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Sobre a música

Santo Agostinho
1º edição — julho de 2019 — CEDET
Título original: De musica – Traité de la musique.
edição Guérin de 1864, Thénard e Citoleux.

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Editor:
Nelson Dias Corrêa
Tradução:
Felipe Lesage
Revisão ortográ ca:
Juliana Amato
Preparação de texto:
Letícia de Paula
Diagramação:
Virgínia Morais
Capa:
Mariana Kunii
Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

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Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela
eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem
permissão expressa do editor
FICHA CATALOGRÁFICA
Agostinho, Santo
Sobre a música / Santo Agostinho; tradução de Felipe Lesage — Campinas, SP: Ecclesiae,
2019.

Título original: De musica – Traité de la musique.

ISBN: 978–85–8491–129-5
I. Título. II. Autor.
1. Filoso a. 2. Cristianismo.

CDD — 100 / 230

ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO

1. Filoso a — 100
2. Cristianismo — 230
Sumário

Nota da edição Guérin


Nota da versão brasileira
Livro primeiro
Livro segundo
Livro terceiro
Livro quarto
Livro quinto
Livro sexto
NOTA DA EDIÇÃO GUÉRIN

Este tratado sobre a música divide-se em duas partes: a primeira,


mais técnica, contém uma exposição completa das regras da rítmica e
da métrica; ela compreende os cinco primeiros livros. A outra, mais
losó ca, forma de certo modo a moral da obra; o autor analisa, aí,
os movimentos do coração e do espírito humanos, os movimentos dos
corpos e do universo, remontando de harmonia em harmonia, como
que por meio de uma escadaria mística, até chegar à harmonia eterna
e imutável, Deus, princípio de todos os movimentos e autor da lei que
os submete à ordem — em outras palavras, o autor da harmonia em
todos os graus. Essa parte está contida inteiramente no sexto livro; é a
parte mais conhecida da obra.
A primeira parte é um conjunto de preceitos, somados a um ou
outro detalhe curioso, e certas re exões profanas que nos fazem ver
no estudioso da métrica, sério e concentrado em sua tarefa de contar
sílabas, o poderoso lósofo e o brilhante orador: mas o interesse
desses cinco primeiros livros é do mais alto grau. Em nenhuma outra
parte a aliança entre poesia e música, esse problema tão discutido
entre os eruditos, apresenta-se sob uma forma tão simples; aqui não se
faz escansão, mas canta-se o verso antigo; os jambos, espondeus,
dátilos, produzem medidas musicais que nossa razão e nossos ouvidos
podem perceber e julgar; e essa harmonia não é algo tão distante de
nós quanto se pode crer: ela deixou marcas, como que um eco na
salmodia de nossas igrejas. Desde o início da obra, eleva-se entre o
mestre e o aluno uma discussão aparentemente mais metafísica do que
musical; mas que ninguém se engane, ela revela os princípios que
guiaram o autor, na composição de seu tratado, e contém a substância
mesma do tratado. O objetivo dessa parte é de nir a música tal como
é compreendida pelo autor e como ele quer nos fazer compreendê-la.
A música tem por objeto determinar as durações sucessivas que
dividem um movimento e a relação que os ordena entre si. Falo aqui
do movimento em geral; tanto a dança como o canto são do campo da
música; pois a dança consiste em movimentos que podem ser medidos
e se resolver em cadências regulares; os sons, de igual modo, só podem
formar um acorde musical porque podem ser divididos em intervalos
regulares que também podemos medir. A música é, portanto, a ciência
das belas modulações ou dos movimentos bem ordenados. Para
descobrir a sucessão desses movimentos e sua simetria o músico deve
remontar à teoria dos números, examinar suas relações e sua
progressão — é com base nesse modelo que ele determina a escala dos
sons e suas diferentes combinações. Os números são o símbolo do
acorde musical; eles o representam do mesmo modo como as palavras
exprimem o pensamento, e os prazeres do ouvido supõem relações
perfeitamente matemáticas. Reconheceremos aqui sem di culdades os
princípios do sistema musical tal como fundado na Grécia pelos
pitagóricos.
A música é, pois, uma ciência: repousa sobre uma teoria absoluta, a
saber, aquela dos números. Não se trata, como no caso da prosódia,
de um conjunto de conhecimentos meramente convencionais, e por
esse motivo ela se distingue da gramática, a qual, para xar a
quantidade das sílabas, limita-se a consultar os hábitos e exemplos dos
grandes poetas. Do mesmo modo como seus princípios são racionais,
seus métodos também o são: ela deduz das relações numéricas, por
uma conseqüência necessária, as relações que agradam o ouvido. Com
base nisso podemos compreender a importância das diversas
passagens em que o autor protesta, em nome da razão, contra o modo
de proceder dos gramáticos: não caremos surpresos, tampouco, em
vê-lo ensinar música a um aluno que ignora as regras da quantidade.
As palavras e suas quantidades representam notas. E os pés, medidas
musicais.
Seria possível dizer que os histriões e dançarinos pro ssionais são
músicos? Não, o autor os exclui do coro dos músicos, assim como
Platão baniu os poetas de sua república ou recusou o nome de orador
àqueles discursadores que não sabem aliar loso a à eloqüência. A
arte deles é mera imitação: a ciência e seus princípios eternos lhes
escapam. São artistas tanto quanto o rouxinol; são gargantas sonoras,
forjadas por exercícios e movidas pelo amor vil de um salário ou de
aplausos vãos. Tais são as conclusões dessa longa discussão em que
nos deparamos com aquela dialética, aqueles princípios e por vezes
mesmo a graça dos diálogos de Platão.
Entrando nos detalhes de seu assunto, Santo Agostinho xa, com
base nas propriedades mesmas dos números, as durações no
movimento, suas progressões, suas relações; o autor determina limites
nos quais se encerram esses movimentos, que em caso contrário
poderiam, assim como os números que os exprimem, estender-se ao
in nito. Essa discussão de aparência sutil e árida expõe com clareza o
sistema pitagórico sobre as leis matemáticas dos sons e dos acordes:
por isso ela é do maior interesse a todos aqueles que desejam estudar o
princípio do pitagorismo fora de suas equivocadas aplicações à moral
ou à metafísica, quero dizer, em sua simplicidade primeira e em sua
pureza.
Graças ao hábito adquirido da escansão de versos, só conseguimos
ver nos pés combinações de breves e longas mais ou menos arti ciais.
Mas não se trata absolutamente disso: “Os pés”, segundo a expressão
de M. Vincent,1 “são exatamente a mesma coisa que nossos
compassos musicais”. Eles se compõem de tempos que o ouvido pode
reconhecer por meio da batida do tempo. A mistura dos pés só pode
ser feita se oferecer durações iguais e que possam ser medidos pela
mesma batida. O anfíbraco não pode ser combinado com nenhum
outro pé, pois, dividido numa relação de 3 para 1, torna a batida da
medida di cultosa e, como diz o aluno do autor, “agride” os ouvidos.
Resumindo, o pé exprime um compasso musical cujas sílabas são as
notas, e a combinação dos pés deve ser feita numa relação tal que a
ársis e a tésis — o tempo fraco e o tempo forte — retornem em
intervalos constantes e regulares.
Essa separação do pé em ársis e tésis caracteriza essencialmente o
ritmo, que não é mais do que uma seqüência de compassos musicais
sem m determinado. Os hinos de Píndaro, os coros dos trágicos são
em geral ritmos em que as palavras sucedem segundo as exigências da
melodia criada ou adotada pelo poeta. A teoria do ritmo, tal como
encontrada em Santo Agostinho, exata, luminosa e manifestamente
apoiada sobre um conhecimento profundo das condições da poesia
lírica na Antigüidade, oferece, na nossa opinião, os verdadeiros
princípios para apreciarmos essa poesia, hoje em dia ainda obscura e,
por isso mesmo, de difícil apreciação. Se nós sentimos a harmonia de
Virgílio, que pode se orgulhar de sorver daquela de Píndaro, é porque
há nos versos daquele uma cadência perfeitamente alheia aos ritmos
deste. Hoje em dia só nos resta, por assim dizer, o libretto das odes
desse grande músico. O movimento, a paixão, a clareza mesma que
esse canto transmitia por meio de suas palavras, como um poderoso
sopro, desapareceram com a música. Píndaro vive o mesmo destino
dessas estátuas gregas que, transpostas a um clima estrangeiro,
perdem, junto com a luz transparente do céu oriental, também a graça
de suas proporções e o movimento de seus traços. A verdadeira
tradução de Píndaro seria uma tradução em música. Longe de nós, é
claro, querer comparar um Píndaro ou um Sófocles a um libretista
moderno! Mas não podemos nos contentar em atribuir unicamente à
inspiração “sua bela desordem”, os movimentos bruscos, as alianças
ousadas de palavras, a ausência de transição que desconcertam
qualquer gramático. A música animava as palavras; ela as interpretava
ao ouvido e ao coração, como interpreta em nossas igrejas o sublime
terror do Dies irae.
Lendo Santo Agostinho, vemos que o papel inteiramente secundário
da palavra no ritmo é para ele um princípio fundamental, a ponto de
ele nos instruir a fazer abstração das palavras e considerar apenas os
sons, e que os exemplos que ele dá oferecem antes um som agradável
ao ouvido do que um sentido claro ao espírito. Tanto isso é verdade
que o poeta lírico, na Antigüidade, não teria jamais procedido, como
diz Bossuet,2 por movimentos bruscos e impetuosos, não fosse
sustentado e guiado em seus ímpetos pelos movimentos regulares e
“bem ordenados” da música.
O metro se distingue do ritmo por comportar um m determinado,
após o qual ele recomeça. Não insistiremos nessa distinção a despeito
de sua importância: queremos chamar a atenção do leitor para a
maneira como o autor ensina a medir o metro pela batida.
Seu sistema é muito simples e repousa sobre o seguinte princípio:
cada metro tem um pé principal, ou seja, uma medida fundamental
composta de um número determinado de tempos. Essa medida, uma
vez reconhecida e adotada, deve ser encontrada em todo o metro. Se
nos faltam um ou mais tempos, nós os substituímos por pausas, cuja
duração poderemos sentir por conta da batida. É assim, na música
moderna, que substituímos as notas por pausas. Por exemplo, o
metro:
Sĕgĕtēs mĕūs lăbō r
pode ser medido de dois modos deferentes; isso dependerá do pé que
tomarmos por medida fundamental. Se adotarmos o dijambo (u_u_),3
teremos segetes | meus labor. Mas como o dijambo tem 6 tempos e
segetes é um anapesto, que é um pé de 4 tempos, é preciso preencher
os dois tempos vazios por uma pausa de igual duração. A medida é,
pois, de 6 tempos para cada pé.
Se quisermos, ao contrário, tomar por medida o ditroqueu (_u_u)
teremos: sege tes meus la |bor. Retornando do m do metro, ou seja,
da sílaba bor, ao início, sege, temos apenas 4 tempos; é preciso, pois,
uma pausa de 2 tempos. Marquemos, se nos permitimos tal liberdade,
essas pausas pelo sinal Œ que, na música moderna, equivale a um
tempo, e veremos com nossos próprios olhos a igualdade dessas duas
medidas:
Segetes meus labor Œ Œ.
Contrariando o hábito, o autor mede o hexâmetro por anapestos,
colocando os acentos em destaque, o que é muito importante no
verso, seja ele francês, grego ou latino:
Ārmă vı̆ rūmquĕ cănō Trō iaē quī prīmŭs ăb ō rīs.
Dado que, ao se conectar com o início, o m forma 4 tempos, e que
a medida de base é o anapesto — ou seja, 4 tempos —, não
precisamos de uma pausa complementar. Perceba-se que o hemistíquio
é a marca característica do verso antigo. O verso só é verso porque
admite um corte que o divide em dois membros, ligados entre si pela
mais estreita relação de igualdade. Agostinho encontra uma
maravilhosa relação de correspondência nos dois membros do verso
hexâmetro: seu número de semipés é tal que, se o elevarmos ao
quadrado, obtemos em cada uma das partes o número 25. Os antigos
eram muito mais sensíveis do que nós a essas propriedades dos
números que podem tornar-se, em música, um prazer para o espírito,
reforçando assim o prazer do ouvido. Não sem surpresa vemos que as
diversas e tão mal fundadas críticas feitas ao nosso alexandrino
aplicam-se em grande parte ao hexâmetro latino: também ele é
dividido em dois hemistíquios, e isso, diz nosso autor, do início até o
m da Eneida. Se Santo Agostinho querelou, há tantos séculos, com os
românticos, temo que o sistema deles, que consiste em despedaçar o
alexandrino sob o pretexto de romper com sua monotonia, não
responda nem às necessidades do ouvido, nem “às propriedades
essenciais dos números” e da harmonia. É por isso que encontramos
as leis do espírito humano sob as fórmulas do lósofo: sua obra não
envelheceu, pois a razão e os princípios da arte não envelhecem
jamais.
Chegamos então ao livro VI, e nos esforçamos em oferecer ao leitor
“uma bóia para sobreviver nesse mar imenso”, como nos diz a análise
el e entusiasta do Sr. Villemain.4 O aspecto estético da obra é, aqui,
apreendido em toda sua grandeza. O leitor nos permitirá, pois, que
insistamos na parte losó ca e a ela chamemos a atenção.
Antecessor de Descartes e de Malebranche, que cavaram um abismo
entre o corpo e a alma, Agostinho, guiado pelo senso cristão, rejeita a
possibilidade de o corpo modi car a alma. O corpo não produz, na
alma, dor ou prazer. Nada disso: atenta às impressões que o corpo
recebe do exterior ou das modi cações sofridas em seus órgãos, a
alma toma consciência dos movimentos corporais, e, associando-se ou
opondo-se a eles, a eles se conformando ou resistindo, essa mesma
alma sente dor ou prazer. A dor é uma função de sofrimento dos
órgãos percebida pela alma, o prazer, uma operação agradável de que
ela toma consciência. Essa teoria é tanto mais original quanto vemos
que a alma é tida em geral como coisa puramente passiva no
fenômeno da sensação: Agostinho vê nessa passividade um entre
outros modos de atividade da alma, uma reação contra os impulsos
vindos do exterior, e a alma segue livre para associar-se a eles ou não.
Ele articula sua teoria com o dogma cristão do pecado original. No
estado de graça e de felicidade, o corpo estava em perfeita união com
a alma, a qual não prestava nenhuma atenção nos movimentos
corpóreos e encontrava-se inteiramente voltada para Deus, seu Senhor.
Ela era indiferente aos eventos do corpo como nós, em medida muito
reduzida, o somos hoje, quando gozamos de boa saúde. Pois, na
saúde, o funcionamento dos órgãos é tão regular, tão simples, que a
alma não se preocupa com eles e pode mergulhar, sem qualquer
di culdade, na contemplação da verdade. Mas, por uma conseqüência
do pecado, a carne só obedece às ferroadas do prazer: a alma,
obrigada a voltar a atenção para seus movimentos de concupiscência,
ou luta arduamente para resistir ou se deixa levar e prefere, em lugar
da insensibilidade ou apatia que decorre da saúde, a desordem da
volúpia.
Essa teoria, de uma tal elevação espiritual, é exposta de forma
luminosa no capítulo V e domina todo o livro sexto. Auxiliada pela
graça, a alma renuncia pouco a pouco à carne: ela subordina, por uma
hierarquia divina, os movimentos que o corpo a forçava outrora a
produzir, ora suprindo suas necessidades, ora lutando contra suas
tendências grosseiras, por meio de movimentos que o juízo vai
ordenando, que a razão vai inspirando; a alma se puri ca, volta-se
inteiramente às coisas do Céu. Assim as harmonias deste plano se
mostrarão tanto mais altas quanto tiverem por princípio o sentido, o
juízo, a razão, o encaminhar-se paulatino e como que por patamares à
harmonia totalmente intelectual da verdade. Ela pode assim
reencontrar sua dignidade, retornando a seu modo original de
existência, a contemplação de Deus. Se, ao contrário, ela se restringe à
harmonia dos sentidos, à beleza dos objetos materiais, a conexão que
se dá é com a harmonia do pecado. Portanto, sendo a sensibilidade o
simples poder de reagir face às impressões do corpo, à alma resta a
opção de apenas prestar atenção nas harmonias celestes, o que lhe
confere toda sua dignidade e felicidade, ou de enclausurar-se nas
harmonias deste plano baixo, conduzindo-se à degradação e
infelicidade.
Desse ponto de vista elevado, Agostinho medita levando em conta
todos os movimentos da alma e do corpo, sempre harmoniosos, ainda
que em diferentes graus, pois que são uma conseqüência das leis
divinas. E ele convida a alma a ascender, de beleza em beleza, até
aquela soberana, liberando-se pouco a pouco dos entraves da
mortalidade.
A forma deste tratado é a de um diálogo. O aluno responde sim ou
não talvez com demasiada freqüência. Mas esse era um risco inevitável
em uma discussão assim tão longa. Aliás, trata-se verdadeiramente de
um aluno; ele se engana, seu mestre deixa que ele se desvie, trazendo-o
mais tarde à verdade e indicando-lhe com graça o ponto preciso que
causou seu erro. Por isso é preciso, às vezes, ler um capítulo inteiro
antes de bem entendê-lo. Acrescentemos que esse discípulo é curioso e
questionador a ponto de cansar seu mestre, volo tandem tibi parcas
(livro II). Quanto ao mestre, podemos reconhecer em cada frase o
brilhante professor de retórica e loso a, e, mais ainda, o discípulo de
Platão que aprendera a interrogar os espíritos e conhecia o segredo
não apenas de como instruir e agradar, mas também de fazer
adivinhar a verdade. As alusões a sua vida passada e a sua conversão,
sobretudo no livro sexto, vêm a cada instante nos surpreender e
enternecer. Mostremos aqui somente um exemplo, para terminar com
uma citação; ela marca a um só tempo a ternura de coração e o
sincero arrependimento de Agostinho. “O adultério”, diz ele,
“enquanto tal, é um ato condenável; mas de um adultério nasce
amiúde um homem; ou seja, para uma má ação do homem provém
uma ação excelente de Deus”. Quem não reconhecerá, nessas
palavras, Adeodato, fruto do pecado e, no entanto, presente magní co
de Deus por seu gênio precoce, sua fé, sua ternura lial?
***
NOTA DA VERSÃO BRASILEIRA

As poucas notas de rodapé necessárias à tradução brasileira são


acompanhadas da indicação (NT). Assim se pode distingui-las
daquelas propostas pela edição Guérin.

1 Análise do tratado de música em Paul Dupont, 1849, Paris.


2 Hist. Universelle: de nição da ode sacra que é, também ela, um ritmo.
3 Representa-se a breve por “u”, e a longa por “_” — NT.
4 Tableau de l’éloquence chrétienne au Ve siècle, pp. 421–428. — NT.
LIVRO PRIMEIRO

Sobre a música
I. A arte de determinar a justa duração dos sons depende da
música, e não da gramática
Mestre: Qual é o pé métrico formado pela palavra mŏdŭs?
Aluno: Um pirríquio.
M: Quantos tempos ele possui?
A: Dois.
M: E qual é o pé da palavra bŏnŭs?
A: O mesmo que da palavra mŏdŭs.
M: Mŏdŭs é portanto absolutamente idêntico a bŏnŭs?
A: Não.
M: E por que você me disse que essas duas palavras são iguais?
A: Elas são iguais quanto ao som, mas diferem quanto à signi cação.
M: Então você a rma que nós ouvimos o mesmo som ao pronunciar
mŏdŭs e ao pronunciar bŏnŭs?
A: O som produzido pelas letras é, sem dúvida, diferente, mas em
todos os outros aspectos elas são idênticas.
M: Pois bem, quando nós pronunciamos o verbo pō nĕ e o advérbio
pŏnē, não é verdade que existe, além da diferença de signi cado,
também uma nuance no som?
A: Há uma nuance muito clara.
M: E de onde vem isso, já que as duas palavras se compõem das
mesmas letras e dos mesmos tempos?
A: Do acento, que em cada caso está em um lugar diferente.
M: Qual é a arte que ensina a fazer todas essas distinções?
A: Em geral vejo os gramáticos se dedicarem a essa atividade, e foi
na escola deles que eu a aprendi; mas não sei se essas regras são da
ordem da gramática ou se foram tomadas emprestadas de alguma
outra arte.
M: Veremos isso daqui a pouco. Por ora, diga-me se, ao me ouvir
bater um tambor ou pinçar uma corda duas vezes com a mesma
velocidade com que eu pronunciaria bŏnŭs e mŏdŭs, se ao ouvir isso
você reconhece nesses sons o mesmo tempo?
A: Seguramente.
M: E você me diria que se trata de um pé pirríquio, sim?
A: Sim.
M: E qual mestre, senão o gramático, lhe ensinou o nome desse pé?
A: É verdade…
M: Assim, é o gramático que deve apreciar todos os sons desse tipo;
ou, melhor, ao perceber por si próprio a idéia dessas medidas do
tempo, não é verdade que você tomou emprestado ao gramático um
termo para designá-los?
A: Você tem razão.
M: E esse termo, que a gramática lhe ensinou, você não hesitou em
aplicá-lo a um objeto que, segundo você mesmo, não é próprio ao
campo da gramática, não é?
A: Estou convencido de que demos um nome ao pé unicamente para
marcar a medida dos tempos. Mas por que eu não poderia empregar
esse termo para designar uma medida similar a cada vez que a
encontrasse? Admitamos mesmo que fosse preciso empregar, para
designar sons que tenham a mesma medida, um termo diferente e
estrangeiro à gramática, por que me preocupar com as palavras
quando as coisas têm, para mim, um sentido claro?
M: Não é assim que eu vejo a coisa; no entanto, como existem nos
sons — você bem vê — um número enorme de nuances, e como
estamos de acordo que é possível reconhecer neles certas medidas que
não são da alçada da gramática, você não acha que existe uma outra
arte que abarcaria tudo o que diz respeito ao número e à harmonia
nas palavras?
A: Isso me parece provável.
M: E que arte é essa, na sua opinião? Você certamente não ignora
que se concede às Musas uma espécie de soberania sobre o canto; e é
isso, me parece, que costumam chamar de música.
A: Também acredito.
II. De nição da música e da modulação
M: Não queremos que nossa discussão gire em torno unicamente das
palavras — proponho que voltemos toda a nossa atenção a pesquisar
qual é a natureza e essência dessa arte, seja ela qual for.
A: Examinemos essa questão, pois desejo sinceramente aprender até
onde vão os domínios dessa arte.
M: De na, então, o que é a música.
A: Eu não conseguiria…
M: Você poderia, pelo menos, avaliar se minha própria de nição
está correta?
A: Tentarei, quando você a tiver formulado.
M: A música é uma ciência que ensina a bem modular. Você
concorda?
A: Talvez, se eu puder ver com clareza em quê consiste a modulação.
M: Você nunca ouviu essa palavra? Nunca a ouviu associada ao
canto e à dança?
A: É isso mesmo; mas como percebo que modular1 vem de modus,
justa medida, e que há uma medida a ser preservada em tudo aquilo
que se faz de bom, e que ao mesmo tempo no canto e na dança existe
uma in nidade de coisas baixas — ainda que atraentes… —, gostaria
de compreender perfeitamente o quê você entende por modulação:
pois essa palavra parece conter, por si só, a de nição quase que inteira
de uma arte tão vasta quanto a música, e não se trata, aqui, de
aprender os segredos dos cantores e dos histriões.
M: Você acaba de dizer que, mesmo fora da música, é preciso
guardar em nossas ações uma certa medida, e que ainda assim o termo
modulação integra a de nição de música; não se espante com isso.
Você ignora, por exemplo, que a fala, a palavra é considerada
“privilégio e dom do orador”?
A: Eu bem sei, mas por que essa questão?
M: Eis o porquê: quando um seu criado, grosseiro e ignorante que é,
responde com uma palavra ao pedido que você lhe faz, você concorda
que ele está falando?
A: Concordo.
M: E ele é, por conta disso, um orador?
A: É certo que não.
M: Ele, portanto, não operou as artes da palavra ao pronunciar
essas poucas palavras, ainda que tenha falado.
A: Concordo… Mas, uma vez mais, aonde você quer chegar com
isso?
M: Quero fazê-lo entender que é possível ao termo modulação
pertencer à música unicamente, ainda que a palavra modus que a
constitui possa se aplicar a outros objetos. Assim, o dom da palavra é
atribuído exclusivamente aos oradores, ainda que ninguém se exprima
sem falar, e que todos falem com palavras.
A: Agora entendi.
M: Quanto à observação que você fez em seguida, que há nos cantos
e nas danças grosserias que não podem ser chamadas de modulação
sem degradar essa arte quase divina, ela é perfeitamente justa.
Vejamos, pois, primeiramente, o que é preciso entender por
modulação; em seguida, por bem modular, pois não é sem razão que a
palavra “bem” foi acrescentada à de nição. Quanto à palavra ciência,
não se pode, tampouco, deixá-la passar levianamente; eis os três
termos, se não me engano, que compõem a de nição.
A: De acordo.
M: Concordamos que modulação deriva de modus. Será que
podemos nos restringir aos excessos ou faltas de medida unicamente
nos objetos em movimento? Ou é preciso veri car, também quando há
ausência de movimento, se a medida é respeitada?
A: Desnecessário, neste segundo caso.
M: Assim, podemos de nir a modulação como a arte nos
movimentos, ou pelo menos a arte de executar movimentos regulares.
Pois seria-nos impossível dizer que um objeto obedece a um
movimento regular se ele não preservasse certa medida.
A: Sem dúvida, seria impossível. Mas então será preciso
compreender sob o termo de modulação tudo aquilo que será bem
feito. Pois, sem movimento regular, nada pode ser bem executado.
M: E se todos esses atos se realizassem segundo as leis da música,
ainda que o termo modulação seja, com razão, mais comumente
empregado em alusão aos instrumentos musicais? Você é capaz de
distinguir, suponho, uma obra feita em madeira de outra feita em
prata, ou de qualquer outra matéria, do movimento que o operário
executa para realizá-la.
A: A diferença é profunda, de fato.
M: E o operário realiza esse movimento para si próprio? Ou para o
objeto, com vistas a sua realização?
A: Em vista do objeto, obviamente.
M: Pois bem, se alguém move seu corpo com a simples nalidade de
movê-lo com graça e elegância, nós dizemos que ele dança, sim?
A: Sim.
M: Em qual caso, pois, lhe parece que uma determinada coisa é
superior, atingindo, por assim dizer, seu grau máximo: quando a
buscamos em virtude dela própria, ou com outro objetivo além dela
mesma?
A: É claro que é quando nós a buscamos em virtude dela própria.
M: Lembre-se, pois, da de nição que havíamos dado à modulação.
Havíamos estabelecido que ela era somente a arte nos movimentos;
vejamos, agora, a que tipos de movimentos essa de nição se aplica;
seria àqueles que são por assim dizer independentes — quero dizer,
que buscamos por si sós, e que têm neles próprios a virtude de
agradar, ou então àqueles que têm um “não-sei-quê” de servil? Pois
tudo aquilo que não pertence a si próprio e serve a uma nalidade que
lhe é estranha reduz-se a uma espécie de servidão.
A: Está claro que a de nição se aplica àqueles que buscamos por si
sós.
M: É, portanto, provável que a ciência da modulação consista em
bem ordenar os movimentos, tornando-os capazes de despertar o
interesse e, por conseguinte, agradar por conta de suas próprias
qualidades.
A: É bem provável.
III. Que é que se entende por bem modular e por que esse
termo é necessário à de nição?
M: Por que acrescentamos a palavra bem, já que a modulação supõe
necessariamente um movimento bem ordenado?
A: Não sei, e ignoro como essa questão me escapou, pois contava
colocá-la.
M: Nós poderíamos tê-la suprimido, essa palavra, e de nir a música
como a ciência que ensina a modular.
A: Seria cansativo tentar explicar todos os termos com tamanha
minúcia.
M: A música é a ciência dos movimentos bem ordenados. Sem
dúvida, pode-se dizer que os movimentos são regulares quando
observamos com arte as medidas do tempo e de repouso: pois é nesse
caso que eles agradam, e podemos sem dúvida chamá-los de
modulações; mas não será possível também que essas cadências e
medidas agradem estando em contratempo; que uma voz sedutora e
uma dança graciosa busquem provocar uma excitação excessiva,
quando a circunstância exige gravidade? Nesse caso estaríamos
abusando de uma modulação perfeita, ou, em outros termos, de um
movimento que era excelente em sua medida, fazendo mau uso dele,
pois o aplicamos inconvenientemente. Existe, pois, uma diferença
profunda entre modular e bem modular. Podemos encontrar
modulação em todos os cantores, conquanto eles não se enganam na
medida natural das letras e dos sons: mas a boa modulação só
pertence a essa arte liberal a que chamamos música. O mesmo
movimento pode não nos parecer bom, quando se apresenta num
contexto inconveniente, ainda que pareça estar em conformidade com
as leis da cadência. Retenhamos, agora e sempre, nosso princípio:
evitemos nos perder em meio às palavras quando a coisa é clara, e não
nos preocupemos mais em saber se a música é a ciência da modulação
ou das belas modulações.
A: Deixemos de lado essas querelas sobre as palavras, as quais eu
desprezo. No entanto, essa distinção em nada me desagrada.
IV. Por que é necessário que o termo ciência componha a
de nição de música?
M: Só nos falta examinar por que a palavra ciência entra nessa
de nição.
A: Sim, pois lembro-me que a ordem da discussão assim o exigia.
M: Pois bem: você concorda quando eu digo que o rouxinol domina
muito bem as modulações de sua voz quando chega a primavera? Seu
canto é cheio de harmonia e charme; e, ademais, corrija-me se eu
estiver errado, ele está em perfeita conformidade com o contexto, com
a estação do ano?2
A: Concordo.
M: Pode-se concluir, daí, que ele conheça as regras de nossa arte?
A: Não.
M: Vê, portanto, que a palavra ciência é necessária à nossa
de nição?
A: Vejo muito bem.
M: Diga-me, por favor: não lhe parece que todos aqueles que,
guiados por uma espécie de instinto, cantam bem – ou seja, com
medida e com graça – mas não sabem o que responder se lhes
colocamos uma questão sobre a harmonia, as escalas graves e
agudas… não lhe parece que esses cantores são um pouco como os
rouxinóis?
A: Eles não passam de rouxinóis!
M: E como quali car aqueles que se comprazem ao ouvi-los, sem
nenhuma ciência? Vemos, na natureza, elefantes, ursos e outros
animais executarem movimentos cadenciados, seguindo ordens dadas
pela voz humana, e os próprios pássaros se maravilham com seus
próprios cantos, e sem dúvida não os ostentariam com tanto ardor se
não obedecessem, não aos cálculos do interesse, mas ao atrativo do
prazer. Se é assim, não poderíamos comparar essa gente aos animais?
A: Concordo; mas eis aí uma crítica que se dirige à maioria dos
homens…
M: Eu não iria assim tão longe. Homens eminentes, ignorantes de
música, podem se comprazer em partilhar dos mesmos gostos do
povo, os quais em nada se elevam para além daqueles dos animais, e
teremos nisso um traço de moderação e prudência; ou então eles vão
ouvir esse tipo de música para se desafogar de suas ocupações mui
rigorosas e buscar com discrição um prazer que os entretenha. Mas, se
por um lado é razoável, vez ou outra, permitir-se tal prazer, é
vergonhoso e degradante deixar-se levar por ele, ainda que
esporadicamente. Mas não é o momento de discutirmos essa
questão… Não lhe parece que os tocadores de auta, de cítara ou
qualquer outro instrumento não passam de rouxinóis?
A: Não exatamente.
M: Em quê eles diferem dos rouxinóis?
A: No fato de existir, a meu ver, uma certa arte na execução do
músico, enquanto que o rouxinol é guiado unicamente pela natureza.
M: Você tem certa razão no que diz; mas será preciso adornar com o
nome de arte algo que, neles, não passa de um efeito da imitação?
A: E por que não? Com efeito a imitação exerce um papel tão
importante nas artes que uma parece se confundir na outra. Os
mestres se dão em modelo ao discípulo, e é isso que eles chamam de
ensino.
M: A arte, sem dúvida, é a seu ver uma realidade racional, e
proceder com arte é proceder com razão. Não é essa sua opinião?
A: Sim.
M: Por conseguinte, sem razão, não há arte.
A: Também concordo nesse ponto.
M: Você crê que os animais, que não falam e nem dispõem da razão,
como se diz, sejam capazes de proceder com razão?
A: De modo algum.
M: Você reconhecerá portanto que os papagaios, periquitos e corvos
são animais racionais, ou então que você foi leviano ao dar o nome de
arte à imitação. Sabemos, com efeito, que os pássaros aprendem pelo
mesmo método que os homens a produzir certos cantos, certos sons, e
que eles só conseguem chegar a esses resultados pela imitação. Você
concorda?
A: Não consigo ver com clareza a conseqüência do seu raciocínio,
nem o que ele poderia conter de relevante contra minha resposta.
M: Eu havia lhe perguntado se os tocadores de cítara, de auta e
outros de pro ssão similar possuíam a arte musical, ainda que os
efeitos por eles produzidos em seus instrumentos fossem unicamente
frutos da imitação. Você me respondeu que eles possuem a arte; e
acrescentou que isso é verdadeiro porque arte e imitação chegam até a
se confundir uma na outra. Podemos, pois, concluir das suas palavras
que se procede com arte quando se atinge um m por meio da
imitação, ainda que a arte em si não se deva à imitação. Ora, se a
imitação confunde-se com a arte, e a arte com a razão, imitação e
razão também se identi cam; mas o animal, desprovido de razão, não
pode proceder racionalmente; concluo portanto que ele não possui
arte, e, como é capaz de imitar, a arte não pode se confundir com a
imitação.
A: Eu a rmei que as artes se servem, em geral, da imitação — não
disse que a arte é pura imitação.
M: Pois bem, as artes que se servem da imitação não se servem
também da razão?
A: A meu ver elas se vinculam a esses dois princípios.
M: Entendo o que você quer dizer, mas e a ciência, sobre qual
princípio repousa? Sobre a imitação ou a razão?
A: Sobre ambos.
M: Assim, você atribui aos pássaros a faculdade da ciência, já que
não lhes recusa o dom da imitação.
A: De forma alguma. Pois a rmei que a ciência dependia da imitação
e da razão, e não unicamente da imitação.
M: Vejamos, pois. Parece-lhe que ela possa se servir unicamente da
razão?
A: Talvez.
M: Assim, pois, você distingue a arte da ciência; pois a ciência,
segundo o que você diz, pode depender unicamente da razão,
enquanto que a razão se une à imitação pela arte.
A: Não sei se essa conclusão é precisa, pois não disse que todas as
artes, mas que uma grande quantidade de artes se servem a um só
tempo da razão e da imitação.
M: Como?! Você chamará de ciência aquilo que depende desses dois
princípios ou reservará esse nome àquilo que só se serve da razão?
A: E por que não chamar de ciência a união entre razão e imitação?
M: Já que tocamos no tema dos tocadores de cítara e de auta, diga-
me: não seria preciso atribuir ao corpo, ou, em outras palavras, a uma
docilidade dos órgãos, os efeitos que essa gente produz por incitação?
A: A meu ver essa docilidade toca a alma e o corpo juntos. No
entanto, você empregou com perfeita justiça o termo docilidade: os
órgãos, com efeito, só devem obedecer à alma.
M: Posso ver toda a precaução que você toma para não associar a
faculdade de imitação exclusivamente ao corpo. Mas você negaria,
contudo, que a ciência seja um privilégio da alma?
A: Como negá-lo?
M: Você não pode, pois, de modo algum, remeter à imitação e à
razão a ciência que ensina a fazer vibrar as cordas e ressoar as autas;
pois essa imitação, como você reconheceu, não pode existir sem o
corpo, enquanto que a ciência só procede da alma.
A: Assumo que seja essa a conseqüência do que eu havia a rmado,
mas o que importa? O autista utilizará a ciência que ele traz em sua
alma. A imitação, sem dúvida, não pode existir independentemente do
corpo, mas, ao se associar à ciência, ela não faz desaparecer esta
última.
M: Sem dúvida que não, ele não a faz desaparecer. Sem pretender
que todos os que tocam esses instrumentos sejam alheios à ciência
musical, a rmo que nem todos a possuem. Eis o ponto preciso que
quero tratar, a m de explicar de forma completa, se possível, a razão
de empregarmos a palavra ciência na de nição de música; pois se os
autistas ou liristas e outros que exercem atividade semelhante
possuíssem a ciência musical, não existiria, a meu ver, nada de mais
baixo e mais vil que a música.
Preste toda a atenção possível agora para ver surgir com clareza a
verdade que buscamos com tanto esforço. Você concordou quando
a rmei que a ciência reside apenas na alma, sim?
A: E como não concordar?
M: Pois bem! O sentido da audição reside na alma ou no corpo? Ou
nos dois simultaneamente?
A: Em ambos.
M: E a memória?
A: Acredito que resida na alma. Pois, se apreendemos pelos sentidos
os fenômenos que con amos à memória, isso não é contudo razão
para crer que a memória resida no corpo.
M: Você levanta aqui uma questão importantíssima e que é externa a
nossa discussão. Eis, por ora, o que nos basta: os animais têm
memória, isso é inegável. As andorinhas, todos os anos, voltam a seus
ninhos e o poeta disse, com muita razão, o seguinte a respeito das
cabras:
Uma alegre lembrança as faz retornar ao estábulo.3
Não é verdade que Homero tece louvores ao cão que reconhece seu
mestre, já esquecido por seus serviçais? Seria possível expor uma
in nidade de exemplos para apoiar o que estou a rmando.
A: Não digo o contrário, mas aonde você pretende chegar com isso?
Desejo fortemente saber…
M: Ora, não é evidente que aquele que concedeu tão-somente à alma
o dom da ciência e dele privou todos os outros animais não o colocou
nem nos sentidos, nem na memória, de vez que os sentidos são
inseparáveis dos órgãos, que o próprio animal tem sentidos e
memória, mas unicamente na inteligência?
A: Ainda estou aguardando a conclusão que você vai tirar dessas
premissas…
M: Eis a minha conclusão: todos aqueles que, consultando tão-
somente seus sentidos e guardando em suas memórias tão-somente
aquilo que lhes agrada, baseiam nesse prazer absolutamente material o
movimento de seus corpos — a ele acrescentando certo talento de
imitação —, estes não têm a ciência, malgrado toda a habilidade que
possam exibir, conquanto não possam ver, sob a luz pura e verdadeira
da inteligência, o princípio da arte que se vangloriam de interpretar.
Se, portanto, a razão nos demonstra que os cantores de teatro gozam
tão-somente de um talento desse tipo, creio que você poderá, sem
hesitação, negar-lhes a ciência, e por conseguinte não reconhecer neles
essa arte musical que é apenas a ciência das modulações.
A: Desenvolva sua idéia, analisemos isso mais a fundo.
M: A agilidade maior ou menor dos dedos é, sem dúvida, um efeito
do exercício e não da ciência.
A: Por que você diz isso?
M: Agora há pouco você expunha a ciência como um privilégio da
alma: ora, essa agilidade só depende dos dedos, ainda que eles
obedeçam ao impulso da alma.
A: Mas dado que a alma em que se encontra a ciência ordena que o
corpo produza esses movimentos, será preciso antes atribuir-lhes à
alma do que aos membros, que só fazem obedecer.
M: Não pode acontecer que um homem seja superior em ciência a
outro, ainda que este mova seus dedos com maior facilidade e
destreza?
A: Isso é bem possível.
M: Ora, se os movimentos rápidos e ágeis dos dedos devem ser
atribuídos à ciência, quanto mais excelentes fôssemos nesses
movimentos, mais avançados seríamos na ciência.
A: É verdade.
M: Preste atenção nisto mais: você sem dúvida já deve ter notado
que os carpinteiros e outros artesãos do gênero, trabalhando com o
martelo ou o malho, batem sempre no mesmo lugar, sem nunca errar
o ponto que querem golpear; tentássemos nós fazê-lo, fracassaríamos
e seríamos objeto de riso.
A: É verdade.
M: E por que nós não conseguimos? Será por não saber qual é o tipo
de golpe que é preciso desferir, o entalhe a ser feito?
A: Nem sempre o sabemos.
M: Pois bem, suponhamos um homem que conheça o ofício de
ferreiro em todos os seus detalhes, sem ter, contudo, a mão bem-
treinada; suponha que esse sujeito é capaz de dar a seus operários, que
trabalham com a maior facilidade, uma miríade de lições que vão para
além de sua inteligência. Não é algo corriqueiro, isso?
A: Sim.
M: Assim, devemos atribuir ao hábito, e não tanto à ciência, não
apenas a destreza e a leveza, mas também a cadência nos movimentos
corporais: do contrário, quanto melhor nos servíssemos das mãos,
mais inteligentes seríamos. Podemos aplicar essa observação ao
talento dos autistas e citaristas, e, por conseguinte, a di culdade que
sentiríamos ao executar os movimentos dos dedos não nos impedirá
de atribuí-los à imitação, à pratica diária, e não tanto à ciência.
A: Começo a entender, en m. De igual modo, ouço falar com
freqüência de médicos muito doutos que se impressionam ao ver
outros pro ssionais menos instruídos realizando amputações,
curativos — em suma, todas as operações que exigem a mão ou o
ferro: esse ramo da medicina se chama cirurgia,4 e o termo mesmo
denota su cientemente operações que se fazem com as mãos. Prossiga,
pois, e conclua a questão.
V. O sentimento musical vem da natureza?
M: Parece-me que ainda falta mostrar que as próprias artes que nos
agradam pelo talento da execução, quando seus efeitos são fortes,
dependem imediatamente não da ciência, mas de uma aliança entre os
sentidos e a memória; pois não quero que você me diga que a ciência
pode ser obtida sem a prática e mesmo num mais alto grau que entre
aqueles que se destacam na prática, e que no entanto estes últimos não
teriam conseguido alcançar, sem qualquer ciência, um talento de
execução tão bem acabado.
A: Esse é, claramente, o ponto a ser demonstrado. Peço que comece.
M: Já lhe ocorreu de ouvir, com certo interesse, um espetáculo de
histriões?
A: Sim, e talvez com mais interesse do que eu de fato devesse.
M: Como se dá que a multidão ignorante vaie com freqüência o
autista que executa melodias ruins, aplauda o executante hábil e
responda com entusiasmo à beleza dos acordes de um músico? Será
que a multidão age assim por conhecer a arte musical?
A: Não.
M: E então por quê?
A: Assim quis a natureza, que deu a todos os homens o sentido da
audição: o povo julga segundo o ouvido.
M: Você tem razão, mas examine se o autista não é, também ele,
dotado desse sentido. Se assim é, ele pode fazer mover seus dedos
conforme as indicações da natureza ao soprar sua auta; se um som
lhe satisfaz, ele pode anotá-lo e guardá-lo em sua memória e, por
força de repeti-lo, acostumar seus dedos a reproduzir esse movimento
sem hesitação e sem erro, seja imitando as melodias de algum outro
músico, seja executando melodias inventadas por ele mesmo, seguindo
as inspirações e o gosto da natureza. Por conseguinte, se a memória
obedece aos sentidos — e os dedos à memória, quando esses mesmos
dedos já foram preparados por meio do exercício —, o autista toca
com tanto mais apuro e tanto mais agradavelmente quanto possua em
alto grau as faculdades que nos são comuns com os animais, tal como
havíamos demonstrado — a saber: o gosto da imitação, os sentidos e a
memória. Você tem alguma objeção quanto a isso?
A: Nenhuma, certamente. E desejo com fervor conhecer a essência
dessa arte que você acaba de colocar, com tanta clareza, fora do
alcance dos espíritos vulgares.
VI. Os cantores de teatro ignoram a música
M: Isso não basta, e ainda não me é possível passar a mais amplos
desenvolvimentos. Nós concordamos quanto a que os histriões
podem, sem possuir a ciência musical, afagar os ouvidos da multidão
de modo a agradá-la; resta-nos estabelecer que eles são incapazes de
ter o gosto da música e dela conhecer os segredos.
A: Você não terá feito pouco se conseguir me provar esse ponto.
M: Não há coisa mais fácil, mas você precisará redobrar a sua
atenção.
A: Em momento algum, que eu saiba, faltei com atenção, desde o
começo desses debates. Mas neste momento você excita ainda mais
minha curiosidade.
M: Eu lhe agradeço, ainda que você só esteja elogiando a si mesmo.
Responda, pois, por favor: você acredita que um sujeito que queira
trocar uma moeda de ouro por dez moedas de prata conheça o valor
do ouro?
A: Com certeza não.
M: Diga-me então o que tem mais valor aos seus olhos: idéias
próprias a nossa inteligência, ou qualidades a nós conferidas pelo
juízo insensato dos ignorantes?
A: Ninguém duvida que é preciso valorizar antes nossa própria
inteligência às qualidades que nos são de certa forma alheias.
M: Você poderia negar que toda ciência pertença à inteligência?
A: Como negá-lo?
M: Por conseguinte, é na inteligência que reside a ciência musical.
A: É a conseqüência dessa de nição.
M: Pois bem! Quanto aos aplausos da multidão e todas essas
recompensas dadas no teatro, não lhe parece que eles dependem do
acaso e do gosto do público?
A: A meu ver não há nada de mais aleatório, incerto e mais exposto
aos caprichos da tirania popular que todos esses favores.
M: Será que os cantores venderiam, pois, as modulações de suas
vozes a um tal preço, se conhecessem a ciência musical?
A: Essa conclusão causa uma forte impressão ao meu espírito, mas
tenho uma objeção. A comparação do vendedor de ouro com o artista
não me parece totalmente correta. O ator, com efeito, após conquistar
os aplausos ou receber dinheiro, não perde, por conta disso, o
conhecimento — se conhecimento há — que lhe foi necessário para
impressionar o povo. Mais rico, mais feliz graças aos aplausos do
público, ele volta para casa com sua ciência intacta. Seria uma tolice
desprezar esses favores; sem obtê-los, ele seria menos conhecido e
menos rico; ao ganhá-los, sua ciência não foi reduzida.
M: Vejamos se conseguimos chegar à nossa nalidade por outro
raciocínio. O m ao qual nós nos propomos é, sem dúvida, superior à
coisa mesma que nós fazemos.
A: É um princípio evidente.
M: Assim, aquele que canta ou que aprende a cantar com o único
objetivo de conquistar os aplausos do público ou de um homem
qualquer não estimaria essa aprovação em mais alto grau que o
próprio canto?
A: Não saberia dizer o contrário.
M: E quanto a um sujeito que tem uma opinião equivocada sobre
certa coisa. A você lhe parece que ele a conheça?
A: Não, a não ser que a tenhamos corrompido de tal ou qual
maneira.
M: Ora, aquele que está intimamente convencido da inferioridade de
uma coisa realmente superior não pode possuir a ciência dessa mesma
coisa, estamos de acordo?
A: Isso é incontestável.
M: Portanto, quando você tiver me convencido ou demonstrado que
um histrião não adquiriu o seu talento, ou dele não faz exibição
unicamente para se exibir ao público, para ganhar dinheiro ou
aplausos, aí então concederei que é possível dominar a música mesmo
sendo um histrião. Se, ao contrário, der-se aquilo que é imensamente
mais provável, a saber: que você não encontre nenhum histrião que
tenha como nalidade de sua pro ssão outra coisa além do dinheiro
ou da fama, você deverá reconhecer que eles não entendem de música,
ou que devemos pedir à multidão por glória e outros bens efêmeros ao
invés de buscar, dentro de nós, a ciência.
A: Após ter concordado com as suas proposições anteriores, vejo-me
forçado a aceitar também esta, pois não creio que possamos encontrar,
no teatro, um só homem que ame sua arte pela própria arte, e não
pelas vantagens que a ela se associam. Nem mesmo nas escolas do
ofício conseguiríamos achar. Contudo, se tal homem já existiu algum
dia ou ainda existe, deveríamos antes estimar o histrião do que
menosprezar o músico. Desenvolva pois, por gentileza, os princípios
dessa grande arte que não posso mais, doravante, considerar como
uma arte vulgar.
VII. Sobre os termos duradouro e não duradouro
M: Eu o farei, ou melhor, você mesmo o fará. Procederei unicamente
por questões, por perguntas, e verá que todo o conteúdo desse tema, o
qual você parece querer penetrar em seus íntimos detalhes, se
mostrará diante de si por meio das suas próprias respostas. Começo,
pois, perguntando: é possível correr rápido por uma longa duração de
tempo?
A: Sim, é possível.
M: É possível correr rápido e lentamente simultaneamente?
A: É impossível.
M: Portanto, entre duradouro e lento há uma grande diferença.
A: Muito grande.
M: Outra questão: qual é o oposto de um tempo duradouro, tal
como o rápido se opõe ao lento?
A: Não encontro um termo habitual para expressar essa idéia, mas
apenas um termo negativo que a ele se opõe, a saber: não duradouro,
do mesmo modo como se eu não quisesse empregar a palavra
rapidamente e dissesse não lentamente, e o signi cado seria o mesmo.
M: Você tem razão: ao falar assim, nada perdemos da verdade do
objeto. Quanto à palavra que lhe escapa, ignoro qual seja, ou por
enquanto ela não me vem ao espírito, supondo que eu a conheça.
Convenhamos pois em utilizar esses termos contrários: duradouro e
não duradouro; lento e rápido. E tratemos, primeiramente, do tempo
mais ou menos longo no movimento.
A: Aceito.
VIII. Sobre o tempo mais ou menos longo no movimento
M: Você consegue ver com clareza o signi cado de duradouro e não
duradouro?
A: Sim.
M: Assim, por exemplo, de um movimento que dure duas horas,
comparado a outro de apenas uma hora, não é certo dizer que ele
dura o dobro do tempo?
A: Sim, é claro.
M: Assim, o tempo mais ou menos duradouro pode ser medido e
dividido numa relação análoga a um movimento que se compara a
outro, como 2 se compara a 1, ou seja, um pode ser o dobro do outro.
Um movimento pode ainda estar para outro como 3 está para 2, em
outras palavras, conter três intervalos de tempo iguais aos dois
intervalos contidos no outro. Podemos percorrer todos os números de
igual modo, sem nada deixar de vago e indeterminado em sua escala,
xando um número para designar a relação de dois movimentos entre
eles. Esse número poderá ser o mesmo, como na relação de 1 para 1,
de 2 para 2, de 3 para 3 ou de 4 para 4, ou diferente, como na relação
de 1 para 2, de 2 para 3, de 3 para 4, ou de 1 para 3, de 2 para 6, e
assim por diante. Isso é aplicável a todo movimento suscetível de ser
medido.
A: Peço que seja um pouco mais claro, por favor.
M: Voltemos então ao exemplo das horas e dessa relação que eu
pensava ter esclarecido su cientemente, antes de passar aos outros.
Você não nega que possa haver dois movimentos, um de uma hora,
outro de duas horas, sim?
A: Estou de acordo.
M: Pois então! Não pode haver ainda dois outros movimentos, um
de 2 horas, outro de 3?
A: É verdade.
M: Um movimento de três horas e outro de quatro? Não é evidente
que pode haver também dois movimentos, um de uma hora, outro de
três, outro de duas, outro de seis?
É
A: É evidente.
M: E por que então aquilo que eu estava dizendo não seria
igualmente evidente? Com efeito, não pretendia dizer outra coisa
quando sustentava que dois movimentos podem ter entre si uma
relação marcada por um número, como 1 está para 2, 2 para 3, 3 para
4 e assim por diante. Uma vez que admitimos isso, é fácil estabelecer
outras proporções como de 7 para 10, de 5 para 8 e encontrar a
mesma relação entre dois movimentos medidos que aquela
identi cada entre dois números iguais ou diferentes.
A: Entendo, essa relação de fato pode existir.
IX. Sobre os movimentos racionais ou irracionais,
conumerados ou dinumerados
M: Você também entende, creio, que tudo aquilo que admite uma
justa medida é preferível àquilo que é incomensurável e ilimitado.
A: É evidente.
M: Assim, dois movimentos que tenham entre si, como havíamos
dito, uma medida comum, são preferíveis àqueles que não a tenham.
A: É uma conseqüência bem clara. Aqueles estão unidos pela medida
e proporção dos números, enquanto estes não se conectam por
nenhuma relação.
M: Chamemos, pois, se você estiver de acordo, racionais os
movimentos que podem ser medidos entre si e irracionais aqueles que
não admitem medida comum.
A: Estou de acordo.
M: Diga-me se você encontra, primeiramente, uma relação mais
harmoniosa nos movimentos racionais marcados pelos mesmos
números do que nos movimentos expressos por números diferentes.
A: Não há dúvida.
M: Pois bem, dentre os números diferentes entre si, não é verdade
que existem alguns que nos permitem dizer de qual fração de si
mesmo o maior excede o menor? Como 2 e 4, 6 e 8, mas também
outros números em que essa relação não é tão sensível, como no caso
de 3 e 10, ou 4 e 11? No primeiro caso, com efeito, o maior excede o
menor da metade; no segundo, o menor, que é 6, é inferior ao maior
da ordem de um quarto do maior. Entre os dois últimos, 3 e 10 e 4 e
11, nós bem podemos ver uma certa relação, pois é possível decompô-
los em unidades comparáveis entre si, mas será que sua relação é tão
perfeita quanto as anteriores? Será possível dizer de qual fração o
maior excede o menor ou o menor é inferior ao maior? Certamente
não. Como especi car qual é o terço de 10 ou o quarto de 11? E, ao
falar de frações, penso numa fração irredutível como 1/2, 1/3, 1/4,
1/6, sem precisar acrescentar nem um décimo, nem um vigésimo, nem
qualquer número fracionário.
A: Compreendo.
M: Dentre esses movimentos racionais desiguais dos quais citei duas
espécies valendo-me de exemplos numéricos, quais são aqueles que
você julga os mais perfeitos? Aqueles em que as relações podem ser
estabelecidas por frações exatas ou aqueles que não têm medida
comum entre si?
A: A razão me parece indicar que aqueles dos quais se pode dizer de
qual fração deles mesmos o maior é superior ao menor são preferíveis,
e aqueles que não têm esse caráter não são preferíveis.
M: Muito bem. Você gostaria que lhes déssemos um nome, a m de
designá-los por um termo mais curto ao tratar deles?
A: Sim, quero.
M: Chamemos, pois, conumerados aqueles que preferimos e
dinumerados aqueles que nos parecem menos perfeitos. Os primeiros,
com efeito, além de serem contados por unidades, são medidos e
avaliados pela quantidade que torna o maior igual ou superior ao
menor. Os dinumerados, ao contrário, só são comparáveis a eles
mesmos e não podem nem ser medidos e nem avaliados pela diferença
entre o maior e o menor. Pois não se pode dizer, deles, quantas vezes o
maior contém o menor, nem quantas vezes o maior e o menor
encerram a quantidade que torna um superior ao outro.
A: Aceito essas denominações, e farei o possível para lembrar-me
delas.
X. Sobre os movimentos complexos e sesquiálteros
M: Vejamos agora como é possível dividir os movimentos
conumerados. A diferença entre eles salta aos olhos, pois existem
aqueles em que o número menor “mede” o maior, ou, em outras
palavras, o maior contém o menor um certo número de vezes, como
foi dito a respeito de 2 e 4. Com efeito, 2 está contido duas vezes em
4, e estaria contido três vezes no número 6, quatro vezes em 8, cinco
vezes em 10, se quiséssemos tomar esses números por exemplos.
Existem outros em que a diferença entre o menor e o maior mede a
ambos os números, ou seja, o menor e o maior contêm a diferença
entre eles um certo número de vezes, como no caso dos números 6 e 8.
Aqui, com efeito, a diferença é 2, e esse excedente está contido quatro
vezes em 8, 3 vezes em 6. Designemos, pois, com maior clareza,
também com termos particulares essas espécies de movimentos e os
números que os representam. Creio não me enganar ao pensar que sua
diferença especí ca já lhe tenha chamado a atenção. Portanto, se
concordar, chamemos de complexos dois números cujo maior é
múltiplo do menor, e, quanto aos outros, chamemo-los por um termo
já antigo, sesquiálteros. Chamamos de sesquiálteros dois números que
têm tal relação entre si que o maior, comparado ao menor, contém
partes proporcionais a seu excedente: assim se dá com o número 3 em
relação a 2, o maior excede o menor de sua terça parte; o número 4,
em relação ao 3, o excede de sua quarta parte; 5 excede 4 de sua
quinta parte, e assim por diante. A relação é análoga em 6 comparado
a 4, em 8 comparado a 6 e em 10 comparado a 8; pode-se constatar a
mesma relação nos números seguintes, seja qual for sua grandeza.
Quanto à etimologia da palavra, é difícil determiná-la. Talvez sesque
venha de se absque, “fora de si”; e, de fato, 5 em relação a 4 torna-se
igual a ele se cortarmos o excedente, a quinta unidade. O que lhe
parece isso tudo?
A: A relação que você estabelece entre os movimentos mensurados e
os números me parece exata. Os termos que você emprega para
designá-los me parecem bem escolhidos para nos lembrar da idéia que
a eles associamos. Quanto à etimologia da palavra sesque, não me
choca, ainda que seu inventor possa muito bem não ter tido essa idéia
que você lhe credita.
XI. Como um movimento e um número são limitados em seu
crescimento ao in nito e recebem uma foma determinada —
sistema decimal
M: Aprovo seu pensamento… Mas você não percebe que os
movimentos racionais, ou seja, que possuem entre si uma relação
possível de se expressar em números, podem se estender ao in nito
caso não encontrem numa regra xa um limite que lhes contenha e
imponha uma medida e uma forma determinadas? Pois se tratamos de
números iguais como 1 e 1, 2 e 2, 3 e 3, 4 e 4, e assim por diante, qual
limite poderíamos encontrar, dado que os números em si são
inesgotáveis? Tal é, aliás, a essência mesma do número: quando o
de nimos, ele se torna nito; se ainda não o de nimos, ele é in nito.
Essa propriedade que encontramos nos números iguais também está
nos desiguais dinumerados e conumerados, complexos ou
sesquiálteros.
Tome a relação de 1 para 2 e continue essa operação estabelecendo a
relação de 1 para 3, 1 para 4, 1 para 5, e assim por diante; você não
encontrará limite. Dobre o segundo termo da relação como 1 e 2, 2 e
4, 4 e 8, 8 e 16, e assim por diante; não encontrará, tampouco,
qualquer limite. Triplique, quadruplique, faça qualquer outra
combinação desse tipo e você verá sempre os números se estenderem
ao in nito.
Assim se dá também com os números sesquiálteros. Nós havíamos
estabelecido as relações de 2 para 3, 3 para 4, 4 para 5, sim? Podemos
continuar assim até o in nito, pois não encontraremos nenhum limite.
Você quer estabelecer relações análogas, por exemplo 2 com 3, 4 com
6, 6 com 9, 8 com 11, 10 com 15 e assim por diante? Também aqui,
como nos outros casos, nenhum limite o impedirá.
Nem há por que falar dos dinumerados, sim? Os exemplos que
acabamos de citar mostram que a escala desses números se estende ao
in nito. Você concorda?
A: Nada de mais verdadeiro. Mas qual é, en m, a regra que conduz
essa progressão, in nita em si mesma, a uma forma determinada? Eis
o que estou impaciente para aprender.
M: Você perceberá que o sabe, como todo o resto, quando der
respostas precisas às minhas questões. Primeiramente, já que estamos
tratando de movimentos representados por números, pergunto:
devemos consultar os números em si mesmos para aplicar aos
movimentos cadenciados as regras absolutas e invariáveis que
havíamos descoberto nos números?
A: Assim penso. Parece-me que não há melhor método para
proceder.
M: Pois bem. Retornemos até o princípio mesmo dos números e
vejamos, segundo a capacidade de nossa inteligência, por qual razão
xamos, na escala ilimitada dos números, certas gradações que
permitem uma descida até a unidade, que lhes serve de princípio.
Assim, quando queremos seguir a série das dezenas, 10, 20, 30, 40,
paramos ao chegar em cem; se percorremos a série das centenas, 100,
200, 300, 400, encontramos, no número 1.000, como que um ponto
de chegada, que nos permite retornar. Preciso explicar mais? Você
entende bem o que quero dizer por essas séries que têm por princípio
o número 10. Pois assim como 10 contém 1 dez vezes, também 100
contém 10 dez vezes e 1.000 contém 100 dez vezes. Assim podemos ir
tão longe quanto quisermos: encontraremos sempre uma série análoga
àquela que a dezena nos ofereceu inicialmente. Há nisso que digo algo
que você não entenda?
A: Tudo está claro e me parece incontestável.
XII. Por que na numeração vai-se de 1 a 10 e retorna-se de 10
a 1?
M: Examinemos, com toda a atenção possível, em virtude de qual lei
vai-se de 1 a 10 para se retornar em seguida à unidade. Diga-me, pois:
quando dizemos começo, não estamos falando do começo de algo?
A: Certamente, sim.
M: E quando falamos em m, não estamos falando do m de algo?
A: Necessariamente.
M: E seria possível chegar do começo ao m sem passar por um
meio?
A: Não.
M: Assim, um todo é formado de começo, meio e m?
A: Sim.
M: Diga-me, então, por qual número você poderia designar o
começo, o meio e o m.
A: Você quer, sem dúvida, que eu cite o número 3: pois a sua questão
compreende um triplo objeto?
M: Muito bem. Podemos perceber que há certa perfeição no número
3, pois ele tem um começo, um meio e um m.
A: Sim, percebo.
M: Pois bem. Já não aprendemos, desde a mais tenra idade, que todo
número é par ou ímpar?
A: Sim.
M: Busque em suas memórias, agora, e diga-me: qual número
chamamos par e qual chamamos ímpar?
A: Todo número que pode ser dividido em duas partes iguais é par, e,
se não o pode, é ímpar.
M: Isso mesmo. Portanto, dado que 3 é o primeiro número inteiro
ímpar e que tem, como acabamos de dizer, um começo, um meio e um
m, não seria necessário que o número par seja igualmente inteiro e
completo, e que encontremos nele um começo, um meio e um m?
A: É absolutamente necessário.
M: Mas esse número, seja ele qual for, não pode ter seu meio
indivisível, como o número ímpar: pois se tivesse essa propriedade,
não poderia mais se dividir em duas partes iguais, o que é próprio a
todo número par, tal como vimos. Ora, 1 é um meio indivisível, 2 é
um meio divisível; e por meio, nos números, deve-se entender uma
quantidade que se encontra entre duas quantidades de mesmo valor.
Há algo de obscuro em minhas palavras? Você me entende bem?
A: Sim, tudo me parece claro, mas quando busco um número inteiro
par, o número 4 é o primeiro que se me oferece. Pois como ver no
número 2 os três elementos que tornam um número completo, a saber
o começo, o meio e o m?
M: Eis aí precisamente a resposta que eu esperava, e é a razão que a
dita para você.
Retorne, pois, ao número 1, e examine: não será difícil descobrir que
1 não tem nem meio e nem m, pois é apenas um começo. Ou, dito de
outro modo, ele é começo porque lhe falta meio e m.
A: Está claro.
M: E o que dizer do número 2? Será possível ver nele um começo e
um meio, ainda que só possa existir um meio se existir um m? Ou
melhor: um começo e um m, ainda que só se possa chegar ao m
passando por um meio?
A: A conclusão é incontestável: no entanto, não sei o que responder
quanto a esse número.
M: Pois bem, vejamos se o número 2 não pode ser também o começo
de outros números. Pois se ele não tem nem meio e nem m, como nos
faz ver a razão segundo suas próprias palavras, o que pode ser senão
um começo? Será arriscado estabelecer dois começos?
A: Sem dúvida alguma.
M: Você estaria certo se tratassem-se de dois começos opostos; mas
esse segundo começo vem do primeiro, que encontra sua origem nele
mesmo, enquanto que o segundo é oriundo do primeiro; pois 1
somado a 1 resulta em 2, e a esse título todos os números provêm de
1: mas eles se formam por adição e multiplicação, e tanto a adição
quanto a multiplicação nascem com o número 2; segue-se disso que
temos um primeiro princípio no número 1, de onde vêm todos os
números, e um segundo, no número 2, por meio do qual são formados
todos os outros. Você tem alguma objeção quanto a isso?
A: Nenhuma. E não é sem admiração que acompanho todas essas
considerações, ainda que elas não sejam mais do que minhas próprias
respostas às suas questões.
M: Pode-se analisar essas propriedades dos números de maneira
mais rigorosa e mais profunda na aritmética. Mas voltemos logo à
questão central. Dois somado a um 1, quanto dá?
A: Três.
M: Assim; esses dois princípios numéricos, somados, formam um
número inteiro e perfeito?
A: Sim.
M: Após somarmos 1 e 2, que número obtemos?
A: Esse mesmo número 3.
M: Assim, esse número formado de 1 e 2 coloca-se regularmente
após os dois primeiros; sem que nenhum outro possa se intercalar
entre eles?
A: Sim, é claro.
M: Não é igualmente claro que essa propriedade não se encontra em
nenhum outro número? Pois se somarmos quaisquer outros números
que seguem um ao outro, jamais obteremos como resultado o número
que os sucede imediatamente.
A: Compreendo; de fato 2 e 3, números que se seguem um ao outro,
somados, dão 5. Ora, não é 5 que vem imediatamente após, na ordem
da numeração, mas 4. Ademais, 3 e 4 somados dão 7 e a ordem da
numeração entre 4 e 7 contém ainda os números 5 e 6. Quanto mais
eu avançar na seqüência numérica, mais números serão necessários
para cobrir o intervalo.
M: Existe, portanto uma grande harmonia entre os três primeiros
números. Diz-se 1, 2, 3, sem que se possa intercalar entre eles nenhum
outro número. Ademais, 1 mais 2 não resulta em 3?
A: Sim, essa relação é maravilhosa.
M: Não é admirável, também, que, quanto mais essa harmonia é
estreita e íntima, mais ela tenda a uma certa unidade e forme certa
unidade na pluralidade?
A: É algo bastante impressionante, e admiro com um grande amor,
não sei bem por qual razão, essas relações cuja beleza você me faz
entrever.5
M: Muito bem: ora, você concorda que um conjunto tem um caráter
de unidade quando o meio está em harmonia com os extremos e os
extremos com o meio?
A: É uma condição indispensável.
M: Examine, pois, com atenção, se você encontra essa harmonia na
união desses três números. Quando dizemos 1, 2, 3: 2 não é superior a
1, na mesma medida em que 3 é superior a 2?
A: É verdade.
M: Me diga, agora, quantas vezes citei o número 1 nessa relação?
A: Uma vez.
M: Quantas vezes o 3?
A: Uma vez.
M: E o 2?
A: Duas vezes.
M: Ora, uma vez, duas vezes, mais uma vez, quanto isso dá somado?
A: Quatro vezes.
M: É, portanto, com razão que o número 4 vem após esses três
números: é o lugar que essa relação lhe concede. Aprenda a
reconhecer, dele, seu valor, considerando que essa unidade, objeto de
seu entusiasmo, é o resultado em toda coisa bem ordenada daquilo
que chamamos em grego de αναλογία: analogia, e em latim, proportio:
relação. Sugiro que empreguemos, aqui, este último termo, pois não
gosto nem um pouco de utilizar termos gregos numa conversa em
latim.
A: Estou de acordo, mas prossiga.
M: O que é uma relação, qual é seu valor em todas as coisas? Eis o
que iremos examinar com mais atenção no decorrer deste estudo,
quando chegar o momento apropriado: quanto mais você avançar,
mais reconhecerá seu caráter e sua importância. Você entende com
clareza, e isso já é o bastante por ora, que os três números cuja
harmonia lhe parece tão impressionante não poderiam ser
comparados entre si e nem formar uma estreita aliança sem o número
4. Você compreende, então, que ele mereceu o privilégio de ser
colocado logo em seguida, unindo-se intimamente a eles. Assim não
temos mais 1, 2, 3, mas 1, 2, 3, 4, que formam uma seqüência de
números ligados entre si pelas mais íntimas relações?
A: Concordo plenamente.
M: Prossigamos: e não pense que o número 4 não tenha nenhuma
propriedade especial que permita estabelecer a relação de que estou
falando, com tal rigor, pois de 1 a 4 há um número determinado e
uma magní ca progressão. Concordamos, há pouco, que há uma
espécie de unidade entre diversas coisas quando o meio se harmoniza
com os extremos e vice-versa.
A: Sim.
M: Tratando-se de 1, 2 e 3, qual é o meio e quais são os extremos?
A: 1 e 3 são os extremos, 2 é o meio, se não estou errado.
M: Responda, pois: qual número temos ao somar 1 com 3?
A: 4.
M: E 2, que está sozinho entre os dois, só pode ser comparado com
ele mesmo? Se é assim, quanto temos ao multiplicar dois por dois?
A: 4.
M: Assim, o meio está em relação com os extremos e os extremos
com o meio. Portanto, se é coisa harmônica que 3 venha após 1 e 2,
que o constituem, não é menos belo o fato que 4 venha após 1, 2 e 3,
pois ele é formado de 1 somado a 3 ou de 2 multiplicado por si
próprio: eis a relação6 na qual vemos a harmonia dos extremos com o
meio, do meio com os extremos. Você consegue entender?
A: Perfeitamente.
M: Tente agora encontrar nos outros números aquilo que chamamos
de propriedade especial do quaternário.
A: Tentarei: Se tomarmos 2, 3, 4, os extremos somados formam o
número 6, e o meio somado a ele mesmo produz o mesmo número. E
no entanto não é o 6, mas 5 que vem imediatamente em seguida.
Tento o mesmo novamente, agora com 3, 4, 5: os dois extremos
somados dão 8 e o meio repetido duas vezes dá o mesmo número; ora,
entre 5 e 8 há dois números intermediários, 6 e 7, ao invés de um só:
quanto mais eu avanço, mais os intervalos aumentam.
M: Vejo que você se apropriou em profundidade da teoria que acabo
de expor. Para não nos demorarmos demais, você deve perceber sem
dúvida que de 1 a 4 a progressão é bastante exata, seja por conta do
número par e do número ímpar; seja porque o primeiro número ímpar
inteiro é 3, e o primeiro par inteiro é 4, como havíamos demonstrado;
seja porque 1 e 2 contêm o princípio, e, por assim dizer, o germe do
qual nasce o número 3, constituindo os três números primordiais:
desses números, relacionados entre si, deriva o número 4, que se
conecta a eles por um legítimo nexo. É assim que surge essa
progressão regular que buscamos.
A: Entendo.
M: Muito bem. Mas você lembra qual era o objeto de nossas
investigações? Creio que buscávamos saber por que, ao estabelecer
séries na seqüência inde nida dos números, havíamos limitado a
primeira série ao número 10, que serve como uma espécie de apoio a
tantas outras; em outras palavras, por que, ao contar de 1 a 10,
retornávamos de 10 a 1.
A: Lembro-me perfeitamente que foi em vista dessa questão que
havíamos feito todos esses desvios: mas será que chegamos a resolvê-
la? Não vejo como… Com efeito nosso raciocínio acabou se limitando
a constatar que existe uma progressão regular e legítima não até 10,
mas até 4.
M: Você não vê, pois, qual resultado obtemos ao somar 1, 2, 3, 4?
A: Sim, vejo, mas não sem surpresa: sim, a questão está resolvida;
pois, 1, 2, 3, 4, somados formam 10.
M: Por essa razão, os quatro primeiros números, sua seqüência e sua
relação, devem ocupar a posição mais elevada no sistema de
numeração.
XIII. Sobre o encanto que causam ao ouvido os movimentos
proporcionados
M: É hora de voltarmos ao exame aprofundado desses movimentos
que constituem o objeto da ciência de que estamos tratando e que nos
levaram, pelas exigências da questão, a todas essas considerações
sobre uma ciência estrangeira: a aritmética. Para clari car nossa
discussão havíamos suposto, num espaço de horas determinado,
movimentos expressos por uma relação numérica indicada pela razão;
responda-me agora, com relação a essa hipótese: se um homem
corresse durante uma hora, e outro corresse por duas horas, você seria
capaz, sem relógio, clepsidra ou qualquer outra espécie de
cronômetro, apreciar esses dois movimentos dos quais um é simples e
o outro é duplo? Ou, se pudesse, conseguiria encontrar ao menos algo
de agradável nessa relação e gozar de certo prazer?
A: Isso me é impossível.
M: Pois bem! Se, numa outra situação, marcássemos um ritmo de
duas batidas por compasso, a primeira durando um tempo, a segunda
dois tempos — formando portanto um jambo — e prosseguíssemos
assim, enquanto uma pessoa executasse uma dança seguindo esse
ritmo, não seria possível identi car o caráter desse compasso, quero
dizer, a sucessão alternada de um tempo e dois tempos, seja na batida
do compasso, seja na dança que você observa? Não encontraríamos
ao menos certo prazer nessa harmonia captada pelos sentidos, ainda
que não nos fosse possível designar a relação numérica representada
por essa medida?
A: É verdade, pois aqueles que conhecem as relações numéricas o
sentem na música e na dança, e as identi cam com facilidade; quanto
àqueles que não as conhecem e são incapazes de identi cá-las, estes
não deixam no entanto de experimentar certo prazer.
M: É inegável, portanto, que os movimentos, dispostos numa justa
medida, enquadram-se no domínio da música, que nada mais é do que
a ciência das belas modulações. Falo aqui sobretudo daqueles
movimentos que, sem se dirigir a um m alheio à arte, contêm em si
mesmos sua beleza e o prazer que eles provocam. No entanto esses
movimentos, como você bem observou ao responder às minhas
questões, o prolongar-se por tempo demasiado, e se estender por uma
hora ou mais, não podem suscitar qualquer interesse aos nossos
sentidos, ainda que estejam dispostos na justa medida própria à
beleza. Assim, pois, dado que a música saiu, por assim dizer, de seu
misterioso santuário, e deixou marcas em nossas sensações ou nos
objetos recebidos por nossas sensações, não devemos então nos basear,
destarte, nesses vestígios, a m de avançarmos sem erro, se possível,
rumo àquilo que chamei de seu misterioso santuário?
A: De fato, é necessário trilhar esse caminho. Peço que comecemos
logo.
M: Deixemos pois, de lado, todas essas medidas de tempo que
ultrapassam nossa capacidade de apreensão e, seguindo a linha de
nosso raciocínio, ocupemo-nos dessas medidas mais bem-de nidas que
nos encantam no canto e na dança. Não acredito que você tenha outro
método para seguir as pistas deixadas por essa arte, como havíamos
dito, nos sentidos e nos objetos por eles percebidos.
A: De fato, não há outro método.

1 Modulari: submeter à medida, à regra.


2 Tempori também pode signi car “circunstância”: é um jogo de palavras intraduzível.
3 Geórgicas III, 316.
4 Keiros-ergon – trabalho manual.
5 Alusão à Trindade.
6 Em grego: analogia.
LIVRO SEGUNDO

Sobre as sílabas e os pés


I. Pontos de vista distintos entre o gramático e o músico na
apreciação das quantidades de sílabas
M: Preste bastante atenção agora; iniciarei a nossa próxima discussão
com um novo exórdio. Diga-me, para começar: você conhece bem as
quantidades relativas das sílabas longas e breves, tal como o ensinam
os gramáticos? Ou, melhor ainda: independentemente de você
dominar ou não a matéria, prefere começar como se fôssemos
totalmente ignorantes da matéria, podendo assim seguir uma linha
contínua e progressiva de raciocínio, sem interferência de idéias pré-
concebidas?
A: Pre ro esse método; é o que me dita a razão e também — por que
me envergonharia de assumi-lo? — a minha total ignorância quanto à
mensuração das sílabas.
M: Pois bem! Diga-me pelo menos se você já não percebeu, durante
uma conversa, que, no que diz respeito às sílabas, algumas se
pronunciam rápidas e breves, e outras lentas e prolongadas?
A: Já percebi tais nuances. Não poderia negá-lo nem que fosse
surdo.
M: Você deve saber que a ciência chamada pelos gregos de
Gramática e pelos latinos de Literatura funda-se na tradição —
segundo um raciocínio rigoroso, diz-se que ela se funda integralmente,
e segundo o consenso dos espíritos menos cultivados, que ela se funda
ao menos majoritariamente. Por exemplo: se você pronunciar a
primeira sílaba da palavra cano alongando-a, ou se escrever com ela
um verso num local que exige uma longa, o gramático lhe repreenderá
em nome da tradição da qual é guardião: para lhe provar que essa
sílaba deve ser breve, ele alegará que os antigos, nas obras por eles
deixadas e pelos gramáticos comentadas, serviram-se dessa sílaba
enquanto breve, e não longa. A autoridade é aqui, portanto, a única
regra que conta. Quanto à música, que considera nas palavras a
medida racional e o número, ela se limita a exigir que uma sílaba seja
longa ou breve simplesmente segundo o lugar designado pelas regras
da medida. Com efeito, coloque cano num lugar onde é preciso duas
sílabas longas e alongue na pronunciação a primeira sílaba — a qual é
muito breve — e o músico não sentirá nenhum incômodo: pois os
ouvidos perceberão uma duração pertinente à exigência do ritmo. Mas
o gramático o convidará a corrigir a expressão, substituindo cano por
uma palavra cuja primeira sílaba seja breve, segundo a autoridade dos
antigos de cujas obras ele é guardião, como dissemos anteriormente.
II. O gramático julga um verso segundo a autoridade, o
músico, segundo a razão e o ouvido
M: Assim, dado que nossa nalidade é analisar as leis da música, a
despeito de você confessar ignorar a ciência da medida das sílabas,
podemos tentar vencer essa incultura partindo da observação que você
fez quanto à duração mais ou menos longa das sílabas. Pergunto-lhe,
pois, se por vezes a cadência de certos versos já não causou em seu
ouvido uma impressão agradável.
A: Muito freqüentemente, na verdade. E nunca é sem prazer que
ouço alguém recitar versos.
M: Se, num verso que lhe agrada, trocarmos uma sílaba longa por
uma curta, num lugar em que o ritmo não o exige, seu ouvido sentiria
o mesmo prazer?
A: Pelo contrário: não conseguiria esconder meu espanto.
M: Assim, não resta dúvidas: no som que lhe agrada, o prazer vem
de uma certa proporção entre os números, e essa proporção, quando
rompida, desagrada seu ouvido.
A: É incontestável.
M: Continuemos a examinar o som dos versos e me diga qual
diferença você vê quando eu pronuncio:
Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris.
Ou:
qui primis ab oris,
A: Quanto à medida, percebo o mesmo som.
M: Isso se deve à maneira como pronunciei; z aquilo que os
gramáticos chamam de um barbarismo: em primus a primeira sílaba é
longa, e a segunda é breve: em primis, as duas sílabas são longas; ora
eu encurtei a última, e seu ouvido nada sentiu de estranho. Repitamos
esse experimento, pois, para ver se você irá reconhecer, na minha
pronúncia, a quantidade longa ou breve das sílabas: nossa discussão
poderá caminhar rumo ao nosso objetivo, por perguntas e respostas.
Irei repetir o verso em que z um barbarismo e, seguindo as regras dos
gramáticos, tornarei longa a sílaba que pronunciara como breve para
não perturbar seu ouvido. Diga-me, pois, se essa maneira de medir os
versos lhe causa o mesmo prazer quando você me ouve pronunciar:
Arma virumque cano Trojae qui primis ab oris.
A: Não conseguiria negar: há nesses sons um não-sei-quê que me
choca.
M: E não é sem razão: ainda que não haja mais barbarismo, há um
defeito que o gramático e o músico podem, ambos, criticar; o
gramático o faz porque a palavra primis, cuja última sílaba é longa,
está inserida onde é preciso uma breve; e o músico, porque a
pronúncia é longa quando deveria ser breve, e assim o verso não
durou o tempo exigido pelo ritmo. Se, agora, você compreende as
distintas exigências do ouvido e da autoridade, resta-nos ver por qual
mistério o ouvido sente ora prazer, ora incômodo com os sons longos
ou breves. Eis aí, com efeito, algo que se relaciona com a duração
mais ou menos longa que começáramos a investigar, se ainda se
lembra.
A: Compreendo a distinção e tenho ademais boa memória. Aguardo
com a maior impaciência o que está por vir.
III. Duração das sílabas
M: E o que está por vir? Diga-me: não deveríamos começar por
comparar as sílabas entre si, e ver quais são suas relações numéricas,
como já havíamos feito no caso dos movimentos? Ora, tudo aquilo
que produz um som está em movimento, e as sílabas são sonoras.
Você nega?
A: Não.
M: Portanto, comparar sílabas é comparar movimentos em que as
relações numéricas de tempo podem se converter em medidas de
duração.
A: É isso.
M: É possível comparar uma só sílaba a ela mesma? Você negaria
que a unidade exclui toda possibilidade de comparação?
A: Não nego.
M: Contestaria que é possível comparar uma sílaba a outra, uma ou
duas sílabas a duas outras, a três ou a um maior número?
A: Como negar?
M: Perceba ainda que toda sílaba breve, que leva menos de um
segundo para ser pronunciada e logo em seguida se esvai, dura,
contudo, um certo tempo, por menor que seja.
A: É forçoso.
M: Por onde poderíamos começar a contar?
A: Por um, logicamente.
M: Podemos chamar, como os antigos, de tempo, a duração de uma
sílaba breve, pois começaremos com a breve e dela passaremos à
longa.
A: Muito bem.
M: Essa a rmação nos conduz a outra: se, nos números, a primeira
progressão se dá de 1 a 2, nas sílabas em que vamos da breve à longa
a longa deve compreender dois tempos; assim, se a duração que
compreende uma breve é designada por um tempo, aquela que
compreende uma longa será expressa por dois tempos.
A: Sem dúvidas. Nada mais conforme à razão, devo admitir.
IV. Sobre os pés de duas sílabas
M: Comparemos agora os tempos. Qual relação existe entre duas
breves, ou por qual nome devemos chamar esses movimentos? Você
sem dúvida deve se lembrar que, em nossa primeira conversa,
havíamos dado nomes especiais a todos os movimentos que têm
relações numéricas entre si.
A: Havíamos chamado esses movimentos de iguais; pois têm a
mesma duração.
M: E quanto a essa relação que permite comparar as sílabas entre
elas e representá-las por meio de números, não lhe parece que
devemos nomeá-la também?
A: Sim, devemos.
M: Saiba pois que uma tal relação entre os sons foi chamada de pé
pelos antigos. Até qual limite é possível que o pé se estenda? Eis aquilo
que agora deveremos examinar com atenção. Diga-me, pois: que
relação temos ao combinar uma breve com uma longa?
A: Penso que essa combinação se faz segundo a relação dos números
que havíamos chamado de complexos; vejo, com efeito, uma relação
de 1 para 2, ou, em outras palavras, de um tempo de uma sílaba breve
aos dois tempos de uma sílaba longa.
M: E se nós os dispuséssemos de modo a pronunciar a longa
primeiro e em seguida a breve? Quando se inverte a ordem, a relação
representada pelos números complexos varia? No primeiro caso, com
efeito, passamos do simples ao duplo, e no segundo, do duplo ao
simples.
A: É verdade.
M: Num pé de duas sílabas longas, estamos relacionando dois
tempos com dois tempos, sim?
A: Sim, sem dúvida.
M: E de que espécie de números estamos a tratar nessa combinação?
A: Daqueles que havíamos chamado iguais.
M: Então, diga-me: quantos pés descobrimos até agora, começando
por duas breves para terminar em duas longas?
A: Quatro. Pois encontramos primeiro uma combinação de duas
breves, em seguida a de uma breve e uma longa, de uma longa com
uma breve e, en m, duas longas.
M: Poderá haver mais de quatro pés se só estivermos tratando de
duas sílabas?
A: De modo algum, pois na medida comum das sílabas uma breve
vale um tempo, uma longa, dois tempos. Ademais, uma sílaba só pode
ser ou longa ou breve. É impossível, pois, haver uma mistura entre
duas sílabas que não seja composta ou de duas breves, ou uma breve e
uma longa, ou uma longa e uma breve, ou en m duas longas.
M: Uma outra pergunta: de quantos tempos é feito o menor pé de
duas sílabas; e de quantos o maior?
A: O primeiro, de dois; o segundo, de quatro.
M: Você percebe que, seja nos pés, seja nos tempos, a progressão
não pode ir além do quaternário?
A: Vejo claramente. Isso me faz lembrar da lei de progressão nos
números1 e percebo, com grande satisfação, que ela se dá de forma
idêntica nos sons.
M: Se, portanto, os pés compõem-se de sílabas — ou seja, de
movimentos distintos e por assim dizer articulados de sons —, e que
ademais a duração das sílabas pode ser contada em tempos, você
compreende que o pé deve se estender até quatro sílabas, segundo a
progressão mesma seguida tanto pelos pés quanto pelos tempos, como
você pode ver?
A: Entendo o que você diz e seu raciocínio me parece de uma total
exatidão. Peço que prossiga com sua explicação.
V. Sobre os pés de três sílabas
M: Vejamos pois, pela ordem, quantos são os pés de três sílabas, tal
como acabamos de fazer com aqueles de duas sílabas.
A: Muito bem.
M: Você lembra que havíamos começado esse cálculo pela sílaba
breve ou de um só tempo, e compreendeu o motivo por que seguimos
esse percurso.
A: Lembro-me que nos parecera bom não nos afastar dessa lei de
numeração que nos obriga a retornar sempre a 1, princípio de todos
os números.
M: Se portanto, entre os pés de duas sílabas, o primeiro compõe-se
de duas breves, ou de dois tempos, formando logicamente a primeira
de todas as combinações, qual deve ser, a seu ver, o primeiro pé de três
sílabas?
A: Evidentemente, aquele que se compõe de três breves.
M: E quantos tempos ele contém?
A: Três.
M: E qual é a relação entre eles? Pois, em virtude da relação que
existe entre os números e que havíamos explicado, todo pé deve se
compor de dois elementos combinados entre si; ora, é possível dividir
um pé de três sílabas breves em duas partes iguais?
A: É impossível.
M: Qual modo de divisão será preciso adotar?
A: Não vejo nenhum, a não ser dividi-los numa relação de 1 e 2, ou
de 2 e 1.
M: Segundo qual lei dos números?
A: Aquela dos números complexos.
M: Agora examine este ponto: de quantas maneiras podem se
combinar, ou seja, quantos pés podem ser formados com uma sílaba
longa e duas breves? Responda, se puder.
A: Vejo um pé composto por uma longa e duas breves: não vejo
outra possibilidade.
M: Será obrigatório que, dentre essas três sílabas das quais uma é
longa, esta seja a primeira?
A: Me parece que não, pois as duas breves podem perfeitamente
preceder a longa.
M: Não haveria também uma terceira combinação? Pense bem.
A: Sim; pois a longa pode estar disposta entre as duas breves.
M: Não haveria um quarto arranjo?
A: É impossível.
M: Você poderia me dizer então quantas combinações ou pés podem
ser formados por três sílabas compostas de uma longa e duas breves?
A: Posso: elas se combinam de três maneiras e formam três pés.
M: Você compreende em que ordem é preciso dispor esses três pés
ou quer que eu lhe explique detalhadamente?
A: Mas você não aprova a ordem que indiquei dessa tripla
combinação? Pois coloquei uma longa seguida de duas breves, em
seguida duas breves com uma longa, e, en m, uma longa entre duas
breves.
M: E você aprovaria alguém que em suas contas passasse de 1 para
3, depois retornasse de 3 a 2, ao invés de ir de 1 a 2 e de 2 a 3?
A: Claro que não: mas você identi cou algo desse tipo naquilo que
eu z?
M: Ao enunciar essa tripla combinação, você indicou como sendo o
primeiro pé aquele cuja primeira sílaba é longa, mostrando com isso
ter percebido que, como só há nesses exemplos uma sílaba longa, ela
forma de certo modo a unidade, e deveria estar disposta em primeiro
lugar; e a esse título, ela era o princípio da combinação, e o primeiro
pé deveria ser aquele que a contivesse em primeiro lugar. Você deveria
portanto ter percebido ao mesmo tempo que o segundo pé é aquele em
que ela se encontra em segundo lugar, e o terceiro, no qual ela é
terceira. Parece-lhe correto persistir com essa idéia?
A: Não, condeno-a sem hesitar: como não reconhecer que essa
ordem é a mais adequada, ou melhor que é ordem mesma?!
M: Diga-me, então, segundo qual regra numérica esses pés podem se
dividir e combinar entre si?
A: O primeiro e o último se dividem segundo a relação de igualdade,
pois um pode ser desmembrado em uma longa e duas breves, e o
outro em duas breves e uma longa, de tal modo que as duas partes,
cada uma com dois tempos, sejam iguais entre si. Quanto ao segundo
pé, como a sílaba do meio é longa, pouco importa que a coloquemos
na primeira parte ou na segunda, e que dividamos o pé em três tempos
e um tempo, ou então em um tempo e três tempos. Assim essa divisão
se efetua segundo a regra dos números complexos.
M: Quero agora ouvir, de sua própria boca, se for capaz, quais são
os pés que vêm após aqueles de que acabamos de tratar. Havíamos
encontrado primeiramente quatro pés de duas sílabas, que dispusemos
segundo a ordem mesma dos números, começando pelas sílabas
breves; passando daí aos pés de três sílabas, não tivemos grandes
di culdades, segundo esse mesmo raciocínio, em começar por três
breves. Não era necessário, então, examinar quantas formas podia
tomar a combinação de uma longa com duas breves? Foi o que
zemos, e encontramos três pés que se encadeiam segundo sua
seqüência natural. Você conseguiria deduzir quais são os pés que vêm
a seguir, a m de nos evitar uma multidão de questões minuciosas?
A: Você tem razão: como não ver, com efeito, que após esses pés a
ordem invoca aqueles que são compostos de uma breve e duas longas?
A breve, segundo o mesmo raciocínio, formando a unidade e
ocupando o primeiro lugar, o primeiro pé será aquele em que ela
estiver em primeiro, o segundo, aquele em que ela estiver em segundo;
o terceiro, aquele em que ela estiver em terceiro e último.
M: Você sem dúvida é capaz de me dizer segundo qual razão,
segundo qual proporção eles se dividem e podem se combinar.
A: Sim. O pé composto de uma breve e duas longas só é divisível sob
condição de encerrar na primeira parte três tempos, valor de uma
breve e uma longa, e na segunda dois tempos, valor de uma longa.
Quanto ao terceiro pé, composto de uma longa e outra longa seguida
de uma breve, ele só admite, tal como o anterior, um modo de divisão,
mas este difere daquele, pois se divide em dois e três tempos, enquanto
que o outro se divide em três e dois tempos. Com efeito a sílaba longa,
colocada em primeiro, contém dois tempos; sobra uma longa e uma
breve, equivalentes a três tempos. Quanto ao pé intermediário, que
tem uma breve no meio, ele é suscetível de uma dupla divisão: pois,
dado que a breve pode se unir tanto à primeira quanto à segunda
parte, ele se divide numa relação de 3 para 2 ou de 2 para 3. Esses três
pés estão, portanto, submetidos à regra dos números sesquiálteros.
M: A seu ver nós analisamos todos os pés de três sílabas?
A: Sim, exceto um, se não me engano, composto de três longas.
M: Explique-me como ele se divide.
A: Ele se divide segundo a relação de uma sílaba para duas ou de
duas para uma, ou, em outras palavras, de dois tempos para quatro
ou de quatro para dois. Suas partes se unem, portanto, segundo uma
relação de números complexos.
VI. Pés de quatro sílabas
M: Examinemos agora, seguindo nossa ordem, os pés de quatro
sílabas. Diga-me imediatamente qual é o primeiro desses pés e qual é
seu modo de divisão.
A: É o pé de quatro breves que se divide em duas partes, compostas
cada qual de duas sílabas ou de dois tempos, segundo a regra dos
números iguais.
M: Perfeito. Você pode continuar sozinho e desenvolver todo o resto.
Não precisamos mais proceder passo a passo, basta cortar as breves
uma por uma, substituindo-as por longas sucessivamente; examinar,
na medida em que faz essas alterações, a espécie e o número de pés
que disso resultam, eis o único procedimento a ser adotado; você não
ignora que a sílaba principal é aquela que se encontra só em meio às
outras, seja ela breve ou longa. Você já desenvolveu certa prática
nesses cálculos todos. No caso em que hajam duas breves e duas
longas, o que ainda não se apresentou, qual é, a seu ver, a sílaba
principal, e formando uma unidade?
A: É fácil deduzir essa resposta pelas explicações anteriores. Uma
sílaba breve com um só tempo preenche melhor o papel de unidade do
que uma longa, que contém dois. Assim, havíamos sempre começado
a enumeração dos pés por aquele composto de breves.
M: Você pode, portanto, expor a série dos pés de quatro sílabas sem
que eu faça qualquer pergunta: serei um mero ouvinte e juiz.
A: Vou tentar. Primeiramente, das quatro breves que compõem o
primeiro pé é preciso cortar uma, substituindo-a por uma longa que
deve ser colocada no começo, para manter o privilégio da unidade.
Esse pé admite uma dupla divisão, em uma longa e três breves ou
então uma longa seguida de uma breve e duas breves, ou seja, numa
relação de 2 tempos para 3 ou de 3 tempos para 2. Colocada em
segundo lugar, a longa forma um novo pé que só pode ser dividido de
um único modo, a saber 3 e 2 tempos, a primeira parte sendo
composta de uma breve e uma longa, e a segunda, de duas breves.
Disposta em terceiro lugar, a longa forma um pé que, tal como no
segundo caso, só é suscetível de um modo de divisão, a primeira parte
com dois tempos representados por duas breves, e a segunda três,
representados por uma longa e uma breve. Disposta no m, a longa
forma um quarto pé que se divide de dois modos — como aquele em
que ela estava em primeiro lugar: somos livres, com efeito, para dividi-
lo em duas breves e uma breve seguida de uma longa, ou em três
breves e uma longa, em outras palavras, numa relação de 2 tempos
para 3, ou de 3 tempos para 2. Esses quatro pés, em que uma longa se
combina com três breves em diferentes locais, seguem, na relação de
suas partes, a lei dos números sesquiálteros.
Continuemos: das quatro breves, cortemos duas delas, substituindo-
as por duas longas, e vejamos quantas combinações e pés se pode
formar com esse número de breves e longas. É preciso primeiramente
dispor as duas breves no começo, pois ao começarmos por elas temos
algo de mais regular. Esse pé admite um duplo modo de divisão, ou
seja, uma relação de 2 tempos para 4, ou de 4 para 2, dependendo se
formamos a primeira parte por duas breves e a segunda por duas
longas, ou então a primeira parte por duas breves e uma longa, e a
segunda, por uma longa.
Forma-se um novo pé quando as duas breves que havíamos colocado
no começo, seguindo a ordem natural, são dispostas no meio: a
divisão do pé se dá então segundo a relação de 3 tempos para 3: a
primeira parte contendo uma longa e uma breve, a segunda, uma
breve e uma longa. Se as duas breves são colocadas no nal,
combinação que se segue mui naturalmente à anterior, elas formam
um pé que se divide de dois modos, dependendo se a primeira parte
contém dois tempos representados por uma longa, e a segunda, quatro
tempos representados por uma longa e duas breves; ou então que uma
parte contenha quatro tempos representados por duas longas, e outra,
dois tempos representados por duas breves. Nesses três pés, as duas
partes do primeiro e terceiro são regidas pela lei dos números
complexos: aquelas do segundo se unem segundo a relação dos
números iguais.
Agora devemos separar as duas breves que até aqui havíamos
colocado lado a lado: haverá entre elas um maior ou menor intervalo
segundo sua separação por uma ou duas sílabas longas. Ora, uma
longa pode situar-se entre elas de duas maneiras, o que produzirá dois
pés: podemos com efeito inserir primeiro uma breve, a seguir uma
longa, após o que uma breve e en m uma longa; ou então colocar as
duas breves no segundo e último lugares, e as duas longas, no
primeiro e terceiro. Teremos assim uma dupla sucessão de uma longa e
uma breve. O caso do intervalo mais amplo se dá quando as duas
longas estão no meio e as duas breves estão uma no começo e a outra
no m. Esses três pés, nos quais as breves estão separadas, dividem-se
segundo uma relação de 3 tempos para 3: o primeiro se divide em uma
breve seguida de uma longa, e uma breve seguida de uma longa; o
terceiro em uma breve e uma longa, uma longa e uma breve. Por
conseguinte formam-se seis pés com duas breves e duas longas,
mudando-as de posição tanto quanto for possível.
Resta-nos ainda cortar três breves de um total de quatro,
substituindo-as por três longas: essa única breve formará quatro pés,
dependendo se ela estiver disposta em primeira, segunda, terceira ou
quarta posição. Desses quatro pés os dois primeiros se dividem em três
e quatro tempos; os dois últimos, em quatro e três tempos, e suas
partes são unidas pela relação dos números sesquiálteros. No
primeiro, com efeito, a primeira parte se compõe de uma longa e uma
breve, ou de três tempos, e a segunda de duas longas, ou quatro
tempos; no terceiro, a primeira parte contém duas longas, ou quatro
tempos, a segunda uma breve e uma longa, ou três tempos; en m, a
quarta oferece igualmente em sua primeira parte duas longas ou
quatro tempos, na segunda, uma longa e uma breve ou três tempos.
O último pé de quatro sílabas é aquele composto unicamente de
notas longas. Ele se divide em duas partes, cada uma delas de duas
longas, segundo a regra dos números iguais, o que forma uma relação
de 4 tempos para 4. Eis o desenvolvimento que você me convidou a
fazer por minha conta: coloque-me, agora, outras questões.
VII. O verso é composto de um número determinado de pés
como o pé é composto de um número determinado de sílabas
M: Farei, sim, novas perguntas: mas você entendeu bem qual é, no
sistema dos pés, a importância dessa progressão até o quaternário,
segundo o que pudemos estabelecer quanto aos números?
A: Sim, e aprovo essa progressão tanto em um universo quanto em
outro.
M: Pois bem! Se formamos os pés combinando as sílabas, não
poderíamos, ao combinar os pés, formar um certo conjunto que não
mais deveria ser designado pelo nome de sílaba ou pé?
A: Creio fortemente que sim.
M: E qual seria esse conjunto?
A: Um verso, imagino.
M: Pois bem! Suponhamos que alguém decida combinar pés
diversos, sem se impor qualquer duração nem m, a não ser por uma
fadiga vocal ou outro acidente qualquer, ou mesmo pela necessidade
de passar a outro exercício, você chamaria de verso esse agrupamento
de vinte, trinta, cem ou mais pés ditados pela fantasia ou o desejo
daquele que estivesse a formar essa série inde nida?
A: Certamente não: não basta que me mostrem pés misturados entre
si indistintamente ou en leirados uns ao lado dos outros para dar a
isso o nome de verso: deve haver alguma teoria que ensine a espécie e
o número de pés necessários para se fazer um verso, e é segundo essa
regra que eu poderia julgar se aquilo que me toca os ouvidos é ou não
um verso.
M: Seja qual for essa teoria ela deve basear, não em um capricho,
mas em um princípio racional, as regras e a medida que imporá ao
verso.
A: De fato, se estamos tratando de uma teoria, não deve haver
espaço para fantasias.
M: Tentemos, pois, buscar esse princípio: levando em conta
unicamente a tradição, um verso será aquilo que dita a fantasia de um
não sei qual Asclepíades, um Arquíloco, ou Sapho e outros poetas da
Antigüidade dos quais demos nomes a certas espécies de versos, pois
eles descobriram e aplicaram essas formas poéticas. Com efeito,
existem versos chamados asclepiadeus,2 arquilóquios,3 sá cos,4 e mil
outros nomes de poetas que os gregos emprestaram aos versos de
distintos gêneros. Daí parece resultar que em se arranjando pés do
modo e no número que se queira, teríamos o direito, se ninguém ainda
imaginou uma dada combinação, de ser tido por criador e propagador
de um verso novo. Por que proibir esse privilégio ao pioneiro em
questão? Teríamos então o direito de nos queixar e perguntar qual
fora o mérito desses poetas que, sem terem sido guiados por qualquer
princípio, combinaram a seu bel-prazer tais ou quais pés, conseguindo
fazer com que chamássemos de verso um mero amontoado de pés e
lhes déssemos um nome. Concorda comigo?
A: Me parece justo; entendo, como você, que o verso é uma criação
da razão e não da autoridade; mas como isso se dá? Examinemos essa
questão, por favor.
VIII. Nomes dos diversos pés
M: Examinemos pois quais são os pés que podem se aliar entre si,
quais são as formas resultantes dessa mistura — pois há outras além
do verso. Acabaremos por ter uma teoria completa do verso. Mas, na
sua opinião, esses desenvolvimentos são possíveis, se não conhecemos
os diferentes nomes dos pés? Sem dúvida nós os classi camos de modo
que possam ser nomeados, segundo a ordem deles, primeiro, segundo,
terceiro, quarto pé. Mas é perigoso desdenhar os termos antigos, e não
se deve romper precipitadamente com os antigos hábitos, exceto
quando eles estão em contradição com a razão. Empreguemos, pois,
os termos pelos quais os gregos designaram os pés e que os latinos
adotaram. Sirvamo-nos deles sem nos dar ao trabalho de buscar a
etimologia: um tal estudo tende a ser prolixo e estéril. Por acaso você
se serve das palavras pão, madeira, pedra com menos proveito por
não conhecer a origem delas?
A: Você tem razão.
M: Pois bem. O primeiro pé se chama pirríquio; ele é composto de
duas breves e tem dois tempos, como a palavra latina fŭgă.
O segundo pé é o jambo; ele tem uma breve e uma longa, como
părēns, e tem três tempos.
O terceiro pé é o troqueu ou coreu: contém uma longa e uma breve,
como em mētă, e três tempos.
O quarto é o espondeu; de duas longas, como em aēstās, e quatro
tempos.
O quinto, tríbraco; três breves, como em măcŭlă, e três tempos.
O sexto, dátilo, uma longa e duas breves como em Maēnălŭs, e
quatro tempos.
O sétimo é o anfíbraco: ele se compõe de uma breve, uma longa e
uma breve como em cărīnă; quatro tempos.
O oitavo, um anapesto, duas breves e uma longa, como em Ĕrătō , e
quatro tempos.
O nono, báquio, tem uma breve e duas longas, como Ăchātēs, e
cinco tempos.
O décimo é o crético ou anfímacro, compõe-se de uma breve entre
duas longas, como īnsŭlāe, e de cinco tempos.
O décimo primeiro, antibáquio, tem duas longas e uma breve, como
nātūră, e cinco tempos.
O décimo segundo, molosso, tem três longas, como Āenēās, e seis
tempos.
O décimo terceiro, o proceleusmático, compõe-se de quatro breves,
como ăvı̆ cŭlă; quatro tempos.
O décimo quarto, peão primeiro, tem a primeira longa e as três
últimas breves como em lēgı̆ tı̆ mŭs, e cinco tempos.
O décimo quinto, peão segundo, tem a segunda longa e as outras
breves. Exemplo: cŏlō nı̆ ă; cinco tempos.
O décimo sexto, peão terceiro, tem a terceira longa e as outras
breves, como em Mĕnĕdēmŭs; cinco tempos.
O décimo sétimo, o peão quarto, tem a quarta longa, e as três
primeiras breves, como cĕlĕrı̆ tās; cinco tempos.
O décimo oitavo, jônio menor, compõe-se de duas breves e duas
longas como Dı̆ ŏmēdēs; seis tempos.
O décimo nono, coriambo, contém uma longa, duas breves, mais
uma longa: ārmı̆ pŏtēns; seis tempos.
O vigésimo, jônio maior, tem duas longas e duas breves, como em
Iūnō nı̆ ŭs; seis tempos.
O vigésimo primeiro é o dijambo ou duplo jambo, uma breve e uma
longa, seguido de uma breve e uma longa como em prŏpīnquı̆ tās; seis
tempos.
O vigésimo segundo, dicoreu ou ditroqueu, é formado por uma
longa e uma breve, mais uma longa e uma breve como em cāntı̆ lēnă;
seis tempos.
O vigésimo terceiro, antispasto, contém uma breve, duas longas e
uma breve, como em sălō nīnŭs; seis tempos.
O vigésimo quarto, epítrito primeiro, tem a primeira breve e as três
outras longas, como em săcērdō tēs; sete tempos.
O vigésimo quinto, o epítrito segundo, tem a segunda breve e as três
outras longas, como em cō ndı̆ tō rēs; sete tempos.
O vigésimo sexto, epítrito terceiro, tem a terceira breve e as três
outras longas, como Dēmō sthĕnēs; sete tempos.
O vigésimo sétimo, epítrito quarto, tem a quarta breve e as três
primeiras sílabas longas, como Fēscēnnīnŭs; sete tempos.
O vigésimo oitavo, dispondeu, compõe-se de quatro longas, como
ō rātō rēs, e contém oito tempos.
IX. Da construção dos pés
A: Agora que já conheço esses nomes, peço que me diga quais são os
pés que podem se associar entre si.
M: Nada mais fácil de descobrir, se guardar em mente que a
igualdade e a analogia são superiores à desigualdade e à falta de
proporção.
A: Esse é um princípio que qualquer um aceitaria.
M: É preciso, pois, respeitar esse princípio para combinar os pés,
sem nunca se afastar dele, exceto por razões muito bem justi cadas.
A: Entendido.
M: Você poderá combinar, assim, entre si os pés pirríquios, jambos,
troqueus ou coreus e espondeus; segundo esse mesmo método,
poderemos unir sem problemas todos os outros pés de espécie
idêntica. Com efeito, existe uma relação de igualdade perfeita entre os
pés de mesma espécie e de mesmo nome, você não acha?
A: É incontestável.
M: Não seria possível misturar, legitimamente, diferentes pés,
contanto que se respeite essa relação de igualdade? Existirá para o
ouvido algo de mais agradável do que uma combinação em que a
variedade se una à unidade?
A: Nada mais agradável.
M: E quais são os pés iguais entre si, senão aqueles que têm a mesma
medida?
A: É verdade.
M: Ora, ter a mesma medida não signi ca ter o mesmo número de
tempos?
A: Sim.
M: Você poderá pois combinar entre si os pés que têm o mesmo
número de tempos, sem medo de chocar o ouvido.
A: É uma conseqüência natural.
X. O anfíbraco, seja só ou misturado a outros pés, não pode
formar versos
M: Muito bem. Mas a questão ainda não está encerrada. O anfíbraco
é um pé que contém quatro tempos. No entanto, existem metristas
que pretendem que esse pé não pode se aliar com dátilos, anapestos,
espondeus ou proceleusmáticos, ainda que todos eles contenham
quatro tempos; e mais ainda: segundo eles, até mesmo a combinação
desse pé com ele mesmo é incapaz de formar um ritmo adequado e
regular. Examinemos pois essa opinião, e vejamos se ela repousa ou
não sobre um princípio coerente que devamos adotar.
A: Estou curioso para ouvir suas razões. Não é sem surpresa que
descubro que, dos vinte e oito pés que descobrimos com o auxílio da
razão, exista um que está excluído do verso, ainda que possua o
mesmo número de tempos que o dátilo e outros pés de mesma medida
passíveis de serem misturados.
M: Para resolver essa questão, é preciso considerar os outros pés e
ver a relação segundo a qual suas partes se unem entre si: você
compreenderá então qual é a razão especial que faz banir
legitimamente esse pé de todo o sistema de versos.
Para tratar desse tema é preciso guardar em mente os termos ársis e
tésis.5 Tal como no gesto de erguer e abaixar os braços quando
marcamos o tempo, cada um deles compreende uma parte do pé. E
por esse termo, parte, entendo aqui as frações dos pés de que tratamos
acima, quando os decompusemos em seus elementos. Se você aceita
essa teoria, comece por recapitular brevemente as diversas maneiras de
medir as partes em cada pé. Por esse meio você compreenderá sem
di culdade a estranha particularidade apresentada pelo anfíbraco.
A: No pirríquio, a ársis e a tésis contém, cada uma, um tempo: o
espondeu, o dátilo, o anapesto, o proceleusmático, o coriambo, o
dijambo, o ditroqueu, o antispasto e o dispondeu admitem a mesma
divisão: nesses pés, com efeito, a ársis e a tésis têm a mesma
quantidade de tempos; quando marcamos o tempo no jambo a relação
é de 1 para 2 e essa mesma proporção se encontra também no
troqueu, no tríbraco, no molosso e nos dois jônios. Quanto ao
anfíbraco, que devemos examinar agora comparando-o aos pés de
mesma ordem, divide-se numa relação de 1 para 3. Ora, não
vislumbro nenhum outro pé cujas partes se unam por uma relação tão
distante. Considere todos os pés compostos por uma breve e duas
longas, como o báquio, o crético, o antibáquio… A ársis e a tésis se
dividem segundo uma proporção sesquiáltera de 2 para 3. A mesma
regra se aplica aos quatro peões que oferecem a combinação de uma
longa com três breves. Restam ainda os quatro epítritos que
designamos segundo a posição da sílaba breve: a ársis e a tésis se
encontram sempre numa relação6 de 3 para 4.
M: Você percebe a razão de excluirmos de toda combinação rítmica
esse anfíbraco, cujas duas partes apresentam uma diferença tão
considerável entre si, a saber, que uma é o triplo da outra? A simetria
das partes é, com efeito, tão mais perfeita quanto mais se aproxime da
igualdade. Assim, na progressão regular dos números 1 a 4, todos
estão tão próximos quanto possível entre si. De igual modo nos pés, a
mais bela combinação é aquela em que as partes são iguais entre si; a
segunda, aquela em que as partes estão unidas numa relação de 1 para
2; vêm a seguir aquelas em que a relação é de 2 para 3 e de 3 para 4.
Quanto à combinação dos tempos numa relação de 1 para 3, ainda
que possamos enquadrá-la no caso dos números complexos, ela não é
suscetível de aliar-se a si mesma, segundo a ordem dos números. Não
contamos, com efeito, de 1 a 3: para passar de 1 a 3, é preciso
intercalar o número 2. Eis por que o anfíbraco é excluído dessa
mistura de pés entre si que buscávamos determinar. Se minhas razões
lhe parecem justas, avancemos no estudo da questão.
A: Tudo está claro para mim.
XI. Sobre a mistura racional dos pés
M: Como pudemos ver que, seja qual for a disposição das sílabas, os
pés que contêm a mesma duração podem se unir entre si sem prejuízo
à igualdade — com exceção do anfíbraco —, somos levados a
examinar se é possível misturar pés que, apesar de terem a mesma
duração, diferem naquela batida que divide as duas partes do pé, em
primeiro a ársis, em segundo a tésis. Com efeito, o dátilo, o espondeu
e o anapesto, além de terem um número igual de tempos, são medidos
pelo mesmo compasso: a ársis e a tésis se encerram no mesmo número
de tempos. Assim, a mistura desses pés entre si é mais natural que
aquela do jônio maior ou menor com qualquer outro pé de seis
tempos. Pois os dois jônios são medidos numa relação de 1 para 2, em
outros termos, numa batida de 2 e 4 tempos. O molosso se marca do
mesmo modo. Nos outros pés de mesma espécie, a batida é do tipo
que podemos chamar de análogo, pois a ársis e a tésis têm três tempos
cada um. Eles têm, todos, uma batida regular.
Portanto, desses sete pés de seis tempos, três deles se medem numa
relação de 1 para 2, e quatro por frações iguais: no entanto, como essa
mistura torna a batida desigual, você será levado, sem dúvida, a
rejeitá-los.
A: De fato é o que tenderia a fazer, pois essa desigualdade rítmica me
choca, não sei bem por que: mas, se há esse incômodo, creio que deva
ser por conta de uma má-combinação.
M: No entanto, saiba que todos os antigos, considerando essa
mistura legítima, o admitiram em seus versos. Mas não quero lhe
impor a autoridade deles: ouça, pois, versos desse gênero e julgue se
chocam seus ouvidos. Se, ao contrário, eles lhe agradam, não haverá
por que condená-los. Eis aqui os versos que submeto à sua apreciação:
At consona quae sunt, nisi vocalibus aptes,
Pars dimidium vocis opus proferet ex se:
Pars muta soni comprimet ora molientum:
Illis sonus obscurior impeditiorque,
Utrumque tamen promitur ore semicluso.7
(Terenciano)
Esse exemplo basta para lhe mostrar o caminho. Você não encontra
aí um número que agrada seu ouvido?
A: Seguramente, tudo ui, tudo faz sentido e tem um charme imenso.
M: Examine de que espécie são os pés e verá que, desses cinco
versos, os dois primeiros compõem-se unicamente de jônios, os três
últimos oferecem um ditroqueu misturado aos jônios, e todos
agradam ao ouvido por uma harmoniosa igualdade.
A: Percebi-o, sobretudo pela maneira como você pronunciava.
M: Por que, pois, não nos conformar sem mais tardar à opinião dos
antigos, submetendo-nos menos à autoridade deles do que à própria
razão, e admitir com eles que os pés que têm mesma duração podem
se combinar entre si, contanto que tenham uma medida regular, ainda
que diferente?
A: Concordo: a harmonia dos versos que acabo de ouvir me proíbe
qualquer objeção.
XII. Sobre os pés de seis tempos
M: Ouça, pois, estes versos:
Volo tandem tibi parcas, labor est in chartis,
Et apertum ire per auras animum permittas.
Placet hoc nam sapienter, remittere interdum
Aciem rebus agendis decenter intentam.8
A: Desnecessário prosseguir.
M: Falta arte nesses versos, improvisei-os sob a inspiração do
momento: mas qual é o efeito que eles produzem em seu ouvido?
A: Como não reconhecer neles, assim como nos anteriores, uma
combinação harmoniosa e sonora?
M: Você reparou que os dois primeiros versos compõem-se de jônios
menores, e que os dois últimos terminam por um dijambo misturado a
eles?
A: O seu modo de pronunciar o verso me fez reparar.
M: Ora, você não sentiu que nos versos de Terenciano o ditroqueu se
mistura ao jônio maior, enquanto que nos meus o dijambo se mistura
ao jônico menor? Não há aí uma diferença?
A: Sim, e acho que entendo a razão: o jônio maior, começando por
duas longas, une-se de preferência a um pé que começa igualmente por
uma longa, como o ditroqueu; o dijambo começando por uma breve
se combina melhor com o jônio menor, que começa por duas breves.
M: Você compreendeu perfeitamente: ca pois entendido que essa
relação de semelhança, independentemente da igualdade dos tempos,
exerce também um certo papel na combinação dos pés: não digo que
ela seja primordial, mas tem sua importância. Não há nenhum pé de
seis tempos que não possa ser substituído por outro pé de seis tempos:
você poderá julgá-lo consultando seu próprio ouvido. Tomemos
primeiramente, por exemplo, um molosso, vīrtūtēs; um jônio menor,
mŏdĕrātās; um coriambo, pērcı̆ pı̆ ēs; um jônio maior, cō ncēdĕrĕ; um
dijambo, bĕnīgnı̆ tās; um dicoreu, cīvı̆ tāsquĕ; um antispasto, vŏlēt iūstă.
A: Compreendo.
M: Combine todos esses pés e pronuncie; ou melhor, ouça-me
pronunciar, para que o seu ouvido tenha toda a liberdade de
apreciação. Para que seu ouvido sinta, sem sobressalto, a igualdade
que reina numa seqüência de pés, repetirei três vezes, e será su ciente,
essas palavras assim dispostas:
Virtutes moderatas percipies, concedere benignitas civitasque volet justa.
Virtutes moderatas percipies, concedere benignitas civitasque volet justa.
Virtutes moderatas percipies, concedere benignitas civitasque volet justa.
Nessa seqüência de pés existe algum defeito de igualdade ou de
harmonia ferindo seus ouvidos?
A: Nenhum.
M: Você encontrou aí algum prazer, algum encanto?
A: Sinto esse prazer de que você fala, não posso negar.
M: Assim, você ainda concorda comigo que todos esses pés de seis
tempos podem se unir e se combinar entre si?
A: Sim.
XIII. Como mudar a ordem dos pés sem perturbar a harmonia
M: Acho que você concorda que corremos o risco de pensar que esses
pés devam toda sua harmonia à ordem segundo a qual se encadeiam, e
que, se a mudássemos, eles perderiam esse equilíbrio sonoro, sim?
A: Essa ordem contribui, não há dúvida, mas é fácil resolver a
questão por meio da experiência.
M: Experimente, pois. Seu ouvido descobrirá uma variedade enorme
de combinações muito harmoniosas, todas elas agradáveis aos
sentidos.
A: Farei a experiência, sim, mas já posso prever claramente, com
base no exemplo anterior, que chegaremos necessariamente a essa
conseqüência.
M: Você tem razão: mas, voltando ao assunto, irei, marcando a
medida, retomar essa sucessão de pés; você poderá, assim, julgar se
seu desdobrar é ou não defeituoso, e ao mesmo tempo constatar que a
mudança da ordem desses mesmos pés não produz nenhum desarranjo
em suas relações, exatamente como havíamos anunciado
anteriormente. Vejamos: mude a ordem, disponha esses pés como
quiser e deixe-me pronunciar — e marcar o tempo.
A: Eis a ordem que desejo: um jônio menor, um jônio maior, um
coriambo, um dijambo, um antispasto, um ditroqueu, um molosso.
M: Concentre seu ouvido no som e xe os olhos em minhas palmas
que marcam o tempo. Pois não basta ouvir, é preciso ver a mão,
quando ela bate a medida, e observar com atenção o número de
tempos contidos na ársis e na tésis.
A: Sou todo olhos e ouvidos.
M: Eis a combinação que você pediu, acompanhada da batida do
tempo com minhas palmas:
Moderatas, concedere, percipies, benignitas, volet justa, civitasque, virtutes.9
A: Bem vejo que a medida é perfeitamente precisa, e que a ársis dura
tanto quanto a tésis. Uma coisa que me chama a atenção é que você
conseguiu aliar pés que se dividem segundo a relação de 1 para 2,
como os dois jônios e o molosso.
M: Não é natural, dado que há nesses pés três tempos para a ársis e
três para a tésis?
A: Tudo o que posso constatar é que a sílaba longa, que é a segunda
no jônio maior e no molosso, terceira no jônio menor, vê-se
subdividida pela batida dos dois tempos que ela contém; uma metade
está na primeira parte do pé, a outra é batida na segunda, e dessa
forma a ársis e a tésis têm, cada qual, três tempos.
M: Não há outra observação a ser feita nesse caso de que estamos
nos ocupando. Mas, assim, não nos seria possível unir o anfíbraco —
que havíamos banido de toda combinação dessa espécie — ao
espondeu, ao dátilo e ao anapesto? Ou de formar, aliando-o a ele
mesmo, uma combinação musical? Com efeito poderíamos, segundo
esse princípio, decompor a longa no interior do anfíbraco: graças a
essa subdivisão, cada fração de pé teria um número de tempos
proporcionado: a relação, na ársis e na tésis, não mais será de 1 para
3, mas de 2 para 2. Parece-lhe estranho?
A: De modo algum, e me parece que esse pé pode ser admitido junto
aos outros.
M: Formemos pois um arranjo de pés de quatro tempos,
introduzindo o anfíbraco; marquemos o compasso e veri quemos,
segundo o ouvido, se não há qualquer desigualdade que nos perturbe.
Esteja atento para essa combinação: irei repetir três vezes, batendo o
tempo, para que você possa perceber facilmente:
Sumas optima, facias honesta.
Sumas optima, facias honesta.
Sumas optima, facias honesta.10
A: Oh! Eu lhe suplico! Pare de maltratar meus ouvidos. Mesmo sem
bater o tempo com as palmas, sinto que a progressão desses pés é
bruscamente interrompida por esse anfíbraco discordante.
M: Por que, pois, não podemos nos servir, com esse pé, da mesma
regra que aplicáramos ao molosso e aos jônios? Não será porque eles
têm um começo e um m em relação de igualdade com o meio? Ora,
quando o meio é igual ao começo e ao m, num pé, se cada parte se
compõe de um número par, esse pé deve possuir pelo menos seis
tempos. Os pés dessa espécie, tendo dois tempos no meio e dois outros
tempos em cada extremidade, o meio parece ser ele próprio a divisão
entre os extremos, e funde-se com eles numa perfeita igualdade. Essa
simetria não pode ser encontrada no anfíbraco pois os extremos,
formados de um tempo, não são iguais ao centro, formado de dois
tempos. Além disso, nos jônios e no molosso, a divisão do centro entre
seus dois extremos produz três tempos de um lado e do outro, e
encontramos assim o meio perfeitamente igual a seus dois extremos
também idênticos: tampouco essa propriedade pode ser encontrada no
anfíbraco.
A: É verdade, e concluímos portanto que, numa combinação de pés,
o anfíbraco choca tanto o ouvido quanto os outros lhe agradam.
XIV. Sobre os pés suscetíveis de se misturar entre si
M: Vamos lá, comecemos pelo pirríquio e, segundo os princípios que
acabamos de expor, explique-me rapidamente quais são os pés que
podem ser misturados.
A: O pirríquio não pode se unir a nenhum outro pé, pois nenhum
outro pé tem o mesmo número de tempos. O troqueu poderia aliar-se
ao jambo; mas é melhor evitar essa combinação, pois suas cadências
são desiguais entre si, dado que a ársis de um deles é de um tempo, e a
do outro, de dois. Nesse mesmo sentido, o tríbraco pode se unir tanto
a um quanto ao outro. O espondeu, o dátilo, o anapesto, o
proceleusmático se atraem e se unem entre si; têm os mesmos tempos e
admitem a mesma batida. O anfíbraco por sua vez continua banido
desse tipo de combinação: a igualdade de tempos não seria capaz de
compensar a falta de simetria em sua divisão e em sua batida. O
báquio se alia ao crético, e também aos peões primeiro, segundo e
quarto. Quanto ao palimbáquio: o crético e, dentre os peões, o
primeiro, o terceiro e o quarto se acordam perfeitamente com ele, em
tempo e em medida. O crético, o peão primeiro e o quarto, tendo uma
ársis de dois ou três tempos, podem se aliar a todos os pés de cinco;
todos os pés de seis tempos, como havíamos su cientemente estudado,
apresentam entre si uma maravilhosa harmonia. Assim, eles se
acordam também na batida do tempo com os outros pés, que não
admitem o mesmo modo de divisão, por conta da quantidade de suas
sílabas, e devem essa propriedade à igualdade que reina entre seu
centro e os extremos. Dentre os quatro pés de sete tempos, chamados
epítritos, o primeiro e o segundo podem se combinar entre si; ambos,
com efeito, têm uma ársis de três tempos, e se encontram portanto
numa justa relação de tempo e medida. O terceiro e o quarto se unem
facilmente, pois a ársis de ambos contém quatro tempos; assim, eles
oferecem as mesmas durações e se medem pela mesma batida. Resta
ainda o pé de oito tempos chamado dispondeu: como o pirríquio, ele
não tem correspondente. Eis a minha resposta à sua questão, tal como
pude formulá-la. Prossiga com a discussão.
M: Sim, mas depois de uma conversa tão longa respiremos um
pouco, e lembremo-nos desses versos que o cansaço me inspira.
Volo tandem tibi parcas, labor est in chartis.
et apertum ire per auras animum permittas.
placet hoc nam sapienter remittere interdum
aciem rebus agendis decenter intentam.
A: Aceito de bom grado que descansemos.

1 V. l. 1 cap. XII.
2 Dois coriambos e um jambo.
3 Quatro dátilos e três troqueus.
4 Troqueu, espondeu, dátilo, troqueu, troqueu.
5 Ársis e tésis são movimentos complementares; aquele correspondendo a elevação, inspiração
ou tensão, este a descida, expiração ou repouso — NT.
6 Sesquitertius numerus corresponde ao grego epitritos: ele indica um terço a mais. Aqui,
portanto, a ársis contém os 4/3 da tésis e vice-versa, segundo a posição da breve. É uma
relação de 3 para 4.
7 Quando as consoantes não se misturam com as vogais, a metade do som se esvai
rapidamente: a outra metade nem sequer consegue sair da boca, por
8 mais que nos esforcemos e façamos caretas. As consoantes têm um som mais velado e mais
difícil de ser emitido do que as vogais, no entanto, ambas se pronunciam com a boca semi-
aberta.
Aconselho que economize as suas forças: a leitura é algo que nos consome. Deixe sua alma se
distrair e orescer em liberdade. Relaxar o espírito aplicando-se a nobres temas, não é este
um preceito da sabedoria? (Estes versos são do próprio Agostinho, e sua fatura, tão
impecável quanto elegante, prova sua competência e seu bom gosto).
9 Essas palavras não formam qualquer sentido: trata-se de metro musical expresso por meio
de palavras, e nada mais.
10 Tome o melhor partido, pratique a virtude.
LIVRO TERCEIRO

Sobre a diferença entre


ritmo, metro e verso
I. De nição de ritmo e metro
M: Agora que já estabelecemos os princípios que regem a combinação
dos pés, veremos, nesse terceiro encontro, aquilo que resulta desse
encadeamento, dessa mistura. Começo por perguntar-lhe se é possível
formar, combinando pés diversos, um movimento cadenciado de
duração indeterminada, ou seja, do qual não identi camos seu m.
Falo de um movimento análogo àquele produzido pelos músicos
batendo com o pé em suas pranchas ou em seus címbalos, numa
cadência agradável ao ouvido, mas sem qualquer interrupção, de
modo que sem a melodia das autas nos seria impossível marcar até
onde vai esse encadeamento de batidas de pés, onde estaria seu m e
seu recomeço; mais ou menos como se você quisesse, por exemplo,
combinar numa série ininterrupta cem pirríquios ou mais a seu bel-
prazer, ou outros pés passíveis de se conjugar entre si.
A: Aceito que isso seja possível.
M: Tenho certeza de que você também admite uma combinação de
pés de número determinado e nal de nido, você que vê na
composição dos versos uma arte e reconhece o charme que eles
exercem sobre os seus sentidos.
A: Essa combinação existe, evidentemente, e distingue-se daquela de
que você falou inicialmente.
M: Ora, como a diferença nas coisas nos leva a querer distinguir os
termos, saiba que, dessas duas combinações de pés, a primeira se
chama ritmo, e a segunda, metro, em grego; em latim poderíamos
chamá-las, a primeira de numerus, número, e a segunda, mensura ou
mensio, medida. Mas como esses termos têm para nós uma
quantidade excessiva de signi cados, e dado que é preciso evitar
qualquer equívoco de linguagem, é preferível empregar os termos
técnicos dos gregos. Você bem percebe, no entanto, a justeza dessas
expressões. A série que deve se desdobrar por pés iguais e da mesma
família foi designada com razão sob o nome de ritmo; mas como ela
se desenvolve sem m e não oferece a nenhum pé um limite claro e
preciso que lhe sirva de medida, seria inapropriado chamá-la de
metro.
Quanto ao verdadeiro metro, ele apresenta essas duas características:
um encadeamento de pés regulares e uma terminação precisa. Por
conseguinte, todo metro é ritmo, mas nem todo ritmo é metro. E a
abrangência da palavra ritmo no universo da música é tal que toda a
ciência das durações mais ou menos longas das sílabas1 foi chamada
de ritmo. Mas façamos uma pequena trégua lá onde a coisa nos parece
clara, pois não devemos perder tempo com querelas terminológicas
inúteis, como nos dizem os lósofos e os sábios. Você tem alguma
dúvida, alguma objeção a me fazer quanto àquilo que acabo de dizer?
A: Longe disso: subscrevo-o inteiramente.
II. Sobre a diferença entre o metro e o verso
M: Outra questão: dado que todo verso é metro, será que todo metro
é também um verso? Re ita sobre isso.
A: Re eti, mas não encontrei nenhuma resposta.
M: De onde vem sua di culdade? Será que está nas palavras? Com
efeito é impossível distinguir os termos de uma ciência do mesmo
modo como distinguiríamos os princípios dessa mesma ciência. Pois
princípios estão gravados no fundo de todas as inteligências. Quanto
aos termos, estes são o resultado de uma convenção e sua signi cação
depende do costume: é daí que vem a diversidade das línguas,
diversidade esta que não conseguiria atingir as idéias estabelecidas
sobre a verdade em si. Aprenda, pois, comigo, aquilo que você não
pode deduzir. Os antigos designaram o verso e o metro distintamente.
Deixe as palavras de lado por enquanto e examine se não há diferença
entre duas combinações de pés das quais uma, admitindo um limite,
não oferece nenhum ponto de repouso antes de sua conclusão,
enquanto que a outra, além do limite em que ela se encerra, apresenta
num determinado local uma espécie de corte que a divide em dois
membros.
A: Não entendi.
M: Eis aqui um exemplo, ouça.
Īte ı̆ gı̆ tūr, | Cămō enāe
fonticolae | puellae,
quae canitis | sub antris
melli uos | sonores
quae lavitis | capillum
purpureum Hyp|pocrene
fonte, ubi fu|sus olim
spumea la|vit almus
ora iubis | aquosis
Pegasus, in | nitentem
pervolatu|rus aethram.2
Esses onze versos são compostos de um coriambo e um báquio: sem
dúvida você percebe que, nos cinco primeiros, a frase se conclui
claramente no mesmo ponto, quero dizer após o coriambo, ao qual se
une o báquio para completar o verso; você deve notar também que
nos outros, ao contrário — exceto em um apenas: ora iubis | aquosis
—, a frase não se encerra no mesmo ponto.
A: Percebo claramente, mas o que é que isso prova?
M: Isso prova que esse metro não tem uma norma especí ca para o
seu ponto de conclusão. Pois do contrário todos os outros ou quase
todos os outros trariam, após o coriambo, o mesmo repouso; ora, de
onze versos, seis não se enquadram nesse caso.
A: Reconheço o que você aponta, mas qual é a nalidade desse
raciocínio? É isso o que me interessa…
M: Ouça pois esses versos tão célebres:
Ārmă.vı̆ .rūmquĕ.că.nō , Trō .iāe.quī | prīmŭs.ăb | ō rīs.
Sem precisar me estender — pois a Eneida está em todas as bocas —,
leia esse poema até onde queira e examine cada verso: você encontrará
as frases encerradas ao quinto semipé, ou, em outras palavras, ao m
de dois pés e meio, dado que esses versos compõem-se de pés de
quatro tempos: por conseguinte, o repouso em questão surge
regularmente nesse verso de dez tempos.
A: Está claro.
M: Você entende, então, que existe uma diferença perceptível entre
essas duas sortes de metro citados anteriormente? Uma delas, antes de
concluir, não tem nenhum ponto de repouso, como cara provado
naqueles onze versos; mas no segundo tipo há um repouso, uma
articulação, como cou bem demonstrado com o exemplo do metro
heróico.
A: En m compreendo!
M: Pois bem, saiba que os mais respeitáveis dentre os antigos
recusam dar à primeira espécie de metro o nome de verso; para eles o
verso consiste em uma união entre pés que se dividem em dois
membros, unidos entre si por uma medida e portadores de relação
estável. Mas não se preocupe com esse termo cuja de nição lhe faltara
quando questionado, não o tendo aprendido comigo ou qualquer
outro: o único ponto sobre o qual você deve se concentrar, como pede
a razão, é aquele que estamos a examinar agora, ou seja, se existe
entre essas duas espécies de metro uma diferença essencial, seja qual
for a expressão que utilizemos para designá-las. É possível
compreender essa distinção colocando-nos as perguntas adequadas,
baseando-nos na verdade mesma. Quanto àquela que existe entre as
palavras, só o costume lhe poderia ensiná-lo.
A: Não ignoro esse método e reconheço, nessas constantes
admoestações, a sua preocupação.
M: Então guarde bem estas três palavras que utilizaremos sem cessar
na discussão: ritmo, metro, verso. Elas se distinguem dado que, se
todo metro é ritmo, nem todo ritmo é metro, e, se todo verso é metro,
nem todo metro é verso. Assim, todo verso é ritmo e metro: é uma
conseqüência incontornável.
A: Sim, está mais claro que o dia.
III. Sobre o ritmo composto de pirríquios
M: Comecemos por examinar, até onde nos for possível, o ritmo,
independentemente do metro; daí então consideraremos o metro,
fazendo abstração do verso, e concluiremos com o verso em si.
A: Aceito esse percurso.
M: Pois bem. Comece pelos pirríquios e forme com eles um ritmo.
A: Supondo que eu consiga fazê-lo, a qual quantidade devo me
limitar?
M: Pare aos dez pés e já será o bastante: trata-se de um simples
exemplo. O verso, segundo um princípio do qual trataremos em breve,
não alcança jamais essa quantidade de pés.3
A: Agradeço por não me obrigar a combinar um número excessivo
de pés: mas me parece que você não guarda mais em mente a distinção
entre o gramático e o músico, feita por você mesmo quando eu
admitia não conhecer as distintas medidas de sílabas que o gramático
se dedica a aprender. Permita-me pois marcar esse ritmo, não com
palavras, mas com um simples bater de mãos; creio ser capaz de
marcar, seguindo as indicações do ouvido, a duração dos tempos:
quanto à duração das sílabas longas ou breves, como é algo que vem
do costume e não dos princípios, sou completamente alheio a isso.
M: É verdade, nós havíamos estabelecido essa distinção entre o
gramático e o músico e você me havia confessado a sua ignorância
nesse tema. Proponho-lhe, então, o seguinte exemplo:
Ăgŏ | cĕlĕ|rı̆ tĕr | ăgı̆ |lĕ quŏ d | ăgŏ | tı̆ bı̆ | quŏ d ă|nı̆ mă | vĕlı̆ t. 4
A: Estou acompanhando.
M: Repita essas mesmas palavras o quanto queira, obtendo um
ritmo tão longo quanto desejar — ainda que esses dez pés bastem para
nos fazer entender meu ponto. Se alguém dissesse que esse ritmo se
compõe de proceleusmáticos e não de pirríquios, o que você diria?
A: Não faço idéia, pois, quando há dez pirríquios, marco o tempo de
cinco proceleusmáticos; meu receio aumenta ainda mais quando penso
que se trata de um ritmo que se estende sem m. Nem onze, nem treze
e nem qualquer quantidade ímpar de pirríquios pode formar um
número completo de proceleusmáticos. Se o ritmo de que estamos
tratando aqui tivesse um limite determinado, poderia dizer que ele se
compõe de pirríquios e não de proceleusmáticos: mas minha razão se
vê desconcertada quando penso que o número de pés é limitado ou
que ele pode ser par como em nosso exemplo.
M: A sua noção de pirríquios em número ímpar é imprecisa. Não
está certo dizer que um ritmo composto de onze pirríquios contém
cinco proceleusmáticos com um semipé? E qual objeção se poderia
fazer, quando se sabe que uma miríade de versos terminam com um
semipé?
A: Eu lhe disse: não sei o que responder a esse respeito.
M: Você não sabe, ao menos, que o pirríquio tem prioridade sobre o
proceleusmático? Pois um proceleusmático compõe-se de dois
pirríquios: portanto, assim como 1 tem a prioridade sobre 2 e 2 sobre
4, também o pirríquio precede logicamente o proceleusmático.
A: Isso é verdade.
M: Se, portanto, podemos empregar como medida o pirríquio ou o
proceleusmático simultaneamente, a qual deles daremos a preferência?
Será ao primeiro, que é a base do segundo, ou ao segundo, que não é
o princípio?
A: Ao primeiro, evidentemente.
M: E por que você hesita, então, em responder que esse ritmo deve
chamar-se pirríquio?
A: Não hesito mais, e me envergonho de não ter percebido antes
uma razão assim tão clara.
IV. Sobre o ritmo contínuo
M: Você não enxerga, também, que, segundo esse mesmo princípio,
alguns pés não podem formar um ritmo contínuo? O princípio em
virtude do qual o pirríquio tem a prioridade sobre o proceleusmático
deve se aplicar também, a meu ver, ao dijambo, ao dicoreu e ao
dispondeu. O que você acha?
A: Devo subscrever: admiti o princípio, devo aceitar portanto a
conseqüência.
M: Pondere bem o que você diz, compare e julgue. Quando nos
confrontamos com esse tipo de di culdade, marcar o tempo é o
melhor meio para distinguir sobre qual pé corre o ritmo; você quer
tomar o pirríquio como pé fundamental? A ársis e a tésis devem
comportar cada qual um tempo. Quer tomar o proceleusmático? A
ársis e a tésis devem durar cada qual dois tempos. Assim a batida do
tempo colocará o pé em evidência e preservará a unidade do ritmo.
A: Pre ro essa regra que não permite a introdução de nenhum pé
estranho ao conjunto.
M: Você tem razão: para reforçar essa sua opinião, pense qual é a
resposta que poderíamos dar se quiséssemos que esse ritmo se
compusesse não de pirríquios ou proceleusmáticos, mas de tríbracos.
A: Vejo que para resolver essa questão seria preciso recorrer à batida
do tempo: se a ársis contém um tempo, e a tésis, dois, ou que a ársis
contém dois tempos, e a tésis, um, diríamos que o ritmo se compõe de
tríbracos.
M: Seu raciocínio está correto. Agora diga-me se o espondeu pode se
aliar ao pirríquio para formar um ritmo.
A: Não, pois a igualdade desapareceria na batida da medida, de vez
que a ársis e a tésis contêm cada qual um tempo no pirríquio, dois
tempos no espondeu.
M: É possível para ele aliar-se ao proceleusmático?
A: Sim.
M: E o que ocorre nesse caso? Suponha que nos perguntem se o
ritmo é formado de proceleusmáticos ou de espondeus: o que devemos
responder?
A: Que o espondeu prima; a questão aqui não deve mais ser decidida
pela simples batida do tempo, dado que a ársis e a tésis contêm, cada
qual, dois tempos. Resta-nos pois dar o primeiro lugar ao pé que, na
ordem natural, vem primeiro: o espondeu.
M: Alegro-me ao ver que você seguiu bem o o do meu pensamento.
Percebe, sem dúvida, qual a conseqüência que resulta disso?
A: Qual?
M: Esta, obviamente: o proceleusmático não pode se aliar a nenhum
outro pé para formar um ritmo que porte seu nome. Pois, se
combinamos com ele qualquer outro pé de quatro tempos, o que é
uma condição indispensável, o ritmo adotará o nome deste outro pé,
dado que, na ordem dos pés de quatro tempos, o proceleusmático é o
último. E como a razão nos força a dar o primeiro lugar aos que
foram inventados em primeiro lugar — ou, em outras palavras, a
chamar o ritmo por seu nome —, todo ritmo em que o espondeu, o
dátilo, o anapesto se misturará ao proceleusmático tomará o nome
desses pés. Quanto ao anfíbraco, ele está excluído das combinações,
como demonstramos anteriormente.
A: É verdade.
M: Passemos agora ao ritmo jâmbico: pois os desenvolvimentos
dedicados ao ritmo formado de pirríquios ou proceleusmáticos, os
quais não são outra coisa senão pirríquios duplos, já se alongaram
demais. Diga-me pois, qual é o pé que podemos misturar ao jambo
para que o ritmo guarde o nome de jâmbico?
A: Não seria o tríbraco? Ele contém a mesma quantidade de tempos
e a mesma medida, e como vem após o jambo não poderia ter o papel
principal. O troqueu também vem após o jambo e se compõe do
mesmo número de tempos, mas ele não se mede pela mesma batida de
tempo.
M: Passe agora ao ritmo trocaico e responda segundo os mesmos
princípios.
A: Minha resposta é a mesma: o tríbraco pode se aliar ao troqueu
pois tem mesma duração e mesma medida. Quanto ao jambo, é
evidente que é preciso excluí-lo, pois mesmo que se o meça pela
mesma batida, ele seria, na combinação, o primeiro elemento.
M: E o ritmo espondaico? Qual pé ele admitiria?
A: Nesse caso, as possibilidades são muitas. O dátilo, o anapesto, o
proceleusmático podem se aliar ao espondeu: os tempos são iguais, a
batida do tempo é análoga, a prioridade, incontestável.
M: Você já é capaz de desenvolver esses princípios em todas as suas
conseqüências; chega de questões. Ou, se preferir, responda como se
eu lhe colocasse questões e diga-me, com toda clareza, toda precisão
de que você é capaz, quais combinações regulares podem formar os
outros pés impondo seu nome à combinação?
A: Farei-o com prazer: essa enumeração não coloca nenhuma
di culdade, após tantos raciocínios introdutórios que esclareceram
todo o caminho a ser trilhado. Ao tríbraco não se unirá nenhum outro
pé: todos aqueles que têm o mesmo número de tempos têm, sobre ele,
a prioridade. O anapesto se submete ao dátilo: aquele vem após este,
tem mesmo tempo e mesma medida; pela mesma razão o
proceleusmático pode se submeter ao anapesto e ao dátilo. O báquio
pode se misturar com o crético, bem como com os peões primeiro,
segundo e quarto. Com o crético podem se combinar regularmente
todos os pés de cinco tempos que vêm depois dele, mas o modo de
divisão não é o mesmo em todos esses pés: alguns tem a ársis de dois
tempos e a tésis de três, enquanto que em outros a ársis tem três
tempos e a tésis dois; ora, o crético admite esse duplo modo de
divisão, a breve do meio unindo-se indistintamente ao começo ou ao
m. O antibáquio, que se divide numa relação de dois para três
tempos, alia-se a todos os peões, exceto ao segundo. Dos pés de três
sílabas resta o molosso, que abre a série de pés de seis tempos, os
quais podem, todos, aliar-se a ele, uns por se dividirem pela razão de 1
para 2, e outros porque a longa se decompõe na batida em duas
breves que se dividem uma para cada lado, e deixam o meio igual aos
dois extremos, como ocorre com o número seis. É segundo esse
princípio que o molosso e os dois jônios não se dividem somente
numa relação de 1 para 2, mas ainda se medem por uma batida igual
de três tempos em cada parte. Assim, todos os pés de seis tempos
podem se combinar uns com os outros. O antispasto, segundo a
mesma regra, não pode primar sobre nenhum outro pé. Vêm em
seguida os quatro epítritos: o primeiro se combina com o segundo, o
terceiro com o quarto; o segundo e o quarto não podem se aliar a
nenhum outro pé. Resta ainda o dispondeu, que só pode formar
ritmos ao se combinar consigo próprio, por conta de vir em último
lugar e não dispor de nenhum igual.
Em suma, existem oito pés que formam seu próprio ritmo
combinando-se apenas com eles próprios: o pirríquio, o tríbraco, o
proceleusmático, o peão quarto, o antispasto, o segundo e o quarto
epítritos e o dispondeu: quanto aos outros, eles admitem a aliança dos
pés que os sucedem e dão seus nomes a essa união, mesmo se
estiverem em menor número. Acho que expliquei e desenvolvi
su cientemente a tese que você me propõe: cabe a você, agora,
continuar a discussão.
V. Existem pés de mais de quatro sílabas?
M: Perdão, mas cabe a você tanto quanto a mim. Estamos buscando
juntos a verdade. Mas será que tratamos de todas as questões
referentes à teoria do ritmo? Não será necessário ainda sondar se
existe algum pé que, sem ultrapassar oito tempos, medida do
dispondeu, contenha entretanto mais de quatro sílabas?
A: E com que nalidade deveríamos fazê-lo?
M: Ora, por que não pergunta a si mesmo? Não lhe parece que seja
possível, sem engano e sem chocar o ouvido, no que diz respeito à
batida do tempo, à divisão dos pés e à duração dos tempos, substituir
duas breves por uma longa?
A: Como não admitir esse princípio?
M: Daí vem que nós substituímos um tríbraco por um troqueu ou
um jambo. Um dátilo, um anapesto, um proceleusmático por um
espondeu, quando convertemos, no caso do dátilo e do anapesto, uma
longa em duas breves, e no caso do proceleusmático, duas longas em
quatro breves.
A: Sem dúvida.
M: Aplique essa regra aos dois jônios ou a qualquer outro pé de
quatro sílabas e seis tempos e substitua qualquer uma das longas por
duas breves. Essa mudança alterará a medida? Falseará a batida?
A: Nem um pouco.
M: Veri que agora quantas sílabas passa a ter o pé.
A: Cinco sílabas.
M: Você percebe, então, que é possível ultrapassar o número de
cinco sílabas?
A: Sim.
M: E se você colocasse quatro breves em lugar de duas longas? Não
teria seis sílabas num só pé?
A: Sim.
M: Decomponha em breves as três longas de cada epítrito; não
encontrará sete sílabas?
A: É incontestável.
M: De igual modo, o dispondeu não contém oito sílabas, se
decompusermos todas as longas em breves?
A: Perfeitamente.
M: Por qual mistério, pois, somos levados a descobrir tantas sílabas
na medida dos pés, e forçados, por outro lado, em virtude das razões
desenvolvidas anteriormente, a reconhecer que o ritmo não admite
nenhum pé com mais de quatro sílabas? Não há aí uma contradição?
A: Uma clara contradição, e não consigo ver como poderíamos
conciliar essas duas coisas!
M: É muito fácil, basta que nos perguntemos a nós mesmos se
estávamos certos quando distinguimos, pela batida do tempo, o
pirríquio, o proceleusmático, garantindo a cada pé, dividido de forma
regular, o privilégio de formar um ritmo, ou, em outras palavras, de
lhe impor seu nome.
A: Lembro-me dessa regra e não vejo por que me arrependeria de
haver reconhecido toda sua justeza. Mas o que você quer concluir com
base nisso?
M: Que todos os pés de quatro sílabas, excetuado o anfíbraco,
podem formar um ritmo ou, em outras palavras, assumir o papel
principal em um ritmo e dar-lhe seu nome, enquanto que aqueles que
têm mais de quatro sílabas, ainda que possam substituir os primeiros
na maioria dos casos, não podem formar por si sós um ritmo e dar-lhe
seus nomes; por conta disso, eles não merecem ser chamados de pés.
Assim se explica e desaparece a aparente contradição que nos
preocupava agora há pouco; pois, ainda que possamos substituir um
pé por mais de quatro sílabas, só devemos dar o nome de pé à
combinação capaz de formar um ritmo. Era preciso, com efeito,
estabelecer para o pé uma progressão nas sílabas determinada por
uma justa medida; essa medida, tomada de empréstimo dos números,
encontrou no número 4 seu limite extremo, e por conseguinte o pé
pôde se compor de quatro sílabas. A substituição de oito breves a
essas quatro longas é perfeitamente legítima, pois a duração dos
tempos não muda; mas, como elas ultrapassam o limite regular, ou
seja, o número 4, não podem formar por elas mesmas uma
combinação nem constituir um ritmo; o ouvido não reconheceria nada
de chocante, mas o princípio mesmo da arte seria violado. Você tem
alguma objeção quanto a isso?
A: Sim, e cá está ela: por que não se pode ter oito sílabas em um pé,
quando esse mesmo número é admitido no ritmo? Trata-se apenas,
como você disse, de uma substituição, o que me dá ainda mais uma
razão para me perguntar por qual tipo de capricho não se quer
admitir o substituto.
M: Sua ilusão aqui não me surpreende, e não será difícil fazer que
você veja a verdade. Sem retomar nossa discussão sobre as
propriedades do número 4 e as razões que limitam a progressão das
sílabas a esse número, concedo, por um momento, que o pé possa ter
uma extensão de oito sílabas. Assim, você é obrigado a reconhecer que
pode haver um pé composto de oito sílabas longas. Pois um pé deve se
elevar ao mesmo número de sílabas, não apenas quando composto de
breves, mas também quando formado unicamente de longas. Dito isto,
em virtude do princípio fundamental que toda longa equivale a duas
breves, alcançamos o número de dezesseis sílabas. Se quisermos ir
ainda mais longe, chegamos a trinta e duas breves. Eis até qual
número chegará o pé, seguindo o raciocínio que você mesmo propôs; e
além disso seremos obrigados a dobrá-lo ainda mais uma vez,
substituindo as longas pelas breves, segundo a regra. Desse modo, não
haverá mais limites.
A: Rendo-me, en m, ao raciocínio que xa em 4 o maior número
possível de sílabas num pé e não vejo mais contradição em substituir
esses pés regulares por pés de um maior número de sílabas,
substituindo uma longa por duas breves.
VI. Nenhum pé de mais de quatro sílabas pode constituir um
ritmo que porte seu nome
M: Agora você pode compreender facilmente e reconhecer comigo que
os pés são suscetíveis ora de substituir aqueles que constituem o
gênero do ritmo, ora de se combinar com eles. Pois quando
substituímos cada longa por duas breves, substituímos um pé por
aquele que preside o ritmo, por exemplo, um tríbraco em lugar de um
jambo ou de um troqueu, ou ainda um dátilo, um anapesto, um
proceleusmático em lugar de um espondeu. Para além disso é possível
combinar, com o pé principal, outro de um nível inferior, por exemplo
um anapesto com um dátilo, ou um ditroqueu com um dos dois
jônios, e assim por diante, observando as regras estabelecidas.
Consigo me fazer claro?
A: Entendi.
M: Então me diga: os pés capazes de substituir um outro podem
constituir um ritmo?
A: Sim.
M: Todos eles?
A: Todos.
M: Por conseguinte, um pé de cinco sílabas poderia formar um ritmo
especial, pois é possível colocá-lo em lugar do báquio, do crético e de
todos os peões. Estou certo?
A: É claro que não, mas nós não damos mais o nome de pé aos que
ultrapassam o número de quatro sílabas, se bem me lembro. Então,
respondendo à sua pergunta: todos, levando em conta os verdadeiros
pés.
M: Você memorizou as palavras com uma atenção digna de nota.
Mas saiba que um grande número de estudiosos dos ritmos são da
opinião de que havia pés com 6 sílabas; ninguém, que eu saiba, foi
além desse número. Esses estudiosos do ritmo sustentaram, ao mesmo
tempo, que esses pés tão longos não podiam por si sós constituir um
ritmo ou um metro especial, de modo que nem sequer lhes foi dado
um nome particular. Nenhum limite, portanto, é mais exato do que
aquele de 4 sílabas como o maior número num pé, dado que todos
esses pés, que, por sua divisão, não poderiam formam dois pés,
formam um graças à sua união. É por isso que aqueles que estenderam
a série de sílabas até seis só se limitaram a identi car certos pés que
extrapolavam o limite da quarta sílaba, mas nunca lhe concederam o
primeiro posto num ritmo ou num metro. Ao decompor uma longa
em duas breves, podemos chegar sem dúvida ao número de sete ou de
oito sílabas, como vimos; mas nunca nos ocorreu expandir a tal ponto
o número de sílabas no pé. Um ponto sobre o qual estamos de acordo
é que todo pé que ultrapassa quatro sílabas, graças à mudança de uma
longa em duas breves, pode exercer o papel de um substituto aos pés
regulares, mas não poderia nem se combinar com eles, nem constituir
um ritmo especial; do contrário a progressão logicamente limitada das
sílabas se tornaria in nita. A discussão sobre o ritmo me parece
chegar ao m, proponho que passemos ao metro.
A: Concordo.
VII. Sobre a espécie e o número de pés que constituem o
menor metro
M: Diga-me, você acha que o metro se compõe de pés ou que os pés
são formados pelo metro?
A: Não entendi.
M: O metro é um conjunto de pés ou os pés são um conjunto de
metros?
A: Agora entendi. A meu ver, o metro é um conjunto de pés.
M: E por quê?
A: Pois existe, como você disse, essa diferença entre o ritmo e o
metro, a saber: no ritmo, a combinação dos pés pode se estender sem
m, enquanto que ela se encerra num limite preciso em se tratando do
metro; por conseguinte, toda combinação de pés constitui um ritmo
ou um metro, com a ressalva que ela é ilimitada, em um caso, e
limitada em outro.
M: Um único pé não pode, então, constituir um metro?
A: Não.
M: E um pé e meio?
A: Tampouco.
M: Ora, então devemos dizer que, já que o metro se compõe de pés,
não existe metro se não há ao menos dois pés?
A: Sem dúvida.
M: Examinemos pois os metros que citei há pouco5 e vejamos de
quais pés eles se compõem: acho que você já não é um iniciante nessas
questões. Vejamos esses metros:
Īte ı̆ gı̆ tūr, Cămō enāe
fonticolae puellae,
quae canitis sub antris
melli uos sonores.
Paro por aqui; esses quatro metros bastam para o nosso m: meça-
os, e diga-me de que espécie de pés eles são compostos.
A: Sou incapaz de fazê-lo. Só se pode medir pela batida os pés
suscetíveis de se unir regularmente entre si. Como, então, resolver essa
di culdade? Devo começar por um troqueu? Encontro em seguida um
jambo, que tem sem dúvida uma igual duração, mas cuja medida é
batida de outra forma. Por um dátilo? Não encontro mais o pé que lhe
corresponde, sequer em duração. Por um coriambo? Mesma
di culdade: pois o pé que sobra não lhe corresponde nem na duração,
nem na batida do tempo. É preciso, portanto, ou que essa união não
seja um metro ou que todos nossos princípios sobre a combinação dos
pés estejam falsos; vejo-me reduzido a esse dilema.
M: Que se trata de um metro, não há dúvida, pois temos aí mais de
um pé, um limite determinado e um caráter que o próprio ouvido
aprova. Ele não produziria um som tão harmonioso, não se mediria
por uma batida tão equilibrada se fosse desprovido dessa simetria
melodiosa que só se encontra nesse domínio da música. Espanta-me
que você considere a possibilidade de nossos princípios serem falsos.
Pois não há nada de mais certo que os números, nada de melhor
consolidado que o arranjo e a combinação que zéramos dos pés. É da
teoria mesma dos números — a qual é infalível — que tomamos de
empréstimo todas as relações que podem agradar o ouvido ou reger o
desdobrar do ritmo. Re ita um pouco mais, enquanto pronuncio
repetidamente: quae canitis sub antris, e que deleito seus ouvidos por
essas melodiosas relações; veja se não há qualquer diferença entre esse
metro e aquele que eu obteria ao acrescentar no nal uma sílaba breve
que canitis sub antrisve?
A: Ambos se apresentam agradavelmente aos meus ouvidos: a
diferença que me chama a atenção é que o último, acrescido de uma
breve, dura mais.
M: E o que ocorre se repito o primeiro verso, quae canitis sub antris,
sem deixar nenhum silêncio ao nal? Você tem a mesma sensação de
prazer?
A: Longe disso, sinto um não-sei-quê de defeituoso: talvez você
prolongue a última sílaba mais do que as outras longas.
M: Que isso venha do alongar da nal ou do silêncio que eu insiro,
você acha que existe aí um intervalo de tempo?
A: Sim, é claro!
VIII. Sobre o valor das pausas nos metros. De nição do metro
M: Você tem razão. Mas, diga-me, qual o valor desse intervalo de
tempo?
A: É bem difícil especi car.
M: Com certeza. No entanto, não é verdade que é justamente graças
a essa sílaba breve que podemos apreciá-lo? Graças a essa adição, não
precisamos mais, para satisfazer o ouvido, prolongar a nal longa
para além das regras ordinárias, ou fazer uma pausa antes de retomar
o metro seguinte.
A: Concordo: enquanto você pronunciava e retomava o primeiro
metro, eu repetia mentalmente o segundo, guiando-me por você, e me
dei conta que eles tinham igual duração, pois a nal breve do primeiro
metro correspondia ao silêncio que você observava.
M: Lembre-se bem, pois, desse ponto essencial: os metros
comportam pausas de uma duração regular, e quando você perceber
que um pé está incompleto, deverá examinar se esse vazio não é
preenchido por uma pausa de duração equivalente.
A: Entendo essa regra. Prossiga.
M: A questão agora é determinar como medimos a tal pausa. Nesse
metro temos um coriambo e, em seguida, um báquio: o ouvido,
percebendo que falta um tempo ao báquio para formar um pé de seis
tempos análogo ao coriambo, exigiu, na volta, uma pausa de duração
igual ao de uma sílaba breve. Mas suponhamos que o coriambo seja
seguido de um espondeu: antes de voltar ao início, será preciso
observar um silêncio de dois tempos. Assim caria o metro:
Quāe cănı̆ tīs | fō ntēm.
Você sem dúvida percebe a necessidade dessa pausa, que evita todo
desequilíbrio na batida do tempo ao retornarmos ao início do metro.
Para que você possa medir a duração desse silêncio, acrescente a esse
metro uma sílaba longa:
Quāe cănı̆ tīs | fō ntēm vō s;
Retome-o, marcando o tempo, e verá que a batida tem a mesma
duração que no metro anterior, no qual, dado que apenas duas longas
se seguiam ao coriambo, era preciso acrescentar um silêncio de dois
tempos. Se o coriambo é seguido de um jambo, como nesse metro:
Quāe cănı̆ tīs | lŏ cō s.
a pausa deverá conter três tempos. Para veri car, podemos
acrescentar ao jambo um outro jambo, um troqueu ou um tríbraco, e
dizer, por exemplo:
Quāe cănı̆ tīs | lŏ cō s | bŏ nō s
ou:
Quāe cănı̆ tīs | lŏ cō s | mŏ ntē;
ou então:
Quāe cănı̆ tīs | lŏ cō s | nĕmŏ rĕ.
Com esse complemento, o retorno à próxima frase se dá sem
necessidade de silêncio e de modo igualmente agradável, e a batida
dura a mesma quantidade de tempo que as três pausas; é portanto
uma prova evidente que era preciso observar três tempos de silêncio.
Poderíamos colocar uma longa após o coriambo: o silêncio deveria
então conter quatro tempos, pois o coriambo, nesse caso, pode se
dividir de modo que a ársis e a tésis se correspondam numa relação de
1 para 2. Tomemos, por exemplo:
Quāe cănı̆ tīs | rēs.
Acrescente aí seja duas longas, seja uma longa e duas breves, seja
uma breve e uma longa seguida de uma breve ou, ainda, duas breves e
uma longa, ou en m quatro breves: você terá um pé de seis tempos
que não exigirá nenhum silêncio antes do retorno, por exemplo:
Quāe cănı̆ tīs | rēs pūlchrās,
ou:
Quāe cănı̆ tīs | rēs īn bŏ nă,
ou:
Quāe cănı̆ tīs | rēs bŏ nūmvĕ,
ou:
Quāe cănı̆ tīs | rēs tĕnĕrās,
ou en m:
Quāe cănı̆ tīs | rēs mŏ dŏ bĕnĕ.
Uma vez que reconhecemos esse princípio, não é difícil entender que
a pausa não pode nunca ser menor que um tempo e nem maior que
quatro. É uma conseqüência do princípio dessa progressão regular de
que tratamos tantas vezes; e em nenhum pé a ársis e a tésis podem
ultrapassar quatro tempos.
Assim, quando executamos uma melodia ou cantamos um texto com
um m determinado e formando mais de um pé, se, por um
movimento natural e sem levar em conta qualquer consideração
numérica, encontramos certo equilíbrio agradável ao ouvido, isso nos
basta: temos um metro. Pouco importa que haja aí menos de dois pés:
para que exista metro, basta haver mais do que um pé e que se
acrescente uma pausa igual ao tempo que falta ao segundo pé. O
ouvido conta, então, dois pés, pois a medida equivale a dois pés
quando acrescentamos, antes da retomada da próxima frase, uma
pausa que completa o som. Me diga se você compreende isso tudo e se
o aprova.
A: Compreendo e aprovo.
M: É minha palavra que lhe força a esse consentimento ou a verdade
mesma que se mostra à sua inteligência?
A: É a verdade que se mostra diante de mim, ainda que carregada
por suas palavras.
IX. Sobre o número máximo de tempos e pés que formam o
metro
M: Acabamos de determinar o começo do metro: tentemos descobrir
agora onde ele termina. O menor metro é o de dois pés, sejam eles
todos sonoros, sejam alguns completados por pausa. Reevoquemos,
pois, aquela progressão que se encerra no número 4, e, em virtude
desse princípio, explique-me qual é o número de pés que o metro não
pode ultrapassar.
A: O cálculo é fácil: basta raciocinar para xar esse limite em oito
pés.
M: Você se lembra, então, que, seguindo a opinião dos sábios,
havíamos de nido o verso como um metro composto de dois
membros, com uma medida regular?
A: Sim, lembro.
M: Dado que o verso se compõe de dois membros e não de dois pés,
e que ele contém não um só pé, mas diversos, não é evidente que cada
membro deve conter mais de um pé?
A: Sem dúvida.
M: Mas, se os dois membros são iguais, não será possível colocar
um em lugar do outro, dado que eles não oferecem nenhum traço
distintivo?
A: É verdade.
M: Para remediar essa confusão e marcar distintamente, no verso, o
lugar em que começa o primeiro membro e onde se encerra o segundo,
somos forçados a admitir que esses dois membros devem ser desiguais.
A: Nada de mais lógico.
M: Veri quemos esse princípio começando, se você estiver de
acordo, com o pirríquio: num verso desse tipo, você não conseguiria
encontrar um membro composto de menos de três tempos, pois essa
combinação é a primeira a exceder o limite do pé.
A: Concordo com você.
M: Quantos tempos terá, pois, o menor verso?
A: Eu teria respondido seis, sem hesitar, se não tivesse sido avisado
quanto a que dois membros iguais tendem a nos confundir. O menor
verso deve portanto ter sete tempos: pois não pode haver membro que
contenha menos de três tempos. E é possível que um membro
contenha mais do que isso; você ainda não estabeleceu nenhuma regra
a esse respeito.
M: Essa resposta faz jus à sua inteligência. Mas, diga-me, quantos
pés pirríquios estão contidos em sete tempos?
A: Três e meio.
M: É preciso, portanto, antes de retornar ao começo, observar uma
pausa de um tempo para completar o pé?
A: Essa pausa é necessária.
M: Se levamos em conta esse silêncio, quantos tempos teremos?
A: Oito.
M: Portanto, se o menor pé, que é também o primeiro, não pode
conter menos de dois tempos, deduzimos que o menor verso, e o
primeiro de todos, não pode conter menos de oito tempos.
A: É verdade.
M: E o maior verso, qual é seu limite? Quantos tempos ele deverá
conter? A resposta é obvia.
A: Sim, consigo conceber que nenhum verso possa extrapolar os
trinta e dois tempos.6
M: Quanto ao limite extremo do metro, será que ele pode exceder o
dos versos, quando sabemos que o menor metro tem uma duração
proporcional àquela do menor verso?
A: Creio que não.
M: Ora, o menor metro tem dois pés; o menor verso, quatro, sejam
os pés plenos em si ou completados por pausa: ademais, o metro não
pode ultrapassar o limite de oito pés: por conseguinte, o verso, que
não é outra coisa senão um metro, poderá exceder esse limite?
A: Sem dúvida que não.
M: Outra conseqüência: o verso não pode conter mais do que trinta
e dois tempos e tem a mesma duração que o metro; por outro lado o
metro, que se encerra numa medida determinada, sem se dividir em
dois membros, não deve ultrapassar a duração do verso: não ca
claro, com base nisso, que, se o verso se limita sempre a oito pés, o
metro, por sua vez, não pode ir além de trinta e dois tempos?
A: Concordo com você.
M: Por conseguinte, o verso e o metro comportam a mesma duração,
o mesmo número de pés e se encerram no mesmo limite. Observe no
entanto que o limite superior do metro é obtido ao quadruplicarmos o
número de pés que formam o menor metro, e o do verso,
quadruplicando o número de tempos que compõem o menor verso.7
Assim o verso e o metro crescem seguindo a progressão do número 4,
um sob a relação dos tempos, o outro sob a relação dos pés; eles se
desenvolvem em conjunto e de forma proporcional.
A: Entendo essa teoria e a aceito. Estou maravilhado com todas essas
relações de harmonia entre eles.

1 L. 1, cap. XII.
2 Vinde, musas que habitais as fontes; Vós que, em vossas grutas profundas, entoam cânticos
mais doces que o mel; vós que banhais vossos cabelos loiros na fonte de Hipocrene, na qual
Pégaso veio um dia lavar sua boca espumante e sua crina esvoaçante e suada, antes de
lançar-se no azul dos ares.
3 O maior verso contém apenas oito pés. V. cap. IX, l. 3.
4 Eu executo prontamente, para ti, aquilo que faço, obedecendo à alma. (A idéia aqui é
menos importante que as palavras, destinadas unicamente a marcar a medida musical).
5 V. cap. III, l. 3.
6 8 tempos x4=32. Baseamo-nos sempre no número quatro, que é o limite.
7 O menor metro contém 2 pés: 4x8=32. Oito pés formam portanto o maior metro. O menor
verso é de 8 tempos; ora, 8x4=32: trinta e dois tempos formam o maior verso.
LIVRO QUARTO

Continuação do livro anterior


Sobre o metro
I. Por que a última sílaba de um metro nos é indiferente?
M: Voltemos pois às nossas considerações quanto ao metro. Para
determinar sua progressão e seu comprimento, tivemos de fazer
algumas re exões sobre o verso, o qual deveremos examinar mais
tarde. Porém, antes de mais nada, uma questão: os poetas e seus
críticos — os gramáticos — entendem como algo indiferente que a
última sílaba de um metro seja longa ou breve. Você concorda com
eles?
A: Não concordo absolutamente, isso não me parece racional.
M: Diga-me, por favor, qual é o menor metro pirríquio?
A: Três breves.
M: Quanto deve durar a pausa, neste caso, antes da volta?
A: Um tempo, ou seja: a duração de uma sílaba breve.
M: Pois bem! Faça a escansão do metro, não com a voz, mas
batendo suas palmas na pulsação.
A: Feito.
M: Escanda de igual modo um anapesto.
A: Feito, igualmente.
M: Que diferença você notou?
A: Nenhuma.
M: Pois bem! Você conseguiria me dizer a razão disso?
A: Parece-me que é bastante evidente: o tempo preenchido por uma
pausa no pirríquio é dedicado, no anapesto, a pronunciar a nal
longa. A batida é a mesma, no primeiro caso da nal breve, no
segundo da nal longa, e voltamos ao início após o mesmo intervalo
de tempo. O repouso é utilizado para concluir, no primeiro caso os
tempos do pirríquio, no segundo, os tempos da sílaba longa. Assim,
tanto num caso como no outro, a pausa após a qual retornamos ao
início é a mesma.
M: É portanto com razão que, segundo esses poetas e gramáticos, é
indiferente que a última sílaba de um metro seja longa ou breve: pois,
ao nal do metro, há necessariamente uma pausa su cientemente
longa para completar o metro. Com efeito, não há razão para crer que
eles tenham considerado nisso uma volta ou o começo do verso
seguinte, mas simplesmente o m do metro, como se não houvesse
mais nada a acrescentar, sim?
A: Finalmente estou de acordo com essa visão: a última sílaba é
indiferente.
M: Muito bem, e isso se dá por conta da pausa. Com efeito, nós só
havíamos considerado o m do metro como se não tivéssemos mais
nada a cantar após tê-lo concluído; e, por conta da prolongação que
fazemos com a pausa, pouco importa a quantidade da sílaba que se
encontra ao nal. Não será possível concluir, pois, que a indiferença
da nal, que é conseqüência dessa pausa, tem a vantagem que, seja
qual for a quantidade da última sílaba, o ouvido a toma legitimamente
por uma longa?
A: Posso ver que essa conclusão é de total rigor.
II. Sobre o número de sílabas de que é composto o menor
metro pirríquio e a duração da pausa nele contida
M: O menor metro pirríquio é de três breves, e nós devemos observar
um silêncio equivalente a uma breve, antes de voltar. Você consegue
perceber também que não há nenhuma diferença entre voltar a esse
metro ou voltar em anapestos?
A: Dei-me conta disso agora há pouco, marcando o tempo.
M: Não lhe parece que seja necessário esclarecer o que possa haver
aqui de confuso?
A: Certamente.
M: Diga-me, existe algum outro modo de fazer aqui essa distinção,
senão reconhecendo que o menor pirríquio não se compõe de três
breves, como você pensava, mas de cinco? Pois, ao colocarmos, após
um pé e meio, uma pausa de meio pé, necessária para que se complete
o segundo pé, e retornando assim ao começo, caímos no anapesto; e
essa igualdade impede que se forme, segundo essa combinação, o
menor metro pirríquio, como já demonstramos. Assim, após dois pés e
meio, é preciso inserir uma pausa de um tempo, se quisermos evitar
toda a confusão.
A: Mas por que dois pés pirríquios não formariam o menor metro
pirríquio? Assim teríamos quatro sílabas, que não exigem nenhuma
pausa, ao invés de cinco, que exigiriam uma pausa logo após…
M: Essa observação prova que você está atento, mas não reparou
que o proceleusmático impede essa combinação tal como o anapesto
impedia a primeira.
A: É verdade.
M: Assim, você reconhece que esse metro se compõe de cinco breves
e de uma pausa de um tempo?
A: Sim.
M: Acho que você não re etiu quanto à maneira como se poderia
distinguir, como dissemos a respeito do ritmo, se o movimento se
compunha de um pirríquio ou de um proceleusmático.
A: Você está certo em chamar minha atenção. Havíamos descoberto
que esses dois ritmos diferem na batida. Assim, o proceleusmático em
nada mais me preocupa, dado que a batida me oferece um meio de
distingui-lo do pirríquio.
M: Por que então você não viu que era preciso também bater o
tempo para distinguir o anapesto dessas três breves, quero dizer, do
pirríquio e do semipé, seguido de uma pausa de um tempo?
A: Compreendo agora, e volto alguns passos atrás; tenho certeza de
que o menor metro pirríquio compõe-se de três breves que, contando
um silêncio, equivalem em tempo a dois pés pirríquios.
M: Assim, seu ouvido deve aprovar essa espécie de metro:
Si ălı̆ quă,
bĕnĕ vı̆ s,
bĕnĕ dı̆ c,
bĕnĕ făc,
Ănı̆ mŭs,
si alı̆ quı̆ d
mălĕ vı̆ s,
mălĕ dı̆ c,
mălĕ făc,
Ănı̆ mŭs
mĕdı̆ um ëst.
A: Sem dúvida, sobretudo agora que me lembro por qual batida ele é
medido, visando a não confundir o metro pirríquio com o anapesto.
M: Observe ainda estes exemplos:
Si ălı̆ quı̆ d ĕs,
ăgĕ bĕnĕ.
Mălĕ qui ăgı̆ t,
nı̆ hı̆ l ăgı̆ t
ĕt ı̆ dĕŏ
mı̆ sĕr ĕrı̆ t.1
A: Também esses metros são aceitos docilmente por meus ouvidos,
exceto por uma passagem: aquela em que o terceiro metro se une ao
quarto.
M: A observação é justa e eu estava à espera dela. É normal que seu
ouvido tenha sentido uma perturbação quando, ouvindo que cada
sílaba se sucedia com o tempo que lhe é próprio, sem nenhuma pausa
intermediária, ele se frustra em sua expectativa pelo encontro de duas
consoantes, t e n; pois elas prolongam a vogal anterior, i, e a fazem
durar dois tempos: em outros termos, ela é, como dizem os
gramáticos, longa por posição. Mas, como a última sílaba é
indiferente, ninguém critica esse metro, ainda que os ouvidos
delicados e escrupulosos condenem o que você acaba de notar, mesmo
que não haja ninguém para acusar o problema, pois veja que diferença
se, em lugar de
Mălĕ qui ăgı̆ t,
nı̆ hı̆ l ăgı̆ t.
colocássemos:
Mălĕ qui ăgı̆ t,hŏ mŏ pĕrı̆ t.2
A: Este último é uido e impecável.
M: Observemos bem, pois, para manter em toda a pureza as leis da
música, uma regra que os poetas não costumam respeitar, a m de
facilitar a versi cação. Cada vez que, por exemplo, intercalamos
metros em que o pé não exige uma pausa complementar, colocaremos
como sílaba nal aquela exigida pela lei do ritmo e evitaremos
recomeçar o outro metro, chocando o ouvido e falseando a medida.
No entanto, deixaremos aos poetas o privilégio de terminar esses
metros, como se eles não devessem acrescentar mais nada, e, por
conseguinte, fazer como quiserem a nal — longa ou breve —, pois,
numa série de metros, o ouvido os condenaria abertamente a só
empregar como nal a sílaba exigida pela natureza e pela regra desses
metros; e a série exige que o pé não ofereça um intervalo que deva ser
preenchido por uma pausa.
A: Compreendo muito bem e me vejo obrigado a pedir-lhe que só
utilize exemplos que não ofendam jamais meus ouvidos.
III. Variedades do metro pirríquio
M: Responda-me, pois, quanto a estes pirríquios:
Quid erit homo
qui amat hominem,
si amet in eo
fragile quod est?
Amet igitur
animum hominis,
et erit homo
aliquid amans.3
Que lhe parecem esses versos?
A: Seu desdobrar é de uma graça impecável.
M: E estes?
Bonus erit amor
anima bona sit
Amor enim habitat,
et anima domus.
Ita bene habitat,
ubi bona domus,
ubi mala, male.4
A: Essa combinação muito agrada a meus ouvidos.
M: E essa, de três pés e meio?
Animus hominis est
mala bonave agitans,
Bona voluit, habet,
mala voluit habet.5
A: Esses metros, separados por uma pausa de um tempo, são muito
agradáveis.
M: Eis aqui quatro pirríquios completos; ouça e julgue:
Animus hominis agit
ut habeat ea bona
quibus inhabitat homo,
nihil ibi metuitur.6
A: A cadência desses metros é igualmente bem marcada e não menos
agradável.
M: Ouça agora nove sílabas breves.7 Ouça e julgue:
Homo malus amat et eget;
malus etenim ea bona amat,
nihil ubi satiat eum.8
A: Agora dê-me um exemplo de cinco pés:
M:
Levicula, fragilia, bona
qui amat homo, similiter habet.9
A: Isso já basta, preciso apreciá-los. Agora, acrescente meio pé.
M: Aqui está:
Vaga levia fragilia bona,
qui amat homo, similis erit eis.10
A: Ótimo, agora gostaria de um verso com seis pés.
M: Eis aqui:
Vaga levicula fragilia bona
qui adamat homo, similis erit eis.11
A: Já está bom. Acrescente meio pé.
M:
Fluida levicula fragilia bona,
quae adamat anima, similis erit eis.12
A: Muito bom. Sete pés, agora.
M:
Levicula gracilia fragilia bona,
Quae adamat animula, similis erit eis.13
A: Acrescente meio pé. Essa combinação tem sua graça,
M:
Vaga uida, levicula fragilia bona
quam adamat animula, t ea similis eis.14
A: Seria preciso agora um exemplo com oito pés. É tudo o que falta
para acabarmos com esses detalhes menores. Por mais que meu
ouvido seja testemunha de todos esses sons, custa-me crer que você
seja capaz de encontrar tal número de sílabas breves. Um tal tecido de
breves numa seqüência de palavras ligadas entre si me parece mais
difícil de encontrar do que no caso das longas.
M: Você tem toda a razão. E para lhe mostrar o prazer que me dá
poder en m sair dessas miudezas complicadas, vou expressar no único
metro que nos resta dessa espécie — o de oito pés — um pensamento
mais feliz:
Solida bona bonus amat, et ea qui amat, habet.
Itaque nec eget amor, et ea bona Deus est.15
A: Já tenho modelos de todos os metros pirríquios em abundância.
Vêm em seguida os metros jâmbicos: basta-me um par de exemplos
para cada um, e eu gostaria de ouvi-los sem interrupção.
IV. Sobre o jâmbico
M: Irei satisfazê-lo. Mas, quantas espécies de metros nós acabamos de
ver?
A: Quatorze.
M: Quantas espécies de metros jâmbicos você acha que
encontraremos?
A: Quatorze, igualmente.
M: E se eu quiser, nessa espécie, substituir o jambo pelo tríbraco,
não seria possível encontrar uma variedade mais considerável?
A: Sim, evidentemente. Mas, para abreviar nossa conversa, gostaria
de ter exemplos unicamente do jâmbico; pois a substituição de uma
longa por duas breves é algo que se pode fazer muito facilmente.
M: Farei o que você deseja, e serei grato se você facilitar minha
tarefa com sua inteligência desperta. Preste pois atenção nos metros
jâmbicos.
A: Estou atento, pode começar.
M: Bonus vir,
beatus.
Malus miser,
sibi est malum.
Bonus beatus,
Deus bonum eius.
Bonus beatus est,
Deus bonum eius est.
Bonus vir est beatus,
videt Deum beate.
Bonus vir et sapit bonum,
videns Deum beatus est.
Deum videre qui cupiscit,
bonusque vivit, hic videbit.
Bonum videre qui cupit diem,
bonus sit hic, videbit et Deum.
Bonum videre qui cupit diem illum,
bonus sit hic, videbit et Deum illic.
Beatus est bonus, fruens enim est Deo.
Malus miser, sed ipse poena t sua.
Beatus est videns Deum, nihil cupit plus.
Malus bonum foris requirit, hinc egestas.
Beatus est videns Deum, nihil boni amplius
Malus bonum foris requirit, hinc eget miser.
Beatus est videns Deum, nihil boni amplius vult;
Malus foris bonum requirit, hinc egenus errat.
Beatus est videns Deum, nihil boni amplius volet;
Malus foris bonum requirit, hinc eget miser bono.16
V. Sobre o metro trocaico
A: Agora é a vez do trocaico. Me dê alguns exemplos de seus metros:
os que você acaba de me oferecer são excelentes.
M: Eu os darei tal como z com os metros jâmbicos.
Optimi
non egent.
Veritate,
Non egetur.
Veritas sat est,
semper haec manet.
Veritas vocatur
ars Dei supremi.
Veritate factus est
mundus iste quem vides.
Veritate facta cuncta
quaeque gignier videmus.
Veritate facta cuncta sunt,
omniumque forma veritas.
Veritate facta cuncta cerno
Veritas manet, moventur ista.
Veritate facta cernis omnia,
Veritas manet, moventur omnia.
Veritate facta cernis ista cuncta,
Veritas manet, tamen moventur ista.
Veritate facta cuncta cernis optime,
Veritas manet, moventur haec, sed ordine.
Veritate facta cuncta sunt et ordinata,
Veritas manet, novans movet quod innovatur.
Veritate facta cuncta sunt et ordinata sunt,
Veritas novat manens, moventur ut noventur haec.
Veritate facta cuncta sunt et ordinata cuncta,
Veritas manens novat, moventur ut noventur ista.17
VI. Sobre o metro espondaico
A: Chegamos ao espondeu. O troqueu satisfez meus ouvidos.
M: Pois bem, eis aqui as diversas espécies de metros espondaicos:
Magnorum est
libertas.
Magnum est munus
libertatis.
Solus liber t,
qui errorem vincit.
Solus liber vivit,
qui errorem iam vicit.
Solus liber vere t,
qui erroris vinclum vicit.
Solus liber vere vivit,
qui erroris vinclum iam vicit.
Solus liber non falso vivit,
qui erroris vinclum iam devicit.
Solus liber iure ac vere vivit,
qui erroris vinclum funestum vicit.
Solus liber iure ac non falso vivit,
qui erroris vinclum funestum devicit.
Solus liber iure ac vere magnus vivit,
qui erroris vinclum funestum iam devicit.
Solus liber iure ac non falso magnus vivit,
qui erroris vinclum funestum prudens devicit.
Solus liber iure ac non falso securus vivit,
qui erroris vinclum funestum prudens iam devicit.
Solus liber iure ac non falso securus iam vivit,
qui erroris vinclum taetrum ac funestum prudens devicit.
Solus liber iure ac non falso securam vitam vivit,
qui erroris vinclum taetrum ac funestum prudens iam devicit.18
VII. Sobre o tríbraco: quantos metros ele pode formar
A: Eu nada mais tenho a perguntar quanto ao espondeu: passemos ao
tríbraco.
M: Sim. Mas, se os pés que nós acabamos de ver produzem cada
qual quatorze metros, num total de cinqüenta e seis, é preciso esperar
mais, agora, do tríbraco. Nesses metros, com efeito, em que há uma
pausa de meio pé, o silêncio não pode se prolongar para além de uma
sílaba. Porém, quando observamos uma pausa no tríbraco, será que é
preciso, na sua opinião, que ela dure apenas uma breve, ou que
contenha duas breves? Pois o tríbraco admite esse duplo modo de
divisão, começando por uma breve e acabando com duas; ou
começando por duas e acabando com uma. Assim o tríbraco origina
necessariamente vinte e um metros.
A: É bem verdade. O menor metro, com efeito, tem 4 breves com
uma pausa de dois tempos: vêm então os metros de 5 breves com uma
pausa de um tempo; aqueles de 6 breves, sem silêncio; de 7 breves,
com um silêncio de dois tempos; de 8 breves com um silêncio de um
tempo; de 9 breves, sem pausa. E se continuarmos assim até o número
de 24 sílabas, que formam 8 tríbracos, teremos um total de 21 metros.
M: Você calculou certo e com facilidade. Parece-lhe necessário dar
exemplos para cada metro? Será que aqueles que acabamos de dar
para os quatro primeiros pés19 não bastarão para lançar luz sobre
todos os outros?
A: Eles serão su cientes, na minha opinião.
M: Não lhe peço nada além de sua opinião. Uma questão,
entretanto; você sabe que se mudamos o modo de batida no pirríquio,
podemos medir um tríbraco. Ora, será possível o primeiro metro
pirríquio admitir o primeiro metro do tríbraco?
A: É impossível, pois o metro deve ser maior do que o pé.
M: E o segundo?
A: É possível. Com efeito quatro breves formam dois pirríquios, ou
um tríbraco mais um semipé, naquele caso sem nenhuma pausa, neste,
com uma pausa de dois tempos.
M: Portanto, mudando o modo de batida, você encontrará nos
próprios pirríquios exemplos de tríbraco até dezesseis sílabas; em
outras palavras, até cinco tríbracos mais meio pé, e isso deverá lhe
bastar. Pois você poderá formar todos os outros por conta própria,
seja cantando, seja batendo o tempo, se precisar submeter essas
combinações à apreciação do ouvido.
A: Farei o que você julgar conveniente; mas vejamos ainda o que nos
resta a examinar.
VIII. Sobre o dátilo
M: Agora vem o dátilo. Ele só admite um modo de divisão, não é?
A: Sim.
M: Qual de suas partes pode comportar uma pausa?
A: A metade.
M: E se, após ter inserido um troqueu após um dátilo, quiser-se
observar a pausa de um tempo, necessária para se ter um dátilo
completo, o que se deve responder? Nós não podemos dizer que o
silêncio não deve ser menor do que um semipé, de vez que
demonstramos acima que essa pausa deveria extrapolar a duração de
um semipé. No coriambo, com efeito, a pausa é menor do que um
semipé, quando ao coriambo se segue um báquio — por exemplo:
fonticolae puellae. Pois você reconhece que colocamos aqui uma pausa
equivalente a uma breve, quando necessário para completar os seis
tempos.
A: Você tem razão.
M: Se, portanto, colocamos um troqueu após um dátilo, será que
poderemos também observar a pausa de um tempo?
A: Sou obrigado a dizer que sim.
M: E quem o obrigaria a fazê-lo? Esqueceu-se daquilo que
estabelecemos há pouco? Você só cai nessa insensatez por esquecer o
princípio que acabamos de demonstrar, a saber, o caráter indiferente
da sílaba nal e o privilégio que o ouvido tem de poder transformar
em longa a última sílaba, caso ela seja breve, se isso for necessário.
A: Agora compreendo; pois, se o ouvido pode — tal como nos
mostraram o raciocínio e os exemplos — alongar uma nal breve, é
perfeitamente indiferente que, na seqüência de um dátilo, venha um
troqueu ou um espondeu. Assim, como o retorno ao início do metro
deve ser marcado expressamente por uma pausa, é preciso, após o
dátilo, inserir uma sílaba longa, proporcionando um silêncio de dois
tempos.
M: E se colocarmos um pirríquio após o dátilo, estará correto?
A: Não. Pouco importa, com efeito, que seja um pirríquio ou um
jambo. Pois um pirríquio equivale necessariamente a um jambo, por
conta da nal que o ouvido prolonga. Ora, não é possível inserir um
jambo após um dátilo, por conta da diferença de ársis e tésis entre
esses dois pés: a ársis e a tésis não podem, no caso do dátilo, conter
três tempos, evidentemente.
IX. Sobre o báquio
M: Essa observação é perfeitamente justa e faz jus à sua inteligência. E
o que você pensa do anapesto? Será que devemos aplicar o mesmo
raciocínio?
A: Exatamente o mesmo.
M: Examinemos o báquio, por favor, e diga-me qual é o primeiro
metro.
A: Ele é composto, penso eu, de quatro sílabas, uma breve e três
longas: duas dessas longas pertencem ao báquio, e a terceira, ao início
do pé que se segue imediatamente ao báquio, de modo que ele
encontra seu complemento numa pausa. No entanto, gostaria de ter
pelo menos um exemplo para veri car essa teoria pelo ouvido.
M: Posso lhe dar exemplos, é claro, mas não creio que eles lhe
agradarão tanto quanto os anteriores. Pois os pés de cinco tempos e os
de sete uem menos do que aqueles que se dividem seja em partes
iguais, seja numa relação de 1 para 2 ou de 2 para 1. A mesma
diferença existe entre os movimentos sesquiálteros e os movimentos
iguais ou complexos — dos quais tratamos longamente em nossa
primeira conversa. E eis por que os pés de cinco ou sete tempos são
tão raros em poesia quanto são freqüentes na prosa. Podemos, sem
problemas, observar o que estou a rmando por meio de exemplos,
como você me pediu. Eis aqui um deles:
Lăbō rāt | măgīstēr | dŏ cēns tār|dō s.20
Repita esse verso, interpondo uma pausa de três tempos. Para que
lhe seja menos custoso perceber essa pausa, inseri no quarto pé uma
sílaba longa, que forma o começo de um crético, pé ao qual é
permitido se misturar com o báquio. Se não lhe dei um exemplo para
a primeira espécie de metro é porque temo que um só pé não seja
su ciente para instruir seu ouvido quanto à duração da pausa que
seria preciso observar após esse pé e uma sílaba longa. Agora darei um
exemplo dessa primeira espécie de metro e o repetirei, para que você
possa sentir os três tempos em minha pausa:
Lăbō r nūl|lŭs, || Ămō r mā|gnŭs.21
A: Posso ver claramente que esse tipo de pé é mais conveniente à
prosa, e não há por que oferecer mais exemplos.
M: Você tem razão. Mas, dado que é preciso observar uma pausa,
você acha que só se pode colocar, na seqüência do báquio, uma sílaba
longa?
A: Não, absolutamente. Pode-se colocar a seguir uma breve e uma
longa, o que constitui o primeiro semipé do báquio. Pois, se pudemos
inserir um crético, de vez que esse pé pode se misturar ao báquio, com
ainda maior razão colocaríamos o próprio báquio, quanto mais se não
colocamos, do crético, a fração equivalente à primeira metade do
báquio.
X. Que é preciso acrescentar, antes da pausa, a um pé já
completo?
M: Sugiro, agora, restringir-me apenas ao papel de ouvinte e juiz. Você
irá desenvolver, sozinho, o que nos resta a ser dito, e exporá aquilo
que devemos acrescentar a um pé completo, quando há, em todos os
pés que restam, um vazio que deva ser preenchido por uma pausa.
A: A resposta à sua pergunta é curta e fácil, me parece: pode-se
aplicar ao peão segundo tudo aquilo que acaba de ser dito do báquio.
Após o crético, é permitido colocar ou uma longa, ou um jambo, ou
um espondeu, observando uma pausa de três, dois ou um tempo. E o
que acaba de ser dito quanto ao crético pode ser aplicado ao primeiro
e último peões. Convém acrescentar uma longa e um espondeu, e por
conseguinte veremos nesse metro um silêncio de três tempos ou de um
só tempo. Assim se dá também com o peão terceiro. O anapesto é
regular sempre que houver o espondeu. Quanto ao molosso, segundo
o modo de divisão que empregamos, colocamos depois dele uma longa
com uma pausa de quatro tempos ou duas longas e um silêncio de
dois tempos. Mas, dado que o ouvido22 e o raciocínio nos mostraram
que podíamos unir a esse pé todos os outros de seis tempos,
poderemos acompanhá-lo de um jambo, com uma pausa
complementar de três tempos; de um crético, com uma pausa
complementar de um tempo; ou en m de um báquio, com uma pausa
de igual duração. E se decompusermos em duas breves a primeira
sílaba do crético e a segunda do báquio, poderemos acompanhá-lo do
peão quarto com a mesma pausa complementar. E aquilo que acabo
de dizer quanto ao molosso poderia ser dito de todos os outros pés de
seis tempos. Quanto ao proceleusmático, ele entra, a meu ver, na
categoria dos pés compostos de quatro tempos, exceto quando
seguem-se a ele três breves, o que equivale a colocar, após ele, um
anapesto, sendo a última sílaba longa, por conta da pausa. É correto
colocar, após o primeiro epítrito, um jambo, um báquio, um crético,
um peão quarto. A mesma coisa vale para o segundo epítrito,
contanto que se observe uma pausa de quatro ou dois tempos. Quanto
aos dois outros epítritos, podemos, sem equívoco, acompanhá-los de
um espondeu ou de um molosso, contanto que se decomponha em
duas breves a primeira sílaba do espondeu, a primeira ou a segunda
do molosso. Por conseguinte, acrescentaremos a esses metros uma
pausa de três tempos ou de um tempo. Falta ainda o dispondeu: se,
depois dele, colocamos um espondeu, será preciso acrescentar um
silêncio de quatro tempos; se depois dele colocamos um molosso, será
preciso acrescentar um silêncio de dois tempos, é claro, preservando o
privilégio de decompor em duas breves a sílaba longa do espondeu ou
do molosso, com exceção da sílaba nal. Eis aqui o raciocínio que
você propôs que eu zesse. Peço que me corrija se necessário.
XI. O jambo não vai bem após o ditroqueu
M: Você mesmo se corrigirá, consultando seu ouvido. Eu lhe
pergunto: quando pro ro esse metro, marcando a batida:
Vērŭs ō ptı̆ |mŭs;
ou este:
Vērŭs ō ptı̆ |morŭm,
ou en m:
Vērı̆ tātı̆ s | ı̆ nō ps,
este último toca seus ouvidos de modo igualmente agradável aos dois
primeiros? Eles sentirão facilmente a diferença, se você retomar cada
medida, batendo-a, e levando em conta as pausas complementares.
A: Está claro que os dois primeiros são agradáveis ao ouvido, e o
último o agride.
M: Seria errado, então, colocar um jambo logo após um ditroqueu?
A: Sim.
M: Mas nós ainda estamos de acordo que o jambo vai bem após
todos os outros pés, se retomamos cada metro e observamos a regra
das pausas:
Fāllācēm | căvē.
Mălĕ cāstūm | căvē.
Mūtı̆ lŏ quūm | căvē.
Fāllācı̆ ām | căvē.
Ĕt īnvı̆ dūm | căvē.
Ĕt īnfīrmūm | căvē. 23
A: Entendo o que você quer dizer e concordo plenamente.
M: Veja se você também não vê nada de chocante no passo desse
metro, que, com uma interposição de uma pausa de dois tempos,
oferece um retorno de duração desigual. Será que ele tem a mesma
cadência que aqueles que acabamos de citar?
Vērācēs | rēgnānt.
Săpı̆ ēntēs | rēgnānt.
Vērı̆ lŏ quī | rēgnānt.
Prūdēntı̆ ă | rēgnāt.
Bŏ ni īn bŏ nīs | rēgnānt.
Pūră cūnctă | rēgnānt.24
A: Ora, não: mais acima temos uma cadência regular e harmoniosa;
aqui, discordante.
M: Assim, lembraremos que, nos metros cujos pés formam seis
tempos, o jambo conclui mal o ditroqueu, o espondeu e o antispasto.
A: Sim.
M: Pois bem! Não lhe parece que essa regra seja incontestável,
quando vemos que a ársis e a tésis dividem um pé em dois, de tal
modo que, se há no meio uma ou duas sílabas, elas se unem seja ao
início, seja ao m do pé, ou se dividem entre o começo e o m?
A: Conheço essa regra, ela é exata. Mas que relação tem com a
questão?
M: Preste atenção naquilo que irei dizer e você explicará essa relação
sem qualquer di culdade. Você sabe, imagino, que existem pés sem
sílabas intermediárias, como o pirríquio e todos os pés de duas sílabas;
que existem outras em que o meio corresponde, em duração, ao
começo ou ao m; outras em que o meio corresponde ao começo e ao
m, ou então não corresponde nem a um e nem a outro: ao começo,
como no anapesto, ou o palimbáquio, ou o peão primeiro; ao nal,
como no dátilo, o báquio ou o peão quarto; aos dois, como no
tríbraco, o molosso, o coriambo e o jônio maior ou menor; ele não
corresponde nem ao começo e nem ao m nos casos do crético, do
segundo e terceiro peões, do dijambo, do ditroqueu, do antispasto.
Com efeito, os pés que podem se dividir em três partes iguais têm um
meio que corresponde ao mesmo tempo ao início e ao m. Naqueles
que não admitem esse modo de divisão, o meio corresponde ou ao
começo, ou ao m, ou não corresponde nem a um e nem a outro.
A: Posso conceber também esse princípio, e aguardo a continuação
dessa sua explicação.
M: E qual pode ser essa continuação, senão fazer que você sinta que
o jambo, com uma pausa complementar, vai mal com um ditroqueu,
precisamente porque esse pé tem um meio que não é igual nem ao
começo e nem ao m, e, por conseguinte, que a ársis e a tésis oferecem
relações distintas? Podemos dizer a mesma coisa quanto ao espondeu,
que também vai mal após um antispasto, após um silêncio
complementar. Você teria alguma objeção a fazer?
A: Nenhuma, senão que o desprazer provocado no ouvido por essa
combinação só é perceptível em comparação à sensação agradável que
temos quando esses pés, com a interposição de uma pausa, vêm na
seqüência de outros pés de seis tempos. Pois se você me pedisse, sem
introduzir o assunto, para analisar um espondeu após um antispasto,
com uma pausa, e me desse exemplos, confesso francamente que
talvez os provasse com muito gosto.
M: Não o repreendo por isso. Meu único objetivo é mostrar-lhe que
a combinação desses pés, se a comparamos com a aliança de pés
equivalentes, mas mais harmoniosos, fere o ouvido, como você mesmo
percebeu. Essa combinação é indesejável pela simples razão que toda
discordância entre esses pés e aqueles da mesma família era
condenável. Estes últimos, com efeito, como semipé que os conclui,
têm, como pudemos observar, um uir mais agradável. Segundo essa
linha de pensamento, não lhe parece que devamos evitar colocar após
o segundo epítrito um jambo com uma pausa complementar? No
segundo epítrito, com efeito, o jambo é colocado no meio, de modo
que ele não corresponde aos tempos do começo e do m…
A: É uma conseqüência rigorosa do raciocínio que você acaba de
fazer.
XII. Total dos metros
M: Agora faça um recapitulativo do número de metros de que já
tratamos; são dois os seus tipos: começando por seus pés completos,
alguns terminam por pés igualmente completos, o que não exige a
interposição de nenhuma pausa antes de retomada; outros terminam
por pés incompletos seguidos de um silêncio, o que restabelece, como
vimos, sua simetria. Comece por dois pés incompletos e vá ate oito pés
completos, sem no entanto ultrapassar trinta e dois tempos.
A: O cálculo que você pede que eu faça não é simples, mas vale a
pena ser feito. Lembro-me que havíamos contado agora há pouco 77
metros, desde o pirríquio ate o tríbraco, os pés de duas sílabas
originando cada qual 14 metros, o que dá um um total de 56
metros.25 Quanto ao tríbraco, ele produz, por conta de seu duplo
modo de divisão, 21 metros. Isso dá 77 metros. A esses 77 metros é
preciso acrescentar os 14 metros formados pelo dátilo e os 14
formados pelo anapesto. Pois se aplicamos pés completos sem
nenhuma pausa, de dois a oito pés, encontraremos 7 metros. E se
acrescentamos os meios-pés seguidos de pausa, desde 1 pé e meio até 7
pés e meio, chegaremos igualmente a uma soma de 7 metros, tanto
para o dátilo quanto para o anapesto. Já temos um total de 105
metros. Quanto ao báquio, ele não pode formar metros que cheguem
a oito pés: ultrapassaríamos o limite de 32 tempos, e o mesmo se dá
para todos os pés de cinco tempos. Mas todos esses pés podem chegar
a seis. Ora, o báquio, bem como o segundo peão — igual ao báquio
não somente pelo número de tempos, mas também pelo modo de
divisão, de 2 a 6 pés, sem pausa complementar, produzem cada qual 5
metros quando começam por um semipé com um silêncio, e vão até
cinco meios-pés; eles formam assim, cada qual, cinco, se colocamos
depois deles uma longa; também 5 se colocamos depois deles uma
breve e uma longa. Eles originam pois cada qual 15 metros, somando
30. Eis que alcançamos um total de 135 metros.
O crético e os pés que admitem o mesmo modo de divisão, o
primeiro e o quarto peões, admitindo após eles uma longa, um jambo,
um espondeu, um anapesto, formam 75 metros. Esses três pés, com
efeito, formam cada qual 5 metros sem pausa, e com a pausa, 20, e
essas quantidades somadas formam 75 metros. Acrescentemos essa
soma àquela já obtida e chegaremos a um total de 210. O
palimbáquio e o terceiro peão, que têm um modo de divisão análogo,
formam cada qual 5 metros quando completos, com pausa
complementar; eles formam 5 se acompanhados por uma longa; por
um espondeu, 5; por um anapesto, 5. Acrescentemos esses 40 metros
ao número já encontrado e teremos um total de 250.
O molosso e os outros pés de 6 tempos — eles são, ao todo, 7 —
formam cada qual 4 metros quando estão completos; com uma pausa,
como podem ser todos seguidos de uma longa, de um jambo, de um
espondeu, um anapesto, um báquio, um crético, um peão quarto, eles
formam cada qual 28 metros, no total de 196, que, acrescentados aos
quatro primeiros, nos fazem alcançar o número de 224. Mas devemos
deduzir dessa soma oito metros, dado que o jambo não funciona bem
após o ditroqueu, nem o espondeu depois do antispasto. Restam então
216 metros, que, acrescentados à soma anterior, alcançam um total de
466. Quanto ao proceleusmático, ainda que ele tenha a nidade com
esses pés, nós não pudemos levá-lo em conta por causa dos semipés; o
número de meios-pés que o seguem é demasiado elevado. Pois
podemos acompanhá-lo de uma longa com uma pausa. Podemos fazer
o mesmo com o dátilo e os pés análogos, observando, sobre uma
longa, um silêncio de um tempo; para três breves, um silêncio de um
tempo, o que torna a nal longa.
Os epítritos, quando completos, geram cada qual três metros, de 2 a
4 pés; pois se acrescentássemos um quinto pé iríamos, contrariando a
regra, ultrapassar o limite de trinta e dois tempos. Com uma pausa, o
primeiro e o segundo epítritos formam cada qual 3 metros, se os
acompanhamos de um jambo; 3, se os acompanhamos de um báquio;
3, se os acompanhamos de um crético; 3, se os acompanhamos de um
quarto peão. Somados aos 3 metros completos, temos um total de 30.
O terceiro e quarto epítritos produzem, cada qual, 3 metros, sem
pausa complementar; unidos ao espondeu, 3; ao anapesto, 3; ao
molosso, 3; ao jônico menor, 3; ao coriambo, 3. Soma que,
acrescentada àquela dos metros que eles formam sem pausa, chega a
um total de 36. Os epítritos formam pois 66 metros: acrescentados
aos 21 do proceleusmático, e ao total anterior, resultam num total de
553. Falta ainda o dispondeu, que, quando completo, forma três
metros, e, quando acompanhado de uma pausa, 3 com um espondeu,
3 com um anapesto, 3 com um molosso, 3 com um jônio menor, 3
com um coriambo, número que, acrescentado àqueles dos metros
completos, chega a 18. O número total dos metros é, pois, de 571.
XIII. Método para marcar a duração dos metros e para
interpor as pausas
M: Esse número estaria certo, não fosse preciso cortar três metros
desse total; pois não se deve colocar um jambo após o segundo
epítrito.26 Fora isso, está tudo correto. Agora, outra questão. Diga-me
qual é o efeito que o seguinte metro provoca em seu ouvido:
Trı̆ plı̆ cī vı̆ dēs, ŭt ō rtū
Triviae rotetur ignis.27
A: Um efeito encantador.
M: Você poderia me dizer de que tipo de pé ele é composto?
A: Sou incapaz de responder. Os pés que tento utilizar para marcar o
tempo não entram em harmonia. Se começo por um pirríquio ou um
anapesto, ou um peão terceiro, os pés posteriores não se encaixam
direito. Acredito haver, após o terceiro peão, um crético seguido de
uma longa, aliança permitida pelo crético. Mas um metro composto
por essa espécie de pés só pode ser regular ao interpor uma pausa de
três tempos. Ora, não há aqui nenhuma pausa, dado que se retoma
imediatamente, e é aí que está o interesse desse verso.
M: Veja se não seria possível começar por um pirríquio; em seguida,
meça pela batida um ditroqueu e um espondeu, que completem os
dois tempos oferecidos pelo começo do metro.
Triplice vides ut ortu
Triviae rotetur ignis
Podemos assim começar por um anapesto, e, em seguida, medir pela
batida um dijambo, de modo que a sílaba longa que permanece unida
aos quatro tempos do anapesto forme seis tempos completos
correspondentes àqueles do dijambo. E por esse meio você poderá
compreender que podemos colocar fragmentos de pé não apenas ao
nal, mas também no início do metro.
A: Entendo.
M: E se eu cortar a nal longa, de modo que o metro se torne:
Sĕgĕtēs mĕūs lăbō r;
você consegue perceber que faço o retorno com um silêncio de dois
tempos? Daí ca evidente que podemos colocar uma parte do pé no
começo, outra, no nal, e substituir uma outra por uma pausa.
A: Isso é igualmente evidente.
M: É o que ocorre se marcarmos, nesse metro, a medida de um
ditroqueu completo. Pois se batemos o tempo de um dijambo e
começamos por um anapesto, você bem vê que colocamos no início
uma fração de um pé de 4 tempos e que precisamos ainda de dois,
completando com uma pausa ao nal. Isso nos ensina que um metro
pode começar por um fragmento de pé e ser concluído com um pé
inteiro, mas nunca com uma pausa.
A: Sim, sem dúvida.
M: Pois bem, você poderia, por favor, marcar o tempo desse metro e
dizer quais são os pés que o compõem?
Iām sătīs | tērrīs nı̆ vı̆ s, | ātquĕ dīrāe
Grāndı̆ nīs mīsīt Pătĕr, ēt rŭbēntĕ
Dextera sacras iaculatus arces.28
A: Posso dizer que ele começa com um crético, e percebo a seguir
dois pés de seis tempos, a saber: um jônio maior e um ditroqueu. Em
seguida vejo que uma pausa de um tempo se acrescenta ao crético
para completar seis tempos.
M: Há um erro grave nessa sua medida, veja: quando um ditroqueu
se encontra no m do metro, se há uma pausa complementar, a nal,
que é naturalmente breve, torna-se longa para o ouvido. Você
discorda?
A: Ao contrário, estou perfeitamente de acordo.
M: Assim, não podemos concluir um metro com um ditroqueu,
exceto num caso em que não houver nenhum silêncio complementar,
se quisermos evitar ouvir um epítrito segundo em lugar de um
ditroqueu.
A: É claro.
M: Como encontrar, então, a medida desse metro?
A: Não consigo imaginar…
XIV. Continuação: interposição das pausas na medida dos
metros
M: Veja, pois, se essa cadência é legítima quando lanço o metro de
modo a colocar uma pausa após as três primeiras sílabas. Desse modo,
com efeito, não é mais necessária nenhuma pausa complementar no
nal, e o ditroqueu pode ser corretamente disposto.
A: De fato a cadência é bastante agradável.
M: Acrescentemos pois, ao nosso método, uma nova regra, a saber
que se observe uma pausa, não somente no nal do metro, mas antes
do m, quando sentimos que isso é necessário; e isso é sentido em dois
casos: quando a nal breve não permite que coloquemos no nal o
silêncio necessário para completar o número de tempos, como no
último exemplo, ou quando dois pés incompletos se encontram
posicionados um no começo, outro no m, como nesse exemplo:
Gēntīlēs nō strō s || īntĕr ŏ bērrăt ĕquō s.29
Acho que você notou que após as cinco primeiras longas z uma
pausa de dois tempos, e que é preciso observar outra de mesma
duração no nal, antes da retomada. Se, ao bater o tempo desse
metro, a ársis e a tésis contarem seis tempos, você encontrará primeiro
um espondeu, em seguida um molosso, em terceiro um coriambo e,
por m, um anapesto. Ora o espondeu e o anapesto exigem uma
pausa de dois tempos para formar pés de 6 tempos completos; por
conseguinte, é preciso uma pausa de dois tempos após o molosso,
antes do m, e uma pausa também de dois tempos após o anapesto ao
nal do metro. Caso queiramos ter pés de quatro tempos, colocaremos
uma longa bem no começo e contaremos em seguida dois espondeus,
em seguida dois dátilos, e, para terminar, colocaremos uma longa.
Inserimos pois uma pausa de dois tempos após o duplo espondeu,
antes do m, e uma pausa de igual duração ao nal, para completar as
frações de pés colocados, uma no começo, outra no m.
No entanto, em certos casos, o tempo exigido por dois pés
incompletos, cujas frações se encontram uma no começo, outra no
m, só é completo pela pausa nal; mas esse tempo não deve
ultrapassar a duração de um semipé, por exemplo:
Sīlvāe lă|bō rāntēs, | gĕlūquĕ
Flūmı̆ nă | cō nstı̆ tĕrīnt | ăcūtō .30
O primeiro desses metros começa por um palimbáquio, seguido de
um molosso e concluído por um báquio; é preciso pois uma pausa de
dois tempos: acrescentando uma pausa ao báquio, outra ao
palimbáquio, os seis tempos estarão completos. Quanto ao segundo,
ele começa por um dátilo, continua com um coriambo e se encerra por
um báquio. Será necessário, assim, uma pausa de três tempos,
acrescentemos uma pausa de um tempo ao báquio, outra de dois
tempos ao dátilo, e todos os pés terão seis tempos.
É pelo último pé, e não pelo primeiro, que se começa a acrescentar a
pausa complementar; as exigências do ouvido proíbem qualquer outro
procedimento e isso não deve nos surpreender em nada; pois, ao fazer
a volta, acrescentamos no início uma fração de pé que está no nal.
Assim, no metro já citado:
Flumina constiterint acuto.
Dado que é necessário um silêncio de três tempos para que tenhamos
todos os pés com seis tempos, suponha que você deseje completar esse
tempo por um som, e não por uma pausa, e que insira um jambo, um
troqueu e um tríbraco — todos eles pés de três tempos. Pois bem! O
ouvido não permite, aqui, um falso uso do troqueu, cuja primeira
sílaba é longa, e a segunda, breve. Pois devemos primeiro ouvir o
complemento necessário ao báquio nal — ou seja, uma breve, e não
uma longa — exigido pelo dátilo. É o que se pode veri car nesses
exemplos:
Flūmı̆ na | cō nstı̆ tĕrīnt | acūtō | gĕlū.
Flumina | constiterint | ăcūtē | gĕlı̆ dă.
Flumina | constiterint | in alta | nocte.
A retomada que observamos nos dois primeiros tem um caráter
bastante agradável, e a do último, detestável, não há dúvidas.
De igual modo, se as frações do pé exigem cada qual seu próprio
tempo, e se você quer representar esse tempo por palavras, o ouvido
não permite que eles sejam reunidos em uma sílaba longa: e essa
repartição é particularmente justa. Pois é preciso dividir um
suplemento que deve ser repartido entre vários elementos. Assim,
nesse metro:
Sīlvāe lă|bō rāntēs, | gĕlūquĕ.
Se, ao invés da pausa complementar, você acrescentar uma sílaba
longa, colocando, por exemplo,
Silvae la|borantes | gĕlū dū|rō .
o ouvido não aprova esse complemento como faria se disséssemos:
Silvae la|borantes | gĕlū ēt frī|gŏ rĕ.
Coisa que você sentirá sem qualquer di culdade, se retomar cada
fração do pé.
Não se deve, tampouco, quando se tem dois pés incompletos,
colocar uma fração maior no início do que aquela do m. Trata-se de
uma combinação igualmente condenada pelo ouvido, como neste
exemplo:
Ōptı̆ mūm | tēmpŭs ădēst | tāndēm.
Sendo o primeiro pé um crético, o segundo um coriambo, o terceiro
um espondeu, é preciso acrescentar uma pausa de três tempos: duas
para o espondeu nal, uma para o crético do início, a m de
completar os seis tempos. Se, ao contrário, dizemos:
Tāndēm | tēmpŭs ădēst | ō ptı̆ mūm.
com a mesma interposição de uma pausa de três tempos, quem não
sentirá que a retomada é agradável? Assim, pois, é preciso ou que as
frações de pé do começo tenham o mesmo número de tempos
daquelas do m, como neste exemplo:
Sīlvāe lă|bō rāntēs, | gĕlūquĕ,
ou que a menor seja colocada no começo, e a maior no m, como
neste exemplo:
Flūmı̆ nā | cō nstı̆ tĕrīnt | ăcūtō .
Nada de mais legítimo. Pois a igualdade impede toda discordância: e
se houver desigualdade no número de tempos, a progressão que vai do
menor ao maior restabelece a harmonia, como ocorreria numa
progressão numérica.
Outra conseqüência: quando colocamos essas frações de pés de que
estamos tratando, e inserimos uma pausa antes do m e também no
m, é preciso inserir antes uma pausa igual àquela exigida pela fração
derradeira, e, ao nal, uma pausa igual àquela exigida pela fração do
início; pois o meio se relaciona com o m, e partindo do m devemos
voltar ao começo. Se for preciso acrescentar uma pausa de igual
duração nesses dois lugares, não há dúvidas quanto a que a pausa
antes do m deva ter uma duração igual àquela do m. Ademais, uma
pausa só pode ser colocada após uma palavra completa. Se estivermos
tratando, não de palavras cantadas, mas de músicas acompanhadas de
instrumentos de cordas ou sopros, ou mesmo de vocalizes, pouco
importa em que lugar são colocadas as pausas, contanto que sejam
inseridas segundo os princípios acima estabelecidos. Assim, pois, um
metro pode começar por dois pés incompletos, contanto que os
tempos reunidos dessas frações não sejam menores que aqueles de um
pé e meio. Pois nós observamos, anteriormente, que duas frações de pé
vão bem juntas, contanto que o complemento por elas exigido não
ultrapasse, em duração, meio pé. Por exemplo: montes acuti: com
efeito, podemos acrescentar ao nal um silêncio de três tempos, ou o
equivalente de um pé e meio, ou um silêncio de um tempo após o
espondeu e dois ao nal. Não há outro meio de escandir corretamente
esse metro.
XV. Continuação: interposição de pausas no metro
Estabeleçamos ainda esta regra: quando colocamos uma pausa antes
do m, o membro da frase não deve ser concluído, nesse lugar, por
uma breve, e assim evitamos que o ouvido, seguindo a regra tão
freqüentemente formulada, transforme essa breve em longa por efeito
da pausa. Neste metro:
Mō ntı̆ bŭs | ăcūtīs

não podemos, portanto, colocar uma pausa de um tempo após o


dátilo, como zemos corretamente agora há pouco após o espondeu:
pois, em lugar de um dátilo, ouviríamos um crético, e o metro, longe
de se compor de duas frações de pés, pareceria compor-se de um
ditroqueu completo e de um espondeu ao nal, com uma pausa de
dois tempos acrescentada ao nal.
Um ponto que também deve ser observado é que, quando
começamos por um pé incompleto, a pausa complementar encontra-se
ou no começo, como neste metro:
Iām sătīs || tērrīs nı̆ vı̆ s ātquĕ dīrāe.

Ou no m, como neste caso:


Sĕgĕtēs | mĕūs lăbō r ||

Mas quando uma fração de pé forma o nal, é ao nal que devemos


completar o pé por uma pausa, como no seguinte metro:
Īte ı̆ gı̆ tūr | Cămoēnaē.

Ou por vezes no meio, como neste outro:


Vēr blāndūm || vı̆ gĕt ārvīs, || ădēst hō spĕs hı̆ rūndō .31
O tempo complementar do báquio pode ser inserido ao nal do
metro, após o molosso pelo qual se inicia, ou, ainda, depois do jônio
menor que vem em segundo. Quanto à pausa que certos fragmentos
de pés exigem no centro, ele só pode estar nessa posição. Exemplo:
Tŭbă tērrı̆ bı̆ lēm sŏ nı̆ tūm || dĕdı̆ t aērĕ cūrvō .32
Se marcamos o tempo de modo que o primeiro pé seja um anapesto;
o segundo, um jônio de cinco sílabas, decompondo em duas breves a
longa seja no começo, seja no m; o terceiro, um coriambo; o último,
um báquio; será preciso acrescentar uma pausa de três tempos, uma
para o báquio nal, as duas outras no anapesto, para que todos os pés
tenham seis tempos. Ora, esse silêncio de três tempos pode ser
colocado inteiramente no nal. Mas se você começar por um pé
completo e zer das cinco primeiras sílabas um jônio — seja maior ou
menor, você terá a seguir um coriambo que não terá, depois dele,
nenhum pé completo: será preciso, pois, aqui, observar uma pausa
equivalente a uma longa; uma vez que esse silêncio tiver sido contado,
teremos um novo coriambo completo. O báquio permanecerá atuante
para concluir o metro, acrescentando-se uma pausa de um tempo.
Creio que assim ca claro que, quando uma pausa é colocada no
interior do metro, duas são as possibilidades: ou se completam, no
nal, os tempos faltantes, ou se completam aqueles faltantes no local
mesmo em que se deve colocar a pausa. Por vezes, não é preciso
acrescentar uma pausa no interior do metro, coisa que ocorre quando
o metro pode ser medido por uma outra batida, como no último
exemplo. Por vezes, isso é também necessário, como neste metro:
Vērnāt tēmpērı̆ ēs, || aūrāe || tĕpēnt, || sūnt dēlı̆ cı̆ āe.33
Pois é óbvio que esse metro evolui por pés de quatro ou seis tempos.
Se tomamos os pés de quatro tempos, é preciso acrescentar uma pausa
após a oitava sílaba e duas ao nal: se adotamos os pés de quatro
tempos, é preciso acrescentar uma pausa após a oitava sílaba e duas
ao nal: mediremos no primeiro pé um espondeu; no segundo, um
dátilo; no terceiro, um espondeu e, no quarto, um dátilo,
acrescentando à longa uma pausa de um tempo; pois não podemos
acrescentá-la à breve; no quinto pé, um espondeu, no sexto, um dátilo
e, en m, uma longa que conclui o metro e após a qual é preciso contar
um silêncio de dois tempos: mas se procedemos por pés de seis
tempos, o primeiro será um molosso; o segundo, um jônio menor; o
terceiro, um crético que se transforma em ditroqueu, com uma pausa
de um tempo; o quarto, um jônio maior, seguido de uma longa que
completaremos com uma pausa de quatro tempos. Adotando um
outro sistema, poderemos colocar uma longa no começo,
acompanhando-a imediatamente de um jônio maior, formando um
molosso, em seguida de um báquio, que se transformaria em
antispasto, com um silêncio complementar de um tempo: um
coriambo terminaria o metro, e completaríamos a longa do início por
um silêncio de quatro tempos no nal. Mas o ouvido rejeita essa
medida pela seguinte razão: a fração do pé colocada no início, exceto
se for maior que a metade, não é devidamente completada pela pausa
do m, após um pé completo, no lugar em que ela se encontra. Com
os outros pés, no momento certo, sabemos qual complemento esperar.
Mas o ouvido só saberia compreender uma pausa de tal duração caso
representássemos pela pausa uma duração menor que o som real: com
efeito, quando marcamos com sons a parte mais extensa do pé, é fácil
descobrir a fração restante.
Assim, pois, o metro que havíamos mostrado como exemplo:
Vērnāt tēmpērı̆ ēs, || aūrāe || tĕpēnt, || sūnt dēlı̆ cı̆ āe,
admite uma medida necessária, a qual, como havíamos dito, consiste
em acrescentar uma pausa de um tempo após a décima sílaba e quatro
no nal. Mas ele admite também uma outra medida, que consiste em
colocar voluntariamente uma pausa de dois tempos depois da décima
sílaba; após a décima-primeira, uma pausa de um tempo; e no nal,
uma pausa de dois tempos. Nesse sistema, teremos no início um
espondeu, seguido imediatamente de um coriambo; acrescentaremos
uma pausa de dois tempos no terceiro espondeu, o que transforma o
espondeu em molosso ou em jônio menor; no quarto pé o báquio se
tornará, com uma pausa de um tempo, um antispasto; no quinto pé, o
metro terá por terminação sonora um coriambo, e, no m
acrescentaremos uma pausa de dois tempos para completar o
espondeu do início.
Eis aqui outro modo de proceder, por meio das pausas voluntárias.
Você pode, caso queira, acrescentar uma pausa de um tempo à sexta
sílaba, à décima, à décima-primeira, e uma pausa de dois tempos ao
nal, de modo que o primeiro pé seja um espondeu; o segundo, um
coriambo; que o palimbáquio do terceiro pé se torna, pelo acréscimo
de uma pausa de um tempo, um antispasto; que o espondeu do quarto
se torna um ditroqueu, acrescentando uma pausa de um tempo, e que,
com mais uma pausa de igual duração, o metro en m se conclua por
um coriambo e que se observe para completar o espondeu do início
uma pausa de dois tempos. Uma terceira maneira consiste em colocar
após o espondeu uma pausa de um tempo e acrescentar todas as
pausas complementares, tal como acabamos de fazer, exceto ao nal,
quando será necessário manter uma pausa de um tempo, pois o
espondeu, que habitualmente se encontra no início do metro,
transformou-se, pelo acréscimo de uma pausa, em um palimbáquio, e
só nos falta para completá-lo uma pausa de um tempo, que deve ser
observada ao nal. Assim, você pode ver que é possível colocar no
interior do metro pausas ora forçadas, ora voluntárias; forçadas,
quando os pés precisam ser completados; voluntárias, quando os pés
estão completos.
Quanto à regra estabelecida acima, que diz que as pausas não devem
durar mais de quatro tempos, ela se aplica às pausas necessárias,
quando há tempos por completar. Com as pausas que chamamos de
voluntárias, pode-se sonorizar o pé ou mantê-lo em silêncio; e se nós o
substituímos assim por pausas separadas por intervalos iguais, não
teremos mais um metro, mas um ritmo, pois não haverá mais ponto
de apoio que nos permita voltar ao início. Se, portanto, queremos, por
exemplo, empregar as pausas para dividir o metro de modo que
acrescentemos ao primeiro pé uma pausa equivalente ao segundo, não
poderemos seguir esse procedimento uniformemente. Mas é possível,
com um número bem calculado de pausas de igual duração, fazer que
o metro tenha tempos regulares, como neste exemplo:
Nō bīs || vērum īn | prō mptu ēst, || tū sī | vērūm | dīcīs.34
Pois é possível, nesse metro, acompanhar o primeiro espondeu de
quatro pausas, bem como os dois pés que vêm na seqüência. Mas após
os três espondeus do m não acrescentaremos pausa: pois teremos
atingido o limite de 32 tempos que não se pode ultrapassar. Mas é
muito mais adequado, e, sob certo ponto de vista, mais regular,
colocar as pausas ao nal, ou então só no meio e no m, o que pode
ser feito cortando um pé:
Nō bīs || vērum īn | prō mptu ēst, || tū dīc | vērūm.35
A regra que devemos observar, tanto para esse metro quanto para os
outros, consiste pois em completar as frações de pés, seja no início ou
no m, por pausas necessárias, sem que a duração das mesmas
ultrapasse jamais a parte do pé determinada pela ársis e pela tésis.
Quanto às pausas voluntárias, estas podem durar tanto quanto os pés
incompletos ou completos, como havíamos demonstrado
anteriormente com alguns exemplos. Encerremos por aqui nossa
análise quanto à interposição de pausas.
XVI. Sobre a mistura e montagem de pés
Tratemos agora, em poucas palavras, da mistura dos pés e da
construção dos metros: digo que serão apenas algumas palavras, pois
já entramos em detalhes demasiado longos ao examinar quais são os
pés que se unem entre si, e devemos nos estender um pouco sobre a
montagem dos metros para começar a tratar dos versos. Os pés, com
efeito, unem-se e se misturam entre si segundo regras que expusemos
em nosso segundo diálogo. A esse respeito é bom saber que as
diferentes espécies de metros, empregadas pelos poetas, são fruto da
imaginação de certos inventores, e nos é proibido modi car certas
regras determinadas: não se pode, com efeito, mudar nada nas
combinações por eles estabelecidas, ainda que seja possível fazê-lo sem
chocar a razão e nem ferir o ouvido. Ora, nessa matéria é preciso
consultar não a teoria, mas a tradição, e se submeter antes à
autoridade que ao raciocínio. Não podemos deduzir logicamente que
um tal Falisco combinou dois metros de modo a produzir a cadência:
Quāndŏ flăgēl|lă lı̆ gās, ı̆ tă | lı̆ gā,
Vitis et ul|mus uti simul | eant.36
Nós só podemos ter acesso a esse conhecimento pela tradição e pela
leitura. A questão que nos cabe aqui é examinar se esse metro é
composto de três dátilos e um pirríquio nal, como a rmam diversas
pessoas ignorantes de música.
Elas não se dão conta de que o pirríquio não vai bem após o dátilo;
ignoram que, segundo as leis da música, o primeiro pé desse metro é
um coriambo; o segundo, um jônio, cuja longa se decompõe em duas
breves; o último, um jambo seguido de uma pausa de três tempos: as
pessoas semi-instruídas poderiam sentir essa nuance, se vissem um
músico de verdade entoar esses versos e marcassem o tempo
corretamente. Pois o bom senso lhes permitiria apreciar com muita
naturalidade aquilo que está verdadeiramente em conformidade com
as regras da arte.
No entanto, dado que o poeta quis que o número desses pés fosse
invariável, é preciso que nos submetamos a essa lei ao empregar esse
metro. Com efeito, não há incômodo para o ouvido e tampouco
haveria se substituíssemos seja o coriambo por um dijambo, ou por
um jônio, decompondo a longa em breve, seja um outro pé qualquer
de igual medida. Assim, pois, nada mudaremos nesse metro, éis não
ao raciocínio que nos ordena evitar a desproporção, mas àquele que
nos faz respeitar a autoridade. O argüente com efeito nos ensina que,
dentre os metros, existem alguns invariáveis, por conta de sua origem
mesma, como aquele de que acabamos de tratar extensamente; ao
passo que alguns são variáveis, ou seja, podem ser substituídos uns
pelos outros, como neste exemplo:
Trō iāe | quī | prī|mŭs ăb ō |rīs ār|mă vı̆ rūm|quĕ cănō .37
Pois nesse caso é possível substituir o espondeu pelo anapesto.
Existem outros que não são nem exatamente xos, nem exatamente
variáveis, como:
Pēndĕăt | ēx hŭmĕ|rīs dūl|cīs chĕlys,
Et nume|ros e|dat vari|os, quibus
Assonet | omne vi|rens la|te nemus,
Et tor|tis er|rans qui | exibus.38
Você perceberá com efeito que é possível substituir sempre o
espondeu pelo dátilo e vice-versa, exceto no último pé, que, segundo a
vontade do inventor, deve sempre ser um dátilo; bem se vê, pois, que
nessas três espécies de metro a tradição exerce um papel bastante
importante.
Mas em tudo aquilo que diz respeito unicamente à razão na mistura
dos pés, quando ela é o único juiz das combinações que serão
percebidas pelo ouvido, é preciso reter o seguinte princípio: as frações
de pé que vão bem após determinados pés, quando há uma pausa
complementar, como o jambo após o ditroqueu ou o epítrito segundo,
o espondeu após o antispasto, vão mal após certos pés aos quais, no
entanto, os primeiros se uniam com certa graça. Exemplo: está claro
que o jambo se alia muito bem ao molosso, como nesse metro
freqüentemente citado, com uma pausa de três tempos ao nal:
Vēr blāndūm | vı̆ rēt | florı̆ bŭs.
Mas se você substitui o molosso por um ditroqueu, por exemplo:
Vērĕ tērră | vı̆ rēt | florı̆ bŭs.

É
o ouvido rejeita essa combinação e a condena absolutamente. É
possível fazer essa experiência facilmente sobre outros metros, usando
o ouvido como guia. Com efeito, trata-se de uma regra invariável:
quando se unem pés que têm a nidade entre si, é preciso colocar no
nal frações de pé em harmonia com todos os pés da série, a m de
evitar que sua aliança natural seja perturbada por um defeito qualquer
de simetria.
Mais uma particularidade: o espondeu conclui agradavelmente o
ditroqueu e o jambo; no entanto, quando esses dois pés, sejam sós,
sejam misturados a outros pés da mesma família, encontram-se na
mesma série, não podemos colocar um espondeu no nal sem prejuízo
para o ouvido. Ninguém duvida que esses pés, separadamente, sejam
agradáveis de se ouvir:
Tı̆ mēndă rēs | nō n ēst
ou então:
Iām timērĕ | nō lī.
Mas se com eles você formar uma série, por exemplo:
Tı̆ mēndă rēs, | iām timērĕ | nō lī
terá uma combinação que só pode existir em prosa. O problema de
harmonia não é menor se colocarmos em qualquer outro lugar um
outro pé, por exemplo um molosso no primeiro pé:
Vīr fō rtīs, | tı̆ mēndă rēs, | īam tı̆ mērĕ | nō lī
ou então:
Tı̆ mēndă rēs, | vīr fō rtīs, | īam tı̆ mērĕ | nō lī
ou ainda no terceiro:
Tı̆ mēndă rēs, | īam tı̆ mērĕ vīr fō rtīs, | nō lī.
Qual é a causa dessa cacofonia? Pode-se bater a medida do dijambo
na proporção de 2 para 1; e a do ditroqueu, na proporção de 1 para 2.
O espondeu equivale ao dobro, dado que o medimos na proporção de
2 para 2; ora, como o dijambo só admite medida de proporção 2 para
1 e o ditroqueu, de proporção 1 para 2, produz-se uma dissensão que
fere o ouvido. Eis como o raciocínio puro pode explicar essa
anomalia.
O antispasto gera uma anomalia não menos estranha. Se por um
lado ele não se combina com nenhum outro pé, só se misturando com
o dijambo, por outro, ele não rejeita o jambo como nal; mas o
rejeitará se estiver unido a outros pés. Pois se ele estiver unido ao
ditroqueu, o ditroqueu, mesmo nesse caso, não pode se aliar ao
jambo, e isso em nada deve nos surpreender. Mas o que me espanta é
que ele rejeite o jambo tão logo se veja combinado com qualquer
outro pé de seis tempos; talvez esse fato se deva a uma razão por
demais obscura para que possamos aprofundá-la e lançar luz sobre
ela, mas é um fato, e demonstro-o por exemplos. Estes dois metros:
Pŏ tēstātĕ | plăcēt

e
Pŏ tēstātĕ | pŏ tēntı̆ ūm | plăcēt
oferecem uma volta bastante agradável, não há dúvida, se colocarmos
ao nal uma pausa de três tempos. E temos, ao contrário, uma
verdadeira cacofonia, nestes metros, com a mesma pausa:
Pŏ tēstātĕ | prāeclārā | plăcēt;
Pŏ tēstātĕ | tı̆ bı̆ mūltūm | plăcēt;
Pŏ tēstātĕ | īam tı̆ bı̆ sīc | plăcēt;
Pŏ tēstātĕ | mūltūm tı̆ bı̆ | plăcēt;
Pŏ tēstātĕ | māgnı̆ tūdŏ | plăcēt.
Nesse problema, o ouvido exerceu seu papel, fazendo-nos sentir
aquilo que agrada e o que fere. Mas, se quisermos conhecer a causa
disso, é preciso recorrer à razão: quanto à minha, que se encontra
numa profunda obscuridade, ela só consegue obter uma explicação: a
primeira metade do antispasto é idêntica àquela do dijambo, dado que
ambos começam por uma breve seguida de uma longa; a segunda
metade, ao contrário, é idêntica àquela do ditroqueu, dado que ambos
se concluem por uma longa seguida de uma breve. Por conseguinte, o
antispasto admite, sim, o jambo ao nal do metro, quando está
sozinho; ele o admite também quando unido ao dijambo, por ter sua
primeira metade em comum; portanto, ele o admitirá quando estiver
unido ao ditroqueu, se uma tal terminação estiver ligada ao ditroqueu;
e se ele o rejeitar, quando misturado a outros pés, é porque não se está
sendo medido pela mesma relação de tempos.
XVII. Sobre a combinação dos metros
Quanto à combinação dos metros, basta perceber agora que os
diversos metros podem formar entre si um sistema, contanto que
concordem entre si quanto à batida do tempo, ou seja, quanto à ársis
e à tésis. A diversidade dos metros vem primeiramente da quantidade,
o que ocorre quando unimos os grandes aos pequenos, como no
exemplo:
Iām sătīs tērrīs nı̆ vı̆ s ātquĕ dīrāe
Grandinis misit Pater, et rubente
Dextera sacra iaculatus arces,
Tērrŭı̆ t ūrbĕm.39
Você bem vê que o quarto metro, composto de um coriambo seguido
de uma longa, é menor que os três primeiros, que são iguais entre si.
Essa diversidade tem uma segunda causa, que vem da espécie dos pés,
por exemplo:
Grātō | Pyrrhă sŭb ān|trō ,
Cūi flā|vām rĕlı̆ gās | cŏ măm.40
Você percebe, com efeito, que o primeiro dos dois metros compõe-se
de um espondeu, de um coriambo seguido de uma longa, que devemos
acrescentar ao espondeu para completar os seis tempos: o segundo é
composto de um espondeu e de um coriambo seguido de duas breves,
que, acrescentadas também ao espondeu, completam os seis tempos.
Esses metros são, portanto, iguais quanto ao número dos tempos, mas
os pés oferecem uma diferença bastante perceptível.
Existe, nessas combinações, outro princípio de diferença, ei-lo aqui:
dentre os metros, alguns deles se unem entre si de tal modo que não é
necessária a interposição de nenhuma pausa, como no exemplo
anterior. Outros exigem que se interponha uma certa quantidade de
pausas, como no exemplo:
Vı̆ dēs ŭt āltā stēt nı̆ vĕ cāndı̆ dŭm
Soracte, nec iam sustineant onus
Sīlvāe lăbō rāntēs, gĕlūquĕ
Flūmı̆ nă cō nstı̆ tĕrīnt ăcūtō .41
Os dois primeiros metros exigem ao nal uma pausa de um tempo; o
terceiro, uma pausa de dois tempos; o quarto, uma pausa de três
tempos. Reunidos, todos, eles nos obrigam, quando passamos do
primeiro ao segundo, a observar uma pausa de um tempo; do segundo
ao terceiro, uma pausa de dois tempos; do terceiro ao quarto, uma
pausa de três tempos. Se retornamos do quarto ao primeiro, será
necessário respeitar uma pausa de um tempo. O procedimento para
retornar do quarto ao primeiro é o mesmo, quando se trata de passar
a uma segunda combinação do mesmo gênero. Essas combinações são
chamadas, com razão, de circuito, o que corresponde à palavra grega
período. Um período não pode ter menos de dois membros, ou seja,
dois metros, e decidiu-se que ela não poderia ter mais de quatro
membros ou metros. Podemos, portanto, chamar o período menor de
bimembre, aquele intermediário, de trimembre, e o último, de
tetramembre, o que corresponde às palavras gregas dikolon, trikolon,
tetrakolon.
Dado que iremos abordar esse tema com todos os desenvolvimentos
nele contidos, em nossa conversa posterior a respeito da versi cação,
limitaremos nossa re exão por aqui.
Concluindo, acho que agora você já compreende que as espécies de
metros, as quais descobrimos ser em número total de 568, são na
verdade incalculáveis; pois, ao propor esse total, só havíamos levado
em conta as pausas acrescentadas ao nal; não havíamos falado da
mistura de pés entre si e, en m, da resolução das longas em breves, a
qual aumenta o pé para além de quatro sílabas. Se agora queremos
considerar todas as maneiras de intercalar as pausas, de substituir os
pés, de resolver essas longas e fazer a soma de todos os metros,
teremos um número tão elevado que talvez nem encontremos um
termo para expressá-lo. Quanto aos exemplos por nós oferecidos, e a
todos os outros que podem ser dados, por mais que o poeta, em suas
composições, produza versos perfeitos que agradem os ouvidos, se a
execução de um músico não faz jus a essa perfeição, se o gosto dos
ouvintes não é devidamente educado, será impossível sentir a verdade
de nossa teoria.
Descansemos um pouco e tratemos a seguir dos versos.
A: De acordo.

1 Se tu és alguém, age bem; aquele que age mal nada faz, e é por conseguinte infeliz.
2 Quem age mal nada faz / Quem age mal perece.
3 Que dizer de um homem que ama, em outro homem, seus atributos perecíveis? Ame-se,
pois, em um homem, o seu espírito, e o amor terá então um real objeto.
4 O amor é puro se a alma é pura; o amor busca um abrigo; a alma é sua morada. Assim ele
encontra excelente abrigo quando a morada é excelente; e mau, quando ela é má.
5 O espírito do homem nutre bons ou maus pensares; se ele busca o bem, o tem; se busca o
mal, o tem também.
6 O espírito do homem busca para obter os bens em que possa repousar.
7 Ou quatro pés e meio.
8 O mau ama e é carente, pois ama os bens que não podem satisfazê-lo.
9 O homem que se prende aos bens frágeis e passageiros encontra igualmente aquilo que
busca.
10 O homem que ama bens efêmeros, frívolos, passageiros, será como eles.
11 Mesmo signi cado.
12 A alma que deseja os bens efêmeros, frívolos, perecíveis, terminará por parecer-se com eles.
13 A alma frágil que se apega aos bens ligeiros, frágeis, mesquinhos, acaba por parecer-se com
eles.
14 A alma frágil que se apega aos bens passageiros, efêmeros, frívolos, frágeis, acaba por
parecer-se com eles.
15 O homem de bem ama os bens sólidos, e quem os ama os possui. Assim o amor não
padece do vazio, e esses bens são o próprio Deus.
16 O homem de bem é feliz.
O mau é infeliz; ele produz sua própria infelicidade.
O homem de bem é feliz: Deus é sua felicidade.
O homem de bem é feliz, ele vê Deus e se alegra.
O homem de bem tem também o gosto pelo bem: ao ver Deus ele é feliz.
Aquele que deseja ver Deus e que vive como um homem de bem, o verá.
Àquele que deseja ver o bom dia, basta ser bom, e ele também verá Deus.
Àquele que deseja ver o bom dia, basta ser bom em tudo, e ele também verá Deus.
O homem de bem é feliz, pois ele desfruta de Deus.
O mau é infeliz; mas ele se torna seu próprio carrasco.
O homem de bem vê Deus; ele não deseja mais nada.
O mau busca o bem fora de Deus; e vem daí o vazio que ele experimenta.
O homem de bem vê Deus; ele não aspira a mais nenhum outro bem.
O mau busca o bem fora de Deus; assim ele vaga em busca de satisfazer suas necessidades.
O homem feliz vê Deus; ele não aspirará a nenhum outro bem.
17 Aos perfeitos nada falta.
A verdade supre as necessidades.
A verdade basta; ela é imutável.
A verdade é obra suprema de Deus.
O Mundo que você vê é obra da verdade.
Tudo aquilo que chega aos nossos olhos é criado pela verdade.
Tudo foi feito pela verdade; a verdade é o ideal de todas as coisas.
Vejo que tudo foi feito pela verdade.
A verdade é imutável; o Mundo está em movimento.
Você vê que tudo foi feito pela verdade.
A verdade é imutável; e tudo se move.
Você vê que todas essas coisas são obra da verdade.
No entanto, a verdade é imutável; e essas coisas se movem.
Você vê que tudo foi excelentemente criado pela verdade.
A verdade é imutável, tudo se move, mas com regularidade.
Você vê que tudo foi criado e ordenado pela verdade.
A verdade é imutável: ao renovar as coisas, ela as coloca ao mesmo tempo em movimento.
Tudo foi feito, tudo foi ordenado pela verdade.
A verdade renova tudo; ainda que permaneça imutável, tudo é posto por ela em movimento.
Tudo foi feito pela verdade; tudo foi posto em ordem por ela;
A verdade, ainda que imutável, renova todas as coisas; ela as põe em movimento para se
renovar.
18 A liberdade é privilégio dos grandes corações.
Grandes são os dons da liberdade.
Só é livre aquele que triunfa contra o erro.
Só vive em liberdade quem já triunfou contra o erro.
Só se torna livre aquele que rompe as correntes do erro.
Aquele que já rompeu as correntes do erro leva uma vida em liberdade.
Só vive uma vida sem enganos quem já rompeu as correntes do erro.
Só vive em legítima e verdadeira liberdade aquele que, em sua alma, rompeu as correntes do
erro.
Só vive realmente e sem falsidade na liberdade quem venceu as barreiras funestas do erro.
Só o homem livre leva uma vida repleta de uma grandeza real e sem mentiras, quando ele já
rompeu com as sombrias correntes do erro.
Só o homem livre tem uma vida de grandeza e sem mentiras; ele rompeu, com sua prudência,
as correntes do erro.
Só o homem livre vive real e verdadeiramente em segurança; ele rompeu, com sua prudência,
as funestas correntes do erro.
Só o homem livre vive em segurança, realmente e sem ngimento; ele rompeu, com sua
prudência, as cruéis e funestas correntes do erro.
Só o homem livre leva uma vida tranqüila, realmente sem ngimento; ele rompeu, com sua
prudência, as cruéis e funestas correntes do erro.
19 Cf. cap. III, IV, V, VI.
20 O mestre se cansa ao instruir espíritos pesados.
21 Onde o amor abunda não há esforço.
22 Lemos aqui sensu e não censu, pois este último, que signi ca “cálculo dos tempos”,
formaria com ratione uma tautologia.
23 Cuidado com o ardiloso. Cuidado com o pervertido. Cuidado com o falastrão. Cuidado
com o ardil. Cuidado também com o invejoso, e, en m, com o homem fraco.
24 As pessoas sinceras são reis. Os sábios são reis. Aqueles que dizem a verdade são reis. A
prudência é rainha. Os bons reinam sobre os bons. Tudo quanto seja puro reina.
25 Esses pés de duas sílabas são o pirríquio, o jambo, o troqueu, o espondeu (14x4=56).
26 O aluno, como vimos, havia combinado um segundo epítrito com um jambo seguido de
uma pausa.
27 Tu vês como a tripla ascensão de Hécate faz turbilhonar a chama.
28 Por muito tempo Júpiter lançou neve e um granizo funesto sobre a Terra; por muito tempo
seu braço in amado lançou raios sobre os templos sagrados (Horácio, l. 1, ode 2).
29 Ele galopa em meio aos cavalos de nossa nação.
30 As árvores padecem, sem suas folhas, e o granizo retém o curso das águas. — NT.
31 Os campos exalam os encantos da primavera; a andorinha corre a solicitar nossa
hospitalidade.
32 O trompete faz soar no metal contorcido um som terrível.
33 A temperatura se renova; as brisas são mornas: que visão mais prazerosa.
34 A verdade está a nosso alcance se dizemos a verdade.
35 A verdade está a nosso alcance: diga a verdade.
36 Quando cultivares ramos distintos, una-os de modo a que a vinha e o olmeiro cresçam
juntos.
37 V. mais abaixo, l. 5, cap. V.
38 Que a lira harmoniosa possa pender em meus ombros. Que ela possa formar sons variados
que ecoem nas orestas verdejantes e no rio que serpenteia. (Terêncio; Pompônio).
39 Por muito tempo Júpiter lançou neve e um granizo funesto sobre a Terra; por muito tempo
seu braço in amado lançou raios sobre os templos sagrados. (Horácio, l. 1, ode 2).
40 Por quem, ó Pirra, estás a trançar teus loiros cabelos dentro desta caverna? (Horácio, l. 1,
ode 5).
41 Vê como se ergue, coberto de uma neve espessa, o alvo cume do Soracte; as árvores
padecem, sem suas folhas, e o granizo retém o curso das águas. (Horácio, l. 1, ode 9).
LIVRO QUINTO

Sobre o verso
I. Diferença entre ritmo, metro e verso
M: A de nição de verso foi objeto de uma discussão séria e fecunda
entre os sábios da Antigüidade. O verso é uma invenção humana,
transmitida ao longo da História; mas, independentemente do
testemunho imponente e el da autoridade, essa invenção repousa
sobre uma base racional. Com efeito, percebeu-se que havia uma
diferença entre a noção de ritmo e de metro, de modo que, se por um
lado todo metro é um ritmo, por outro nem todo ritmo é um metro.
De fato toda a combinação regular de pés é rítmica, e como o metro
oferece essa combinação é impossível que o movimento cadenciado —
em outras palavras, o ritmo — esteja aí ausente. Mas como uma
sucessão de pés regulares, sem um limite determinado, é muito
diferente de uma progressão de pés igualmente regulares que se
conclui num limite xo, viu-se que havia duas coisas que deveriam se
distinguir por dois termos; assim, a primeira foi designada pela
palavra ritmo, e a segunda, por metro — esta última sem deixar de ser
classi cada, no entanto, também como um ritmo. Ademais, como
esses movimentos cadenciados que têm um m determinado — falo
dos metros — admitem ou não um corte em sua metade, eles
apresentam assim uma diferença também entre si, que deveria ser
expressa por termos distintos. Chamou-se, portanto, propriamente
metro a espécie de ritmo que não oferece esse corte, e verso, aquela
que o apresenta. Talvez a razão nos mostrará, no decorrer de nossa
discussão, a etimologia dessa palavra. Não creia, contudo, que esse
termo seja a tal ponto exclusivo que não se possa chamar de verso os
metros sem corte. Mas uma coisa é empregar um termo de forma
abusiva, estendendo-o a uma signi cação vizinha, outra é designar um
objeto pelo termo especial que lhe convém. Limitemos por aqui nossas
buscas quanto a essas palavras: o emprego delas, como sabemos,
depende essencialmente das convenções dos interlocutores ou do uso
que acabou por se estabelecer. Sugiro que estudemos as questões que
nos restam, através do nosso método no qual o ouvido propõe e a
razão julga, e você reconhecerá que os inventores célebres da
Antigüidade, longe de terem imaginado as leis à margem da bela e sã
natureza, zeram todas essas descobertas com o auxílio da razão e
lhes designaram por termos precisos.
II. Os metros passíveis de serem divididos em duas partes são
mais perfeitos que os outros
M: Diga-me, antes de mais nada, se o prazer que a medida de um pé
provoca no ouvido não se deve unicamente à harmoniosa simetria
existente entre suas duas partes, a ársis e a tésis.
A: Essa é uma verdade de que já estou plenamente convencido.
M: Pois bem! E quanto ao metro, que resulta evidentemente de uma
união de pés, será de fato impossível dividi-lo? Veja se não há uma
impossibilidade absoluta de submeter uma coisa indivisível à sucessão
temporal, e uma contradição em ver como indivisível um todo
composto de duas partes divisíveis.
A: As coisas dessa última espécie são perfeitamente passíveis de
divisão.
M: Ora, dentre os objetos passíveis de serem divididos, não há ainda
maior beleza quando as partes têm, entre elas, uma certa simetria, e
não uma ausência de harmonia?
A: É incontestável.
M: E qual é o número que produz nos pés essa divisão simétrica?
Não será o número dois?
A: Seguramente.
M: Ora, dado que nós reconhecemos que um pé se divide em duas
partes correspondentes, e que é por meio dessa simetria que ele agrada
o ouvido, se encontramos um metro similar, não teríamos o direito de
preferi-lo a todos aqueles que não têm esse caráter?
A: Concordo plenamente.
III. Etimologia da palavra verso
M: Muito bem, responda pois a esta pergunta: como existe em tudo
aquilo que se mede por um certo intervalo de tempo partes que
precedem, seguem, iniciam, concluem, não lhe parece que deva existir
uma diferença entre o membro que forma a cabeça e o início do
metro, aquele que vem no meio e aquele do nal?
A: Sim, me parece.
M: Diga-me, pois, que diferença existe entre esses dois membros de
verso:
Cō rnŭă vēlātārŭm
e o segundo:
Vērtı̆ mŭs āntēnnārŭm.1
Se pronunciamos esse verso, sem empregar a expressão de Virgílio,
obvertimus, não é verdade que ao repeti-lo diversas vezes passamos a
não mais distinguir o primeiro do segundo?
A: É verdade, toda distinção desaparece.
M: Não será preciso evitar essa confusão?
A: Sem dúvida.
M: Veja pois se não o evitamos com êxito nesse verso:
Ārmă vı̆ rūmquĕ cănō
seguido de:
Trō iaē quī prīmŭs ăb ō rīs.
O primeiro membro é Arma virumque cano, o segundo: Trojae qui
primus ab oris. Eles são tão diferentes entre si que, se invertemos a
ordem, dizendo:
Trojae qui primus ab oris arma virumque cano,
é preciso fazer a escansão com um tipo de pé totalmente diferente.
A: Compreendo.
M: Veja também se esse princípio foi observado nos versos seguintes.
Você reconhece, com efeito, que a medida do primeiro membro
Arma vi|rumque ca|no
é idêntica em
Itali|am fa|to||;
Littora | multum il|le et ||;
Vi supe|rum sae|vae ||;
Multa quo|que et bel|lo ||;
Infer|retque de|os ||;
Alba|nique pa|tres ||.
En m, prossiga com essa veri cação tanto quanto quiser na Eneida,
e verá que todos os primeiros membros dos versos têm a mesma
medida, ou, em outras palavras, a divisão se dá no quinto semipé. É
muito raro que essa união não se dê de modo a tornar igualmente
simétricos os segundos membros dos versos, que são:
Tro|iae qui | primus ab | oris
Profu|gus La|vinaque | venit
Ter|ris iac|tatus et | alto
Memo|rem Iu|nonis ob | iram
Pas|sus dum | conderet | urbem
Lati|o genus | unde La|tinum
At|que altae | moenia | Romae.
A: Nada mais evidente.
M: Assim, vemos que no verso heróico há dois membros, um deles
com cinco meios-pés, o outro, com sete. Como é sabido, esse tipo de
verso compõe-se de seis pés de quatro tempos cada um. Sem simetria
entre os dois membros, seja desta ordem que acabamos de ver, seja de
qualquer outro tipo, não há verso. Ora, como a razão nos mostrou, é
preciso distribuir esses membros de modo que não seja possível
substituir um pelo outro. Caso contrário, só poderíamos dar a isso o
nome de verso por extensão. Tratar-se-ia de um ritmo, um metro,
coisa bastante rara nos poemas longos, e que no entanto têm sua
graça, como aquele que já citamos:
Cornua velatarum vertimus antennarum.
Eis por que a palavra verso não parece vir, como pensam diversos
críticos, do fato de se voltar do m ao início numa mesma
combinação de pés. De acordo com eles a palavra seria um
empréstimo do hábito de se voltar, vertere, versum, quando
retornamos na pista de nossos próprios passos. A bem da verdade,
esse é um traço comum entre o verso e o metro, o qual não é um
verso. Quanto a mim, vejo nessa palavra uma antífrase; assim como
os gramáticos chamam de deponentes os verbos que não depõem a
letra R, como lucror e conqueror, também, a meu ver, o verso que se
compõe de dois membros que não podem ser invertidos entre si sem
prejuízo da harmonia foi chamado de verso pois não admite
conversão.
Ademais, que você aprove uma ou outra dessas etimologias, que as
condene ambas e procure uma terceira explicação ou, en m, que você
despreze todas essas questões gramaticais, como eu, pouco importa.
Não é necessário se preocupar com a origem de um termo, quando a
idéia que ele exprime está perfeitamente clara. Você teria alguma
objeção a me apresentar a esse respeito?
A: Nenhuma; queira continuar.
IV. Sobre o nal do verso
M: Voltemos nossa atenção, agora, para o nal do verso. Quis a razão
que o m do verso tivesse uma diferença perceptível, que o distingue
do restante do verso. Você não prefere que o último elemento de um
movimento cadenciado seja posto em evidência, sem que isso perturbe
a igualdade dos tempos, ao invés de deixá-lo igual às outras partes, ou
seja, àquelas que não formam o nal do verso?
A: Quem duvida que seja necessário preferir, em tudo, a clareza?
M: Examine pois se o espondeu, como o quiseram certos gramáticos,
conclui o verso heróico de um modo destacado. Podemos colocar os
cinco primeiros pés em dátilo ou espondeu, mas só o espondeu pode
concluir o verso. Se dizemos que o troqueu também pode, é porque ele
equivale a um espondeu, pois a nal é indiferente, como já vimos
repetidamente. Se quisermos seguir radicalmente a opinião desses
gramáticos, o jâmbico de seis pés ou não poderá mais formar um
verso, ou não terá mais uma conclusão destacada, dupla hipótese
igualmente absurda. Pois os sábios — e mesmo as pessoas que só
gozam de um conhecimento raso e super cial — nunca duvidaram que
haja um verdadeiro verso, seja nesse jâmbico de Catulo:
Phăsēlŭs īllĕ quēm vı̆ dētı̆ s hō spı̆ tēs
seja em qualquer outra combinação de palavras assim cadenciadas.
Ademais, alguns críticos de grande autoridade a rmaram não ser
preciso ver versos em toda união que não apresente uma conclusão
acentuada.
A: É verdade. O m do verso deve pois ser reconhecido por uma
marca mais pronunciada do que aquela que conclui o espondeu.
M: Pois bem! Você duvida que essa marca essencial, seja ela qual for,
consiste na diferença de um pé, de um tempo, ou de ambos ao mesmo
tempo?
A: E poderia haver outra diferença?
M: Mas, então, qual das três você escolherá? Quanto a mim, quando
penso que a terminação destinada a limitar o verso em seus justos
limites só depende da duração do tempo, parece-me que não podemos
buscar em outra causa senão nos tempos essa marca essencial. Você
discorda?
A: Ao contrário, concordo plenamente.
M: E você vê, além disso, que como o tempo só pode ser distinguido
segundo sua duração curta ou longa é preciso que o verso, em que a
terminação se destina a servir de ponto de chegada, tenha por m
destacado um tempo mais curto?
A: Vejo claramente; mas por que tratar disso agora?
M: Porque nós nem sempre transformamos a diferença dos tempos
numa duração mais ou menos longa. Por acaso você crê que não haja
entre o inverno e o verão outra diferença além de suas respectivas
durações? Não seria mais pertinente distinguir essas duas estações pela
diferença especí ca entre frio e calor, secura e umidade e todo e
qualquer outro traço marcante?
A: Compreendo agora, e estou perfeitamente de acordo que um
tempo mais curto deva formar a terminação do verso.
M: Preste atenção, pois, nesse verso:
Rō mă, | Rō mă, | cērnĕ | quāntă | sīt dĕ|ūm bĕ|nīgnı̆ |tās.2
É um trocaico. Escanda-o e diga-me quais são os dois membros e de
quantos pés ele é composto?
A: Quanto aos pés, a resposta é fácil. É evidente que há sete e meio.
Quanto aos dois membros, já não está tão claro. A frase é cortada em
muitos pontos. No entanto, imagino que a divisão deve ser feita no
oitavo semipé, de modo que o primeiro membro se comporá dessas
palavras: Roma, Roma, cerne quanta; o segundo destas: sit deum
benignitas.
M: Quantos meios-pés há nesse último membro?
A: Sete.
M: Foi a razão que o guiou até essa resposta. Dado que a igualdade
é valor altíssimo e forma o primeiro objeto a se buscar numa divisão,
é preciso, quando não se a pode alcançar, tomar aquilo que dela mais
se aproxima, e dela nos afastar o mínimo possível. Como esse verso
tem no total quinze meios-pés, o modo de divisão mais justo seria em
oito e sete meios-pés: a divisão que mais nos aproximaria seria
também em sete e oito meios-pés; mas, ao adotar este segundo modo,
não marcaríamos mais a conclusão do verso por um tempo curto,
como exige a razão. Suponhamos com efeito que o verso seja este:
Roma | cerne | quanta | sit || tibi | deum | beni|gnitas.
Ou seja, o primeiro membro compõe-se de sete meios-pés. Roma |
cerne | quanta | sit, e o segundo, de oito: tibi | deum | beni|gnitas. Não
haveria mais meios-pés para encerrar o verso, dado que oito meios-pés
formam quatro pés completos. Soma-se a isso outro inconveniente
ainda mais grave: não seria mais possível escandir o último membro
com os mesmos pés que o primeiro, e o primeiro membro apresentaria
aquela terminação destacada, saliente, de um tempo mais curto, ou de
um semipé, e não mais se apresentaria no segundo membro, o qual
exige essa terminação. Com efeito escandiríamos, no primeiro
membro, três troqueus e meio:
Roma, | cerne | quanta | sit
no segundo, quatro jambos:
tibi | deum | beni|gnitas.
Com o primeiro modo de divisão, ao contrário, escandimos os dois
membros com troqueus e o verso se encerra por um semipé; desse
modo a terminação mantém sua marca distintiva de um tempo mais
curto. O primeiro membro, com efeito, compõe-se de quatro troqueus:
Roma, | Roma, | cerne | quanta;
o segundo, de três troqueus e meio,
sit de|um be|nig|ni|tas.
Você tem alguma objeção?
A: Nenhuma, e concordo perfeitamente.
M: Observemos, pois, escrupulosamente, essas regras incontestáveis;
1 – O verso deve sempre ser dividido em dois membros que se
aproximam o máximo possível da igualdade, como é o caso em:
Cornua velatarum obvertimus antennarum;
2 – A igualdade não deve jamais ser tão perfeita entre os dois
membros que se os possa inverter,3 como poderíamos fazer no caso de:
Cornua velatarum vertimus antennarum;
3 – Ao escapar dessa possibilidade de inversão, os dois membros
tampouco devem ser desiguais, mas oferecer o número de meios-pés o
mais próximo possível, e que assim não se venha dizer que podemos
dividir esse último verso em dois membros compostos, o primeiro com
oito sílabas:
Cornua velatarum vertimus;
o segundo, com quatro:
antennarum;
4 – O último membro não deve ter um número par de meios-pés,
como:
tibi deum benignitas,
para se evitar que falte ao verso, concluído por um pé completo, uma
terminação marcada por um tempo mais curto.
A: Compreendo essas regras e as gravo com todas as minhas forças
na memória.
V. Final do verso heróico
M: Como sabemos que o verso não deve ser concluído por um pé
completo, como deveremos escandir o verso
heróico, na sua opinião, para observar a regra do hemistíquio,
formando assim o m do verso?
A: Esse verso compõe-se de 12 meios-pés. Ora, os dois membros não
podem ter seis pés cada, pois temos de evitar a possibilidade de
inversão entre eles. Não devemos, tampouco, permitir que haja entre
eles uma desigualdade tal como 3 para 9, ou 9 para 3; nem formar o
semimembro com um número par de meios-pés, numa relação de 8
para 4 ou 4 para 8, se não quisermos concluir o verso por um pé
completo: a divisão deverá pois ser feita em 5 para 7 ou 7 para 5
meios-pés. São esses, com efeito, os dois números ímpares mais
próximos entre si, e desse modo os dois membros cam mais
acercados um do outro do que se a relação fosse de 4 para 8 ou 8 para
4. O que fortalece, em mim, essa opinião, é que o primeiro
hemistíquio se conclui sempre ou quase sempre no quinto semipé,
como no primeiro verso da Eneida:
Arma virumque cano,
[no segundo]
Italiam fato;
[no terceiro]
Littora multum ille et
[e, no quarto],
Vi superum saevae,
e assim por diante, do início ao m do poema.
M: Você tem razão, mas está re etindo sobre o modo como se
escande, colocando toda sua atenção na observação das regras
incontestáveis que acabamos de estabelecer.
A: Vejo qual é o método que precisamos seguir; mas isso é algo tão
novo para mim que me desestabiliza. O costume consiste em escandir
esses versos em dátilos e espondeus — ninguém é a tal ponto mal-
informado para ignorar essa teoria, ainda que se possa ter di culdade
em aplicá-la na prática. Ora, se eu quiser seguir o costume geral, é
preciso renunciar à regra que distingue o verso em sua terminação: o
primeiro membro, com efeito, seria concluído por um semipé, o
segundo, por um pé completo, ordem inversa àquela que
estabelecemos como sendo a apropriada. Mas, dado que seria um
grande erro anular essa regra, e que, quanto ao ritmo, já aprendi que
era perfeitamente possível começar por um pé incompleto, basta
substituir o dátilo pelo anapesto combinado com o espondeu. Nesse
sistema, o verso começará por uma longa; será seguido de dois pés,
compostos indistintamente de espondeus ou de anapestos, que
concluirão o primeiro membro. Três anapestos ou dois espondeus
antes do terceiro anapesto formam o segundo membro, e falta uma
longa para concluir regularmente o verso. Você aprova esse meu
raciocínio?
M: Considero-o mui correto, mas trata-se de um ponto que nem
todos têm facilidade para entender. A força do hábito é tal que, uma
vez que incorporamos um erro em nossos costumes, torna-se ele o pior
inimigo na busca da verdade. Para compor um verso heróico pouco
importa, você pode bem ver, que se misture o anapesto ou o dátilo
com o espondeu; para escandi-lo logicamente, operação que depende
da razão e não do ouvido, não devemos nos apoiar num preconceito,
mas proceder com método. O método que aplico aqui não é invenção
minha, e é mesmo muito anterior à rotina que acabou por se impor.
Leiam-se os autores gregos ou latinos que mais se aprofundaram nessa
matéria; aprenderemos com menor surpresa quais são nossos
princípios. Mas não seria vergonhoso ter de recorrer à autoridade
para sustentar a razão? Nada deveria se sobrepor à autoridade
oriunda da própria razão e da verdade pura, tão superior ao homem,
seja ele o gênio que for. Devemos recorrer à autoridade dos antigos
quando se trata de ver se é preciso pronunciar uma sílaba longa ou
breve, a m de nos mantermos éis ao costume no emprego das
mesmas palavras. Em tal caso vemos que há, com freqüência, certa
preguiça em se preservar os costumes, proporcional a um temerário
desejo de inovação. Quando se trata de escandir um verso, é preciso
ter o cuidado de não obedecer a um preconceito inveterado em
detrimento da verdade eterna. Pois o ouvido é o primeiro a nos revelar
a justa medida do verso; um exame lógico do número de pés nos
permite em seguida aprová-lo, e, para compreender que é preciso
concluir o verso por uma terminação destacada, basta ver que o verso
deve ter uma terminação mais marcada que os metros, e que uma
terminação nesse caso é bem marcada por um tempo mais curto, de
vez que há um limite e de certo modo um freio que xa e limita a
duração.
VI. Continuação do capítulo anterior
Se é assim, o segundo membro só poderá, todas as vezes, ser concluído
por uma fração de pé. Quanto ao primeiro membro, ele deve começar
ora por um pé completo, como neste verso trocaico:
Roma, Roma, cerne quanta sit deum benignitas;
ora por um incompleto, como neste verso heróico:
Arma virumque cano Trojae qui primus ab oris.
Agora faça uma pequena trégua nas suas perguntas, escanda esse
verso e me diga quais são os dois membros e os distintos pés:
Phaselus ille, quem videtis, hospites.4
A: Percebo que os dois hemistíquios são divididos em cinco e sete
meios-pés; de modo que as palavras Phaselus ille formam o primeiro,
e estas: quem videtis hospites, o segundo: quanto aos pés, trata-se de
jambos.
M: Você chegou a perceber que, em seu modo de escandir, o segundo
hemistíquio se conclui por um pé completo?
A: É verdade, não sei em quê eu estava pensando. Como não
perceber, com efeito, que é preciso aqui começar por um semipé, como
no verso heróico? Seguindo esse procedimento, escandimos o verso
por troqueus e não por jambos, e ele se conclui regularmente por um
meio-pé.
M: Muito bem. Mas como você irá escandir o verso chamado
asclepíade; por exemplo:
Maēcē|nās ătăvīs || ēdı̆ tĕ rē|gı̆ bŭs.5
O verso é cortado na sexta sílaba; ora não se trata de uma exceção, é
um costume, por assim dizer, consagrado nos versos dessa espécie. O
primeiro hemistíquio é, portanto: Maecenas atavis; o segundo: edite
regibus. A razão desse corte pode parecer duvidosa. Com efeito,
escanda esse verso em pés de quatro tempos e você terá cinco meios-
pés no primeiro membro, quatro no segundo. Ora, a regra nos proíbe
de formar o segundo membro por um número par de semipés, se
quisermos que o verso não seja terminado por um pé completo. É
preciso, portanto, ver no verso dessa espécie pés de seis tempos, o que
nos dará dois hemistíquios compostos de três meios-pés cada. Para
que o primeiro membro se conclua por um pé completo, é preciso
começar por duas longas; vem a seguir um coriambo que divide o
verso de tal modo que o segundo membro começa também por um
coriambo e que o verso se conclui por um semipé de duas breves: esses
dois tempos, acrescentados ao espondeu colocado no início, formam
um pé completo de seis tempos.
Você tem algo a dizer quanto a isso?
A: De fato, nada.
M: Então não lhe parece haver inconveniente em formar cada
membro com um número igual de meios-pés?
A: Ora, por quê? Não há risco de inversão entre os membros aqui,
pois, se colocamos o segundo membro em lugar do primeiro, e assim
reciprocamente, a rítmica dos pés não será absolutamente mais a
mesma. Não há, portanto, nenhuma razão para não compormos os
dois membros, nessa espécie de verso, por um igual número de meios-
pés; essa igualdade exclui ao mesmo tempo a conversão dos dois
membros; a regra que exige uma terminação em destaque é respeitada,
e o verso é concluído, como necessário, por uma fração de pé.
VII. Como conduzir à igualdade o número desigual de meios-
pés em cada membro? Da relação de igualdade entre os
membros de 4 e 3 meios-pés, de 5 e 3 meios-pés
M: A questão agora não nos oferece mais nenhuma di culdade: a
razão nos fez descobrir que existem duas sortes de versos, uns deles
em que o número de meios-pés é igual nos dois membros, e outros em
que é desigual. Peço que examinemos com atenção por qual segredo
essa desigualdade pode ser conduzida a uma relação de igualdade; isso
é fruto de um cálculo um tanto difícil, mas muito exato. Responda-me
esta questão: quando digo 2 e 3, de quantos números eu falei?
A: De dois números.
M: Portanto 2 é um número, tanto quanto 3, e assim por diante?
A: Sim.
M: Não será possível inferir, partindo disso, que o número 1 tem
uma relação sensível com todos os outros números? Pois, se é absurdo
dizer que 1 é 2, não é absurdo dizer que, em certos aspectos, 2 é 1; de
igual modo não é errado pretender que 3 ou 4 também sejam 1.
A: Concordo.
M: Outra questão: 2 multiplicado por 3, quanto dá?
A: 6.
M: Se eu somar 6 e 3 tenho o mesmo resultado?
A: De fato, não.
M: Multiplique também 3 por 4, por favor, e me diga qual é o
produto.
A: 12.
M: Você vê ainda que 12 é maior do que 4.
A: Sim, bem maior.
M: Sem mais tardar, coloquemos a regra: a partir de 2, se tomarmos
qualquer número e o multiplicarmos por outro maior, o resultado
deverá necessariamente ultrapassar o maior.
A: Será possível duvidar disso? Pode haver um número plural menor
do que 2? No entanto, se multiplico esse número por mil, ele se torna
o dobro de mil: que diferença!
M: Muito bem. Mas agora tome 1 e um número qualquer por fator;
multiplique, como você acaba de fazer, o menor pelo maior; será que o
menor ainda ultrapassará o maior?
A: Não, o menor se tornará igual ao maior. Pois uma vez 2 é igual a
2, uma vez 10 é igual a 10, uma vez 1.000 é igual a 1.000, e, seja qual
for o multiplicador, multiplicá-lo por 1 o tornará igual a ele mesmo.
M: Assim, pois, o número 1 tem, por uma espécie de privilégio, uma
relação de igualdade com todos os outros números, não apenas por
ser um número, mas também porque se torna igual a todo número que
lhe serve de multiplicador?
A: Não há dúvidas quanto a isso.
M: Pois bem! Agora volte sua atenção para o número de meios-pés
que, num verso, tornam os membros desiguais entre eles e você
descobrirá aí uma surpreendente igualdade seguindo o procedimento
que acabamos de indicar. Com efeito, o menor dos versos tem um
número desigual de meios-pés nos dois membros, dado que ele se
compõe de 4 e 3 meios-pés, por exemplo:
Hospes ille || quem vides.
O primeiro membro, hospes ille, pode ser dividido em duas partes
iguais, cada uma delas com dois meios-pés. O segundo membro, quem
vides, divide-se em dois semipés e um semipé. Essa relação de 2 para 1
é a mesma que de 2 para 2, por conta da relação de igualdade que o
número 1 sustenta com todos os outros números, como vimos. Graças
a esse modo de divisão o primeiro membro se torna igual ao segundo.
Mas, se temos 4 meios-pés de um lado e 5 de outro, como nesse verso:
Roma, Roma, || cerne quanta sit,
essa combinação não é mais tão legítima e forma antes um metro do
que um verso, pois a desigualdade entre os membros é demasiado
grande para que cada modo de divisão permita o estabelecimento de
uma relação de igualdade entre eles. Creio que você bem vê que os 4
meios-pés do primeiro membro se dividem em duas partes de dois,
enquanto que os cinco últimos se dividem primeiro em 2 meios-pés,
depois em 3, o que destrói toda possibilidade de igualdade, dado que
5 meios-pés divididos em 2 e 3 não podem equivaler a 4 meios-pés tal
como 3 meios-pés divididos em 1 e 2 equivaliam, como acabamos de
ver no menor verso, a 4. Haverá nessa explicação algo que lhe escape
ou que o desagrade?
A: Longe disso, tudo me parece claro e plausível.
M: Examinemos agora 5 meios-pés em um membro e 3 no outro,
tomando por exemplo esse pequeno verso:
Phaselus ille, || quem vides.
Tentemos descobrir como essa desigualdade esconde uma verdadeira
relação de igualdade. Pois essa combinação é, na opinião de todos,
não apenas um metro, mas também um verso. Assim, pois, depois de
termos compartilhado o primeiro membro em 2 e 3 meios-pés e o
segundo em 2 e 4, reunindo as frações que nos parecem iguais em um
membro e no outro, encontramos 2 no primeiro membro e sobram 2
no segundo; uma nos 3 meios-pés do primeiro membro, outra no
semipé do segundo. Podemos então reuni-los, dado que 1 se associa a
todos os números e que no total 1 e 3 formam 4, o que equivale a 2
mais 2. Portanto, graças a esse modo de divisão, 5 meios-pés de um
lado e 3 de outro unem-se numa harmoniosa concordância. Mas diga-
me se você compreendeu.
A: Entendi e estou perfeitamente de acordo.
VIII. Relação entre os membros de 5 e 7 meios-pés
M: Agora devemos tratar da relação de 5 para 7 meios-pés nos versos:
os mais conhecidos dessa espécie são o heróico e o verso de seis pés
que chamamos jâmbico. O seguinte verso:
Arma virumque cano || Trojae qui primus ab oris;
divide-se em dois membros; o primeiro é composto de 5 meios-pés,
Arma virumque cano; o segundo, de 7, Trojae qui primus ab oris.
Quanto a este:
Phaselus ille || quem videtis, hospites,
ele tem como primeiro membro: Phaselus ille, ou seja, 5 meios-pés;
seu segundo membro é Quem videtis, hospites, ou seja, 7 meios pés.
No entanto, esses versos tão célebres não são absolutamente
impecáveis do ponto de vista da igualdade dos membros! Pois se
dividimos os 5 primeiros meios-pés em 2 e 3, os 7 últimos em 3 e 4, as
frações de 3 estabelecerão, certamente, uma justa relação entre si. Se
as duas outras frações pudessem estar numa relação tal que uma delas
se compusesse de um semipé e a outra de 5, elas se uniriam entre si
segundo o princípio que permite que se associe o número 1 a todos os
outros, e teríamos assim um total de 6 meios pés, o que forma uma
relação de 3 para 3; mas ao invés disso encontramos 2 meios-pés de
um lado e 4 do outro, dando uma soma de 6 tempos, é certo… Porém
2 não pode, por nenhum princípio de igualdade, equivaler a 4, e
portanto esses dois números são inconciliáveis. Você objetaria se eu
dissesse que, para estabelecer uma relação de igualdade, basta que 3 e
3 somem 6 do mesmo modo como 4 e 2? Não creio que seja preciso
refutar essa objeção; de fato há aí uma verdadeira relação de
igualdade. Mas não me agrada que 5 e 3 meios-pés formem uma
relação mais próxima do que 5 e 7. O verso composto de 5 e 3 meios-
pés é, com efeito, menos estimado que aqueles de 5 e 7; no entanto
você perceberá que, no primeiro, não só não chegamos, reunindo 1 e 3
meios-pés, ao mesmo número que ao reunir 2 e 2; mas ainda que as
partes oferecem um conjunto bem mais harmonioso, quando
agrupamos 1 e 3 — por conta da a nidade de 1 pelos outros números
—, que quando reunimos 2 e 4 pés, como ocorre nos últimos. Há algo
obscuro para você nisso que digo?
A: Não, nada. Mas estou chocado, não sei por que, ao ver que esses
versos de seis pés, mais distintos e considerados os mais elevados, têm
membros em menor harmonia que aqueles que são menos apreciados.
M: Tenha paciência, em breve irei mostrar-lhe nos versos senários
uma harmonia que lhes é exclusiva, e você verá que não é sem razão
que os preferimos. Mas como o desenvolvimento desse ponto é um
pouco demorado — ainda que muito interessante, vamos reservá-lo
para o nal. Após haver examinado os outros, poderemos, quando
conveniente, aprofundar-nos no conhecimento das propriedades mais
misteriosas desses belos versos.
A: De acordo. Mas gostaria que concluíssemos todas as explicações
introdutórias para poder ouvir o resto mais serenamente.
M: É por meio da comparação com aquilo que acabamos de
examinar que você encontrará maior interesse na questão que atiça
sua curiosidade.
IX. Sobre os membros compostos de 6 e 7 meios-pés, de 8 e 7,
de 9 e 7
Examinemos pois, agora, se é possível encontrar em dois membros
compostos — um de 6, outro de 7 meios-pés — essa igualdade que
constitui um verso aceitável. Após os versos compostos de 5 e 7
meios-pés, devemos examinar efetivamente aquele de 6 e 7. Eis aqui
um exemplo:
Roma, cerne quanta || sit deum benignitas.
A: Percebo que o primeiro membro pode ser divido em partes de 3
meios-pés cada um; o segundo, em partes de 3 e 4 meios-pés. Ao
reunir as duas frações iguais encontramos 6 meios-pés — mas 3 e 4
formam 7 e não podem, portanto, ser o equivalente desse número.
Mas se contamos 2 e 2 na fração de 4 meios-pés, 2 e 1 na fração de 3
meios-pés, e reunirmos as frações de 2 meios-pés, temos como soma
um número quaternário. Reunindo as frações, das quais uma contém
2 meios-pés e a outra 1 e tomando essa soma por 4 meios-pés, por
conta da relação de 1 com todos os outros números, temos 8 meios-
pés, o que ultrapassa um total de 6 tempos, mais ainda que com
nossos 7 meios-pés de agora há pouco.
M: O que você diz está certo. Como essa relação de meios-pés está
excluída das regras do verso, veja agora o caso dos membros cujo
primeiro tem 8 meios-pés, o segundo, 7. Com efeito, é a relação que se
segue imediatamente após o caso precedente. Essa relação contém o
princípio que estamos buscando. Pois, reunindo a metade do primeiro
membro à fração do segundo membro maior e mais próxima da
metade, os meios-pés progredindo de 4 em 4, temos um total de 8
meios-pés. Restam, portanto, 4 meios-pés no primeiro membro, e 3 no
segundo; 2 meios-pés do primeiro membro e 2 do segundo, somados
dão 4. Sobrarão no primeiro membro 2 meios-pés e, no segundo, um
semipé que, somados, segundo a regra de convenção estabelecida entre
1 e todos os outros números, podem ser vistos como o equivalente de
4. Assim os 8 meios-pés do primeiro membro correspondem aos 8
meios-pés do segundo.
A: Ah! Por que você não me cita um exemplo dessa espécie de verso?
M: Porque nós nos deparamos constantemente com eles. No
entanto, para evitar que você pense que estou omitindo, ei-lo:
Roma, Roma, cerne quanta || sit deum benignitas;
ou este outro:
Optimus beatus ille || qui procul negotio.
Examine agora a relação de 9 para 7 meios-pés; eis um exemplo:
Vir optimus beatus || ille qui procul negotio.6
A: É fácil perceber a correspondência: o primeiro membro se divide
em 4 e 5 meios-pés; o segundo, em 3 e 4 meios-pés. A menor fração
do primeiro membro, reunida à maior do segundo, forma um total de
8 meios-pés. A maior do primeiro somada à menor do segundo forma
igualmente um total de 8 meios-pés: pois naquele somamos 4 e 4;
naquele, 5 e 3. Aliás, se você dividir os 5 meios-pés em 2 e 3, e os três
outros, em 2 e 1, descobre-se uma nova relação de 2 para 2, de 1 para
3, dado que o número 1, segundo o princípio estabelecido
anteriormente, alia-se a qualquer outro número. Mas, se não me
engano em meus cálculos, a questão referente a como os dois
membros se unem entre si já foi inteiramente esgotada, pois atingimos
o número de 8 pés, que é o limite de pés de um verso, como bem
sabemos. Assim, explique-me, agora, as propriedades ocultas dos
versos de seis pés que chamamos heróico, jâmbico ou trocaico.
X. Sobre a excelência dos versos de seis pés: perfeição
incomparável do heróico e do jâmbico dentre os versos de seis
pés
M: Eu o farei, ou melhor, a razão mesma, que é nosso guia comum, o
fará. Você lembra que em nossa conversa a respeito do metro
havíamos a rmado e provado, com a con rmação do ouvido, que os
pés cujas frações têm uma proporção sesquiáltera, de 2 para 3, como
o crético ou o peão; ou de 3 para 4, como os epítritos, são rejeitados
pelos poetas por conta de sua cadência carente de graça, ao mesmo
tempo que são um ornamento para a prosa, quando formam a queda
de um período?
A: Lembro-me disso: mas aonde você quer chegar?
M: Quero que entendamos, primeiramente, que uma vez que os
poetas se proibiram o uso dos pés dessa espécie, só nos restam aqueles
cujas partes são iguais como o espondeu, ou têm uma relação de 1
para 2, como jambo, ou numa relação igual, como o coriambo.
A: É verdade.
M: Ora, se este é do domínio dos poetas, e a prosa tem um caráter
distinto do verso, só podemos empregar, nos versos, essa última sorte
de pés.
A: Concordo com você, vejo claramente que os poemas tomam, com
o verso, um tom mais imponente que teriam se se servissem dos ritmos
caros à poesia lírica; mas uma coisa que não sei é aonde você quer
chegar…
M: Não se apresse. Essa discussão gira em torno da primazia dos
versos senários e desejo demonstrar, previamente, se puder, que, dentre
os versos, aqueles que têm maior dignidade são necessariamente o
heróico e o jâmbico — os mais usados de todos. O verso heróico é
comumente escandido em dátilos e espondeus, ou segundo um método
mais exato em espondeus e anapestos, como neste verso:
Arma virumque cano Trojae qui primus ab oris.
E o verso jâmbico, segundo o mesmo sistema, transforma-se em
trocaico.
Acredito que deva estar claro para você que as sílabas longas, sem
mistura de breves, produzem apenas uma cadência monótona; e que
as breves, sem mistura de longas, produzem apenas uma cadência
quebradiça e, por assim, dizer, saltitante; e que, em ambos os casos,
não há nenhuma harmonia, ainda que um número igual de sons nos
chegue ao ouvido. Eis por que não é possível encontrar nem a
dignidade do verso heróico naqueles que se compõem de seis
pirríquios e seis proceleusmáticos, nem aquela do verso trocaico
naqueles que se compõem de seis tríbracos. Uma outra vantagem é
que, nesse verso, que aos olhos da razão se mostra tão superior aos
outros, a transposição dos dois membros não pode ocorrer sem que
imediatamente sejamos obrigados a recorrer a outros pés para fazer a
escansão. Eles são, portanto, menos suscetíveis à inversão que os
versos unicamente compostos de breves ou de longas. Além disso, no
verso em que reina essa feliz mistura, é indiferente que a relação entre
os dois membros seja de 5 para 7 ou de 7 para 5 meios-pés. Pois, seja
qual for a ordem que adotemos, os membros não podem ser invertidos
sem uma mudança tão profunda que o verso pareça correr sobre
outros pés, ou, em outras palavras, se escanda de outra maneira. Nos
outros, ao contrário, se o poema começa com versos cujo primeiro
membro compõe-se de 5 meios-pés, não se deve jamais começar por
um membro de 7 meios-pés; caso contrário, tornam-se todos passíveis
de inversão: pois não há, nos pés, nenhuma diferença que impeça a
conversão.
É possível — ainda que seja raro — colocar apenas espondeus no
verso heróico; mas essa licença é condenada em nossos dias. Para os
trocaicos e os jâmbicos, ainda que seja permitido colocar em todos os
pés um tríbraco, vê-se como um grave defeito o encadeamento
ininterrupto de breves nesse modo de verso.
Portanto, como os versos de seis pés rejeitam naturalmente os
epítritos, pois eles convêm antes à prosa e, sobretudo, porque se
colocamos seis deles, excedemos o número de trinta e dois tempos, tal
como ocorre com os dispondeus (de fato, com o epítrito, teríamos 42
tempos [6x7], e com o dispondeu, 48 [6x8]); dado que eles rejeitam
igualmente os pés de cinco tempos, reservados à prosa para terminar
os períodos; como os molossos e outros pés de seis tempos, malgrado
o uso feliz que deles fazem os poetas, não entram no número de
tempos de que tratamos aqui, restam-nos os versos compostos
unicamente de breves, ou seja, de pirríquios, de proceleusmáticos,
tríbracos, e os versos compostos unicamente de longas, ou seja, de
espondeus. Ora, ainda que esses versos sejam aceitos nos versos de seis
pés, eles não alcançam a dignidade daquela feliz proporção dos que
apresentam uma graciosa mistura de breves e longas, e que por isso
mesmo são menos suscetíveis de inversão dos membros.
XI. Sobre a maneira mais exata de medir os versos de seis pés
Mas podemos nos perguntar: por que damos preferência aos versos de
seis pés que se escandem num método exato por anapestos ou por
troqueus, ao invés daqueles que escandiríamos em dátilos ou jambos?
Não tenho qualquer juízo pré-de nido sobre essa questão, dado que
por enquanto só tratamos de um número restrito de pés. Tomemos os
versos:
Trojae qui primus ab oris, arma virumque cano;
Qui procul malo pius beatus ille.7
Esses dois versos têm, ambos, seis pés. Oferecem, um não mais do
que o outro, uma mistura de longas e breves, e um não é mais
suscetível de conversão do que o outro; os membros, tanto em um
quanto em outro, são distribuídos de tal modo que a frase oferece
uma divisão bem marcada ao quinto e ao sétimo pés. Por que razão,
portanto, é preciso preferir aqueles que recebem essa disposição:
Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris;
Beatus ille, qui procul pius malo?
A uma tal questão seria fácil e natural responder que essa forma foi
descoberta e posta em prática primeiramente por acaso, ou que, se
não se trata de obra do acaso, julgou-se que o verso heróico era mais
bem concluído por meio de duas longas do que por duas breves e uma
longa; o ouvido encontra, com efeito, maior prazer ao repousar sobre
uma longa; por essa mesma razão, pensou-se ser mais agradável
concluir o verso jâmbico por uma longa do que por uma breve.
Naturalmente, qualquer que fosse a combinação dentre as duas em
que se xasse inicialmente a escolha, ela excluía necessariamente o
verso que pudesse ser construído invertendo a ordem dos mesmos
membros. Por conseguinte, se o verso citado, por exemplo:
Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris,
foi considerado o melhor, seria bizarro compor, servindo-se de uma
conversão, um verso de outra espécie, como:
Trojae qui primus ab oris, arma virumque cano...
E é possível fazer a mesma observação para o verso trocaico. Com
efeito, se o verso
Beatus ille, qui procul negotio
tem uma forma mais elegante que a espécie de verso que
encontraríamos invertendo a ordem dos membros, de igual modo a
forma
Qui procul negotio, beatus ille
deve ser absolutamente proibida.
Ainda que um poeta seja capaz de compor versos dessa espécie, ele
chegará inevitavelmente ao resultado de um senário de outra espécie, e
de beleza inferior.
Sim, a graça natural desses versos, o mais belo de todos os senários,
não pôde escapar aos caprichos da fantasia humana. Nos versos
trocaicos e em toda espécie de verso de seis pés, do menor até o maior,
o qual contém oito pés, os poetas imaginaram que era preciso
misturar todos os pés de quatro tempos de uma medida equivalente.
Os próprios gregos os alternaram entre eles, dando-lhes o primeiro, o
terceiro lugar, e assim por diante, por número ímpar, se o verso
começa por semipé; se, ao contrário, ele começa por um troqueu
completo, eles dão o segundo, o quarto lugar, e assim por diante, aos
pés mais longos. E para suportar essa falsa combinação, deixaram de
marcar pela batida do tempo a divisão natural de cada pé em duas
partes, a ársis e a tésis; adotando um pé em ársis e outro em tésis (ou
seja escandindo por dipodia), o que lhes faz nomear trímetro o
próprio verso de seis pés, eles aproximaram a batida do tempo do
modo de escandir o verso epítrito. Se ao menos fossem éis a esse
sistema — ainda que os epítritos sejam antes do domínio da prosa do
que da poesia e que um verso desse gênero deva antes se chamar
ternário do que senário —, a igualdade tão preciosa do número de
meios-pés não desapareceria totalmente.
Mas hoje em dia os poetas não se limitam a substituir pés de 4
tempos nos lugares ímpares, como dissemos acima. Não, eles se
permitem tudo, segundo seus desejos. Nem mesmo nossos pais
respeitaram a distância com que se devia substituir os pés dessa
espécie. Assim, os poetas atingiram, desgastando essas formas e se
permitindo tais licenças, o objetivo que eles propunham
verdadeiramente, a saber: tornar a poesia mais próxima da prosa.
Agora que explicamos su cientemente a razão que dá a primazia a
esses versos sobre todos os outros senários, vejamos por que os
senários em geral são tão superiores a todos os outros, seja qual for o
número de seus pés, a menos que você tenha alguma observação a
fazer.
A: Não, não, sinto o mais vivo desejo de conhecer essa famosa
igualdade dos dois membros nos versos de seis pés, tamanha é a
curiosidade que você suscitou em mim.
XII. Sobre a razão por que os versos senários são superiores a
todos os outros
M: Então preste toda atenção e diga: na sua opinião, uma linha
qualquer pode se dividir em partes quaisquer?
A: Isso me parece incontestável. Na minha opinião, não há dúvidas
que toda linha tem uma metade, e que por esse ponto de interseção
pode-se dividi-la em dois segmentos. E, como os dois segmentos que
disso resultam formam notavelmente, por sua vez, linhas, é evidente
que podemos dividi-la do mesmo modo. Assim um comprimento é
divisível inde nidamente.
M: A sua explicação é muito justa. Vejamos agora se é certo dizer
que toda linha, estendida também no sentido da largura, que dela
nasce, tem por dimensão o quadrado da largura. Pois se a largura é
maior ou menor do que o comprimento de onde ela procede, o
quadrado é impossível: se tem a mesma dimensão, só podemos obter
um quadrado.
A: Entendo e compartilho dessa visão: o que pode haver de mais
justo?
M: Você já pode prever a conseqüência que daí decorre: se, em vez
de uma linha, colocarmos estacas iguais dispostas no sentido do
comprimento, a la que assim criamos não poderá jamais formar um
quadrado, a menos que a quantidade de estacas seja multiplicada por
ela mesma e coloquemos essas duas estacas suplementares no sentido
da largura. Outro exemplo: se partirmos de três estacas en leiradas,
será preciso acrescentar seis outras, dispondo-as logicamente em duas
leiras de três estacas cada, no sentido da largura (pois, se as
dispuséssemos no sentido do comprimento, não haveria mais gura
geométrica, dado que o comprimento sem a largura não forma uma
gura). O mesmo pode ser dito quanto a qualquer outro número: se,
ao multiplicarmos 2 por 2, 3 por 3, obtemos seus quadrados, o
mesmo valerá para 4 multiplicado por 4, 5 por 5, 6 por 6, e assim
inde nidamente.
A: É uma verdade incontestável.
M: Pois bem! Diga-me agora se lhe parece que o tempo tem um
comprimento.
A: Quem poderá dizer que há uma duração sem comprimento?
M: O verso poderia não ocupar um certo comprimento no tempo?
A: Longe disso: é essa a condição mesma de sua existência.
M: Nessa extensão do verso, o que poderíamos colocar no lugar das
estacas de que falávamos? Será que podemos colocar pés divididos em
duas partes, a ársis e a tésis, ou meios-pés que contenham a ársis e a
tésis?
A: A meu ver, os meios-pés ocuparão melhor o papel das estacas.
M: Então recorde-me quantos meios-pés o membro mais curto do
verso heróico contém.
A: 5.
M: Me dê um exemplo.
A: Arma virumque cano.
M: O que você deseja agora, senão ver que os outros 7 meios-pés
estabelecem, com eles, uma relação de perfeita igualdade?
A: É precisamente o que eu espero.
M: Pois bem! Serão 7 meios-pés capazes de formar, sozinhos, um
verso completo?
A: Sim, sem dúvida, pois o primeiro e o menor verso contêm esse
mesmo número de meios-pés, se contarmos a pausa do m.
M: Mas, para que possa haver um verso, como devemos fazer a
divisão dos pés em dois membros?
A: Em 4 meios-pés de um lado e 3 do outro.
M: Eleve, agora, ao quadrado cada uma dessas frações. Quanto
temos ao multiplicar 4 por 4?
A: 16.
M: E qual é o quadrado de 3?
A: 9.
M: E a soma desses dois quadrados, qual é?
A: 25.
M: Assim pois 7 meios-pés, podendo se dividir em dois membros,
dão, se elevamos cada um dos membros ao quadrado, o número 25, e
essa é uma parte do verso heróico.
A: Sim.
M: E a segunda parte, composta de 5 meios-pés? Dado que ela não
pode se dividir em dois membros, e que deve estabelecer uma relação
de igualdade, não será preciso elevá-la inteira ao quadrado?
A: É de fato o que precisa ser feito, e reconheço uma relação de
igualdade maravilhosa. Pois o quadrado de 5 nos dá o mesmo
número, 25. É portanto com razão que os versos de seis pés são os
mais empregados e os mais apreciados. Seus membros, ainda que
desiguais, contêm em si uma proporção incomparável àquela dos
outros versos.
XIII. Epílogo
M: Perceba, pois, como a promessa que eu lhe z não foi vã, ou
melhor, como a razão, nosso guia comum, não nos enganou. Para
concluir, en m, essa conversa, veja que, se por um lado a quantidade
dos metros é incalculável, o verso não pode existir sem ser composto
de dois membros, de uma justa proporção entre si, concluídos seja por
um número par de meios-pés, mas não suscetíveis de inversão, como
no verso
Maecenas atavis || edite regibus,
seja por um número ímpar de meios-pés ligados por uma certa
igualdade, como o são os números 4 e 3, 5 e 3 ou 3 e 5, 5 e 7 ou 7 e 5,
8 e 7, 9 e 7 ou 7 e 9. O trocaico pode começar por um pé completo,
como:
Optimus beatus ille qui procul negotio;
ou por um pé incompleto, como:
Vir optimus beatus ille, qui procul negotio.
Mas ele só pode ser concluído por um pé incompleto. Quanto a esses
pés incompletos, ou eles representam meios-pés inteiros, como neste
último exemplo, ou então não contêm a metade de um pé, como duas
breves nais nesse verso coriambo:
Maecenas atavis edite regibus,
ou, ainda, eles contêm mais que a metade de um pé, como as duas
longas que iniciam esse último verso; ou então o báquio, no nal de
um segundo coriambo, por exemplo:
Tē dŏ mŭs Ēvāndrī, tē sēdēs cĕlsă Lătīnī.8
Todos esses pés incompletos se chamam pois, com razão, meios-pés.
Mas nem sempre compõe-se poemas com apenas uma espécie de
verso, como fazem os poetas épicos e mesmo os cômicos; os poetas
líricos descrevem circuitos, chamados pelos gregos de periodus, não
apenas com os metros, que não estão submetidos à lei dos versos, mas
com os próprios versos. Assim, em Horácio:
Nō x ĕrăt, ēt caēlō fūlgēbāt lūnă sĕrēnō
Īntēr mı̆ nō ră sīdĕră.9

É
É um período de dois membros, composto de versos. E esses dois
versos não podem unir-se entre si, exceto se forem escandidos por pés
de seis tempos. Pois a medida do verso heróico não se combina com a
do jâmbico ou do trocaico, pois em um os pés têm a mesma relação, e
nos outros uma relação de 1 para 2. Portanto, os períodos líricos
compõem-se ou de metros sem versos, como aqueles de que tratamos
acima em nossa conversa sobre os metros; ou tão-somente de versos,
como no período citado acima; ou de versos e metros misturados,
como neste exemplo:
Dīffūgĕrĕ nı̆ vēs, rĕdĕūnt īam grāmı̆ nā cāmpīs,
Ārbŏ rı̆ būsquĕ cŏ māe.10
A ordem em que se sucedem os versos e os metros, grandes e
pequenos membros dos versos é indiferente ao ouvido, contanto que o
período não tenha menos de 2 membros e nem mais do que 4.
Se você não tem mais nenhuma objeção a me apresentar, encerremos
por aqui nossa discussão. Abordemos aquela parte da música que
trata das relações de duração e movimento, e empenhemo-nos, tanto
quanto permita a razão, em nos elevar desde os indícios sensíveis da
harmonia que encontramos cá embaixo, ao santuário misterioso em
que ela reside, liberta de todo envelope material.

1 Eneida, l. 3, verso 548.


2 Roma, Roma, vê até que ponto se estende a benevolência dos deuses.
3 Ou seja, colocar o primeiro no lugar do segundo e vice-versa. A inversão ou conversão
(conversio) é um termo de lógica muito conhecido que Santo Agostinho aplica, aqui, no
campo da métrica.
4 Este vaso que vós vedes, estrangeiros.
5 Mecenas, lho de uma raça real.
6 O homem de bem é feliz quando se afasta dos negócios.
7 O homem piedoso, afastado do mal, é feliz.
8 Terêncio.
9 A noite reinava: a lua, em meio a estrelas mais pálidas, brilhava num céu sereno (Hor. Epod.
Ode 15).
10 Não há mais neve: as planícies retomaram seu verdor, as árvores, suas folhagens (Hor. l. 4,
ode 7).
LIVRO SEXTO

Sobre a harmonia imutável:


a alma se eleva da harmonia das coisas
contingentes à harmonia eterna que reside
na eterna verdade
I. Sobre o m a que nos propusemos nos livros anteriores
M: Dedicamos tempo considerável e uma atenção escrupulosa com
vistas a conhecer, no decorrer de cinco livros, as relações que regem a
duração dos tempos. Ao abordarmos, agora, o objeto moral de nosso
trabalho, talvez encontremos certa complacência junto aos leitores
benévolos, depois de estudos assim tão frívolos. Ao compor essa obra
tínhamos tão-somente uma intenção: sem arrancar de forma
demasiado abrupta os jovens e pessoas de toda idade, que Deus
favoreceu com os dons da natureza, das idéias sensíveis e ciências
mundanas, as quais lhes apetecem, quisemos fazer-lhes perder pouco a
pouco esse gosto, por meio do raciocínio, e conduzi-los, por amor à
imutável verdade, a uma união exclusiva com o Deus único e mestre
de todas as coisas, que governa sem intermediário as inteligências
humanas. Assim veremos, ao ler esta obra, que os gramáticos e os
poetas foram, para mim, como que moradas de passagem — junto aos
quais estive antes por necessidade do que por escolha. Mas se nosso
Deus e Senhor ouvir as minhas humildes preces, se Ele conduzir minha
vontade e a dirigir ao m ao qual me proponho, o leitor terá
compreendido, chegando a este último livro, que é possível alcançar
bens pouco comuns por uma via bastante comum; é a via mesma que
seguíramos com os fracos — sem sermos nós mesmos muito fortes —
ao invés de nos arriscar em vôos demasiado ousados antes de
fortalecer nossas asas. Por essa razão o leitor nos absolverá ou não
nos repreenderá severamente (dirijo-me, nisto, ao leitor já iniciado na
espiritualidade).
Quanto àquela turba barulhenta, a murmurar nas escolas de Letras e
cujo espírito super cial se deleita com o ruído dos aplausos, se acaso
vier a encontrar estes escritos, o desdenhará ou então só julgará
necessário estudar os cinco primeiros livros. Ainda que o sexto
contenha a conclusão e, por assim dizer, o sumo mesmo dos outros
raciocínios, ela o rejeitará como coisa supér ua, ou postergará a
leitura por oferecer um interesse meramente secundário.
Quanto àqueles que, sem dispor da chave dessas ciências, já se vêem
profundamente penetrados pelos princípios da espiritualidade cristã e
se elevam pela ardente caridade ao único Deus verdadeiro, relevando
todas essas frivolidades, dirijo-lhes a seguinte admoestação fraterna:
que não se demorem em todos aqueles detalhes baixos, e se neles
encontrarem qualquer di culdade, não se revoltem contra a lentidão
de sua inteligência: isso seria ignorar que nos é possível sobrevoar
certos campos quando os julgamos demasiado áridos.
Se há leitores que, por fraqueza natural ou falta de exercício, são
incapazes tanto de seguir nossos passos quanto de lançar-se nas asas
da piedade, digo-lhes que não se condenem a um labor inútil: deixem
suas asas crescerem sob a in uência dos princípios da religião, no
ninho da Fé cristã: assim eles escaparão do fastio e da poeira da
presente viagem; o entusiasmo em alcançar a pátria celeste sufocará,
neles, a curiosidade de conhecer as vias sinuosas que conduzem até
ela.
Pois as páginas anteriores só foram escritas para aqueles que,
largados em meio às ciências mundanas, envolvem-se em erros
funestos e consomem o vigor de seus espíritos em futilidades, sem se
dar conta desse estado de sedução que os retém: se tomassem
consciência desse fato, logo encontrariam um meio de quebrar os elos
que os mantêm cativos, e descobririam o princípio no qual reside a
paz da bem-aventurança.
II. Sobre a harmonia nos sons: suas diferentes espécies, das
relações harmônicas, tanto aquelas existentes no som quanto
as que resultam da impressão no ouvido
M: Quero elevar-me com você, que é meu amigo, desde as coisas
sensíveis àquelas espirituais, servindo-me da razão como nosso guia
comum; responda-me, pois: quando pronunciamos o verso
Dĕūs Crĕātŏ r ō mnı̆ ūm.
onde se encontram os quatro jambos e os doze tempos que o
compõem? Será:
— no som mesmo?
— Será no sentido da audição?
— Ou então na pronunciação?
— Ou, en m, como o verso é bastante conhecido, será na memória?
A: Acho que é nisso tudo…
M: Não será ainda em outro lugar?
A: Não, a não ser que haja um princípio mais misterioso e mais
elevado ao qual se conectem todas essas coisas.
M: Nada de hipóteses, por ora. Dado que você distingue muito
claramente quatro classes de som sem vislumbrar com igual clareza
uma quinta classe, estabeleçamos a diferença que os separa e vejamos
se eles podem se produzir isoladamente. Você sem dúvida concorda
que é possível produzir um som que paire no ar por momentos e por
intervalos similares àqueles do jâmbico que acabo de citar, sem que
haja ninguém para ouvi-lo: por exemplo, quando a água cai gota por
gota, ou um corpo realiza um movimento qualquer. Ora, você
consegue distinguir nesse exemplo alguma outra categoria além
daquela primeira dentre as quatro que citei (na qual a razão do
jâmbico se encontra no som mesmo)?
A: Não consigo ver nenhuma outra.
M: E o que dizer agora do som considerado no órgão mesmo do
ouvinte? Será que ele pode existir ainda que nenhum som se produza
no exterior? Não estou perguntando se o ouvido tem a capacidade de
perceber um som que acaba de ser produzido — quanto a isso não há
dúvida — e mesmo na ausência de qualquer som; ainda que o silêncio
fosse completo, a faculdade da audição em potência seria distinta da
surdez propriamente falando. Eis aqui minha questão: será que
existem, escondidas no sentido da audição, relações harmônicas que
independem de todo som? Possuir virtualmente princípios de
harmonia e perceber um som harmonioso são duas coisas bem
distintas. Se você toca com seu dedo uma parte sensível do corpo em
dado ritmo, essa ação é sentida pelo tato a cada vez que for realizada,
de modo que esse movimento ritmado não pode ser estranho àquele
que o sente; não pergunto, pois, onde está o sentido do toque — é
claro que está no tato —, mas o ritmo, mesmo na ausência do tocar.
A: Parece-me inverossímil que o sentido da audição não contenha,
nele próprio, tais relações mesmo quando nenhum som o acione; pois
em caso contrário ele não seria capaz de sentir prazer ou dor no
momento em que um som se manifesta.
M: É exatamente essa propriedade, seja ela qual for, permitindo-nos
aprovar ou reprovar determinado som, a que chamo de ritmo ou
número. Mas não é no ouvido que isso se dá; com efeito os ouvidos
estão abertos tanto aos sons agradáveis quanto desagradáveis.
Atenção, aqui, para não confundir essas duas coisas bem distintas.
Se um verso é pronunciado num andamento mais lento ou mais
rápido, sua duração cronométrica muda, ainda que a proporção entre
os pés permaneça a mesma. Nós possuímos uma faculdade de aprovar
ou reprovar os sons segundo seu gênero próprio. Mas a impressão que
ele provoca ao ser emitido em maior ou menor velocidade depende
unicamente do tempo durante o qual o ouvido é atingido. A impressão
é pois bem distinta quando o som atinge ou não o ouvido. Se há
diferença entre ouvir e não ouvir, também há entre ouvir dois sons de
duração distinta: a impressão se dá dentro de limites precisos, a saber
aqueles do som que a suscitou: essa impressão é uma no jambo, outra
no tríbraco, e sua duração cronométrica estende-se ou se abrevia
segundo a duração daquilo que pronunciamos. Se essa impressão vem
de uma palavra cadenciada, ela reproduz a cadência. En m, a
impressão auditiva só pode existir unida ao som que a originou: ela é
como uma pegada sobre a água, que se forma e desaparece segundo o
corpo que a toca. Quanto àquela faculdade de apreciação que se
encontra no ouvido, ela não desaparece quando só há silêncio; o som,
longe de criá-la em nós, submete-se a sua aprovação ou condenação. É
preciso, pois, distinguir com cuidado esses dois fenômenos e
reconhecer que a harmonia ou número oriundo da impressão que os
sons produzem no ouvido surge com eles e com eles se esvai. Disso
concluímos que as relações de harmonia, os números presentes nos
sons podem existir independentemente da recepção dos ouvidos,
enquanto que estes últimos não podem existir sem as ditas relações de
harmonia.
III. Sobre as relações harmônicas que nascem da pronunciação
ou que se conservam na memória
A: Compartilho dessa sua visão.
M: Há ainda uma terceira classe de relações harmônicas. Falo
daquelas que nascem na própria pronunciação. Examine bem e me
diga se elas podem existir independentemente daquelas que residem na
memória. Podemos, sem abrir a boca, unicamente com o pensamento,
marcar o tempo musical tal como faríamos com a voz. Essa harmonia
provém, pois, de uma operação da alma, e como dela não resulta
nenhum som nem qualquer impressão para o ouvido, ela forma uma
espécie totalmente distinta das duas primeiras que residem, uma no
som, a outra no ouvido ao ser atingido por um som. Mas será que ela
existiria sem o auxílio da memória? É o ponto que quero esclarecer. Se
pudéssemos provar que a alma produz os movimentos executados na
pulsação das veias e artérias, o problema estaria resolvido: é evidente,
com efeito, que esse movimento contém uma certa cadência e que ele
ocorre sem auxílio da memória. Mas se tal exemplo ainda não basta,
se temos di culdade em crer que esse ritmo depende da atividade da
alma, essa dúvida não nos é mais permitida se pensarmos no
fenômeno da respiração. Neste caso, ninguém desconhece as relações
harmônicas no intervalo regular de tempo, e menos ainda a atividade
da alma, dado que ela pode modi car essas relações em grande
medida. No entanto, esses movimentos não exigem qualquer exercício
da memória.
A: A mim me parece que essas relações são perfeitamente distintas
daquelas que formam as três outras classes. Pois, ainda que o pulso
sangüíneo e a respiração variem segundo a constituição corpórea de
cada homem, quem ousaria sustentar que eles não se produzem por
virtude da atividade da alma? Esses movimentos, com efeito, a
despeito de sua velocidade distinta entre os diversos indivíduos, não
poderiam existir caso a alma não fosse deles o princípio.
M: Dirija agora sua atenção a essa quarta espécie de relações
harmônicas que reside na memória: se é verdade que podemos
reproduzi-los pelo poder da lembrança, e que, ao passar a outras
idéias, nós os deixamos por assim dizer ocultos nos recônditos da
memória, é evidente que eles existem independentemente dos outros.
A: Não contesto essa a rmação, no entanto, eles só podem ser
con ados à memória se tiverem antes atingido o ouvido ou acionado o
pensamento; ainda que persistam na lembrança após se haverem
dissipado, manifestaram-se previamente nos sentidos.
IV. Sobre as relações de harmonia dependentes do juízo: qual
é, dentre as diferentes espécies de harmonia, a mais perfeita
M: Aceito sua opinião. Gostaria de perguntar-lhe agora quais são,
dentre essas diferentes espécies de harmonias, de números, as mais
elevadas: mas nessa análise que acabamos de fazer se nos oferece, não
sei dizer como, uma quinta espécie de relações harmônicas: é o juízo
natural que acompanha a impressão, e é em virtude desse juízo que
nos sentimos encantados pela justeza dos números ou chocados pela
falta de harmonia. Eu, portanto, não desdenho da opinião que você
acaba de emitir, segundo a qual o ouvido seria incapaz de ter essa
impressão se não possuísse em si próprio certas relações de harmonia.
Você acha que é assim, ou seria possível relacionar um tal ato a
qualquer um dos quatro gêneros anteriores?
A: Parece-me que há aí uma nova classe a ser estabelecida, distinta
de todas as outras. Pois produzir um som, como o fazem os corpos, ou
ouvi-lo, como faz a alma no corpo; emiti-lo com nosso corpo; fazê-lo
reviver na memória; eis aí fenômenos bem distintos daquele que
consiste em apreciar os números e exercer sobre eles como que um
controle, julgando-os harmônicos ou inarmônicos.
M: Bem, diga-me agora quais são os números que lhe parecem ter a
superioridade?
A: Aqueles da quinta espécie.
M: Você tem razão: eles não serviriam de regra para apreciação dos
outros se não fossem superiores aos outros. Mas, pergunto-lhe, qual é,
dentre as quatro outras, a espécie que lhe parece superior?
A: Aquela que reside na memória. Com efeito, esses números têm
uma duração maior do que aqueles que se produzem no som, na
audição ou nos movimentos da alma.
M: Assim sendo, concluo que você prefere o efeito à causa: pois
acaba de dizer que os números só se imprimem na memória depois
que os outros números se tenham manifestado.
A: Não queria ter cometido essa inconseqüência, mas não vejo por
que razão eu deva dispor um movimento passageiro acima de um
movimento durável.
M: Não se preocupe com essa contradição aparente. Se as coisas
eternas são superiores às temporais, isso não é uma razão para
preferir, na ordem das coisas contingentes, aquelas que subsistem
algum tempo mais do que as que passam rápido. A saúde, ainda que
durasse um dia, é sem dúvida preferível a uma longa doença. Você
quer comparar duas coisas boas em si mesmas? Melhor vale ler por
um dia do que escrever durante muitos, se se lê num dia aquilo que se
escreve em muitos. Assim, os movimentos ligados à memória podem
até durar mais tempo do que aqueles que lhes dão origem, mas é
preciso evitar colocá-los acima dos movimentos que realizamos, não
digo no corpo, mas na alma: pois, se o repouso põe m a esses
últimos, o esquecimento afasta os primeiros. Mais ainda: os
movimentos que realizamos parecem, antes mesmo de os encerrarmos,
desaparecer na medida em que um se sucede ao outro: o primeiro dá
lugar ao segundo, o segundo ao terceiro, e assim por diante, até o
momento em que o repouso propriamente dito marca o m do último.
O esquecimento, ao contrário, apaga diversos movimentos ao mesmo
tempo, ainda que pouco a pouco; pois eles não permanecem por
muito tempo na memória sem se alterar. Por exemplo, uma idéia que
não conseguimos mais encontrar na memória ao cabo de um ano já
começara a se enfraquecer desde seu primeiro dia: esse
enfraquecimento é pouco perceptível, sem dúvida, mas pode-se
presumi-lo, pois não é verossímil que a idéia desapareça em sua
totalidade na véspera mesma do dia em que ela completa um ano;
assim, é preciso admitir que ela se perde a partir do momento mesmo
em que é xada na memória. Daí vem essa expressão tão comum “não
me lembro, absolutamente”, a cada vez que buscamos no fundo da
memória uma lembrança que ainda não se esvaiu totalmente. Assim,
essas duas espécies de número são perecíveis: mas é com razão que se
prefere aquela que é princípio da outra.
A: Compreendo e concordo com você.
M: Agora, pois, das três espécies, qual é a mais excelente e, por
conseguinte, a melhor?
A: Não é fácil responder. Se tomo por axioma que a causa é superior
ao efeito, devo logicamente conceder essa primazia aos números
contidos nos sons, pois nós os percebemos pela audição, e, ao fazê-lo,
sentimos uma modi cação interna; conseqüentemente, os sons são
causa da impressão auditiva. Esta mesma impressão produz por sua
vez efeitos na memória e é a eles superior, de vez que é deles a causa.
Dado que a lembrança e a sensação são fenômenos da alma, posso
dispor um acima do outro sem maiores di culdades: o ponto delicado,
a meu ver, é saber que os números sonoros, que são materiais, ou pelo
menos inseparáveis da matéria, devem ter a proeminência sobre
aqueles que se elevam na alma quando sentimos uma sensação; mas,
ademais, como poderia ser diferente, dado que aqueles são a causa e
estes são o efeito?
M: O que lhe provoca espanto é a possibilidade de o corpo agir
sobre a alma. Essa in uência talvez não existisse se, por efeito do
pecado original, o corpo, que era animado e governado pela alma em
sua perfeição primeira sem qualquer di culdade, não tivesse sido
degradado, submetido à corrupção e à morte: no entanto, ele preserva
alguns indícios da beleza primeva e por isso revela de modo su ciente
a dignidade da alma, a qual conservou um resquício de sua grandeza
mesmo em meios aos castigos e à doença. Quanto a essas penas, a
Sabedoria Suprema dignou-se dela se encarregar num mistério inefável
e divino, revestindo-se de humanidade e assumindo, não o pecado,
mas a condição do pecador. Com efeito ela quis nascer, sofrer e morrer
segundo as leis da natureza humana: foi unicamente por conta de sua
bondade in nita que viu-se condenada a essa humilhação, para nos
ensinar a evitar o orgulho, causa legítima de todos os nossos males, e
para nos poupar dos ultrajes que ela sofreu imerecidamente. Ela
padeceu para que aceitássemos com serenidade nossa devida morte,
por nós morrendo sem ter contraído qualquer dívida. Os santos
doutores, muito mais esclarecidos do que eu, podem apresentar, a
respeito de um mistério tão grande, considerações ainda mais
profundas e mais justas. Por conseguinte, não devemos mais nos
espantar com o fato de que a alma, agindo sob um envelope mortal,
ressinta as modi cações do corpo, nem concluir, com base em uma
superioridade da alma sobre o corpo, que tudo aquilo que se passa
nela vale mais do que aquilo que ocorre no plano orgânico. O
verdadeiro, imagino, lhe parece superior ao falso, sim?
A: Ora, que pergunta!
M: Pois bem! A árvore que nós vemos em sonho existe realmente?
A: Não.
M: Exato, ela tomou essa forma em nossa imaginação, enquanto que
esta árvore,1 que está diante de nós, atinge nossos sentidos. Portanto,
se o verdadeiro vale mais do que o falso, malgrado a superioridade da
alma sobre o corpo, a verdade no corpo vale mais do que o erro na
alma. Mas se a superioridade dessa verdade se deve menos a sua
origem sensível do que a seu próprio caráter de veracidade, talvez a
inferioridade do erro venha menos da alma, onde ele está, do que de
sua própria natureza. Você teria alguma objeção a apresentar?
A: Nenhuma.
M: Eis aqui uma outra explicação tão satisfatória quanto a anterior,
mas que toca a nossa di culdade de mais perto: aquilo que convém
vale mais do que aquilo que não convém: certo ou errado?
A: Certo, sem dúvida.
M: Pois bem! Não é claro que as roupas que convêm a uma mulher
não convirão igualmente a um homem?
A: Seguramente.
M: Pois bem, seria de se espantar que essa forma de número,
conveniente ao som, deixe de convir ao passar para o plano da alma?
A: Não creio.
M: Por que, então, tamanha hesitação em dispor os números
sonoros e materiais acima daqueles que eles próprios originam — por
mais que estes últimos sejam movimentos da alma e que ela seja
superior ao corpo? Trata-se simplesmente de preferir uma causa a seus
efeitos, e não de colocar o corpo acima da alma. Pois o corpo torna-se
tão mais perfeito quanto receba desses números proporções mais belas
e perfeitas: a alma, ao contrário, aperfeiçoa-se ao se despojar do
corpo, renunciando aos movimentos da carne, deixando-se puri car
pelos números divinos da sabedoria.2 Com efeito, podemos ler nas
Escrituras: “Apliquei-me de todo coração a perscrutar, a sondar a
sabedoria e a razão das coisas”.3, 4 E devemos entender pela palavra
razão não os cantos que ressoam nos infames teatros, mas, a meu ver,
a harmonia que o Deus verdadeiro comunica à alma e que ela a seu
turno transmite ao corpo, e não o inverso. Mas não é o momento de
considerarmos esse mistério.
V. A alma pode ser modi cada pelo corpo?
Para evitar que se pense que uma árvore vale mais do que nós — de
vez que ela, desprovida dos sentidos, está insensível às impressões
provocadas pelos corpos —, examinemos com atenção se o fenômeno
que costumam chamar de ouvir não consiste em mais do que mera
impressão do corpo sobre a alma. Ora, é o cúmulo do absurdo
submeter no que quer que seja a alma ao corpo, como uma matéria
que ele possa modi car. A alma, com efeito, não pode nunca ser
inferior ao corpo; ora, a matéria é sempre inferior ao artesão que a
modela. A alma não poderia, portanto, jamais servir de matéria ao
corpo, nem o corpo moldá-la como um artesão, o que ocorreria se o
corpo fosse capaz de criar nela certas relações de harmonia.
Assim, quando ouvimos, não ocorrem na alma movimentos sob
in uência dos números sonoros. Você tem alguma objeção a fazer?
A: Mas o que ocorre, então, naquele que ouve?
M: Seja qual for esse segredo, que talvez nunca possamos descobrir
ou explicar, será que ele poderá nos fazer crer que a alma não é
melhor do que o corpo? O fato de reconhecer nossa limitação é uma
razão válida para submeter a alma ao corpo e a rmar que este é capaz
de amoldá-la, nela imprimindo seus números, tornando-se dela o
artesão, fazendo da alma um simples instrumento com o qual ele
produz um efeito de harmonia? Se nós admitimos esse ponto, é preciso
necessariamente reconhecer que a alma é inferior ao corpo — e o que
haverá de mais deplorável, de mais horrível do que tal opinião? Assim,
pois, tentarei, na medida das forças que Deus me conceder, descobrir e
explicar esse mistério. Se nossa fraqueza comum, ou tão-somente a
minha, vier a impedir essa busca, retomaremos nossas investigações
em outro momento, ou então submeteremos o problema a
inteligências mais elevadas; ou, en m, renunciaremos de bom grado a
tentar penetrar esse assunto obscuro. Mas não podemos, para tal,
deixar escapar as verdades de que já dispomos.
A: Farei todo o possível para que esse seu princípio não seja
desrespeitado, no entanto, sinto um vivo desejo de penetrar esse
segredo.
M: Sem mais tardar, vou revelar o que eu penso: siga-me, ou, se
puder, tome a dianteira, quando vir-me fraquejar.
No meu entender, a alma move o corpo, segundo o desejo daquele
que os criou ambos: o corpo é incapaz de dominar a alma, tornando-a
passiva; é ela que age sobre o corpo, submetido a seu império pela
vontade divina. Mas a atividade anímica se desdobra livremente,
segundo seu maior ou menor mérito que lhe faz encontrar maior ou
menor docilidade na natureza material. Assim, pois, os objetos
exteriores que atingem o corpo ou que se encontram em sua presença
produzem, não sobre a alma, mas sobre o corpo, um efeito que se
opõe ou se associa ao movimento orgânico. Quando a alma luta
contra o corpo rebelde, arrastando-o a duras penas pela via por ela
escolhida, submetendo a matéria, a alma torna-se, pela própria virtude
da di culdade, mais atenta a seus atos. Essas di culdades, na medida
em que alma está atenta a elas e delas tem consciência, são chamadas
de sensações, podendo assumir o nome de dor ou de pena. Se, ao
contrário, o objeto exterior, que atinge o corpo ou se encontra
próximo a ele, lhe convém, ela consegue mover seu próprio corpo sem
qualquer pena, seja em seu conjunto, seja nas partes de que ela
necessita para atingir o m de sua ação; e essa ação, pela qual ela faz
comunicar seu próprio corpo com aquele outro corpo que lhe convém,
não lhe escapa, a impressão externa fazendo-a agir com maior
atenção; e a conveniência que ela encontra nesse processo faz-lhe
sentir uma sensação de prazer. Faltam alimentos para nutrir o corpo?
A necessidade nasce imediatamente: e a di culdade vinculada a essa
operação torna a alma mais atenta, despertando nela a consciência; a
fome, a sede e outros sofrimentos do tipo se produzem. Quando se
comete um excesso gastronômico, o estômago, sobrecarregado, sofre
para cumprir suas ações, a atenção se desperta; e como essa operação
não escapa à alma, é possível sentir o mal-estar. A atenção mesma
acompanha o ato pelo qual o excesso de alimento é rejeitado, e a
facilidade ou di culdade dessa evacuação geram prazer ou dor.
Quando a doença provoca uma perturbação no organismo, a alma
volta sua atenção para esse incômodo, buscando conjurar os
problemas ou a decomposição do corpo, e é por conta desse ato
acompanhado de consciência que a alma, como se diz, sente a doença
e o sofrimento.
Para resumir, parece-me que a alma, ao sentir aquilo que se passa em
seu corpo, não é de forma alguma modi cada passivamente, mas
simplesmente age em função das modi cações que ele sofre; esse agir,
fácil quando as alterações corpóreas lhe são agradáveis, árduo quando
se tratam de alterações desagradáveis, não lhe escapa à consciência;
nisso consiste todo o fenômeno que chamamos de sentir. Quanto ao
sentido que temos em nós, mesmo quando não sentimos, é um órgão
físico que a alma governa e de que ela se serve para ajustar as
sensações do corpo; para aproximar os objetos similares ou afastar os
objetos contrários a sua natureza. Provavelmente há em movimento
no olho um agente luminoso, nos ouvidos um elemento eólio puro e
sutil, nas narinas um perfume, na boca uma substância uida, no tato
um princípio viscoso. Mas, estejam esses princípios localizados ou não
nos órgãos, a alma os conduz serenamente quando os elementos da
saúde se combinam numa harmonia perfeita; caso haja elementos por
assim dizer heterogêneos no corpo, a alma prontamente passa a um
nível de ação mais atento, mais concentrado sobre as partes afetadas,
sobre os órgãos que sofrem; é por essa razão que ela vê, ouve, toca,
degusta, que ela sente pelo toque — para empregar a linguagem
comum: e nessas operações, ela se apraz ao assimilar os objetos
simpáticos, e sofre ao interagir com os elementos contrários. Eis os
atos que, a meu ver, são realizados pela alma no que diz respeito às
mudanças dos corpos, sem que no entanto ela passe por essas
mudanças.
Ora, agora é preciso explicar os números produzidos pelos sons e
discutir o sentido da audição. Não é preciso que nos demoremos sobre
os outros sentidos. Assim, voltemos à questão e examinemos se o som
produz alguma impressão sobre a audição: o que você diz?
A: Nada mais certo.
M: Você concorda que o ouvido é um órgão vivo?
A: Concordo.
M: Portanto, dado que o uido que circula nesse órgão5 é posto em
movimento pela percussão do ar, será certo pensar que a alma, que
antes de ouvir esse som comunicava internamente ao aparelho
auditivo o movimento e a vida, tenha suspendido a ação insensível
pela qual ela animava o órgão? Ou, então, o melhor é pensar que ela
comunica ao uido, que recebeu o estímulo exterior, o mesmo
movimento que realizava antes que o som se introduzisse no ouvido?
A: Seguramente não se trata do mesmo movimento.
M: E se não é o mesmo movimento não será preciso ver, aí, um ato
da alma, e não uma modi cação puramente passiva?
A: É verdade.
M: É correto, portanto, crer que a alma tem consciência de seus
movimentos, sejam eles chamados de ações, operações, ou que se
empregue um termo mais expressivo para designá-los, caso exista.
Esses ações se realizam mesmo após as impressões produzidas sobre
o corpo: por exemplo, quando os objetos interceptam a luz, quando o
som se introduz no ouvido, os odores dos corpos nas narinas, os
sabores no paladar, quando o resto do corpo está em contato com
objetos exteriores, sólidos e palpáveis; ou então quando, dentro do
próprio corpo, um órgão passa de uma posição a outra, ou que en m
o corpo inteiro seja estimulado por um impulso interior ou exterior,
todas essas operações que a alma realiza após as impressões físicas
podem ser-lhe agradáveis — se esse for o caso ela se associará a essas
impressões — ou então desagradar-lhe — e se esse for o caso ela os
repelirá. Se ela padece por conta de uma dessas operações, trata-se de
um efeito de sua própria atividade, e não de ação do corpo. Mas neste
caso ela estará agindo de forma submissa às impressões físicas: ela
passa a se pertencer menos a si própria, ainda que o corpo siga sendo
inferior à alma.
Se, portanto, a alma renuncia ao mestre e se submete ao escravo, ela
necessariamente se degrada. Abandonando o escravo em prol do
mestre, ela necessariamente se aperfeiçoa, ao mesmo tempo em que
torna a existência do escravo agradável, sem pena nem
aborrecimentos, a qual existência não exige, em seu estado de
equilíbrio profundo, nenhum esforço ativo. Esse estado do corpo é o
que chamamos de saúde. A saúde não exige nenhuma atenção de
nossa parte; não que a alma pare de operar sobre o corpo, mas o agir
não lhe é custoso. Com efeito, em todas as nossas ações a atenção é
tanto maior quanto mais difícil é a obra que realizamos. Mas a saúde
só atingirá seu mais alto ponto de força e solidez quando nosso corpo
for elevado à sua perfeição primeira,6 no tempo e na ordem que lhe
são próprios, e é salutar crer nessa ressurreição, antes mesmo de
compreendê-la plenamente.
Acima da alma só há Deus. Abaixo dela, só há o corpo, se
consideramos a alma com todas as suas faculdades em pleno
funcionamento. Dado que não lhe é possível possuir a plenitude de seu
ser sem seu mestre, ela não pode dominar sem seu escravo; e se o
mestre é mais do que ela, o escravo é menos. Assim, ao voltar-se
inteiramente ao mestre ela compreende sua grandeza eterna, seu ser se
engrandece, e, por esse mesmo princípio, também aquele do escravo.
Mas se, indiferente ao mestre, deixa-se levar pelo escravo, pela
concupiscência da carne, ela então passa a sentir o esforço na
execução de cada movimento, e se rebaixa; contudo, nesse gesto de
rebaixamento, ela continuará sendo maior que o escravo, por mais
que este último pareça gozar de todas as prerrogativas da natureza
anímica. Por causa do erro de sua mestra, o corpo passa a ter uma
existência bem inferior à que possuía quando ela própria, antes de seu
erro, vivia uma vida mais perfeita.
Assim, por mais perecível e frágil que seja o corpo, a alma só o
domina por meio de grande esforço e atenção. Aí se encontra a fonte
de todos os erros que lhe fazem colocar os prazeres sensoriais — nos
quais a matéria se oferece docilmente à nossa atenção — acima da
saúde, estado no qual nenhum esforço de atenção é necessário. Não
deveremos nos espantar, portanto, se as a ições se multiplicarem na
alma quando ela optar pela inquietude em detrimento da segurança.
Quando se volta para seu mestre, ela vê nascer em si uma nova
preocupação: o temor de dele se desviar, até sentir refrear-se o
movimento impetuoso das paixões da carne, os quais se instalaram na
alma pela força de um hábito inveterado, que mistura o ímpeto de
retorno da alma a Deus com a desordem das recordações passadas.
Quando os movimentos que a arrastavam às coisas exteriores se
apaziguam, ela pode saborear interiormente esse repouso livre de que
o sabat é símbolo; aí então ela reconhece que Deus é seu Mestre, o
único que se possa servir em total liberdade. Quanto aos movimentos
da carne, ela não pode reprimi-los com o mesmo vigor que os
desenvolve: pois, se por um lado o pecado depende dela, a punição
vinculada ao pecado está fora de seu poder. A alma é, em si, uma
força poderosa, mas não dispõe, em mesmo grau, do poder de conter
as paixões. Ela é mais forte no momento do pecado, mas após o ato
pecaminoso vê-se enfraquecida por um efeito da lei divina e menos
capaz de destruir sua própria obra. “Homem infeliz que sou! Quem
me livrará deste corpo que me acarreta a morte?… Graças sejam
dadas a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!”.7, 8 O movimento da
alma, enquanto preservar sua vivacidade e não for apagado, subsiste
portanto na memória; e quando a alma toma uma direção — o
movimento interno não constituindo mais, por assim dizer, o cerne da
ação — ela vai se enfraquecendo, exceto por uma renovação sob
in uência de movimentos análogos.
Gostaria de saber se você tem algo a contestar diante dessas
explicações.
M: Seu raciocínio me parece plausível, e não há por que não aceitá-
lo.
A: Portanto, dado que a sensibilidade consiste em reagir aos
movimentos produzidos no corpo, você certamente não acredita que
nossa insensibilidade quando nos cortam as unhas ou os cabelos vem
do fato que essas substâncias não têm nenhuma vida em nós; pois,
nesse caso, nem unhas nem cabelos fariam parte do organismo, e não
seriam por ele nutridos, reproduzidos. A verdadeira razão é que o ar
livre, esse elemento tão sutil, não penetra neles su cientemente, e a
alma não pode responder por um movimento de igual rapidez, como é
o caso naqueles movimentos que ela opera nos fenômenos da
sensação. É assim que podemos compreender a vida nas árvores e no
reino vegetal, sem que se possa, sob nenhum pretexto, colocá-la
acima, não digo nem sequer da vida dos homens, que têm o privilégio
da razão, mas daquela dos animais. É coisa muito diferente, com
efeito, ser insensível por conta de uma absoluta privação de
inteligência e sê-lo por efeito de uma excelente saúde; neste último, há
uma ausência de fragilidade dos órgãos — que, por conseguinte, não
deixam a alma sucumbir aos estímulos — e, naquele, ausência de
impressão.
A: Aprovo suas idéias e me submeto inteiramente a essa opinião.
VI. Sobre as três últimas espécies de números. Ordem e
número de todas as espécies
M: Retornemos, pois, ao nosso assunto, e responda à questão: das três
espécies de números que têm seu princípio uma na memória, outra na
sensibilidade e outra no som, quais lhe parecem os primeiros e mais
perfeitos?
A: Os números sonoros me parecem inferiores àqueles que estão na
alma e que têm, por assim dizer, a vida; mas, quanto a esses dois, não
sei muito bem qual merece a preeminência; contudo, como já
a rmamos que os números que têm a ação por princípio primam
sobre aqueles da memória — pois a causa é superior ao efeito —,
talvez seja necessário, em virtude desse mesmo raciocínio, posicionar
aqueles que estão na alma enquanto ouvimos acima daqueles que se
produzem na memória.
M: Essa resposta contém algo de plausível. Mas acabamos de ver
que os ritmos que encontramos nas sensações não passam, no fundo,
de operações da alma; como, pois, você poderá distingui-los daqueles
que têm a atividade anímica por princípio, com já havíamos
observado, e que se produzem quando a alma, mesmo no silêncio e
sem nenhuma lembrança, realiza um movimento harmônico com
justos intervalos de tempos? Não seria porque alguns deles nascem
quando a alma se volta para o corpo a ela vinculado, e outros nascem
quando a alma, ao ouvir os sons, reage contra as impressões do
corpo?
A: Consigo compreender essa diferença.
M: Pois bem! Será que não deveríamos admitir seguramente que os
movimentos harmônicos da alma rumo ao corpo são de uma ordem
superior àqueles que a alma recebe do corpo?
A: De fato, vejo um caráter de independência mais bem marcado
naqueles que se executam internamente e em silêncio do que naqueles
que têm por objeto o corpo ou as impressões do corpo.
M: Nós distinguimos e classi camos, portanto, segundo sua
superioridade relativa, cinco espécies de ritmos, ou números; agora é
preciso designá-los com termos adequados, para evitar circunlocuções
em nossa conversa.
A: Muito bem.
M: Chamemos os primeiros ritmos de números de juízo; os
segundos, números de progresso;9 os terceiros, números de reação;10
os quartos, números de memória; os quintos, números sonoros.
A: Aceito e empregarei sem problemas essas denominações.
VII. Seriam os números de juízo eternos?
M: Preste atenção e me diga se, dentre os números, existem alguns que
são eternos ou se todos eles desaparecem com o tempo?
A: Somente os números de juízo, a meu ver, são eternos. Quanto aos
outros, desaparecem tão logo surgem, ou apagam-se da memória e
sucumbem no esquecimento.
M: Assim, pois, você está igualmente convencido tanto da eternidade
dos primeiros quanto da existência fugidia de todos os outros: mas
não será preciso examinar com maior atenção se os números de juízo
são verdadeiramente eternos?
A: Examinemos pois essa questão.
M: Responda-me: quando levo mais ou menos tempo para recitar
um verso, sem, no entanto, violar a regra dos tempos que une todos os
pés numa mesma proporção de 1 para 2,11 estou enganando seu
ouvido?
A: De modo algum.
M: E quanto ao som produzido por essas sílabas mais breves e, por
assim dizer, mais fugazes? Será que ele poderá se estender para além
do tempo em que foi ouvido?
A: Evidentemente não.
M: Ora, se os números de juízo estivessem sujeitos, por força do
tempo, aos mesmos intervalos que os números sonoros, será que eles
poderiam servir para apreciar, para julgar esses números sonoros que,
ainda que recitados mais lentamente, não estão no entanto menos
sujeitos à regra do verso jâmbico?
A: De modo algum.
M: Assim, os números superiores, que servem para julgar os outros,
não estão contidos em intervalos maiores ou menores de tempo?
A: É bem provável.
M: Você está certo em concordar. No entanto, eis aqui uma objeção.
Se esses números fossem perfeitamente independentes de todo e
qualquer limite de duração, eu poderia levar o tempo que quisesse
para pronunciar os sons, conquanto observasse os intervalos regulares
exigidos pelo jâmbico. Em suma, se ao pronunciar uma sílaba eu
levasse o tempo que um homem leva para dar três passos ao passear, e
dobrasse esse tempo para pronunciar uma outra, e, continuando
assim, eu compusesse uma série inde nida de jâmbicos, a relação de 1
para 2 seria seguramente respeitada, e no entanto eu não poderia ter
recurso a esse juízo natural para veri car tais medidas. Você
concorda?
A: Não posso lhe recusar minha aprovação: a meu ver, isso é
evidente.
M: Portanto, esses números de juízo estão con nados em certos
limites de tempo: eles não podem sair dessas fronteiras e exercer seu
papel de juiz para além delas; recusam-se a apreciar tudo aquilo que
saia desse perímetro. Mas, assim, se eles estão restritos a intervalos de
tempo determinados, não vejo mais como eles possam ser eternos.
A: Nem eu vejo mais o que responder. Mas ainda que eu esteja
menos convicto de seu caráter eterno, não entendo bem a razão que
demonstra sua invalidez. Pois quaisquer que sejam os intervalos que se
apresentem diante dele, é muito provável que eles mantenham
eternamente essa capacidade de julgar. Com efeito, eles não podem ser
apagados pelo esquecimento, como é o caso dos outros; eles não têm a
mesma duração que os sons e nem a mesma extensão que os números
de reação; não são nem conduzidos, nem prolongados como os
movimentos de progresso: pois esses dois últimos números duram
apenas o tempo mesmo do movimento realizado; ora, os números de
juízo permanecem imutáveis, talvez dentro da alma, seguramente no
fundo da natureza humana, e, ainda que estejam restritos a limites
mais ou menos amplos, servem de regra aos números que se
produzem, aprovando-os, se são harmônicos, reprovando-os, se
discordantes.
M: Você pelo menos concorda que, entre os homens, alguns são mais
rápidos e outros mais lentos para sentir os números defeituosos, e que
a maioria só é capaz de identi car os defeitos por comparação com os
números perfeitos, tendo experimentado a harmonia destes e a
desconformidade daqueles?
A: Sim, concordo.
M: E a que se deve essa diferença, à natureza desses homens, à falta
de prática ou a ambas as causas reunidas?
A: Só pode ser devido a essas duas causas.
M: Será possível que um homem aprecie e sinta, com toda justeza,
intervalos de tempos em que um outro é incapaz de medir a extensão?
A: Creio que é possível, sim.
M: Ora, se aquele que é incapaz de sentir em tal profundidade se
exercita e une o estudo a disposições naturais favoráveis, será que ele
poderá desenvolver essa faculdade?
A: Sem dúvida.
M: Mas lhe será possível progredir a ponto de julgar movimentos
mais amplos? Será que ele pode se tornar capaz de captar a sucessão
das horas e dos dias em suas relações simples e duplas — ainda que
interrompidas pelo sono —, compreendê-las com o auxílio do juízo e
aprová-las, tal como pôde fazer com uma série de jambos em
movimento?12
A: Não pode.
M: Por que não? Não será porque cada espécie de ser vivo recebeu,
numa exata proporção com o conjunto dos seres, uma capacidade
particular para apreciar as relações do espaço e do tempo? Pois, se seu
corpo é proporcionado ao conjunto do universo do qual ele faz parte,
se sua duração é proporcionada a todos os séculos dos quais ele é um
ponto, sua maneira de sentir deverá estar em conformidade com os
atos que ele realiza, em conformidade com o movimento universal dos
quais ele é como que um elemento, sim?
Assim é que, contendo tudo, o Mundo, amiúde chamado na
Escritura de Céu e Terra, é cheio de magni cência: e sua grandeza
continua sendo a mesma, que se diminua ou que se aumente, numa
justa proporção, suas distintas partes. E, com efeito, na imensidão dos
tempos e lugares, nada é grande, nada é pequeno em absoluto, mas
segundo a grandeza ou pequenez que serve de ponto de comparação.
Se, portanto, para abarcar os atos da vida carnal, foi dado à natureza
humana um sentido cujo âmbito se restringe à apreciação dos
intervalos de tempos pertinentes a esse modo de existência, esse
sentido está sujeito à mesma condição de mortalidade que a natureza
humana degradada. O hábito, diz o antigo provérbio, com razão, é
uma segunda natureza, uma natureza arti cial, por assim dizer. Ora, a
experiência nos ensina que certos sentidos, que, em sua luminosidade
original, aprendiam por meio do hábito a julgar os objetos materiais
de toda espécie, foram sufocados e substituídos por um outro hábito.
VIII. Todos os números estão sujeitos ao controle dos
números de juízo
Ademais, sejam quais forem as propriedades dos números de juízo,
sua preeminência salta aos olhos pela própria dúvida, pela busca
laboriosa a que somos conduzidos ao nos perguntarmos se eles são ou
não perecíveis. Pois os outros números não suscitam esse mesmo tipo
de problema: e, sem abarcá-los todos completamente — porque alguns
se estendem para além de seus domínios —, esses números de juízo no
entanto submetem todas as espécies e os controlam. Com efeito, os
números de progresso, em sua tendência de produzir uma operação
harmônica sobre os órgãos, são modi cados pela in uência secreta
dos números de juízo. Que é que nos impede, durante uma
caminhada, de andar a passos desiguais; ou, quando martelamos um
prego, de espaçar as batidas dos golpes em intervalos irregulares; de
mover a mandíbula de forma descompassada ao comer e beber, e, ao
nos coçar, esfregar as unhas num ritmo variável? En m, para não ter
de passar em revisão uma imensidão de outras operações: que é que
sentimos, em todos as nossas ações re etidas, através de nossos
órgãos, que coloca por assim dizer um freio nos movimentos desiguais
e, por meio de um comando seguro, busca conduzi-los num ritmo
estável? É um certo princípio de juízo, não sei bem qual, que
manifesta a ação de Deus na criatura: pois é preciso fazer remontar
até Ele toda proporção e toda harmonia.
Quanto aos números de reação, que, longe de obedecer
exclusivamente a seus próprios impulsos, são dirigidos segundo as
paixões do corpo, eles também caem sob o controle dos números de
juízo e são por eles controlados, em toda a extensão dos intervalos
que a memória pode captar e armazenar — pois somos absolutamente
incapazes de apreciar um número composto de intervalos de tempos se
não pudermos contar com a memória. Por mais breve que seja uma
sílaba do começo ao m, o começo se faz ouvir em um dado
momento, e o m, em outro. Portanto, nesse curto intervalo de tempo
ela se desdobra, e possui um meio pelo qual passa em seu caminho do
começo rumo ao m. Assim o raciocínio descobre que a extensão, seja
no tempo, seja no espaço, pode ser divida até o in nito, e por
conseguinte não existe sílaba que exiba simultaneamente seu começo e
seu m. Portanto, se a memória não vem a nosso auxílio quando
ouvimos uma sílaba, por mais curta que seja, não podemos
compreender nada. É por essa razão que, quando estamos distraídos,
cremos não ter ouvido uma pessoa que está falando conosco; não é
que a alma não produza números de reação: pois o som das palavras
atinge os ouvidos, e, nessa alteração dos órgãos, a alma não pode
permanecer inativa, mas limita-se a simplesmente agir de um modo
distinto da mera inação; a verdade é, pois, que a distração faz
extinguir o movimento imediatamente após seu nascimento; pois, se
ele subsistisse, encontraria-se na memória, e por aí reconheceríamos
que nós ouvimos. Se é bem possível que um sujeito de inteligência
lenta tenha di culdades para compreender o que é dito numa sílaba
breve, ao menos ninguém duvida que a alma seja incapaz de ouvir, aí,
duas breves simultaneamente. Pois a segunda só atinge o ouvido após
a primeira havê-lo atingido: ora, como ouvir simultaneamente algo
que não atinge nosso ouvido simultaneamente? Portanto, do mesmo
modo como encontramos nos raios luminosos um auxílio para
perceber as distâncias — ou os intervalos — entre diversos pontos do
espaço, também assim a memória, espécie de luz que se difunde sobre
os intervalos do tempo, abarca esses intervalos — tanto quanto lhe é
possível estender seu poder e sua ação, ouso dizer. E quando um som
ininterrupto atinge o ouvido por muito tempo e é sucedido por um
outro de duração dupla ou igual, o movimento da alma produzido
pela atenção ao som que passou e se extinguiu é substituído pela
atenção ao som que vem depois, sem interrupção, ou seja, o primeiro
não permanece na memória. Portanto, os números de juízo, dentre os
números constituídos por intervalos de tempos, só podem julgar os
que lhe são oferecidos pela memória, com exceção dos números de
progresso nos quais os números de juízo regulam também a sua
execução, seu desenvolvimento. Assim, será que não devemos
considerar que eles mesmos, os números de juízo, têm uma duração
determinada no espaço e no tempo? O importante para nós é
reconhecer o limite preciso de tempo a partir do qual apreendemos
aquilo que eles julgam. Essa questão pode ser vista do mesmo modo
como as formas que os olhos contemplam; pois não podemos
determinar se essas formas são redondas ou quadradas, se têm tal ou
qual propriedade real e positiva, nem experimentá-las de qualquer
modo que seja, sem aproximá-las de nosso olhar: e se, ao observar um
rosto, esquecemos aquilo que havíamos observado num outro, todo
esforço de nosso juízo se torna estéril: pois o juízo exige um certo
intervalo de tempo, e a memória deve estar atenta para preencher esse
intervalo.
Quanto aos números de memória, é evidente que nós os apreciamos
por meio dos números de juízo, e que é também a memória que no-los
representa. Pois se os números de reação só podem ser apreciados na
medida em que a memória os representa no espírito, tanto mais o será
com aqueles que, após nos termos dedicado a outras coisas, retornam
como se tivessem permanecido guardados na lembrança. Com efeito,
que é que fazemos, ao evocar nossas recordações, senão buscar
recuperar o que nelas depositamos? Ora, um movimento que ainda
não foi esquecido se representa diante do espírito, partindo de um
movimento análogo, e é a isso que chamamos lembrança. É desse
modo que reproduzimos em espírito ou pelo movimento dos órgãos os
movimentos anteriores. E como é possível reconhecer que eles não se
apresentam pela primeira vez, mas retornam ao espírito? É porque,
quando se trata da primeira vez, sua reprodução é di cultosa, e nos é
preciso muita atenção para acompanhá-los; quando, ao contrário, essa
di culdade desaparece, e eles se curvam docilmente às ordens da
vontade, tendo adquirido a leveza desses movimentos que, mais
profundamente gravados no espírito, realizam-se por seu próprio
impulso, ainda que nosso pensamento esteja ocupado com outra coisa,
aí então percebemos que eles não se produzem pela primeira vez.
Temos ainda, a meu ver, um outro meio de perceber que um
movimento atual se produziu previamente em nós. Trata-se de
reconhecer, comparando, graças à luz da consciência, os últimos
movimentos — mais vivos, sem dúvida — da operação realizada no
momento da lembrança, com os movimentos mais calmos
reproduzidos pela memória: esse reconhecimento, essa revisão, é
simplesmente a lembrança.
Assim, os números de juízo apreciam os números de memória, não
isoladamente, mas acompanhados dos números de ação ou de reação,
ou de ambos, simultaneamente: pois são esses últimos que os extraem
das profundezas e lançam luz sobre eles, e que, renovando, por assim
dizer, suas marcas que se haviam apagado, apresentam-nos ao espírito.
Portanto, dado que os números de reação só são apreciados na
medida em que a memória os coloca em presença dos números de
juízo, os números de memória, por sua vez, que permanecem na nossa
lembrança, podem ser reproduzidos pelos números de reação e assim
ser apreciados: no entanto, existe essa diferença, a saber: para fazer
que os números de reação se submetam ao poder do juízo, a memória
deve reproduzir os passos que acabam de deixar em sua fuga rápida,
enquanto que, quando apreciamos com o ouvido os números de
memória, esses mesmos passos se renovam por conta do retorno dos
números de reação.
Quanto aos números sonoros, será que precisamos tratar deles? Eles
são apreciados graças aos números de reação, quando atingem o
ouvido. E se soam numa situação em que não vêm a ser ouvidos,
escapam ao nosso julgamento — quanto a isso não há dúvidas. Isso
que ocorre com os sons transmitidos pelo ouvido, e dá-se igualmente
com as danças e outros movimentos visíveis: as relações de tempo são
apreciadas por meio dos números de juízo com o auxílio da memória.
IX. Existem na alma outros números superiores aos números
de juízo
Assim, tentemos ir além dos números de juízo, se possível, e
examinemos se não há outros que lhes sejam superiores. Eles, os
números de juízo, servem apenas para julgar os movimentos que se
desdobram numa certa duração, e tão-somente aqueles que podem ser
associados pela memória. Você teria alguma objeção a me apresentar?
A: Estou particularmente impressionado com as propriedades e o
poder dos números de juízo: parece que todas as funções dos sentidos
dependem deles. Assim, qual espécie de número poderia estar acima
deles? Não consigo imaginar…
M: Não custa nada buscar essa resposta com uma atenção renovada.
Pois ou nós descobriremos na alma números superiores àqueles de
juízo, ou nos convenceremos que são estes os mais elevados, caso sua
superioridade nos seja claramente demonstrada. Não existir e escapar
à nossa inteligência e àquela de todo homem são duas coisas bem
distintas. Mas, o que se passa quando cantamos esse verso tão
conhecido
Dĕūs Crĕātŏ r ō mnı̆ ūm?13
Nós o ouvimos pelos números de reação, o reconhecemos pelos
números de memória, o pronunciamos pelos números de progresso,
com ele nos deleitamos por efeito dos números de juízo, e o
aprovamos com o auxílio de outros números ocultos: sim, existem
números ocultos que se elevam após aqueles de juízo e que decidem
soberanamente quanto a esse deleite que sentimos, o qual é como que
uma decisão dos números de juízo. Você sem dúvida não confunde o
deleite dos sentidos com as apreciações da razão, sim?
A: São duas coisas muito diferentes, concordo. Mas esse novo termo
me provoca, num primeiro momento, certo constrangimento: não
entendo muito bem por que não chamaríamos de números de juízo
aqueles que contêm um elemento de razão; além disso, receio que
essas apreciações da razão de que você trata sejam, também elas, um
juízo, apenas mais atento; por conseguinte, longe de haver números
distintos para o prazer e para a razão, seriam os mesmos tipos de
números, servindo ora a que se aprecie os movimentos dos órgãos —
quando eles são reproduzidos, como havíamos demonstrado há
pouco, pela memória — ora à apreciação de si próprios com mais
elevação e pureza, apartados daquilo que ocorre nos órgãos.
M: Não se preocupe tanto com as palavras quando você entende a
coisa: os termos são menos impostos por uma lei natural do que por
uma convenção. Quanto à sua opinião de que esses números não
formam duas classes distintas, você sem dúvida se baseou na idéia de
que tudo isso se opera numa mesma alma: mas é preciso lembrar que,
nos números de progresso, a alma agita os órgãos ou se coloca em
movimento rumo aos órgãos; que, nos números da reação, é a mesma
alma que dá continuidade às impressões do corpo; que, nos números
de memória, é a alma ainda que utua ao sabor de seus movimentos,
até que sua agitação se acalma. Portanto, quando classi camos e
quando distinguimos essas duas espécies de números, não fazemos
senão analisar os movimentos e as disposições de um só e mesmo ser,
quer dizer a alma. Assim, estabelecemos distinções entre os
movimentos da alma quando ela está em presença das modi cações
dos órgãos, como na sensação, ou quando ela se dirige rumo aos
órgãos, como na ação; ou quando ela conserva o resultado de todos
esses movimentos, como na recordação; devemos, pois, segundo o
mesmo método, distinguir o ato de aceitar ou rejeitar os movimentos
que nascem pela primeira vez na alma ou se despertam na memória,
pelo simples efeito do prazer e desprazer que eles nos provocam,
segundo seu caráter harmônico ou desarmonioso; é preciso, repito,
distinguir esse ato de raciocínio em virtude do qual nós apreciamos se
esse prazer ou desprazer é legítimo. Por conseguinte, se nós havíamos
distinguido acima três espécies de números, aqui encontramos dois; e
se nos pareceu lógico concluir que o ouvido não poderia sentir prazer
ou desprazer com a harmonia e desarmonia dos intervalos se não
estivesse permeado de certos números, tanto mais a razão, que está
acima das sensações auditivas, não saberia apreciar harmonias que lhe
são inferiores se não possuísse outros números superiores em si
mesma.
Se essa análise está correta, passamos a ter evidentemente cinco
espécies de números na alma, e se acrescentarmos aqueles números
materiais que havíamos chamado de sonoros, reconheceremos então
seis espécies de números, classi cados e ordenados. E agora, se você
aceitar, chamaremos de sensíveis os números que tinham usurpado a
primeira posição sem que nos déssemos conta, reservando o título
mais nobre de números de juízo àqueles que, como acabamos de
descobrir, elevam-se acima dos sensíveis. Eu também sugiro que se
mude o nome dos números sonoros, pois se os designamos pelo termo
físicos, eles marcarão mais claramente aqueles que se manifestam na
dança e todo outro movimento visível. No entanto, gostaria de saber
se você concorda com tudo o que acabo de dizer.
A: Concordo plenamente, essas palavras, a meu ver, são plenas de
clareza e evidência. Compreendo também a mudança de termo que
você acaba de introduzir.
X. Sobre o papel que exerce a razão no estudo da música. O
encanto provocado pela música se deve exclusivamente a uma
relação de igualdade
Re ita, agora, sobre o poder da razão pelo que podemos deduzir de
suas obras. Restringindo-me àquilo que é o tema desta obra, digo que
foi a razão que observou em primeiro lugar em que consistia uma bela
modulação, reconhecendo que isso dependia de um movimento livre,
sem outro m senão a própria beleza. A seguir, ela notou haver nos
movimentos dos corpos uma diferença percebida ora por intervalos de
tempos mais ou menos longos, ora pelas batidas de tempo mais ou
menos lentas. Uma vez estabelecida essa distinção, essa mesma razão
descobriu o segredo de transformar em números de diversas espécies a
duração do tempo, dividindo-a por intervalos proporcionados e em
conformidade com as necessidades do ouvido humano; foi também ela
que percorreu a série de números gradualmente até à cadência própria
ao verso. Ela então meditou sobre o papel que a alma exerce para
medir, produzir, sentir e conservar esses números — alma da qual a
razão é a parte mestra; distinguiu os movimentos provenientes da
alma e aqueles que se originam nos sentidos; reconheceu que não
poderia ela própria perceber esses tipos de movimentos, discerni-los,
contá-los corretamente, sem possuir em si esses ritmos. Então,
pronunciando a sentença como um juiz, antepôs esses últimos
movimentos àqueles primeiros por serem de natureza inferior aos
demais.
Reduzida à emoção deliciosa que lhe é própria, a razão, ao apreciar
a sucessão dos tempos e modi car esses movimentos por sua
in uência soberana, coloca a questão: que é isso que nos encanta na
harmonia sensível? Será algo mais do que uma certa simetria e
intervalos de tempos de igual medida? O pirríquio, o espondeu, o
anapesto, o dátilo, o proceleusmático, o dispondeu… teriam todos
esses pés, para nós, um qualquer encanto se suas duas partes não se
correspondessem por um modo igual de divisão? E de onde vem a
beleza do jambo, do troqueu, do tríbraco, senão do fato que a menor
parte divide a maior em duas sílabas de igual quantidade? E os pés de
seis tempos, como explicar que a cadência deles seja a mais graciosa e
encantadora, senão pelo respeitar de ambas as leis? Pois eles se
dividem ou em duas partes iguais compostas cada qual de três tempos,
ou em uma parte simples e uma dupla, numa relação tal que a maior
contém duas vezes a menor, a qual, com seus dois tempos, corta em
uma medida igual de dois tempos os quatro tempos da primeira. Veja,
em exemplo contrário, os pés de cinco e de sete tempos! Por que eles
convêm melhor à prosa do que à poesia? Não será porque a menor
fração não divide a maior em partes iguais? E, contudo, sendo-lhes
possível unir-se e formar cadências harmônicas no âmbito de sua
ordem e de sua espécie, como explicar essa harmonia, senão através
do fato que, nos pés de cinco tempos, a fração menor tem duas
subdivisões em relação com as três subdivisões da grande, e que, nos
pés de sete tempos, a pequena tem três subdivisões em relação com as
quatro subdivisões da grande? Assim, não haverá nunca um pé, por
menor que seja, que, admitindo uma medida regular, não possa se unir
a todos os outros por uma relação de igualdade tão estreita quanto
possível.
Podemos ir ainda mais longe: numa sucessão de pés — que se trate
de uma extensão indeterminada, como o ritmo, ou de algo com um
m determinado, como o metro, ou que ele se divida em dois
hemistíquios ligados estreitamente entre si, no caso do verso —, qual
outra relação, além daquela de igualdade, estabelece entre os pés uma
aliança íntima? Por que, no molosso e nos jônios, a sílaba longa do
meio pode se dividir em dois intervalos iguais, não por uma pausa,
mas pela vontade daquele que a pronuncia ou que dela bate a medida,
de tal modo que o pé inteiro seja levado a uma relação de três tempos,
quando ele é combinado com os pés que admitem esse modo de
divisão; por que, pergunto, essa sílaba longa pode se dividir desse
modo, senão pelo fato que ela é igual às duas sílabas que iniciam e
encerram o pé e que, tal como ele, têm dois tempos? Por que o
anfíbraco14 não é suscetível de ser dividido do mesmo modo, quando
ele se une a pés de quatro tempos? Não será porque, dado que as duas
sílabas contidas em suas extremidades são breves, e a do meio é longa,
ele não oferece uma relação tão perfeita de igualdade? Se o ouvido
não é nem enganado nem agredido pelas pausas intermediárias, não
será devido a que se restabelece assim a igualdade, não por meio de
sons, mas por uma pausa equivalente? Se uma breve seguida de uma
pausa produz o efeito de uma longa no ouvido, não por virtude de
uma convenção, mas de um juízo natural ditado pelo ouvido, não será
porque a igualdade nos impede ainda de abreviar um som quando a
duração se prolonga? Eis porque é legítimo prolongar uma sílaba para
além de dois tempos, a m de preencher com um som real o espaço
vazio dos silêncios; o ouvido, que ele ouça os sons ou que observe as
pausas, não é de modo algum decepcionado. Mas se a sílaba ocupa
menos de dois tempos, e sobra um tempo para os movimentos dos
lábios, o sentimento de igualdade é ferido, pois não pode haver
igualdade onde não há ao menos duas coisas. E quanto à simetria dos
membros que compõem as estrofes líricas ou períodos, formando os
versos; por qual meio secreto encontramos a igualdade? Não será
fazendo concordar na medida o número pequeno e o grande por pés
equivalentes no caso das estrofes, e, no caso dos versos, buscando, nas
propriedades dos números,15 princípios misteriosos que conectem os
dois hemistíquios desiguais e estabeleçam entre eles uma relação de
igualdade?
A razão, portanto, questiona; ela examina o prazer sensível da alma
— ela, que reivindicava para si a função do juízo — e a interroga,
quando intervalos de tempos iguais a deleitam, se, entre duas breves
quaisquer que ela tenha ouvido, existe uma igualdade completa, ou se
é possível prolongar uma delas, não até a duração total de uma longa,
mas a um dado nível inferior, contanto que ela se prolongue por mais
tempo que a breve a qual está unida. Quem dirá que isso é possível, a
saber, que a emoção sensível é incapaz de captar essas nuances,
interessando-se indistintamente por intervalos iguais ou desiguais?
Que haverá de mais vergonhoso que esse despeito e essa falta de
igualdade? Disso tiramos uma lição: devemos impedir que nossa
emoção se demore nas harmonias que têm apenas uma aparência de
igualdade, ou cuja igualdade nos escapa. Pode acontecer inclusive que
saibamos perfeitamente que elas não podem apresentar igualdade, e
no entanto, por sua mera aparência, não podemos negar-lhes um
caráter de beleza em sua ordem e em sua espécie.
XI. A harmonia das coisas inferiores não deve ofender. Aquela
das coisas superiores deve provocar encanto. Diferença entre a
imaginação de memória e a imaginação pura
Não invejemos, portanto, as coisas que nos são inferiores, e
compreendamos bem a relação entre as coisas que estão abaixo e
aquelas que estão acima, com a ajuda de Deus Nosso Senhor, para que
as primeiras não nos ofendam e que as segundas nos causem encanto.
Com efeito, o prazer é como um peso amarrado à alma: ele serve,
pois, para equilibrá-la. “Onde está o teu tesouro, lá também está teu
coração”.16 Onde estiver o prazer, ali estará o coração; onde está o
coração, lá se encontra também a felicidade ou infelicidade. Mas quais
são as coisas superiores? Chamamos assim aquelas em que reside a
harmonia soberana, permanente, imutável e eterna, a harmonia em
que não há tempo, pois ela está acima de toda mudança, mas donde
provém o tempo com seus movimentos regulares, à imagem da
eternidade; enquanto que a revolução do Céu, realizando-se sobre si
mesma, faz retornarem os corpos celestes ao mesmo ponto e regula
seu movimento segundo as leis da proporção e da unidade, pela
sucessão dos dias, meses, anos, décadas e o curso periódico dos astros.
Assim, as coisas da Terra estão subordinadas às coisas do Céu, e, por
uma sucessão harmoniosa, elas associam seus movimentos regulares à
música do universo.
Nesses movimentos, cremos ver desordem e irregularidade porque
estamos inseridos na sua ordem de acordo com nossos méritos, sem
conhecer as obras de beleza que a Providência realiza a nosso favor.
Nós somos como um homem xado qual estátua num canto de um
vasto e magní co edifício: ele não pode compreender a beleza desse
palácio no qual ocupa um simples ponto xo; de igual modo um
soldado em linha de batalha não pode perceber o ordenamento de
todo um exército. E se, num poema, cada sílaba se tornasse animada e
sensível na medida em que fosse pronunciada, ela seria incapaz de
provar a harmonia e beleza do conjunto, de vez que este se compõe da
sucessão fugidia de cada uma delas. É assim que Deus inseriu o
homem, malgrado sua culpa, numa ordem que nada tem de
defeituoso. Com efeito o homem se rebaixou por sua própria culpa,
sacri cando a ordem universal da qual ele possuía os privilégios por
sua submissão a Deus, e submeteu-se a uma ordem especial, aquela
conduzida pela lei que ele não quis seguir. Ora, tudo aquilo que está
conforme à lei é justo; e tudo aquilo que é justo não seria nunca
motivo de culpa ou vergonha, pois a perfeição das obras de Deus se
mostra, resplandecente, em nossas ações baixas: por exemplo. O
adultério, enquanto tal, é um ato condenável; mas de um adultério
nasce amiúde um homem, ou seja, para uma má-ação do homem,
provém uma ação excelente de Deus.
Portanto, para voltar ao tema que nos conduziu a essas re exões, os
números da razão são superiores em beleza. Se nos afastássemos deles
completamente ao nos inclinarmos ao corpo, os números de progresso
não poderiam regular os números sensíveis que, por sua vez, pelos
movimentos que comunicam aos corpos, dão nascimento às belezas
materiais dos intervalos de tempo regulares. Estes intervalos,
atingindo o ouvido, suscitam os números de reação. A mesma alma
recolhe todos esses movimentos, fruto de sua atividade, como que os
multiplica e lhes dá a propriedade de se renovar, em virtude dessa
faculdade a que chamamos memória, e que é de uma tão grande
utilidade nos atos complexos da vida humana.
São essas representações dos movimentos da alma, correspondentes
às impressões dos órgãos, que, gravadas no depósito da memória,
chamamos, em grego, de fantasia:17 não encontro em latim um termo
melhor que esse. Tomar as representações como objetos conhecidos e
percebidos é próprio da suposição, a porta de entrada do erro.
Quando esses diversos movimentos se encontram uns com os outros,
nos vendavais da consciência, acabam por criar novos movimentos,
resultando disso como que imagens de imagens. Estes, por não terem a
clareza e a vivacidade dos primeiros e legítimos estímulos, são como
fantasmas. Assim é que concebo diferentemente meu pai, a quem vi
com freqüência, e meu avô, que nunca vi. A primeira concepção é uma
imaginação, e a segunda uma forma imaginária: uma me vem da
memória, a outra, de um movimento da alma, nascido posteriormente
àqueles que a memória preserva em seu depósito. Como ele nasce? É
um ponto difícil de explicar. No entanto, estou convencido de que se
eu nunca tivesse visto corpo humano, seria impossível para mim
gurar essas concepções sob uma forma visível. Quando concebo um
objeto após tê-lo visto, quem opera é a minha memória: no entanto,
uma coisa é encontrar uma forma na memória, outra coisa é criá-la
com auxílio da memória: dupla operação de que a alma é capaz. Mas
tomar imaginações, ainda que verdadeiras, como realidades, é um
grande erro. Existe, nos dois tipos de concepção, um elemento real do
qual temos uma idéia, pode-se dizer: são as coisas que vimos ou
concebemos em formas similares; posso dizer, sem medo de errar, que
tive um pai e um avô, mas dizer que meu pai e meu avô são as formas
mesmas criadas ou reproduzidas por minha imaginação seria o
cúmulo da loucura. Existem homens que se agarram tão cegamente às
suas imaginações que a verdadeira fonte de todas as falsas opiniões
consiste tão-somente em tomar as imaginações por percepções reais.
Invistamos pois todas as nossas forças para resistir a essa tendência, e
não submetamos a razão cegamente à imaginação, a ponto de crer
perceber uma forma onde a única coisa real, no caso, é nosso
pensamento.
Se essa espécie de números presentes na alma — alma que se
encontra entregue às coisas temporais — possui sua própria beleza,
ainda que efêmera, por que motivo a Divina Providência haveria de
invejar tal beleza, a qual foi formada como pena para nossa
mortalidade? Pena que merecemos pela justíssima lei de Deus, mas na
qual ele não nos abandonou; com efeito, graças a sua misericórdia,
podemos contar com seu auxílio para nos libertar da escravidão dos
prazeres sensuais da carne. Esses prazeres gravam com força suas
impressões na lubricidade dos sentidos. É essa união íntima da alma
com a carne que a Escritura Santa chama simplesmente pelo nome de
carne. É a carne que luta contra o espírito, e podemos agora repetir as
palavras do Apóstolo: “Assim, pois, de um lado, pelo meu espírito,
sou submisso à lei de Deus; de outro lado, por minha carne, sou
escravo da lei do pecado”. Mas quando a alma agarra-se às coisas
espirituais, nelas se xando com uma rmeza invencível, o mau hábito
perde força, e, sem que nos demos conta, ele progressivamente se
esvai. O hábito, com efeito, é mais poderoso quanto mais lhe
obedeçamos docilmente: ao reprimi-lo é possível suprimir muito de
sua energia, ainda que não se o aniquile por completo; é ao nos
afastarmos assim de todos os movimentos desordenados que
con scam a plenitude da alma que nossa vida se une a Deus por
inteiro, pelo esplendor das harmonias da razão: a conversão está,
então, completa; e a alma dá ao corpo os números da saúde sem
receber qualquer compensação de seu servo, pois, uma vez destruído o
homem exterior, também o corpo é transformado para melhor.
XII. Sobre os números espirituais e eternos
M: A memória não colhe somente os movimentos materiais da alma,
de cuja harmonia tratamos mais acima; ela capta e preserva também
os movimentos espirituais, dos quais direi somente algumas palavras.
Quanto mais eles são simples, menos exigem palavras, mais
necessitam da elevação de uma alma serena. Essa igualdade que os
números sensíveis não eram capazes de nos oferecer numa perfeição
contínua e durável, mas cuja sombra fugaz ainda assim podíamos
entrever por meio desses números, não seria jamais objeto de desejo
para a alma se não existisse em algum lugar. Ora ela não pode existir
nos limites dos espaços ou dos tempos, pois os primeiros transbordam
e os segundos passam. Onde ela se encontra, pois, na sua opinião?
Responda-me se puder. Você com certeza não acha que ela reside nas
formas dos corpos, nas quais você sempre descobrirá, após breve
exame, um defeito de proporção. Tampouco acha que esteja nos
intervalos dos tempos: pois nós nem sempre sabemos se eles têm uma
extensão demasiado longa ou demasiado curta, que o ouvido é
incapaz de captar. Pergunto-lhe, pois, onde se encontra a nal essa
harmonia perfeita, sobre a qual xamos nosso espírito quando
aspiramos encontrar em certos corpos ou em certos movimentos uma
exata proporção, frustrando-nos necessariamente.
A: Ela se encontra provavelmente no mundo superior ao mundo
sensível: a única coisa que eu me pergunto é se ela reside na alma ou
em algo ainda superior a ela.
M: Pois bem! Na arte do ritmo ou do metro, cujas regras são
seguidas pelos poetas, existe, na sua opinião, uma harmonia segundo
a qual eles compõem seus versos?
A: Não vejo como crer no contrário.
M: Quanto a essa harmonia, seja ela qual for, ela se esvai quando se
conclui o verso, ou é durável?
A: É durável.
M: É preciso, portanto, reconhecer que uma harmonia fugidia nasce
de uma harmonia durável.
A: Parece-me uma conseqüência rigorosa.
M: E essa arte? O que seria ela, a seu ver, senão uma aptidão do
espírito iniciado na arte?
A: É exatamente isso.
M: Você acha que essa aptidão pode ser encontrada num espírito
que não tenha sido iniciado nessa arte?
A: De modo algum.
M: E num espírito que a esqueceu?
A: Tampouco: pois ele não é mais iniciado, ainda que possa tê-lo
sido no passado.
M: E se o zermos recordar, através de perguntas? Você crê que os
princípios dessa harmonia podem ser transmitidos do espírito daquele
que o interroga ao dele? Ou, melhor, não podemos dizer que se opera
um movimento interior que faz que ele reencontre as idéias que
deixara escapar?
A: Acredito que esse movimento parte de seu próprio interior.
M: Ora! Você acha que é possível fazer que ele se lembre,
interrogando-o, da quantidade breve ou longa de uma sílaba que ele
esqueceu completamente, sabendo que há sílabas que se tornaram
breves, outras longas, por conta de uma simples convenção ou de um
uso da Antigüidade? Pois, se essa quantidade fosse xa e invariável,
segundo as leis da natureza ou os princípios da arte, não veríamos
pessoas muito inteligentes de nosso tempo prolongar sílabas que a
Antigüidade instituiu como breves, ou tornar breves sílabas que a
Antigüidade considerava longas.
A: Acredito que isso seja possível; pois não há nada de tão
profundamente esquecido que não possa, por um questionamento que
excite nossas recordações, ser despertado na memória.
M: Seria muito estranho que as indagações de um homem façam que
você se lembre daquilo que comeu num jantar do ano passado.
A: Oh! Quanto a isso, é impossível. E renuncio à minha crença de
que se possa, por meio de perguntas, fazer que o espírito se lembre da
quantidade de sílabas de que não nos lembramos mais.
M: E de onde vem isso, senão que do fato que, na palavra Itália, por
exemplo, a primeira sílaba, outrora prolongada livremente por certas
pessoas, tornou-se breve nos dias de hoje por um outro capricho da
moda? Ora, o fato que um e dois somados dão três, que duas breves
correspondem a uma longa, são princípios que os mortos não
souberam invalidar, que os vivos não podem abolir, e que nossos
descendentes não poderão anular.
A: Nada é mais claro.
M: E se procedemos pelo método do questionamento, que acabamos
de aplicar para saber se dois e um dão três, a respeito dessa harmonia
superior, como reagirá o homem no qual a ignorância se deve, não ao
esquecimento, mas à falta de instrução? Não lhe parece que, para
além da quantidade das sílabas, ele tampouco será capaz de conhecer
essa arte?
A: Esse é um ponto incontestável, não?
M: E o instinto que despertaria, nele, a noção de harmonia,
produzindo então essa aptidão que chamamos de arte? Será possível
comunicá-lo por intermédio de questões?
A: Esse instinto se reduz a reconhecer a verdade das questões que lhe
são feitas e a elas responder.
M: Pois bem! Diga-me agora se os números que descobrimos em
nossas conversas anteriores são mutáveis?
A: Seguramente não.
M: Você não se recusaria, pois, a admitir que são eternos?
A: Ao contrário, reconheço-os como tais.
M: Pois bem! Você não teme secretamente que eles escondam um
defeito qualquer de harmonia?
A: Não há nada no Mundo de que eu esteja tão seguro quanto sua
harmonia.
M: Mas de qual fonte a alma pode receber um princípio eterno e
imutável senão de Deus, o Ser eterno e imutável?
A: É a única resposta que podemos aceitar.
M: Última conseqüência: não é evidente que aquele que se aproxima
interiormente de Deus por auxílio de perguntas, caso não consiga reter
esse movimento pela força da memória, estará impossibilitado de
retornar a essa mesma contemplação sem um auxílio exterior?
É
A: É evidente.
XIII. Sobre o modo como a alma se desvia da verdade
imutável
M: Por que o homem se desvia da contemplação das coisas eternas,
devendo a elas ser reconduzido pela memória? Não será porque ele
está ocupado com outro objeto?
A: Na minha opinião, sim.
M: Peço então que examinemos qual é o objeto que atrai sua
atenção e o distrai da contemplação da harmonia imutável e soberana.
Só há três hipóteses possíveis: o objeto que o ocupa deve ser tão
perfeito quanto, inferior ou superior a ela.
A: Só as duas primeiras hipóteses merecem ser discutidas: pois não
vejo o que pode ser superior à harmonia eterna.
M: E você vê por acaso aquilo que pode ser tão perfeito quanto ela,
sem se confundir com ela?
A: Seguramente não.
M: Investiguemos, pois, o que é inferior. Ora, o primeiro objeto
inferior que se me oferece é a própria alma, que, ainda que admitindo
a existência da harmonia imutável, reconhece estar ela própria — a
alma — submetida à mudança, pelo simples fato de voltar sua atenção
ora àquela harmonia, ora a outro objeto qualquer; e, ao mudar assim
de objetos, cria essa sucessão temporal incompatível com as coisas
imutáveis e eternas. Você concorda?
A: Subscrevo essa a rmação.
M: Assim, essa disposição ou esse movimento que faz que a alma
compreenda que existem coisas eternas e que as coisas do tempo lhe
são inferiores, resida na própria alma; ela reconhece assim que é
preciso antes se voltar às coisas superiores do que às coisas inferiores.
Não é exato?
A: Nada mais certo.
M: Não seria também interessante, na sua opinião, examinar o fato
que a alma não se prende às coisas eternas tão logo descobre que é
preciso a elas se prender?

É
A: É uma questão que gostaria que você tratasse com a maior
importância; quero muito conhecer a causa dessa infelicidade.
M: Você descobrirá facilmente se quiser observar quais são os
objetos que, comumente, atraem mais a nossa atenção e provocam
mais energicamente nossos esforços: pois são esses que nós mais
amamos. Você concorda?
A: Sem dúvida.
M: Ora, e o que mais pode nos causar um desejo ardente, senão
aquilo que é belo? Pois, ainda que certas pessoas amem a feiúra e,
como dizem os gregos, têm gostos baixos,18 o importante é saber até
qual ponto essa feiúra é menos bela que aquilo que apraz à maioria.
De fato, é evidente que ninguém tem gosto por aquilo que revolta os
sentidos por sua feiúra.
A: Isso é verdade.
M: Esses belos objetos agradam por conta de uma exata proporção,
como já havíamos visto; e essa proporção não se encontra somente
nas belezas relativas à audição ou nos movimentos dos corpos, mas
ainda nas formas que se mostram ao olhar e às quais damos mais
comumente o nome de belas. Com efeito, vemos que há proporção e
harmonia quando em um corpo dois membros formam um par e se
correspondem, ou um órgão único ocupa uma posição intermediária,
a uma igual distância de cada lado.19 Você não acha?
A: É exatamente a minha opinião.
M: Que é que nós buscamos na luz, rainha de todas as cores que
revestem as formas corpóreas e nos encantam? Que buscamos, repito,
na luz e nas cores, senão essa medida que bem se relaciona com nossos
sentidos? Nós evitamos os clarões excessivos, nosso olhar se recusa a
penetrar uma obscuridade demasiado profunda. Assim ocorre também
com os sons, que quando demasiado fortes nos perturbam, e quando
demasiado fracos, nos desagradam — e isso vem não dos intervalos de
tempos, mas do próprio som que é como a luz da música e ao qual se
opõe o silêncio, do mesmo modo como as cores se opõem às trevas.
Portanto, buscando nesses objetos aquilo que está em proporção com
nossa natureza, rejeitando aquilo que é desproporcionado, ainda que
saibamos que eles bem podem convir a outros seres, não o estaremos
fazendo por sentirmo-nos atraídos por um certo sentimento de
igualdade que nos revela que, por virtude de relações ocultas, existe
simetria entre coisas iguais? É o que podemos observar nos odores,
nos sabores e no tato; se é difícil analisar essas sensações em
profundidade, é facílimo experimentá-las: pois não há nada nas coisas
visíveis que não nos agrade por sua simetria e sua analogia. Ora, em
toda parte onde houver simetria e analogia, há harmonia. Pois haverá
algo de mais simétrico do que um mais um? Você teria alguma objeção
a me apresentar?
A: Compartilho completamente dessa opinião.
M: Mas não é verdade também que a teoria que expusemos
anteriormente nos convenceu de que isso é um efeito da alma sobre os
órgãos, e não dos órgãos sobre a alma?
A: Sim, certamente.
M: O desejo de reagir contra as impressões do corpo desvia a alma
da contemplação das coisas eternas, distraindo-a pelo encanto dos
prazeres sensíveis, e é isso o que ela, a alma, faz por meio dos números
de reação; ela também é desviada pelo desejo de mover o corpo, e é o
que ela faz por meio dos números de progresso; a mesma alma é
desviada da contemplação também pelas representações oníricas da
imaginação, por meio dos números de memória; ela é, en m, desviada
pelo desejo que lhe acomete de atingir o conhecimento frívolo de tais
objetos, é o que ocorre pelos números sensíveis, em que se misturam
certas regras que são uma aparência agradável da arte; daí vem uma
busca curiosa que, como a própria palavra indica (cura),20 é inimiga
da tranqüilidade, e, por conta da própria frivolidade, nunca alcança a
verdade.
A necessidade geral de agir, que nos afasta da verdade, tem sua fonte
no orgulho, vício que inspira na alma o desejo de imitar Deus ao invés
de servi-lo. É pois com razão que lemos nas Sagradas Escrituras: “O
início do orgulho num homem é renegar a Deus”, ou ainda: “o
princípio de todo pecado é o orgulho”. É impossível de nir o orgulho
em melhores termos que estes das Escrituras: “de que se orgulha o que
é terra e cinza?” ela que “[…] despojou-se de suas próprias
entranhas?”. Com efeito, dado que a alma não é nada em si mesma,
pois do contrário estaria acima da mudança e nada perderia da
plenitude de seu ser, a alma, repito, não sendo nada por ela mesma e
devendo toda sua essência a Deus, conquanto permanece
coerentemente em sua condição, possui, pela comunicação com Deus,
todas as forças de sua razão e de sua consciência; por conseguinte, é
um tesouro que ela possui inteiramente. Assim, deixar-se in ar de
orgulho implica, para alma, em lançar-se às coisas exteriores, esgotar-
se, por assim dizer; e nesse esgotar-se, ser menos. Ora, lançar-se às
coisas exteriores — que quer dizer isso senão sacri car os bens
interiores, em outras palavras afastar-se de Deus, não pela distância
física, mas pelas disposições da alma?
A tendência secreta da alma é de submeter as outras almas; não falo
aqui daquelas dos animais, que a lei divina nos con ou, mas dos seres
racionais com os quais ela vive em uma comunhão de privilégios igual
e fraterna. É especialmente sobre eles que a alma, em seu orgulho,
deseja exercer sua in uência, mais ainda do que sobre os corpos, dada
a superioridade da realidade anímica face àquela corporal. Ora, só
Deus pode agir sobre as almas, não por intermédio dos corpos, mas
por seu poder imediato. No entanto, na condição em que nos
encontramos por conta do pecado, a alma pode agir sobre outras
almas, manifestando-lhes sua vontade por intermediários sensíveis, ou
seja, pela linguagem natural, como a expressão da sionomia ou os
gestos, ou por sinais de convenção, como as palavras. Pois, seja dando
ordens ou empregando um método de persuasão, ela recorre a signos:
o mesmo vale em toda outra espécie de comunicação das almas entre
si. Disso decorre uma conseqüência mui natural: é que todas as almas
que desejam exercer seu poder movidas pelo orgulho não podem
governar nem os próprios órgãos aos quais estão unidas e nem os
outros corpos, seja porque eles não têm, neles mesmos, uma razão
su cientemente poderosa, seja porque elas se deixam abater sob o
peso das correntes de sua mortalidade. Assim, pois, os números e
movimentos que fazem agir as almas umas sobre as outras têm por
efeito arrancá-las, pelo desejo da glória e da magni cência, da
contemplação da simples e pura verdade. Com efeito, só Deus glori ca
a alma santa, dando-lhe a graça de levar secretamente, em sua
presença, uma vida de justiça e de piedade.
Esses movimentos que a alma produz sobre outras almas que lhe são
vinculadas ou a elas estão submetidas assemelham-se aos movimentos
de progresso, pois ela age com essas almas como agiria com seu corpo.
Quanto aos movimentos que ela produz quando deseja submeter
certas almas, entram na classe dos movimentos de reação. Pois a alma
age então como faria com uma impressão dos sentidos, esforçando-se
para assimilar um objeto exterior e rejeitar aquilo que lhe é impossível
assimilar. Essas duas espécies de movimentos são colhidas pela
memória, que lhes comunica a propriedade de se reproduzir, em meio
à agitação à qual ela se lança para imaginá-los em sua ausência e
inventar objetos semelhantes àquilo que a alma deseja. Para apreciar
aquilo de bom ou mau contido nesses atos, elevam-se na alma os
números de juízo, que podemos ainda chamar de sensíveis, pois a
alma, para agir sobre outra alma, emprega signos sensíveis. Entregue a
essa miríade de esforços complexos a alma desvia-se da contemplação
da verdade: e quem se surpreenderia? Sem dúvida, ela a entrevê, nos
momentos de calma que lhe sobram, mas como ainda não pôde se
liberar disso tudo, é-lhe impossível xar sua atenção e demorar-se na
verdade. Por conseguinte, não basta à alma conhecer o objeto sobre o
qual deve se demorar para de fato nele permanecer efetivamente. Você
não teria qualquer objeção a fazer contra essa explicação?
A: Não vejo como contestar.
XIV. A alma se eleva ao amor de Deus pelo conhecimento da
ordem e da harmonia experimentado nas coisas
M: Após termos examinado as causas da corrupção e do
rebaixamento da alma, só nos resta tratar dessa in uência soberana
que vem do alto e que, puri cando-a e liberando-a de seu fardo,
permite que ela retome seu vôo rumo à morada da paz, entrando na
alegria de seu Senhor.
A: Examinemos pois essa questão.
M: Mas você acha que eu teria algo a dizer sobre esse tema, quando
a divina Escritura, em diversos livros de uma autoridade, de uma
santidade incomparáveis, não faz outra coisa além de nos admoestar a
amar Nosso Senhor de todo nosso coração, de toda nossa alma, de
todo nosso espírito, e de amar o próximo como a si mesmo? Se,
portanto, nós conseguimos conectar a essa nalidade todos os
movimentos e todos os números da atividade humana, seremos
puri cados, sem dúvida. Você não concorda?
A: Seguramente. Mas se é verdade que esse princípio é bem
conhecido, é por outro lado extremamente difícil pô-lo em prática.
M: E o que, então, seria fácil? Será amar as cores, o canto, os
requintados manjares, as rosas, os objetos macios e polidos? Ora essa!
Será fácil à alma amar objetos em que ela busca unicamente a
harmonia e a proporção, e que só lhes oferecem, se ela os considera
com um pouco de atenção, uma sombra e um vestígio fugidio dessas
belezas; e será que lhe é difícil amar a Deus, em quem seu pensamento
frágil, todo corrompido e alterado, não pode perceber nenhuma
desproporção, nenhuma mudança, nenhum limite no espaço,
nenhuma sucessão no tempo? Será que ela irá encontrar sua felicidade
erguendo magní cos edifícios, realizando obras desse gênero? Mas se
é a harmonia que a encanta em tais obras — e não posso ver outra
causa possível de prazer —, qual beleza de proporção e conjunto que
não se revelará ridícula se comparada ao puro ideal? E, se assim é, por
que ela se deixa rebaixar desse verdadeiro centro da harmonia a essas
misérias, erguendo edifícios de barro com suas próprias ruínas? Não é
essa a promessa daquele que não nos engana: “Meu jugo é suave”.21
O amor voltado ao Mundo conduz ao sofrimento, pois os bens que a
alma nele busca — quero dizer, o imutável e o eterno — não podem
nele ser encontrados; pois essa ín ma beleza do Mundo só existe por
meio do movimento das coisas, e aquilo que nela oferece a aparência
de imutabilidade lhe vem de Deus por meio da alma; para a alma que,
só se alterando com o tempo, prima sobre o Mundo, que se altera com
o tempo e os lugares.22 É por essa razão que, se o Senhor prescreveu
às almas aquilo que elas devem amar, o Apóstolo João lhes prescreve o
que elas devem odiar: “Não ameis o Mundo […]. Porque tudo o que
há no Mundo — a concupiscência da carne, a concupiscência dos
olhos e a soberba da vida — não procede do Pai, mas do Mundo”.23
Que pensar do homem quando ele consegue ordenar todos os
números que têm o corpo por objeto e que são uma reação às
impressões naturais, ou que, após essas impressões, nascem e são
guardados na memória? Que dizer do indivíduo que busca menos os
prazeres da carne que a saúde do corpo? Que vê nos números que se
produzem seja para manter ou para fazer nascer a união das almas, e
naqueles números que, em seguida, são gravados na memória, um
meio não de exercer um império do orgulho, mas de ser útil às
próprias almas? Que pensar deste homem quando en m ele se serve
dos números, sejam eles sensíveis ou racionais, reguladores soberanos
dos números que passam sucessivamente pelos ouvidos não para
satisfazer uma curiosidade inútil ou perigosa, mas para manifestar
aprovação ou uma necessária condenação? Não será certo dizer que
ele vê surgir, em si, todos os números sem jamais fazer mau uso dos
mesmos? De fato, esse homem busca a saúde do corpo para poder
bem agir, e emprega tudo isso ao bem do próximo, o qual ele deve
amar como a si mesmo, em virtude da comunhão de direitos que liga
todos os homens entre eles.
A: O que você acaba de descrever é o retrato de um homem superior,
ou melhor, o ideal da virtude humana.
M: Por conseguinte, é o amor à beleza inferior que degrada e rebaixa
a alma, e não os seus números, inferiores à razão mas belos em seu
gênero. Se a alma volta seu amor a essa beleza, a essa harmonia de
que tratamos su cientemente ao longo desta obra, tão logo ela decai
da ordem superior a que pertence; isso não a exclui da ordem
universal, pois ela se encontrará numa posição de onde ainda é
possível ouvir o chamado de uma hierarquia perfeita às almas assim
degradadas. Mas uma coisa é possuir a ordem, e outra é ser possuído
por ela. A alma se submete à ordem quando se volta inteiramente
àquilo que está acima dela, quero dizer a Deus, e ama como a ela
mesma as outras almas irmãs. Pela força desse amor ela ordena as
coisas inferiores e não se deixa corromper nem manchar por elas. O
que mancha a alma, com efeito, não é mau;24 pois o corpo em si é
obra de Deus, ele é dotado de sua beleza particular, ainda que de uma
ordem inferior, e só se torna baixo e desprezível às custas da dignidade
da alma, tal como o belo ouro perde seu brilho quando misturado à
mais na prata. Assim, não excluamos das obras da Providência essas
harmonias que nascem numa condição mortal, nosso castigo cá
embaixo; pois elas têm sua beleza particular; tampouco as amemos
como se quiséssemos obter a felicidade total em tais gozos. Dado que
elas são temporais, tomemo-las como uma prancha em meio ao mar:
não é rejeitando-as como um fardo nem nos prendendo a elas como
um sólido meio de salvação, mas empregando-as corretamente que
conseguiremos experimentá-las com o devido desprendimento. E se
amamos nosso próximo em toda a extensão do mandamento divino,
encontraremos nesse amor a escada que nos faz galgar até Deus:
então, longe de nos sentirmos aprisionados na ordem universal que ele
estabeleceu, observaremos tranqüilamente, e sem agitação, a ordem
que nos é própria.
Quanto ao fato de a alma buscar a ordem, as harmonias sensíveis
parecem ser disso uma prova evidente, sim? De onde vem a sucessão
estabelecida entre os diferentes pés, primeiramente o pirríquio, a
seguir o jambo, em terceiro o troqueu, e assim tantos outros? Você me
dirá que é a razão e não o ouvido que xou essa sucessão, o que é
verdade. Mas não será preciso ao menos reconhecer como um
privilégio do ouvido o instinto que impede que se confunda oito
sílabas longas com dezesseis breves, ainda que sua duração seja a
mesma? E quando a razão controla essa impressão do ouvido, e sabe
que o proceleusmático é um equivalente do espondeu, ela só tem por
prova consistente a beleza mesma dessa ordem: pois uma sílaba longa
só é longa por comparação com uma breve, uma breve só é breve por
comparação com uma longa, e, por conseguinte, se pronunciamos um
verso jâmbico prolongando as sílabas tanto quanto se queira,
contanto que se guarde a relação de um para dois, o verso preserva
seu nome de jâmbico; se, ao contrário, pronunciamos lentamente um
verso composto de pirríquios, ele se transforma num verso
espondaico, não do ponto de vista da prosódia, mas da música.
Quanto ao verso datílico ou anapéstico, como é a mistura das breves e
longas que nos faz reconhecê-los, mantêm sua designação, seja qual
for o tempo que se leve para pronunciá-los.25 Aliás, por que não nos
servimos do mesmo procedimento e colocamos meios-pés
complementares, seja no m ou no começo do metro, e não podemos
nos servir indistintamente de todos os meios-pés que são marcados da
mesma maneira? Por que se prefere por vezes dispor ao nal duas
breves ao invés de uma longa? Não será uma exigência do ouvido? O
que comanda, aqui, não é a relação de igualdade, já que a medida é a
mesma com uma longa ou duas breves, mas uma relação de ordem.
Custaria-nos tempo demais estudar nas medidas de tempo tudo o que
diz respeito a essa questão. Em linhas breves, o que ocorre é que o
próprio ouvido rejeita as formas aprovadas pelos olhos, seja por causa
de sua monotonia exagerada, seja por conta de um início em
contratempo, e outros defeitos análogos em que ele condena, não uma
relação de desigualdade — de vez que a simetria das partes subsiste
—, mas uma falsa harmonia. En m, quando em todas as operações de
nossos sentidos nós nos acostumamos pouco a pouco com ações que,
de início, achávamos desagradáveis, e acabamos por ter prazer em
algo que antes padecíamos a duras penas, não é verdade que
empregamos aí a ordem e bordamos com ela como que uma trama de
prazeres, sem jamais formar um todo cujo início, o meio e o m são
incapazes de formar um conjunto harmonioso?
Portanto, não depositemos nossas alegrias nem nos prazeres da
carne, nem no renome e glória junto ao Mundo, nem na busca das
coisas que agem desde o exterior sobre os órgãos: tratemos de possuir,
no fundo de nós mesmos, Deus, em quem tudo o que amamos é
imutável e eterno. Desse modo, as coisas do século se nos apresentam
sem nos envolver em suas tramas; os objetos exteriores ao corpo se
distanciam sem nos causar dor; e mesmo o nosso corpo pode desse
modo se decompor sem sofrimento — ou sem sofrimento demasiado
— e se vê conectado a sua natureza primeira para poder receber uma
nova forma. Uma miríade de problemas e dores nascem da atenção
que a alma dirige ao corpo, de seu apego a um objeto único e
particular em detrimento da lei universal; pois com efeito nenhum
objeto pode escapar da ordem universal da qual Deus é o árbitro. E
aquele que não ama as leis torna-se delas escravo.
XV. Após a ressurreição, a alma realizará em paz os
movimentos do corpo: a perfeição da alma consistirá então em
quatro virtudes
M: Se, nos momentos em que nosso pensamento está profundamente
concentrado nas coisas imateriais e imutáveis, realizamos movimentos
simples e corriqueiros como caminhar em um bosque, entoar uma
salmodia, vemos que os números referentes a esses movimentos
simples se realizam com grande leveza, como que inconscientes —
ainda que não pudessem existir sem nós; se, en m, quando estamos
mergulhados em nossos vãos fantasmas, produzimos também números
sem nos dar conta, quanto mais esse estado de alma não será mais
elevado e durável quando nosso corpo corruptível se vir revestido da
incorruptibilidade, quando nossa mortalidade se tiver revestido da
imortalidade?26
Em outras palavras, tentando expressar essa verdade em termos
simples, quando Deus tiver vivi cado nossos corpos mortais “pelo seu
Espírito que habita em vós”,27 como diz o Apóstolo, qual não será
nossa felicidade, vendo somente Deus e a verdade pura, face a face,
como foi dito? Com que alegria não veremos elevar-se em nós, sem a
menor di culdade, os números destinados a mover os órgãos? Com
efeito, não seria possível crer que a alma pode encontrar sua felicidade
nos bens que nascem graças a ela, sem que ela pudesse antes encontrar
a felicidade nos bens que a tornam, ela mesma, boa.
Ora, que é isso que permite à alma, com a ajuda de seu Deus e
Senhor, arrancar-se do amor à beleza inferior, combatendo
energicamente e destruindo os hábitos nefastos? Que é que permite
que a alma triunfe sobre os demônios, alçando seu vôo rumo a Deus,
malgrado a inveja e os esforços contrários das forças dos ares? Que é
isso, senão a virtude a que chamamos temperança?
A: Posso reconhecê-la, e distingo perfeitamente seus traços naquilo
que você descreve.
M: Prossigamos: quando ela caminha a grandes passos a caminho do
Céu, saboreando desde já as alegrias eternas e parece mesmo tocá-las,
será que a perda dos bens perecíveis ou a morte poderia amedrontá-
la? Será que ela se perturbaria se fosse forte o su ciente, dizendo aos
seus colegas menos perfeitos e medrosos: “[…] por uma parte,
desejaria desprender-me para estar com Cristo — o que seria
imensamente melhor; mas, de outra parte, continuar a viver é mais
necessário, por causa de vós…”?28
A: Seguramente, não.
M: A essa disposição que lhe permite enfrentar as adversidades e a
morte, podemos chamá-la fortaleza? Sim ou não?
A: Concordo uma vez mais.
M: E essa ordem segundo a qual ela só serve a Deus, só reconhece
por iguais as almas mais puras, só quer exercer sua dominação sobre
os animais e a natureza física — qual virtude será essa, na sua
opinião?
A: A justiça! Como não vê-la nessa descrição?
M: Você está certo.
XVI. Como essas quatro virtudes29 são o apanágio dos bem-
aventurados
M: Agora, uma questão: havíamos concordado anteriormente que a
prudência consiste em compreender o lugar que a alma deve ocupar,
subindo a ele por meio da temperança — em outras palavras, da
conversão do amor para Deus chamado caridade que nos faz
renunciar ao Mundo. E a temperança é acompanhada da fortaleza e
da justiça. Isso exposto, você acha que, depois de ter atingido o objeto
de seu amor e de suas dores por uma santi cação perfeita, após ter
visto seu corpo vivi cado, as imaginações desordenadas banidas de
sua memória, começando uma vida em Deus e tão-somente por Deus,
en m, após ter experimentado essa promessa divina: “Caríssimos,
desde agora somos lhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que
havemos de ser. Sabemos que, quando isso se manifestar, seremos
semelhantes a Deus, porquanto o veremos como Ele é”,30 você acha,
repito, que essas virtudes da alma de que acabamos de falar
continuarão a existir na alma?
A: Não. Pois uma vez que as coisas contra as quais a alma luta
desaparecem, não vejo mais a razão de ser da prudência, que só pode
trazer a luz ali onde existem contradições; nem da temperança, que só
serve para desviar o amor de um m funesto; da fortaleza, que só
serve para resistir às infelicidades; nem da justiça, que só aspira à
igualdade com as almas bem-aventuradas ou ao domínio sobre os
seres inferiores nas lutas que a impedem de atingir seus ns.
M: Sua resposta não é completamente desprovida de sentido — sua e
também de alguns lósofos, devo dizer. Mas ao consultar os Livros da
mais alta autoridade, encontro: “Provai e vede como o Senhor é
bom”,31 passagem repetida pelo Apóstolo Pedro, “se é que tendes
saboreado quão suave é o Senhor”.32 É nisso precisamente que
consiste, a meu ver, o efeito dessas virtudes que puri cam a alma e a
convertem. Pois o encanto das coisas perecíveis só poderia ser vencido
por uma certa atração pelas coisas eternas. Mas o que ocorrerá no
momento que nos for revelado por essas palavras: “À sombra de
vossas asas se refugiam os lhos dos homens. Eles se saciam da
abundância de vossa casa, e lhes dais de beber das torrentes de vossas
delícias, porque em vós está a fonte da vida”? Veja que efusão
in ndável de tesouros celestes nos aguarda! Pode-se mesmo dizer que
viveremos uma embriaguez divina, e essa palavra me parece exprimir
maravilhosamente o esquecimento das vaidades e dos sonhos
mundanos. O salmista acrescenta: “E é na vossa luz que vemos a luz.
Continuai a dar vossa bondade aos que vos honram”.33 Por luz
devemos entender o Cristo, que é a sabedoria de Deus e é chamado
diversas vezes de luz. Portanto, as palavras vemos e aos que vos
honram nos mostram claramente que a prudência subsistirá no Céu.
Pois será possível que, sem a prudência, a alma veja e conheça seu
verdadeiro bem?
A: Compreendo.
M: Por acaso é possível ter um coração reto sem auxílio da justiça?
A: É verdade, lembro-me que a expressão coração reto é com
freqüência associada à justiça.
M: Não nos é possível ver essa aliança de idéias expressa pelo
Profeta, quando ele exclama, num tom inspirado: “[…] e a vossa
justiça aos retos de coração”.
A: Está bem claro.
M: Pois bem! Peço que você recorde que a alma, tal como
demonstramos su cientemente, pode se deixar levar pelo orgulho,
agindo voluntariamente contra a lei universal, sucumbindo a suas
próprias vontades. A isso chamamos apostasia ou abandono de Deus.
A: Sim, eu me lembro.
M: Portanto, nos momentos em que a alma se esforça para se
arrancar desses prazeres egoístas, não lhe parece que ela está dirigindo
todo seu amor a Deus e, ao se afastar daquilo que é impuro, levando
uma vida de temperança, pureza e calma?
A: Seguramente.
M: Perceba também que o Profeta acrescenta: “Não me calque o pé
do orgulhoso”. Por pé, ele quer dizer a apostasia e a queda da qual a
alma se preserva para se unir a Deus e viver eternamente.
A: Compreendo e concordo com seu pensamento.
M: Resta-nos ainda a fortaleza. Ora, se a temperança nos preserva
da queda que depende de nossa livre vontade, a fortaleza nos serve
principalmente para combater a violência que pode conduzir uma
alma pouco vigorosa à sua ruína e degradação. Essa violência tem, na
Escritura, um nome muito expressivo: é a mão.34 E quem pode
cometer essa violência, senão os pecadores? Se, portanto, a alma se
equipa contra tal violência e tem por salvaguarda o apoio de Deus,
que a coloca ao abrigo dos ataques, ela possui um poder sólido e, por
assim dizer, invencível, poder que chamamos com razão de fortaleza
— você há de concordar — e penso que o Profeta o evoca, ao dizer:
“Não me faça fugir a mão do pecador”.35
Ademais, independentemente do sentido que damos a essas palavras,
você negaria que a alma, tendo chegado a essa perfeição e a essa
felicidade, contempla a verdade, vive sem mancha, ca inacessível a
toda espécie de pena e sujeita tão-somente a Deus, e que, en m, ela
domina soberanamente todos os outros seres?
A: Não concebo para ela nenhuma outra perfeição, nenhuma outra
felicidade.
M: É essa contemplação da verdade, essa santi cação, esse império
sobre a sensibilidade e essa harmonia que compõem as quatro virtudes
em seu estado de absoluta perfeição; ou, para não gerar problemas
com as palavras quando estamos de acordo quanto às coisas, temos o
direito de esperar que essas quatro virtudes de que a alma se serve ao
longo de seu combate terrestre encontrem atributos análogos na
eternidade.
XVII. Sobre as harmonias geradas pela alma pecadora e
daquelas que a dominam. Conclusão da obra
M: Lembremo-nos desse ponto essencial na estrutura de nossa obra, a
saber que por uma lei dessa Providência que guiou Deus em todas as
suas criações, a alma pecadora e desafortunada é governada por
harmonias de uma escala tão baixa quanto possa alcançar a corrupção
da carne: essas harmonias se afastam gradativamente da beleza, mas
não podem delas se dissociar por completo. Deus, soberanamente bom
e soberanamente justo, não tem inveja de beleza alguma, seja aquela
produzida na condenação da alma, na sua conversão ou na sua
permanência. Ora, a harmonia encontra seu princípio na unidade; ela
extrai sua beleza da proporção e da simetria, e, na ordem, sua
coerência. Assim podemos reconhecer que, para subsistir, todo ser
aspira à unidade, esforça-se para permanecer semelhante a si mesmo e
mantém, no tempo ou no espaço, sua própria ordem ou, em outras
palavras, garante a saúde de seu organismo por meio de certo
equilíbrio: reconhecemos ao mesmo tempo que todo ser e toda vida,
em todos os níveis da Criação, provêm de um só princípio, que se
reproduz em imagem de si próprio, perfeitamente igual a ele mesmo,
graças ao tesouro dessa bondade em que o uno se une ao uno oriundo
do uno, na mais perfeita caridade.36
Assim, pois, esse verso que já havíamos citado:
Deus creator omnium,
não somente agrada o ouvido por uma cadência harmoniosa, como
provoca na alma uma alegria ainda mais deliciosa graças à pureza e
verdade do pensamento que exprime. Sem dúvida você não se deixará
refrear, aqui, por esses espíritos um pouco pesados — para dizer o
mínimo — que dizem que do nada nada pode vir, ainda que digamos
que Deus Todo-Poderoso tenha realizado esse milagre. Ora! Ao
artesão é possível produzir os números sensíveis de sua arte graças aos
números racionais referentes a sua prática, e pelos números sensíveis
produzir números de progresso segundo os quais ele coloca seus
membros em ação, e que regem também os intervalos de tempo. Ele
pode, repito, realizar sobre a madeira formas visíveis, em harmonia
com as divisões do espaço. E à natureza por sua vez, obediente ao que
Deus lhe comunica, não seria pois possível fazer nascer a própria
madeira da terra, bem como outros elementos? Se, pois, os objetos
criados pelo homem não depõem contra a criação natural que os
precedem, se tudo isso é possível, como não será possível a Deus
extrair todos esses elementos do nada? É, ao contrário, coisa
necessária que os números temporais precedam dos números espaciais
da árvore. De fato, dentre os vegetais, não vemos nenhum que, no
tempo devido, não brote, cresça, suba aos ares, desenvolva sua
folhagem, fortaleça-se e dê frutos, contendo a semente destinada a
reproduzi-lo em virtude de movimentos misteriosos que se operam no
próprio vegetal; essa lei é ainda mais perceptível no corpo dos
animais, nos quais os membros oferecem ao olhar uma simetria mais
regular. E se essas maravilhas se operam com os elementos, não será
possível que eles próprios, os elementos, tenham sido criados do nada?
Como se houvesse neles algo mais baixo, mais vil que a própria terra!
Mas uma parcela de terra, por menor que seja, deve se estender no
espaço, a partir de um ponto indivisível, desenvolver-se em largura e
em profundidade, formando um corpo completo. Qual é, pois, esse
princípio dessa dimensão que se desenvolve desde um ponto formando
um volume? Qual é o princípio dessa simetria das partes num corpo
sólido, produzido pelas três dimensões? Qual é o princípio dessa
analogia, dessa relação que extrai numa proporção exata, do ponto
geométrico o comprimento, do comprimento a largura, da largura a
profundidade? Qual é esse princípio senão a fonte eterna e suprema da
harmonia, da proporção da simetria e da ordem? Ora, retire-se da
terra essas propriedades e ela nada mais é. Assim, a onipotência de
Deus criou a terra, e a terra foi criada do nada.
Aliás, não é possível pela própria gura da terra, que a distingue dos
outros elementos, perceber a propriedade essencial que lhe foi
comunicada? Nenhuma de suas partes é diferente do todo, e a
a nidade e a harmonia das partes entre elas lhe faz ocupar o mais
baixo nível, posição relativamente vantajosa. Sobre ela corre a água, a
qual tende também à unidade, mais brilhante e transparente quanto
mais semelhantes forem as suas partes, mantendo-se no lugar que
corresponde à sua ordem e conservação. O que dizer do ar, que, por
sua propriedade de se condensar, tende ainda mais facilmente à
unidade, que é ainda mais transparente que a água e que se eleva
acima tanto da água como da terra, conservando-se nas alturas? Que
dizer então da abóbada celeste, dessa circunferência onde acaba o
mundo visível dos corpos, dessa região a mais elevada e a mais pura
em seu gênero?
Ora, quanto a todos os elementos que nós distinguimos por meio
dos sentidos, e todos os objetos que eles contêm, só lhes é possível
receber e manter os números espaciais que se manifestam em diversos
estados se forem precedidos de uma in uência, silenciosa e interior,
dos números temporais, os quais por sua vez estão em movimento;
esses números que se desdobram e se movem nas divisões do tempo
são previamente regidos pelo movimento da vida, o qual depende
unicamente do Mestre do Universo, que concede em seu poder divino
a graça do tempo aos seres vivos. Acima das harmonias da vida vêm
aquelas puras e perfeitamente intelectuais das almas santas e bem-
aventuradas: a lei de Deus, sem a qual nem uma folha cai de uma
árvore e na qual todos os os de cabelo estão contados, comunica-se
sem intermediário a essas harmonias, que a transmitem por sua vez às
harmonias que regem a Terra e os Infernos.37
: Tratei com você, segundo minhas capacidades, desses
temas; quão grandes são eles e quão pequeno sou eu! Se esse diálogo
vier a cair entre as mãos de alguns leitores, que estes guardem em
mente que os homens que o compuseram são in nitamente mais
fracos que aqueles que adoram a Trindade consubstancial e imutável
do Deus Todo-Poderoso e único, princípio de tudo, autor de tudo,
centro de tudo, que o adoram, repito, unindo-se unicamente à
autoridade dos dois Testamentos e o honram por atos de fé, de
esperança e de amor. Não são absolutamente os frágeis lumes do
raciocínio humano que os iluminam, mas o mais ardente fogo da
caridade. Nós, que não queremos ver condenadas as almas pela ação
de hereges e de suas falsas promessas de loso a e de ciência, devemos
desbravar tais caminhos; e marchamos num passo mais lento que os
santos personagens; eles, em seus vôos rápidos, sequer precisam
examinar tais questões. Nós, no entanto, não ousaríamos fazê-lo, se
não víssemos que muitos dos lhos piedosos da Igreja Católica, nossa
excelente Mãe, tendo recebido por meio da educação o talento da
palavra e da argumentação, viram-se obrigados a agir de igual modo
para combater a heresia.

1 O diálogo se passa no campo.


2 Ret. L. 1, cap. XI, nº 2.
3 Ecl 7, 25.
4 Eis a passagem bíblica tal como consta no texto latino deste tratado: “Circuivi ego et cor
meum, ut scirem et considerarem et quaererem sapientiam et numerum”. Entenda-se pois,
razão e número, aqui, como sinônimos — NT.
5 Vemos, aí, como que um pressentimento das ondas sonoras da física moderna.
6 Ret. L. 1, cap. XI, nº 3.
7 Rm 7, 24.
8 Na tradução bíblica francesa, tem-se: Quem me livrará deste corpo que me acarreta a
morte? A graça de Deus, em nome de Jesus Cristo Nosso Senhor. — NT.
9 Progressores: ou seja, que resultam dos movimentos da alma rumo ao corpo, quando ela
não é estimulada por nenhum som vindo do exterior.
10 Occursores: ou seja, que resultam dos movimentos pelos quais a alma reage às impressões
recebidas pelo corpo (v. cap. V). Essa terminologia compreende idéias bastante precisas, e
ademais os lósofos jamais se proibiram de recorrer a neologismos para expressar seus
pensamentos e evitar as perífrases. V. cap. IX, no qual o próprio autor explica todas essas
distinções.
11 Trata-se portanto de um verso jâmbico.
12 Imagem encantadora. As horas estão para o dia, os meses para o ano, como as breves
estão para as longas em um jambo.
13 Trata-se do primeiro verso e hino de Santo Ambrósio: Agostinho o ouvira cantar com
freqüência em Milão.
14 Anfíbraco: cercado de todos os lados, ou seja, uma longa cercada por duas breves.
15 Número aqui é tomado no sentido próprio de algarismo: cf. l. 4, cap. VII e sobretudo cap.
XII.
16 Mt 6, 21.
17 “phantasíai”. — NT..
18 Σαπρόφιλοι — amante das coisas repulsivas.
19 Os olhos e o nariz, por exemplo.
20 Entre outras signi cações: pena, esforço. — NT.
21 Mt 11, 30
22 Retórica l. I, cap. XI, nº 4.
23 1Jo 2, 15–16.
24 Não é o objeto em si que nos corrompe, mas o abuso que dele se faz. Lembre-se aqui do
fruto proibido.
25 Do mesmo modo como, na música moderna, os movimentos allegro ou andante etc. não
mudam em nada o valor intrínseco das notas, a relação de uma mínima para uma
semínima, de uma semínima para uma colcheia mantendo-se a mesma.
26 1Cor 15, 53.
27 Rm 8, 11.
28 Fl 1, 23–24.
29 Incluindo aí a prudência, de que Santo Agostinho tratará logo a seguir.
30 1Jo 3, 2.
31 Sl 33, 9.
32 1Pd 2, 3.
33 Sl 35: “Veremos a luz” e “aos que vos conhecem” na tradução bíblica francesa. — NT.
34 “Braço”, na tradução francesa; manus no latim. — NT.
35 Idem. — NT.
36 Nesse “um só princípio, que se reproduz em imagem de si próprio” e nessa unidade
oriunda da unidade, todo leitor inteligente entenderá que se está a tratar do maior de todos
os mistérios.
37 Retórica, L. I, cap. XI.

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