétipos), como processo de
conscientização e, consequentemente, de potencialização da responsabilidade,
representa o ponto máximo do esforço espiritual (como implicação da vontade)
e de concentração das forças psíquicas: “A mudança da consciência deve
começar dentro de cada um” (Jung, citado por Santos, 2004, p. 174).

Viktor Frankl e a presença


4.3

ignorada de Deus
O procedimento da psicanálise clássica é o modus operandi da psicanálise de um
modo geral. Também Jung e Adler5 receberiam essa influência (Frankl, 2003;
Peter, 2005). Vale dizer que não é relevante

5 Sigmund Freud, Alfred Adler e Viktor Frankl são considerados os criadores das três escolas vienenses de
psicoterapia, a saber: a psicanálise freudiana, a psicologia individual adleriana e a logoterapia frankliana.
148 Psicologia da religião

para esta obra um estudo detalhado da história da psicanálise. O fundamental


aqui é reconhecer a antropologia inerente ao pensamento psicanalítico em
formação. Podemos falar, portanto, em um psicologismo antropológico, ou seja, o
homem reduzido à sua dimensão psíquica.
Essa posição da psicanálise tem suas raízes no naturalismo do final do
século XIX e começo do século XX, presente também nas formas de biologismo
e de sociologismo, que apresentavam o homem em um estado de sujeição aos
condicionamentos que a realidade lhe impõe uma “impotência em face dos
liames que o atam” (Frankl, 2003, p. 15), isto é, o biológico (raça), o psicológico
(tipos caracterológicos) e o sociológico (classe), formando uma espécie de
biologismo coletivo que mais tarde resultaria no racismo moderno.
A distinção da psicologia individual de Alfred Adler (1870-1937) está no
princípio motivacional: em vez da vontade de prazer da psicanálise freudiana,
identifica-se a vontade de poder, segundo a qual o homem, na tentativa de
superar seu sentimento de inferioridade, deve encontrar uma homeostase
adequada na superação de si mesmo e do convívio social. O que acontece com
a repressão na psicanálise é semelhante ao arrangement6 na psicologia individual
(Frankl, 2003). Aqui o neurótico tenta destituir-se da culpa, buscando
desresponsabilizar-se e justificar-se perante os outros e/ou a si mesmo
(legitimação da doença). A neurose é sempre um arrangement (Frankl, 1992).
A proposta da antropologia de Viktor Frankl (1905-1997), nesse sentido,
considera as grandes contribuições das escolas anteriores, inclusive a freudiana,
e elabora o que o autor chamou de Homo patiens.

6 Podemos entender arrangement como uma nova composição das relações, tal qual o arranjo nas composições
musicais.
149 Psicologia da religião

Trata-se da perspectiva de um ser humano orientado por uma vontade de


direção, segundo a qual ele sofre, no sentido de passividade (patiens), os apelos
de orientação em seu interior, seja porque começa a conceber uma nova face de
sua vontade perante uma direção que se desvela como possibilidade nova de
ser – sofrendo assim os influxos da esperança –, seja porque sofre a angústia da
sensação de uma vida sem sentido ou mesmo do momento em que o significado
da vida se esvai diante do fatídico.
Entretanto, esse aspecto passivo não é senão outra dimensão do caráter
ativo, ou seja, da capacidade de responder a essa vontade profunda de sentido.
Para Frankl, o que Freud identificou como psicodinâmica do desejo da libido
é o alicerce do edifício humano, com base no qual, diante de um objeto libidinal,
o desejo move a pessoa ao seu alvo. Assim, a vontade de sentido (ao identificar
algo que seja significativo) mobiliza a vontade humana para que vá ao encontro
do horizonte de sentido7.
Diante da dinâmica da vontade do Homo patiens, é a resposta a esse apelo
que dá sentido à vida. A logoteoria, ou seja, a teoria do sentido (logos), ocorre
dentro do que o pensador vienense chamou de patodiceia, a busca de razão e a
consumação de vida (no sentido encontrado). Dar sentido (logos) à vida é uma
resposta (diké) a essa vontade (pathos). E, para isso, é necessário conhecer e
escutar as profundas marcas de sentido na própria história, constituindo-se essa
dimensão de uma espiritualidade, que pode ser ou não religiosa, mas, sem
dúvida, é transcendente, porque move o ser humano para além de seus
condicionamentos.
Frankl não desconsidera os condicionamentos humanos, tendo clara
consciência, como neurologista e psiquiatra, de que não somos livres de nossos
condicionamentos; contudo, entende também que temos a “liberdade última de
assumir uma atitude alternativa frente às condições dadas” (Frankl, 2008, p. 89).

7 A repetição do termo sentido aqui é proposital, uma vez que se trata de conceito fundamental na obra de
Frankl.
150 Psicologia da religião

Não preciso de que ninguém me chame a atenção para a condicionalidade do


homem: – afinal de contas, eu sou especialista em duas matérias, neurologia e
psiquiatria, e nessa qualidade sei muito bem da condicionalidade
biopsicológica do homem. Acontece, porém, que não sou apenas especialista
em duas matérias, sou também sobrevivente de quatro campos de
concentração, e por isso também sei perfeitamente até onde vai a liberdade do
homem, que é capaz de se elevar acima de toda a sua condicionalidade e de
resistir às mais rigorosas e duras condições e circunstâncias, escorando-se
naquela força que costumo denominar de poder de resistência do espírito.
(Frankl, 2005, p. 41; Frankl, 2004, p. 66)

Em Frankl (2003), o ser humano não é livre de seus condicionamentos,


tampouco de certos destinos ou de determinadas condições fatídicas que se lhe
impõem. No entanto, assim como há um eterno retorno do absurdo, como em
algumas experiências em que o sentido se esvai, há também um eterno retorno
de sentido, de situações doadoras de sentido que se apresentam a uma vontade
de sentido incessante no ser humano. Dessa forma, faz-se necessário entender o
destino não como definitivo, mas como um ponto de partida para a construção
de um projeto de vida criativo que integre o contexto histórico em que se vive
com a biografia que se constrói (Frankl, 2003).
Na antropologia frankliana, o sentido da vida é que dinamiza o que
Friedrich Nietzsche chamou de além do humano (Übermensch)8 e que Frankl
denomina humano do humano, cabendo ao homem integrar e buscar o sentido da
vida além de seus destinos, mas não aquém deles.
O pensador vienense identifica, com base nisso, três tipos de destino:

8 Conforme veremos no próximo capítulo.


151 Psicologia da religião

1. Destino biológico – Diz respeito à constituição biológica da natureza.


2. Destino psicológico – Refere-se ao perfil tipológico psíquico ou a fatores
externos ligados à educação familiar e/ou escolar que moldaram tal
perfil.
3. Destino sociológico – Relaciona-se à estrutura social em que o indivíduo
nasce e que o determina pela pressão social que o condiciona a ajustar-se
a uma conduta socialmente aceita, ao menos pelo grupo em que vive.

Como mencionamos anteriormente, é no interior dos destinos


condicionadores que emerge a vontade de sentido, como desejo congênito, a
qual, no entanto, demanda oportunidades para possibilitar uma autoeducação
consciente e responsável que se oriente para uma causa maior, num projeto
existencial de superação narcísica do ser humano, a fim de tornar-se ele mesmo
(Peter, 2005). Do mesmo modo, as leis sociológicas externas não são capazes de
determinar totalmente o indivíduo, uma vez que não podem penetrar na zona
individual do livre-arbítrio. O ser humano não tem liberdade de seus
condicionamentos, mas liberdade para decidir o que fazer com eles. Frankl
(2004, p. 66) vivenciou a experiência pela qual pôde constatar que, mesmo
privando as pessoas de tudo, os campos de concentração nazistas também
provaram que a “liberdade última de assumir uma atitude alternativa perante
as condições dadas” não pode ser tirada do espírito humano.
Para Frankl, a liberdade do ser humano reside na capacidade de
desprender-se de si mesmo e ir ao encontro de sua vontade de sentido. Isso
constitui a “essência propriamente dita da existência humana” (Frankl, 2003, p.
159). Essa liberdade tem sua gênese na consciência, considerada dimensão
espiritual ou noética, e funciona como um órgão de sentido. Frankl situa a
consciência dentro da dimensão afetiva (patiens) e, portanto, como um
fenômeno
152 Psicologia da religião

primário, ou seja, para o autor, ela é pré-lógica e se revela como essencialmente


intuitiva. A consciência, e aqui Frankl segue Freud, está imersa no inconsciente,
do qual é prolongamento. A intuição, nessa perspectiva, é uma antecipação que
o espírito humano faz de seu devir – do que pode vir a ser – e opera como
inspiração com base na qual se produz a “voz da consciência” (Frankl, 2004, p.
26-68). Semelhantemente ao processo psicanalítico da neurose, quando o
inconsciente (id) irrompe na consciência (ego), a consciência, na logoteoria,
ocorre no momento em que o eu, movido afetivamente por essa intuição,
penetra o inconsciente e deixa emergir seus sentimentos mais profundos. Isso é
chamado, na logoteoria, de existência espiritual ou autotranscedência, que ocorre
quando a pessoa interiormente pode ser mais forte do que seus
condicionamentos externos e crescer para além de si mesma (Frankl, 2005).
Para as religiões, a voz da consciência tem um emissor de presença
desconhecida, Mistério para cuja expressão se utilizam símbolos. Frankl
pretende falar não da questão de Deus, mas da inerente capacidade humana de
transpor limites. Essa característica imanente do homem é tratada pelas
religiões como formas de simbolizar e nomear a transcendência, apresentada
como um diálogo no qual o transcendente é um Tu, o que constitui o caráter do
Homo religiosus frankliano.
Por sua vez, para o irreligioso, a relação com a transcendência em sua
consciência é considerada uma facticidade psicológica, uma realidade
imanente, para além da qual não se pergunta se há algo. Para o irreligioso,
portanto, a consciência é a última instância pela qual ele precisa ser responsável,
ao passo que, para o Homo religiosus, ela é a penúltima instância, pois há “algo”
ou “alguém” além da facticidade. Entretanto, o fato de ser irreligioso não
significa que o indivíduo não tenha consciência, ou responsabilidade, mas
apenas que ele não pergunta “de onde vem a consciência” (Frankl, 2004, p. 42-
43), o que não deve ser motivo de inimizades entre um
153 Psicologia da religião

e outro, pois a liberdade humana de escolher o próprio caminho deve ser


respeitada em qualquer circunstância.
Assim, na perspectiva frankliana, o acesso a Deus só pode ser encontrado
pelo humano e como caminho de humanização. Ademais, “o caminho que leva
a Deus” (Frankl, 2004, p. 274) origina-se não no racional, mas no emocional,
embora essa dimensão precise ser guiada pela clareza da consciência racional.
Desse modo, a religiosidade, para Frankl, é inerente ao ser humano como crença
de que a vida tem um sentido, e quem o busca já é de algum modo “religioso”,
mesmo sem religião. Embora não negue, com isso, o papel das tradições
religiosas, o autor defende a personalização da religião e critica as estreitas
concepções de Deus.

O homem irreligioso se deteve antes do tempo no seu caminho em busca de


sentido; já que não foi para além da sua consciência, não perguntou para além
dela. É como se tivesse chegado a um pico imediatamente inferior ao mais alto.
Por que não vai adiante? É porque não quer perder o "chão firme sob seus pés",
pois o verdadeiro pico não está visível para ele, está oculto na neblina, e nessa
neblina, nessa incerteza, ele não se arrisca a penetrar. Somente a pessoa
religiosa assume esse risco. O que, porém, impediria que ambos, naquele lugar
onde um para e outro parte para o último pedaço do caminho, se despeçam
um do outro sem rancor. (Frankl, 2004, p. 43)

Para Frankl (2004), portanto, a religião só é pertinente como


impulsionadora da humanização do humano, a qual conduz a uma liberdade
livre.
154 Psicologia da religião

Psicologia da religião
4.4

contemporânea
Outros nomes poderiam ser apresentados como clássicos da psicologia da
religião dada a vasta gama de pesquisadores desse ramo das ciências da
religião. A seleção que apresentamos não é única nem a melhor, apenas coincide
com a inevitável percepção e o itinerário de formação do autor desta obra. Dessa
forma, entre alguns dos nomes representativos que consideramos como
clássicos ou contemporâneos no assunto estão: William James (1842-1910),
Alfred Adler (1870-1937), Gordon Allport (1897-1967), Erich Fromm (1900-
1980), Jacques Lacan (1901-1981) e Erik Erikson (1902-1994).
Também podemos listar, entre outras, as seguintes teorias
contemporâneas da psicologia da religião:

▪ Psicologia narrativa – Pressupõe que os processos psicológicos são


reorganizados de modo narrativo e que a elaboração de sentido ocorre
com base na construção e na desconstrução das narrativas recebidas.
Deus ou as divindades são evocadas na tarefa de “reautoria” da própria
história.
▪ Teoria de atribuição – Liga-se à psicologia social e visa esclarecer como
as pessoas atribuem a um fator externo a qualidade de causa do
comportamento próprio ou alheio, além de investigar como essa
percepção cognitiva afeta a relação dessas pessoas com os demais.
Quando aplicada à questão religiosa, o elemento Deus é identificado
como causa de todas as coisas.
▪ Psicologia cultural – Trabalha a interação entre o social e o psicológico
com base em uma análise cultural, segundo a qual a religião também é
vista como um produto da cultura, de modo que as emoções religiosas
são expressões socioculturais.
▪ Psicologia evolucionária – Conhecida também como psicologia cognitiva
– uma vez que se interessa pelo surgimento da
155 Psicologia da religião

cultura, ou seja, pelas condições biológicas que são anteriores à


civilização e que a propiciaram considera, nesse escopo, a capacidade da
mente humana de adquirir e transmitir questões religiosas como fruto da
evolução humana.
▪ Teoria do apego aplicada e comportamento religioso – Oferece uma base
conceituai sobre a formação, a manutenção e a modificação dos vínculos
afetivos, incluindo as modulações de apego a Deus.
▪ Copping religioso-espiritual – Analisa as estratégias de enfrentamento
de situações de estresse com base na espiritualidade e/ou na fé, com
interesse crescente nas questões de qualidade de vida e saúde mental.

Conhecer as teorias e os teóricos da psicologia considerados clássicos que


se interessaram por compreender a religião e seus efeitos psíquicos nas pessoas
auxilia na percepção de que, mesmo entre eles, é possível haver formas de
valorização distintas do fenômeno religioso. A visão mais panorâmica que
apresentamos ajuda a analisar que tanto as abordagens críticas quanto as mais
valorativas são pertinentes para avaliar o fenômeno psíquico da religião, tendo
ambas as posturas desdobramentos em autores e em linhas contemporâneas da
psicologia da religião.

SÍNTESE
Neste capítulo, mostramos que a psicologia da religião nasceu para desenvolver
estudos a respeito da religiosidade e seus efeitos psíquicos. Vimos, assim, que
não há uma visão única ou definitiva sobre esses efeitos, mas uma identificação
de diversos fenômenos psíquicos ligados à experiência religiosa. O
conhecimento dessas abordagens possibilita que se identifique a complexidade
do fenômeno religioso, que pode abrigar, dentro de uma mesma fé, diversos
efeitos causais no âmbito psicológico. Nesse mesmo
156 Psicologia da religião

contexto, abordamos os diferentes tipos de estruturas psicológicas que


promovem distintas vivências da prática religiosa, ainda que no seio de uma
mesma crença.
Buscamos destacar que a religião tanto pode ser benéfica para a saúde
psíquica de alguém, colaborando, por conseguinte, com processos terapêuticos,
quanto pode ser danosa, gerando formas de opressão, controle, dependência e
manipulação. Com base nisso, desenvolveram-se propostas terapêuticas que
ora prescindem da questão religiosa, ora pressupõem uma dinâmica que se
incorpora a essa questão, sem que se faça qualquer juízo de valor sobre uma
suposta superioridade desse fator. Por isso, é preciso avaliar como cada
contexto e vivência melhor determina a prática terapêutica a ser escolhida.
A psicologia da religião, vale dizer, então, não deve ser entendida como
elemento de defesa de Deus, o que colocaria em questão a cientificidade da
disciplina, incorrendo-se no risco de ser reduzida a uma forma de apologética.
Por fim, apresentamos algumas das diversas abordagens con-
temporâneas de psicologia da religião, com os mais variados métodos e teorias.

INDICAÇÕES CULTURAIS
A VIDA é bela. Direção: Roberto Benigni. Itália: Paris Vídeo, 1997.117 min.
O filme se passa na Segunda Guerra Mundial e ajuda a compreender a
ideia de otimismo trágico e a de resiliência trabalhadas pela perspectiva
logoterapêutica da religião.

EXTRAORDINÁRIO. Direção: Stephen Chbosky. Estados Unidos; Hong Kong:


Lionsgate, 2017.113 min.
O filme trata de questões de resiliência, de experiências de sentido e de
valores e ressignificação – elementos com os quais a psicologia da religião
de perspectiva existencial trabalha.
157 Psicologia da religião

FREUD: além da alma. Direção: John Huston. Estados Unidos: Universal


International Pictures, 1962.140 min.
O filme retrata momentos importantes da biografia de Freud, os quais
tiveram impacto no desenvolvimento de sua obra, incluindo a questão
religiosa.

HABEMUS papam. Direção: Nanni Moretti. Itália; França: Nossa Distribuidora,


2011.102 min.
Trata-se de uma proposta cinematográfica que faz uma análise
psicanalítica de lideranças religiosas com base na vida ficcional de um
pontífice da tradição católica que passa por um momento de crise.

HOLLY Hell. Direção: Will Allen. Estados Unidos: The Film Sales Company,
2016.100 min.
Esse filme aborda o narcisismo patológico presente em uma liderança
religiosa norte-americana e o processo de fascínio exercido pela narrativa
religiosa contemporânea.

UM MÉTODO perigoso. Direção: David Cronenberg. Reino Unido; Alemanha,


Canadá; Suíça; Estados Unidos: Imagem Filmes, 2011. 99 min.
Esse filme aborda a biografia de Cari Gustav Jung e a forma como a
religião está presente em sua perspectiva psicoterapêutica.

UP: altas aventuras. Direção: Pete Docter. Estados Unidos: Buena Vista Home
Entertainment, 2009. 96 min.
Essa animação trata de experiências como apego, perdas e relações que
promovem reedições do projeto de vida.
158 Psicologia da religião

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. Quais autores são os considerados clássicos que influenciaram a psicologia
da religião?
A] Sigmund Freud, Cari Gustav Jung e Karl Marx.
B] Sigmund Freud, Cari Gustav Jung e Viktor Frankl.
C] Sigmund Freud, Cari Gustav Jung e Franz Brentano.
D] Carl Gustav Jung, Max Weber e Viktor Frankl.
E] Sigmund Freud, Viktor Frankl e Edith Stein.

2. Quais dos conteúdos a seguir são tematizados pela perspectiva psicanalítica


da religião?
A] Sentimento oceânico, ilusão social e teodiceia.
B] Arquétipos, inconsciente coletivo, individuação e experiência religiosa
autêntica.
C] Vontade de sentido, presença inconsciente de Deus e religião e sentido da
vida.
D] Copping religioso, teoria do apego aplicada a Deus e psicologia cultural.
E] Sentimento oceânico, ilusão social e infantilismo psíquico.

3. Quais dos conteúdos a seguir são tematizados pela perspectiva junguiana da


religião?
A] Arquétipos, inconsciente coletivo, individuação, experiência religiosa
autêntica e instinto de verdade.
B] Sentimento oceânico, ilusão social e infantilismo psíquico.
C] Vontade de sentido, presença inconsciente de Deus, religião e sentido da
vida.
D] Arquétipos, inconsciente coletivo, individuação e experiência religiosa
autêntica e teodiceia.
E] Copping religioso, teoria do apego aplicada a Deus e psicologia cultural.
159 Psicologia da religião

4. Quais dos conteúdos a seguir são tematizados pela perspectiva


logoterapêutica da religião?
A] Copping religioso, teoria do apego aplicada a Deus e psicologia cultural.
B] Arquétipos, inconsciente coletivo, individuação, experiência religiosa
autêntica e instinto de verdade.
C] Sentimento oceânico, ilusão social e infantilismo psíquico.
D] Coach religioso, copping religioso e neuroteologia.
E] Vontade de sentido, presença inconsciente de deus, religião e sentido da
vida, religião e resiliência e projeto de vida.

5. Quais outras tendências de pesquisa têm relação com a psicologia da religião


contemporânea?
A] Psicologia narrativa, teoria da atribuição, psicologia cultural, psicologia
evolucionária, teoria do apego aplicada à religião, copping religioso, coach
religioso e neuroteologia.
B] Psicologia narrativa, teoria da atribuição, psicologia cultural, psicologia
evolucionária, teoria do apego aplicada à religião, copping religioso e
psicologia pastoral.
C] Sublimação, neurose religiosa e copping religioso.
D] Individuação, sentimento oceânico e sentido da vida.
E] Psicologia pastoral, mal-estar da civilização e presença inconsciente de
Deus.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão


1. Qual é a diferença entre uma experiência religiosa de fuga da realidade e
uma autêntica experiência religiosa de compromisso com a realidade?
2. Quais são as consequências sociais possíveis de serem descritas na promoção
confusa ou mal-intencionada de uma forma de religiosidade que promova
uma fuga da responsabilidade humana em seus mais variados âmbitos?
160 Psicologia da religião

Atividades aplicadas: práticas


1. Descreva uma experiência religiosa que pode ser classificada como fuga e
projeção infantilizada de uma(s) divindade(s).
2. Escolha duas religiões e faça um exercício de mística comparada, procurando
identificar seus elementos de espiritualidade autêntica que humanizam o
humano.
5
FILOSOFIA
DA RELIGIÃO

Em virtude da postura apologética que certos filósofos assumiram em


relação às confissões religiosas a que estavam vinculados, a filosofia da religião
não é considerada por alguns parte do espectro disciplinar das Ciências da
Religião, destoando da proposta de refletir sobre a realidade concreta, histórica
e cultural de outras crenças e fatos religiosos (Usarski, 2007, p. 12).
Entretanto, uma das grandes contribuições para a reflexão crítica da
epistemologia contemporânea no Ocidente veio da filosofia: é o caso de Michel
Foucault (1926-1984) e seu livro As palavras e as coisas, publicado primeiramente
em 1966 (Foucault, 2000). Para o filósofo francês, houve rupturas
epistemológicas no decorrer do mapeamento arqueológico das
descontinuidades entre os modos de configurar o saber até o Renascimento
(século XVI) e o observando na transição para o Iluminismo, chamada por ele
de Idade Clássica (séculos XVII e XVIII), bem como na mudança desse período e
para a Idade Moderna (século XIX) (Foucault, 2000). Nesse sentido, o discurso
de e sobre questões religiosas participaria do mesmo contexto de outros
discursos e práticas conforme as condições do saber em diferentes épocas e com
base nas “condições para a formação das epistemes1” (Ribeiro; Pinto, 2010, p. 50).
Uma das condições contemporâneas que o filósofo identifica como desafio para
o pensamento religioso é a questão da morte de Deus.
_____________________
1 Foucault chama de epistémè os quadros gerais do pensamento próprio de uma época que articulam a produção
de conhecimento e lhe dão sustentação.
162 Filosofia da religião

Com base nisso, de acordo com nossa proposta de apresentar uma


introdução ao âmbito das discussões acadêmicas que levam à produção da
disciplina de Ciências da Religião, não há como ignorar filósofos que tiveram
grande repercussão nos estudos da questão religiosa. Também consideramos
aqui aqueles que assumiram a morte de Deus como condição epistemológica no
século XX e abordaram a questão da religião e temas conexos, de modo crítico
e valorativo. Vale ainda dizer que outra abordagem fenomenológica se
desenvolveu além daquela de Rudolf Otto e Mircea Eliade. Esses critérios
orientaram a seleção de autores que apresentamos neste capítulo. Outro fato
importante para levarmos em conta a importância da filosofia da religião é a
presença dessa linha de pesquisa em diversos programas de pós-graduação em
Ciências da Religião e mesmo em Filosofia no país. No Brasil, vale ressaltar, há
a Associação Brasileira de Filosofia da Religião (ABFR) desde 2012, que
coordenava, no momento da escrita deste livro, a sétima edição do Congresso
Brasileiro de Filosofia da Religião.
A proposta deste capítulo é, portanto, oferecer uma breve introdução à
questão filosófica da religião contemporânea.

5.1 Nietzsche e a morte de Deus


Friedrich Nietzsche (1844-1900) é seguramente o filósofo contemporâneo que
mais suspeitou da insuficiência do modo de pensar a religião tradicionalmente
na modernidade. O filósofo alemão ficou famoso pela declaração de que “Deus
está morto”, a qual, tal como o autor, é não raro alvo de inúmeros mal-
entendidos.
A noção de Deus em Nietzsche não equivale à da visão religiosa. Trata-se
da estrutura lógica para compreender a realidade, ou seja, para entender o
mundo com base em uma instância suprema que coincida com uma forma de
racionalização abstrata e ideal, de modo que outros aspectos da vida sejam
negados. E, desse modo, o cristianismo foi contaminado por uma filosofia de
negação da vida.
163 Filosofia da religião

Para o filósofo alemão, o ser humano tem dificuldade de lidar com o


dinamismo da vida, com a ideia de que as coisas são mutáveis, o que se torna
fonte de insegurança, de maneira que demanda um fundamento, um substrato,
uma estrutura lógica com base na qual a existência pode ser entendida. Para
Nietzsche, a busca de um fundamento último leva a pensar a vida de forma
petrificada, desde Sócrates, com a valorização demasiada da racionalidade. Essa
racionalização também está relacionada com a moral, na qualidade de avaliação
da existência, pois tem o dever de descrever o real em relação a uma realidade
perfeita e, portanto, imutável. Com isso, a vida em seu devir é vista como
inautêntica, efêmera e, assim, carente de verdade.
Nesse sentido, de acordo com o filósofo alemão, o cristianismo é um
negador da vida, não como doutrina religiosa em si, mas como doutrina que
veicula o platonismo para o povo, uma maneira de pensar dualista, que concebe
a existência com base em um ideal de perfeição em detrimento do contexto real,
tida, então, como falsa. Esse modo de pensar socrático-platônico-cristianizado
leva a uma desvalorização da vida e do mundo real, pois se vive de modo a
compreender a vida com base não nela mesmo, mas em uma instância outra que
é mais real.
E aqui que a principal personagem de Nietzsche (2009), Zaratustra, passa
a ter um papel de crítico da cultura, sobretudo em relação aos aspectos
platónico-metafísicos endossados pela religião e pelos promotores de um
moralismo idealista. A tarefa da personagem é transvalorizar a cultura, ou seja,
criar ou recriar os valores da realidade concreta, despidos de uma religião e de
uma moral platonizadas. Zaratustra é o profeta de um niilismo afirmativo, que
destrói para criar, diferentemente do niilismo passivo, em que reside o
pessimismo.
Nesse contexto, na obra de Nietzsche (2009), Zaratustra desce da
montanha para anunciar aos demais o Übermensch, o “além do
164 Filosofia da religião

humano”, que emerge no devir do ser. A personagem, que estava entediada


com sua sabedoria, decide ir ao encontro dos seres humanos e, assim, também
voltar a tornar-se humano. Contudo, quando o faz, depara-se com um santo que
segue em direção contrária e resolve indagá-lo para saber por que deixava os
homens para subir o monte. O santo assim responde: “Pois por que – disse o
santo – vim eu para a solidão? Não foi por amar demasiadamente os homens?
Agora amo a Deus; não amo os homens. O homem é, para mim, coisa
sobremaneira incompleta. O amor pelo homem matar-me-ia” (Nietzsche, 2009,
p. 6, tradução nossa).
Zaratustra, então, indaga-se se o santo por acaso desconhece que “Deus
está morto” (Gott ist tot), um Deus que não mais gera dinamismo de vida, mas
faz os homens se afastarem uns dos outros. Nessa questão da morte de Deus
reside, portanto, a crítica de uma moral idealista, baseada em uma razão
metafísica que não permite captar a mudança e o devir vital, impossibilitando
que se pense na vida com base na concretude com que ela se manifesta. Isso
implica considerar como a questão do amor a Deus leva os homens à apatia.
Nas narrativas da Antiguidade, Deus era o personagem mais importante.
A formulação metafísica empregada, desde Platão, suplantou os deuses gregos
no Ocidente, oferecendo, assim, um único Deus, uma cultura de visão única de
sociedade e de vida. No entanto, gerou também a disputa para identificar quem
teria a melhor visão de Deus, que fosse legitimadora dos modelos culturais,
sociais e políticos. Com isso, as contradições dessa sociedade e a tentativa de
sustentá-la em nome de Deus acabaram por debilitá-Lo até a morte. Para Karl
Jaspers (1955), contudo, Nietzsche, mediante Zaratustra, apenas anuncia a
morte, mas quem de fato teria matado Deus são os cristãos. Gianni Vattimo
(2009) vai mais além e afirma, especificamente, que não se trata de um grupo
social somente, mas da religiosidade que eles praticam.
165 Filosofia da religião

Nietzsche não entrou em uma quaestio disputata com os teólogos de seu


tempo. Em vez disso, partiu da percepção da realidade e do que essa forma de
pensar fundamentada em um cristianismo idealizado platonicamente provoca
nas pessoas e na sociedade: uma anestesia – ção da consciência trágica. E a morte
de Deus indicava como aquela metafísica não mais era suficiente para ensinar
as pessoas a viver com elas mesmas e em sociedade, pois não sabia reconhecer
qualquer coisa que fosse diferente da idealização racional que se criou.
Para o filósofo alemão, vale acrescentar, a tragédia grega ajuda a lidar
com a vida diante do sofrimento e de suas vicissitudes pela reinvenção poética
e/ou artística da vida (Nietzsche, 2006), pois com os olhos da arte é possível
mergulhar no coração do mundo., O pensamento trágico, na perspectiva
nietzschiana, tem como característica o sofrimento proveniente da paixão de
viver, da qual deriva uma resposta à vida concreta (Nietzsche, 1895).
A visão trágica de mundo é oposta à de uma ordem preestabelecida
que procura encontrar um ou mais culpados para a causa das possíveis
desordens. Para Nietzsche, a tensão e a dinâmica da vida são representadas por
dois principais deuses gregos, Apoio – que exprime a sabedoria comedida, a
justiça e a inspiração poética – e Dionísio – responsável pela instintividade que
abala a ordem e rompe os limites em nome dos desejos, provocando a
desordem.
Assim a dinâmica da vida é como uma dança entre Apoio e Dionísio –
este é quem provoca o avanço da consciência e representa os instintos de viver.
Na teologia trágica, suplantada pela teologia platônica, os deuses são os
intérpretes das experiências da vida e aqueles que permitem instaurar esse
movimento de eterno retorno de ordem e desordem, aspecto que em Viktor
Frankl é identificado como eterno do sentido. A vida, nessa perspectiva, não
elimina o papel do acaso ao qual todos estão submetidos, mas antes entende
que o sofrimento leva o ser humano a se superar e a ir além de si mesmo.
166 Filosofia da religião

Com a metafísica platônica, a dança vital, dionisíaca e apolínea, é


substituída pela teorização racional da vida, tendo sido Sócrates o primeiro a
opor ideia e vida, julgando esta por um conjunto daquela, substituindo o
mundo sensível e aparente pela abstração das ideias, determinantes no juízo da
vida. Sócrates, em Nietzsche, subjuga a dimensão dionisíaca da vida à via
teorética do conhecimento abstrato. Com o cristianismo, o embate entre
Dionísio e Sócrates é recolocado entre a divindade grega e o Deus metafísico,
ou seja, a incompatibilidade entre pensamento teórico e experiência da vida é
substituída pela que se observa entre a doutrina cristã e seus dogmas e a
percepção da vida concreta e a catharsis da tragédia (Krastanov, 2011; Machado,
2004).
Nesse sentido, o cristianismo passa a ser o novo platonismo das massas,
contexto no qual o cristão é tomado como inimigo da vida, pois o mundo é tido
por ele como algo injusto, pecaminoso, do qual precisa ser salvo, justificado,
carecendo, portanto, de uma justiça divina que o conduza à existência post
mortem. A vida, assim, é condenada para que haja a necessidade de ser salva e
redimida de sua injustiça natural pela justiça de Deus.
O filósofo Gilles Deleuze (1976) identifica na leitura da piedade cristã em
Nietzsche um pathos cristão da contradição. Para ele, o pathos cristão, ou seja, a
estrutura afetiva do cristão, faz com que este enxergue a vida de modo
ressentido, diante da frustração da existência. E, em sua “consciência má”,
culpa-se por ter desejado aquilo que o frustrou e por Deus ter se dignado a puni-
lo. O cristão passa, assim, pela piedade, a desejar um ideal ascético em busca de
um devir niilista, uma fuga da vida (Deleuze, 1976) que elimine todos os valores
humanos em favor de uma pretensa moral desejada por Deus: a sua. Os valores
cristãos, que se intitulam como moral do bem, condenam como algo mau tudo o
que não seja cristão, considerando, portanto, o cristão como um eleito, acima do
bem e do mal. Contraditoriamente, esses mesmos valores não encerram
167 Filosofia da religião

uma preocupação com a vida da Terra, uma vez que a condenam, sendo ela um
vale de lágrimas à espera do céu. Ademais, há, na percepção nietzschiana, uma
piedade anestésica do sofrimento que enxerga, no símbolo do Crucificado, um
resignado.
Se o Iluminismo ataca as contradições morais dos cristãos e, assim, revela
uma razão insuficiente, Nietzsche combate os fundamentos daqueles fiéis que
levam a sério sua fé e identifica as consequências dessa estrutura afetiva e
dramática do cristianismo na sociedade, ou seja, a base antropológica em que se
estabelece o discurso teológico de

pessoas incapazes de enfrentar o sofrimento, ressentidas com a vida, e


incitadas a se resignar, tendo, por exemplo, o Crucificado como melhor
intérprete da experiência da vida, pois Deus um dia justificará toda frustração
punindo os pecadores, aqueles que se deleitam com a vida. O ressentimento
potencializa o moralismo e intensifica o desejo de punição como um
sentimento de vingança, que, ao ser alimentado continuamente, atinge o grau
de intolerância. A mesma intolerância que Voltaire já condenara nos cristãos e
que Nietzsche aponta como fundo existencial do cristianismo platonizado.
(Villas Boas; Siena, 2016, p. 68)

Com esse fundo antropológico e, portanto, um substrato cultural


dominante, a vontade de verdade no regime de cristandade – em que o
cristianismo é hegemônico – é marcada por um espírito inquisitorial, porque é
o instrumento pelo qual se pune o pecador, aquele que é beneficiado com a vida,
a mesma que frustra o cristão. O autoritarismo e a intolerância no cristianismo
são consequência de os fiéis viverem para um mundo paralelo (a existência post
mor – tem), no qual será compensada a frustração da vida e jamais serão
admitidos questionamentos, por não se enxergar o valor da crítica, preço alto
demais para se pagar, pois seria preciso olhar a realidade tal como se manifesta
em sua tensão e ausência de sentido.
168 Filosofia da religião

Essa postura amplia os pontos cegos, uma vez que a crítica ameaça um
mecanismo de defesa que dá segurança a esse mundo paralelo, transformando
a tradição dogmática em autêntica busca da verdade. Entendemos pontos cegos
como as perspectivas que não conseguem captar a complexidade daquilo que
se apresenta como novo desafio e sobre o que ainda não se tem resposta, razão
pela qual contestam as antigas soluções como insuficientes, pois foram
elaboradas no tempo em que os novos problemas ainda não existiam, sendo
evocadas, portanto, como conclusões atemporais. A insistência nessas respostas
simplesmente pode aumentar a cegueira sobre as causas dos novos problemas.
Nessa estrutura, instala-se um mecanismo político sofisticado, em que a
frágil afetividade da massa cristã se esconde atrás de uma máscara de poder e
intolerância, com o molde da face do Crucificado. Nesse sentido, tal fragilidade
pede a seus representantes messiânicos que salvem o mundo dos pecadores – e,
quanto mais se assemelhar o político a um representante de Cristo, mais o poder
o protegerá e mais se fomentará a resignação do povo que o mantém no poder
de modo inquestionável, pois, no fundo, ele personifica o Deus inquestionável
e perfeito.
Para o filósofo alemão, é exatamente nesse aspecto que começa a
enfermidade do Deus metafísico, pois, na medida em que se ofereceu um
sentido à sociedade, este foi policiado por uma cultura que alimentou o
autoritarismo pelo dogmatismo, e o sentimento de combate à vida do
cristianismo não admite críticas, uma vez que isso é ceder ao inimigo. Contudo,
ceder ao inimigo, no fundo, é voltar à própria frustração, é sair do refúgio
cultural, da forma social que protege o indivíduo de ter de enfrentar o
sofrimento e, mais ainda, de seu confuso desejo real. Temendo frustrar-se com
seu desejo, ele é condenado pela moral cristã e estabelece uma forma cultural e
social de cristianismo segundo a qual a condição para ser aceito é também
condenar e negar o desejo como solução.
169 Filosofia da religião

Dito de outra maneira, a forma social dogmatista de cristianismo


corrobora a apatia dos próprios desejos e em relação ao mundo que os provoca,
a que Nietzsche chama de ascética niilista, que vai “entulhando” as frustrações
com obras de piedade. Daí a afirmação nietzschiana de misericórdia alimentada
pela religiosidade cristã, que não passaria de uma espécie de condescendência
corporativista, que reserva a compaixão para seus pares: “Em verdade, não me
agradam os misericordiosos, os que se comprazem na sua piedade; são
demasiado faltosos de pudor” (Nietzsche, 2009, p. 68, tradução nossa). O
filósofo tinha diante dos olhos a mesma sociedade e a mesma cultura germânica
cristã das de seu contemporâneo, Sigmund Freud.
A religiosidade é, nessa perspectiva, um falseamento da imagem da vida,
sendo chamada pelo filósofo de círculo vicioso de Deus (circulus vicius deus), pois,
uma vez feita a incursão infeliz à religião, ela se torna uma necessidade que
aliena no além aqueles que nela adentram. Zaratustra, portanto, não matou
Deus, apenas anunciou a causa de sua morte: “Deus está morto; foi a sua
misericórdia [Mitleiden] pelos homens que o matou. Livrai-vos, pois, da mise-
ricórdia” (Nietzsche, 2009, p. 30, tradução nossa).
A misericórdia condenada pelo pensador trágico coincide com um
sentimento de comiseração e diz respeito à recusa de olhar o mundo fora de um
idealismo romântico, incorrendo em um enfrentamento da falta de garantias,
sob a forma de reafirmação de reducionismos dogmáticos. A morte de Deus em
Nietzsche pouco ou quase nada tem a ver com o Deus dos místicos, em que a
experiência religiosa afirma o humano e promove compromisso com a vida. Ela
diz respeito ao fim de uma visão de mundo – o que Nietzsche entende por
mundo ou cosmologia não se limita à natureza, está, na verdade, relacionado a
uma imagem da totalidade, aquilo pelo qual o indivíduo se orienta.
170 Filosofia da religião

Contudo, em sua obra póstuma O Anticristo (Der Antichrist), Nietzsche


(1895) apresenta, sem preocupações exegéticas ou cristológicas, o modo de vida
de Jesus e como ele aponta para uma dimensão existencial, pautada não por
platonismos, mas pela ação do amor. O autor afirma, por isso, a vida, sendo a
cruz também uma questão existencial decorrente da tônica da existência de
Cristo e do incômodo gerado na sociedade que o condenou. Porém, o filósofo
salienta que os discípulos não compreenderam a cruz como símbolo de Jesus,
tendo racionalizado sua morte, tentando encontrar uma razão teológica
(vontade divina) para deixar de amaldiçoar o evento. Para o pensador alemão,
e com base na concepção deste sobre o apóstolo Paulo, como era comum em sua
época, teria sido este o grande responsável pela racionalização da morte de
Jesus, que deixou de ter um aspecto existencial para ser entendida dentro de
uma lógica sacrificial, ou seja, de pagamento dos pecados dos culpados. Para o
Paulo nietzschiano, a partir do momento em que a morte é entendida como
salvação, está implícita uma avaliação racionalizada e imbuída de platonismo
de que a vida é uma prisão da qual o indivíduo precisa ser libertado. A morte
de Deus é a negação dessa racionalização ideal que incide sobre a religião, ou
seja, da maneira pela qual o homem procura viver sua vida. Nietzsche aponta
para a necessidade de uma religião que afirme a vida e não a negue, sem querer
controlá-la.

A fenomenologia da vida religiosa


5.2

de Martin Heidegger
Martin Heidegger (1889-1976), filósofo alemão, como leitor de Nietzsche,
dedicou-se a assumir a questão da “morte de Deus” como ponto de partida de
seus estudos (Heidegger, 2003). O autor constrói sua obra com base na crítica a
uma teodiceia apática estreitada pela linguagem de um racionalismo
preocupado com
171 Filosofia da religião

definições que dispensavam respostas subjetivas dos indivíduos aos seus


dramas interiores (Ursprung). Dito de outra maneira, de nada ou muito pouco
adianta saber o que os filósofos e os teólogos respondem objetivamente sobre
as questões humanas se o eu não souber e não puder responder pessoalmente a
suas próprias dúvidas.
Heidegger assumia também, com isso, o desafio da linguagem de
perceber que, no modo de ser de um texto, é possível encontrar o modo de ser
humano como desvelamento de sentido, ou seja, o ser da linguagem –
apreender o ser humano pela dimensão de linguagem –, inspirando o que ficou
conhecido como virada linguística da filosofia. Para o filósofo alemão, a verdade
não cabe em conceitos ou ideias – como fez o racionalismo de Platão até
Descartes, que influenciou a teologia da segunda escolástica –, pois ela é uma
experiência de sentido. E a linguagem é o principal fator para essa experiência,
cabendo então a tarefa de recuperar a linguagem poética e a que mais se
aproxima dos místicos, pois ambas experimentam o que há de essencial nas
palavras.
Ademais, desvela-se o sentido do ser projetando-o para “possibilidades”
(Möglichkeiten), de modo que a experiência da verdade (alétheia) incita a um
desafio de interpretação subjetiva, que corresponde não a um relativismo
absoluto, mas a uma busca da consciência para encontrar a melhor projeção de
si. E uma (re) elaboração das possibilidades de compreender-“se”, como
reflexão de um projeto de “eu” mais autêntico. Isso não significa que a inter-
pretação é isenta de pressuposições, mas que ela é uma chamada a reelaborar
as possibilidades de entendimento dentro do fenômeno da própria vida perante
os condicionamentos da realidade. Trata-se de um clareamento do indivíduo
sobre a condição de ser no mundo, de ampliação da percepção de suas
possibilidades e, portanto, de descobrir-se como alguém que poeticamente
habita sobre o mundo (Heidegger, 2004).
172 Filosofia da religião

Partindo, então, de outro pretexto para pensar a questão de Deus,


diferente dos pressupostos conceituais metafísicos, Heidegger se propôs a
pensar a realidade humana elaborando uma interpretação fenomenológica da
vida religiosa, em que analisou algumas cartas de Paulo e de Santo Agostinho e
a influência deste último no neoplatonismo. Em Paulo, o filósofo captou o
fenômeno da dimensão escatológica do cristianismo, segundo a qual a meta é
a realização do começo, motivo pelo qual há um desenvolvimento do princípio
de acordo com sua finalidade existencial como dinâmica de consumação do que
dá sentido à vida passada, presente e futura. Essa dimensão, para o filósofo, é a
base da linguagem poética que permite a extração da densidade de sentido do
eterno realizado no histórico, ou seja, passar a viver agora o que ainda não se
realizou, mas que existe no horizonte de esperanças.
Esse horizonte já é um desvelamento da verdade sobre si mesmo que só
se realiza como exercício de imaginar o vir a ser autêntico, aquilo que a pessoa
pode tornar-se como expressão de seu desejo mais profundo. Essa linguagem
poética, a comunicação por excelência do cristianismo, uma vez que melhor
veicula a dimensão paradoxal da vida que excede uma perspectiva lógica
formal, fora suprimida “pela sistemática” em sua linguagem descritiva
(Heidegger, 2010, p. 104-105,114,155, grifo nosso).
Da obra Confissões de Santo Agostinho (Agostino, [S.d.]) o filósofo alemão
procurou extrair, então, não uma doutrina especificamente teórica, mas uma
fenomenologia da experiência cristã, o caráter realizador da mensagem do
Evangelho. Heidegger buscava uma experiência factual, ou seja, afetada pelo
fato da proclamação, que ecoasse em um princípio de realização da vida como
autêntica dinâmica de sentido e que fosse aflorando como consciência de um
princípio existencial totalmente novo, não sem a necessidade de amadurecer a
linguagem e mesmo traduzi-la para o mundo de sua duração – da tensão
paradoxal entre o tempo já vivido e a
173 Filosofia da religião

eternidade (tempo ainda não vivido). Dessa forma, só aquele que realiza a
existência consegue captar algo do eterno. “O sentido da temporalidade determina-
se por sua relação fundamental com Deus, de tal maneira, porém, que somente
aquele que vive a temporalidade de maneira realizadora pode entender a
eternidade” (Heidegger, 2010, p. 105).
O referido livro de Santo Agostinho é visto, portanto, como uma narrativa
que se inicia com o saber sobre si próprio e com a percepção cristã de se
descobrir um problema (quaestio mihi factus sum). Contudo, também se descobre
que “há algo no homem que nem mesmo o próprio espírito do homem conhece
[...] a que tentações sou capaz de resistir e a quais não” (Heidegger, 2010, p. 160).
Em linhas gerais, na lente fenomenológica heideggeriana a respeito dos
aspectos fundamentais do conhecimento de si, sobre aquilo em que consiste a
existência, estabelecem-se alguns passos:

▪ O primeiro passo tem a ver com a narração da memória, em que algumas


coisas se apresentam imediatamente e outras levam maior tempo para
fazê-lo, produzindo uma imagem da própria história (Confessionum X, n.
8,12, citado por Heidegger, 2010, p. 165). A memória deve ordenar os
raciocínios e os afetos apreendidos e mesmo os esquecidos, mas que
permanecem retidos, classificando-os e dando-lhes determinado sentido.
Na memória reside a possibilidade de o indivíduo se encontrar consigo
mesmo em busca de sentido, em um exercício exigente de superar as
imagens distorcidas que tem de si: “Ali encontro-me comigo mesmo e
lembro-me de mim, e o que fiz e quando o fiz e quais eram meus afetos
enquanto o fazia [...]; disso resultam futuras ações e acontecimentos e
esperanças, e todas estas coisas posso meditá-las novamente como se es-
tivessem quase presentes” (Confessionum X, n. 8,14, citado por Heidegger,
2010, p. 169).
174 Filosofia da religião

▪ O segundo passo é a procura da plenitude de sentido que acontece na


própria realização dessa ação e que se encontra no modo pelo qual se
deve buscar a Deus (quomodo quaero Deum) e a uma vida feliz (quomodo
quaero vitam beata). Heidegger entende que o filósofo de Hipona apresenta
o como da procura, por meio do desejo que se sabe desconhecido (per
appetitum discendi incognitam) e, assim, esses dois mistérios se iluminam,
pois descobrir o caminho da felicidade ajuda a entender a Deus, e
entender a Deus propicia a compreensão do caminho da vida feliz. Desse
modo, desejando a verdade e não querendo enganar-se, o indivíduo
passa a ser conduzido por um sentido da verdade que se verifica em sua
própria existência: “A verdade é a verdadeira vida feliz [Veritas estvera
beata vita]” (Confessionum X, n. 23,33, citado por Heidegger, 2010, p. 223).
▪ O terceiro passo é o enfrentamento da tentação (tentatio) de não amar
suficientemente a busca pela verdade autêntica, que requer esforço pela
verdade de depurar a compreensão de si mesmo, quando se desvelam
também as contradições humanas, exigindo o enfrentamento da preguiça
existencial e intelectual, tentação para se encontrarem escusas para não
realizar esse empreendimento. O filósofo alemão assimila de Agostinho
que a tentatio é amar apenas a verdade quando ela vem luminosamente
ao encontro do indivíduo em forma de prazer, incorrendo-se no risco de
ceder a uma cômoda inautenticidade. A tentatio, em dinâmica existencial,
é uma disputa entre duas direções do amor, em que uma orienta o amor
para o próprio indivíduo – pois ele ama para ser amado pelos outros, e,
ao não ser correspondido, subverte seu amor em ódio e passa a se tornar
problema para si mesmo – e a outra, a do amor autêntico, caminha para
a ordem do summum bonum, que é Deus, e conduz assim à ordem da
caritas. Nesse sentido, a verdade no cristianismo é aquilo que conduz ao
amor autêntico, a amar em prol do bem, passando
175 Filosofia da religião

pela aceitação das próprias contradições, na medida em que o desejo pela


experiência de Deus como realização autêntica do summum bonum
significa estar disponível para intensificar o caminho da caritas
(Heidegger, 2010).

O conhecimento de si e a axiologização enquanto experiência e apropriação


dos valores que correspondem ao Summum Bonum são caminhos de
superação existencial para o que Heidegger chamou de pecado em Agostinho,
a saber "bloqueio" e "obscurecimento" da compreensão autêntica. No
movimento hamartiológico, a "compreensão passa por cima da vontade, segue
a inclinação para a queda e confirma até mesmo que esta é o autêntico".
Justificando e legitimando o inautêntico, a vontade [de sentido] inibe o
movimento de busca passando em um primeiro nível a "não querer
compreender o justo", seguido de um "não querer compreender" e chegando
a um "não querer", e deixa de seguir a inquietude que conduz para a ordem
[iudere] da "direção do coração" [directio cordis], que fora feito para o amor e
o bem. (Villas Boas, 2016, p. 304-305)

A percepção de Heidegger sobre a noção de amor em Agostinho é a de


um fenômeno (amor) que encerra uma intencionalidade específica (amar mais
do que ser amado) e, assim, o autor o entende como um amor ordenado para
amar. Esse amor abrange todos os horizontes de relação do ser: o que está acima
dele; o que ele é; o que está junto dele; o que está abaixo dele – aceitando as
próprias limitações sem conformar-se em ser inferior. Desse modo, a linguagem
poética é que qualifica a percepção dos afetos motivadores e, por isso, possibilita
a apropriação do sujeito amante dos caracteres do amor, entendido como
genuíno em seu movimento de direção para fora de si. Esse, portanto, é o motivo
para se “insistir com o coração a pensar no divino [coge cor tuum cogitare divina]”
(Sermones, LIII, 10,11; Heidegger, 2010, p. 278; 251-274).
176 Filosofia da religião

Heidegger, portanto, captou em Agostinho a capacidade da linguagem


poética na busca de sentido (cor inquietum). A perspectiva de Agostinho sobre o
testemunho das Escrituras, como sugere o filósofo alemão, é de uma poética
judaico-cristã que contém o sentido da imagem e da narrativa para a conversão
da visão de si e a apropriação da caritas que lança o amor ao outro (Villas Boas,
2016, p. 305). Heidegger identifica aí o papel místico que o poeta tem de desvelar
a experiência da verdade como proposta de vida autêntica. Nesse contexto, o
poeta Hölderlin (1770-1843), para o pensador alemão, é quem ocuparia essa
recuperação da tarefa filosófica da linguagem poética, que tem na base uma
fenomenologia da vida religiosa (Heidegger, 2004).

5.3 Jean-Paul Sartre e a má fé2


No pensamento do filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), a questão
central é a liberdade, em razão das experiências de totalitarismos europeus nas
duas grandes guerras. Seguindo a crítica nietzschiana, as origens ideológicas
desses totalitarismos, para Sartre, encontram-se na concepção de essência como
substância definidora da natureza humana, da vida, dos costumes, da
sociedade, do sentido do outro e até mesmo dos rumos da história. Essa
concepção procura legitimação em uma percepção de Deus com fundamento
em uma analogia entre divindade e humanidade (analogia entis), que determina
o que cada indivíduo deve ser. As bases culturais da sociedade autoritária
residem em um pilar de sustentação chamado Deus, razão pela qual Sartre assim
define seu existencialismo ateu:

_____________________
2 Optamos por utilizar a expressão ma fé sem hífen (há, em nossa língua, o termo má-fé, hifenizado), uma vez
que é tradução direta do conceito sartriano de mauvaise foi, exclusivo do pensamento do filósofo.
177 Filosofia da religião

se Deus não existe, há ao menos um ser no qual a existência precede a essência,


um ser que existe antes de poder ser definido por algum conceito e que esse
ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. O que significa
aqui que a existência precede a essência? Isso significa que, primeiramente,
existe o homem, ele se deixa encontrar, surge no mundo, e que ele só se define
depois. O homem tal como o concebe o existencialista não é definível porque,
inicialmente, ele nada é. Ele só será depois, e ele será tal como ele se fizer.
Assim, não existe natureza humana, já que não há Deus para concebê-la. O
homem é apenas não somente tal como ele se concebe, mas tal como ele se
quer, e como ele se concebe após existir, como ele se quer depois dessa
vontade de existir – o homem é apenas aquilo que ele faz de si mesmo. Tal é o
primeiro princípio do existencialismo. (Sartre, 2002b, p. 24)

A nadificação, vale aqui esclarecer, é o método sartriano de destituir


qualquer ideia de essência a priori constituída, ou seja, não há nada de
essencialmente definidor da realidade; busca, assim, desde uma descrição
fenomenológica da existência concreta do indivíduo e do emprego da dúvida
até a provocação da náusea ao se perceber a existência como absurda. Essa
insustentável dimensão exige o humanismo para a construção humanizadora
da história.
A náusea sartriana, por sua vez, tem a tarefa de revelar a condição do
absurdo do nada da existência e o lugar de onde emerge a vontade de existir.
Essa vontade, porém, pede a consciência não só de si, que é vazia, mas do outro,
como sujeito que se relaciona com o outrem (objeto de sua consciência),
nascendo daí o humanismo, uma forma de acreditar na vida, apesar do
absurdo.
Sartre (2002b) considera, entretanto, como principal obstáculo para o
humanismo, o que chama de má fé, a tentação de alguém para aceitar alguma
forma de determinismo espelhado em um outro que o furte da tarefa de buscar
a própria autenticidade, como
178 Filosofia da religião

caminho de fuga da angústia de se libertar das ilusões, aceitando o que outrem


deseje que o “eu” seja, julgando assim ser livre. Dessa forma, “Aquele a quem
se mente e aquele que mente são uma só e mesma pessoa, e isso significa que
eu, enquanto enganador, devo saber a verdade que é-me disfarçada enquanto
enganado” (Sartre, 2002b, p. 94-95). Essa fuga da tarefa de superação do olhar
da vida, acomodando-se na situação que lhe convém, ou, ainda, aceitando uma
condição, mesmo inconveniente, é, para o filósofo, a má fé, o que significa negar
a própria liberdade: “Todo homem se refugia na desculpa de suas paixões, todo
homem que inventa um determinismo é um homem de má fé” (Sartre, 2002b, p.
94-95).
A nadificação de Sartre, portanto, visa fazer com que o indivíduo se
reconheça como único responsável por sua história e pela história da sociedade
em que vive, uma vez que Deus se tornou legitimador daqueles que querem
controlar as histórias. Por isso, para o filósofo francês, a liberdade é o único
“fundamento dos valores”, devendo o ser humano viver como fundamento sem
fundamento para decidir o que quer ser em seu projeto de vida: “o homem é
apenas seu projeto, só existe na medida em que se realiza, ele é tão somente o
conjunto de seus atos” (Sartre, 1978, p. 81).
A liberdade, para Sartre, concretiza-se na escolha livre de lutar por ela, de
modo que esse foi um dos motivos de o filósofo ter rompido com o Partido
Comunista francês. Em sua fase marxista, ele chegou a ter uma relação
entusiasta com a possibilidade de mudança histórica; porém, ao se sobreporem
ao indivíduo, as deliberações do partido deixavam de promover a
transformação, adotando-se as mesmas estratégias de manutenção do poder
que criticavam. Tratava-se de uma outra forma de má fé, apesar do potencial
transformador, pois, na medida em que o sujeito fica desfigurado em sua
liberdade, o humanismo não é mais possível, virando o marxismo uma doutrina
de terror: “O marxismo
179 Filosofia da religião

degenerará em uma antropologia inumana se não reintegrar em si o próprio


homem como seu fundamento” (Sartre, 2002a, p. 109).
Outra questão importante para Sartre é a linguagem como instrumento
para instituir determinismos, pois, segundo o autor, é por meio dela que se
criam doutrinas que fundamentam projetos políticos e veiculam ideologias que
moldam o indivíduo. A linguagem promove as razões para a descrença na
mesma proporção em que fomenta as razões da má fé.
Curiosamente, Sartre (2004), em Que é a literatura?, aponta o que chama
de atitude poética, indicando como os escritores são aqueles que se recusam a ter
uma relação de linguagem-instrumento, que domestica a linguagem e manipula
as palavras. Antes escritores servem as palavras, com uma sensibilidade para a
escuta da realidade que se esconde atrás delas, mas que se recusa a ser reduzida
a elas.
A linguagem, na atitude poética, desconfia das verdades superficiais,
especialmente as que pretendem se impor, coagindo as liberdades, com a má fé.
A atitude poética conduz para além das razões da razão para atingir as razões,
a virtude, os vícios, mas não para anestesiar-nos com uma beleza fugaz, e sim
para penetrar na “grande dor que os homens têm de viver” (Sartre, 2004, p. 26).
As ideias insossas e opacas, seja a metafísica, seja a ideologia, não permitem ao
indivíduo enxergar a realidade do nada e o fazem agir com a má-fé de se
reconhecer como superior por ter acesso a essas ideias com a mesma
“superioridade que os cães vivos têm sobre os leões mortos” (Sartre, 2004, p.
26).
Assim, a literatura provoca uma interrogação que não comporta resposta,
sendo, antes, sua própria resposta, a interrogação tornada coisa que lança a vida
em uma existência interrogativa. E, por isso mesmo, é capaz de alcançar o
absurdo do nada por não ter sido feita para ter uma resposta, e a mesma
existência interrogativa
180 Filosofia da religião

prossegue sua contínua procura de um sentido para o absurdo da vida. A


realidade é parte do microcosmo da poética, visto que as palavras “não o lançam
[o poeta] para fora de si mesmo”, mas “para o meio das coisas”, no “meio do
mundo” e iluminam o “coração negro das coisas”3, pois a linguagem inteira é,
para o poeta, como espelho do mundo, que o engaja com a realidade, uma vez
que “a paixão, a cólera, a indignação social, o ódio político – estão na origem do
poema” (Sartre, 1948, p. 16, tradução nossa). Por isso mesmo, a crise social do
século XX é também uma crise poética, pois exclui, da consciência humana, o
eterno descontentamento da existência, condição para a consciência da
necessidade do humanismo.
Para Sartre (2004), a ideologia e a metafísica religiosa idealista são
expressões de má fé porque eliminam a existência interrogativa como postura
diante da realidade. Por outro viés, a atitude poética está no lugar de um
“sistema de valores transcendente” (Sartre, 2004, p. 20), e sua contemplação
resulta na indagação do que vale a pena nesse absurdo da existência para fazer
do falar um agir e mover o indivíduo da inocência ao engajamento, do qual brota
o impulso criador que desvenda o mundo e especialmente “o homem para os
outros homens” (Sartre, 2004, p. 21), para que assim assumam sua
responsabilidade, deixando de ignorar o mundo e de se considerar inocentes
diante dele. O olhar do poeta, contudo, não é contemplação pura, mas
contemplação do nada, que pede uma vontade de existir que só pode emergir
da (re)invenção de si a partir do outro, não somente mediada, mas também
inspirada pela linguagem, pois a vida humana se dá em situação de linguagem,
de ser por ela conhecida à medida que penetra silenciosamente no mistério do
ser (coisa) que a linguagem esconde. O poeta dá voz às “razões do coração”
(Sartre, 2004, p. 27), ou seja, sua vontade de existir, que brota em forma de
inspiração.

_____________________
3 “Le coeur noir des choses” (Sartre, 1948, p. 16).
181 Filosofia da religião

A atitude poética promovida pela literatura é, para o filósofo, a única


capaz de penetrar na realidade para além das ideologias e das metafísicas e
suportar a náusea pelo engajamento com a realidade e com o projeto de
humanismo, por proporcionar o impulso criador “do mais fundo do coração”
(Sartre, 2004, p. 35) e por alimentar uma existência interrogante, condição para
não cair na tentação da má fé, pois o questionamento permite o encantamento
que encontra o exercício de desvendar o enigma das coisas. Na perspectiva
sartriana, a palavra é ação e desvendar é mudar. Para o filósofo francês, a perda
de consciência da atitude poética conduz os meros falantes a se tornarem uma
espécie de “hereges cátaros” da linguagem, visto que “não querem ter nada a
ver com o mundo real”, e toda a literatura nada mais é que uma “vasta
tautologia” inventando uma maneira de “falar para não dizer nada”, razão pela
qual “a arte nunca esteve do lado dos puristas” (Sartre, 2004, p. 24).
Há, com isso, uma espécie de mística da poesia na qual é preciso ter uma
atitude de desvendar o enigma de si para além das palavras que o definem, uma
vez que a situação de linguagem é própria da realidade humana que a limita,
mas ao mesmo tempo permite ir adiante. A missão do escritor literário,
portanto, ocorre em razão da consciência de que a realidade humana é
“desvendante” e o homem é “o meio pelo qual as coisas se manifestam” (Sartre,
2004, p. 34), pois o texto poético não tem a função de definir, mas a de tirar as
vendas da realidade. Em Sartre, a atitude poética coincide com certa mística
humana, de sedução e questionamento, que retroalimenta uma busca
incessante. Pela poesia, penetra-se no mistério do mundo, experimentam-se os
sabores das coisas e dispõe-se a vida em uma dinâmica de interminável busca
de uma existência interrogativa. O próprio Sartre faz menção a esse modo de
percepção como proveniente dos místicos, de modo que mesmo Deus, se
existisse, não escaparia da condição de ser
182 Filosofia da religião

desvendado para além de frias palavras. E o poeta, afirma o filósofo ateu, retira
as palavras da “condição humana e o convida [o leitor] a considerar, com os
olhos de Deus, o avesso da linguagem” (Sartre, 2004, p. 18): “Deus, se existisse,
estaria, como bem viram certos místicos, em situação de linguagem em relação
ao homem”4 (Sartre, 1948, p. 28, tradução nossa).
A leitura de obra literária mediante o despertar de uma atitude poética é
um ato de fé em que a liberdade se deixa conduzir pela vontade de existir, tal
como se deixou guiar Cristo em sua Paixão, livremente:

esses sentimentos são de uma espécie peculiar: têm a liberdade como origem;
são dados por empréstimo. Toda crença é livremente consentida, mesmo
aquela que deposito na narrativa. Trata-se de uma Paixão, no sentido cristão
da palavra, isto é, uma liberdade que se coloca resolutamente em estado de
passividade, a fim de obter, por esse sacrifício, um certo efeito transcendente.
O leitor se faz crédulo, desce até a credulidade, e esta, embora acabe por se
fechar sobre ele como um sonho, é acompanhada a cada instante pela
consciência de ser livre. (Sartre, 2004, p. 41-42)

Sartre aponta em direção às razões para a descrença no mundo


contemporâneo, aquilo que promove a má fé, que não possibilita a construção
de um projeto autêntico de vida e humanização da cultura, inautenticidade esta
que pode residir em qualquer tecido social, inclusive na religião. Ao mesmo
tempo, o autor reconhece uma afinidade entre poetas e místicos que leva a uma
outra experiência, a da recusa de crendices metafísicas, religiosas ou
ideológicas, para assumir um projeto existencial que passa por um processo de
apaixonamento que conduz a uma fé na vida, no ser humano e nas lutas pelas
causas nobres.

_____________________
4 "Car Dieu, s'il existait, serait, comme l’ont bien vu certains mystiques en situation par rapportà l’homme" {Sartre
1948, p. 28).
183 Filosofia da religião

A questão de Deus após


5.4

Auschwitz e a filosofia judaica


contemporânea
No século XX, Auschwitz5 pôs em xeque as formas de teodiceia, mais do
que o fizera o terremoto de Lisboa no século XVI6.A crítica à teodiceia
seiscentista acentuava a ingenuidade cristã, representada na personagem
Cândido, de Voltaire, ao passo que no século XX a questão se deslocou para a
perversidade.
A ideia de um Deus todo-poderoso que rege uma grande harmonia de
fatos, extraindo coisas boas das coisas más, caiu por terra após a extrema
crueldade e banalidade do mal observada na Shoah, atingindo assim a estrutura
de esperança da teologia judaica do povo eleito e da teologia cristã de um Deus
intervencionista. Nesse contexto, implodiu a argumentação teológica da
segunda escolástica sobre as provas da existência de Deus, o que levou
inevitavelmente a questionamentos a respeito desses fenômenos, tendo em vista
duas tradições teológicas: i) a judaica – “Por que há o silêncio de Deus?” – e ii)
a cristã – “Por que Deus não interfere?”.

Hans Jonas e a questão de Deus


5.4.1

após Auschwitz
Na condição de pensar a divindade após Auschwitz, Hans Jonas (1903-1993),
filósofo judeu, elaborou um conceito de Deus (Gottesbegriff) pelo qual se
abandona a necessidade de provar sua existência (Gottesbeweiss), como fazia a
segunda escolástica, com

_____________________
5 Auschwitz é considerado o maior símbolo do Holocausto, também conhecido como Shoah. Tratava-se de uma
rede de campos de concentração localizados no sul da Polônia, em territórios anexados pelo regime nazista.
Auschwitz II-Birkenau ficou mais conhecido por ter sido um campo de extermínio.
6 Em 1755, houve um grande terremoto ao sul de Portugal que quase destruiu toda a cidade de Lisboa.
184 Filosofia da religião

o pressuposto ético das escrituras hebraicas. Apontou-se para a bondade de


Deus, fonte de sua impotência, com sua decisão de “abandonar-se ao acaso”
(sich dem Zufall), em vez de controlá-lo, na concepção de Providência da segunda
escolástica. Assim, observou-se ao risco, à “diversidade infinita do devir”, para
poder se comprometer na aventura (Abenteur) humana “do espaço e do tempo”
(Jonas, 2016, p. 9,15-16).
A criação do ser humano à imagem e semelhança de Deus implica que
haja uma contração divina que abdica de sua autonomia ou se autolimita para
que ocorra o surgimento da condição humana. Nesse sentido, o homem
participa da Criação e toma parte dela como cocriador, o que resulta da decisão
divina de não controlar a vida. Essa postura é distinta daquela de não participar
da vida, pois situar a questão de Deus responsavelmente, assim como a questão
humana, implica não abstraí-lo do mundo nem identificá-lo, mas garantir a
autonomia do Criador e da Criação. Assim, passa-se a pensar a questão de Deus
também como ser no mundo (Mythos von Gottes In-der-Welt-Sein) (Jonas, 2016).
Com isso, o filósofo judeu aponta para uma fenomenologia de Deus de
inspiração hegeliana, na qual morte e vida são vistas dialeticamente. Deus,
então, manifesta-se na intensificação da vitalidade ao perceber o valor da vida
diante da morte e, assim, em vez de evitar o mal, aposta na capacidade humana
de superá-lo (Jonas, 2016).
A ruptura com uma teodiceia segundo a qual a onipotência divina abarca
toda a responsabilidade humana era, ao mesmo tempo, a recusa da perspectiva
que retira do mal sua malignidade e a concepção de um Deus com base nos
pressupostos éticos da teologia. Isso implica um Deus igualmente indignado
com o mal injustificável, a ira Dei da teologia profética diante do escândalo do
mal.
185 Filosofia da religião

5.4.2 Abraham J. Heschel e o pathos divino


Abraham J. Heschel (1907-1972) também assumiu a postura de abandono da
questão da prova de Deus, e ele o fez com base na literatura profética.
Heschel interpretou o profeta como aquele que tem não uma teoria ou
uma ideia de Deus, mas uma compreensão ou um entendimento (understanding)
de um Mistério que se manifesta como realidade viva no mais profundo da
existência. Dessa forma, Deus se dá a conhecer nos profetas por meio de uma
teopatia, ou seja, o profeta, em vez de oferecer uma exposição da natureza de
Deus, na verdade apresenta a percepção (insight) da preocupação de Deus para
com o ser humano, desvelando as atitudes divinas em seu íntimo como
inquietações que solicitam a formulação de imagens suas que traduzam o que
se passa em seu interior. Assim, as noções de bondade, justiça, sabedoria,
unidade, que compõem a linguagem bíblica, seriam expressões que se traduzem
como afirmação do pathos divino (divine pathos), identificadas no pathos do
profeta, do qual nascem as atitudes correspondentes como resposta a suas
profundas inquietações.
O Deus dos profetas, então, nada tem a ver com o theós apatiké aristotélico,
assumido pela teologia anterior ao século XX, a qual, na ânsia de defesa das
instituições eclesiais, acabou por sustentar justificativas divinas da realidade,
incluindo a de Auschwitz. A teologia profética, por sua vez, capta o
entendimento das atitudes divinas para com o ser humano com base na
percepção do profeta do pathos de Deus, e nisso consiste a profecia. O pathos
divino, assim, é uma manifestação que se dirige ao interior do ser humano
quando sua conduta abandona a justiça. A dimensão do pathos divino, portanto,
não é um atributo, e sim uma situação na qual se manifesta a indissociação entre
pathos e ethos em Deus, expressão do íntimo envolvimento deste com a história
do ser
186 Filosofia da religião

humano. Mediante esse envolvimento, os eventos afetariam a humanidade em


seu cuidado, constituindo, assim, a essência divina a natureza moral de Deus.
A ira Dei, no contexto de uma teopatia, é vista como repreensão moral de Deus
quando há um defeito em sua justiça. Esse é um dos modos privilegiados da
manifestação da vontade de Deus como anseio por justiça que se apresenta em
sua ira, que é, então, vista como justa indignação que deseja o fim da
indiferença, dando a conhecer sua sensibilidade à medida que provoca
sentimentos na humanidade (Heschel, 2007).
Para esse teólogo judeu do século XX, os profetas se relacionam com o
pathos de Deus, não com a essência eterna dele mesmo, mas de uma maneira
que une eterno e temporal, metafísico e histórico, sentido e mistério, ou seja, que
percebe a divindade não como abstração do Absoluto, mas como íntima relação
com aquilo que a ele afeta, a saber: o ser humano e sua história. Na antropologia
teológica hescheliana, o profeta se descobre como Homo sympathetikos.

O pathos denota não uma ideia de bondade, mas uma relação dinâmica
entre o ser humano e Deus, uma convocação a viver a mesma paixão, a
se envolver com a história humana, como engajamento emocional que
sensibiliza para um crescente e constante envolvimento com a realidade.
O caminho fundamental para se conhecer a Deus é a empatia [sympathy]
com os sentimentos do Deus bíblico, de modo a descobrir que aquilo que
afeta o ser humano atinge não somente sua vida, mas a vida de Deus,
que tem sua atenção voltada para a vida humana. (Villas Boas, 2016, p.
267-268; Heschel, 2007, p. 38-42)
187 Filosofia da religião

Emmanuel Lévinas: o rosto de Deus


5.4.3

no rosto do outro
Outro filósofo judeu importante do século XX foi o franco-lituano Emmanuel
Lévinas (1906-1995). Incialmente, Lévinas acompanhou a crítica de Heidegger
ao projeto platônico da metafísica cristã, que o conduziu a pensar a existência
por meio de uma representação no mundo das ideias, abolindo, com isso, o
modo de pensar dos poetas gregos como forma privilegiada de apreender a
essência das coisas com base em uma experiência de desvelamento de sentido
captada na palavra poética. Com tal deslocamento epistemológico, o logos
passou a ser entendido não como o próprio fundamento da realidade, mas como
uma imagem das ideias em si mesmas. Ou seja, o pensamento especulativo é
direcionado a pensar, em vez da realidade, as ideias, transpondo um modelo
matemático para a tarefa humana de refletir sobre sua condição fundamental,
um modo de ser específico: o ser humano (Heidegger, 2003).
Entretanto, Lévinas identificou uma lacuna no modo de pensar
heideggeriano que o tornava insuficiente para frear uma mentalidade
totalitária, uma vez que os regimes totalitários se tornariam possíveis
exatamente pelo solipsismo advindo da meditação solitária do ser, sem contar
com o rosto do Outro para pensar a realidade. O afastamento do Outro na
reflexão é fonte de toda exclusão social e do imaginário potencialmente
autoritário do Ocidente. Para o filósofo judeu, o pensamento heideggeriano não
seria outra coisa senão mera sofisticação solipsista que continua excluindo a
alteridade da tarefa filosófica. Em seu exame sobre a ontologia e o solipsismo
ocidentais, Lévinas critica o cômodo exercício de pensar sempre o Mesmo sem
lançar-se à aventura de ir em direção ao Outro7 (Lévinas, 2012).

_____________________
7 Quando Mesmo e Outro são empregados com letra inicial maiúscula, referem-se a uma abrangência universal
dessas categorias, na qualidade de estruturas de pensamento. Quando aparecem com letra inicial minúscula,
referem-se a um fenômeno contextuai.
188 Filosofia da religião

Em Humanismo do Outro homem, de 1972, Lévinas (2012) enfatiza a ação


de pensar a identidade no Ocidente, provocando uma estruturação psicológica
em busca de unidade de sentido. O autor evoca a figura de Abraão como
peregrino que caminha no deserto e, portanto, de um homem aberto ao Outro,
o qual, consequentemente, é portador de uma constituição diferente como
estrutura psicológica, a de abertura à alteridade. Também o filósofo judaico
refuta a perspectiva da segunda escolástica e adota a fenomenologia de Husserl
para estabelecer a relação entre desejo e infinito. O infinito se distancia de uma
concepção teológica de absoluto, que, por sua vez, emoldura a categoria de
teodiceia leibniziana como uma forma divina de dizer que sustenta a ordem
social, mantendo, assim, o status quo.
Em sua perspectiva fenomenológica, Lévinas (1997) abordou o
fundamento do saber menos como processo de garantir as proposições do que
como processo de clarificar o sentido que a certeza e a verdade podem ter para
a compreensão da realidade e, assim, definiu o sentido da existência a que se
referem, empregando, dessa forma, uma nova maneira de filosofar, ou seja, de
interrogar as coisas e, consequentemente, uma nova maneira de existir. O modo
como Lévinas interpreta a fenomenologia de Husserl convida a procurar no
sujeito a origem subjetiva do significado objetivo das noções, um sentido que
escapa à análise direta do conceito, que se constitui como oposição entre a
evidência direta, percebida ingenuamente, e a evidência refletida, que é capaz
de inaugurar uma nova dimensão de racionalidade.
O filósofo talmúdico visava perceber uma lógica existencial na
perspectiva em que ela aparece ao sujeito. Objetivava, assim, superar uma
lógica com a qual não nos deixamos afetar por fatos psicológicos que não sejam
convergentes a um sentido objetivo previamente definido, distinguindo aquilo
que é vivido e aquilo que é pensado. A espiritualidade é, exatamente, a
recuperação
189 Filosofia da religião

da relação dialética entre interioridade de sentido (o que afeta) e exterioridade


de sentido (o que é refletido), podendo ser pensada pela fenomenologia como
ciência do sujeito, analisando-se a correlação entre intenção e pensamento.
Assim, trata-se de uma fenomenologia que não visa à explicação do fato, mas
ao esclarecimento do sentido, tendo por tarefa desenredar a confusão
psicológica não em um complexo de causa e efeito, mas em um complexo de
intenções. Desse modo, o conhecimento consuma-se à medida que encontra um
princípio que desvela o esclarecimento do próprio sentido (Lévinas, 1997).
Em sua crítica à filosofia ocidental, Lévinas evidencia uma estrutura de
pensamento que acaba por gerar um despreparo afetivo e uma indiferença ao
Outro como forma de pensar que promove a absorção e a dedução deste pelo
Mesmo. Dito de outra maneira, a manifestação da verdade na crítica levinasiana
ao modo de pensar ocidental consiste sempre em descobrir uma totalidade em
que a diversidade acaba por ser reduzida ao idêntico, ou seja, pela
intencionalidade do pensamento, o diverso é redutível ao plano do Mesmo,
sendo o primado do Mesmo uma estruturação narcísica do pensamento e da
psicologia ocidentais presentes, ainda de modo camuflado, na fenomenologia
ontológica de Heidegger (Lévinas, 1997).
Nesse aspecto, a apatia do pensamento em relação ao Outro é o efeito de
confirmação do Mesmo como resultado da contemplação da ideia preconcebida
em si. Isso significa que há, no eros filosófico do Ocidente, um predomínio
narcisista. Para o pensador franco-lituano, a refundação do pensamento com
base na consideração do outro visa a uma abertura de pensamento que ocorre
na experiência pura do rosto do Outro e, portanto, pré-conceitual, de modo que
este extravase o Mesmo à medida que o infinito transborda a ideia preconcebida
para reforçar o mesmo. Essa dinâmica só pode ser realizada por ser o Outro
abraâmico, por
190 Filosofia da religião

excelência, Deus, que infinitamente chama a sair de si pelo desejo que provoca
no outro.
Desse modo, na perspectiva levinasiana, não há subjetivação no
pensamento ocidental, mas consolidação e acomodamento de uma identidade
que reduz o Outro a um assemelhado do Mesmo. Para o autor, só a ética permite
a subjetivação, na qualidade de identidade aberta ao Outro, pois é na
passividade de acolhida deste que a subjetividade emerge, exatamente como
perda das figuras do “eu”. Disso decorre que a ética é a filosofia primeira e
condição para que surja a religião, pois a relação com o Outro é não um ato
gnosiológico pelo qual ele é reduzido a um objeto de conhecimento, mas
fundamentalmente uma relação que institui a própria subjetividade. Isso
acontece porque é na intersubjetividade que é possível a racionalização do
psiquismo, e não como uma essência. O objeto dessa racionalização é a
“transcendência do eu para o Outro” (Lévinas, 2010, p. 9), que, ao instaurar o
“nós”, promove o sujeito ético. A subjetivação é a capacidade de implantar
convivências que se transformam na troca com o Outro, pois é na ética – que
sustenta as convivências – “entendida como responsabilidade, que se funda o
próprio núcleo do subjetivo” (Lévinas, 1997, p. 1); a subjetividade não é algo
que se forma para si, mas para o Outro
Do mesmo modo, a subjetivação exige que se veja a existência como
trabalho, para manter a convivência com o Outro, que tem sempre algo que
excede a mim. Ou seja, nunca haverá uma adaptação plena, o que exige a
postura de acolhida como subjetividade passiva radical. Essa coragem do
convívio é caminho de transcendência, pois rompe com os limites do império
do “eu” e do “idêntico” na permanência com aquilo que difere de mim, em mim
e de mim no Outro. Tal movimento conduz da subjetividade autárquica
limitada para uma processualidade de subjetividade anárquica, que se
desenvolve com base em um princípio fora de
191 Filosofia da religião

si. Essa relação de alteridade denuncia a impotência da razão e sua pretensão


totalizante. Esse movimento de totalização não é impedido pela insuficiência do
“eu”, mas pelo infinito do Outro, como Mistério radicalmente diverso que é. A
relação ética, portanto, não ocorre primariamente no nível da consciência de
fato, mas em uma de suas dimensões, no nível da sensibilidade, precisamente
na consciência não intencional, que é passiva e afetada pelo Outro, sendo a
identidade um modo de ser outramente. Assim, concluímos que Lévinas parece
apresentar uma filosofia como uma pergunta pelo sentido da transcendência
em sua capacidade de descobrir o caminho da ética como possibilidade de
relação com o Outro. Dito de modo alternativo, o sentido da transcendência é
romper os limites do “eu” para descobrir uma convivência adequada com a
alteridade.
Logo, uma questão de suma importância é a função ética da linguagem.
Esse assunto em Lévinas não incide sobre a análise das proposições verdadeiras
ou falsas – se portadoras de sentido ou desprovidas deles –, mas sobre a
capacidade de estabelecer uma relação entre diferentes sem que haja a
assimilação do Outro ao Mesmo. E a linguagem, como elemento próprio da
ipseidade8, que permite o surgimento da comunidade, visto que é o discurso
que fundamentalmente acolhe. Nesse sentido, a linguagem, mais do que a
manifestação do ser, independentemente de qual seja a forma de discurso
empregada para transmitir a mensagem, implica que falar é contato, noção da
qual provém a distinção levinasiana em que o Dito é o contraponto do Dizer
(Lévinas, 1997), que não se fundamenta, pois, em preceitos lógicos, como uma
tomada de consciência de um modo de ser, por meio da idealidade e com base
em um Dito, mas na emergência do Dizer entre o Eu e o Outro (Lévinas, 2003).

_____________________
8 Trata-se do caráter "daquele que é ele próprio, do existente humano considerado como existência singular
concreta; o próprio homem como existência" (Ipseidade, 2019).
192 Filosofia da religião

No entanto, a linguagem é instaurada pelo Rosto9 e demanda


responsabilidade, que cabe ao Eu10 responder, sendo a resposta a manifestação
ética da subjetividade. Entretanto, ela não é, fundamentalmente, o resultado da
objetivação e da significação do discurso do outro em um Dito tampouco deve
ser vista no âmbito de reciprocidade, pois não pode haver simetria no diálogo
entre Eu e Tu, uma vez que a relação com o Rosto é sempre assimétrica, dado
seu infinito – e nessa assimetria reside a transcendência. Por essa razão, a
linguagem é, fundamentalmente, âmbito de acolhida do Outro/outro, que não
tem as dimensões de minha compreensão.
Além do solipsismo ocidental como diálogo consigo mesmo, também a
filosofia do diálogo de outro filósofo judeu, Martin Buber (1878-1965), não foi
suficiente no pensamento de Lévinas, pois ela é constituída de um colóquio de
Ditos11.
Apesar de ser um avanço em relação ao solipsismo, tido como diálogo
Eu-Isso, a interação Eu-Tu ainda é vista como um exercício de conscientização
em cuja execução permanece a distância absoluta entre Eu e Tu, ou seja, é um
diálogo consigo mesmo em que o Outro não participa para indicar os pontos
cegos da percepção da consciência na perspectiva da alteridade, um apanhado
de Ditos. A linguagem está no princípio e não somente antecede a consciência
como também é a própria condição da reflexão sobre si, como questionamento
da pretensão de unidade de saber diante do outro.
Diante da relação com o Outro, há dinamicidade de sentido, reelaboração
de sínteses nunca conclusas. Isso ocorre porque há, antes do saber, uma
comunicação para manter a conexão como âmbito ético, que sabe reconhecer
uma relação entre desiguais, uma vez que o diálogo é o pensamento assimétrico
e, por assim ser,

_____________________
9 Rosto (com inicial em letra maiúscula) é o modo como se desvela o Outro, que passa a ser não somente uma
ideia, mas também uma pessoa.
10 Eu é o Sujeito, como categoria universal que dialoga com o Outro, também uma categoria universal.
11 Dito é o contraponto do Dizer, ambos os quais se referem ao Eu-TU (Outro).
193 Filosofia da religião

é um encontro de infinitas possibilidades de sentido, razão pela qual a


linguagem como ética só é possível como manifestação do Dizer (Lévinas, 2003).
Como “Dizer do Outro”, há a possibilidade de se rever o próprio Dito se neste
se perceber um ecoar do Dizer e, portanto, um momento diacrônico do Dizer
que permite revisitar o Dito, com base no encontro de Dizeres sem fim, como
excedente do Dito. O Dizer é a própria estrutura da subjetividade, como apelo
ao infinito, que ultrapassa as formas históricas de percepção de sentido
(Pelizolli, 2002).
Aqui, a linguagem levinasiana, como esforço de superação daquilo que
entende como limite da filosofia do diálogo, é um exercício de instaurar, no Eu-
Tu, a consciência de uma eleidade (referente ao ele), que desinstala tanto o Eu
quanto o Tu de seus ditos para pensar como abertura a um Outro que não seja
limitada às duas identidades implicadas no diálogo. A linguagem do Dizer
como exercício de abertura infinita ao Outro é um âmbito de acolhida de novos
infinitos. Na qualidade de infinito, a linguagem deve captar o núcleo fundante
da infinitude e ali iniciar a sensibilização da eleidade, a saber: o desejo. Desse
modo, “o desejo mede a infinitude do infinito” e essa insaciabilidade natural do
desejo é que “cava a profundidade da interioridade” (Lévinas, 1997, p. 211). E a
correção do desvio narcísico do desejo se dá na linguagem que se mantém
aberta ao Outro.
A linguagem por excelência do Dizer, na condição de dinamicidade de
sentido sustentada pela acolhida do outro e pelo redirecionamento do desejo, é
a poesia, pois ela é a mais apta a corrigir os desmandos da abstração, já que se
atenta para o fenômeno não apenas como aquilo que se revela, mas como aquilo
que revela. Ela não se prende ao “ser”, sendo utilizada fundamentalmente como
“acesso ao ser”, explicitando o elo indissociável entre situação e objeto, ou seja,
a percepção do sentido e das condições concretas, aproximação que é possível
aos profetas e aos poetas. Nesses
194 Filosofia da religião

indivíduos, a inteligência se desenvolve como noção da realidade, da dimensão


mais profunda desta: a relação de alteridade. Isso ocorre porque a forma que
eles têm de pensar e elaborar a linguagem manifesta melhor a natureza do
pensamento como cinestésico em sua desconfiança infatigável da análise até
alcançar o sentir do sentido, que se consolida na partilha do Dizer entre o Eu e
o Outro, como abertura ao Ele.
A poesia, em sentido lato, como modo privilegiado da linguagem, doa
uma nova lógica existencial que possibilita imaginar/ conceber a saída do
Mesmo para o Outro.
Poesia é mimésis, como consciência do real, mas também é poiesis, como
movimento criador que se abre ao infinito. De modo especial, a poética bíblica
é narrativa e, assim, contém um elemento imprevisível e insistente até o ponto
em que a imaginação se torna real, um evento de percepção. Sem se limitar a
obedecer senão a razões, mobiliza o desejo para o alcance de uma experiência
que aspira à verdade. A poesia, na qualidade de linguagem ética, sonda o
desejo e tematiza a experiência, cavando profundidade na alma e dando a
conhecer ali o espaço de acolhida do Outro, como desejo de encontro com o
Rosto. O movimento de ir em direção ao Outro – de sair do primado do
narcisismo – dá-se no desejo de realizar-se, e a realização humana só é possível
com outro ser que seja também capaz de infinitude, de dinamizar o excedente
de sentido no absurdo do existir, de modo que a realização só é possível com o
Outro vivo – e daí o primado do filósofo da alteridade, do “Não matarás”, como
filosofia primeira. Matar o outro é legitimar a possibilidade de irrealização da
existência, pois elimina as condições de possiblidade de encontro, de dizer, de
profundidade, de desejo. “Não matarás” é o que possibilita a vida de acontecer,
razão pela qual a ética é a filosofia primeira, e a linguagem, seu modo de operar,
pois a acolhe na desordem provocada pelo Outro (eleidade) e desmonta a
pretensão de controle da totalidade.
195 Filosofia da religião

Nesse sentido, a manifestação do Rosto é toda linguagem, é a relação com


o concreto que desvela da linguagem a poesia, o sentido mais profundo; e só é
possível a poesia em um movimento de pensar o infinito – e daí a expressão
levinasiana de Deus que vem à ideia – e, para pensar sobre Deus na realidade,
é preciso compreender que o outro está mais perto dele do que o Eu. A poesia
como serva do desejo de alteridade propicia a estruturação da subjetividade
ilustrando a consciência moral como sempre insatisfeita, expressão do desejo
que só se realiza na manutenção da continuidade do Dizer.
Em Lévinas, como podemos concluir, o rosto do Outro é o próprio
começo do pensar, irredutível a um objeto de conhecimento e incapaz de ser
totalmente conhecido, a não ser pelos seus vestígios de passado, naquilo que
sua história dá a conhecer no Dizer, e pelos seus vestígios de futuro, naquilo
que melhor se manifesta na poesia como indícios de seu desejo, e é por isso que
o outro não pode ser condenado em sua história, pois há apenas vestígios desta.
O Outro é um enigma na qualidade de convite à alteridade que desaloja
a consciência individual da certeza absoluta, que desconsidera a história. Nessa
subjetivação de estruturar uma identidade aberta à alteridade, ocorre a própria
revelação de Deus, como aquele que se manifesta no drama de várias
personagens, como desordem propulsora de uma ordem mais concreta, recon-
ciliando os vestígios do passado e os vestígios do futuro, e é nesse momento que
o infinito se faz história, como redenção que tudo perdoa e integra.
A poesia, em sentido lato, na qualidade de linguagem de alteridade,
corrige o mau uso da abstração como absorção do Outro pelo Mesmo ou como
dedução do Outro a partir do Mesmo, superando assim a espiritualização do
pensamento teológico. Como poética da alteridade, ela propicia a encarnação
desse pensamento, pois revela a presença de Deus na concretude da história. A
concepção
196 Filosofia da religião

poética é, portanto, uma forma de diaconia, visto que se trata de ação por um
mundo que vem permitindo imaginar o advento da história e agir em direção a
ela, como manifestação da presença de Deus que inspira o pensar. Por isso
mesmo, a criação cultural é liturgia que celebra a essência original do sentido
da encarnação como linguagem criadora de poesia e, assim, é um espaço que
institui o âmbito da alteridade como linguagem que ultrapassa limites.

Filosofia e espiritualidade
5.5

não religiosa
Diante do fenômeno crescente dos sem religião ou “desigrejados”, conceitos que
não coincidem com formas de ateísmo, uma vez que têm relação com o
descrédito das instituições religiosas, há uma tendência de tematização das
espiritualidades não religiosas que começa a ganhar consistência teórica.

5.5.1 Marià Corbí


Um dos pensadores da espiritualidade sem religião é o catalão Maria Corbí
(1932-), diretor do Centro de Estudos de Tradições de Sabedoria (CETR). Sua
proposta consiste em uma espiritualidade laica, sem crenças, sem religião e sem
deuses (Corbí, 2010) ou ainda uma religião sem religião (Corbí, 1996). Trata-se
de uma epistemologia axiológica que analisa os valores como fenômenos sociais
e culturais, que operam como padrões de interpretação da realidade. Esses
padrões estruturam ações centrais de grupos e se expressam em metáforas que
atuam como paradigmas referenciais.
Essas metáforas servem tanto para interpretar e avaliar a realidade
quanto para representar, conceber, dar forma ao sentir da dimensão absoluta.
Há uma inerente relação entre a semântica e a pragmática humana, em razão da
qual se constitui uma ordem que estrutura a realidade tal como é concebida em
um plano divino,
197 Filosofia da religião

passando a ser esse o fundamento social (Corbí, 2010; Ribeiro, 2012). Corbí
analisa, por exemplo, o papel das religiões nas sociedades pré-industriais,
enquanto se estruturavam, com base no mito, os processos linguísticos
(metáforas centrais) e, consequentemente, as práticas sociais, sendo a
espiritualidade, ao mesmo tempo, experiência do absoluto da realidade e
integradora da estruturação social. Nesse sentido, a experiência religiosa nas
sociedades agrárias resulta em possibilidade de assimilação da ordem
comunitária, sendo a religião, portanto, a principal autoridade social e
legitimadora da ordem, na medida em que elabora uma epistemologia mítica
que produz crenças imbuídas de costumes.
O mito é uma mediação linguística orientadora do desejo, que possibilita
uma interiorização semântico-simbólica que resulta em uma ordenação
intersubjetiva, ou seja, estrutura as relações sociais desde o mais íntimo dos
indivíduos. Na antropologia corbiana, entretanto, o ser humano é concebido
como “desfundado”, ou seja, como radical de ausência de fundamento
predefinido, razão pela qual, com a mudança de paradigma das sociedades
agrárias para as industriais, os mitos acabam sendo insuficientes para atender
às novas formas de organização coletiva e individual. Com isso, as ideologias
passam a cumprir o papel de sistemas de crenças, especialmente na
bipolaridade entre capitalismo e socialismo. Por sua vez, com as sociedades de
inovação, há novas subjetividades oriundas das mudanças organizacionais e
comunicacionais, portadoras de outra “estrutura de desejos, temores,
recordações e expectativas” (Corbí, 2010, p. 126; Corbí, 1983, p. 36, tradução
nossa).
Outro traço dessa mudança estrutural que impacta o sistema de crenças
é a ausência de imobilismo social, o que exige uma disposição de constante
interpretação da realidade diante das incertezas e das inseguranças oriundas
das novas situações. Disso demanda uma construção contínua de projetos
axiológicos coletivos que renunciem aos comportamentos de controle social,
sendo essa
198 Filosofia da religião

postura uma tentação (Corbí, 2013). Logo, o indivíduo se adequa mais à ordem
social não pelo fato de cumprir um preceito, mas pela sua capacidade de
adaptação, condição que exige novos modos de pensar, sentir e agir. Nessas
condições, o projeto de uma espiritualidade laica do filósofo catalão consiste em
traduzir o legado de sabedoria das antigas tradições com a finalidade de ajudar
o indivíduo contemporâneo a fazer a experiência do absoluto em um mundo
instável.
Entretanto, há que se depurar tais sabedorias de sua epistemologia mítica,
definidora do modo de ser, para que elas sejam lidas como metáforas ou
grandes poemas sem crenças, pela capacidade de conduzirem a um caminho
interior, à descoberta do inefável, a um conhecimento silencioso do absoluto,
como puro dom e pura presença que não pertencem a ninguém ou cujo controle
ou representação não constitui direito de alguém. (Corbí, 2010). A transposição
desses legados de sabedoria envoltos em espiritualidades pode ajudar a
produzir um desapego de si, dos bens finitos e um itinerário de silenciamento
como um concentrar-se para descentrar-se no Outro e nos outros. A via do
silêncio é um caminho de unidade e amor incondicional a todos os seres, ofere-
cendo outro padrão de interpretação e valoração da estrutura de desejos e
temores que geram inquietação e sofrimento, produzindo, então, serenidade e
empatia.

5.5.2 Robert Solomon


Outro filósofo não religioso que trata do tema é o texano Robert Solomon (1942-
2007), que propõe uma Espiritualidade para céticos (Solomon, 2003). Seu lugar de
fala não é de combate à crença no Deus judaico-cristão-islâmico, mas de
ceticismo, mais precisamente em relação à autorreferência de um “conjunto de
ideias institucionalmente sancionadas” como prova única da “verdade
absoluta” destas (Solomon, 2003, p. 19).
199 Filosofia da religião

Solomon propõe, assim, que não é necessário ser religioso nem membro
de uma religião organizada para ser espiritual. A prova disso é exatamente a
expressiva quantidade de pessoas religiosas e devotas que são, ao mesmo
tempo, “tão desprovidas de espiritualidade quanto um copo vazio” (Solomon,
2003, p. 19). A busca do autor é de um sentido não religioso, não institucional,
não teológico, não baseado em escrituras e que não seja farisaico, dogmático,
anticiência, acrítico nem carola ou pervertido.
Desse modo, o autor propõe uma espiritualidade naturalizada que se
caracteriza como um interesse apaixonado no aqui e no agora, sem necessidade
do sobrenatural, para a busca de um amor reflexivo à vida.
Para Solomon (2003), a espiritualidade apresenta as seguintes
características: tem uma afinidade profunda com a reflexão; entra em conluio (e
não em conflito) com a ciência; e não está limitada à religião e, menos ainda, à
religião sectária e autoritária (Solomon, 2003)10 autor parte de uma crítica ao
esquecimento e ao desvio por que passou a filosofia – de um amor à sabedoria
para se tornar um empreendimento “técnico tedioso” –, a qual deixou, portanto,
de despertar para uma busca do sentido da vida, incorrendo no risco de ser um
espaço de produção de subterfúgio intelectualizado. Uma das causas desse
desvio é o fato de a filosofia ter se separado das questões de espiritualidade,
como um exercício concreto de “enfrentar a vida e o mundo” (Solomon, 2003,
p. 22).
Para o autor, uma espiritualidade pertinente ao indivíduo con-
temporâneo deve ajudá-lo a enfrentar as questões universais que se apresentam
na vida, como a “necessidade pessoal e coletiva de entender com clareza nosso
lugar no mundo”, dando uma resposta, por exemplo, à pergunta sobre “como
viver e como enfrentar dificuldades e tragédias esmagadoras na vida? [..] como
pensar a morte e como lidar com ela?” (Solomon, 2003, p. 25). Seguindo Hegel,
Solomon (2003, p. 31) entende que a espiritualidade é a
200 Filosofia da religião

“natureza plenamente desenvolvida em nós”, o que ajuda a filosofia a deixar


de ser mera teoria do conhecimento.
Diferentemente do padrão tradicional da religião, é a compreensão de
que não há respostas definitivas que nos introduz na esfera da espiritualidade,
na dinâmica da busca, pois, mesmo que partilhemos um dogma com milhões,
as questões existenciais permanecem, e cada um precisa encontrar a própria
resposta e aprender a meditar sobre as paixões nobres e reflexivas da vida para
realizar existência em conformidade com elas.
Vista dessa forma, a espiritualidade pode ser entendida como um amor
reflexivo à vida, que ajuda a encarar o destino com serenidade e enxerga a vida
como dádiva e até mesmo como “um milagre” diante do assombro de nossa
trajetória. A postura cética de Solomon em relação ao sobrenatural tem a ver
com o uso dessa dimensão como “desculpa para fechar a porta à curiosidade e
à indagação científica” (Solomon, 2003, p. 49).
A espiritualidade, reflete o filósofo texano, faz o indivíduo pensar que,
apesar de todos os momentos bons e ruins que a vida oferece, ela vale a pena, o
que significa valorização da vida, paixão, confiança cósmica, racionalidade das
emoções, enfrentamento da tragédia e do fatalismo, assimilação da dimensão
social, aprendizagem de viver e morrer com dignidade. Ou seja, a
espiritualidade é um processo, mais do que um resultado (Solomon, 2003).
Solomon (2003) narrou em seu livro um dos motivos que fizeram com que
ele despertasse para o interesse da espiritualidade: o fato de ter se casado com
Kathleen Higgins (1954-), uma católica devota que pretendia tornar-se freira e
se transformou em uma das mais conhecidas especialistas em Nietzsche no
mundo:
201 Filosofia da religião

Como todo mundo que conhece mesmo um átimo de filosofia sabe, Nietzsche
é o filósofo mais veementemente antirreligioso, anticristão, do cânone
ocidental. Kathy conserva e pratica "religiosamente" seu catolicismo, mas isso
não a impede de defender o grande filósofo do "Deus está morto". Como o
consegue [...] a ideia central, trocada em miúdos, é que seu catolicismo – e seu
amor a Nietzsche – consiste em profunda espiritualidade. (Solomon, 2003, p.
23)

A espiritualidade em Solomon, portanto, é uma dimensão existencial


inegável, na qual a questão religiosa pode tanto ser um problema quanto um
facilitador, desde que esteja aberta a ser interpelada pela realidade – que é, aliás,
aquilo que a torna profunda.

5.5.3 André Comte-Sponville


André Comte-Sponville (1952-) é um filósofo francês que reflete sobre a
espiritualidade. Além de postular uma recusa total da religião, ele tem proposto
uma espiritualidade ateia, ou seja, sem Deus (Comte-Sponville, 2007).
Comte-Sponville, no entanto, propõe não um ateísmo militante contra as
religiões, mas uma espiritualidade que não seja tributária das tradições
religiosas e que procure afirmar o espírito humano como parte da matéria que
se volta sobre si e é capaz de encontrar a beleza de um Todo uno, e nele uma
abertura ao universal. O autor chama de imanensidade a capacidade de
contemplar a imensidão do Universo, que se exprime em uma imanência
inesgotável e que propicia a percepção de uma realidade convidativa à
comunhão com o Todo e com as pessoas. Essa beleza a ser contemplada é
portadora de serenidade para o coração e promove a alegria na saída de si em
direção ao encontro do Todo.
202 Filosofia da religião

O filósofo recusa a fé em Deus para adotar uma postura de busca de


lucidez, que tem início pela solidão como momento de olhar para as próprias
angústias e reconhecer o desespero provocado por um tempo em que a vida,
não raro, se apresenta sem sentido e sem garantias, marcada pela
imprevisibilidade, e com inúmeras rotas de fuga que disfarçam oportunidades
mercadológicas. Para chegar ao primeiro passo da solidão, é necessário ter
coragem para vencer o tempo de desespero e descobrir a espiritualidade como
fonte de serenidade para a alma adquirir lucidez e reduzir o narcisismo diante
da imanensidade do Universo (Comte-Sponville, 2006).
A espiritualidade, pensa Comte-Sponville, tem a capacidade de conduzir
para a profundidade da vida em face das banalidades do cotidiano, emergindo
daí a coragem de cultivar virtudes que atuam como força da alma (Comte-
Sponville, 2004). A espiritualidade, portanto, permite o acesso ao mistério do
ser, ao humor que integra as contradições e relativiza a mediocridade e à
compaixão e à misericórdia que produzem o horror diante do mal e que alargam
a compreensão humana, sob a forma de desinteresse e altruísmo.
O segundo passo após a coragem dos momentos de solidão é a coragem
do silêncio, pois, em um mundo niilista, que carece de sentido e de esperança,
a verdade não está do lado do discurso, sendo, na realidade, silêncio
contemplativo, o qual desvela que somos capazes da beleza do amor e da ética
(Comte-Sponville, 2000, 2007).
203 Filosofia da religião

SÍNTESE
Neste capítulo, vimos que o fazer filosófico contemporâneo que se ateve à
questão religiosa, em grande parte, não a recusou em si, mas criticou o modo
como influencia a dinâmica da vida das pessoas. Uma crítica comum à religião
tem a ver, ao menos no Ocidente, com a noção de platonismo ou com a
idealização da vida que opera em um outro plano, a qual acaba por interferir no
modo de relacionar-se com a realidade. A questão da “morte de Deus”, em
Nietzsche, por exemplo, tem relação direta com o fim desse tipo de
racionalidade idealizadora.
Discutimos também que a filosofia de Sartre é crítica a toda forma de má
fé que conduza a uma alienação da vida e dos desafios históricos que
demandam sensibilidade ética e engajamento. Por sua vez, a filosofia judaica do
século XX empreendeu (e ainda tem empreendido, neste século) outra via para
pensar a questão de Deus, distinta da teorética e da questão da verdade:
assumiu a via ética, ressignificando a religião de modo a ultrapassar uma
postura de condenação de heresias e passar a uma heterologia ou a uma
convivência ética com a alteridade. Nesse caso, a questão religiosa se desdobra
na busca de espiritualidade, como um sintoma do espírito de época. A razão de
recusa de Deus de décadas atrás se desloca, então, para uma razão de recusa
das instituições religiosas.
Ao final do capítulo, abordamos os posicionamentos de autores mais
contemporâneos, que foram indicados para aprofundamento da questão
filosófica da religião no mundo atual, como Marià Corbí e Robert Solomon12.

_____________________
12 Para conhecer as ideias de outros autores contemporâneos, indicamos: Jürgen Habermas (1929-); Alain
Badiou (1937-); Boaventura de Sousa Santos (1940-); Giorgio Agamben (1942-); Slavoj 2izek (1949-), entre outros.
204 Filosofia da religião

INDICAÇÕES CULTURAIS
ANTICRISTO. Direção: Lars von Trier. Dinamarca; Alemanha; França; Suécia;
Itália; Polônia: Califórnia Filmes, 2011.108 min.
Trata-se de um drama dinamarquês que questiona a perda da consciência
trágica por meio de uma estética do absurdo, vendo a vida como um
espaço em que não há redenção e em que não cabe a teodiceia.

CRASH: no limite. Direção: Paul Haggis. Estados Unidos: Imagem Filmes,


2004.113 min.
Esse filme aborda questões de preconceito racial, migratório e religioso
com base em experiências-limite, convidando o espectador a colocar-se
no lugar do outro.

DOGVILLE. Direção: Lars von Trier. Holanda; Dinamarca; Reino Unido;


França; Finlândia; Suécia; Alemanha; Itália; Noruega: Lions Gate
Entertainment; Califórnia Filmes, 2003.178 min.
Essa obra narra como, em uma sociedade em que vigora um sistema de
compensações (quid pro quod), não há espaço para a experiência da graça,
representada pela personagem Grace, vivida por Nicole Kidman.

ESCRITORES da liberdade. Direção: Richard LaGravenese. Estados Unidos;


Alemanha: Paramount Pictures, 2007.123 min.
Esse filme mostra a experiência da vocação como doadora de sentido para
a vida e a descoberta do potencial humano de se colocar a serviço de
quem mais precisa.

FEITIÇO do tempo. Direção: Harold Ramis. Estados Unidos: Columbia


Pictures, 1993.103 min.
Essa comédia aborda a questão do eterno retorno em Nietzsche,
convidando-nos, como espectadores, a realizar um exercício de
imaginação de como seria a vida se tivéssemos de repetir tudo o
205 Filosofia da religião

que vivemos exatamente da mesma maneira para sempre, levando-nos a


pensar sobre aquilo com que estamos perdendo tempo e aquilo que vale
a pena fazer para sempre.

O ENIGMA de Kaspar Hauser. Direção: Werner Herzog. Alemanha: Versátil


Home Vídeo, 1974.110 min.
O título original dessa obra traduzido do alemão é “Cada um por si e
Deus contra todos” (Jeder für sich und Gott gegen alle). Trata do paradoxo
do mal como traição de Deus, que abandona o ser humano ao seu destino.
O filme critica, assim, a imagem de um Deus que, embora se pretenda
bom e todo-poderoso, se mostra surdo ao clamor do sofrimento humano.

ORAÇÕES para Bobby. Direção: Russell Mulcahy. Estados Unidos: Lifetime


Television, 2009. 90 min.
Esse filme retrata o drama da questão homossexual nas comunidades
cristãs, especialmente no que diz respeito à relação entre pais e filhos.

O RETRATO de Dorian Gray. Direção: Oliver Parker. Reino Unido: Momentum


Pictures, 2009.112 min.
Essa é a versão cinematográfica do romance filosófico de Oscar Wilde que
retrata a experiência da juventude que transita da ingenuidade à
descoberta do narcisismo, evocando categorias teológicas clássicas da
literatura e da filosofia.

UM CONTO chinês. Direção: Sebastián Borensztein. Argentina: Paris Filmes,


2011. 93 min.
Essa obra aborda, de forma cômica e dramática, a experiência de lidar
com a alteridade radical, com experiências com e sem significado, além
de encontros que promovem equilíbrio entre perspectivas nas quais tudo
ou nada faz sentido.
206 Filosofia da religião

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. Qual temática a seguir inaugura o desafio de uma nova filosofia da religião
para a contemporaneidade?
A] A religião como ópio do povo, em Karl Marx.
B] A revanche do sagrado, de Leszek Kolakowski.
C] O poder pastoral, de Michel Foucault.
D] O fim do dossel sagrado, de Peter Berger.
E] A morte de Deus, em Friedrich Nietzsche.

2. Quem é o Anticristo em Nietzsche?


A] É uma figura contrária à mensagem de Cristo, que antecede a segunda
vinda do Messias.
B] O filósofo considerava Adolf Hitler o Anticristo.
C] É o próprio cristianismo, que teria traído a mensagem de Jesus Cristo ao
adotar uma filosofia de negação da vida.
D] Não há, de fato, um Anticristo nietzschiano, uma vez que esse conceito
será trabalhado apenas por Sartre.
E] É o papa, cujo exercício se estabeleceu na época de Nietzsche.

3. Qual é a contribuição da fenomenologia da vida religiosa de Martin


Heidegger?
A] A ideia de que a verdade não é um conceito, mas experiência de
conhecimento de si.
B] A noção de que a religião dificulta pensar a verdade das coisas.
C] O conceito de conhecimento de si, que seria mais importante que o de
conhecimento religioso.
D] A ideia de que o conhecimento religioso é mais importante do que o
conhecimento de si.
E] A noção de que o cristianismo primitivo teria rompido com a cultura
grega.
207 Filosofia da religião

4. Qual é a epistemologia defendida para pensar a questão de Deus na filosofia


judaica do século XX?
A] É preciso ressignificar a teodiceia.
B] Deus sabe tirar proveito de todos os males, razão pela qual permite o
sofrimento humano.
C] Deus permite o mal, como em Auschwitz, porque é menor em relação ao
bem maior que ele pode realizar e em razão do qual ele pode converter
as pessoas.
D] A ética deve ser pensada como primeira forma de teologia.
E] Não há epistemologia possível para pensar a questão de Deus depois de
Auschwitz.

5. Qual das afirmações a seguir melhor exprime uma espiritualidade não


religiosa?
A] Trata-se de uma forma de espiritualidade sem Deus.
B] É o cultivo da interioridade humana na busca de sentido, beleza e justiça
para a vida.
C] E uma espiritualidade que nega a pertinência das instituições religiosas.
D] Trata-se de uma espiritualidade sem devoção.
E] É uma espiritualidade que procura levar as pessoas a substituir a religião.

ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão


1. Quais seriam as razões (ou algumas delas) de recusa da questão de Deus na
sociedade contemporânea? Por que motivo as pessoas abandonam uma fé?
Que imagem de Deus ou de divindade chegou até essas pessoas?
2. Com base no que defendem os filósofos que tematizam questões religiosas,
como as respectivas críticas deles se apresentam no cotidiano?
208 Filosofia da religião

Atividades aplicadas: práticas


1. Faça uma análise de como o filme Deus não está morto, embora tente
questionar a afirmação nietzschiana, acaba se desviando desse foco,
incorrendo no risco de reforçar aquilo que pretende negar.
DEUS não está morto. Direção: Harold Cronk. Estados Unidos: Graça
Filmes, 2014.113 min.
2. Descreva como algumas estruturas de mentalidade estão presentes em
alguns fenômenos religiosos.
3. Analise como sistemas de crença estão presentes na sociedade em geral na
forma de ideologia e como se parecem na qualidade de fenômenos religiosos.
4. Identifique alguma tradição religiosa que tenha sofrido transformações nos
últimos 30 anos e aponte quais foram essas mudanças.
6
CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
E TEOLOGIA

Não é consenso no Brasil o modo de pensar a relação que há entre as ciências


da religião e a teologia. Há autores que mantêm a posição alemã de afirmação
daquela disciplina e negação da teologia (Usarski, 2006) e há outros, cientistas
da religião e teólogos, que, embora entendam haver uma inegável tensão entre
ambas, veem essa relação como resultado de uma salutar afinidade, no caso
brasileiro (Aragão, 20112015; Brighenti, 2013; Libânio, 2011; Soares, 2013;
Teixeira, 2013; Wachholz, 2011).
Existe, como mencionamos na “Introdução”, a necessidade de calibragem
quanto ao momento em que as ciências da religião surgiram, considerando-se
as causas remotas (emergência da disciplina) e as causas próximas de um
acontecimento, a saber, a institucionalização de uma área de avaliação
autônoma chamada Ciências da Religião e Teologia.

Elementos que distanciam e


6.1

aproximam as ciências da religião


e da teologia
Como vimos no capítulo anterior, no projeto da teologia ocidental, o logos
platônico elegeu a razão para encontrar a ideia suprema.
210 Ciências da religião e teologia

Na análise desse fenômeno, a escolástica identifica a equivalência entre o bem


platônico e a ideia de Deus, com base em uma metafísica da representação, que
projeta no mundo ideal aquilo que deve ser o mundo real, cabendo a qualquer
instituição também o direito de retratar tal realidade e, consequentemente,
exercer sua influência hegemônica. Uma forma de blindar as instituições de
suas contradições é emoldurar o imaginário cultural com aquilo que Adolf
Harnack (1851-1930) chamou de otimismo estético, segundo o qual a estrutura
contemplativa oferecida para a percepção da Providência divina resulta em
uma matemática em que o “menos bom” está em consonância com o “melhor”
de modo que “até o imperfeito contribui para a perfeição [da] beleza do
universo” (Harnack, 1964, p. 12, tradução nossa).
Historicamente, essa forma de pensar resulta na justificação da forma
social de um cristianismo burguês, de postura autoritária, moralista e apática,
plasmado em uma religião artificial criada por uma teologia que é capaz de
encorajar, nas palavras de Voltaire (2000, p. 4), “todas as crueldades perpetradas
em bando, conjuras, sedições, assaltos, emboscadas, ataques de surpresa,
pilhagem, morticínios”.
Não era exatamente Deus o problema em questão, mas o tipo de teologia
produzida para defender o entrelaçamento de cristianismo e cristandade. Esse
estudo teria promovido uma cultura litigiosa em que a religião cristã teria
nascido em um contexto de discórdia, como uma teologia filosofante que foi
colocada no lugar da virtude, produzindo um modelo de teólogo com coração
gelado: “Acaso era necessário odiar-se, perseguir-se, degolar-se por essas
quimeras incompreensíveis? Corram com os teólogos, e o universo ficará
tranquilo (pelo menos em matéria de religião). Admitam-nos, deem-lhes
autoridade, e a terra será inundada de sangue” (Voltaire, 2000, p. 4).
211 Ciências da religião e teologia

Isso não significa que não existiam teólogos que destoavam daqueles que
forneciam motivos para a crítica. Havia nomes como Vicente de Paulo (1581-
1660), Francisco Suarez (1548-1617), João Batista de La Salle (1651-1719),
Marcelino Champagnat (1789-1840) e Robert de Lamennais (1782-1854), que
foram responsáveis pela origem do que se chamou de catolicismo social, por
exemplo, que mais posteriormente seria denominado de doutrina ou ensinamento
social da Igreja, com abrangência ecumênica. Ademais, tudo isso não significa
também que os críticos do cristianismo eram isentos de contradições, como é
possível verificar na ambígua história da Revolução Francesa, que, em nome da
justiça aos mais pobres, fez da burguesia a senhora do mundo, a qual acabou
sendo também muito intolerante (Villas Boas; Siena, 2018).
Entretanto, tal análise serve para demonstrar como a teologia e também
as religiões são vulneráveis aos condicionamentos históricos, sociais, políticos e
culturais de cada tempo, e não raro incorrem na tentação de servir ao poder
político. É nessa perspectiva, por exemplo, que Voltaire abominava a teologia,
mas não a Deus, ou a fé, que chamava de religião natural. Na perspectiva de
Voltaire (2000), a religião é tanto melhor quanto mais simples e mais próxima
das virtudes, uma “religião do coração”, e não uma “religião de cerimônias”,
com teologias que provocam brigas e divisões, nas quais Deus, em vez de
manter-se vinculado à vida, à felicidade e à justiça, está ligado aos ritos e aos
interesses muitas vezes políticos da instituição, a qual, em sua sede de verdade,
torna-se aqueles motivos de discórdia e violência. Para o iluminista francês, o
único Deus possível é um “Deus justo" que nos deu “uma razão para o conhecer
e um coração para o amar” (Voltaire, 2000, p. 6,188)
A razão de recusa de Voltaire, como representante de uma geração de
pensadores iluministas, é o processo de platonização da categoria revelação,
que resultou em uma teologia em forma de
212 Ciências da religião e teologia

teodiceia, que foi desenvolvida ao longo dos séculos em razão da necessidade


de defender o contexto político de cristandade, sendo a versão leibniziana a
mais elaborada.
À medida que a tradição religiosa se expande no tecido social, ela incorre
no risco de ser cooptada por um sistema político que a oficializa e,
consequentemente, altera sua dinâmica, servindo inclusive de reguladora
social. Isso aconteceu com as grandes tradições religiosas do Mundo Antigo,
como o hinduísmo, o judaísmo, o islamismo e o próprio cristianismo, o qual
representou o processo mais esclarecedor para o entendimento das demais
teocracias. Uma teocracia não exatamente é uma sociedade comandada pela
religião; é aquela em que o poder político faz uso da sensibilidade e do discurso
religioso de uma tradição (Veyne, 2010).
Conforme ocorre essa oficialização, a tradição religiosa passa a elaborar
um novo imaginário doador de legitimação para a ação do poder político e a
normatização dos costumes, pois toda teocracia cria suas teodiceias. Contudo,
a oficialização paga o preço de sofrer profundos reducionismos. A busca pela
verdade formulada em axiomas ou em outra forma de expressão, como os
dogmas, presentes na busca da experiência contida no texto sagrado e na
procura por uma sabedoria, passa a ser dogmatismo, ou seja, uma imposição
de ideias, as quais, se não forem aceitas pelos fiéis, resultarão em suas expulsões
ou mortes.
A experiência ritual como alimento afetivo da fé torna-se ritualismo, uma
imposição de ritos que garantem ou não a aceitação social. E o alargamento da
consciência ética é substituído pelo moralismo, com a imposição de costumes,
passíveis de penalização. Esses reducionismos, que servem de controle social,
são justificados no âmbito de uma teodiceia (justificativa divina), que legitima
todo o processo como vontade de Deus.
O cristianismo imperial, desde o século V, criou as condições para a
elaboração de formas de teodiceia no seio da teologia cristã,
213 Ciências da religião e teologia

que, em sua tarefa de regulação social e normalidade cultural, passou a excluir


sistematicamente as alteridades culturais, tema – tizadas como heresia.
À proporção que as diversas áreas das ciências se aproximaram da
questão religiosa, elas passaram a ajudar a própria teologia investigativa a
ressignificar seus métodos e sua autoconsciência. Ademais, não poucas
questões criticadas pela Religionswissenschaft no século XIX foram assumidas
pela teologia investigativa já na primeira metade do século XX. O modo como
se desenvolveu a epistemologia das ciências da religião – a saber, pelas
abordagens filológica, mitológica, historiográfica, simbólica, sociológica, psi-
cológica e filosófica – tem sido incorporado por diversas teologias desde o
século XX, que ajudam a promover uma autorreflexão crítica do processo que
conduziu o cristianismo de uma cultura alternativa a uma cultura hegemônica,
bem como a ressignificação dessa herança histórica em uma sociedade plural.

6.1.1 Questões epistemológicas prévias


Na qualidade de-debate epistemológico, a questão da morte de Deus como fim
de uma metafísica idealista teve impacto em dois desafios para a produção de
conhecimento: o que se chamou de virada antropológica e virada linguística, as
quais também influenciaram a produção de conhecimento teológico.
A virada antropológica se desdobrou da antropologia moderna e da
valorização do papel da subjetividade, o que significou repensar a reflexão com
base no método indutivo, ou seja, partindo-se não mais de premissas gerais para
deduzir afirmações sobre a realidade (método dedutivo), mas da própria
observação e da experiência da realidade para elaborar o conhecimento. Kant
não foi o único, mas, sem dúvida, foi o autor mais importante para essa
mudança.
214 Ciências da religião e teologia

Por sua vez, a virada linguística (linguistic turn) é um desdobramento da


virada antropológica com a percepção da linguagem como fenômeno
radicalmente humano, causando impacto em I diversas outras dimensões da
realidade humana. Desse movimento surgiram nomes importantes como
Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Richard Rorty (1931-2007), Gustav Bergmann
(1906-1987) e uma nova geração na década de 1970, como Martin Heidegger
(1889-1976), Hans-Georg Gadamer (1900-2002), Michel Foucault (1926-1984),
Jacques Derrida (1930-2004) e Paul Ricoeur (1913-2005), entre outros.

O método indutivo: mudança de


6.1.2

paradigma epistemológico no século XX


A filosofia crítica de Kant possibilitou novas releituras metafísicas com
base na questão transcendental e teve impacto na produção de metodologias
teológicas indutivas de nomes como Karl Rahner (1904-1984), Wolfhart
Pannenberg (1928-2014), Paul Tillich (1886-1965), Bernard Lonergan (1904-
1984), Jared Wicks (1929-) e Jürgen Moltmann (1926-), não sem a resistência de
trabalhos que reelaboraram teologias reminiscentes do método dedutivo, como
os de Karl Barth (1886-1968), Hans Urs von Balthasar (1905-1988) e Joseph
Ratzinger (1927-), entre outros que, não raro, em alguns momentos, confundem
o debate epistemológico com posturas doutrinais.
Ademais, a postura de tomar a realidade humana como ponto de partida
inspirou as chamadas teologias contextuais a pensar a produção teológica desde
os contextos humanos concretos, ou seja, históricos, sociais, culturais e políticos.
Com isso, desenvolveram-se as teologias latino-americanas, africanas e
asiáticas, todas as quais se dedicam a questões específicas das respectivas
conjunturas, como as teologias da libertação, que também
215 Ciências da religião e teologia

influenciaram a black theology como forma de combate ao racismo e as teologias


culturais, feministas e ecológicas, entre outras.
Com base na arqueologia do saber de Michel Foucault (2000), em As
palavras e as coisas, é possível mapear os modelos epistemológicos do discurso
“de” e “sobre” Deus. Na epistémê renascentista, é necessário saber ler as coisas
que habitam o mundo, visto que é por meio dele que Deus fala, manifestando-
se na semelhança entre palavras e coisas, as marcas que ele deixou a fim de que
fossem lidas e reconhecidas e, assim, a humanidade pudesse compreendê-lo
com base em sua criação. Na epistémê clássica, há a tarefa de explicar a ideia de
Deus pela razão no contexto de uma teoria da representação, que possibilita
retratar uma ordenação racional das coisas, abordando, assim, o problema da
conceituação racional de Deus, que demarca o âmbito de sua manifestação.
Dessa forma, o discurso de Deus nas coisas e a possibilidade de acesso a ele por
meio da abstração teórica da natureza são substituídos pela ideia e pela
representação, deixando Deus de habitar o mundo das coisas para habitar o
mundo dos conceitos puros. Na epistémê moderna, com a morte de Deus, a
possibilidade de uma reflexão metafísica é trocada por uma analítica da finitude
do pensamento moderno, de modo a superar-se a pretensão de uma vontade de
estabelecer-se uma verdade absoluta, pois o conhecimento é limitado, ou seja, é
impossível conhecer tudo (Foucault, 2000; Ribeiro; Pinto, 2010). Citando-se o
próprio Foucault sobre o fim da metafísica, delineiam-se os desafios para o
discurso teológico:

A filosofia da vida denuncia a metafísica como véu da ilusão, a do trabalho a


denúncia como pensamento alienado e ideologia, a da linguagem, como
episódio cultural. Mas o fim da metafísica não é senão a face negativa de um
acontecimento muito mais complexo que se produziu no pensamento
ocidental. Esse acontecimento foi o aparecimento do homem. (Foucault, 2000,
p. 321-322)
216 Ciências da religião e teologia

Foucault ainda aponta um caminho que não é estranho às tradições


religiosas, entendidas em sua capacidade sapiencial – não sem suas pretensões
de hegemonia sustentadas por estruturas metafísicas como indica Luc Ferry
(2006, p. 28), pois a epistémê moderna recebe, como herança de Francis Bacon
(1561-1626) ao método do sujeito epistêmico cartesiano, a tarefa da análise. Nas
palavras do próprio Foucault (2000, p. 68):

A atividade do espírito [...] não mais consistirá, pois, em aproximar as coisas


entre si, em partir em busca de tudo o que nelas possa revelar como que um
parentesco, uma atração ou uma natureza secretamente partilhada, mas ao
contrário, em discernir [...]. Nesse sentido, o discernimento impõe à
comparação a busca primeira e fundamental da diferença: obter pela intuição
uma representação distinta das coisas e apreender claramente a passagem
necessária de um elemento da série àquele que se lhe sucede imediatamente
[...] conhecer é discernir.

Desdobra-se dessa tarefa do conhecimento como discernimento uma


nova consciência teologal como hermenêutica teológica, que, por sua vez, visa
não a uma logologia, como “palavras a respeito de palavras” (Manzatto, 1994,
p. 40-41), ou mera exegese, que faria da teologia uma peça de museu, mas a uma
“conservação renovadora” da tradição cristã, para usar uma expressão do Papa
Francisco (2015), de seu sentido e de seu significado para a cultura
contemporânea.
A agenda da hermenêutica teológica para a teologia do século XX é
reconhecida oficialmente, no caso da tradição católica, pelo próprio Concílio
Vaticano II, quando a teologia conciliar rompeu com a postura de uma
Denzingertheologie de ficar restrita a fórmulas e adotou uma postura de
linguagem, em que já está presente seu método: “uma coisa é o depósito da fé
ou as suas verdades, outra
217 Ciências da religião e teologia

o modo como elas se enunciam, sempre, porém, com o mesmo sentido [sensu]
e significado [sententia]” (GS1, n. 62).
Esse concílio, ao evocar os termos sensu e sententia, remete ao método
teológico de Hugo de São Vitor (1096-1141), no século XII, que é resumido em
uma fórmula célebre: “littera, sensu, sententia".

O método sugere que se apreenda o significado imediato da palavra (sensus),


a partir da sua articulação literal (lettera), determinando a interpretação do
conteúdo doutrinal. A "lição" [lectio] se torna uma "questão" [questio], um
tema a ser problematizado, criticado, aprofundado, revisitado até alcançar
maior profundidade na pedagogia vitoriana, ou seja, de mero conteúdo se
desdobra em uma questão problematizada que visa uma "compreensão mais
profunda" [profundior intelligentia]. Essa profundidade vitoriana supõe um
próprio caminho de crescimento e santidade que começa com o estudo, depois
a meditação, a oração e por fim, a ação e só depois desta é que é possível se
abrir ao dom da contemplação, onde se atinge a profundidade da intelligentia,
ou seja, de ler por dentro [intus legere] do Mistério da questão, o modo de
chegar ao melhorjuízo [sententia], (Villas Boas, 2017, p. 284-285)2

Christoph Theobald (1946-) retomou de John O’Malley (1927-) a ideia do


concílio como evento de linguagem que expressa o rompimento epistemológico
com o tradicional gênero conciliar (símbolos e anátemas) para adotar um estilo
pastoral ou, ainda, a pastoralidade, que não se reduz à renovação de linguagem.
Expressa-se, portanto, um processo de reforma das mentalidades com base na
consolidação de uma linguagem – uma vez que esta é a expressão da práxis –
pastoral e de um estilo conciliar privilegiado para a compreensão do processo
de recepção pós-conciliar e sua

_____________________
1 Gaudium et Spes: constituição dogmática sobre a Igreja no mundo atual (Concílio Vaticano II, 1965).
2 Cf. Chenu, 1983, p. 412; Hugo de São Vitor, 2001, p. 9.
218 Ciências da religião e teologia

tarefa de reforma (Theobald; Sesboüe, 2006; Passos, 2016). Apesar de ter sido
um episódio católico, ocorreu uma transformação na perspectiva teológica do
século XX como um todo, que levou a teologia a se entender como ciência
hermenêutica.
Dito de outra maneira, a teologia em situação hermenêutica, para Geffré
(1989), implica: análise das condições tanto de contexto quanto de ambiente de
produção de um texto/discurso; análise das implicações da subjetividade
humana como ambiente de recepção do mesmo texto/discurso, que também é
ativa na tarefa hermenêutica; análise do uso ideológico, consciente ou não,
dessas mesmas linguagens e práticas subentendidas. Com as tarefas de análise
e de produção de linguagem, essa teologia supõe a busca de melhores condições
de efetuar essas atividades de forma que sejam capazes de expressar do interior
do fenômeno religioso seu sentido e sua referencialidade, além do diálogo com
a cultura e a sociedade de seu tempo (Geffré, 1989).
“A necessidade de uma hermenêutica, isto é, de uma interpretação no
hoje do nosso mundo, encontra um fundamento na própria Bíblia e na história
de sua interpretação” (Santa Sé, 1993). Ou seja, o exercício hermenêutico
constitui a base epistemológica da teologia e, ao mesmo tempo, seu saber
acumulado torna-se o fundamento da tradição cristã, como semântica do
Mistério, de cujo dado referencial a teologia é exercício hermenêutico, a saber,
o conceito de Revelação. Entretanto, em suas essências, as grandes tradições
religiosas nascem como mistagogas ou, ainda, como pedagogas de um caminho
ou de um estilo de vida, os quais, se forem seguidos, proporcionarão a busca da
experiência fundacional, isto é, da revisitação da experiência do fundador.
O processo mistagógico se institui como caminho de sabedoria, o qual
pode ser classificado em quatro grandes pilares, que se amalgamam como
totalidade simbólica social na qual o indivíduo se insere, como cultura
alternativa. Pela pedagogia mística de
219 Ciências da religião e teologia

uma tradição religiosa, de modo geral, e de modo bem peculiar no cristianismo,


pode-se pensar a Revelação como semântica do Mistério (Villas Boas, 2011, p.
267-287):

1) A criação de uma Literatura Sagrada: a mistagogia como oferta de um modo


de ser é privilegiadamente apresentada em forma literária. E nesse sentido
constitui a dimensão simbólica por excelência, enquanto linguagem fundante
de uma tradição. As grandes tradições religiosas possuem sua linguagem a
partir de suas respectivas literaturas sagradas, orais ou escritas. É por meio
dessa linguagem exatamente que se dá o caminho primeiro de identificação
pessoal entre a tradição e o iniciado. Este não procura entender o texto como
um especialista, mas antes procura se entender diante do texto. Toda literatura
sagrada carrega sua capacidade de provocar um modelo a ser seguido
(mimésis) e ao mesmo tempo propõe uma reinvenção (poiésis) da própria
lógica existencial. A narrativa foi a primeira forma pedagógica de condução ao
Mistério no mundo antigo e constitui a anterioridade da tradição enquanto
linguagem a ser assimilada.

2) A criação de uma ritualização da vida: a Literatura Sagrada doa a simbólica


que é base dos ritos. Os mitos, diferentemente de como pensou a crítica
iluminista que os reduziu a uma invenção mentirosa, carregam densidade
antropológica que indicam significados a serem descobertos para a vida. Sendo
o rito o momento de atualização dos mitos, é também o momento em que a
significação se faz viva e provocadora de desejo. O mito visa recordar o caminho
que o desejo deve trilhar. No rito, a pessoa doa o desejo à divindade e alimenta
afetivamente o sentido assimilado de uma tradição. Na tradição, o lugar dos
mitos é ocupado pela narrativa.
220 Ciências da religião e teologia

3) A consolidação de uma sabedoria de vida: a experiência religiosa, uma vez


inaugurada, se descobre dentro da condição humana de contradição, o que
exige a busca de formular princípios de não contradição, elaborando uma
teologia, ou seja, uma forma mais filosófica, no sentido de uma compreensão
crítica da própria experiência, e que pode ser apresentada em diversos
gêneros: tratados filosófico-teológicos, sermões críticos, catequeses
mistagógicas, projetos teológicos, doutrinas... É essa tarefa que produz um
imaginário na medida em que extrai do Simbólico das fontes teológicas as
práticas hermenêuticas que funcionam como atualização de uma tradição.

4) A expansão de uma consciência ética: Na medida em que se descobre um


sentido para a vida identificando-se com a proposta de uma tradição, que se
alimenta afetivamente tal sentido na ritualização da vida e passa a se pensar
criticamente a própria conduta, inevitavelmente há o desdobramento de um
alargamento da consciência ética que impacta o ambiente em que se localiza
provocando a percepção de uma proposta de excelência de vida. É exatamente
a diferença ética de uma religião que irradia a sua proposta, uma vez que
aquele que assume seu caminho, descobre concretamente um modo de ser
que o ajuda a lidar com os inerentes desafios existenciais. É na pertinência e
suficiência do discurso ético que a proposta religiosa se consolida como modo
de ser assumido. É exatamente na dimensão ética da religião que se verifica
sua capacidade de responsabilidade com a realidade, e onde se verifica os
sintomas de contradição entre o imaginário e a realidade.

É da relação entre o simbólico (a literatura sagrada e a liturgia), o


imaginário (a hermenêutica teológica) e o real (a sensibilidade ética) que emerge
o fenômeno de uma tradição viva como processo
221 Ciências da religião e teologia

de atualização mistagógica. É essa atualização que se pretende com a proposta


de uma teopatodiceia, ou seja, uma hermenêutica do sentido de Deus (Theós)
na busca humana de sentido, em sua ligação com a cultura e a produção de
subjetividades (pathos), em que o senso de responsabilidade ética abrange a
alteridade, a interculturalidade e a justiça social (diké) (Villas Boas, 2016).
Há também a necessidade de se pensar em uma fenomenologia da graça
como análise descritiva da compreensão relativa à comunicação divina. Na
qualidade de processo mistagógico, ela não somente inaugura uma tradição
como também – na medida em que comporta uma densidade axial, ou seja, um
discurso religioso portador de profundos valores humanos – ganha
capilaridade social e se apresenta como cultura alternativa, que se reinventa de
dentro da própria cultura, afirmando valores fundamentais de uma nova
compreensão advinda das práticas hermenêuticas. É nesse sentido, por
exemplo, que Jaeger (1991) vê o cristianismo como paideia3 alternativa.
Com base nisso, como hermenêutica teológica de uma semântica do
Mistério, o método teológico pode ser entendido como oferta de racionalidade
crítica a um sistema de crença e, nesse sentido, colabora com o exercício de
autocompreensão de uma tradição religiosa, no diálogo com outras tradições, a
fim de ajudá-las a dar conta dos processos históricos em que estão implicadas
suas semânticas do Mistério.
Com isso, pretendemos apontar para o fato de que a linguagem teológica
tem duas estruturas discursivas matriciais: i) uma de manutenção e ii) uma de
transformação da ordem social – a primeira identificada com as formas de
teodiceia, e a segunda, com aquilo que se chama aqui deformas de teopatodiceia.
Mudada a estrutura linguística, altera-se, por consequência, a concepção ética,
uma vez

_____________________
3 Trata-se da compreensão referente à cultura grega e, ao mesmo tempo, a um sistema de educação segundo o
qual tudo está interligado.
222 Ciências da religião e teologia

que a linguagem carrega em si uma práxis inerente, e esta também se torna


referência para aquela. Nesse contexto, os movimentos teológicos do século XX,
e mesmo alguns eventos das teologias oficiais, como o Concílio Vaticano II,
constituem as causas próximas para uma nova relação entre ciências da religião
e teologia.

O debate epistemológico
6.2

das ciências da religião no Brasil


Na ocasião da avaliação trienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (Capes) dos programas de pós-graduação de 2010-2012, como
é de costume, foi registrado em relatório, como mostramos a seguir, o
delineamento fundamental para a constituição da autonomia da área de
Ciências da Religião e Teologia:

Na Capes, a área de Ciências da Religião e Teologia está alocada como


subcomissão dentro da área de Filosofia/Teologia, havendo, contudo, anseio
por parte da comunidade acadêmica dos atuais 18 (dezoito) programas de pós-
graduação para a constituição de uma área autônoma. Esta possível nova área
deve construir seu campo epistemológico próprio, salvaguardando as
diferenças, as especificidades e as convergências quanto ao nome binário.
(Brasil, 2013, p. 37)

Esse documento apresenta, inclusive, observações sobre a teologia


contemporânea e a incorporação de metodologias histórico-críticas, oriundas da
filosofia crítica. Descreve, ainda, como a teologia trilhou o caminho da crítica,
que provocou em seu seio “rupturas no modo operacional platónico-medieval
[...], construindo mais fortemente relações interdisciplinares com a Filologia, a
História e a Arqueologia” (Brasil, 2013, p. 37-38).
223 Ciências da religião e teologia

Quanto à adoção da categoria história no labor teológico, destaca-se que


“A exegese histórico-crítica e a pesquisa histórica da trajetória do cristianismo,
da teologia e de outras religiões, num viés comparativo passaram a ter presença
obrigatória nas matrizes curriculares dos cursos de Teologia” (Brasil, 2013, p.
38). No documento também se menciona que a abertura da teologia “às
dimensões psicológicas das atividades religiosas abriu diálogo com a
Psicologia” (Brasil, 2013, p. 38), o que permite reformular e enriquecer
importantes conceitos teológicos. É reconhecido igualmente o diálogo com
outras ciências, especialmente as humanas e as sociais, apresentando a teologia
para além de suas “funções normativas dentro de determinados segmentos
religiosos” (Brasil, 2013, p. 38), isto é, como um espaço de reflexão crítica e
sistematizada sobre a fé ou o fenômeno religioso na qualidade de parte
integrante da cultura não material de um povo. Também se faz referência às
ciências da religião (ou denominações alternativas), que foram “se firmando como
uma área autônoma em relação à Teologia para o estudo das religiões mais
diversas [...] [e] elaborações sobre a ontologia do divino para considerações mais
empíricas sobre as doutrinas e as práticas das religiões” (Brasil, 2013, p. 38).
O campo das ciências da religião é apresentado como um ambiente
multidisciplinar que busca “analisar o fenômeno, fato ou evento religioso
enquanto expressão humana, cultural e histórica” (Brasil, 2013, p. 38). Indica-se,
ainda, que fazem parte de seu campo interdisciplinar: “Teologia, Antropologia,
Psicologia, Filosofia, Sociologia, História e Geografia [das religiões]”, bem como
a aproximação das “ciências cognitivas e da linguagem” (Brasil, 2013, p. 38).
Depois de tais considerações, o documento ressalta a vocação interdisciplinar
do setor:
224 Ciências da religião e teologia

As Ciências da Religião (ou suas variantes) e a Teologia têm nesse sentido


vocação interdisciplinar e a reflexão epistemológica contemporânea mostra
como as fronteiras tradicionais entre as diversas áreas vão sendo superadas,
evidenciando também que muitas questões novas só podem ser tratadas
através da integração entre diferentes saberes. (Brasil, 2013, p. 38)

Em 2016, com a publicação do Documento de área: teologia, por ocasião da


autonomia conquistada, enfatiza-se uma “abordagem de perfil interdisciplinar”
(Brasil, 2016b, p. 2), sendo os programas de pós-graduação em Ciências da
Religião os que apresentam maior interdisciplinaridade quanto à titulação dos
docentes. Desse modo, a área de Ciências da Religião e Teologia no Brasil se
destaca pelo seu caráter interdisciplinar, que foi se desenvolvendo no diálogo
entre os respectivos campos de conhecimento. Com isso, demanda-se um passo
a mais em direção ao aprofundamento do debate epistemológico de uma área
comum, respeitando-se as especificidades de cada disciplina, mas apontando-
se para uma interação cada vez maior de interfaces na pesquisa de estudos de
religião, dada a complexidade do fenômeno.
Um olhar para o desenvolvimento histórico dessa questão pode ajudar a
melhor evidenciar essa relação. Impõe-se, então, a tarefa de criar uma cultura
epistemológica (Pondé, 2001) entre os dois campos de conhecimento, que são,
agora, no Brasil, a área autônoma de avaliação comum de Ciências da Religião
e Teologia.
A presença da formação teológica no Brasil remonta ao século XIX,
quando da criação de seminários católicos e protestantes em várias regiões do
país. Contudo, a finalidade deles era basicamente a formação de quadros de
lideranças religiosas voltadas aos interesses das respectivas instituições. Nesse
sentido, mesmo com a separação entre Igreja e Estado estabelecida por
monarquias constitucionalistas e majoritariamente pelos
225 Ciências da religião e teologia

regimes republicanos, como é o caso do Brasil, permaneceu um imaginário


cultural de proselitismo na formação teológica das lideranças religiosas.
Essa dimensão pode ter em sua base a compreensão de uma espécie de
epistemologia especial da fé, cuja origem está na interpretação da tensão entre
teólogos e adeptos do racionalismo moderno, como Blaise Pascal (1623-1662) e
o movimento jansenista, do qual ela fazia parte na teologia católica, e Sóren
Kierkegaard (1813-1855), na teologia protestante. As reminiscências dessas
perspectivas epistemológicas são retroalimentadas nos momentos de maior
tensão entre a religião, a sociedade e a academia, quando ocorre um fechamento
do pensamento teológico crítico para voltar-se a formas de apologia e
proselitismo. Uma forma atual dessa tensão reside na manipulação midiática e,
consequentemente, política da chamada bancada evangélica do Congresso
Nacional.
Os problemas sobre a produção de conhecimento teológico e sua
transmissão repercutem no cenário nacional dada a abrangência das ofertas de
graduações em Teologia reconhecidas pelo Ministério da Educação e Cultura
(MEC), cujo total é de 154 cursos de educação superior presenciais – se
considerarmos os cursos de educação a distância (EaD), esse número sobe para
447, sem levar em conta ainda os diversos institutos e seminários não reconhe-
cidos. O estado do Paraná é a segunda unidade da Federação que mais tem
cursos superiores de Teologia (32), atrás somente de São Paulo (56), a maioria
presenciais (Brasil, 2019b).
A deficiência da discussão e da produção de pesquisa sobre
epistemologia teológica em diálogo com as ciências da religião, bem como o
momento histórico do país, pode colaborar para a manipulação e a propagação
de incidências políticas mobilizadas por discursos religiosos escusos, para um
público receptor deficitário de cultura teológica crítica.
226 Ciências da religião e teologia

No ano de 2018, um dos impactos da falta de debate acadêmico maduro


no que diz respeito à questão religiosa e sua incidência pública foi a aprovação
do ensino religioso confessional em escolas públicas, atravessando a discussão
de fóruns de debate e de associações de pesquisadores sobre o assunto. Também
questões eleitorais motivadas por narrativas religiosas que dispensam o debate
público começaram a ganhar força no cenário político nacional.
Com o surgimento dos programas de ciências da religião, ocorreu uma
salutar interação na produção de estudos de religião, porém ainda há uma
integração por se realizar entre esses dois campos de saber que abrigam
modelos epistemológicos diversos. Essa insuficiência de debate e de produção
epistemológica da teologia pode retroalimentar uma confusão na percepção
sobre o papel de cada um desses dois campos, dado o histórico do contexto
religioso brasileiro, tributário de uma disputa de hegemonia religiosa. Cabe, por
isso, à área de Ciências da Religião e Teologia produzir conhecimento e recursos
qualificados para gerar uma cultura de tolerância religiosa e de respeito à
diversidade, assim como oferecer instrumentos de participação nos debates
públicos dos processos de transformação da sociedade e da cultura, de modo
lúcido e racional.
Considerando-se que uma disciplina acadêmica não é formulada tão
somente por elementos epistemológicos (teorias, métodos, ênfases), uma vez
que também se forma pela influência social, cultural e política, o caso brasileiro
apresenta uma relação interdisciplinar muito diversificada.
O debate epistemológico entre ciências da religião e teologia no Brasil foi
instaurado com o primeiro curso na Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), em Minas Gerais, em 1970, e com os estudos preparatórios que o
precederam, como já mostramos no Capítulo 1.
227 Ciências da religião e teologia

Apesar de, no contexto político, ter ocorrido a separação entre Igreja e


Estado promulgada pela Constituição de 1891 (Brasil, 1891), endossando-se o
princípio da liberdade religiosa no Brasil desde a Constituição de 1824, foi
apenas com o novo clima cultural de abertura teológica na Igreja Católica, logo
após a conclusão do Concílio Vaticano II (1962-1965), que foi favorecida a leitura
social da realidade religiosa brasileira, acentuadamente marcada pela
diversidade de igrejas protestantes, evangélicas, pentecostais e de religiões
africanas e, ainda, pela presença do judaísmo e de religiões orientais, como
budismo, hinduísmo e mesmo o Islã, já aqui localizado desde muito cedo,
trazido pelo tráfico de escravos africanos subsaarianos praticantes da religião
muçulmana.
Nessa configuração, as ciências da religião são muito bem-vindas no
âmbito da teologia brasileira, a ponto de, na UFJF, pensar-se primeiramente na
criação de um Departamento de Teologia. Por sugestão do Conselho Federal de
Educação e de resistências positivistas acadêmicas e religiosas, por parte de
eclesiásticos, o curso foi se configurando em torno da ideia e das práticas das
Ciências das Religiões. Desse modo, em um primeiro momento, ele estava
muito mais propenso a distanciar-se de visões ainda muito hegemônicas da
teologia, como o processo de recepção do Concílio Vaticano II, do que
propriamente alinhado aos debates europeus, especialmente o alemão.
Naquela ocasião, os cursos de Teologia das Pontifícias Universidades
Católicas do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e de São Paulo (PUC-SP) eram exceção
por permitirem que mulheres neles estudassem ou – mais raro ainda –
lecionassem suas disciplinas, como foi o caso da teóloga Maria Clara Bingemer
(1949-), que iniciou a graduação em Teologia em 1968, e o da biblista norte-
americana Ana Flora Anderson, que, em 1965, já morando no Brasil, decidiu
realizar seus estudos de pós-graduação na École Biblique de Jérusalem e,
228 Ciências da religião e teologia

depois de concluídos, retornou ao país e passou a atuar na docência teológica


na PUC-SP.
A Teologia, tal como era ensinada no Brasil, era vista naquele momento
como exclusivamente destinada a um saber de cúpula, ou seja, à formação
profissional do clero, motivo pelo qual o Conselho Federal de Educação sugeria
que, em vez de criar um instituto de teologia em uma universidade federal,
fosse criado um departamento de ciências da religião no qual o fenômeno
religioso pudesse ser estudado em seus vários aspectos, “podendo ser
ministrados cursos sobre e de Teologia” (Parecer n. 190/1968, citado por Pieper,
2018, p. 235.
Havia, portanto, uma resistência não à teologia, mas a um modelo
estritamente dogmático e clerical, com finalidades específicas de práticas
religiosas. Isso parecia ser, naquele momento, pouco viável para atingir a meta
do curso de estimular a interação, por meio do diálogo, entre as grandes
religiões, sem excluir, contudo, uma reflexão mais crítica do cristianismo,
identificado oficialmente na proposta do curso de Ciências da Religião como
religião que é servida pela UFJF, sendo esta também uma das metas.
Com isso, o perfil do egresso se ampliava, passando de uma finalidade
exclusivamente pastoral – sem que esta fosse excluída – para as funções de
“professor de religião em estabelecimentos de ensino, orientador religioso-
pastoral e técnico em assuntos religiosos para assessorar os poderes públicos e
as organizações socioeconômicas” (Ata do Núcleo de Ciências das Religiões de
10 de julho de 1969, citada por Pieper, 2018, p. 235).
Apesar de a proposta do curso ser a de um estudo sistemático e
aconfessional do fenômeno religioso, inevitavelmente ele assumia uma reflexão
teológica mais "arejada”, ou seja, que visava “tratar de temas da tradição cristã
sem assumir uma postura meramente apologética” (Pieper, 2017, p. 120).
Exatamente por esse motivo, parte do clero local se sentia ameaçada. No
entanto, cabe ressaltar
229 Ciências da religião e teologia

que tal postura não traduz a totalidade da perspectiva teológica da comunidade


eclesial, uma vez que a proposta do curso de Ciências da Religião era
encampada por um padre da Congregação do Santíssimo Redentor (formada
por redentoristas) e contava com a presença significativa de outros padres, dois
dos quais, mais tarde, viriam a ser arcebispos – Dom Eduardo Benes de Sales
Rodrigues (arcebispo emérito de Sorocaba, de 2005 a 2016) e Dom Walmor
Oliveira de Azevedo (atual arcebispo de Belo Horizonte).
Embora inicialmente o curso tenha tido apoio de Dom Geraldo Penido, o
então arcebispo de Juiz de Fora, a resistência da Igreja local passaria de apenas
desconfiança para uma ação organizada de proibição e fechamento do curso, na
medida em que o clero local se sentia ameaçado pelas visões teológicas
alternativas às interpretações oficiais e pelas abordagens não confessionais da
religião, especialmente as do clero, pois o ambiente europeu já respirava outros
ares em diversos ambientes. Ademais, o quadro docente do curso contava com
a presença de pastores presbiterianos e de leigos, o que, para a época, no Brasil,
e particularmente em Minas Gerais, o estado mais católico da Federação, já era
bastante avançado (Pieper, 2017; Teixeira, 2012).
Os embates político e ideológico exigiam uma reconfiguração
epistemológica que engendrasse novas práticas de ruptura com a teologia,
desde a reconfiguração do corpo docente até a revisão teórica, que passaria
então a receber e a assumir a influência da escola alemã da Ciência da Religião
[Religionsmssenschaft], que se afirmava exatamente na negação da teologia. Isso
culminou na criação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da
UFJF, em 1993.
A criação do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
PUC-SP (nome original) em 1978, por sua vez, colaborou para o avanço do
debate epistemológico (mais recentemente, em 2017, a nomenclatura adotada
passou a ser Ciência da Religião). Um
230 Ciências da religião e teologia

dos grandes autores que se dedicam ao debate epistemológico na linha da


Religionswissenschaft, o qual foi uma das grandes influências na PUC-SP, é o
alemão Frank Usarski, que iniciou sua atuação como professor visitante entre
1998 e 2003 e depois passou a integrar o quadro de professores permanentes.
Usarski segue a linha de Hans Jürgen Greschat (1927-), e suas críticas
podem ser resumidas conforme o Quadro 6.1.

Usarski (2006) acrescenta que as tensões e as animosidades entre as duas


disciplinas se relacionam mais ao caráter sociológico da vida universitária e ao
modo como as ciências da religião foram institucionalizadas, procurando-se
progressivamente conceder-lhes autonomia acadêmica como filhas
emancipadas da teologia. Sobre essa autonomia, nos primórdios das ciências da
religião, havia o agravante de seus representantes serem majoritariamente
teólogos, de modo que a opção metodológica da fenomenologia era vista como
criptoteologia, camuflando categorias da teologia cristã para analisar outras
religiões radicalmente distintas.
231 Ciências da religião e teologia

O cientista da religião alemão ainda aponta para a dificuldade da teologia de


promover uma crítica ideológica, ao estabelecer sua fundamentação meramente
com base na revelação divina, o que blinda a religião de ser entendida também
como produto humano e histórico, incorrendo-se em pretensas justificações
como modelos de “organização hierárquica”, “poder de sacerdotes sobre
leigos” ou “legitimação de regimes políticos” (Usarski, 2006, p. 67,40,21-22).
As contribuições de Usarski e de Greschat têm grande importância na
depuração do labor investigativo da teologia, especialmente por ajudar a
denunciar questões ideológicas sob a roupagem de teologia. Contudo, é preciso
realizar algumas importantes distinções, como a que há entre teologias
investigativas e teologias normativas – as primeiras são pautadas pelo
exercício crítico da pesquisa, sobretudo a hermenêutica em diálogo com outras
áreas de saber, e as segundas são entendidas como teologias oficiais de uma
determinada tradição de fé.
Ainda sobre as teologias normativas, é necessário distinguir as
personagens históricas que as influenciam, sejam seus líderes mundiais, sejam
as representações locais que os recebem, nem sempre sem tensões. Um futuro
historiador da religião, por exemplo, que no ano de 2100 queira estudar o
catolicismo na passagem do milênio, independentemente de ter alguma relação
com a fé católica ou não, inevitavelmente terá de identificar as diferenças
teológicas dos pontífices da segunda metade do século XX e da primeira metade
do século XXI, como no caso da tarefa de analisar as diferentes perspectivas –
por vezes radicais – de personagens históricos como os papas Pio XII, João
XXIII, Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI, Francisco e os outros que ainda virão.
Furtar-se dessa tarefa, seja para teólogos e teólogas, seja para cientistas da
religião, é incorrer no risco de amparar-se no senso comum.
Ademais, não é consenso no Brasil o modo de pensar a relação entre
ciências da religião e teologia. Se há autores que mantêm a
232 Ciências da religião e teologia

posição alemã de afirmação da primeira e negação da segunda (Filoramo;


Prandi, 1999; Greschat, 2005; Pye, 2001; Usarski, 2001, 2006), há outros que
entendem haver, sim, uma inegável tensão, embora tendam a vê-la como uma
relação salutar no caso brasileiro, como mencionamos no início deste capítulo
(Aragão, 2015; Soares, 2013; Teixeira, 2013).
Mesmo entre docentes de programas de pós-graduação que se intitulam
Ciência da Religião e seguem o modelo alemão (Religionswissenschaft), como é o
caso dos ministrados na UFJF e na PUC-SP, há alguns que têm uma perspectiva
positiva em relação ao papel da teologia nas ciências da religião, indicando que
a separação entre as duas áreas não tem grande apoio (Cabral, 2009; Camurça,
2008, 2011; Cruz, 2013; Cruz; Mori, 2011; Gross, 2001; Passos, 2015; Soares, 2007,
2013; Soares; Passos, 2011; Teixeira, 2001; Valle; Queiroz; Mendonça, 2007).
Edênio Valle, psicólogo da religião e primeiro coordenador do Programa
de Ciências da Religião da PUC-SP, em entrevista realizada por Angela Cristina
Borges Marques e Marcelo Rocha, menciona ao menos dois distintos modelos
epistemológicos da teologia: i) o dos que se limitaram a uma autorreferência
eclesial (ficaram na “sacristia”) e ii) o das teologias inteligentes, que aceitam o
deságio do pensamento, como a teologia latino-americana, que tinha
interlocutores da ciências sociais, da história e da política (Valle; Queiroz;
Mendonça, 2007).
Queiroz (Valle; Queiroz; Mendonça, 2007), também da PUC-SP, chega a
mencionar o fato de que o Programa de Ciências da Religião da PUC-SP teve
como principais mentores, além de colegas seus, como Edênio Valle, pessoas do
Departamento de Teologia, para pensar cientificamente o fenômeno religioso,
grupo sem o qual o programa não existiria. Ambas as disciplinas, nessa época,
compartilhavam de um referencial teórico-dialético para procurar compreender
o que significa uma religião no contexto
233 Ciências da religião e teologia

latino-americano, por meio de análises dialéticas da religião e da sociedade.


Afirma Queiroz (Valle; Queiroz; Mendonça, 2007, p. 204-206):

Não havia, portanto, o pensamento de que deveríamos nos separar da Teologia


porque ela segue por um viés e nós vamos por outro, não havia essa discussão.
O que existia, sim, era um bom senso de enfoque. E, como nós estávamos no
início – ainda hoje estamos no início, nosso programa está apenas começando
– não era de bom alvitre comprar briga com a Teologia. Pelo contrário, nós
estávamos em uma área de pós-graduação em que Ciências da Religião ou
Ciência da Religião e Teologia estavam – e ainda estão – afetas à área da
Filosofia. Então, a nossa perspectiva política, além de científica, era de não
separação da Teologia, mas de soma para que com essa área pudéssemos
implementar uma pós-graduação em Teologia e Ciências da Religião.

Ademais, alguns programas de pós-graduação haviam elaborado


propostas de teologia e, por critérios alheios aos próprios docentes
idealizadores, foram instituídos como Programas de Pós-Graduação em
Ciências da Religião, de acordo com o parecer da Capes na época. Foi o caso,
por exemplo, da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), em 1979, e da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2002 (Valle; Queiroz; Mendonça,
2007).
Um autor que tem se dedicado ao debate em uma perspectiva de
cooperação crítica é Flávio Augusto Senra Ribeiro, docente do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-Minas) e atual coordenador da área de Ciências da Religião
e Teologia na Capes.
Senra inicia sua reflexão analisando as rupturas epistemológicas no que
diz respeito ao discurso sobre Deus, com base na perspectiva foucaultiana das
descontinuidades da epistémê, entre as épocas do Renascimento (século XVI), da
Idade Clássica (séculos
234 Ciências da religião e teologia

XVII e XVIII) e da Idade Moderna (século XIX). Recoloca-se, assim, o desafio da


morte de Deus e evoca-se o saber de uma teologia negativa, bem como as formas
de relação entre política, cultura e teologia (Ribeiro; Pinto, 2010; Bernauer;
Carrette, 2004).
Contudo, apesar da apresentação histórica das rupturas epistemológicas
na perspectiva foucaultiana, Senra faz a ressalva de que os “distintos momentos
epistemológicos [...] acabam por conviver, sob múltiplos aspectos, nos dias
atuais” (Ribeiro; Pinto, 2010, p. 61), o que pode indicar uma deficiência no
debate sobre epistemologia teológica, o que, por sua vez, resultaria no
surgimento de discursos fundamentalistas de segmentos religiosos, na
“pseudossecularização do Estado cristão” (Ribeiro; Pinto, 2010, p. 48-49),
contexto no qual o controle da pesquisa científica significa, na verdade, a
manutenção do poder religioso, assim como o “domínio religioso exercido nas
sociedades teocráticas [...]com alguns elementos de radicalismo e belicosidade,
em certos casos levados às vias de fato do terrorismo” (Ribeiro; Pinto, 2010, p.
49).
Nesse sentido, as razões do neoateísmo definidas pelo autor deveriam ser
também de responsabilidade daqueles que pretendem produzir discursos
teológicos, analisando as estruturas epistêmicas adequadas ao tempo presente,
bem como procurando entender o fenômeno das formas anacrônicas de
epistemologia teológica, para que não incorram na crítica nietzschiana de serem
identificados como “teólogos mal instruídos que querem brincar de filósofos”
(Nietzsche, 1995, citado por Ribeiro, 2012, p. 126) na tentativa de “imposição do
ideal sobre a verdade do mundo” (Ribeiro, 2012, p. 131), simplificando a
complexidade do real. Assim, “o inimigo a ser combatido é aquele da
superstição paralisante e o do domínio religioso que escraviza pelo
dogmatismo, pelo transcendentalismo e pela negação das condições humanas e
sociais para a construção do mundo ético e justo no aquém do transcendental e
extramundano mundo divino” (Ribeiro; Pinto, 2010, p. 49).
235 Ciências da religião e teologia

Analisando o debate epistemológico da área de Ciências da Religião e


Teologia, Senra aponta para uma tendência interdisciplinar nos estudos de
religião no Brasil, que acompanha a mudança de cultura acadêmica de pensar
essa abordagem como nova etapa do conhecimento e nova metodologia do
trabalho científico contemporâneo. O autor, utilizando Piaget, indica o
“movimento interdisciplinar em três etapas” (Ribeiro, 2012, p. 261):

1. Conceituação básica (anos 1970) – preocupação mais terminológica.


2. Construção de diretrizes sociológico-metodológicas (anos 1980) –
promoção de uma revisão das contradições epistemológicas.
3. Teorização de uma epistemologia interdisciplinar (anos 1990) –
integração a um projeto antropológico e, portanto, entendida a
necessidade de mudança de mentalidade.

Esse processo ocorreu em distintos níveis de interação das disciplinas,


segundo Piaget (citado por Ribeiro, 2012, p. 262-263, grifo nosso):

1) Multidisciplinaridade – nível inferior de integração, busca cooperação entre


disciplinas na solução de um problema, sem que tal integração contribua para
modificá-las ou enriquecê-las, não implica a impossibilidade de alcançar níveis
superiores; 2) Interdisciplinaridade – segundo nível de integração, no qual a
integração promove intercâmbios reais, ocorrem enriquecimentos múltiplos;
3) Transdisciplinaridade – construção de um sistema total, sem fronteiras
sólidas entre as disciplinas, ou seja, "uma teoria geral de sistemas ou
estruturas, que inclua estruturas operacionais, estruturas de regulamentação e
sistemas probabilísticos, e que una estas diversas possibilidades por meio de
transformações reguladas e definidas".
236 Ciências da religião e teologia

O atual coordenador da área de Ciências da Religião e Teologia identifica,


então, um paralelo entre o desenvolvimento de uma epistemologia
interdisciplinar e uma epistemologia de estudos de religião, acentuando o
“caráter sui generis da constituição das Ciências da Religião no Brasil” (Ribeiro,
2012, p. 251), que foi marcada pelas correntes teológicas e eclesiais da teologia
da libertação, no caso da tradição católica, e da missão integral, no caso da
tradição protestante, um caminho distinto do debate europeu desde o século
XVIII.
Houve, na segunda metade do século XX, uma interação multidisciplinar
com grande interesse da teologia latino-americana em incorporar outras
ciências para compreender o fenômeno religioso. A religião passou a ser
pensada em seu papel social pelas ciências sociais e nos processos de
subjetivação e de cooperação terapêutica pela psicologia da religião, questões
estas que muito rapidamente se tornaram de interesse de teólogos e teólogas,
seja de pesquisa, seja de incorporação nos currículos de Teologia. Havia, então,
uma mudança de mentalidade eclesial que assimilava a possibilidade de uma
abordagem multidisciplinar que as ciências da religião ofereciam e a teologia
apoiava. Assim, apesar do louvável esforço de aproximação da comunidade
acadêmica de cientistas da religião e teólogos e teólogas do debate europeu
(Greschat, 2005; Usarski, 2006,2007), ficava em aberto a questão da tradição
brasileira, “mais voltada para uma fundamentação interdisciplinar das Ciências
da Religião” (Ribeiro, 2012, p. 252, nota de rodapé 3).
Marcelo Camurça (2011), por sua vez, retoma a reflexão sobre o caráter
epistemológico das ciências da religião e compara o caso brasileiro ao caso
francês atual da Sciences religieuses, com sua ampliação de perspectivas, no
caminho contrário ao de fechamento em torno de uma corrente dominante. O
autor começa elencando as tensões existentes entre perspectivas, a saber: entre
uma visão essencialista, que busca o sagrado por detrás de suas manifestações
237 Ciências da religião e teologia

históricas e/ou empíricas, e uma visão “reducionista”, que se atém somente aos
aspectos empíricos (contextos histórico, social, cultural e psicológico). Também
cita as tensões sobre o estatuto da disciplina, entre uma proposta de “método
unificado” (ciência da religião) ou um “campo de estudos (inter)disciplinares”
(Camurça, 2011, p. 13), em que o ponto comum entre disciplinas está na temática
da religião.
Essas divisões, defende Camurça (2011), parecem ser muito mais o
resultado das clivagens produzidas pelo Iluminismo, que dividiu os
conhecimentos entre os “saberes da história, cultura e sociedade [ciências da
religião] de um lado, e saberes de transcendência [teologia e filosofia da
religião], de outro” (Camurça, 2011, p. 19).
Contudo, diante da complexidade contemporânea do fenômeno religioso
– marcada por globalização, fragmentação, desregulação das instituições sociais
e religiosas, hibridismos de territórios e identidades, diversidade de atores e
temas (gênero, sexualidade, ecologia, informática, mídia), aspectos que
configuram um fenômeno religioso em transição em relação a suas concepções
tradicionais o antropólogo da religião propõe uma perspectiva de articulação
entre as distintas perspectivas e os diferentes métodos a fim de promover a via
da colaboração, passando-se das tensões estanques para uma tensão com
complementação.
Ademais, Camurça (2011) inclui nesse debate o papel da teologia, não
sem uma redefinição da tarefa e dos paradigmas, procurando recuperar “as
mediações socioculturais e a historicidade de seus conceitos de revelação”
(Camurça, 2005, citado por Camurça, 2011, p. 20) para além do discurso de
legitimidade confessional, a fim de se debruçar, junto com as ciências da
religião, sobre a crise da modernidade e as questões de desinstitucionalização e
recomposição religiosa (Camurça, 2011).
Também Fabiano Campos propõe essa perspectiva de indissolubilidade,
com base na proposta de Paul Ricoeur, entre as
238 Ciências da religião e teologia

abordagens mais explicativas (empíricas) e as mais interpretativas


(hermenêuticas), como modo de conexão necessário entre as diversas
disciplinas que se dedicam aos estudos de religião (Campos, 2018).
Com base nesse contexto, a relação entre ciências da religião e teologia,
apesar de não ser um consenso, parece ter como tendência mais evidente e
consolidada a proposta de uma perspectiva interdisciplinar nos estudos de
religião, presente desde o surgimento das ciências da religião no Brasil, com
inevitáveis momentos de tensão que, não raro, foram oriundos de influências
externas ao debate acadêmico. Essa tendência tem crescido para tornar-se cada
vez mais uma via cooperativa de perspectiva intercultural (Soares, 2013) e
compartilhada (Gisel, 2011) do campo de estudos, à medida que vão sendo
desenvolvidas pesquisas interdisciplinares e transdisciplinares.
Assim como Camurça (2011) classifica as tensões de perspectiva e o
estatuto epistemológico nas ciências da religião, também cabe fazê-lo na
teologia – ou, como em uma denominação mais adequada, teologias. Estas
igualmente podem ser divididas conforme suas distintas perspectivas, a saber:
as teologias normativas ou oficiais e as teologias investigativas (Genovesi, 2008).
As teologias normativas são as formas de teologia que se expressam,
normalmente, pelo gênero nomológico ou doutrinal, que tem um vínculo
inerente às confissões religiosas, uma vez que é impensável uma doutrina sem
confissão ou vice-versa. Por sua vez, as teologias investigativas, apesar de
estarem tradicionalmente ligadas a reformulações hermenêuticas das confissões
no século XX, desde a chamada virada antropológica da teologia, desdobraram-
se em teologias contextuais e, por isso, abriram espaço para incorporar as
agendas sociais em sua reflexão. Com isso, ampliaram a interlocução para além
dos cenários eclesiais e abriram-se a novos públicos, como o acadêmico e o
social.
239 Ciências da religião e teologia

Com base nisso, como já mencionamos, é mais adequado falar em


teologias, dada a diversidade de perspectivas e, ainda mais, de métodos. Isso não
é estranho aos primórdios das escolas teológicas, especialmente pelo fato de elas
terem se instalado, não raro, como cultura alternativa em um determinado
contexto e terem incorporado os procedimentos teológicos da cultura
dominante. O caso mais documentado na história das teologias é o cristianismo,
que estabeleceu uma interlocução crítica com as teologias narrativas judaicas e
gregas, como a literatura homérica, o teatro e a lírica grega, e com as escolas de
caráter mais especulativo e metafísico, como foi com as teologias platônica,
aristotélica e estoica. É nesse sentido que Gross (2001) propõe a distinção entre
teologia e teologia cristã como identificação de procedimentos intelectuais
distintos das questões de confissão de fé. Do mesmo modo, essa situação não é
estranha nem mesmo para a teologia medieval, organizada entre aquelas
produzidas em mosteiros, acentuadamente bíblicas, e as teologias produzidas
na universidade, que dialogam com a filosofia aristotélica, algumas das quais
tentaram produzir sínteses entres esses dois universos – outras se mostraram
menos preocupadas com isso. As interferências políticas, entretanto, acabaram
por dar maior visibilidade a um dos modelos, como tende a ser na história das
ciências, em geral.
Se as teologias da libertação e as teologias das religiões permitiram
formas de interação críticas e complementares com as ciências da religião,
atualmente, uma grande tendência é o que se chama de teologia pública e seu
exercício de tradução de conteúdos religiosos para uma razão comum, em busca
de se promover interculturalidade. Ou seja, trata-se de uma proposta de pensar,
por perspectivas diferentes, problemas comuns, a fim de encontrar soluções
cooperativas para a construção do bem compartilhado e uma cultura de
tolerância e respeito, em perspectiva contra-hegemônica (Caldas, 2016; Cardita,
2011; Santos, 2013; Sinner, 2011, 2018; Soares; Passos, 2011; Zeferino, 2018).
240 Ciências da religião e teologia

Também o campo de teopoética4 estabelece uma interface entre as duas


áreas de conhecimento e as subáreas de teologia fundamental-sistemática e
ciências da linguagem religiosa, como indica a pesquisa de Antonio Geraldo
Cantarela (2018), atualmente com 129 pesquisadores entre cientistas da religião,
teólogos, críticos literários, filósofos, filólogos, entre outros, e com 1.175 títulos
publicados entre artigos, livros, teses e dissertações sobre o assunto.
Ademais, há uma rica interação entre cientistas da religião e teólogos no
trabalho desenvolvido pelas associações que reúnem especialistas em estudos
de religião, entre as quais destacamos:

▪ Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião (Soter)5, fundada


em 1985;
▪ Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR)6, fundada em
1999;
▪ Associação Latino Americana de Literatura e Teologia (Alalite)7, fundada
em 2006;
▪ Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e
Ciências da Religião (ANPTECRE)8, fundada em 2008;
▪ Associação Brasileira de Filosofia da Religião (ABFR)9, fundada em 2012.

Cabe lembrar que, apesar das mudanças epistemológicas ocorridas na


história, há sempre coexistências anacrônicas de distintos modelos
epistemológicos, por diversos fatores, que levam a uma compreensão, não raro,
reducionista das teologias plurais. E preciso, portanto, distinguir as teologias
por perspectivas (oficiais

_____________________
4 Campo de estudos interdisciplinar que abrange teologia, ciências da linguagem religiosa e estudos literários,
no âmbito do qual já se realizam pesquisas há quase 30 anos no Brasil.
5 Disponível em: <http://www.soter.org.br/>. Acesso em: 23 ago. 2019.
6 Disponível em: <http://www.abhr.com.br/>. Acesso em: 23 ago. 2019.
7 Disponível em: <http://www.alalite.org/>. Acesso em: 23 ago. 2019.
8 Disponível em: <http://www.anptecre.org.br/>. Acesso em: 23 ago. 2019.
9 Disponível em: <http://abfr.org/>. Acesso em: 23 ago. 2019.
241 Ciências da religião e teologia

e investigativas, confessional e não confessional), métodos (dedutivos e


indutivos) e caracteres públicos (eclesial, acadêmico e sociedade civil).
Ademais, embora as teologias oficiais tendam a tratar a questão religiosa
como evento mais espiritual de exortação e dinamização da religiosidade e
espiritualidade de uma comunidade eclesial, as teologias investigativas são
também obrigadas, por dever de ofício, a entender o fenômeno religioso
multifacetado que se encontra por detrás do sistema de crença ao qual pertence
determinada confissão religiosa. Ou seja, elas devem compreender os contextos
histórico, cultural, social, político, econômico e psicológico nos quais se
desenvolve uma semântica do Mistério, tal como formulada por uma tradição
religiosa.
Com a mudança do referencial epistemológico contemporâneo, foram
apresentados novos desafios à teologia, especialmente o da questão da morte
de Deus, que, como vimos, diz respeito à recusa de um modelo metafísico
idealista para dialogar com o efeito antropológico das afirmações teológicas
(virada antropológica), bem como às condições de produção de conhecimento
teológico (virada linguística) que evidenciam a tarefa da hermenêutica teológica
como método.
Sob essa condição, uma das importantes questões para os estudos de
religião é pensá-la como um fenômeno que se configura em um complexo
sistema de crença, cuja dinâmica cientistas da religião ajudam a mapear com
base em uma perspectiva interdisciplinar. Ao mesmo tempo, deve-se pensar em
formas de oferecer uma racionalidade crítica no interior desse sistema de crença,
assimilado em sua produção teológica, tarefa fundamental de teólogos, e de
traduzi-la para uma razão pública, na medida em que incorpora uma agenda
social em sua sensibilidade religiosa, criando uma interface entre a teologia
confessional e a teologia pública.
242 Ciências da religião e teologia

Nesse sentido, a área de Ciências da Religião e Teologia pode realizar


uma hermenêutica diatópica do mesmo fenômeno religioso, ou seja, um
exercício de interpretação por meio de seus próprios lugares de fala (dia-tópos),
mas com disposição interdisciplinar, em um contexto no qual cada um deve
ajudar a identificar melhor os respectivos pontos cegos, que, inevitavelmente,
existem em cada lugar de observação.
Um dos modos de se pensar na colaboração entre as ciências da religião
e a teologia é por meio das ciências da linguagem religiosa, uma vez que o
fenômeno religioso, como vimos em capítulos anteriores, também é um
fenômeno de linguagem.

O sistema de crença como


6.3

ideologia: aproximações em
Fredric Jameson e Paul Ricoeur
Ao se pensar o método teológico como racionalidade de um sistema de crença
– o próprio sistema em relação a outros – e o método das ciências da religião
como análise de um sistema de crença – o sistema de um outro –, vale a pena
considerar as contribuições de Fredric Jameson (1934-) e Paul Ricoeur (1913-
2005).
A ideologia em geral diz respeito a um modo operacional pelo qual a
consciência acredita em algo, indicando que tal ideia é condicionada por fatores
externos à própria consciência, de diversas ordens (histórica, social, cultural e
psicológica), compondo, assim, o imaginário pessoal que determina aquilo que
se pensa. Ao mesmo tempo, é um aspecto externo que se instala como
interpretação imediata da experiência vivida, uma interface que configura o
olhar para com o vivido e a sensibilidade para com os fatos e suas
reminiscências, os afetos.
243 Ciências da religião e teologia

Nesse sentido, a ideologia pode ser entendida como o conjunto de fatores


que atuam de forma inconsciente no modo de a pessoa pensar e,
consequentemente, de sentir a vida. Dada a condição de serem fatores fora do
alcance imediato da pessoa, a ideologia, então, é vista como aquilo que produz
uma relação inautêntica tanto com as coisas quanto com as próprias bases
daquilo em que se acredita. Dito de outro modo, pode-se entender por fatores
ideológicos tudo aquilo que promove uma aceitação incontestável daquilo em
que se acredita, sem que tenha passado pelo crivo da consciência de quem o faz.
Isso configura a ideologia como um modo próprio de crença ou, ainda, um
sistema de crença que estrutura o ato de acreditar em algo e pensar com base
nela.
Esse ato de acreditar a priori será visto como uma fé ingênua, ou seja, que
nem sequer cogita as razões de credibilidade daquilo em que se acredita. Os
chamados mestres da suspeita (Foucault, 1997) assim ficaram conhecidos por
estruturarem seu pensamento como uma desconfiança das razões de
credibilidade da modernidade, ou seja, do sentido da modernidade. Marx, por
exemplo, desconfiava dos discursos sociais que eram como uma espécie de
invólucro do modo de produção, especialmente da estrutura de crença ingênua
que retroalimentava as reais e perversas intenções do novo modo de produção
da Revolução Industrial.
A fé ingênua na Revolução Industrial tinha origem na teodiceia moderna,
como forma de teologia que substituía as causas históricas da produção de
miséria com base no enriquecimento sistemático de alguns por causas divinas.
Se o homem antigo fazia da enxada espada para tomar as terras do inimigo, a
fim de prover condições de subsistência aos seus, o homem moderno, no início
da industrialização, ainda acreditava que a precariedade social residia na
obscura, porém inquestionável, vontade de Deus, “que sabe o que faz”, fator
que blindava a possibilidade de o operário protestar contra as condições
desumanas de trabalho.
244 Ciências da religião e teologia

Freud, por sua vez, apregoava a necessidade de desconfiar de si, das


próprias motivações que poderiam camuflar os desejos mais narcísicos, de
modo que a visão ideal de um ser civilizado e portador de valores cristãos era o
primeiro obstáculo para se reconhecer a condição mais profunda do psiquismo
humano, escondendo, assim, as intenções narcísicas de si próprio. Já para
Nietzsche, a base da inautenticidade da verdade era a própria linguagem. A
hermenêutica da suspeita colocava em questão as intenções pessoais, a
ingenuidade em relação às instituições e a linguagem como veiculadora da
verdade, todos elementos que demandam problematização para que se
entendam seus mecanismos.
Essa cegueira quanto à real condição humana foi retratada na narrativa
de Édipo, no qual a tragédia é o fator pelo qual a consciência emerge, tendo o
aspecto narcísico da personalidade se curvado diante do fatídico. Por fim,
Nietzsche apresentou a questão ideológica identificando como base da
inautenticidade da verdade a própria linguagem, contexto no qual se incorre no
risco de divinizar as estruturas linguísticas convertê-las no máximo expoente
da razão, não se considerando com isso o caráter de falsificação que leva ao não
reconhecimento do caráter plural da linguagem e produz uma simplificação do
real (Ribeiro, 2012).
Hans Robert Jauss (2003) retrata a questão da linguagem como
sensibilidade do receptor, em que aquilo que é recebido pode vir ao encontro
do que se busca, mas também pode promover uma frustração esclarecedora,
como no caso de um cego que se choca com um poste na rua: apesar dessa
frustrante experiência, o indivíduo passa a perceber a real condição da rua. A
ideologia dificulta a identificação dos postes na rua.
É com base na ideologia como questão de linguagem que se pretende
abordá-la como um sistema de crença, ou seja, como uma forma de código que
estrutura um modo de pensar, sentir e agir.
245 Ciências da religião e teologia

O inconsciente político
6.3.1

de Fredric Jameson
Fredric Jameson (1934-) segue a hermenêutica da suspeita abordando
fundamentalmente a base da inautenticidade da verdade na própria linguagem,
assumindo a contribuição de Nietzsche. Portanto, por ser linguagem, ela está
vinculada à tradição psicanalítica do inconsciente como expressão das
psicodinâmicas que interferem no modo de ser, a fim de esconder de si as
próprias intenções narcísicas. Nesse sentido, quanto mais se negam tais
intenções, mais elas têm livre acesso à interferência das ações pessoais. Desse
modo, o pensar ideologicamente se instala na consciência não somente como
visão de mundo, mas também, dada a relação intrínseca das instituições
isoladas dos mestres da suspeita (Marx, Freud e Nietzsche), como interpretação
do sentimento de estar vivo (pathos) e atuante no mundo (diké), aspecto
característico da relação entre linguagem e práxis.
Jameson (1992), ao tratar especificamente da ideologia detentora de raiz
na linguagem, refere-se ao inconsciente político, portanto, como uma
sensibilidade que se instala no modo de ser pessoal, social e, consequentemente,
político. Tal como a dinâmica do ato falho, manifesta-se o ato contraditório da
política ao se fazer visível no fenômeno particularmente humano da linguagem,
modo essencialmente do âmbito político. Assim, esse âmbito é, por excelência,
o lugar do conflito e do antagonismo, sinais típicos de manifestação do
inconsciente. De modo especial, o estudioso norte-americano critica a estética
realista por se pretender esclarecer algo que é próprio da complexidade da
dinâmica do profundo.
Os elementos complexos e dinâmicos dessa profundidade inconsciente
do político são apresentados como movimentos que se interpenetram em três
círculos concêntricos, a saber: i) o nível político; ii) o nível social; e iii) o nível
histórico desse dinamismo.
246 Ciências da religião e teologia

O primeiro círculo, o âmbito político, manifesta-se por excelência, no uso


da palavra e, portanto, no primeiro nível de linguagem. Mais precisamente, a
linguagem política desse estágio é a crônica dos fatos, como narrativa do
político que se pretende como ato simbólico e que, assim, mobiliza a
sensibilidade.
O segundo círculo, o do âmbito social, configura-se como linguagem de
conflito, na qual se chocam os elementos a que Jameson chama de ideologemas,
ou seja, as maneiras de se pensar o mundo que se instalam na visão dos
indivíduos como reprodução de discursos prontos. Esse âmbito polariza o
conflito, que inaugura uma guerra insolúvel de ideologemas, promovendo uma
transvalorização, e não uma negação do que existe. Dito de outro modo, o que
uma facção social considera ruim, a outra transvaloriza e considera bom,
embora ambas participem de um código semiótico comum, a saber: os valores,
que se instalam no antagonismo social, categoria típica desse meio.
O terceiro nível, o do âmbito histórico, ao qual Jameson vincula a história
da sucessão dos modos de produção, opera como uma onda que se choca com
outra antes da ressaca, produzindo, assim, um efeito de percepção sincrônico,
dando a impressão de que nenhum outro modo de produção é possível além
daquele em que se vive naquele momento da história. Dado esse efeito de
percepção sincrônica, incorre-se no risco de ver o conflito social como algo
natural, como um fenômeno que não tem solução, o que acarreta conformismo.
Nesse sentido, para Jameson (1992, p. 32), é impossível acessar a história sob a
forma textual e, portanto, ela “só pode ser abordada por meio de uma
(re)textualização anterior”. Por isso, a história não é um texto, mas o lugar no
tempo em que se manifesta a necessidade do momento histórico, ao que
Jameson se refere como a expressão “do que dói”, daquilo que “fere” e “impõe
limites inexoráveis ao indivíduo e à práxis coletiva” (Jameson, 1992, p. 32).
247 Ciências da religião e teologia

Nessa perspectiva, a história exige uma outra hermenêutica, segundo a


qual a narrativa é um ato socialmente simbólico, mas que precisa ser lido com
base no conflito como sintoma da necessidade de um povo, que não pode ser
silenciado. É, por isso, necessário, antes, redefinir a questão da ideologia como
linguagem do inconsciente político, do desejo e de sua representação, assim
como a história como necessidade negada e a produção cultural no âmbito do
referencial oferecido para ler a história. Tal hermenêutica deve perguntar: Qual
é a estrutura narrativa que um ato simbólico do indivíduo expressa e qual
contradição ele pretende resolver?
Sem deixar de enfrentar o conflito, a estrutura narrativa deve procurar a
dialética do fenômeno das narrativas diferentes (heteroglossia) dos discursos
ideológicos (ideologemas), procurando a contraposição dos modos de produção
com base nos respectivos sintomas como caminho para a “transcendência do
‘ético’ em direção ao político e ao coletivo” (Jameson, 1992, p. 36-37).
Para o teórico político, sua crítica literária evolui para o estudo da cultura
como elemento fundamental para a compreensão do funcionamento do
capitalismo na contemporaneidade, pois a cultura sempre expressa o modo de
produção. Este, por sua vez, gera uma ferida, ou seja, uma necessidade social,
como chave da leitura da história e fonte de utopia, como finalidade existencial,
ou, ainda, “um mundo em que sentido e vida aparecem outra vez como
indivisíveis, no qual homem e mundo são unos”, não como “pensamento
abstrato” de “filósofos utópicos”, mas como “narrativa concreta, que se
constitui na base para toda atividade utópica” (Jameson, 1971, p. 375, tradução
nossa), na qual se permite imaginar o ético no desafio concreto.
A modernidade, contudo, não raro elabora um imaginário totalitário que
produz, na expressão de Habermas (1981), uma lógica de excomunhão segunda
a qual a exclusão de outrem é vista como solução que ocorre primeiramente na
e pela linguagem. Por
248 Ciências da religião e teologia

meio da linguagem, então, produz-se não somente um raciocínio mas também


uma subjetividade de eleitos que se retroalimenta na adoção dessa linguagem.
É, por isso, uma insensibilidade ao outro e, consequentemente, “uma distopia
da transformação social, uma vez que a solução para o conflito nessa
perspectiva é vista com eliminação daquele que, para usar uma expressão
jamesoniana, reclama coletivamente da dor social” (Manzatto; Villas Boas, 2018,
p. 430, grifo nosso).

A ideologia como sistema de crença


6.3.2

em Paul Ricoeur
Para Paul Ricoeur (1913-2005), é necessário cruzar Marx no tocante à questão
das ideologias, ou seja, assimilar sua contribuição, mas superar alguns pontos
cegos, ampliando a análise da função social da ideologia a fim de descrever
primeiro sua atribuição geral e depois seu papel de dominação social e de
inversão de percepção – essa, propriamente dita, é a leitura de Marx (Ricoeur,
2011). Para o filósofo francês, a função geral da ideologia é provocar unidade
social, ou seja, há uma ação positiva de ser integradora de grupos sociais na
medida em que promove um sistema de crenças, como a fé em valores que
permitem integrar grupos distintos, como fazer o bem, ser justo e procurar a
paz, pois, quando pessoas, mesmo de grupos distintos, acreditam em tais
valores, ocorre em alguma medida uma unidade social em torno da questão. Tal
função social geral tem cinco traços principais (Ricoeur, 2011). A seguir apresen-
tamos um resumo desse trabalho (Villas Boas, 2018, p. 334-335):

1) O primeiro traço é o da representação como necessidade de grupo de ter


uma imagem de si mesmo, enquanto sistema de significações que permite que
o comportamento humano seja significante para os agentes individuais do
grupo, ou mais precisamente, quando o comportamento de um é orientado em
função do
249 Ciências da religião e teologia

comportamento de outro. O significado do comportamento social é


representado por uma pessoa que passa a ser significante para o grupo, e desta
para outros que retroalimentam tais signos, como uma dinâmica teatral de
representar personagens significativos encarnados pelo grupo, promovendo
um consenso significativo, ou seja, um credo.

2) O segundo diz respeito ao dinamismo promovido pela ideologia ou ainda


pode ser entendido como teoria da motivação social na medida em que confere
um caráter de justificativa, ou seja, imprime um nota característica de que tal
visão de mundo é justa, e, com isso e para além disso, ainda imprime um caráter
de projeto, de empreendimento de que tal credo promovido resultará em uma
transformação social, [e] o credo transformado em projeto indica a
necessidade, por ser justa, da instituição de uma nova práxis social.

3) O terceiro traço é responsável pela preservação do dinamismo ideológico e


tem a ver com a sua capacidade de simplificar e esquematizar um sistema de
crenças, ou ainda pode ser visto como a capacidade de mutação de um sistema
de pensamento para um sistema de crenças, promovendo uma idealização da
imagem que um grupo possui de si mesmo.

4) O quarto traço é chamado por Ricoeur de dóxico, pois transforma ideias em


opiniões que funcionam como máximas em forma de slogans, fórmulas
lapidares, frases de efeito, e atualmente poderia se incorporar os "memes".
Este traço dóxico aproxima a ideologia ou o sistema de crenças a uma função
retórica e onde opera a eficácia social das ideias.

5) Por fim, o quinto traço promove uma tipificação, que Ricoeur também chama
de temporal, em que o novo só pode ser recebido a
250 Ciências da religião e teologia

partir do típico, ocorrendo uma sedimentação da experiência social, âmbito em


que surge a identificação mais forte de um indivíduo a um grupo, que passa a
ler a sociedade com a consciência do grupo, de modo que é a partir da ideologia
que se pensa, mesmo quando se pretende pensar sobre ela. Dito de outro
modo, a consciência se dá dentro de um código cultural. Também aqui se
incorre no risco de reforçar o caráter irracional e não transparente do sistema
de crença que passa a racionalizar a partir dos pressupostos doxológicos,
chegando a promovera dissimulação em relação a crítica e outras visões, como
atitude de defesa do sistema de crenças, incorrendo em um dogmatismo
ideológico.

Sobre esse aspecto, emerge a função de dominação como segunda função


da ideologia, diretamente relacionada com o poder e a autoridade. Ela ocorre
quando a gestão do poder promove uma certa fé na autoridade e acentua a
dissimulação que passa para o primeiro plano, como uma forma de se esquivar
de críticas. Essa função se acentua no Ocidente nos períodos eleitorais, de modo
que, quanto maior for a fé em um candidato ou em um partido, maiores serão
as chances de eles ocuparem o espaço de poder, sendo, historicamente, a
manutenção desse sistema de crença a condição para a permanência no poder.
A função de dominação é praticamente o uso deliberado de um sistema de
crença para promover e/ou manter o poder.
Por fim, a função de inversão, que diz respeito propriamente à análise
sobre a ideologia de Marx, refere-se à substituição da percepção do processo da
vida real por uma vida imaginária, promovido por um sistema de crença
segundo o qual da fé resulta a produção de ingenuidade, ou, ainda, sem
consciência crítica (Ricoeur, 2011). Para Marx, como vimos anteriormente, quem
promove essa inversão é a religião, ao apregoar que a realidade social é vontade
de Deus. Mais precisamente, Pierre Bourdieu
251 Ciências da religião e teologia

(1930-2002) nomeou tal inversão como sociodiceia, depois de considerar as


teodiceias formas de mentalidade religiosa que justificam a condição social
mediante a substituição das causas históricas pelas divinas (Bourdieu, 1998).
A polarização desses dois aspectos ideológicos, dominação e inversão,
gera, contudo, um paradoxo social ao fazer com que a ideologia como sistema
que promove uma integração social, na qualidade de crença na própria
sociedade, também se torne um fator de contradição, já que divide a sociedade,
contexto cujo fenômeno mais drástico é a violência. Isso coincide com o que
Habermas chamou de lógica de excomunhão, segundo a qual a solução para os
conflitos reais é deslocada para a responsabilização de um grupo pelos
problemas da sociedade.
Tanto a análise de Jameson quanto a de Ricoeur apontam para o risco de
os processos ideológicos resultarem no fenômeno da violência. A promoção de
um discurso de violência e, não raro, de ódio pode ser vista como sintoma de
um conflito entre a necessidade (aquilo que dói na história do povo) e os
interesses de quem faz a gestão do poder, mais precisamente entre a
necessidade do povo e os interesses de uma classe que chega a ter um
representante nos espaços de poder. O conflito é distinto do confronto – o
primeiro parte da condição humana, dada a diferença de perspectivas e
experiências sociais e culturais; porém, não ouvi-lo é um fator promotor de
confronto, quando não criminógeno.
Pensando-se com Jameson e Ricoeur, os atos políticos são apresentados à
sociedade em forma de crônicas pelos meios de comunicação, especialmente os
de massa, na qualidade de função retórica da ideologia, e têm intencionalidade
dirigida a determinados ideologemas, tidos como uma espécie de credo que
substitui a reflexão, em detrimento de outros. Esses ideologemas – tanto
antidireita e pró-direita quanto antiesquerda e pró-esquerda –, dentro da
ambiguidade natural do âmbito social como forma de
252 Ciências da religião e teologia

inconsciente político, são aceitos ou não em um sistema de crenças, dispensando


a criticidade racional em relação à adesão a essas crenças. Aqui cabe a expressão
de senso comum ao se identificar algum discurso ideológico ou, para utilizar o
conceito jamesoniano, um ideologema. O limite da análise marxista, segundo
Ricoeur, é achar que uma parte da sociedade pode estar imune aos processos
ideológicos; ao contrário, a ideologia é até mesmo necessária para a
consolidação de uma tradição política, quer seja mais conservadora, quer seja
mais progressista.
O problema, então, não reside no fato de existirem ideologias, mas na
substituição radical de um sistema de reflexão sobre a realidade e as
consequências sociais dos processos históricos por um sistema de crenças, a
ponto de se instalar a dissimulação diante da crítica e das necessidades
históricas, ou, ainda, para nos aproximarmos dos termos de Jameson, a ponto
de haver dissimulação diante da dor daqueles que mais sofrem com as
necessidades impostas a muitos pelos meios de produção que beneficiam a
poucos.
Nesse momento, passa-se a debater sobre a veracidade ou não a respeito
dos ideologemas, procurando-se suas justificativas nas condenações de outrem,
em vez de focalizar os debates nos reais sintomas das necessidades históricas.
Os debates desvelam muito mais a intenção de ocupar espaços de poder do que
uma disposição efetiva para procurar resoluções concretas para a sociedade –
que só ocorre em períodos eleitorais, quando os extremos tendem ao centro,
incorporando nos respectivos ideologemas até mesmo as agendas de outro
cenário político, a fim de sensibilizar o eleitorado.
Impõem-se ainda, na perspectiva ricoeuriana, duas falsas ideologias, na
qualidade de concepções cegas ou falsificadoras da realidade, que são, todavia,
mais promotoras de violência do que catalisadoras de reais soluções:
253 Ciências da religião e teologia

1. Ideologia do diálogo a qualquer preço – Chega a ponto de negar a


gravidade do conflito, insistindo em uma espécie de irenismo10, ou seja,
de uma política sem confronto, a qual, não raro, acaba por gerar mais
violência por promover um consenso com o silenciamento de quem sofre
e/ou discorda dela.
2. Ideologia do confronto a qualquer preço – Exclui a possibilidade do
diálogo e, com frequência, volta-se a um ideal perdido, insistindo naquilo
que não deu certo na história, por falta de radicalidade.

A primeira é mais própria do cristianismo, e a segunda, do marxismo.


Institui-se, então, a necessidade de uma nova estratégia de conflito, que
incorpore a desconfiança aos ideologemas e às análises por demais dogmáticas,
quer seja de Marx, quer seja de Mises, para assumir uma tarefa hermenêutica
que rompa com a bipolaridade partidária, sabendo-se aplicar a arte da
compreensão entre pessoas idôneas, a despeito de partidos, e tecendo-se
análises críticas dos processos empreendidos. Levar a sério interlocutores de
cenários políticos distintos e apontar insuficiências pode ser visto como uma
nova espécie de amor aos inimigos, como forma de procurar compreender o
adversário, em vez de lançar mão do recurso da demonização, utilizado para
camuflar contradições próprias. Não existe democracia sem o papel importante
da oposição como limitadora crítica do poder.
Também se faz necessário ler os conflitos sociais como sintomas e
redescobrir o papel do intelectual como mediador social, para usar a expressão
ricoeuriana, e como resistência aos fundamentalismos que não nega o conflito
nem o intensifica, mas procura mostrar às pessoas do poder as motivações
profundas da contestação, daquilo

_____________________
10 Trata-se da postura de negar os conflitos em nome da paz, o que se reflete como falsa paz, uma vez que não
atende às dores do confronto.
254 Ciências da religião e teologia

que dói, e as razões daqueles que contestam para agirem assim. Não há
mudança política sem luta, mas o mediador social deve qualificar o
antagonismo social para que sempre se aproxime da luta pela justiça, ao mesmo
tempo que procura distância de oportunismos partidários. Aos que contestam
é preciso mostrar a necessidade e o sentido do ingresso nas instituições políticas,
pois só é possível mudar o espaço político participando dele de algum modo.
Nesse sentido, os movimentos sociais são protagonistas de mudanças e de
participação democrática por representarem a dor da história e conduzirem o
poder à finalidade de possibilitar o bem comum.
Encerramos este capítulo recordando a ideia do analista social português
Boaventura de Sousa Santos sobre a importância das teologias políticas plurais
contra os regimes de terror. O autor acrescenta entre elas a teologia latino-
americana no livro Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos (Santos, 2013).
Santos (2013) aponta para a profunda pertinência da teologia da
libertação como conscientização qualificadora da fé, que conseguiu unir valores
da análise crítica aos processos políticos, abandonando a ingenuidade em plena
época de ditadura. Esse processo, segundo o autor, é bastante inspirador para o
que ele chama de teologia islâmica da libertação e para a tentativa de uma
hermenêutica política do Islã que se afaste da tentação do jihadismo. Há, nessa
tarefa ressignificadora das teologias políticas, muito mais do que uma adesão a
um lado político: há uma transformação de imaginário que promove a mudança
da percepção de povo em que se tende a aceitar privilégios graças a uma
mentalidade de eleitos para uma perspectiva do público como espaço das
alteridades e da luta por direitos igualitários, dada a consciência de dignidade
humana comum.
Nesse sentido, as teologias políticas plurais não pertencem a cenários
políticos específicos, mas se manifestam como instâncias críticas a qualquer um
deles, mesmo àqueles com que têm maior
255 Ciências da religião e teologia

afinidade, e atuam como mediadoras sociais que optam pelos que mais sofrem
as dores da história.
Mesmo a reflexão crítica pensa com base na ideologia e, em sua busca de
honestidade intelectual, mantém uma relação de autocrítica e de abertura ao
debate. O risco ideológico ocorre quando um sistema de crença se torna um
instrumental de hegemonia, como função de dominação, resultando em formas
de totalitarismo alimentadas por fundamentalismos. Estas, na perspectiva de
Slavoj Žižek (1949-), podem ser tanto de extrema direita – como foram o
fascismo e o nazismo, ainda que alguns hoje não concordem com essa
perspectiva – quanto de extrema esquerda – como o stalinismo –, ou ainda
religiosas – como o jihadismo do não reconhecido e autoproclamado Estado
Islâmico (Žižek, 2013). Todas elas são dependentes de um imaginário totalitário
que “desobriga a pensar ou impede de pensar ativamente” (Žižek, 2013)11.
Vale ainda citar a indústria cultural, que não somente conta com o uso de
ideologemas como também não elimina o antagonismo social, do qual, aliás, se
aproveita. O vulgarismo dos ideologemas não permite pensar globalmente e
agir localmente, pois estes têm comportamento genérico, sem reconhecer os
processos históricos (passado-presente-futuro) que causam o conflito. Quer
sejam ideologemas de direita – que mantêm a crença em uma espécie de
idealismo aristocrático de uma elite que quer salvar o povo e para isso apregoa
a conservação ou a volta dos costumes que asseguravam a ordem e o combate
àqueles que deles discordam –, quer sejam ideologemas de esquerda – em forma
de protestos contra o sistema, que insiste em modos anteriores de produção
(indústrias agrícolas e caseiras), alternativas que se desvinculam das
instituições, como leitura romântica do passado, e que, com frequência, moldam
legítimas narrativas proféticas, com perspicácia de diagnóstico, porém com
prognósticos por demais utópicos.

_____________________
11 A Publicação eletrônica não paginada.
256 Ciências da religião e teologia

Não seriam cientistas das religiões e teólogos, cada um a seu modo,


mediadores sociais para a promoção de uma cultura de tolerância e autocrítica
ideológica? Não teriam as crenças herdadas do cristianismo uma pretensão de
hegemonia baseada, não raro, na crença no mito da superioridade? Não seria,
por outro lado, a pretensão de neutralidade metodológica uma forma de
camuflar uma preferência ou um viés (Cruz, 2013)? Não seria melhor cada um
assumir os limites de seu respectivo lugar de fala, em direção a um exercício de
interlocução crítica e de perspectiva compartilhada na produção de
conhecimento em estudos de religião? Não cabe a ambos (teólogo e cientista da
religião) a responsabilidade de ajudar a construir uma cultura religiosa de
respeito, tolerância e paz?

SÍNTESE
Neste capítulo, vimos que as razões de negação das ciências da religião estão
muito ligadas a questões ideológicas e políticas, as quais dominaram o ambiente
de produção teológica no século XIX. Nesse contexto, abordamos o debate
epistemológico que há entre ciências da religião e teologia, o qual apresenta no
Brasil um caso suigeneris de mútua colaboração desde o primeiro momento,
razão pela qual é traduzido pela interdisciplinaridade.
Mostramos que várias questões criticadas pelas ciências da religião foram
assumidas pelas teologias investigativas e que o modo como se estruturou a
disciplina do cientista da religião ajudou e tem ajudado o teólogo a entender-se
como especialista da própria tradição religiosa, o que lhe permite elaborar uma
autocrítica.
Também destacamos que uma das formas de teologia que dificultam o
diálogo é a criação de teodiceias, cujo intuito é dar justificações divinas a
questões histórico-sociopolíticas. Além disso, a interlocução crítica das ciências
da religião com a teologia ajuda a segunda a redescobrir-se como ciência
hermenêutica.
257 Ciências da religião e teologia

Nesse sentido, buscamos evidenciar que a pretensão do cristianismo


como religião hegemônica e o mito de uma fé superior são formas ideológicas
incorporadas na condição de religião estatal. Isso auxilia a compreensão de que
a questão dos sistemas de crença não se reduz a temas religiosos, uma vez que
permeia dinâmicas culturais e sociais, como apontam Paul Ricoeur e Fredric
Jameson. Por essa razão, podemos concluir, é necessário realizar uma reflexão
que seja capaz de promover uma autocrítica aos sistemas de crença, a fim de
reduzir os aspectos de inversão ingênua, inclusive nas religiões.
Por fim, voltamos nossa atenção para o fato de que o labor teológico,
entendido como oferta de racionalidade a um sistema de crença, pode ajudar
outras tradições – inclusive não religiosas – a pensar processos de
ressignificação.

INDICAÇÕES CULTURAIS
12 ANOS de escravidão. Direção: Steve McQueen. Estados Unidos: Disney;
Buena Vista, 2013.133 min.
Essa obra trata da questão do sistema escravocrata e da mudança de uma
hermenêutica teológica que legitimava a escravidão para uma
perspectiva teológica de libertação.

A ÁRVORE da vida. Direção: Terrence Malick. Estados Unidos: Imagem Filmes,


2011.179 min.
Esse filme faz refletir sobre a necessidade de substituição de uma
estrutura afetiva infantilizada por perspectivas de teodiceia.

ACASO. Direção: Krzysztof Kieslowski. Polônia, 1987.122 min.


Esse filme aborda criticamente como visões deterministas se instalam na
percepção de mundo, reduzindo, assim, o papel da responsabilidade
humana.
258 Ciências da religião e teologia

A FONTE das mulheres. Direção: Radu Mihaileanu. França; Bélgica; Itália: Paris
Filmes, 2011.135 min.
Essa produção trata do surgimento de uma perspectiva feminino-
religiosa crítica aos costumes machistas que são transmitidos
tradicionalmente como valor religioso.

DOM HÉLDER Câmara: o santo rebelde. Direção: Erika Bauer. Brasil: Cor
Filmes, 2006. 74 min.
Esse documentário mostra a biografia de Dom Hélder Câmara e a
maneira pela qual o compromisso dele com os mais pobres brota de uma
experiência de fé.

PODE me chamar de Francisco. Direção: Martin Salinas. Netflix. 2016.198 min.


Série de streaming.
Série de quatro episódios que apresenta cinematograficamente a vida do
atual líder da Igreja Católica, na qual é possível perceber traços de uma
epistemologia do Sul na construção da perspectiva religiosa.

ATIVIDADES DE AUTOAVALIAÇÃO
1. O que faz o conhecimento teológico ser considerado uma forma de ciências
humanas, e não mera pseudociência?
A] A oferta de racionalidade crítica a um sistema de crença por meio de um
procedimento hermenêutico.
B] A fé e a dúvida alinhadas à não racionalidade metodológica e epistêmica
de valores ocidentais.
C] A capacidade de se manter fiel a uma doutrina.
D] A inteligência da fé e a maturidade acrítica do ceticismo oriental.
E] O fato de a teologia não ser uma ciência.
259 Ciências da religião e teologia

2. Como o desenvolvimento epistemológico das ciências da religião pode ser


incorporado aos métodos teológicos?
A] Como auxílio na compreensão da complexidade do fenômeno religioso,
em face do qual se desenvolve uma proposta teológica.
B] Como forma de substituir a inteligência da fé em favor de dogmas da
cristandade e do misticismo multicultural.
C] Ajudando a teologia a melhor entender as pessoas com o intuito de
convertê-las.
D] Como crítica ao fenômeno religioso.
E] Como contradição a não ser incorporada, pois a teologia apenas
pressupõe a fé.

3. O que é o método indutivo da teologia?


A] Trata-se de um método de investigação teológica que nega a existência de
Deus.
B] Trata-se de um método de investigação teológica que parte de uma
metafísica abstrata.
C] Trata-se de um método de investigação teológica incorporada às ciências
da religião.
D] Embora não seja um método válido teologicamente, cumpre o papel
científico de dedução da fé.
E] Trata-se de um método de investigação científica que se desenvolve com
base em uma hermenêutica do fenômeno religioso.

4. Quais foram os pioneiros do método indutivo da teologia no século XX?


A] Karl Barth, Paul Tillich, Jürgen Moltmann e Paul Rahner.
B] Karl Barth, Hans Urs von Balthasar, Joseph Ratzinger e Bernard
Moltmann.
C] Karl Rahner, Wolfhart Pannenberg, Paul Tillich, Bernard Lonergan e
Jürgen Moltmann.
D] Karl Barth, Karl Rahner, Paul Tillich e Karl Marx.
E] Hans Urs von Balthasar, Karl Rahner, Joseph Ratzinger e Max Weber.
260 Ciências da religião e teologia

5. Qual é a maior tendência de modelo epistemológico na área de Ciências da


Religião e Teologia no Brasil?
A] Modelo confessional fechado às ciências da religião.
B] Modelo das ciências da religião que se afirma negando a teologia.
C] Modelo estritamente confessional da teologia e instrumental das ciências
da religião.
D] Modelo interdisciplinar da teologia e das ciências da religião.
E] Modelo da busca da inteligência da fé, exclusivamente cético.

A TIVIDADES DE APRENDIZAGEM

Questões para reflexão


1. É possível haver diálogo entre cientistas da religião e teólogos? Quais seriam
os argumentos a favor do debate e quais seriam os contrários a ele? Reveja
este capítulo e tente identificar como esses argumentos estão presentes no
contato que você tem com cientistas da religião e teólogos.
2. Quais são suas ideologias (sistemas de crenças) e quanto você é crítico a elas?
Quais são as crenças que você carrega a respeito da vida, da morte, dos
valores e das instituições? Em que medida você é crítico de suas ideologias
quando elas são utilizadas para interesses escusos?

Atividade aplicada: prática


1. Descreva alguns exemplos de como a teologia incorpora os resultados das
ciências da religião em sua prática investigativa.
261

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O itinerário que procuramos percorrer neste livro consistiu em mostrar como se


desenvolveu o debate epistemológico a respeito das condições, dos limites e da
pluralidade de métodos para a produção de um conhecimento científico sobre
a religião. Nesse contexto, vimos que as ciências da religião nasceram já com o
pano de fundo da epistemologia moderna – de observação e de validação de
dados empíricos –, algo bem distinto daquilo com que a teologia estava
acostumada.
Esse processo não substitui, necessariamente, as teologias, mas as convida
a revisitar os modelos epistemológicos a fim de tornar o discurso teológico
pertinente ao seu tempo, incorporando os resultados obtidos, como uma
disciplina que interage com as demais ciências, especialmente as humanas, com
honestidade intelectual e atenção aos debates e aos problemas contemporâneos,
com autocrítica. Ou seja, as teologias são convidadas a esclarecer para si os
limites das possiblidades de afirmações teológicas sobre o transcendente, bem
como suas consequências antropológicas.
As ciências da religião, por sua vez, apresentam-se como exercício de
compreensão da alteridade, da religião do outro, tendo desenvolvido ao longo
de sua prática investigativa um debate epistemológico que ajudasse a
compreender melhor o fenômeno religioso, de modo multidisciplinar, em
direção a uma perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar. Esse aspecto pode
resultar em grande cooperação com a teologia e pode ser resultado dessa in-
teração, na medida em que ambas as áreas comungam ao menos das mesmas
virtudes epistêmicas.
262

A compreensão em perspectiva plural do fenômeno religioso ajuda a


teologia a medir as consequências antropológicas das afirmações teológicas. A
sociologia da religião, por sua vez, contribui para se perceber a religião em sua
função social, mutante ao longo da história. Já a psicologia da religião, colabora
para que se possa pensar os processos de subjetivação com base na experiência
religiosa. Nesse contexto, a filosofia da religião auxilia na compreensão das
rupturas epistemológicas que implicam a reelaboração e o redirecionamento da
finalidade dos conceitos tradicionais sobre a questão religiosa.
 medida que essas disciplinas interagem com outras, a aplicação de seus
métodos e de seus resultados favorece o enriquecimento da percepção dos
campos de saber com base no aspecto religioso. Assim, a religião pode estar
inserida em diversos campos de saber, além das áreas mais clássicas.
Dessa forma, há hoje estudos de religião relacionados com geografia,
economia, ciências contábeis, marketing e política, entre outros campos, com
aplicação de suas conclusões até mesmo em âmbitos eclesiais, de modo a
qualificá-los, sendo a religião uma alteridade e um desafio a ser assimilado cada
vez mais no mundo contemporâneo.
Como vimos ao longo do livro, as religiões, no final do século XIX,
receberam contundentes críticas que fizeram com que fossem também
depreciadas no tecido cultural. A ampliação da percepção do fenômeno de que
as crenças são também produtos históricos, culturais e sociais possibilitou que
se enxergasse, no século XX, a complexidade constitutiva de cada tradição
religiosa. Essa ampliação se deveu em grande medida aos estudos sobre o
assunto; além disso, a assimilação autocrítica das teologias não ocorreu sem a
apropriação dos estudos científicos de religião.
Ademais, como todo debate epistemológico, trata-se de uma questão não
meramente intelectual, mas também histórica, social,
263

cultural e política, âmbitos estes que, por sua vez, podem abrigar perspectivas
anacrônicas ou não suficientemente calibradas entre questões remotas e
contemporâneas. Cabe observar, pois, que as resistências e as aberturas ao
avanço dessa discussão são comuns em toda a comunidade acadêmica.
Um traço muito interessante da comunidade acadêmica brasileira de
cientistas da religião e teólogos é que, desde o início, houve uma mútua
colaboração multidisciplinar em não poucos casos, o que agora tende a evoluir
para um perfil interdisciplinar no campo de estudos da religião.
Esta obra, portanto, teve a intenção de introduzir o leitor nessa tarefa que,
uma vez que nunca se encerra, mantém-se em constante adaptação aos desafios
de cada época. O debate epistemológico aqui apresentado visa, então, colaborar
com a seriedade do trabalho de pesquisa e de produção de conhecimento em
estudos da religião, a fim de atender a tais desafios.
Por fim, não obstante as religiões tenham servido a alguns dos momentos
mais sombrios da história humana, elas ainda podem ocupar um espaço de
grande relevância como colaboradoras dos processos de transformação social e
cultural. Assim, os estudos científicos de religião visam ajudar as religiões a
cumprir seu dever sagrado de humanizar o humano.
264

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paginada.285
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BIBLIOGRAFIA COMENTADA

BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior. Diretoria de Avaliação. Documento de área: Ciências da
Religião e Teologia. Brasília, 2019. Disponível em:
<https://www.capes.gov.br/images/Documento_de_área_2019/ciencia_relig
iao_teologia.pdf>. Acesso em: 26 ago. 2019.
Trata-se da última versão do Documento de Área em Ciências da Religião e
Teologia, após a conquista de autonomia da Área. Os responsáveis pela redação
foram o professor Dr. Flávio Senra (PUC Minas), coordenador da Área 44, a
coordenadora adjunta, professora Dra. Dilaine Sampaio (UFPB), e o professor
Dr. Cláudio de Oliveira Ribeiro (UFJF).

BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior. Diretoria de Avaliação. Documento de área: teologia.
Brasília, 2016. Disponível em:
<https://capes.gov.br/images/documentos/Documentos_de_area_2017/44_
TEOL_docarea_2016.pdf>. Acesso em: 26 ago. 2019.
Trata-se de documento oficial produzido após a conquista da autonomia da área
de Ciências da Religião e Teologia em 2016. Essa publicação constitui normativa
orientadora da organização e da avaliação dos programas de pós-graduação em
Ciências da Religião e Teologia. Os responsáveis pela redação do texto foram o
professor Flávio Augusto Senra Ribeiro, da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-Minas), coordenador da área 44,
286

e as professoras adjuntas Mary Rute Esperandio, da Pontifícia Universidade


Católica do Paraná (PUC-PR), e Sandra Duarte de Souza, da Universidade
Metodista de São Paulo (Umesp).

CAMURÇA, M. Ciências sociais e ciências da religião: polêmica e


interlocuções. São Paulo: Paulinas, 2008.
Marcelo Camurça, autor dessa obra, é antropólogo da religião e docente do
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF). A proposta do livro incide sobre o estatuto epistemológico
da(s) Ciência(s) da Religião, especialmente o perfil teórico e metodológico das
ciências sociais. A obra apresenta uma visão positiva da relação com a teologia,
como é própria da Sciences des Religions (escola francesa).

CANTARELA, A. G. A produção acadêmica em teopoética no Brasil:


pesquisadores e modelos de leitura. Teoliterária, v. 8, n. 15, p. 193-221, 2018.
Disponível em: <https://revistas.pucsp.
br/index.php/teoliteraria/article/download/36644/26006>. Acesso em: 26
ago. 2019.
Antonio Cantarela é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião da PUC-Minas e um dos principais pesquisadores em teopoética no
Brasil, no âmbito da subárea de ciências da linguagem religiosa. Essa pesquisa,
de sua autoria, mapeia a produção em teopoética na subárea de ciências da
linguagem religiosa como um dos exemplos de interdisciplinaridade entre os
mais de cem pesquisadores teólogos e cientistas da religião, identificando-se
mais de mil publicações no ano de 2018.

CRUZ, E. R.; MORI, G. de (Org.). Teologia e ciências da religião: a caminho da


maioridade acadêmica no Brasil. São Paulo: Paulinas; Belo Horizonte: Ed. da
PUC-Minas, 2011.
Esse livro, organizado por Eduardo Cruz, professor do Programa de Pós-
Graduação da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP),
287

e por Geraldo de Mori, professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia


da Faculdade de Filosofia e Teologia dos Jesuítas (Faje) ; reúne as principais
contribuições da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia
e Ciências da Religião (ANPTECRE) apresentadas nos congressos de 2008 e de
2009. A obra é constituída de textos de teólogos e cientistas da religião,
atuantes em diversos programas de pós-graduação em Ciências da Religião e
Teologia no Brasil, bem como em outros lugares. O livro retrata o estado da
questão quando do início da ANPTECRE.

GRESCHAT, H.-J. O que é ciência da religião. Tradução de Frank Usarski. São


Paulo: Paulinas, 2005. (Coleção Repensando a Religião).
O autor desse livro é um dos grandes representantes da Religionswissenschaft
(escola alemã). Jans-Jürgen Greschat parte da experiência religiosa como fato
primordial para o estudo científico da religião. A proposta, de linguagem
acessível, é abordar aspectos metodológicos e históricos da disciplina. Seu lugar
de fala, contudo, é o debate alemão em que a Ciência da Religião se afirma
negando uma possível colaboração com a Teologia. O livro é interessante
exatamente para aproximar o leitor dessa discussão que remonta ao século
XVIII.

INTERAÇÕES. Estudos de religião: epistemologias. Belo Horizonte: Ed. da


PUC-Minas, v. 13, n. 23,2018. Edição especial. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/interacoes/issue/view/1003>.
Acesso em: 26 ago. 2019.
Essa edição especial do periódico científico Interações, da PUC-Minas, é
dedicado ao tema das epistemologias nos estudos de religião, com importantes
contribuições de autores renomados na área. Revisita algumas questões já
conhecidas e apresenta outras novas, como o desafio das epistemologias
decoloniais
288

e do paradigma ecológico para os estudos de religião. Seu editor é o professor


Flávio Augusto Senra Ribeiro, da PUC-Minas e atual coordenador da área de
avaliação de Ciências da Religião e Teologia na Coordenação de
Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (Capes).

PASSOS, J. D.; USARSKI, F. (Org.). Compêndio de ciência da religião. São


Paulo: Paulinas; Paulus, 2013.
A obra organizada pelos professores do Programa de Pós-Graduação da PUC-SP,
João Décio Passos e Frank Usarski, é um verdadeiro marco para a pesquisa da
área de Ciências da Religião e Teologia. Reúne pesquisadores de todo o Brasil e
de fora do país em uma ampla abordagem das subdisciplinas constitutivas das
Ciência da Religião. Apesar de o livro adotar uma proposta teórica no título,
contempla autores das outras vertentes das ciências da religião e das ciências
das religiões. A publicação divide-se em cinco partes: a primeira se destina ao
debate metateórico do campo com questões epistemológicas próprias e as
relações com a teologia e a filosofia; a segunda se dedica às ciências sociais da
religião; a terceira é dedicada à psicologia da religião; a quarta parte aborda a
temática das ciências da linguagem religiosa; e, por fim, a quinta trata da ciência
da religião aplicada, incluindo o emprego dos resultados das ciências da religião
na teologia.

SENRA, F. O teólogo e o cientista da religião: religiografia acerca das interfaces


entre ciências da religião ou religiologia e teologia no Brasil. Rever, v. 16, n. 1,
p. 110-136, jan./abr. 2016. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/rever/article/download/28442/19995>. Acesso
em: 7 ago. 2019.
O autor, que é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
da PUC-Minas e atual coordenador da área de avaliação de Ciências da Religião
e Teologia na Capes, faz uma
289

análise do desenvolvimento histórico da interação entre teólogos e cientistas


da religião no Brasil, enfatizando a tendência a um trabalho interdisciplinar na
área.

SOARES, A.; PASSOS, J. (Org.). Teologia pública: reflexões sobre uma área de
conhecimento e sua cidadania acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2011.
Nessa obra, organizada por Afonso Ligório Soares e João Décio Passos, ambos
docentes do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da PUC-SP,
considera-se o papel social da religião como incorporação da agenda pública no
labor teológico. A proposta é pensar o lugar público do teólogo e a pertinência
social do discurso teológico, questões que aproximam a teologia pública de um
diálogo com as ciências da religião. A obra reúne diversos pesquisadores da
área.

TEIXEIRA, F. (Org.). A(s) ciência(s) da religião no Brasil: afirmação de uma


área acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001.
Com a organização de Faustino Teixeira, esse livro é resultado de uma ampla
discussão epistemológica, metodológica, social e histórica sobre a identidade
das ciências da religião, a qual ocorreu em um seminário organizado pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF, em 2000.
Considerado um marco para a área, foi o primeiro debate sobre a questão
epistemológica como campo que reuniu pesquisadores de diversas
universidades, incluindo os pesquisadores da UFJF.

USARSKI, F. Constituintes da ciência da religião: cinco ensaios em prol de uma


disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2006. (Coleção Repensando a
Religião).
O livro, do docente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da
PUC-SP, um dos teóricos que mais têm se dedicado ao debate epistemológico
sobre o estatuto da Ciência da Religião,
290

introduz na produção científica de estudos da área a proposta da tradição alemã


da Religionswissenschaft e propõe distâncias entre a pesquisa científica da
religião e as produções propriamente teológicas. Trata do tema em cinco
ensaios, em que aborda a razão dessa distância proposta no contexto alemão,
discute aspectos metodológicos e a briga de métodos da Ciência da Religião, faz
uma apreciação crítica de alguns clássicos da fenomenologia da religião, como
Rudolf Otto e Mircea Eliade, e analisa a capacidade de crítica às ideologias.

USARSKI, F. (Org.). O espectro disciplinar da ciência da religião. São Paulo:


Paulinas, 2007. (Coleção Repensando a Religião).
Organizada por Frank Usarski, a obra é fruto de uma discussão iniciada pelos
docentes do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da PUC-SP e
reúne diversos pesquisadores em um exercício de formulação epistemológica
de definição dos campos constituintes da Ciência da Religião, privilegiando a
perspectiva alemã (Religionswissenschaft).

VILLAS BOAS, A. Teologia em diálogo com a literatura: origem e tarefa poética


da teologia. São Paulo: Paulus, 2016.
Teólogo e docente do Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-PR, o
autor propõe uma leitura histórica da relação entre a teologia e a literatura com
base no método indutivo. Ao analisara questão da linguagem teológica, Alex
Villas Boas também identifica vários pontos de contato com o trabalho de
cientistas da religião, desde o campo de estudos de teopoética, inserido na
subárea de ciências da linguagem religiosa. Além disso, a obra dialoga com a
crítica feita por parte, sobretudo, da filosofia contemporânea.
291

RESPOSTAS

Capítulo 1 Capítulo 4
Atividades de autoavaliação Atividades de autoavaliação
1.c 1.b
2.a 2.e
3.e 3.a
4.d 4.e
5.a 5.b

Capítulo 2 Capítulo 5
Atividades de autoavaliação Atividades de autoavaliação
1.b 1.e
2.c 2.c
3.a 3.a
4.a 4.d
5.e 5.b

Capítulo 3 Capítulo 6
Atividades de autoavaliação Atividades de autoavaliação
1.e 1.a
2.c 2.a
3.a 3.e
4.d 4.c
5.c 5.d
292

SOBRE O AUTOR

Alex Villas Boas, teólogo laico brasileiro, é investigador principal e


coordenador executivo do Centro de Investigação em Teologia e Estudos da
Religião (Citer), da Universidade Católica Portuguesa (UCP), em Lisboa, e
professor da Faculdade de Teologia da mesma Universidade. Foi coordenador
do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC-PR) entre 2017 e 2019 e coordenador do Curso de
Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP) entre 2014 e 2016. É bolsista de produtividade da Fundação Araucária de
Apoio e Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná desde 2018. É
professor livre-docente na área de Teologia do Programa de Pós-Graduação em
Teologia (PPGT) e do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e
Políticas Públicas (PPGDH) da PUC-PR. Atuou como professor visitante no
programa de doutorado em Estudos Literários da Universidade de Aveiro
(Portugal); na Faculte de Théologie et Sciences Religieuses da Université Lavai
(Canadá); no doutorado em Humanidades da Faculdade de Ciências Políticas e
Sociais da Universidade Católica de Moçambique; e no programa de História e
Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). É membro fundador do Centro de Estudos
de Literatura, Teorias do Fenômeno Religioso e Artes (Celta) da Unicamp e do
programa de pós-graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na qual realizou seu doutorado em Teologia
Sistemática. Tem livre-docência em Ética Teológica pela PUC-SP e pós-
doutorado em Teologia pela Pontifícia Università
293

Gregoriana (PUG) de Roma, com a pesquisa sobre a concepção de exercícios


espirituais de Santo Inácio de Loyola entre Karl Rahner e Hans Urs von
Balthasar. É também editor da Teoliterária, revista brasileira de literaturas e
teologias, e professor convidado no curso de Ciências da Religião do Centro
Universitário Internacional (Uninter). Já publicou, como organizador, Religiões
em reforma: 500 anos depois (Paulinas, 2017) e Deus entre a filosofia e a teologia
contemporânea (Appris, 2014). Seu principal trabalho é Teologia em diálogo com a
literatura: origem e tarefa poética da teologia (Paulus, 2016).
294

A
295

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