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Literatura e �erações
Julián Marias
Literatura e Gerações
Equipe de realização:
Projeto gráfico de Lúcio G. Machado e Eduardo J. Rodrigues
Assessoria editorial de Mara Valles
Revisão de Herbene Mattioli e Valéria C. Salles
CI P-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP
Marías, Julián, 1 9 14 -
M286L Literatura e gerações (tradução de Diva Ribeiro de
Toledo Piza) São Paulo, Duas Cidades, 1 9 7 7 .
Bibliografia.
CDD-860.9
77-0782 -800:301
r.nJ Livraria
r.nJ Duas Cidades
Título do original espanhol
Literatura y Generaciones
Espasa-Calpe, S .A. - Madrid
98 antes de 98 : Ganivet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .
. 75
O centenário da geração de 98 . . . . . .... . . .......... . . 83
A Espanha basca de Unamuno : Paz en la Guerra . ...... 91 .
1 . Luis Rosales . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .
. 137
2 . La casa encendida . . . ... 141
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
A inversão d o ensaio . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . .. . . 1 57
.
9
jovens liam uma versão resumida do Quixote, ou alguns capí
tulos, e isto vinha a ser uma espécie de vacina : os precoces lei
tores já ficavam vacinados " contra " o Quixote. No mais fundo
da alma de todo espanhol formava-se a obscura decisão, nunca
formulada nem expressa, de j amais ler o Quixote. Eventual
mente, lia-se algum capítulo em determinada ocasião solene .
Já há bastante tempo é outra a atitude diante do Quixote:
nos últimos decênios não mais se o lê na escola ; pensou-se que
deve ser lido " depois " , na idade adulta . Mas quando as coisas
devem ser feitas " algum dia " , ocorre o mesmo que com a pe
regrinação à Meca que os muçulmanos são obrigados a fazer.
Quando? Uma vez na vida . Então há muito tempo ! Vai-se adian
do a leitura do Quixote. Certamente é preciso lê-lo, mas se o
fará logo mais . O tempo passa. E há um momento, que seria
curioso determinar na biografia de cada indivíduo, ·em que se
sente uma espécie de remorso por não haver lido o Quixote;
isto traz um certo mal-estar interior : incomoda não haver lido
o Quixote. Mas como isto requereria tempo, e a vida é sempre
muito atropelada, dá-se por lido o Quixote. Há mesmo um mo
mento em que se supõe o haver lido, acredita-se - e de boa-fé
- tê-lo feito, e naturalmente não se o lê nunca mais.
Além disso, acontece que, na realidade, não é preciso ler
o Quixote ·- e esta é a explicação mais profunda desse fenô
meno - porque ele " está no ambiente " . ];; esta sua grande gló
ria . Está em todo lugar: nos entalhes dos móveis estilo " remor
dimiento espanhol " <1> ; nos jarrões de cerâmica ; nos tapetes;
em todas as lojas de objetos para presentes ; de vez em quando,
até num filme . Pode-se recebê-lo por todos os poros, pelo ouvido,
de mil modos menos pela leitura. Estamos efetivamente satura
dos de quixotismo e de cervantismo . Há frases feitas , alusões
coloquiais, refrãos. Portanto, não faz falta lê-lo.
Creio que, apesar de tudo, fa� falta. Não que seja para se
desprezar essa forma de presença ambiental e difusa de Cervan
tes e de D. Quixote - é claro que a quiseram para si os outros
escritores -; mas não basta : afinal, os livros foram feitos para
serem lidos.
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obscurece . E conhecida a boutade de Unamuno, para quem D.
Quixote era muito superior a Cervantes, e este lhe parecia um
homem incapaz de escrever o Quixote. :t claro que Unamuno não
dizia isto inteiramente a sério, porém não deixava de ter uma
certa razão : a imagem vigente de Cervantes, aquela que apresen
tam suas biografias ou os tratados de literatura, ou os estudos
eruditos, não é muito atraente . De fato, é difícil pensar que haja
escrito o Quixote. A inferência normal deveria ser que a figura
de Cervantes não é bem apresentada, e não que o Quixote é
superior a seu autor.
A biografia de Cervantes não é bem conhecida : sabemos
estritamente o suficiente para ver que não sabemos quem ele
era , que a realidade Cervantes excede muito o que dela sabe
mos . Isto levanta problemas muito difíceis , problemas de cons
trução . Em geral, não se pode fazer adequadamente uma bio
grafia ; não podemos nunca conhecer o próximo, muito menos o
próximo pretérito . Uma biografia é sempre algo tectônico : é pre
ciso construí-la com certos dados, mais ou menos ; a construí
mos então como a figura de uma personagem fictícia . E essa
biogra fia construída nunca pode ser " verdadeira " : o mais que
pode ser é verossímil, plausível. Nunca poderemos dizer: " Este
foi Cervantes . " No máximo , afirmar : " Esta construção biográ
fica é verossímil , é a figura de um homem que teria podido
escrevet· o Quixote. " J á é bastante.
Enfrentei este problema geral da biografia há trinta anos,
em meu livro Miguel de Unamuno (veja-se principalmente o
prólogo à edição G . Gili, Barcelona, 1 968, reimpresso na edição
Obras, V, Revista de Decidente, Madrid , 1 969). No que diz res
peito ao caso particular de Cervantes, esforcei-me por enfocá-lo
no ensaio " El espafiol Cervantes y la Espafia cervantina " , in
cluído em meu livro La imagem de la vida humana (El Alción,
Revista de Decidente, Madrid, 1 97 1 ).
Eu diria que Cervantes não foi " importante " . Se se consi
dera a literatura de seu tempo, percebe-se que Cervantes não
era uma figura importante . O que não significa que não tivesse
êxi to : o teve, e muito grande, ainda que tardio ; e foi popular.
Porém ninguém o levou realmente muito a sério . Note-se que
ter importância social é uma coisa; ser conhecido, lido ou fa
moso é outra . Há escritores que são muito lidos, que são muito
apreciados e saboreados , e não são " importantes " ; há escritores
aos quais ninguém lê, e que talvez quase nada escreveram , mas
são " importantes " . Cervantes não foi importante; teve êxito,
mas não um êxito social; isto é, não foi importante como figura
social. Quando em seu tempo se fala de escritores, ou não se o
menciona, ou se o faz com certa condescendência, quando não
11
com visível desdém. Não dizia Lope de Vega que naquele ano
- 1 604 - havia muitos poetas, porém " nenhum tão mau
quanto Cervantes nem tão nécio que elogie o D. Quixote"?
Que Deus o tenha perdoado.
Cervantes possuía certo caráter marginal : seu lugar não
era na praça pública, no centro do mundo literário de seu tempo .
Creio que esta impressão d e homem marginal concorreu para
que se procurasse em Cervantes traços insólitos que explicas
sem essa evidente anomalia. Pensou-se, por exemplo, que era
um dissidente na Espanha de seu tempo, um dissidente da ideo
logia dominante em sua época ; pensou-se que era um " cristão
novo " . Não sei . O problema é que não há a mínima prova real
destas hipóteses, possíveis mas que não parecem prováveis. Não
há fatos fidedignos , não há nada que nos force a aceitá-los .
Creio que s e deve descartar, e m princípio, estas considerações.
Há um princípio metódico que me parece sempre fecundo : ver
claramente que não está claro. A história está cheia de coisas
que não são claras . Porém se pode tornar claro precisamente
isso : o que é que não está claro . Quando se conseguir, estar-se-á
a caminho de superar a obscuridade.
Conhecemos muito bem a trajetória exterior da vida de
Cervantes ; conhecemos a cronologia da publicação de suas obras;
sabemos evidentemente o conteúdo da história de seu tempo.
Sabemos que a publicação da primeira parte do Quixote foi um
êxito, que o prodigioso livro deu-lhe fama - ainda que pouco
dinheiro -, que foi reeditado, traduzido para línguas estran
geiras, usufruído por inúmeros leitores. E sabemos também que
tudo isso não conseguiu tirá-lo da obscuridade social, da po
breza, da consideração geral de figura secundária . Não deixou
de ser um escritor " marginal " . Por quê ? Tentemos agrupar os
dados indubitáveis ; tratemos de levar a sério isso que" sabemos,
isso que todo mundo sabe - tantas vezes não se vê precisa
mente o que se sabe, precisamente o que se está dizendo -.
Talvez consigamos entender, sem procurar um gato de três pés,
a marginalidade, a estranha anomalia do escritor Miguel de Cer
vantes.
12
de 1 54 1 , isto é, entre 1 534 e 1 548 . Como toda escala de gera
çõ�s tem caráter metódico, é posta à prova por sua aplicação , e
em princípio poderia modificar-se; isto é, apresenta-se como uma
hipótese de trabalho, sempre insegura, que a realidade empírica
deve confirmar ou retificar ; de modo algum como uma deter
minação dogmática e imutável . Porém, uma vez que se estabe
leceu uma escala bem fundada, deve-se aplicá-la com todo rigor
e justamente com um rigor metódico, para pô-la à prova. E claro
que no caso de surgirem dificuldades estruturais - radicadas
na vida coletiva, não meramente individuais -, deve-se estar
disposto a todo momento a alterar a série de gerações pro
posta. (Veja-se meu livro El método histórico de las generaciones,
4.ª ed., Revista de Decidente, Madrid, 1 967 , e também La es
tructura social <2>, 6 .ª ed., Revista de Decidente, El Alción, Ma
drid1 1 972) .
Tomando essa data como válida, o nascimento de Cervan
tes ocorre ao final de sua geração, tendo sido ele um de seus
membros mais jpvens . A entrada de uma geração na História
pode ser calculada aos trinta anos, e às vezes esta data é tomada
para designá-la. Se o fizéssemos, diríamos que Cervantes per
tence à geração que se inicia historicamente em 1 57 1 . Que ca
sualidade ! E o ano de Lepanto, que teve alguma significação
na vida de Cervantes . As datas de entrada na História, acesso
ao " poder social " , exercício do mesmo, substituição por outra
geração e " passagem para a reserva '' , etc . , correspondem à idade
média da geração, não à idade individual de cada um de seus
membros (de modo que os nascidos ao começo de uma, histo
ricamente são tardios e mais " duradouros " ; os nascidos ao final,
precoces e de destaque prematuro) .
Seguindo o mesmo cálculo, a geração de Cervantes alcança
o poder aos quarenta e cinco anos, isto é, em 1 586, e o exerce
até 1 60 1 , data em que o obtém a geração seguinte (a de Lope
de Vega) . A geração cervantina como tal entraria, pois, na ati
vidade histórica em 1 57 1 , conseguiria o poder social em 1 586,
terminaria seu ciclo de vigência histórica em 1 60 1 (Como o fe
nômeno atual da longevidade ainda não se havia produzido, po
de-se considerar que aos sessenta anos termina a fase plena
mente ativa : as gerações estão dizimadas, e os sobreviventes são
velhos) . Não se esqueça que Cervantes viveu ainda mais quinze
anos, até 1 6 1 6, isto é, o espaço de uma geração integral.
Cervantes vive, pois, principalmente no século XVI : vive
nele cinqüenta e três anos , que nessa época significavam muitos
anos. E um homem da Espanha de Felipe I I . Nasce ainda no
(2) A Estrutura social, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1963. (N. do T.)
13
tempo do imperador Carlos V, mas em sua infância começa a
reinar Felipe I I (de 1 556 a 1 598) , que é o monarca da maior
·
parte da vida de Cervantes, mais velho que ele uma geração
(nasceu em 1 527) . Se tomamos a biografia de Cervantes em
seu torso geral , diremos que é um espanhol da segunda metade
do século XVI , súdito de Felipe I I .
Mas se o consideramos como escritor, a coisa é diferente :
é quase exclusivamente um escritor do século XVI I , do tempo
de· Felipe I I I . � esta a primeira anomalia.
Não se esqueça que Cervantes sai da Espanha em 1 569,
atraído por Giulio Acquaviva, que lhe propõe ir a Roma. Tem
então vinte e dois anos. Cruzará a parte oriental da Península
ibérica - o reino de Aragão , de Valência a Catalunha, pelo
qual tanto entusiasmo sentiu o castelhano Cervantes -; o sul
da França, grande parte da Península italiana, e permanecerá
·
principalmente em Roma. Isto é o que o homem propõe, mas
Deus dispõe outra coisa . Provavelmente, Cervantes pensava pas
sar uma curta temporada na I tália , mas fica fora da Espanha
onze anos. Este é o acaso histórico. Cervantes é soldado, isto o
leva à batalha de Lepanto , que ilumina toda sua vida; comba
tente e ferido, volta a incorporar-se ao exército espanhol ; e
quando afinal se dispõe a voltar à Espanha, o acaso intervém
outra vez em sua vida, na forma de mais cinco anos de cativeiro
em Argel. Sai da Espanha em 1 569 ; não volta até 1 580. Os
Wanderjahre cervantinos, seus anos de viagem, converteram-se
em onze , estando neles incluída a tremenda experiência de cinco
anos de cativeiro.
Em 1 58 5 , Cervantes que decidiu ser escritor e não soldado,
escreve comédias - que não se publicam até muitos anos de
pois - e publica La Galatea. Todos os seus outros livros apa
recem entre 1 605 (primeira parte do Quixote) e 1 6 1 7 (o Per
siles, obra póstuma) . Isto é, durante as duas fases historicamente
ativas de sua geração, Cervantes não chega a ser um escritor.
Publica um livro não muito original , que corresponde a um gê
nero literário herdado, tradicional, já um tanto antiquado - a
novela P?Storil - e nada mais. Portanto, Cervantes, como es
· ,
14
o músico Tomás Luis de Victoria , el Greco, San Juan de la Cruz,
o autor dramático Juan de la Cueva, Mateo Alemán, o grande
teólogo e filósofo Francisco Suárez, o Pinciano, autor da Fi
losofía antigua poética, o lexicógrafo Sebastián de Covarrubias.
São estas as figuras mais importantes da geração de Cervantes,
seus coetâneos ; mas como escritores, aqueles que o são, são
anteriores a Cervantes , que escreve depois deles.
Eu diria, pois, que forma constelação com a geração se
guinte (veja-se meu ensaio " Constelaciones y generaciones " , em
Ensayos de convivencia, Obras, I I I ) , com a dos nascidos em
torno a 1 556. � a geração do Duque de Lerma, de Espinel, dos
irmãos Argensola, de Góngora, de Lope de Vega. Como escri
tores, são estes os coetâneos de Cervantes, não os seus, não os
de seu tempo.
15
Passou por tudo, casou-se um pouco fora de tempo com uma
jovenzinha da Sagra toledana. Passa anos e anos na Andaluzia
requisitando vinho, trigo e azeite ou cobrando impostos, lidando
com vendeiros, com ladrões, com frades , com salteadores, com
prostitutas, mozas dei partido, freqüentou a prisão de Sevilha
e quase nunca esteve em tertúlias literárias . e isto o que esteve
fazendo.
E isto quer dizer que é um homem que tem experiência da
vida, mas de outra vida, isto é, de uma vida mais antiga, de
outra geração que a de seus colegas escritores e com ocupações
diferentes . Mais que um " cristão novo " , Cervantes é um " ma
caco velho " que conhece tudo e não é alguém importante no
mundo das letras.
16
Ao voltar do cativeiro, Cervantes não sabe se irá ser sol
dado ou escritor. Há sem dúvida vacilação, hesitações, que cor
respondem à época obscura de sua estada em Lisboa, sua pos
sível expedição às ilhas Terceiras, suas idas e vindas à Á frica.
Pois bem , quando afinal se decide a ser escritor e compõe e
publica La Galatea, em 1 585 , ainda está no poder a geração
anterior à sua, a dos nascidos em torno a 1 52 6 : Felipe I I (en
quanto que seu irmão D. Juan de Á ustria pertence à geração de
Cervantes) ; o comandante direto da esquadra espanhola de Le
panto, D. Á lvaro de Bazán, Marquês de Santa Cruz ; o famoso
político e militar D . Luiz de Requesens ; e entre os escritores,
Gutierre de Cetina, Jorge de Montemayor , Luís de Camões, fray
Luis de León , Baltasar de Alcázar; e também - não os esque
çamos - o pintor Sánchez Coello e Juan de Herrera, o arqui
teto de El Escorial .
Jorge de Montemayor é o homem da Diana, a figura mais
eminente da novela pastoril. Cervantes escreve seu primeiro li
vro, uma novela pastoril, justamente no fim da vigência desse
gênero. Já está um pouco demodé, já é algo anacrônico ; porém
ainda está em vigor a geração que o representa. Curiosamente,
é a última geração dos portugueses espanholizados que escre
vem em castelhano : o próprio Montemayor (isto é, Montemór)
ou Camões . Depois, a literatura portuguesa segue seu caminho
nessa língua, e será excepcional que se escreva em espanhol.
Mas é agora que começa o mais interessante. Quando Cer
vantes começa a escrever, ainda está no poder a geração anterior
à sua ; porém, ele salta a sua própria. I sto é, enquanto está no
poder sua geração, não escreve. Não se esqueça que o livro que
segue a La Galatea é a primeira parte do Quixote ( 1 605) . De
correm vinte anos sem que publique nenhum livro. Tudo isto
é absolutamente elementar e todo o mundo o sabe; mas quantas
vezes se tem presente? Não adianta muito o fato das coisas
serem sabidas se não se pensa nelas, isto é, se não se faz com
que isso funcione para compreender a realidade. Se embora tendo
todos os dados concernentes a Cervantes não os usamos, é como
se não os tivéssemos. Ou em outras palavras, nem sempre se
sabe o que se sabe.
O problema é o seguinte. Quando Cervantes volta à Es
panha, em torno de 1 580, encontra ainda o final de uma vigência
que para ele é nova, porque esteve ausente onze anos. :e o caso
do homem que esteve fora de seu país e a ele retoma. E o " fora "
de Cervantes é um fora absoluto, não comparável aos nossos :
não é como quando agora vamos a Paris ou aos Estados Unidos
ou a Buenos Aires, em comunicação constante através de cartas ,
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jornais, revistas , livros, telefone . Cervantes está no exército, no
mar, no hospital, e finalmente no castelo do "vai mas não volta "
que se chama Argel. Está fora da Espanha mais de um decênio,
e quando volta, para ele é novo o que na Espanha já era quase
velho. E há algo mais : quando acaba de começar, quando es
creve seu primeiro livro, mal seca a tinta da impressão, já está
antiquado.
Se tomamos a cronologia das gerações com um pouco de
rigor - e assim se deve fazer metodicamente -, se esta escala
de gerações que estou usando ( 1 526 - 1 54 1 - 1 556 - 1 5 7 1 - 1 586
- 1 60 1 - 1 6 1 6 etc.) é válida, a vigência da geração anterior à de
Cervantes termina no ano 1 586, isto é, um ano após a publica
ção de La Galatea ; isto é, este livro escrito e publicado quando
ainda essa geração está vigente, deixa de o estar instantanea
mente , no ano seguinte.
Todo o mundo sabe que muito mais tarde, em El coloquio
de los perros, Cervantes faz uma crítica da novela pastoril como
" coisas inventadas e bem escritas " , irreais, que nada têm que
ver com os p8stores efetivos. Tem consciência muito clara de
que a novela pastoril é um gênero completamente falso, con
vencional e que não tem contato com a realidade . Costuma-se
pensar que é esta uma, visão tardia, já bem entrado o século
XVII. Ora, pensa-se isto porque não se lê La Galatea, ou pelo
menos não se a lê bem. Mas pode-se ver que Cervantes pensa
assim já em 1 58 5 , já em La Galatea. Tem pois plena consciên
cia de que o gênero pastoril é artificial, convencional, irreal e
inverossímil. Não precisou esperar o século XVI I para conven
cer-se disso, e ao compor La Galatea - que o interessa muito ,
da qual gosta muito, tendo, até a morte, prometido uma segunda
parte para ela -, já tem consciência que é um livro conven
cional e inverossímil. Por isto em La Galatea mesma aceita a
objeção de " haver misturado razões de filosofia entre algumas
amorosas de pastores, que poucas vezes conseguem tratar de
coisas mais altas do que as do campo, e isso com sua habitual
simplicidade " , e responde que " muitos dos pastores disfarçados
dela, só o eram na roupa " . E isto, esta extrema irrealidade,
é precisamente o que aqui interessava a Cervantes , por razões
que algum dia explicarei . " Coisas sonhadas e bem escritas. " E
ocorre perguntar: isto é pouco?
18
compôs La Galatea, produziu-se uma mudança histórica, uma
mudança de geração, e j á não se fazem novelas pastoris. I sto
não poderia explicar o fato de Cervantes retirar-se? De que,
pouco tempo após casar-se com dona Catalina de Palacios Sa
lazar, fidalga de Esquivias, deixe de escrever, tenha " outras
coisas para fazer " , e se entregue a arrecadar impostos - a ser
alcavaleiro e depois a requisitar víveres por terras andaluza s
-
(3) Introdução à Filosofia, Livraria Duas Cidades, 3.• edi ç ão, São Paulo, 1 973 .
( N . do T . )
19
remédio a não ser inovar, porque foi extemporâneo, porque foi
um escritor fora de tempo, porque, por caminhos estranhos, sal
tou como escritor o prazo de vigência de sua própria geração.
Começa a escrever quando termina a anterior, volta a es
crever quando já está no poder a seguinte; e seu tempo já pas
sara. Entre ser soldado, prisioneiro , alcavaleiro e requisitador
de víveres passaram-se os trinta anos de vigência ativa ( 1 57 1 -
1 60 1) que haviam sido dados ao homem d a geração d e 1 54 1 .
Cervantes faz sua vida de escritor, depois de seu tempo. A rigor,
a atividade literária de Cervantes é " póstuma " , historicamente
póstuma. Realiza-a depois de passado o tempo que lhe corres
pondia para ser um escritor do século XVI . Graças à sua rela
tiva longevidade existe Cervantes . Se tivesse morrido, como era
comum, em torno aos sessenta anos, ter-se-ia malogrado quase
inteiramente, porque quase toda sua obra é posterior à de um
escritor do século XVI I .
A marginalidade de Cervantes é , desde logo, geracional .
Sua trajetória biográfica, inserida na história geral , é explicação
suficiente dr tantas coisas que surpreendem. Por um feliz acaso,
Miguel de Cervantes teve um plus, um epílogo ao tempo de
sua vigência histórica, uma sobrevivência no tempo da geração
seguinte, que simplesmente aproveitou para escrever sua obra,
para nela depositar a realidade acumulada em sua estranha vida.
1 526
<1519
1 556 1 57 1 1 586
1533
1541
<1534
157 1 1 586 1 60 1
1548
1 556
< 1 549
1 586 1 60 1 1616
1 563
1973
20
A idéia da vida humana
na novela picaresca
21
tudo em Valladolid e Sevilha; a abertura do processo contra o
arcebispo Bartolomé de Carranza ; a publicação pelo inquisidor
geral Fernando de Valdés do Index librorum qui prohibentur.
O Lazarillo não foi proibido; era demasiado " inocente " e, so
bretudo, demasiado popular; foi apenas " castigado " , isto é, ex
purgado, e assim, desde então , reimpresso.
A variação da vida espanhola foi profunda; se se procurasse
precisar - o que não seria excessivamente difícil - a dife
rença entre as sucessivas gerações do século XVI , descobrir-se-ia
provavelmente em torno a essa data uma mudança mais profunda
que as usuais . Mateo Alemán , estritamente coetâneo de Cervan
tes - nascido no mesmo ano de 1 547 -, encontra uma Espanha
profundamente diferente da que encontrou o autor do Lazarillo,
isto é, o inventor da novela picaresca. A totalidade desta, pois,
'salvo a decisiva exceção que cria o gênero, corresponde a outra
forma de vida. E esta a anomalia essencial que afeta a novela
picaresca e que condiciona toda a compreensão da mesma que
não seja puramente " intraliterária " . O " gênero " aparece defi
nido por um caso individual que difere substancialmente de
todos os demais. Sempre que se fala da Picaresca insinua-se esse
equívoco : a novela picaresca é a que cria e realiza o Lazarillo ;
porém, após um silêncio de quase meio século, qualquer outra
novela piscaresca brota de circunstâncias bem diferentes e ca
racteriza-se por traços bem diversos, possivelmente opostos . Se
a novela picaresca é primariamente Lazarillo de Tormes, não
podemos defini-la por notas que a esta não convenh�m. menos
ainda que sejam incompatíveis com ela ; mas , por outro lado, a
Picaresca, após um largo parêntese, " torna-se " algo que difere
profundamente de seu início .
A forma da novela picaresca, com poucas exceções, e estas
tardias, é autobiográfica : o pícaro , na primeira pessoa, conta
sua vida. As justificações desta técnica podem ser muitas ; ins. i s
tiu-se, e sem dúvida com acerto, em que a autobiografia envolve
a " justificação " literária de que se narre uma vida tão pouco
nobre como a do pícaro : a quem interessaria? Ao próprio inte
ressado , evidentemente, que fala de si mesmo quando talvez
outros não encontrarão motivos para isso.
Pergunto-me, porém , se não existirá uma razão de signifi
cação literária mais estrita. O caráter dialogado - aparente
mente teatral - de La Celestina tem, segundo uma antiga con
vicção minha, que expus outras vezes , uma missão fundamental :
a de fazer presentes as personagens e , com elas, a história de
suas vidas ; assim como o pintor primitivo costuma suprir com
um maior brilho cromático as deficiências da perspectiva, para
22
.
trazer ao primeiro plano da atenção as partes mais notáveis do
quadro , da mesma maneira o diálogo da presença novelesca o
faz com aquilo que no simples relato poderia permanecer dis
tante e esrnaecido. J! preciso um domínio superior da técnica
da narração para que ela consiga fazer-nos assistir à vida das
personagens ; o diálogo o consegue, mesmo lançando mão dos
recursos mais primitivos .
Pois bem , a forma autobiográfica, o relato na primeira
pessoa, procura e consegue um efeito análogo ; o que na terceira
pessoa seria dista nte e impreciso, adquire força e evidência se a
personagem fictícia está aqui, diante de nós, porque é ela mesma
quem está falando. Isto não quer dizer que mais para frente,
ao longo da história do gênero, este artifício seja necessário ; o
decisivo é que a novela picaresca seja criada em forma autobio
gráfica, e esse caráter parecerá essencial por muito tempo. Urna
das diferenças radicais entre a picaresca -sensu stricto e as nar
rações de tema picaresco em Cervantes , sobretudo o Rinconete
y Cortadil/o, é que estas não se amoldam ao esquema da auto
biografia; mas Cervantes significa justamente a superação dessa
Jirnitação técnica, o domínio pleno da narração corno tal - da
novela no rigor do termo -, e além disso o propósito literário
destas novelas cervantinas é inteiramente distinto.
Apesar de os estudos recentes da Picaresca haverem feito
muitas distinções e atenuações, apesar de ficarem vistos aspectos
parciais diferentes e talvez mais sutis, o torso da interpretação
vigente consiste em ver que seu terna fundamental é a fome, e
que a qualidade dominante do pícaro, o " anti-herói'' , é o res
sentimento. :e evidente que há fome e ressentimento na ·novela
picaresca, e darei alguns exemplos importantes ; mas a questão
é se urna e outro são os móveis efetivos , as molas da idéia da
vida que transparece nesta novela. Em outros termos, a fome é
necessária à Picaresca, e o pícaro é necessariamente um ressen
tido? E se não é assim, em que consiste realmente essa forma ,
de vida, essa atitude que se incorpora à sucessão daquelas que
a novela espanhola foi descobrindo e pondo em jogo?
·
No Lazarillo, a maioria dos amos do protagonista não lhe
dão de comer ; isto introduz a fome corno fator principal do
relato . J! porém urna fome derivada e voluntária , decorrente da
avareza e não de escassez absoluta e pobreza, salvo num caso .
Do cego, diz que tirava "grandes proveitos com as artes que
digo, e ganhava mais em um mês que cem cegos num ano. Mas
·2 3
também quero que saiba vossa mercê que, com tudo o que aa
quiria e tinha, nunca vi homem tão avarento e mesquinho; tanto,
que a mim matava-me de fome, e não me dava a metade do ne
cessário . Digo a verdade : se com minha sutileza e boas manhas
não soubesse remediar-me, muitas vezes teria me finado de fome ;
mas, com todo seu saber e aviso, o embrulhava de tal modo que
sempre ou na maioria das vezes me cabia o mais e o melhor".
O clérigo é um caso extremo de avareza - não de pobreza -,
antecipação do Dómine Cabra : " Pois já que comigo tinha pouca
caridade, consigo usava mais . " E todo o episódio é um duelo
entre a avara mesquinhez do amo e a astúcia do criado. Quando
se chega, pelo contrário, à verdadeira pobreza , à escassez e mi
séria reais que o escudeiro padece, cessam a preocupação e a
luta : Lázaro compadece-se de seu amo, arranja-se como pode,
pede às mulheres compassivas que se condoam da criança ino
cente, compartilha com seu amo - vencendo com tato e des
treza a resistência de sua dignidade, de sua " mísera honrazi
nha " - o pão ou a unha de vaca que conseguira.
O verdadeiro tema não é, pois , a fome, e sim a contrapo
sição entre a aparência e a realidade, entre a gentileza e a mi
séria, entre a figura social do escudeiro e sua situação efetiva:
" E subia rua acima com tão gentil semblante e aspecto, que
quem não o conhecesse pensaria ser parente muito próximo do
conde de Arcos , ou, pelo menos , camareiro que o ajudava no
vestir-se. " "ó, Senhor, e quantos destes deveis ter espalhados pelo
mundo, padecendo, pela mísera que chamam honra , aquilo que
por vós não sofreriam! " E sobretudo acrescenta Lázaro : " Con
tudo, queria-lhe bem, por ver que nem tinha nem podia mais ,
e mais lhe tinha pena que inimizade . "
Quanto ao pícaro por excelên.cia, o Guzmán de Alfarache,
convém lembrar que, qualquer que seja o papel que a fome
possa ter dentro da novela, não é ela o motor da vida picaresca .
Esta se inicia no livro I, cap. III, que começa com estas pala
vras, muito freqüentemente pa• s sadas por alto : " Era eu um rapaz
corrompido e mimado, criado em Sevilha sem castigo de pai,
a mãe viúva - como já o sabes -, cevado a torresmos, pãe
zinhos fofos e manteiga e sopas de mel rosado, cuidado e ado
rado, mais que filho de mercador de Toledo ou tanto. Fazia-me
mal deixar minha casa, parentes e amigos; além de que é doce
amor o da pátria. Sendo-me forçoso, não pude evitá-lo. Anima
va-me muito o desejo de ver mundo, ir à Itália conhecer minha
nobre parentel�."
Guzmán não se lança à vida picaresca por fome, mas pelo
contrário, por fartura e mimo, por desejo de novidade e aven-
24
tura. E quando aparece a fome, no dia de sua fuga, cansado
da primeira caminhada, Mateo Alemán aplaca a de sua perso
nagem c9m aquela famosa e nauseabunda omelete de ovos cho
cos, passagem essa em que começa a novela picaresca a " faltar
o respeito " à fome, a zombar da fome , que rarissimamente é
nela " uma coisa séria " - tema que mereceria ser tratado inde
pendentemente e a fundo .
A culminância desta atitude se encontra, naturalmente, em
Quevedo, e sobretudo na pupilagem do Dómine Cabra. O pro
cesso de desrealização chega a seu extremo : " Comeram uma
comida eterna, sem princípio nem fim; trouxeram caldo em umas
escudelas de madeira, tão claro, que ao comer numa delas Nar
ciso correria um risco maior do que na fonte . " "Vejo um moço
meio espírito, tão fraco , com um prato de carne nas mãos, que
parecia ter sido tirada de si mesmo. " " Certifico a v. m. que vi
um deles, o mais fraco , que se chamava Jurre, biscainho , tão
esquecido de como e por onde comia, que levou duas vezes aos
olhos uma migalha que lhe coube, e três juntos não consegui
ram que suas mãos acertassem a· boca . " " E tudo isto acreditará
quem souber o que me contou o criado de Cabra , que o havia
visto meter em casa , recém-chegado, dois frisões, e que em dois
dias saíram cavalos ligeiros, que voavam pelos ares; e que viu
meter mastins pesados, e em três horas saírem galgos corredo
res . " Isto é fome? E isto essa realidade tremenda que chama
mos fome? E certo que se trata dela na novela picaresca?
II
25
mas introduziu de forma muito precisa a noção de ressentimento
como conceito ético que, desde então , teve ampla vigência. O
ressentimento é, com palavras de Scheler, uma auto-intoxicação
psíquica. "� uma atitude psíquica permanente, que surge ao
reprimir sistematicamente a descarga de certas emoções e afe
tos , os quais são em si normais e pertencem ao fondo da natu
reza humana ; tem por conseqüência certas propensões perma
nentes a determinadas classes de enganos valorativos e juízos de
v·alor correspondentes. "
26
Que acontece na novela picaresca? Certamente se podem
encontrar inúmeros exemplos de ressentimento, do Guzmán em
diante - junto a outros casos de estimação justa -; porém o
decisivo é que, sendo o Lazarillo uma novela picaresca e pre
cisamente a criadora do gênero, ter-se-ia que encontrar nela res
sentimento para, por ele, definir esse gênero como tal , para en
contrar o ressentimento na essência da Picaresca. Se isso não
se der, poderemos dizer que o ressentimento é um ingrediente
- quem sabe importante, talvez freqüente - da novela pi
caresca, mas só isso, e sua peculiaridade deverá ser procurada
em outro lugar.
Pois bem , não só Lázaro não é um ressentido como me
parece um dos exemplos mais puros e representativos de amor
iusto, podendo mesmo servir de ilustração ao estudo de Bren
tano. Vejamos .
J á desde o início, quando Lázaro conta as visitas do negro
Zaide a sua mãe, do que resultou que esta lhe desse " um ne
grinho muito bonito " , ao contar que o menino, acostumado a
ver sua mãe e Lázaro , brancos, fugia com medo de seu pai " e ,
apontando com o dedo, dizia : - Mãe, bicho papão ! " , anota
esta reflexão que fazia para si mesmo : " Quantos deve haver no
mundo que fogem dos outros, porque não se vêem a si mes
mos ! " E logo que parte de sua casa para servir o cego, quando
este , enganando-o, o faz pôr a cabeça junto ao touro de pedra
e lhe dá uma cabeçada cuja dor durou mais de três dias, para
que não confie em ninguém, visto que "o criado de cego deve
ser ainda mais esperto que o diabo " , a reação de Lázaro vai
além do sofrimento e da aflição, além da hostilidade : " Pare
ceu-me que naquele instante despertei da simpleza em que, como
criança , estava adormecido . Disse para mim mesmo : 'Este diz
a verdade : bem que me é preciso ter o olho vivo e prevenir,
pois sou sozinho, e pensar como me saiba valer.' " I sto é, Lá
zaro procura a visão reta, reconhece a lição, a estima no que
tem de valiosa, ainda que ao p reço da brutal crueldade .
Em Lázaro, esta atitude é constante. O cego lhe diz : " Ouro
ou prata não te posso dar; mas avisos para viver, muitos te hei
de mostrar. " E Lázaro, não só o reconhece como o comenta com
clarividência estimativa : "E foi assim que , depois de Deus, este
me deu a vida, e, sendo cego, me iluminou e adestrou na carrei
ra de viver. Folgo de contar a vossa mercê estas ninharias, para
mostrar quanta virtude é saberem os homens subir sendo baixos,
e se deixarem abaixar sendo altos, quanto vício . " E continua,
explicando o s"aber; o talento, o engenho do cego, seus muitos
ganhos, sua avareza e crueldade, as " burlas endiabradas " que
27
tinha que lhe fazer para vencer estas qualidades negativas e
não perecer de fome.
Tudo isso culmina na aventura da jarra de · vinho, quando
o cego, ao descobrir o engano que Lázaro lhe está fazendo,
bebendo por um orifício tapado com cera, deixa cair a jarra
com toda a força sobre a boca do rapaz. E é aqui que se chega
às fórmulas mais rigorosas do " amor justo " . " Daquela hora em
diante quis mal ao mau cego, e, embora ele me quisesse e me
presenteasse e me tratasse, bem vi que havia se divertido com
o castigo cruel. O castigo é justo, e Lázaro não o levaria a mal ;
porém o cego se havia comprazido nele, e isto é maldade ; " quis
mal ao mau cego " : não se pode dizer melhor.
Lázaro chega porém a uma finura estimativa ainda maior .
Passa-se o tempo, acontecem mais enganos e mais castigos e
mais vinganças e novas crueldades, e o pícaro conta : " Contava
o mau cego, a todo s que ali chegavam, meus desastres, e rela
tava-lhes uma e outra vez, ora o da jarra, ou o do cacho de uvas ,
ou então o do presente. Era tamanho o riso de todos, que quem
passasse pela rua não deixava de entrar para ver a festa; mas
o cego contava minhas façanhas com tanta graça e donaire, que,
embora eu estivesse tão maltratado e chorando, parecia-me come
ter uma injustiça não me rir delas. " Não é possível maior pureza,
maior escrúpulo. O cego é duro, cruel, não tem benevolência ;
além disso, diverte-se com o castigo e ainda em contá-lo uma
vez e outra ; mas o faz tão bem ! Tem tanta graça e engenho,
que a atitude justa, correta, é rir-se ; não o fazer é não valorizar
justamente essas qualidades ; é " sem-justiça" ; e o dolorido e
choroso Lázaro, ao mesmo tempo que odeia o cego por sua mal
dade e dureza de coração, reconhece, estima, valoriza sua graça
e ri-se com ela, com o mais delicado e maravilhoso " amor justo " .
E mais adiante, ao refletir com agudeza e ternura sobre
seu amo , Lázaro, o escudeiro paupérrimo, acumula as conside
rações que mostram seu pulcro sentido da valoração : " Muitas
vezes eu contemplava meu desastre, que, escapando dos amos
ruins que havia tido, e procurando melhoria, viesse a topar com
quem não só não me sustentava como tinha que ser por mim
sustentado. Contudo, lhe queria bem, por ver que não tinha
nem podia mais, e mais sentia pena do 'que inimizade . . 'Este
.
28
está formulada. A primeira saída da novela picaresca, não só
não acusa o ressentimento como representa um exemplo admi
rável da ética da valorização, quase um " tratado do amor justo " .
Se há ressentimento neste gênero literário, se aparece n a idéia
da vida que se reflete na Picaresca, isto não pertence à sua
essência mas decorre de uma vicissitude histórica sobrevinda
em fins do século XVI . Temos que perguntar novamente em
que consiste a novela picaresca, qual é a idéia da vida que nela
se dramatiza e explicita .
III
29
sobreviver e, se possível for, medrar. A raiz da novela picaresca
seria o utilitarismo.
Que haja utilitarismo nos livros de pícaros do século XVI
e do século XVI I , quem o duvida? Mais uma vez, a questão é
se consistem nisso, se é isso o que os explica e torna inteligíveis,
se é a utilidade o núcleo da idéia da vida que neles funciona.
Se fosse assim, o pícaro procuraria sempre que o engano não
fosse descoberto, que a vítima ignorasse sempre que houvera
sido enganada, ou pelo menos quem fora seu enganador; que
permanecesse amiga, propícia, disposta para um novo engano .
Pois bem, na novela picaresca ocorre justamente o contrário .
O pícaro está sempre disposto a matar a galinha dos ovos de
ouro, ainda que tenha de, penosamente, procurar outra. Por
quê? A troco de quê, paga esse preço? Se não se percebe isto ,
deixa-se escapar, em minha opinião, o que há de mais profundo
na Picaresca.
O pícaro dá a conhecer o engano ; faz o outro saber que
" o fez de bobo " ; mais que a utilidade, interessa-lhe a burla. Se
esta não é posta a descoberto, não vale a pena - como a Don
Juan não lhe importam as conquistas se não pode contá-las -.
E isto começa já desde o Lazarillo, sem esperar a nova Picares
ca, a segun da " saída " . Quando o cego se dispõe a comer com
Lázaro um cacho de uvas , e estipula o modo de comê-las, diz :
" Tiras uma vez e eu outra, contanto que me prometas não pe
gar mais de uma uva cada vez. Eu farei o mesmo até acabar
mos, e deste modo não haverá engano . " Mas bem que o houve.
" O traidor mudou de propósito e começou a pegar de duas em
duas , considerando que eu haveria de fazer o mesmo. Como vi
que ele quebrava o trato não me contentei em ir a par com ele ;
pelo contrário, passava adiante : duas a duas , três a três e como
podia as comia. " Advirta-se que o cego, dono das uvas e da
autoridade, pôde delas dispor à sua vontade: comê-las todas,
separar uma parte para Lázaro etc . No entanto , entra no "jogo "
esportivamente, expõe-se a ser enganado e tenta enganar. O diá
logo que segue não pode ser mais revelador :
" Acabado o cacho, esteve um pouco com o engaço na mão ,
e, meneando a cabeça, disse :
" - Lázaro, enganaste-me. Posso jurar por Deus que co-
meste as uvas de três em três.
"- Não comi - disse eu -; mas por que suspeitais isso?
" Respondeu o sagacíssimo cego :
" - Sabes como vejo que as comestes de três em três ?
Porque eu comia de duas em duas e calavas .
30
" Ri para mim mesmo , e, embora moço novo, notei muito
a discreta consideração Jo cego . "
A s cartas sobre a mesa . A burla e sua descoberta, procla
madas ; sabe-se quem engana a quem. Toda a novela picaresca
é uma sucessão interminável de cenas semelhantes . As mais cla
ras , explícitas e significativas se encontram no cortante e amar
go Quevedo - que soube ser outras coisas além de cortante e
amargo - . Quando D . Diego Coronel e Pablos, a caminho de
Alcalá, fazem uma parada a fim de cear e passar a noite na
venda de Víveres , os estudantes, os rufiões e as mulherinhas
decidem cear à sua custa . Um estudante finge ser antigo amigo
de seu pai, e todos se convidam ; na manhã seguinte, D. Diego
paga os sessenta reais e se despedem. Seria normal que preten
dessem ficar nos melhores termos para conseguir em Alcalá
uma ou outra comida . Porém não é isto o que mais os interessa .
" Apenas havíamos começado a andar, quando uns e outros se
puseram a dar-nos vaia, confessando a burla; e o vendeiro dizia :
' Senhor novo, com poucas estréias como esta, envelhecerá . ' O
cura dizia : 'Sacerdote sou, mais adiante lhe rezarei as missas . '
E o estudante maldito e m altos brados dizia : ' Senhor bobo, de
outra vez raspe-se quando o coma, e não depois .' E outro dizia :
'Que v . m . pegue sarna, D . Diego . ' Nós demos em não fazer
caso : Deus sabe o quanto envergonhados íamos . ''
Acontece o mesmo depois dos afrontosos e sórdidos trotes
in fligidos a Pablos em Alcalá : " Os outros criados depois de me
vaiarem , relataram a burla. Riram-se todos ; dobrou-se minha
afronta . " E analogamente, apesar de que Pablos e a ama se
entendam tão bem para os furtos e fraudes, de que ambos tirem
igual proveito, as coi sas não terminam bem . Vejamos o que diz
o Buscón :
" Pensará v . m . que sempre estivemos em paz ; mas quem
ignora que dois amigos , quando são cobiçosos , estando juntos
hão de procurar enganar um ao outro ? " E em seguida conta
como a ama estava dando de comer aos frangos, dizendo " pio,
pio " , e como Pablos a amedrontou , escandalizado pelo tremen
do delito que ela havia cometido, do qual teria que dar parte
à Inquisição , e como a pobre mulher não sabia o que havia fei
to, expl icou-lhe : " Não sei como dizer, que o desacato é tal que
me acovarda . Não vos lembrais que dissestes aos frangos " pio,
pio " muitas vezes, e Pio é nome de papas, vigários de Deus e
cabeças da Igreja? Que papeis &gora o pecadinho . " Quando por
fim Pablos concorda em levar à Inquisição os frango s que assim
foram alimentados , para serem queimados " porque estão mal
ditos " , e explicar a inocente inadvertência da ama ; quando es-
31
ta, agradecida e comovida, presenteia-o com mais um frango,
e Pablos come uns e outros com os companheiros, poder-se-ia
pensar que ocultaria o engano e continuaria se aproveitando da
aliança, reforçada agora pela cumplicidade e a gratidão ; isto
porém não satisfaria o pícaro : " Soube a ama e meu amo a ve
lhacaria ; toda a casa o festejou grandemente, e a ama sofreu
tanto que por pouco não morreu ; e depois com a zanga esteve
por um triz - já que não tinha por que calar - de contar
•
32
aparências, uma forma de evasão, de eludir a realidade tal como
é, em toda sua complexidade e riqueza, irredutível a fórmulas .
Trata-se, como tantas vezes, de uma simplificação da vida hu
mana, de sua projeção sobre um plano, o qual a deixa bidimen
sional e abstrata, irreal em suma. A espessura da vida humana
verdadeira apareceu, quase milagrosamente, no nascimento da
novela espanhola, na Tragicomédia de Calisto y Melibea, mais
conhecida - mas não melhor e sim já com uma simplificação
- por La Celestina. Para recobrar , para tornar a encontrar a
vida com todas suas dimensões e ramificações , a ficção com
todos os seus espelhos, é preciso procurar a figura de Cervantes .
1 968
33
Dois dramas românticos :
Don Juan Tenorio e Traidor, lnconfeso
y Mãrti r
( 1 ) Veja-se meu ensaio " B�cquer em seu lugar", neste mesmo volume .
35
Tem-se salientado, reiteradamente, que o romantismo es
panhol é tardio : quase todas as obras literárias importantes dos
românticos espanhóis se escrevem ou estréiam ou se publicam
no decênio 1 834-44. Mas naquele antigo ensaio tratei de justi
ficar minha convicção de que o Romantismo (com maiúscula,
como forma de vida) foi tão antigo na Espanha quanto nos de
mais países europeus, embora a literatura da primeira geração
romântica ainda fosse neoclássi�a . A anormalidade da história
espanhola durante um quarto de século - desde o começo da
guerra da Independência em 1 808 até a morte de Fernando V I I
e o fim d o absolutismo e m 1 833 , explica esse desnível entre
-
(2) Vej a-se " Espafía y Europa en Moratfn ", em Los Espaiioles, El Alclón, Revis
ta de Occidente, Madrid, 1 97 1 .
36
Díaz, o marquês de Molins, García Gutiérrez, Romero Larraõa
ga, Gertrudis Gómez de Avellaneda, Diana, Gil y Carrasco, Eu
genio de Ochoa, Federico de Madrazo, Ariza, Martínez Viller
gas, García Tassara , Tomás Rodríguez Rubí, Miguel de los San
tos A lvarez, Zorrilla, Campoamor : todos estes nomes são coe
tâneos, são o nível histórico da geração de 1 8 1 1 . Dir-se-ia que
são "o Romantismo " ; a rigor, são a saída do Romantismo, que
em sua maturidade trazem dentro de si outro mundo, outra
forma de vida.
Em plena juventude, aos vinte e sete anos , em 1 844, Zorrilla
estréia Don Juan Tenorio. l! - excusado dizer - a obra mais
viva do teatro espanhol, embora nestes últimos anos nos empe
nhemos em matá-la. Para os espanhóis de oito ou dez gerações
- que se contam depressa -, o Tenorio representou " o sabido
por todos " . Somos muitos os espanhóis que o sabemos de me
mória, que necessitaríamos no máximo um ponto quatro ou cin
co vezes, para preencher algumas zonas mortas. Isto foi possível
pela extrema simplicidade do drama, por sua estrutura de ballet
- que Ortega soube descobrir há quarenta anos -, mas sobre
tudo pela graça do verso, pelo prodigioso ajuste com a ação,
pelo garbo com que se movem as personagens . Zorrilla soube
combinar a graça e o drama. Soube vincular à ação dramática
e ao lirismo o amor e a morte, os dois irmãos gêmeos - fratelli
a un tempo stesso amore e morte / ingenerõ la sorte - de que
falava Leopardi .
Sim, o amor e a morte ; mas também o amor e a retórica .
Creio ser este o grande acerto de Zorrilla, sua grande descober
ta, uma de tantas que surgem inesperadamente em sua obra, e
que seria interessante ir descobrindo. O amor consiste - entre
outras coisas, mas principalmente - em dizer coisas à mulher,
isto é, intytpretá-la. Até há pouco tempo, e talvez ainda nas ci
dades provinciais da Espanha, " falar com " queria dizer ter re
lações amorosas, um noivado . " Pedro fala com Isabel " , ." faz três
meses que falatn" , se dizia. Claro que o que faziam era unica
mente - ou quase - falar, e hoje se supõe que não se trata
disso; mas é preciso lembrar que o amor é sobretudo questão de
palavras , e se estas secam, o amor não chega a brotar, e é su
plantado por seus ".s ubstitutivos " . A sedução de Doõa Inés, na
quinta junto ao Guadalquivir, à custa de palavras, é, justamente
por ser retórica, uma das cenas mais verazes do teatro espanhol .
.
I sto nos conduz ao tema de Don Juan. Costuma-se pensar
que o de ZorriUa é elementar, superficial, sem interesse. Não
estou certo disso . Zorrilla era muito pouco intelectual, muito
pouco teórico, porém era capaz de abandonar-se, de entregar-se
37
à realidade, e é a única maneira de descobri-la. Não se esqueça
que a inocência é uma das poucas atitudes criadoras. " Se. não
vos fizerdes como crianças - lemos em São Mateus - não en
trareis no reino dos céu s . " Zorrilla teve o acerto de introduzir
a mulher, Dofia Inés, na história de Don Juan , e isto fez dele
algo mais que um colecionador presunçoso.
O donjuanismo tem certos pressupostos, sem os quais não é
possível ; ambos têm que ver com as condições da caça , que
Ortega estudou tão admiravelmente : a escassez e o perigo. A
primeira condição para caçar é que não haja caça, que seja
muito difícil encontrá-la ; e qµe fuja, resista, ataque . Não há
quem possa disparar uma espingarda numa granj a avícola. Po
·
der-se-á dizer que as mulheres sempre foram legião, aproxima
damente tantas quanto os homens ; porém não estavam " dispo
n íveis " , estavam zelosamente guardadas, encerradas em suas
tocas ; só podiam ser vistas atrás das gelosias, ou de longe , ou
entre a multidão . Falar com elas, dar-lhes uma carta, era quase
impossível ; difícil, custoso, perigoso, improvável. Acrescente-se
a isto a esquivez inicial da mulher, seu gesto de fuga - tradi
ção ocidental milenária, de antiqüíssima sabedoria . E o perigo,
porque a mulher estava defendida pela sociedade, pela família,
lei , religião : pais, irmãos, maridos, aias, pressões sociais , o
pecado .
Diante de tudo isto - quer dizer, em vista disto e apesar
de -, Don Juan como pretensão humana, como vocação varo
nil . Sua vocação é enamorar. E Ortega definiu Don Juan como
"o homem de quem as mulheres se enamoram " . A coisa se ajus
ta como anel ao dedo . Sim, mas num livro que escrevi há pouco
e intitula-se Antropología metafísica, onde, naturalmente , se fala
muito das mulheres e do amor, tive muito cuidado em advertir
que " embora gramaticalmente o verbo ' enamorar' pareça pri
mário, e 'enamorar-se' só seu uso reflexivo, na realidade se dá
o contrário : 'enamorar-se' é o sentido forte e original, e 'ena
morar' é unicamente o que se faz para que alguém se 'enamo
re " ' < 3> . Daí a dificuldade interna do donjuanismo : se Don Juan
não se enamora , no final da s contas fica fora, converte-se em
pouco mais que espectador; e se se enamora, o donjuanismo tor
na-se problemático . :f:xito e fracasso lutam dentro de Don Juan,
e o sucesso significa ao mesmo tempo a frustração, a desilusão,
o ter que tornar a começar.
Mas Don Juan não é só isso ; há, desde o começo da lenda,
uma dualidade de temas : o sedutor une-se ao rebelde. l:Iá um
(3) Ant ropologia metafísica, Livraria Duas Cidades, São Paulo , 1971 , p. 176.
( N . d o T.)
38
perigo terreno e outro transcendente . O enganador traz sempre
junto a si , em uma ou outra forma, o convidado de pedra, a
irrupção do mais além. Don Juan é um rebelde diante das
pessoas que dominam, protegem e defendem as mulheres ; dian
te da sociedade com seus usos , diante da lei com seus meiri
nhos e justiças ; mas também diante da moral, e sobretudo, dian
te de Deus . O que Don Juan faz, não só é perigoso : é proibido ;
não só é ilegal : é imoral ; não só falta às normas éticas : é
pecado . Se desaparecem estas tensões, Don Juan é impossível,
porque não tem sentido, porque deixa de ser Don Juan .
Don Juan é crente ; entenda-se, é crente em parte. Se o fosse
de verdade, sentiria o temor de Deus , feito de amor a ele, e
não viveria como vive ; mas se nada cresse , faltaria-lhe o estí
mulo da rebeldia e, sobretudo, do risco máximo : Don Juan não
joga somente esta vida ; joga a outra, a eterna; joga a salvação .
Na realidade, Don Juan crê juvenilmente . Quer dizer, pen
sa que " ainda não " , p01: ora não. " Há muito tempo para isso ! " :
nisso está o donjuanismo . " Longo prazo me dás " , diz o Don
J uan de Zorrilla . A morte está muito longe, embora o espere
em cada esquina a ponta de uma espada . A morte está "estru
turalmente " longe para o jovem, biograficamente remota, não
ocupa ainda, numa configuração, seu posto inexorável . Por isso
Don Juan se desentende da condenação , porém a tem aí, ao
fundo, como um telão sobre o qual se recortam com atraente
galhardia suas façanhas .
Há outra dimensão essencial no donjuanismo : a atitude
do jogador. Don Juan joga tudo . O dinheiro, a fortuna : " no
dia seguinte / eu a teria posto numa carta " , diz o Don Juan
outonal ao Escultor, quando soube que seu pai o havia deser
dado e deixado toda sua propriedade para fazer o · famoso pan
teão. Mas também joga a sua vida, aposta-a com Don Luís,
igualmente a põe numa carta que não lhe interessa - ou muito
pouco -: Dofía Ana de Pantoja, a quem ainda não viu, a
quem vai entrever pela rótula, enquanto compõe ovillejos < 4 >
com o infeliz D o n Luís Mejía. O jogo supõe, a o mesmo tempo,
avidez e desinteresse . Sempre me causou admiração a prodigiosa
agudeza de Pascal . Se oferecemos ao jogador o dinheiro que
pode ganhar, não lhe interessa : o que quer é jogar. Propomo-lhe
então que jogue sem dinheiro : tampouco lhe interessa , sem
dinheiro não há jogo . Don Juan , nem crê de todo nem deixa
de crer : assim , precisamente assim, joga a salvação . E está aí
(4) Ovillejos são composições em verso nas quais os pés quebrados �e três
octossílabos formam o último verso de uma redondilha. (Nota para a tradu ç ao bra
sileira .)
39
o drama: consiste no encontro com o absoluto, com o que
não é coisa de jogo. Don Juan, o homem de amores fáceis,
passageiros, em seis dias - incluída " urna hora para esquecê
las " -, não seria possível se não estivesse por trás de tudo
a possibilidade do irreversível, do irrevogável, com o que joga
precisamente porque com isso não se pode jogar.
Se não me engano, existe outra razão explicativa da vita
lidade teatral, dramática, de Don Juan Tenorio. Não só Dofia
Inês é urna verdadeira personagem, urna pessoa que, por sua
vez, personaliza os amores de Don Juan e faz com que este
seja alguém; também " os outros " , " eles " , aqueles que podería
mos chamar a resistência diante da qual Don Juan se constitui
corno . tal rebelde, afirmam-se prodigiosamente personalizados
em Don Gonzalo de Ulloa, o Comendador. São três as grandes
personagens do Tenorio - e não esqueçamos Don Luis, con
trafigura de Don Juan, Brígida, última encarnação de Celesti
na, Ciutti, onde revive o gracioso teatro clássico -: Don Juan,
·
Que tenho eu que ver com tua fome? Que tenho eu que
ver com tua liberdade? Que tenho eu que ver com tuas inquie
tações? Que tenho eu que ver com tuas dúvidas, com tuas aspi
rações , com tuas divergências?
40
Que atualidade pode ter em nosso tempo o tema de Don
Juan? Na sociedade romântica ainda persistiam muitas estrutu
ras não extremamente diversas das do século XVI ou do XVI I .
Zorrilla data o Tenorio d e março d e 1 844, e escreve : " A ação
em Sevilha, pelos anos de 1 54 5 , últimos do imperador Carlos
V . " E a segunda parte, cinco anos depois. Entre uma e outra
nasceu Cervantes . Três séculos depois, Don Juan era ainda
inteligível direta e imediatamente . O antigo regime, que havia
irrompido - violentamente, falsamente - sob Fernando V I I ,
acabava d e morrer. O pai d e Zorrilla havia sido seu leal servi
dor, intolerante e monolítico. Mas na sociedade atual , agora
que as mulheres estão em todo lugar, sem grades nem gelosias,
sem pais nem irmãos - quase sem maridos - que " exerçam "
funções que lhes caibam, com as vigências volatizadas e um
" zunzum " de que vão deixar os mandamentos, como o que
havia ouvido o cigano de La rebeli6n de las masas; na era do
telefone e do automóvel e do " motel " , Don Juan é possível?
Não. Mas apesar disso, continua a nos interessar, ainda
nos sentimos atraído s por sua figura ; e quando as companhias
de teatro acedem a nô-lo apresentar pelos dias de Finados , acor
remos pontualmente a vê-lo. Que interesse podemos encontrar
hoje na figura de Don Juan?
Creio que o interesse do que pôde permanecer, do que
sobrevive em outras formas sociais, em outras estruturas de con
vivência . O ideal masculino, a figura do varão enquanto tal ,
pol armente oposto à mulher, essencialmente referido a ela . A
versão para a mulher, essa operação que se chama a " conquista " ,
que paradoxalmente s ó s e pode conseguir mediante a " rendição " .
A retórica, a criação d e uma linguagem amorosa sem a qual o
amor não existe (e se a linguagem não é a nossa, nosso amor
não é autêntico) . E, finalmente, o perigo, o risco. Mas não dis
semos que hoje não existe perigo para o amor? Claro que existe;
o que acontece é que não é portas a fora mas sim algo interno,
intrínseco; é o perigo dentro do amor mesmo. Nele, em todo
caso, egi qualquer época, o homem põe a vida em jogo. Poder
se-á dizer que então também a mulher. Justamente : é o que
adivinhou Zorrilla ao criar a figura de Dofia Inés de Ulloa .
41
diante de meus estudantes da Universidade de Harvard, deslum
brados pela sua beleza e pelo seu romantismo. �. como todos
sabem, a história de Gabriel Espinosa, o Pasteleiro de Madrigal,
que viveu e morreu por terras de Valladolid em torno de 1 594,
daquele homem estranho, de quem diziam que era o rei D .
Sebastião d e Portugal, desaparecido e m Alcazarquivir, causa da
incorporação de seu reino à coroa de Felipe I I . O pasteleiro,
impostor ou rei , foi enforcado, porque em fins do século XVI
isto não era para brincadeiras , como agora quando aparece, de
tempos a tempos , uma grã-duqueza Anastácia da Rússia, salva
da matança de Yekaterimburg . Zorrilla criou uma personagem
esplêndida, cheia de dignidade e mistério , de simplicidade e ma
jestade, de grandeza e uma modéstia inteligente e zombeteira ;
que alterna a retórica com a insinuação e o undesrstatemente :
uma personagem complexa, ambígua, equívoca, intrigante, irônica .
Para mim, Traidor, inconfeso y mártir significou o momen
to de crise do Romantismo espanhol , a perda de sua vigência
plena, saturada , embora devesse ainda conservá-la declinante,
residual , um par de decênios . Não se esqueça que 1 849 é a
data de La Gaviota, de Fernán Caballero , a primeira novela
" realista " espanhola .
Zorrilla era absolutamente romântico. Quero dizer que par
ticipava de tal maneira dos pressupostos do mundo que encon
trou ao ingressar na história, que nunca deles pôde sair e passar
adiante . Como bom romântico, foi muito precoce : deu-se a co
nhecer, fez-se famoso, aos vinte anos, em 1 83 7 , ao declamar
sua poesia no enterro de Larra :
42
Martínez de la Rosa , em 1 834. O primeiro grande êxito dra
mático de Zorrilla é El zapatero y el rey, de 1 840. Em 1 849 ,
não deixemos escapar o fato, tinha Zorrilla trinta e dois anos .
E depois da estréia do Traidor, sua obra melhor construída,
mais acabada - e era essa também sua opinião -, retira-se
da cena. Que significa isto?
Zorrilla, ao final do capítulo XX dos Recuerdos dei tiempo
viejo, diz laconicamente : " Desde a representação do Traidor,
inconfeso y mártir, deixei de escrever para o teatro . " Assim,
sem mais, em plena juventude, dentro mesmo do esquema ro
mântico das idades . Disse uma vez que sua retirada da cena
acontecera porque sua mulher tinha ciúmes de que tivesse que
tratar com atrizes. Ora, não se sabe de nenhum autor teatral
que haja renunciado a sê-lo, em pleno êxito, por essa razão ; e ,
ademais , sabemos que Zorrilla não se importava muito com
sua mulher: pouco depois partiu para a França, mais tarde para
o México, e esteve fora de casa uns vinte anos . Como se isto
não bastasse, e sem contar o caso da linda dama chilena de
quem confessa haver-se enamorado em Paris, ao relatar sua par
tida desta cidade, em novembro de 1 854, diz simplesmente : " No
dia 28, à noite, despedia-me na estação de estrada de ferro ,
de uma mulher em cujos braços dormia um ser inocente nascido
no pecado, por quem eu devia viver, trabalhar e voltar rico da
América " < 5 > .
Não, deve ter havido outras razões. Creio que o teatro
tem que se ajustar às exigências de uma época, porque nele
o juízo é coletivo e instantâneo, isto é, social e não propria
mente individual . Se o leitor não gostar de um livro, deixa-o ;
se for particularmente violento e mal-humorado , lança-o ao fo
go, talvez à lareira acesa; porém nada acontece, isto não tem
conseqüências, e o autor não fica sabendo. No caso do teatro,
pelo contrário, quando cai o pano, o público - retenhamos
a palavra -, após uma mínima consulta tácita cujo processo
deveria estudar-se, pronuncia um julgamento imediato e glopal ,
acima das dissidências. A obra teatral não pode apoiar-se no
gosto pessoal ou no lento pingar de opiniões individuais favo
ráveis, ou na tolerância. Tem que ser atual.
O Romantismo estava passando . Zorrilla, no Traidor, pôde
ironizá-lo sem infidelidade, porque a personagem é irônica; com
maravilhosa intuição soube aproveitar essa possibilidade - Zor
rilla tinha um faro literário assombroso, que a crítica despre-
(5) Recuerdos dei tiempo viejo, Segunda parte . " Tras el Plrlneo• , cap. IV.
43
zou indignamente -; mas não podia fazer isto mais vezes; era
preciso sair do Romantismo, e Zorrilla estava ligado a ele por
toda a vida, muito mais fielmente que à sua mulher.
I sto não é simples especulação. Esta convicção se me impôs
há mais de vinte anos , como resultado de ler - e não só anali
sar ou folhear - o Traidor, mas acontece também que se pode
documentar. O grande ator romântico era Carlos Latorre, que
figurou na estréia do Tenorio ; o Traidor também teve em sua
estréia o grande ator Julián Romea, um homem distintíssimo,
ele próprio poeta, a quem podemos entrever nas primeiras pá
ginas de La Corte de los Milagros de Valle-Inclán . Foi ele que
introduziu a " alta comédia " , o que depois se chamou a comédia
realista. No teatro que estava vindo, o teatro pós-romântico,
Zorrilla o admirava, porém não sentia entusiasmo por ele. Com
incrível perspicácia conta nos Recuerdos dei tiempo viejo a his
tória da estréia do Traidor, que deveria analisar-se em porme
nor. Sua fórmula é: " sim , mas . . . " Os dois amigos, auto;. e
ator, discutem ; Zorrilla teme que o êxito não seja grande, que
Romea não saiba ser um Gabriel Espinosa . . . romântico. " Crês
- diz Zorrilla - que a verdade da natureza cabe seca, real
e nua no campo da arte, mais claramente, na cena; eu creio
que na cena só cabe a verdade artística. " " � s - acrescenta -
o ator inimitável da verdade da natureza : tu que criaste a co
média de casaca que se deu em chamar de costumes; podes
apresentar-te, e às vezes te apresentas em cena, da maneira que
apeias do cavalo, de volta do Prado . . . � s Julián Romea e o
podes ser na comédia atual : o drama, porém, é um quadro, uma
paisagem, cujas veladuras, que são o tempo e a distância, se
harmonizam de uma maneira ideal e poética, em cujo campo
fere os olhos a verdade da natureza, a realidade de uma perso
nalidade : eu necessito de uma personagem para o papel de
meu rei D . Sebastião. " E conclui , com expressão clarividente :
" Isso, isso é o que quero; que representes, não que te apre
sentes " < 6 > .
Que representes, não que te apresentes: não cabe em me
nos palavras a diferença entre o drama romântico e a comédia
realista, entre a época que terminava e a que ia começar. Trai
dor, i nconfeso y mártir, drama romântico irônico - por exi
gência intrínseca de sua personagem e seu argumento - foi o
gonzo em que se articularam as duas épocas, o ponto de infle
xão de duas etapas da vida histórica.
44
Mas como se isto não bastasse, Zorrilla fornece em outra
circunstância precisões que confirmam o que acabo de dizei:.
Fala da instalação, pouco tempo depois, de um Teatro Espa
nhol, protegido e subvencionado pelo Governo, com os melho
res autores, atores e assessores ; " iriam , diz, dar a conhecer e
infiltrar no povo de Madrid as obras-primas de nossos bons
autores e o bom gosto literário, estragado pelos excessos dos
dramaturgos revolucionários que o corromperam " < 7 > . Trata-se,
é claro, da reação anti-romântica .
Zorrilla põe-se perfeitamente a par disso com sua perspi
cácia habitual . Vale a pena ler os parágrafos em que conta o
que estava acontecendo :
" Assisti a uma representação muito esmerada do Sí de las
ninas, de Moratín ; e pelas pessoas que vi na sala, pelos atores
que vi no cenário e pelo que vi e ouvi na saleta e nos camarins
dos atores, compreendi que aquele suntuoso edifício fraquejava
em seus alicerces, porque o que nele é estabelecido trazia em
seu seio o germe da dissolução. Tratava-se francamente de uma
reação clássica, como hoje de uma reação carlista . . .
" Se as reações fossem lógicas , sensatas, imparciais e pre
cavidas , lograriam sempre ser úteis, desej adas e benditas ; po
rém, como se tornam ferozes e levantam-se cegas contra as re
voluções envelhecidas, passadas e já por si mesmas capituladas,
não se servem, por não reconhecerem útil, de nada do que aque
las criaram e germinaram ; e por não quererem aceitar nem
aproveitar nada delas , convertem-se por sua vez em revolucioná
rias, tão repulsivas e destrutivas quanto inúteis " < 3 > .
Por estas razões vejo em 1 849 a data crítica do Romantis
mo espanhol, talvez sua culminação literária, o começo de seu
declínio, de sua transição a outra época histórica . Zorrilla não
podia fazê-la, não podia instalar-se no tempo que assistia chegar,
que não sentia como "o seu " . t significativo que intitule suas
memórias Recuerdos dei tiempo viejo.
Ancilose , rigidez, falta de flexibilidade? Assim parece, e
assim o pensei por muito tempo . Zorrilla é um escritor elemen
tar, primário, bom para o povo, a quem críticos e historiadores
desdenham há quase um século. A quem ocorrerá escrever um
livro a sério sobre Zorrilla? A quem ocorrerá explicá-lo com
um pouco de rigor e o tendo relido? Quem pensará em procurar
em suas obras muitas inovações que se atribuem festivamente
a poetas posteriores dos dois lados do Atlântico? Quem utiliza
45
Zorrilla como introdutor à realidade espanhola, entre os estu
tudiosos estrangeiros ?
Pode-se pensar, todavia , que Zorrilla tinha alguma razão
positiva para não embarcar na aventura pós-romântica. Preci
samente, a de que não era uma aventura e sim uma simples
reação, um movimento para trás, uma inautenticidade. "A rea
ção clássica não pôde surtir efeito - diz -; o romantismo
havia expulsado de nossa poesia popular as divindades mitoló
gicas . . . " Entre a época romântica e a nossa - a que começa
com a geração de 98 - há um período que não chega a ser
uma verdadeira época histórica < 9 > , uma fase de transição entre
duas épocas. Não seria difícil descobrir elementos de inautenti
cidade em quase toda a literatura e a política desse tempo -
apesar de todos os seus valores -, o que levou os homens de
98 a repudiá-las , com injusto excesso, o que levou Ortega a cha
mar a Restauração " um panorama de fantasmas " . Zorrilla sen
tiu a mudança como um convite negativo , a não ser ele mesmo,
mais do que a ser algo novo. O termo " reação " acorre uma e
outra vez a sua pena, e o associa inequivocamente à reação
política.
Não será que em última análise Zorrilla era irremedia
velmente romântico, porque era inapelavelmente liberal, porque
havia feito em seu pai - quer dizer, em carne viva - a expe
riência do reacionarismo? Mais ainda, Don Juan diante do Co
mendador, não será o irônico Gabriel Espinosa, pasteleiro ou
rei , o homem fiel a si mesmo , o símbolo do romantismo ma
duro, já de volta, que conhece seus limites? Disse eu, há muitos
anos, que a têmpera profunda do liberalismo é o entusiasmo
cético ou, se se preferir, a melancolia entusiasta : não é essa
justamente a têmpera do último drama de Zorrilla?
1 973
(9) A estrutura social, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1963, cap. I I , a p . 9 .
c l t . (N. d o T . )
46
Bécquer em seu lugar
1 . A geração de Bécquer
47
ciais, muito pelo contrário : resolve com surpreendente rigor mui
tos que , com outras datas seriam insolúveis ou levariam a con
trovérsias insuperáveis. As pouquíssimas dificuldades que esta
escala encontra, podem explicar-se por razões individuais e que
não afetam a estrutura geral da sociedade espanhola.
Há algum tempo pensei estender a mesma escala - com
intervalos de quinze anos - para trás , até o começo da socie
dade espanhola unitária, no século XV. Não seria de estranhar
encontrar-se algumas anomalias, por duas razões: a primeira,
porque os quinze anos de intervalo geracional são sempre apro
ximados, um " número redondo " que exclui precisamente a exa
tidão, imprópria da realidade, e especialmente da realidade hu
mana < t ) , motivo pelo qual uma diferença, ainda que pequena,
ao acumular-se ao longo de muitas gerações , pode tornar a série
sem validade ; a segunda razão é que em longos períodos não se
pode excluir a possibilidade de um " traumatismo social " que
acarrete alguma anormalidade a uma geração ou à relação de
duas sucessivas, o que obrigaria a um reajuste das datas . Pois
bem, com bastante surpresa constatei que a mesma escala ob
tida para as gerações dos séculos XVI I I-XX era satisfatória,
pelo menos à primeira vista , para as dos séculos XV-XVI I . Pa
rece aconselhável, portanto, utilizar como " hipótese de traba
lho " esta escala para toda a história da Espanha como nação,
isto é, para toda a I dade Moderna. (A extensão da mesma es
cala aos reinos medievais ou , por outro lado, aos demais paí
ses da Europa ocidental requeriria rigorosas investigações que
ainda não foram feitas.)
Embora se dê o caso de algumas gerações serem denomi
nadas por certa data especialmente relevante, aproximadamente
coincidente com a entrada na História ou o florescimento de
seus membros - assim falamos da " geração de 1 898 " , quan -
48
que marcam encontro, com Lucas Fernández, Sá de Miranda e
Berruguete, nada menos que Las Casas , Vitoria, Pizarro, Elcano, ·
49
nosso século, e menos que nunca na época romântica, caracte
rizada pela precocidade e freqüência da morte prematura .)
Mas é preciso fazer um esclarecimento importante. Estas
" entradas " e " saídas '' , estas aquisições ou perdas do poder so
cial a certas idades, não se referem aos indivíduos e sim às ge
rações ; quero dizer que não acontecem quando cada indivíduo
alcança uma determinada idade , e sim quando chega a ela sua
geração, contando segundo a data central de nascimentos. Mas
isto significa que os que nascem no começo de uma geração são
socialmente tardios (e mais " duradouros " ) , enquanto que os nas
c i dos no fim tornam-se socialmente precoces (e perdem mais
jovens sua vigênci a social) . Estas funções sociais e históricas
afetam, poi s . simultaneamente os membros de uma geração , qual
q uer que seja sua idade pessoal , e por isso há mudanças sociais
segundo gerações, por isso há uma articulação das vigências ,
quc mudam - mais ou menos - cada quinze anos.
Pois bem , quando Bécquer começa a publicar - em torno
a 1 858 -, encontra ainda em seu mundo alguns homens da
segunda geração romântica, a de 1 78 1 , isto é, a que verdadei
ramente iniciou a literatura romântica na Espanha : José Joa
quín de Mora - muito neoclássico ainda - e , sobretudo , Mar
tínez de la Rosa, que com La coniuración de Venecia havia inau
gu rado o drama romântico espanhol em 1 834. Das gerações
românticas s e gu i ntes - 1 796 e 1 8 1 1 - encontra numerosos
autores ativos : Alcalá Galiano, o Duque de Rivas, Agustín Du
rán , G i l y Zárate , Estébanez Calderón , Modesto Lafuen te , Mi
guel Agustín Prínci pe, Nicomedes Pastor Díaz (que morreram
antes dele) e muitos outros que sobrevivem a Bécquer, que ain
da vivem cm 1 87 0 : Bretón de los Herreros , Fernán Cabal lero,
Wenceslao Ayguals de Izco, Mesonero Romanos , Hartzenbusch ,
Pascual G ayangos , o conde de Cheste , o Marquês de Molins,
G arcía Gutiérrez , a Avel laneda , Diana , Eugenio de Ochoa , Fe
derico de Madrazo , Ariza , Martínez Villergas , García Tassara ,
Rod ríguez Rubí , Miguel de los Santos Alvarez , Zorrilla, Cam-
poamor . . . d
I sto quer dizer que durante toda a vida de Gustavo Adol fo
Bécquer estão ocu pando o cenário histórico a maioria dos escri
tores do Romantismo espanhol , com exceção apenas dos i n ici a
dores e daqueles que morreram muito jovens . Quando Bécquer
inicia sua vida de escri tor , a geração " no poder " é a de 1 8 1 1 ,
que ainda continua " reinante " após sua morte . I s to é, toda a
vida ativa de Bécquer transcorre sob a vigência da geração de
1 8 1 1 , a ú ltima geração rigorosamente romântica , e em presença
de boa parte da an terior e alguns sobrevi ventes da de 1 78 1 .
50
E a sua? Neste ponto a situação se torna ainda mais es
tranha e é preciso dar-lhe todo seu valor. A geração de 1 84 1
entra na história e m 1 87 1 ; ascende ao poder social em 1 88 6 ;
tem s u a plena vigência histórica entre 1 886 e 1 90 1 . O r a , Béc
quer morre em 1 8 70 , antes que sua geração houvesse chegado
a aposentar-se. A obra inteira de Bécquer é anterior à sua ge
51
irmão Valeriano ; e com ele Campillo, Rodríguez Correa, Nom
bela, Eusebio Biasco ; aqueles a quem se deve quase toda a in
formação sobre sua pessoa, os revisores e editores de sua obra
póstuma, os que traçaram o perfil de sua biografia e talvez a
desfiguraram desde muito cedo . Salvo Biasco, oito anos mais
jovem que Gustavo Adolfo, todos estes amigos nascem entre
1 834 e 1 836, no princípio da geração. Todos eles - e não di
gamos o resto dos membros dela - parecem mais " recentes "
que Gustavo Adolfo Bécquer, e ao mesmo tempo mais " anti
gos " ; a razão do primeiro é que viveram até muito mais pró
ximo de nós ; a do segundo, a relativa " solidão " em que Bécquer
criou sua obra, mergulhado num mundo onde ainda perdurava
o Romantismo, porém já alheio a ele, desligado também de sua
própria geração que não fizera até então sua entrada no cenário
histórico.
Contudo, a impressão de " figura insólita " é muito grande ;
a distância entre Bécquer e seus companheiros de geração pa
rece demasiada; mas o insólito ainda mais se acentua se tenta
mos aproximá-lo a outra geração, com a que cronologicamente
está " !indante " : três anos antes dele nascem Alarcón e Pereda ;
quatro anos antes, Castelar, Manuel dei Palacio , Echegaray; se
continuarmos buscando mais para trás, encontraremos Tamayo,
López de Ayala, Valera . . . Não, não poderíamos instalar Béc
quer nesta geração , se variássemos a escala proposta. A impres
são de " único " , de outsider, se acentua. Embora a personali
dade de Bécquer fosse muito forte e original - o era, ainda
que tudo isso se desse nele em tom menor e como que em voz
baixa -, continua parecendo estranho que não se mostrem
coincidências de nível mais acentuadas em relação ao resto de
sua geração. Não haverá algumas?
Evidentemente, com Rosalía de Castro , que em· tantos sen
tidos corresponde a Bécquer na poesia do século X I X . Mas, por
outro lado, nele germina uma nova forma de " popularismo "
bem diverso daquele dos costumbristas , que em outros gêneros
e formas encontramos em Ricardo de la Vega, Lucefio, Ramos
Carrión ou . . . Costa. E encontraremos ainda maiores conexões
se pensarmos nos pintores coetâneos : Rosales - de vida tão
semelhante à de Bécquer -, Fortuny, Jiménez Aranda, até Au
reliano de Beruete . As Leyendas mais autênticas referidas às
terras de Espanha que Bécquer conheceu tão bem ; as Cartas
desde mi celda, poderiam ter sido ilustradas por esses pintores
de sua geração ; valeria a pena estudar com precisão os parale
lismos, as diferenças, as contribuições do escritor e dos pinto
res à visão da paisagem e das figura s humanas .
52
Mas há ainda outra consideração : se Bécquer, em lugar de
morrer aos trinta e quatro anos, tivesse alcançado uma trajetória
biográfica normal ; se tivesse escrito depois da própria geração
haver ingressado na história, o que teria escrito? Como seria
sua figura literária madura? Pareceria mais a seus coetâneos
que viveram muitos anos depois de sua morte?
Afortunadamente, podemos em certa medida responder es
tas perguntas . As páginas que Vicente Huidobro publicou pela
primeira vez, em 1 920, meio século depois da morte de Béc
quer, e que já foram reeditadas várias vezes como " El testa
mento literario de Bécque r " , são umas notas sobre os projetos
de Gustavo Adolfo, antecipação de suas pretensões para o fu
turo . Parte desses projeto s são puramente editoriais, com uma
inocente esperança de lançar publicações de grande êxito co
mercial ; outros são mero prolongamento dos gêneros literários
que estava cultivando ; mas além disso há algumas inovações
significativas . Recordarei as que me parecem mais revelad:::i r as .
" Teatro (comédias e dramas) : El cuarto poéer (comédia
de defesa social } , La mujer dei gran mundo, Alta sociedad, Los
hermanos dei dolor (cenas íntimas) , El duelo (dramática, filo
sófica , moral) , El ridículo (filosofia social) , Dichoso el que cree
(religioso) , La fisiología dei matrimonio (comédia caseira) . . . "
" Novelas de pretensões : Vivir o no vivir (social média) , Quince
días de trueno (social baixa) , La máscara de oro (social alta.
Grandes) . "
Não parece que abandonamos a terra original do Roman
tismo ? Não são os temas da " alta comédia " e da novela rea
lista? E estes títulos que se insinuam entre outros muitos que
correspondem à obra efetiva de Bécquer, não serão conseqüên
cia da pressão social exercida por sua geração , das vigências
de seus coetâneos , que começam a exercer sua influência sobre
Gustavo Adolfo? E pode-se perguntar se isso não era uma ten
tação , se não teria desvirtuado a autêntica inspiração de Béc
quer. Porque poderia bem ocorrer que sua obra efetiva, apa
rentemente tão indecisa, tão vagarosa , tão envolta em brumas ,
não fosse mais que a germinação ainda vacilante de certas pos
sibilidades novas, que a morte prematura de Bécquer não dei
xou desenvolver. Como as pressões sociais i mpediram que o me
lhor Moratín, o das cartas e anotações privadas e dos diários
de viagem , entrasse realmente na literatura pública espanhola,
-
que teria sido diferente se pudesse contar com isso < 3 > , a breve
trajetória biográfica de Bécquer foi indubitavelmente causa de
(3) Veja-se meu ensaio " Espaiia y Europa en Morat l n " , em Los Espanoles, 1 962,
4.• ed., 1 972. Obras, VI I .
53
que malograsse uma possibilidade literária que fica interrom
pida e cujos fios soltos se vão enlaçando, a distância , em nosso
século , desde a geração do 98 até a poesia das duas segu intes .
54
Mas tinha que passar por aí para chegar à novela da se
gunda metade do séc . XI X . e sem dúvida esta se ressente de
não haver passado suficientemente por aquilo que Bécquer pre
tendeu fazer e mal o pôde realizar.
A culminação desta descoberta becqueriana está nas Cartas
desde mi celda, escritas no mosteiro de Veruela, junto ao Mon
cayo, entre Sória e Aragão . Parte de um costumbrismo que teri a
podido ser o de Mesonero ou o de Larra - segundo as têm
peras -; sente-se logo dominado por um novo, mais imediato
e íntimo sentido da paisagem, que antecipa em algun s momen
tos a grande recriação que inaugurará a geração de 98 ; uma vez
instalado no mundo de Veruela, Bécquer se põe a viver ali , e
nos vai comunicando o conteúdo de sua vida : visão da hi stóri a ,
tentativa de aproximá-la a o presente , antecipação d o futuro , em
que a apreensão se une à esperança , um fino, agu do sen t i do da
justiça social , que não se lança pelo caminho da abstração e
utopia mas se mantém fiel a uma visão concreta da realidade ;
e, sobretudo, uma vivificação de tudo isso com histórias, con
tos, fábulas, lendas , superstições e uma tonalidade lírica que
envolve a precisão rigorosa de tudo o que ali se mostra . O raro
equilíbrio entre poesia e verdade, tão poucas vezes conseguido,
consegue-se excepcionalmente nestas Cartas narrativas. escritas
em 1 864 , cujo nível é incomum alcançar-se nos trinta ou qua
renta anos seguintes . E os escritores da geração de Bécquer e
a seguinte - os anteriores à de 98 - não se dão conta de
que a falta de verdade em literatura costuma provir, parado
xalmente , de falta de poesia . Foi isto que a geração de 98 su
perou - genialmente - de raiz , como quase todas as limita
ções que a Espanha arrastava ao longo do século XIX, o que
Gustavo Adolfo Bécquer havia adivinhado.
3. A poesia amorosa
55
dor, o que lhe dá sua tonalidade decisiva, aquilo que faz com
que a lírica becqueriana seja irredutível ao resto da poesia es
panhola de seu tempo e às influências estrangeiras, sobretudo
inglesas e alemãs, que indubitavelmente gravitam sobre ela. Qui
sera dizer uma palavra sobre o que Bécquer faz com tudo isso :
uma poesia amorosa.
A interpretação poética do amor, que influi decisivamente
na realidade amorosa de cada sociedade, acontece só em raros
momentos da história, e há longos períodos em que o homem
não possui uma interpretação original dessa dimensão essencial
da vida humana : ou não tem nenhuma, ou se apóia inercialmente
em uma que foi criada por homens de épocas diferentes e que
não corresponde à sua maneira de viver o outro sexo e sua
relação com ele. Poder-se-ia estabelecer, na literatura espanhola,
uma linha descontínua de nomes significativos : Fernando de Ro
jas, Garcilaso, Fernando de Herrera, Lope de Vega, Quevedo,
Meléndez Valdés, Espronceda, Bécquer, Machado, Salinas . São
os pontos de inflexão da interpretação do amor, aqueles em que
a vida amorosa recebeu uma nova tonalidade ou foi contem
plada a partir de uma perspectiva original e distinta . Que re
presenta Bécquer nesta linha?
A tendência quase unânime dos comentadores das R imas
tem sido interpretá-las biograficamente. Pensou-se que cada um
dos breves e alados poemas se refere a um aspecto, um episó
dio, uma crise, uma esperança, um balanço da vida pessoal de
Gustavo Adolfo Bécquer; que, em princípio, se poderia " do
cumentar" cada uma das Rimas, vinculá-la a uma mulher de
terminada e a um momento da rel ação com ela ; em suma, que
as Rimas compõem algo assim como a história amorosa de seu
autor, e que seria suficiente ordená-las cronologicamente e es
clarecer as referências - se isso fosse possível - para que
aquela biografia real aparecesse diante de nossos olhos.
Não tem faltado, é claro, quem pense que os poetas com
põem seus versos movidos por aquilo que poderíamos chamar
uma inspiração geral ou, se se prefere, primariamente estética,
e que é problemática a vinculação de uma lírica amorosa a algo
mais preciso do que a experiência vital do poeta, tomada em
seu conjunto, enriquecida por aquilo que poderíamos chamar
suas experiências imaginárias e pela assimilação das interpre
tações alheias - sobretudo literárias - do amor, isto é , por
uma tradição ao mesmo tempo social e poética. Mas isto cons
titui antes de qualquer coisa uma atenuação ou retificação da
tendência " literalista " na interpretação de Bécquer. O certo é
que, atrás de cada rima, somos tentados a ver uma mulher de
56
quem Bécquer está enamorado, ou está se enamorando, ou está
se desenamorando , uma mulher que, por sua vez, volta-lhe uma
ou outra face. Creio que convém fixar isto e não passar por
alto, ainda que em última análise a interpretação literalmente
biográfica se mostre infundada .
O que acontece, se não me engano, é que a estrutura das
·
apenas, oh hermosa !,
si, teniendo en mis manos las tuyas,
pudiera, al oído, cantártelo a solas.
(apenas, ó formosa! ,
se, tendo em minhas mãos as tuas,
pudesse, ao ouvido, cantar-te a sós.)
57
esquecida) , " esperando la mano de n ieve " (esperando a mão de
neve) -, e de tantas outras .
Ou então :
58
S11 mano entre m is manos,
sus ojos en m is ojos,
la amorosa cabe=a
apoyada e11 mi h o m b ro . . .
( Su a m ã o cm m i n h a s m ã o s .
seus ol hos cm m e u s o lho s ,
a amorosa cabeça
apoiada e m meu ombro . . . )
Cuando me lo co n t a ro n sen ti el f r io
de una h oja de acero en las e n t raFws!
( Q u a n do m e c o n t a ra m senti o frio
de uma lâ m i n a de aço n u s entrnnhas ! )
(6) Veja-se meu ensaio: " Un a forma de amor: la poesia de Pedro Salinas'', em
Aqui .v ahora, 1954. Obras, I I I .
59
mântico, move-se no âmbito do amor em seu sentido mais es
trito. E dá um passo além : os poetas das gerações propriamente
românticas - Espronceda, por exemplo - permanecem no ele
mento da paixão inconcreta e deixam para uma " subpoesia" li
cenciosa e francamente obscena a presença da carne . Bécquer
integra ambos os aspectos ao entender a mulher amada como
pessoa carnal, como " alguém corporal " ou, se se prefere, pessoa
sensível.
Bécquer pôde apenas descobrir esse escorço em que lhe
aparecia a mulher, e portanto o amor, e isto quer dizer a rea
lidade humana. Sua intuição não se pôde cumprir e realizar;
sua finíssima, prodigiosa invenção foi perder-se além, no pro
saísmo e na eloqüência exterior de sua geração e da seguinte ;
e aí ficou Bécquer como uma possibilidade que iria dar seus
" frutos tardios " no século seguinte, no nosso.
1 97 1
60
A idéia da vida na novela
de Galdós
61
inconfeso y mârtir, de Zorri l l a , e publ i ca-se a p r i me i ra novela
" realista " , La Gaviota, de Fernán Caballero . Desde essa data
até 1 898 - se se qui serem l imites relevantes - estende-se esse
período , compreendido entre a época romântica e a nossa , que
podemos chamar, com um critério l i terári o , o realismo. e que
corresponde ao espír i to d a Restau ração , v i sto q u e m u i tos carac
teres da soci e d a d e espan hola pecu l i a res àquela já se anunciam
nos dois decênios anteriore s .
recem i n teressantíssi m o s .
P o u c o t e m p o depoi s G a l dós s e n t e necessidade de rec riar
a v i d a mesma q u e tem em torn o , a vida presente , e então co
meça a série das novelas que chamou , e é interessante o n ome ,
no velas contemporâneas. Tem p rofu n d a consciência de que o
q ue tem que refletir é a v i d a na qual está imerso , aquela que
62
não pertence ao passad o , nem sequer ao imediato, mas é rigo
roso presen te .
E s tas novelas são , todav i a , de várias c l asses . N ão foi sem
traba lho que G a l dós chegou a escrever nove l a s e m sentido es
trito , como não foi também sem trabalho que a novel a desco
briu em que consiste a v i d a humana . A s p rimeiras novel as de
G a l dós são as chamadas no velas de teses . São as novelas ideoló
gica s , como Dona Per/ ecta, Gloria, La fam ilia de León R och,
nas quais as personagen s não são propriamente personagens , isto
é , pessoas i n d i v iduai s , singu l ares e únicas , e s i m " casos " , tipos,
ou sej a , d e fi n i d a s por uma s i tuação determ i n a d a . São o médico
f i l â n tropo , o engen heiro progressista , o judeu , a beata retrógra
d a , o protestan t e , o descrente , o fervoroso . E m l ugar de possuí
rem um nome próprio irredutível , são tipos ou casos , p e rson a
gens construída s , determinadas por uma i d eologia ou si tuação
sem as quais não existiri a m .
N e s s a l i n ha , o c a s o extremo é R o b i n s o n Crusoé. Q u e m é
ele ? N i nguém determ i n a d o . h " o homem que está numa i l h a
d e serta •· . Se retiro R o b i n so n Crusoé da i l h a e o p o n h o a q u i
e n tre nós , quem o conhecerá? Q u e m poderá identi ficá- l o ? Como
é R o b i n son C rusoé fora d e sua i l h a , sem seu papagai o , sem
seu a rcabuz , sem seu Sexta-feira? N ã o temos n e n h u m a i d é i a , no
e n tanto poderíamos traze r , do castelo de E l s i n o re , H am l e t , m e s
mo q u e não fosse príncipe , mesmo que não l h e acon tecesse
nada do que lhe aconteceu , o recon heceríamos imediatamente ,
porque há uma certa m aneira de ser q ue consiste em ser H a m l e t ;
e conheceríamos D . Q u i xote sem Rocin ante , sem l an ç a , sem
a d a r g a , sem Sanc h o . porque h á uma maneira qui xotesca de vi
ver e e n tender o m u n d o . Não são casos , são personagens .
Os d a s p r i m e i ras n o v e l a s de G al dós são a i n d a casos defi
n i dos por uma si tuação , uma i d e o l ogi a , uma crença , u m a a t i
t u d e política . N o fun d o , h á um e q u ívoco q u a n d o se f a l a d o
re a l i s m o de G a l d ó s . D iz-se q u e foi um novelista real i s t a , e que
La desheredada - u m a esplêndida novel a , por certo -. d e
1 8 8 1 . representa a c u l m i n ação d e s s e reali smo , m e smo a t é o c o
meço d e u m a f a s e n a tura l i s t a . I sto me parece u m e rro . C r e i o
q u e a s n o v e l a s rea l i stas de G aldós são as anteriores , a s que
i n t e rp r e t a m a real i d a d e h u m a n a como res , " co i s a " . O rea l i sm o
é s e m p r e um " co i s i s m o " , quer se trate de u m a coi sa física ou
h i u l óg i c a ou psíquica ou social ; e é i sto o q ue têm as primeiras
n o v e l a s g a l d os i a n a s . D e p oi s , e preci samente desde La deshere
dada. G a l d ós v a i cam i n hando pouco a pouco para uma repre
sen l m; ií o d a v id a como tal , não casos , ideologias ou tese s ; v a i
faze n d o verdadeiras personagens , pessoas de ficçã o . E i s t o o
h.: v a a a lgo sumame n te i m portante .
63
B sabido que aos vinte anos Galdós saiu de sua ilha natal
de Gran Canaria para ir a Madri d ; não se tratava só de que
o jovem escritor procurasse o horizonte dilatado da capital .
Galdós necessitava Madrid como mundo. A forma de vida que
Galdós havia sido chamado a recriar necessitava um mundo que
tinha que ser precisamente Madri d . Este Madrid de Galdós não
é primariamente uma realidade urban a : é um cenário. Nele se
dão essas vidas que , por certo, ainda existem . Ainda nos ocorre
estar passeando por um bairro de Madrid, andar por suas ruas,
entrar em algumas casas, subir por suas escadas , penetrar em
seus interiores e dizer: isto é Galdós . Em Madrid ainda há pes
soas que têm cara de Galdós , crianças nascidas só há dez anos
que parecem haver escapado de uma de suas novelas. Do mes
mo modo que há ruas, casas e gente que têm ar de Baroja. Há
um Madrid de Galdós e um Madrid de Baroja , que correspon
dem a diferentes zonas urbanas e ·a diversos estratos sociais.
Ambos existem e estão vivos, porque Madrid, como toda grande
cidade, é uma série de níveis sobrepostos , de capas de antigüi
dade e origem diferentes . São como estratos geológicos de vida
histórica que de alguma maneira sobrevivem .
Pois bem, esse cenário que é Madrid está habitado por uma
pululação de personagens ; fez-se um censo de personagens gal
dosianas , . e constituem um povo . Estas personagens são essen
ciais na novela de Galdós, porque interessava a ele fazer viver
centenas de personagens primárias, secudárias e terciárias, até
conseguir uma realidade humana " compacta " . E freqüentemen
te mudava sua perspectiva : a personagem secundária apenas en
trevista numa novela , em outra avançava até o primeiro plano
e a ocupava inteira. Encontramos , por exemplo, um velho co
nhecido , aquele doo José Ido del Sagrario , que comia mal , e
quando comia carne se excitava e ficava quase bêbado ; esta
figura secundária, mas que sempre ocupa um lugar de relevo
em nossa mente , aparece depois desenvolvida, crescida, cheia
de importância. Ou então encontramos o insignificante e encan
tador Celipín convertido em protagonista que ocupa meia novela .
E u diria que diante d o herói solitário , característico da
novela romântica e mais ainda das formas não novelescas da
ficção dessa época - a lenda e o drama - , Galdós , com uma
curiosa inspiração, tem presente o povo . Não é o herói solitário
o que o interessa , é o povo, é a. sociedade . Mas advirta-se -
e é esta a genial penetração de Galdós - que ao falar do povo
ou apresentar a sociedade , Galdós nunca esquece que se trata
de vidas, de vidas humanas, e a vida humana é sempre vida
individual. É a minha, a tua , a sua (dele ou _dela) . Por esta ra-
64
zão, Galdós nunca pôde fazer isso que se chama " novela so
cial " , novela coletiva, que em última análise não é de ninguém,
na qual não há vidas singulares e portanto não há novela. Gal
dós faz uma novela que é as inumeráveis vidas de um povo;
é o povo como uma intrincada rede de convivências, como um
entrelaçar-se e um entrecruzar-se de trajetórias vitais individuais,
singulares, em sua textura efetiva.
A idéia de novela que tinha Galdós - vidas individuais
entrelaçadas num povo - levou-o a ser o novelista do que se
chama, e sobretudo se chamava então, a classe média. Por quê?
Diz-se que Galdós não se sentia bem à vontade na aristocracia ,
que não a conhecia bem, e que tampouco se sentia muito con
fortável e instalado nas classes populares. E possível, embora
eu creia que conhecia suficientemente bem esses estratos da
sociedade, sobretudo as classes populares; em todo caso, não
penso que fosse essa a razão decisiva.
Em minha opinião há um motivo mais poderoso : a classe
média significa - se ·etudo significava em seu tempo - um
máximo de person aL .;ade . As aristocracias foram, já há muito
tempo, grupos sociais muito esquematizados . Desde o século
XVI I I , pelo menos, foram internacionais; mantiveram íntimas
relações entre si, diríamos que acima de seus países . A primeira
Internacional que existiu não foi nenhuma Internacional operá
ria, mas sim uma Internacional da aristocracia . Percebeu isto
muito bem, e o disse, um homem tão agudo como Benjamin
Constant. Muito antes de Marx, desde o século XVI I I e com
plena consciência cerca de 1 820.
Este caráter internacional emprestava traços sumamente ho
mogêneos à aristocracia, a qual estava sujeita a pautas de con
duta determinadas de maneira muito precisa. A própria riqueza
ou abundância de meios contribuía para isso . Advirta-se que a
riqueza tem, em princípio, a grande virtude de ampliar nosso
horizonte e permitir-nos o acesso a um milhão de coisas ; po
rém, na prática e de fato, as pessoas ricas vivem sumamente
limitadas , porque não podem usar as coisas baratas, que são
quase todas. A gente muito rica vai aos hotéis de luxo, que são
iguais em todos os lugares; vai às praias de moda, que são
iguais em todo o planeta, e em todo ele mortalmente enfado
nhas; viaja sempre nos meios de comunicação mais caros, que
são os mesmos, e freqüentados pelas mesmas pessoas . I sso que
agora se chama the international set, isso de que falam invaria
velmente as revistas ilustradas - e que corresponde nessa di
mensão ao que foram as aristocracias - é igual , exatamente
igual e monótono em todos os lugares. A enorme, a riquíssima
65
variedade do mundo é demasiado barata, de pouca categoria, e
geralmente eludida e evitada pelas classes mais poderosas .
I sto faz com que as aristocracias econômicas - e no tempo
de Galdós ainda coincidiam em grande parte com as do sangue
- tenham um repertório de possibilidades reais sumamente li
mitado. Só os ricos dotados de grande imaginação, que inven
tam coisas e doam fundações e têm curiosidade pelos demais
- principalmente nos Estados Unidos -, têm uma amplitude
maior de movimentos e experiências . Os demais costumam vi
ver em condições de fato extremamente restringidas por sua
própria riqueza, pelo " nível " a que esta os obriga e consigna ,
e como resultado disso, uma novela " de costumes aristocráti
cos " ou do que se chama "o grande mundo " é algo enorme
mente estreito e, sobretudo, t ip i fi cado .
E o povo? Este é outro cantar. O povo, quando o fo i , s ig
nificou uma enorme riqueza de possibilidades e um forte relevo
vital. Pense-se, por exemplo, no povo do século XVI I I , no fe
nômeno do populismo espanhol . :e bem sabido que os ilustra
dos e os aristocratas do século XVI I 1 tinham os olhos voltados
para os " majos " e as " majas " O l , para os costumes populares ,
os bailes de candil, as corridas de touros, ao lado do que os
"usias " < 2 1 , os aristocratas , pareciam frios, insípidos, amaneira
dos, e eles próprios o re conheci am.
Nesse tempo havia povo. Este povo - não é m eu desejo,
em momento algum, idealizar as coisas - não vivia nada bem :
em extrema pobreza, confinante com a miséria e por vezes não
confinante mas nela bem adentrado. Vivia este povo explorado
pela Corte, pela nobreza, pela Igreja, por privilégios , senhorios,
morgadios e impostos de toda ordem . Este povo estava muito
descontente de como andavam as coisas, isto é, de sua situação,
mas estava encantado com o que era, com sua condição, coisa
bem diferente. Ele queria viver de outra maneira , viver melhor,
sofrer menos opressão, menos gabelas e impostos, ter mais li
berdade e mais dinheiro, mas queria tudo isso para si, para suas
próprias formas de vida, e jamais se teria trocado por um usia.
Desdenhava a nobreza e, em última análise, também a admira
va : comprazia-se em vê-la, era-lhe maravilhoso ver as marquesas
passarem em suas carruagens porque era um espetáculo praze
roso, porém não queria ser isso; queria ser outra coisa e o ser
melhor.
66
Ora, nos primeiros decênios do século XIX acontece em
toda Europa um grande fato histórico : a industrialização. Tem
conseqüências imediatas; logo de início, uma elevação do nível
de vida; desde fins do século XVI I I a economia européia nada
mais fez do que crescer. Porém a industrialização, ao romper
as formas tradicionais, ao tornar impossível a oficina familiar,
ao dissolver os velhos grêmios e estabelecer as oficinas coleti
vas, ao converter os artesãos em operários industriais , ao fa
zê-los viver amontoados nos subúrbios das cidades, os deixa à
intempérie, despoja-os de sua forma própria de vida.
Economicamente, talvez vivam um pouco melhor, muito
mal no começo, com pouquíssimo dinheiro e um dilatadíssimo
dia de trabalho, mas provavelmente com maiores recursos do
que na época anterior e um pouco menos de insegurança; mas
estão fora de casa, e é muito certo que, como dizia a velha do
conto, " em nenhuma parte se está tão bem como em casa " f
Marx era um homem de gênio, embora como fosse um político
e não só um homem de teoria às vezes dava um empurrão ao
que via para levá-lo onde queria chegar; pois bem , o que que
ria Marx dizer com essa palavra um pouco pedante, que agora
repetem tantos pedantes sem gênio, " alienação " , era no fundo
isto : que os proletários haviam sido expulsos de sua própria
morada, de sua maneira de viver, da condição em que haviam
vivido sempre e que era o alvéolo de sua possível felicidade, e
por isso se sentiam estranhos, alheios : é o que chamo o fenô
meno geral da proletarização, que pode tanto afetar os operá
rios como os intelectuais, os militares, os sacerdotes ou os aris
tocratas, a qualquer grupo social que esteja " fora de seus gon
zos " , fora de lugar, que não saiba bem o que é, o que tem que
fazer; que se sinta descontente de sua própria condição. Não
o divino, o fecundo descontentamento da situação , que é o mais
próprio do homem, mas sim aquele que, pelo contrário, o aliena.
67
sempre deformador, como os espelhos deformadores, côncavos e
convexos, da calle dei Gato em Madri d : López S ilva, Arniches,
a burleta, o trocadilho, uma forma li terária em última análise
irônica, uma recriação de formas de vida que não são levadas
inteiramente a sério.
Nada disto podia interessar profundamente a Galdós. Ele
recolhe em sua novela os restos do povo não proletarizado, que
continuam sendo povo , a partir de sua raiz profunda. Assim, o
tipo de Fortunata. Mas, sobretudo, interessa-lhe a classe média,
que mantém sua personalidade, sua variedade, sua pluralidade
de formas vitais, ao mesmo tempo que nela transparecem e se
mostram as vigências sociais, os usos , as formas de comporta
mento de uma vida que ainda possui formas .
� isto a classe média espanhola entre 1 860 e 1 900: uma
vida que ainda possui formas ; formas pobres, medíocres, ama
neiradas , freqüentemente cursis; mas o cursi ( J J palavra cha
-
(3) Cursl - adjetivo para designar a Imitação de formas refinadas, por melo
de recursos Insuficientes e de mau gosto. Seu uso, n a Espanha, data de meados do
século X I X . (N. do T.)
68
San Sebastián e assim fora efetivamente, mas em San Sebas
tián . . . de los Reyes, cidadinha da província de Madrid, cheia
de calor e de moscas. Este exemplo trivial é uma mostra da
força enorme dos usos, do domínio terrível das vigências so
ciais, verdadeiras personagens das novelas galdosianas .
Desta vocação de Galdós para a vida em suas formas reais
provém também seu liberalismo. Não seu liberalismo político ;
ao contrário : seu liberalismo político provém de seu liberalismo
vital. E bem evidente que no momento em que se acreditou
poder ser liberal só em política, deixou-se de ser liberal nela.
O liberalismo de Galdós era a afirmação da personalidade hu
mana tal como é; a crença profunda de que o homem tem que
fazer, ele mesmo - ainda que não só - sua vida ; e a conse
qüência disso é que ele tem que dizer alguma coisa na socie
dade a que pertence; e isto implica a crença complementar de
que há uma vida privada na qual ninguém tem o direito de
intervir, de que quando fecho minha porta ninguém tem o di
reito de transpô-la.
E este o núcleo fundamental e vivo do liberalismo, o qual
emerge de uma fé no homem, de um respeito pelo homem , de
uma estimativa do que o homem é como realidade humana, e
ao mesmo tempo do conhecimento de sua pluralidade irredutí
vel e de sua limitação. Por isso o liberalismo só foi possível
historicamente quando se chegou a ter experiência da vida; quan
do o homem está inteiramente de ida, quando está demais se
guro das coisas, é muito difícil que seja liberal ; pretende im
por aos outros isso que tem como bom ; por exemplo, fazê-los
felizes, ainda que seja apesar do que eles próprios pensem;
pouco importa, ele está seguro . Quando, pelo contrário, o ho
mem viu o reverso de muitas coisas - não da vida, porque a
vida não tem reverso -, quando viu que as coisas vão e vêm
e passam - e apesar disso valem a pena -, quando teve ex
periências, ilusões e fracassos, quando não está seguro acerca
de tudo, quando s6 está seguro acerca daquilo de qúe pode es
tar, então é liberal.
Por isso o liberalismo se parece àquilo que Ortega chamava
" emoções furta-cores " , e é um pouco de crepúsculo - o que
irrita aos que crêem que o crepúsculo não é real, aos que são
suficientemente simplistas para pensar que o crepúsculo é uma
hora menos real que as onze da manhã ou as doze da noite -.
Por esse motivo o século XVI I I ainda não podia ser liberal, e
por isso o foi o século XIX, depois de haver visto o fracasso
do antigo regime, do direito divino dos reis, do militarismo, do
b onapartismo, do império, da restauração, da legitimidade, e de
69
haver vivido a realidade e a justificação parcial de todas essas
coisas.
Então sim, então se começou a crer que há muitas coisas
inseguras, e que as poucas coisas seguras, aquelas das quais se
está completamente certo, talvez não sejam comunicáveis. E. o
momento em que se chega à evidência de que tratar o que é
certo para mim mas não para os outros como se fosse certo , é
uma forma de cinismo. Se eu estou certo, absolutamente certo
de algo, mas sei que essa minha certeza não é imediatamente
comunicável aos demais, devo comportar-me em minha relação
com eles como se não fosse certo, como se não estivesse seguro
disso de que estou completamente seguro.
A pluralidade de personagens de Galdós é a expressão co
letiva de sua idéia da vida. Ao criar centenas de personagens
diversas, contrapostas, caprichosas, pitorescas, admiráveis, cor
rompidas, enérgicas , inertes, volta-se para o leitor e lhe diz :
a vida é tudo isso. Não só uma forma, não só uma coisa. O
gesto de Baroja - um gesto desencantado, melancólico, acre,
de resmungão, cheio ao mesmo tempo de piedade - é dizer
La vida és ansí - título de uma de suas novelas -. O gesto
de Galdós, diante da legião inumerável de suas personagens
vivas e que não se deixam reduzir a esquema, seria uin movi
mento abrangente, generoso, liberal, que nos diz, sem otimismo
e com complacência : a vida é tudo isso.
Na novela de Galdós, as formas coletivas, as formas so
ciais, estão fortemente presentes; porém as pessoas são incon
fundíveis, insubstituíveis, únicas. Por isso recordamos todas as
inúmeras personagens de Galdós, de novelas que lemos uma só
vez, talvez aos doze ou treze anos de idade . Por vezes lembra
mos a personagem mas não seu nome - como acontece na
vida : lembramo-nos muito bem de Tristana e daquele cavalheiro
de pera que a amava, mas o nome deste nos escapa; creio que
era um nome arcaico, talvez Don Lope. Lembramo-nos dos mé
dicos, de Augusto e Alejandro Miquis; de Tormento, de Isi
dora Rufete, da de Bringas, de Luisito ou de Miau, de Torque
mada, das Á guilas, do amigo Manso, o prçfessor de filosofia ;
de Juanito Santacruz, d e Fortunata, d e Jacinta, d e Barbarita, de
Mauricia la Dura; de Benina, de Obdulia , do velho mendigo
mouro; de Á ngel Guerra e de Leré; do formigueiro dos Episo
dios nacionales.
Esta é a grande lição de novelista que deu Galdós e que
foi esquecida. Em parte, porque os grandes, os geniais autores
da geração de 98, que fazem uma tentativa de conduzir a no
vela mais adiante, de fazer uma novela mais pura, mais pro-
70
funda, mais rigorosamente narrativa, têm a tentação de esquecer
a circunstância, o cenário vital, de esquematizar a novela . 11 isto
o que fez Unamuno , e o estudei em pormenor já em 1 942 . As
novelas de Unamuno, geniais como representação íntima e ime
diata da vida humana , são novelas descarnadas, sem circuns
tancialidade, utópicas , essencializadas, s alvo a primeira e a úl
tima. No ano 1 897 publicam-se estes dois livros : Misericordia,
de Galdós, e Paz en la guerra, de Unamuno. Paz en la guerra,
um livro extraordinário, poderia ter sido o símbolo do que co
meçava e, sobretudo, devia começar - é preciso acrescentar
que quase ninguém percebeu -. Se Unamuno tivesse sido fiel
ao que iniciou com Paz en la guerra, seria, com grande vanta
gem, o primeiro novelista de nosso tempo. Mas em vez disso
decidiu suprimir o mundo, tirar o que chamava " bambolinas " ,
deixar só " relatos puros, anelantes " , e esqueceu que a vida
humana é circunstancial, que respira e pulsa num cenário cha
mado mundo, e que lhe é essencial o inessencial : estar repleta
de trivialidades .
Esta foi a primeira grande tentação. Outra, menor mas
mais demolidora, afetou principalmente os novelistas atuais: a
grande maioria deles recaíram no costumbrismo, ao qual se re
duz quase toda a novela espanhola dos últimos vinte e cinco
anos, na qual predominam personagens elementares, que não
são pessoas, movidos por motivos muito toscos, que se dissol
·
vem em meros costumes, em modos de reação coletivos ou de
grupo. Quantas personagens das novelas destes decênios perma
necem na memória do leitor? E por isso poucas são as novelas
que merecem esse nome. A lição de Galdós foi perdida no que
tinha de mais fecundo, e não digamos a de Unamuno, mais su
til e mais promissora ainda.
11 freqüente na novela atual a projeção do homem sobre
um plano, o plano econômico, ou o plano político-social, com
o que se o reduz a uma realidade bidimensional e sem densi
dade, em lugar de ser tridimensional, com volume. Galdós ja
mais fez isto. Pelo contrário, traça as trajetórias vitais das per
sonagens, apresenta-as em interação umas com outras, imersas
numa realidade coletiva, num repertório de vigências, de usos,
de costumes, com o grande pano de fundo em que se apóiam
e sobre o qual se recortam os projetos individuais.
71
O homem está " instalado " numa série de dimensões de
sua vida ; vive-se a partir de uma instalação que , naturalmente,
é múltipla. E não se pode definir uma forma de vida, nem
tampouco descrever ou narrar uma vida individual, sem ter pre
sente o que poderíamos chamar o sistema de suas instalações.
O homem está instalado em seu sexo, isto é, em sua condição
sexuada (escrevi sobre isso com certo pormenor em meu ensaio
" La estructura corpórea de la vida humana " , no número 2 da
nova Revista de Decidente) ; é radicalmente varão ou mulher, e
está referido polarmente ao outro sexo. O grande acerto de
Freud - Marx e Freud foram grandes gênios desmedidos -
consistiu em pôr em primeiro plano essa dimensão, e seu erro
em querer reduzir tudo a sexo e, o que é mais, em dar dele
uma interpretação sexual; do mesmo modo que Marx foi além
de sua genial descoberta da componente econômica da vida hu
mana e da história, ao querer derivar tudo do econômico. Nem
tudo no homem é sexual , longe disso; mas tudo nele é sexuado,
e isto constitui uma " instalação " básica.
Outra, provisória e mutante por sua natureza mesma, é a
idade. Outra é a raça . Outra é a classe social como repertório
de formas de vida, não como nível econômico. E outra insta
lação formidável é a língua. Nós estamos instalados na língua
espanhola, que nos proporciona e impõe ao mesmo tempo um
primeiro repertório de interpretações da realidade. Falar em
espanhol já significa ver o mundo de certa maneira ; mais ain
da: mover-se nele, haver-se com ele, de acordo com certas estru
turas já determinadas por aquela da língua. Os gestos vitais e
mentais são inteiramente diferentes dos que se fazem quando
se fala em inglês ou em alemão, para não dizer em chinês,
mandarim ou em swahili.
Essa grande instalação elementar, essa grande pauta geral
das demais interpretações, que é a língua, modula-se de ma
neiras diversas. Uma é a que aparece representada em Galdós
e seria mister pôr-se à sua escuta para encontrar explicações
sobre ele mesmo e sobre a Espanha.
Em certo sentido, Galdós não escrevia bem . :e sabido que
a geração de 98 teve certa aversão a Galdós : não conseguia
apreciá-lo, Hoje isto nos parece injusto, mas é preciso enten
der melhor. Por que isso acontecia? A geração de 98 repre
sentou na literatura espanhola o restabelecimento do que cha
mo " qualidade de página " . :e a qualidade intrínseca de uma
página solta, sua eficácia como tal ; o brilho que tem uma
página isolada, independentemente do valor da obra em seu
conjunto. Há obras com qualidade de página, que em conjunto
72
não passam de medíocres ou frustras; há em compensação obras
muito valiosas em que, em cada uma de suas páginas , faltam
intensidade e brilho. Este é o caso de Galdós . Sua obra tem
um altíssimo valor, mas uma página sua, solta, raramente nos
comove, quase sempre é um pouco trivial . E como um grande
arquiteto que constrói com tijolo , enquanto outros constroem
com aço e vidro, com granito ou mármore . Eu creio que a
aversão dos homens de 98 por Galdós, vinha do fato de não
encontrarem nele um semelhante ; parecia-lhes infiel a essa exi
gência da qualidade de página, em que todos coincidiam, inclu
sive o desleixado Baroj a .
Será, porém, meramente uma limitação d e Galdós? Será
simplesmente que Galdós não escrevia muito bem? Considero
enormemente a qualidade de página - que nada tem a ver com
isso que se chama " estilismo " -, e por razões sérias : é aquela
condição dos escritos que estão escritos verdadeiramente por
seu autor; isto é, aqueles nos quais o autor - o autor mesmo
- escreveu todas e cada uma de suas frases .
Todos nós falamos com palavras , com palavras da língua,
que são de todos e de ninguém, que estão inertes no dicionário .
Todos nós falamos de acordo com a gramática de nossa língua.
Porém, cada um diz certas palavras escolhidas , as dispõe numa
ord em determinada e as faz soar com certa cadência. Pois bem,
quando esta seleção de palavras, a sintaxe e a cadência é mi
nha, pessoal, aquilo que escrevo tem qualidade de página, e
nela sentimos , sob nossa mão ou ao deslisar por ela a carícia
sem contato de nossos olhos, o palpitar de uma vida .
Mas há o Ú tra maneira de escrever, que é escrever com fra
ses , com o que poderíamos chamar, dando à expressão um
sentido mais lato que o usual, frases feitas, tomadas do reper
tório das que correm de boca em boca; frases tomadas da
gente em geral, daquilo que se diz. Dá no mesmo que se trate
do preciosismo dos culteranos ou das formas estereotipadas de
uma crônica de sociedade. Num e noutro caso , não há quali
dade de página, porque esta constitui-se de elementos alheios ,
comunais, sociais, coletivos, não meus, não pessoais.
73
Primeiro, com alento romântico; depois, com a terrível
confusão de 1 860 a 1 87 5 ; finalmente, com a relativa sedimen
tação e equilíbrio da Restauração , apesar de que esta acober
tava com convenções seus problemas mais vivos e incitantes.
Em todo caso, as vidas das personagens galdosianas aparecem
dissolvidas em palavras, em ditos tópicos, tomadas do meio, que
são aquilo que rege a conduta. Lembrem-se os longos parlamen
tos, os diálogos, os monólogos - tão pouco íntimos - das
personagens de Galdós. Sua conduta é interpretada, expressa,
dirigida por eles . Fazem o que fazem - freqüentemente coisas
sem sentido - porque dizem ou lhes dizem isso que estamos
lendo. Temos a visão de uma sociedade montada sobre a palavra
- amiúde sobre o palavrório -. I sto não é tremendo? E não
é castiço? Não nos lembra a situação do século XVI I , a de
quase todo o teatro do Século de Ouro, mais ainda a de La
Dorotea, de Lope de Vega, toda ela feita de palavras ?
A ssistimos a uma forma de vida integralmente expressa
em palavras. Mais ainda : suscitada pelas palavras, provocada
por elas, que vive arrastada por elas, seguindo-as. Quase tudo o
que se faz na Espanha do século XIX é falar; se fosse apenas
isso, não seria tão grave. O decisivo é que quase tudo que se
faz se faz porque se falou, a palavra precede a ação e até o
pensamento. Até 1 850 ou 60, em forma original, inspiradora,
criadora : é a boa retórica, maravilhosa apesar de seus riscos ;
na segunda metade do século, é o dizer tópico de " toda gente "
o que suplanta a vida individual e coletiva autêntica. � isto o
que nos mostra prodigiosamente a novela de Galdós.
Em 1 89 7 - quando nossa época i rá começar , quando já
termina a Restauração como forma de vida histórica -, Mise
ricórdia e Paz en la guerra. Começa o caminho em direção ao
despojamento e à personalidade, a procura do puro estreme
cimento humano, do drama em que consiste nossa vida. Mas
Galdós, já velho, recai no " ideologismo " e no simbolismo ;
Unamuno esquece a circunstância . A junção destas duas tenta
tivas geniais teria dado, em nosso tempo, a mais intensa forma
de novela . Porém nós, os espanhóis, recaímos sempre no adâ
mico e preferimos fazer de conta que somos o " homem primi
tivo " a ter piedade histórica, e venerar nossos antepassados em
lugar de, por nossa vez, sermos o que eles f6ram.
1 965
74
98 antes de 98 : Ganlvet
75
ao arrepio - em terras estranhas . " Espanha como privação " ,
seria este u m tema incitante. E s e s e lembra que " amar " não
se diz em espanhol dessa maneira, salvo em poucos casos e na
língua escrita ; se se pensa que o verbo vivo na língua para sig
nificar esta realidade é " querer " - o verbo da vontade -,
e que " querer " , por seu lado, vem de quaerere, literalmente
" buscar " , com um matiz particular de " achar de menos " , " achar
falta de " , talvez comecemos a compreender as características
deste amor voluntarioso à Espanha , feito de ausência, nostalgia,
obsessão.
� também paradoxal que Ganivet chame Idearium a seu
livro, que no fundo é tão pouco ideológico, e ainda por cima
em latim. Como construção intelectual, como doutrina ou teoria,
o Idearium espaiíol não é muito consistente, seus mecanismos
de justificação falham , mostra a arbitrariedade com um impu
dor excessivo. Não esqueçamos - porque é " fisiognomicamen
te " importante - que este livro começa com um erro elementar :
a confusão entre a Imaculada Concepção e a virgindade de Ma
ria, mãe de Cristo . Mas o interessante é que quando Unamuno
o adverte, Ganivet escreva que quando publicou o Idearium já
o haviam feito, e apesar disso não quis corrigi-lo :
" Você me faz notar a confusão dogmática que parece de
preender-se da primeira idéia de meu livro ; antes de você, m'o
disseram outros amigos, e , antes que o livro fosse impresso,
alguém aconselhou-me que a suprimisse, e eu estive quase ten
tado a fazê-lo , mais do que pelo erro que nela poderia transpa
recer, para não causar em algum leitor uma má impressão logo
nas primeiras linhas . E, no entanto, não a suprimi . Por teimo
sia? - poder-se-á pensar -. Foi porque via nessa idéia uma
idéia muito espanhola . . . O povo espanhol vê nesse mistério
não só o da concepção e o da virgindade, mas o mistério de
toda uma vida. Há um dogma escrito imutável, e outro vivo,
criado pelo gênio popular. " (El porvenir de Espaiía, Madrid
1 9 1 2 , pp. 63-64 .)
Para Ganivet não é tão importante o erro como o dar " uma
má impressão " - algo pessoal -, e no final das contas o que
decide é que se trata de uma idéia " muito espanhola " . A " ver
dade " teórica está subordinada a uma consideração moral e
quase de " simpatia " , e esta, por sua vez, ao fato de que o autor
" palpa " sob o erro uma verdade profunda e talvez injustificá
vel . Creio que nisso reside a atitude mais profunda de Ganivet .
Do ponto de vista estritamente intelectual , o Idearium es
paiíol é um livro insatisfatório e insuficiente . Ao mesmo tempo,
porém, é profundamente atraente, e sentimos que Ganivet, con-
76
fusamente, de uma maneira obscura e vacilante, " põe o dedo
na ferida " e vê ou palpa coisas muito verdadeiras . Seu lema
poderia ser o dito espanhol " yo me entiendo y bailo solo " , eu
me basto a mim mesmo, que não é - quase não é preciso
dizer - o lema da filosofia, sobretudo se esta for, como uma
vez me atrevi a defini-la, "a visão responsável " .
Ganivet possuía uma experiência muito forte e direta da
vida humana, reduzida a formas elementares, e de certos aspec
tos da vida espanhola de seu tempo. Por isso o melhor de sua
obra é provavelmente a novela inacabada Los trabajos de Pío
Cid, onde é apresentada com singular força a vida nas pensões
baratas, las casas de huéspedes, de Madrid em fins do século
passado, ou as manobras eleitorais durante a Restauração, ou os
estímulos reais da vida nos povoados granadinos . Há em tudo
isso algo muito direto que de vez em quando irrompe no
Idearium espaííol, como quando Ganivet nos conta a história
de Agatón Tinoco, ou recorda a atitude do espanhol que deverá
ser testemunha num julgamento e deseja conhecer as conseqüên
cias de sua declaração para não " ir às cegas " . Eu diria que
Ganivet raramente " tem razão " , mas que muitas vezes está
vendo coisas importantes, das quais teria que dar razão. E é
isto precisamente o que terá que fazer, depois de sua morte,
a teoria, que volta a existir criativamente na Espanha precisa
mente nessa época, pela primeira vez desde o século XVI I .
Creio que não se deu atenção para o fato de que a corres
pondência sobre El porvenir de Espaíía trocada entre Unamuno
e Ganivet no diário El Defensor de Granada, de 1 896 a 1 89 8 ,
antecipa d e certo modo a questão debatida tão polemicamente
em nossos dias - maximamente por Américo Castro e Cláudio
Sánchez Albornoz -, acerca da função do árabe na realidade
da história espanhola . Vale a pena recordar algumas coisas que
disseram um e outro, há setenta anos .
" Um povo novo - escrevia Unamuno - temos que fa
zer nós mesmos tirando-o de nosso próprio fundo, Robinsons
do espírito, e esse povo temos que ir buscá-lo em nossa rocha
viva com o fundo popular que com tanto afinco explora D .
Joaquín Costa, investigador, ao mesmo tempo que d o direito
consuetudinário, da antigüidade ibérica . Não creio um absurdo
aquilo da instauração dos costumes celtíberos, anteriores aos
tempos da dominação romana, em que sonhava Pérez Pujol ,
porém o que creio mais vital é a completa despaganização da
Espanha . Dos árabes nada quero dizer, professo-lhes uma pro
funda antipatia, creio muito pouco nisso que chamam civiliza
ção arábica, e considero sua passagem pela Espanha como a
77
maior calamidade que sofremos. " (El porvenir de Espafía, pp.
43-44.)
A isto respondia Ganivet acentuando sua divergência, ape
sar de estar, de outro ponto de vista, quase de acordo, e expli
cava sua discrepância pela respectiva condição de vasco e gra
nadino dos dois interlocutores ; quer dizer, pela condição histó
rica de vasco e granadino, não por uma consi d eração " étnica " .
São estas a s suas palavras :
" O que mais me agrada em suas cartas é que me trazem
recordações e idéias de um bom amigo como você, com quem
quase estou de acordo, sem que nenhum dos dois tenhamos
pretendido estar acerdes. Estamos assim por casualidade , que é
tudo quanto se pode desejar, e o estamos ainda que sintamos
de modo muito diferente. Fala você de " despaganizar" a Espa
nha , de libertá-la do " moralismo senequista pagão " , e eu sou
admirador entusiasta de Sêneca; você professa antipatia aos ára
bes, e eu lhes tenho muito afeto, sem que possa ser de outra
maneira . Conste , no entanto, que meu afeto terminará no dia
em que meus antigos compatriotas aceitarem o sistema parla
mentar e se dediquem a andar de bicicleta.
" Você , amigo Unamuno, descende em linha direta daque
les esforçados e tenazes vasconços, que jamais quiseram sofrer
o jugo de ninguém ; que lutaram contra os romanos, e só a eles
se submeteram proforma, que não viram sua terra calcada pela
planta dos pés dos árabes ; que ainda estão com o fuzil ao om
bro para se defenderem das liberdades modernas, que eles têm
como coisa de farândola. Assim se conservaram puros, aferrados
ao espírito radical da nação. Por isto fala você da instauração
dos costumes celtíberos, e crê que o melhor caminho para
formar um povo novo é o que Pérez Pujo! e Costa abriram
com suas investigações. Eu, diferentemente, nasci na cidade da
Espanha que mais tem sido cruzada, no seio de um povo que
antes de ser espanhol foi mouro, romano e fenício . Tenho san
gue de limusino, árabe, castelhano e murciano, e me faço por
necessidade solidário de todas as atrocidades e mesmo crimes
que os invasores cometeram em nosso território . Se você supri
. me romanos e árabes , de mim talvez não reste mais do que
as pernas ; sem querer, você me mata, amigo Unamuno.
" Mas o importante é que você, mesm o que seja de má
vontade, reconheça a realidade das influências que atuaram so
bre o espírito originário da Espanha; porque há quem leve seu
exclusivismo ao ponto de negá-las ; quem creia já extirpadas as
raízes do paganismo, e quem afirme que os árabes passaram
sem deixar rastro ; sonham que somos uma nação cristã, quan-
78
do o cristianismo na Espanha, como na Europa, não chegou
ainda a moderar nem o regime de força em que vivemos, her
dado de Roma, nem o espírito cavalheresco que se formou du
rante a I dade Média, nas lutas pela religião. A maior influên
cia que a Espanha sofreu, depois da pregação do cristianismo,
foi a arábica. Convertendo nossa terra em cenário, onde diaria
mente se representou, um século atrás de outro, a tragédia da
Reconquista, os espectadores tiveram que se habituar com a
idéia de que o mundo era o campo de luta , aberto a todos
aqueles que quisessem provar a força de seu braço. " (lbid., pp.
5 1 -54.)
E Unamuno confronta este ponto de vista, novamente, com
o seu , diferente e complementar ; e o explica por sua vez pela
configuração de suas trajetórias biográficas :
" Você rodou por terras estranhas, com seu coração e seus
olhos sempre voltados para a Espanha, e eu, vivendo nela,
oriento-me constantemente para o estrangeiro, e de suas obras
nutro sobretudo meu espírito. São dois modos de· servir a pá
tria, diversos e concorrentes . " (lbid., p . 96 .)
Mas o decisivo é que Unamuno formula aqui s ua interpre
tação " intra-histórica " da históri a , acentua o papel de substrato
primitivo das sociedades , e expressa sua convicção de que se
exagerou enormemente a função das invasões , fenômenos rela
tivamente superficiais, que deixam quase intacta a substância
profunda de um povo :
" Sempre acreditei que a História, que dá razão dos quatro
que gritam e nada diz dos quarenta mil que se calam , desem
penhou o papel de enorme lente de aumento no que se refere
ao cruzamento de raças no solo espanhol . As crônicas nos fa
lam da invasão dos íberos, dos celtas, dos fenícios , dos romanos,
dos godos, dos árabes, etc . , e isto nos leva a crer que aqui se
formou uma miscelânea de povos diversos , quando estou con
vencido de que todos esses elementos adventícios representam ,
junto ao fundo primitivo , pré-histórico , uma proporção muito
menor do que imaginamos , débeis camadas de aluvião sobre
densa rocha viva . . .
" Muito pouco, creio eu , afetaram as bases da vida popular
espanhola essas diversas irrupções que a história nos conta acon
tecidas em sua superfície. Quantos eram os fenícios que che
garam, em relação aos que aqui viviam? Quantos os romanos,
os árabes , e até que ponto penetraram no íntimo da raça?
Creio que passaram pouco além da superfície, muito pouco, e
que quando passaram algo, foram absorvidos . . .
79
'' Tudo isto nada mais faz que indicar minha idéia de que
o fundo da população espanhola permaneceu muito mais puro
do que se crê, enganando-se pela falaz perspectiva histórica,
crença que as investigações antropológicas parecem confirmar.
" Celtas, fenícios, romanos, godos, os próprios árabes, de
que parece você tão afeiçoado, foram pouco mais que vagas,
tempestuosas que fossem, mas afinal vagas, que muito pouco
influíram na base sub-histórica , no povo que cala, ora, trabalha
e morre. Depois, por lei, longa para ser explicada aqui, acontece
que ao se misturarem povos diversos em proporções distintas,
o mais numeroso prepondera no fisiológico e radical, mais do
que sua proporção representa.
" Creio , também, que as diferenças étnicas interiores que
se observam na Espanha - galegos, vascos, catalães, castelha
nos, etc. -, provêm de diversidades pré-históricas . " (lbid.,
pp. 97- 1 02 .)
Estas são as duas posições anteriores a 1 898 nas quais se
defrontam fraternalmente os dois homens de maior vocação teó
rica da geração . B evidente o paralelismo - inexato, como todo
o real, e sobretudo o humano - com as discussões mais recen
tes acerca da realidade da Espanha. B clara também a limita
ção com que estas doutrinas se movem quando se trata da justi
ficação de seus conteúdos, a entrega à intuição, à conjetura, à
inspiração, até mesmo ao palpite. A iluminação repentina de
um dado numérico , uma citação feliz, uma " simpatia " ou " anti
patia " , uma afinidade de tonalidade psíquica, a enumeração da
série de dominadores. Pode-se equiparar uma denominação " ét
nica " ou religiosa a outra, como se fossem magnitudes com
paráveis, quando talvez uma fração decuplique ou centuplique
a outra? Basta, pelo contrário, uma valoração quantitativa para
descartar ou reduzir a um mínimo as influências minoritárias ,
quaisquer que sejam elas ? Em meu livro A estrutura social, < 1 >
procurei j á em 1 95 5 formular o problema da realidade histó
rica de uma sociedade, da estrutura social do sujeito de uma
história, e a tudo que lá expus remeto o leitor curioso de avaliar
as dificuldades teóricas deste esclarecimento.
Não podia esperar-se de Ganivet - nem sequer de Una
muno - uma colocação rigorosa da questão. Mas me parece
que sem chamar a atenção sobre este tema, não se pode com
preender a significação do Idearium espanol, bem como sem uma
idéia clara da obra de Ganivet e de seu diálogo com Unamuno
não se pode entender o que significou a geração inteira de
( 1 ) A estrutura social, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1963. (N. do T.)
80
98 e, sobretudo a seguinte, a de Ortega , na qual acontece n a
Espanha o que poderíamos chamar o renascimento d a teoria, o
novo aparecimento do que merece ser chamado pensamento teó
rico. No momento em que este atravessa uma profunda crise
em todo o mundo, em que é substituído por tantas outras coisas
que não podem suprir sua ausência , interessa indicar o ambien
te em que surgiu na Espanha , as dificuldades com que teve que
lutar, e que não são substancialmente diferentes daquelas com
as quais tem que continuar lutando, em seu esforço em direção
à luz.
1 967
81
O centenário da geração de 98
( ! ) A estrutura social, Livraria Duas Cidades, São Paulo , 1 963. (N. do T.)
83
Há muito tempo venho me esforçando por estabelecer uma
escala das gerações espanholas desde o século XVI l l até hoje.
Embora haj a dedicado a isso muita atenção e não poucas com
provações, ainda não me atreveria a propor uma escala a não
ser como hipótese metódica, que ao aplicar-se à realidade his
tórica pode retificar-se a si mesma. Duas extensões parecem
plausíveis : uma para trás, até o momento em que começa a
haver plenamente uma sociedade espanhola, isto é , no século
XV; a outra, para fora, até alcançar os limites da Europa
ocidental . Provavelmente a escala pode estender-se em ambos
os sentidos sem perder sua validade, mas convém ter cuidado
e procurar certificar-se primeiro dentro da Espanha e num pe
ríodo relativamente curto . Atenhamo-nos, pois, aos limites ini
ciais .
Tomando as datas centrais de nascimento (e não as de atua
ção histórica) , teríamos as gerações seguintes , desde os primei
ros ilustrados (Macanaz e Feijoo) , nascidos ainda em tempos de
Carlos I I , até o presente : 1 676 - 1 69 1 - 1 706 - 1 72 1 -
1 736 - 1 75 1 - 1 766 - 1 78 1 - 1 796 - 1 8 1 1 - 1 826 -
1 84 1 - 1 856 - 1 87 1' - 1 886 - 1 90 1 - 1 9 1 6 - 1 93 1 -
1 946 - 1 96 1 .
Cada geração entra plenamente na história aos trinta anos ;
dos trinta aos quarenta e cinco é sua época de " gestação " e
luta por impor suas maneiras e estilos ; aos quarenta e cinco
se inicia sua plena " gestão " e pode-se dizer que " está no po
der " (desde logo, até os sessenta : veremos a seguir as reservas
que se impõem a esta data final) . Mas é preciso perguntar de
que idades se trata : dos indivíduos? Não : da geração como tal.
Quero dizer que os homens de uma geração entram na histó
ria antes ou depois de completarem os trinta anos (e analoga
mente as demais fases) , conforme hajam nascido em um ou
outro ponto de sua geração . As " idades " são as da geração ,
isto é, as correspondentes à data central de nascimentos. Os
mais velhos serão pessoalmente tardios - e mais duradouros
no cenário histórico -; os mais jovens serão precoces - e de
passagem mais curta.
Pois bem, a que chamamos " geração de 98 " é , segundo
esta escala, a de 1 87 1 , isto é, a dos nascidos em torno a 1 87 1 ;
por isso posso dizer que agora, neste ano, tem lugar o cente
nário da geração de 98 como tal .
84
lueta) . Se avançarmos apenas mais um ano e chegarmos a 1 879 ,
encontraremos figuras como Gabriel Miró e Eduardo Marquina,
que pertencem tão claramente a outra geração.
A entrada plena na história da geração de 98 corresponde
à data de 1 90 1 , quando ela tem trinta anos (embora Unamuno
tivesse trinta e sete e Antonio Machado só vinte e seis) . Tudo
o que é anterior a essa data, qualquer que sej a sua maturidade
individual, é historicamente prévio, é a pré-história da geração.
I sto pode contribuir para esclarecer as posições políticas pre
maturas dos membros da geração de 98, sobre as quais tanto
se insiste presentemente, com uma tendência a substantivá-las ,
esquecendo-se de que, se isto se fizer, será necessário por mo
tivos mais sérios, substantivar sua rejeição, seu repúdio, preci
samente ao iniciar sua verdadeira ação histórica.
A geração de 98 chega ao poder quinze anos depois, em
1 9 1 6 (naturalmente, quando entra na história a geração seguin
te, a de 1 886 : Ortega, Marafí.on, Miró, Marquina, Eugenio
d'Ors, Azafí.a, Ramón Pérez de Ayala, Ramón Gómez de la
Serna, Juan Ramón Jiménez, Américo Castro, etc.) . O exercício
pleno do poder da geração de 98 corresponde à fase 1 9 1 6- 1 93 1 .
E , com efeito , é interessante notar que a oposição intelectual à
Ditadura de Primo de Rivera exemplifica-se sobretudo por ho
mens como Unamuno e Valle-Inclán ; mas quando em 1 93 1 se
proclama a República, não serão os homens de 98 os realmen
te influentes, visto que o poder se desliza deles para a geração
seguinte, que precisamente " chega ao poder " em 1 93 1 . (E ao
dizer " chega ao poder " quero dizer ao poder social , e portanto
envolve igualmente aos que não conseguiram o poder político,
à oposição, aos que desde então se esforçaram, por todos os
meios, por consegui-lo.)
Todavia, temos que levar em conta agora um fator decisi
vo, que modifica a teoria das gerações ao chegarmos a nosso
tempo : a recente longevidade do homem do Ocidente. Enquan
to, ao longo de toda a história conhecida, o limite da vida ati
va do homem podia localizar�se em torno aos sessenta anos, e
depois dessa idade só restavam " sobreviventes " de uma gera
ção dizimada pela morte, pela invalidez ou pelos achaques , no
século XX a atividade prolonga-se, com pequena diferença, mui
to além, e provavelmente durante outros quinze anos . I sto é,
em nossa época duas gerações " compartilham " o poder em for
mas distintas (a " de saída " e a plenamente vigente) . Quando a
geração de 1 886 chega à sua fase de gestão, a anterior, a de 98,
não só não desapareceu como conserva suas faculdades e seu
prestígio. Entre 1 93 1 e 1 946 deveria ter existido essa peculiar
85
" diarquia geracional " que é o signo de nosso tempo, essa forma
sutil e valiosa de mando, do que tanto se teria podido esperar.
Mas isso foi atrozmente perturbado pelas duas guerras, a civil
de 1 936-39 prolongada interiormente pela emigração e a anor
malidade da convivência e da vida pública, e a mundial de
1 939-45, que veio reforçar tudo e " petrificar " a situação inter
na. No entanto, essa regência conjunta das duas gerações não se
frustou inteiramente, não deixou de existir - os fenômenos
políticos, por devastadores que s·ejam, são como as tempestades
marinhas, relativamente superficiais -: só que deve ser procura
da no subsolo.
E é preciso levar em consideração um acaso imprevisível e
significativo : a maior longevidade média dos homens egrégios da
geração de 98, o fato de que tenham ido desaparecendo ao
mesmo tempo, alternando-se, os de 1 87 1 e os de 1 886. As duas
gerações que mais trabalharam " em equipe " , a diferentes níveis
e com estilos diversos porém na mesma empresa. A geração de
98 foi " polêmica " em relação ao mundo anterior, à Restaura
ção; a seguinte continuou na mesma atitude polêmica e foi, por
tanto, " cumulativa " em relação à de 98.
A " saíd a " (em termos atuais diríamos a " primeira saída " )
da geração de 1 886 se inicia em 1 946. Não esqueçamos que
Ortega, voltando a Espanha após quase dez anos de exílio, ao
falar pela primeira vez em público, em 1 946, o que fez primeiro
foi recordar o antigo romance: " Viejo que venís el Cid , - viejo
venís y florido " (Velho que vindes el Cid, - vindes velho e
exuberante) ; isto é, apresentou-se como " velho " , embora esti
vesse em seu máximo esplendor pessoal e biográfico ; geracional
mente, sentia-se no final de sua vigência (pelo menos, da primei
ra fase dessa singular " dupla vigência " que caracteriza nosso
século) . Em todo caso, ao assistir, ao mesmo tempo, a liquidação
de duas gerações decisivas , a comoção na vida espanhola foi muito
maior. Dever-se-ia investigar, com atenção, o que aconteceu de
verdade na Espanha, quantas coisas se partiram, se compromete
ram ou foram esquecidas até 1 96 1 .
O fato significativo, não obstante, é a perduração - após a
morte e o desaparecimento físico - da geração de 98 . � ela o
" pano de fundo " da época atual . Ainda nos definimos em rela
ção a essa geração. Basta pensar, para provar o quanto está viva,
na " irritação " que a geração de 98 produz em medíocres e ranco
rosos, naqueles que não querem " vir de " : o que se poderia de
nominar historicamente " espírito de bastardia " . Por que essa per
duração? Que foram esses home n s, que foi a geração de 98?
86
II
87
Apesar de que a geração européia anterior - à qual histo
ricamente correspondia em muitas coisas a espanhola de 98 -
acenava-lhes com essa tentação, apesar de que em certa medida
caíram nela, creio que os homens de 98 conseguiram superar a
preocupação de serem " diferentes " e entregaram-se a ser; e quan
do se é de verdade, a diferença se dá por acréscimo .
Por isto, o traço decisivo dos homens de 98 foi a autenti
cidade: ter que ser livremente o que se é - melhor ainda, quem
se é -. Não foram seus dotes o que os fez geniais ; foi a ma
neira genial de exercê-los . Alguns eram admiravelmente dotados ;
outros não tanto, e isso não importa que se o diga ; pelo contrá
rio, deve-se dizer - em sua honra -. Eram escritores, radical
mente escritores, a partir de dentro de si mesmos , porque não
podiam - nem queriam - ser outra coisa. E o eram concreta
mente, como se deve ser : nas circunstâncias em que se vive .
Se os da geração de 98 houvessem sido homens de outro país
ou espanhóis de outro tempo, suas obras teriam sido essencial
mente diferentes . Quando se quer escrever " para sempre " acon
tece que se escreve para uma temporada . A forma de " durar " não
é ser intemporal, é " permanecer " .
S e e m outra ocasião seria desnecessário fazê-lo, nesta data
de centenário de seus nascimentos não é ocioso lembrar que fo
ram homens de convivência, conversação e tertúlia. Na Espanha
de seu tempo não era concebível que se pudesse ser outra coisa,
e não digamos tratando-se de escritores. No mundo atual uma
enorme parte disto foi perdida - algum dia saberemos a que
preço -; uma das riquezas espanholas é a relativa permanência
destas formas de vida, e sabe Deus como as estamos malbara
tando - ter-se-á que precisar a troco de quê, e ver-se-á então a
que ponto é um mau negócio -. 'É. preciso recordar a camilla < 2 >
da casa de Unamuno em Salamanca, ou o café Novelty por ve
zes, ou a tertúlia caminhando pela " clara carretera de Zamora /
soõadero feliz de mi costumbre " ( " clara estrada de Zamora /
lugar de sonhos feliz e costumeiro " ) e a do café que se chamou
La Granja El Henar, de Valle-Inclán, na calle de Alcalá, e o
Gato Negro, e as tertúlias de redação de Azorín - apesar de
ser pessoalmente silencioso -, e as tertúlias de Antonio Macha
do no casino de Sória (ou em outros lugares mais humildes,
porque foi ele quem escreveu : " y pedantones ai paõo / que
miran, callan y piensan / que saben, porque no beben / el vino
de las tabernas. / Mala gente que camina / y va apestando la
tierra " ) , ( " e pedantes às ocultas / que olham, calam e pensam
(2) No texto, no sentido de "mesa camllla", a mesa com uma coberta de pano
e debaixo da qual se põe um _braseiro para aquecer os que se sentam à sua volta.
(Nota para a tradução brasileira . )
88
/ que sabem, porque não bebem / o vinho que há nas tabernas .
/ Gente má qve caminhando / vai empestando a terra ") , ou no
laboratório de farmácia de Baeza, ou com os amigos de Segóv i a ;
e a d e Baroja e m sua casa d e Vera o u n a calle d e Ruiz d e Alarcón
em Madrid. (E não esqueçamos depois as de Ortega em El Sol
ou na Revista de Decidente - Pi y Margall 7 , depois Bárbara
de Braganza 12 -, as de Ramón em Pombo .)
Nessas formas de convivência espontânea, vivaz, amistosa,
sem reservas nem embuços, brotava a naturalidade. E preciso
ler o livro de Ricardo Baroja, Gente del 98, para ver os ardis a
que recorreram algumas destas personagens para garantir o casa
mento de Anita Delgado, a lindíssima jovem de Madrid, com o
mirífico, quase mítico Maharajá de Kapurtala, que apareceria logo
depois, transfigurado, na obra de Valle-Inclán. E as viagens por
toda Espanha, até absorvê-la e saturar-se dela - em mula, a
cavalo, em trenzinhos humildes, em desconjuntados carroções,
como fosse -; e as casas de hóspedes com um lavabo e um
balde e um jarro de água, fria naturalmente ; e as estalagens em
que mesmo isso era problemático, mas onde os postigos abertos
ofereciam os velhos telhados de Castela, os sobrados , a prate
leira " donde posa sus dukes ojos verdes Melibea" ( " onde pousa
seus doces olhos verdes Melibea") ou o campanário das monjas
com seu sino cristalino. A escassez aceita com naturalidade ; e
os luxos eventuais quando há um milagre. Realidade, realidade,
realidade : para " filtrá-la" é preciso deixá-la passar pela alma,
pela biografia, em doses imensas.
Os homens da geração de 98 viveram instalados na literatura.
Mais ainda que seu ofício , era sua morada . Todos foram escrito
res. A aparente exceção, Menéndez Pidal, sábio, erudito, filólogo,
descobre aos oitenta anos que havia sido toda sua vida um escritor
" em estado latente " . (Uma vez, quando se aproximava dos no
venta, lhe disse : " Don Ramón , quando o senhor começou a
escrever verdadeiramente bem foi depois dos oitenta anos . "
Respondeu-me, com seu meio sorriso, como a desculpar-se e
alegrando-se de que eu houvesse descoberto seu segredo : " E que
não ousava. ")
Desta maneira puderam conseguir o contágio e a revives
cência desse interesse entre os espanhóis, o renascimento , sobre
tudo, da atitude teórica, tantp tempo perdida. Por isso pudemos
viver deles, ver a Espanha com seus olhos, e continuamos vi
vendo de sua herança perpassada de frescor enquanto celebra
mos os centenários de seus nascimentos : Unamuno, em 64, Ga
nivet, em 65, Valle-Inclán, em 66 - ladeado por Arniches e
Benaven !e -, Rubén Darío - que certamente era nicaraguense,
89
porém espanhol como qualquer outro -, em 67, don Ramón
Menéndez Pidal, em 69, Gómez Moreno - ainda vivo naquela
época - em 70, Miguel Asín Palacios e Serafín Á lvarez Quin
tero, neste ano de 7 1 , Baroja no próximo , Azorín no que se
seguirá, e depois Joaquín A lvarez Quintero e Maeztu e os Ma
chado . . .
Nosso tempo começa com eles e continuou, pelo menos , por
mais três gerações : a de 1 886, a de 1 90 1 , a de 1 9 1 6 . E as
seguintes? Pôde parecer que já estavam em outra coisa; mas
não é seguro. E preciso contar com o fato de que a realidade
nem sempre coincide com os gestos, e com a " vocação de adãos "
que os espanhóis costumam ter. Quase sempre, o gesto de
" romper" com o passado acoberta o não saber começar de ver
dade . A única maneira de superar o passado não é romper com
ele e sim alçar-se sobre seus ombros. Não há outro modo huma
no de começar a não ser continuar.
Por isto entramos numa série de centenários que não são
arqueologia e sim, muito pelo contrário, o exame atento, eu di
ria o tomar posse, de nossas entranhas históricas. E ao fazê-lo
deparamos com a mais soberana lição de liberdade ; e não é
tanto que estes homens da geração de 98 fossem liberais - tal
vez alguns, por vezes, não o foram -: é que foram livres.
1 97 1
90
A Espanha basca de Unamuno :
Paz en la Guerra
91
que é um engano ; primeiro, porque renunciar ao próprio ponto
de vista é renunciar a si mesmo ; segundo, porque o que de
verdade se pode oferecer aos jovens é isso, .um ponto de vista
novo - novo para eles, embora seja antigo -; e terceiro, se
me permitem a sugestão, porque a visão dos jovens de hoje -
por razões óbvias e que podem ser muito bem explicadas , que
qualquer dia tentarei explicar em seus pormenores - é muitas
vezes simplesmente menos visão, uma visão esquematizada e
empobrecida, que é necessário enriquecer o mais possível . I sto
sem levar em conta que, com os jovens , não se deve estar de
acordo e sim em concórdia. E só se deve esperar a convergência
com eles no final , isto é nas coisas, depois de haver partido de
perspectivas bem distintas .
Durante estes últimos anos , pretendeu-se persuadir aos jo
vens de que os homens da geração de 98 interessavam pouco ,
porque eram " individualistas " , " escapistas " ou " separados da
realidade " . Quase sempre estas impressões se apoiavam em lei
turas muito parciais e sumárias destes autores. Porque ocorre
que, longe de estarem separados da realidade, estavam profun
damente preocupados por ela e em suas formas mais concretas ,
inclusive pela econômico-social (que é só uma fração) . Quando
se viu que esse "irrealismo " é um pouco difícil de sustentar,
passou-se à atitude oposta, que consiste em acentuar excessiva
mente o i nteresse dos homens de 98 - Unamuno, Baroja , Azo
rín - pelos temas econômicos, políticos e sociais, inclusive sua
vinculação precoce a posições socialistas ou anarquistas ; e digo
excessivamente, porque como ao fim de pouco tempo, antes de
entrarem na maturidade, modificaram essencialmente suas posi
ções iniciais, quanto mais se as substantive , mais força ganha
seu abandono posterior, e mais ter-se-á que insistir nele como
retificação de trajetória.
Creio que Unamuno pode dizer muitíssimas coisas aos jo
vens de hoje. Primeiro, sua própria realidade : sua personalida
de patente e enérgica, sua coragem, sua procura da verdade e
sua decisão em dizê-la; seu exercício impávido da liberdade
(os que nasceram com as asas intumescidas e pregadas já não
sentem nem os limites) ; o espetáculo de Unamuno é, por si
mesmo, liberador - incluindo na lição o risco da desmesura -.
Em segundo lugar, sua resistência à falsificação , à convenção e
aos lemas : Unamuno nunca lê um texto de esguelha para saber
o que deve pensar. Em terceiro lugar, e talvez acima de tudo ,
sua figura é um exemplo vivo de que há questões decisivas que
não se anulam simplesmente porque se fecha os olhos. Unamuno
nunca se submeteu à " inquisição científica " ; hoje , não se teria
92
submetido à " planificação " nem a essa outra forma de " in
quisição lingüística " que pretende decidir quantas coisas nos de
vem importar. Unamuno sabia que o homem concreto e com
densidade, o homem de carne e osso que não quer morrer, ne
cessita saber, para que todo o resto, que também lhe importa,
possa ter sentido . Importante é o que de verdade importa, não
o que se decreta como tal, o " atual " ou o que " se usa " . Una
muno parece uma janela aberta que nos arranca de espaços
confinados e nos devolve à realidade .
93
pediria em 1 908 : a interpretação basca da Espanha. Toda a rea
lidade espanhola, a luta entre o passado e o futuro, a história
inteira, o sistema de tensões espanholas, aparece nesta novela
a partir da Biscaia, pulsando em uma modesta loja concretíssi
ma de as Siete Calles de Bilbao .
Sem dúvida, essa interpretação basca da Espanha não é a
única - como a poderia ser? -, porém certamente é verdadei
ra e irrenunciável . Quando se fala da Espanha, pensa-se em
Castela; as razões sã o óbvias, porque a Espanha fez-se a partir
de Castela, foi projetada por ela, e sua língua castelhana che
gou a s er o espanhol, a língua comum de todos os espanhóis -
embora não a única para muitos deles, que têm outra igual
mente própria -. J! interessante, porém, notar que se pensa
quase tanto na Andaluzia , e que quando a Espanha é evocada
acorrem sempre pressurosas imagens andaluzas. Por quê? Por
que a Andaluzia conseguiu desde muito cedo e sem desconti
nuidade uma expressão que é uma interpretação de si mesma e
uma projeção para frente e para o futuro. A intensidade e o
êxito do " regionalismo " andaluz - que não é regionalismo -
justificam-se pelo fato de nunca haverem constituído um regio
nalismo exclusivista, recluso em sua interioridade e voltado pa
ra o passado , mas sim uma fruição na própria condição e uma
tendência à expansão e irradiação da mesma ; e por isso a Espa
nha é inexoravelmente andaluz < 2 > .
Insisti na Andaluzia porque é o exemplo máximo de conti
nuidade , de persistência na mesma atitude durante séculos ; po
rém a Espanha é uma multiplicidade de dimensões, e nelas -
(2) Falei sobre Isto longamente em meu livro Nuestra Andalucla (Dfaz·Casarlcso,
Editor, Madrid, 1 966; em EI A lcl6n, 1 972; Obras, V I I I . )
94
Trata-se de uma superioridade de qualidade intrínseca? Atrever
se-ia alguém a estabelecer um " escalão " em que estes homens
entrassem com Picasso e Falla, Cajal e Zuloaga, Baroja e Azo
rín, Valle-Inclán e Menéndez Pidal, Machado e Juan Ramón
Jiménez, Ramón Gómez de la Serna e uns tantos mais? Não se
trata disto, naturalmente, e sim de algo muito diferente : a cultu
ra espanhola atual organizou-se a partir do pensamento filosó
fico e em forma literária : a grande originalidade da cultura es
panhola neste século ( J J . E isso o fizeram primeiro Unamuno
e depois Ortega , em duas formas imprescindíveis. Uma das duas
vertentes dessa cadeia central da orografia espiritual da Espa
nha é basca : a isso chamo a Espanha basca de Unamuno .
Paz en la guerra é o melhor exemplo. Gestou-se durante
dez anos , publicou-se em 1 89 7 , um pouco antes da crise que
acontecerá em 98. Nada mais basco, nada mais bilbaíno, nesse
livro aprendi a amar Bilbao . A vida quotidiana , a substância
da intra-história - do intrinsecamente histórico - expressou
se neste livro como em nenhum outro. " I sto não é uma novela,
é um povo " , disse Don Miguel refletindo sobre seu velho livro.
E o drama desse povo é o drama espanhol do século XIX - e
do XX - em sua forma extrema : a guerra civil . Entenda-se
bem, a guerra civil espanhola em sua versão basca, em sua
perspectiva biscainha, bilbaína, que culmina no cerco, com a
transformação da vida quotidiana que isso implica.
Aparecem aqui concretamente, " de carne e osso " , as ten
sões entre liberais e carlistas, entre tradicionalistas e inovado
res, os que sustentam a tradição do " aqui " e os que afirmam
o progresso que vem do " mais além " (um mais além que pode
ser Madrid ou . . . os Altos Fornos de Bilbao) , entre a cidade e
o casario, entre os que sabem bem só o vasconço e os que não
podem dizer em vasconço o que pensam como bascos em espa
nhol . � a novela do desacordo, da luta, da guerra . Mas sobre
tudo é a novela do respeito à realidade, da decisão de deixar
que cada um seja o que é e quem é. Da concórdia que está de
acordo em que não é preciso estar de acordo . Da paz dentro da
guerra, da luta ou milícia em que consiste, queira ou não, a
vida do homem sobre a Terra.
1 964
(3) Vej a-se a Introdução a meu livro AI margen de estos cl4slcos (Afrodlslo
Aguado, Madrid , 1 966.)
95
Don Ramón - Três recordações
97
Era na Biblioteca Nacional. Don Ramón falava do Cid, sua
devoção perene; havia-lhe sido fiel, porque a condição de Don
Ramón foi - o vimos durante um século inteiro - a fideli
dade : Ali renasceu a vida intelectual espanhola. Don Ramón,
sereno, claro, pausado, insubornável, falava de história. Como
se nada houvesse acontecido; isto é, como se estivesse decidido
a que tornasse a passar pela " espaciosa y triste Espafia " esse
vento que chamamos espírito. Aquela conferência de Menéndez
Pidal significou para mim a esperança de que a verdade reco
brara seus foros e iniciava penosamente a reconquista da alma
de nosso povo. Desde então senti a prodigiosa e matinal longe
vidade de Don Ramón, a quem comecei a poder chamar meu
amigo, como um prêmio providencial e imerecido, que me en
chia de gratidão ano após ano .
Quero recordar um terceiro momento de Don Ramón . Pas
saram-se quase vinte e cinco anos; ele j á é bem velho ; cada
dia nos sentimos maravilhados pela lucidez de sua mente, seu
respeito à realidade, seus projetos, a realidade de seus " frutos
tardios " , mais saborosos e esmerados dia a dia, que vai colhen
do ante nossos olhos assombrados . Don Ramón está sempre se
reno, seguro de si, mas comovido . Quando alguém se faz um
pouco próximo à sua intimidade sempre recatada, se entrevêem
seus límpidos fervores. Descobriu a beleza literária que encon
tra lugar em sua prosa, e pela primeira vez a deixa fluir, con
fiante e deleitado. Quando lhe digo que aos oitenta anos co
meçou a escrever realmente bem, me confessa timidamente :
" Antes não me atrevia. "
Uma tarde, e m sua casa d a Cuesta dei Zarzal, entre seus
livros incontáveis , quis falar comigo, muito de perto, de reli
gião. Sentamo-nos juntos, de costas para a luz que feria sua
vista fatigada por tantas letras, e falamos durante três horas
inteiras . Sobretudo escutou, com infinita atenção, com máxi
ma seriedade, com inquieta esperança. Nunca entendi m elhor
o grito angustiado do pai do menino enfermo, que relata São
Marcos : " Creio ! Ajuda . minha incredulidade . " Pouco a pouco,
Don Ramón pôs-se a perguntar, escutando, explorando, duvi
dando ; buscava, como sempre, a verdade que nos fará livres .
Quando dele me despedi senti que aquelas horas de íntima
conversa eram o resumo da transparência de uma vida quase
centenária.
E em seus últimos anos, quando j á ferido pelo sofrimento
físico, quando a velhice, tanto tempo contida , sobre ele caíra
·
subitamente, lembrava com freqüência aquelas nossas palavras,
98
algumas coisas que "lhe dissera naquele dia. Nunca falava dà
morte, mas muitas vezes da ressurreição. Perguntava-me pela ou
tra vida, da qual lhe havia sugerido uma imagem capaz de
alimentar seu coração, com uma inocência, com uma confiança
que me comoviam. Sentia a tentação de dizer-lhe que nunca
havia estado lá, que não estava de volta dela como se pode
voltar da América. E um dia me perguntou timidamente : " Você
crê, Marías, que poderei ver os j ograis? " Eu lhe garanti que
essa era, pelo menos, minha esperança. E penso agora que já
o terá feito, que já terá cumprido seu desejo; e que um dia
poderemos comentar juntos a infinita pobreza daquela imagem
da vida perdurável que lhe pude oferecer numa tarde ensola
rada de próxima amizade, junto a suas oliveiras , entre seus
velhos livros de Chamartín de la Rosa.
1 969
99
Cem anos de Pio Baroja
101
lhice tornou-se um escritor maioritário ; sua obra amplíssima foi
lida pelos novos e relida pelos mais velhos. A novela espa
nhola posterior à guerra civil recolheu sua herança : quase sem
exceções , os novelistas espanhóis dos últimos trinta anos foram
seus discípulos, e além disso o quiseram ser, reconheceram-no
como mestre - na vida intelectual, ao contrário da vida civil,
é o filho quem reconhece o pai.
Esta vivacidade perene de Baroja, esta continuidade de sua
influência, esse haver resistido às mudanças das modas, dos gos
tos, das vigências políticas e sociais, parece a mim responder a
alguns traços profundos seus, como escritor e como pessoa. Sig
nifica, creio, um mínimo de " obra morta " , uma grande inde
pendência dos motivos ocasionais da fama, uma estranha auten
ticidade.
Quando Don Pío morreu, em 1 956 , escrevi umas palavras
que quero recordar, porque aliavam minha impressão pessoal
de sua figura humana e de sua morte, a umas tantas frases iso
ladas e despretensiosas nas quais, sem uma deliberação apa
rente, procura examinar-se a si mesmo :
" Lembro-me de Baroja, miúdo, velhinho, friorento, boina
e manta sobre os joelhos, mordaz e zombeteiro, rabujento e
ingênuo, entre os livros e os quadros de sua casa espaçosa e
antiga; agora lembro dele morto, sereno e branco, recolhido em
si mesmo, de novo criança nos braços da morte. Um punhado
de terra seria o bastante para cobrir com ternura este terno e
arisco pardal, o menos cursi dos pássaros.
·
1 02
olhinhos irônicos; e morreu decentemente, como havia vivido,
levando consigo, sem grandes gestos, como quem não está que
rendo, outro enorme pedaço dessa realidade espanhola de que
estamos feitos. "
1 03
a primeira e sim sobre a segunda ; dizendo melhor, sobre o de
sacordo entre uma e outra. Por isso é implacável com a pompa,
a presunção, a retórica - até com a lírica -. Quando elogia o
acordeão e o compara à guitarra " pretensiosa '' , o que lhe in
teressa é que o acordeão quase nada pretende e a guitarra sim.
A guitarra? - poderia alguém perguntar -. Bem, eu sei o que
digo - teria respondido provavelmente Don Pío, e não estaria
de todo sem a razão -. Lembro-me a irritação que lhe causava
La guerra carlista de Valle-Inclán ; não podia compreender que
a mim agradasse . Apontava-me, como abominação da desolação,
que Valle-lnclán fala de açudes - em Guipúzcoa ! - e diz
que as mulheres cobrem suas cabeças com as saias quando
chove. Estes dois detalhes - que eu, é claro, não lembrava,
que para mim eram " irrelevantes " - bastavam-lhe para desqua
lificar os três esplêndidos volumes de Valle-Inclán. Mas o que
não podia tolerar era a manipulação magnificadora, exaltadora ,
a que Don Ramón submetia a realidade geográfica e histórica;
nem sequer a estilização desrealizadora em que sua arte consis
tia. A estética de Valle-Inclán criava justamente urna preten
são ao lado da realidade, dizendo melhor, dentro dela, com o
que conseguia certos efeitos de escárnio incomparavelmente mais
terríveis e destrutivos que toda a aspereza mal-humorada, tão
benévola no fundo, de Don Pío. E quando, no fim de sua vida,
superado o espantalho, em seus últimos livros geniais Tirano
Banderas e os três tornos de El ruedo ibérico, sabia conservar
a pretensão no seio da realidade maltratada e decaída, conse
guia os mais maravilhosos efeitos de beleza, sarcasmo e me
lancolia.
A visão de Baroja era negativa, desenganada, o que se cos
tuma chamar " pessimista " . " Em geral , eu vejo a vida corno
urna coisa escura, turva e sem atrativos . " Mas logo esclarece me
lhor, quando escreve : " Eu acreditava, naquela época , que a vida
era urna esterqueira disfarçada com algumas florzinhas retóricas
do mais puro papel de embrulho. " Onde se vê que o que o
irrita não é a esterqueira e sim o disfarce : as florzinhas retóri
cas, às quais procura desinflar sem demora constatando que
são feitas de papel de embrulho . A esterqueira mesma , sem
dissimulação nem disfarce, lhe pareceria uma coisa interessante
e, por certo, respeitável. Não é a realidade que o desilude e
sim a falsa pretensão. E então Baroja se encolhe, executa uma
retração defensi:va, para ver a realidade postado atrás de urna
barreira . No fun d o, sua atitude não é tão diferente da que se
conta do Marquês de Lombay, Duque de Gandía, que acabaria
sendo São Francisco de Borja, ante o cadáver da imperatriz
Isabel . E não seria excessivo interpretar deste ponto de vista,
1 04
não só a obra literária como . a biografia de Baroja, sempre re
traída, esquiva , dominada pelo temor ao desacordo com o que
verdadeiramente é, à insinceridade, ao gesto, ao que chamava,
com uma palavra definitiva, farsa.
Mas a visão desenganada não é forçosamente a visão de
siludida. Creio que Baroja escondeu pudica, ironicamente suas
ilusões, porém nunca as perdeu. Esperava sempre, concedia sem
pre um crédito à realidade, tanto maior quanto menor fosse a
promessa. Com o ínfimo, o mísero , o lamentável, sentia-se se
guro. I sso que parece não ser nada, isso não pode falhar. I sso
é estupendo, teria dito Baroja, se não lhe houvesse parecido
uma forma de idealização.
1 05
cípio, irredutível ao que se estava fazendo no século XIX, ao
que realizava com máxima maestria Galdós .
Isto explica que Don Juan Valera, bom provador mas com
pressupostos tão diferentes, nada menos que três gerações ante
rior a Baroja, o entendesse tão bem e o acolhesse com tanta
simpatia. " Seu Silvestre Paradox - escreve Valera - , embora
tão mergulhado no charco impuro da realidade e quase nele se
afogando, nos é muito s impático por seu estoicismo jovial, sua
bonomia e pelo bom humor que nunca o abandona em meio à
su a inópia incorrigível, aflições e apuros . " Reação semelhante
tiveram algumas gerações posteriores diante da obra barojiana.
Essa presença da· realidade, quase não elaborada ou, dizen
do melhor, quase sem mostrar indício de elaboração, explica
também que Baroja partilhe com Galdós essa mesma coisa de
haver captado e marcado duas zonas, dois níveis históricos e
sociais de Madrid . Diante de porções da realidade madrilenha
- que ainda perduram -, nos surpreendemos dizendo : " Isto
é Galdós. " Diante de outras , de origem um tanto mais recente,
de diferente localização urbana, de nível social inferior, dize
mos : " Isto é Baroja. " Com nenhum outro escritor isto acontece
em grau comparável ; para certificar-se, compare-se esta impres
são com a que suscita o Madrid de Ramón Gómez de la Serna,
definido precisamente por sua interpretação pessoal , por uma
deformação genial que faz com ele uma realidade que antes
não havia existido. Longe de refletir ou apreender Madrid,
Ramón o inventa, e não encontramos " seu Madrid" a não ser
quando nos tornamos conscientes de o estarmos vendo com
seus olhos - o que esquecemos quando se trata de Baroja ou
Galdós.
1 06
o aborreceram sem misericórdia. I sto explica também o entu
siasmo que hoje suscita em outros setores da mesma sociedade.
Receio que haja nisso um engano, que a repulsa e a ade
são estejam, ambas, " mal empregadas " e não sejam inteiramente
oportunas . Quero dizer que as " idéias " de Baroja não são pro
priamente idéias. Que são então? Sem dúvida têm a mesma for
ma que as idéias, parecem idéias , têm a estrutura da tese ou
enunciado, afirmam algo sobre alguma realidade - ou, mais
freqüentemente, a negam -. Mas se repararmos bem, veremos
que sua função é outra. Não tratam de compreender ou apreen
der a realidade , de descobri-la e agarrá-la, subjugá-la , capturá
la. Não são responsáveis, isto é, não são respostas à realidade
e diante dela. São mais jaculatórias, expletivos, desafogos, sus
piros, in terjeições. Se recorrermos ao esquema lingüístico do
tão genial quanto esquecido Karl Bühler, diremos que sua fun
ção própria não é a Darstellung, a " representação " , ou " signifi
ficação '' , e sim o A usdruck ou "expressão " , secundariamente o
Appell, o violento, urgente " apelo" a seus leitores.
I rritar-se com Baroja por suas " idéias " tem tão pouco sen
tido quanto apoiar-se nelas . O admirável , o prodigioso de Ba
roja é a narração que flui por baixo, o desfile pitoresco e en
tranhável de tipos humanos que labutam, se agitam , sofrem ,
riem, vivem e morrem em milhares de páginas cheias de since
ridade, animação e graça, de agudez, invenção e humor. 1! isto
o que perdura e , se não me engano, perdurará por séculos.
Mas então - poder-se-á dizer - as idéias de Baroja são
postergáveis? São supérfluas ? Poderiam ser eliminadas de seus
livros? Chegamos com isto ao mais delicado, ao mais interes
sante da questão.
Se as idéias barojianas, que tanto espaço ocupam em seus
livros, fossem um lastro embaraçoso, isto seria uma objeção
gravíssima à sua obra e comprometeria sua vitalidade. Se fos
sem " demais " , seria ele um escritor extremamente imperfeito.
O que afirmei foi que elas não são propriamente idéias, que
não podem ser tomadas como tal, mas não disse com isso que
não são interessantes.
Há alguns anos chamei a atenção para o fato de que a
·
pouca " qualidade de página " de Galdós - principal motivo da
geração de 98, apesar de admirá-lo , haver-se afastado dele -
se devia a que Galdós não escrevia a partir de si mesmo e
sim a partir do que se diz. Não escrevia só com palavras da
língua, com esses vocábulos que estão - ou estarão - em
nosso Dicionário, mas sim com frases feitas, com as formas
1 07
verbais usadas pela sociedade de seu tempo, com " tópicos " no
sentido literal do termo. Seu dizer, em vez de seu, era " o que
se diz " . E como, sobretudo na Espanha, " o que se diz " é o
mais importante, ao ponto de que acontece o que se diz e não
se diz o que acontece, as novelas de Galdós conservaram, com
força terrível e única, a substância histórica da Espanha da
Restauração.
Pois bem, Baroja, o mais galdosiano da geração de 98 , nisto
como em tudo, o mais " cumulativo " e menos " polêmico" de
todos - as aparências enganam -, parte de outras unidades
sociais, tópicas, que não são meras frases, dizeres, e sim opiniões,
" idéias " de todo gênero, freqüentemente absurdas, que consti
tuíram em boa porção a substância das vidas espanholas duran
te cinqüenta anos . E na obra de Baroj a, no opinar incontinente
das personagens sobre si mesmas, do autor sobre elas, do autor
também sobre seus antepassados, sobre seus contemporâneos e
sobre si mesmo , salvou-se , em forma não teórica mas ativa,
dramática, executiva, uma enorme parte da realidade espanhola
do século XX.
Mas se essas idéias não são verdadeiras - sobretudo, não
são verdadeiras idéias -, se são em sua maioria tópicas, adven
tiças, irresponsáveis, se não se as pode levar a sério - para
mal ou para bem -, o que acontece com o afã b arojiano de
realidade, sinceridade, autenticidade? Onde está o autêntico?
Aí está o núcleo que eu me atreveria a chamar genial da
obra de Baroja, sua contribuição única à literatura . As perso
nagens de Baroja costumam ser disparatadas, absurdas, incon
sistentes ; são incoerentes, caprichosas , arbitrárias; dizem coisas
insustentáveis, freqüentemente falsas, em muitas ocasiões sem
sentido ; suas mentes povoam-se de " idéias " ou pseudo-idéias
que ruborizariam qualquer mediana responsabilidade intelectual .
Onde está o autêntico, que parece escapar irremissivelmente?
Nessa mesma vida que vai fluindo, na realidade de cada uma
das personagens, com sua conduta desordenada, torpe ou imo
ral, com seus erros incontáveis, com suas convicções infundadas ,
com suas i déias recebidas e minimamente racionais, com suas
fainas, suas manias , com seus vícios . Por baixo de tudo isso,
sustentando-o , como a última realidade, está a vida pessoal de
cada uma delas , radicalmente verdadeira, realidade efetiva e in
transferível, com seu peso e sua carga, sua indigência, seu
drama, sua vocação de alegria, sua necessidade de uma felici
dade impossível.
1 08
Sem nada suplantar, sem enaltecer, sem embelezar, sem
idealizar, com seu fardo irrisório de desorientação, falsidade e
absurdo, Baroja vai apresentando, cheio de piedade, com íntima,
esquiva simpatia, essas vidas lamentáveis, desfibradas, grotescas,
com as quais entretece a sua como a de uma personagem a mais,
como a de um irmão.
1 09
Azorín 1 967
111
imarcescível, em incorruptível língua espanhola. Depois de Azo
rín - disse isso no dia em que cumpriu noventa anos -,
nunca mais poderemos estar sós na Espanha .
Sinto agora a necessidade de estender a mão a Azorín, �m
despedida, e agradecer-lhe . E agradecer a Deus por ele.
1 12
Azorín e as gerações
113
particular desse pensamento literário de Azorín é visual. Azorín,
que não era excepcionalmente " inteligente " no sentido usual
da palavra, o era de maneira surpreendente quando escrevia -
no sentido pleno do escrever -; quero dizer quando dizia o
que via e o dizia de acordo com as exigências da literatura ;
esta o levava pela mão, obrigava-o a dizer precisamente o que
devia ser dito (e esta não é uma fórmula má da inteligência) .
Quero agora ater-me ao que Azorín viu e disse - muito
cedo, incrivelmente cedo dentro da cronologia do tema - so
bre a realidade das gerações . Todo o mundo sabe que Azorín
foi o principal inventor - isto é, o descobridor - e o batista
da geração de 98; o que disse dela é menos sabido, e algum
dia deverá ser precisado . Mas, essa descoberta lhe foi oportuni
dade para ver algumas coisas interessantes acerca do que pos
sam ser gerações e quais as espanholas daquele tempo .
1 14
nome do grande sucesso que serviu de revelador do que signi
ficava como atitude e nível histórico.
O que aqui me interessa, no entanto, é outra coisa : a
consciência que tem Azorín da sucessão das gerações . Em 1 9 1 0 ,
data incrivelmente prematura - a geração d e 9 8 está ainda
começando, não alcançou vigência, ainda não está " no poder "
-, Azorín escreve :
" À geração literária que se iniciou em 1 896 seguiu-se outra .
Uma nova legião de jovens começou a publicar livros e artigos .
Em 1 896, publicar um livro representava um acúmulo de difi
culdades quase invencível, penoso ; chegar a ver impresso um
artigo num grande jornal era todo um triunfo . Hoje, qualquer
jovem que sinta ambições literárias pode logo publicar, com toda
classe de facilidades, um volume inteiro ; os grandes jornais es
tão abertos a todos . "
Estas facilidades eram reais, não só a miragem d e quem ,
tendo superado as primeiras dificuldades prévias , tudo amplia
através da lembrança . Os primeiro s livros dos autores da ge
ração que segue à de 98 se publicam muito pouco depois dos pu
blicados por esta : Juan Ramón Jiménez publica seus primeiros
livros- Almas de violeta, Ninfeas - em 1 900, aos dezenove
anos ; e desde então, ininterruptamente ; Pérez de Ayala edita
La paz dei sendero em 1 903 ; Eugenia d 'Ors começa seu Glo
sario em 1 906; em 1 9 1 0 Ayala publica A . M . D . G . , Miró, Las
cerezas dei cementerio, e Marquina estréia com En Flandes se
ha puesto el sol. As duas gerações se aproximam cronologica
mente ; isto e o fato fundamental de que a segunda foi " cumu
lativa " em relação à de 98 (por continuar sendo "polêmica "
ante às da Restauração , ainda no poder) , expl ica que se as con
funda tantas vezes e que haja incorporado à de 98 um ou outro
nome da seguinte.
Azorín as distingue muito bem - salvo um pormenor -.
Continuando o parágrafo anterior escreve : " Existe uma nova
geração de escritores jovens ; existirá outra dentro de quinze
anos . "
Está nisto o que é decisivo : Azorín não denomina " gera
ção " a um grupo de escritores (ele e seus amigos) , e sim a
uma equipe, um nível histórico ; à sua geração seguir-se-á outra ,
e depois outra " dentro de quinze anos " ; o intervalo que Ortega
iria descobrir, por razões historiológicas e sociais, está indicado
por Azorín na data de 1 9 1 0 , através da simples inspeção dos
fenômenos, diríamos por razões visuais .
115
Mas esta nova geração entristece profundamente a Azorín :
·• A nova geração de escritores espanhóis entregou-se completa e
desenfreadamente ao mais baixo e violento erotismo ; não passa
uma semana sem que apareça nas livrarias uma nova novela
pornográfica ; estes livros recebem os títulos mais provocativos
e chamativos ; se os anuncia em grandes cartazes pelas esqui
nas ; descrevem-se neles as mais torpes aberrações humanas . . .
Ter-se-á apagado de um só golpe todo o avanço realizado pela
literatura pátria com a geração de 98, e teremos voltado brusca
e impensadamente a considerar López Bago nosso ideal em arte? "
1 16
Azorín está descrevendo Ortega , Ors , Marafion , Madariaga ,
Américo Castro , Pérez de Ayala, Azafia. Mas estavam começando
ou ainda não haviam começado. Não estaria Azorín adivinhando
que entrava em cena a geração da razão vital? Não via crescer
a erva? Não estava exercendo, com clarividência que surpreen
de, isso que denominei " pensamento literário " ?
1 973
117
Azorin e a realidade
1 19
entre La voluntad e Dona Inés -; mas a este não podia voltar,
porque nunca se volta atrás .
E apaixonante o envelhecimento de um escritor, seus esfor
ços por restabelecer uma continuidade sem " continuísmo " , sem
repetição, sem arcaísmo ; sua vontade de ser ele próprio num
mundo que havia mudado demais, ao qual queria adaptar-se sem
conformismo, sem renúncia, sem deixar de ser quem era, e o
que é mais, sem renegar sua geração , dentro da qual viajava
" como a gota na nuvem viageira " , segundo a frase de Ortega ;
daquela geração de 98 combatida por todos os lados - e que
agora volta a sê-lo por motivos aparentemente opostos, no fundo
pelo elemento comum entre os velhos detratores de 1 940 e os
de 1 970 -. Não compreendo como este tema não interesse até
as raias do entusiasmo todo aquele que se ocupa de literatura
e tenha alguma curiosidade pelo humano.
Para " renascer " , o Azorín de 1 939, de volta à sua Espanha
mas a uma Espanha que não era a de antes - e , sobretudo,
que parecia não o ser -, não teve outro remédio a não ser " dar
marcha a ré " , mas justamente como se faz para " tomar impul
so " . Teve que recordar, trazer de volta as coisas ao coração ;
teve que acumular e reviver seu passado - o seu pessoal e o
de seu mundo -, relembrar para tomar posse de sua realidade
e da que estava ameaçada a desvanecer-se. E este o sentido de
sua obra imediatamente posterior à guerra ; desde as lembranças
próximas de seu livro París (publicado em 1 945) , que garantiam
a conexão, a continuidade, até as raízes : a adolescência, a pri
meira juventude , o nascimento histórico da geração de 98. São
os dois livros de 1 94 1 : Valencia e Madrid, livros essenciais para
compreender Azorín , para entender o que foi , o que é, o que
pode ser a Espanha.
1 20
o espírito desesperado e triste de Leopardi pairava no ar da
pequena loj a . Comprei esses livros e não mais me atrevi a en
trar lá. Passaram uns meses, e um dia vi a porta fechada. Não
se abriu mais. Nunca mais se viu o melancólico livreiro em Va
lença. "
Mas o mais importante é o que Azorín diz a seguir, e que
explica, como poucos outros textos, sua obra inteira - e não
só a sua -. " Com a leitura dos livros estrangeiros - diz -
aprendi uma coisa essencial : a de que toda literatura , seja poe
ma, novela ou drama, só pode subsistir quando apoiada em uma
base autêntica e sólida de realidade. Artista, estuda a Natureza
e as coisas. Observa-as atentamente, artista, em todos seus por
menores, matizes e irisações. Recolhe em silêncio , como a for
miga em seu formigueiro recolhe seu alimento, as observações
pacientes que fizeste . E quando em teu cérebro, em tua sensib i
lidade, esteja tudo depositado, faze o que quiseres. E faze o
que quiseres porque fatalmente , sem que dês conta, porás em
tua obra esse cimento de coisas concretas sem o qual a obra
se desmorona. "
Azorín reclama a absorção de realidade. Sem ela não há
literatura válida, mas apenas esquemas abstratos . Quando o ar·
tista se tenha impregnado de realidade, deixado que ela se
acumule e deposite em sua alma, não tem que se preocupar
mais. "Faze o que quiseres '', repete duas vezes Azorín . O que
quer que faça o escritor, essa realidade que viveu, absorveu ,
assimilou, irá decantar-se em sua obra, ainda que a isso não se
proponha especificamente . O decisivo é que o autor possua essa
realidade, lhe tenha dado permissão de entrar em sua mente,
dela haja alimentado sua vida pessoal . Não se trata de ser " rea
lista " , muito pelo contrário ; escrevi há anos que o " realista"
é o que engana a realidade . . . com as coisas . A realidade existe
em forma de circunstância e conteúdo da vida ; a vida é feita
dela, de sua própria substância . Por isso achamos vazias tantas
obras escritas " por princípios " , a partir de uma ideologia de
terminada, sem que se reflita nelas a ilimitada riqueza e com
plexidade do real. Há escritores que parecem não haver vivido ,
não haver estado em nenhum lugar, não haver visto nada, es
cutado sons, percebido odores, sentido o contato suave ou ás
pero das coisas ; nem haver-se abandonado a uma conversa, ou
se recolhido em silêncio deixando que as coisas façam soar sua
voz. Quando isto acontece, os escritos revelam-se superficiais,
sem espessura, intercambiáveis indiferentemente.
Os de Azorín, pelo contrário, trazem sempre algo insubsti·
tuível : um álamo, um caminho, um pequeno riacho, uma junta
de bois que era lentissimamente, um campanário onde soa um
1 21
sino, um locutório de monjas, uma pousada onde se oferece pa·
lha e água fresca, uma grade abandonada, uma fonte numa pra
ça, talvez com os canos entupidos, o jardim de Melibea, a pra·
teleira onde pousa " seus doces olhos verdes " , uin trem que atra·
vessa a campina, uma flauta que soa na noite, o quarto em
que morreu Don Francisco de Quevedo, todas as terras, todas
as cidades da Espanha , atravessadas , percorridas palmo a palmo,
revividas um século após outro, ressuscitadas pela contemplação
amorosa, pela " opressiva ternura " que Azorín sentia pelas pe
quenas cidades mortas às quais queria chamar a nova vida, in
corporar às pulsações da vida real .
E continua, após as frases citadas, pondo a descoberto um
segredo de seu ofício de escritor: " Naquele tempo comecei a
trazer no bolso um caderninho em que ia marcando os porme
nores daquilo que via. Assim, anos mais tarde, ao preparar-m e
para escrever a primeira de minhas novelas grandes e ter que
descrever o despertar de uma cidade, o que primeiro fiz foi le
vantar-me antes da aurora, subir a um monte, ao pé do qual
se erguia a cidade, e ir anotando , à luz de uma lanterna de
bolso, todos os pormenores do amanhecer, desde minutos antes
da aurora até já entrada a manhã, aquela já passada . "
A cidade é Yecla; a novela, La voluntad, d e 1 902 . Leia-se
seu primeiro capítulo e ver-se-á o que é uma cidade entrando
em cena, em estado nascente eu diria. Azorín não faz uma " des
crição " estática, nem um catálogo, nem um inventário . Nem diz
o que " h á " na cidade, nem sequer o que " se vê " do morro . Vai
mostrando sons, cores, formas , atos humanos, tal como vão apa
recendo, como vão acontecendo . " Ao longe , um sino toca lento,
pausado, melancólico. O céu começa a clarear indeciso. A névoa
se estende em larga pincelada sobre o campo. E no clamoroso
concerto de vozes agudas , graves, estridentes, metálicas, confu
sas , imperceptíveis, sonoras , todos os galos da cidade adormecida
cantam . . . O pigarro persistente de uma tosse rasga o ar ; os
golpes espaçados de um molho de esparto ressoam lentos . "
Assim começa a apresentação d a cidade . E continuará com
a mesma precisão, com idênticas conexões : " Pouco a pouco o
leitoso alvor do horizonte se tinge de verde pálido. O confuso
amontoado de casas vai saindo lentamente da escuridão . . . Os
galos cantam pertinazmente ; um cão ladra com longo e lamen
toso latido. " E depois : " O céu, de verdes tintas passa a lumi
nosas tintas nacaradas . As ferrarias despertam com seu sonoro
repiquete; perto, uma criança chora ; uma voz grita colérica. E
sobre o ondulado pardo dos infinitos telhados, paredões, beira
dos de muros, chaminés , frontões, ângulos, surge majestosa a
1 22
clara massa da igreja Nova, coroada por gigantesca cúpula lis
trada de espirais brancos e azuis. " E continua assim, até fazer
entrar em cena o resto da cidade, o céu - já azul - acima,
os templos e ermidas, as pequenas torres, as chaminés , os ca
minhos, as canções, os gritos, o toque de tantos sinos diferentes .
E depois o mundo humano : homens , mulheres, crianças , e m seus
quefazeres, em seus ofícios, nas tendas, nas ruelas estreitas . Sem
pre com a concretude, com o " pormenor sugestivo " , evocador,
vivo : " Vão e vêm pelas ruas, clérigos envolvidos em seus grossos
chales, tossindo, pigarreando . . . As perdizes , ao longo das cal
çadas, bicam em suas gaiolas metidas na areia . E os canários,
pendurados nos umbrais, cantam em joviais arpejos . "
Assim é a obra inteira d e Azorín : u m ensaio d e vivifica
ção, uma tentativa de ressurreição . A realidade absorvida avi
damente, amorosamente - com amor e sem engano , esta pode
ria ser a fórmula -. A realidade depositada pouco a pouco na
alma de Azorín, que viu, percorreu a Espanha inteira , se de
teve, deixou-a repousar, remansar-se, a leu, a recordou, a evo
cou, a sonhou .
Não é outro o sentido da obra de Cervantes , que se nutre
de realidade, castelhana, andaluz, manchega ; que se deixa im
pregnar de Lepanto, da Itália, de Argel ; por vinte anos de al
cavaleiro e requisitador de víveres por terras , estradas e ven
das de Andaluzia . E no fim põe tudo isso, toda essa realidade
com a qual havia feito sua vida, no Quixote.
" Ama e faze o que quiseres " , dizia Santo Agostinho . Olha ,
escuta, presta atenção, espera, vive, recorda, imagina - diz
Azorín - e faze o que quiseres ; porque a literatura consiste
em expressar a realidade ; em pôr a realidade vivida em pala
vras, de maneira que possa ser comunicada, compartilhada ; que
possa reviver em outros homens. E assim, ao mesmo tempo, sal
var-se e fazê-los viver.
1 973
1 23
Literatura e vida em Azorín
1 25
anos. O que acontece é que já se havia instalado - é esta a
palavra - nas formas, no estilo da velhice. Sempre acreditou
que para viver muito é preciso envelhecer cedo. Não sei se
isto era uma reflexão justificativa. Penso que ao voltar à Espa
nha, após seus anos de emigração durante a guerra, sentiu-se
num mundo despedaçado, alheio, em descontinuidade com aquele
que havia sido o seu , e se reajustou situando-se nessa maneira
de estar " fora " - fora da vida ativa, da vida histórica - que
é a velhice ; a partir dela viveu novamente , criou, por longos
anos ; de seu essencial retiro, retirado em si mesmo, em suas
lembranças , na memória de seus projetos. Azorín havia escrito
que viver é ver voltar. Ia agora praticá-lo sem distrações, sem
tentações; ia recordar, sobretudo, seu futuro , o que havia sido
seu futuro quando não era ainda mais que isso . Leiam-se os
dois livros maravilhosos do ajuste de contas de Azorín , Valencia,
Madrid, escritos em 1 940 , e ver-se-á como têm de prodigioso
que neles se conta o passado para frente, não como algo que
passou e sim que " vai passar " . São as memórias de suas ante
cipações. Viver é ver voltar ; não basta isso, é necessária uma
precisão maior: é ver a vida voltar, toda ela futuriça, feita de
futurição, voltada para o futuro.
Não compreendo como se possam desprezar os últimos trin
ta anos de Azorín ; a obra primorosa em que o velho escritor
vai destilando a experiência de sua vida , convertendo-a em re
quintada, essencial literatura ; e essa vida mesma , essa prepa
ração para eufrentar a visão de sua figura de corpo inteiro , essa
procura de seu perfil possível e congruente num mundo que se
alienara , sem ilusões mas ainda com ilusão , esse caminhar va
garoso e clarividente para a morte e a imortalidade.
1 26
linhas, o primeiro testemunho de sua entrada em Madrid, na
realidade histórica e social que era Madrid :
" Vejo-me descendo a escada, saindo à rua e andando, mo
mentos depois, pela calçada da calle de Alcalá . últimos fulgores
do crepúsculo, ou então, já noite fechada. Gente que entra e
sai no Teatro San José. Brancos globos de luz iluminam a en
trada. Detenho-me curioso entre a gente . E de repente, observo
uma coisa que me interessa profundamente . Quatro ou seis ca
valheiros formam um grupo . Um deles tem na mão algumas fo
lhas brancas de papel e vai lendo algo, prosa ou verso, que os
outros escutam atentos . A uns poucos passos , acha-se o espec
tador - espectador que acaba de chegar das províncias - e
diante dele, inesperadamente, como acaso feliz, estão , vivos e
autênticos, em seu próprio elemento, as personagens do drama.
Do drama ou da comédia. O espectador não sabe o que será.
Não se pode saber o que será a vida de um jovem que começa
a escrever: se drama ou comédia. Mas ele sente uma ânsia irre
primível por ser um dos atores da comédia ou do drama . Sim,
ali estão ; ali estão, escutando o que um deles acaba de escrever.
E talvez seja interessante. Dentro de algumas horas, toda Es
panha o lerá impresso na folha volante de um grande jornal .
Estes homens têm talento, engenho . São conhecidos, populares,
todos eles . O que lê é um escritor e o serão também os que
escutam. Tudo está com eles e nada está comigo. Com o correr
do tempo posso ser um deles, e agora, desconhecido, desvalido,
só tenho meu quartinho com a mobília pobre e com a j anela
no teto, que deixa a luz cair nas folhas de papel . Em outras
folhas de papel . Em outras folhas de papel que não são aquelas
que o escritor famoso lê a seus companheiros à porta do Apolo,
entre o bulício da gente, à luz dos grandes globos brancos, num
ambiente de fluidez, de dignidade e de modernidade . "
Fluidez, dignidade e modernidade . Onde está a " aldeiola
rnanchega " ? Onde o deserto em que talvez floresça algum cardo?
E isto o que s ignifica para Azorín ser escritor; essa sua vocação :
a irradiação, o prestígio, a popularidade, a convivência literária
dos criadores, e o público que recebe sua obra. Tenha-se em
mente que estamos em 1 89 5 . Destes mesmos anos são as crô
nicas literárias de Valera , que despertam idêntica impressão de
" civilização " ; uma impressão que importa reter. A fabulosa ino
vação, a criação genial de Azorín e dos demais escritores da
geração de 98 adquire seu significado quando a vemos, não
sobre o ermo ou a vulgaridade, e sim sobre uma sociedade de
mais densidade intelectual do que pensamos, dentro de um am
biente de fluidez, dignidade e modernidade, sob a alegre luz
dos grandes globos brancos .
1 27
A segunda confissão abrange sua carreira completa de es
critor. num balanço provisório que faz em 1 940, quando se
dispõe a instalar-se nas formas da velhice . " Ao preparar-me para
escrever a primeira de minhas novelas grandes - diz - e ter
que descrever o despertar de uma cidade, o que primeiro fiz
foi levantar-me antes da aurora, subir a um monte, ao pé do
qual se erguia a cidade, e ir anotando, à luz de uma lanterna
de bolso, todos os pormenores do amanhecer, desde minutos
antes da aurora até já entrada a manhã, aquela já passada . "
Está evocando a composição de La voluntad , a descrição de Ye
cla , em que Azorín estreiou uma maneira nova de ver a reali
dade e apresentá-la . E acrescenta a seguir, sem mais justifica
ções - eu diria que a justificação flui subterrânea -: " Sempre
tive consciência de meu labor literário . Devo dizer aqui, onde
a confidência sincera é obrigatória . Nunca duvidei do valor de
meus livros . Mas , ao mesmo tempo, aconteceu-me um fenômeno
estranh o : nunca quis fal ar de meus livros, e muito menos -
isto me desgosta - quis que me falassem deles. Publicado um
livro, trato de esquecê-lo . Se o lembrasse, me pareceria que
estava preso a ele e não poderia dele desprender-me para es
crever outro . Mesmo corrigir as provas me causa dissabor. "
1 28
com o que varia a proporção do patente e do latente. Azorín,
em sua primeira maturidade, propôs a famosa fórmula de seu
estilo : " Dizer as coisas umas depois das outras e não umas den
tro das outras . " E mais fácil dizer do que fazer; e , sobretudo,
pode-se fazer sempre, o pode fazer todo escritor?
O estilo de Azorín é superficial, consiste em superficialidade.
Azorín podia dizer tudo, precisamente porque havia renunciado
ao que não se pode dizer; isto é, a operação que executa é
dupla : uma limitação da realidade, uma expressão máxima dessa
realidade limitada.
A fórmula de não dizer as coisas " umas dentro das outras "
só é aplicável com uma condição : que as coisas não estejam
realmente umas dentro das outras ; mas, e se o estão? Seria pos
sível escrever sobre filosofia na prosa de Azorín ? Essa estrutura
que se chama sistema, e que consiste em que cada uma das
verdades esteja se apoiando em todas as outras , essa estrutura
não linear mas circular ou espiral , será conciliável com o estilo
de Azorín ? Se a razão apreende a realidade em sua conexão, a
maneira de enunciá-la dependerá do tipo de suas conexões . Todo
escritor, pelo fato de viver em um estilo, leva a cabo uma se
leção da realidade e de sua maneira de apreendê-la; seu estilo
já é doutrina, isto é, interpretação da realidade .
Na prosa de Azorín as coisas não se apresentam como um
" aglomerado " ; nunca se tem a impressão 4e que elas " não po
dem transitar " : sucedem-se umas às outras, vão aflorando , fa
zem-se superfície, patência, manifestação . Daí a relação singular
de Azorín com o tempo . As coisas vão durando , permanecem ,
sua " espessura " é cumulativa e temporal . A sucessão é o cor
relato da série dos enunciados, dos dizeres .
En tende-se deste ponto de vista o que Azorín fez com seus
temas. Seu tratamento dos clássicos consiste no que poderíamos
chamar " ir ao sabor das ondas " : não penetrar, não aprofundar ,
ir de superfície em superfície , e no final ficar com o segredo.
O núcleo da técnica de Azorín é o ovo de Colombo : a leitura
dos clássicos . Os estudiosos, eruditos e investigadores os estu
dam e analisam ; " reduzem-nos " a seus elementos ou ingredien
tes, sobretudo as suas " fontes " , mas acabam ficando sem eles.
A técnica da citação consiste precisamente na interrupção da
leitura, em suspendê-la, em isolar um conteúdo particular, que
é objeto de consideração independente do movimento total da
obra em que está inserido .
E o contrário do que Azorín faz , que reproduz em si a
vida da obra, isto é, a revive. Por isso tem que evocar o autor
estudado , mostrá-lo a partir de fora, exterior e superfici almente ,
em sua cela monacal , no quartinho da venda, no Congresso dos
1 29
Deputados . Trata-se de vê-lo viver. E então - só então - o
decisivo transparece : seu projeto vital, o " quem " é ou foi.
O mesmo acontece com a paisagem. Não é simplesmente
descrita, menos ainda analisada ou decomposta em ingredientes.
Chega-se a ela . " Nós vamos " às aldeias , às cidades , aos campos.
Azorín nunca esquece o caminho, a chegada, a hospedaria, o
que se vê do balcão, o passeio , o cassino provinciano, as récuas
que passam sob a janela, a fonte entupida, os gradis junto aos
quais se passa para ir à praça, os sinos cujo toque chega de
muito perto ou de longe . Azorín nunca esquece a moça que
serve a comida na hospedaria - Rosario, Tránsito, Soledad -,
dando voltas , harmoniosa, ao redor da mesa. Ao falar do pro
blema social - nas páginas comoventes de " La Andalucía trá
gica " , de 1 90 5 , um texto decisivo do Azorín contemplativo -,
faz uma original " estatística " dialogada, dramatizada, na qual
um punhado de labregos de Lebrija chegam a determinar ao
vivo o que necessitam para viver e não têm . O acúmulo de
impressões se decanta em uma conclusão vital, dramática e não
inerte, com a concretude do relato e não a abstração impessoal
do esquema.
Por isto , a arte de Azorín culmina na narração . Teve que
ser narrador, novelista . Apresenta os cenários; estabelece as co
nexões vitais, tanto entre o próximo como entre o distante, an
tecipando genialmente a técnica cinematográfica, como em Dona
lnés ou, de maneira mais alambicada, em Salvadora de Olbena,
sua obra preferida dos últimos anos . Penetra na temporalidade,
até o ponto de que poderíamos dizer que sua obra inteira é
narrativa . Dramatizou a crítica, a apresentação da paisagem, a
evocação das formas de vida passadas .
Quando escreve contos está obcecado com o acaso e as in
terferências temporais, com o " momento " . Introduz na novela
a duração, a monotonia, a presença do que já passou mas está
aí, no passado . Por vezes , a prospecção, a antecipação do futuro .
A maneira de ver as personagens, de apresentá-las, é assistir a
suas vidas . Essa dilação morosa levou-o à criação de admirá
veis figuras de mulher. Azorín , tão casto, se compraz na beleza
feminina, na presença da mulher como tal , em sua vida pro
jetada em esc�rço . � muito pouco sensual, mas para retomar
uma expressão muito usada pelos teólogos quando eram inteli
gentes e estavam despertos para a realidade humana concreta ,
eu diria que vê e vive a mulher com " amor sensível " .
A novela de Azorín - culminância de seu estilo e de
sua obra inteira - significa a descoberta plena da temporali
dade. Enquanto Unamuno se angustia pela personalidade e sua
1 30
realidade, ameaçada pela morte, Azorín sente a emoção, a an
gústia da vida enquanto dura, o passar do tempo que não volta
mas que de alguma maneira perdura : consistência e fugacidade,
o que poderíamos chamar a espessura móvel da vida humana .
131
Para uma antologia
de Antonio Machado
Prólogo
1 33
porque para isso haviam nascido, porque só se sentiam ser de
verdade escrevendo, porque necessitavam, para viver, para se
rem espanhóis, deixar claro o que queria dizer esse claro - e
tantas vezes triste - nome : Espanha . Por isso estes escritores
o foram o mais plenamente possível ; por isso perduraram, ape
sar de tudo, e continuamos vivendo deles e com eles, numa
Espanha que eles em grande parte inventaram , descobriram,
olhando-a com dor e sem desinteresse, com entusiasmo e rigor,
conhecendo-a palmo a palmo e livro a livro, sem que ninguém
lhes pudesse tirar " o dolorido sentir " . Antonio Machado foi o
poeta dessa geração ; foi o que nos deu , a partir desse nível -
o mais alto que se havia alcançado desde o Século de Ouro -
a interpretação poética das coisas, e sobretudo das coisas es
panholas.
Machado era sevilhano. Disse-nos uma vez que um andaluz
andaluzista era um espanhol de segunda . . . e um andaluz de
terceira. Seu nome está unido inseparavelmente a Sória, e por
tanto a Castela. Foi , como outros grandes autores da Espanha
periférica , criador literário de Castela : como o galego Valle
Inclán , os bascos Unamuno e Baroja, o levantino Azorín . Ca
tedrático de Instituto, de francês , que havia afinado ouvindo em
Paris a Bergson, " professor de línguas vivas " , como disse de
si mesmo, mestre da língua viva , sua passagem por Sória, de
1 907 a 1 9 1 2 , o marcou para sempre . Ali sentiu, o mais inti
mamente, uma cidade e uma paisagem, ali compreendeu, esté
tica , histórica , biograficamente, Castela, e a partir dela a Espa
nha . Diante de si tudo se anima , faz-se estritamente " pessoal " ,
fala-lhe diretamente a o coração. E m Sória acontece a experiên
cia radical de sua vida, a que o faz ser propriamente quem
foi , a que trará sempre dentro : seu amor terno, vacilante, tímido,
feliz, ameaçado, arrancado finalmente pela morte, seu amor a
Leonor. Leonor era quase uma menina , seu encontro foi - como
quase tudo na vida - casual ; pôde simplesmente passar por
ela, mas não foi assim : chegou até sua alma, a fez sua mulher,
perdeu-a em agosto de 1 9 1 2 , quando não havia passado dos de
zoito anos . Nada mais? Penso que quando Machado descobriu
Leonor, teve essa impressão que às vezes nos assalta : a de en
contrar algo que parece nos haver escolhido , algo que é enviado
de acordo com o que é ainda mais radical que nossos desejos,
como se o houvesse criado a raiz mais profunda de nosso ser.
Quando isto acontece, é nosso para sempre - o que quer que
aconteça -, porque nisso, em sua presença , chegamos a ser o
que mais verdadeiramente somos .
A poesia de Machado não é propriamente " amorosa " ; é
algo mais profundo e menos freqüente : poesia enamorada. O
1 34
amor não é " tema " da poesia de Machado ; é seu solo , sua
raiz, sua têmpera ; do amor à mulher, nele instalado, olha as
coisas , elas o comovem , lhe doe m , são cantadas . f. o princípio
de sua organização, a âimensão na qual se encontra a si mesmo
e pode falar a s i mesmo - " converso con el hombre que siem
135
brante. Disse eu que ele se escolhera, e ele próprio nos ensinou
que "ninguém escolhe seu amor " . Eu diria que se sentiu esco
lhido, conduzido à sua plenitude, descoberto em sua verdade .
Não era uma escolha: era o destino ; mas o destino aceito livre
mente é a vocação . E é isto o que escolheu Machado : ser-lhe
fiel. Por isso seu verso nos chega ao mais profundo , por isso
quando o lemos sentimos que se trata de nós; porque ao es
crever se tratava dele até o mais profundo de sua raiz.
Machado foi livre - por isso se sentiu sempre insuborna
velmente liberal -; mas isto quer dizer que não pôde ser ca
prichoso . Ser livre não é fazer o que se quer, o que se lhe aprou
ver sem mais, e sim o contrário : querer o que se é, o que se
deseja a partir da própria profundidade insubornável , o que se
tem que fazer . Somente isto explica a vida de Machado, sua
honesta, tímida impavidez , que o levou à morte solitária e sem
amparo, " ligero de equipaj e " (leve de equipagem) , fiel a si
mesmo.
En la desesperanza y en la melancolia,
de tu recuerdo, Soria, mi corazón se abreva,
(Na desesperança e na melancolia,
de tua lembrança, Sória, meu coração se sacia,)
1 969
1 36
À Margem de La Casa Encendida
de Luis Rosales
1 . Luis Rosales
1 37
o queremos -: as primaveras ainda frias , entre neve branca e
giestas amarelas, de Gredos . Quando estes encontros se acaba
ram , deixando-nos uma nostalgia difíc i l de curar, veio compen
sá-los , desde 1 965, a convivência n a Academia Espanhola -
onde, ao contrário que na Faculdade, esperava-me Rosales -,
e desde a primeira quinta-feira me sentei a seu lado , à sua
d i reita - Pedro Laín à sua esquerda -. Sentávamos juntos e
sentíamo-nos juntos , com uma estranha impressão de continui
dade e de comunidade feita de tantas d iferenças .
1 38
diria algo q u e parece trivial : Rosales " gosta " da poes i a . Po
de-se dizer isto de u m poeta? A vocação não é algo mais radical
e p ro fundo ? Sim, mas em Rosales a vocação não matou o " di
letante " , do mesmo modo que o amor, mesmo sendo o mais
alto, não necessita matar o carinho . Provavelmente por isto Ro
sales não só nunca abandonou a poesia, como nunca a profanou
nem a sacrificou a outras coisas - como às vezes fazem os
grandes poeta s .
1 39
Quero sentir-me sempre acompanhado por eles . Correspondem
aos seguintes autores:
Porque ya
una cosa es la Poesia
y otra cosa lo que está
grabado en el alma m ía . . .
Grabado, lugar común.
Alma, palabra gastada.
Mía . . . No sabemos nada.
Todo es conforme y según .
(Sim porque
uma coisa é a Poesia
e outra coisa o que está
gravado na alma minha . . .
Gravado, lugar comum.
Alma, palavra já gasta.
Minha . . . Não sabemos nada.
Tudo é conforme e segundo.)
Luis Rosales, com suas crenças , faz literatura. Mas isto não
quer dizer que suas crenças não sejam autênticas, que sejam
" literatura " , mas sim que faz sua poesia com elas. E para que
sejam arte, para que sejam algo realizado e comunicável litera
riamente - também comunicável -, não há outro jeito que
fazer literatura com as crenças . O que acontece é que são muito
poucos os que as têm, e menos ainda os que sabem fazer lite·
ratura . E não se costuma perceber que esta literatura é precí
samente a que permite " dizer para si mesmo " suas crenças,
sem que deixem de o ser. Só literariamente pode expressar-se e
formular-se a crença sem que se converta em outra coisa - e
isto explica muito do que está acontecendo com as crenças no
mundo atual -; só a literatura salva a condição credencial
unindo-a à explicitude, dando-lhe transparência, permitindo-lhe
sair dos subsolos obscuros e silenciosos em que normalmente
opera.
1 40
Pode-se ver isto em toda a poesia de Rosales, na religiosa
é claro , mas ainda mais na de amor . Rosales começou em A bril
escrevendo poesia amorosa - algo tão importante e tão infre
qüente, de tão longos e preocupantes eclipses -: como Garci
laso, como Fernando de Herrera, como Villamediana, como Lope
de Vega , como Quevedo, como Meléndez, como Espronceda,
como Bécquer, como Salinas ; mas depois chegou - como An
tonio Machado - a escrever " poesia enamorada " , que não é
o mesmo e é mais sutil .
141
que encontramos nos grandes poemas épicos clássicos apesar da
narração, em outras coisas que seria sugestivo precisar -. A
na rração épica, por outro l a d o , num certo sentido se destem
poral iza , refere-se a um tempo não propriamente histórico , não
datáve l , indeterminado ou aoristo, e acaba por situar-se nos " tem
pos heróicos " dos quais se tem falado com surpreendente natu
ra lidade durante séculos , e que afinal não e ram bem propria
mente temp o s .
A casa é •; onde se está " , " onde se vive " . Quando? A res
posta deveria ser uma expressão estranha , que revela a estru tura
conflitiva da vida quotid i an a : por todo o sempre. Daí que o
tempo da casa não sej a linear e esteja feito de curiosas anteci-
1 42
pações e retrovisõe s . Bem ao começo de La casa encendida
encontramos :
e que
1 43
dos · pais '' , e o homem passa a vida procurando-a, buscando res
tabelecê-la e restaurá-la, mesmo quando não a teve -; a Facul
dade de Filosofia e Letras de Madrid - a casa que partilhei
com Rosales , vivendo em aposentos diferentes , assomando a
outras janelas , porém " na mesma casa " , e por isso me reco
nheço nela, sinto-me " vizinho " , avizinhado em seu poema -;
a casa solitária de Altamirano 34 , onde se vê iluminado o
quarto da frente,
1 44
un sol, ya en oiro cielo, su oro m udo -
y volase un enjambre entre las ramas
donde puso el temblor la primer hoja . . .
Este soneto revela a " têmpera " , antecipa o " a rgumen to " de
La casa encendida, é verdadeiramente seu saguão - bem como
o p rólogo em prosa que o precede, fora do poem a , é o que os
andaluzes chamam seu " compasso " preparatóri o , onde a alma
se vai conformandó ao que a casa virá a ser, prometido já desde
a rua, desde o mundo - . O soneto começa com um condicional
- " Se . . . " - e termina , sem dele sair, sem conclusão, com
alguns pontos suspensivos . Se ocorresse tudo isso , se as coisas
fossem assi m , se a real idade mostrasse essa face , o quê? O poeta
nada diz, não conclu i nem fecha, deixa em aberto . A conclu
são é o poema. Se tudo fosse assim . . . então La casa encendida.
Seria este o ingente " raciocínio " lírico .
A interiori dade está aberta . Pode-se v i ver dentro desse so
neto, mas não é u m término : abre-se para o exterior pela j a n ela
dos pontos suspensivos . A " o ração principal " está na rua, fora ,
no amplo mundo . Por isso funciona como uma casa : den tro
mas abert o .
As quatro casas - q u e n ã o aparecem em o r d e m tempora l ,
muito p e l o contrário, a d o s p a i s se manifesta c a d a v e z mai s
ao final do poem a , numa volta essencial : " viver é ver voltar " ,
diz Rosales repe t i n d o Azorín - não terminam, nem a rigor
tampouco começa m : persistem, perduram , se p rolongam , se an
tecipam , pode-se t r a n s i t a r idealmente de uma para o u t ra , porque
todas são a casa. ( A Faculdade, com suas pessoas vivas , com
seus nomes próprios bem conhecidos, com sua a l egria e seus
dramas em surdina ou em silêncio, com seu li rismo , é p a ra m i m
especialme n t e comov e n te e l u m i nosa : a recriação por o u t ros o l h os
de " me u " mundo de cinco anos e de todos os que v i e r a m
depoi s . )
1 45
A forma em que Rosales consegue essa interioridade aliada
à abertura é, sobretudo, a metáfora ; porque a metáfora é isso
mesmo : a expressão na qual se pode estar mas que nos lança
fora, para além de si mesma . Como a vida humana, a metá
fora é vetorial - para usar o conceito de que tanto me . servi na
A ntropología metafísica - Por exemplo assim :
.
Ou então :
Volvíamos de la clase
donde nosotros nos sentábamos entre el latín y entre
el silencio de ella.
(Voltáva. r l a s se
onde nos sentávamos entre o latim e entre
o silêncio dela.)
146
com aquela alegria de mãe com janelas
que falavam todas de uma vez . . .
e era tão preguiçosa,
que só ao sentar-se
começava a ter um gesto completamente inútil de lenço
· dobrado,
de lenço florido) .
y hablabas necesariamente
como el minero busca la salida en la mina cuando se ha
hundido la galería.
(tu que continuas a levar-me na voz como açúcar diluído . . .
e trabalhas todo inteiro
como trabalham as raízes na terra e as monjas hospitaleiras . . .
e falavas necessariamente
como o mineiro busca a saída na mina quando ruiu a galeria) .
1 97 1
1 47
Gerações:
As mudanças do mundo
1 49
ções e conexões. Que acontece então? Quando - e onde -
se produzem as mudanças geracionais, as mudanças " do mundo " ?
1 50
parte dos estímulos eram internos; os exteriores eram muito
poucos e além disso tardios, quer dizer, chegavam muito depois
de se haverem originado, " frios " , se vale a expressão, com pouca
força de impacto. Em outras palavras, as sociedades eram mol
dadas principalmente em sua interioridade.
A situação atual é inteiramente distinta . Embora as na
ções continuem possuindo uma personalidade forte, as socie
dades sejam plenamente saturadas e, o que é grave, permaneçam
em grande parte " fechadas " e com uma ignorância tremenda em
relação às demais, não é menos certo que seus contatos são fre
qüentíssimos , que o que acontece em uma afeta a muitas outras ,
que os problemas mais variados ultrapassam as fronteiras na
cionais, que se recebem em cada país , todos os dias, estímulos
exteriores incontáveis, imediatos e com eficácia total .
A verdade é que , deste ponto de vista , o mundo atual não
se apresenta com muita clareza. As sociedades nacionais, que
acabamos de ter como fechadas, que se desconhecem profunda
mente entre si, revelam-se ao mesmo tempo como abertas e ex
postas a todos os ventos , bombardeadas sem cessar por agentes
que vêm do exterior, a ponto da intimidade e personalidade
de cada uma se tornar problemática. Não é fácil saber a que
se ater.
Eu sugeriria uma interpretação . As nações continuam iso
ladas, fechadas , incomunicadas umas em relação a outras. O
que cada uma realmente é, em sua profundidade - em seu
mistério, porque todo país é misterioso -, permanece oculto
para as demais, que não penetram nessa singular " intimidade
coletiva " nem, a rigor, por ela se interessam . A " abertura " evi
dente dos países não é " aos outros " e sim " ao mundo " (ao
mundo em que uns e outros estão) . Há uma porção de conteú
dos que não são franceses, nem espanhóis, italianos, argentinos,
mexicanos, norte-americanos ou australianos, mas " ocidentais " ;
e alguns que não são nenhuma dessas coisas , nem russos , chine
ses ou africanos, e sim " de 1 974 " sem mais restrição .
Permanecendo, pois, o isolamento, a clausura , a incomuni
cabilidade dos países, haveria, todavia, um mundo no qual estão ,
algo que seria lícito chamar um " mundo ambiente " num sentido
análogo àquele em que se fala de " meio ambiente " . (A diferença
está em que " meio " é um conceito biológico, " mundo " um
conceito humano, histórico-social . o homem como tal não está
num meio, vive num mundo, uma de cujas dimensões abstratas
é o meio.)
Nesse " mundo ambiente " vivemos tanto quanto em nos
sos países . Nossa ótica muda de uma perspectiva a outra. Às ve-
1 51
zes atendemos só ao mundo , deixando esquecidas as zonas d e
nossa v i d a q u e permanecem i ntactas e ocultas, n a matriz de
nossa sociedade particular ; outras vezes nos atemos a esta, pen
samos só n el a , esquecendo que está no mundo e que seu destino
terá que depender de seu conjunto . Paradoxalmen t e , quando os
espanhóis se ocupam de política - quero dizer de falar de polí
tica -, esquecem o resto do mundo e só têm olhos para a
real idade i ntra-espanhola , apesar de que a dimensão política d a
vida é a mais condicionada p e l o " mundo ambiente " , s e m o qual
nada é i n teligível - nem, naturalmente , v iável .
Voltemos porém às gerações . As mudanças " do mundo " não
podem , hoj e , reduzir-se aos l i m ites de nenhum país , nem sequer
dos maiore s . Afetam ao " âmbito " em que todos estão , onde se
encontram e convivem . É aí que acontecem as mudanças deci
sivas , que - pouco depois - ecoam em cada u m dos países e
os modificam . É muito possível que cada um dos centros de
ressonânci a , i s to é , cada uma das sociedades saturada s , estej a
a uma determinada " distância h i s tórica " do mundo envolvente .
Do mesmo modo que podemos medir a distância a que está u m a
tempestade contando os segundos entre o relâmpago e o trovão ,
poderíamos calcular essa distância h i s tórica observando o inter
valo entre as mudanças do mundo e sua repercussão em cada
uma das sociedades . I sto aj udari a a estabelecer essa " cartografia "
histórico-social com que sonho h á vinte e cinco anos .
1 974
1 52
Gerações :
Augustos e Césares
153
ria dos sobreviventes tinham uma vida diminuída pela velhice e
por achaques. O fato de que sempre tenha havido velhos ativos ,
lúcidos, enérgicos, em pleno vigor, não alterava a situação : eram
indivíduos isolados , " sobreviventes " de uma geração muito di
zimada pela morte e invalidez, que como tal já não estava na
ativa. Cada geração era, poi s , rendida ao cumprir os sessenta
anos, quando deixava de exercer o " poder social " e passava à
reserva.
Este esquema deixou de ser válido. Os homens com mais de
sessenta anos e plenamente ativos são hoje legião . Repassando-se
os nomes signi ficativos, os titulares do poder em todas suas for
mas - político, econômico, técnico, administrativo , intelectual,
artístico - ver-se-á que uma parte enorme corresponde aos que
têm mais - às vezes muito mais - de sessenta anos. Que
acontece com o esquema das gerações ?
1 54
Ao fim de um quarto de século, não resta dúvida : a gera
ção que em outros tempos era uma geração " de saída " , não
" sai " ao completar os sessenta anos e permanece em cena. Que
acontece com as demais? Sobretudo, que ocorre à que chega -
como tal geração - aos quarenta e cinco anos ? Tem realmente
acesso ao poder social ? E es_ta a questão.
1 55
Geração " sobrevivente " , 1 886 (nascidos entre 1 879 e 1 893) .
G eração " augusta " , 1 90 1 (nascidos entre 1 894 e 1 908) .
G eração " cesárea " , 1 9 1 6 (nascidos entre 1 909 e 1 923) .
Geração " ascendente " , 1 93 1 (nascidos entre 1 924 e 1 938) .
G eração " juvenil " , 1 946 (nascidos entre 1 939 e 1 953) .
Mas, se este esquema é válido, dentro de dois anos, em
1 976, cumprir-se-á a " rendição " das gerações . Então, todas gal
garão um posto : entre 1 976 e 1 99 1 , será " augusta " a de 1 9 1 6 ,
" cesárea " a d e 1 93 1 , " ascendente " a d e 1 946, " j uvenil " a de
1 96 1 . A de 1 90 1 será " sobrevivente " , outeiro a testemunhar o
passado imediato, reserva histórica j á fora da arena, e a de
1 886 acabará de transpor a linha além do horizonte histórico .
1 974
1 56
A i nversão do ensaio
1 57
guir os signos ; em suma, são ilegíveis, e suspeito que não sejam
lidas.
E. o que acontece às notas da maioria dos tratados contem
porâneos : não são feitas para serem lidas e sim para serem
" contadas " , computadas, para darem " peso " ao texto, impres
sionar o leitor e garantir ao autor o que se chama status. E.
muito freqüente que os trabalhos citados estejam em línguas que
o autor não lê - ou muito precária e penosamente -; mas
se esses trabalhos existem, como não os citar? Pouco importa
que, como não se pode citar tudo, falte o essencial, o único
que se deveria citar - há muitos anos , em meu artigo " Macha
do e Heidegger " , mostrei como inúmeros trabalhos eruditíssi
mos sobre a relação entre o poeta espanhol e o filósofo alemão
omitiam o único livro necessário , aquele que proporcionara a
Machado s ua informação sobre Heidegger, incluído algum erro
e várias erratas -. É curioso Cft1e nas bibliografias faltem sem
pre trabalhos importantes dedicados ao tema em questão, quando
este tema não aparece em seu título, o que sugere uma familia
ridade maior com os títulos do que com o que há atrás deles.
Há porém um aspecto elementar e quantitativo que não
parece desdenhável. Quanto tempo é necessário para se ler um
livro ou um artigo? Quantos se podem . ler? Supondo que não
se faça outra coisa - nem passear, nem falar com os amigos,
nem contemplar paisagens , visitar cidades ou museus , nem ver
as garotas passarem, nem pensar -, é claro que não se pôde
ler nem a décima parte do que se cita. O que quer dizer que
esses nomes e títulos se tomam em vão, ou seja, em falso .
1 58
Para o escritor é uma questão de honra intel ectual nada escre
ver suscetível de prova , sem possuí-la antes . N ada o impede ,
porém, de apagar em sua obra toda aparência apodítica , deixan
do as comprovações meramente indicadas em elipse , de modo
a encontrá-las quem as necessite, sem sufocar o íntimo calor
com que os pensamentos foram pensados . I nclusive li vros de
intenção exclusivamente científica começam a escrever-se em
estilo menos didático suprimindo-se no possível notas ao pé da
página, e o rígido aparato mecânico da prova dissolve-se em
elocução mais orgânica, animada e pessoal . " < 1 >
" A ciência, menos a prova explícita. " Sim, mas a questão
está em que, se das notas voltamos ao texto dos ensaios atuais,
e nos perguntamos " o que dizem " , qual é sua doutri n a , numa
grande proporção dos casos não a encontramos. Os autores nada
" dizem " , não iluminam a realidade, não nos esclarecem um as
pecto ou uma parcela da mesma. Muitas coisas são menciona
das, faz-se algum enunciado dogmático , não justificado , como
se fosse óbvio, ou de passagem, em seguida precipitam-se as
citações de autores e títulos.
Pergun te-se aos entusiastas dos autores que gozam hoje de
mais apreço e prestígio : que pensam? qual é sua doutri n a ? como
se pode resumir e comunicar sua visão da realidade? O prová
vel é que se receba como resposta o silêncio ou uma catarata
de notas bibliográficas . Isto explica o fato surpreendente - e
quem sabe consolador - de que estes autores desapareçam brus
camente do cenário e sejam esquecidos , no momento cm que
deixem de ser mencionados e citados : nada deixaram atrás de
si, não constavam nas mentes dos leitores, não significavam uma
doutrina ou teoria, mas apenas uma " freqüência de menção " e
nada mai s. Há um mundo da citação que vive em si mesmo, su
jeito a suas próprias normas , e nisso se esgota . E tais autores
se asfixiam no momento em que se deixa de ministrar-lhes a
respiração artificial ; não vivem no mundo, vivem no pulmão de
aço da propaganda.
Mas isto quer dizer a inversão do ensaio. Segundo a expres
são de Ortega , é "a ciência, menos a prova explícita " ; o que
agora circula é "a prova explícita, menos a ciência " .
1 974
1 59
O lugar da literatura
na educação
1 61
apesar da densidade documental, se deve à ausência de ficção,
o que torna difícil entender o que era viver em Toledo ou Se
vilha no século V I , no século VI I . O Romancero , o Teatro clás
sico, a Novela do Século de Ouro, têm sido os instrumentos
mais poderosos para a constituição da Espanha como sociedade,
como Nação, tendo permitido que os espanhóis se reconheçam
e se projetem como realmente são , como espanhóis. O mesmo
poderia ser dito no tocante aos demais grandes povos históricos .
E aqueles que não tiveram uma grande Literatura , nessa mesma
medida não conseguiram ser grandes - entenda-se, humanamen
te grandes , com grandeza humana e fecundidade histórica -.
Sem Literatura , podem-se fundar grandes impérios baseados no
terror e no domínio material, mas não outra coisa ; e sua fuga
cidade acontece ser tão grande quanto sua esterilidade .
Em terceiro lugar, a Literatura é o único meio de projeção
pessoal do homem . A vida humana, uma operação projetiva,
que se faz para frente, futuriça, real mas orientada para o fu
turo, feita de antecipação e imaginação, é " faina poética" -
a expressão é de Ortega -. O homem é , acrescentava ele, " no
velista de si mesmo , original ou plagiário " . Não posso conviver
com os outros sem imaginá-los, sem sobre eles projetar " novelas
de urgência " elementares que os façam inteligíveis para mim,
como também não posso viver sem inventar-me como persona
gem, com um argumento e uma tonalidade - poética ou, pre
ferindo-se , antipoética -. Não se trata de que isto " deva ser
assim " , mas de que é esta a condição mesma da vida, tal como
a descobre a filosofia de nosso tempo (pode ver-se minha Antro
pología metafísica, 2 .ª ed., 1 973) . < 1 > A literatura é instrumento
de humanização, e por isso poder-se-ia fazer uma história em
que se medissem os graus de humanidade pelo desenvolvimento
literário . Não se esqueça que para os gregos a paideía, a " educa
ção " no sentido forte da palavra (próximo à Bildung alemã) ,
era primeiramente o estudo dos poemas homéricos e outras for
mas de ficção, não a filosofia ou as ciências, cuja descoberta
constitui o mérito original da Grécia .
1 62
planeta - cada vez mais, isso me parece evidente -, foi uma
cultura incompleta. Não é esta uma razão para desânimo ; pelo
contrário, é motivo para completá-la, para integrá-la com o que
lhe faltou ou continua lhe faltando . Mas o fato é que sempre
foi uma cultura literária; isto é, os espanhóis fizeram sempre
literatura, sem esmorecimento. I sto implica que não se pode
manter a continuidade e coerência da cultura espanhola a não
ser ao fio da literatura, fazendo desta, se não nossa coluna ver
tebral, nosso sistema nervoso. Na Espanha, a literatura é o órgão
da sensibilidade nacional. Esquecê-la significa a insensibilidade,
a " anestesia " , a atonia - talvez seja o que muitos procuram
- . A perda da Literatura espanhola é a via mais segura de
" alienação " , o caminho de que a Espanha deixe de ser um
povo, para converter-se em uma massa sem memória histórica,
sem uma modulação peculiar diante da vida, sem projetos, ex
posta a toda classe de manipulações.
Mas não é só isso . A Espanha, desde que é uma nação,
já há meio milênio, nunca foi só Espanha, ou talvez melhor,
nunca esteve só. Foi uma Monarquia em dois continentes, uma
nação transnacional e não nacionalista, criadora - melhor ge
radora - de outros povos, não exclusivamente ocidentais, com
os quais fez sua vida histórica (que não foi exclusivamente oci
dental) ; estes povos, ao se ocidentalizarem, em certa medida de
socidentalizaram a Espanha, incorporando-lhe dimensões que ou
tros países europeus não possuem. Existiram " as Espanhas " -
das quais a nossa era só uma -, povos " hispânicos " que não
eram só espanhóis, como os povos " românicos " não eram ex
clusivamente romanos, latinos . Como houve uma România exis
tiu uma Hispânia transatlântica, transcontinental .
Pois bem, o vínculo capital entre estes povos é a língua, a
qual está " realizada " , fixada, unificada numa Literatura. Sem
ela , não somos - nem os espanhóis nem, é claro, os hispano
americanos -. Para estes é questão de vida ou morte histórica
a conexão mútua, e não menos a " espessura histórica " , que lhes
vem de uma tradição literária que arranca do Poema dei Cid
ou das jarchas < 2 > . Sem isto, a que indigência ficaria reduzido
cada país hispânico? E como a projeção histórica da Espanha
ou de qualquer país hispânico só é possível dentro do marco de
seu conjunto, a Literatura é o veículo de nosso futuro .
Finalmente, no momento em que os países do mundo (e al
gumas unidades políticas que não o são) procuram o que se
(2) Pequenos poemas lfrlcos, multo simples , que datam do séc. XI, escritos
primeiramente pelos árabes e depois também pelos judeus da Espanha, e que se
denominavam Muwashshahas, cuja última estrofe devia ser na língua vulgar, o es·
panhol. (N. do T.)
1 63
chama sua ''. identidade " , ao ponto extremo de que o . mundo re
caiu num nacionalismo absolutamente arcaico, corre perigo a
expressão literária da personalidade da Espanha e dos países
·
hispânicos, na qual nós, homens de uma mesma língua, nos
divisamos, nos encontramos e nos reconhecemos . E note-se que
esse tremendo perigo de nacionalismo exclui-se, porque precisa
mente nossa Literatura é inconciliável com todo espírito nacio
nalista.
Radicada numa tradição helênica e, sobretudo, latina, liga
da desde suas origens ao cristianismo, com fortes elementos ger
mânicos em sua épica, é uma Literatura européia, ininteligível
fora dos limites gerais da Europa . E como se isto não bastasse,
recebeu poderosos estímulos judaicos e muçulmanos, organi
zou-se em diálogo fraterno ou polêmico com as culturas orien
tais. Finalmente, associou-se desde o século XVI às culturas
indígenas da América. Nosso D icionário acadêmico contém inú
meros " americanismos " que por um lado são termos das línguas
indígenas originárias e por outra as vicissitudes da língua espa
nhola em sua vida transatlântica.
Se há uma Literatura que não pode ser na'cionalista , é a
espanhola - a menos que deixe de ser literatura para conver
ter-se em qualquer sermão interessado . J;: uma Literatura
-
1 64
nhol, e não só como espanhol mas também como europeu, como
ocidental, como homem simplesmente.
O Bacharelato deve dar a imagem do mundo no qual aque
le que agora é estudante tem que viver. Isto leva, justamente,
a acentuar a importância das disciplinas científicas , que tendem
hoje a ocupar o primeiro plano . Mas é um erro - um erro de
monstrável - crer que o homem vive única ou primeiramente
num mundo físico. O sentido imediato do mundo é o mundo
social, e isto significa um sistema de interpretações históricas,
expressas sobretudo na língua, que é a primeira interpretação
da realidade, à qual todas as demais se acrescentam. Ora, a
língua é inseparável da Literatura, porque a língua já é literá
ria - a literatura é uma das dimensões da língua, e se falta,
trata-se de um estado de privação ou frustração -, e por outro
lado a língua vive literariamente, realiza-se plenamente em for
ma literária, quero dizer que na literatura temos a língua fun
cionando, não na forma abstrata de um dicionário ou de estru
turas morfológica s ou sintáxicas .
A Literatura é condição imprescindível da imagem do mun
do, da posse mental deste, e sua ausência conduz, por muitos
conhecimentos particulares ou técnicos que se acumulem , a uma
forma de primitivismo. I sto não é uma hipótese, e poder-se-iam
indicar inúmeros exemplos em que se patenteia, sob a ciência e
a técnica mais " sofisticadas " , o homem primitivo que perdura
em nossos dias, e precisamente em meios sociais e " culturais "
inconciliáveis com o primitivismo . ·
165
A supressão da Literatura no ensino parece uma tentativa
de suicídio (supondo que aqueles que a propõem se considerem
" dentro " desse âmbito da cultura; se assim não for, teria que
ser vista como uma tentativa de assassinato e esterilização) .
(3) A estrutura social, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1963, p . 77 e ss.
(N. do T.)
1 66
sas - e que massas ; urge precisar quantos - aproximadamente
- são os leitores possíveis em cada momento, e calcular quan
tos deles lêem cada gênero literário ou certas obras representa
tivas. O número dos que sabem ler, o dos que poderiam ler
por ter capacidade de adquirir livros ou ter acesso a eles ; o nú
mero dos que por condição social são leitores; a presença maior
ou menor de mulheres entre eles etc. O número e tiragem das
edições de certas obras, a freqüência de reimpressões, o incre
mento do ritmo de leitura - ou sua diminuição - num período
determinado, o prazo de vigência de cada obra como leitura,
antes de passar a tema de estudo - funções totalmente díspa
res -, são questões de cujo esclarecimento depende o fato lite
rário . E como, salvo pouquíssimas exceções, não estão esclare
cidas, pode-se dizer que a maioria dos fatos literários não são
entendidos e nem é pouco o que falta para isso .
" Por outro lado, é preciso ver com rigor o que a obra
literária , em cada caso, se propõe : ensinar, divertir, doutrinar,
iniciar em um mistério, tornar " culto " , comover, provocar es
tranheza, abêtir; e, em cada caso, como ; e com que outras ati
vidades compartilha sua função respectiva . Por exemplo, com
a narração oral, com o culto religioso, com os espetáculos, com
a ciência, com a política, com a tertúlia ; e concretamente em
que proporção se rivalizam ou se aliam. � urgente medir com
precisão a distância da literatura em relação à vida, os graus
de autenticidade, espontaneidade, originalidade - coisas bem
diversas - que em cada tempo e em cada gênero literário trans
parecem. Relativamente a estes, se faz mister dar a razão dos
mesmos e explicar com rigor seu cultivo ou seu abandono, sua
força em cada momento, a proporção em que predeterminam o
conteúdo da obra literária, seu coeficiente de imprecisão, mar
gem e folga. Deve-se averiguar também o peso e a influência da
literatura na vida, a estratificação dos gêneros literários - e
dos autores - na sociedade, desde as obras destinadas a mino
rias extremas até a literatura de quiosque, cujos característicos
e recursos em cada época deveriam ser objeto de investigação .
" Por último, uma vez chegados à própria obra literária -
e há um longo caminho até ela -, é o momento de se pergun
tar peremptoriamente em que consiste, como alcança seus pro
pósitos, quais são suas possibilidades e recursos , como se serve
da língua e das forma literárias prévias para conseguir sua
finalidade. A análise da obra literária - estilística, é claro,
mas não somente isso - tem que responder a estas pergun
tas . Não basta, por exemplo, estudar o ritmo da versificação,
a estrutura das estrofes, a origem das metáforas empregadas
pelo poeta. � preciso saber de onde ele parte, de que língua-
1 67
gem j á encontrada, de que convenções vigentes, de que " re
gras do jogo " , de que repertório de formas literárias elementa
res que, em cada época, pertencem ao domínio público, bens
comunais da literatura, cujo inventário é indispensável fazer :
provérbios , ou " tópicos " - como na literatura renascentista -,
ou " mitologias " , ou um tom em falsete - 1 790
- , etc. E isto,
relativamente simples em poesia , deve-se estender também aos
demais gêneros, em formas mais complicadas. Em relação ao
teatro, é preciso determinar a parte que representa dentro dele
a " literatura " , junto a outros elementos . E em se tratando de
nossa época, surgem as questões concernentes ao rádio, à tele
visão e ao cinema, não somente no sentido da adaptação das
obras literárias a estes meios e dos problemas que isto suscita,
como também quanto às características destas obras num mundo
em que os autores e os possíveis leitores freqüentam o cinema,
ouvem o rádio e assistem à televisão.
"Do mesmo modo, a literatura só se torna inteligível quan
do se está bem esclarecido acerca de sua importância : a que
tem a literatura - e o escritor - em certa época e a que tem
cada autor ou cada obra determinados . A vontade efetiva de
coinpreender obriga, pois, a apelar dos fenômenos aparentes a
seus pressupostos latentes; dentro de uma época concreta, antes
de chegar àquilo que hoje se costuma fazer - exame de autores
e obras existentes - dever-se-ia formular as questões prévias
antes enumeradas e outras mais : por exemplo, o que pode o
escritor fazer em cada caso, o que pretende conseguir - único
modo de saber o que quer dizer, concretamente, êxito ou fra
casso -, quais são os gêneros vigentes e em que fase de vigên
cia se encontram, qual é a função real de cada um deles, que
componente de inovação a produção literária possui - e em
que medida, por razões sociais , se sublinha e mesmo se simula
a inovação ou então se dissimula e se oculta -, em que medida
há um estilo dominante ou não , quais são as relações efetivas -
em autores e leitores - com literaturas antigas ou modernas
estrangeiras, e que papel desempenham (função uterina, imita
ção, rivalidade, estímulo etc.) ; quanto do passado literário na
cional sobrevive e em que grau de vitalidade ; como é sentido :
como um lastro, um motivo de orgulho, um capital que garante
uma renda, um grilhão ou um vexame ; a que ponto pode a
literatura ser - ou deve ser - desagradável ou aborrecida,
ou se isto não é lícito. E outras inúmeras coisas que se pode
riam enumerar e ordenar com igual precisão. "
Esta longa citação, que s e refere precisamente a o " problema
dos pressupostos " , responde à pergunta com a máxima coo-
1 68
cisão. Só desejo esclarecer o que , ademais, j á está suficientemen
te claro : que a mera erudição não conduz à literatura (embora
sem ela não possa fazer-se sua história) , que a consideração da
realidade social da literatura é essencial, mas que não se trata
de fazer " sociologia da literatura " e sim teoria e história dela;
que um estudo, por exaustivo que se imagine , das " fontes " fica
fora da obra literária como tal, porque em última análise o que
interessa é o que o autor faz com essas fontes. Será pondo a des
coberto a filiação de cada expressão e de cada " idéia" de La
Celestina que resplandecerá a originalidade de Fernando de Ro
jas, porque antes dele não existia nada remotamente parecido
à sua Tragicomédia. E é esta a razão de que nos interessemos
pela Literatura e a estudemos : seu valor como tal, primeiramen�
te estético ; por isso nos esforçamos por indagar sua estrutura,
suas origens, seus condicionamentos, suas conseqüências .
1 69
pequena, que não se vê " (mas que se devora) , principalmente
referências literárias e copiosas citações, selecionadas acertada
mente, de textos literários de todos os tempos, verdadeiras vita
minas literárias que vivificavam os manuais de história e geo
grafia. E incrível como aumentavam sua inteligibilidade, como
estabeleciam conexões entre os dados , como animavam o con
junto, como introduziam - isto sobretudo - a imaginação, e
permitiam entender o que era a vida das épocas historiadas , nos
países descritos.
Sempre acreditei que só haverá verdadeiramente história
quando os historiadores introduzirem em seus livros tudo o
que a novela histórica tem de conhecimento - que é muito -,
sem se limitarem, naturalmente, a isso; do mesmo modo que
me empenhei em que entrasse em meus livros filosóficos mais
formais e rigorosos o que a razão - razão vital, razão narra
tiva - tem de novela. Um livro de filosofia tem que ser mais
que uma novela, mas nunca menos, não lhe pode faltar aquilo
que a novela dá. O mesmo se poderia dizer de todas as disci
plinas humanas . Todas são históricas - todas, até as mais estri
tamente teóricas -, porque o homem o é. No capítulo 1 de
meu livro já citado, A estrutura social, mostrava com insistência
a " inseparabilidade de sociologia e história " , explicava como as
estruturas sociais estão " definidas por tensões e movimentos " ,
que toda situação e toda estrutura são " intrinsecamente histó
ricas " . A situação é o " nó " em que se atam os " longos " fios
que vêm de longe e afastam-se rumo a um futuro ; os fios se
atam, mas não terminam ; por isso as situações têm um " desen
lace " , solução - quer dizer, desate , desfecho do drama que é
a vida humana - À índole dramática da vida e da história cor
.
I ndiana University
Bloomington , Indiana,
outubro de 1 973 .
1 70
Shakespeare :
O homem como real idade dramática
1 71
explicação não pode ser encontrada nos temas, porque muitas
vezes são eles triviais ou indiferentes , e além disso Shakespeare
os tomava de qualquer lugar: da história inglesa , da história
romana, da tradição helênica, de obscuras novelas italianas . Não
se trata também, exclusiva nem mesmo primeiramente, dos " mi
tos " , das grandes personagens inesgotáveis que se erguem diante
de nós para sempre : Hamlet, Julieta, Macbeth, Otelo . . . Não.
São igualmente dramáticas todas as criaturas shakespearianas ,
as figuras menores e esquecidas . No momento em que começam
a falar, sentimos que estamos assistindo - é esta a palavra
- não ao drama que se desenvolve na cena, mas sim ao drama
do homem, ao drama que é o homem. Eu diria que ao penetrar
no mundo de Shakespeare se tem a mesma impressão que ao
entrar num bosque : todas as palavras estremecem e vibram como
folhas agitadas pelo vento.
1 72
Calderón ·havia dito que " a vida é sonho " ; mas havia acres
centado, com maior profundidade , que " o sonhar, só, é o bas
tante" . Ouevedo havia expressado como ninguém a temporali
dade da vida :
1 73
ventura e aventura, em forma primordialmente narrativa e não
cênica, possibilitam a Cervantes uma apresentação maravilhosa
do dramático no homem, no que aqui não me posso deter (veja
se meu estudo " El espafí.ol Cervantes y la Espafia cervantina " ,
em La imagen de la vida humana, E l Alción, Revista de Occi
dente, Madrid, 1 970) .
As personagens de Shakespeare são pessoas, projetos de vida
que lutam por ser alguém, um quem único e inconfundível . Uma
irredutível pretensão pessoal palpita mesmo nas personagens
secundárias e menores, ou naquelas tomadas à história ou a
outras fábulas pretéritas e que não são criação de Shakespeare .
Ninguém é um uomo qualunque, porque para seu autor, desde
o momento em que pisa a cena, é sempre " alguém '' , um eu que
pesa sabre o tablado com a gravidade de seu ser real.
Sentimos que ali estão presentes, em corpo e alma, e isto
quer dizer com sua vida inteira, distinta de qualquer outra,
com uma mesmidade intrinsecamente dramática . Não há " coi
sas " num cenário de Shakespeare ; também não há " tipos " ou
figuras esquemáticas ; não há " costumes " ; não há " símbolos " :
há homens e mulheres , vidas humanas que se fazem ante os
olhos do espectador.
1 74
gens estejam de algum modo " aqui " , para que possamos assistir
à sua vida - isso que o novelista medíocre não consegue fazer
mediante a narração.
A situação do autor teatral é diferente, como estudei há
algum tempo em La imagen de la vida humana. Está ele preso
a um cenário, ao que acontece ali, diante dos olhos do especta
dor, ao que se pode ver; dispõe, no entanto, da presença dos
atores, de seu corpo e de seu rosto, de sua voz e seus movi
mentos . Não pode mudar de perspectiva a seu bel-prazer; não
pode juntar no cenário o que está junto na vida mas distante
no espaço. Não conta senão com palavras como " excipiente da
ação " , e se nos ativermos à obra escrita - não representada -
não restam senão palavras ; palavras que - repito - não são
do autor e sim das personagens, não " livres " , mas ligadas a
uma situação.
Isto dá uma significação particular à palavra dramática, à
palavra do teatro, que se mostra especialmente relevante no ca
so de Shakespeare . O bom teatro , é evidente, não é para ler;
quando uma obra teatral é lida " perfeitamente " , é que não é
de todo perfeita. O drama pede sua representação, como as .
almas desencarnadas clamam pelo corpo . O texto é só um ele
mento da realidade dramática - um elemento que pode ser
secundário -. O teatro espanhol do Século de Ouro é o exem
plo mais claro da insuficiência da obra dramática como texto
literário : quando o vemos representado, por pouco que seja o
talento com que se o faça, descobrimos uma realidade que o
texto mal permitia adivinhar .
E Shakespeare? A situação é paradoxal . Num sentido, é
o teatro por excelência , que reclama a cena; mas por outro
lado, a leitura de Shakespeare suscita a representação como
nenhuma outra leitura dramática o faz, leva-nos a imaginá-la; e,
como se isto não bastasse, quando o vemos levado à cena -
e até no cinema ! -, em certo sentido o estamos " lendo " , quero
dizer, nos detemos literariamente em suas palavras . São, é cla
ro, excipientes da ação, mas não só isso : por elas somos chama
dos, retidos , seduzidos e levados a querê-las por elas mesmas .
Dir-se-á que o mesmo acontece com os versos barrocos de
Calderón, com os " ovillejos " , com os versos plurimembres e
poemas correlativos, com os malabarismos acrobáticos, com os
alexandrinos puríssimos de Racine . Creio que não, que é dife
rente . Os versos de Calderón " nos distraem daquilo que dizem " ;
deixam-nos " suspensos " , mas porque neles se suspende a ação.
Ficamos pasmos, extasiados, contemplando o prodigioso espe
táculo, e momentaneamente nos distraímos da ação. No caso de
1 75
Racine, por motivos opostos, interessa-nos o " discurso poético " ,
a fluência d e conceitos servidos docilmente pela palavra medi
da. Em Shakespeare essa palavra que nos seduz e extasia não
é diferente da ação : esta nela se realiza. Quero dizer que isso
que acontece (o argumento ou substância da comédia ou tra
gédia) é com essas palavras, realiza-se nelas e com elas, está
sendo literariamente interpretado. J! um caso em que a ação
e sua interpretação coincidem inseparavelmente.
Venho falando, há vinte anos, da " qualidade de página"
que possuem alguns autores - e outros, embora grandes, não a
possuem -, e que consiste na intensidade que cada uma delas
tem , com independência do valor da obra em seu conjunto. E
afirmei que essa qualidade estriba em que é o autor mesmo
quem fala, não " a gente " ; quero dizer que é o autor que diz
tudo quanto escreve, sem apoiar-se nas formas recebidas, nas
-frases feitas, nos recursos tópicos do dizer.
Quando um escritor com qualidade de página escreve algo,
o faz a partir de si mesmo, não a partir de um repertório impes
soal de fórmulas, e simplesmente pondo a mão sobre as linhas
impressas de seus escritos podemos sentir o pulsar de seu cora
ção. Pois bem, Shakespeare é um máximo de "qualidade de pá
gina ". A rigor, cada frase de uma personagem sua brota de
um propósito expressivo único , inconfundível ; reconhecemos a
maneira shakespeariana linha a linha, e sob ela a personalidade
irredutível da personagem que está falando. Ninguém, que não
fosse Shakespeare, poderia dizer isso - pensamos . E pen
-
1 76
Mas creio que isto ainda não basta. Se atentarmos para os
" heróis " de Shakespeare, a coisa não é tão extraordinária - e
emprego a palavra herói em seu sentido mais rigoroso -. O
herói é sempre aquele que quer ser ele mesmo . J! o homem -
ou a mulher - que vive a partir de sua autenticidade. Ser herói
é ser alguém irredutível a outro, único, irrepetível. Poderíamos
dizer que ser herói é viver como falam as personagens de Sha
kespeare. A grandeza da arte literária deste autor consiste em
que lhes permite falar como lhes compete . Mas, numa ou nou
tra medida, é isto o que acontece aos heróis de todas as grandes
obras literárias : Segismundo ou Melibea ou D. Quixote ou Faus
to ou Julien Sorel ou o César de The Ides of March. O origi
nal em Shakespea re está em que isso ocorre a todas as suas
personagens, até às mais ínfimas.
Enquanto os criados e " graciosos " do teatro clássico espa
nhol falam com " frases feitas " , tópicos, refrãos, isto é, a partir
de " como a gente fala " , os porteiros, soldados, guardas, mulhe
rinhas de Shakespeare falam a partir de si mesmos, cada um
de dentro de sua própria condição pessoal . I sto não afeta o
coloquialismo ou o nível social ou registro da linguagem ; mas
acrescenta-se a isto a marca individual pela qual o que foi dito
por aquela ínfima criatura, que não mais aparecerá em cena ,
foi dito por ela e por mais ninguém .
Nada é permutável . Nada é indiferente. Por isso, em Sha
kespeare, tem-se essa dupla impressão paradoxal da arte supe
rior : a liberdade e a necessidade . Antes de ser escrita, antes de
ser lida por nós, nenhuma linha é previsível ; uma vez pronun
ciada, parece-nos necessária, imutável : dessa maneira tinham
que falar o porteiro de Macbeth, a ama de Julieta, os soldados
de Hamlet. Não o podíamos antecipar, mas não concebemos
que pudesse ser de outro modo .
Em outras palavras, em Shakespeare nada é inerte. Assim
é que não se o pode ouvir - nem ler - resvalando sobre as
palavras. As " zonas mortas " que encontramos nos quadros dos
grandes pintores, nas páginas de escritores geniais , nele não
existem. J! como se, nele, a faina de escrever nunca houvesse
sido mecânica . J! rigorosamente criação, isto é, inovação . Tudo
o que ele diz vai nascendo.
J! a língua de Shakespeare, o que nos prende e enfeitiça ; é
sua maneira de dizer, o que nos transporta como uma fresca
aragem de realidade. Sua maneira de usar a língua inglesa é
vivê-la, experimentá-la, jogar com ela, esgrimi-la como uma espa
da - ou como a lança de seu nome -; nunca é um instrumento
congelado, fixo , carregado de peso . Não há crosta nem córtex,
1 77
mas membros palpitantes - como a Dafne de Garcilaso -.
Diríamos que o inglês , em suas mãos, está sempre em estado
nascente, está sendo inventado . E isso - inventar o dizer den
tro do uso que é uma língua -, isso é escrever.
Podemos ler ao acaso uma cena qualquer de um drama
seu, de uma comédia, de uma peça histórica que não conhece
mos e cuja trama se nos escapa, e surpreendemos a vida ani
mando cada página. Creio que a genialidade máxima de Sha
kespeare estriba nisto : na recriação a partir de si mesmo de
tudo quanto pode dizer um homem ou uma mulher.
O que as palavras traduzem é , sobretudo, uma determina
da têmpera vital . Antonio Machado, referindo-se às canções que
as crianças cantam nas cirandas , escreveu estes dois versos de
finitivos :
confusa la historia
y clara la pena.
1 78
migrar para seu mundo, para as incontáveis e sempre diferentes
criaturas que gerou . Umas poucas palavras escolhidas, alguns
acentos distribuídos pela frase com instinto infalível, reprodu
zem para nossos ouvidos o estremecer de uma vida
I ndiana University
Bloomington , Indiana,
1 6 de setembro de 1 972.
1 79
D A G - LT D A .
IMPR I M I U
01000 S ã o Paulo , SP
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