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Santo Agostinho
1º edição — julho de 2019 — CEDET
Título original: De musica – Traité de la musique.
edição Guérin de 1864, Thénard e Citoleux.
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CEDET LLC
1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761
Phone Number: (407) 745-1558
e-mail: cedetusa@cedet.com.br
Editor:
Nelson Dias Corrêa
Tradução:
Felipe Lesage
Revisão ortográ ca:
Juliana Amato
Preparação de texto:
Letícia de Paula
Diagramação:
Virgínia Morais
Capa:
Mariana Kunii
Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
ECCLESIAE — www.ecclesiae.com.br
ISBN: 978–85–8491–129-5
I. Título. II. Autor.
1. Filoso a. 2. Cristianismo.
1. Filoso a — 100
2. Cristianismo — 230
Sumário
Sobre a música
I. A arte de determinar a justa duração dos sons depende da
música, e não da gramática
Mestre: Qual é o pé métrico formado pela palavra mŏdŭs?
Aluno: Um pirríquio.
M: Quantos tempos ele possui?
A: Dois.
M: E qual é o pé da palavra bŏnŭs?
A: O mesmo que da palavra mŏdŭs.
M: Mŏdŭs é portanto absolutamente idêntico a bŏnŭs?
A: Não.
M: E por que você me disse que essas duas palavras são iguais?
A: Elas são iguais quanto ao som, mas diferem quanto à signi cação.
M: Então você a rma que nós ouvimos o mesmo som ao pronunciar
mŏdŭs e ao pronunciar bŏnŭs?
A: O som produzido pelas letras é, sem dúvida, diferente, mas em
todos os outros aspectos elas são idênticas.
M: Pois bem, quando nós pronunciamos o verbo pō nĕ e o advérbio
pŏnē, não é verdade que existe, além da diferença de signi cado,
também uma nuance no som?
A: Há uma nuance muito clara.
M: E de onde vem isso, já que as duas palavras se compõem das
mesmas letras e dos mesmos tempos?
A: Do acento, que em cada caso está em um lugar diferente.
M: Qual é a arte que ensina a fazer todas essas distinções?
A: Em geral vejo os gramáticos se dedicarem a essa atividade, e foi
na escola deles que eu a aprendi; mas não sei se essas regras são da
ordem da gramática ou se foram tomadas emprestadas de alguma
outra arte.
M: Veremos isso daqui a pouco. Por ora, diga-me se, ao me ouvir
bater um tambor ou pinçar uma corda duas vezes com a mesma
velocidade com que eu pronunciaria bŏnŭs e mŏdŭs, se ao ouvir isso
você reconhece nesses sons o mesmo tempo?
A: Seguramente.
M: E você me diria que se trata de um pé pirríquio, sim?
A: Sim.
M: E qual mestre, senão o gramático, lhe ensinou o nome desse pé?
A: É verdade…
M: Assim, é o gramático que deve apreciar todos os sons desse tipo;
ou, melhor, ao perceber por si próprio a idéia dessas medidas do
tempo, não é verdade que você tomou emprestado ao gramático um
termo para designá-los?
A: Você tem razão.
M: E esse termo, que a gramática lhe ensinou, você não hesitou em
aplicá-lo a um objeto que, segundo você mesmo, não é próprio ao
campo da gramática, não é?
A: Estou convencido de que demos um nome ao pé unicamente para
marcar a medida dos tempos. Mas por que eu não poderia empregar
esse termo para designar uma medida similar a cada vez que a
encontrasse? Admitamos mesmo que fosse preciso empregar, para
designar sons que tenham a mesma medida, um termo diferente e
estrangeiro à gramática, por que me preocupar com as palavras
quando as coisas têm, para mim, um sentido claro?
M: Não é assim que eu vejo a coisa; no entanto, como existem nos
sons — você bem vê — um número enorme de nuances, e como
estamos de acordo que é possível reconhecer neles certas medidas que
não são da alçada da gramática, você não acha que existe uma outra
arte que abarcaria tudo o que diz respeito ao número e à harmonia
nas palavras?
A: Isso me parece provável.
M: E que arte é essa, na sua opinião? Você certamente não ignora
que se concede às Musas uma espécie de soberania sobre o canto; e é
isso, me parece, que costumam chamar de música.
A: Também acredito.
II. De nição da música e da modulação
M: Não queremos que nossa discussão gire em torno unicamente das
palavras — proponho que voltemos toda a nossa atenção a pesquisar
qual é a natureza e essência dessa arte, seja ela qual for.
A: Examinemos essa questão, pois desejo sinceramente aprender até
onde vão os domínios dessa arte.
M: De na, então, o que é a música.
A: Eu não conseguiria…
M: Você poderia, pelo menos, avaliar se minha própria de nição
está correta?
A: Tentarei, quando você a tiver formulado.
M: A música é uma ciência que ensina a bem modular. Você
concorda?
A: Talvez, se eu puder ver com clareza em quê consiste a modulação.
M: Você nunca ouviu essa palavra? Nunca a ouviu associada ao
canto e à dança?
A: É isso mesmo; mas como percebo que modular1 vem de modus,
justa medida, e que há uma medida a ser preservada em tudo aquilo
que se faz de bom, e que ao mesmo tempo no canto e na dança existe
uma in nidade de coisas baixas — ainda que atraentes… —, gostaria
de compreender perfeitamente o quê você entende por modulação:
pois essa palavra parece conter, por si só, a de nição quase que inteira
de uma arte tão vasta quanto a música, e não se trata, aqui, de
aprender os segredos dos cantores e dos histriões.
M: Você acaba de dizer que, mesmo fora da música, é preciso
guardar em nossas ações uma certa medida, e que ainda assim o termo
modulação integra a de nição de música; não se espante com isso.
Você ignora, por exemplo, que a fala, a palavra é considerada
“privilégio e dom do orador”?
A: Eu bem sei, mas por que essa questão?
M: Eis o porquê: quando um seu criado, grosseiro e ignorante que é,
responde com uma palavra ao pedido que você lhe faz, você concorda
que ele está falando?
A: Concordo.
M: E ele é, por conta disso, um orador?
A: É certo que não.
M: Ele, portanto, não operou as artes da palavra ao pronunciar
essas poucas palavras, ainda que tenha falado.
A: Concordo… Mas, uma vez mais, aonde você quer chegar com
isso?
M: Quero fazê-lo entender que é possível ao termo modulação
pertencer à música unicamente, ainda que a palavra modus que a
constitui possa se aplicar a outros objetos. Assim, o dom da palavra é
atribuído exclusivamente aos oradores, ainda que ninguém se exprima
sem falar, e que todos falem com palavras.
A: Agora entendi.
M: Quanto à observação que você fez em seguida, que há nos cantos
e nas danças grosserias que não podem ser chamadas de modulação
sem degradar essa arte quase divina, ela é perfeitamente justa.
Vejamos, pois, primeiramente, o que é preciso entender por
modulação; em seguida, por bem modular, pois não é sem razão que a
palavra “bem” foi acrescentada à de nição. Quanto à palavra ciência,
não se pode, tampouco, deixá-la passar levianamente; eis os três
termos, se não me engano, que compõem a de nição.
A: De acordo.
M: Concordamos que modulação deriva de modus. Será que
podemos nos restringir aos excessos ou faltas de medida unicamente
nos objetos em movimento? Ou é preciso veri car, também quando há
ausência de movimento, se a medida é respeitada?
A: Desnecessário, neste segundo caso.
M: Assim, podemos de nir a modulação como a arte nos
movimentos, ou pelo menos a arte de executar movimentos regulares.
Pois seria-nos impossível dizer que um objeto obedece a um
movimento regular se ele não preservasse certa medida.
A: Sem dúvida, seria impossível. Mas então será preciso
compreender sob o termo de modulação tudo aquilo que será bem
feito. Pois, sem movimento regular, nada pode ser bem executado.
M: E se todos esses atos se realizassem segundo as leis da música,
ainda que o termo modulação seja, com razão, mais comumente
empregado em alusão aos instrumentos musicais? Você é capaz de
distinguir, suponho, uma obra feita em madeira de outra feita em
prata, ou de qualquer outra matéria, do movimento que o operário
executa para realizá-la.
A: A diferença é profunda, de fato.
M: E o operário realiza esse movimento para si próprio? Ou para o
objeto, com vistas a sua realização?
A: Em vista do objeto, obviamente.
M: Pois bem, se alguém move seu corpo com a simples nalidade de
movê-lo com graça e elegância, nós dizemos que ele dança, sim?
A: Sim.
M: Em qual caso, pois, lhe parece que uma determinada coisa é
superior, atingindo, por assim dizer, seu grau máximo: quando a
buscamos em virtude dela própria, ou com outro objetivo além dela
mesma?
A: É claro que é quando nós a buscamos em virtude dela própria.
M: Lembre-se, pois, da de nição que havíamos dado à modulação.
Havíamos estabelecido que ela era somente a arte nos movimentos;
vejamos, agora, a que tipos de movimentos essa de nição se aplica;
seria àqueles que são por assim dizer independentes — quero dizer,
que buscamos por si sós, e que têm neles próprios a virtude de
agradar, ou então àqueles que têm um “não-sei-quê” de servil? Pois
tudo aquilo que não pertence a si próprio e serve a uma nalidade que
lhe é estranha reduz-se a uma espécie de servidão.
A: Está claro que a de nição se aplica àqueles que buscamos por si
sós.
M: É, portanto, provável que a ciência da modulação consista em
bem ordenar os movimentos, tornando-os capazes de despertar o
interesse e, por conseguinte, agradar por conta de suas próprias
qualidades.
A: É bem provável.
III. Que é que se entende por bem modular e por que esse
termo é necessário à de nição?
M: Por que acrescentamos a palavra bem, já que a modulação supõe
necessariamente um movimento bem ordenado?
A: Não sei, e ignoro como essa questão me escapou, pois contava
colocá-la.
M: Nós poderíamos tê-la suprimido, essa palavra, e de nir a música
como a ciência que ensina a modular.
A: Seria cansativo tentar explicar todos os termos com tamanha
minúcia.
M: A música é a ciência dos movimentos bem ordenados. Sem
dúvida, pode-se dizer que os movimentos são regulares quando
observamos com arte as medidas do tempo e de repouso: pois é nesse
caso que eles agradam, e podemos sem dúvida chamá-los de
modulações; mas não será possível também que essas cadências e
medidas agradem estando em contratempo; que uma voz sedutora e
uma dança graciosa busquem provocar uma excitação excessiva,
quando a circunstância exige gravidade? Nesse caso estaríamos
abusando de uma modulação perfeita, ou, em outros termos, de um
movimento que era excelente em sua medida, fazendo mau uso dele,
pois o aplicamos inconvenientemente. Existe, pois, uma diferença
profunda entre modular e bem modular. Podemos encontrar
modulação em todos os cantores, conquanto eles não se enganam na
medida natural das letras e dos sons: mas a boa modulação só
pertence a essa arte liberal a que chamamos música. O mesmo
movimento pode não nos parecer bom, quando se apresenta num
contexto inconveniente, ainda que pareça estar em conformidade com
as leis da cadência. Retenhamos, agora e sempre, nosso princípio:
evitemos nos perder em meio às palavras quando a coisa é clara, e não
nos preocupemos mais em saber se a música é a ciência da modulação
ou das belas modulações.
A: Deixemos de lado essas querelas sobre as palavras, as quais eu
desprezo. No entanto, essa distinção em nada me desagrada.
IV. Por que é necessário que o termo ciência componha a
de nição de música?
M: Só nos falta examinar por que a palavra ciência entra nessa
de nição.
A: Sim, pois lembro-me que a ordem da discussão assim o exigia.
M: Pois bem: você concorda quando eu digo que o rouxinol domina
muito bem as modulações de sua voz quando chega a primavera? Seu
canto é cheio de harmonia e charme; e, ademais, corrija-me se eu
estiver errado, ele está em perfeita conformidade com o contexto, com
a estação do ano?2
A: Concordo.
M: Pode-se concluir, daí, que ele conheça as regras de nossa arte?
A: Não.
M: Vê, portanto, que a palavra ciência é necessária à nossa
de nição?
A: Vejo muito bem.
M: Diga-me, por favor: não lhe parece que todos aqueles que,
guiados por uma espécie de instinto, cantam bem – ou seja, com
medida e com graça – mas não sabem o que responder se lhes
colocamos uma questão sobre a harmonia, as escalas graves e
agudas… não lhe parece que esses cantores são um pouco como os
rouxinóis?
A: Eles não passam de rouxinóis!
M: E como quali car aqueles que se comprazem ao ouvi-los, sem
nenhuma ciência? Vemos, na natureza, elefantes, ursos e outros
animais executarem movimentos cadenciados, seguindo ordens dadas
pela voz humana, e os próprios pássaros se maravilham com seus
próprios cantos, e sem dúvida não os ostentariam com tanto ardor se
não obedecessem, não aos cálculos do interesse, mas ao atrativo do
prazer. Se é assim, não poderíamos comparar essa gente aos animais?
A: Concordo; mas eis aí uma crítica que se dirige à maioria dos
homens…
M: Eu não iria assim tão longe. Homens eminentes, ignorantes de
música, podem se comprazer em partilhar dos mesmos gostos do
povo, os quais em nada se elevam para além daqueles dos animais, e
teremos nisso um traço de moderação e prudência; ou então eles vão
ouvir esse tipo de música para se desafogar de suas ocupações mui
rigorosas e buscar com discrição um prazer que os entretenha. Mas, se
por um lado é razoável, vez ou outra, permitir-se tal prazer, é
vergonhoso e degradante deixar-se levar por ele, ainda que
esporadicamente. Mas não é o momento de discutirmos essa
questão… Não lhe parece que os tocadores de auta, de cítara ou
qualquer outro instrumento não passam de rouxinóis?
A: Não exatamente.
M: Em quê eles diferem dos rouxinóis?
A: No fato de existir, a meu ver, uma certa arte na execução do
músico, enquanto que o rouxinol é guiado unicamente pela natureza.
M: Você tem certa razão no que diz; mas será preciso adornar com o
nome de arte algo que, neles, não passa de um efeito da imitação?
A: E por que não? Com efeito a imitação exerce um papel tão
importante nas artes que uma parece se confundir na outra. Os
mestres se dão em modelo ao discípulo, e é isso que eles chamam de
ensino.
M: A arte, sem dúvida, é a seu ver uma realidade racional, e
proceder com arte é proceder com razão. Não é essa sua opinião?
A: Sim.
M: Por conseguinte, sem razão, não há arte.
A: Também concordo nesse ponto.
M: Você crê que os animais, que não falam e nem dispõem da razão,
como se diz, sejam capazes de proceder com razão?
A: De modo algum.
M: Você reconhecerá portanto que os papagaios, periquitos e corvos
são animais racionais, ou então que você foi leviano ao dar o nome de
arte à imitação. Sabemos, com efeito, que os pássaros aprendem pelo
mesmo método que os homens a produzir certos cantos, certos sons, e
que eles só conseguem chegar a esses resultados pela imitação. Você
concorda?
A: Não consigo ver com clareza a conseqüência do seu raciocínio,
nem o que ele poderia conter de relevante contra minha resposta.
M: Eu havia lhe perguntado se os tocadores de cítara, de auta e
outros de pro ssão similar possuíam a arte musical, ainda que os
efeitos por eles produzidos em seus instrumentos fossem unicamente
frutos da imitação. Você me respondeu que eles possuem a arte; e
acrescentou que isso é verdadeiro porque arte e imitação chegam até a
se confundir uma na outra. Podemos, pois, concluir das suas palavras
que se procede com arte quando se atinge um m por meio da
imitação, ainda que a arte em si não se deva à imitação. Ora, se a
imitação confunde-se com a arte, e a arte com a razão, imitação e
razão também se identi cam; mas o animal, desprovido de razão, não
pode proceder racionalmente; concluo portanto que ele não possui
arte, e, como é capaz de imitar, a arte não pode se confundir com a
imitação.
A: Eu a rmei que as artes se servem, em geral, da imitação — não
disse que a arte é pura imitação.
M: Pois bem, as artes que se servem da imitação não se servem
também da razão?
A: A meu ver elas se vinculam a esses dois princípios.
M: Entendo o que você quer dizer, mas e a ciência, sobre qual
princípio repousa? Sobre a imitação ou a razão?
A: Sobre ambos.
M: Assim, você atribui aos pássaros a faculdade da ciência, já que
não lhes recusa o dom da imitação.
A: De forma alguma. Pois a rmei que a ciência dependia da imitação
e da razão, e não unicamente da imitação.
M: Vejamos, pois. Parece-lhe que ela possa se servir unicamente da
razão?
A: Talvez.
M: Assim, pois, você distingue a arte da ciência; pois a ciência,
segundo o que você diz, pode depender unicamente da razão,
enquanto que a razão se une à imitação pela arte.
A: Não sei se essa conclusão é precisa, pois não disse que todas as
artes, mas que uma grande quantidade de artes se servem a um só
tempo da razão e da imitação.
M: Como?! Você chamará de ciência aquilo que depende desses dois
princípios ou reservará esse nome àquilo que só se serve da razão?
A: E por que não chamar de ciência a união entre razão e imitação?
M: Já que tocamos no tema dos tocadores de cítara e de auta, diga-
me: não seria preciso atribuir ao corpo, ou, em outras palavras, a uma
docilidade dos órgãos, os efeitos que essa gente produz por incitação?
A: A meu ver essa docilidade toca a alma e o corpo juntos. No
entanto, você empregou com perfeita justiça o termo docilidade: os
órgãos, com efeito, só devem obedecer à alma.
M: Posso ver toda a precaução que você toma para não associar a
faculdade de imitação exclusivamente ao corpo. Mas você negaria,
contudo, que a ciência seja um privilégio da alma?
A: Como negá-lo?
M: Você não pode, pois, de modo algum, remeter à imitação e à
razão a ciência que ensina a fazer vibrar as cordas e ressoar as autas;
pois essa imitação, como você reconheceu, não pode existir sem o
corpo, enquanto que a ciência só procede da alma.
A: Assumo que seja essa a conseqüência do que eu havia a rmado,
mas o que importa? O autista utilizará a ciência que ele traz em sua
alma. A imitação, sem dúvida, não pode existir independentemente do
corpo, mas, ao se associar à ciência, ela não faz desaparecer esta
última.
M: Sem dúvida que não, ele não a faz desaparecer. Sem pretender
que todos os que tocam esses instrumentos sejam alheios à ciência
musical, a rmo que nem todos a possuem. Eis o ponto preciso que
quero tratar, a m de explicar de forma completa, se possível, a razão
de empregarmos a palavra ciência na de nição de música; pois se os
autistas ou liristas e outros que exercem atividade semelhante
possuíssem a ciência musical, não existiria, a meu ver, nada de mais
baixo e mais vil que a música.
Preste toda a atenção possível agora para ver surgir com clareza a
verdade que buscamos com tanto esforço. Você concordou quando
a rmei que a ciência reside apenas na alma, sim?
A: E como não concordar?
M: Pois bem! O sentido da audição reside na alma ou no corpo? Ou
nos dois simultaneamente?
A: Em ambos.
M: E a memória?
A: Acredito que resida na alma. Pois, se apreendemos pelos sentidos
os fenômenos que con amos à memória, isso não é contudo razão
para crer que a memória resida no corpo.
M: Você levanta aqui uma questão importantíssima e que é externa a
nossa discussão. Eis, por ora, o que nos basta: os animais têm
memória, isso é inegável. As andorinhas, todos os anos, voltam a seus
ninhos e o poeta disse, com muita razão, o seguinte a respeito das
cabras:
Uma alegre lembrança as faz retornar ao estábulo.3
Não é verdade que Homero tece louvores ao cão que reconhece seu
mestre, já esquecido por seus serviçais? Seria possível expor uma
in nidade de exemplos para apoiar o que estou a rmando.
A: Não digo o contrário, mas aonde você pretende chegar com isso?
Desejo fortemente saber…
M: Ora, não é evidente que aquele que concedeu tão-somente à alma
o dom da ciência e dele privou todos os outros animais não o colocou
nem nos sentidos, nem na memória, de vez que os sentidos são
inseparáveis dos órgãos, que o próprio animal tem sentidos e
memória, mas unicamente na inteligência?
A: Ainda estou aguardando a conclusão que você vai tirar dessas
premissas…
M: Eis a minha conclusão: todos aqueles que, consultando tão-
somente seus sentidos e guardando em suas memórias tão-somente
aquilo que lhes agrada, baseiam nesse prazer absolutamente material o
movimento de seus corpos — a ele acrescentando certo talento de
imitação —, estes não têm a ciência, malgrado toda a habilidade que
possam exibir, conquanto não possam ver, sob a luz pura e verdadeira
da inteligência, o princípio da arte que se vangloriam de interpretar.
Se, portanto, a razão nos demonstra que os cantores de teatro gozam
tão-somente de um talento desse tipo, creio que você poderá, sem
hesitação, negar-lhes a ciência, e por conseguinte não reconhecer neles
essa arte musical que é apenas a ciência das modulações.
A: Desenvolva sua idéia, analisemos isso mais a fundo.
M: A agilidade maior ou menor dos dedos é, sem dúvida, um efeito
do exercício e não da ciência.
A: Por que você diz isso?
M: Agora há pouco você expunha a ciência como um privilégio da
alma: ora, essa agilidade só depende dos dedos, ainda que eles
obedeçam ao impulso da alma.
A: Mas dado que a alma em que se encontra a ciência ordena que o
corpo produza esses movimentos, será preciso antes atribuir-lhes à
alma do que aos membros, que só fazem obedecer.
M: Não pode acontecer que um homem seja superior em ciência a
outro, ainda que este mova seus dedos com maior facilidade e
destreza?
A: Isso é bem possível.
M: Ora, se os movimentos rápidos e ágeis dos dedos devem ser
atribuídos à ciência, quanto mais excelentes fôssemos nesses
movimentos, mais avançados seríamos na ciência.
A: É verdade.
M: Preste atenção nisto mais: você sem dúvida já deve ter notado
que os carpinteiros e outros artesãos do gênero, trabalhando com o
martelo ou o malho, batem sempre no mesmo lugar, sem nunca errar
o ponto que querem golpear; tentássemos nós fazê-lo, fracassaríamos
e seríamos objeto de riso.
A: É verdade.
M: E por que nós não conseguimos? Será por não saber qual é o tipo
de golpe que é preciso desferir, o entalhe a ser feito?
A: Nem sempre o sabemos.
M: Pois bem, suponhamos um homem que conheça o ofício de
ferreiro em todos os seus detalhes, sem ter, contudo, a mão bem-
treinada; suponha que esse sujeito é capaz de dar a seus operários, que
trabalham com a maior facilidade, uma miríade de lições que vão para
além de sua inteligência. Não é algo corriqueiro, isso?
A: Sim.
M: Assim, devemos atribuir ao hábito, e não tanto à ciência, não
apenas a destreza e a leveza, mas também a cadência nos movimentos
corporais: do contrário, quanto melhor nos servíssemos das mãos,
mais inteligentes seríamos. Podemos aplicar essa observação ao
talento dos autistas e citaristas, e, por conseguinte, a di culdade que
sentiríamos ao executar os movimentos dos dedos não nos impedirá
de atribuí-los à imitação, à pratica diária, e não tanto à ciência.
A: Começo a entender, en m. De igual modo, ouço falar com
freqüência de médicos muito doutos que se impressionam ao ver
outros pro ssionais menos instruídos realizando amputações,
curativos — em suma, todas as operações que exigem a mão ou o
ferro: esse ramo da medicina se chama cirurgia,4 e o termo mesmo
denota su cientemente operações que se fazem com as mãos. Prossiga,
pois, e conclua a questão.
V. O sentimento musical vem da natureza?
M: Parece-me que ainda falta mostrar que as próprias artes que nos
agradam pelo talento da execução, quando seus efeitos são fortes,
dependem imediatamente não da ciência, mas de uma aliança entre os
sentidos e a memória; pois não quero que você me diga que a ciência
pode ser obtida sem a prática e mesmo num mais alto grau que entre
aqueles que se destacam na prática, e que no entanto estes últimos não
teriam conseguido alcançar, sem qualquer ciência, um talento de
execução tão bem acabado.
A: Esse é, claramente, o ponto a ser demonstrado. Peço que comece.
M: Já lhe ocorreu de ouvir, com certo interesse, um espetáculo de
histriões?
A: Sim, e talvez com mais interesse do que eu de fato devesse.
M: Como se dá que a multidão ignorante vaie com freqüência o
autista que executa melodias ruins, aplauda o executante hábil e
responda com entusiasmo à beleza dos acordes de um músico? Será
que a multidão age assim por conhecer a arte musical?
A: Não.
M: E então por quê?
A: Assim quis a natureza, que deu a todos os homens o sentido da
audição: o povo julga segundo o ouvido.
M: Você tem razão, mas examine se o autista não é, também ele,
dotado desse sentido. Se assim é, ele pode fazer mover seus dedos
conforme as indicações da natureza ao soprar sua auta; se um som
lhe satisfaz, ele pode anotá-lo e guardá-lo em sua memória e, por
força de repeti-lo, acostumar seus dedos a reproduzir esse movimento
sem hesitação e sem erro, seja imitando as melodias de algum outro
músico, seja executando melodias inventadas por ele mesmo, seguindo
as inspirações e o gosto da natureza. Por conseguinte, se a memória
obedece aos sentidos — e os dedos à memória, quando esses mesmos
dedos já foram preparados por meio do exercício —, o autista toca
com tanto mais apuro e tanto mais agradavelmente quanto possua em
alto grau as faculdades que nos são comuns com os animais, tal como
havíamos demonstrado — a saber: o gosto da imitação, os sentidos e a
memória. Você tem alguma objeção quanto a isso?
A: Nenhuma, certamente. E desejo com fervor conhecer a essência
dessa arte que você acaba de colocar, com tanta clareza, fora do
alcance dos espíritos vulgares.
VI. Os cantores de teatro ignoram a música
M: Isso não basta, e ainda não me é possível passar a mais amplos
desenvolvimentos. Nós concordamos quanto a que os histriões
podem, sem possuir a ciência musical, afagar os ouvidos da multidão
de modo a agradá-la; resta-nos estabelecer que eles são incapazes de
ter o gosto da música e dela conhecer os segredos.
A: Você não terá feito pouco se conseguir me provar esse ponto.
M: Não há coisa mais fácil, mas você precisará redobrar a sua
atenção.
A: Em momento algum, que eu saiba, faltei com atenção, desde o
começo desses debates. Mas neste momento você excita ainda mais
minha curiosidade.
M: Eu lhe agradeço, ainda que você só esteja elogiando a si mesmo.
Responda, pois, por favor: você acredita que um sujeito que queira
trocar uma moeda de ouro por dez moedas de prata conheça o valor
do ouro?
A: Com certeza não.
M: Diga-me então o que tem mais valor aos seus olhos: idéias
próprias a nossa inteligência, ou qualidades a nós conferidas pelo
juízo insensato dos ignorantes?
A: Ninguém duvida que é preciso valorizar antes nossa própria
inteligência às qualidades que nos são de certa forma alheias.
M: Você poderia negar que toda ciência pertença à inteligência?
A: Como negá-lo?
M: Por conseguinte, é na inteligência que reside a ciência musical.
A: É a conseqüência dessa de nição.
M: Pois bem! Quanto aos aplausos da multidão e todas essas
recompensas dadas no teatro, não lhe parece que eles dependem do
acaso e do gosto do público?
A: A meu ver não há nada de mais aleatório, incerto e mais exposto
aos caprichos da tirania popular que todos esses favores.
M: Será que os cantores venderiam, pois, as modulações de suas
vozes a um tal preço, se conhecessem a ciência musical?
A: Essa conclusão causa uma forte impressão ao meu espírito, mas
tenho uma objeção. A comparação do vendedor de ouro com o artista
não me parece totalmente correta. O ator, com efeito, após conquistar
os aplausos ou receber dinheiro, não perde, por conta disso, o
conhecimento — se conhecimento há — que lhe foi necessário para
impressionar o povo. Mais rico, mais feliz graças aos aplausos do
público, ele volta para casa com sua ciência intacta. Seria uma tolice
desprezar esses favores; sem obtê-los, ele seria menos conhecido e
menos rico; ao ganhá-los, sua ciência não foi reduzida.
M: Vejamos se conseguimos chegar à nossa nalidade por outro
raciocínio. O m ao qual nós nos propomos é, sem dúvida, superior à
coisa mesma que nós fazemos.
A: É um princípio evidente.
M: Assim, aquele que canta ou que aprende a cantar com o único
objetivo de conquistar os aplausos do público ou de um homem
qualquer não estimaria essa aprovação em mais alto grau que o
próprio canto?
A: Não saberia dizer o contrário.
M: E quanto a um sujeito que tem uma opinião equivocada sobre
certa coisa. A você lhe parece que ele a conheça?
A: Não, a não ser que a tenhamos corrompido de tal ou qual
maneira.
M: Ora, aquele que está intimamente convencido da inferioridade de
uma coisa realmente superior não pode possuir a ciência dessa mesma
coisa, estamos de acordo?
A: Isso é incontestável.
M: Portanto, quando você tiver me convencido ou demonstrado que
um histrião não adquiriu o seu talento, ou dele não faz exibição
unicamente para se exibir ao público, para ganhar dinheiro ou
aplausos, aí então concederei que é possível dominar a música mesmo
sendo um histrião. Se, ao contrário, der-se aquilo que é imensamente
mais provável, a saber: que você não encontre nenhum histrião que
tenha como nalidade de sua pro ssão outra coisa além do dinheiro
ou da fama, você deverá reconhecer que eles não entendem de música,
ou que devemos pedir à multidão por glória e outros bens efêmeros ao
invés de buscar, dentro de nós, a ciência.
A: Após ter concordado com as suas proposições anteriores, vejo-me
forçado a aceitar também esta, pois não creio que possamos encontrar,
no teatro, um só homem que ame sua arte pela própria arte, e não
pelas vantagens que a ela se associam. Nem mesmo nas escolas do
ofício conseguiríamos achar. Contudo, se tal homem já existiu algum
dia ou ainda existe, deveríamos antes estimar o histrião do que
menosprezar o músico. Desenvolva pois, por gentileza, os princípios
dessa grande arte que não posso mais, doravante, considerar como
uma arte vulgar.
VII. Sobre os termos duradouro e não duradouro
M: Eu o farei, ou melhor, você mesmo o fará. Procederei unicamente
por questões, por perguntas, e verá que todo o conteúdo desse tema, o
qual você parece querer penetrar em seus íntimos detalhes, se
mostrará diante de si por meio das suas próprias respostas. Começo,
pois, perguntando: é possível correr rápido por uma longa duração de
tempo?
A: Sim, é possível.
M: É possível correr rápido e lentamente simultaneamente?
A: É impossível.
M: Portanto, entre duradouro e lento há uma grande diferença.
A: Muito grande.
M: Outra questão: qual é o oposto de um tempo duradouro, tal
como o rápido se opõe ao lento?
A: Não encontro um termo habitual para expressar essa idéia, mas
apenas um termo negativo que a ele se opõe, a saber: não duradouro,
do mesmo modo como se eu não quisesse empregar a palavra
rapidamente e dissesse não lentamente, e o signi cado seria o mesmo.
M: Você tem razão: ao falar assim, nada perdemos da verdade do
objeto. Quanto à palavra que lhe escapa, ignoro qual seja, ou por
enquanto ela não me vem ao espírito, supondo que eu a conheça.
Convenhamos pois em utilizar esses termos contrários: duradouro e
não duradouro; lento e rápido. E tratemos, primeiramente, do tempo
mais ou menos longo no movimento.
A: Aceito.
VIII. Sobre o tempo mais ou menos longo no movimento
M: Você consegue ver com clareza o signi cado de duradouro e não
duradouro?
A: Sim.
M: Assim, por exemplo, de um movimento que dure duas horas,
comparado a outro de apenas uma hora, não é certo dizer que ele
dura o dobro do tempo?
A: Sim, é claro.
M: Assim, o tempo mais ou menos duradouro pode ser medido e
dividido numa relação análoga a um movimento que se compara a
outro, como 2 se compara a 1, ou seja, um pode ser o dobro do outro.
Um movimento pode ainda estar para outro como 3 está para 2, em
outras palavras, conter três intervalos de tempo iguais aos dois
intervalos contidos no outro. Podemos percorrer todos os números de
igual modo, sem nada deixar de vago e indeterminado em sua escala,
xando um número para designar a relação de dois movimentos entre
eles. Esse número poderá ser o mesmo, como na relação de 1 para 1,
de 2 para 2, de 3 para 3 ou de 4 para 4, ou diferente, como na relação
de 1 para 2, de 2 para 3, de 3 para 4, ou de 1 para 3, de 2 para 6, e
assim por diante. Isso é aplicável a todo movimento suscetível de ser
medido.
A: Peço que seja um pouco mais claro, por favor.
M: Voltemos então ao exemplo das horas e dessa relação que eu
pensava ter esclarecido su cientemente, antes de passar aos outros.
Você não nega que possa haver dois movimentos, um de uma hora,
outro de duas horas, sim?
A: Estou de acordo.
M: Pois então! Não pode haver ainda dois outros movimentos, um
de 2 horas, outro de 3?
A: É verdade.
M: Um movimento de três horas e outro de quatro? Não é evidente
que pode haver também dois movimentos, um de uma hora, outro de
três, outro de duas, outro de seis?
É
A: É evidente.
M: E por que então aquilo que eu estava dizendo não seria
igualmente evidente? Com efeito, não pretendia dizer outra coisa
quando sustentava que dois movimentos podem ter entre si uma
relação marcada por um número, como 1 está para 2, 2 para 3, 3 para
4 e assim por diante. Uma vez que admitimos isso, é fácil estabelecer
outras proporções como de 7 para 10, de 5 para 8 e encontrar a
mesma relação entre dois movimentos medidos que aquela
identi cada entre dois números iguais ou diferentes.
A: Entendo, essa relação de fato pode existir.
IX. Sobre os movimentos racionais ou irracionais,
conumerados ou dinumerados
M: Você também entende, creio, que tudo aquilo que admite uma
justa medida é preferível àquilo que é incomensurável e ilimitado.
A: É evidente.
M: Assim, dois movimentos que tenham entre si, como havíamos
dito, uma medida comum, são preferíveis àqueles que não a tenham.
A: É uma conseqüência bem clara. Aqueles estão unidos pela medida
e proporção dos números, enquanto estes não se conectam por
nenhuma relação.
M: Chamemos, pois, se você estiver de acordo, racionais os
movimentos que podem ser medidos entre si e irracionais aqueles que
não admitem medida comum.
A: Estou de acordo.
M: Diga-me se você encontra, primeiramente, uma relação mais
harmoniosa nos movimentos racionais marcados pelos mesmos
números do que nos movimentos expressos por números diferentes.
A: Não há dúvida.
M: Pois bem, dentre os números diferentes entre si, não é verdade
que existem alguns que nos permitem dizer de qual fração de si
mesmo o maior excede o menor? Como 2 e 4, 6 e 8, mas também
outros números em que essa relação não é tão sensível, como no caso
de 3 e 10, ou 4 e 11? No primeiro caso, com efeito, o maior excede o
menor da metade; no segundo, o menor, que é 6, é inferior ao maior
da ordem de um quarto do maior. Entre os dois últimos, 3 e 10 e 4 e
11, nós bem podemos ver uma certa relação, pois é possível decompô-
los em unidades comparáveis entre si, mas será que sua relação é tão
perfeita quanto as anteriores? Será possível dizer de qual fração o
maior excede o menor ou o menor é inferior ao maior? Certamente
não. Como especi car qual é o terço de 10 ou o quarto de 11? E, ao
falar de frações, penso numa fração irredutível como 1/2, 1/3, 1/4,
1/6, sem precisar acrescentar nem um décimo, nem um vigésimo, nem
qualquer número fracionário.
A: Compreendo.
M: Dentre esses movimentos racionais desiguais dos quais citei duas
espécies valendo-me de exemplos numéricos, quais são aqueles que
você julga os mais perfeitos? Aqueles em que as relações podem ser
estabelecidas por frações exatas ou aqueles que não têm medida
comum entre si?
A: A razão me parece indicar que aqueles dos quais se pode dizer de
qual fração deles mesmos o maior é superior ao menor são preferíveis,
e aqueles que não têm esse caráter não são preferíveis.
M: Muito bem. Você gostaria que lhes déssemos um nome, a m de
designá-los por um termo mais curto ao tratar deles?
A: Sim, quero.
M: Chamemos, pois, conumerados aqueles que preferimos e
dinumerados aqueles que nos parecem menos perfeitos. Os primeiros,
com efeito, além de serem contados por unidades, são medidos e
avaliados pela quantidade que torna o maior igual ou superior ao
menor. Os dinumerados, ao contrário, só são comparáveis a eles
mesmos e não podem nem ser medidos e nem avaliados pela diferença
entre o maior e o menor. Pois não se pode dizer, deles, quantas vezes o
maior contém o menor, nem quantas vezes o maior e o menor
encerram a quantidade que torna um superior ao outro.
A: Aceito essas denominações, e farei o possível para lembrar-me
delas.
X. Sobre os movimentos complexos e sesquiálteros
M: Vejamos agora como é possível dividir os movimentos
conumerados. A diferença entre eles salta aos olhos, pois existem
aqueles em que o número menor “mede” o maior, ou, em outras
palavras, o maior contém o menor um certo número de vezes, como
foi dito a respeito de 2 e 4. Com efeito, 2 está contido duas vezes em
4, e estaria contido três vezes no número 6, quatro vezes em 8, cinco
vezes em 10, se quiséssemos tomar esses números por exemplos.
Existem outros em que a diferença entre o menor e o maior mede a
ambos os números, ou seja, o menor e o maior contêm a diferença
entre eles um certo número de vezes, como no caso dos números 6 e 8.
Aqui, com efeito, a diferença é 2, e esse excedente está contido quatro
vezes em 8, 3 vezes em 6. Designemos, pois, com maior clareza,
também com termos particulares essas espécies de movimentos e os
números que os representam. Creio não me enganar ao pensar que sua
diferença especí ca já lhe tenha chamado a atenção. Portanto, se
concordar, chamemos de complexos dois números cujo maior é
múltiplo do menor, e, quanto aos outros, chamemo-los por um termo
já antigo, sesquiálteros. Chamamos de sesquiálteros dois números que
têm tal relação entre si que o maior, comparado ao menor, contém
partes proporcionais a seu excedente: assim se dá com o número 3 em
relação a 2, o maior excede o menor de sua terça parte; o número 4,
em relação ao 3, o excede de sua quarta parte; 5 excede 4 de sua
quinta parte, e assim por diante. A relação é análoga em 6 comparado
a 4, em 8 comparado a 6 e em 10 comparado a 8; pode-se constatar a
mesma relação nos números seguintes, seja qual for sua grandeza.
Quanto à etimologia da palavra, é difícil determiná-la. Talvez sesque
venha de se absque, “fora de si”; e, de fato, 5 em relação a 4 torna-se
igual a ele se cortarmos o excedente, a quinta unidade. O que lhe
parece isso tudo?
A: A relação que você estabelece entre os movimentos mensurados e
os números me parece exata. Os termos que você emprega para
designá-los me parecem bem escolhidos para nos lembrar da idéia que
a eles associamos. Quanto à etimologia da palavra sesque, não me
choca, ainda que seu inventor possa muito bem não ter tido essa idéia
que você lhe credita.
XI. Como um movimento e um número são limitados em seu
crescimento ao in nito e recebem uma foma determinada —
sistema decimal
M: Aprovo seu pensamento… Mas você não percebe que os
movimentos racionais, ou seja, que possuem entre si uma relação
possível de se expressar em números, podem se estender ao in nito
caso não encontrem numa regra xa um limite que lhes contenha e
imponha uma medida e uma forma determinadas? Pois se tratamos de
números iguais como 1 e 1, 2 e 2, 3 e 3, 4 e 4, e assim por diante, qual
limite poderíamos encontrar, dado que os números em si são
inesgotáveis? Tal é, aliás, a essência mesma do número: quando o
de nimos, ele se torna nito; se ainda não o de nimos, ele é in nito.
Essa propriedade que encontramos nos números iguais também está
nos desiguais dinumerados e conumerados, complexos ou
sesquiálteros.
Tome a relação de 1 para 2 e continue essa operação estabelecendo a
relação de 1 para 3, 1 para 4, 1 para 5, e assim por diante; você não
encontrará limite. Dobre o segundo termo da relação como 1 e 2, 2 e
4, 4 e 8, 8 e 16, e assim por diante; não encontrará, tampouco,
qualquer limite. Triplique, quadruplique, faça qualquer outra
combinação desse tipo e você verá sempre os números se estenderem
ao in nito.
Assim se dá também com os números sesquiálteros. Nós havíamos
estabelecido as relações de 2 para 3, 3 para 4, 4 para 5, sim? Podemos
continuar assim até o in nito, pois não encontraremos nenhum limite.
Você quer estabelecer relações análogas, por exemplo 2 com 3, 4 com
6, 6 com 9, 8 com 11, 10 com 15 e assim por diante? Também aqui,
como nos outros casos, nenhum limite o impedirá.
Nem há por que falar dos dinumerados, sim? Os exemplos que
acabamos de citar mostram que a escala desses números se estende ao
in nito. Você concorda?
A: Nada de mais verdadeiro. Mas qual é, en m, a regra que conduz
essa progressão, in nita em si mesma, a uma forma determinada? Eis
o que estou impaciente para aprender.
M: Você perceberá que o sabe, como todo o resto, quando der
respostas precisas às minhas questões. Primeiramente, já que estamos
tratando de movimentos representados por números, pergunto:
devemos consultar os números em si mesmos para aplicar aos
movimentos cadenciados as regras absolutas e invariáveis que
havíamos descoberto nos números?
A: Assim penso. Parece-me que não há melhor método para
proceder.
M: Pois bem. Retornemos até o princípio mesmo dos números e
vejamos, segundo a capacidade de nossa inteligência, por qual razão
xamos, na escala ilimitada dos números, certas gradações que
permitem uma descida até a unidade, que lhes serve de princípio.
Assim, quando queremos seguir a série das dezenas, 10, 20, 30, 40,
paramos ao chegar em cem; se percorremos a série das centenas, 100,
200, 300, 400, encontramos, no número 1.000, como que um ponto
de chegada, que nos permite retornar. Preciso explicar mais? Você
entende bem o que quero dizer por essas séries que têm por princípio
o número 10. Pois assim como 10 contém 1 dez vezes, também 100
contém 10 dez vezes e 1.000 contém 100 dez vezes. Assim podemos ir
tão longe quanto quisermos: encontraremos sempre uma série análoga
àquela que a dezena nos ofereceu inicialmente. Há nisso que digo algo
que você não entenda?
A: Tudo está claro e me parece incontestável.
XII. Por que na numeração vai-se de 1 a 10 e retorna-se de 10
a 1?
M: Examinemos, com toda a atenção possível, em virtude de qual lei
vai-se de 1 a 10 para se retornar em seguida à unidade. Diga-me, pois:
quando dizemos começo, não estamos falando do começo de algo?
A: Certamente, sim.
M: E quando falamos em m, não estamos falando do m de algo?
A: Necessariamente.
M: E seria possível chegar do começo ao m sem passar por um
meio?
A: Não.
M: Assim, um todo é formado de começo, meio e m?
A: Sim.
M: Diga-me, então, por qual número você poderia designar o
começo, o meio e o m.
A: Você quer, sem dúvida, que eu cite o número 3: pois a sua questão
compreende um triplo objeto?
M: Muito bem. Podemos perceber que há certa perfeição no número
3, pois ele tem um começo, um meio e um m.
A: Sim, percebo.
M: Pois bem. Já não aprendemos, desde a mais tenra idade, que todo
número é par ou ímpar?
A: Sim.
M: Busque em suas memórias, agora, e diga-me: qual número
chamamos par e qual chamamos ímpar?
A: Todo número que pode ser dividido em duas partes iguais é par, e,
se não o pode, é ímpar.
M: Isso mesmo. Portanto, dado que 3 é o primeiro número inteiro
ímpar e que tem, como acabamos de dizer, um começo, um meio e um
m, não seria necessário que o número par seja igualmente inteiro e
completo, e que encontremos nele um começo, um meio e um m?
A: É absolutamente necessário.
M: Mas esse número, seja ele qual for, não pode ter seu meio
indivisível, como o número ímpar: pois se tivesse essa propriedade,
não poderia mais se dividir em duas partes iguais, o que é próprio a
todo número par, tal como vimos. Ora, 1 é um meio indivisível, 2 é
um meio divisível; e por meio, nos números, deve-se entender uma
quantidade que se encontra entre duas quantidades de mesmo valor.
Há algo de obscuro em minhas palavras? Você me entende bem?
A: Sim, tudo me parece claro, mas quando busco um número inteiro
par, o número 4 é o primeiro que se me oferece. Pois como ver no
número 2 os três elementos que tornam um número completo, a saber
o começo, o meio e o m?
M: Eis aí precisamente a resposta que eu esperava, e é a razão que a
dita para você.
Retorne, pois, ao número 1, e examine: não será difícil descobrir que
1 não tem nem meio e nem m, pois é apenas um começo. Ou, dito de
outro modo, ele é começo porque lhe falta meio e m.
A: Está claro.
M: E o que dizer do número 2? Será possível ver nele um começo e
um meio, ainda que só possa existir um meio se existir um m? Ou
melhor: um começo e um m, ainda que só se possa chegar ao m
passando por um meio?
A: A conclusão é incontestável: no entanto, não sei o que responder
quanto a esse número.
M: Pois bem, vejamos se o número 2 não pode ser também o começo
de outros números. Pois se ele não tem nem meio e nem m, como nos
faz ver a razão segundo suas próprias palavras, o que pode ser senão
um começo? Será arriscado estabelecer dois começos?
A: Sem dúvida alguma.
M: Você estaria certo se tratassem-se de dois começos opostos; mas
esse segundo começo vem do primeiro, que encontra sua origem nele
mesmo, enquanto que o segundo é oriundo do primeiro; pois 1
somado a 1 resulta em 2, e a esse título todos os números provêm de
1: mas eles se formam por adição e multiplicação, e tanto a adição
quanto a multiplicação nascem com o número 2; segue-se disso que
temos um primeiro princípio no número 1, de onde vêm todos os
números, e um segundo, no número 2, por meio do qual são formados
todos os outros. Você tem alguma objeção quanto a isso?
A: Nenhuma. E não é sem admiração que acompanho todas essas
considerações, ainda que elas não sejam mais do que minhas próprias
respostas às suas questões.
M: Pode-se analisar essas propriedades dos números de maneira
mais rigorosa e mais profunda na aritmética. Mas voltemos logo à
questão central. Dois somado a um 1, quanto dá?
A: Três.
M: Assim; esses dois princípios numéricos, somados, formam um
número inteiro e perfeito?
A: Sim.
M: Após somarmos 1 e 2, que número obtemos?
A: Esse mesmo número 3.
M: Assim, esse número formado de 1 e 2 coloca-se regularmente
após os dois primeiros; sem que nenhum outro possa se intercalar
entre eles?
A: Sim, é claro.
M: Não é igualmente claro que essa propriedade não se encontra em
nenhum outro número? Pois se somarmos quaisquer outros números
que seguem um ao outro, jamais obteremos como resultado o número
que os sucede imediatamente.
A: Compreendo; de fato 2 e 3, números que se seguem um ao outro,
somados, dão 5. Ora, não é 5 que vem imediatamente após, na ordem
da numeração, mas 4. Ademais, 3 e 4 somados dão 7 e a ordem da
numeração entre 4 e 7 contém ainda os números 5 e 6. Quanto mais
eu avançar na seqüência numérica, mais números serão necessários
para cobrir o intervalo.
M: Existe, portanto uma grande harmonia entre os três primeiros
números. Diz-se 1, 2, 3, sem que se possa intercalar entre eles nenhum
outro número. Ademais, 1 mais 2 não resulta em 3?
A: Sim, essa relação é maravilhosa.
M: Não é admirável, também, que, quanto mais essa harmonia é
estreita e íntima, mais ela tenda a uma certa unidade e forme certa
unidade na pluralidade?
A: É algo bastante impressionante, e admiro com um grande amor,
não sei bem por qual razão, essas relações cuja beleza você me faz
entrever.5
M: Muito bem: ora, você concorda que um conjunto tem um caráter
de unidade quando o meio está em harmonia com os extremos e os
extremos com o meio?
A: É uma condição indispensável.
M: Examine, pois, com atenção, se você encontra essa harmonia na
união desses três números. Quando dizemos 1, 2, 3: 2 não é superior a
1, na mesma medida em que 3 é superior a 2?
A: É verdade.
M: Me diga, agora, quantas vezes citei o número 1 nessa relação?
A: Uma vez.
M: Quantas vezes o 3?
A: Uma vez.
M: E o 2?
A: Duas vezes.
M: Ora, uma vez, duas vezes, mais uma vez, quanto isso dá somado?
A: Quatro vezes.
M: É, portanto, com razão que o número 4 vem após esses três
números: é o lugar que essa relação lhe concede. Aprenda a
reconhecer, dele, seu valor, considerando que essa unidade, objeto de
seu entusiasmo, é o resultado em toda coisa bem ordenada daquilo
que chamamos em grego de αναλογία: analogia, e em latim, proportio:
relação. Sugiro que empreguemos, aqui, este último termo, pois não
gosto nem um pouco de utilizar termos gregos numa conversa em
latim.
A: Estou de acordo, mas prossiga.
M: O que é uma relação, qual é seu valor em todas as coisas? Eis o
que iremos examinar com mais atenção no decorrer deste estudo,
quando chegar o momento apropriado: quanto mais você avançar,
mais reconhecerá seu caráter e sua importância. Você entende com
clareza, e isso já é o bastante por ora, que os três números cuja
harmonia lhe parece tão impressionante não poderiam ser
comparados entre si e nem formar uma estreita aliança sem o número
4. Você compreende, então, que ele mereceu o privilégio de ser
colocado logo em seguida, unindo-se intimamente a eles. Assim não
temos mais 1, 2, 3, mas 1, 2, 3, 4, que formam uma seqüência de
números ligados entre si pelas mais íntimas relações?
A: Concordo plenamente.
M: Prossigamos: e não pense que o número 4 não tenha nenhuma
propriedade especial que permita estabelecer a relação de que estou
falando, com tal rigor, pois de 1 a 4 há um número determinado e
uma magní ca progressão. Concordamos, há pouco, que há uma
espécie de unidade entre diversas coisas quando o meio se harmoniza
com os extremos e vice-versa.
A: Sim.
M: Tratando-se de 1, 2 e 3, qual é o meio e quais são os extremos?
A: 1 e 3 são os extremos, 2 é o meio, se não estou errado.
M: Responda, pois: qual número temos ao somar 1 com 3?
A: 4.
M: E 2, que está sozinho entre os dois, só pode ser comparado com
ele mesmo? Se é assim, quanto temos ao multiplicar dois por dois?
A: 4.
M: Assim, o meio está em relação com os extremos e os extremos
com o meio. Portanto, se é coisa harmônica que 3 venha após 1 e 2,
que o constituem, não é menos belo o fato que 4 venha após 1, 2 e 3,
pois ele é formado de 1 somado a 3 ou de 2 multiplicado por si
próprio: eis a relação6 na qual vemos a harmonia dos extremos com o
meio, do meio com os extremos. Você consegue entender?
A: Perfeitamente.
M: Tente agora encontrar nos outros números aquilo que chamamos
de propriedade especial do quaternário.
A: Tentarei: Se tomarmos 2, 3, 4, os extremos somados formam o
número 6, e o meio somado a ele mesmo produz o mesmo número. E
no entanto não é o 6, mas 5 que vem imediatamente em seguida.
Tento o mesmo novamente, agora com 3, 4, 5: os dois extremos
somados dão 8 e o meio repetido duas vezes dá o mesmo número; ora,
entre 5 e 8 há dois números intermediários, 6 e 7, ao invés de um só:
quanto mais eu avanço, mais os intervalos aumentam.
M: Vejo que você se apropriou em profundidade da teoria que acabo
de expor. Para não nos demorarmos demais, você deve perceber sem
dúvida que de 1 a 4 a progressão é bastante exata, seja por conta do
número par e do número ímpar; seja porque o primeiro número ímpar
inteiro é 3, e o primeiro par inteiro é 4, como havíamos demonstrado;
seja porque 1 e 2 contêm o princípio, e, por assim dizer, o germe do
qual nasce o número 3, constituindo os três números primordiais:
desses números, relacionados entre si, deriva o número 4, que se
conecta a eles por um legítimo nexo. É assim que surge essa
progressão regular que buscamos.
A: Entendo.
M: Muito bem. Mas você lembra qual era o objeto de nossas
investigações? Creio que buscávamos saber por que, ao estabelecer
séries na seqüência inde nida dos números, havíamos limitado a
primeira série ao número 10, que serve como uma espécie de apoio a
tantas outras; em outras palavras, por que, ao contar de 1 a 10,
retornávamos de 10 a 1.
A: Lembro-me perfeitamente que foi em vista dessa questão que
havíamos feito todos esses desvios: mas será que chegamos a resolvê-
la? Não vejo como… Com efeito nosso raciocínio acabou se limitando
a constatar que existe uma progressão regular e legítima não até 10,
mas até 4.
M: Você não vê, pois, qual resultado obtemos ao somar 1, 2, 3, 4?
A: Sim, vejo, mas não sem surpresa: sim, a questão está resolvida;
pois, 1, 2, 3, 4, somados formam 10.
M: Por essa razão, os quatro primeiros números, sua seqüência e sua
relação, devem ocupar a posição mais elevada no sistema de
numeração.
XIII. Sobre o encanto que causam ao ouvido os movimentos
proporcionados
M: É hora de voltarmos ao exame aprofundado desses movimentos
que constituem o objeto da ciência de que estamos tratando e que nos
levaram, pelas exigências da questão, a todas essas considerações
sobre uma ciência estrangeira: a aritmética. Para clari car nossa
discussão havíamos suposto, num espaço de horas determinado,
movimentos expressos por uma relação numérica indicada pela razão;
responda-me agora, com relação a essa hipótese: se um homem
corresse durante uma hora, e outro corresse por duas horas, você seria
capaz, sem relógio, clepsidra ou qualquer outra espécie de
cronômetro, apreciar esses dois movimentos dos quais um é simples e
o outro é duplo? Ou, se pudesse, conseguiria encontrar ao menos algo
de agradável nessa relação e gozar de certo prazer?
A: Isso me é impossível.
M: Pois bem! Se, numa outra situação, marcássemos um ritmo de
duas batidas por compasso, a primeira durando um tempo, a segunda
dois tempos — formando portanto um jambo — e prosseguíssemos
assim, enquanto uma pessoa executasse uma dança seguindo esse
ritmo, não seria possível identi car o caráter desse compasso, quero
dizer, a sucessão alternada de um tempo e dois tempos, seja na batida
do compasso, seja na dança que você observa? Não encontraríamos
ao menos certo prazer nessa harmonia captada pelos sentidos, ainda
que não nos fosse possível designar a relação numérica representada
por essa medida?
A: É verdade, pois aqueles que conhecem as relações numéricas o
sentem na música e na dança, e as identi cam com facilidade; quanto
àqueles que não as conhecem e são incapazes de identi cá-las, estes
não deixam no entanto de experimentar certo prazer.
M: É inegável, portanto, que os movimentos, dispostos numa justa
medida, enquadram-se no domínio da música, que nada mais é do que
a ciência das belas modulações. Falo aqui sobretudo daqueles
movimentos que, sem se dirigir a um m alheio à arte, contêm em si
mesmos sua beleza e o prazer que eles provocam. No entanto esses
movimentos, como você bem observou ao responder às minhas
questões, o prolongar-se por tempo demasiado, e se estender por uma
hora ou mais, não podem suscitar qualquer interesse aos nossos
sentidos, ainda que estejam dispostos na justa medida própria à
beleza. Assim, pois, dado que a música saiu, por assim dizer, de seu
misterioso santuário, e deixou marcas em nossas sensações ou nos
objetos recebidos por nossas sensações, não devemos então nos basear,
destarte, nesses vestígios, a m de avançarmos sem erro, se possível,
rumo àquilo que chamei de seu misterioso santuário?
A: De fato, é necessário trilhar esse caminho. Peço que comecemos
logo.
M: Deixemos pois, de lado, todas essas medidas de tempo que
ultrapassam nossa capacidade de apreensão e, seguindo a linha de
nosso raciocínio, ocupemo-nos dessas medidas mais bem-de nidas que
nos encantam no canto e na dança. Não acredito que você tenha outro
método para seguir as pistas deixadas por essa arte, como havíamos
dito, nos sentidos e nos objetos por eles percebidos.
A: De fato, não há outro método.
1 V. l. 1 cap. XII.
2 Dois coriambos e um jambo.
3 Quatro dátilos e três troqueus.
4 Troqueu, espondeu, dátilo, troqueu, troqueu.
5 Ársis e tésis são movimentos complementares; aquele correspondendo a elevação, inspiração
ou tensão, este a descida, expiração ou repouso — NT.
6 Sesquitertius numerus corresponde ao grego epitritos: ele indica um terço a mais. Aqui,
portanto, a ársis contém os 4/3 da tésis e vice-versa, segundo a posição da breve. É uma
relação de 3 para 4.
7 Quando as consoantes não se misturam com as vogais, a metade do som se esvai
rapidamente: a outra metade nem sequer consegue sair da boca, por
8 mais que nos esforcemos e façamos caretas. As consoantes têm um som mais velado e mais
difícil de ser emitido do que as vogais, no entanto, ambas se pronunciam com a boca semi-
aberta.
Aconselho que economize as suas forças: a leitura é algo que nos consome. Deixe sua alma se
distrair e orescer em liberdade. Relaxar o espírito aplicando-se a nobres temas, não é este
um preceito da sabedoria? (Estes versos são do próprio Agostinho, e sua fatura, tão
impecável quanto elegante, prova sua competência e seu bom gosto).
9 Essas palavras não formam qualquer sentido: trata-se de metro musical expresso por meio
de palavras, e nada mais.
10 Tome o melhor partido, pratique a virtude.
LIVRO TERCEIRO
1 L. 1, cap. XII.
2 Vinde, musas que habitais as fontes; Vós que, em vossas grutas profundas, entoam cânticos
mais doces que o mel; vós que banhais vossos cabelos loiros na fonte de Hipocrene, na qual
Pégaso veio um dia lavar sua boca espumante e sua crina esvoaçante e suada, antes de
lançar-se no azul dos ares.
3 O maior verso contém apenas oito pés. V. cap. IX, l. 3.
4 Eu executo prontamente, para ti, aquilo que faço, obedecendo à alma. (A idéia aqui é
menos importante que as palavras, destinadas unicamente a marcar a medida musical).
5 V. cap. III, l. 3.
6 8 tempos x4=32. Baseamo-nos sempre no número quatro, que é o limite.
7 O menor metro contém 2 pés: 4x8=32. Oito pés formam portanto o maior metro. O menor
verso é de 8 tempos; ora, 8x4=32: trinta e dois tempos formam o maior verso.
LIVRO QUARTO
É
o ouvido rejeita essa combinação e a condena absolutamente. É
possível fazer essa experiência facilmente sobre outros metros, usando
o ouvido como guia. Com efeito, trata-se de uma regra invariável:
quando se unem pés que têm a nidade entre si, é preciso colocar no
nal frações de pé em harmonia com todos os pés da série, a m de
evitar que sua aliança natural seja perturbada por um defeito qualquer
de simetria.
Mais uma particularidade: o espondeu conclui agradavelmente o
ditroqueu e o jambo; no entanto, quando esses dois pés, sejam sós,
sejam misturados a outros pés da mesma família, encontram-se na
mesma série, não podemos colocar um espondeu no nal sem prejuízo
para o ouvido. Ninguém duvida que esses pés, separadamente, sejam
agradáveis de se ouvir:
Tı̆ mēndă rēs | nō n ēst
ou então:
Iām timērĕ | nō lī.
Mas se com eles você formar uma série, por exemplo:
Tı̆ mēndă rēs, | iām timērĕ | nō lī
terá uma combinação que só pode existir em prosa. O problema de
harmonia não é menor se colocarmos em qualquer outro lugar um
outro pé, por exemplo um molosso no primeiro pé:
Vīr fō rtīs, | tı̆ mēndă rēs, | īam tı̆ mērĕ | nō lī
ou então:
Tı̆ mēndă rēs, | vīr fō rtīs, | īam tı̆ mērĕ | nō lī
ou ainda no terceiro:
Tı̆ mēndă rēs, | īam tı̆ mērĕ vīr fō rtīs, | nō lī.
Qual é a causa dessa cacofonia? Pode-se bater a medida do dijambo
na proporção de 2 para 1; e a do ditroqueu, na proporção de 1 para 2.
O espondeu equivale ao dobro, dado que o medimos na proporção de
2 para 2; ora, como o dijambo só admite medida de proporção 2 para
1 e o ditroqueu, de proporção 1 para 2, produz-se uma dissensão que
fere o ouvido. Eis como o raciocínio puro pode explicar essa
anomalia.
O antispasto gera uma anomalia não menos estranha. Se por um
lado ele não se combina com nenhum outro pé, só se misturando com
o dijambo, por outro, ele não rejeita o jambo como nal; mas o
rejeitará se estiver unido a outros pés. Pois se ele estiver unido ao
ditroqueu, o ditroqueu, mesmo nesse caso, não pode se aliar ao
jambo, e isso em nada deve nos surpreender. Mas o que me espanta é
que ele rejeite o jambo tão logo se veja combinado com qualquer
outro pé de seis tempos; talvez esse fato se deva a uma razão por
demais obscura para que possamos aprofundá-la e lançar luz sobre
ela, mas é um fato, e demonstro-o por exemplos. Estes dois metros:
Pŏ tēstātĕ | plăcēt
e
Pŏ tēstātĕ | pŏ tēntı̆ ūm | plăcēt
oferecem uma volta bastante agradável, não há dúvida, se colocarmos
ao nal uma pausa de três tempos. E temos, ao contrário, uma
verdadeira cacofonia, nestes metros, com a mesma pausa:
Pŏ tēstātĕ | prāeclārā | plăcēt;
Pŏ tēstātĕ | tı̆ bı̆ mūltūm | plăcēt;
Pŏ tēstātĕ | īam tı̆ bı̆ sīc | plăcēt;
Pŏ tēstātĕ | mūltūm tı̆ bı̆ | plăcēt;
Pŏ tēstātĕ | māgnı̆ tūdŏ | plăcēt.
Nesse problema, o ouvido exerceu seu papel, fazendo-nos sentir
aquilo que agrada e o que fere. Mas, se quisermos conhecer a causa
disso, é preciso recorrer à razão: quanto à minha, que se encontra
numa profunda obscuridade, ela só consegue obter uma explicação: a
primeira metade do antispasto é idêntica àquela do dijambo, dado que
ambos começam por uma breve seguida de uma longa; a segunda
metade, ao contrário, é idêntica àquela do ditroqueu, dado que ambos
se concluem por uma longa seguida de uma breve. Por conseguinte, o
antispasto admite, sim, o jambo ao nal do metro, quando está
sozinho; ele o admite também quando unido ao dijambo, por ter sua
primeira metade em comum; portanto, ele o admitirá quando estiver
unido ao ditroqueu, se uma tal terminação estiver ligada ao ditroqueu;
e se ele o rejeitar, quando misturado a outros pés, é porque não se está
sendo medido pela mesma relação de tempos.
XVII. Sobre a combinação dos metros
Quanto à combinação dos metros, basta perceber agora que os
diversos metros podem formar entre si um sistema, contanto que
concordem entre si quanto à batida do tempo, ou seja, quanto à ársis
e à tésis. A diversidade dos metros vem primeiramente da quantidade,
o que ocorre quando unimos os grandes aos pequenos, como no
exemplo:
Iām sătīs tērrīs nı̆ vı̆ s ātquĕ dīrāe
Grandinis misit Pater, et rubente
Dextera sacra iaculatus arces,
Tērrŭı̆ t ūrbĕm.39
Você bem vê que o quarto metro, composto de um coriambo seguido
de uma longa, é menor que os três primeiros, que são iguais entre si.
Essa diversidade tem uma segunda causa, que vem da espécie dos pés,
por exemplo:
Grātō | Pyrrhă sŭb ān|trō ,
Cūi flā|vām rĕlı̆ gās | cŏ măm.40
Você percebe, com efeito, que o primeiro dos dois metros compõe-se
de um espondeu, de um coriambo seguido de uma longa, que devemos
acrescentar ao espondeu para completar os seis tempos: o segundo é
composto de um espondeu e de um coriambo seguido de duas breves,
que, acrescentadas também ao espondeu, completam os seis tempos.
Esses metros são, portanto, iguais quanto ao número dos tempos, mas
os pés oferecem uma diferença bastante perceptível.
Existe, nessas combinações, outro princípio de diferença, ei-lo aqui:
dentre os metros, alguns deles se unem entre si de tal modo que não é
necessária a interposição de nenhuma pausa, como no exemplo
anterior. Outros exigem que se interponha uma certa quantidade de
pausas, como no exemplo:
Vı̆ dēs ŭt āltā stēt nı̆ vĕ cāndı̆ dŭm
Soracte, nec iam sustineant onus
Sīlvāe lăbō rāntēs, gĕlūquĕ
Flūmı̆ nă cō nstı̆ tĕrīnt ăcūtō .41
Os dois primeiros metros exigem ao nal uma pausa de um tempo; o
terceiro, uma pausa de dois tempos; o quarto, uma pausa de três
tempos. Reunidos, todos, eles nos obrigam, quando passamos do
primeiro ao segundo, a observar uma pausa de um tempo; do segundo
ao terceiro, uma pausa de dois tempos; do terceiro ao quarto, uma
pausa de três tempos. Se retornamos do quarto ao primeiro, será
necessário respeitar uma pausa de um tempo. O procedimento para
retornar do quarto ao primeiro é o mesmo, quando se trata de passar
a uma segunda combinação do mesmo gênero. Essas combinações são
chamadas, com razão, de circuito, o que corresponde à palavra grega
período. Um período não pode ter menos de dois membros, ou seja,
dois metros, e decidiu-se que ela não poderia ter mais de quatro
membros ou metros. Podemos, portanto, chamar o período menor de
bimembre, aquele intermediário, de trimembre, e o último, de
tetramembre, o que corresponde às palavras gregas dikolon, trikolon,
tetrakolon.
Dado que iremos abordar esse tema com todos os desenvolvimentos
nele contidos, em nossa conversa posterior a respeito da versi cação,
limitaremos nossa re exão por aqui.
Concluindo, acho que agora você já compreende que as espécies de
metros, as quais descobrimos ser em número total de 568, são na
verdade incalculáveis; pois, ao propor esse total, só havíamos levado
em conta as pausas acrescentadas ao nal; não havíamos falado da
mistura de pés entre si e, en m, da resolução das longas em breves, a
qual aumenta o pé para além de quatro sílabas. Se agora queremos
considerar todas as maneiras de intercalar as pausas, de substituir os
pés, de resolver essas longas e fazer a soma de todos os metros,
teremos um número tão elevado que talvez nem encontremos um
termo para expressá-lo. Quanto aos exemplos por nós oferecidos, e a
todos os outros que podem ser dados, por mais que o poeta, em suas
composições, produza versos perfeitos que agradem os ouvidos, se a
execução de um músico não faz jus a essa perfeição, se o gosto dos
ouvintes não é devidamente educado, será impossível sentir a verdade
de nossa teoria.
Descansemos um pouco e tratemos a seguir dos versos.
A: De acordo.
1 Se tu és alguém, age bem; aquele que age mal nada faz, e é por conseguinte infeliz.
2 Quem age mal nada faz / Quem age mal perece.
3 Que dizer de um homem que ama, em outro homem, seus atributos perecíveis? Ame-se,
pois, em um homem, o seu espírito, e o amor terá então um real objeto.
4 O amor é puro se a alma é pura; o amor busca um abrigo; a alma é sua morada. Assim ele
encontra excelente abrigo quando a morada é excelente; e mau, quando ela é má.
5 O espírito do homem nutre bons ou maus pensares; se ele busca o bem, o tem; se busca o
mal, o tem também.
6 O espírito do homem busca para obter os bens em que possa repousar.
7 Ou quatro pés e meio.
8 O mau ama e é carente, pois ama os bens que não podem satisfazê-lo.
9 O homem que se prende aos bens frágeis e passageiros encontra igualmente aquilo que
busca.
10 O homem que ama bens efêmeros, frívolos, passageiros, será como eles.
11 Mesmo signi cado.
12 A alma que deseja os bens efêmeros, frívolos, perecíveis, terminará por parecer-se com eles.
13 A alma frágil que se apega aos bens ligeiros, frágeis, mesquinhos, acaba por parecer-se com
eles.
14 A alma frágil que se apega aos bens passageiros, efêmeros, frívolos, frágeis, acaba por
parecer-se com eles.
15 O homem de bem ama os bens sólidos, e quem os ama os possui. Assim o amor não
padece do vazio, e esses bens são o próprio Deus.
16 O homem de bem é feliz.
O mau é infeliz; ele produz sua própria infelicidade.
O homem de bem é feliz: Deus é sua felicidade.
O homem de bem é feliz, ele vê Deus e se alegra.
O homem de bem tem também o gosto pelo bem: ao ver Deus ele é feliz.
Aquele que deseja ver Deus e que vive como um homem de bem, o verá.
Àquele que deseja ver o bom dia, basta ser bom, e ele também verá Deus.
Àquele que deseja ver o bom dia, basta ser bom em tudo, e ele também verá Deus.
O homem de bem é feliz, pois ele desfruta de Deus.
O mau é infeliz; mas ele se torna seu próprio carrasco.
O homem de bem vê Deus; ele não deseja mais nada.
O mau busca o bem fora de Deus; e vem daí o vazio que ele experimenta.
O homem de bem vê Deus; ele não aspira a mais nenhum outro bem.
O mau busca o bem fora de Deus; assim ele vaga em busca de satisfazer suas necessidades.
O homem feliz vê Deus; ele não aspirará a nenhum outro bem.
17 Aos perfeitos nada falta.
A verdade supre as necessidades.
A verdade basta; ela é imutável.
A verdade é obra suprema de Deus.
O Mundo que você vê é obra da verdade.
Tudo aquilo que chega aos nossos olhos é criado pela verdade.
Tudo foi feito pela verdade; a verdade é o ideal de todas as coisas.
Vejo que tudo foi feito pela verdade.
A verdade é imutável; o Mundo está em movimento.
Você vê que tudo foi feito pela verdade.
A verdade é imutável; e tudo se move.
Você vê que todas essas coisas são obra da verdade.
No entanto, a verdade é imutável; e essas coisas se movem.
Você vê que tudo foi excelentemente criado pela verdade.
A verdade é imutável, tudo se move, mas com regularidade.
Você vê que tudo foi criado e ordenado pela verdade.
A verdade é imutável: ao renovar as coisas, ela as coloca ao mesmo tempo em movimento.
Tudo foi feito, tudo foi ordenado pela verdade.
A verdade renova tudo; ainda que permaneça imutável, tudo é posto por ela em movimento.
Tudo foi feito pela verdade; tudo foi posto em ordem por ela;
A verdade, ainda que imutável, renova todas as coisas; ela as põe em movimento para se
renovar.
18 A liberdade é privilégio dos grandes corações.
Grandes são os dons da liberdade.
Só é livre aquele que triunfa contra o erro.
Só vive em liberdade quem já triunfou contra o erro.
Só se torna livre aquele que rompe as correntes do erro.
Aquele que já rompeu as correntes do erro leva uma vida em liberdade.
Só vive uma vida sem enganos quem já rompeu as correntes do erro.
Só vive em legítima e verdadeira liberdade aquele que, em sua alma, rompeu as correntes do
erro.
Só vive realmente e sem falsidade na liberdade quem venceu as barreiras funestas do erro.
Só o homem livre leva uma vida repleta de uma grandeza real e sem mentiras, quando ele já
rompeu com as sombrias correntes do erro.
Só o homem livre tem uma vida de grandeza e sem mentiras; ele rompeu, com sua prudência,
as correntes do erro.
Só o homem livre vive real e verdadeiramente em segurança; ele rompeu, com sua prudência,
as funestas correntes do erro.
Só o homem livre vive em segurança, realmente e sem ngimento; ele rompeu, com sua
prudência, as cruéis e funestas correntes do erro.
Só o homem livre leva uma vida tranqüila, realmente sem ngimento; ele rompeu, com sua
prudência, as cruéis e funestas correntes do erro.
19 Cf. cap. III, IV, V, VI.
20 O mestre se cansa ao instruir espíritos pesados.
21 Onde o amor abunda não há esforço.
22 Lemos aqui sensu e não censu, pois este último, que signi ca “cálculo dos tempos”,
formaria com ratione uma tautologia.
23 Cuidado com o ardiloso. Cuidado com o pervertido. Cuidado com o falastrão. Cuidado
com o ardil. Cuidado também com o invejoso, e, en m, com o homem fraco.
24 As pessoas sinceras são reis. Os sábios são reis. Aqueles que dizem a verdade são reis. A
prudência é rainha. Os bons reinam sobre os bons. Tudo quanto seja puro reina.
25 Esses pés de duas sílabas são o pirríquio, o jambo, o troqueu, o espondeu (14x4=56).
26 O aluno, como vimos, havia combinado um segundo epítrito com um jambo seguido de
uma pausa.
27 Tu vês como a tripla ascensão de Hécate faz turbilhonar a chama.
28 Por muito tempo Júpiter lançou neve e um granizo funesto sobre a Terra; por muito tempo
seu braço in amado lançou raios sobre os templos sagrados (Horácio, l. 1, ode 2).
29 Ele galopa em meio aos cavalos de nossa nação.
30 As árvores padecem, sem suas folhas, e o granizo retém o curso das águas. — NT.
31 Os campos exalam os encantos da primavera; a andorinha corre a solicitar nossa
hospitalidade.
32 O trompete faz soar no metal contorcido um som terrível.
33 A temperatura se renova; as brisas são mornas: que visão mais prazerosa.
34 A verdade está a nosso alcance se dizemos a verdade.
35 A verdade está a nosso alcance: diga a verdade.
36 Quando cultivares ramos distintos, una-os de modo a que a vinha e o olmeiro cresçam
juntos.
37 V. mais abaixo, l. 5, cap. V.
38 Que a lira harmoniosa possa pender em meus ombros. Que ela possa formar sons variados
que ecoem nas orestas verdejantes e no rio que serpenteia. (Terêncio; Pompônio).
39 Por muito tempo Júpiter lançou neve e um granizo funesto sobre a Terra; por muito tempo
seu braço in amado lançou raios sobre os templos sagrados. (Horácio, l. 1, ode 2).
40 Por quem, ó Pirra, estás a trançar teus loiros cabelos dentro desta caverna? (Horácio, l. 1,
ode 5).
41 Vê como se ergue, coberto de uma neve espessa, o alvo cume do Soracte; as árvores
padecem, sem suas folhas, e o granizo retém o curso das águas. (Horácio, l. 1, ode 9).
LIVRO QUINTO
Sobre o verso
I. Diferença entre ritmo, metro e verso
M: A de nição de verso foi objeto de uma discussão séria e fecunda
entre os sábios da Antigüidade. O verso é uma invenção humana,
transmitida ao longo da História; mas, independentemente do
testemunho imponente e el da autoridade, essa invenção repousa
sobre uma base racional. Com efeito, percebeu-se que havia uma
diferença entre a noção de ritmo e de metro, de modo que, se por um
lado todo metro é um ritmo, por outro nem todo ritmo é um metro.
De fato toda a combinação regular de pés é rítmica, e como o metro
oferece essa combinação é impossível que o movimento cadenciado —
em outras palavras, o ritmo — esteja aí ausente. Mas como uma
sucessão de pés regulares, sem um limite determinado, é muito
diferente de uma progressão de pés igualmente regulares que se
conclui num limite xo, viu-se que havia duas coisas que deveriam se
distinguir por dois termos; assim, a primeira foi designada pela
palavra ritmo, e a segunda, por metro — esta última sem deixar de ser
classi cada, no entanto, também como um ritmo. Ademais, como
esses movimentos cadenciados que têm um m determinado — falo
dos metros — admitem ou não um corte em sua metade, eles
apresentam assim uma diferença também entre si, que deveria ser
expressa por termos distintos. Chamou-se, portanto, propriamente
metro a espécie de ritmo que não oferece esse corte, e verso, aquela
que o apresenta. Talvez a razão nos mostrará, no decorrer de nossa
discussão, a etimologia dessa palavra. Não creia, contudo, que esse
termo seja a tal ponto exclusivo que não se possa chamar de verso os
metros sem corte. Mas uma coisa é empregar um termo de forma
abusiva, estendendo-o a uma signi cação vizinha, outra é designar um
objeto pelo termo especial que lhe convém. Limitemos por aqui nossas
buscas quanto a essas palavras: o emprego delas, como sabemos,
depende essencialmente das convenções dos interlocutores ou do uso
que acabou por se estabelecer. Sugiro que estudemos as questões que
nos restam, através do nosso método no qual o ouvido propõe e a
razão julga, e você reconhecerá que os inventores célebres da
Antigüidade, longe de terem imaginado as leis à margem da bela e sã
natureza, zeram todas essas descobertas com o auxílio da razão e
lhes designaram por termos precisos.
II. Os metros passíveis de serem divididos em duas partes são
mais perfeitos que os outros
M: Diga-me, antes de mais nada, se o prazer que a medida de um pé
provoca no ouvido não se deve unicamente à harmoniosa simetria
existente entre suas duas partes, a ársis e a tésis.
A: Essa é uma verdade de que já estou plenamente convencido.
M: Pois bem! E quanto ao metro, que resulta evidentemente de uma
união de pés, será de fato impossível dividi-lo? Veja se não há uma
impossibilidade absoluta de submeter uma coisa indivisível à sucessão
temporal, e uma contradição em ver como indivisível um todo
composto de duas partes divisíveis.
A: As coisas dessa última espécie são perfeitamente passíveis de
divisão.
M: Ora, dentre os objetos passíveis de serem divididos, não há ainda
maior beleza quando as partes têm, entre elas, uma certa simetria, e
não uma ausência de harmonia?
A: É incontestável.
M: E qual é o número que produz nos pés essa divisão simétrica?
Não será o número dois?
A: Seguramente.
M: Ora, dado que nós reconhecemos que um pé se divide em duas
partes correspondentes, e que é por meio dessa simetria que ele agrada
o ouvido, se encontramos um metro similar, não teríamos o direito de
preferi-lo a todos aqueles que não têm esse caráter?
A: Concordo plenamente.
III. Etimologia da palavra verso
M: Muito bem, responda pois a esta pergunta: como existe em tudo
aquilo que se mede por um certo intervalo de tempo partes que
precedem, seguem, iniciam, concluem, não lhe parece que deva existir
uma diferença entre o membro que forma a cabeça e o início do
metro, aquele que vem no meio e aquele do nal?
A: Sim, me parece.
M: Diga-me, pois, que diferença existe entre esses dois membros de
verso:
Cō rnŭă vēlātārŭm
e o segundo:
Vērtı̆ mŭs āntēnnārŭm.1
Se pronunciamos esse verso, sem empregar a expressão de Virgílio,
obvertimus, não é verdade que ao repeti-lo diversas vezes passamos a
não mais distinguir o primeiro do segundo?
A: É verdade, toda distinção desaparece.
M: Não será preciso evitar essa confusão?
A: Sem dúvida.
M: Veja pois se não o evitamos com êxito nesse verso:
Ārmă vı̆ rūmquĕ cănō
seguido de:
Trō iaē quī prīmŭs ăb ō rīs.
O primeiro membro é Arma virumque cano, o segundo: Trojae qui
primus ab oris. Eles são tão diferentes entre si que, se invertemos a
ordem, dizendo:
Trojae qui primus ab oris arma virumque cano,
é preciso fazer a escansão com um tipo de pé totalmente diferente.
A: Compreendo.
M: Veja também se esse princípio foi observado nos versos seguintes.
Você reconhece, com efeito, que a medida do primeiro membro
Arma vi|rumque ca|no
é idêntica em
Itali|am fa|to||;
Littora | multum il|le et ||;
Vi supe|rum sae|vae ||;
Multa quo|que et bel|lo ||;
Infer|retque de|os ||;
Alba|nique pa|tres ||.
En m, prossiga com essa veri cação tanto quanto quiser na Eneida,
e verá que todos os primeiros membros dos versos têm a mesma
medida, ou, em outras palavras, a divisão se dá no quinto semipé. É
muito raro que essa união não se dê de modo a tornar igualmente
simétricos os segundos membros dos versos, que são:
Tro|iae qui | primus ab | oris
Profu|gus La|vinaque | venit
Ter|ris iac|tatus et | alto
Memo|rem Iu|nonis ob | iram
Pas|sus dum | conderet | urbem
Lati|o genus | unde La|tinum
At|que altae | moenia | Romae.
A: Nada mais evidente.
M: Assim, vemos que no verso heróico há dois membros, um deles
com cinco meios-pés, o outro, com sete. Como é sabido, esse tipo de
verso compõe-se de seis pés de quatro tempos cada um. Sem simetria
entre os dois membros, seja desta ordem que acabamos de ver, seja de
qualquer outro tipo, não há verso. Ora, como a razão nos mostrou, é
preciso distribuir esses membros de modo que não seja possível
substituir um pelo outro. Caso contrário, só poderíamos dar a isso o
nome de verso por extensão. Tratar-se-ia de um ritmo, um metro,
coisa bastante rara nos poemas longos, e que no entanto têm sua
graça, como aquele que já citamos:
Cornua velatarum vertimus antennarum.
Eis por que a palavra verso não parece vir, como pensam diversos
críticos, do fato de se voltar do m ao início numa mesma
combinação de pés. De acordo com eles a palavra seria um
empréstimo do hábito de se voltar, vertere, versum, quando
retornamos na pista de nossos próprios passos. A bem da verdade,
esse é um traço comum entre o verso e o metro, o qual não é um
verso. Quanto a mim, vejo nessa palavra uma antífrase; assim como
os gramáticos chamam de deponentes os verbos que não depõem a
letra R, como lucror e conqueror, também, a meu ver, o verso que se
compõe de dois membros que não podem ser invertidos entre si sem
prejuízo da harmonia foi chamado de verso pois não admite
conversão.
Ademais, que você aprove uma ou outra dessas etimologias, que as
condene ambas e procure uma terceira explicação ou, en m, que você
despreze todas essas questões gramaticais, como eu, pouco importa.
Não é necessário se preocupar com a origem de um termo, quando a
idéia que ele exprime está perfeitamente clara. Você teria alguma
objeção a me apresentar a esse respeito?
A: Nenhuma; queira continuar.
IV. Sobre o nal do verso
M: Voltemos nossa atenção, agora, para o nal do verso. Quis a razão
que o m do verso tivesse uma diferença perceptível, que o distingue
do restante do verso. Você não prefere que o último elemento de um
movimento cadenciado seja posto em evidência, sem que isso perturbe
a igualdade dos tempos, ao invés de deixá-lo igual às outras partes, ou
seja, àquelas que não formam o nal do verso?
A: Quem duvida que seja necessário preferir, em tudo, a clareza?
M: Examine pois se o espondeu, como o quiseram certos gramáticos,
conclui o verso heróico de um modo destacado. Podemos colocar os
cinco primeiros pés em dátilo ou espondeu, mas só o espondeu pode
concluir o verso. Se dizemos que o troqueu também pode, é porque ele
equivale a um espondeu, pois a nal é indiferente, como já vimos
repetidamente. Se quisermos seguir radicalmente a opinião desses
gramáticos, o jâmbico de seis pés ou não poderá mais formar um
verso, ou não terá mais uma conclusão destacada, dupla hipótese
igualmente absurda. Pois os sábios — e mesmo as pessoas que só
gozam de um conhecimento raso e super cial — nunca duvidaram que
haja um verdadeiro verso, seja nesse jâmbico de Catulo:
Phăsēlŭs īllĕ quēm vı̆ dētı̆ s hō spı̆ tēs
seja em qualquer outra combinação de palavras assim cadenciadas.
Ademais, alguns críticos de grande autoridade a rmaram não ser
preciso ver versos em toda união que não apresente uma conclusão
acentuada.
A: É verdade. O m do verso deve pois ser reconhecido por uma
marca mais pronunciada do que aquela que conclui o espondeu.
M: Pois bem! Você duvida que essa marca essencial, seja ela qual for,
consiste na diferença de um pé, de um tempo, ou de ambos ao mesmo
tempo?
A: E poderia haver outra diferença?
M: Mas, então, qual das três você escolherá? Quanto a mim, quando
penso que a terminação destinada a limitar o verso em seus justos
limites só depende da duração do tempo, parece-me que não podemos
buscar em outra causa senão nos tempos essa marca essencial. Você
discorda?
A: Ao contrário, concordo plenamente.
M: E você vê, além disso, que como o tempo só pode ser distinguido
segundo sua duração curta ou longa é preciso que o verso, em que a
terminação se destina a servir de ponto de chegada, tenha por m
destacado um tempo mais curto?
A: Vejo claramente; mas por que tratar disso agora?
M: Porque nós nem sempre transformamos a diferença dos tempos
numa duração mais ou menos longa. Por acaso você crê que não haja
entre o inverno e o verão outra diferença além de suas respectivas
durações? Não seria mais pertinente distinguir essas duas estações pela
diferença especí ca entre frio e calor, secura e umidade e todo e
qualquer outro traço marcante?
A: Compreendo agora, e estou perfeitamente de acordo que um
tempo mais curto deva formar a terminação do verso.
M: Preste atenção, pois, nesse verso:
Rō mă, | Rō mă, | cērnĕ | quāntă | sīt dĕ|ūm bĕ|nīgnı̆ |tās.2
É um trocaico. Escanda-o e diga-me quais são os dois membros e de
quantos pés ele é composto?
A: Quanto aos pés, a resposta é fácil. É evidente que há sete e meio.
Quanto aos dois membros, já não está tão claro. A frase é cortada em
muitos pontos. No entanto, imagino que a divisão deve ser feita no
oitavo semipé, de modo que o primeiro membro se comporá dessas
palavras: Roma, Roma, cerne quanta; o segundo destas: sit deum
benignitas.
M: Quantos meios-pés há nesse último membro?
A: Sete.
M: Foi a razão que o guiou até essa resposta. Dado que a igualdade
é valor altíssimo e forma o primeiro objeto a se buscar numa divisão,
é preciso, quando não se a pode alcançar, tomar aquilo que dela mais
se aproxima, e dela nos afastar o mínimo possível. Como esse verso
tem no total quinze meios-pés, o modo de divisão mais justo seria em
oito e sete meios-pés: a divisão que mais nos aproximaria seria
também em sete e oito meios-pés; mas, ao adotar este segundo modo,
não marcaríamos mais a conclusão do verso por um tempo curto,
como exige a razão. Suponhamos com efeito que o verso seja este:
Roma | cerne | quanta | sit || tibi | deum | beni|gnitas.
Ou seja, o primeiro membro compõe-se de sete meios-pés. Roma |
cerne | quanta | sit, e o segundo, de oito: tibi | deum | beni|gnitas. Não
haveria mais meios-pés para encerrar o verso, dado que oito meios-pés
formam quatro pés completos. Soma-se a isso outro inconveniente
ainda mais grave: não seria mais possível escandir o último membro
com os mesmos pés que o primeiro, e o primeiro membro apresentaria
aquela terminação destacada, saliente, de um tempo mais curto, ou de
um semipé, e não mais se apresentaria no segundo membro, o qual
exige essa terminação. Com efeito escandiríamos, no primeiro
membro, três troqueus e meio:
Roma, | cerne | quanta | sit
no segundo, quatro jambos:
tibi | deum | beni|gnitas.
Com o primeiro modo de divisão, ao contrário, escandimos os dois
membros com troqueus e o verso se encerra por um semipé; desse
modo a terminação mantém sua marca distintiva de um tempo mais
curto. O primeiro membro, com efeito, compõe-se de quatro troqueus:
Roma, | Roma, | cerne | quanta;
o segundo, de três troqueus e meio,
sit de|um be|nig|ni|tas.
Você tem alguma objeção?
A: Nenhuma, e concordo perfeitamente.
M: Observemos, pois, escrupulosamente, essas regras incontestáveis;
1 – O verso deve sempre ser dividido em dois membros que se
aproximam o máximo possível da igualdade, como é o caso em:
Cornua velatarum obvertimus antennarum;
2 – A igualdade não deve jamais ser tão perfeita entre os dois
membros que se os possa inverter,3 como poderíamos fazer no caso de:
Cornua velatarum vertimus antennarum;
3 – Ao escapar dessa possibilidade de inversão, os dois membros
tampouco devem ser desiguais, mas oferecer o número de meios-pés o
mais próximo possível, e que assim não se venha dizer que podemos
dividir esse último verso em dois membros compostos, o primeiro com
oito sílabas:
Cornua velatarum vertimus;
o segundo, com quatro:
antennarum;
4 – O último membro não deve ter um número par de meios-pés,
como:
tibi deum benignitas,
para se evitar que falte ao verso, concluído por um pé completo, uma
terminação marcada por um tempo mais curto.
A: Compreendo essas regras e as gravo com todas as minhas forças
na memória.
V. Final do verso heróico
M: Como sabemos que o verso não deve ser concluído por um pé
completo, como deveremos escandir o verso
heróico, na sua opinião, para observar a regra do hemistíquio,
formando assim o m do verso?
A: Esse verso compõe-se de 12 meios-pés. Ora, os dois membros não
podem ter seis pés cada, pois temos de evitar a possibilidade de
inversão entre eles. Não devemos, tampouco, permitir que haja entre
eles uma desigualdade tal como 3 para 9, ou 9 para 3; nem formar o
semimembro com um número par de meios-pés, numa relação de 8
para 4 ou 4 para 8, se não quisermos concluir o verso por um pé
completo: a divisão deverá pois ser feita em 5 para 7 ou 7 para 5
meios-pés. São esses, com efeito, os dois números ímpares mais
próximos entre si, e desse modo os dois membros cam mais
acercados um do outro do que se a relação fosse de 4 para 8 ou 8 para
4. O que fortalece, em mim, essa opinião, é que o primeiro
hemistíquio se conclui sempre ou quase sempre no quinto semipé,
como no primeiro verso da Eneida:
Arma virumque cano,
[no segundo]
Italiam fato;
[no terceiro]
Littora multum ille et
[e, no quarto],
Vi superum saevae,
e assim por diante, do início ao m do poema.
M: Você tem razão, mas está re etindo sobre o modo como se
escande, colocando toda sua atenção na observação das regras
incontestáveis que acabamos de estabelecer.
A: Vejo qual é o método que precisamos seguir; mas isso é algo tão
novo para mim que me desestabiliza. O costume consiste em escandir
esses versos em dátilos e espondeus — ninguém é a tal ponto mal-
informado para ignorar essa teoria, ainda que se possa ter di culdade
em aplicá-la na prática. Ora, se eu quiser seguir o costume geral, é
preciso renunciar à regra que distingue o verso em sua terminação: o
primeiro membro, com efeito, seria concluído por um semipé, o
segundo, por um pé completo, ordem inversa àquela que
estabelecemos como sendo a apropriada. Mas, dado que seria um
grande erro anular essa regra, e que, quanto ao ritmo, já aprendi que
era perfeitamente possível começar por um pé incompleto, basta
substituir o dátilo pelo anapesto combinado com o espondeu. Nesse
sistema, o verso começará por uma longa; será seguido de dois pés,
compostos indistintamente de espondeus ou de anapestos, que
concluirão o primeiro membro. Três anapestos ou dois espondeus
antes do terceiro anapesto formam o segundo membro, e falta uma
longa para concluir regularmente o verso. Você aprova esse meu
raciocínio?
M: Considero-o mui correto, mas trata-se de um ponto que nem
todos têm facilidade para entender. A força do hábito é tal que, uma
vez que incorporamos um erro em nossos costumes, torna-se ele o pior
inimigo na busca da verdade. Para compor um verso heróico pouco
importa, você pode bem ver, que se misture o anapesto ou o dátilo
com o espondeu; para escandi-lo logicamente, operação que depende
da razão e não do ouvido, não devemos nos apoiar num preconceito,
mas proceder com método. O método que aplico aqui não é invenção
minha, e é mesmo muito anterior à rotina que acabou por se impor.
Leiam-se os autores gregos ou latinos que mais se aprofundaram nessa
matéria; aprenderemos com menor surpresa quais são nossos
princípios. Mas não seria vergonhoso ter de recorrer à autoridade
para sustentar a razão? Nada deveria se sobrepor à autoridade
oriunda da própria razão e da verdade pura, tão superior ao homem,
seja ele o gênio que for. Devemos recorrer à autoridade dos antigos
quando se trata de ver se é preciso pronunciar uma sílaba longa ou
breve, a m de nos mantermos éis ao costume no emprego das
mesmas palavras. Em tal caso vemos que há, com freqüência, certa
preguiça em se preservar os costumes, proporcional a um temerário
desejo de inovação. Quando se trata de escandir um verso, é preciso
ter o cuidado de não obedecer a um preconceito inveterado em
detrimento da verdade eterna. Pois o ouvido é o primeiro a nos revelar
a justa medida do verso; um exame lógico do número de pés nos
permite em seguida aprová-lo, e, para compreender que é preciso
concluir o verso por uma terminação destacada, basta ver que o verso
deve ter uma terminação mais marcada que os metros, e que uma
terminação nesse caso é bem marcada por um tempo mais curto, de
vez que há um limite e de certo modo um freio que xa e limita a
duração.
VI. Continuação do capítulo anterior
Se é assim, o segundo membro só poderá, todas as vezes, ser concluído
por uma fração de pé. Quanto ao primeiro membro, ele deve começar
ora por um pé completo, como neste verso trocaico:
Roma, Roma, cerne quanta sit deum benignitas;
ora por um incompleto, como neste verso heróico:
Arma virumque cano Trojae qui primus ab oris.
Agora faça uma pequena trégua nas suas perguntas, escanda esse
verso e me diga quais são os dois membros e os distintos pés:
Phaselus ille, quem videtis, hospites.4
A: Percebo que os dois hemistíquios são divididos em cinco e sete
meios-pés; de modo que as palavras Phaselus ille formam o primeiro,
e estas: quem videtis hospites, o segundo: quanto aos pés, trata-se de
jambos.
M: Você chegou a perceber que, em seu modo de escandir, o segundo
hemistíquio se conclui por um pé completo?
A: É verdade, não sei em quê eu estava pensando. Como não
perceber, com efeito, que é preciso aqui começar por um semipé, como
no verso heróico? Seguindo esse procedimento, escandimos o verso
por troqueus e não por jambos, e ele se conclui regularmente por um
meio-pé.
M: Muito bem. Mas como você irá escandir o verso chamado
asclepíade; por exemplo:
Maēcē|nās ătăvīs || ēdı̆ tĕ rē|gı̆ bŭs.5
O verso é cortado na sexta sílaba; ora não se trata de uma exceção, é
um costume, por assim dizer, consagrado nos versos dessa espécie. O
primeiro hemistíquio é, portanto: Maecenas atavis; o segundo: edite
regibus. A razão desse corte pode parecer duvidosa. Com efeito,
escanda esse verso em pés de quatro tempos e você terá cinco meios-
pés no primeiro membro, quatro no segundo. Ora, a regra nos proíbe
de formar o segundo membro por um número par de semipés, se
quisermos que o verso não seja terminado por um pé completo. É
preciso, portanto, ver no verso dessa espécie pés de seis tempos, o que
nos dará dois hemistíquios compostos de três meios-pés cada. Para
que o primeiro membro se conclua por um pé completo, é preciso
começar por duas longas; vem a seguir um coriambo que divide o
verso de tal modo que o segundo membro começa também por um
coriambo e que o verso se conclui por um semipé de duas breves: esses
dois tempos, acrescentados ao espondeu colocado no início, formam
um pé completo de seis tempos.
Você tem algo a dizer quanto a isso?
A: De fato, nada.
M: Então não lhe parece haver inconveniente em formar cada
membro com um número igual de meios-pés?
A: Ora, por quê? Não há risco de inversão entre os membros aqui,
pois, se colocamos o segundo membro em lugar do primeiro, e assim
reciprocamente, a rítmica dos pés não será absolutamente mais a
mesma. Não há, portanto, nenhuma razão para não compormos os
dois membros, nessa espécie de verso, por um igual número de meios-
pés; essa igualdade exclui ao mesmo tempo a conversão dos dois
membros; a regra que exige uma terminação em destaque é respeitada,
e o verso é concluído, como necessário, por uma fração de pé.
VII. Como conduzir à igualdade o número desigual de meios-
pés em cada membro? Da relação de igualdade entre os
membros de 4 e 3 meios-pés, de 5 e 3 meios-pés
M: A questão agora não nos oferece mais nenhuma di culdade: a
razão nos fez descobrir que existem duas sortes de versos, uns deles
em que o número de meios-pés é igual nos dois membros, e outros em
que é desigual. Peço que examinemos com atenção por qual segredo
essa desigualdade pode ser conduzida a uma relação de igualdade; isso
é fruto de um cálculo um tanto difícil, mas muito exato. Responda-me
esta questão: quando digo 2 e 3, de quantos números eu falei?
A: De dois números.
M: Portanto 2 é um número, tanto quanto 3, e assim por diante?
A: Sim.
M: Não será possível inferir, partindo disso, que o número 1 tem
uma relação sensível com todos os outros números? Pois, se é absurdo
dizer que 1 é 2, não é absurdo dizer que, em certos aspectos, 2 é 1; de
igual modo não é errado pretender que 3 ou 4 também sejam 1.
A: Concordo.
M: Outra questão: 2 multiplicado por 3, quanto dá?
A: 6.
M: Se eu somar 6 e 3 tenho o mesmo resultado?
A: De fato, não.
M: Multiplique também 3 por 4, por favor, e me diga qual é o
produto.
A: 12.
M: Você vê ainda que 12 é maior do que 4.
A: Sim, bem maior.
M: Sem mais tardar, coloquemos a regra: a partir de 2, se tomarmos
qualquer número e o multiplicarmos por outro maior, o resultado
deverá necessariamente ultrapassar o maior.
A: Será possível duvidar disso? Pode haver um número plural menor
do que 2? No entanto, se multiplico esse número por mil, ele se torna
o dobro de mil: que diferença!
M: Muito bem. Mas agora tome 1 e um número qualquer por fator;
multiplique, como você acaba de fazer, o menor pelo maior; será que o
menor ainda ultrapassará o maior?
A: Não, o menor se tornará igual ao maior. Pois uma vez 2 é igual a
2, uma vez 10 é igual a 10, uma vez 1.000 é igual a 1.000, e, seja qual
for o multiplicador, multiplicá-lo por 1 o tornará igual a ele mesmo.
M: Assim, pois, o número 1 tem, por uma espécie de privilégio, uma
relação de igualdade com todos os outros números, não apenas por
ser um número, mas também porque se torna igual a todo número que
lhe serve de multiplicador?
A: Não há dúvidas quanto a isso.
M: Pois bem! Agora volte sua atenção para o número de meios-pés
que, num verso, tornam os membros desiguais entre eles e você
descobrirá aí uma surpreendente igualdade seguindo o procedimento
que acabamos de indicar. Com efeito, o menor dos versos tem um
número desigual de meios-pés nos dois membros, dado que ele se
compõe de 4 e 3 meios-pés, por exemplo:
Hospes ille || quem vides.
O primeiro membro, hospes ille, pode ser dividido em duas partes
iguais, cada uma delas com dois meios-pés. O segundo membro, quem
vides, divide-se em dois semipés e um semipé. Essa relação de 2 para 1
é a mesma que de 2 para 2, por conta da relação de igualdade que o
número 1 sustenta com todos os outros números, como vimos. Graças
a esse modo de divisão o primeiro membro se torna igual ao segundo.
Mas, se temos 4 meios-pés de um lado e 5 de outro, como nesse verso:
Roma, Roma, || cerne quanta sit,
essa combinação não é mais tão legítima e forma antes um metro do
que um verso, pois a desigualdade entre os membros é demasiado
grande para que cada modo de divisão permita o estabelecimento de
uma relação de igualdade entre eles. Creio que você bem vê que os 4
meios-pés do primeiro membro se dividem em duas partes de dois,
enquanto que os cinco últimos se dividem primeiro em 2 meios-pés,
depois em 3, o que destrói toda possibilidade de igualdade, dado que
5 meios-pés divididos em 2 e 3 não podem equivaler a 4 meios-pés tal
como 3 meios-pés divididos em 1 e 2 equivaliam, como acabamos de
ver no menor verso, a 4. Haverá nessa explicação algo que lhe escape
ou que o desagrade?
A: Longe disso, tudo me parece claro e plausível.
M: Examinemos agora 5 meios-pés em um membro e 3 no outro,
tomando por exemplo esse pequeno verso:
Phaselus ille, || quem vides.
Tentemos descobrir como essa desigualdade esconde uma verdadeira
relação de igualdade. Pois essa combinação é, na opinião de todos,
não apenas um metro, mas também um verso. Assim, pois, depois de
termos compartilhado o primeiro membro em 2 e 3 meios-pés e o
segundo em 2 e 4, reunindo as frações que nos parecem iguais em um
membro e no outro, encontramos 2 no primeiro membro e sobram 2
no segundo; uma nos 3 meios-pés do primeiro membro, outra no
semipé do segundo. Podemos então reuni-los, dado que 1 se associa a
todos os números e que no total 1 e 3 formam 4, o que equivale a 2
mais 2. Portanto, graças a esse modo de divisão, 5 meios-pés de um
lado e 3 de outro unem-se numa harmoniosa concordância. Mas diga-
me se você compreendeu.
A: Entendi e estou perfeitamente de acordo.
VIII. Relação entre os membros de 5 e 7 meios-pés
M: Agora devemos tratar da relação de 5 para 7 meios-pés nos versos:
os mais conhecidos dessa espécie são o heróico e o verso de seis pés
que chamamos jâmbico. O seguinte verso:
Arma virumque cano || Trojae qui primus ab oris;
divide-se em dois membros; o primeiro é composto de 5 meios-pés,
Arma virumque cano; o segundo, de 7, Trojae qui primus ab oris.
Quanto a este:
Phaselus ille || quem videtis, hospites,
ele tem como primeiro membro: Phaselus ille, ou seja, 5 meios-pés;
seu segundo membro é Quem videtis, hospites, ou seja, 7 meios pés.
No entanto, esses versos tão célebres não são absolutamente
impecáveis do ponto de vista da igualdade dos membros! Pois se
dividimos os 5 primeiros meios-pés em 2 e 3, os 7 últimos em 3 e 4, as
frações de 3 estabelecerão, certamente, uma justa relação entre si. Se
as duas outras frações pudessem estar numa relação tal que uma delas
se compusesse de um semipé e a outra de 5, elas se uniriam entre si
segundo o princípio que permite que se associe o número 1 a todos os
outros, e teríamos assim um total de 6 meios pés, o que forma uma
relação de 3 para 3; mas ao invés disso encontramos 2 meios-pés de
um lado e 4 do outro, dando uma soma de 6 tempos, é certo… Porém
2 não pode, por nenhum princípio de igualdade, equivaler a 4, e
portanto esses dois números são inconciliáveis. Você objetaria se eu
dissesse que, para estabelecer uma relação de igualdade, basta que 3 e
3 somem 6 do mesmo modo como 4 e 2? Não creio que seja preciso
refutar essa objeção; de fato há aí uma verdadeira relação de
igualdade. Mas não me agrada que 5 e 3 meios-pés formem uma
relação mais próxima do que 5 e 7. O verso composto de 5 e 3 meios-
pés é, com efeito, menos estimado que aqueles de 5 e 7; no entanto
você perceberá que, no primeiro, não só não chegamos, reunindo 1 e 3
meios-pés, ao mesmo número que ao reunir 2 e 2; mas ainda que as
partes oferecem um conjunto bem mais harmonioso, quando
agrupamos 1 e 3 — por conta da a nidade de 1 pelos outros números
—, que quando reunimos 2 e 4 pés, como ocorre nos últimos. Há algo
obscuro para você nisso que digo?
A: Não, nada. Mas estou chocado, não sei por que, ao ver que esses
versos de seis pés, mais distintos e considerados os mais elevados, têm
membros em menor harmonia que aqueles que são menos apreciados.
M: Tenha paciência, em breve irei mostrar-lhe nos versos senários
uma harmonia que lhes é exclusiva, e você verá que não é sem razão
que os preferimos. Mas como o desenvolvimento desse ponto é um
pouco demorado — ainda que muito interessante, vamos reservá-lo
para o nal. Após haver examinado os outros, poderemos, quando
conveniente, aprofundar-nos no conhecimento das propriedades mais
misteriosas desses belos versos.
A: De acordo. Mas gostaria que concluíssemos todas as explicações
introdutórias para poder ouvir o resto mais serenamente.
M: É por meio da comparação com aquilo que acabamos de
examinar que você encontrará maior interesse na questão que atiça
sua curiosidade.
IX. Sobre os membros compostos de 6 e 7 meios-pés, de 8 e 7,
de 9 e 7
Examinemos pois, agora, se é possível encontrar em dois membros
compostos — um de 6, outro de 7 meios-pés — essa igualdade que
constitui um verso aceitável. Após os versos compostos de 5 e 7
meios-pés, devemos examinar efetivamente aquele de 6 e 7. Eis aqui
um exemplo:
Roma, cerne quanta || sit deum benignitas.
A: Percebo que o primeiro membro pode ser divido em partes de 3
meios-pés cada um; o segundo, em partes de 3 e 4 meios-pés. Ao
reunir as duas frações iguais encontramos 6 meios-pés — mas 3 e 4
formam 7 e não podem, portanto, ser o equivalente desse número.
Mas se contamos 2 e 2 na fração de 4 meios-pés, 2 e 1 na fração de 3
meios-pés, e reunirmos as frações de 2 meios-pés, temos como soma
um número quaternário. Reunindo as frações, das quais uma contém
2 meios-pés e a outra 1 e tomando essa soma por 4 meios-pés, por
conta da relação de 1 com todos os outros números, temos 8 meios-
pés, o que ultrapassa um total de 6 tempos, mais ainda que com
nossos 7 meios-pés de agora há pouco.
M: O que você diz está certo. Como essa relação de meios-pés está
excluída das regras do verso, veja agora o caso dos membros cujo
primeiro tem 8 meios-pés, o segundo, 7. Com efeito, é a relação que se
segue imediatamente após o caso precedente. Essa relação contém o
princípio que estamos buscando. Pois, reunindo a metade do primeiro
membro à fração do segundo membro maior e mais próxima da
metade, os meios-pés progredindo de 4 em 4, temos um total de 8
meios-pés. Restam, portanto, 4 meios-pés no primeiro membro, e 3 no
segundo; 2 meios-pés do primeiro membro e 2 do segundo, somados
dão 4. Sobrarão no primeiro membro 2 meios-pés e, no segundo, um
semipé que, somados, segundo a regra de convenção estabelecida entre
1 e todos os outros números, podem ser vistos como o equivalente de
4. Assim os 8 meios-pés do primeiro membro correspondem aos 8
meios-pés do segundo.
A: Ah! Por que você não me cita um exemplo dessa espécie de verso?
M: Porque nós nos deparamos constantemente com eles. No
entanto, para evitar que você pense que estou omitindo, ei-lo:
Roma, Roma, cerne quanta || sit deum benignitas;
ou este outro:
Optimus beatus ille || qui procul negotio.
Examine agora a relação de 9 para 7 meios-pés; eis um exemplo:
Vir optimus beatus || ille qui procul negotio.6
A: É fácil perceber a correspondência: o primeiro membro se divide
em 4 e 5 meios-pés; o segundo, em 3 e 4 meios-pés. A menor fração
do primeiro membro, reunida à maior do segundo, forma um total de
8 meios-pés. A maior do primeiro somada à menor do segundo forma
igualmente um total de 8 meios-pés: pois naquele somamos 4 e 4;
naquele, 5 e 3. Aliás, se você dividir os 5 meios-pés em 2 e 3, e os três
outros, em 2 e 1, descobre-se uma nova relação de 2 para 2, de 1 para
3, dado que o número 1, segundo o princípio estabelecido
anteriormente, alia-se a qualquer outro número. Mas, se não me
engano em meus cálculos, a questão referente a como os dois
membros se unem entre si já foi inteiramente esgotada, pois atingimos
o número de 8 pés, que é o limite de pés de um verso, como bem
sabemos. Assim, explique-me, agora, as propriedades ocultas dos
versos de seis pés que chamamos heróico, jâmbico ou trocaico.
X. Sobre a excelência dos versos de seis pés: perfeição
incomparável do heróico e do jâmbico dentre os versos de seis
pés
M: Eu o farei, ou melhor, a razão mesma, que é nosso guia comum, o
fará. Você lembra que em nossa conversa a respeito do metro
havíamos a rmado e provado, com a con rmação do ouvido, que os
pés cujas frações têm uma proporção sesquiáltera, de 2 para 3, como
o crético ou o peão; ou de 3 para 4, como os epítritos, são rejeitados
pelos poetas por conta de sua cadência carente de graça, ao mesmo
tempo que são um ornamento para a prosa, quando formam a queda
de um período?
A: Lembro-me disso: mas aonde você quer chegar?
M: Quero que entendamos, primeiramente, que uma vez que os
poetas se proibiram o uso dos pés dessa espécie, só nos restam aqueles
cujas partes são iguais como o espondeu, ou têm uma relação de 1
para 2, como jambo, ou numa relação igual, como o coriambo.
A: É verdade.
M: Ora, se este é do domínio dos poetas, e a prosa tem um caráter
distinto do verso, só podemos empregar, nos versos, essa última sorte
de pés.
A: Concordo com você, vejo claramente que os poemas tomam, com
o verso, um tom mais imponente que teriam se se servissem dos ritmos
caros à poesia lírica; mas uma coisa que não sei é aonde você quer
chegar…
M: Não se apresse. Essa discussão gira em torno da primazia dos
versos senários e desejo demonstrar, previamente, se puder, que, dentre
os versos, aqueles que têm maior dignidade são necessariamente o
heróico e o jâmbico — os mais usados de todos. O verso heróico é
comumente escandido em dátilos e espondeus, ou segundo um método
mais exato em espondeus e anapestos, como neste verso:
Arma virumque cano Trojae qui primus ab oris.
E o verso jâmbico, segundo o mesmo sistema, transforma-se em
trocaico.
Acredito que deva estar claro para você que as sílabas longas, sem
mistura de breves, produzem apenas uma cadência monótona; e que
as breves, sem mistura de longas, produzem apenas uma cadência
quebradiça e, por assim, dizer, saltitante; e que, em ambos os casos,
não há nenhuma harmonia, ainda que um número igual de sons nos
chegue ao ouvido. Eis por que não é possível encontrar nem a
dignidade do verso heróico naqueles que se compõem de seis
pirríquios e seis proceleusmáticos, nem aquela do verso trocaico
naqueles que se compõem de seis tríbracos. Uma outra vantagem é
que, nesse verso, que aos olhos da razão se mostra tão superior aos
outros, a transposição dos dois membros não pode ocorrer sem que
imediatamente sejamos obrigados a recorrer a outros pés para fazer a
escansão. Eles são, portanto, menos suscetíveis à inversão que os
versos unicamente compostos de breves ou de longas. Além disso, no
verso em que reina essa feliz mistura, é indiferente que a relação entre
os dois membros seja de 5 para 7 ou de 7 para 5 meios-pés. Pois, seja
qual for a ordem que adotemos, os membros não podem ser invertidos
sem uma mudança tão profunda que o verso pareça correr sobre
outros pés, ou, em outras palavras, se escanda de outra maneira. Nos
outros, ao contrário, se o poema começa com versos cujo primeiro
membro compõe-se de 5 meios-pés, não se deve jamais começar por
um membro de 7 meios-pés; caso contrário, tornam-se todos passíveis
de inversão: pois não há, nos pés, nenhuma diferença que impeça a
conversão.
É possível — ainda que seja raro — colocar apenas espondeus no
verso heróico; mas essa licença é condenada em nossos dias. Para os
trocaicos e os jâmbicos, ainda que seja permitido colocar em todos os
pés um tríbraco, vê-se como um grave defeito o encadeamento
ininterrupto de breves nesse modo de verso.
Portanto, como os versos de seis pés rejeitam naturalmente os
epítritos, pois eles convêm antes à prosa e, sobretudo, porque se
colocamos seis deles, excedemos o número de trinta e dois tempos, tal
como ocorre com os dispondeus (de fato, com o epítrito, teríamos 42
tempos [6x7], e com o dispondeu, 48 [6x8]); dado que eles rejeitam
igualmente os pés de cinco tempos, reservados à prosa para terminar
os períodos; como os molossos e outros pés de seis tempos, malgrado
o uso feliz que deles fazem os poetas, não entram no número de
tempos de que tratamos aqui, restam-nos os versos compostos
unicamente de breves, ou seja, de pirríquios, de proceleusmáticos,
tríbracos, e os versos compostos unicamente de longas, ou seja, de
espondeus. Ora, ainda que esses versos sejam aceitos nos versos de seis
pés, eles não alcançam a dignidade daquela feliz proporção dos que
apresentam uma graciosa mistura de breves e longas, e que por isso
mesmo são menos suscetíveis de inversão dos membros.
XI. Sobre a maneira mais exata de medir os versos de seis pés
Mas podemos nos perguntar: por que damos preferência aos versos de
seis pés que se escandem num método exato por anapestos ou por
troqueus, ao invés daqueles que escandiríamos em dátilos ou jambos?
Não tenho qualquer juízo pré-de nido sobre essa questão, dado que
por enquanto só tratamos de um número restrito de pés. Tomemos os
versos:
Trojae qui primus ab oris, arma virumque cano;
Qui procul malo pius beatus ille.7
Esses dois versos têm, ambos, seis pés. Oferecem, um não mais do
que o outro, uma mistura de longas e breves, e um não é mais
suscetível de conversão do que o outro; os membros, tanto em um
quanto em outro, são distribuídos de tal modo que a frase oferece
uma divisão bem marcada ao quinto e ao sétimo pés. Por que razão,
portanto, é preciso preferir aqueles que recebem essa disposição:
Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris;
Beatus ille, qui procul pius malo?
A uma tal questão seria fácil e natural responder que essa forma foi
descoberta e posta em prática primeiramente por acaso, ou que, se
não se trata de obra do acaso, julgou-se que o verso heróico era mais
bem concluído por meio de duas longas do que por duas breves e uma
longa; o ouvido encontra, com efeito, maior prazer ao repousar sobre
uma longa; por essa mesma razão, pensou-se ser mais agradável
concluir o verso jâmbico por uma longa do que por uma breve.
Naturalmente, qualquer que fosse a combinação dentre as duas em
que se xasse inicialmente a escolha, ela excluía necessariamente o
verso que pudesse ser construído invertendo a ordem dos mesmos
membros. Por conseguinte, se o verso citado, por exemplo:
Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris,
foi considerado o melhor, seria bizarro compor, servindo-se de uma
conversão, um verso de outra espécie, como:
Trojae qui primus ab oris, arma virumque cano...
E é possível fazer a mesma observação para o verso trocaico. Com
efeito, se o verso
Beatus ille, qui procul negotio
tem uma forma mais elegante que a espécie de verso que
encontraríamos invertendo a ordem dos membros, de igual modo a
forma
Qui procul negotio, beatus ille
deve ser absolutamente proibida.
Ainda que um poeta seja capaz de compor versos dessa espécie, ele
chegará inevitavelmente ao resultado de um senário de outra espécie, e
de beleza inferior.
Sim, a graça natural desses versos, o mais belo de todos os senários,
não pôde escapar aos caprichos da fantasia humana. Nos versos
trocaicos e em toda espécie de verso de seis pés, do menor até o maior,
o qual contém oito pés, os poetas imaginaram que era preciso
misturar todos os pés de quatro tempos de uma medida equivalente.
Os próprios gregos os alternaram entre eles, dando-lhes o primeiro, o
terceiro lugar, e assim por diante, por número ímpar, se o verso
começa por semipé; se, ao contrário, ele começa por um troqueu
completo, eles dão o segundo, o quarto lugar, e assim por diante, aos
pés mais longos. E para suportar essa falsa combinação, deixaram de
marcar pela batida do tempo a divisão natural de cada pé em duas
partes, a ársis e a tésis; adotando um pé em ársis e outro em tésis (ou
seja escandindo por dipodia), o que lhes faz nomear trímetro o
próprio verso de seis pés, eles aproximaram a batida do tempo do
modo de escandir o verso epítrito. Se ao menos fossem éis a esse
sistema — ainda que os epítritos sejam antes do domínio da prosa do
que da poesia e que um verso desse gênero deva antes se chamar
ternário do que senário —, a igualdade tão preciosa do número de
meios-pés não desapareceria totalmente.
Mas hoje em dia os poetas não se limitam a substituir pés de 4
tempos nos lugares ímpares, como dissemos acima. Não, eles se
permitem tudo, segundo seus desejos. Nem mesmo nossos pais
respeitaram a distância com que se devia substituir os pés dessa
espécie. Assim, os poetas atingiram, desgastando essas formas e se
permitindo tais licenças, o objetivo que eles propunham
verdadeiramente, a saber: tornar a poesia mais próxima da prosa.
Agora que explicamos su cientemente a razão que dá a primazia a
esses versos sobre todos os outros senários, vejamos por que os
senários em geral são tão superiores a todos os outros, seja qual for o
número de seus pés, a menos que você tenha alguma observação a
fazer.
A: Não, não, sinto o mais vivo desejo de conhecer essa famosa
igualdade dos dois membros nos versos de seis pés, tamanha é a
curiosidade que você suscitou em mim.
XII. Sobre a razão por que os versos senários são superiores a
todos os outros
M: Então preste toda atenção e diga: na sua opinião, uma linha
qualquer pode se dividir em partes quaisquer?
A: Isso me parece incontestável. Na minha opinião, não há dúvidas
que toda linha tem uma metade, e que por esse ponto de interseção
pode-se dividi-la em dois segmentos. E, como os dois segmentos que
disso resultam formam notavelmente, por sua vez, linhas, é evidente
que podemos dividi-la do mesmo modo. Assim um comprimento é
divisível inde nidamente.
M: A sua explicação é muito justa. Vejamos agora se é certo dizer
que toda linha, estendida também no sentido da largura, que dela
nasce, tem por dimensão o quadrado da largura. Pois se a largura é
maior ou menor do que o comprimento de onde ela procede, o
quadrado é impossível: se tem a mesma dimensão, só podemos obter
um quadrado.
A: Entendo e compartilho dessa visão: o que pode haver de mais
justo?
M: Você já pode prever a conseqüência que daí decorre: se, em vez
de uma linha, colocarmos estacas iguais dispostas no sentido do
comprimento, a la que assim criamos não poderá jamais formar um
quadrado, a menos que a quantidade de estacas seja multiplicada por
ela mesma e coloquemos essas duas estacas suplementares no sentido
da largura. Outro exemplo: se partirmos de três estacas en leiradas,
será preciso acrescentar seis outras, dispondo-as logicamente em duas
leiras de três estacas cada, no sentido da largura (pois, se as
dispuséssemos no sentido do comprimento, não haveria mais gura
geométrica, dado que o comprimento sem a largura não forma uma
gura). O mesmo pode ser dito quanto a qualquer outro número: se,
ao multiplicarmos 2 por 2, 3 por 3, obtemos seus quadrados, o
mesmo valerá para 4 multiplicado por 4, 5 por 5, 6 por 6, e assim
inde nidamente.
A: É uma verdade incontestável.
M: Pois bem! Diga-me agora se lhe parece que o tempo tem um
comprimento.
A: Quem poderá dizer que há uma duração sem comprimento?
M: O verso poderia não ocupar um certo comprimento no tempo?
A: Longe disso: é essa a condição mesma de sua existência.
M: Nessa extensão do verso, o que poderíamos colocar no lugar das
estacas de que falávamos? Será que podemos colocar pés divididos em
duas partes, a ársis e a tésis, ou meios-pés que contenham a ársis e a
tésis?
A: A meu ver, os meios-pés ocuparão melhor o papel das estacas.
M: Então recorde-me quantos meios-pés o membro mais curto do
verso heróico contém.
A: 5.
M: Me dê um exemplo.
A: Arma virumque cano.
M: O que você deseja agora, senão ver que os outros 7 meios-pés
estabelecem, com eles, uma relação de perfeita igualdade?
A: É precisamente o que eu espero.
M: Pois bem! Serão 7 meios-pés capazes de formar, sozinhos, um
verso completo?
A: Sim, sem dúvida, pois o primeiro e o menor verso contêm esse
mesmo número de meios-pés, se contarmos a pausa do m.
M: Mas, para que possa haver um verso, como devemos fazer a
divisão dos pés em dois membros?
A: Em 4 meios-pés de um lado e 3 do outro.
M: Eleve, agora, ao quadrado cada uma dessas frações. Quanto
temos ao multiplicar 4 por 4?
A: 16.
M: E qual é o quadrado de 3?
A: 9.
M: E a soma desses dois quadrados, qual é?
A: 25.
M: Assim pois 7 meios-pés, podendo se dividir em dois membros,
dão, se elevamos cada um dos membros ao quadrado, o número 25, e
essa é uma parte do verso heróico.
A: Sim.
M: E a segunda parte, composta de 5 meios-pés? Dado que ela não
pode se dividir em dois membros, e que deve estabelecer uma relação
de igualdade, não será preciso elevá-la inteira ao quadrado?
A: É de fato o que precisa ser feito, e reconheço uma relação de
igualdade maravilhosa. Pois o quadrado de 5 nos dá o mesmo
número, 25. É portanto com razão que os versos de seis pés são os
mais empregados e os mais apreciados. Seus membros, ainda que
desiguais, contêm em si uma proporção incomparável àquela dos
outros versos.
XIII. Epílogo
M: Perceba, pois, como a promessa que eu lhe z não foi vã, ou
melhor, como a razão, nosso guia comum, não nos enganou. Para
concluir, en m, essa conversa, veja que, se por um lado a quantidade
dos metros é incalculável, o verso não pode existir sem ser composto
de dois membros, de uma justa proporção entre si, concluídos seja por
um número par de meios-pés, mas não suscetíveis de inversão, como
no verso
Maecenas atavis || edite regibus,
seja por um número ímpar de meios-pés ligados por uma certa
igualdade, como o são os números 4 e 3, 5 e 3 ou 3 e 5, 5 e 7 ou 7 e 5,
8 e 7, 9 e 7 ou 7 e 9. O trocaico pode começar por um pé completo,
como:
Optimus beatus ille qui procul negotio;
ou por um pé incompleto, como:
Vir optimus beatus ille, qui procul negotio.
Mas ele só pode ser concluído por um pé incompleto. Quanto a esses
pés incompletos, ou eles representam meios-pés inteiros, como neste
último exemplo, ou então não contêm a metade de um pé, como duas
breves nais nesse verso coriambo:
Maecenas atavis edite regibus,
ou, ainda, eles contêm mais que a metade de um pé, como as duas
longas que iniciam esse último verso; ou então o báquio, no nal de
um segundo coriambo, por exemplo:
Tē dŏ mŭs Ēvāndrī, tē sēdēs cĕlsă Lătīnī.8
Todos esses pés incompletos se chamam pois, com razão, meios-pés.
Mas nem sempre compõe-se poemas com apenas uma espécie de
verso, como fazem os poetas épicos e mesmo os cômicos; os poetas
líricos descrevem circuitos, chamados pelos gregos de periodus, não
apenas com os metros, que não estão submetidos à lei dos versos, mas
com os próprios versos. Assim, em Horácio:
Nō x ĕrăt, ēt caēlō fūlgēbāt lūnă sĕrēnō
Īntēr mı̆ nō ră sīdĕră.9
É
É um período de dois membros, composto de versos. E esses dois
versos não podem unir-se entre si, exceto se forem escandidos por pés
de seis tempos. Pois a medida do verso heróico não se combina com a
do jâmbico ou do trocaico, pois em um os pés têm a mesma relação, e
nos outros uma relação de 1 para 2. Portanto, os períodos líricos
compõem-se ou de metros sem versos, como aqueles de que tratamos
acima em nossa conversa sobre os metros; ou tão-somente de versos,
como no período citado acima; ou de versos e metros misturados,
como neste exemplo:
Dīffūgĕrĕ nı̆ vēs, rĕdĕūnt īam grāmı̆ nā cāmpīs,
Ārbŏ rı̆ būsquĕ cŏ māe.10
A ordem em que se sucedem os versos e os metros, grandes e
pequenos membros dos versos é indiferente ao ouvido, contanto que o
período não tenha menos de 2 membros e nem mais do que 4.
Se você não tem mais nenhuma objeção a me apresentar, encerremos
por aqui nossa discussão. Abordemos aquela parte da música que
trata das relações de duração e movimento, e empenhemo-nos, tanto
quanto permita a razão, em nos elevar desde os indícios sensíveis da
harmonia que encontramos cá embaixo, ao santuário misterioso em
que ela reside, liberta de todo envelope material.
É
A: É uma questão que gostaria que você tratasse com a maior
importância; quero muito conhecer a causa dessa infelicidade.
M: Você descobrirá facilmente se quiser observar quais são os
objetos que, comumente, atraem mais a nossa atenção e provocam
mais energicamente nossos esforços: pois são esses que nós mais
amamos. Você concorda?
A: Sem dúvida.
M: Ora, e o que mais pode nos causar um desejo ardente, senão
aquilo que é belo? Pois, ainda que certas pessoas amem a feiúra e,
como dizem os gregos, têm gostos baixos,18 o importante é saber até
qual ponto essa feiúra é menos bela que aquilo que apraz à maioria.
De fato, é evidente que ninguém tem gosto por aquilo que revolta os
sentidos por sua feiúra.
A: Isso é verdade.
M: Esses belos objetos agradam por conta de uma exata proporção,
como já havíamos visto; e essa proporção não se encontra somente
nas belezas relativas à audição ou nos movimentos dos corpos, mas
ainda nas formas que se mostram ao olhar e às quais damos mais
comumente o nome de belas. Com efeito, vemos que há proporção e
harmonia quando em um corpo dois membros formam um par e se
correspondem, ou um órgão único ocupa uma posição intermediária,
a uma igual distância de cada lado.19 Você não acha?
A: É exatamente a minha opinião.
M: Que é que nós buscamos na luz, rainha de todas as cores que
revestem as formas corpóreas e nos encantam? Que buscamos, repito,
na luz e nas cores, senão essa medida que bem se relaciona com nossos
sentidos? Nós evitamos os clarões excessivos, nosso olhar se recusa a
penetrar uma obscuridade demasiado profunda. Assim ocorre também
com os sons, que quando demasiado fortes nos perturbam, e quando
demasiado fracos, nos desagradam — e isso vem não dos intervalos de
tempos, mas do próprio som que é como a luz da música e ao qual se
opõe o silêncio, do mesmo modo como as cores se opõem às trevas.
Portanto, buscando nesses objetos aquilo que está em proporção com
nossa natureza, rejeitando aquilo que é desproporcionado, ainda que
saibamos que eles bem podem convir a outros seres, não o estaremos
fazendo por sentirmo-nos atraídos por um certo sentimento de
igualdade que nos revela que, por virtude de relações ocultas, existe
simetria entre coisas iguais? É o que podemos observar nos odores,
nos sabores e no tato; se é difícil analisar essas sensações em
profundidade, é facílimo experimentá-las: pois não há nada nas coisas
visíveis que não nos agrade por sua simetria e sua analogia. Ora, em
toda parte onde houver simetria e analogia, há harmonia. Pois haverá
algo de mais simétrico do que um mais um? Você teria alguma objeção
a me apresentar?
A: Compartilho completamente dessa opinião.
M: Mas não é verdade também que a teoria que expusemos
anteriormente nos convenceu de que isso é um efeito da alma sobre os
órgãos, e não dos órgãos sobre a alma?
A: Sim, certamente.
M: O desejo de reagir contra as impressões do corpo desvia a alma
da contemplação das coisas eternas, distraindo-a pelo encanto dos
prazeres sensíveis, e é isso o que ela, a alma, faz por meio dos números
de reação; ela também é desviada pelo desejo de mover o corpo, e é o
que ela faz por meio dos números de progresso; a mesma alma é
desviada da contemplação também pelas representações oníricas da
imaginação, por meio dos números de memória; ela é, en m, desviada
pelo desejo que lhe acomete de atingir o conhecimento frívolo de tais
objetos, é o que ocorre pelos números sensíveis, em que se misturam
certas regras que são uma aparência agradável da arte; daí vem uma
busca curiosa que, como a própria palavra indica (cura),20 é inimiga
da tranqüilidade, e, por conta da própria frivolidade, nunca alcança a
verdade.
A necessidade geral de agir, que nos afasta da verdade, tem sua fonte
no orgulho, vício que inspira na alma o desejo de imitar Deus ao invés
de servi-lo. É pois com razão que lemos nas Sagradas Escrituras: “O
início do orgulho num homem é renegar a Deus”, ou ainda: “o
princípio de todo pecado é o orgulho”. É impossível de nir o orgulho
em melhores termos que estes das Escrituras: “de que se orgulha o que
é terra e cinza?” ela que “[…] despojou-se de suas próprias
entranhas?”. Com efeito, dado que a alma não é nada em si mesma,
pois do contrário estaria acima da mudança e nada perderia da
plenitude de seu ser, a alma, repito, não sendo nada por ela mesma e
devendo toda sua essência a Deus, conquanto permanece
coerentemente em sua condição, possui, pela comunicação com Deus,
todas as forças de sua razão e de sua consciência; por conseguinte, é
um tesouro que ela possui inteiramente. Assim, deixar-se in ar de
orgulho implica, para alma, em lançar-se às coisas exteriores, esgotar-
se, por assim dizer; e nesse esgotar-se, ser menos. Ora, lançar-se às
coisas exteriores — que quer dizer isso senão sacri car os bens
interiores, em outras palavras afastar-se de Deus, não pela distância
física, mas pelas disposições da alma?
A tendência secreta da alma é de submeter as outras almas; não falo
aqui daquelas dos animais, que a lei divina nos con ou, mas dos seres
racionais com os quais ela vive em uma comunhão de privilégios igual
e fraterna. É especialmente sobre eles que a alma, em seu orgulho,
deseja exercer sua in uência, mais ainda do que sobre os corpos, dada
a superioridade da realidade anímica face àquela corporal. Ora, só
Deus pode agir sobre as almas, não por intermédio dos corpos, mas
por seu poder imediato. No entanto, na condição em que nos
encontramos por conta do pecado, a alma pode agir sobre outras
almas, manifestando-lhes sua vontade por intermediários sensíveis, ou
seja, pela linguagem natural, como a expressão da sionomia ou os
gestos, ou por sinais de convenção, como as palavras. Pois, seja dando
ordens ou empregando um método de persuasão, ela recorre a signos:
o mesmo vale em toda outra espécie de comunicação das almas entre
si. Disso decorre uma conseqüência mui natural: é que todas as almas
que desejam exercer seu poder movidas pelo orgulho não podem
governar nem os próprios órgãos aos quais estão unidas e nem os
outros corpos, seja porque eles não têm, neles mesmos, uma razão
su cientemente poderosa, seja porque elas se deixam abater sob o
peso das correntes de sua mortalidade. Assim, pois, os números e
movimentos que fazem agir as almas umas sobre as outras têm por
efeito arrancá-las, pelo desejo da glória e da magni cência, da
contemplação da simples e pura verdade. Com efeito, só Deus glori ca
a alma santa, dando-lhe a graça de levar secretamente, em sua
presença, uma vida de justiça e de piedade.
Esses movimentos que a alma produz sobre outras almas que lhe são
vinculadas ou a elas estão submetidas assemelham-se aos movimentos
de progresso, pois ela age com essas almas como agiria com seu corpo.
Quanto aos movimentos que ela produz quando deseja submeter
certas almas, entram na classe dos movimentos de reação. Pois a alma
age então como faria com uma impressão dos sentidos, esforçando-se
para assimilar um objeto exterior e rejeitar aquilo que lhe é impossível
assimilar. Essas duas espécies de movimentos são colhidas pela
memória, que lhes comunica a propriedade de se reproduzir, em meio
à agitação à qual ela se lança para imaginá-los em sua ausência e
inventar objetos semelhantes àquilo que a alma deseja. Para apreciar
aquilo de bom ou mau contido nesses atos, elevam-se na alma os
números de juízo, que podemos ainda chamar de sensíveis, pois a
alma, para agir sobre outra alma, emprega signos sensíveis. Entregue a
essa miríade de esforços complexos a alma desvia-se da contemplação
da verdade: e quem se surpreenderia? Sem dúvida, ela a entrevê, nos
momentos de calma que lhe sobram, mas como ainda não pôde se
liberar disso tudo, é-lhe impossível xar sua atenção e demorar-se na
verdade. Por conseguinte, não basta à alma conhecer o objeto sobre o
qual deve se demorar para de fato nele permanecer efetivamente. Você
não teria qualquer objeção a fazer contra essa explicação?
A: Não vejo como contestar.
XIV. A alma se eleva ao amor de Deus pelo conhecimento da
ordem e da harmonia experimentado nas coisas
M: Após termos examinado as causas da corrupção e do
rebaixamento da alma, só nos resta tratar dessa in uência soberana
que vem do alto e que, puri cando-a e liberando-a de seu fardo,
permite que ela retome seu vôo rumo à morada da paz, entrando na
alegria de seu Senhor.
A: Examinemos pois essa questão.
M: Mas você acha que eu teria algo a dizer sobre esse tema, quando
a divina Escritura, em diversos livros de uma autoridade, de uma
santidade incomparáveis, não faz outra coisa além de nos admoestar a
amar Nosso Senhor de todo nosso coração, de toda nossa alma, de
todo nosso espírito, e de amar o próximo como a si mesmo? Se,
portanto, nós conseguimos conectar a essa nalidade todos os
movimentos e todos os números da atividade humana, seremos
puri cados, sem dúvida. Você não concorda?
A: Seguramente. Mas se é verdade que esse princípio é bem
conhecido, é por outro lado extremamente difícil pô-lo em prática.
M: E o que, então, seria fácil? Será amar as cores, o canto, os
requintados manjares, as rosas, os objetos macios e polidos? Ora essa!
Será fácil à alma amar objetos em que ela busca unicamente a
harmonia e a proporção, e que só lhes oferecem, se ela os considera
com um pouco de atenção, uma sombra e um vestígio fugidio dessas
belezas; e será que lhe é difícil amar a Deus, em quem seu pensamento
frágil, todo corrompido e alterado, não pode perceber nenhuma
desproporção, nenhuma mudança, nenhum limite no espaço,
nenhuma sucessão no tempo? Será que ela irá encontrar sua felicidade
erguendo magní cos edifícios, realizando obras desse gênero? Mas se
é a harmonia que a encanta em tais obras — e não posso ver outra
causa possível de prazer —, qual beleza de proporção e conjunto que
não se revelará ridícula se comparada ao puro ideal? E, se assim é, por
que ela se deixa rebaixar desse verdadeiro centro da harmonia a essas
misérias, erguendo edifícios de barro com suas próprias ruínas? Não é
essa a promessa daquele que não nos engana: “Meu jugo é suave”.21
O amor voltado ao Mundo conduz ao sofrimento, pois os bens que a
alma nele busca — quero dizer, o imutável e o eterno — não podem
nele ser encontrados; pois essa ín ma beleza do Mundo só existe por
meio do movimento das coisas, e aquilo que nela oferece a aparência
de imutabilidade lhe vem de Deus por meio da alma; para a alma que,
só se alterando com o tempo, prima sobre o Mundo, que se altera com
o tempo e os lugares.22 É por essa razão que, se o Senhor prescreveu
às almas aquilo que elas devem amar, o Apóstolo João lhes prescreve o
que elas devem odiar: “Não ameis o Mundo […]. Porque tudo o que
há no Mundo — a concupiscência da carne, a concupiscência dos
olhos e a soberba da vida — não procede do Pai, mas do Mundo”.23
Que pensar do homem quando ele consegue ordenar todos os
números que têm o corpo por objeto e que são uma reação às
impressões naturais, ou que, após essas impressões, nascem e são
guardados na memória? Que dizer do indivíduo que busca menos os
prazeres da carne que a saúde do corpo? Que vê nos números que se
produzem seja para manter ou para fazer nascer a união das almas, e
naqueles números que, em seguida, são gravados na memória, um
meio não de exercer um império do orgulho, mas de ser útil às
próprias almas? Que pensar deste homem quando en m ele se serve
dos números, sejam eles sensíveis ou racionais, reguladores soberanos
dos números que passam sucessivamente pelos ouvidos não para
satisfazer uma curiosidade inútil ou perigosa, mas para manifestar
aprovação ou uma necessária condenação? Não será certo dizer que
ele vê surgir, em si, todos os números sem jamais fazer mau uso dos
mesmos? De fato, esse homem busca a saúde do corpo para poder
bem agir, e emprega tudo isso ao bem do próximo, o qual ele deve
amar como a si mesmo, em virtude da comunhão de direitos que liga
todos os homens entre eles.
A: O que você acaba de descrever é o retrato de um homem superior,
ou melhor, o ideal da virtude humana.
M: Por conseguinte, é o amor à beleza inferior que degrada e rebaixa
a alma, e não os seus números, inferiores à razão mas belos em seu
gênero. Se a alma volta seu amor a essa beleza, a essa harmonia de
que tratamos su cientemente ao longo desta obra, tão logo ela decai
da ordem superior a que pertence; isso não a exclui da ordem
universal, pois ela se encontrará numa posição de onde ainda é
possível ouvir o chamado de uma hierarquia perfeita às almas assim
degradadas. Mas uma coisa é possuir a ordem, e outra é ser possuído
por ela. A alma se submete à ordem quando se volta inteiramente
àquilo que está acima dela, quero dizer a Deus, e ama como a ela
mesma as outras almas irmãs. Pela força desse amor ela ordena as
coisas inferiores e não se deixa corromper nem manchar por elas. O
que mancha a alma, com efeito, não é mau;24 pois o corpo em si é
obra de Deus, ele é dotado de sua beleza particular, ainda que de uma
ordem inferior, e só se torna baixo e desprezível às custas da dignidade
da alma, tal como o belo ouro perde seu brilho quando misturado à
mais na prata. Assim, não excluamos das obras da Providência essas
harmonias que nascem numa condição mortal, nosso castigo cá
embaixo; pois elas têm sua beleza particular; tampouco as amemos
como se quiséssemos obter a felicidade total em tais gozos. Dado que
elas são temporais, tomemo-las como uma prancha em meio ao mar:
não é rejeitando-as como um fardo nem nos prendendo a elas como
um sólido meio de salvação, mas empregando-as corretamente que
conseguiremos experimentá-las com o devido desprendimento. E se
amamos nosso próximo em toda a extensão do mandamento divino,
encontraremos nesse amor a escada que nos faz galgar até Deus:
então, longe de nos sentirmos aprisionados na ordem universal que ele
estabeleceu, observaremos tranqüilamente, e sem agitação, a ordem
que nos é própria.
Quanto ao fato de a alma buscar a ordem, as harmonias sensíveis
parecem ser disso uma prova evidente, sim? De onde vem a sucessão
estabelecida entre os diferentes pés, primeiramente o pirríquio, a
seguir o jambo, em terceiro o troqueu, e assim tantos outros? Você me
dirá que é a razão e não o ouvido que xou essa sucessão, o que é
verdade. Mas não será preciso ao menos reconhecer como um
privilégio do ouvido o instinto que impede que se confunda oito
sílabas longas com dezesseis breves, ainda que sua duração seja a
mesma? E quando a razão controla essa impressão do ouvido, e sabe
que o proceleusmático é um equivalente do espondeu, ela só tem por
prova consistente a beleza mesma dessa ordem: pois uma sílaba longa
só é longa por comparação com uma breve, uma breve só é breve por
comparação com uma longa, e, por conseguinte, se pronunciamos um
verso jâmbico prolongando as sílabas tanto quanto se queira,
contanto que se guarde a relação de um para dois, o verso preserva
seu nome de jâmbico; se, ao contrário, pronunciamos lentamente um
verso composto de pirríquios, ele se transforma num verso
espondaico, não do ponto de vista da prosódia, mas da música.
Quanto ao verso datílico ou anapéstico, como é a mistura das breves e
longas que nos faz reconhecê-los, mantêm sua designação, seja qual
for o tempo que se leve para pronunciá-los.25 Aliás, por que não nos
servimos do mesmo procedimento e colocamos meios-pés
complementares, seja no m ou no começo do metro, e não podemos
nos servir indistintamente de todos os meios-pés que são marcados da
mesma maneira? Por que se prefere por vezes dispor ao nal duas
breves ao invés de uma longa? Não será uma exigência do ouvido? O
que comanda, aqui, não é a relação de igualdade, já que a medida é a
mesma com uma longa ou duas breves, mas uma relação de ordem.
Custaria-nos tempo demais estudar nas medidas de tempo tudo o que
diz respeito a essa questão. Em linhas breves, o que ocorre é que o
próprio ouvido rejeita as formas aprovadas pelos olhos, seja por causa
de sua monotonia exagerada, seja por conta de um início em
contratempo, e outros defeitos análogos em que ele condena, não uma
relação de desigualdade — de vez que a simetria das partes subsiste
—, mas uma falsa harmonia. En m, quando em todas as operações de
nossos sentidos nós nos acostumamos pouco a pouco com ações que,
de início, achávamos desagradáveis, e acabamos por ter prazer em
algo que antes padecíamos a duras penas, não é verdade que
empregamos aí a ordem e bordamos com ela como que uma trama de
prazeres, sem jamais formar um todo cujo início, o meio e o m são
incapazes de formar um conjunto harmonioso?
Portanto, não depositemos nossas alegrias nem nos prazeres da
carne, nem no renome e glória junto ao Mundo, nem na busca das
coisas que agem desde o exterior sobre os órgãos: tratemos de possuir,
no fundo de nós mesmos, Deus, em quem tudo o que amamos é
imutável e eterno. Desse modo, as coisas do século se nos apresentam
sem nos envolver em suas tramas; os objetos exteriores ao corpo se
distanciam sem nos causar dor; e mesmo o nosso corpo pode desse
modo se decompor sem sofrimento — ou sem sofrimento demasiado
— e se vê conectado a sua natureza primeira para poder receber uma
nova forma. Uma miríade de problemas e dores nascem da atenção
que a alma dirige ao corpo, de seu apego a um objeto único e
particular em detrimento da lei universal; pois com efeito nenhum
objeto pode escapar da ordem universal da qual Deus é o árbitro. E
aquele que não ama as leis torna-se delas escravo.
XV. Após a ressurreição, a alma realizará em paz os
movimentos do corpo: a perfeição da alma consistirá então em
quatro virtudes
M: Se, nos momentos em que nosso pensamento está profundamente
concentrado nas coisas imateriais e imutáveis, realizamos movimentos
simples e corriqueiros como caminhar em um bosque, entoar uma
salmodia, vemos que os números referentes a esses movimentos
simples se realizam com grande leveza, como que inconscientes —
ainda que não pudessem existir sem nós; se, en m, quando estamos
mergulhados em nossos vãos fantasmas, produzimos também números
sem nos dar conta, quanto mais esse estado de alma não será mais
elevado e durável quando nosso corpo corruptível se vir revestido da
incorruptibilidade, quando nossa mortalidade se tiver revestido da
imortalidade?26
Em outras palavras, tentando expressar essa verdade em termos
simples, quando Deus tiver vivi cado nossos corpos mortais “pelo seu
Espírito que habita em vós”,27 como diz o Apóstolo, qual não será
nossa felicidade, vendo somente Deus e a verdade pura, face a face,
como foi dito? Com que alegria não veremos elevar-se em nós, sem a
menor di culdade, os números destinados a mover os órgãos? Com
efeito, não seria possível crer que a alma pode encontrar sua felicidade
nos bens que nascem graças a ela, sem que ela pudesse antes encontrar
a felicidade nos bens que a tornam, ela mesma, boa.
Ora, que é isso que permite à alma, com a ajuda de seu Deus e
Senhor, arrancar-se do amor à beleza inferior, combatendo
energicamente e destruindo os hábitos nefastos? Que é que permite
que a alma triunfe sobre os demônios, alçando seu vôo rumo a Deus,
malgrado a inveja e os esforços contrários das forças dos ares? Que é
isso, senão a virtude a que chamamos temperança?
A: Posso reconhecê-la, e distingo perfeitamente seus traços naquilo
que você descreve.
M: Prossigamos: quando ela caminha a grandes passos a caminho do
Céu, saboreando desde já as alegrias eternas e parece mesmo tocá-las,
será que a perda dos bens perecíveis ou a morte poderia amedrontá-
la? Será que ela se perturbaria se fosse forte o su ciente, dizendo aos
seus colegas menos perfeitos e medrosos: “[…] por uma parte,
desejaria desprender-me para estar com Cristo — o que seria
imensamente melhor; mas, de outra parte, continuar a viver é mais
necessário, por causa de vós…”?28
A: Seguramente, não.
M: A essa disposição que lhe permite enfrentar as adversidades e a
morte, podemos chamá-la fortaleza? Sim ou não?
A: Concordo uma vez mais.
M: E essa ordem segundo a qual ela só serve a Deus, só reconhece
por iguais as almas mais puras, só quer exercer sua dominação sobre
os animais e a natureza física — qual virtude será essa, na sua
opinião?
A: A justiça! Como não vê-la nessa descrição?
M: Você está certo.
XVI. Como essas quatro virtudes29 são o apanágio dos bem-
aventurados
M: Agora, uma questão: havíamos concordado anteriormente que a
prudência consiste em compreender o lugar que a alma deve ocupar,
subindo a ele por meio da temperança — em outras palavras, da
conversão do amor para Deus chamado caridade que nos faz
renunciar ao Mundo. E a temperança é acompanhada da fortaleza e
da justiça. Isso exposto, você acha que, depois de ter atingido o objeto
de seu amor e de suas dores por uma santi cação perfeita, após ter
visto seu corpo vivi cado, as imaginações desordenadas banidas de
sua memória, começando uma vida em Deus e tão-somente por Deus,
en m, após ter experimentado essa promessa divina: “Caríssimos,
desde agora somos lhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que
havemos de ser. Sabemos que, quando isso se manifestar, seremos
semelhantes a Deus, porquanto o veremos como Ele é”,30 você acha,
repito, que essas virtudes da alma de que acabamos de falar
continuarão a existir na alma?
A: Não. Pois uma vez que as coisas contra as quais a alma luta
desaparecem, não vejo mais a razão de ser da prudência, que só pode
trazer a luz ali onde existem contradições; nem da temperança, que só
serve para desviar o amor de um m funesto; da fortaleza, que só
serve para resistir às infelicidades; nem da justiça, que só aspira à
igualdade com as almas bem-aventuradas ou ao domínio sobre os
seres inferiores nas lutas que a impedem de atingir seus ns.
M: Sua resposta não é completamente desprovida de sentido — sua e
também de alguns lósofos, devo dizer. Mas ao consultar os Livros da
mais alta autoridade, encontro: “Provai e vede como o Senhor é
bom”,31 passagem repetida pelo Apóstolo Pedro, “se é que tendes
saboreado quão suave é o Senhor”.32 É nisso precisamente que
consiste, a meu ver, o efeito dessas virtudes que puri cam a alma e a
convertem. Pois o encanto das coisas perecíveis só poderia ser vencido
por uma certa atração pelas coisas eternas. Mas o que ocorrerá no
momento que nos for revelado por essas palavras: “À sombra de
vossas asas se refugiam os lhos dos homens. Eles se saciam da
abundância de vossa casa, e lhes dais de beber das torrentes de vossas
delícias, porque em vós está a fonte da vida”? Veja que efusão
in ndável de tesouros celestes nos aguarda! Pode-se mesmo dizer que
viveremos uma embriaguez divina, e essa palavra me parece exprimir
maravilhosamente o esquecimento das vaidades e dos sonhos
mundanos. O salmista acrescenta: “E é na vossa luz que vemos a luz.
Continuai a dar vossa bondade aos que vos honram”.33 Por luz
devemos entender o Cristo, que é a sabedoria de Deus e é chamado
diversas vezes de luz. Portanto, as palavras vemos e aos que vos
honram nos mostram claramente que a prudência subsistirá no Céu.
Pois será possível que, sem a prudência, a alma veja e conheça seu
verdadeiro bem?
A: Compreendo.
M: Por acaso é possível ter um coração reto sem auxílio da justiça?
A: É verdade, lembro-me que a expressão coração reto é com
freqüência associada à justiça.
M: Não nos é possível ver essa aliança de idéias expressa pelo
Profeta, quando ele exclama, num tom inspirado: “[…] e a vossa
justiça aos retos de coração”.
A: Está bem claro.
M: Pois bem! Peço que você recorde que a alma, tal como
demonstramos su cientemente, pode se deixar levar pelo orgulho,
agindo voluntariamente contra a lei universal, sucumbindo a suas
próprias vontades. A isso chamamos apostasia ou abandono de Deus.
A: Sim, eu me lembro.
M: Portanto, nos momentos em que a alma se esforça para se
arrancar desses prazeres egoístas, não lhe parece que ela está dirigindo
todo seu amor a Deus e, ao se afastar daquilo que é impuro, levando
uma vida de temperança, pureza e calma?
A: Seguramente.
M: Perceba também que o Profeta acrescenta: “Não me calque o pé
do orgulhoso”. Por pé, ele quer dizer a apostasia e a queda da qual a
alma se preserva para se unir a Deus e viver eternamente.
A: Compreendo e concordo com seu pensamento.
M: Resta-nos ainda a fortaleza. Ora, se a temperança nos preserva
da queda que depende de nossa livre vontade, a fortaleza nos serve
principalmente para combater a violência que pode conduzir uma
alma pouco vigorosa à sua ruína e degradação. Essa violência tem, na
Escritura, um nome muito expressivo: é a mão.34 E quem pode
cometer essa violência, senão os pecadores? Se, portanto, a alma se
equipa contra tal violência e tem por salvaguarda o apoio de Deus,
que a coloca ao abrigo dos ataques, ela possui um poder sólido e, por
assim dizer, invencível, poder que chamamos com razão de fortaleza
— você há de concordar — e penso que o Profeta o evoca, ao dizer:
“Não me faça fugir a mão do pecador”.35
Ademais, independentemente do sentido que damos a essas palavras,
você negaria que a alma, tendo chegado a essa perfeição e a essa
felicidade, contempla a verdade, vive sem mancha, ca inacessível a
toda espécie de pena e sujeita tão-somente a Deus, e que, en m, ela
domina soberanamente todos os outros seres?
A: Não concebo para ela nenhuma outra perfeição, nenhuma outra
felicidade.
M: É essa contemplação da verdade, essa santi cação, esse império
sobre a sensibilidade e essa harmonia que compõem as quatro virtudes
em seu estado de absoluta perfeição; ou, para não gerar problemas
com as palavras quando estamos de acordo quanto às coisas, temos o
direito de esperar que essas quatro virtudes de que a alma se serve ao
longo de seu combate terrestre encontrem atributos análogos na
eternidade.
XVII. Sobre as harmonias geradas pela alma pecadora e
daquelas que a dominam. Conclusão da obra
M: Lembremo-nos desse ponto essencial na estrutura de nossa obra, a
saber que por uma lei dessa Providência que guiou Deus em todas as
suas criações, a alma pecadora e desafortunada é governada por
harmonias de uma escala tão baixa quanto possa alcançar a corrupção
da carne: essas harmonias se afastam gradativamente da beleza, mas
não podem delas se dissociar por completo. Deus, soberanamente bom
e soberanamente justo, não tem inveja de beleza alguma, seja aquela
produzida na condenação da alma, na sua conversão ou na sua
permanência. Ora, a harmonia encontra seu princípio na unidade; ela
extrai sua beleza da proporção e da simetria, e, na ordem, sua
coerência. Assim podemos reconhecer que, para subsistir, todo ser
aspira à unidade, esforça-se para permanecer semelhante a si mesmo e
mantém, no tempo ou no espaço, sua própria ordem ou, em outras
palavras, garante a saúde de seu organismo por meio de certo
equilíbrio: reconhecemos ao mesmo tempo que todo ser e toda vida,
em todos os níveis da Criação, provêm de um só princípio, que se
reproduz em imagem de si próprio, perfeitamente igual a ele mesmo,
graças ao tesouro dessa bondade em que o uno se une ao uno oriundo
do uno, na mais perfeita caridade.36
Assim, pois, esse verso que já havíamos citado:
Deus creator omnium,
não somente agrada o ouvido por uma cadência harmoniosa, como
provoca na alma uma alegria ainda mais deliciosa graças à pureza e
verdade do pensamento que exprime. Sem dúvida você não se deixará
refrear, aqui, por esses espíritos um pouco pesados — para dizer o
mínimo — que dizem que do nada nada pode vir, ainda que digamos
que Deus Todo-Poderoso tenha realizado esse milagre. Ora! Ao
artesão é possível produzir os números sensíveis de sua arte graças aos
números racionais referentes a sua prática, e pelos números sensíveis
produzir números de progresso segundo os quais ele coloca seus
membros em ação, e que regem também os intervalos de tempo. Ele
pode, repito, realizar sobre a madeira formas visíveis, em harmonia
com as divisões do espaço. E à natureza por sua vez, obediente ao que
Deus lhe comunica, não seria pois possível fazer nascer a própria
madeira da terra, bem como outros elementos? Se, pois, os objetos
criados pelo homem não depõem contra a criação natural que os
precedem, se tudo isso é possível, como não será possível a Deus
extrair todos esses elementos do nada? É, ao contrário, coisa
necessária que os números temporais precedam dos números espaciais
da árvore. De fato, dentre os vegetais, não vemos nenhum que, no
tempo devido, não brote, cresça, suba aos ares, desenvolva sua
folhagem, fortaleça-se e dê frutos, contendo a semente destinada a
reproduzi-lo em virtude de movimentos misteriosos que se operam no
próprio vegetal; essa lei é ainda mais perceptível no corpo dos
animais, nos quais os membros oferecem ao olhar uma simetria mais
regular. E se essas maravilhas se operam com os elementos, não será
possível que eles próprios, os elementos, tenham sido criados do nada?
Como se houvesse neles algo mais baixo, mais vil que a própria terra!
Mas uma parcela de terra, por menor que seja, deve se estender no
espaço, a partir de um ponto indivisível, desenvolver-se em largura e
em profundidade, formando um corpo completo. Qual é, pois, esse
princípio dessa dimensão que se desenvolve desde um ponto formando
um volume? Qual é o princípio dessa simetria das partes num corpo
sólido, produzido pelas três dimensões? Qual é o princípio dessa
analogia, dessa relação que extrai numa proporção exata, do ponto
geométrico o comprimento, do comprimento a largura, da largura a
profundidade? Qual é esse princípio senão a fonte eterna e suprema da
harmonia, da proporção da simetria e da ordem? Ora, retire-se da
terra essas propriedades e ela nada mais é. Assim, a onipotência de
Deus criou a terra, e a terra foi criada do nada.
Aliás, não é possível pela própria gura da terra, que a distingue dos
outros elementos, perceber a propriedade essencial que lhe foi
comunicada? Nenhuma de suas partes é diferente do todo, e a
a nidade e a harmonia das partes entre elas lhe faz ocupar o mais
baixo nível, posição relativamente vantajosa. Sobre ela corre a água, a
qual tende também à unidade, mais brilhante e transparente quanto
mais semelhantes forem as suas partes, mantendo-se no lugar que
corresponde à sua ordem e conservação. O que dizer do ar, que, por
sua propriedade de se condensar, tende ainda mais facilmente à
unidade, que é ainda mais transparente que a água e que se eleva
acima tanto da água como da terra, conservando-se nas alturas? Que
dizer então da abóbada celeste, dessa circunferência onde acaba o
mundo visível dos corpos, dessa região a mais elevada e a mais pura
em seu gênero?
Ora, quanto a todos os elementos que nós distinguimos por meio
dos sentidos, e todos os objetos que eles contêm, só lhes é possível
receber e manter os números espaciais que se manifestam em diversos
estados se forem precedidos de uma in uência, silenciosa e interior,
dos números temporais, os quais por sua vez estão em movimento;
esses números que se desdobram e se movem nas divisões do tempo
são previamente regidos pelo movimento da vida, o qual depende
unicamente do Mestre do Universo, que concede em seu poder divino
a graça do tempo aos seres vivos. Acima das harmonias da vida vêm
aquelas puras e perfeitamente intelectuais das almas santas e bem-
aventuradas: a lei de Deus, sem a qual nem uma folha cai de uma
árvore e na qual todos os os de cabelo estão contados, comunica-se
sem intermediário a essas harmonias, que a transmitem por sua vez às
harmonias que regem a Terra e os Infernos.37
: Tratei com você, segundo minhas capacidades, desses
temas; quão grandes são eles e quão pequeno sou eu! Se esse diálogo
vier a cair entre as mãos de alguns leitores, que estes guardem em
mente que os homens que o compuseram são in nitamente mais
fracos que aqueles que adoram a Trindade consubstancial e imutável
do Deus Todo-Poderoso e único, princípio de tudo, autor de tudo,
centro de tudo, que o adoram, repito, unindo-se unicamente à
autoridade dos dois Testamentos e o honram por atos de fé, de
esperança e de amor. Não são absolutamente os frágeis lumes do
raciocínio humano que os iluminam, mas o mais ardente fogo da
caridade. Nós, que não queremos ver condenadas as almas pela ação
de hereges e de suas falsas promessas de loso a e de ciência, devemos
desbravar tais caminhos; e marchamos num passo mais lento que os
santos personagens; eles, em seus vôos rápidos, sequer precisam
examinar tais questões. Nós, no entanto, não ousaríamos fazê-lo, se
não víssemos que muitos dos lhos piedosos da Igreja Católica, nossa
excelente Mãe, tendo recebido por meio da educação o talento da
palavra e da argumentação, viram-se obrigados a agir de igual modo
para combater a heresia.