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Literatura e �erações
Julián Marias
Literatura e Gerações
Equipe de realização:
Projeto gráfico de Lúcio G. Machado e Eduardo J. Rodrigues
Assessoria editorial de Mara Valles
Revisão de Herbene Mattioli e Valéria C. Salles

CI P-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP

Marías, Julián, 1 9 14 -
M286L Literatura e gerações (tradução de Diva Ribeiro de
Toledo Piza) São Paulo, Duas Cidades, 1 9 7 7 .

Bibliografia.

1 . Literatura e sociedade 2. Literatura espanhola


História e crítica 1. Título.

CDD-860.9
77-0782 -800:301

fndices para catálogo sistemático:


1. Literatura e sociedade 800:301
2. Literatura espanhola: História e crítica 860.9 ·
Literatura e Gerações
Julián Marias

r.nJ Livraria
r.nJ Duas Cidades
Título do original espanhol
Literatura y Generaciones
Espasa-Calpe, S .A. - Madrid

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados por


Livraria Duas Cidades Ltda.
Rua Bento Freitas, 158 - São Paulo
1977
Sumário

Cervantes e as gerações . . . . .. . . ..... . ... . . . .. . . .. . .


. 9
1. Cervantes, homem marginal . . ... . .. . . . . . . ... . 9
2. Cervantes em sua geração . . . . . . . . . . . . . .. . .. . 12
3. As três gerações cervantinas ... . . . . . ... . . . ... . 16
A idéia da vida humana na novela picaresca . . . . .. . . . . . 21
Dois dramas românticos : Don Juan Tenorio e
Traidor, lnconfeso y Mártir . ... . . . . ... . .... . . . . . 35
Bécquer. e m seu lugar . . . . .. . ..... . . . . .... . .. . . . . ..
. 47
1. A geração de Bécquer . . . . .... . ... . .. . ..... . . . 47
2 . A originalidade de Bécquer como narrador ...... . 54
3. A poesia amorosa ....................... . . . . 55
A idéia d a vida n a novela d e Galdós . . . .. . . . . ... . . .. . 61 .

98 antes de 98 : Ganivet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .
. 75
O centenário da geração de 98 . . . . . .... . . .......... . . 83
A Espanha basca de Unamuno : Paz en la Guerra . ...... 91 .

Don Ramón - Três recordações ................. . .. 97 .

Cem anos d e Pío Baroja . . . . ..


. 101
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Azorín 1 967 . . . . . . . . . . . . . . 111


. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Azorín e as gerações . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . .


. 1 13
Azorín e a realidade . . .. . . . . . . . .... . . .... . . . . . . ..
. 1 19
L i te rat u ra e vida em Azorín . . . . .. . . . . .... . . . . .. . . ..
. 125
Para uma antologia de Antonio Machado . ............ 133 .

À Margem d e L a Casa Encendida d e Luís Rosales 1 37 . . . . . . .

1 . Luis Rosales . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .
. 137
2 . La casa encendida . . . ... 141
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Gerações : As mudanças do mundo 149 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Gerações : Augustos e Césares . . .. . . . . . . . . . . .. . . . . . . . 1 5 3


.

A inversão d o ensaio . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . .. . . 1 57
.

O lugar da literatura na ed,ucação 161 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ·


1 . Que função atribui ao estudo da Literatura, no seio
de uma sociedade como a nossa? ............... 161
2 . Qual seria sua opinião ante a supressão d e tal disci­
plina no Ensino Geral Básico (antigo Bacharelato) e ,
inclusive, n a s Faculdades de Letras, para o s alunos
que não cursem as especialidades em Filologia? .. 1 64
3 . A seu ver, em que pressupostos deve fundar-se a do­
cência literária? ...........................
. 1 66
4 . Uma educação literária bem orientada poderia, por
si só, cobrir as necessidades de formação humanísti-
ca do homem contemporâneo? ... . .. . .
. . . . . . . . 1 69
Shakespeare : O homem como realidade dramática . . . . . . . 171
O título deste livro é especialmente claro. As duas reali­
dades, literatura e gerações, têm no pensamento do autor um
significado inequívoco que se pode rastrear ao longo de toda
a sua iá extensa obra. A literatura, com efeito, é tema recor:
rente nos estudos de /ulián Marías: poesia, novela, ensaio; in­
separabilidade de filosofia e gênero literário, literatura como
uma forma de pensamento, novela como método de conheci­
mento . . . E ao final do presente livro encontram-se respostas
incisivas e diretas a uma pesquisa sobre o lugar da literatura na
educação.
O conceito de geração, por sua vez, mereceu do autor um
de seus trabalhos básicos, El método histórico de las generacio­
nes. Contendo precisões valiosas no tocante ao próprio tema
das gerações e seu desenvolvimento histórico, apresenta os pres­
supostos filosóficos e sociológicos da "teoria das gerações": a
vida humana, que em seu sentido primeiro é sempre a vida de
cada um, a vida individual, acontece no entanto na forma de
convivência , de encontro com os outros; a sociedade é uma
forma específica de convivência, um gigantesco corpo impes­
soal cuias pulsações são as vigências, isto é, aquilo que se usa,
se crê, se pensa, num determinado momento da história. A in­
serção da vida de cada um no mundo se dá, pois, no âmbito
configurado pelas vigências desse mundo. E o grupo de indiví­
duos que participam de um mesmo mundo de vigências, a um
mesmo nível histórico - e aqui aparece a vertente temporal da
vida humana - constitui isso que se chama uma geração . A
geração é o "presente histórico elementar". Há um métode que
permite determinar objetivamente uma série de gerações dentro .
de uma realidade histórica, e uma vez isso feito· ter-se-á um novo
"instrumento ótico" para captar a cinemática da história.
Em Literatura e gerações oferece-se esse 1,lOVO instrumento
ótico. Assistimos à poesia, ao teatro, à novela etnergirem do solo
de vigências da geração a que pertencem seu$ autores, das fi­
guras de mundo em que foriam seus sonhos, da "sensibilidade
vital" - como denominou Ortega a esse penetrante poder de
perceber, uma época - que os faz estremecer. E, pois, um livro
fundamentalmente claro, porque seus pressupostos se presentifi­
cam a cada página e sua teoria transparece como vigas mestras
palpáveis.
Não obstante, é um livro surpreendente; porque, em última
análise, abre infindas perspectivas de vida __:_ e a vida é sempre
surpreendente -, aquelas em que transita "a ficção com todos
seus espelhos " e que arrastam consigo o cenário das épocas e a
íntima substância dos homens que as habitam. "Viver ", esta pa­
lavra tão quotidiana, que se leva quase sem ver como se leva
o "claro cri_stal " dos dias, matiza-se qual um prodigioso arco-íris
em todo o seu esplendor. Quantos significados pôde ter o drama
único da vida? "O homem é um fabricante nato de universos ",
dissera Ortega.
Para dar razão, iluminar, clarificar esses universos, /ulián
Marías recorre à narração. As obras literárias, de maneira alguma
relegadas, ou relativizadas, ou levadas a ocupar um segundo pla­
no, e sim pelo contrário magistralmente apontadas, realçadas,
postas a brilhar em seu valor próprio, literário, entretecem-se os
fios da vida em que são geradas; e logo começamos a sentir que
junto às personagens de ficção caminham outras, inesquecíveis
e reais e dramáticas - quais os originais? quais os sonha­
dos? -: Cervantes, Unamuno, Shakespeare . . . todos .
Literatura e gerações é a decifração de universos de vida
feitos de "sonho, ficção e vida humana ". Com agudo tato, o
autor se movimenta segundo o passo que lhes é próprio: demo­
ra-se em suas pausas, arde em suas incandescências, totalmente
disponível para a sua realidade. Penetra-os com seu pensamento
claro, sua fina sensibilidade, a emoção contida de suas recorda­
ções. E apresenta-os, salvos, em seu estilo translúcido, fluente,
que traz à tona a profundidade com todo o sabor de vida.
Em seu ensaio Los géneros literarios en filosofía /ulián Ma­
rías apontara - certamente com muito de itinerário por ele ex­
perimentado - o caminho de expressão para o livro filosófico
que " . . . mesmo sendo o mais rigoroso estudo teór�co, deve ter
uma dimensão de novela. Porque não se trata apenas, como se
poderia pensar, de que o livro expresse ou narre uma certa aven­
tura, e sim de que o próprio livro é uma aventura pessoal de seu
autor ". Creio que estas linhas resumem de maneira cabal a es­
sência mais íntima deste seu livro e eu desejaria, finalmente, com
elas, libertar Literatura e gerações das esquemáticas referências
- talvez não de todo inúteis - que antecederam. E espero que
o leitor empreenda entusiasticamente a partida desta plataforma
de esquemas, rumo à realidade densa, rica, novelesca, dramática,
que é a do livro. Ela está toda por ser descoberta.

Diva Ribeiro de Toledo Piza


Cervantes e as gerações

1 . Cervantes, homem marginal

Há alguns anos, durante uma viagem à fodia , visitei o Taj


Mahal em Agra . Ao ver-me com uma máquina fotográfica, um
hindu que lá estava com outra, acompanhado de sua mulher
e uma menina, pediu-me muito cortesmente o favor de fotogra­
fá-los . Depois, conversamos por uns momentos. Perguntou-me
de onde eu era , e quando respondi que era da Espanha disse:
" D . Quixote " . Alegrei-me por ter sido este o nome que lhe evo­
cara o de Espanha e pareceu-me um indício do imenso brilho
da obra cervantina. Cervantes é, sem dúvida, a figura mais co­
nhecida e mais popular de nossas letras, uma das maiores da
literatura universal; mas ao mesmo tempo é uma figura que
apresenta um sem-número de anomalias .
Desde logo, possui uma existência social difusa, e não pro­
priamente como escritor. Cervantes é o nome mais famoso de
nossa cultura, absolutamente familiar para os espanhóis e para
todos aqueles que falam nossa língua , mas se não me engano é
lido pouco e mal. À medida que vou fazendo sondagens na
leitura média dos que falam o espanhol, invade-me um pessi­
mismo crescente.
Para começar, Cervantes é ·identificado com o Quixote ; o
resto de sua obra, tão rica, complexa e saborosa, é esquecida .
Quantos são o s que leram Los trabajos d e Persiles y Segismunda,
esse livro admirável, que Azorín soube entender como ninguém?
E quase o mesmo se poderia dizer de tantos livros que Cer­
vantes se cansou de escrever.
Em segundo lugar, o próprio Quixote " é dado por suposto " ,
em virtude de u m curioso mecanismo. Muitos· anos atrás, lia-se
o Quixote na escola. Evidentemente isto não era muito acertado,
porque o Quixote não fora feito para isso. As crianças ou os

9
jovens liam uma versão resumida do Quixote, ou alguns capí­
tulos, e isto vinha a ser uma espécie de vacina : os precoces lei­
tores já ficavam vacinados " contra " o Quixote. No mais fundo
da alma de todo espanhol formava-se a obscura decisão, nunca
formulada nem expressa, de j amais ler o Quixote. Eventual­
mente, lia-se algum capítulo em determinada ocasião solene .
Já há bastante tempo é outra a atitude diante do Quixote:
nos últimos decênios não mais se o lê na escola ; pensou-se que
deve ser lido " depois " , na idade adulta . Mas quando as coisas
devem ser feitas " algum dia " , ocorre o mesmo que com a pe­
regrinação à Meca que os muçulmanos são obrigados a fazer.
Quando? Uma vez na vida . Então há muito tempo ! Vai-se adian­
do a leitura do Quixote. Certamente é preciso lê-lo, mas se o
fará logo mais . O tempo passa. E há um momento, que seria
curioso determinar na biografia de cada indivíduo, ·em que se
sente uma espécie de remorso por não haver lido o Quixote;
isto traz um certo mal-estar interior : incomoda não haver lido
o Quixote. Mas como isto requereria tempo, e a vida é sempre
muito atropelada, dá-se por lido o Quixote. Há mesmo um mo­
mento em que se supõe o haver lido, acredita-se - e de boa-fé
- tê-lo feito, e naturalmente não se o lê nunca mais.
Além disso, acontece que, na realidade, não é preciso ler
o Quixote ·- e esta é a explicação mais profunda desse fenô­
meno - porque ele " está no ambiente " . ];; esta sua grande gló­
ria . Está em todo lugar: nos entalhes dos móveis estilo " remor­
dimiento espanhol " <1> ; nos jarrões de cerâmica ; nos tapetes;
em todas as lojas de objetos para presentes ; de vez em quando,
até num filme . Pode-se recebê-lo por todos os poros, pelo ouvido,
de mil modos menos pela leitura. Estamos efetivamente satura­
dos de quixotismo e de cervantismo . Há frases feitas , alusões
coloquiais, refrãos. Portanto, não faz falta lê-lo.
Creio que, apesar de tudo, fa� falta. Não que seja para se
desprezar essa forma de presença ambiental e difusa de Cervan­
tes e de D. Quixote - é claro que a quiseram para si os outros
escritores -; mas não basta : afinal, os livros foram feitos para
serem lidos.

Por outro lado, acontece que a biografia de Cervantes, a


própria figura de Cervantes, é obscura. A fama e o mito -
sobretudo o mito de D. Quixote - encobre Cervantes e o
(1) Ao pé da letra, "remorso espanhol" . Trata-se de um gracejo multo usado
para zombar dos móveis entalhados " renascimento espanhol" cm suas Imitações mo­
dernas, feias e Incômodas. (Nota para a tradução brasileira .)

10
obscurece . E conhecida a boutade de Unamuno, para quem D.
Quixote era muito superior a Cervantes, e este lhe parecia um
homem incapaz de escrever o Quixote. :t claro que Unamuno não
dizia isto inteiramente a sério, porém não deixava de ter uma
certa razão : a imagem vigente de Cervantes, aquela que apresen­
tam suas biografias ou os tratados de literatura, ou os estudos
eruditos, não é muito atraente . De fato, é difícil pensar que haja
escrito o Quixote. A inferência normal deveria ser que a figura
de Cervantes não é bem apresentada, e não que o Quixote é
superior a seu autor.
A biografia de Cervantes não é bem conhecida : sabemos
estritamente o suficiente para ver que não sabemos quem ele
era , que a realidade Cervantes excede muito o que dela sabe­
mos . Isto levanta problemas muito difíceis , problemas de cons­
trução . Em geral, não se pode fazer adequadamente uma bio­
grafia ; não podemos nunca conhecer o próximo, muito menos o
próximo pretérito . Uma biografia é sempre algo tectônico : é pre­
ciso construí-la com certos dados, mais ou menos ; a construí­
mos então como a figura de uma personagem fictícia . E essa
biogra fia construída nunca pode ser " verdadeira " : o mais que
pode ser é verossímil, plausível. Nunca poderemos dizer: " Este
foi Cervantes . " No máximo , afirmar : " Esta construção biográ­
fica é verossímil , é a figura de um homem que teria podido
escrevet· o Quixote. " J á é bastante.
Enfrentei este problema geral da biografia há trinta anos,
em meu livro Miguel de Unamuno (veja-se principalmente o
prólogo à edição G . Gili, Barcelona, 1 968, reimpresso na edição
Obras, V, Revista de Decidente, Madrid , 1 969). No que diz res­
peito ao caso particular de Cervantes, esforcei-me por enfocá-lo
no ensaio " El espafiol Cervantes y la Espafia cervantina " , in­
cluído em meu livro La imagem de la vida humana (El Alción,
Revista de Decidente, Madrid, 1 97 1 ).
Eu diria que Cervantes não foi " importante " . Se se consi­
dera a literatura de seu tempo, percebe-se que Cervantes não
era uma figura importante . O que não significa que não tivesse
êxi to : o teve, e muito grande, ainda que tardio ; e foi popular.
Porém ninguém o levou realmente muito a sério . Note-se que
ter importância social é uma coisa; ser conhecido, lido ou fa­
moso é outra . Há escritores que são muito lidos, que são muito
apreciados e saboreados , e não são " importantes " ; há escritores
aos quais ninguém lê, e que talvez quase nada escreveram , mas
são " importantes " . Cervantes não foi importante; teve êxito,
mas não um êxito social; isto é, não foi importante como figura
social. Quando em seu tempo se fala de escritores, ou não se o
menciona, ou se o faz com certa condescendência, quando não

11
com visível desdém. Não dizia Lope de Vega que naquele ano
- 1 604 - havia muitos poetas, porém " nenhum tão mau
quanto Cervantes nem tão nécio que elogie o D. Quixote"?
Que Deus o tenha perdoado.
Cervantes possuía certo caráter marginal : seu lugar não
era na praça pública, no centro do mundo literário de seu tempo .
Creio que esta impressão d e homem marginal concorreu para
que se procurasse em Cervantes traços insólitos que explicas­
sem essa evidente anomalia. Pensou-se, por exemplo, que era
um dissidente na Espanha de seu tempo, um dissidente da ideo­
logia dominante em sua época ; pensou-se que era um " cristão
novo " . Não sei . O problema é que não há a mínima prova real
destas hipóteses, possíveis mas que não parecem prováveis. Não
há fatos fidedignos , não há nada que nos force a aceitá-los .
Creio que s e deve descartar, e m princípio, estas considerações.
Há um princípio metódico que me parece sempre fecundo : ver
claramente que não está claro. A história está cheia de coisas
que não são claras . Porém se pode tornar claro precisamente
isso : o que é que não está claro . Quando se conseguir, estar-se-á
a caminho de superar a obscuridade.
Conhecemos muito bem a trajetória exterior da vida de
Cervantes ; conhecemos a cronologia da publicação de suas obras;
sabemos evidentemente o conteúdo da história de seu tempo.
Sabemos que a publicação da primeira parte do Quixote foi um
êxito, que o prodigioso livro deu-lhe fama - ainda que pouco
dinheiro -, que foi reeditado, traduzido para línguas estran­
geiras, usufruído por inúmeros leitores. E sabemos também que
tudo isso não conseguiu tirá-lo da obscuridade social, da po­
breza, da consideração geral de figura secundária . Não deixou
de ser um escritor " marginal " . Por quê ? Tentemos agrupar os
dados indubitáveis ; tratemos de levar a sério isso que" sabemos,
isso que todo mundo sabe - tantas vezes não se vê precisa­
mente o que se sabe, precisamente o que se está dizendo -.
Talvez consigamos entender, sem procurar um gato de três pés,
a marginalidade, a estranha anomalia do escritor Miguel de Cer­
vantes.

2. Cervantes em sua geração

Cervantes nasceu em 154 7. Se é válida a escala das gera­


ções esp anholas que estabeleci, pertence à dos nascidos em torno

12
de 1 54 1 , isto é, entre 1 534 e 1 548 . Como toda escala de gera­
çõ�s tem caráter metódico, é posta à prova por sua aplicação , e
em princípio poderia modificar-se; isto é, apresenta-se como uma
hipótese de trabalho, sempre insegura, que a realidade empírica
deve confirmar ou retificar ; de modo algum como uma deter­
minação dogmática e imutável . Porém, uma vez que se estabe­
leceu uma escala bem fundada, deve-se aplicá-la com todo rigor
e justamente com um rigor metódico, para pô-la à prova. E claro
que no caso de surgirem dificuldades estruturais - radicadas
na vida coletiva, não meramente individuais -, deve-se estar
disposto a todo momento a alterar a série de gerações pro­
posta. (Veja-se meu livro El método histórico de las generaciones,
4.ª ed., Revista de Decidente, Madrid, 1 967 , e também La es­
tructura social <2>, 6 .ª ed., Revista de Decidente, El Alción, Ma­
drid1 1 972) .
Tomando essa data como válida, o nascimento de Cervan­
tes ocorre ao final de sua geração, tendo sido ele um de seus
membros mais jpvens . A entrada de uma geração na História
pode ser calculada aos trinta anos, e às vezes esta data é tomada
para designá-la. Se o fizéssemos, diríamos que Cervantes per­
tence à geração que se inicia historicamente em 1 57 1 . Que ca­
sualidade ! E o ano de Lepanto, que teve alguma significação
na vida de Cervantes . As datas de entrada na História, acesso
ao " poder social " , exercício do mesmo, substituição por outra
geração e " passagem para a reserva '' , etc . , correspondem à idade
média da geração, não à idade individual de cada um de seus
membros (de modo que os nascidos ao começo de uma, histo­
ricamente são tardios e mais " duradouros " ; os nascidos ao final,
precoces e de destaque prematuro) .
Seguindo o mesmo cálculo, a geração de Cervantes alcança
o poder aos quarenta e cinco anos, isto é, em 1 586, e o exerce
até 1 60 1 , data em que o obtém a geração seguinte (a de Lope
de Vega) . A geração cervantina como tal entraria, pois, na ati­
vidade histórica em 1 57 1 , conseguiria o poder social em 1 586,
terminaria seu ciclo de vigência histórica em 1 60 1 (Como o fe­
nômeno atual da longevidade ainda não se havia produzido, po­
de-se considerar que aos sessenta anos termina a fase plena­
mente ativa : as gerações estão dizimadas, e os sobreviventes são
velhos) . Não se esqueça que Cervantes viveu ainda mais quinze
anos, até 1 6 1 6, isto é, o espaço de uma geração integral.
Cervantes vive, pois, principalmente no século XVI : vive
nele cinqüenta e três anos , que nessa época significavam muitos
anos. E um homem da Espanha de Felipe I I . Nasce ainda no
(2) A Estrutura social, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1963. (N. do T.)

13
tempo do imperador Carlos V, mas em sua infância começa a
reinar Felipe I I (de 1 556 a 1 598) , que é o monarca da maior
·
parte da vida de Cervantes, mais velho que ele uma geração
(nasceu em 1 527) . Se tomamos a biografia de Cervantes em
seu torso geral , diremos que é um espanhol da segunda metade
do século XVI , súdito de Felipe I I .
Mas se o consideramos como escritor, a coisa é diferente :
é quase exclusivamente um escritor do século XVI I , do tempo
de· Felipe I I I . � esta a primeira anomalia.
Não se esqueça que Cervantes sai da Espanha em 1 569,
atraído por Giulio Acquaviva, que lhe propõe ir a Roma. Tem
então vinte e dois anos. Cruzará a parte oriental da Península
ibérica - o reino de Aragão , de Valência a Catalunha, pelo
qual tanto entusiasmo sentiu o castelhano Cervantes -; o sul
da França, grande parte da Península italiana, e permanecerá
·
principalmente em Roma. Isto é o que o homem propõe, mas
Deus dispõe outra coisa . Provavelmente, Cervantes pensava pas­
sar uma curta temporada na I tália , mas fica fora da Espanha
onze anos. Este é o acaso histórico. Cervantes é soldado, isto o
leva à batalha de Lepanto , que ilumina toda sua vida; comba­
tente e ferido, volta a incorporar-se ao exército espanhol ; e
quando afinal se dispõe a voltar à Espanha, o acaso intervém
outra vez em sua vida, na forma de mais cinco anos de cativeiro
em Argel. Sai da Espanha em 1 569 ; não volta até 1 580. Os
Wanderjahre cervantinos, seus anos de viagem, converteram-se
em onze , estando neles incluída a tremenda experiência de cinco
anos de cativeiro.
Em 1 58 5 , Cervantes que decidiu ser escritor e não soldado,
escreve comédias - que não se publicam até muitos anos de­
pois - e publica La Galatea. Todos os seus outros livros apa­
recem entre 1 605 (primeira parte do Quixote) e 1 6 1 7 (o Per­
siles, obra póstuma) . Isto é, durante as duas fases historicamente
ativas de sua geração, Cervantes não chega a ser um escritor.
Publica um livro não muito original , que corresponde a um gê­
nero literário herdado, tradicional, já um tanto antiquado - a
novela P?Storil - e nada mais. Portanto, Cervantes, como es­
· ,

critor, não coincide com sua geração.


Alguns nomes dos companheiros de geração de Cervantes :
a figura capital é D . Juan d e Á ustria, sob cujas bandeiras Cer­
vantes lutou em Lepanto ; também uma figura política confusa,
nebulosa e inquietante, Antonio Pérez - o homem que, depois
de Bartolomé de las Casas, mais contribuiu para forj ar a Le­
genda Negra -. Acrescente-se o poeta Fernando de Herrera, o
místico fray Juan de los A ngeles, o historiador Juan de Mariana,

14
o músico Tomás Luis de Victoria , el Greco, San Juan de la Cruz,
o autor dramático Juan de la Cueva, Mateo Alemán, o grande
teólogo e filósofo Francisco Suárez, o Pinciano, autor da Fi­
losofía antigua poética, o lexicógrafo Sebastián de Covarrubias.
São estas as figuras mais importantes da geração de Cervantes,
seus coetâneos ; mas como escritores, aqueles que o são, são
anteriores a Cervantes , que escreve depois deles.
Eu diria, pois, que forma constelação com a geração se­
guinte (veja-se meu ensaio " Constelaciones y generaciones " , em
Ensayos de convivencia, Obras, I I I ) , com a dos nascidos em
torno a 1 556. � a geração do Duque de Lerma, de Espinel, dos
irmãos Argensola, de Góngora, de Lope de Vega. Como escri­
tores, são estes os coetâneos de Cervantes, não os seus, não os
de seu tempo.

Isso significa que Cervantes deixa passar o tempo histórico


de sua geração quase sem nada escrever. Em compensação , con­
verte-se em escritor público ao mesmo tempo que os homens da
geração seguinte , de 1 556. E estes não o reconhecem como um
" semelhante " , isto é, como um coetâneo . Entre os membros de
uma geração existe sempre um sentimento de família, de nível
de idade. Cervantes é um estranho, um outsider, alguém que
vem de fora.
I! curioso : ao mesmo tempo é velho e um recém-chegado.
I rrompe no mundo literário espanhol de começos do século
XVI I , mas acontece que não é um jovem , como seria normal,
e sim um velho (não se pense na cronologia atual : em 1 605
Cervantes tinha cinqüenta e oito anos e estava entrando na
velhice) . I! literalmente um extemporâneo , isto é, um inopor­
tuno. Esta impressão pulsa nos coetâneos literários de Cervan­
tes ; e é a impressão que inequivocamente produz o prólogo pér­
fido de Avellaneda, quando com tanto mau humor, com tanta
indiferença se refere a Cervantes : " Contente-se com sua Galatea
e comédias em prosa; que são isto a maioria de suas novelas;
não queira nos cansar. "
E m sua época de escritor - isto é , n o século XVI I -,
Cervantes é um homem que traz à literatura algo insólito : expe­
riência da vida. � um homem que tem vivido, que o que fez
foi viver. Esteve na Itália e a desfrutou, viajou, amou, esteve
no exército e numa galera, combateu em Lepanto, sofreu feri­
mentos, viu seu sangue correr, esteve num hospital , esteve -
sobretudo - cinco anos preso em Argel, tentando fugir, desa­
fiando seus opressores, assistindo à morte de seus companheiros.

15
Passou por tudo, casou-se um pouco fora de tempo com uma
jovenzinha da Sagra toledana. Passa anos e anos na Andaluzia
requisitando vinho, trigo e azeite ou cobrando impostos, lidando
com vendeiros, com ladrões, com frades , com salteadores, com
prostitutas, mozas dei partido, freqüentou a prisão de Sevilha
e quase nunca esteve em tertúlias literárias . e isto o que esteve
fazendo.
E isto quer dizer que é um homem que tem experiência da
vida, mas de outra vida, isto é, de uma vida mais antiga, de
outra geração que a de seus colegas escritores e com ocupações
diferentes . Mais que um " cristão novo " , Cervantes é um " ma­
caco velho " que conhece tudo e não é alguém importante no
mundo das letras.

Y o socarrón, y o poetón y a viejo, ( E u socarrão, e u poetastro


já velho,)

diz de si próprio na Viaje dei Parnaso. e uma espécie de " ama­


dor " egrégio, mas que não possui o que agora se chama status
de escritor. Como autor não tem importância ; os Argensola eram
muito mais importantes, uma espécie de adidos culturais, e efe­
tivamente o conde de Lemos como tais os leva a Nápoles, dei­
xando plantado o pobre Cervantes .
I sto já seria o bastante para explicar intrinsecamente a ano­
malia de Cervantes, seu caráter marginal em certo sentido, ex­
temporâneo e um pouco estranho . Mas a coisa não termina aqui.
Se quisermos entender a vida de Cervantes não será suficiente
situá-lo em sua geração . Nenhuma vive isolada e sim com aque­
las que a flanqueiam, solapando-se umas às outras . A interfe­
rência da escala das gerações com a trajetória efetiva de Cer­
vantes - mais uma vez, acaso , destino e caráter - torna inte­
ligível a complexidade, inesperadamente simples, de sua figura.

3. As três gerações cervantinas

Quando Cervantes decide ser escritor, quando opta por uma


das possibilidades que a vida lhe oferece e entra em uma das
trajetórias que se abrem a seus pés, há um momento muito dra­
mático, no qual talvez ninguém haja reparado, porque tem um
dramatismo intrínseco, isto é, que afeta a condição dramática
da vida e da história.

16
Ao voltar do cativeiro, Cervantes não sabe se irá ser sol­
dado ou escritor. Há sem dúvida vacilação, hesitações, que cor­
respondem à época obscura de sua estada em Lisboa, sua pos­
sível expedição às ilhas Terceiras, suas idas e vindas à Á frica.
Pois bem , quando afinal se decide a ser escritor e compõe e
publica La Galatea, em 1 585 , ainda está no poder a geração
anterior à sua, a dos nascidos em torno a 1 52 6 : Felipe I I (en­
quanto que seu irmão D. Juan de Á ustria pertence à geração de
Cervantes) ; o comandante direto da esquadra espanhola de Le­
panto, D. Á lvaro de Bazán, Marquês de Santa Cruz ; o famoso
político e militar D . Luiz de Requesens ; e entre os escritores,
Gutierre de Cetina, Jorge de Montemayor , Luís de Camões, fray
Luis de León , Baltasar de Alcázar; e também - não os esque­
çamos - o pintor Sánchez Coello e Juan de Herrera, o arqui­
teto de El Escorial .
Jorge de Montemayor é o homem da Diana, a figura mais
eminente da novela pastoril. Cervantes escreve seu primeiro li­
vro, uma novela pastoril, justamente no fim da vigência desse
gênero. Já está um pouco demodé, já é algo anacrônico ; porém
ainda está em vigor a geração que o representa. Curiosamente,
é a última geração dos portugueses espanholizados que escre­
vem em castelhano : o próprio Montemayor (isto é, Montemór)
ou Camões . Depois, a literatura portuguesa segue seu caminho
nessa língua, e será excepcional que se escreva em espanhol.
Mas é agora que começa o mais interessante. Quando Cer­
vantes começa a escrever, ainda está no poder a geração anterior
à sua ; porém, ele salta a sua própria. I sto é, enquanto está no
poder sua geração, não escreve. Não se esqueça que o livro que
segue a La Galatea é a primeira parte do Quixote ( 1 605) . De­
correm vinte anos sem que publique nenhum livro. Tudo isto
é absolutamente elementar e todo o mundo o sabe; mas quantas
vezes se tem presente? Não adianta muito o fato das coisas
serem sabidas se não se pensa nelas, isto é, se não se faz com
que isso funcione para compreender a realidade. Se embora tendo
todos os dados concernentes a Cervantes não os usamos, é como
se não os tivéssemos. Ou em outras palavras, nem sempre se
sabe o que se sabe.
O problema é o seguinte. Quando Cervantes volta à Es­
panha, em torno de 1 580, encontra ainda o final de uma vigência
que para ele é nova, porque esteve ausente onze anos. :e o caso
do homem que esteve fora de seu país e a ele retoma. E o " fora "
de Cervantes é um fora absoluto, não comparável aos nossos :
não é como quando agora vamos a Paris ou aos Estados Unidos
ou a Buenos Aires, em comunicação constante através de cartas ,

17
jornais, revistas , livros, telefone . Cervantes está no exército, no
mar, no hospital, e finalmente no castelo do "vai mas não volta "
que se chama Argel. Está fora da Espanha mais de um decênio,
e quando volta, para ele é novo o que na Espanha já era quase
velho. E há algo mais : quando acaba de começar, quando es­
creve seu primeiro livro, mal seca a tinta da impressão, já está
antiquado.
Se tomamos a cronologia das gerações com um pouco de
rigor - e assim se deve fazer metodicamente -, se esta escala
de gerações que estou usando ( 1 526 - 1 54 1 - 1 556 - 1 5 7 1 - 1 586
- 1 60 1 - 1 6 1 6 etc.) é válida, a vigência da geração anterior à de
Cervantes termina no ano 1 586, isto é, um ano após a publica­
ção de La Galatea ; isto é, este livro escrito e publicado quando
ainda essa geração está vigente, deixa de o estar instantanea­
mente , no ano seguinte.
Todo o mundo sabe que muito mais tarde, em El coloquio
de los perros, Cervantes faz uma crítica da novela pastoril como
" coisas inventadas e bem escritas " , irreais, que nada têm que
ver com os p8stores efetivos. Tem consciência muito clara de
que a novela pastoril é um gênero completamente falso, con­
vencional e que não tem contato com a realidade . Costuma-se
pensar que é esta uma, visão tardia, já bem entrado o século
XVII. Ora, pensa-se isto porque não se lê La Galatea, ou pelo
menos não se a lê bem. Mas pode-se ver que Cervantes pensa
assim já em 1 58 5 , já em La Galatea. Tem pois plena consciên­
cia de que o gênero pastoril é artificial, convencional, irreal e
inverossímil. Não precisou esperar o século XVI I para conven­
cer-se disso, e ao compor La Galatea - que o interessa muito ,
da qual gosta muito, tendo, até a morte, prometido uma segunda
parte para ela -, já tem consciência que é um livro conven­
cional e inverossímil. Por isto em La Galatea mesma aceita a
objeção de " haver misturado razões de filosofia entre algumas
amorosas de pastores, que poucas vezes conseguem tratar de
coisas mais altas do que as do campo, e isso com sua habitual
simplicidade " , e responde que " muitos dos pastores disfarçados
dela, só o eram na roupa " . E isto, esta extrema irrealidade,
é precisamente o que aqui interessava a Cervantes , por razões
que algum dia explicarei . " Coisas sonhadas e bem escritas. " E
ocorre perguntar: isto é pouco?

O grave, o inesperado, o que não se viu - que eu o saiba


é que no ano seguinte, mal secara a tinta com a qual se

18
compôs La Galatea, produziu-se uma mudança histórica, uma
mudança de geração, e j á não se fazem novelas pastoris. I sto
não poderia explicar o fato de Cervantes retirar-se? De que,
pouco tempo após casar-se com dona Catalina de Palacios Sa­
lazar, fidalga de Esquivias, deixe de escrever, tenha " outras
coisas para fazer " , e se entregue a arrecadar impostos - a ser
alcavaleiro e depois a requisitar víveres por terras andaluza s
-

para a Armada Invencível . Não explicaria que torne a começar?


Porque é bem isto o que faz Cervantes : tornar a começar.
Cervantes faz exatamente o que haveria de fazer D . Qui­
xote : uma primeira saída que termina logo e muito mal ; e depois
torna a sair , com dinheiro e camisas, como o aconselhou o ven­
deiro , e com um escudeiro, Sancho Pança ; só agora a história
começa de verdade. Pois bem, Cervantes faz o mesmo . Faz uma
primeira saída como escritor de comédias e de La Galatea, e
depois diz : " tive que fazer outras coisas " . Tão importantes como
arrecadar alcavalas e requisitar vinho, trigo e azeite para os
navios que se preparavam para invadir a Inglaterra ! E ser pro­
cessado por apossar-se de fundos da Igreja e ir parar na prisão .
Não parece tão apaixonante . E, no entanto, demorará vinte lon­
gos anos para tentar uma nova saída. A vida de Cervantes, con­
tada com absoluta simplicidade, sem procurar nenhum velho
pergaminho, com os dados que estão em todos os lugares e que
são conhecidos por todo o mundo, postos unicamente em ordem
e funcionamento , explica uma série de anomalias desta extraor­
dinária, surpreendente figura , genial e marginal. Não se esqueça
de que, segundo a definição que dei na Introducción a la Filo­
sofía c:i> em 1 94 7 , a razão é a apreensão da realidade em sua
conexão.

Ao voltar, Cervantes percebe que " nos ninhos de antanho


não há pássaros de hoje " ; que , apesar de haver feito obras de
teatro inovadoras e aplaudidas, surgiu depois o grande Lope de
Vega e " fez-se soberano na monarquia cômica " . Isto é, apareceu
a geração subseqüente à de Cervantes. Quando Cervantes regressa
à Espanha do cativeiro e começa a escrever, a geração anterior
está no poder ; e quando torna a começar, já não está a sua e
sim a seguinte . E então não pode " continuar " , não pode incor­
porar-se, tem que ir em outra direção . Cervantes não teve outro
.

(3) Introdução à Filosofia, Livraria Duas Cidades, 3.• edi ç ão, São Paulo, 1 973 .
( N . do T . )

19
remédio a não ser inovar, porque foi extemporâneo, porque foi
um escritor fora de tempo, porque, por caminhos estranhos, sal­
tou como escritor o prazo de vigência de sua própria geração.
Começa a escrever quando termina a anterior, volta a es­
crever quando já está no poder a seguinte; e seu tempo já pas­
sara. Entre ser soldado, prisioneiro , alcavaleiro e requisitador
de víveres passaram-se os trinta anos de vigência ativa ( 1 57 1 -
1 60 1) que haviam sido dados ao homem d a geração d e 1 54 1 .
Cervantes faz sua vida de escritor, depois de seu tempo. A rigor,
a atividade literária de Cervantes é " póstuma " , historicamente
póstuma. Realiza-a depois de passado o tempo que lhe corres­
pondia para ser um escritor do século XVI . Graças à sua rela­
tiva longevidade existe Cervantes . Se tivesse morrido, como era
comum, em torno aos sessenta anos, ter-se-ia malogrado quase
inteiramente, porque quase toda sua obra é posterior à de um
escritor do século XVI I .
A marginalidade de Cervantes é , desde logo, geracional .
Sua trajetória biográfica, inserida na história geral , é explicação
suficiente dr tantas coisas que surpreendem. Por um feliz acaso,
Miguel de Cervantes teve um plus, um epílogo ao tempo de
sua vigência histórica, uma sobrevivência no tempo da geração
seguinte, que simplesmente aproveitou para escrever sua obra,
para nela depositar a realidade acumulada em sua estranha vida.

1 526
<1519
1 556 1 57 1 1 586
1533
1541
<1534
157 1 1 586 1 60 1
1548
1 556
< 1 549
1 586 1 60 1 1616
1 563

1973

20
A idéia da vida humana
na novela picaresca

A novela picaresca teve, como D. Quixote, duas " saídas "


sucessivas e diferentes. Inicia-se em 1554 com o Lazarillo de
Tormes, de autor desconhecido; e apesar do enorme êxito desta
breve novela, só tem continuação em cerca de 1599, com o Guz­
mán de Alfarache, de Mateo Alemán . E assim como D. Quixote
na primeira vez sai sozinho, ingênuo e desprevenido, e na se­
gunda está acompanhado da cordura, da velhacaria e dos re­
frãos de Sancho Pança, do mesmo modo a novela picaresca sai
rumo ao mundo literário pela segunda vez, não com a concisão
e o frescor de Lázaro de Tormes, mas bem provida de ideolo­
gias e moralidades.
Quando nasce o Lazarillo, ainda reina Carlos V; o Guz­
mán começa sua publicação quando Felipe I I I já iniciara seu
reinado; isto é , entre as duas " primeiras " novelas picarescas
intercala-se nada menos que todo o reinado de Felipe I I (ou,
segundo outra conta, três gerações) . I sto quer dizer que, muito
provavelmente, o verbo " viver " havia mudado de sentido na
Espanha entre uma e outra, e portanto as duas novelas, como
narração - sem propósito teórico - põem em jogo duas dife­
rentes idéias da vida humana, que nelas podemos rastear e
tentar descobrir.
Cinco anos após as primeiras edições do Lazarillo, em 1559,
dá-se na Espanha a grande retração que marca o início do rei­
nado de Felipe I I : a proibição por parte deste de que os estu­
dantes espanhóis freqüentem Universidades estrangeiras - com
poucas exceções -; a duríssima repressão do luteranisII}O - e
daquilo que se parecia ou se chamava " luteranismo " - sobre-

21
tudo em Valladolid e Sevilha; a abertura do processo contra o
arcebispo Bartolomé de Carranza ; a publicação pelo inquisidor
geral Fernando de Valdés do Index librorum qui prohibentur.
O Lazarillo não foi proibido; era demasiado " inocente " e, so­
bretudo, demasiado popular; foi apenas " castigado " , isto é, ex­
purgado, e assim, desde então , reimpresso.
A variação da vida espanhola foi profunda; se se procurasse
precisar - o que não seria excessivamente difícil - a dife­
rença entre as sucessivas gerações do século XVI , descobrir-se-ia
provavelmente em torno a essa data uma mudança mais profunda
que as usuais . Mateo Alemán , estritamente coetâneo de Cervan­
tes - nascido no mesmo ano de 1 547 -, encontra uma Espanha
profundamente diferente da que encontrou o autor do Lazarillo,
isto é, o inventor da novela picaresca. A totalidade desta, pois,
'salvo a decisiva exceção que cria o gênero, corresponde a outra
forma de vida. E esta a anomalia essencial que afeta a novela
picaresca e que condiciona toda a compreensão da mesma que
não seja puramente " intraliterária " . O " gênero " aparece defi­
nido por um caso individual que difere substancialmente de
todos os demais. Sempre que se fala da Picaresca insinua-se esse
equívoco : a novela picaresca é a que cria e realiza o Lazarillo ;
porém, após um silêncio de quase meio século, qualquer outra
novela piscaresca brota de circunstâncias bem diferentes e ca­
racteriza-se por traços bem diversos, possivelmente opostos . Se
a novela picaresca é primariamente Lazarillo de Tormes, não
podemos defini-la por notas que a esta não convenh�m. menos
ainda que sejam incompatíveis com ela ; mas , por outro lado, a
Picaresca, após um largo parêntese, " torna-se " algo que difere
profundamente de seu início .
A forma da novela picaresca, com poucas exceções, e estas
tardias, é autobiográfica : o pícaro , na primeira pessoa, conta
sua vida. As justificações desta técnica podem ser muitas ; ins. i s­
tiu-se, e sem dúvida com acerto, em que a autobiografia envolve
a " justificação " literária de que se narre uma vida tão pouco
nobre como a do pícaro : a quem interessaria? Ao próprio inte­
ressado , evidentemente, que fala de si mesmo quando talvez
outros não encontrarão motivos para isso.
Pergunto-me, porém , se não existirá uma razão de signifi­
cação literária mais estrita. O caráter dialogado - aparente­
mente teatral - de La Celestina tem, segundo uma antiga con­
vicção minha, que expus outras vezes , uma missão fundamental :
a de fazer presentes as personagens e , com elas, a história de
suas vidas ; assim como o pintor primitivo costuma suprir com
um maior brilho cromático as deficiências da perspectiva, para

22
.
trazer ao primeiro plano da atenção as partes mais notáveis do
quadro , da mesma maneira o diálogo da presença novelesca o
faz com aquilo que no simples relato poderia permanecer dis­
tante e esrnaecido. J! preciso um domínio superior da técnica
da narração para que ela consiga fazer-nos assistir à vida das
personagens ; o diálogo o consegue, mesmo lançando mão dos
recursos mais primitivos .
Pois bem , a forma autobiográfica, o relato na primeira
pessoa, procura e consegue um efeito análogo ; o que na terceira
pessoa seria dista nte e impreciso, adquire força e evidência se a
personagem fictícia está aqui, diante de nós, porque é ela mesma
quem está falando. Isto não quer dizer que mais para frente,
ao longo da história do gênero, este artifício seja necessário ; o
decisivo é que a novela picaresca seja criada em forma autobio­
gráfica, e esse caráter parecerá essencial por muito tempo. Urna
das diferenças radicais entre a picaresca -sensu stricto e as nar­
rações de tema picaresco em Cervantes , sobretudo o Rinconete
y Cortadil/o, é que estas não se amoldam ao esquema da auto­
biografia; mas Cervantes significa justamente a superação dessa
Jirnitação técnica, o domínio pleno da narração corno tal - da
novela no rigor do termo -, e além disso o propósito literário
destas novelas cervantinas é inteiramente distinto.
Apesar de os estudos recentes da Picaresca haverem feito
muitas distinções e atenuações, apesar de ficarem vistos aspectos
parciais diferentes e talvez mais sutis, o torso da interpretação
vigente consiste em ver que seu terna fundamental é a fome, e
que a qualidade dominante do pícaro, o " anti-herói'' , é o res­
sentimento. :e evidente que há fome e ressentimento na ·novela
picaresca, e darei alguns exemplos importantes ; mas a questão
é se urna e outro são os móveis efetivos , as molas da idéia da
vida que transparece nesta novela. Em outros termos, a fome é
necessária à Picaresca, e o pícaro é necessariamente um ressen­
tido? E se não é assim, em que consiste realmente essa forma ,
de vida, essa atitude que se incorpora à sucessão daquelas que
a novela espanhola foi descobrindo e pondo em jogo?

·
No Lazarillo, a maioria dos amos do protagonista não lhe
dão de comer ; isto introduz a fome corno fator principal do
relato . J! porém urna fome derivada e voluntária , decorrente da
avareza e não de escassez absoluta e pobreza, salvo num caso .
Do cego, diz que tirava "grandes proveitos com as artes que
digo, e ganhava mais em um mês que cem cegos num ano. Mas

·2 3
também quero que saiba vossa mercê que, com tudo o que aa­
quiria e tinha, nunca vi homem tão avarento e mesquinho; tanto,
que a mim matava-me de fome, e não me dava a metade do ne­
cessário . Digo a verdade : se com minha sutileza e boas manhas
não soubesse remediar-me, muitas vezes teria me finado de fome ;
mas, com todo seu saber e aviso, o embrulhava de tal modo que
sempre ou na maioria das vezes me cabia o mais e o melhor".
O clérigo é um caso extremo de avareza - não de pobreza -,
antecipação do Dómine Cabra : " Pois já que comigo tinha pouca
caridade, consigo usava mais . " E todo o episódio é um duelo
entre a avara mesquinhez do amo e a astúcia do criado. Quando
se chega, pelo contrário, à verdadeira pobreza , à escassez e mi­
séria reais que o escudeiro padece, cessam a preocupação e a
luta : Lázaro compadece-se de seu amo, arranja-se como pode,
pede às mulheres compassivas que se condoam da criança ino­
cente, compartilha com seu amo - vencendo com tato e des­
treza a resistência de sua dignidade, de sua " mísera honrazi­
nha " - o pão ou a unha de vaca que conseguira.
O verdadeiro tema não é, pois , a fome, e sim a contrapo­
sição entre a aparência e a realidade, entre a gentileza e a mi­
séria, entre a figura social do escudeiro e sua situação efetiva:
" E subia rua acima com tão gentil semblante e aspecto, que
quem não o conhecesse pensaria ser parente muito próximo do
conde de Arcos , ou, pelo menos , camareiro que o ajudava no
vestir-se. " "ó, Senhor, e quantos destes deveis ter espalhados pelo
mundo, padecendo, pela mísera que chamam honra , aquilo que
por vós não sofreriam! " E sobretudo acrescenta Lázaro : " Con­
tudo, queria-lhe bem, por ver que nem tinha nem podia mais ,
e mais lhe tinha pena que inimizade . "
Quanto ao pícaro por excelên.cia, o Guzmán de Alfarache,
convém lembrar que, qualquer que seja o papel que a fome
possa ter dentro da novela, não é ela o motor da vida picaresca .
Esta se inicia no livro I, cap. III, que começa com estas pala­
vras, muito freqüentemente pa• s sadas por alto : " Era eu um rapaz
corrompido e mimado, criado em Sevilha sem castigo de pai,
a mãe viúva - como já o sabes -, cevado a torresmos, pãe­
zinhos fofos e manteiga e sopas de mel rosado, cuidado e ado­
rado, mais que filho de mercador de Toledo ou tanto. Fazia-me
mal deixar minha casa, parentes e amigos; além de que é doce
amor o da pátria. Sendo-me forçoso, não pude evitá-lo. Anima­
va-me muito o desejo de ver mundo, ir à Itália conhecer minha
nobre parentel�."
Guzmán não se lança à vida picaresca por fome, mas pelo
contrário, por fartura e mimo, por desejo de novidade e aven-

24
tura. E quando aparece a fome, no dia de sua fuga, cansado
da primeira caminhada, Mateo Alemán aplaca a de sua perso­
nagem c9m aquela famosa e nauseabunda omelete de ovos cho­
cos, passagem essa em que começa a novela picaresca a " faltar
o respeito " à fome, a zombar da fome , que rarissimamente é
nela " uma coisa séria " - tema que mereceria ser tratado inde­
pendentemente e a fundo .
A culminância desta atitude se encontra, naturalmente, em
Quevedo, e sobretudo na pupilagem do Dómine Cabra. O pro­
cesso de desrealização chega a seu extremo : " Comeram uma
comida eterna, sem princípio nem fim; trouxeram caldo em umas
escudelas de madeira, tão claro, que ao comer numa delas Nar­
ciso correria um risco maior do que na fonte . " "Vejo um moço
meio espírito, tão fraco , com um prato de carne nas mãos, que
parecia ter sido tirada de si mesmo. " " Certifico a v. m. que vi
um deles, o mais fraco , que se chamava Jurre, biscainho , tão
esquecido de como e por onde comia, que levou duas vezes aos
olhos uma migalha que lhe coube, e três juntos não consegui­
ram que suas mãos acertassem a· boca . " " E tudo isto acreditará
quem souber o que me contou o criado de Cabra , que o havia
visto meter em casa , recém-chegado, dois frisões, e que em dois
dias saíram cavalos ligeiros, que voavam pelos ares; e que viu
meter mastins pesados, e em três horas saírem galgos corredo­
res . " Isto é fome? E isto essa realidade tremenda que chama­
mos fome? E certo que se trata dela na novela picaresca?

II

Quanto ao ressentimento, a coisa é mais delicada. Usa-se esta


palavra em vários sentidos e de modo extremamente vago : apli­
cou-se à Picaresca no significado mais rigoroso que adquiriu -
na forma francesa Ressentiment - na filosofia alemã de fins
do século XIX, primeiro em Nietzsche e depois em Scheler;
este conceito liga-se muito estreitamente à teoria dos valores em
ambos os filósofos e no antecedente do segundo, Brentano. Nie­
tzsche ligava o ressentimento ao cristianismo, e considerava que
este o havia introduzido na moral ocidental; Scheler , em seu
estudo Das Ressentiment im Aufbau der Moralen (O ressenti­
mento na moral) mostrou com grande agudeza a injustiça dessa
imputação de Nietzsche e o verdadeiro sentido da moral cristã ,

25
mas introduziu de forma muito precisa a noção de ressentimento
como conceito ético que, desde então , teve ampla vigência. O
ressentimento é, com palavras de Scheler, uma auto-intoxicação
psíquica. "� uma atitude psíquica permanente, que surge ao
reprimir sistematicamente a descarga de certas emoções e afe­
tos , os quais são em si normais e pertencem ao fondo da natu­
reza humana ; tem por conseqüência certas propensões perma­
nentes a determinadas classes de enganos valorativos e juízos de
v·alor correspondentes. "

A forma extrema e rigorosa do ressentimento só existe ,


porém, quando avançando além dos sentimentos hostis , da ne­
gação do valor das pessoas ou coisas egrégias , chega à negação
do valor mesmo, ou à inversão da hierarquia objetiva dos va­
lores. O ressentido não sente, então, ódio contra aquele que
possui valor, ou nega que o possua, ou procura contrabalançá-lo
aduzindo defeitos e qualidades negativas, mas sim anula o valor
ou prefere o inferior ao superior. � a forma radical de falsifi­
cação, a tal extremo que o juízo de valor pode ser " verdadeiro" ,
"veraz" e "honrado", porém são ilusórios e decorrentes de uma
deformação . "Quem é mendaz, não necessita mais mentir! " , diz
perspicazmente Scheler.

A coisa fica mais clara quando confrontada com o ponto


de vista de Brentano em sua conferência de 1 889 Vom Ursprung
sittlicher Erkenntnis (A origem do conhecimento moral). Bren­
tano introduz na mesma o conceito de amor justo (richtige Lie­
be), em oposição ao " injusto " , tomando como modelo para os
atos de amor e estima o que há muito se havia reconhecido na
esfera da lógica a respeito do verdadeiro e do falso . " Dizemos
que algo é verdadeiro quando o modo de referência que con­
siste em admirá-lo, é o justo. Dizemos que algo é bom quando
o modo de referência que consiste em amá-lo, é o justo . O que
seja amável com amor justo, o digno de ser amado (das mit
-
richtiger_ Liebe zu Liebende, das Liebwerte) , é o bom no mais
amplo sentido da palavra . "

O amor justo é o contrário d o ressentimento : consiste em


amar o amável, o digno de ser amado, e odiar o que merece
ser odiado ; é a atitude que respeita escrupulosamente o valor,
qualquer que seja a conveniência, o agrado ou desagrado. En­
quanto o ressentimento nega o valor do valioso ou inverte a
escala ou hierarquia que os valores por si mesmos possuem -
o amável , o estimável - , o amor justo se atém ao que objetiva­
mente é, respeita as exigências da estimação.

26
Que acontece na novela picaresca? Certamente se podem
encontrar inúmeros exemplos de ressentimento, do Guzmán em
diante - junto a outros casos de estimação justa -; porém o
decisivo é que, sendo o Lazarillo uma novela picaresca e pre­
cisamente a criadora do gênero, ter-se-ia que encontrar nela res­
sentimento para, por ele, definir esse gênero como tal , para en­
contrar o ressentimento na essência da Picaresca. Se isso não
se der, poderemos dizer que o ressentimento é um ingrediente
- quem sabe importante, talvez freqüente - da novela pi­
caresca, mas só isso, e sua peculiaridade deverá ser procurada
em outro lugar.
Pois bem , não só Lázaro não é um ressentido como me
parece um dos exemplos mais puros e representativos de amor
iusto, podendo mesmo servir de ilustração ao estudo de Bren­
tano. Vejamos .
J á desde o início, quando Lázaro conta as visitas do negro
Zaide a sua mãe, do que resultou que esta lhe desse " um ne­
grinho muito bonito " , ao contar que o menino, acostumado a
ver sua mãe e Lázaro , brancos, fugia com medo de seu pai " e ,
apontando com o dedo, dizia : - Mãe, bicho papão ! " , anota
esta reflexão que fazia para si mesmo : " Quantos deve haver no
mundo que fogem dos outros, porque não se vêem a si mes­
mos ! " E logo que parte de sua casa para servir o cego, quando
este , enganando-o, o faz pôr a cabeça junto ao touro de pedra
e lhe dá uma cabeçada cuja dor durou mais de três dias, para
que não confie em ninguém, visto que "o criado de cego deve
ser ainda mais esperto que o diabo " , a reação de Lázaro vai
além do sofrimento e da aflição, além da hostilidade : " Pare­
ceu-me que naquele instante despertei da simpleza em que, como
criança , estava adormecido . Disse para mim mesmo : 'Este diz
a verdade : bem que me é preciso ter o olho vivo e prevenir,

pois sou sozinho, e pensar como me saiba valer.' " I sto é, Lá­
zaro procura a visão reta, reconhece a lição, a estima no que
tem de valiosa, ainda que ao p reço da brutal crueldade .
Em Lázaro, esta atitude é constante. O cego lhe diz : " Ouro
ou prata não te posso dar; mas avisos para viver, muitos te hei
de mostrar. " E Lázaro, não só o reconhece como o comenta com
clarividência estimativa : "E foi assim que , depois de Deus, este
me deu a vida, e, sendo cego, me iluminou e adestrou na carrei­
ra de viver. Folgo de contar a vossa mercê estas ninharias, para
mostrar quanta virtude é saberem os homens subir sendo baixos,
e se deixarem abaixar sendo altos, quanto vício . " E continua,
explicando o s"aber; o talento, o engenho do cego, seus muitos
ganhos, sua avareza e crueldade, as " burlas endiabradas " que

27
tinha que lhe fazer para vencer estas qualidades negativas e
não perecer de fome.
Tudo isso culmina na aventura da jarra de · vinho, quando
o cego, ao descobrir o engano que Lázaro lhe está fazendo,
bebendo por um orifício tapado com cera, deixa cair a jarra
com toda a força sobre a boca do rapaz. E é aqui que se chega
às fórmulas mais rigorosas do " amor justo " . " Daquela hora em
diante quis mal ao mau cego, e, embora ele me quisesse e me
presenteasse e me tratasse, bem vi que havia se divertido com
o castigo cruel. O castigo é justo, e Lázaro não o levaria a mal ;
porém o cego se havia comprazido nele, e isto é maldade ; " quis
mal ao mau cego " : não se pode dizer melhor.
Lázaro chega porém a uma finura estimativa ainda maior .
Passa-se o tempo, acontecem mais enganos e mais castigos e
mais vinganças e novas crueldades, e o pícaro conta : " Contava
o mau cego, a todo s que ali chegavam, meus desastres, e rela­
tava-lhes uma e outra vez, ora o da jarra, ou o do cacho de uvas ,
ou então o do presente. Era tamanho o riso de todos, que quem
passasse pela rua não deixava de entrar para ver a festa; mas
o cego contava minhas façanhas com tanta graça e donaire, que,
embora eu estivesse tão maltratado e chorando, parecia-me come­
ter uma injustiça não me rir delas. " Não é possível maior pureza,
maior escrúpulo. O cego é duro, cruel, não tem benevolência ;
além disso, diverte-se com o castigo e ainda em contá-lo uma
vez e outra ; mas o faz tão bem ! Tem tanta graça e engenho,
que a atitude justa, correta, é rir-se ; não o fazer é não valorizar
justamente essas qualidades ; é " sem-justiça" ; e o dolorido e
choroso Lázaro, ao mesmo tempo que odeia o cego por sua mal­
dade e dureza de coração, reconhece, estima, valoriza sua graça
e ri-se com ela, com o mais delicado e maravilhoso " amor justo " .
E mais adiante, ao refletir com agudeza e ternura sobre
seu amo , Lázaro, o escudeiro paupérrimo, acumula as conside­
rações que mostram seu pulcro sentido da valoração : " Muitas
vezes eu contemplava meu desastre, que, escapando dos amos
ruins que havia tido, e procurando melhoria, viesse a topar com
quem não só não me sustentava como tinha que ser por mim
sustentado. Contudo, lhe queria bem, por ver que não tinha
nem podia mais, e mais sentia pena do 'que inimizade . . 'Este
.

dizia eu, é pobre, e ninguém dá o que não tem; mas o cego


avarento e o infeliz clérigo mesquinho, que, dando Deus a am­
bos, a um de mão beijada e ao outro de língua solta, me mata­
vam de fome, aqueles é justo desamar, e este é digno de lástima. '
Não falta nem a expressão de Brentano. A doutrina do
amor justo, não só impregna e vivifica o Lazarillo como nele

28
está formulada. A primeira saída da novela picaresca, não só
não acusa o ressentimento como representa um exemplo admi­
rável da ética da valorização, quase um " tratado do amor justo " .
Se há ressentimento neste gênero literário, se aparece n a idéia
da vida que se reflete na Picaresca, isto não pertence à sua
essência mas decorre de uma vicissitude histórica sobrevinda
em fins do século XVI . Temos que perguntar novamente em
que consiste a novela picaresca, qual é a idéia da vida que nela
se dramatiza e explicita .

III

Homo homini lupus, o homem é um lobo para o homem.


l! o que se repete incansavelmente desde Plauto, e no tempo de
maior florescimento da novela picaresca coloca Hobbes esta
máxima no centro de sua teoria política. Mas cabe perguntar :
embora supondo que seja assim, o será sempre? Fórmula algu­
ma pode esgotar o que é a vida humana. De sociedade a socie­
dade, de época a época, de indivíduo a indivíduo, de um tempo
a outro em cada biografia, a vida muda de significado. Também,
às vezes o homem é um lobo para o homem.
Na picaresca, não. Se quiséssemos encontrar uma fórmula
zoológica, portanto esquemática e simplificadora , se tentásse­
mos reduzir uma forma de vida humana a uma " natureza" , di­
ríamos melhor : homo homini vulpes, o homem é uma raposa
para o homem. Não é a violência ou o espólio o que caracteri­
za a convivência do pícaro em seu mundo ; é muito mais o en­
gano, a agudeza e arte de inventiva, a burla. Cada qual trata
de superar em travessura e habilidade o outro, de vencê-lo com
manhas e ardis . Em inglês poder-se-ia dizer com uma só pala­
vra : outwit.
Todo fazer humano, porém, está definido por seus motivos,
e sem eles não tem significação ; o porquê e o para quê - en­
sinou Ortega - são o que constitui um fazer humano em sua
realidade . Por que e para que engana o pícaro, por que e para
que tenta burlar o próximo, superá-lo em engenho ou astúcia,
envolvê-lo com a destreza da palavra ou com o manejo das
aparências? Pensar-se-á na " luta pela vida " , na pobreza e de­
samparo, na baixa condição do " criado de muitos amos " , sem­
pre diminuído , que tem que se valer de todos os recursos para

29
sobreviver e, se possível for, medrar. A raiz da novela picaresca
seria o utilitarismo.
Que haja utilitarismo nos livros de pícaros do século XVI
e do século XVI I , quem o duvida? Mais uma vez, a questão é
se consistem nisso, se é isso o que os explica e torna inteligíveis,
se é a utilidade o núcleo da idéia da vida que neles funciona.
Se fosse assim, o pícaro procuraria sempre que o engano não
fosse descoberto, que a vítima ignorasse sempre que houvera
sido enganada, ou pelo menos quem fora seu enganador; que
permanecesse amiga, propícia, disposta para um novo engano .
Pois bem, na novela picaresca ocorre justamente o contrário .
O pícaro está sempre disposto a matar a galinha dos ovos de
ouro, ainda que tenha de, penosamente, procurar outra. Por
quê? A troco de quê, paga esse preço? Se não se percebe isto ,
deixa-se escapar, em minha opinião, o que há de mais profundo
na Picaresca.
O pícaro dá a conhecer o engano ; faz o outro saber que
" o fez de bobo " ; mais que a utilidade, interessa-lhe a burla. Se
esta não é posta a descoberto, não vale a pena - como a Don
Juan não lhe importam as conquistas se não pode contá-las -.
E isto começa já desde o Lazarillo, sem esperar a nova Picares­
ca, a segun da " saída " . Quando o cego se dispõe a comer com
Lázaro um cacho de uvas , e estipula o modo de comê-las, diz :
" Tiras uma vez e eu outra, contanto que me prometas não pe­
gar mais de uma uva cada vez. Eu farei o mesmo até acabar­
mos, e deste modo não haverá engano . " Mas bem que o houve.
" O traidor mudou de propósito e começou a pegar de duas em
duas , considerando que eu haveria de fazer o mesmo. Como vi
que ele quebrava o trato não me contentei em ir a par com ele ;
pelo contrário, passava adiante : duas a duas , três a três e como
podia as comia. " Advirta-se que o cego, dono das uvas e da
autoridade, pôde delas dispor à sua vontade: comê-las todas,
separar uma parte para Lázaro etc . No entanto , entra no "jogo "
esportivamente, expõe-se a ser enganado e tenta enganar. O diá­
logo que segue não pode ser mais revelador :
" Acabado o cacho, esteve um pouco com o engaço na mão ,
e, meneando a cabeça, disse :
" - Lázaro, enganaste-me. Posso jurar por Deus que co-
meste as uvas de três em três.
"- Não comi - disse eu -; mas por que suspeitais isso?
" Respondeu o sagacíssimo cego :
" - Sabes como vejo que as comestes de três em três ?
Porque eu comia de duas em duas e calavas .

30
" Ri para mim mesmo , e, embora moço novo, notei muito
a discreta consideração Jo cego . "
A s cartas sobre a mesa . A burla e sua descoberta, procla­
madas ; sabe-se quem engana a quem. Toda a novela picaresca
é uma sucessão interminável de cenas semelhantes . As mais cla­
ras , explícitas e significativas se encontram no cortante e amar­
go Quevedo - que soube ser outras coisas além de cortante e
amargo - . Quando D . Diego Coronel e Pablos, a caminho de
Alcalá, fazem uma parada a fim de cear e passar a noite na
venda de Víveres , os estudantes, os rufiões e as mulherinhas
decidem cear à sua custa . Um estudante finge ser antigo amigo
de seu pai, e todos se convidam ; na manhã seguinte, D. Diego
paga os sessenta reais e se despedem. Seria normal que preten­
dessem ficar nos melhores termos para conseguir em Alcalá
uma ou outra comida . Porém não é isto o que mais os interessa .
" Apenas havíamos começado a andar, quando uns e outros se
puseram a dar-nos vaia, confessando a burla; e o vendeiro dizia :
' Senhor novo, com poucas estréias como esta, envelhecerá . ' O
cura dizia : 'Sacerdote sou, mais adiante lhe rezarei as missas . '
E o estudante maldito e m altos brados dizia : ' Senhor bobo, de
outra vez raspe-se quando o coma, e não depois .' E outro dizia :
'Que v . m . pegue sarna, D . Diego . ' Nós demos em não fazer
caso : Deus sabe o quanto envergonhados íamos . ''
Acontece o mesmo depois dos afrontosos e sórdidos trotes
in fligidos a Pablos em Alcalá : " Os outros criados depois de me
vaiarem , relataram a burla. Riram-se todos ; dobrou-se minha
afronta . " E analogamente, apesar de que Pablos e a ama se
entendam tão bem para os furtos e fraudes, de que ambos tirem
igual proveito, as coi sas não terminam bem . Vejamos o que diz
o Buscón :
" Pensará v . m . que sempre estivemos em paz ; mas quem
ignora que dois amigos , quando são cobiçosos , estando juntos
hão de procurar enganar um ao outro ? " E em seguida conta
como a ama estava dando de comer aos frangos, dizendo " pio,
pio " , e como Pablos a amedrontou , escandalizado pelo tremen­
do delito que ela havia cometido, do qual teria que dar parte
à Inquisição , e como a pobre mulher não sabia o que havia fei­
to, expl icou-lhe : " Não sei como dizer, que o desacato é tal que
me acovarda . Não vos lembrais que dissestes aos frangos " pio,
pio " muitas vezes, e Pio é nome de papas, vigários de Deus e
cabeças da Igreja? Que papeis &gora o pecadinho . " Quando por
fim Pablos concorda em levar à Inquisição os frango s que assim
foram alimentados , para serem queimados " porque estão mal­
ditos " , e explicar a inocente inadvertência da ama ; quando es-

31
ta, agradecida e comovida, presenteia-o com mais um frango,
e Pablos come uns e outros com os companheiros, poder-se-ia
pensar que ocultaria o engano e continuaria se aproveitando da
aliança, reforçada agora pela cumplicidade e a gratidão ; isto
porém não satisfaria o pícaro : " Soube a ama e meu amo a ve­
lhacaria ; toda a casa o festejou grandemente, e a ama sofreu
tanto que por pouco não morreu ; e depois com a zanga esteve
por um triz - já que não tinha por que calar - de contar

minhas fraudes . Eu , que já estava mal com a ama e que não


a podia enganar, procurei novos planos para divertir-me . "
Não s e trata, pois, primeiramente d e utilidade. E sempre,
a cada novo engano, o mesmo comentário : " Contei a burla, e
não quiseram crer que havia acon t ecido assim, embora o fes­
tejassem muito . " O confeiteiro " percebeu a burla e começou a
benzer-se, num nunca acabar. Confesso que em minha vida ne­
nhuma coisa me pareceu tão divertida " . E conclui : " Com estas
e outras comecei a ganhar fama de travesso e de fino entre
todos . "

Que significa isto? S e não s e trata d e luta efetiva e de


procurar a utilidade, se o que interessa mais é " ficar por cima " ,
ser mais vivo que o outro, vencê-lo em artimanhas e , sobretudo,
fazê-lo saber, não quer dizer isto que na novela picaresca pulsa
um problema de personalidade? Não procurará o pícaro ser mais
que todos, e não podendo o fazer criativamente, contenta-se em
" fazer pouco " - tremenda, admirável expressão - do outro?
Há em espanhol duas frases feitas de arrepiar, difíceis de com­
preender-se, que às vezes assusta compreender demasiadamente
bem : "Quedarse tuerto por dejar ciego ··a otro ", "ai prójimo
contra una esquina ". Ficar caolho, não é péssimo negócio? Acei­
taria essa fórmula alguma mente utilitária? E não se pode dar
ao próximo um destino melhor - e mesmo mais conveniente
- do que uma pétrea esquina?
Seria porém errado pensar que esta é a idéia da vida na
Espanha dos séculos XVI e XVI I ; é apenas - e não é pouco
- uma das idéias da vida que então se deram , e que explica
boa parte de nossa história . A novela picaresca coexiste com os
livros de cavalarias , com a pastoril, com a cervantina. A idéia
da vida que acabo de explorar e tentar definir é de uma essen­
cial parcialidade . O suposto " reaHsmo " é , como acabamos de
ver, uma maneira de desrealização ; a rigor, e contra todas as

32
aparências, uma forma de evasão, de eludir a realidade tal como
é, em toda sua complexidade e riqueza, irredutível a fórmulas .
Trata-se, como tantas vezes, de uma simplificação da vida hu­
mana, de sua projeção sobre um plano, o qual a deixa bidimen­
sional e abstrata, irreal em suma. A espessura da vida humana
verdadeira apareceu, quase milagrosamente, no nascimento da
novela espanhola, na Tragicomédia de Calisto y Melibea, mais
conhecida - mas não melhor e sim já com uma simplificação
- por La Celestina. Para recobrar , para tornar a encontrar a
vida com todas suas dimensões e ramificações , a ficção com
todos os seus espelhos, é preciso procurar a figura de Cervantes .

1 968

33
Dois dramas românticos :
Don Juan Tenorio e Traidor, lnconfeso
y Mãrti r

O Romantismo foi sobretudo uma forma de vida. O que


teve de estilo, de escola literária, de forma artística, lhe adveio
de uma instalação unitária e total do homem em uma figura
de mundo, orientado para um projeto de vida que, em mil va­
riantes , pretendia realizar os mesmos traços . Por isso o Roman­
tismo é o nome de uma época da história européia - e, com
diferenças que seria muito sugestivo precisar, também ameri­
cana -. Num antigo escrito meu, " Un escorzo dei Romanti­
cismo " (incluído em Ensayos de convivencia) procurei determi­
nar quais foram os limites cronológicos do Romantismo como
forma de vida - e , portanto, da época romântica -, embora
algumas de suas características possam encontrar-se isoladas an­
tes ou depois (é o que se pode chamar com rigor pré-romantis­
mo e pós-romantismo) .
As quatro gerações românticas são, segundo minhas contas,
as de 1 766, 1 78 1 , 1 796, 1 8 1 1 . Quer dizer, os nascidos entre
1 759 e 1 8 1 8 . Por outro lado, tendo-se em conta que cada gera­
ção inicia sua atuação plenamente histórica aos trinta anos, isto
é, quando atinge trinta anos a geração como tal , qualquer que
seja a idade dos indivíduos que a integram, teríamos que o Ro­
mantismo alcançaria existência histórica - minoritária -, p e ­
la primeira vez, cerca de 1 796; e conservaria vigência - já
residual e em liquidação - até que a última geração românti­
ca fizesse sessenta anos, isto é, até 1 87 1 . I sto explicaria, diga-se
de passagem, a figura de Bécquer, cuja vida transcorre toda
num mundo ainda romântico, apesar de haver nascido em 1 836
e pertencer à geração de 1 84 1 , a mesma de Galdós < 1 > .

( 1 ) Veja-se meu ensaio " B�cquer em seu lugar", neste mesmo volume .

35
Tem-se salientado, reiteradamente, que o romantismo es­
panhol é tardio : quase todas as obras literárias importantes dos
românticos espanhóis se escrevem ou estréiam ou se publicam
no decênio 1 834-44. Mas naquele antigo ensaio tratei de justi­
ficar minha convicção de que o Romantismo (com maiúscula,
como forma de vida) foi tão antigo na Espanha quanto nos de­
mais países europeus, embora a literatura da primeira geração
romântica ainda fosse neoclássi�a . A anormalidade da história
espanhola durante um quarto de século - desde o começo da
guerra da Independência em 1 808 até a morte de Fernando V I I
e o fim d o absolutismo e m 1 833 , explica esse desnível entre
-

vida e literatura. Os homens das Cortes de Cádiz, em suas figu­


ras humanas, em sua retórica, em suas idéias, eram absolutamen­
te românticos, porém ainda vertem seus pensamentos e emoções
em moldes que procedem do século XVI I I ; só quando escrevem
para si mesmos ou para os muito próximos descobrem o que
trazem dentro ; assim os diários, cartas, notas de viagem de
Moratín, nascido nada menos que em 1 760 < 2 > .
O núcleo do Romantismo foi a interpretação liberal da vida
- para além e por baixo da política, às vezes contra as convic­
ções tradicionalistas ou reacionárias -. O romantismo literário ,
público, amanhece em 1 834, recém retirada a tapagem que havia
oprimido e mascarado a Espanha durante o reinado de Fernan­
do VI I ; porém a vida dos espanhóis já se nutria há muito tem­
po de substâncias românticas, como prova entre outras muitas
coisas, o irônico e divertido ensaio de Mesonero Romanos, " El
Romanticismo y los românticos " , escrito em 1 83 7 , sa turado de
romantismo até a caricatura, a rigor " de volta " dele, o que se­
ria incompreensível se houvesse tido três anos de existência e
uma representação tão reduzida quanto suas publicações permi­
tiriam ajuizar.

Don José Zorrilla nasceu em 1 8 1 7 e morreu em 1 893 . Per­


tence, pois, à última geração romântica, a mais rica em nomes,
a mais representativa - aquela que, no entanto, começa a sair
do Romantismo. P. Arolas, López Soler, Esquivei, Modesto La­
fuente, Hartzenbusch, Alenza, Escosura , Ventura de la Vega,
Cabanyes, Espronceda, Larra, Donoso Cortés, Gayangos, Ches­
te, Balmes, Baralt, Miguel Agustín Príncipe, Nicomedes Pastor

(2) Vej a-se " Espafía y Europa en Moratfn ", em Los Espaiioles, El Alclón, Revis­
ta de Occidente, Madrid, 1 97 1 .

36
Díaz, o marquês de Molins, García Gutiérrez, Romero Larraõa­
ga, Gertrudis Gómez de Avellaneda, Diana, Gil y Carrasco, Eu­
genio de Ochoa, Federico de Madrazo, Ariza, Martínez Viller­
gas, García Tassara , Tomás Rodríguez Rubí, Miguel de los San­
tos A lvarez, Zorrilla, Campoamor : todos estes nomes são coe­
tâneos, são o nível histórico da geração de 1 8 1 1 . Dir-se-ia que
são "o Romantismo " ; a rigor, são a saída do Romantismo, que
em sua maturidade trazem dentro de si outro mundo, outra
forma de vida.
Em plena juventude, aos vinte e sete anos , em 1 844, Zorrilla
estréia Don Juan Tenorio. l! - excusado dizer - a obra mais
viva do teatro espanhol, embora nestes últimos anos nos empe­
nhemos em matá-la. Para os espanhóis de oito ou dez gerações
- que se contam depressa -, o Tenorio representou " o sabido
por todos " . Somos muitos os espanhóis que o sabemos de me­
mória, que necessitaríamos no máximo um ponto quatro ou cin­
co vezes, para preencher algumas zonas mortas. Isto foi possível
pela extrema simplicidade do drama, por sua estrutura de ballet
- que Ortega soube descobrir há quarenta anos -, mas sobre­
tudo pela graça do verso, pelo prodigioso ajuste com a ação,
pelo garbo com que se movem as personagens . Zorrilla soube
combinar a graça e o drama. Soube vincular à ação dramática
e ao lirismo o amor e a morte, os dois irmãos gêmeos - fratelli
a un tempo stesso amore e morte / ingenerõ la sorte - de que
falava Leopardi .
Sim, o amor e a morte ; mas também o amor e a retórica .
Creio ser este o grande acerto de Zorrilla, sua grande descober­
ta, uma de tantas que surgem inesperadamente em sua obra, e
que seria interessante ir descobrindo. O amor consiste - entre
outras coisas, mas principalmente - em dizer coisas à mulher,
isto é, intytpretá-la. Até há pouco tempo, e talvez ainda nas ci­
dades provinciais da Espanha, " falar com " queria dizer ter re­
lações amorosas, um noivado . " Pedro fala com Isabel " , ." faz três
meses que falatn" , se dizia. Claro que o que faziam era unica­
mente - ou quase - falar, e hoje se supõe que não se trata
disso; mas é preciso lembrar que o amor é sobretudo questão de
palavras , e se estas secam, o amor não chega a brotar, e é su­
plantado por seus ".s ubstitutivos " . A sedução de Doõa Inés, na
quinta junto ao Guadalquivir, à custa de palavras, é, justamente
por ser retórica, uma das cenas mais verazes do teatro espanhol .
.
I sto nos conduz ao tema de Don Juan. Costuma-se pensar
que o de ZorriUa é elementar, superficial, sem interesse. Não
estou certo disso . Zorrilla era muito pouco intelectual, muito
pouco teórico, porém era capaz de abandonar-se, de entregar-se

37
à realidade, e é a única maneira de descobri-la. Não se esqueça
que a inocência é uma das poucas atitudes criadoras. " Se. não
vos fizerdes como crianças - lemos em São Mateus - não en­
trareis no reino dos céu s . " Zorrilla teve o acerto de introduzir
a mulher, Dofia Inés, na história de Don Juan , e isto fez dele
algo mais que um colecionador presunçoso.
O donjuanismo tem certos pressupostos, sem os quais não é
possível ; ambos têm que ver com as condições da caça , que
Ortega estudou tão admiravelmente : a escassez e o perigo. A
primeira condição para caçar é que não haja caça, que seja
muito difícil encontrá-la ; e qµe fuja, resista, ataque . Não há
quem possa disparar uma espingarda numa granj a avícola. Po­
·
der-se-á dizer que as mulheres sempre foram legião, aproxima­
damente tantas quanto os homens ; porém não estavam " dispo­
n íveis " , estavam zelosamente guardadas, encerradas em suas
tocas ; só podiam ser vistas atrás das gelosias, ou de longe , ou
entre a multidão . Falar com elas, dar-lhes uma carta, era quase
impossível ; difícil, custoso, perigoso, improvável. Acrescente-se
a isto a esquivez inicial da mulher, seu gesto de fuga - tradi­
ção ocidental milenária, de antiqüíssima sabedoria . E o perigo,
porque a mulher estava defendida pela sociedade, pela família,
lei , religião : pais, irmãos, maridos, aias, pressões sociais , o
pecado .
Diante de tudo isto - quer dizer, em vista disto e apesar
de -, Don Juan como pretensão humana, como vocação varo­
nil . Sua vocação é enamorar. E Ortega definiu Don Juan como
"o homem de quem as mulheres se enamoram " . A coisa se ajus­
ta como anel ao dedo . Sim, mas num livro que escrevi há pouco
e intitula-se Antropología metafísica, onde, naturalmente , se fala
muito das mulheres e do amor, tive muito cuidado em advertir
que " embora gramaticalmente o verbo ' enamorar' pareça pri­
mário, e 'enamorar-se' só seu uso reflexivo, na realidade se dá
o contrário : 'enamorar-se' é o sentido forte e original, e 'ena­
morar' é unicamente o que se faz para que alguém se 'enamo­
re " ' < 3> . Daí a dificuldade interna do donjuanismo : se Don Juan
não se enamora , no final da s contas fica fora, converte-se em
pouco mais que espectador; e se se enamora, o donjuanismo tor­
na-se problemático . :f:xito e fracasso lutam dentro de Don Juan,
e o sucesso significa ao mesmo tempo a frustração, a desilusão,
o ter que tornar a começar.
Mas Don Juan não é só isso ; há, desde o começo da lenda,
uma dualidade de temas : o sedutor une-se ao rebelde. l:Iá um
(3) Ant ropologia metafísica, Livraria Duas Cidades, São Paulo , 1971 , p. 176.
( N . d o T.)

38
perigo terreno e outro transcendente . O enganador traz sempre
junto a si , em uma ou outra forma, o convidado de pedra, a
irrupção do mais além. Don Juan é um rebelde diante das
pessoas que dominam, protegem e defendem as mulheres ; dian­
te da sociedade com seus usos , diante da lei com seus meiri­
nhos e justiças ; mas também diante da moral, e sobretudo, dian­
te de Deus . O que Don Juan faz, não só é perigoso : é proibido ;
não só é ilegal : é imoral ; não só falta às normas éticas : é
pecado . Se desaparecem estas tensões, Don Juan é impossível,
porque não tem sentido, porque deixa de ser Don Juan .
Don Juan é crente ; entenda-se, é crente em parte. Se o fosse
de verdade, sentiria o temor de Deus , feito de amor a ele, e
não viveria como vive ; mas se nada cresse , faltaria-lhe o estí­
mulo da rebeldia e, sobretudo, do risco máximo : Don Juan não
joga somente esta vida ; joga a outra, a eterna; joga a salvação .
Na realidade, Don Juan crê juvenilmente . Quer dizer, pen­
sa que " ainda não " , p01: ora não. " Há muito tempo para isso ! " :
nisso está o donjuanismo . " Longo prazo me dás " , diz o Don
J uan de Zorrilla . A morte está muito longe, embora o espere
em cada esquina a ponta de uma espada . A morte está "estru­
turalmente " longe para o jovem, biograficamente remota, não
ocupa ainda, numa configuração, seu posto inexorável . Por isso
Don Juan se desentende da condenação , porém a tem aí, ao
fundo, como um telão sobre o qual se recortam com atraente
galhardia suas façanhas .
Há outra dimensão essencial no donjuanismo : a atitude
do jogador. Don Juan joga tudo . O dinheiro, a fortuna : " no
dia seguinte / eu a teria posto numa carta " , diz o Don Juan
outonal ao Escultor, quando soube que seu pai o havia deser­
dado e deixado toda sua propriedade para fazer o · famoso pan­
teão. Mas também joga a sua vida, aposta-a com Don Luís,
igualmente a põe numa carta que não lhe interessa - ou muito
pouco -: Dofía Ana de Pantoja, a quem ainda não viu, a
quem vai entrever pela rótula, enquanto compõe ovillejos < 4 >
com o infeliz D o n Luís Mejía. O jogo supõe, a o mesmo tempo,
avidez e desinteresse . Sempre me causou admiração a prodigiosa
agudeza de Pascal . Se oferecemos ao jogador o dinheiro que
pode ganhar, não lhe interessa : o que quer é jogar. Propomo-lhe
então que jogue sem dinheiro : tampouco lhe interessa , sem
dinheiro não há jogo . Don Juan , nem crê de todo nem deixa
de crer : assim , precisamente assim, joga a salvação . E está aí

(4) Ovillejos são composições em verso nas quais os pés quebrados �e três
octossílabos formam o último verso de uma redondilha. (Nota para a tradu ç ao bra­
sileira .)

39
o drama: consiste no encontro com o absoluto, com o que
não é coisa de jogo. Don Juan, o homem de amores fáceis,
passageiros, em seis dias - incluída " urna hora para esquecê­
las " -, não seria possível se não estivesse por trás de tudo
a possibilidade do irreversível, do irrevogável, com o que joga
precisamente porque com isso não se pode jogar.
Se não me engano, existe outra razão explicativa da vita­
lidade teatral, dramática, de Don Juan Tenorio. Não só Dofia
Inês é urna verdadeira personagem, urna pessoa que, por sua
vez, personaliza os amores de Don Juan e faz com que este
seja alguém; também " os outros " , " eles " , aqueles que podería­
mos chamar a resistência diante da qual Don Juan se constitui
corno . tal rebelde, afirmam-se prodigiosamente personalizados
em Don Gonzalo de Ulloa, o Comendador. São três as grandes
personagens do Tenorio - e não esqueçamos Don Luis, con­
trafigura de Don Juan, Brígida, última encarnação de Celesti­
na, Ciutti, onde revive o gracioso teatro clássico -: Don Juan,
·

Dofia Inês e o Comendador.


Creio que Zorrilla pôde criar esta última e genial perso­
nagem porque teve a experiência de seu pai, magistrado abso­
lutista com quem nunca se entendeu, mas a quem respeitou,
temeu e quis consideravelmente . Zorrilla havia feito a fundo a
experiência do " homem de direita " em toda sua plenitude e
esplendor, sem acordos nem compromissos . Um homem com
não poucas qualidades e méritos , não isento de virtudes, mas
de urna feroz insolidariedade . O Comendador é o homem de
direita quimicamente puro . Quando Don Juan lhe pede que o
perdoe e o aceite corno esposo de Dofia Inês, oferecendo-lhe
todas as provas, garantias e sacrifícios, Don Gonzalo nada quer
ouvir; quando Don Juan se mostra arrependido e desejoso de
emendar-se, não lhe dá crédito ; e quando o adverte que com
isso perderá até a esperança de sua salvação, o Comendador
responde com estes dois versos , dos mais cruéis, dos mais im­
placáveis, dos mais pétreos que se hajam escrito em castelhano :

Y qué tengo yo, Don fuan,


con tu salvación que ver ?

(E que tenho eu, Don Juan,


que ver com tua salvação?)

Que tenho eu que ver com tua fome? Que tenho eu que
ver com tua liberdade? Que tenho eu que ver com tuas inquie­
tações? Que tenho eu que ver com tuas dúvidas, com tuas aspi­
rações , com tuas divergências?

40
Que atualidade pode ter em nosso tempo o tema de Don
Juan? Na sociedade romântica ainda persistiam muitas estrutu­
ras não extremamente diversas das do século XVI ou do XVI I .
Zorrilla data o Tenorio d e março d e 1 844, e escreve : " A ação
em Sevilha, pelos anos de 1 54 5 , últimos do imperador Carlos
V . " E a segunda parte, cinco anos depois. Entre uma e outra
nasceu Cervantes . Três séculos depois, Don Juan era ainda
inteligível direta e imediatamente . O antigo regime, que havia
irrompido - violentamente, falsamente - sob Fernando V I I ,
acabava d e morrer. O pai d e Zorrilla havia sido seu leal servi­
dor, intolerante e monolítico. Mas na sociedade atual , agora
que as mulheres estão em todo lugar, sem grades nem gelosias,
sem pais nem irmãos - quase sem maridos - que " exerçam "
funções que lhes caibam, com as vigências volatizadas e um
" zunzum " de que vão deixar os mandamentos, como o que
havia ouvido o cigano de La rebeli6n de las masas; na era do
telefone e do automóvel e do " motel " , Don Juan é possível?
Não. Mas apesar disso, continua a nos interessar, ainda
nos sentimos atraído s por sua figura ; e quando as companhias
de teatro acedem a nô-lo apresentar pelos dias de Finados , acor­
remos pontualmente a vê-lo. Que interesse podemos encontrar
hoje na figura de Don Juan?
Creio que o interesse do que pôde permanecer, do que
sobrevive em outras formas sociais, em outras estruturas de con­
vivência . O ideal masculino, a figura do varão enquanto tal ,
pol armente oposto à mulher, essencialmente referido a ela . A
versão para a mulher, essa operação que se chama a " conquista " ,
que paradoxalmente s ó s e pode conseguir mediante a " rendição " .
A retórica, a criação d e uma linguagem amorosa sem a qual o
amor não existe (e se a linguagem não é a nossa, nosso amor
não é autêntico) . E, finalmente, o perigo, o risco. Mas não dis­
semos que hoje não existe perigo para o amor? Claro que existe;
o que acontece é que não é portas a fora mas sim algo interno,
intrínseco; é o perigo dentro do amor mesmo. Nele, em todo
caso, egi qualquer época, o homem põe a vida em jogo. Poder­
se-á dizer que então também a mulher. Justamente : é o que
adivinhou Zorrilla ao criar a figura de Dofia Inés de Ulloa .

Há outro drama de Zorrilla que exerce sobre mim uma


grande atração : Traidor, inconfeso y mártir. � cinco anos poste­
rior ao Tenorio; estreou a 3 de março de 1 849 . Talvez a mais
perfeita de suas obras. Lembro-me havê-lo comentado, em 1 952,

41
diante de meus estudantes da Universidade de Harvard, deslum­
brados pela sua beleza e pelo seu romantismo. �. como todos
sabem, a história de Gabriel Espinosa, o Pasteleiro de Madrigal,
que viveu e morreu por terras de Valladolid em torno de 1 594,
daquele homem estranho, de quem diziam que era o rei D .
Sebastião d e Portugal, desaparecido e m Alcazarquivir, causa da
incorporação de seu reino à coroa de Felipe I I . O pasteleiro,
impostor ou rei , foi enforcado, porque em fins do século XVI
isto não era para brincadeiras , como agora quando aparece, de
tempos a tempos , uma grã-duqueza Anastácia da Rússia, salva
da matança de Yekaterimburg . Zorrilla criou uma personagem
esplêndida, cheia de dignidade e mistério , de simplicidade e ma­
jestade, de grandeza e uma modéstia inteligente e zombeteira ;
que alterna a retórica com a insinuação e o undesrstatemente :
uma personagem complexa, ambígua, equívoca, intrigante, irônica .
Para mim, Traidor, inconfeso y mártir significou o momen­
to de crise do Romantismo espanhol , a perda de sua vigência
plena, saturada , embora devesse ainda conservá-la declinante,
residual , um par de decênios . Não se esqueça que 1 849 é a
data de La Gaviota, de Fernán Caballero , a primeira novela
" realista " espanhola .
Zorrilla era absolutamente romântico. Quero dizer que par­
ticipava de tal maneira dos pressupostos do mundo que encon­
trou ao ingressar na história, que nunca deles pôde sair e passar
adiante . Como bom romântico, foi muito precoce : deu-se a co­
nhecer, fez-se famoso, aos vinte anos, em 1 83 7 , ao declamar
sua poesia no enterro de Larra :

Ese vago clamor que rasga el viento


es la voz funeral de una campana,
vano remedo dei postrer lamento
de un cadáver sombrío y macilento
que en sucio polvo dormirá manana . . .

(Esse vago clamor que rasga o vento


é a voz funeral do campanário,
vão arremedo do final lamento
de um cadáver sombrio e macilento
que em sujo pó dormirá amanhã . . . )

Nesta data, o mundo era plenamente romântico, e a essa


forma se vinculou Zorrilla irreversivelmente . Sua carreira de
autor dramático é paralela à de poeta lírico ou narrativo, e
fulgurante . O teatro romântico havia-se iniciado , logo após a
morte de Fernando VI I , com La conjuración de Venecia, de

42
Martínez de la Rosa , em 1 834. O primeiro grande êxito dra­
mático de Zorrilla é El zapatero y el rey, de 1 840. Em 1 849 ,
não deixemos escapar o fato, tinha Zorrilla trinta e dois anos .
E depois da estréia do Traidor, sua obra melhor construída,
mais acabada - e era essa também sua opinião -, retira-se
da cena. Que significa isto?
Zorrilla, ao final do capítulo XX dos Recuerdos dei tiempo
viejo, diz laconicamente : " Desde a representação do Traidor,
inconfeso y mártir, deixei de escrever para o teatro . " Assim,
sem mais, em plena juventude, dentro mesmo do esquema ro­
mântico das idades . Disse uma vez que sua retirada da cena
acontecera porque sua mulher tinha ciúmes de que tivesse que
tratar com atrizes. Ora, não se sabe de nenhum autor teatral
que haja renunciado a sê-lo, em pleno êxito, por essa razão ; e ,
ademais , sabemos que Zorrilla não se importava muito com
sua mulher: pouco depois partiu para a França, mais tarde para
o México, e esteve fora de casa uns vinte anos . Como se isto
não bastasse, e sem contar o caso da linda dama chilena de
quem confessa haver-se enamorado em Paris, ao relatar sua par­
tida desta cidade, em novembro de 1 854, diz simplesmente : " No
dia 28, à noite, despedia-me na estação de estrada de ferro ,
de uma mulher em cujos braços dormia um ser inocente nascido
no pecado, por quem eu devia viver, trabalhar e voltar rico da
América " < 5 > .
Não, deve ter havido outras razões. Creio que o teatro
tem que se ajustar às exigências de uma época, porque nele
o juízo é coletivo e instantâneo, isto é, social e não propria­
mente individual . Se o leitor não gostar de um livro, deixa-o ;
se for particularmente violento e mal-humorado , lança-o ao fo­
go, talvez à lareira acesa; porém nada acontece, isto não tem
conseqüências, e o autor não fica sabendo. No caso do teatro,
pelo contrário, quando cai o pano, o público - retenhamos
a palavra -, após uma mínima consulta tácita cujo processo
deveria estudar-se, pronuncia um julgamento imediato e glopal ,
acima das dissidências. A obra teatral não pode apoiar-se no
gosto pessoal ou no lento pingar de opiniões individuais favo­
ráveis, ou na tolerância. Tem que ser atual.
O Romantismo estava passando . Zorrilla, no Traidor, pôde
ironizá-lo sem infidelidade, porque a personagem é irônica; com
maravilhosa intuição soube aproveitar essa possibilidade - Zor­
rilla tinha um faro literário assombroso, que a crítica despre-

(5) Recuerdos dei tiempo viejo, Segunda parte . " Tras el Plrlneo• , cap. IV.

43
zou indignamente -; mas não podia fazer isto mais vezes; era
preciso sair do Romantismo, e Zorrilla estava ligado a ele por
toda a vida, muito mais fielmente que à sua mulher.
I sto não é simples especulação. Esta convicção se me impôs
há mais de vinte anos , como resultado de ler - e não só anali­
sar ou folhear - o Traidor, mas acontece também que se pode
documentar. O grande ator romântico era Carlos Latorre, que
figurou na estréia do Tenorio ; o Traidor também teve em sua
estréia o grande ator Julián Romea, um homem distintíssimo,
ele próprio poeta, a quem podemos entrever nas primeiras pá­
ginas de La Corte de los Milagros de Valle-Inclán . Foi ele que
introduziu a " alta comédia " , o que depois se chamou a comédia
realista. No teatro que estava vindo, o teatro pós-romântico,
Zorrilla o admirava, porém não sentia entusiasmo por ele. Com
incrível perspicácia conta nos Recuerdos dei tiempo viejo a his­
tória da estréia do Traidor, que deveria analisar-se em porme­
nor. Sua fórmula é: " sim , mas . . . " Os dois amigos, auto;. e
ator, discutem ; Zorrilla teme que o êxito não seja grande, que
Romea não saiba ser um Gabriel Espinosa . . . romântico. " Crês
- diz Zorrilla - que a verdade da natureza cabe seca, real
e nua no campo da arte, mais claramente, na cena; eu creio
que na cena só cabe a verdade artística. " " � s - acrescenta -
o ator inimitável da verdade da natureza : tu que criaste a co­
média de casaca que se deu em chamar de costumes; podes
apresentar-te, e às vezes te apresentas em cena, da maneira que
apeias do cavalo, de volta do Prado . . . � s Julián Romea e o
podes ser na comédia atual : o drama, porém, é um quadro, uma
paisagem, cujas veladuras, que são o tempo e a distância, se
harmonizam de uma maneira ideal e poética, em cujo campo
fere os olhos a verdade da natureza, a realidade de uma perso­
nalidade : eu necessito de uma personagem para o papel de
meu rei D . Sebastião. " E conclui , com expressão clarividente :
" Isso, isso é o que quero; que representes, não que te apre­
sentes " < 6 > .
Que representes, não que te apresentes: não cabe em me­
nos palavras a diferença entre o drama romântico e a comédia
realista, entre a época que terminava e a que ia começar. Trai­
dor, i nconfeso y mártir, drama romântico irônico - por exi­
gência intrínseca de sua personagem e seu argumento - foi o
gonzo em que se articularam as duas épocas, o ponto de infle­
xão de duas etapas da vida histórica.

(6) Recuerdos dei llempo vle/o, cap. XX.

44
Mas como se isto não bastasse, Zorrilla fornece em outra
circunstância precisões que confirmam o que acabo de dizei:.
Fala da instalação, pouco tempo depois, de um Teatro Espa­
nhol, protegido e subvencionado pelo Governo, com os melho­
res autores, atores e assessores ; " iriam , diz, dar a conhecer e
infiltrar no povo de Madrid as obras-primas de nossos bons
autores e o bom gosto literário, estragado pelos excessos dos
dramaturgos revolucionários que o corromperam " < 7 > . Trata-se,
é claro, da reação anti-romântica .
Zorrilla põe-se perfeitamente a par disso com sua perspi­
cácia habitual . Vale a pena ler os parágrafos em que conta o
que estava acontecendo :
" Assisti a uma representação muito esmerada do Sí de las
ninas, de Moratín ; e pelas pessoas que vi na sala, pelos atores
que vi no cenário e pelo que vi e ouvi na saleta e nos camarins
dos atores, compreendi que aquele suntuoso edifício fraquejava
em seus alicerces, porque o que nele é estabelecido trazia em
seu seio o germe da dissolução. Tratava-se francamente de uma
reação clássica, como hoje de uma reação carlista . . .
" Se as reações fossem lógicas , sensatas, imparciais e pre­
cavidas , lograriam sempre ser úteis, desej adas e benditas ; po­
rém, como se tornam ferozes e levantam-se cegas contra as re­
voluções envelhecidas, passadas e já por si mesmas capituladas,
não se servem, por não reconhecerem útil, de nada do que aque­
las criaram e germinaram ; e por não quererem aceitar nem
aproveitar nada delas , convertem-se por sua vez em revolucioná­
rias, tão repulsivas e destrutivas quanto inúteis " < 3 > .
Por estas razões vejo em 1 849 a data crítica do Romantis­
mo espanhol, talvez sua culminação literária, o começo de seu
declínio, de sua transição a outra época histórica . Zorrilla não
podia fazê-la, não podia instalar-se no tempo que assistia chegar,
que não sentia como "o seu " . t significativo que intitule suas
memórias Recuerdos dei tiempo viejo.
Ancilose , rigidez, falta de flexibilidade? Assim parece, e
assim o pensei por muito tempo . Zorrilla é um escritor elemen­
tar, primário, bom para o povo, a quem críticos e historiadores
desdenham há quase um século. A quem ocorrerá escrever um
livro a sério sobre Zorrilla? A quem ocorrerá explicá-lo com
um pouco de rigor e o tendo relido? Quem pensará em procurar
em suas obras muitas inovações que se atribuem festivamente
a poetas posteriores dos dois lados do Atlântico? Quem utiliza

(7) Ibid. , cap. X X I X .


(8) lbid. , cap. X X I X .

45
Zorrilla como introdutor à realidade espanhola, entre os estu­
tudiosos estrangeiros ?
Pode-se pensar, todavia , que Zorrilla tinha alguma razão
positiva para não embarcar na aventura pós-romântica. Preci­
samente, a de que não era uma aventura e sim uma simples
reação, um movimento para trás, uma inautenticidade. "A rea­
ção clássica não pôde surtir efeito - diz -; o romantismo
havia expulsado de nossa poesia popular as divindades mitoló­
gicas . . . " Entre a época romântica e a nossa - a que começa
com a geração de 98 - há um período que não chega a ser
uma verdadeira época histórica < 9 > , uma fase de transição entre
duas épocas. Não seria difícil descobrir elementos de inautenti­
cidade em quase toda a literatura e a política desse tempo -
apesar de todos os seus valores -, o que levou os homens de
98 a repudiá-las , com injusto excesso, o que levou Ortega a cha­
mar a Restauração " um panorama de fantasmas " . Zorrilla sen­
tiu a mudança como um convite negativo , a não ser ele mesmo,
mais do que a ser algo novo. O termo " reação " acorre uma e
outra vez a sua pena, e o associa inequivocamente à reação
política.
Não será que em última análise Zorrilla era irremedia­
velmente romântico, porque era inapelavelmente liberal, porque
havia feito em seu pai - quer dizer, em carne viva - a expe­
riência do reacionarismo? Mais ainda, Don Juan diante do Co­
mendador, não será o irônico Gabriel Espinosa, pasteleiro ou
rei , o homem fiel a si mesmo , o símbolo do romantismo ma­
duro, já de volta, que conhece seus limites? Disse eu, há muitos
anos, que a têmpera profunda do liberalismo é o entusiasmo
cético ou, se se preferir, a melancolia entusiasta : não é essa
justamente a têmpera do último drama de Zorrilla?

1 973

(9) A estrutura social, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1963, cap. I I , a p . 9 .
c l t . (N. d o T . )

46
Bécquer em seu lugar

Sobre Gustavo Adolfo Bécquer se tem escrito copiosamen­


te; as páginas que se acumulam sobre sua vida e seus escritos
são muito mais numerosas do que as não numerosas que ele
escreveu : todas as obras de Bécquer - incluindo algumas que
talvez não sejam suas - cabem num volume não muito grande ;
muitos volumes maiores seriam necessários para seus comentá­
rios . Embora boa parte do que se tem publicado sobre Bécquer
seja extremamente vago e irresponsável , nos últimos anos pro­
grediu-se no conhecimento preciso e rigoroso de sua figura ; pou­
co a pouco, o " hóspede das névoas " delas vai saindo e começa
a mostrar um perfil claro, coerente, inteligível.
Não vou tentar aqui um estudo de Bécquer e sim fazer
algo muito mais modesto : auxiliar sua leitura. Assinalar algu­
mas coisas que o leitor deveria levar em conta antes de entrar
na prosa e nos versos do - literalmente - extraordinário es­
critor do século X I X , de cuja morte nos separa um século e
um ano . Pretenderia, nada mais, colocá-lo em seu lugar, condi­
ção para que o possamos ver adequadamente, fruí-lo, enten­
dê-lo, talvez interpretá-lo.

1 . A geração de Bécquer

Já há muitos anos tentei estabelecer uma escala geracional


válida para a Espanha desde o século XVI I I até o presente.
Embora uma série de gerações sempre tenha caráter hipotético
e esteja sujeita a revisão e retificação , se a realidade histórica,
examinada mais rigorosamente, pode obrigar a deslocar a escala
proposta, a fixada por mim não tem trazido problemas espe-

47
ciais, muito pelo contrário : resolve com surpreendente rigor mui­
tos que , com outras datas seriam insolúveis ou levariam a con­
trovérsias insuperáveis. As pouquíssimas dificuldades que esta
escala encontra, podem explicar-se por razões individuais e que
não afetam a estrutura geral da sociedade espanhola.
Há algum tempo pensei estender a mesma escala - com
intervalos de quinze anos - para trás , até o começo da socie­
dade espanhola unitária, no século XV. Não seria de estranhar
encontrar-se algumas anomalias, por duas razões: a primeira,
porque os quinze anos de intervalo geracional são sempre apro­
ximados, um " número redondo " que exclui precisamente a exa­
tidão, imprópria da realidade, e especialmente da realidade hu­
mana < t ) , motivo pelo qual uma diferença, ainda que pequena,
ao acumular-se ao longo de muitas gerações , pode tornar a série
sem validade ; a segunda razão é que em longos períodos não se
pode excluir a possibilidade de um " traumatismo social " que
acarrete alguma anormalidade a uma geração ou à relação de
duas sucessivas, o que obrigaria a um reajuste das datas . Pois
bem, com bastante surpresa constatei que a mesma escala ob­
tida para as gerações dos séculos XVI I I-XX era satisfatória,
pelo menos à primeira vista , para as dos séculos XV-XVI I . Pa­
rece aconselhável, portanto, utilizar como " hipótese de traba­
lho " esta escala para toda a história da Espanha como nação,
isto é, para toda a I dade Moderna. (A extensão da mesma es­
cala aos reinos medievais ou , por outro lado, aos demais paí­
ses da Europa ocidental requeriria rigorosas investigações que
ainda não foram feitas.)
Embora se dê o caso de algumas gerações serem denomi­
nadas por certa data especialmente relevante, aproximadamente
coincidente com a entrada na História ou o florescimento de
seus membros - assim falamos da " geração de 1 898 " , quan­ -

do se fala de séries de gerações parece aconselhável tomar as


datas centrais de nascimentos : cada geração estaria integrada
pelos homens nascidos em torno à data escolhida, isto é, na­
quele ano, nos sete anteriores e nos sete posteriores. A estas
datas natalícias farei uma referência adiante.
Tomando como primeira geração a de 1 3 9 1 (Don Á lvaro
de Luna, o arcipreste de Talavera , o marquês de Santillana ,
Ausias March) , encontramos algumas tão surpreendentes como
a de 1 45 1 (Nebrija, Isabel a Católica, Fernando o Católico,
Gonzalo de Córdoba e certamente Colombo) ou a de 1 48 1 (em

( 1 ) Veja-se meu livro El método histórico de las generaclones, 1 949; 4.• ed . ,


1 967, e também La estructura social, 1 9 5 5 ; 6 . • ed . , 1 972. Ambos e m Obras, V I I -

48
que marcam encontro, com Lucas Fernández, Sá de Miranda e
Berruguete, nada menos que Las Casas , Vitoria, Pizarro, Elcano, ·

Magalhães, Núfiez de Balboa, Alvarado e Hernán Cortés) .


Aproximemo-nos , porém, a Bécquer. Nasceu a 1 7 de feve­
reiro de 1 83 6 ; morreu , aos trinta e quatro anos , a 22 de de­
zembro de 1 870. Enquanto não soubermos qual é a escala das
gerações, não bastam estas datas para situá-lo numa dada ge­
ração ; se adotamos a que propus, pertencia à de 1 84 1 (isto é,
dos nascidos na zona de datas 1 834- 1 848) . Se for assim, sa­
bemos duas coisas : a posição de Bécquer na série das gerações
e sua posição dentro da sua, concretamente ao começo ; isto é ,
Gustavo Adolfo era dos mais velhos d e sua geração (ainda mais
seu irmão Valeriano, nascido em 1 834, ao começo mesmo da
geração à qual ambos pertencem) .
A seguir dever-se-á determinar os coetâneos de Bécquer
(seus companheiros de geração, os que tiveram sua " idade " ) ,
mas antes é preciso considerar as gerações anteriores, aquelas
que encontrou em seu mundo histórico.
O Romantismo espanhol abrange quatro gerações : as de
1 766, 1 78 1 , 1 796 e 1 8 1 1 . Como a literatura romântica espa­
nhola foi tardia em relação à vida social < 2 i , a primeira ge_ração
romântica, em boa parte, ainda escreveu literatura neoclássica,
e só em certos escritos íntimos ou marginais transparece seu
real romantismo ; por outro lado, os mais representativos dos
escri tores românticos pertencem à quarta, a que já está prestes
a sair do Romantismo, como se vê bem claramente naqueles
'
que alcançaram certa longevidade. Entre esta última geraç :o
romântica e a de Bécquer se interpõe a de 1 826 (os nascidos
entre 1 8 1 9 e 1 833) , que inicia a reação ante o Romantismo .
A entrada efetiva na história coincide com os trinta anos ;
no período 30-45 , cada geração se esforça por imprimir sua
forma própria ao mundo em que vive, por fazer triunfar seus
desejos, estimações, crenças , projetos ; por deslocar a geração
anterior, a " reinante " ou " no poder " - em todas as ordens
da vida -, isto é, a dos que têm entre quarenta e cinco e ses­
senta anos . Quando esse deslocamento se efetiva (quando uma
geração alcançou os quarenta e cinco e a outra os sessenta) , a
mais jovem ascende ao poder e a mais velha sai do cenário
histórico plenamente ativo . (Em nosso tempo, a longevidade faz
com que a " saída " não se produza aos sessenta anos , e por­
tanto duas gerações compartilham o poder social, numa forma
sutil e ainda não bem determinada ; mas isto não foi assim até

(2) c r . meu ensaio " Un escorzo dei Romanticismo•, em Ensayos de convlvencia,


1 9 5 5 , Obras, I I I .

49
nosso século, e menos que nunca na época romântica, caracte­
rizada pela precocidade e freqüência da morte prematura .)
Mas é preciso fazer um esclarecimento importante. Estas
" entradas " e " saídas '' , estas aquisições ou perdas do poder so­
cial a certas idades, não se referem aos indivíduos e sim às ge­
rações ; quero dizer que não acontecem quando cada indivíduo
alcança uma determinada idade , e sim quando chega a ela sua
geração, contando segundo a data central de nascimentos. Mas
isto significa que os que nascem no começo de uma geração são
socialmente tardios (e mais " duradouros " ) , enquanto que os nas­
c i dos no fim tornam-se socialmente precoces (e perdem mais
jovens sua vigênci a social) . Estas funções sociais e históricas
afetam, poi s . simultaneamente os membros de uma geração , qual­
q uer que seja sua idade pessoal , e por isso há mudanças sociais
segundo gerações, por isso há uma articulação das vigências ,
quc mudam - mais ou menos - cada quinze anos.
Pois bem , quando Bécquer começa a publicar - em torno
a 1 858 -, encontra ainda em seu mundo alguns homens da
segunda geração romântica, a de 1 78 1 , isto é, a que verdadei­
ramente iniciou a literatura romântica na Espanha : José Joa­
quín de Mora - muito neoclássico ainda - e , sobretudo , Mar­
tínez de la Rosa, que com La coniuración de Venecia havia inau­
gu rado o drama romântico espanhol em 1 834. Das gerações
românticas s e gu i ntes - 1 796 e 1 8 1 1 - encontra numerosos
autores ativos : Alcalá Galiano, o Duque de Rivas, Agustín Du­
rán , G i l y Zárate , Estébanez Calderón , Modesto Lafuen te , Mi­
guel Agustín Prínci pe, Nicomedes Pastor Díaz (que morreram
antes dele) e muitos outros que sobrevivem a Bécquer, que ain­
da vivem cm 1 87 0 : Bretón de los Herreros , Fernán Cabal lero,
Wenceslao Ayguals de Izco, Mesonero Romanos , Hartzenbusch ,
Pascual G ayangos , o conde de Cheste , o Marquês de Molins,
G arcía Gutiérrez , a Avel laneda , Diana , Eugenio de Ochoa , Fe­
derico de Madrazo , Ariza , Martínez Villergas , García Tassara ,
Rod ríguez Rubí , Miguel de los Santos Alvarez , Zorrilla, Cam-
poamor . . . d
I sto quer dizer que durante toda a vida de Gustavo Adol fo
Bécquer estão ocu pando o cenário histórico a maioria dos escri­
tores do Romantismo espanhol , com exceção apenas dos i n ici a­
dores e daqueles que morreram muito jovens . Quando Bécquer
inicia sua vida de escri tor , a geração " no poder " é a de 1 8 1 1 ,
que ainda continua " reinante " após sua morte . I s to é, toda a
vida ativa de Bécquer transcorre sob a vigência da geração de
1 8 1 1 , a ú ltima geração rigorosamente romântica , e em presença
de boa parte da an terior e alguns sobrevi ventes da de 1 78 1 .

50
E a sua? Neste ponto a situação se torna ainda mais es­
tranha e é preciso dar-lhe todo seu valor. A geração de 1 84 1
entra na história e m 1 87 1 ; ascende ao poder social em 1 88 6 ;
tem s u a plena vigência histórica entre 1 886 e 1 90 1 . O r a , Béc­
quer morre em 1 8 70 , antes que sua geração houvesse chegado
a aposentar-se. A obra inteira de Bécquer é anterior à sua ge­

ração, isto é, à vigência histórica desta. Seu amadureci mento


pessoal é prévio ao histórico da geração à qual pertencia .
Somente isto j á pode explicar a metade das anomalias da
figura de Gustavo Adolfo Bécquer, e se estas circunstâncias não
forem levada s em conta bem difícil será compreendê-la.
Há outra figura nas letras espanholas em que se repetem
situações análogas : Á ngel Ganivet. N ascido em 1 865 , ao co­
meçar a gera'Ç ão de 1 87 1 (à qual chamamos de 98) , cujos li­
mi tes são 1 864- 1 878 , morre precisamente em 1 898, no ano do
qual sua geração tomaria o nome , antes da data de sua inicia­
ção real na História ( 1 90 1 ) . Ganivet pertence , inequivocamente ,
à geração de 98, encon tra-se a esse nível histórico , porém sua
vida e sua obra se realizam antes - " 98 antes de 98 " é o tí­
tulo que dei , há alguns anos, a um ensaio sobre Ganivet -.
Um e outro , Bécquer e Ganivet , " preludiam " certos temas e,
sobretudo, um tom vital que só aparecerão claramente depois
de sua morte , e ambo s criam num mundo condicionado pela
vigência de uma geração trinta anos anterior à sua , contra a
q u a l luta , não a própria de cada um deles e sim a preceden te ,
enquanto aquel a ainda espera sua entrada no cenário histórico .

Quem são os coetâneos de Bécquer"? Quem são os compo­


nentes da geração espanhola de 1 84 1 ? Citarei , em ordem cro­
nológica, alguns nomes :
Valeriano Bécquer, Gaspar Núfiez de A rce , Ramón Rodrí­
guez Correa, N arciso Campillo , Gustavo Adolfo Bécquer , J ulio
Nombela, Vicente Wenceslao Quero ! , Francisco Codera , Eduar­
do Rosales , Rosalía de Castro , Bernardo López García , Mariano
Fortuny , Ricardo de la Vega , Francisco Giner de los Ríos , Gu­
mersindo de Azcárate , Enrique Gaspar, J avier de Burgos , J a­
cinto Vcrdaguer, Benito Pérez Gal dós , Eusebio Biasco , Pablo
Sarasate , Eugenio Sellés , Tomás Lucefio , Leopoldo Cano, Anto­
nio Fernández Grilo, Marcos Zapata , Miguel Ramos Carrión,
Aureliano de Beruete , J oaquín Costa .
Encontramos nesta geração, como era de esperar, quase to­
dos os amigos próximos de Gustavo Adolfo : o primeiro , seu

51
irmão Valeriano ; e com ele Campillo, Rodríguez Correa, Nom­
bela, Eusebio Biasco ; aqueles a quem se deve quase toda a in­
formação sobre sua pessoa, os revisores e editores de sua obra
póstuma, os que traçaram o perfil de sua biografia e talvez a
desfiguraram desde muito cedo . Salvo Biasco, oito anos mais
jovem que Gustavo Adolfo, todos estes amigos nascem entre
1 834 e 1 836, no princípio da geração. Todos eles - e não di­
gamos o resto dos membros dela - parecem mais " recentes "
que Gustavo Adolfo Bécquer, e ao mesmo tempo mais " anti­
gos " ; a razão do primeiro é que viveram até muito mais pró­
ximo de nós ; a do segundo, a relativa " solidão " em que Bécquer
criou sua obra, mergulhado num mundo onde ainda perdurava
o Romantismo, porém já alheio a ele, desligado também de sua
própria geração que não fizera até então sua entrada no cenário
histórico.
Contudo, a impressão de " figura insólita " é muito grande ;
a distância entre Bécquer e seus companheiros de geração pa­
rece demasiada; mas o insólito ainda mais se acentua se tenta­
mos aproximá-lo a outra geração, com a que cronologicamente
está " !indante " : três anos antes dele nascem Alarcón e Pereda ;
quatro anos antes, Castelar, Manuel dei Palacio , Echegaray; se
continuarmos buscando mais para trás, encontraremos Tamayo,
López de Ayala, Valera . . . Não, não poderíamos instalar Béc­
quer nesta geração , se variássemos a escala proposta. A impres­
são de " único " , de outsider, se acentua. Embora a personali­
dade de Bécquer fosse muito forte e original - o era, ainda
que tudo isso se desse nele em tom menor e como que em voz
baixa -, continua parecendo estranho que não se mostrem
coincidências de nível mais acentuadas em relação ao resto de
sua geração. Não haverá algumas?
Evidentemente, com Rosalía de Castro , que em· tantos sen­
tidos corresponde a Bécquer na poesia do século X I X . Mas, por
outro lado, nele germina uma nova forma de " popularismo "
bem diverso daquele dos costumbristas , que em outros gêneros
e formas encontramos em Ricardo de la Vega, Lucefio, Ramos
Carrión ou . . . Costa. E encontraremos ainda maiores conexões
se pensarmos nos pintores coetâneos : Rosales - de vida tão
semelhante à de Bécquer -, Fortuny, Jiménez Aranda, até Au­
reliano de Beruete . As Leyendas mais autênticas referidas às
terras de Espanha que Bécquer conheceu tão bem ; as Cartas
desde mi celda, poderiam ter sido ilustradas por esses pintores
de sua geração ; valeria a pena estudar com precisão os parale­
lismos, as diferenças, as contribuições do escritor e dos pinto­
res à visão da paisagem e das figura s humanas .

52
Mas há ainda outra consideração : se Bécquer, em lugar de
morrer aos trinta e quatro anos, tivesse alcançado uma trajetória
biográfica normal ; se tivesse escrito depois da própria geração
haver ingressado na história, o que teria escrito? Como seria
sua figura literária madura? Pareceria mais a seus coetâneos
que viveram muitos anos depois de sua morte?
Afortunadamente, podemos em certa medida responder es­
tas perguntas . As páginas que Vicente Huidobro publicou pela
primeira vez, em 1 920, meio século depois da morte de Béc­
quer, e que já foram reeditadas várias vezes como " El testa­
mento literario de Bécque r " , são umas notas sobre os projetos
de Gustavo Adolfo, antecipação de suas pretensões para o fu­
turo . Parte desses projeto s são puramente editoriais, com uma
inocente esperança de lançar publicações de grande êxito co­
mercial ; outros são mero prolongamento dos gêneros literários
que estava cultivando ; mas além disso há algumas inovações
significativas . Recordarei as que me parecem mais revelad:::i r as .
" Teatro (comédias e dramas) : El cuarto poéer (comédia
de defesa social } , La mujer dei gran mundo, Alta sociedad, Los
hermanos dei dolor (cenas íntimas) , El duelo (dramática, filo­
sófica , moral) , El ridículo (filosofia social) , Dichoso el que cree
(religioso) , La fisiología dei matrimonio (comédia caseira) . . . "
" Novelas de pretensões : Vivir o no vivir (social média) , Quince
días de trueno (social baixa) , La máscara de oro (social alta.
Grandes) . "
Não parece que abandonamos a terra original do Roman­
tismo ? Não são os temas da " alta comédia " e da novela rea­
lista? E estes títulos que se insinuam entre outros muitos que
correspondem à obra efetiva de Bécquer, não serão conseqüên­
cia da pressão social exercida por sua geração , das vigências
de seus coetâneos , que começam a exercer sua influência sobre
Gustavo Adolfo? E pode-se perguntar se isso não era uma ten­
tação , se não teria desvirtuado a autêntica inspiração de Béc­
quer. Porque poderia bem ocorrer que sua obra efetiva, apa­
rentemente tão indecisa, tão vagarosa , tão envolta em brumas ,
não fosse mais que a germinação ainda vacilante de certas pos­
sibilidades novas, que a morte prematura de Bécquer não dei­
xou desenvolver. Como as pressões sociais i mpediram que o me­
lhor Moratín, o das cartas e anotações privadas e dos diários
de viagem , entrasse realmente na literatura pública espanhola,
-
que teria sido diferente se pudesse contar com isso < 3 > , a breve
trajetória biográfica de Bécquer foi indubitavelmente causa de

(3) Veja-se meu ensaio " Espaiia y Europa en Morat l n " , em Los Espanoles, 1 962,
4.• ed., 1 972. Obras, VI I .

53
que malograsse uma possibilidade literária que fica interrom­
pida e cujos fios soltos se vão enlaçando, a distância , em nosso
século , desde a geração do 98 até a poesia das duas segu intes .

2. A original idade de Bécquer como narrador

As Leyendas de Bécquer, salvo algumas exceções mais con­


vencionais El caudillo de las manos rojas, La cruz del diablo,
-

Creed en Dios, La creación , representam uma inovação de­


-

cisiva na narrativa espanhola do século XIX, uma peça que se


costuma omitir no estudo da passagem da novela histórica ro­
mântica à novela contemporânea que se inicia com Fernán Ca­
ballero e culmina em Galdós . O mais verdadeiramente narra­
tivo do Romantismo deveria ser procurado nas lendas em verso
- romances históricos do Duque de Rivas , El estudiante de
Salamanca de Espronceda, lendas de Zorrilla, especialmente os
Cantos dei trovador ; é aí que os românticos se atreviam a
-

liberar sua têmpera autêntica, sem recobri-Ia do prosaísmo de­


siludido ao qual se sentiam obrigados tantas vezes quando es­
creviam em prosa. Porém , por um lado, o verso introduzia um
elemento de distanciamento impróprio da presença que a novela
significa, como maneira de assistir àquilo que se narra ( 4 l ; e
por outro, a localização destas lendas era remota, situada vaga­
mente na I dade Média ou no século XV I , sem concretude cir­
cunstancial .
Pois bem, Bécquer, sem perder a atitude romântica, escreve
em prosa narrações circunstanciais, situadas nos lugares que co­
nhece melhor, que viveu intensamente, que funcionam dentro
da história: Sória, o Moncayo, Toledo, Sevilha. El monte de las
A nimas, El rayo de /una, La promesa; El gnomo, los ojos verdes,
La corza bianca; La ajorca de oro, El beso, La rosa de pasión;
Maese Pérez el organista, La Venta de los Gatos. Todas estas
lendas fazem funcionar a paisagem , a irradiação das cidades ,
as ruas de Toledo ou sua catedral , o Guadalquivir, o Duero,
San Saturio , os sinos de Sória, emprestando carnadura a histó­
rias imaginárias, com personagens de épocas remotas, com um
halo de mistério e fantasia . São uma prova do que a narração
romântica pôde ser, do que foi só fragmentariamente e fora de
tempo.

(4) Veja-se La image11 de la vida humana, 1955, 3 . • ed . , 1 97 1 . Obras, V.

54
Mas tinha que passar por aí para chegar à novela da se­
gunda metade do séc . XI X . e sem dúvida esta se ressente de
não haver passado suficientemente por aquilo que Bécquer pre­
tendeu fazer e mal o pôde realizar.
A culminação desta descoberta becqueriana está nas Cartas
desde mi celda, escritas no mosteiro de Veruela, junto ao Mon­
cayo, entre Sória e Aragão . Parte de um costumbrismo que teri a
podido ser o de Mesonero ou o de Larra - segundo as têm­
peras -; sente-se logo dominado por um novo, mais imediato
e íntimo sentido da paisagem, que antecipa em algun s momen­
tos a grande recriação que inaugurará a geração de 98 ; uma vez
instalado no mundo de Veruela, Bécquer se põe a viver ali , e
nos vai comunicando o conteúdo de sua vida : visão da hi stóri a ,
tentativa de aproximá-la a o presente , antecipação d o futuro , em
que a apreensão se une à esperança , um fino, agu do sen t i do da
justiça social , que não se lança pelo caminho da abstração e
utopia mas se mantém fiel a uma visão concreta da realidade ;
e, sobretudo, uma vivificação de tudo isso com histórias, con­
tos, fábulas, lendas , superstições e uma tonalidade lírica que
envolve a precisão rigorosa de tudo o que ali se mostra . O raro
equilíbrio entre poesia e verdade, tão poucas vezes conseguido,
consegue-se excepcionalmente nestas Cartas narrativas. escritas
em 1 864 , cujo nível é incomum alcançar-se nos trinta ou qua­
renta anos seguintes . E os escritores da geração de Bécquer e
a seguinte - os anteriores à de 98 - não se dão conta de
que a falta de verdade em literatura costuma provir, parado­
xalmente , de falta de poesia . Foi isto que a geração de 98 su­
perou - genialmente - de raiz , como quase todas as limita­
ções que a Espanha arrastava ao longo do século XIX, o que
Gustavo Adolfo Bécquer havia adivinhado.

3. A poesia amorosa

Por alto que seja o valor da p rosa de Bécquer, creio que


o mais importante de sua obra são as Rimas : reside nelas o
mais original e criador, a verdadeira inovação que faz de Béc­
quer uma figura única na literatura de seu século.
Não vou estudar aqui o que já se fez outras vezes de ma­
neira excelente : a poesia de Bécquer ; deter-me-ei brevemente só
num aspecto, que me parece seu centro organizador e vivifica-

55
dor, o que lhe dá sua tonalidade decisiva, aquilo que faz com
que a lírica becqueriana seja irredutível ao resto da poesia es­
panhola de seu tempo e às influências estrangeiras, sobretudo
inglesas e alemãs, que indubitavelmente gravitam sobre ela. Qui­
sera dizer uma palavra sobre o que Bécquer faz com tudo isso :
uma poesia amorosa.
A interpretação poética do amor, que influi decisivamente
na realidade amorosa de cada sociedade, acontece só em raros
momentos da história, e há longos períodos em que o homem
não possui uma interpretação original dessa dimensão essencial
da vida humana : ou não tem nenhuma, ou se apóia inercialmente
em uma que foi criada por homens de épocas diferentes e que
não corresponde à sua maneira de viver o outro sexo e sua
relação com ele. Poder-se-ia estabelecer, na literatura espanhola,
uma linha descontínua de nomes significativos : Fernando de Ro­
jas, Garcilaso, Fernando de Herrera, Lope de Vega, Quevedo,
Meléndez Valdés, Espronceda, Bécquer, Machado, Salinas . São
os pontos de inflexão da interpretação do amor, aqueles em que
a vida amorosa recebeu uma nova tonalidade ou foi contem­
plada a partir de uma perspectiva original e distinta . Que re­
presenta Bécquer nesta linha?
A tendência quase unânime dos comentadores das R imas
tem sido interpretá-las biograficamente. Pensou-se que cada um
dos breves e alados poemas se refere a um aspecto, um episó­
dio, uma crise, uma esperança, um balanço da vida pessoal de
Gustavo Adolfo Bécquer; que, em princípio, se poderia " do­
cumentar" cada uma das Rimas, vinculá-la a uma mulher de­
terminada e a um momento da rel ação com ela ; em suma, que
as Rimas compõem algo assim como a história amorosa de seu
autor, e que seria suficiente ordená-las cronologicamente e es­
clarecer as referências - se isso fosse possível - para que
aquela biografia real aparecesse diante de nossos olhos.
Não tem faltado, é claro, quem pense que os poetas com­
põem seus versos movidos por aquilo que poderíamos chamar
uma inspiração geral ou, se se prefere, primariamente estética,
e que é problemática a vinculação de uma lírica amorosa a algo
mais preciso do que a experiência vital do poeta, tomada em
seu conjunto, enriquecida por aquilo que poderíamos chamar
suas experiências imaginárias e pela assimilação das interpre­
tações alheias - sobretudo literárias - do amor, isto é , por
uma tradição ao mesmo tempo social e poética. Mas isto cons­
titui antes de qualquer coisa uma atenuação ou retificação da
tendência " literalista " na interpretação de Bécquer. O certo é
que, atrás de cada rima, somos tentados a ver uma mulher de

56
quem Bécquer está enamorado, ou está se enamorando, ou está
se desenamorando , uma mulher que, por sua vez, volta-lhe uma
ou outra face. Creio que convém fixar isto e não passar por
alto, ainda que em última análise a interpretação literalmente
biográfica se mostre infundada .
O que acontece, se não me engano, é que a estrutura das
·

R imas corresponde a essa interpretação ; quero dizer que, qual­


quer que seja seu fundamento real , como poemas amorosos têm
uma estrutura biográfica. A lírica amorosa de Bécquer é, com
espantosa freqüência, na segunda pessoa, uma lírica do vocativo,
do " tu " . I sto não é inteiramente novo, porém representa uma
inovação, pelo menos de grau ; lembre-se quantas vezes, na poe­
sia amorosa européia, desde o petrarquismo, se chama a amada
por seu nome - com mais freqüência ainda com um nome
literário, mitológico ou pastoril, distanciador -; ou se fala dela
na terceira pessoa. Em todo caso, o poeta costuma cantar a
amada - seus primores, excelências etc. - ou cantar suas pró­
prias coitas, isto é, retirar-se a suas solidões para recriar e ex­
pressar seu amor, que depois será oferecido liricamente à amada .
Bécquer, quase sempre, dirige-se a ela, fala-lhe o u fala com
ela - que não é a mesma coisa -. E quando se retira à sua
solidão, quando faz poesia que não é dirigida a uma mulher
e que nem é especificamente amorosa em seu conteúdo, diría­
mos que mais que em solidão está em seu " retiro " , retirado da
mulher amada, referido a ela nessa maneira sutil de presença
que é a ausência . Na rima que inicia as edições tradicionais,
" Yo sé un himno gigante y extrafio " , onde Bécquer esboça uma
poética e expressa as dificuldades de pôr em palavras as emo­
ções e os sentimentos, a vivência da realidade, termina com
esta referência pessoal :

apenas, oh hermosa !,
si, teniendo en mis manos las tuyas,
pudiera, al oído, cantártelo a solas.

(apenas, ó formosa! ,
se, tendo em minhas mãos as tuas,
pudesse, ao ouvido, cantar-te a sós.)

O mesmo se poderia dizer de " No digáis que agotado su te­


soro " (Não digais que esgotado seu tesouro) , ou de " Dei salon
en el ángulo oscuro " (Do salão no ângulo escuro) - proce­
dente de Musset, " erotizada " por Bécquer mediante um par de
notas : " De su duena tal vez olvidada " <5> (De sua dona talvez

(5) "Dueiio" é correção de Camplllo.

57
esquecida) , " esperando la mano de n ieve " (esperando a mão de
neve) -, e de tantas outras .

Não é isto porém o mais significativo e sim o elemento de


que inclui quase sempre no poema , o que
circunstancialidade
poderíamos chamar " concretude cênica " :

Sobre la fa/da tenía


e/ libra abierto;
en mi mejilla tocaban
sus rizos negros.
(Sobre a saia retinha
o livro aberto;
em minha face toucavam
seus cachos negros.)

Ou então :

Cuando sobre el pecha inclinas


la melancólica frente . . .
(Quando para o peito inclinas
a melancólica fronte . . . )

Si ai mecer las azules campanil/as


de tu balcón . . .
(Se ao vibrarem as campainhas azuis
de teu balcão . . . )

Fatigada dei baile,


encendido e/ colar, breve e/ aliento,
apoyada en mi b razo,
dei salón se det u vo en un extremo.
( Fatigada do baile,
iluminada a cor, breve o alento,
apoiada em meu braço,
do salão se deteve em um extremo.)

"Qué es poesia ? ", dices mientras clavas


en mi pupila tu pupila azul.
( " Que é poesia? " , dizes enquanto cravas
em minha pupila tua pupila azu l . )

A somaba a s u s ojos u n a lágrima


y a mis /abios una frase de perdón.
(Assomava a seus olhos uma lágrima
e a meus lábios uma frase de perdão.)

Pasaba arrolladora en su hermosura,


y e/ paso /e dejé.
(Passava envolvente em sua formosura ,
e a passagem lhe dei.)

58
S11 mano entre m is manos,
sus ojos en m is ojos,
la amorosa cabe=a
apoyada e11 mi h o m b ro . . .
( Su a m ã o cm m i n h a s m ã o s .
seus ol hos cm m e u s o lho s ,
a amorosa cabeça
apoiada e m meu ombro . . . )

Cuando me lo co n t a ro n sen ti el f r io
de una h oja de acero en las e n t raFws!
( Q u a n do m e c o n t a ra m senti o frio
de uma lâ m i n a de aço n u s entrnnhas ! )

IJejé la luz a u n lado . y en e/ borde


de la revuelta cama m e sen té . . .
(Deixei a luz a um lado, e à b orda
d a r e v o l t a cama me s e n t e i . . . )

Me lw l1erido recatá11dose en las som bras .


.5ellando con 111 1 beso s 11 t raiciô11 .
( Fe r i u - m e rcs!!u a n l a n do-sc nas s o m b ra s .
selando c o m um beijo a t ra i çüo.)

Volverá11 las oscuras golo1 1dri1 1as


de tu balcón sus 1 1 idos a co/11-ar . . .

(Voltarão as cs(;ll ras a n d o r i n h a s


de teu balcão seus n i n hos a p e n d e r . . . )

Como se a rra nca el hierro de una herida,


su amor de las en t rarias m e arran qué.
(Como se ar r a n c a o ferro de uma ferid a ,
s e u amor d a s entranhas arranque i . )

Trata-se de um procedimento de dramatização, cujos últi­


mos an teceden tes teriam que ser procurados no R omancero -
embora nestes , contadas vezes , conduz ao puro lirismo amoroso
que encon tramos em Bécq uer -. Consegue-se com isto uma
proximidade , uma captação do imediato - isen ta de anedota
- que introduz uma perspectiva nova na poesia amorosa es­
panhola . Estamos apenas a um p asso de Salinas 1 6 1 •
Em outras palavras, o amor de Bécquer é sempre pessoal;
e por isso, embora tão pouco sensual , é sempre sensível, e a
corporeidade da amada , sua beleza , sua realidade carnal, per­
turbada e perturbadora , aparece sempre , a cem léguas de toda
paixão abstrata e espiritual. Mas tudo isso sem limitar-se
como no caso de Meléndez - ao erotismo . Bécquer, sempre ro-

(6) Veja-se meu ensaio: " Un a forma de amor: la poesia de Pedro Salinas'', em
Aqui .v ahora, 1954. Obras, I I I .

59
mântico, move-se no âmbito do amor em seu sentido mais es­
trito. E dá um passo além : os poetas das gerações propriamente
românticas - Espronceda, por exemplo - permanecem no ele­
mento da paixão inconcreta e deixam para uma " subpoesia" li­
cenciosa e francamente obscena a presença da carne . Bécquer
integra ambos os aspectos ao entender a mulher amada como
pessoa carnal, como " alguém corporal " ou, se se prefere, pessoa
sensível.
Bécquer pôde apenas descobrir esse escorço em que lhe
aparecia a mulher, e portanto o amor, e isto quer dizer a rea­
lidade humana. Sua intuição não se pôde cumprir e realizar;
sua finíssima, prodigiosa invenção foi perder-se além, no pro­
saísmo e na eloqüência exterior de sua geração e da seguinte ;
e aí ficou Bécquer como uma possibilidade que iria dar seus
" frutos tardios " no século seguinte, no nosso.

1 97 1

60
A idéia da vida na novela
de Galdós

Trata-se do seguinte . Toda novela parte de certa idéia da


vida humana que o novelista encontra em seu mundo . Ora, a
vida humana não é algo simples e unívoco, dado de uma vez
por todas . O homem, ao longo de sua história , tem tido idéias
profundamente distintas do que é sua vida ; muitas destas idéias
expressaram-se em diversas filosofias; outras nunca receberam
uma elaboração teórica; porém cada país , cada época , cada so­
ciedade, em suma, possui uma idéia da vida, que é muito di­
fícil de depreender e formular. O novelista, que normalmente
não é um filósofo, nem um homem de teoria, está imerso nessa
interpretação da vida e a põe em jogo em suas novelas ; se as
analisarmos, veremos qual é a idéia do que é viver nelas sub­
jacente, sem que o autor se houvesse proposto chegar a isso .
Em meu já antigo livro Miguel de Unamuno, em La ima­
gen de la vida humana, em diversos ensaios de várias épocas
- o s mais recentes, em meu livro El tiempo que ni vuelve ni
tropieza- , estudei detidamente e a partir de diversos ângulos
o valor da novela para a investigação histórica e, por outro
lado, o valor que tem como método de conhecimento pré-filo­
sófico, como maneira adequada de apresentação da vida huma­
na, imaginativamente, do mesmo modo que a percepção apre­
senta a realidade física. Não quero repetir agora o que escrevi
outras vezes e o leitor poderá consultar. Quero apenas exami­
nar qual é a idéia da vida latente nas novelas do maior nove­
lista espanhol do século XIX, Don Benito Pérez Galdós .

Diversas razões me levam a considerar a data 1 849 como


o final da época romântica na Espanha . Dá-se nesse ano a es­
tréia do último drama romântico importante e criador, Traidor,

61
inconfeso y mârtir, de Zorri l l a , e publ i ca-se a p r i me i ra novela
" realista " , La Gaviota, de Fernán Caballero . Desde essa data
até 1 898 - se se qui serem l imites relevantes - estende-se esse
período , compreendido entre a época romântica e a nossa , que
podemos chamar, com um critério l i terári o , o realismo. e que
corresponde ao espír i to d a Restau ração , v i sto q u e m u i tos carac­
teres da soci e d a d e espan hola pecu l i a res àquela já se anunciam
nos dois decênios anteriore s .

Galdós n a sce cm 1 843 . E stá e n tre a geração d e Valera -


n a scido cm 1 824 - e a de Mcnéndez Pelayo , Cl arín e doíia
E m i l i a Pardo Bazán , n ascidos em torno a 1 8 5 6 , exatamente a
d a t a de don M arce l i n o . G a l dós . que se põe a novel a r cm cerca
de 1 870, v i ve n e s s e período q ue podemos c h a m a r " de tra n s i ­
ção " - embora t o d a a hi stória o sej a - , porq ue é de transição
entre duas épocas : o Roman t is mo e a atual , a q u e começa com
a geração de 9 8 .
G a ldós começa por fazer n o v e l a h i stóri c a , porq u e embora
os Episodios nacionales sejam um pouco poste riore s a suas pri­
meiras novelas , estas - La Fontana de Oro ( 1 868) e E/ audaz
- são d o i s e p i s ó d i o s nacionai s fora d e séri e . q u e voltam a es­
tudar e con s i derar as formas da vida espan hola n a época ple­
namente rom â n t i c a , duran te o re i n a d o de Fern a n do V I 1 . Quer
dizer, vol ta-se à vida j á passa d a , à vida que não é atual e que
não foi novelada quando era presen t e ; agora , poré m , deslum­
bra os olhos p e n e t ra n tes de G a l dós . Don Ben i to vol ta-se com
s i mpati a , com a m o r , com i n teresse a esse passado p róx i m o , qua­
s e q u e n t e a i n d a , que lhe chegou at ravés de record ações vivas ,

p róx i m a s . cm g ra n d e parte ora i s , às q u a i s acrescentará sem dú­


v i d a a m p l a d o c u m e n tação .

O u a n d o f a l a do sécu lo X V I I I , pelo con trári o , o faz d e


u m a m a n e i ra i n erte e puramente recept i v a . Há um curioso en­
s a i o d e G u l dós sobre Don Ramón d e la C r u z , no qual h á uma
p r i m e i ra purte genérica sobre o sécul o XV I I I , e ali G a l dós re­
pete as i d é i u s usuai s , as i déias tópicas e recebidas sobre esse
sécu l o , cuju complex i d ade , riqueza e vitalidade nem sequer sus­
pe i t ava . No e n tanto se detém com penetração e amor no que
con hece , n os sa inetes de Don Ramón de l a Cruz , q u e lhe pa­

recem i n teressantíssi m o s .
P o u c o t e m p o depoi s G a l dós s e n t e necessidade de rec riar
a v i d a mesma q u e tem em torn o , a vida presente , e então co­
meça a série das novelas que chamou , e é interessante o n ome ,
no velas contemporâneas. Tem p rofu n d a consciência de que o
q ue tem que refletir é a v i d a na qual está imerso , aquela que

62
não pertence ao passad o , nem sequer ao imediato, mas é rigo­
roso presen te .
E s tas novelas são , todav i a , de várias c l asses . N ão foi sem
traba lho que G a l dós chegou a escrever nove l a s e m sentido es­
trito , como não foi também sem trabalho que a novel a desco­
briu em que consiste a v i d a humana . A s p rimeiras novel as de
G a l dós são as chamadas no velas de teses . São as novelas ideoló­
gica s , como Dona Per/ ecta, Gloria, La fam ilia de León R och,
nas quais as personagen s não são propriamente personagens , isto
é , pessoas i n d i v iduai s , singu l ares e únicas , e s i m " casos " , tipos,
ou sej a , d e fi n i d a s por uma s i tuação determ i n a d a . São o médico
f i l â n tropo , o engen heiro progressista , o judeu , a beata retrógra­
d a , o protestan t e , o descrente , o fervoroso . E m l ugar de possuí­
rem um nome próprio irredutível , são tipos ou casos , p e rson a­
gens construída s , determinadas por uma i d eologia ou si tuação
sem as quais não existiri a m .
N e s s a l i n ha , o c a s o extremo é R o b i n s o n Crusoé. Q u e m é
ele ? N i nguém determ i n a d o . h " o homem que está numa i l h a
d e serta •· . Se retiro R o b i n so n Crusoé da i l h a e o p o n h o a q u i
e n tre nós , quem o conhecerá? Q u e m poderá identi ficá- l o ? Como
é R o b i n son C rusoé fora d e sua i l h a , sem seu papagai o , sem
seu a rcabuz , sem seu Sexta-feira? N ã o temos n e n h u m a i d é i a , no
e n tanto poderíamos traze r , do castelo de E l s i n o re , H am l e t , m e s­
mo q u e não fosse príncipe , mesmo que não l h e acon tecesse
nada do que lhe aconteceu , o recon heceríamos imediatamente ,
porque há uma certa m aneira de ser q ue consiste em ser H a m l e t ;
e conheceríamos D . Q u i xote sem Rocin ante , sem l an ç a , sem
a d a r g a , sem Sanc h o . porque h á uma maneira qui xotesca de vi­
ver e e n tender o m u n d o . Não são casos , são personagens .
Os d a s p r i m e i ras n o v e l a s de G al dós são a i n d a casos defi­
n i dos por uma si tuação , uma i d e o l ogi a , uma crença , u m a a t i ­
t u d e política . N o fun d o , h á um e q u ívoco q u a n d o se f a l a d o
re a l i s m o de G a l d ó s . D iz-se q u e foi um novelista real i s t a , e que
La desheredada - u m a esplêndida novel a , por certo -. d e
1 8 8 1 . representa a c u l m i n ação d e s s e reali smo , m e smo a t é o c o ­
meço d e u m a f a s e n a tura l i s t a . I sto me parece u m e rro . C r e i o
q u e a s n o v e l a s rea l i stas de G aldós são as anteriores , a s que
i n t e rp r e t a m a real i d a d e h u m a n a como res , " co i s a " . O rea l i sm o
é s e m p r e um " co i s i s m o " , quer se trate de u m a coi sa física ou
h i u l óg i c a ou psíquica ou social ; e é i sto o q ue têm as primeiras
n o v e l a s g a l d os i a n a s . D e p oi s , e preci samente desde La deshere­
dada. G a l d ós v a i cam i n hando pouco a pouco para uma repre­
sen l m; ií o d a v id a como tal , não casos , ideologias ou tese s ; v a i
faze n d o verdadeiras personagens , pessoas de ficçã o . E i s t o o
h.: v a a a lgo sumame n te i m portante .

63
B sabido que aos vinte anos Galdós saiu de sua ilha natal
de Gran Canaria para ir a Madri d ; não se tratava só de que
o jovem escritor procurasse o horizonte dilatado da capital .
Galdós necessitava Madrid como mundo. A forma de vida que
Galdós havia sido chamado a recriar necessitava um mundo que
tinha que ser precisamente Madri d . Este Madrid de Galdós não
é primariamente uma realidade urban a : é um cenário. Nele se
dão essas vidas que , por certo, ainda existem . Ainda nos ocorre
estar passeando por um bairro de Madrid, andar por suas ruas,
entrar em algumas casas, subir por suas escadas , penetrar em
seus interiores e dizer: isto é Galdós . Em Madrid ainda há pes­
soas que têm cara de Galdós , crianças nascidas só há dez anos
que parecem haver escapado de uma de suas novelas. Do mes­
mo modo que há ruas, casas e gente que têm ar de Baroja. Há
um Madrid de Galdós e um Madrid de Baroja , que correspon­
dem a diferentes zonas urbanas e ·a diversos estratos sociais.
Ambos existem e estão vivos, porque Madrid, como toda grande
cidade, é uma série de níveis sobrepostos , de capas de antigüi­
dade e origem diferentes . São como estratos geológicos de vida
histórica que de alguma maneira sobrevivem .
Pois bem, esse cenário que é Madrid está habitado por uma
pululação de personagens ; fez-se um censo de personagens gal­
dosianas , . e constituem um povo . Estas personagens são essen­
ciais na novela de Galdós, porque interessava a ele fazer viver
centenas de personagens primárias, secudárias e terciárias, até
conseguir uma realidade humana " compacta " . E freqüentemen­
te mudava sua perspectiva : a personagem secundária apenas en­
trevista numa novela , em outra avançava até o primeiro plano
e a ocupava inteira. Encontramos , por exemplo, um velho co­
nhecido , aquele doo José Ido del Sagrario , que comia mal , e
quando comia carne se excitava e ficava quase bêbado ; esta
figura secundária, mas que sempre ocupa um lugar de relevo
em nossa mente , aparece depois desenvolvida, crescida, cheia
de importância. Ou então encontramos o insignificante e encan­
tador Celipín convertido em protagonista que ocupa meia novela .
E u diria que diante d o herói solitário , característico da
novela romântica e mais ainda das formas não novelescas da
ficção dessa época - a lenda e o drama - , Galdós , com uma
curiosa inspiração, tem presente o povo . Não é o herói solitário
o que o interessa , é o povo, é a. sociedade . Mas advirta-se -
e é esta a genial penetração de Galdós - que ao falar do povo
ou apresentar a sociedade , Galdós nunca esquece que se trata
de vidas, de vidas humanas, e a vida humana é sempre vida
individual. É a minha, a tua , a sua (dele ou _dela) . Por esta ra-

64
zão, Galdós nunca pôde fazer isso que se chama " novela so­
cial " , novela coletiva, que em última análise não é de ninguém,
na qual não há vidas singulares e portanto não há novela. Gal­
dós faz uma novela que é as inumeráveis vidas de um povo;
é o povo como uma intrincada rede de convivências, como um
entrelaçar-se e um entrecruzar-se de trajetórias vitais individuais,
singulares, em sua textura efetiva.
A idéia de novela que tinha Galdós - vidas individuais
entrelaçadas num povo - levou-o a ser o novelista do que se
chama, e sobretudo se chamava então, a classe média. Por quê?
Diz-se que Galdós não se sentia bem à vontade na aristocracia ,
que não a conhecia bem, e que tampouco se sentia muito con­
fortável e instalado nas classes populares. E possível, embora
eu creia que conhecia suficientemente bem esses estratos da
sociedade, sobretudo as classes populares; em todo caso, não
penso que fosse essa a razão decisiva.
Em minha opinião há um motivo mais poderoso : a classe
média significa - se ·etudo significava em seu tempo - um
máximo de person aL .;ade . As aristocracias foram, já há muito
tempo, grupos sociais muito esquematizados . Desde o século
XVI I I , pelo menos, foram internacionais; mantiveram íntimas
relações entre si, diríamos que acima de seus países . A primeira
Internacional que existiu não foi nenhuma Internacional operá­
ria, mas sim uma Internacional da aristocracia . Percebeu isto
muito bem, e o disse, um homem tão agudo como Benjamin
Constant. Muito antes de Marx, desde o século XVI I I e com
plena consciência cerca de 1 820.
Este caráter internacional emprestava traços sumamente ho­
mogêneos à aristocracia, a qual estava sujeita a pautas de con­
duta determinadas de maneira muito precisa. A própria riqueza
ou abundância de meios contribuía para isso . Advirta-se que a
riqueza tem, em princípio, a grande virtude de ampliar nosso
horizonte e permitir-nos o acesso a um milhão de coisas ; po­
rém, na prática e de fato, as pessoas ricas vivem sumamente
limitadas , porque não podem usar as coisas baratas, que são
quase todas. A gente muito rica vai aos hotéis de luxo, que são
iguais em todos os lugares; vai às praias de moda, que são
iguais em todo o planeta, e em todo ele mortalmente enfado­
nhas; viaja sempre nos meios de comunicação mais caros, que
são os mesmos, e freqüentados pelas mesmas pessoas . I sso que
agora se chama the international set, isso de que falam invaria­
velmente as revistas ilustradas - e que corresponde nessa di­
mensão ao que foram as aristocracias - é igual , exatamente
igual e monótono em todos os lugares. A enorme, a riquíssima

65
variedade do mundo é demasiado barata, de pouca categoria, e
geralmente eludida e evitada pelas classes mais poderosas .
I sto faz com que as aristocracias econômicas - e no tempo
de Galdós ainda coincidiam em grande parte com as do sangue
- tenham um repertório de possibilidades reais sumamente li­
mitado. Só os ricos dotados de grande imaginação, que inven­
tam coisas e doam fundações e têm curiosidade pelos demais
- principalmente nos Estados Unidos -, têm uma amplitude
maior de movimentos e experiências . Os demais costumam vi­
ver em condições de fato extremamente restringidas por sua
própria riqueza, pelo " nível " a que esta os obriga e consigna ,
e como resultado disso, uma novela " de costumes aristocráti­
cos " ou do que se chama "o grande mundo " é algo enorme­
mente estreito e, sobretudo, t ip i fi cado .
E o povo? Este é outro cantar. O povo, quando o fo i , s ig­
nificou uma enorme riqueza de possibilidades e um forte relevo
vital. Pense-se, por exemplo, no povo do século XVI I I , no fe­
nômeno do populismo espanhol . :e bem sabido que os ilustra­
dos e os aristocratas do século XVI I 1 tinham os olhos voltados
para os " majos " e as " majas " O l , para os costumes populares ,
os bailes de candil, as corridas de touros, ao lado do que os
"usias " < 2 1 , os aristocratas , pareciam frios, insípidos, amaneira­
dos, e eles próprios o re conheci am.
Nesse tempo havia povo. Este povo - não é m eu desejo,
em momento algum, idealizar as coisas - não vivia nada bem :
em extrema pobreza, confinante com a miséria e por vezes não
confinante mas nela bem adentrado. Vivia este povo explorado
pela Corte, pela nobreza, pela Igreja, por privilégios , senhorios,
morgadios e impostos de toda ordem . Este povo estava muito
descontente de como andavam as coisas, isto é, de sua situação,
mas estava encantado com o que era, com sua condição, coisa
bem diferente. Ele queria viver de outra maneira , viver melhor,
sofrer menos opressão, menos gabelas e impostos, ter mais li­
berdade e mais dinheiro, mas queria tudo isso para si, para suas
próprias formas de vida, e jamais se teria trocado por um usia.
Desdenhava a nobreza e, em última análise, também a admira­
va : comprazia-se em vê-la, era-lhe maravilhoso ver as marquesas
passarem em suas carruagens porque era um espetáculo praze­
roso, porém não queria ser isso; queria ser outra coisa e o ser
melhor.

( 1 ) " m a j o s• e •majas• Indicam pessoas cuja maneira de se vestir e cujo compor·


tamento denotam vulgaridade. (N. do T.)
(2) " us l 11 " é a síncope de Uslrla, Vuestra Seftorla: é um tratamento dado aos
nobres e refe re - se assim a pessoas pertencentes à nobreza . (N. do T .)

66
Ora, nos primeiros decênios do século XIX acontece em
toda Europa um grande fato histórico : a industrialização. Tem
conseqüências imediatas; logo de início, uma elevação do nível
de vida; desde fins do século XVI I I a economia européia nada
mais fez do que crescer. Porém a industrialização, ao romper
as formas tradicionais, ao tornar impossível a oficina familiar,
ao dissolver os velhos grêmios e estabelecer as oficinas coleti­
vas, ao converter os artesãos em operários industriais , ao fa­
zê-los viver amontoados nos subúrbios das cidades, os deixa à
intempérie, despoja-os de sua forma própria de vida.
Economicamente, talvez vivam um pouco melhor, muito
mal no começo, com pouquíssimo dinheiro e um dilatadíssimo
dia de trabalho, mas provavelmente com maiores recursos do
que na época anterior e um pouco menos de insegurança; mas
estão fora de casa, e é muito certo que, como dizia a velha do
conto, " em nenhuma parte se está tão bem como em casa " f
Marx era um homem de gênio, embora como fosse um político
e não só um homem de teoria às vezes dava um empurrão ao
que via para levá-lo onde queria chegar; pois bem , o que que­
ria Marx dizer com essa palavra um pouco pedante, que agora
repetem tantos pedantes sem gênio, " alienação " , era no fundo
isto : que os proletários haviam sido expulsos de sua própria
morada, de sua maneira de viver, da condição em que haviam
vivido sempre e que era o alvéolo de sua possível felicidade, e
por isso se sentiam estranhos, alheios : é o que chamo o fenô­
meno geral da proletarização, que pode tanto afetar os operá­
rios como os intelectuais, os militares, os sacerdotes ou os aris­
tocratas, a qualquer grupo social que esteja " fora de seus gon­
zos " , fora de lugar, que não saiba bem o que é, o que tem que
fazer; que se sinta descontente de sua própria condição. Não
o divino, o fecundo descontentamento da situação , que é o mais
próprio do homem, mas sim aquele que, pelo contrário, o aliena.

À medida que vai avançando o século XIX a proletariza­


ção das grandes massas se vai consumando, e isto diminui muito,
em torno dos anos 1870 ou 1880, as possibilidades de uma
novela pessoal - isto é, propriamente novela - das classes
populares. 1! o pior momento, porque ainda não se iniciou o
processo de superação da condição proletária, tão adiantado em
nosso tempo, embora os homens de mentalidade arcaica ainda
não o tenham percebido. Em fins do século XIX e nos primei­
ros anos do XX o tratamento literário das classes populares é

67
sempre deformador, como os espelhos deformadores, côncavos e
convexos, da calle dei Gato em Madri d : López S ilva, Arniches,
a burleta, o trocadilho, uma forma li terária em última análise
irônica, uma recriação de formas de vida que não são levadas
inteiramente a sério.
Nada disto podia interessar profundamente a Galdós. Ele
recolhe em sua novela os restos do povo não proletarizado, que
continuam sendo povo , a partir de sua raiz profunda. Assim, o
tipo de Fortunata. Mas, sobretudo, interessa-lhe a classe média,
que mantém sua personalidade, sua variedade, sua pluralidade
de formas vitais, ao mesmo tempo que nela transparecem e se
mostram as vigências sociais, os usos , as formas de comporta­
mento de uma vida que ainda possui formas .
� isto a classe média espanhola entre 1 860 e 1 900: uma
vida que ainda possui formas ; formas pobres, medíocres, ama­
neiradas , freqüentemente cursis; mas o cursi ( J J palavra cha­
-

ve da época - supõe formas. O desaparecimento ou diminuição


do cursi em nosso tempo tem algumas causas positivas, mas in­
clui também a crise das formas . E após havermos passado cin­
qüenta anos clamando contra o cursi; hoje sentimos sua falta
algumas vezes. Lembro-me que, em 1 948, quando Ortega e eu
organizamos o Instituto de Humanidades, as primeiras conferên­
cias de Ortega foram realizadas no grande salão do Círculo de
la Unión Mercantil ; u ni ou dois dias antes, Ortega e eu fomos
inspecionar o local , 1: O rtega pôs-se a olhá-lo e me disse : " Meu
Deus, como isto é cursi ! " Mas após uma pausa de reflexão
acrescentou : " Bem, mas o cursi abriga . " E é certo : o cursi abri­
ga, veste, dá calor; é acolhedor , envolvente, porque tem formas,
não é frio, glacial , e inexpressivo e por isso, de vez em quando,
achamos falta de uma dose de honesta cursilería.
Pois bem, essa vida da classe média, com formas, plurali­
dade de tipos e personalidade, possuía alguns usos tremenda­
mente firmes, algumas vigências sólidas e compactas que a do­
minavam e configuravam . Por exemplo, esta classe média que
mal tinha para comer, estava submetida ao uso social do vera­
neio, que não era um prazer mas sim uma exigência, e acima
da norma da veracidade ; era preciso veranear , ainda que não
houvesse dinheiro para fazê-lo, e não se podia mentir, porque
além do mais a mentira é descoberta e acarreta desdouro ; e
assim, certas famílias não saíam de casa no verão, fingindo es­
tar ausentes, ou então outras diziam haver passado o verão em

(3) Cursl - adjetivo para designar a Imitação de formas refinadas, por melo
de recursos Insuficientes e de mau gosto. Seu uso, n a Espanha, data de meados do
século X I X . (N. do T.)

68
San Sebastián e assim fora efetivamente, mas em San Sebas­
tián . . . de los Reyes, cidadinha da província de Madrid, cheia
de calor e de moscas. Este exemplo trivial é uma mostra da
força enorme dos usos, do domínio terrível das vigências so­
ciais, verdadeiras personagens das novelas galdosianas .
Desta vocação de Galdós para a vida em suas formas reais
provém também seu liberalismo. Não seu liberalismo político ;
ao contrário : seu liberalismo político provém de seu liberalismo
vital. E bem evidente que no momento em que se acreditou
poder ser liberal só em política, deixou-se de ser liberal nela.
O liberalismo de Galdós era a afirmação da personalidade hu­
mana tal como é; a crença profunda de que o homem tem que
fazer, ele mesmo - ainda que não só - sua vida ; e a conse­
qüência disso é que ele tem que dizer alguma coisa na socie­
dade a que pertence; e isto implica a crença complementar de
que há uma vida privada na qual ninguém tem o direito de
intervir, de que quando fecho minha porta ninguém tem o di­
reito de transpô-la.
E este o núcleo fundamental e vivo do liberalismo, o qual
emerge de uma fé no homem, de um respeito pelo homem , de
uma estimativa do que o homem é como realidade humana, e
ao mesmo tempo do conhecimento de sua pluralidade irredutí­
vel e de sua limitação. Por isso o liberalismo só foi possível
historicamente quando se chegou a ter experiência da vida; quan­
do o homem está inteiramente de ida, quando está demais se­
guro das coisas, é muito difícil que seja liberal ; pretende im­
por aos outros isso que tem como bom ; por exemplo, fazê-los
felizes, ainda que seja apesar do que eles próprios pensem;
pouco importa, ele está seguro . Quando, pelo contrário, o ho­
mem viu o reverso de muitas coisas - não da vida, porque a
vida não tem reverso -, quando viu que as coisas vão e vêm
e passam - e apesar disso valem a pena -, quando teve ex­
periências, ilusões e fracassos, quando não está seguro acerca
de tudo, quando s6 está seguro acerca daquilo de qúe pode es­
tar, então é liberal.
Por isso o liberalismo se parece àquilo que Ortega chamava
" emoções furta-cores " , e é um pouco de crepúsculo - o que
irrita aos que crêem que o crepúsculo não é real, aos que são
suficientemente simplistas para pensar que o crepúsculo é uma
hora menos real que as onze da manhã ou as doze da noite -.
Por esse motivo o século XVI I I ainda não podia ser liberal, e
por isso o foi o século XIX, depois de haver visto o fracasso
do antigo regime, do direito divino dos reis, do militarismo, do
b onapartismo, do império, da restauração, da legitimidade, e de

69
haver vivido a realidade e a justificação parcial de todas essas
coisas.
Então sim, então se começou a crer que há muitas coisas
inseguras, e que as poucas coisas seguras, aquelas das quais se
está completamente certo, talvez não sejam comunicáveis. E. o
momento em que se chega à evidência de que tratar o que é
certo para mim mas não para os outros como se fosse certo , é
uma forma de cinismo. Se eu estou certo, absolutamente certo
de algo, mas sei que essa minha certeza não é imediatamente
comunicável aos demais, devo comportar-me em minha relação
com eles como se não fosse certo, como se não estivesse seguro
disso de que estou completamente seguro.
A pluralidade de personagens de Galdós é a expressão co­
letiva de sua idéia da vida. Ao criar centenas de personagens
diversas, contrapostas, caprichosas, pitorescas, admiráveis, cor­
rompidas, enérgicas , inertes, volta-se para o leitor e lhe diz :
a vida é tudo isso. Não só uma forma, não só uma coisa. O
gesto de Baroja - um gesto desencantado, melancólico, acre,
de resmungão, cheio ao mesmo tempo de piedade - é dizer
La vida és ansí - título de uma de suas novelas -. O gesto
de Galdós, diante da legião inumerável de suas personagens
vivas e que não se deixam reduzir a esquema, seria uin movi­
mento abrangente, generoso, liberal, que nos diz, sem otimismo
e com complacência : a vida é tudo isso.
Na novela de Galdós, as formas coletivas, as formas so­
ciais, estão fortemente presentes; porém as pessoas são incon­
fundíveis, insubstituíveis, únicas. Por isso recordamos todas as
inúmeras personagens de Galdós, de novelas que lemos uma só
vez, talvez aos doze ou treze anos de idade . Por vezes lembra­
mos a personagem mas não seu nome - como acontece na
vida : lembramo-nos muito bem de Tristana e daquele cavalheiro
de pera que a amava, mas o nome deste nos escapa; creio que
era um nome arcaico, talvez Don Lope. Lembramo-nos dos mé­
dicos, de Augusto e Alejandro Miquis; de Tormento, de Isi­
dora Rufete, da de Bringas, de Luisito ou de Miau, de Torque­
mada, das Á guilas, do amigo Manso, o prçfessor de filosofia ;
de Juanito Santacruz, d e Fortunata, d e Jacinta, d e Barbarita, de
Mauricia la Dura; de Benina, de Obdulia , do velho mendigo
mouro; de Á ngel Guerra e de Leré; do formigueiro dos Episo­
dios nacionales.
Esta é a grande lição de novelista que deu Galdós e que
foi esquecida. Em parte, porque os grandes, os geniais autores
da geração de 98, que fazem uma tentativa de conduzir a no­
vela mais adiante, de fazer uma novela mais pura, mais pro-

70
funda, mais rigorosamente narrativa, têm a tentação de esquecer
a circunstância, o cenário vital, de esquematizar a novela . 11 isto
o que fez Unamuno , e o estudei em pormenor já em 1 942 . As
novelas de Unamuno, geniais como representação íntima e ime­
diata da vida humana , são novelas descarnadas, sem circuns­
tancialidade, utópicas , essencializadas, s alvo a primeira e a úl­
tima. No ano 1 897 publicam-se estes dois livros : Misericordia,
de Galdós, e Paz en la guerra, de Unamuno. Paz en la guerra,
um livro extraordinário, poderia ter sido o símbolo do que co­
meçava e, sobretudo, devia começar - é preciso acrescentar
que quase ninguém percebeu -. Se Unamuno tivesse sido fiel
ao que iniciou com Paz en la guerra, seria, com grande vanta­
gem, o primeiro novelista de nosso tempo. Mas em vez disso
decidiu suprimir o mundo, tirar o que chamava " bambolinas " ,
deixar só " relatos puros, anelantes " , e esqueceu que a vida
humana é circunstancial, que respira e pulsa num cenário cha­
mado mundo, e que lhe é essencial o inessencial : estar repleta
de trivialidades .
Esta foi a primeira grande tentação. Outra, menor mas
mais demolidora, afetou principalmente os novelistas atuais: a
grande maioria deles recaíram no costumbrismo, ao qual se re­
duz quase toda a novela espanhola dos últimos vinte e cinco
anos, na qual predominam personagens elementares, que não
são pessoas, movidos por motivos muito toscos, que se dissol­
·
vem em meros costumes, em modos de reação coletivos ou de
grupo. Quantas personagens das novelas destes decênios perma­
necem na memória do leitor? E por isso poucas são as novelas
que merecem esse nome. A lição de Galdós foi perdida no que
tinha de mais fecundo, e não digamos a de Unamuno, mais su­
til e mais promissora ainda.
11 freqüente na novela atual a projeção do homem sobre
um plano, o plano econômico, ou o plano político-social, com
o que se o reduz a uma realidade bidimensional e sem densi­
dade, em lugar de ser tridimensional, com volume. Galdós ja­
mais fez isto. Pelo contrário, traça as trajetórias vitais das per­
sonagens, apresenta-as em interação umas com outras, imersas
numa realidade coletiva, num repertório de vigências, de usos,
de costumes, com o grande pano de fundo em que se apóiam
e sobre o qual se recortam os projetos individuais.

E como faz isto? Como o expressa? Apresentando, de. for­


ma incrivelmente perfeita, a primeira vigência, a grande vigên­
cia elementar de uma sociedade : a linguagem.

71
O homem está " instalado " numa série de dimensões de
sua vida ; vive-se a partir de uma instalação que , naturalmente,
é múltipla. E não se pode definir uma forma de vida, nem
tampouco descrever ou narrar uma vida individual, sem ter pre­
sente o que poderíamos chamar o sistema de suas instalações.
O homem está instalado em seu sexo, isto é, em sua condição
sexuada (escrevi sobre isso com certo pormenor em meu ensaio
" La estructura corpórea de la vida humana " , no número 2 da
nova Revista de Decidente) ; é radicalmente varão ou mulher, e
está referido polarmente ao outro sexo. O grande acerto de
Freud - Marx e Freud foram grandes gênios desmedidos -
consistiu em pôr em primeiro plano essa dimensão, e seu erro
em querer reduzir tudo a sexo e, o que é mais, em dar dele
uma interpretação sexual; do mesmo modo que Marx foi além
de sua genial descoberta da componente econômica da vida hu­
mana e da história, ao querer derivar tudo do econômico. Nem
tudo no homem é sexual , longe disso; mas tudo nele é sexuado,
e isto constitui uma " instalação " básica.
Outra, provisória e mutante por sua natureza mesma, é a
idade. Outra é a raça . Outra é a classe social como repertório
de formas de vida, não como nível econômico. E outra insta­
lação formidável é a língua. Nós estamos instalados na língua
espanhola, que nos proporciona e impõe ao mesmo tempo um
primeiro repertório de interpretações da realidade. Falar em
espanhol já significa ver o mundo de certa maneira ; mais ain­
da: mover-se nele, haver-se com ele, de acordo com certas estru­
turas já determinadas por aquela da língua. Os gestos vitais e
mentais são inteiramente diferentes dos que se fazem quando
se fala em inglês ou em alemão, para não dizer em chinês,
mandarim ou em swahili.
Essa grande instalação elementar, essa grande pauta geral
das demais interpretações, que é a língua, modula-se de ma­
neiras diversas. Uma é a que aparece representada em Galdós
e seria mister pôr-se à sua escuta para encontrar explicações
sobre ele mesmo e sobre a Espanha.
Em certo sentido, Galdós não escrevia bem . :e sabido que
a geração de 98 teve certa aversão a Galdós : não conseguia
apreciá-lo, Hoje isto nos parece injusto, mas é preciso enten­
der melhor. Por que isso acontecia? A geração de 98 repre­
sentou na literatura espanhola o restabelecimento do que cha­
mo " qualidade de página " . :e a qualidade intrínseca de uma
página solta, sua eficácia como tal ; o brilho que tem uma
página isolada, independentemente do valor da obra em seu
conjunto. Há obras com qualidade de página, que em conjunto

72
não passam de medíocres ou frustras; há em compensação obras
muito valiosas em que, em cada uma de suas páginas , faltam
intensidade e brilho. Este é o caso de Galdós . Sua obra tem
um altíssimo valor, mas uma página sua, solta, raramente nos
comove, quase sempre é um pouco trivial . E como um grande
arquiteto que constrói com tijolo , enquanto outros constroem
com aço e vidro, com granito ou mármore . Eu creio que a
aversão dos homens de 98 por Galdós, vinha do fato de não
encontrarem nele um semelhante ; parecia-lhes infiel a essa exi­
gência da qualidade de página, em que todos coincidiam, inclu­
sive o desleixado Baroj a .
Será, porém, meramente uma limitação d e Galdós? Será
simplesmente que Galdós não escrevia muito bem? Considero
enormemente a qualidade de página - que nada tem a ver com
isso que se chama " estilismo " -, e por razões sérias : é aquela
condição dos escritos que estão escritos verdadeiramente por
seu autor; isto é, aqueles nos quais o autor - o autor mesmo
- escreveu todas e cada uma de suas frases .
Todos nós falamos com palavras , com palavras da língua,
que são de todos e de ninguém, que estão inertes no dicionário .
Todos nós falamos de acordo com a gramática de nossa língua.
Porém, cada um diz certas palavras escolhidas , as dispõe numa
ord em determinada e as faz soar com certa cadência. Pois bem,
quando esta seleção de palavras, a sintaxe e a cadência é mi­
nha, pessoal, aquilo que escrevo tem qualidade de página, e
nela sentimos , sob nossa mão ou ao deslisar por ela a carícia
sem contato de nossos olhos, o palpitar de uma vida .
Mas há o Ú tra maneira de escrever, que é escrever com fra­
ses , com o que poderíamos chamar, dando à expressão um
sentido mais lato que o usual, frases feitas, tomadas do reper­
tório das que correm de boca em boca; frases tomadas da
gente em geral, daquilo que se diz. Dá no mesmo que se trate
do preciosismo dos culteranos ou das formas estereotipadas de
uma crônica de sociedade. Num e noutro caso , não há quali­
dade de página, porque esta constitui-se de elementos alheios ,
comunais, sociais, coletivos, não meus, não pessoais.

Ga1dós escreve a partir de toda gente, porque seus tópicos


apresentam a realidade social da Espanha de seu tempo. A
partir dela e com ela, feitas dela, surgem as vidas individuais,
os dramas únicos que fazem da obra de Galdós uma verdadeira
novela, no sentido mais pleno da palavra.

73
Primeiro, com alento romântico; depois, com a terrível
confusão de 1 860 a 1 87 5 ; finalmente, com a relativa sedimen­
tação e equilíbrio da Restauração , apesar de que esta acober­
tava com convenções seus problemas mais vivos e incitantes.
Em todo caso, as vidas das personagens galdosianas aparecem
dissolvidas em palavras, em ditos tópicos, tomadas do meio, que
são aquilo que rege a conduta. Lembrem-se os longos parlamen­
tos, os diálogos, os monólogos - tão pouco íntimos - das
personagens de Galdós. Sua conduta é interpretada, expressa,
dirigida por eles . Fazem o que fazem - freqüentemente coisas
sem sentido - porque dizem ou lhes dizem isso que estamos
lendo. Temos a visão de uma sociedade montada sobre a palavra
- amiúde sobre o palavrório -. I sto não é tremendo? E não
é castiço? Não nos lembra a situação do século XVI I , a de
quase todo o teatro do Século de Ouro, mais ainda a de La
Dorotea, de Lope de Vega, toda ela feita de palavras ?
A ssistimos a uma forma de vida integralmente expressa
em palavras. Mais ainda : suscitada pelas palavras, provocada
por elas, que vive arrastada por elas, seguindo-as. Quase tudo o
que se faz na Espanha do século XIX é falar; se fosse apenas
isso, não seria tão grave. O decisivo é que quase tudo que se
faz se faz porque se falou, a palavra precede a ação e até o
pensamento. Até 1 850 ou 60, em forma original, inspiradora,
criadora : é a boa retórica, maravilhosa apesar de seus riscos ;
na segunda metade do século, é o dizer tópico de " toda gente "
o que suplanta a vida individual e coletiva autêntica. � isto o
que nos mostra prodigiosamente a novela de Galdós.
Em 1 89 7 - quando nossa época i rá começar , quando já
termina a Restauração como forma de vida histórica -, Mise­
ricórdia e Paz en la guerra. Começa o caminho em direção ao
despojamento e à personalidade, a procura do puro estreme­
cimento humano, do drama em que consiste nossa vida. Mas
Galdós, já velho, recai no " ideologismo " e no simbolismo ;
Unamuno esquece a circunstância . A junção destas duas tenta­
tivas geniais teria dado, em nosso tempo, a mais intensa forma
de novela . Porém nós, os espanhóis, recaímos sempre no adâ­
mico e preferimos fazer de conta que somos o " homem primi­
tivo " a ter piedade histórica, e venerar nossos antepassados em
lugar de, por nossa vez, sermos o que eles f6ram.

1 965

74
98 antes de 98 : Ganlvet

Este pequeno livro que tenho em mãos não tem mais do


que 1 63 páginas . Foi impresso em Granada, em 1 89 7 ; intitula­
se Idearium espaíiol, e seu autor, segundo reza a página de
rosto, Á ngel Ganivet; está assinado e datado no final : Helsing­
fors, outubro, 1 8 96 . Este livro tão extremoso, tão extremadamen­
te espanhol, foi escrito na cidade que hoje chamamos Helsinki,
conhecida então por seu nome sueco, a capital do Grão Ducado
da Finlândia, incluído naqueles dias na Rússia imperial .
Á ngel Ganivet é um escritor fronteiriço, e é preciso lê-lo
com muito cuidado para não se desorientar. Nascido em Gra­
nada em 1 86 5 , fracassado em seu projeto de ser professor de
grego, de volta à carreira consular, este acaso profissional o con­
dena à solidão, à vida no estrangeiro - Amberes, Helsingfors,
Riga -, e contribui provavelmente para sua morte entre as
águas do Dwina no mesmo ano de 1 898 em que termina uma
época da história espanhola e começa a nossa, a que ainda é
" presente " . Ganivet pertencia, sem dúvida, à geração de 98 -

havia nascido um ano depois de Unamuno, um antes de Valle­


Inclán -, porém, como Moisés, deteve-se às portas da terra
prometida. A inspiração que trazia dentro, a de nossa época,
não chegou a florescer em sua própria obra.
Por isso Ganivet " preludia " tantos temas da geração de
98, que ressoarão depois, que escutamos hoje como numa or­
questra . :e. paradoxal que este homem saturado de cultura euro­
péia - e não das mais próximas tradicionalmente a Espanha,
sobretudo a francesa, mas sim das nórdicas -, que vive muito
tempo fora de seu país, seja tão profunda e firmemente espanhol ;
mas advirta-se que este paradoxo se repete muitas vezes, e que
ainda hoje comprovamos um precipitado de espanholismo oh�
sessivo em muitos homens que viveram estes últimos trinta anos
longe da Espanha, que fizeram suas vidas - mais o u menos

75
ao arrepio - em terras estranhas . " Espanha como privação " ,
seria este u m tema incitante. E s e s e lembra que " amar " não
se diz em espanhol dessa maneira, salvo em poucos casos e na
língua escrita ; se se pensa que o verbo vivo na língua para sig­
nificar esta realidade é " querer " - o verbo da vontade -,
e que " querer " , por seu lado, vem de quaerere, literalmente
" buscar " , com um matiz particular de " achar de menos " , " achar
falta de " , talvez comecemos a compreender as características
deste amor voluntarioso à Espanha , feito de ausência, nostalgia,
obsessão.
� também paradoxal que Ganivet chame Idearium a seu
livro, que no fundo é tão pouco ideológico, e ainda por cima
em latim. Como construção intelectual, como doutrina ou teoria,
o Idearium espaiíol não é muito consistente, seus mecanismos
de justificação falham , mostra a arbitrariedade com um impu­
dor excessivo. Não esqueçamos - porque é " fisiognomicamen­
te " importante - que este livro começa com um erro elementar :
a confusão entre a Imaculada Concepção e a virgindade de Ma­
ria, mãe de Cristo . Mas o interessante é que quando Unamuno
o adverte, Ganivet escreva que quando publicou o Idearium já
o haviam feito, e apesar disso não quis corrigi-lo :
" Você me faz notar a confusão dogmática que parece de­
preender-se da primeira idéia de meu livro ; antes de você, m'o
disseram outros amigos, e , antes que o livro fosse impresso,
alguém aconselhou-me que a suprimisse, e eu estive quase ten­
tado a fazê-lo , mais do que pelo erro que nela poderia transpa­
recer, para não causar em algum leitor uma má impressão logo
nas primeiras linhas . E, no entanto, não a suprimi . Por teimo­
sia? - poder-se-á pensar -. Foi porque via nessa idéia uma
idéia muito espanhola . . . O povo espanhol vê nesse mistério
não só o da concepção e o da virgindade, mas o mistério de
toda uma vida. Há um dogma escrito imutável, e outro vivo,
criado pelo gênio popular. " (El porvenir de Espaiía, Madrid
1 9 1 2 , pp. 63-64 .)
Para Ganivet não é tão importante o erro como o dar " uma
má impressão " - algo pessoal -, e no final das contas o que
decide é que se trata de uma idéia " muito espanhola " . A " ver­
dade " teórica está subordinada a uma consideração moral e
quase de " simpatia " , e esta, por sua vez, ao fato de que o autor
" palpa " sob o erro uma verdade profunda e talvez injustificá­
vel . Creio que nisso reside a atitude mais profunda de Ganivet .
Do ponto de vista estritamente intelectual , o Idearium es­
paiíol é um livro insatisfatório e insuficiente . Ao mesmo tempo,
porém, é profundamente atraente, e sentimos que Ganivet, con-

76
fusamente, de uma maneira obscura e vacilante, " põe o dedo
na ferida " e vê ou palpa coisas muito verdadeiras . Seu lema
poderia ser o dito espanhol " yo me entiendo y bailo solo " , eu
me basto a mim mesmo, que não é - quase não é preciso
dizer - o lema da filosofia, sobretudo se esta for, como uma
vez me atrevi a defini-la, "a visão responsável " .
Ganivet possuía uma experiência muito forte e direta da
vida humana, reduzida a formas elementares, e de certos aspec­
tos da vida espanhola de seu tempo. Por isso o melhor de sua
obra é provavelmente a novela inacabada Los trabajos de Pío
Cid, onde é apresentada com singular força a vida nas pensões
baratas, las casas de huéspedes, de Madrid em fins do século
passado, ou as manobras eleitorais durante a Restauração, ou os
estímulos reais da vida nos povoados granadinos . Há em tudo
isso algo muito direto que de vez em quando irrompe no
Idearium espaííol, como quando Ganivet nos conta a história
de Agatón Tinoco, ou recorda a atitude do espanhol que deverá
ser testemunha num julgamento e deseja conhecer as conseqüên­
cias de sua declaração para não " ir às cegas " . Eu diria que
Ganivet raramente " tem razão " , mas que muitas vezes está
vendo coisas importantes, das quais teria que dar razão. E é
isto precisamente o que terá que fazer, depois de sua morte,
a teoria, que volta a existir criativamente na Espanha precisa­
mente nessa época, pela primeira vez desde o século XVI I .
Creio que não se deu atenção para o fato de que a corres­
pondência sobre El porvenir de Espaíía trocada entre Unamuno
e Ganivet no diário El Defensor de Granada, de 1 896 a 1 89 8 ,
antecipa d e certo modo a questão debatida tão polemicamente
em nossos dias - maximamente por Américo Castro e Cláudio
Sánchez Albornoz -, acerca da função do árabe na realidade
da história espanhola . Vale a pena recordar algumas coisas que
disseram um e outro, há setenta anos .
" Um povo novo - escrevia Unamuno - temos que fa­
zer nós mesmos tirando-o de nosso próprio fundo, Robinsons
do espírito, e esse povo temos que ir buscá-lo em nossa rocha
viva com o fundo popular que com tanto afinco explora D .
Joaquín Costa, investigador, ao mesmo tempo que d o direito
consuetudinário, da antigüidade ibérica . Não creio um absurdo
aquilo da instauração dos costumes celtíberos, anteriores aos
tempos da dominação romana, em que sonhava Pérez Pujol ,
porém o que creio mais vital é a completa despaganização da
Espanha . Dos árabes nada quero dizer, professo-lhes uma pro­
funda antipatia, creio muito pouco nisso que chamam civiliza­
ção arábica, e considero sua passagem pela Espanha como a

77
maior calamidade que sofremos. " (El porvenir de Espafía, pp.
43-44.)
A isto respondia Ganivet acentuando sua divergência, ape­
sar de estar, de outro ponto de vista, quase de acordo, e expli­
cava sua discrepância pela respectiva condição de vasco e gra­
nadino dos dois interlocutores ; quer dizer, pela condição histó­
rica de vasco e granadino, não por uma consi d eração " étnica " .
São estas a s suas palavras :
" O que mais me agrada em suas cartas é que me trazem
recordações e idéias de um bom amigo como você, com quem
quase estou de acordo, sem que nenhum dos dois tenhamos
pretendido estar acerdes. Estamos assim por casualidade , que é
tudo quanto se pode desejar, e o estamos ainda que sintamos
de modo muito diferente. Fala você de " despaganizar" a Espa­
nha , de libertá-la do " moralismo senequista pagão " , e eu sou
admirador entusiasta de Sêneca; você professa antipatia aos ára­
bes, e eu lhes tenho muito afeto, sem que possa ser de outra
maneira . Conste , no entanto, que meu afeto terminará no dia
em que meus antigos compatriotas aceitarem o sistema parla­
mentar e se dediquem a andar de bicicleta.
" Você , amigo Unamuno, descende em linha direta daque­
les esforçados e tenazes vasconços, que jamais quiseram sofrer
o jugo de ninguém ; que lutaram contra os romanos, e só a eles
se submeteram proforma, que não viram sua terra calcada pela
planta dos pés dos árabes ; que ainda estão com o fuzil ao om­
bro para se defenderem das liberdades modernas, que eles têm
como coisa de farândola. Assim se conservaram puros, aferrados
ao espírito radical da nação. Por isto fala você da instauração
dos costumes celtíberos, e crê que o melhor caminho para
formar um povo novo é o que Pérez Pujo! e Costa abriram
com suas investigações. Eu, diferentemente, nasci na cidade da
Espanha que mais tem sido cruzada, no seio de um povo que
antes de ser espanhol foi mouro, romano e fenício . Tenho san­
gue de limusino, árabe, castelhano e murciano, e me faço por
necessidade solidário de todas as atrocidades e mesmo crimes
que os invasores cometeram em nosso território . Se você supri­
. me romanos e árabes , de mim talvez não reste mais do que
as pernas ; sem querer, você me mata, amigo Unamuno.
" Mas o importante é que você, mesm o que seja de má
vontade, reconheça a realidade das influências que atuaram so­
bre o espírito originário da Espanha; porque há quem leve seu
exclusivismo ao ponto de negá-las ; quem creia já extirpadas as
raízes do paganismo, e quem afirme que os árabes passaram
sem deixar rastro ; sonham que somos uma nação cristã, quan-

78
do o cristianismo na Espanha, como na Europa, não chegou
ainda a moderar nem o regime de força em que vivemos, her­
dado de Roma, nem o espírito cavalheresco que se formou du­
rante a I dade Média, nas lutas pela religião. A maior influên­
cia que a Espanha sofreu, depois da pregação do cristianismo,
foi a arábica. Convertendo nossa terra em cenário, onde diaria­
mente se representou, um século atrás de outro, a tragédia da
Reconquista, os espectadores tiveram que se habituar com a
idéia de que o mundo era o campo de luta , aberto a todos
aqueles que quisessem provar a força de seu braço. " (lbid., pp.
5 1 -54.)
E Unamuno confronta este ponto de vista, novamente, com
o seu , diferente e complementar ; e o explica por sua vez pela
configuração de suas trajetórias biográficas :
" Você rodou por terras estranhas, com seu coração e seus
olhos sempre voltados para a Espanha, e eu, vivendo nela,
oriento-me constantemente para o estrangeiro, e de suas obras
nutro sobretudo meu espírito. São dois modos de· servir a pá­
tria, diversos e concorrentes . " (lbid., p . 96 .)
Mas o decisivo é que Unamuno formula aqui s ua interpre­
tação " intra-histórica " da históri a , acentua o papel de substrato
primitivo das sociedades , e expressa sua convicção de que se
exagerou enormemente a função das invasões , fenômenos rela­
tivamente superficiais, que deixam quase intacta a substância
profunda de um povo :
" Sempre acreditei que a História, que dá razão dos quatro
que gritam e nada diz dos quarenta mil que se calam , desem­
penhou o papel de enorme lente de aumento no que se refere
ao cruzamento de raças no solo espanhol . As crônicas nos fa­
lam da invasão dos íberos, dos celtas, dos fenícios , dos romanos,
dos godos, dos árabes, etc . , e isto nos leva a crer que aqui se
formou uma miscelânea de povos diversos , quando estou con­
vencido de que todos esses elementos adventícios representam ,
junto ao fundo primitivo , pré-histórico , uma proporção muito
menor do que imaginamos , débeis camadas de aluvião sobre
densa rocha viva . . .
" Muito pouco, creio eu , afetaram as bases da vida popular
espanhola essas diversas irrupções que a história nos conta acon­
tecidas em sua superfície. Quantos eram os fenícios que che­
garam, em relação aos que aqui viviam? Quantos os romanos,
os árabes , e até que ponto penetraram no íntimo da raça?
Creio que passaram pouco além da superfície, muito pouco, e
que quando passaram algo, foram absorvidos . . .

79
'' Tudo isto nada mais faz que indicar minha idéia de que
o fundo da população espanhola permaneceu muito mais puro
do que se crê, enganando-se pela falaz perspectiva histórica,
crença que as investigações antropológicas parecem confirmar.
" Celtas, fenícios, romanos, godos, os próprios árabes, de
que parece você tão afeiçoado, foram pouco mais que vagas,
tempestuosas que fossem, mas afinal vagas, que muito pouco
influíram na base sub-histórica , no povo que cala, ora, trabalha
e morre. Depois, por lei, longa para ser explicada aqui, acontece
que ao se misturarem povos diversos em proporções distintas,
o mais numeroso prepondera no fisiológico e radical, mais do
que sua proporção representa.
" Creio , também, que as diferenças étnicas interiores que
se observam na Espanha - galegos, vascos, catalães, castelha­
nos, etc. -, provêm de diversidades pré-históricas . " (lbid.,
pp. 97- 1 02 .)
Estas são as duas posições anteriores a 1 898 nas quais se
defrontam fraternalmente os dois homens de maior vocação teó­
rica da geração . B evidente o paralelismo - inexato, como todo
o real, e sobretudo o humano - com as discussões mais recen­
tes acerca da realidade da Espanha. B clara também a limita­
ção com que estas doutrinas se movem quando se trata da justi­
ficação de seus conteúdos, a entrega à intuição, à conjetura, à
inspiração, até mesmo ao palpite. A iluminação repentina de
um dado numérico , uma citação feliz, uma " simpatia " ou " anti­
patia " , uma afinidade de tonalidade psíquica, a enumeração da
série de dominadores. Pode-se equiparar uma denominação " ét­
nica " ou religiosa a outra, como se fossem magnitudes com­
paráveis, quando talvez uma fração decuplique ou centuplique
a outra? Basta, pelo contrário, uma valoração quantitativa para
descartar ou reduzir a um mínimo as influências minoritárias ,
quaisquer que sejam elas ? Em meu livro A estrutura social, < 1 >
procurei j á em 1 95 5 formular o problema da realidade histó­
rica de uma sociedade, da estrutura social do sujeito de uma
história, e a tudo que lá expus remeto o leitor curioso de avaliar
as dificuldades teóricas deste esclarecimento.
Não podia esperar-se de Ganivet - nem sequer de Una­
muno - uma colocação rigorosa da questão. Mas me parece
que sem chamar a atenção sobre este tema, não se pode com­
preender a significação do Idearium espanol, bem como sem uma
idéia clara da obra de Ganivet e de seu diálogo com Unamuno
não se pode entender o que significou a geração inteira de

( 1 ) A estrutura social, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1963. (N. do T.)

80
98 e, sobretudo a seguinte, a de Ortega , na qual acontece n a
Espanha o que poderíamos chamar o renascimento d a teoria, o
novo aparecimento do que merece ser chamado pensamento teó­
rico. No momento em que este atravessa uma profunda crise
em todo o mundo, em que é substituído por tantas outras coisas
que não podem suprir sua ausência , interessa indicar o ambien­
te em que surgiu na Espanha , as dificuldades com que teve que
lutar, e que não são substancialmente diferentes daquelas com
as quais tem que continuar lutando, em seu esforço em direção
à luz.
1 967

81
O centenário da geração de 98

O ano de 1 97 1 assinala, se não me engano, o centenário


da geração de 98. O que isto quer dizer, explicarei a seguir.
Aceitando o esquema básico de Ortega, que desenvolvi e com­
pletei há muito tempo em El método histórico de las generaciones
( 1 949) e A estrutura social, < i > uma geração tem um período
de vigência de quinze anos ; isto é, cada quinze anos se produz
essa variação, usualmente pequena mas universal, em que " mu­
da o mundo " dentro de uma sociedade determinada e " entra
no poder " uma nova geração ; ao mesmo tempo, uma geração é
o conjunto de homens nascidos numa " zona de datas " de quinze
anos. O problema empírico, difícil e espinhoso, porque requer
uma investigação minuciosa, é a determinação da escala efetiva
das gerações.
I sto só se fez a fundo, que eu saiba, num caso : no livro
Las generaciones argentinas, de Jaime Perriaux (Buenos Aires,
1 970) . Na Espanha, apesar de haver sido berço da teoria ma­
dura e rigorosa das gerações, não se fez nenhum esforço sério
por propor-se o problema com amplitude e rigor; pelo contrá­
rio, inventam-se gerações caprichosas , parciais ( " literárias " , " poé­
ticas " , " pictóricas " , etc.) , o que não tem nenhum sentido, sepa­
radas por distâncias arbttrárias e variáveis, e se mescla na mes­
ma " geração " homens pertencentes a duas - ou talvez três -
gerações diferentes ; isso porque .se denomina " geração " qual­
quer afinidade , escola, tendência, moda, sem levar em conta
que essas escolas ou tendências podem afetar vdrias gerações ,
e que uma mesma geração pode cindir-se em tendências muito
diversas .

( ! ) A estrutura social, Livraria Duas Cidades, São Paulo , 1 963. (N. do T.)

83
Há muito tempo venho me esforçando por estabelecer uma
escala das gerações espanholas desde o século XVI l l até hoje.
Embora haj a dedicado a isso muita atenção e não poucas com­
provações, ainda não me atreveria a propor uma escala a não
ser como hipótese metódica, que ao aplicar-se à realidade his­
tórica pode retificar-se a si mesma. Duas extensões parecem
plausíveis : uma para trás, até o momento em que começa a
haver plenamente uma sociedade espanhola, isto é , no século
XV; a outra, para fora, até alcançar os limites da Europa
ocidental . Provavelmente a escala pode estender-se em ambos
os sentidos sem perder sua validade, mas convém ter cuidado
e procurar certificar-se primeiro dentro da Espanha e num pe­
ríodo relativamente curto . Atenhamo-nos, pois, aos limites ini­
ciais .
Tomando as datas centrais de nascimento (e não as de atua­
ção histórica) , teríamos as gerações seguintes , desde os primei­
ros ilustrados (Macanaz e Feijoo) , nascidos ainda em tempos de
Carlos I I , até o presente : 1 676 - 1 69 1 - 1 706 - 1 72 1 -
1 736 - 1 75 1 - 1 766 - 1 78 1 - 1 796 - 1 8 1 1 - 1 826 -
1 84 1 - 1 856 - 1 87 1' - 1 886 - 1 90 1 - 1 9 1 6 - 1 93 1 -
1 946 - 1 96 1 .
Cada geração entra plenamente na história aos trinta anos ;
dos trinta aos quarenta e cinco é sua época de " gestação " e
luta por impor suas maneiras e estilos ; aos quarenta e cinco
se inicia sua plena " gestão " e pode-se dizer que " está no po­
der " (desde logo, até os sessenta : veremos a seguir as reservas
que se impõem a esta data final) . Mas é preciso perguntar de
que idades se trata : dos indivíduos? Não : da geração como tal.
Quero dizer que os homens de uma geração entram na histó­
ria antes ou depois de completarem os trinta anos (e analoga­
mente as demais fases) , conforme hajam nascido em um ou
outro ponto de sua geração . As " idades " são as da geração ,
isto é, as correspondentes à data central de nascimentos. Os
mais velhos serão pessoalmente tardios - e mais duradouros
no cenário histórico -; os mais jovens serão precoces - e de
passagem mais curta.
Pois bem, a que chamamos " geração de 98 " é , segundo
esta escala, a de 1 87 1 , isto é, a dos nascidos em torno a 1 87 1 ;
por isso posso dizer que agora, neste ano, tem lugar o cente­
nário da geração de 98 como tal .

Os limites de nascimentos desta geração são 1 864- 1 878


(entre Miguel de Unamuno e Enrique de Mesa ou Luis de Zu-

84
lueta) . Se avançarmos apenas mais um ano e chegarmos a 1 879 ,
encontraremos figuras como Gabriel Miró e Eduardo Marquina,
que pertencem tão claramente a outra geração.
A entrada plena na história da geração de 98 corresponde
à data de 1 90 1 , quando ela tem trinta anos (embora Unamuno
tivesse trinta e sete e Antonio Machado só vinte e seis) . Tudo
o que é anterior a essa data, qualquer que sej a sua maturidade
individual, é historicamente prévio, é a pré-história da geração.
I sto pode contribuir para esclarecer as posições políticas pre­
maturas dos membros da geração de 98, sobre as quais tanto
se insiste presentemente, com uma tendência a substantivá-las ,
esquecendo-se de que, se isto se fizer, será necessário por mo­
tivos mais sérios, substantivar sua rejeição, seu repúdio, preci­
samente ao iniciar sua verdadeira ação histórica.
A geração de 98 chega ao poder quinze anos depois, em
1 9 1 6 (naturalmente, quando entra na história a geração seguin­
te, a de 1 886 : Ortega, Marafí.on, Miró, Marquina, Eugenio
d'Ors, Azafí.a, Ramón Pérez de Ayala, Ramón Gómez de la
Serna, Juan Ramón Jiménez, Américo Castro, etc.) . O exercício
pleno do poder da geração de 98 corresponde à fase 1 9 1 6- 1 93 1 .
E , com efeito , é interessante notar que a oposição intelectual à
Ditadura de Primo de Rivera exemplifica-se sobretudo por ho­
mens como Unamuno e Valle-Inclán ; mas quando em 1 93 1 se
proclama a República, não serão os homens de 98 os realmen­
te influentes, visto que o poder se desliza deles para a geração
seguinte, que precisamente " chega ao poder " em 1 93 1 . (E ao
dizer " chega ao poder " quero dizer ao poder social , e portanto
envolve igualmente aos que não conseguiram o poder político,
à oposição, aos que desde então se esforçaram, por todos os
meios, por consegui-lo.)
Todavia, temos que levar em conta agora um fator decisi­
vo, que modifica a teoria das gerações ao chegarmos a nosso
tempo : a recente longevidade do homem do Ocidente. Enquan­
to, ao longo de toda a história conhecida, o limite da vida ati­
va do homem podia localizar�se em torno aos sessenta anos, e
depois dessa idade só restavam " sobreviventes " de uma gera­
ção dizimada pela morte, pela invalidez ou pelos achaques , no
século XX a atividade prolonga-se, com pequena diferença, mui­
to além, e provavelmente durante outros quinze anos . I sto é,
em nossa época duas gerações " compartilham " o poder em for­
mas distintas (a " de saída " e a plenamente vigente) . Quando a
geração de 1 886 chega à sua fase de gestão, a anterior, a de 98,
não só não desapareceu como conserva suas faculdades e seu
prestígio. Entre 1 93 1 e 1 946 deveria ter existido essa peculiar

85
" diarquia geracional " que é o signo de nosso tempo, essa forma
sutil e valiosa de mando, do que tanto se teria podido esperar.
Mas isso foi atrozmente perturbado pelas duas guerras, a civil
de 1 936-39 prolongada interiormente pela emigração e a anor­
malidade da convivência e da vida pública, e a mundial de
1 939-45, que veio reforçar tudo e " petrificar " a situação inter­
na. No entanto, essa regência conjunta das duas gerações não se
frustou inteiramente, não deixou de existir - os fenômenos
políticos, por devastadores que s·ejam, são como as tempestades
marinhas, relativamente superficiais -: só que deve ser procura­
da no subsolo.
E é preciso levar em consideração um acaso imprevisível e
significativo : a maior longevidade média dos homens egrégios da
geração de 98, o fato de que tenham ido desaparecendo ao
mesmo tempo, alternando-se, os de 1 87 1 e os de 1 886. As duas
gerações que mais trabalharam " em equipe " , a diferentes níveis
e com estilos diversos porém na mesma empresa. A geração de
98 foi " polêmica " em relação ao mundo anterior, à Restaura­
ção; a seguinte continuou na mesma atitude polêmica e foi, por­
tanto, " cumulativa " em relação à de 98.
A " saíd a " (em termos atuais diríamos a " primeira saída " )
da geração de 1 886 se inicia em 1 946. Não esqueçamos que
Ortega, voltando a Espanha após quase dez anos de exílio, ao
falar pela primeira vez em público, em 1 946, o que fez primeiro
foi recordar o antigo romance: " Viejo que venís el Cid , - viejo
venís y florido " (Velho que vindes el Cid, - vindes velho e
exuberante) ; isto é, apresentou-se como " velho " , embora esti­
vesse em seu máximo esplendor pessoal e biográfico ; geracional­
mente, sentia-se no final de sua vigência (pelo menos, da primei­
ra fase dessa singular " dupla vigência " que caracteriza nosso
século) . Em todo caso, ao assistir, ao mesmo tempo, a liquidação
de duas gerações decisivas , a comoção na vida espanhola foi muito
maior. Dever-se-ia investigar, com atenção, o que aconteceu de
verdade na Espanha, quantas coisas se partiram, se compromete­
ram ou foram esquecidas até 1 96 1 .
O fato significativo, não obstante, é a perduração - após a
morte e o desaparecimento físico - da geração de 98 . � ela o
" pano de fundo " da época atual . Ainda nos definimos em rela­
ção a essa geração. Basta pensar, para provar o quanto está viva,
na " irritação " que a geração de 98 produz em medíocres e ranco­
rosos, naqueles que não querem " vir de " : o que se poderia de­
nominar historicamente " espírito de bastardia " . Por que essa per­
duração? Que foram esses home n s, que foi a geração de 98?

86
II

Surpreende a forte individualidade - dizendo melhor, a


poderosa personalidade - dos homens egrégios da geração de
98. E impossível confundi-los ; de maneira alguma pode alguém
confundir uma página de Unamuno com outra de Valle-lnclán ,
uma de Baroja com outra escrita por Azorín, tomar um poema
de Antonio Machado, como sendo de Unamuno (ou ainda de Ma­
nuel Machado) . E ao mesmo tempo, todos estes escritores pos­
suem uma formidável realidade de grupo. Por isso neles, mais
que em qualquer outro caso, encontra-se exemplificado o que é
uma geração . Não só por acaso foram assim denominados muito
cedo, em forma temática por Azorín já em 1 9 1 3 ; é que quando
queremos pensar claramente o que é uma geração - quero di­
zer, seus homens representativos, a minoria que a expressa -
voltamos os olhos à de 1 87 1 , chamada a de 98 .
Estes autores são irredutíveis , inconfundíveis em relação a
antecedentes ou conseqüentes. Quaisquer que sejam as semelhan­
ças, afinidades, coincidências ou simpatias, distinguem-se dos das
gerações anteriores ou posteriores . A distância entre Menéndez
Pelayo e seu discípulo Menéndez Pidal ou entre este e Américo
Castro é tão notória e evidente, que todas suas aproximações na­
da mais fazem que acentuá-la; se comparamos Clarín com Una­
muno, este com Ortega, o resultado é o mesmo ; o mesmo acon­
tece se partimos do próprio Clarín ou de Emilia Pardo Bazán
para chegar a Baroja e continuar dele até Miró ou Pérez de
Ayala; e assim em todos os casos.
Nos homens de 98 conjuga-se a originalidade à " pertinên­
cia " a algo transpessoal , com a radicação em uma realidade que
vai além de cada um deles. Não houve nada mais espanhol que
estes homens ; nada mais universal ; por eles a Espanha pôde
penetrar no mundo e restabelecer a igualdade histórica da Espa­
nha ; isto é, cancelar o atraso de aproximadamente uma geração,
que carregava em relação ao resto da Europa desde os terríveis
vinte e cinco anos que vão da invasão napoleônica de 1 808 à
morte de Fernando V I I em 1 83 3 ; o que fazia que, no século
XIX, quando um espanhol atravessava a fronteira, tivesse a im­
pressão não só de mudar de país como também de época. Os
homens de 98 conseguiram pôr a Espanha "a nível " ; e de tal
modo, que em certos cimos alguns espanhóis do século XX se
adiantaram a todos seus contemporâneos em descobertas essen­
ciais : Unamuno, Valle-Inclán, Ortega, Picasso, Ramón Gómez
de la Serna . . .

87
Apesar de que a geração européia anterior - à qual histo­
ricamente correspondia em muitas coisas a espanhola de 98 -
acenava-lhes com essa tentação, apesar de que em certa medida
caíram nela, creio que os homens de 98 conseguiram superar a
preocupação de serem " diferentes " e entregaram-se a ser; e quan­
do se é de verdade, a diferença se dá por acréscimo .
Por isto, o traço decisivo dos homens de 98 foi a autenti­
cidade: ter que ser livremente o que se é - melhor ainda, quem
se é -. Não foram seus dotes o que os fez geniais ; foi a ma­
neira genial de exercê-los . Alguns eram admiravelmente dotados ;
outros não tanto, e isso não importa que se o diga ; pelo contrá­
rio, deve-se dizer - em sua honra -. Eram escritores, radical­
mente escritores, a partir de dentro de si mesmos , porque não
podiam - nem queriam - ser outra coisa. E o eram concreta­
mente, como se deve ser : nas circunstâncias em que se vive .
Se os da geração de 98 houvessem sido homens de outro país
ou espanhóis de outro tempo, suas obras teriam sido essencial­
mente diferentes . Quando se quer escrever " para sempre " acon­
tece que se escreve para uma temporada . A forma de " durar " não
é ser intemporal, é " permanecer " .
S e e m outra ocasião seria desnecessário fazê-lo, nesta data
de centenário de seus nascimentos não é ocioso lembrar que fo­
ram homens de convivência, conversação e tertúlia. Na Espanha
de seu tempo não era concebível que se pudesse ser outra coisa,
e não digamos tratando-se de escritores. No mundo atual uma
enorme parte disto foi perdida - algum dia saberemos a que
preço -; uma das riquezas espanholas é a relativa permanência
destas formas de vida, e sabe Deus como as estamos malbara­
tando - ter-se-á que precisar a troco de quê, e ver-se-á então a
que ponto é um mau negócio -. 'É. preciso recordar a camilla < 2 >
da casa de Unamuno em Salamanca, ou o café Novelty por ve­
zes, ou a tertúlia caminhando pela " clara carretera de Zamora /
soõadero feliz de mi costumbre " ( " clara estrada de Zamora /
lugar de sonhos feliz e costumeiro " ) e a do café que se chamou
La Granja El Henar, de Valle-Inclán, na calle de Alcalá, e o
Gato Negro, e as tertúlias de redação de Azorín - apesar de
ser pessoalmente silencioso -, e as tertúlias de Antonio Macha­
do no casino de Sória (ou em outros lugares mais humildes,
porque foi ele quem escreveu : " y pedantones ai paõo / que
miran, callan y piensan / que saben, porque no beben / el vino
de las tabernas. / Mala gente que camina / y va apestando la
tierra " ) , ( " e pedantes às ocultas / que olham, calam e pensam
(2) No texto, no sentido de "mesa camllla", a mesa com uma coberta de pano
e debaixo da qual se põe um _braseiro para aquecer os que se sentam à sua volta.
(Nota para a tradução brasileira . )

88
/ que sabem, porque não bebem / o vinho que há nas tabernas .
/ Gente má qve caminhando / vai empestando a terra ") , ou no
laboratório de farmácia de Baeza, ou com os amigos de Segóv i a ;
e a d e Baroja e m sua casa d e Vera o u n a calle d e Ruiz d e Alarcón
em Madrid. (E não esqueçamos depois as de Ortega em El Sol
ou na Revista de Decidente - Pi y Margall 7 , depois Bárbara
de Braganza 12 -, as de Ramón em Pombo .)
Nessas formas de convivência espontânea, vivaz, amistosa,
sem reservas nem embuços, brotava a naturalidade. E preciso
ler o livro de Ricardo Baroja, Gente del 98, para ver os ardis a
que recorreram algumas destas personagens para garantir o casa­
mento de Anita Delgado, a lindíssima jovem de Madrid, com o
mirífico, quase mítico Maharajá de Kapurtala, que apareceria logo
depois, transfigurado, na obra de Valle-Inclán. E as viagens por
toda Espanha, até absorvê-la e saturar-se dela - em mula, a
cavalo, em trenzinhos humildes, em desconjuntados carroções,
como fosse -; e as casas de hóspedes com um lavabo e um
balde e um jarro de água, fria naturalmente ; e as estalagens em
que mesmo isso era problemático, mas onde os postigos abertos
ofereciam os velhos telhados de Castela, os sobrados , a prate­
leira " donde posa sus dukes ojos verdes Melibea" ( " onde pousa
seus doces olhos verdes Melibea") ou o campanário das monjas
com seu sino cristalino. A escassez aceita com naturalidade ; e
os luxos eventuais quando há um milagre. Realidade, realidade,
realidade : para " filtrá-la" é preciso deixá-la passar pela alma,
pela biografia, em doses imensas.
Os homens da geração de 98 viveram instalados na literatura.
Mais ainda que seu ofício , era sua morada . Todos foram escrito­
res. A aparente exceção, Menéndez Pidal, sábio, erudito, filólogo,
descobre aos oitenta anos que havia sido toda sua vida um escritor
" em estado latente " . (Uma vez, quando se aproximava dos no­
venta, lhe disse : " Don Ramón , quando o senhor começou a
escrever verdadeiramente bem foi depois dos oitenta anos . "
Respondeu-me, com seu meio sorriso, como a desculpar-se e
alegrando-se de que eu houvesse descoberto seu segredo : " E que
não ousava. ")
Desta maneira puderam conseguir o contágio e a revives­
cência desse interesse entre os espanhóis, o renascimento , sobre­
tudo, da atitude teórica, tantp tempo perdida. Por isso pudemos
viver deles, ver a Espanha com seus olhos, e continuamos vi­
vendo de sua herança perpassada de frescor enquanto celebra­
mos os centenários de seus nascimentos : Unamuno, em 64, Ga­
nivet, em 65, Valle-Inclán, em 66 - ladeado por Arniches e
Benaven !e -, Rubén Darío - que certamente era nicaraguense,

89
porém espanhol como qualquer outro -, em 67, don Ramón
Menéndez Pidal, em 69, Gómez Moreno - ainda vivo naquela
época - em 70, Miguel Asín Palacios e Serafín Á lvarez Quin­
tero, neste ano de 7 1 , Baroja no próximo , Azorín no que se
seguirá, e depois Joaquín A lvarez Quintero e Maeztu e os Ma­
chado . . .
Nosso tempo começa com eles e continuou, pelo menos , por
mais três gerações : a de 1 886, a de 1 90 1 , a de 1 9 1 6 . E as
seguintes? Pôde parecer que já estavam em outra coisa; mas
não é seguro. E preciso contar com o fato de que a realidade
nem sempre coincide com os gestos, e com a " vocação de adãos "
que os espanhóis costumam ter. Quase sempre, o gesto de
" romper" com o passado acoberta o não saber começar de ver­
dade . A única maneira de superar o passado não é romper com
ele e sim alçar-se sobre seus ombros. Não há outro modo huma­
no de começar a não ser continuar.
Por isto entramos numa série de centenários que não são
arqueologia e sim, muito pelo contrário, o exame atento, eu di­
ria o tomar posse, de nossas entranhas históricas. E ao fazê-lo
deparamos com a mais soberana lição de liberdade ; e não é
tanto que estes homens da geração de 98 fossem liberais - tal­
vez alguns, por vezes, não o foram -: é que foram livres.

1 97 1

90
A Espanha basca de Unamuno :
Paz en la Guerra

Iniciou-se na Espanha a revisão da geração de 98. A o ca­


sião exterior foi o acaso dos centenários. Começando por Una­
muno, nascido em 1 864, vão se sucedendo - suceder-se-ão nos
próximos anos - as datas que marcam os cem anos justos e
redondos do nascimento dessas grandes figuras cuja significa­
ção parece cada dia mais excepcional e mais fecunda. Essa
comemoração secular marca ao mesmo tempo a proximidade e
a distância. Por um lado, cem anos são muitos anos ; por outro,
os homens de 98 estão tão perto ! Acrescentando-se a isto o fato
de que a longevidade de nosso tempo não torna impossível e
sim provável que alguns membros da geração de 98 assistam,
em pessoa, a comemoração de seus centenários, já muito pró­
ximos - Menéndez Pidal , Gómez Moreno, Azorín -, a dupla
impressão do longínquo e do imediato é ainda mais espantosa.
Ao contemplar esta geração, ao voltar os olhos para cada
um de seus grandes escritores, a grande diferença está entre os
que os conhecemos , os alcançamos , pelo menos nas fronteiras
de suas vidas, e aqueles para os quais são eles simplesmente
" autores " do passado, ainda que seja de um passado próximo.
Para estes efeitos, podemos considerar como " os jovens " aqueles
que não conviveram com Unamuno, aos quais talvez ele deva
ser apresentado. Muitas vezes me pergunto que imagem de Una­
muno terão aqueles que nunca o viram, nem o ouviram, nem
sequer receberam suas notícias quentes, quando emanavam de
sua pessoa agonicamente estremecida sobre a Terra .
Parece às vezes que os jovens têm uma visão de Unamuno
- e de tantas outras coisas - muito diferente da que temos
nós que já não o somos tanto. Há certos homens maduros que
se empenham em estar de acordo com os jovens, e freqüente­
mente para isso sacrificam seu próprio ponto de vista . Acho

91
que é um engano ; primeiro, porque renunciar ao próprio ponto
de vista é renunciar a si mesmo ; segundo, porque o que de
verdade se pode oferecer aos jovens é isso, .um ponto de vista
novo - novo para eles, embora seja antigo -; e terceiro, se
me permitem a sugestão, porque a visão dos jovens de hoje -
por razões óbvias e que podem ser muito bem explicadas , que
qualquer dia tentarei explicar em seus pormenores - é muitas
vezes simplesmente menos visão, uma visão esquematizada e
empobrecida, que é necessário enriquecer o mais possível . I sto
sem levar em conta que, com os jovens , não se deve estar de
acordo e sim em concórdia. E só se deve esperar a convergência
com eles no final , isto é nas coisas, depois de haver partido de
perspectivas bem distintas .
Durante estes últimos anos , pretendeu-se persuadir aos jo­
vens de que os homens da geração de 98 interessavam pouco ,
porque eram " individualistas " , " escapistas " ou " separados da
realidade " . Quase sempre estas impressões se apoiavam em lei­
turas muito parciais e sumárias destes autores. Porque ocorre
que, longe de estarem separados da realidade, estavam profun­
damente preocupados por ela e em suas formas mais concretas ,
inclusive pela econômico-social (que é só uma fração) . Quando
se viu que esse "irrealismo " é um pouco difícil de sustentar,
passou-se à atitude oposta, que consiste em acentuar excessiva­
mente o i nteresse dos homens de 98 - Unamuno, Baroja , Azo­
rín - pelos temas econômicos, políticos e sociais, inclusive sua
vinculação precoce a posições socialistas ou anarquistas ; e digo
excessivamente, porque como ao fim de pouco tempo, antes de
entrarem na maturidade, modificaram essencialmente suas posi­
ções iniciais, quanto mais se as substantive , mais força ganha
seu abandono posterior, e mais ter-se-á que insistir nele como
retificação de trajetória.
Creio que Unamuno pode dizer muitíssimas coisas aos jo­
vens de hoje. Primeiro, sua própria realidade : sua personalida­
de patente e enérgica, sua coragem, sua procura da verdade e
sua decisão em dizê-la; seu exercício impávido da liberdade
(os que nasceram com as asas intumescidas e pregadas já não
sentem nem os limites) ; o espetáculo de Unamuno é, por si
mesmo, liberador - incluindo na lição o risco da desmesura -.
Em segundo lugar, sua resistência à falsificação , à convenção e
aos lemas : Unamuno nunca lê um texto de esguelha para saber
o que deve pensar. Em terceiro lugar, e talvez acima de tudo ,
sua figura é um exemplo vivo de que há questões decisivas que
não se anulam simplesmente porque se fecha os olhos. Unamuno
nunca se submeteu à " inquisição científica " ; hoje , não se teria

92
submetido à " planificação " nem a essa outra forma de " in­
quisição lingüística " que pretende decidir quantas coisas nos de­
vem importar. Unamuno sabia que o homem concreto e com
densidade, o homem de carne e osso que não quer morrer, ne­
cessita saber, para que todo o resto, que também lhe importa,
possa ter sentido . Importante é o que de verdade importa, não
o que se decreta como tal, o " atual " ou o que " se usa " . Una­
muno parece uma janela aberta que nos arranca de espaços
confinados e nos devolve à realidade .

Quando se pensa em Unamuno, quando se repassa a tra­


jetória de sua vida distendida entre duas datas, 1 864- 1 936, pen­
sa-se automaticamente em Bilbao e Salamanca . Por outro lado,
quando hoje se diz " basco " , pensa-se em primeiro lugar em Una­
muno. E Unamuno é uma parte irrenunciável da Espanha, de
sua realidade, elemento da grande significação complexa desse
nome . (Por isso, a hostilidade a Unamuno dos que se chamam
" tradicionais " ou " conservadores " é para mim um mistério.)
E acontece que Unamuno , arquiespanhol , é essencialmente bas­
co. É o melhor símbolo do que poderíamos chamar a dimensão
basca da Espanha.
Nada pode ajudar tanto a entender isto como a perspecti­
va de sua maravilhosa novela Paz en la guerra, que é a pers­
pectiva originária de Unamuno . Como poderíamos defini-la? Eu
diria : o mundo visto de Bilbao. Mas é preciso entender bem :
não " Bilbao " e sim " o mundo " . Bilbao é apenas um ponto de
vista insubstituível sobre a realidade tal como é. A história
toda da Espanha - e com ela da Europa - é vivida desde as
Siete Calles .
A vida quotidiana do chocolateiro Pedro Antonio 1 turrion­
do entretece-se dos estímulos, das crenças e idéias que consti­
tuem a sociedade em que vive ; dizendo melhor, a série de
sociedades em que um europeu está inserido : a região como
sociedade literalmente " insertiva " o > ; a sociedade nacional , nes­
te caso espanhola, plena e saturada ; a sociedade mais tênue " de
implantação " , isto é, Europa. A maneira como Pedro Antonio
é espanhol , é precisamente ser basco ; sua maneira de ser euro­
peu é ser espanhol. Ao centrar-se na vida basca, ao dar uma
versão íntima e veraz da realidade biscainha , faz Unamuno o
equivalente da " interpretação espanhola do mundo " que Ortega

(1) Veja-se La estructura social, em Obras, VI .

93
pediria em 1 908 : a interpretação basca da Espanha. Toda a rea­
lidade espanhola, a luta entre o passado e o futuro, a história
inteira, o sistema de tensões espanholas, aparece nesta novela
a partir da Biscaia, pulsando em uma modesta loja concretíssi­
ma de as Siete Calles de Bilbao .
Sem dúvida, essa interpretação basca da Espanha não é a
única - como a poderia ser? -, porém certamente é verdadei­
ra e irrenunciável . Quando se fala da Espanha, pensa-se em
Castela; as razões sã o óbvias, porque a Espanha fez-se a partir
de Castela, foi projetada por ela, e sua língua castelhana che­
gou a s er o espanhol, a língua comum de todos os espanhóis -
embora não a única para muitos deles, que têm outra igual­
mente própria -. J! interessante, porém, notar que se pensa
quase tanto na Andaluzia , e que quando a Espanha é evocada
acorrem sempre pressurosas imagens andaluzas. Por quê? Por­
que a Andaluzia conseguiu desde muito cedo e sem desconti­
nuidade uma expressão que é uma interpretação de si mesma e
uma projeção para frente e para o futuro. A intensidade e o
êxito do " regionalismo " andaluz - que não é regionalismo -
justificam-se pelo fato de nunca haverem constituído um regio­
nalismo exclusivista, recluso em sua interioridade e voltado pa­
ra o passado , mas sim uma fruição na própria condição e uma
tendência à expansão e irradiação da mesma ; e por isso a Espa­
nha é inexoravelmente andaluz < 2 > .
Insisti na Andaluzia porque é o exemplo máximo de conti­
nuidade , de persistência na mesma atitude durante séculos ; po­
rém a Espanha é uma multiplicidade de dimensões, e nelas -

não em sufocá-las ou esquecê-las - consiste sua realidade e


sua possível grandeza. E quando algum espanhol prescinde de
uma dessas dimensões, não é que desdenhe ou fira uma região,
mas diminui e mutila sua própria realidade e vive só dentro de
um modesto tanto por cento de si mesmo. E será igual quer isto
o corra a partir do centro ou da periferia, quer se prescinda de
uma das dimensões de nossa sociedade total ou se esqueçam
todas menos uma.
Unamuno foi em nosso século uma das grandes vozes espa­
nholas, uma das expressões em que a Espanha tomou posse
de si mesma e se fez presente ao mundo. Entre os gênios que
aparecem - após uma interrupção de um quarto de milênio,
com exceção de Goya - nos últimos setenta anos, se se pro­
curam dois que representem o expoente máximo serão eles,
sem dúvida, Unamuno e Ortega. Por que esta preferência?

(2) Falei sobre Isto longamente em meu livro Nuestra Andalucla (Dfaz·Casarlcso,
Editor, Madrid, 1 966; em EI A lcl6n, 1 972; Obras, V I I I . )

94
Trata-se de uma superioridade de qualidade intrínseca? Atrever­
se-ia alguém a estabelecer um " escalão " em que estes homens
entrassem com Picasso e Falla, Cajal e Zuloaga, Baroja e Azo­
rín, Valle-Inclán e Menéndez Pidal, Machado e Juan Ramón
Jiménez, Ramón Gómez de la Serna e uns tantos mais? Não se
trata disto, naturalmente, e sim de algo muito diferente : a cultu­
ra espanhola atual organizou-se a partir do pensamento filosó­
fico e em forma literária : a grande originalidade da cultura es­
panhola neste século ( J J . E isso o fizeram primeiro Unamuno
e depois Ortega , em duas formas imprescindíveis. Uma das duas
vertentes dessa cadeia central da orografia espiritual da Espa­
nha é basca : a isso chamo a Espanha basca de Unamuno .
Paz en la guerra é o melhor exemplo. Gestou-se durante
dez anos , publicou-se em 1 89 7 , um pouco antes da crise que
acontecerá em 98. Nada mais basco, nada mais bilbaíno, nesse
livro aprendi a amar Bilbao . A vida quotidiana , a substância
da intra-história - do intrinsecamente histórico - expressou­
se neste livro como em nenhum outro. " I sto não é uma novela,
é um povo " , disse Don Miguel refletindo sobre seu velho livro.
E o drama desse povo é o drama espanhol do século XIX - e
do XX - em sua forma extrema : a guerra civil . Entenda-se
bem, a guerra civil espanhola em sua versão basca, em sua
perspectiva biscainha, bilbaína, que culmina no cerco, com a
transformação da vida quotidiana que isso implica.
Aparecem aqui concretamente, " de carne e osso " , as ten­
sões entre liberais e carlistas, entre tradicionalistas e inovado­
res, os que sustentam a tradição do " aqui " e os que afirmam
o progresso que vem do " mais além " (um mais além que pode
ser Madrid ou . . . os Altos Fornos de Bilbao) , entre a cidade e
o casario, entre os que sabem bem só o vasconço e os que não
podem dizer em vasconço o que pensam como bascos em espa­
nhol . � a novela do desacordo, da luta, da guerra . Mas sobre­
tudo é a novela do respeito à realidade, da decisão de deixar
que cada um seja o que é e quem é. Da concórdia que está de
acordo em que não é preciso estar de acordo . Da paz dentro da
guerra, da luta ou milícia em que consiste, queira ou não, a
vida do homem sobre a Terra.

1 964

(3) Vej a-se a Introdução a meu livro AI margen de estos cl4slcos (Afrodlslo
Aguado, Madrid , 1 966.)

95
Don Ramón - Três recordações

Palavras pronunciadas na Real Academia Espanhola,


na sessão de homenagem a Don Ram6n Menéndez
Pidal a 13 de março de 1969, centenário de seu
nascimento.

Encontrei Don Ramón Menéndez Pidal " desde sempre " ;


J ª estava aí, no mundo , irradiando essa substância misteriosa
que se chama prestígio, quando nasci à vida histórica. Desde
então, até quase ontem, o senti dando-nos o que dão os grandes
velhos : companhia transpessoal, companhia histórica, essas raízes
rugosas com as quais se nutre - quando está vivo de verdade
- esse vivente que chamamos um povo .
Via-o passar pelos corredores da Faculdade de Filosofia e
Letras; lia La Espaiia dei Cid, ao mesmo tempo que El Islam
cristianizado, La rebelión de las masas, San Manuel Bueno, már­
tir, El ruedo ibérico, o Romancero gitano, Cántico, a Antología
de Gerardo Diego . Quanta esperança para começar a vida !
Via-o passar, cheio de saberes , sereno, comedido, o colarinho
alvo, na barba um pouco de cinza. Aquele estudante de filo­
sofia que era eu sentia a tentação de repetir o verso de Guillén :
" el mundo está bien hecho " , o mundo está bem feito ; ou melhor
ainda, o mundo está sendo bem feito.
Voltei a vê-lo em 1 940 . Já não era diretor desta Academia.
A Espanha havia ardido durante três anos e se alguém pusesse
a mão no rescaldo, mal coberto de cinzas , ainda se queimava.
Aquele mundo volatizara-se e parecia condenado a nunca mais
voltar. A mente espanhola alienara-se, sentindo - ou simulan­
do - uma paixão das que obscurecem o conhecimento . Diziam­
se e escreviam-se muitas coisas que depois se quizeram esquecer.

97
Era na Biblioteca Nacional. Don Ramón falava do Cid, sua
devoção perene; havia-lhe sido fiel, porque a condição de Don
Ramón foi - o vimos durante um século inteiro - a fideli­
dade : Ali renasceu a vida intelectual espanhola. Don Ramón,
sereno, claro, pausado, insubornável, falava de história. Como
se nada houvesse acontecido; isto é, como se estivesse decidido
a que tornasse a passar pela " espaciosa y triste Espafia " esse
vento que chamamos espírito. Aquela conferência de Menéndez
Pidal significou para mim a esperança de que a verdade reco­
brara seus foros e iniciava penosamente a reconquista da alma
de nosso povo. Desde então senti a prodigiosa e matinal longe­
vidade de Don Ramón, a quem comecei a poder chamar meu
amigo, como um prêmio providencial e imerecido, que me en­
chia de gratidão ano após ano .
Quero recordar um terceiro momento de Don Ramón . Pas­
saram-se quase vinte e cinco anos; ele j á é bem velho ; cada
dia nos sentimos maravilhados pela lucidez de sua mente, seu
respeito à realidade, seus projetos, a realidade de seus " frutos
tardios " , mais saborosos e esmerados dia a dia, que vai colhen­
do ante nossos olhos assombrados . Don Ramón está sempre se­
reno, seguro de si, mas comovido . Quando alguém se faz um
pouco próximo à sua intimidade sempre recatada, se entrevêem
seus límpidos fervores. Descobriu a beleza literária que encon­
tra lugar em sua prosa, e pela primeira vez a deixa fluir, con­
fiante e deleitado. Quando lhe digo que aos oitenta anos co­
meçou a escrever realmente bem, me confessa timidamente :
" Antes não me atrevia. "
Uma tarde, e m sua casa d a Cuesta dei Zarzal, entre seus
livros incontáveis , quis falar comigo, muito de perto, de reli­
gião. Sentamo-nos juntos, de costas para a luz que feria sua
vista fatigada por tantas letras, e falamos durante três horas
inteiras . Sobretudo escutou, com infinita atenção, com máxi­
ma seriedade, com inquieta esperança. Nunca entendi m elhor
o grito angustiado do pai do menino enfermo, que relata São
Marcos : " Creio ! Ajuda . minha incredulidade . " Pouco a pouco,
Don Ramón pôs-se a perguntar, escutando, explorando, duvi­
dando ; buscava, como sempre, a verdade que nos fará livres .
Quando dele me despedi senti que aquelas horas de íntima
conversa eram o resumo da transparência de uma vida quase
centenária.
E em seus últimos anos, quando j á ferido pelo sofrimento
físico, quando a velhice, tanto tempo contida , sobre ele caíra
·
subitamente, lembrava com freqüência aquelas nossas palavras,

98
algumas coisas que "lhe dissera naquele dia. Nunca falava dà
morte, mas muitas vezes da ressurreição. Perguntava-me pela ou­
tra vida, da qual lhe havia sugerido uma imagem capaz de
alimentar seu coração, com uma inocência, com uma confiança
que me comoviam. Sentia a tentação de dizer-lhe que nunca
havia estado lá, que não estava de volta dela como se pode
voltar da América. E um dia me perguntou timidamente : " Você
crê, Marías, que poderei ver os j ograis? " Eu lhe garanti que
essa era, pelo menos, minha esperança. E penso agora que já
o terá feito, que já terá cumprido seu desejo; e que um dia
poderemos comentar juntos a infinita pobreza daquela imagem
da vida perdurável que lhe pude oferecer numa tarde ensola­
rada de próxima amizade, junto a suas oliveiras , entre seus
velhos livros de Chamartín de la Rosa.

1 969

99
Cem anos de Pio Baroja

Estamos celebrando o centenário do nascimento de Pío


Baroja, mais um dos centenários da geração de 98. A longevi­
dade de muitos destes homens fez com que sua morte esteja tão
próxima, que nos falta a distância necessária para a comemo­
ração.
Mas . não é só a proximidade temporal o que nos surpreen­
de, o que nos separa da atitude habitual do " centenário " ; é ,
sobretudo, a vivacidade, a vitalidade da obra destes grandes
criadores de nossas letras. Nosso tempo começou precisamente
com a geração de 98; seus escritores não pertencem ao passa­
do, são o começo do presente. Quando os lemos encontramos
nossos temas, nossos problemas, nossa sensibilidade, em uma
fase certamente primeiriça, à qual se acrescentaram uns tantos
passos mais , algumas variações de posição. Mas por outro lado,
o haver-se iniciado nossa época com os autores de 98 faz que
neles transpareça um frescor, uma imediatez, uma verdade -

no sentido originário do descobrimento -, mais intensos que


em seus continuadores. Eu diria que na geração de 98 encon­
tramos nossa juventude histórica, assistimos à origem do que
somos, tomamos posse do que. constitui nossa própria realidade .
E como, ao mesmo tempo, nos reconhecemos como diferentes
e medimos a distância que nos separa destes homens , sua pre­
sença nos lembra a necessidade de continuar, a impossibilidade
de toda a repetição, que é a ameaça que paira sobre os que
esquecem.
No caso de Baroja, morto há apenas dezesseis anos, a quem
tantos de nós vimos, conhecemos , nos relacionamos, acrescenta­
se uma potência a mais de proximida d e e presença : don Pío Ba­
roja não conheceu o afastamento, o esquecimento transitório
que às vezes afeta os escritores velhos ou mortos recentemente .
Sua fama não teve eclipse. Pelo contrário : nos anos de sua ve-

101
lhice tornou-se um escritor maioritário ; sua obra amplíssima foi
lida pelos novos e relida pelos mais velhos. A novela espa­
nhola posterior à guerra civil recolheu sua herança : quase sem
exceções , os novelistas espanhóis dos últimos trinta anos foram
seus discípulos, e além disso o quiseram ser, reconheceram-no
como mestre - na vida intelectual, ao contrário da vida civil,
é o filho quem reconhece o pai.
Esta vivacidade perene de Baroja, esta continuidade de sua
influência, esse haver resistido às mudanças das modas, dos gos­
tos, das vigências políticas e sociais, parece a mim responder a
alguns traços profundos seus, como escritor e como pessoa. Sig­
nifica, creio, um mínimo de " obra morta " , uma grande inde­
pendência dos motivos ocasionais da fama, uma estranha auten­
ticidade.
Quando Don Pío morreu, em 1 956 , escrevi umas palavras
que quero recordar, porque aliavam minha impressão pessoal
de sua figura humana e de sua morte, a umas tantas frases iso­
ladas e despretensiosas nas quais, sem uma deliberação apa­
rente, procura examinar-se a si mesmo :
" Lembro-me de Baroja, miúdo, velhinho, friorento, boina
e manta sobre os joelhos, mordaz e zombeteiro, rabujento e
ingênuo, entre os livros e os quadros de sua casa espaçosa e
antiga; agora lembro dele morto, sereno e branco, recolhido em
si mesmo, de novo criança nos braços da morte. Um punhado
de terra seria o bastante para cobrir com ternura este terno e
arisco pardal, o menos cursi dos pássaros.
·

" 'Nada de pássaro predador ou de ave de rapina - escre­


veu uma vez Don Pío -. Tinha, sem dúvida, e tive sempre,
um sentimento de pássaro que não quer sujar as asas, que me
pôs a salvo.' E de outra vez, j á há muito tempo, por boca de
uma das personagens mais suas : ' Para mim, o triste é a escravi­
dão, a cidade . . . A águia que voa só, não . . . isso é alegre. -
E quando fores velho e estiveres doente? - Psch l Nos resigna­
remos. - E quando tiveres que morrer? - Pois morreremos
num canto o mais decentemente que pudermos.'
" Don Pío voou só, sem escravidão voluntária, não como
uma águia e sim com vôos curtos de pássaro urbano e às ve­
zes campesino, às vezes com pequenos saltos a rés do chão ;
estremecendo o ar com gorgeios elementares, profundos, de pás­
saro das ruas, impo.ssíveis num cenário ou numa gaiola; enve­
lheceu, fez-se pergaminho, adoeceu, perdeu a noção das coisas,
elas se foram baralhando e confundindo, resignou-se a tudo,
inclusive à glória, que via chegar fora de tempo, olhando-a com

1 02
olhinhos irônicos; e morreu decentemente, como havia vivido,
levando consigo, sem grandes gestos, como quem não está que­
rendo, outro enorme pedaço dessa realidade espanhola de que
estamos feitos. "

Podemos imaginar Don Pío Baroja, u m pouco irônico, tal­


vez curioso, e pode ser que no fundo comovido, vendo a Real
Academia Espanhola comemorar o centenário de seu nascimen­
to. Seu olhar áspero e desenganado fixava-se sobre a realidade
e tratava de vê-la sem ornamentos nem acréscimos. Não nos per­
doaria - eu creio - demasiados ornamentos, não toleraria
que nos permitíssemos idealizar sua figura. Em nome de quê?
- se perguntaria -. Haverá algo superior à realidade, algo em
cujo nome seja lícito alterá-la? A esta paixão , que dominou toda
a vida de Baroja, costumava ele chamar, com pala:vra não muito
própria, porque não era homem de teoria, " exatidão " . Não per­
cebia que a exatidão é apenas uma forma particular de rigor,
aquela que corresponde às realidades exatas, isto é , às que não
são reais e sim ideais, por exemplo aos objetos matemáticos,
de modo algum à vida humana, que nunca é idêntica a si mes­
ma e sempre se está fazendo.
Na prática, sem dúvida, Baroja apartava-se acertadamente
da exatidão, acrescentava reservas, restrições , condições, para
permanecer o mais perto possível da realidade. Como quando
proclamava : " Sim; sou um fauno reumático que leu um pouco
Kant. " Esse amor incondicional à realidade o levou a escrever
enormemente e a incluir em seus livros tudo : o que via, o que.
lia, o que acontecia à sua volta, o que lhe ocorria, o que opi­
nava . Tenho a impressão que lhe fazia sofrer sacrificar qualquer
coisa. Por isso sua obra não possui a ascética seleção que per­
mite gerar as obras-primas ; nenhum de seus livros o é; a genia­
lidade está mais em seu conjunto , a essa integração de realidade
que em seus cem volumes, e quase malgrado ele próprio, se
realiza.
Que não nos engane o fato de que as opiniões de Baroja
fossem quase sempre desfavoráveis; por um lado, todo o real é
imperfeito e limitado ; não é estranho que cada coisa mostre,
se bem a olhamos, seus vazios, suas falhas , suas deficiências,
suas quedas . Mas eu creio que a razão última do negativismo
de Baroja, de seu uso constante da repulsa, da injúria e do im­
propério, é outra mais profunda : compara · constantemente a
realidade com sua pretensão, e sua irritação versa, não sobre

1 03
a primeira e sim sobre a segunda ; dizendo melhor, sobre o de­
sacordo entre uma e outra. Por isso é implacável com a pompa,
a presunção, a retórica - até com a lírica -. Quando elogia o
acordeão e o compara à guitarra " pretensiosa '' , o que lhe in­
teressa é que o acordeão quase nada pretende e a guitarra sim.
A guitarra? - poderia alguém perguntar -. Bem, eu sei o que
digo - teria respondido provavelmente Don Pío, e não estaria
de todo sem a razão -. Lembro-me a irritação que lhe causava
La guerra carlista de Valle-Inclán ; não podia compreender que
a mim agradasse . Apontava-me, como abominação da desolação,
que Valle-lnclán fala de açudes - em Guipúzcoa ! - e diz
que as mulheres cobrem suas cabeças com as saias quando
chove. Estes dois detalhes - que eu, é claro, não lembrava,
que para mim eram " irrelevantes " - bastavam-lhe para desqua­
lificar os três esplêndidos volumes de Valle-Inclán. Mas o que
não podia tolerar era a manipulação magnificadora, exaltadora ,
a que Don Ramón submetia a realidade geográfica e histórica;
nem sequer a estilização desrealizadora em que sua arte consis­
tia. A estética de Valle-Inclán criava justamente urna preten­
são ao lado da realidade, dizendo melhor, dentro dela, com o
que conseguia certos efeitos de escárnio incomparavelmente mais
terríveis e destrutivos que toda a aspereza mal-humorada, tão
benévola no fundo, de Don Pío. E quando, no fim de sua vida,
superado o espantalho, em seus últimos livros geniais Tirano
Banderas e os três tornos de El ruedo ibérico, sabia conservar
a pretensão no seio da realidade maltratada e decaída, conse­
guia os mais maravilhosos efeitos de beleza, sarcasmo e me­
lancolia.
A visão de Baroja era negativa, desenganada, o que se cos­
tuma chamar " pessimista " . " Em geral , eu vejo a vida corno
urna coisa escura, turva e sem atrativos . " Mas logo esclarece me­
lhor, quando escreve : " Eu acreditava, naquela época , que a vida
era urna esterqueira disfarçada com algumas florzinhas retóricas
do mais puro papel de embrulho. " Onde se vê que o que o
irrita não é a esterqueira e sim o disfarce : as florzinhas retóri­
cas, às quais procura desinflar sem demora constatando que
são feitas de papel de embrulho . A esterqueira mesma , sem
dissimulação nem disfarce, lhe pareceria uma coisa interessante
e, por certo, respeitável. Não é a realidade que o desilude e
sim a falsa pretensão. E então Baroja se encolhe, executa uma
retração defensi:va, para ver a realidade postado atrás de urna
barreira . No fun d o, sua atitude não é tão diferente da que se
conta do Marquês de Lombay, Duque de Gandía, que acabaria
sendo São Francisco de Borja, ante o cadáver da imperatriz
Isabel . E não seria excessivo interpretar deste ponto de vista,

1 04
não só a obra literária como . a biografia de Baroja, sempre re­
traída, esquiva , dominada pelo temor ao desacordo com o que
verdadeiramente é, à insinceridade, ao gesto, ao que chamava,
com uma palavra definitiva, farsa.
Mas a visão desenganada não é forçosamente a visão de­
siludida. Creio que Baroja escondeu pudica, ironicamente suas
ilusões, porém nunca as perdeu. Esperava sempre, concedia sem­
pre um crédito à realidade, tanto maior quanto menor fosse a
promessa. Com o ínfimo, o mísero , o lamentável, sentia-se se­
guro. I sso que parece não ser nada, isso não pode falhar. I sso
é estupendo, teria dito Baroja, se não lhe houvesse parecido
uma forma de idealização.

Baroja foi o menos inovador dos escritores de 98, o mais


próximo à tradição galdosiana, por isso mesmo o que menos
se expôs aos riscos do que inicia uma nova maneira de novelar.
As novelas de Baroja não estavam dominadas pelo afã de origi­
nalidade que foi deletério na literatura e na arte de nosso século.
Não digo que não fossem originais e sim que não pretendiam
excessivamente o serem, e de certo modo isto as salvava. Esta
é uma das razões de sua perduração sem declínio. As interpre­
tações sumamente pessoais trazem consigo uma perspectiva úni­
ca e irredutível ; na medida em que a perspectiva vigente numa
sociedade dela se desloca e antes que haja sido incorporada his­
toricamente como ingrediente de uma perspectiva posterior mais
englobante, a sensibilidade dominante dela se separa, não a en­
tende, e isto explica fenômenos transitórios de desatenção e
desinteresse por que passam, depois de sua plenitude ou de sua
morte, a maior parte dos grandes criadores . Quando a inter­
pretação não é muito pessoal - ou pelo menos não se apre­
senta como tal -, quando a perspectiva do autor, longe de
a.firmar-se como tal, pretende ser " qualquer uma " , o possível
antagonismo se desvanece, os leitores " entram " facilmente e com
docilidade na obra proposta. A novela pessoal (ou existencial)
de Unamuno é algo tão desusado , que seu próprio autor tem
que a qualificar de " nivola " ; Valle-I nclán inventa o nome de
" esperpento " , " espantalho " , para um de seus gêneros literários,
e quando o transcende, é para tentar uma inovação ainda. maior
e mais sutil . No caso de Baroja, começa ele desde sua juventude
a escrever novelas e contos, e o continuará fazendo até a velhice,
sem perceber de que nada daquilo que faz não seria, em prin-

1 05
cípio, irredutível ao que se estava fazendo no século XIX, ao
que realizava com máxima maestria Galdós .
Isto explica que Don Juan Valera, bom provador mas com
pressupostos tão diferentes, nada menos que três gerações ante­
rior a Baroja, o entendesse tão bem e o acolhesse com tanta
simpatia. " Seu Silvestre Paradox - escreve Valera - , embora
tão mergulhado no charco impuro da realidade e quase nele se
afogando, nos é muito s impático por seu estoicismo jovial, sua
bonomia e pelo bom humor que nunca o abandona em meio à
su a inópia incorrigível, aflições e apuros . " Reação semelhante
tiveram algumas gerações posteriores diante da obra barojiana.
Essa presença da· realidade, quase não elaborada ou, dizen­
do melhor, quase sem mostrar indício de elaboração, explica
também que Baroja partilhe com Galdós essa mesma coisa de
haver captado e marcado duas zonas, dois níveis históricos e
sociais de Madrid . Diante de porções da realidade madrilenha
- que ainda perduram -, nos surpreendemos dizendo : " Isto
é Galdós. " Diante de outras , de origem um tanto mais recente,
de diferente localização urbana, de nível social inferior, dize­
mos : " Isto é Baroja. " Com nenhum outro escritor isto acontece
em grau comparável ; para certificar-se, compare-se esta impres­
são com a que suscita o Madrid de Ramón Gómez de la Serna,
definido precisamente por sua interpretação pessoal , por uma
deformação genial que faz com ele uma realidade que antes
não havia existido. Longe de refletir ou apreender Madrid,
Ramón o inventa, e não encontramos " seu Madrid" a não ser
quando nos tornamos conscientes de o estarmos vendo com
seus olhos - o que esquecemos quando se trata de Baroja ou
Galdós.

Há porém uma diferença que separa Baroja de Galdós e


que no final, inesperadamente, acaba por uni-lo a ele. Galdós,
como novelista, não costuma opinar. Baroja não cessa de apre­
sentar opiniões sobre tudo, e muito principalmente sobre suas
p ersonagens, e estas, incansavelmente, opinam umas sobre as ou­
tras . Baroj a está cheio de " idéias " , relata-nos suas leituras e o
que pensa delas, narra a história do século passado, das lutas
p olíticas, das guerras civis e das incivis, e satura sua narração
d � as sobre tudo isso e, incidentalmente, sobre tudo o mais.
Há liviOs;-e- -mesmo novelas como El cura de Monleón, inteira­
mente " i deolÓ� " . Isto explica a violenta hostilidade que
Baroja p rovocou em certos setores da sociedade espanhola, que

1 06
o aborreceram sem misericórdia. I sto explica também o entu­
siasmo que hoje suscita em outros setores da mesma sociedade.
Receio que haja nisso um engano, que a repulsa e a ade­
são estejam, ambas, " mal empregadas " e não sejam inteiramente
oportunas . Quero dizer que as " idéias " de Baroja não são pro­
priamente idéias. Que são então? Sem dúvida têm a mesma for­
ma que as idéias, parecem idéias , têm a estrutura da tese ou
enunciado, afirmam algo sobre alguma realidade - ou, mais
freqüentemente, a negam -. Mas se repararmos bem, veremos
que sua função é outra. Não tratam de compreender ou apreen­
der a realidade , de descobri-la e agarrá-la, subjugá-la , capturá­
la. Não são responsáveis, isto é, não são respostas à realidade
e diante dela. São mais jaculatórias, expletivos, desafogos, sus­
piros, in terjeições. Se recorrermos ao esquema lingüístico do
tão genial quanto esquecido Karl Bühler, diremos que sua fun­
ção própria não é a Darstellung, a " representação " , ou " signifi­
ficação '' , e sim o A usdruck ou "expressão " , secundariamente o
Appell, o violento, urgente " apelo" a seus leitores.
I rritar-se com Baroja por suas " idéias " tem tão pouco sen­
tido quanto apoiar-se nelas . O admirável , o prodigioso de Ba­
roja é a narração que flui por baixo, o desfile pitoresco e en­
tranhável de tipos humanos que labutam, se agitam , sofrem ,
riem, vivem e morrem em milhares de páginas cheias de since­
ridade, animação e graça, de agudez, invenção e humor. 1! isto
o que perdura e , se não me engano, perdurará por séculos.
Mas então - poder-se-á dizer - as idéias de Baroja são
postergáveis? São supérfluas ? Poderiam ser eliminadas de seus
livros? Chegamos com isto ao mais delicado, ao mais interes­
sante da questão.
Se as idéias barojianas, que tanto espaço ocupam em seus
livros, fossem um lastro embaraçoso, isto seria uma objeção
gravíssima à sua obra e comprometeria sua vitalidade. Se fos­
sem " demais " , seria ele um escritor extremamente imperfeito.
O que afirmei foi que elas não são propriamente idéias, que
não podem ser tomadas como tal, mas não disse com isso que
não são interessantes.
Há alguns anos chamei a atenção para o fato de que a
·
pouca " qualidade de página " de Galdós - principal motivo da
geração de 98, apesar de admirá-lo , haver-se afastado dele -
se devia a que Galdós não escrevia a partir de si mesmo e
sim a partir do que se diz. Não escrevia só com palavras da
língua, com esses vocábulos que estão - ou estarão - em
nosso Dicionário, mas sim com frases feitas, com as formas

1 07
verbais usadas pela sociedade de seu tempo, com " tópicos " no
sentido literal do termo. Seu dizer, em vez de seu, era " o que
se diz " . E como, sobretudo na Espanha, " o que se diz " é o
mais importante, ao ponto de que acontece o que se diz e não
se diz o que acontece, as novelas de Galdós conservaram, com
força terrível e única, a substância histórica da Espanha da
Restauração.
Pois bem, Baroja, o mais galdosiano da geração de 98 , nisto
como em tudo, o mais " cumulativo " e menos " polêmico" de
todos - as aparências enganam -, parte de outras unidades
sociais, tópicas, que não são meras frases, dizeres, e sim opiniões,
" idéias " de todo gênero, freqüentemente absurdas, que consti­
tuíram em boa porção a substância das vidas espanholas duran­
te cinqüenta anos . E na obra de Baroj a, no opinar incontinente
das personagens sobre si mesmas, do autor sobre elas, do autor
também sobre seus antepassados, sobre seus contemporâneos e
sobre si mesmo , salvou-se , em forma não teórica mas ativa,
dramática, executiva, uma enorme parte da realidade espanhola
do século XX.
Mas se essas idéias não são verdadeiras - sobretudo, não
são verdadeiras idéias -, se são em sua maioria tópicas, adven­
tiças, irresponsáveis, se não se as pode levar a sério - para
mal ou para bem -, o que acontece com o afã b arojiano de
realidade, sinceridade, autenticidade? Onde está o autêntico?
Aí está o núcleo que eu me atreveria a chamar genial da
obra de Baroja, sua contribuição única à literatura . As perso­
nagens de Baroja costumam ser disparatadas, absurdas, incon­
sistentes ; são incoerentes, caprichosas , arbitrárias; dizem coisas
insustentáveis, freqüentemente falsas, em muitas ocasiões sem
sentido ; suas mentes povoam-se de " idéias " ou pseudo-idéias
que ruborizariam qualquer mediana responsabilidade intelectual .
Onde está o autêntico, que parece escapar irremissivelmente?
Nessa mesma vida que vai fluindo, na realidade de cada uma
das personagens, com sua conduta desordenada, torpe ou imo­
ral, com seus erros incontáveis, com suas convicções infundadas ,
com suas i déias recebidas e minimamente racionais, com suas
fainas, suas manias , com seus vícios . Por baixo de tudo isso,
sustentando-o , como a última realidade, está a vida pessoal de
cada uma delas , radicalmente verdadeira, realidade efetiva e in­
transferível, com seu peso e sua carga, sua indigência, seu
drama, sua vocação de alegria, sua necessidade de uma felici­
dade impossível.

1 08
Sem nada suplantar, sem enaltecer, sem embelezar, sem
idealizar, com seu fardo irrisório de desorientação, falsidade e
absurdo, Baroja vai apresentando, cheio de piedade, com íntima,
esquiva simpatia, essas vidas lamentáveis, desfibradas, grotescas,
com as quais entretece a sua como a de uma personagem a mais,
como a de um irmão.

Real Academia Espanhola.


Madrid, 1 2 de novembro de 1 972

1 09
Azorín 1 967

Os olhos de Azorín, que tanto souberam olhar, que tanto


souberam ver, estão agora fechados. Cheios de realidade, de
paisagens, de ruas, de lojas de pequenos ofícios, de conventos,
hospedarias , álamos junto ao rio, gente atarefada , velhos trens,
velhos livros. Letras, incontáveis letras miúdas que até ontem
liam nus, sem óculos, velados somente pela melancolia; essas
letras que tão bem soube trazer junto a nós, e que agora leva­
mos junto ao coração. Findou o tempo de Azorín, esse tempo
tão longo - hoje tão curto -, que consumiu em pensar sobre
ele, em assistir interessadamente seu curso, procurando conver­
tê-lo, com a magia da palavra, em remanso.
Virou-se a última página de seu livro , e agora temos que
fazê-lo voltar ao começo, com um esforço doloroso, para o re­
lermos , para o revivermos. � triste falar de Azorín no passado,
como se fosse uma de suas personagens, daquelas que criou ou
das que ressuscitou salvando-as da erudição e do esquecimento.
Foi-se mais um de nossos grandes velhos entranháveis, des­
sa prodigiosa e incrível geração de 98, que nos salvou do ana­
cronismo, de sermos estrangeiros em nosso tempo, do confor­
mismo e do desprezo de nossa própria realidade, que resgatou
pondo nisso toda sua alma, o amor lúcido ao espanhol, a opres­
siva ternura, "o dolorido sentir " ; que nos permitiu ser nós mes­
mos e ver, como antes nunca se havia visto, a terra espanhola
e tudo o que nela aconteceu; que nos deixou em liberdade para
viver numa Espanha nossa, para olhar de frente um futuro que
não fosse o passado refletido em um espelho .
" Viver é ver voltar " , disse várias vezes. E morrer? Creio
que Azorín terá agora junto, ante seus olhos abertos novamen­
te, tudo o que foi olhando com amor durante quase um século,
o que interpretou com clarividência e transmutou em beleza

111
imarcescível, em incorruptível língua espanhola. Depois de Azo­
rín - disse isso no dia em que cumpriu noventa anos -,
nunca mais poderemos estar sós na Espanha .
Sinto agora a necessidade de estender a mão a Azorín, �m
despedida, e agradecer-lhe . E agradecer a Deus por ele.

1 12
Azorín e as gerações

Agora , a 8 de junho de 1 973', cumpre-se o centenário do


nascimento de Azorín. Nós o temos tão perto, morreu há tão
pouco tempo, apenas seis anos, que se torna difícil prescindir
da continu i dade da memória. Conheci Azorín quando ele já
era velho - envelheceu cedo, antes do tempo, o que conside·
rava bom para viver muito -, e assim mesmo tive tempo de
ser seu amigo durante vinte e cinco anos . Já o havia sido de
outra forma, como leitor, desde que tive uso da razão .
A paixão judicial domina de tal modo nossos contempo­
râneos, que invade tudo - talvez por não se poder exercer
naqueles redutos onde seria oportuna, e assim se extravasa -.
Tenho a impressão de que o centenário de Azorín será princi­
palmente uma série de juízos sumários - ou sumaríssimos -
sobre nosso escritor, nos quais, sem nunca o haver lido - isto
se nota quase sempre -, pronuncia-se um julgamento . Será in­
teressante , uma vez terminado este ano, percorrer esses juízos ,
e sobretudo ver em nome de que princípios, com que código se
está julgando Azorín , e como se o dá por válido e vigente , sem
que ninguém se esforce por provar sua legitimidade. Em todo
caso, não é isto o que me interessa pessoalmente. Já há muitos
anos Ortega escreveu : "A ser juiz das coisas prefiro ser seu
amante . " Compartilho sua preferência. Talvez valesse mais a
pena, neste ano de 1 9 7 3 , reler (ou ler) Azorín, vê-lo, tratar de
entender o que escreveu , tentar abarcar sua figura muito rica e
complexa, em vez de querer fazê-la entrar num esquema estreito
do qual transborde por todos os lados .
Quero examinar hoje um ponto interessante e, segundo
creio, pouco advertido na obra de Azorín . Algum dia deter-me-ei
no estudo da singular forma de " pensamento " de Azorín - tão
pouco conceptual , tão pouco ideológico -: seu pensamento
" l iterário " (a literatura é uma forma de pensamento ; ela como
tal, não o que se chama " literatura de idéias ") ; e a variedade

113
particular desse pensamento literário de Azorín é visual. Azorín,
que não era excepcionalmente " inteligente " no sentido usual
da palavra, o era de maneira surpreendente quando escrevia -
no sentido pleno do escrever -; quero dizer quando dizia o
que via e o dizia de acordo com as exigências da literatura ;
esta o levava pela mão, obrigava-o a dizer precisamente o que
devia ser dito (e esta não é uma fórmula má da inteligência) .
Quero agora ater-me ao que Azorín viu e disse - muito
cedo, incrivelmente cedo dentro da cronologia do tema - so­
bre a realidade das gerações . Todo o mundo sabe que Azorín
foi o principal inventor - isto é, o descobridor - e o batista
da geração de 98; o que disse dela é menos sabido, e algum
dia deverá ser precisado . Mas, essa descoberta lhe foi oportuni­
dade para ver algumas coisas interessantes acerca do que pos­
sam ser gerações e quais as espanholas daquele tempo .

Já em 1 9 1 0 , num artigo intitulado " Dos generaciones " , Azo­


rín apresentou inequivocamente o perfil da sua . Com outro no­
me, isto é , com outra data : " Lá por 1 896 - começa - acor­
reram das províncias a Madrid alguns jovens com ambições li­
terárias e aqui se reuniram a outros que começavam a escrever.
Todos formaram um grupo que logo começou a destacar-se em
jornais e revistas de pequena circulação . " E acrescenta a seguir :
" Permanece sempre, sobressai e perdura, a respeito daquela ge­
ração, como seu traço distintivo , o desinteresse, a idealidade, a
ambição e a luta por algo que não é material e baixo, por algo
elevado, por algo que em arte ou em política representa uma
objetividade, desejo de mudança, de melhoria, de aperfeiçoa­
mento, de altruísmo. "
Azorín não está muito seguro d a data ; note-se que diz " lá
por 1 896 " , descartando a exatidão . Em 1 9 1 2, no artigo " Ge­
neraciones de escritores " , dá a data de 1 89 7 . Em fevereiro de
1 9 1 3 já aparecerá a data e denominação definitiva : geração de
1 898. Não é estranha esta indecisão . Os escritores de 98, em
sua maioria, começam a escrever antes desta data (o próprio
Azorín, desde 1 893) ; a obra inteira de Ganivet é anterior, j á
que morre nesse ano ; Unamuno havia publicado e m 1 895 En
torno ai casticismo, e em 1 897 Paz en la guerra, dois livros
absolutamente representativos ; outros , como Machado, começam
depois. A rigor, a entrada da geração na história só se dá um
pouco mais tarde, eu diria cerca de 1 90 1 . Mas era inevitável
- e acertado - que a geração de que falamos recebesse seu

1 14
nome do grande sucesso que serviu de revelador do que signi­
ficava como atitude e nível histórico.
O que aqui me interessa, no entanto, é outra coisa : a
consciência que tem Azorín da sucessão das gerações . Em 1 9 1 0 ,
data incrivelmente prematura - a geração d e 9 8 está ainda
começando, não alcançou vigência, ainda não está " no poder "
-, Azorín escreve :
" À geração literária que se iniciou em 1 896 seguiu-se outra .
Uma nova legião de jovens começou a publicar livros e artigos .
Em 1 896, publicar um livro representava um acúmulo de difi­
culdades quase invencível, penoso ; chegar a ver impresso um
artigo num grande jornal era todo um triunfo . Hoje, qualquer
jovem que sinta ambições literárias pode logo publicar, com toda
classe de facilidades, um volume inteiro ; os grandes jornais es­
tão abertos a todos . "
Estas facilidades eram reais, não só a miragem d e quem ,
tendo superado as primeiras dificuldades prévias , tudo amplia
através da lembrança . Os primeiro s livros dos autores da ge­
ração que segue à de 98 se publicam muito pouco depois dos pu­
blicados por esta : Juan Ramón Jiménez publica seus primeiros
livros- Almas de violeta, Ninfeas - em 1 900, aos dezenove
anos ; e desde então, ininterruptamente ; Pérez de Ayala edita
La paz dei sendero em 1 903 ; Eugenia d 'Ors começa seu Glo­
sario em 1 906; em 1 9 1 0 Ayala publica A . M . D . G . , Miró, Las
cerezas dei cementerio, e Marquina estréia com En Flandes se
ha puesto el sol. As duas gerações se aproximam cronologica­
mente ; isto e o fato fundamental de que a segunda foi " cumu­
lativa " em relação à de 98 (por continuar sendo "polêmica "
ante às da Restauração , ainda no poder) , expl ica que se as con­
funda tantas vezes e que haja incorporado à de 98 um ou outro
nome da seguinte.
Azorín as distingue muito bem - salvo um pormenor -.
Continuando o parágrafo anterior escreve : " Existe uma nova
geração de escritores jovens ; existirá outra dentro de quinze
anos . "
Está nisto o que é decisivo : Azorín não denomina " gera­
ção " a um grupo de escritores (ele e seus amigos) , e sim a
uma equipe, um nível histórico ; à sua geração seguir-se-á outra ,
e depois outra " dentro de quinze anos " ; o intervalo que Ortega
iria descobrir, por razões historiológicas e sociais, está indicado
por Azorín na data de 1 9 1 0 , através da simples inspeção dos
fenômenos, diríamos por razões visuais .

115
Mas esta nova geração entristece profundamente a Azorín :
·• A nova geração de escritores espanhóis entregou-se completa e
desenfreadamente ao mais baixo e violento erotismo ; não passa
uma semana sem que apareça nas livrarias uma nova novela
pornográfica ; estes livros recebem os títulos mais provocativos
e chamativos ; se os anuncia em grandes cartazes pelas esqui­
nas ; descrevem-se neles as mais torpes aberrações humanas . . .
Ter-se-á apagado de um só golpe todo o avanço realizado pela
literatura pátria com a geração de 98, e teremos voltado brusca
e impensadamente a considerar López Bago nosso ideal em arte? "

Como se pode ver, muitos fenômenos que parecem su­


peratuais datam de 1 9 1 0 : um caso a mais de " arcaísmo " dos
muitos que caracterizam estes últimos anos . Mas Azorín logo
encontra uma explicação : " Os esforços de renovação estética da
geração anterior não foram perdidos . " O que ocorre é haverem
prossegu ido na lírica . Os poetas - Antonio Machado, Villaes­
pesa , Etuique de Mesa, Díez-Canedo , Bugallal , García Morales
- "e não os prosistas , são os verdadeiros continuadores e her­
deiros daquela tradição literária " . (A inclusão de Antonio Ma­
chado nesta geração se explica por só haver publicado Soledades
em 1 903 , e Soledades, galerías y otros poemas em 1 907 , isto é,
por aparecer formando " constelação " com os da geração se­
guinte.)
Mas o que realmente acontece é que os prosistas da gera­
ção jovem (os nascidos em torno a 1 886) ainda não haviam che­
gado; Azorín pressentia uma geração que não entrara ainda em
cena ; os poetas, sempre precoces, eram sua vanguarda. Temos a
prova disso no que diz Azorín, apenas dois anos depois , em
1912:
" Outra geração se inicia e m 1 9 1 0 . Não necessitamos citar
nenhum nome destes jovens escritores . Este grupo literário re­
presenta um passo à frente ao de 1 898. Se no de 1 898 há um
espírito de renovação e de independência - um espírito icono­
clasta e criador ao mesmo tempo -, no de 1 9 1 0 este espírito
se plasma e se encerra em métodos mais científicos, em normas
mais estudadas , reflexivas e modernas . O que antes era liber­
dade bravia , agora é liberdade sistemática e científica . Estes jo­
vens de agora estudaram mais ; di sciplinaram seu espírito ; estu­
daram no estrangeiro ; praticaram mais idiomas e literaturas ;
em sum a , formularam para si mesmos o problema da Espanha
em termos mais precisos, claros, lógicos e ideais . Dissemos em
termos mais lógicos, e isso é, em resumo , o que caracteriza a
nova geração : um maior sentido da lógica. "

1 16
Azorín está descrevendo Ortega , Ors , Marafion , Madariaga ,
Américo Castro , Pérez de Ayala, Azafia. Mas estavam começando
ou ainda não haviam começado. Não estaria Azorín adivinhando
que entrava em cena a geração da razão vital? Não via crescer
a erva? Não estava exercendo, com clarividência que surpreen­
de, isso que denominei " pensamento literário " ?

1 973

117
Azorin e a realidade

O centenário do nascimento de Azorín está sendo lembra­


do; e sempre é difícil associar o " centenário " a uma presença
tão próxima como a sua. 1! o que está acontecendo com muitos
dos grandes homens da geração de 98, cuja longevidade quase
os fez chegar a um século : Azorín, noventa e quatro anos ; Ba­
roja, oitenta e quatro ; Menéndez Pidal, noventa e nove e oito
meses; Gómez Moreno, cem anos e quatro meses (os dois ami­
gos perfizeram dois séculos justos) .
Azorín foi " velho " muitos anos ; não só por sua longevi­
dade mais porque envelheceu muito logo . Acreditava que para
viver muitos anos tinha que ser velho bastante cedo. Eu o co­
nheci em 1 942; penso agora que não tinha mais de sessenta
e nove anos - havia nascido a 8 de junho de 1 873 - , mas já
havia entrado na velhice, se havia instalado nas formas vitais da
ancianidade, nas que perdurou ainda um quarto de século, até
1 96 7 . Azorín lia sem pausa - sempre sem óculos, até o fim -;
de repente tirava um livro de uma gaveta , ou o apanhava da
estante, ou de cima da mesa, e lia um parágrafo , com um sor­
riso inocente, malicioso . Às vezes não estava clara a conexão
entre aquele texto e o que se conversava; porém costumava ha­
ver alguma, subterrânea, que acabava por tornar-se evidente.
Os últimos anos de Azorín são particularmente interessan­
tes. Mesmo até entre eruditos e estudiosos, não são poucos aque­
les que propendem a dá-los por nulos e passá-los por alto. Azorín,
depois da guerra civil, escreveu muitos livros, alguns extraordi­
nários ; mas além disso é interessante sua figura mesma, sua
readaptação a uma Espanha mudada, sua defroQtação com uma
geração afetada por pressupostos diferentes, sua crise pessoal,
como escritor, diante do que havia sido seu " novo " estilo desde
1 926 , que agora havia ficado um pouco " antigo " , que era sem
dúvida menos autêntico que o de sua maturidade - 1 902- 1 925,

1 19
entre La voluntad e Dona Inés -; mas a este não podia voltar,
porque nunca se volta atrás .
E apaixonante o envelhecimento de um escritor, seus esfor­
ços por restabelecer uma continuidade sem " continuísmo " , sem
repetição, sem arcaísmo ; sua vontade de ser ele próprio num
mundo que havia mudado demais, ao qual queria adaptar-se sem
conformismo, sem renúncia, sem deixar de ser quem era, e o
que é mais, sem renegar sua geração , dentro da qual viajava
" como a gota na nuvem viageira " , segundo a frase de Ortega ;
daquela geração de 98 combatida por todos os lados - e que
agora volta a sê-lo por motivos aparentemente opostos, no fundo
pelo elemento comum entre os velhos detratores de 1 940 e os
de 1 970 -. Não compreendo como este tema não interesse até
as raias do entusiasmo todo aquele que se ocupa de literatura
e tenha alguma curiosidade pelo humano.
Para " renascer " , o Azorín de 1 939, de volta à sua Espanha
mas a uma Espanha que não era a de antes - e , sobretudo,
que parecia não o ser -, não teve outro remédio a não ser " dar
marcha a ré " , mas justamente como se faz para " tomar impul­
so " . Teve que recordar, trazer de volta as coisas ao coração ;
teve que acumular e reviver seu passado - o seu pessoal e o
de seu mundo -, relembrar para tomar posse de sua realidade
e da que estava ameaçada a desvanecer-se. E este o sentido de
sua obra imediatamente posterior à guerra ; desde as lembranças
próximas de seu livro París (publicado em 1 945) , que garantiam
a conexão, a continuidade, até as raízes : a adolescência, a pri­
meira juventude , o nascimento histórico da geração de 98. São
os dois livros de 1 94 1 : Valencia e Madrid, livros essenciais para
compreender Azorín , para entender o que foi , o que é, o que
pode ser a Espanha.

Em Valencia, Azorín faz confidências relativas à sua pri­


meira juventude . Conta que aprendeu o francês sozinho, em
Baudelaire, e o italiano em Leopardi; que comprava os livros
estrangeiros em uma livraria estrangeira - a única da cida­
de -, na rua do poeta Quero! . Com esse sentido de " dramati­
zação " que é nervo do estilo de Azorín e chave de sua compre­
ensão dos clássicos, escreve : " Sempre me lembrarei dessa pe­
quena tenda de livros e de seu livreiro. A tenda era estreita,
funda e lúgubre. Quase não havia livros nas grandes estantes.
De que vivia este livreiro e que é que vendia? O livreiro era
um homem ensimesmado e taciturno . Se lá comprei Leopardi ,

1 20
o espírito desesperado e triste de Leopardi pairava no ar da
pequena loj a . Comprei esses livros e não mais me atrevi a en­
trar lá. Passaram uns meses, e um dia vi a porta fechada. Não
se abriu mais. Nunca mais se viu o melancólico livreiro em Va­
lença. "
Mas o mais importante é o que Azorín diz a seguir, e que
explica, como poucos outros textos, sua obra inteira - e não
só a sua -. " Com a leitura dos livros estrangeiros - diz -
aprendi uma coisa essencial : a de que toda literatura , seja poe­
ma, novela ou drama, só pode subsistir quando apoiada em uma
base autêntica e sólida de realidade. Artista, estuda a Natureza
e as coisas. Observa-as atentamente, artista, em todos seus por­
menores, matizes e irisações. Recolhe em silêncio , como a for­
miga em seu formigueiro recolhe seu alimento, as observações
pacientes que fizeste . E quando em teu cérebro, em tua sensib i­
lidade, esteja tudo depositado, faze o que quiseres. E faze o
que quiseres porque fatalmente , sem que dês conta, porás em
tua obra esse cimento de coisas concretas sem o qual a obra
se desmorona. "
Azorín reclama a absorção de realidade. Sem ela não há
literatura válida, mas apenas esquemas abstratos . Quando o ar·
tista se tenha impregnado de realidade, deixado que ela se
acumule e deposite em sua alma, não tem que se preocupar
mais. "Faze o que quiseres '', repete duas vezes Azorín . O que
quer que faça o escritor, essa realidade que viveu, absorveu ,
assimilou, irá decantar-se em sua obra, ainda que a isso não se
proponha especificamente . O decisivo é que o autor possua essa
realidade, lhe tenha dado permissão de entrar em sua mente,
dela haja alimentado sua vida pessoal . Não se trata de ser " rea­
lista " , muito pelo contrário ; escrevi há anos que o " realista"
é o que engana a realidade . . . com as coisas . A realidade existe
em forma de circunstância e conteúdo da vida ; a vida é feita
dela, de sua própria substância . Por isso achamos vazias tantas
obras escritas " por princípios " , a partir de uma ideologia de­
terminada, sem que se reflita nelas a ilimitada riqueza e com­
plexidade do real. Há escritores que parecem não haver vivido ,
não haver estado em nenhum lugar, não haver visto nada, es­
cutado sons, percebido odores, sentido o contato suave ou ás­
pero das coisas ; nem haver-se abandonado a uma conversa, ou
se recolhido em silêncio deixando que as coisas façam soar sua
voz. Quando isto acontece, os escritos revelam-se superficiais,
sem espessura, intercambiáveis indiferentemente.
Os de Azorín, pelo contrário, trazem sempre algo insubsti·
tuível : um álamo, um caminho, um pequeno riacho, uma junta
de bois que era lentissimamente, um campanário onde soa um

1 21
sino, um locutório de monjas, uma pousada onde se oferece pa·
lha e água fresca, uma grade abandonada, uma fonte numa pra­
ça, talvez com os canos entupidos, o jardim de Melibea, a pra·
teleira onde pousa " seus doces olhos verdes " , uin trem que atra·
vessa a campina, uma flauta que soa na noite, o quarto em
que morreu Don Francisco de Quevedo, todas as terras, todas
as cidades da Espanha , atravessadas , percorridas palmo a palmo,
revividas um século após outro, ressuscitadas pela contemplação
amorosa, pela " opressiva ternura " que Azorín sentia pelas pe­
quenas cidades mortas às quais queria chamar a nova vida, in­
corporar às pulsações da vida real .
E continua, após as frases citadas, pondo a descoberto um
segredo de seu ofício de escritor: " Naquele tempo comecei a
trazer no bolso um caderninho em que ia marcando os porme­
nores daquilo que via. Assim, anos mais tarde, ao preparar-m e
para escrever a primeira de minhas novelas grandes e ter que
descrever o despertar de uma cidade, o que primeiro fiz foi le­
vantar-me antes da aurora, subir a um monte, ao pé do qual
se erguia a cidade, e ir anotando , à luz de uma lanterna de
bolso, todos os pormenores do amanhecer, desde minutos antes
da aurora até já entrada a manhã, aquela já passada . "
A cidade é Yecla; a novela, La voluntad, d e 1 902 . Leia-se
seu primeiro capítulo e ver-se-á o que é uma cidade entrando
em cena, em estado nascente eu diria. Azorín não faz uma " des­
crição " estática, nem um catálogo, nem um inventário . Nem diz
o que " h á " na cidade, nem sequer o que " se vê " do morro . Vai
mostrando sons, cores, formas , atos humanos, tal como vão apa­
recendo, como vão acontecendo . " Ao longe , um sino toca lento,
pausado, melancólico. O céu começa a clarear indeciso. A névoa
se estende em larga pincelada sobre o campo. E no clamoroso
concerto de vozes agudas , graves, estridentes, metálicas, confu­
sas , imperceptíveis, sonoras , todos os galos da cidade adormecida
cantam . . . O pigarro persistente de uma tosse rasga o ar ; os
golpes espaçados de um molho de esparto ressoam lentos . "
Assim começa a apresentação d a cidade . E continuará com
a mesma precisão, com idênticas conexões : " Pouco a pouco o
leitoso alvor do horizonte se tinge de verde pálido. O confuso
amontoado de casas vai saindo lentamente da escuridão . . . Os
galos cantam pertinazmente ; um cão ladra com longo e lamen­
toso latido. " E depois : " O céu, de verdes tintas passa a lumi­
nosas tintas nacaradas . As ferrarias despertam com seu sonoro
repiquete; perto, uma criança chora ; uma voz grita colérica. E
sobre o ondulado pardo dos infinitos telhados, paredões, beira­
dos de muros, chaminés , frontões, ângulos, surge majestosa a

1 22
clara massa da igreja Nova, coroada por gigantesca cúpula lis­
trada de espirais brancos e azuis. " E continua assim, até fazer
entrar em cena o resto da cidade, o céu - já azul - acima,
os templos e ermidas, as pequenas torres, as chaminés , os ca­
minhos, as canções, os gritos, o toque de tantos sinos diferentes .
E depois o mundo humano : homens , mulheres, crianças , e m seus
quefazeres, em seus ofícios, nas tendas, nas ruelas estreitas . Sem­
pre com a concretude, com o " pormenor sugestivo " , evocador,
vivo : " Vão e vêm pelas ruas, clérigos envolvidos em seus grossos
chales, tossindo, pigarreando . . . As perdizes , ao longo das cal­
çadas, bicam em suas gaiolas metidas na areia . E os canários,
pendurados nos umbrais, cantam em joviais arpejos . "
Assim é a obra inteira d e Azorín : u m ensaio d e vivifica­
ção, uma tentativa de ressurreição . A realidade absorvida avi­
damente, amorosamente - com amor e sem engano , esta pode­
ria ser a fórmula -. A realidade depositada pouco a pouco na
alma de Azorín, que viu, percorreu a Espanha inteira , se de­
teve, deixou-a repousar, remansar-se, a leu, a recordou, a evo­
cou, a sonhou .
Não é outro o sentido da obra de Cervantes , que se nutre
de realidade, castelhana, andaluz, manchega ; que se deixa im­
pregnar de Lepanto, da Itália, de Argel ; por vinte anos de al­
cavaleiro e requisitador de víveres por terras , estradas e ven­
das de Andaluzia . E no fim põe tudo isso, toda essa realidade
com a qual havia feito sua vida, no Quixote.
" Ama e faze o que quiseres " , dizia Santo Agostinho . Olha ,
escuta, presta atenção, espera, vive, recorda, imagina - diz
Azorín - e faze o que quiseres ; porque a literatura consiste
em expressar a realidade ; em pôr a realidade vivida em pala­
vras, de maneira que possa ser comunicada, compartilhada ; que
possa reviver em outros homens. E assim, ao mesmo tempo, sal­
var-se e fazê-los viver.

1 973

1 23
Literatura e vida em Azorín

N ão conseguimos levar inteiramente a seno os centenários


daqueles que foram nossos amigos. Há seis anos e mais uns
poucos meses ia com freqüência à calle de Zorrilla visitar Azo­
rín. Muitas vezes leva-lhe um livro ; outras muitas saía com um
seu, com esmerada dedicatória, em letra grande e clara e de
um talento cordial. Azorín passou sua vida entre os livros . Lia-os
sempre, sem precisar de óculos ainda aos noventa e quatro anos .
Quase sempre interrompia a conversa para tirar um volume da
estante , ou de uma gaveta , ou de cima da mesa, e ler um pará­
grafo, intencionalmente, com um sorriso inocente e malicioso.
De vez em quando chegava-me uma carta sua. Quan d o era ele
que fazia o trabalho à máquina - foi dos primeiros escritores
espanhóis que aprenderam a usá-la, embora não muito bem -,
logo se precebia: Azorín nunca se inteirou completamente de
que o número 1 , quando não tem signo próprio, se escreve à
máquina com o 1 minúsculo : punha sempre um 1 maiúsculo.
Azorín não era loquaz. Nunca se conta que ele tinha um
defeito de pronúncia e não emitia o som k, que era substituído
por uma pausa e uma vaga oclusão - nunca se contam essas
coisas que é preciso saber, como por exemplo que as catedrais
da Ren ânia são de pedra vermelha, ou a igrej a gótica de Soest
de pedra verde -. Sem dúvida essa dificuldade fonética fez
com que ele se retraísse, evitasse as conferências , os discursos,
todo falar em público . Para falar com Azorín era preciso en­
contrar sua têmpera própria, sua tonalidade, sobretudo seu tem­
po; e então a conversa fluía com estranho encanto . Era neces­
sário não "o espantar " , nada lhe impor, deixá-lo chegar " por
seus próprios pés " aos temas, com leves estímulos discretos. En·
tão, gozava-se da delícia de sua amizade .
Eu a iniciei em 1 942, quando ele j á era velho , e tive tempo
ain.da de ser seu amigo um quarto de século. Eu disse " quando
d e era velho " mas Azorín não tinha mais que sessenta · e nove

1 25
anos. O que acontece é que já se havia instalado - é esta a
palavra - nas formas, no estilo da velhice. Sempre acreditou
que para viver muito é preciso envelhecer cedo. Não sei se
isto era uma reflexão justificativa. Penso que ao voltar à Espa­
nha, após seus anos de emigração durante a guerra, sentiu-se
num mundo despedaçado, alheio, em descontinuidade com aquele
que havia sido o seu , e se reajustou situando-se nessa maneira
de estar " fora " - fora da vida ativa, da vida histórica - que
é a velhice ; a partir dela viveu novamente , criou, por longos
anos ; de seu essencial retiro, retirado em si mesmo, em suas
lembranças , na memória de seus projetos. Azorín havia escrito
que viver é ver voltar. Ia agora praticá-lo sem distrações, sem
tentações; ia recordar, sobretudo, seu futuro , o que havia sido
seu futuro quando não era ainda mais que isso . Leiam-se os
dois livros maravilhosos do ajuste de contas de Azorín , Valencia,
Madrid, escritos em 1 940 , e ver-se-á como têm de prodigioso
que neles se conta o passado para frente, não como algo que
passou e sim que " vai passar " . São as memórias de suas ante­
cipações. Viver é ver voltar ; não basta isso, é necessária uma
precisão maior: é ver a vida voltar, toda ela futuriça, feita de
futurição, voltada para o futuro.
Não compreendo como se possam desprezar os últimos trin­
ta anos de Azorín ; a obra primorosa em que o velho escritor
vai destilando a experiência de sua vida , convertendo-a em re­
quintada, essencial literatura ; e essa vida mesma , essa prepa­
ração para eufrentar a visão de sua figura de corpo inteiro , essa
procura de seu perfil possível e congruente num mundo que se
alienara , sem ilusões mas ainda com ilusão , esse caminhar va­
garoso e clarividente para a morte e a imortalidade.

Quero recordar duas das confissões que Azorín foi deixando


escapar discretamente ao longo de sua vida. Refere-se a primeira
à sua chegada a Madrid, pela primeira vez, aos vinte e dois
anos , em 1 89 5 , num trem misto que levava, de Valência, mais
de vinte e quatro horas . Azorín evoca a longuíssima viagem, a
chegada, sua in stalação numa modestíssima pensão de um quarto
ou quinto andar da calle dei Barquillo. "O aposento é exíguo .
Mobiliam-no uma cama estreita, uma mesinha de pinho para
escrever, uma cadeira diante da mesa , outra cadeira na cabeceira
da cama e uma bacia em seu suporte, com um jarro de água. No
teto, teto inclinado, uma janela . . . Fecho-a subindo numa ca­
deira e a abro puxando um cordel . " E acrescenta agora estas

1 26
linhas, o primeiro testemunho de sua entrada em Madrid, na
realidade histórica e social que era Madrid :
" Vejo-me descendo a escada, saindo à rua e andando, mo­
mentos depois, pela calçada da calle de Alcalá . últimos fulgores
do crepúsculo, ou então, já noite fechada. Gente que entra e
sai no Teatro San José. Brancos globos de luz iluminam a en­
trada. Detenho-me curioso entre a gente . E de repente, observo
uma coisa que me interessa profundamente . Quatro ou seis ca­
valheiros formam um grupo . Um deles tem na mão algumas fo­
lhas brancas de papel e vai lendo algo, prosa ou verso, que os
outros escutam atentos . A uns poucos passos , acha-se o espec­
tador - espectador que acaba de chegar das províncias - e
diante dele, inesperadamente, como acaso feliz, estão , vivos e
autênticos, em seu próprio elemento, as personagens do drama.
Do drama ou da comédia. O espectador não sabe o que será.
Não se pode saber o que será a vida de um jovem que começa
a escrever: se drama ou comédia. Mas ele sente uma ânsia irre­
primível por ser um dos atores da comédia ou do drama . Sim,
ali estão ; ali estão, escutando o que um deles acaba de escrever.
E talvez seja interessante. Dentro de algumas horas, toda Es­
panha o lerá impresso na folha volante de um grande jornal .
Estes homens têm talento, engenho . São conhecidos, populares,
todos eles . O que lê é um escritor e o serão também os que
escutam. Tudo está com eles e nada está comigo. Com o correr
do tempo posso ser um deles, e agora, desconhecido, desvalido,
só tenho meu quartinho com a mobília pobre e com a j anela
no teto, que deixa a luz cair nas folhas de papel . Em outras
folhas de papel . Em outras folhas de papel que não são aquelas
que o escritor famoso lê a seus companheiros à porta do Apolo,
entre o bulício da gente, à luz dos grandes globos brancos, num
ambiente de fluidez, de dignidade e de modernidade . "
Fluidez, dignidade e modernidade . Onde está a " aldeiola
rnanchega " ? Onde o deserto em que talvez floresça algum cardo?
E isto o que s ignifica para Azorín ser escritor; essa sua vocação :
a irradiação, o prestígio, a popularidade, a convivência literária
dos criadores, e o público que recebe sua obra. Tenha-se em
mente que estamos em 1 89 5 . Destes mesmos anos são as crô­
nicas literárias de Valera , que despertam idêntica impressão de
" civilização " ; uma impressão que importa reter. A fabulosa ino­
vação, a criação genial de Azorín e dos demais escritores da
geração de 98 adquire seu significado quando a vemos, não
sobre o ermo ou a vulgaridade, e sim sobre uma sociedade de
mais densidade intelectual do que pensamos, dentro de um am­
biente de fluidez, dignidade e modernidade, sob a alegre luz
dos grandes globos brancos .

1 27
A segunda confissão abrange sua carreira completa de es­
critor. num balanço provisório que faz em 1 940, quando se
dispõe a instalar-se nas formas da velhice . " Ao preparar-me para
escrever a primeira de minhas novelas grandes - diz - e ter
que descrever o despertar de uma cidade, o que primeiro fiz
foi levantar-me antes da aurora, subir a um monte, ao pé do
qual se erguia a cidade, e ir anotando, à luz de uma lanterna
de bolso, todos os pormenores do amanhecer, desde minutos
antes da aurora até já entrada a manhã, aquela já passada . "
Está evocando a composição de La voluntad , a descrição de Ye­
cla , em que Azorín estreiou uma maneira nova de ver a reali­
dade e apresentá-la . E acrescenta a seguir, sem mais justifica­
ções - eu diria que a justificação flui subterrânea -: " Sempre
tive consciência de meu labor literário . Devo dizer aqui, onde
a confidência sincera é obrigatória . Nunca duvidei do valor de
meus livros . Mas , ao mesmo tempo, aconteceu-me um fenômeno
estranh o : nunca quis fal ar de meus livros, e muito menos -
isto me desgosta - quis que me falassem deles. Publicado um
livro, trato de esquecê-lo . Se o lembrasse, me pareceria que
estava preso a ele e não poderia dele desprender-me para es­
crever outro . Mesmo corrigir as provas me causa dissabor. "

Unamuno distinguia entre o s que pensam p ara escrever e


os que escrevem porque pensaram . Há muito tempo imaginei
uma terceira categoria : os que escrevem para pensar, porque só
ao escrever-se se pensa de verdade e com rigor de plenitude e
não aproximadamente. No caso de Azorín , isto deveria ser for­
mulado ai nda com maior profundidade. Creio que escrevia para
viver, q u e só vivia de verdade escrevendo . Isto quer dizer que
era verdadei ramente um " escritor " , não apenas um " homem que
escreve " ? Sem dúvida; mas algo mais : que não tinha outra vida
- pelo menos atual, realizada - que não fosse a sua litera­
tura . E isto propõe um problema hermenêutico : só se entende
plenamente a literatura a . partir da vida do autor; mas no caso
de Azorín , encontramos essa vida em sua literatura . Sua biogra­
fia está na série interminável de seus volumes .
Como é possível? Esta pergunta remete-nos à consideração
do estilo de Azorín . Há mul tas anos disse que os escritos de
Ortega eram como icebergs, blocos de gelo que só têm uma
parte emersa da água, enquanto a massa principal fica submer­
gida . Mas isto poderia ser generalizado . Todo escritor é autor
de icebergs, de um " gelo " particular de diferente densidade,

1 28
com o que varia a proporção do patente e do latente. Azorín,
em sua primeira maturidade, propôs a famosa fórmula de seu
estilo : " Dizer as coisas umas depois das outras e não umas den­
tro das outras . " E mais fácil dizer do que fazer; e , sobretudo,
pode-se fazer sempre, o pode fazer todo escritor?
O estilo de Azorín é superficial, consiste em superficialidade.
Azorín podia dizer tudo, precisamente porque havia renunciado
ao que não se pode dizer; isto é, a operação que executa é
dupla : uma limitação da realidade, uma expressão máxima dessa
realidade limitada.
A fórmula de não dizer as coisas " umas dentro das outras "
só é aplicável com uma condição : que as coisas não estejam
realmente umas dentro das outras ; mas, e se o estão? Seria pos­
sível escrever sobre filosofia na prosa de Azorín ? Essa estrutura
que se chama sistema, e que consiste em que cada uma das
verdades esteja se apoiando em todas as outras , essa estrutura
não linear mas circular ou espiral , será conciliável com o estilo
de Azorín ? Se a razão apreende a realidade em sua conexão, a
maneira de enunciá-la dependerá do tipo de suas conexões . Todo
escritor, pelo fato de viver em um estilo, leva a cabo uma se­
leção da realidade e de sua maneira de apreendê-la; seu estilo
já é doutrina, isto é, interpretação da realidade .
Na prosa de Azorín as coisas não se apresentam como um
" aglomerado " ; nunca se tem a impressão 4e que elas " não po­
dem transitar " : sucedem-se umas às outras, vão aflorando , fa­
zem-se superfície, patência, manifestação . Daí a relação singular
de Azorín com o tempo . As coisas vão durando , permanecem ,
sua " espessura " é cumulativa e temporal . A sucessão é o cor­
relato da série dos enunciados, dos dizeres .
En tende-se deste ponto de vista o que Azorín fez com seus
temas. Seu tratamento dos clássicos consiste no que poderíamos
chamar " ir ao sabor das ondas " : não penetrar, não aprofundar ,
ir de superfície em superfície , e no final ficar com o segredo.
O núcleo da técnica de Azorín é o ovo de Colombo : a leitura
dos clássicos . Os estudiosos, eruditos e investigadores os estu­
dam e analisam ; " reduzem-nos " a seus elementos ou ingredien­
tes, sobretudo as suas " fontes " , mas acabam ficando sem eles.
A técnica da citação consiste precisamente na interrupção da
leitura, em suspendê-la, em isolar um conteúdo particular, que
é objeto de consideração independente do movimento total da
obra em que está inserido .
E o contrário do que Azorín faz , que reproduz em si a
vida da obra, isto é, a revive. Por isso tem que evocar o autor
estudado , mostrá-lo a partir de fora, exterior e superfici almente ,
em sua cela monacal , no quartinho da venda, no Congresso dos

1 29
Deputados . Trata-se de vê-lo viver. E então - só então - o
decisivo transparece : seu projeto vital, o " quem " é ou foi.
O mesmo acontece com a paisagem. Não é simplesmente
descrita, menos ainda analisada ou decomposta em ingredientes.
Chega-se a ela . " Nós vamos " às aldeias , às cidades , aos campos.
Azorín nunca esquece o caminho, a chegada, a hospedaria, o
que se vê do balcão, o passeio , o cassino provinciano, as récuas
que passam sob a janela, a fonte entupida, os gradis junto aos
quais se passa para ir à praça, os sinos cujo toque chega de
muito perto ou de longe . Azorín nunca esquece a moça que
serve a comida na hospedaria - Rosario, Tránsito, Soledad -,
dando voltas , harmoniosa, ao redor da mesa. Ao falar do pro­
blema social - nas páginas comoventes de " La Andalucía trá­
gica " , de 1 90 5 , um texto decisivo do Azorín contemplativo -,
faz uma original " estatística " dialogada, dramatizada, na qual
um punhado de labregos de Lebrija chegam a determinar ao
vivo o que necessitam para viver e não têm . O acúmulo de
impressões se decanta em uma conclusão vital, dramática e não
inerte, com a concretude do relato e não a abstração impessoal
do esquema.
Por isto , a arte de Azorín culmina na narração . Teve que
ser narrador, novelista . Apresenta os cenários; estabelece as co­
nexões vitais, tanto entre o próximo como entre o distante, an­
tecipando genialmente a técnica cinematográfica, como em Dona
lnés ou, de maneira mais alambicada, em Salvadora de Olbena,
sua obra preferida dos últimos anos . Penetra na temporalidade,
até o ponto de que poderíamos dizer que sua obra inteira é
narrativa . Dramatizou a crítica, a apresentação da paisagem, a
evocação das formas de vida passadas .
Quando escreve contos está obcecado com o acaso e as in­
terferências temporais, com o " momento " . Introduz na novela
a duração, a monotonia, a presença do que já passou mas está
aí, no passado . Por vezes , a prospecção, a antecipação do futuro .
A maneira de ver as personagens, de apresentá-las, é assistir a
suas vidas . Essa dilação morosa levou-o à criação de admirá­
veis figuras de mulher. Azorín , tão casto, se compraz na beleza
feminina, na presença da mulher como tal , em sua vida pro­
jetada em esc�rço . � muito pouco sensual, mas para retomar
uma expressão muito usada pelos teólogos quando eram inteli­
gentes e estavam despertos para a realidade humana concreta ,
eu diria que vê e vive a mulher com " amor sensível " .
A novela de Azorín - culminância de seu estilo e de
sua obra inteira - significa a descoberta plena da temporali­
dade. Enquanto Unamuno se angustia pela personalidade e sua

1 30
realidade, ameaçada pela morte, Azorín sente a emoção, a an­
gústia da vida enquanto dura, o passar do tempo que não volta
mas que de alguma maneira perdura : consistência e fugacidade,
o que poderíamos chamar a espessura móvel da vida humana .

(Texto lido n a Real Academia Espanhola, e m


homenagem a Azorín e m seu centenário, a 2 de
dezembro de 1 97 3 .)

131
Para uma antologia
de Antonio Machado

Prólogo

E Antonio Machado o melhor poeta espanhol de nosso


tempo? Mal teria sentido dizê-lo : a literatura não tem escalões
embora certamente tenha hierarquias . Antonio Machado é outra
coisa : é o poeta irrenunciável . Poderíamos ainda dizer mais :
é o poeta espanhol mais importante. Como? - dir-se-á -. Isto
não quer dizer que é ele o melhor, que o pomos em primeiro
lugar? Não : importante significa que importa; e Antonio Ma­
chado é hoje, a trinta anos de sua morte, o poeta que mais
importa aos espanhóis .
Por quê? Antonio Machado era um homem simples , mo­
desto, desleixado, desajeitado, que nunca teve dinheiro, nem
postos brilhantes , nem muita fama; pôde parecer isso que se
chama em espanhol " um pobre homem " ; não haveria inconve­
niente em aceitar a denominação, completando-a : um pobre ho­
mem . . . genial. Isto é, alguém que nos deu uma nova maneira
de olhar a realidade, de sorte que nos deixou para sempre enri­
quecidos ; que aumentou para nós o mundo - e é o que quer
dizer a palavra " autor " -. Foi ainda algo mais : conseguiu
converter-se em uma parcela da significação do nome " Espa­
nha " ; quando pronunciamos este nome, quer dizer muitas coisas ;
necessária, inevitavelmente , significa entre elas : Antonio Macha­
do. E o máximo a que pode aspirar um criador, um escritor,
se o é verdadeiramente e a partir de sua raiz.
Machado nasceu em 1 87 5 ; era dos escritores mais jovens
da geração de 98. A condição geral de todos eles não foram
seus dotes - às vezes muito grandes -, mas sim sua autenti­
cidade : a necessidade íntima, irremediável , com que escreveram,

1 33
porque para isso haviam nascido, porque só se sentiam ser de
verdade escrevendo, porque necessitavam, para viver, para se­
rem espanhóis, deixar claro o que queria dizer esse claro - e
tantas vezes triste - nome : Espanha . Por isso estes escritores
o foram o mais plenamente possível ; por isso perduraram, ape­
sar de tudo, e continuamos vivendo deles e com eles, numa
Espanha que eles em grande parte inventaram , descobriram,
olhando-a com dor e sem desinteresse, com entusiasmo e rigor,
conhecendo-a palmo a palmo e livro a livro, sem que ninguém
lhes pudesse tirar " o dolorido sentir " . Antonio Machado foi o
poeta dessa geração ; foi o que nos deu , a partir desse nível -
o mais alto que se havia alcançado desde o Século de Ouro -
a interpretação poética das coisas, e sobretudo das coisas es­
panholas.
Machado era sevilhano. Disse-nos uma vez que um andaluz
andaluzista era um espanhol de segunda . . . e um andaluz de
terceira. Seu nome está unido inseparavelmente a Sória, e por­
tanto a Castela. Foi , como outros grandes autores da Espanha
periférica , criador literário de Castela : como o galego Valle­
Inclán , os bascos Unamuno e Baroja, o levantino Azorín . Ca­
tedrático de Instituto, de francês , que havia afinado ouvindo em
Paris a Bergson, " professor de línguas vivas " , como disse de
si mesmo, mestre da língua viva , sua passagem por Sória, de
1 907 a 1 9 1 2 , o marcou para sempre . Ali sentiu, o mais inti­
mamente, uma cidade e uma paisagem, ali compreendeu, esté­
tica , histórica , biograficamente, Castela, e a partir dela a Espa­
nha . Diante de si tudo se anima , faz-se estritamente " pessoal " ,
fala-lhe diretamente a o coração. E m Sória acontece a experiên­
cia radical de sua vida, a que o faz ser propriamente quem
foi , a que trará sempre dentro : seu amor terno, vacilante, tímido,
feliz, ameaçado, arrancado finalmente pela morte, seu amor a
Leonor. Leonor era quase uma menina , seu encontro foi - como
quase tudo na vida - casual ; pôde simplesmente passar por
ela, mas não foi assim : chegou até sua alma, a fez sua mulher,
perdeu-a em agosto de 1 9 1 2 , quando não havia passado dos de­
zoito anos . Nada mais? Penso que quando Machado descobriu
Leonor, teve essa impressão que às vezes nos assalta : a de en­
contrar algo que parece nos haver escolhido , algo que é enviado
de acordo com o que é ainda mais radical que nossos desejos,
como se o houvesse criado a raiz mais profunda de nosso ser.
Quando isto acontece, é nosso para sempre - o que quer que
aconteça -, porque nisso, em sua presença , chegamos a ser o
que mais verdadeiramente somos .
A poesia de Machado não é propriamente " amorosa " ; é
algo mais profundo e menos freqüente : poesia enamorada. O

1 34
amor não é " tema " da poesia de Machado ; é seu solo , sua
raiz, sua têmpera ; do amor à mulher, nele instalado, olha as
coisas , elas o comovem , lhe doe m , são cantadas . f. o princípio
de sua organização, a âimensão na qual se encontra a si mesmo
e pode falar a s i mesmo - " converso con el hombre que siem­

pre v a conmigo " -, a pauta de sua interpretação pessoal .


Por isso a real idade da paisagem , das cidades decré p i t a s ,
dos campos de C a s t e l a , do D o u r o , que " traza su c u r v a de balles­
ta en torno a Sori a " (que " traça sua curva de b alestra em torno
a Sória " ) , dos álamos do rio, tudo se personaliza, converte-se
para ele em algo humanizad o , inteligível , sonhado - " de toda
la memori a solo vale / el don preclaro de evocar los sueíi.os "
(de toda a memória apenas vale / o dom preclaro de evocar
o s sonhos) -, com o que faz sua própria v i d a . Quando se
afasta de Sóri a , para sua A ndaluzia natal , tão bela , sente que
" falta el hilo que el recuerdo anuda ai corazon " (falta o fio que a
lembrança prende ao coração) ; e desde então terá que voltar a
Sória, de longe , terá que rev i ver a Leonor morta , perdi d a , talvez
por momentos esquecida, p ara não esquecer-se de si mesmo,
para tornar a ser quem foi e quer continuar a ser.
Não mais com tanta p l e n i t u d e , com tanta segurança, com
tão dolori d a mas alcançada firmez a . A partir de 1 9 1 3 , M achado
parece estar sempre à sua própria procura . Parte p ara o enge­
nho , o afori smo, o conceptismo, os " complementários " em que
trata de encontrar-se em fragmento s , na moeda pequena em que
se converteu " el oro de ayer " (o ouro de ontem) . Mas volta
sempre ; fica de repente absorto , meditando , e foge para Sória,
" fronteriza / entre l a tierra y l a luna " ( fronteiriça / entre a
terra e a lua) , " entre Urbión e! de Castilla / y Moncayo el de
Aragón " (entre Urbião o de Castela / e Moncayo o de Aragão) ,
para " el alto Espino donde está su tierra " (o alto Espino onde
está sua terra) , o cemitério sariano onde está, já tranqüila, Leo­
nor, o pequeno e frágil corpo de Leonor ; e se pergunta : " quién
sabe / l o que se traga la tierra ! " (quem sabe / o que traga a
terra ! ) Machado encontra então a si mesmo, volta a ser o que
era . Compara-se com o Guadalquivir - " Un borbollón de agua
clara / debajo d e un pino verde / eras tú, qué bien sonabas ! "
(Um borbulhão de água clara / debaixo de um pinho verde /
eras tu, que bem soavas ! ) , e se pergunta : " Como yo, cerca dei
mar , / río de b arro salobre , / sueíi.as con t u manantial ? " (Como
eu , junto ao mar, / rio de barro sal o bre, / sonhas com teu ma­
nancial ?)
Quando o Machado dos últimos vinte e cinco anos d e sua
vida liga-se àquele em quem mais autenticamente se escolheu a
si mesmo, torna a soar como sino sem rachas , como cristal vi-

135
brante. Disse eu que ele se escolhera, e ele próprio nos ensinou
que "ninguém escolhe seu amor " . Eu diria que se sentiu esco­
lhido, conduzido à sua plenitude, descoberto em sua verdade .
Não era uma escolha: era o destino ; mas o destino aceito livre­
mente é a vocação . E é isto o que escolheu Machado : ser-lhe
fiel. Por isso seu verso nos chega ao mais profundo , por isso
quando o lemos sentimos que se trata de nós; porque ao es­
crever se tratava dele até o mais profundo de sua raiz.
Machado foi livre - por isso se sentiu sempre insuborna­
velmente liberal -; mas isto quer dizer que não pôde ser ca­
prichoso . Ser livre não é fazer o que se quer, o que se lhe aprou­
ver sem mais, e sim o contrário : querer o que se é, o que se
deseja a partir da própria profundidade insubornável , o que se
tem que fazer . Somente isto explica a vida de Machado, sua
honesta, tímida impavidez , que o levou à morte solitária e sem
amparo, " ligero de equipaj e " (leve de equipagem) , fiel a si
mesmo.

En la desesperanza y en la melancolia,
de tu recuerdo, Soria, mi corazón se abreva,
(Na desesperança e na melancolia,
de tua lembrança, Sória, meu coração se sacia,)

escreveu Antonio Machado . Como era poeta, deixou preservado


em seus versos esse estremecimento. Quando o lemos revivemos
com ele a desesperança, a melancolia, a lembrança, a presença
dessas terras " tan pobres que tienen alma " , os rios longos, os
álamos do amor, a " razón y la locura / y amargura / de querer
y no poder / creer, creer y creer " , o agudo espinho dourado
de uma paixão, os caminho s poeirentos ; e, como o seu, o nosso
coração se sacia de esperança.

1 969

1 36
À Margem de La Casa Encendida
de Luis Rosales

1 . Luis Rosales

Se não me falha a memória , transcorreram perto de trinta


e oito anos desde que encontrei Luís Rosales . Foi na Faculdade
de Filosofia e Letras, na Cidade Universitária recém-inaugurada;
lá onde Madrid contemplava a Serra . Rosales era mais velho
que eu, exatamente quatro anos , mas como estudante madrile­
nho ficava dois anos mais moço : vinha de Granada, com acento
fechado, alto e esbelto, óculos grossos nos olhos claros e um
ar que nos parecia " moreno de verde luna " . Nós os estudantes
da Faculdade costumávamos andar no que se poderia chamar
" constelações " ; por motivo de antigüidade - e por outros me­
nos aparentes - as nossas eram diferentes ; mas " tangentes " :
alguns membros eram comuns, e assim se i a tecendo a intrin­
cada galáxia humana que era a Faculdade - e que Rosales
cantou .
Nosso contato interrompeu-se na guerra civil; nossa ami­
zade não, pelo contrário : apesar do tempo que se interpôs e
das circunstâncias exteriores que deveriam nos ter separado,
quando tornamos a nos encontrar em 1 939 ou 40 nos sentíamos
mais próximos , mais verdadeiramente amigos que o havíamos
sido nas aulas e nos corredores da Faculdade ; sinal de que a
guerra não havia podido nos alienar e converter-nos em outros
que nós mesmos. Uma amizade não muito freqüente mas para
mim de qualidade inestimável se foi estreitando devagar, sem
vontade expressa nem deliberação, deixando as coisas serem o
que por si mesmas iam sendo . Durante muitos anos , desde 1 95 1
até há pouco, esta amizade se intensificava , se condensava e
subia alguns graus numa experiência que para um punhado de
espanhóis foi decisiva - queiram ou não ; Rosales e eu, sim,

1 37
o queremos -: as primaveras ainda frias , entre neve branca e
giestas amarelas, de Gredos . Quando estes encontros se acaba­
ram , deixando-nos uma nostalgia difíc i l de curar, veio compen­
sá-los , desde 1 965, a convivência n a Academia Espanhola -
onde, ao contrário que na Faculdade, esperava-me Rosales -,
e desde a primeira quinta-feira me sentei a seu lado , à sua
d i reita - Pedro Laín à sua esquerda -. Sentávamos juntos e
sentíamo-nos juntos , com uma estranha impressão de continui­
dade e de comunidade feita de tantas d iferenças .

Luis Rosales nasceu e m 1 9 1 0 ; pertence inequivocamente à


minha geração . Os que têm dois anos mai s , por próximos que
sejam em tudo , pertencem à anterior : entre eles e nós se inter­
põe essa fronteira invisível (os que têm só um ano a mais são
quase sempre indecisos , fronteiriço s , e às vezes gravitam hesi­
tantes para uma ou outra das duas gerações) . I sto quer dizer
que Rosales é dos mais velhos da geração nascida em torno a
1 9 1 6 , e i s to explica que funcionasse como " irmão mais velho "
no pequeno mundo da Faculdade , e nunca , por amigo que fosse,
ao nível dos professores mais jovens , que eram todos da ante­
rior, de Rafael Lapesa para cima .

Lembro-me agora que Luís Rosales, desde sua mocidade,


era para nós "o poeta Rosales " . Por quê ? Fazia versos, sem
dúvida ; mas quem não os fazia naquele tempo , n a Faculdade?
J á disse muitas vezes que até os vinte anos todo o mundo faz
versos ; depois , os poetas e os indiscreto s . Ainda não era tempo
de distinguir. Em Rosales se adivinhava o que depois continuei
vendo sempre : a realização, a encarnação da poesia como forma
de vida. Deus me livre de afirmar que Rosales é o primeiro
poeta espanhol - nem sequer de sua geração -, nem o se­
gun do , o terceiro , o vigésimo ; aqui não cabem " es calões " -
nem quase em nenhuma parte -. O que posso dizer é que, de
todos os poetas que conheci - e conheci muitos , e alguns, gran­
des poetas -, nenhum me deu tanto a impressão de que a
poesia formava parte de sua realidade; isto é , que não se tra­
tava de que Rosales " fizesse versos " , nem que fosse capaz de
criar poesi a , mas sim de que esta era sua condição , seu am­
biente, sua morada, sua irreal n atureza. Se se quiser expressar
em termos negativos - creio que isso não lhe importa -, diria
que não era nada mais que poeta.

E o fato é que Rosales escreveu poucos versos ; sua obra


é escassa , seus livros separam-se por anos , sempre se fizeram
esperar. E. um poeta " infreqüente " ; sim, mas permanente. Não
é um " poeta de domingo " , nem de uma ou outra primavera : a
poesia é sua " ocupação contínua " e , sem dúvida, virtuosa. Eu

1 38
diria algo q u e parece trivial : Rosales " gosta " da poes i a . Po­
de-se dizer isto de u m poeta? A vocação não é algo mais radical
e p ro fundo ? Sim, mas em Rosales a vocação não matou o " di­
letante " , do mesmo modo que o amor, mesmo sendo o mais
alto, não necessita matar o carinho . Provavelmente por isto Ro­
sales não só nunca abandonou a poesia, como nunca a profanou
nem a sacrificou a outras coisas - como às vezes fazem os
grandes poeta s .

Talvez sej a e s s a a razão de haver Rosales evitado tantas


tentações poéticas. Sendo granadino e havendo nascido à poesi a
em torno de 1 93 0 , teve sempre um andaluzi smo freiado e sem
lorquismo; e pôde publicar em 1 93 5 u m livro de poesia amo­
ros a , Abril, igualmente i ndependente de La voz a ti debida, sem
ser um eco dessa voz . Mas , é claro , trazendo tudo dentro de s i_.
E depoi s , muitos anos mais tarde, soube permanecer em curioso
i solamento , entre os mais velhos e os mais jovens, rel ati vamente
descon hecido - ou , melhor , i rreconhecido -, pen so que de
medo de não se reconhecer a si mesmo quando se olhasse no
espelho ( i sso que, por muito que me assombre , parece não cau­
sar nenhum espanto a tantos escritores, a tantos artistas , e atrás
disso, a tantas pessoas) .

Esta minha impressão de Rosales ficaria i n completa se a


ela não acrescentasse outra faceta , outro matiz : ele nunca pa­
rece tomar as coisas completamente a séri o , nem sequer a poe­
sia. Um dos ingredientes de sua real idade é uma estranh a , infre­
qüente i roni a em dois planos, uma ironia que se i roniza a si
mesm a , e então se revela como seriedade . É como uma pele
muito fin a , que mal se arranha deixa b rotar o sangue ; mas logo
em seguida nos tranqüiliza, assegurando-nos que não irá longe ,
com o que não se perde a compostura .

Se eu tivesse que definir em três palavras a têmpera de Ro­


sales, que é ao mesmo tempo a chave de sua poesi a e de sua
resignação alegre e melancólica. Rosales , homem
pesso a , diria :
alegre e divertido , que frui o mundo e o que ele leva dentro ,
que sente a melancolia de perdê-lo - ou de v i r a perdê-lo -,
é das pessoas mais resignadas que conheço , muito mais que os
resignados de profi ssão : porque não só se resigna ao que lhe
acontece e ao que faz, mas também se resigna àquilo que é.
E u creio que Rosales é - a uma distância de três gerações ,
levemos i s to a sério - da est i rpe d e Manuel Machado , tão
pouco entendido - mas a quem muito bem entendeu Unamu­
no! - . Rosales escreveu ao final de seu melhor l ivro : " As epí­
grafes das diversas partes deste l ivro são versos preferidos .

1 39
Quero sentir-me sempre acompanhado por eles . Correspondem
aos seguintes autores:

Ciego por voluntad y por destino, de Villamediana.


Desde la voz de un sueiio me llamaron, de A . Machado.
La luz del corazón llevo por día, de Villamediana.
Cuando a escuchar el alma me retiro, de Salinas .
Siempre maiiana y nunca maiianamos, de Lope de Vega. "

Entre eles não há nenhum de Manuel Machado ; e, todavia, creio


que com ele " diz a si mesmo " muitas vezes . Ouvi Rosales re­
cordar uns versos admiráveis de Manuel , recitá-los como coisa
própria, de dentro de si mesmo , fazendo-os seus :

Porque ya
una cosa es la Poesia
y otra cosa lo que está
grabado en el alma m ía . . .
Grabado, lugar común.
Alma, palabra gastada.
Mía . . . No sabemos nada.
Todo es conforme y según .
(Sim porque
uma coisa é a Poesia
e outra coisa o que está
gravado na alma minha . . .
Gravado, lugar comum.
Alma, palavra já gasta.
Minha . . . Não sabemos nada.
Tudo é conforme e segundo.)

Luis Rosales, com suas crenças , faz literatura. Mas isto não
quer dizer que suas crenças não sejam autênticas, que sejam
" literatura " , mas sim que faz sua poesia com elas. E para que
sejam arte, para que sejam algo realizado e comunicável litera­
riamente - também comunicável -, não há outro jeito que
fazer literatura com as crenças . O que acontece é que são muito
poucos os que as têm, e menos ainda os que sabem fazer lite·
ratura . E não se costuma perceber que esta literatura é precí­
samente a que permite " dizer para si mesmo " suas crenças,
sem que deixem de o ser. Só literariamente pode expressar-se e
formular-se a crença sem que se converta em outra coisa - e
isto explica muito do que está acontecendo com as crenças no
mundo atual -; só a literatura salva a condição credencial
unindo-a à explicitude, dando-lhe transparência, permitindo-lhe
sair dos subsolos obscuros e silenciosos em que normalmente
opera.

1 40
Pode-se ver isto em toda a poesia de Rosales, na religiosa
é claro , mas ainda mais na de amor . Rosales começou em A bril
escrevendo poesia amorosa - algo tão importante e tão infre­
qüente, de tão longos e preocupantes eclipses -: como Garci­
laso, como Fernando de Herrera, como Villamediana, como Lope
de Vega , como Quevedo, como Meléndez, como Espronceda,
como Bécquer, como Salinas ; mas depois chegou - como An­
tonio Machado - a escrever " poesia enamorada " , que não é
o mesmo e é mais sutil .

2. " La casa encendida"

Penso que La casa encendida, A casa iluminada, é um li­


vro de poesia extraordinário . Foi publicado pela primeira vez
em 1 949 ; uma nova versão, um pouco ampliada, apareceu em
1 967 - evidentemente é o mesmo lívro -. Não é uma " cole­
ção " de poesias, como são , com unidade ou sem ela , quase to­
dos os livros de poesia de nosso tempo . (Na Espanha, isto quer
dizer desde a geração de 1 898.) La casa encendida é outra coisa:
um poema. Como Voces de gesta, de Valle-Inclán; Platero y yo,
de Juan Ramón Jiménez ; Teresa, de Unamuno , e La voz a ti
debida, de Salinas . Note-se porém que os três primeiros são
" narrativos " , e o segundo em prosa; portanto , s e as coisas fo.
rem vistas com todo o rigor e pureza, restarão apenas os de
Salinas e Rosales .
O poema é um estranho gênero literário. Foi possível ou
não, conforme os tempos ; cada época teve que formular para
si mesma o que se poderia chamar suas " condições de possfüi­
lidade " . E as soluções foram diferentes : algumas felizes, muito
poucas elegantes, a maioria frustradas , freqüentemente catastró·
ficas. Há um problema de unidade , por certo ; mas não se pense
numa unidade " fechada " . Um poema pode ampliar-se - Rosa­
les o fez com La casa encendida - , mas tem que ser como se
acrescentam cômodos a uma casa ou se tira um tabique ou se
elimina uma porta ou se planta um jardim num pátio .
Um livro de poesia, se é verdadeiramente um livro, deve
ter uma unidade de " têmpera " poética; um poema requer algo
mais: um " tema '' , no sentido concreto de um argumento que
não deve ser, justamente , narrativo - salvo no caso do poema
épico, cujo caráter de poema, hoje, nos parece problemático,

141
que encontramos nos grandes poemas épicos clássicos apesar da
narração, em outras coisas que seria sugestivo precisar -. A
na rração épica, por outro l a d o , num certo sentido se destem­
poral iza , refere-se a um tempo não propriamente histórico , não
datáve l , indeterminado ou aoristo, e acaba por situar-se nos " tem­
pos heróicos " dos quais se tem falado com surpreendente natu­
ra lidade durante séculos , e que afinal não e ram bem propria­
mente temp o s .

O argumento d o poema é um acontecer que a rigor não


" passa " ; pelo contrári o , " permanece " , e é o que expressam
os ingredientes rítmi cos, num ou noutro sentido reiterativos ; e
quando estes elementos se atenuam , tem o poeta que valer-se
de outros recursos de rei teração , que sugerem esse " não passar "
que positi vamente é um " permanecer " - em La casa encendida
isto é muito visível -. Poderia ser váli d a a fórmul a de Anto­
nio M achado : " confusa l a historia y clara la pena " (ou a alegria) .
O sentido, a tonalidade , aquilo de que se trat a , a substância
poética tornam-se claros na coerência do poema, enquanto se­
ria ilusório - ou perigoso - contar demasiado a h i s tória, con­
vertê-lo numa narração circun stanciad a . I magine-se o que ocor­
reria com La voz a ti debida ; é o lastro que impede Teresa de
voar.

Qual é o tema de La casa encendida? N ã o é preciso pro­


curar muito l onge , porque é um li vro bem intitulado : seu tema
é a casa. ( Que a casa sej a i luminada é sua culminação, seu
" desenlace " , p recisamente no sentido sutil que esta palavra al­
cança quando se trata de um " argumento não narrativo " .) Ora,
lendo-s e com atenção este poema d e Rosales, vê-se que há vá­
rias casas , pelo menos quatro . O mais interessante é que todas
as casas são a casa, que a rigor só há uma casa, como só há um
mundo , o meu , na medida em que eu sou o unificador de todas
aquelas realidades que encontro como circunstância - num
essencial fato s i ngular de pluralidade -, em torno de mim. A
vida consiste em que nos vão sendo casas diversos âmbitos , di­
versas estâncias ou moradas . Vão sendo para nós " a casa " . Por
isso a l íngua tende a omitir o artigo - " estou em casa " , " va­
mos para casa " -, e em algumas a casa chega a converter-se
numa propos ição ou num genitivo de posse e pertinência -

chez, bei, Tom 's e não esqueçamos as expressões em espanhol


" donde J uan " ou " lo de Carmen " .

A casa é •; onde se está " , " onde se vive " . Quando? A res­
posta deveria ser uma expressão estranha , que revela a estru tura
conflitiva da vida quotid i an a : por todo o sempre. Daí que o
tempo da casa não sej a linear e esteja feito de curiosas anteci-

1 42
pações e retrovisõe s . Bem ao começo de La casa encendida
encontramos :

Has !legado a tu casa,


y, al entrar,
has sen tido la extrafzeza de tus pasos
que estaban ya sanando en el pasillo antes de que llegaras,
y encendiste la luz, para volver a comprobar
que todas las cosas están exactamente colocadas como estarán
dentro de un ano.
(Chegaste a tua casa,
e, ao entrar,
sentiste a estranheza de teus passos
que j á �oavam no corredor antes de haveres chegado,
e acendeste a luz, a comprovar mais uma vez
que todas as coisas estão exatamente colocadas como estarão
dentro de um ano.)

E s s a quotidianidade d a casa se expressa n a vivência do


" tudo é igual " . Os primeiros versos do poem a , os que precedem
aos que acabo de citar, dizem :

Porque todo és igual y tú lo sabes,


has llegado a tu casa, y has cerrado la puerta
con ese m ismo gesto con que se tira un día,
con que se quita la hoja atrasada ai calendario
cuando todo es igual y tú lo sabes.

(Porque tudo é igual e tu o sabes,


chegaste a tua casa, e fechaste a porta
com o mesmo gesto com que se tira um dia,
com que se arranca a folha atrasada ao calendário
quando tudo é igual e tu o sabes.)

Mas a vida é novidade, inovação ; e quando, ao começo da


segunda parte , aparece o tema do iluminado ou do iluminar-se,
quando se advertiu que

la palabra dei alma es la memoria

e que

la sustancia dei alma es la palabra,

conclui-se com este verso :

porque todo és distinto y tú lo sabes.

O poema de Luis Rosales é uma exploração imagmana,


l i terária , estritamente poética, do que é a casa . E u disse que
são quatro : a dos pais - num sentido, todas as casas são " a

1 43
dos · pais '' , e o homem passa a vida procurando-a, buscando res­
tabelecê-la e restaurá-la, mesmo quando não a teve -; a Facul­
dade de Filosofia e Letras de Madrid - a casa que partilhei
com Rosales , vivendo em aposentos diferentes , assomando a
outras janelas , porém " na mesma casa " , e por isso me reco­
nheço nela, sinto-me " vizinho " , avizinhado em seu poema -;
a casa solitária de Altamirano 34 , onde se vê iluminado o
quarto da frente,

la hab itación que yo pensé que hab itarían m is hijos;

e " a mesma" casa, toda iluminada ao final do poema. E Rosales


vai de uma a outra , permanecendo sempre em casa, indo mais
além , até o fundamento ou raiz de todas , o encontro de seus
pais no Corpus de Granada, como uma ideal e irreal casa pré­
via de onde vêm as demais .
Que é uma casa? Qual seria sua fórmula, qual sua estrutu­
ra vivencial , sua forma de ci rcunstanciali dade concreta? Três
palavras bastam : dentro mas aberto. Se não há " dentro " , se
não há interioridade , não há casa ; se não há abertura há prisão
- pelo menos claustro -, mas não casa. Na casa se pode
estar - só é casa quando nela se entrou -, mas se pode sair;
e ainda que não se saia, aí está a rua, aí está o mundo, e pode­
se olhar pelas janelas ou balcões, alpendres ou açotéias ou ter­
raços , por clarabóias ou gelosias - por isso não são casas os
ed ifícios fechados voltados para dentro (que já não é dentro) ,
iluminados por luz elétrica, sem janelas , que por isso não estão
em nenhuma parte - E esse mundo que é contemplado de
.

dentro é " praticável " , como se diz no teatro , realmente se pode


sair para ele, é oferecido e não proibido ou negado. Isto é a casa.
Rosales antepôs à sua um " saguão " - assim o chama -,
um soneto belíssimo que preciso copiar inteiro . É o seguinte :

Si el corazón perdiera su cimiento,


y vibraran la sangre y la madera
dei bosque de la sangre, y se pusiera
toda tu carne en leve movimiento

total, como un alud que avanza lento


borrando en cada paso una frontera,
y f uese una luz fija la ceguera,
y entre el mirar y el ver quedara el viento,

y formasen los muertos que más amas


un bosque ardiendo bajo el mar desnudo
- el bosque de la muerte en que deshoja

1 44
un sol, ya en oiro cielo, su oro m udo -
y volase un enjambre entre las ramas
donde puso el temblor la primer hoja . . .

(Se o coração perdesse seu cimento,


e vibrassem o sangue e a madeira
do bosque do sangue, e se pusesse
toda tua carne em leve movimento
total, como alude que avança lento
e apaga a cada passo uma fronteira ,
e fosse uma luz fixa a cegue ira,
e entre o olhar e o ver ficasse o vento,
e formassem os mortos que mais amas
um bosque ardendo sob o mar desnudo
- o bosque da morte em que desfolha
um sol, já c m outro céu , seu ouro mudo -
e voasse um enxame e n t re as ramas
onde pôs o tremor a prime ira folha . . . )

Este soneto revela a " têmpera " , antecipa o " a rgumen to " de
La casa encendida, é verdadeiramente seu saguão - bem como
o p rólogo em prosa que o precede, fora do poem a , é o que os
andaluzes chamam seu " compasso " preparatóri o , onde a alma
se vai conformandó ao que a casa virá a ser, prometido já desde
a rua, desde o mundo - . O soneto começa com um condicional
- " Se . . . " - e termina , sem dele sair, sem conclusão, com
alguns pontos suspensivos . Se ocorresse tudo isso , se as coisas
fossem assi m , se a real idade mostrasse essa face , o quê? O poeta
nada diz, não conclu i nem fecha, deixa em aberto . A conclu­
são é o poema. Se tudo fosse assim . . . então La casa encendida.
Seria este o ingente " raciocínio " lírico .
A interiori dade está aberta . Pode-se v i ver dentro desse so­
neto, mas não é u m término : abre-se para o exterior pela j a n ela
dos pontos suspensivos . A " o ração principal " está na rua, fora ,
no amplo mundo . Por isso funciona como uma casa : den tro
mas abert o .
As quatro casas - q u e n ã o aparecem em o r d e m tempora l ,
muito p e l o contrário, a d o s p a i s se manifesta c a d a v e z mai s
ao final do poem a , numa volta essencial : " viver é ver voltar " ,
diz Rosales repe t i n d o Azorín - não terminam, nem a rigor
tampouco começa m : persistem, perduram , se p rolongam , se an­
tecipam , pode-se t r a n s i t a r idealmente de uma para o u t ra , porque
todas são a casa. ( A Faculdade, com suas pessoas vivas , com
seus nomes próprios bem conhecidos, com sua a l egria e seus
dramas em surdina ou em silêncio, com seu li rismo , é p a ra m i m
especialme n t e comov e n te e l u m i nosa : a recriação por o u t ros o l h os
de " me u " mundo de cinco anos e de todos os que v i e r a m
depoi s . )

1 45
A forma em que Rosales consegue essa interioridade aliada
à abertura é, sobretudo, a metáfora ; porque a metáfora é isso
mesmo : a expressão na qual se pode estar mas que nos lança
fora, para além de si mesma . Como a vida humana, a metá­
fora é vetorial - para usar o conceito de que tanto me . servi na
A ntropología metafísica - Por exemplo assim :
.

y ahora es ya la memoria que se ilumina como un cabo de vela


que se enciende con otra,
y ahora es ya el corazón que se enciende con o tro corazón
que yo he tenido antes.
(e agora é a memória que se ilumina como um pedaço de vela
que se acende com outra,
e agora é o coração que se acende com outro coração
que eu tive antes) .

Ou então :
Volvíamos de la clase
donde nosotros nos sentábamos entre el latín y entre
el silencio de ella.
(Voltáva. r l a s se
onde nos sentávamos entre o latim e entre
o silêncio dela.)

Ou, mais adiante :


Las personas que no conocen el dolor son como iglesias sin
bendecir.
(As pessoas que não conhecem a dor são como igrejas sem
benzer.)

E, quando se volta à sua infância - ou então lança o


olhar para trás - as metáforas se multiplicam : o velhinho que
vendia doces tinha cara de lápis; sua mãe, mesmo antes de noiva,
era núbil,
y era morena muy despacio,
y hablaba desde dentro de un n iíío;
(era núbil,
e era more n a m u i to devagar,
e falava de dentro de uma criança) ;

e na meninice al cansancio le llamábamos noche todavía, ao


cansaço chamávamos noite ainda;
y Pepona llegaba hasta nosotros con aquel alborozo d e negra
en baíío siempre,
con aquella alegría de madre con ventanas
que hablaban todas a la vez . . .
y eran tan perezosa,
que sólo con sentarse
comenzaba a tener un gesto completamente inútil de paííuelo
doblado,
de paííuelo de hierbas.
(e Pepona chegava até nós com aquele alvoroço de negra em
banho sempre,

146
com aquela alegria de mãe com janelas
que falavam todas de uma vez . . .
e era tão preguiçosa,
que só ao sentar-se
começava a ter um gesto completamente inútil de lenço
· dobrado,
de lenço florido) .

E Luis Cristóbal cresceu e m sua vida


como se clava una bisagra en la puerta para evitar que se
desquicie.
(como se prega uma dobradiça à porta para evitar que se
desencaixe) .

Rosales faz uso da metáfora de modo ainda mais deliberado


e profundo nos versos dedicados ao pai - a pessoa a quem
mais quis no mundo -:
t ú que sigues llevándome e n l a voz igual que azucar desleída . . .

y trabaias por entero


como trabaian las raíces en la tierra y las monias hospitalarias .
. .

y hablabas necesariamente
como el minero busca la salida en la mina cuando se ha
hundido la galería.
(tu que continuas a levar-me na voz como açúcar diluído . . .
e trabalhas todo inteiro
como trabalham as raízes na terra e as monjas hospitaleiras . . .
e falavas necessariamente
como o mineiro busca a saída na mina quando ruiu a galeria) .

Em certo sentido, é a recapitulação . O diálogo com o pai


é a volta às origens tendo como ponto de partida o presente
- melhor, o futuro, os projetos -, é a volta à casa a partir
da outra casa , a partir da definitiva? Não, não há senão uma,
e não é a nossa , nem a dos pais - talvez sim, a do Pai -.
Mas o que fica claro é que só se pode estar na casa de hoje
quando se volta às de ontem - a todas as de ontem - ; e
que só se pode voltar a estas partindo de hoje e de amanhã :
só o homem vivo pode voltar, aquele que somos e queremos
ser; não o morto que permaneceu no passado . Só então pode
a casa estar iluminada.

1 97 1

1 47
Gerações:
As mudanças do mundo

No escrito em que Ortega mais formalmente se defrontou


com o tema das gerações - En torno a Galileo, 1 933 - fazia
ele uma distinção decisiva : a) que algo mude no mundo ; b)
que mude o mundo . Todos os anos, e talvez todos os meses,
algo muda " no mundo " - e às vezes esse algo é muito impor­
tante -; mas cada quinze anos , quando uma nova geração
alcança o poder; muda "o mundo " - ainda que seja um pouco
-; produz-se, pois, uma mudança " do mundo " .
E m meu livro El método histórico de las generaciones ( 1 949)
desenvolvi consideravelmente estas idéias e me detive na aná­
lise de seus principais problemas ; sobretudo, do decisivo : a de­
terminação da série efetiva das gerações, e portanto das datas
em que se dão as mudanças globais, as mudanças " do mundo " .
Mas tudo isto depende d o que s e entenda por " o mundo " .
A escala das gerações é válida dentro de uma sociedade ;
se tomamos duas sociedades inteiramente diferentes e incomu­
nicantes - qualquer das americanas pré-colombianas e qualquer
das européias na mesma época -, não há naturalmente a me­
nor conexão, e seus desenvolvimentos geracionais terão que ser
absolutamente independentes. Quase o mesmo poder-se-ia dizer
de sociedades " conhecidas " entre si mas que de nenhum modo
formam uma (digamos a China e a Veneza de Marco Polo) . O
problema se articula com uma agudeza muito maior quando
sociedades " diferentes " estão realmente presentes umas às outras
e em certo sentido formam parte de uma unidade superior co­
mum, embora tênue e não plenamente saturada. e. o caso das
diversas nações européias ; ou dos países da América ; ou de
umas e outros dentro do mundo ocidental; ou, finalmente, dos
" mundos" que hoje coexistem e talvez convivam uns com os
outros, mais ou menos pacificamente mas com múltiplas rela-

1 49
ções e conexões. Que acontece então? Quando - e onde -
se produzem as mudanças geracionais, as mudanças " do mundo " ?

Durante muitos anos estudei com atenção a sucessão das


gerações espanholas , primeiro nos séculos XIX e XX, depois
incluindo o XVI I I , finalmente desde o século XV até a atuali­
dade. Os resultados são surpreendentes ; os agrupamentos de no­
mes mostram-se como personagens coletivos da história e a
tornam inteligível ; em muitos casos, as anomalias de certas fi­
guras tornam-se compreensíveis no momento em que se as vincula
a uma geração e, sobretudo, se define seu posto dentro dela e
suas relações com as imediatas . No presente livro reúno uns
tantos estudos em que se vê isto muito claramente.
Quais são os limites de validade desta escala? Pode-se apli­
cá-la fora da Espanha? :f: muito provável que, pelo menos
desde o século XVI I I , a escala da Europa ocidental seja uma e
a mesma . E . a América? O único estudo verdadeiramente rigo­
roso sobre um país americano (Las generaciones argentinas, de
Jaime Perriaux) chega a uma escala que difere da que encontrei
na Espanha . A escala de Perriaux, tomando datas de nascimen­
tos, é para a Argentina a que segue :
1 760 - 1 775 - 1 790 - 1 805 - 1 820 - 1 83 5 - 1 850
- 1 865 - 1 880 - 1 895 - 1 9 1 0 - 1 925 - 1 940.
A minha para a Espanha, na mesma época seria:
1 766 - 1 78 1 - 1 796 - 1 8 1 1 - 1 826 - 1 84 1 - 1 856
- 1 87 1 - 1 886 - 1 90 1 - 1 9 1 6 - 1 93 1 - 1 946.
:f: muito possível que ambos tenhamos razão. :f: igualmente
verossímil que, estudadas de perto as gerações do México, do
Brasil ou dos Estados Unidos, se obtenham escalas que difiram
da espanhola, da argentina e talvez entre si. Cada sociedade é
uma unidade dentro da qual exercem pressão certas vigências
que condicionam a vida e estabelecem o alvéolo por onde trans­
corre o imprevisível conteúdo da história. Mas então se propõe
um problema inevitável : que acontece com "o mundo " ?

Durante muito tempo, cada sociedade nacional (ou seus


equivalentes onde não se tratasse estritamente de " nações ") es­
tava primeiramente dentro de si mesma. O perfil das pressões
sociais exercidas sobre cada indivíduo provinha dela ; a maior

1 50
parte dos estímulos eram internos; os exteriores eram muito
poucos e além disso tardios, quer dizer, chegavam muito depois
de se haverem originado, " frios " , se vale a expressão, com pouca
força de impacto. Em outras palavras, as sociedades eram mol­
dadas principalmente em sua interioridade.
A situação atual é inteiramente distinta . Embora as na­
ções continuem possuindo uma personalidade forte, as socie­
dades sejam plenamente saturadas e, o que é grave, permaneçam
em grande parte " fechadas " e com uma ignorância tremenda em
relação às demais, não é menos certo que seus contatos são fre­
qüentíssimos , que o que acontece em uma afeta a muitas outras ,
que os problemas mais variados ultrapassam as fronteiras na­
cionais, que se recebem em cada país , todos os dias, estímulos
exteriores incontáveis, imediatos e com eficácia total .
A verdade é que , deste ponto de vista , o mundo atual não
se apresenta com muita clareza. As sociedades nacionais, que
acabamos de ter como fechadas, que se desconhecem profunda­
mente entre si, revelam-se ao mesmo tempo como abertas e ex­
postas a todos os ventos , bombardeadas sem cessar por agentes
que vêm do exterior, a ponto da intimidade e personalidade
de cada uma se tornar problemática. Não é fácil saber a que
se ater.
Eu sugeriria uma interpretação . As nações continuam iso­
ladas, fechadas , incomunicadas umas em relação a outras. O
que cada uma realmente é, em sua profundidade - em seu
mistério, porque todo país é misterioso -, permanece oculto
para as demais, que não penetram nessa singular " intimidade
coletiva " nem, a rigor, por ela se interessam . A " abertura " evi­
dente dos países não é " aos outros " e sim " ao mundo " (ao
mundo em que uns e outros estão) . Há uma porção de conteú­
dos que não são franceses, nem espanhóis, italianos, argentinos,
mexicanos, norte-americanos ou australianos, mas " ocidentais " ;
e alguns que não são nenhuma dessas coisas , nem russos , chine­
ses ou africanos, e sim " de 1 974 " sem mais restrição .
Permanecendo, pois, o isolamento, a clausura , a incomuni­
cabilidade dos países, haveria, todavia, um mundo no qual estão ,
algo que seria lícito chamar um " mundo ambiente " num sentido
análogo àquele em que se fala de " meio ambiente " . (A diferença
está em que " meio " é um conceito biológico, " mundo " um
conceito humano, histórico-social . o homem como tal não está
num meio, vive num mundo, uma de cujas dimensões abstratas
é o meio.)
Nesse " mundo ambiente " vivemos tanto quanto em nos­
sos países . Nossa ótica muda de uma perspectiva a outra. Às ve-

1 51
zes atendemos só ao mundo , deixando esquecidas as zonas d e
nossa v i d a q u e permanecem i ntactas e ocultas, n a matriz de
nossa sociedade particular ; outras vezes nos atemos a esta, pen­
samos só n el a , esquecendo que está no mundo e que seu destino
terá que depender de seu conjunto . Paradoxalmen t e , quando os
espanhóis se ocupam de política - quero dizer de falar de polí­
tica -, esquecem o resto do mundo e só têm olhos para a
real idade i ntra-espanhola , apesar de que a dimensão política d a
vida é a mais condicionada p e l o " mundo ambiente " , s e m o qual
nada é i n teligível - nem, naturalmente , v iável .
Voltemos porém às gerações . As mudanças " do mundo " não
podem , hoj e , reduzir-se aos l i m ites de nenhum país , nem sequer
dos maiore s . Afetam ao " âmbito " em que todos estão , onde se
encontram e convivem . É aí que acontecem as mudanças deci­
sivas , que - pouco depois - ecoam em cada u m dos países e
os modificam . É muito possível que cada um dos centros de
ressonânci a , i s to é , cada uma das sociedades saturada s , estej a
a uma determinada " distância h i s tórica " do mundo envolvente .
Do mesmo modo que podemos medir a distância a que está u m a
tempestade contando os segundos entre o relâmpago e o trovão ,
poderíamos calcular essa distância h i s tórica observando o inter­
valo entre as mudanças do mundo e sua repercussão em cada
uma das sociedades . I sto aj udari a a estabelecer essa " cartografia "
histórico-social com que sonho h á vinte e cinco anos .

Não me surpreenderia que a escala geracional do " mundo


ambiente " coincidisse com a que propus para a Espanh a . Não
se trata de nenhuma megalomani a ; para certificar-s e , basta que
se tente formular ao contrári o . A Espanha tem estado quase
sempre - desde que foi Espanha , há cinco séculos j u stos - no
centro do mundo ; contribuiu para " fazê-lo " talvez mais que
qualquer outro país si ngular : " padeceu-o " em carne viva, num
longo e dramático processo, tão desconhecido mesmo pelos espa­
nhóis . Não é inverossímil que a escala das gerações espanholas
coinci da com a que podemos chamar " mundial " .

S e assim for, dentro d e dois anos, em 1 976, estará s e pro­


duzindo uma rendição geracional, e com ela uma mudança " do
mundo " . Não só por estas razões teóricas e formais, como tam­
bém por outras inúmeras e concretas , é com esperança que olho
esse ano . Anote o leitor a modestíssima e próxima profecia :
e m 1 976 , 1 974 parecerá estranhamente longínquo .

1 974

1 52
Gerações :
Augustos e Césares

Como a teoria das gerações é intrinsecamente metódica ,


modifica-se ela e se enriquece ao contato com a realidade histó­
rico-social . É sempre a realidade que decide, é ela que impõe
as retificações quando necessárias, a que reclama os comple­
mentos de uma teoria sempre em desenvolvimento , que é em
si nada mais que um instrumento para apreender e dominar
conceptualmente essa mesma realidade . Há muitos anos intro­
duzi o conceito - adequadamente metafórico - de " constela­
ções " para indicar aqueles agrupamentos de homens que se
apresentam como uma unidade geracional , embora possam real­
mente pertencer a duas, do mesmo modo que as estrelas de
uma constelação estão próximas num plano visual . Quando al­
guém é muito precoce , parece incorporado à geração anterior e
sua " idade social " maior que a real ; quando , pelo contrário ,
alguém é tardio - pelo menos em sua manifestação pública
-, torna-se socialmente mais jovem e incorpora-se à geração se­
guinte , formando " constelação " com ela, embora no fundo per­
tença radicalmente à que lhe corresponde. (J� este, creio eu, o
caso de Pedro Salinas e Jorge Guillén , nascidos em 1 89 1 e ja­
neiro de 1 893, respectivamente, dentro dos limites cronológicos
da geração de 1 886, mas cuj a atividade literária e publicações
coincidem com as da geração de 1 90 1 . O primeiro livro de Sa­
linas publica-se em 1 92 3 , o primeiro de Guillén em 1 928, en­
quanto o primeiro de Juan Ramón J iménez - nascido em
1 88 1
- é de 1 900.)
Ora, no século XX - e não antes -, o prolongamento da
vida média e, o que é mais, da vida ativa, a longevidade ca­
racterística de nossa época, introduz modificações muito graves.
Até o século passado, os homens costumavam morrer em torno
aos sessenta anos ; em qualquer momento que se tomasse, eram
poucos os homens maiores dessa idade que restavam, e a maio-

153
ria dos sobreviventes tinham uma vida diminuída pela velhice e
por achaques. O fato de que sempre tenha havido velhos ativos ,
lúcidos, enérgicos, em pleno vigor, não alterava a situação : eram
indivíduos isolados , " sobreviventes " de uma geração muito di­
zimada pela morte e invalidez, que como tal já não estava na
ativa. Cada geração era, poi s , rendida ao cumprir os sessenta
anos, quando deixava de exercer o " poder social " e passava à
reserva.
Este esquema deixou de ser válido. Os homens com mais de
sessenta anos e plenamente ativos são hoje legião . Repassando-se
os nomes signi ficativos, os titulares do poder em todas suas for­
mas - político, econômico, técnico, administrativo , intelectual,
artístico - ver-se-á que uma parte enorme corresponde aos que
têm mais - às vezes muito mais - de sessenta anos. Que
acontece com o esquema das gerações ?

Teoricamente, há duas possibilidades, que se me apresen­


taram dessa maneira desde a primeira edição de meu livro El
método histórico de las generaciones ( 1 949) . De forma muito re­
sumida, indicava a convivência , em todo e qualquer momento,
de quatro gerações (contemporâneas, mas naturalmente não coe­
tâneas) : a) os " sobreviventes " da época anterior ; b) os que estão
no poder; c) a " oposição " , a geração com eficácia histórica ple­
na, mas que ainda não se impôs e luta com a anterior; d) a ju­
ventude que inicia uma nova vocação.
Pois bem , ao prolongar-se a vida e a vigência histórica , em
princípio podem suceder duas coisas : que o ritmo das gerações
se altere, que o intervalo geracional e a vigência de cada gera­
ção, em lugar de ser quinze anos (como " número redondo " ) ,
seja algo mais, dezoito, talvez vinte ; o u então que , mantendo-se
o mesmo ritmo, haja em cena mais uma geração.
Numa nota dessa primeira edição (p. 1 82) eu escrevia :
" A maior freqüência da longevidade e, sobretudo , o aumento
da duração da vida média teve em nosso século uma dupla con­
seqüência : primeiro , que numa mesma data sobrevivam , em
número apreciável e em boa forma, representantes da geração
anterior à que chamo a) ; segundo - e isto é mais importante
-, que os desta sejam mais numerosos que em outros tempos,
e portanto com maior eficácia . Se este fato se confirmar ou se
acentuar, talvez seja necessário ter presentes cinco gerações em
vez de quatro, alterando-se a função histórico-social da segunda. "

1 54
Ao fim de um quarto de século, não resta dúvida : a gera­
ção que em outros tempos era uma geração " de saída " , não
" sai " ao completar os sessenta anos e permanece em cena. Que
acontece com as demais? Sobretudo, que ocorre à que chega -
como tal geração - aos quarenta e cinco anos ? Tem realmente
acesso ao poder social ? E es_ta a questão.

Recorramos de novo a uma metáfora, esta vez histórica .


E sabido que no ano 293 de nossa era, Diocleciano decidiu
fortalecer o Império - dividido nas duas grandes seções de
Oriente e Ocidente -, estabelecendo, junto ao imperador prin­
cipal e propriamente dito, o Augusto, um César associado ao
Império e sucessor provável . Deste modo, a função imperial
articulava-se em duas : o Augusto exercia a potestade suprema,
associava o império a um César, que em seu devido tempo se
converteria em Augusto e tomaria um novo César.
Pode aplicar-se este esquema à escala das gerações . A que
está " no poder " é primariamente a que deveria haver " saído "
de cena : a que está entre os sessenta e os setenta e cinco anos ;
exerce o poder social, " associada " a ela, a que em outros tem­
pos teria sido a única titular : a compreendida entre os quarenta
e cinco e os sessenta . À " monarquia " de uma só geração sucede
a " diarquia " . Quando Jaime Perriaux fala de " geração reinan­
te " , é mister distinguir: como Augusto ou como César. Haveria,
pois, gerações-Augustos e gerações-Césares; ou, se se achar me­
lhor, " geração augusta " e " geração cesárea " .
Naturalmente, a s funções respectivas de uma e outra não
se podem estabelecer a priori ; será seu funcionamento efetivo
que as determinará . E cedo ainda para que saibamos a que
nos ater. Sem dúvida, j á se esboça um esquema de relação, mas
a coisa não está decidida, é uma questão aberta . E também
não está dito que essa relação seja unívoca e sempre a mesma .
Por exemplo, se as duas gerações " associadas " são " cumulati­
vas " , a relação sení muito diferente da que possa estabelecer-se
entre uma gerac,:üu · a ugusta e a cesárea, se esta for " polêmica " .

Façamos a tentativa de u m pouco de concretude. S e toma­


mos a escala de gerações que proponho para a Espanha -
deixando aberta a possível extensão a outros países -, encon­
tramos o seguinte :

1 55
Geração " sobrevivente " , 1 886 (nascidos entre 1 879 e 1 893) .
G eração " augusta " , 1 90 1 (nascidos entre 1 894 e 1 908) .
G eração " cesárea " , 1 9 1 6 (nascidos entre 1 909 e 1 923) .
Geração " ascendente " , 1 93 1 (nascidos entre 1 924 e 1 938) .
G eração " juvenil " , 1 946 (nascidos entre 1 939 e 1 953) .
Mas, se este esquema é válido, dentro de dois anos, em
1 976, cumprir-se-á a " rendição " das gerações . Então, todas gal­
garão um posto : entre 1 976 e 1 99 1 , será " augusta " a de 1 9 1 6 ,
" cesárea " a d e 1 93 1 , " ascendente " a d e 1 946, " j uvenil " a de
1 96 1 . A de 1 90 1 será " sobrevivente " , outeiro a testemunhar o
passado imediato, reserva histórica j á fora da arena, e a de
1 886 acabará de transpor a linha além do horizonte histórico .

1 974

1 56
A i nversão do ensaio

P rime i ro, começou com os l i vros de e r u d i çã o ; depois con­


tinuou com as teses doutorais, os trabalhos apresentados a con­
gressos e concursos de méritos ; mais ta rde , com os l i vros " cien­
tíficos " . A coisa iniciou-se na Alemanha , h á m e i o século mais
ou menos ; foi-se estendendo pela Europa, atravessou o Atlân­
tico, e do hemisfério ocidental reflui novamente sobre as costas
européi a s . O que que se chamava Gelehrsamkei e hoje costu­
ma cham ar-se scholarship se foi identificando com as ci tações
e as re ferências b ibliográficas . A razão principal e r a que a am­
plitude b ibliográfica parecia algo suscetível de " quantificação "
e permitia uma valoração automática . Quantas notas ao pé da
página tem este trabalho ? Cento e cinqüenta ; então é e viden­
temente superior ao que traz apenas sessent a .

A s " ci tações " não são, no entanto , o ú l t i m o refi namento .


Ten de-se cada vez mais à referênci a b i b l iográfica pura : enume­
ram-se , d o modo mais detalhado e " rigoroso " possível , em cada
n o t a ao pé da págin a , dezenas de t í t u l o s d e l ivros ou artigos em
várias l ínguas . Qualquer afirmação do texto - mesmo a m a i s
t r i v i a l - t r a z u m a chamad a , e em nota s e a d u z e m dez , v i n t e
ou trinta títulos de t r a b a l h o s que , se supõe , " têm q u e ver " com
o que a l i se imprimiu . Têm que ver? Não há maneira de sabê-lo .
Natural m e n t e , não s e e x p l ica nada . S e s e o fize s s e , cada nota
bibl iográfica se expand i ri a em dez ou quinze pági n a s , e como
cada pági n a de texto traz dez ou qu inze notas , cada página
deveria trazer entre cem ou duzen tas pági nas de anotaçã o , o
que levanta d i ficuldades óbvi a s . I sto me lembra o que ocorre
com certas partituras de música " moderna " : são intrincadas ,
com plicadas , mas sobretudo imensas ; eu não sei ler a notação
musical - como t a n tos crít icos -, mas a d i fi culdade é outra :
essas p a r t i t u ras não se podem ler a nenhuma distância ; de per­
to, é i mpossível as ter abertas i n t e iramente e são inab arcávei s ;
à d istância em q u e s e a s pode contemplar, n ã o s e podem d i s t i n -

1 57
guir os signos ; em suma, são ilegíveis, e suspeito que não sejam
lidas.
E. o que acontece às notas da maioria dos tratados contem­
porâneos : não são feitas para serem lidas e sim para serem
" contadas " , computadas, para darem " peso " ao texto, impres­
sionar o leitor e garantir ao autor o que se chama status. E.
muito freqüente que os trabalhos citados estejam em línguas que
o autor não lê - ou muito precária e penosamente -; mas
se esses trabalhos existem, como não os citar? Pouco importa
que, como não se pode citar tudo, falte o essencial, o único
que se deveria citar - há muitos anos , em meu artigo " Macha­
do e Heidegger " , mostrei como inúmeros trabalhos eruditíssi­
mos sobre a relação entre o poeta espanhol e o filósofo alemão
omitiam o único livro necessário , aquele que proporcionara a
Machado s ua informação sobre Heidegger, incluído algum erro
e várias erratas -. É curioso Cft1e nas bibliografias faltem sem­
pre trabalhos importantes dedicados ao tema em questão, quando
este tema não aparece em seu título, o que sugere uma familia­
ridade maior com os títulos do que com o que há atrás deles.
Há porém um aspecto elementar e quantitativo que não
parece desdenhável. Quanto tempo é necessário para se ler um
livro ou um artigo? Quantos se podem . ler? Supondo que não
se faça outra coisa - nem passear, nem falar com os amigos,
nem contemplar paisagens , visitar cidades ou museus , nem ver
as garotas passarem, nem pensar -, é claro que não se pôde
ler nem a décima parte do que se cita. O que quer dizer que
esses nomes e títulos se tomam em vão, ou seja, em falso .

A ú l tima modalidade consiste, no entanto, em alguma coisa


ainda mais inquietante : o acúmulo bibliográfico passou dos livros
ou teses aos ensaios . Nas revistas de hoje, as notas ao pé da pá­
gina em letra pequena ocupam, cada vez mais, uma extensão
maior ; ou então, acrescentam-se ao final páginas e páginas ; sen­
do possível , com fórmulas e signos crípticos ; talvez com esque­
mas e diagramas, em geral absolutamente óbvios e destinados a
emprestar " mistério " a alguma trivialidade. E não me refiro
aqui às revistas " técnicas " ou especializadas mas sim àquelas
que costumavam chamar-se " de cultura " ou " literárias " , as que
pretendiam passar em revista uns tantos temas variados e de
interesse geral .
Há sessenta anos justos, em Meditaciones dei "Quiiote ",
Ortega escrevia: " O ensaio é a ciência menos a prova explícita.

1 58
Para o escritor é uma questão de honra intel ectual nada escre­
ver suscetível de prova , sem possuí-la antes . N ada o impede ,
porém, de apagar em sua obra toda aparência apodítica , deixan­
do as comprovações meramente indicadas em elipse , de modo
a encontrá-las quem as necessite, sem sufocar o íntimo calor
com que os pensamentos foram pensados . I nclusive li vros de
intenção exclusivamente científica começam a escrever-se em
estilo menos didático suprimindo-se no possível notas ao pé da
página, e o rígido aparato mecânico da prova dissolve-se em
elocução mais orgânica, animada e pessoal . " < 1 >
" A ciência, menos a prova explícita. " Sim, mas a questão
está em que, se das notas voltamos ao texto dos ensaios atuais,
e nos perguntamos " o que dizem " , qual é sua doutri n a , numa
grande proporção dos casos não a encontramos. Os autores nada
" dizem " , não iluminam a realidade, não nos esclarecem um as­
pecto ou uma parcela da mesma. Muitas coisas são menciona­
das, faz-se algum enunciado dogmático , não justificado , como
se fosse óbvio, ou de passagem, em seguida precipitam-se as
citações de autores e títulos.
Pergun te-se aos entusiastas dos autores que gozam hoje de
mais apreço e prestígio : que pensam? qual é sua doutri n a ? como
se pode resumir e comunicar sua visão da realidade? O prová­
vel é que se receba como resposta o silêncio ou uma catarata
de notas bibliográficas . Isto explica o fato surpreendente - e
quem sabe consolador - de que estes autores desapareçam brus­
camente do cenário e sejam esquecidos , no momento cm que
deixem de ser mencionados e citados : nada deixaram atrás de
si, não constavam nas mentes dos leitores, não significavam uma
doutrina ou teoria, mas apenas uma " freqüência de menção " e
nada mai s. Há um mundo da citação que vive em si mesmo, su­
jeito a suas próprias normas , e nisso se esgota . E tais autores
se asfixiam no momento em que se deixa de ministrar-lhes a
respiração artificial ; não vivem no mundo, vivem no pulmão de
aço da propaganda.
Mas isto quer dizer a inversão do ensaio. Segundo a expres­
são de Ortega , é "a ciência, menos a prova explícita " ; o que
agora circula é "a prova explícita, menos a ciência " .

1 974

(!) Meditações do Quixote, Jos� Ortega y Gasset - Comentário por Jullán


Marias, Livro Ibero-Americano Lida. 1 967. (N. do T . )

1 59
O lugar da literatura
na educação

1 . Que função atribui ao estudo da Literatura, no seio de uma


sociedade como a nossa?

Dou cada vez mais importância ao estudo da Literatura.


Tem sido - e continua sendo, por sua presença ou ausência
- o fator decisivo que determinou o interesse dos homens por
certos temas . Para que se interessassem pela história , fez-se mis­
ter cantá-la, expressá-la literariamente; não esqueçamos o pro­
blema central em filosofia de sua versão literária, de sua reali­
zação em formas literárias (veja-se meu ensaio " Los géneros li­
terarios en filosofía" em Ensayos de teoria) ; os grandes feitos,
para serem exaltados, para existirem historicamente, necessita­
ram uma interpretação por meio da literatura. Não estamos as­
sistindo - eu, pessoalmente, escandalizado - à indiferença
geral pela exploração espacial, pelas viagens à Lua, pelo Skylab,
que se podem contar entre os feitos mais extraordinários do ho­
mem? Várias causas o explicam ; mas uma delas é sem dúvida
a ausência de um tratamento literário adequado (o que, por
sua vez, mereceria uma explicação) .
Por outro lado, a Literatura tem sido o grande instrumento
de interpretação das formas de vida humana, e portanto a b ase
da inteligibilidade da história. Na poesia, na narração , no teatro,
sobretudo na novela, a vida fez-se transparente a si mesma. En­
tendemos os povos ou as épocas na medida em que nos legaram
uma ficção adequada, que os documentos não conseguem suprir.
A história grega é diáfana entre todas as outras porque podemos
ter diante dos olhos os poemas homéricos, a tragédia e a comé­
dia, a lírica, os diálogos de Platão e Luciano, as narrações tar­
dias. Em outro extremo, a " opacidade " da Espanha visigoda,

1 61
apesar da densidade documental, se deve à ausência de ficção,
o que torna difícil entender o que era viver em Toledo ou Se­
vilha no século V I , no século VI I . O Romancero , o Teatro clás­
sico, a Novela do Século de Ouro, têm sido os instrumentos
mais poderosos para a constituição da Espanha como sociedade,
como Nação, tendo permitido que os espanhóis se reconheçam
e se projetem como realmente são , como espanhóis. O mesmo
poderia ser dito no tocante aos demais grandes povos históricos .
E aqueles que não tiveram uma grande Literatura , nessa mesma
medida não conseguiram ser grandes - entenda-se, humanamen­
te grandes , com grandeza humana e fecundidade histórica -.
Sem Literatura , podem-se fundar grandes impérios baseados no
terror e no domínio material, mas não outra coisa ; e sua fuga­
cidade acontece ser tão grande quanto sua esterilidade .
Em terceiro lugar, a Literatura é o único meio de projeção
pessoal do homem . A vida humana, uma operação projetiva,
que se faz para frente, futuriça, real mas orientada para o fu­
turo, feita de antecipação e imaginação, é " faina poética" -
a expressão é de Ortega -. O homem é , acrescentava ele, " no­
velista de si mesmo , original ou plagiário " . Não posso conviver
com os outros sem imaginá-los, sem sobre eles projetar " novelas
de urgência " elementares que os façam inteligíveis para mim,
como também não posso viver sem inventar-me como persona­
gem, com um argumento e uma tonalidade - poética ou, pre­
ferindo-se , antipoética -. Não se trata de que isto " deva ser
assim " , mas de que é esta a condição mesma da vida, tal como
a descobre a filosofia de nosso tempo (pode ver-se minha Antro­
pología metafísica, 2 .ª ed., 1 973) . < 1 > A literatura é instrumento
de humanização, e por isso poder-se-ia fazer uma história em
que se medissem os graus de humanidade pelo desenvolvimento
literário . Não se esqueça que para os gregos a paideía, a " educa­
ção " no sentido forte da palavra (próximo à Bildung alemã) ,
era primeiramente o estudo dos poemas homéricos e outras for­
mas de ficção, não a filosofia ou as ciências, cuja descoberta
constitui o mérito original da Grécia .

Considerando agora o caso d e uma sociedade como a nos­


sa, isto é, a espanhola do século XX, encontramos alguns traços
particularmente interessantes . A cultura espanhola, que é for­
midável e uma das mais ilustres a florescer na superfície do

( 1 ) Cf. Antropologia Metafisica, Livraria Duas Cidades , São Paulo, 1 97 1 .


( N . d o T.)

1 62
planeta - cada vez mais, isso me parece evidente -, foi uma
cultura incompleta. Não é esta uma razão para desânimo ; pelo
contrário, é motivo para completá-la, para integrá-la com o que
lhe faltou ou continua lhe faltando . Mas o fato é que sempre
foi uma cultura literária; isto é, os espanhóis fizeram sempre
literatura, sem esmorecimento. I sto implica que não se pode
manter a continuidade e coerência da cultura espanhola a não
ser ao fio da literatura, fazendo desta, se não nossa coluna ver­
tebral, nosso sistema nervoso. Na Espanha, a literatura é o órgão
da sensibilidade nacional. Esquecê-la significa a insensibilidade,
a " anestesia " , a atonia - talvez seja o que muitos procuram
- . A perda da Literatura espanhola é a via mais segura de
" alienação " , o caminho de que a Espanha deixe de ser um
povo, para converter-se em uma massa sem memória histórica,
sem uma modulação peculiar diante da vida, sem projetos, ex­
posta a toda classe de manipulações.
Mas não é só isso . A Espanha, desde que é uma nação,
já há meio milênio, nunca foi só Espanha, ou talvez melhor,
nunca esteve só. Foi uma Monarquia em dois continentes, uma
nação transnacional e não nacionalista, criadora - melhor ge­
radora - de outros povos, não exclusivamente ocidentais, com
os quais fez sua vida histórica (que não foi exclusivamente oci­
dental) ; estes povos, ao se ocidentalizarem, em certa medida de­
socidentalizaram a Espanha, incorporando-lhe dimensões que ou­
tros países europeus não possuem. Existiram " as Espanhas " -
das quais a nossa era só uma -, povos " hispânicos " que não
eram só espanhóis, como os povos " românicos " não eram ex­
clusivamente romanos, latinos . Como houve uma România exis­
tiu uma Hispânia transatlântica, transcontinental .
Pois bem, o vínculo capital entre estes povos é a língua, a
qual está " realizada " , fixada, unificada numa Literatura. Sem
ela , não somos - nem os espanhóis nem, é claro, os hispano­
americanos -. Para estes é questão de vida ou morte histórica
a conexão mútua, e não menos a " espessura histórica " , que lhes
vem de uma tradição literária que arranca do Poema dei Cid
ou das jarchas < 2 > . Sem isto, a que indigência ficaria reduzido
cada país hispânico? E como a projeção histórica da Espanha
ou de qualquer país hispânico só é possível dentro do marco de
seu conjunto, a Literatura é o veículo de nosso futuro .
Finalmente, no momento em que os países do mundo (e al­
gumas unidades políticas que não o são) procuram o que se

(2) Pequenos poemas lfrlcos, multo simples , que datam do séc. XI, escritos
primeiramente pelos árabes e depois também pelos judeus da Espanha, e que se
denominavam Muwashshahas, cuja última estrofe devia ser na língua vulgar, o es·
panhol. (N. do T.)

1 63
chama sua ''. identidade " , ao ponto extremo de que o . mundo re­
caiu num nacionalismo absolutamente arcaico, corre perigo a
expressão literária da personalidade da Espanha e dos países
·
hispânicos, na qual nós, homens de uma mesma língua, nos
divisamos, nos encontramos e nos reconhecemos . E note-se que
esse tremendo perigo de nacionalismo exclui-se, porque precisa­
mente nossa Literatura é inconciliável com todo espírito nacio­
nalista.
Radicada numa tradição helênica e, sobretudo, latina, liga­
da desde suas origens ao cristianismo, com fortes elementos ger­
mânicos em sua épica, é uma Literatura européia, ininteligível
fora dos limites gerais da Europa . E como se isto não bastasse,
recebeu poderosos estímulos judaicos e muçulmanos, organi­
zou-se em diálogo fraterno ou polêmico com as culturas orien­
tais. Finalmente, associou-se desde o século XVI às culturas
indígenas da América. Nosso D icionário acadêmico contém inú­
meros " americanismos " que por um lado são termos das línguas
indígenas originárias e por outra as vicissitudes da língua espa­
nhola em sua vida transatlântica.
Se há uma Literatura que não pode ser na'cionalista , é a
espanhola - a menos que deixe de ser literatura para conver­
ter-se em qualquer sermão interessado . J;: uma Literatura
-

universal, não por esse fato de compreender tantos países mas


porque é universal em cada um deles. Se há uma demonstração
pertinente do que é o mundo, de como se constituiu isso que
chamamos Ocidente - uma realidade que consistiu em trans­
cender a si mesma, em ir além de si mesma, em entusiasmar-se
pelo alheio e incorporá-lo, transformando-se -, essa é a Lite­
ratura espanhola. Esta seria, em minha opinião, sua função
principal, o que seu estudo adequado deveria tornar manifesto
à mente de todo homem ou mulher de língua espanhola.

2. Qual seria sua opinião ante a supressão de tal disciplina no


Ensino Geral Básico (antigo Bacharelato) e, inclusive, nas
Faculdades de Letras , para os alunos que não cursem as
especialidades em Filologia?

Minha resposta à primeira pergunta já deixa adivinhar que


me pareceria um erro gravíssimo, que acarretaria um dano per­
manente e irreparável às gerações atingidas por essa supressão .
Poucas coisas contribuiriam mais à " descapitalização " do espa-

1 64
nhol, e não só como espanhol mas também como europeu, como
ocidental, como homem simplesmente.
O Bacharelato deve dar a imagem do mundo no qual aque­
le que agora é estudante tem que viver. Isto leva, justamente,
a acentuar a importância das disciplinas científicas , que tendem
hoje a ocupar o primeiro plano . Mas é um erro - um erro de­
monstrável - crer que o homem vive única ou primeiramente
num mundo físico. O sentido imediato do mundo é o mundo
social, e isto significa um sistema de interpretações históricas,
expressas sobretudo na língua, que é a primeira interpretação
da realidade, à qual todas as demais se acrescentam. Ora, a
língua é inseparável da Literatura, porque a língua já é literá­
ria - a literatura é uma das dimensões da língua, e se falta,
trata-se de um estado de privação ou frustração -, e por outro
lado a língua vive literariamente, realiza-se plenamente em for­
ma literária, quero dizer que na literatura temos a língua fun­
cionando, não na forma abstrata de um dicionário ou de estru­
turas morfológica s ou sintáxicas .
A Literatura é condição imprescindível da imagem do mun­
do, da posse mental deste, e sua ausência conduz, por muitos
conhecimentos particulares ou técnicos que se acumulem , a uma
forma de primitivismo. I sto não é uma hipótese, e poder-se-iam
indicar inúmeros exemplos em que se patenteia, sob a ciência e
a técnica mais " sofisticadas " , o homem primitivo que perdura
em nossos dias, e precisamente em meios sociais e " culturais "
inconciliáveis com o primitivismo . ·

Quanto à supressão da Literatura nas Faculdades de Letr as,


isto parece demencial , a não ser que se vise à sua destruição ;
neste caso, seria inegável tratar-se de uma técnica habilíssima.
Parece cada vez mais evidente que a especialização só é fecunda
sobre um fundo amplo de saberes e experiências . Inclusive numa
carreira intelectual muito avançada, em pleno período de cria­
ção pessoal, faz-se necessário abandonar constantemente o " cam­
po " particular e principal , para considerar províncias limítrofes
e mesmo distantes. A filosofia remete continuamente à História,
à Sociologia, à Literatura ; o estudo da Arte, quando não se li­
mita a uma seca erudição, reclama a visão histórica, filosófica,
social ou literária ; e assim acontece em todas as direções possí­
veis. Se é isto o que ocorre quando o trabalho j á se concentrou
ao fim de muitos anos, o que não acontecerá na fase de forma­
ção, quando a primeira tarefa que se impõe ao estudante é saber
" onde colocar " as coisas, que lugar elas ocupam no sistema da
realidade?

165
A supressão da Literatura no ensino parece uma tentativa
de suicídio (supondo que aqueles que a propõem se considerem
" dentro " desse âmbito da cultura; se assim não for, teria que
ser vista como uma tentativa de assassinato e esterilização) .

3. A seu ver, em que pressupostos deve fundar-se a docência


literária?

Que me seja permitido lembrar uma pagma que escrevi


há cerca de vinte anos, mas que provavelmente foi pouco lida
pelos estudiosos da literatura em virtude do lugar de sua publi­
cação. Está em meu livro La estructura social (6 .ª ed. El Alción,
Revista de Occidente, Madrid , 1 972, cap . I I , Item 1 5 , " El pro­
blema de los supuestos " ) < 3> e é o seguinte :
" Pense-se na maneira habitual em que a história é feita e
nas exigências que uma verdadeira explicação dos fenômenos
literários impõe. Naturalmente não é póssível se restringir a um
catálogo ou repertório de autores e obras, e nesse ponto hoje
todo mundo está de acordo; tampouco não é suficiente a inves­
tigação das origens, fontes, antecedentes e influências. Mais
ainda, nem sequer basta a análise temática e estilística das obras
literárias . Evidentemente tudo isso é necessário, porém não se
terá chegado ao mais importante e, o que é grave, àquilo que
justifica tudo o mais .
" A compreensão e utilização de um texto literário, especial­
mente se se o quer fazer funcionar historicamente -- sej a para
fazer " história da literatura " ou história geral em qualquer for­
ma -, requer a elucidação do que é " literatura " em cada época.
e preciso determinar, em cada etapa concreta, quem faz lite­
ratura, que pessoas ou que grupos de pessoas, e para quem. Ne­
cessita-se, pois, precisar a personalidade social do escritor, o
conjunto de determinações - nada casuais, tampouco constan­
tes - que lhe conferem tal condição e, não menos que isso, a
área de seus leitores, tanto qualitativa quanto quantitativamente.
Não é indiferente - entenda-se bem, para a realidade estrita
da obra literária - quem escreve, se é um frade ou um secular,
um nobre ou um burguês, um homem que vive de sua pena ou
não - ou se esta o ajuda a viver -. Tampouco se pode passar
por alto se se escreve para dezenas de cortesões ou para as mas-

(3) A estrutura social, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1963, p . 77 e ss.
(N. do T.)

1 66
sas - e que massas ; urge precisar quantos - aproximadamente
- são os leitores possíveis em cada momento, e calcular quan­
tos deles lêem cada gênero literário ou certas obras representa­
tivas. O número dos que sabem ler, o dos que poderiam ler
por ter capacidade de adquirir livros ou ter acesso a eles ; o nú­
mero dos que por condição social são leitores; a presença maior
ou menor de mulheres entre eles etc. O número e tiragem das
edições de certas obras, a freqüência de reimpressões, o incre­
mento do ritmo de leitura - ou sua diminuição - num período
determinado, o prazo de vigência de cada obra como leitura,
antes de passar a tema de estudo - funções totalmente díspa­
res -, são questões de cujo esclarecimento depende o fato lite­
rário . E como, salvo pouquíssimas exceções, não estão esclare­
cidas, pode-se dizer que a maioria dos fatos literários não são
entendidos e nem é pouco o que falta para isso .
" Por outro lado, é preciso ver com rigor o que a obra
literária , em cada caso, se propõe : ensinar, divertir, doutrinar,
iniciar em um mistério, tornar " culto " , comover, provocar es­
tranheza, abêtir; e, em cada caso, como ; e com que outras ati­
vidades compartilha sua função respectiva . Por exemplo, com
a narração oral, com o culto religioso, com os espetáculos, com
a ciência, com a política, com a tertúlia ; e concretamente em
que proporção se rivalizam ou se aliam. � urgente medir com
precisão a distância da literatura em relação à vida, os graus
de autenticidade, espontaneidade, originalidade - coisas bem
diversas - que em cada tempo e em cada gênero literário trans­
parecem. Relativamente a estes, se faz mister dar a razão dos
mesmos e explicar com rigor seu cultivo ou seu abandono, sua
força em cada momento, a proporção em que predeterminam o
conteúdo da obra literária, seu coeficiente de imprecisão, mar­
gem e folga. Deve-se averiguar também o peso e a influência da
literatura na vida, a estratificação dos gêneros literários - e
dos autores - na sociedade, desde as obras destinadas a mino­
rias extremas até a literatura de quiosque, cujos característicos
e recursos em cada época deveriam ser objeto de investigação .
" Por último, uma vez chegados à própria obra literária -
e há um longo caminho até ela -, é o momento de se pergun­
tar peremptoriamente em que consiste, como alcança seus pro­
pósitos, quais são suas possibilidades e recursos , como se serve
da língua e das forma literárias prévias para conseguir sua
finalidade. A análise da obra literária - estilística, é claro,
mas não somente isso - tem que responder a estas pergun­
tas . Não basta, por exemplo, estudar o ritmo da versificação,
a estrutura das estrofes, a origem das metáforas empregadas
pelo poeta. � preciso saber de onde ele parte, de que língua-

1 67
gem j á encontrada, de que convenções vigentes, de que " re­
gras do jogo " , de que repertório de formas literárias elementa­
res que, em cada época, pertencem ao domínio público, bens
comunais da literatura, cujo inventário é indispensável fazer :
provérbios , ou " tópicos " - como na literatura renascentista -,
ou " mitologias " , ou um tom em falsete - 1 790
- , etc. E isto,
relativamente simples em poesia , deve-se estender também aos
demais gêneros, em formas mais complicadas. Em relação ao
teatro, é preciso determinar a parte que representa dentro dele
a " literatura " , junto a outros elementos . E em se tratando de
nossa época, surgem as questões concernentes ao rádio, à tele­
visão e ao cinema, não somente no sentido da adaptação das
obras literárias a estes meios e dos problemas que isto suscita,
como também quanto às características destas obras num mundo
em que os autores e os possíveis leitores freqüentam o cinema,
ouvem o rádio e assistem à televisão.
"Do mesmo modo, a literatura só se torna inteligível quan­
do se está bem esclarecido acerca de sua importância : a que
tem a literatura - e o escritor - em certa época e a que tem
cada autor ou cada obra determinados . A vontade efetiva de
coinpreender obriga, pois, a apelar dos fenômenos aparentes a
seus pressupostos latentes; dentro de uma época concreta, antes
de chegar àquilo que hoje se costuma fazer - exame de autores
e obras existentes - dever-se-ia formular as questões prévias
antes enumeradas e outras mais : por exemplo, o que pode o
escritor fazer em cada caso, o que pretende conseguir - único
modo de saber o que quer dizer, concretamente, êxito ou fra­
casso -, quais são os gêneros vigentes e em que fase de vigên­
cia se encontram, qual é a função real de cada um deles, que
componente de inovação a produção literária possui - e em
que medida, por razões sociais , se sublinha e mesmo se simula
a inovação ou então se dissimula e se oculta -, em que medida
há um estilo dominante ou não , quais são as relações efetivas -
em autores e leitores - com literaturas antigas ou modernas
estrangeiras, e que papel desempenham (função uterina, imita­
ção, rivalidade, estímulo etc.) ; quanto do passado literário na­
cional sobrevive e em que grau de vitalidade ; como é sentido :
como um lastro, um motivo de orgulho, um capital que garante
uma renda, um grilhão ou um vexame ; a que ponto pode a
literatura ser - ou deve ser - desagradável ou aborrecida,
ou se isto não é lícito. E outras inúmeras coisas que se pode­
riam enumerar e ordenar com igual precisão. "
Esta longa citação, que s e refere precisamente a o " problema
dos pressupostos " , responde à pergunta com a máxima coo-

1 68
cisão. Só desejo esclarecer o que , ademais, j á está suficientemen­
te claro : que a mera erudição não conduz à literatura (embora
sem ela não possa fazer-se sua história) , que a consideração da
realidade social da literatura é essencial, mas que não se trata
de fazer " sociologia da literatura " e sim teoria e história dela;
que um estudo, por exaustivo que se imagine , das " fontes " fica
fora da obra literária como tal, porque em última análise o que
interessa é o que o autor faz com essas fontes. Será pondo a des­
coberto a filiação de cada expressão e de cada " idéia" de La
Celestina que resplandecerá a originalidade de Fernando de Ro­
jas, porque antes dele não existia nada remotamente parecido
à sua Tragicomédia. E é esta a razão de que nos interessemos
pela Literatura e a estudemos : seu valor como tal, primeiramen�
te estético ; por isso nos esforçamos por indagar sua estrutura,
suas origens, seus condicionamentos, suas conseqüências .

4. Uma educação l iterária bem orientada poderia, por si só,


cobrir as necessidades de formação humanística do homem
contemporâneo?

O inciso " por si só " obriga-me a responder: Não. Nem se­


quer quando " bem orientada " a educação literária é suficiente.
A Filosofia, a História, a Arte são imprescindíveis ; e embora
não se possa fazer nem estudar a Literatura sem estas discipli­
nas - sobre isso insisti longamente - não se pode reduzir a
ela. O que creio é que a Literatura pode ser o fio condutor da
formação humanística, sobretudo num país como o nosso. Sua
acessibilidade, sua continuidade sem interrupções nem decadên­
cia - as que parecem estar nesses casos acusam, na verdade,
o resultado de um desconhecimento -, o fato de que fornece
uma " tonalidade " que serve às demais interpretações , tudo isso
faz da literatura o " excipiente adequado " de outros saberes e
interpretações . Lembro-me, e com gratidão, dos livros de Historia
de Espaiía e Historia Universal (e mais das Geografíás corres­
pondentes) de Alfonso Moreno Espinosa, nos quais estudei quan­
do menino, completados por acréscimos e anotações do então
meu professor dessas disciplinas no Instituto dei Cardenal Cis­
neros, Don Francisco Morán . Estes livros tiveram vigência por
uns quarenta anos - que passam depressa -, e ainda hoje são
admiráveis, a tal ponto que não foram substituídos adequada­
mente. Uma das razões disso é que o texto acompanha-se de
notas constantes - tão deliciósas e divertidas ! -, numa " letra

1 69
pequena, que não se vê " (mas que se devora) , principalmente
referências literárias e copiosas citações, selecionadas acertada­
mente, de textos literários de todos os tempos, verdadeiras vita­
minas literárias que vivificavam os manuais de história e geo­
grafia. E incrível como aumentavam sua inteligibilidade, como
estabeleciam conexões entre os dados , como animavam o con­
junto, como introduziam - isto sobretudo - a imaginação, e
permitiam entender o que era a vida das épocas historiadas , nos
países descritos.
Sempre acreditei que só haverá verdadeiramente história
quando os historiadores introduzirem em seus livros tudo o
que a novela histórica tem de conhecimento - que é muito -,
sem se limitarem, naturalmente, a isso; do mesmo modo que
me empenhei em que entrasse em meus livros filosóficos mais
formais e rigorosos o que a razão - razão vital, razão narra­
tiva - tem de novela. Um livro de filosofia tem que ser mais
que uma novela, mas nunca menos, não lhe pode faltar aquilo
que a novela dá. O mesmo se poderia dizer de todas as disci­
plinas humanas . Todas são históricas - todas, até as mais estri­
tamente teóricas -, porque o homem o é. No capítulo 1 de
meu livro já citado, A estrutura social, mostrava com insistência
a " inseparabilidade de sociologia e história " , explicava como as
estruturas sociais estão " definidas por tensões e movimentos " ,
que toda situação e toda estrutura são " intrinsecamente histó­
ricas " . A situação é o " nó " em que se atam os " longos " fios
que vêm de longe e afastam-se rumo a um futuro ; os fios se
atam, mas não terminam ; por isso as situações têm um " desen­
lace " , solução - quer dizer, desate , desfecho do drama que é
a vida humana - À índole dramática da vida e da história cor­
.

responde sua estrutura " nodosa " , continuidade descontínua, arti­


culada . O que implica ademais que tem " argumento " . Como
tudo isto será inteligível sem uma dimensão literária?
Eu diria que a importância da Literatura - e de seu ensi­
no - é muito maior do que costumam pensar, não seus adver­
sários : seus defensores < 4 > .

I ndiana University
Bloomington , Indiana,
outubro de 1 973 .

(4) Contribuição à pesquisa Literatura y educaclón, Castalla, Madrid, 1 974.

1 70
Shakespeare :
O homem como real idade dramática

, Perguntei-me muitas vezes pela razão da inigualável inten-


sidade dramática de Shakespeare. � cada vez mais evidente que
o teatro europeu com ele alcançou uma culminância que não
significa só, nem em primeiro lugar, um mérito maior: trata-se
de uma qualidade diferente . Eu diria que, ao lado de Shakes­
peare, qualquer forma dramática parece deficiente. Mas enten­
da-se bem : deficiente como drama, isto é, menos dramática, des­
virtuada em certa medida pela narração, pela ideologia , pelos
esquemas, pelo lirismo - segundo o caso .
I sto dá a Shakespeare um caráter " único " - para bem ou
para mal -. Talvez seja importante não ignorar o desagrado
que, durante séculos, grande parte do mundo sentiu ante a obra
de William Shakespeare . Não basta passar por cima deste fato
qualificando-o de " mau gosto " - quando foi esta, precisamen­
te, a censura que se acumulou sobre Shakespeare na maioria
das vezes -. Se se atribuir à " incompreensão " , é preciso tentar
compreendê-la. Também el Greco não agradou - contemporâ­
neo ele de Shakespeare - durante longa época. � possível que
a explicação de um desagrado não esteja muito longe da do
outro. Eu usaria para ambo s a mesma palavra : el Greco e
Shakespeare foram desconcertantes.
O fato de que ambos se tornaram " gênios " , universalmente
reconhecidos e admirados, de que houve uma série descontínua
de espíritos que os amaram freneticamente, de que ambos, em
vários sentidos, sejam figuras enigmáticas , tudo isso nos obri­
garia a perguntar, com algum rigor, em que consiste essa con­
dição desconcertante do pintor e do escritor. Aqui falarei ape­
nas, e muito brevemente, do segundo ; dou-me por satisfeito em
deixá-los unidos num sinal de interrogação.
O que faz de Shakespeare um dramaturgo tão inusitada­
mente dramático, tão desconcertante em seu dramatismo? A

1 71
explicação não pode ser encontrada nos temas, porque muitas
vezes são eles triviais ou indiferentes , e além disso Shakespeare
os tomava de qualquer lugar: da história inglesa , da história
romana, da tradição helênica, de obscuras novelas italianas . Não
se trata também, exclusiva nem mesmo primeiramente, dos " mi­
tos " , das grandes personagens inesgotáveis que se erguem diante
de nós para sempre : Hamlet, Julieta, Macbeth, Otelo . . . Não.
São igualmente dramáticas todas as criaturas shakespearianas ,
as figuras menores e esquecidas . No momento em que começam
a falar, sentimos que estamos assistindo - é esta a palavra
- não ao drama que se desenvolve na cena, mas sim ao drama
do homem, ao drama que é o homem. Eu diria que ao penetrar
no mundo de Shakespeare se tem a mesma impressão que ao
entrar num bosque : todas as palavras estremecem e vibram como
folhas agitadas pelo vento.

Já há muitos anos , na primavera de 1 95 5 , tomei parte num


simpósio sobre o Barroco, organizado pela Universidade de
Wisconsin . Interviemos nele, o grande teórico e historiador de
arte Erwin Panofsky, a grande estudiosa de Shakespeare, Rose­
mond Tuve, e eu . Três conferências separadas e uma mesa re­
donda em que nós, os conferencistas, discutimos nossos pontos
de vista sob a capacitada direção de E .R. Mulvihill , explorando
alguns aspectos delicados do século XVI I . Para minha confe­
rência escolhi o tema: Dream, Fiction and Man; alguns anos
depois a desenvolvi num ciclo de palestras em Madrid, com o
título " Suefio, ficción y vida humana " . Falei de Shakespeare
apenas por alto, o suficiente para que não estivesse ausente. Meu
tema era a convergência dos filósofos e dos poetas do século
barroco em uma descoberta decisiva , que significa um ponto de
inflexão na compreensão da realidade.
O século XVI I fez a descoberta de que o sonho e a ficção,
longe de serem formas inferiores de realidade, quiçá privações
de realidade, como se acreditara tradicionalmente, são formas
positivas de realidade, precisamente aquelas que se aproximam
à do homem mesmo. Este não é uma coisa, algo já dado, está­
tico e que " está aí " e sim algo que ocorre, sucede ou acontece,
algo que se pode contar ou cantar. Os poetas o adivinham : Cer­
vantes, Quevedo, Calderón, Shakespeare. Os filósofos o sabem
- começam a sabê-lo - e o formulam em conceitos ainda vaci­
lantes : Descartes, Pascal, Leibniz.

1 72
Calderón ·havia dito que " a vida é sonho " ; mas havia acres­
centado, com maior profundidade , que " o sonhar, só, é o bas­
tante" . Ouevedo havia expressado como ninguém a temporali­
dade da vida :

Ayer se fue, maiíana no ha llegado,


hoy se está yendo sin parar un punto,
soy un f ue y un será y un es cansado.
En el hoy, y maiíana, y ayer, junto
paiíales y mortaja, y he quedado
presentes sucesiones de dif unto.
( Ontem se foi, amanhã não é chegado,
hoje se está indo sem parar um ponto,
sou um foi e um será e um é cansado.
No hoje, e amanhã, e ontem, junto
fraldas e mortalha, e hei perdurado
em presentes sucessões de defunto.)

E Shakespeare, em The Tempest, IV, encontra a expressão


mais aguda :

We are such stuf f as dreams are made on,


and our little life is rounded with a sleep.
(" Somos da matéria de que se fazem os sonhos,
e nossa vida restrita fecha o círculo em sono " .)

Este dramatismo interno, intrínseco, da vida humana é o


grande tema, o achado radical de Shakespeare . O drama não
é primariamente o que talvez aconteça aos homens, o que o
. '.' argumento " da obra teatral recolhe, e os atores fazem reviver
na cena. O drama é o homem mesmo. Quero dizer, cada um dos
homens e mulheres, personagens pequenas ou grandes, que
Shakespeare faz viver. Não suas relações, seus conflitos, seus
amores, suas lutas , suas ambições entrelaçadas, que buscam de­
senlace. O drama verdadeiro e original , aquele pelo qual Sha­
kespeare nos interessa, reside na realidade de cada um deles,
o que quer que aconteça e mesmo que não aconteça nada.
Por isso o teatro de Shakespeare é dramático em segunda
potência. Não descansa em " situações dramáticas " ; está cheio
delas, e geniais, de insólita invenção ; mas a rigor não as neces­
sita. Em outro autor, a falta dessas situações aboliria o drama ;
em Shakespeare não, o drama acompanha o homem, porque sou­
be ver que é a substância mesma de que a vida é feita.
Seria interessante, nesta perspectiva , comparar Shakespeare
a Cervantes , de quem se teria que falar algo análogo mas diver­
so, porque nele ocorre o mesmo mas de outra maneira ; faz " a
mesma coisa, mas com outros recursos " . O s dois conceitos de

1 73
ventura e aventura, em forma primordialmente narrativa e não
cênica, possibilitam a Cervantes uma apresentação maravilhosa
do dramático no homem, no que aqui não me posso deter (veja­
se meu estudo " El espafí.ol Cervantes y la Espafia cervantina " ,
em La imagen de la vida humana, E l Alción, Revista de Occi­
dente, Madrid, 1 970) .
As personagens de Shakespeare são pessoas, projetos de vida
que lutam por ser alguém, um quem único e inconfundível . Uma
irredutível pretensão pessoal palpita mesmo nas personagens
secundárias e menores, ou naquelas tomadas à história ou a
outras fábulas pretéritas e que não são criação de Shakespeare .
Ninguém é um uomo qualunque, porque para seu autor, desde
o momento em que pisa a cena, é sempre " alguém '' , um eu que
pesa sabre o tablado com a gravidade de seu ser real.
Sentimos que ali estão presentes, em corpo e alma, e isto
quer dizer com sua vida inteira, distinta de qualquer outra,
com uma mesmidade intrinsecamente dramática . Não há " coi­
sas " num cenário de Shakespeare ; também não há " tipos " ou
figuras esquemáticas ; não há " costumes " ; não há " símbolos " :
há homens e mulheres , vidas humanas que se fazem ante os
olhos do espectador.

Como isto pode ser feito? Como Shakespeare consegue este


efeito espantoso? Um autor dramático conta apenas com um
pouco de ação, idas e vindas sobre as táboas do palco, e pala­
v.ras, palavras, palavras . Porém estas palavras - diferentemente
das da narração ou da poesia - não são suas : são de suas per­
sonagens. São elas que as dizem, que as estão sustendo e sus­
tentando com suas próprias vidas, e isto quer dizer que não
são palavras abstratas e sim " palavras de presente " , ditas numa
situação, numa circunstância determinada, por alguém que fala
a alguém - ainda que seja a si mesmo ou a Deus .
O novelista é o grande criador de circunstâncias, de mun­
dos . Evidentemente esses mundos são de alguém, e são as per­
sonagens as que conferem mundanidade ao " onde " da novela, as
que fazem com que seja cenário efetivo de uma vida . Porém,
na novela a imaginação atua desde o início e de modo essen­
cial, suscitando esses mundos e os projetos humanos que neles
se projetam, conjurados por umas tantas palavras . Quando o
novelista recorre ao diálogo, quando usa as palavras das perso­
nagens, faz em algum sentido algo excepcional - ainda que o
faça freqüentemente -: é o expediente para que as persona-

1 74
gens estejam de algum modo " aqui " , para que possamos assistir
à sua vida - isso que o novelista medíocre não consegue fazer
mediante a narração.
A situação do autor teatral é diferente, como estudei há
algum tempo em La imagen de la vida humana. Está ele preso
a um cenário, ao que acontece ali, diante dos olhos do especta­
dor, ao que se pode ver; dispõe, no entanto, da presença dos
atores, de seu corpo e de seu rosto, de sua voz e seus movi­
mentos . Não pode mudar de perspectiva a seu bel-prazer; não
pode juntar no cenário o que está junto na vida mas distante
no espaço. Não conta senão com palavras como " excipiente da
ação " , e se nos ativermos à obra escrita - não representada -
não restam senão palavras ; palavras que - repito - não são
do autor e sim das personagens, não " livres " , mas ligadas a
uma situação.
Isto dá uma significação particular à palavra dramática, à
palavra do teatro, que se mostra especialmente relevante no ca­
so de Shakespeare . O bom teatro , é evidente, não é para ler;
quando uma obra teatral é lida " perfeitamente " , é que não é
de todo perfeita. O drama pede sua representação, como as .
almas desencarnadas clamam pelo corpo . O texto é só um ele­
mento da realidade dramática - um elemento que pode ser
secundário -. O teatro espanhol do Século de Ouro é o exem­
plo mais claro da insuficiência da obra dramática como texto
literário : quando o vemos representado, por pouco que seja o
talento com que se o faça, descobrimos uma realidade que o
texto mal permitia adivinhar .
E Shakespeare? A situação é paradoxal . Num sentido, é
o teatro por excelência , que reclama a cena; mas por outro
lado, a leitura de Shakespeare suscita a representação como
nenhuma outra leitura dramática o faz, leva-nos a imaginá-la; e,
como se isto não bastasse, quando o vemos levado à cena -
e até no cinema ! -, em certo sentido o estamos " lendo " , quero
dizer, nos detemos literariamente em suas palavras . São, é cla­
ro, excipientes da ação, mas não só isso : por elas somos chama­
dos, retidos , seduzidos e levados a querê-las por elas mesmas .
Dir-se-á que o mesmo acontece com os versos barrocos de
Calderón, com os " ovillejos " , com os versos plurimembres e
poemas correlativos, com os malabarismos acrobáticos, com os
alexandrinos puríssimos de Racine . Creio que não, que é dife­
rente . Os versos de Calderón " nos distraem daquilo que dizem " ;
deixam-nos " suspensos " , mas porque neles se suspende a ação.
Ficamos pasmos, extasiados, contemplando o prodigioso espe­
táculo, e momentaneamente nos distraímos da ação. No caso de

1 75
Racine, por motivos opostos, interessa-nos o " discurso poético " ,
a fluência d e conceitos servidos docilmente pela palavra medi­
da. Em Shakespeare essa palavra que nos seduz e extasia não
é diferente da ação : esta nela se realiza. Quero dizer que isso
que acontece (o argumento ou substância da comédia ou tra­
gédia) é com essas palavras, realiza-se nelas e com elas, está
sendo literariamente interpretado. J! um caso em que a ação
e sua interpretação coincidem inseparavelmente.
Venho falando, há vinte anos, da " qualidade de página"
que possuem alguns autores - e outros, embora grandes, não a
possuem -, e que consiste na intensidade que cada uma delas
tem , com independência do valor da obra em seu conjunto. E
afirmei que essa qualidade estriba em que é o autor mesmo
quem fala, não " a gente " ; quero dizer que é o autor que diz
tudo quanto escreve, sem apoiar-se nas formas recebidas, nas
-frases feitas, nos recursos tópicos do dizer.
Quando um escritor com qualidade de página escreve algo,
o faz a partir de si mesmo, não a partir de um repertório impes­
soal de fórmulas, e simplesmente pondo a mão sobre as linhas
impressas de seus escritos podemos sentir o pulsar de seu cora­
ção. Pois bem, Shakespeare é um máximo de "qualidade de pá­
gina ". A rigor, cada frase de uma personagem sua brota de
um propósito expressivo único , inconfundível ; reconhecemos a
maneira shakespeariana linha a linha, e sob ela a personalidade
irredutível da personagem que está falando. Ninguém, que não
fosse Shakespeare, poderia dizer isso - pensamos . E pen­
-

samos ao mesmo tempo que na melodia dessa frase se está


expressando, se está manifestando um projeto de vida pessoal .
Retórica quando é necessária, extrema sobriedade quando é o
que se requer, ironia de Marco Antonio, paixão desmedid " ,
terna e violenta de Otelo, lirismo de Julieta ; poesia semp. ;: ,

porque Shakespeare sabia que o teatro é poesia dramática.


Em King Lear, quando as filhas do velho rei desejam di­
zer o quanto o amam, Goneril diz que seu pai é " dearer than
eye-sight, space, and liberty " , " mais querido que a vista, o es­
paço e a liberdade " . A mais quem, senão a Shakespeare, pode­
ria haver ocorrido esta comparação maravilhosa? Mas é Goneril
quem a pronuncia ; e ao escutar sua retórica imaginativa e bri­
lhante, Cordélia murmura : " What shall Cordelia do? Love, and
be silent . " " Que fará Cordélia? Amar e ficar calada . " I sto é o
suficiente : as duas figuras já estão presentes, inconfundivelmen­
te traçadas : filhas de Lear (e de Shakespeare) , mas irredutíveis,
únicas : esta e aquela.

1 76
Mas creio que isto ainda não basta. Se atentarmos para os
" heróis " de Shakespeare, a coisa não é tão extraordinária - e
emprego a palavra herói em seu sentido mais rigoroso -. O
herói é sempre aquele que quer ser ele mesmo . J! o homem -
ou a mulher - que vive a partir de sua autenticidade. Ser herói
é ser alguém irredutível a outro, único, irrepetível. Poderíamos
dizer que ser herói é viver como falam as personagens de Sha­
kespeare. A grandeza da arte literária deste autor consiste em
que lhes permite falar como lhes compete . Mas, numa ou nou­
tra medida, é isto o que acontece aos heróis de todas as grandes
obras literárias : Segismundo ou Melibea ou D. Quixote ou Faus­
to ou Julien Sorel ou o César de The Ides of March. O origi­
nal em Shakespea re está em que isso ocorre a todas as suas
personagens, até às mais ínfimas.
Enquanto os criados e " graciosos " do teatro clássico espa­
nhol falam com " frases feitas " , tópicos, refrãos, isto é, a partir
de " como a gente fala " , os porteiros, soldados, guardas, mulhe­
rinhas de Shakespeare falam a partir de si mesmos, cada um
de dentro de sua própria condição pessoal . I sto não afeta o
coloquialismo ou o nível social ou registro da linguagem ; mas
acrescenta-se a isto a marca individual pela qual o que foi dito
por aquela ínfima criatura, que não mais aparecerá em cena ,
foi dito por ela e por mais ninguém .
Nada é permutável . Nada é indiferente. Por isso, em Sha­
kespeare, tem-se essa dupla impressão paradoxal da arte supe­
rior : a liberdade e a necessidade . Antes de ser escrita, antes de
ser lida por nós, nenhuma linha é previsível ; uma vez pronun­
ciada, parece-nos necessária, imutável : dessa maneira tinham
que falar o porteiro de Macbeth, a ama de Julieta, os soldados
de Hamlet. Não o podíamos antecipar, mas não concebemos
que pudesse ser de outro modo .
Em outras palavras, em Shakespeare nada é inerte. Assim
é que não se o pode ouvir - nem ler - resvalando sobre as
palavras. As " zonas mortas " que encontramos nos quadros dos
grandes pintores, nas páginas de escritores geniais , nele não
existem. J! como se, nele, a faina de escrever nunca houvesse
sido mecânica . J! rigorosamente criação, isto é, inovação . Tudo
o que ele diz vai nascendo.
J! a língua de Shakespeare, o que nos prende e enfeitiça ; é
sua maneira de dizer, o que nos transporta como uma fresca
aragem de realidade. Sua maneira de usar a língua inglesa é
vivê-la, experimentá-la, jogar com ela, esgrimi-la como uma espa­
da - ou como a lança de seu nome -; nunca é um instrumento
congelado, fixo , carregado de peso . Não há crosta nem córtex,

1 77
mas membros palpitantes - como a Dafne de Garcilaso -.
Diríamos que o inglês , em suas mãos, está sempre em estado
nascente, está sendo inventado . E isso - inventar o dizer den­
tro do uso que é uma língua -, isso é escrever.
Podemos ler ao acaso uma cena qualquer de um drama
seu, de uma comédia, de uma peça histórica que não conhece­
mos e cuja trama se nos escapa, e surpreendemos a vida ani­
mando cada página. Creio que a genialidade máxima de Sha­
kespeare estriba nisto : na recriação a partir de si mesmo de
tudo quanto pode dizer um homem ou uma mulher.
O que as palavras traduzem é , sobretudo, uma determina­
da têmpera vital . Antonio Machado, referindo-se às canções que
as crianças cantam nas cirandas , escreveu estes dois versos de­
finitivos :
confusa la historia
y clara la pena.

Em Shakespeare a história pode estar confusa, ou ser des­


conhecida, ou não nos importar minimamente ; a pena ou a
alegria ou a paixão ou o humor estão sempre bem claros : a
têmpera da vida . Descobre-se na menor frase um modo de ser
homem, uma interpretação íntegra do sentido da vida.
Se se pudesse analisar isto, teríamos o que de verdade me­
receria o nome de estilística. Se se pudesse, tomando uma frase
de Shakespeare, ouvindo sua melodia, determinando de onde
vem cada palavra e como se reuniram, o que as fez vir dos
mudos depósitos da língua para aqui se encontrarem dispostas
de tal maneira, descobriríamos "a fórmula de Shakespeare " , a
atitude única e sem repetição possível diante da vida que cha­
mamos por esse nome.
Eu disse " se se pudesse " . Mas esta expressão não deve ser
entendida como a expressão indireta de que não é possível . Não
sei não. E. muito possível que ainda não haja sido acometido
adequadamente o estudo dos textos literários ; talvez a própria
expressão " textos literários " já seja enganadora. Poder-se-ia pen­
sar - que contra o que atualmente, nestes últimos anos , se crê
- só agora se tenha começado a adivinhar de verdade para
onde devem ir as disciplinas humanas . Como, em vez de .obsti­
nadamente reduzir o homem a qualquer outra coisa, é urgente
-esforçar-se por descobrir qual outra coisa - tão outra, que por
certo não é coisa - é o homem.
E. evidente que em Shakespeare nada se explica. Se Sha­
kespeare explicasse, seria um pensador, um ideólogo , não um
poeta. Transmite, isso sim, contagia, comunica. Leva-nos a trans-

1 78
migrar para seu mundo, para as incontáveis e sempre diferentes
criaturas que gerou . Umas poucas palavras escolhidas, alguns
acentos distribuídos pela frase com instinto infalível, reprodu­
zem para nossos ouvidos o estremecer de uma vida

Ao começo destas páginas, senti-me tomado pela lembrança


de el Greco . Por quê? Em seus quadros, não está tudo vibrando,
pulsando, estremecendo ? Não parece ser cada pincelada, além
de tetânica e construtivamente necessária, expressiva, atuante ,
como se não houvesse secado de todo? Não vemos em Shakes­
peare mais o dizer que o já dito? A impressão desconcertante
que o pintor e o dramaturgo produzem, não virá por acaso de
que um e outro nos submergem na mobilidade do vivente, sem
inércia, sem linhas fixas , sem repouso?
Escrevo tendo diante de mim uma grande massa de árvores
iluminadas pelo sol . Aqui de cima, não vejo o solo em que
fincam suas raízes. Vejo só as linhas encoberta s dos troncos,
mais presentes como linhas de orientação do que como coisas ,
as direções divergentes, como impulsos vetoriais, dos grandes
ramos, a folhagem vivente, estremecida por um pouco de vento.
Nada está quieto, tudo está atuando, acontecendo , gesticulando .
E essa massa vegetal oculta um mais além, alguma coisa la­
tente e nunca manifesta, um chamado . Há quatrocentos anos
William Shakespeare nascia, mas vive ainda hoje fragmentado
nos mil dramas memoráveis, nos milhões de palavras que bri­
lham como folhas, que resistem à morte e, juntas , recompõem
o mistério de sua personalidade esquiva .

I ndiana University
Bloomington , Indiana,
1 6 de setembro de 1 972.

1 79
D A G - LT D A .
IMPR I M I U
01000 S ã o Paulo , SP
-

02754 Rua M aria Cecilla ,


- 277
Te!. 288-321 9

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