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Titule: * " ‘
Autor: CHAfifVIOT, Frtnsols

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COLEÇÃO "VIDA E EDUCAÇÃO"
SOB A DIREÇÃO DE ÁLVARO MAGALHÃES
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FRANCOIS CHARMOT, S . ^ |f ARISTAS

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Estudos sôbre a educação intelectual


e o valor das disciplinas fundamentais
do curso secundário.

Tradução
de
CARLOS GALVEZ

Edição da Livraria do Globo


Pôrto Alegrç
ÍNDICE

Prefácio ................. .................................................................... 9

P rim eir a P arte

A finalidade da formação: a inteligência bem feita

Introdução. — Que é uma “ inteligência bem feita” ? ............. 15

Capítulo- I. — Os espíritos falsos ............. 19


” II. — Os espíritos geométricos ................................... 23
” III. —- Os -espíritos efeminados .................................... 29
” IV. — Os espíritos superficiais ................................... 32
” Y. — Os espíritos irrealistas ..................................... 39
” VI. — Os espíritos estreitos ......................................... 46
” VII. — Os espíritos maledicentes........... ..................... 52
” VIII. — Os espíritos de facetas ..................................... 62
” IX. — Os espíritos apaixonados .............................. 68
” X. — Os bons espíritos .............................................. 76

S egunda P arte

O meio da formação: o Humanismo

Introdução ................... ................................................................... 85


Capítulo I. — O tríplice aspepto do Humanismo .................. 87
” II. — As línguas vivas e o Humanismo ................. 95
” III. — As ciências e o humanismo ............................. 100
” IV. — O Humanismo literário francês ..................... 109
” V . — As humanidades greco-latinas ....................... 117
8 A Estrada Real âa Inteligência__________ ;

Capítulo VI. — 0 Humanismo e a historia ............................... 146


” VII. — O Humanismo e a filosofía .............................. 169
” VIII. — O Humanismo cristão ................................. 20
” IX. — O Cristianismo fermento do Humanismo . . . 218
” X. ■
— A missão do professor: Resumo ...................... 233

Conclusão Geral

A formação pedagógica dos professores ..................................... 236

A pêndices

Apêndice A. — A importancia prática da língua latina para


o estudo do francés e das línguas vivas -----,.................. 248
Apêndice B. — A utilidade do exercício de tradução (Espe­
cialmente da tradução do latim) ..................................... 253
Apéndice C. — O exercício de versão ..................................... 260
Apêndice D. — A Bíblia no ensino secundario .......................... 270
INTRODUÇÃO

QUE É UMA “ INTELIGÊNCIA BEM FEITA” ?

Poucas fórmulas tiveram em pedagogia sorte mais


feliz que a de Montaigne: “ Eu desejaria... que se to­
masse o cuidado de escolher-lhe um preceptor que tives­
se antes a inteligência bem feita do que muito cheia (*) .
Ela se acha em todas as memórias, em todos os ma­
nuais, em todas as coletâneas de dissertações. Encon­
tramo-la nos lábios dos doutos e dos simples; tornou-se
tão popular como um provérbio.
Imediatamente após a recepção do Marechal Pétain
na Academia Francesa, Louis Gillet. escrevia na Revue des
Denx Mondes (l.° de fevereiro de 1931, pág. 706) : “ Quan­
tas vezes, em Verdun, ao vê-lo, eu sentia essa segurança
que a expressão “ une teste bien faicte" traduz. Quando,
no supremo perigo, se sabe. que os destinos do país foram
confiados a um chefe de tal valor, invade-nos plena con-'
fiança” .
Quem desejaria ter uma inteligência mal feita? E,
no entanto, quantos a receberam em partilha?
A imagem evocada por essa expressão faz saltar aos
olhos as deformidades secretas do espírito. Sem o auxí­
lio dessa fórmula pitoresca talvez não nos apercebêssemos
de quanto elas são ridículas. Pois, por feias que sejam,
não dão na vista. La Rochefoucauld verificava, còm jus-

(1) Cfr. Mòataigne, Essais, I., X, cap, XXVI; Pç l’instrucf.iop dçs çp·»
fants, ed. st;*eresisi, vçi, I, pág. W i,
16 A E strada Real da Inteligência

ta ironia, os prodígios de arte que todos põem no disfar­


çar os defeitos de sua inteligência:
“ Todo o mundo se queixa de sua memória, mas nin­
guém do seu juízo” (Max. L X X IX ). “ Todos dizem bem
de seu coração, mas ninguém ousa fazê-lo de seu espírito” ;
no temor, sem dúvida, de que a presunção de crer ou de
fazer crer que êle não tem defeitos seja um sinal por de­
mais evidente de tolice.
Não há escola pedagógica qüe não alimente a preten­
são de plasmar “ inteligências bem feitas” (2). Não há
mestre, por mais fanático que seja pela erudição, que re­
nuncie a desenvolver em seus discípulos a inteligência,
tanto ou mais do que a memória. Louvo-me pois dessa
universalidade de vistas, e vou mais longe,
# $ *

A quase totalidade dos autores se contenta com afir­


mar que o fim da educação é de “ formar o espírito” , sem
explicar o que isso significa.
Que vem a ser, pois, “ uma inteligência bem feita” ?
A ninguém escapa que deixar de responder com cla­
reza a essa questão importa em elidir o problema mais
importante e de maior interêsse prático da pedagogia.
É inegável que as dificuldades aumentam à medida
que se tentam distinguir, se assim se pode dizer, as peças
do espírito e estabelecer-lhes a anatomia exata e completa.
Mas, se é verdade que a pesquisa pedagógica, à semelhan­
ça das demais ciências, é iluminada pelos raios que o seu
alvo projeta sobre a rota, torna-se imprecindível definir
com precisão o fim a que se tende, ou seja, descrever em
que consiste a perfeição dessa natureza que se pretende
educar.
Um professor somente poderá ser o educador de seus
discípulos se tiver idéias claras a êsse respeito. Do mes­

(2) Cfr. Foch, por Felot, S. J., Bloud et Gay; Búgnot: Rn écoutant Js
Maréchal Fech, pág. 64; excelentes çonseina? nç mesmo sentida,
Que é uma "in teligên cia bem feita ’*? ii

mo modo como a leitura de cartografias do Estado Maior


permite encontrar os caminhos, assim também o conheci­
mento dos espíritos e de suas diferentes fisionomias ades­
tra o ôlho do mestre a discernir bem na atividade intelec­
tual dos adolescentes de múltiplas tendências. E enquan­
to as jovens inteligências destes vão crescendo sob o im­
pulso de sábias disciplinas, o educador vela cuidadosa­
mente sôbre seus erros, descaminhos e maus hábitos, es­
forçando-se por corrigi-los mediante oportunas reações.
Procuraremos por isso, na primeira parte desta obra,
agrupar informes que a êsse respeito nos fornece a psi­
cologia da inteligência, afim de compor-nos uma imagem,
justa e clara, disso a que se dá o nome de “ uma inteli­
gência mal feita” .
Yer-se-á, talvez, — tenhamos a coragem de evitar
as ilusões da vaidade, — que muitas há que merecem tal
predicado.
As ilusões, porém, não morrem sem legar alguma
vantagem: pois ao mesmo tempo poder-se-á verificar com
alegria que as lacunas a preencher, na formação dos es­
píritos, são devidas a uma pedagogia que foi efetivamente
mal orientada, apriorística, unilateral, deduzida de prin­
cípios abstratos, aplicados de modo sistemático, quando o
seu dever fôra o de adaptar-se à natureza variável dos
educandos, ajustar-se às suas diversidades, acompanhar a
sua evolução, — numa palavra, permanecer sempre con­
creta,
O Educador é uma grande fôrça. Uma vez que exer­
ça o seu trabalho plasmador sôbre as inteligências na
idade em que estas são ainda cera branda e maleável,
pode chegar com sua arte a dominar a natureza capri­
chosa; pode, por sua indústria, impedi-la de produzir es­
píritos extravagantes, mutilados ou falsos. Que serviço
presta, assim, à humanidade! Pois nada é mais humi­
lhante para o homem nem mais pernicioso para a socie­
dade do que ser ao mesmo tempo sabedor de muitas cou­
sas e incapaz de extremar com exatidão o êrro da ver­
dade.
18 A E strad a Real da Inteligência

“ Um sábio tolo o é mais que um tolo ignorante” .


A presente obra foi escrita na intenção de provar
uma tese e glorificar assim a Vocação para o ensino.
Esta tese vem resumida em suas conclusões no capítulo X.
■Pensamos que o humanismo, em estado latente e di­
fuso, existe em tôda a natureza e em tôda disciplina in­
telectual, mas que, sob a forma de virtude formadora efi­
caz, só existe no espírito e nos lábios dos mestres. Qual
á sua missão? Em que consiste a arte do educador de
espíritos? Qual deve ser a sua formação? Tais são as
questões que sobrelevam tôdas as outras no vasto pro­
blema das Humanidades.
CAPÍTULO I

OS ESPÍRITOS FALSOS

O moralista Joubert, de quem iremos pedir empres­


tado várias observações cheias de finura, descreve-os as­
sim: “ Os espíritos falsos são aqueles que não têm o sen­
so da verdade, mas que a sabem definir; que olham para
dentro de suas cabeças, em vez de olhar para diante de
seus olhos; que, em suas deliberações, consultam as idéias
que se fazem das cousas e não as próprias cousas” (3).
Falta-lhes, numa palavra, juízo; o que pensam está
muito longe da realidade; se têm a pretensão de referir
às cousas a imagem ou a idéia que delas se fazem, caem
em êrro. Entre seu espírito e as cousas interpõe-se uma
lente deformadora. Pior ainda: a lente deformadora é,
por assim.dizer, a própria retina de seus olhos. “ O es­
pírito falso é falso em tudo, assim como um ôlho vesgo
vê sempre vesgo” .
Nem todo homem que erra, entretanto, tem o espírito
falso. Poderia mentir ou enganar-se dez vezes, cem ve­
zes, que nem por isso poderíamos negar-lhe a retidão do
juízo. Pois as causas do êrro são de várias sortes; nem
sempre têm que ver com a conformação da inteligência.
“ Há, todavia, em certos espíritos, um núcleo de êrro que
atrai e assimila tudo o mais a si mesmo” . Tais espíritos
encontram a verdade por acaso; o mais das vezes vêem as
cousas de través; não ferem bem o alvo. Semelham

(3) Pensées, Título XV, n.° XLI.


20 A Estrada, Real da Inteligência

a bússolas bem montadas, poderosas, mas “ cujas agulhas,


desorientadas pela influência de qualquer corpo circun­
vizinho, se desviam sempre do norte” .
Ao contrário, “ um bom espírito, diz La Rochefou-
cauld, vê tôdas as coisas como devem ser vistas; atri-
bue-lhes o exato valor que têm . . . e entrega-se com tôda
a confiança a seus pensamentos, porque lhes conhece tôda
a fôrça e tôda a razão” . (Réflexions Diverses, XVI ) .
Com juízo, é claro, jamais se é tolo; pode-se, porém,
sê-lo com tôdas as outras formas de pensamento.
0 valor intelectual de um homem depende a tal pon­
to do grau de seu juízo, que “ se incidiu em êrro quando
se acreditou que o espírito e o juízo eram duas cousas
diferentes; o juízo nada mais é que a grandeza da luz do
espírito” .
Não devemos afirmar levianamente, de uma pessoa
que não partilha de nossas idéias, que ela carece de juízo.
Pois não está provado que nossa acusação não esteja mui­
to simplesmente baseada sôbre nossa própria ignorância.
O espírito é falso em relação ao espírito justo. Acredi­
tamos que o nosso é justo e capaz de ajuizar do espírito
do próximo. Não há, aí, um poüco de orgulhosa preten­
são? Na realidade, somente se pode ter o espírito per­
feitamente justo a respeito de alguns pontos, isto é, a res­
peito de questões que muito se estudou. Como, conhece­
mos, porém, um diminuto número de cousas, dá-se prova
de ter bom senso quando se julga o próximo com tôda
moderação e reserva. É de boa justiça que se dê aos ou­
tros o “ benefício· de inventário” .
A experiência está diariamente a confirmar a intem­
perança de nossas afirmações: assim que atingimos, atra­
vés de duros labores, a uma verdadeira competência no
que quer que seja, começamos a notar que é inevitável
que a todo o instante estejamos a deparar com gente in­
teligente que emite verdadeira chuva de tolices a respei­
to disso em que nos especializamos. Os inovadores, mais
penetrantes que o comum dos homens, são inicialmente
tidos mais ou menos por loucos mansos. Somente o fu-
Os espíritos falsos 21

turo, após a morte, lhes dará razão. O espírito falso nem


sempre é aquele que pensamos.
Como, pois, identificá-lo? Dir-se-á que são falsos
aqueles que não pensam como todo o mundo?
Atualmente não é mais verdade, se é que algum dia
o foi, dizer que uma idéia é justa na medida em que é
comumente aceita. Pois se participa tanto dos falsos
preconceitos, que o tempo desmente, como das verdades
científicamente estabelecidas. Sobretudo em nossos dias,
em que a Imprensa ofusca a nossa visão das cousas, jul­
ga-se de tudo pela “ memória-papel” antes que pela ob­
servação reàl: temos assim juízos de papel, e não juízos
de razão.
O espírito falso, portanto, não é fácil de ser desco­
berto. Unicamente os pobres de espírito têm o direito
de aventurar-se pelo terreno da crítica; todavia, se fos­
sem os únicos a concederem-.se tal direito, nao encontra­
ríamos aí quase ninguém. É vão e cruel tachar os adver­
sários de espíritos falsos; é uma injúria nociva.
* *
#

Entretanto, ó educador tem sôbre as crianças uma


autoridade de que não desfruta sôbre os demais. As
crianças não são homens. Suas maneiras de ver, suas de­
cisões apressadas devem ser vigiadas, revisadas, refor­
madas. Quando lhes falece o senso comum, não quer di­
zer que o ultrapassem pela força da inteligência, mas
unicamente que não têm o poder de atingí-lo. Estão, ain­
da, aquém do bom senso.
Em geral, na criança, o sintoma suspeito da falsida­
de de espírito transparece na maneira mesma com que
obedece aos conselhos dados. Toma-os ao pé da letra, em
vez de descobrir-lhes o verdadeiro sentido; e chega as­
sim a resultados ridículos. Com os preceitos da retórica,
compõe uma falsa eloquência; com os da moral, cai na
falsa piedade; com o ascetismo, enreda-se todo nessas
22 A E strada Real ãa Inteligência

falsas suscetibilidades de conciencia que se denominam


escrúpulos; com as lições de civilidade, assume uma falsa
polidez e maneiras afetadas; cpm as regras da prudência,
impõe-se falsas reservas que parecem antes hipocrisia
que circunspeção; com os estímulos dos elogios, fica todo
“ estufado” como a rã, “ ínfimo animal” , pois “ o mundo
está cheio de gente não mais sábia do que ela” . É dessa
maneira que no colégio o espírito falso entende mal todos
os bons conselhos e fica convencido de que os observa com
atenção e docilidade.
Compete aos mestres, e reside aí uma das mais pre­
mentes responsabilidades da educação, — corrigir essas
primeiras tendências da juventude, vigiando as influên­
cias que sobre ela se exercem e combatendo as causas re­
motas de tais deformações. É pouco. Éste pouco, porém,
é útil.
Assim como se afina uma harpa de cordas distensas,
torcendo como convém as cravelhas que as regulam sôbre
o arco sonoro, assim também se afina e torna harmônico
o delicado harpejo do espírito, fixando, segundo justa
proporção, o papel de cada disciplina científica na edu­
cação da juventude. Êsse é um trabalho de psicologia e
pedagogia aplicada, que as análises a seguir permitir-
nos-ão levar a cabo.
CAPITULO II

OS ESPÍRITOS GEOMÉTRICOS

Espíritos geométricos são aqueles que carecem de


espírito de finura no trato de problemas cuja exata solu­
ção só pode ser encontrada pelo espírito de finura ( ‘ ) .
Seria fora de propósito recordar aqui a educadores
aquelas memoráveis páginas de Pascal sobre o espírito
de geometria e o espírito de finura. Aliás, para que?
O “ Pensées” é um livrq clássico, na meditação de cujo
texto todos muito têm a ganhar.
Essa meditação, porém, não deve limitar-se à pura
ordem especulativa. A educação é uma arte, um método
prático. Que vantagem poderá o educador extrair dessa
distinção definitiva entre duas formas de inteligência?
Observará êle, inicialmente, que o espírito geométri­
co, vigoroso no raciocinar, se torna um espírito falso
quando emprega sua lógica abstrata e dedutiva lá onde
ela é complettfnente inadequada e onde a verdade, como
água em%malha de rêde, se esquiva por entre os dedos do
raciocínio.
É por esta razão que um tal tipo espiritual se trans­
via no trajo dos problemas da vida moral. Para justifi-4

(4) La Rochefoucauld distingue duas acepções no têrmo "íinura” : “Um


espírito fino e um espírito de finura são muito diferentes. Q primeiro
agrada sempre, é ameno, pensa cousas delicadas e vê as mais Imperceptí­
veis. Um espirito de finura Jamais vai reto; procura o través e o rodeio
para levar a bom têrmo os seus desígnios” . Uéflexions diverses, pág. 328.
Poder-se-á consultar a respeito destas diferentes nuanc.es o Dictionnaire des
synonymes de Lafaye. Aqui, usamos dêsse têrmo com a acepção que lhe
deu Pascal, a quem remetemos o leitor.
24 A E strada R eal da Inteligência

car a necessidade da casuística, Brunetière nada mais


teve que fazer senão comentar um lugar-comum: a ine­
fável complexidade da natureza humana: que saco de con­
tradições e que inextricável enigma realmente somos!
Não sentem nenhuma necessidade das subtilezas da
casuística, unicamente essas naturezas a que se dá o quali­
ficativo de “ grosseiras” . Pois essas obedecem ao impul­
so da m áquina... Sinteticamente se diz que “ não têm
senso moral” . Mas as almas delicadas, finas, mais ex­
postas às tentações porque de pudor mais sensível ao mal,
e mais atormentadas pelos aguilhões da conciência por­
que dominadas por um mais ávido amor pela perfeição,
vêem-se muitas vezes embrenhadas, em sua marcha na
direção dos cimos, em passagens difíceis e nobres sofri­
mentos : de tais óbices um espírito sem finura nem sequer
suspeita a existência.
Ora, a intuição penetrante das situações complicadas,
e a arte de atinar, através do dédalo da vida interior, com
o fio que leva à luz, é uma das qualidades necessárias não
somente ao sacerdote, que disso faz ministério, mas a to­
dos os pais de família para a educação de sua prole.
Da mesma forma, não se pode prescindir dêle nas
profissões liberais, tôdas elas orientadas para o bem mo­
ral da sociedade. Qualquer que seja, ademais, a especia­
lidade que tenhamos em vista, sem êsse dom é impossível
exercer influência de chefe ou conselheiro sôbre os ho­
mens. .
A própria conversação no mundo não exige menos
que os problemas morais o espírito de finura. Aí, mais
do que alhures, predominam a circunspeção e o tato.·· O
logicismo rigoroso e abstrato de um Alceste transmuda
tôdas as relações sociais em disputas, duelos, atritos,
rupturas. Entre fracos humanos que somos, a caridade
e a polidez, que é uma de suas formas externas, unica­
mente são possíveis a preço de mil precauções delicadas.
Se fôssemos escravos da lógica e dfe seu rígido metro,
nosso pobre coração, que tanto necessita que o poupem
com palavras jeitosas e- oportunos silêncios, não supor­
Os espíritos geométricos 25

taria á insociabilidade da humana sociedade. E, resig­


nados, ficaríamos convencidos de que o espírito do homem,
se de fato é assim feito, foi na verdade mal feito.
As mulheres que a Éistoire des Salons nos apresenta
como rainhas da conversação e senhoras da etiqueta tal
o foram em virtude de um agudo espírito de divinação.
“ Elas com facilidade encontram. . . , diz La Bruyère
(1.37), volteios e. expressões que em nós nada mais são
muitas vezes, que o produto de longo trabalho e penível
busca;, sãodnuito felizes na escolha dos termos, que sa­
bem colocar com tanta propriedade que, por mais conhe­
cidos que sejam, têm o encanto da novidade e parecem
feitos exatamente para o fim que lhes deram; unicamente
elas sabem condensar numa só palavra todo um sentimen­
to, e dizer com delicadeza um pensamento delicado” .
Quem frequenta èsse mundo em que a distinção delas rei-’
na e ilumina vai se habituando a ver as cousas sob nova
luz ; uma lógica do: sentimento, mais plástica que a da
razão, passa a òrientar-lhe então os pensamentos ; e o que
era perceptível· apenas ao coração insinua-se, por essa se­
creta via, até o espírito, impermeável até então às razões
do coração. Quando fôr necessário, a géometria do espí­
rito retomará os seus direitos e cs seus eá^uadros, mas
dessa feita amaciada por esta escola da vida, de um modo
mais profundo que o dos preceitos de aula, saberá daí em
diante adoçar suas leis por demais rigorosas e alargar
seü critério embainhado em estritas regras ( 5).
Será necessário que recordemos aind% a harmoniosa
fusão de qualidades que cdnstitue esse indefinível dom do
espírito a que se dá o nome de gosto? Um “ geòmetra”
pode raciocinar sobre as letras e as artes; mas percebe
mal ou de través a própria beleza, — que só se desvenda
a um conhecimento simpático. Um tal homem, em suas
próprias obras, ignora o ponto preciso em que ela desa­
brocha como uma flor.

(5) Estudar, por exemplo, a falta de tato de certos pedantes, em La


Bruyère, v. g., V-73, X1Ï-64, XV-6.
26 A E strada Real ãa Inteligência ■

0 espírito de finura é intuitivo: e como sabe deslin­


dar as relações que as cousas travam entre si, bastam-lhe
uma nota, uma palavra, uma côr, um gesto, para desco­
brir todo um mundo de correspondências e harmonias em
vibração remota.
As almas dêle dotadas entendem-se por meias pala­
vras ; donde o encanto e a amplitude de sua intimidade.
As palavras chumbam com seu pêso a vida; se nos apoia­
mos por demais nelas, vulgarizamos os sentimentos ínti­
mos. Elas destroem o mistério, o inefável. É nas en­
trelinhas e nos intervalos das palavras que o espírito de
finura vislumbra, como através de grades, a paisagem
profunda que envolve as idéias abstratas.
Possivelmente seremos levados a pensar que ao me­
nos no domínio das ciências o espírito de geometria, que
lhes traçou as vias, não corre o risco de errar. Todavia,
mesmo aí, a experiência tem provado que êle claudica
e tateia quando abandonado exclusivamente aos seus pró­
prios recursos.
Pierre Duhem o provou em penetrante artigo, na
Revue des Deux Mondes, sôbre a ciência alemã, ao qual
teremos ocasião de voltar (e). Êste foi o tema sôbre o
qual durante a guerra se compuseram mil e uma varia­
ções : a possança grosseirã da kultur em comparação com
a nossa luminosa, fina e plástica civilização francesa.6

(6) André Thérive, analisando a obra: Dieu est-il Français?, de Sieburg,


diz a mesma cousa que Duhem: “ Há em seu livro alguns traços dêsse ar­
bitrário metódico, que sempre nos perturba nos ensaístas, cientistas e filó­
sofos de sua nação. Os seus sistemas, que digo?, as suas nomenclaturas
(e muitas vezes uma cousa se resolve noutra) nos parecem construídas a
cal e areia sôbre fatos de pequena importância. Não há talvez no espirito
germânico nem suficiente empirismo modesto, nem suficiente ceptieismo” .
(Le Temps, 19/XII/1930). A sistemática freudiana é, dizem, um exemplo
disso. Uma das figuras mais -eminentes da biologia francesa, O . Delage,
que pensa antes de julgar, exprime-se do seguinte m odo: “ Freud ficará
com o o tipo do espírito falso” . Pouco importa aqui que a acusação atinja
ou não a Freud; mas a descrição que segue é interessante: “ Freud ficará
com o o tipo do espírito falso que, escravizado a concepções sistemáticas,
se deixou arrastar a atribuir um caráter universal a um fator que se aplica
unicamente a casos particulares, o que o conduziu a torturar fatos e ex­
plicações afim de fazê-los quadrar com suas idéias preconcebidas; atribuiu
à mentalidade humana uma deformação teratológica da qual êle próprio
era a vítima principal” . G. Delage, Le Rêve, étude psychologique, philoso­
phique et littéraire, t. I, pág. 533, (L’homme, 1920).
O s espíritos geométricos 27

Que haja algo de verdade nessa antítese, um grande nú­


mero de nossos mortos testemunharam-no com seu sa­
crifício; todos êles pensavam que essa flor francesa não
devia desaparecer do mundo, esmagada sob a mole da co­
lossal invasão. Libertando o nosso território, assegura­
mos ao mesmo tempo a vitória -da medida, da clareza e
da elegância, mesmo no trabalho intelectual.
A ciência tem a seu serviço todos os povos; são-lhé
necessários os imponentes laboratórios da Alemanha, —
mas não o é menos a razão francesa, intuitiva e lúcida.
Um educador que bem quisesse conhecer o seu ofício, fa­
ria mal em não ler a êsse respeito o livro de Pierre Duhem:
La t h é o e i e p h y s i q u e . — Son objet, sa structure (Cheva-
lier et Rivière). Resumí-lo aqui seria impossível e mes­
mo inoportuno; o que importa para a formação do espí­
rito é estudar-lhe pacientemente todas as páginas (7). .
Acreditamos que tôdas as considerações precedentes
foram de molde a convencer o leitor de que acabaria com
a inteligência deformada, o adolescente cuja educação sis­
temática tendesse a desenvolver-lhe exclusivamente o “ es­
pírito de geometria” . Dêsse modo, para muitas cousas,
êsse rapaz teria o espírito falso. Que Deus o livre e tam­
bém aos seus de tal infelicidade!
Quais são, pois, os remédios de que devem lançar mão
os progenitores e o mestre quando percebem, como bons
médicos, os primeiros sintomas dessa “ scoliose”, se assim
posso dizer, que fará do rapaz um “ espírito giboso” (Boi-
leau, Satire IV) ? (8)
Aqui, o remédio é menos difícil que o diagnóstico.
Moderemos o contacto com as matemáticas, aumentemos
a dose de estudos clássicos. Iniciemos êsse jovem no mé­
todo pascaliano. Que leia com intensidade os nossos* gran­
des moralistas, Montaigne, La Bruyère, La Rochefoucauld,

(7) O capítulo IV da primeira parte é todo inteiro consagrado ao es­


tudo do espirito· de finura na ciência; mas a obra comenta, através dos
fatos, as idéias.
(8) Cfr. Montaigne, ibld.
28 A E strada Real d a 'Inteligência

Racine, Fénelon, Joubert, e tantos ou tros... Que se exer­


cite no Dictionnaire des synonymes de Lafaye em distin­
guir as infinitas nuanças da vida moral. Que frequente
a sociedade dos espíritos finos. Que pratique com assi­
duidade as artes, as belas-artes. E que se lhe dê um cons­
tante exemplo de modéstia no ajuizar e dêsse respeito su­
perior que só a verdade merece. O espírito de finura é
uma planta delicada: só vive numa atmosfera de humil­
dade, caridade e ardor.
CAPÍTULO III

OS ESPÍRITOS EFEMINADOS

Os espíritos finos se tornam às vezes efeminados


por molicie. E- há uma radical diferença entre essas duas
formas de inteligência. Uma nasce da fôrça, a outra da
fraqueza.
“ Os espíritos finos, diz Malebranche, são aqueles
que percebem pela razão até as mínimas diferenças das
cousas, que prevêm efeitos que dependem de cousas se­
cretas, raras e pouco visíveis; são, enfim, aqueles que
mais longe penetram os temas que consideram. Os espí­
ritos fracos, porém, possuem uma falsa delicadeza: não
são nem vivos nem agudos, não atinam nem mesmo com
os efeitos das causas mais grosseiras e palpáveis; enfim,
não podem nem nada dominar nem nada penetrar; en­
tretanto, são extremamente sensíveis no que diz respeito
ao bom-tom. Uma palavra menos adequada, um acento
provinciano, um pequeno esgar irritam-nos infinitamente
mais do que uma confusa porção de maus argumentos.
Não são capazes de perceber o defeito de um raciocínio,
mas ressentem perfeitamente uma quebra de tom e um
gesto mal feito. Numa palavra, têm uma perfeita inte­
ligência das cousas sensíveis, pois que fizeram contínuo
uso de seus sentidos; mas são absolutamente destituídos
da verdadeira inteligência das cousas que dependem da
razão, pois quase nunca fizeram uso da sua” (9).

(9) Recherche de Ia Vérité, L. II, 2.a parte, cap. VIH.


30 A E strada Real da Inteligência

As mulheres, de quem há pouco elogiamos o espírito


de finura, com frequência pecam por uma tal falta de
firmeza de inteligência. E, sob êste aspecto, muitos ho­
mens e sobretudo os jovens não são porventura verdadei­
ras mulheres? Malebranche chega mesmo a pensar que
“ a êsse respeito as diferenças entre os homens são ape­
nas de grau” .
A mocidade, porém, em virtude de seu temperamento,
está mais exposta a êsse mal. Vivemos numa época bri­
lhante e nervosa, em que a civilização, transformando a
vida tôda numa perene festa dos sentidos, vai exaltar, nas
naturezas emotivas, as faculdades imaginativas, em de­
trimento da reflexão. É verdade que os cenáculos, onde
se elaboram obras que obstinadamente almejam ser no­
vas, se não pela superioridade do talento, pelo menos por
sua volubilidade, estatuíram hoje em dia em sistema a
superioridade literária e artística do sensível sôbre o ra­
cional. O momento fôra escolhido com muita oportuni­
dade. Pois tais teorias satisfazem às mil maravilhas os
gostos modernos.
Mas denunciam também uma fraqueza que no século
XVII se soubera vencer. Não mais estamos no tempo em
que as mundanas, mulheres de mais cabeça que os moços
de hoje, seguiam com paixão por duas ou três horas as
severas deduções de um Bourdaloue. Hoje, não faltaria
quem olhasse isso com desprêzo, como a raposa da fábula
as uvas que não podia coihêr. Pertença-se a unia escola
ou a outra, sinta-se simpatia pelo “ vivido” ou pelo “ pen­
sado” , o que é inegável é que essa incapacidade de ana­
lisar as sínteses confusas da sensibilidade, de extrair do
real, em que se acha imersa, uma idéia clara, como quem
tina um cristal dum líquido turvo, de captar com firmeza
a verdade através de um vigoroso raciocínio, de distin­
guir uns dos outros os tênues filamentos das relações abs­
tratas no estofo contínuo dos objetos, — uma tal incapa­
cidade, tão comum entre os alunos e os estudantes dêste
século, em nada é admirável, como em nada são admirá­
veis quaisquer deficiências do caráter ou da musculatura.
Os espíritos efeminados 31

Uma incapacidade de espírito jamais será uma fôrça, uma


distinção.
Ao adquirirmos novos modos de sentir e de exprimir
o mundo, não devemos perder o vigor de nossos antepas­
sados amigos da razão. Não se trata evidentemente de
voltar a princípios cartesianos de clareza artificial e ôca,
mas de conservar com sabedoria o legado das fortes qua­
lidades clássicas; nossos alunos de hoje parecem incapa­
zes de recolhê-lo com mão firme. “ Esforcemo-nos por
bem pensar” , dizia Pascal, e não apenas sentir com vive­
za sem compreender com nitidez.
A sã pedagogia propõe-se menos a ensinar do que a
fazer a criança refletir, afim de desenvolver-lhe as fa­
culdades de compreensão e juízo. É de tôda a necessi­
dade imprescindível tornar racionais as suàs cabecinhas,
o que não quer dizer racionalistas. E se se constatasse
que uma ou outra cabeça leviana fôsse arrastada como
fôlha morta pela enxurrada das imagens, o dever dos
mestres e dos pais seria o de submetê-la à disciplina enérf-
gica das matemáticas, do raciocínio naturalmente rigoro­
so, da versão latina, da análise das idéias nas obras bem
feitas, da dissertação tal como a entendemos em França,
isto é, bem composta, lógica, coerente, travada, harmô­
nica, progressiva, .una.
A essa metodologia intelectual acrescentar-se-á uma
organização simples, mas firme, da vida moral. É pelo
domínio dos sentidos e dos nervos que se chega a dominar
os pensamentos. O hábito de tudo fazer em seu devido
tempo, em seu devido lugar, em sua devida ordem, vai
pouco a pouco impondo à inteligência também o hábito
de ver e de pôr cada cousa em seu devido lugar. A de­
sordem é um efeminamento.
CAPÍTULO IV
OS ESPÍRITOS SUPERFICIAIS
"Há, diz ainda Malebranche, duas espécies de espí­
ritos. Uns observam com facilidade as diferenças entre
as cousas, e são os bons espíritos. Outros imaginam e
supõem semelhanças entre elas, e são os espíritos super­
ficiais. . . ”
“ A maioria daqueles que falam em público, todos os
grandes conversadores, e mesmo muitos daqueles que têm
grande facilidade de expressão, embora pouco falem, per­
tencem a essa segunda espécie. Pois é extremamente
ilaro que aqueles que seriamente meditam possam com
facilidade expor as cousas sôbre que meditaram (101 ).
Ordinariamente hesitam quando buscam falar, porque têm
grande escrúpulo em se servir de têrmos que possam
transmitir a outrem uma idéia errônea. Envergonhan­
do-se de falar simplesmente por falar, como o fazem mui­
tas pessoas que sôbre todas as cousas falam com a maior
facilidade dêste mundo, têm grande trabalho para encon­
trar têrmos que exprimam com propriedade pensamentos
que não são comuns” ( n ).
Poder-se-á encontrar em La Bruyère o retrato com­
pleto dêsses tolos tagarelas que acabrunham os homens
instruídos com o pêso de sua vaidade ( 12). E a respeito

(10) O contexto mostra que se trata não dessa clareza de expressão que
a meditação dá, mas dessa humilde resérva à qual a reílexão profunda ha­
bitua. Meditando seríamente, vê-se que é cada vez mais difícil expor bem
a verdade.
(11) Kecherche de la Vérité, L. II, 2.a parte, cap. VIII. ,
(12) Cfr. Caracteres, cap. V, passim; I-S2.
Os espíritos superficiais 33

dêles êste mesmo autor observa que “ é uma grande mi­


séria não se ter bastante espírito para bem falar, nem
bastante juízo para silenciar. Tal é o princípio de tôdas
as impertinências” .
Pelo ilogismo ingênuo de sua conduta, reconhece-se o
defeito de espírito destes.. O bom senso aconselha-nos a
medir nossas palavras pelo conhecimento que temos das
cousas; neles, pelo contrário, “ a ignorância profunda...
inspira o tom dogmático. Quem nada sabe pensa ensi­
nar aos outros aquilo mesmo que acabou de o,prender;
quem muito sabe, com dificuldade pensa que o que diz
possa ser ignorado, e por isso fala com maior indiferen­
ça” .
Todos os jovens são superficiais. Não se deve po­
rém fazer disso censura:' nem a ciência nem a experiên­
cia são dessa idade. Èles muitas vezes ajuntam a essa
inferioridade um antipático ar de suficiência. E todavia,
quando sabem permanecer simples, são de encantadora
ingenuidade.
A ignorância dêles não passa de moléstia acidental
e passageira. O hábito, porém, de julgar sem provas é
um mal profundo e mortal. Resulta frequentemente de
uma pedagogia inhábil. Pois a pedagogia comunica há­
bitos ao espírito.
Não há nada mais fácil do que acostumar as crian­
ças a darem-se por satisfeitas com noções rápidas e su­
perficiais: a indolência intelectual é um pecado mais co­
mum do que a indolência física, — chega a ser universal.
Há duas pedagogias extremas que correm o risco de
plasmar espíritos superficiais: a pedagogia científica uti-
litarista e a pedagogia literária desinteressada. A «pri­
meira tende a produzir pseudo-sábios, que usam de suas
fórmulas como se fossem a própria verdade; a segunda,
a produzir o homem-de-bela-palestra, que muito brilha e
nada sabe: é sinônima,’ então, de diletantismo literário.
Adiemos para outro capítulo (eap. VI) a crítica do
primeiro desses métodos de ensino.
O segundo reclama desde já toda a nossa atenção.
34 A E strad a Real da Inteligência

Em nossos dias de erudição, e a-pesar-dela, o tipo do con­


versador de salão, desprovido de cultura séria, não é de
todo uma cousa fora de moda. E há mesmo o perigo de
incrementar a sua proliferação com a extensão atual dos
programas de ensino.
Léon Bérard, ilustre defensor em França da cultura
desinteressada, jamais propugnou por uma cultura esté­
ril. Após haver recordado que no ensino das Humani­
dades “ a inteligência . . . é de algum modo tomada como
um fim em si mesma, abstração, feita de qualquer pre­
paração a ofícios, de qualquer preocupação com carrei­
ras” , tem o cuidado de precisar o seu pensamento: “ Sua
finalidade não é ornamentar o espírito de brilho e sedu­
ção, ou preparar “ eauseurs” para uso e deleite duma so­
ciedade polida e aristocrática” ( 13). Não se trata, evi­
dentemente, de obrigar o aluno a andar em jejuns com
o pretêsto de obter elegância de formas.
Transmitam-se, pois, ao aluno sólidaç noções de ciên­
cias, de história, de geografia, de línguas, etc.; tal cousa
é necessária, pois sem matéria não se pode fortificar a
natureza. Sem dúvida que não se querem noções que não
sejam pensadas; mas não se querem também pensamen­
tos sem noções, vazios, ocos. Deseja-se, isto sim, que a
educação desenvolva a inteligência, mas através da assi­
milação do saber. Levar o desinteresse até a indiferença
em face da ciência importaria em debilitar e deformar
a inteligência (14).

(13) Pascal. L’Humanisme et les Humanitcs. Discurso proferido por


Léon Bérard no banquete dos Amis de Pascal, a 23/VI/1929. Revista Les
Lettres, agôsto-setembro 1929 (de Gigord).
(14) Ribot, em sua importante obra, Psycliolcgie des sentiments (pág.
379), diz que “ a busca da emoção intelectual por si mesma confina com
o diletantismo científico, isto é, com uma disposição superficial e uma ten­
dência do espírito a correr em todos os sentidos, sem nada aprofundar” .
E cita o testemunho de dois psicólogos americanos: Dewey e Ladd. O pri­
meiro dêles assim se exprime; “Uma forma sptil que é a moléstia própria
do século XIX” (esta expressão mereceria umá crítica) “é o amor da cul­
tura dó espírito por si mesma. Quanto o sentimento é orientado não para
os objetos, mas para os estados de espírito causados pelo conhecimento dos
objetos, produz-se um amor do conhecer que tem por fim o desenvolvimen­
t o .do próprio espírito. O conhecimento é adquirido com vistas à extensão
e expansão do eu, A cultura de nossas faculdades mentais torna-se um.
Os espíritos superficiais 35

Quem pretenderia que sempre se soube evitar um tal


equívoco na educação desinteressada! No século XVIII,
por exemplo, a sociedade era polida e irremediavelmente
frívola, não só de costumes, senão também de espírito.
Encontram-se ainda moços modernos que, a pretêsto
de distinção, só não se confundem com a massa dos bons
trabalhadores absorvidos pela tarefa em virtude da insig­
nificância de seu impalpável saber: amadores de livros
e de reminiscências literárias, apenas perpassaram pelos
rudimentos da ciência; brilhantes conversadores, são in­
capazes de produzir qualquer obra substancial.
O pedantismo de além-Reno gostosamente pintaria a
França com os traços dessa juventude amável, cortês e
vã. Sua Wissenschaft só vê em nós franceses o “ pedan­
tismo^ da frivolidade” (Mme. de Staél). O êrro de nossos
vizinhos consiste, não em vituperar êsse pretenso pedan­
tismo, mas em fazer dêle o traço característico da nossa
raça.
Como quer que seja, o certo é que uma inteligência
que em seu curriculum escolar não aprendeu a examinar
as cousas a fundo — é uma inteligência “ mal feita” .

Levantemos esta grave questão: de que modo poder-


se-á fazer com que os alunos, que são todos superficiais,
trabalhem em profundidade ?
Aprofundar é cavar; cavar é penetrar incessantemen-

íim em si mesma, e o conhecimento do universo objetivo lioa subordinado


a êsse lim. Os sentimentos intelectuais, deslocados de sua ubicação própria
como funções da vida integral, ocupam um lugar independente na conclên-
ciá. „ Aqui, como sempre em casos semelhantes, a tentativa acaba por sui­
cidar-se, A única maneira de desenvolver o eu é torná-lo objetivo, e a
única maneira de consegui-lo é sacriflcando-o. A cultura do eu ^ibverte
a ordem das cousas e tenta empregar o conhecimento como um puro meio
de satisfazer o interêsse pessoal. O resultado é que o indivíduo não sai
realmente jamais de si mesmo” . (Dewey, Psycholog., pág. 305-306). Ocorre
quanto à vida do espirito a mesma subversáo paradoxal do fim e do resul­
tado que na vida moral. Esquecer-se para encontrar-se é a lei, pois se bus­
camos a nós, perdemo-hos; buscando a ciência, conquistamos nosso espirito.
36 A E strada Beal da Inteligencia

te para além das aparências. Diremos, pois, que traba­


lha em profundidade aquele que, sob as palavras, busca
as idéias, sob as idéias as cousas, sob as cousas as suas
relações, sob as relações as leis, sob as leis os princípios,
e sob os princípios um absoluto, que unifica tôda a mul­
tiplicidade; e depois, quando a razão houver dado por con­
cluído o seu trabalho de penetração, a Fé virá oferecer-se
para revelar-nos uma realidade ainda mais íntima, que
escapava a nossas sondas. Nada vai mais ao fundo das
cousas do que o Fé.
Deduz-.se daí que se é mais ou menos superficial con­
forme o grau de conhecimento em que se pára. Uns fi­
cam nas palavras: passam a sofrer de psitaeismo ( 15),
isto é, passam a falar como papagaios. É por aí que as
crianças se iniciam nas ciências; recitam as fórmulas “ de
cor” ; e se não se as obriga á reflexionar, ficam por muito
tempo retardadas nessa etapa animal. Os educadores de­
vem ensiná-las a romper o invólucro da linguagem.
Outros ficam nas imagens e nas idéias. Não pro­
curam tomar conciência das realidades a que. essas repre­
sentações correspondem. E por isso são vítimas de uma
ilusão. Confundem as cousas com as. suas aparências.
Para julgar, contentam-se com as primeiras impressões;
a miragem dos sentidos faz-lhes as vezes da verdade. É
com tôda a razão que também a estes censuramo-los por
serem superficiais, embora se achem menos do que os
primeiros nas exterioridades da verdhdeira ciência.
Os educadores devem vencer estes perniciosos hábi­
tos de espírito. Os resultados só serão obtidos através
de perseverante esforço. Todas as cabeças levianas de­
vem ser submetidas à rigorosa disciplina dos métodos
científicos e positivos.
Seria contudo de pouca utilidade que se lhes ensinas­
sem unicamente as ciências da natureza, que são objetos
de observações minuciosas, ou as ciências históricas, que

(1S) Cfr. Dugas, Le Psittacisme et la Pensée symbolique (Alcan); Le


problème de l’Education, pâg. 63-96 (Alcan),
ôs espíritos superficiais 37

são construídas apenas com fatos; pois os bons hábitos,


se são ganhos de um lado, podem ser perdidos de outro.
Torna-se1por isso necessário obrigar os espíritos pregui­
çosos a não se contentarem, mesmo em literatura, com
apreciações espontâneas, preferências inefáveis, emoções
incomunicáveis e análises do belo que não analisam nada
de nada.
Compreende-se que as vagas admirações de um Oron-
te irritem a um Alceste mais sensível à minúcia. Mesmo
quando se repetisse sob diversas formas: “ Estou encan-
tadíssimo só com êsse pequeno trecho” , “ Ah! como são
bonitos os termos em que essas cousas são ditas!” , ou
mesmo quando se ficasse “ pasmo” , ou se “ morresse de
prazer” por tuna “ tirada” feliz, admirável, nem por isso
se seria uma “ inteligência bem feita” , mas, sim, uma nova
“ edição especial” do modêlo “ as sabichonas” ( ie).
O educador deve perseguir a preguiça com porquês.
Deverá exigir provas, razões que serão fatos, estatísticas,
datas, resultados, citações, — numa palavra, as pedras
do edifício.
E que não se diga: “ Isso importa na morte da arte
e do gôsto” . O pedantismo, sim; a ciência, não. As fa­
culdades de compreensão e juízo do próprio poeta ou ar­
tista, que são entretanto os homens do sonho, jamais per­
deram qualquer cousa de sua delicadeza por serem estes
doutos e perspicazes. Não se devendo, ademais, esquecer
que os_ poetas e os artistas constituem uma exceção na so­
ciedade, e, em virtude de seu gênio, à margem da educa­
ção normal. Cousa alguma poderia justificar a pedago­
gia que, animada de falsas ambições de finura, incutisse
nos jovens o hábito do trabalho superficial e a ilusão de
que êle representa a bela e boa maneira clássica de pen­
sar (117). Que há, pelo contrário, de mais clássico do que
6
a razão em tôdas as cousas?

(16) Convém ler, a êsto propósito, a cena XI do ato III das Fammes
savantcs. O método de análise superficial é pósto em ridículo.
(17) Acusa-se às vezes Montaígne de não amar a ciência. É um êrro.
38 A E strada R eal da Inteligência

Enfim, para descer mais ao âmago da realidade, tere­


mos a filosofia como guia: recolhendo as conquistas da
ciência, ela ainda penetrará mais avante com os seus mé­
todos próprios de investigação. Dêste novo trabalho em
profundidade, porém, iremos falar mais adiante.

Leiam-se integralmente os capítulos X X V e X X V I do livro I. O texto mes­


m o citado no primeiro capítulo desta obra nâo deve ser amputado: “ Eu
desejaria também que se tivesse o cuidado de escolher-lhe um professor
que tivesse antes a cabeça bem feita do que m uito cheia, e que nele se exi­
gissem as duas cousas, mais p o ré m ... a inteligência do que a ciência” .
CAPÍTULO y
OS ESPÍRITOS IRREALISTAS
Dizíamos que a pedagogia científica utilitarista for­
ma espíritos superficiais. A pedagogia exclusivamente
racionalista conduz a idêntico resultado. Tanto uma como
outra acostumam os olhares a fixarem-se nas abstrações
e, por uma espécie de alucinação, a considerá-las reais,
reais unicamente elas.
Não falo apenas dêsse intelectualismo puro e absorto
que ignora as exigências da vida prática e o qual Chry-
sale, num famoso requisitório, vergastou com seu bom
senso burguês. Refiro-me antes do mais ao próprio vício
do pensamento. Em vez de deixar-se medir pela verdade,
o espírito racional, em ciência ou em filosofia, submete
a verdade às medidas das formas rígidas dos sistemas
abstratos fabricados pelos cérebros humanos.
Os pseudo-sábios têm recebido de escritores de todos
os séculos frequentes varadas. Reverencia-se a massa de
sua erudição, mas não se deixa de sorrir de sua “ toli­
ce” ( 18). E por que? Porque a verdade não se impõe
pela massa; não é quantitativa; é forma espiritual, não
matéria; é inteligência do ser. Assim como “ a verdadei­
ra eloquência zomba da eloquência” , assim também.a ver­
dadeira ciência zomba da ciência; a segunda é artificial,
a primeira segue a natureza.

(18) C fr. Tomaz Diafoirus, em Molière; Boileau: Arrêt burlesque; La


Bruyère: passim; Buffon: Histoire Naturelle, discurso primeiro, Œuvres Com­
plètes, t. I (ed. Garnier), especialmente à pág. 13, “Aldrovante” ; Barrés:
Les Aliborons.
40 A Estrada Real âa Inteligência

“ Quem imaginar uma mulher segundo èsse modêlo,


que consiste em dizer pequenas cousas com grandes pala­
vras, verá uma bela moça cheia de vidrinhos e correnti-
nhas, de quem se rirá, porque melhor se sabe em que con­
siste o encanto de uma mulher do que o encanto dos ver­
sos” . (Digamos aqui, do que a beleza da ciência). “ Mas
os que não entendessem dessas cousas haveriam de admi-
rá-la com todo èsse aparato e em muitos vilarejos tomá-
la-iam pela “ rainha ” , — e por èsse motivo apelidaríamos
de “ rainha da vila” a ciência e os sonetos feitos segundo
èsse modêlo” ( 19).
A Academia de Medicina ao tempo de Pasteur fazia
figura de rainha da vila. Ela ostentava tôdas as insíg­
nias da autoridade científica ao combater a verdade con­
tra a· evidência dos fatos.
É recomendável que se leia essa história aos educan­
dos, bem como as zombarias de Boileau, de Molière e de
tantos outros, afim de inspirar-lhes uma saudável anti­
patia pelos valores falsos; a pedagogia porventura não
orienta as almas através dos sentimentos que lhes vai in­
fundindo? E os alunos então terão a oportunidade de
contemplar, para o seu maior proveito pessoal, em face
de um Pasteur, que “ verifica e controla” qualquer hipó­
tese com minuciosas experiências, a ricficularia de um
cientista veterinário, um Colin d’Alfort, “ cuja necessidade
de discutir, diz Valléry-Radot, era tão imperiosa que che­
gava a mudar de opinião quando se concordava com êle”
(pág. 355, 14.° ed.). Q que fará com que achem ridículos
Colin e seus confrades é a eloquência profissional dêstes
em torno a temas caducos, quando o momento estava a
exigir não o exercício de talentos oratórios, mas a apre­
sentação de fatos que falassem por si sós. “ Estas três
palavras, dizia-lhes Pasteur, tribuna, discurso, orador,
parecern-me incompatíveis com a simplicidade e o rigor
científicos” (pág. 349). É necessário que nossos alunos

(19) Pascal, Pensécs, seção I, 33 (ed. Brunsclawicg).


/0 s espíritos irrealistas 41

alguma vez se riam com sinceridade da galinha de Oolin;


aquela famosa galinha que não tendo podido pegar o car­
búnculo foi um belo dia felizmente comida por um cão
voraz; como haviam esquecido de fechar o viveiro? (pág.
¿84 e segs.).
Um sábio verdadeiro não alimenta preconceitos, não
se atém a concepções que de sólido só têm o que lhes atri­
buem o amor-próprio e a rotina.
Há homens que não querem nem podem evoluir. As
teotias velhas cavaram vincos profundos em seus espí­
ritos como a idade rugas nas faces; e a verdade, que re­
nova a ciência, jamais trará frescor a suas almas. Êsses
homens continuam vivendo naquele tempo em que apren­
deram suas abstrações nos livros; estão mortos para as
épocas futuras em que o gênio do homem, como o corpo,
traz à luz novas gerações de idéias.
Ora, a ciência se faz sem parar; como tudo o que
vive, ela progride por outono e primavera, isto é, por uma
morte parcial de seus quadros e por borbotões renovados
de seiva.
Um sábio autêntico portanto é um homem abnegado;
renuncia a tudo, a si mesmo e ao que foi sua glória, para
votar-se apenas à verdade (20).
Pasteur encontrara no Instituto um homem digno
dêle: Biot, o velho Biot, de seténta e quatro anos. Tam­
bém êle tinha suas idéias feitas, suas fórmulas, suas so­
luções ; o passado construíra em sua inteligência o palácio
da ciência. . Mas sua cabeça era mais bem feita do que a
de seus colegas; êle. não confundia essa ideologia com o
real; êle queria mas era ver, verificar, aprender. Seguia
com paixão as experiências de Pasteur; e tendo constatado
o desvio dos cristais, em que não acreditara até êsse dia,
segurou Pasteur pelo braço e lhe disse a seguinte frase,
qué merece tornar-se célebre: “ Meu filho, tenho amado
tanto as ciências em minha vida que isso me faz saltar o
coração\” {V ie, pág. 47).

(20) Cfr. Bevue Universitaire, abril de 1932.


42 A Estrada Real da Inteligência

Certos amadores de abstrações, pretensos filósofos,


parecem-se com os pseudo-sábios: em lugar da verdade,
põem os seus sistemas, os seus preconceitos, as suas rêdes
de conceitos. A razão deles projeta no firmamento todo
um mundo artificial de que se tornam pouco a pouco os
astrônomos. Uma miragem substitue-lhes a natureza. As
suas abstrações solidificadas representam o concreto.
Pseudo-concreto.
Não queremos dizer com isso que se deva substituir o
uso legítimo da razão por uma espécie de intuição berg-
soniana. Somos dos que acreditam no valor da metafí­
sica. Essa, aliás, é uma questão de que se ocupam os
especialistas em filosofia. Nosso alvo é mais modesto;
permanecémos na ordem pedagógica. Ora, há — nin­
guém o nega, chame-se Lahr, Baudin, Maritain ou Berg-
son — “ ilusões da abstração” ; e todo o mundo está de
acordo em que é necessário premunir contra elas certos
espíritos por demais amantes do raciocínio, afim de que
não se tornem espíritos falsos por irrealismo.
Sem dúvida que os educandos não se acham expostos,
desde o colégio, a contrair êsse mau hábito. Se desejar­
mos todavia que chegados à madureza tenham “ inteligên­
cias bem feitas” , não nos devemos esquecer de fazer com
que compreendam a um tempo o valor' da razão e o ca­
ráter realista da busca da verdade.
A inteligência verdadeira pensa o real (21) ; mesmo
quando fabrica conceitos, ela mede a sua posse de verdade
pela quantidade de real que estes encerram. A inflação
é sempre uma ameaça de bancarrota. Seria perigoso que
a circulação de nossa moeda conceituai não íôsse lastrea-
¡da pela experiência. Os nossos sistemas científicos, as
nossas construções ideológicas só têm valor são e fecundo
quando repousam sobre o ouro autêntico das realidades
concretas.

(21) Cfr. a bela página de Payot: Le travail intellectuel et la volont


pág. 53 e sgs. Consultar-se-á também o excelente artigo, que lamento ha­
ver conhecido tarde demais, de Jean Lacroix, in Correspondant, 10/1/31:
L'Esprit Chrétien et la Cité moderne.
Os espíritos irrealistas 43

Outras tantas conclusões a retirar da educação do


colégio. Um professor “ irrealista” deformaria o espirito
de seus discípulos.
Dir-se-á que tal perigo é porventura remoto? “ Nada
me divertia tanto, escreve Amiel, como ouvir êsse bacha­
rel bem educado refutar Hegel, explicar-me que o pro­
testantismo não é uma religião, provar-me que a nature­
za comete um êrro passando do polígono ao círculo e do
poliedro à esfera, ou reciprocamente, ou que as sãs no­
ções metafísicas a isso se opõem; em outros têrmos, mos­
trar-me de um modo flagrante os limites do espírito fran­
cês, que põe sempre a escola, a fórmula, o convencional,
o apriorístico, a abstração, o fictício acima do real, e que
prefere a clareza à verdade, as palavras às cousas, e a
retórica à ciência. Êles são absolutos, como a ignorân­
cia que nada comparou; só compreendem o preto e o bran­
co, o sim e o não, pondo assim de um lado todas as côres
e de outro todos os graus intermediários entre a afirma­
ção e a negação. São lógicos e não dialéticos. A ten­
dência matemática torna-os incapazes diante do grau su­
perior da realidade; de fato não compreendem cousa al­
guma de nada, embora disputem sôbre tudo” ( 22). Real­
mente, se identificarmos um pouco os nossos estudantes
em tal retrato, pensaremos que é necessário reagir contra
a tendência déles a um racionalismo exagerado.
Seria inegavelmente êrro ainda pior renunciar a essa
exigência de clareza e de lógica que trazemos no sangue
e que constitue a qualidade de nosso gênio francês. Cui­
demos porém de moderar-lhe os excessos, de impedir-lhe
os abusos. Não busquemos a clareza a expensas da ver­
dade, amenizando o pensamento. “ Quando há desacordo,
inadaptação de uma cousa a outra, é a clareza que deye
adaptar-se à realidade e à vida, e não a realidade e a
vida que devem ser mutiladas no leito de Procusto da cla­
reza” (23).

(22) Citado por Daniel Moi-net : Histoire de la clarté française, p&g. 354.
(23) Daniel Mornet, ibid., pâg. 357.
44 À E strada ,Real da inteligência

Mesmo quando fôssemos afeiçoados aos estudos mais


idealistas, como a literatura, â poesia ou a arte, devería­
mos velar ainda assim por ir beber nossas inspirações a
essa fonte da verdade que é a natureza. Êste método, que
traz sempre o trabalho da inteligência em contacto com
a vida, ensina aos estudantes “ que se a arte é de sua es­
sência úm profundo mistério, nem por , isso deixa de ser
uma floração de realidades acessíveis. Ensina que não
há cousa por mais humilde que seja que não encerre te­
souros de beleza e de poesia. Habitua a criança e o jo ­
vem a descobrirem o· encanto dos espetáculos familiares,
das emoções quotidianas, que são levados a encarar com
excessivo descaso, pois que seus sentidos se embotaram
para essas cousas antes de havê-las fruído; a absorverem
as cousas com qlhos sempre novos e a alma sempre fresca.
Ensina também a amar a vida na arte e — proveito ainda
maior — a amá-la fora da arte, a fazer dela, para si mes­
mo, uma inesgotável matéria de arte” (24).
IjC na ação, que é tudo para a maior parte dos homens
neste mundo, os bem sucedidos não são os sonhadores, os
utópicos, os idealistas, mas sim os realistas. A pedago­
gia, que ensina as crianças a bem viver, não o deve es­
quecer. Prestar-se-ia um grande serviço à juventude que
se está a educar se se fizesse com que ela estudasse, ad­
mirasse e imitasse “ a arte de pensar” dos grandes reali­
zadores, como Foch ou Napoleão. “ É talvez o traço mais
admirável desta inteligência, referindo-se Madelin a Bo-
naparte, essa combinação de idealismo e de realismo que
lhe permite lidar ao mesmo tempo com os sonhos mais
prodigiosos e as realidades mais ín fim as... Nenhum de
seus sonhos é quimera, por mais quimérico que o pareça,
e isso primeiro porque vem fundamentado sôbre realida­
des estudadas, e depois porque se traduz imediatamente
para ele em atos concretos” .
É porém necessário ler 1as brilhantes provas que a

(24) Rudler: O método positivo em literatura (Àlcan), no livro,: La


méthofi® positive danS l’Enseignemént.
Os espíritos irrealistas 4,5

história disso nos dá para que possamos admirar o poder


dêsse admirável instrumento. que era a sua inteligência
de chpfe (25).
B o marechal Foch tinha o mesmo estofo intelectual.
Cem vezes, sob várias formas, vê-lo-êmos repetir: “ Não
vos contenteis com o que vos dizem. Ide vê-lo vós mes­
mos. Não vos pergunto o que pensais, dizei-me o que é . .:.
Os fatos aí estão·. É preciso vê-los. Êles não fogem.
Não é com sentimentos que os fareis desaparecer” (26).

(25) Ler aos alunos: Le consulat de Bonaparte, Revue des Deux Mon­
des, 15/VI/29, págs. 797 e segs., por Madelin.
(26) Encontrar-se-á uni grande número de traços semelhantes m Co­
mandante Charles Bugnet: En écoutant le Maréchal Foch, págs. 95 e segs.:
págs. 141 e 142; págs. 174, 175, 176; págs.' 216, 217, 218, etc.
CAPÍTULO VI

OS ESPÍRITOS ESTREITOS

A estreiteza de espírito pode vir da mesquinhez de


caráter. E quando o coração é bom e generoso, resulta
de uma visão acanhada do mundo.
Permita-se-nos invocar o testemunho, tão importante
a êste respeito, dessa inteligência privilegiada que foi
N/ewman. Meditar-se-á com fruto o retrato que êle de­
buxa.
“ Os estreitos de espírito, diz êle, não vêem dificul­
dade em cousa alguma; acreditam-se capazes de converter
os outros à sua concepção de vida, e ficam indignados
quando não o conseguem... Pensam que a sua teoria re­
solve todos os problemas, refuta todos os argumentos, sa­
tisfaz a todos os partidos. . . Julgam-se detentores preci­
samente dessa verdade que faz com que tudo corra às mil
maravilhas. Tornam e retornam sempre com as mesmas
idéias.. . Têm um ou dois assuntos sôbre os quais pedan­
tescamente discorrem com ou sem propósito; e para tudo
têm uma pronta explicação... São incapazes de pene­
trar no espírito do próximo. *Estão empacados em seus
pontos de vista como membros anquilosados por falta de
exercício. . . Quanto ao mundo inteiro do saber, têm-no
já todo dividido em parques como melhor lhes parece,
delimitado, classificado, qualificado; pretendem saber o
lugar de tôdas as coüsas. .. Estão incapacitados de apren­
der uma outra ordem. . . Pensam que uma verdade exclue
outra que dela difira. . . Inconcientes de seu próprio de-
Os espíritos estreitos 47

feito, formam-se tôda a espécie de juízos falsos sôbre os


não-iniciados, sôbre as épocas idas. . . Seu leito é por de­
mais curto para que neles possam estender-se e as cober­
tas por demais pequenas para cobrí-los... Ninguém é
mais fácil de ser conduzido pelo nariz do que aquele que
se acha imbuído de suas próprias idéias. . . Deixam-se
facilmente derrubar e desorientar, tornam-se alarmistas
e acabam com frequência no cepticismo (27) ” .
Aqueles que perderam o contacto com a vida, imensa
e complexa, e que reduzem a existência, a certos proble­
mas particulares de ordem teórica, objetos preferidos de
seus próprios estudos, acabam pouco a pouco por desco­
nhecer a maior parte da realidade. Tem-se aí o perigo
da especialização.
O estudo do universo só pode ser feito pelos homens
com a condição de que cada indivíduo restrinja o alvo e
o ângulo de seu trabalho; isso é evidente. Um jovem
presunçoso, que sonhasse com “ a possessão do mundo”
pela ciência, deveria ser reposto no bom juízo, antes que
malbaratasse tôdas as suas fôrças. Todavia, a escolha,
necessária e voluntariamente determinada, de uma certa
matéria não implica uma exclusão total das ciências ane­
xas, solidárias, convergentes, que a banham por assim
dizer com a sua luz. A especialização, levada ao excesso,
não seria unicamente uma mutilação do conhecimento;
falsificaria também o espírito. E por essa razão dela
tratamos aqui.
Um sapientaço, um Hermágoras qualquer, cego e sur­
do a tudo quanto não se ache escrito nos idosos pergami­
nhos em que mumificou o seu saber, nem mais é homem
para os seus semelhantes. Far-se-á ermitão, ou, se fre­
quenta a sociedade, tornar-se-á uma calamidade. La
Bruyère no-lo descreve a distribuir golpes em torno. Todo
o mundo se empenha em evitá-lo (28).

(27) Trad. de Hovre: XV Oxf. Un. Serm., pág. 304-310.


(28) “Hermágoras nada sabe dos acontecimentos de seu tempo, os quais,
não obstante, fazem o mundo andar, mas está informado da guerra dos gi­
gantes, relata o seu desenrolar e os menores detalhes dela, nada lb.6 escapa,
48 A E strada Real da Inteligência

Todo estudo deve enriquecer a humanidade de quem


o faz. A verdade não tem culpa se há pessoas que, em­
bora possuindo-a, se tornam menos homens. A inteli­
gência trabalha'pela expansão e ampliação da personali­
dade; assim sendo, por que vias se dá que ela às vezes
termine por uma diminuição do valor social? Os “ pri­
meiros da aula” e os laureados em concurso, absorvidos
por suas especializações, descambam com frequência para
uma tal mecanização de sua atividade que acabam não
passando de simples gurizões em face das outras funções
da vida.
Êsse dano não seria de gravidade se se fizesse sentir
apenas na ordem das contingências materiais. Mas acon­
tece que êle Vai atingir a própria vida do espírito. Num
trabalho intitulado “ Ensaio sôbre as causas que podem
afetar os espíritos e os caracteres” Montesquieu apontava
como perigosos ao equilíbrio das nossas faculdades, os
especialismos das diversas profissões. ,Se o citamos lon­
gamente, não é por certo para nada dizer. “ Geral-
mente, observa, tôdas as profissões destróem a harmonia
das idéias. Somos levados a encarar como importantís­
simas as cousas que constituem o nosso merecimento, e
que pessoas como nós todos os dias fazem. Nossa vai­
dade atribue a essas cousas um valor hierárquico muito
elevado entre tôdas quantas se fazem no Universo. H!á
o caso de um Mestre de Cerimônias em Roma que desatou
a chorar de dor pelo fato de que o Cardeal (20), a quem*

decifra do mesmo modo o horrível caos dos dois impérios, o babilónico e o


assírio; conhece a fundo os egípcios e as suas dinastias. Jamais viu Versa­
lhes, Jamais o verá; quase viu a tórre de Babel, conta os degraus dela, sabe
quantos arquitetos dirigiram a çontrução dessa obra, sabe o nome dêsses
arquitetos. Direi que crê ser Henrique IV filho de Henrique III? Negli­
gencia, pelo menos, de saber alguma cousa das Casas de França, da Áustria
e da Eaviera: “Que minúcias!” , resmunga, ao passo que recita de memó­
ria tôda uma lista de reis dos Medas ou da Babilônia, e que os nomes de
Aprenal, de Herigebal, de Noesnemordach, de Mardokcmpad lhe são tão fa­
miliares como a nós os de Valois e de Bourbon. Poderá perguntar se o Im­
perador porventura se casou, mas ninguém lhe ensinará que Ninus teve
duas esposas. Dizem-lhe que o Rei goza de perfeita saúde; .e êle se recorda
então que Thetmosis, um rei do Egito, era valetudinário, ë que recebera
uma tal compleição de seu avô Alepfearmutosis”, etc., etc., cáp. V, a.® 74.
(?g) . 0 Cardeal d’Estrâes, ;
ôs espíritos estreítoá 4§

servia, fizera uma reverência desastrada. No cérebro


dêsse homem, uma reverência ocupava um lugar de mais
importância do que tôda uma batalha no do príncipe Eu­
gênio” .
E passando em revista algumas dentre essas profis­
sões, assinala com um traço caricatural cada uma delas.
"P or exemplo, um homem que ensina pode tornar-se fa­
cilmente teimoso, porque desempenha o papel de homem
que jamais erra. Üm filósofo pode com tôda a facilida­
de perder os floreios do espírito, pois que se habitua a
ver e a julgar de tudo com muita precisão e nitidez...
Os magistrados podem tornar-se extremamente presun­
çosos, uma vez que entrando em contacto apenas com pes­
soas que dêles têm necessidade passam a imaginar que
sua prudência concerta tudo. Um homem que esteve na
guerra pode transformar-se num conversador assaz abor­
recido, porque dá importância aos mínimos fatos que lhe
aconteceram, em virtude de parecerem-lhe relacionados
com os maiores acontecimentos; além de que uma certa
ousadia faz com que facilmente procure fazer-se ouvi­
do” ( so).
Desta maneira poder-se-ia mostrar o defeito profis­
sional que tôda espécie de estudos imprime aos espíritos
de quantos se deixam absorver por êles. Sertillanges
pôde comprová-lo também. “ As matemáticas isoladas
falsificam o juízo, habituando-o a um rigor que não com­
porta nenhuma outra ciência e menos ainda a vida real.
A física, a química obcecam por sua complexidade e não
comunicam ao espírito amplitude alguma. A fisiologia
leva ao materialismo, a astronomia à divagação, a geolo­
gia transforma-nos em cão que tudo fareja, a literatura
nos deixa ocos, a filosofia nos incha, a teologia qos leva
ao pseudo-sublime e ao orgulho doutoral” ( 3 31). Êste au­
0
tor viu êsses defeitos, essas deformações profissionais que

(30) Mélangés inédits de Montesquieu, publicados pelo Barâo de Mon­


tesquieu, Paris, J. Ronam et Cie., 14, rue du Helder, pâg. 146.
(31) R. P. Sertillanges (A.-D.), La vie intellectuelle, son esprit, ses
conditions, ses méthodes, cap. V, "Le champ du travail”, pâg. 107.
50 A E strada R eal da Inteligência

deformam a inteligencia assim como encorcovam os cor­


pos dos camponeses e dos operários.
* *
*
O educador saberá valer-se das lições da Historia para
fazer com que seus discípulos se apercebam dos perigos
da especialização — aliás necessária — das ciências e das
profissões. Cbstuma-se hoje em dia lamentar muito a
extensão dos programas; e se zomba dessa mania dos sa­
pientes de quererem entrouxar nas crianças a ciência uni­
versal. Mas há males que vêm para bem. O professor,
sobretudo se fôr o regente de sua classe, procurará quan­
do tiver ocasião mostrar aos alunos, mediante claras apro­
ximações entre as diversas matérias ensinadas, como tudo
se acha entrosado no universo pensado assim como no
universo crioAo.
Dir-se-á que verdadeiramente se conhece um órgão
do corpo, uma mola de relógio, a beleza de um traço, quan­
do apenas se anatomizou, pela análise, o conjunto de seus
elementos, e se deixou de lado, ignoradas, tôdas as suas
relações com as demais peças circundantes?
A atividade da natureza é um gigantesco jôgo; o jo ­
gador tem parceiros e adversários, na ausência dos quais
nada- há; êle ataca, às vezes rebate; e sua movimentação
segue por momento os caprichos aparentes daquele que
por sua vez está a comandar o jôgo. Assim a natureza
lança as suas cartas sobre o pano do universo, e não se
sabe quem irá ganhar. Pois tudo é relativo a tudo. Im­
porta, por conseguinte, que cada um de nós desempenhe
o seu papel com uma lógica, não apenas interna, isto é,
consultando a sua especialidade, senão também externa,
quero dizer, de olho atento ao conjunto.
Pascal, que gostava se aprofundassem os temas, nem
por isso parece ter deixado de recomendar também as
visadas panorâmicas, de mêdo que q aluno, especializado
antes do tempo, não se pudesse tornar um “ homem culto” .
“ Uma vez que não se pode ser universal, diz êle, e
O s espíritos estreitos 51

saber tudo o que se pode saber de tudo, deve-se saber um


pouco de tudo. Pois é muito melhor saber alguma cousa
de tudo do que só saber tudo de alguma cousa; umâ tal
universalidade é mais bela. Se se pudessem ter as duas
cousas, tanto melhor, — mas se é preciso escolher, esco­
lha-se a p rim e ira ...” (Pensées, Seção L. 37).
0 professor, porém, casará à lição o exemplo. Teo­
ria nenhuma nem ciência alguma valem em educação tan­
to como a longa convivência com espíritos simpáticos a
tôda verdade e beleza e que saibam reunir em si a compe­
tência téçnica em determinado assunto com uma curio­
sidade inteligente acêrca de tudo o mais: “ almas univer­
sais abertas e justas para tudo” , como diz Montaigne
(1,17).
0 espírito aberto é hospitaleiro; o que ignora, inte-
ressa-o; dá atenção ao que se lhe ensina; forte em seu
terreno, confessa-se fraco nos demais; recorre a cada um
em seu ofício próprio; abstém-se de contradizer os que
falam de seus próprios assuntos, bem como suporta em
silêncio que um papalvo o contradiga nos seus. Pensa
que todos os homens se lhe assemelham, isto é, que sen­
tem prazer em comunicar o que descobriram; e o serviço
que acredita prestar a outrem com o seu saber, parece-lhe
que cem outros também lho prestam com os seus.
Para possuir a verdade, portanto, totalizemos os es­
forços parciais, — pois doutra forma só teremos sucedâ­
neos dela, poeira científica (32).
(32) Releiamos os clarões que Pascal lançou em seu manuscrito das
Pensées, seção I, n.°s 34 a 40 (ed. Brunschwicg). Suas reflexões são justas
eôbre o homem de sociedade, mas bem mais ainda sôbre o Educador. Re­
leiamo-las do ponto de vista da formação da criança! "É necessário que
não se possa dizer nem que êle é matemático, nem prègador, nem eloquente,
mas que é um homem culto; somente esta qualidade universal me agrada.
Quando, ao ver um homerA, recordamo-nos de seu livro, é mau»·1sinal; dese­
jaria que se notasse alguma qualidade unicamente pela coincidência e a
ocasião de usar dela” . Assim, quando se ensina, importa que se seja se­
nhor do tema. "Que não se pense que êle fala bem, a não ser quando se
trata de falar bem; mas que então se pense nisso” . Descendo da cátedra,
quando educa, deve desvestir a sua investidura de doutor especialista. “ O
homem está cheio de necessidades; e só ama aqueles que podem satisfazer
a tôdas. É um bom matemático, dir-se-á. Mas nada tenho que fazer com
matemáticas, e êle me poderia tomar por uma proposição. — É um bom sol­
dado. — Tomar-me-ia por uma praça sitiada. Requer-se, pois, um homem
culto que possa atender em geral a tôdas as minhas necessidades.”
CAPITULO VII

OS ESPÍRITOS MALEDICENTES

Que haja um espírito crítico saudável, — noutras pa­


lavras, um judicioso espírito de discernimento, — nin­
guém o duvida. Mais até: à leitura deste livro reconhe-
cer-se-á que a formação do juízo, capaz de avaliar e men­
surar com justeza todos os reais valores, é precisamente
uma das finalidades principais da educação humanista.
Esperamos que não nos façam a injustiça de tomar­
nos por um adversário do espírito crítico assim entendi­
do (33).
Os espíritos críticos (no plural), isto é, maledicen­
tes, são ao contrário parcialmente cegos, — míopes, se se
prefere. Dotados de uma aguda percepção do mal, não
notam a presença do bem; e por esta razão carecem de
discernimento, de lucidez, ou seja, de espírito crítico no
bom sentido da palavra.
Desejaríamos mostrar aquí a que ponto a ignorância
ou o desconhecimento habitual do bem é um sinal de uma
deformidade da visão na ordem intelectual.
Os espíritos maledicentes combatem os erros. E para
combatê-los, rastreiam-nos; diremos que os caçam como
fina caça? Atraem-nos a armadilhas preparadas, na es­
perança de preá-los.

(33) A Sagrada Escritura nos recomenda de orar a Deus- para que nos
conceda èsse senso crítico, v. g., Sabedoria, cap. 7, 8, 9, Eclesiastes, pas­
sim, Mateus, 7, 15,
Os espíritos maledicentes 53

Excelente é a intenção que os anima; inspira-a um


alto ideal.
0 seu método porém é inçado de defeitos, dêsses de­
feitos mesmos que se propõe investigar. De qualquer
lado que se examine a concepção que da vida humana se
fazem os espíritos denegridores, e também a sua tática
de combate, percebe-se sempre nela um desvio da verda­
deira inteligência. E: é por êsse motivo que à educação
cabe o dever de prevenir tal ruindade.
O velho êrro maniqueu, que casava a todo ser bom
um mau companheiro, domina-lhes ainda a mentalidade.
Em vez de considerar em concreto as imperfeições ineren­
tes às criaturas como outras tantas qualidades inacaba­
das, essa antiga teoria as vê como autênticos objetos exis­
tenciais, paralelos ao bem.
Que ilusão! Não se cai em tamanho êrro quando se
filosofou sôbre a natureza do mal. Essa hipótese de tra­
tar o mal como se fôsse um ser, colocado sempre às ilhar­
gas de outro que fôsse o bem, nada tem de científica; já
foi denunciada como pura ficção imaginosa.
Os espíritos maledicentes são, pois, embaídos por sua
própria imaginação, êles que tanto se gabam de ser os
únicos a bem ver as cousas.
Ademais, a cruzada dêles em prol da verdade, da
beleza, da justiça, de tôdas as virtudes, deveria consis­
tir em trazer fortaleza à fraqueza destas grandes causas,
e nunca em promover uma campanha contra o falso, o
feio, o injusto.
Seu lema é destruir: “ Aniquilemos o inimigo” . —
Quando a divisa deveria ser construtiva: “ Fortifiquemos
o bem” . Pois fazendo o bem, acaba-se com o mal.
O êrro dessas gentes, portanto, nasce de lima aluci­
nação inconciente que realiza uma abstração — o mal em
si e vai desembocar finalmente na loucura de uma pugna,
não mais apenas entre o mal e o bem, acima das cabeças,
mas entre os próprios homens sinceros partidários do bem.
Desencadeia uma autêntica guerra civil, que põe em mú­
tuo conflito os defensores do uma mesma çidade.
54 A Estrada Beal da Inteligência

Que resulta daí? Os erros, com efeito, são sempre


incubadores de desgraças. Do presente êrro resulta uma
desvalorização de tôdas as realidades espirituais que tor­
nam estimável a vida humana.
A verdade enfraquece-se numa luta em que se com­
bate a si mesma, pois cada uma das facções em luta se
arma com a verdade de que· dispõe. E assim contempla-se
uma espécie de suicídio larvado.
A beleza emporcalha-se de toda a lama espadanada
pela batalha; tanto têm de belo as conquistas pacíficas,
quanto de feio as disputas entre irmãos pela posse de
uma herança.
A caridade degenera em farisaica hipocrisia; pois sob
o disfarce do amor de Deus, acaba-se por amar-se a si
mesmo à custa do próximo.
E quantas misérias outras nascem ainda de tais dis­
putas! As almas, lançadas à desconfiança, perdem as
suas convicções. O que se supunha problemático torna-se
logo duvidoso. Elas hesitam em crer. Nada mais veem
que a fumarada. Onde está pois a verdade, se cada um
pretende que ela não se acha com seu adversário? Para
que uma fé vacile basta que as suas bases percam a fir­
meza apenas num só ponto. A condenação do espírito de
crítica sistemática é, portanto, legítima.
*

* $

Compete aos educadores extirpar o espírito de crí­


tica sistemática de seus discípulos. Prestar-lhes-ão des­
sa forma um inestimável serviço; ampliarão mais o reino
de Deus com essa formação do bom espírito do que com
toneladas de apotegmas e debates. Já de muito tempo
que se vem cruzando ferros na imprensa com o fim de
fazer triunfar de um lado e do outro o que se pensa ser
a verdade, sem que até hoje se tenha podido esclarecer,'
pacificar ou unificar os espíritos. Tem-se pelo contrário
a impressão de que a unidade espiritual se tem fragmen-
Os espíritos maledicentes 55

tado de mais em mais, como se a verdade fôsse mera pre­


sa que todos abocam e puxam para si. ,
Trabalhemos, pois, pelo verdadeiro progresso, me­
diante uma pedagogia previdente.
De que método usaremos com as crianças? Cremos
que seria possível condensá-lo nos seguintes pontos:

l.° — Habituar o espírito delas a buscar os defeitos


das obras e dos homens somente depois de haver compre­
endido e explicado tudo quanto suas qualidades continham
de verdade e de beleza. Interdizer-lhes o menor esboço
de censura, enquanto lhes restar qualquer cousa a elogiar.
Se forem secos e pobres em face do mérito, fazer com que
vivamente sintam que importa em indigência de espírito
substituir o elogio pela crítica. A incapacidade do co­
ração de deixar-se invadir pela admiração e a impotên­
cia da razão em penetrar os segredos da arte importam
em imperioso convite a ficar calado; quando menos, na
privação de todo direito de julgar.
Um julgamento é sempre uma espécie de confissão;
com nossas apreciações patenteamos o valor de nossa in­
teligência, de nosso gôsto, de nossos princípios, de nossos
sentimentos. Muitas vezes traímos assim, junto aos co­
nhecedores, a nossa mediocridade. A incompreensão de
certas finuras de raciocínio ou de técnica artística põe-
nos ridículos ante quem disso entende.
Se os autores se premunem, contra a opinião vulgar
não é porque essa opinião prevaleça contra a perfeição
mesma de suas obras; mas é que ela prejudica a sua irra­
diação. Os escritores às vezes são vítimas de injustiças;
são condenados sem terem sido ou tendo sido lidos apenas
às pressas e pela metade. ,
O respeito devido à i-eputação de alguém é algo inti­
mamente ligado à educação. Como se explica que ho­
mens bem educados, que têm verdadeiro escrúpulo de evi­
tar os “ mosquitos”, como diz a Sagrada Escritura, pos­
sam não obstante gloriar-se de “ engolir camelos” ? Es­
ses tais recriminam-se de vivezas de caráter que não çau-
56 A E strada R eal da Inteligência

sam nenhum mal grave, mas vangloriam-se de escachar


os seus adversários em doutrina, com o risco de matá-los.
À raiz de certas críticas emitidas por plumitivos sem
autoridade 'nem competência há um êrro de julgamento.
Têm mais o espírito equivocado do que culpa no coração.
Imaginamos ter o direito de correr o risco de criticar er­
rado. É vão alegar que a confiança na imprensa em nos­
sos dias é tenuíssima; de qualquer forma, não se pode
brincar com a verdade.
É por conseguinte um princípio de educação que o
espírito das crianças se conforme à disciplina da verda­
deira crítica; só devemos julgar-nos autorizados a falar
dos defeitos depois de termos provado que possuímos a
inteligência total das qualidades. A educação para a ma­
ledicência — mesmo negativa — é uma calamidade social.

2.° — Entre os sofismas que devemos combater quan­


do nos ocupamos com a formação do espírito há um que
o espírito de crítica não cessa de fazer cometer. Êsse
sofisma consiste em supor que se negou tudo quanto não
se afirmou; dever-se-ia sempre entender, segundo alguns,
que o autor rejeita tudo o que omite, que condena tudo
quanto não· se propôs louvar.
A composição francesa exige a unidade de tema, de
fim e de meios; ater-se a ela importa, pois, em afastar de
seu caminho a universalidade das questões, à exceção de
uma. E, contudo, êste justo rigor fica exposto a todos
os ataques; quereriam que sempre se falasse de tudo, ou
pelo menos de tôdas as hipóteses que a marcha do pen­
samento vai suscitando no espírito de um leitor casual.
O vendaval porventura se detém em cada folha morta
que põe em rodopios ao passar? Be que maneira, pois,
a andadura lógica de uma idéia se iria detendo em todos
os problemas transitórios? Se por ocasião da leitura de
qualquer tema, certas questões esporeiam a curiosidade
de minha razão sempre ávida de digressões, esta não tem
por que acusar o autor de haver omitido a solução delas.
Seria uma verdadeira subversão da lógica declarar
Os espíritos maledicentes 57

que êle diz não lá onde êle não diz sim, e viceversa. Ha­
verá algo mais evidente e mais elementar do que uma tal
regra de boa crítica ?
E, contudo, vêmo~la diariamente violada com uma
perfeita inconciência.
Como se explica que a educação não tenha costuma­
do o espírito a seguir êste princípio: só se deve condenar
o que não se pode justificar; deve-se sempre justificar
o que não merece uma condenação. Questão de lealdade,
sem dúvida. Mas sobretudo questão de hábito. Pois a
lealdade é uma virtude adquirida.

3.° — A terceira qualida.de que se deve comunicar


ao espírito, desde a meninice, é o hábito de distinguir:
a) as idéias e as pessoas, b) os princípios e a prática.
a) A distinção entre as idéias e as pessoas é, capital
do ponto de vista da justiça e da caridade. O humanis­
mo elevou tão alto a humanidade na estima dos homens
que as pessoas são por assim dizer cousas sagradas. O
cristianismo·, bem ao contrário de condenar êsse respeito
pelas almas, alçou-o ao seu mais alto grau e deu disso as
razões profundas. Os erros, verdadeiros, germes infec­
ciosos da inteligência humana, não merecem nenhuma
consideração; quem puder exterminar os germes vivos
que matam o homem e'.sobretudo o espírito do homem, —-
que o faça, pois será um benfeitor da sociedade.
Entretanto, assim com o operar o mal, opera-se tam­
bém o doente e como um pode levar o outro, assim tam­
bém ao combater certos erros toca-se nos espíritos que
os assimilaram como caras verdades. Muito cuidado en­
tão, pois seria iniquidade mover a luta contra o êrro sem
aumentar o respeito e a caridade devidos às pessoas, às
suas almas, na medida mesma em que se intensifica o vi­
gor da ofensiva. Semelhantemente, tanto mais redobra­
rá de delicadeza o médico no trato de um corpo que sofre
quanto mais energia fôr obrigado a empregar contra o
abcesso mortal.
58 A E strada Real da inteligência

E quem haveria de pretender que em tais precauções


há a mínima aparência de duplicidade?
0 espírito fica anuviado por enorme confusão quan­
do não faz essa distinção. Pôr as pessoas a salvo dos
golpes não é uma simples tática sentimental, — é, repi­
tamo-lo, um dever de justiça e caridade. Quem não o
percebe, carece nesse ponto de reto juízo.
b) A distinção entre os princípios e a prática não
é menos importante nem menos desconhecida. Se o li­
beralismo é um êrro condenado, é-o em virtude de sua
pretensão de flexibilizar os princípios ao sabor das opi­
niões. Pois uma verdade é como um raio de sol: um obús
pode atravessá-lo sem o afastar de sua linha; a verdade
é o raio de luz de Deus, eterno e imutável. Os princípios,
na medida em que são verdadeiros, são pois eternos e imu­
táveis, em si mesmos e em suas consequências teóricas e
práticas. Sobre isto há acordo.
■Todavia, a aplicação feliz, útil, dos princípios à vida
é tão flexível quanto são rígidos os princípios. Pois a
luz acompanha os contornos dos objetos e vai desenhando
sombra e luz segundo a forma dêles. A “ crítica” dirá
possivelmente que admitimos o rigor dos princípios em
teoria e que o rejeitamos na prática: atribuir-nos-ia as­
sim uma contradição ou as duplicidades da política. Mas
não é isso o que dizemos. Pretendemos apenas que as
boas cousas devem ser administradas progressivamente
e segundo as necessidades e as forças de cada um.
Por que motivo estão no êrro os espíritos incapazes
de adaptar os princípios às contingências? A razão é
bastante simples. A verdade, quando doada às almas,
assume também os caracteres de bem. Trata-se de fazer
com que as almas vivam e não que morram. A verdade
passa por graus na manifestação de sua fôrça; assim
como os judeus diziam que não podiam ver a Deus sem
serem aniquilados por esta chama, assim também certas
almas debilitadas ou enfêrmas não podem receber com
fruto certas verdades por demais fortes; o que é bom para
Os espíritos maleãicentes 59

uma torna-se pernicioso para outra; uma intensidade mo­


derada de luz pode alumiar; ofuscante, pode cegar.
O bem é, pois, uma cousa essencialmente relativa às
capacidades e disposições das almas. Louco seria o mé­
dico que fôsse distribuindo os remédios biológicos, quími­
cos, elétricos, sempre em doses violentas, sem distinção
de doentes. Todas as criaturas, o fogo, a terra, a água,
o ar, são benfazejos em justas proporções, — nocivos,
quando utilizados desmedidamente. O mesmo acontece
com a verdade. Em tôdas as ordens, espiritual, intelec­
tual, moral, política, a verdade deve ser dosada pelo bem
das almas; portanto, proporcionada às disposições subje­
tivas das quais depende o bem real.
Nosso Senhor velou o Verbo, conservou-o escondido
por trinta anos, e depois o revelou aos amigos, com mise­
ricordiosa sabedoria. Quem pôde contemplar a sua gló­
ria sôbre o Tabor e após sua Ressurreição? A verdade
jamais foi mais cuidadosamente dosada do que nos lábios
de Jesús. Seu fim era sem dúvida o de tornar conhecido
o P ai; mas êsse conhecimento do Pai não devia cegar nem
perder as almas, — a revelação era para a vida: ut vitam
habeant.
Os espíritos justos compreendem a necessidade dessa
salutar prudência, que é uma manifestação da bondade
da Providência; e mantêm, ao mesmo tempo, a absoluta
inalterabilidade dos princípios. Os espíritos mal feitos
não a compreendem, e não têm consideração com as pes­
soas ; a verdade em suas mãos é uma fôrça orgulhosa que
se não domina e que esmaga os fracos. Não a"honram.

4.° — Acrescentaremos uma última observação sô­


bre o método que se deve ensinar às crianças para a luta
dos espíritos em prol da verdade.
Ero face do adversário deve-se seguir o sistema da
continuidade e não o da oposição. Quero dizer que em
vez de postar as nossas idéias em face das idéias do ad­
versário como dois inimigos irreconciliáveis, devemos uní-
las em suas partes comuns e completá-las em suas partes
60 A E strada Real da Inteligência

divergentes. Sem dúvida que o que assim se visa não


é um acórdo político, em que a verdade, posta ao serviço
dos interesses, perdería o seu caráter absoluto; esforce-
mo-nos porém por nada sacrificar do que já está provado
e em seguida a corrigir os erros, como se não passassem
de mera ignorância de alguma cousa e não obra de von­
tades pervertidas.
De fato, as oposições de idéias são como a luz e¡ as
trevas; uma, a obscuridade, é a ausencia da outra, a luz,
ou antes a -privação da outra; elas não se repelem; ao
contrário, uma invoca a outra, como dois sêres que mu­
tuamente se necessitassem. Nossos erros são verdades
claras com horizontes brumosos. De que maneira dissi­
pá-los, senão projetando claridade para além dessa linha
divisória onde começam a penumbra e a sombra?
Destrói-se a antítese, não pela confusão, mas pela
síntese viva, que tudo reduz à unidade, desprezando as
divergências fictícias e assimilando o vital.
Eis o que incumbe ensinar às crianças por ocasião
de todas as discussões de idéias que constantemente são
provocadas em aula diante déles, para êles, e até por êles.
Em virtude de seu temperamento, a juventude, comba­
tiva e presunçosa, afirma e nega, louva e condena, em
seus temas escritos e conversas, com uma intemperança
de linguagem a que falta inteiramente a equidade. Os
educadores haverão pois de encontrar mil oportunidades
para ensiná-las a bem pensar, afim de depois poderem
falar com uma justa apreciação das cousas ( 34).
A discussão entre inteligências mal feitas descai para
o bate-boca, em que os espíritos e a verdade mais perdem
do que ganham; ao passo que entre inteligências bem fei­
tas ela é uma das condições do progresso.
Agitando o objeto da investigação, a discussão faz
cair em'poeira a crosta dos preconceitos, das prevenções,

(34) Entretallo, há também o peíigo opôsto de se ser por demais aber­


to e hospitaleiro, a tôdas as Idéias, sob pretèsto de simpatia pelo pensamen­
to dos adversários, A educação da inteligência exige firmeza e doçura.
Os espíritos maledicentes 61

das rotinas, das falsas imagens; impede que a razão pri­


sioneira das fórmulas fique estagnada como a água nas
aluviões paradas; faz desfilar sob nossos olhos os diver­
sos aspectos das cousas que nos escapariam sem a ajuda
de outrem; põem à prova o valor das razões, mostrando as
dificuldades, as lacunas, as malhas desfeitas, as limitações
de nossas concepções pessoais (35).
Os espíritos justos entendem a crítica como uma con­
vergência de luzes parciais; os espíritos falsos, como uma
pugna entre indivíduos armados de verdades. A educa­
ção fará espíritos justos (36*).

(35) Ler a êste respeito Ollê-Laprune: Vitalité chrétienne (1901) pâg 89


(36) Ozanam tinha o espírito Justo na controvérsia. Sobre êste belo
modêlo 1er Mons. Baunard: Frédéric Ozanam, cap. XVI, págs 310 e segs
CAPÍTULO VIH

OS ESPÍRITOS DE FACÊTAS

Os vidros côncavos ou convexos deformam as propor­


ções reais dos objetos. As imagens aumentadas, dimi­
nuídas, alargadas oú achatadas pelos espelhos dessa es­
pécie provocam um riso irresistível.
Semelhantemente são os espíritos que não vêem as
cousas em suas verdadeiras proporções. Parecem cons­
truídos de várias lentezinhas, e não de uma substância
uniforme e límpida. É por êsse motivo que os chamamos
espíritos de facetas. Vício de conformação muito grave
e, infelizmente, muito comum.
Visando a brevidade — pois nesta primeira parte
apresentamos apenas um ligeiro esboço de algumas fisio­
nomias intelectuais — condensaremos em certas linhas
gerais a presente espécie de deformação.
A hierarquia dos valores humanos exige que coloque­
mos os valores da alma acima dos valores da inteligência,
os da inteligência acima dos do corpo; depois, os da vida
sobrenatural acima dos da vida natural; e ainda, p ponto
de vista geral acima dos pontos de vista particulares;
enfim, o bem comum acima do bem privado.
Não nos deteremos a justificar essa escala de valo­
res. Haverá filósofos que alterem a ordem assim esta­
belecida? Não o creio (37). Em todo caso, se o fizes-

(37) Há, evidentemente, os que Implicitamente negam a possibilidade


do sobrenatural.
O s esp írito s de fa c e ta s 63

sem, discrepariam tanto do bom senso como da história


universal do pensamento humano.
Entretanto, esta hierarquia, por todos aceita* no pla­
no teórico, é com muita frequência contraditada na prá­
tica pelos juízos particulares dos homens. Ora, a exis­
tência de, um tal conflito é prova de que há espíritos que
não vêem os objetos nas suas exatas dimensões. São es­
píritos feitos de facêtas.
Exponhamos alguns fatos.
A importância que em certos meios se dá, por exem­
plo, aos esportes é evidentemente exagerada; e revela uma
deformação do juízo pelo ofício, tanto mais lamentável
porque assim se exalta a parte animal do homem (38) .
Há diversas maneiras de fazer o corpo predominar
sôbre o espírito; pois a sensibilidade mesma e o amor do
prazer relevam do corpo. Ora, que lugar de eleição não
ocupa na vida da maior parte dos homens o divertimento,
e o amor pelo dinheiro que o torna possível ? Os homens
sensatos, quando falam, profíigam a cupidez do ouro.
Mas êsses mesmos estão constantemente a retirar. Mam-
mon do lugar de abjeção reservado aos ídolos para de-
pô-lo sôbre o altar dos mais luxuosos templos da terra.
Não há nada mais frequente do que o uso dessa lógi­
ca absurda que ^cultiva o espírito para o corpo, quando o
único razoável seria cultivar o corpo para o espírito. Imi­
tam dessa forma aqueles que vivem para comer.
Geralmente as obras de filantropia, que visam o bem-
estar e o divertimento, alcançam muito mais sucesso do
que as que têm por fim a elevação do espírito; aliciam
mais mesmo as pessoas bem educadas. As bibliotecas e
os laboratórios nacionais pouco interessam aos ricos, pou­
co interessam até a êsse enorme capitalista, o Estado, ao
passo que os campeonatos de boxe e as exibições que deli­
ciam os sentidos parecerão dignos de enormes artigos da
imprensa e de gastos faustosos. Se as “ cenas da vida

(38) Cfr. Ami du clergé, 21/5/1931. Conferência sôbre os esportes.


64 **31 E strada Real da Inteligencia

futura” (39) devessem generalizar-se, o que se generali­


zaria seriam as doenças do espírito. Quando um gover­
no favorece por sua cumplicidade uma tal epidemia, está
a aviltar o povo ao qual tem por missão educar.
É, pois, necessário tudo ordenar à saúde, à felicidade
e mesmo ao luxo do espírito.
Os valores propriamente intelectuais, porém, não se
acham no cimo da hierarquia. Pois a alma é mais que
o espírito. Ela é vontade tahto quanto espírito, — que­
ro dizer, apetite do bem. Acima da lógica há a moral.
Não basta conceber o fim último; é preciso que o homem
o alcance com todas as suas forças.
Ora, o pouco aprêço que um grande número de cé­
rebros humanos atribuem à moralidade de seus atos está
a provar com evidência que vêem as cousas através de
lentes deformadoras.

Ademais, acima da moral natural reina a ordem so­


brenatural. Geralmente se pensa que esta ordem se su­
perpõe à realidade, sem dela fa^cr parte; seria por con­
seguinte possível ver com justeza, mesmo na suposição
de que ela não existe. Engano. O sol que domina o nos­
so mundo astral não é apenas um ser a mais; sua luz e
seu calor fazem o nosso dia, que não se pode conceber
sem êle, e penetram tôdas as fibras da terra para ani­
má-las de vida. Semelhantemente a graça que, mesmo
quando não se torna uni estado habitual da alma, não ces­
sa de estimular as inteligências à verdade e as vontades
ao bem. ,A natureza pôr si só não dá jamais as razões
últimas, totais e profundas, da ação dos sêres.
Verdade é, ademais, que a Providência conduz o mun­
do como quer. A liberdade humana não governa o uni­
verso: caracteriza as ações morais; a Sabedoria de Deus
tudo dirige, —■mais ninguém sabe de que modo Ela conduz
a um tempo o conjunto e o mínimo pormenor a seus fins.

(39) Iiivro.de Ddhamel,


O s espíritos de facetas

Explicar portanto os acontecimentos, sem recorrer à


Providência, importará em desembocar n o m istério, na
incoerência e às vezes no absurdo. Há possivelmente.njM
ciência das cousas sujeitas ao determinismo; mesmíresS®’
é incapaz de elucidar a origem das Leis e sua imutabili­
dade, sem a Providência. Em todo caso a ciência das1
ondas e dos vendavais humanos, que resultam do uso e
abuso da liberdade, está destinada ao fracasso se não se
recorrer ao Governo divino.
Unicamente as luzes da Fé proporcionam soluções
certas na obscuridade mesma em que a razão plana.
Resulta de todos êss-es -exemplos que o espírito hu­
mano, limitado às visadas naturais, não pode julgar das
cousas segundo as justas proporções da verdade. O mun­
do da alma acha-se então ofuscado por uma faceta, que o
reduz quase a nada.

Outro caso de deformação:

Certas inteligências são feitas de tal modo que o bem


geral lhes parece ter escassa importância ao lado do bem
particular. Aqui também tôdas as proporções se acham
alteradas.
Dizia sorrindo La Rochefoucauld: “ Sempre se tem
bastante coragem para suportar os males de outrem” . E
a êsse respeito quase não há exceção entre nós; nogsa»
misérias pessoais são de importância sem igual; osjfoê0à<
amores, os nossos projetos, os nossos planos,
idéias a-pesar-de serem essencialmente relativas^ef|ffl^*:
ras, consideramo-lás a tôdas como absolutas, mjjgurartf
Como o sol do meio-dia; o .resto está na sombra.! ^ certâ|
mente uma doença universal ò ■encarniçamento
nos empenhamos a fazer com qüe nossas op in iod S g ^ ^ -
leeam sô.bre tôdas as outras e em tôdas as circunstaq^s^·
o egoísmo alterou, nossas pupilas, e assim como at$4§^-’
rícia a tudo comunica a côr amarelada, assim também 'êfe
agiganta desmesuradamente a importância de nossos pen­
samentos pessoais.
68 " 1 Á E strada Real da Inteligência

As consequências disso são funestas. Pois um insen»


sato que pretendesse pôr de pernas para o ar tôdas ajl
pirâmides ainda espalharia menos desordem em seu re i
dor do que o individualista de espírito que se imaginai
que a sociedáde e as obras de todos devem gravitar enf
tôrno de suas idéias particulares; êste também põe tôdas!
as cousas de pernas para o ar. - tj·
Sua conversa é insuportável ; um homem tal mensura
tôdas as palavras dos outros pelo seu gabarito e rejeita,,
como lixo,, tôda verdade que ultrapassa as suas concep­
ções. ' Ignorais porventura um detalhe que êle sabe! É
de ver o escândalo que imediatamente arma em tôrno
dêsse grão de areia! Ou sabeis acaso qualquer cousa que
êle ignora? Pois dará a entender que estais a falar de
cousas inúteis ou tôlas, — pelo menos quando vos con­
cede a oportunidade de falardes disso.
Assim., pois, não se pode negar que o mundo tenha
mil faces e mil formas — conforme os olhos que o vêem,
Todos nós andamos sempre mais ou menos atacados de
oftalmia. Protágoras ensinava a arte “ de fazer peque­
nas as grandes cousas e grandes as pequenas” . Atual­
mente não mais necessitamos de suas lições. Êsse sofis­
ma alterou nossas inteligências e falsifica um grande nú­
mero de nossos raciocínios. Pois muito naturalmente to­
dos nós vivemos a fazer pequenas certas grandes cousas
e grandes certas outras que na realidade são pequenas.

Unicamente os educadores podem remediar em parte


a estas defeituosas maneiras de pensar. Se todos êles
fôssèm “ inteligências bem feitas” , sempre poriam em seu
magistério cada cousa em séu lugar. Não se renderiam
à tentação de exagerar ou-».subestimar o valor real dos
objetos : os do corpo, da .inteligência, da alma, da socie­
dade. Avaliariam as grandezas relativas de tôda.a cria­
ção, confrontando as ordens (ordem ,da carne, do espírito,
O s esp ír ito s ã e fa c ê ta s m

da caridade) e as proporções. Mostrariam que o que pa­


rece grande ao lado do anão é nanico perto do gigante.
Enfim, trariam constantemente sob os olhos a compara­
ção dos valores, a o r d e m exata, sempre, e a hierarquia
inteira, do cimo ao pé. " -
Bossuet era unia inteligência deste gênero; um per­
feito equilíbrio impregnava todos os seus juízos. Não era
dos que recusam admiração ao que a merece ou a dão ao
que não tem valor. Os Impérios, assim, por mais pode­
rosos que tivessem sido, êle os avaliava como um punha­
do de areia em sua ruina. É preciso ouví-lo recordar ao
libertino insensato, que nada mais vê senão desordem
neste mundo, o dever de encarar tôdas as cousas “ d e u m
c e r to â n g u lo ” . - Então, diz, “ tôdas as linhas desiguais
vindo imediatamente a encontrar-se de um certo modo em
nossa visada, tôda a confusão se dissipa, — e vêdes sur­
gir úma fisionomia com lineamentos e proporções onde
antes não havia sombra alguma de forma humana”.
Para bem julgar, tudo está em colocar-se no ângulo
exato. “ Se souberdes encontrar o ponto de onde se de­
vem encarar as'cousas, as desigualdades tôdas se retifi­
carão, e somente vereis sabedoria onde só imagináveis
desordem” ( ,0) .
A educação do juízo consiste precisamente em “ saber
encontrar êsse ponto”. Pois, de outro modo, as perspec­
tivas e as proporções estando deslocadas, tudo se passa
como se se tivesse um espírito falso.
Seria desejável que os educadores, pais sobretudo, fis­
cais, professores das várias matérias, jamais exageras­
sem o- valor das disciplinas que lhes dizem respeito, nem
por amor à popularidade, nem por ignorância, querida
ou não, da ordem universal das cousas. Os espíritos en­
tão seriam mais bem formados.4 0

(40) Bossuet: Sermón sur la Frovidence, tóptoo primeiro.


CAPÍTULO IX

OS ESPÍRITOS APAIXONADOS

É lícito dizer-se ao mesmo tempo muita cousa má e


muita cousa boa da influência das paixões sobre a inteli­
gência. Um filósofo do século X ^ I I , Helvétius, pôde, a
êsse respeito, escrever dois capítulos, dos quais um tem
por título “ Da superioridade das pessoas apaixonadas so­
bre as pessoas sensatas” , e o outro “ Tornamo-nos estú­
pidos assim que cessamos de ser apaixonados” .
Êsse autor faz observar que os apaixonados conse­
guem levar a bom êxito ousados projetos “ em cuja exe­
cução fracassaria qualquer homem sensato, o qual, de­
vendo o seu predicado de sensato unicamente à sua inca­
pacidade pessoal de ser movido por fortes paixões, sem­
pre ignora a arte de inspirá-las” . E há uma alma de
verdade, não concordais?, no seguinte paradoxo: “ O ho­
mem de bom senso é um homem em cujo caráter a pre­
guiça domina: não é dotado daquela atividade d’alma que
nos primeiros postos faz com que os grandes homens
inventem novas forças para mover o mundo, ou semeiem
no presente o germe de futuros acontecimentos” (41).
Tirai a paixão aos grandes sábios, aos grandes ar­
tistas, aos grandes poetas, aos intuitivos e aos realiza­
dores de primeiro plano, e lhes tereis arrancado por as­
sim dizer os próprios olhos: êles perdem a agudez do
olhar. Eis por que nada mais foi necessário a certos

(41) ajuvres d’HcIvétius, tomo n , pág. 4.


Òs espíritos apaixonados 69

espíritos pesadões, para elevar-se acima do comum, senão


entregar-se com paixão a um belo sonho. Ao passo que
outros, nascidos para grandes empresas, vegetam e em­
brutecem-se se se deixam ficar prisioneiros de qualquer
emprêgo subalterno.
Helvétius crê ter ainda observado que “ é também na
idade das paixões, isto é, dos vinte e cinco aos trinta e
cinco ou quarenta anos, que se é capaz dos maiores es­
forços, tanto de virtude como de gênio. Nessa idade os
homens nascidos para a grandeza já adquiriram uma cer­
ta quantidade de conhecimentos, sem que suas paixões
quase nada hajam pedido de sua atividade: passado êsse
tempo, debilitam-se as paixões em nós, e com isso sobre­
vém o têrmo do desenvolvimento do espírito; a partir de
então não se adquirem mais idéias novas, e por maiores
que sejam daí por diante as obras que se venham a com­
por, nada mais se faz do que aplicar e desenvolver as
idéias concebidas ao tempo da efervescência das paixões,
e das quais ainda se não fizera uso” ( 42).
Contudo, por mais justas que possam parecer essas
mordazes observações, basta haver meditado Pascal, Bos-
suet, Malebranche, e tantos outros moralistas, basta mes­
mo consultar nossa própria experiência dos homens e nos­
so próprio coração para que nos convençamos do funesto
efeito das paixões sôbre a inteligência na busca da ver­
dade. Tôda e qualquer verdade pode ser negada, e mes­
mo algum dia o foi, por algum homem cegado pelas pai­
xões. “ O espírito é sempre joguete do coração” . “ Todo
o nosso raciocinar consiste em ceder ao sentimento” .
“ 'Nosso próprio interêsse é um maravilhoso instrumento
que nos fura agradavelmente os olhos” (43) . Quem o
diz é Pascal, que não morre de amores pela razão.
Possuídos pelo amor-próprio, acabamos não somente
na cegueira, na alucinação, mas também no ódio. Se a
verdade fôsse amada sem restrições, não mais haveria

■ (42) Helvétius: Discours III, caps. VH e VIH.


(43) Pascal, Section II, 82.
70 A Ë strada Real da Inteligência

neste mundo falsos pretestos para dividirmo-nos e entre-


degolarmo-nos. Mas “ não faz a verdade tanto bem neste
mundo quanto as suas aparências o mal” (M) ; o mundo
é presa da mentira, porque a mentira pode travestir mil
e uma formas propícias às paixões, ao passo que a imu­
tável verdade as condena, humilha e mortifica,
O problema da influência do coração sôbre a retidão
do juízo, e por conseguinte sôbre a formação do espírito,
é talvez o que mais deveria preocupar a conciência pro­
fissional dos mestres.
Citamos Pascal, Malebranche, Bossuet, La Rochefou-
cauld, como testemunhas irrecusáveis no processo que o
bom senso move contra a imaginação. Aos moralistas
porém conviria aduzir os filósofos. Desde a tese de Ollé-
Laprune sôbre a “ Certitude Morale” até a obra de Eu­
gênio Rignano sôbre a “ Psychologfe du Raisonriement”,
dois livros de inspiração muito diversa, quantas e quan­
tas sapientíssimas análises têm demonstrado em nossos
dias que o espírito é dirigido por estados afetivos como
a agulha pelo ímã! “ A atividade afetiva, escreve Rigna­
no (pág. 532), aparece-nos pois como impregnando íôdas
as manifestações de nosso pensar. Pode-se mesmo dizer
que ela é o único e efetivo arquiteto que, servindo-se do
material intelectivo de puras memorizações imaginativas,
armazenadas em nossos sedimentos mnemónicos senso-
riais, constrói o edifício inteiro de nossa razão, desde o
mais humilde do mais ínfimo animal até o mais sublime
do homem de gênio” (4 45).
4 .
Se é verdade que o coração, com seus secretos im­
pulsos, é o grande artífice de nossos juízos, — não é aca­
so igualmente verdade què a educação do espírito deverá
necessariamente começar por uma educação do coração?
Só se terá uma inteligência bem feita se se tiver um co-

(44) La Rochefoucauld, Maximes, 64.


(45) Nem por isso aprovamos a filosofia de Rignano, nem que a atividade
afetiva seja o único arquiteto, nem que ela construa todo o edifício: Psy­
chologie du raisonnement (Alcan).
O s esp írito s apaixon ados 71

ração bem feito. 0 ensino não basta por si só para con­


duzir-nos. à verdade. Ê necessário acrescentar-lhe um
ascetismo espiritual, que atue sôbre o próprio trabalho, da
razão. Ascetismo de todos os momentos, pàra renunciar
a tôdas as preferências passionais que arrastariam o es­
pírito para fora do reto caminho. Desprendimento, ab­
negação, purificação, — estas grandes palavras cristãs
estão à base tanto do conhecimento como do amor. “ Bem-
aventurados os puros de coração: êles verão a Deus”. A
verdade se dá a quem a merece; merece-a quem a ama;
ama-a quem a pratica. ,
Um colégio, portanto, não se compõe unicamente de
aulas, mas de tôda uma organização enj que têm parte
necessária as três espécies de vida, a espiritual, a inte­
lectual e a física. E, a alma por assim dizer de tôda a
formação, e sobretudo a alma da formação d° espírito, é
a vida espiritual. Unicamente a graça, contanto que a
ela correspondamos com generosidade, pode fazer com
que morra em nós tudo quanto obstaculiza o acesso à
verdade. Cegamos nossa própria inteligência na medida
em que, infiéis à graça, nos entregamos aos sentidos.

* *
* '

Indubitavelmente, é necessário dar às crianças ati­


vidades apaixonãíites, afim de fazê-las fugir à morna ro­
tina; importa, porém, que tôdas elas estejam inflamadas
da p a ix ã o da v e r d a d e ! O gránde Gaston Paris, no Colé­
gio de França, é a êsse respeito um belo exemplo. Êle
mesmo revelava o' segredo de tôda á sua vida de magní­
fico labor: “ Eu professo absolutamente e sem reservag
essa doutrina de que a ciência não tem outra finalidade
senão a verdade, e a verdade por si mesma, sem nenhuma
preocupação pelas consequências que essa verdade possa
ter na prática. Todo aquele que por algum motivo pa­
triótico, religioso e mesmo moral se permite, nos fatos
que estuda, nas conclusões que tira, a menor dissimula-
72 A Estrada· Real da Inteligência

ção, a mais imperceptível alteração, não é digno de ocupar


um lugar no grande laboratório em que a probidade é um
título de admissão mais indispensável do que a própria
competência!” Não se atina com motivo algum religioso
ou moral que pudesse desencaminhar o investigador de
um tal ideai, porquanto somente há religião ou morali­
dade no amor da verdade.
Gomo quer que seja, não tem força nem grandeza o
educador se não souber acender no coração dos discípu­
los essa flama ao pé da qual nada valem a ciência e os
brilhantes dons da inteligência — a flama do amor pela
■verdade pum. É ela que deve reinar na alma dêles. En­
sinemo-los a dominar as forças da concupiscência. De
outro modo, para que serviria ensinar os moços? Seus
interesses e desejos, aumentando com a idade, falsificar-
lhes-iam a visão e a vida: “ o interesse fola tôda espécie
de línguas e imita tôda espécie de personagens, mesmo
a do desinteressado” ( i0) .
De todas as paixões,· a que mais corrompe o senso da
verdade é o orgulho. Insistamos sôbre êste pecado ca­
pital.
“ Arrias tudo leu, tudo viu, pretende'disso convencer
os outros, — é um homem universal, e como tal se apre­
senta; prefere antes mentir que calar-se ou parecer igno­
rar qualquer cousa” . Tal é o orgulhoso de espírito. É
uma humilhação para a ciência produzir sandeus que se
gabam de sábios. O orgulho é sempre fim mau sinal.
Suscita nos ignorantes o desejo de permanecer o que são.
Ao passo que a ignorância conciente de si mesma,tem os
encantos da humildade. Ser-se cheio de si e persuadir-se
invencivelmente de que se tem muita inteligência é um
acidente que quase só ocorre a quem não a tem ou a tem
pouca. Infeliz de quem se ache exposto à palestra de
uma tal pessoa!” (4 47). .
6

(46) La Rochefoucauld, Maximes, 39.


(47) Joubert, título Vili, LVI.
O s espíritos apaixonados ___________ íâ

Ademais, um homem de instrução comum, se é mo­


desto, está mais apto a possuir a verdade do que êsses
“ sabichões” que, no dizer de Montaigne, não passam de
“ feridos-das-letras” , “ em cujas cabeças as letras deram
um martelaço, como se diz” (4S). “ Oh cabeças de pe­
dra!” — é tudo quanto se pode dizer déles. “ Que é que
se pode fazer entrar hum espírito que está cheio, e cheio
de si mesmo?”
O castigo dessa suficiência é a incapacidade de apren­
der daí por diante o que quer que seja, e mesmo de re­
conhecer que nada Se sabe; pois a ciência humana é evi­
dentemente um quase nada. “ A dignidade tôda do ho­
mem consiste no pensar . . . Mas que é êsse “pensar ?
Como é to lo !. . . Para que fôsse desprezível seria preciso
que tivesse estranhos defeitos; mas os têm tais que nada
é mais ridículo. Como é grande por sua natureza o pen­
sar! E como é ínfimo por seus defeitos!” (4 49).
8
A humildade de espírito é marca de inteligência; é
uma distinção de raça que caracteriza os que fizeram bom
curso de Humanidades. Léon Bérard, ao defender a cau­
sa dos estudos greco-latinos, teve várias vezes oportuni­
dade de colocar o ponto alto do Humanismo na inteligente
humildade. “ Direi mesmo que o resultado mais feliz de
uma boa formação secundária é o de deixar em quem a
teve o desejo e o meio de viver intelectualmente a vida
tôda (aplausos). De onde segue que os seus resultados
não devem ser avaliados pela quantia e variedade das
noções recebidas e retidas, mas pelo grau de adiantamen­
to do espírito (novos aplausos) . . . Uma boa cultura ê
aquela de que se guardam ao mesmo tempo hábitos quase
inconcientes que se confundem com a marcha mesma do
pensamento, e uma alertesa, uma suscetibilidade de in­
teligência, que faz com que de tempo em tempo, ante uma
dificuldade que o acaso nos antepõe, nós nos digamos:
“ Percebo‘ que verdadeiramente não sei grande cousa a

(48) Montaigne, liv. I, cap. XXV, ed. Strowski, pág. 179.


(49) Pascal, n.° 365. ,
U À Èstraâa Real âa Inteligência

êste respeito; que não compreendí bem esta questão; que


vai ser preciso dar um jeito nisso” . (Aplausos). Eis aí,,
senhores, o objetivo do ensino secundário” ( 50). Êle pró­
prio retomou várias vezes essa mesma fórmula, como fe­
liz expressão do que se entende pela flor das humanida­
des.
Semelhantemente, os mais ilustres vultos do mundo
das ciências, das artes e das letras, são em geral dotados
de uma luminosa modéstia. Nos elogios que lhes são di­
rigidos, felicitam-nos por isso como por uma qualidade
superior que comunica o mais refinado encanto a seus
talentos. Assim é que Sainte-Beuve se inclina ante a
docilidade de Joseph de Maistre em corrigir suas obras
em virtude de certas observações de um crítico avisado:
“ É tocante a humildade sincera, diz êle, da parte de um
homem tão altamente dotado” .
Chateaubriand amava as críticas fecundas: “ Não
se me pode dar maior prazer, confessa, do que me adver­
tir quando incidí em êrro; todos sempre têm mais luz e
mais saber do que eu” (51).
Palavras sinceras ou não, — que importa?; merecem
sê-lo. Os gênios modestos são os únicos que honram o
humanismo.
Daí se vê qual é a tarefa do educador. Professor,
ensinará as ciências; educador, acostumará o espírito à
humildade; é uma cousa completamente diversa, e muito,
mais difícil. Deve fazer com que seus discípulos leiam
e releiam Pascal, afim de que se lhes dissipe a ilusão do
orgulho intelectual. “ As ciências têm duas extremidades,
que se tocam. A primeira é a pura ignorância natural
em que se acham todos os homens ao nascer. A outra
extremidade é aquela a que chegam as grandes almas, as
quais, tendo percorrido tudo quanto os homens podem sa­
ber, vêem que nada sabem, e se encontram assim nessa

(50) Discours: Pour la réforme des études classiques, pâg. 159.


(51) Vie de Kancé, prefácio da segunda edição.
Os espintoâ apaixonados n5

mesma ignorância de que haviam partido: a final, porém,


é uma sábia ignorância que se conhece” . Que a criança
adquira, pouco a pouco, sob a influência do mestre, esta
disposição de espírito, virtude necessária à boa formação.
Todo ensino que leva à incuriosidade da suficiência, à vai­
dade, ao desdém, ao melindre, — numa palavra, que en­
gendre tôda a sequela do farisaísmo doutoral, está a de­
monstrar por isso mesmo que não tem capacidade para
levar a instrução à educação. O divórcio destas cousas,
educação e instrução, deve ser evitado acima de tudo.
Uma inteligência bem feita não é um cérebro em que to­
dos os recantos estão cheios e enjeitam as novas contri­
buições do progresso. Permanecer aberto e livre sempre
— tal é a condição da verdadeira inteligência e uma das
finalidades da pedagogia.
CAPÍTULO X

OS BONS ESPÍRITOS
í
Bons espíritos são os espíritos perfeitamente equili­
brados: melhor metáfora não bs pode caracterizar. Ne­
nhuma qualidade particular basta por si só para fazer
um bom espírito; o mais erudito ou o mais artista dos
homens pode ainda ser um espírito falso e perigoso. Quan­
to mal não causaram ao mundo certos gênios transviados!
O privilégio dos bons espíritos é a 'plenitude, é o acordo
das qualidades opostas, é a harmonia das notas comple­
mentares. Nesta harmonia pouco importam a intensida­
de e altura do som. O que se exige antes de tudo é a jus­
teza do tom.
É por êste motivo que somente uma análise dos de­
feitos podia fazer com que compreendêssemos êsse todo
complexo que se qualifica de bom espírito . . . “ Bonum
ex integra causa, malum ex quocumque defectu” , diz o
axioma. É dizer que uma só imperfeição basta para de­
safinar todo o instrumento.
Num instante pode dissipar-se a confiança que tivés­
semos podido depositar num espírito que sob qualquer as­
pecto fôsse superior à mediocridade geral. A superiori­
dade, própria às inteligências bem feitas, vem precisamen­
te dessa retidão e dêsse “ pleno” no julgamento, que in­
fundem confiança e que por infundirem confiança as fazem
dignas de guiar os homens menos cultivados nos cami­
nhos da verdade.
Por aí se pode avaliar a importância da missão dos
Os bons espíritos 77

professores. Ela se mede pela importância que o juízo


tem para o homem. Os mestres que formam bons espí­
ritos, isto é, os únicos mestre bons, — exercem sôbre
os indivíduos e as sociedades uma influência profunda e
duradoura. Incomparável atuação!
Tentemos demonstrá-lo em poucas palavras.
O verdadeiro, o belo, o bem, ou, noutras palavras,
a ciência, a arte, e mesmo a religião, — a vida espiritual
tanto como a vida intelectual, — repousam sôbre um fun­
damento necessário: a inteligência reta. Não que se pos­
sa prescindir da graça para os fins sobrenaturais; mas
porque é legítimo dizer também da própria vida sobrena­
tural: “ Quidquid recipitur, ad modum recipientis reci-
pitur” Ora, a inteligência não é a menor dentre essas
capacidades receptivas. Todas as cousas podem tornar-se,
nos espíritos falsos, o que se tornam — guardadas as pro­
porções — os sacramentos, cousas santas, nas conciencias
mal dispostas: um prejuízo para a alma.
~Ê incalculável o malefício causado em todos os do­
mínios, mas sobretudo nas questões que relevam da polí­
tica, da moral, da religião, pelas campanhas orais ou es­
critas movidas por espíritos mal feitos. Malefício tanto
mais funesto, quanto estes espíritos, pelo fato de serem
mal feitos, não podem compreender o seu próprio êrro e
nocividade.
Semelhante tara não pode ser curada em idade ma­
dura: então é inveterada; o amor-próprio a protege e a
torna impertinente. Póde-se, porém, prevenir o seu de­
senvolvimento e efeitos pela educação. Jamais se dirá
bastante, bem da influência que pode ter um bom mestre.
. Há quem' imagine que o apostolado, específicamente
restrito às cousas da Igreja, faz um bem profundo e real,
ào passo que as cousas humanas não mereceriam que de­
las nos ocupássemos. Tais oposições repugnam ao au­
têntico catolicismo universal ( *S2). Na realidade, a edu-

“ ' ,l......... 'A’


(52) Cfr. o cap. I X .
78 A E strad a Beal da Inteligência

cação do juízo é um apostolado muito útil ao reino de


Deus.
A fé, que bem erroneamente se pretende ser oposta
à ciência, só conhece um inimigo capital: o inimigo mes­
mo da verdade. Tudo o que favorece a verdade favorece
a fé. Pois a verdade é una. Há uma tendência a acre­
ditar que aquela teme a luz. Bem pelo contrário, ela
foge tôdas as sombras, exceto as que são essenciais aos
mistérios e que, de uma certa maneira, são obscura lu­
minosidade no céu imenso. Ela teme unicamente os pseu­
do-sábios, ou, mais exatamente, a deformação do espírito
indevidamente relacionado com a ciência.
A fé ama a inteligência; qucerit intellectum. Deus
é espírito puro; portanto sem mistura. Ora, a fé é uma
participação ativa do homem no espírito de Deus; e a
visão total do absoluto, tal como se conhece, será o fruto
de seu florescimento na eternidade.
Quantos homens não chegam à fé simplesmente por­
que não chegam à luz! A inteligência dêstes se extravia
pelos descaminhos das trevas, embora ela seja feita para
abrir-se à claridade da luz. É que ela está viciada por
defeituosos hábitos do pensar, ou pela tirania embrutece-
dora das paixões. Sua causa inicial é a educação mal
conduzida; é como que um pecado original; os males mais
graves muitas vezes têm suas raízes nesses primeiros
anos.
Quantos descaminhamentos na vida moral dos não-
crentes e na vida espiritual dos crentes são também de­
vidos a uma deformação do espírito! Sim, a vida espi­
ritual tem sido caricaturada por alguns dos que a prati­
caram! .Pois embora todos os cristãos hajam tido boa
vontade, um grande número dêles não tiveram bastante
bom senso ou justeza de espírito para não desfigurá-la.
Por êsse motivo a Igreja recomenda às almas ávidas
de perfeição a direção espiritual e a obediência virtuosa.
Afastar-se dêste humilde método de submissão hierárqui­
ca é, fiado nas próprias opiniões e no amor-próprio, ex­
por-se aos mais perigosos transvios.
O s bons espíritos 79

Não queremos evidentemente com isso dar a enten­


der que tendo um bom espírito, ser-se-ia capaz de guiar-se
a si mesmo; a vida intelectual progride com as precau­
ções da modéstia; e a vida espiritual pertence à ordem
sobrenatural em que o homem, indigno, só avança me­
diante o auxílio da graça e a prática das virtudes. É,
porém, sempre verdade que os espíritos, mais ou menos
falsificados, lidam naturalmente com as cousas religiosas
com mais iuhabilidade ainda que com os assuntos huma­
nos, e estão mais cegos pela ilusão nesse terreno do que
em nenhum outro. Os autores espirituais nos advertem
de que a experiência confirma o veredicto da Santa Es­
critura: “ Lumbi mei impleti sunt ülusionibus” (pág.
37) (53). Cada um de nós deve ter a coragem de dizer
que as ilusões invadiram a medula de seus ossos. A Imi­
tação, à frente de todos os livros verdadeiros, declara que
muitas almas são vítimas delas: multi falluntur; muitos
trakit, âecipit (L. III, cap. 54).
Ora, entre essas ilusões muitas há que indubitavel­
mente vêm do demônio. Quantas, porém, nascem; muito
simplesmente ou antes do mais, do próprio estofo espi­
ritual e duma certa mentalidade?
Consideremos, por exemplo, nas duas extremidades,
os laxistas e os escrupulosos. À maior parte destes falta,
antes de tudo, juízo. E é por essa razão que tomam de
través os problemas e as soluções. E, considerando-os de
um errôneo ponto de vista, permanecem irredutíveis em
sua maneira de ver.
É tão difícil ser limpidamente verdadeiro consigo
próprio que mesmo as pessoas sensatas com dificuldade
escapam de deixar-se embair por suas paixões. O Padre
Faber, que como tantos outros lançou uma crua luz sôbre
as mentiras inconeientes da vida interior, não se arreceia
de escrever: “ Um homem perfeitamente verdadeiro é o
mais raro dos fenômenos. . . Uma sinceridade sem pe­

(53) Tomamos no sentido da Vnlgata.


80 A Estrada, Real da Inteligência

numbras é indubitavelmente a maior das graças, mais


rara que a das austeridades e macerações que nos assom­
bram na vida dos santos, mais rara que o amor dos sofri­
mentos, mais rara que a graça dos êxtases ou do martí­
rio. O fato é que todos nós não passamos de disfarces . . .
O primeiro passo para a franqueza consiste em saber o
quanto nos afastamos dela” ( M). Assim, achamo-nos
todos nós mais ou menos desviados do juízo reto e são
pelas, paixões. Se é verdade, todavia, que a burla do
amor-próprio nos ronda a todos, — em meio a que abo­
mináveis falsidades não vivem, talvez inconcientemente,
essas pobres almas que não têm o juízo equilibrado de si
nem senhor de seus atos!
Os educadores têm, pois, uma, missão do mais alto
valor a desempenhar. Cabe-lhes equilibrar e retificar
êste juízo tão necessário. De um lado, afastam os obs­
táculos de tôda sorte à conquista da verdade; do outro,
cultivam as forças verdadeiras em detrimento das forças
ilusoras. Tudo depende dêles. Êles tornam o bem pos­
sível e muitas vezes fácil, e o mal pelo contrário difícil e
muitas vezes impossível.
O verdadeiro, a beleza, a bondade cercam-nos por to­
dos os lados; não é portanto a luz o que falta. É preciso,
porém, que o homem seja capaz de seguir a boa via no
entrecruzamento dos caminhos diversos, O ar é ao mes­
mo tempo vivificante e cheio de miasmas; necessário é
que uma fôrça interior absorva o germe benfazejo e ex­
pulse o micróbio assassino.
Ora, os educadores apetrecham as almas com estes
poderes salutares.
Pode-se^ contudo, dizer que seja sempre essa a gran­
de preocupação dêles? Frequentemente deparamos com
alguns que parecem ter uma única finalidade: ensinar,
tornar sabido o que os livros codificaram. Sem dúvida5 4

(54) Conférences spiritueUes, Retaux (18B8), capitulo sôbre a sincerida­


de, pág. 146.
O s bons espíritos 81

que a ciência é digna de seus esforços. Mais, porém, o


é a formação dos espíritos? Preocupem-se, pois, os mes-
tres de plasmarem “ inteligências bem feitas” , mediante
métodos apropriados. Tanto é fácil ensinar com erudi­
ção, como difícil adaptar as lições às necessidades de cada
um, de cada idade e de cada natureza espiritual.
Parece que· o ideal seria que cada criança fôsse edu­
cada por um preceptor particular que soubesse atender
às exigências de seu temperamento, de suas aptidões, de
seu desenvolvimento, de suas tendências boas ou más, —
numa palavra, de sua educação. Êste ideal, porém, é
quase, irrealizável.
Numa certa medida o verdadeiro mestre sabe multi-
píicar-se em tantos preceptores quantos são os alunos de
sua aula. ' Como diz o Evangelho a respeito do Bom Pas­
tor, êle conhece individualmente todos os seus, e quando
fôr preciso, sabe abandonar o rebanho inteiro por um s ó ;
maneira de dizer que o Bom Pastor não abandonará à
mais humilde de suas ovelhas.
Encontrar-se-ão muitos mestres verdadeiros? O de­
votamente, a abnegação de espírito, de coração, de von­
tade e de tôdas as forças, reclamadas por uma tão bela
vocação, são excepcional apanágio unicamente de certa
e lit e / Conta-se que o Padre Lenoir passou durante seis
meses, meia hora por dia, a exercitar particularmente um
discípulo que parecia não muito dotado. Ser capaz de
tal é ser digno da vocação de educador.
Os pais, que não podem ensinar, pois frequentemente
se ocupam com outra profissão que a de professor, têm
o imenso e nobre privilégio de vigiar e retificar o cresci­
mento em inteligência de seus próprios filhos. Podem
assim prestar-lhes incomparáveis serviços se, hábeis em
discernir as capacidades, os gostos, as inclinações, os bons
ou maus hábitos, os desvios e as retidões do julgar, as
pletoras ou as anemias espirituais, tiverem ademais a
arte de orientar os estudos déles no sentido —: não o mais
inferiormente utilitário — mas o mais favorável ao equi­
líbrio de suas forças intelectuais. A escolha das maté-
82 A E strada Real da Inteligencia

rias favoráveis, a escolha das disciplinas que são antes


maneiras de pensar que objetos diversos de estudo, a es­
colha dos mestres, cujo contacto sempre deixa uma mar­
ca, a escolha das leituras cuja eficácia é tanto mais pe­
netrante quanto mais discretamente se vai instilando, a
escolha dos métodos de trabalho, — numa palavra, a di­
reção de tôda a atividade pessoal dos filhos não deve ser
deixada ao acaso e ao Deus dará. Os pais deverão super­
visionar isso tudo.
A responsabilidade déles acha-se implicada, nessas
questões de educação, acima e além da dos professores.
Êles bem compreendem que seria um pecado deixar que
o filho se tornasse corcunda ou coxo. E não seria um
crime que êle ficasse, como diz Pascal, com o “ espírito
coxo” ?
É por essa razão que os pais têm o dever de conhecer
a sua função de educadores.
A leitura dos capítulos .seguintes ajudá-los-á a resol­
ver certos problemas inevitáveis.'
Há uma finalidade necessária: a inteligência bem
feita. E há também uma série de meios próprios para
obtê-la. Designamo-los com esta ilustre palavra: Huma­
nismo.
SEGUNDA PARTE

O MEIO DA FORMAÇÃO:
o HUMANISMO
INTRODUÇÃO

Nesta segunda parte consideramos o Humanismo


como o meio objetivo de formar “ inteligências t>em fei­
tas”. Não se trata em absoluto de traçar nestas páginas
um programa de estudos. Yã ambição, aliás. Nosso es­
forço visa a prática. E como um pastor que atrita o
sílex para obter o lume, desejaríamos nós também mos­
trar a flama que cada matéria traz escondida em si e que
deflagra quando manipulada por hábeis dedos.
Êste tema, todavia, suscita múltiplas questões; elas
preocupam os educadores, e às vezes os dividem.
A eterna batalha do humanismo acha-se atualmente
em um dê seus ■períodos de crise aguda. Os golpes cho­
vem de todos os lados. Não apenas as revistas pedagó­
gicas, mas também as revistas políticas·, sociais, religio­
sas, os jornais, os livros, a imprensa inteira cerra fileiras
pró ou centra a reforma profunda da educação (®5) , A
querela da escola única despertou a atenção do próprio
povo.. O tema é da mais alta importância se tem poder
para despertar a paixão de todos os partidos, mesmo dos
mais estranhos aparentemente às preocupações escolares'.
O’ futuro da França achar-se-ia porventura em jogo?5

(55) Ofr. Cahiers Foi et Vie: Pour un Humanisme nouveau. Enquête


dirigée par M. Paul Arboussc-Bastide, . agrégé . de, philosophie. , Préface do
M. F. Strowski. Paris, 139, boulevard du Montparnasse. · - Este inquérito
contém as respostas de uns sessenta, homens eminentes, de todos òs 'parti­
dos, 'a cátorze questões capitais propostas por P. Arbousse-Bastide a respeito
do magno tema do Humanismo. A obra traz uma bibliografia importante
e moderna, à qual remetemos o leitor. Ver sobretudo o inquérito no En­
seignement chrétien, desde abril de 1932,
86 A E strada R eal da Inteligência

Há quem pretenda que na solução dêsse problema está


comprometida a sorte mesma de nossa pátria. . 0' novo
humanismo e o humanismo antigo greco-latino seriam
duas concepções filosóficas, literárias, artísticas, políticas
e sociais da vida francesa moderna.. De uma tal diver­
gência de idéias surgiriam duas Franças, em detrimento
da própria França. Tornar-se-ia portanto necessário re­
fundir todo o passado e criar o porvir nacional na uni­
dade dos espíritos.
Não sejamos, porém, pessimistas. Não exageremos
nada. Entre dois excessos há sempre uma via média.
A moderação indubitavelmente haverá de triunfar pela
fôrça do bom senso francês, que sabe em todas as cousas
achar a justa medida.
Numerosos espíritos, justos e prudentes, estão já a
trabalhar nesse sentido. Acham-se convencidos de que, a
verdade e com ela a vida e a fecundidade somente nascem
da união do progresso com a tradição. E para manter
essa aliança necessária, têm o apoio certo do catolicismo
da Igreja.
Não há tradição por inerte e rotineira que recuse re­
ceber constante fecundação dos germes sempre novos do
progresso, infatigável semeador. Não há, não menos,
progresso que despreze na intemperança de seu orgulho
o seio materno da história viva de onde tirou e de onde
sempre tirará sua existência e fôrça de expansão.
Nesta segunda parte desejaríamos tentar dar expres­
são, sem traí-lo em demasia, a um pensamento de con­
ciliação entre a tradição e o progresso. È preciso que se
saiba mediante quais disciplinas poder-se-ão formar bons
espíritos, e de que modo elas se podem transformar em
meios ou obstáculos, na obra da educação intelectual.
CAPÍTULO I

O TRÍPLICE ASPECTO DO HUMANISMO

Humanismo é grande vocábulo que não se define com


uma simples penada. Transformaram-no num dêsses tí­
tulos flamantes menos aptqs a rotular uma doutrina de­
terminada do que a incitar e desenvolver os apetites das
gerações ávidas de novidades. É por tal motivo que, a
cada época tormentosa, quando o vento agita as cabeças,
se torna a falar de novo humanismo. Os teóricos se es­
forçam por captar, como ondas rolando na atmosfera, as
secretas aspirações dos povos, sequiosos de grandeza e
gôzo. Mas estas aspirações são tão numerosas e tão inex-
tricavelmente emaranhadas, e mesmo às vezes de tal modo
contraditórias, que esses teóricos não são mais capazes
de encontrar os têrmos exatos que, eliminando as bulhas
parasitas e a confusão das tendências, permitissem ouvir
unicamente as vozes autênticas da alma francesa.
Afim de desenredar a confusa meada de tôdas essas
teorias, distingamos três cousas que nos parecem ser os
elementos essenciais do humanismo integral: a cultura,
a civilização e a “ humanização” . Estes vocábulos dizem
respeito de desigual modo ao mesmo objeto; donde os
equívocos e as obscuridades embaraçantes. Para nos en­
tendermos um pouco sobre o sentido déles, restringire­
mos a suq acepção comum, segundo as análises de um
mestre. Em livro recente {La Société internationale et
88 A E strada Real da Inteligência

les Principes du Droit public) (30) , o Rdo. Pe. Délos pre­


cisa essas noções de úm modo admirável.

l.°) A cultura é para um povo o que a terra é para


a seara. Compreende, na base, a natureza com a totali­
dade de seus recursos intrínsecos e, mais, o desenvolvi­
mento especial que a todas essas potências indetermina­
das da natureza imprime o trabalho sempre renovado do
homem. Enquanto o trabalho humano não penetrou as
entranhas do solo, a riqueza que nele se acha mergulhada,
inutilmente escondida, por si mesma nada mais produz a
não ser espinhos selvagens. Uma nação, porém, como
uma terra, ao longo dos sulcos que a rasgam, recebe se­
mentes: estas excitam as suas virtualidades nativas, fe­
cundam-nas; a natureza, então, doa o seu humo às se­
mentes lançadas pela mão do lavrador. E um povo parti­
cular, original e belo, surge então como uma colheita des­
sa fusão misteriosa; dá os seus frutos e produz por sua
vez sementes que se renovam a cada estação.
Uma raça, portanto, não nasce cultivada; sua cultu­
ra própria é feita de perfeições físicas, morais e intelec­
tuais, que ela foi dolorosamente adquirindo ao longo dos
séculos pela assimilação das energias de luz, de calor, de
alimento espiritual, religião, ciência, arte, hábitos, costu­
mes, tôdas essas maneiras comuns de pensar, de imaginar,
de sentir, de querer, de agir, que lhe foram trazendo pou­
co a pouco a procissão de seus antepassados. Ademais o
esforço das gerações sucessivas está incessantemente a
enriquecê-la com novos acréscimos, Um povo, pois, é
uma longa e paciente cultura desabrochada, uma semente
que cresce reproduzindo-se. .
Por isso as raças não são nem homogêneas nem uni­
formes. Há uma geografia humana dos caracteres étni­
cos como das regiões da terra. Nenhum déles e da mes-5 6

(56) La Société internationale et les Principes du Droit public, por


J.-T. Delos, prefácio de Louis Le Fur, Paris, Pédone, 1929; cir. cap. III,
pàgs. 64 a 94,
O tríplice aspecto do Humanismo 89

ma espécie nem tem a mesma perfeição na infinita va­


riedade dos valores. Para produzir o gênio eslavo, ou
grego, ou romano, ou indú, ou hebraico, ’ bem se sabe que
não foram as mesmas causas que concorreram, e que a
grandeza peculiar de cada um dêsses gênios tão diversos
não é efeito do acaso ou dum belo dia. O selvagem Al-
gonquim e o negro da África não se beneficiam hoje da
mesma cultura que o francês, cuja história de vinte sé­
culos de antepassados revela a magnífica herança. Uma
nacionalidade é uma mentalidade que se transmite com
o sangue e a vida (575 ) . Um estrangeiro, filho de sua
8
raça e por ela educado, não tem a mesma forma de inte­
ligência que os nacionais que o hospedam, nem o mesmo
modo de encarar as realidades, nem as mesmas reações
espontâneas em face das belezas e feiuras da terra, nem
as mesmas admirações e as mesmas aversões instintivas,
porque não fala nele nem para êle o mesmo passado.
A idéia de cultura exprime, pois, como a idéia de tra­
dição, o patrimônio de cada nação adquirido por aqueles
que chamamos “ nossos maiores” , a herança dos mortos
que não morre porque sobrevive com seus filhos. A pá­
tria é feita^mais de mortos que de vivos.
0' problema do humanismo começa a ser iluminado
já, por um lado, pelos raios do sol que vêm das idades
passadas. É evidente que não há humanismo sem cultura,
isto é, que não há humanismo para aqueles que não reco­
lhem os tesouros espirituais de seus maiores em vista de
acréscimos futuros. Se a originalidade do humanismo
que se diz novo consistisse em fazer a nação renascer do
nada ( 5S) (não se atina aliás, em virtude de que potên­
cia criadora), arrancando-a violentamente desta terra fe­
cunda de séculos de cultura de onde brotaram tôda a sei­
va de seus ramos e tôda a esperança de seus frutos, de-

(57) Cfr. Hauriou, Précis élémentaire de Droit constitutionnel, pág. 9.


(58) A ninguém ocorre a Idéia de que uma nação, renegando os^seus
privilégios, pretende, renascer de uma outra, por exemplo, a França, dos.Sa-
xOes ou dos Eslavos,
90 A E strada Real da Inteligência

ver-se-ia condenar e combater sua obra imprudente e ne­


fasta, a-pesar-das promessas que tivesse a presunção de
fazer-nos. Uma velha árvore tem tronco e raízes; cor­
tai-o, extirpai-as, e em seu lugar nada mais haverá que
uma cova aberta. Seria vantagem para um francês con­
tar atrás de si unicamente com o lote de tradições que o
Novo Mundo dá a seus filhos? Começar ou recomeçar é
partir de zero. Um povo novo é um povo ainda pobre.
Renunciar à cultura ancestral importa em reconduzir
uma nação de seu estado de seara opulenta ao de terra
bravia.
Acordes sobre êste princípio, mais facilmente o se­
remos dentro em pouco a respeito das conclusões.
O humanismo, por mais novo que seja, só poderá ser
um humanismo se fôr tão tradicional como novo. Êle
deve continuar necessariamente a mergulhar suas raízes
até no mais remoto passado da França, até as fontes pri­
meiras do espírito e caráter francês. Que se propõe o
humanismo francês senão produzir franceses de lei, per­
petuar as energias de um sangue rico de valores intelec­
tuais, morais, físicos?

2.°) O humanismo compreende não apenas a cultura


que vem do passado nacional, mas também o espírito de
conquista ao qual se devem os progressos da civilização.
Uma cultura, efetivamente, não pode nem deve re­
matar pela inércia. Um “ potencial” tende sempre a pro­
duzir corrente. A vida necessariamente se engendra a
si mesma. Toda épóca da humanidade é uma primavera
que procura espoucar em renovos; e a seiva sobe sempre
para desenvolver os ramos. Uma árvore que não mais
progride é madeira sêca. A cultura uma vez adquirida
é dinâmica; é feita de virtualidades, que se pode disci­
plinar, mas não conter.
O homem cuja inteligência e vontade se enriquece­
ram de todos os bens da tradição, não tardará a querer
explorar o seu capital de energias. É como uma vaga
impelida pelo fundir incessante das neves e pelo curso im-
O tríplice aspecto do Humanismo 91

petuoso do rio; sob a pressão das massas que descem das


alturas, ela se vê obrigada a avançar sempre para fecundar
a terra. O espírito humano não deve malbaratar a cultu­
ra; utilizá-la-á para inventar, construir, organizar, adap­
tá-la às necessidades novas, fazer produzir, suprimir obs­
táculos, arrancar à natureza, terra, céu, mar, os seus te­
souros ainda ignorados. A finalidade da riqueza adqui­
rida não é o prazer, mas o bem social. Conciente de seu
poder, o moço sonha com disciplinar a matéria, gover­
ná-la tanto quanto possível, apossar-se enfim do universo
como de um bem próprio, como de um reino do qual na
realidade se sente o legítimo dono. Se disso é incapaz
ou se disso se desinteressa, segue-se que a educação dêle
é em parte falha: ela produziu uma figueira estéril (59).
O humanismo é a educação que corresponde a essa
natural necessidade de incessante progresso. É um mé­
todo de formação que deve tornar o progresso possível,
certo, potente; é uma das suas razões de ser. Deus en­
tregou a criação ao homem para que êste a trabalhasse,
d|escobrisse-lhe os segredos e pusesse de manifesto sua
gloriosa beleza.
Assim, o humanismo é uma disciplina que se destina
a fazer do homem de um dia o homem de todos os tempos
passados pela cultura e de todos os lugares pela civiliza­
ção. Êste universalismo é legítimo. E em certa medida
torna-se um dever.

3.°) Ê necessário, porém, que o homem seja em si

(59) A civilização supõe a cultura e oferece-se de longe como um Ideal


que estimula o esforço dos homens cultivados. A cultura é uma· necessi­
dade primeira; preenche mais ou menos, conforme a educação, a indigên­
cia nativa; sem a cultura, o homem está ainda próximo ou se aproxima do
animal. A civilização, pelo contrário, deve manifestar o poder da cultura;
é o testemunho de sua íôrça, uma vez que dela sai como um efeito de sua
causa. Começamos por estar imersos no meio nacional que nos deve for­
mar; mas nosso espirito deve preparar-se para emergir dêste meio de fecun­
didade primeira afim de produzir obras melhores do que as do passado. So­
mos engendrados pela cultura, e devemos ser criadores da civilização pro­
gressiva. A civilização está sempre em marcha segundo a engenhosa inven­
ção do gênio humano. Quando a pátria criou os seus filhos, estes por sua
vez plasmam 6 mundo. Cír. Delos, op. cit. -
92 A E strada Real da Inteligência

mesmo um homem, antes de tentar ser todo o universo.


A cultura e a civilização são objetivas e comuns a todos;
a humanização é uma forma subjetiva: cada indivíduo hu­
manizando-se, cresce.
Para assegurar esse desenvolvimento interno é im-
precindível que cada um subordine e unifique os recur­
sos vários de que dispõe, afim de evitar ser em si mesmo
um caos e como que uma cidade transtornada pela anar­
quia. O homem é e deve permanecer um cosmos, vale di­
zer, desenvolver em si, ao mesmo tempo que a abundância
dos dons, a beleza da ordem. O fim do humanismo é o
homem.
Ora, o homem é uma hierarquia viva. É composto
de uma alma, de uma inteligência, de um coração, de uma
vontade, de uma pluralidade de órgãos e faculdades que
avançam, através de mil perigos, como uma sinfonia rumo
a um ideal de beleza. O homem é uma orquestra com­
prometida na execução de uma obra difícil, em que ins­
trumento nenhum pode mais faltar, ou retardar, ou apres­
sar o movimento a seu bel-prazer, sem destruir a harmo­
nia. A complexidade do organismo por uma parte, e a
multidão de perigos por outra, expõem o seu ser a tôdas
as formas de males, de sofrimentos e de infelicidades. O
desenvolvimento progressivo de sua natureza complexa,
na unidade e no equilíbrio, tal é o alvo do humanismo.
Ora, esta hierarquia viva, condição de unidade e de
equilíbrio, e por conseguinte de grandeza e de poder, so­
mente é possível pelo predomínio das forças espirituais
sôbre os apetites inferiores.
O homem é um sopro divino a organizar o barro e
a torná-lo espiritual: que subversão da ordem e que con­
tradição. se o barro vencesse! '
Nas épocas de decadência, quando a civilização ma­
terial sobrepuja o espírito e se torna o seu ídolo, sempre
há em França um gesto de indignação e revolta visando
libertar-nos de semelhante escravidão. Enquanto o ma­
terialismo, qual torrente envenenada, inunda hoje a Eu­
ropa com o seu luxo malsão, estamos a ouvir do todos
0 triplice aspecto do Humanismo 93

os lados nobres vozes gritarem “ cuidado!” às multidões


que se dessedentam nessa água pérfida, e protestar, em
nome do espírito e do espírito francês sobretudo, contra
urna tal tentativa de “ deshumanização” de nossa raça.
O humanismo é, precisamente, uma formação na qual
se visam somente os fins ideais que implicam na elevação
da natureza “ espiritual’.’ do homem.
Todos os séculos de nossa história foram acordes no
afirmar que devíamos buscar como fins da atividade hu­
mana, e não apenas como meios, a verdade, a justiça, a
beleza. Daí êsse eterno combate interior entre as forças
imanentes da nossa natureza; e éle durará até que esteja
assegurado o triunfo da alma sobre o corpo, do espirito
sobre a “ carne” , do Nous e do Thymos sobre o Epithy-
meticon, da “ Afrodite celeste” sobre a “ Afrodite terres­
tre” , do “ Amor de Deus” sobre a “ Concupiscência” do
“ Amor moral” de Kant sobre o “ amor patológico” . As­
sim se exprime E. Goblot, que não é em absoluto suspeito
de falar em nome da fé cristã ( 60). Ninguém se recusa­
ria a subscrever as seguintes conclusões do mesmo filó­
sofo: “ Tôda a nossa vida é uma luta do espirito contra
a matéria, e a melhor vida é a que conta o maior número
de vitórias do espirito sobre a matéria” ( 616
).
2
Não posso conceber um francés que ao 1er o capítu­
lo (®2) de onde extraímos essa frase não dê sem reservas
o seu aplauso às verdades que encerra.

(60) Edmond Gobot, La Lqgique des Jugements de valeur, Colin, 192T,


págs. 196 e segs.
(61) Sem dúvida, trabalhamos peia civilização material; mas subver­
teríamos a ordem dos valores humanos se nos esquecêssemos de que “não
há outros bens no mundo, como diz Goblot, que não os bens do espírito;
os bens materiais só valem como instrumentos do espírito” . O cientista
deve sujeitar a matéria, e não tornar-se um escravo dela. “Tornar inofen­
siva a matéria hostil, dócil á matéria rebelde, tal é a tarefa constante e
única da vida humana” . E certo que a Idéia só é util no mundo se incar­
nada na matéria; ela só realiza o seu fim assumindo uma existência cor­
poral. Mas não é menos certo que ela deve libertar-se do estático do de­
leite, lançando os seus esforços cada vez mais avante. “A materialização
da Idéia, eis o triunfo; o materialismo, eis o inimigo” . “É a vida espiri­
tual, ativa, patente, produtiva e triunfante que faz o valor, a dignidade, a
beleza da substância com que a relacionamos” .
(62) Ibid., Exercíc· IX.
94 À È etrada Real da Inteligência

Até mesmo Buisson, que nos apresentam como um


dos “ mais célebres pioneiros da organização de escolas
laicas da França” (68), não teme de sonhar com “ a eman­
cipação perfeita da humanidade” . O humanismo para êle
seria nada menos que uma evasão progressiva do homem
até D e u s. .. “ Quando todos os homens, escreve, forem
purificados, disciplinados (e não atinamos por que meios),
o homem será Deus (6 64) . Então, todo homem terá Deus
3
em si” (656 ) . A mesma idéia ecoa em todas as penas, con­
forme o atesta o inquérito realizado por Arbousse Bas-
tide. Trata-se antes do mais de aumentar a humanidade
pelo culto desinteressado do belo, da verdade e do bem.
A análise dos elementos que compõem a noção de
humanismo, e que agrupamos sob os nomes de cultura,
civilização e humanização, põe-nos agora em condições de
poder discriminar e atribuir, sem confusão e estreiteza, a
parte privilegiada que cada disciplina escolar tem na edu­
cação dos filhos da França.
Empreendemos aqui uma investigação longa e con-
cienciosa. Da observação dos fatos deverá surgir a ver­
dade de nossas conclusões.
(63) Pour un Humanisme nouveau, pág. 53.
(64) Ibid., pág. 54.
(65) Admiramos a um tempo a cega confiança de Buisson nos destinos
da humanidade, e a lealdade de suas confissões de impotência quando se
trata de apresentar os meios para essa ascensão até Deus. Ousa êle repetir
a velha promessa: Eritis sicut dii; mas não sabe que maçã dará a comer.
“Não sabemos por que meio”, diz êle. O humanismo, efetivamentê, não é
uma árvore de vida: somente Cristo é a “Vida” . É preciso um Deus para
fazer “filhos de Deus”, isso é evidente; o homem não pode atribuir a Certas
criaturas o poder de comunicar uma vida que não lhes pertence. Sacra­
mentos eficazes, não o institue quem o quer. A Igreja tem isto de superior
a Buisson, — que, sonhando o mesmo sonho de humanismo que êle, ela dá
ao mesmo tempo ao homem a graça que o elevará a essas alturas inaces­
síveis. O humanismo cristão é mais ambicioso do que o permitido a qual­
quer outro humanismo, e mais realista ao mesmo tempo, pois não promete
nada que não possa alcançar. Ninguém mais do que a Igreja católica glo­
rificou, exaltou, amplificou e satisfez a humanidade, mas todos à porfia
lhe pedem emprestado o seu ideal. “No fundo das combinações das seitas
atuais, escreve Chateaubriand (Mémoires d’outretombe, VI, pág. 467), é
sempre o plágio, a paródia do Evangelho, sempre o princípio apostólico o
que se acha; êste principio entrou de tal modo em nós que dêle usamos
já como se nos pertencesse; presumimo-lo natural, embora não o seja; êle
nos veio de nossa antiga fé, tomando esta a dois ou três graus de ascen­
dência atrás de nós... Todo sistema que »forjamos no interêsse de humani­
dade nada mais é do que a idéia cristã volteada, mudada de nome, e fre­
quentes vezes desfigurada; é sempre o Verbo a fazer-se carne!”
(66) Ponr un Humanisme nouveau, pág. 292.
CAPÍTULO II

AS LÍNGUAS VIVAS E O HUMANISMO

A-pesar-do desapreço em que são muitas vezes tidas,


as línguas vivas não ocupam medíocre lugar no humanis­
mo integral, se não nos recusarmos a considerá-las, quan­
do não como instrumento de cultura, — pois é mínima a
participação delas em nossa formação nacional, — pelo
menos como instrumentos de civilização (67).
O ensino de línguas estrangeiras efetívamente pode
e deve ser outra cousa que não mera arte mecânica de
linguagem comercial. Por sob o frágil envoltório das pa­
lavras há uma substância espiritual; a palavra é como
que um sacramento universal da humanidade. A reali­
dade é a âlma a pensar, a sentir, a comover-se, a dar-se;
a realidade são as idéias das nações, as culturas várias,
as civilizações em marcha divergente e às vezes conver­
gente, os povos com sua história e filosofia.
Aliadas às ciências históricas e geográficas, que um
professor de línguas jamais deveria ignorar ou omitir, as
literaturas modernas nos rasgam sôbre a alma humana
infinitas perspectivas que alargam o espírito dos alunos,
por demais inclinados a se enclausurarem no acanhado
círculo das visões imediatas.
Hoje o homem não é mais o filho de uma pequena
pátria isolada do resto do mundo; é cidadão do universo,

(67) Estes têrmos, "cultura”, “ elvlllzação” , etc., estáo definidos no cap.


I desta segunda parte. "
96 A E strada Real da lyttéligência

que as ciências de tal modo tornaram próximo de cada


um de nós que a importância relativa de todas as cousas
ficou completamentè alterada. A Grécia é um momento
do tempo e uma nesga do espaço; a amplitude, dia a dia,
está a aumentar em tôrno dela e a diminuir-lhe a gran­
deza. Atualmente não niais dizemos o Nihil humani a
me alienum puto numa acepção restrita; simpatizamos
com o Oriente tanto como com o Ocidente; interessamo-
nos por remotas civilizações que ainda têm qualquer cousa
a nos ensinar, mesmo após o estudo da civilização greco-
latina. “ 0 Mediterrâneo não passa de uma bacia” depois
que o avião corta-os oceanos e a telegrafia sem fio su­
primiu as distâncias. Sem dúvida que não nos devemos
tornar joguetes de uma imaginação perturbada pelo es­
paço e pelo tempo, pela quantidade e pelo número; have­
remos de dissipar esta ilusão. Mas nem por isso' permanece
menos verdade que a amplitude de horizontes espirituais
é uma dessas qualidades humanas importantes que um
ensino completo das línguas modernas, estranhas à nossa
pátria de origem, pode desenvolver.
Faz mesmo mais que alargar o espírito; dilata o co­
ração e estimula as suas energias.
A Babel de onde saiu a confusão das línguas engen­
drou também a Babel dos nacionalismos estanques, ciu­
mentos e hostis. A humanidade nada ganhou em não
mais se entender, se compreender; da desinteligência dos
pensamentos secretos nasceram o isolamento, a suspicá-
cia, a desconfiança, a rivalidade, o ódio, a guerra, — dia­
bólica progenitura. A união dos espíritos e dos corações,
a paz fecunda, que é sempre um früto seu, são uma parte
importante da civilização.
A barbárie é feita de.contradições. A vida civiliza­
da, pelo. contrário, é uma fratefnização; a troca de idéias,
de sentimentos, de invenções, de talentos e de riquezas, a
cooperação, a emulação, a solidariedade dos membros num
só corpo, constitue a vida de família, modêlo da cidade
onde habita o cidadão, isto é, o civilizado.
Ora, o humanismo que se propõe â formação pelas
A s Unguás .vivus e o Humanismo 97

línguas vivas faz com que os espíritos estimem o mundo


estrangeiro.' Realiza um trabalho de aproximação entre
os povos, pela supressão do desconhecimento de tôdas as
belezas, nobrezas, magnitudes admiráveis, que as suas di­
ferentes almas encertám.; A geografia é a ciência das
maravilhas da natnreza sem consideração de fronteiras.
O ensino humanista das línguas vivas é capaz de reve­
lar-nos outras maravilhas, mais espirituais, aquelas da
alma das nações, acima das próprias fronteiras.
O estudo prihcipalmente das obras-primas em que
seus poetas, historiadores, literatos, sábios e artistas re­
produziram em miniatura a pura face de sua pátria, é de
molde a descerrar o cotação e o espírito do homem acan­
tonado em estreito horizonte. Não se atina com a m iste­
riosa razão pela qual as línguas antigas teriam o privilé­
gio de manifestar os esplendores do mundo antigo, e as
línguas modernas não teriam o de revelar-nos as belezas
do mundo atual. Todo o mundo convirá em que uma lar­
gueza de alma, desconhecida dos indivíduos que ficam iso­
lados num desvão da terra como um inseto na dobra de
uma folha, bem como uma melhor disposição à virtude
da caridade, são os frutos certos dè uma educação, bem
compreendida, pelo ensino de línguas vivas. Há portan­
to um humanismo autêntico, embora incompleto, a extrair
do comércio atento e refletido com o gênio de outros po­
vos (es).
A Igreja só tem que rejubilar-se com êste trabalho
das nações por compreenderem-se através do estudo apro­
fundado de suas línguas, pois é a mãe comum de tôdas
essas diferentes nações e está constantemente ela própria
a combater todos os particularismos e causas da divisão
entre irmãos. Ela procura, mediante uma educação com­
preensiva e que penetra até o eterno sob as aparências
do efêmero, preparar a$ almas à inteligência do catoli-6 8

(68) "Não se deve, diz La Bruyère, sobrecarregar a infância com o co­


nhecimento de muitas línguas” ,- (De quelques usages, art, 71),
98 ' A E strada "Real da Inteligência

cismo. O catolicismo é supranacional justamente porque


unifica a multiplicidade necessária.
O professor de línguas vivas pode, à sua maneira,
colaborar nessa grande obra da união pacífica dos povos.
E terá realizado um belo trabalho se ensinar seus discí­
pulos a desempenharem, a-pesar-da diversidade de tem­
peramentos, caracteres e culturas, o seu papel primordial
de membro da unidade do córpo social da humanidade.
Expusemos até agora, lealmente, todo o bem que pen­
samos das línguas vivas como signos sensíveis das civili­
zações modernas e como traço-de-união entre os povos.
Não desejaríamos diminuir-lhes os méritos.
Entretanto, os estudantes de línguas vivas progredi­
riam bem pouco na formação de seu espírito se se entre­
gassem a um exercício puramente verbal com elas. Um
tal modo de estudar conduziria apenas a um resultado
material: à incrustação, nos órgãos exercitados, de me­
canismos úteis para as,operações comerciais. Ora, nin­
guém diz que é humanismo o estudo empírico das lín­
guas vivas. Não é, sem dúvida, impossível reagir contra
o utilitarismo das crianças, e aplicar às traduções alemãs
e inglesas a técnica das versões latinas. Seria injustiça
deixar passar em silêncio as tentativas realizadas por
professores de línguas vivas, no sentido de adaptar ao
alemão, ao inglês, os exercícios formativos de tradução,
cuja eficácia é tão louvada em se tratando de latim e
grego. Não devemos eximir-nos de estudar as sábias e
leais explicações que deram de seus métodos (69>. Não
podemos, infelizmente, entrar aqui em tais minúcias.
Evitemos, pois, alimentar preconceitos desfavoráveis
a respeito de suas tentativas. Um exercício não deixa

(69) Ençontrar-se-ão as explicações necessárias no livro de, L.-A. Fou-


ret: Les Humanités modernes (Didier). — Consultar também sôbre êste tema:
Revistas: L’Education (Lanore), VX-1929:,informe de L.-A. Fouret, VII-1929,
março e maio de 1925; Revue Universitaire, 1929, 3S.° ano, t. I, pág. 423,
pág. 122 (alemão), pág. 219 (inglês): Les Humanités IHatier), X-1928, pág.
30; XX-1928, pág. 68; 1-1929, pág. 157. Cír, em apêndice a superioridade
do exercício, de tradução de línguas antigas,
A s língúas v iv a s , e o Humanismo 99

de ser formativo pelo fato de ser útil. Todavia, o útil


que prende e domina o estudante de línguas vivas, quase
à revelia dêste, desvia-o assaz facilmente da cultura desin­
teressada do espírito. Nessa idade é quase irresistível a
sedução do resultado imediatamente prático. Essa ten­
tação é tão forte que a maioria dos alunos, talvez mesmo
a totalidade, não hesitaria um segundo, afim de familia­
rizar-se com uma língua viva, a expatriar-se uns tantos
anos ou uns tantos meses entre gente estrangeira, a ter
que dedicar-se a longos estudos nos bancos colegiais; o
interesse é quem decide; detém-nos apenas o obstáculo das
despesas. Condenados ao método indireto e lógico, ve­
mo-los derivarem instintivamente para a conversação e
a leitura dos jornais estrangeiros. Inevitável atração do
útil! Ora, falar correntemente o inglês e o alemão não
é de per si uma prova de inteligência. Deve-se, pois, con­
vir, parece-nos, em que as línguas vivas são menos for­
mativas por si mesmas, como exercícios de espírito, do
que pelas civilizações que nos revelam (70*) .

(70) Ao lado do método indireto, para os exercícios de tradução, há


duas espécies de método direto. Um é puramente empírico e utilitário:
busca-se com êle falar as línguas estrangeiras para as necessidades práticas
do comércio e da indústria. Afastamo-nos assim do ponto de vista do l^u-
manismo. O outro consiste num contacto imediato e íntimo com o pen­
samento vivo do autor estrangeiro, lido em sua própria língua e não numa
oú através de nm**· tradução. O que dissemos do humanismo pelas línguas
vivas de sobejo mostra quanto apreciamos êste segundo método. Aqui o
alemão e o inglês não fazem exceção à regra, que se aplica mesmo às lín­
guas mortas. Para penetrar a fundo uma literatura em seu sentido e suas
belezas, é preciso lê-la na língua mesma em que foi pensada e escrita. Mes­
mo as boas traduções 'tiram em parte o encanto, o mistério» O. fundo todo
que o êstiio do autor sugere, ; * ■
CAPÍTULO III

. AS CIÊNCIAS ."E Ò HUMANISMO

As ciências vivem como as línguas faladas. Por coa


seguinte, são dinâmicas; progridem; pelas a vida e a mo||
te estão continuamente a operar suas trocas; o que não
é novo cessa de existir ; o antigo apenas desfruta de alf
guma aparência de verdade.'
Não nos formamos com as concepções do passado
científico (71). O cientista olha para diante; nunca para
trás. A civilização, portanto, será obra da formação
científica.
A civilização é o fruto de tôdas as ciências, solidá­
rias, a prestarem-se mútuo apoio na obra de organizar
sempre mais harmoniòsamente a v id a socia l dà humani­
dade. É legítimo, pois, falar — senão de “ humanidades
científicas”, o quê não iria sem possivelmente dar a en­
tender que áe faz exclusão das letras, da tradição nacio­
nal, ou pelo menos da cultura antiga, — ao menos de
“ humanismo científico” (72), o que pode significar que
a formação do homem somente será completa se êle ad­
quirir também em grau superior o e sp ír ito c ie n tífic o , ne­
cessário aos progressos da civilização humana.
Os católicos, .particularmente, não seriam fiéis às
exigências de sua fé, nem aos ensinamentos dos Papás, se

(71) Contudo, a história das descobertas científicas é formativa.


(72) pff. guf 1’fCtqnaniHne scientlli^ue, por E<). Uerriot, Çh^mpiQ?),
i A s ciências e o huvtanisMo _____________ 161

nfio fossem partidários resolutos de uma formação cien­


tífica que nada tivesse de exclusivista. A Igreja a apro-
va e favorece. Ela deseja mesmo que “ os católicos mar­
chem à frente“ do movimento e “ não atrás dos outros”.
De todo o coração ela estimula os progressos, mesmo, aque­
les que “ contribuem à prosperidade dèsta Vida, que é uma
peregrinação rumo à vida futura”. “ Ela vê sem desagra­
do tôdas essas investigações que têm por finalidade o
gôzo e o bem-estar; e até, inimiga nata da inércia e da
preguiça, vivamente deseja que o trabalho e a cultura fà-
çam com que o gênio do homem dê frutos abundan­
tes” p ) . '■ . í '"; ■
Recomendações semelhantes encontrar-se-ão nos lá­
bios de todos os Soberanos Pontífices e na dos bispos
mais ilustres dá França C7 34). Tanto uns como outros se
esforçáram por inspirar em seus fiéis, e muito particular­
mente nos professores de suas Faculdades, nós educado­
res de tôdas as classes, o amor da verdade e a ambição
legítima de serem os luminares de sua época tanto pela
ciência como polas virtudes. Seria odiosa calúnia pre­
tender que não o conseguiram. O número dos cientis­
tas católicos ultrapassa de muito o dos indiferentes e
ateus (75) . Ò valor dos cientistas que ilustraram os ins­
titutos católicos não é inferior ao das outras Faculdades.
O humanismo dos católicos, portanto, não é feito de
ignorância ou, como às vezes sé diz, de Obscurantismo, —
mas de luz e progresso (7C). Sem dúvida, o próprio

(73) Cfr. Leão X in , Encíclica Iromortale Dei; Longínqua Oceani; cfr.


também: Encíclica Testem Benévolentiae M.; Disc. ao Sacro-Colégio, ....
2/IXI/1S97. — Enc. Libertas praestantissimá. F .; Enc. Páilitantis Ecclesiae,
C., etc; ■ ■’ ■■■<-, ■■■ . .
. (74) Cfr. os magníficos e numerosos discursos de Mons. d'Hulst,. v. g. :
Sa vie, por Mons. Baudrillart, cap. XIV e XVI. r
(75) Cfr. Art. Science 6 t Religion (Diet, apologétique d.’Alès), por «A..
Eymieu. .· ■
(75) Cfr. Diet, apologétique d’Alès, Art. Science et Religion, col. 1252:
“Vcrifica-se que o espírito cientifico .mais , incontestável, mais ■ativo, mais
agudo, niais fecundo, tal como se revelou por exemplo em Cauchy, Hermite,
Wolerstrass, Le Verrier, lord Kelvin, Fresnel, Ampère, Faraday, Maxwell, Ber-
‘ zélius, Dumas, Chevreul, Thénard, Cuvier, Hatty, Mendel, Bichat, Laennec
ePasteur, coexistiu mui naturalmente ' no mesmo homem com o espirito
religioso mais simples, mais puro, mais ardente. De que modo, depois disso.
102 A Estrada Real da Inteligência

Monsenhor d’Hulst declara haver encontrado “ desses cris­


tãos tímidos ou melancólicos a quem a civilização huma­
na inquieta, para não dizer que escandaliza” . Reconhece,
também, qué os crentes acolhem com avidez as afirmações
dêstes últimos, embora elas não passem de notas falsas
isoladas no coneêrto. Mas êle desaprova “ o êrro dêsses
cristãos pusilânimes” (*777) . Deus fez a criação tôda. E
8
tudo quanto se venha a descobrir na natureza é um dom
de Deus que até então se desconhecia. Quis Deus que
as gerações sucessivas tivessem a afortunada surpresa,
tal como o primeiro homem, de ir descobrindo passo a
passo o universo e chamando cada cousa pelo seu nome.
Deus não foi cúmplice do pecado pelo fato de haver colo­
cado no jardim maravilhoso o primeiro par humano; da
mesma forma, pelo fato de avançarmos à conquista das
artes e das ciências através dos perigos morais que se
multiplicam em tôrno delas, não pensamos sê-lo também.
A civilização, aos olhos do cristão é uma cousa infi­
nitamente mais bela do que aos olhos do homem que não
tem fé. A menos que esteja iludido pela miragem do
panteísmo, não se vê bem que idéia o incréu se faz da
conquista do mundo pela inteligência; por maior que seja
a sua concepção, esta não pode deixar de ser inferior à
que inunda de entusiasmo o crente. “ A civilização, es­
creve o Pe. Sertillanges ( 7S), se consente em ser cristã,
— refiro-me à civilização material, — é uma Incarnação
(do Cristo) levada mais avante, propagada na natureza,
que participa assim do sobrenatural: humílimo corpo de
. Deus que a alma, que é o Espírito Santo, tocou com o seu
aguilhão” .
Pela conquista engenhosa deste mundo material o ho-
I

pretender que o espírito científico é incompatível com o espírito religioso?”


(Eymieu). Ler as obras de .Termier e de Duhem, por exemplo.
(77) Conférences de Notre-Dame, 1895, 6.a conferência (pág. 169-170)
sôbrè a civilização cristã. Mons. d’Halst, député, por Emile Cave, Paris,
1898, pág. 272 a 274; Réponse à Jules Guesde; cfr. Bricout, Civilis. chrétien­
ne, Dict. prat. des Sciences religieuses.
(78) L’Église, segundo volume, pág. 155: Por “civilização material” êle
não entende aquela em que o próprio espírito é escravo da matéria; reside
aí, aliás, o perigo.
A s ciências e o humanismo 103

mera prolonga por assim dizer os seus membros, aumen­


ta-lhes o vigor, multiplica-lhes a possança, de um modo
constante e quase ilimitado. Isso agrada ao cristão, mas
não lhe basta; nessa ampliação humana êle busca sempre
uma manifestação cada vez maior das perfeições de Deus,
a edificação, pedra sôbre pedra, do templo do Espírito
Santo, e um aumento do Cristo em sua obra ( 70). Êste
misticismo cristão não é nocivo aos sonhos dos cientis­
tas (so) ; pelo contrário, alimenta-os, exalta-os; diviniza,
por assim dizer, o seu ideal.
Tôdas essas considerações nos auxiliam a compreen­
der em que espírito devemos educar a juventude, e até
que limites vai o humanismo que lhe devemos inspirar.
Nossa educação não está paralisada em formas rígi­
das (7 81). Ela tende a suscitar as nobres ambições da
0
8
9
ciência. Se os modernos programas de estudos, que ou­
torgaram às ciências um lugar privilegiado que jamais
haviam conhecido, foram vistos com suspeiçâo por certos
defensores do ensino católico, não foi porque lançassem
os espíritos numa via favorável aos progressos da civili­
zação moderna, mas por motivos de equilíbrio e propor­
ções na arte pedagógica, que indicaremos além.
Apressemo-nos a acrescentar que as ciências têm ain­
da incontestável influência na formação do espírito. Não
lhes falta vigor para humanizarem à sua maneira a ju­
ventude. '
Os séculos X IX e X X verificaram-no experimental-

(79) Cír. São Paulo, passim.


(80) Cfr. Termier, La vocation de Savant (Desclée).
(81) O Eev. Pe. Henri de Tourvillé dizia com vivacidade de certo dile­
tante: “É ainda um homem a íazer, que ficou na infância clássica no que
diz respeito ao latim e ao grego. Começa êle a despertar para a vida, e a
suspeitar que Euripides e Horácio já morreram I No colégio, ítzeram-no
crer que não vivíamos, hoje, porque náo somos dfisses homens. Que gente
notável os nossos educadores! Como sâo bem feitos para entreter no dile­
tantismo parisiense todos êsses Jovens... licenciados em letras, que vêem
e fazem ver no aticismo a grandeza humana, a dignidade do homem na­
tural! Como não suspeitam nada do que é a vida, e êste tempo, e o imen­
so impulso providencial com o qual Deus leva o homem a tornar-se um dia
verdadeiramente senhor do globo!” (Qrdre et Liberté, Bloud et Gay, 1926,
pág. 174). Negligenciemos a forma paradoxal; retenhamos a parte de ver­
dade.
10 4 > A E strada Reai da Inteligência

mente de um modo conclusiva. Não descobriram, porémi


essa verdade, Já de há muito que se havia compreendida
a utilidade das disciplinas científicas para virilizar a ini
teligêneia e o caráter, para comunicar-lhes certas qualij
dades que as letras apenas não conseguem proporcionai!
sempre no mesmo grau, .
Malebranche recomendava sobretudo as matemáticas
como meio de formar a atenção, unicamente a qual, diz-,
conduz à inteligência da verdade..'. Pois “ o estudo destá
ciência é tal que só se o aproveita na medida em que se
lhe presta atenção”. Senão, o espírito hão trabalha, “ naò
apanha nada”. Pensa Malebranche que. pela disciplina
científica nos tornamos capazes de julgar solidamente de
todas as cousas, de seguir princípios abstratos, de fazer
engenhosas descobertas, de prever as consequências e os
sucessos dos empreendimento” (S2). O espírito se habi­
tua a seguir o fio mujtas vezes tenuíssimo e quase im­
perceptível do raciocínio, a não perdê-lo em seus rodeios
sutis, e a acompanhá-lo sem interrupção até seu últüno
tèrmo.: -■ ■■
Assim, pois, a influência de uma educação científica
tem repercussões em tôdas .as : ordens da produção inte­
lectual. -
espírito de geometria não é assim tão próprio da
“O
geometria que não possa ser daí tirado e transladado á
outros conhecimentos. Uma obra de moral, de política,
de crítica, talvez mesmo de eloquência, mais bela será —
tôdas as cousas, é claro, iguais -— se feita com mão de
geòmetra. À ordem, & clareza, o rigor, a exatidão que
já de um certo tempo reinam nos bons livros bem podem
ter sua primeira . raiz nesse espírito geométrico, que se
espalha mais do que nunca e que de certa maneira se co­
munica paulatinaniente .’ até mesmo àqueles que não co­
nhecem a geometria. Algumas vezes um grande homem
dá o tom a todo o seu século; aquele, a quem com maior8 2

(82) Cír. Traiti de Starale, cap. X, n.° 12.


A s ciencias e o humanismo Iftô

legitimidade se poderia atribuir a glória de haver fun-,


dado uma nova arte de raciocinar —- era um excelente
geômetra” (®3).
A ciência, pelo fato de descobrir relações naturais
estáveis que unem os seres e os fatos, ensina o necessário,
e livra assim o espírito do empirismo e das associações
contingentes.
É por essa razão que os escritores que pediram em­
prestado aos métodos científicos o seu vigor lógico, pos­
suíram muitas vezes e quase naturalmente as principais
qualidades do estilo francês.
Todo o mundo sabe que foi matemático um dos nossos
maiores escritores,, Pascal. Entre o seu estilo e o seu
espírito científico há um tal parentesco, que’ *üõs obriga
a reconhecer-lhes a similitude de traços, a dependência
interna, a filiação natural, Uma cousa sobrevive na ou­
tra. O espírito científico aqui engendrou a eloquência,
aquela qüe zomba da retórica, e que é a autêntica. Pas­
cal com -seu exemplo, faz ■compreender que o que é elo­
quente nas obras eloquentes é a lógica apaixonada, ao pas­
so que .uma cultura literária mal equilibrada levaria ao
êrro de fazer a eloquência consistir nos falsos ornamen­
tos (S4)·
Quantos espíritos, finalhiente, são fracos e erram
constantemente na btisca dá verdade e não menos na ação,
pelo fato de que não adquiriram o dom da o b se r v a ç ã o 83

(83) Fontenelle, CSuvrcs complètes, t. I, L., pág. 34. — O mesmo


diz Emile Pioard: “Importa talvez .mais. do que a qualquer outro dar. em
tempo1 ao temperamento francês,. enamorado da eloquência e dos torneios
oratórios, uma Idéla precisa do que constltüe o método cientifico... Ini­
migo das quimeras llusoras” . Na Kevue dé France de 15/VI/1930: La cul­
ture genérale rtu jeune Français, pág. 361. 1
: (84)' “Â. elbíiuêncià, nada mais é do que a verdade apàixpnad»,isto ê,
a verdade em sua plenitude, porque a paixão completa n verdade... A ló*
gica do discurso, em les Provinciales, é notável pelo cerrado encadeamento
dos anéis que. nenhum intervalo separa e que formam um, todo de tal modo
cóhtlnuo que se diria incorporados uns aos outros... A lógica, em Pascal,
méscla-se a tudo.U Quando à paixão parece precipitar a carreira de ,seu
carro, com que, firmeza, ou, antes, com que vigilante severidade a lógica
empunha as rédeas, e com que atenção Pascal obedece até: na forma às
suas extremas exigências! A lógica se apaixona, a paixão permanece lógi­
ca” . Vinet, Études sur Pascal, pág. 284, sgs. (Sandoz et Fischbacher).
106 A E strada Real da inteligência

e x a ta , que é dado pelo método das ciencias positivas, cien­


cias físicas, ciências naturais, etc.! Em todas as ordens
de idéias, no próprio domínio das aplicações práticas, os
erros e os insucessos resultantes não se originam, por­
ventura, do êrro de tomarmos os nossos pensamentos pe­
los fatos e, por conseguinte, como a expressão da ver­
dade? O s e s p ír ito s fa ls o s sã o p r e c is a m e n te a q u eles q u e
n ão p e n s a m o rea l. Ora, as disciplinas das ciências posi­
tivas (858 ) comunicam ao espírito a tendência e o hábito
6
de não se deixar alucinar pelo mundo, imaginário das teo­
rias, das hipóteses, dos preconceitos, das sínteses artifi­
ciais, do verbalismo. Elas nem sempre são bem sucedi­
das; mas se malogram, nas mãos de um mestre inhábil,
estão a trair o humanismo (80).
Compreende-se facilmente que o humanismo cientí­
fico não consiste em ser forte em matemática, em geo­
metria, ou em qualquer outra ciência em particular, — o
que não quer dizer que uma especialização, quando esta
não infunde maus vêzos ao espírito, não seja uma supe­
rioridade para a inteligência. Um especialista do x pode
carecer mais de humanismo científico do que um capitão
de indústria ou niesmo que um professor de literatura.
Trata-se de adquirir hábitos de espírito que os mé­
todos das diversas ciências têm especial aptidão para de­
senvolver, mas que se devem exercitar, em medida con­
veniente, em tôdas as ordens do trabalho intelectual. A
análise que fizemos, no livro primeiro desta obra,, das
diversas modalidades de espíritos falsos, devem conven­
cer-nos especialmente da necessidade duma pedagogia
ciosa do real, do preciso, do positivo, do sólido, do con-
ciencioso, do ser tal como é, ao mesmo tempo em que se
guarda dum positivismo grosseiro, sem idealismo, O hu-

(85) Sôbre as vantagens preciosas dessas disciplinas para a verdadeira


formação do espirito, consultar-se-ão coin fruto as sugestivas conferencias
reunidas sob éste titulo: La méthode positive dans l’Enseignement. (Librai­
rie Flammarion). ' . >
(86) Cfr. sôbre éste ponto o que diz Pascal: (Fragment d’un Traité du
Vide, ed. Brunschwicg, p,âg. 74). J, Chevalier, ■Pascal, págs. 59-75; 180-186.
A s ciências e o humanismo m

manismo científico é aquele que expulsa de todos os pro­


cessos do: espírito êsses terríveis defeitos que qualifica­
mos de: o vago, o impreciso, o caprichoso, o instintivo, o
ilogismo, a incoerência, a desordem, o confuso, ou o ilu­
sorio, o arbitrário, o artificial, o subjetivo, o imaginário,
o diletantismo, a prestidigitação, as falsas aparências, as
superfluidades, o brilho inútil, a sonoridade balofa, ·—
numa palavra, o ilusionismo dos vocábulos e das imagens.
O humanismo científico é uma lei de probidade, de fran­
queza, de liberdade, de verdade, de exata medida em tôdas
as cousas. Ura bom mestre de literatura, ou de arte, ou
de história, deve possuir os dons do humanismo científico
e fazê-los valer em seu magistério.
A formação científica, porém, nos faz ainda dar um
salto mais além dos limites da própria ciência. Pois, efe­
tivamente, todo o trabalho que faz a alma viver nas es­
feras da verdade pura, mesmo quando as questões sejam
exclusivamente especulativas e sem futuro algum de ja­
mais servir a fins práticos, é um nobre esforço de liber­
dade espiritual e de grandeza moral. Não se deverá di­
zer, com Hèrbert Spencer e muitos outros, que a própria
ciência é poesia? Não lhe atiremos a pedra antes de co­
nhecê-la. O1 próprio grego tem também as suas severi­
dades e a sua aridez desencorajadoras; nem por isso é
menos a angusta via que conduz ao mistério do belo. A
ciência exerce uma sedução profunda, que vai por vezes
até o entusiasmo religioso, sobre aqueles que tiveram a
coragem, de vencer-lhe os primeiros obstáculos. O de­
serto prepara para a terra da promissão. Não é raro
que a alma, à vista das imensas perspectivas que ela rasga
aos olhos atônitos, tenha prelibações do infinito e do eter­
no. Mesmo quando Deus não aparece aos corações bem
intencionados, através da magnificência de suas obras, a
natureza — imagem sua — pede-lhe sempre emprestado
o brilho de suas perfeições, a simplicidade de suas leis,
e a assombrosa possança de sua imensidade. Não à pró­
pria ciência, mas unicamente ao professor é que se deve
Í0 § À È straâ a È eal da Inteligência __________ _

que ela não acorde sonhos e paixões nas almas dos jovens.
Não é a ciência que é rebelde ao humanismo; pode acon­
tecer que o seja o cientista quê a ensina (8T) . '.' ■

I8
7

(87) Pode-se lpr a êste propôsit.o: R. Thamin, Education et Positivis­


me, Alcan, 1910, pâgs. 42 e sgs.; Berthelot, La crise de l’Enseignement Se­
condaire: Là Science éducatrico, Revue des Beux Mondes, 15/IÏI/1891; Ed.
Herriot, Sur l’Humanisme scientifique, pâg. 12.
CAPÍTULO IV

O HUMANISMO LITERÁRIO FRANCÊS

. Quando uma nação teve a boa fortuna de haver rea­


lizado gestos de uma generosidade mais pura e mais hu­
mana que os Gregos e os Romanos, e produzido, em to­
dos os períodos de sua atormentada existência, uma va­
riedade de gênios tão rica que a própria Grécia não pa­
rece tê-los ultrapassado nem em número, nem talvez em
qualidade, não se saberia renunciar, em nome da arte, à
cultura tão cristã quanto bela que sua história nos ofe­
rece.
Quem põe em dúvida que haja uma superabundância
de humanidade nas grandes figuras da Idade Média, do
Classicismo e do Romantismo francês? De suas obras-
primas flue uma caudal de vida, que desborda das antigas
ribanceiras. '
A Antiguidade pagã jamais teve, com efeito, a civi-
lização, o pensamento, a inspiração, o calor de nossa Id a ­
d e M é d ia cristã . Por isso, hoje se estuda apaixonada­
mente a esta. A originalidade dessa seiva medieval, que
tomou o seu sabor, o seu perfume, a sua frescura, numa
terra nova, enriquecida de todos os sucos dum cristianis­
mo jovem, comunica aos corações que dela se nutrem es­
sas virtudes de fé, de' lealdade, de honra, de coragem, e
também de simplicidade, de veracidade na expressão e
no gesto, que constituem precisamente ■as virtudes da
raça.
A flor da cavalaria bem merece ainda germinar em
110 A E strada R ea l da Inteligência

nossas veias. As gerações que surgem perderiam mais


em deixá-la fenecer do que em ver dessecarem-se os tron­
cos seculares do mundo antigo,
Sem dúvida, a forma literária dessas obras primiti­
vas dos séculos X I a X V é ainda ingênua e brusca (ao
menos não se chame de bárbara essa espontaneidade de
criança bem nascida!); a própria língua nos é parcialmen­
te estranha; exige uma ciência penosamente adquirida;
para ser decifrada, pois, essa cultura opõe sérias dificul­
dades. Mas se é verdade que a literatura não é “ huma­
nizante” apenas pelo conhecimento de formas vazias, va­
zias como cascas de uva prensada, mas pelo valor das al­
mas cujo melhor vinho ela exprime, — o Humanismo não
hesitará em fazei* com que frutifique, para a educação de
nossos filhos, êsse rebento da vinha francesa em velha ter­
ra cristã.
O classicismo do século XVII encerra também tesou­
ros; levou ao clímax o seu ideal de beleza racional. In­
dubitavelmente, não esgotou o poder de inventar de nosso
gênio próprio. Uma perfeição pode ser tal que confes­
semos ser impossível ultrapassá-la jamais, em sua ordem,
sem pretender com isso excluir outras espécies de per­
feições paralelas. Mas não se pode negar que e m su a
linha o século XVII é incomparável, inimitável: ninguém
sonha com refazer as obras de Racine, de Bossuet, de
Pascal; mais vale tentar outras cousas que não imitem
essa arte clássica.
Daí decorre com evidência que nela devemos encon­
trar uma súrgente inesgotável de formação humana (88) .
Aqui se impõe uma observação que confirma essa asser­
tiva. Efetivamente, é impossível deixar de notar a exis­
tência de uma certa emulação por parte dos autores do
século XVII em face dos antigos.

(88) Oír. a êste respeito as ¡páginas de Victor Giraùd, muito titeis -para·
os educadores (Revue des Deux Mondes, 1/1/1931). Encontrar-se-ão aí, cia-'
ramente expressas, as qualidades que todo Francês deve ir buscar nos clás­
sicos pela educação.
O humanismo literario francés 111

A maioria déles abertamente rivaliza a respeito de


um mesmo tema com um modélo latino ou grego. Parece
mesmo que apenas compunham com a finalidade de con­
correr com os mestres antigos.. Por falta de inspira­
ção? Não. Por princípio literário. Para crescer é pre­
ciso medir forças na luta. Queriam ultrapassá-los. 0
próprio Pascal, o mais espontâneo, o mais independente
e o mais singular de todos, admitia a teoria da imitação.
“ Que não se diga.que eu nada disse de novo; a disposição
das matérias é nova; quando se joga a pela, é com uma
mesma bola que ambos os adversários jogam, mas um
a atira melhor. Tanto me importaria que dissessem que
me serví de vocábulos antigos. Como se os mesmos pen­
samentos não formassem um outro corpo de discurso em
virtude de diferente disposição, do mesmo modo como as
mesmas palavras formam outros pensamentos por sua di­
versa colocação” (89).
Ora, não conseguiram êles porventura superar ple­
namente os seus modelos? Ninguém negará que Molière
seja superior a Plauto, La Fontaine a Fedro, La Bruyère
a Teofrasto, em profundeza de pensamentos e em perfei­
ção artística. Neles se encontra, pois, exaltado o antigo
humanismo.
Corneille, Racine, Pascal, Bossuet, Bourdaloue, Fé-
nelon são criadores. Admiramos os trágicos gregos, se­
não os trágicos latinos, entusiasmamo-nos por Demóste-
nes; é legitimo que assim se faça; mas alimentamo-nos,
nutrimo-nos da inesgotável e fòrte substância de nossas
obras-primas francesas. É um pão mais apropriado para
as almas cristãs. Séculos de prática evangélica, de cos­
tumes cristãos e de experiência refletida lavraram tão
profundamente as almas e depositaram no fundo de seus
sulcos revoltos tantas sementes de inquietações fecundas
e de pensamentos novos, que não mais se poderia hoje em
dia pretender que se empobreceu o solo antigo enrique-'

(89) Penséfcs, 22.


112 '· 1 A Estrada, Real da Inteligência

cendo-o dessa maneira. Seria preciso entender o huma-


nismo de um modo bem estreito para ousar sustentar que
uma literatura como a nossa, que encerra searas de idéias
e de sentimentos de uma profusão desconhecida, não hu­
maniza os espíritos mais do que aS que a precederam.
< Finalmente, seria injusto ver ho Romantismo apenas
uma decadência. O que importa, principalmente em edu­
cação, não é cotejar as épocas, mas colher êm cada uma
o que contém de belo e grande para a utilidade das almas.
Ora, também o Romantismo é a descoberta de um mundo.
Num artigo em que a propósito de alguns versos vai
aq fundo das cousas, o Rev. Pe. Théolier nos mostra a
poesia» inspirada pelas novas descobertas da ciência, cres­
cendo com toda a imensidade do “ pleno céu e do alto
mar”-; -
O Romantismo nos “ mostrou de novo o Infinito”,
porque “ depois de Newton, . . depois da Enciclopédia e
das É p o c a s da N a tu r e z a , a Ciência exibe ao sentimento
um Espaço aumentado, remoçado, renovado”.
Somente uma espírito pueril e acanhado recusaria
às bela s p á g in a s da época romântica a virtude de dilatar
os corações e as inteligências de nossos discípulos mais
do que a fria inspiração pagã, por mais racional e come­
dida que tenha sido. Refiro-me,, aqúí apenas às belas
páginas; logo, ao Romantismo em sua floração cristã, não
em seus vícios. Minerva e o Verbo não se comparam,
nem ém si mesmos nem em seu poder de evocação.
Lembrando certas estrofes das “ Contemplações ”, o
Pe. Théolier diz com profundeza : “ 0 Infinito é o Ser
em sua plenitude, Deus ! . . . E a nobre inquietação · que
nos arrebata para .Êle não passando muitas vezes de as-
símptota, desesperada ou frouxa, que jamais o atinge,
entre os maiores não é senão a imensa e segura trajetó­
ria de um desejo que conhece o seu Objeto e nele se abis­
ma no entusiasmq e no Êxtase,,. . ” (90). Não é, acaso.

(90) Etudes, 20/IV/1929: Philosophie de la mer romantique, pâgs; 391-392.


Artigo quç sugere mais idéias do que muitos grossos livres sapisnciais.
Ii v f . 1 , . - * ·<

__ __________ Ó h u m á n ism ó lite r á r io fr a n c ê s f>_____ ' ^ 113

eminentemente educador êste entusiasmo que assim ar­


rebata a alma? '
Mas, — e aqui passamos a# um outro ponte vd@,:yasta^
— aprovaremos a tese, ou antes a hipótese, sSgundífa
qual as obras escritas em francês não formam á inteli­
gência dos discípulos porque não a fazem trabalhar p e ­
n o s a m e n te , ao passo que a tradução de línguas estrangei­
ras lhe impõe uma árdua ginástica! , ' ■
Embora compartilhássemos de um tal parecer, não
teríamos todavia a audácia de predizer que êle não seria
bem cedo contraditado pela experiência. Pois não se
pode imaginar que a engenhosidade técnica do homem,
que parece imensa, não chegúe jamais a tirar facilmente
a água de um poço tão profundo como a nossa literatura,
nem a colhêr em massa os frutos de uma terra tão fe­
cunda. Que as páginas escolhidas dos. Mestres do pen­
samento francês sejam para nossos discípulos como que
uma rica propriedade rendeira da qual só tirariam um
magro rendimento, isso mal se concebe. A só leitura
particular, abundante, apaixonada, em que um jovem
francês passa horas esquecido, não enriquece já tôdas as
faculdades de fecundas sementes? Nenhum outro exer­
cício substituirá jamais a intimidade viva da criança com
o seú belo livro francês. !
Suposto, contudo, que a formação intelectual seja
somente uma questão de raciocínio ou de esf ôrço^ lógico,
mesmo assim não se deveria desesperar sem mais dos*
exercícios de razão e de lógica qüe se fazem sobre os
textos franceses (91). Unicamente a ignorância pedagó­
gica põe o professor perplexo diante das obras-primas de
nossa língua. Qs modernos trabalhos sôbfe os “ métodos
de francês” (exploração da língua, do estilo, da composi­
ção) progrediram em nosso século quase tanto como a
técnica científica e industrial. Para medir-lhes ã eficá­
cia é precisó havê-los empregado com habilidade e cons­
tância, ou louvar-se nos resultádos qüe outros mestres

(91) Cír. em apêndice a Superioridade das llngüas mortas.


114' A Jostrada Real da Inteligência

obtiveram. A êsse respeito remetemos o leitor aos livros


de metodologia especial; pois é um imperioso dever para
todo educador o consultá-los, a-pesar-de ser um trabalho
de longo fôlego.
Observemos, finalmente, que tôda formação pelas lín­
guas estrangeiras, e sobretudo pelas línguas mortas, deve
concorrer e rematar por uma formação francesa. “ Mas
sim, bom mestre, diz um jovem humanista moderno a seu
velho professor, vós tornastes sensaboronas as humani­
dades no liceu, porque perdestes de vista o essencial da
função delas, em virtude de vosso excessivo amor pelo
grego e o latim. Entendestes como um fim o que não
deveria passar de um meio. A s humanidades são feitas,
não para ornar a memória de nossos' adolescentes com
magníficos e encantadores versos c imagens, mas para
ensiná-los a pensar, a sentir, a exprimir-se em seu fôro
íntimo, depois exteriormente, isto é, a tomar possessão
plena de sua língua materna para o uso de tôda a vida.. . ”
“ Mo Colégio de França, caro mestre, sêde helenista
e latinista em grau absoluto, se tal fôr a vossa convicção
ou a vossa volúpia. Mo curso secundário, o latim e o
grego só se concebem em função do francês, como línguas
auxiliares de francês. . . Sois vós o responsável pelo
desfavor em que caíram o latim o o grego. Nossos con­
cidadãos pensaram que essas línguas mortas eram ensi­
nadas apenas como decoração do espírito, inútil à vida
moderna, quando na vordurle o ensino do grego e do la­
tim cpntinua indispensável para evocar, formar, alimen­
tar, fortificar o espírito, pois que fornece o substratum
natural profundo, geológico do francês, cuja necessidade
para seus filhos nenhum patrício contesta, pelo menos
até o presente.. . ” (02) .
Das três classes do homens formados pelo ensino
secundário, penso que não hesitaremos muito em decidir
qual a mais invejável.2 9

(92) Assim se expressa Deliourcau, Écho de Paris, 9/IX/1929.


O humanismo literário francês 1 1 ¡5

A primeira compreende aqueles que não sabem bem


nem latim, nem grego, nem francês; não é a menos nu­
merosa. A segunda, aqueles que sabem muito bem o seu
latim, pouco o seu grego e mal o seu francês; nela não
são raros os bons alunos de estudos clássicos. A tercei­
ra, aqueles que sabem menos perfeitamente o latim e o
grego do que o francês. Todos nós temos conhecido no­
táveis espécimes de cada uma dessas classes. Vacilare­
mos em escolher a terceira?
Que dizem os defensores, — e deles somos (93), —
dos estudos greco-latinos? Repetem eles abundantemente
que tais estudos são preferíveis porque mais eficazes para
o desenvolvimento das faculdades e para o conhecimento
do puro linguajar francês. Têm razão? Compete aos
fatos dizê-lo. Ora, os fatos mostram-nos certos alunos
que, fortes em traduções e versões, mostram-se inertes,
secos, enleados, desde que se trata de pensar, de imaginar,
de analisar, de compor em sua própria língua. Uma aná­
lise literária não lhes inspira a mínima reflexão, o mini-,
mo sentimento. São incapazes de escrever com finura,
de falar com elegância. O estilo deles é vago, pesadão,
abstrato, mal articulado; as palavras lhes vêm a sacar-
rolhas, palavras vulgares, aliás, sem pitoresco algum, sem
nenhuma singularidade. Gomo se explica uma tal pobre­
za de invenção, de composição e de arte nesses mesmos
que fizeram justamente os estudos mais apropriados a
estimular a inteligência e a fazer conhecer a boa língua
francesa? A resposta não oferece dúvidas: tal acontece
porque estudaram as línguas mortas como esp ecia lista s,
como um f i m e m s i m e s m a s , e não como um m e io d e ed u ­
cação (94) .
Em definitiva, deve-se julgar da formação .dos jo­
vens franceses por sua capacidade em francês. Qualquer

(93) Cfr. o cap. VI.


(94) Suprimir, por êste motivo, o humanismo greco-latino é não com­
preender a sua fundamental necessidade. Dizemos unicamente que se dtv·
explorá-lo em vista de uma educação francesa.
116 A E strada Real da Inteligência "

que seja a ação especial que tenham a realizar neste mun­


do, realizá-la-ão como franceses; que adquiram, pois, ca­
pacidade para tanto!
Estas verdades de bom senso derrocam todos os pre­
conceitos, todas as unilateralidades pedagógicas.
Com essas reservas,, recomendamos o humanismo
greco-latino no ensino secundário. O capítulo a seguir
mostrará quanto o estimamos, mesmo do ponto de vista
da “ pedagogia francesa” .
CAPÍTULO V

AS HUMANIDADES GRECO-LATINAS

O problema das humanidades não se apresenta nos


mesmos termos e no mesmo plano que o do humanismo.
Todos os filhos da França, estejam na escola primá­
ria ou na secundária, sejam obrigados a instruir-se como
um meio prático de ganhar o mais rápido a vida, ou li­
vres de entregarem-se aos. estudos desinteressados para a
pura satisfação de suas inteligências, todos êles têm di­
reito a· receber, da educação que se lhes dá, .a sua parte
de humanismo. Mostramos que não é impossível satis­
fazê-los.
Deve-se impregnar de humanismo o ensino primário
com tanta solicitude pedagógica como a que se emprega
no secundário e superior. A diferença dos programas e
dos métodos, devida à diversidade mesma dos fins ime­
diatos visados, não deveria provocar nos professores pri­
mários uma abdicação de seu papel de educador humano,
nem nos professores secundários-uma pretensão de mono­
polizar o humanismo.
A solução do problema do humanismo, uma vez que
a criação tôda incarna idéias fecundas, deve ser buscada
antes do mais na arte de ensinar. O humanismo no ma­
gistério é a irradiação do humanismo interior do mestre :
se dentro não houver, fora não poderá aparecer.
Não é, ■contudo, indiferente ao bom êxito a quali­
dade dos instrumentos, isto é, das disciplinas intelectuais,
118 A E strada Beal da Inteligência

0 problema das humanidades liga-se ao do humanismo


como uma aplicação prática a uma teoria geral (9S).
Devemos, efetivamente, raciocinar dentro da hipóte­
se em que uma juventude tôda, favorecida pelos dons de
Deus, buscasse o sistema educativo que mais a cultivasse
ou humanizasse. Deve-se propor um plano de estudos
que responda às aspirações desta elite.
O bom senso francês imediatamente nos adverte de
que é necessário fazer uma escolha de matérias e sobre­
tudo estabelecer entre elas uma progressão e uma hierar­
quia. Pois a solução quantitativa, pela qual se acumulam
no mesmo espaço de tempo as ensinanças tôdas de cam-
bulhada, é uma solução inhumana. Com tais processos
bárbaros levam-se uns à cerebrastenia e outros à vagabun­
dagem intelectual. Se tôdas as crianças se estafassem,
a raça tôda estaria perdida em poucas gerações; os tra­
balhadores esgotar-se-iam, e os preguiçosos que lhe sal­
vaguardassem a saúde física comprometer-lhe-iam a saú­
de moral: manteriam em tôda parte a mediocridade da
inteligência e do caráter. É preciso evitar estes extremos.
Eis-nos, pois, ante a necessidade de resolver um pro­
blema de relações, de proporções, entre diversas matérias.
Temos que escolher. A questão poderia formular-se as­
sim: “ As humanidades greco-latinas verdadeiramente
merecem servir de base à educação humanista? O novo
humanismo procederia acertadamente aceitando para essa
elite um projeto que subordinasse todos os estudos a uma
primeira formação greco-latina? E de que modo seria
exequível um tal projeto?” .
O de que se trata, pois, não é negar o valor educati­
vo das ciências, da história, da literatura, nem mesmo
das línguas vivas, cousas estas que, cada uma por sua vez
e em seu lugar, podem, dissemo-lo, exercer sôbre o espí-

(95) A finalidade desta obra não é dar uma resposta direta ao proble­
ma das Humanidades ou da organização dos programas. Ocupamo-nos di­
retamente da arte de ensinar de um modo “humanista” , isto ê, da forma­
ção da inteligência.
A s humanidades greco-latinas 119

rito urna benéfica influencia e tornar-se mesmo necessá­


rias à formação integral; não se trata, também, de afir­
mar que o estudo das línguas mortas por si só baste para
o desenvolvimento normal e perfeito do espírito. Pro­
curaremos estabelecer entre as diversas disciplinas uma
ordem, uma marcha lógica, uma hierarquia fecunda, um
equilíbrio natural. O estudo prévio das humanidades
greco-latinas não parece dar à formação dos jovens fran­
ceses uma profundeza, uma amplitude, uma agilidade,
uma finura, uma harmonia, em que o humanismo triunfa
e a França revê o seu gênio próprio?

/ — 0 ponto de vista da cultura· (®6)

Gosta-se muito hoje em dia de distinguir, com preci­


são geométrica, o sentido vertical e o sentido horizontal
das influências (997). Falemos primeiramente do benefí­
6
cio excepcional das humanidades greco-latinas — no sen­
tido vertical.
O que mais importa às gerações novas de cadâ nação
é realizar o tipo ideal a que providencialmente as prepa­
raram as heranças, os privilegiados recursos, o meio, a
vocação de seu país e de seus maiores.
Em tôda seleção ou simplesmente no esforço indivi­
dual pela perfeição, o único meio de ser bem sucedido con­
siste em utilizar, para melhor, a economia geral das qua­
lidades da raça. Em outros termos, a cultura, tal como
a definimos, é a condição do progresso.
Ora, estamos a viver numa época em que a aproxi­
mação dos povos, favorecida pela civilização, é tão rápida,
e em que a união parece tão desejável, que se chega a con­
fundir êste ponto de vista do enraizamento no solo pátrio,
que é qualitativo, com aqueloutro da extensão no espaço,
que é quantitativo. ,

(96) Estes tèrmos, “cultura, civilização, humanização”, foram explicados


no cap. X da 2.a parte déste livro.
(97) Ou, por outra, o sentido da profundidade ç o da largura,
120 A E strada Real da Inteligência

O humanismo indubitavelmente pode propor-se a mis­


são de pôr o homem em relação com todo o universo, mais
ainda, em simpatia, em união com êle, até o ponto de que
tôda a humanidade concreta ressoe em cada alma indi­
vidual, como tôdas as ondulações sonoras vibram em cada
lâmpada.
Um tal sonho, porém, cuja efetivação é belo e bom
tentar todo dia, tornar-se-ia pura ilusão se preliminar-
mente todos os povos, que Deus fez diferentes, não con­
servassem sua beleza e forças próprias, pelas quais se dis­
tinguem uns dos outros.
Antes, de ser tudo por assimilação é preciso ser-se em
si mesmo capaz de assimilar. A criatura é feita de tal
modo que as perfeições que são exteriores a seus próprios
limites somente se integram nela na medida de sua supe­
rioridade sobre o resto. Tudo aquilo que ela não pode
dominar nem associar para transformar em alimento seu
permanece, embora o possua, estranho a seu ser.
A humanidade só se pode distender exteriormente,
determinando-se interiormente. E só se pode determinar,
limitando-se. Tornando-nos outrem, cessamos de ser nós
mesmos. Cumpre que tenhamos domínio sobre o nosso
próprio eu, para que os outros possam vir a enriquecer
nossa personalidade. A união só é fecunda pelo unidade
dos indivíduos que se unem.
Pergunta-se o que poderia ser um gênio que não fôsse
mais o de uma nação, mas ao mesmo tempo francês, in­
glês, alemão, russo, tártaro, persa, indú, chinês. Quais
seriam os seus costumes, as suas ciências, as suas artes,
a sua poesia, os seus hábitos, as suas leis vitais, o seu ideal
mesmo de beleza ( 88) ? Em tôrno a que núcleo sentimen­
tal irromperiam as suas paixões, que são a alma- do liris­
mo, se elas estivessem universalizadas, isto é, livres das
condições particulares da sensibilidade humana?9 8

(98) Cír. Chateaubriand, Mémoires ci’outre-toinl)“, VI, pág. 456: “Em


vão mil cérebros se coligarão, jamais comporão a obra-prima que sai da ca­
beça de Homero”, Tôdas as nações antigas somadas não fazem a Grécia.
As humanidades greco-latinas 121

Uniformizar a vida é tornar o seu movimento estag­


nado. Trate-se da terra, do mar ou das almas dos povos,
nada pode ser tornado igual se não no nível da medio­
cridade e da banalidade.
A uniformidade é um sinal de indeterminação, de
impotência de ser qualquer cousa. Toda obra de unifor­
mização é um designio bárbaro ( " ) .
Unicamente a variedade das formas pode represen­
tar o infinito, Cada urna délas é um aspecto da beleza
ou não é nada.
Urna das idéias fecundas do século XVII, retomada,
sob urna forma menos clara e menos simples, pelo Roman­
tismo, é essa de que a humanidade se acha tanto mais
universalmente em cada um de nós quanto mais ‘p rofun­
damente ai está pela perfeição mesma de suas qualidades
humanas. Não há em tal conceito uma negação do uni­
versal; põem-se-lhe ao contrário os fundamentos.
Ora, essa verdade capital tende a desaparecer na dis­
cussão das humanidades. Fazê-la valer equivale, por cer­
to, a mostrar a importância da formação greco-latina.
Pois nada se deve esperar, das ciências e das línguas
vivas para comunicar à mocidade a forma própria e ca­
racterística de sua raça. Bem ao contrário de enraizar
ainda mais um jovem francês no solo em que germinou,
lançam-no para fora dêle e de um certo modo o desarrai­
gam. Sua tarefa benfazeja consiste em universalizar
as conquistas intelectuais e unificar a variedade dos es­
píritos : os cientistas e os intérpretes são sêres internacio­
nais em virtude de sua especialidade; se não tivessem ou­
tra cultura, não teriam nem pátria nem raízes. É preci­
so, por conseguinte, retardar ou diminuir a formação cien­
tífica até o dia em que a educação propriamente nacional
haja germinado e produzido os seus primeiros frutos.
Mais confiança, porém, teríamos no estudo da his­
tória, da literatura e da língua francesas; pois o espírito,
o coração e o caráter da França se refletem e incarnam

(S9) Cír, o que dia Puhajnel, Sccnes de I» Vie future, págs. 230, 231,
122 A E strad a Real da Inteligência

em suas obras. Não pensamos que se deva negligenciar


nunca a cultura propriamente francesa (10°) ; acredita­
mos, entretanto, que ela seria bem melhor se se subordi­
nasse a urna cultura greco-latina. Parece-nos que há
grande vantagem em remontar às fontes do gênio francês.
Retemperar-se cada um individualmente em suas fontes,
para renascer da mesma água e do mesmo espírito que
deram nascimento à França, — seria uma superfluidade?
Seria possível obterem-se os mesmos resultados por ou­
tras vias que não as da geração natural? Precisemos.
A literatura francesa, efetivamente, já não é tão rica
de ressonâncias e analogias, tão impregnada de luz imen­
sa, tão significativa, para aquele que descobriu as mis­
teriosas origens de sua beleza.
Parece realmente que a literatura francesa com a for­
mação greco-latina ou sem essa formação é como que uma
silhueta de primeiro plano com ou sem sua paisagem lon­
gínqua, uma melodia com ou sem o acompanhamento.que
a orquestra, um príncipe explicado por seus antepassados
ou o mesmo desconhecido e sem linhagem, uma flor com
o ramalhete de verdes e o quadro natural que a cercam
ou a mesma arrancada de seu meio e lançada entre bibe-
lôs artificiais. Representamo-nos com exatidão o que
seriam os restos do Partenon, num museu, sem essa luz
da Grécia que os “ coloria da mais bela côr da flor do pes­
segueiro” ? “ As esculturas de Fídias, tocadas horizontal­
mente por um raio de ouro, reanimam-se e parecem mo­
ver-se sôbre o mármore pela mobilidade das sombras do
relêvo” ; que são elas, porém, na meia-luz uniforme dum
salão? Que é das colunas de Baalbeck quando não mais
se perfilam sob a magia do poente nas planícies da Síria?
Tais são as imagens que naturalmente ocorrem ao espírito
assim que se tenta figurar o que seriam as obras-primas
da literatura francesa com ou sem o maravilhoso ‘painel
da civilização grega ou romana (101).
-----------
— 5
(100) Cfr. o cap. IV: O Humanismo literário francês.
(101) “Aí está, diz Herriot, urna das mais profundas razões de nossa
As humanidades grecQ-latinas 123

Léon Bérard e uma infinidade de bons mestres antes


e após êle mostraram que a mesma língua francesa do
século XVII, — e eu seria tentado a dizer que também a
do vigésimo, tal como a escrevem excelentes autores justa­
mente enamorados da tradição, — é frequentemente equí­
voca ou pelo menos inexpressiva para quem não conhece
as línguas antigas. Mortas, estas revivem em nossas^
obras, sob outra forma. Desculpar-me-ão por não exi­
bir aqui prova detalhada da afirmação; ela tem sido re­
petida mil vezes (*102*).
Com mais forte razão, o pensamento mesmo fica di­
minuído e pálido! Não são apenas as palavras que têm
raízes; todos os seres as têm. Os sentimentos também.
A literatura francesa do ponto de vista psicológico, mais
ainda do que do ponto de vista linguístico, não pode, por­
tanto, ser compreendida plenamente sem as literaturas
que formaram os nossos grandes escritores. Uma expli­
cação de Santo Tomaz de Aquino por um filósofo que
ignorasse Aristóteles e Averróes, ou da Canção de Rolan­
do por um professor que ignorasse as Cruzadas, ou das
catedrais góticas por um professor que nada soubesse
do catolicismo da Idade Média, ou de Bossuet por um
profano que desconhecesse a Bíblia, representa com bas­
tante exatidão o que seria a explicação de nossas grandes
obras clássicas por um literato que não houvesse tido edu­
cação greco-latina. Pois a formação tôda de um escritor,
suas imagens, suas lembranças, suas idéias gerais, sua
visão do mundo passam para suas obras sob forma de
vida imanente e contínua. De que modo compreender essa
vida sem lhe conhecer as condições? o exterior sem o in­
terior? o corpo sem a alma? Assim, de que modo ir ao
fundo das obras francesas sem o grego nem o latim? Sem

Invencível adesão ao helenismo: éste contribuiu largamente para criar essas


paisagens espirituais em que se ordena o mundo sensível” . Sur 1’Huma-
nisme scientifique (Champion) pág. 9.
(102) Cír. entre outros: Léon Bérard, Pour Ia Réforme classique, págs.
115, 252 e sgs. — Revue Universitaire, IV/1919, resumo de um artigo de Gas-
tinet, pãg. 362. — Ver o importante apêndice no.fim dêste volume sôbre
a utilidade da língua latina e os depoimentos arrolados.
124 A E strad a R e a l da Inteligência

dúvida que não é impossível encontrar em tôdas as cou­


sas, tais como se apresentam ao primeiro olhar singelo,
matéria para intuições fecundas e abundantes reflexões:
Mas, dessa maneira, longe se está de esgotar-lhes o sig­
nificado e a beleza, e sobretudo se fica incapaz de assimi­
lar-lhes a substancial medula que é o alimento próprio de
nosso gênio francês.
Dessa cousa secreta e fugitiva que é a beleza, não
falemos como de objetos materiais que têm péso e forma
distintos e que se levam de um lugar pára outro. A be­
leza é sempre parcialmente misteriosa.· 0 mistério das
obras-primas da França só se revela aos olhos dos inicia­
dos, que arrancaram às sibilas antigas o segrêdo de sua
inteligência.
Aliás, não é um princípio pedagógico de universal
aplicação èsse de que unicamente se entende o· complexo
através da análise do simples, de que se realiza um todo
sintetico somente pela prática isolada dos movimentos
elementares? Pois assim é djrigida a prática das artes.
Assim também, pouco a pouco, vamos conhecendo bs ho­
mens, nosso pai, nossa mãe, nossos amigos, através da in­
finidade de detalhes que o espirito'de finura colhe e con­
juga com o correr do tempo. Do mesmo modo, unica­
mente o estudo lento e penetrante das obras gregas e la­
tinas nos revelará a forma precisa e sutil de nossas qua­
lidades d e ra ça . ,
Efetivamente, nosso espírito francês é uma feliz alian­
ça da razão e do caráter de Atenas e de Roma. Da alma,
dessas duas cidades, privilegiadas das Musa3, fomos tirar
esta feliz fusão de sabedoria e fantasia, de senso prático
e alado idealismo, de lógica tenaz e encantadora liberdade
, de espírito, de sisudez realista e alegria criadora, de ne­
cessidade de ação e tendência à contemplação, de espírito
de conquista intelectual e gèsto pelo pensamento desinte­
ressado e pacífico. O francês não é nem grego nem ro­
mano. Não é também uma mistura de ambos. É o fruto
comum da sua união. Não obstante, é ao mesmo tempo,
um e outro, como um filho bem nascido é outra coisa que
■Afl humanidades greco-latinas ________________ 125

não os seus antepassados, os quais entretanto nele re-·


vivem. _
Não é à Alemanha, ou à Rússia, ou à Inglaterra, ou .
à América, ou ao Oriente, que iremos louscar o que a Gré­
cia nos deu e poder-nos-á eternamente dar: esta delica­
deza de percepção, esta aptidão de perceber as relações
imponderáveis, êste senso da nuança que permite ligar
as cousas entre si pór laços tão sutis que sua organização
sobrepuja no mundo imaginário a harmonia profunda do
mundo real; esta necessidade de clareza, êste senso da
medida, esta aversão pelo vago e pelo abstrato, esta re­
pulsa pelo monstruoso e pelo enorme, êste gôsto pelos
contornos nítidos e bem pronunciados que permite a fei­
tura de obras que qualquer raça e qualquer século podem
compreender e que, sendo humanas, são não obstante eter­
nas (103) . Ao contacto das modernas literaturas estran­
geiras, corremos antes o risco de perder tais predicados.
Se para nos formar estivéssemos reduzidos apenas à
literatura francesa, á tentação não seria de desejar pedir
emprestado a outras nações atuais, que nos envolvem a
■ ponto do penetrar-nos e às vezes infelizmente de inva­
dir-nos com sua civilização, as suas qualidades originais?
Niossa língua materna, desarraigada do solo latino, seria
impotente para conter a invasão. Pois, viva, móbil, su­
jeita à evolução, a língua francesa interessa sobretudo à
juventude, pelo serviço quotidiano que·,lhe presta; é im­
possível que nossas gerações moças não prefiram a forma
moderna, fácil é prática ¡de nossa língua ao seu ar de avo­
zinha envelhecida, ou mesmo ao seu feitio clássico ou ro­
mântico. E, por sua vez, ela sé tornaria, como as línguas
vivas, uma língua ú til à troca de idéias, às relações sociais.
Mas, neste ponto, não se vê que ela não mais se poderia
defender contra a penetração estrangeira, qüe apressaria
a sua corrupção?
Nós degeneraríamos, pois que nosso caráter próprio

(103) TOdas estas expressões s&o de Taine, Phflosophie de 1’Art, t. n ,


pág. 149.
m A E strada Real âa Inteligência

se dissolveria no complexo de qualidades opostas às nos­


sas ( 104).
E por Um determinismo necessário, o gênio francês
cessaria então de ser puro; mais ou menos germânico,
saxão, eslavo, acabaria por não ser mais êle mesmo, à
fôrça de ser outro.
As obras latinas e gregas, pelo contrário, estão as­
saz mortas para que sua beleza permaneça eternamente
jovem e assaz vivas para revivificar eternamente o nosso
espírito. É ideal, para a arte, que o modêlo tenha uma
certa fixidez na perfeição. Assim que o movimento o
transforma, sentimo-nos irresistivelmente tentados a tra­
tá-lo como instrumento, conforme nossas predileções.
Quando, porém, a beleza se acha imobilizada sob uma for­
ma plástica que escapa ao tempo e ao capricho dos ho­
mens, então ela oferece, em virtude de sua eternidade
mesma, um meio de sempre remoçar, de sempre escalar a
encosta até o cimo que ela jamais pôde atingir. O pas­
sado parece morto; mas não, êle é um princípio de per­
pétuo renascimento. O que é morto no passado é o me­
díocre, pois que não se tem nenhuma necessidade do me­
díocre para reproduzir ainda mediocridades. O que é
vivo é o perfeito, pois que o perfeito é o fruto de um fe­
liz encontro de circunstâncias que quase sempre escapa à
nossa fraqueza.
Parece, pois, que uma educação verdadeiramente na­
cional e, por conseguinte, verdadeiramente humana, —
pois que a esta se chega por aquela, — deverá começar
em França por uma formação greco-latina. Tal é a pri­
meira razão sólida que vemos.

II. — O ponto de vista da civilização

A segunda razão de importância é tirada do lugar


que devemos ocupar no progresso da civilização universal.

(104) Ler, a propósito da cultura e da civilizaçSo em França, o interes­


santíssimo trabalho de Louis Gillet na Revue des Deux Mondes, l/V/1931.
As humanidades greco-latinas an
A éste segundo ponto de vista demos o nome de ponto de
vista horizontal.
Ninguém contestará que a França conta mais com o
seu gênio próprio do que com o número de seus soldados
para fazer irradiar além de suas fronteiras as luzes da
verdade e os benefícios da paz.
Enquanto guardarmos a nossa originalidade, — fôs­
semos embora uma terra tão diminuta como a Grécia an­
tiga, — permaneceremos como um farol útil para as de­
mais nações.
De onde brota, pois, a fôrça particular de nossas qua­
lidades tradicionais? Têm-no repetido muitas vezes, e
desejaríamos prová-lo que não era sem razão: nasce ela
da natureza mesma do espírito grego e do caráter roma­
no, dos quais somos herdeiros.
Uma excelente brochura sobre Os Clássicos na Edu­
cação britânica foi publicada numa coleção inglesa cuja
finalidade era tratar dos diferentes problemas da recons­
trução do após-guerra. Entre outros fatos, — os ingleses
gostam do método positivo, — aí se constatam os seguin­
tes: “ A história e o pensamento da Grécia e de Roma
estão muito mais perto de nós, são muito mais reais para
nós, mais modernos do que a história e o pensamento dos
séculos II a X VI de nossa era. São ainda hoje fontes
inesgotáveis de pensamento e inspiração.
“ .. .É difícil fazer compreender, a quem disso não tem
noção, até que ponto a língua, a literatura e o pensamento
ingleses estão baseados sôbre a Grécia e Roma, e são inin­
teligíveis sem ambas. Nossa filosofia se alicerça em Platão
e Aristóteles e daí dá um salto até Hobbes e Locke. E Pla­
tão e Aristóteles permanecem inabaláveis, não substituídos
por Kant e Hegel, ou mesmo por Nietzsche ou William
James. Todo o sistema do direito moderno (embora jne-
nos na Inglaterra de que na França) descansa sôbre o
direito romano. Nossa literatura imaginativa está im­
pregnada da literatura da Grécia e de Roma. Suas for­
mas, temas, pensamentos vêm diretamente de lá, como se
não houvesse vinte séculos a separá-los. Nossa língua é
128 A Estrada Real da Inteligência

tanto latina como saxônia, e o francés e o italiano e o espa­


nhol nada mais são que latim modernizado. Simplesmen­
te como meio de compreensão das línguas e literaturas
modernas, indispensável já é o conhecimento amplo do
grego e do latim. Todo sistema de educação que enfra­
quecesse nosso conhecimento e estima dessa cultura, re­
baixaria o, nível e diminuiria a capacidade de nossa cul­
tura” (105).
Ora, tôdas as nações ocidentais (106) poderiam igual­
mente reconhecer a parte de helenismo e de latinidade que
desde suas origens foi mesclada à sua língua, pensamento
e instituições, embora nenhuma delas tenha sabido man­
ter mais em linha reta, do que a França a filiação antiga
e reproduzir com maior similitude os traços de seus an­
tepassados.
Isto pôsto, será tão difícil assim atinar com o que ser­
ve de traço-ãe-união entre os povos e o que lhes serve de
barreira? Barreira é a forma atual e mutável de cada
um déles; barreiras são as mentalidades próprias, as per­
sonalidades vivas opostas umas às outras. Traço-de-união
é o antigo, é a comum cultura greco-latina que foi por as­
sim dizer inoculada como um vigoroso sangue nas veias
de tôdas as nações modernas e que lhes permite reconhe­
cer na voz, nos sentimentos, nas aspirações de uma, a voz,
os sentimentos e as aspirações de um dos membros da
mesma família, herdeira de uma longa tradição. Se nada
houvesse de comum entre a França e os demais povos, de
que modo poderiam estes compreender, estimar, amar o
seu gênio, tão ciosamente estranho ao déles, e sobretudo
de que modo poderiam aceitar a sua influência intelectual
e ter a beleza francesa como uma beleza desejável?

(105) Reconstruction Pl'oViems, 2 1. The Classics in hritish Education.


Collection by His Majesty’s Stationery Office Impérial House Kingway, Lon­
don, W. C2.
(106) Goethe, por exemplo, é “antigo” . Sôbre a influência francesa na
Alemanna, consultai a alentada e, minuciosa obra dé Reynaud: Histoire gé­
nérale de l’influence française en Allemagne. — Cfr. André Beauniér: Les
Idées et les Hommes, 2.a série, 1915, pâgs. 285 e segs. — Paul Crouzet: Les
Ponts romains: “Du latin à l’allemand” . — Cfr. nosso apêndice.
.As humanidades greco-latinas 129

0 filósofo Alfred Fouillée, que escreveu páginas im­


portantes sôbre as humanidades greco-latinas, não receia
dizer que, renunciando à nossa educação antiga, não so­
mente renunciaríamos “ ao que alimenta o que há de mais
puro no espírito francês” , senão também que poríamos
“ nosso país fora do concèrto internacional” . E cita exem­
plos, fatos, depoimentos. No dia em que a influência la­
tina não mais perpassasse pela França, ver-se-ia, pois,
decrescer a influência francesa no mundo: “ Tudo quan­
to se empreende contra o latim, empreende-se contra o
francês” ( 1071).
8
0
Aqui, o tempo nos ilude. Não é por uma cousa estar
mais afastada de nós no tempo que ela nos é menos pre­
sente por seu poder psicológico. A ação mecânica se
esgota através dos lugares e das épocas. O mesmo não
acontece à ação espiritual. Todos os espíritos cultos do
Ocidente e um grande número dos do Oriente aproxi­
mam-se entre si, menos pelas relações do presente, sempre
efêmeras e enigmáticas, do que pela educação literária
greco-latina, que lhes é comum no passado. Há cousas
hoje existentes e que estão mortas para nossas almas;
outras, há pouco desaparecidas, parecem não haver ja­
mais existido para nós; e outras há, enfim, que embora
antiquíssimas são sempre vivas e que renascem com nova
vida nas épocas propícias de transição: são aquelas que
em suas formas expressaram uma beleza mais perfeita;
pois a perfeição da arte torna as obras imortais.
Se a flor de nossa humanidade francesa tem poder
de seduzir os corações e irradiar longe o seu perfume,
cumpre não arrancar a planta do solo grego e latino em
que germinou ( 1US).

(107) Alfred Fouillée, Les Êtudes classiques et la Démocratie, págs. 13-14.


(108) Jean Malye pensa que a Europa está ameaçada pelo “ messianis­
m o soviético" e pelo “ supercapitalismo americano” . Para deíender-nos, tor­
na-se necessário reconstituir as elites européias e dar-lhes uma aima comum.
Por que método? Pela cultura clássica, que é uma tradição para tôda a
Europa, e a pedra de abóbada de todo o edifício.
“ Se não há panacéias, diz êle, há pelo menos tradições que já deram
mostras de seu valor e que são sempre eficazes. Unia dentre elas tem 'u m
valor dé primeira ordem: é a cultura clássica. Entendamo-nos bem: cui-
130 A E strada Real da Inteligência

Não olvidemos, contudo, a tarefa que atribuímos tam­


bém às ciências no progresso da civilização. A França
igualmente brilha por seu valor científico, no centro do
universo intelectual. O momento é pois oportuno para
dizer da importância da formação greco-latina para co­
municar à educação científica êsse espírito científico que,
exclusivamente, é a verdadeira causa de nossa influência
no mundo do pensamento.
Efetivamente, a ciência por si mesma não tem pátria;
é uma matéria alheia aos climas, aos costumes, às línguas,
às formas de pensar tradicionais dos povos; está fora da
alma; poderia ser expressa em Ido, sem nada perder de
seu valor.

tura clássica náò é estudar durante um número maior ou menor de anos


o grego e o latim. Cultura clássica é fidelidade à tradição fundamental da
Europa, de tôda a verdadeira Europa digna dêste nome. A Civilização eu­
ropéia, a civilização da raça branca mesma, pode-se dizer, nasceu em tôrno
ao Mediterrâneo. A Grécia lhe deu entre outras cousas a razão, o espírito
científico, a liberdade individual. Roma lhe trouxe a noção do direito e
da energia, isto é, da organização harmoniosa de um mundo feito de ele­
mentos dispares. E o cristianismo lhe aduz, Já há quase dois mil anos, a
sua coloração religiosa, os seus sentimentos de solidariedade ou de caridade,
como se queira. Não se pode negar que esta tradição tenha formado e
impregnado todos os povos europeus, os quais, todos, são herdeiros diretos
seus. A herança foi mais ou menos conservada ou compreendida, mas per­
tence igualmente a todos. A França é talvez mais grega do que a Grécia
moderna, e a Polônia certamente é, por sua milenar vontade, tão latina
como a. Itália” .
“Trabalhemos, portanto, por manter, por desenvolver mesmo esta tradi­
ção, esta cultura clássica. Para isso, curemos, em nossos países respectivos,
do ensino tal como é ministrado em nossas escolas. Cuidemos que, através
dos meios apropriados, todos, pobres e ricos, tenham acesso a essa formação
intelectual, sempre nacional e sempre européia e amplamente humana, que
nos dará, ao ladó dos especialistas profissionais, dos indispensáveis contra­
mestres, as elites de que necessitamos” .
“É possível, enfim, por êste meio, que chegássemos a conquistar certos
adversários nossos. A-pesar-de tudo, entre os brancos de além-mar, há um
ideal adormecido que é o nosso. Cabe a nós impedir que se extinga. Não
é, acaso, interessante ver o prodigioso desenvolvimento dos estudos clássi­
cos nos Estados Unidos, bem como a existência na Austrália e na África do
Sul de “ramos” florescentes da Classical Association da Inglaterra?”
“ O renascimento da cultura clássica não é um sonho. Em todos os
cantos da velha Europa sente-se a necessidade de recorrer a essa eterna
fonte de Juventa. O que faz em França o sucesso da Associação Guilherme
Budé é que ela se preocupa mais de reconstruir o pensamento e a vontade
francesas e européias do que de excogitar uma nova hipótese filológica sôbre
um texto grego. O que se deve também saber, afim de esperar e trabalhar,
é que em todos os países, da Catalunha à Alemanha, da Inglaterra à Po­
lônia, da Holanda à Itália, e à Grécia e ao Egito, novas fôrças aparecem,
crescem, propagam-se afim de daf à'Europa êsse Ideal de progresso e de li­
berdade que é o .iiniccí desejável, bfenfazejo e belo, porque dá ao homem a
dignidade e a alegria de Viver” . (Jea® Malye, in í/Européen, 3I/VÍI/1923),
humanidades greeo-latinas 131

0 espírito científico, porém, é alguma cousa de mais


pessoal, e que diz respeito à própria alma. È algo vivo
e ativo, que organiza os fatos e os transmuda em idéias.
O espírito científico é fecundo: desfaz e refaz a ciên­
cia. O espírito científico é livre: não o acorrentam nem
as invenções parciais do passado, nem os sistemas artifi­
ciais, nem mesmo as generalizações incompletas das leis.
O espírito científico é intuitivo: avança por saltos es­
pontâneos através das obscuridades do mistério da natu­
reza. O espírito científico assemelha-se ao espírito do
poeta pelos seus sonhos, que são as hipóteses, e por suas
visões proféticas. Bergson analisou mais de uma vez a
marcha original do espírito de invenção. Outra cousa é
a erudição sábia, que é Um bem comum de todos, e o es­
pírito científico, que é uma espécie de dom e privilégio
celeste.
Ora, estas análises estão a mostrar-nos o parentesco
estreito que há entre o espírito grego e o espírito cientí­
fico. E tal é essa afinidade que somos levados a persua­
dir-nos de que o meio mais seguro de conservar para a
França sua especial posição de influência na civilização
através das ciências, seria o de manter e de desenvolver
nela o espírito grego. Ao passo que os fenícios, os egíp­
cios, e os outros povos mostravam-se impotentes para fu­
gir da prisão do empirismo, isto é, da composição fortuita
de processos práticos, unicamente o grego foi especulati­
vo. O grego quer saber a razão das cousas, e sobe até a
prova abstrata, que provê à série infinita das aplicações
industriais. “ Êles pensam por pensar, diz com justeza
Taine ( 109), e é por isso que fizeram as ciências. Nós,
hoje em dia, não construímos uma só ciência que não se
apoie nos alicerces por êles colocados” .
Os demais povos inventaram regras cômodas e úteis;
o espírito grego inventou a própria demonstração, porque
o espírito grego é, em si, um poder e necessidade inatos de

(109) FftUosophie de 1’Art, II, pág. 116,


132 A E strada Real da Inteligência

inteligibilidade e racionalidade universais. Fora duma


ordem racional que as. explique, as cousas perdem tôda a
sua significação. Os gregos conceberam essa ordem in­
teligível. Inseriram esse espírito em todas as suas obras
literárias e artísticas, como se estivessem convencidos dês-
te princípio mesmo da ciência, — “ que é pela verdade,
que em si mesma é o maior dos bens, que se pode chegar
a todos os demais bens” . Tôda beleza dêles se mensura
com precisão segundo todas as dimensões da alma hu­
mana, em nada ultrapassando as proporções, as conve­
niências e a justa medida. Êstè espírito científico exige
sempre a exatidão do tò urpénov. (conveniente).
Parece que comunicaram êsse espírito científico à
elite de Roma ( uo). Comunicaram-no mais ainda à raça
francesa; pois o que a caracteriza é precisamente o que
lhes pediu emprestado, uma necessidade de ver claro, de
eliminar tudo quanto não é rigorosamente exato, de com­
preender as relações essenciais, de pôr ordem nelas, de
patentear as dependências, de forjar cadeias de idéias em
que não falte nenhum anel, de raciocinar sôbre tôdas as
cousas afim de eliminar de cada uma o seu caráter de fato
bruto e dar-lhe uma significação universal. Portanto, o
que a França tomou à Grécia e lhe arrebata ainda a cada
renascimentoi da civilização — é o espírito científico (m ).
Sem esta preparação preliminar da inteligência pela
formação grega, o ensino das ciências corre em seus iní­
cios o risco de nada mais ser que um pobre tartamudear
quase material e um vão trabalho de memória; e de tal
exercício jamais se tirará nenhuma formação humanista.1 0

(110) “ Os grandes administradores romanos, mesmo os homens de guer­


ra, que eram sobretudo engenheiros militares, achavam-se imbuídos de le­
tras gregas. Quem sabe se não foi daí que tiraram êsse espírito de ordem,
de método, de lógica, de clareza, que os tornou capazes de organizar o mun­
do?" (Goblot, Le Système des Sciences, págs. 6 e sgs.).
(111) Cír. o artigo de Léon Blum, Kevue de Paris, l/VI/30, págs. 645 e
677. Ver o notável resumo publicado pela Kevue Universitaire, VII/30, págs.
176 e 179. — “É uma das honras do poyo grego o haver integrado a ciência
matemática na cultura geral, de ter feito dela um elemento essencial do
saber e do progresso humano, é de ter assim estabelecido essa doutrina a
que se liga tôda uma tradição francesa, que entendemos manter” . (Bd.
Herrlot, Sur l'Humanisme scientifique, pág. 5).
 s humanidades greeo-latvm iãã

A matéria da ciência, amontoado de resultados inertes,


não infunde por si mesma espírito científico. O que é
necessário é que a alma instintivamente sinta essa neces­
sidade, que tão forte tinham os gregos, de buscar, por
detrás dêsse muro de fatos, as razões, os porquês, as hi­
póteses, o dinamismo, o movimento das causas e dos efei­
tos, o drama que se está a processar e cuja crise produz
o desfecho, de que sairão sempre novos problemas. Não
parece que os teoremas, tais como são ensinados nas esco­
las, sabidos de-cor, acompanhados de um exercício me­
cânico feito em casa, bastem para despertar nos alunos o
senso da grandeza, do infinito, da ordem, do universal e
do necessário, do mistério e do divino. Ora, não é preci­
samente isso o que se espera da formação científica?
A experiência quotidiana com turmas e aulas dá-nos
a prova de que os manuais de ciência, penosamente di­
geridos pela memória dos alunos, no preparo de um exa­
me, onde tanto vale a sorte como o mérito, não passam de
embatumada massa que o fermento do espírito não le­
vedou.
Outras provas indiretas, porém, chegam-nos dos po­
vos vizinhos. A crer num de nossos mais eminentes cien­
tistas, Pierre Duhem (112), os alemães, disciplinados por
uma pedagogia mais mecânica do que a nossa, carecem
em suas pesquisas científicas precisamente dêsse espírito
de finura que a cultura grega dá. A erudição déles, mon­
tada como um relógio, avança, com movimentos rígidos e
infalíveis, dos axiomas às conclusões” sem fazer o mí­
nimo apelo ao juízo e ao bom senso vulgar” . A sutil per­
cepção dos flexibilismos e engenhosidades da natureza,
numa palavra, o senso do real falta-lhes em parte. O es­
pírito de Sócrates e Platão não penetrou em sua sólida
inteligência de cientistas. -
É bem possível que a crítica de Duhem exagere os
defeitos da nação que era então inimiga. Como quer que

(112) Revue des Deux Mondes, l/n/1915.


134 A È strada Real da Inteligência

seja, em seu artigo interessa-nos unicamente a defeituosa


formação que .imprimiria em nossos espíritos uma instru­
ção científica que não fosse temperada, ampliada, pene­
trada, inspirada, dirigida pela agilidade da intuição, da
imaginação e da inteligência. Importa, pois, antes de qual­
quer outro estudo, cuidar de adquirir essas qualidades es­
senciais mediante uma educação que favoreça o seu desen­
volvimento.
Esta prudência pedagógica foi a de muitos cientistas
franceses. Foi-lhes útil. Há dois anos, pouco mais ou
menos, 15 de outubro de 1927, vinha na Revue des Deux
Mondes um artigo sôbre Marcellin Berthelot. Seu autor,
após haver resumido em linhas gerais a sua obra prodi­
giosa, fazia notar que Berthelot fôra sempre guiado por
um senso da realidade e por um faro do imponderável e
do invisível através da floresta dos fenômenos, que nada
dá, senão a natureza, e que nada desenvolve, senão a edu­
cação secundária. E, com efeito, o que fazia o valor de
Berthelot não escapava a seus contemporâneos, tão cegos
comumente por seus preconceitos e invejas. Fouqué, fa­
lando como presidente da Academia das Ciências, podia
dizer-lhe em 1901, em sessão solene: “ Todos admiram
em vós a capacidade de trabalho, o espírito de invenção,
a lógica das idéias, a amplitude da memória, a habilidade
experimental, a aptidão de passar de uma série de pes­
quisas a outra sem ligação aparente com a primeira. To­
das essas eminentes qualidades reunidas num só homem
asseguram-lhe uma personalidade sem rival” .
E Henri Poincaré igualmente observava que “ qual­
quer questão, apenas germinada, em seu espírito, ampli­
ficava-se, ramificava-se, e dava frutos imprevistos” .

Ora, de que modo, mediante que métodos, êsses dons


tinham sido cultivados? Qual fôra o processo de seu de­
senvolvimento? A que disciplina esteve adstrita a for­
mação intelectual de Berthelot?
“ Se êle pôde, afirma Henry Le Chatelier, tocar em
domínios tão diferentes, fê-lo graças à cultura geral que
Ás humanidades greco-latinas 135

devia a uma brilhante, educação clássica” . Recordemos


que Berthelot lia o grego correntemente. Deleitava-o en­
treter essa cultura, que fermentava a atividade de sua in­
teligência mais do que a prática das ciências.
“ Os grandes cientistas, conclue o autor do citado ar­
tigo, devem todo o seu sucesso à formação geral de seu
espírito, e de nenhum modo aos conhecimentos científicos
com que foram saturados na adolescência: Lavoisier e
Berthelot são dois notáveis exemplos disso” (113).
Em conclusão, a formação literária helenista, com a
história do pensamento científico, em sua marcha através
das descobertas, parece-nos ser um meio eficaz, talvez o
mais eficaz, para manter o gênio científico francês. Do
professor depende que o sejá em suas mãos.

III. — O ponto de vista da “ Humanização”

Falamos da importância da formação greco-latina


para a aquisição das qualidades de raça e do poder de sua
irradiação pelo mundo. Resta-nos mostrar também o seu
valor, do simples ponto de vista humano.
Há alguma cousa mais do que ser um sábio, — é ser
um homem que sabe. Se não se deve confundir a elite
de um povo com os “ intelectuais” dêste povo, com maior
razão não se deve reduzí-la a êsse grupo de intelectuais
que têm o nome de cientistas. Elite é perfeição, a qual
é sempre cousa rara; e como há várias formas de vida
em que se pode atingir um grau superior, consequente­
mente há também várias espécies de elites.
Se a Igreja sempre amou Roma e a Grécia, e se lhes
deu mesmo a honra de eleger suas línguas como veículos
de seus mistérios e como instrumentos da transformação

(113) Cfr. as belas paginas consagradas a Laplace por Herriot, ibid.,


págs. 12 e segs. iste último íaz observar que Laplace “se consagra prlrnei-
ramente ao estudo das línguas antigas antes de se apaixonas pela astrono­
mia íísica; è conta-se que em sua vivenda de Arcuell, a sua palestra, tôda
impregnada de recordações artísticas e literárias, tinha a sedução de um
encantamento” .
138 A Estrada, h e a l da Inteligencia'

moral que operou no mundo, isso fói porque reconhecera


nelas aliadas poderosas para elevar o homem à perfeição
de sua natureza.
Ela sente simpatia e é favorável a tudo quanto exal­
ta a inteligência e o caráter, pois a verdade e o amor vêm
de Deus e levam a Deus pela Igreja. Assim, vários dos
grandes santos dos séculos IV e V “ figuram entre os ho­
mens que . . . dão . . . uma feliz imagem do que vinha
a ser o ideal grego transfundido no ideal cristão” ( 114).
A moral dos pagãos, luz da reta razão, reflexo do Verbo,
serviu-lhes para encaminhar as almas ao Criador.
Pediram à Grécia o seu intelectualismo e o seu este­
tismo, e cristianizaram-nos, em si mesmos e para os seus
discípulos.
A Roma foram pedir o ideal de sabedoria positiva,,
de disciplina enérgica, perseverante, e de senso jurídico.
Estas qualidades de raça, adquiridas ao preço de um lon­
go esforço, Roma as oferecia à humanidade como uma
herança de grande valor. A Igreja soube atribuir-lhe o
justo valor; e dela ,se apropriou, salvando-a assim da de­
cadência e transmitindo-a aos povos que conquistava. E
essas qualidades romanas, aperfeiçoadas pela graça e pela
educação espiritual, tornaram-se as virtudes fortes do
cristianismo ocidental.
Tamanho foi o prestígio e o poder dessa formação
greco-romana, que cristãos e pagãos, desde o primeiro
século, a reivindicaram cada um para si mesmos porfia­
damente como uma glória própria. O Imperador Julia­
no, pagão filósofo, pensava que não havia outra educação
além dessa que a antiguidade pode dar: “ Somente ela, di­
zia, ensina a coragem, a sabedoria e a virtude” . Conta­
va êle reduzir os discípulos do Cristo à miséria intelectual
e moral, privando-os pela força dêsse alimento superior.
“ 0 mais surpreendente, porém, acrescenta Gastón Bois-
sier, é que no fundo os cristãos pensavam do mesmo modo

(114) Christus, pág. 794.


As humanidades greco-latinas iâ?

que êle” (1151 ) . Esta unanimidade de sentimentos resistiu


6
a tôdas as revoluções. E hoje, como sempre, todos reco­
nhecem que as literaturas antigas são dotadas de um va­
lor educativo eminente, embora partilhem como outras a
influência sôbre os espíritos. Léon Bérard, fazendo na
Câmara o resumo dos debates sôbre os projetos de refor­
ma, não temia de concluir dêste modo: “ Não pode haver
igualdade entre uma cultura, que os mesmos contraclito-
res meus proclamam ser a melhor, por recordação, por
reconhecimento, por experiência, e uma o u t r a . . . ” (ne).
Um homem de elite possue ainda o dom de compre­
ender aquilo que.é do homem e essa simpatia pelo homem
que tomou o nome de “ humanidade” . Solitário como um
mandarim orgulhoso ou um fariseu altaneiro, deixaria de
ser, a-pesar-de sua superioridade, o homem perfeito e
bem educado com que sonhamos.
A massa mediana deve poder encontrar-se em sua eli­
te, reconhecer nela as suas aspirações, satisfeitas pela
plenitude do talento; e depois aproveitar-se dessa abun­
dância, que transbordará da elite para a sua indigência.
É preciso què entre um povo e sua elite se estabeleça um
ciclo de trocas. Ora, a formação literária, inspirada pe­
las literaturas antigas, desenvolve êsses dons de espírito
e de coração que constituem a suprema riqueza da vida
social. “ Ser verdadeiramente grego, dizia Synesius, é
saber conversar com os homens” . - João Crisóstomo, Ba-
sílio de Cesaréia, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nias-
sa representam, na Igreja dos primeiros séculos, uma raça
de homens a um tempo “ simples dè coração e refinados de
espírito” , cidadãos do mundo antigo e criaturas novas no
Cristo, tipos' de humanidade ideal que exerceram sôbre
seus contemporâneos uma sedução única. Em face destas
naturezas ricas, que em meio a nossas mediocridades pa­
recem autênticas incarnações da Verdade, do Bem e do
Belo, como não achar miserável êsse tipo, que a opinião

(115) G. Boissier, La Fin du Paganisme, t. I, pág. 112.


(116) L. Bérard', Pour La Kéíorme classique, pág. 275; cír. pigs, 273, 276.
188 A Éstrada Real da Inteligência

pública estilizou, de “ industrial americano” ou de cientis­


ta que mecanizou sua vida e seu espírito ( m ) !
No Ocidente, a França soube guardar os encantos do
aticismo sob os robustos traços da personalidade romana.
A exigência de sociabilidade tornou-se-nos natural pela
educação; todas as delicadezas do espírito de conversação
floresceram nos salões franceses. Sabemos pôr em nos­
sas relações de homem a homem todo êsse sutil jôgo das
nuances, o tato dos sentimentos, a delicadeza reservada,
a finura da cortesia, o senso do apropriado, a arte das
considerações desinteressadas, — numa palavra, a har­
monia, a música interior, que foi o quinhão providencial
do humanismo helénico (1 118).
7
1
Entretanto, a cultura clássica greco-romana leva seus
efeitos ainda mais longe: ensina não apenas a arte de
tratar com os homens em sociedade, mas também a de
manejá-los, de conduzi-los.
A ciência, a especialidade não fazem “ chefes” ; for­
mam apenas trabalhadores perfeitos. O que distingue o
chefe de qualquer operário não é o êle ser um prodigioso

(117) A êsse respeito, eis uma história simbólica: “Era num domingo
à tarde, conta Henri Dubreuil, e um dos meus vizinhos de oficina me pe­
dira que fôsse passar a tarde em sua casa. Posso dizer que a sua residên­
cia era o tipo clássico de casa americana, na qtial nada falta de tudo aquilo
que a indústria moderna pode produzir para facilitar a existência. Depois
de ma ter mestrado tôda... voltamos a sentar-nos no salão. Num canto
dêste havia um piano, riüm outro um rádio e num terceiro uma vitrola.
Tocou-se então a vitrola e ouvimos alguns discos. Quando isso se acabou,
não era ainda a hora de emissões, e reinou no salão um certo silêncio que
me deu uma singular impressão de vácuo. Compreendí então melhor o que
é um verdadeiro salão. Achavamo-nos sentados em fofos canapés guar­
necidos de almofadas desenhadas segundo as mais recentes prescrições da
moda. O tapête e as cortinas eram confortabilíssimos: tinham sofrido an­
tes as convenientes carícias de um aspirador elétrico. Mas qualquer cousa
estava ausente, a qual, aliás, pode eclipsar a usura, dos sofás gastos, ou a
pobreza encoberta pela fadiga dos tapêtes. A palestra brilhante e maravi­
lhosa de uma pessoa dotada de alta cultura pode metamorfosear a mais
pobre das peças e uma tal cousa não é substituída pelo brilho dos veludos
intactos. O que faz um salão não são os móveis e as tapeçarias, mas os
sêres que se acham dentro dêle, e foi aí que eu pude constatar a que ponto
de desenvolvimento a população operária chegou, e o que lhe resta ainda
por alcançar. Quando o silêncio se tornou pçr demais longo, fui convidado
a tomar lugar no 4Wtomóvel que estacionava à porta da garage, e fomos
rodar por uns cem quilômetros, sem ir a parte alguma, sem ir dar a outro
lugar que não a essa mesma garage a que a viatura nos reconduziu duas
horas mais tarde” . (Henri Dubreuil, Standards).
(118) O cristianismo purificou, afinou, transfigurou essas qualidades.
As humanidades greco-latinas 139

executor, mas sim um homem em quem reina um har­


mónico equilíbrio de tôdas as faculdades. Wilbois, Pezeu,
Fayol e tantos outros engenheiros de grandes indústrias
mais de uma vez expuseram e provaram admiravelmente
a seguinte tese: mais alguém se evade da especialização
pela superioridade de sua educação geral, mais se apro­
xima da categoria de chefe; mais alguém se acha hiper­
trofiado por uma instrução especializada e confinado ao
conhecimento de qualquer operação técnica, mais se apro­
xima da classe dos instrumentos, da categoria de operá­
rio, e menos da de chefe.
Ora, todos estão acordes em que a instrução clássica
é necessária (119) para atingir-se essa plenitude de huma­
nidade que faz os condutores de homens.

IV. — O estudo da língua é necessário para as


Humanidad es Gre co-Latinas ?

Próximos à conclusão, detém-nos um obstáculo im­


portante.
Dir-se-á talvez que o reconhecer as superiores vanta­
gens duma cultura greco-latina não leva em si implícita
a afirmação da necessidade de aprender a língua latina
e a língua grega. É pela história das civilizações, parece,
que recolhemos a herança do passado; e o que o estudo

(119) As suas queixas contra o abuso das matemáticas são veementes.


“Ê preciso, diz um dêles, para acreditar nas matemáticas como instrumento
educativo, todo o fetiehismo de um povo que adora o que não conhece” .
“Longamente seguido, com intensidade, o estudo das matemáticas só deixa
intactos os cérebros bem equilibrados”, diz um outro. Poder-se-iam citar
ainda outras ásperas observações dêstes engenheiros. Entendamo-nos. Aqui
se trata de comandar, de dirigir homens. A experiência provou aos que
lealmente a adquiriram que “somente a instrução clássica, seguida de uma
instrução superior mais ou menos extensa e sempre acompanhada de está­
gios nas oficinas, é capaz de fazer bons diretores... A instrução clássica,
portanto, e isto está em conformidade com a opinião daqueles mesmos que
a não tiveram, é a mais apropriada para fazer chefes” . Quer-se ganhar
dois anos mais cedo a própria vida: êrro! “É preciso que nos repitamos
que estes dois anos de estudos nos farão falta tôda a vida e nos impedirão
de ascender ao primeiro plano” . Está-se a ver, desde que se trata de uma
humanidade de mais poder, que se deve começar por matricular-se na Es­
cola dos Gregos e Latinos. Tôdas estas citações são extraídas de Études,
5/IV/1921, La Reconstruction spirituelle du Pays, pelo Rvdo. Pe. Doncceur.
Í4Ò A E strada íteal da inteligencia

das morfologias e sintaxes acresce à história parece des­


proporcionado ao imenso esforço que exige dos alunos.
Esta objeção possivelmente seria menos forte se es­
tivéssemos ainda a viver numa épòcà em que não faltas­
sem lazeres que nos permitissem entregármo-nos exclusi­
vamente às especulações desinteressadas.
Quando, porém, a vida, — que é também uma grande
educadora, — obriga a buscar a formação no útil e não
somente no belo, vemo-nos na contingência de forjar-nos
idéias pedagógicas um pouco mais largas qüe as antigas.
Q útil e até mesmo o necessário assumem tais pro­
porções na vida moderna que somos obrigados a tomá-los
em consideração e a deixar de lado forçosamente o supér­
fluo. A-vida prática obriga-nos todos os dias a aceitar
semelhantes sacrifícios. .
Consentiríamos,· pois, em sacrificar pelo menos as
lín g u a s mortas em nossa educação?
Pergunto-me se não haveria porventura um sacrifí­
cio mais oportuno e mais eficaz a fazer do qüe êsse. Pois
a cultura greco-latina, que se deseja conservar, não pode
dar os seus melhores frutos sem o estudo da lín g u a m e s ­
m a. ,
Antes do máis, o conhecimento da língua latina é ne­
cessário, já o dissemos, à explicação aprofundada do au­
têntico è belo linguajar francês, de suas obras literárias,
de sua história, e também de seu papel na civilização eu­
ropéia (120).
Acresce ainda que com tal supressão os alunos per­
deriam o considerável benefício que haurem com as tra­
duções e versões. A superioridade da tradução de lín­
guas mortas sôbre a de línguas modernas reside seja no
caráter sintético das primeiras, seja no caráter definido
de suas formas, seja ainda no interêsse puramente inte­
lectual, nada prático, que elas despertam no espírito dp

(120) Ler etn apêndice 03 [depoimentos arrolados em íavdr' do estudo


dô latim e as razões em .que se apóiam.
.á s humanidades greco-latinas 141

estudante. Abster-nos-emos de entrar pelos detalhes des­


sa demonstração, que só podem ser expostos à maneira de
aula e com o auxílio de numerosos exemplos. Antes de
diminuir o valor de um exercício, é necessário havê-lo pra­
ticado em tôdas as suas dimensões. Quanta gente vende
barato os valores que ignora ! A experiência dos profes­
sores testifica em favor da soberana eficácia dessas trans­
posições das línguas antigas para o francês e do francês
para as línguas antigas no que diz respeito à formação
dos espíritos (121).
Ademais, e bastante difícil separar os elementos cons­
titutivos de um ser sem destruir ao mesmo tempo com o
ser a natureza dos elementos. O divórcio entre a língua
e o pensamento, é um suicídio do próprio pensamento,
Não se nega que uma idéia possa encontrar diversas in­
carnações em línguas diferentes. Cada uma delas, po­
rém* não é bem a outra. Mesmo quando o sentido não
variasse substancialmente de uma para outra, acontece
que a qualidade literária, artística, poética, o poder de su­
gestão da idéia não poderiam subsistir independentemen­
te das palavras, das correspondências e as analogias vo­
cabulares, que o autor criou como expressão de sua be­
leza. Não é preciso traduzir um verso de Virgílio para
fazer evolar-se a sua poesia; para isso basta deslocar uma
sílaba, do mesmo modo como, para destruir o esplendor
musical de um acorde, basta modificar as relações har­
mônicas das próprias notas (122). i
Entretanto, estaríamos dispostos a fazer um sacrifí­
cio exigido por nossa época. Não exigiremos mais hoje
em dia, parece-nos, que a criança receba uma formação
greco-latina erudita que ultrapasse o fim preciso do en­
sino se c u n d á r io . A finalidade desta formação secundária

(121) Ler em apêndice algumas notas importantes sôbre os exercícios


de toaduç&o e de versão: Apêndice B. >
(122) A grande prova aqui é dada pela experiência. É necessário haver
realizado o longo esíôrço , de traduzir, haver lutado sííaba por sílaba com
o texto de um autor latino ou grego para convencer-se da importância
desta ginástica mental. Cír. apêndice.
142 A Estrada, Beal da Inteligência

não é fazer especialistas em línguas antigas, como os há


em todos os países relativamente a tôdas as matérias
científicas. O ensino secundário é cousa bem diversa do
ensino superior: aquele não é um ensaio, um início, uma
primeira etapa dêste. Sua finalidade, — tentamos indi­
cá-la no correr destas páginas, — é revelar aos adolescen­
tes, através cfo estudo das línguas greco-latinas, as fontes
profundas e inesgotáveis da beleza humana, tal como ela
floriu e pode ainda florescer sob os nossos céus tempera­
dos e límpidos da França.
Ora, tanto o esforço excepcional requerido pela ciên­
cia pessoal do latim e do grego, durante longos anos, a
muitos parece inadequado ao nosso tempo, — pois não
nos devemos esquecer de que um novo mundo maravilho­
samente rico convoca as novas gerações a estudos novos,
— quanto o tempo e o esforço requeridos pela simples re­
velação da alma antiga em sua floração de eterna juven­
tude parecem-me muito oportunos.
Critique-se tanto quanto se quiser o abuso da ciência
quando não se trata especialmente de adquirir a ciência!
Possivelmente grande número de professores, minima­
mente educadores, mais aptos para ensinar as cousas do
que para revelar a alma das cousas, procuram obter, atra­
vés de métodos apropriados à erudição, resultados quan­
titativos, amontoando apostilas, nótulas gramaticais e ob­
servações técnSías como se o grego e o latim fossem cou-
“ sas úteis à vida ou o têrmo das ambições escolares. Se­
melhantes lições, que só vão dar particularíssimos frutos
a longo prazo e ao preço de um amplo abandono das ciên­
cias, da história, das línguas· e da literatura, não são de
tal modo importantes qúe possamos hesitar em suprimi-
las hoje dos programas sobrecarregados.
Mas, do mesmo â&odo como podemos num pequeno vo­
lume encerrar a essência tôda de um ser, uma vez que o
núrqero multiplica a qualidade sem elevar o seu nível de
perfMção, assim também o verdadeiro professor do curso
secundário pode, sob um conhecimento reduzido do grego
As humanidades greco-latinas 143

e do latim, fazer com que germine a flor da poesia anti­


ga (1231).
4
2
Pode-se acumular muita terra em torno de uma se­
mente; mas apenas um torrãozinho bastaria para que ela
pusesse haste e desabrochasse.
Algumas linhas de Platão ou alguns versos de Virgí­
lio, nos lábios de um professor mágico, fazem mais pela
formação de um espírito do que três mil versões material­
mente trasladadas. A beleza não se acha ao têrmo da
erudição; ela está em meio ao real vivo. A ciência que
satisfaz é a que assegura o contacto com o real vivo; a
arte de ensinar é análoga ao do adivinho que desvenda o
mistério do além. Não se exige do adolescente que do­
mine o grego ao ponto de poder descobrir sozinho o te­
souro escondido; o que unicamente se lhe pede é que co­
nheça da língua o bastante para poder comunicar-se com
um mestre verdadeiramente humanista (134).
A língua grega deve ser estudada assim como se ouve
com a alma inteira uma divina música. Para penetrar
nesse santuário de harmonia e tornar-se iniciado no sen­
tido do belo musical, não é necessário que se aprenda a
difícil técnica da composição e que se quebre a cabeça de
encontro à sapiencial aritmética dos sons. Não se pode­
ria, contudo, prescindir dum artista, que, correndo os seus
dedos mágicos por sobre a escala dos números, revela às
almas simples dos adolescentes o fecundo e delicioso pra­
zer da admiração. A ciência nãò é gôsto, comovida con­
templação, arrebatamento, entusiasmo, êxtase: estas cou­
sas todas são vida profunda. A ciência não habita os

(123) Como método de ensino secundário, nada conheço que se apro­


xime mais da perfeição que o Vocabulaire grec de Vlctor Fontoynont, publi­
cado em X/30, no colégio de Mongré (Villeíranche-sur-Saêne). A língua
grega assim comentada é um prazer e produz um encantamento eficaz. Eu-
oontrar-se-ão, entre outras páginas sugestivas, umas análises notáveis do
espírito grego e dos elementos preciosos de formação que êle nos pode Ino­
cular. Cfr. Resumos e referências no índice, pág. 179 e pág. 145.
(124) A confusão é frequente. Émile Picard mesmo parece esquecer o
papel capital do mestre, quando sacrifica o grego sob o pretêsto de que os
alunos Jamais chegam no colégio a “traduzí-lo correntemente” sozinhos^ A
educação, entretanto, é uma geração vital: pijstula um gerador, (B, Picard,
Jíévue âe France, 15/VH/1930, pág. 35?),
144 A E strada Real da Inteligência

recantos mais íntimos do coração. Mora nos quadros da


razão» algumas vezes mesmo acantona-se na memória.
Acontece, contudo, que ela um dia faz surdir poesia:
nesse dia o cientista renasce educador. Chegou para êle
o-momento de entrar para uma cátedra do ensino secun­
dário e ensinar à mocidade. Lançando mão do velho Ho­
mero e de Sófocles, de Platão e tantos outros, fará com
que os adolescentes, iniciados somente nas formas e leis
essenciais da gramática, ouçam a música da alma huma­
na. Se o encantamento os empolgar, significa então que
terão recebido em pouco tempo, e para sempre, uma par­
te importante da formação clássica ( 12B).
Sem dúvida, exigiremos dos alunos um estudo mais
aprofundado, mais erudito, do latim (1 126), de nossa lín­
5
2
gua, da história, das ciências, das línguas estrangeiras.
Contudo, o método aconselhado para o grego deveria ser
aplicado com discernimento a todas as disciplinas. Como
base, um mínimum, de conhecimentos necessários, neces­
sários unicamente à inteligência da palavra do mestre, de
um mestre, que se saiba adaptar.
Em seguida, erguer sôbre êsse alicerce, rápida e ener­
gicamente assentado, o edifício ·da formação humanista,
com materiais de primeira qualidade, isto é, com conheci­
mentos exclusivamente helos e que encontrem nos lábios
do mestre as suas formas mais expressivas.
Enfim, progressivamente, à medida que tôdas as po­
tências do equilíbrio humano se vão desenvolvendo com a
formação pcundária, os métodos do ensino superior virão
em seu justo tempo, nem prematura nem tardíamente, en­
riquecer de mais em mais o espírito com os dados da
ciência.
Em conclusão, resignar-nos-íamos de bom grado a

(125) Ler, a êste respeito, a bela página de Alíred Fouillée, a Education


par les Sentiments esthétiques daiis Ia Science, Kevue des Deux Mondes,
1890, págs. 575-570. , ;
(126) O latim tem uma importânoia cfientífica que falta ao grego. D<a
ponto de vista da tradição cristã que se confunde com a tradição européia,
êle vive ainda e viverá sempre como uma língua viva, necessária e imutável.
Cfr. Josepli de Malstre, Dupanloup, etc.
As humanidades greco-latinas 145

sacrificar alguma cousa no caudaloso programa dos es­


tudos secundários. Não seria porém nem o grego nem
o latim. Seria, ao contrário, o tempo que lamentavel­
mente se faz os alunos perderem pelo emprêgo de um
ensino apropriado para impor a “ ditadura do tédio” ,
a ingurgitá-los de ciência, a materializar o saber, a obri­
gar à ruminação do indigesto, a especializá-los antes do
tempo, a “ forçar o talento deles” . Daí a estafa, daí o
pêso das horas estéreis (127).
A formação grego-latina ensina á preferir em tôdas
as cousas a qualidade à quantidade. Assegura a marcha
do verdadeiro progresso. O tempo que na mocidade lhe
consagramos é tempo ganho para tôda a vida.

(127) Sôbre o surmenage, 1er as justas reflexões de J. Lacroix no Cor­


respondant (1930), de Joal na Revue Universitaire (XII/1930), do Pe. Datln
nos Études e diversos números do Enseignement chrétien, 1930, 1931, v. g.,
IV/1931, pág. 319.
I

CAPÍTULO VI

O HUMANISMO E A HISTÓRIA

“ Observo com pesar, dizia o conciencioso Rollin, que


a historia é negligenciada por muitas pessoas, a quem
entretanto seria muito útil, para não dizer necessária.
Quando assim falo, é em primeiro lugar a mim mesmo
que acuso, pois confesso que não me dediquei bastante ao
seu estudo, — e por isso envergonho-me de ser de algum
modo estrangeiro em minha própria terra,, depois de ha­
ver percorrido tantos outros países” ( 12S):
•Seria de desejar que sentíssemos o mesmo pesar, se
houvéssemos cometido a mesma falta. Não escapamos
todos talvez à censura. Verifica-se aqui e alí que uma
rotina escolar alija ainda hoje a história para o meio das
materias “ acessórias” e para as horas de sonolência.
Involuntariamente, de vários modos, patenteia-se aos dis­
cípulos que praticamente pouco caso se faz dela. Dir-
se-ia que ela tem apenas uma importância secundária,
particularmente mínima para a formação dos espíritos.
Isso é um êrro considerável e ao mesmo tempo um pre­
juízo muito grave causado à educação dos jovens ( 1 129).
8
2

(128) Citado sem referência por Mons. Dupanloup: De Ia haute éduca-


tion intellectuélle, t. III (1866), pág. 225.
(129) Segundo Bossuet, “um' homem culto não pode ignorar nem o seu
país, nem o gênero humano". Um dos méritos que êle sublinha, na oração
fúnebre de Henriqueta de Inglaterra, é a aplicação desta princesa à Histó­
ria. “Era o desígnio de avançar neste estudo da sabedoria que a trazia tão
entregue à leitura da História. Perdia assim insensivelmente o gôsto pelos
romances e seus heróis insossos,-e, ciosa de formar-se pela verdade, desde­
nhava essas frias e perigosas ficções” .
O humanismo e a historia 147

Até aquí não encontramos disciplina alguma cujo po­


der educativo pudesse ser comparado ao da historia. Urge
tomá-la em consideração. '
Do ponto de vista do humanismo, — encarado sob
seus três aspectos, de cultura, civilização, humaniza­
ção (1S0), — as ciências históricas parecem oferecer tan­
tas vantagens qüanto tôdas as outras disciplinas, sem se
acharem sujeitas aos mesmos inconvenientes. Serão um
instrumento incomparável, nas mãos de um professor de
talento.

I. — O ponto de vista da Cultura.

O passado, o passado vivo, o passado tradição, o pas­


sado experiência, o passado que engendra o presente, o
passado patrimônio de uma nação, o passado raiz do pa­
triotismo e da unidade, — quem o transmite, senão o en­
sino histórico?
■Não é porventura um sem raízes o francês que igno­
ra a história da França, que na realidade é a história de
sua grande família? Tudo o que dissemos da “ cultura”
só se torna verdadeiro com uma condição: que nos demos
ao trabalho de entrar na posse e explorar a herança que
nossos pais nos legaram e que constituo quase tôda a ri­
queza de cada geração que surge. Nem o grego, nem o
latim, nem o alemão, nem o inglês, nem as matemáticas,
nem a física, exercício algum de inteligência pode subs­
tituir o estudo da história para os franceses, sobretudo
para os franceses cristãos.
Ao professor de história incumbe pois uma tarefa
sublime: fazer com que a França seja amada, relatando
os seus gloriosos feitos. Deve infundir nas crianças, não
mais apenas uma cega paixão de “ gana” , que pronto ex­
plode em face do inimigo ameaçador, mas um amor de
estima, de razão e de coração, ponderado, estabelecendo1 0
3

(130) Ver, quanto a estas distinções cômodas, o primeiro capitulo da


segunda parte desta obra.
148 A Estrada Beal âa Inteligência,

sempre distinções entre o bem e o mal, operando as ne­


cessárias limitações, hierarquizando os sentimentos hu­
manos, firmando as suas convicções sobre um conheci­
mento dos fatos, sempre pronto a dar à pátria todas as
provas de filial afeição. O professor de historia tem
como finalidade primeira fazer com que os pequenos fran­
ceses sejam franceses de raça. Quem não ambicionaria
tal missão? E êsses a quem ela foi confiada, por que não
tentam atingir êsse ideal?
— Maurice Barres, apresentando com as suas mãos
de artista o maravilhoso buquê das ações heroicas rea­
lizadas pela França moça de 1914, associa-as, como colo­
rações complementares, às florações cavalheirescas de to­
dos os séculos. Dá assim um modêlo dêsse humanismo
pela história, que deve orientar as nossas lições.
“ Aí estão os fatos, diz êle (m ). Aí está uma amos­
tra, uma amostra ao menos do vinho que há dois anos
fermenta em nossas colinas, do frumento de nossas ver­
gas, e do sangue de nossas batalhas. Tudo isso, porém,
é porventura novo e inesperado? Não, é fruto francês,
idêntico a<%que a velha nação tanta vez produziu ao longo
dos séculos; é o vinho, o frumento, o sangue de tôdas as
nossas epopéias. Reconheçamos em nosso passado cada
um dêsses traços que vimos de assinalar. As canções de
gestas, as cruzadas, tôda a idade moça da França estão
regorgitantes de inumeráveis feitos realizados por nossos
cavalheiros e pela Sancta plebs Dei, que precedem, pre­
nunciam as façanhas operadas pelos nossos exércitos em
1916” .
Como êste modo de ver é formativo, como dilata o
espírito e a alma!
O humanismo não está nas nomenclaturas, nas datas
sem vida, nos quadros sinópticos. Supõe-nos, sem dúvi­
da, mas floresce por cima dessas hastes de ferro, em ra­
madas cheias de seiva.1 3

(131) Revue des Deux Mondes, l/VIII/1916, pág. 494: “Les traits éter-
neis de la Prance” . '
O humanismo e a historia 149

O nosso ensino de historia deve ser a historia de urna


alma, a alma da patria, pois é tarefa déle perpetuar nos
corações as virtudes e proezas antigas (132).
Quando desenvolvia em Notre-Dame uma lição de
história, Lacordaire é subitamente empolgado pela emo­
ção que subia do povo, e exclama: “ Sou longo talvez, Se­
nhores, mas a culpa é vossa, pois é vossa história que re­
lato; havereis de perdoar-me se vos fiz sorver até a últi­
ma gota esta taça de glória” . Lacordaire tem razão. No
ensinamento da história não se relatam fatos inertes para
a curiosidade do espírito; o humanismo não tiraria daí
vantagem alguma. Mas o que se faz é remontar os rios
dias belas ações até às fontes da vida francesa.
Vez que outra, no percorrer essa via, haveremos de
deparar com impurezas. Mais adiante diremos que não
se deve negar ou ocultar a impureza histórica, por mais
penosa que seja, se fôr verdadeira. Todavia, como o que
desejamos inspirar nas crianças é um patriotismo escla­
recido e eonciente, e não um tacanho chauvinismo, não
serão salpicos isolados que nos poderão desgostar de ver
a luminosa beleza da fisionomia de nossa pátria; ao con­
trário, tornarão mais forte o amor da pátria, purifican­
do-o de tôda ilusão. Sentir-se-ão orgulhosas de ver com
que milagres de energia e renovação a França se reergue
sempre de seus reveses, de suas humilhações, de suas in­
fidelidades, e as alturas a que se sabe elevar em suas no-
bilitantes retificações.
Right or wrong my country!, diz a divisa inglesa.

(132) Hanotaux, em sua Introdução à Histoire de Ia Nation française,


diz que criou esta coleção para responder à seguinte questão: “Se se disses­
se: há um povo que, numa crise extraordinária, representou a vigilância, a
coragem, a tenacidade, a fé, ao mesmo tempo que a paciência, o bom hu­
mor, a bonomia; que soube suportar cs males mais espantosos, a partida
de todos os homens, a dispersão das famílias, o bombardeio de sua capital,
a morte de uma parte imensa de sua população viril, esperando durante
quatro anos á sua recompensa, a Vitória, sem curvar a cerviz, sem dobrar
os joelhos, a flama no coração, o sorriso aos lábios, os olhos fixos em sua
estréia; se se dissesse isso, — quem não desejaria saber de onde vem fisse
povo e de onde lhe vem a sua alma?... Não há história a não ser do mo­
ral. É, pois, esta história que se deve escrever” . P. H. Hanotaux enunciou
nessas linhas a missão pedagógica do professor de história.
150 A Estrada, R eal da Inteligência

Qiuaisquer que sejam as suas vicissitudes, a êle sempre vai


o meu entusiasmo ou a minha ternura, — é meu país !
Seria preciso que o professor fôsse completamente
destituído dé habilidade para fazer estancar com sua sin­
ceridade o natural borbulhar do amor pela pátria.
Ma história da nação francesa, porém, não deveremos
omitir a parte que toca ao cristianismo. Tal omissão im­
portaria em. enorme mutilação dos fatos. Suprimir o
papel desempenhado pela Igreja na história da França,
não é apenas limitar a história· dos fatos, é desnaturar
os próprios fatos. Podemos desmontar uma máquina, mas
não á vida e o vivo. O cristianismo fez a nação e deu-lhe
a sua personalidade própria.
Educadora maravilhosa tanto dos povos como dos in­
divíduos, a Igreja soube adaptar-se às exigências dos
tempos e dos caracteres. Em todos os regimes, 'feudalis­
mo, monarquia, democracia, insuflou o seu espírito. To­
mou às revoluções sucessivas a matéria informe que elas
lhe ofereciam; e em troca, déu-lhes sua própria alma. A
maneira como ela pôde instruir as gerações, em meio a
que desordens' sociais e perigos para si própria, ao preço
de que sacrifícios, com que frescor de inventiva e com
que poder de realização, —- tal é o tema rico, e às vezes
grandioso, das mais belas lições da nossa história. Justo
é, aliás, que se dê a César o que é de César, e a Deus o
que é de Deus. As crianças devem safrer a verdade acêr-
ca dos benefícios operados pela Igreja e ter conciêncla
da herança que ela lhes deixou. O professor de história
jamais deverá esquecer-se de que unicamente com êle é
que se conta para ensinar-lhes tais cousas.
Não basta todavia mostrar apenas essa compenetra­
ção recíproca, da Igreja e do mundo, tão útil à sociedade
civil. Devemos ainda fazer comque os; discípulos admi­
rem os melhores frutos da graça, pois nada é mais for­
mativo dó que a contemplação dos .belos exemplos. Cons­
tituem êles ademais a h istó r ia a mais verídica de tôdas,
e também a mais útil, a mais fecunda.
Assim como ao estudar a geografia d« umvais nosso
O humanismo e a historia 151

olhar se detém sobre os picos mais altos de suas monta­


nhas, ou, estudando a historia da arte, ñas obras-primas
da escultura e da pintura, assim também, no estudo da
historia da humanidade, nossas visadas devem fixar-se
por mais tempo e preferencialmente nás altas ações efe­
tuadas por ela, no que a e le v a e e n o b r e c e , no que põe à
mostra sua força e suas aspirações, nos seus grandes ho­
mens, nos seus modelos, na sua elite, isto é, nos seus san­
tos. Payot eonclüe o seu livro sôbre “ A educação da
vontade” com um capítulo intitulado “ Influência dos
Grandes Mortos” : “ Há efetivamente mortos, diz êle, que
são a um tempo mais vivos e mais capazes de transmitir
vida do que os próprios vivos.' Na falta de um contacto
com modelos em carne e osso, nadá se compara, para ali­
mentar o entusiasmo moral, à contemplação de vidas pu­
ras, simples, heróicas. Êste “exército de grandes teste­
munhas” nos auxilia a pelejar o bom combate. A fre­
quentação, na calma e no silêncio, das “ grandes almas dos
melhores séculos” fortifica maravilhosamente a vontade”.
E o mesmo autor mais adiante aduz, com uma sinceridade
muito justa: “ É pena que não possuamos, como a Igreja
católica, vida de santos leigos para o uso dos moços”.
Ingenuidade dé crer que a vontade, sem a graça, pode
fazer santos! /:
E os católicos, que possuem esta maravilhosa tradi­
ção da santidade, cometerão a tolice de ignorá-la? S o m o s
da r a ç a d os s a n to s ! “ Filii sanctorum sumus” ; é dever
conhecer a história da própria raça. “ Ser francês, dizia,
o marquês de Flers, não é somente uma nacionalidade, ê
. uma dignidade. Dependeria unicamente de nós que fôs­
semos um povo de vinte milhões de embaixadores, de quem
dez séculos de sacrifício e honras apresentam ao mundo
inteiro as credenciais respectivas”. Estas fortes palavras
■podem adequar-se perfeitamente a todo cristão.
Há os grandes santos canonizados que formam a mais
bela coroa da França: Santa Clotilde, Santa Genoveva,
Santa Joana D’Arc, São Luiz, São Bernardo, São Vicente
A# Paulo e M o · outro·. 'Ma· há tarabãm a «¡lUHíWIo
152 A E strada Real da Inteligência

anônima dos cheios de virtudes, das vítimas da caridade,


dos sacrificados, dos mártires.
“Ao defenderem a França, escrevia Barrés, os fran­
ceses quase sempre acreditaram que lutavam e sofriam
para que a humanidade se tornasse melhor. Batem-se
por sua terra semeada de túmulos, e pelo céu em que rei­
na o Cristo, em que páiram ao menos os seus ideais. Mor­
rem pela França, tanto quanto os fins da França podem
identificar-se com os fins de Deus ou com os fins da hu­
manidade. É por isso que fazem a guerra com sentimen­
tos de mártires” (13S). E dirigindo-se ao francesinho
de m e , Barrés o chama: “ Filho de mártires, filho de
trinta gerações iguais”. Aí está, diremos nós, a quem,
para que e como devemos ensinar história. Não se trata
de preciosamente conservar velhas relíquias do passado ;
o de que se trata é de manter viva a mais nobre das tra­
dições.
Ora, foi a história dos santos, e a história profana
considerada em suas relações com a dos santos, que fun­
diu a cadeia de ouro da tradição; e ela não somente ro­
bustece nossa fé, esperança e caridade, que são as três
grandes forças da vida; não somente retifica as impres­
sões de tristeza, de desgosto, de escândalo, de desânimo,
que em nós deixa a visão da política humana, viciada pe­
las más paixões; não somente insufla dêsse modo contí­
nuo estímulo em nosso élan, para o ideal, em nosso ardor
pelò bem, emmosso desejo de perfeição, — mas ainda nos
põe, unicamente ela, na posse #da verdade plena. Pois os
Santos passaram pela história, não como meros compar­
sas, mas como figuras de primeiro plano; desempenha­
ram nela um papel de animadores e de chefes; represen­
tam o pensar de Deus neste mundo, a ação da Providên­
cia que ordena tôdas as cousas em vista de Sua glória e
“ propter electos” ; são, enfim, os membros mais vivos e
ativos do corpo místico de Jesús Cristo, — de Jesús, não13

(133) Ibidem, pâgs. 499, 503.


O humanismo e a história 153

o esqueçamos, que é o salvador dos homens, a cabeça da


humanidade, o Hom em -Deus, em quem a História inteira
se resume (134).

II. — O ponto de vista da Civilização.

Voltemo-nos agora para o futuro. A história não é


porventura a mais eficiente escola fie progresso ? A êste
respeito basta escutar Pascal. O homem, diz êle, “ acha-se
mergulhado na ignorância em seus primeiros anos de vida;
mas instrue-se incessantemente em seu progresso; pois
se beneficia não somente de sua própria experiência, se­
não também da de seus predecessores, porque guarda
sempre em sua memória os conhecimentos que uma vez
adquiriu, e porque os dos antigos lhes são apresentados
nos livros que estes deixaram. . . De modo que a suces­
são tôda dos homens, no decorrer de tantos séculos, deve
ser considerada como um só homem que sobrevive sempre
e que está continuamente a aprender” (135). Pascal re­
fere-se diretamente ao progresso das ciências. Mas sua
observação se verifica em todos' os domínios do pensamen­
to. O professor de história põe entre às mãos do discí­
pulo, para os combates do futuro, essa arnia poderosa
que se chama experiência. .
Experiência, isto é, força adquirida pelos (grandes
gestos do passado, — prudência adquirida pelos inúmeros
perigos, — ciência adquirida por tôda espécie de erros,
— engenhosidade adquirida por tentativas infinitas,—
audácia adquirida pelas vitórias do trabalho, etc. Todos
os poderes do homem são assim multiplicados pela ex­
periência.
Cícero disse uma verdade, e pelo menos esta vez sem
ênfase, quando reconheceu que a história é a testemunha

(134) Ler Études, 1/1919. “Les Saints dans l’Histoire”, pelo Rvdo. Pe.
Longhayo S. J.
(135) Cir. Edition Brunschwicg, 1909 (Hachette), pâg. 79; cfr. em nota,
pâg. 80. numerosos depoljnentos sôbre o mesmo Çenaa.
154 A E strada Real da Inteligência

cjps tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mes-


Wã da vida, a mensageira da antiguidade ( 13°). É exato.
Assim sendo, que tarefa de primeira ordem essa que
se confia ao professor de história! O fim a alcançar —
tão digno dum verdadeiro humanismo — é, com efeito,
formar o espírito das crianças, pelo exemplo dos triunfos
e dos reveses, das táticas canhestras e dos métodos hábeis,
dos esforços fecundos e do tempo perdido, de que mil e
um acontecimentos do passado aí estão para dar-nos a ilus­
tração e a lição concreta. Portanto, “ preocupemo-nos so­
bretudo com fazer que seja útil e salutar para os homens
essa experiência hereditária de qúe o presente dispõe e
lega aos séculos vindouros” ( m ). Não é exatamente essa
a definição da educação da juventude? Educação, ade­
mais, capaz de entusiasmá-la e de impregná-la, porque
essa idade, sensível mas independente, se deixa mais fa­
cilmente convencer pela natureza do que pela autoridade.
Seriam necessárias páginas e páginas para enume­
rar tôdas as vantagens que se podem extrair dessa expe­
riência. Vamos resumí-las em duas palavras, duas pala­
vras que não dizem tudo, mas que são eloquentes: sabe­
doria e confiança.

l.°) Sabedoria. — Fabricando fit faber. — É pra­


ticando o trabalho que nos tornamos trabalhadores. A
história ensina como se descobrem, começam e terminam,
tôdas asipbras humanas·: as que inteligentemente condu­
zidas forlm levadas à perfeição, e as que uma tôla teme­
ridade ou inhábil indolência levou ao fracasso ( 1
138).
7
6
3

(136) Historia testis tempormn, lux veritatis, vita memoriae, magistra


vitae, nuncia vetustatis. (De Oratore, I, 2).
(137) Marmontel: Œuvres, t. VIII, pág. 75.
(138) O espírito de tradição não se opõe ao espírito de progresso. Pelo
contrário, é a sua condição, o seu aguilhão. Um rio. corre abundantemente:
de onde vem? Assim o progresso, — de onde vem? Da sabedoria adquirida
pela tradição.
“O respeito pela tradição é a condição mesma da verdadeira liberdade
de espírito. Pois, afinal, que é um espírito livre? Seria, porventura, como
no século passado se disse da célebre Mme. Geoffrin, um espírito “que res­
peitasse em sua ignorância o princípio ativo e fecundo de sua originalida­
de?” É deste modo que o e^teridern algumas ve?es em uossqs dias. E,
O humanismo e a história 155

Dêste ponto de vista, o mal tem a sua utilidade, como


o bem.
A imparcialidade e a sinceridade do historiador, que
parecem às vezes virtudes temíveis, mostram-se então
benfeitoras da educação. 0 francês deve conhecer os
seus defeitos nacionais, se não quiser por sua vez rein­
cidir nos mesmos erros, estúpidos e vergonhosos, do pas­
sado; e, ao cristão, a humildade é necessária. Quem ig­
nora a sua própria fraqueza é um heterodoxo, e um pe­
rigo para seus irmãos.
Ser-se-ia levado a silenciar as faltas dos fiéis? Ora,
uma tal timidez não é pedagógica. Se fôsse necessário
mentir para despertar amor pela Igreja ou pela França,
bem má seria a causa que teríamos de defender. Mas
não, — basta exibí-las em tôâa a sua verdade, porquanto
a grandeza de nossa pátria domina os sombreados; en­
quanto os benefícios da Igreja são um milagre manifesto.
“ Sou daqueles que continuam a pensar, dizia Guizot,
que no momento em que ela (a França) atinar com a ra­
zão por que não foi bem sucedida, haverá de alcançar, se
o merecer, o sucesso que antes lhe faltou” (139).

de fato, desejais descobrir o Mediterrâneo? Seria bom, evidentemente, co­


meçar, para isso, ignorando a suà existência. Mas, a falar verdade, um espí­
rito livre é um espírito que, se não é escravo dos preconceitos do passado,
não o é mais também das “novidades” de seu tempo, porque suspeita que
elas por sua vez se tornarão velharias; é um espírito que não pensa que. a
verdade aguardou especialmente por êle para se revelar ao mundo; é um
espírito que sabe como há pouca cousa em si que lhe pertença, que não
seja a herança de sua raça, a continuação da história e o legado de seus
maiores; é um espírito enfim que se formou no comércio e na frequenta­
ção dos outros, aberto a todas as idéias, plasticizado pela prática, alargado
pela comparação, enriquecido pela experiência; e que é a tradição senão o
tesouro hereditário da experiência da humanidade? Os conhecimentos que
uma vida inteira, que várias vidas de trabalho e de aplicação não basta­
riam para permitir-nos adquirí-los, — a tradição os põe quase imediatamen­
te à nossa disposição para que dêles nos abeberemos segundo as nossas ne­
cessidades; e eis o motivo por que, se a liberdade se mede pelsf amplitude
da experiência e sua diversidade, uma pelo menos de suas coiídições neces­
sárias se encontra no respeito pela tradição” . (Brunetière, Disccurs à l’Aca-
démie, pág. 162). Sem dúvida, a idéia de tradição não satisfaz a tudo,
uma vez que fazemos obra de Deus no presente e para o futuro, e não no
passado. Mas a idéia de tradição é condição do verdadeiro, progresso, A
História dá à fé o conhecimento do passado e a sábia previdência do futuro,
Sob êste ponto de vista, convém ler outras passagens do discurso de Bru­
netière na Academia.
(139) Guizot dá um exemplo de lição prática de história para a corre­
ção de nossos defeitos, tão prejudiciais à nossa influência no mundo. “Moh-
156 A E strad a Real da Inteligência

Portanto, nada de mentiras; a mentira que “ camu­


fla ” as faltas suscita a mentira que “ camufla” as virtudes.
As infiltrações insidiosas são contrárias ao humanis­
mo, tanto como à verdade.
Entretanto, quando íôr necessário apontar o mal, é
justo que seja pôsto em seu exato lugar; isto é, que seja
denunciado como um mal, como um germe de corrupção,
que se tornaria mortal se não nos precavêssemos contra
sua virulência.
Então êle se torna instrutivo; ensina o modo como
não devemos proceder para o futuro. As sanções às ve­
zes terríveis da justiça imanente podem ser no ensino
aproximadas tão imediatamente dos crimes, que se reves­
tem de um caráter medicinal muito eficaz sobre as gera­
ções vindouras ( 14° ) . Dêste modo, tudo nesta ciência con-*1
0
4

tra-nos ela dominados em política pela mesma disposição que nos caracteri­
za, diz-se, na guerra: a furia francese. Quando um princípio, um interêsse,
um sentimento nos preocupa, domina-nos absolutamente, exclusivamente;
escutamo-lo e o seguimos até o fim, lógicos apaixonados, sem levar em con­
ta nenhuma outra consideração, nenhum outro fato. Achamo-nos num
acesso de ambição de liberdade? Sacrificamos-lhe tudo, as mais prementes
condições da ordem, as mais evidentes necessidades do poder, a calma do
presente, a segurança futura. Revelem-se as consequências do érro, apare­
ça a anarquia, torne-se incontestável a necessidade de um poder eficaz, .—
e eis-nos a precipitar-nos em seus braços; entregar-lhe-emos todos os nos­
sos lugares seguros; antecipar-nos-emos e iremos além de suas exigências.
Por ter qsido liberais desmesurados, esquccer-nos-emos de que quisemos ser
livres, arrebatamentos tais e descuidos como êsses têm inevitáveis conse­
quências*;’ A medida, a previdência, acautelar os interêsses diversos que
coexistem na sociedade, levar em conta os princípios contrários que nela
se combinam embora combatendo-se mutuamente, dar a uns e a outros a
sua justa parte e somente a sua justa parte, deter-se em tempo, transigir
prudentemente, fazer hoje sacrifícios com vistas no amanhã* — é sabe­
doria, é habilidade, é necessidade em política; é a própria política. Aos
povos em seu longo destino, bem como aos indivíduos em sua curta pere­
grinação, Deus só dá o êxito político se se reunirem essas condições” . (Cfr.
citação de Jullian, op. eít., pág. 155).
(140) “A História não pode anunciar qual será a fisionomia do dia de
amanhã, mas ela é o depósito da experiência universal, e mostra-nos o laço
que liga o castigo à falta. Esta justiça da História nem sempre é a da re-
zão; ela às vezes poupa o culpado e salta gerações; mas jamais os povos
lhe escapam. Para estes, sabedoria e grandeza, imperícia e decadência são
os termos de uma equação, cuja incógnita o historiador deve procurar, pes­
quisando as causas que provocaram as quedas ou as prosperidades... Quan­
tos herdeiros inocentes, indivíduos ou sociedades, pagaram a falta de ante­
passados culpados! Assim considerada, a História se torna o grande livro
das expiações e das recompensas; de modo que, mostrando aos povos o
estreito laço de solidariedade que une passado e futuro, ela pode recordar-
lhes aquela palavra bíblica: Eazei o bem ou o mal e sereis recompensados
ou punidos em vossa posteridade até a sétima geração” . — Duruy: Histoire
0 humanismo e a história 157

corre para petrechar as crianças de um capital de expe­


riências secular e sábio, Um psicólogo avisado saberia
extrair dos fatos humanos tão variados da história as
observações de um Molière, de um La Rocheíoucauld, de
um La Bruyère.
“ Do mesmo modo, se se tratar da história da Igreja,
será inútil negar ou amenizar os abusos que sempre há
a reformar, e que os Bossuet denunciaram mais formal­
mente do que ninguém. E que é a vida individual e so­
cial senão uma perpétua reforma, um doloroso esforço
por escalar o declive a que nos arrasta a fraqueza huma­
na? Não querer reconhecer em certos fatos ou em cer­
tos homens a parte maléfica é antes de tudo ofender a
Deus, que é Verdade; é escandalizar os hesitantes de boa
fé, cuja conciência protesta; é também carecer de humil­
dade. Tal atitude importa efetivamente em recusar-se a
reconhecer que onde houver homens a graça nem sempre
consegue obstar que os descaminhos do orgulho, os erros
da inteligência e as violências do caráter viciem a obra
divina; — que Deus prometeu à Igreja ensinante a infa­
libilidade na doutrina e não a impecabilidade nos atos; —
que prometendo estar sempre com sua Igreja, nem por
isso prometeu que todos os seus membros seriam perfei­
tos, nem mesmo que os pastores seriam mais perfeitos
que os fiéis. Dêste modo ordens religiosas puderam cor­
romper-se, papas ocupar-se mais com política e artes do
que com o seu grave posto, instituições repressivas fun­
cionarem com dureza para impor a fé que somente Deus
pode dar, — sem que por isso Deus possa ser acusado de
haver faltado a suas promessas; doou-nos Êle a verdade
e a graça, o mal veio da imperfeição humana. Países ca­
tólicos em pêso puderam inflamar-se de cólera contra os
irmãos qué se haviam separado, uma vez que até mesmo
para seus apóstolos irritados contra os samaritanos o Mes-

des Romains. — Cír. C. Jullian: Extraits des Hist, franç. du XIXe. siècle,
Hachette, pág. 463. — Bossuet diz admiravelmente a mesma cousa no Dis­
cours sur l’Histoire universelle.
168 A E strada Real da Inteligência

tre pôde dizer: “ Não sabeis de que espírito sois” . As­


sim, o conhecimento humilde da fraqueza humana permi­
te revelar tristes verdades históricas. . . ouvi-las sem es­
candalizar-se” .
“ E, finalmente, recusar-se a ver ou a confessar tais
fatos não revela menos uma falta de confiança em Deus
e na Igreja, do que uma falta de humildade; é não ver
que, na história da Igreja, bem feitas as contas, compa­
rados os benefícios de origem divina com os males de ori­
gem humana, estes últimos desaparecem, é não ver tam­
bém que a Igreja tem todo o direito de dizer que a boa
árvore jamais cessou de produzir bons frutos. Não será
com semelhantes receios de ser franco que se porá a salvo
a fé das crianças, ou que se lhes poupará o escândalo; o
ódio um dia saberá ensinar-lhes o que se esperava poder
ocultar, e encontrá-los-á tanto mais dispostos a prestar-
lhe ouvido porque terão a impressão de haver sido embaí­
dos por seus primeiros mestres” (141).
Assim, a sabedoria que a criança adquire de um en­
sino jpsse modo saturado de experiência, servir-lhe-á daí
por <áíante, para robustecer a sua fé e para defender tam­
bém a religião quando atacada.
Quem é, afinal, que tenta ir ao assalto da “ Pedra
angular” do Cristo? São as vagas de ignorâncias, de so­
fismas, de calúnias, de preconceitos; numa palavra, a
tormenta das idéias falsas. É a “ história parcial” . Como
combatê-la, senão pela “ história verdadeira” ? Outrora a
luta se feria no campo metafísico e dogmático. Hoje ela
desceu para o terreno dos fatos. E é aí que os crentes
vão encontrar os ineréus iludidos.
Além disso, a própria religião católica não é um
fato? Se não exibirmos as nossas obras, de onde havere­
mos de tirar provas? Que poderemos responder a obje­
ções, que são fatos? Que vale uma teoria contra um fato?

(141) Estas linhas, de um perfeito bom senso, foram publicadas numa


revista privada: Comment enseigner (Lyon), e trazem a assinatura de: ün
Professeur.
O humanismo e a historia 159

Infelizmente o costume que temos de esclarecer nossa


fé em seu interior, como uma capela em que penetramos,
expõe-nos a descuidar de iluminá-la também por fora, com
vista aos que ainda não crêm. Quando, na verdade, a his­
tória é, para a fachada da Igreja, um verdadeiro sol do
Oriente que brilha com incomparável fulgor (142).
2.°) A confiança.— O ensino da história deve por con­
seguinte infundir-nos essa sabedoria, que orienta o espí­
rito em todos os seus empreendimentos; mas nos deve dar
também a confiança, que o faz sobrepujar todos os pe­
rigos.
Está perdido ο ρολό que na provação perde a con­
fiança em si mesmo. Ora, “ a história abate as impacien­
tes pretensões e sustenta as longas esperanças” . E para
saber com que espírito a devemos ensinar aos alunos,
leiamos as belas páginas de Guizot ( 143) de onde foi ex­
traída a máxima precedente. Encontrar-se-ia, porém, um
modêlo mais exemplar daquilo que convém, dizer às crian­
ças, do que as seguintes palavras de um professor, que
nos pareceu de utilidade citar por inteiro? “ Deve-se evi­
tar no ensino, bem como alhures, um certo espírito de me­
lancolia que alimenta uma perpétua saudade do passado,
um desgosto pelo presente, um receio do futuro, — que
dita palavras amargas, frequentemente injustas, sôbre a
pretendida decadência de nossa pátria, e que no futuro
só vê para a Igreja um contínuo ceder terreno e para a
fé retiradas — até mesmo perspectivas apocalípticas” .
“ Dever-se-ia reagir mesmo que se estivesse pessoal-
•mente desesperançado, porque é dever do pedagogo pre­

(142) “Verdadeiramente, escreve Mons. Dupanloup, grande é a çiinha


surpresa, e minhas queixas, não direi as minhas censuras, se dirigem não
somente aos moços e aos homens levianos, mas aos homens sérios e aos
cristãos sinceros que ficam indiferentes em demasia ante as questões que
mais interessam à sua própria fé, e que não se dão mesmo ao trabalho do
1er as obras dos católicos militantes que por êles todos estão na brecha o
defendem a causa comum” . (De la haute éducation intellectuelle, t. XXX,
epístola XIV, Histoire de France, pâg. 247).
(143) Civilisation en France, 6.a ed., 1855, prefácio. Poder-sc-üo èncon-
trá-las em C. Jullian: Extraits des Historiens français du XIXe. siècle,
Hachette 1897, pâg. 151, 152.
160 A E strada Real da Inteligência

parar as novas gerações para a ação e porque nada con­


seguirá tirar delas se as fizer uma geração de desanima­
dos. Deve-se reagir, porquanto os fatos não justificam
em absoluto um universal e enervante pessimismo” .
“ Sem os dissimular a si mesmo, sem ocultá-los a quem
o escuta os males e os perigos da hora presente, o mestre
deverá saber guardar e fazer com que os outros guardem
inteira confiança no futuro da nação. Deve-se ter e ins­
pirar uma tal confiança, baseada na indestrutível vitali­
dade da raça, tanta3 vezes atestada pela história; — ' nas
provas recentes dessa vitalidade, a admirável epopéia co­
lonial destes últimos trinta anos (144) ; a pronta valori­
zação do império assim criado; — no interior, em certos
sintomas confortantes, como as tendências cada vez mais
pronunciadas de uma marcha para a descentralização, e
os progressos do espírito de associação; — e finalmente
nas faltas cometidas por nossos inimigos que por sua vez
conhecem também o “ espírito da imprudência e do êrro” ,
que foi outrora fatal à nossa prosperidade e glória” .

“ Tenhamos confiança sobretudo na Igreja” .


“ Há uma expressão impertinente que indeíectivel-
mente comparece quando se deploram as misérias atuais:
“ os agitados dias que vivemos” . É uma expressão cheia
de ingenuidade e fraqueza. Dias agitados? Mas a Igre­
ja conheceu acaso dias que não fôssem agitados? Teria
sido no decorrer dos três séculos da perseguição romana?
Teria sido quando da irrupção dos bárbaros pagãos ou
arianos ao norte, dos muçulmanos ao sul? Teria sido
por ocasião da heresia albigense ? Teria sido no decorrer
das eternas tentativas de usurpação por parte do poder
laico, chame-se êle Frederico Barbarroxa, Felipe o Belo,
José II ou Napoleão? Teria sido no século XI, ao dar-se

(144) Escritos antes da guerra, estes fatos empalidecem ao lado da


espantosa ascensão de fôrças morais que se manifesta em tôdas as partes, e
lo testemunho sangrento e glorioso da vitória. Haveria muito que dizer
para enumerar tôdas as razões de se ter esperança.
O humanismo e a história 161

o cisma grego? no século XVI, ao sobrevir o cisma pro­


testante? no, século XVIII, no decorrer da larvada here­
sia jansenista? ou durante a Revolução? De resto, esta­
mos no mundo para repousar ? E mesmo implorando a
Deus o poder serví-lo em uma pacífica liberdade, a Igreja
porventura ignora que o Mestre disse: “ Meu reino não é
dêste mundo?”
“ Não é, portanto, do combate que convém queixar­
mo-nos
“ Será dos resultados do combate? Antes de tudo o
mais, como somos filhos da França, não devemos permi­
tir que as dificuldades por que a Igreja nela porventura
passe nos prejudiquem a visão de seu esplendor no resto
do mundo. Se olharmos .para além das fronteiras, què
vemos? A Igreja conserva vitoriosamente as suas posi­
ções e ocupa o primeiro lugar na Áustria, na Bélgica, em
várias repúblicas americanas, — os católicos alemães,
holandeses, embora em minoria, realizam em seu país uma
tarefa social e política importante e benfazeja, — os fiéis,
na Itália, na Espanha e noutros países latinos da Amé­
rica preludiam, através das agruras do momento, não um
fervor maior, mas uma renovação fecunda da ação exte­
rior, *— a fé subsiste na Polônia sob a perseguição, e du­
rante os clarões de liberdade, reconquista por dezenas de
milhares os fiéis desgarrados pela'força; — em todo o
mundo anglo-saxão uma intensa atividade católica alia-se
a incessantes progressos; — em todos os países de mis­
sões os pagãos afluem ao encontro, da Verdade, forneeen-
. do só a China nestes últimos anos, cem mil neófitos anual­
mente; — trinta novas conferências de São Vicente de
Paulo foram fundadas pelo mundo somente no mês de ja­
neiro de 1911 ; — e o Congo belga, que há vinte anos atrás
não chegava a contar três mil católicos, hoje tem -cem
mil” .
“ E mesmo na França, quanto motivo para esperan­
ças ! - Á ’ indiferença e hostilidade por parte do Estado,
que são em tese um mal, surgem na hipótese como po­
dendo ser uma fonte de grandes bens. A tormenta, levou
162 A Estrada, Real da Inteligência

com as ordens religiosas, como os bens, e a dotação da


Igreja, as cadeias da servidão legal que lhe entravavam
a ação. E depbis, então, que transbordamento de ativi­
dade! Congressos paroquiais, diocesanos, nacionais, de
organização ou de edificação ; — peregrinações cada vez
maiores; — semanas sociais, sindicatos católicos, grupos
de estudos; — criação de novas paróquias.. . ” ( 145) .
“ E que mutação nas tendências gerais do mundo in­
telectual de uns quarenta anos a esta parte, depois dessa
época em que a filosofia se chamava Taine (o Taine de
L ’intelligence), a história-Renan, o romance Flaubert, a
crítica Sainte-Beuve ! A devoção dos fiéis pôde ava­
liar-se pelos sacrifícios monetários em que consentiram:
a-pesar-dos gastos com a reconstituição das escolas ca­
tólicas, frequentadas por um milhão de crianças ; — a-pe-
sar-da necessidade de inverter cêrca de quarenta milhões
de francos, que o Estado não mais fornece, para atender
às despesas do culto, —■as obras antigas continuam, e a
França, continuando a guardar em meio a suas dificul­
dades a nobre preocupação do apostolado, ainda é a mãe
por excelência dos missionários, continua ainda a forne­
cer sozinha quase a metade das entradas para a Propa­
gação da Fé. “ Quem salva uma alma salva a própria” .
A França salvará a sua” .
“ Para concluir, não valerá a pena relembrar aquela
apóstrofe de Lamartine em 1830?
Enfant de six mille ans qu’un peu de bruit étonne,
Ne vous troublez donc pas d’un mot nouveau qui tonne,
D ’un empire éboulé, d’un siècle qui s’en va!
Qu’importent les débris qui jonchent la carrière!
Regardez en avant et non pas en arrière:
% L e co u ra n t r o u le à J é h o v a h !
Q u e d a n s v o s cœ u rs, é tr o it s , v o s e s p é r a n c e s v a g u e s
N e c r o u le n t p a s sa n s c e s s e a v e c to u te s les v a g u e s ;
C e s f l o t s v o u s p o r te r o n t, h o m m e s d e p e u d e f o i . . . ”

(1 «) Que se deferia dizer dos progressos dêstes dea ultimes aeos?


O humanismo e a história 163

' “ Sim, que a criança saída de nossas escolas entre na


vida animada de sentimentos de humildade para consigo
mesma, com o conhecimento dos males e fraquezas de que
sofre a humanidade, sem presunção, nem ingênuo otimis­
mo, mas com plena confiança em sua pátria, em sua Igre­
ja e em seu Deus” (146).
Dêste modo, fortificado pela experiência dos séculos,
com sabedoria concreta e confiança refletida, o jovem po­
derá trabalhar pelo progresso da civilização latina e cristã.
As aulas de história tê-lo-ão equipado para essa tarefa
social.
III. — O ponto de vista ãa Humanização.
Ensinar as crianças a conhecer, a estimar e a amar.
com convicção sua pátria e a Igreja, petrechá-las para a
vitória na vida, com todas as qualidades que fazem os vi­
toriosos, — é já humanizá-las profundamente.
Resta-nos, contudo, assinalar brevemente os outros be­
nefícios da educação a que — delimitando-os — demos o
nome de “ humanização” .
A história, com efeito, abstração feita da cultura an­
cestral e dos preparativos diretos para o futuro, exercita
e por conseguinte desenvolve com plenitude as faculda­
des da criança, fazendo imperar entre elas um amplo equi­
líbrio.
Lembremo-nos de alguns daqueles defeitos do espíri­
to que tentamos descrever na primeira parte desta obra.
Poder-se-á ver que o ensino da história é de natureza tal
que propicia o desenvolvimento de todas as aptidões e
mesmo a retificação de tôdas as imperfeições congênitas.
Pois a sua metodologia integral tem um pouco de cada
método das demais disciplinas: é a um tempo concreta*e
idealista, científica e literária, positiva e filosófica. Aliás,
deve-o ser para permanecer digna do humanismo.

(146) Estas belas páginas sáo tiradas de uma revista privada: Comment
enseigner (Lyon), Ò autor é anônimo. Mereciam ser reproduzidas 8 çop-
seryadas, por gentil autorisas&o do Diretor da referida revista,
164 A Estrada Real da Inteligência

Concreta. — S ê -lo -á se m d ific u ld a d e, u m a v ez que é'


n a r r a tiv a . 0 h o m e m , su a n a tu re za , co stu m es, ten d ên cia s,
p a ix õ e s, re c u rso s, m is é r ia s , e tc ., n ela n ão são d e fin id o s
de u m m od o a b s t r a to c o m o nos tr a ta d o s de p sic o lo g ia ou
n os r e tr a to s de c a r a c te r e s dos m o r a lista s, — m a s v ê m
e x p o sto s no fla g r a n t e de su a a çã o , su rp re e n d id o s e m p le­
no m o v im e n to . O p ró p rio ro m a n c e , c u jo f i m é n a r r a r ,
b u sc a u m a b a se n a h is t ó r ia ; n ã o p a ssa de u m a “ p orçã o
d e v id a ” , com o d izem os c r ítico s, a r tific ia lm e n t e seccio ­
n a d a e rela cio n a d a c o m o u tros pedaços v iv id o s. O dram a
im ita a h istó r ia , e to r n a -s e fa ls o à m e d id a e m que se a fa s ­
t a da rea lid a d e. O estu d o h istó rico ja m a is se a p a r ta da
so lid ez d o s fa t o s e fo g e se m p re das fic ç õ e s. D ê sse m od o
in te re ssa , c a tiv a se m e s fo r ç o a cria n ça . E que n ã o se
deve e sp e r a r de u m ta l e n sin o que a s s im tã o p r o fu n d a ­
m e n te fa la à n a tu re za do d isc íp u lo ?
S e m d ú v id a que n ão é im p o ssív e l re d u z ir a s lições de
h istó r ia a sê ca s a b stra ç õ e s. M a s o que acon tece n ão de­
v e r ia acon tecer. O s in stru m e n to s não tê m c u lp a do m a u
u so que déles fa z e m o s.
Idealista. — E la é id ea lista , p o r q u a n to os fa t o s a c im a
r e fe r id o s fa la m n ã o so m en te aos sen tid o s, m a s ta m b é m
à in te lig ê n c ia , ao co ra çã o , à im a g in a ç ã o , à a lm a tô d a.
U m a o rq u estra é u m fa to s o n o r o ; m a s dela sai u m a m ú ­
sica . U m r a i o .d e lu a r é u m f a t o o n d u la to r io ; m a s dêle
su rd e u m poem a . U m q u a d ro é u m fa t o q u ím ic o ; m a s
dêle se despren d e u m son h o . A s s i m , tõ d a a ep op éia f r a n ­
cesa é a u m só te m p o m ú sic a , p oesia e s o n h o ; a sin fo n ia
tô d a dos se n tim e n to s h u m a n o s v ib r a e m su a s c o r d a s ; e
o q u e a s a rte s iso la m , a h istó r ia reú ne.
Científica. — A h istó r ia ta m b é m p ossu e e ssa ca ­
r a c te r ístic a , à sem elh an ça de to d a s as ciên cia s de ob­
serv a ç ã o . 0 p r o fe s s o r seg u e u m m éto d o r ig o r o so que
se d en o m in a m é to d o h is t ó r ic o ; e êste m éto d o te m n ão
so m e n te e x ig ê n c ia s técn ica s ( 147) , sen ã o ta m b é m e x i­

( 147) Pode-se ler em O. Julllan, op. clt., o preíáolo, n,° 1, VI, p&g. 138.
Alguma» regru do trabalho hlstôrluo. com as roopootlva* referAnoías. Do·
Ò humanismo e a história 168

g ê n c ia s e s p ir itu a is, q u e p o d e m ser e n fe ix a d a s n u m a só


p a la v r a : probidade. S e u m dos p r o p ó sito s do e n sin o se­
cu n d á rio é p r e p a r a r o 'e s p ir it o aos estu d o s su p erio res, que
d isc ip lin a p od erá in fu n d ir m a is do que a h istó r ia u m
a m o r ín te g ro e p u ro p ela v e r d a d e ? D e v e -se 1er, p a r a con ­
v e n c e r -se d isso , a n ob re p á g in a de A u g u s tin T h ie r r y , no
p r e fá c io de seu livro Dix ans d’études historiques, in titu ­
la d a : A devoção à ciência ( 14s) .
A p a ix ã o pela v e rd a d e é que su stém o h isto r ia d o r e m
su a s p esq u isa s in fin ita m e n te d elicadas e c o m p le x a s. P o is
“ uma longa e escrupulosa observarão do detalhe é . . . o
ú nico m eio de se p od er c h eg a r a u m a v is ita de c o n ju n to ” .
E i s o que fo r m a a in telig ên cia e o ca rá te r dos jo v e n s.
F u s te l de C o u la n g e s, q u e a cab ei de c ita r , c o n fe ssa que as
p e sq u isa s h istó ric a s e x ig e m u m cabed al im en so de p a ­
ciên cia , te n a c id a d e , p ru d ê n cia e aud ácia. P o rq u e “ p a r a
u m d ia de sín te se são p reciso s a n os de a n á lis e ” .
N e n h u m a ciên cia desen volve no m esm o g r a u que elá
o e sp ír ito de fin u r a co m b in a d o c o m o e sp írito de g eom e­
t r ia , o se n so do rea l im p o n d e rá v e l co m o do tr a ç o p reciso ;
n u m a p a la v r a , c iên cia a lg u m a to ca com o ela o s lim ite s
e x tr e m o s do e s fo r ç o h u m a n o ( *149) .
Literária. — E l a o é e m tôd a a su a co n te x tu ra . P o is
que se t r a t a de r e p r e se n ta r a v id a , e n ão de d isse c á -la .'
A q u i, a a n a to m ia d o co rp o su sté m a ca rn e e os m ú scu los,
o m o v im e n to e a e x p ressã o da alm a. P o r êsse m o tiv o o
h is to r ia d o r te m n ecessid a d e de u m a fo r te im a g in a ç ã o ,
d iv in a tr iz de se g re d o s e .c r i a d o r a de f o r m a s ; u m a im a ­
g in a ç ã o d iscip lin a d a p ela ra zã o e ao serv iço da V erdade.
O s g r a n d e s h isto ria d o re s são to d os h om en s de la r g a e n v e r­
g a d u r a , h o m e n s d e p e n sa m e n to e h om en s da p e n a ; u m
ú nico d e fe ito que tiv e sse m r e a g ir ia sôbre su a obra, rele­
g a n d o -a p a r a a se g u n d a cla sse . S e a educação se en r i­
quece so b re tu d o pela fre q u e n ta ç ã o de p erson a lid a des p o -

IkiIm, no Indlno, o capitulo prnalonlnHlmo Intitulado: Do la inCthodo h lito-


rluiu*.
( Mil) l ’odPl'ft ptw lido no vollimn pmittndo. pAtj. ¡11.
(MU) OCr, Thlm'N! IlUliilru (In (liinaiilnt »(, d» ricmplro, ti, XII, lOBBt
prólovui "Du qimliiUM yim lltí» iiAupunuli't» A 1'liUtorlvn",
166 A Estrada Real da Inteligência

d e r o sa s, é ju s ta m e n te n a h istó r ia que p od em o s v iv e r e m
co n ta cto e fa m ilia r id a d e c o m ela s.
Positiva. — A h is to r ia n ã o p a r te de id éia s, d a s q u a is
e x tr a ir ia co n clu sõ es te ó ric a s. É v e rd a d e q u e co m f r e ­
qu ên cia la n ça m ã o do m éto d o d e d u tiv o ; m a s ela é antes
do mais indutiva e m su a m a r c h a a scen d en te dos fa t o s às
id é ia s g e r a is. A c o s tu m a a s s im o e sp ír ito fr a n c ê s a do­
m in a r a su a n a tu r a l ten d ên cia à ló g ic a a b s t r a ta , a a d a p ­
t a r -s e à s r e a lid a d e s, a n ã o a n d a r a d ia n te dos fa t o s , m a s
a se g u í-lo s e m seus a p a r e n te s c a p rich o s, a c o m p o r ta r -s e
co m o u m s e r v id o r das v o n ta d e s p ro v id e n c ia is e n ão c o m o
v o lu n ta r io so sen h o r delas.
N ã o é a fo r m a ç ã o p o r e x c elê n c ia do e s p ír ito ? Q uan­
do se c o n tr a iu o h á b ito leal de v e r e de to m a r as co u sa s
co m o e la s sã o, a fim de co n d u z i-la s ao pon to e m q u e de­
v e m e sta r e a fim so b retu d o de elev a r a a lm a a o s cim o s
d o d ever e do su cesso , s ig n ific a q u e j á se é u m h o m e m
de v a lo r , — e q u a se u m se r de ex ceçã o .
Filosófica — fin a lm e n te , a h is tó r ia o é, à su a m a ­
n eira . “ A g r a n d e v a n ta g e m ed u c a tiv a que a h is tó r ia nos
p od e p ro p o rc io n a r é p re c isa m e n te essa de c r ia r -n o s u m a
p e rsp e c tiv a , de e n s in a r -n o s a v e r a s ’ co u sa s de longe e do
alto. E n este o fíc io , que lh e é p ró p rio , d iscip lin a a lg u m a
p o d e ria s u b s titu í-la ” .
D e sse m o d o .se e x p r im e P a r o d i e m su a Comunicação
ao V Congresso Internacional de Educação moral (P a r is ,
de 2 3 a 2 8 de se te m b ro de 1 9 3 0 ) . C o n v ir ia que fô s s e
lid a p o r in teiro . A u x ilia r -n o s -ia a co m p r e e n d e r de q u e
m a n e ir a a h istó r ia n os e le v a m u ito a c im a de tô d a s a s e s ­
tr e ite z a s do in d iv id u a lism o ; do eg o ísm o , do n a c io n a lism o
e x c lu siv ista , da r iv a lid a d e fe r o z , do te r r a -à -t e r r a m a te r ia l.
P elo fa t o de p la n a r m o s com e la a c im a dos esp aço s e do
te m p o , p od em os v e r o s c o n ju n to s e ta m b ém " a s p a r te s e m
se u s ju s to s lu g a r e s , as q u á is só tê m sen tid o e m fu n ç ã o do
tod o ( 150) . E a s s im n o s a p r o x im a m o s d a s v isõ e s d e D eu s.

(150) “Pela História, e somente por ela, porte o homem habltuar-so a


situar um pouco mala exatamonto a sua açdo Individual na obra de nua
Ò humanismo e a história l&Y

T o d a s sa b e m de que m o d o B o ssu e t e n c a r a v a o en sin o


d a h is tó r ia . Q u a n to se p erde que o seu m éto d o — t ã o
ed u c a tiv o , p ois que é ao m e sm o tem p o certo e e d ific a n te
— n ão s e ja m elh o r con h ecid o, n em m a is s e g u id o ! As
b ela s p á g in a s do D isc u r so so b re a H is t ó r ia U n iv e r s a l de­
v e r ia m e s ta r g r a v a d a s n a m e m ó r ia de to d o s os p r o fe s s o ­
re s de h istó r ia . P o is e la s co m p en d ia m o d ever dêles.
O ch an celer d’A g u e s s e a u , que fo i u m dos e sp írito s
m a is n o tá v e is da v e lh a F r a n ç a , escre v e e m su a “ Instruc­
tion à ses enfants ” a p ro p ó sito dos estu d o s h is t ó r ic o s : “ A
v e r d a d e ir a n a tu r e z a do h o m e m é aí re v e la d a c o m m u ito
m a io r n itid e z do que n a m a is su b lim e d a s filo s o fia s . . . .
C o n sid e ro o estu do da h istó r ia com o o estu d o d a P r o v i­
d ên cia , n o qual se v ê q u e D eu s . . . te m to d a s a s co u sa s
e m su a m ã o . . . Se Deus nem sempre fala, age sempre,
pelo contrário, como Deus. S u a co n d u ta pode ser m a is
ou m e n o s m a n ife s ta ao e x t e r io r ; m a s n o fu n d o é se m p re
a m e s m a : p a ten te ia -se e m to d a p a r te a quem q uer que
te n h a o lh os p a r a r e c o n h e c ê -la . . . 0 estu do dos a con teci­
m e n to s h u m a n o s le v a -n o s à p rim e ira ca u sa m o r a l de tu do
q u a n to o corre e n tr e os h o m e n s, de so rte que não tê m d es­
cu lp as aqu eles que n ão e n c o n tr a m D e u s n a h istó r ia e que
n ão lê m a su a g r a n d e z a , p oder e ju s tiç a nos ca ra cteres
fu lg u r a n te s c o m q u e ela os in sc u lp e ” ( 151) .
A s s i m a h istó r ia se e n c o n tr a co m a re lig iã o , e q u an ­
do se te m o s olhos bons,’ ela se a p r esen ta com o o m elh o r
te ste m u n h o de D e u s, do C r isto e do C r istia n ism o .

geração; mesmo esta na evolução de tôda uma civilização, é depois na da


total evolução cósmica. E que significa Isso, senão avaliar a inanldade das
ambições e dos exclusivismos nacionalistas, tão ridiculamente mesquinhos
na sequência dós impérios, e atribuir um interêsse verdadeiro unicamente
ao desenvolvimento total da humanidade, à época da vida sôbre o globo,
& conquista do mundo pelo espírito? (Comunicação de Parodi).
Mais onfatlcamente Camille Jullian: “ Se negligenciarmos o estudo da
História, não seremos mais no tempo eterno que miseráveis náufragos, bru-
talmonto arranend03 á obra dos séculos, vogando à deriva, desesperançados
do alcançar margem., o condenados a desaparecer sob as vagas das horas
Impiedosas. E a cadela da humanidade viva estará para todo o «empro
partida".
(Ml) Cfr, ns citações do d'AKucuinuau om Mono. Dupnnloup: Dt la haut«
édusallon liiUUauliUllo, t, 111, pág, 374,
1 6 ft A Èstraãa Real da inteligência

' , Tal é o humanismo que o historiador encontrará nU


história e transmitirá cpm o seu ensino.
S Acabamos, de deduzir u m e sp ír ito ;— e de traçar, s.ei
não um programa detalhado,! pelo menos as linhas arqtfll
tetô,nicas de um plano. Trata-se de atingir, uma finalidade!
Feliz o professdr de historia que puder dizer com os seus.
botões: “Meus discípulos sabem por que a Igreja e a
Frapça são dignas de amor, e as airiam. Meus‘ discípulos
adquiriram uma experiência da vida, e entram bem ar­
mados ria- lição da existência. Meus discípulos forma­
ram-se trabalhando com os métodos tão vários da pesqui­
sa histórica: adquiriram assim um espírito são, vigoroso,
equilibrado, completo. Esta é toda a minha recompensa
terrestre: m e r c e s m a g n a n i m i s ” .
CAPITULO VII , ,

O HUMANISMO E A FILOSOFIA

O curso de filosofia é a coroação natural dos estudos


secu n d á rios da educação humanista. Um colegio, sem
cadeira de filosofia, semelha a um corpo decapitado.
E que vale'um homem sem cabeça?
A própria seriação oficial dos estudos em França
está conforme à natureza das cousas. 0 bacharelato (151a),
com efeito, que é a sanção universitária da formação com­
pleta, compreende duas partes: a primeira nada mais é
do que rftera etapa: não leva ao, térmo, — é a retórica;
somente a segunda perfaz o roteiro: é a filosofia.
Esta organização material dos programas, todavia,
não· basta por si só para evidenciar a muitos pais a su­
prema , importancia da formação filosófica. É possível
que tais pessoas estejam ainda sob o domínio de' perni­
ciosos preconceitos, què apresentam a filosofia travestida
em mera id e o lo g ia oca ou mesmo delirante.
Semelhante subestimação está a trair uma completa
ignorância da matéria.
Ademais, acontece também que outros negligenciami
essa-ciência superior, e m v ir tu d e d a p r e ssã o d e ir d e r ê sse s
u tilitá r io s. A idéia fixa de uma profissão a conquistar
lança as paixões,a unia carreira acelerada: cegamente,
isto é,. sem dar tèmpo à reflexão, íaz-se nos estudos o qúe
se faz quando da montanha se contempla o horizonte, —·

(151 a) Grau de bacharel, coroa dos estudos secundários.


170' 1 A E strada Real da Inteligência

atalha-se : olha-se difetàmente o horizonte através dos es-'


paçòs, desprezando os rodeios inúteis da metafísica, afim.
de atingir, num frenesi dê recorde «de velocidade, o limiar
da profissão escolhida. Poder o mais cedo possível, ga­
nhar a vida significa, para estes, vencer na vida.
Assim é que o sucesso é medido, não pelo desenvolvi­
mento vital da inteligência, maS pela posição por assim
dizer geográfica <jue se ocupa no caminho da existência,
Ora, o que há no fundo desta pedagogia de concurso
ou de corrida é uma decidida preferência yotada à “ boa
situação” e um desconhecimento do valor real do homem:
parece que pouco importa que se seja um boçal, contanto
que se ocupe uma . boa posição. Não o confessam, mas
agem dêsse modo.
É muitíssimo importante que se ponham pais e filhos
definitivamente em guarda contra essa deformação da
verdadeira educação.
A defesa e ilustração do ano capital de filosofia esco­
lar méreeeria um trabalho de longo fôlego. Limitar-me-ei
neste capítulo a indicar sumariamente as vantagens insu­
peráveis que a inteligência do jovem pode haurir do es­
tudo da filosofia.

P r im e ir a V a n t a g e m :

. A reflexão suprassensível.

Não se deve subestimar a influência do ensino que


o adolescente recebeu até o fim de; sua retórica (151 b).
Mas se bem precisarmos o caráter de sua virtude educa­
tiva, imediatamente ttos aperceberemos de que, ela é limi­
tada e exige um complemento necessário. Mais ainda:
do mesmo modo''como as primeiras linhas de um desenho
indicam -o sentido em que o debuxo deverá ser acabado,

(151 b) Ano do llcau (tipo do curso secundário em França) em que


se eiisina:a retórica, ■_ . V.
O humanismo e a filosofia A 171

assim também" a orientação mesma dos estudos literarios


está claramente a revelar-nos que somente a filosofía,
pode levar a seu verdadeiro termo a formação humanís­
tica.
A insuficiencia da cultura literária consiste no fato
de que ela estimula q crescimento da razão e a suá liber­
dade de movimentos apenas no envelope primitivo do con­
creto, plasmado. pela im a g in a çã o e p elo s e n tim e n to . Ela
não incita o espirito a ultrapassar o estadio da razão im ­
plícita . .
Sem dúvida, sob a argila das imagens de que se ser­
ve* ela agita um princípio de reflexão e de organização;
mas éste principio inteligente permanece de tal moqo in­
corporado ao sensível, que é obrigado pelas representações
im a g in a tiv a s & mover-se segundo, as leis das atrâções ins­
tintivas e das associações quase mecânicas.
* Quando a formação filosófica houver 'Comunicado à
inteligência o seu v i g o r e liberdade próprios, então as for­
mas literárias passarão a ser a expressão de pensamentos
puros e cristalinos. No estádio último da v o lta sintética
da idéia a suas origens sensíveis, o concreto, — que fala
ao homem todo e onde o homem todo se traduz, — volta a
primar sôbre o abstrato exangue e despido por natureza
de substância real.
Tal superioridade, porém, não existe ainda na etapa
primeira do conhecimento, que é o da criança. Os pri­
meiros estremunhamentos da razão, que q concreto pro­
voca, andam ainda envoltos nas confusões da m a téria .
Numa palavra, o ensino literário não faz um cultivo es­
pecial da razão c o m o tá l; limita-se a pôr a criança em
contacto e, se reagir com vivacidade, em luta fecunda com
a natureza sensível, afim de que chegue pouco a pòuco
pela reflexão filosófica à afirmação >e aumento de sua
autonomia espiritual.
A literatura, diz Fouillée, “ é uma vista de c o n ju n to
do mundo, antes do mais do mundo dos sentidos e da ima­
ginação,, que é o primeiro com o qual as crianças, entram
em contacto, e depois dó mundo intelectual, moral e social” ;
ITâ A Estrada Èeal da Inteligência,

“ a c r ia n ç a n ã o pode d e ix a r de ir da fo r m a a o fu n d o , a f i m
d e p e n e tr a r a o s p ou cos o s se g re d ô s d a v id a e do p e n sa ­
m e n to ” . “ P a s s a , a ssim , n e c e ssa r ia m e n te da im a g in a ç ã o
e do se n tim e n to ao ra cio cín io, do co n creto a o a b s tr a to , dos
co n h ecim en to s g e r a is aos c o n h e cim e n to s e sp e c ia is, do que
so licita o e s p ír ito por inteiro a o que o so licita a p e n a s e m
p a r te , do que a tu a sô b r e o c o ra çã o e o p ró p rio ^ ca rá ter ao
que a tu a a p e n a s sô b re a ra zã o e a m e m ó r ia ” .
É p o r è sse m o tiv o que a lite r a tu r a é a p en a s u m a e ta ­
p a n a ed u ca çã o. F a lt a -lh e “ g r a ç a e f i c a z ” p a r a separar
o espírito dos sentidos. M a is r ic a , m a is c o m p le x a , m a is
h a rm o n io sa , m a is tu m id a de se iv a do qiie q u a lq u er o u tr a
fo r m a de p e n sa m e n to , a lite r a tu r a é d o ta d a de u m a a b u n ­
dância: que e n g a n a : é im p o te n te p a r a d esen v o lv er in te ­
g r a lm e n te a r e fle x ã o e a in te lig ê n cia ra c io n a l d a s co u sa s.
E s c a p a a seu s te n tá cu lo s a ra zã o , fa c u ld a d e d o m in a d o ra ,
ise n ta d e a p a r ê n c ia s, pela qu a l ca p ta m o s a v e rd a d e em
su a nudez d e e ssê n c ia .
A filosofia, ao c o n tr á r io , p ossu e essa “ e fic á c ia ” , c o m o
dizia B o ssu e t, p od er c u ltiv a r a p r ó p r ia in te lig ê n cia . E s-
tim u la -a e a a ju d a a d e se m b a r a ç a r -se d essas d u as g r a n ­
des m a tr iz e s de e rro s que sã o a imaginação e a> sensibili­
dade.
T a l é o im en so b e n e fíc io do ano c a p ita l de f i l o s o f i a :
e n s in a r a c r ia n ç a a p e n sa r com uma certa independência
das imagens e dos sentimentos, e p o r c o n se g u in te a con­
q u ista r c o m c e r te z a e r ijo c a r á te r a pura verdade.
Ê ste v ig o r e sp ir itu a l é d e in e stim á v el v a lo r n a lu ta
p ela v id a . P o is , q u a n to s p r e ju íz o s a im a g in a ç ã o e o se n ­
tim e n to c a u sa m à b u sc a d a v e r d a d e !
P a sc a l p roced eu a o ju lg a m e n to d e fin itiv o d e ssa s duas
fa c u ld a d e s : f o r a m desde en tão d e sp id a s d e tô d a s a s su a s
p reten sõ es. Q u ando P a sc a l a cu sa é d ifíc il a p a g a r as m a r ­
c a s de su as acu sa çõ es ou ín é sm o d e su a s c h ic a n a s. Suas
fle c h a s são r ij a s e a ce ra d a s. A im a g in a ç ã o , d iz êle, “ é
e ssa p a r te m e n tir o sa do h o m e m , e ssa m a tr iz de e r r o e f a l ­
sid a d e s, e ta n to m a is im p o sto r a p o r q u e n ão o é s e m p r e ;
pois se ria u m a r e g r a in fa lív e l da v e rd a d e , se o fò s s e in -
O humanismo e a filosofia 173

fa lív e l d a m e n tir a . M a s , sendo ò m a is d a s vezes fa ls a ,


n ã o e x ib e m a r c a a lg u m a de su a q u a lid a d e, m a rca n d o com
o m e sm o sin ete a v e rd a d e e o êrro . N ã o fa lo dos loucos,
fa lo dos m a is s á b io s ; é n estes que a im a g in a ç ã o a ssu m e
o g r a n d e d om d e p e r su a d ir o s h om en s. A ra zã o in u til­
m e n te o n e g a r á , m a s a v e r d a d e é que ela n ão pode a tr ib u ir
o ju s t o v a lo r à s c o u s a s ” .
“ E s s a so b e r b a fa c u ld a d e , in im ig a da ra z ã o , e que se
c o m p r a z e m c o n tr o lá -la e d o m in á -la a fim de p a ten tea r
c o m o te m p od er so b re tô d a s as co u sa s, estabeleceu no
h o m e m u m a se g u n d a n a tu r e z a ” .
E P a sc a l m o str a c o m e x em p lo s o p a p el de m istific a -
d ora que a im a g in a ç ã o d esem pen h a em tô d a s a s circu n s­
tâ n c ia s e n eg ó cio s d esta v id a . P o b re r a z ã o ! E s t a crê, du­
v id a , ou n eg a — se g u n d o o bei ca p rich o da im a g in a ç ã o e
do se n tim e n to .
“ A a fe iç ã o ou o ó dio m u d a m a ju s tiç a de f a c e ” . Os
m a g is tr a d o s , o s p r ó p r io s ju íz e s são ilu d id os p ela s a p a ­
r ê n c ia s. “ R isív e l ra zã o que u m ¡ven to a g ita e e m todos
os s e n t i d o s !” E m tu d o se v ê em “ os e fe ito s d essa fa c u l­
dade im p o sto r a que p arece te r -n o s sido e x p ressa m en te
d a d a p a r a in d u z ir -n o s a u m êrro n e c e ssá r io ” .
M a le b r a n c h e com u m a fin u r a e bom senso in com pa­
r á v e is , d esen volveu e m la r g a s e fu sõ e s de luz as fu lg u r a ­
ções p a sc a lia n a s ( 152) .
É n ecessá rio que a ra z ã o , rep osta em si m e sm a , se­
n h o r a d a m u ltid ã o de im p re ssõ e s, tr a n s fo r m e a s fa c u ld a ­
des se n sív e is e m se r v id o r a s d a v erda d e.
A e ste s c im o s so b ra n ceiro s n ã o se ç h e g a . de u m só
sa lto , n e m sem u m d oloroso a p ren d izado. O s alu n o s b em
o se n tem tô d a v ez que o p r o fe s s o r os o b r ig a a d e ix a re m o
se n sív e l p a r a su b ir à s reg iõ es das p u r a s id éias. E fe ti­
v a m e n te , a a sce n sã o e x ig e u m tríp lice e s fo r ç o : l.° ) um
e s fo r ç o p ela lu z que d is s ip a as n u v en s e lib e ra a a lm a
dos v é u s do êrro e do d om ín io dos p r e c o n c e ito s; 2 .°) u m

UU> Ofr. » prlratlr» ywrU obr».


174 A Estrada Real ãa Inteligência

e s fo r ç o de esp ecu la çã o p ela v id a p r ó p r ia do e sp ír ito , o


g o sto das e n e r g ia s d isp e n d id a s n a c o n q u ista d a p u r a v e r ­
dade, a a le g r ia de c o n h ecer, b u sca d a p or si m e s m a , se m
re to rn o e g o ístic o sô b r e o s sa c r ifíc io s que e x i g e ; 3 .° ) u m
e s fo r ç o de sa b e d o ria p r á tic a p ela rea liza çã o dos v a lo r e s
id e a is, co n sid e ra d o s c o m o a s rea lid a d es m a is c e rta s e m a is
ú teis da e x istê n c ia te r r e str e . E s f o r ç o tr íp lic e q u e f a z
os h o m e n s su p e rio re s. E s f o r ç o tr íp lic e que, se g u n d o a
p a la v r a de P la tã o , p õe o Nouç no ca rro . E te n d o n a
m ã o a s r é d e a s, o Nouç d ir ig ir á d a í p o r d ia n te os in stin to s
d o m a d o s ou reb eld es. T a l é a re c o m p e n sa p r o m e t id a : o
im p é rio s ô b r e a s p a ix õ e s.
N a d a é tã o belo, tã o b o m , n em tã o ú til c o m o e ssa se­
re n id a d e de e sp ír ito è m m e io ao e m p u x a r d os in te re sse s
e d as p a ix õ e s e m r e v o lta . O h o m e m se to r n a c a d a v e z
m a is c a p a z de su b stitu ir o m o v im e n to o rd en ado do Nouç,
ao m o v im e n to d e sre g ra d o e c e g o d a avoia, (lo u c u r a ) ;
e qu a n to m a is a a lm a a m a r a v erd a d e, q u a n to m a is se en ­
tr e g a r à co n te m p la ç ã o d as id éia s, se p a r a n d o -se d as im a ­
g e n s, — ta n to m a is ela se r á sen h o ra do m u n d o e d e si
m e sm a . A s s i m “ o filó s o f o e n c a m in h a -se p a r a o seu a lv o ;
seu a m o r n ão se e m b o ta n e m d escan sa en q u a n to n ão a tin ­
g iu a n a tu r e z a do que ca d a co u sa é e m si m e sm a , a tr a v é s
d aq u ela p a r te d e su a a lm a a que c o m p e te a tin g ir u m ta l
o b j e t o . . . Q u a n d o se a p r o x im o u e se m esclo u ao se r a b ­
so lu to e que a s s im deu n ascim en to ao p en sa m en to e à
verdade, ela e n tã o realmente con h ece e verdadeiramente
v iv e e se d e s e n v o lv e ; e é d essa m a n e ir a que lh e fin d a m
p ela p r im e ir a v ez as d ôres do p a r t o ” (P la tã o , R e p . V I ,
490 A B ).

P o r ta n to , se n ão q u ise r m o s n a v id a se r jo g u e te s d as
ilu sões q u e v ê m e n v o lta s n a s in tu içõ es b e la s, m à s u m
p ou co v a g a s , d o co ra çã o , é n ec e ssá rio q u e o Noúç o b s e r -
v « e govern e. O s e r r o s d os co ra çõ es g e n e r o so s sã o tã o
fr e q u e n te s qu a n to o s e g o ísm o s d a s a lm a s g la c ia is. Q uan­
ta s v e z e s n ã o n o s v ím o s la n ça d o s ,a c s fo s s o s d u m a r o ta
O humanismo e a filosofia m
In certa, sim p le sm e n te p orqu e o “ c o c h e iro ” não se a ch a v a
n a b o lé ia ? P o r e x e m p lo : “ ju s t iç a ” , “ c la r e z a ” , “ p ied a ­
d e ” , · · · e sta s b e la s p a la v r a s que, a p e n a s p ro n u n cia d a s,
a c o r d a m e m n os n o sta lg ia s de u m p a r a íso p erd id o , n ão se
p o d e m a ca so t o r n a r tã o fu n e s ta s co m o as de c iê n c ia ” e
“ p r o g r e s s o ” , se a in te lig e n cia n ão a s d e fin e r ig o r o sa m e n ­
t e e se n ão a ssin a la c o m n itid ez o c a m in h o que le v a a es­
ses p a íse s e n c a n ta d o s? N ã o tiv e m o s a éste resp eito t a m ­
b é m , d o lo ro sa s e x p e r iê n c ia s ? .

Q u e p reço, p o r e x e m p lo , n ã o tiv e m o s que p a g a r por


a q u e la s a v e n tu r a s a que p o r ta n to te m p o nos lan çou u m a
f é m ístic a n a “ b on d ad e n a tu r a l do h o m e m ” ? Q u e bela
fó r m u la , co n tu d o , e q u ã o “ sen sív el ao c o r a ç ã o ” ? Q u a n ­
ta s doces lá g r im a s n ão fe z e la c o r r e r desde R a m s a y e
F é n e lo n a té P r é v o s t e J e a n -J a c q u e s? M a s q u a n tas a n a r ­
q u ia s n ã o f o r a m p o r e la d e sa ça im a d a s ao a n a te m a tiz a r a
r e g r a c o m o ta l e ao a fir m a r , se m d issip a r co n fu sõ e s, que
a n a tu r e z a t r a z e m si m e s m a a su a le i? O ra , se c o n si­
d e ra rm o s e ssa te o r ia c o m m a is a te n çã o , h a v e re m o s ,de ·
c o n sta ta r que to d o o m a l aqu i n a scia de u m a d em issã o
da in te lig ê n c ia n a a p lic a ç ã o d esta in tu ição do co ra çã o .
In e g a v e lm e n te , “ a n a tu r e z a to ta l t r a z a su a le i ; m a s q u em
a to ta liz a se n ã o o e sp ír ito ou m a is p recisa m en te a in teli­
g ê n c ia , fa c u ld a d e d as rela çõ es p e rceb id a s, ca p a z d e r e ­
c o r d a r -s e e a n te c ip a r , de g o v e r n a r o p re se n te p ela p r e v isã o
d o fu t u r o n o con h ecim en to do p a ssa d o , d e d e fin ir a s s im
a s r e g r a s , n o r m a s , leis, q u e são fr u t o s de u m re to rn o , de
u m a co n c iên c ia r e fle x a e m que a in telig ên cia co m p leta
p r e c isa m e n te o co ra çã o , fa c u ld a d e ,d o im ed ia to e do p a r ti­
c u l a r ? ” ^ 153) . E o m e sm o acon tece, e m to d os os d om ín ios
d a a tiv id a d e , c o m os im p u lso s á p a ix o n a d o s q u e n ã o rece­
b e m u m f r e i o de p a r te da r a z ã o lú cid a. »

(153) Cfr. Doncosur, S. J,: Étudss, t. 1S3, 1921, pàg. 137. A fòrmula:
"A natureza mesma traa em al a sua lei” tomar-se-ia falsai se, por urna
confus®© de tèrmos, se entsndesse, corno Kousseau, qua a natureza so basta
e que pao necessita netn de firn Citano a atingtr, pezp de qua a
fumino e dirti®. '
178 A Estrada Real da Inteligência

S egunda V a n t a g e m :

0 espírito realista,.
Ejm bora lib e rte a ra zã o da “ e sc ra v id ã o da m a t é r ia ”
e lhe o u to rg u e o im p é rio sô b re a tu m u ltu o sa m u ltid ã o de
im a g e n s que p o v o a m o e sp ír ito do h o m e m , isso n ão quer
d iz e r q u e a filo s o fia se ach e su b m e tid a à fu n e s ta n eces­
sid a d e de su b stitu ir à p le n itu d e da re a lid a d e õs v a z io s das
a b stra ç õ e s. M u ito pelo c o n tr á rio , ela c u ltiv a ao m e sm o
te m p o e ssa s duas fo r m a s de in telig ên cia que à p r im e ir a
v is ta p a r e c e m a n ta g ô n ic a s, — o se n so do a b so lu to e o
senso do real. S e n ão m e e n g a n o , e s p ír ito s su p e rio re s
s ã o p re c isa m e n te a q u eles q u e não c a r e c e m n em de u m a
n em de o u tr a d essas fo r m a s . F o i o que d e ix a m o s e s ta ­
b elecid o n a p r im e ir a p a r te d esta o b r a .
N ã o se pode n e g a r que as ciê n c ia s a b str a ta s, -— as
m a te m á tic a s, p or e x e m p lo , — s e ja m d ota d a s de v ir tu d e s
fo r m a t iv a s , so b retu d o se a s c o m p a r a r m o s com as o b ra s
e x c lu siv a m e n te li t e r á r i a s ; e la s d e sen v o lv em q u a lid a d es in ­
telectu a is de p r im e ir a o r d e m , com o, p o r e x e m p lo , a a te n ­
ção, a p recisã o , o r ig o r d edu tivo. F o i o q u e d e ix a m o s
d e m o n stra d o . C on tu do, q uan do as c o m p a r a m o s com a f i ­
lo s o fia , v e r ific a m o s que a in flu ê n c ia d e la s p*arece m a is
r e s tr ita ( 154) . D e sp id a s de tô d a s as v ir tu a lid a d e s d a li­
te r a tu r a , v ão ela s p o r d em ais lo n g e n esse d esn u d am en to
m e s m o e a c a b a m e m a b stra ç õ e s n ão m u ito m a is re a is que
os p r ó p r io s sím b o lo s. U t iliz a m -s e da ra z ã o , s im , m a s
m en os co m o fa c u ld a d e de c a p ta r a s . rela çõ es e n tr e o s o b - ,
je t o s do que com o ca p a c id a d e de e n c a d e a r c ifr a s e f ó r ­
m u la s. N o r ig o r is m o d esta d isc ip lin a de fe r r o , o m e c a ­
n ism o c ie n tífic o tem , u m a p o d ero sa — m a s r e str ita — e fi­
c á c ia p e d a g ó g ica .

(154) Opomos aqui a filosofia às ciências puramente abstratas, afim


de fazer ressaltar o seu caráter de ciência aplicada à realidade íntima das
cousas, o qual se correria o risco, de negligenciar. Mas as ciências, de ob ­
servação, Física, História Natural, Astronomia, nem por isso são considera-.
das com o puramente abstratas;, pelo. contrário, elas colaboram para uma.
inteligência mais perfeita do real.
O humanisTAo è a filosofía 17?

R a c io c in a r, ra c io c in a r se m p re , ra c io c in a r se m p a r a r ,
ra c io c in a r p u r a m e n te se m o u tr a o p era çã o m e n ta l que n ão
o r a c io c in a r, q u an do os té r m o s q u e d e sta c a m o s da n a tu ­
r e z a , que c o m p a r a m o s, q u e r e la c io n a m o s, ou que d isso cia ­
m o s , n ão p a ssa m de sig n o s, .de su b stitu to s ló g ico s e, p or
a s s im d izer, de p ro n o m e s, colocados no lu g a r d e seres
r e a is, c o n creto s, v iv o s e ch eios d e s u b s tâ n c ia ; q uan do
s u b stitu ím o s aos ra c io c ín io s, que n a scem das relações que
a s co u sa s e n tr e s i tr a m a m , o esca ch o a r de a b str a ta s o pe­
r a çõ es e fó r m u la s , — ra c io c in a r e m ta is con d ições, a v id a
in te ira e m b o r a , n ã o e n s in a r ia a v e r b e m as co u sa s com o
e m si sã o, n em so b retu d o a b em ju lg á -la s , n em , p o r con ­
s e g u in te , a p a u ta r su a con d u ta p esso a l p o r u m a ra z ã o só ­
lid a e a m p la , c o m o c o n v é m a o h o m em .
É p o ssív e l q u e h a j a q u em p en se que a p r ó p r ia filo s o ­
f i a fa v o r e c e a te n d ê n c ia à “ id e o lo g ia ” , aos a b str a c io n is-
m o s ; e m v e z d e c o m u n ic a r ao e sp ír ito u m a fo r m a ç ã o que
a s le tr a s e as ciê n c ia s te r ia m d eix a d o in con clu sa, ela p or
su a v ez in te r v ir ia só p a r a d e f o r m á -lo ; no tr a to co m a f i ­
lo s o fia , p o r co n se g u in te, c o n tr a ir -s e -ia o h á b ito fu n e sto
de a b a n d o n a r o s p ro b lem a s re a is pelo p ra ze r de u m puro
m a n ip u la r co n ceito s.
C o n fe s s o q u e u m ta l p e r ig o n ão é e m abso lu to u m a
q u im e r a . H á q u e m n eg u e que ex iste u m m a u m o d o de
f ilo s o f a r ê m que se d e sv ia a in telig ên cia de sua v e rd a d e i­
r a fu n ç ã o ? A fu n ç ã o da in te lig ê n cia não é u m a c h a r la ­
ta n e sc a p r e stid ig ita ç ã o de co n ceitos, — m a s u m o lh a r e m
p r o fu n d id a d e a s co u sa s. N ã o acon tece às v ezes que o en ­
sin a m e n to dad o, rico ch etea n d o sô b re a su p e r fíc ie d a s a p a ­
r ê n c ia s, la n ça o s e sp ír ito s no rein o d a s ab straçõ es co m o
se a í fô s s e a v e r d a d e ir a p á tr ia d é le s? N ã o é g r a tu it a a
h ip ó te se de u m p e r ig o tã o g r a v e . U m a v ez que a filo so ­
f i a n e c e ssa r ia m e n te se m ove no pla n o das a b straçõ es me*
d ia n te o tr íp lic e e sfo r ç o , c u jo cu sto d eix am o s elu cidado,
— é v e r d a d e ir a m e n te p a r a recea r que ela , no c lím a x da
c u r v a q u e p e r c o r r e e m seu m o v im e n to to ta l de ascensão
e d e sc id a , e n v e re d e c a p ric h o sa m e n te p or ú m a ta n g e n te
que a tr a n s v ie p elo p a ís das q u im era s.
Í7 8 Â Estrada Real ãa Inteligência

M a s e n tã o e s tá p e r d id a : n ão é m a is filo s o fia .
L e v a n te m o -n o s, p o is, c o n tr a êste fa ls o m é t o d o a t a -
q u e m o -lo ; n isso e sta m o s de a co rd o . N ã o c o n fu n d a m o s
e n tr e ta n to a filo s o fia a u tê n tic a c o m e s ta p e d a g o g ia de
m a u q u ila te, — o c a m in h o da v e rd a d e co m e ssa v ia de
p erdição in telectu al.
N ã o , a fil o s o f ia passa pelas abstrações, mas não se
detém nelas; e la a lca n ça o re a l, m a is e. m e lh o r do que as
ciên cia s, m a is e m e lh o r ta m b é m do que a lite r a tu r a e a
p r ó p r ia p o e sia . '
D e que m o d o isto s e d á ? O v a lo r to d o d a filo s o fia
está e m jô g o n este p ro b lem a .
A t in g e e la o rea l m a is do q u e as ciê n c ia s, m a is do que
a lite r a tu r a e a p r ó p r ia p oesia, em p r im e ir o lu g a r p orqu e
n ão ex clu e n en h u m dos o b je to s d esta s do seu c a m p o de
o b se rv a ç ã o . N ã o h á d e sco b e rta que n ão a in te re sse . E n ­
qu a n to c a d a u m a d as ciên cia s fr a g m e n t a a re a lid a d e e
v a i re str in g in d o de m a is em m a is o seu se to r , a filo s o fia ,
ao cen tro dela, a ig u a l d istâ n c ia de to d o s os p o n to s cir­
cu n sc rito s, e x a m in a o h o rizo n te tod o c o m u m a só e m e s ­
m a m ira d a .
E l a a b a r c a a re a lid a d e m a is do que as ciê n c ia s p o r­
que o que co n stitu e a rea lid a d e to ta l de u m o b je to q u a l­
q u er é o conjunto de relações em que êste se acha travado,
“ é o tecid o de rela çõ es que o lig a m c o m o u n iv e rso in tei­
r o ” ; o que to r n a êste o b je to in te g r a lm e n te rea l p a r a o
e sp ír ito “ é o fa t o de êle e m s i u n ific a r o s fio s d êsse te ­
cido, se r u m fo c o de p e r sp e c tiv a , u m c e n tro d e so lid a r ie ­
dade no seio da in tera çã o c ó s m ic a ” . O tr a b a lh o q u e iso la
e q u e a p a n h a os e le m e n to s de u m T o d o a p en a s com o o u tr o
ta n to s “ todo”, d iv id e e a n iq u ila o co n creto . A filo s o fia
p r o je ta u m a g r a n d e fa ix a ilu m in a n te e m que ao m esm o
te m p o p a lp ita m , co m o r a io s de lu z, a s rela çõ es de to d os
os m u n d o s c ria d o s e n tr e si e c o m o eu h u m a n o e fê m e r o
e c o m o E u d ivin o etern o. A ciên cia im o b iliz a a cre s de
v e r d a d e a fim d e fi x a r a s aíparências m ó v eis d e sta e u tili­
z á -la s p a r a o p r o g r e sso d a fe lic id a d e t e r r e s t r e ; a filo s o ­
f i a , pelo c o n tr á rio , d e sin tere ssa d a com o é, to m a a s co u -
O humanismo e a filosofia 179

sus com o e la s são e m to d a a su a s u b s ta n c ia ; co n te m p la ­


t iv a que é, p en sa o re la tiv o seg u n d o as c o n tin g e n cia s
d ê ste , o m ó v el n o seu flu ir m e sm o , e o a b so lu to em sua
im o b ilid a d e e t e r n a ; p en sa a s s im d in a m ic a m e n te o din â­
m ic o , v ita lm e n te o v iv o , im u ta v e lm e n te o im u tá v e l, a té
h a v e r a tin g id o a v e rd a d e p u r a de c a d a c o u s a : p ois ta l é
o seu alvo.
É tu d o ? L o n g e disso.
A s c iê n c ia s, e n a m o r a d a s das fo r m a s ta n g ív e is , im a ­
g in a m que v e r d a d e ira m e n te a b a r c a m pelo m en o s a p a r te
da m a té r ia c o g n o sc ív e l· que ca b e a ca d a u m a d ela s. A
filo s o fia , p o r é m , so r r í de u m a ta l ilu são. P o is ela a b re
os olhos do c ien tista e lh e d e m o n stra q u e êsse m e sm o rea l
que êle crê d o m in a r e sc a p a -lh e e m p a r te. C o m e fe ito ,
que v a lo r t e m essa c a p ta çã o c ie n t ífic a ? Q u e v a le m e ssa
v is a d a q u e f i x a o o b je to , êsse m étod o que a n a lisa , êsse
ra cio cín io que co n clu e, essa im a g in a ç ã o que ela b o ra , êsse
e sp ír ito que g e n e r a liz a e e s s a s leis p o r . êle fa b r ic a d a s ?
S u p o n h a m o s que a n a tu r e z a se f u r t a a u m ta l a p r e sa ­
m e n to c ie n tífic o e só d eix a e n tr e a s á v id a s m ã o s do cien ­
t is t a u m v é u v a r ie g a d o sob o qual on d u la u m f a n t a s m a :
o c ie n tista fo i lo g ra d o . . ;
0 filó s o f o , p o r ém , mensura o desconto que se deve
fa z e r da ilu sã o dos sen tid os, da im a g in a çã o , do cálculo
a b s t r a t o ; m e n s u r a o a lca n ce que se deve v e rd a d e ira m e n te
a tr ib u ir à ca p tu ra in telectu al do m u n d o. Q filó s o fo é o
sábio conciente de seus haveres; o sábio que co n h ece a su a
fo r t u n a , o seu o u ro e a s su a s c é d u la s ; o sá b io q u e não
ig n o r a o s lim ite s d as in fla ç õ e s fid u c iá r ia s. O filó s o fo ,
so b r e o s d ad o s da c iê n c ia que p ossu e, r e fle x io n a a fim de
n ã o c a ir e m lo g r o , e te n ta c o n stitu ir a ciên cia do p ró p rio
saber. É , p o is, c o m o que u m p o ssu ir n ovo, m a is " co m ­
p leto , co m m ã o m a is fir m e , e m que se co m p reen d e o· que
se a p r ee n d er a , e m q u e se p r o c u r a p r o g r e d ir a n tes e m
p r o fu n d id a d e do que em e x te n sã o , e m que se a va lia a q u a ­
lid a d e do sa b e r a p ó s se lhe h a v e r pon d erad o a qu an tid ad e.
avan­
O p en sa m e n to n ã o -filo s ó fic o é d ireto , im ed ia to ,
çan d o e m lin h a re ta n a d ireçã o da lu m in o sa face do belo
180 A Estrada- Real da Inteligência

ou do útil, sem se examinai a si mesmo. Sabe Deus quan­


tas vezes é enganadora essa captação da crosta exterior
deste mundo misterioso! A filosofia, pelo contrário, —
todos os espíritos o reconhecem, — volta-se sôbre os seus
próprios movimentos intelectuais para criticá-los e me­
dir-lhes o valor ; ela é o pensamento do pensamento, o
pensamento voltado sôbre si mesmo como um rosto que
fosse o espelho de sua imagem; ela é conhecimento que
aspira a saber-se verdadeiro e justo e que dolorosamente
busca a conformidade exata do cognoscente com o conhe­
cido; ela, é um ascetismo espiritual que limpa a inteligên­
cia dê tôdas as escórias da mentira até que aquela se tor­
ne translúcida a si mesma; pois ela somente penetrará
o coração de todos os fatos, com o puro fulgor da verdade,
após haver dissipado as ilusões e feito cair as escamas
que cegam os olhos.
. A ciência é, pois, real nas proporções fixadas pelo
filósofo; filósbfo é o sábio que mediu a sua capacidade,
força, riqueza, e vê claro nos métodos que usa.
Ajuntemos uma última ilustração de nossa tese. Ao
passo que as artes e as ciências consideram o mundo nos
seus aspectos mais raros mais ignotos mais afastados do
conhecimento comum, — a filosofia, ,pelo contrário, en­
sina a considerar também a realidade corrente mais ele­
mentar, a banalidade de nossas ações quotidianas, o que
está incessantemente a desfilar sob os nossos olhos de­
satentos, porque ela em tôda parte vê o mistério sob as
aparências'e anseia por eaptar o segrêdo do ser e do rá­
pido fluir delas.
Um dos mais tenazes obstáculos com que esbarramos
no ensino da filosofia é a dificuldade, quase insuperável,
que a criança tem „para contemplar diante de si as reali­
dades mais óbvias, mais simples, mais imediatas, em vez
de buscar transcendentalismos inéditos e incompreensí­
veis. No dia em que se conseguir que ela observe'com
atenção o que até então passara absolutamente ‘desper­
cebido para os seus sentidos transviados, pode-se dizer que
O humanismo e a filosofia 181 ^

o enxerto do pensamento filosófico começou a pegar em


seu espirito.
Há alguma cousa; que de mais simples? Há movi­
mento l que de mais evidente? Hq a extensão, o sólido; o
contínuo, um eu e um não-eu; um pensamento, uma me­
moria, um juízo, um querer, — que sei eu? Enfim, todas
essas realidades de que a todo momento,-nos estamos a ser­
vir, com as quais vivemos sem nos dar conta, que estão
de tal modo próximas de nós que mal as vemos como ob­
jetos distintos de nós, — ■eis precisamente o que a filoso­
fia pede que olhemos com os-olhos bem· abertos, cheios de
curiosidade e de espanto.
A curiosidade e o espanto são essencialmente quali­
dades de filósofo, pois que se trata não de sonhar, mas de
ver. E, com efeito,- essas realidades mais elementares
que de mais perto nos cercam são ao mesmo tempo as mais
misteriosas e as mais ricas de conteúdo. Sempre há sob
os nossos passos abismos de substância, mais vastos dó
que as esferas celestes cuja profundeza e mistério nascem
da imensidade das distâncias. A ciência, contudo, fazen­
do-nos percorrer os espaços infinitos que nos enchem de
assombro, não suscitou problemas mais pungentes, mais
emocionantes, mais íntimos e, por conseguinte, mais reais
do que êsses .mesmos que o rodopio de um'grão de pó em
sua mesa de trabalho, ou a sensação de sua mão ou uma
recordação' do passado suscitam ao espírito do filósofo.
Por exemplo, as provas clássicas da existência de
Deus, que aos espíritos màis literários do que filosóficos
parecem feitas de cordame trançado e de cabos de aço tra­
mados, repousam sôbre “ Maiores” que serviram de tema
à poesia romântica; pois, quem sabe?, a consequência dos
argumentos não teria sido assaz forte se não se tivesse
sentido antes viva conciência das instabilidades, das de­
pendências, da precariedade, dos apetites, das insuficiên­
cias, dos desejos insatisfeitos, dós temores, das alegrias,
das ambições, que condensamos nessa simples expressão
de c o n tin g ê n c ia 1d a n a tu r e z a e que pomos na base de nos­
sos silogismos,,,
182 A Estrada Real da Inteligência

0 A b s o lu to e u m a p a la v r a de u m a im e n sid a d e in fin i­
t a ; e q u a n d o p ela ra z ã o se e x ig e que o S e r a b so lu to e x is ­
t a , te m -s e o se n tim e n to de u m a p len itu d e de rea lid a d e,
a s s im c o m o a d e u m g r a n d e rio su sp e n so à su a fo n te e
lev a n d o ao m a r se m lim ite s.
O m e sm o se p a s s a c o m to d o s o s p r o b le m a s que são
su scita d o s no d ecorrer do a n o de filo s o fia . P o r m a is sê -
c a s que s e ja m as su a s fó r m u la s , o rea l todo n ela s se es­
conde.
T a n to p a r a o s e lv a g e m que tu do ig n o r a das ciên cia s,
com o p a r a o c ie n tista · que n ad a ig n o r a d e la s, a rea lid a d e
im e d ia ta , q u e o filó s o fo c o n te m p la , é a m e sm a e d esp erta
a s m e sm a s c u rio sid a d es. É , p o r ta n to , v e r d a d e que a f i ­
lo s o fia ten d e m a is ao re a l do que a s ciên cias e a lite ra ­
tu r a .
É ta m b é m ela q u em melhor se sai nessa emvrêsa.
U m a p a la v r a b a sta r á p a r a d e m o n str á -lo . E fe tiv a m e n te ,
v e r o m u n d o c o m olh os de cien tista é v ê -lo com o u m a sé ­
r ie in fin ita d e fatos; p a s s a -s e d e u m p a r a o u tr o , d esli­
z a -se p ela s u p e r fíc ie e c o m o que à flo r d a s co u sa s. O lh a r
o m u n d o com o u m lite r a to é c o n sid e rá -lo c o m o u m a p e r­
p é tu a m e ta m o r fo s e de fo r m a s b e la s p a r a os sen tid os. C on ­
te m p la r o m u n d o com o filó s o fo é compreendê-lo, quer d i­
z e r , p e n e tr a r fu n d o n o in te r io r d a s co u sa s a fim de des­
v e n d a r as su a s se cre ta s ra íze s e as su a s d epen d ên cias
o cu lta s.
C o m p reen d er é tr e s p a s s a r a m a té r ia c o m u m a o n d a
de luz e m a n a d a do e sp ír ito , de ta l m od o que ela cesse de
se r p esa d a m e n te op a ca , q u e se to r n e tr a n sp a r e n te , que se
tr a n s fig u r e , que se esp iritu a liz e , e p a r tic ip e e n f i m —
com o o b je to — d o s p r iv ilé g io s de in telectu alid ad e, d e s ig ­
n ific a ç ã o , de o rd em , d e v erd a d e e m e sm o de u m a espécie
de n ecessida d e, de u n iv e rsa lid a d e e de e te rn id a d e que a
r a z ã o lh e dá. U m m u n d o conhecido e s ta lo n g e de se r u m
m u n d o compreendido. A n a tu r e z a se o fe re ce a o co n h eci­
m e n to ide todos os h o m e n s ; v e m a êles e p r e s ta -s e à c u r io ­
sid a d e d ê le s ; m a s a o lite r a to , ao a r t is t a , e n tr e m o str a a p e ­
rta? o s seu s en ca n to s ; ao c ie n tista , o s tr a ç o s de su a fa c e .
0 humanismo e a filosofia 183

as lin h a s de seu c o r p o ; e so m en te a o filó s o fo é que ela p or


a s s im d izer a b re o coração d e seu ser e re v e la o s seus
m o v im e n to s ín t im o s : d e ix a -s e co m p reen d er.
O co n h ecid o que é a p en a s conh ecido só e n v ia a o s
sen tid o s a s im a g e n s d e su a su b stâ n cia , co m o o u tros ta n ­
to s m e n sa g e ir o s e su b stitu to s a n ô n im o s ; m a s e m si m e s ­
m o con tin u a ig n o to . S e a filo s o fia não p a ssa sse d e .m e r a
ciên cia , ou d e m e r a a rte fa b r ic a n te d e co n ceitos ,a b stra to s,
e la n ã o p a ssa r ia ta m b é m d e u m m ero conhecimento do
m u n d o , co n h ecim en to ta n to m a is p o b re e rem o to porqu e
se r ia m a is a b str a to , isto é, u m a p s e u d o -filo s o fia . M a s se,
pelo c o n tr á r io , a filo s o fia , d ig a m o s m e sm o a m e ta fís ic a ,
fo r ç a o e sp ír ito a d a r -se e u n ir -se ao real su b siste n te ,
a f i m de que p o r êle êste s e 't o r n e u m a rea lid a d e in te lig í­
v e l, -— as leis m e sm a s do se r re v e la n d o -se , n esse contacto,
co m o v e r d a d e ir a s leis do e sp ír ito , — en tão , ela é u m a p r o ­
fu n d a m e n to e u m a p en etra çã o d a v erd a d e, de tô d a esp é­
cie de v erd a d e.
A m e ta fís ic a é, p o r ta n to , e x p e riê n c ia c o n v e rtid a , a té
o fu n d o , e m cla ra ra zã o , ~ e x p e riê n c ia co n creta tr a b a ­
lh a d a p ela lu z que desce do: a lto , ilu m in a d a p o r esses r e ­
fle x o s d o a b so lu to .e do etern o que n ossa ra zã o te m o p o ­
der ide p r o je ta r p a r a o e x te r io r , — é a p ró p ria n atu reza
ín tim a idos sêres e d a s co u sa s s itia d a e co n q u ista da p or
d etrá s de seu s b a lu a r te s de sím b olos e fo r m a s , — é a
to r r e n te u n iv e r sa l d a cria çã o ilu m in a d a p o r d en tro e to r ­
n a d a tr a n sp a r e n te e m su a s p r o fu n d u r a s.
A v e r d a d e ir a filo s o fia e n sin a pois a compreender o
conhecido, e p o r con seq u in te a d e te r m in a r -lh e os v a lo res
e m c o n fo r m id a d e coín os d iv ersos fin s ideais q u e o h om em
se p ro p õ e. “ Se eu en sin a sse filo s o fia , d izia -m e u m jo v e m
n o r m a lis ta ( 154 a) que fo i m o r to n a s É p a r g e s . . . , ao co­
m e ç a r c a d a au la eu a b r ir ia o jo r n a l do d ia, escolh eria
u m a de su a s n o tícia s, u m fa t o , do qual fa r ia o o b je to de

(154 a) Aluno da Escola Normal Superior em França, cuja estrutura o


função equivale mais ou menos às nossas faculdades de educação, ciências
e lçtras.
184 A Estrada Real ãa Inteligênc-ia

m in h a p r e le ç ã o : m e u tr a b a lh o c o n sistir ia e m e n s in a r o s
m o ço s a r e fle t ir e m e a ju lg a r e m p o r si m e s m o s .. . E s s a
m in h a in v e n ç ã o n ã o se ria p ro p r ia m e n te u m a n o v id a d e,
p o is que ó seu n om e é d ia lé tic a e j á p a sse a v a p e la s r u a s
de A t e n a s , m a s a fu n ç ã o do p r o fe s s o r de f ilo s o f ia a caso
n ã o é a d e lib e r ta r o s jo v e n s e sp ír ito s d a in fo r m e c a r g a
de n oções e fa t o s a cu m u la d o s n os c u rso s p r e c e d e n te s ? ”
(c ita d o p o r Doneoeur, Études, 1 9 2 1 , p á g . 5 7 1 ) .
Q u e s ig n ific a e s s a o b se r v a ç ã o , senão que tu d o é m a ­
té r ia de r e fle x ã o , a rea lid a d e m a is ta n g ív e l, o a con teci­
m e n to q u o tid ia n o m a is b a n a l, e que a filo s o fia e n sin a p r e ­
c isa m e n te a compreender a fundo ?

T e r c e ir a V a n t a g e m :

O poder de seriar os problemas e de encadear as razões.


E n s in a r a v e r a s co u sa s c o m o cla ro o lh a r d a in te li­
g ê n c ia , e n ão c o m o s olhos da im a g in a ç ã o e do c o r a ç ã o ;
e n sin a r a in d a a compreendê-las, isto é, a t r a n s fo r m a r a
n a tu r e z a e m lu m in o so o b je to , in te lig ív e l, ra c io n a l, e m e s ­
pelh o ide id éias, e m p la n o d esen h ado pelo d iv in o a rq u ite to ,
— j á é m u ito . E m e sm o q u a n d o a filo s o fia a p e n a s ser­
v is s e p a r a d ar a o e sp ír ito essa fo r m a ç ã o , a in d a v a le r ia a
p e n a q u e se lhe c o n sa g r a sse u m a n o in te iro de estu d o s.
A c o n te c e p o r ém , que o s seus b e n e fíc io s n ão fic a m a í.
N e la a d q u ire-se a in d a o h á b ito d e p e n sa r logicamente e
de so p e sa r u m p o r u m os a n éis da ca d eia que lig a a s id éia s
d istin ta s.
A a r te d e p e r su a d ir — tã o ú til ao a p ó sto lo le ig o , ao
“ c h e f e ” , ao h o m e m de in flu ê n c ia — “ o u tr a cou sa n ã o é,
d iz P a s c a l, senão u m co n d u zir p r o v a s m e tó d ica s p e r fe i­
t a s ” ( 155) . C o n siste e m tr ê s p a r te s esse n c ia is, s e m as
q u a is n ã o se d e v e e sp e r a r a tin g ir a v e r d a d e : l .° ) “ Se­
r ia in ú til p ro p o r o q u e se d e s e ja p r o v a r e e m p r e e n d e r a

(155) Oír. Pascal: Da l’esprit géométrique (ed. Brunschwlcg, pág. 189,


Hachette).
O humanismo e a filosofia 185

s u a d em o n stra ç ã o , se n ão se tiv e r a n tes o cu id ad o de de­


f in ir c o m cla reza to d o s os tê r m o s que n ão são d e si in te­
lig ív e is ” ; 2 .° ) “ É da m e sm a fo r m a n ecessá rio que a de­
m o n str a ç ã o s e ja precedid a pelo pedido dos p rin c íp io s ev i­
d en tes p o r ela e x ig id o s, pois se não se f ir m a o alicerce não
se pode f ir m a r o e d ifíc io ” ; 3 .° “ É n ecessá rio , e n fim , que,
ao d e m o n str a r , se s u b stitu a m m e n ta lm e n te a s d efin içõ es
p elos d e fin id o s, pois de o u tr o m od o p o d e r-se -ia a b u sa r dos
d iv e rso s sen tid o s que se e n c o n tra m nos tê r m o s. É fá c il
d e v e r que o b serv a n d o êste m éto d o te m -s e ce rte za de con ­
v e n c e r, p orq u a n to o s tê r m o s tod os esta n d o en ten d id os e
p e r fe ita m e n te ao a b rig o d e eq u ív o co s p elas d efin içõ es, e
o s p rin c íp io s co n co rd es, se n a d em on stra çã o sem p re se
s u b stitu e m m e n ta lm e n te a s d efin içõ es pelos d e fin id o s, —
a fô r ç a in v en cív el das con sequ ên cias não pode d eix a r de
te r todo o seu e f e i t o ” ( 1B0) . D e sc a r te s não d isse m elh o r.
Ê sse m é to d o , tã o se g u r o , é m a is preciso e m a is c o m ­
p le to do q u e o céleb re “ D e que se t r a t a ? ” de F o c h , o q u al,
e n tr e ta n to , j á p o r si só e ra su fic ie n te p a r a e sp a v e n ta r
tô d a s as c o n fu sõ e s e to d a s a s im p recisõ es das p a la v ra s e
d o s a co n tecim en to s.
O r a , nisso nos exercitamos diariamente com a filo­
sofia.
“ N a d a é m a is c o m u m d o q u e as b oas c o u s a s ; a q u es­
tã o e s tá a p e n a s e m d is c e r n i-la s ; e é certo que tô d as elas
sã o n a tu r a is e ao n osso a lca n ce e m esm o conh ecidas de
to d o o m u n d o . M á s n ão se sabe d istin g u í-la s. E isto é
u n iv e r s a l” . A filo s o fia in icia o e sp írito na a rte dêstes
d isc e r n im e n to s.
S e é v e r d a d e que “ as p a la v r a s a lin h ad a s de u m m od o
d iv e r so fa z e m u m sen tid o d iv erso e que os sen tid os ali­
n h a d o s de u m m o d o d iv erso fa z e m efeito s d iv e r s o s ” e
que a d isp o siç ã o d a s m a té r ia s é a p rin cip al n ov id a de de
q u e o e sp ír ito é c a p a z, — b e m se pode a v a lia r com o é im ­
p o r ta n te v e r d istin ta m e n te a s relações su tis que fo r m a m

(156) Ofr. Pascal, ibidem.


186 A Estrada, Real ãa Inteligência

o desenho característico de. cada idéia, afim de se poder


colocar cada cousa no lugar conveniente. A fôrça de uma
proposição qualquer não vem da originalidade de suas vi­
sadas, como se os mesmos pensamentos, e os mais comuns,
não pudessem formar, por uma diferente disposição, um
outro corpo de discurso, —■mas dessas vistas de conjunto
que permitem inserir cada detalhe no exato lügar em que
adquire todo o Seu valor, todo o seu brilho, todo o seu efei­
to. Êste poder de olhar as cousas do àlto e de ver distinta-
mente as relações dos elementos com o todo, é um dos
frutos da formação filosófica.
Depois, pela prática diária desta disciplina/acostu­
mamo-nos a não misturar as questões, mas a seriá-las.
Cada problema em seu tempo e em seu lugar! E como a
solução do mais simples e do mais fundamental já ê uma
solução para o que dêle depende, o conjunto todo ácaba
por dissolver-se éin elementos fáceis e manejáveis· o pro­
blema total é assim resolvido por etapas, pacificamente
e em plena luz, ao passo que o emaranhamento primitivo
em que se achava, tornava impossível a marcha para
diante
Mais ainda. Desenredando pouco a pouco os nós
inextricáveis, vê-se com nitidez onde é que começam e
onde acabam os fios da emaranhada rêde; a filosofia é
um-ofício de dèsemaranhamento; o enovelamento confuso
dos sistemas é desenredado, separado, repartido ém suas
peças diferentes, ordenado em grupos homogêneos.
Há quem sè atemorize às vezes do efeito que sôbrè um
espírito jovem pode produzir a Babel das bizarras concep­
ções inventadas pelos grandes filósofos. E, contudo, nada
lhe poderá ser mais salutar do que um tal estudo, feito sob
a direção de um mestre armado de um bom método. O que
se pode efetivamente criticar não são tanto as sistemati­
zações coerentes que saíram dessas possantes cabeças,, mas
antes o êrro dos seus pontos de partida.
O Rev. Pe. Pinard de la Boullaye, na primeira con­
ferência de sua'primeira Quaresma’ de Notre-Dame, bri-
Ihantemente expunha de que modo o acesso à fé é barra-
O humanismo e a filosofia 187

do sobretudo pelas rígidas conclusões dos sistemas filo­


sóficos, por mais brilhante que seja a luz que brilhe para
além da barricada. Espantará talvez que a história não
seja história para toidos, que os fatos não sejam fatos
para todos? Mas não, o que acontece é que os fatos não
resistem à confusão das idéias preconcebidas. “ Imagi­
nai, dizr o Rev. Pe., a mais autêntica das revelações, os
milagres mais bem atestados. Que deixarão subsistir dê-
les as filosofias agnósticas. . . ? Antes mesmo que o exa­
me seja iniciado, o resultado já está irrevocavelmente es­
tabelecido” . E sem dúvida, o sistema é sólido e consis­
tente; é um galho de roble, cuja casca não lasca nem as
fibras estalam. Subamos, porém, à origem do galho, ao
ponto; de ramificação, aí ê que se encontra o ponto fraco;
a articulação inicial não endenta.
0 perigo das filosofias aventureiras está em que por
elas os espíritos são lançados em plena beleza é em plena
força sistemática do êrro. A vantagem de uma filosofia
cristã, ensinada por uma razão ordenadora que praticou
o método escolástico outrorá rigorosamente, está em que
nela o espírito é levado a essas entroncações, a essas op­
ções primeiras, onde o bom senso, a intuição imediata, e
a lógica são precisamente abandonadas pelos filósofos
transviados, sem violência, mas por insensíveis divergên­
cias. —
É então que o ensino dos falsos sistemas, falsos pela
coesão de suas partes ou pelas taras de seu nascimento, s e ’
torna uma admirável lição de lógica e de discernimento.
Aprende-se assim a distinguir as verdadeiras dificuldades
das pseudo-dificuldades, os verdadeiros problemas dos
pseudo-problemas, as verdadeiras posições das pseudo-po­
sições. Os corpos colossais das doutrinas que o êrro edi­
ficou, fossem embora de· gigantes, não mais intinSidam
quem lhes viu os pés de barro. Se não há acordo a res­
peito de verdades que parecem de primeira evidência, é
porque se discute incansavelmente; sistema contra siste­
ma, sem se dar jamais ao trabalho, ou o tempo, de voltftr
aos pontos de partida d o ‘êrro,
1 8 8 _______________ A E strada Real dà. Inteligência

À lógica, de Port-Royal louva, com muito empenho,


semelhante formação filosófica,, da qual os Mestres do
XVII século francês tiraram uma tão maravilhosa capá-
cidade espiritual. “ A principal ocupação que se deveria
t e r ,é dito nela, seria a de formar o próprio juízo e de
torná-lo tão preciso quanto possa ser ; e a isso é que de­
veria tender a maior parte de nossos estudos. Os ho­
mens não nasceram para gastar o seu tempo em medir
linhas, em examinar as relações dos ângulos entre si, em
considerar os diversos movimentos da matéria. Seu es­
pírito é por demais grande, sua vida por demais curta,
seu tempo por demais precioso, para ocupá-lo com tão
pequenos objetos. Mas êles são obrigados a ser justos,
equânimes, judiciosos em todos os seus discursos, em to­
das as suas qções, e em todos os negócios com que lidam;
e é para isto que particularmente devem exercitar-se e
formar-se” .
“ Esta preocupação e estudo são tanto mais necessá­
rios quanto muito estranho é que essa precisão de inteli­
gência é uma qualidade rara. Em tôda parte encontram-se
apenas espíritos falsos, que não têm quase nenhum dis­
cernimento· da verdade; que vêem tôdas as cousas dè
través ; que se satisfazem com as piores razões e que
pretendem com elas satisfazer o próximo; que se deixam
levar pelas menores aparências; que estão sempre nos
excessos e nos extremos, que audaciosamente vão deci­
dindo mesmo sôbre o que ignoram e não entendem, e que
se agarram com tanta teimosia às suas opiniões pessoais
que não ouvem nada do que os poderia dem over... ”
- “ Esta falsidade de espírito é causa não apenas do3
erros que mesclamos às ciências, mas também da maio­
ria das faltas que cometemos na vida civil, das querelas
injustas, dos processos mal fundados, dos juízos temerá­
rios, das emprêsas mal urdidas. Poucas há que não te­
nham sua fonte em algum êrro ou alguma falta de juízo;
de sorte que não há defeito de 'que tenhamos maior inte­
resse em corrigir-nos. . . ”
Tal é a necessidade eterna da Lógica” ,
O humanismo e a filosofia v _____ 18Ô

E o velho Rollin, em seu famoso Traite des Études


(t. IV, Œuvres complètes, vol. 28, pág. 186), invoca a sua
longa experiência ; tem direito de o fazer. “ Bem se sabe,
diz êle,. como é importante premunir com antecedencia
com tais princípios o espírito dos jovens contra os falsos,
juízos e os falsos raciocínios, tão comuns nos discursos e
na conduta dos homens, e é-o que faz a filosofia, cuja fi­
nalidade principal é . . . aperfeiçoar a razão . . . Hoje-
em dia deparamos nas obras do espírito, nos discursos
dos púlpitos e dos tribunais, nos tratados científicos, unfa
ordem, uma exatidão, uma justeza, uma solidez, que ou-
trora não eram tão comuns. Muitos pensam, e não sem
fundamento, que esta maneira de pensar e de escrever se
deve ao extraordinário progresso que de um século a esta"
parte se fez no estudo da filosofia” .
Se quisermos mais um fato observado por êsse cé­
lebre reitor de Universidade aposentado, aqui o temds:
“ Eu me admirava, quando assistia aos exercícios de fi­
losofia, da· ver nos escolares uma sensível mudança de
três em três meses, tanto a razão déles se aperfeiçoava;
e, ao fim do curso, êles não mais eram reconhecíveis.
Eis o que acontece comumente nos cursos de filosofia,
quando aos escolares não falta nem espírito nem aplica­
ção, e não se pode exprimir que frutos tiram êles de tal.
estudo . . . Dificilmente se acreditaria em quanto esta es­
pécie de estudos é apropriada para dar aos jovens uma
fôrça, um rigor, uma penetração de espírito, que pouco
a poucó os levam a entender por si mesmos e a resolver
as questões mais abstratas e mais embaraçosas” .
Por isso incita êle os pais a que não privêm os seus
filhos de tão grande benefício. “ Pais sensatos e judicio­
sos podem jamais arrepender-se de ter feito instruir seüs
filhos dêsse modo? E se, em virtude de cega e inconsi­
derada precipitação, muito comum aliás, suprimem ou en­
curtam o tempo destinado à filosofia, não há razão para
que censurem a si mesmos por lhes terem suprimido ou
encurtado aquela parte dos estudos (atrevo-me a asse­
gurá-lo, e minhas .préferências pelas belas-letras coló-
1Ô0 A È strad a Real d a . Inteligência

cam-me fora de tèda suspeita), aquela parte dos estudos


que justamente é á -mais importante, a mais necessária, a
mais decisiva para os moços, e aquela cuja perda menos
se.pode cobrir e é a mais irreparável? De tudo isso con­
cluo que os pais que verdadeiramente amam a seus filhos
devem Obrigá-los a fazer o curso inteiro de filosofia” (lS7) .

Q uarta V a n ta g em :

Poder de unificar o saber.


Altura e amplidão de vistas.

“ Pensar filosoficamente, diz um filósofo, é sempre,


de qualquer objeto que seja, pensar absolutamente, não
de tal ou qual ponto de vista e com tal ou qual finalidade
particularizada, mas em função do sistema inteiro do co­
nhecimento e da vida numa perspectiva de unificação in­
tegral” . ' - '
Todos os dualismos devem ser levados. à unidade, p
do sujeito e objeto, o do percebido e concebido, o do sen­
sível e racional, o da ação e pensamento.
As ciências, pelo contrário, tendem à fragmentação
do mundo: quánto mais progridem, tanto mais dividem a
matéria conhecida; isso é uma necessidade, pois elas são
essencialmente quantitativas; a conquista que elas em­
preendem .avança como a de um exército que procura ocu­
par territórios: passo a passo, conquista o terreno.; e à
medida qué .a ação se desenrola para, além do alcance de
suas alas, e que os íimites se alargam, torna-se necessário
trazer novas trópas é criar novos setores. E essim como
o soldado, perdido em sua trincheira, ignora tudo quanto
se passa no resto do front, acreditando talvez em reti-
ràda quando a vitória progride, assim também o cientis­
ta, a menos que não seja mero especialista em sua função,
se acha impossibilitado de ver cláro fora das galerias

(157) Ibidem, pág. 193.


Õ humanismo e a filosofia lè i

subterrâneas que vai perfurando através dêste mundo de


mistérios. Conhecer tudo tornou-se uma quimera. 0 pró­
prio Napoleão, que desejava possuir a competência uni­
versal, tropeçava numa certa ignorância das cousas náu­
ticas, e bem se pode pensar que não de todo sem,cólera..
O mundo, porém, é por demais vasto para caber na mão
dum imperador.
Cada ciência, numa abstração inicial, se dá um obje­
to; define-o, para distingui-lo dos outros; separa-o, iso-
la-o; depois, para estiidádo em si mesmo, decompõe-no,
divide-o em mil partes, analisa-o; mas dessa poeira estu­
dada sob lentes nasce a multiplicidade dos infinitamente
pequenos; e é assim queseada ciência, procurando alcan­
çar o infinito que se esquiva como o horizonte que per­
manece sempre remoto aos olhos do viandante, está con­
denada a um eterno fugir do centro (ls8),.
No centro, porém, a filosofia, recolhendo, como um
generalíssimo, as informações provindas de todas as fren­
tes de batalha, liberando o espírito da quantidade, e uti­
lizando a qualidade da rica presa científica, presta à pró­
pria ciência um alto serviço: recolhe, organiza, edifica,
• unifica os diferentes segredos arrancados às trevas pelos
conquistadores, e com êsses elementos esparsos, constrói,
pouco a pouco, uma escada de Jacó que, leva o homem até
essas alturas de onde se dominam tôdas as planuras des­
cobertas;· depois, daí até Deus mesmo, o Absoluto, Fim
último da inteligência e da vida.
A Poesia, também, em ousado vôo, alça-se áos seus
•cimos, que amplificam a visão do mundo. Ela porém é
por demais espontânea e impregnada de sentimentos para
distinguir relações precisas no Universo: percebe apenas
confusamente êsse Todo que a filosofia recompõe, depois
de analisar. E é precisamente pelo fato de'menos ver
que sentir, que a Poesia se desgarra a ponto de assimilar
Deus à alma das cousas e de incitar-nos à “ comunhão”

(158)' Esta verdade foi Já exposta no início dêste mesmo capítulo, mas
sob um outro ponto de vista.
iÔâ À is t r a d a È ea l da Inteligência ^
iir - - r,... , , ........................^ ' !

panteista. Todavia, que promiscuidade de todas as cou­


sas* nesse lirismo bíotado do coração! - ’ ' ;
A filosofia, pelo contrário, vai do detalhe ao conjun­
to e do conjunto ao detalhe pòr vias nitidamente traçadas·.
Considera os conjuntos na clareza e precisão das linhas
e do relêvo. A unidade é a harmonia no múltiplo, e não
o amálgama. A unidade está menos nos objetos coliga­
dos do que na perspectiva ou no estado de visão subjetiva
da alma que compreendeu. A unidade não se deve fazer
somente no abstrato, como por um encontro de linhas,
geométricas ; ela tende a realizar-se no pensamento vivo,
na vida total. ,
A filosofia, é um espírito, uma atitude, uma orienta­
ção, um movimento para os cimos que são ao' mesmo tem­
po as profunduras, üm dom de si ao ser até possuí-lo em
si -iffesmo. Assim, ela nàsce duma inquietação, duma san­
ta curiosidade, e só «hega à posse da :verdade mediante
um dom sem reservas de todo o seu ser. Não se ingressa
num qurso de filosofia para dissertar e discutir a pro­
pósito de uns tantos problemas inúteis e esgrimir agude­
zas de espírito; não, é preciso que se lance ao cadinho·a
alma inteira afim de que ela aí se purifique das corrup­
ções e entraves qüe opõem obstáculos à contemplação da
verdade.
Ela realiza, portanto, uma obra de ascese. Pelo sa­
crificio contínuo das diversões do espírito e das recrea­
ções da natureza carnal, depois, pela iluminação crescen­
te da verdade, conquistada como úm pico de gèlo que
rebrilha ao sol, a filosofia prepara a alma a receber *|e
‘Deus a graça da união com o Verbo Iluminado.
Assim formado, o jovem se prepara para tornar-se
também, em face dos homens e dò mundo, um verdadeiro
chefe tal como as indústrias, os negócios, as sociedades
tôdas, grandes ou pequenas, reclamam. 0 que faz-o chefe
e a capacidade de unificar.
É claro que não são as qualidades brilhantes dá inte­
ligência qúe constituem a capacidade “ capital” do chefe.
“ 0 técnico, mais bem informado, terá maior penetração ;
0 humanismò «S a /filoso fìa 193

outros terão mais encanto, finura, gosto, espontaneidade ;


o vigor ele espírito será a qualidade ^principal do chefe,
visando menos a realização de uma análise rigorosa de al­
gum objeto difícil” (como o fazem os cientistas especiali­
zados)” do que se concehtrar rapidamente sobre uni pro­
blema· urgente” (cuja solução é necessária à nfarcha do
todó, do' qual também depende) “ e para abarcar com vi­
gorobjetos disparatados e novos” (que aliás jamais 'ces­
sarti de' renovar-se sob a irifluêríciá das Circunstâncias).
“ Realismo intuitivo qüe áp fórmulas, e as imagens jamais
detêm” (como deteto os homens especializados em qual­
quer ofício particular) ; “ largueza de vistasíque nenhuma
especialidade absorve; plasticidade de adaptação què he-,
nhumâ disciplina anquilosa” (as práticas, por mais há­
beis que nos pareçam,, são gestos , hirtos eni, hábitos cris­
talizados) ; “ enfim, por essa atitude üniyersal, senso da
totalidade, frescura sempre nova das impressões, docili­
dade aos fatos” (e hão rigidez de vinco único) “emessa
¡cultura geral quê, dando compreensões fundamentais ‘ de
'tudo, prepara a tudo , conhecer”. Em cada ocasião, para
tudo e com todos, o chefe pecessita dessa faculdade es­
sencial de coordenação que, feita de senso' da medida e
de equilíbrio de espírito, deve apreciar os valores relatif
vq%e pesar as oportunidades”.
Tais são as idéias quê homen^ como Fayol, Wilbois,
Pezeu (ver Études, abril de 1921, pgí 2G)t 'desenvolvem
com convicção e apoiados em judiciosa experiência. É
inú||| acrescentar que esses politécnicos e engenheiros,
que^êe elevaram ao nível superior de chefes de grandes
empresas,' reconheceram que ás matemáticas pfequeno pa­
pel tiveram ria formação desta capital faculdade de coor-,
denação, de organização, de unificação, de· direção geral.
• ••■'/Mas a inteligência', sempre pode elevar-se mais alto.
Sem perder de vista á'teria, íprocura melhor compreew
der a composição de conjunjó desta e de que? modo cada
objeto c apenas uma parte significativa do Todo, que é o
único, a representar uma idéia divina.
O. Pe. SertiUangesfc qn« ;4 '’SM».·-^ p fri^ fliiîp ï3 o .';e ' slirtíê·
19 4 " A E strada R eal da Inteligência

tico, não teme em afirmar -— e, a considerar as ,cous|l


em si, tem perfeitamente razão — que a unidade a quejjl
espírito se destina como a seu fim deve fazér-se pela 'f|S
losofia e consumar-se pela teologia. Mas o que diz d»
teologia vale já, guardadas as proporções, para a teci
dieéia qôe tôda é filosófica.
“Assim como nenhuma ciência particular se basta,
assim também o conjunto das ciências não se bâsta sèril
a rainha das ciências: a filosofia, nem o conjunto dos co­
nhecimentos humanos sem a sabedoria oriunda da própria
ciência divina: a teologia... A ordem do espírito deve
corresponder à ordem das cousas, e uma. vez que o espí­
rito só ¡¡se ihstrue verdadeiramente pela procura das ca­
sualidades, a ordem do espírito deve corresponder à or­
dem das caudas. Se há, pois, um Ser primeiro e uma
causa primeira,* aí é que termina e se ilumina ultima-
ipente o saber. Nia filosofia'de início, por meio da razão,
.34, teologia depois, utilizando-se da luz vinda do alto, o
nomem da verdade deve concentrar sua pesquisa sôbre o
que é ponto de partida, regra e fim a título primeiro, so­
bre o que é tudo para tudo, como a todos”,.
“ A ordem não vêm, eiri gênero algum de objetos ou
de disciplina, senão no momento em quê os princípios,
hierarquicamente ordenados até o princípio primeiro/ de­
sempenham o seu papel de princípios, de chefes, como
num exército, como numa casa bem arrumada, como num
povo. Hoje em dia repudiamos os primeiros princípios,
e o*saber debandou. Nada temos senão farrapos, pufo-
péis magníficos è nenhuma veste, capítulos magníficos e
nenhum livro acabado, nenhuma Bíblia”. (Cfr. La Vie
Intellectuelle, pàg. 111, — cfr., em tôda a obra,,um cons­
tante estímúlõ à Unificação integral).
Por isso, o mais belo elogio à Razão superior foi feito
pela Sagrada Escritura, que a . chama pelo pôbré pome
do Sabedoria. A Igreja foi a arauto infatig4vél e o de­
fensor intrépido dela contra· cs seus caluniádeèpjSl (Cfr. a ’
magnífica apologia da dignidade da Monse­
nhor frupanloup; Hm ttè Wdwtôtw, ^ II (dé 4 primeiros
O humanismo e a filosofia 185

capítulos); cfr. B ible: Livres de la Sagesse et de VEcclé-


siastique ) .

Q u in t a V a n t a g e m :

A fé esclarecida.

Entretanto, de todos os proyeitos que se haqrem no


ano capital de filosofia, nenhum inegavelmente é maior
do que o de dar à sua fe íma- solidez, uma madureza, um
élan, uma amplitude que ela não poderia adquirir nem nos.
,anos precedentes, porque o esforço teria sido prematuro,
nem geralmente após o colégio, porque teria passado a
ocasião mais favorável. Não nos arreceiemos' de bradar
que a êste propósito os pais se encontram em face de uma
responsabilidade tal que possivelmente não haverá outra
mais grave em sua missão de educadores. Obcecádos pela'
idéia.da carreira do-filho, inflamados pela sede de vê-los
chegar aó fim, não têm nem mesmo tempo para pensar
sôbre o terrível problema da sorte da fé na alma de seus
filhos. Pqr mais alto que o filho se coloque na escala
das posições sociais (e sem dúvida que a pressa não far
voréce tais ascensões; mas v á !), mais valeria que êle não
tivesse nunca nascido se tiver que perder para sempre a
fé. E perdê-la por um tempo, para tornar a encontrá-la
depois, ao preço de angústias d’alma e possivelmente ain­
da de cruéis provações, é uma aventura em que o próprio
bom senso teria vergonha de se lançar. Dir-se-á que a
fé de um piedoso adolescente de quinze anos, de dezesseis
anos, não corre risco algum embarcando para essa via­
gem dos estudos superiores e das tentações da juventude?
Uma tal segurança seria mais do que presunçosa; não
há bravata mais tôla do que essa; uma tal opinião*não
.traz nem mesmo a convicção de quem a emite. À filoso­
fía, ^óis, é um dêsses pontos críticos entre a docilidade
da adolescência e a indocilidade da juventude, onde a
alma e Deus se encontram num diálogo capital para a sal­
vação, mais dara.-.ç
)196 A Eètraãa, R eal da- Inteligência •'•V.................
--- — --- — ^
uÉaa personalidade roais mareada, trata-se para o mojçp;
dè ptassar de upia região de família e de raça, herdada]
com o sangue (159), a um cristianismo voluntário e pesH
soai, antes, que as inundações torrenciais do êrro e do ví-í;
'eio tenham Subido ao assalto dos dpkjues efêmeros, ergui-'
dos para a primeira etapa dâ ,educação, J3 o instantà,
oportuno que não se deve perder: Eçce tempus accejrta-
bile. , ·, ' ' K /v . /■':
Em certas épocas da vida a despreocupação dá mar­
gem, a faltas, verdadeiramente irreparáveis. Sem dúvida
que Deus perdoa ao coração contrito setenta è sete vezes
sçte vezes os pecados mortais. Mas nem por isso se com-;
prometeu a mudar, através de milagres, as leis da nature­
za. pra, a vi da é de tal modo feita que;não somos bas- >■
tantè maduros para “ raciocinar” a nossa fé àntes do ano
1de filosofia, è depois desse tempo raramente, se nos ofe-,
reeerão condições faVoràveis.
j· ... ' * * ·■ ■·

M a s por que são favoráveis as condições no ano de


filosofia? " ■ , ,
Porque é atestação primaveril da inteligência, epi
a seiva cristã, guardada até aqui em estufa pela boa
providência que tudo organizou pára a maior proteção
das almas tenras, começa a produzir brotos, flores e fru­
tos, A piedade, efetivamente, desénvolve-se paralelamen-
te à natureza. A idade da imaginação, produz uma· pie­
dade de imaginação; a idade da razíão èxige uma piedade
de rázão. Orai no curso de filosofia, eis-nos chegados ao
período do raciocíniOj dds^eomoS e dos porquês. A natu-
reza espontaneamente faz surgir questões no espírito; e,
impertinente, pela necessidade de sè abrir câminho, ela
está prcffiita a rejeitar éssaS decorações de imagens, ;<Je
■¿fefob.-élfàè' hábitos; púérís, : qüe, em tempo lhe prestaram

(XS9) Nem por isso ela é menos racional e oonciejíte,


- O humanismo e a filosofia [ 19t

üm grande serviço, e a ir pedir ex p lic a ç õ e s a seus· M e s ­


tr e s , a seus pais, à Igreja, a respeito de sua educação
cristã. '■
, Ademais, a ciência se faz cúmplice'da. natureza. A
cultura intensiva que ela dá ao espírito irifeita4> a essa
revisão total, minuciosa, e imediata, de suas convicções
normativas, até o ponto em que,' em sua personalidade que
começa a afirmar-se, tenha a alegria de não aceitar nada
que não haja compreendido e querido de si mesmo.
A hora' é, pois, própícia.
Se, por um lado, o moço está ávido por raciocinar a
sua conduta, por outro, todos ps elementos acham-se dis­
postos para que essa crise de virilidade seja bem sucedida
e espoüque em frutos de vida.
A graça excepcional que então se recebe é a c o n v e r ­
g ê n c ia de todos os socorros intelectuais e morais, é a co-
láibora ção de todas as forças benfazejas; momento passa­
geiro depois do qual tudo se dissipa e dispersa como a
multidão apps o I t e M is s a e s t. A inteligência, desenvol­
vida, afinada, fortificada pelos estudos, começa a com­
preender a fôrça'dessas provas de fato, dessas evidências
morais, dessas consequências lógicas, dessas razões do·
coração sobre as quais a fé se apóia cçmo sobre uma
imensa base natural. A alma ainda está em paz com
Deus. A vida cristã, praticada sem interrupções, com
fidèlidade, continua a alimentar-se na fonte dos sacra­
mentos : não há que “domar” a máquina, porquanto a in-!
credulidade não a tornou ainda rebelde. Quando a fé
está morta, o abismo que se cavou só pode ser transposto
numa passada de gigante. Mas o aluno de filosofia não
tem que dar èsse passo gigantesco. E que graça! Todos
aqueles obstáculos que Pascal procura vencer mediante
uma dialética prodigiosamente ágil não lhe impedem a
mârcha; as duas peças de seu ser não se acham em desa­
cordo; ambas, elas crêm (180) com tanta alegria e facili-1 0
6

(160) “Quando só se crê por fôrça de Convicção, e que o autômato se


mostra inclinado a fazer crer no ; contrário, — não basta. É preciso que
198 A E strad a Ueal da Inteligência

daflé que nein mesmo vem ao espírito a idéia de


autômato, acostumado à piedade, possa tornar-se recaldiSt
tränte, pelo abandono da prática cristã.
.·, O Espírito Santo», que habilita o coração em estado’
de graça, dá-lhe esses olhos límpidos, êsse olhar penetran­
te que vê com evidência a verdade lá onde o pecador, en­
tenebrecido pela partida do divino Hóspede, nada mais
vislumbra do que clarões em meio à grande confusão. A
comunhão frequente» a purificação semanal da conciência,
a prece quotidiana, á luta contrá as fraquezas e as hipo­
crisias incessantemente renovadas da concupiscência, a di­
reção sábia e de fácil acesso de um sacerdote instruído,
em quem se deposita uma confiança infantil, — aí estão,
sem -dúvida, os melhores meios de se não ser mero jo­
guete das falsas luzes, das ilusões dos sentidos, das' 'su­
gestões do espírito diabólico, das miragens da imaginação
e dos embustes de vontades perniciosas.
jpuis tarde, não iremos deixar que nossa devoção se
anemie e nosso apetite do divino pereça de inanição, por­
que não lhes daremos nada mais que essas carnes cansa­
das servidas pela literatura mundana? A ruína da fé é
preparada por outras ruínas: a decomposição moral é a
pior de todas.. . Pelo contrário, a educação espiritual'que
se dá cada vez mais seriamente no colégio, nâ filosofia, é
um Sólido contraforte para a fé.
,· Vem, então, a iluminação racional pela A p o lo g é tic a
acabar o novo-edifício de uma Pé racional e viril.
Apologética que não consistirá em fazer tábua rasa
de tôdas as experiências realizadas até ós .dezesseis anos.
Assim como um método filosófico mau pode deformar., o
espírito, assim tambéín um método apologético mau pode
minar a fé e preparar um desabamento.
A apologética “erística”, isto é, que lança as verda­
des .reveladas aos azares da controvérsia (e digo azares
porquanto a controvérsia muitas vezes desanda por: vias

façamos oom que as nossas duas peças creiam ...” Pascal: Pehsées, 152 (6d.
Brunschwlcg). i 1 : ' \. · . :
0 humanismo e a filosofia

indevidas), è um exercício por demais aleatório para ftue


seja conveniente, e mesmo lícito arriscar dessa maneira
a sorte da Fé.
0 pior dos métodos seria o que se. inspirasse no mé­
todo cartesiano. Consistiria êle em verificar a. raciona­
lidade da fé cristã por uma destruição e recomêço. A im­
pressão que essa volta ap nada deixa é, das mais penosas
e das mais perigosas. Mas como? Á hipótese de que
minha fé de criança, de que minhas práticas religiosas
são irracionais e mal fundadas, não seria impossível e não
me deveria vir naturalmente ao espírito? Como? Seria
o próprio professor quem haveria de me propor que se
desse uma picaretada nos alicerces, receoso de que o edi­
fício todo de minhas crenças repousasse apenas sôbre o
costpme, sôbre as necessidades pedagógicas ou sôbre a
graça somente? Há; pois, uma idade em que surge essa
questão de saber se passarei a ser daí por diante incré­
dulo ou se continuarei crente? Haveria que fazer, ao
têrmo de uma infância ingênua e obediente, uma “ elei­
ção”, uma opção de valor?
Tomemos cuidado! Não nos aconteça,que com seme-
lhánte hipótese nos embrenhemos em ponte mal suspensa.
Deve-se, pelo contrário, extirpar do espírito essa fa lsa
idéia'de que a fé só é racional, sólida, séria, eternamente
verdadeira, enquanto repousa sôbre uma ciência técnica,
obra de historiadores e de filósofosv de profissão. Dif-
sè-á que a razão só trabalha bem quando usada com ciên­
cia, e metodologias? · A inteligência vulgar hão é capaz de
crer com tôda evidência? O sol só brilha para os man­
darins? Jamais o negaríamos bastante. O êrro gnóstico
não deve estar na base de nossa apologética.
O verdadeiro método que convém a todos os. jovens
que estudam filosofia consisfe em fazer com que tomem
plena conciência da certeza profunda e global que todo
cristão fervente tem de sua fé. E não é o único; há uma
multidão de provas que de tôdas as ciências convergem
para o foco do cristianismo. Aquele, porém, é sábio e
tão prudente qüanto sólido. jO mesmo acontece na litera-
2ÕÒ À È strada Real ãa inteligência

tura, onde não se convence o jovem da beleza das obras-


primas, fazendo-o aprender um curso completo de retó­
rica, ao qual se reduzem tôdas as operações do espírito,
mas conduzindo-o ao coração do poema, ao ceiitro das
perspectivas, ao ponto de ressonância de todos os ecos,
afim de que possa julgar da beleza total das obras. Quem
conhece melhor a catedral de Iteims: um Barrès, um can­
teiro* ou um vidraceiro? Todos os trabalhos e todos os
relatórios dos arquitetos compõem uma enorme suma,
que entretanto não é-úma síntese viva. O senso artístico,
místico, espiritual poderiam faltar mesmo naquele que
sopbesse esmiuçar a história inteira -da monumental em-
prêsa. · ' '' '
“ Quando penetramos em alguma de nossas velhas
catedrais francesas, Amiens, Paris, Chartres ou Bourges,
somos empolgados desde a entrada por uma impressão de.:
grandeza, de beleza, de f o r ç a ,.. Essa impressão poderá
ser precisada e intensificada pela análise do detalhe, mas
não há necessidade de,,umq.tal ojiãlise pata q u e e l á s e :nos'
imponha üo espírito. Donde vem isso? Do fato que a
obra é una e se revela imediatamente em suav unidade.
Parece que de chôfre percebemos a idéia que inspirou '
o.sèu plano, que presidiu à organização dos materiais e
à disposição dos detalhes, cada um deles vindo como de
si mesmo colocar-se em seu justo lugar no conjunto que
integram. Sem dúvida, há vários pontos de perspectiva
,,de onde se poderá perceber essa unidade, e ,é mesmo acon­
selhável colocar-se sucessivamente em cada um d êles...
Mas, onde quer que nos coloquemos, e o que quer que ob­
servemos na catedral, devem-os, se quisermos compreen­
de-la, não perder de vista o conjunto, pois todos os deta­
lhes só se explicam por êle. Essas colunas, êsses arcos,
essas nervuras tem a sua riazão de ser arquitetônica,?êssesí
vitrais, essas estátuas têm a sua finalidade no edifício;
êste Julgamentq Final está aqui, porque é aqui que o sol
se põe; cada detalhe, é um símbolo, e todos significam
alguma çousa. A catedral, assim, 'é unidade e multidão...
Ora, esta unidade múltipla, ou esta multiplicidade una,
Ô humanismo e a filosofia 2¡

devemos “ primeirairteníe” “ penetrá-la (Mina visada” , de-


vemos “ de um golpe” “ vê-la num só lance de olhos” , mas
com .uma delicadeza capaz de distinguir todos os princi­
pios, “ tãò sutis e em tão grande número” , que entram na
cousa, pois “ a omissão de um principio leva ao erro”
(Chévalier ’. Pascal, pág. 167),
O que Chevaiier diz (Jos Pensées de Pascal deve tam­
bém dizer-se da Apologética cristã ; esta deve apresentar
a religião de Jesús Cristo como urna catedral acabada em
que se percebe por dentro e por fora, pelos olhos da fé
e pelos olhos da razão, a incomparável harmonia dessa ci­
dade espiritual que é a verdadeira pátria das inteligên­
cias.
A experiência que o jovem deve trazer de sua passa­
gem. pelo colégio será aquela mesma que São Paulo nos
deseja nos seguintes' têrmos: ut possitis comprehendere
•Oum ómnibus sanctis :<pia,e :s it laiituão et longitudo et
sublimitas et profunãum da Doutrina católica. A fé é
inexpugnável, quando a habitamos, quando dela fazemos
nossa vida e nossa felicidade. Os dias vão passando, e
as experiências novas que trazem e que deixam em sua
fuga cómo um abundante despojó,: sèrvem para mais en­
riquecer a alma já rica de luzes: hábenti ãabitur.
* ❖
*

Conclusão. — A filosofia não é, pois, um ano suple­


mentar do colégio, que se lhe aduz como uma unidade a
um número. Ela não é monos do que a cabeça de um
corpo. Todas as matérias e todos os anos do curso se­
cundário tendem para ela como para o centro do movi­
mento e da formação. O estudante, a-pesar-dos estudos
literários feitos na retórica, sai do bacharelato com um
cérebro de criança e um coração instável. A filosofia,
— se não furtar a alma à sua influência, — fará dele um
homem para a vida, sobretudo se vier coroar bons estu­
dos clássicos. Importa antes de tudo, mesmo neste mun-
•m A È strada Real da inteligência

do, unir uma fé esclarecida e uma razão refletida, pene­


trante, compreensiva, sólida, que as ciladas sedutoras da
Imaginação e do sentimento não conseguem deter em sua
ascensão rumo aos cimos e que é capaz de discernir do
alto a verdade em todas as cousas.
CAPÍTULO VIH

O HUMANISMO CRISTÃO

Se o humanismo, como deixamos demonstrado, com­


preende a cultura, a civilização e a humanização, não há
por que hesitar em reconhecer, por pouco que se conheça
a historia e que se tente compreender a literatura, o imen­
so lugar que o cristianismo ocupa na formação da alma
francesa e que lhe deve caber na educação dos filhos da
França.
Nossa cultura, velha de dez séculos pelo menos, é
em grande parte obra dele. Por isso, o Diretor do inqué­
rito Para um novo humanismo, lealmente viu-se obrigado
a propor francamente a questão, uma vez que ela se
impunha por si mesma: “ N. 8. — Um humanismo am­
pliado não deveria levar em conta certos elementos orien­
tais, e especialmente hebraicos, na formação dos espíri­
tos?” (1C1).
As respostas favoráveis foram mais numerosas do
que se esperaria. Umas, apaixonadas, desejariam, com
as contribuições do Oriente, ampliar o nosso humanismo,
até aqui entravado pela “ vaidade ocidental” ; outras, pa­
cíficas, acolhem de boa vontade o misticismo oriental do
qual, parece, nosso racionalismo teria* necessidade. .0 re­
lator dêsse inquérito, Paul Arbousse-Bastide, declara que
encontra “ uma poderosa maioria a deplorar a lacuna he­
braica, ou mais exatamente judaica-cristã, em nosso hu-1 6

(161) Pour un Humanismo nouveau, pág. 18.


20 4 A E strad a Real da Inteligencia

manismo clássico” (1621 ) . Unicamente, parece intranspo­


3
6
nível a dificuldade prática de introduzir-se sem mais o
“ hebraísmo” nos atuais programas. Devemos reconhecer,
contudo, que não há vantagem alguma em mutilar a tra­
dição no que diz respeito ao Oriente, ao qual somos de­
vedores de tantas riquezas, inesgotáveis e sempre no­
vas ( 18S).
Mas, pense-se o que se pensar da cultura específica­
mente bíblica, sempre resta que o humanismo novo ja ­
mais poderia renunciar à cultura cristã, uma vez que a
França, em nenhuma época de sua brilhante história, ja ­
mais foi uma Grécia ou Roma pagãs; ela é uma Grécia
e uma Roma cristianizadas até a medula, profundamente
impregnadas do espírito, dos costumes, das idéias, dos’ sen­
timentos, das inspirações e das verdades que a Igreja Ca­
tólica jamais cessou de injetar em suas veias.
Á Idade Média não se concebe mais sem a fé e a vida
cristãs.
O Renascimento do século X VI mudou a forma, mas
não mudou senão parcial e transitoriamente o fundo das
almas; quantos pagãos sinceros encontraríamos nele? Lo­
go o humanismo cristão triunfa e arrebata ao paganismo
o seu poder de convicção.
O século XVII clássico é incompreensível para quem
ignore a religião. O século XVIII consegue menos eman­
cipar-se do que uma criança rebelde que rompe com os da
sua casa. O século X IX é o filho pródigo arrependido; torna
a encontrar a sua linhagem, a sua honra e cuida de ser-lhe
fiel. Finalmente, o século X X se aproxima mais da Idade
Média, do que da pobre filosofia dos Enciclopedistas.
.A Igreja de tal modo modelou a alma, o coração, a
inteligência, o caráter de nossa pátria que não é mais
possível, sem trair o humanismo, eliminar a cultura cris­

(162) Ibid., pág. 187.


(163) Um grande número de autores franceses foram ou poderiam ser
objeto de teses de doutorado do ponto de vista dos empréstimos que pedi­
ram à Bíblia: Bossuet e a Bíblia (de la Broise), Pascal e a Bíblia (Lber-
met), Bacine e a Bíblia (Delfour), Lamartine e a Biblia, Víctor Hugo. e a
Bíblia (Grillet), etc., etc.
O humanismo cristão 205

tã do todo da cultura nacional. Som dúvida, acontece que


.mutilam e desnaturam a sua história total; mas uma tal
impostura não ilude, os homens verdadeiramente cul­
tos (104). Métodos viciosos como esses são indignos do
verdadeiro humanismo; e nada mais fazem que mutilar,
desnaturar e falsear a própria educação da juventude.
“ Portanto, o conhecimento dos fatos cristãos é indis­
pensável a tôda cultura verdadeiramente humanista. Tal
é, em resumo, conclue o inquiridor, a única tese positiva
sôbre a qual a opinião parece ser unânime” (1 165)*.
4
6
. Não se obteria em favor da educação greco-latina
uma tão completa convergência de sufrágios como essa,
vindo como vem, de espíritos tão diferentes e .às vezes tão
opostos. Não é, pois, em nome da fé, mas simplesmente
em nome do bom senso e da fidelidade, que devemos re­
clamar para todo jovem francês, cristão ou não, uma cul­
tura que não se acbe. desfalcada da valiosa herança de
idéias e de formas que lhe deixou a Igreja.
“ A informação cristã, diz Paul Arbousse-Bastide,
deve estar expressa e explicitamente compreendida na
cultura humanista. Procedemos de Jerusalém tanto quan­
to de Atenas e Roma. Foi preciso que se operasse a ri­
dícula secessão entre as duas Franças para que seja inter­
dito falar de Deus na escola. O confisco do problema cris­
tão e de sua história pelas capelas e sacristias é mais
uma das catástrofes morais da França. Há algumas ten­
tativas de progresso. Mas laicizar não deve significar
mutilação . . . De fato . . . o ocidental foi criado numa
civilização cristã. Donde o dever do humanismo ociden­
tal de ser tão cristão quanto greco-latino. A ignorância
dos fatos bíblicos e evangélicos nas escolas oficiais é um
dos escândalos da nossa cultura” (Pour un Humanisme
muveaú, pág. 15) ( 16(!).

(164) Ofr. o Inquérito realizado por Georges Champenois, no Aml du


jenple, 1929, ou o aeu livro: Le Sabotage oíficiel de 1’liistou'e de Franco
ed. Bossard).
(165) Pour un Humanismo nouveau, pág. 296.
(106) Sôbre o uso da Bíblia no ensino secundário, ver-o Apêndice D,
20 3 A Estrada, Real da Inteligência '■ , '

Quando se. trata apenas de cultura, o cristianismo a


todos se apresenta como um fato. Mas quando se trata
de h u m a n iza ção, apresenta-se como uma vid a . Não basta
mais conhecê-lo, é ainda preciso vivê-lo para’que dê os
seus frutos. .
E as razões disso não escapam nem mesmo àqueles
que o ignoram. Sem o cristianismo — a histqria o ates­
ta — o humanismo fica carecendo de fermento (167) e de
antídoto espiritual. Pois não· poderia evitar uma certa
corrupção e degenerescência, pela ação de germes que
tôdas as disciplinas contêm ; por mais úteis aliás que pos­
sam ser para o desenvolvimento do espírito, elas podem
ser nocivas ; o antídoto cristão é, pois, necessário. Mòs-
tremo-lo em detalhes:
, / . . . ■ · ■ / v

1; — O h u m a n ism o g r e c o -la tin o , cuja eficácia tere­


mos, m'ais tarde que louvar, é em nossos dias atacadp com'
vigor, sobretudo por teóricos influenciados por uma eôn-
cepção antiburguesa do mundo. Por um equívoco que
Somente a ignorância explica, acusa-se a Igreja de conser­
var a cultura antiga como um ídolo sagrado, em virtude
de razões políticas e sociais, insustentáveis hoje em dia.
Ora, há muito tempo que os católicos julgaram a for­
mação greco-latina; e se lhe continuaram fiéis não foi
absolutamente por falta de lucidez ou de juízo. Monse­
nhor 'd*Hulst declarava, na cátedra quase “oficial de . No­
tre-Dame, que ela trazia em si “ um veneno de cepticismo
e de imoralidade” (168>. O Cardeal Newman, em sua úl­
tima conferência na: Universidade de Dublin, pão titubeiá
em, dizer que as literaturas, as pagãs mais ainda dó que
as cristãs, são tôdas a voz do homem “ natural” e expres­
sam âs múltiplas formas de seu “peeado” (169). E 'gra­
vemente se põe uma questão de conciência : “ Eis-nos, pois,
em grande embaraço, se à literatura nos expõe a ver o

(167) Ofr. o capífcUlo seguinte.


(3.68) Conférences de Notre-ÍJame, 1SS5,'VI conferência,, pág. 170.
(169) Die Idea of a University. Disc. IX. Duties of Oie Church to­
wards Knowledge, t'cntìoà. Dengwan, v ,TT
4 . O humanismo cristão 4· 207

mal moral perto demais e a çompreendê-lo demais” . Hen­


ry Bremond, que traduz longo trecho dessa conferência
em seu livro encantador U É n f a n t e t la v i e (1701 ) , reCo-
7
nhece que Newman vê nisso uma das mais temíveis difi­
culdades da educação. E confirma os temores do Çprdeal
com as suas próprias experiências de professor. O pa­
ganismo sedutor do mundo antigo não sorbente nos induz
em tentação, mas ainda corre o risco de deformar-nos o
espíritoj’ pelo liábito do diletantismo intelectual.
“ Sem dúvida, diz êle (m ), bem poucos professores
ensinarão e x ca th ed ra o diletantismo, do qual não se sen­
tem talvez atingidos. Mas a impressão, mais penetrante
dp que a lição direta, irá entrando passo a passo nessas
jovens almas e não encontrará grande dificuldade em
fazer com que relaxem sua fraca adesão às verdades mo­
rais ensinadas no catecismo e que ficam por demais co-
mumente na superfície do espírito. Numa palavra, é fá­
cil para alguém afastar-se da verdade e dela afastar os
outros “ quando se cultivam essas artes às quais o costume
e o êrro não dão na prática outro objeto além do prazer”
(Bossuet, T r a ité d e la C o n c u p isc e n c e , cap. XVIII)·.
Ora, Bremond, não menos que Monsenhor d’Hulst e
o Cardeal Newman, não pode ser acusado de repudiar os
encantos de Atenas.
Eu poderia ainda citar outros nomes de sacerdotes,
de religiosos, de bispos, inimigos do g a u m ism e (m a),
pois que consagraram ao estudo da literatura greco-latina
uma boa parte da vida e de sua admiração, e' que não obs­
tante denunciaram com energia os perigos dessa cültura.
Leiam-se as recomendações do Pe. Possevin (172), mestre
jesuíta de São Francisco de Sales; as do Pe. Grou (m ),

(170) L’Eniant et la Vie, pâg. 148.


(171) Ibid., pâg. 145.
(171a) Moviménto pedagògico deseneadeado pelo Pe. Jean Joseph Gaume
(1802-1870), teòlogo e esoritor fraacês, que esereveu contra a TJniveraldade
e os seus ïnétodos de ensino (Lettres sur le paganisme dans l’éducation),
partïculaïménte· .sôbre ,,o ensino-dasUtératuraa antigas-, .
(172) Possevin, Bibliothcca selecta de Battone Stnâiprum) o£r. Gamme,
La Révolution, cap. XVI, ReVista Études, t.LEX, pags. 443 ,,a segS,
(178) Ç-rou, Morale tiré« de saint Augustin, t. ï, cap. V iti.
2ÔS A E strada Real da Inteligencia

um dos mais finos tradutores de Platão; as de Bos-


suet (174), em quem se ouvem tanto os Gregos e os La­
tinos como “ todos os Padres da Igreja” ! Observe-se
também o enorme espaço que todos estes grandes letra­
dos reservaram em seus programas ao estudo da Biblia
e dos autores cristãos! E tomar-se-á conciencia, então,
das reservas importantes de que os espíritos, seriamente
católicos, sempre souberam cercar sua estima pelas lite­
raturas antigas.
Newman chega a afirmar que elas podem entibiar ou
aviltar nossos corações e nossas -vontades em virtude de
uma certa ruptura de relações entre o sentimento e a
ação (1751).
6
7
“ Eis aí, portanto, de todos os lados, acrescenta Bre-
mond (17ei), para o professor de literatura, uma pesada
responsabilidade. . . A conciencia o atormenta. . . ”
É possível que se fique menos espantado, depois de
tais depoimentos, pelo fato de que hoje em dia se façam,
sob outras formas, as mesmas censuras às disciplinas gre­
co-latinas. Estas acostumariam, diz-se, ao diletantismo,
aos refinamentos aristocráticos, à contemplação desinte­
ressada, a um certo individualismo estreito, a uma certa
arrogância de classe privilegiada ( 177).
Há sem ¡dúvida os que exageram esses inconvenien­
tes, porque as paixões ou os preconceitos vêm a êles mes­
clar-se inconcientemente; muito falta para que as línguas
mortas, mais do que as ciências ou qualquer outra edu­
cação mais avançada, sejam as causas de tais desordens.
Mais exatamente seriam estas explicadas pelas tendências
de uma educação naturalista.
Aliás, chega-se a resultados semelhantes mesmo em
ensinos que ignoram o grego e o latim.

(174) Cfr. de la Broise, Boseuet et la Bible, cáp. VI: Bossuet éduca­


teur. Quase o mesmo se poderia dteer de Fénelon.
(175) Paroquial and Plaia .Sermons, vol. IX, sermão XXX: le Casser de
Ja Culture libérale. As provas que disso dá são convincentes.
(176) L’Enfant et la Vie, pâg. , 152.
(177) · Four Mm Humanisme aauveau, questões 6, 15, pôg. 18: sjntes®,
pis· 289. ■ ■ M '
Ò humanismo cristão 20â

É verdade, porém, que a antiguidade cada vez me­


nos é capaz de satisfazer sozinha as aspirações de uma
alma moderna, de um coração, de um espírito do século
X X ; pela razão de que tais almas, mesmo descrentes, fo­
ram penetradas e elevadas pelo fermento do cristianismo.
E, se por exceção, não o tivessem sido, quer dizer que ca­
receriam dessa cultura com que os séculos de cristianismo
enriqueceram a humanidade; estariam atrasadas em re­
lação à sua própria época, a qual anda profundamente
revolvida pela inquietude religiosa. “ A censura de aris-
tocratismo formulada aquí, diz Maritain, será justa exa­
tamente na medida em que a cultura em questão não fôr
cristã, em que tiver por fim o homem e não Deus” ( 178).
Outro tanto se deve dizer das censuras de sensualismo, de
diletantismo, de enfraquecimento das forças sociais, de
paralisação de energias, de egoísmo intelectual. Também
estas são justas exatamente na medida em que a cultura
não é cristã.
De tudo isto se deve tíoncluir que a vida cristã é um
complemento necessário do humanismo. Sem o cristia­
nismo, não há beleza pagã que não se torne um perigo
mortal; mas, com o cristianismo, não há beleza pagã que
não seja um precioso legado para a humanidade.
Na conferência a que nos referimos linhas atrás, New-
man, após haver denunciado ao tribunal da conciencia o
paganismo das letras antigas, não hesita entretanto em
tomar partido por uma educação greco-latina, em razão
do valor literário desta; exige, porém, que “ a Igreja en­
tre ao lado cia literatura, a Igreja que não receia nenhum
conhecimento e que purifica a todos, que não mutila a
nossa natureza, mas que lhe cultiva tôdas as faculdades” .
O cristianismo não é somente uma ciência, uma ma­
téria de estudos, nem mesmo uma idéia diretriz, uma sín­
tese intelectual, que se venha ajuntar a outras tantas dis­
ciplinas humanas, Êle é uma força vital dotada dum

(178) Pour un Humanisme nouveau, pág. 189.


2ÍÕ À E strada Êeal da inteligência

maravilhoso poder de assimilação universal. Esta fôrça


espiritual opera em todas as cousas uma potente desagre­
gação dos elementos que a natureza uniu; elimina os ve­
nenos e as borras, e alimenta a alma cristã unicamente
com o bom sumo déles ,(1791 ) . Nada é mais ativo do que o
0
8
gênio do cristianismo imanente em tôda fé viva. Envolve
e desenvolve á transformação universal.
Poderoso inimigo de todas as más paixões da- sensua­
lidade, do orgulho, da inércia, do egoísmo, do individua­
lismo, das antagonias entre irmãos, o cristianismo as com­
bate pela fôrça de sua caridade sem limites.
É por essa razão que o sacerdote educador, imagem
do Verbo feito carne, pode embeber de sua fé a criação
tôda e animá-la de um sopro divino. Pode amar e fazer
amar o que santificou. A poesia é tarefa de santos, dizia
São Jerónimo: Carmen pertinet ad sánelos. É, pois, de
todo normal que os sacerdotes católicos tenham uma ad­
miração sincera pelas literaturas pagãs, como Santo To-
maz por Aristóteles, e que não esbarrem, em tal forma­
ção, com os ” obstáculos contra os quais outros parecem
chocar-se (18°). O cristianismo os torna quase invulne­
ráveis., É êle que, do fundo de suas almas, como um mes­
tre interior, os dirige, os ensina, os educa. E frutos pró­
prios seus são êsses superhomens que se .chamam São
Basilio, São Gregorio, São João Crisóstomo, Santo Agos­
tinho, etc., nos quais se harmonizam êsses dois infinitos
de grandeza e Intimidade que dão a medida total do ho­
mem. A sublime distinção de sua perfeição espiritual
põe-nos muito acima da massa humana, e o esquecimento
de si sem reservas, no devotamento ao social, mescla-os,
com um fermento à massa, à mais miserável comunidade
de pobres decaídos. A elite cristã é a sociedade dos san-

(179) Cfr. Ollê-Laprune, Les Sources de lá Paix intellectuelle, p&gs. 54


e segs.
(180) Cfr. a êste respeito a justa réplica de Calvet ao artigo tenden­
cioso de Robert Francis (Revue, 1929) no número 11/1930 (pág. 82 do En­
seignement chrétien). Ler-se-á com proveito o livro de Mons.' Landriot:' De
l’Esprit chrétien dans renseignement des Sciences, des Lettres, des Arts
(Palmé, 1870).
O humanismo cristão 211

tos. Ai é que o humanismo completo atinge a sua cul­


minância, porque o coração, a alma, a inteligência, a von­
tade, o caráter, a sensibilidade e o corpo são todos a um
tempo exaltados (1S1). Nenhuma disciplina descristiani­
zada é capaz de realizar essa plenitude de vida.
2. — As ciências. Haverá necessidade igualmente
de insistir sobre a insuficiência, em que fica, sem a vita­
lidade do cristianismo, a edumção pelas ciencias?
As ciencias, abandonadas a si mesmas, correm o ris­
co de deformar a nossa humanidade de muitos modos.
Tendem elas, antes do mais, a excitar, na alma dos
adolescentes, o vulgar espirito utilitarista.
Não foi porventura sob os aplausos unânimes dos di­
versos partidos da Câmara que Léon Bérard, então mi­
nistro, fez valer em favor de uma educação puramente
literária “ a necessidade real e profunda” de reagir con­
tra o utilitarismo que tinha começado, dizia êle, a arruinar
os “ interêsses espirituais” da França, “ sôbre os quais não
se pode transigir” ? Não sem razão pedia êle que se lu­
tasse contra o “ hediondo poder” que a riqueza, sem a
cultura moral ( 1 182), exerceria.
8
Quem não se recorda daquele discurso em que Jaurès,
em 1894, justificava o seu voto contra os estudos clássicos
pelo desejo de apressar a decadência intelectual da bur­
guesia? Renunciando ao prestígio da cultura antiga, ávi­
dos dos poderes que o dinheiro dá, “ vós vos desarmais,
dizia êle, vós vos despojais, vós vos destronais a vós mes­
mos” .
Inegavelmente, declaramo-lo, cientistas há que são
idealistas e poetas. Mas, êsse entusiasmo devem-no só a
uma vocação excepcional e a seu gênio próprio. A edu­
cação escolar científica ordinariamente não basta para in­
fundir uma tal vocação e gênio. Por si mesma, leva as
juventudes das escolas a fins mais materiais. Poderão

(181) Cfr. a encíclica de Pio XI sôbre a Educação cristã da juventude.


(182) Cír. Léon Bérard, Pour la Réforme classique, (Colin), pág. 267.
212 * A Estrada Real da Inteligência

acaso as crianças privadas da formação lite r á r ia e cristã·


entregar-se ao rude trabalho dos elementos da ciência,
sem que desperte em seus corações essa paixão avassala­
dora pelo sucesso enriquecedor, essa ambição pelos postos
lucrativos, essa sêde de gôzo imediato?
Romier e tantos outros observadores perspicazes as­
sinalaram nos apetites de uma certa sociedade americana
os espantosos resultados de uma educação científica a que
falta a cultura desinteressada das letras.
A Europa inveja à América a sua “ grandeza de car­
ne” ( 1*18S) ?
3
8 ;
O divórcio entre ciências, letrás e religião acarretou
o divórcio entre as diferentes ordens da perfeição, e a ruí­
na da hierarquia viva.
51 Não saberíamos reprovar às ciências o que considerá­
vamos há pouco como um mérito: os progressos da civili­
zação pareceram dignos de nossos esforços.
Mas seria sob a condição de que essa civilização es­
tivesse a serviço do espírito, em vez de escravizá-lo; que
ela fôsse para o homem, um meio de elevar-se moralmen-

(183) “Após haver comparado o meu próprio tormento, escreve Duha-


mel, com o de mil companheiros que quase nunca escolhí, os quais no
mais des vezes, distinguiam-se de mim pela origem, pela idade, pelas idéias,
pela nacionalidade, continuo a considerar como um fenômeno capital essa
espécie de divórcio reinante em muitos espíritos entre o conceito de uma
civilização essencialmente moral, apta, segundo Guilherme de Humboldt, a
“tornar os povos mais humanps” , e a idéia de uma outra civilização, mecâ­
nica antes de tudo, e que se poderia chamar ds civilização baconiana, uma
vez que ela repousa tôda inteira sobre as aplicações do método indutivo”
(pág. 12). Dessa civilização mecânica, Duhamel nos pinta um tal quadro
em suas Scènes de la Vie future, que a simples, idéia de ver a França um
dia ornada por sua vez de um luxo tão vulgar e de um brilho tão falso
enche-nos de revolta o coração. O que o feriu nessa multidão bulhenta
que trabalha na organização dêsse novo paraíso criado pela indústria cien­
tífica foi o fato de que ela perdeu a noção dos verdadeiros valores que
fazem a felicidade do gênero humano. Ela não sabe mais rir; “sintoma
pelo qual se reconhecem, em todos os pontos do globo* os povos escraviza­
dos, que perderam os sagrados bens do livre arbítrio. A pior de tôdas as
misérias engendradas pela civilização material é, sem ^dúvida alguma, essa
perda da liberdade, essa abdicação do indivíduo, êsse horror de não mais
ser um homeni; e a ditadura da falsa civilização é mais perigosa· do que
o despotismo político, porquanto os homens a suportam numa espécie de
sombria embriaguez, como que incoiícientes de sua própria decadência” .
H. Massis, na Revue uniyerselle, 15/VI/1930.
Há na América, como nos outros países, uma autêntica civilização; con­
tudo, os funestos efeitos do ouro nela se exibem com um brilho mais alvi-
çareiro.
O humanismo cristão ______________________ 213

te e não um fim que o aviltasse; que ela incarnasse unia


alma espiritual e não que a materializasse; que ela fosse
um instrumento de verdade, de justiça, de caridade, de
união, de conquista sobrenatural, de marcha mais intré­
pida para a eternidade, e não simples máquina de multi­
plicar ao infinito os prazeres do corpo até a ruptura mor­
tal do equilíbrio humano.
Poder-se-ia escrever um livro sobre a grandeza e a
miséria das ciências.
A miséria delas está em que o progresso material —
que é a sua obra e para a qual não cessam de trabalhar
— eleva ou rebaixa a humanidade, segundo o espírito que
o anima. Postas em mãos cegas ou celeradas, as inven­
ções humanas, destinadas a aumentar a f elicidade, podem
tornar-se armas perigosas, instrumentos de penas.
Ora, aonde iremos buscar êsse espírito diretor e ben­
fazejo? Aí está a questão tôda do humanismo, e ela se
coloca fora e além da cultura puramente científica. Uni­
camente o cristianismo fornece a verdadeira resposta.

A ciência corre ainda o risco de acostumar o espíri­


to às visadas positivas e a mutilar assim a alma em suas
aspirações. A matéria busca dominar ò espírito, não ape­
nas pelo pêso que o retém cativo dos sentidos, senão tam­
bém pelo caráter rígido das verdades que ela exprime. O
que se vê, o que se toca, o que se mede, o que se conta, o
que se pesa, o que se escreve no papel firme, dá à ver­
dade um corpo que não pode deixar de ser presa e que
proporciona à nossa natureza sensível o gôzo do real. O
invisível, o imaterial, o espiritual, o metafísico compara­
do com isso parece de tal modo irreal e impalpável que
se chega a ignorar que existe ou, quando não, a dar-lhe
apenas a inconsistência do sonho. As realidades da alma,
os sêres transcendentes e todos os valores espirituais pouco
a pouco desaparecem do horizonte da ciência. A filoso­
fia positivista tinha que ser concebida numa época em
que o progresso das ciências levava pauíatinamente as
almas a encerrarem-se num, determinismo universal; a
214 A Estrada- Real da Inteligência

fixidez das leis que forjamos por necessidade de sistema


impõe ao pensamento uma espécie de disciplina inflexível,
da qual parece estar excluido· o absoluto pessoal, é livre.
A religião crista mantém no céu da alma as constelações
do mundo espiritual. Ela.é necessária ao espirito.
Acusa-se o ensino das humanidades greco-latinas de
dividir as classes sociais. Mas qualquer cultura superior
não implica ésse mésmo resultado? A formação cientí­
fica em particular não eleva porventura barreiras intrans­
poníveis entre mandarins iniciados e proletarios ignoran­
tes í 1841
)?
5
8
Ao passo que as mais humildes pessoas do povo são'
sensíveis aos nobres sentimentos cultivados pelas letras,
palpitando em comum, com emoção tão profunda quanto
a do artista, diante de um belo espetáculo, uma bela tra­
gédia, uma bela sinfonia musical, uma bela voz, uma bela
ação; a ciência, peio contrário, estabelece entre os homens
diferenças tais que nem mesmo se entendem mais quan­
do colocados em graus diversos de erudição. A moral e
a sociologia científicas não são nem igualitárias nem res­
peitosas das pessoas; os fracos são impiedosamente sacri­
ficados aos fortes, que são os deuses do universo. Renán,
Strauss e Uebernez e tantos outros sonharam, como bem
da humanidade, com a aristocracia dos cientistas. A
ciência, cada vez mais difícil, seria o apanágio, o privi­
légio de uma casta estanque, onde seria impossível pene­
trar. Somente ela teria a chave dos mistérios; só ela
decifraria o ininteligível; ela possuiria os temerosos se­
gredos do mundo. E as raças seriam servas ( 18B).
O dia dessa servidão está ainda talvez longe. É pos­
sível mesmo· que ,as idéias sejam mais fortes do que os
fatos, talvez a cultura literária reaproxime àqueles que a
ciência separar, talvez o reinado da. cáridade domine a

(184) A ciência muitas vezes produz o orgulho, que é mn vício antis­


social e oposto ao verdadeiro humanismo científico. Cfr. J. Guéhenno,
Caliban parle, v. g., págs. 163, 120, 121.
(185) Thamin, em L’Eflncation et Positivisme, Dág. 53, desenvolve esta
Idéia.
O humanismo cristão 215

supremacia da fôrça. Mas será com a condição, de que


as almas, revivificadas por uma educação espiritual, com­
preendam ondé reside o verdadeiro humanismo.
Finalmente, a formação exclusivamente científica é
inapta para desenvolver o que há de mais humano no ho­
mem, as virtudes do coração.
Supondo-se mesmo que não estejamos expostos a des­
viar para fins materiais a procura desinteressada da ver­
dade, — o que deveria ser o objeto da ciencia — , nem
por isso seremos capazes de, com ela, superar a ordem
das cousas do espirito, que Pascal põe acima da ordem
dos corpos, mas abaixo da ordem da caridade.
“ Arquimedes deu a todos os espíritos as suas inven­
ções. Oh, corno brilhou aos espíritos!” Mas chegou ao
cume nessa ordem; não podia subir mais alto. “ Jesús
Cristo, sem bens e sem nenhuma produção exterior de
ciência, está na sua ordem dè santidade. Não fez inven­
ções, não reinou, mas foi humilde, paciente, santo, santo,
santo ante Deus, terrível para os demônios, sem nenhum
pecado. Oh, como ele veio em grande pompa e prodigio­
sa magnificência para os. olhos do coração que vêem a
sabedoria” . As grandezas de caridade e de santidade
não nasceram da ciência. “ De todos os corpos e espíri­
tos não se poderia tirar um movimento de verdadeira ca­
ridade, — isso é impossível e de uma outra ordem, so­
brenatural”, · 1
• Ora, pode o humanismo ser completo e verdadeiro
sem a caridade, sem a educação do coração? “ Infeliz da
ciência que não leva ao am or!” , dizia Bossuet.
Pode-se formar uma elite que não seja composta de
grandes corações? As almas generosas e verdadeiramen­
te .sacrificadas são maisnecessárias do que as intelectuais
à elevação da humanidade. Estas, últimas amplificam
suas visadas e os seus meios de âção; aquelas elevam o
seu nível mcral, o .seu :valor espiritual, ,,e impedem que
seja arrastada pelas forças de desagregação e de deca­
dência.
Há,, entre as três Qrdehs d.e Pascal, um equilíbrio tal
216 'A E strada Real da Inteligência

que a do espirito·, que ocupa o centro, necessariamente


acaba submergindo-se na dos corpos, se a ordem da cari­
dade, que é ao mesmo· tempo a ordem da santidade e da
graça, não a empuxa constantemente para o alto,-em •vir­
tude de sua própria força de elevação. O espirito, natu­
ralmente feito para emergir da matéria, não pode com
suas sós forças naturais resistir à gravidade que o ar­
rasta para baixo. E cai tão depressa como sobe. Somente
a caridade resiste e sobe por êle.
O cientista é uma paixão armada de ciência. Se essa
paixão é a caridade, está êle armado para a verdadeira
civilização, isto é, para a paz, para a justiça, para a união,
para a felicidade, etc. Se essa paixão é o orgulho, ou a
ira, ou a cupidez, está êle armado para a falsa civilização,
isto é, para a guerra, para a injustiça, para a inveja, para
o esmagamento dos fracos. Não parece que os progres­
sos da ciência tenham impedido os horrores da invasão
germânica, nem as ignomínias da tirania soviética, nem
as monstruosidades da industrialização social.
Por isso E. >Mercier justamente insiste, em suas Ré-
flexions sur VElite ( 180), sobre essa verdade de que não
basta, para constituir uma nova elite francesa, produzir
pensadores, poetas, artistas, cientistas, industriais, homens
de ação, nem mesmo fazer uma seleção entre êles para
só reter os mais próximos do gênio. É preciso ademais
que se encontre o· laço moral que os unirá; e só com essa
condição é que se tornarão guias de sua pátria.
“ A fôrça espiritual primordial que animará a elite,
diz êle, e que ao mesmo tempo a investirá da suprema
autoridade moral, será aquela mesma fôrça que sempre
foi· o apanágio da elite em todas as etapas da civilização,
sob todos os regimes: a devoção· sem reservas à cousa
pública, à coletividade, à pátria... Eis o sentimento que
é preciso reanimar, que é preciso engrandecer. . . ”
Mas aonde irá a elite buscar essa alma de caridade,1 6
8

(186) Revue des Deux Mondes, 1928, 15/1!, págs. 822 e sgs.
O humanismo cristão 217

sem a qual nem mais é digna de estar à frente dos povos,


senão na vida cristã, isto é, na vida, continuada em seus
membros, d’Aquele que se imolou por todos os homens e
que lhes ofereceu a sua carne como alimento e o seu san­
gue como bebida? (187)

(187) Ler: Encíclica de Pio XI sôbre a educação. Dqc, cath., 15/11/1930,


pág. 416,
CAPÍTXJLO IX

O CRISTIANISMO FERMENTO DO HUMANISMO

Afirmamos de passagem no capítulo precedente que


o cristianismo era o fermento do humanismo. Que quer
isso dizer? . E o que entrevemos é urna verdáde bem
fundada?
. Vale a pena compreendê-lo e capacitar-se disso. Pois
o professor imediatamente se apercebe das consequências
dêste princípio: se é verdade que a formação humanística
degenera e dessora quando deixa de estar impregnada de
cristianismo, segue-se que a ação do mestre educador se
torna então, diretamente e pela lógica das idéias, um
apostolado. *
Pedimos emprestado a comparação do fermento â.pa­
rábola evangélica; e no mesmo sentido com que .Nosso
Senhor declarou que o Reino de Deus era “ semelhante ao
lêvedo que uma mulher toma e misturà a três medidas
de farinha, para que a massa tôda cresça” , assim também
nós a nosso turno dizemos que o humanismo é como que
uma massa, feita para ser amassada, e que deVerá cres­
cer sob a ação do pensamento cristão.
A história tôda de vinte séculos nos atesta que a
Igreja jamais cessou, através das revoluções de idéias e
de costumes, de encarar o magistério, mesmo o .das dis­
ciplinas profanas, como um de seus direitos, um de seus
deveres, um de seus poderes, um.de seus meios essenciais
de ação. Tanto que o professor cristão aparece em tôdas
O cristianismo ferm ento do humanismo 219

as idades (188) como o defensor dos direitos divinos da


Igreja, como o delegado de sua missão, como o represen­
tante de sua autoridade, como o portador de seus títulos,
como o canal de seu poder, em todas as ordens do pensa-
, mento e da ação. Igualmente, a Igreja sempre consagrou
mesmo os seus sacerdotes e religiosos ao ensino da juven­
tude. ’
Mas a história, numa Igreja que sempre age por prin­
cípio, tem a sua razão de ser. ' Deve existir um fundamen­
to para êsse direito, para êsse dever, para esse poder.
Qual é? A resposta a essa pergunta esclarece a pedago­
gia cristã.
A Igreja reivindica o magistério como um direito, um
dever, uma honra; um poder, por três razões: porque é
a Mestra infalível· das nações, porque é católica, e porque
é fonte das graças, necessárias â busca da verdade. Ten­

(188) O argumento histórico, que não nos é possível expor neste bre­
víssimo capítulo, não deixará de Impressionar a quem se der o trabalho de
lèr, por exemplo: Christus, pelo Pe. Huby. Poder-se-ão consultar, tam­
bém : os artigos do Pe. Delaporte, nos Études, t. LIX, maio e agosto de
1893: três artigos m uito ricos em documentos, o primeiro, a págs. 5-35; o
segundo, a págs. 258-281; o terceiro, a págs. 434-465. E ainda: Revue de
l ’Enseignement chrétien, janeiro e fevereiro de 1833; Ch. Daniel, Des Études
classiques dans la Société chrétienne; Arsène Cahours, Des Études classiques;
Abbé ïdartin, Des usages des auteurs profanes dans ¡ ’ enseignement chrétien;
a bela tese de René Thamin sobre Saint Ambroise, sobretudo a conclusão;
de Broglie, Histoire de l ’Église au ÏVc. siècle, passim; Paul Allard, Julien
l’ Apostat; Dictionnaire d’Apologétique (d ’Alès): “ Instruction de la Jeunesse” .
A batalha em tôrno da alma das crianças data do dia em que o Cristo
fundou a sua Igreja; e durará até o fim dos tempos, porque a Igreja não
pode renunciar à sua missão, e porque as “ portas do inferno” seriam des­
truídas no .momento em que renunciassem a possuir a juventude. O ensi­
no das verdades naturais é com o que uma cabeça-de-ponte, como que um
contraforte, que pertence à Igreja, e em que ela se manterá firme, contra
quem quer que a pretenda daí expulsar. Ê uma questão de princípio invio­
lável: tal é o que prova a perseverante tenacidade do magistério cristão
na História.
Hoje, com o outrora, a Igreja desenvolve em todo o mundo a sua mis­
são de educadora; vai mesmo aos infiéis, cuja responsabilidade também., lhe
toca, porquanto files estão “ chamados a entrar no Reino de Deus e a al­
cançar a salvação eterna” . “ Assim como, em nossos dias, as suas Missões
espalham aos milhares as escolas por regiões e países que ainda não são
cristãos, das duas margens do Ganges ao rio Amarelo e às grandes ilhas
do Arquipélago da Oceania, do continente negro à Terra do Fogo, e ao se­
lado Alasca, assim também, em todos ‘ os tempos, pelos seus missionários, a
Igreja form ou para a vida cristã e para a civilização os povos quo, hoje,
constituem as diversas nações cristãs do mundo civilizado. É, pois, evi­
dente; que de direito e de fato a missão de educar pertence â Igïeja do um
modo supereminente” . (Pio XI, Encíclica sôbre a educação, Doo, çatl).
15/11/1930, pág. 396).
220 A E strada Real da Inteligência

temos mostrá-lo; extrairemos em seguida as conclusões


úteis.

1. Ela é a Mestra infalível ãas nações. — Não po­


demos esquecer-nos de que o Verbo incarnado lhe confe­
riu solenemente a autoridade suprema do Magistério; isto
é, de Mestre por excelência, de Mestre dos mestres hu­
manos. “ Todo o poder me foi dado no céu e na terra.
Ide, pois, e ensinai a tôdas as nações. . . E eis que estou
convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos” .
.Noutros têrmos, possuímos na Igreja o Espírito d a q u e­
le que não pode enganar-se nem enganar-nos, e a. quem
fazemos constantemente o nosso ato de fé : “ Creio fir­
memente tudo o que crê e ensina a Santa Igreja Católica,
porque Vós, Verdade Infalível, lho revelastes” .
Ora, o ensino profano beneficia-se, indiretamente
(189), dessa infalibilidade e desse privilégio de certeza de
um modo muito mais profundo e amplo do que se poderia
logicamente provar. Pois, que enorme força entrava a
marcha do êrro no mundo e acelera a da verdade quando,
a um tempo·, a Providência fiel à sua palavra e o imenso
exército da Igreja se lançam ao combate, com o poder
de suas armas de Luz!
Não repisaremos aqui os argumentos apologéticos
por uns desenvolvidos com eloquência, como Monsenhor
d’Hulst ( 19°), por outros com a precisão das estatísticas,
como os autores de verbetes do Dicionário d’Alès (191),
por outros ainda confirmados com o testemunho de sua
ciência eminente ( 192). As campanhas promovidas em
favor de Universidades católicas estão com frequência a
recordar-nos dos serviços que elas -— porque católicas —
prestaram à verdade.

(189) Todo o mundo sabe que o privilégio da infalibilidade em seu


uso direto é assaz restrito. É-nos impossível explicá-lo aqui.
(190) Cfr. a sua vida, por Mons. Baudrillart.
(191) Cfr. o verbete: Instruction de la jeunesse, e sobretudo o verbete:
Foi (Bainvel), especialmente VI.
(192) Cfr. ibidem, o verbete: Terre, por Termier.
O cristianismo ferm ento do humanismo 221

Entretanto, êsses mesmos que exaltam o ensino ca­


tólico superior nem sempre compreendem a utilidade do
ensino católico secundario; não vêem nele nada mais que
mera condição, intrínseca, da educação moral. O pro­
fessor, pensam êles, preencheria um dos requisitos neces­
sários à existência dum colégio; mas suas lições, pelo fato
de serem por sua natureza profanas e elementares, se­
riam na realidade indiferentes ao bem espiritual das al­
mas.
Todo êste livro protesta contra uma tal desvalori­
zação do ensino. Esperamos provar vitoriosamerite quão
grande é êste êrro. O capítulo precedente não bastaria
para mostrar a sua ilusão?
Convém entretanto tentar mais uma vez anular com
novos argumentos uma concepção tão mesquinha e fu­
nesta como essa do papel dos professores nos próprios es­
tudos secundários.
A Igreja exerce o seu Magistério tanto pelos profes­
sores de seus colégios como pelos catedráticos de suas
Universidades. Poder-se-ia mesmo dizer que o exerce
mais com os primeiros, porque estes infundem hábitos no
espírito da juventude, tão firmes como os traçados quase
indeléveis da memória no cérebro, e nele colocam todos
os fundamentos da verdade.
A extensão dos programas secundários, tanto criti­
cada, tem pelo menos a vantagem de propiciar que se ini­
ciem cristãmente as inteligências nas leis providenciais
reguladoras do movimento universal dos sêres e que se
rasguem diante dos olhos dos adolescentes, que o amor-
próprio ainda não tornou míopes, essas amplas perspecti­
vas onde a fé lança sua luz ilimitada.
Os professores católicos dispõem da superioridade
da fé para esclarecer indiretamente os discípulos nas pes­
quisas científicas.
Há, efetivamente, visão e visão. Lamennais, contem­
plando, do alto das muralhas de Saint-Malo, o mar mis­
terioso, dizia: “ Todo o mundo olha o que eu olho, mas
ninguém vê o que vejo” . Do mesmo modo, e correlati-
2É¿ , À E stra d a R eal ãa Inteligência,

vamente, há lições e lições. Todo o mundo ensina as mes·*


mas matérias; mas nem todos fazem ver as mesmas
cousas.
As ciências são, como a natureza, um bem comum;
não oferecem ao professor católico um objeto diverso do
que oferecem aos professores sem epíteto; progridem do
mesmo modo para todos, segundo “ os seus 'princípios e
métodos próprios” . Mas, como essas pessoas que só re­
velam os seus segredos aos íntimos, acontece que as ciên­
cias, sobretudo se dizem respeito à alma e à sociedade e
se chamam Moral, Filosofia, História, Literatura (193)
e Artes, só para os olhos da Fé manifestam certas pro­
fundidades obscuras onde vêm encontrar-se, como multí­
plices raízes, as relações essenciais que as explicam.
Assim sendo, o professor esclarecido pela fé parece
trazer uma nova luz a essas catacumbas onde a Razão
avança tateante: tudo se passa como se, abrindo janelas
de todos os lados, êle fizesse penetrar os raios do sol nes­
sas trevas. Então, todos olham o qué êle qlha; mas to­
dos quantos não receberam o dom do céu não vêem o que
êle vê. Moral, Filosofia, História, Literatura, Artes, tudo
se transfigura para os seus olhos, porque, êle percebe as
relações de tudo com Deus, como o verdadeiro fim do ¡to­
mem e ãa sociedade, com o bem real e superior da alma,
com o absoluto, o sobrenatural, o divino. ,
E o percebe com a certeza de não errar, quando con­
corda com a certeza da fé infalível. Um como reflexo
propaga-se então dêsse foco de luz para a ordem mésma
das pesquisas naturais; é como que uma claridade difusa
que se espalha por sôbre todo o cognoscível e que não é
uma miragem. Está-se seguro de que essa nova luz não
ilude. A impossibilidade para o espírito de conceber ver­
dades contraditórias (pois a, verdade, só pode, ser,una),
a, impossibilidade dè contradizer a própria infàlibilidadé

(193) . O próprio, paganismo antigo é muito ínteressaníse muito ins­


trutivo, quando explicado por um autêntico mestre cristão,. que saiba mos­
trar as almas ,e as leis da Providência.
0 cristianismo ferm ento do humanismo 223

do dogma, encaminham pouco a pouco o cientista para a


reta via da verdade e :impedem que êle òu sé tránsvie nas
encruzilhadas das hipóteses, ou se descaminhe em longos
rodeios, ou enfim se perca,completamente no deserto (194),
Ora, isso quê © professor pôde ver, sob essa luminosa
projeção do alto é precisamente o que irá mostrar a seus
discípulos. ' : :
Tal é a finalidade do ensino secundário: abrir os olhos
à luz. À luz total. Pôr os jovens em plena claridade.
Não se trata de esgotar, através de sapiencial análise, as
matérias das ciências. O humanismo busca o homem. O
de que se trata é conduzir o espírito aos pontos em que
lhe seja possível perceber, não o maior número de obje­
tos, mas o wAximo de verdade. Só quando se está na
verdade é que se é verdadeiramente homem.
Mais Uma vez, por conseguinte, o ensino humanista
se nos apresenta cómo séndo essencialmente um aposto­
lado. E uma vez que se propõe enriquecer o espírito de
seu bem próprio que è a verdade, não se dirá porventura
que o apóstolo, confiante em sua fé, guiado pela infalibi­
lidade da Igreja, irá encontrár com que satisfazer o seu
zêlo no ensino humanista de tôdas as disciplinas ?

2. Ela é Católica. — O cristianismo é, pois, o fer­


mento, do Humanismo, porquanto impregna e eleva a, ciên­
cia ¡da Natureza com a força luminosa da Fé.
JS-o ainda porquê a Graça deve transformar tôãa a
massa natural e tudo consumar na Unidade. O têrmo

(104) Eoder.-se-iam arrolar aqui mil e um depoimentos em íávor desta


iluminação do domínio do. profano pelas certezas da Pé. Contentemo-nos
com citar o seguinte trecho de Louis Veuillot. Após uma visita a Thiers,
em $gôsto de 1869, escrevia êle à irmã as suas impressões: " . .. É muito
afetuoso e quase me abraçou na saída... Depois disso, se queres que te
díÉa: o fundo de meu pensamento... nós sabemos-certas cotisas; que domi­
nam de um modo absoluto a quantidade de cousas que êle sabe; como con­
sequência disso', na realidade sabemos melhor do que êle essa qjiantidade
de cousas que não sabemos. Enquanto êle no-las conta, ensina-nos, e per­
cebemos ao mesmo tempo as causas, que êle ignora, e os seus limites, qué
êle não percebe. Alt, minha irmã, que superioridade saber apenas um
pouco de Jesús Cristo!” (Corfespondance, 1885, t. III, lettre CCLXXII,
pág. 96).
22.4 A E strada Reai da Inteligência

católico caracteriza precisamente êsté poder legítimo da


Igreja. Assim como elemento algum da massa deve es­
capar à ação do lêvedo que trabalha todas as células, as­
sim também nada deve escapar à ação do sobrenatural.
É um direito, um dever, um poder do cristianismo. Digo
mais, digo que é uma exigência e uma necessidade de fato,
de tôda a natureza: a massa não pode prescindir do fer­
mento.
Desenvolvamos, em breves palavras, esta verdade
evangélica e dogmática.
A Igreja declara que seu domínio se estende tanto em
altura, largura e profundidade quanto ò domínio do Cris­
to. O domínio do Cristo ‘exerce-se apenas no espaço ou
também sôbre a atividade da alma? É espacial ou quali­
tativo? A questão tôda é essa. El se deve responder que
êle é como o absoluto para. o contingente, isto é, sempre
necessário, de pleno direito. Ora, lá onde êle estiver, até lá
também se estenderá a autoridade da Igreja, porque esta
é “ Christus Terrenus” , o Cristo prolongado nos séculos que
desenvolvem a sua vida total.
Deus não conquista um domínio que seria inicialmen­
te “ nullius” ou que pertencesse a outrem. Deus em tôda
parte está no que é seu. E não há nada verdadeiro e belo
que não seja ãe Deus. Tudo se torna ilusório se a ima­
gem de Deus se dissipa. As cousas ficam desnaturadas
com o apagamento de seus traços. E Deus só está ausen­
te quando expulso pela má vontade.
As cousas não são primeiro em si mesmas, e depois
em Deus; mas são primeiro em Deus e depois, por assim
dizer, fora d’Êle por extração ( 195).
Ora, o que se diz de Deus deve-se também dizê-lo do
Cristo e de Sua Igreja.
A Igreja não é uma sociedade particular, um mero
acréscimo; uma seita ao lado de outras semelhantes. Ela

(195) Imagina-se, pelo menos, conseguir tirá-las para fora; pois, na


realidade, vontade alguma pode suprimir as relações essenciais da criatura
para com, Deus. Omnia in Ilio cqnstant.
0 cristianismo ferm ento do humanismo 225

6 o mundo inteiro, a humanidade total, organizados con­


forme a instituição da único Fundador de todos os direi­
tos e de todos os deveres, Deus. Ela não é uma parte
dêste mundo, mas o universo regenerado, salvo da ruína,
o levado a seu fim.
0. cristianismo é sem dúvida uma cousa real te distin­
ta. Tem uma substância. Mantém-se de si mesmo. Tem
um corpo de doutrina. Tem mesmo suas funções - e ad­
ministração próprias. Entretanto, esta cousa, esta subs­
tância que êle é não foi feita para si mesma, mas para ser
infundida na verdadeira criação de Deus. É a criação
que se deve cristianizar, salvar. E não o cristianismo
que se deve salvar a si mesmo, numa como segunda cria­
ção, paralela à primeira.
A vida sobrenatural é qualidade de um ser, “ aciden­
te” como diz a Escola, espírito superior, forma divina
elevando as faculdades cia alma. Ela é, pois, para um
ser, em um ser, de um ser.
A filiação divina é uma adoção.
A graça sobrévem à natureza, à raça humana, como
uma renovação desta raça, una em Adão. Não é a hu­
manidade que é “ acidente” da vida sobrenatural, antes
pelo contrário. 0 Homem só pode ser Deus sobrenatu­
ralmente.
E assim como o fermento é criado para a massa, é
exato dizer que a massa, isto é, a natureza tôda e todo o
humano, espera o seu fermento, sem o qual não poderá
crescer. Deus mostrou com a história das decadências
dos povos e com a longa e irremediável impotência que
precedeu a tardia vinda do Cristo que a massa do mundo
fica pegada à terra e se corrompe enquanto privada do
fermento da graça. Pois Deus não quis dar-lhe um ou­
tro, que fôsse inferior à vida divina.
Estes princípios fazem com que estimemos em seu
justo valor a missão do ensino. 0 cristianismo é sem
dúvida uma doutrina, doutrina aliás necessária. Acaba­
mos porém de dizer que êle é também o fermento de to-
2 2 6 ______ A E strada R eal da Inteligencia

das as obras da inteligência humana. Ó pensamento do


homem, incarnado em suas obras, é a substância ; e o cris­
tianismo sobrevém a èssa realidade imensa e poderosa,
afim de embebê-la de verdade, de sabedoria, de significa­
ção, de utilidade ¡espiritual, ãe eternidade* , ãc relação a
Deus, ao Infinito. Fá-la fermentar; levanta-a. Assim,
renunciar a incorporar a civilização tôda, mesmo aquela
que precedeu o "Cristo, ao cristianismo, seria falsificar a
noção, do sobrenatural, seria renunciar à síntese humano^'
divina de tôda a criação e da filiação, de tôda a razão e
da fé, cousa em que precisamente consiste o catolicismo...·
Importaria em afirmar a impotência do cristianismo em ,
transformar .6-mundo ou o poder do mundo de trânsfor-;
mar-se a si mesmo. Seria rejeitar tôda conquista da ra­
zão humana longe da “ Verdade” . Seria supor ou que há
duas verdades, ou que somente é verdadeiro o que nos vem
da Revelação. Não se vê que dêste modo se está a reno­
var erros vários já condenados?
Há sem dúvida razões para distinguir entre ensino
cristão e ensino profano. Mas não se deve exagerar essa
distinção. Na realidade, tudo é cristão para o cristão.
Não há nada profano que não tenha sido antes profanado.
Profanado, isto é, situação do que está fora do templo.
O profano está fora do templo porque dele saiu em vir­
tude de culpa própria. Não rejeitemos a ciênciq que está
fora. iNão nos utilizemos da ciência· como de um bem que
se pede emprestado a outrem e em virtude de meras ne­
cessidades apologéticas; por exemplo, afim de fazer com
que nos perdoem de sermos cristãos, ostentando nós tam­
bém a auréola dos méritos humanos. Não. Â ciência é
Um bem nosso, porque tudo é, do" Cristo.. Aquele que con­
tou ras estrelas; a relva tôda, os insetos, todos os tesouros
infinitos da terra, do mar e dos céus, é também quem
dá a todos os homens o poder de conhecer alguma cousa
dessa riqueza tôda. Mas ninguém nada fica sabendo se
não foi convidado pela Providência a penetrar nesse do­
mínio <U servidor, nía trabalhador da vi-
O cristianismo ferm ento do humanismo 227

nha. E se êsse trabalhador se revolta, seu trabalho será


igual ao do escravo que, mesmo contra a vontade, colabo­
rará para a glória de Deus, sem receber recompensa al­
guma: Vani vanam: Tudo devé ser uno.
Assim sendo, todo aquele que pretendesse ensinar
contra a Igreja, isto é, negar-lhe· os seus direitos católicos,
cometeria uma arbitrariedade, como se apartasse uma
porção da massa da fermentação espiritual. Todo o pão
humano deve ser fermentado. Impedir esta ação é fa­
vorecer a heresia.
E se os próprios católicos pretendessem admitir o
princípio de que o ensino específicamente católico é a úni­
ca ação útil ao reino de Deus, bastaria extrair disso al­
gumas estranhas conclusões, que fariam com que êles pró­
prios se rissem de tal afirmação. Pois uma consequência
seria que todo o, desenrolar-se da obra da Criação e todos
os esforços do espírito humano em nada interessariam o
Reino de Deus e deveriam ser abandonados, como se fos­
sem corrente enlameada de estranho rio. A revelação
sobrenatural, abolindo a primeira manifèstação de Deus
no mundo, ocuparia a partir de então o lugar de toda
ciência, de tôda filosofia, de tôda arte, de todo progresso,
de tôda cultura; seria, por si mesma, e ao mesmo tempo,
história, física, geologia, higiene, ciência universal, con­
cepção total do mundo, forma única de beleza, etc., etc.
Ainda mais: a natureza, inútil, supérflua, lançada à
margem da verdade, seria tida como pagã, — pois a cul­
tura antiga, e tôda á süa irradiação pelo mundo, não sen­
do considerada nem como um reflexo nem como um espe­
lho divino, não prestaria para nada; não deveria ser ar­
rolada como riqueza humana; a Igreja deveria enjeitá-la,
depois rivalizar com ela e substituí-la. Haverá um único
católico que subscreva tais exageros, alegando espírito de
devoção?
Subscrevê-Iôs implicaria em adotam em princípio ó
laicismo como doutrina verdadeira, como ortodoxia. Com
tôda a razão o “ laicizante” deveria combater as intromis-
22 8 A E strada Real da Inteligência

sões dos padres e dos católicos nas cousas deste mundo,


condená-los por arbitrários, por alimentarem ambições
estranhas e desmesuradas, por incursionarem ilegitima­
mente num domínio que, como êles próprios declaram,
que lhes pertenceria.
Ora, tôdas essas consequências são inadmissíveis. 0
laicismo, venha de onde vier, é um êrro.
Concluamos. Um padre (e, com mais forte razão,
um leigo crente) deve considerar-se, mesmo que ensine
matérias profanas, como um eminente propagador do ca­
tolicismo da Igreja; porque pode universalizar, pelo seu
ensino, a luz da fé, que quer e deve ser universalizada;
porque pode tudo embeber, ao preparar a massa, do le­
vedo do Evangelho; porque, ao alimentar os espíritos,
pode tudo temperar com o sal cristão. Tal é a sua gran­
de missão. Ela é apostólica.
Bem ao contrário, pois, de rejeitar a ciência, as ar­
tes, a filosofia, a civilização, haverá de cultivá-las, como
preciosas hastes de espinheiro, afim de nelas enxertar as
rosas do paraíso. Tôdas estas comparações são divinas.
Prolongará a Incarnação do Cristo, repondo todos os
espíritos no reto caminho, “ via” , na verdade, “ veritas” ,
e comunicando-lhes a vida, “ vita” . Visará o ideal de São
Paulo: “Omnia Christus” .
Essa obra não é digna do sacerdócio e da vocação re­
ligiosa? Poderá alguém melhor realizá-la do que os pa­
dres e,religiosos? Exigiria Santos. Pois, no fim de con­
tas, não se trata de fazer com que a santidade de Jesús
Cristo penetre tôdas as cousas ?

3. A Igreja· ê fonte das graças necessárias à busca


da verdade. — Tal é a terceira razão pela qual o cristia­
nismo é imprecindível ao humanismo perfeito.
Declaramos ignorar qual a parte que a graça pode
ter na aquisição das verdades parciais dà ordem natural.
As paixões trabalham muito neste mundo. A força delas
tem os seus efeitos. 0 próprio ódio pode fazer deseober»
Ó cristianismo fermento do humanismo 229

tas científicas." Neste liVro, entretanto, tentamos esta­


belecer uma diferença profunda entre a posse das verda­
des de detalhe, ou, por outra, a ciencia, e a posse da ver­
dade, ou, por outra, o humanismo; entre a memoria bem
fornida e a inteligencia lúcida, entre “ la tete bien pleine”
e “ la téte bien faite” . Não que ambas essas cousas se
excluam mutuamente; pelo contrário, normalmente deve­
riam ser uma só e a mesma cousa. Acontece porém que
as separam, erroneamente. Infeliz da ciencia, poder-se-ia
dizer, que não leva a bem julgar as cousas!
Ora, afim de possuir a verdade em todas as cousas,
afim de permanecer sempre na verdade, em mèio ao ba­
ralhado dos fatos e das idéias, ,é necessário que nos ate­
nhamos à disciplina virtuosa do trabalho, sermos guia­
dos e sustidos pela graça. Virtudes e graças são necessá­
rias. Éste tema exigiria um longo estudo. Nada mais
podemos fazer aquí senão recordar as suas conclusões aos
professores, afim de comunicar-lhes, uma vez mais, a von­
tade de fazer através do magistério um apostolado de
muita fecundidade; não é, acaso, parte de sua missão ini­
ciar os discípulos na aquisição dessas virtudes que dizem
respeito à inteligência?
Os grandes sábios sempre tiveram grandes virtudes,
às quais algumas vezes só faltou, para serem sobrenatu­
rais, a intenção inspirada, pela fé.
Contudo, a vida de trabalho déles foi e é exemplar.
Seria para desejar que muitos católicos fôssem dotados
das qualidades laboriosas de um Poincaré, de um Thierry,
de um Fustel de Couianges, e outros. Cito ao acaso·. A
ciência martirizou gloriosamente uma magnífica fálange
de heróis. Quantos morreram no trabalho!
Mas estas virtudes naturais, admiráveis, o cristia­
nismo as penetra, conserva, desenvolve, exalta e lhes aduz
a coroa das virtudes sobrenaturais.
Diremos apenas, afim de numa palavra resumir a
educação do trabalho virtuoso, que o professor se deve
esforçar, através de todos os meios pedagógicos, por des­
pertar em seus discípulos o amor da ciência e, acima do
230 ’ A Estrada Real ãa Inteligência

amor da ciência, o amor da verdade e, acima do amor da


verdade, o amor da perfeição espiritual da alma humana:
escala de três graus! Estas três ordens, assim superpos­
tas, fazem o equilíbrio do espírito e da vida. A ciência
é, para a verdade, e a verdade é para a perfeição do ho­
mem.
É, em. sentido inverso, pela virtude adquirida que
se evitam as múltiplas armadilhas do êrró e que se chega
à verdade; e é chegando à verdade desta maneira que se
faz progredir a ciência em linha reta.
“ Há pessoas, diz São Bernardo ( 196) , que desejam
possuir a ciência, mas com o único fim de possuí-la; e isso
é uma vergonhosa curiosidade” , no sentidò, evidentemen­
te, de que uma tal vontade é eminentemente egoísta. E
o desprezo que Bossuet (197) vota a essa curiosidade da
“ concupiscência” , êsse mesmo Bossuet, entretanto, que
tanto honrou, eom seus elogios e exemplos, a própria
Ciência! Devemos, pois, elevar nossos alunos acima disso.

(196) Texto de São Bernardo: “ Sunt çiui scire volunt eo fine tantum
u t sciant, et turpis curiositas e s t... et sunt item qui scire volunt ut scien­
tiam suam vendant, verbi causa pro pecunia, pro honoribus, et turpis quae­
stus est; sed sunt quoque qui scire volunt ut aedificent, et caritas est; et
item qui scire volunt ut aedificentur ct prudentia est. (In Cant., sermo
X X X V I ).
(197) De Bossuet, poder-se-iam 1er entre outras cousas: Traité de la
concupiscence, capítulo VIII, e o magnífico capítulo X X X II. Da mesma for­
ma, p, sermão sôbro a morte, no início do segundo tópico.
Santo Agostinho exprime com vivacidade a mesma perspectiva: “ Scien­
tia, -dicit Apostolus, inflat. Quid ergo? Scientiam fugere debetis et elec­
turi estis nihil scire potius quam .inflari? Ut quid vobis loquimur, si
melior est ignorantia quam scien tia ?... Amate scientiam et anteponite cari­
tatem . Scientia, si sola sit, inflat. Quia vero caritas aedificat, non per­
m ittit scientiam inflari. Ibi ergo inflat scientia, x:bi caritas non aedificat;
ubi autem aedificat, solidata est” . (Sermo CCCLIV ad. Cont., c . V I).
O Santo Padre Pio XI, citando éste texto, aduz o seguinte conselho
para todos os mestres da mocidade; “ Vestri igitur, si quidem spiritu pie­
tatis caritatisque, unde ceterae virtutes oriuntur et constant, studia sua
foveant, quasi quodam medicato odore qui metum corruptionis avertat, fu ­
turum sine ulla dubitatione est, ut ob sua doctrinae ornamenta acceptiores
Deo fiant Ecclesiaequfe utiliores” . (Acta Ap. S., 1924, pág. 146).
Dever-se-iam mostrar as estreitas relações existentes entre essa forma­
ção do espírito em tôda a sua amplitude e a aquisição, para uns, e á m a­
nutenção, para outros,, da Pé cristã, Numa alma formada dêsse modo
numa perfeita retidão de coração e de espirito, a Fé se açha. comô em casa:
dir-se-ia uma flor rara em terreno próprio. Os piores inimigos da Fé são
também os piores Inimigos do homem, e por conseguinte do humanismo.
Cfr. a éste respeito o que diz o Pe. Léonce de Grandmaisoa: De la res­
ponsabilité des éducateurs. (Études, 1924, págs. 418-419).
Ô cristianismo ferm ento âo humanismo 231

“ Outras pessoas há, continua São Bernardo, que de­


sejam o saber para vender a sua ciência: vantagens mo­
netárias ou recompensas honoríficas; ora, isso é um vil
comércio” . Devemo-nos sem dúvida instruir afim de po­
dermos'ganhar a vida; e "necessária pelo menos esta ele­
mentar prudênciá. Mas a vida é dada em vista de um,
ideal qUé lhe dá o seu valor. E é êste ideal que deve es­
timular nossos discípulos.
“ Há, finalmente, os que desejam saber afim de edi­
ficar, — e isso é caridade; e também para serem edifica­
dos* — e isso é virtude de prudência” .
Que hierarquia magnífica de desejos e intenções!
Pode-se dizer que tôda a pedagogia do professor deve ten­
der a estabelecer na alma de seus discípulos,» seguinte
hierarquia: Ciência, Verdade, Caridade. Verberemos os
alunòs que não procuram conquistar êste tríplice ideál.
Pois, se trabalharem visando fins egoístas e materiais, es­
tão perdidos não'1somente para o bem da sociedade, mas
também para a verdade, e do mesmo modo para a ciência.
Dessas considerações se tira a conclusão de que o
professor não ãâ conta de tôda a sua missão, se não acres­
centar ao ensino das ciências a educação moral de seus
discípulos. . E desta responsabilidade não pode ném exi­
mir-se nem atirá-la para os ombros de outrem. Pois se
é verdade que certos aspectos da conciência não lhe. di­
zem respeito e, são unicamente da competência de um
confessor, também é verdade que tôda uma zona da vida
moral fica por assim dizer sob a sua alçada e sob, a sua
autoridade. Pois uma vez que não se pode alcançar a
verdade a não ser com um espírito sincero, leal, reto, hu­
milde, enérgico, constante, puro de todas as manchas do
vício, livre de tôdas as servidões do orgulho e do egoísmo,
— uma vez que não se chega à luz a não ser que a alma,
tôda se entregue num dom sem reservas à verdade, —
umà vez que o único trabalho fecundo é o trabalho vir­
tuoso*. — segue-se que é absolutamente necessário que o
professor ensipe ainda outra cousa que não os sós ele-
23 2 A E strada Real da Inteligência

mentos de doutrina, quero dizer, que ensine uma arte de


viver em conformidade com a magnífica destinação, do
espírito, que é a posse da verdade (19S).

' (198) O professor lerá com proveito o Evangelho de São João» que pÒe
vem evidência a necessidade da boa vontade para ver bem, e Santo Agos­
tinho que é admirável a êste respeito. A tese de Ollé-Laprune sôbre a, “ Certi­
tude morale” . Pierre Kousselot, S. J .: L ’Intellectualisme de Saint· xhem as:
3e. oartie, — l ’ Intelligence et l’Action ^mmaine.· M. Blondel: certas passa­
gens de L’ action. Uma das consequências dêstes princípios é que o profes­
sor por excelência é aquele que recebeu do céu poderes sobrenaturais, para
formar as almas, «— o Sacerdote.
CAPÍTULO X

A MISSÃO DO PROFESSOR: RESUMO-

Chegados ao têrmo desta longa perquirição, em que


pretendemos trazer à luz os aspectos mais importantes do
problema do humanismo, parece-nos que as diferentes dis­
ciplinas utilizadas nas escolas para a formação da juven­
tude são còmo as regiões da França e seus diversos cli­
mas. Quem dirá: nada é mais belo do que o mar? nada
é mais belo do que a montanha? nada é mais belo do que
as planufas do Loire?
Haverá porventura um aspecto do mundo que sozi­
nho encerre a sua beleza inteira? Acaso não se acha ela
espalhada pela variedade das cousas numa profusão que
exclue todo ciúme?
Cada clima tem a sua vantagem. 0 norte poderá
invejar o sol do Mediterrâneo; mas o frio vergasta o san­
gue e viriliza os caracteres. A neve, como o céu azul, tem
a sua poesia. Do mesmo modo as múltiplas literaturas
e diversas ciências incarnam, cada uma a seu modo,
diferentes idéias que são outros tantos reflexos da beleza
infinita e sementes ativas da vida que avança dolorosa­
mente rumo à felicidade ( 199).
A estreiteza de espírito não permite que se reõonheça
semelhante cousa. Mas o humanismo exige que se com­
bata a estreiteza de espírito. Êle concorda com a Igreja

(199) Cfr. Kevue Polltlque, 15/X/1930, as visadas amplas e liberais de


H.-X. Marrou.
234 . A E s tr a d a R e a l da In telig ên cia

católica no buscar em toda parte o seu beitt e no extermi­


nar os particularismos e os exclusivismos que tentara des­
pedaçar a túnica inconsútil da verdade.
A dificuldade do problema do humanismo não está,
pois, toda, nem primacialmente, no objeto do ensinó; está;
antes, no sujeito que ensina.
Sem dúvida que há, ainda, o problema do objeto, e
que tem a sua importância. Êste, porém, não tem im­
portância em se trâtando de um grande número de ado­
lescentes que as circunstâncias arbitrariamente lançam
numa educação que visa o útil, o prático, «a preparação
para a luta imediata pela existência. Para todos, êle vem
depois dêsse sôbre a maneira de ensinar, que propria­
mente é o pedagógico. Depende sobretudo do professor que
a. educação que dá aos espíritos seja de. molde a cultivar,
civilizar ou humanizar a estes, ou não. Aí é. que está o pon­
to crítico. Aí é que está o ponto nevrálgico, a respeito
do qual infelizmente nem, sempre convém que se fále.
Não, não basta que se façã com que um alúno aprenda o
grego ou o latim para que se o tenha por cultivado, civi­
lizado, humanizado. Poderá haver um modo “ primário”
de ensinar literatura, e um modo “ secundário” de ensinar
ciências. Pois os programas trazem etiquetas qUe deve­
riam de preferência ser apostas aos métodos pessoais.
Comò deixamos demonstrado, tudo ê bom, em graus d i ­
versos, para “ humanizar” a alma âe um povo; mas tudo,
também, pode servir para “ ãeshumanizá-la” , pois em tudo
há fermentos de corrupção.

O catolicismo, e somente êle, tomado não como ma­


téria de ensino num programa integral, mas como luz de
conjunto e vida vivida, é necessário ao humanismo, por­
que somente êle é capaz de combater, vitoriosamente os
germes de morte e de desenvolver os germes de vida que
se encontram, tanto uns como outros, no âmago de todos
os frutos da natureza. A filosofía, parece, propicia vi­
gorosamente êsse esforço de elevação moral, sem a qual
A missão do p ro fe sso r : Resuma 235

o homem fica mutilado; mas ela nada mais pode fazer


do que iniciar urna obra que unicamente a religião perfaz.
Para a sã pedagogia, pois, trata-se sobretudo de es­
tabelecer uma aliança harmoniosa entre as disciplinas que
a natureza fornece e as atividades que a graça prodigaliza.
Um educador concorre para o sucesso do humanismo ha
medida em que consegue elevar as almas pela espiritua-
lização da matéria.
Uma outra conclusão deflue ainda de tudo 0 que aca­
bamos de dizer. É a de que o ensino secundário é um
apostolado digno de suscitar numerosas vocações, mesmo
entre sacerdotes. Plasmar “ inteligências bem feitas” , for­
mar espíritos justos e retos, fazer irradiar em tudo a, ver­
dade e a f.é, purificar as idéias e as formas sensíveis dês-
ses elementos corruptores que as tornam perigosas para
a alma, trabalhar pela propagação do catolicismo do Evan­
gelho, desenvolver nos corações essas virtudes que sus­
tentam e dirigem o espírito a seu fim, a verdade, — tal
é, em resumo, a obra apostólica que os professores cris­
tãos realizam. Ela é difícil e delicada, mas grande e bela.
CONCLUSÃO GERAL:

A FORMAÇÃO PEDAGÓGICA DOS PROFESSORES

Os Mestres educadores realizam um apostolado em


profundidade, porquanto vão estabelecendo as condições
necessárias à conquista da verdade, da felicidade e da
vida sobrenatural. Põem equilíbrio no edifício total do
conhecimento e do querer, pondo equilíbrio no próprio es­
pírito do homem.
Mas uma tal tarefa — eminente — exige uma inten­
sa preparação; mais intensa do que para a indústria ou
mesmo para o comando de um exército. E essa prepara­
ção pode ser sintetizada em quatro pontos: l.°) saber
o que se ensina; 2.°) saber a quem e como se ensina; 3.°)
saber fazer com que o aluno pessoalmente trabalhe; 4.°)
colaborar pela oração com o Mestre interior.

1. — Saber o que se ensina. — Inútil insistir sob


isto. Não cedamos ao tolo preconceito que faz da ciência
um adversário da pedagogia. A ciência não basta para
tudo; mas nada a substitue. Quanto mais se sabe, tanto
mais se está apto a escolher, a variar, a utilizar os bons
métodos.
A clareza que não é superficial é o dom,dos mestres
que dominam as questões. A preguiça jamais tem razão.
A Universidade todos os dias está a proporcionar,
como os professores do ensino livre, através de suas eru­
ditas publicações, admiráveis exemplos de vida laboriosa.
Estudando algumas de suas obras, compreende-se o in-
A formação pedagógica dos p r o fe s s é e s 237 ,

terêsse e a fecundidade que acompanham às vezes um


ensinar fundado sôbre uma tão considerável preparação
de longa data.
O devotamento substitue a ciência? Certamente que
não. Pelo devotamento generosamente se dá tudo o que
se possue, e nada mais. Mas o rico pode ser mais liberal
do que o pobre.

2. — Saber a quem e como se ensina. — Maquinarias


industriais, massas armadas, e tantas outras cousas dêste
mundo são conduzidas ünicamente„pela fôrça. A maté­
ria não resiste à ciência; atingimos os nossos fins me­
diante cálculos exatos.
Mas, em educação, nem a mecânica, nem a violência
adiantam; muitas vezes até, opõem-se aos resultados que
buscamos. O despotismo aqui não adianta nada.
A flor desabrocha no ramo pela só ascensão da seiva.
Pois assim é que se forma um bom espírito, — pela as­
censão misteriosa da vida, através de um solo, de um ar,
de um clima, que encerram tanto veneno quanto alimento.
É combatendo os germes nocivos .e explorando as for­
ças vitais que o bom professor cultiva esta planta infini­
tamente delicada: uma razão “ bem feita” . É, então, um
verdadeiro educador. Erudito, sem dúvida; mas um eru­
dito-que conhece, mais ainda do que uma matéria cien­
tífica, a natureza 'particular ãos espíritos que lhe foram
confiados. Um mestre que não fôsse psicólogo, por falta
de intuição, de simpatia, ou de esquecimento de si mesmo,
pouco importa, nãó poderia em absoluto ser um bom mes­
tre. Faltar-lhe-ia a base indispensável. Tornar-se-ia im­
possível a educação pessoal. Seria mesmo'para recear
que sua influência se exercesse sempre no sentido de seu
temperamento, de seu caráter, de suas preocupações, de
suas paixões, e, por conseguinte, só desenvolvesse, em al­
guns de seus discípulos, os defeitos de espírito que o seu
método favoreceria, e deixasse, noutros, as qualidades
sem cultivo. *
A ciência dos espíritos, portanto, é necessária,
238 * A E stra d a , R e a l d a In telig ên cia

Deve-se acrescentar a ciência dos métodos adaptados.


Adaptados a quê?, pergunta-se. Cuidemos de observar
que os métodos devem ser adaptados à formação do es­
pírito, antes que ao espírito de cada aluno.
E por método não deveremos entender os processos
pedagógicos, as engenhosidades no ofício, a simples coo­
peração prática, que levam ou à disciplina rigorosa, ou à
fácil aquisição do saber. Queremos referir-nos a essa
arte que consiste em tornar os homens ricos de humani­
dade; e que por êsse motivo leva o nome de humanismo.
Arte prestigiosa »que supõe ao mesmo tempo um dom,
uma vocação, e experiência. Pois se trata, efetivamente,
de extrair de cada disciplina as virtudes que encerra com
a finalidade de as fazer inserir e crescer no espírito dos
discípulos. Não existe arte mais difícil do que esta (200).
Ela supõe três qualidades: l.°) que o educador co­
nheça o que eu chamarei de “ causalidade instrumental”
das múltiplas ciências, isto é, que efeito pode obter de
cada uma delas para humanizar os· seus discípulos ; ·2.°)
que tenha feito o inventário dos recursos e das deficiên­
cias de cada uma das inteligências que lhe compete for­
mar, afim de lhes poder dar, na ocasião oportuna e na
medida conveniente, a espécie particular de trabalho apro­
priada ao desenvolvimento dos recursos e à cobertura das
falhas; B.°) que saiba fazer frutificar a ciência ensinada,
visando enriquecer o espírito de autêntica capacidade in­
telectual e não apenas de noções inertes. O adolescente
deve ficar bem petrechado, afim de que possa avançar
cada vez mais na verdade, da qual no colégio apenas to­
cou os primeiros elementos.
Um educador, pois, é um homem superior que huma­
niza uma criança. O humanismo não é artigo de balcão;
é a vida humana em sua plenitude. É preciso portanto

(200) Para ilustrar o que dizemos desta arte, ler o qus escreve » . de
la Sizeranne da arte eia geral: Eevue des Deux Mondes, Í/VI/ISOV, págs.
588-590, o íazer a aplicação de sues idéias ao ensino.
1■ ■/ 4
A formação pedagógica dos p rofessores ' 239

que se tenha em si mesmo o humanismo integral, se se


quiser dar a cada um a parte, que dêle lhe couber. *
V Meditemos, pois, constantemente, sobre as questões
de método.
Somente a meditação entretém, no magistério, essa
liberdade de espírito necessária a uma ágil manipulação
das disciplinas. No momento em que um professor co­
meça a ficar por assim dizer cristalizado em Sua ertldiçãó
passada, escravo de um curso redigido e ditado, repetidor
automático de fórmulas definitivas, condenado, por inér­
cia intelectual, a seguir, como trem sobre trilhos, um ro­
teiro muitas vezes palmilhado, — nesse momento êle dei­
xa de ser um educador. Pois ensina como uma vitrola
poderia ensinar. A ciência tornou-se um absoluto, um,
fim em si mesma. Escapa-lhe a noção mesma de peda­
gogia. O aluno é sacrificado; a que? a uma abstração;
ao. curso escrito, impresso. É a subversão da, ordem.
É, pois, um dever perpétuo procurar renovar-se sem­
pre. Sempre se renovar, afim de poder incessantemente
adaptar-se às necessidades atuais dos discípulos. Os dis­
cípulos têm sempre a mesma idade': e enquanto os nos­
sos dias se somam e vão endurecendo os sulcos de nossos
cérebros, a juventude refloresce, como a primavera, e
reaparece ante nossos olhos, cada ano, com o frescor do
renovo e a incerteza do ignoto. Cabe a nós, remoçar-hos
para conhecê-los. .
Em tôdas as carreiras é necessário que nos repita­
mos com frequência o célebre: “ Dè que se trata?” O
professor tem um modo próprio de responder. Para êle
se trata de encontrar os meios pedagógicos, as habilida­
des, as imagens, a retórica, mediante os quais conseguirá
fazer com que seus discípulos possam compreender as ver­
dades que êle tem em seu espírito sob uma formá inassi-
níilável ã idade dêles. De que se trata? De educar.T ,

3. Saber fa zer com que o aluno pess,oalmente tra­


ba lh e: ■■■ · , , ■ . ·
, a) Com esta finalidade,'procuraremos despertar » 0 «
240 A Estrada Real da Inteligência

discípulos, através de todos os meios de persuasão, à esti­


ma e o amor pelo trabalho intelectual. Quantas reflexões,
quanta eloquência, quanta arte serão necessárias para
convencer os alunos de que o trabalho é a sua salvação,
um dever de estado, o instrumento de sua santidade, a sua
nobreza, o seu capital de forças, o seu futuro,; a suà feli­
cidade ! E que na preguiça ou na semi-sonolência espi­
ritual nada mais encontrarão do que decadência, esterili­
dade1, desgostos. Desenvolveremos para êles cada um des­
tes pontos.
O meio de fazer com que estimem e amem o trabalho
será, em primeiro lugar, dando um bom exemplo. Isto
não é fácil. Não há dinheiro que pague um tal esforço.
A educação, como o parto, é uma obra dolorosa em que
se arfisca a própria vida. O exemplo do trabalho, para
que êste produza sôbre o adolescente um efeito moral,
exige pois grándes sacrifícios. Impor o trabalho unica­
mente pela fôrça não o tornaria amado. Pelo contrário.
Façamos com que o aluno reflita sôbre os beneficies
dessa poderosa e magnífica lei do trabalho ,e sôbre as ter­
ríveis sanções com que Deus pune as desobediências e
essa lei providencial. Colecionemos, nessa intenção, be­
las páginas, belos exemplos, para ler e comentar com êles
em família. Pois, sem histórias admiráveis, não conse­
guiremos inflamar çs corações dos moços.
ò) O bom professor deve possuir um dom raro @
precioso, — o de obter do aluno um trabalho autêntico,
estimado, amado, atento, qualitativo, pessoal, inteligente.
Professores há que não obtêm dos alunos nenhum
esforço sério:.muitas vezes desdenham a infância. En­
sinam em vão: regam uma planta sêca por todo um ano,
que não passa de longo inverno.
Outros obtêm esforços materiais. Os -alunos, presas
de um mêdo servil, espicaçados pelo temor das sanções,
estafados pelos seus “ carrascos do trabalho” , ou' talvez
ávidos de resultados tangíveis, escravos de ambições uti­
litárias, obcecados pela perspectiva dos exames, trabalham
com afinco, màs nada mais fazem que um psettdo-traba-
A formação pedagógica dos professores 241

lho, turma de carregadores e de pedreiros, trabalhando


apenas com o martelo da memória, sem nenhuma ativi­
dade inteligente o u .pessoal. Má tareia'pedagógica.: /.De;
semelhante usina laboriosa nada mais sairá que operários-
máquinas desprovidos de todo senso e gosto da verdade.
,Grande: prejuízo para êles, a menos que a experiência sem
demora lhes revele o êrro essencial de sua educação.
0 humanismo mesmo, considerado no objeto e no mé­
todo do professor, pope dar em nada na alma do discípulo.
As melhores sementes, se caídas em solo inerte e estéril,
nem sempre germinam; às vezes se perdem. É preciso,
pois, que a terra reaja. G adolescente se humaniza ,por
Si mesmo, pois é . êle quem, crescendo, se torna homem.
O professor apenas o humaniza pelo estabelecimento de
tôdas as condições favoráveis à germinação da vida. Im­
porta pois, entre essas, condições, acrescentar, ao magis­
tério educativo o trabalho formador do aluno.
Mas, ■
— e isto é a própria evidência, — não espere­
mos dos alunos, que saibam trabalhar como é devido antes
de tê-lo aprendido de nossos lábios. Pois êles não têm
nenhuma experiência. Esforcemo-nos, portanto, por guiá-
los, levando-os jsaternal e pacientemente pela mão.
Ó educadormãp se deverá contentar com explicar oral-
mente a seu discípulo o método que deverá seguir em seu
trabalho pessoal; os conselhos, as preleções são pouco efi­
cazes; deverá ainda ájuãá-lo 'praticamente e por tôdas as
maneiras. Deve-se impedir que faça um trabalho tolo,
um esforço estéril, uma tarefa que lhe comunicaria maus
hábitos, um dever que só lhe trouxesse desânimo e abor­
recimento.
\ È, para tanto, três cousas se impõem à nossa bpa von­
tade. .'' '; -
1 °) Saibamos escolher cuiãaãosamente temas inte­
ressantes e sugestivos, afim de propô-los à atenção do alu­
no. Fiar-se no autor do manual equivale á desertar o
pôsto de educador. Quem educa não é o manual, mas o
mestre. A inteligência do manual escapa ao aluno, mes­
mo quando é real. No mais das vezes, o manual nada
242 Á Ê s tr a d a S e a t da In telig ên cia

mais oferece do que matéria; a forma, que infundirá vida


e caráter a êsses dados brutos, só poderá vir da inteligên­
cia do professor. '
É uma regra absoluta em educação: o tema, que o
aluno deve fecundar com seu trabalho, deve ser obra pes­
soal do professor, afim de estar judieiosamente adaptado
aos discípulos. ’
Os livros não passam de muletas; ajudam a caminhar.
Só o espírito pensa e faz pensar. Pensemos.
2.°) Nossas exigências devem ser proporcionais às
forças do aluno e ao tempo de que êle dispõe. ·— Ridículo
dèver, um dever impossível! Tenhamos por impossível
todo dever que não é possível executar bem. E a razão é
clara: habituar o aluno a malfazer equivale a deformar-
lhe o espírito. , ( i
Fixemos um alvo preciso e próximo; todo alvo fixa­
do deve poder ser atingido. O adolescente condenado ao
insucesso torna-se um trabalhador que “ sabota” o seu tra­
balho, e se enjoa das belas cousas.
Não faz bem viver no meio de sujeirás; a certos alu­
nos jamais ocorre que suas obras devam ser corretas e
saborosas. Assim, são deformados, por falta de peda­
gogia.
Para fazer bem, o aluno deve sempre evitar fazer
mal. Somente se progride por pequenos sucessos segu­
ros, assim como só se caminha por pequenos passos
firmes.
Dever-se-á, pois, prevenir as dificuldades de um de­
ver a realizar, aplainar ou explicar aquilo que o texto —
indiferente e inerte — encerra de elevado demais ou de
muito complicado, preparar as soluções possíveis através
de questões ou de explicações claras, proporcionar a cada
um dos discípulos a alegria do “ eureka” no limite de suas
forças, — inspirar, enfim, confiança nos métodos do mes­
tre pelos resultados felizes a que conduzem.
Dêste modo o professor atua, fora de suas aulás, por
uma secreta influência, sobre o trabalho privado do alu­
no; uma certa continuidade liga o ensino ao estudo parti-
A formação pedagógica dos professores U t

cular; uma alma inteligente anima o todo. Um alpinista-


guia não se contenta com discorrer apenas sobre o mapa
a respeito dos caminhos fáceis e os perigosos; mas põe-se
à frente do grupo, atina com os lugares das pisadas no
gêlo, dá a mão, e ergue os fracos nas ladeiras. Nao há
outro meio “ de chegar” .
3.°) O bom professor deve cuidar também do estí­
mulo moral das faculdades do aluno. Um trabalho.bom
é uma obra de amor. Na primavera com frequência se
vê o formigamento dos vermes encarquilhar as folhas ver­
des,, ressequi-las, derrubá-las. Assim também os maus
sentimentos de tristeza, de aborrecimento, de desânimo
se insinuam pela alma dos jovens estudantes, »ensimesmam
as suas faculdades, paralisam-nas, amarram-nas. O pro­
fessor preocupar-se-á com o “ moral” de seus discípulos;
evitará de impor-lhes uma tarefa que, por si mesma ou
pelas circunstancias de sua execução, vá suscitar-lhes o
formigar de todos Asses pensamentos amornantes e dissol­
ventes. O aluno deveria sempre sair da aula animado
da viva ambição de fazer um tema “ da ponta” .
Há uma maneira quase mecânica de esquentar o san­
gue do, trabalhador, bem como de preparar o parelheiro
para as corridas. 0 professor porventura pensa bastan-
' te sobre o que poderia estimular, esporear todas as for­
ças de seus discípulos para o esforço intelectual?
, 4.°) O trabalho pessoal do aluno é estimulado so­
bretudo pela importância que o professor depois lhe atri-
bue. Argumente-se tanto quanto se quiser sobre a inu­
tilidade das correções dos temas. É possível que se este-
•ja com a razão, pensando que o discípulo não tira das ano­
tações do corretor vantagem proporcionada ao trabalho
que a éste custaram. Mas não se tem razão de esquecer
a influência moral que representa o apreço prático do pro­
fessor pelo trabalho do aluno. Dar-se pressa em exami­
nar cuidadosamente o tema, procurar gostosamente, os
“ sucessos” , rejubilar-se com os perigos esquivados e as
esperanças realizadas, achar um progresso real, descobrir
os pontos onde se poderia inserir um elogio encorajador
244 A Estrada, Real da Inteligência

e uma observação instrutiva; preparar, para a aula, um


torneio animado, em que se quebrariam lanças e onde cada
um obtivesse um triunfo, despertar assim o gosto da n o-.
bre luta pela verdade, — eis uma pedagogia viva, que não
passa despercebida aos olhares curiosos dos alunos e que,;
mais do que tudo, espicaça o ardor pelo trabalho.
Essa colaboração prática do mestre é de uma eficácia
extraordinária. Mas ela tem um defeito, — um apenas:
o de ser gratuita. Ela está além do estrito dever; faz.
apêlo ao devotamento, e que devotamento!, muitas vezes
pago com ingratidões e críticas.
O que equivale a dizer que se é educador por vocação*
por gôsto, por paixão, e jamais por interesse ou neces­
sidade. É preciso amar e esquecer a si próprio, senão,
quando muitó, ser-se-á apenas professor.
5.°) Orar. — Não propomos a oração como um ato
de piedade pessoal, mas como uma função do magistério,
Não se trata aqui de moralidade religiosa por parte ao
mestre, mas de um método de educação.
O Bem-aventurado Padre Le Fèvre, um dos mais emi­
nentes doutores da nascente Companhia de Jesús, deixou
certas instruções aos estudantes de Paris e de Lovaina,
que merecem tôda a nossa atenção.
Seu “ desejo” , diz êle, e o de tôda a Companhia, é q
de que se alie “ ao espírito de ciência a docilidade às ins­
pirações do Espírito. Santo” . “ Êle se realizará. .. se,' as­
sistindo às lições dos mestres, seguis a direção do maior
de todos, quero dizer, do Espírito Santo, o qual, em defi­
nitivo, espalha pelas inteligências os conhecimentos lite­
rários. Em sua escola e sob a sua disciplina, sabe-se per­
feitamente bem o que se aprende; e quem quer que pre­
tenda aprender e saber alguma cousa sem êle, não sabe
nem sequer como deve aprender e saber” . E depois de
relembrar que Jesús Cristo desejava que se recorresse
ao Espírito Santo afim de compreender e reter as lições
d’Aquele que era o Mestre por excelência e a Verdade, e
com muito maior razão as dos professores humanos, coh-
clue: “ Pois bem, ardentemente desejo q u e ... prevejais
A formação pedagógica dós professores 245

e prepareis em vosso espírito, diante do Divino Mestre,


as lições que os Doutores vos devem dar ; e que após ha­
vê-las ouvido, as repasseis em vosso espírito e em vossa
memória, sempre diante de Deus, o mais perfeitamente
que vos seja possível” (-:a) .
O dever escolar dos alunos é antes do mais do educa­
dor. E não somente porque é , de sua missão recordar-
lhes de onde vem toda luz e inteligência, isto é, a exis­
tência e a atividade do Mestre interior, senão também
porque é finalidade sua formar espíritos vivos', reflexos
do Verbo; e conduzí-los vitalmente a seu fim, a Verdade.
Na própria Universidade, quantos professores leigos com­
preenderam e observaram esta lei da iluminação divina
das inteligências!
É bem conhecida a prece de Ozanam, bem como a de
Ollé-Laprune (2 2022
1
0 ) . Outros tantos, cujo diário-íntimo não
3
0
foi publicado, revelam pelo espírito mesmo de seu magis­
tério que sabiam recorrer ao Espírito Santo.
Por que motivo, pois, é necessário êsse apêlo à cola­
boração da Verdade infinita? Perguntemo-lo a Bossuet,
que de mil maneiras mostrou os transvios por que se per­
de o espírito livrado às concupiscências. Santo Tomaz
de Aquino aconselha ao homem de estudos: Orationi va­
care non Resinas. Não deixes de rezar (20S).
A Igreja não nos ensina sôbre a necessidade da gra­
ça para remediar a fraqueza de nossa razão? A prática
dos fiéis tornou banal, nas aulas, a fórmula do Veni
Sánete: Deus gu i, corda fiãelium Sancti Spiritus ILLTJ-
STRATIONE DOCUISTI. A própria graça santificante
é acompanhada por um cortejo de dons, antes do mais
intelectuais ( 204). ·
Aduzamos a estes testemunhos um argumento capital.

(201) , Le Bx. Père Le Fèvre, par le P. Prat (1873, Briday), pág. 142.
(202) Cír. Vitâlité chrótienne, prefácio; Ozanam, por Mojis. Baudrlllart,
pág. 291; cfr. P. Charmot; L’âme de réflncation, pág. 66, (Spes).
(203) Cír. Les Prièíes de saint Thomàs d’Aquin, Art Cathollquc.
(204) Tomamos a liberdade de aconselhar a todos os proíessoros a ora-
çSo do Breviário: os Salmos contêm uma constante e magnifica supUcaçáo
da almà em busca da Verdade. ■
246 A E strada Real âa Inteligência

Tôda verdade, objetivamente, é um simples reflexo,


um raio de Deus. Na ciência, diz admirávelmente o Pe.
Sertillanges (20B), “ os detalhes nada são; os fatos nada
são; o que importa são as dependencias, as comunicações
de influencia, as ligações, os .escambos que constituem a
vida da natureza. Ora, por detrás de todas as depen­
dências há a dependencia primeira; ao centro de todas
as ligações, o Liame supremo; acima das comunicações,
a Fonte; sob os escambos, o Dom; sob a sístole e a diás­
tole do mundo, o Coração, o imenso Coração do Ser” . Pe­
las veias de toda ciencia corre o sangue da Verdade, o
qual, num ritmo constante, o Espírito mesmo de Deus faz
nascer, regenera e propaga. Consequentemente, assim
como os outros órgãos vão pedir a vida ao coração, assim
também nós devemos guardar um contacto incessante com
Deus e merecer a sua luz.
Subjetivamente, a ciência não é nem sempre, nem de·
todos os modos uma posse da verdade. Êste livro todo é
de molde a indicar a distinção essencial que se deve fazer
entre a quantidade e a qualidade do saber. A verdade
está na qualidade. Deus mesmo tudo vê num único ato,
e a sua ciência não é divisível. Tempo virá em que, dis­
sipando-se o mundo das aparências, haveremos nós tam­
bém de compreender na simplicidade da intuição. A quan­
tidade fundir-se-á na unidade; e, aguardando isso, o pro­
gresso da inteligência se faz na linha da síntese profun­
da. Estas evidências foram expressadas por Montaigne
com um pitoresco que desarma os preconceitos.
Se recordamos, na primeira parte desta obra, a im­
portância de formar bons espíritos — os quais são cousa
rara — foi evidentemente porque a erudição abundante
e a reta inteligência são duas cousas que andam na maio­
ria das vezes separadas uma da outra. Pois assim como
se podem percorrer imensos espaços sem jamais avançar
pelo bom caminho, transpor em todos os sentidos uma2 5
0

(205) La Vie UitelIectuelXe, 3e. éd., pág. 34,


A formação pedagógica dos professores _________ 247

montanha sem atingir o seu cimo, conhecer todas as obras


de arte sem ser um artista, assim também podemos lançar
nossa inteligência numa labuta desmedida sem conduzí-ía
ao seu, Fim último, que é a Verdade.
Ora, a graça talvez não aumente diretamente as for­
ças físicas da natureza; põe-nas, porém, sempre na ordem,
no justo ponto, na reta via, na faixa1âa luz eterna. De
vastas compilações, pode-se concluir por,um êrro; a gra­
ça, porém, ilumina a inteligência e a mantém na verdade.
E o educador, cuja única finalidade é fazer com que
os espíritos cresçam na busca da verdade, tem por con­
seguinte necessidade vital do socorro da graça. Tê-la-á,
se trabalhar orando. Petenti dabitur.
APÊNDICE A

A importância prática da língua latina para o estudo do


francês e das línguas'vivas
M. Gastinel, inspetor-geral do ensino secundário;, re­
lata um fato muito significativo: “ O tema seguinte, diz
êle, foi proposto não faz muito por ocasião dos exames
vestibulares da Escola Normal Superior de Fontenay :
“ Explieai, comentai e discuti esta frase de Mme. de Staël:
As regras nada mais são ão que o itinerário do gênio” .
Pequena frase, muito simples e clara, parece, mas que
contém um vocábulo pérfido : o vocábulo itinerário. Pará
nós, homens do século ‘XX, que temos o costume de pre­
parar (e frequentemente sobre mapas) as viagens que
projetamos, essa palavra o máis das vezes significa: “ ro­
teiro de um trajeto a percorrer” (válor-futuro) ; nos tem­
pos de Madame de Staël essa mesma palavra geralmente
designava o “ relato de uma viagem feita”1 (valor-passa-
do). Ora, êsse valor temporal futuro ou passado assume
aqui uma importância primordial. Se entendemos itine­
rário no sentido moderno (futuro), o pensamento de Mme.
de Staël significará: As règras noÃa mais sãó ão que um
roteiro pretraçado para o gênio. Pretraçado por quem?
Evidentemente por aqueles que definem as; regras, isto
é, pelos críticos e pelos filósofos; e eis-nos, por conseguin­
te, em presença da ideologia que os doutos prègaVam no
século XVII. Se, pelo contrário, adotamos o significado
contemporâneo da autora, podemos transcrever : As <re­
gras nada mais são do que a síntes'e (feita posteriormente
pelos críticos) do caminho desbravado pelo gênio. ;Basta
A importância prática <ja língua latina 249

enunciar esta segunda transposição para que se constate


a sua excelência: ela reflete exatamente as idéias anti-
clássicas de Mme, de Staèl; e é a única que quadra com
a expressão empregada .{nada mais são). Ora, entre
mais de sessenta candidatas, quase jtôdas adotaram sem
hesitação o significado'inaceitável; nenhuma categorica­
mente o rejeitou para ater-se ao verdadeiro. E, entre­
tanto, elas, sem dúvida alguma, conheciam a obra de Cha-
teaubriand (Itinerário de Paris a Jerusalém), cujo títu­
lo deveria tê-las guiado. Tal é a tirania do uso e dó há­
bito . . . Contra esta tirania,, o latim pode fornecer ao mes- ·
tre uma ajuda eficaz e cômoda. Á palavra “ itinerário” ,
por exemplo, reproduz um adjetivo latino (iünerarius)
empregado substantivamente pela elipse de um têrmo co­
mo liber (livro), e foi em razão desta origem mesma que
primitivamente designou o relato de uma viagem ou, se
se preferir, um diário-de-viagem. Quando Mme. de Staél
atribue a êsse têrmo o sentido de “ diário-de-viagem” , ela
nada mais,faz do que se atèr .à tradição cuja fonte é o la­
tim, e nós é que, depois, rompendo com os costumes de
então, perdemos a chave do francês que se falava ainda
há cem anos” . ;
Podér-se-iam, múltiplicar os exemplos de confusões se­
melhantes. O número de palavras que conservam a acep­
ção latina nas obras da Idade Média e do século XVII é.
; tão avultado que se torna impossível compreendê-las exa­
tamente sem o conhecimento da língua-mãe. Dêsse modo,
nos séculos X IX e XX, corremos o risco de praticar mais
de uma vez contrassensos idênticos ao que vimos de ana­
lisar. "
■ “ Assixà/· cònciúe Gastinel, mais se remonta ao passa-3
do naçional' e mais o conhecimento, mesmo sumário, das
origens linguísticas facilita a inteligência das obras” .
“ Se o latim clássico porventura não fornece tôdas as
precisões, necessárias a respeito dessas origens, dá-nos pelo
menos os elementos essenciais,, e quem quer qúe possua,
tais elementos dispõe de um sólido fio condutor que pode
250 A E s tr a d a R e a l ãa In telig ên cia

dirigí-lo através de toda,a nossa literatura, de Turold a


Anatole France” . { Revue de l’Enseignement secondaire
des jeunes filles, 15 de out. de 1929, págs. 17-22).
b
* *
*

Nenhum testemunho é mais autorizado do que o de


A. Meillet, membro do Instituto, professor no Colégio de
França. Ora, várias vezes êle confirmou, pelas conclu­
sões de uma ciência incomparável, a suprema importância
do latim para o conhecimento das línguas modernas, e,
por conseguinte, para conservar ao francês a sua influên­
cia no estrangeiro.
“ Tôdas as línguas modernas da Europa ocidental, es­
creveu, estãd cheias de latim, mesmo onde parecem ser-lhe
independentes, O alemão não se saturou de vocábulos
latinos ou românicos tanto.como o inglês: impregnou-sej
porém, de espírito latino, e não foi em vão que toda a cul­
tura da Alemanha foi latina na Idade M édia.. . ”
“Ê' no latim que se reúnem línguas românicas e lín­
guas germânicas tais como o inglês e o alemão” .
“ Só o conhecimento do latim permite relacionar facil­
mente entre si as línguas -românicas; a quem sabe latim,
o italiano, o espanhol, o português, o francês são já semi-
familiares. Abandonando a cultura latina, os povos de
língua românica renunciariam a tudo o que faz a sua uni­
dade e enfraqueceriam, em face das demais línguas, a ca­
pacidade de resistência das suas. O latim, do qual essas
línguas nada mais são do que novos desdobramentos, do­
minou, sob a forma escrita, a constituição de tôdas as
línguas literárias românicas, e somente se se mantive­
rem sempre em contacto com suas origens latinas é que
as línguas românicas poderão fazer um todo entre si e
exercer uma influência. . . ” Ter-se-á, sem dúvida, obser­
vado a plenitude de inteligência -dêste texto. (Les lan­
gues dans l’Europe nouvelle, ed. de 1928, pp. 265, 268).
Alhures o mesmo autor precisa ainda: “ Lá mesmo
A importância/ prática da língua latina 251

onde o linguajar do país não era românico, o latim foi


a língua da civilização e da Igreja — inseparáveis uma
da outra — na Irlanda, na Grã-Bretanha, na Germâhia,
nas províncias danubianas, exatamente como na África
Menor, na Itália, na Península ibérica e na Gália” . (Es-
quisse d’une histoire de la langue latine, 1928, pág. 280).
“ Podem- as línguas nacionais em vão tornar-se im­
portantes, servir, depois da Reforma, a finalidades reli­
giosas, tornar-se o meio de expressão da ciência; por de­
trás de tôdas as línguas civilizadas do mundo moderno,
sente-se o modelo latino, muitas vezes em empréstimos
evidentes, e, quando não, de um modo igualmente certo
sob transposições em que se reconhece o modelo latino:
o inglês com seus inumeráveis empréstimos do latim e
das línguas românicas, o alemão com seus empréstimos
também numerosos, com seus decalques mais numerosos
ainda de termos românicos ou latinos, são, com uma for­
ma linguística diferente e com os traços originais dela
resultantes, línguas de civilização latina tanto quanto as
próprias línguas românicas. Foi na imitação do arti­
cular sólido e elegante das frases latinas que os autores
europeus aprenderam a arte de escrever. A parte inte­
lectual de tôdas as línguas literárias da Europa ocidental
está saturada de latim. A Europa e a América poderiam
esquecer a Unidade de origem de sua cultura — e não o
fariam sem prejuízo; —- suas línguas de civilização,,por
tudo o que contêm de unidade, confessada ou escondida,
continuariam a atestar que, por detrás das diversidades
das quais se faz glória e cujo valor se exagera, permane­
ce, às vezes1pouco visível, muitas vezes olvidado, mas
sempre ativo, o potente benefício da unidade latina” .
(Ibid., pág. 284).
Quem se recusará a aceitar por verdadeiro um depbi-
mento do valor dêste de A. Meillet?
Muitos outros especialistas, aliás, vêm depor em fa­
vor da mesma causa.
Poder-se-á ver na sugestiva obra dé Paul Crouzet:
lies Ponts Romcfins (collection d’entr’aide linguistique. I,
252 A E strada Real da Inteligência

Du latiu à Tangíais), — uma longa série de citações con­


vincentes: textos de Meillet — II. Yvon, professor no Li­
ceu Henrique IV — Alexis Bertmnd; professor na Facul­
dade de Letras de Lyon — A. M. Desrousseaux (Bracke),
professor na Escola de Altos-Estudos — L. Clêdat, profes­
sor na Faculdade de Letras de Lyon —- Ch. Pagot, funda­
dor do Curso de “ Sete línguas ensinadas ao mesmo tem­
po” — R. Cotará, professor no Liceu Montaigne —- 'L.
Merty, professor no Liceu de Carlos Magno — T. Suran,
membro do Conselho superior de Instrução pública — W,
Gilson, professor na Sorbona. Vários depoimentos, es­
peciais para o inglês, são dados a seguir.
Paul Crouzet anuncia tôda uma coleção, sob o título:
“ Les Ponts Romains” , que mostrará, detalhadamente,
tudo o que as línguas modernas devem ao latim.

■I
APÊNDICE B

A utilidade do exercício de tradução

(Especialmente da tradução do latim)

Aprendem-se línguas estrangeiras por utilidade, lêm-


se por prazer, traduzem-se por necessidade pedagógica.
Uma cousa é ler correntemente um jornal ingjês ou
italiano, afim de ficar a par das novidades da Europa,
e outra cousa muito diferente é traduzir com todo o cui­
dado uma bela página de Cícero, de Virgílio, de Platão,
de Schiller ou de Newman, afim de exercitar a inteligên­
cia. -
Não existe talvez um método especial para descobrir,
nas colunas de um jornal estrangeiro, os acontecimentos
de cada dia, a não ser tratar de aprender o mais depressa
possível o significado dos termos, desconhecidos. Há, po­
rém, um método para se formar o espírito através da ver­
são e da tradução. Não é indiferente descobrir-se o bom
entre os maus métodos, a seguir a Via qáe leva à cultüra
das faculdades humanas. '
É intenção nossa neste apêndice mostrar; atrávés de
uma análise precisa das operações intelectuais que uma
tradução perfeita exige, o esforço que sè deve obter do
aluno, se se quer ,que a sua educação humanista não fique
manca ou estéril. Fala-se muito das vantagens das hu­
manidades clássicas para fazer com que dás escolas saiam
elites de valor. Mas frequentemente se olvida que as cau­
sas só produzem os seus efeitos sob certas condições; con-
254 A E strada Real da Inteligencia

dições às vezês de difícil realização. A primeira condição


é o método.
Afim de evitar o escolho do “ vagó” ê do “ geral” , que
nada significam, tomaremos dentre todas as línguas uma
das mais formativas, a língua latina. Os conselhos dados
poderão ser adaptados seja ao grego, seja às línguas vivas.
A tradução é um exercício que forma o espirito, por­
que obriga a distinguir as idéias puras das palavras em
que se incarnam e que se vestem. Ninguém melhor do
que Bergson explicou êsse mecanismo e sua utilidade.. 0
filósofo analisa a um desses temas em que se tornou mes­
tre. Descreve inicialmente a escravidão a que a lingua­
gem reduz o pensamento: “ Um dos maiores obstáculos
à liberdade do espírito, diz êle, são essas idéias qUe a lin­
guagem nos traz já feitas, e que respiramos, por assim
dizer, no meio que nos cerca. Elas jamais se assimilam
à nossá substância; incapazes de participar da vida do
espírito, elas perseveram, verdadeiras idéias mortas, em
sua rijeza e imobilidade . . . ”
“ . . . Devemos buscar, para além das idéias que sé
'congelaram e imobilizaram na linguagem, o calor e a mo-
' bilidade da vida. ' Arriscamo-nos a falar como papagaios
que não pensam no que dizem, e não como homens, que se
servem das palavras para exprimir um estado espiritual
definido.”
Bergson propõe a solução; mas se pode pensar que
tenha examinado todas as hipóteses, e a tôdas avaliado,
antes de resolver a questão. “ Vejo justamente, continua,
na educação clássica, antes de tudo, um esfôrço para rom­
per o gêlo das palavras e alcançar, sob" êle, a livre caudal
do pensamento. Exercitando-vos, jovens alunos, na tra­
dução das idéias de uma língua para outra, ela vos acos­
tuma a fazê-las cristalizar, por assim dizer, em vários
sistemas diferentes; assim, ela as desembaraça de tôda
forma verbal definitivamente fixa, e convida-vos a pensar
as próprias idéias, independentemente das palavràs. Na
preferência que a qclucação clássica votava à antiguidade,
não havia somente · uma grande admiração por modelos
 Utilidade do eicercícío de tradução 25 5

puríssimos; pensava-se sem dúvida, também, qüe as lín­


guas antigas, recortando, segundo linhas bem diferentes
das nossas, a continuidade das cousas, levavam, por um
exercício mais violento e mais rapidamente eficaz, à li­
beração dã idéia. E depois, alguma vez se realizou es­
forço comparável ao dos antigos gregos, por dar à palavra
a fluidez do pensamento?”
“ Mas, em qualquer língua que se exprimam, os gran­
des escritores podem prestar o mesmo serviço à nossa in­
teligência ; pois todos tiveram e todos procuraram dar-nos
a visão direta do real, em casos nos quais percebíamos
as cousas apenas através de convenções, hábitos e símbo­
los. Neste sentido, a educação clássica, mesmo quando
parece atribuir máxima importância às .palavras, ensina-
nos sobretudo a não nos deixarmos embair por elas” (206).
Unicamente uma longa experiência nos permite ava­
liar a tirania falaz que o psitacismo ou o semipsitacismo
faz pesar sôbre as nossas relações humanas; todos nós
somos vítimas de nossas confusões de palavras; engana­
mo-nos a nós mesmos e enganamos aos outros sôbre o nos­
so pensar autêntico e sôbre a parte de verdade que êle
encerra, em virtude da espessa matéria verbal que ofusca
a visão do real. A primeira educação de que temos ne­
cessidade, desde a primeira infância, é da que nos ensine
a pensar e não somente a falar, a bem pensar e não so­
mente a imaginar, a. pensar justo e não somente a sentir.
A tradução obriga o espírito da criança a manter o pen­
samento, por assim dizer, em estado puro diante de sua
atenção, no instante em que, abstraído das palavras que
o haviam materializado, êle passa para uma outra língua,
e nela procura, em meio a uma multidão de vocábulos es­
parsos, somente aqueles que elegerá como sendo os mais
semelhantes à sua imagem. ■ ,
O grande privilégio de um texto em língua estrangei­
ra, escrita por um excelente autor, é o de proporcionar-nos

(206) H. Bergson, citação de Legendre: Le píolbième de 1’Education,


págs. 183-184.
2S6 ' A Êstraâá Real da Inteligência ■' .!

pensamentos justos e belos, que chegaram à /plena Ma­


turidade e à mais 'perfeita precisão, deixando ainda aber­
ta a busca difícil do modo de exprimí-los em francês, onde
êsses pensamentos encontrarão corpo.
Nossa língua materna, ao contrário, fornece-nos ao
mesmo tempo o pensamento e a expressão indissoluvel­
mente ligados e não nos exige nenhtim trabalho de pesqui­
sa: a obra está feita, não há mais nada a fazer.
, * *

As línguas mortas, porém, como o latim e o grego,


são muito superiores, às línguas vivas sob êsse aspecto,
em virtude da natureza mesma das dificuldades que a sua
tradução oferece à inteligência do adolescente. O educa­
dor autêntico conhece o gênero particular dêstes proble­
mas de tradução e obriga o espírito de seu discípulo á
encará-los com nitidez e a resolvê-lós com clareza.
Em que consiste essa dificuldade particular das lín­
guas mortas ? No mráter sintético, delas. '
Para compreender um texto moderno, geralmente
basta conhecer o significado dé cada palavra: as frases
são construídas em francês mais ou menos segundo um
mesmo modêlo rígido. Em inglês, em italiano, em ale­
mão fica-se sabendo o que está escrito, na maioria das ve­
zes, assim que o dicionário foi aberto. No latim, pelo
contrário, nada é mais delicado do que a significação da
frase, e mesmo de cada termo; o dicionário presta apenas
uma fraca ajuda; bem frequentemente serve para trans­
viar o espírito que se não acautele contra uma literalidade
excessivamente material.
Tudo está para ser descoberto: tanto a função de
cada palavra segundo às suas desinências, tanto as relações
entre as “ partes do disourso” , tanto a colocação que lhes*
dá á ordem do pensamento, tanto; a escolha das relações
especiais que ligam tais e tais têrmos na frase, quanto: à
idéia que a síntese dos vocábulos exatamente agrupados
A utilidade do exercício ãe tradução 257

faz nascer no espírito... Que trabalho! E que exercício


para uma cabeça de criança!
Depois vem o trabalho de lógica! As línguas moder­
nas ocultam os liames, as articulações, toda a anatomia
da composição ; talvez se aproximem mais -da beleza plás­
tica, que fala aos sentidos do que da beleza intelectual que
satisfaz à razão.
Ora, a criança, instintivamente ilógica e ventoinha,
salta de uma frase para outra, como um pássaro de ramo
em rámo, sem nenhuma preocupação de unidade. Seme­
lhante instinto, que é uma fraqueza de espírito, será re­
freado, retificado, endireitado, em seguida transformado
em viril hábito de compreender, pela contextura fortemen­
te travejada da composição latina. A frase latina é so­
bretudo bela pela sua arquitetura. Todas as linhas, todos
os relevos, tôdas as nervuras, todas as ligações do pensa­
mento são vigorosamente acusados pelas partículas de li­
gação que fazem dos liames lógicos, por assim dizer, obje­
tos especiais, à semelhança dos outros, substantivos e ver­
bos. Dêsse modo, a razão se vê obrigada a deter-se, a re­
fletir, a praticar o raciocínio puro. A subordinação, a
coordenação, a simetria, a antítese, o paralelismo das
idéias, tudo encontra a sua expressão verbal. Dir-se-ia
que a verdade intelectual e que a unidade das partes do
discurso são, para os romanos, o fim supremo do escritor,
o ideal do estilo. Que o estudante francês se dê por feliz,
portanto, por ter ês.se benefício providencial de uma língua
construída como as catedrais góticas, com todos os seus
membros perceptíveis aos olhos, afim de poder facilmente
seguir o pensamento em tôdas as suas articulações lógicas,
e desta forma dominar a torrente das imagens e cultivar
a sua razão (207).

(207) Poder-se-ia facilmente aqui mostrar a superioridade do grego em


face do latim. Pois a língua grega, graças às suas partículas, põe à vista
o Jôgo vivo. e ágil das mais sutis relações de idéias, com maior finura, e mo­
vimento que á língua latina. “Em França, escreve Abel Hermant (Lettres
à· Xavier sur l’art d’écrire, pág, 117; Hachette), somos mais romanos do
que gregos, e pode-se lamentà-lo; mas é dal, .talvoai que nos .vem a· .nossa
reputaçSo de sabermoa bem ordenar as partes; pois a construção latina .6
258 A E strada Real da Inteligencia

É por êsse motivo que se deve pedir à tradução lati­


na, não apenas idéias, mas uma formação lógica do espí­
rito, porque não são aquelas, mas esta, que ela está sobre­
tudo "habilitada para nos dar.
Daí, um método. Os educadores devem incitar 'as
crianças a que não se contentem com apenas ver, mais
ou menos grosseiramente, o sentido, mas que procurem
compreender as relações íntimas que ligam umas às ou­
tras as idéias parciais racionalmente encadeadas. Assim
a criança amadurecerá a sua inteligência e aprenderá
pouco á pouco a pensar como homem.
* *
*

Mas o latim é de utilidade maior ainda. Pois êle


não somente trava fortemente as idéias umas com as ou­
tras, mas ainda as ordena conforme à posição que lhes
convém na unidade do discurso. Cada proposição está
no seu lugar; e se êsse lugar tiver que ser secundário, a
sintaxe a relegará a segundo plano, As línguas moder­
nas parecem fugir das grosseiras engenhosidades da gra­
mática; tôdas as frases tendem a tornar-se principais e
paralelas; parecem equivaler-se; o igualitarismo predomi­
na até mesmo aqui; elas se seguem, em consequência, quase
tôdas no mesmo plano; importa pouco que exprimam, uma
o fato, outra as circunstâncias dêle, outras ainda as suas
circunstâncias ou causas; tudo se torna fato particular
e isolado.
Assim também a criança, que não sabe por si mesma
distinguir o principal do secundário, o necessário do con­
tingente, o essencial de seus desdobramentos acessórios,

mais aparente, ao passo que os gregos dão sempre a impressão de tratar


com tôda a liberdade a regra de arte; o que afio os impede de observá-la
mais docilmente do que ninguém, e de não amar nada aoima da medida,
que êles não distinguem da beleza. Ainda Uma vez, pelo consenso univer­
sal ® a-pesar-desta diversidade, a primeira condição para qu» um livro seja
belo é que êle seja bem feito” , ter, n esta m esm a obra, as páginas SO a-SS
Cheias de sugestões,
A utilidade do exercício de tradução 259

não aprende, nas línguas modernas, a medir o valor re­


lativo de cada idéia. Não aprende a compor. Mais ain­
da, não forma a sua inteligência. Ao passo que a língua
latina, pelo contrário, o obriga a ordenar as idéias, a com­
por, a raciocinar com o autor.
Tal será, portanto, a finalidade que o educador visa­
rá com a tradução: procurará habituar o espírito do dis­
cípulo a dar-se conta da escala das dependências lógicas,
afim de captar a organização dos elementos na unidade
de um todo. Preciosa qualidade da inteligência!
APÊNDICE C

O exercício de versão

Há? duas maneiras de entender a versão latina, se­


gundo a finalidade que se visa. Se se tem a intenção de
falar e escrever latim como uma língua viva, à semelhan­
ça da língua materna, a versão terá o seu fim em si mes­
ma; e dever-se-ã lançar mão dos meios adequados a êsse
fim : o texto francês nada mais será que um ponto-de-
partida e tratar-se-á de alojar na memória bastantes vo­
cábulos, expressões, frases latinas (e não faltam livros
com essa finalidade no passado), afim de se ficar capaci­
tado de pensar em latim e de expressar em latim as idéias
do autor francês, inglês, etc.
Essa é inegavelmente uma nobre tarefa, útil até em
certos casos especiais. Mas, em definitiva, é a principal
dentre as tarefas da educação da juventude? É uma ta­
refa que os adolescentes de hoje sejam capazes de fazer?
Parece que não. Pois estes tão dificilmente chegam a
expressar-se de um modo conveniente em sua própria lín­
gua materna, que parece supérfluo pedir-lhes que se ex­
primam em latim, fora das formas de exercício oral de
gramática e de vocabulário.
Mas, se se tem a intenção de aprender, afinal, o fran­
cês, quero dizer, a própria língua materna, e .de passar
pelo latim na medida apenas em que êste é útil à forma­
ção do espírito do jovem francês, a um melhor conheci­
mento de sua língua natal, à inteligência das graneles
obras francesas, à aquisição Ho modo de pensar francês»
O exercício âe versão 261

então, a versão permanece em seu lugar de humilde ser­


vidora da tradução, e a tradução na de humilde servidora
da língua francesa. Quando se diz de alguém: êle “ sabe
falar latim” , não se deve entender que essa pessoa sabe
falar francês, nem mesmo que ela recebeu a formação
clássica. Poderia ser um sofisma.
Há, portanto, uma maneira de aprender latim que
atinge a finalidade da educação secundária, e uma outra
que não a atinge.
Vejamos, primeiramente, o que pensam os mestres
da pedagogia escolar do exercício da versão, em que me­
dida e sob que forma crêm-na útil à cultura intelectual.
Em seu célebre Traite des Études, Rollin reprova êsse
gênero de exercício para os primeiros anos de latim; mas
não toda e qualquer versão (II, pág. 185): “ No que se
refere aos primeiros tempos, não hesito em opinar que se
deve precindir quase absolutamente das versões, que só
servem para. atormentar os alunos com um trabalho peno­
so e pouco útil, e a inspirar-lhes aversão por um estudo
que ordinariamente só lhes acarreta, da parte do mestre,
censuras e castigos; pois sendo muito frequentes e quase
inevitáveis as faltas que cometem em suas versões, as
correções passam também a sê-lo, ao passo que a explica­
ção dos autores e a tradução, nas quais nada produzem
de si mesmos se nada mais fazem do que referir-se· ao mes­
tre, lhes poupam muito tempo, pena e punição” . “ Para
compor bem em latim, é preciso conhecer um pouco o me­
neio, as locuções, as regras dessa língua, e haver arma­
zenado um número bastante apreciável de palavras cuja
fôrça bem se sinta, e das quais se seja capaz de fazer
uma aplicação justa. Ora, tudo isso só se pode fazer
explicando os autores, que são como que um dicionário
vivo e uma gramática falante, nos quais se aprende pela
própria experiência a fôrça e o verdadeiro uso das pala­
vras, das frases e das regras da sintaxe” (pág. 183) v E
ajunta uma observação, cuja procedência estamos sempre
a constatar: “ É verdade que tem prevalecido o método
contrário, e que êste é bastante antigo; mas não se segue
262 A E strada Real da Inteligência

daí que devamos entregar-nos a êle cegamente e sém exa­


me. O costume muitas vezes exerce sôbre os espíritos
uma espécie de tirania que os mantém escravos e que os
inibe de fazer uso de sua razão, a qual, neste gênero de
matérias, é um guia mais seguro do que o só exemplo,
por mais autorizado que venha pelo tempo. . . ”
Importa, porém, não incidir no êrro de pretender,
como frequentemente muitos se permitem, que Rollin con­
dena a versão de tôda e qualquer maneira. Ao contrá­
rio, assim se exprime êle à página 196 do volume citado:
“ Quando os alunos já tiverem algumas ligeiras tintas de
latim e que estiverem um pouco iniciados na explicação·,
penso que a composição de versões lhes poderá ser de mui­
ta utilidade, uma vez que não seja por demais frequente,
sobretudo no princípio. Ela os obriga a porem em prá­
tica as regras que lhes foram muitas vezes explicadas
oralmente e a f-azer pessoalmente aplicações delas, o que
as grava muito mais profundamente em seus espíritos;
proporciona-lhes também a ocasião para empregar todas
as palavras e tôdas as frases que se lhes fez observar
quando da explicação dos autores. Pois seria de desejar
que as versões que lhes fôssem dadas pudessem ser geral­
mente feitas sôbre o autor mesmo que se lhes explicou, o
qual lhes forneceria expressões e locuções já conhecidas
de que iriam fazendo a aplicação conforme as regras de
sua sintaxe” . À página 198: “ Haveria uma outra ma­
neira de fazer os alunos comporem, que conviria também
às classes mais adiantadas. Seria a de obrigá-los a faze­
rem versões em aula à maneira como fazem explicações
dos autores, quero dizer, ocalmente. Dêsse modo ensina-
se-lhes com mais facilidade e certeza a fazer uso de suas
regras e leituras, e a precindir dos dicionários, alvo a
que eu desejaria que se tendesse, porque o costume de
manuseá-los acarreta uma considerável perda de tempo” .
Bréal (Quelques mots sur Vinstruction publique en
Frunce) , que também não condena todo e qualquer uso
da versão, critica com razão certos abusos que dela se fa­
zem; por exemplo, à página 206: “ É preciso primeiro que
Ô exercício de versão 263

o escolar entenda o texto. Feito, porém, êste trabalho,


resta ainda a resolver a questão seguinte: “ De que ma­
neira um romano teria dito isto em latim?” . É o momen­
to de procurar na memória os têrmos que. mais ou menos
convenham ao caso. O filólogo de profissão, que conhece
um grande número de expressões, pode sentir um ' certo
prazer em tal busca; para o aluno, é uma tarefa ingrata
e triste. . . Quem nada sabe vai direito ao dicionário.. .
O tempo de estudo consome-se nisso. É para estranhar,
depois disso, que tantos alunos tomem aversão não somen­
te pelas versões, mas também pelo latim, vendo que é ape­
nas com vista às versões que fazem com que o aprendam?”
Crouzet (Méthoãe latine, cl. de 4e. e 3e., pág. 109) :
“ Quanto à versão... O dicionário francês-latim deve ser
usado o menos possível, um bom aluno não deve procurar
nele mais de uma dezena de vocábulos numa versão. Efe­
tivamente, quando· procura a tradução de um têrmo fran­
cês, verifica quase sempre que já a conhecia. Em igual­
dade de conhecimentos, uma versão feita quase sem apêlo
ao dicionário apresenta uma grande superioridade, não
somente na facilidade da tradução, mas na própria cor­
reção. Com efeito: l.°, nela só foram empregadas ex­
pressões que já se conheciam e compreendiam bem; 2.°,
não se perdeu, no compulsar o dicionário, .a sequência das
idéias. Mas, objetar-se-á, há 420.000 vocábulos france­
ses, e o aluno não pode conhecer a tradução de todos êles.
É um êrro : pois não se deve traduzir palavra por palavra,
caso em que se chegaria com o dicionário a uma tradução
dêste gênero (se nos permitem uma redução ao absurdo):
“ Houve inicialmente aí um vivo entusiasmo. — Ille ibi ha-
buit ex appulsu unum vivum afflatum” . O que só pode
significar que: “ Aquele teve, desde o impulso, uma só
insuflação viva” . O que se deve é traduzir idéias: um
vocabulário de 1.500 a 2.000 palavras basta para expres­
sar todas as idéias correntes, e o aluno já conhece de há
muito todos os elementos necessários à tradução da frase
seguinte: Fuit primum arâens studium” ,
(Em nota: “ Se se desejam verificar certas formas,
264 * A E strada Real da Inteligencia

sobretudo os nomes próprios; é no dicionário latim-fran­


cês que se as achará. O dicionário latim-francês é bem;
mais útil à versão do que o dicionário francês-latim).
Conclusão: aprendamos a língua antes de fazer versões.
Bezard ( Comment apprenãre le latin à nos fils), da
página 113 à página 143, ocupa-se desta questão da ver­
são. E critica vigorosamente a versão feita a golpes de
dicionário: “ Proscrevemos o dicionário, estabelecemos em
princípio que expressão alguma, que locução alguma .de­
veria ser traduzida cio., francês para o latim sem antes ter
sido vista e recitada vinte vezes” . Cita o relatório oficial
de um inspetor-geral, Darlu, encarregado em 1912 de um
inquérito sôbre o estado da versão latina: “ Limitei-me
a ler quase exclusivamente uns dois ou três trabalhos clas­
sificados como os primeiros dentre os exercícios de ver­
são, e achei-os tão perfeitamente falhos como os demais.
O que ilude é que os professores tomaram o partido de
só marcar as faltas materiais contra a gramática ■ — os
solecismos e os barbarismos propriamente ditos — sem
levar em conta a latinidade da frase. Entretanto, o têr-
mo barbarismo deve entender-se também das faltas gra­
ves contra a língua, de toda maneira bárbara de expres­
sar-se. E é a latinidade que falha, ainda mais do que a
correção gramatical, nos exercícios primeiro colocados” .
Não é que Bezard queira suprimir a versão, — o que
lhe parece pernicioso é a versão feita com dicionário ao
lado: “ Devemos, portanto, cada vez mais, proscrever a
versão, tal como é geralmente concebida, isto é, como uma
tarefa pessoal feita pelo aluno em casa à fôrça de dicio­
nários. Nada de versões feitas em casa! Sobretudo,
nada de dicionário francês-latim! Deixemos que êle se
torne um instrumento fóssil e permaneça coberto de poei­
ra nas prateleiras das livrarias. . . ”
Substituí-lo-emos pelo que? Primeiro, diz êle, pela
recitação, sob diversos modos, dos cadernos de vocabulá­
rios e de sintaxe: “ Tornamos, uma vez mais, ao nosso
leit-motiv. . . Não se aprende pela versão! Não se
aprende com a só escrita! Não se aprende peló dicio-
0 exercício de versão 265

nário ! Aprende-se pela repetição . . . Fazei recitar o


caderno!” Segundo, pela versão de imitações, sob di­
versos modos ; nosso autor dá um exemplo tirado das
fábulas de Fedro, e acrescenta: “ O leitor poderá ima­
ginar uma série de contos análogos, cuidando de não
empregar uma palavra ou uma locução que não tenha
sido repetida umas vinte vezes ao menos pelo aluno. As­
sim procediam Bossuet e Fénelon nas versões, superiores
às nossas provavelmente, que se davam o trabalho de com­
por para os seus discípulos. . . ” Terceiro, por um exercí­
cio que êle mesmo experimentou pessoalmente e fez com
que outros experimentassem com todo o sucesso ; e que
consiste em comparar um texto francês com a sua tradu­
ção latina, depois da leitura e análise dêle feitas pelo pro­
fessor, e repetí-lo até a assimilação perfeita. Desta ma­
neira não há perigo que assimilar prius in sensu, deinde
in intellectu um latim de má qualidade.
E à página 68 diz: “ Deve-se reconhecer que no pri­
meiro ano, contanto que nos contentemos com exercícios
extremamente simples e cujos têrmos todos sejam perfei­
tamente sabidos previamente, êsse gênero de tarefa esco­
lar é tão fácil quanto indispensável” .
Charles Bigot (Questions d’enseignement secondaire),
num capítulo que contém boas verdades, intitulado L’en­
seignement du grec et du latin, diz, à página 144 : “ A
versão deveria ser sobretudo um exercício de vocabulário,
que obrigasse o aluno a reencontrar em sua memória os
têrmos latinos. Fez-se da versão um exercício escrito.
O professor dita ao aluno um certo número de frases fran­
cesas, que deve devolver redigidas em latim. Quando
uma palavra francesa o embaraçar, abrirá o dicionário;
aí é que irá encontrar, após haver folheado umas tantas
páginas, em seu exato lugar alfabético, o têrmo latino
equivalente que lhe falta. O exercício é fastidioso, e de
uma lentidão desesperadora : mas há quem pretenda que
êsse esforço mesmo feito pelo aluno para achãr uma pa­
lavra em seu dicionário é útil, e que grava melhor em sua
memória o têrmo latino que ignora. . . ”
26 6 À Ë straâa Beat da Inteligência

“ Não creio que se retenha melhor uma palavra pelo


fato de que se a procurou num dicionário. Dei-me ao
trabalho, quando aluno da Escola Normal, de fazer uma
cruz em meu dicionário grego toda vez que nele buscava
um têrrno, e pude verificar, dêsse modo, que era sempre
o'à mesmos vocábulos que eu precisava procurar. O ver­
dadeiro modo de reter uma palavra desconhecida de uma
língua estrangeira, não é folhear um léxico para encon­
trá-la, mas, sim, encontrá-la muitas vezes. Sim, a versão
pode ser um exercício fecundo, — mas com uma condição :
e é a de que, renunciando ao método das versões escritas
e gramaticais, que somente deveriam ser empregadas mui­
to moderadamente, se volte a praticar na aula mesma a
versão oral. Tomar-se-á de uma frase francesa, bem sim­
ples, bem elementar, que exija sobretudo o conhecimento
dos vocábulos; pedir-se-á aos alunos que a traduzam em
seguida para o latim; se um não encontrar o têrmo latino
equivalente ao têrmo francês, seu colega encontrá-lo-á.
E se nenhum dos alunos o. encontrar, o professor, fazendo
o ofício do dicionário, dí-lo-á. Um quarto de hora de exer­
cício dêste gênero em cada aula produziria grandes re­
sultados” .
Não é destituído de interêsse constatar que o método
recomendado nestas páginas por tantas autoridades é o
método tradicional. Pois já na Ratio Studiorum da Com­
panhia de Jesús, que precedeu a pedagogia da Universi­
dade, ordenava-se aos regentes, quanto aos exercícios de
latim, que fornecessem aos alunos todo o material de tra­
balho: R. 30 “ vocabula, phrases, aliaque praesiãia sumi-
nistret” ; faziam-se cadernos de vocabulário tais como são
recomendados hoje em dia, ensinavam-se expressões la­
tinas.
Sem dúvida, havia o propósito de falar latim, o que
modernamente parece não ser o resultado principal. Ou­
tros há, mais importantes, que acresceram. Mas, do pon­
to de vista do método, resta indubitável que não se pedia
aos alunos que escrevessem em latim sem antes haver ad­
quirido o latim, e que não se perdia o tempo em passar
0 exercício de versão

palavras e mais palavras do dicionário para uma fôlha de


papel.
Importa observar, ademais, que, se houvessem feito
versões latinas, teriam procedido da mesma maneira.
Tanto mais quanto a versão, não permitindo como o dis­
curso pessoal a liberdade de palavra e de expressão, apre­
senta uma dificuldade maior, sob muitos pontos de vista,
do que a composição latina. Um adolescente expressará
com mais f acilidade as suas próprias idéias do que as de
um Bossuet; e pode, além disso, fazer com que as suas
idéias sigam o curso das fórmulas de que dispõe em la­
tim, o que não lhe é possível quando se trata de traduzir
Bossuet ou Montesquieu.
Pode-se reprovar o exercício de composição latina,
como supérfluo em nossos dias nos colégios, mas, se se
pratica um tal exercício, e, com maior razão, se se o subs­
tituo pela versão, — não se teria por que censurar que
êle fôsse preparado por uma aquisição proporcionada da
língua na qual se escreveu.
O Pe. Jouvancy, em seu livro De Ratione stuãendi
et ãocendi, repete muitas vezes o mesmo princípio: adqui­
rir materiais, antes de construir!
Mons. Dupanloup (De la haute éâueation intellectuel-
le, L. III, cap. V ), após haver demonstrado vigorosa e
proficientemente a necessidade da versão, responde a esta
pergunta: “ Como fazer a versão?” É preciso, pois, fa­
zer versões; mas isso não basta, é preciso fazê-las bem,
pois de outro modo ter-se-á um exercício estéril e bárbaro.
Infelizmente, em virtude da inércia ou da incapacidade
dos professores e da indolência dos alunos, uma tal bar­
baridade é assaz frequente. O diretor de uma casa de
educação deve empenhar-se por convencer a mestres e
alunos de que não há maneira mais indigna e infeliz de
perder o tempo do que empregá-lo em fazer versões bár­
baras. “ Tòdo o mundo compreende que se as versões são
na maioria das vezes bárbaras, não somente pôr culpa dos
alunos, mas também em virtude da preguiça dos profes­
sores, é porque estes últimos não deveriam contentar-se
268 A E strad a Real da inteligência

com dar uma versão para fazer, mas deveriam também


preparar-lhe a tradução” .
Aliás, Mons. Dupanloup precisa o seu pensamento à
página 300: “ É preciso ocupar-se dela (da propriedade
dos têrmos) desde o Sétimo ano, porque ela nada mais é
do que o próprio sentido das palavras. É um êrro muito
grande, muito espalhado hoje em dia, nesses preparató­
rios, não exigir dos alunos o têrrrío próprio, a verdadeira
„ palavra latina, quero dizer, a palavra que os latinos usa­
vam no sentido exato e preciso que lhe corresponde. O
espírito das crianças deve fixar-se desde o comêço sôbre
o que há de essencial nas línguas. Ora, a acepção verda­
deira, a exata propriedade das palavras é essencial a uma
língua, tão essencial ao seu léxico quanto as regras à
sua gramática; pensa-se não dever permitir um solecis­
mo, e crê-se no entanto poder relevar um termo rid í­
culo, desusado, impróprio. Isso, repito-o, é para mim um
grande êrro, é uma das principais causas por que, hoje,
se escreve tão mal o latim, mesmo nos anos mais adianta­
dos. O que não se deve exigir das crianças nos primeiros
tempos são as nuances sutis, a elegância, as finuras, as
locuções requintadas e difíceis. Tudo isso deverá vir gra­
dualmente e pouco a pouco. Quanto à propriedade voca­
bular, esta deve vir desde o início. Preocupar-se apenas
com a gramática e a observação das regras, e desatender
à propriedade dos têrmos, é ter os olhos cerrados para
tôda uma metade das condições essenciais e constitutivas
•de tôda língua, de tôda palavra humana” .
Ora, é evidente que não se deve exigir das crianças
que possuam a propriedade dos têrmos da língua latina
por ciência infusa, nem mesmo que a adquiram por si
mesmos (são incapazes de fazê-lo mesmo com a sua lín­
gua materna!), nem mesmo que procurem encontrá-la por
acaso. Só há um modo de fazer còm que a saibam, e
é o de ensinar-lhes isso antes de exigir-lhes que o ponham
em prática. Senão, não evitaremos as críticas de Du­
panloup.
O exercício de versão 269

Pode-se, por conseguinte, dizer que há acordo a res­


peito do método que sé deverá seguir com as versões: ja­
mais obrigar a escrever uma língua sem antes conhecer
os seus elementos.
Ocorre perguntar, quando se pensa neste problema,
de que modo o uso de uma espécie de versão antipedagó­
gica e deformadora pôde introduzir-se nas aulas, contra
a opinião unânime dos melhores educadores. Deve-se bus­
car a explicação dêste fato na utilização mesma dos livros
de aula, em que todos acham a ocasião, a tentação para
dispensar-se do trabalho pessoal.
Que jamais se perca de vista, portanto, a hierarquia
dos fins no conjunto dos exercícios escolares. Grouzet,
em seu método latino (para o 5.° e o 6.° ano), à página
14, diz com toda a propriedade: “ A versão se subordina
à tradução . .. Mas versão e tradução, não obstante o seu
valor único como exercícios intelectuais, não são nem por
isso fins em si mesmas. Têm ambas por finalidade o per­
mitir o mais cedo possível a explicação dos autores, a lej-
tura direta do latim. E o próprio latim não é um fim em
si mesmo, como o acreditaram ou pareceram acreditar
aqueles que tentaram introduzir nos cursos tôda a ciência
filológica latina. “ Êste é o fim : formar, com a ajuda do
latim, espíritos que saibam procurar metodicamente a ver­
dade” ( G. Lanson. La pêdagogie à l’École Nórmale. Re-
vue Universitaire, juillet 1903, p. 117). Acrescentemos
ainda: “ formar as almas” . Trabalhar para o latim e pelo
latim é trabalhar por salvar a cultura clássica, ,que con­
tinua a ser, ainda hoje, a melhor formação intelectual e
moral da juventude francesa.
Oxalá se mantenha essa perspectiva, tão justa, sem­
pre sob os olhos! Ela preservar-nos-á de muitos precon­
ceitos © erros de método,
A P Ê N D IC E D

A Bíblia no ensino secundário

Consultar-se-á com proveito: a Revue de VEnseigne­


ment chrétien, novembro de 1930, pp. 66 a 74. Artigo do
R. P. Jean Gautherot: Les premières années de latin;
Expériences d’un professeur de lycée. _
Congnet (abbé H enri): Joseph Ruth, Tobie 'et ex­
traits bibliques, suivis de 46 fables d’Esope, de morceaux /
choisis d’Elien et autres auteurs, et des fables choisies
de Babrius avec des exercices grammaticaux et des ren­
vois perpétuels à la grammaire de M. Henri Congnet et
à celle de M. Burnouf, ouvrage autorisé par le conseil de
l’Université pour l’enseignement des lycées et des collèges
(traduction nouvelle et complète par H. Congnet, chanoine
de Soissons, 6e. édition, Paris, Lecoffre, 1855).
(As narrações bíblicas ocupam mais ou menos a me­
tade dêste volume).
Verniolles (abbé J.) : Les récits bibliques et leurs
beautés littéraires, par l’abbé Verniolles, chanoine hono­
raire de Tulle, supérieur du petit séminaire de Servière,
1883, Paris, Poussielgue.
O Pe. Driout, diretor do ensino cristão, apreciando esta
obra, exprime-se do seguinte modo: “ Desejaríamos nós
também, como o abade Verniolles, ver a literatura sagra­
da* e eclesiástica ocupar mais espaço no ensino literário de
nossas escolas e de nossos cursos de humanidades, mas
andamos tão sobrecarregados com os novos programas I"
(JSns. chrét, 1 de maio de 1888),
A Bíblia n o ensino secundário 271

Dunant (abbé) : Les récits de la Bible, 3 vol., Privât,


Toulouse. (Cfr. Ens, chrét., 1894, pág. 124).
Geslin: La demi-heure d’Ecriture sainte. (“ Heureuse
initiative” , diz 0 Pe. de Grandmaison, Etudes, 20 de abril
de 1926, pág. 233).
Dumont (abbé) : Quelques paroles de Dieu, textes bi­
bliques. Desclée, 1930. (Cfr. Revue des Lectures, 15 de
out. de 1930, pág. 1213).
Pierre Dupouey : “ Espanta-me que se não desenvol­
va mais para os eSpíritos jovens essa parte lírica das Es­
crituras, a qual, do ponto de vista puramente literário, é
o poema mais perfeito que possuímos... Há na Igreja
todo um lado de puro lirismo perto do qual todas as fra­
quezas românticas não passam de insípida água-morna.
A Doutrina não é somente adesão, fidelidade a um dever
hostil e parado, com freios de acréscimo às faculdades
de imaginação. A Doutrina é essencialmente a exaltação
de nossas faculdades de esperança pelo que não engana,
por aquilo só que faz viver. Plenituão legis dilectío —
há uma dileção que encerra a plenitude da Lei” . Lettres
intimes. Correspondant, 10 de junho de 1919, pág, 857.

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