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Émill' P gu 'l roi um IHlI1H'111 illflllVlllV l'11l S 'LI l '111-

po ' ssinou 'S TilOS (J1110S0S sol r' I, lontalnc,


Flaub irt, Fr ud, Ni 'l/,s '11 " IIOllor', de Balzac e
[ean-Iacqu Rouss .au. .ntrc outras obras com en-

foqu p lítico moral sobre li h ralisrno, socialismo,


pacifismo fi minisrno, 10111 md J tra ,hábil com
as palavras, ele mpr siou toda sua xperiência de
excel nte leitor para conquistar mais e mais adeptos
para os livros.

"( ...) o livro, esse pequeno móvel da inteligência,


esse pequeno instrumento que põe em atividade
nosso entendimento, essemotor do espírito que vem
socorrer nossa preguiça e mais amiúde nossa insufi-
ciência, e que nos dá o delicioso prazer de acreditar
que pensamos, enquanto que talvez não pensemos
em absoluto, é um amigo precioso e muito caro."
Copyright © desta edição 2009 Casa da Palavra
Copyright © Émile Faguet
Título original em francês: L'Art de Lire

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.


É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Esta tradução foi feita com o auxílio de bolsa do Centre National du Livre (França)
Sumário
PRODUÇÃO EDITORIAL REVISÃO
Silvia Marta Vieira Umberto Figueiredo Pinto

PRODUÇÃO GRÁFICA CAPA


Liciane Corrêa Mariana Newlands

ESTAGIÁRIA IMAGEM DA CAPA Introdução 7


Bianka Barbosa Penha Latin Stock

TRADUÇÃO DIAGRAMAÇÃO 1. Ler devagar 10


Adriana Lisboa Filigrana

TRADUÇÃO DOS TRECHOS EM IMPRESSÃO


VERSOS DOS CAPÍTULOS 4 E5 Corprint
2. Os livros de ideias 12
Celina Portocarrero

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS 3. Os livros de sentimento 25


Diogo Henriques

Algumas notas de rodapé foram inseridas pela editora ao longo do livro para faci- 4. As peças de teatro 43
litar a compreensão geral do texto.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. 5. Os poetas 62
F14a
/6. Os escritores obscuros 84
Faguet, Émile, 1841-1916
A arte de ler / Émile Faguet; tradução Adriana Lisboa. - Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009.
Tradução de: L'art de lire
ISBN 978-85-7734-112-2 7. Os maus autores 93
1. Livros e leitura. L Título.

09-1954. CDD:028
8. Os inimigos da leitura 99
CDU:028

9. A leitura dos críticos 117


CASA DA PALAVRA PRODUÇÃO EDITORIAL
Rua Joaquim Silva, 98, 4° andar
Rio de Janeiro - RJ - 20241-ll0 10. Reler 131
21.2222-316721.2224-7461
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www.casadapalavra.com.br Epílogo 139
Lrrt r-o d u ç ão

I I- SI,: MUITO POUCO, DIZIA VOLTAIRE,' e, entre os que desejam se


Illsl ru ir,a maioria lê muito mal. A mesma coisa dizia um epigramatis-
1.1 desconhecido, ao menos por mim, no início, creio, do século XIX:

1 .c sort des hommes est ceci:


Ikaucoup d'appelés, peu d'élus;
I.c sort des livres, le voici:
Bcaucoup d'épelés, peu de luso

I O destino dos homens, sabe-se bem:


Muitos conclamados, poucos escolhidos.
( ) destino dos livros, ei-lo também:
Muitos aclamados, poucos lidos.)

Saber ler, percebe-se, é portanto uma arte, e existe uma arte de


1('1. I':ra no que pensava Sainte-Beuve' quando dizia: "O crítico não
1,.lssa de um homem que sabe ler e que ensina os outros a ler."
Mas em que consiste essa arte? Acho que eis-nos todos COllS-

u.ingidos.

I Pr.lllçois-Marie Arouet (1694-1778), escritor e filósofo iluminista fran-


, 1\' •• mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire. Entre suas obras mais co-
1l1"'lidas está a sátira Cândido, ou O otimismo,
, (:l1ar!cs Augustin Sainte-Beuve (1804-1869), poeta, romancista e crítico
Ilkdrio francês.

7
Definindo-se uma arte a partir do objetivo a que se propõe,
"t 1111111
estou cansado de ler os livros para saber o que vou dizer
temos, sem dúvida, que nos perguntar por que lemos. É para nos
.1,,1,·,,1Isso não é mais ler; não é mais se abandonar; é reagir; é
instruir? É para julgar obras? É para desfrutar delas? Se for para
11'11'111
si mesmo muito mais do que no autor." Ele tinha de fato
nos instruir, devemos ler bem devagar, anotando com pena na
I ,'11.1r:I~,ão.Para que, então, serve a crítica? Para fazer com que o
mão tudo o que o livro nos ensina, tudo o que contém de des-
11111111
seja lido sob certo ponto de vista. Seu artigo é uma espécie
conhecido para nós - e em seguida devemos reler, bem devagar,
111'11IIrodução ao autor de que trata - introdução que pode, aliás,
tudo o que escrevemos. É um trabalho muito sério, muito grave e
1,'1b.rsr.mte útil. Caso o leitor tenha ou não lido o autor, o crítico
no qual não há prazer algum além do fato de nos sentirmos mais
11I I li 1V ida a ler com tal disposição geral ou a reler (ou repensar)
instruídos a cada momento.
di' .u ordo com tal orientação nova. No primeiro caso, ele lhe diz
É para julgar obras - em outras palavras, é uma leitura crítica?
"1'1'I1Sl'nisso"; no segundo, "você já pensou nisso?". Para evocar
Do mesmo modo, será preciso ler bem devagar, tomando notas e
1111II;lId,'1
que via tudo em grupos de três e em cada tríade um me-
mesmo anotando em fichas. Fichas relativas à invenção, às ideias
ti r.ulor, a leitura se compõe de três personagens: o autor, o leitor e
novas; fichas relativas à disposição, ao plano, à maneira como o
111ritico, que é o mediador.
autor conduz suas ideias ou conduz seu relato, ou mescla suas
Mais uma vez, porém, o crítico é um homem que só sabe ler
ideias ao seu relato; fichas sobre o estilo, sobre a língua; fichas de
,'Iltlllanto crítico e que só ensina a ler enquanto crítico, que só
discussão, ou seja, sobre as ideias do autor comparadas às suas,
1'lIsina a leitura crítica, sobre a qual não desejo, aliás, dizer mal
sobre o gosto dele comparado ao seu, sobre as ideias dele, mais
,dglllll. Mas você quer ler apenas para desfruta; de suas leituras?
uma vez, e seu gosto comparados aos de nossa geração ou aos da
( )11("1" aprender a ler como se aprende a tocar violino, ou seja,
geração de que ele fazia parte etc. Com todas essas fichas, você
!l,lra saber tocar e para desfrutar do máximo de prazer possível
forma a ideia geral que tem do autor e as particulares que tem a
,10 locar? É um objetivo totalmente diferente. É um ponto de vista
respeito dele, e não será preciso mais do que unir com lógica e
1I11:lImentediferente. E é a essa única arte que se consagra o pe-
plausibilidade tais ideias particulares a tal ideia geral para fazer, se
qucho livro que inicio.
não um bom artigo, pelo menos um artigo que se sustente.
Só que você terá ensinado ao seu leitor a ler como crítico, e
não a ler para desfrutar de sua leitura, e por pouco não são falsas
as palavras de Sainte- Beuve: o crítico não sabe ler para seu pró-
prio prazer e não ensina aos outros a ler para o deles. Ele ensina
ao leitor a ler como crítico. Ora, ler como crítico não é um pra-
zer, ou pelo menos é um prazer muito particular, mesclado de
muita aridez. É verdade que Sarcey' me dizia, no fim de sua vida:

3 Francisque Sarcey (1827 -1899), jornalista e crítico de teatro francês. I I.ouis-Gabriel-Ambroise de Bonald (1754-1840), político e filósofo francês,
p.trIidário da teocracia e grande opositor da Revolução Francesa.
8
9
'J ,'"' . f) .

o), .( .•.
~~.I "nos contornos dessa síntese de abismo". E como ele o admirou!
IA(\ '. ~~A
'1 \ \
( :OIllO o admirou! Estava escrito: "nos contornos dessa síntese de
\
utumo" o que faz sentido. Cousin, levado por seu entusiasmo ro-
I LER DEVAGAR 111:\ nrico, não se perguntou se "síntese de abismo" também fazia. É
preciso não ter preguiça ao ler, mesmo uma preguiça lírica.
Nem precipitação. A precipitação não passa, aliás, de uma forma
!I(' preguiça. Nossos pais diziam: "Ler com os dedos:' Isso queria di-
/('1' folhear detal modo que, feitas as contas, os dedos tinham mais
PARA APRENDER A LER É PRECISO ler bem devagar, e em seguida é I ruhalho do que os olhos. "O sr. Beyleê lia muito com os dedos, o que
preciso ler bem devagar e, sempre, até o último livro que terá a hon- quer dizer que ele percorria muito mais do que lia, e deparava sempre
ra de ser lido por você, será preciso ler bem devagar. É preciso ler de- \ \ 1111 o lugar essencial e curioso do livro:' É preciso não pensar muito
vagar um livro tanto para desfrutar dele quanto para se instruir ou 111;\1 desse método que é o dos homens que são, como Beyle, colecio-
para criticá-lo. Flaubert" dizia: ''Ah! esses homens do século XVII! u.idores de ideias. Ocorre apenas que esse método tira todo o prazer
Como sabiam latim! Como liam devagar!" Mesmo sem a intenção da leitura e o substitui pelo da caça. Se você quer ser um leitor dile-
de escrever você mesmo, é preciso ler com lentidão o que quer que tuute e não um caçador, seu método precisa ser exatamente o oposto.
seja, sempre se perguntando se compreendeu corretamente e se a I )e forma alguma deve ler com os dedos, nem ler na diagonal, como

ideia com que acabou de se deparar é a do autor e não a sua. "É isso l:t mbém se diz de modo bastante pitoresco. Deve ler com um espírito
mesmo?': deve ser a pergunta contínua que o leitor faz a si mesmo. alento e bastante desconfiado de sua primeira impressão.
Os filólogos têm uma mania um pouco divertida, mas que par- Você me dirá que há livros que não podem ser lidos devagar,
te do melhor sentimento do mundo e que devemos ter e conser- que não suportam a leitura lenta. E os há, de fato, mas esses são os
var como princípio, como raiz. Eles se perguntam sempre: "É este livros que não é preciso ler em absoluto. Primeira consequência
mesmo o texto? Não seria ergo em lugar de ego, e ex templo em benéfica da leitura lenta: ela faz a separação, desde o início, entre
lugar de extemplo? Isso faria diferença." Essa mania lhes surgiu de o livro que se deve ler e o livro que só foi feito para não ser lido.
um hábito excelente, que é o de ler devagar, que é o de desconfiar Ler devagar é o primeiro princípio, e se aplica a toda e qual-
do primeiro sentido que se vê nas coisas, que é o de não se aban- quer leitura. ~_como a essência da arte de ler.
donar, que é o de não sermos preguiçosos ao ler. Dizem que, no Há outras? Sim, mas nenhuma se aplica a todos os livros sem
texto de Pascal" sobre o ácaro, ao ver o manuscrito, CousinIeu: distinção. Além de "ler devagar" não há uma arte de ler; há artes
de ler, e muito diferentes conforme as diferentes obras. São essas
5 Gustave Flaubert (1821-1880), um dos maiores nomes da história da litera- artes de ler que tentaremos sucessivamente destrinchar.
tura francesa, autor de clássicos como Madame Bovary e Três contos.
6 Blaise Pascal (1623-1662), matemático, físico e filósofo francês.
" I-Ienri-Marie Beyle (1783-1842), romancista francês mais conhecido pelo
7 Victor Cousin (1792-1867), filósofo e historiador, um dos mais impor-
pseudônimo Stendhal, com o qual assinou clássicos como O vermelho e o
tantes pensadores franceses de seu tempo. negro e A cartuxa de Parma.

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I.

......
o .', ,"

11111\'1111\"1',
c só O compreendemos quando o lemos por comple-
1111 1II('tiso, então, à medida que ele se completa e se esclarece,
II 111I'!ll consideração todo o tempo para compreender o que
~ OS LIVROS DE IDEIAS I I1 Il0jt" aquilo que se leu ontem e, para melhor compreender
11111110
li 111'se leu ontem, aquilo que se lê hoje.
1\ ',,',i111se desenham em seu espírito, leitor, as ideias mais gerais
tlll 1'I'llsat!or, aquelas que ele teve antes de todas as outras e das
'111111',
(mias as outras resultaram - ou aquelas que ele teve bem
HÁ LIVROS DE IDEIAS, COMO Discurso sobre o método, O espí-
O 11111111.11,
como consequência e como síntese de um sem-número
rito das leis, o Curso de filosofia positiva. Há livros de sentimento, til' Idl'ias particulares - ou (com mais frequência) as que ele teve
como as Confissões e as Memórias de além-túmulo? Há poemas 1111
Iil'(orrer de sua carreira intelectual e que eram o resumo de
dramáticos. Há poemas líricos. É evidente que, excetuando-se 11111.1
grande quantidade de ideias particulares que, por sua vez,
esse preceito geral de ler com atenção e reflexão contínuas, a arte 11Iodll/'iram, criaram ideias particulares em grande quantidade.
de ler não pode ser a mesma para esses diferentes gêneros de es- Sl' você lê Platão,'" por exemplo, acredita se dar conta de que a
crita. Há uma arte de ler para cada um. [u uuci ra ideia geral tida por ele foi o horror à democracia ateniense
A arte de ler os livros de ideias me parece ser esta. 1111('
matou Sócrates." Observa que toda a sua política deve vir daí
É uma arte de comparação e de aproximação contínuas. Con- I' e levado, assim, a comparar tal ou tal texto das Leis com a famosa
,
" cretamente, lê-se um livro de ideias tanto virando as páginas da . 1'1osopopeia das Leis no Críton. Você diz a si mesmo que Platão
esquerda para a direita quanto da direita para a esquerda, ou seja, I', .mlcs de tudo, um aristocrata, mas que uma espécie de respeito
tanto voltando àquilo que se leu quanto continuando a ler. Sendo I",(oico e mesmo cavalheiresco pela lei é algo que ele deve ter no co-
o homem de ideias, mais do que qualquer outro, um homem que I ,1\~I(),já que tanto o respeita no coração alheio. Seria ele então uma
não pode dizer tudo de uma só vez, ele se completa e se esclarece I'~pl'cie de republicano aristocrata, republicano enquanto alguém
1111l'
deseja apenas ser o súdito da lei e deseja que a lei seja mais po-
9 Algumas informações sobre as obras citadas: o Discurso sobre o método foi .lcrosa do que todos os homens, aristocrata enquanto alguém que
publicado em 1637 pelo filósofo, físico e matemático francês René Descartes 11.10quer a multidão no comando.
(1596-1650); o Curso de filosofia positiva, de Auguste Comte (1798-1857), fun-
dador do positivismo, saiu em seis volumes entre 1830 e 1842; O espírito das li' l'lutão de Atenas (c. 428-347 a.C,), filósofo grego, autor de obras que
leis é o principal trabalho de Charles de Montesquieu (1689-1755) e foi edita- .ihrnngem uma diversidade de temas, entre os quais ética, política e metafí-
do em 1748; Memórias de além-túmulo, de François-René de Chateaubriand ·.i,::1. Foi discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles.
(1768-1848), consta de 42 volumes autobiográficos redigidos entre 1809 e " Sócrates (470-399 a.Cv), filósofo grego, é tido como um dos fundadores
1842, porém publicados apenas postumamente, nos anos de 1849 e 1850; as .1,1 moderna filosofia ocidental. Suas ideias são conhecidas sobretudo a par-
Confissões, compostas de 12 livros, são de autoria do pensador suíço Iean- I i I' dos diálogos de seu discípulo Platão, uma vez que não deixou registros
-Iacques Rousseau (1712-1778) e também apresentam caráter autobiográfico; escritos de próprio punho. Foi sentenciado à morte sob a alegação de cor-
os livros foram publicados em dois momentos distintos: em 1782 e 1789. romper as mentes de jovens atenienses.

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Mas não há aí uma contradição e não é a multidão que faz a rxpi ritualista produziu essa teoria das ideias vivas, das abstrações que
lei? Não em uma república aristocrática. Não, sobretudo se você s.ro seres, abstrações que são forças, abstrações que são deuses. E você
observa que Platão fala principalmente do respeito às leis antigas, .iinda pode estar enganado, mas não deixaria Platão insatisfeito, ele
que, no momento presente, não são obra da multidão nem de uma \11Ie,como todos os filósofos, escreve menos para ser admirado do que
elite, e sim obra do passado, a obra lenta dos séculos. Então, você para ser compreendido, e até mesmo menos para ser compreendido
chega à conclusão de que talvez Platão seja um homem desejoso de do que para fazer pensar. Você pensou; ele ganhou a partida.
que um povo seja governado, sobretudo, por seu passado, o que é Além disso, há ideias gerais que vêm ao cérebro do pensador
I a essência mesma da aristocracia. Você talvez se engane, mas você depois de todas as outras, ou quase todas. E essas ideias filhas das
comparou, aproximou, controlou uma ideia através de outra, limi- idcias, quase não têm mais relação alguma com o sentimento. Per-
i tou ou retificou uma ideia através de outra e desfrutou do prazer ccba-as como tais e veja-as como sendo tão temerárias quanto pu-
que devemos buscar num pensador, que é o prazer de pensar. ras e como sendo tão aventureiras quanto abstratas. O que é Deus
Falei das ideias gerais das quais o autor partiu e que fizeram nas- p" ra Platão? Não um ser que se adora a partir de um movimento
cer ideias particulares. Você há de perceber sempre que, quando se do coração e um impulso do instinto, mas uma doutrina que outras
trata de uma ideia geral da qual o autor partiu, essa ideia é um senti- doutrinas levaram pouco a pouco a se ter como verdadeira. Deus,
mento. Para Platão, o ódio à democracia é o culto a Sócrates. Mas fa- para Platão, é uma conclusão; a fé de Platão é uma lógica. Não se
lei de ideias gerais às quais o autor chegou, pouco a pouco, reunindo deve censurá-lo por isso, mas como tal nos interessa comparar essa
um grande número de ideias ou observações de detalhes. Platão lhe religião filosófica às religiões em que Deus é "sensível ao coração",
parecerá ter procedido assim para chegar à sua teoria das Ideias. Ele ou seja, à intuição imediata de todo ser vivo! Quem tem razão? Ah!
é monoteísta, como vários de seus predecessores em filosofia. Que o Por ora, o que importa? Por ora, estou apenas aprendendo a ler.
mundo seja suscetível de ser conduzido a uma única lei é uma ideia Ler um filósofo significa compará-lo sem cessar a ele mesmo.
que começou a invadir o espírito humano e se impor a ele. Mas, por Significa ver o que nele é sentimento, ideia sentimental, ideia re-
outro lado, ele é grego demais para não permanecer um pouco poli- sultante de uma mistura de sentimento e ideias, ideia ideológica,
teísta, para não acreditar que forças múltiplas e diversas governam o ou seja, resultante de uma lenta acumulação, no espírito do pen-
mundo e o disputam. Não será por isso que ele imagina seu mundo sador, de ideias puras ou quase puras.
das Ideias, vivendo no seio de Deus, substâncias e almas inerentes Você lê Montesquieu. Descobre bem depressa que esse homem
a todas as coisas que existem? O que é isso? É um Olimpo material (em uma única paixão: o ódio ao despotismo. O que mais detesta-
substituído por um Olimpo espiritual; é um Olimpo de super- mos no mundo, quando temos a alma ativa e não apenas passiva e
-homens, um Olimpo antropomórfico, substituído por um Olimpo submissa, é o que vimos ao nosso redor aos 20 anos. E não digo que
de almas puras. É o livro de um pagão místico, de um pagão espiritua- isso seja muito bom; digo apenas que assim é. Montesquieu viu, aos
lizado. Você compara, aproxima, lembra-se de que Platão adora os 20 anos, o fim do reinado de Luís XIV; o que mais detesta no mun-
mitos, ou seja, as teorias vestidas de fábulas, no estilo dos poemas do é o despotismo. Observerno-lo ainda, lendo sobretudo as Cartas
épicos, e diz a si mesmo que o encontro de um mitólogo e de um petsas: algo que ele também não aprecia é a religião católica. Por
quê? Sem dúvida, porque a religião católica foi uma boa aliada de () .limai Sem dúvida, com a força de nosso próprio espírito. Um fa-
Luís XIv, sobretudo na última parte de seu reinado, dando uma boa 1.11 ista espiritualista, e tanto mais espiritualista, pois assim é preciso,
sustentação ao seu trono. Ora, o que lemos no Espírito das leis? Que quanto mais fatalista é, assim é então Montesquieu? É o que parece.
a religião é uma das melhores coisas de um Estado bem regulamen- Supondo ao menos que assim seja, pela comparação que fizermos
tado. Que contradição é essa? Não teríamos apenas passado de uma dele com ele mesmo, teremos pensado, teremos refletido sobre
ideia de sentimento a uma ideia de raciocínio? Montesquieu foi le- essas diferentes forças, exteriores, a que estamos submetidos, e as
vado ao ódio do despotismo. Pensou, como consequência bastante iuteriores, de que nos apoderamos ou acreditamos nos apoderar.
lógica, em tudo o que poderia detê-lo, contê-lo, refreá-lo, estorvá-lo lxteriores, que sentimos, interiores, de que tomamos consciência e
e reprimi-lo. Entre as diferentes forças que poderiam ter esse efei- leremos, em todo caso, ampliado o círculo de nosso espírito.
to, encontrou a religião, como encontrou a aristocracia militar, como Lemos Descartes. Primeira impressão: que positivista! Em nada
encontrou a magistratura. A partir de então, a religião lhe apareceu crer pela autoridade, em nada crer senão pela observação e pela
sob outro aspecto, e não digo que ele tenha nutrido por ela um afeto reflexão feita por nós. E iluminados por que luz? Assegurados por
da alma; sentiu por ela afeto do espírito. Evolução de ideias libertan- que critério? Pela "evidência", ou seja, pela necessidade que teremos
do-se pouco a pouco dos sentimentos que as originaram. de acreditar a menos que renunciemos ao nosso próprio intelecto,
Encontramos em Montesquieu essa grande ideia geral: influên- pela necessidade que temos de acreditar sob pena de suicídio inte-
cia do clima sobre os temperamentos, sobre os hábitos, sobre as lectual. É o próprio positivismo.
ideias e sobre as instituições dos povos. E não deixamos de conside- Prossiga, continue a ler e compare. Mas o que nos garantirá que
rar Montesquieu o teórico materialista ou fatalista das legislações. nossa evidência não é enganosa? Nada? Sim! Deus! Deus, que não
O que vemos, ao mesmo tempo? Essa ideia de que é preciso com- pode se enganar nem nos enganar e que, por conseguinte, nos deu
bater o clima através dos hábitos, e os hábitos, tais como ficaram LI ma evidência que não é uma ilusão de evidência e através de quem
ainda sob a influência do clima, através das leis. Mas isso é possível? nos asseguramos, portanto, de que ao crer em nossa evidência não se-
Em que ele acredita, então? Supõe-se que acredite em duas coisas: remos ludibriados. Mas retomemos: Deus, que não pode se enganar,
a saber, no império das coisas sobre nós e no nosso poder sobre é Deus-verdade, e Deus que não pode nos enganar é Deus-bondade.
as coisas. Ele acredita sem dúvida, como disse Montaigne," que a Para crer em nossa evidência, é então em Deus-onisciente e em Deus-
fatalidade nos devora e que o espírito humano pode reagir à ela. Os -providência que se deve crer, e nossa condição de conhecimento é
climas fazem nossos hábitos, nossos hábitos fazem as leis, sim, mas então Deus-verdade e Deus-providência. E, dependendo esse conhe-
também nossas leis fazem nossos hábitos e nossos hábitos podem cimento de Deus-providência, isso não é muito diferente da visão em
combater o clima. Mas com o que faremos leis contra nossos hábi- Deus de Malebranche." Não ver senão porque Deus permite que ve-
tos e depois hábitos que, impregnados por nossas leis, combaterão jamos é ver em Deus; ver através de Deus é ver em Deus. Descartes

12 Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592), filósofo cético e político J.\ Nicolas Malebranche (1638-1715), filósofo, padre e teólogo francês, con-
francês, autor dos Ensaios. siderado cartesiano.

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não é então um positivista, é um deísta, e que deísta! É um místico. \ ",I()como um bloco. Há mais. Vamos nos aperceber em breve, ape-
Pela comparação entre as duas ideias principais de Descartes, inver- "01', I~I/,endomentalmente uma pequena lista das virtudes humanas,
temo-lo. E do pai do positivismo moderno fizemos o mais radical .I,' que há virtudes das quais ele não fala e, por conseguinte, virtudes
defensor do deísmo e do providencialismo tradicional. '!tll' ele não nega. Ele não nega, em absoluto, o amor paterno ou o
É isso o que ele é? Não sei; é bastante provável, na minha opi- "111m materno, e é provável que reconheça que existem, em estado
nião, mas não sei; o que sei é que nós pensamos. Pensamos, ao nos 111"'0. Se ele diz: "Se acreditamos que é por amor a ela que amamos
lembrarmos, através das Meditações, do Discurso sobre o método, e "li Ia mulher, estamos bem enganados': ele não diz: "Se uma mãe
ao controlarmos o Discurso sobre o método através das Meditações; ,Ilrcdita que é por amor a ele que ama seu filho, está bem enganada:'
e fizemos uma espécie de passeio pelo problema do conhecimento, Nuo levou seu ceticismo a esse ponto. Seu ceticismo tem, portanto,
apercebendo-nos de que nosso recurso essencial de conhecer está su- limites. Muito bem! Vamos traçá-los e, delimitando o pensamento
bordinado a algo que não podemos conhecer; apercebendo-nos de dl' nosso autor, haveremos de compreendê-lo melhor. Ler um filó-
; \) que nosso conhecimento se decompôs em fé, seja nele mesmo, seja sofo é relê-lo tão atentamente que o analisamos.
em algo incognoscível. O que ganhamos? Ter compreendido uma Releiamos novamente e observemos, o que é impossível não
inteligência de primeira ordem, ter compreendido uma inteligência deixarmos de fazer, qual o seu procedimento. Seu procedimento,
superior a nós e, com isso, sem dúvida, ter desenvolvido a nossa. de que iremos nos aproximar comparando entre si um número
Lemos um simples moralista, La Rochefoucauld,« por exemplo. suficiente de suas máximas, é o seguinte: dissolver, por assim dizer,
Percebemos que ele não acredita em virtude alguma. Isso pode nos diluir uma virtude que ele empreende em todos os defeitos que a
revoltar. Pode também nos parecer muito fácil de refutar através circundam: a coragem, por exemplo, no desejo de brilhar; a gene-
de uma suposição imediata da consciência, através dessa afirmação de rosidade, na ostentação; a lealdade, no desejo de inspirar uma con-
nosso ser íntimo de que, se sentimos em nós muitos vícios, aferra- fiança da qual benefícios serão obtidos etc. Muito bem! Mas, então,
mo-nos também a tal momento como capaz de uma virtude e como se é possível dissolver as virtudes nos defeitos que as circundam, é
numa espécie de impotência para não ceder a seu apelo. Isso está também possível dissolver os defeitos nas virtudes que estão pró-
bem; mas, detendo-nos aqui, estamos ainda longe de nosso autor, ximas a eles e dizer: "Tal homem deseja brilhar e por isso se coloca
mantemo-nos à distância dele, não entramos em sua intimidade. sempre na frente, mas no fundo dessa atitude existe coragem. Tal
Em outras palavras, não o lemos. Aproximemo- nos, vejamos mais homem quer que o consideremos generoso, mas, para que o con-
de perto. O que vemos, pouco a pouco? Que há nuances e que com sideremos, ele o é com efeito; é preciso que ele o seja mesmo, e em
muita frequência La Rochefoucauld diz "sempre': mas que também sua essência, para que faça tantos sacrifícios a fim de que saiba-
com alguma frequência ele diz "às vezes"; que é, no fundo, muito mos que ele o é. É, afinal, um homem bastante bom." Ao dominar
menos cortante do que parece ser à primeira vista e que não deve ser o procedimento de um autor, você pode sempre voltá-Io contra
ele mesmo. E isso é, a princípio, um jogo divertido, portanto um
14 François de La Rochefoucauld (16l3-1680), escritor, moralista e memo- prazer. Mas não é só um jogo, é se assenhorear de seu autor até o
rialista francês, conhecido sobretudo por suas Máximas. fundo. É como que se apoderar de sua raiz, do germe de onde sua

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obra saiu e de onde poderia sair, sem dúvida, idêntica, mas numa 111,111'1. l lá prazeres resultantes da infidelidade, e a infidelidade, no
outra direção. É, na verdade, conhecê-lo bem. I li 11 til'!.respeito a um autor, é uma inocente libertinagem.
Sem dúvida, só conhecemos alguém quando sabemos o que Ak-m disso, ao ler um filósofo é preciso prestar atenção em suas
ele é e também o que poderia ser. 1I lilll,Idições. As contradições são os acidentes geográficos de um
Voltando ainda ao senhor duque, o que o vemos afirmar sem- 1',I,""tk: pensador. Ficaríamos desolados se estes não ocorressem em
pre? Que o egoísmo, o interesse, o amor-próprio, como ele diz, "ll'.llllllo e se a paisagem fosse por demais bem elaborada. Pareceria
é a essência de todos os nossos sentimentos e o motor de todas I III.\()que sua obra fosse o quadro de que falava Musset," "ao qual
as nossas ações. Você reflete sobre isso e diz a si mesmo: "Mas ... I' vI.'que um senhor bastante sensato se dedicou". Não ficamos em
pelo amor de Deus! Dizer que agimos sempre tendo em vista o Ilh,~oILltOirritados que a liberdade de espírito, a espontaneidade, o
nosso interesse é dizer que nunca agimos por bondade, mas é 1"1 ro intelectual sejam marcados pelo fato de o pensador não ter
dizer também que nunca agimos por maldade, que o homem 'II'lllpre pensado a mesma coisa e não ter tirado todas as suas ideias
nunca faz o mal pelo prazer de fazer o mal; que, em poucas 111 1 ius das outras como fórmulas algébricas. A contradição chama
palavras, a maldade não existe! Mas, então, que favorável ideia " atenção, excita-a, reaviva-a, transforma-a em reflexão, fecunda-a
faz La Rochefoucauld da natureza humana! Como ele se engana mlinitamente. Não desejo que os autores sejam abundantes em
em favor dela! Que otimista é esse La Rochefoucauld! Como me 1 ontradições, mas desejo que os leitores saibam encontrá-Ias.
enganei sobre esse La Rochefoucauld!" Há verdade aqui, muita Por exemplo, Jean-[acques Rousseau maldiz em todas as suas obras
verdade. La Rochefoucauld foi severo conosco, mas também foi ,I influência da sociedade sobre o indivíduo e deseja apaixonadamen-
caridoso. Nosso maior defeito ele não viu, ou não quis ver. Da te que o indivíduo saiba se subtrair a ela; e numa única sacrifica o
parte de um homem tão sagaz, é uma maravilhosa indulgência. indivíduo à sociedade e deseja imperiosamente que ela o absorva. É
Que seja; mas o que aconteceu, então? Aconteceu que, Iendo e lima contradição, sem dúvida, mas estou, de minha parte, convenci-
relendo La Rochefoucauld, La Rochefoucauld se transformou sob do: como as grandes ideias gerais derivam sempre de sentimentos, é
nossos olhos. Nós o vemos de um modo totalmente diferente. As provável que Rousseau, na maioria de seus escritos, tenha retirado suas
sentenças se transformam sob a leitura como o raio através do pris- idcias de sua paixão pela independência e pela solidão, e num de
ma. Será isso um bem? Será um mal? E onde está então a verdade? seus livros de sua paixão, muito louvável, pela República de Genebra.
Na primeira impressão, na segunda ou na terceira? Provavelmen- Mas será que estamos seguros e será que estamos certos de que se trata
te, essa verdade foge de nós numa fuga eterna; provavelmente, os de uma contradição? Conheço homens da mais alta inteligência que
autores são inesgotáveis em razão do que têm e em razão do que, não veem aí contradição alguma e que vinculam com muita enge-
ao lê-los, neles colocamos. Mas o essencial é pensar. O prazer que nhosidade o Contrato social ao conjunto da obra, para eles una e muito
, buscamos ao ler um filósofo é o prazer de pensar, e desse prazer coerente, de Rousseau. Não digo em absoluto que eles estejam errados.
teremos desfrutado ao acompanhar todo o pensamento do autor
e o nosso, mesclado ao dele, e o dele excitando o nosso e o nosso ló Louis Charles Alfred de Musset-Pathay (1810-1857), poeta, dramaturgo
interpretando o dele e talvez o traindo; mas aqui se trata apenas de e romancista francês.

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,-Em termos de contradições, o primeiro prazer do leitor é encontrá- ',I'lIli Ia ele mesmo. O prazer então é muito intenso, pois temos, a
"Ias, e o segundo, destrinchá-las. Ele aguça o espírito ao encontrá-Ias e 1"lIldpio, certeza de estar em plena troca intelectual com o autor,
i •refina-o ainda mais ao fazê-Ias desaparecer; exercita-se ao salientá-Ias; 101 li IICnós o prevenimos, ou seja, já que o compreendemos de ante-
exercita-se ainda mais demonstrando a si mesmo que elas não existem 111.10.
Mas, em seguida, dizemo-nos, com satisfação, que não somos
e nunca existiram. Tudo isso é bom e tudo isso é muito agradável. Illdignamente inferiores a ele, pois a objeção que ele fez a si mesmo
A sequência dos estados de espírito, nesse sentido, é esta: come- III)Sjá a fizemos, pois circulamos em seu pensamento quase que tão
çamos por não captar as contradições ao ler os pensadores; depois .1111 piamente, quase que tão facilmente quanto ele próprio.
percebemos muitas; as observamos demais e, a essa altura, confor- I': quanto aos perigos da discussão, é preciso saber evitá-los como
me a natureza de nosso espírito, nós as multiplicamos com malig- discussão privada. É preciso não nos obstinarmos em nosso
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nidade e triunfamos sobre elas, ou nos habituamos a destrinchá-las ',l'lllimento, porque ele é nosso sentimento; e, por termos encontra-
todas e terminamos por multiplicá-Ias para destrinchá-las, É preci- II(I contra um raciocínio um pouco fraco do autor um raciocínio
so não pender para excesso algum e é preciso manter-se num certo lortc o suficiente, não acreditar termos sempre razão sobre ele. Isso
meio em que o prazer de compreender não seja arruinado pelo 11I1S
levaria bem depressa à estreiteza de espírito, a uma espécie de
prazer de discutir, nem mesmo pelo de conciliar em excesso; mas irrcceptividade, se assim posso me expressar, na verdade a uma inin-
se colocar alternadamente nos diferentes pontos de vista e nas dife- religência adquirida que seria, decerto, a mais infeliz das aquisições.
rentes atitudes; ora se abandonar à força do pensamento eao rigor Algumas preferências às avessas são dignas de nota. Tal autor
da lógica, ora se defender, não querer ser ludibriado, opor o autor l' preferido por um leitor não porque esse leitor lhe considere de
ao autor para vencê-lo com a ajuda de um auxiliar que é ele mes- espírito justo, mas porque considera seu espírito falso, o que dá ao
mo; ora vir em seu auxílio e demonstrar que ele nem se enganou leitor o prazer de ter sempre razão ou de acreditar sempre ter razão
nem se contradisse e que são as aparências que estão contra ele, se sobre ele, motivo pelo qual é a esse autor que o leitor volta assidua-
de fato existem aparências. Tudo isso ainda é compreender; tudo mente. Ao entrar em sua biblioteca, esse leitor vai diretamente a
isso são formas diferentes de compreender e basta, para que todas esse autor e senta-se dizendo, de modo mais ou menos consciente:
sejam úteis e fecundas, que a lealdade presida todas essas operações "Como eu vou ter razão! Como eu vou ter o espírito justo!" Eu
e que a elas o sofisma jamais se misture. aconselharia a esse leitor que trocasse de autor favorito.
Para resumir, a leitura de um autor que é filósofo é uma dis- Conheci dois homens que só conversavam sobre Proudhon,"
< - r cussão contínua com ele, uma discussão onde se encontram todos sempre. Um deles o admirava acima de tudo, o outro chegava muitas
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os encantos e também todos os perigos de uma discussão na vida vezes a blasfemar contra ele. Eu nunca soube qual dos dois gostava
privada. Dos encantos é preciso saber desfrutar, escutar por mui- mais de Proudhon, o que via nele uma fonte inesgotável de verdades
to tempo, seguir o pensador em todos os seus desvios, mesmo em ou o que via nele um oceano de sofismas. Um o amava como um pai
todas as hesitações de seu pensamento. É preciso sentir a objeção
se elevar suavemente em nosso espírito, mas pedir-lhe que não ar-
Ir, Pierre-Ioseph Proudhon (1809-1865), economista, sociólogo e socialista
rebente e que espere o momento em que talvez o autor venha a francês, partidário do anarquismo.

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espiritual a quem devia o reconhecimento do dom da vida; o outro
o amava como um homem a quem devia o fato de poder saborear
continuamente sua própria superioridade intelectual; um o amava OS LIVROS DE SENTIMENTO
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com devoção, o outro com egoísmo; um o amava com todo o amor
que se pode ter pelo ser eleito, o outro o amava com todo o amor que
se pode ter por si mesmo; e um se sentia orgulhoso por pensar que, se
encontrasse Proudhon, haveria de refutá-lo e sem dúvida o confun-
diria; e o outro por pensar que, se encontrasse Proudhon, haveria de I:, PERMITIDO LER COM MENOS VAGAR os autores que têm por
explicá-lo a ele próprio com uma clareza definitiva. lema os sentimentos da alma humana; bem pouco, aliás. Aqui
E eles se adoravam reciprocamente, aliás: um feliz com as opor- também são necessárias, sob outras formas, a reflexão e mesmo
tunidades que o outro lhe dava de expor a doutrina de seu mestre e a discussão e, por conseguinte, todo o contrário da pressa. Aqui,
de nela penetrar mais uma vez; o outro feliz com as oportunidades entretanto, sou inteiramente da opinião de que é preciso come-
que lhe dava o primeiro de discutir como se fosse com o próprio çar se abandonando. O autor sentimental pinta os sentimentos d~
Proudhon e de arrasá-lo por procuração. Fortunati ambo. coração menos para pintá-los do que para inspirá-los em nós. E
Creio, entretanto, que é a meia distância, ou quase, desses dois um semeador de sentimentos, como o filósofo é um semeador de
afortunados que se deve estar e tentar se manter, para preservar essa ideias. Ele quer, antes de tudo, emocionar. Emocionar é fazer com
liberdade de espírito que é a verdadeira felicidade intelectual. Em que o leitor compartilhe dos sentimentos que se emprestaram a
coisas do intelecto, é preciso evitar tanto a abdicação quanto o triun- seus personagens, colocando-nos, por uma espécie de contágio,
fo. A abdicação é sempre um pouco deprimente e o triunfo é sempre no estado de espírito e nos diversos estados de espírito dos per-
vão. Sentir-se, diante de um pensador, sempre em luta cortês e bene- sonagens que foram criados. Se o autor não for bem-sucedido ao
volente, sentir que ele tem razão e só concordar com ele em último fazê-lo; se, em absoluto, não nos emociona, deixerno-lo; mas se
caso, mas concordar francamente. Sentir que ele está errado e ficar cl~ nos emociona um pouco, não resistamos, deixemo-nos con-
grato por senti-lo, mas também só em último caso e nos dizendo duzir por esse amável guia, deixemo-nos levar pelas impressões,
sempre que, se ele estivesse presente, talvez não nos deixasse em ple- deixemo-nos emocionar, deixemo-nos comover. Não mais per-
na segurança da vitória e, sem dúvida, teria alguma perigosa réplica tencemos a nós mesmos, é verdade, e talvez tenha sido por isso
ofensiva; emprestar-lhe, ainda que obtido dele ou de nós mesmos, que tomamos nas mãos um romancista ou um poeta. Essa, posse
algum argumento reserva para nos diminuir ou embaraçar: eis o de nós mesmos por uma ficção é algo bastante curioso. E uma
exercício que constituirá uma boa higiene intelectual. Com os filó- espécie de embriaguez, ou seja, ao mesmo tempo uma perda e um
sofos, a leitura é uma esgrima através da qual, tomadas algumas das aumento de nossa personalidade. É um estado sugestivo. Ao ler
precauções que indicamos, o espírito ganha incessantemente forças um romance que nos apaixona, nós não somos mais nós mesmos
novas que podem ser úteis de todas as maneiras e que, por si mesmas e vivemos nos personagens que nos são apresentados e nos lugares
e pelo simples prazer de possuí-Ias, valem a pena ser possuídas.
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