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OS

FANTOCHES
DE DEUS
OS
FANTOCHES
DE DEUS

MORRIS
WEST
Tradução de
A. B. PINHEIRO DE LEMOS

Digitalização: Argo, o caçador de Fantoches


Para
aqueles que amo
com
os agradecimentos do fundo do coração

«Quem sabe se o mundo não pode acabar esta noite?»

— ROBERT BROWNING
«The Last Ride Together»
NOTA DO AUTOR

A partir do momento em que se aceita a existência de Deus, não


importando como se possa defini-Lo, não importando como se
explique o relacionamento pessoal com Ele, fica-se para sempre preso
à sua presença no centro de todas as coisas. E se fica também
dominado pelo fato de que o homem é uma criatura que vive em dois
mundos, gravando nas paredes de sua caverna as maravilhas e as
experiências de pesadelo de sua peregrinação espiritual.
PRÓLOGO

No sétimo ano de seu reinado, dois dias antes de completar 65 anos,


na presença de um consistório pleno de cardeais, Jean Marie Barette,
Papa Gregório XVII, assinou um instrumento de abdicação, tirou o
anel do Pescador, entregou o sinete ao Cardeal Carmelengo e fez um
curto discurso de despedida:
— Chegou o momento, meus irmãos! Está feito o que pediram.
Tenho certeza de que poderão explicar tudo da melhor forma possível
à Igreja e ao mundo. Espero que elejam um bom homem. Deus sabe
que vão precisar!
Três horas depois, acompanhado por um coronel da Guarda Suíça,
ele se apresentou no Mosteiro de Monte Cassino e colocou-se sob a
obediência do abade. O coronel voltou imediatamente para Roma e
comunicou ao Cardeal Carmelengo que sua missão fora cumprida.
O Carmelengo deixou escapar um longo suspiro de alívio e iniciou
ás formalidades de proclamar que o Trono de Pedro estava vago e
seria realizada uma eleição o mais depressa possível.
LIVRO UM

«Achei-me no espírito, no dia do Senhor,


e ouvi por trás de mim grande voz, como de
trombeta, dizendo: O que vês escreve
em livro e manda às sete igrejas.»

— Revelação de São João, o Divino


1:10-11
CAPÍTULO l

Ela parecia uma camponesa, corpulenta, de faces coradas, vestida


num tecido de lã ordinário, os cabelos grisalhos, lisos, escorrendo do
chapéu de palha. Sentou-se empertigada na cadeira, as mãos cruzadas
sobre a bolsa grande e antiquada, de couro marrom. Estava cautelosa,
mas sem demonstrar qualquer medo, como se estudasse a mercadoria
em algum mercado desconhecido.
Carl Mendelius, Professor de Estudos Bíblicos e Patrísticos de Wi-
lhelmsstift, outrora conhecido como o Egrégio Colégio da Universidade
de Tübingen, esticou os dedos por baixo da mesa, unindo as pontas,
enquanto sorria por cima. E tratou de estimular a mulher, gentilmente:
— Queria falar-me, madame?
— Disseram-me que fala francês.
O sotaque da mulher era tipicamente do Midi.
— Falo, sim.
— Meu nome é Thérèse Mathieu. Na religião, sou... era chamada de
Irmã Mechtilda.
— Devo presumir que deixou o convento?
— Fui dispensada de meus votos. Mas ele disse que eu deveria usar
sempre o anel da minha fé, pois ainda estava no serviço do Senhor.
Ela ergueu a mão grande, áspera e calosa, exibindo a aliança de prata
no dedo anular.
— Ele? Quem é ele?
— Sua Santidade, o Papa Gregório: Eu estava entre as irmãs que o
serviam. Limpava seu gabinete e os aposentos particulares. Servia-lhe
café. Às vezes, nos dias de festa, enquanto as outras irmãs descansavam

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eu lhe preparava uma refeição. Ele dizia que gostava da minha comida,
que o fazia lembrar-se de sua casa... Conversava comigo nessas
ocasiões. Conhecia muito bem o lugar em que eu nasci. Sua família
tinha vinhedos na região. E quando minha sobrinha ficou viúva, com
cinco filhos pequenos e o restaurante para cuidar, contei-lhe tudo. Ele
se mostrou muito compreensivo e disse que talvez minha sobrinha
precisasse mais de mim que o Papa, que já contava com muitos
servidores. Ajudou-me a pensar livremente e compreender que a
caridade era a mais importante das virtudes... Minha decisão de voltar
ao mundo foi tomada na ocasião em que as pessoas no Vaticano
começaram a falar todas aquelas coisas horríveis... que o Santo Padre
estava doente da cabeça, que poderia ser perigoso... e tudo o mais. No
dia em que deixei Roma, fui pedir-lhe a bênção. E ele me pediu como
um favor especial, que viesse a Tübingen e lhe entregasse pessoalmente
esta carta. Colocou-me sob a obediência de não contar a ninguém o que
me dissera ou o que estava levando. E aqui estou...
Ela abriu a bolsa de couro, tirou um envelope estofado e estendeu-o
por cima da mesa. Carl Mendelius ficou segurando o envelope por um
momento, pensativo, como se o sopesasse. Depois, largou-o no lado da
mesa e perguntou:
— Veio de Roma diretamente para cá?
— Não. Passei pela casa de minha sobrinha e lá fiquei por uma
semana. Sua Santidade disse que eu deveria fazer isso. Era natural e
apropriado. Ele me deu o dinheiro para a viagem e um donativo para
ajudar minha sobrinha.
— Deu algum outro recado para mim?
— Apenas que lhe enviava o seu amor. Disse-me também que
deveria responder a quaisquer perguntas que me fizesse.
— Ele encontrou uma fiel mensageira. — Carl Mendelius estava
solene e gentil. — Aceita um café?
— Não, obrigada.
Ela tornou a cruzar as mãos sobre a bolsa e esperou, a freira perfeita,
até mesmo em seu traje de camponesa. Mendelius formulou a pergunta
seguinte com extremo cuidado:
— Esses problemas, essas conversas no Vaticano, quando
começaram? O que os causou?
— Sei quando começaram. — Não havia qualquer hesitação na
resposta. — Ao voltar da visita à América do Sul e Estados Unidos, ele
parecia doente e cansado. Houve em seguida as visitas dos chineses,
russos e africanos, que o deixaram muito preocupado. Depois que eles

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se retiraram, Sua Santidade decidiu passar duas semanas em retiro em
Monte Cassino. Foi depois que ele voltou que os problemas
começaram...
— Que tipo de problemas?
— Jamais compreendi direito. Deve saber que eu era uma
personagem insignificante, uma irmã que cuidava dos afazeres
domésticos. Fomos treinadas para não comentar assuntos que não eram
da nossa conta. A Madre Superiora sempre advertia contra tais
comentários. Mas notei que o Santo Padre parecia doente, que passava
muitas horas na capela, que havia freqüentes reuniões com membros
da Cúria, das quais eles saíam furiosos, conversando aos sussurros. Não
me lembro das palavras... a não ser o que ouvi o Cardeal Arnaldo
comentar um dia: ''Santo Deus! Estamos lidando com um louco!"
— E como o Santo Padre lhe parecia?
— Comigo, ele sempre foi o mesmo, gentil e polido. Mas era
evidente que estava preocupado. Pediu-me um dia que lhe buscasse
uma aspirina para tomar com o café. Perguntei-lhe se deveria chamar o
médico. Ele me lançou um sorriso estranho e disse: "Irmã Mechtilda,
não é de um médico que estou precisando, mas do dom da eloqüência.
Parece às vezes que estou ensinando música a surdos e pintura a
cegos..." Ao final, o médico dele acabou aparecendo, assim como
outros, em dias diferentes. Posteriormente, o Cardeal Drexel foi
procurá-lo... ele é o Decano do Sacro Colégio e um homem muito
rigoroso. Passou o dia inteiro nos aposentos do Santo Padre. Ajudei a
servir-lhes o almoço. Depois disso... tudo aconteceu.
— E ele não lhe deu qualquer explicação?
— A mim? — Ela fitou Mendelius aturdida, com uma surpresa
inocente. — Por que a mim? Eu não era ninguém. Mas, depois de dar-
me a bênção para a viagem, ele pôs as mãos em meu rosto e disse:
"Talvez, Irmãzinha, ambos tenhamos sorte por havermos encontrado
um ao outro." Foi a última vez em que o vi.
— E o que vai fazer agora?
— Vou para a casa de minha sobrinha, ajudá-la com as crianças,
cozinhar no restaurante. É um restaurante pequeno, mas bom,
poderemos mantê-lo para sustentar a família, se trabalharmos bastante.
— Tenho certeza de que tudo dará certo — disse Carl Mendelius,
respeitosamente. Ele levantou e estendeu a mão. — Obrigado, Irmã
Mechtilda. Obrigado por ter vindo procurar-me... pelo que fez por ele.
— Não foi nada. Ele era um bom homem. Compreendia os
sentimentos das pessoas comuns.
A pele da palma da mulher era ressequida e rachada, de lavar louça e

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do esfregão. Carl Mendelius sentiu-se envergonhado de suas mãos lisas
e macias, às quais Gregório XVII, Sucessor do Príncipe dos Apóstolos,
confiara a sua última e mais secreta mensagem.

Ele ficou sentado até tarde daquela noite em seu gabinete grande no
sótão, cujas janelas davam para a massa cinzenta da Stiftskirche de São
Jorge. As únicas testemunhas de sua meditação foram os bustos de
mármore de Melanchton e Hegel, um professor e outro discípulo da
antiga universidade. Mas estavam mortos há muito tempo e absorvidos
de perplexidade.
A carta de Jean Marie Barette, 17.° Gregório na linhagem papal,
estava aberta à sua frente, 30 páginas de letra inclinada, num impecável
estilo gálico, a crônica de uma tragédia pessoal e de uma crise política
de dimensões globais.

''Meu caro Carl:

Neste momento, na longa noite escura de minha alma, quando a


razão titubeia e a fé de uma vida inteira parece quase perdida, volto-me
para você, em busca da graça da compreensão.
Somos amigos há muito tempo. Seus livros e suas cartas sempre
viajaram comigo, uma bagagem mais essencial do que meias e sapatos.
Seus conselhos acalmaram-me em muitos momentos ansiosos. Sua
sabedoria foi uma luz a me orientar nos labirintos escuros do poder.
Embora os caminhos de nossas vidas tenham divergido, gosto de pensar
que nossos espíritos mantiveram uma unidade.
Se permaneci em silêncio durante os últimos meses de purgação, foi
porque não desejei comprometê-lo. Há algum tempo que venho sendo
atentamente vigiado, incapaz de garantir a privacidade até mesmo de
meus papéis mais pessoais. Na verdade, devo dizer-lhe que, se esta
carta cair em mãos erradas, você pode ficar exposto a um grave perigo.
Mais do que isso: se decidir executar a missão que lhe estou confiando,
o perigo vai dobrar a cada dia.
Começo pelo final da história. No mês passado, os cardeais do Sacro
Colégio, entre os quais alguns que eu acreditava serem meus amigos,
decidiram por grande maioria que eu estava, se não insano, pelo menos
não mais apto mentalmente para desempenhar as funções de Sumo
Pontífice. Tal decisão, cujos motivos lhe explicarei em detalhes, deixou
os cardeais num dilema ao mesmo tempo cômico e trágico.
Havia apenas dois meios de se livrarem de mim, a deposição ou a
abdicação. Para depor-me, eles teriam de apresentar a causa. E eu tinha

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certeza de que não se atreveriam a tanto... O cheiro de conspiração seria
forte demais, o risco de cisma muito grande. A abdicação, por outro
lado, seria um ato leal, que eu não poderia validamente realizar, se
estivesse insano.
Meu dilema pessoal era diferente. Eu não pedira para ser eleito.
Aceitara apreensivamente, mas confiando no Espírito Santo para
orientação e força. Acreditava... e ainda estou tentando
desesperadamente acreditar... que a luz me foi dada de uma maneira
muito especial e que era meu dever mostrá-la para um mundo já imerso
nas trevas da última hora dantes da meia-noite. Por outro lado, sem o
apoio de meus colaboradores mais destacados, os esteios da Igreja, eu
era impotente. Minhas palavras poderiam ser distorcidas, minhas
diretrizes anuladas. Os filhos de Deus poderiam ser lançados na
confusão ou levados à rebelião.
Foi então que Drexel veio procurar-me. Como você sabe, ele é o
Decano do Colégio dos Cardeais. Fui eu quem o designou para Prefeito
da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Ele é um formidável
cão de guarda, como você tem bons motivos para saber. Em particular,
no entanto, é um homem sensível e compreensivo. Ele estava
profundamente angustiado. Era o emissário de seus irmãos cardeais.
Discordava da opinião deles, mas estava incumbido de transmitir a
decisão deles. Pediram-me que abdicasse e me retirasse para a
obscuridade num mosteiro. Se recusasse, eles tomariam as providências
necessárias, apesar dos riscos, para declarar-me legalmente insano e
colocar-me em confinamento, sob constante supervisão médica.
Como você pode muito bem imaginar, fiquei terrivelmente chocado.
Jamais acreditara; que eles pudessem atrever-se a tanto. Foi então que
experimentei um momento de absoluto terror. Conhecia o bastante da
história deste cargo e de seus ocupantes para saber que a ameaça era
concreta. A Cidade do Vaticano é um Estado independente e não há
qualquer investigação exterior do que acontece dentro de suas muralhas.
Mas o terror logo passou e indaguei calmamente o que o próprio
Drexel pensava da situação. Ele respondeu sem qualquer hesitação. Não
tinha a menor dúvida de que seus colegas poderiam e cumpririam a
ameaça. Os danos, num momento crítico, seriam grandes, mas não
irreparáveis. A Igreja sobrevivera aos Teofilato e aos Bórgia e à
devassidão de Avignon. Sobreviveria também à loucura de Jean Marie
Barette. A opinião pessoal de Drexel, apresentada em termos de
amizade, era a de que eu deveria curvar-me ao inevitável e abdicar, sob
alegação de saúde precária. E depois ele acrescentou um comentário
que vou repetir-lhe literalmente: 'Faça o que eles estão pedindo... mas

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não mais, nem uma fração a mais! Irá embora. Vai retirar-se para uma
vida íntima. Contestarei pessoalmente qualquer documento que queira
obrigá-lo a mais do que isso. Quanto à luz que alega ter visto, a
orientação que diz ter recebido, não posso julgar se veio de Deus ou se
se trata de uma ilusão de um espírito tenso e sobrecarregado. Se é uma
ilusão, espero que não a acalente por muito tempo. Se veio de Deus,
então Ele lhe possibilitará, no devido tempo, torná-la manifesta. ...Mas,
se for declarado insano, então ficará completamente desacreditado e a
luz será apagada para sempre. A História, especialmente a História da
Igreja, é sempre escrita para justificar os sobreviventes.'
Compreendi o que ele estava dizendo-me, mas ainda não podia
aceitar uma solução tão terrível. Conversamos durante o dia inteiro,
examinando todas as opções possíveis. Rezei sozinho pela noite afora.
Finalmente, em cansaço extremo, acabei por ceder. Às nove horas da
manhã seguinte, chamei Drexel e disse-lhe que estava disposto a
abdicar.
Foi assim, meu caro Carl, que aconteceu. O porquê levará muito mais
tempo para relatar. Depois, você também será obrigado a julgar-me.
Enquanto escrevo estas palavras, meu temor não é tanto que seu
veredicto possa ser contra mim. Temo muito mais pela fragilidade
humana. Ainda não aprendi a confiar no Senhor cujo evangelho prego!
..."

O apelo lancinante comoveu Mendelius profundamente. As letras se


transformaram num borrão diante de seus olhos doloridos. Ele se
recostou na cadeira e entregou-se às recordações. Conheceram-se em
Roma, há mais de duas décadas, quando Jean Marie Barette era o
Cardeal Diácono, o mais jovem membro da Cúria, enquanto o Padre
Carl Mendelius, S.J, ensinava o seu primeiro curso sobre elementos de
interpretação bíblica, na Universidade Gregoriana. O jovem Cardeal
fora um convidado de sua aula sobre as comunidades judaicas nos
princípios da Igreja. Posteriormente, haviam jantado juntos e
conversado pela noite afora. Já eram amigos ao se separarem.
Nos dias sombrios, depois que Mendelius fora denunciado por
suspeita de heresia à congregação para a Doutrina da Fé, Jean Marie
Barette apoiara-o inabalavelmente durante os longos meses de
inquisição. Quando sua vocação sacerdotal não mais o satisfazia e
pedira para ser secularizado e dispensado dos votos a fim de poder
casar-se, Barette defendera sua causa junto a um relutante e irascível
Pontífice. Quando ele se candidatara a uma cátedra em Tübingen, a

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recomendação mais exuberante fora assinada por "Gregorius XVII,
Pont. Max."
Agora, as posições estavam invertidas. Jean Marie Barette estava no
exílio, enquanto Carl Mendelius florescia num casamento feliz e uma
vida profissional plena. Qualquer que fosse o custo, no entanto, ele
devia saldar as dívidas de amizade. Mendelius tornou a inclinar-se
sobre a carta.

... "Conhece as circunstâncias da minha eleição. Meu antecessor,


nosso Papa populista, realizara sua missão. Centralizara novamente a
Igreja. Reforçara a disciplina. Restabelecera a linha dogmática
tradicional. Seu enorme charme pessoal, o charme de um grande ator,
disfarçara por algum tempo suas atitudes essencialmente radicais. Na
velhice, ele se tornou mais intransigente, cada vez menos suscetível a
argumentos. Considerava-se o Martelo de Deus, golpeando as forças da
impiedade. Foi difícil convencê-lo de que, a menos que ocorresse um
milagre, não restariam quaisquer homens, ímpios ou não. Estávamos na
última década do século e a apenas um passo da guerra global. Quando
assumi, numa solução de compromisso, depois de um conclave de seis
dias, fiquei aterrorizado.
Não preciso repetir-lhe todo o texto apocalíptico: a situação terrível
do Terceiro Mundo, lançado à beira da fome total, o risco diário de
colapso econômico no Ocidente, o custo cada vez mais alto da energia,
a desenfreada corrida armamentista, a tentação para os militaristas de
jogarem a sua última cartada desesperada, enquanto ainda podiam
calcular as chances de vitória no conflito atômico. Para mim, o
fenômeno mais assustador era o clima de desespero insidioso entre os
líderes mundiais, o senso de impotência oficial, a estranha regressão
atávica a uma visão mágica do universo.
Conversamos muitas vezes sobre a proliferação de novos cultos e sua
manipulação por lucro e poder. O fanatismo estava igualmente
explodindo nas religiões antigas. Alguns dos nossos próprios fanáticos
queriam que eu proclamasse um Ano Mariano, promovendo
gigantescas peregrinações a todos os santuários da Virgem, no mundo
inteiro. Mas não concordei. Um pânico de devotos era a última coisa de
que precisávamos.
Achei que o melhor serviço que a Igreja podia oferecer era o da
mediação, com razão e caridade para todos. Era também a tarefa que
eu, como Pontífice, estava mais bem capacitado a desempenhar. Deixei
que todos soubessem que iria a qualquer lugar e receberia qualquer

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pessoa, na causa da paz. Tentei deixar bem claro que não possuía
fórmulas mágicas, não tinha ilusões de poder. Conhecia perfeitamente a
terrível inércia das instituições, a loucura matemática que leva os
homens a lutarem até a morte pela equação de compromisso mais
simples. Disse a mim mesmo e tentei convencer os líderes das nações
de que mesmo um único ano de adiamento de Armagedom já seria uma
vitória. Não obstante, o medo de um holocausto iminente atormentava-
me dia e noite, minava as minhas reservas de coragem e confiança.
Cheguei finalmente à conclusão de que, para manter algum senso de
perspectiva, precisava de descansar um pouco e reforçar meus recursos
espirituais. Assim, resolvi fazer um retiro de duas semanas no Mosteiro
de Monte Cassino. Conhece bem o lugar. Foi fundado por São Benedito
no século VI. Paulo, o Diácono escreveu suas histórias ali. Meu
homônimo, Gregório IX, ali fez as pazes com Frederick von
Hohenstaufen. Mais do que tudo, era um lugar isolado e sossegado. O
Abade Andrew era um homem de excepcional discernimento e
devoção. Eu me colocaria sob a sua orientação espiritual e me dedicaria
a um breve período de silêncio, meditação e renovação interior.
Foi isso o que planejei, meu caro Carl. E foi o que comecei a fazer.
Estava lá há três dias quando o evento ocorreu."

A frase terminava no fim de uma página. Mendelius hesitou por um


instante, antes de passar para a página seguinte. Sentiu um calafrio de
aversão, como se lhe fosse pedido que testemunhasse um ato físico
íntimo. Teve de forçar-se a continuar a leitura.

..."Chamo de evento, porque não quero influenciar a sua avaliação do


que aconteceu e também porque, para mim, permanece um fato de
dimensão física. Aconteceu. Não imaginei. A experiência foi tão real
quanto o café da manhã que acabara de tomar no refeitório.
Eram nove horas da manhã de um dia ensolarado. A poucos metros
de distância, um monge estava cuidando de um canteiro de flores. Eu
me sentia muito plácido e relaxado. Comecei a ler o 14.° Capítulo do
Evangelho de São João, que o Abade me propusera para a meditação
daquele dia. Deve estar lembrado como começa, com a fala de Cristo
na Última Ceia: 'Não se conturbe vosso coração; credes em Deus, crede
também em mim'... O texto em si, transbordando de conforto e
confiança, estava de acordo com meu ânimo. Quando cheguei ao
versículo 'Aquele que me ama será amado por meu pai'... fechei o livro
e levantei os olhos.

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Tudo ao meu redor mudara. Não havia mosteiro, jardim ou monge
trabalhando. Eu estava sozinho, num pico alto e árido. Em torno, havia
apenas montanhas escarpadas, negras, contra um céu escuro e
ameaçador. O lugar era quieto e silencioso como um túmulo. Não senti
medo, mas apenas um vazio terrível e desolador, como se todo o meu
cerne tivesse sido removido e restasse somente a casca. Sabia o que
estava vendo, a conseqüência da suprema loucura do homem... um
planeta morto. Não posso encontrar palavras adequadas para o que
aconteceu em seguida. Foi como se de repente eu me enchesse de flama,
sendo apanhado por um turbilhão intenso, arrancado de todas as
dimensões humanas e projetado para o centro de uma vasta luz
insuportável. A luz era uma voz e a voz era uma luz. Era como se eu
estivesse sendo impregnado com sua mensagem. Eu estava no fim de
tudo, o começo de tudo, o ponto-ômega do tempo, o ponto-alfa da
eternidade. Não havia mais quaisquer símbolos, apenas a Realidade, una
e indivisível. A profecia se consumava. A ordem emergia do caos, a
verdade suprema se tornava manifesta. Num mundo de intensa agonia,
compreendi que devia anunciar esse evento, preparar o mundo para o
seu advento. Estava sendo convocado a proclamar que Os Últimos Dias
estavam próximos e que a humanidade deveria preparar-se para a
Parúsia, o Segundo Advento de Jesus.
No instante em que a agonia parecia que ia explodir e levar-me à
extinção, tudo acabou. Eu estava de volta ao jardim do claustro. O
monge cuidava de suas rosas. O Novo Testamento estava em meu colo,
aberto no Capítulo 24 de Mateus: 'Pois assim como o relâmpago sai do
oriente e se mostra até no ocidente, assim há de ser a vinda do Filho do
Homem.' Acidente ou presságio? Isso parecia não ter mais qualquer
importância.
E aí está, Carl, o mais próximo que posso reconstituir em palavras,
para o mais íntimo amigo do meu coração. Quando tentei explicar aos
meus colegas em Roma, pude perceber o choque em seus rostos. Um
Papa com uma revelação pessoal, um arauto do Segundo Advento?
Loucura! O absurdo final explosivo! Eu era uma bomba-relógio
ambulante, que tinha de ser desativada o mais depressa possível. E, no
entanto, eu não podia ocultar o que me acontecera, assim como não era
capaz de alterar a cor dos meus olhos. Estava impresso em cada fibra
do meu ser, como os padrões genéticos de meus pais. Eu estava
compelido a falar a respeito, condenado a anunciar a um mundo
avançando para a extinção inexoravelmente, temerariamente, em
disparada.
Comecei a trabalhar numa encíclica, uma carta à Igreja Universal.

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Começava com as palavras seguintes: 'In his ultimis annis fatalibus...
Nestes últimos anos fatídicos do milênio...' Meu secretário encontrou o
esboço na mesa, fotografou-o secretamente e distribuiu cópias à Cúria.
Todos ficaram horrorizados. Separadamente e em conjunto, instaram
me para que suprimisse o documento. Como recusei, puseram meus
aposentos sob sítio virtual, bloquearam toda e qualquer comunicação
com o mundo exterior. Depois, convocaram uma reunião de emergência
do Sacro Colégio, convocaram uma equipe de médicos e psiquiatras
para verificar meu estado mental, desencadeando assim a sucessão de
acontecimentos que levaram à minha abdicação.
Agora, em minha angústia, volto-me para você, não apenas porque é
meu amigo, mas porque também esteve sob inquisição e sabe como a
razão se abala sob a pressão implacável do interrogatório. Se julga que
estou insano, então o absolvo de antemão por qualquer culpa e lhe
agradeço a amizade que tivemos o privilégio de partilhar.
Mas, se puder acreditar pelo menos parcialmente que lhe transmiti
uma verdade simples e terrível, então estude os dois documentos
anexos a esta carta: uma cópia da minha encíclica inédita à Igreja
Universal e uma relação das pessoas em vários países com as quais
estabeleci vínculos de amizade durante o meu pontificado e que podem
estar ainda dispostas a confiar em mim ou num mensageiro da minha
parte. Tente entrar em contato com tais pessoas, fazê-las entender o que
ainda podem fazer, nestes últimos anos fatídicos. Não creio que
possamos impedir o cataclisma inevitável, mas tenho de insistir até o
fim na proclamação das s boas-novas de amor e salvação.
Se aceitar tal missão, correrá grande risco... talvez mesmo de vida.
Lembre-se do Evangelho de Mateus: 'E depois eles haverão de entregá-
lo para ser torturado e posto à morte... e muitos se trairão e odiarão uns
aos outros.'
Sairei daqui para a solidão de Monte Cassino. Confio em que poderei
chegar com segurança. Se tal não acontecer, eu me entrego, assim como
encomendo a você e sua família, aos cuidados e amor de Deus.
Já é muito tarde. A misericórdia do sono há muito que me é negada,
mas talvez a tenha agora, depois de escrever esta carta.

Sempre unidos em Cristo,


Jean Marie Barette"

Por baixo da assinatura, estava rabiscado um adendo breve e irônico:


"Feu le Pape". Antes o Papa.
Carl Mendelius estava entorpecido pelo choque e fadiga. Não podia

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ler o texto em letras pequenas da encíclica. A lista comprida de nomes e
países era como se estivesse escrita em sânscrito. Dobrou a carta e os
documentos, depois trancou-os no velho cofre preto, onde mantinha a
escritura da casa, as apólices de seguros e as partes mais preciosas de
sua pesquisa material.
Lotte certamente o esperava lá embaixo, tricotando placidamente ao
lado do fogo. Não podia enfrentá-la até que recuperasse o controle e
imaginasse alguma resposta às perguntas inevitáveis:
— O que dizia a carta, Carl? O que realmente aconteceu com o nosso
querido Jean Marie?
O que realmente acontecera? Qualquer outra coisa que Carl
Mendelius pudesse ser, padre fracassado, marido apaixonado, pai
perplexo, crente cético, era acima de tudo um historiador objetivo,
rigoroso na aplicação das regras de evidência interna e externa. Era
capaz de farejar uma interpolação de texto a um quilômetro de
distância, seguindo-a com uma precisão meticulosa até sua fonte,
agnóstica, maniquéia ou essênia.
Sabia que a doutrina da Parúsia, o Segundo Advento do Redentor,
que assinalaria o fim de todas as coisas temporais, era a mais antiga e
autêntica na tradição. Estava registrada nos Evangelhos Sinópticos,
encerrada no Credo, recordada todos os dias na liturgia: "Cristo morreu,
Cristo se foi, Cristo voltará." Representava a mais profunda esperança
do crente na justificativa final do desígnio divino, a suprema vitória da
ordem sobre o caos, do bem sobre o mal. O fato de Jean Marie Barette,
antes um Papa, acreditar e pregar tal coisa como artigo de fé era tão
natural e necessário como respirar.
Mas que isso devesse relacionar-se com a forma restrita e primitiva
da crença, de um cataclisma universal iminente, seguido por um
julgamento universal, para o qual os eleitos deviam preparar-se, era
inquietante, para dizer o mínimo. A tradição milenar assumia muitas
formas, nem todas religiosas. Estava implícita na idéia do Reich de mil
anos de Hitler, na promessa marxista de que o capitalismo acabaria por
definhar e cederia seu lugar à fraternidade universal do socialismo. Jean
Marie Barette não precisava de nenhuma visão para moldar a sua
versão do milênio. Poderia tê-la extraído praticamente pronta de uma
centena de fontes, do Livro de Daniel aos profetas de Cévenol, do
século XVII.
Até mesmo a sua suposta visão era um elemento familiar e
perturbador no padrão. O ministro de uma religião organizada era
convocado e ordenado para propagar uma doutrina imutável e há muito

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definida. Se ultrapassava os limites de sua delegação, podia ser
silenciado ou excomungado pela mesma autoridade que o designara.
O profeta era outro tipo de criatura, inteiramente diferente. Ele
alegava ter uma comunicação direta com o Todo-Poderoso. Assim, sua
delegação não podia ser retirada por qualquer agente humano. Podia
contestar o passado mais sagrado com a frase clássica, usada pelo
próprio Jesus: "Assim está escrito... mas eu digo assim e assim." O
profeta era sempre o estranho, o arauto da mudança, o contestador da
ordem estabelecida.
O problema dos cardeais não era a loucura de Jean Marie Barette,
mas sim o fato de ele aceitar a função de alto-sacerdote e supremo
mestre, para depois assumir outro papel, possivelmente contraditório.
É claro que, em teoria, não precisava haver qualquer contradição. A
doutrina da revelação particular, de uma comunicação pessoal direta
entre Criador e criatura, era tão antiga quanto a da Parúsia. O Espírito
baixado sobre os apóstolos em Pentecostes, Saulo envolvido na estrada
para Damasco, João tendo a revelação apocalíptica em Patmos... tudo
isso eram eventos alicerçados na tradição. Seria tão inconcebível que
naquela última década fatídica do milênio, quando a possibilidade de
destruição planetária era um fato comprovado e um perigo intenso,
Deus pudesse escolher um novo profeta para renovar seu apelo ao
arrependimento e salvação?
Em termos teológicos, era pelo menos uma proposição ortodoxa.
Para Carl Mendelius, o historiador, chamado a emitir julgamento sobre
a sanidade de um amigo, era uma especulação altamente perigosa.
Contudo, ele estava agora cansado demais para confiar em seu
julgamento sobre a questão mais simples. Assim, ele trancou a porta de
seu gabinete e desceu.
Lotte, loura, rechonchuda, afetuosa e contente como uma gata em seu
papel de mãe de dois filhos e Frau Professor Mendelius, sorriu-lhe e
levantou o rosto para ser beijado. Dominado por um súbito ímpeto de
paixão, Mendelius abraçou-a e assim a manteve por um longo tempo.
Ela o fitou com uma expressão irônica.
— Por que isso?
— Eu a amo.
— Também o amo.
— Vamos deitar-nos.
— Não posso ainda. Johann telefonou para dizer que esqueceu a
chave. Prometi que ficaria à sua espera. Quer tomar um conhaque?
— Está bem. É a melhor coisa.

22
Enquanto servia o conhaque, Lotte formulou exatamente as perguntas
que ele temia. Mendelius sabia que não poderia esquivar-se. Ela era
inteligente demais para aceitar meias-verdades. Assim, disse-lhe
bruscamente:
— Os cardeais obrigaram-no a abdicar, achando que ele estava louco.
— Louco? Essa não! Eu diria que não pode haver ninguém mais
lúcido.
Lotte entregou-lhe o copo e sentou-se no tapete ao seu lado,
repousando a cabeça nos joelhos dele. Fizeram um brinde mútuo.
Mendelius afagou a testa e os cabelos da mulher.
— Por que os cardeais acham que ele está louco, Carl?
— Porque ele declarou que teve uma revelação pessoal de que o fim
do mundo está próximo e que era o precursor do Segundo Advento.
— O quê?
Lotte engasgou com o conhaque. Mendelius entregou-lhe o lenço,
para que enxugasse a blusa.
— É verdade, liebchen. Ele descreve a experiência na carta que me
enviou. Acredita com absoluta convicção. E agora que foi silenciado,
ele quer que eu ajude a espalhar a notícia.
— Ainda não posso acreditar. Ele sempre foi tão... tão francês e
prático! Talvez tenha mesmo enlouquecido.
— Um louco não poderia escrever-me a carta que ele escreveu. Uma
ilusão, uma idéia fixa... isso eu poderia aceitar. Pode acontecer, como
resultado de stress ou mesmo como uma decorrência de um exercício
imperfeito de lógica. Homens sãos acreditaram outrora que o mundo
era plano. Pessoas sãs orientam suas vidas pelos horóscopos que saem
nos jornais... E milhões de pessoas, como você e eu, acreditam num
Deus que não podem provar.
— Mas não saímos por aí dizendo que o mundo vai acabar amanhã!
— Não, liebchen, não fazemos isso. Mas sabemos que pode
acontecer, se os russos e americanos apertarem o botão vermelho.
Todos vivemos à sombra dessa realidade. E nossos filhos estão tão
conscientes disso quanto nós.
— Não, Carl, por favor!
— Desculpe-me.
Ele se inclinou e beijou-a no alto da cabeça. Lotte comprimiu a mão
dele contra seu rosto. Alguns momentos depois, ela perguntou baixinho:
— Vai fazer o que Jean Marie está querendo?
— Não sei, Lotte. Sinceramente, não sei. Terei de pensar a respeito,
com todo cuidado. Terei de conversar com as pessoas que lhe eram

23
mais chegadas. Depois, vou querer conversar com ele... Devo pelo
menos isso a Jean Marie. Ambos lhe devemos.
— Isso significa que você terá de se ausentar.
— Apenas por pouco tempo.
— Detesto quando você viaja. Sinto muita saudade.
— Pois então vamos juntos. Faz tempo que você não vai a Roma.
Teria muitas pessoas para visitar.
— Não posso ir, Carl. E você sabe disso. As crianças precisam de
mim. Este é um ano muito importante para Johann e preciso ficar de
olho em Katrin e seu namorado.
Era o pequeno conflito familiar entre os dois: o apego excessivo de
Lotte aos filhos crescidos e o ciúme de meia-idade de Mendelius pela
atenção dela. Mas naquela noite ele estava cansado demais para uma
discussão e assim adiou o problema.
— Conversaremos sobre isso em outra ocasião, liebchen. Preciso de
alguns conselhos profissionais antes de sair de Tübingen.

Aos 53 anos, Anneliese Meissner já conquistara diversas distinções


acadêmicas... a mais notável de todas sendo provavelmente o fato de ter
sido eleita por unanimidade como a mais feia professora de toda a
universidade. Era atarracada, gorda, amarelada, a boca de sapo e olhos
quase que totalmente ocultos pelas lentes grossas da miopia. Os cabelos
eram uma verdadeira confusão de Medusa, de um amarelo desbotado.
A voz era áspera, meia rouca. Vestia-se de uma maneira um tanto
masculina e sempre desastrosamente desmazelada. Acrescentem-se a
tudo isso um espírito sardônico e um desdém implacável pela
mediocridade e se tem, nas palavras de um colega, "o perfil perfeito de
uma personalidade fadada à alienação".
Contudo, por algum milagre, ela escapara à tragédia e se estabelecera
como uma espécie de deusa tutelar à sombra do velho castelo de
Hohentübingen. O apartamento dela no Burgsteige era mais como um
clube do que uma habitação, em que estudantes e professores se
acomodavam em bancos e caixotes para tomar vinho e empenhar-se em
discussões acaloradas pela madrugada afora. Suas aulas sobre
psicologia clínica estavam sempre lotadas, seus artigos eram publicados
em uma dúzia de línguas. Na mitologia estudantil, ela tinha até um
amante, algum ente fantástico que vivia nas Montanhas Harz e que a
visitava secretamente aos domingos e nos feriados do calendário
universitário.

24
Um dia depois de receber a carta de Jean Marie, Carl Mendelius
convidou-a para almoçar num reservado do Weinstube Forelle.
Anneliese Meissner comeu e bebeu copiosamente, mas mesmo assim
conseguiu fazer monólogos sobre a administração dos recursos da
universidade, a política local de Land Baden-Württemberg, a tese de
um colega sobre a depressão endógena, que descartou como uma
"bobagem pueril", e as vidas sexuais dos operários turcos na indústria
de papel local. Já estavam no café quando Mendelius julgou que era
oportuno formular sua pergunta.
— Se eu lhe mostrasse uma carta, poderia oferecer-me uma opinião
clínica sobre a pessoa que a escreveu?
Ela fixou seu olhar míope em Mendelius e sorriu. O sorriso era
aterrador. Parecia que Anneliese estava prestes a devorá-lo junto com
as migalhas de sua strudel.
— Vai mostrar-me a carta, Carl?
— Se quiser aceitar o assunto como um contato profissional e
confidencial.
— Vindo de você, Carl, claro que aceito. Mas antes que me mostre
essa carta, é melhor compreender alguns dos axiomas de minha
disciplina. Não quero que me mostre um documento que obviamente é
importante para você e depois ouvi-lo queixar-se de que meu
comentário é inadequado. Entendido
— Entendido.
— Em primeiro lugar: a escrita, em diversos espécimes, é uma
indicadora segura de estados cerebrais. Até mesmo a simples hipóxia,
que é o suprimento insuficiente de oxigênio ao cérebro, produz uma
rápida deterioração da escrita. Segundo: mesmo nas mais graves doenças
psicóticas, o paciente pode ter períodos lúcidos, em que seus escritos ou
pronunciamentos são completamente racionais. Hölderlin morreu nesta
nossa cidade de esquizofrenia irrecuperável. Mas poderia acreditar nisso
pela leitura de Pão e Vinho ou Empédocles no Etna? Nietzsche morreu
da paralisia geral dos insanos, provavelmente em decorrência de infecção
sifilítica. Mas poderia diagnosticar isso exclusivamente pela leitura de
Assim Falava Zaratustra? Terceiro: qualquer carta pessoal contém
indicações de estados emocionais ou mesmo propensões psicóticas... mas
são apenas indicações. Os estados podem ser superficiais, as propensões
podem estar dentro dos limites da normalidade. Estou sendo bem clara?
— Admiravelmente, Professora! — Carl Mendelius fez um gesto
cômico de rendição. — Entrego minha carta em mãos seguras.

25
Ele a estendeu por cima da mesa, acrescentando:
— Há outros documentos, mas ainda não tive tempo de estudá-los.
O autor da carta é o Papa Gregório XVII, que abdicou na semana
passada.
Anneliese Meissner contraiu os lábios grossos num assovio de
surpresa, mas nada disse. Leu a carta lentamente, sem fazer qualquer
comentário, enquanto Mendelius tomava café e mastigava petits fours...
péssimos para a cintura, mas melhor do que o hábito de fumar, que ele
estava tentando desesperadamente abandonar. Anneliese finalmente
terminou a leitura. Pôs a carta sobre a mesa, à sua frente, cobrindo-a
com as mãos recheadas. Escolheu as primeiras palavras com um
cuidado clínico:
— Não tenho certeza, Carl, se sou a pessoa certa para comentar esta
carta. Não sou uma crente, nunca fui. Qualquer que seja a faculdade
que permite a uma pessoa pular da razão para a fé, eu nunca a possuí.
Algumas pessoas são surdas para os tons, outras cegas para as cores. Eu
sou uma ateia incurável. É algo que muitas vezes lamentei. No trabalho
clínico, senti-me às vezes em desvantagem por isso, ao lidar com
pacientes com fortes convicções religiosas. — Ela soltou uma risada
sibilante. — Afinal, Carl, na minha opinião, você e todos de sua espécie
vivem num estado de ilusão, o que é basicamente insanidade. Por outro
lado, como não posso contestar suas ilusões, tenho de admitir a
possibilidade de ser eu a doente.
Mendelius sorriu e engoliu o último petit four.
— Já concordamos que suas conclusões serão consideradas
confidenciais. Sua reputação estará segura comigo.
— Portanto, vamos limitar-nos à carta. — Ela a pegou novamente e
começou a análise. — Caligrafia: não há qualquer indício de distúrbio.
É uma escrita bonita e regular. A carta propriamente dita é precisa e
lógica. Os trechos de narrativa possuem uma simplicidade clássica. As
emoções do autor estão sob controle. Mesmo quando ele fala que está
sendo vigiado, não há uma ênfase excessiva para indicar um estado
paranóico. O trecho em que narra a experiência visionária é claro e
objetivo, dentro de seus limites. Não há imagens patológicas, com uma
conotação violenta ou sexual... Prima facie, portanto, o homem que é o
autor da carta estava são quando a escreveu.
— Mas ele expressa dúvidas sobre a própria sanidade.
— Na verdade, não é isso o que ele faz. Reconhece que outros podem
ter dúvidas a respeito. Está absolutamente convencido da realidade de
sua experiência visionária.

26
— E o que você acha dessa experiência?
— Estou convencida de que ele a teve. Como eu a interpretaria, é
outra questão. Estou igualmente convencida de que Martinho Lutero
julgava mesmo ter visto o Demônio em sua cela e lhe atirado um
tinteiro. Isso não significa que eu acredite no demônio, mas apenas na
realidade da experiência para Lutero.
Ela tornou a rir, antes de continuar, de uma maneira mais
descontraída:
— Você é um velho jesuíta, Carl. Sabe do que estou falando. Lido
constantemente com pacientes em estado de ilusão. Tenho de partir da
premissa de que tais ilusões são reais para eles.
— Está querendo dizer então que Jean Marie é uma vítima de
ilusões?
— Não ponha palavras em minha boca, Carl! — A censura foi
imediata e brusca. Ela estendeu a carta para Mendelius. — Dê outra
olhada no trecho da visão e nas partes imediatamente anterior e
posterior. Enquadra-se perfeitamente numa estrutura de devaneio. Ele
está lendo e meditando num jardim ensolarado. Toda meditação
envolve algum grau de auto-hipnose. Ele sonha em dois pontos: as
conseqüências do cataclisma sobre uma terra vazia e depois a passagem
em turbilhão para o espaço exterior. As duas imagens são vividas, mas
essencialmente banais. Podem ter sido extraídas de qualquer bom filme
de ficção científica. Ele já pensou nisso muitas vezes antes. E agora
sonha acordado. Ao despertar, está de volta ao jardim. É fenômeno
comum.
— Mas ele acredita numa intervenção sobrenatural.
— Ele diz que acredita.
— Como assim?
Anneliese Meissner respondeu taxativamente:
— Ele pode estar mentindo!
— É inteiramente impossível. Conheço o homem. Somos íntimos
como irmãos.
— Uma analogia infeliz — disse Anneliese, suavemente. — As
relações fraternas podem ser terrivelmente complicadas. Acalme-se,
Carl. Você queria uma avaliação profissional e é justamente o que lhe
estou dando. Procure ao menos examinar objetivamente uma hipótese
racional.
— Mas essa é pura fantasia!
— É mesmo? Você é um historiador. Pense um pouco. Quantos
milagres convenientes pode recordar sem maiores dificuldades?
Quantas revelações que surgiram no momento oportuno? Cada seita do

27
mundo precisa proporcionar essas coisas a seus devotos. Os mórmons
têm Joseph Smith e seus fabulosos pratos de ouro. O Reverendo Sun
Myung Moon intitulou-se o Senhor do Segundo Advento, até mesmo
Jesus curvou-se para reverenciá-lo. Assim, Carl, vamos supor... apenas
supor!... que o seu Gregório XVII chegou à conclusão de que este era o
momento de grave crise para a instituição, a ocasião oportuna para
alguma nova manifestação de envolvimento divino.
— Neste caso, ele se estava metendo numa jogada infernal.
— E perdeu-a. Ele não poderia estar agora tentando salvar alguma
coisa dos destroços e usando-o com esse objetivo?
— É uma idéia monstruosa!
— Não para mim. Por que sente um choque tão grande? Vou
explicar-lhe o motivo. Gosta de imaginar que é um pensador liberal,
mas ainda pertence à família católica romana. Para o seu próprio bem,
tem de proteger os mitos. Notei que não manifestou qualquer reação
quando mencionei os mórmons e os moonies. Vamos, meu amigo, onde
está sua inteligência?
— Parece que a perdi.
Carl Mendelius estava sombrio.
— Se quer um conselho, esqueça tudo isso.
— Por quê?
— É um estudioso com uma reputação internacional. Não vai querer
envolver-se com a loucura ou o mito.
— Jean Marie é meu amigo. Devo-lhe pelo menos uma investigação
objetiva.
— Então vai precisar de um Beisitzer... um assessor para ajudá-lo a
avaliar as provas.
— Não gostaria de assumir essa função, Anneliese? Poderia
proporcionar-lhe algumas percepções clínicas novas.
Mendelius falou como um gracejo, a fim de abrandar a conversa.
Mas o resultado foi inesperado. Anneliese avaliou a proposta por um
longo momento e depois anunciou, firmemente:
— Está certo. Aceito a proposta. Será uma experiência nova bancar a
inquisidora de um Papa. Mas quero que saiba, meu caro colega — ela
estendeu a mão grande e apertou o pulso de Mendelius — que estou
muito mais interessada em mantê-lo honesto!

Depois que encerrou sua aula, ao final da tarde, Carl Mendelius foi
até a beira do rio e ficou sentado ali, por muito tempo, contemplando a
passagem imponente dos cisnes pelas águas escuras.
Anneliese Meissner deixara-o profundamente perturbado. Ela

28
contestara não apenas o seu relacionamento com Jean Marie Barette,
mas também a sua integridade como um estudioso, a sua posição moral
como alguém a buscar a verdade. Anneliese sondara astutamente o
ponto mais fraco de sua armadura intelectual: a inclinação para fazer
julgamentos mais brandos sobre sua própria família religiosa do que em
relação a outros. Apesar de toda a sua disposição cética, ainda tinha
uma obsessão divina, ainda estava condicionado aos reflexos
pavlovianos do passado jesuíta. Preferia conformar suas descobertas
como historiador à tradição ortodoxa, ao invés de enfrentar as
contradições existentes. Preferia o conforto do aconchego familiar à
solidão do inovador. Até aquele momento, ainda não traíra a si próprio.
Podia olhar-se no espelho e respeitar o homem que via. Mas o perigo
estava à espreita, como a luxúria insidiosa, prestes a se incender, no
momento certo, com a mulher certa.
No caso de Jean Marie Barette, o perigo de autotraição poderia ser
mortal. A questão era clara e não podia disfarçá-la ou contorná-la.
Havia três possibilidades, que se excluíam mutuamente. Jean Marie era
um louco. Jean Marie era um mentiroso. Jean Marie era um homem
com quem Deus se comunicara, encarregado de transmitir uma
revelação da maior importância.
Ele tinha duas opções: recusar-se a qualquer envolvimento, o que era
um direito de qualquer homem honesto que se sentisse incompetente,
ou submeter todo o caso à mais rigorosa investigação, agindo sem
medo e sem predisposição diante das provas que surgissem. Aliás,
dificilmente poderia fazer outra coisa, tendo Anneliese Meissner como
sua Beisitzer, brusca e intransigente.
Mas o que seria de Jean Marie Barette, amigo querido de tanto
tempo? Como reagiria quando os rigorosos termos da investigação lhe
fossem expostos? Como se sentiria quando o amigo que procurara
como advogado se apresentasse como Grande Inquisidor? Mais uma
vez, Carl Mendelius descobriu-se a ter medo da confrontação.
Ao longe, para os lados da Klinikum, soou a sirene de uma
ambulância... um gemido alto e insistente, meio lúgubre ao crepúsculo
que se adensava. Mendelius estremeceu sob o impacto de uma
recordação de infância: o som das sirenes de ataque antiaéreo e depois
o zumbido dos aviões e as explosões ensurdecedoras das bombas
incendiárias que choviam sobre Dresden.

Ao chegar a casa, Mendelius encontrou a família sentada diante do


aparelho de televisão. O novo Papa fora eleito numa sessão vespertina
do Conclave e estava sendo agora proclamado como Leão XIV. Não

29
havia qualquer emoção na ocasião. Os comentários eram destituídos de
entusiasmo. Até mesmo a multidão romana parecia apática e as
aclamações tradicionais não exibiam qualquer vigor.
O novo Pontífice estava com 69 anos, era um homem corpulento, de
nariz adunco, olhos frios, um áspero e desagradável sotaque do norte da
Itália e 25 anos de prática dos negócios da Cúria. Sua eleição era o
resultado de uma diplomacia cuidadosa, mas perfeitamente óbvia.
Depois de dois papas estrangeiros, eles precisavam de um italiano
que compreendesse e aceitasse as regras do jogo papal. Depois de um
ator que se tornara fanático e de um diplomata que se tornara místico, a
escolha mais segura era a de Roberto Arnaldo, um burocrata com
sangue gelado nas veias. Ele faria apenas os pronunciamentos mais
necessários, impregnando-os tão cuidadosamente com a retórica
italiana que tanto os liberais como os conservadores reagiriam com a
maior satisfação. O mais importante de tudo era o fato de ele sofrer de
artritismo e uma elevada taxa de colesterol. Segundo os atuários,
deveria ter um papado nem muito curto nem muito longo.
As notícias sustentaram a conversa à mesa de jantar de Mendelius.
Ele se sentiu satisfeito por isso, porque Johann estava mal-humorado
por causa de um ensaio que não conseguia desenvolver
satisfatoriamente, Katrin estava rabugenta e Lotte no ponto mais baixo
de uma das suas depressões da menopausa. Era uma daquelas noites
que servia como a melhor recomendação para a vida de celibatário,
pensava Mendelius, com um humor amargo. Contudo, ele era
experiente o bastante na vida conjugal para guardar tal pensamento.
Depois que o jantar acabou, Mendelius foi para o gabinete e
telefonou para Herman Frank, diretor da Academia Alemã de Belas-
Artes, em Roma.
— Herman? Aqui é Carl Mendelius. Estou ligando para pedir-lhe um
favor. Terei de passar de uma semana a 10 dias em Roma, no final do
mês. Poderia hospedar-me?
— Mas com o maior prazer! — Frank era um homem cortês, de
cabelos prateados, historiador dos pintores quinhentistas, mantendo
uma das melhores mesas de Roma. — Lotte vai acompanhá-lo? Temos
espaço disponível mais do que suficiente.
— Talvez. Ainda não está decidido.
— Pois trate de trazê-la! Hilde ficaria deliciada. Ela está precisando
de companhia feminina.
— Obrigado, Herman. Você é muito gentil.
— De jeito nenhum! Afinal, você poderá também prestar-me um
favor.

30
— Pode falar.
— Durante a sua estada aqui, a Academia estará recebendo um grupo
de pastores evangélicos. A coisa de sempre... Conferências todos os
dias, debates noturnos, passeios de ônibus durante a tarde. Seria um
triunfo para mim se pudesse anunciar que o grande Carl Mendelius vai
fazer duas conferências, talvez conduzir um debate...
— O prazer será imenso, meu amigo.
— Isso é maravilhoso! Providenciarei tudo. E basta avisar-me a data
de sua chegada que irei buscá-lo no aeroporto...
Mendelius desligou e soltou uma risadinha de satisfação. O convite
de Herman Frank para fazer uma conferência era mesmo um golpe de
sorte. A Academia Alemã era uma das mais antigas e mais prestigiosas
academias nacionais de Roma. Fundada em 1910, no reinado de
Wilhelm II, da Prússia, sobrevivera a duas guerras e aos ideólogos
irracionais do Terceiro Reich, conseguindo apesar de tudo manter uma
reputação de sólidos e profundos estudos germânicos. Assim,
proporcionava a Mendelius uma base de operações e uma cobertura
altamente respeitável para suas discretas e delicadas investigações.
O contingente alemão no Vaticano atenderia com o maior prazer a
um convite para jantar de Herman Frank. Entre os convidados, havia
sempre títulos exóticos como "Magnífico Reitor do Pontifício
Instituto Bíblico" e "Grão-Chanceler do Instituto de Arqueologia
Bíblica". A reação de Lotte à idéia seria outra coisa muito diferente.
Ele precisava de um momento mais propício para revelar a pequena
surpresa à mulher.
Sua providência seguinte era preparar uma relação dos contatos para
os quais deveria escrever, anunciando sua visita. Fora um habitante da
cidade por tempo suficiente para reunir uma miscelânea de amigos e
conhecidos, do velho e rude cardeal, que desaprovava a sua deserção,
mas ainda era generoso o bastante para apreciar sua erudição, ao
Guardião do Incunábulo na Biblioteca do Vaticano e à última matrona
do Pierleoni, que dirigia as bisbilhotices de Roma de sua cadeira de
rodas. Ele ainda estava relacionando nomes quando Lotte entrou na
sala, trazendo uma bandeja com o café. Ela parecia arrependida e
desolada, como se não soubesse que seria bem recebida.
— As crianças saíram e eu estava sentindo-me muito sozinha lá
embaixo. Importa-se com que eu fique sentada aqui com você?
Mendelius abraçou-a e beijou-a.
— Também estou sentindo-me solitário aqui em cima, liebchen.
Sente-se e relaxe. Vou servir o café.
— O que está fazendo?

31
— Aprontando nossas férias.
Mendelius relatou sua conversa com Herman Frank. Discorreu com
entusiasmo sobre os prazeres da cidade no verão, a oportunidade de se
encontrarem com velhos amigos, passearem um pouco. Lotte a tudo
ouviu com uma calma surpreendente e depois perguntou:
— No fundo, está indo a Roma por causa de Jean Marie, não é
mesmo?
— É, sim. Mas é também por nossa causa. Quero-a comigo, Lotte.
Preciso de você. Se as crianças quiserem ir, providenciarei
acomodações em algum hotel.
— Eles têm outros planos, Carl. Estávamos falando sobre isso antes e
você chegar a casa. Katrin quer ir para Paris com seu namorado. Johann
pretende fazer uma excursão a pé pela Áustria. Quanto a ele, não há
problema. Mas Katrin...
— Katrin é uma mulher agora, liebchen. Fará o que bem quiser, quer
aprovemos ou não. Afinal... — Mendelius inclinou-se e tornou a beijar
a mulher — ... eles apenas nos foram emprestados. E quando saírem de
volta, estaremos outra vez no ponto do qual começamos. É melhor
começarmos a praticar outra vez uma vida de amantes.
— Acho que você tem razão. — Lotte deu de ombros, desanimada,
num gesto de derrota. — Mas, Carl...
Ela não conseguiu continuar, como se estivesse com medo de
converter o pensamento em palavras. Mendelius estimulou-a
gentilmente:
— Mas o que, liebchen?
— Sei que as crianças nos vão deixar. Estou acostumando-me à
idéia. Juro que estou. Mas... o que vai acontecer se Jean Marie afastá-lo
de mim? Isso... essa coisa que ele está querendo de você é muito
estranha e assustadora. — Inesperadamente, ela prorrompeu em soluços
convulsivos. — Tenho medo, Carl... um medo terrível!

32
CAPÍTULO 2

"Nestes últimos anos fatídicos do milênio..." Assim começava a


encíclica inédita de Jean Marie Barette. "Neste momento sombrio de
confusão, violência e terror, eu, Gregório, seu irmão na carne, servidor
em Jesus Cristo, fui ordenado pelo Espírito Santo a escrever estas
palavras de advertência e conforto..."
Mendelius mal podia acreditar em seus próprios olhos. As encíclicas
papais, apesar de sua autoridade prodigiosa, eram geralmente
documentos corriqueiros... renovando posições tradicionais em
questões de fé ou moral. Qualquer bom teólogo podia formular o
argumento, qualquer bom latinista podia torná-lo eloqüente.
O esquema ainda era o dos antigos retóricos. O argumento era
apresentado. As escrituras eram citadas em apoio. Diretrizes eram
anunciadas, exortando a consciência dos fiéis. Ao final, havia um apelo à
fé, esperança e caridade. O formal "nós" era sempre usado, não apenas
para exprimir a dignidade do Pontífice, mas também pela conotação de
uma comunidade e continuidade no cargo e no ensinamento. A
implicação era evidente: o Papa nada ensinava de novo; expunha uma
verdade antiga e inalterável, aplicando-a simplesmente às necessidades
de seu tempo.
Abruptamente, Jean Marie Barette rompera o padrão. Abandonara o
papel de exegeta e assumira o manto do profeta. "Eu, Gregório, fui
ordenado pelo Espírito Santo..." Mesmo em latim formal, o impacto das
Palavras era tremendo. Não era de admirar que os homens da Cúria
empalidecessem assustados ao lerem aquelas palavras pela primeira

33
vez. O que se seguia era ainda mais tendencioso:
"O conforto que lhes ofereço é a promessa eterna de Nosso Senhor
Jesus Cristo: 'Não vos deixarei órfãos. Lembrai-vos de que estou
convosco em todos os dias, mesmo até o fim do mundo.' A advertência
que lhes faço é de que esse fim está bem próximo, que esta geração não
passará antes que todas as coisas previstas se consumem... Não lhes digo
isso por mim mesmo ou porque encontrei tal conclusão na razão
humana, mas porque tudo me foi revelado numa visão, que não me
atrevo a ocultar, sendo ordenado a revelá-la ao mundo. Mas mesmo essa
revelação não é uma coisa nova. Foi simplesmente uma confirmação,
clara como o nascer do sol, do que foi revelado nas Sagradas
Escrituras"...

Seguia-se uma longa exposição de textos dos Evangelhos Sinópticos


e uma série de eloqüentes analogias entre os "sinais" bíblicos e as
circunstâncias da última década do século XX: guerras e rumores de
guerras, fomes e epidemias, falsos Cristos e falsos profetas.
Para Carl Mendelius, profunda e profissionalmente versado na
literatura apocalíptica dos primeiros tempos ao presente, era um
documento perturbador e perigoso. Emanando de uma fonte tão alta,
não podia deixar de provocar alarme e pânico. Entre os militantes,
poderia facilmente servir como um brado a favor de uma última
cruzada, dos eleitos contra os ímpios. Para os fracos e amedrontados,
poderia ser uma indução ao suicídio, antes que os horrores dos
últimos dias os alcançassem.
Ele perguntou a si mesmo o que teria feito se tivesse visto aquele
documento, recentemente escrito, na mesa do Pontífice, como
acontecera com o secretário. Certamente recomendaria a sua supressão.
E fora exatamente isso o que os cardeais haviam feito: suprimiram o
documento e silenciaram o autor.
Foi então que um novo pensamento ocorreu a Mendelius. Não era
esse o destino de todos os profetas, o preço que pagavam por um dom
terrível, a sangrenta confirmação da verdade a suas previsões? Em meio
ao emaranhado de eloqüência bíblica, outro trecho ressoou em sua
mente, o último lamento de Cristo pela Cidade Santa.
"Jerusalém, Jerusalém, tu que mataste os profetas e os apedrejaste!
Quantas vezes eu poderia reunir teus filhos como a galinha reúne os
pintos sob as suas asas, mas não quiseste!... Pois chegará o dia em que
teus inimigos te cercarão de trincheiras e por todos os lados te apertarão
o cerco; e te arrasarão e aos teus filhos dentro de ti; não deixarão pedra

34
sobre pedra, porque não reconheceste as coisas que são para tua paz."
Era um pensamento lúgubre para a meia-noite, com o luar entrando
pelas janelas e o vento frio soprando pelo vale do Neckar, insinuando-
se pelas ruas estreitas da velha cidade, em que o pobre Holderlin
morrera louco e Melanchthon, o mais são dos homens, ensinava que
"Deus atrai, mas somente aos que estão dispostos".
Toda a sua experiência clamava que Jean Marie Barette era o mais
disposto e o mais aberto dos homens, o menos provável de se tornar
vítima de uma ilusão de fanático.
Era verdade que ele escrevera um documento terrivelmente
imprudente. Mas talvez fosse justamente esse o problema: numa hora
de crise, somente uma loucura assim poderia atrair a atenção do mundo.
Mas atrair para quê? Se a catástrofe final estava próxima, sua data
irrevogavelmente gravada no mecanismo da criação, então por que
proclamá-la? Que conselho poderia prevalecer contra um conhecimento
de pesadelo? Que prece tinha força contra uma determinação da
eternidade? Havia algo de profundamente patético nas respostas de Jean
Marie a essas indagações:

"Meus caros irmãos e irmãs, meus filhos, todos nós tememos a


morte, recuamos diante do sofrimento que pode procedê-la. Todos nos
intimidamos diante do último passo, que todos devemos dar, para a
eternidade. Mas somos seguidores do Senhor, o Filho de Deus, que
sofreu e morreu em carne humana. Somos os herdeiros das boas-novas
que ele nos deixou: que a morte é o portão para a vida, que é um pulo
não para as trevas, mas para as mãos da Eterna Misericórdia. É um ato
de confiança, um ato de amor, pelo qual, como fazem os amantes, nos
abandonamos, ficamos unidos ao Amado."

A batida na porta provocou um sobressalto em Mendelius. Sua filha


Katrin entrou, hesitante e tímida. Vestia um robe, os cabelos louros
presos atrás com uma fita rósea, o rosto limpo de maquilagem, os olhos
vermelhos de chorar.
— Posso falar com você, papai?
— Claro, querida. — Ele ficou imediatamente preocupado. — Estava
chorando. Qual é o problema?
Mendelius beijou a filha gentilmente e levou-a para uma cadeira.
— E agora me conte o que a está perturbando.
— O problema é a viagem a Paris. Mamãe está furiosa. Disse que eu
tenho de conversar com você a respeito. Ela não compreende, papai...
não compreende mesmo. Estou com 19 anos. Sou uma mulher agora,

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tanto quanto ela...
— Vamos com calma, menina. Vamos começar pelo início. Quer
passar o verão em Paris. Quem vai com você?
— Franz, é claro! Há muito tempo que estamos saindo juntos. E você
disse que gostava muito dele.
— E gosto mesmo. É um ótimo rapaz. E também um pintor
promissor. Está apaixonada por ele?
— Estou, sim. — Havia um tom de desafio na voz de Katrin. — E ele
está apaixonado por mim!
— Então fico muito feliz pelos dois, menina. — Mendelius sorriu e
afagou-lhe a mão. — É o melhor sentimento do mundo. Mas o que vai
acontecer agora? Já falaram em casamento? Quer ficar noiva? É esse o
problema?
— Não, papai. — Katrin estava muito firme. — Pelo menos ainda
não... E é justamente esse o problema. Mamãe se recusa a compreender.
— Já tentou explicar?
— Muitas vezes! Mas ela simplesmente se recusa a escutar!
— Pois tente então explicar a mim — disse Mendelius, gentilmente.
— Não é fácil. Não sou muito boa com as palavras, como você. Mas
o problema todo é que tenho medo... ambos temos medo.
— De quê?
— De tudo... apenas isso. De nos casarmos e termos filhos, tentar
construir um lar, enquanto o mundo inteiro pode desmoronar ao nosso
redor de repente.
Subitamente, Katrin tornou-se veemente e eloqüente:
— Vocês, os mais velhos, não podem compreender. Sobreviveram a
uma guerra. Construíram coisas. E tiveram filhos, que agora são
adultos. Mas olhe só para o mundo que nos legaram! Ao longo de todas
as fronteiras, há rampas de lançamento de foguetes e silos de mísseis. O
petróleo se está acabando e por isso começamos a usar a energia
atômica, enterrando os refugos que irão um dia envenenar nossos
filhos... Vocês nos deram tudo, menos o amanhã! Não quero que meu
filho nasça num abrigo antiatômico e morra de radiação! Tudo o que
temos é o hoje e a possibilidade de nos amarmos. Achamos que temos
direito pelo menos a isso!
A veemência da filha deixou Mendelius chocado, como água fria
jogada em seu rosto. A pequena e loura Madchen que embalara no colo
desaparecera para sempre. Em seu lugar, havia agora uma jovem furiosa,
dominada por um profundo ressentimento contra ele e toda a sua geração.
Ocorreu-lhe o pensamento sombrio de que talvez tivesse sido por ela e
todos os outros na mesma situação que Jean Marie Barette escrevera a

36
sua prescrição para a vida nos últimos dias. Certamente não haviam sido
os jovens que a tinham suprimido, mas os homens da geração dele, os
mais velhos, os sábios aparentes, os perenes pragmáticos, vivendo além
da conta. Mendelius fez uma prece silenciosa pela sabedoria da língua e
começou a argumentar com a filha, suavemente, ternamente.
— Pode estar certa, minha querida, que compreendo como vocês se
sentem. Sua mãe também compreende, só que de uma maneira diferente,
porque sabe como uma mulher pode ser magoada, como as
conseqüências para ela podem ser mais prolongadas do que para um
homem. Ela briga porque a ama e tem medo por você... Afinal, qualquer
que seja a confusão em que o mundo esteja metido... e eu estava sentado
aqui a ler como a situação pode tornar-se ainda pior... você teve a
experiência de amar e ser amada. É verdade que ainda não teve uma
experiência integral, mas conheceu-a pelo menos parcialmente. Assim,
sabe o que é o amor, dar e receber, ficar preocupada e jamais querer tudo
para si mesma... Está agora começando o próximo capítulo com o seu
Franz e somente vocês dois poderão escrevê-lo. Juntos. Se não der certo,
sua mãe e eu poderemos no máximo enxugar suas lágrimas e segurar-lhe
a mão, até que esteja pronta a começar a viver novamente... Não
podemos dizer-lhe como ajeitar sua vida emocional, nem mesmo sua
vida sexual. Tudo o que podemos dizer-lhe é que, se os dois
desperdiçarem seus corações e a alegria especial que torna o sexo tão
maravilhoso, será algo que nunca mais poderão renovar... Podem ter
outras experiências e alegrias, mas nunca mais terão esse primeiro êxtase,
tão especial e exclusivo, que faz com que valha a pena toda essa
confusão de viver e morrer... O que mais posso dizer, querida? Vá para
Paris com seu Franz. Aprendam a amar juntos. E o que será do
amanhã?... Como está o seu latim?
Katrin exibiu um sorriso, em meio às lágrimas.
— Sabe que sempre foi horrível.
— Pois experimente isto: "Quid sit futurum eras, fuge quaerere." Foi
o velho Horácio quem escreveu.
— Não significa nada para mim.
— É muito simples: "Abstenha-se de indagar o que o amanhã pode
trazer." Se passar sua vida inteira esperando pela tempestade, nunca
poderá apreciar o calor do sol.
— Oh, papai! — Ela o enlaçou pelo pescoço e beijou-o. — Eu o amo
muito! E deixou-me muito feliz.
— Vá deitar-se agora, menina — disse Carl Mendelius, suavemente.
— Ainda tenho pelo menos uma hora de trabalho pela frente antes de ir
para a cama.

37
— Está trabalhando demais, papai.
Mendelius afagou-lhe o rosto e disse jovialmente:
— Um pai sem trabalho representa uma filha sem dote. Boa-noite,
meu amor. E tenha sonhos maravilhosos.
Depois que a filha saiu e a porta se fechou, Mendelius sentiu a
pressão das lágrimas inesperadas... lágrimas por toda a esperança
juvenil de Katrin, toda a sua inocência ameaçada. Ele assoou o nariz
violentamente, pegou os óculos e recostou-se para recomeçar a leitura
do apocalipse de Jean Marie.

... "É evidente que nos tempos de calamidade universal as estruturas


tradicionais da sociedade não sobreviverão. Haverá uma luta
implacável pelas mais simples necessidades da vida, como comida,
água, combustível e abrigo. A autoridade será usurpada pelos fortes e
cruéis. As grandes sociedades urbanas vão fragmentar-se em grupos
tribais, que haverão de se hostilizar uns aos outros. As regiões rurais
ficarão sujeitas a pilhagens. A pessoa humana se transformará numa
presa, tanto quanto os animais que abate agora como alimento. A razão
será de tal forma toldada que o homem recorrerá às formas mais toscas
e violentas de magia, em busca do conforto. Será difícil, até mesmo
para os que aderem mais firmemente à Promessa do Senhor, manter a fé
e continuar a dar testemunho, como devem fazer, até o fim. ... Como
então os cristãos devem comportar-se nestes dias de tribulação e terror?
... "Como não mais poderão manter-se em grupos numerosos, devem
dividir-se em pequenas comunidades, cada uma capaz de manter-se por
si mesma, pelo exercício de uma fé comum e de uma caridade mútua.
Seus testemunhos cristãos devem ser dados pela disseminação dessa
caridade para abranger também os que não têm fé, ajudando os aflitos,
partilhando os seus recursos, os mais minguados, com aqueles que
passam por maiores privações. Quando a hierarquia sacerdotal não
puder mais funcionar, eles elegerão a si mesmos como ministros e
mestres, que manterão o Verbo em sua integridade e continuarão a
administrar a Eucaristia. ...

— Deus Todo-Poderoso! Isso é demais!


Mendelius ouviu sua própria voz ressoar pela sala no sótão. Ficção
ou fato predestinado, aquelas palavras, emanadas de um Papa,
constituíam o que não se podia dizer, o que não se podia absolutamente
publicar. Se a imprensa do mundo tomasse conhecimento daquele
documento, faria com que Jean Marie Barette parecesse o mais louco
dos mulas loucos, o mais absurdo de todos os profetas do Juízo Final.

38
E, no entanto, no contexto de uma calamidade atômica, era uma
questão de simples lógica. Era uma perspectiva que, sob uma forma ou
outra, cada líder nacional mantinha trancada em seus arquivos mais
secretos, um roteiro para os dias subseqüentes a Armagedom.
O que levou Mendelius, por inferência, ao terceiro e último
documento: a relação daqueles que, na opinião de Jean Marie, estariam
propensos a acreditar em sua mensagem e no mensageiro. Talvez fosse
o mais espantoso dos três documentos. Ao contrário da carta e da
encíclica, estava datilografado, como se anteriormente fizesse parte de
algum arquivo oficial. Continha nomes, endereços, títulos, telefones,
métodos de contato pessoal e anotações lacônicas sobre cada pessoa.
Havia políticos, industriais, religiosos, líderes de grupos dissidentes,
editores de grandes jornais, mais de uma centena de nomes no total.
Dois registros davam o tom da relação.

"EUA
Nome: Michael Grant Morrow
Posição: Secretário de Estado
Endereço particular: Park Avenue 593, Nova York
Telefone: (212)689-7611
Religião: Episcopaliana

Conhecido em jantar presidencial. Convicções religiosas firmes. Fala


russo, francês e alemão. Respeitado na Rússia, mas relações asiáticas
fracas. Perfeitamente consciente da situação perigosa nas fronteiras
da Europa. Escreveu uma monografia particular sobre a função de
grupos religiosos numa estrutura social em desintegração.

URSS
Nome: Sergei Andrevich Petrov
Posição: Ministro para a Produção
Agrícola
Endereço Particular: Desconhecido
Telefone: Moscou 53871

Visita particular ao Vaticano com sobrinho do Primeiro-Ministro.


Admite a necessidade de tolerância religiosa e étnica na União
Soviética, mas não pode opor-se aos dogmatistas do Partido.
Preocupado com a possibilidade de os problemas russos de
suprimento de alimentos e petróleo precipitarem o conflito. Amigos
íntimos nos altos escalões militares; inimigos no KGB. Vulnerável no

39
caso de colheitas desfavoráveis ou bloqueio econômico."

Na última página, havia uma mensagem escrita a mão por Jean


Marie:
"Todas as pessoas desta lista me são conhecidas pessoalmente. Cada
uma à sua maneira, todas demonstraram consciência da crise e
disposição de enfrentá-la com um espírito de compaixão humana,
embora nem sempre do ponto de vista de um crente. Não sei se poderão
mudar sob a pressão dos acontecimentos. Contudo, cada uma dessas
pessoas depositou alguma confiança em mim e tentei retribuir o gesto.
Como um mensageiro particular, será encarado a principio com
suspeita e tratado com muita reserva. Os riscos para os quais o advertir
começarão no primeiro contato, porque você não goza de imunidade
diplomática. Além do mais, a linguagem da política visa sempre a
disfarçar e ocultar a verdade. J.M.B."

Carl Mendelius tirou os óculos e esfregou os olhos, num esforço para


afugentar o sono. Lera tudo com a devoção de um amigo e o cuidado de
um estudioso honesto e meticuloso. Agora, naquela hora solitária da
madrugada, tinha de fazer um julgamento sobre o texto, embora ainda
não sobre o homem que o escrevera. Um súbito calafrio de medo
percorreu-lhe o corpo, como se as sombras da sala estivessem povoadas
por fantasmas acusadores, os fantasmas de homens queimados por
heresia e mulheres afogadas por bruxaria, incontáveis mártires
lamentando a inutilidade de seu sacrifício.
Nos anos céticos da meia-idade, a prece não lhe vinha com
facilidade. Agora, sentia a necessidade da prece, mas as palavras não
lhe ocorriam. Era como um homem trancado nas trevas por tanto tempo
que esquecera o som da fala humana.

— Agora entramos mesmo no terreno da fantasia! — Anneliese


Meissner mastigou um pepino em conserva e engoliu-o com a ajuda de
um pouco de vinho tinto. — Essa pretensa encíclica é um completo
absurdo, uma mistura de folclore e misticismo!
Estavam sentados no atravancado apartamento dela, os documentos
sobre a mesa, juntamente com uma garrafa de Assmanshausen.
Mendelius recusara-se a permitir que os documentos saíssem de suas
vistas, enquanto Anneliese exigira, com igual veemência, o direito de
assessoria de ler tudo. Mendelius protestou contra a rejeição sumária do
documento:
— Vamos parar por aqui! Se pretendemos discutir o assunto, temos

40
de fazê-lo de maneira científica. Em primeiro lugar, há toda uma massa
de literatura milenar a respeito, do Livro de Daniel no Antigo
Testamento a Jakob Boehme no século XVII e Teilhard de Chardin no
século XX. Admito que há muito absurdo. Uma parte não passa de pura
poesia, como as coisas do inglês William Blake. Uma parcela
considerável representa uma interpretação critica de uma das mais
antigas tradições do mundo. Em segundo lugar, qualquer cientista sério
lhe dirá que pode haver um término, pela evolução ou catástrofe, à
existência humana no planeta, como a conhecemos. O que Jean Marie
escreveu se enquadra perfeitamente nos limites das previsões razoáveis.
A perspectiva de catástrofe já é uma especulação comum de cientistas e
estrategistas militares.
— Concordo com tudo isso. Mas acontece que seu homem mistura
tudo na maior confusão. Fé, esperança e caridade, enquanto os lobos
estão rosnando nos portões! Um Deus de amor meditando sobre o caos
que ele próprio engendrou. Essa não, Professor!
— O que aconteceria se o texto fosse publicado?
— Metade do mundo riria até não poder mais. A outra metade seria
contagiada pela loucura e sairia a valsar ao encontro do redentor, em
sua "nuvem de glória". Acho que devemos queimar esses malditos
documentos e esquecer tudo, Carl!
— Posso queimar, mas não posso esquecer.
— Porque você também é uma vítima da mesma loucura de Deus!
— O que me diz do terceiro documento... a relação de nomes?
— Não creio que tenha qualquer importância. Não passa de uma
lista de arquivo. Qualquer político do mundo possui uma relação assim.
O que ele está esperando que você faça? Que saia pelo mundo a visitar
todas essas pessoas? O que vai dizer-lhes? "Meu amigo Gregório XVII,
o que foi expulso do Vaticano, acha que o fim do mundo está próximo.
Teve uma visão a respeito. E achou que você deveria ser avisado de
antemão." Ora, Carl, pense bem! Eles o meteriam numa camisa-de-
força antes de acabar a primeira entrevista!
Mendelius percebeu subitamente o lado cômico da situação e desatou
a rir, jovialmente, uma risada que acabou por se desvanecer para um
riso constrangido e desolado. Anneliese Meissner despejou mais vinho
nos copos e levantou o seu numa saudação.
— Assim é melhor. Por um momento, pensei ter perdido um bom
colega.
— Obrigado, Frau Beisitzer. — Mendelius tomou um gole comprido
do vinho e depois tornou a largar o copo na mesa. — Agora, vamos
voltar a tratar de negócios. Viajarei para Roma dentro de duas semanas.

41
— Essa não! — Anneliese fitou-o com total incredulidade. — E o
que pretende fazer por lá?
— Tirar umas férias, fazer duas conferências na Academia Alemã,
conversar com Jean Marie Barette e as pessoas que lhe eram mais
chegadas. Farei gravações de cada conversa e lhe enviarei. Depois,
decidirei se devo ou não abandonar o assunto. Pelo menos me terei
desincumbido de meu dever como amigo... e também farei com que
minha assessora mantenha uma posição honesta!
— Espero que compreenda, meu amigo, que mesmo depois de tudo
isso suas provas ainda serão incompletas.
— Não vejo por que precisam ser.
— Pense um pouco. — Anneliese Meissner espetou outro pedaço de
pepino e sacudiu-o por baixo do nariz de Mendelius. — Como vai
conversar com Deus? Pretende também gravar uma conversa com Ele?

Mendelius era um homem meticuloso por natureza e preparou-se


para sua visita a Roma com extremo cuidado. Telefonou para amigos,
escreveu a conhecidos, muniu-se de apresentações a autoridades do
Vaticano, marcou com bastante antecedência almoços, jantares e
entrevistas formais. Teve a precaução de ressaltar o objetivo ostensivo
de sua visita: uma pesquisa na Biblioteca do Vaticano e no Instituto
Bíblico de fragmentos de literatura ebionista e conferências na
Academia sobre a tradição apocalíptica.
Escolhera tal assunto não apenas porque lhe proporcionava uma
deixa para iniciar suas indagações a respeito de Jean Marie, mas
também porque poderia extrair de sua audiência evangélica alguma
reação emocional ao tema milenar. Quando era mais jovem, Mendelius
fora profundamente atraído pela idéia jungiana do "grande sonho", a
persistência da experiência tribal no subconsciente e sua permanente
influência sobre o indivíduo e o grupo. Havia uma semelhança
extraordinária entre essa noção e o que os teólogos chamavam de
"Infusão" e "Habitação do Espírito". Levantava também a questão de
Anneliese Meissner, sua Beisitzer, que rejeitava intransigentemente
qualquer experiência transcendental. A zombaria dela sobre a conversa
com Deus ainda ardia nos ouvidos de Mendelius... especialmente
porque não conseguira encontrar uma resposta apropriada.
Ele passou muito tempo preparando a carta para o Abade de Monte
Cassino, que era agora o superior religioso de Jean Marie. Era uma
cortesia indispensável. Jean Marie colocara-se sob obediência e a
autoridade poderia estender-se a seus movimentos físicos e até mesmo
a sua correspondência particular. Mendelius, que outrora estivera

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sujeito ao sistema, tinha uma perfeita noção do protocolo religioso. Sua
carta falava da longa amizade com Jean Marie Barette, sua hesitação
em intrometer-se na atual privacidade do amigo. Contudo, se o Abade
não tinha objeções e o antigo Pontífice estivesse disposto a recebê-lo, o
Professor Carl Mendelius gostaria de fazer uma visita ao mosteiro, em
data que fosse mutuamente conveniente.
Ele anexou um bilhete, pedindo ao Abade que o encaminhasse a Jean
Marie Barette. O bilhete também fora escrito com o maior cuidado e
dizia o seguinte:

"Meu caro amigo:

Perdoe, por favor, o informalismo, mas ignoro o protocolo para a


correspondência com um Papa que abdicou e tornou-se um humilde
filho de São Benedito.
Tenho lamentado não me ser possível partilhar o fardo de seus
últimos dias no Vaticano. Mas os professores alemães não são muito
cotados e sua esfera de influência raramente se estende além das salas
de aula.
Contudo, estarei em Roma em breve, ainda pesquisando os ebionitas
e fazendo algumas conferências sobre a doutrina da Parúsia na
Academia Alemã. Teria o maior prazer em revê-lo, mesmo que fosse
rapidamente.
Já escrevi ao Abade pedindo permissão para visitá-lo, desde que
esteja disposto a receber-me, é claro. Se pudermos encontrar-nos, vou
ficar profundamente grato e feliz. Mas se o momento não for oportuno,
não hesite em dizê-lo, por favor.
Espero que esteja bem. Com o mundo em tal confusão, acho que agiu
sabiamente ao afastar-se dele. Lotte lhe envia um cumprimento
afetuoso e meus filhos saudações respeitosas. Quanto a mim, continuo
sendo

Seu companheiro no Senhor,


Carl Mendelius"

A resposta chegou em 10 dias, entregue por um mensageiro clerical


do Cardeal-Arcebispo de Munique: O Reverendíssimo Abade Andrew
terá o maior prazer em recebê-lo em Monte Cassino, assim como o
Reverendíssimo Jean Marie Barette, O.S.B., também terá prazer em
rever o velho amigo, se sua saúde o permitir. Ele deveria telefonar para

43
o Abade assim que chegasse a Roma e o encontro seria acertado.
Não houve qualquer resposta de Jean Marie.

Na noite anterior à partida para Roma com Lotte, Mendelius pediu ao


filho Johann que fosse tomar café em sua companhia, no gabinete. Há
muito tempo que os dois se sentiam constrangidos quando estavam
juntos. O rapaz, um brilhante estudante de Economia, sentia-se
embaraçado à sombra de um pai que era também um dos professores
mais destacados da universidade. O pai era muitas vezes desajeitado em
sua ansiedade de promover um talento tão óbvio. O resultado era a
reserva de um lado e o ressentimento de outro, havendo apenas raras
demonstrações da afeição que ainda existia entre os dois. Desta vez,
Mendelius estava determinado a usar todo o tato possível. Como
sempre, no entanto, conseguiu apenas ser desajeitado. Ele perguntou:
— Quando vai partir em sua viagem, filho?
— Dentro de dois dias.
— Já definiu o seu roteiro?
— Mais ou menos. Vamos de trem até Munique e depois
começamos a pé a excursão propriamente dita, através de Obersalzburg,
passando pela Tauern e entrando em Carinthia.
— É uma linda região. Eu gostaria de poder acompanhá-los. Por
falar nisso... — Mendelius meteu a mão no bolsinho do paletó e tirou
um envelope fechado. — ... isto é para ajudar nas despesas.
— Mas já me deu o dinheiro das férias.
— Isto é algo extra. Esforçou-se muito este ano. Sua mãe e eu
queremos demonstrar nosso reconhecimento.
— Ahn... obrigado. — Johann estava obviamente constrangido. —
Mas não havia necessidade. Sempre foi generoso comigo.
— Eu gostaria de dizer-lhe uma coisa, filho. — Mendelius percebeu
que o rosto do rapaz se contraía prontamente, o rosto assumia a velha
expressão de teimosia. — Trata-se de uma questão pessoal e preferia
que não a discutisse com sua mãe. Um dos motivos da minha viagem a
Roma é a investigação do que levou Gregório XVII a abdicar. Como
você sabe, ele era muito amigo meu...
Ele fez uma pausa, sorrindo ironicamente.
— E creio que se pode dizer que seu também, porque sem a ajuda
dele sua mãe e eu não poderíamos casar-nos e você não estaria aqui
agora... A verdade é que tal investigação pode prolongar-se por muito
tempo e exigir diversas viagens. Pode haver alguns riscos. Se alguma
coisa me acontecer, quero que saiba que meus negócios estão em
ordem. Dr. Mahler, nosso advogado, está com a maioria dos

44
documentos. O resto está naquele cofre ali. Você é um homem agora,
Johann. Se algo me acontecer, terá de tomar o meu lugar e cuidar de
sua mãe e irmã.
— Não estou entendendo. De que riscos está falando? E por que tem
de se expor a riscos?
— É difícil explicar.
— Sou seu filho. — O tom era ressentido. — Dê-me ao menos uma
chance de compreender.
— Por favor, Johann! Tente relaxar um pouco. Preciso de você agora
e preciso muito.
— Desculpe-me. Mas é que...
— Eu sei como é. Nós nos irritamos um ao outro
desnecessariamente. Mas eu o amo, filho. E gostaria de poder dizer-lhe
o quanto o amo.
A emoção dominou Mendelius por completo. Ele sentiu vontade de
inclinar-se e abraçar o filho, mas ficou com receio de uma repulsa. Por
isso, limitou-se a acrescentar:
— Para explicar tudo, tenho de lhe mostrar algo secreto e pedir-lhe
por sua honra para não revelar a ninguém.
— Tem a minha palavra, papai.
— Obrigado.
Mendelius foi até o cofre, tirou os documentos que Barette lhe
enviara e entregou ao filho.
— Leia isso. Explica tudo. Conversaremos quando terminar.
Enquanto isso, tenho de escrever algumas anotações.
Ele se sentou à escrivaninha, enquanto Johann se acomodava na
poltrona, lendo os documentos. À luz suave do abajur, o filho fazia
Mendelius recordar-se de um dos jovens modelos de Rafael, obediente
e imóvel, enquanto o mestre o imortalizava na tela. Sentiu uma pontada
de pesar pelos anos perdidos. Era assim que sempre deveria ter sido, pai
e filho companheiros, todos os atritos infantis esquecidos.
Mendelius levantou-se e tornou a servir café e conhaque ao filho.
Johann acenou com a cabeça em agradecimento e continuou a leitura.
Quase 40 minutos se passaram até que ele virou a última página.
Continuou sentado em silêncio por um longo tempo, depois dobrou os
documentos lentamente, levantou-se e colocou-os na mesa do pai. Só
então é que falou:
— Compreendo tudo agora, papai. Acho que é um absurdo perigoso
e detesto vê-lo envolvido. Mas posso entender.
— Obrigado, filho. Importa-se de me dizer por que acha que é um

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absurdo?
— Claro que não. — Johann mostrava-se firme, mas respeitoso.
Mantinha-se muito empertigado, como um subalterno falando com seu
comandante. — Há uma coisa que estou querendo dizer-lhe há algum
tempo. E este é um momento apropriado para falar.
— Talvez possa servir-me um conhaque antes — disse Mendelius,
sorrindo.
— Claro. — Johann tornou a encher o copo do pai e pôs em cima da
mesa. — A verdade, papai, é que não sou mais um crente.
— Em Deus ou especificamente na Igreja Católica Romana?
— Não acredito mais em nenhuma das duas coisas.
— Lamento saber disso, filho. — Mendelius manteve-se deliberada-
mente calmo. — Sempre achei que o mundo seria um lugar desolado
sem alguma esperança de uma vida posterior. Mas fico contente que me
tenha falado. Sua mãe já sabe?
— Ainda não.
— Pois direi a ela, se você quiser... só que mais tarde. Gostaria que
ela desfrutasse antes as nossas pequenas férias sem qualquer
preocupação desnecessária.
— Está zangado comigo?
— Mas claro que não! — Mendelius levantou-se e foi pôr as mãos
nos ombros do filho. — Por toda a minha vida, sempre ensinei e escrevi
que um homem só pode trilhar o caminho que vê à sua frente. Se você
não pode sinceramente aceitar uma fé, então não deve fazê-lo. É
preferível deixar-se queimar como Bruno no Campo das Flores. Quanto
a sua mãe e a mim, não temos qualquer direito de determinar o que
deve haver em sua consciência. Ninguém possui tal direito. Mas
lembre-se sempre de uma coisa, filho. Deve manter sua mente aberta, a
fim de que a luz possa penetrar. Mantenha o coração aberto, a fim de
que o amor jamais seja excluído.
— Eu... eu nunca pensei que reagiria assim.
Pela primeira vez, o controle de Johann se desvaneceu e ele parecia à
beira das lágrimas. Mendelius abraçou-o.
— Eu o amo, filho. Nada poderá jamais alterar esse fato. Além do
mais... você está num novo território agora. Não vai realmente saber se
gosta ou não até passar todo um inverno por lá... E não vamos mais
brigar, está bem?
— Certo! — Johann desvencilhou-se do abraço e pegou seu copo de
conhaque. — Vamos fazer um brinde a isso.
— Prosit — disse Carl Mendelius.

46
— Quanto ao outro problema, papai...
— Pode falar.
— Posso entender os riscos. Sei muito bem o que a amizade de Jean
Marie significa para você. Mas acho também que deve definir as
prioridades da maneira certa. Mamãe tem de estar em primeiro lugar... e
Katrin e eu também precisamos de você.
— Estou procurando manter as coisas na ordem certa, filho. —
Mendelius soltou uma risadinha curta e triste. — Você pode não
acreditar no Segundo Advento, mas, se acontecer, vai mudar todas as
prioridades... não é mesmo?

Do ar, os campos italianos pareciam um paraíso bucólico, os pomares


viçosos, as campinas cheias de flores silvestres, as terras cultivadas
com um verde novo, as antigas cidades-fortalezas a surgirem
placidamente, como ilustrações de um conto de fadas.
Em contraste, o Aeroporto de Fiumicino parecia um ensaio para o
caos final. Os controladores do tráfego aéreo estavam funcionando nos
termos dos regulamentos, os carregadores de bagagens estavam em
greve. Havia filas imensas na alfândega. O ar ressoava com uma babel
de vozes, gritando em uma dúzia de línguas. Policiais com cães
farejadores circulavam pela multidão desesperada, procurando por
traficantes de tóxicos, enquanto jovens recrutas montavam guarda em
todas as saídas, armados de metralhadoras, vigilantes e nervosos.
Lotte estava quase chorando e Mendelius suava profusamente, de
raiva e frustração. Levaram uma hora e meia para passarem pela
alfândega e saírem para a área de recepção, onde Herman Frank os
esperava, ativo e solícito, como sempre. Estava com uma limusine, um
vasto Mercedes emprestado pela Embaixada alemã. Ofereceu flores a
Lotte e uma recepção calorosa a Herr Professor, além de champanha
para beber, durante a longa viagem de carro até a cidade. O trânsito
estava infernal, como sempre, mas Frank queria proporcionar-lhes um
gosto prévio da paz celestial.
E essa paz foi finalmente encontrada no apartamento de Frank, no
último andar de um palazzo do século XVII, com afrescos no teto, chão
de mármore, banheiros grandes o bastante para abrigar toda uma
esquadra, uma vista espetacular dos telhados da antiga Roma. Duas
horas depois, de banho tomado, roupas limpas e refeitos, eles estavam
tomando coquetéis no terraço, escutando os últimos sinos a repicar e
contemplando os pássaros que sobrevoavam as cúpulas e sótãos,
avermelhados pelo pôr-do-sol.
— Lá embaixo é um verdadeiro horror... — Hilde Frank apontou

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para as ruas atulhadas de veículos e pedestres. — E não são poucas as
vezes em que o sangue corre, pois os terroristas estão tornando-se cada
vez mais audaciosos, enquanto a crosta de lei e ordem vai se
desfazendo. Os seqüestros constituem uma das maiores atividades
privadas. Quase não saímos mais à noite, porque há sempre o perigo de
assaltantes e quadrilhas de motociclistas. Mas aqui em cima... — Ela
gesticulou, abrangendo toda a cena dos prédios antigos recortados
contra o céu. — Aqui em cima é a mesma coisa que vem sendo há
séculos: os varais de secar roupa, os pássaros, a música que vem e vai,
as mulheres chamando as vizinhas. Sem isso, acho que não
conseguiríamos continuar por mais tempo.
Era uma mulher pequena e morena, borbulhante de conversa,
elegante como um manequim, 20 anos mais moça que o marido de
cabelos brancos, que acompanhava todos os seus movimentos com
adoração. Era também afetuosa, carinhosa como uma gatinha.
Mendelius percebeu um brilho de ciúme nos olhos de Lotte quando
Hilde, pegando-o pela mão, o levou para um canto do terraço, a fim de
apontar ao longe a Basílica de São Pedro e o Castelo de Sant'Angelo.
Hilde disse-lhe num sussurro teatral:
— Herman ficou muito feliz quando você concordou em fazer as
conferências. Ele está próximo da aposentadoria e detesta a perspectiva.
Dedicou grande parte de sua vida à Academia... de nossas vidas, na
verdade, porque não tivemos filhos... Lotte está com uma ótima
aparência. Espero que ela goste de visitar as lojas. Pensei em levá-la ao
Condotti amanhã, enquanto você e Herman estiverem na Academia. O
pessoal do seminário ainda não chegou, mas ele está morrendo de
vontade de mostrar-lhe a Academia...
— ... e temos coisas extraordinárias para mostrar este ano! —
Herman Frank, de braço dado com Lotte, aproximou-se deles. —
Vamos apresentar a primeira exposição realmente ampla de Van Wittel
que já se realizou neste país. Além disso, Piero Falcone emprestou-nos
a sua coleção de joalheria antiga florentina. Será uma exposição das
mais caras, porque precisaremos de guardas armados durante todo o
tempo... Mas vou dizer agora quem virá jantar esta noite. Teremos Bill
Utley e a mulher, Sônia. Ele é o representante britânico na Santa Sé.
Bill é desses homens meio secos, mas sabe de tudo o que está
acontecendo. E ainda por cima fala alemão muito bem, o que ajuda
bastante. Sônia é jovial e exuberante, sem inibições. Tenho certeza de
que vai gostar dela, Lotte. Virá também o correspondente em Roma de
Die Welt, Georg Rainer. Ele está sempre alegre, tem uma conversa das
mais agradáveis. A idéia de convidá-lo partiu de Hilde, pois Georg está

48
com uma namorada nova que ninguém ainda conhece. Se não me
engano, é uma mexicana... e dizem que é muito rica! Vamos sentar-nos
para o jantar por volta das nova e meia... Por falar nisso, Carl, há uma
pilha de correspondência para você. Pedi à criada que deixasse em seu
quarto.
Era a mais calorosa das recepções e uma recordação de tempos mais
felizes, antes que a guerra do petróleo começasse, o milagre italiano
azedasse e as esperanças exuberantes da unidade européia fossem
empanadas de maneira irreparável. Quando os convidados para o jantar
chegaram, Lotte estava completamente relaxada, conversando
alegremente com Hilde sobre uma viagem a Florença e outra a Ischia,
enquanto Carl Mendelius expunha as linhas gerais de suas conferências
aos evangélicos, para um entusiasmado Herman.
O jantar foi dos mais agradáveis. A mulher de Utley tinha realmente
uma conversa alegre e descontraída. A namorada de Georg Rainer, Pia
Menendez, foi um sucesso imediato. Era uma beldade deslumbrante,
que sabia ser atenciosa com as matronas. Georg Rainer era um homem
ansioso por notícias e Utley gostava de recordar os acontecimentos.
Assim, não foi difícil para Mendelius conduzir a conversa para os
últimos eventos no Vaticano. Utley, o britânico, que em sua língua
materna elevava a obscuridade a uma arte, era bastante preciso em
alemão.
— ... Mesmo para alguém de fora, ficou evidente que Gregório XVII
deixou todos em pânico. A organização é grande demais e por isso
mesmo muito frágil para suportar um inovador ou até um homem
flexível em seu comando. É a mesma coisa que acontece entre os russos
e seus satélites e os governos camaradas na América do Sul e África.
Eles precisam preservar a qualquer custo a ilusão de unanimidade e
estabilidade... Assim, o Papa tinha de ser afastado.
— Eu gostaria muito de saber exatamente como o levaram a abdicar
— disse Carl Mendelius.
— Ninguém está em condições de falar sobre isso — explicou Utley.
— Em toda a minha experiência, foi a primeira vez em que nada
transpirou do Monte Vaticano. Obviamente, foi feita alguma barganha.
Mas a impressão é de que eles ficaram com as consciências intranqüilas
depois.
— Fizeram chantagem com ele! — declarou categoricamente o
homem de Die Welt: — Tive as provas, mas não pude publicar.
— Por que não?
A pergunta foi formulada por Utley.
— Porque recebi a informação de um dos médicos que foram

49
chamados para examinar Gregório XVII. Evidentemente, ele não pode
fazer uma declaração pública.
Esse médico contou-lhe o que descobriu?
— Contou-me o que a Cúria queria que ele descobrisse: que Gregório
XVII era mentalmente deficiente.
— E eles pediram tal confirmação de maneira tão clara e brusca?
Mendelius estava surpreso e desconfiado.
— Não. Foi justamente esse o problema. A Cúria foi muito sutil.
Pediram aos médicos... foram sete, ao todo... que determinassem, acima
de qualquer dúvida, se o Pontífice estava mental e fisicamente são para
desempenhar-se dos deveres de seu cargo, neste momento crítico.
— Isso é muito amplo e vago — comentou Utley. — Por que
Gregório concordou com tais exames?
— Ele ficou acuado. Se recusasse, tornava-se suspeito. Se aceitasse,
ficava sujeito ao consenso médico.
— E qual foi esse consenso? — perguntou Mendelius.
— Meu informante não pôde dizer. Foi outra manobra hábil deles.
Pediram a cada médico que apresentasse seu parecer independente, por
escrito.
— O que dava plena liberdade à Cúria para escrever posteriormente a
sua própria avaliação. — Bill Utley soltou uma risadinha seca. —
Muito hábil mesmo! E qual foi o veredicto do seu informante?
— Creio que foi honesto, embora não muito favorável ao paciente.
Gregório estava sofrendo de fadiga intensa, insônia constante e pressão
alta, embora não necessariamente em caráter crônico. Havia indícios
evidentes de ansiedade e fases alternadas de animação e depressão.
Obviamente, se tais sintomas persistissem, num homem de 65 anos,
haveria motivos para temer complicações mais graves...
— Se os outros pareceres foram assim...
Mendelius interveio, suavemente:
— Ou se foram menos honestos e um pouco mais distorcidos...
— Os cardeais lhe deram o xeque-mate — disse Georg Rainer. —
Escolheram trechos especiais dos pareceres, neles baseando seu
veredicto final. E apresentaram o ultimato a Gregório: abdique ou será
afastado compulsoriamente!
— Santo Deus! — exclamou Mendelius, baixinho. — Que opção ele
tinha?
— Mas não se pode negar que foi uma manobra das mais hábeis. —
Bill Utley tornou a soltar uma risada seca. — Não se pode promover o
impedimento de um Papa. Tirando o assassinato, como se livrar dele?
Você tem razão, Georg, foi pura chantagem. Fico imaginando quem

50
terá urdido toda a trama.
— Foi Arnaldo, é claro. Sei que foi ele quem deu instruções aos
médicos.
— E agora ele é o Papa — disse Carl Mendelius.
— E provavelmente será um Papa muito bom — comentou Utley,
sorrindo. — Afinal, conhece as regras do jogo.
Relutantemente, Carl Mendelius, o antigo jesuíta, foi obrigado a
concordar. Pensou também que Georg Rainer era um jornalista
competente e que valeria a pena cultivar seu conhecimento.

Naquela noite, ele fez amor com Lotte numa imensa cama barroca,
que pertencera ao elegante Cardeal Bernis, conforme Herman jurara,
por sua honra. Quer tivesse sido ou não, não tinha muita importância. O
fato é que eles se amaram alegremente, com intensidade, como há
muito tempo não acontecia. Depois que terminou, Lotte aconchegou-se
no ombro dele e murmurou, a voz sonolenta:
— Foi uma noite maravilhosa... todos tão alegres e efusivos! Estou
contente por termos vindo. Tübingen é uma ótima cidade, mas eu havia
esquecido como é vasto o mundo exterior.
— Pois então vamos começar a visitá-lo juntos, liebchen.
— Prometo que faremos exatamente isso. Estou sentindo-me mais
feliz agora em relação às crianças. Katrin foi muito gentil e meiga.
Contou-me o que você lhe dissera e como Franz recebeu a notícia.
— Eu não soube disso.
— Ao que parece, ele disse: "Seu pai é um grande homem. Gostaria
de trazer-lhe uma boa tela de Paris."
— É um prazer ouvir uma coisa assim.
— Johann também parecia mais feliz, embora quase não tivesse
falado.
— Johann tirou do peito algumas coisas que o oprimiam, inclusive o
fato de que não era mais um crente.
— Oh, Deus! Isso é terrível!
— É apenas uma fase, liebchen. — Mendelius mostrou-se
deliberada-mente indiferente. — Ele quer descobrir o seu próprio
caminho para a verdade.
— Espero que você lhe tenha deixado bem claro que respeitava sua
decisão.
— Mas claro! Não deve preocupar-se com o meu relacionamento
com Johann. É apenas uma questão do touro velho e do novo tendo
atritos ocasionais.
— Touro velho é uma descrição das mais apropriadas! — Lotte riu

51
feliz na escuridão. — O que me lembra de uma coisa: se Hilde insistir
nessa história de pegar na sua mão, ainda vou acabar arrancando os
olhos dela!
— É um prazer descobrir que você ainda sente ciúme.
— Eu o amo, Carl. Não pode imaginar quanto o amo.
— Eu também a amo muito, liebchen.
— Isso é tudo o que eu preciso para encerrar um dia perfeito. Boa-
noite, meu querido.
Lotte rolou para o lado, enroscou-se por baixo das cobertas e caiu no
sono quase que imediatamente. Carl Mendelius cruzou as mãos por
baixo da cabeça e ficou por um longo tempo olhando para o teto, onde
ninfas amorosas e semideuses vorazes divertiam-se desenfreadamente.
Apesar de todo o alívio do ato de amor, ele ainda estava atormentado
pelo que ouvira ao jantar e pela última carta da pilha que a criada
deixara na mesinha-de-cabeceira.
Estava escrita em italiano, a mão, no papel timbrado da Sagrada
Congregação para a Doutrina da Fé:

''Caro Professor Mendelius:

Fui informado por nosso amigo mútuo, o reitor do Pontifício Instituto


Bíblico, de que estará em breve visitando Roma a fim de efetuar
algumas pesquisas históricas, além de fazer conferências na Academia
Alemã de Belas-Artes.
Soube também que planeja fazer uma visita ao Pontífice
recentemente afastado, no Mosteiro de Monte Cassino.
Como sempre tive a maior admiração por seu trabalho, teria o maior
prazer em recebê-lo para um café, pela manhã, em meus aposentos
particulares, na Cidade do Vaticano.
Gostaria que fizesse a gentileza de telefonar-me para a Congregação,
em qualquer tarde, entre quatro e sete horas, a fim de marcarmos uma
data mutuamente conveniente, de preferência antes de sua ida a Monte
Cassino.
Apresento minhas saudações e os melhores votos de uma estada
agradável.

Seu em Jesus Cristo,


Anton Drexel
Cardeal-Prefeito"

Era impecável, como sempre: um gesto cortês e um lembrete mordaz

52
de que nada, absolutamente nada, ocorria nos círculos sagrados sem
que os cães de guarda do Senhor tomassem conhecimento. Nos dias
antigos dos Estados Papais, mandariam uma convocação e um
destacamento de gendarmes para velar por seu atendimento. Agora,
usavam-se café e biscoitos nos aposentos do cardeal, seguindo-se uma
conversa suave e insinuante.
Ora, ora! Tempora mutantur! Mendelius se perguntou o que o
Cardeal-Prefeito mais desejava: informação ou uma garantia de
discrição. E perguntou-se também quais seriam as condições que lhe
poderiam impor antes de permitirem uma visita a Jean Marie Barette.

CAPÍTULO 3

Herman Frank tinha bons motivos para sentir-se orgulhoso de sua ex-
posição. A imprensa fora generosa em comentários, louvores e
ilustrações. As galerias da Academia estavam repletas de visitantes,
romanos e turistas, havia uma quantidade surpreendente de jovens.
As obras de Gaspar Van Wittel, um holandês de Amersfoort do
século XVII, eram pouco conhecidas do público italiano. A maioria
ficara sempre zelosamente guardada nas coleções particulares dos
Colonna, Sacchetti, Pallavicini e outras famílias nobres. A reunião das
obras levara dois anos de paciente pesquisa e delicadas negociações. A
proveniência de muitos quadros ainda era um segredo rigorosamente
guardado, o que confirmava a existência em grande quantidade do que
se chamava de raccolta privata. Juntos, constituíam um retrato
extraordinariamente vivido, pictórico e arquitetônico, da Itália do

53
século XVII. O entusiasmo de Herman Frank possuía a inocência rara e
comovente da infância.
— Olhe só para isso! Tão delicado e ao mesmo tempo tão preciso! A
qualidade das cores é quase japonesa! Um artesão magnífico, um
mestre completo das perspectivas mais intrincadas... Estude estes
desenhos... Observe como ele constrói pacientemente a composição... É
muito estranho. Ele vivia numa villa pequena e sombria na Appia
Antica. Ainda está lá. Um lugar terrivelmente claustrofóbico. Mas era
tudo campina ao redor naquele tempo e assim ele tinha provavelmente
todo o espaço e luz de que precisava...
Herman Frank parou de falar de repente, subitamente embaraçado.
— Desculpe-me. Estou falando demais. Mas é que adoro essas coisas!
Mendelius pôs a mão no ombro dele, gentilmente.
— É um prazer ouvi-lo, meu amigo. Olhe só para todos esses jovens!
Você os afastou de seus ressentimentos e confusões, levou-os a outro
mundo, mais simples, mais bonito, toda a feiúra esquecida. Deve estar
orgulhoso disso.
— E estou mesmo, Carl. Confesso que estou. Mas também estou com
medo do dia em que todas essas telas forem removidas e remetidas de
volta a seus proprietários. Estou ficando velho. Não sei se terei tempo
ou energia... e a sorte também, diga-se de passagem!... para tornar a
fazer algo assim.
— Mas ainda estará tentando e isso é o mais importante.
— Infelizmente, não poderei continuar por muito tempo. Vou
aposentar-me no próximo ano. Não sei então o que farei. Não
poderemos continuar a viver aqui, mas ao mesmo tempo detesto a idéia
de voltar à Alemanha.
— Pode começar a escrever em tempo integral. Já estabeleceu a sua
reputação como historiador de arte. Tenho certeza de que poderá ganhar
muito mais dinheiro na edição de seus livros do que conseguiu até
agora... Por que não me deixa conversar com meu agente e verificar o
que ele pode fazer por você?
— Faria isso por mim? — Herman estava quase pateticamente grato.
— Não sou muito bom nos negócios e ficaria preocupado com Hilde na
hora de acertar tudo.
— Falarei com meu agente assim que voltarmos à Alemanha. O que
me lembra de uma coisa. Posso usar seu telefone? Preciso fazer uma
ligação importante antes de meio-dia.
— Vamos para o meu escritório. Pedirei um café para nós... Antes
disso, porém, dê uma olhada nesta vista do Tibre! Há três versões deste
quadro, uma da Coleção Pallavacini, outra da Galeria Nacional e a

54
terceira de um engenheiro que a comprou por uma ninharia numa feira
livre de objetos antigos.
Passaram-se mais 15 minutos antes que Mendelius pudesse dar o seu
telefonema para o Mosteiro de Monte Cassino. Teve de esperar muito
tempo para que o Abade fosse encontrado e chamado ao telefone.
Mendelius ficou remoendo-se de impaciência, mas depois lembrou que
os mosteiros visavam a separar os homens do mundo e não a mantê-los
em contato fácil.
O Abade foi cordial, embora não exatamente efusivo.
— Professor Mendelius? Aqui é o Abade Andrew. Foi muita
gentileza sua telefonar tão prontamente. Poderíamos marcar sua visita
para a próxima quarta-feira? É um dia de festa para nós e assim
poderemos oferecer-lhe uma hospitalidade um pouco mais generosa.
Sugiro que chegue por volta das três e meia da tarde e fique para o
jantar. O mosteiro fica um tanto longe de Roma, e se quiser passar a
noite, teremos o maior prazer em acomodá-lo.
— É muita bondade sua. Aceito o convite e deixarei para voltar na
manhã de quinta-feira. Como está meu amigo Jean?
— Está meio indisposto, mas espero que já se tenha recuperado até
sua visita. Ele aguarda ansiosamente a oportunidade de revê-lo.
— Por favor, apresente-lhe meus cumprimentos afetuosos e diga que
minha mulher manda lembranças.
— Terei o maior prazer em transmitir seus cumprimentos. Até
quarta-feira, Professor.
— Obrigado, Abade.
Mendelius desligou e ficou sentado por algum tempo, imerso em seus
pensamentos. Ainda faltava quase uma semana para a quarta-feira,
tempo suficiente para cancelar o convite, caso as circunstâncias
mudassem ou houvesse a intervenção de alguma autoridade superior. A
indisposição de Jean Marie, real ou diplomática, proporcionaria a
desculpa apropriada.
— Algum problema, Carl?
Herman pôs a bandeja com o café em cima da mesa e começou a
servir.
— Não tenho certeza. De qualquer forma, parece que o Vaticano está
um tanto interessado nas minhas atividades.
— Eu diria que isso é perfeitamente natural. Afinal, você lhes deu
algumas dores de cabeça no passado. E cada novo livro seu provoca um
rebuliço... Quer leite e açúcar?
— Sem açúcar. Estou tentando emagrecer.

55
— Já notei. E também notei que estava pressionando com alguma
insistência ontem à noite para obter informações sobre Gregório XVII.
— Foi tão patente assim?
— Creio que apenas para mim. Havia algum motivo especial?
— Ele era meu amigo. Você sabe disso. Eu queria saber o que
realmente lhe aconteceu.
— Ele não lhe contou?
— Há meses que não recebia notícias dele. — Mendelius resolveu
ampliar a resposta. — Imagino que não lhe sobrava muito tempo para
correspondência particular.
— Mas pretende encontrá-lo durante sua estada em Roma?
— Já acertei tudo nesse sentido.
A resposta foi um tanto brusca demais. Herman Frank era um homem
de muito tato para insistir no assunto. Houve um momento de silêncio
constrangido e depois Herman disse:
— Há um problema que me vem deixando preocupado e perplexo,
Carl. Gostaria de saber sua opinião a respeito.
— Pode falar, Herman.
— Há cerca de um mês fui chamado à nossa Embaixada. O
Embaixador queria falar-me. Mostrou uma carta de Bonn, uma circular
de instruções a todas as academias e institutos no exterior. Muitos
deles, como você sabe, estão com materiais valiosos emprestados pela
República, como esculturas, quadros, manuscritos históricos, esse tipo
de coisas... Todos os diretores receberam instruções para providenciar
lugares seguros em que esses materiais possam ser guardados, nos
países anfitriões, em caso de distúrbios civis ou um conflito
internacional. Todos recebemos um orçamento especial, imediatamente
disponível, para comprar ou alugar o local apropriado.
— Parece-me uma precaução razoável — comentou Mendelius. —
Especialmente porque não se pode fazer seguro contra guerra ou
violência civil.
— Não é esse o problema — disse Herman Frank, enfático. — Foi o
tom do documento que me deixou preocupado. Era um tom de
urgência, com ameaça de penalidades rigorosas por negligência. Tive a
nítida impressão de que o nosso Governo está realmente preocupado
com a possibilidade de algo terrível acontecer muito em breve.
— Tem uma cópia dessa circular?
— Não. O Embaixador disse que o documento não poderia deixar a
Embaixada. E há mais uma coisa. Somente os altos funcionários
deviam tomar conhecimento do conteúdo da circular. Achei que isso

56
era um tanto sinistro. E continuo a achar. Sei que me preocupo demais
com as coisas. Mas estou preocupado com Hilde e no que poderia
acontecer com ela se ficarmos separados numa emergência. Gostaria de
saber a sua opinião sincera, Carl.
Por um momento, Mendelius sentiu-se tentado a dissipar a apreensão
do amigo com alguma justificativa convincente. Mas decidiu não fazê-
lo. Herman Frank era um bom homem, gentil demais para um mundo
brutal. Merecia uma resposta objetiva e sincera.
— A situação não está nada boa, Herman. Ainda não chegamos ao
ponto de pânico, mas isso pode acontecer muito em breve. Tudo aponta
para isso: os distúrbios públicos, o colapso da confiança política, a
recessão cada vez maior... e os idiotas em altos postos, que pensam que
podem resolver o problema com uma guerra no momento exato,
embora querendo que tal guerra seja limitada. Você está certo ao ficar
preocupado. Mas o que você pode fazer é outra questão. A partir do
momento em que os primeiros mísseis forem disparados, não haverá
esconderijo seguro em parte alguma. Já conversou com Hilde sobre
isso?
— Já, sim. Ela não quer voltar à Alemanha, mas concorda que
devemos pensar em uma saída de Roma. Temos uma pequena
propriedade nas colinas toscanas. É um lugar isolado, cercado por terra
fértil. Talvez pudéssemos sobreviver com base apenas no que
cultivássemos... Mas parece um ato de desespero sequer cogitar sobre
tal possibilidade.
— Ou um ato de esperança — disse Mendelius, gentilmente. —
Acho que a sua Hilde é muito sensata... e não deveria preocupar-se
tanto com ela. As mulheres são muito melhores do que nós em questões
de sobrevivência.
— É bem possível. Nunca tinha pensado no problema dessa
maneira... Você não fica querendo às vezes que pudéssemos encontrar
um grande homem que assumisse o controle da situação e nos tirasse
dessa terrível confusão?
|— Nunca! — disse Carl Mendelius, sombriamente. — Os grandes
homens são perigosos. Quando seus sonhos fracassam, enterram-nos sob
os escombros de cidades em que outrora viviam em paz pessoas simples!

— Quero ser franco com você, Mendelius. E quero que seja franco
comigo.
— Como assim, Eminência? E franco sobre que assunto?
As cortesias haviam acabado. Os biscoitos já tinham sido comidos, o

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café estava frio. Sua Eminência Anton Cardeal Drexel, de cabelos
grisalhos, empertigado como um granadeiro, estava de costas para o
visitante, contemplando os jardins do Vaticano, banhados pelo sol.
Virou-se lentamente e ficou imóvel por mais um momento, uma
silhueta sem rosto contra a claridade. Mendelius acrescentou:
— Por favor, Eminência, por que não se senta? Eu gostaria de ver seu
rosto enquanto conversamos.
— Desculpe-me. — Drexel riu. — Um truque antigo... e não muito
polido. Prefere que conversemos em alemão?
Apesar do nome, Drexel era italiano, nascido em Bolzano, há muito
um território em disputa entre a Áustria e a República Italiana.
Mendelius deu de ombros.
— Como Vossa Eminência achar melhor.
— Pois então vamos conversar em italiano. Falo alemão como um
tirolês. Poderia achar cômico.
— A língua materna é a melhor para se ser sincero — comentou
Mendelius, secamente. — Se meu italiano falhar, falarei em alemão.
Drexel afastou-se da janela e foi sentar-se diante de Mendelius.
Arrumou cuidadosamente as dobras da batina, por cima dos joelhos. O
rosto vincado, ainda bonito, parecia esculpido em madeira. Somente os
olhos estavam vivos, de um azul intenso, divertidos, mas inquisitivos e
penetrantes.
— Você sempre foi um homem duro. — Ele usou um termo
coloquial, un tipo robusto. Mendelius sorriu do elogio ambíguo. — E
agora me diga: o quanto sabe do que aconteceu aqui recentemente?
— Antes de responder, Eminência, gostaria de formular uma
pergunta. Tenciona opor algum obstáculo ao meu encontro com Jean
Marie?
— Eu? De jeito nenhum!
— Alguém pretende, ao que saiba?
— Pelo que sei, ninguém tem essa intenção, embora haja
obviamente muito interesse pelo encontro.
— Obrigado, Eminência. Agora, vou responder à sua pergunta. Sei
que o Papa Gregório foi forçado a abdicar. E sei quais foram os meios
usados para arrancar-lhe tal decisão.
— E quais foram?
— Sete pareceres médicos independentes, que foram posteriormente
reunidos pela Cúria num documento final, destinado a lançar dúvidas
sobre a sanidade mental de Sua Santidade. Essa conclusão é acurada?
Drexel hesitou por um instante e depois assentiu em concordância.

58
— É, sim. E o que você sabe sobre a minha participação nos
acontecimentos?
— Pelo que sei, Eminência, discordou da decisão do Sacro Colégio,
mas concordou em transmiti-la ao Pontífice.
— E sabe por que os cardeais chegaram a tal decisão?
— Sei.
Houve um brilho de dúvida nos olhos de Drexel, mas ele continuou
sem a menor hesitação:
— E concorda ou não com a decisão?
— Acho que os meios de impô-la foram vergonhosos, pura
chantagem. Quanto à decisão propriamente dita, estou num dilema.
— E como exprimiria esse dilema, meu amigo?
— O Papa é eleito como Pastor Supremo e Guardião da Fé. O cargo
pode ser conciliado com o papel de profeta a proclamar uma revelação
pessoal, mesmo que tal revelação seja verdadeira?
— Então você sabe de tudo! — disse suavemente o Cardeal-Prefeito.
— E, felizmente, compreende.
— E onde isso nos deixa, Eminência?
— Diante do segundo dilema: como provar se a revelação é falsa ou
verdadeira?
— Seus colegas já resolveram esse dilema — comentou Mendelius,
sarcasticamente. — Julgaram-no um louco.
— Mas não foi o meu caso — disse firmemente o Cardeal Drexel. —
Achei e ainda acho que a posição dele como Pontífice era insustentável.
Não havia a menor possibilidade de ele desempenhar suas funções
diante de tanta oposição. Mas considerá-lo um louco? Nunca!
— Então um profeta mentiroso?
Pela primeira vez, o rosto impassível de Drexel deixou transparecer a
emoção que o dominava.
— É um pensamento terrível!
— Ele me pediu para julgá-lo, Eminência. Tive de examinar todos os
veredictos possíveis.
— Ele não é um mentiroso.
— Acha que foi vítima de uma ilusão?
— Eu bem que gostaria de acreditar nisso. Seria tudo mais simples.
Mas não posso acreditar... simplesmente não posso!
De repente, Drexel parecia exatamente o que era: um velho leão que
estava perdendo a força.
Mendelius sentiu um impulso de compaixão pela angústia estampada
no rosto dele. Apesar disso, não podia abrandar em sua inquisição. E
perguntou firmemente:

59
— Como foi que o testou, Eminência? Quais os critérios que
empregou?
— Os únicos que conheço: sua maneira de falar, comportamento,
escritos, a natureza da vida espiritual.
Mendelius não pôde deixar de rir.
— É o Cão de Deus falando.
Drexel sorriu tristemente.
— As feridas antigas ainda doem, não é mesmo? Admito que o
fizemos passar por momentos difíceis. Mas pelo menos o ensinamos a
compreender o método. O que quer saber primeiro?
— Foi o escrito que finalmente o condenou. Tenho uma cópia da
encíclica. Como foi que a leu, Eminência?
— Com profunda apreensão, é claro. Não tive a menor dúvida sobre
a sua supressão. Mas concordo que não contém nada, absolutamente
nada, que seja contrário à doutrina tradicional. Há interpretações que
podem ser consideradas exageradas, mas certamente não são
heterodoxas. Até mesmo a questão de um ministério eletivo, quando a
ordenação por um bispo é totalmente impossível, está aberta a
discussão... embora seja assunto um tanto delicado para ouvidos
romanos.
— O que nos leva ao teor da vida espiritual de Jean Marie. — Havia
uma insinuação de ironia na voz de Mendelius. — Como pôde julgá-lo,
Eminência?
Pela primeira vez, o rosto áspero de Drexel se desanuviou num
sorriso.
— A avaliação não podia deixar de ser melhor do que a sua, meu caro
Mendelius. Ele permaneceu fiel à sua vocação como sacerdote. Era um
homem totalmente altruísta, todos os pensamentos orientados para o bem
da Igreja e das almas humanas. Suas paixões estavam sobre controle. No
mais alto posto, manteve-se humilde e gentil. Sua ira era sempre contra a
maldade, jamais contra a fragilidade. Mesmo ao final, ele não verberou
seus acusadores. Enfrentou a tudo com dignidade e aceitou o papel de
submissão sem qualquer queixa. Fui informado pelo Abade de que sua
vida em Monte Cassino é um modelo de simplicidade religiosa.
— Ele é também um homem que mantém silêncio. Como isso pode
ajustar-se à obrigação que ele diz ter de espalhar a notícia da Parúsia?
— Antes de eu responder a essa pergunta, Mendelius, creio que
devemos esclarecer uma questão de fato. Obviamente, ele lhe escreveu
e enviou uma cópia da encíclica proibida. Correto?
— Correto.
— Isso foi antes ou depois da abdicação?

60
— Ele escreveu antes, mas recebi depois.
— Ótimo! E agora me deixe dizer-lhe algo que não sabe. Quando
meus irmãos cardeais obtiveram o consentimento de Gregório à
abdicação, estavam convencidos de que o haviam quebrado, que ele
faria tudo o que quisessem. Primeiro, tentaram incluir no instrumento
de abdicação uma promessa de silêncio perpétuo sobre qualquer
questão que afetasse a vida pública da Igreja. Eu lhes disse que não
tinha um direito moral nem legal de fazer isso. Se insistissem, eu lutaria
contra eles até a morte. Renunciaria ao meu cargo e faria uma
declaração pública completa sobre todo o episódio lamentável.
Tentaram então outro caminho. Sua Santidade concordara em ingressar
na Ordem de São Benedito e levar a vida de um simples monge. Assim
ele estaria obrigado a obedecer a seu superior religioso. Dessa forma,
disseram meus espertos colegas, não haveria problemas, pois o Abade
receberia instruções para forçá-lo ao silêncio, pelos votos.
— Conheço essas coisas — disse Carl Mendelius, com uma raiva
intensa — Obediência do espírito! A pior agonia que se pode impor a
um homem honesto. Ensinamos isso a todas as tiranias do mundo.
— Eu estava determinado a impedir que a impusessem a nosso amigo
— disse Mendelius, em voz baixa. — Ressaltei que se tratava de uma
usurpação inadmissível do direito de um homem de agir livremente, de
acordo com sua consciência pessoal, que o voto mais rigoroso não
poderia obrigá-lo a cometer um erro ou reprimir sua consciência em
nome do bem. Ameacei novamente denunciar tudo publicamente.
Barganhei com o meu voto no Conclave iminente e comuniquei ao
Abade Andrew que ele também estava obrigado, sob pena de pecado
mortal, a proteger a livre consciência de seu novo monge.
— Fico contente em saber disso, Eminência. — Mendelius estava
solene e respeitoso. — É a primeira luz que encontro em todo este caso
tenebroso. Mas isso não responde à minha pergunta. Por que Jean
Marie está calado? Tanto na carta que me escreveu como na encíclica,
ele fala de sua obrigação de proclamar as novas que afirma lhe terem
sido reveladas.
Drexel não respondeu imediatamente. Lentamente, quase
dolorosamente, ele se levantou, foi até a janela e ficou olhando para o
jardim. Quando finalmente tornou a se virar, o rosto estava na sombra
como antes, mas Mendelius não protestou. A angústia do Cardeal era
perfeitamente evidente em sua voz:
— Creio que o motivo é o fato de ele estar agora passando pela
experiência de todos os grandes místicos, que é chamada de "a noite
escura da alma". É um período de profunda escuridão, terrível

61
confusão, quase desespero, quando o espírito parece privado de todo e
qualquer apoio, humano ou divino. É uma réplica daquele momento
terrível em que o próprio Cristo gritou: "Meu Pai! Por que me
abandonaste?" Foi isso o que o Abade Andrew me informou. E é por
isso que tanto ele como eu queríamos falar-lhe antes do seu encontro
com Jean Marie. A verdade, Mendelius, é que acho que falhei com ele,
porque tentei chegar a um meio-termo entre os impulsos do Espírito e
as pressões do sistema a que estive integrado por toda a minha vida.
Espero e rezo para que você se mostre um amigo melhor.
— Fala dele como um místico, Eminência. Isso parece indicar uma
crença em sua experiência mística. Ainda não estou preparado para
acreditar nisso, por mais que ame Jean Marie.
— Espero que você lhe diga isso antes, e depois faça as perguntas.
Poderia fazer a gentileza de procurar-me depois do encontro?
— Tem a minha promessa, Eminência. — Mendelius levantou-se. —
Obrigado por convidar-me a visitá-lo. E peço que me perdoe se fui um
tanto rude no começo.
— Não foi rude, apenas duro. — O Cardeal sorriu e estendeu a mão.
— Era muito menos razoável antigamente. O casamento deve ter-lhe
feito bem.

Lotte e Hilde tinham ido almoçar em Tivoli e por isso ele estava
fazendo uma refeição sozinho na Piazza Navona. Faltavam 15 minutos
para meio-dia quando saiu do Vaticano e resolveu ir a pé. No meio da
Via della Conziliazione parou e virou-se, a fim de contemplar a grande;
Basílica de São Pedro, com as colunatas ao redor, simbolizando a
missão abrangente da Santa Madre Igreja.
Para meio bilhão de crentes, aquele era o centro do mundo, a morada
do Vigário de Cristo, o lugar em que estava sepultado Pedro, o
Pescador. Quando os mísseis fossem lançados do território soviético,
tudo aquilo seria destruído na primeira explosão. O que aconteceria ao
meio bilhão de fiéis, a partir do momento em que não mais existisse
aquele símbolo de unidade, autoridade e permanência?
Haviam sido condicionados por muito tempo a encarar aquele prédio
marcado pelo tempo como centro do mundo e seu governante como o
único autêntico representante de Deus perante os homens. A quem os
fiéis poderiam recorrer quando aquele prédio e o homem fossem
destruídos?
Não eram indagações ociosas. Eram possibilidades terrivelmente
iminentes... para Jean Marie Barette, para Anton Cardeal Drexel, para

62
Carl Mendelius, que conhecia toda a literatura apocalíptica de cor e a
via reescrita em todas as linhas da imprensa diária. Sentia pena de
Drexel, velho, ainda poderoso, mas privado de todas as suas certezas.
Sentia pena de todos eles, cardeais, bispos, clérigos da Cúria, todos
tentando aplicar o Codex Juris Canonicus a um planeta enlouquecido,
lançando-se vertiginosamente à extinção.
Mendelius tornou a virar-se e afastou-se lentamente pela multidão de
peregrinos, atravessando a Ponte Victor Emmanuel e descendo o Corso.
No meio do caminho, encontrou um bar com mesas espalhadas pela
calçada. Sentou-se e pediu um Campari e ficou observando o desfile.
Era a melhor época de Roma, o tempo ainda ameno, as flores viçosas
nas barracas, as moças flertando em seus trajes novos de verão, as lojas
repletas de bugigangas para os turistas.
A atenção de Mendelius foi atraída para uma moça parada junto ao
meio-fio, alguns metros à sua esquerda. Vestia uma calça comprida
azul-escura e uma blusa branca de seda, que mostrava os contornos dos
seios empinados. Os cabelos pretos estavam parcialmente cobertos por
um lenço vermelho. Ela parecia uma sulista, esguia, a pele azeitonada,
com um rosto sereno de Madona, singularmente bonito em repouso. Ela
tinha um jornal dobrado numa das mãos e na outra uma bolsa pequena,
de couro azul. Parecia estar esperando por alguém.
Enquanto ele observava, um pequeno Alfa vermelho entrou de
marcha à ré na vaga perto da moça. O motorista estacionou o carro de
qualquer maneira, a frente meio virada para o tráfego. Por um
momento, parecia uma típica tentativa de conquista. Mas a moça reagiu
sem qualquer protesto. Entregou a bolsa ao motorista e, ainda
segurando o jornal, virou-se para a calçada. O motorista ficou
esperando, com a porta aberta e o motor ligado.
Poucos momentos depois, um homem de meia-idade, elegantemente
vestido, carregando uma pasta de couro, desceu rapidamente pelo
Corso. A moça adiantou-se, sorriu e falou-lhe. O homem parou. Parecia
surpreso e disse alguma coisa que Mendelius não pôde ouvir. A moça
disparou-lhe três tiros na virilha, jogou o jornal na sarjeta e pulou para
o carro, que prontamente saiu em disparada.
Por um instante de choque, Mendelius ficou completamente imóvel,
aturdido. Depois, correu para o homem caído e comprimiu a mão contra
a virilha, numa tentativa de estancar o sangue que saía pela artéria
femural. Ainda estava assim quando a polícia e os homens da
ambulância abriram caminho pela multidão para socorrer a vítima.
Um guarda afastou os espectadores embasbacados e os fotógrafos.

63
Um gari limpou o sangue da calçada. Um detetive à paisana levou
Mendelius para o bar. Um garçom trouxe água quente e guardanapos
limpos para limpar o sangue das roupas dele. O proprietário ofereceu
uma dose dupla de uísque, com os cumprimentos da casa. Mendelius
bebeu lentamente, agradecido, enquanto prestava seu primeiro
depoimento. O detetive, um jovem milanês impassível, transmitiu-o
imediatamente à chefatura, pelo telefone. Depois, voltou a sentar-se à
mesa junto com Mendelius e pediu um uísque.
— Sua ajuda foi valiosa, Professor. A descrição da culpada,
detalhada e observada com atenção, é muito útil neste estágio inicial.
Infelizmente, tenho de pedir-lhe que compareça à chefatura e examine
algumas fotografias. E poderá também trabalhar com um dos nossos
desenhistas para fazer um retrato falado.
— Não há problema. Mas eu gostaria de que tudo fosse resolvido
esta tarde. Como já expliquei, tenho muitos compromissos.
— Está certo. Iremos para a chefatura assim que acabarmos nossos
drinques.
— Quem era a vítima?
— O nome dele é Malagordo. É um dos nossos senadores mais
antigos, socialista e judeu. Uma coisa horrível e está ficando pior a cada
semana.
— Parece uma coisa sem sentido... uma barbaridade gratuita.
— Gratuita, sim, mas não sem sentido. Aquelas pessoas estão
querendo a anarquia, o colapso clássico e total do sistema, através da
destruição da confiança pública. E estamos agora bem perto disso. Pode
achar isso difícil de acreditar, Professor. Pelo menos 20 outras pessoas
testemunharam o atentado, mas aposto um mês de salário que o seu
depoimento será o único que nos dirá alguma coisa concreta... e é um
estrangeiro! Os outros têm de viver nesta confusão e tumulto, mas não
levantam um dedo sequer para ajudar a endireitar a situação. — Ele fez
uma pausa, dando de ombros, num gesto cansado de resignação. — Ao
final, terão o país que merecem. O que me faz lembrar de uma coisa: é
melhor preparar-se para ver o seu retrato em todos os jornais.
— É a última coisa de que preciso neste momento — murmurou
Mendelius, sombriamente.
— E pode também ser perigoso. Será identificado como uma
testemunha-chave.
— E por isso mesmo como um possível alvo. É o que está querendo
me dizer?
— Infelizmente, sim, Professor. Deve compreender que este é um

64
jogo de propaganda, um teatro negro. Eles têm de atirar no homem que
está em foco. A moça da bilheteria não tem o menor valor como
publicidade. Se quer o meu conselho, deve deixar Roma, de preferência
a Itália.
— Não posso ir embora pelo menos por mais uma semana.
— Neste caso, procure apressar tudo e vá embora o mais depressa
possível. Até lá, mude de endereço. Transfira-se para um dos grandes
hotéis, onde os turistas costumam concentrar-se. Use outro nome.
Resolverei o problema do passaporte com a gerência.
— Não ajudaria muito. Tenho conferências marcadas na Academia
Alemã. Assim, continuarei exposto.
— O que posso dizer então? — O detetive deu de ombros e sorriu. —
Só resta aconselhar que tome cuidado, varie sua rotina e não converse
com moças bonitas no Corso!
— Não há a menor possibilidade de proteção policial, pelo menos
para minha mulher?
— Absolutamente nenhuma. Estamos com uma carência desesperada
de homens. Posso indicar-lhe o nome de uma agência que aluga
seguranças, mas eles cobram preços milionários.
— Então que se dane! — exclamou Mendelius. — Vamos dar logo a
olhada nas suas fotografias.
Enquanto se afastavam de carro pelo caos do meio-dia, Mendelius
ainda podia sentir o cheiro de sangue em suas roupas. Esperava que
Lotte estivesse desfrutando o almoço em Tivoli. Queria que ela
aproveitasse aquelas férias, pois talvez não houvesse mais nenhuma no
futuro.

Ao final da tarde, enquanto esperava que Lotte e Hilde voltassem da


excursão, Mendelius sentou-se no terraço e gravou um relatório para
Anneliese Meissner. Enunciou os fatos novos que soubera por
intermédio de Georg Rainer e do Cardeal Drexel e só depois
acrescentou os seus próprios comentários.

..."Rainer é um repórter sério e objetivo. Suas informações médicas


foram confirmadas. Evidentemente, Jean Marie Barette estava sob
grande tensão mental e física. E também, evidentemente, não houve
qualquer consenso sobre a sua capacidade mental. ... Não podemos
esquecer o que Rainer disse: 'Se quisessem mantê-lo, o máximo que ele
í precisava era de algum descanso e de uma redução de sua carga de
trabalho.' ...
A posição do Cardeal Drexel deixou-me surpreso. Lembro que estive

65
sob inquisição por um longo tempo e o conheci como um formidável e
implacável dialético. Contudo, mesmo em nossos piores atritos, jamais
tive qualquer dúvida sobre a sua honestidade intelectual. Adoraria ver
vocês dois empenhados num debate público. Seria uma performance
memorável. Ele rejeita totalmente qualquer possibilidade de insanidade
ou de fraude por parte de Jean Marie. Vai mais adiante e o inclui na
categoria dos místicos, como Teresa de Ávila, João da Cruz e Catarina
de Siena. Por inferência, Drexel compromete-se com a crença, ainda
não claramente definida, na autenticidade da experiência visionária de
Jean Marie. Portanto, agora eu é que sou o cético. Ou pelo menos o
agnóstico. ...
Vou encontrar-me com Jean Marie na próxima quarta-feira e só
deverei despedir-me na quinta-feira. Relatarei tudo a minha assessora
depois do encontro. Faço amanhã a minha primeira conferência na
Academia. Estou aguardando-a ansiosamente. Os evangélicos formam
um grupo interessante. Admiro a maneira como eles vivem. E não
devemos esquecer que Tübingen sempre foi um dos grandes centros da
tradição pietista, que teve tanta influência na Inglaterra e Estados
Unidos. ... Mas esqueci. Você é surda a essa música. ... Mas continuo a
confiar em você plenamente e estou contente por tê-la como minha
Beizitzer. Minhas saudações mais afetuosas, desta cidade maravilhosa,
mas agora também sinistra. Auf wiedersehen."

A audiência já estava sentada quando ele entrou no auditório. Era 20


e tantos pastores evangélicos, a maioria com 30 e poucos anos, uma
dúzia de esposas, três diaconisas e meia dúzia de convidados de Herma
Frank, da comunidade waldensiana de Roma. Carl Mendelius sentiu-s à
vontade entre eles. A Faculdade Teológica de Tübingen fora um de
primeiros núcleos do movimento pietista na Igreja Luterana. Mendelius
sentia-se pessoalmente atraído pela ênfase à devoção pessoal e às obra
de caridade pastoral. Escrevera certa ocasião um longo estudo sobre
Philipp Jakob Spener e o "Colégio de Piedade" que ele fundara em
Frankfurt, no século XVII.
Depois que Herman Frank terminou a apresentação e os aplausos
cessaram, Mendelius ajeitou seus papéis na estante e começou a falar.
Sua atitude era descontraída e informal.
— Não quero fazer uma conferência. Eu preferia, se concordassem,
explorar nosso assunto num diálogo socrático, a fim de verificar o que
nos podemos dizer mutuamente e o que as evidências históricas podem
dizer a todos nós. ... Em termos amplos, estamos lidando com a
escatologia, a doutrina das últimas coisas: o destino final do homem,

66
das organizações sociais e de toda a ordem cósmica. Devemos
considerar tais coisas à luz dos escritos tanto do Antigo como do Novo
Testamento, das primeiras tradições cristãs. ... Há duas maneiras de se
encarar a Doutrina das Últimas Coisas. Cada uma é radicalmente
diferente da outra. A primeira é a que chamo de visão consumatória. A
história humana vai terminar. Cristo virá uma segunda vez, em toda a
sua glória, para julgar os vivos e os mortos. A segunda é a que chamo
de visão modificadora. A criação continua, mas é modificada pelo
homem, trabalhando em concerto com seu criador, na direção de uma
consumação ou perfeição, que só pode ser exprimida através do
símbolo ou analogia. Nesta visão, Cristo está sempre presente e a
Parúsia exprime a suprema revelação de sua presença criativa. ...
Agora, eu gostaria de saber qual a posição de vocês. O que dizem a
seus fiéis sobre a doutrina das últimas coisas? Quem quiser responder,
levante a mão, por favor, diga seu nome e o lugar de onde vem... Pode
falar, o senhor da segunda fila...
— Alfred Kessler, de Koln. — Era um homem ainda jovem, baixo e
corpulento, uma barba quadrada. — Acredito na continuidade e não na
consumação para o cosmos. A consumação para o indivíduo é a morte e
união com o Criador.
— Neste caso, Pastor, como interpreta as Escrituras para os fiéis?
Ensina-as como a Palavra de Deus... ou pelo menos é o que presumo.
Como então expõe a Palavra sobre este assunto?
— Como um mistério, Herr Professor, um mistério que, sob a
influência da graça divina, gradativamente vai revelando seu
significado a cada alma individual.
— Pode esclarecer... talvez exprimir como se estivesse falando à sua
congregação?
— Geralmente apresento tudo da maneira seguinte. A linguagem é
um instrumento humano e, portanto, imperfeito. Onde a linguagem
pára, a música assume, por exemplo. Uso o exemplo da consumação
pessoal de cada homem. Tememos a morte, instintivamente. Contudo,
como todos sabemos, do trabalho pastoral, o homem se torna
familiarizado com a morte, prepara-se subconscientemente. Pois trata-
se de algo que pode perceber em todo o universo ao seu redor, a queda
de uma flor, as sementes espalhadas pelo vento, o renascimento na
primavera... Nesse contexto, a doutrina das últimas coisas pode não ser
explicável, mas pelo menos se ajusta à experiência física e psíquica.
— Obrigado, Pastor. O próximo.
— Petrus Allmann, de Darmstadt. — Era um homem mais velho. —
Discordo totalmente de meu colega. A linguagem humana é de fato

67
imperfeita, mas Cristo o Senhor usou-a. Acho que erramos quando
tentamos converter os seus pronunciamentos numa espécie de fala de
duplo sentido. As Escrituras são absolutamente claras no assunto.
Ele fez uma pausa e depois citou, solenemente:
— "E imediatamente depois das atribulações de tais dias, o sol há de
escurecer e a luz não dará luz, as estrelas cairão do firmamento e os
poderes do céu serão abalados. E então surgirá nos céus o Sinal do
Filho do Homem. ..." O que mais isso pode significar que não a
consumação, o final das coisas temporais?
Houve uma surpreendente explosão de aplausos de uma parte da
audiência. Mendelius deixou que os aplausos se prolongassem por
algum tempo e depois levantou a mão, pedindo silêncio. Exibiu-lhes
um sorriso jovial.
— E agora, senhoras e senhores, quem gostaria de se decidir entre
esses dois homens de boa vontade?
Desta vez foi uma mulher de cabelos grisalhos que levantou a mão.
— Sou Alicia Herschel, diaconisa de Heidelberg. Creio que não tem
importância qual dos colegas está certo. Tenho trabalhado como
missionária em países muçulmanos e aprendi a dizer "Inshallah".
Qualquer Que seja a vontade do Senhor, será feita, independente da
maneira como nós, humanos, interpretemos suas intenções. O Pastor
Allman fez uma citação de Mateus, 24. Mas há outra declaração
importante nesse mesmo capítulo: "Mas a respeito deste dia e hora
ninguém sabe, nem os anjos do céu, mas apenas o Pai."
Era uma mulher impressiva e houve mais aplausos quando se sentou.
Foi seguida por um rapaz de Frankfurt, que fez uma pergunta a
Mendelius:
— Qual é a sua posição em relação a essa questão, Herr Professor?
Ele estava acuado agora, como já esperava que acontecesse. Mas pelo
menos isso o forçava a alguma definição. Mendelius ficou calado por
um momento, ordenando os pensamentos, depois delineou sua posição.
— Como sabem, fui ordenado sacerdote na Igreja Católica Romana.
Contudo, deixei o sacerdócio e dediquei-me ao trabalho acadêmico.
Assim, por muito tempo, estive isento da obrigação de interpretação
pastoral das Escrituras. Sou agora um historiador, ainda um cristão, mas
dedicado a um estudo puramente histórico de documentos bíblicos e
patrísticos. Em outras palavras, estudo o que foi escrito no passado, à
luz do nosso conhecimento desse passado. ... Assim, em termos
profissionais, eu não deveria fazer afirmações sobre a verdade ou não
de escritos proféticos, mas apenas sobre sua proveniência e
autenticidade.

68
Todos estavam agora em silêncio, atentos. Aceitavam a sua posição.
Mas, se por acaso se recusasse a fazer um depoimento pessoal, iriam
rejeitá-lo sumariamente. O conhecimento não era suficiente para eles.
Como verdadeiros evangélicos, exigiam que se manifestasse em
palavras e ação. Mendelius continuou:
— Por temperamento e disciplina, sempre fui propenso a interpretar
o futuro em termos de continuidade, alteração, mudança. Jamais pude
aceitar a consumação. ... Agora, no entanto, descubro-me atraído para a
posição de que a consumação é possível. É um fato da experiência o de
que a humanidade dispõe de todos os meios para criar uma catástrofe
global, de tais dimensões que a vida humana como a conhecemos se
extinguira no planeta. Diante de outro fato da experiência, que é a
capacidade do homem para a destruição, enfrentamos a terrível
perspectiva de que a consumação pode ser iminente...
Houve um murmúrio de espanto na audiência. Mendelius acrescentou
um comentário à afirmação:
— Mas se seria sensato pregar tal mensagem, trata-se de outra
questão completamente diferente. E confesso que, neste momento, não
me sinto em condições de oferecer uma resposta.
Houve um momento de silêncio e depois uma floresta de mãos se
levantou. Antes de ouvir mais perguntas, Mendelius pegou o copo com
água e tomou um gole demorado. Teve uma súbita visão incongruente
de Anneliese Meissner a fitá-lo através das lentes grossas dos óculos,
um sorriso estampado por todo o rosto feio. E quase que pôde ouvir o
veredicto irônico dela:
— Hão lhe falei, Carl? Loucura de Deus! Nunca ficará curado disso!
A sessão estava marcada para terminar ao meio-dia. Mas o debate
estava tão animado que somente quando faltavam 15 minutos para uma
hora é que Mendelius conseguiu escapar para tomar um drinque antes
do almoço, no gabinete de Herman Frank. Herman foi pródigo em
elogios, mas Mendelius não se sentia muito feliz, por causa das
manchetes nos jornais espalhados sobre a mesa.
Variavam do extravagante ao insidioso: "Herói do Corso"; "Professor
Eminente Envolvido em Tiroteio"; "Ex-Jesuíta É Principal Testemunha
contra Brigadas Terroristas". As fotografias eram lúgubres: Mendelius
salpicado de sangue, ajoelhado ao lado da vítima, Malagordo sendo
metido na ambulância, Mendelius e o detetive conversando enquanto
tomavam uísque. Havia também um retrato-falado da assassina, com a
seguinte legenda: "Retrato-falado da assassina, de acordo com a
descrição do Professor Carl Mendelius, da Universidade de Tübingen."

69
O texto enquadrava-se no estilo operístico italiano: horror bombástico,
alto heroísmo e profunda ironia. ... "Talvez haja alguma justiça poética
no fato de um senador judeu dever a vida a um historiador alemão..."
— Deus Todo-Poderoso! — Mendelius estava pálido de raiva. —
Eles estão expondo-me como um alvo de parque de diversões!
Herman Frank acenou com a cabeça, tristemente.
— Isso é horrível, Carl. A Embaixada ligou para adverti-lo de que
existem fortes vínculos entre os terroristas locais e grupos similares na
Alemanha.
— Sei disso. Não podemos mais continuar em seu apartamento,
Frank. Ligue para a Embaixada e peça-lhes para usar sua influência a
fim de providenciar-nos uma suíte num dos melhores hotéis, talvez o
Hassler ou então o Grand... Recuso-me terminantemente a expô-lo e a
Hilde a qualquer perigo por minha causa.
— Nada disso, Carl. Não vou sujeitar-me a esse tipo de ameaça. E
Hilde também jamais permitiria.
— Por favor, Herman! Este não é um momento para heroísmos.
— Não se trata de heroísmo, Carl. — Herman estava
surpreendentemente determinado. — É apenas bom senso. Recuso-me a
viver na clandestinidade, subterrâneo, como uma toupeira. É justamente
o que esses miseráveis estão querendo. Além do mais, será apenas por
uma semana. Lotte e Hilde podem ir para Florença, como estavam
planejando. E uma dupla de velhos matreiros como nós saberá se
cuidar.
— Mas espere um pouco...
— Não tem nada de "mas", Carl. Vamos expor a situação às nossas
mulheres durante o almoço e ver o que elas pensam.
— Está certo. Obrigado, Herman.
— Eu é que devo agradecer-lhe, meu amigo. Esta manhã foi um
triunfo extraordinário para mim. Em todos os meus anos na Academia,
jamais testemunhei um debate tão animado. Eles estão ansiosos por sua
próxima conferência... Ora, já me ia esquecendo! Houve dois
telefonemas para você. Um foi do Cardeal Drexel. Ele estará em seu
gabinete até uma e meia. O outro foi da mulher do Senador Malagordo.
Ela gostaria de que você a procurasse no Hospital Salvator Mundi.
Aqui estão os números dos telefones. Faça as ligações agora e tire os
problemas da cabeça. Eu gostaria de que desfrutasse o almoço.
Enquanto discava para Drexel, Mendelius foi invadido por terríveis
apreensões. O Vaticano atribuía muita importância à discrição. Drexel

70
poderia muito bem considerar a ameaça a Mendelius como uma ameaça
à privacidade de Jean Marie Barette. Ficou surpreso, no entanto, ao
descobrir o velho guerreiro cordial e solícito.
— Mendelius? ... Já viu os jornais da manhã?
— Já, sim, Eminência. Estava conversando a respeito com meu
anfitrião. Um terrível embaraço, para dizer o mínimo.
— Tenho uma sugestão e espero que aceite.
— Terei o maior prazer em ouvi-la, Eminência.
— Pelo restante de sua estada, gostaria que usasse meu carro e meu
motorista. O nome dele é Francone. Já foi dos Carabinieri. Entende do
trabalho de segurança, é alerta e competente.
— É muita gentileza sua, Eminência, mas não posso realmente
aceitar.
— Claro que pode. E deve. Tenho muito interesse em sua segurança,
meu amigo. E me proponho a protegê-lo. Onde você está agora?
— Na Academia. Vou sair para o apartamento de Frank agora, a fim
de almoçar. O endereço é...
— Tenho o endereço. Francone se apresentará às quatro horas da
tarde e ficará à sua disposição pelo resto de sua estada. ... Nada de
discussão! Não podemos nos dar ao luxo de perder o Herói do Corso,
não é mesmo?
Muito mais aliviado, Mendelius ligou para o Hospital Salvator
Mundo e pediu para falar com a mulher do Senador Malagordo. Foi
ligado primeiro com uma freira alemã muito ríspida e depois com um
agente de segurança. Depois de um longo silêncio, a mulher do Senador
finalmente atendeu. Ela queria apresentar seus agradecimentos por ter
salvado a vida do marido. Ele fora gravemente ferido, mas seu estado
era estável. Assim que estivesse em condições de receber visitas, ele
gostaria de ver o professor e agradecer-lhe pessoalmente.
Mendelius prometeu ligar ao final da semana, agradeceu a cortesia e
desligou. Ao saber da notícia, Herman Frank ficou novamente feliz.
— Está vendo, Carl? Esse é o reverso da medalha. As pessoas são
gentis e gratas. E o Cardeal é uma velha raposa astuta. Você
provavelmente não sabe, mas o Vaticano possui uma equipe de agentes
de segurança dos mais eficientes. Eles não têm quaisquer inibições em
quebrar cabeças a serviço de Deus. Esse Francone é obviamente um
deles. Estou sentindo-me melhor agora... muito melhor! Vamos logo
almoçar!
Lotte ficou muito quieta durante o almoço. Mas assim que os Frank
se retiraram para a sesta, ela deixou sua posição bem clara:
— Não vou a Florença, Carl. Nem a Ischia ou a qualquer outro lugar.

71
Não vou sair de Roma se você não for comigo. Se está em perigo, tenho
de partilhá-lo. Caso contrário, não passaria de uma peça de móvel em |
sua vida.
— Seja sensata, por favor, liebchen! Não precisa provar coisa alguma
para mim.
— Nunca pensou que eu poderia precisar provar para mim mesma?
— Mas por que, pelo amor de Deus?
— Porque sempre estive no lado confortável da cama desde que
casamos. Primeiro a mulher de um historiador famoso e depois a Frau
Professor em Tübingen. Nunca tive de pensar muito a respeito de
qualquer coisa, a não ser ter filhos e cuidar da casa... Você sempre estava
presente, um muro forte a proteger do vento. Nunca tive de me testar sem
você. Nunca tive uma rival. Foi tudo maravilhoso, é claro. Mas agora,
olhando para outras mulheres da minha idade, sinto-me incompetente.
— Mas por que deveria? Acha que eu poderia fazer uma carreira sem
você, sem o lar que me proporcionou e todo o amor que encontrei?
— Acho que sim. Talvez não fosse exatamente igual, mas poderia ter
conseguido sem a minha presença. Você não é apenas um historiador e
estudioso insípido. Possui também algo de aventureiro. É isso mesmo.
Percebi esse aventureiro a espreitar algumas vezes... e tratei de fechar a
Porta, porque me assustava. Agora, porém, quero conhecê-lo melhor,
desfrutá-lo, antes que seja tarde demais.
Lotte estava agora chorando, lágrimas silenciosas e ternas. Mendelius
inclinou-se e abraçou-a, falando suavemente:
— Não há motivo para ficar triste, liebchen. Estamos aqui, juntos.
Não quero afastá-la do meu lado. Mas é que de repente, ontem, vi o mal
de frente... o mal autêntico! Aquela moça... ela não devia ser muito
mais velha do que Katrin... parecia uma das Madonas de Dolci. Mas
atirou num homem a sangue-frio, não para matá-lo, mas a fim de aleijá-
lo em sua virilidade... Não quero expô-la a esse tipo de crueldade.
— Mas já estou exposta, Carl! Faço parte de tudo isso, tanto quanto
você. Quando Katrin partiu para Paris com seu Franz, desejei ser jovem
novamente e ir no lugar dela. Estava com ciúme, porque Katrin tinha
algo que nunca tive. Quando você e Johann brigavam, uma parte de
mim ficava contente, porque ele sempre me procurava depois. Ele era
como um jovem amante, com quem eu podia deixá-lo ciumento...
Pronto! Já falei tudo. E se você me odeia agora, não posso fazer nada.
— Não posso odiá-la, liebchen. Nunca fui capaz de ficar zangado
com você por muito tempo.
— Acho que isso é parte do problema. Eu sabia disso e precisava que
você brigasse comigo.

72
— Mas não vou brigar com você, Lotte. — Subitamente, ele estava
sombrio e remoto. — Quer saber por quê? Porque, durante toda a parte
inicial da minha vida, estive preso a uma coisa... por minha própria
opção, reconheço, mas mesmo assim preso. Quando me tornei livre,
passei a apreciar tanto a liberdade que não podia admitir impor a
servidão a outra pessoa... Queria uma parceira, não uma marionete.
Claro que percebi o que estava acontecendo, mas nada podia fazer,
enquanto você não compreendesse tudo e quisesse mudar. Jamais
poderia forçá-la. Certo ou errado, era assim que eu me sentia.
— E agora, Carl? Como se sente agora?
— Apavorado! Com medo do que pode estar à nossa espera lá nas
ruas e com um medo ainda maior do que vai acontecer quando me
encontrar com Jean Marie.
— Eu estava perguntando sobre nós... apenas você e eu.
— É justamente sobre isso que estou falando, liebchen. Qualquer que
seja o caminho que sigamos agora, estamos correndo um risco. Quero
você ao meu lado, mas não para provar-me alguma coisa ou a si
mesma. É como fazer sexo apenas para provar que é capaz... Pode ser
magnífico, mas está muito longe do amor. Em suma, liebchen, tudo
depende de você.
— De quantas maneiras tenho de lhe dizer, Carl? Eu o amo. E a partir
de agora, irei junto a qualquer lugar a que você vá.
— Duvido muito que os monges possam oferecer-lhe uma cama em
Monte Cassino. Mas tirando isso, é uma ótima idéia. Iremos juntos a
toda parte!
— Maravilhoso! — exclamou Lotte, sorrindo. — E agora vamos para
a cama, Herr Professor. É o lugar mais seguro em toda Roma!
Em princípio, era uma excelente idéia. Mas antes que pudessem pô-la
em prática, a criada bateu na porta e comunicou a Mendelius que Georg
Rainer estava ao telefone, ligando da sucursal de Die Welt. Rainer
estava jovial, mas também incisivo e profissional.
— É uma celebridade agora, Carl. Preciso de uma entrevista sua para
o meu jornal.
— Quando? .
— Agora mesmo, pelo telefone. Meu prazo está quase se esgotando.
— Está certo. Pode falar.
— Não tão depressa, Carl. Somos amigos de um amigo comum.
Assim, vou explicar-lhe antes as regras do jogo. Pode recusar-se a
responder, mas não diga nada em termos confidenciais. Tudo o que me
disser, vou publicar. Entendido?
— Entendido.

73
— Esta conversa está sendo gravada, com o seu consentimento.
Concorda?
— Concordo.
— Pois então vamos começar. Professor Mendelius, sua ação rápida
ontem salvou a vida do Senador Malagordo. Como se sente em ser uma
celebridade internacional?
— Contrafeito.
— Houve algumas manchetes um tanto provocantes a respeito de seu
ato de misericórdia. Foi até chamado de Herói do Corso. Como se sente
em relação a isso?
— Constrangido. Não fiz nada de heróico. Simplesmente apliquei
uma noção elementar de primeiros socorros.
— E o que me diz de outra manchete, "Ex-Jesuíta É Principal
Testemunha contra Brigadas Terroristas"?
— Um exagero. Testemunhei o crime. Contei tudo o que vi à polícia.
Mas presumo que eles tomaram os depoimentos de muitas outras
pessoas.
— Forneceu uma descrição da moça que disparou os tiros.
— Isso mesmo.
— Foi acurada e detalhada?
— Foi, sim.
— Não achou que estava assumindo um grande risco ao fornecer tal
informação?
— Eu correria um risco muito maior se ficasse calado.
— Por quê?
— Porque a violência só pode florescer quando os homens têm medo
de falar e agir contra ela.
— Está receando represálias, Professor?
— Receando, não. Mas estou preparado.
— Preparado como?
— Nada a declarar.
— Está armado? Conta com a proteção policial? Ou um agente de
segurança particular?
— Nada a declarar.
— Tem algum comentário a fazer sobre o fato de ser um alemão e ter
salvado a vida de um judeu?
— Nosso Senhor Jesus Cristo era um judeu. Estou feliz por ter
servido a alguém de seu povo.
— Outra coisa, Herr Professor. Soube que fez uma dramática
conferência na Academia Alemã esta manhã.
— Foi muito bem recebida. Mas eu não a classificaria de dramática.

74
— Nosso relatório a respeito diz o seguinte: "Indagado se acreditava
que o fim do mundo conforme previsto na Bíblia era um evento real e
possível, o Professor Mendelius respondeu que considerava não apenas
uma possibilidade, mas também iminente."
— Como soube disso?
— Temos boas fontes, Professor. A informação é falsa ou
verdadeira?
— É verdadeira. Mas eu gostaria que não a publicasse.
— Já lhe expliquei as regras do jogo, meu amigo. Mas se quiser
ampliar a declaração, terei o maior prazer em transcrevê-lo literalmente.
— Não posso fazer isso, Georg. Ou pelo menos não agora.
— E o que isso significa, Herr Professor? Por acaso leva tão a sério o
que disse?
— Neste caso, sim.
— O que representa um motivo ainda maior para publicar a
informação.
— Até que ponto você é um bom jornalista, Georg?
— Estou saindo-me muito bem até agora, não é mesmo?
A risada de Rainer projetou-se pelo fio.
— Estou querendo lhe propor um acordo, Georg.
— Não costumo fazer acordos... ou pelo menos quase nunca. Qual é
a sua idéia?
— Esqueça a história de fim do mundo e lhe darei mais tarde uma
história muito maior.
— Sobre o mesmo assunto.
— Sem comentários.
— Quando?
— Dentro de uma semana.
— É sexta-feira da próxima semana. O que espera oferecer-me... a
data do Segundo Advento?
— Vamos almoçar no Ernesto's.
— E terei uma história exclusiva?
— Está prometido.
— Negócio fechado.
— Obrigado, Georg.
— E fico com a gravação para lembrar-nos de tudo. Auf wiedersehen,
Herr Professor.
— Auf wiedersehen, Georg.
Mendelius desligou e ficou imóvel por um momento, pensativo e
perplexo, sob o olhar indiferente dos faunos e pastoras no teto.
Involuntariamente, embrenhara-se por um campo minado. Qualquer

75
movimento menos cauteloso e tudo explodiria sob seus pés.

76
CAPÍTULO 4

Domenico Giuliano Francone, motorista e homem de confiança de


Sua Eminência, era um original, na aparência e no caráter. Tinha mais
de l,80m de altura, com um corpo atlético, uma cara de bode sorridente
e uma cabeleira avermelhada, que mantinha permanentemente pintada.
Afirmava ter 42 anos, mas provavelmente já estava beirando os 60
anos. Falava um alemão que aprendera com os Guardas Suíços, um
abominável francês-genovês, inglês com sotaque americano e italiano
com a monótona cadência sorrentina.
Sua história pessoal era uma litania de variações. Fora um campeão
de luta livre amador, campeão de ciclismo, sargento dos Carabinieri,
mecânico da equipe de corridas da Alfa, notável bebedor e mulherengo,
até que, depois da morte prematura da mulher, descobrira a religião e se
tornara sacristão da igreja titular de Sua Eminência.
Impressionado com a diligência e devoção de Francone,
possivelmente também com seu bom humor licencioso, Sua Eminência
promovera-o a seu serviço pessoal. E por causa de seu treinamento na
polícia, habilidade como motorista, conhecimento de armas e
experiência em combate corpo a corpo, ele assumira as funções de
guarda-costas, quase que por direito natural. Naqueles tempos ímpios e
tormentosos, nem mesmo um príncipe da Igreja estava a salvo das
ameaças sacrílegas dos terroristas. Embora um religioso não pudesse
deixar transparecer que estava com medo, a verdade é que o Governo
italiano não fizera segredo de seus temores e exigira as precauções
determinadas pelo bom senso.
Domenico Francone discorreu eloqüentemente sobre tudo isso e

77
muito mais, enquanto levava os Mendelius e os Frank, na tarde de
sábado, numa excursão aos túmulos etruscos de Tarquínia. Sua
autoridade definida, ele impôs as regras:
— Sou responsável pela segurança de vocês perante Sua Eminência.
Assim, façam o favor de agirem como eu mandar, sem contestar. Se eu
mandar que se abaixem, tratem de fazê-lo imediatamente. Se eu guiar
como um louco, segurem-se e não me perguntem o motivo. Num
restaurante, deixem-me escolher a mesa. Se o Professor resolver sair a
pé pelas ruas de Roma, deve esperar até que eu estacione o carro e
esteja pronto para acompanhá-lo. Dessa maneira, poderá concentrar-se
em seus problemas, deixando que eu me preocupe com o resto. Sei
exatamente como esses mascalzoni operam.
— Temos plena confiança em você — disse Mendelius,
cordialmente. — Mas alguém nos está seguindo agora?
— Não, Professor.
— Então talvez possa guiar um pouco mais devagar. As senhoras
gostariam de contemplar a paisagem.
— Mas claro! Minhas desculpas!... Esta é uma região histórica, com
muitos túmulos etruscos. Como sabem, estão proibidas as escavações
sem autorização. Mas ainda há muitos saques em locais escondidos.
Quando eu estava com os Carabinieri...
A torrente de sua eloqüência voltou a se despejar. Todos deram de
ombros e sorriram uns para os outros, cochilando pelo resto da viagem
até Tarquínia. Foi um alívio deixá-lo parado ao lado do carro, de
sentinela, enquanto seguiam um zelador de voz suave pelos trigais, a
fim de visitar as tumbas.
Era um lugar tranqüilo, povoado pelo canto dos passarinhos e pelo
sussurro do vento através do trigo maduro. A perspectiva era
deslumbrante: a terra verdejante envolvendo aldeias escuras, com o mar
azul além, iates dispersos e velas enfunadas pela brisa que soprava de
terra, seguindo para oeste, na direção da Sardenha. Lotte estava
extasiada e Mendelius tentou reconstituir para ela a vida de um povo há
muito desaparecido:
— Eles eram grandes mercadores e marinheiros. Deram seu nome,
Tirreno, a esta parte do Mediterrâneo. Mineravam o cobre e o ferro,
fundiam o bronze. Cultivavam as terras férteis daqui até o vale do Pó,
descendo para o sul até Cápua. Adoravam música e dança, promoviam
grandes festas. E quando morriam, eram sepultados com comida e
vinho, suas melhores roupas, retratos de suas vidas pintados nas
paredes das tumbas...
— E agora todos desapareceram — murmurou Lotte. — O que

78
aconteceu com eles?
— Ficaram ricos e preguiçosos. Esconderam-se por trás de seus
rituais e confiaram em deuses que já estavam ultrapassados. Seus
escravos e plebeus se revoltaram. Os ricos fugiram com suas riquezas, a
fim de comprarem a proteção dos romanos. Os gregos e fenícios
apoderaram-se de suas rotas comerciais. Até mesmo a língua deles
desapareceu.
Mendelius citou o epitáfio:
— "Ó, antiga Véia! Houve um tempo em que foi um reino, um trono
de ouro em seu fórum. Agora, o pastor indolente toca a flauta dentro de
suas muralhas, por cima de suas tumbas se colhe o que os campos
produzem!..."
— Isso é bonito. Quem escreveu?
— Um poeta latino, Propertius.
— O que escreverão mais tarde a respeito de nossa civilização?
— Pode não restar ninguém para escrever qualquer coisa... — disse
Mendelius, sombriamente. — E certamente não haverá cenas pastorais
pintadas nas paredes de nossos sepulcros. Pelo menos essas pessoas
esperavam a continuidade, enquanto que a nossa perspectiva é um
holocausto... Foi preciso um cristão para escrever "Dies Irae".
— Eu me recuso a acalentar mais pensamentos lúgubres — disse
Lotte, firmemente. — Este é um lugar muito bonito e quero aproveitar
o dia ao máximo.
— Desculpe-me — Mendelius sorriu e beijou-a. — E prepare-se para
disfarçar o rubor. Os etruscos também gostavam de sexo e pintaram
algumas cenas bem descritivas.
— Isso é ótimo! Mostre-me primeiro as mais picantes. E não se
esqueça de verificar se é mesmo a minha mão que está segurando e não
a de Hilde.
— Para uma mulher virtuosa, liebchen, você tem uma mente das
mais sujas.
— Deve sentir-se contente por isso, meu amor. — Lotte soltou uma
risadinha feliz. — Mas nada diga às crianças, pelo amor de Deus!
Ela lhe pegou a mão e subiram rapidamente pela encosta, na direção
do zelador, que os chamava lá de cima. Era um jovem simpático, que se
formara recentemente em arqueologia e sentia o maior entusiasmo pelo
assunto. Intimidado pela presença de dois estudiosos eminentes, ele
devotava sua atenção às esposas, enquanto Mendelius e Herman Frank
conversavam em voz baixa, um pouco mais atrás. Herman estava
propenso a confidencias.
— Já conversei com Hilde. E resolvemos adotar seu conselho.

79
Vamos transferir-nos para o sítio... gradativamente, é claro... e farei um
programa de escrever. Se puder conseguir um contrato para uma série
de volumes, teria assim uma continuidade de trabalho e um senso de
segurança financeira.
— É isso que o meu agente sempre recomenda — comentou
Mendelius, procurando estimulá-lo. — Ele diz que os editores gostam
desse tipo de projeto, porque lhes dá tempo de criarem um público
leitor. Assim que voltarmos a Roma, telefonarei para ele, a fim de
verificar se já pode dizer alguma coisa. Ele sempre passa os fins de
semana em casa.
— Só há uma coisa que me preocupa, Carl...
— O que é?
— É um tanto embaraçoso...
— Pode falar. Afinal, somos amigos. Qual é o problema?
— É Hilde. Sou muito mais velho do que ela. E não sou tão bom na
cama como antigamente. Ela diz que isso não a preocupa e acredito...
provavelmente porque quero acreditar. Temos uma boa vida em Roma,
muitos amigos, muitos visitantes interessantes. E parece que isso
compensa o que falta. Mas depois que nos afastarmos, terei meu
trabalho, mas Hilde ficará presa num chalé nas colinas, como uma
mulher de camponês. Não tenho certeza se dará certo. Seria mais fácil
se tivéssemos filhos ou netos. Mas como as coisas são... Eu morreria se
a perdesse, Carl!
— O que o faz pensar que isso poderia acontecer?
— Aquilo!
Ele apontou para as duas mulheres e o zelador, que estava naquele
momento abrindo outro sepulcro. Hilde gracejava com ele e seu riso
ressoava pelas colinas tranqüilas.
— Sei que sou um velho tolo. Mas estou com ciúme... e apavorado!
— Pois esqueça, meu caro! — Mendelius falou bruscamente. —
Fique de boca fechada e esqueça. Vocês levam uma vida boa juntos.
Hilde o ama. Trate de aproveitar ao máximo, dia a dia. Ninguém pode
ter uma garantia eterna. Ninguém tem o direito a isso. Além do mais,
quanto mais apavorado você ficar, pior será o seu desempenho na cama.
Qualquer médico pode dizer-lhe isso.
— Sei disso, Carl. Mas às vezes é muito difícil...
— É sempre difícil. — Mendelius recusou-se a apaziguá-lo. — É
difícil quando sua mulher parece dispensar mais atenção aos filhos do
que a você. É difícil quando os filhos brigam com você pelo direito de
crescerem de uma maneira diferente da sua. É difícil e terrível quando
um homem como Malagordo sai para almoçar e uma moça bonita lhe

80
mete uma bala nos colhões. Pense bem, Herman. Quanto de açúcar está
querendo na xícara de café?
— Tem razão. Desculpe-me. Lamento muito.
— Pois não deve. Já tirou do peito. E agora trate de esquecer. —
Mendelius folheou rapidamente seu catálogo. — Esta é a Tumba dos
Leopardos, com o flautista e o tocador de alaúde. Vamos juntar-nos às
mulheres.
Enquanto estavam parados na câmara antiga, ouvindo o zelador
discorrer sobre o significado das pinturas, um súbito pensamento
ocorreu a Mendelius. Jean Marie Barette, antes um Papa, estava
compelido a proclamar a Parúsia. Mas será que as pessoas queriam
realmente saber? Estavam realmente dispostas a ouvir o profeta
esquelético a bradar do alto da montanha? A natureza humana não
mudara muito desde 500 a.C.,| quando os etruscos sepultavam seus
mortos, ao som de alaúdes e flautas, encerrando-os num presente
perpétuo, com alimentos e vinhos, um leopardo domado por
companhia, sob os ciprestes pintados.

Naquela noite, Mendelius e Lotte jantaram numa trattoria na antiga


Via Ápia. O loquaz Francone levou-os até lá. E quando eles
protestaram por suas longas horas de trabalho, Francone tratou de
silenciá-los, com a frase já familiar:
— Sou responsável perante Sua Eminência.
Ele mandou que se sentassem de costas para a parede e depois foi
comer na cozinha, de onde podia vigiar o pátio e certificar-se de que
ninguém plantaria uma bomba sob a limusine do cardeal.
O anfitrião deles ao jantar era Enrico Salamone, que publicava as
obras de Mendelius na Itália. Era um solteirão de meia-idade, com um
gosto por mulheres exóticas e de preferência inteligentes. Sua
acompanhante naquela noite era uma certa Madame Barakat, a
divorciada de um diplomata indonésio. Salamone era um editor astuto e
bem-sucedi-do, que admirava a erudição, mas jamais desdenhava um
assunto sensacional.
— Abdicação, Mendelius! Pense nisso! Um Papa vigoroso e
inteligente, ainda com apenas 60 e poucos anos, abdica no sétimo ano
de seu papado. Não pode deixar de haver alguma história sensacional
por trás desse acontecimento.
— Provavelmente há mesmo — comentou Mendelius. — Mas seu
autor jamais conseguiria descobri-la. Os melhores jornalistas do mundo
nada conseguiram.
— Eu estava pensando em você, Carl.

81
— Pois então esqueça, Enrico! — Mendelius riu. — Já tenho coisas
demais em cima de mim.
— Já tentei explicar-lhe o que deveria fazer — disse Madame
Bakarat. — Seria melhor virar-se para outras bandas. O Ocidente é um
mundo pequeno e incestuoso. Os editores deviam abrir novas janelas...
para o Islã, os budistas, a índia. Todas as novas revoluções são
essencialmente religiosas.
Salamone assentiu, numa concordância relutante.
— Sei disso. Mas onde estão os escritores que podem interpretar o
Oriente para nós? Jornalismo puro não é suficiente, a propaganda é um
ofício de prostituição. Precisamos de poetas e contadores de histórias,
arraigados nas tradições antigas.
— Parece-me que todos estão gritando alto demais e com muita
freqüência — comentou Lotte, tristemente. — Não se pode contar
histórias no meio de uma multidão. Não se pode escrever poesia com a
televisão estrondeando.
— Bravo, liebchen!
Mendelius apertou-lhe a mão.
— É verdade! — Ela estava agora inflamada e pronta para se
empenhar em combate. — Não tenho muita cabeça para essas coisas,
mas sei que Carl sempre escreveu as suas melhores obras quando
desfrutava do maior sossego. Você não me disse sempre, Carl, que
muitos autores discutem tanto seus próprios livros que acabam por
liquidá-los? E você também pensa igual, Enrico! Disse certa ocasião
que gostaria de tranca-fiar seus autores, até que estivessem prontos para
sair com um original acabado.
— Tem razão, Lotte, falei isso mesmo. E é o que acredito. — Ele
sorriu. — Mas nem mesmo o seu marido é o eremita que pretende ser.
O que está realmente fazendo em Roma, Carl?
— Já lhe disse: pesquisa, duas conferências e desfrutando umas
pequenas férias com Lotte.
Madame Barakat tornou a intervir na conversa, dizendo suavemente:
— Corre o rumor de que foi incumbido de alguma missão pelo antigo
Papa.
— Daí a minha sugestão para um livro — acrescentou Enrico
Salamone.
— Onde diabo ouviu esse absurdo?
Mendelius estava mortificado. Salamone mostrava-se divertido, mas
cauteloso.
— E uma história comprida, mas posso assegurar-lhe que é autêntica.
Sabe que sou judeu. Assim, é perfeitamente natural que eu receba o

82
Embaixador israelense e quaisquer visitantes que ele queira apresentar
em Roma. É natural também que conversemos sobre problemas de
mútuo interesse. Mas vamos à história. O Vaticano sempre rejeitou o
reconhecimento diplomático de Israel. Trata-se de uma questão
puramente política. Não querem entrar em choque com o mundo
muçulmano, É verdade que eles bem que gostariam, se pudessem, de
impor sua autoridade aos Lugares Santos de Jerusalém. É o que se pode
chamar de ecos das Cruzadas. Havia esperança de que tal posição
pudesse mudar, com Gregório XVII. Julgava-se que sua reação pessoal
às relações diplomáticas com Israel era favorável. Assim, no início
desta primavera, foi providenciada uma reunião particular entre o
Embaixador israelense e o Pontífice. O Papa foi franco em relação a
seus problemas, tanto na sua própria Secretaria de Estado como
externamente, com os líderes árabes. Mas queria continuar a sondar as
possibilidades. Perguntou a meu Embaixador se um enviado pessoal e
extra-oficial seria bem acolhido em Israel. Claro que a resposta foi
afirmativa. O seu nome foi um dos sugeridos pelo Pontífice...
— Santo Deus! — Mendelius estava genuinamente chocado. — Deve
acreditar em mim, Enrico. Eu não sabia de nada disso.
— Isso é verdade! — disse Lotte, saindo prontamente em apoio do
marido. — Eu saberia, se houvesse alguma coisa. Isso nunca foi
mencionado, nem mesmo na última...
— Lotte, por favor!
— Desculpe-me, Carl.
— Então não havia missão — disse Madame Barakat, mais suave do
que nunca. — Mas houve comunicação?
— Particular, madame — disse Mendelius, bruscamente. — Uma
questão de amizade antiga... E eu gostaria de mudar de assunto.
Salamone deu de ombros, abrindo os braços num gesto de resignação.
— Está certo. Não deve culpar-me por tentar. É justamente isso o que
me torna um bom editor. E agora me diga: como está indo o novo livro?
— Muito devagar.
— Quando o original deverá estar pronto?
— Dentro de seis ou sete meses.
— Vamos torcer para que ainda estejamos no negócio até lá.
— E por que não deveria estar?
— Se lê os jornais, meu caro Professor, deve saber que as grandes
potências nos estão levando para uma guerra total.
— Eles precisam de mais 12 meses — disse Madame Barakat. —
Estou sempre lhe dizendo isso, Enrico. Nada antes de 12 meses. Depois
disso...

83
— Nada mais! — exclamou Salamone. — Sirva-me o resto do vinho,
Carl. E creio que podemos pedir outra garrafa!
O jantar já perdera todo o brilho, mas tiveram de agüentar até o fim.
Ao voltarem para casa, através da cidade adormecida, ficaram sentados
bem juntos, conversando baixinho, com receio de despertarem
Francone para outro discurso.
Lotte perguntou:
— Qual é o significado de tudo isso, Carl?
— Não sei, liebchen. Mas acho que Salamone estava apenas tentando
bancar o esperto.
— E Madame Barakat é uma desgraçada!
— Ele coleciona algumas mulheres bem estranhas, não acha?
— Velhos amigos e companheiras de cama não devem ser misturados.
— Concordo plenamente. Enrico deve(ia saber que isso nunca dá
certo.
— Acha que era verdadeira aquela história a respeito de Jean Marie e
os israelenses?
— Provavelmente. Mas quem pode saber com certeza? Roma sempre
foi a cidade dos boatos, com vozes sussurrando no escuro. O difícil é
atribuir os nomes certos a tais vozes.
— Detesto esse tipo de mistério.
— Eu também, liebchen.
Mendelius estava cansado demais para contar à mulher como
realmente se sentia: um homem apanhado numa teia de pesadelo, de
que não podia escapar nem despertar.
— O que vamos fazer amanhã? — perguntou Lotte, sonolenta.
— Se não se importa, eu gostaria de ir à missa nas Catacumbas. E
depois iremos almoçar no Frascati. Só nós dois.
— Não podemos alugar um carro e sairmos sozinhos?
Mendelius soltou uma risadinha triste e sacudiu a cabeça.
— Receio que não, liebchen. É outra das lições que se aprende em
Roma. Não há escapatória aos Cães de Deus.
Domenico Francone podia ser muito loquaz, mas era também um
bom cão de guarda. Ele deu duas voltas pelo quarteirão antes de deixá-
los diante do prédio em que ficava o apartamento dos Frank. E ficou
esperando até que a porta se fechasse, impedindo a entrada dos perigos
da noite.

No jardim de São Calixto, as buganvílias estavam em chamas, as


roseiras exibiam suas primeiras flores, os pombos ainda arrulhavam no
pombal por trás da capela, tudo exatamente como ele se lembrava de

84
sua Primeira visita, há muitos anos. Até mesmo os guias pareciam os
mesmos, velhos devotos de uma dúzia de países, que dedicavam seus
serviços como tradutores aos grupos de peregrinos que vinham prestar
suas homenagens aos túmulos dos antigos mártires.
Não havia fantasmas na pequena capela, apenas uma extraordinária
tranqüilidade. Não havia horrores barrocos ou grotescos medievais. Até
mesmo os símbolos eram simples e graciosos: a âncora da fé, a pomba
carregando o ramo de oliveira da libertação, o peixe que levava no dorso
o pão da Eucaristia. Todas as inscrições falavam de esperança e paz: Vi-
vas in Christo. In Pace Christi. A palavra Vale, adeus, jamais era usada.
Nem mesmo os labirintos escuros lá embaixo continham qualquer horror.
Os loculi, os nichos nas paredes em que os mortos eram colocados,
continham apenas alguns cacos de barro e fragmentos empoeirados.
Assistiram à missa na Capela dos Papas, celebrada por um padre
alemão de um grupo de peregrinos bávaros. A capela era uma câmara
grande, abobadada, onde em 1854, o Conde de Rossi descobrira as
sepulturas de cinco dos primeiros Pontífices. Um deles fora deportado
como escravo para minas da Sardenha e morrera no cativeiro. O corpo
fora trazido de volta e sepultado ali. Outro fora executado na
perseguição de Decius, um terceiro fora morto por um golpe de espada
à entrada do santuário. Agora, a violência de que haviam sido vítimas
estava quase esquecida. Eles dormiam em paz ali. A memória deles era
celebrada numa língua que jamais conheceram.
Ajoelhado ao lado de Lotte no chão de tufo, reagindo à liturgia
familiar, Mendelius lembrou-se de seu próprio sacerdócio e sentiu uma
pontada de ressentimento por estar agora destituído do seu exercício.
Não fora assim nos primeiros tempos da Igreja. Mesmo agora, os
unistas admitiam um clero casado. Enquanto isso, os romanos aderiam
obstinadamente ao preceito do celibato, reforçando-o com o mito e a
legenda histórica, além da legislação canônica. Ele escrevera copiosos
argumentos a respeito, ainda se empenhava no debate. Mas como
estava agora casado, era uma testemunha desacreditada e os
legisladores não lhe davam a menor atenção.
Mas o que aconteceria no futuro, o futuro próximo, quando o
suprimento de candidatos celibatários acabaria e o rebanho clamaria por
ministério... por um homem ou mulher, casado ou solteiro, não
importando o que, desde que tivesse ouvido o Verbo e partilhasse o Pão
da Vida na caridade? Suas Eminências no Vaticano ainda se
esquivavam à questão, escondendo-se por trás de uma tradição
cuidadosamente editada. Até mesmo Drexel se esquivava, porque era

85
velho demais para lutar e um soldado muito condicionado para desafiar
o alto-comando. Jean Marie enfrentara a questão em sua encíclica e
esse fora outro motivo para suprimi-la. Agora, os dias tenebrosos
estavam voltando novamente. O pastor seria abatido, o rebanho se
dispersaria. Quem poderia reuni-los no outra vez e mantê-los no amor,
enquanto o mundo desabava em torno deles?
Quando o celebrante ergueu a hóstia e o cálice, depois da
Consagração, Mendelius baixou a cabeça e fez uma prece silenciosa e
profunda: "Ó Deus, dê-me luz suficiente para conhecer a verdade,
coragem o bastante para fazer o que me será pedido!" De repente, ele se
descobriu a chorar, incontrolavelmente. Lotte inclinou-se e pegou-lhe a
mão. Mendelius abraçou-a, mudo e desesperado, até que a missa
terminou e saíram para o sol que banhava o roseiral.

No início da manhã de segunda-feira, enquanto Lotte tomava banho,


Mendelius telefonou para o Hospital Salvator Mundi e perguntou pelo
estado do Senador Malagordo. Como na vez anterior, a ligação foi
transferida da recepção para a freira do andar e depois para o agente de
segurança. Foi finalmente informado de que o Senador melhorara
bastante e gostaria de vê-lo o mais breve possível. Mendelius marcou
uma visita para as três daquela mesma tarde.
Estava ficando inquieto agora, cada vez mais convencido de que o
seu encontro na quarta-feira com Jean Marie seria uma espécie de
momento decisivo em sua vida. Se pudesse não aceitar a revelação de
Jean Marie, o relacionamento entre os dois mudaria irremediavelmente.
Se aceitasse, então deveria também aceitar a missão, não importando a
forma que pudesse assumir. Em qualquer dos casos, queria livrar-se de
todos os estorvos sociais antes do encontro.
Fizera alguma pesquisa, mas estava preocupado demais para se
concentrar no material novo, que de qualquer forma era fragmentado e
de pouca importância. Na terça-feira, faria o segundo e último debate
com os evangélicos. Ainda estava irritado pelo fato do tema da
conferência ter transpirado para a imprensa, mas precisava testar a
reação de uma audiência protestante a algumas das proposições de Jean
Marie. E ainda tinha de cumprir a promessa de oferecer a Georg Rainer
uma boa história, de interesse jornalístico. Até aquele momento, não
tinha a menor idéia do que poderia dizer-lhe.
Lotte ainda estava no banho. Mendelius reuniu suas anotações e foi
para a mesa em que estava servido o café da manhã, no terraço. Herman
saíra cedo para a Academia e Hilde estava sozinha à mesa. Ela lhe

86
serviu café e depois anunciou, firmemente:
— Agora, nós dois podemos ter uma conversinha. Alguma coisa o
está incomodando, Carlo mio. O que é?
— Nada que eu não possa resolver.
— Herman estuda os quadros, mas eu estudo as pessoas. E há um
problema estampado em seu rosto. Está tudo bem entre você e Lotte?
— Claro.
— Então qual é o problema?
— É uma história comprida, Hilde.
— Sou boa ouvinte. Pode contar.
Mendelius contou, hesitante a princípio, depois com o maior ímpeto,
toda a história de sua amizade com Jean Marie Barette e o estranho
dilema a que o levara. Hilde ficou escutando em silêncio e ele
encontrou algum alívio em poder exprimir-se sem o ônus de
argumentar ou polemizar. Ao terminar, Mendelius disse:
— Isso é tudo, meu amor. Não saberei de mais nada até me encontrar
com Jean Marie, na quarta-feira.
Hilde Frank pôs a mão no rosto dele e disse gentilmente:
— É uma terrível carga... até mesmo para o grande Mendelius! E
também explica algumas outras coisas.
— Que coisas?
— A idéia romântica de Herman de viver de favas, brócolis e leite de
cabra nas montanhas.
— Herman ainda não sabe do que acabei de contar-lhe a respeito de
Jean Marie.
— Então por que ele teve uma idéia tão absurda?
— Herman está com medo de uma nova guerra. Todos estamos. E ele
se preocupa com você.
— E como se preocupa! Sabe da última idéia dele? Quer ir a Zurique
para um tratamento de hormônios, a fim de melhorar nossa vida sexual.
Eu lhe disse para não se incomodar. Estou perfeitamente feliz em nossa
atual situação.
— Sente-se mesmo feliz, Hilde?
— Pode estar certo de que sim. Herman é um homem maravilhoso e
eu o amo. Quanto ao problema sexual, a verdade é que não sou muito
boa nisso... nunca fui. Claro que adoro a parte de carinho e aconchego,
mas o resto... Não chego a ser frígida, mas sou difícil e lenta de excitar
e o que acabo tendo ao final não compensa todo o trabalho. Portanto,
Herman não tem qualquer motivo para se preocupar.
— Então é melhor dizer-lhe isso tantas vezes quantas puder, Hilde.

87
Ele se está sentindo muito inseguro neste momento.
— Mas esqueça os problemas meus e de Herman, Carl. Daremos um
jeito de resolvê-los. Afinal, tenho cuidado direitinho de Herman desde
o casamento... Vamos voltar à sua história.
— Eu gostaria de saber a sua opinião, Hilde.
— Em primeiro lugar, vivo na Itália há tanto tempo que me tornei
cética em relação a santos e milagres, a virgens com lágrimas nos olhos
e frades que levitam durante a missa. Em segundo lugar, sou uma
mulher bastante satisfeita com a vida que levo e por isso mesmo jamais
me senti atraída por adivinhos, cartomantes, sessões espíritas e outras
coisas no gênero. Prefiro fazer coisas mais divertidas. E, finalmente,
sou bastante egocêntrica. Enquanto o meu pequeno canto do universo
estiver fazendo sentido, tiro todo o resto dos pensamentos. Além do
mais, não há nada que eu possa fazer para mudar a situação.
— Vamos pôr o problema sob outro aspecto. Suponhamos que eu
volte de Monte Cassino na quinta-feira e diga: "Hilde, estive com Jean
Marie. Creio que ele teve uma revelação autêntica, que o mundo vai
acabar em breve e ocorrerá o Segundo Advento de Cristo." O que faria
neste caso?
— É difícil dizer. Mas certamente não sairia correndo para igreja,
não começaria a guardar comida nem escalaria os Apeninos, para
esperar pelo Salvador ou contemplar o último pôr-do-sol. E você, Carl,
como reagiria?
— Não sei, Hilde querida. Tenho pensado a respeito todos os dias,
todas as noites, desde que li a carta de Jean. Mas ainda não sei.
— Claro que existe uma outra maneira de encarar o problema.
— E qual é?
— Se alguém vai mesmo acabar com o mundo, tudo se tornará inútil.
Em vez de esperar pela explosão final, por que não comprar uma
garrafa de uísque, um vidro grande de barbitúricos e se entregar ao sono
eterno? Tenho a impressão de que incontáveis pessoas prefeririam esse
caminho.
— Inclusive você? — perguntou Mendelius, suavemente. — Seria
capaz?
Hilde tornou a encher as xícaras com café e começou a passar
manteiga num croissant, calmamente.
— Claro que eu seria capaz, Herman. E não gostaria de despertar
para me deparar com um Deus que incinerou seus próprios filhos.
Ela falou com um sorriso, mas Carl Mendelius sabia que a sua
seriedade era absoluta.

88
Ao seguirem para o Hospital Salvator Mundi, Domenico Francone, o
loquaz, estava estranhamente taciturno e mal-humorado. Quando
Mendelius comentou que pareciam estar seguindo por um percurso
muito complicado, Francone disse-lhe bruscamente:
— Conheço o meu oficio, Professor. E lhe prometo que não chegará
atrasado.
Mendelius ficou remoendo a descortesia em silêncio. Ele próprio não
se estava sentindo muito satisfeito. A conversa com Hilde Frank
levantara novas e mais profundas indagações sobre a veracidade de
Jean Marie e a sabedoria de sua encíclica. Também projetara uma boa
luz sobre a atitude dos cardeais que o haviam deposto.
Em toda a literatura do Apocalipse, no Antigo e no Novo
Testamento, nos documentos essênios e gnósticos, um tema especial
persistia: os eleitos, os escolhidos, os filhos da luz, as sementes do bem,
as ovelhas amadas por seu pastor, que seriam para sempre afastadas das
cabras. A salvação era exclusiva dos eleitos. Apenas eles suportariam
os horrores dos últimos tempos e seriam considerados dignos de um
julgamento misericordioso.
Era uma doutrina perigosa, repleta de paradoxos e armadilhas,
facilmente usada por fanáticos, charlatães e os mais desenfreados
sectários. Mil eleitos haviam cometido um suicídio ritual na Guiana.
Dez milhões de eleitos constituíram a Soka Gakkai no Japão. Outros 3
milhões foram escolhidos para a salvação na Igreja da Unificação do
Reverendo Moon... Todos eles e muitos outros milhões, em 10 mil
cultos exóticos, julgavam-se escolhidos, praticavam uma doutrinação
intensa, aceitavam uma obediência exclusiva e fanática...
No caso de um pânico universal, como a publicação da encíclica de
Jean Marie poderia provocar, como tais sectários se comportariam? A
história de todas as grandes religiões oferecia as previsões mais
sombrias. Não fazia muito tempo que os muçulmanos mahdistas
haviam ocupado a Kaaba em Meca, mantendo reféns e derramando
sangue no lugar mais sagrado do Islã. Era uma terrível possibilidade a
de que a Parúsia pudesse ser precedida por uma vasta e sangrenta
cruzada, dos fiéis contra os infiéis. Diante de tamanho horror, um
suicídio rápido e sem dor poderia parecer a muitos a alternativa mais
racional.
Esse era o ponto essencial do problema que deveria discutir com Jean
Marie. A partir do momento em que se invocava uma revelação
pessoal, a razão deixava de existir. Ao que os racionalistas

89
responderiam que, a partir do momento em que se invocava qualquer
espécie de revelação, por mais que fosse sacramentada pela religião, se
estava comprometido com a insanidade suprema.

Francone entrou com o carro no caminho circular do Salvator Mundi,


parou diante da entrada. Não saltou do carro, limitando-se a dizer:
— Entre direto, Professor. E depressa.
Mendelius hesitou por uma fração de segundo, depois abriu a porta,
saltou e entrou rapidamente no saguão do hospital. Ao olhar para trás,
viu Francone estacionar no espaço reservado aos médicos, desembarcar
e encaminhar-se apressadamente para a entrada. Mendelius ficou
esperando por ele e perguntou:
— Por que tudo isso?
Francone deu de ombros.
— Apenas uma precaução. Estamos num lugar fechado, não há para
onde correr. Pode subir agora e conversar com o senador. Preciso dar
um telefonema.
Uma freira idosa, com um sotaque suábio, acompanhou Mendelius
até o elevador. No quinto andar, um agente de segurança conferiu os
documentos dele e levou-o a outra freira, muito ríspida, que obviamente
acreditava que os doentes eram mais bem tratados pelas mãos firmes da
autoridade. Disse-lhe que poderia passar apenas 15 minutos com o
paciente, não mais que isso. E que não podia em hipótese alguma
excitá-lo por qualquer motivo. Mendelius baixou a cabeça em
submissão. Ele também sofrera sob as donzelas do Senhor e sabia que
era melhor não discutir com a virtude resoluta delas.
Encontrou Malagordo recostado em travesseiros, com o tubo de soro
preso no braço esquerdo. O rosto esguio e bonito iluminou-se de prazer
ao ver o visitante.
— Meu caro Professor! Obrigado por ter vindo. Queria muito vê-lo.
— Parece estar recuperando-se muito bem. — Mendelius puxou uma
cadeira para o lado da cama. — Como se sente?
— Melhor a cada dia que passa, graças a Deus. Devo-lhe a vida. O
que posso dizer? Os jornais costumam às vezes ser terrivelmente
irresponsáveis . Quer um café?
— Não, obrigado. Acabei de almoçar.
— O que acha do meu triste país, Professor?
— Foi também meu país, Senador, por alguns anos. Pelo menos o
compreendo melhor do que a maioria dos estrangeiros.
— Voltamos no tempo, para quatro séculos atrás, à época dos
bandidos e condottieri. E não tenho muita esperança de que a situação

90
possa melhorar. Como todos os outros povos mediterrâneos, somos
tribos perdidas, lutando nas praias de um lago pútrido.
O lamento era familiar a Mendelius. Os latinos sempre lamentavam
um passado que nunca existira. Ele tentou amenizar a conversa:
— Talvez tenha razão, Senador. Mas devo dizer-lhe que os vinhos
ainda são ótimos em Castelli e que o spaghetti alla carbonara de Zia
Rosa continua magnífico. Minha mulher e eu almoçamos lá no
domingo. O mais impressionante foi que ela se lembrou de mim, dos
meus tempos clericais. E pareceu aprovar a mudança.
O senador animou-se no mesmo instante.
— Disseram-me que ela foi uma grande beldade.
— Não é mais. Mas é uma cozinheira extraordinária e controla tudo
com mão de ferro.
— Já esteve no Pappagallo?
— Não.
— É outro restaurante muito bom.
Houve um momento de silêncio e depois Malagordo disse, com um
humor amargo:
— Estamos conversando sobre frivolidades. Fico perguntando-me
por que desperdiçamos tanto tempo de nossa vida com tais coisas.
— É uma precaução. — Mendelius sorriu. — Vinho e mulheres são
tópicos seguros. Dinheiro e política levam a cabeças quebradas.
— Vou deixar a política. Assim que tiver alta, minha mulher e eu
vamos emigrar para a Austrália. Nossos dois filhos já estão lá, indo
muito bem nos negócios. Além disso, é a última parada antes dos
pingüins. Não quero estar na Europa por ocasião do grande colapso.
— Acha mesmo que vai acontecer?
— Tenho certeza absoluta. Os armamentos já estão quase prontos. Os
mais modernos protótipos estarão em operação dentro de um ano. Não
há petróleo suficiente para se continuar. Mais e mais governos caem
nas mãos de jogadores ou fanáticos. É a mesma história antiga: se você
está diante de distúrbios internos, inicie uma cruzada no exterior. O
homem é um animal enlouquecido e sua loucura é incurável. Sabe para
onde eu estava indo quando fui baleado? Ia pedir a libertação de uma
terrorista que está morrendo de câncer numa cadeia em Palermo!
— Deus Todo-Poderoso!
— Creio que Ele ficará feliz por ver esta raça de imbecis eliminar a si
mesma... — Malagordo contraiu o rosto, como se uma dor súbita o
dominasse. — Sei muito bem! Partindo de um judeu, isso é uma
blasfêmia. Mas não acredito mais no Messias. Ele se demorou por

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tempo demais. E quem precisa deste mundo maldito e confuso?
— Fique calmo, por favor — disse Mendelius. — Se ficar excitado,
vão mandar-me embora. A freira que cuida deste andar é uma
verdadeira fera.
— Uma vocação desperdiçada. — Malagordo estava novamente
jovial. — Ela possui um bom corpo por baixo de todos aqueles panos.
Antes de você ir embora... — Ele meteu a mão por baixo dos
travesseiros e tirou um embrulho de papel brilhante, preso com uma fita
dourada. — Tenho um presente para você.
— Não era necessário. — Mendelius estava embaraçado. — Mas
obrigado. Posso abrir?
— Por favor!
Era uma pequena caixa dourada, com uma tampa de vidro. Dentro da
caixa, havia um fragmento de cerâmica, em que estavam inscritos
caracteres hebraicos. Mendelius tirou-o e examinou-o cuidadosamente.
— Sabe o que é isso, Professor?
— Parece um ostracon.
— E é mesmo. Pode ler o que está escrito?
Mendelius acompanhou os caracteres lentamente, com a ponta do
dedo.
— Creio que está escrito "Aharon ben Ezra".
— Exatamente! Veio de Masada. Fui informado de que se trata
provavelmente de um dos fragmentos que foram usados para tirar a
sorte quando os judeus da guarnição mataram-se mutuamente, a fim de
não caírem nas mãos dos romanos.
Mendelius ficou profundamente comovido. Sacudiu a cabeça.
— Não posso aceitar. Não posso mesmo.
— Mas tem de aceitar. É o mais próximo que posso chegar de um
agradecimento apropriado... tudo o que restou de um herói judeu pela
vida de um desprezível senador, que nem mesmo é mais um homem...
Vá agora, Professor, antes que eu comece a bancar o idiota!
Chegando ao térreo, Mendelius encontrou Francone à sua espera. Ao
encaminhar-se para a saída, Francone pôs a mão em seu braço,
contendo-o.
— Vamos esperar alguns minutos, Professor.
— Por quê?
Francone apontou pelas portas de vidro. Havia dois carros da polícia
estacionados no caminho e mais quatro lá fora, na rua. Dois serventes
estavam metendo uma maca numa ambulância, sob olhar de uma
multidão curiosa. Mendelius ficou olhando para a cena, aturdido.

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Francone explicou, sucintamente:
— Fomos seguidos até aqui, Professor. Um carro. Depois um
segundo carro apareceu e estacionou diante do portão. Eles estavam
com as duas entradas cobertas. Felizmente, avistei o carro que nos
seguia logo depois de deixarmos o centro. Telefonei para a Squadra
Mobile assim que chegamos. Eles bloquearam os dois lados da rua e
pegaram quatro filhos da mãe. Um deles está morto.
— Pelo amor de Deus, Domenico! Por que não me falou antes?
— Teria estragado a sua visita. Além do mais, o que poderia fazer?
Como eu lhe disse, Professor, sei muito bem como esses mascalzoni
operam...
— Obrigado! — Mendelius estendeu a mão trêmula e úmida de suor.
— Espero que não conte a minha mulher.
— Quando se trabalha para um cardeal — disse Francone, com um ar
indulgente — aprende-se a ficar de boca fechada.

— Meus caros colegas! — Carl Mendelius, sorridente e afável,


ajustou os óculos e contemplou a audiência. — Vou começar hoje com
uma suave censura a uma pessoa ou pessoas desconhecidas... — Ele fez
uma pausa. — Sei que as viagens são sempre dispendiosas. Sei também
que os ministros evangélicos não são muito bem pagos. Sei ainda que é
uma prática comum complementar os rendimentos ou a verba para uma
viagem pelo fornecimento de informações à imprensa. Não tenho
qualquer objeção a essa prática, contanto que seja aberta e declarada.
Mas acho que é uma violação da cortesia acadêmica fornecer
informações à imprensa em segredo, sem avisar aos colegas. Um dos
presentes causou-me um considerável embaraço ao informar a um
jornalista que eu acreditava que o fim do mundo podia ser iminente. É
verdade que falei exatamente isso nesta sala. Mas fora do contexto de
nosso encontro e de um debate de especialistas, a declaração poderia
ser interpretada como frívola ou tendenciosa. Não estou pedindo uma
confissão do informante. Contudo, quero uma garantia de que tudo o
que se disser aqui hoje só será transmitido à imprensa com o nosso
pleno conhecimento... Todos os que concordam podem fazer o favor de
levantar a mão?... Obrigado. Alguém discorda? Ninguém.
Aparentemente, estamos todos de acordo. Pois então vamos começar.
Mendelius tornou a correr os olhos pela audiência, antes de
continuar:
— Falamos a respeito da doutrina das últimas coisas: consumação ou
continuidade. Apresentamos posições divergentes sobre o assunto.

93
Agora, vamos aceitar, como hipótese, que a consumação é possível e
iminente, que o mundo terminará em breve. Como o cristão deve reagir
a tal evento?... O senhor, na terceira fila.
— Wilhelm Adler, Rosenheim. A resposta é que o cristão... ou
qualquer outro, diga-se de passagem... não pode reagir a uma hipótese,
apenas a um evento concreto. Esse foi o erro dos escolásticos e
casuístas. Tentaram prescrever fórmulas morais para todas as situações.
É inteiramente impossível. O homem vive no aqui e agora, não no
talvez.
— Ótimo! ... Mas a prudência humana não determina que nos
devemos preparar para o talvez?
— Poderia dar um exemplo, Herr Professor?
— Claro. Os primeiros seguidores de Cristo eram judeus.
Continuaram a levar uma vida judia. Praticavam a circuncisão.
Respeitavam as leis de dieta. Freqüentavam as sinagogas e liam as
Escrituras. Paulo de Tarso inicia sua missão junto aos gentios, os que
não são judeus, para os quais a circuncisão é inaceitável e as leis de
dieta são inexplicáveis. Eles não encontram qualquer sentido na
mutilação física. E têm de comer o que puderem conseguir.
Subitamente, eles passam da teoria à prática. A questão se simplifica.
Certamente a salvação não depende do prepúcio de um homem nem
depende que passe fome até a morte...
Todos riram e aplaudiram o momento de humor. Mendelius
continuou:
— Paulo estava preparado para a possibilidade. Pedro não estava. Na
ausência de uma orientação nas Escrituras, teve de encontrar
justificativa para a nova situação numa visão... "Pegue e coma". Estão
lembrados?
Todos lembravam e soltaram um murmúrio de aprovação.
— E agora vamos ao nosso "talvez". Os últimos dias estão próximos.
Até que ponto estamos preparados?
Ninguém se manifestou, Mendelius ofereceu-lhes outro exemplo:
— Alguns dos presentes têm idade suficiente para se lembrarem dos
últimos dias do Terceiro Reich: um país em ruínas, crimes monstruosos
revelados, uma geração de homens destruída, todo o gênio de um povo
corrompido, a sobrevivência como o único objetivo visível. Para os que
se lembram, não é pelo menos uma analogia razoável da catástrofe
milenar? ... Mas estão aqui hoje porque, em algum lugar, de alguma
forma, a fé, esperança e caridade sobreviveram e tornaram a frutificar...

94
Estou sendo bem claro?
— Está, sim.
A resposta veio num coro abafado.
— Neste caso... — Mendelius lançou o desafio com veemência. —
Como podemos assegurar que a fé e a caridade vão sobreviver, se e
quando os últimos dias chegarem? Esqueçam os últimos dias, se for
preciso. Vamos supor que, como muitos prevêem, teremos uma guerra
atômica dentro de 12 meses. O que fariam?
— Morreríamos! — disse uma voz sepulcral, no fundo da audiência,
provocando uma explosão de riso.
— Senhoras e senhores! — Mendelius também riu, impotente. —
Acabaram de ouvir a voz de um verdadeiro profeta! Não gostaria de vir
até aqui e tomar o meu lugar?
Ninguém se mexeu. Depois de um momento, o riso se desvaneceu e o
silêncio voltou a reinar. Mais suavemente agora, Mendelius continuou:
— Eu gostaria de ler agora um trecho de um documento preparado
por um querido amigo meu. Não posso dar o nome dele. E peço que
aceitem a minha afirmação de que se trata de um homem de grande
santidade e inteligência extraordinária. Além disso, é um homem que
compreende perfeitamente os usos do poder no mundo moderno.
Depois de ler, vou pedir-lhes comentários.
Ele fez uma pausa para limpar os óculos e depois começou a ler um
trecho da encíclica de Jean Marie:
— ... "É evidente que, nos tempos de calamidade universal, as
estruturas tradicionais da sociedade não sobreviverão. Haverá uma luta
implacável pelas mais simples necessidades da vida, como comida,
água, combustível e abrigo. A autoridade será usurpada pelos fortes e
cruéis. As grandes sociedades urbanas vão fragmentar-se em grupos
tribais"...
Ele sentiu que as palavras penetravam fundo em todos os presentes,
que a tensão tornava a dominá-los. Quando a leitura terminou, o
silêncio era como uma muralha diante dele.
Mendelius deu um passo para trás e perguntou:
— Algum comentário?
Houve uma longa pausa e depois uma mulher ainda jovem levantou-
se.
— Sou Henni Borkheim, de Berlim. Meu marido é pastor. Temos
dois filhos. E gostaria de fazer uma pergunta. Como demonstrar
caridade com um homem que se apresenta com uma arma para roubar-
nos e tirar o último alimento de nossos filhos?

95
— E eu tenho outra pergunta! — O homem ao lado dela também se
levantou. — Como se pode continuar a acreditar num Deus que
concebe ou permite tamanha calamidade universal... e depois passa em
julgamento suas vítimas?
Carl Mendelius disse, gravemente:
— Talvez devêssemos todos fazer-nos uma pergunta mais
fundamental. Sabemos que o mal existe, que o sofrimento e a crueldade
existem, que se podem propagar a pontos extremos, como o câncer no
corpo. Apesar de tudo isso, podemos acreditar em Deus?
— Você acredita, Professor?
Henni Borkheim estava outra vez de pé.
— Acredito.
— Então faça o favor de responder à minha pergunta!
— Já foi respondida há dois milênios. "Pai, perdoai-os porque eles
não sabem o que fazem."
— E é essa a resposta que me daria?
— Não sei, minha cara.
Mendelius estava prestes a acrescentar que ainda não fora
crucificado. Mas pensou melhor e não o fez. Desceu do palco e
avançou pela audiência até o lugar em que Henni Borkheim estava
sentada, ao lado do marido. E falou calmamente, persuasivamente:
— Está percebendo agora o problema com que nos deparamos
quando pedimos um depoimento pessoal sobre cada questão? Não
sabemos e não podemos saber como iremos agir. Como devemos agir,
disso sabemos! Mas como agiremos, numa situação concreta, não há a
menor possibilidade de sabermos de antemão... Lembro-me, ainda
rapaz, em Dresden, de minha mãe conversando com minha tia a
respeito da aproximação dos russos. Eu não deveria escutar, mas
acontece que ouvi. Minha mãe entregou a minha tia um vidro de geléia
lubrificante e disse: "É melhor relaxar e sobreviver do que resistir e ser
assassinada." Em qualquer dos casos, é estupro e não há milagre
prometido para evitá-lo. Não existe qualquer legislação para cobrir os
tempos de caos.
Mendelius sorriu e estendeu a mão para a mulher.
— Não vamos brigar, mas debater o assunto em paz.
Houve um pequeno murmúrio de aprovação, enquanto eles se
apertavam as mãos. Depois, Mendelius fez outra pergunta:
— Num mundo pluralista, quem são os eleitos? Nós, os católicos
romanos, vocês, os luteranos, os sunitas ou xiitas do Islã, os mórmons
de Salt Lake City, os animistas da Tailândia?
— Em relação ao indivíduo, não nos compete distinguir! — Um

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pastor de cabelos grisalhos levantou-se com evidente dificuldade. As
mãos estavam marcadas pelo artritismo. Ele falou com a voz hesitante,
mas com profunda convicção. — Não estamos em condições de julgar
outros homens por nossas luzes. Fomos instruídos a amar a imagem de
Deus em todos os nossos semelhantes.
— Mas também fomos instruídos a manter a fé pura, a disseminar as
boas-novas de Cristo — disse o Pastor Allman, de Darmstadt.
— Quando você se senta à minha mesa, eu lhe ofereço a comida que
tenho — disse o velho, pacientemente. — Se você não puder digeri-la,
o que devo fazer... empurrá-la por sua goela, até sufocá-lo?
— Já chega, meus amigos! — Mendelius tornou a assumir o controle
da reunião. — Quando a noite tenebrosa chegar, no grande deserto,
quando não houver coluna de fumaça ou fogo para iluminar o caminho,
quando a voz da autoridade tiver desaparecido, quando nada ouvirmos
além da confusão dos antigos argumentos, quando o próprio Deus
parecer estar ausente de seu universo, para onde nos viramos? Em
quem podemos acreditar com toda fé?
Ele voltou lentamente ao palco. E no silêncio prolongado que se
seguiu, ficou esperando que alguém respondesse.

— Estou com medo, liebchen. Apavorado de verdade! Gostaria de


sair daqui e pegar o primeiro avião de volta à Alemanha.
Passavam 30 minutos de meio-dia e estavam almoçando num
restaurante sossegado perto do Panteão, antes de Mendelius partir para
Monte Cassino. A duas mesas de distância, Francone enfiava espaguete
na boca e vigiava atentamente a porta. Lotte inclinou-se para Mendelius
e limpou um pouco de molho do canto de sua boca. Ela o censurou
firmemente:
— Sinceramente, Carl, não entendo por que está assim. É um homem
livre que está indo visitar um velho amigo. Não precisa aceitar qualquer
missão, não tem obrigações além dessa visita.
— Ele me pediu para julgá-lo.
— Não tinha o direito de lhe exigir isso.
— Não exigiu... apenas pediu, suplicou! Tenho pensado muito em
tudo isso, liebchen. Tenho analisado a questão por todos os ângulos,
mas ainda estou longe de uma resposta. Jean Marie está pedindo um ato
de fé tão grande quanto... quanto a aceitação da Ressurreição! Não
posso fazer esse ato.
— Pois então diga-lhe isso!
— E devo também dizer-lhe por quê? "Jean, você não está louco, não
é um charlatão, não foi vítima de uma ilusão e amo-o como um irmão.

97
Mas, por Deus, não tenha diálogos em jardins rurais sobre o fim do
mundo! Eu não acreditaria mesmo que você se apresentasse com os
estigmas e uma coroa de espinhos!"
— Se é isso o que você pensa, então deve dizer.
— O problema, liebchen, é que acho que penso algo inteiramente
diferente. Estou começando a pensar que os cardeais estavam certos ao
afastarem Jean Marie.
— O que o leva a dizer isso?
— Tudo decorre dos meus debates na Academia... e mesmo de uma
conversa que tive com Hilde Frank. O único fim que as pessoas podem
aceitar é o seu próprio. A catástrofe total está além da compreensão das
pessoas e provavelmente de sua capacidade de enfrentar. É um convite
ao desespero. Jean Marie encara como um chamado à caridade
evangélica. Acho que levaria a um colapso quase completo na
comunicação social. Não houve alguém que disse que "o véu que oculta
a face do futuro foi tecido pela mão da Misericórdia"?
— Neste caso, acho que deve ser tão honesto com Jean Marie quanto
está tentando ser com você mesmo — disse Lotte, firmemente. — Ele
pediu-lhe um julgamento. Pois deve dá-lo!
— Quero que me dê uma resposta franca, liebchen. Acha realmente
que sou um homem honesto?
Lotte não respondeu diretamente. Apoiou o queixo nas mãos e ficou
observando-o em silêncio por um longo tempo. E finalmente ela falou,
suavemente:
— Lembro do dia em que o conheci, Carl. Estava com Frederika Ull-
man. Descíamos pela Escadaria Espanhola, duas moças alemãs em sua
primeira visita a Roma. Você estava ali, sentado num degrau, perto de
um rapaz que pintava um quadro horrível. Vestia uma calça preta e um
suéter também preto, de gola rulê. Paramos para olhar o quadro. Você
nos ouviu falar em alemão e puxou conversa. Sentamo-nos ao seu lado,
muito contentes por termos alguém com quem conversar. Você nos
levou para tomar um chá com bolinhos. E depois nos convidou para um
passeio numa carrozza. Lá fomos nós, dando a volta pelo Campo dei
Fiori. Você nos mostrou a estátua de Giordano Bruno e falou-nos sobre
o julgamento dele, como fora queimado por heresia. E depois disse: "É
isso o que eles gostariam de fazer comigo!" Pensei que estivesse
embriagado ou fosse meio louco, até que explicou que era um padre sob
suspeita de heresia... Parecia tão solitário e atormentado que meu
coração se encheu de ternura por você. E depois você citou as últimas
palavras de Bruno a seus juizes: "Creio que vocês têm mais medo de
mim do que eu de vocês." Estou olhando agora para o mesmo homem

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que vi naquele dia. O mesmo homem que disse: "Bruno era um
farsante, um charlatão, um pensador confuso. Mas de uma coisa tenho
certeza: ele morreu como um homem honesto!" Amei-o naquele
momento, Carl. Amo-o agora. O que quer que você faça, certo ou
errado, sei que morrerá como um homem honesto!
— É o que também espero, liebchen! — disse Carl Mendelius,
solenemente. — Peço a Deus que possa ser honesto com o homem que
nos casou!

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CAPÍTULO 5

Exatamente às três e meia da tarde, Francone deixou-o no portão do


grande Mosteiro de Monte Cassino. Foi recebido pelo chefe da
recepção, que o levou a seu aposento, um quarto simples, caiado de
branco, com uma cama, uma pequena mesa e uma cadeira, um armário
e um oratório, sobre o qual estava pendurado um crucifixo, esculpido
em madeira de oliveira. Ele abriu a janela, revelando uma vista
deslumbrante do vale do Rápido e das colinas ondulantes do Lazio.
Sorriu diante do espanto de Mendelius e comentou:
— Como pode constatar, já estamos na metade do caminho para o
paraíso!... Espero que aprecie a sua estada aqui.
Ele ficou esperando enquanto Mendelius arrumava as poucas coisas
que trouxera e depois o levou pelos corredores vazios para o gabinete
do Abade. O homem que se levantou para cumprimentar Mendelius era
baixo e magro, um rosto fino, pálido e enrugado, cabelos grisalhos, o.
sorriso de uma criança feliz.
— Professor Mendelius! É um prazer conhecê-lo! Sente-se, por
favor. Gostaria de tomar um café? Ou talvez um cordial?
— Não, obrigado. Paramos para tomar um café na estrada. Foi muita
gentileza sua receber-me.
— Veio com as melhores recomendações, Professor. — Havia uma
insinuação de ironia no sorriso inocente. — Não pretendo mantê-lo
afastado de seu amigo por muito tempo, mas achei que seria melhor
conversarmos primeiro.
— Claro. Falou-me pelo telefone que ele esteve doente.

100
— Vai descobri-lo um tanto mudado. — O Abade escolhia
cuidadosamente as palavras. — Ele sobreviveu a uma experiência que
teria destruído um homem menor. Agora, está passando por outra
experiência... mais difícil, mais intensa, porque é uma luta interior.
Procuro aconselhá-lo da melhor forma que posso. Os outros irmãos
apóiam-no com suas preces e atenções. Mas ele é como um homem
consumido por um fogo interior. É possível que ele se abra para você.
Se tal acontecer, deixe-o saber que compreende. Não o pressione. Sei
que ele lhe escreveu. Sei o que lhe pediu. Sou o confessor dele e não
posso discutir esse assunto com você, porque ele não me deu
permissão... Você, por outro lado, não é meu confessado e por isso não
posso ter a presunção de orientar-lhe a consciência.
— Neste caso, talvez nós dois possamos abrir nossas mentes um para
o outro.
— Talvez. — O sorriso do Abade Andrew era enigmático. — Mas
acho que deve conversar primeiro com nosso amigo Jean.
— Gostaria antes de fazer algumas perguntas. Ele deseja realmente
receber-me?
— Claro que sim.
— Então por que não me respondeu, quando escrevi a ambos? E
quando telefonei, por que não o chamou para falar comigo?
— Posso garantir-lhe que não foi por descortesia.
— Por que foi então?
O Abade ficou em silêncio por um longo momento, contemplando as
costas das mãos compridas. E finalmente disse, falando bem devagar:
— Há ocasiões em que não lhe é possível comunicar-se com
qualquer pessoa.
— O que parece um tanto sinistro.
— Ao contrário, Professor. Estou convencido, baseado em
observação pessoal, de que seu amigo Jean alcançou um alto grau de
contemplação, o estado que é chamado de "iluminado", quando o
Espírito, por determinados períodos, fica totalmente absorvido na
comunicação com o Criador. É um fenômeno raro, mas não
desconhecido, nas vidas dos grandes místicos. Durante esses períodos
de contemplação, ele não reage absolutamente a quaisquer estímulos
externos. Quando a experiência acaba, ele volta imediatamente à
normalidade... Mas não lhe estou dizendo nada que já não saiba de suas
leituras.
— Sei também que os estados catatônico e cataléptico são
perfeitamente conhecidos da medicina psiquiátrica — disse Carl

101
Mendelius, secamente.
— Também estou a par disso, Professor. Não estamos totalmente
encerrados na Idade Média aqui. Nosso fundador, São Benedito, foi um
legislador sábio e tolerante. Talvez fique surpreso por saber que um dos
nossos monges é um médico eminente, com cursos em Pádua, Zurique
e Londres. Entrou na ordem há 10 anos, depois da morte da mulher. Ele
examinou nosso amigo. Por instruções minhas, consultou outros
especialistas. E está convencido, assim como eu, de que estamos
lidando com um místico e não com um psicótico.
— Comunicou isso às pessoas que o declararam um louco?
— Comuniquei ao Cardeal Drexel. Quanto aos outros... — Ele soltou
uma risadinha divertida. — Eles são homens muito ocupados. Prefiro
não incomodá-los em seus problemas tão importantes. Mais alguma
pergunta?
— Apenas uma — disse Mendelius, gravemente. — Acredita que
Jean Marie é um místico, iluminado por Deus. Acredita também que ele
teve uma revelação genuína da Parúsia?
O Abade franziu o rosto e sacudiu a cabeça.
— Depois, meu amigo! Conversaremos sobre isso depois que o tiver
visto. Só então lhe direi em que acredito... Mas vamos logo! Ele o está
esperando no jardim. Eu o levarei até lá.

Ele estava parado no meio do jardim do claustro, um vulto alto e


esguio, no hábito preto de São Benedito, dando migalhas aos pombos
que se agitavam a seus pés. Virou-se ao ouvir os passos de Mendelius,
fitou-o por um instante e depois se adiantou rapidamente em sua
direção, com os braços estendidos, enquanto os pombos alçavam vôo
em pânico. Mendelius alcançou-o no meio de uma passada e prendeu-o
num longo abraço, chocado por sentir, mesmo por baixo do hábito
grosso e áspero, como ele estava magro e frágil. Suas primeiras
palavras foram um grito sufocado:
— Jean... Jean, meu amigo!
Jean Marie Barette apertava-o firmemente, afagando-lhe o ombro ej
murmurando interminavelmente:
— Grace à Dieu... Grace à Dieu!
Depois, ambos recuaram um pouco e ficaram fitando-se.
— Jean! Jean! O que eles fizeram com você? Como está magro!
— Eles? Nada me fizeram. — Ele tirou um lenço da manga do hábito
e enxugou as faces de Mendelius. — Todos têm sido extremamente
gentis. Como está sua família?
— Estão todos bem, graças a Deus. Lotte veio comigo a Roma. Ela

102
lhe envia todo o seu amor.
— Agradeça a ela por me emprestar você... Rezei para que viesse
bem depressa, Carl!
— Eu queria vir antes, mas não podia deixar Tübingen antes de
terminar o ano letivo.
— Sei disso. E leio agora que você está envolvido num atentado
terrorista em Roma. Isso me preocupa...
— Por favor, Jean! Não há motivo para se preocupar. Fale-me a seu
respeito.
— Vamos andar um pouco? É muito agradável aqui. Há uma brisa
fresca que sopra das montanhas, mesmo nos dias mais quentes.
Ele pegou Mendelius pelo braço e puseram-se a passear pelo
claustro, entretidos numa conversa amena, enquanto o primeiro ímpeto
de emoção se desvanecia e a serenidade de uma amizade antiga voltava
a dominá-los.
— Sinto-me em casa aqui — disse Jean Marie. — O Abade Andrew
é muito atencioso. Gosto do ritmo em que os dias transcorrem, as horas
do ofício cantadas no coro, o trabalho tranqüilo... Um dos monges é um
excelente escultor em madeira. Sento-me em sua oficina e fico
observando-o trabalhar. Adoro o cheiro de aparas de madeira. Hoje é
um dia de festa. Fui eu quem fez a sobremesa que você vai comer ao
jantar. É uma receita antiga de minha mãe. Os frutos são do nosso
pomar. Na cozinha, chegaram à conclusão de que sou melhor como
cozinheiro do que como Papa... E como vai a sua vida, Carl?
— Vai muito bem, Jean. As crianças estão começando a levar suas
vidas próprias. Katrin está totalmente apaixonada por seu pintor.
Johann é brilhante em Economia. Ele decidiu não ser mais um crente.
Espero que ele acabe voltando à fé. Apesar disso, é um ótimo rapaz. E
Lotte e eu estamos começando a desfrutar a meia-idade juntos... Estou
trabalhando no novo livro. Ou pelo menos estava, até que você passou a
me povoar inteiramente os pensamentos... Não creio que se tenha
passado mais de uma hora sem que você estivesse presente em meus
pensamentos.
— E você nunca esteve longe dos meus pensamentos, Carl. Era como
se você fosse a última verga a que eu podia me segurar, depois do
naufrágio do navio. Não me atrevia a largá-lo. Recordo aquelas últimas
semanas no Vaticano com profundo horror.
— E agora, Jean?
— Agora estou calmo... embora ainda não em paz, porque ainda
estou lutando para despojar-me dos últimos obstáculos à aceitação da
vontade de Deus... Não pode imaginar como é difícil, quando deveria

103
ser bem fácil e simples abandonar-se totalmente aos desígnios de Deus,
dizer e pensar: "Aqui estou, um instrumento em suas mãos. Use-me da
maneira como quiser." A confiança tem de ser absoluta. Mas sempre se
tenta, sem mesmo perceber, esquivar-se a esse abandono, ficar dos dois
lados.
— E eu fui em parte culpado disso? — perguntou Mendelius, com
um sorriso e um ligeiro contato da mão, para atenuar a brusquidão da
indagação.
— Claro que era, Carl. E suponho que ainda é. Mas creio também
que é parte do desígnio de Deus para mim. Se você não tivesse escrito,
se recusasse a me procurar, eu pensaria de maneira diferente. Rezei
desesperadamente para ter forças que me permitissem enfrentar a
possibilidade de uma recusa.
— Ainda é uma possibilidade, Jean — disse Mendelius, gentilmente.
— Você me pediu para julgá-lo.
— E já chegou a um veredicto?
— Não. Tinha primeiro de conversar com você.
— Vamos sentar-nos, Carl. Ali, naquele banco de pedra. É o lugar
em que eu estava sentado quando aconteceu. Antes de falar sobre isso,
no entanto, tenho outras coisas a dizer-lhe.
Acomodaram-se no banco. Jean Marie pegou um punhado de
pedrinhas no caminho e começou a arremessá-las num alvo imaginário.
Pôs-se a falar calmamente, num tom de amarga reminiscência:
— Deixe-me dizer-lhe francamente, Carl, que apesar de todas as
negações rituais e dos atos públicos de humildade eu queria realmente
ser Papa. Durante toda a minha vida, fui um carreirista na Igreja. Uso a
palavra no sentido francês. Fui feito para o que fiz. Na juventude, lutei
com os Maquis. Entrei no seminário como um homem seguro de sua
vocação e de seus motivos. Mais do que isso, compreendia
instintivamente como o sistema funciona. É como Saint Cyr, Oxford ou
Harvard... Se você conhece as regras do jogo, as chances lhe são
favoráveis. Não há descrédito no que estou falando... não é essa a
minha intenção. Quero simplesmente ressaltar que existe e não pode
deixar de haver um elemento de ambição, um elemento de cálculo... Eu
tinha a ambição. E possuía também uma mente francesa eficiente...
Assim, fui um bom padre, um bom bispo diocesano. O que estou
querendo dizer é que me empenhei a fundo. Distribuí muito amor.
Mantive as pessoas unidas, até mesmo os jovens. Iniciei experiências
sociais. Estava atraindo vocações para o sacerdócio, enquanto outros as
perdiam. Minha gente dizia-me que experimentava uma espécie de
senso de unidade, de propósito religioso. Em suma, eu tinha de ser,

104
mais cedo ou mais tarde, um candidato ao chapéu cardinalício. Acabou
sendo-me oferecido, com a condição de que eu fosse para Roma e
ingressasse na Cúria. Claro que aceitei. Fui designado prefeito da
Secretaria para a Unidade Cristã e Subprefeito da Secretaria para os
Não-Crentes... Eram cargos de menor importância, como você sabe. O
verdadeiro poder estava nas congregações importantes: Doutrina da Fé,
Episcopal e Assuntos Clericais.
"Mesmo assim — continuou ele — eu me sentia feliz. Tinha acesso
ao pontífice. Tinha a oportunidade de viajar, de fazer contatos muito
além do enclave de Roma. Foi nessa ocasião que nos conhecemos, Carl.
Deve estar lembrado das emoções que partilhamos. Era como ter um
camarote na ópera!... E havia coisas boas e profundas a serem feitas...
Mas depois, lentamente, comecei a perceber quão pouco realizara... ou
poderia realizar, diga-se de passagem. Antes, se eu fundava um hospital
ou uma escola, os resultados ali estavam, tangíveis, de conseqüências
duradouras. Podia ver os agonizantes sendo confortados pelas irmãs.
Podia ver as crianças sendo educadas numa tradição religiosa... Mas
como um cardeal em Roma... o quê? Havia planos, projetos, discussões,
uma nova gráfica para imprimir os documentos. Mas um muro se
erguera entre mim e o povo. Não era mais um apóstolo. Era um diplo
mata, um político, um intermediário. Não gostava do homem que
andava com meus sapatos... Gostava ainda menos do sistema,
atravancado, arcaico, dispendioso, repleto de cantos escuros, em que
homens indolentes podiam levar a vida a dormir e os intrigantes
floresciam, como plantas exóticas numa estufa. Contudo, se eu queria
mudar tal sistema... e pode estar certo que eu queria mesmo!... tinha de
continuar na Cúria. Tinha de operar dentro dos limites do meu próprio
caráter. Sou um persuador, não um ditador. Detesto a violência. Nunca
dei um murro numa mesa em toda a minha vida! Assim, quando meu
antecessor morreu e o Conclave estava num impasse, acabaram por me
escolher, a mim, Jean Marie Barette, Gregório XVII, Sucessor do
Príncipe dos Apóstolos!
Ele jogou as últimas pedrinhas pelo caminho e depois se levantou,
com alguma dificuldade.
— Importa-se se formos até a oficina do Padre Edmund, Carl? É
mais quente ali e poderemos continuar a conversar em particular. Sinto
muito frio quando a noite chega...
Na oficina, entre peças e aparas de madeira, ferramentas e um
cabeludo Batista que começava a nascer de um bloco de carvalho,
acomodaram-se como colegiais na bancada, enquanto Jean Marie
continuava em seu relato:

105
— E lá estava eu, meu caro Carl, subitamente, no ponto mais elevado
a que um homem podia ascender, na Cidade de Deus. Meus títulos
asseguravam-me eminência e autoridade: Supremo Pontífice da Igreja
Universal, Patriarca do Ocidente, Primaz da Itália... et patati et patata!
— Soltou uma risada divertida. — Vou dizer-lhe uma coisa, Carl:
quando se fica parado pela primeira vez naquela sacada, olhando-se
pela Praça de São Pedro e ouvindo os aplausos da multidão, acredita-se
realmente que se é alguém! É muito fácil esquecer que Cristo foi um
profeta itinerante, que dormia em cavernas, enquanto Pedro era um
mero pescador de um lago na Galiléia e João, o Precursor foi
assassinado numa cela de prisão. Depois, é claro que se aprende bem
depressa. Todo o sistema é projetado para cercá-lo com a aura de
absoluta autoridade, ao mesmo tempo em que resolutamente lhe impede
o uso de tal autoridade. As longas cerimônias litúrgicas e os
aparecimentos públicos são peças teatrais cuidadosamente encenadas,
em que se é como um ator devidamente orientado. Suas audiências
particulares não passam de ocasiões diplomáticas. Só se fala em
banalidades. Abençoam-se medalhas. E se é fotografado para a
posteridade de seus visitantes...
"Enquanto isso — prosseguiu — a burocracia vai triturando, filtrando
tudo o que chega à sua mesa de trabalho, editando e glosando o que lhe
é entregue. Você é assediado por conselheiros, cujo único objetivo
parece ser o de protelar qualquer decisão. Não se pode agir, a não ser
através de intermediários. Não há horas suficientes no dia para digerir
um décimo das informações que lhe são apresentadas... e a linguagem
dos documentos da Cúria é tão cuidadosa quanto o burocratês
americano ou a fala ambígua dos marxistas... Lembro-me de ter falado
sobre isso com o Presidente dos Estados Unidos e posteriormente com
o Presidente da República Popular da China. Ambos me disseram a
mesma coisa, em palavras diferentes. O Presidente americano, um
homem um tanto rude, comentou: 'Eles nos capam primeiro e depois
esperam que ganhemos o Derby de Kentucky.' Já o Presidente chinês
expôs o problema de maneira mais polida: 'Você tem 500 milhões de
súditos, enquanto eu tenho quase o dobro disso. É por isso que você
precisa do fogo do inferno, enquanto eu preciso dos campos de punição.
Mas a morte vai levar-nos antes que metade do trabalho esteja
concluída.' Esse é outro problema, Carl. Nossa própria mortalidade nos
leva ao desespero... e líderes desesperados são extremamente
vulneráveis. Ou nos cercamos de aduladores ou nos extenuamos numa
batalha diária com homens tão resolutos quanto nós...

106
Carl Mendelius comentou, calmamente:
— Ou começamos a ansiar por milagres.
— Ou somos tentados a criá-los. — Jean Marie lançou ao amigo um
olhar rápido e perspicaz. — Os políticos dispõem de suas peças de
propaganda. O Papa tem os seus milagres. E o que realmente está
querendo dizer, não é mesmo, Carl?
— É um ponto importante, Jean. Eu não podia deixar de ressaltá-lo.
— A resposta é simples. Isso mesmo, fica-se desejando milagres.
Reza-se para que Deus se manifeste algumas vezes neste planeta cruel.
Mas quanto a criar os milagres pessoalmente, providenciar um mago de
encomenda ou adotar algum da colheita anual dos soi-disant santos...
isso não, Carl! Não eu! O que me aconteceu foi real e espontâneo. Foi
um tormento e não um dom.
— Mas tentou explorá-lo?
— Acredita nisso, meu amigo?
— Pergunto porque outros acreditam... e porque outros poderão dizê-
lo no futuro.
— E não posso oferecer qualquer prova em contrário.
— Exatamente, Jean! Para usar os termos de análise bíblica, você
afirma uma experiência pessoal de revelação, mas não pode pedir um
ato de fé em seu testemunho não confirmado. Assim, tinha de haver
algum sinal de legislação. Os cardeais ficaram apavorados com a
possibilidade de você invocar o dogma da infalibilidade. Estavam
querendo desesperadamente livrar-se de você, antes que pudesse fazê-
lo.
Jean Marie franziu o rosto, pensando na idéia por um momento. E
depois assentiu em concordância.
— Está certo. Aceito suas definições. Afirmo uma experiência de
revelação. Mas falta-me um sinal de legitimação que me autorize a
proclamá-la...
Mendelius tornou a intervir:
— Permita-me uma correção: que o autorize a proclamá-la como
Pontífice da Igreja Universal.
— Mas pense no nosso Batista aqui. — Jean Marie passou a mão
pela escultura inacabada. — Ele saiu do deserto pregando que o Reino
de Deus estava próximo, que os homens deviam arrepender-se e ser
batizados. Qual era a autoridade dele? Posso citar de memória: "A
palavra do Senhor veio a João, filho de Zacarias, no deserto"...
Ele sorriu, deu de ombros e prosseguiu:
— Pelo menos há precedentes, Carl. Mas deixe-me continuar...

107
Estávamos falando sobre o poder e suas limitações. Uma coisa que eu
tinha como Papa era o acesso a informações... e das mais altas fontes.
Viajei. Conversei com chefes de estado. Eles me enviaram emissários.
E todos eles, sem exceção, enfrentavam o mesmo dilema terrível.
Tinham de servir aos interesses nacionais. Se falhassem nisso, seriam
depostos. Mas sabiam que, em algum ponto, teriam de encontrar um
compromisso entre os interesses nacionais e outros interesses
igualmente imperativos. E se tal compromisso falhasse, o mundo seria
lançado numa guerra atômica... Eles sabiam mais, Carl, muito mais do
que se atreviam a revelar publicamente: que os meios de destruição são
tão vastos, tão letais, tão além de qualquer antídoto, que podem eliminar
totalmente a humanidade, tornar o próprio planeta impróprio para a vida
humana... O que esses homens me disseram era o material de pesadelos
e senti-me atormentado, dia e noite. Tudo o mais se tornou
insignificante e irrelevante: divergências dogmáticas, algum pobre padre
a ir para a cama com a criada, se uma mulher deve tomar uma pílula ou
levar um calendário para contar os seus períodos lunares a fim de evitar
a produção de bucha de canhão para o dia de Armagedom... Pode
compreender, meu amigo? Pode realmente compreender?
— Claro que compreendo, Jean — disse Mendelius, com uma
sombria convicção. — Talvez até melhor do que você, porque tenho
filhos. Nesta questão, não estamos em desacordo. Mas tenho de lhe
dizer que você não precisava de uma visão para mostrar-lhe o desastre
final. Já estava tudo gravado em seu cérebro. Você próprio disse que se
tratava de matéria para pesadelos... e pode tê-los, acordado ou
dormindo!
— E o resto, Carl? A salvação final, a derradeira justificativa do
plano redentor de Deus, a Parúsia? Também sonhei com isso?
— Pode ter sonhado. — Mendelius definiu sua resposta lentamente.
— Digo-lhe isso como historiador, como homem e como estudioso das
crenças da humanidade: o sonho das últimas coisas atormenta a
memória coletiva de todas as raças sob o sol. Está expresso em toda a
literatura, em todas as artes, em cada ritual de morte conhecido pelo
homem. As formas podem ser diferentes, mas o sonho persiste,
angustiando-nos na escuridão da noite, ressurgindo durante o dia nas
nuvens de tempestade e nos relâmpagos que riscam o céu. Partilho tal
sonho com você. Mas quando diz, como fez na sua encíclica, ..."fui
ordenado pelo Espírito Santo a escrever-lhes estas palavras", então
tenho de lhe perguntar, como seus colegas fizeram, se está falando em
termos simbólicos ou de fato. Se é de fato, então me mostre o edito

108
autenticado, prove-me que a mensagem é genuína!
— Sabe que não posso fazer isso — disse Jean Marie Barette.
— Exatamente.
— Mas se admitir, Carl, que a catástrofe é possível e mesmo
iminente, se admitir que a Doutrina das Últimas Coisas é um sonho
autêntico de toda a humanidade... e uma tradição definida da doutrina
cristã, então por que não devo dizer isso... com ou sem visão?
— Porque você o determina! — Mendelius estava implacável. — E
determina pelas circunstâncias, pelo tempo aproximado. Exige
preparativos imediatos e específicos. Exclui toda e qualquer esperança
de continuidade... e se encerra numa doutrina tão restrita de eleição que
será rejeitada pela maior parte do mundo e metade de sua própria
Igreja. Para os que aceitarem, as conseqüências podem ser desastrosas...
pânico disseminado, desordens civis e quase que certamente uma
precipitação de suicídios em massa...
— Meus cumprimentos, Carl! — Jean Marie presenteou-o com um
sorriso irônico de aprovação. — Sua argumentação é esplêndida,
melhor que a de meus cardeais.
— Encerro-a por aqui.
— E espera que eu responda?
— Pediu-me em sua carta que espalhasse a mensagem que não pode
mais proclamar. Tem de me provar que a mensagem é autêntica.
— Como, Carl? Qual a prova que poderia convencê-lo? Um bastão a
se transformar em serpente? Nosso Batista aqui saindo vivo deste bloco
de madeira?
Antes que Mendelius tivesse tempo de definir uma resposta, o sino
do mosteiro começou a repicar. Jean Mane saiu da bancada e limpou a
serragem do hábito.
— É um dia de festa. As vésperas são meia hora mais cedo. Vai
acompanhar-nos à capela?
— Se me for possível. Esgotei todas as respostas humanas.
— Nunca existe nenhuma — disse Jean Marie, para depois
acrescentar, suavemente: — Nisi dominus aedificaverit domum... A
menos que o Senhor construa a casa, os construtores trabalham em vão!

Na capela, a antiga ordem hierárquica ainda prevalecia. O Abade


sentava-se no lugar de honra, cercado por seus conselheiros. Jean
Marie, antes um Papa, estava sentado entre os juniores. Carl Mendelius
foi colocado entre os noviços, tendo nas mãos um breviário
emprestado. Foi uma experiência estranha e pungente, como se ele

109
tivesse recuado 30 anos para o passado, à antiga vida monacal em que
fora treinado. Cada cadência do canto gregoriano era-lhe familiar. As
palavras dos Salmos evocam imagens nítidas de seus dias de estudante,
preleções, contestações e longas e angustiantes discussões com seus
superiores, no período imediatamente anterior a sua saída.
— Ad te domine, clamabo... — entoou o coro. — A Ti, ó Senhor, eu
clamarei. Ó meu Deus, não me permaneça em silêncio, para que o Teu
silêncio não me faça como aqueles que resvalaram para o fundo do
poço. Escuta, ó Senhor, a voz da minha súplica, quando ergo as mãos
em prece no Teu sagrado templo.
As invocações adquiriam um novo significado para Mendelius. O
silêncio que se interpusera entre ele e Jean Marie era sinistro.
Subitamente, eram como estranhos, encontrando-se numa terra de
ninguém, cada um falando uma linguagem que era estranha ao outro. O
Deus que falava a Jean Marie estava em silêncio para Carl Mendelius.
— Segundo as obras de suas mãos... — entoava o coro, ressoando
pela capela — ... entrega-lhes as recompensas.
E depois veio a resposta, sombria e ameaçadora:
— Porque eles não compreenderam as obras do Senhor... irás destruí-
los e hão os elevarás.
Mas... mas qual era a compreensão certa? Mendelius pensava
angustiosamente, num contraponto ao canto salmódico. Se o salto da fé
não era um ato racional, então se tornava uma insanidade, que não
podia aceitar, mesmo que sua recusa representasse o rompimento do
vínculo que o unia a Jean Marie. Era uma triste perspectiva, ao final da
vida, quando a erosão do tempo esgotava tantos relacionamentos
acalentados.
Mendelius ficou contente quando o serviço terminou e juntou-se à
comunidade para a refeição do dia de festa, no refeitório do mosteiro.
Pôde rir dos pequenos gracejos da comunidade, aplaudir a sobremesa
de Jean Marie, discutir com o padre-arquivista os recursos da biblioteca
e com o Abade a qualidade dos vinhos dos Abruzzos. Depois que a
refeição acabou e os monges se transferiram para a sala comunitária, a
fim de se entregarem à recreação vespertina, Jean Marie aproximou-se
do Abade e perguntou:
— Pode dar-me licença, Abade? Carl e eu ainda temos algumas
coisas a conversar. E depois leremos as Completas juntos, em minha
cela.
— Claro... Mas não o mantenha acordado até muito tarde, Professor.
Estamos tentando persuadi-lo a cuidar de si mesmo.

110
A cela de Jean Marie era tão simples quanto o quarto de hóspede.
Não havia ornamentos além do crucifixo, os únicos livros eram a
Bíblia, uma cópia da Regra, um livro de horas e uma edição francesa de
A Imitação de Cristo. Jean Marie tirou o hábito, o beijou e guardou no
armário. Pôs um suéter sobre a camisa e sentou-se na cama, de frente
para Mendelius. E disse, com uma insinuação de ironia:
— Aqui estamos, Carl. Sem nada de papismo, sem nada de monge,
apenas dois homens tentando ser honestos um com outro. Deixe-me
fazer-lhe algumas perguntas... Acredita que sou um homem são?
— Acredito, Jean.
— Sou um mentiroso?
— Não.
— E a visão?
— Creio que a experiência que descreveu em sua carta foi real para
você. E creio também que é totalmente sincero em sua interpretação.
— Mas não vai aceitar essa interpretação.
— Não posso. O máximo que posso fazer é manter a mente aberta.
— E o serviço que lhe pedi?
— Disseminar a notícia da catástrofe e do Advento? Não posso fazê-
lo, Jean. E não farei. Já lhe expliquei alguns dos motivos, mas ainda há
outros. Você abdicou por causa deste problema. Usava o anel do
Pescador. Empunhava o sinete do Supremo Mestre. Renunciou a eles!
Se não pôde proclamar como Papa aquilo em que acreditava, o que está
querendo de mim agora? Não sou mais um clérigo, apenas um
estudioso secular. Estou privado da autoridade para ensinar na Igreja. O
que espera que eu faça? Que saia por aí a formar seitas de cristãos? Isso
já não foi feito antes, desde os tempos de Montanus e Tertuliano... e as
conseqüências sempre foram desastrosas...
— Não é isso o que estou querendo, Carl.
— Mas é o que aconteceria! Quer goste ou não, promoveria uma
anarquia carismática.
— Haverá anarquia de qualquer maneira!
— Então me recuso a contribuir para isso.
— Vou dizer-lhe mais alguma coisa, Carl. Aceitará um dia a missão
que recusa agora. A luz que não pode ver lhe será mostrada. Vai sentir
um dia a mão de Deus em seu ombro e seguirá para onde quer seja
levado.
— Pelo amor de Deus, Jean! O que você é? Alguma espécie de
oráculo? Não pode ficar empilhando profecia sobre profecia e fazer
qualquer outra coisa que não uma loucura. E agora peço que me escute

111
com atenção. Sou Carl Mendelius, lembra-se? Pediu-me para fazer um
julgamento. Pois é o que vou fazer. Julgo que nos está dizendo muito e
pouco ao mesmo tempo. Era o Papa. Diz que teve uma visão. Na visão,
foi chamado por Deus a proclamar a iminência da Parúsia... Mas não
proclamou! Deixou-se dobrar por um grupo a exercer o poder. Por que
permitiu que eles o silenciassem, Jean? Por que está tão silencioso
agora? Abdicou do único púlpito do qual poderia falar ao mundo! Por
que espera que um professor de meia-idade da Suábia recupere o que
você jogou fora?
A raiva e a frustração de Mendelius se manifestaram numa tirada
final e amarga:
— Drexel disse-me que você se tornou um místico. É uma coisa boa
e tradicional... e poupa o sistema de muito constrangimento, porque até
mesmo os jornais evitam o fanatismo. Mas o que você escreveu na sua
encíclica significava vida ou morte para milhões de pessoas, neste
pequeno planeta. Era fato ou ficção? Precisamos de um testemunho
completo! Não podemos ficar esperando enquanto Jean Marie Barette
brinca de esconde-esconde com Deus num jardim de mosteiro!
Mendelius sentiu-se envergonhado da brutalidade das palavras, no
instante mesmo em que acabou de pronunciá-las. Jean Marie ficou
calado por um longo tempo, olhando para as costas de suas mãos. E
finalmente respondeu, com o maior formalismo:
— Pergunta-me por que abdiquei... O conflito entre a Cúria e eu era
mais desesperado do que você pode imaginar. Se eu resolvesse
permanecer no cargo, quase que certamente haveria um cisma. O
Sacro Colégio me iria depor e eleger um rival. Nossas pretensões
seriam contestadas por meio século. Papas e Antipapas são uma
história antiga, que se poderia repetir agora. Eu não poderia viver e
morrer com isso na consciência... Você disse ainda há pouco uma
metáfora terrível: "Jean Marie brincando de esconde-esconde com
Deus num jardim de mosteiro."
— Desculpe-me, Jean. Eu não queria...
— Ao contrário, Carl, você queria exprimir exatamente o que disse.
Mas não acertou no alvo. Não estou brincando de esconde-esconde.
Estou sentado, imóvel, esperando que o Senhor volte a me falar e diga-
me o que devo fazer. Sei da necessidade de um sinal de legitimação...
mas não posso dar esse sinal pessoalmente. Tenho de esperar... Falamos
de milagres, Carl, de sinais e maravilhas. Perguntou se alguma vez
rezei por milagres. Claro que rezei! Quando os cardeais vinham
argumentar comigo, dia após dia, quando os médicos apareceram,

112
solenes e clínicos, eu rezava: "Dê-me alguma coisa para mostrar-lhes
que não estou louco, que não sou um mentiroso." E antes de você
chegar, supliquei interminavelmente: "Faça pelo menos com que Carl
acredite em mim."
Jean Marie sorriu e deu de ombros, num gesto tipicamente francês.
— Parece que terei de esperar por mais tempo... Vamos ler as
Completas agora?
— Antes disso, Jean, gostaria de dizer-lhe uma coisa. Vim como
amigo. E quero partir como amigo.
— E assim acontecerá. Pelo que vamos rezar?
— Pelo último desejo de Goethe... Mehr Licht, mais luz!
— Amém!
Jean Marie estendeu a mão para o seu breviário. Mendelius sentou-se
lado dele na cama estreita e recitaram juntos os salmos para a última
hora canônica do dia.

Foi mais fácil conversar pela manhã. As palavras mais árduas já


haviam sido ditas. Não havia mais qualquer terreno de discussão, não
havia receio de incompreensão. No jardim da visão, o jardineiro
manejava sua enxada. O padre-sacristão cortava novas rosas para o
altar. Jean Marie Barette, antes um Papa, jogava migalhas de pão para
os pombos, enquanto Carl Mendelius enunciava sua posição:
— Na questão da sua revelação pessoal, Jean, sou um agnóstico. Não
sei. Portanto, não posso agir. Mas em relação a nós, amigos antigos, se
tenho pouca fé, ainda me resta muito amor. Acredite nisso, por favor!
— Claro que acredito.
— Não posso aceitar uma missão em que não acredito... e para a qual
você não tem autoridade para enviar-me. Mas posso fazer uma coisa
para testar suas idéias diante de uma audiência internacional.
— E como se propõe a fazer isso, Carl?
— De duas maneiras. Primeiro, posso providenciar com Georg
Rainer, um jornalista de reputação, a publicação de um relato acurado
de sua abdicação. Depois, eu próprio escreveria, para a imprensa
internacional, um estudo biográfico de meu amigo o ex-Papa Gregório
XVII. Nesse estudo, chamaria atenção para as idéias expressas em sua
encíclica. E finalmente poderia providenciar para que as duas coisas
fossem levadas ao conhecimento das pessoas incluídas em sua lista...
Quero que compreenda bem o que lhe estou oferecendo, Jean. Não é uma
advocacia nem uma cruzada, mas uma história honesta, um retrato
compreensivo, uma exposição objetiva de suas idéias como eu as

113
entendi... com a possibilidade de contestação total, se não gostar do que
for escrito.
— É uma oferta generosa, Carl.
Jean Marie estava comovido. Mendelius advertiu-o:
— Está muito aquém do que você me pediu. E também vai expor as
falhas e fraquezas de sua posição. Por exemplo: mesmo neste nosso
encontro, explicou muito pouco do seu estado espiritual.
— O que posso dizer-lhe, Carl? — O desafio implícito parecia
surpreendê-lo. — Há ocasiões em que estou em trevas tão profundas e
ameaçadoras que tenho a impressão de estar desprovido de toda forma
humana e condenado a uma solidão eterna. Em outras ocasiões,
descubro-me numa serenidade luminosa, totalmente em paz, embora
harmoniosamente ativo, como um instrumento nas mãos de um grande
mestre... Não posso ler a partitura, não tenho o impulso de interpretá-la,
mas apenas uma confiança tranqüila de que o sonho do compositor se
realiza em mim em todos os momentos... O problema, meu caro Carl, é
que tanto o terror como a serenidade me pegam desprevenido. Surgem
e se vão subitamente, deixando meus dias tão cheios de buracos quanto
um queijo suíço. Descubro-me às vezes no jardim, na capela ou na
biblioteca, sem ter a menor idéia de como cheguei lá. Se isso é
misticismo, Carl, então que Deus me ajude! Prefiro penar no purgatório
como os mortais comuns! Como poderia explicar isso a seus leitores?
— Quer dizer então que concorda com o tipo de publicação que estou
sugerindo?
— Vamos ser bastante objetivos a respeito. — Havia um tom de
malícia nos olhos de Jean Marie. — Vamos ser romanos e
diplomáticos. Um jornalista não precisa de minha permissão para
especular sobre a história atual. E se você, meu douto amigo, decidir
escrever um estudo sobre a minha pessoa e idéias, não posso impedi-lo.
Vamos deixar a coisa por aqui, está certo?
— Com o maior prazer! — Mendelius soltou uma risada divertida. —
Só mais uma pergunta. Não gostaria de passar umas pequenas férias
comigo em Tübingen? Lotte adoraria. Quanto a mim, gostarei muito de
ter um irmão em casa.
— Obrigado, meu caro amigo, mas não posso aceitar. Se eu pedisse,
o Abade ficaria embaraçado. Os problemas diplomáticos a enfrentar
seriam delicados demais. Além do mais, nunca poderíamos ser tão
íntimos como neste momento. Quando eu estava no Vaticano, Carl, via
o mundo em panorama, um vasto planeta, com seus milhões de
habitantes, diligentes e apreensivos, sob a ameaça da nuvem de
cogumelo. Aqui, vejo tudo em pequena escala. Todo o amor e atenção

114
de que disponho se concentram no rosto humano mais próximo. Neste
momento é o seu rosto, Carl, você em todos e todos em você. Não é
fácil explicar, mas foi essa a agonia que experimentei na visão, a
extrema simplicidade das coisas, a esplêndida e aterradora unidade
do Todo-Poderoso... e de seus desígnios!
Mendelius franziu o rosto e sacudiu a cabeça.
— Gostaria de poder partilhar essa visão, Jean. Mas não posso. Acho
que já temos horrores suficientes sem o Deus do holocausto final.
Tenho conhecido homens de bem que preferem as trevas eternas à visão
de Siva, o Destruidor.
— É assim que você o vê, Carl?
— Em Roma, há assassinos esperando para matar-me. Tenho menos
medo deles do que de um Deus que pode fechar a tampa sobre sua
caixa de brinquedo e jogá-la no fogo. É por isso que não posso pregar a
sua catástrofe, Jean... não se é inevitável, um horror decretado da
eternidade.
— Não é Deus o assassino, Carl... não é Deus quem vai apertar o
botão vermelho.
Carl Mendelius ficou em silêncio por um longo tempo. Pegou as
migalhas de pão das mãos de Jean Marie e começou a lançá-las para os
pombos. E quando finalmente falou, foi para dizer uma banalidade:
— O Cardeal Drexel pediu-me que fosse procurá-lo depois desta
visita. O que quer que eu diga?
— Que estou contente, não guardo qualquer ressentimento, que rezo
por todos eles diariamente.
— Reze também por mim, Jean. Sou um homem árido, num deserto
escuro.
— A escuridão vai passar. E depois você verá o dia e a fonte de água
fresca.
— É o que espero. — Mendelius levantou-se e estendeu a mão para
ajudar Jean Marie a levantar-se também. — Não vamos prolongar as
despedidas.
— Escreva-me de vez em quando, Carl.
— Todas as semanas. Prometo.
— Que Deus o guarde, meu amigo.
Houve um último e silencioso abraço. Depois, Jean Marie afastou-se,
um vulto frágil, cujos passos ressoavam debilmente pelo claustro.

— Fez-me uma pergunta, Professor. — O Abade estava


acompanhando Mendelius até os portões do mosteiro. — Eu lhe disse
que daria minha resposta hoje.

115
— Estou curioso em ouvi-la, Abade.
— Creio que o nosso amigo teve mesmo uma visão da Parúsia.
— Gostaria então de fazer-lhe outra pergunta. Sente-se obrigado a
tomar alguma providência a respeito?
— Nada de especial. Afinal, um mosteiro é um lugar para onde os
homens vêm a fim de aceitarem as Últimas Coisas. Nós velamos,
rezamos, nos mantemos preparados, dispensamos caridade à
comunidade e ao viajante.
— Fala como se fosse muito simples.
Mendelius não estava impressionado. O Abade fitou-o rapidamente.
— Simples demais, suave demais. É o que está realmente querendo
dizer, não é mesmo? O que sugere, meu amigo? Que despache meus
monges para as aldeias nas montanhas, a fim de pregar o Apocalipse?
Quantas pessoas acha que escutariam? Eles ainda estariam assistindo ao
time de futebol do Lazio jogar quando soassem as trombetas finais! ...
O que vai fazer agora?
— Terminar as férias com minha mulher, voltar para casa e preparar
o curso para o próximo ano... Cuide de Jean por mim.
— Prometo que o farei.
— Com sua permissão, eu gostaria de escrever para ele regularmente.
— Não há problema. E lhe asseguro que a correspondência será
mantida rigorosamente particular.
— Obrigado. Posso deixar um donativo no portão?
— Eu agradeceria.
— Sinto-me grato por sua hospitalidade.
— Um último conselho, meu amigo.
— Qual é?
— Não pode lutar com Deus. Ele é um adversário grande demais...
Também não pode controlar todo o universo d'Ele, mas apenas o
pequeno jardim que lhe foi concedido. Desfrute-o enquanto puder...

— Foi um episódio angustiante para você.


Drexel despejou o resto do café na xícara de Mendelius e entregou-
lhe o último biscoito.
— Foi mesmo, Eminência.
— E agora que terminou...
— É justamente esse o problema. — Mendelius levantou-se e foi até
a janela. — Não terminou absolutamente. Acabou para Jean Marie, é
verdade. Ele fez o ato final de um crente, um ato de submissão a sua
própria mortalidade, um ato de fé na contínua e benéfica atuação do
Espírito nos assuntos humanos. Ainda não cheguei a esse ponto. E só

116
Deus sabe se algum dia chegarei. Detestei voltar ao Vaticano hoje.
Detestei a pompa e o poder, Congregações, Tribunais e Secretarias... e
tudo dedicado a quê? A mais esquiva das abstrações, o relacionamento
do homem com um Criador Incognoscivel! Fico contente por Jean ter
largado tudo isso...
— E você, meu amigo, também quer deixar tudo? — indagou o
Cardeal, gentilmente.
— Mas claro que quero! — Mendelius virou-se bruscamente para
fitá-lo. — Só que não posso, assim como também não posso renunciar a
minha mãe ou a meu pai, aos meus ancestrais mais remotos. Não posso
renunciar às tradições que me moldaram. Não posso adotar a história de
outro homem ou fabricar-me um novo mito. Detesto o que esta família
muitas vezes faz a seus filhos, mas não posso deixá-la e não vou
denegri-la. Assim, só me resta esperar...
Ele deu de ombros, num gesto de derrota. Virou-se novamente e ficou
olhando em silêncio para o jardim. Drexel pressionou-o, suavemente:
— Esperar... o que, Mendelius?
— Só Deus sabe. O último dia de primavera antes do holocausto. O
dedo de fogo escrevendo na parede. Espero, só isso. Não lhe contei...
não, não contei, devo ter esquecido... que Jean Marie também fez uma
profecia a meu respeito?
— O que ele disse?
Mendelius repetiu as palavras do amigo numa voz sem qualquer
inflexão:
— "Aceitará um dia a missão que recusa agora. A luz que não pode
ver lhe será mostrada. Vai sentir um dia a mão de Deus em seu ombro e
seguirá para onde quer que seja levado."
— E você acreditou nele?
— Quis acreditar. Mas não pude.
— Pois eu acredito nele.
Mendelius perdeu finalmente o controle e desafiou Drexel
bruscamente:
— Em nome de Deus, então por que não acreditou no resto? Por que
deixou que os outros o destruíssem?
— Porque não me podia arriscar. — A voz do Cardeal era
infinitamente patética. — Como você... talvez mais do que você... eu
precisava da garantia de ser o que sou, um homem altamente situado
num sistema antigo, que resistiu ao teste dos séculos. Tive medo das
trevas. Precisava da luz fria e calma da tradição. Não queria mistérios,
apenas um Deus que pudesse admitir, uma autoridade a que poderia me
curvar, em sã consciência. Quando o momento chegou, eu não estava

117
preparado. Não pude repelir o passado nem abdicar de minha função no
presente... Não me julgue muito severamente, Mendelius. Não julgue a
qualquer de nós. Você é mais livre e mais afortunado.
Mendelius retraiu-se diante da censura e disse, com uma desolada
humildade:
— Fui grosseiro e injusto, Eminência. Não tinha o direito...
— Nada de desculpas, por favor! — Drexel fez um gesto para detê-
lo. — Pelo menos conseguimos ser francos um com o outro. Deixe-me
explicar-lhe mais uma coisa. Nos tempos antigos, quando o mundo
estava repleto de mistério, era fácil ser um crente... nos espíritos que
habitavam os bosques, no deus que semeava os trovões. Nesta época,
estamos todos condicionados à ilusão visual. O que você vê é o que
existe. Retire os símbolos visíveis de uma organização estabelecida... as
cátedras, a igreja da paróquia, o bispo em sua mitra... e a assembléia
cristã deixará de existir para muitos. Você pode falar até cansar sobre o
Espírito Eterno e o Corpo Místico, mas estará falando a surdos, mesmo
entre o clero. Subconscientemente, eles associam tais coisas com os
cultistas e os carismáticos. Disciplina é a palavra segura... disciplina,
autoridade doutrinária e a missa aos domingos! Não há mais lugar para
os santos itinerantes... A maioria das pessoas prefere uma religião
simples. Você faz a sua oferenda num templo e leva de volta a
salvação. Acha que algum clérigo em seu juízo perfeito vai pregar uma
igreja carismática ou uma diáspora cristã?
— Provavelmente não. — Mendelius exibiu um pequeno sorriso
relutante. — Mas eles têm de enfrentar um fato.
— Que fato?
— Que todos pertencemos a uma espécie em perigo: o homem do
milênio!
Drexel pensou por um momento e depois assentiu em aprovação.
— Um pensamento grave, Mendelius. Merece uma meditação.
— Fico contente que pense assim, Eminência. Proponho-me a incluí-
lo em meu ensaio sobre Gregório XVII.
Drexel não demonstrou qualquer surpresa. Perguntou, quase como se
fosse uma questão de interesse acadêmico:
— Acha que tal ensaio é oportuno neste momento?
— Mesmo que não fosse, Eminência, creio que se trata de uma
questão de simples justiça. O funcionário mais subalterno sempre ganha
um estudo biográfico em sua aposentadoria, mesmo que seja apenas
cinco linhas na Gazeta do Governo... E espero que me permita

118
consultar Sua Eminência sobre questões de fato... talvez mesmo
persuadi-lo a apresentar sua opinião sobre determinados aspectos da
história recente.
— Sobre questões de fato, terei a maior satisfação em ajudá-lo,
orientando-o para as fontes apropriadas — disse Drexel, calmamente.
— Quanto a minhas opiniões... infelizmente, não são para serem
publicadas. Meu atual superior dificilmente aprovaria... De qualquer
forma, obrigado pelo convite. E boa sorte com seu ensaio.
— Fico contente de que goste da idéia.
— Não disse que gostava. — O rosto de Drexel foi iluminado por um
rápido sorriso. — Reconheço-a como um ato de piedade, que
moralmente estou obrigado a elogiar.
— Obrigado, Eminência. E obrigado pela proteção que me concedeu
e à minha mulher.
— Eu gostaria de poder prolongá-la. Mas não tenho autoridade para
onde pretende ir agora. Vá com Deus, Professor!

Eram cinco horas da tarde quando Francone deixou Mendelius no


apartamento. Lotte e Hilde estavam no cabeleireiro, Herman ainda não
voltara da Academia. Assim, ele teve tempo e privacidade para tomar
um banho, descansar e pôr seus pensamentos em ordem, antes de relatar
aos outros sua experiência em Monte Cassino. Estava feliz com uma
coisa: não mais estava obrigado ao sigilo. Podia debater todas as
questões envolvidas, testar suas opiniões contra as dos devotos e
céticos, discorrer sobre suas perplexidades na linguagem das pessoas
comuns, ao invés do dialeto empolado dos teólogos.
Ainda estava longe de sentir-se satisfeito pelas explicações que Jean
Marie lhe dera. A descrição dos estados místicos dele, que obviamente
haviam sido testemunhados por outros, parecia branda demais, muito
familiar e excessivamente... Mendelius hesitou por um instante,
procurando pela palavra certa... derivada da vasta massa de literatura
devocional. Jean Marie era preciso a respeito das possibilidades de um
conflito catastrófico. Era vago, mesmo em termos visionários, sobre a
natureza da Parúsia propriamente dita. Os escritos mais apocalípticos
eram vividos e detalhados. A revelação de Jean Marie Barette era por
demais franca e geral para merecer credibilidade.
Em termos psicológicos, havia também uma contradição, entre a
visão de Jean Marie de si mesmo como um carreirista e o seu trágico
fracasso em exercer o poder num momento de crise. A disposição dele,
para não dizer a ansiedade, em aceitar até mesmo uma defesa parcial na

119
imprensa popular era bem triste, se não mesmo ligeiramente sinistra,
num homem que afirmava ter travado um diálogo particular com a
Onipotência.
E no entanto, no entanto... Ao sair para o esplendor do pôr-do-sol no
terraço, Mendelius foi forçado a admitir que Jean Marie Barette era
mais fácil de ser condenado na ausência do que humilhado
pessoalmente. Ele não recuara um único passo de sua afirmação de uma
experiência de revelação ou de sua serena convicção de que o sinal de
confirmação seria dado. Em comparação com ele, Carl Mendelius era o
homem pequeno, o mensageiro que carregava segredos de estado em
seu cinto, mas não tinha convicções pessoais além do estado das camas
e do custo do vinho nas estalagens pelo caminho...
Mendelius conversou sobre tudo isso e muito mais com Hilde e os
Frank, enquanto tomavam coquetéis. Ficou surpreso ao constatar que
todos o interrogavam. Herman Frank era o mais ansioso.
— Não está realmente querendo dizer, Carl, que acredita pelo menos
em metade da história? Desconte a visão, desconte o Segundo Advento,
que de qualquer maneira é um mito primitivo. Mas não se pode negar
que a catástrofe da guerra global está muito próxima.
— É justamente essa a dimensão do problema, Herman.
— Não creio que seja exatamente assim. — O sorriso de Hilde tinha
uma insinuação inequívoca de ironia. — Você ainda é um crente, Carl.
Por isso, ainda está atormentado pela presença de Deus em todas as
coisas. É assim desde que o conheço... meio racionalista, meio poeta.
Não é verdade?
— Acho que sim. — Mendelius estendeu a mão para seu drinque. —
Mas o racionalista diz que as provas ainda não são suficientes,
enquanto o poeta declara que não há tempo para versejar quando os
assassinos estão nos portões.
— Há mais uma coisa. — Lotte estendeu a mão e afagou-lhe o pulso.
— Você ama Jean Marie como um irmão. Para não rejeitá-lo
sumariamente, está disposto a se dividir ao meio... disse-lhe que
escreveria esse estudo biográfico. Tem certeza de que pode fazê-lo com
a mente tão dividida?
— Não, liebchen, não tenho. Rainer fará um bom trabalho na sua
parte. É o sonho de qualquer jornalista... uma história exclusiva que terá
a maior repercussão no mundo inteiro. Quanto a minha parte... o retrato
pessoal, a interpretação dos pensamentos de Jean... não tenho a menor
certeza se poderei fazê-la direito.
— Onde vai trabalhar? — perguntou Hilde. — Teremos o maior

120
prazer em acolhê-lo aqui, por tanto tempo quanto desejar.
— Precisamos voltar para Tübingen. — Lotte estava um tanto
ansiosa. — As crianças estarão de volta no princípio da próxima
semana.
— Carl poderia ficar por mais algum tempo...
— Não é necessário. — Mendelius estava firme. — Obrigado pelo
convite, Hilde, mas trabalharei melhor em casa. Conversarei com
Georg Rainer na sexta-feira. E partiremos para Tübingen no domingo.
Este lugar é sedutor demais... e preciso de uma dose forte de bom senso
protestante.
— E apresentado com um sotaque suábio! — acrescentou Herman,
sorrindo. — Assim que o verão acabar, Hilde e eu começaremos a
aprontar nosso sítio na Toscana.
— Vamos com calma, Herman. — Hilde parecia irritada. — Nada
vai acontecer tão depressa assim. Não é verdade, Carl?
Mendelius sorriu e recusou-se a ser envolvido.
— Também sou casado, menina. Nós, os machos, temos de nos unir
de vez em quando. Eu estaria propenso a aprontar o sítio o mais
depressa possível. Se houver alguma ameaça de crise, materiais e mão-
de-obra vão dobrar de preço da noite para o dia. Além do mais, será
preciso plantar neste inverno para a colheita do próximo verão.
— E o que você vai fazer, Carl? — perguntou Hilde, incisivamente.
— Seu amigo Jean Marie está seguro no mosteiro. Se alguma coisa
acontecer, a Alemanha será a primeira zona de combate. O que vai
fazer com Lotte e as crianças?
— Ainda não pensei a respeito.
— Tübingen fica a apenas 180 quilômetros da fronteira suíça —
disse Herman. — Seria bom que você deixasse uma parte de seus
royalties depositada por lá.
— Eu me recuso a continuar a falar sobre isso! — Lotte estava
subitamente próxima da ira. — Estes são os nossos últimos dias em
Roma e quero que sejam muito felizes.
— E vão ser! — Herman mostrou-se imediatamente arrependido. —
Vamos jantar aqui e depois iremos escutar um pouco de música no
Arciliuto. É um lugar dos mais estranhos, muito antigo. Dizem que
Rafael mantinha uma amante ali. Quem pode saber? Pelo menos isso
prova o talento romano para a sobrevivência.

Ainda havia algumas coisas a tratar antes que Mendelius e Lotte


pudessem fazer as malas e partir. Ele passou toda a manhã de sexta-

121
feira preparando a sua gravação final para Anneliese Meissner: um
relato da visita a Monte Cassino, uma confissão franca de suas
perplexidades e uma declaração sóbria:
... "Tem agora o registro de tudo, tão honestamente quanto pude
relatar. Quero que estude com cuidado, antes de tornarmos a nos
encontrar, em Tübingen. Há muito mais para contar, mas pode esperar
até nosso encontro. Até breve. Estou cansado desta cidade febril e
agitada. Carl."
Ele embrulhou as fitas cuidadosamente e pediu a Francone que as
levasse a um serviço de entregas diárias entre Roma e diversas cidades
alemãs. Depois, Francone levou-o para o almoço marcado com Georg
Rainer. A uma hora da tarde, num compartimento privado do Ernesto's,
ele começou a ritual disputa de esgrima. Georg Rainer era um
praticante experiente da arte.
— Tem estado muito ocupado, Mendelius. É difícil acompanhar seus
movimentos. Aquele caso do Salvator Mundi, quando a polícia matou
um homem e prendeu três outros... você estava no hospital na ocasião?
— Estava, sim. Fazia uma visita ao Senador Malagordo.
— Era o que eu imaginava. Não publiquei nada, porque achei que
não deveria expô-lo ainda mais.
— Foi muita generosidade sua. Agradeço a atenção.
— E também não queria estragar a história de hoje... Tem uma
história para mim, não é mesmo?
— Tenho, sim, Georg. Mas antes de relatá-la, quero ver se podemos
concordar sobre algumas regras do jogo.
Rainer sacudiu a cabeça.
— As regras já estão fixadas, meu amigo. O que me disser, confiro
primeiro e depois passo pelo telex. Garanto uma transcrição acurada
dos fatos e citações, reservando-me o direito de fazer o comentário que
julgar conveniente para a orientação de meus editores. Não posso
garantir a sua imunidade da ênfase editorial, de manchetes dramáticas
ou manchetes enganadoras, de versões distorcidas da mesma história
por outras mãos. A partir do momento em que começarmos a entrevista,
você estará no banco das testemunhas e tudo o que disser entrará para
os registros do tribunal...
— Neste caso, eu gostaria de verificar se podemos concordar sobre a
maneira como a história deve ser apresentada.
— Não! — disse Georg Rainer, taxativamente. — Não posso fazer
qualquer acordo sobre o que acontecer depois que o texto deixar meu
escritório. Terei o maior prazer em mostrar-lhe antes o meu texto e
alterar qualquer coisa que considerar inacurada. Mas, se está pensando

122
que há alguma maneira de controlar as conseqüências de uma notícia, é
melhor esquecer. É como a caixa de Pandora: depois que se abre, todos
os males ficam à solta. Seja como for, por que me está dando a história?
— Em primeiro lugar, porque você manteve a promessa que me fez.
Estou tentando manter a minha. Em segundo lugar, quero que a verdade
a respeito de um amigo seja exposta publicamente, antes que os
inventores de mitos se ponham a trabalhar. E, em terceiro lugar, quero
escrever uma peça que será um complemento à sua história, sob a
forma de um estudo biográfico. Não poderei fazê-lo se a sua história se
expandir por caminhos incontroláveis. Assim, deixe-me formular a
questão de outra maneira. Como podemos chegar a um meio-termo que
atenda às suas necessidades e às minhas?
— Diga-me primeiro sobre o que é a história.
— A abdicação de Gregório XVII.
Georg Rainer fitou-o com um espanto que não se deu ao trabalho de
disfarçar.
— A verdadeira história?
— Isso mesmo.
— Pode prová-la?
— Desde que possamos chegar a um acordo sobre o uso ou não-uso
dos documentos, posso provar tudo... E para poupar-lhe mais trabalho,
Georg, acabei de passar 24 horas com Gregório XVII no Mosteiro de
Monte Cassino.
— E ele concorda com a divulgação da história?
— Não tem qualquer objeção e conta com a minha discrição na
escolha de um repórter para a história exclusiva. Fomos amigos íntimos
por muito tempo. Por isso mesmo, Georg, preciso ter certeza das regras
do jogo, antes de começarmos.
Um garçom aproximou-se rapidamente, exibindo a caneta e o bloco
com um floreio. Georg Rainer disse:
— Vamos pedir primeiro, está bem? Detesto garçons pairando nas
proximidades enquanto estou fazendo uma entrevista.
Pediram pasta, saltimbocca e uma garrafa de Bardolino. Depois,
Georg Rainer pôs o seu gravador em miniatura sobre a mesa e
empurrou-o na direção de Mendelius, dizendo:
— Você cuida da gravação. Segura a fita até acertarmos um texto
final. Trabalharemos nisso juntos. Tudo o que não lhe agradar será
apagado imediatamente. Está bem assim?
— Está ótimo. Vamos começar por dois documentos, escritos a mão
por Gregório XVII e que me foram entregues por um mensageiro
pessoal. O primeiro documento é uma carta para mim, descrevendo os

123
acontecimentos que levaram à abdicação dele. O outro é uma encíclica
inédita, que a Cúria suprimiu.
— Posso vê-los?
— No momento apropriado. Obviamente, não carrego esses
documentos comigo.
— Qual é a mensagem básica?
— Gregório XVII foi forçado a abdicar porque afirmou ter tido uma
visão do fim do mundo... o holocausto e o Segundo Advento.
Acreditava ter sido convocado para ser o precursor do evento.
Mendelius fez uma pausa, com um sorriso amargo, antes de
acrescentar:
— Pode compreender agora por que procurei evitar a história sobre o
fim do mundo. Estava testando o tema numa audiência de clérigos
Evangélicos, antes de ir a Monte Cassino.
Georg Rainer tomou um gole de vinho e mastigou um pedaço de pão.
Finalmente deu de ombros, como um jogador de pôquer perdedor, e
disse:
— Claro que agora tudo faz sentido. A Cúria tinha simplesmente de
livrar-se dele. O homem é um lunático.
— É justamente esse o problema, Georg. — Mendelius serviu mais
vinho e fez sinal ao garçom para que tirasse os pratos de pasta. — Ele é
tão são quanto você ou eu.
— Quem diz isso? — Rainer espetou um dedo no peito de Mendelius
— Você, o amigo dele?
— Isso mesmo. E também o Cardeal Drexel e o Abade Andrew, que
dirige Monte Cassino. Os dois aceitam-no como um místico, da mesma
forma que João da Cruz. Drexel está passando por uma crise de
consciência, porque não o defendeu contra a Cúria e o Sacro Colégio.
— Conversou com Drexel?
— Duas vezes. E também duas vezes com o Abade de Monte
Cassino. O mais estranho é que eles são os crentes, enquanto eu sou o
cético.
— O que é justamente o que eles querem — comentou Rainer, com
algum sarcasmo. — Estão afastando um Papa perigoso. E agora que ele
não pode mais causar problemas, dão-se ao luxo de louvar sua virtude
obediente. Quer saber de uma coisa, Mendelius? Para um erudito
notável, você é às vezes muito ingênuo. Até mesmo aceita ser
conduzido pelo motorista do Cardeal, no carro do Cardeal. Assim,
Drexel sabe de tudo o que você faz em Roma... até mesmo do seu
almoço comigo.
— A verdade, Georg, é que não me importo absolutamente com que

124
ele saiba.
— Ele tem conhecimento dos documentos?
— Tem, sim. Falei-lhe a respeito.
— E o que aconteceu?
— Nada.
— Não acha que ele pode ordenar que os documentos sejam
recuperados... ou desviados para mãos mais ortodoxas?
— Francamente, não consigo imaginar Drexel como espião e recepta-
dor de manuscritos roubados.
— Então é mais confiante do que eu. — Rainer deu de ombros. —
Também leio história e sei que os usos do poder não mudaram na Igreja
ou em qualquer outra parte. Contudo... Mas vamos falar sobre
Gregório XVII. Como o julga?
— Creio que ele é são... e sincero em suas convicções.
— Não há ninguém mais perigoso do que um visionário sincero.
— O próprio Jean Marie reconheceu isso. Abdicou para evitar um
cisma. Está calado porque não tem um sinal de confirmação para provar
que sua visão é autêntica. Precisava de um sinal de legitimação.
— Sinal de legitimação? Não me lembro da expressão.
— É um termo que se tornou popular na moderna análise bíblica.
Significa basicamente que o profeta ou reformador, quando afirma falar
em nome de Deus, precisa apresentar alguma prova de autoridade.
— Que nem você nem eu podemos conferir.
— Não, não podemos. Mas devemos garantir-lhe um relato honesto
dos fatos e uma interpretação esclarecida de sua mensagem. Podemos
alinhar os acontecimentos que levaram à abdicação.Os documentos
explicarão o porquê. E podemos registrar o que Jean Marie Barette me
disse a respeito de sua alegada visão.
— Até aqui, está tudo certo. Mas essa visão trata de assuntos de
importância fundamental: o fim do mundo, o Segundo Advento, o Juízo
Final. O que podemos dizer a nossos leitores a respeito de tais coisas?
— Posso dizer-lhes o que as pessoas no passado acreditavam e
escreviam sobre esses temas. Posso orientar-lhes a atenção para a
existência de seitas milenaristas no mundo de hoje.
— E nada mais?
— Depois disso, Georg, é a sua vez. É o homem que escreve os
boletins sobre a situação das nações. Quão próximos estamos agora de
Armagedom? O mundo está repleto de profetas. Algum deles pode ser
Aquele que está para chegar? Se examiná-lo à luz de todos os fenômenos
sociais absurdos, a predição de Jean Marie está longe de ser irracional.
— Concordo plenamente. — Rainer ficou em silêncio por um

125
momento, pensativo. — Mas dará muito trabalho converter a história
em forma legível. Pode prolongar sua estada em Roma?
— Infelizmente, não. Tenho de preparar-me para o reinicio dos
cursos na universidade. Você tem a possibilidade de passar alguns dias
em Tübingen? Ficaria hospedado em minha casa. Poderíamos trabalhar
melhor ali. Tenho todos os textos necessários...
— Preciso trabalhar depressa. Todo o meu condicionamento é pegar
a idéia, conferir sua lógica e despachar pelo telex no mesmo dia.
— Sou provavelmente muito mais lento, mas pelo menos sou versado
no assunto. Seja como for, deixarei Roma no domingo e começarei a
trabalhar no dia seguinte.
— Poderei estar em Tübingen na quarta-feira. Arrumarei alguém para
me substituir aqui. Não quero discutir a história com meu editor
enquanto nós dois não a tivermos escrito e conferido cada frase. Assim,
terei de encontrar uma desculpa para alguns dias de ausência.
— Há outra coisa que devemos acertar. Nós dois vamos agir em
conjunto. E devemos ter um contrato. Gostaria também de usar meu
agente em Nova York para providenciar contratos com os editores.
— Está certo.
— Neste caso, vou telefonar para ele esta noite e pedir que se
encontre conosco em Tübingen.
—Posso dar-lhe um conselho, Mendelius? Pelo amor de Deus, tome
cuidado com os documentos. Guarde-os no banco. Conheço pessoas
que seriam capazes de matá-lo para se apoderarem dos documentos.
— Jean Marie fez-me tal advertência em sua carta. Não o levei muito
a sério.
— Então é melhor ser muito sério daqui por diante. Essa história o
tornará tão famoso ou notório quanto o atentado no Corso. Mesmo
depois que voltar a Tübingen, tome cuidado. Ainda é uma testemunha-
chave contra a moça e causou ao terrorismo a perda de quatro homens.
Eles têm braços compridos e memórias longas.
— Posso compreender o problema dos terroristas. — Mendelius
estava genuinamente perplexo. — Mas os documentos... uma carta
pessoal para mim, uma encíclica inédita... Posso avaliar o valor como
notícia, mas certamente não valem a vida de um homem.
— Não? Pois encare a coisa por outro aspecto. A encíclica provocou
uma abdicação papal. Poderia igualmente provocar um cisma ou fazer
com que Gregório XVII fosse declarado insano.
— Tem razão. Mas...
Rainer interrompeu-o bruscamente:
— Até agora, tem pensado apenas em sua reação pessoal ao caso e na

126
preocupação com o amigo. Mas o que dizer dos milhares de outras
pessoas com quem Gregório XVII tratou durante o seu pontificado?
Como elas reagiram? Como poderão reagir ao tomar conhecimento dos
fatos verdadeiros? Algumas devem ter mantido um relacionamento
íntimo com ele...
— Isso é verdade. Ele me enviou uma lista...
Rainer ficou imediatamente alerta.
— Que espécie de lista?
— Pessoas em altos postos, em todas as partes do mundo, que ele
acreditava que seriam receptivas a sua mensagem.
— Pode dar-me alguns dos nomes que constam dessa lista?
Mendelius pensou por um momento e depois recitou meia dúzia de
nomes, que Rainer prontamente anotou, indagando em seguida:
— Alguma dessas pessoas já tentou entrar em contato com ele em
Monte Cassino?
— Não sei. Não perguntei. Mas certamente seriam examinados
cuidadosamente antes de conseguirem falar com ele. Foi o que me
aconteceu. Na verdade, nem cheguei a falar com Jean Marie pelo
telefone. Houve momentos em que pensei que estavam querendo
impedir-me de falar-lhe Mas Drexel foi categórico. Não havia objeções
a minha visita, apenas muito interesse oficial.
— E esse interesse dificilmente vai se dissipar, agora que sabem que
você conversou comigo.
— Vamos ser justos, Georg. Drexel não indagou o que eu pretendia
fazer. Não fez qualquer outra menção aos documentos... e tratei-o
rudemente em determinados momentos.
— E o que isso prova? Absolutamente nada, a não ser que ele é um
homem paciente. E não se esqueça de que foi ele que os cardeais
escolheram para emissário. Pense bem nisso! Quanto aos outros amigos
ou conhecidos de Gregório XVII, vou fazer algumas pesquisas por
conta própria, antes de seguir para Tübingen... Não, não! Vou pagar o
almoço. Afinal, tirarei tanto dinheiro de você que será quase indecente.
— Vai trabalhar para conseguir isso, meu amigo. E trabalhar muito.
— Mendelius riu. — Duas coisas que aprendi com os jesuítas foram as
regras das provas e o respeito pelo estilo na escrita. Quero que esta seja
a melhor história que você já produziu!

Assim que chegou ao apartamento, Mendelius ligou para seu agente,


Lars Larsen, em Nova York. A reação imediata de Larsen foi um
assovio de excitamento e depois um grito de angústia. A idéia era

127
maravilhosa. Valia muito dinheiro. Mas por que diabo Mendelius tinha
de partilhá-la com um jornalista? Rainer nada tinha para contribuir,
exceto a sua ligação com um grande império jornalístico alemão. A
história deveria ser lançada na América...
E assim por diante, incessantemente, por 10 minutos de súplicas
veementes. Depois, Mendelius explicou pacientemente que o objetivo
era apresentar um relato sóbrio dos acontecimentos recentes e orientar
as atenções para a última mensagem de Jean Marie. Lars não poderia
fazer a gentileza de ir a Tübingen e tratar do assunto com a seriedade
que merecia?
Lotte, escutando a conversa, protestou com uma exclamação de
infelicidade.
— Bem que o avisei, Carl. Todas essas pessoas têm preocupações
pessoais que inevitavelmente entram em conflito com as suas. O agente
fareja muito dinheiro, a reputação de Georg Rainer como jornalista
ficará enormemente projetada. Mas você... Está escrevendo sobre um
amigo. Está tratando de um assunto que sabe vem atormentando o
homem ao longo da História. Não pode deixar que o tratem como um
astro de cinema, da noite para o dia. Você está com o trunfo: os
documentos. Não os entregue a ninguém, enquanto não atenderem a
todos os termos de que precisa para proteger-se e a Jean Marie.
Mais tarde, aninhada nos braços dele, na grande cama barroca, Lotte
murmurou, sonolenta:
— É realmente irônico. Apesar de todo o seu ceticismo, você acabou
dando a Jean Marie exatamente o que ele pediu no início. Porque é
amigo dele, não pode deixar de conceder-lhe um tratamento simpático.
E porque você é um estudioso de reputação internacional, seus
comentários vão protegê-lo dos fantoches. Se Anneliese Meissner
estiver disposta a colaborar com você na publicação, ela poderá ser pelo
menos clinicamente honesta. Em tudo e por tudo, meu amor, está
pagando muito bem nossas dívidas com Jean Marie... Por falar nisso,
comprei hoje um presente para Herman e Hilde. Foi um pouco caro,
mas eu tinha certeza de que você não se importaria. Eles têm sido muito
generosos conosco.
— Qual é o presente, liebchen?
— Uma peça do velho Capo di Monte, Cupido e Psique. O vendedor
disse que era muito raro. Eu lhe mostrarei de manhã. Espero que eles
gostem.
— Tenho certeza de que gostarão.
Mendelius sentia-se grato pela conversa inconseqüente.

128
— Ah, sim, eu já me ia esquecendo de contar. Katrin mandou-nos um
cartão-postal de Paris. Não diz muita coisa, apenas: "O amor é
maravilhoso. Obrigado aos dois, de nós dois." Há também uma carta
comprida e algumas fotografias a cores de Johann.
— Essa é uma surpresa e tanto. Era de se imaginar que Johann é que
enviasse o cartão-postal.
— Tem razão. Engraçado, não é? Ele se mostra bastante lírico em
relação a suas férias. Só que não foram muito longe... nem mesmo
chegaram à Áustria. Ele e o amigo descobriram um pequeno vale no
alto dos Alpes Bávaros. Tem um lago e umas poucas cabanas em
ruínas... sem qualquer pessoa por muitos quilômetros ao redor. Estão
acampados lá desde então, só descendo à aldeia para buscar
suprimentos.
— Parece maravilhoso. Eu não me incomodaria de trocar de lugar
com ele. Não quero tornar a ver Roma por muito e muito tempo.
Escreverei a Jean Marie assim que voltarmos a Tübingen... Por falar
nisso, devemos fazer alguma coisa por Francone. Acho que um
presente em dinheiro seria o melhor. Não creio que ele ganhe muito
bem. Lembre-se disso, está bem, liebchen?
— Está bem. Feche os olhos agora e tente dormir.
— Vou acabar dormindo daqui a pouco. Ah, sim, tem outra coisa.
Preciso mandar um bilhete de agradecimento ao Cardeal Drexel pelo
uso do carro e de Francone.
— Pode deixar que o lembrarei... E agora trate de dormir. Parecia
completamente esgotado esta noite. E quero que continue comigo por
muito mais tempo.
— Estou bem, liebchen. Juro que estou bem. Não precisa preocupar-
se comigo.
— Mas me preocupo e não posso evitar. Carl, se Jean Marie está
certo, se vai mesmo haver uma última grande guerra, o que faremos? O
que será das crianças? Não estou sendo tola. Quero apenas saber o que
você pensa.
Não havia a menor possibilidade de suavizar a resposta e Mendelius
sabia disso. Ele se soergueu na cama, apoiado no cotovelo, olhou para a
mulher, contente pela escuridão, que ocultava a angústia em seus olhos.
— Desta vez, meu amor, não haverá bandeiras e trombetas. A
campanha será breve e terrível. Depois, ninguém se vai importar com
os lugares em que antigamente existiam fronteiras. Se sobrevivermos,
tentaremos manter-nos unidos, como uma família. Mas deve lembrar-se

129
de que não podemos determinar o que nossos filhos irão fazer. Se
ficarmos separados deles, vamos reunir algumas boas almas e fazermos
o que for possível para resistir aos assassinos nas ruas. Isso é tudo o que
posso dizer-lhe.
— É tão estranho! — Lotte estendeu a mão e afagou o rosto do
marido. — Depois que conversamos sobre isso pela primeira vez, antes
de viajarmos, passei a ficar com medo durante todo o tempo. Sentia
vontade às vezes de sentar-me num canto e chorar, sem motivo algum.
Quando você foi a Monte Cassino, peguei aquela peça de cerâmica que
o senador lhe deu e fiquei contemplando-a. Reconheci o nome que
estava escrito. Lembrei como a sorte era tirada em Masada, para
determinar quem morria e quem desempenharia o ato de execução. E,
de repente, senti-me muito calma... e de certa forma afortunada.
Compreendi que a pessoa que se apega muito firmemente a alguma
coisa, até mesmo à vida, acaba tornando-se uma prisioneira. Como
pode perceber, você também não precisa preocupar-se comigo... E
agora dê-me um beijo de boa-noite e vamos dormir.
Estendido na cama, acordado, durante as horas frias e silenciosas da
madrugada, Mendelius ficou pensando na mudança que se processara
na mulher: a impressão de confiança renovada, a curiosa serenidade
com que ela parecia aceitar uma perspectiva terrível. Será que Aharon
Ezra legara uma derradeira coragem mágica ao fragmento de cerâmica
que tinha o seu nome? Ou seria talvez uma pequena aragem de "raça
soprando do deserto, onde Jean Marie Barette comungara com o
Criador?

130
CAPÍTULO 6

Era bom estar em casa. Nos campos, a colheita já estava guardada em


segurança, enquanto os melros bicavam contentes o restolho. O Neckar
fluía prateado sob um céu de verão. O tráfego na cidade era
relativamente escasso, porque muitas pessoas ainda não haviam voltado
de suas férias ao sol. As salas e claustros da universidade estavam
quase vazios. Os raros passos de um zelador ou colega ressoavam no
silêncio. Era possível acreditar, contanto que não se lessem os jornais e
se mantivessem o rádio e a televisão desligados, que nada jamais
mudaria naquele lugar remoto, que os antigos Duques de Württemberg
dormiriam em paz para sempre sob os chãos de pedra da Stiftskirche.
Mas a paz era uma ilusão, como o cenário pintado de uma pastoral.
De Pilsen a Rostock, os Exércitos do Pacto de Varsóvia estavam
preparados, as tropas de choque e as unidades de tanque na vanguarda,
tendo por trás os lançadores de foguetes com ogivas atômicas táticas.
Diante deles, estavam as minguadas forças da OTAN, preparadas para
um recuo sob a primeira investida, confiantes, mas não muito, que suas
próprias ogivas táticas conteriam o avanço, até que os grandes
bombardeiros viessem das Ilhas Britânicas e os IBMs fossem lançados
de seus silos no território continental dos Estados Unidos.
Ainda não havia mobilização, convocação das reservas, porque a
crise não se desenvolvera ao ponto em que os governos democráticos
pudessem contar com suas populações deprimidas e apreensivas para
atender a um chamado às armas ou reagir à retórica da máquina de
propaganda. A indústria alemã ainda dependia de trabalhadores de
outros países, privados de privilégios e cidadania, dos quais
dificilmente se poderia esperar lealdade a uma causa perdida. No outro
lado do mundo, um novo eixo se formara: o Japão industrial estava
instalando fábricas e técnicos na China, em troca do petróleo dos
campos do Norte e dos novos poços nas Spratleys. O Islã estava
fervilhando, do Marrocos aos altos desfiladeiros do Afeganistão. A
África do Sul era um campo armado, cercado por repúblicas negras...
Nenhum líder, junta ou assembléia parlamentar podia abranger ou
controlar a complexa geopolítica de um mundo atormentado pelo

131
esgotamento e o aviltamento de todas as moedas usadas no intercâmbio
humano. A razão ficava abalada sob a barragem de contradições. A
vontade coletiva parecia paralisada numa síncope de impotência.
Depois do alívio inicial de voltar para casa, Carl Mendelius
descobriu-se tentado ao mesmo desespero. Quem ouviria uma pequena
voz em meio à babel de gritos de milhões? Qual era o sentido de
propagar idéias que imediatamente seriam dissolvidas no turbilhão? De
que adiantaria denunciar um passado que em breve seria tão irrelevante
quanto os animais mitológicos dos homens das cavernas?
Ele compreendia perfeitamente que essa era a síndrome que produzia
espiões, desertores, fanáticos e destruidores profissionais. A sociedade
é um cortiço fétido, vamos explodi-la! O Parlamento é covil de imbecis
e hipócritas; destruam toda essa ralé nojenta! Deus está morto, vamos
recuperar Baal e Astarote, reviver a Feiticeira de Endor, fazer os
encantamentos de que precisamos.
O melhor remédio era a visão de Lotte, ativa e animada, tirando a
poeira, polindo, conversando com as amigas pelo telefone, tricotando
um novo suéter para Katrin. Ele não tinha o direito de perturbá-la com
seus devaneios sombrios. Assim, retirou-se para o seu gabinete e
concentrou-se na pilha de trabalho que se acumulara durante a sua
ausência.
Havia uma pilha de livros, que lhe pediam para ler e recomendar.
Havia trabalhos de estudantes para avaliar, revisões a serem feitas nos
roteiros de suas aulas, as inevitáveis contas a pagar.
Havia um bilhete do reitor da universidade, convidando-o a um
encontro informal com alguns colegas sêniores na manhã de terça-feira.
As "reuniões informais" do reitor eram bastantes famosas. Visavam a
esclarecer quaisquer problemas, antes de serem levados à reunião plena
do corpo docente, em meados de agosto. Visavam também a persuadir
os crédulos de que eram membros privilegiados de um círculo interno...
Mendelius não sentia muita simpatia pelo reitor, mas não podia deixar
de conceder-lhe uma admiração relutante por sua habilidade nas
intrigas acadêmicas.
A carta que abriu a seguir era um comunicado do Bundeskrimina-
lamt, o Departamento Criminal Federal, sediado em Wiesbaden.

"Fomos informados por nossos colegas italianos de que, em


conseqüência de recentes incidentes em Roma, você pode tornar-se o
alvo de um atentado, por parte de agentes terroristas estrangeiros ou de
grupos locais com que mantêm ligações.

132
Por isso, nós o aconselhamos a adotar as precauções descritas no
folheto em anexo, que distribuímos às autoridades do Governo e altos
executivos da indústria. Além disso, aconselhamos também a manter
uma vigilância especial nos recintos da universidade, onde ativistas
políticos podem facilmente se ocultar, numa grande concentração de
estudantes.
Caso observe qualquer atividade suspeita, na sua vizinhança ou na
universidade, entre em contato, por favor, com o Landeskriminalamt
em Tübingen, imediatamente. Eles já foram devidamente informados
de sua situação."

Mendelius leu o folheto cuidadosamente. Não dizia coisa alguma que


já não soubesse. Mas o parágrafo final era um lembrete assustador de
que a violência era tão contagiosa quanto a Morte Negra:

"Essas precauções devem ser rigorosamente observadas, não apenas


pela pessoa propriamente dita, mas também por todos os membros de
sua família. Eles também estão sob ameaça, porque o alvo é vulnerável
por intermédio deles. Uma vigilância comum e conjunta reduzirá os
riscos."

Havia uma brutal ironia no fato de que um ato de misericórdia numa


rua romana pudesse expor toda uma família a violenta invasão, numa
pequena cidade provinciana da Alemanha. Havia um corolário ainda
mais sombrio: que um tiro disparado no Rio Amur, na China, pudesse
mergulhar o planeta inteiro em guerra.
Enquanto isso, havia pensamentos mais agradáveis a distraí-lo. Os
evangélicos lhe haviam escrito uma carta conjunta, apresentando seus
agradecimentos pela "franqueza na discussão e a afirmação enfática da
caridade cristã como o elemento de união em nossas vidas
diversificadas". Havia também uma segunda carta de Johann,
endereçada a ele pessoalmente.

"Antes de partir em férias, eu estava numa depressão profunda. Sua


gentileza diante do meu problema religioso ajudou bastante. Mas eu
não podia explicar o resto. Estava preocupado demais com minha
carreira. Não podia ver qualquer sentido no que estava fazendo. Não
queria ingressar em alguma grande companhia, planejando a economia
de um mundo que pode explodir a qualquer instante. Estava com receio
de ser convocado para o serviço militar numa guerra que nada
produziria além do desastre universal... Meu amigo Fritz sentia-se

133
exatamente igual. Estávamos revoltados contra você e sua geração,
porque tinham um passado para contemplar, enquanto nós tínhamos
apenas um ponto de interrogação à nossa frente... E foi então que
descobrimos este lugar, Fritz, eu e duas moças americanas que
conhecemos numa Bierkeller em Munique.
É um vale pequeno, para o qual só há acesso através de uma trilha a
pé. Está cercado por altos penhascos, cobertos por pinheiros. Há um
antigo pavilhão de caça e umas poucas cabanas agrupadas em torno de
um lago, cercado por campinas viçosas. Há veados no bosque e o lago
está cheio de peixes. Há um túnel de uma velha mina, que entra fundo
pela montanha...
Fritz, que é um arqueólogo amador, diz que a mina foi aberta na
Idade Média para extração de jaspe vermelho. Encontramos
ferramentas quebradas e um gibão de couro, além de uma caneca de
pewter e um facão de caça enferrujado.
Na última vez em que descemos à aldeia, fiz algumas indagações e
descobri que o vale é propriedade particular, pertencente a uma dama
muito idosa, a Grafin von Eckstein. O marido dela costumava usar o
lugar como uma reserva de caça. Descobrimos que ela vivia em
Tegernsee e fomos procurá-la. É uma velha muito empertigada. Depois
da surpresa inicial pela súbita invasão de quatro jovens que nunca vira
antes, ela serviu-nos chá inglês e bolo, disse que se sentia feliz por
estarmos desfrutando do lugar.
De repente, num impulso incontrolável, perguntei se ela estaria
disposta a vender a propriedade. Ela perguntou para quê. Respondi que
seria um lugar maravilhoso para estudantes como nós passarem as
férias. No início, era apenas um tema de conversa. Mas ela encarou o
assunto muito a sério.
Ao final, ela acabou estabelecendo um preço: um quarto de milhão de
marcos. Disse-lhe que não havia a menor possibilidade de levantarmos
tanto dinheiro. Ela disse então que, se estávamos mesmo querendo,
poderia arrendar-nos a propriedade. Respondi que pensaríamos a
respeito e voltaríamos a procurá-la.
Eu adoraria poder ficar com o vale. É um lugar sossegado, longe da
turbulência dos tempos atuais. E poderia se tornar auto-suficiente. É
uma das coisas sobre as quais muito conversamos na faculdade: a
economia limitada, auto-suficiente, na qual se possa preservar uma
qualidade de vida. Quando voltarmos, eu gostaria de conversar com
você a respeito, para saber o que pensa.
Passo as noites tentando formular um plano, à luz do lampião.
Descubro que é um exercício muito mais satisfatório do que os

134
problemas monetários da comunidade européia ou as relações entre os
produtores de petróleo, as economias industriais e as nações agrícolas...
De certa forma, como diz Fritz, temos de reduzir as coisas de volta a
uma escala humana, caso contrário todos acabaremos enlouquecendo
ou nos tornaremos robôs indiferentes num sistema que nunca
poderemos controlar... Sei que me estou precipitando de uma coisa para
outra, mas esta é a primeira vez em que me sinto livre para abrir-me
com o pai que amo profundamente. É uma sensação extremamente
agradável."

Mais tarde, ao jantar, Mendelius leu a carta para Lotte. Ela sorriu e
acenou com a cabeça em aprovação.
— Isso é ótimo! Ele está saindo finalmente da floresta escura. Não é
fácil ser jovem atualmente. Eu encorajaria a idéia, Carl, mesmo que
desse em nada. Não podemos dispor de tanto dinheiro assim, mas de
qualquer forma...
— Podemos dar um jeito — disse Mendelius, pensativo. — Talvez
seja possível. Tenho royalties vultosos a receber em setembro e assim
que o novo livro for entregue... Além do mais, Johann não é o único
que tem um sonho pessoal.
Lotte lançou-lhe um olhar de censura.
— Será que não se importaria de partilhar o seu sonho com sua
mulher?
— Calma, calma, liebchen! — Mendelius soltou uma risada. — Sabe
que detesto falar das coisas enquanto não tiver definido tudo na cabeça.
Este sonho está sendo considerado há muito tempo. O que acontece
com os professores idosos quando deixam a cátedra? Sei que posso
continuar a escrever. Mas gostaria também de continuar a ensinar, com
grupos pequenos e selecionados de estudantes adiantados. Tenho
pensado em fundar uma academia particular, oferecendo cursos anuais
específicos a Pós-graduados. Os músicos estão sempre fazendo isso,
violinistas, compositores, maestros... Um lugar como o que Johann
descreveu poderia ser o ideal.
— Poderia. — Lotte estava em dúvida. — Não me entenda mal,
Carl. Adoro a sua idéia, mas seria um erro misturá-la com o projeto de
Johann. Mostre-lhe que está interessando, mas não se intrometa. Deixe-
o seguir a sua própria estrela.
— Claro que você está certa. — Mendelius inclinou-se sobre a mesa
e beijou-a no rosto. — Não se preocupe. Não vou intrometer-me. Além
do mais, temos outro problema a enfrentar.

135
Mendelius falou da carta que recebera da polícia em Wiesbaden.
Lotte franziu o rosto, soltou um suspiro contrafeito.
— Por quanto tempo teremos de viver assim, sempre olhando para
trás?
— Só Deus sabe, liebchen. Mas não podemos entrar em pânico.
Temos de transformar as precauções numa rotina... como observar os
sinais de trânsito, trancar a casa à noite e guiar dentro dos limites de
velocidade. Depois de algum tempo, a coisa se tornará automática. —
Ele mudou de assunto abruptamente: — Georg Rainer telefonou.
Chegará ao final da tarde de quarta-feira. Lars Larsen chega pela manhã
de Frankfurt. Isso nos dará a possibilidade de conversar antes da
chegada de Rainer.
— Ótimo! — Lotte assentiu, numa vigorosa aprovação. — Deve
cuidar para que os termos estejam bem definidos, antes de se
aprofundar no trabalho com Rainer.
— É o que farei. Está prometido. Precisa de alguma ajuda extra na
casa?
— Já providenciei. Gudrun Schild virá ajudar-me todos os dias.
— Ótimo... O que será que o nosso caro reitor está planejando para a
sua reunião de terça-feira?
— Ele me preocupa. — Lotte estava tensa. — É um conspirador. Faz
com que a pessoa pense que está tudo muito bem, que vai conseguir
tudo o que quer. Mas o que realmente acaba tendo...
— Sei o que se acaba tendo, liebchen — disse Mendelius, sorrindo.
— O jeito é nunca se deixar levar.
A noção de uma reunião informal para o reitor era estritamente
antiquada. Cada colega era recebido com um firme aperto de mão, uma
indagação gentil sobre a mulher e a família, ganhava uma xícara de café
e uma fatia de bolo de maçã, feito pela mulher do reitor e servido por
uma criada de avental engomado.
A cerimônia era um ardil cuidadoso. Com uma xícara de café numa
das mãos e um prato na outra, os convidados tinham de sentar-se. As
cadeiras, cada uma com uma mesinha ao lado, estavam dispostas em
semicírculo diante da mesa do reitor, o reitor não se sentava.
Empoleirava-se na beira da mesa, numa atitude projetada para sugerir
informalismo, intimidade e franqueza entre os colegas. O fato de falar
um metro acima das cabeças deles e ter as mãos livres para gesticular
era apenas um lembrete gentil de sua superioridade. A fala era
insinuante e geralmente banal.

136
— Preciso do conselho competente de vocês. As... hã...
responsabilidades do meu cargo impossibilitam-me o contato cotidiano
que eu gostaria de ter com os professores mais novos e os estudantes.
Por isso, peço-lhes que os interpretem para mim e vice-versa...
Brandt, de Língua Latina, inclinou-se para Mendelius e sussurrou:
— Ele é o fons et origo... e nós somos meros condutos.
Mendelius escondeu um sorriso por trás do guardanapo de papel. O
reitor continuou:
— Na semana passada, fui convidado, juntamente com os dirigentes
de outras universidades, para uma reunião em Bonn com o Ministro da
Educação e o Ministro do Interior, o objetivo da reunião era discutir
as... hã... implicações acadêmicas da atual crise internacional...
Ele fez uma pausa, deixando-os absorver a solenidade do encontro
em Bonn e quais poderiam ser as... hã... implicações acadêmicas..Eram
espantosas o bastante para dissipar qualquer tédio na audiência.
— Em setembro deste ano, o Bundestag vai autorizar a plena
mobilização tanto de homens como de mulheres para o serviço militar.
Pediram-nos para preparar recomendações sobre a isenção de
determinadas categorias de estudantes e fornecer listas dos que
possuem qualificações especializadas em física, química, engenharia,
medicina e disciplinas relacionadas. Pediram-nos também para
determinar como os cursos nessas matérias podem ser acelerados, a fim
de atender às necessidades da indústria e das Forças Armadas. Temos
também de enfrentar o problema da redução do número de estudantes e
do corpo docente auxiliar em decorrência da convocação.
Houve uma reação de surpresa na audiência, o reitor impôs silêncio
com um gesto.
— Por favor, senhoras e senhores, deixem-me acabar! Haverá tempo
para discussões depois. Não temos opção neste caso. Como todo
mundo, teremos de cumprir as determinações. Mas há uma questão
mais controvertida...
O reitor fez outra pausa. Desta vez, estava visivelmente embaraçado,
procurando pelas palavras certas:
— O problema foi levantado pelo Ministro do Interior, creio que
estimulado por pressão de nossos aliados da OTAN. É a questão da
segurança interna, da proteção contra a subversão, espionagem e... hã...
as atividades de elementos dissidentes no corpo estudantil...
A única reação foi um silêncio hostil. Ele respirou fundo e apressou-
se em continuar:
— Em suma, fomos solicitados a cooperar com os serviços de
segurança, fornecendo-lhes cópias de dossiês de estudantes e quaisquer

137
outras informações que nos podem ser pedidas eventualmente, no
interesse da segurança pública.
— Não!
O grito ressoou na sala como uma explosão. Alguém deixou cair uma
xícara de café, que se espatifou no chão.
— Por favor! Por favor! — O reitor empertigou-se, levantando as
mãos num gesto suplicante. — Transmiti o pedido do Ministro. O
assunto está agora aberto a discussões.
Dahlmeyer, de Física Experimental, foi o primeiro a levantar-se, um
homem grande e cabeludo, com um queixo saliente. Ele desafiou o
reitor asperamente:
— Creio que temos o direito de saber, senhor, qual a resposta que
deu ao Ministro.
Houve um coro de aprovação. O reitor hesitou, apreensivo.
— Disse ao Ministro que estamos todos conscientes da necessidade
de... hã... segurança apropriada em tempos de crise, mas que estamos
também... hã... pelo menos igualmente preocupados em preservar...
hã... os princípios da liberdade acadêmica.
— Oh, Deus! — explodiu Dahlmeyer.
Brandt soltou um resmungo audível. Mendelius levantou-se. Estava
pálido de raiva, mas falou formalmente, controlado:
— Gostaria de fazer uma declaração pessoal, senhor. Tenho uma
cátedra nesta universidade. Mas não vou admitir qualquer encargo de
investigar as vidas particulares de meus alunos. Prefiro pedir demissão
a aceitar tal imposição.
— Eu gostaria de ressaltar, Professor — disse o reitor, friamente —
que transmiti um pedido e não uma ordem ministerial, o que seria
ilegal, pelo menos nas circunstâncias atuais. Contudo, deve
compreender que a situação pode mudar radicalmente, em condições de
emergência nacional.
— Em outras palavras, temos uma ameaça, além de um pedido —
disse Hellman, de Química Orgânica, levantando-se.
— Estamos todos sob ameaça, Prof. Hellman... a ameaça de conflito
armado, quando as liberdades civis devem inevitavelmente ser
reduzidas, no interesse nacional.
— Há uma outra ameaça, que também deve ser levada em
consideração — disse Anneliese Meissner. — É a revolta estudantil,
expressão de uma total perda de confiança nos princípios acadêmicos.
Gostaria de lembrar-lhe o que aconteceu em nossas universidades nos
anos 30 e 40, quando os nazistas estavam dirigindo o país... Quer que
tudo aquilo se repita?

138
— Acha que não vai repetir-se quando os russos estiverem aqui?
— Ah, então já se comprometeu!
— Ainda não. — O reitor estava agora furioso. — Disse ao Ministro
que transmitiria o pedido aos meus professores e lhes comunicaria as
suas reações.
— O que nos leva a todos aos bancos de memória dos computadores
dos serviços de segurança. Pois que seja! Estou com Mendelius. Se
quiserem que eu espione os meus alunos, prefiro renunciar ao cargo.
— Com todo respeito ao reitor e a meus estimados colegas — um
homenzinho obviamente retraído levantou-se. Era Kollwitz, que
ensinava Medicina Legal — sugiro que a situação pode ser resolvida
com a maior simplicidade. O reitor comunica que os professores
sêniores são unanimemente contra a medida proposta. E não precisa
citar nomes.
— É uma boa idéia — disse Brandt. — Se o reitor assumir uma
posição firme ao nosso lado, nossa situação será bem forte. E outras
universidades poderão seguir o exemplo.
— Obrigado, senhoras e senhores. — O reitor estava obviamente
aliviado. — Como sempre, foram extremamente atenciosos e
prestativos. Pensarei um pouco sobre... hã... uma resposta apropriada ao
Ministro.
Depois disso, ninguém tinha mais nada a dizer e o reitor estava
ansioso em livrar-se deles. Deixaram as xícaras com restos de café e
pedaços do bolo de maçã espalhados ao sol. Anneliese Meissner
aproximou-se de Mendelius. Estava com a maior raiva.
— Deus Todo-Poderoso! Mas que velho embusteiro! Uma resposta
apropriada ao Ministro! Essa não!
— Puseram as bolas dele num quebra-nozes — comentou Mendelius,
com um sorriso amargo. — Ele está a apenas dois anos da aposentado-
ria. Não se pode culpá-lo por tentar chegar a um acordo... De qualquer
forma, ele tem todos os professores unidos por trás dele. Talvez isso lhe
dê alguma coragem.
— Unidos? — Anneliese soltou uma risada desdenhosa. — Como
pode ser tão crédulo assim, Mendelius? Aquilo era apenas a prática do
coro... todos nós, almas nobres, entoando "Nosso Deus É Uma
Fortaleza Poderosa"! Quantos você acha que vão resistir quando forem
realmente pressionados pela turma da segurança? "Não é verdade, Prof.
Brandt, que anda trepando com a pequena Mary Toller?... E você,
Dahlmeyer? Sua mulher sabe daquelas aventuras aos sábados num
motel de Frankfurt? ... E você, Heinzl, Willi ou Traudl, se não quiser

139
cooperar, vamos arrumar-lhe um ótimo trabalho... como cientista
encarregado de estudar as condições sanitárias das latrinas ou atendente
de banho de um hospício". Não se engane, meu amigo. Se
conseguirmos três em cada 10 professores, na contagem final, teremos
muita sorte.
— Está esquecendo os estudantes. No momento em que souberem
disso, eles ficarão em pé de guerra.
— Alguns ficarão mesmo. Mas quantos continuarão a fincar pé
depois da primeira carga de cassetetes, gás lacrimogêneo e mangueiras?
Não serão muitos, Carl. E ficarão ainda menos quando a polícia
começar a disparar munição de verdade.
— Eles nunca farão isso!
— O que poderiam perder? A partir do momento em que a máquina
de propaganda começa a berrar, quem haverá de ouvir os tiros no beco?
Além do mais, basta uma bombinha atômica em Tübingen e o problema
estará resolvido... Quer almoçar comigo? Se eu for comer sozinha,
provavelmente tomarei um porre.
— E não podemos permitir que isso aconteça, não é mesmo? —
Mendelius passou o braço pela cintura dela e puxou o corpo imenso
para mais perto de si. — Só há um consolo, menina: todas as
universidades do mundo provavelmente estão enfrentando a mesma
pressão neste momento.
— Sei disso! Filisteus do mundo, uni-vos! Os intelectuais serão
finalmente esmagados! Santo Deus, Carl, o seu Jean Marie não estava
tão errado assim!
— Já escutou as gravações que lhe mandei?
— E muitas vezes. Também andei lendo uma porção de coisas.
— E quais foram as conclusões a que chegou?
— Não vou dizer absolutamente nada enquanto não tiver tomado um
trago dos grandes. Sou uma cadela, Carl, velha, cínica e feia demais
para acreditar num Deus que faz monstros como eu... Mas agora estou
tão apavorada que até me dá vontade de chorar.
— Onde você quer comer?
— Em qualquer lugar. Na primeira Bierkeller que encontrarmos.
Salsicha e chucrute, cerveja e um schnapps duplo! Vamos juntar-nos ao
feliz proletariado!
Mendelius nunca a vira tão transtornada. Ela comeu vorazmente e
bebeu com uma determinação desesperada. Mas continuava sóbria
mesmo depois de um litro de cerveja e dois imensos schnapps. Chamou
a garçonete para tirar os pratos e trazer outra dose de schnapps, só
então anunciando que estava pronta para uma discussão racional.

140
— Primeiro, Carl, vamos falar sobre você...
— Falar o que a meu respeito?
— Eu o compreendo muito melhor agora. E gosto ainda mais de
você.
— Obrigado. — Mendelius sorriu. — E eu também a amo!
— Não queira divertir-se à minha custa. Não estou com ânimo para
isso. Aquelas gravações deixaram-me abalada. Você parecia por demais
desesperado, tentando chegar a um acordo com o impossível.
— O que me diz de Jean Marie?
— Isso foi outra surpresa. O retrato que fez dele era vivido demais
para ser falso. Tive de aceitar que era autêntico... E o vi. E o senti.
— E como o julgou?
— Ele é um homem muito afortunado.
— Afortunado?
— Isso mesmo. Passei metade da minha vida lidando com mentes
doentias. Deixando de lado os problemas orgânicos, a maioria dos
casos se resume a uma fragmentação da personalidade, uma perda de
identidade. A vida, tanto interior como exterior, é um quebra-cabeças,
com todas as peças espalhadas sobre a mesa... O clínico passa o tempo
tentando criar uma condição de auto-reconhecimento... um estado em
que até a confusão faça sentido. O paciente precisa compreender que o
quebra-cabeças visa a fazê-lo trabalhar no esforço de reunir as peças...
O que quer que tenha acontecido com o seu Jean Marie, teve justamente
esse efeito salvador. Encontrei sentido em tudo, conflito, fracasso, sua
rejeição, até mesmo as trevas dele atualmente... Ah, se eu pudesse fazer
isso com meus pacientes! Seria a maior clínica do mundo. E, se pudesse
fazer comigo mesma, seria muito mais feliz do que sou agora.
— Eu diria que você sempre foi uma personalidade das mais
integradas e equilibradas.
— É mesmo, Carl? Pois olhe para mim agora... meio de porre com
cerveja e schnapps porque estou apavorada com o amanhã e porque
odeio a rã gorda que minha mãe pôs no mundo! Aprendi a viver
comigo, mas não a gostar de mim... jamais!
— Tenho o maior orgulho de conhecê-la, Anneliese — disse Carl
Mendelius, gentilmente. — Você é uma amiga querida e uma grande
mulher.
— Obrigada! — Ela tornou a se controlar, num instante. — Eu lhe
falei que andei lendo muito: religião comparativa, a base da experiência
mística em diversos cultos. Ainda é uma terra estranha para mim, mas
pelo menos a idéia de salvação começa a fazer sentido. Todos

141
experimentamos o desespero, sofrimento, medo, injustiça, confusão,
morte. Lutamos para permanecer inteiros através da experiência.
Mesmo quando fracassamos, tentamos salvar os nossos egos dos
destroços. Não podemos fazê-lo sozinhos. Precisamos de apoio.
Precisamos de mais... um modelo ou exemplar que nos mostre como
parece um ser humano completo... Eis o motivo para a necessidade do
profeta, o Messias, a figura de Cristo. A mesma coisa se aplica a
quaisquer comunidades de crentes. A Igreja... qualquer igreja!... diz: "A
verdade está conosco, a luz está aqui, somos os eleitos. Juntem-se a
nós!" Verdade ou mentira, Professor?
— É verdade. Mas a indagação importante é outra: qual o modelo
que você escolheu e por quê?
— Ainda não sei — respondeu Anneliese Meissner. — Mas sei que a
aceitação final é muito simples, como foi para o seu Jean Marie. O
segredo é que se precisa estar absolutamente desesperado antes de se
chegar à submissão. O paciente que posso ajudar mais depressa é o que
está desesperado e sabe que se encontra doente... o melhor candidato
para os cultos é a pessoa que está perdendo as esperanças.
— O que nos leva ao problema seguinte: — Mendelius estendeu a
mão para segurar a dela. — O que vamos fazer, você e eu, a respeito da
situação na universidade? Se o reitor nos entregar aos políticos, como
provavelmente acontecerá, se metade dos nossos colegas se render aos
caçadores de bruxas, o que faremos?
— Entramos na clandestinidade. — Anneliese Meissner não tinha a
menor dúvida quanto a isso. — E começamos a organizar e preparar-
nos para isso agora.
— Está vendo? — Mendelius soltou uma risadinha e levantou o copo
numa saudação. — Até mesmo você, minha cara, está disposta a
enterrar os pergaminhos sagrados e refugiar-se nas montanhas!
— Não conte com isso, Carl. É apenas conversa de bêbada...
— In vino veritas... — comentou Mendelius, sorrindo.
— Oh, Deus! — Anneliese lançou-lhe um olhar furioso. — Já
tivemos clichês demais por um dia! Vamos dar uma volta. Está
sufocante aqui dentro.

Enquanto voltava a pé para casa, pelas ruas sossegadas da velha


cidade, Mendelius descobriu-se diante de um novo dilema. Num
conflito insensato, uma guerra que seria travada até a extinção, a que
lado pertencia a lealdade de um homem? À terra devastada e árida que
fora outrora o seu lar? Aos homens que promoviam a devastação,

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indiferentes as vítimas que produziam? À nação-estado, que logo se
tornaria tão sem sentido para os vivos quanto para os mortos? À raça,
sangue, tribo, tradição, Gott und Vaterlandl Se não fosse a isso, então a
quê? E quando Carl Mendelius deveria começar a desvencilhar-se do
sistema do qual fora beneficiário por tanto tempo?
Katrin e Johann deveriam ser convocados antes de o ano terminar.
Como ele deveria aconselhá-los a responder? Sim ao imperativo louco
e absurdo? Ou não, não vamos servir, porque não há qualquer outro fim
possível que não a catástrofe total? Novamente, recordações da infância
afloraram para atormentá-lo: os corpos de meninos-soldados pendendo
de postes em Dresden, porque haviam renunciado a uma causa perdida,
nos últimos dias de um déspota louco.
Agora, ele estava realmente preso no circuito fechado do cosmos
predeterminado de Jean Marie. Enquanto ainda se pudesse jogar uma
moeda num cara ou coroa, podia-se viver pelo menos com alguma
esperança. Mas a partir do momento em que descobria que a moeda
tinha duas caras e o Criador não estava oferecendo qualquer
possibilidade, o melhor era escapar do jogo o mais depressa possível...
E então, Herr Professor, o que acha que vai acontecer? Continuidade ou
caos? E se quiser escapar do caos iminente, em que planeta distante e
com que criaturas remanescentes vai construir sua nova Utopia?
Era uma discussão interminável e Mendelius logo se cansou.
Precisava de alguma distração. Assim, entrou numa viela estreita,
empurrou uma porta carcomida e subiu os três lances de escada para o
estúdio de Alvin Dolman, outrora sargento do Exército dos Estados
Unidos no Reno, outrora marido da filha do Bürgermeister, agora um
divorciado feliz e trabalhando como ilustrador para uma editora local.
Era um homem grandalhão e risonho, com mãos imensas e uma perna
aleijada, resultado de um acidente de estrada. Possuía também um olho
atento para gravuras antigas. Mendelius era um dos seus fregueses
regulares, a quem servia vinho do Reno, salsichas bem temperadas e
conselhos gratuitos sobre mulheres, política e o mercado de arte.
— Chegou na hora certa, Professor. Os negócios andam tão ruins que
estou pensando até em entrar no mercado de pornografia... Dê uma
olhada nisto! Encontrei numa loja de quinquilharias de Mannheim...
três desenhos a bico de pena de Julius Schnorr von Carosfeld... Olhe
aqui a assinatura e a data, 1821. Um extraordinário artesão, não é
mesmo? E os modelos também são muito bonitos... O que me diz de
500 marcos pelo lote?
— O que me diz de 300, Alvin? — respondeu Mendelius,
mastigando uma salsicha com a maior satisfação.

143
— Quatrocentos... e é um roubo!
— Trezentos e cinqüenta... afinal, devem ser mesmo falsificadas.
— Está tirando o pão da minha boca, Professor?
— Vou dar um pão de centeio
— Negócio fechado. Vai querer as gravuras emolduradas?
— Ao preço habitual?
— Eu roubaria de um amigo?
— Provavelmente a mulher dele. — Mendelius sorriu. Mas não o
relógio. Como está a vida, Alvin?
— Nada mal, Professor, nada mal! — Ele serviu mais vinho. —
Como está a família?
— Tudo bem.
— Aquele rapaz... o namorado de sua filha... ele tem tudo para ser
um excelente pintor. Andei dando-lhe algumas aulas de gravação. Ele
aprende depressa... Mas é uma pena o que vai acontecer com esses
garotos.
— O que vai acontecer, Alvin?
— Sei apenas o que ouço, Professor. Mantenho-me em contato com
os nossos rapazes lá em Frankfurt, vendo-lhes uma gravura de vez em
quando, sempre que estão bêbados o bastante para comprarem. Fala-se
muito em guerra. Estão despachando para cá novas tropas e novos
equipamentos. E lá em Detroit estão convertendo as fábricas para a
produção de veículos militares... Estou pensando até em levantar
acampamento e voltar para casa. É muito agradável ser artista-residente
numa pequena cidade universitária, mas quem vai querer levar um tiro
no rabo só por causa das Frauleins? Se alguma coisa acontecer,
Tübingen será um campo de batalha em uma semana. Mas acho que a
mesma coisa vai acontecer com Detroit... Sirva-se de mais vinho,
Professor. Quero mostrar-lhe uma coisa.
Ele vasculhou um armário e voltou com um pequeno embrulho
quadrado de oleado. Desembrulhou com todo cuidado, mostrando um
pequeno retrato dúplex de um nobre do século XVI e sua mulher.
Colocou num cavalete, ajustando a iluminação.
— E então, Professor, o que me diz?
— Parece um Cranach.
— E é mesmo. Lucas Cranach, o Velho. Ele pintou esse quadro em
Wittenberg, em 1508.
— E onde diabo o encontrou?
Dolman sorriu, encostando a ponta do polegar no nariz.
— Pelo faro, Professor... no quarto de uma mulher, se está mesmo

144
querendo saber. Ela ficou tão feliz com a minha companhia que deu-me
o quadro. Limpei-o com cuidado e... presto!... uma apólice de seguro
sob encomenda. Mas não há a menor possibilidade de vendê-lo na
Alemanha. Vou levá-lo comigo para os Estados Unidos.
— E o que me diz da dama? Ela não vai partilhar os lucros?
— Claro que não. Ela é bonita, mas estúpida. E o marido tem
dinheiro que não acaba mais. Além do mais, foi um negócio justo. Eu a
deixei muito feliz.
— Você é um patife, Alvin.
Mendelius não pôde deixar de rir.
— Uma coisa horrível... Mas com a inflação do jeito que está, uma
pensão militar mal dá para comprar pretzels.
— Se a situação se agravar ainda mais, talvez o chamem de volta ao
Exército.
— Não há a menor possibilidade, Professor! — Dolman começou a
embrulhar novamente seu tesouro. — Estou de fora e vou continuar de
fora. Da próxima vez, não será uma guerra, mas apenas uma grande
tempestade de fogo. E depois... bingo!... estarei novamente pintando
búfalos nas paredes de uma caverna!

"O medo está por toda parte, Jean'"... Mendelius estava em sua
escrivaninha, enquanto Lotte, sentada em silêncio num canto, tricotava,
escutando um concerto de Brahms, transmitido de Berlim. "É como
uma névoa escura a se erguer dos pântanos, espalhando-se pelas ruas,
envolvendo todas as habitações. Impregna até mesmo a conversa mais
amena. Entra nas previsões domésticas mais simples.
Nossos professores receberam a solicitação de comunicar aos
serviços de segurança as filiações políticas dos estudantes. Assim, até
mesmo esse relacionamento dos mais elementares está corrompido e
pode ser totalmente destruído. Já avisei que pedirei demissão se a
solicitação se transformar numa ordem. Mas pode perceber como a
corrupção funciona sutilmente: se eu conto com a polícia para a minha
proteção pessoal, como posso recusar a colaboração numa emergência
nacional? A resposta é bem clara para mim. Mas será também clara
para poucas outras pessoas, quando os propagandistas levantarem o que
Churchill chamava de 'barragem de mentiras'.
Mas se o medo é uma infecção, o desespero é uma praga. Sua visão
do fim das coisas temporais obceca a todos nós. Mas o resto, o ato
redentor final, a demonstração suprema da justiça e misericórdia
divinas... como se pode expressar tais coisas, em termos que
mantenham viva a esperança humana? O seu cosmos, meu caro amigo,

145
será um lugar terrível sem isso..."

O telefone tocou. Lotte largou o trabalho de tricô para atender. Era


Georg Rainer. Quando Mendelius pegou o fone e disse "alô", Rainer
lançou-se imediatamente num quase monólogo:
— Estou em Zurique. Peguei um avião para cá a fim de poder dar
este telefonema. Não podia confiar nos circuitos italianos. E agora
preste atenção e não faça comentários. Está lembrado de que, em nossa
última conversa, discutimos uma lista?
— Estou, sim.
— Essa lista está à mão?
— Está lá em cima. Espere um instante que vou buscá-la.
Mendelius subiu apressadamente para o seu gabinete, abriu o velho
cofre e retirou a lista que Jean Marie lhe remetera. Tornou a pegar o
fone.
— A lista já está na minha mão.
— Está disposta por países?
— Está.
— Vou mencionar quatro nomes, de quatro países. Quero saber se os
nomes constam de sua lista. Entendido?
— Pode falar.
— União Soviética... Petrov?
— Está.
— Inglaterra... Pearson?
— Está.
— Estados Unidos... Morrow?
— Está.
— França... Duhamel?
— Está.
— Ótimo. Isso significa que meu informante merece toda confiança.
— Está falando em enigmas, Georg.
— Enviei-lhe uma carta da Agência Central dos Correios em
Zurique. Explica todos os enigmas.
— Mas estará aqui na quarta-feira.
— Sei disso. Mas sou um pessimista. Espero pelo melhor e preparo-
me para o pior. Alguém me está seguindo desde sábado. Pia teve a
impressão de reconhecer uma troca de vigia no aeroporto, o que
significa que nos podem ter seguido até Zurique. Assim, vamos tentar
uma pequena ação evasiva, indo por terra e não pelo ar. Pode hospedar
a nós dois? Não poderia deixar Pia sozinha em Roma.
— Mas claro! Tudo isso está parecendo muito sinistro, Georg!

146
— Eu lhe disse que poderia acontecer. Cruze os dedos e acenda uma
vela por nós. Auf wiedersehen.
Mendelius desligou e começou a folhear distraidamente as páginas
datilografadas da lista de Jean Marie. Desde o início que aceitara a
declaração de Anneliese Meissner de que não passava de uma mera
lista de arquivo. Não pensara duas vezes na profundidade e extensão da
amizade entre líderes mundiais. Mas Rainer compreendera a
importância da lista e abrira toda uma nova área de investigação. E
agora estava correndo perigo por causa disso...
Lotte apareceu na porta e perguntou:
— O que Rainer queria?
— Ele foi um tanto enigmático. Queria que eu confirmasse se quatro
nomes constam da lista de Jean Marie. Queria também avisar que está
vindo para Tübingen por terra e trará Pia.
Mendelius já ia dizer que Rainer estava sendo vigiado, mas conteve-
se a tempo, achando melhor não fazê-lo.
— Oh, Deus! — Lotte transformou-se no mesmo instante na dona-
de-casa. — Isso complica tudo. Terei de fazer uma mudança nos
quartos. Acha que poderíamos alojar Lars Larsen aqui em cima, no
estúdio?
— Como achar melhor, liebchen... Tem alguma possibilidade de sair
um café?
— Chocolate — respondeu Lotte, firmemente. — Não quero ver
você se remexendo na cama durante toda a noite.

Ela o beijou e saiu. Mendelius voltou a concentrar-se em sua carta.


Sentiu-se tentado a fazer referência ao telefonema de Rainer e pedir
explicações adicionais sobre o significado da lista. Mas achou melhor
não fazê-lo. Os correios italianos nunca haviam sido seguros e ele não
queria ser específico demais. "E assim me descubro a voltar
constantemente à sua carta e anexos, empenhando-me no problema de
apresentar suas idéias em fórum aberto. Fico imaginando, por exemplo,
como gostaria de que fossem apresentadas às pessoas de sua lista...

Em que termos devemos discutir a Parúsia com uma audiência de


crentes e não-crentes do século XX? Eu me pergunto, meu caro Jean, se
não corrompemos o seu significado, além de qualquer possibilidade de
reconhecimento. Falamos em triunfo, julgamento, 'o Filho do Homem
surgindo nas nuvens do céu, com grande poder e majestade'...

Eu me pergunto se o poder, a majestade e a glória não podem

147
manifestar-se de outra maneira inteiramente diferente da que espera.
Lembro-me de que em sua carta você se referiu a um momento de
imensa agonia, explicando como uma súbita percepção de todas as
coisas... Como Goethe agonizante, ainda clamo por mais luz. Sou um
homem sensual, atormentado por muito saber e pouca compreensão. Ao
final de um dia comprido, sei que me sinto profundamente contente
pelo chocolate quente que Lotte me serve e pelos braços dela a me
envolverem no escuro"...

Lars Larsen, brusco, exuberante e loquaz, chegou uma hora antes do


meio-dia, depois de um vôo noturno de Nova York e uma viagem de
carro vertiginosa desde Frankfurt. Dentro de 15 minutos, ele estava
trancado com Mendelius, discorrendo sobre os fatos da vida no
mercado editorial.

— Está bem, vou representá-lo e a Rainer, mas só depois que tiver


definido um contrato satisfatório entre os dois... e que tem de ser de
pelo menos 60 a 40, em seu favor. E antes de chegarmos sequer a esse
ponto, Rainer tem de revelar os termos de seu acordo com Die Welt. Se
ele é um empregado, puro e simples, o grupo Apringer pode reivindicar
a plena propriedade de tudo com que contribuir para o projeto... Assim,
preciso primeiro de conversar a sós com Rainer. Fique esperando até eu
acabar... E não tente discutir comigo, Carl. Meio a meio não é aceitável.
Você tem de controlar a coisa e não poderá fazê-lo se não contar com a
maioria... Além do mais, os clientes estão querendo comprar é a você.
Já recebi três propostas mundiais para a publicação em capítulos e o
lançamento em livro, com 1 milhão e meio de dólares adiantados... e
tudo isso por seu nome, por sua ligação com Gregório XVII, não por
causa de Rainer! A partir do momento em que eu souber o que você
tem, poderemos provavelmente aumentar o adiantamento para 2
milhões... além de uma série de benefícios subsidiários. Assim, Carl,
trate de entender tudo bem direitinho. Vai transformar Rainer num
homem rico. Não precisa pedir-lhe desculpas pelos termos do
contrato...
— Eu não estava pensando em Rainer. — Mendelius estava
subitamente soturno. — Pensava em mim mesmo. Depois que a história
foi publicada, muitas pessoas vão me querer desacreditar, assim como
desacreditaram Jean Marie. E 2 milhões de dólares podem fazer com
que eu pareça um Judas dos mais caros.

— Se fizer a coisa de graça, então vão pensar que é um schnook.--

148
maluco demais para se acreditar. O dinheiro sempre tem um cheiro
limpo. Mas, se isso o incomoda, converse com seu advogado. Talvez
ele lhe aconselhe a instituir um fundo de assistência às chamadas
mulheres decaídas. Isso não é problema meu. O dinheiro que lhe
consigo garante que os editores providenciem para que tenha muitos
leitores... e isso, no final das contas, é o que está querendo. E agora
pode fazer o favor de mostrar-me os documentos?
Mendelius abriu o velho cofre e tirou o envelope contendo a carta e a
encíclica de Jean Marie. Larsen examinou os documentos e depois
perguntou, bruscamente:
— São genuínos?
— São.
— Pode confirmar a letra?
— Claro... e já confirmei tudo em conversa pessoal com o autor.
— Ótimo. Vou querer um depoimento em cartório sobre isso. E
gostaria também de fotografar alguns trechos específicos... não
necessariamente os mais importantes. Por esse tipo de dinheiro, os
clientes exigem uma proteção absoluta. E a última coisa que haveriam
de querer seria uma confrontação com o Vaticano por acusação de
falsificação.
— Nunca foi tão cuidadoso antes, Lars.
— E estamos apenas no começo, Carl. — Larsen não estava achando
graça. — A partir do momento em que a história for divulgada, seu
passado e presente estarão sendo examinados sob um microscópio. O
mesmo acontecerá com Rainer... e profissionalmente, pelo menos, é
melhor ele estar impecavelmente limpo... E agora você poderia servir-
me outra xícara de café e deixar-me sozinho para estudar direito todo
este material...
Mendelius disse, sorrindo:
— Enquanto estiver fazendo isso, tome algumas anotações sobre as
evidências internas: a caligrafia, o estilo francês requintado, a qualidade
da argumentação e a análise da emoção pessoal.
— Sei de tudo sobre evidência interna — disse Larsen, asperamente.
— Um dos meus primeiros clientes era um mestre dos plagiadores...
Foi processado por 1 milhão de dólares e perdeu. Tive de devolver
minhas comissões... E agora me poderia providenciar o café?
Quando desceu para almoçar, a uma e meia, Larsen era um homem
diferente, abalado e acabrunhado. Comeu distraidamente, enquanto
falava, meio incoerente:
— Geralmente, mantenho-me frio e imparcial quando leio. Não
posso deixar de fazê-lo... Ninguém pode suportar o impacto de todas

149
as personalidades fortes investindo dos originais... Mas aquela carta,
Lotte! Deixou-me em lágrimas. Jamais vou a igrejas, a não ser para
casamentos e funerais. Meu avô por parte de mãe era um antiquado
luterano sueco. Quando eu era pequeno, sentava-me em seu colo e lia
a Bíblia para mim... Lá em cima, foi como se eu o estivesse escutando
novamente...
— Posso entender o que está querendo dizer. — Lotte interveio com
a maior ansiedade. — É por isso que estou insistindo com Carl que o
relato de Jean Marie deve ser apresentado com amor e fidelidade... Não
se pode permitir que ninguém o transforme numa história
sensacionalista e vulgar.
— Como se sente em relação a Georg Rainer?
— Não o conheço muito bem. Ele é simpático e espirituoso. Tenho a
impressão de que é bem versado nas coisas da Itália e do Vaticano.
Contudo, acho que Carl deve ficar com o controle do projeto.
— Vamos esclarecer tudo logo de uma vez. — Mendelius estava
subitamente impaciente e irritado. — Georg Rainer chegará esta tarde,
como nosso convidado. O importante é que nós dois possamos trabalhar
em paz, produtivamente. Não quero que discussões sobre dinheiro
possam estragar esse clima. E também não quero que ele tenha uma
recepção indiferente ou fria.
— Jawohl, Her Professor! — Lotte falou em tom solene, com uma
expressão zombeteira.
— Confie em mim, Carl. — Lars Larsen sorriu. — Sou um excelente
cirurgião. Posso cortar fundo, mas todos os meus pacientes se
recuperam!... E agora quero ocupar o seu telefone por umas duas horas.
Eles estão ansiosos por negócios lá em Nova York... e depois do que
acabei de ler, vamos ter negócios de verdade!
Mais tarde, na cozinha, Lotte soltou uma risadinha sem graça para o
marido.
— Lars é tão engraçado! Assim que ele começa a falar em dinheiro,
dá para sentir a descarga elétrica. Os olhos dele faíscam, quase que se
espera que os cabelos fiquem de pé... Tenho certeza de que ele ficaria
chocado se você lhe dissesse isso, mas Lars é como o homem gordo na
entrada do circo, apregoando o espetáculo, vendendo ingressos para o
Dia do Juízo Final!
A campanha de vendas de Lars Larsen prolongou-se pela tarde
inteira. Às cinco e meia, com o lance chegando a 2 milhões e um
quarto, ele encerrou o pregão. Como explicou a Mendelius, dispunha
agora de uma bela garantia em dinheiro para iniciar as discussões com

150
Georg Rainer. Mas Georg Rainer estava atrasado. Às sete horas, ligou
de uma estalagem à beira da estrada, 30 quilômetros ao sul de
Tübingen. Explicou que haviam sido seguidos ao saírem de Zurique,
que conseguira desvencilhar-se pouco antes do posto da fronteira,
seguindo depois por estradas secundárias da Suábia, a fim de despistar
os seguidores. Ele chegou às oito e meia, em companhia de Pia,
desgrenhado, cansado. Uma hora depois, relaxado com o jantar
suculento de Lotte, ele explicou o melodrama:
— O mais extraordinário na abdicação foi o sigilo com que se
consumou. Ninguém, absolutamente ninguém, estava disposto a falar.
O que levou o pessoal da imprensa a acreditar que Gregório XVII não
apenas fizera inimigos poderosos, mas também alienara a maioria de
seus amigos, dentro e fora do Vaticano. Nós o conhecíamos como você,
Carl, um homem de charme excepcional. O que teria então acontecido
com seus amigos? Foi então que você me falou da lista e achei que
devia ter extrema importância. Falou que a lista estava datilografada.
Portanto, devia ter saído de um arquivo. Perguntei a mim mesmo quem
poderia ter conhecimento do arquivo particular de Gregório XVII. A
resposta era óbvia: o secretário particular dele. Em meus registros, ele
estava indicado como Monsenhor Bernard Logue, que apesar do nome
irlandês é francês, descendente de um dos homens que foram para a
França a fim de lutar contra os ingleses. Indaguei o que lhe acontecera
depois da abdicação...
— Foi uma boa idéia sua, Georg. Logue foi o homem que denunciou
a encíclica à cúria e assim desencadeou todo o processo. Nunca pensei
em indagar como ele foi recompensado.
— Aparentemente não muito bem. Ele foi transferido do serviço
papal para a Secretaria de Comunicações Públicas. Fui informado de
que se tratava de um cara meio infeliz, talvez disposto a manifestar seus
ressentimentos... Muito ao contrário! Logue era o perfeito funcionário
clerical, meticuloso, condescendente, absolutamente convencido de que
o dedo de Deus guia todos os escribas da Cidade do Vaticano...
Obviamente, ele não ia revelar-me segredos sem mais aquela. Assim,
disse-lhe que estava preparando um relato sobre os últimos dias de
Gregório XVII, em que ele, Monsenhor Logue, desempenhara um papel
da maior importância... Ele ficou abalado. Pediu-me que definisse o
papel que supostamente desempenhara. Disse que ele informara à Cúria
sobre o conteúdo da última encíclica inédita de Gregório XVII. Foi o
bastante para deixá-lo completamente perturbado. Ele negou tal ato.
Contestou ter conhecimento de qualquer encíclica. Mencionei então a

151
lista e citei os nomes que você me confirmara. Ele quis saber onde eu
vira esse documento. Respondi que tinha de proteger minhas fontes,
mas poderíamos trocar algumas informações. Ele me disse que sabia da
existência da lista, mas nunca a vira. Explicou que Gregório XVII
acreditava firmemente na diplomacia pessoal. Era até vulnerável
demais a gestos de amizade. A Secretaria de Estado também via um
grande perigo na atitude do papa em relação a Les Amis du Silence...
— Como?
Foi quase um grito de Mendelius. Rainer inclinou a cabeça para trás e
soltou uma gargalhada.
— Já imaginava que ficaria aturdido, Carl. Também fiquei. E
perguntei quem eram os Amigos do Silêncio. Mas nosso pequeno
Monsenhor compreendeu que cometera um tremendo erro e instou-me
para esquecer até que já ouvira falar nisso... Tentei tranqüilizá-lo, mas
ele resistiu. A entrevista foi encerrada. Parti com os quatro nomes,
Petrov e os outros, além de alguma coisa chamada Lês Amis du
Silence... Naquela noite, sábado, levei Pia para jantar no Piccola Roma
e fomos depois a uma discoteca. Saímos por volta das duas horas da
madrugada. As ruas estavam quase desertas. Foi então que percebemos
que estávamos sendo seguidos... E temos sido vigiados desde então.
— Mas não houve qualquer atentado? — indagou Larsen. — Não
houve violência?
— Ainda não — respondeu Rainer, hesitante. — Mas a partir do
momento em que eles souberem onde está a lista...
— Quem são "eles"? — perguntou Lotte.
— Não tenho a menor idéia. — O gesto de Rainer era de perplexidade
e cansaço. — Ao contrário de Carl, não me surpreendo com qualquer
coisa que o Vaticano possa fazer. Neste caso, porém, estamos lidando
com um clérigo definido, um fanático, um delator conhecido, que estava
disposto a derrubar seu superior. Ele pode estar servindo a outros
interesses que não os do Vaticano. Pia tem uma opinião sobre o assunto.
— Então diga-a, por favor! — Mendelius insistiu para que ela
participasse da conversa. — Bem que estamos precisando de idéias
novas!
Pia Menendez hesitou por um momento e depois explicou:
— Meu pai era diplomata. Costumava dizer que a diplomacia só era
possível entre instituições estabelecidas, boas ou más. Numa situação
revolucionária, não se pode negociar, apenas jogar... Pelo que Georg
me contou, Gregório XVII achava que uma situação revolucionária
mundial se seguiria a uma catástrofe atômica e que ele ou outros teriam

152
de contar com homens de boa vontade, dentro e fora da Igreja.
Poderiam ser no momento obscuros, mas assim poderiam sobreviver
em posições de poder.
— Homens no momento obscuros... — Larsen repetiu a expressão,
pensando por um momento. — Ou talvez em desgraça, até mesmo
considerados perigosos para os regimes existentes. Isso daria outro
motivo para afastar Gregório XVII do trono papal.
— Mas não explica quem nos está seguindo — disse Georg Rainer.
— Vamos raciocinar um pouco — disse Mendelius, tornando a
intervir na conversa. — Monsenhor Logue disse que nunca vira a lista.
É possível. A partir do momento em que Jean Marie soube que ele era
um informante, obviamente tentaria proteger seus documentos. Mas
Logue sabia que a lista existia... E a partir do instante em que ele soube
que você tinha acesso à lista, Georg, a quem diria: a seus atuais
superiores no Vaticano... ou a outros interesses não especificados? A
vigilância 24 horas por dia não parece uma tática do Vaticano. Como
Pia ressaltou, eles se concentram basicamente no jogo institucional.
Portanto, meu palpite é de que se trata de interesse externo. Qual é a
sua opinião a respeito, Georg?
— Nenhuma, enquanto eu não tiver lido todos os seus documentos.
Gostaria de levá-los para a cama.
Lars Larsen apressou-se em dizer:
— Antes de você ir deitar-se, eu gostaria de ter uma conversinha
sobre contratos.
— Vou poupar-lhe o trabalho — disse Georg Rainer, com um
sorriso. — Mendelius é o jesuíta entre nós. Se os contratos satisfizerem
o senso de justiça dele, eu os assinarei imediatamente.
— Vou buscar as coisas que Jean Marie me enviou — disse
Mendelius. — Mas devo adverti-lo de que o manterá acordado pela
noite inteira.
— Por uma vez — disse Pia, a filha de diplomata — fico feliz por
estar dormindo sozinha!
Naquela noite, Mendelius ficou acordado por muito tempo, pelas
horas sinistras da madrugada, tentando situar-se, como qualquer bom
historiador deveria fazer, nas antigas batalhas da Cristandade, a luta
para instituir um código de crença, uma constituição para permitir a
assembléia e a resistência aos ataques dos fantasistas e inventores de
mentiras.
As batalhas sempre foram encarniçadas e algumas vezes violentas.
Os homens de boa vontade eram sacrificados sem qualquer

153
misericórdia. Patifes complacentes prosperavam à sombra da ortodoxia.
Realizavam-se casamentos de conveniência entre Igreja e Estado. Havia
divórcios bruscos de nações e comunidades da união com os eleitos.
A batalha ainda continuava. Jean Marie Barette, antes um Papa, fora
uma das baixas. Invocara o Espírito, mas os cardeais haviam invocado a
assembléia... e a assembléia vencera, como sempre, pelo peso dos
números e a força da organização. Era a lição que os romanos haviam
ensinado aos marxistas: mantenha o código puro e a hierarquia
exclusiva. Com o primeiro se afugentam os hereges e com a segunda se
pode esmagá-los.
O que levou Mendelius, numa súbita reviravolta, à indagação: quem
eram Os Amigos do Silêncio? Era tentador adotar a teoria de Pia
Menendez de homens esperando nas sombras o momento de serem
chamados para salvar o que fosse possível numa situação de revolução
ou catástrofe. Por outro lado, ele se recordava de uma carta que Jean
Marie lhe escrevera, há muito tempo, quando ainda era cardeal,
investindo contra os movimentos elitistas na Igreja:
"Desconfio deles, Carl! Se eu fosse Papa, haveria de desencorajar
ativamente qualquer coisa que se assemelhasse, mesmo que
remotamente, a uma sociedade secreta, uma associação hermética, um
quadro privilegiado dentro da Igreja. De todas as sociedades, a
assembléia dos homens de Deus deve ser a mais aberta e participante.
Já há mistérios suficientes no universo e não precisamos fabricar
outros. ... Mas os romanos adoram as intrigas nos corredores e os
arquivos secretos!"
Era difícil acreditar que o homem que escrevera tais palavras pudesse
instituir o seu próprio clube de elite e lhe desse um nome tão óbvio. Era
mais provável que Les Amis du Silence fosse um grupo externo, cujo
nome francês visava a dar a impressão de que contava com a aprovação
de um Papa francês? Anos antes, os espanhóis haviam dado o exemplo,
ao criarem sua própria elite autoritária, a que deram o nome de Opus
Dei... a obra de Deus.
Ainda inquieto, Mendelius começou a vasculhar a memória em busca
de qualquer coisa que pudesse associar com Os Amigos do Silêncio. A
palavra amigos produziu estranhos correlativos: da Sociedade de
Amigos a amicus curiae e o "Amigo do Homem" do Marquês de
Mirabeau. A palavra silêncio produziu uma variedade maior de

154
associações. Na Prisão Mamertine, em Roma, ardia um lampião
empoeirado, em memória da "Igreja do Silêncio", os fiéis a que era
negada a liberdade de culto e que eram perseguidos por sua antiga fé.
Havia o silêncio Amicleano, que proibia aos cidadãos de Amicla de
falarem da ameaça espartana. Assim, quando houve a invasão, a cidade
foi presa fácil. Havia o sinistro provérbio italiano: "A vingança nobre é
a filha do silêncio profundo."
Finalmente sonolento, Mendelius decidiu que aquela poderia ser a
ocasião apropriada de cobrar de Drexel a promessa de fornecer
informações sobre questões de fato. Lotte remexeu-se e estendeu a mão
no escuro, em busca de segurança. Mendelius aconchegou-se ao calor
dela e mergulhou rapidamente no sono.
Houve problemas inesperados no contrato de Georg Rainer com Die
Welt. Assim, logo depois do café da manhã, Lars Larsen partiu para
Bonn e Berlim, a fim de conversar com os executivos do Grupo
Springer. Estava jovial e confiante, como sempre.
— Eles vão ter de concordar com tudo. Não há acordo, não há
notícia... e Georg pede demissão! Podem deixar tudo comigo. Vocês se
concentrem apenas em pôr a história no papel. Quero levá-la
pessoalmente, quando voltar a Nova York.
Mendelius e Rainer trancaram-se no gabinete, a fim de ordenarem os
materiais: os arquivos de Rainer sobre o Pontificado de Gregório XVII,
a correspondência particular de Gregório com Mendelius, antes e
durante o pontificado, anotações e bibliografias sobre a tradição
milenarista e, como base de tudo, os três documentos mais recentes, a
carta, a encíclica inédita e a lista de nomes. Sobre a lista, Georg Rainer
fez um julgamento brusco:
— Se você não é um crente... e na melhor das hipóteses sou um
luterano por criação... a carta e a encíclica são como poesia, além da
discussão racional. Ou se pode senti-las ou não se consegue. Posso
sentir a agonia do homem. Contudo, para mim, ele estava andando na
Lua, muito além do nosso alcance... Mas a lista de nomes... eis algo
inteiramente diferente. Reconheci a maioria deles. E sei de coisas
suficientes a respeito deles para constatar que existem determinados
fatores comuns. Tenho a impressão de que um levantamento de
computador mostraria ainda mais pontos comuns. Quero trabalhar
novamente na lista esta manhã, antes de tirar quaisquer conclusões.
— Acha que eles poderiam ser os Amigos do Silêncio?
— De jeito nenhum. Todos eles têm sido muito eloqüentes e alguns
sofreram contratempos em suas carreiras dos quais podem ou não se

155
recuperar.
— Vou consultar Drexel a respeito.
Mendelius pegou o telefone, ligou para a Cidade do Vaticano e pediu
Para falar com o Cardeal Drexel. Sua Eminência pareceu ficar surpreso
e um pouco cauteloso.
— Mendelius? Está mexendo-se muito cedo. Em que posso ajudá-lo?
— Estou refrescando a memória. Foi generoso o bastante para
oferecer sua ajuda em questões de fato.
— E o que deseja saber?
— Quem são Les Amis du Silence?
— Sinto muito. — Drexel foi brusco. — Não posso dar-lhe qualquer
informação sobre essa questão.
— Pode encaminhar-me a alguma outra fonte, conforme prometeu?
— Isso não seria oportuno.
— Outros já me informaram que o assunto pode ser perigoso.
— Quanto a isso", não posso dar-lhe qualquer opinião.
— Obrigado, Eminência, pelo menos por atender a meu telefonema.
— O prazer foi meu, Mendelius. Bom-dia.
Rainer não estava surpreso.
— Não teve sorte?
Mendelius soltou um grunhido de raiva.
— O assunto é inoportuno!
— Adoro essa palavra. Sempre a usam para ocultar os segredos mais
tenebrosos... Por que não liga para Monte Cassino e pede algum
esclarecimento a seu amigo?
— Porque não quero que ele assuma qualquer responsabilidade pelo
que escrevermos. Você é o repórter. Onde mais podemos tentar?
— Sugiro que esqueçamos esse ponto no momento e cuidemos do
resto. Na minha opinião, devemos começar pela abdicação
propriamente dita, um ato de profunda repercussão e importantes
conseqüências, o motivo para o qual ainda continua envolto em
mistério. Já dispomos de provas suficientes para afirmar que os
membros do Sacro Colégio maquinaram toda a situação. Podemos
demonstrar como foi feito. E finalmente chegamos ao porquê, o que
depende de seu depoimento, os três documentos finais e suas conversas
com Drexel em Roma e com o ex-Papa Gregório XVII em Monte
Cassino. Faço um relato de tudo isso e apresento as provas. Nossos
leitores farão o julgamento. Os céticos dirão que o homem estava louco
e que os cardeais acertaram ao se livrarem dele. Os devotos continuarão
tranqüilos, achando que não importa o que possa acontecer, pois o

156
Espírito Santo ao final acabará cuidando de tudo. Os curiosos e os
críticos vão querer saber de mais coisas... É nesse ponto que você
retoma a narrativa, com um retrato do homem e uma análise do que ele
disse e escreveu. Sei que é um autor dos mais lúcidos, mas desta vez
terá de explicar tudo na linguagem mais simples possível... capaz de ser
compreendida até mesmo por nossos editores. Concorda com a
fórmula?
— Em princípio, sim. Resta ver agora como ficará em letra de
imprensa... Fique à vontade, Georg. Vou dar uma volta antes de
começar a trabalhar.
O telefone tocou quando ele estava atravessando o vestíbulo. O
homem ao telefone identificou-se como Dieter Lorenz, investigador
sênior do Landeskriminalamt. Surgira um problema importante e ele
gostaria de discuti-lo com Herr Professor.
Ele chegou 10 minutos depois, um homem alto e magro, de aparência
miserável, vestindo jeans e um blusão de couro. Enquanto Lotte
preparava um café, ele mostrou uma folha suja de papel de
mimeógrafo, com um desenho de Mendelius, nome, endereço e
telefone. O papel estava dobrado várias vezes, como se tivesse sido
guardado numa carteira. Lorenz explicou sua proveniência:
— Há uma cervejaria freqüentada por operários turcos da fábrica de
papel. É um dos centros para o tráfico de tóxicos na cidade e entre os
estudantes. Ontem à noite, houve uma briga entre alguns turcos e um
bando de jovens alemães. Um homem foi esfaqueado. Morreu antes de
chegar ao hospital. Nós o identificamos como Albrecht Metzger, antigo
escriturário da fábrica de papel, despedido há seis meses por furto.
Encontramos esse papel na carteira dele.
— E o que isso significa?
— Em resumo, Professor, significa que está sob vigilância dos
terroristas. O desenho é mimeografado, o que indica que foi distribuído
a muitas pessoas. O papel é alemão. O desenho provavelmente foi feito
em Roma. Foi baseado numa das suas fotografias que apareceu na
imprensa italiana... O resto da história não está ainda muito claro.
Sabemos que alguns grupos clandestinos arrumam financiamento para
suas atividades com o tráfico de tóxicos provenientes da Turquia. Há 20
mil estudantes na universidade... o que representa um mercado
importante para os traficantes. O morto não constava de nenhuma das
nossas listas de procurados. Contudo, os grupos terroristas usam
agentes secundários, pagando à vista, a fim de proteger a organização
central. Do jeito em que as coisas estão agora, com um alto índice de

157
desemprego e inquietação social, não há problema em recrutar agentes
eventuais para trabalhos como este...
Lotte trouxe o café. Enquanto ela servia, Mendelius explicou-lhe a
situação. Lotte aceitou tudo com uma calma aparente, mas o rosto ficou
pálido e a mão tremia quando pôs o bule na bandeja. Lorenz continuou
a falar:
— Devem compreender como funciona o sistema terrorista. Usando
pessoas como o nosso falecido amigo Metzger... nós as chamamos de
"vigias"... eles desenvolvem um quadro completo dos hábitos e
movimentos da vítima visada. É mais difícil numa cidade grande. Mas
numa cidade pequena como Tübingen e com um profissional destacado
como seu caso, torna-se relativamente fácil. Sempre vai aos mesmos
locais de trabalho. E costuma fazer compras nas mesmas lojas... Não
pode introduzir variações suficientes em sua rotina diária. E inevitável
que se torne desatento e descuidado. E um belo dia eles entram em
ação, em grupo, três ou quatro pessoas em dois veículos e... bam!... o
serviço está feito.
— Não é uma perspectiva das mais esperançosas, não é mesmo?
A voz de Lotte era trêmula. Lorenz não ofereceu qualquer conforto.
— Não, minha senhora, não é mesmo. Podemos dar a seu marido um
porte de arma. Mas a menos que ele esteja disposto a fazer um
treinamento com armas de fogo, não vai adiantar muita coisa. Pode-se
contratar guarda-costas, mas são terrivelmente dispendiosos... a menos,
é claro, que os estudantes estejam dispostos a ajudar.
— Não! — Mendelius foi categórico.
— Neste caso, a única solução é a vigilância pessoal e um contato
constante conosco. Deve comunicar até mesmo o incidente mais trivial
que lhe parecer estranho ou fora do normal. Deixarei o meu cartão...
Ligue para este número a qualquer hora do dia ou da noite. Há sempre
um homem de plantão.
— Só há uma coisa que não consigo entender — disse Lotte. — Por
que estão perseguindo Carl desse jeito? Ele já prestou depoimento em
Roma. A informação se encontra nos arquivos da polícia em Roma.
Morto ou vivo, não poderá mais alterar seu depoimento.
— Não está percebendo como a coisa funciona, minha cara senhora
— explicou Lorenz, pacientemente. — O objetivo do terror é semear o
medo e a incerteza. Se o terrorista não exerce a retaliação, acaba
perdendo sua influência... É a velha noção da vendetta, que nunca
acaba, enquanto um dos lados não estiver exterminado. Numa
sociedade organizada, nosso trabalho como policiais era mais fácil.
Agora, torna-se mais difícil a cada dia que passa... e mais sujo também!

158
— É isso o que me deixa perturbado — disse Mendelius,
sombriamente. — Já sabe, não é mesmo, que os professores da
universidade receberam o pedido de fornecer informações de segurança
sobre os estudantes?
Lorenz lançou-lhe um olhar rápido e velado, acenando com a cabeça
em assentimento.
— Já sabia disso... e posso apostar que a idéia não lhe agrada.
— Eu acho repulsiva.
— Mas não seria uma questão de prioridades? O quanto está disposto
a pagar pela segurança nas ruas?
— Não muito. Obrigado pela sua ajuda. Ficaremos em contato.
Mendelius devolveu o desenho. Lorenz dobrou-o cuidadosamente e
tornou a guardá-lo na carteira. Entregou o cartão a Mendelius e repete
— Não se esqueça! Pode ligar a qualquer hora do dia ou da noite-
Obrigado pelo café, madame.
— Vou acompanhá-lo até o carro — disse Mendelius. — Estarei de
volta num minuto, liebchen. Quero dar uma volta antes de começar a
trabalhar com Georg.
— Quem é Georg?
O policial estava subitamente cauteloso.
— Georg Rainer. É o correspondente em Roma de Die Welt. Estamos
escrevendo uma história juntos sobre o Vaticano.
— Então, por favor, não o deixe publicar esta história. Já há atenção
demais focalizada em você.
Ao subirem por Kirchgasse, na direção do Mercado Antigo, Dieter
Lorenz acrescentou um comentário brusco à conversa:
— Não queria falar isso na presença de sua mulher. Tem dois filhos.
Para os terroristas, o seqüestro é uma manobra ainda melhor do que o
assassinato. Isso lhes proporciona uma ampla cobertura da imprensa e
novos recursos. Quando seus filhos voltarem das férias, é melhor alertá-
los também.
— Estamos realmente voltando ao tempo da selva, não é mesmo?
— Já estamos dentro dela — disse Dieter Lorenz, secamente. — Esta
cidade já foi um lugar tranqüilo. Mas se pudesse ver as coisas que
passam agora por minha mesa, tenho certeza de que ficaria apavorado.
— Qual é a solução?
— Só Deus sabe. Talvez precisamos de uma boa guerra para liquidar
alguns desses desgraçados e começar tudo de novo!
Era um pensamento de desespero de um homem exausto. Não
contribuiu em nada para dissipar o medo insidioso que invadia
Mendelius, enquanto se encaminhava até a banca de jornais, um medo

159
que lhe provocou um sobressalto quando uma dona-de-casa esbarrou
nele e quando um rapaz passou velozmente pela rua, numa motocicleta
com o cano de descarga aberto. Não havia Francone agora para
protegê-lo. Na vanguarda, flancos e retaguarda, ele estava
completamente exposto aos caçadores silenciosos, que levavam sua
imagem como um fetiche, aonde quer que fossem.

CAPÍTULO 7

Rainer trabalhava depressa, estava condicionado a atender aos prazos


diários, fatais, com um texto limpo e acurado. Mendelius estava
acostumado ao ritmo irregular de um autor acadêmico. Era exigente em
questões de estilo, argumentava interminavelmente o refinamento de
uma definição. Insistia em escrever o texto por extenso, as correções
exigiam dois ou três esboços datilografados.
Apesar da aparente incompatibilidade entre os dois, acabaram
produzindo, ao final de quatro dias, o primeiro e mais importante
estágio do projeto: uma versão com 20 mil palavras para imediata
publicação em capítulos em jornais e revistas. Antes de entregá-la ao

160
tradutor, já que uma versão em inglês era obrigatória nos termos dos
contratos, foi lida por Lotte, Pia Menendez e Anneliese Meissner. As
leituras provocaram alguns comentários francos e inesperados. Lotte
bem que tentou ser gentil, mas só conseguiu arrasar os autores:
— Há alguma coisa errada. Não sei dizer exatamente o que é... ou
talvez possa. Conheço Jean Marie. Ele é um homem afável, complexo e
sempre interessante para uma mulher. Não o sinto em coisa alguma do
que vocês escreveram. O texto está muito isento, muito... Não sei
explicar direito. Só posso dizer que não estou absolutamente
interessada no homem que descreveram. Não me importo com o que
lhe possa acontecer.
Pia Menendez concordou com a avaliação e ofereceu uma explicação.
— Acho que posso entender o que aconteceu. Sei como a mente de
Georg funciona... Sempre disse, querido, que estava fazendo a sua
cobertura de Roma tanto para crentes como para incréus. Não pode
favorecer a uns, com medo de alienar os outros. Assim, tem de
demonstrar um toque de cinismo. Creio que o Professor Mendelius caiu
na mesma armadilha. Está empenhando-se tanto em mostrar-se
imparcial em relação a um querido amigo que parece um censor de
moral. E está tentando ser tão erudito e objetivo em relação à Doutrina
das Últimas Coisas que parece como um exercício de matemática
superior. Não estou querendo ser rude, mas...
— Não precisa pedir desculpas! — Anneliese Meissner foi brusca,
como sempre. — Concordo com você e Lotte. Perdemos o homem que,
no final das contas, é ponto central, o pivô de todo este episódio
histórico. Em sua dissertação sobre um profeta, Carl abdicou da poesia
e preferiu o pedantismo... E também tenho outra queixa, Carl! E creio
que pode ser da maior importância. Em sua análise da Escatologia, você
se esquiva a dois fatos importantes: a natureza do mal, a presença do
mal num cataclisma provocado pelo homem, e a Natureza da Parúsia
propriamente dita. O que vamos presenciar? Ou, mais precisamente, o
que os profetas apocalípticos, entre os quais Jean Marie, prometem que
vamos presenciar? O que servirá para distinguir o Cristo do Anticristo?
... Sou sua leitora agora, embora não seja uma crente. A partir do
momento em que abre a caixa, estou tão ansiosa quanto qualquer outra
pessoa em ver o que tem lá dentro...
Mendelius e Rainer se olharam, consternados. Rainer sorriu e fez um
gesto de derrota.
— Se os leitores não gostarem de nós, Carl, estamos liquidados. E se
não conseguirmos levá-los à piedade e terror com este assunto, então

161
merecemos ser liquidados.
— A solução é voltarmos ao trabalho.
Mendelius começou a arrumar o original.
— Não esta noite! — Lotte foi muito firme. — Reservei um jantar
para nós cinco no Hölderlinhaus. A comida é muito boa e o ambiente
parece que causa algum efeito estranho em Carl. É o único lugar em
que já o vi embriagado o bastante para recitar "Empédocles no Etna"
com a carne assada e cantar Schubert com a sobremesa... E fazer as
duas coisas muito bem, diga-se de passagem!
— Posso embriagar-me outra vez esta noite — advertiu Mendelius.
Estou profundamente desanimado. E só posso dizer que estou contente
porque Lars Larsen não leu esta versão.
— Uma palavra de aviso — disse Anneliese Meissner. — Jogue fora
toda a sua parte, Carl. Volte ao princípio. Deixe o seu coração falar,
como aconteceu nas gravações que me enviou de Roma!
— Bravo! — disse Lotte. — E se um pouco de bebida ajudar o
coração a falar, então sou inteiramente favorável!
— E qual é a receita para mim? — indagou Georg Rainer.
— O seu caso não é muito difícil — disse Anneliese Meissner,
incisivamente. — Acho que se sairá melhor se se limitar ao relato do
episódio deixando a interpretação para Carl. E no final escreva uma
indagação objetiva, transformando os leitores em juizes e jurados.
Georg Rainer pensou por um momento e depois acenou com a cabeça
em concordância.
— Talvez tenha razão. Vou tentar o que está sugerindo... Mas
gostaria de que me dissesse uma coisa, Frau Dra. Meissner. É uma
incrédula. Lida com os doentes e iludidos. Por que se preocupa tanto
com este episódio de história religiosa?
— Porque estou apavorada — respondeu Anneliese Meissner,
bruscamente. — Leio os presságios em todos os jornais. Posso escutar
os tambores distantes e as trombetas enlouquecidas... Acho que teremos
o nosso Armagedom. Sonho com isso todas as noites... e gostaria de
poder encontrar uma fé que me confortasse nas trevas.

O tempo ainda era ameno, ao final do verão. O Neckar fluía


tranqüilamente sob os salgueiros, os namorados passeavam lentamente
em seus barcos, diante das janelas do Bursa, onde Melanchthon outrora
ensinara e o grande Johannes Stöffler dera aulas de Astronomia e
Matemática... e projetara o relógio do prédio da prefeitura!

162
O Hölderlinhaus era uma casa pequena e antiga, com uma torre
redonda, de onde se descortinava o Jardim Botânico, no outro lado do
rio. Friedrich Hölderlin morrera ali, em 1843, um gênio triste e louco,
ofuscado por seu contemporâneo Uhland, em quem o político
predominaria sobre o poeta, como Goethe profetizou.
As ruas estreitas estavam agora sossegadas, porque a universidade
continuava em recesso. Mas o restaurante estava movimentado com um
jantar para os professores do Instituto Evangélico e outro para um
grupo de atores na cidade, para ensaios no teatro universitário.
Mendelius apresentou Georg Rainer e Pia a seus colegas. Durante o
jantar, enquanto o vinho corria, houve conversas constantes entre as
três mesas.
Como o correspondente bastante conhecido de um jornal famoso,
Rainer tornou-se o centro das atenções. Mendelius observou, com
admiração, como ele atraía habilmente os professores para conversa,
provocando-os com fragmentos de informações sobre Roma.
Finalmente, uma maneira quase que indiferente, ele perguntou:
— Alguém já ouviu falar de uma organização chamada Os Amigos
do Silêncio?
Ele não usou as palavras francesas originais, mas sim o
correspondente em alemão: Die Freunde des Sch weigens.
Ele se estava dirigindo aos professores, mas a resposta veio da mesa
dos atores, de forma surpreendente. Um jovem alto e cadavérico
levantou-se e, de maneira solene, apresentou-se e a seus companheiros.
— Nós somos os amigos do silêncio. Para compreender-nos, vocês
devem manter o silêncio. E no silêncio contaremos uma história de
amor, medo e compaixão...
E ali, na sala antiga, onde o pobre Hölderlin tentara reunir os últimos
fragmentos de seus sonhos, eles apresentaram uma versão em mímica
do homem que perdeu a sombra e da mulher que lhe devolveu.
Foi um desses encontros estranhos e espontâneos, que transformam
uma noite solene num evento mágico, que se prolongou com vinho e
canto e histórias, até que o relógio de Mestre Stöffler bateu duas horas
da madrugada, na torre do prédio da prefeitura. Quando estavam
despedindo-se, um colega idoso do Instituto puxou Mendelius pelo
braço para um lado e ofereceu-lhe uma sugestão:
— Seu amigo Rainer acabou não recebendo uma resposta para a
indagação que fez. Todos fomos distraídos por aqueles jovens
talentosos. Você assina a Revista de Estudos Patrísticos, não é
mesmo?... Há um artigo no número de abril sobre a disciplina do

163
segredo. Tem algumas referências que podem ajudar a esclarecer as
coisas...
— Obrigado. Darei uma olhada pela manhã.
— Gostaria de lhe dizer mais uma coisa, Mendelius...
— O que é?
Mendelius estava ansioso em ir embora. Lotte e os outros já se
estavam afastando.
— Soube de sua posição sobre a questão da vigilância dos estudantes.
Concordo plenamente. Mas gostaria de informá-lo de que o reitor não
ficou muito satisfeito. Ele afirma que você o afrontou. Minha
impressão é de que ele está com medo de uma revolta dos professores...
a última coisa que poderia querer, antes de sua aposentadoria. Bom...
boa-noite, meu caro. Tome cuidado com o lugar em que pisa. Um
homem pode torcer o tornozelo nestas malditas pedras do calçamento!
Às três e às quatro horas da madrugada, Mendelius ainda estava
remexendo-se inquieto na cama, entre o sono e a insônia. Levantou-se
às cinco horas, fez café e foi sentar-se à sua escrivaninha com a edição
de abril da Revista de Estudos Patrísticos. O número fora publicado
antes da abdicação de Gregório XVII e evidentemente fora preparado
vários meses antes.
O artigo sobre a disciplina do silêncio viera de Paris e estava
assinado por alguém chamado Jacques Mandel. Versava sobre a prática,
nas primeiras comunidades cristãs, chamadas disciplina arcani. A
expressão propriamente dita só surgira no século XVII, mas a disciplina
era das mais antigas na comunidade cristã, o segredo compulsório sobre
os mais misteriosos rituais e doutrinais da Igreja. Não deveriam jamais
ser mencionados aos incréus ou mesmo aos aspirantes ainda em grau de
instrução. Qualquer referência necessária devia ser feita em termos
enigmáticos ou mesmo enganadores. O exemplo mais famoso de tal
linguagem era a inscrição descoberta em Autun, em 1839: "Tome o mel
dos santificados, coma e beba com o peixe em suas mãos." A palavra
peixe era um anagrama para Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. O
"mel" era a Eucaristia.
A primeira parte do artigo de Mandel era uma avaliação erudita sobre
as evidências da prática e a conseqüente escassez de antigas evidências
patrísticas sobre questões doutrinárias e sacramentais. Contudo, não
havia nada de novo, além de duas ou três informações curiosas sobre o
Sínodo de Antióquia, em que os ortodoxos condenaram os arianos por
admitir os catecúmenos e até mesmo os pagãos na discussão dos

164
"mistérios". Mendelius descobriu-se a perguntar por que o autor se dera
ao trabalho de escrever uma nova versão de material tão antigo. Mas
logo depois, subitamente, o teor do artigo mudou. Jacques Mandel,
quem quer que fosse, estava usando a disciplina do segredo como um
texto em que podia analisar um argumento dos mais modernos.
Ele afirmava que, dentro da hierarquia da Igreja Católica Romana,
havia um grupo poderoso que desejava sufocar todo e qualquer debate
sobre questões doutrinárias, impondo uma versão do século XX da
Disciplina do Segredo. Apontava a ação repressiva contra determinados
teólogos católicos nos anos 70 e início dos anos 80, as atitudes
rigorosas de determinados bispos contemporâneos, na França e outros
lugares. Ele escrevera:

— "Ouve-se falar que existe uma fraternidade clandestina desses


bispos, que possuem amigos muito bem situados na Cúria e são capazes
de pressionar até mesmo o Pontífice. ... Até agora, Gregório XVII, que
também é francês, conseguiu navegar com sucesso entre os radicais
inovadores. Mas não esconde a sua desaprovação ao que considera
'uma maçonaria de clérigos sêniores, os amigos do silêncio e das
trevas'. O autor viu a cópia de uma carta do Pontífice a um arcebispo
dos mais importantes, em que são usados termos de censura."
Eram palavras bruscas para uma publicação sóbria e especializada,
mas Mendelius podia compreender perfeitamente as suas implicações.
Jacques Mandel estava empinando uma pipa, a fim de descobrir quem
haveria de jogar-lhe pedras ou saudá-la. Mas era evidente que ele
dispunha de informações que explicavam em grande parte os
antecedentes da abdicação.
Muito antes da visão e da abdicação, Jean Marie já estava sofrendo
enormes pressões. A possibilidade de cisma fora real. Os bispos eram
homens poderosos, tanto nas ordens religiosas como nas seculares.
Numas, eram os líderes de grandes congregações. Nas outras,
representavam uma força discreta, mas poderosa, controlando muitas
questões controvertidas, através do confessionário. Ao final, porque
os cardeais não teriam entrado em ação sem o apoio da maioria dos
bispos, haviam demonstrado ser fortes o bastante para derrubar um
Papa... Em face dessas novas informações, a história que Georg
Rainer contara, de vigilância e perseguição, fazia algum sentido, um
tanto tenebroso. Nem todos os clérigos eram divorciados da política.
Nem todos eram alheios às suas práticas mais violentas. A História
estava repleta de acordos espúrios, feitos por religiosos, por motivos

165
religiosos. E ocupando o seu alto cargo, Jean Marie sabia dos danos
que podiam ser encobertos ou justificados sob a disciplina do segredo
ou dentro de uma confraria de silêncio.
Mendelius sublinhou os trechos mais relevantes do artigo e escreveu
um bilhete para Georg Rainer.

"Isso não chega a ser uma evidência, mas acrescenta alguma coisa à
indiscrição de Monsenhor Logue. Dispomos agora de um forte
indicador sobre a natureza de Os Amigos do Silêncio. Minha tendência
é incorporar uma referência em nossa história, como Mandel fez, a fim
de verificar as reações que teremos. Vou fazer um pequeno esboço de
um capítulo sobre outro aspecto do fenômeno: que em tempos de crise
intensa, o público sempre se inclina para ditadores e juntas, assim como
o homem doente se entrega ao médico que o tranqüiliza, por mais
incompetente que possa ser... Se eu não estiver aqui quando você
começar a trabalhar, vai encontrar o novo material na minha mesa."

Ele; anexou o bilhete à cópia do esboço de Rainer, depois pegou a


sua própria cópia do texto e começou a escrever, sob o título "O
Momento de Gregório XVII":
"As epidemias psíquicas não são fenômenos novos na história
humana. Os germes que as causam permanecem encerrados em estado
latente como o bacilo do carbúnculo, até que as condições se tornem
propícias para o seu renascimento. Essas condições são o medo, a
incerteza, o rompimento de sistemas sociais frágeis demais para as
cargas que lhes são impostas. Os sintomas são tão diversificados quanto
as ilusões da humanidade: a automutilação dos flagelantes e dos padres
castrados, a fúria assassinada dos sicarii, a perversão sexual dos
caçadores de bruxas, a loucura metódica dos inquisidores, que querem
confinar a verdade numa frase e queimar qualquer homem
insubordinado que se atreve a discordar na definição. Mas os efeitos da
doença são sempre os mesmos. O paciente torna-se amedrontado e
irracional, sujeito a terrores intensos, viciado em ilusões agradáveis e
amenas... uma presa fácil para os vendedores de panacéias,
encantamentos mágicos e as loucuras coletivas dos outros afligidos pelo
mal. ...
Definir a origem e o curso da doença é uma coisa, curá-la é outra,
muito diferente. O remédio mais drástico é o extermínio. O único
problema é que nunca se pode ter certeza de quem emergirá da
carnificina, se os lunáticos ou os sãos. A propaganda é outro
medicamento poderoso. Injetam-se nos pacientes doses maciças de

166
pensamentos curadores, do amanhecer ao anoitecer, até mesmo durante
o sono. Diz-se interminavelmente que tudo é para o melhor, nesta que é
a mais benigna de todas as criações. E eles acabarão acreditando,
contentes e gratos... até o dia em que sentirem pela primeira vez o
cheiro do fogo no vento e avistarem o sangue no altar de pedra. Quando
isso acontecer, eles vão virar-se e arrancar-lhe um membro depois de
outro, numa fúria maníaca de ressentimento.
Foi por esse motivo que o Sacro Colégio decidiu silenciar Jean Marie
Barette e suprimir o relato de sua visão. Sabiam que as conseqüências
de uma proclamação milenarista poderiam ser imensas. Contudo, foi
exatamente pelo mesmo motivo que Jean Marie propunha em sua
encíclica uma preparação do espírito contra um período inevitável de
insanidade social. Queria que médicos e asilos fossem devidamente
aprontados, antes que a epidemia se espalhasse. E creio que ele estava
certo, pelo menos em princípio.
Mesmo nos tempos antigos, o asilo era uma palavra mística. Tinha
conotações com um lugar sagrado, um templo, um santuário, um
bosque onde um criminoso ou um escravo fugitivo encontraria abrigo
de seus perseguidores, onde poderiam ter um sono seguro, sob a
proteção da divindade tutelar. Eram muito importantes a emanação de
poder, a esperança, o fluxo vital, que mantinham o fugitivo ofegante
pelo último quilômetro, enquanto os cães latiam cada vez mais perto,
em sua perseguição."

Um novo pensamento ocorreu a Mendelius. Ele largou a caneta para


meditar a respeito. Tudo o que acabara de escrever sobre as causas e
sintomas da epidemia psíquica podia aplicar-se com igual justiça a Jean
Marie. Ele abdicara do único lugar em que se podia exercer o poder.
Não oferecia qualquer esperança, apenas um cataclisma e o juízo final
dos sobreviventes. Seus adversários, como quer que se intitulassem,
tinham pelo menos de seu lado o bom senso pragmático. As
organizações tradicionais haviam sido testadas pelo tempo,
sobrevivendo às tensões e pressões dos séculos. As interpretações
tradicionais impunham respeito, quanto menos não fossem por sua
antiguidade e resistência. Quando o teto estava desmoronando,
precisava-se de um telhador e não de um profeta.
E era justamente nisso que estava a fraqueza que Lotte, Anneliese e
Pia haviam encontrado em seu retrato de Jean Marie. Não transmitia
qualquer convicção, porque o autor não a tinha. Não despertava paixão,
porque estava impregnada da luz fria da razão pura... Ou talvez, como
Anneliese Meissner o advertira há muito tempo, ele ainda fosse por

167
demais um jesuíta para constranger a família da fé com uma verdade
impopular. Era demais! Ele pegou um lápis vermelho e começou a
riscar, metodicamente, selvagemente, a sua cópia do texto. Depois,
pegou outro bloco e começou novamente, com um depoimento simples
e objetivo:

"Escrevo sobre um homem que amo. Portanto, sou uma testemunha


suspeita. Por esse motivo, se não por qualquer outro, apresento meu
depoimento apenas como pode ser aceito sob as regras mais rigorosas
de evidência. Onde ofereço uma opinião, é assim mesmo que a chamo.
Expresso minhas dúvidas tão honestamente quanto as certezas. Mas
repito que estou escrevendo sobre um homem que amo, a quem devo
algumas das melhores coisas da minha vida, que me é mais chegado do
que um irmão... e cujas agonias presentes tenho sido incapaz de
partilhar plenamente."

Subitamente, parecia que ele estava dotado da graça da eloqüência.


Sabia exatamente o que devia dizer a respeito de Jean Marie e como
deveria dizê-lo, a fim de atingir os corações dos mais simples. Quando
chegou o momento de expor a Escatologia — Doutrina das Últimas
Coisas — e como Jean Marie aderia a ela, foi lúcido e persuasivo. Jean
Marie fora silenciado sem uma audiência. Agora, disse Mendelius, o
advogado involuntário, ele deve ter um julgamento público.
Mas quando chegou o momento de responder às indagações que
Anneliese formulara, sobre a natureza do mal e o modo do Segundo
Advento, ele foi forçado a uma confissão comovente.

"Sei que o mal existe. Já estou marcado como uma vítima de seu
poder destrutivo. Rezo diariamente para me livrar. Não sei por que
existe o mal e o sofrimento num mundo projetado por um criador
generoso. A visão de Gregório XVII descreveu apenas os efeitos do
mal, mas não projetou qualquer luz sobre o mistério de sua existência.
O mesmo acontece com o Segundo Advento. Ele nada nos diz a
respeito do como, quando e onde do evento, que os cristãos acreditam
estar implícito e irrevogavelmente garantido pela Doutrina da
Ressurreição. ... Assim, seria perfeitamente justificado dizer que a visão
de Gregório XVII nada nos revela que já não saibamos. Mas isso não
desabona a visão ou o visionário, assim como um pintor não pode ser
desacreditado porque nos mostra luz e paisagem como nunca vimos
antes. Eu gostaria de poder interpretar o momento de êxtase pessoal de
meu amigo. Mas não posso. O melhor de que sou capaz é mostrar

168
como, por bons ou maus motivos, Jean Marie Barette, Papa Gregório
XVII, foi impedido de oferecer sua própria interpretação ao mundo. ...
Somos por isso mais ricos ou mais pobres? Só o tempo dirá."

Três dias depois, com a ajuda de quatro datilógrafas e dois tradutores,


estava tudo pronto. As versões inglesa e alemã foram despachadas por
mensageiros especiais. Os depoimentos pessoais e as cópias
fotográficas dos documentos estavam autenticados. Lars Larsen fez um
brinde de despedida, antes de seguir de carro para Frankfurt, a fim de
pegar o avião de volta a Nova York.
— Sempre fico apavorado quando vendo algo grande como este
trabalho. Fico com a cabeça no laço do carrasco. Se meu julgamento
falha, estou desempregado. Se o meu autor me entrega um fracasso, o
que posso dizer aos editores? Mas desta vez possa largar na mesa dos
editores um pacote e jurar pela memória de minha mãe que estão
recebendo tudo por que pagou. Temos um acordo internacional. A
publicação será simultânea, no próximo domingo. Depois disso,
preparem-se para agüentar as conseqüências. Mas tenho certeza de que
vocês, camaradas vigorosos, vão resistir bem. Quando as coisas ficarem
difíceis, lembrem-se de que cada entrevista na televisão representa
dólares, marcos e ienes no banco... Georg, Carl, tiro o meu chapéu aos
dois. Lotte, meu amor, muito obrigado por sua hospitalidade, Pia, torço
para que seu homem a leve a Nova York. Tive o maior prazer em
conhecê-la, Professora Meissner. E quando eu finalmente desmoronar
sob a tensão, espero que se encarregue do meu tratamento.
— Você nunca vai desmoronar. — Anneliese Meissner presenteou-o
com o seu sorriso mais insinuante. — Não enquanto não abolirem o
dinheiro e restaurarem o antigo sistema de trocas!
— Então, sinta-se contente por mim! — exclamou Lars Larsen,
jovialmente. — Gosto do jogo e por isso trato de executá-lo da melhor
forma possível. Espero que se divirtam tanto gastando o dinheiro
quanto eu me diverti em ganhá-lo para vocês. Meus parabéns!
Era um bom discurso de despedida e Mendelius reconheceu-o
comovido. Até mesmo Anneliese procurou retratar-se e perguntou se
Larsen consentiria em cuidar de suas obras no mercado americano.
Georg Rainer confessou que sentir-se rico era uma experiência nova e
muito agradável. Mostrou-se relutante em concordar com Pia de que
não havia agora qualquer impedimento para que se casasse... de
preferência com ela. Tratou de mudar de assunto apressadamente:
— Há algumas coisas que ainda me incomodam, Carl. Mencionamos
Os Amigos do Silêncio. Apresentamos a lista de políticos favoráveis de

169
Gregório XVII. Mas não oferecemos quaisquer conclusões objetivas
sobre as duas coisas. Mais cedo ou mais tarde, seremos interrogados
sobre isso. Por isso, continuarei a investigar em Roma. E, se descobrir
alguma novidade, telefono-lhe imediatamente.
— Estou mais interessado em saber se você continuará sob
vigilância, quando voltar a Roma.
— É o que também estou querendo descobrir. O mais estúpido dos
espiões já disporia de tempo suficiente para me localizar aqui. Mas
agora que a história está escrita e há tantas cópias em circulação, creio
que ninguém mais poderá fazer alguma coisa. Estou despachando Pia
para Roma, a fim de entregar pessoalmente uma outra cópia, como
medida de precaução. Mesmo que se apoderassem de todas as outras, a
notícia ainda seria divulgada. Não estou preocupado... apenas curioso.
Detesto deixar as coisas meio soltas.

Depois disso, houve um alvoroço de despedidas e o inevitável


anticlímax. Anneliese foi cuidar de suas consultas na clínica. Lotte
estava impaciente em arrumar a casa, a fim de deixá-la impecável para
o retorno da prole. Mendelius deu uma olhada em seu gabinete todo
desarrumado e optou por dar um passeio pelo Jardim Botânico, a fim de
alimentar os patos e os cisnes.
Os filhos voltaram no dia seguinte. Katrin estava transbordando de
felicidade. Chegou pela manhã. Presenteou a mãe com uma echarpe das
mais caras e Mendelius com o prometido quadro de Franz, uma tela
elaborada da Place du Tertre. Depois, ela respirou fundo e deu a grande
noticia. Ela e Franz haviam decidido viver em Paris. Seriam
independentes e relativamente prósperos. Franz fora contratado por um
dos mais conhecidos marchands de Paris. Ela própria seria contratada
por uma firma alemã de importações sediada na capital francesa. Os
dois já haviam discutido a questão do casamento. E ambos
concordavam que seria mais sensato esperar um pouco... e por favor!,
por favor!, será que mamãe e papai podiam tentar compreender?
Lotte ficou abalada, mas conseguiu manter a compostura. Foi
Mendelius quem tentou argumentar com Katrin sobre os problemas de
um casal solteiro vivendo numa terra estranha, num momento de
desordem iminente. Contudo, de certa forma, os argumentos careciam
de convicção. No fundo, ele estava contente por ver a filha afastada da
ameaça que pairava sobre todos em Tübingen. Queria que ela
desfrutasse os momentos de felicidade que pudesse encontrar, antes que
os tempos tenebrosos chegassem e o mundo desmoronasse.

170
Ao final, ficou combinado que Lotte a acompanharia a Paris, a fim de
ajudá-la a encontrar um bom apartamento e se instalar. Mendelius
forneceria os recursos necessários para sustentá-la, caso alguma coisa
saísse errada. Todos os três estavam conscientes, embora não se
atrevessem a exprimi-lo em palavras, que era no fundo uma conversa
fria sobre sobrevivência, os melhores termos que se podia encontrar
para manter a família unida, deixando que o fermento de antigas
devoções continuasse a agir, numa situação insatisfatória.
Depois, enquanto Katrin arrumava suas coisas no quarto, Lotte
chorou baixinho, desconsolada. Mendelius esforçou-se em confortá-la,
meio sem jeito:
— Sei que está desapontada, liebchen. Mas, assim, pelo menos a
família se manterá unida e ela recorrerá a nós num momento de crise.
Sei que você adoraria um casamento com Katrin toda de branco e um
neto um ano depois. Mas confesso que isso não me agradaria. Estou
contente por vê-la ainda livre. E estou contente também por dispormos
agora de dinheiro suficiente para torná-la independente...
— Mas ela é tão nova, Carl... e Paris parece tão longe!
— Neste momento, quanto mais longe, melhor — comentou
Mendelius, amargamente. — Nós dois podemos cuidar um do outro,
mas a última coisa de que eu gostaria é que nossos filhos sejam
seqüestrados como reféns. Trate de enxugar os olhos agora. Suba e
converse com ela. Katrin precisa de você tanto quanto você precisa
dela...
Quando Johann chegou, já estavam todos calmos novamente e
prontos para se interessarem por seu relato sobre o refúgio alpino.
Johann mostrou-lhe as fotografias e discorreu com o maior entusiasmo
sobre as possibilidades de desenvolvimento.
— A entrada do vale fica quase escondida, no final de uma antiga
trilha de lenhadores. É um desfiladeiro comprido e estreito, que dá para
aquele estranho vale, que parece ter sido aberto a golpes de machado no
alto das montanhas. As campinas ao redor do lago possuem a terra mais
fértil que se pode imaginar. Os bosques estão repletos de veados, mas
devem ser bem cuidados. A catarata fica aqui... e à esquerda está a
entrada da antiga mina, que tem quase um quilômetro de comprimento,
com muitas passagens naturais que não exploramos, porque não somos
experientes nisso e não dispúnhamos dos equipamentos apropriados...
Mendelius deixou-o falar por algum tempo e depois apresentou sua
indagação bruscamente:

171
— Ainda está interessado em adquirir o vale e desenvolvê-lo?
— Se estou interessado? Mas claro que estou! Só que custaria muito
dinheiro para aprontar tudo. É preciso gente para cuidar das plantações
e das construções. Precisa-se de assessoria especializada sobre
encanamentos, obras de engenharia e até mesmo culturas alpinas. Fiz
alguns cálculos. Mesmo que arrendássemos a propriedade, ainda
precisaríamos de cerca de 300 mil marcos para deixar o vale em
condições mínimas de funcionamento. Mas sei que não podemos contar
com tanto dinheiro assim.
— Vamos supor que fosse possível levantar o dinheiro. O que você
faria?
Johann pensou por um momento na pergunta e depois respondeu com
outra:
— Será que perdi alguma coisa enquanto estava viajando?
— Perdeu e muito — disse-lhe Katrin, tristemente. — Nossos pais se
meteram em algumas situações das mais explosivas. É melhor contar-
lhe tudo desde o início, papai.
Mendelius contou. Johann escutou atentamente, fazendo poucas
perguntas, ocultando seus sentimentos, como sempre acontecia.
Mendelius chegou finalmente ao post-scriptum de seu relato:
— Em decorrência do que escrevi a respeito da abdicação de
Gregório XVII, ganhei muito dinheiro. Portanto, poderemos pensar
agora mais livremente sobre o nosso futuro imediato... Mas há algumas
coisas que estão além do nosso controle. Podemos muito bem estar em
guerra nos próximos 12 meses... Você e Katrin estarão sujeitos à
convocação para o serviço militar em setembro.
— Se formos convocados e a guerra estourar, então não haverá
qualquer futuro para discutirmos — comentou Johann, sombriamente.
— Pode haver, se você está mesmo interessado em tornar-se um
agricultor alpino — disse Mendelius, com um humor desolado. — Os
camponeses e proprietários rurais ficam normalmente isentos do
serviço militar... Se está mesmo ansioso em adquirir a propriedade na
Baviera, o melhor é fazê-lo agora. Comece a cuidar de tudo
imediatamente. Pode tornar-se um refúgio, além de uma propriedade
produtiva.
— É um preço infernal para se pagar por um abrigo contra bombas —
comentou Johann, pensativo. — Para não falar no custo das instalações
necessárias. Mas é uma boa perspectiva. Mamãe pode ir para lá, assim
como Katrin e Franz. Vamos mesmo precisar de gente para trabalhar.
Lotte interveio na conversa:

172
— Diga-lhe o outro problema, Carl. Isso pode esperar.
— Que outro problema, papai?
— Há pessoas que estão querendo matar-me, filho. Enquanto
permanecermos juntos em Tübingen, estaremos todos correndo perigo.
Por isso é que acho melhor nos dispersarmos por algum tempo. Sua
mãe vai para Paris, a fim de ajudar Katrin a se instalar. Se aceitar minha
oferta em relação a seu vale, também ficará afastado.
— E você, pai? Quem vai cuidar de você?
— Eu cuidarei — declarou Lotte. — Mudei de idéia sobre a viagem a
Paris. Se Katrin tem idade suficiente para arrumar um amante em vez
de um marido, também tem para encontrar e mobiliar sozinha o seu
apartamento. Nós dois ficaremos aqui, Carl... E Johann pode tomar as
suas próprias decisões.
— Para ser franco, filho, preferia que se afastasse da universidade
por algum tempo. — Mendelius estava subitamente ansioso em
persuadir o filho. — As coisas vão ficar muito difíceis. Há um
movimento para se fazerem dossiês de segurança de todos os
estudantes. Vão exigir que os professores forneçam informações. Já me
recusei. Isso significa que, mais cedo ou mais tarde, se eu sobreviver
aos assassinos, estarei na mira dos serviços de segurança.
Johann disse, incisivamente:
— Parece-me que tudo isso está baseado na convicção de que a é
inevitável... a guerra global.
— Exatamente.
— E acredita realmente que a humanidade vai cometer essa
monstruosidade?
— A humanidade terá muito pouco a fazer ou dizer na questão.
Segundo a visão de Jean Marie, a guerra já está determinada em nossos
futuros. Foi por isso que me descobri a divergir dele em Roma. Por
outro lado, tudo o que vejo e ouço parece confirmar que as nações estão
propensas a uma confrontação por causa de combustível e outros
recursos, que o risco de conflito se torna maior a cada dia que passa.
Sendo assim, o que posso dizer a meus filhos adultos? Sua mãe e eu já
vivemos a maior parte de nossas vidas. E queremos oferecer-lhes toda a
liberdade de decidir o que farão com suas próprias vidas.
— Vocês fazem parte de nossas vidas. Não podemos simplesmente
sair por aí a cuidar de nossas vidas, como se os dois não existissem...
Sou muito grato por sua oferta, papai, mas quero pensar a respeito com
todo cuidado. E quero também conversar com você, irmãzinha. Preciso
acertar algumas coisas com o seu Franz.

173
— Franz é um assunto exclusivamente meu. — Katrin assumiu
prontamente uma atitude defensiva. — Não quero uma briga entre
vocês.
— Não haverá briga nenhuma — afirmou Johann, calmamente. —
Mas quero que Franz saiba em que se está metendo... e do que terá de
partilhar como responsabilidade de família... Seria ótimo, por exemplo,
se pudéssemos recrutar uma espécie de guarda para papai e mamãe
entre os estudantes.
— De jeito nenhum! — Mendelius foi categórico. — Isso
representaria uma vitória imediata do terrorista. Ele afetou as nossas
vidas, obrigou-nos a adotar precauções públicas. Portanto, é importante
e poderoso, alguém a ser temido. Não posso admitir uma coisa dessas.
Sua mãe e eu... e vocês também, enquanto estiverem aqui... vamos
proteger-nos mutuamente. O manual que a polícia nos deu é muito
bom. Quero que vocês leiam com atenção e...
A campainha da porta tocou. Mendelius foi atender. Johann seguiu-o.
Mendelius recitou as instruções:
— Sempre use o olho mágico. Se não puder identificar o visitante,
não tire a corrente de segurança quando abrir a porta. Se receber um
embrulho que não está esperando ou uma carta excepcionalmente
volumosa, chame imediatamente a Kriminalamt e peça que mandem
um perito em bombas. Pode sentir-se um tolo se o pacote for
inofensivo, mas é melhor do que acionar uma bomba que explodirá em
sua cara...
O visitante e seu embrulho eram perfeitamente inofensivos. Alvin
Dolman viera entregar as gravuras emolduradas. Enquanto Mendelius
lhe servia um drinque, ele mostrava as gravuras a Lotte e ao resto da
família, com o maior orgulho.
— São ótimas, não é mesmo? Apareceu ontem um camarada em meu
estúdio que ofereceu três vezes mais do que me pagou, Professor. Mas
é que eu lhe concedo o tratamento de nação favorecida!
— Com esta família, bem que estou precisando, Alvin.
— Deve sentir-se muito contente de sua família, Professor. Eu bem
que gostaria de ter uma igual. Estou ficando muito velho para sair
caçando por aí. O que me lembra de uma coisa. Estive numa festa
ontem à noite em homenagem ao grupo de mímica. Seu nome foi
mencionado. Disseram-me que fizeram uma apresentação para você e
um jornalista no Hölderlinhaus.
— Foi uma noite comprida e agradável.
— Comentei que o conhecia e à sua família. Todos pareciam estar a

174
par de sua aventura em Roma. Depois, a garota abordou-me e começou
a fazer perguntas.
— Que garota? — Mendelius franziu o rosto. — E que tipo de
perguntas?
— O nome dela é Alicia Benedictus. Trabalha para o Schwabisches
Tagblatt. Disse que estava escrevendo um perfil seu para o jornal.
— Ela lhe mostrou alguma identificação?
— Por que deveria? Éramos ambos convidados à mesma festa.
Aceitei o que ela parecia... e posso acrescentar que parecia muito bem.
Apesar de sua preocupação, Mendelius não pôde deixar de rir. O
brilho libidinoso nos olhos de Alvin Dolman era de fato cômico.
Mendelius repetiu a pergunta:
— Que espécie de perguntas ela lhe fez?
— As coisas de sempre... que tipo de homem é, qual a sua reputação
na cidade, quem são os seus maiores amigos...
— É muito estranho. Se ela trabalha mesmo para o Tagblatt, tem à
sua disposição uma pasta de arquivo com todas essas informações.
Acho melhor sindicá-la.
— Mas por quê? — Dolman estava completamente aturdido. — Foi
apenas uma conversa inconseqüente numa festa. Pensei apenas que
estaria interessado em saber que alguém está escrevendo uma
reportagem a seu respeito.
— Estou muito interessado no assunto, Alvin. Vamos ligar para o
jornal agora mesmo.
Mendelius folheou a lista telefônica e depois fez a ligação, Dolman e
sua família observavam. O telefonema foi breve e a resposta negativa.
Nenhuma moça chamada Alicia Benedictus trabalhava no Jornal.
Ninguém jamais fora designado para fazer uma reportagem sobre Carl
Mendelius. Mendelius desligou e transmitiu a notícia. Dolman ficou
boquiaberto.
— Essa não!
— A situação não me agrada, Alvin. Vou telefonar para o Inspetor
Dieter Lorenz, no Kriminalamt. Ele vai querer certamente conversar
com nós dois.
— A polícia? Essa não, Professor! Levo uma vida das mais tranqüilas
aqui. E gostaria de continuar assim, até voltar aos Estados Unidos. Por
que precisa chamar a polícia?
— Porque fui jurado de morte, Alvin. Fui testemunha-chave de um
atentado em Roma. E sabemos que os terroristas têm agentes a me
vigiarem e à minha família aqui em Tübingen. Essa moça pode ser um
deles.

175
Alvin Dolman sacudiu a cabeça, como se tivesse tentando livrar-se
de teias de aranha.
— Quem poderia imaginar uma coisa dessas? Eles estão atirando
agora em professores universitários... e ainda por cima em Tübingen!
Está certo, Professor, vamos chamar a polícia e acabar logo com isso.
Quinze minutos depois, eles estavam na sala de Dieter Lorenz, no
Landeskriminalamt. Lorez submeteu Dolman a um interrogatório
prolongado, depois o acomodou numa pequena sala, com uma xícara de
café, um bloco de desenho e instruções para produzir o retrato mais
parecido possível com a moça que dizia chamar-se Alicia Benedictus.
Em seguida, voltando à sua sala, Lorenz perguntou a Mendelius:
— Até que ponto conhece esse Dolman?
Mendelius deu de ombros.
— Não muito. Mas há anos que o conheço. Já nos encontramos para
tomar drinques muitas vezes, mas raramente para jantar. Costumo
comprar gravuras dele. Apareço de vez em quando em seu estúdio, a
fim de beber um pouco de vinho e conversar. Acho-o um brincalhão
simpático. Mas por que pergunta? Tem alguma coisa contra ele?
— Nada. — Lorenz foi bastante franco. — Mas ele é um desses
personagens que sempre incomodam um policial numa cidade
provinciana como esta. Podemos lidar com um criminoso. Podemos
deportar um operário estrangeiro que se mete em alguma encrenca. Mas
esse tipo é diferente. Não dá para entender porque ele continua aqui.
Ele é americano. Está divorciado de uma moça local. Ganha bem, mas
não tem a menor possibilidade de construir uma reputação ou fazer
fortuna. Além do mais, é um tipo depravado. Quando se sente
entediado, podemos encontrá-lo nos bares e nas boates mais
exuberantes freqüentadas pelos estudantes. As festas que promove em
sua casa são sempre barulhentas e recebemos muitas queixas dos
vizinhos. E como é tão popular, um pouco arruaceiro e um tremendo
gastador, não podemos deixar de imaginar que talvez tenha alguma
atividade paralela, como haxixe ou heroína. Ou receber mercadorias
roubadas. Até agora, ele está limpo... Mas tenho de admitir a
possibilidade de ele estar a vigiá-lo para o grupo que deseja liquidá-lo
ou então ligado às pessoas misteriosas que, segundo me disse, estavam
seguindo Georg Rainer.
— Parece-me um tanto forçado.
— E provavelmente é — concordou Lorenz, pacientemente. — Mas
às vezes, neste negócio, deparamos com as surpresas mais
desagradáveis. Dolman é um artista. Encontramos um desenho seu no
bolso de um morto. Não seria estranho se tivesse sido feito por Alvin

176
Dolman?
— Mas é impossível! Há anos que conheço o homem!
Lorenz deu de ombros.
— É sempre impossível o que acontece todos os dias. Seja como for,
ele está fazendo outro desenho agora. Seria muito instrutivo comparar
os dois.
Mendelius sentia-se agora impaciente e irritado.
— Está deixando-me numa situação insustentável, Inspetor. Não
posso continuar a ser amigo de Dolman sem transmitir-lhe o que acaba
de me dizer.
— Não me importo que lhe diga. — Lorenz parecia um pouco
surpreso. — Ao contrário, até ajuda. Se ele é inocente, vai empenhar-se
em colaborar. E possui muitos contatos úteis na cidade. Se ele é
culpado, então ficará apreensivo e começará a cometer erros.
— Nunca se cansa desse tipo de jogo, Inspetor?
— Gosto dele, Professor. Não gosto é das pessoas com quem tenho
de jogar... E agora peço que me dê licença por um momento. Vou
verificar como Dolman se está saindo com sua obra de arte.
Ao deixarem a delegacia e voltarem a pé para casa, pela noite quente
de verão, Dolman parecia filosófico em relação a sua situação. Afastou
as desculpas de Mendelius com um humor cansado.
— Não precisa preocupar-se, Professor. Conheço muito bem as
pessoas como Lorenz. Sou um aproveitador. Sempre fui, desde os
tempos no Exército. A única coisa que me surpreende é quando alguém
larga uma moeda no chapéu de um cego, ao invés de chutá-lo nos
dentes... Contudo, aqui entre nós, não tenho o menor interesse em vê-lo
liquidado. E também não tenho nenhuma ligação com qualquer grupo.
Sou rigorosamente um solitário... e tenho certeza de que Lorenz é
inteligente o bastante para percebê-lo. O que ele presume é que posso
tropeçar com informações úteis, já que estou sempre circulando e me
encontrando com gente estranha... Estou disposto a cooperar, já que é
você o envolvido, meu caro Professor. E também não gosto de bancar o
otário, que foi justamente o que Alicia Benedictus tentou fazer
comigo... Em tudo e por tudo, Professor, este foi um dia horrível. Esta
já foi uma cidadezinha simpática e aconchegante. Podia-se ficar envolto
por ela como se fosse massa de strudel. E agora? Não estou mais
gostando, Professor. Acho que vou começar a fazer as malas muito em
breve... Vá para casa agora, Professor. Conheço uma garota que sempre
mantém uma garrafa de conhaque preparada para Alvin Dolman!
Ele se afastou, atravessando a ponte, um homem grandalhão e
agressivo, esbarrando beligerantemente nos transeuntes. Mendelius

177
seguiu pelo caminho que levava ao parque. Ainda não estava com
vontade de voltar para casa. Precisava de tempo e tranqüilidade para
pôr seus pensamentos em ordem. E a família precisava de privacidade
para discutir as propostas radicais que ele apresentara.
Era um dia quente e bonito, os habitantes de Tübingen estavam
tomando sol nos gramados. À beira do lago, uma pequena multidão se
concentrara, a fim de observar o grupo teatral trabalhando com um
bando de crianças. Era uma cena cativante, os garotos de olhos
arregalados e aturdidos, totalmente absorvidos na história de um
palhaço triste que soltava lindas bolhas de sabão, mas não conseguia
fazer com que nenhuma delas pousasse em sua mão. O palhaço era o
mesmo jovem cadavérico que fizera uma apresentação particular no
Hõlderlinhaus. O resto da troupe representava as bolas, que zombavam
dos esforços dele para pegá-las...
Mendelius sentou-se na grama e ficou observando a pequena e
inocente encenação, fascinado pela reação das crianças, tímidas a
princípio, depois atraídas a participarem do espetáculo de mímica.
Depois dos debates sombrios e grandiosos em que estivera empenhado,
aquela experiência simples proporcionava-lhe uma estranha alegria.
Inconscientemente, ele se descobriu a imitar os trejeitos, mesuras e
gestos. O palhaço notou a presença dele e pouco depois pôs-se a contar
uma nova história, sempre por mímica. Ele convocou os outros atores e
as crianças, transmitindo-lhes a informação de que uma nova e estranha
criatura se aproximara. Seria um cachorro? Não. Um coelho? Não. Um
tigre, um elefante, um porco? Não. Então deviam examiná-la... mas
muito cautelosamente. Levando um dedo aos lábios, andando na ponta
dos pés, o jovem cadavérico levou-os em fila indiana para examinarem
a estranha criatura...
A audiência não pôde conter o riso quando percebeu que o alvo da
brincadeira era um homem de meia-idade, um tanto gordo. Mendelius,
depois de um momento de incerteza, resolveu aderir à brincadeira.
Enquanto os atores e as crianças o cercavam, ele retribuiu aos gestos e
trejeitos, como outrora fazia nas brincadeiras de adivinhação com os
filhos. Finalmente, revelou-se como uma imensa cegonha, apoiada numa
perna só e olhando através do bico comprido. A audiência aplaudiu. As
crianças riram excitadas por seu triunfo. O palhaço e sua troupe
agradeceram em mímica. Uma menina pegou a mão de Mendelius e
disse-lhe:
— Eu já sabia antes. Juro que já sabia que você era uma cegonha.
— Sei disso, liebchen.
Enquanto se abaixava para falar com a menina, Mendelius pensou

178
subitamente, com uma terrível pontada de desespero, que ela teria uma
aparência muito diferente depois do primeiro impacto de radiação ou de
uma infecção letal de antraz.

Naquela noite, ao jantar, Katrin e Johann dominaram a conversa,


ensinando uma lição inesperada aos pais. O argumento de Katrin foi
muito simples.
— Foi mamãe quem disse. Se tenho idade suficiente para viver com
um homem, também tenho para cuidar de meus próprios problemas...
Franz e eu precisamos melhorar nosso relacionamento, antes de
podermos pensar em casamento. Apesar do sucesso na galeria, Franz
ainda é muito inseguro... e eu também tenho de encontrar-me em
algumas coisas. Tenho sorte, pois conto com segurança financeira,
graças a papai. Quanto ao resto, porém, sempre me saio melhor quando
não há ninguém me segurando a mão.
— Mas Franz quer casar-se com você — protestou Lotte. — Ele me
contou que a pediu diversas vezes.
— Sei disso. Mas o que ele está querendo é uma Hausfrau, alguém
para fazê-lo sentir-se seguro e bem-alimentado... e assegurar que ele é
um gênio. Não quero esse papel... e também não quero que ele fique
preso em sua dependência. Franz tem de aprender que somos parceiros,
além de amantes.
— E o que vai acontecer se ele não aprender tão depressa quanto
você gostaria, irmãzinha? — perguntou Johann, sorrindo.
— Neste caso, meu caro irmão, tratarei de encontrar outro!
Lotte e Mendelius trocaram o olhar pesaroso de pais que se
descobrem completamente superados numa discussão. Mendelius
perguntou:
— E você, Johann? Já pensou na proposta que lhe fiz?
— Pensei muito, papai... e infelizmente acho que a idéia não vai certo
para mim.
— Por algum motivo especial?
— Apenas um. Está oferecendo-se para resolver um problema meu
Mas eu é que tenho de resolver tudo sozinho. Detesto a idéia de guerra.
Encaro-a como uma vasta e horrível inutilidade. Não quero ser
convocado para bucha de canhão, mas também não me sinto especial o
bastante para... ora, para ficar isento do destino que aguarda toda a
minha geração. Tenho de continuar junto dos que são iguais a mim,
pelo menos por tempo suficiente para determinar qual é o meu lugar...
Sei que não estou explicando muito bem. Agradeço a sua preocupação
por mim. Só que, neste caso, vai além do que quero ou preciso.

179
— Fico contente que tenha sido franco conosco, filho. — Mendelius
mal conseguia disfarçar sua emoção. — Não queremos dominar a sua
vida. O melhor presente que podemos dar-lhe é a liberdade e a
consciência para usá-la... Mas eu gostaria de fazer uma pergunta a toda
a minha família. Alguém se opõe a que eu compre o vale?
— Para que o usaria?
Johann fitava-o com uma expressão espantada.
— Seu pai também tem um sonho. — Lotte inclinou-se para tocar a
mão de Mendelius. — Quando se aposentar, gostaria de fundar uma
academia para estudos de pós-graduação... um lugar em que velhos
professores e estudiosos possam encontrar-se e partilhar o que
aprenderam ao longo da vida. Se ele quiser tentar... então vou apoiá-lo
no que for preciso.
— Acho uma idéia maravilhosa. — Katrin estava transbordando de
entusiasmo. — Vivo dizendo a Franz que todo mundo precisa estar
sempre se arriscando a alguma coisa. Quando uma pessoa fica segura
demais, acaba tornando-se sufocada e rançosa.
— Tem o meu apoio, pai. — Johann olhava para Mendelius com um
novo respeito. — Se eu puder ajudar na instituição da academia, conte
comigo... E se a situação ficar muito difícil aqui na universidade,
sempre poderá optar por uma aposentadoria prematura.
— Vou conversar com os meus advogados amanhã de manhã. Quero
que iniciem imediatamente as negociações com a Gräfin. E na semana
que vem irei conhecer o vale. Gostaria que me acompanhasse, Johann.
— Com o maior prazer.
— Gostaria de ir também, Lotte?
— Só depois, Carl. Vá sozinho com Johann desta vez. Katrin e eu
também temos coisas a fazer.
— Não podem imaginar como a idéia me atrai. — Mendelius expôs
seu plano. — Gostaria de conversar com um bom arquiteto... um tipo
especial de homem, interessado na integração com o ambiente...
— Todos estamos sendo muito calmos e lógicos — disse Lotte,
abruptamente. — Mas tenho o terrível pressentimento de que a vida não
vai transcorrer exatamente da maneira como se espera.
— Provavelmente não, liebchen. Mas temos de manter as esperanças
e agir como se fosse. Apesar das profecias de Jean Marie, ainda
acredito que podemos influenciar o curso dos eventos humanos.
— O suficiente e a tempo de evitar uma guerra?
Havia uma insinuação de desespero intenso e oculto na pergunta de
Lotte. Era quase como se ela esperasse que os filhos fossem

180
bruscamente arrebatados da mesa de jantar. Mendelius lançou-lhe um
olhar rápido e preocupado e disse, com mais confiança do que sentia:
— Isso mesmo, o suficiente e a tempo. Tenho até a esperança de que
a publicação de nossa história no domingo mobilize a atenção mundial
para a urgência de novas iniciativas pela paz.
— Mas metade do mundo jamais saberá do que você escreveu, papai!
— protestou Johann.
— Todos os líderes tomarão conhecimento — insistiu Mendelius,
quanto menos não fosse para arrancar Lotte da depressão em que ela
mergulhara. — Todos os serviços de informações vão ler e avaliar o
material... Jamais subestime a difusão até mesmo da notícia mais
simples. Agora, por que não tiramos a mesa e cuidamos logo de lavar e
arrumar tudo? Vão apresentar A Flauta Mágica na televisão. Sua mãe e
eu gostaríamos de assistir.
O telefone tocou no meio da apresentação. Era Georg Rainer, ligando
de Berlim:
— Carl? Acho que consegui entender os nossos espiões amadores. E
evidente agora que Monsenhor Logue passou adiante a informação de
que eu estava trabalhando na história. Creio que a vigilância foi
instituída apenas para confirmar esse fato. E agora o Vaticano decidiu
divulgar a sua própria versão da abdicação. Haverá um comunicado
formal, com cerca de 3 mil palavras, a ser publicado na edição da
próxima terça-feira do Osservatore Romano. Isso significa que
sairemos na frente e haverá muitas brigas e censuras por causa do erro
de cálculo. Fui informado de que o texto do Vaticano será distribuído à
imprensa secular na tarde de segunda-feira. Eu lhe telefonarei se houver
alguma coisa que afete nossa posição...
— O que seus editores estão achando da nossa história, Georg?
— Todos estão excitados. Mas há uma coisa interessante. Tem
havido muitas apostas sobre a reação que teremos do público.
— E como estão formulando as apostas?
— Quem ficará em situação melhor nas pesquisas de popularidade...
o Vaticano ou o antigo Papa? Escutando as conversas na redação, não
tenho mais certeza... Estarei de volta a Roma na manhã de segunda-
feira. Eu lhe telefonarei de lá. Dê lembranças a Lotte.
— E as minhas para Pia.
— Ah, eu já ia esquecendo. Decidimos ficar noivos. Ou pelo menos
Pia decidiu e dei o meu relutante consentimento.
— Meus parabéns!
— Preferia ser pobre e livre.
— Uma ova que preferia! Obrigado por telefonar, Georg.

181
— Quer que eu faça uma aposta por você no sweepstake papal?
— Dez marcos em Gregório XVII. Temos de apoiar o nosso
candidato até o fim!

O veredicto estava definido uma semana depois. O relato Rai-


ner/Mendelius sobre a abdicação foi recebido com o maior interesse
pelo público e encarado com respeito pelos entendidos. Houve uma
relutante concordância de que "esclarecia muitos pontos, deixados
diplomaticamente vagos no relato do Vaticano". Houve indagações se
os autores "não teriam expandido uma crise na burocracia religiosa às
dimensões de uma tragédia global''.
O Times de Londres fez a análise mais criteriosa, num artigo escrito
por seu editor de assuntos católicos romanos:

"Os autores, cada um em sua esfera, escreveram um relato honesto. A


história deles é cuidadosamente documentada, as especulações estão
baseadas na lógica. Iluminaram alguns dos atalhos mais escuros da
política do Vaticano. Se mostraram alguma tendência a exagerar a
importância de uma abdicação papal na História do século XX, deve-se
dizer em sua defesa que a majestade arruinada de Roma pode enganar a
imaginação mais sóbria.
O que eles não exageraram, no entanto, é no poder perene de uma
idéia religiosa despertar as paixões dos homens e incitá-los à ação mais
revolucionária. Depõe muito a favor da sabedoria coletiva dos homens
a Igreja Católica Romana o fato de estarem preparados para agir
prontamente e unidos contra o que encararam como o renascimento da
antiga heresia gnóstica. E depõe mais ainda em favor da profunda
espiritualidade do papa Gregório XVII o fato de ter preferido afastar-se
do cargo a dividir a assembléia dos crentes.
O professor Carl Mendelius é um estudioso sóbrio, de reputação
internacional. O tributo que presta a seu patrono e amigo antigo revela-
o como um homem ardoroso e leal, com muita coisa de poeta. Ele é
sensato o bastante para admitir que a política humana não pode ser
dirigida pelas visões dos místicos. É também humilde o bastante para
saber que as visões podem conter verdades que ignoramos no perigo.
O infortúnio de Gregório XVII parece ter sido o de escrever
prematuramente o epitáfio da humanidade. Mas teve a sorte do
memorial de seu reinado ter sido escrito com eloqüência e amor."

Mendelius era um homem inteligente demais para não perceber a

182
ironia da situação. Com a ajuda de Georg Rainer, erguera um
monumento a um velho amigo. Mas o monumento era uma lápide, sob
a qual estavam enterrados para sempre os derradeiros vestígios da
influência e poder que Jean Marie poderia ter exercido. Nenhum
homem poderia ter servido melhor ao novo Pontífice e suas políticas.
Era condizente que seu empenho o tivesse transformado num
milionário e lhe desse uma reputação muito além dos méritos de seus
estudos. Mas a mais amarga de todas as ironias foi um bilhete de
agradecimento que Jean Marie enviou de Monte Cassino:

"Obrigado a vocês dois, do fundo do meu coração, pelo que tentaram


fazer. Nenhum homem poderia ter melhores defensores ou amigos mais
generosos. A verdade foi contada com compreensão e compaixão.
Agora, o capítulo pode ser encerrado e o trabalho da Igreja prosseguir.
Assim, não deve falar como se tudo estivesse perdido. O fermento
está fazendo efeito na massa; a semente, espalhada ao vento, vai
germinar quando chegar o momento apropriado. ... Quanto ao dinheiro,
não desejo absolutamente nada. Espero que gaste alguma coisa com
Lotte e as crianças.
Mantenha a calma, meu querido amigo, continue aguardando as
palavras e o sinal.

Sempre seu em Jesus Cristo,


Jean Marie"

Lotte, lendo o bilhete por cima do ombro do marido, desmanchou-os


cabelos e murmurou:
— Deixe como está por enquanto, meu amor. Fez o melhor que podia
e Jean sabe disso. As pessoas desta família também precisam de você.
— E eu também preciso de você, liebchen. — Mendelius pegou as
mãos da mulher e puxou-a para sua frente. — Já me intrometi demais
no mundo dos grandes acontecimentos. Sou apenas um estudioso e não
um jornalista abelhudo... Sinto-me contente porque as aulas recomeçam
amanhã.
— Já preparou todo o material?
— A maior parte. — Mendelius levantou algumas folhas
datilografadas e soltou uma risada. — Este é o primeiro tema para o
período. Dê uma olhada no título: "A Natureza da Profecia"!
— Por falar em profecia, Carl, vou fazer-lhe uma. Teremos uma
grande temporada de comentários na cidade quando Katrin partir para

183
Paris com Franz. Como vamos enfrentá-los?
— Diga às velhas comadres para se jogarem no Neckar! —
respondeu Mendelius, sorrindo. — Quase todas renunciaram à sua
virgindade em barcos escondidos sob os salgueiros!
Todos os dias, durante as aulas, Carl Mendelius saía de casa às oito e
meia da manhã, descia a Kirchgasse até o mercado, onde comprava
uma flor para a lapela com a personagem mais antiga da praça, uma avó
de língua solta de Bebenhausen. De lá era uma caminhada de apenas
dois quarteirões até o Ilustre Colégio, no qual sempre entrava pelo
portão sul, sob as armas do Duque Christoph e seu lema: "NACH
COTTES WILLEN"... Conforme a Vontade de Deus. Ia direto para a
sua sala e passava meia hora conferindo as suas anotações e
examinando a pilha de correspondência que chegava diariamente da
administração da universidade. Exatamente às nove e meia, ele estava
na sala de aula, com suas anotações devidamente ordenadas.
Antes de sair de casa, naquela primeira segunda-feira do período,
Lotte lembrou-lhe a advertência da polícia para variar o percurso e o
comportamento. Mendelius deu de ombros, impacientemente. Tinha
três percursos para escolher e as aulas sempre começavam às nove e
meia. Não havia muitas variações a fazer. De qualquer forma, pelo
menos naquela primeira manhã, ele queria exibir uma flor na lapela.
Lotte beijou-o e acompanhou-o até a porta.
O ritual da chegada foi cumprido sem qualquer incidente. Ele passou
10 minutos conversando com o diretor do Colégio, depois subiu para
sua sala, que estava impecavelmente arrumada, cheirando a cera, graças
aos cuidados da zeladora. Sua bata estava pendurada atrás da porta. A
correspondência estava empilhada na mesa. A programação do período
estava pregada em sua estante de correspondência. Mendelius
experimentou uma súbita sensação de alívio, quase de libertação.
Aquele era o seu território. Podia percorrê-lo com os olhos vendados.
Ele abriu a pasta, verificou as anotações para as aulas do dia, depois
se concentrou na correspondência. A maior parte era material de rotina.
Mas havia um envelope grosso, com o lacre do reitor. Os dizeres
pareciam um tanto ameaçadores: "Particular e Confidencial — Urgente
—Entregar por Mensageiro.
Desde a reunião dos professores que o reitor vinha mantendo-se
deliberadamente calado em relação a todos os assuntos controvertidos.
Não era absolutamente impossível que ele quisesse agora encenar um
simulacro de batalha, com todas as ordens por escrito. Mendelius
hesitou em abrir o envelope. A última coisa que queria era ficar
perturbado com alguma coisa antes da primeira aula do período.

184
Finalmente, envergonhado de sua covardia, ele enfiou uma espátula sob
a aba do envelope.
Quando seus alunos aproximaram-se correndo, depois da explosão,
encontraram-no caído no chão, a mão esfacelada e o rosto todo
ensangüentado.

185
LIVRO DOIS

"Voz do que clama no deserto:


Preparai o caminho do Senhor, endireitai as Suas trilhas.''
CAPÍTULO 8

Sua Santidade o Papa Leão XIV recostou o corpo volumoso na


cadeira, ajeitou o pé com gota no banquinho por baixo da mesa e
contemplou o visitante como uma águia velha e mal-humorada. E
anunciou, em seu áspero sotaque emiliano:
— Francamente, meu amigo, está sendo um grande estorvo para
mim.
Jean Marie Barette permitiu-se um sorriso frio, assentindo.
— Infelizmente, Santidade, é mais fácil livrar-se de reis supérfluos
do que de Papas na mesma situação.
— Não me agrada a idéia de sua visita a Tübingen. E gosto ainda
menos da idéia de você desfilar pelo mundo como algum intelectual
jesuíta. Fizemos um acordo por ocasião da sua abdicação.
— Permita uma correção — disse Jean Marie, bruscamente. — Não
houve qualquer acordo. Assinei o instrumento de abdicação sob coação.
Coloquei-me voluntariamente na situação de obediência ao Abade
Andrew... e ele me disse que devo, em caridade, fazer uma visita a Carl
Mendelius e sua família. Mendelius está gravemente doente. Pode
morrer a qualquer momento.
— Está bem! — Sua Santidade era um burocrata por demais calejado
para gostar de uma confrontação. — Não vou interferir com a decisão
de seu Abade. Mas quero lembrar-lhe que não tem qualquer missão
canônica. Está expressamente proibido de pregações públicas e de
ensinar. Sua atribuição de ordenar clérigos está suspensa... mas é claro
que não está proibido da celebração da Missa ou dos Sacramentos.
— Por que tem medo de mim, Santidade?

188
— Medo? Não diga bobagem!
— Então por que nunca se ofereceu para devolver-me as funções do
meu bispado e do meu sacerdócio?
— Porque assim parecia mais conveniente, para o bem da Igreja.
— Deve compreender que estou reduzido à impotência no que se
refere à minha vocação apostólica. Creio que tenho o direito de saber
quando e em que circunstâncias minhas atribuições possam ser
restauradas e me confiada uma missão canônica.
— Não posso dizer-lhe isso. Ainda não se tomou qualquer decisão.
— Qual é o motivo para a demora?
— Temos outras preocupações, mais urgentes.
— Com o devido respeito, Santidade, ninguém está dispensado da
justiça natural, quaisquer que sejam as preocupações.
— Está censurando-me? Em minha própria casa?
— Também já vivi aqui. Nunca me senti como um dono, mas apenas
como um inquilino... o que de fato eu era, como os acontecimentos
comprovaram.
— Vamos tratar logo do propósito desta visita. O que está querendo
de mim?
— Dispensa para viver em estado leigo, viajar livremente e exercer
minhas funções sacerdotais em particular.
— Impossível!
— Qual é a alternativa, Santidade? Certamente se sentiria mais
constrangido em manter-me prisioneiro de minha própria palavra em
Monte Cassino.
— Toda essa situação é uma terrível confusão!
Sua Santidade estremeceu ao mover o pé dolorido no banquinho.
— Estou oferecendo-lhe uma saída. Rainer e Mendelius publicaram
um relato honesto da abdicação. Pensaram estar defendendo-me. Mas
qual foi o resultado concreto? Tudo acabou sendo favorável à Igreja,
como sempre. E está sentado agora na Cadeira de Pedro, além de
qualquer infâmia. Se eu tentasse mudar tal situação... e pode estar certo
de que não tenho o menor desejo de fazê-lo... só conseguiria bancar o
idiota publicamente. Será que não pode perceber que, em vez de ser
uma ameaça ou um estorvo, posso ser-lhe extremamente útil?
— Não pode ser-me útil propagando essas idéias lunáticas sobre os
Últimos Dias e o Segundo Advento!
— Será que continuam a parecer-lhe tão lunáticas assim do lugar em
que está sentado agora?
Sua Santidade remexeu-se na cadeira, inquieto. Limpou a garganta
ruidosamente e enxugou o rosto com um lenço de seda.

189
— Admito que nos estamos encaminhando para uma situação
altamente crítica, mas não posso entregar-me a pesadelos a respeito.
Continuo a fazer o que me cabe todos os dias e...
Ele parou de falar abruptamente, embaraçado pelo olhar atento do
homem que afastara do cargo. Jean Marie nada disse. Sua Santidade
finalmente recuperou a voz:
— E agora vamos ver... Onde é que estávamos mesmo? Ah, sim, o
seu pedido! Se a sua situação em Monte Cassino não é satisfatória, se
deseja voltar à vida particular, por que não fazemos um acordo
temporário, in petto, sem quaisquer documentos ou formalidades? Se
não der certo, então ambos teremos outros recursos. Acha que faz
sentido?
— Perfeitamente, Santidade. — Jean Marie mostrou-se deliberada-
mente grato. — Posso garantir-lhe que não terá motivos para se
arrepender. Estou presumindo que o acordo começa a vigorar agora.
— Claro.
— Então viajarei para Tübingen pela manhã. Já providenciei um
passaporte francês e devolvi o documento do Vaticano à Secretaria de
Estado.
— Isso não era necessário.
Sua Santidade sentia-se tão aliviado que podia dar-se ao luxo de ser
magnânimo.
— Melhor assim — respondeu Jean Marie Barette, suavemente. —
Como um homem sem uma missão canônica, não gostaria de dar a
impressão que a tenho.
— O que pretende fazer?
— Ainda não sei, Santidade. — O sorriso dele era franco como o de
uma criança. — Provavelmente acabarei anunciando as boas-novas nas
encruzilhadas. Antes, porém, devo visitar meu amigo Carl.
— Acha... — Sua Santidade parecia estranhamente constrangido. —
Acha que Mendelius e sua família gostariam de que eu lhes enviasse
uma benção papal?
— Mendelius ainda está gravemente doente. Mas tenho certeza de
que sua mulher apreciaria o gesto.
— Assinarei o pergamento e determinarei a meu secretário que o
despache pela manhã
— Obrigado. Tenho a permissão de Vossa Santidade para retirar-me?
— Pode retirar-se.
Inconscientemente, ele caíra no formalismo antigo. E para retratar-se

190
da atitude desnecessária, levantou-se com dificuldade e estendeu a mão.
Jean Marie inclinou-se sobre o anel que outrora usara em sua mão
direita Pela primeira vez, Leão XIV parecia afetado por um pesar
genuíno. E disse, meio sem jeito:
— Talvez... talvez se nos tivéssemos conhecido melhor, nada disso
precisaria acontecer.
— Se não tivesse acontecido, Santidade, se eu não procurasse apoio
em minha solidão, Carl Mendelius estaria agora gozando de saúde
perfeita em sua casa!

***

Naquela mesma noite, Anton Cardeal Drexel recebeu-o para jantar e


a conversa que tiveram foi muito diferente. Jean Marie explicou
ansiosamente o que escondera tão cuidadosamente em sua entrevista
com o Pontífice:
— Quando soube o que aconteceu com Carl, compreendi no mesmo
instante, sem a menor sombra de dúvida, que era o sinal e a convocação
que estava esperando. É um pensamento terrível, Anton, mas o sinal é
sempre uma contradição: o homem em agonia suplicando para ser
libertado. Pobre Carl! Pobre Lotte! Foi o filho quem me enviou o
telegrama. Achava que o pai gostaria de que eu estivesse presente e a
mãe suplicava-me que fosse. Fiquei apavorado com a possibilidade de
nosso Pontífice recusar permissão. Tendo conformado-me até agora,
não queria travar uma batalha neste estágio.
— Teve sorte — disse Drexel, secamente. — Ele ainda não viu este
material. Georg Rainer enviou por um mensageiro esta tarde.
Drexel pegou um envelope pardo grande, cheio de fotografias de
imprensa. Todas eram de Tübingen. Mostravam uma cidade dominada
por um fervor medieval de agitação, devoção e tumulto.
Mendelius era mostrado no hospital, todo enfaixado como uma
múmia, apenas a boca e as narinas visíveis, enquanto uma enfermeira
ficava de vigília ao lado da cama e guardas armados postavam-se na
porta. Na Stiftskirche e na Jakobskirche, homens, mulheres e crianças
ajoelhavam-se em oração. Estudantes desfilavam pelo campus com
faixas improvisadas: "NÃO QUEREMOS ASSASSINOS
ESTRANGEIROS. OPERÁRIOS ESTRANGEIROS, ASSASSINOS
ESTRANGEIROS! QUEM CALOU MENDELIUS? POR QUE A
POLÍCIA TAMBÉM ESTÁ CALADA?"
Nos setores industriais dos subúrbios, jovens locais entravam em
choque com operários turcos. No mercado, um político falava a uma

191
multidão ali concentrada na hora do almoço. Por trás dele, podia-se ler
um cartaz em quatro cores. "SE QUEREM SEGURANÇA NAS RUAS
VOTEM EM MULLER!"
Jean Marie examinou as fotografias em silêncio. Drexel comentou:
— Incrível, não é mesmo? É quase como se eles estivessem
esperando por um mártir. E manifestações similares estão sendo
realizadas em outras cidades da Alemanha.
Jean Marie estremeceu, como se alguma criatura repulsiva se tivesse
encostado nele.
— Carl Mendelius no papel de Horst Wessel! É um pensamento
horrível. O que será que a família pensa de tudo isso?
— Perguntei a Georg Rainer. Ele me disse que a mulher de
Mendelius está profundamente chocada. Ela raramente aparece. A filha
cuida dela em casa. O filho deu uma entrevista em que declarou que o
pai ficaria horrorizado se soubesse o que estava acontecendo. Afirmou
que a tragédia estava sendo manipulada para criar uma vendeta social.
— Manipulada por quem?
— Por extremistas da esquerda e da direita.
— Não é muito específico.
— Mas estas fotografias... — Drexel bateu nas fotos espalhadas
sobre a mesa. — ... São terrível e perigosamente específicas. É a velha
magia negra dos manipuladores das emoções públicas e demagogos.
— É mais do que isso. — Jean Marie Barette estava subitamente
sombrio. — É como se o mal que vive à espreita no homem tivesse
encontrado subitamente um ponto de vazão nesta pequena cidade
provinciana. Mendelius é um homem de bem. Contudo, em seu
momento de sofrimento e angústia, torna-se o herói disso... desse sabá
das feiticeiras! Isso é humor negro, Anton. E confesso que me assusta.
Drexel lançou-lhe um olhar rápido e começou a guardar as
fotografias de volta no envelope. E perguntou, casualmente:
— Agora que está livre e pode ser anônimo, já tem algum plano?
— Pretendo visitar velhos amigos, descobrir o que eles pensam a
respeito de nosso triste mundo... mas sempre esperando pelo sinal,
sempre atento à voz que me dirá para onde devo seguir. Sei que lhe
parece estranho, mas para mim é perfeitamente natural. Sou como o
junco pensante de Pascal, esperando que o vento me incline em sua
passagem.
— Mas diante desta coisa terrível... — Drexel guardou o envelope
com as fotografias — ... diante de outros males que se seguirão, o que
vai fazer? Não pode curvar-se a todos os ventos ou deixar qualquer
grito sem resposta.

192
— Se Deus decidir tomar emprestada minha voz errante, certamente
encontrará as palavras para eu usar.
— Faça como um iluminista! — Drexel sorriu, a fim de atenuar a
alusão. — Fico contente de que os nossos colegas na Congregação não
possam ouvi-lo.
— Pois deveria dizer a nossos colegas. — Havia um tom de
determinação na voz de Jean Marie. — Eles ouvirão em breve o grito
de batalha do Arcanjo Miguel. "Quis sicut Deus?" Quem é igual a
Deus? Apesar de todos os silogismos deles, fico perguntando-me
quantos se levantarão para desafiar e confrontar o Anticristo. Algum
dos Amigos do Silêncio já denunciou os excessos em Tübingen e outros
lugares?
— Se o fizeram, ainda não chegou ao nosso conhecimento. — Drexel
deu de ombros. — Mas também são homens prudentes. Preferem deixar
as paixões arrefecerem antes de falarem... Mas o fato é que nós dois
somos muito velhos para lamentar as loucuras de nossos irmãos... e
somos também velhos demais para curá-las. Diga-me uma coisa, Jean.
Pode parecer uma pergunta impertinente, mas a resposta é muito
importante para mim.
— Pode perguntar.
— Está com 65 anos. Subiu ao ponto mais alto a que um homem se
pode elevar. Agora, voltou ao ponto de partida. Só que não tem mais
uma carreira, um futuro visível. O que realmente está pretendendo?
— Luz suficiente para perceber um senso divino neste mundo
enlouquecido. E fé suficiente para seguir essa luz. Isso é a base de tudo,
não é mesmo? A fé remove montanhas e diz ao aleijado: "Levanta-te e
anda!"
— Também precisamos de algum amor para tornar suportável as
trevas.
— Amém a isso! — disse Jean Marie, suavemente. — Tenho de ir
agora, Anton. Já ocupei seu tempo em demasia.
— Antes de partir... como está a sua situação em termos de dinheiro?
— Bastante boa. E obrigado pelo interesse. Tenho um patrimônio,
administrado por meu irmão, que é banqueiro em Paris.
— Onde passará esta noite?
— Há uma hospedaria para peregrinos em Santa Cecília. Hospedei-
me lá em minha primeira viagem a Roma.
— Por que não fica aqui? Tenho um quarto de sobra.
— Obrigado, Anton, mas não posso aceitar. Não pertenço mais a este
lugar. E tenho de me acostumar novamente ao mundo. Posso querer
ficar sentado até tarde na praça, conversando com os solitários. — Ele

193
fez pausa, antes de acrescentar, com um sorriso patético: — E talvez,
antes do amanhecer, Ele possa querer falar-me... Compreenda, por
favor. E reze por mim.
— Eu gostaria de poder acompanhá-lo, Jean.
— Você foi feito para uma companhia melhor, meu velho amigo. Mas
eu nasci sob uma estrela cadente. E quase que tenho a sensação de estar
voltando para casa. — Jean Marie gesticulou na direção das luzes dos
aposentos papais. — Fique perto de nosso amigo lá em cima. Ele tem
nome de leão, mas não passa de um gatinho doméstico. Quando os dias
terríveis chegarem, ele vai precisar de um homem forte a seu lado...
Um aperto de mão, breves palavras de despedida e ele se foi, um
vulto esguio e frágil, tragado pelas sombras da escada. O Cardeal
Drexel serviu-se do resto de vinho na garrafa e ficou pensando no
aforismo de outro iluminista, Louis Claude de Saint-Martin: "Todos os
místicos falam a mesma linguagem, porque provêm da mesma terra."

***

A viagem para Tübingen foi uma lição sobre a sua própria


inadequação. Pela primeira vez em 40 anos, Jean Marie usava trajes
civis. Levou meia hora para ajustar a gravata sobre a camisa leve de
verão. No mosteiro, acomodara-se numa rotina familiar. No Vaticano,
todos os seus movimentos contavam com a ajuda necessária. Agora,
estava totalmente desprovido de privilégios. Teve de gritar para chamar
o táxi que o levaria ao aeroporto e discutir com o exuberante romano
que alegava ter feito sinal primeiro. Não tinha notas pequenas para a
gorjeta e o motorista dispensou-o desdenhosamente. Não havia
ninguém para encaminhá-lo ao balcão em que deveria pegar sua
passagem para Stuttgart. A moça não tinha troco para as suas notas de
valor alto e ele nunca usara um cartão de crédito em toda a sua vida
clerical.
No Vaticano, as funções fisiológicas do Papa eram feitas numa
sagrada intimidade. No banheiro do aeroporto, ele teve de entrar em fila
e o bêbado ao seu lado ainda salpicou-lhe os sapatos e a perna da calça.
No bar, foi empurrado e derramaram café em sua manga. E, como
indignidade final, o avião estava com excesso de lotação e ele teve de
discutir para conseguir um lugar.
A bordo, teve de enfrentar uma questão de identidade. A seu lado
estava sentada uma mulher idosa da Renânia, nervosa e loquaz. A partir
do momento em que deixou perceber que falava alemão, foi atraído

194
para uma torrente de conversa a que não podia escapar. A mulher
finalmente perguntou-lhe o que fazia para ganhar a vida. Jean Marie
demorou pelo menos 10 segundos para dar a resposta óbvia.
— Estou aposentado, minha senhora.
— Meu marido também se aposentou. E tornou-se impossível desde
então, completamente insuportável. Como sua mulher está aceitando
sua presença em casa durante o dia inteiro?
— Sou solteiro.
— É estranho que um homem bonito assim nunca se tenha casado.
— Infelizmente, eu era casado com minha carreira.
— E o que era? Um médico? Ou um advogado?
— As duas coisas — respondeu Jean Marie, solenemente.
E tratou de aliviar a consciência com uma lógica casuística: Fora de
fato um médico de almas e havia leis suficientes no Vaticano para
sufocar Justiniano.
Chegando a Stuttgart, ele foi recebido por Johann Mendelius, ansioso
em dar-lhe as boas-vindas, mas de certa forma amargo e tenso, como
um oficial inexperiente que acabara de voltar de seu primeiro combate.
Tratou Jean Marie de "senhor", evitando todos os títulos clericais.
Guiou com extremo cuidado pelas estradas nas colinas, seguindo pelo
caminho mais longo para Tübingen, porque algumas coisas precisavam
de ser explicadas antes de chegarem, conforme informou.
— Papai ainda está em estado grave. O explosivo na carta-bomba
estava comprimido entre folhas de alumínio e impregnado com
pequenas esferas de rolamento. Algumas penetraram num dos olhos,
chegando bem perto do cérebro. Sabemos que ele perdeu a visão de um
olho e pode perder também a do outro. Não vimos o rosto dele. Mas
está obviamente muito mutilado. E ele perdeu a mão esquerda. Serão
necessárias outras operações, mas só depois que ele estiver mais forte.
Há ainda uma infecção perigosa no braço e outra no olho. E a gama de
antibióticos que ele pode suportar é bastante limitada... Assim, só
podemos esperar. Mamãe, Katrin e eu visitamos o hospital
alternadamente... Mamãe está agüentando de uma forma extraordinária.
Ela tem coragem para todos nós. Mas não se surpreenda se ela ficar
muito emocionada quando o encontrar. Não contamos a mais ninguém
sobre a sua vinda, a não ser a Prof.ª Meissner. Ela é a amiga mais
chegada de papai entre os professores... Do jeito em que está a situação
neste momento, Tübingen está fervilhando de boatos. Assim que papai
se recuperar... se tal acontecer... pretendo levá-lo para bem longe.
O tom de raiva e amargura não passou despercebido a Jean Marie

195
Barette. E ele comentou.
— Já ouvi falar das manifestações. Georg Rainer enviou algumas
fotografias ao Vaticano. Ao que parece, os ânimos andam muito
exaltados.
— Exaltados demais! — A resposta foi um tanto brusca. — Meu pai
era bastante conhecido e respeitado. Mas não era um homem que
atraísse a atenção pública. As manifestações não foram espontâneas. Ao
contrário, foram organizadas de maneira sutil e cuidadosa.
— Em tão pouco tempo? — Jean Marie estava em dúvida. — Por
quem? E por que motivos?
— Como uma manobra de propaganda para encobrir os verdadeiros
autores do atentado contra a vida de meu pai.
— Se quiser fazer a gentileza de parar na próxima área de
estacionamento — disse Jean Marie Barette, firmemente — poderemos
conversar sobre tudo isso, antes de chegarmos a Tübingen. Ao contrário
de seu pai, tenho sido um homem sob o foco da atenção pública... e não
gostaria de ter qualquer surpresa.
Pararam cerca de um quilômetro adiante, entre uma planície e um
bosque de pinheiros. Johann Mendelius fez o seu relato sobre a
tentativa de assassinato.
— Tudo começou em Roma. Por puro acaso, papai foi testemunha de
um atentado terrorista. Houve manchetes e advertências: poderia haver
tentativas de silenciá-lo ou represálias contra sua família. Tudo isso está
claro, simples e lógico... Papai e mamãe voltaram a Tübingen. A polícia
procurou-os, com novas advertências. Um desenho de meu pai foi
encontrado no bolso de um homem morto numa briga de bar. Novas
advertências foram feitas. Nessa ocasião, o reitor da universidade
comunicou aos professores que deviam preparar-se para uma
mobilização militar em grande escala, que deviam fornecer cientistas
para as Forças Armadas e cooperar na vigilância-segurança dos
estudantes. Meu pai protestou veementemente contra tal vigilância.
Ameaçou pedir demissão se fosse algo compulsório. Em cima de tudo
isso, ele escreveu o relato de sua abdicação e tornou-se conhecido no
mundo inteiro. Há uma conotação política que não passou despercebida
às autoridades alemães. Meu pai não era mais um mero professor
universitário, mas sim uma personalidade internacional. Num momento
em que os homens da cúpula estavam empenhados em impingir uma
guerra ao público desprevenido, meu pai podia ser considerado um
homem perigoso...
— E como ele já estava sob ameaça de um grupo subversivo, havia
uma esplêndida cobertura para um assassinato sancionado oficialmente!

196
— Exatamente. E quando houve o atentado, a cidade inteira foi
manipulada para o protesto. Há uma possível conseqüência. As
manifestações contra os operários estrangeiros podem apressar o dia em
que serão recambiados de volta às suas terras ou obrigados a trabalhos
forçados, em tempo de guerra.
— Já me apresentou a hipótese — disse Jean Marie Barette
calmamente. — Agora, apresente as provas.
— Não tenho provas, mas apenas motivos para uma suspeita muito
profunda.
— Por exemplo?
— Disse que viu as fotografias das manifestações estudantis. Eu vi os
próprios manifestantes... e tenho certeza de que a maioria jamais entrou
numa sala de aula da universidade. Os jornais publicaram um diagrama
da carta-bomba, supostamente fornecido pelo departamento técnico da
policia. Mas a bomba verdadeira era muito diferente... um artefato
altamente sofisticado, fabricado com uma precisão de laboratório.
— Quem lhe disse isso?
— Dieter Lorenz. Ele era o contato de meu pai no Kriminalamt. Dois
dias depois do atentado, foi promovido e transferido para Stuttgart... e
afastado do caso!
— Mais alguma coisa?
— Uma porção de coisas pequenas. Mas só fazem sentido no
contexto desta nossa cidade, pequena e especial. Não sou o único que
pensa assim. A Prof? Meissner concorda comigo... e é uma mulher de
inteligência excepcional. Vai conhecê-la em nossa casa esta noite...
— Só mais uma pergunta. Conversou sobre essas coisas com sua
mãe?
— Não. Ela já tem coisas demais com que se preocupar. E a simpatia
dos habitantes da cidade ajuda-a a agüentar.
— E seu pai, é claro, não sabe de nada?
— Não temos a menor idéia do quanto ele sabe. — Johann
Mendelius fez um gesto de cansaço e desânimo. — Ele pode emitir
sons de reconhecimento, aperta nossas mãos para indicar que ouviu o
que falamos. Mas isso é tudo. Penso às vezes que a morte seria um ato
de misericórdia para ele.
— Ele vai sobreviver. Seu verdadeiro trabalho ainda não começou.
— Eu gostaria de poder acreditar nisso, senhor.
— Você acredita em Deus?
— Não.
— Isso torna a vida bastante difícil.

197
— Ao contrário, simplifica tudo. Por mais brutais que os fatos
possam ser, não os complicamos ainda mais com ficção religiosa.
— Acaba de me contar uma história que, a ser verdadeira, está o mais
perto possível a que se pode chegar do mal puro. Seu pai está mutilado,
ainda pode morrer, numa tentativa de assassinato por agente de seu
próprio país. Qual é o seu remédio contra os que encaram o assassinato
como um mero expediente político?
— Se quer realmente saber a resposta, senhor, eu lhe mostrarei
amanhã... Podemos ir agora?
— Antes de continuarmos, Johann, eu gostaria de pedir-lhe um
favor.
— Pode falar.
— É o filho do meu amigo querido. Por favor, não me chame de
senhor. Meu nome é Jean Marie.
Pela primeira vez, o rapaz relaxou, as feições tensas contraindo-se
num sorriso. Ele sacudiu a cabeça.
— Não vai dar certo, infelizmente. Mamãe e papai ficariam chocados
se eu o tratasse por seu nome de batismo.
— Que tal Tio Jean? Pouparia muitas explicações desnecessárias
quando me apresentasse a seus amigos.
— Tio Jean...
Johann repetiu diversas vezes, depois tornou a sorrir e acenou com a
cabeça em concordância:
— E agora, Tio Jean, deixe-me levá-lo para casa. Vamos almoçar
cedo, porque mamãe quer levá-lo ao hospital às três horas da tarde.
Johann tornou a entrar com o carro na estrada, ultrapassando um
imenso caminhão, com uma carga de troncos de pinheiro.
— Por quanto tempo poderá ficar conosco?
— Apenas por um ou dois dias. Mas espero que seja tempo suficiente
para ser útil a seu pai e sua mãe... talvez até para entrar em contato com
o demônio do meio-dia que veio instalar-se em sua cidade.
— Demônio do meio-dia? — Johann Mendelius exibiu um sorriso
tolerante. — Não ouço falar dele desde as aulas de Bíblia.
— Mas não tem medo dele?
— Claro que tenho medo. — A resposta de Johann foi imediata e
objetiva. — Mas não de demônios e espíritos adversários. Tenho medo
de nós mesmos, homens e mulheres, tenho medo da terrível loucura
destrutiva que nos domina... Se eu soubesse com certeza quem fez isso
com meu pai, haveria de matá-lo sem pensar duas vezes.
— Para quê?

198
— Por justiça... para equilibrar novamente a balança, dissuadir um
futuro inimigo.
— Seu pai foi a vítima. Ele aprovaria tal reação?
— Está enganado, Tio Jean. Papai não é a única vítima. Não se está
esquecendo de mamãe, Katrin e eu, de todas as pessoas da cidade que
foram afetadas pelo atentado? Nada jamais voltará a ser como antes...
para qualquer de nós!
Jean Marie disse, incisivamente:
— Parece-me que você possui uma idéia muito definida da natureza
do mal... e do maligno como um inimigo. Mas o que me diz do bem?
Como ele se apresenta para você?
— É muito simples. — A voz de Johann tornou-se subitamente tensa
e áspera. — Minha mãe é boa. É uma mulher corajosa, algo que não é
fácil. Pensa em nós e em papai antes de pensar em si mesma. Para mim,
isso é o bem. Papai também é bom. Contempla-se o rosto dele e se vê
um Mensch. Há sempre amor suficiente para ajudá-lo a enfrentar os
momentos difíceis. Mas vai ver só o que acontecerá com essas pessoas
de bem... E gostaria de acrescentar que fico contente de que se tenha
apresentado simplesmente como Tio Jean, porque não creio que
gostaria de conhecê-lo como Papa.
— Nunca ouvi um exercício de lógica tão ruim. — Jean Marie soltou
uma risada. — Ficaria lisonjeado em conhecer-me antes. Eu era um
camarada muito mais simpático do que sou agora. Quando fui eleito, um
jornalista classificou-me como o mais atraente dos príncipes modernos!
E não se esqueça de que nem sempre é o príncipe que provoca o mal.
Geralmente ele não é esperto o bastante para ser um Satã. O verdadeiro
inimigo é o que sussurra a maldade em seu ouvido e se oferece para fazer
todo o seu trabalho sujo, mantendo incólume a sua reputação...
— Mas quem quer que seja o causador do mal, nós o suportamos
porque o merecemos. — Johann guiava com um cuidado extremo,
como se receasse que a conversa pudesse excitá-lo e levá-lo a fazer
alguma manobra perigosa. — Queremos ser sempre inocentes e nos
situarmos além do alcance da maldade. Papai adotou as precauções que
lhe sugeriram, mas não foi além disso. Um cuidado excessivo estava
abaixo de sua dignidade. Ele considerava tal reação como um triunfo
para o terror. Não é assim que eu penso. Ando sempre com muita
cautela, atento, olhos e ouvidos abertos... e levo uma arma que não terei
medo de usar. Isso por acaso o deixa chocado, Tio Jean?
— Não. Apenas leva-me a pensar como se sentirá quando matar seu
primeiro ser humano.

199
— Espero que nunca tenha de fazê-lo.
— Contudo, está constantemente preparado para esse ato. O homem
que tentou matar seu pai fê-lo a distância, mecanicamente, como se
estivesse provocando uma explosão numa pedreira. Com uma pistola,
no entanto, você matará frente a frente. Vai ouvir o grito da vítima em
agonia. Vai ver a morte nos olhos dela. Vai sentir o cheiro de sangue.
Está preparado para isso?
— Como falei antes, espero que este momento nunca chegue. Mas se
for inevitável, estou preparado.
Jean Marie Barette nada disse. O problema estava além de qualquer
argumentação. Ele esperava que não estivesse também além do poder
salvador da graça. Recordou-se da paisagem vazia e desolada da visão,
o planeta do qual a humanidade se exterminara, de tal forma que não
restava nada nem ninguém para amar.

O encontro dele com Lotte foi inicialmente estranho. Houve um


momento de choque, quase de desapontamento, quando ela o viu
vestido como um leigo. Um súbito constrangimento impediu-a até de
um aperto de mão. Jean Marie teve de segurá-la pelos braços e puxá-la
para si. Por uma fração de segundo, parecia que Lotte rejeitaria o
abraço. No instante seguinte, porém, o controle dela desmoronou e
abraçou-se a Jean Marie, chorando baixinho, enquanto ele a acalmava
como a uma criança, com palavras ternas.
Katrin chegou a casa naquele momento. Johann apresentou-a a Tio
Jean. Depois do primeiro instante de constrangimento, todos puderam
conversar calmamente. Katrin apresentou o relatório matutino sobre o
pai.
— Conversei com o Dr. Pelzer. Ele não está muito satisfeito. A febre
tornou a subir. Papai não reage à conversa tão bem quanto ontem.
Lembram-se de como ele apertava a nossa mão para indicar que
compreendia alguma coisa? Pois esta manhã só conseguiu ter reações
ocasionais. Ele parecia estar inconsciente no resto do tempo... O Dr.
Pelzer disse que eu podia vir embora. Ficou de nos telefonar se ocorrer
alguma mudança súbita.
Lotte assentiu e afastou-se, a fim de ocupar-se com os preparativos
para o almoço. Katrin seguia-a para a cozinha. Johann disse,
bruscamente:
— A situação é essa. Estamos todos numa gangorra, num momento
lá em cima, no outro lá embaixo. É por isso que não quero dar falsas
esperanças a mamãe e Katrin.
— Está com receio de que eu possa incutir-lhes falsas esperanças?

200
— Disse que meu pai vai sobreviver.
— E tenho certeza disso.
— Pois eu não tenho certeza. Assim, prefiro que mamãe e Katrin
aprendam a conviver com a incerteza. Haverá sofrimento suficiente
quer papai viva ou morra.
— Sou seu hóspede. Claro que respeitarei seus desejos.
Lotte voltou nesse momento, trazendo uma toalha de linho e
guardanapos. Entregou a Johann e pediu-lhe que botasse a mesa. Ela
pegou Jean Marie pelo braço e levou-o para o aposento contíguo.
— Katrin está cuidando do almoço. Podemos conversar a sós por
alguns minutos... É curioso que não consigo acostumar-me a vê-lo
vestido dessa maneira. Sempre pareceu tão imponente em Roma... E é
estranho também ouvir as crianças tratando-o por Tio Jean!
— Receio que Johann não me aprove inteiramente.
— Ele se está empenhando tanto em ser o homem da casa que às
vezes fica confuso. Não consegue tirar da cabeça a noção de que você
foi de alguma forma responsável pelo que aconteceu ao pai.
— E ele está certo. Sou mesmo o responsável.
— Por outro lado, ele sabe o quanto Carl o ama e respeita. Mas não
pode andar por esse terreno sagrado enquanto Carl ou você não
convidá-lo. Sei que é difícil, pois a princípio também foi difícil para
mim. Acrescente-se a tudo isso que o medo da guerra, o ressentimento
pelo fato de que ele, como milhões de outros, serão convocados a lutar
por uma causa já perdida... Seja paciente com ele, Jean. Nosso pequeno
mundo está desmoronando e estamos tateando à procura de alguma
coisa sólida em que nos segurarmos.
— Olhe para mim, Lotte.
— Estou olhando.
— Agora, feche os olhos com força. E não os abra enquanto eu não
mandar.
Jean Marie tirou do bolsinho do paletó uma pequena caixa de jóias,
em marroquim vermelho. Abriu-a na mesinha ao lado de Lotte.
Continha três objetos, trabalhados em ouro, no estilo dos florentinos do
século XVI. Havia uma pequena caixa redonda, um frasco e uma taça
que não era maior do que um dedal.
— Abra os olhos.
— E o que devo ver?
Jean Marie apontou para a caixa.
— São lindos, Jean. Mas o que são?
— Um dos privilégios do Papa era o de poder levar constantemente
em sua pessoa a Eucaristia. Era assim que ele o fazia. A caixa era para a

201
hóstia consagrada. O frasco e a taça são para o vinho. Há um pequeno
lenço por baixo da tampa, para a limpeza dos recipientes. As pessoas da
minha primeira paróquia deram-me o conjunto como um presente
pessoal, no dia da minha eleição... Quando eu estava deixando Roma,
vindo para cá, senti-me de repente envergonhado. Não tinha nada a
trazer para as pessoas que estavam sofrendo por minha causa. Assim,
cheguei mais cedo a Fiumicino, celebrei uma missa particular na capela
do aeroporto e trouxe a Eucaristia comigo para você e Carl. Eu lhes
darei a comunhão hoje, no hospital...
Lotte ficou profundamente comovida. Fechou a caixa e devolveu-a a
Jean Marie.
— Isso diz tudo, Jean. Obrigada. Só espero que Carl esteja consciente
o bastante para compreender.
— Dormindo ou acordado, Deus o mantém na palma de sua mão.
— O almoço está servido — anunciou Katrin.
Depois que se sentaram, Lotte falou do presente que Jean Marie
trouxera. Johann disse, com alguma surpresa:
— Pensei que papai já tivesse recebido a extrema-unção.
— Claro que já recebeu — disse Lotte. — Mas a Eucaristia é uma
coisa diária... uma partilha do alimento, uma partilha da vida. Não é
isso mesmo, Jean?
— Exatamente. Uma partilha da vida com a fonte da vida.
— Obrigado. — Johann agradeceu a informação sem fazer qualquer
comentário e depois disse, com uma polidez deliberada: — Não
gostaria de dizer uma bênção por nós, Tio Jean?

No hospital, Lotte apresentou-o ao Dr. Pelzer. Pediu ao médico que


explicasse o estado clínico do paciente àquele velho amigo da família.
Foi assim que Jean Marie Barette viu Carl Mendelius primeiro numa
série de radiografias. A cabeça que outrora contivera a história de 20
séculos estava reduzida a uma caixa craniana com as mandíbulas
fraturadas, o septo destruído e diversos fragmentos de metal encravados
na estrutura óssea e na camada de carne ao redor. O Dr Pelzer, um
homem alto e vigoroso, de cabelos grisalhos, sempre cauteloso, fez um
comentário:
— Como pode perceber, a situação é terrível. Mas não podemos
tentar extrair todos esses corpos estranhos enquanto o estado do
paciente não for estável. Há muitos fragmentos na caixa torácica e na
parte superior do abdômen... Claro que algumas preces ajudariam... mas

202
não deixe a família ter muitas esperanças, está bem? Mesmo que
consigamos salvá-lo, ele vai precisar de muita terapia de apoio.
Jean Marie viu em seguida o homem vivo, preso aos vidros de soro
que gotejavam incessantemente, à máscara de oxigênio e ao monitor
cardíaco. A cabeça estava totalmente envolta por ataduras. Os olhos
afetados estavam felizmente ocultos. As cavidades oral e nasal estavam
abertas e imóveis. O coto da mão esfacelada estava por cima da colcha.
A mão intacta contraiu-se debilmente sobre as dobras da coberta.
Lotte levantou essa mão e beijou-a.
— Carl, meu querido, aqui é Lotte.
A mão se fechou sobre a dela. Um murmúrio saiu pela máscara de
ataduras.
— Jean Marie está aqui comigo. Ele vai conversar com você,
enquanto saio para dar um pequeno presente à freira do andar. Voltarei
daqui a pouco.
Ela saiu do quarto na ponta dos pés, fechando a porta. Jean Marie
pegou a mão de Mendelius. Estava lisa como cetim e parecia tão frágil
que dava a impressão de que os ossos poderiam quebrar-se, se alguém
apertasse com um pouco mais de força.
— Carl, aqui é Jean. Pode me ouvir?
Houve uma pressão em resposta contra a sua mão e mais ruídos
gorgolejantes, enquanto Mendelius tentava desesperadamente formular
uma resposta.
— Por favor, não tente falar. Nós dois não precisamos de palavras.
Fique quieto e segure a minha mão... Rezarei por nós dois.
Jean Marie não disse quaisquer palavras. Não fez gestos rituais.
Ficou simplesmente sentado na beira da cama, segurando a mão de
Mendelius entre as suas, de tal forma que pareciam um único
organismo vivo, o aleijado e o homem incólume, o cego e o homem
dotado de visão. Jean Marie fechou os olhos e abriu a mente, um
recipiente pronto para a infusão do espírito, um canal pelo qual podia
lançar-se na consciência unida de Carl Mendelius.
Era o único meio que ele conhecia agora de expressar o
relacionamento entre a criatura e o Criador. Não podia fazer qualquer
pedido. Estava todo contido na proclamação inicial: faça-se a Sua
vontade. Não podia barganhar, vida por vida, serviço por serviço,
porque não restava vestígio de ego a que atribuísse qualquer
importância. O mais importante agora eram o corpo e o espírito
agoniados de Carl Mendelius, para quem era agora o conduto de vida...

203
Quando o influxo finalmente chegou, foi simples e
extraordinariamente suave, como a aragem perfumada de um jardim no
verão. Houve luz e uma estranha percepção de harmonia, como se a
música não fosse tocada, mas gravada na textura do cérebro. Havia uma
calma tão intensa que ele pôde sentir as pulsações do doente se
aquietarem, como as ondas depois de uma tempestade. Quando ele
abriu os olhos, Lotte já estava de novo no quarto, olhando com medo e
espanto. Ela disse, constrangida:
— Eu não queria interromper, mas já são quase cinco horas.
— Tão tarde assim? Gostaria de receber a comunhão agora?
— Quero, sim, por favor. Mas não creio que Carl possa engolir a
hóstia.
— Sei disso. Mas ele pode tomar um gole do cálice. Está disposto,
Carl?
Uma pressão em sua palma indicou que Mendelius ouvira e
compreendia. Enquanto Lotte se sentava ao lado da cama, Jean Marie
arrumava os pequenos objetos de ouro e punha uma estola em torno do
pescoço. Depois de uma breve oração, ele entregou a hóstia consagrada
a Lotte e levou o cálice à boca de Mendelius. Enquanto ele pronunciava
as palavras rituais, "Corpus Domini", Lotte dizia "Amém" e Mendelius
levantava a mão, numa débil saudação.
Jean Marie limpou o cibório e o cálice com o lenço de damasco,
dobrou a estola, guardou tudo no bolso e saiu do quarto em silêncio.
Ao passar pelos guardas armados no corredor, foi abordado por uma
mulher horrenda, atarracada, de idade indeterminada, que se apresentou
abruptamente como a Prof.ª Meissner.
— Vamos jantar esta noite na casa dos Mendelius. Mas eu disse a
Lotte que precisava de uma hora a sós com você. Quer ir tomar um
drinque no meu apartamento?
— Será um prazer.
— Ótimo! Temos muito o que conversar.
Ela o pegou pelo braço e quase o arrastou até o elevador. Desceram
os três andares em silêncio, depois atravessaram rapidamente o saguão
e saíram para o sol do final da tarde. Foi só depois que deixaram a
clínica que Anneliese Meissner diminuiu o ritmo, pondo-se a descer
calmamente a ladeira, na direção da parte velha da cidade. Estava agora
mais relaxada, embora sua conversa continuasse brusca e objetiva.
— Sabia que Carl pediu meus conselhos profissionais a respeito de
sua carta e da encíclica?
— Não foi assim que ele me expressou a coisa. Mas eu sabia que
estava envolvida.

204
— E leu meus comentários ao artigo dele?
— Li, sim.
— Houve apenas um comentário que eles não usaram. Vou dizer-lhe
agora. Acho que é um homem muito perigoso. Os problemas os segui-
o, aonde quer que vá... E compreendo por que os seus colegas da Igreja
tinham de livrar-se de você.
A brutalidade do ataque deixou Jean Marie atônito e incapaz de falar
por um momento. E quando recuperou o uso da voz, pôde apenas dizer;
— O que devo responder a isso?
— Pode dizer-me que sou uma cadela... e sou mesmo! Mas isso não
me demoveria da minha opinião. Continuaria achando que é um homem
muito perigoso!
— Já ouvi a acusação antes — disse Jean Marie, calmamente. —.
Meus irmãos no Vaticano chamaram-me de bomba-relógio ambulante.
Mas gostaria de saber como vê o perigo que represento.
— Tenho pensado nisso por muito tempo. — Anneliese Meissner
estava agora mais suave. — E tenho lido muito. E escutado incontáveis
gravações de colegas que tiveram experiência clínica de manias
religiosas e influências cultistas. Ao final, fui forçada a concluir que
você é um homem com uma percepção especial do que Jung chama de
inconsciente coletivo. Portanto, provoca um efeito mágico nas pessoas.
É como se estivesse a par de seus pensamentos, desejos e medos mais
íntimos... como de fato está, nesta questão das Últimas Coisas. O
assunto está enraizado no mais profundo subsolo da memória racial.
Assim, quando se fala ou escreve a respeito, as pessoas o sentem por
dentro de si mesmas, quase como uma função de seus próprios egos...
Em conseqüência, tudo o que você faz ou diz tem conseqüências
profundas e às vezes terríveis. Você é o gigante sonhando sob o vulcão.
Quando se vira no sono, a terra treme.
— E o que acha que devo fazer em relação a esse poder perigoso?
— Não pode fazer nada — respondeu Anneliese Meissner,
secamente. — Foi nisso que seus cardeais erraram. Se o tivessem
deixado onde estava, o próprio peso do cargo e seus métodos
tradicionais teriam arrefecido as manifestações mágicas. Teria sido
mantido a uma distância segura das pessoas comuns. Agora, não existe
mais qualquer elemento de arrefecimento. Não há qualquer distância.
Seu impacto é imediato... e pode tornar-se catastrófico.
— E não vê nada de bom no poder ou em mim?
— De bom? Claro que sim! Mas é bom que resulta do desastre, como
o heroísmo no campo de batalha ou a dedicação de enfermeiras num

205
leprosário.
— Chama isso de Magia. Não tem outro nome para classificá-lo?
— Pode usar o nome que bem quiser. Como quer que se intitule,
padre, xamã, feiticeiro, a quem quer que afirme servir, o espírito dos
bosques, o Deus-homem, o Eterno, estará sempre no epicentro de um
remoto... É aqui que eu moro.
Estavam quase no alto do Burgsteige, diante de uma velha casa do
século XVI, construída de vigas de carvalho e tijolos feitos a mão.
Anneliese Meissner abriu a porta e conduziu-o por dois lances de
escada até seu apartamento, cujas janelas estreitas davam para as torres
de Hohentübingen e os pinheiros das montanhas suábias. Ela tirou uma
pilha de livros de uma poltrona e gesticulou para que Jean Marie se
sentasse.
— O que vai beber? Vinho, schnapps ou scotch?
— Vinho, por favor.
Enquanto a observava a limpar dois copos empoeirados, abrindo uma
garrafa de Moselle e um vidro de amendoins, Jean Marie ficou
comovido pelo patético de tanta inteligência e tanta ternura oculta
encerradas num corpo tão feio. Anneliese entregou-lhe o copo e fez um
brinde:
— À recuperação de Carl.
— Prosit.
Ela tomou metade do vinho de um gole só e largou o copo. Depois,
fez um comunicado seco e aparentemente irrelevante:
— Na clínica, temos um controle central de todos os pacientes sob
cuidados intensivos.
— É mesmo?
Jean Marie estava polidamente interessado.
— É, sim. Todos os sinais vitais são transmitidos constantemente à
sala de controle, onde uma enfermeira experiente fica de plantão
durante todo o tempo... Enquanto você estava com Carl, eu me
encontrava nessa sala de controle, em companhia do Dr. Pelzer.
Jean Marie Barette ficou esperando. Não podia ter certeza se
Anneliese Meissner estava embaraçada ou relutante em continuar.
Finalmente, ele teve de estimulá-la:
— Estava na sala de controle. Continue por favor.
— Quando você chegou, a temperatura de Carl era de 39° C, a
pulsação de 120 e havia uma acentuada arritmia cardíaca. Ficou com

206
ele por quase duas horas. Durante todo esse tempo, exceto por umas
poucas frases iniciais, não disse uma palavra sequer, até que Lotte
voltou ao quarto. A esta altura, a temperatura de Carl caíra, a pulsação
estava quase normal e o ritmo cardíaco fora restaurado. O que você fez?
— Rezei, de uma certa forma.
— De que forma?
— Creio que se poderia chamar de meditação... Mas se está pensando
em atribuir-me alguma espécie de milagre, por favor, não o faça!
— Não acredito em milagres. Contudo, sou curiosa em relação aos
fenômenos que vão além das normas. Além disso...
Anneliese fez uma pausa, fitando-o pensativa, como se de repente
estivesse com medo de se comprometer. E depois continuou:
— Quero que saiba de uma coisa: tudo que afeta Carl, também me
afeta. Estou apaixonada por ele há 10 anos. Ele não sabe disso e nunca
saberá. Neste momento, tenho vontade de chorar no ombro de alguém...
e você é o escolhido, porque é justamente quem o meteu em toda essa
confusão... Carl sempre disse que você possuía a graça da
compreensão. Neste caso, talvez possa compreender que, para mim, o
conto de fadas foi invertido. Não era a linda princesa e o príncipe
transformado em sapo. Era a moça transformada em rã, esperando que
o príncipe a beijasse para fazê-la bonita. Sei que não existe a menor
esperança e aprendi a não me importar muito. Não sou uma ameaça
para ninguém, certamente não para Lotte. Mas quando vejo o pobre
Carl preso a todos aqueles sistemas que visam a sustentar-lhe a vida,
quando penso em todas as coisas que estão injetando nele, só para
mantê-lo calmo e o corpo funcionando, então gostaria de poder
acreditar em milagres.
— Acredito neles. E todos começam num ato de amor.
— Mas o amor é terrível... da mesma maneira que você é terrível. Se
o reprime por muito tempo, ele pode acabar explodindo e lhe
arrancando a cabeça... Oh, diabo! Não o trouxe até aqui para
importuná-lo com a minha vida amorosa!
Anneliese serviu mais vinho e depois acrescentou:
— Johann Mendelius está metido numa tremenda encrenca.
— Que tipo de encrenca?
— Ele está organizando um grupo clandestino de estudantes para
resistir à convocação militar, obstruir a vigilância-segurança e
proporcionar meios de fuga aos desertores das Forças Armadas.
— Como sabe disso?
— Ele me contou. Carl lhe dissera que eu estaria disposta a apoiar

207
uma organização clandestina entre os professores... Mas esses garotos
são tão ingênuos! Não percebem como são atentamente vigiados, como
é fácil penetrar em suas fileiras com espiões e agentes provocadores.
Estão comprando e estocando armas, o que constitui uma infração
criminal... É apenas uma questão de tempo antes que a polícia tome
conhecimento do que está acontecendo. É possível que já saibam e
estejam esperando que diminua a repercussão pelo atentado contra Carl.
— Johann prometeu que me mostraria qual forma que seu protesto
está assumindo. Talvez sua idéia seja levar-me a um encontro desse
grupo.
— É possível. Porque você é um francês, eles deram ao grupo o
nome de Jacquerie, para lembrar a revolta dos camponeses franceses
durante a Guerra dos Cem Anos... Mas se quer o meu conselho, trate de
se manter afastado disso.
— Eu gostaria de manter a mente aberta em relação ao assunto.
Talvez possa incutir um pouco de bom senso em Johann e seus amigos.
— Não se esqueça do que lhe falei no início. É um homem muito
especial. Sem saber como ou por que, fez uma magia das mais fortes...
e a juventude é particularmente suscetível à magia. E agora quero que
escute uma gravação.
— Sobre o quê?
— Parte de uma entrevista clínica com uma das minhas pacientes.
Estou mostrando-lhe isso sob o sigilo profissional, da mesma forma
como Carl me revelou todo o seu material. Concorda?
— Claro.
— A mulher tem 28 anos, é uma divorciada sem filhos, a filha mais
velha de uma conhecida família local. O casamento durou três anos. Ela
está divorciada há um ano. Apresenta intensos sintomas depressivos e
houve alguns episódios alucinatórios, que provavelmente são seqüelas
de algumas experiências com LSD, nas quais ela admite ter participado,
durante o casamento... Esta gravação foi feita ontem. É parte de uma
sessão que durou uma hora e 20 minutos.
— E o que me vai dizer?
— É justamente o que desejo descobrir. Diz-me uma coisa. Pode
dizer-lhe outra muito diferente.
— Ora, minha cara Professora! — Jean Marie soltou uma risada
divertida. — Se está realmente querendo um perfil do meu caráter, por
que não começa por algo mais simples, como um teste de Rorschach?
— Porque já tenho o seu perfil. — A resposta foi brusca e irritada. —
Há semanas que está devidamente registrado em meus arquivos. Você é

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um fenômeno assustador, um homem resolutamente simples. Diz aquilo
em que acredita. E acredita no que diz. Vive num universo impregnado
por um Deus imanente, com quem mantém um relacionamento direto e
pessoal. Eu não vivo em tal universo, mas estamos ambos nesta sala,
com esta gravação. Quero saber qual a sua reação ao que vai ouvir.
Pode fazer-me essa gentileza?
— Claro.
— O local é o meu consultório. A hora: quatro da tarde. Este trecho
ocorre depois de 40 minutos de conversa discursiva e defensiva da
paciente...
Anneliese ligou o gravador. Uma voz de mulher, de timbre baixo,
com um acentuado sotaque suábio, começou a discorrer sobre o que era
obviamente um novo tema na narrativa:

"Conheci-o uma manhã, na Marktplaz. Eu estava comprando uvas.


Ele pegou uma uva e meteu-a em minha boca. Muito embora soubesse
o quão horrível ele podia ser, não pude deixar de rir. Ele me perguntou
se não gostaria de tomar uma xícara de chá. Respondi que sim, que
gostaria. Ele me levou para a casa de chá ali perto... sabe qual é... o
lugar em que se pode comprar chá de qualquer parte do mundo, até
mesmo mate da Argentina... Ele se mostrou muito simpático. Não me
senti absolutamente ameaçada. Pessoas entravam e saíam a todo
instante. Concordei em tomar uma coisa que nunca experimentara
antes: uma mistura especial do Ceilão... Achei que era gostosa, mas
sem nada de excepcional. Conversamos sobre diversas coisas: o
trabalho dele, meus pais, como ele estava cansado das mulheres por
algum tempo... Fiquei pensando que talvez ele tivesse contraído alguma
coisa com a última, uma vagabunda vulgar de Frankfurt. Não falei
nada, mas percebi que ele lera meus pensamentos... Ele jogou o chá na
minha cara. Derramou pela blusa. Ele me arrancou a blusa, enquanto as
pessoas na casa de chá ficavam olhando e rindo. Um momento depois,
todos nos demos as mãos e começamos a dançar e cantar, enquanto os
bules de chá explodiam por toda parte. Só que não eram bules de chá,
mas fogos de artifício, azuis, verdes, vermelhos!... E depois saímos para
a rua. Eu estava nua e ele me arrastava, dizendo às pessoas... 'Olhem só
o que os turcos fizeram com a minha mulher! Monstros! Malditos
estupradores!' Mas quando chegamos ao hospital, a polícia não me
deixou entrar, alegando que eu estava com gonorréia e que o serviço
secreto não aceita pessoas com doenças assim. Disseram também que
ele podia matar-me, se quisesse. Mas ele disse que eu não era

209
importante o bastante para isso e comecei a chorar.,. Depois disso, ele
me levou para minha casa e disse que me limpasse. Tomei um banho
quente, passei talco pelo corpo, usei algum perfume e deitei-me nua na
cama, a fim de esperá-lo. Só que não era a minha cama. Era uma cama
grande e redonda, macia e confortável, recendendo a lavanda. Ele
apareceu depois de algum tempo. Foi para o banheiro. Ao sair, estava
limpo e nu, como eu. Beijou-me os seios e excitou-me com as mãos,
depois me penetrou. Tivemos um tremendo orgasmo, como se fosse
uma explosão... Sempre fecho os olhos quando tenho um orgasmo.
Desta vez, ao abri-los, descobri que ele estava deitado ao meu lado,
todo ensangüentado. A mão estava em meu seio, mas era apenas uma
mão sem braço nem corpo. Tentei gritar, mas não consegui. Foi então
que vi o rosto dele, que estava vazio, como um imenso pires vermelho.
E depois a cama não era mais uma cama e sim uma grande caixa preta,
com nós dois lá dentro..."

Anneliese Meissner desligou o gravador e disse:


— Aí está!
Jean Marie Barette ficou em silêncio por um longo momento e depois
perguntou:
— E quem é o homem no sonho?
— O ex-marido dela. Ele ainda vive na cidade.
— E você o conhece?
— Não muito bem, mas o conheço.
Jean Marie nada disse. Levantou o copo. Anneliese tornou a enchê-
lo. E depois indagou:
— Algum comentário sobre o que acaba de ouvir?
— Não sou um perito na decifração de sonhos. Mas essa gravação
me diz alguma coisa. A mulher está atormentada por um sentimento de
culpa. Possui um conhecimento que tem medo de partilhar com
qualquer outra pessoa. E por isso ela sonha com o problema ou constrói
um sonho a respeito, tratando de contar-lhe. O que quer que ela saiba,
está de alguma forma relacionado com o atentado contra Mendelius...
Como estou indo até agora, minha cara Professora?
— Muito bem. Continue, por favor.
Jean Marie acrescentou, incisivamente:
— Acho que você tem o mesmo problema de sua paciente. Sabe de
alguma coisa que não está disposta ou não pode revelar.
— Não estou disposta porque não tenho certeza das minhas
conclusões. E não posso porque envolve a minha integridade

210
profissional. Você tem o mesmo problema, com o segredo do
confessionário.
— Ambos são bons motivos para a reserva — disse Jean Marie,
secamente. — Há outros.
Anneliese estava agora irritada e beligerante.
— Um momento, por favor! — Jean Marie levantou a mão, num
gesto de advertência. — Não vamos começar a brigar. Convidou-me a
vir até aqui. Eu lhe ofereci minha garantia de sigilo. Se quer contar-me
o que a está perturbando, eu escutarei tudo. Se não quer contar, então
vamos saborear o vinho.
— Desculpe-me. — Era difícil para Anneliese expressar qualquer
espécie de penitência. — Estou tão acostumada a bancar Deus no
consultório que esqueço as boas maneiras do cotidiano... Você tem
razão. Estou desesperadamente preocupada. Não sei o que posso fazer a
respeito, sem abrir todo um novo ninho de víboras. Seja como for,
vamos ao primeiro ponto. A mulher nessa gravação é ao mesmo tempo
vulnerável e aquisitiva. Como uma jovem divorciada numa cidade
universitária, já teve mais casos do que pode agüentar. Um dos seus
romances mais sérios foi com Johann Mendelius. Só acabou neste
verão, antes de ele viajar em férias. Felizmente, nem Carl nem Lotte
souberam de coisa alguma. Mas eu soube porque ela era minha paciente
e tive de ouvir todo o drama. O ponto número dois é que é o problema.
O ex-marido dela é um homem... como posso explicar?... um homem
tão improvável que só pode ser autêntico. Tenho toda uma série de
gravações sobre o relacionamento entre os dois. Ele é quem está
vendendo armas a Johann e seu grupo. E se essa gravação significa o
que penso, então foi ele quem enviou a carta-bomba para Carl... Sei que
parece absurdo, mas...
— O mal é o supremo absurdo — disse Jean Marie Barette. — É a
última e triste bufonaria: o homem sentado nas ruínas de seu mundo,
besuntando-se com o próprio excremento...

Eram quase seis e meia quando Jean Marie deixou o apartamento de


Anneliese. Ao fechar a porta da rua do prédio, sua atenção foi atraída
por uma placa no prédio em frente, uma estalagem construída na
primeira metade do século XVI, onde os habitantes de Tübingen ainda
comiam e bebiam. A placa anunciava, em letras góticas: "Schloss
Keller. Aqui viveu o Prof. Michael Maestlin, de Goppingen, mestre do
astrônomo Johannes Kepler."
A inscrição agradou-o, porque homenageava o mestre menos

211
conhecido, antes do discípulo fulgurante. Lembrou-o também do medo
que atormentara seu antecessor: o de que Tübingen pudesse tornar-se o
centro de uma segunda revolta anti-romana. Ele próprio jamais tivera
tais temores. Sempre lhe parecera uma atitude tão inútil acusar um
estudioso de heresia quanto exibir os lençóis ensangüentados depois da
noite de núpcias. Ocorreu-lhe ainda que precisava providenciar vinho
para o jantar. Assim, abriu a porta e entrou.
Metade dos reservados estavam ocupados por estudantes a beberem,
enquanto meia dúzia de corpulentos moradores locais se postavam no
balcão. Jean Marie Barette fez-se entender perfeitamente em Hoch-
deutsch, mas ficou totalmente confuso quando o barman lhe recitou em
dialeto os nomes de vinhos desconhecidos. Acabou escolhendo um
vinho branco seco de Ammertal, comprou duas garrafas e encaminhou-
se para a saída. Estacou abruptamente ao ser chamado de um reservado.
— Tio Jean! Aqui! Venha sentar-se conosco!
Johann pegou as garrafas e empurrou seus companheiros pelo banco,
a fim de dar espaço para Jean Marie. Ele fez as apresentações
rapidamente:
— Franz, Alexis, Norbert, Alvin Dolman. Esse é meu Tio Jean. Franz
é o namorado de minha irmã. Alvin é americano e muito amigo de
papai.
— Estou feliz em conhecê-los, senhores. — Jean Marie era a própria
essência da cordialidade. — Posso pagar-lhes um drinque?
Ele fez sinal para a garçonete e pediu uma rodada para o grupo, além
de uma água mineral para si.
Johann perguntou:
— O que está fazendo nesta parte da cidade, Tio Jean?
— Visitando a Prof? Meissner. Nós nos encontramos no hospital. E
viemos a pé até a casa dela.
— Como estava papai esta tarde?
— O médico diz que ele melhorou. A temperatura baixou, o pulso
está mais firme.
— Mas isso é sensacional! — Alvin Dolman parecia estar um tanto
alto. — Avise-me quando eu puder vê-lo, Johann. Descobri uma coisa
que ele vai adorar. É uma escultura antiga de São Cristóvão. Ele vai
ganhá-la de presente, assim que puder sentar-se na cama e se alimentar
direito.
Jean Marie ficou imediatamente interessado.
— Quer dizer que é um colecionador, Mr. Dolman?
— Não, senhor. Sou um negociante. Mas tenho um olho clínico para
as peças de valor. Neste negócio, não se pode deixar de ter.

212
— Tem toda razão. Vive aqui?
— Vivo aqui, trabalho aqui. E já fui casado aqui... genro do
Bürgermeister ainda por cima! Mas não durou muito. Os homens como
eu não devem nunca casar-se. Pode-se dizer que não nos ajustamos...
Por falar nisso, a Prof.ª Meissner era uma grande amiga da minha
mulher. Ajudou-a a se recuperar depois do divórcio.
— Fico contente em saber disso. E qual o tipo de trabalho que faz,
Mr. Dolman?
— Sou um artista... um ilustrador técnico, para ser mais preciso.
Trabalho para editores de livros educacionais por toda a área do Reno.
E como atividade paralela, negocio com objetos de arte antigos... em
pequena escala, é claro. Não tenho dinheiro suficiente para as coisas
maiores.
— Pensei que a companhia fornecesse os recursos.
Jean Marie ressaltou apenas ligeiramente a palavra.
— Como?
Foi uma reação mínima, uma pálpebra que mal chegou a adejar. Mas
Jean Marie lidara com muitos clérigos e outros homens sutis para
deixar de percebê-lo. Alvin Dolman sorriu e sacudiu a cabeça.
— A companhia? Não compreendi. Trabalho apenas por conta
própria. Aceito encomendas, exatamente como um pintor de retratos. A
única companhia para a qual já trabalhei foi o velho Tio Sam!
— Perdoe-me. — Jean Marie sorriu. — Pode-se falar numa língua
estrangeira muito bem, mas sempre se comete erros nas coisas mais
simples... Johann, a que horas será servido o jantar de sua mãe?
— Não depois das oito horas. Vamos acabar nossos drinques e depois
iremos juntos. A casa fica apenas a cinco minutos a pé daqui.
— Também terei de ir embora — disse Alvin Dolman. — Tenho um
encontro em Stuttgart. Enquanto eu estiver lá, verei o que posso fazer
por vocês. Mas não se esqueçam de que tem de ser dinheiro na mão.
Auf Wiedersehen, rapazes!
Ele se levantou meio desajeitadamente. Jean Marie teve de levantar-
se também para que ele pudesse deixar o reservado. E seguiu-o quando
ele se encaminhou para a porta. Ao saírem para a rua quase deserta,
Jean Marie disse, em inglês:
— Gostaria de lhe dizer uma coisa, Mr. Dolman.
Dolman virou-se para fitá-lo. O sorriso dele desaparecera, os olhos
estavam hostis.
— Pois não?
— Eu o conheço — disse Jean Marie Barette. — Sei quem você é e
que companhia o emprega, qual o espírito diabólico que o habita, Se eu

213
contar tudo lá dentro, eles o matarão com as mesmas armas que lhes
vendeu. Assim, prefira manter a sua vida e saia desta cidade.
Imediatamente!
Dolman fitou-o em silêncio por um longo momento e depois soltou
uma risada.
— Quem você pensa que é... Deus Todo-Poderoso?
— Você sabe quem eu sou, Alvin Dolman. Sabe de tudo o que foi
dito e escrito a meu respeito... E sabe que é verdade. Agora, em nome
de Deus, vá embora!
Dolman cuspiu no rosto dele, depois se virou e afastou-se
apressadamente, claudicando pela ladeira de calçamento de pedras.
Jean Marie limpou a saliva do rosto e tornou a entrar no Schloss Keller.

— Livrem-se das armas! Cada uma está marcada para condená-los.


Dispersem a Jacquerie. De qualquer forma já estão denunciados.
Dolman transformou-os nas vítimas da trama clássica de espionagem:
concentrar todos os dissidentes num único grupo, depois liquidá-los
sem a menor dificuldade. Enquanto isso, ele o estava usando para
encobrir as suas próprias pegadas como um assassino...
Era uma hora da madrugada e estavam a sós no gabinete de
Mendelius, no sótão. Lá fora, o primeiro vento frio do início do outono
zunia em torno do campanário da Stiftskirche. Lá embaixo, Lotte e
Katrin dormiam tranqüilamente, alheias ao mistério que se desenrolava
em torno delas. Johann, apesar de toda a sua vergonha e cansaço, ainda
não podia abandonar o debate.
— Mas não faz sentido! Dolman não passa de um mercenário, capaz
de fazer qualquer coisa por dinheiro. É um palhaço que ri quando uma
velha cai de um ônibus e a saia se levanta. Mas um assassino... não é
possível!
— Dolman é um perfeito agente-residente — advertiu Jean Marie,
pacientemente. — Como diz a Prof.ª Meissner, ele é tão improvável
que tem de ser autêntico... Mais do que isso! Como um agente de uma
potência amiga, preocupada com a Alemanha como sua fronteira a
leste, é o instrumento perfeito para trabalhos sujos como o atentado a
bomba contra seu pai... Mas isso não é tudo. Já conheci homens
altamente empenhados na violência que estão longe de ser tão ruins
quanto o mal que praticam. Estão condicionados, entortados como
gravetos, não é mais possível endireitá-los. Em alguns, perdeu-se um
elemento vital, a tal ponto que não podem ser outra coisa. Mas Dolman
é diferente. Dolman sabe quem é e o que representa, não está
interessado em ser outra coisa. Ele é realmente, para usar a expressão

214
antiga, uma habitação do mal!
— Como pode saber disso? Encontrou-o apenas uma vez. Posso
admitir que a Prof? Meissner tenha uma opinião a respeito dele,
porque ouviu todas as histórias que sua ex-mulher contou. Também as
ouvi, muitas vezes, na cama dela. Mas não acreditei, porque Dolman
sabia que eu me estava deitando com ela e encorajou-me a
aproveitar... ajudando-me a sair quando o prazer acabou. Mas como
você pode formar uma opinião depois de um único encontro? Sinto
muito, Tio Jean. Não faz sentido, a menos que saiba de mais alguma
coisa que não me disse.
— Sei menos do que você a respeito de Alvin Dolman... mas sei
muito mais a respeito do demônio do meio-dia. — Ele cruzou as mãos
por trás da cabeça e recostou-se na poltrona de Mendelius. — Nos altos
postos em que eu vivia, ele era um visitante freqüente... e uma
companhia das mais cativantes!
— Isso é muito fácil de dizer, Tio Jean, mas não posso aceitar.
— Está bem. Deixe-me apresentar a coisa por outro ângulo.
Enquanto se dedicava aos jogos de amor com a mulher de Dolman,
teria convidado uma criança a testemunhá-los?
— Claro que não.
— Por que não?
— Ora, porque...
— Porque reconhece a inocência, mesmo que não possa defini-la.
Também reconhece o mal, mas fecha os olhos. Por quê?
— Eu... eu acho que é porque não quero reconhecer o mal que
também existe em mim.
— Finalmente chegamos ao ponto. Poderia aceitar um conselho de
seu Tio Jean?
— Tentarei.
— Assim que seu pai estiver em condições de viajar, saia daqui. Se
puder concluir a compra do vale alpino e torná-lo apropriado para
habitação, vá para lá. Procure manter a família unida, seu pai e mãe,
Katrin e o homem dela também, se ele quiser acompanhá-los... Dolman
foi embora. E não voltará. A companhia não tornará a usá-lo nesta
região. Mas a companhia continua em atividade... e sempre associada
ao demônio do meio-dia!
— E para onde você irá, Tio Jean?
— Sigo amanhã para Paris, a fim de visitar minha família e acertar
meus problemas financeiros. Depois disso... quem sabe? Espero o
chamado!
Johann ainda estava inquieto e irritado.

215
— Quer dizer que estamos de volta à revelação pessoal, à profecia e
tudo o mais?
— E daí?
— Não acredito. Isso é tudo!
— Mas acreditava num homem que tentou matar seu pai. Não
acreditou nas verdades que a mulher dele lhe contou na cama. Não
soube como distinguir o bem do mal. Isso não lhe diz nada a respeito de
si mesmo, Johann?
— Ataca fundo, não é mesmo?
— Trate de crescer, rapaz! — Jean Marie Barette estava implacável.
— Estamos falando sobre vida, morte e o que vem depois. Ninguém
obtém uma absolvição da realidade!

Jean Marie Barette teve um sonho naquela noite. Estava andando


pela Marktplatz de Tübingen. Parou numa barraca de frutas que vendia
lindas uvas pretas. Provou uma. Estava doce e saborosa. Pediu à
vendedora que lhe pesasse um quilo. Ela o fitou boquiaberta,
horrorizada, levantou as mãos diante do rosto e recuou. Todas as
pessoas no mercado fizeram a mesma coisa, até que ele ficou isolado,
no meio de um círculo de seres humanos hostis, segurando um cacho de
uvas. Ele falou serenamente, indagando o que estava acontecendo.
Ninguém respondeu. Ele deu alguns passos na direção da pessoa mais
próxima. Seu caminho foi barrado por um homem grandalhão, com um
facão de açougueiro. Parou no mesmo instante e gritou:
— Qual é o problema? Por que vocês estão com medo de mim?
O homem grandalhão respondeu:
— Porque você é um Pestträger... um portador da praga! Saia daqui
antes que o matemos!
E no momento seguinte a multidão começou a avançar ameaçadora-
mente, forçando-o inexoravelmente na direção da rua estreita, pela qual
sabia que teria de correr para salvar a vida...
Pela manhã, de olhos vermelhos e exausto, Jean Marie tomou o café
da manhã com Lotte e depois foram juntos ao hospital, a fim de que ele
pudesse despedir-se de Carl Mendelius. E ali num momento sereno,
Jean Marie lhes disse:
— Voltaremos a nos encontrar. Tenho certeza disso. Mas onde e
como, só Deus sabe! Lotte, minha cara, não se apegue a qualquer coisa
aqui. Assim que Carl estiver pronto para viajar, arrume as malas e trate
de partir! Prometa!
— Prometo, Jean. Não será difícil ir embora.

216
— Ótimo. Quando o chamado vier, Carl, você estará pronto para
atendê-lo. Por enquanto, trate de resignar-se a uma longa
convalescença. Ajude Lotte a ajudá-lo. Diga a ela que fará isso.
Carl Mendelius levantou a mão boa e afagou o rosto da mulher. Lotte
ergueu a mão contra seus lábios e beijou a palma. Jean Marie levantou-
se. Ele fez o sinal-da-cruz com o polegar sobre a testa de Mendelius e
depois sobre a de Lotte. Sua voz estava um tanto trêmula:
— Detesto despedidas. Amo a vocês dois. Rezem por mim.
Mendelius segurou-lhe o pulso, indicando claramente que queria que
ele ficasse. Desta vez, com a maior dificuldade, mas claramente, ele
conseguiu articular as palavras:
— A figueira, Jean. Sei agora. A figueira!
Lotte suplicou-lhe:
— Por favor, querido, não tente falar.
Jean Marie disse, suavemente:
— Meu caro Carl, lembre-se do que combinamos. Nada de palavras,
nada de discussões. Deixe que Deus faça as árvores crescerem no
devido tempo.
Mendelius relaxou lentamente. Lotte segurava-lhe a mão. Jean Marie
beijou-a e, sem dizer mais nada, saiu do quarto.
Estava na metade do caminho de Paris quando as palavras de
Mendelius lhe fizeram sentido. Eram um eco do texto de Evangelho de
São Mateus que se abrira em suas mãos no dia da visão: "... Aprendei,
pois, a parábola da figueira: quando já os seus ramos se renovam e as
folhas brotam, sabeis que está próximo o verão. Assim também vós;
quando virdes todas essas coisas, sabei que o fim das coisas está
próximo, nos portões."
Ele experimentou um alívio estranho e intenso, quase exultação. Se
Carl Mendelius acreditava finalmente na visão, então Jean Marie
Barette não estava totalmente sozinho.

217
CAPÍTULO 9

Em Paris, o sonho do portador de praga converteu-se em verdade.


Seu irmão, Alain Hubert Barette, de cabelos prateados, eloqüente, um
dos pilares da atividade bancária no Boulevard Haussmann, ficou
chocado até a raiz dos cabelos. Tratou Jean Marie com a maior
gentileza. Daria um jeito de providenciar as provisões financeiras
apropriadas, mas abrir um fundo de investimentos de 40 anos, revogar
os mais complicados acordos internacionais... pás possible! Jean
chegara num momento dos mais inconvenientes. Seria muito difícil
alojá-lo com a família. Os decoradores trabalhavam na casa. Odette
estava em constante estado de quase histeria. E os criados... oh, Deus!
Contudo, o banco teria a maior satisfação em permitir-lhe o uso de sua
suíte no Lancaster, até que pudesse tomar outras providências.
Como estava Odette... além da histeria? Muito bem, mas chocada...
desolada, na verdade... com a abdicação! E quando o Cardeal Sancerre,
Arcebispo de Paris, voltara do Consistório e começara a espalhar todas
aquelas histórias estranhas... claro que fora uma terrível aflição para
toda a família.
Contatos políticos? Encontros diplomáticos? Normalmente, Alain
Hubert Barette teria o maior prazer em bancar o anfitrião de tais
reuniões. Mas naquele exato momento... ora, tudo aconselhava um
máximo de discrição! Não se podia correr o risco de uma repulsa, com
um contato direto com o Presidente ou algum cavalheiro altamente
situado no Quai d'Orsay. Por que não aparecia para jantar na noite
seguinte, em companhia de Odette e das meninas, para depois
discutirem a situação?

218
Enquanto isso, o problema do dinheiro... O banco concederia a
Marie uma linha de crédito substancial, garantida pelo fundo, até o
momento em que fosse possível reformular todas as disposições
financeiras.
— E agora vamos cuidar da assinatura de alguns documentos, a fim
de que possa ter os recursos imediatamente. Sugiro... como um irmão
afetuoso!... que um bom alfaiate é a sua primeira necessidade. E
também um bom camiseiro. Afinal, você é ainda um Monsenhor e
mesmo os trajes de um leigo devem indicar alguma dignidade.
Era idiotice demais e lançou Jean Marie numa raiva fria e
tipicamente gaulesa.
— Você é um tolo, Alain. É também esnobe e deselegante,
ganancioso e avarento! Não irei à sua casa. E não quero a suíte no
Lancaster. Vai providenciar-me imediatamente o dinheiro de que estou
precisando. Convocará uma reunião dos administradores do fundo para
as 10 horas da manhã e discutiremos em detalhes o que eles fizeram no
passado e suas atividades futuras. Não disponho de muito tempo,
preciso de fazer várias viagens. Não serei estorvado pelos absurdos
burocráticos de seu banco. Estou sendo bem claro?
— Está entendendo-me mal, Jean. Eu não pretendi.
— Cale-se, Alain! Quanto menos você disser, melhor será. Quais os
documentos que tenho de assinar para dispor imediatamente dos
recursos de que preciso?
Tudo estava resolvido 15 minutos depois. Um Alain muito humilde
fez o último chamado para o último administrador do fundo,
convocando-o para uma reunião na manhã seguinte. Ele enxugou as
mãos com um lenço de seda e apresentou um pedido de desculpas
insinuante.
— Por favor, Jean, somos irmãos! Não devemos discutir. Você tem
de compreender. Estamos todos num momento de tensão. Os mercados
financeiros parece que estão enlouquecendo. Temos de nos defender
como se estivéssemos sendo atacados por bandidos. Sabemos que
haverá uma guerra. Como poderemos então proteger os bens do banco e
os nossos? Como podemos dispor nossas vidas pessoais? Você esteve
ausente por muito tempo, alheio a tudo isso...
Apesar de sua raiva, Jean Marie não pôde deixar de rir... uma
gargalhada jovial, divertida.
— Ah, irmãozinho, como tenho pena de você! Eu não saberia o que
fazer com todos esses baús e cofres abarrotados de papel, moedas e
barras de ouro... Mas você tem razão. Já é muito tarde para
discutirmos... e também já é muito tarde para esnobações. Por que não

219
tenta fazer uma ligação para Vauvenargues, com quem preciso falar?
— Vauvenargues? O Ministro do Exterior?
— Exatamente.
— Está certo.
Alain deu de ombros, resignado, consultou o seu caderno de
telefones, de capa de couro. Fez a ligação. Jean Marie escutou divertido
um lado do diálogo:
— Alô? Aqui é Alain Hubert Barette, diretor do Halévy Frères et
Barette, Banquiers. Por favor, ligue-me com o Ministro. ... Informe que
um velho amigo dele acaba de chegar a Paris e gostaria de falar-lhe. ...
O amigo é Monsenhor Jean Marie Barette, anteriormente Sua Santidade
o Papa Gregório XVII. ... Ah, sim! Então talvez possa fazer o favor de
transmitir-lhe o recado e pedir ao Ministro que ligue de volta para este
número. ...Obrigado.
Ele desligou fazendo uma careta de repulsa.
— O Ministro está em reunião. O recado foi transmitido... Já esteve
lá, Jean. Conhece as rotinas. A partir do momento em que tem de
revelar-se e informar sua identidade atual, está diplomaticamente
liquidado. Tenho certeza de que o Ministro vai telefonar. Mas de que
lhe vai adiantar um aperto de mão indiferente e algumas palavras
polidas sobre o tempo?
— Eu mesmo farei a próxima ligação.
Jean Marie consultou seu caderno de telefones e ligou para a linha
particular do mais importante assessor presidencial, um homem com
quem mantivera um relacionamento constante e amistoso durante o seu
pontificado. O telefone foi prontamente atendido.
— Aqui é Duhamel.
— Pierre, aqui é Jean Marie Barette. Estou em Paris por alguns dias,
para tratar de negócios particulares. Gostaria de encontrá-lo... e a seu
chefe!
— E eu a você. Mas tem de ser em particular. Quanto ao chefe...
lamento muito, mas não será possível. A palavra oficial já se espalhou.
Você é tido como um pária.
— E de onde veio a palavra?
— De seu superior para o nosso superior. E os Amigos do Silêncio
estiveram em intensa atividade, em todos os escalões inferiores. Onde
você vai ficar?
— Ainda não decidi.
— Fora da cidade é melhor. Pegue um táxi e siga para L'Hostellerie
des Chevaliers. Fica cerca de três quilômetros deste lado de Versailles.
Telefonarei agora mesmo e reservarei acomodações para você. ... Faça o

220
registro como Monsieur Grégoire. Eles não vão pedir-lhe documentos.
Passarei por lá para encontrá-lo quando for para casa... por volta das
oito horas. Tenho de desligar agora. A bientôt.
Jean Marie desligou. E foi a sua vez de pedir desculpas.
— Tem razão, irmãozinho. Diplomaticamente, estou morto e
enterrado. Tenho de ir agora. Dê lembranças minhas a Odette e às
meninas. Tentaremos combinar uma refeição juntos, antes de eu ir
embora.
— Não quer mudar de idéia em relação ao Lancaster?
— Não, obrigado. Se eu sou um portador da praga, prefiro não
espalhar a infecção para a minha família. Amanhã, às 10 horas, está
bem?

L'Hostellerie des Chevaliers foi uma agradável surpresa, um conjunto


de antigos prédios de fazenda, convertido num hotel simpático e
discreto. Os gramados eram impecavelmente aparados e havia
caramanchões de roseiras, um córrego serpenteando entre salgueiros e
acionando um moinho.
A patronne era uma mulher bonita, de 50 e poucos anos, que
dispensou todas as formalidades do registro e conduziu-o
imediatamente a uma agradável suite, com um pequeno jardim
particular. Ela ressaltou que ele poderia telefonar com absoluta
segurança, que a geladeira estava bem abastecida de bebidas e que,
como amigo de Monsieur Duhamel, precisava apenas de levantar um
dedo para obter os serviços totais do hotel.
Ao abrir sua única mala, Jean Marie ficou divertido e um pouco
surpreso ao constatar como viajava com pouca coisa: um terno, uma
capa, um paletó esporte e uma calça esporte, um suéter, dois pijamas e
meia dúzia de camisas, cuecas e pares de meia. Os artigos de toucador,
o conjunto para missa, um breviário, um missal, um caderno de
anotações... e nada mais havia em sua bagagem. Para sustentar-se,
dispunha de dinheiro para um dia, alguns travellers' checks e uma
carta-circular de crédito de Halévy Frères et Barette, pela qual ficava
devendo ao banco, até que pudessem ser liberados recursos de seu
patrimônio. Pelo menos poderia deslocar-se agora com a rapidez
necessária, quando chegasse o chamado, o mesmo chamado que
chegara séculos antes a João, o filho de Zacarias, no deserto.
O que o perturbava agora era uma crescente sensação de isolamento e
de sua precária dependência da boa vontade dos amigos. Não importava
que no fundo de si mesmo houvesse uma grande serenidade, um lugar
em que todos os opostos se conciliavam. Ainda era um homem, sujeito

221
às reações químicas da carne, à física instável da mente.
A arma do isolamento fora usada contra ele nos dias tenebrosos
amargos que antecederam sua abdicação. Agora, estava sendo usada
novamente, a fim de torná-lo impotente na arena política. Pierre Duha-
mel, há muito conselheiro do Presidente da República, não era
propenso a exageros. Se ele dizia que estava morrendo, então era o
momento de chamar o padre; se dizia que estava morto, então os
pedreiros já estavam tampando a sepultura e se esculpia o epitáfio.
O fato de Pierre Duhamel ter sugerido um encontro tão imediato era
por si só uma indicação de crise. Em todos os anos, desde que se
conheciam, Duhamel sempre observara um código singular e espartano:
— Tenho uma esposa: a mulher com quem me casei. Tenho uma
amante: a República. Nunca me diga qualquer coisa que não queira que
seja revelada. Nunca me tente assustar. Nunca me ofereça um suborno.
Não ofereço proteção a ninguém e só dou meus conselhos àqueles que
sou pago para aconselhar. Respeito todas as fés. Exijo a privacidade na
minha. Se confiar em mim, nunca lhe mentirei. Se mentir-me, poderei
compreender, mas nunca mais confiarei em você.
Nos tempos do seu pontificado, Jean Marie Barette tivera muitas
conversas com esse homem estranhamente atraente, que parecia um
lutador de boxe, argumentava tão eloqüentemente quanto Montaigne e
ia para casa a fim de cuidar de uma mulher que fora outrora a grande
dama de Paris e era agora uma vítima devastada de esclerose múltipla.
Tinham um filho em Saint Cyr e uma filha um pouco mais velha, que
adquirira alguma reputação como produtora de programas de televisão.
Quanto ao resto, Jean Marie não fazia qualquer indagação. Pierre
Duhamel era o que seu Presidente afirmava... um homem de bem.
Jean Marie pegou o breviário e saiu para o jardim, a fim de ler as
vésperas do dia. Era um hábito que cultivava: a oração de um, andando
ao final do dia, de mãos dadas com Deus, num jardim. O salmo do dia,
começava com o cântico que ele tanto amava, Quam dilecta: "Quão
adoráveis são os teus tabernáculos, Ó Senhor dos Senhores! Minha
alma anseia e desfalece pelas cortes do Senhor. Meu coração e minha
carne se regozijam no Deus vivo. Pois o pardal encontrou um ninho e a
pomba encontrou um abrigo em que pode ter as crias"...
Era a prece perfeita para um cair da tarde ao final do verão, com as
sombras alongadas, o ar ainda ameno e impregnado com o perfume das
rosas. Seguindo por um caminho de cascalho, na direção de outro
gramado, ele ouviu vozes de crianças. Um momento depois, avistou um
grupo de meninas, todas em vestidos listrados e aventais, brincando de

222
pegar, acompanhadas por uma dupla de professoras jovens. Num banco
próximo, uma mulher mais velha dividia sua atenção entre o grupo e
um bordado que tinha nas mãos.
Quando Jean Marie se aproximou, pelo caminho de cascalho, uma
das meninas afastou-se do grupo e correu em sua direção. Ela
escorregou e quase caiu a seus pés. Desatou a chorar. Jean Marie
pegou-a no colo e levou-a até a mulher que estava no banco, que
esfregou o joelho esfolado e ofereceu um pirulito para acalmá-la. Foi só
então que Jean Marie percebeu que a criança era mongolóide... como
eram também todas as outras no grupo. Como se percebesse o choque
dele, a mulher levantou a criança na sua direção e disse, sorrindo:
— Somos do Instituto no outro lado da estrada... Esta menina acaba
de chegar. Está com saudade de casa e por isso pensa que todo homem
é seu pai.
— E onde está o pai?
Havia uma insinuação de censura na indagação. A mulher sacudiu a
cabeça.
— Não é o que você está pensando. Ele enviuvou recentemente. E
acha, com toda razão, que ela está mais segura aqui conosco... Temos
cerca de 100 crianças no Instituto. A patronne deixa-nos trazer as
pequenas para brincar aqui. Sua única filha era mongolóide, mas
morreu ainda pequena.
Jean Marie estendeu os braços. A menina prontamente se adiantou e
beijou-o. Depois, sentou-se em seu colo, pôs-se a brincar na maior
felicidade com os botões de sua camisa.
Jean Marie comentou:
— Ela é muito afetuosa.
— Quase todas são — informou a mulher. — As pessoas que podem
mantê-las em casa, no seio da família, logo descobrem que é como ter
um bebê novo durante todo o tempo... Mas quando os pais envelhecem
e a criança entra na adolescência e maturidade, as tragédias começam.
Os garotos podem se tornar muito rudes e violentos. As moças tornam-
se vítimas fáceis de atentados sexuais. O futuro é tenebroso, tanto para
os pais como para as crianças... É muito triste. E gosto imensamente
delas.
— Como mantém o Instituto?
— Temos uma verba do Governo. E pedimos contribuições dos pais
que estão em condições de pagar. Solicitamos ainda a caridade
particular. Felizmente, temos patrocinadores ricos, como Monsieur
Duhamel, que vive aqui perto. Ele chama as crianças de les petites
bouffonnes du bon Dieu... as pequenas fantoches do bom Deus...

223
— É um pensamento gentil.
— Por acaso conhece Monsieur Duhamel? Ele é um homem muito
importante, o braço direito do Presidente, pelo que dizem.
— Conheço de nome — respondeu Jean Marie, cuidadosamente.
A menina saiu de seu colo e pôs-se a puxá-lo pela mão, querendo que
a acompanhasse. Ele perguntou:
— Posso levá-la até o laguinho para ver os peixes?
— Claro. Irei também.
Quando Jean Marie se levantou, o breviário caiu de seu bolso para o
banco. A mulher pegou-o, olhou, largou o bordado e saiu atrás dele.
— Deixou cair seu breviário, Padre.
— Oh! Obrigado.
Jean Marie guardou-o no bolso. A mulher pegou a outra mão da
menina e foi andando junto com eles.
— Tenho a estranha impressão de que já o vi em algum lugar —
comentou ela.
— Tenho certeza de que nunca nos encontramos. Passei muito tempo
longe da França.
— Como um missionário?
— De certa forma, sim.
— Onde serviu?
— Em muitos lugares, mas principalmente em Roma. Estou
aposentado agora. E voltei para a França em férias.
— Pensei que os padres nunca se aposentassem.
— Digamos que me afastei do serviço por algum tempo... Vamos,
menina! Vamos ver os peixinhos dourados!
Ele ajeitou a menina no ombro e pôs-se a entoar uma cantiga de sua
infância. A mulher ficou para trás, observando-o a distância. Ele
parecia um homem simpático, obviamente adorava crianças... mas
quando um padre, ainda vigoroso, se afastava tão cedo do serviço, tinha
de haver algum motivo...

Pontualmente às oito horas, Pierre Duhamel estava batendo na porta


da suíte. Teria de partir às 8:45, já que nunca deixava de jantar em casa
com a mulher. Até lá, tomaria um Campari com soda em companhia de
Jean Marie, a quem parecia encarar com um divertimento sombrio
como um sobrevivente altamente memorável, ao invés de um mamute
peludo.
— Santo Deus! Eles realmente o pegaram de jeito e parece que
passaram com um rolo compressor por cima! Depois de tudo o que
aconteceu, estou surpreso ao descobrir que está com um aspecto

224
saudável... O que está fazendo agora para os levar a exercer tanta
pressão contra você? Claro que todo aquele estardalhaço na imprensa
não contribuiu para torná-lo mais popular entre a hierarquia francesa.
Os Amigos do Silêncio são muito fortes aqui... E quando soube que seu
amigo Mendelius fora vítima de um atentado terrorista a bomba...
— Um atentado a bomba, sim. Mas não foi uma ação terrorista. A
coisa toda foi planejada e executada por um agente da CIA, Alvin
Dolman.
— Por que a CIA?
— Por que não? Dolman era o agente-residente. Acho que foi um
trabalho impecável dos americanos para a Bundesrepublik. O objetivo
era livrá-los de um professor universitário influente que poderia causar
problemas quando fosse promulgada a convocação geral para o serviço
militar.
— Alguma prova?
— O suficiente para mim. Mas não o suficiente para provocar um
clamor público.
— Muito em breve... — Pierre Duhamel remexeu o drinque com o
dedo — ... muito em breve você poderá ferver sua mãe em óleo na Pont
Royal sem que ninguém sequer pisque um olho. O que lhe está sendo
feito é apenas uma pálida amostra do que está sendo planejado para a
repressão de pessoas e a supressão de qualquer debate. Os novos chefes
de propaganda farão com que Goebbels pareça um colegial amador...
Ainda não voltou ao mundo por tempo suficiente para sentir o impacto
dos métodos deles... Mas pode estar certo de que são terrivelmente
eficazes.
— O que significa que concorda com eles?
— É triste dizer, mas concordo. Afinal, meu amigo, partindo da
premissa de que uma guerra atômica é inevitável... e não se esqueça de
que essa é a nossa projeção militar e a sua própria profecia!... o único
meio pelo qual poderemos controlar e oferecer alguma espécie de
proteção às grandes massas é um intenso programa de
condicionamento. Não há a menor possibilidade de protegermos os
habitantes de Paris da explosão, radiação, gás dos nervos ou um vírus
letal. Se anunciarmos esse fato terrível, tout court, teremos o pânico
imediato. Assim, temos de manter as cidades em funcionamento, por
tanto tempo quanto possível, a qualquer custo. Se isso significa varrer
as ruas com tanques duas vezes por dia, então é o que faremos. Se isso
significa ataques na madrugada contra dissidentes ou idealistas muito
eloqüentes, então vamos arrancá-los de suas camas e fuzilar alguns,

225
para servir como advertência aos demais. Depois, se precisarmos de
algumas diversões... pão e circo, orgias nos degraus do Sacré Coeur...
então providenciaremos isso também! E não haverá debates sobre
qualquer coisa. Todos seremos então Amigos do Silêncio. E que Deus
ajude qualquer pessoa que resolva abrir a boca no momento errado...
Esse é o cenário, meu amigo. Não gosto dele, tanto quanto você. Mas
recomendei-o assim mesmo a meu Presidente.
— Nesse caso, pelo amor de Deus, não acha que deve olhar para o
cenário que sugeri? — disse Jean Marie. — Qualquer coisa seria melhor
do que a brutalidade primitiva e as orgias que estão dispostos a oferecer.
— Já pensamos em tudo — disse Pierre Duhamel, com um humor
sombrio. — Fomos assegurados pelas melhores autoridades
psiquiátricas de que a oscilação de táticas entre a violência e a
indulgência báquica manterá o público ao mesmo tempo perplexo e
dócil à autoridade... especialmente se os fatos só forem disseminados
através de rumores, sem confirmação na imprensa ou televisão.
— Isso é monstruoso!
Jean Marie Barette estava furioso.
— Claro que é monstruoso. — Pierre Duhamel deu de ombros,
expressivamente. — Mas considere a sua alternativa. Eu a tenho aqui
comigo.
Ele tirou do bolso a carteira, tirou um recorte de jornal
cuidadosamente dobrado e abriu-o. E acrescentou:
— Essas palavras são suas, como Gregório XVII, citadas no artigo de
Mendelius. Tenho de presumir que a citação é autêntica. Vou ler:

"É evidente que em tempos de calamidade universal as estruturas


tradicionais da sociedade não sobreviverão. Haverá uma luta
implacável pelas mais simples necessidades da vida... alimento, água;
combustível e abrigo. A autoridade será usurpada pelos fortes e cruéis.
As grandes sociedades urbanas vão fragmentar-se em grupos tribais,
hostis entre si. As áreas rurais estarão sujeitas a pilhagens. A pessoa
humana se tornará uma presa, tanto quanto os animais que agora
abatemos para alimento. A razão ficará tão toldada que o homem
recorrerá em busca de conforto às formas mais grosseiras e violentas de
magia. Será difícil, até mesmo para os que mais fortemente encontram
arrimo na Promessa do Senhor, manter a fé e continuar a dar
testemunho, como devem fazer, até o fim... Como os cristãos devem
comportar-se nesses tempos de provações e terror?
Como não mais poderão manter-se como grupos numerosos, devem
dividir-se em pequenas comunidades, cada uma capaz de sustentar-se

226
pelo exercício de uma fé comum e de uma verdadeira caridade
mútua."

— E agora vamos ver o que temos nessa prescrição. Distúrbios em


grande escala e caos nas relações sociais... a serem contrabalançados
com o quê? Pequenas comunidades dos eleitos, fazendo experiências
seminais no exercício da caridade e das outras virtudes cristãs. Acha
que é um sumário adequado?
— Até aí, é, sim.
— Mas qualquer que for o governo ou liderança que ainda existir na
ocasião, terá de cuidar primeiro dos bárbaros. E como vai fazer isso, a
não ser pelas medidas violentas que estamos prevendo? Afinal, seus
eleitos... para não mencionar os eleitos de outros cultos!... cuidarão de
si mesmos. Ou o Todo-Poderoso se encarregará disso... Vamos
enfrentar a verdade, meu amigo: foi justamente por isso que sua própria
gente o afastou. Não podiam contestar o princípio. É de fato um belo
pensamento: o povo de Deus semeando seu jardim de graças, como os
monges e freiras de antigamente, na Idade Média da Europa, a era das
trevas. No fundo, porém, seus bispos são pragmáticos frios. Sabem que
é preciso demonstrar como o caos pode ser terrível quando se quer a lei
e a ordem. Se querem a moralidade de volta, precisam ter Satã nas ruas,
grande como a vida, a fim de se poder verberá-lo em plena vista das
massas aterrorizadas... A mesma coisa acontece em todos os países do
mundo, porque nenhum país pode empenhar-se numa guerra sem um
povo disposto e conformado. A sua própria Igreja adotou a mentalidade
de sítio: não há debate, mas um retorno à moralidade mais simples, com
todos na missa aos domingos, para que possamos dar testemunho
público contra os ímpios! A última coisa que eles querem é algum
profeta desgarrado apregoando o Juízo Final entre as sepulturas!
— Mesmo sabendo que o Juízo Final está chegando?
— Porque sabem disso! Exatamente porque sabem! Eles não podem,
assim como também não podemos, enfrentar o insuportável, antes que
aconteça. Esse é o motivo para os Amigos do Silêncio e seus
equivalentes no governo secular! — Ele fez uma pausa e desatou a rir
subitamente. — Não fique tão chocado, meu amigo. O que esperava de
Pierre Duhamel... um tranqüilizante e uma colher de xarope? Os
católicos romanos não são os únicos que estão optando pelo
conformismo. Todos os outros grandes cultos que possuem
membros e propriedades na República já asseguraram ao Governo a
sua lealdade, no caso de uma emergência nacional. Todos se estão

227
apegando aos antigos modelos de experiência e cultura porque não
dispõem de tempo agora para testar novos ou acostumar sua gente a
viver por eles.

Jean Marie ficou calado por um longo momento. E finalmente


murmurou:
— Aceito o que me está dizendo, Pierre. Gostaria agora que me
respondesse a uma pergunta. Quais os preparativos que você fez,
pessoalmente, para o dia em que os primeiros mísseis forem lançados?
Duhamel não estava sorrindo agora. E demorou algum tempo para
responder:
— Em nossos planos, esse dia é chamado de Dia R... R por causa de
Rubicão. Se meia dúzia de atitudes foram adotadas por algumas das
grandes potências, então a química do conflito se tornará irreversível. A
guerra será declarada. Um conflito global se seguirá. Irei para casa no
dia R. Darei um banho em minha mulher. Prepararei a sua refeição
predileta. Depois, vou levá-la para a cama, deitar a seu lado. E nós dois
tomaremos uma pílula letal... Estamos de acordo. Nossos filhos sabem.
Não gostam da idéia. Têm outros planos e outras razões, mas respeitam
nossa decisão. Minha mulher já sofreu o bastante. Não gostaria que ela
suportasse os horrores do que virá depois... e enfrentá-los sem minha
mulher seria para mim um masoquismo sem sentido.
Jean Marie estava sendo desafiado e sabia disso. Era o mesmo
desafio que Carl Mendelius lhe apresentara no jardim de Monte
Cassino, ao dizer:
— Conheço muitos homens de bem que vão preferir as trevas eternas
à visão de Siva o Destruidor.
Pierre Duhamel era um inquisidor ainda mais formidável, porque não
tinha as inibições de Mendelius. E ele ainda estava esperando por uma
resposta. Jean Marie Barette disse, calmamente:
— Creio no livre-arbítrio, Pierre. Creio que um homem é julgado
pela luz que lhe foi concedida. Se você prefere um fim estóico a uma
situação insuportável, posso condenar o ato, mas não farei qualquer
julgamento ao ator. Prefiro confiar você, como confio a mim mesmo, à
misericórdia de Deus... Mas tenho outra pergunta que gostaria de fazer.
— Pode fazer.
— Para você e sua mulher, tudo termina no Dia do Rubicão. Mas que
me diz dos desamparados... de suas pequenas fantoches de Deus, por
exemplo? Encontrei-as no jardim esta tarde. Conversei com a gou-

228
vernante delas, que me disse que você era um dos seus mais
importantes patrocinadores. O que fará num momento de crise? Deixará
que morram como galinhas num incêndio do galinheiro ou tenciona
oferecê-las como diversão aos bárbaros?
Pierre Duhamel terminou de tomar seu drinque e largou o copo na
mesa. Tirou um lenço do bolso e enxugou os lábios. E depois disse,
com um formalismo pesaroso:
— É um homem muito inteligente, Monsenhor. Mas mesmo você não
pode prever todo o futuro. Já há providências previstas para as minhas
pequenas fantoches. Nos termos de uma série de diretivas políticas
secretas, as pessoas que, por insanidade, enfermidade incurável ou
outras incapacidades, possam se tornar um fardo muito grande em
tempo de guerra, serão discretamente eliminadas. Hitler proporcionou-
nos tal idéia. Tratamos de atualizá-la, incluindo uma liquidação
compadecida, ao invés de brutal... Estou deixando-o chocado, não é
mesmo?
— O que me choca é o fato de você poder continuar a viver com esse
segredo.
— O que posso fazer? Se eu tentar divulgá-lo, ficarei marcado como
um louco... da mesma forma que lhe aconteceu, com sua visão de
Armagedom e do Segundo Advento. Infelizmente, estamos ambos no
mesmo barco.
— Então vamos tentar descobrir como podemos escapar, meu amigo.
— Em primeiro.lugar, vamos tratar do seu problema — disse
Duhamel. — Como eu falei, é oficialmente intocável. Vai descobrir que
é cada vez mais difícil circular. Alguns países hesitarão em lhe
conceder um visto de entrada. Será hostilizado em toda parte. Sua
bagagem será meticulosamente revistada. Terá sessões prolongadas
com as autoridades nas fronteiras. Ficará surpreso ao constatar como a
vida pode ser-lhe desagradável. Assim, acho que devemos
providenciar-lhe um novo passaporte, sob um novo nome.
— Pode fazer isso?
— Estou sempre fazendo, para pessoas incumbidas de missões
especiais. Você não está em nenhuma missão, mas certamente seu caso
é muito especial. Tem alguma fotografia recente sua?
— Tenho uma dúzia de cópias da fotografia do meu atual passaporte.
Fui informado de que alguns países exigem fotografias para a
concessão de vistos.
— Pois dê-me três fotografias. Darei um jeito para que seu novo

229
passaporte lhe seja entregue aqui amanhã.
— É um bom amigo, Pierre. Obrigado.
— Por favor! — Pierre Duhamel exibiu um súbito sorriso infantil. —
Meu superior, o Presidente, quer vê-lo fora do país. Recebi instruções
para fazer tudo o que fosse possível para ajudá-lo a deixar a França.
— Por que ele se importa tanto comigo?
— Ele entende de teatro — disse Pierre Duhamel, secamente. — Um
homem andando sobre a água é um milagre, dois é ridículo.
A imagem divertiu a ambos. Desataram a rir e a tensão se dissipou.
Pierre Duhamel abandonou a sua pose de ironia defensiva e passou a
falar mais livremente.
— Os planos de batalha são como uma visão do inferno. Nenhum
horror está ausente. Há bombas de nêutron, gás venenoso, doenças
fatais disseminadas por spray. Em teoria, é claro que tudo está baseado
em ações limitadas, os horrores maiores mantidos em reserva, como
elementos dissuasivos. Mas, na verdade, assim que os primeiros tiros
forem disparados, não haverá limite para a escalada... A partir do
momento em que se comete um assassinato, o resto torna-se fácil,
porque só se tem uma vida para entregar ao carrasco.
— Já chega! — Jean Marie Barette interrompeu a conversa
abruptamente. — Você resolveu fazer um pacto de suicídio com sua
mulher, diante de um enxame de horrores. Mas eu me recuso a entregar
todo este planeta ao mal. Se conseguirmos guardar pelo menos um
canto para a esperança e o amor, então será alguma coisa... Pierre, você
detesta o que está sendo tramado. Detesta a sua impotência diante de
tanta irracionalidade... Por que não fazer um último ato de fé e avançar
junto comigo para o pelotão de fuzilamento?
— Para fazer o quê?
— Vamos chocar o mundo e fazer com que nos escute. Vamos falar
primeiro sobre os pequenos fantoches de Deus e o que lhes acontecerá
no Dia do Rubicão. Você providencia o documento. E eu falarei com
Georg Rainer para que convoque uma entrevista coletiva com
repórteres do mundo inteiro. Enfrentaremos tudo juntos.
— E depois?
— Oh, Deus! Despertaremos a consciência do mundo! As pessoas
vão levantar-se contra o mal que será feito às crianças!
— Será mesmo? Estamos quase no final do século e ainda existe
trabalho escravo infantil na Europa, para não falar do resto do mundo.
Ainda não existe nenhuma legislação eficaz contra os maus-tratos às

230
crianças. E as mulheres ainda estão brigando entre si e com os
legisladores sobre o direito de matar os fetos quase completos... Não é
possível, meu caro Jean! Confie em Deus, se assim deve, mas jamais
confie no homem. Se eu fizesse o que me está sugerindo, a imprensa
nos proscreveria e a polícia nos jogaria no mais profundo cachot do
país meia hora depois... Lamento muito. Sou um servidor do que existe.
Quando o que existe se torna insuportável, trato de sair de cena. La
comédie est finie. Dê-me agora as fotografias Terá um passaporte novo
e uma identidade nova pela manhã.
Jean Marie tirou as fotografias da carteira e entregou-as. Ao fazê-lo,
pegou a mão de Duhamel e apertou-a firmemente.
— Não vou deixá-lo partir assim! Está fazendo uma coisa terrível.
Fecha os ouvidos e o coração a um chamado claro. Pode ser o último
que receberá.
Duhamel desvencilhou-se do aperto de mão.
— Está enganado, Monsenhor. — Havia uma tristeza um tanto remota
e espectral na voz dele. — Atendi a meu chamado há muito tempo.
Quando minha mulher caiu doente e o médico me deu o prognóstico, fui
a Notre-Dame e sentei-me sozinho diante do altar. Não rezei. Apresentei
um ultimato ao Todo-Poderoso. Falei: "Eh bien! Já que ela tem de
agüentar isso, vou agüentar também. Farei com que ela seja feliz tanto
quanto me for possível, enquanto estiver viva. Mas quero que
compreenda que isso é o suficiente. Se nos impingir mais alguma coisa,
devolverei as chaves da casa da vida e ambos partiremos"... Pois foi o
que Ele fez, não é mesmo? Nem mesmo a você Ele disse: "Avise-os para
reformarem o mundo ou tudo estará perdido!" Você recebeu a mensagem
que recebo todos os dias nos despachos presidenciais. O Juízo Final está
logo além da esquina. Não há esperança! Não há saída! Assim, tudo está
acabado para mim. Lamento pelos pequenos fantoches. Mas não os gerei,
não estava presente no dia da criação. Não participei dessa confusão
explosiva que é o universo... Compreende agora, Monsenhor?
— Compreendo tudo, menos uma coisa — respondeu Jean Marie
Barette. — Por que está dando-se a todo esse trabalho comigo?
— Só Deus sabe. Provavelmente porque admiro a coragem de um
homem que é capaz de aceitar a vida e todos os seus males sem
quaisquer condições. Os pequenos fantoches também são assim, mas
apenas porque não dispõem de inteligência para saber melhor. Pelo
menos morrerão felizes.
Duhamel escreveu um número no bloco ao lado do telefone.
— Esse é o telefone da minha casa. Se precisar de mim, pode
telefonar. Caso não me encontrar, peça para falar com Charlot. Ele é

231
meu mordomo e muito bom em improvisar operações táticas. Deve
ficar seguro aqui por um ou dois dias. Depois disso, tome muito
cuidado, por favor. As pessoas não estão vendo, mas a verdade é que os
assassinos já se encontram nas ruas.
Depois que Duhamel foi embora, Jean Marie foi invadido por um
medo insidioso, o temor do viajante solitário que ouve o lobo uivando
na mata. Não podia suportar a solidão do seu quarto e por isso foi para
o restaurante, onde a patronne lhe providenciou uma mesa num canto
sossegado, do qual podia observar os demais fregueses. Jean Marie
pediu um pedaço de melão, entrecôte e meia garrafa do vinho da casa,
acomodando-se para apreciar a refeição.
Pelo menos não havia ameaça ali. A iluminação era repousante, havia
flores viçosas em todas as mesas. A toalha e o guardanapo estavam
impecáveis, o serviço era discreto. À primeira vista, os clientes eram
homens de negócios prósperos e burocratas bem situados, com suas
mulheres. Enquanto fazia o julgamento, ele avistou o seu reflexo num
espelho na parede. Compreendeu que podia ter usado outrora o
vermelho de um Cardeal e o branco de um Papa, mas era agora apenas
um homem de cabelos grisalhos, no uniforme da burguesia.
A sua imagem comum fê-lo lembrar-se de uma das primeiras
conferências de Carl Mendelius no Gregoriano. Ele estava explicando a
natureza das parábolas do Evangelho. Disse que muitas delas eram
registros de conversas descontraídas de Jesus. As metáforas de amos,
criados e refeições eram estimuladas pelo ambiente imediato e comum.
Depois, Mendelius acrescentou um aditamento à proposição:
"Contudo, as histórias familiares são como um campo minado,
repleto de armadilhas. Todas contêm contradições, elementos
alienantes, que fazem o ouvinte parar de repente e levam-no a perceber
um novo potencial, para o bem ou para o mal, no evento mais banal."
Em seu encontro com Pierre Duhamel, ele estava completamente
despreparado para a intensidade do desespero do homem. Era
profundamente terrível, por ser destituído de paixão. Podia abranger, sem
o menor tremor, as mais monstruosas perversidades, mas não encontraria
lugar para a menor esperança ou para a mais simples alegria. Era uma
loucura tão racional que não se podia curá-la nem contestá-la. E, no
entanto, no entanto... Havia mais do que uma armadilha no campo
minado! Pierre Duhamel podia entregar-se ao desespero, mas Jean Marie
Barette não deveria desesperar-se nunca. Tinha de continuar a acreditar
que, enquanto a vida perdurasse, Pierre Duhamel estaria ao alcance da
Misericórdia Eterna. Jean Marie devia continuar a fazer orações pela
alma dele, devia estender as mãos quentes para degelar o coração

232
obstinado.
A carne estava macia e o vinho era suave. Mas mesmo enquanto os
saboreava, Jean Marie estava preocupado com o desafio que agora se
apresentava. Sua credibilidade estava em jogo... não como um
visionário, mas como um simples portador das boas-novas de Deus ao
homem. Acusara Duhamel de rejeitar as boas-novas. Mas não seria
porque Jean Marie Barette, antes um Papa e servidor dos servidores de
Deus, fracassara em apresentá-las com fé e amor suficientes? Mais uma
vez, ele sentiu o impulso inexorável de abrir-se a um novo influxo de
força e autoridade. Seu devaneio foi interrompido pela patronne, que
parou junto de sua mesa para perguntar se estava gostando do jantar.
Jean Marie elogiou-o com um sorriso.
— Fui alimentado como um rei, madame.
— Na Gasconha, costumamos dizer "alimentado como a mula do Pa-
pa".
Havia um brilho de malícia nos olhos dela, mas Jean Marie não
estava com ânimo de desenvolver o gracejo. E perguntou:
— Pode dizer-me se a casa de Monsieur Duhamel fica muito longe
daqui?
— Cerca de 10 minutos, de carro. Se quiser ir até lá pela manhã,
posso pedir a um dos empregados para levá-lo de carro. Mas deve
telefonar primeiro. A propriedade é guardada como uma fortaleza, por
agentes de segurança e cachorros.
— Tenho certeza de que Monsieur Duhamel me receberá. Eu gostaria
de ir até lá agora, assim que acabar o jantar.
— Neste caso, chamarei um táxi. O motorista pode ficar esperando
para trazê-lo de volta.
— Obrigado, madame.
— Ora, não é nada. O prazer é todo meu. — Ela fez uma encenação
de remover algumas migalhas da toalha e acrescentou, baixinho: —
Claro que prefiro muito mais alimentar o Papa do que sua mula.
— Tenho certeza de que ele terá o maior prazer em visitá-la,
madame... depois que eu lhe assegurar a sua absoluta discrição.
— Quanto a isso, pode estar certo de que todos os nossos clientes
confiam em nós. Aprendemos bem depressa com Monsieur Duhamel
que o silêncio vale ouro... Como sobremesa, recomendo as nossas
framboesas. Nós mesmos é que as cultivamos...
Jean Marie terminou o jantar sem qualquer pressa. Era quase como se
fosse um atleta, correndo com alguém a marcar o ritmo e que lhe diria
quando acelerar, no momento apropriado. Sua atenção consciente

233
começou a deslocar-se de Duhamel para a mulher inválida dele. Era
como se ela estivesse estendendo a mão para alcançá-lo. Jean Marie
terminou de tomar o café, foi até a cabine telefônica e ligou para o
número particular de Duhamel. Uma voz masculina atendeu.
— Quem está falando, por favor?
— Aqui é Monsieur Grégoire. Eu gostaria de falar com Monsieur
Duhamel.
— Lamento, mas não será possível.
— Neste caso, informe-o por favor de que estarei aí dentro de 15
minutos.
— Isso não seria conveniente. Madame está muito doente. O médico
está aqui neste momento. E Monsieur Duhamel está reunido com um
visitante do exterior.
— Quem está falando, por favor?
— Charlot.
— Charlot, há duas horas Monsieur Duhamel deu-me o seu nome,
como um homem de confiança, a quem eu poderia recorrer numa
emergência. Pois trata-se de uma emergência. Por favor, faça
exatamente como estou pedindo e deixe que Monsieur Duhamel decida
se minha visita é ou não oportuna. Estarei aí dentro de 15 minutos.
O táxi chegou em meio a uma tempestade. O motorista era um
homem lacônico. Anunciou os termos do contrato para um serviço
assim e caiu no silêncio depois que foram aceitos. Jean Marie Barette
fechou os olhos e preparou-se para o que lhe seria exigido nos
encontros iminentes.
A casa de Pierre Duhamel era uma grande mansão rural, ao estilo do
Segundo Império, no meio de um pequeno parque, por trás de uma
cerca alta de ferro. O portão estava fechado e um carro da polícia estava
estacionado do lado de fora, com dois guardas. Era um dilema. Ao
telefone, ele se identificara como Monsieur Grégoire. Se a polícia lhe
pedisse os documentos, iria revelar-se como Jean Marie Barette, um
visitante dos mais comprometedores. Ele decidiu blefar. Baixou a
janela do carro e falou ao guarda mais próximo:
— Sou Monsieur Grégoire. Tenho um encontro com Monsieur
Duhamel.
— Espere um pouco!
O guarda pegou um rádio de bolso e chamou a casa:
— Um certo Grégoire está aqui fora. Diz que tem um encontro
marcado.
Jean Marie não ouviu a resposta, mas aparentemente satisfez o

234
guarda, que acenou com a cabeça e disse:
— Está sendo esperado. Sua identificação, por favor.
— Fui instruído a não trazer nenhum documento nesta visita em
particular. Pode verificar com Monsieur Duhamel.
O guarda tornou a entrar em contato com a casa. Desta vez, houve
um intervalo mais prolongado, antes que viesse a autorização para sua
entrada na propriedade. Finalmente o portão foi aberto, eletricamente, o
guarda acenou para que o carro passasse, o portão foi novamente
fechado. O táxi ainda não havia parado quando a porta da frente foi
aberta pelo próprio Pierre Duhamel. Ele estava tremendo de raiva.
— Pelo amor de Deus, meu caro! O que está querendo? Paulette está
passando mal e tenho um visitante de Moscou na sala de estar. Que
diabo está querendo?
— Onde está sua mulher?
— Lá em cima. O médico está com ela.
— Leve-me até lá.
Pierre Duhamel fitou-o como se ele fosse um estranho, depois deu de
ombros, num gesto de rendição.
— Está bem. Acompanhe-me, por favor.
Ele subiu a escada e abriu a porta do quarto. Paulette Duhamel, um
vulto pálido e encolhido, estava recostada sobre travesseiros, na cama
grande, de quatro colunas. O médico segurava o pulso inerte, contando
as pulsações.
Duhamel perguntou:
— Alguma mudança?
O médico sacudiu a cabeça.
— A paraplegia ampliou-se. Os reflexos estão mais fracos. Há fluido
nos pulmões, porque os músculos do sistema respiratório estão
começando a falhar. Podemos fazer um pouco por ela no hospital, mas
não muito... Quem é esse cavalheiro?
— Um velho amigo. Um padre.
— Hã... — O médico estava obviamente surpreso, mas demonstrou
muito tato. — Sendo assim, vou retirar-me por um momento. Ela
recupera e torna a perder a consciência a intervalos. Se houver alguma
mudança acentuada, chamem-me imediatamente, por favor. Estarei
esperando lá fora.
Ele saiu.
Pierre Duhamel virou-se para Jean Marie e disse, com uma raiva fria:
— Não quero rituais ou palhaçadas. Se ela pudesse falar, também
recusaria.

235
— Não haverá rituais — disse Jean Marie Barette, gentilmente. —
Vou sentar-me e segurar a mão dela. Pode esperar, se quiser... a menos
que seu visitante seja impaciente.
— Ele será paciente — disse Pierre Duhamel, asperamente. — Está
precisando de mim. Terá de enfrentar a fome neste inverno.
Jean Marie nada disse. Puxou uma cadeira para o lado da cama,
sentou-se, pegou a mão murcha e inerte da mulher, segurando-a entre as
suas. Pierre Duhamel, parado ao pé da cama, observou uma curiosa
transformação. O corpo de Jean Marie tornou-se inteiramente rígido. Os
músculos de seu rosto contraíram-se, de tal forma que, na semi
escuridão do quarto, as feições pareciam esculpidas em.madeira.
Alguma outra coisa também estava acontecendo, algo que ele não podia
converter em palavras. Era como se toda a vida dentro do homem se
estivesse esvaindo das periferias do corpo para algum poço secreto, no
centro dele. Enquanto isso, Paulette continuava estendida na cama,
como uma boneca de cera, murcha, triste, os olhos fechados, a
respiração superficial e entrecortada. Era uma visão tão angustiante que
Duhamel desejou, com toda a força de seu coração, que tudo parasse e
ela, aquela mulher especial e essencial a quem amava há tanto tempo,
pudesse ser libertada, como um passarinho que se solta da gaiola.
O desejo era tão pungente que pareceu suspender o tempo. Duhamel
não soube se ficou parado ali por segundos, minutos ou horas. Olhou
outra vez para Jean Marie Barette. Ele estava mudando novamente, os
músculos se descontraindo, as feições tensas relaxando num sorriso.
Jean Marie finalmente abriu os olhos e virou-se para a mulher na cama,
dizendo calmamente:
— Pode abrir os olhos agora, madame.
Paulette Duhamel abriu os olhos e concentrou-os imediatamente no
marido, que continuava parado ao pé da cama. Ela falou serenamente,
em voz fraca, mas sem qualquer hesitação:
— Olá, chéri. Parece que tive outro ataque.
Ela levantou os braços na direção dele. A primeira coisa que
Duhamel notou foi que os constantes tremores, que caracterizavam
aquele estágio avançado da doença, haviam cessado. Ele se inclinou
para beijá-la. Quando tornou a se empertigar, Jean Marie Barette estava
de pé, junto à porta aberta, conversando com o médico. Aproximando-
se da cama, o médico contou as pulsações de Paulette e auscultou-lhe
novamente o peito. Ergueu-se com um sorriso indeciso.
— Acho que podemos todos relaxar um pouco, especialmente a
madame. Parece que o problema passou, no momento. Mas deve

236
continuar deitada, sem fazer qualquer esforço desnecessário.
Poderemos cuidar pela manhã do problema respiratório. Por enquanto...
grâce à Dieu!... a crise está superada.
Afastando-se pelo corredor, em companhia de Pierre Duhamel e Jean
Marie, ele se tornou mais expansivo e loquaz:
— Com essa doença, nunca se sabe o que pode acontecer. Os súbitos
colapsos não são muito comuns, mas podem ocorrer, como aconteceu
esta noite. E depois, também subitamente, vem a recuperação. O
paciente retorna a um estado eufórico e o ritmo da degeneração se
reduz...Já notei muitas vezes que uma intervenção religiosa, como a sua
esta noite, Padre, ou a administração da extrema-unção pode produzir
uma grande calma no paciente, algo que por si só já é uma terapia...
Devem estar lembrados de que na antiga ilha de Cos...
Duhamel conduziu-o diplomaticamente até a porta e depois voltou
para junto de Jean Marie. Era como um sonâmbulo, caminhando numa
terra estranha. E estava também estranhamente humilde.
— Não sei o que você fez ou como fez, mas acho que lhe devo uma
vida.
— Não me deve nada. — Jean Marie falou com uma autoridade
espartana. — Está em dívida com Deus. Mas como está em luta com
Ele neste momento, por que não faz o pagamento aos pequenos
fantoches?
— O que o trouxe aqui esta noite?
— Algumas vezes, como todos os loucos, eu ouço vozes.
— Não escarneça de mim, Monsenhor! Estou cansado e ainda tenho
uma noite comprida pela frente.
— Partirei agora.
— Espere um pouco! Gostaria de que se encontrasse com meu
visitante.
— Tem certeza de que ele quer encontrar-se comigo?
— Pois vamos perguntar a ele.
E Pierre Duhamel levou-o à biblioteca, onde estava Sergei Andrevich
Petrov, Ministro da Produção Agrícola da União Soviética.
Era um homem baixo, corpulento como uma barrica, em parte
georgiano, em parte circassiano, nascido na economia de subsistência
do Cáucaso, mas ao mesmo tempo compreendendo, como se fosse por
um instinto animal, o problema de alimentar um continente que se
estendia da Europa à China. Ele cumprimentou Jean Marie com um
aperto de mão vigoroso e um gracejo rude:
— Então Sua Santidade está desempregado. O que está fazendo

237
agora? Bancando a eminência-parda de nosso amigo Duhamel?
O sorriso atenuava o sarcasmo do comentário, mas Duhamel reagiu
bruscamente:
— Está excedendo-se, Sergei.
— Um gracejo de mau gosto. Sinto muito. Mas tenho de apresentar
respostas a Moscou. Vamos comer neste inverno ou passaremos fome?
Nossa conversa foi interrompida e fiquei um pouco irritado.
— A culpa é minha — interveio Jean Marie. — Vim sem ser
convidado.
— E presenteou-me com um milagre particular — disse Pierre
Duhamel. — Minha mulher superou a crise.
— Talvez ele possa também fazer um milagre por mim. Deus sabe
que estou precisando. — Petrov virou-se para fitar Jean Marie Barette.
— Para a Rússia, duas colheitas ruins seguidas constituem uma
catástrofe. Quando não há forragem, temos de abater o gado. Sem
reservas de cereais, temos de racionar o suprimento para a população
civil, a fim de alimentar as Forças Armadas. Agora, os americanos e
canadenses suspenderam seus suprimentos. Os cereais passaram a ser
considerados como material de guerra. Os australianos estão vendendo
todo o seu excedente à China. Assim, estou correndo o mundo,
oferecendo barras de ouro em troca de trigo... E poderia acreditar que
não estou conseguindo quase nada?
— E se vendermos alguma coisa — acrescentou Duhamel, em tom
amargo — seremos a pérfida França, rompendo a solidariedade da
Europa Ocidental e nos expondo a sanções econômicas por parte dos
americanos.
— Se eu não conseguir arrumar trigo em algum lugar, o Exército terá
o pretexto final de que precisa para desencadear uma guerra.
Ele soltou uma risada amargurada e abriu os braços, num gesto de
desespero, antes de acrescentar:
— Eis aí um verdadeiro desafio para um fazedor de milagres!
— Houve um tempo em que meus bons ofícios poderiam significar
alguma coisa para as nações — disse Jean Marie. — Mas isso não mais
acontece. Se eu tentasse agora intervir em negócios de Estado, seria
prontamente repelido como um maluco.
— Não tenho tanta certeza assim — comentou Sergei Petrov. — O
mundo inteiro transformou-se num hospício. É original o bastante para
oferecer alguma diversão... Por que não me procura amanhã na
Embaixada? Eu gostaria de conversar com você antes de voltar a
Moscou.

238
— Tenho uma idéia melhor — disse Pierre Duhamel. — Por que
você não vai procurá-lo na Hostellerie des Chevaliers, Sergei? Eu não
confiaria uma lista de roupa suja à mesa telefônica de sua Embaixada...
e estou tentando proteger nosso amigo. E agora, Jean, gostaria que nos
desse licença. Temos uma noite comprida pela frente.
Ele puxou o cordão da campainha, ao lado da lareira. Um instante
depois, Charlot estava na porta, pronto para conduzir o visitante até a
saída. Jean apertou as mãos dos dois homens. Petrov disse, com um
sorriso:
— Se puder multiplicar os pães, eu lhe darei meu emprego amanhã!
Jean Marie Barette disse:
— Meu caro Camarada Petrov, não se pode excluir Deus do
Manifesto Comunista e depois ficar esperando que ele apareça por
ocasião da colheita.
— Você pediu por isso, Sergei! — Pierre Duhamel riu e depois
acrescentou para Jean Marie: — Irei procurá-lo amanhã com os
documentos. Até lá, talvez eu já tenha encontrado as palavras para
agradecer.
— Tenho uma reunião no banco de meu irmão pela manhã. Mas
espero já estar de volta no início da tarde. Boa-noite, senhores.
O impassível Charlot acompanhou-o até a porta. O motorista do táxi
estava cochilando. O carro da polícia ainda estava estacionado diante
do portão. Ao longe, no parque, Jean Marie pôde ouvir os latidos de
cachorros, enquanto os agentes de segurança, vasculhando a
propriedade, afugentavam uma raposa de uma moita.

Já era uma hora da madrugada quando Jean Marie concluiu suas


preces e os preparativos para dormir. Estava desesperadamente
cansado, mas ficou acordado por muito tempo, estendido na cama,
tentando compreender a estranha lógica transcedental dos
acontecimentos daquela noite. Por duas vezes agora, uma com Carl
Mendelius e novamente com Paulette Duhamel, experimentara o fluxo,
a oferenda de si mesmo, como um conduto, através do qual uma
concessão de conforto se tornava disponível para outros.
Era uma sensação inteiramente diferente da que associava com o
êxtase e as revelações da visão. Sentira-se então literalmente arrebatado
para fora de si mesmo, submetido a uma iluminação, cumulado com um
conhecimento que absolutamente não solicitara nem desejava. O efeito
fora imediato e permanente. Estava marcado para sempre.
O fluxo era um fenômeno transitório. Começava com um impulso de

239
compaixão ou amor, uma compreensão da necessidade profunda de
outra pessoa. Havia uma empatia... mais do que isso, uma
identificação... entre ele próprio e a pessoa necessitada. Era ele próprio
quem exortava o Pai Invisível à misericórdia, através do mérito do
Filho encarnado, oferecendo-se como o conduto pelo qual os dons do
Espírito podiam ser transmitidos. Não havia senso de milagre, magia ou
taumaturgia. Era um ato de amor, instintivo e irracional, através do qual
uma dádiva era concedida ou renovada.
Mas embora o ato fosse uma dedicação espontânea de si mesmo, o
impulso que o estimulava vinha de fora. Ele não podia explicar por que
se oferecera como um mediador para Paulette Duhamel e não para
Sergei Petrov, de quem dependiam questões de vastas conseqüências,
como a fome e a pestilência da guerra. Petrov podia fazer gracejos a
respeito de milagres, mas a verdade é que queria um desesperadamente.
Se lhe fosse oferecida a metade de um pão como ração de inverno, ele
teria a maior satisfação em entoar a doxologia com o Patriarca de
Moscou.
Então por que a diferença? Por que o impulso para a mulher frágil e a
recusa imediata do outro? Não era um ato de julgamento, mas sim uma
reação irracional... o junco vergando-se ao vento, o ganso migrante
reagindo ao impulso estranho e primevo que o levava a partir antes da
chegada do inverno.
Certa ocasião, há muito tempo, quando ainda era novo no Sacro
Colégio, ele passeara com Carl Mendelius num jardim à beira do Lago
Nemi. Era um daqueles dias mágicos, o ar vibrando com o zumbido das
cigarras, os cachos maduros nas videiras, o céu inteiramente sem
nuvens, os pinheiros marchando como lanceiros sobre as cristas das
colinas. Mendelius surpreendera-o com uma estranha proposição:
"Toda idolatria deriva de um desejo de ordem. Queremos ser
impecáveis, como os animais. Marcamos os nossos territórios com
almíscar e fezes. Instituímos hierarquias como as abelhas e éticas como
as formigas. E elegemos deuses para conceder sua aprovação a nossas
criações... O que não podemos admitir é a desordem do universo, o
aspecto absurdo de um cosmos sem princípio conhecido, sem fim
visível e sem sentido aparente, apesar de toda a sua dinâmica
intensamente ativa. ... Não podemos tolerar a sua monstruosa
indiferença diante de todos os nossos medos e agonias. ... Os profetas
nos oferecem esperança, mas apenas o homem-deus pode tornar o
paradoxo suportável. É por isso que o advento de Jesus é um evento
curador e salvador. Ele não é o que teríamos criado para nós mesmos. É
o verdadeiro signo da paz, porque é o signo da contradição. Sua carreira

240
é um breve e trágico fracasso. Ele morre em desonra. Mas depois,
estranhamente, ele vive. Ele não é apenas ontem, mas também hoje e
amanhã. Está disponível aos mais humildes, assim como aos mais
altos."
Mendelius pensara por um momento, antes de acrescentar: "Mas
pense no que os homens fizeram com Ele. Expandimos a sua fala
simples numa babel de filosofias. Expandimos a família dos que
acreditavam n'Ele numa burocracia imperial, justificada apenas porque
existe e não pode ser dissolvida sem um cataclisma. O homem que
alega ser o guardião de sua verdade vive num vasto palácio, cercado
por homens celibatários... como você e eu, Jean!... que jamais
ganharam uma migalha pelo trabalho de suas mãos, jamais enxugaram
as lágrimas de uma mulher ou seguraram no colo uma criança doente
até o nascer do sol. Se algum dia tornar-se Papa, Jean, mantenha uma
pequena parte de si mesmo reservada para um amor particular. Se não o
fizer, eles o transformarão num faraó, mumificado e embalsamado em
vida..."
A paisagem de verão das colinas albanas fundiram-se com os
contornos do pais de sonho. O som da voz de Mendelius desvaneceu-se
sob o canto dos rouxinóis no jardim da Hostellerie. Jean Marie Barette,
veículo de mistérios que estavam além de sua débil compreensão,
mergulhou no sono.

241
CAPÍTULO 10

Ele despertou revigorado e imediatamente lamentou o seu


envolvimento com os homens de dinheiro. Estendeu a mão para o
telefone, a fim de ligar para o seu irmão Alain no banco e cancelar a
reunião. Mas mudou de idéia antes de fazê-lo. Novo no mundo, já de
quarentena como um portador da praga, não podia se dar ao luxo de
perder qualquer linha de comunicação.
Naquela última década do século, os banqueiros dispunham de
melhores condições do que qualquer outro grupo para registrar a
doença fatal da humanidade. Ao final de cada dia, seus computadores
contavam a história e não havia retórica que pudesse alterar o texto
sombrio e .frio: o ouro em alta, o dólar em baixa, os metais raros
subindo, as perspectivas para o petróleo, cereais e soja espetaculares, os
títulos mobiliários na gangorra, a confiança se erodindo a cada semana,
aproximando-se rapidamente do ponto de pânico.
Jean Marie Barette recordou as suas longas sessões com os
financistas do Vaticano e como eram sombrios os quadros que
emergiam de seus cálculos cabalistas. Eles compravam ouro, mas
vendiam ações em minas, alegando que essa era a tendência do
mercado. Mas a verdadeira história era que os guerrilheiros negros na
África do Sul estavam cada vez mais fortes, bem treinados e bem
armados. Se podiam explodir uma refinaria de petróleo, certamente
poderiam explodir também os túneis profundos das minas. Assim,
comprava-se o metal e se livrava do bem ameaçado. Um dos
argumentos mais fortes contra a divulgação de sua encíclica fora o de
que levaria os mercados do mundo ao pânico e causaria ao próprio

242
Vaticano um enorme prejuízo financeiro.
Jean Marie saíra de cada reunião lutando com sua consciência,
porque seus experts clericais, como todos os outros de sua espécie,
eram forçados a especular sem distinção com as moralidades e
imoralidades da humanidade. Era um domínio da vida da Igreja em que
ele aprovava o sigilo... quanto menos não fosse porque não se podia
justificar ou sequer explicar as nódoas em cada balanço, quer fossem
provenientes de trabalhadores explorados, alguma operação um tanto
escusa no mercado ou de um vilão reformado comprando uma
passagem de primeira classe para o paraíso.
O fundo de investimentos que seu pai instituíra, a fim de preservar a
fortuna que ganhara para a família, era dos mais substanciais. A parte
de Jean Marie nos recursos era administrada de maneira especial. O
capital permanecia intacto, o incremento ficava à sua disposição. Como
padre paroquiano e depois como bispo, empregara o dinheiro em obras
relacionadas com o bem-estar de seu rebanho. Como Papa, usara-o para
caridades e dádivas a pessoas em crises pessoais. Ainda acreditava que
a reforma social só podia ser alcançada através de organizações
eficazes e devidamente financiadas, mas estava também convencido de
que não havia substituto para o ato de compaixão, a afirmação secreta
da fraternidade na aflição. Agora, ele próprio tinha de reivindicar meios
de subsistência. Estava com 65 anos, estatisticamente desempregado... e
precisando de um mínimo de liberdade para disseminar a palavra que
lhe fora concedida.
Eram quatro os administradores do fundo com que teria de lidar.
Cada um deles era diretor de um grande banco. Alain apresentou-os
com a cerimônia apropriada: Sansom do Barclays, Winter do Chase,
Lambert do Crédit Lyonnais, Madame Saracini do Banco Ambrogiano
all'Estero.
Eram todos respeitáveis, todos um tanto cautelosos. O dinheiro
residia em casas estranhas, o poder era controlado por mãos
improváveis. Além do mais, estavam sendo chamados a explicar sua
orientação... e se perguntavam até que ponto aquele ex-Papa podia ler
um balanço e uma demonstração de lucros e perdas.
Madame Saracini foi a porta-voz do grupo. Era uma mulher alta, de
pele azeitonada, beirando os 40 anos, num costume azul de linho, com
renda na garganta e nos punhos. Suas únicas jóias eram a aliança de
casamento e um broche de ouro com uma água-marinha. Falava francês
com um ligeiro sotaque italiano. Possuía também senso de humor e

243
estava obviamente disposta a exercê-lo. Perguntou inocentemente:
— Desculpe-me mas, como gostaria de ser tratado? Não pode ser Sua
Santidade. Deve ser Eminência ou Monsenhor? Também não pode ser
apenas Père Jean.
Jean Marie riu.
— Duvido que haja algum protocolo. Celestino V foi forçado a
abdicar e canonizaram-no depois de sua morte. Ainda não estou morto
e assim isso não se aplica. E certamente sou menos do que uma
Eminência. Sempre achei que Monsenhor era um resquício
desnecessário da monarquia. E como estou agora vivendo como uma
pessoa comum, sem uma missão canônica, por que não simplesmente
Monsieur?
— Não concordo, Jean. — Alain estava perturbado com a sugestão.
— Afinal...
— Afinal, meu caro irmão, tenho de viver o que sou e gosto de me
sentir à vontade... E agora, madame, gostaria que me explicasse os
mistérios do dinheiro.
Madame Saracini respondeu com um sorriso:
— Tenho certeza de que compreende que não existe absolutamente
qualquer mistério... apenas os problemas de manter um capital intacto e
um rendimento que fique acima da inflação. Isso significa que há
necessidade de uma administração ativa e vigilante. Felizmente, sempre
contou com isso, já que seu irmão é um excelente banqueiro... O
capital, avalidado ao final do último ano financeiro, é de cerca de 8
milhões de francos suíços. Esse capital, como vai verificar, está
dividido numa proporção apropriadamente estável: 30 por cento em
propriedades imobiliárias, tanto urbanas como rurais, 20 por cento em
ações, 20 por cento em títulos de liquidez imediata, 10 por cento em
obras de arte e antiguidades e os restantes 20 por cento em ouro e
empréstimos a curto prazo. É uma distribuição das mais racionais. Pode
ser variada em pouco tempo. Se tem algum comentário a fazer, é
claro...
— Tenho uma pergunta — disse Jean Marie, suavemente. —
Estamos sob a ameaça da guerra. Como podemos proteger os nossos
bens?
O homem do Chase interveio:
— Em relação aos papéis comerciais, dispomos dos sistemas mais
modernos de estocagem e resgate, triplicados e algumas vezes
quadruplicados em áreas estrategicamente protegidas. Instituímos um
código comum de prática interbancária, que permite proteger nossos
clientes contra perdas documentais. O ouro, é claro, constitui uma

244
operação de cofre-forte. A propriedade rural é perene. Os prédios
urbanos serão reduzidos a escombros, mas o seguro contra riscos de
guerra favorece os grandes investidores. As obras de arte e
antiguidades, como o ouro, dependem de uma estocagem segura.
Talvez se interesse em saber que há anos estamos comprando minas
abandonadas e convertendo-as em depósitos seguros...
— Estou tranqüilizado — disse Jean Marie Barette, com uma ironia
inequívoca. — Só fico imaginando por que não é possível investir o
mesmo dinheiro e a mesma engenhosidade para a proteção dos cidadãos
contra a precipitação radiativa e os gases venenosos. Fico imaginando
por que nos preocupamos tanto com o resgate de papéis comerciais e tão
pouco com o proposto assassinato em massa dos enfermos e incapazes.
Houve um breve momento de silêncio constrangido e depois, com
uma raiva fria, Alain Hubert respondeu ao irmão:
— Vou explicar-lhe por que, irmão Jean! É porque nós, ao contrário
de muitos outros, mantemos o acordo que temos com os nossos
clientes... entre os quais está você! Outros podem fazer coisas horríveis,
até mesmo monstruosas, mas você não nos pode culpar porque
cumprimos bem o que se espera de nós! Acho que me deve e a meus
colegas um pedido de desculpa!
— Tem toda razão, Alain. — Jean Marie reagiu solenemente à
censura. — Peço perdão... a você, madame, senhores. E espero que me
permitam uma explicação. Fiquei chocado ontem, profundamente
chocado, ao saber que, na minha pátria, há planos para a eliminação dos
incapazes assim que estourar a guerra... Algum dos presentes dispõe de
alguma informação a respeito?
O homem do Crédit Lyonnais contraiu os lábios, como se alguém
tivesse posto alume em sua língua.
— Sempre se ouvem muitos rumores. Alguns se baseiam em fatos,
mas os fatos não são plenamente compreendidos. Se calcular que uma
única explosão atômica vai matar 1 milhão de pessoas, contaminando
uma vasta área periférica, então deve prever-se alguma forma de morte
misericordiosa para os sobreviventes sem qualquer esperança... No caos
geral que se seguirá, quem poderá fixar os limites? É-se obrigado a
deixar tudo ao critério da autoridade no comando da área, quem quer
que venha a ser.
O homem do Barclays foi um pouco mais sutil e polido:
— Não resta a menor dúvida, meu caro senhor, de que o cenário para
o caos que previu em seus próprios escritos é quase o mesmo preparado
por nossos governos seculares. A diferença é que eles estão obrigados a
providenciar soluções práticas e não podem dar-se ao luxo de impor

245
critérios éticos e morais. Ninguém pode moralizar sobre a triagem num
hospital de campanha. O cirurgião, deslocando-se entre os feridos, é o
único árbitro da vida ou morte. "Operem este, pois ele vai sobreviver.
Este aqui é o segundo na lista, pois pode sobreviver. Dêem um cigarro e
uma injeção de morfina neste, pois ele vai morrer." A menos que esteja
sob a pressão desse julgamento, meu caro senhor, nada se pode fazer...
Antes que Jean Marie pudesse responder, Madame Saracini veio em
seu socorro, dizendo em tom afável:
— O problema, meu caro Monsieur Barette, é que até este momento
levou uma vida muito resguardada. Deve compreender que Deus deixou
de fabricar terra há muitos milhões de anos. Assim, quem tem uma
propriedade deve apegar-se a ela por todos os meios. O petróleo se está
esgotando, assim como os demais combustíveis fósseis. Por isso, cada
um tem de lutar por sua parte. Rembrandt está morto e Gauguin também.
Assim, não haverá mais quadros deles. Mas seres humanos... Já somos
demais. Estamos fadados a um pequeno genocídio. E se a matança for
excessiva, então poderemos recomeçar a procriar... com alguma ajuda
dos bancos de esperma, que estão alojados em nossos cofres.
Era uma comédia sombria, mas todos tiveram de rir. A tensão
relaxou e Madame Saracini tratou de apresentar o relatório, mostrando
que Jean Marie Barette podia viver de seus rendimentos como um
príncipe. Ele agradeceu a cortesia, pediu desculpas por sua indelicadeza
e disse que só recorreria a eles para atender a suas necessidades
pessoais, deixando que o fundo continuasse a se acumular, até o Dia do
Juízo Final.
Os homens do Barclays, Crédit Lyonnais e Chase se retiraram.
Madame Saracini ficou. Alain convidara-a para o almoço, como a
quarta pessoa à mesa, as outras três sendo ele próprio, Jean Marie e
Odette. Enquanto esperavam por Odette, Alain serviu sherry. Depois,
deixou-os a sós, a fim de atender a um telefonema de Londres. Madame
Saracini levantou seu copo num brinde silencioso. E depois fez uma
censura a Jean Marie:
— Foi muito desagradável conosco. Por quê?
— Não sei. De repente, eu estava vendo duas imagens num espelho
rachado: todos aqueles computadores zumbindo em seus abrigos
subterrâneos... e por cima os corpos de crianças calcinados diante de
uma sorveteria.
— Meus colegas não vão perdoá-lo. Fez com que se sentissem
culpados.
— E você própria não se sente assim?

246
— Acontece que concordo com tudo o que disse. Só que não posso
fazer ataques frontais. Sou a mulher que os faz rir primeiro e depois
perceberem o bom senso... quando não mais sentem a sua virilidade
ameaçada.
— Minha informação é certa ou errada?
— Sobre a eutanásia para os incapazes? Claro que é certa. Mas nunca
poderá provar, porque a Europa inteira, de uma estranha maneira
subconsciente, está consentindo na conspiração. Queremos uma saída
para nós e as pessoas que amamos quando as coisas se tornarem
horríveis demais para suportar.
— Tem filhos, madame?
— Não.
— E seu marido?
— Ele morreu um ano depois de nosso casamento.
— Perdoe-me! Não pretendia ser bisbilhoteiro.
— Não se aflija por isso. Estou contente de que se interesse o
bastante para perguntar. Por falar nisso, creio que conhece meu pai.
— É mesmo?
— Ele é Vittorio Malavolti. Está cumprindo uma pena de 20 anos de
prisão por fraude bancária. Lembro-me de que ele realizou muitas
transações para o Vaticano... e lhes custou um bocado de dinheiro!
— Estou lembrado de tudo. Espero que tenha sido capaz de esquecer.
— Por favor, não seja indulgente comigo. Não quero esquecer. Amo
meu pai. Ele é um gênio financeiro e foi manipulado por muitos
homens os quais ainda protege. Trabalhei com ele. Foi quem me
ensinou tudo o que sei a respeito da atividade bancária. Ajudou-me a
começar por conta própria, de forma limpa, com dinheiro limpo.
Comprei o Banco Ambrogiano all'Estero quando estava no buraco.
Tratei de recuperá-lo e expandi-lo, fiz muitas alianças. Todos os anos,
pago cinco por cento das dívidas pessoais de meu pai, a fim de que no
momento em que ele sair... se sair algum dia!... possa andar pelas ruas
de cabeça erguida... E isso me lembra outra coisa. Não se atreva a tratar
seu irmão de maneira condescendente! Ele me ajudou a começar.
Levou-me a operações como o seu fundo. Se algumas vezes parece um
tolo, é porque se casou com a mulher errada. Mas Papa ou não, a
verdade é que esta manhã ele lhe deu a lição que merecia! E isso impõe
respeito!
Jean Marie ficou surpreso com a veemência de Madame Saracini. A
mão dela estava trêmula e um pouco do sherry derramou-se. Jean Marie
tirou o lenço do bolsinho do paletó e entregou-o para que ela
enxugasse. E perguntou, suavemente:

247
— Por que está tão zangada comigo?
— Porque não sabe como é importante... especialmente agora que
não está mais em seu cargo. Aqueles artigos nos jornais fizeram com
que as pessoas passassem a adorá-lo. Mesmo os que não concordavam,
passaram a respeitá-lo e prestar toda atenção. Sansom, o homem do
Barclays, citou os seus escritos esta manhã... e pode estar certo de que
ele dificilmente lê qualquer coisa além das páginas financeiras! Assim
quando faz alguma coisa desagradável, desaponta uma porção de
pessoas.
— Procurarei não me esquecer. — Jean Marie fez uma pausa, antes
de acrescentar, com um sorriso: — Faz muito tempo que não levo um
bom puxão de orelhas.
Ela corou como uma colegial e fez um pedido de desculpas meio sem
jeito:
— Também tenho uma língua ferina... e também uma espécie de
interesse de proprietária.
— Como assim?
— No século XIV, tanto a família de meu marido como a minha
eram amigas e correspondentes de Benincasa e da própria Santa
Catarina. Apoiaram-na em seus esforços para trazer o seu
homônimo Gregório XI de volta de Avignon... Faz muito tempo, mas
nós, sienenses, somos zelosos de nossa história... e às vezes um pouco
místicos.
Ela largou o copo, abriu a bolsa e vasculhou-a, tirando um
caderninho de anotações.
— Dê-me o seu endereço e telefone. Precisamos conversar
novamente.
— Sobre alguma coisa em particular?
— Minha alma imortal seria suficientemente importante?
— Claro.
Jean Marie reconheceu a derrota com um sorriso e forneceu a
informação solicitada.
E isso foi o final da conversa, naquele momento. Alain entrou com
Odette, elegante, ricamente vestida, largando nomes a torto e a direito,
como se fossem gotas de chuva. Alain lançou uma piscadela de
conspiração para Jean Marie e depois o deixou a agüentar toda a carga do
monólogo de Odette, até chegarem ao restaurante. O almoço foi um tanto
constrangido. Odette dominou a conversa, enquanto Alain censurava
debilmente as suas esnobações mais óbvias. Madame Saracini retirou-se
antes do café. Odette fungou e pronunciou uma despedida desdenhosa:

248
— Que mulher extraordinária! É muito atraente... ao estilo italiano, é
claro. Fica-se imaginando quais os acertos domésticos que ela adotou
desde a morte do marido.
— Isso não é da sua conta — disse Alain. — Vamos tratar agora de
problemas de família. Quais são os seus planos, Jean? Se pretende ficar
na França, vai precisar se estabelecer de alguma forma, com um
apartamento, uma governanta...
— É muito cedo para cuidar disso. Ainda sou uma personalidade por
demais em evidência... e obviamente uma presença embaraçosa para os
velhos amigos. É melhor manter-me em movimento por algum tempo.
— Também deve manter-se em silêncio por algum tempo —
comentou Alain, sombriamente. — Está acostumado a fazer
proclamações lá de cima, mas não está mais em condições de fazê-lo. O
que disse em nossa reunião estará circulando pela cidade inteira ao
anoitecer. Foi por isso que o censurei. Não posso deixar-me associar
com conversas subversivas... É muito mais perigoso do que você pode
imaginar.
Odette interveio, positiva e onisciente, como sempre:
— Alain tem toda razão. Conversei uma noite dessas com o Ministro
da Defesa. Ele é um homem muito simpático, mas sua mulher é
insuportável. Ele disse que estamos precisando agora não de
controvérsias, mas de diplomacia firme e objetiva, de negociações
discretas, enquanto as Forças Armadas se preparam.
— Vamos todos compreender uma coisa — disse Jean Marie Barette,
firmemente. — Tornei-me um padre para pregar a palavra de Deus,
para espalhar as boas-novas da salvação. Não é algo sobre o qual eu
possa ser prudente, seguro ou mesmo gentil. E tenho de lhes transmitir
a mesma mensagem que prego ao resto do mundo. A batalha entre o
bem e o mal já começou, mas o homem de bem parece um tolo,
enquanto o mal exibe o rosto de um homem sensato e justifica o
assassinato com estatísticas impecáveis!
— Não é o que diz o nosso Cardeal. — Como sempre, Odette estava
pronta para uma discussão. — No último domingo, ele fez o seu sermão
pela televisão sobre o tributo que se deve pagar. Disse que se trata de
uma questão de prioridades. Obedecemos à lei como um meio de servir
a Deus... e mesmo que cometamos erros, de boa fé, Deus é capaz de
compreender.
— Tenho certeza de que Ele compreende, minha cara — disse Jean
Marie. — E tenho certeza também de que o Cardeal tem bons motivos
para ser tão suave... mas não é suficiente! Está muito longe de ser
suficiente!

249
— Temos de ir embora agora — interveio Alain, diplomaticamente.
— Tenho um encontro às duas e meia com o Ministro das Finanças. Ele
está querendo o nosso conselho sobre a melhor maneira de lançar um
bônus para a defesa.

Jean Marie prometera a si mesmo uma tarde tranqüila, de prazeres


simples e pessoais... uma olhada nos livros à venda nas barracas à
margem do Sena, um passeio entre os quadros expostos na Place du
Tertre. Estava ausente há muito tempo e aquela era a sua cidade. Podia
ter encontrado dificuldades com a família, mas deveria sentir-se bem e
à vontade em sua própria cidade natal.
A caça aos livros foi compensadora. Jean Marie encontrou uma
primeira edição de Fêtes Galantes, de Verlaine, com uma quadra
autografada. Verlaine sempre o impressionara, o bêbado triste e
perdido, que escrevia canções de anjo e vivia no inferno com Rimbaud.
Se houvesse alguma justiça no universo, Verlaine devia estar entoando
cânticos de alegria aos pés do Todo-Poderoso.
A Place du Tertre foi a princípio um desapontamento. Os pintores
tinham de comer e os turistas tinham de levar para casa um pedaço de
Paris; assim, as telas eram cinicamente vulgares. Mas ele deparou com
uma curiosidade no canto menos favorável da sala: uma moça meio
deformada, quase anã, que não devia ter mais do que 20 anos, vestindo
uma camisa de malha e calça americana, desenhando numa placa de
vidro com um estilete de ponta de diamante. Sobre a mesa a seu lado
havia espécimes de seu trabalho: uma taça, um espelho, uma poncheira.
Jean Marie pegou a taça para examinar. A moça advertiu-o,
asperamente:
— Se deixar cair, vai ter de pagar!
— Tomarei muito cuidado. Está bonito. O que representa o desenho?
A moça hesitou por um instante, como se estivesse com receio de
escárnio. Mas acabou explicando:
— Eu a chamo de taça do cosmos. A taça é redonda, o símbolo da
perfeição. A parte inferior é o mar, ondas e peixes. A parte superior é a
terra, trigo e videiras. É uma representação do cosmos...
— E onde os seres humanos entram no cosmos?
— Eles bebem na taça.
O conceito agradou a Jean Marie. E ele se perguntou até que ponto a
moça poderia levar a elaboração. Resolveu fazer outra pergunta:
— Deus entra na representação?
Ela lhe lançou um olhar rápido e desconfiado.
— Isso é importante?

250
— Pelo menos interessante.
— Você é cristão?
Jean Marie soltou uma risada.
— Sou, sim, embora possa não parecer.
— Então deve saber que o peixe, a parreira e o trigo são símbolos de
Cristo e da Eucaristia.
— Quanto custa a taça?
— Seiscentos francos. — A moça fez uma breve pausa e depois
acrescentou, defensivamente: — Deu muito trabalho.
— Dá para perceber. Vou levá-la. Pode fazer um embrulho bastante
seguro?
— Posso, sim. Não ficará um embrulho elegante, mas pelo menos
será seguro.
Ela largou o que estava fazendo e começou a embrulhar a taça numa
caixa de papelão suja, recheada com bolas de plástico. Observando-a,
Jean Marie percebeu que ela era magra e como o suor lhe aflorava à
testa pelo pequeno esforço, as mãos manuseando hesitantemente a
frágil peça. Enquanto contava o dinheiro, Jean Marie disse:
— Sou um colecionador sentimental. Sempre gosto de comemorar
com o artista. Não gostaria de me acompanhar num drinque e um
sanduíche?
A moça lançou-lhe outro olhar desconfiado e respondeu
bruscamente:
— Obrigada, mas já pagou um bom preço. Não precisa de me fazer
qualquer favor.
— Eu é que lhe estou pedindo um favor — disse Jean Marie Barette.
— Tive uma manhã difícil e um almoço desagradável. Terei o maior
prazer em conversar com alguém. Além do mais, o café fica a três
passos daqui.
— Está bem.
A moça entregou-lhe o embrulho, pediu a um pintor próximo que
vigiasse sua mesa e depois acompanhou Jean Marie até o café, na
esquina da praça. Ela tinha um estranho jeito de andar, que a fazia
quase girar num semicírculo a cada passo. A curvatura da espinha era
terrivelmente acentuada e a cabeça era grotescamente desproporcional,
como se entortada por um escultor bêbado.
Ela pediu café e um conhaque, além de pão de presunto e ovo cozido.
Comeu vorazmente, enquanto Jean Marie remexia num copo com água
de Vichy e tentava manter uma conversa:
— Tive outro golpe de sorte esta tarde: uma primeira edição de Fêtes
Galantes, de Verlaine.

251
— Também coleciona livros?
— Adoro coisas bonitas. Mas essas coisas são para outras pessoas.
Sua taça irá para uma senhora que mora perto de Versailles e sofre de
esclerose múltipla. Vou escrever a explicação do simbolismo...
— Posso poupar-lhe o trabalho. Datilografarei a explicação. Eu lhe
darei antes de ir embora... É estranho que me tenha perguntado onde
Deus entra.
— Por que estranho?
— A maioria das pessoas acha que o assunto é embaraçoso.
— E você?
— Deixei de me sentir embaraçada há muito tempo. Aceito que sou
uma aberração. É mais fácil para mim e mais fácil para as outras
pessoas se aceito o meu aleijão como um fato consumado. Mas às vezes
é muito difícil. Aqui na praça, encontra-se gente de todos os tipos. Há
até homens que querem ir para a cama com mulheres aleijadas. Foi por
isso que o tratei com alguma rispidez. Alguns desses homens são até
mais velhos do que você.
Jean Marie jogou a cabeça para trás e riu até que as lágrimas lhe
escorriam pelo rosto. Finalmente conseguiu balbuciar:
— Deus do céu! E pensar que tive de voltar à França para ouvir uma
coisa dessas!
— Não ria de mim, por favor. As coisas podem ser terrivelmente
difíceis por aqui! Acredite em mim, por favor!
— Claro que acredito em você. — Jean Marie recuperou-se
lentamente. — Importa-se agora de me dizer seu nome?
— Está assinado na peça... Judith.
— Judith o quê?
— Apenas isso. Usamos apenas os primeiros nomes na comunidade.
— Comunidade? Está querendo dizer que é uma freira?
— Não exatamente. Somos cerca de uma dúzia de mulheres que
vivem juntas. Somos todas aleijadas, de um jeito ou de outro... e nem
todas fisicamente. Partilhamos o que ganhamos. Cuidamos umas das
outras. Somos também uma espécie de refúgio para as moças do bairro
que se metem em encrencas. Parece um tanto primitivo e é mesmo. Mas
é também muito gratificante e nos sentimos bem próximas da idéia
cristã inicial. Depois do que pagou pela taça do cosmos, merece ser
lembrado esta noite, na oração do jantar. Qual é o seu nome? Gosto de
manter uma lista das pessoas que compram as minhas obras.
— Jean Marie Barette.

252
— É alguém importante?
— Basta lembrar-se de mim na oração do jantar. Mas gostaria que
me dissesse uma coisa. Como essa... essa comunidade de vocês
começou?
— Foi uma coisa estranha. Deve estar lembrado de que há alguns
meses o Papa abdicou e um novo foi eleito. Normalmente não teria
significado muita coisa. Jamais me encontrei com alguém mais alto do
que um padre de paróquia. Mas aquela ocasião foi terrível para mim.
Nada parecia dar certo. E tive a impressão de que houve uma ligação
entre aquele fato e a minha vida. Pode entender o que estou querendo
dizer?
— Posso, sim — respondeu Jean Marie, comovido.
— Pouco depois, eu estava trabalhando em meu estúdio. Tinha um
pequeno apartamento de mansarda, aqui perto. Uma moça que conheço,
modelo que trabalha para alguns pintores daqui, apareceu cambaleando.
Estava embriagada, fora estuprada e espancada, a concierge jogara-a na
rua. Tratei de deixá-la sóbria e levei-a à clínica, para que cuidassem de
seus ferimentos. Depois, voltamos ao meu apartamento Naquela noite
ela se tornou muito estranha, distante, hostil e... como posso explicar?...
desligada, talvez seja o termo melhor. Fiquei com medo de permanecer
ao lado dela, mas ao mesmo tempo não me atrevia a deixá-la. Assim,
apenas para interessá-la em alguma coisa, comecei a esculpir uma
pequena boneca num tarugo de madeira para pendurar roupa. Acabei
fazendo três bonecas. Depois nos sentamos e fizemos roupas para as
bonecas. Era como se eu fosse a mãe e ela a filha... Ela dormiu
quietinha na minha cama, segurando-me a mão. No dia seguinte,
arrumei duas amigas para passarem o dia em companhia dela. E assim
continuou até que ela voltou ao normal. A esta altura, tínhamos
formado um pequeno grupo e parecia uma pena dispersá-lo. Chegamos
à conclusão de que poderíamos poupar dinheiro e viver mais
confortavelmente se morássemos juntas, como uma família... A parte
religiosa? A coisa aconteceu com a maior naturalidade. Uma das moças
estivera na Índia e aprendera as técnicas de meditação. Eu fora criada
num convento e agradava-me a idéia de reunião para uma prece em
família. Pouco depois, uma das moças levou para a casa um padre-
operário que conhecera numa brasserie. Ele conversou conosco,
emprestou-nos livros. Além disso, se éramos incomodadas à noite,
telefonávamos para ele, que logo aparecia, com uma dupla de amigos
da fábrica. Posso garantir-lhe que foi uma ajuda e tanto. Depois de
algum tempo, conseguimos instituir um padrão de vida que nos

253
convinha. Poucas entre nós eram virgens. Nenhuma tem certeza se está
preparada para um relacionamento a longo prazo com um homem.
Algumas talvez ainda venham a casar-se. Mas todas somos crentes e
nos empenhamos em tentar viver pela Bíblia... Ai está! Tenho certeza
de que não significa muito para você, mas para nos proporciona uma
paz imensa...
— Estou muito contente de tê-la conhecido — disse Jean Marie
Barette. — E me sinto muito orgulhoso de possuir a sua taça do
cosmos. Aceitaria um presente meu?
— Que espécie de presente?
O antigo olhar cauteloso estava de volta. Jean Marie apressou-se em
dissipar os temores dela:
— O Verlaine que encontrei hoje. Há um verso que poderia ter sido
escrito para você. Está escrito com a própria letra do poeta.
Ele tirou o livro do bolso e leu a quadra que estava logo depois da
sobrecapa:
— "Votre âme est unpaysage choisi"... — Jean Marie perguntou
humildemente: — Quer aceitá-lo, por favor?
— Se me fizer uma dedicatória.
— Que espécie de dedicatória?
— Ora, a coisa de sempre. Apenas uma palavrinha e depois a sua
assinatura.
Jean Marie pensou por um momento e escreveu:

"PARA JUDITH, QUE ME MOSTROU O UNIVERSO NUMA


TAÇA."
Jean Marie Barette,
antes o Papa Gregório XVII

A moça ficou olhando incrédula para a dedicatória. Depois, levantou


os olhos, procurando por algum indício de zombaria no rosto
sorridente. E disse, a voz trêmula:
— Não compreendo... eu... eu...
— Também não compreendo — disse Jean Marie Barette. — Mas
acho que você acaba de me dar uma lição de fé.
— Não estou entendendo — murmurou a moça aleijada.
— O que eu estava tentando dizer ao mundo da Colina do Vaticano,
você o fez de uma mansarda em Paris. Deixe-me tentar explicar...
E quando Jean Marie acabou de contar toda a longa história, ela
estendeu a mão áspera e calosa das ferramentas de seu trabalho e pôs

254
sobre a dele, murmurando, com um sorriso de menina:
— Espero poder transmitir às meninas da maneira como me
explicou. Ajudaria muito se eu conseguisse fazê-lo. De vez em quando
elas ficam cansadas, porque nossa pequena família parece inútil e
desorganizada. Sempre digo que existe uma boa coisa em chegar ao
fundo do poço. A partir daí, só se pode subir!
O sorriso dela desvaneceu-se e foi num tom solene que acrescentou:
— Está no fundo agora e por isso sabe disso. Não gostaria de ir jantar
conosco?
— Obrigado, mas não será possível. — Jean Marie tomou todo
cuidado em não desapontá-la. — Afinal, Judith, meu amor, vocês não
precisam de mim. Seus próprios corações já lhes ensinaram melhor do
que eu poderia fazê-lo. Cristo já está no meio de vocês.
O tráfego vespertino estava terrível, mas Jean Marie voltou à
Hostellerie numa nuvem branca de serenidade. Naquele dia,
provavelmente mais do que em qualquer outro de sua vida, vira como o
Espírito se antecipava a todos os planos dos homens nos postos mais
elevados. Aquele pequeno grupo de mulheres, aleijadas e ameaçadas,
reunira-se para constituir uma família. Não tinham licença nem
autorização. Tinham amor para partilhar e o partilhavam. Precisavam
pensar e pensavam. Descobriam um impulso para orar e oravam.
Encontravam um mestre num bar de operários. As moças em
dificuldades iam procurá-las, porque sentiam o calor do fogo familiar.
O grupo podia não ser estável. Não tinha garantias de continuidade.
Não havia constituição nem qualquer sanção para proporcionar-lhe uma
identidade legal. Mas que importância isso tinha? Era como a fogueira
de acampamento no deserto, acesa à noite, apagada ao amanhecer; mas
enquanto durava, era um testemunho da permanência humana ao Deus
que visitava o homem em seus sonhos. Mais uma vez, a voz de Carl
Mendelius insinuou-se nos devaneios de Jean Marie:
"O Reino de Deus é o lugar de habitação para os homens. O que mais
pode significar que não uma condição em que a existência humana não
apenas é suportável, mas também alegre... porque está aberta para o
infinito"...
De que maneira melhor se poderia exprimir o fenômeno de uma
moça aleijada que gravava o cosmos numa taça e constituía uma família
para mulheres desprezadas, sob os telhados de Paris?
Ao chegar à Hostellerie, a primeira coisa que ele fez foi telefonar
para Tübingen. Lotte se encontrava no hospital, mas Johann estava em
casa. Ele tinha boas notícias.
— O estado de papai é estável. A infecção está sob controle... Ainda

255
não temos certeza sobre a vista, mas pelo menos já sabemos que ele vai
sobreviver. E tenho outra notícia sensacional! O vale é nosso. Os
contratos foram assinados hoje. Vou até lá na próxima semana para
conversar com os agrimensores, arquitetos e engenheiros. E recebi
dispensa do serviço militar, pelo que aconteceu com papai. E como
estão as coisas para o seu lado, Tio Jean?
— Está indo tudo muito bem. Pode dar um recado a seu pai?
Escreva-o, por favor, como um bom rapaz.
— Pode falar.
— Dê-lhe o seguinte recado: "Recebi hoje um sinal. Veio de uma
mulher que me mostrou o cosmos numa taça de vinho." Repita, por
favor.
— Recebeu hoje um sinal. Veio de uma mulher que lhe mostrou o
cosmos numa taça de vinho.
— Se algum dia receberem alguma mensagem que supostamente
venha de mim, deve conter essa identificação.
— Entendido. O que vai fazer agora, Tio Jean?
— Não sei... mas talvez tenha de viajar precipitadamente. Não se
esqueça do que lhe falei. Tire a sua família de Tübingen o mais
depressa possível. Meu amor para todos!
— E o nosso para você. Como está o tempo em Paris?
— Ameaçador.
— O mesmo acontece aqui. Dispersamos o nosso clube, como
sugeriu.
— E livraram-se do equipamento?
— Claro.
— Ótimo! Pode deixar que me manterei em contato, sempre que me
for possível. E não se esqueça de mandar minhas lembranças à Prof.ª
Meissner. Auf wiedersehen.
Ele mal desligara quando Pierre Duhamel apareceu, a fim de
entregar-lhe seu novo passaporte e novo documento de identidade, em
nome de J.M. Grégoire, pasteur en retraite. Ele descreveu a Jean Marie
os usos e limitações:
— É tudo autêntico, já que usou também o nome de Gregório. É um
ministro religioso. Os números dos documentos pertencem a uma série
usada para categorias especiais de agentes do Governo. Assim,
nenhuma autoridade francesa de imigração vai querer fazer-lhe muitas
perguntas. Os consulados estrangeiros também não criarão quaisquer
dificuldades em conceder vistos a um clérigo aposentado, viajando por
motivos de saúde... Mas procure não perder os documentos ou se meter
em complicações que possam fazer com que sejam confiscados. Isso

256
poderia ser terrivelmente embaraçoso para mim... a propósito, meu caro
Monsenhor, abriu a boca excessivamente na reunião com os banqueiros
esta manhã. Os telefones entraram em ação assim que eles voltaram a
seus escritórios... Mais uma vez, está sendo classificado como um
elemento incômodo e perigoso.
— E você, meu caro Pierre, também pensa a mesma coisa a meu
respeito?
Duhamel ignorou a pergunta.
— Minha mulher lhe envia os seus agradecimentos. Ela se sente
novamente em remissão e melhor do que se sentia há muito tempo. O
mais curioso é que, embora parecesse inconsciente na ocasião, ela se
lembra de sua visita e descreve o que você fez como uma "carícia de
vida". Em outras circunstâncias, eu poderia ficar com muito ciúme.
Jean Marie ignorou o comentário.
— Comprei um pequeno presente para vocês dois.
— Não havia necessidade. — Duhamel estava comovido. — Já lhe
devemos muito.
Jean Marie entregou-lhe a caixa de papelão e pediu desculpas com
um sorriso:
— Não deu para embrulhar em papel de presente. Pode abrir agora se
quiser.
Duhamel arrancou o barbante, abriu a caixa e tirou a taça. Examinou-
a com a atenção de um connaisseur.
— É maravilhosa. Onde foi que a encontrou?
Jean Marie relatou o encontro com Judith, a moça aleijada, na Place
du Tertre. Entregou o papel que explicava o simbolismo do desenho e
falou da estranha comunidade de mulheres. Pierre Duhamel escutou em
silêncio e fez um único comentário:
— Está se empenhando muito em converter-me.
— Ao contrário — disse Jean Marie, firmemente. — Fui convocado
a oferecer testemunho, a distribuir as dádivas de fé, esperança e amor.
O que você faz com isso, é exclusivamente um problema seu...
Ele fez uma pausa. Quando voltou a falar, o tom estava mudado,
tornando-se suplicante e desesperadamente persuasivo:
— Pierre, meu amigo, você me ajudou. Quero também ajudá-lo. O
que sua mulher chamou de "carícia de vida" é algo muito real. Pude
senti-lo hoje, quando essa moça, que é uma caricatura da mulher, pôs a
sua mão na minha e convidou-me a conhecer seu mundo especial...
Essa sua imensa coragem estóica é tão... tão estéril, tão
desesperadamente triste!
— Estou num negócio triste — disse Pierre Duhamel, com um humor

257
ártico. — Sou um agente funerário, preparando as exéquias da
civilização. O que exige um estilo grandioso... O que me lembra de
uma coisa. Amanhã, terei de assinar um documento determinando uma
vigilância completa para um certo Jean Marie Barette.
— Considerado como o quê?
— Um agitador antigoverno.
— E vai assinar o documento?
— Claro. Mas retardarei a assinatura por algumas horas, a fim de que
você possa tomar as providências apropriadas.
— Sairei daqui amanhã de manhã.
— Antes de ir... — Duhamel entregou-lhe um pedaço de papel — —
ligue para esse número. Petrov quer falar com você.
— Sobre o quê?
— Pão, política... e algumas fantasias dele.
— Gostei de Petrov quando nos conhecemos em Roma. Ainda posso
confiar nele?
— Não tanto quanto pode confiar em mim. Mas vai descobri-lo
muito mais simpático...
Duhamel relaxou pela primeira vez. Levantou a taça do cosmos e
virou-a diversas vezes, examinando os detalhes da gravação. E
finalmente disse:
— Beberemos dela, Paulette e eu. Pensaremos em você e na pequena
bossue da Place du Tertre... Quem sabe se não é um teatro bom o
bastante para acabar com a nossa descrença?... Mas quero que você
compreenda que vivemos em tempos terríveis, a era dos batalhões
negros. Se cair nas mãos deles, nada poderei fazer para ajudá-lo.
— O que seu Presidente pensa de tudo isso?
— Nosso Presidente? Ora, pelo amor de Deus! Ele é igual a todos os
outros presidentes, primeiros-ministros, líderes de partido, duces ou
caudilhos. Tem a bandeira tatuada nas costas e o manifesto do Partido
no peito. Se lhe perguntar por que temos de ir à guerra, ele lhe
responderá que a guerra é um fenômeno cíclico, que não se pode fazer
uma omelete sem quebrar os ovos ou... que Deus o faça apodrecer no
inferno por isso!... que a guerra é o orgasmo arquétipo, agonia, êxtase e
a longa calmaria depois. Tenho perguntado-me muitas vezes por que
não devo matá-lo antes de matar-me...
— Por que então continua no cargo?
— Porque se eu não continuasse, quem poderia conseguir-lhe um
novo passaporte... e quem poderia revelar o que está acontecendo no
hospício? Tenho de ir agora. E não se esqueça de que deve partir antes
do meio-dia de amanhã.

258
Jean Marie Barette inclinou-se e segurou firmemente os ombros
largos de Duhamel.
— Pelo menos, meu amigo, dê-me tempo para agradecer-lhe.
— Não me agradeça — disse Pierre Duhamel. — Apenas reze por
mim. Não tenho certeza do quanto mais serei capaz de suportar.
Depois que ele se foi, Jean Marie ligou para Sergei Petrov. Uma voz
de mulher atendeu, falando em francês. Um momento depois, Petrov
estava ao telefone.
— Quem está falando?
— Duhamel deu-me o recado para telefonar-lhe.
— Ah, sim! Obrigado por ligar tão prontamente. Precisamos de nos
encontrar e conversar. Temos interesses em comum.
— É bem possível. Onde sugere que nos encontremos? Posso estar
sendo vigiado. Isso o incomoda?
— Não muito. — A notícia não parecia surpreender Petrov. —
Deixe-me ver... Amanhã, às 11 horas, é conveniente para você?
— É, sim.
— Pois então vamos encontrar-nos no Hotel Meurice. Quarto 58. Su-
ba direto. Estarei à sua espera.
— Está certo. Até amanhã.
Mas sobre o resto do dia seguinte e todos os dias posteriores ainda
pairava um imenso ponto de interrogação. Antes da vigilância começar,
ele precisava encontrar um abrigo, um lugar em que pudesse dormir
seguro, do qual pudesse comunicar-se e viajar com a rapidez
necessária. Alain poderia ajudar. Mas o relacionamento entre os irmãos
já estava difícil e ainda por cima Odette nunca fora um modelo de
discrição. Jean Marie ainda estava remoendo o problema quando o
telefone tocou. Era Madame Saracini. Ela estava jovial e brusca.
— Eu lhe disse que gostaria de falar-lhe novamente. Quando e onde
nos poderemos encontrar?
Jean Marie hesitou por um instante, mas acabou dizendo:
— Fui informado por uma fonte de confiança que a partir de amanhã
passarei a receber uma vigilância total, como um agitador antigoverno.
— Mas isso é um absurdo!
— Pode ser, mas é a verdade. Assim, preciso de um lugar seguro,
para ficar por algum tempo. Pode ajudar-me?
A resposta foi imediata, sem um segundo sequer de hesitação:
— Claro que posso! Quando pode estar pronto para se mudar?
— Dentro de 10 minutos.
— Levarei pelo menos 45 minutos para alcançá-lo. Arrume sua mala
e pague a conta. Fique esperando-me na entrada da frente.

259
Ela desligou antes que Jean Marie tivesse tempo de agradecer-lhe.
Ele arrumou os seus poucos pertences, explicou à patronne que uma
súbita mudança em sua situação pessoal determinava uma partida
brusca, pagou a conta e depois se sentou para ler seu breviário, até a
chegada de Madame Saracini. Sentia-se muito calmo e confiante. Passo
a passo, estava sendo levado ao campo de prova. Por um curioso truque
de associação... Saracini, Malavolti, Benincasa, nós, sienenses... ele se
recordou das palavras que Catarina de 25 anos escrevera para Gregório
XI, em Avignon: "Não é mais tempo para dormir, porque o Tempo
nunca dorme, mas passa como o vento... A fim de reconstituir o todo, é
necessário destruir o velho, até as fundações"...

A mulher que o apanhou à entrada da Hostellerie parecia 10 anos


mais moça do que Madame Saracini, presidente do Banco Ambrogiano
all'Estero. Usava calça comprida, uma blusa de seda e um lenço na
cabeça, guiava um conversível fabricado sob encomenda pelo mais
famoso designer italiano. Guardou a valise de Jean Marie na mala do
carro e arrancou com um ranger de pneus, antes que qualquer hóspede
curioso tivesse tempo de perceber o carro ou sua dona. Entrando na
estrada, no entanto, ela passou a guiar com um cuidado deliberado e um
olhar atento a armadilhas policiais, enquanto falava incisivamente de
seus planos:
— O lugar mais seguro de Paris para você é a minha casa...
justamente porque é uma casa. Não há outros inquilinos, não há
concierge e posso garantir a lealdade dos criados. Recebo muito e por
isso há uma constante ida e vinda de pessoas. Quaisquer visitantes seus
passarão despercebidos. Terá o seu próprio apartamento... um quarto,
uma sala e um banheiro. Tem um telefone direto e uma escada privativa
para o jardim. Os criados não têm muito o que fazer e podem
facilmente cuidar de todas as suas necessidades.
— É muita generosidade sua, madame, mas...
— Não há nenhum mas. Se não der certo, você vai embora. Não há
qualquer problema. É, por favor, chame-me por meu nome de batismo,
Roberta.
Jean Marie sorriu para si mesmo no escuro e disse:
— Está certo, Roberta. Mas quero que saiba que existem alguns
riscos em me abrigar.
— Terei o maior prazer em assumi-los. Afinal, tem um trabalho a
realizar. E quero participar dele. Posso ajudá-lo mais do que imagina
neste momento.
— Por que quer ajudar-me?

260
— Eis uma pergunta que não posso responder enquanto estou
guiando. Mas responderei assim que chegarmos a casa.
— Pois então tente responder-me a outra pergunta. Acha que é bom
para a sua reputação ter um homem em sua casa?
— Já tive outros, muito mais escandalosos — respondeu ela,
bruscamente. — Já se passaram 20 anos desde que meu marido morreu.
E não tenho vivido como uma freira durante todo esse tempo... Mas
aconteceram coisas que me fizeram mudar. Meu pai foi para a prisão.
Enveredei por um caminho errado com alguém a quem amava muito e
que uma noite enlouqueceu em meus braços e quase me matou. E
depois veio você. Quando era Papa, sentia a mesma coisa que meu pai
costumava sentir outrora em relação ao bom Papa João. Você tinha
classe. Tinha compaixão. Não saía por aí a clamar por disciplina ou
danação. Mesmo quando eu vivia de maneira um tanto desvairada,
sabia que havia uma possibilidade de me recuperar, como acontecia
com meu pai, quando era pequena e fazia alguma travessura. Depois,
você abdicou e tomei conhecimento de uma parte da história por
intermédio de seu irmão Alain. Fiquei furiosa, pensando que o haviam
destruído. Foi então que seu amigo... como é mesmo o nome dele?...
escreveu aquela história maravilhosa a seu respeito.
— Está referindo-se a Mendelius?
— Esse mesmo! E depois alguém lhe enviou uma carta-bomba! Foi
quando comecei a compreender como as coisas se ajustavam. Voltei a
freqüentar a igreja, ler a Bíblia, procurar amigos que abandonara nos
tempos de desvario, porque me pareciam insípidos ou sufocantes... Mas
estamos desviando-nos do que é importante. Primeiro, vamos instalá-lo
em seu apartamento; depois, vamos alimentá-lo. E em seguida
conversaremos sobre o futuro e o que você precisa fazer.
Jean Marie sentiu-se tentado a censurá-la, dizer-lhe que precisava de
ajuda, mas não estava disposto a ser controlado. Mas pensou melhor e
preferiu mudar de assunto.
— Forneceram-me um segundo passaporte e uma carteira de
identidade, em nome de Jean Marie Grégoire. Provavelmente será
melhor se usarmos esse nome para seus criados.
— Concordo plenamente. São três criados: um homem e sua mulher,
uma criada que não dorme em casa, mas vem trabalhar todos os dias.
Todos estão comigo há muito tempo... Estamos quase chegando. Minha
casa fica perto do Quai d'Orsay.
Ela parou três minutos depois diante de um portão de aço, que se
abria com um sinal de rádio. A garagem ficava à esquerda da entrada e

261
uma escada interior levava aos andares superiores. A suíte de Jean
Marie tinha dois aposentos, um escritório grande com estantes cheias de
livros nas paredes, outro, uma mistura de quarto e sala de estar. Entre
os dois aposentos, havia um banheiro. Lá fora, uma varanda, da qual ele
podia contemplar o átrio central, que fora convertido num jardim de
pedras, com uma fonte no centro.
— Não chega a ser como o Vaticano — comentou Roberta Saracini.
— Mas espero que fique confortável. O jantar será servido dentro de 30
minutos. Mandarei alguém buscá-lo.
Ela veio pessoalmente, usando um vestido doméstico, muito
engomado. Levou-o à sala de jantar, pequena mas elegante, com um
teto trabalhado e móveis de mogno espanhol. O jantar foi simples, mas
perfeito, consistindo de um patê de fabricação caseira, um filé de sole e
musse de amoras. Jean Marie comentou que o vinho era bom demais
para ser desperdiçado com Monsieur Grégoire, pasteur en retraite. Ao
que ela respondeu que o pastor não estava mais aposentado e que era o
momento de discutir o que ele pretendia fazer.
— Sei o que devo fazer; espalhar a notícia de que os últimos dias
estão próximos e que todos os homens de boa vontade devem preparar-
se Sei também o que não devo fazer: semear confusões ou discórdias
entre os crentes sinceros ou solapar os princípios da legítima autoridade
na comunidade cristã... Assim, vamos à primeira pergunta: como
resolvo o problema?
— Parece-me que já encontrou a solução: uma nova identidade.
Afinal, a mensagem é que é importante e não o homem que a proclama.
— Nem tanto. Como o mensageiro pode estabelecer a sua
autoridade?
— Não deve tentá-lo — disse Roberta Saracini. — Deve limitar-se a
espalhar a notícia, como fizeram os primeiros discípulos, confiando em
Deus para torná-la frutuosa.
Havia mais do que devoção na maneira como ela falou. Havia uma
confiança total, como se ela própria se convertesse numa prova de pro-
posição. Jean Marie disse:
— Concordo com o princípio. Mas, como eu, um homem indesejável
em seu próprio país, privado de uma missão canônica, posso pregar a
palavra de Deus sem uma quebra da obediência que devo à Igreja?
Roberta Saracini serviu café e estendeu-lhe a xícara através da mesa.
Ofereceu conhaque. Jean Marie recusou. Ela explicou, cuidadosamente:
— Sou uma banqueira, como sabe. E como banqueira, tenho

262
participação em diversos empreendimentos, em todas as áreas,
mineração, fabricação, viagens, propaganda, entretenimento,
comunicações. Assim, quando estiver certo do que deseja dizer...
— Sempre estive certo.
— Podemos então encontrar uma centena de meios e mil vozes para
espalhar a notícia.
— Isso lhe custará uma fortuna.
— E daí? Quem vai preocupar-se com as contas depois do Dia do
Rubicão?
— Como sabe do Dia do Rubicão?
— Tenho minhas fontes. Pensa por acaso que invisto às cegas no
mercado?
— Suponho que não.
Ele ainda estava inquieto, embora a explicação fizesse sentido. Ele
próprio não podia indicar sua fonte, mesmo para um amigo íntimo.
— Há amplos recursos disponíveis para qualquer coisa que você
deseje fazer. Eu gostaria de apresentá-lo à minha gente em editoria,
televisão e propaganda. Considere todos como suas vozes. Informe-os
do que está querendo dizer. Ficará surpreso com as idéias que vão
surgir... Está parecendo em dúvida. Por quê? Onde estaria o papado
moderno sem a televisão... ou também a presidência americana, diga-se
de passagem? Não é um dever moral utilizar todas as dádivas que são
colocadas à nossa disposição?
Outra vez, com mais intensidade, Jean Marie recordou-se da jovem
sienense do século XIV que escrevera a Pierre Roger de Beaufort-
Turenne, Gregório XI: "Siatemi uomo, virile e non timoroso"... Seja um
homem para mim, viril e não um covarde!
Ele ficou em silêncio por um momento, avaliando sua decisão.
— Quando poderei encontrar-me com seus especialistas?
— Amanhã, ao final da tarde.
— E até que ponto posso confiar neles?
— Pode confiar nos que se sentarem a esta mesa tanto quanto confia
em mim.
— Gostaria agora de que me respondesse à pergunta que formulei no
carro: por que está disposta a ajudar um homem que anuncia o fim do
mundo?
Roberta Saracini não hesitou na resposta. Foi direta e objetiva:
— Porque ele é um homem, apenas isso. Por toda a minha vida,
estive esperando por alguém que saísse para a tempestade e bradasse

263
contra o vento. Observei-o esta manhã no banco. Estava tão furioso que
pensei até que fosse explodir. Mas teve a generosidade de dizer que
estava arrependido de seus maus modos. Para mim, isso é razão
suficiente.
— Não para mim — disse Jean Marie Barette. — Ninguém é tão
forte durante todo o tempo. Ninguém dura tanto tempo. O homem que
segui como Papa... fiquei a seu lado no leito de agonizante e observei-o
enquanto morria, a soluçar: "Mamãe, mamãe, mamãe!" Os jornais
disseram que ele estava chamando a Virgem Maria. Mas não estava.
Nas trevas, ele chamava por sua mãe... Não conte tanto comigo,
Roberta. Conte com você mesma. Não é alguma triste devote em plena
menopausa. E não sou algum sacerdote transtornado, imaginando por
que desperdiçou a vida inteira no celibato.
— Diga-me então o que você é! — gritou Roberta Saracini, com uma
súbita raiva. — Vamos ser bons jesuítas e definir os termos!
— Recebi um chamado para proclamar as Últimas Coisas e o
Advento do Senhor. Respondi ao chamado. Procuro os meios de fazer a
proclamação. Ofereceu-me abrigo, recursos e técnicos para ajudar-me.
Aceitei com gratidão. Mas nada tenho para dar-lhe em troca.
— Por acaso pedi alguma coisa?
— Não. Mas tenho de avisá-la... e creia-me que se trata de um ato de
amor!... que não deve esperar possuir qualquer parte de mim... ou
esperar controlar-me por alguma forma.
— Pelo amor de Deus! Por que acha que deve avisar-me?
— Porque, ao nos conhecermos, falou em ser mística em relação a
seu passado, à ligação de sua família com Santa Catarina de Siena.
Pareceu-me um prelúdio dos mais significativos. Está oferecendo-me o
mesmo tipo de apoio que ela ofereceu a Gregório XI, a fim de trazê-lo
de volta de Avignon para Roma. Mas não se pode repetir a história e
não se pode duplicar relacionamentos. Esse Gregório era um homem
mesquinho, vacilante e covarde. Tenho muitos defeitos, mas não sou
um homem assim. Fui chamado a percorrer uma estrada deserta...
Roberta Saracini fez menção de protestar, mas Jean Marie a conteve
com um gesto.
— Há mais. Assim, por favor, deixe-me dizer tudo. Não sou um
ignorante da vida e das obras de sua pequena santa. Escrevi a minha
tese de doutorado sobre as grandes mulheres místicas. Já li o Diálogo e
o Epistolário. Catarina escreveu bastante e muito bem sobre o amor,
humano e divino. Não obstante, há passagens obscuras em seus
relacionamentos que nenhum dos seus biógrafos foi capaz de explicar

264
plenamente. Ela é também exótica demais para o meu gosto,
possivelmente porque sou francês e Catarina jamais gostou dos
franceses. Mas creio que umas das poucas vezes ela levou longe demais
os jovens de seu cenacolo. Ela estava sonhando com o amor divino,
quando eles ainda se debatiam para encontrar algum sentido na
variedade humana... e foi então que as tragédias ocorreram. Portanto...
— Jean Marie sorriu e deu de ombros. — Como bons jesuítas, já
definimos os termos e fixamos as regras do jogo. Estou perdoado?
— Está, sim. Mas não muito facilmente.
Ela levantou o copo num brinde silencioso e tomou o resto do vinho.
— Já é tarde. E tenho de trabalhar bem cedo, amanhã de manhã.
— E eu também precisarei sair. Tenho um encontro com o Ministro
da Produção Agrícola da União Soviética.
— Petrov? Já tive negócios com ele. É um homem duro, mas
decente. Encontra-se no momento numa situação desesperadora. Se não
conseguir arrumar cereais o bastante para o inverno, é um homem em
desgraça.
— E nosso mundo fica uma hora mais perto da meia-noite.
Jean Marie levantou-se e foi puxar a cadeira dela. Roberta Saracini
levantou-se, virou-se, pegou-lhe a mão e beijou-a, ao estilo antiquado.
— Boa-noite, Monsieur Grégoire.
Ele aceitou o gesto sem qualquer comentário.
— Boa-noite, madame. E obrigado pelo abrigo de sua casa.

265
CAPÍTULO 11

No Quarto 580 do Hotel Meurice, Jean Marie Barette, antes um Papa,


conversou com Sergei Andrevich Petrov, Ministro da Produção
Agrícola da União Soviética. Petrov parecia extremamente cansado e
estava todo amarrotado, como se tivesse largado as roupas no chão do
quarto ao deitar-se, vestindo-as de qualquer maneira na manhã seguinte.
Os olhos estavam vermelhos e remelosos. A voz estava rouca e a pele
exalava um cheiro de bebida, meio rançoso. Até mesmo o seu senso de
humor estava nas últimas.
— Acha que estou parecendo uma ruína humana? Pois é como me
estou sentindo. Há semanas que venho trabalhando 12 e até 15 horas
por dia, viajando, conversando, suplicando, implorando por cereais,
como um papagaio faminto. Mas ninguém quer vender-me coisa
alguma. Assim, desço da escada e passo para o segundo estágio. O que
estou pedindo agora? Intervenção, mediação... o que se costuma chamar
de "bons ofícios". Ocorreu-me que poderia estar disposto a ajudar.
— Claro que estou disposto a ajudar — respondeu Jean Marie, sem a
menor hesitação. — Até que ponto posso ser útil, isso já é outra
questão. Nas democracias, o líder da oposição ainda tem uma voz forte
e muito Poder de barganha. Comigo, é diferente. Não passo de um
pasteuren retraite. Vamos pôr a coisa de outra forma. Como reagiria se
eu chegasse a Moscou para lhe pedir favores?
— Muito melhor do que imagina. É muito respeitado, em toda parte.
Vai tentar ajudar? A situação é desesperadora. A fome é o horror que
ninguém compreende, até que acontece. Olhe só para o que está
acontecendo na África! Os avisos vinham sucedendo-se há anos, mas

266
ninguém prestou a menor atenção... Do Saara ao Sachel e ao Hora,
subitamente milhares de pessoas estão morrendo. Agora, a ameaça
paira sobre nós... só que para nós é a morte no inverno! Mal
conseguiremos agüentar até o fim. E assim que o degelo vier, posso
garantir-lhe que os foguetes serão lançados e nossos exércitos vão
avançar para o sul, na direção dos campos petrolíferos do golfo, para
oeste, através da grande planície húngara, pelo mar, na direção da Índia,
Filipinas e Austrália. Isso é como um axioma de matemáticos. A única
maneira de conter os distúrbios internos será marchar contra o inimigo
no exterior... As potências ocidentais e os chineses estão empenhados
num jogo perigoso a que os ingleses chamam de brinkmanship, a
técnica de manobrar uma situação até os limites de tolerância ou
segurança, a fim de obter o maior proveito possível. Não é um esporte
que se possa apreciar com a barriga vazia. Pergunto outra vez: quer
tentar ajudar?
— Claro que tentarei. Mas não posso operar no vazio. Preciso de
informações. Preciso de uma lista de produtos e vantagens comerciais
que seu governo está disposto a conceder, em troca de suprimentos
urgentes. Vocês também costumam empenhar-se no jogo de caminhar à
beira do precipício e podem ser tão estúpidos quanto quaisquer líderes
do Ocidente. Assim, preciso de um roteiro, por mais elementar que seja,
algo que me dê autoridade para atuar como corretor no mercado.
— Isso pode ser difícil.
— Sem isso, o resto é impossível. Pense um pouco, Camarada
Petrov! Posso fazer declarações à imprensa, sermões, apelos. Fazia isso
todos os domingos, na Praça de São Pedro. Fazia discursos
diplomáticos especiais em cada visita. Mas é a mesma coisa que você
fazer um discurso no Dia do Trabalho sobre a ideologia marxista-
leninista e a solidariedade dos soviéticos. Não acrescenta qualquer
carne ao guisado. Mas com credenciais nas mãos, que você poderá
repudiar, se eu me exceder na missão... Eh, bienl Pelo menos serei
recebido como um emissário, com todo o respeito devido.
— Estaria disposto a ir a Moscou?
— Estaria... desde que recebesse um convite amistoso dos homens lá
de cima e não fosse atormentado a cada passo pelo KGB.
— Prometo que isso não acontecerá.
— Quando quer que eu esteja lá?
— O mais cedo possível. Antes, porém, preciso meter o dedão na
água, a fim de verificar se não existem caranguejos esperando para
morder. Como poderemos permanecer em contato?
— Através de meu irmão, Alain, no banco, Halévy Frères et Barette-

267
— Ele escreveu o endereço numa folha de bloco e entregou a Petrov.
— Alain não saberá onde estou. Mas entrarei em contato com ele, de
tempos a tempos.
Petrov dobrou o papel e guardou na carteira.
— Quer tomar um drinque comigo?
— Obrigado, mas é um pouco cedo para mim.
— Preciso de um. Sei que venho bebendo demais nas últimas
semanas. Mas o que um homem pode fazer ao final de outro dia terrível
a andar de um lado para outro com o chapéu na mão? Não se recebe
medalhas pelos esforços neste negócio... apenas olhares frios e
comentários na seguinte base: "Mas que coisa, Camarada! Deve haver
alguma coisa construtiva que você possa fazer!" Sei que não há e eles
também sabem disso. Mas estão seguros no Kremlin, folheando seus
papéis, enquanto eu corro o mundo, gastando as solas dos sapatos e a
paciência!
— Pensei que tivesse encontrado alguma esperança com Pierre
Duhamel.
— Até agora, isso é tudo o que existe... esperança! Ele está tentando
elaborar um esquema complicado, pelo qual compramos cargas em
trânsito e as desviamos para portos bálticos. O problema é a dimensão
da operação... a menos que Duhamel esteja empenhado num jogo sujo.
Por falar nisso, o que acha dele?
— Acho que ele está tentando jogar limpo, num jogo sujo.
— É possível. O que me diz daquele drinque?
— Tenho uma sugestão a fazer — disse Jean Marie Barette.
— Pois pode fazer.
— Esqueça o drinque. Peça café para dois. Dê-me o seu número e
irei comprar-lhe uma camisa nova e roupa de baixo. Depois, mandará
seu terno para ser passado e tomará um bom banho quente, enquanto
espera que fique pronto.
Petrov fitou-o com uma expressão de total incredulidade.
— Está querendo insinuar que estou sujo?
— Estou dizendo-lhe, meu caro Camarada Petrov, que se eu estivesse
na situação em que se encontra, mudaria de roupa duas vezes por dia,
nunca beberia antes do pôr-do-sol... e espalharia que estou disposto a
entregar o cargo a qualquer pessoa que julgue que pode desempenhar as
funções de uma maneira melhor.
— Só há um problema nessa prescrição.
— E qual é?
— Quem quer que assuma o meu cargo, vai querer também a minha

268
cabeça... e não quero separar-me dela por enquanto... Mas você tem
toda razão sobre o resto. Meu número é 40. Pode sair agora para
comprar as roupas, enquanto peço o café. Não se preocupe, pois o
serviço é sempre demorado.
— Pensei que estivesse instalado na Embaixada.
— E estou — disse Sergei Petrov. — Mas mantenho este quarto
para... contratos particulares.
— Tem certeza de que são mesmos particulares?
— Tanta certeza quanta se pode ter nesses casos. Sei que não há
microfones escondidos no quarto... Por outro lado, isso me assusta
terrivelmente.
— Por quê?
— Porque pode significar que ninguém se importa realmente com o
que eu faça. Posso ser como um pato de alvo em parque de diversão,
esperando que alguém me derrube... Não que isso fizesse muita
diferença. Afinal, resta muito pouco tempo à raça humana.
— Quanto tempo exatamente lhe dá?
— Deixe-me ver... Estamos em setembro. Se eu não conseguir os
cereais antes do inverno, o Exército marchará logo depois do degelo da
primavera. Se conseguir, então haverá um pequeno prazo para se
respirar. Mas não muito, porque ainda resta o problema dos
combustíveis e energia. Cada grande nação tem um plano para ataques
preventivos, se os campos petrolíferos forem ameaçados... Na pior das
hipóteses, temos seis a oito meses... na melhor, 18 meses. Não é uma
perspectiva das mais agradáveis, não é mesmo?
— Vou comprar as roupas — disse Jean Marie. — Tem alguma
preferência por cor?
Sergei Andrevich Petrov desatou a rir.
— Eu gostaria que os velhos camaradas me pudessem ver agora!
Desde a revolução que o Vaticano tem sido uma pulga a nos incomodar
por baixo das roupas... e agora o Papa vai me comprar uma cueca!
— E o que há de tão estranho nisso? — perguntou Jean Marie, com
uma inocência afável. — O primeiro Papa vendia peixe em Israel.
Ao sair para a operação simples de comprar meias e cuecas, Jean
Marie ficou impressionado não apenas pelo aspecto cômico da situação,
mas também com o aspecto macabro. Nascido em meados da década de
20, ainda era jovem demais para o serviço militar no Exército francês e
fora obrigado a fugir para as montanhas, a fim de evitar o recrutamento
para os trabalhos forçados, sob os alemães. Lutara com os Maquis e
ingressara no seminário um ano depois do término das hostilidades.

269
Mas uma das recordações mais intensas era o período de pesadelo em
que os alemães começaram a se retirar e todo o edifício da ocupação
desmoronara. Fora como uma Walpurgisnacht de embriaguez,
crueldade, heroísmo e insanidades absurdas.
Agora, ele estava assistindo a mesma coisa a se repetir, os distúrbios
artificiais em Tübingen, assassinato por decisão governamental, Pierre
Duhamel, o servidor de confiança da República, tornando-se cúmplice
de horrores secretos, na vã esperança de evitar os horrores maiores, e
agora Sergei Petrov tentando romper o bloqueio do mercado de cereais
e afogando o seu desespero em vodca. Era a loucura em pequena
escala, a mais sinistra de todas as loucuras. Fome na África? Ora, o que
isso significava? Um expurgo natural da população excedente de terras
marginais... até se deparar com uma criança com uma barriga como um
balão, braços como palitos de fósforo, o coração mal tendo força para
bombear ar nos pulmões. Amaldiçoavam-se então Deus e o homem,
Sua criatura errante, despejando as bombas para acabar com tudo.
E nesse momento, com uma sublime irrelevância, Jean Marie chegou
à conclusão de que seu irmão Alain estava certo. Ele precisava de
roupas novas. Se ia fazer compras para Petrov, bem que podia pensar
um pouco em si mesmo. Não havia sentido em comparecer mal vestido
no próprio funeral.

Naquela noite, Roberta Saracini teve três convidados para o jantar.


Chegaram em roupas de trabalho, trazendo pastas de executivos, um
portfolio de artista e uma máquina de vídeo-teipe. Tinham o ar decidido
de profissionais que sabiam exatamente o que estavam fazendo e
dispensavam os conselhos de leigos. O mais velho dos três era um
homem de rosto vermelho, sorriso jovial e olhos astutos. Roberta
apresentou-o como Adrian Hennessy.
— Não tem qualquer parentesco com Cognac. Ele é americano, fala
sete línguas e consegue ser terrivelmente convincente em todas.
Chegou de Nova York esta manhã. Se os dois conseguirem acertar os
ponteiros, ele comandará a operação.
A segunda convidada era uma moça de aparência viril, cujas feições
pareciam vagamente familiares. Foi a surpresa do grupo.
— Essa é Natalie Duhamel, nossa especialista em filmes e televisão.
Creio que conhece o pai dela.
— Conheço, sim.
Jean Marie ficou aturdido. A moça presenteou-o com um sorriso frio
e uma definição bem ensaiada:
— Meu pai e eu mantemos um relacionamento excelente. Ele não

270
produz meus programas e eu não escrevo seus relatórios ao Presidente.
Em questões de confiança, ele não pergunta, eu não lhe digo... e vice-
versa!
— É um acerto dos mais convenientes — comentou Jean Marie
Barette.
Roberta Saracini apresentou o terceiro convidado, um rapaz que
poderia ter servido de modelo para o condutor do carro de Delfos:
— E esse é Florent de Basil. Ele desenha, pinta, faz lindas canções.
— Em suma, um gênio.
Ele tinha o sorriso pronto e ingênuo de uma criança. Pegou a mão de
Jean Marie e beijou-a.
— Não posso exprimir o quanto desejava conhecê-lo. E espero que
possa dispensar-me um pouco de tempo para um retrato.
— As coisas mais importantes estão em primeiro lugar, meu amor —
disse Roberta Saracini. — Falta meia hora para o jantar. Por que não
começamos a trabalhar enquanto tomamos coquetéis?
Adrian Hennessy abriu sua pasta e tirou um gravador. Florent de
Basil pegou um bloco de desenho. Natalie Duhamel permaneceu
sentada placidamente, observando. Hennessy tomou um gole de seu
drinque e declarou categoricamente:
— Vamos conversar primeiro extra-oficialmente. Se não
concordarmos com os termos de referência, vamos limitar-nos a desfrutar
o jantar e dar o dia por encerrado. Se concordarmos, então começamos a
trabalhar imediatamente. Vamos ao primeiro ponto. Como chamamos o
cliente? Isso lhe compete, senhor. Lembre-se de que certos materiais,
como anotações e gravações, devem ser levados de um lado para outro e
há o risco de serem perdidas. Assim, devemos evitar os nomes
verdadeiros.
— Meu nome é Jean Marie...
— Então vamos mudá-lo para uma versão americana: John Doe.
Vamos agora ao objetivo do projeto. Pelo que Roberta explicou, tem
uma mensagem que deseja transmitir ao mundo. Está preocupado, no
entanto, com a perspectiva de não propagar a mensagem como um
mestre oficial da Igreja Católica Romana.
— É de fato um sumário acurado.
— Mas ainda está incompleto. Ignora o cerne do problema: que ainda
usa, como ex-Papa, a aura do cargo. Não há qualquer possibilidade de
fazer declarações públicas sem entrar em conflito com o atual ocupante
do cargo... que é o menos inspirado dos oradores, diga-se de passagem-
Assim, impõe-se uma indagação: até que ponto está disposto a se
arriscar a esse conflito?

271
— Não o quero de jeito algum — disse Jean Marie Barette.
— Gosto de um homem que sabe o que pensa — comentou
Hennessy, com um sorriso. — Mas uma mensagem tem de ser
transmitida por alguém e esse alguém precisa ter alguma autoridade.
Afinal, ninguém lê as epístolas de John Doe na igreja... mas sim as de
São Paulo, São Pedro e São Tiago...
— Não concordo — protestou Jean Marie. — Desculpe-me, mas não
posso concordar. Já discuti esse assunto interminavelmente. Quase que
acabei acreditando nisso. Mas não acredito agora. E nunca mais
acreditarei. Escute...
Subitamente, ele era um homem incendiado. Todos acompanhavam
atentamente cada palavra e gesto. Hennessy inclinou-se para a frente e
ligou o gravador.
— Se ficássemos trancados num quarto silencioso, privados de todas
as referências sensoriais, não demoraríamos a ficar desorientados e
finalmente insanos. A pessoa que provavelmente resistiria por mais
tempo seria a que fosse mais versada no retraimento, em meditação,
cuja vida tivesse uma referência externa com Deus. Conheci várias
pessoas assim durante o meu pontificado, especialmente três homens e
uma mulher que haviam sido confinados como agitadores religiosos e
torturados pela privação sensorial... A verdade é que vivemos apenas
em comunhão, não apenas com o nosso presente, mas também com o
passado e o futuro. Somos obcecados por toda uma poesia de viver, por
acalantos vagamente recordados, apitos de trem varando a noite, as
fragrâncias de um jardim no verão. Somos também atormentados pelo
sofrimento e angústia, o medo, as imagens de terror infantil e a macabra
desagregação da idade... Mas tenho certeza de que é nesse domínio do
nosso devaneio que o Espírito Santo estabelece a sua própria comunhão
conosco. É assim que nos é concedida a dádiva, a que chamamos de
graça: a iluminação súbita, o arrependimento profundo que leva à
penitência ou perdão, a abertura do coração ao risco do amor... A
autoridade é irrelevante aqui. A autoridade é o homem de um olho só
na terra dos cegos. Pode impor-nos tudo, exceto amor e compreensão...
O que estou então tentando dizer-lhes? — Jean Marie exibiu-lhes um
sorriso triste. — Pedro está morto, assim como Paulo e Tiago, o irmão
do Senhor. O pó em que se transformaram foi dispersado pelos ventos
dos séculos. Foram homens grandes ou pequenos? Louros ou morenos?
Quem pode saber? E quem se importa? O testemunho do Espírito,
efetuado por intermédio deles, ainda perdura.
Ele fez uma pausa e depois citou, em voz suave:

272
— Embora eu fale com as línguas de homens e anjos e não tenha
caridade, torno-me como o bronze retumbante e o címbalo que ressoa...
Houve um silêncio prolongado na sala. Jean Marie olhou de um para
outro, esperando por uma resposta. Os rostos deles estavam vazios, os
olhos abaixados. Foi Hennessy quem finalmente falou. Desligou o
gravador e dirigiu-se não a Jean Marie, mas a seus colegas:
— Não preciso de ver o homem que disse isso. Posso ler e escutar,
formar a minha própria imagem. Natalie?
— Concordo plenamente. Com todas as luzes, maquilagem, deixas,
toda a encenação, ele pareceria uma prostituta bancando a virgem...
com todo o respeito, Monsenhor. O que acha, Florent?
O rapaz estava estranhamente sufocado. E murmurou:
— Claro que não há necessidade de imagens elaboradas. Descobri-
me a ouvir música... algo muito simples, como as baladas antigas que
falavam de amor e feitos heróicos... Talvez seja melhor alterar a coisa.
A imagem não deve ser do orador, mas pode ser da audiência. Podemos
pensar a respeito por algum tempo?
— Sou uma banqueira, mas você me deu uma idéia, Adrian —
comentou Roberta Saracini. — Você disse: "Ninguém lê as epístolas de
John Doe na igreja." Mas não leria uma epístola desse John Doe? Não
escutaria se ele lhe enviasse uma mensagem gravada?
— Tem toda razão! — Ele fez uma anotação em seu bloco e depois
se virou para Jean Marie. — Sei que isso lhe deve parecer muito
impertinente... tratá-lo como uma espécie de títere que pode ser
manipulado...
— Estou acostumado — respondeu Jean Marie, calmamente. — Os
homens do Vaticano são especialistas em encenações e alguns dos
nossos mestres-de-cerimônias são verdadeiros tiranos. Não se preocupe.
Eu direi quando achar que for demais.
— Epístolas! — exclamou Natalie Duhamel. — Eram antigamente
uma das formas mais elegantes de literatura!
— E ainda são — disse Hennessy. — Cartas de Junius. Lettres de
mon Moulin, Cartas a The Times! O problema é encontrar editores com
coragem suficiente para publicá-las, apesar da censura atual. Mas
podemos certamente conseguir editores de livros que estejam dispostos
a publicá-las... Poderia escrevê-las, Monsenhor?
— Passei toda a minha vida clerical a escrevê-las — disse Jean
Marie. — Cartas pastorais, encíclicas, cartas ao clero e às freiras dos
conventos. Seria ótimo fazer agora uma mudança de estilo.
— Poderia também gravar algumas mensagens?

273
— Claro.
— Estou preocupada — disse Natalie Duhamel. — Quem vai escutar
sermões?
— Isso foi um sermão?
O rapaz apontou dramaticamente para o gravador.
— Tem razão, não foi. Mas ele seria capaz de manter o mesmo
estilo?... É possível, Monsenhor?
— Não estou preocupado com o estilo. — Jean Marie foi incisivo. —
Tenho coisas a dizer, a respeito de viver e morrer. E devem ser ditas de
coração para coração.
— Se escrever cartas, a quem vai endereçá-la? — disse Hennessy. —
É onde voltamos ao problema da autoridade. O editor indaga: "Quem é
esse camarada?" O público pergunta: "O que ele sabe afinal?"
— E talvez nem se esteja lidando com editores — interveio Natalie
Duhamel. — Pode-se ter de recorrer ao samizdat e à imprensa
clandestina, talvez mesmo aos jornais murais da China. Mas Adrian
está certo. Uma carta sempre começa com "Prezado X"... E quem é X
neste caso?
— Quando se está escrevendo sobre o fim de tudo, isso parece um
exercício inútil e contraditório — disse Florent de Basil. — Quem pode
fazer qualquer coisa em relação ao evento final?
— Tem toda razão — concordou Jean Marie, com aparente bom
humor.
— Com quem vai corresponder-se então... com Deus?
— Por que não? — Jean Marie saboreou o pensamento por um
momento. — A quem mais podemos recorrer, ao final do mundo? É o
que uma criança poderia fazer, escrever cartas a Deus e despachá-las
numa árvore oca. Podemos chamá-las de Últimas Cartas de um
Pequeno Planeta.
— Parem todos! — A ordem de Hennessy foi como um chicote
estalando na sala. Ele correu os olhos pelo pequeno grupo. — Ninguém
diga mais nada enquanto eu não pedir um comentário. O título é
sensacional. Eu o adoro.
Ele se virou para Jean Marie e perguntou:
— Pode escrever essas cartas?
— Claro. Não é difícil. — Jean Marie fez um gracejo. — Afinal,
converso com o Todo-Poderoso diariamente. Não preciso aprender uma
língua nova.
— Quando pode começar a pôr alguma coisa no papel?
— Esta noite, amanhã de manhã, a qualquer momento.

274
— Então comece logo, por favor! Uma carta por dia, com cerca de
mil a mil e 200 palavras, até segundo aviso. Deixe-nos encontrar a
árvore oca... e uma distribuição internacional.
— Uma questão elementar. — Era Natalie Duhamel quem falava. —
Quem será o autor dessas cartas? Como será o personagem e que nome
adotará? Isso é fundamental para a nossa promoção.
Jean Marie ofereceu uma sugestão, meio sério:
— Não posso ser uma criança novamente, mas muitas vezes me tenho
sentido pequeno. Por que não assino Jeannot... Little John em inglês?
— Parece-me um tanto apalhaçado — comentou Roberta Saracini.
— Então por que não ir até o fim? Vamos admitir que existe uma
loucura divina. Eu me assinarei Jeannot le Bouffon... Johnny, o Bufão.
— Por que rebaixar-se a esse ponto? — Roberta ainda não estava
satisfeita. — Por que assumir um personagem tão forçado, de tal forma
que ninguém saberá quem realmente é?
— Porque assim ninguém poderá acusar-me de ambição ou
rebelião... E quem poderia escrever ao Todo-Poderoso, a não ser uma
criança ou um fantoche?
— Concordo plenamente! — exclamou Hennessy. — E se não
conseguirmos transformar Johnny, o Bufão num personagem conhecido
no mundo inteiro, então estouro os miolos! O que acha, Natalie?
— Posso imaginar um jeito de visualizar tudo, se Florent puder
arrumar um logotipo.
— Não só um logotipo, mas também a música, meu amor... e até um
contraponto: "Johnny, o Bufão é tão simples! Por que então somos tão
complicados?"
— Não vamos antecipar-nos — disse Hennessy. — E não vamos
distrair o autor. Ele é que é o inspirado, enquanto nós somos apenas os
técnicos... Quanto tempo ainda vai demorar para o jantar, Roberta?
Estou morrendo de fome!

Jean Marie não podia acreditar que fosse tão fácil escrever as cartas.
Como Pontífice, fora obrigado a avaliar cada palavra, a fim de não se
desviar um milímetro sequer das definições dos antigos concílios,
Calcedônia, Nicéia e Trento. Não podia desacreditar as decretais de
seus antecessores, por mais que deles discordasse. Não devia especular,

275
mas apenas projetar as fórmulas tradicionais da fé. Era a fonte da
autoridade, o árbitro supremo da ortodoxia, o que atava e desatava... só
que estava mais rigorosamente preso que qualquer outro, era como um
escravo no Depositário da Fé.
Mas agora, subitamente, ele estava livre. Não era mais Doctor et
Mogister, mas Johnny, o Bufão, aturdido, de olhos arregalados, diante
dos mistérios. Podia agora sentar-se e cheirar as flores, contemplar os
esguichos e, como um fantoche de Deus, resguardado em seu papel,
contestar o Criador.

"Querido Deus:

Amo este mundo estranho e engraçado. Mas acabo de receber a


notícia de que Você vai destruí-lo. Ou antes, o que é ainda pior, vai
ficar sentado no paraíso a observar-nos a destruí-lo, como comediantes
destroçando um piano de cauda em que grandes mestres tocaram
Beethoven.
Não posso contestar o que Você faz. Afinal é o seu universo. Brinca
com as estrelas e consegue manter todas no espaço, como um
malabarista. Mas, por favor, antes da derradeira explosão, poderia
explicar-me algumas coisas? Sei que este é apenas um planeta muito
pequeno. Mas é o lugar em que vivo. E antes de deixá-lo, gostaria de
compreendê-lo um pouco melhor. Gostaria também de compreender
Você, na medida em que me permitir. Mas terá de fazer as coisas bem
simples para Johnny, o Bufão.
... Nunca entendi muito bem onde Você se enquadra neste mundo. E
pode estar certo de que não vai qualquer desrespeito em minhas
palavras! Mas acontece que no circo em que trabalho há uma audiência
e há nós, as pessoas que apresentam o espetáculo. E há também os
animais. Não se pode deixá-los de fora, porque dependemos deles e eles
de nós.
A audiência é de fato maravilhosa. Na maioria das vezes, eles são tão
felizes e inocentes que se pode sentir a alegria que irradiam. Mas às
vezes se pode também farejar a crueldade, como se quisessem que os
tigres atacassem o domador e o acrobata caísse do trapézio. Assim, não
posso realmente acreditar que Você seja a audiência!
E há também nós, os artistas. Constituímos um bando variado:
fantoches como eu, acrobatas, moças bonitas a cavalo, as pessoas na
corda bamba, as mulheres com os cachorros amestrados, os elefantes,
leões... ah, muita coisa mais! Formamos um bando realmente grotesco.

276
Somos generosos, é verdade, mas às vezes somos também loucos o
bastante para nos matarmos uns aos outros. Eu poderia contar-lhe
muitas histórias... mas Você sabe de tudo, não é mesmo? Você nos
conhece, assim como o oleiro conhece o vaso que está girando em sua
roda.
Algumas pessoas dizem que Você é o dono do circo e que arma todo
o espetáculo para o seu prazer pessoal. Eu poderia aceitar isso. Gosto
de ser um bufão, um palhaço. Encontro nisso tanta diversão quanto a
que proporciono. Mas não posso compreender por que o dono do
espetáculo haveria de querer cortar as cordas que prendem o toldo e
enterrar-nos a todos embaixo. Um louco poderia fazer isso, um vilão
vingativo. Não acredito que Você possa ser louco e ao mesmo tempo
fazer uma rosa, que possa ser vingativo e ao mesmo tempo criar um
golfinho... Portanto, há muito o que explicar."

Quanto mais escrevia, mais ele queria escrever. Não era um exercício
literário. Não estava ensinando a ninguém. Estava empenhado no mais
primitivo de todos os passatempos, a contemplação do paradoxo, o
raciocínio de um homem simples diante do supremo mistério. Estava
exprimindo-se com o vocabulário de um camponês, muito diferente da
linguagem usada pelos filósofos e teólogos. Não precisava inventar
novos símbolos ou novas cosmogonias, como os marcianos e os
valentinianos. Era um homem apaixonado pelas coisas antigas e
simples, como o trigo maduro, as maçãs viçosas colhidas na árvore, a
primeira fragrância da primavera. Eram as mais preciosas, porque em
breve estariam perdidas no caos do Juízo Final. Como Papa, ele
escrevera para as mulheres... mandatos apostólicos, prescrições,
conselhos. Nunca antes, em toda a sua carreira clerical, escrevera tão
ternamente a respeito das mulheres.

"Elas me contam seus segredos porque sou um fantoche, de botinas


imensas, calça folgada. E estou sempre com medo. Elas não se sentem
envergonhadas em admitir que também estão com medo. Tampouco se
sentem ridículas... mesmo quando bancam as tolas com um homem.
Sou muito mais tolo do que elas jamais serão, com minha boca enorme
e olhos de bebê chorão. Elas querem apenas amar e ser amadas, fazer os
seus ninhos como os pássaros e criar lindos filhos... Mas ouvem os
cavaleiros do terror na noite, a guerra, a praga e a fome, perguntando-se
por que devem gerar filhos para morrer num seio ressequido ou arder
numa explosão da bomba. Não podem andar em segurança pelas ruas,
por isso aprendem a lutar como os homens e portam armas para se

277
defenderem do estupro. Observam os homens empenhados em danças
guerreiras e desprezam-nos. Quando os homens ficam furiosos,
desprezam-nos ainda mais, o amor se torna amargo ou estranho.

Elas querem saber o que está errado com o Seu mundo... e por que
não encontram Você algumas vezes na esquina, onde Seu Filho
costumava aparecer há tantos séculos, falando aos que passavam,
dizendo-lhes a verdade em lindas histórias. O que posso dizer-lhes? Sou
apenas Johnny, o Bufão! O máximo de que sou capaz é fazê-las rir,
caindo cara no chão ou pisando distraidamente em piche fresco.
Você poderia pensar nessas coisas e dar-me algumas respostas? Sei
que temos conversado freqüentemente. Algumas vezes, compreendi
tudo. Outras, não. Mas neste momento estou apavorado e tropeçando
nas minhas imensas botinas, no empenho de correr para me esconder.
Esta carta será despachada pelo tronco oco de um carvalho, no fundo
da campina... bem perto do lugar em que guardamos os cavalos do
circo.
Continuarei a escrever, porque tenho muitas outras perguntas a fazer.
Estas podem ser as últimas cartas que Você receberá do nosso pequeno
planeta. Sendo assim, por favor, não acabe com este mundo antes que
eu consiga encontrar algum sentido nele.

Seu amigo perplexo,


Johnny, o Bufão"

Ao cair da noite, Jean Marie já escrevera cinco cartas, num total de


20 páginas. Foi somente a fadiga física que o fez parar. Ainda era cedo.
Seria agradável dar um passeio pela beira do rio. Mas logo, com um
pequeno sobressalto de medo, lembrou que era agora o alvo de uma
vigilância intensiva e os agentes poderiam farejar a sua pista. Não podia
correr o risco de comprometer Roberta Saracini com um ato leviano de
auto-indulgência. Em vez disso, ele ligou para Adrian Hennessy.
— Se dispuser de tempo esta noite, eu gostaria que visse o que já
escrevi.
— Quanto já fez?
— Cinco cartas. Creio que dá um total em torno de 6 mil palavras.
— Puxa vida, mas como você é ativo! Estarei aí dentro de 20 minutos.
— Poderia fazer-me um favor? No caminho, compre uma cesta de
flores para Roberta e um cartão para acompanhá-la. Eu gostaria de
providenciar pessoalmente, mas é melhor não deixar a casa agora.

278
— Tenho uma idéia melhor: mandarei que a cesta seja entregue
diretamente pela florista. O que quer escrito no cartão?
— Apenas isso: "Para exprimir meus agradecimentos, Jeannot le
Bouffon."
— Entendido! Já estou a caminho.
Hennessy estava na porta 18 minutos depois, exuberante, brusco,
objetivo. Antes de ler uma linha sequer, ele tratou de fixar novas regras
para a operação:
— Estamos numa jogada de grandes proporções. Assim sendo, não
há lugar para elogios ou concessões. Se estiver bom, eu o direi. Se
estiver ruim, queimamos tudo. E depois? Pensamos bastante,
procurando o caminho certo.
— Tudo bem — disse Jean Marie, placidamente. — Só há um
problema: você não pode queimar algo que não lhe pertence.
Hennessy correu os olhos rapidamente pelas cartas.
— Ótimo! Em princípio, está legível. Por que não ensinam mais
caligrafia como antigamente? Quero ficar sozinho por meia hora. Isso
lhe dará tempo para ler as vésperas no jardim. Pode lembrar-se de mim
quando chegar ao Domine Exaudi.
— Com prazer.
Jean Marie ainda não chegara à porta e Hennessy já estava absorvido
na leitura. Jean Marie não pôde deixar de rir interiormente. Sentia-se
como um encarregado da mudança de cenário numa peça japonesa,
todo vestido de preto, devendo ser ignorado. Não se esqueceu de
Adrian Hennessy no Domine Exaudi, dizendo:
— Por favor, permita-me confiar nele! Não tenho mais certeza dos
meus julgamentos.
O julgamento que Hennessy apresentou sobre as cartas foi sucinto e
definitivo:
— É justamente o que prometeu. Deixou-me comovido... e olhe que
tenho uma caldeira no lugar do coração!
— E o que acontece agora?
— Levo estas cartas, mando copiá-las e depois lhe envio cópias de
arquivo. Guardarei os originais, para o caso de surgir a necessidade de
autenticá-los. Natalie e Florent lerão também e apresentarão idéias para
tratamentos audiovisuais especiais. Enquanto isso, eu cuido da
publicação em jornais, revistas e livros... em todas as línguas. Continue
a escrever... e que Deus guie a sua mão! Assim que tivermos situações
concretas, nós as traremos para a sua aprovação... As flores foram
encomendadas. Mais alguma coisa?

279
— Estou sob vigilância total, como um agitador político... ou pelo
menos estarei, assim que meu paradeiro for conhecido. Eu gostaria de
sair um pouco, esticar as pernas, comer num restaurante. Mas meu rosto
é muito conhecido. Tem alguma sugestão?
— É a coisa mais fácil do mundo.
Hennessy consultou seu caderninho de telefones e depois fez uma
ligação.
— Rolf? Adrian Hennessy. Tenho um trabalho... Imediato.
Pagamento de primeira. Deixe-me ver... Vou dar os dados. Idade, 65
anos, cabelos grisalhos relativamente abundantes, pele clara, feições
finas, olhos azuis, muito estreitos. O problema é que ele está preso em
casa e daqui a pouco não vai mais agüentar. ... Isso mesmo, ele é
bastante conhecido e por isso será necessário toda uma
transformação... mas nada de Corcunda de Notre-Dame, pelo amor de
Deus! Ele ainda quer ser capaz de comer num restaurante. ... Tem um
lápis a mão? Vou dar-lhe o endereço. ... Quanto tempo vai demorar
para chegar aqui? ... Ótimo! Ficarei esperando. ... Isso mesmo. Ele é
um dos meus... e dos mais chegados!
Hennessy desligou e virou-se para Jean Marie.
— Rolf Levandow, judeu russo, o melhor maquilador do mundo. Ele
estará aqui dentro de meia hora, com o seu equipamento. Quando ele
acabar, nem mesmo sua mãe seria capaz de reconhecê-lo.
— Você me espanta, Adrian Hennessy.
— Sou o que pode ver. E ofereço aquilo por que estou sendo pago:
um serviço total! E é esse o limite. Ninguém vai além, a menos que eu
permita... nem mesmo Jeannot le Bouffon!
— Por favor! — Jean Marie ergueu as mãos em protesto. — Eu não
estava pedindo para ouvir sua confissão!
— Mas já ouviu. — Adrian Hennessy estava subitamente estranho e
distante. — Sei como providenciar qualquer serviço que deseje, da
promoção de um batom a uma liquidação. Percorro alguns caminhos
dos mais tortuosos. Mas não tenho o hábito de trair meus clientes e
ninguém me possui o bastante para que eu não possa jogar o contrato de
volta em cima da mesa e ir embora, largando tudo... Mas vamos falar a
seu respeito por um momento. Há cerca de dois meses, era um dos
homens mais eminentes do mundo, líder espiritual de meio bilhão de
pessoas, monarca absoluto do menor mas mais importante conclave do
globo. Era uma tremenda base de poder. Dispunha de uma organização
internacional de clero, monges, freiras e leigos. Mas renunciou a tudo
isso!... E agora veja a situação em que se encontra! Não pode sair para
dar uma volta sem estar disfarçado. É o hóspede de uma caçadora de

280
leões. Depende dela para comprar espaço em jornais e revistas e tempo
em emissoras de rádio e televisão, coisas que antes podia ter de graça.
Tenho de perguntar a mim mesmo que sentido isso faz para você.
Jean Marie pensou na indagação por um momento e depois sacudiu a
cabeça.
— Não vamos empenhar-nos em jogos dialéticos, Mr. Hennessy.
Uma águia pode entender-se com um canário, mas um canário jamais
poderá entender-se com um peixinho dourado. Vivem de modos
diversos, em elementos diferentes. Tive uma experiência que me
mudou completamente... e não importa se foi para melhor ou pior.
Simplesmente estou diferente.
— Como? Sob que aspectos? — Implacavelmente, Hennessy
pressionava. — Preciso conhecer o homem a quem estou servindo.
— Só posso explicar-lhe através de uma analogia — disse Jean
Marie, calmamente. — Lembra-se da história do Evangelho em que
Jesus traz seu amigo Lázaro de volta dos mortos?
— Claro.
— Pense nos detalhes. As irmãs estavam desesperadas, com medo do
que poderia ser revelado quando a tumba fosse aberta. "Iam foetet",
diziam eles. "Ele já cheira mal!" A tumba foi aberta. Jesus chamou.
Lázaro saiu, ainda envolto pela mortalha. Já pensou alguma vez como
ele deve ter se sentido, parado ali, a piscar ao sol, olhando novamente
para um mundo do qual já se despedira? ... Depois do que me aconteceu
no jardim de Monte Cassino, eu me tornei como Lázaro. Nada jamais
pode ser igual ao que era antes.
— Acho que compreendo — murmurou Hennessy, embora
parecendo ainda um pouco desconfiado. — Mas mesmo que você tenha
mudado, o mundo não mudou. Não se esqueça disso!
— Por que chama Roberta Saracini de caçadora de leões?
— Porque estou tentando ser polido. — Hennessy estava
subitamente brusco. — No meu país, usam uma expressão mais
insultuosa para as mulheres que vivem atrás das celebridades do sexo
masculino. Não me interprete de maneira errada, por favor. Ela é uma
ótima cliente e você precisa dela. Mas acontece que uma parte de mim
ainda é de um irlandês antiquado e detesto ver um padre amarrado aos
cordões do avental de uma mulher.
— Você tem maus modos e uma boca suja! — Jean Marie estava
furioso e áspero. — Disse tudo isso a Madame Saracini antes de
começar a arrancar o dinheiro dela?
— Disse, sim. — Hennessy permaneceu inabalável. — Tenho a
obrigação de apontar as minas ocultas por baixo da terra, antes que os

281
dois pisem nelas. Desde que o pai foi preso que Roberta se entregou à
religião. E se empenha nisso como em todas as outras coisas. Isso a
ajuda e me sinto contente. Antes disso, porém... e saiba que tenho
certeza! ...coquetéis com Roberta implicavam inevitavelmente café da
manhã na cama... Assim, meu caro Monsenhor, pode facilmente ver-se
envolvido pelo passado dela. Está sob vigilância total porque o
Governo procura por pregos para fechar o seu caixão. Se pensa que sou
boca suja, então espere só até ouvir os técnicos em pornografia do
Governo! ... Vou dar-lhe um pequeno exemplo. Encomendou flores
para Roberta. Um gesto de gentileza de um cavalheiro para com sua
anfitriã, sem qualquer maldade. Mas como se sentiria se alguém
espalhasse um rumor: "Qual o alto dignitário católico que anda
mandando flores para uma certa banqueira, cujo pai é suspeito de ter
outrora dado um golpe de 15 milhões no Vaticano? "... Esse é apenas
um dos riscos.
— Agradeço a sua preocupação — disse Jean Marie, com uma suave
ironia. — Mas me permita sugerir que não há recurso contra a maldade
e os boatos insidiosos.
— Não seja indulgente comigo! — Hennessy estava novamente
furioso. — Acontece que me importo! Acredito no que diz! E quero que
todos ouçam também! Mas não quero que a minha Igreja seja
vilipendiada em praça pública!
— Perdoe-me! — murmurou Jean Marie, arrependido e triste. —
Mas avisei-o. Não foi para o melhor que mudei.
— Pelo menos ainda tem fogo dentro de você — comentou
Hennessy, com um sorriso amargo. — Escolherei minhas palavras com
mais cuidado na próxima vez.
O maquilador chegou, um homem grandalhão, moreno, barbado,
parecendo um profeta do Antigo Testamento, igualmente eloqüente e
categórico. Explicou longamente que o disfarce era uma questão de
ilusão. A maquilagem complicada só servia para o palco ou a tela. Bem
poucas mulheres sabiam como usar os cosméticos de maneira
apropriada, muito embora aplicassem-nos todos os dias. Rolf
Levandow certamente não confiaria num idoso cavalheiro de 65 anos
para fazer uma maquilagem certa... Então vamos ver! Vire para cá, vire
para lá! É uma pena mudar os cabelos. Seria uma espécie de mutilação.
Presumivelmente, Jean Marie não estava ingressando num concurso de
elegância. Por outro lado, também não podia passar por um proletário...
não com aqueles ombros frágeis, a barriga lisa e as mãos macias! Pois
então... um professor aposentado, um crítico de revista, alguma coisa

282
relacionada com as artes! A idéia era criar uma identidade local, a fim
de que o homem por trás do balcão e a moça na banca de jornais fossem
capazes de jurar que se tratava de alguém familiar e seguro. Jean Marie
descobriu-se finalmente a olhar para o espelho, contemplando um velho
professor um tanto macambúzio, com uma boina basca, pincenê de
ouro com fita de tafetá e um par de chumaços nas bochechas, que lhe
davam uma expressão de coelho. O maquilador explicou que uma
revista literária debaixo do braço ajudaria; uma bengala ordinária seria
opcional; e um certo ar de parcimônia era recomendável, como contar
as moedas de uma pequena bolsa de couro. A prática indicaria outros
aperfeiçoamentos no disfarce. Ele deveria tentar apreciar a manobra,
como se fosse um jogo. Se quisesse mudar, por algum motivo, poderia
dar-se um jeito. Muitas vezes a pessoa se cansava de ter uma única
identidade. Ele deixaria o seu cartão...
— Pode esquecer, Rolf! — interveio Hennessy. — Meu amigo e eu
temos muito o que fazer. Vou acompanhá-lo até o ponto de táxi.
Quando ele voltou, Jean Marie ainda se estava contemplando no
espelho. Hennessy riu.
— A coisa funciona, não é mesmo? Eu lhe disse que ele era o
melhor. E seria conveniente que mantivesse contato com ele... por
outras razões que não a maquilagem.
— Como assim?
— Ele é um agente israelense, um membro da Shin Beth. O trabalho
que ele tem é uma cobertura das mais úteis. Permite-lhe viajar
freqüentemente com o pessoal do cinema. E ele ainda trabalha
regularmente para a televisão francesa. Reconheceu-o imediatamente.
Diz que os israelenses estão bem-dispostos em relação a você. Rolf
pode ser-lhe muito útil. E agora tenho de ir.
— Quando voltarei a ter notícias suas?
— Assim que eu tiver alguma coisa para comunicar. Enquanto isso,
continue a trabalhar nas cartas.
— Está certo. Posso pedir-lhe um pequeno favor?
— Claro!
— Deixe-me ir ao seu lado até a beira do Sena. Tenho de me
acostumar com esse camarada novo que usa pincenê e boina.

Era o mais simples dos prazeres, passar pela beira do rio, observando
os pescadores esperançosos e os apaixonados de mãos dadas, os turistas
nos bateaux mouches e o esplendor do pôr-do-sol derramando-se sobre

283
a massa cinzenta de Notre-Dame. Havia também uma diversão infantil
no jogo de disfarce. Ele comprou, por alguns francos, um volume
maltratado de Les Trophées e uma bengala, com castão de cabeça de
cachorro. Assim, protegido, como por um manto de invisibilidade, Jean
Marie saiu passeando, feliz como qualquer cavalheiro intelectual, que
podia estar um pouco atormentado pela inflação, mas ainda era capaz
de usufruir ao máximo os seus anos de outono.
Era uma fantasia das mais agradáveis e levou-o até a cerimônia final
da tarde, quando se acomodou sob o toldo de um café com mesas na
calçada, pediu café e docinhos, dividindo sua atenção entre os
transeuntes e os versos lapidares de José Maria de Hérédia. Ele
descobriu que o velho parnasiano resistira bem ao passar dos anos e que
ainda podia sentir-se comovido com o último e pungente momento
entre Antônio e Cleópatra, na véspera da batalha de Actium:

"Et courbé sur elle, 1'ardent imperator


Voyait dans ses yeux clairs étoilés de points d'or,
Toute une mer immense oú fuyaient des galères. "

A beleza solene e fatídica da imagem combinava com o seu próprio


ânimo. Parecia uma blasfêmia sequer cogitar da destruição de Paris,
aquela cidade tão humana, da extinção de todas as suas belezas serenas.
E, no entanto, quando chegasse o Dia do Rubicão, a sentença seria
irrevogável... e qualquer homem que vivera em Roma sabia como era
frágil o contexto do maior império e como os mortos eram quietos em
suas urnas e catacumbas. Foi então que ele ouviu a voz. Estava
próxima, à sua esquerda, uma voz americana de barítono, exuberante,
discorrendo sobre a arte de bouquinage:
— Não se pode agir como se estivesse revirando o sótão da vovó.
Decide-se qual o jogo de gravuras que se deseja realmente possuir. Não
importa que as gravuras sejam tão raras quanto dentes de galinha. Esse
é apenas o ponto de partida. Revela ao homem que você é sério, que
tem dinheiro para gastar e lhe será compensador investir algum tempo e
mostrar o que tem por baixo do balcão. Foi assim que agi na Alemanha
e...
Enquanto o monólogo prosseguiu interminavelmente, Jean Marie
tirou dinheiro da carteira e virou a cabeça lentamente, como se fosse
chamar o garçom. Lembrou-se do que dissera Rolf Levandow. O
disfarce era uma ilusão. Mesmo que alguém julgasse reconhecê-lo,
ainda recuaria diante das feições desconhecidas. Era preciso tirar

284
proveito disso, esnobá-lo se o cumprimentasse.
Alvin Dolman estava sentado na mesa próxima, absorvido em
conversa com uma mulher ainda jovem, que usava um vestido
estampado de algodão. Enquanto Jean Marie levantava a mão, pedindo
a conta, Alvin Dolman olhou em sua direção. Os olhos dos dois se
encontraram. Jean Marie lembrou que estava usando pincenê e que
provavelmente Dolman não poderia ver-lhe os olhos. Ele virou a
cabeça, lentamente. Depois, como se estivesse impaciente em ir
embora, pôs uma nota de 10 francos embaixo do pires, pegou o livro e a
bengala e levantou-se. Contornou a mesa de Dolman, a caminho da rua.
Felizmente, Dolman não interrompeu o monólogo.
— ... É preciso lembrar sempre as coisas que geralmente se
encontram nas barracas de livros. Conheci um camarada hoje... aquele
que estava parado perto de você... que se especializa em desenhos de
balé. Não é a minha especialidade, mas...
... Mas o demônio do meio-dia estava em Paris e Jean Marie Barette
podia fazer algumas suposições inquietantes sobre a sua missão atual
Ele deixou o livro cair na calçada a 10 passos do café. Olhou para trás
ao se abaixar para recuperá-lo. Alvin Dolman ainda estava absorvido na
conversa com a moça. Ele parecia ter feito algum progresso, pois estava
agora segurando a mão dela. Jean Marie Barette esperava que a moça
reagisse favoravelmente, o suficiente para manter Dolman interessado...
pelo menos até que ele estivesse de volta em segurança a seu refúgio.
Havia um recado à sua espera. Madame chegaria tarde a casa. Ele
deveria pedir o que quisesse para jantar. Jean Marie contentou-se com
um café e sanduíche de galinha, servidos em seus aposentos. Tomou um
banho, vestiu um pijama e roupão, começou a trabalhar em outra carta.
Estava agora tratando de um tema dos mais controvertidos: as divisões
em questões de fé entre os homens e as mulheres de boa vontade.

"Querido Deus:

Se Você é o princípio e o fim de tudo, por que não deu a todos nós
uma oportunidade igual? Num circo, nossas vidas dependem disso. Se
os armadores cometem algum erro, o trapezista morre. Se o homem que
maneja os refletores não faz direito, eu posso ficar cego.
Mas parece que Você não vê as coisas desse jeito. Um circo está
sempre viajando e assim podemos observar como outras pessoas vivem...
e estou referindo-me às pessoas de bem, que se amam mutuamente e
amam seus filhos, que realmente merecem um afago seu na cabeça.
Mas aqui está a coisa que não consigo entender. Você sabe de tudo

285
isso. Afinal, foi quem fez tudo isso. Mas cada um o vê de maneira
diferente. Até mesmo tem permitido que seus filhos se matem uns aos
outros só porque cada um faz uma descrição diferente de seu rosto na
janela! ... Por que todos temos de usar sinais diferentes para indicar que
somos seus filhos? Fui aspergido com água, porque meus pais eram
cristãos. Louis, o domador de leões, teve um pedacinho de seu pênis
cortado porque é judeu. Leila, a moça preta que cuida das cobras, usa
uma amonite pendurada no pescoço, porque se trata de um objeto
mágico... E, no entanto, quando o espetáculo acaba e todos nos sentamos
à mesa do jantar, cansados e famintos, pode ver muita diferença entre
nós? E se importa com isso? Fica realmente perturbado quando Louis,
que está ficando velho e assustado, se mete na cama de Leila em busca
de algum conforto? E Leila, que é bastante feia, fica contente em recebê-
lo?
Se bem me lembro, Seu Filho gostava de comer, beber e conversar
com pessoas como nós. Ele gostava de crianças. Parecia compreender as
mulheres. É uma pena que ninguém se tenha dado ao trabalho de
registrar as conversas que ele teve com as mulheres. Ficaram apenas
algumas palavras suas com a mãe e umas poucas conversas com outras
mulheres.
O que estou querendo dizer é que Você está acabando com o mundo
sem realmente nos dar uma oportunidade de superar as desvantagens
que nos impôs... Tenho de dizer isso. Não estaria sendo honesto se
deixasse o problema de lado. Em algum lugar, perto do Pólo Norte, há
uma velha sentada numa massa de gelo flutuante. Ela não está sofrendo.
Está definhando lentamente. Sente-se contente, porque é assim que a
morte sempre foi dispensada aos velhos. Você sabe que ela está lá.
Tenho certeza de que está fazendo com que as coisas sejam mais fáceis
para essa mulher... talvez mais fáceis do que para outros pobres velhos
que estão internados em clínicas luxuosas. Mas Você nunca nos disse
claramente qual a situação que prefere. Eu quero acreditar que é aquela
em que existe mais amor!
Por outro lado... tenho de dizer-lhe isso!... sentei-me hoje num café.
Ao meu lado, havia um homem que sei estar de fato habitado por um
espírito do mal. Ele é traiçoeiro. Um homem destrutivo. E é um
assassino. Como Você haverá de julgá-lo? E como fará com que seu
julgamento chegue ao nosso conhecimento? Temos o direito de saber.
Não tenho filhos. Mas, se tivesse, eles não seriam apenas brinquedos,
não é mesmo? A própria vida lhes concederia direitos... pelo menos de
acordo com nossos padrões ínfimos. Detesto pensar que os seus possam
ser ainda mais ínfimos.

286
Assim, por favor... sei que estou sendo muito insistente esta noite,
mas é que estou cansado e com medo daquele homem maléfico, de voz
feliz e sorriso suave... diga-me como e quando vai julgar o caso do
Criador versus criatura... ou deveria ser o contrário? Ou não poderia
suspender tudo e transformar o caso num banquete de amor?
Mas que coisa estranha! Nunca pensei em pedir antes. Mas será que
não poderia, meu Deus, mudar de idéia? Se não é possível, por que
não? E, se é possível, então por que não o faz antes que todos nós
estejamos metidos numa confusão total e irremediável? Lamento se
pareço grosseiro. Não pretendia ser..."

... Mais uma vez, sem qualquer aviso, ele estava no pico alto, entre as
montanhas negras do planeta morto. Novamente estava vazio, sozinho,
dominado por uma tristeza insuportável, uma terrível vergonha, como
se fosse o único responsável por toda aquela desolação ao seu redor.
Não havia trégua, apelo ou perdão. Não haveria êxtase, turbilhão
intenso ou a agonia requintada da união com o Outro. Ele próprio era o
centro morto de um cosmo morto. Não podia chorar. Não podia ter
raiva. Podia apenas saber que aquilo era tudo o que havia para saber:
ele próprio estava preso a um rochedo árido, no deserto da eternidade.
Subitamente, sentiu um toque em sua carne, um puxão em seus dedos
pendentes. Olhou para baixo. Era a menina do Instituto, a pequena
fantoche de Deus, com seu sorriso vazio e confiante. Ele sentiu o
coração desmanchar-se pela menina. Pegou-a no colo e apertou-a. Ela
era a sua centelha de vida. E ele constituía a derradeira proteção dela
contra o vazio do planeta inóspito.
Não podiam ficar ali no pico. Devia haver cavernas para abrigá-los.
Ele começou a andar, descendo a cambalear pela encosta escura e
rochosa. Podia sentir o rosto da menina contra o seu, a respiração
quente dela, como um pouco de vento, a lhe desmanchar os cabelos. E
enquanto ele andava, a fonte das emoções começou a fluir outra vez.
Estava consciente da compaixão, terror, ternura e uma raiva intensa
contra o outro, que se atrevera a abandonar aquela criatura pequena e
desamparada num lugar que não era um lugar.
Ele chegou finalmente à entrada de uma caverna, dentro da qual,
estranhamente, pôde divisar uma luz minúscula, como uma estrela
refletida na água escura de um pequeno lago na montanha. Aconchegou
ainda mais a menina, como se a cobrisse com a armadura de sua própria
pele. Encaminhou-se para a luz. Foi tornando-se cada vez maior e mais
brilhante, até ofuscá-lo. Ele foi obrigado a fechar os olhos e parou,
ficando imóvel como um cego num lugar novo. E foi então que ouviu a

287
voz, firme, calma, gentil.
— Abra os olhos.
Ele o fez e divisou, sentado num rochedo, ao lado de uma pequena
fogueira, um jovem de extraordinária beleza. Usava apenas uma tanga e
sandálias. Os cabelos, dourados e abundantes, estavam presos atrás com
uma fita de linho. Ao seu lado, sobre a pedra, havia uma travessa com
pão e um copo com água. Ele estendeu os braços e disse:
— Ficarei com a criança.
— Não!
Jean Marie sentiu um súbito ímpeto de medo e recuou até a parede do
outro lado. Abaixou-se para uma posição agachada, com a menina
aninhada nos braços. O rapaz levantou e ofereceu o pão e a água. Jean
Marie recusou e ele começou a alimentar a menina, com pedaços de
pão e goles de água. De vez em quando, afagava-lhe o rosto e afastava
os cabelos dos olhos. E pediu novamente:
— Deixe-me segurá-la, por favor. Ela não sofrerá qualquer mal.
Ele acabou pegando a menina e dançou com ela. A menina riu,
acariciou-lhe o rosto, beijou-o. E de repente ela não era mais uma
mongolóide, mas perfeita e linda, como uma princesinha.
O rapaz levantou-a para que fosse admirada. Ele sorriu para Jean
Marie e disse-lhe:
— Está vendo? Posso fazer com que todas as coisas sejam novas!
— E onde está todo o resto... as flores, os animais, as pessoas?
— Aqui!
Ele suspendeu a menina acima de sua cabeça. Ela estendeu os braços.
As paredes da caverna dissolveram-se numa perspectiva de campinas,
pomares e córregos, prateados ao sol. O rapaz disse, em tom de censura:
— Você tem de compreender. O princípio e o fim são a mesma
coisa. Viver e morrer constituem um único ato, porque a vida se renova
pela morte.
— Então por que morrer deve ser tão terrível?
— O homem é que faz os seus próprios terrores, não eu.
— Quem é você?
— Eu sou quem eu sou.
— Jamais compreendi isso.
— Nem deve tentar compreender. A flor discute com o sol ou o peixe
com o mar? É por isso que você é um fantoche, está sempre quebrando
as coisas e obrigando-me a consertá-las.
— Lamento muito. Estraguei tudo. Irei embora agora.
— Não quer beijar sua filha?
— Posso?

288
Mas quando ele estendeu os braços para pegar a linda menina, ela
não estava mais ali. O homem, a menina, a caverna e as campinas
mágicas, tudo se dissolveu. Ele estava de volta a seu quarto. Roberta
Saracini estava parada ao lado da mesa, com uma bandeja nas mãos.
— Vi luz por baixo de sua porta e pensei que gostaria de tomar um
chocolate quente antes de dormir. E, quando entrei, encontrei-o
dormindo na escrivaninha.
— Tive um dia movimentado... sob todos os ângulos. Que horas são?
— Passam alguns minutos de 10 horas.
— Obrigado pelo chocolate. Como foi sua noite?
— Das mais interessantes. Fomos convidados a participar do
financiamento de um novo projeto industrial em Xangai. A delegação
financeira chinesa ofereceu-nos uma recepção na Embaixada. Nosso
grupo era bastante diversificado: ingleses, suíços, americanos e, como
não podia deixar de ser, um consórcio de banqueiros da Comunidade
Econômica Européia. Os chineses são muito espertos. Querem a maior
diversificação de investidores que for possível. E também estão
convencidos de que a guerra é inevitável. Por isso mesmo, estão
empenhados em programas de emergência que possam fabricar
materiais bélicos... Seu nome foi mencionado nas conversas sobre a
guerra.
— De que forma?
— Deixe-me ver se consigo lembrar exatamente... Ah, sim! Os
americanos estavam falando sobre os períodos de perigo e os incidentes
que podem desencadear uma guerra... o Dia do Rubicão, em suma! Não
esconderam que consideram os chineses como seus aliados naturais.
Não tenho a menor dúvida de que pelo menos dois ou três homens da
delegação americana trabalham também para o serviço de informações.
Um deles, um homem chamado Morrow, que foi Secretário de Estado e
agora está com o Morgan Guaranty, falou de suas profecias e dos
artigos a respeito de sua abdicação. Perguntou até que ponto os
chineses achavam que eram acuradas. Um deles, diretor do Banco da
China, riu e disse: "Se ele é amigo dos jesuítas, então suas predições
devem ser mesmo acuradas." Ele lembrou que foi o jesuíta Matteo
Ricci quem introduziu o relógio de sol na China, o astrolábio e o
método de extrair raízes quadradas e cúbicas de números inteiros e
frações... Ele ficou muito interessado quando comentei que o conhecia
e era até uma das administradoras dos seus bens.
Jean Marie lamentou silenciosamente a indiscrição. Sentiu vontade
de fazer algum comentário, mas estava muito cansado e além do mais o

289
leite já estava servido.
Roberta Saracini acrescentou:
— Morrow disse que gostaria de tornar a encontrá-lo. Ao que parece,
encontraram-se algumas vezes no Vaticano. Respondi que mantinha
contato com você de vez em quando e que lhe transmitiria o recado.
— Minha cara Roberta! — Jean Marie não podia deixar de falar
agora e não tinha como controlar as palavras. — Sou profundamente
grato por toda a sua ajuda, mas acaba de cometer uma tolice
monumental. Os franceses me querem sob vigilância permanente. Esta
tarde, estive a poucos passos de um agente da CIA que tentou matar
Mendelius. Ainda não sei se ele me reconheceu. E agora, numa reunião
diplomática, você anuncia que é minha procuradora e que mantém
contato comigo de vez em quando! A partir de amanhã, seu telefone
estará sendo interceptado e a casa vigiada... Tenho de sair daqui. E esta
noite mesmo! Quanto tempo levarei para chegar ao aeroporto?
— A esta hora... cerca de 40 minutos. Mas para onde...
— Não sei para onde vou e é melhor que você também não saiba.
Assim que amanhecer, entre em contato com Hennessy e com meu
irmão Alain. Diga-lhes que os procurarei assim que puder. E agora
tenho de arrumar as minhas coisas para viajar.
— Mas as cartas, todo o projeto...
— Tudo depende de mim! Por isso é que preciso agora de um lugar
seguro onde possa ficar, do qual possa me comunicar em segurança.
Poderia levar-me de carro até o aeroporto? É melhor não pegar um táxi,
pois sempre se pode descobri-los.
— Pelo menos deixe-me dizer que sinto muito!
Ela estava à beira das lágrimas. Jean Marie pegou o rosto dela entre
as mãos e beijou-a no rosto, gentilmente.
— Sei que você não fez por mal. Eu a meti num jogo perigoso e não
se podia esperar que conhecesse todas as regras. Depois que me
instalar, encontrarei um meio seguro de fazer contato. Ainda preciso de
sua ajuda.
— Vou buscar o carro. Trate de arrumar as suas coisas depressa. Os
últimos aviões partem à meia-noite.

Em última análise, um vôo à meia-noite para Londres era o cúmulo


do desespero. Mas, se conseguisse chegar sem ser descoberto, poderia
trabalhar em segurança nas cartas por algum tempo, ao mesmo tempo
em que fazia contato com velhos amigos, à procura dos que pudessem
acreditar em sua missão e se mostrassem dispostos a cooperar.

290
Sempre admirara os britânicos, embora jamais conseguisse
compreendê-los plenamente. As sutilezas do humor britânico muitas
vezes escapavam ao seu entendimento. Suas esnobações sempre o
irritavam. Os hábitos protelatórios no comércio jamais deixavam de
espantá-lo. Contudo, eles eram tenazes na amizade e lealdade.
Possuíam um senso de História e uma atitude tolerante em relação aos
tolos e excêntricos. Podiam ser gananciosos por terras e ávidos por
dinheiro, capazes das mais extraordinárias crueldades sociais. Contudo,
financiavam as maiores caridades, eram humanos com os fugitivos e
consideravam a privacidade como um direito e não um privilégio. Se
lhes apresentassem uma causa que pudessem compreender, arriscavam
as liberdades que tanto prezavam e saíam às ruas aos milhares ou então
seguiam sozinhos, numa dignidade solitária, para o cadafalso.
Por outro lado, como ele era o primeiro a admitir, com um humor
amargo, jamais tivera muito sucesso com os britânicos, durante todo o
tempo em que fora Gregório XVII. Ao longo dos séculos, os britânicos
haviam desenvolvido um relacionamento funcional com os italianos,
cujas artes eles compravam, cujas modas imitavam, cujo talento para a
retórica e as concessões era tão parecido com o deles. Por outro lado
encaravam os franceses como um povo irritante, teimoso, arrogante e
politicamente imoral, que vivia perto demais para lhes proporcionar
qualquer conforto e tinha uma desagradável propensão para a grandeza
e uma cínica capacidade de procurá-la a qualquer custo.
Assim, para o seu pesar singular e ocasional irritação, Jean Marie
fizera bons amigos nas Ilhas Britânicas, mas não chegara a exercer
grande influência. Ao final, sentira-se contente por deixar a condução
da Igreja local a Matthew Cardeal Hewlett, o qual, como exprimira um
dos seus colegas da Cúria, "é provavelmente o homem menos arriscado
para a função. Ele tem zelo sem fogo, inteligência sem talento, jamais
entra numa discussão se puder evitá-lo e não tem absolutamente vícios
redentores". Hewlett jamais se associara aos Amigos do Silêncio, mas
no Consistório fatídico dera seu voto a favor da abdicação e justificara
sua decisão com um comentário sarcástico:
"Se nosso Pontífice é um louco, o melhor que podemos fazer é
livrarmo-nos dele. Se é um santo, não vamos perdê-lo, independente do
que fizermos agora. Não vejo qualquer problema na situação atual.
Quanto mais cedo ele sair, melhor será."
Em tudo e por tudo, o Cardeal Hewlett não chegava a ser o homem a
quem se podia telefonar às duas horas da madrugada e pedir por um
lugar para dormir e pelo café da manhã. Assim, com a ajuda de um
motorista de táxi, Jean Marie Barette acabou encontrando alojamento

291
num hotel razoável em Knightsbridge, onde podia dormir até o meio-
dia, sem sonhar.

292
CAPÍTULO 12

Havia pavões nos gramados e cisnes no lago, o dourado do início do


outono espalhava-se pelos bosques, enquanto Jean Marie Barette
entrava no solar, acompanhado por um homem em quem depositara a
maior confiança durante o seu pontificado e que agora seria o seu
primeiro editor em língua inglesa: Waldo Pearson, católico antigo, ex-
Secretário do Exterior no Gabinete Conservador, atual presidente da
Greenwood Press.
Adrian Hennessy também estava presente, com seu portfolio de
ilustrações, gravações das Cartas em inglês e francês e orquestrações
do tema de Johnny, o Bufão, composto por Florent de Basil. Ele
trouxera também um documento oficial do Banco Ambrogiano
all'Estero, garantindo um investimento inicial de meio milhão de libras
esterlinas, a serem aplicadas na promoção e exploração de Últimas
Cartas de um Pequeno Planeta. Jean Marie arriscou o comentário
irônico de que talvez o dinheiro fosse mais eloqüente do que o autor.
Arrancou uma contestação veemente de Waldo Pearson:
— Estamos bem próximos da ocasião em que o dinheiro não terá
mais qualquer significado. Num conflito nuclear, deveremos perder
dois terços da população destas ilhas. Nenhum governo pode arcar com
essa catástrofe... nem a Igreja, como você já descobriu! Assim, como
uma questão de política, eles preferem ignorar a possibilidade. Nas
Cartas, você encontrou um meio de debater o terror com que todos nos
defrontamos, sem provocar pânico nem controvérsias. Será julgado
como um profeta e não como um banqueiro.
Hennessy interveio com sua fala afável e insinuante:

293
— Não sabe como fico contente em ouvi-lo dizer isso, Waldo! Afinal
eu é que represento os banqueiros. E posso garantir-lhe que não
receberá um dólar sequer enquanto não comprovar a competência de
sua editoria e promoção!
— Já lhe disse antes. — Pearson estava determinado a registrar todas
as suas reservas. — Estamos confiantes numa distribuição excepcional
O adiantamento que estamos pagando reflete essa confiança. A
publicação em capítulos nos jornais também ajudará... assim como os
recursos para a propaganda que está fornecendo. Mas está pedindo-me
para lutar com uma das mãos amarradas nas costas. Nada de televisão,
nada de entrevistas, nada de revelação da identidade do autor. Não vejo
o menor sentido nisso!
Jean Marie interveio antes que Hennessy tivesse tempo de responder:
— Há bons motivos para isso. Se minha identidade for conhecida
posso entrar em conflito com o atual Pontífice. Não quero que isso
aconteça. E mais: estou escrevendo em resposta ao que creio ser uma
ordem divina. Tenho de me apoiar nesse ato de fé e esperar que a
árvore seja reconhecida por seus frutos. E, finalmente, a única coisa que
posso controlar é a integridade do texto editado. Não posso colocar-me
à mercê de entrevistadores, que podem distorcer a mensagem por um
noticiário falso, tendencioso ou incompetente.
— Em suma, Waldo, não há a menor possibilidade! — Hennessy
sorriu como um duende feliz. — Absolutamente nenhuma!
Waldo Pearson deu de ombros.
— Valeu a pena tentar. Quando podemos esperar o original pronto?
— Dentro de duas semanas.
— Está bom assim. O autor está satisfeito com a tradução inglesa?
— Estou, sim. É ao mesmo tempo fluente e acurada... Posso mudar
de assunto por um momento? Há uma outra coisa sobre a qual gostaria
de pedir o seu conselho.
— Pode falar.
— Há diversas pessoas da Inglaterra a quem recebi quando estava no
cargo. Poderia dar um jeito para que eu tornasse a encontrá-las... e para
que esses encontros fossem realizados aqui em sua casa?
Antes que Pearson pudesse responder, Jean Marie apressou-se em
explicar:
— Estou instalado num hotel modesto, sob um falso nome. Não
poderia convidar personagens conhecidos a um lugar assim. Mas ainda
creio que posso prestar algum serviço na crise com que todos nos
defrontamos. Por exemplo: Sergei Petrov pediu-me para ser um
mediador na questão do embargo de cereais. Mas não tenho meios de

294
saber se sou aceitável às outras partes. Já participou de um gabinete
governamental, Mr. Pearson. Como reagiria à minha intervenção?
— É difícil dizer.
Pearson, o político, era mais meticuloso que Pearson, o editor. Ele
pôs-se a argumentar:
— Vamos encarar a coisa sob o aspecto do débito e crédito. É um
líder derrotado, um clérigo católico romano, um francês, um profeta
auto-intitulado... todas as desvantagens possíveis para um negociador
político no mercado atual!
Jean Marie soltou uma risada, mas não fez qualquer comentário.
Pearson continuou:
— O que temos no lado do crédito? É um diplomata experiente. Pode
não ter ambições pessoais. Seu bom comportamento depois da
abdicação não passou despercebido. É um agente independente. O
memorial que Rainer e Mendelius escreveram a seu respeito dissipou a
maior parte da névoa do seu misticismo. — Ele fez uma pausa, rindo do
seu próprio gracejo colegial. — Portanto, vamos resumir a situação. Se
eu fosse Secretário do Exterior, não tenho a menor dúvida de que o
receberia. Se me dissesse que os russos o convidaram a ser mediador
nas negociações, ficaria no maior ceticismo. Teria o seguinte
raciocínio: Antes de mais nada, estaria lidando com um corretor
honesto. Ficaria imaginando por que os russos o escolheram, em vez de
procurar alguém com mais força no mercado. E depois chegaria à
conclusão de que, se eles estão desesperados o bastante para arrumarem
um intermediário de fora, então poderíamos encostá-los na parede
como bem quiséssemos. Em suma, eu o receberia com todo interesse...
e passaria por cima de você o mais depressa possível!
— A coisa faz sentido — comentou Jean Marie. — Agora, voltamos
à minha primeira indagação. Estaria disposto a providenciar alguns
encontros para mim... aqui em sua casa?
— Claro! Basta dizer-me com quem deseja falar e convidarei as
pessoas indicadas. Não se esqueça, por favor, de que é sempre bem-
vindo aqui, a qualquer hora.
— Há mais uma coisa que não podemos esquecer. — Hennessy
estava apreensivo. — Se não quer revelar-se como o autor das Últimas
Cartas, como vai explicar a sua presença na casa de um dos mais
proeminentes editores ingleses?
Pearson interveio bruscamente:
— Não temos de explicar coisa alguma. Limito-me a comentar que
estamos discutindo a possibilidade de um livro... E é claro que eu
gostaria de levantar a possibilidade de uma autobiografia.

295
— Infelizmente, trata-se de um projeto para o qual não disponho de
disposição nem de tempo — respondeu Jean Marie.
— Há outras perspectivas que poderiam interessá-lo. Há anos que
venho tentando encontrar alguém que possa escrever-me um livro claro
e objetivo sobre a natureza da experiência religiosa. Estamos tendo na
Inglaterra um fenômeno que merece mais atenção do que vem
recebendo. Enquanto as igrejas tradicionais estão perdendo clérigos e
devotos num ritmo alarmante, os mais diversos cultos estão
florescendo... Quero mostrar-lhes uma coisa.
Ele os conduziu em torno da casa, até o ponto em que o bosque se
abria numa paisagem de pastagens ondulantes, ao final da qual, no alto
de um morro arredondado, havia uma vasta mansão, ao estilo
paladiano. O comentário de Pearson foi irônico, mas triste:
— Vejam aquela casa, por exemplo. Pertencia a um bom amigo
meu. Agora, é a sede de um grupo que se intitula a Família dos
Sagrados. Formam um culto como os Moonies, Soka Gakkai, Hare
Krishna. Recrutam prosélitos ativamente. Possuem um regime de
condicionamento intenso, baseado no trabalho excessivo e na constante
vigilância dos neófitos. Conseguem atrair muitos jovens. E são muito
ricos... E como alguns dos outros grupos, estão agora se armando,
acumulando alimentos, medicamentos e armas, contra o Dia de
Armagedom. Se sobreviverem, eles e os outros grupos similares podem
perfeitamente se transformar nos barões guerreiros da era pós-nuclear...
Era disso que a hierarquia católica estava com medo, quando você quis
publicar a sua encíclica. Matt Hewlett trouxe uma cópia de Londres.
Ele veio procurar-me para conversar a respeito. Ficou parado no mesmo
lugar em que você está agora e disse: "É para isso que Gregório XVII
nos está levando, quer compreenda ou não... para o cristianismo
cromwelliano, com lanças, mosquetes e tudo o mais!"
— E acreditou nele? — perguntou Jean Marie, calmamente.
— Na ocasião, acreditei, sim.
— O que aconteceu para fazê-lo mudar de idéia?
— Várias coisas. Por ter participado da política e observado assim
como é difícil fazer a democracia funcionar, senti-me tentado muitas
vezes a aceitar ditaduras, de uma espécie ou outra. Como editor, tenho
observado como as pessoas podem ser condicionadas a hábitos e pontos
de vista. Para meu pesar, fui diversas vezes seduzido a exercícios de
manipulação na política e no comércio... Foi então que Hennessy me
trouxe as primeiras cartas. Há uma passagem na quarta que ficou
gravada para sempre em minha mente... "Quando um homem se torna
um fantoche, faz um presente gratuito de si mesmo à audiência. Para

296
conceder aos outros a graça salvadora do riso, ele se sujeita a ser
escarnecido, desdenhado, crucificado em amor. Seu Filho se submeteu
ao mesmo, quando se coroou rei de mentira e deixou que os soldados
cuspissem vinho e água em seu rosto. ... Minha esperança é de que,
quando Ele voltar, ainda seja humano o bastante para derramar algumas
lágrimas gentis de fantoche sobre os brinquedos quebrados... que foram
outrora mulheres e crianças."
Pearson gaguejou ao final, como se estivesse constrangido, passou
um longo tempo a contemplar em silêncio a mansão paladiana, além
das pastagens verdejantes. E finalmente confessou, com uma estranha
emoção:
— Creio que se pode dizer que foi esse o momento da minha
conversão. Sempre fui um cristão praticante... mas apenas porque
mantinha a mente fechada a algumas das conseqüências mais horríveis
da crença, como um universo em que os animais se devoram
mutuamente para viver, os torturadores são servidores públicos e a
melhor oferta que se pode fazer à humanidade angustiada é "Assuma
sua cruz!"... Mas, de algum modo, suas palavras conseguiram libertar-
me do desespero, fizeram-me pensar novamente, contemplando com
novos olhos um mundo às avessas.
Adrian Hennessy nada disse. Tirou um lenço do bolso e pôs-se a
limpar os óculos vigorosamente. Jean Marie Barette disse, gentilmente:
— Sei o que está sentindo. Mas é uma alegria das mais frágeis. Não
se apóie demais nela, pois pode ruir sob o seu peso.
Pearson lançou-lhe um olhar rápido e inquisitivo.
— Está surpreendendo-me. Imaginei que gostaria de partilhar a
alegria, por mais frágil que fosse.
Jean Marie levantou a mão num gesto de submissão.
— Não me entenda mal, por favor. Fico profundamente feliz quando
é concedido a alguém o tipo de percepção que proporciona um novo
significado à profissão de fé. Estava querendo simplesmente alertá-lo,
baseado em minha própria experiência, que o conforto que sente agora
pode não durar muito. A fé não é uma questão de lógica e o momento
de intuição nem sempre se repete. É preciso esperar longos períodos de
trevas e muitas vezes uma confusão destrutiva.
Waldo Pearson ficou em silêncio por um momento. E depois disse a
Hennessy, com uma brusquidão surpreendente:
— Adrian, eu gostaria de falar a sós com nosso amigo. Por que não
nos deixa por um instante?

297
— Não há problema! — Hennessy parecia imperturbável. — Pegarei
o carro e irei até o pub para tomar um trago com os nativos. Podem
conversar sobre qualquer coisa que não sejam contratos. Isso está na
minha seara.
Waldo Pearson levou Jean Marie até a beira do lago, onde um par de
cisnes brancos flutuava serenamente entre os juncos. Explicou-se de
forma um tanto hesitante:
— Estamos no início de um... de um relacionamento bastante íntimo
digamos assim. Autor e editor nunca podem viver satisfatoriamente à
distância... ainda mais um autor como você e um editor como eu. E
senti neste momento, certo ou errado, que faltava dizer alguma coisa
importante entre nós... Pareceu estranho que você sentisse a
necessidade de fazer uma advertência sobre... sobre a minha saúde
espiritual.
— Eu estava igualmente preocupado com a minha — comentou Jean
Marie. — Não precisaria de muito neste momento para convencer-me
de que estou sofrendo de uma monstruosa ilusão.
— Acho difícil acreditar nisso. Tem sido inflexível em suas
convicções. Renunciou a muito por elas. E escreve com uma profunda
emoção.
— Apesar de tudo isso, o que falei é verdade.
Jean Marie arrancou uma folha da relva da beira do lago e pôs-se a
esfiapá-la, enquanto dizia:
— Há três semanas que estou na Inglaterra. Vivo num hotel
confortável, de frente para uma praça antiga, com um jardim no meio,
onde as crianças brincam e para o qual as jovens mães levam seus
bebês. Trabalho pela manhã. Passeio à tarde. Ao cair da noite, leio, rezo
e vou dormir cedo. Estou livre, completamente relaxado. Cheguei até a
fazer amigos. Há um judeu já bem idoso que leva o neto para jogar bola
no jardim. É um profundo estudioso das tradições rabínicas. Quase
pulou de alegria quando soube que eu falava hebraico. Na sexta-feira
passada, fui a um jantar de Sabá na casa dele. Há também a concierge,
uma italiana exuberante e loquaz, sempre disposta a uma conversa
sobre as últimas intrigas... Como pode ver, minha vida é agradável,
estou quase convertido à extraordinária serenidade dos britânicos...
alguns dos quais realmente acreditam que Deus é um inglês de bom
gosto impecável que jamais deixa qualquer confusão escapar ao seu
controle... Mas, de repente, compreendi que isso é uma tentação das
mais insidiosas. Posso ser silenciado, não pelos inimigos, não pela
autoridade... mas por minha própria indiferença confortável! Posso
acreditar que, só porque escrevi algumas páginas que serão amplamente

298
divulgadas, dei pleno testemunho e ganhei o direito de sonhar pelo
resto do tempo até o Juízo Final. Esse é um dos lados da moeda. O
outro é igualmente sinistro, embora de uma maneira diferente. Ao
escrever Últimas Cartas de um Pequeno Planeta, estou expressando a
mim mesmo minhas relações com Deus e com a família humana. Não
estou pregando um corpo de doutrina. Não estou propondo uma
discussão teológica. Não sou um pastor preocupado com o bem-estar de
seu rebanho. Afinal, estou fora do cargo, tornei-me meio leigo, até
celebro a Eucaristia apenas para mim, o que tira a maior parte do
sentido do ato sacramental... E de repente, inesperadamente, um abismo
se abre sob meus pés. Mesmo enquanto escrevia as frases que tanto o
comoveram, eu estava pensando: Será que é verdade? É o que eu
realmente acredito?... Encaro o fim da civilização como algo possível e
próximo. Mas a Parúsia, o Segundo Advento, esta fará todas as coisas
novas? Não sei como assumir o conceito de um Deus-Homem, elevado
e glorificado, presidindo em eterna calma sobre a angustiante
dissolução de nossa habitação terrena. Agora, sempre que tento
raciocinar a respeito, farejo sangue e vejo os rostos dos demônios dos
afrescos dos templos antigos. Gostaria às vezes de poder esquecer tudo
e passar todo o tempo a conversar com o meu velho rabino,
contemplando as crianças a brincarem...
— E, no entanto, não é isso o que você escreve — disse Waldo
Pearson, suavemente. — O que está evidente em seus escritos é a
conversa de uma criança confiante com um pai amoroso.
— O que sou afinal? — indagou Jean Marie, com um sorriso
patético. — O inglês sereno, o Tomé que duvida, o profeta iludido ou o
fantoche que no fundo não passa de uma criança?... Ou talvez eu não
seja nada disso, mas algo inteiramente diferente.
— O que, por exemplo?
Jean Marie fechou a mão sobre o que restava da relva, amassando-a,
depois jogou no lago, observando boiar na esteira dos cisnes. Um longo
momento se passou antes que respondesse à pergunta:
— Decidi tornar-me um junco pensante, dobrando-se ao vento do
Espírito. Mas um junco é também um tubo oco, através do qual outros
homens podem soprar uma música que me é estranha.
Waldo Pearson pegou-o pelo braço e conduziu-o na direção de uma
estufa antiquada, encostada no velho muro de tijolos do jardim.
— Nossas uvas estão maduras. Tenho o maior orgulho delas.
Gostaria que provasse um cacho.
— Fabrica o seu próprio vinho?
— Não. As uvas são para comer. — Tão casualmente quanto se

299
desviara do assunto, Pearson voltou a abordá-lo. — Parece-me que está
tentando explicar os sintomas de uma crise de identidade. É algo que
posso compreender. Já passei por isso. Depois de 12 anos na Câmara
dos Comuns, cinco dos quais servindo no Gabinete, eu me sentia
perdido, desorientado, vazio... e creio que suscetível à manipulação. É
um pouco assustador. Mas não senti, como parece estar acontecendo
com você, que é uma situação impregnada pelo mal.
— Eu falei isso?
Jean Marie virou-se para fitá-lo. Estava aturdido e preocupado.
Pearson, no entanto, não recuou.
— Não expressamente, mas deixou implícito. Falou em "música que
me é estranha".
— Tem razão, foi isso mesmo o que falei. É a essência do problema.
Toda a literatura apocalíptica refere-se a falsos profetas enganando os
eleitos. Não pode sentir todo o horror de tal perspectiva?... E se eu fosse
um deles?
— Não acredito nisso por um instante sequer — disse Waldo
Pearson, firmemente. — Se a possibilidade pudesse passar-me pela
cabeça, eu não publicaria seu livro.
— Também não acredito — murmurou Jean Marie. — Mas sinto-me
como um campo de batalha, ainda em disputa. Sinto-me atraído para
uma indiferença segura. Sou tentado a perder toda a fé numa divindade
repleta de amor. Tenho medo de que minha nova e frágil identidade
possa de repente explodir em fragmentos.
Enquanto abria a porta de vidro da estufa, Waldo Pearson comentou:
— Fico imaginando se a sua rígida obediência não seria um erro. A
contestação é saudável e necessária... mesmo na Igreja. O silêncio auto-
imposto pode ser desmoralizante. Descobri isso quando servia no
Gabinete. É preciso falar ou ser morto.
— Há uma diferença. — Jean Marie relaxou, retornando a seu bom
humor. — Você não precisava lidar com Deus nas reuniões do Gabinete.
— Uma ova que não precisava! — exclamou Waldo Pearson. — Ele
estava sentado do lado direito, na cadeira do Primeiro-Ministro!
Os dois desataram a rir. Pearson pegou um cacho grande de uvas
pretas, dividiu-o, estendeu a metade para Jean Marie, que provou e
acenou com a cabeça em aprovação.
— Tenho uma proposta a lhe fazer. — Pearson era versado nas
bruscas mudanças de assunto. — Precisa de um fórum e de algum
acesso às pessoas que são responsáveis pelas decisões neste país. E eu
preciso de um orador substituto para o jantar no Carlton Club. Tinha

300
convidado o Primeiro-Ministro, mas ele teve de viajar, para uma
inesperada reunião de cúpula em Washington. Preciso agora de alguém
que tenha prestígio e desperte interesse. O jantar será daqui a três
semanas. Até lá, já deverá ter concluído as Cartas. É uma reunião
fechada. Tudo o que diz é extra-oficial... e as regras jamais são violadas.
Todos os sócios pertencem ao que vocês chamam na França de le
Pouvoir... embora sejam um pouco menos drásticos em seu exercício.
Aceita, por favor? Estaria prestando-me um imenso favor e certamente
poderia propagar sua mensagem.
— Sobre o que eu deveria falar?
— Sua abdicação. Os motivos e as conseqüências. Quero observar as
reações de meus colegas quando lhes disser que Deus falou com você!
— Não estou brincando. Todos eles invocam Deus. Mas você é o único
homem que conheço que afirma ter tido uma revelação pessoal e
entregou a cabeça ao carrasco como testemunho disso. Eles estarão
esperando algum fanático de olhos desvairados. Vamos, diga-me que
aceita!
— Está certo. Se tenho de falar em inglês, precisarei escrever um
texto. Você poderia conferi-lo para mim?
— Mas claro! Não posso dizer-lhe como estou contente... E estamos
de acordo também em outro ponto, que o motivo de sua presença é o
fato de estarmos discutindo planos para um livro, talvez mesmo
diversos livros?
— Claro que estamos.
— Esplêndido! E, agora, deixe-me falar sobre essas uvas. A videira é
de uma muda de galho tirada da Grande Videira de Hampton Court...
Era tudo tão especialmente britânico e suave que Jean Marie não
percebeu o significado do convite. Porque estava mais interessado no
folclore da propriedade de Waldo Pearson, ele esqueceu de falar a
Adrian Hennessy sobre o Carlton Club, até que já estavam no meio do
caminho de volta a Londres. Hennessy ficou tão aturdido que quase
saiu com o carro da estrada.
— Santo Deus! Mas que inocência! Será que não compreende o que
lhe aconteceu?
— Fui convidado a falar ao jantar num clube de cavalheiros — disse
Jean Marie afavelmente. — Posso assegurar-lhe que saberei controlar
toda a situação. Não é tão formidável quanto uma audiência pública em
São Pedro ou uma visita papal a Washington.
— Mas pode ser muito mais importante para você — disse Hennessy,
irritado. — Pearson é uma raposa astuta. Ele o convida ao Carlton Club,
o baluarte da política conservadora. Indica-o como orador em

301
substituição ao Primeiro-Ministro, num dos três mais importantes
jantares políticos do ano. Isso é o mais perto que jamais chegará da
canonização pelos ingleses. Se fizer um bom discurso... e se não cair de
porre nem jogar ossos de galinha no presidente... estará feito! Pode
pegar um telefone e falar a qualquer momento com qualquer pessoa de
Whitehall ou Westminster... e não será tão vulnerável quanto está
agora! Vai espalhar-se a notícia por todas as chancelarias de que você é
na Inglaterra uma espécie protegida. Isso terá um efeito imediato na
França. Afinal, tudo o que acontece no Carlton Club é estudado com o
maior cuidado è atenção no outro lado do Canal da Mancha. Petrov
também tomará conhecimento, assim como os americanos. Os sócios
do Carlton levam os convidados que desejam educar.
— Hennessy, meu amigo, se alguma vez eu for reeleito, você será
meu Cardeal Camerlengo!
— Não aceitarei o cargo, se não alterar as regras sobre o celibato. Eu
me daria muito bem na Renascença, mas não atualmente... O que me
lembra de uma coisa: o que pretende vestir no jantar no Carlton Club?
A indagação pegou Jean Marie de surpresa.
— O que vou usar?
— Exatamente. Todos os outros presentes estarão vestidos a rigor.
Como vai apresentar-se... como clérigo ou como leigo? Se for como
clérigo, usará qualquer sinal de categoria? Como meias vermelhas ou
cruz peitoral? Se for como leigo, certamente não pode alugar algum
traje a rigor. Vejo que está rindo, Monsenhor. Mas a questão é muito
importante. O protocolo francês é claro e objetivo, sempre se sabe
quem é quem, na ordem mais absoluta. Mas os ingleses fazem as coisas
de maneira diferente. Pode ser elegante e desprezado, esfarrapado e
admirado, excêntrico e respeitado. Se você é um gênio, pode até usar o
corte do ano passado na lapela. Estarão observando-o como um gavião,
para verificar como se desempenha em traje de drama! — Ele acelerou
para ultrapassar uma imensa carreta. — O destino nas nações
dependendo do corte do seu smoking!
— Então vamos dispensar-lhe a atenção que parece! — disse Jean
Marie Barette jovialmente. — Pode arrumar-me um bom alfaiate
italiano? Preciso de alguém que tenha noção de teatro.
— Vou providenciar o melhor que existe, Ângelo Vittucci —
respondeu Hennessy. — Ele é capaz de fazer com que um gordo Baco
fique parecendo Mercúrio de roupa justa. Eu o levarei até lá amanhã.
Quer saber de uma coisa, Monsenhor? — Ele fez uma pausa, enquanto
acelerava o carro. — Estou começando a gostar muito de você! Para um
homem de Deus, possui um senso de humor dos mais temporais!

302
— Deve lembrar-se do que Pascal disse: "Diseur de bons mots, mau-
vais caractere!"
— Por quê? — Indagou Hennessy, com a maior solenidade. — Por
que o mau-caráter é uma boa companhia?
— Somos como a mostarda na carne! — disse Jean Marie, sorrindo.
— Seria um mundo insípido se nada precisasse ser consertado e
ninguém precisasse ser salvo! Ambos estaríamos desempregados!
— Se me permite a liberdade, você é que está desempregado! —
Hennessy tinha agora a estrada livre à sua frente e estava pronto para
divertir-se. — Eu estou tentando empregá-lo, numa boa situação...
Recoste-se agora e escute novamente a canção. Estou absolutamente
convencido de que pode ser um tremendo sucesso!
Ele meteu um cassete no aparelho e um momento depois os dois
ouviam a canção-tema de Florent de Basil para Johnny, o Bufão. A
gravação apresentava diversos tratamentos da canção, resistindo
solidamente em todos. As palavras eram simples, o ritmo atraente. Mas
a melodia possuía uma estranha qualidade plangente que atingia o
coração:

'' Imensas botinas, roupas folgadas,


Rosto pintado, nariz postiço,
Esse é Johnny, o Bufão.
Johnny, Johnny, empurrado e humilhado,
Johnny, Johnny, surrado e desprezado,
Johnny chutado, Johnny cuspido,
Johnny perseguido, Johnny expulso,
Quem diz obrigado por todo o riso,
Quem lhe dá abraços e beijos depois?
Johnny, você também é solitário?

Sorriso cômico, olhos esbugalhados,


Quem sabe se ele ri ou chora?
É apenas Johnny... Johnny, o Bufão!"

Quando a canção terminou, Hennessy desligou o gravador e


perguntou:
— E então, o que achou desta vez?
— Continuo a achar maravilhosa — respondeu Jean Marie. — E
também obsedante. Como pretende aproveitá-la?
— Estamos neste momento discutindo um contrato com uma grande

303
companhia gravadora. Eles farão uma produção especial com um dos
seus astros, pouco antes de o livro ser publicado. E depois, se o meu
palpite for certo, a canção será aproveitada por outros cantores e se
transformará no maior sucesso. Isso nos proporcionará um vínculo
auditivo imediato com a publicidade visual do livro.
— Nosso jovem amigo Florent possui um grande talento. Talvez, em
vez de eu fazer um discurso no Carlton Club, devêssemos mandá-lo
cantar para os homens.
Hennessy advertiu-o:
— A primeira lição no show business: jamais recuse um bom
convite. Pode não ser formulado novamente!

Dois dias depois, alertado pelo telefone para a mudança na situação


de Jean Marie, o irmão Alain chegou a Londres. Como sempre, estava
cheio de solicitudes irrelevantes. O hotel de Jean não era um pouco
modesto demais? Ele não deveria receber alguns representantes da
antiga nobreza católica, como os Howard de Arundel e Norfolk? Se
fosse possível dar um jeito para que o Embaixador francês fosse
convidado ao Carlton Club, o clima em Paris mudaria imediatamente.
Jean Marie escutou pacientemente e concordou em estudar todos
esses problemas da maior importância. Ele lamentou saber que Odette
fora acometida por uma gripe, ficou deliciado ao ser informado de que
uma das sobrinhas anunciaria em breve o seu noivado e que a outra
estava namorando firme um rapaz de excelentes perspectivas, que
trabalhava no Ministério da Defesa. Foi somente quando já estavam na
metade do jantar no Sophie's, um pequeno restaurante num beco sem
saída perto da Sloane Street, que Alain passou a discorrer livremente
sobre suas preocupações pessoais:
— Os mercados financeiros enlouqueceram inteiramente, Jean. Há
uma montanha de ouro nos cofres suíços e o preço disparou pelo teto
afora. Estamos cobrindo transações de mercadorias no mundo inteiro,
abrangendo metais de base, metais raros, óleos minerais, óleos vegetais,
açúcar de beterraba, açúcar de cana, madeira, carvão de coque... Não há
navios suficientes para transportar todas as mercadorias. Assim,
estamos usando banheiras velhas há muitos anos enferrujadas. As
companhias seguradoras estão cobrando prêmios absurdos para segurar
os navios e as cargas. Mesmo assim, como se pode efetuar os
pagamentos, com todas as moedas variando em 10 por cento
diariamente? ... Deus não deveria ouvir as minhas palavras, Jean, mas
bem que estamos precisando de uma guerra, só para acabar com todo
esse absurdo.

304
— Não tenha medo, irmãozinho! — Jean Marie estava num inverno
de tristeza. — Vamos ter mesmo uma guerra. Paris será um alvo de
prioridade. Já pensou no que vai fazer com Odette e as meninas?
Alain ficou chocado com a pergunta.
— Nada! Continuaremos a levar nossas vidas normalmente!
— Bravo! — exclamou Jean Marie. — Tenho certeza de que vão
terminar de corações puros e mentes vazias, ainda acreditando que a
explosão que os atingiu não passava do ar quente de um secador de
cabelos. Saia de Paris, pelo amor de Deus, mesmo que tenha de alugar
uma cabana na Haute Savoie!
Alain era a própria imagem da dignidade afrontada.
— Não podemos todos nos deixar dominar pelo pânico!
Mais uma vez, Jean Marie teve de censurar a si mesmo pela antiga
rivalidade fraternal.
— Sei disso! Mas acontece que o amo, meu irmão! E estou
preocupado com você e sua família!
— Então deve compreender onde se situam nossas preocupações.
Odette e eu tivemos anos terríveis. Em determinada ocasião pensamos
até, seriamente, em nos separar.
— Eu não soube disso.
— Cuidei para que não soubesse! De algum jeito, conseguimos
superar. Estamos firmes agora. As meninas estão mais velhas e
encontraram rapazes decentes. Isso é uma satisfação, se não mesmo um
triunfo. Assim, para Odette e para mim, não há qualquer interesse em
levar uma vida de refugiados nas montanhas. Preferimos desfrutar o
que temos e correr os nossos riscos, junto com o resto de Paris.
Jean Marie deu de ombros e acenou com a cabeça em concordância.
— Faz sentido. Eu não deveria tentar aconselhar aos outros o que
devem fazer com suas vidas.
— Pois acho que deveria interessar-se pela vida de Roberta.
Alain falou de maneira tão categórica que Jean Marie ficou surpreso.
— Que espécie de interesse?
— Compaixão, para começar. O pai dela morreu há três dias, na
prisão.
— Eu não sabia. Por que ninguém me disse?
— Eu também não sabia, até duas horas antes de deixar Paris. E não
quis jogar-lhe a notícia de cara, no instante em que cheguei. O pior de
tudo é o fato de que ele foi assassinado, apunhalado por outro preso. A
convicção geral é de que o crime foi organizado fora da prisão,
provavelmente por cúmplices na fraude bancária.

305
— Santo Deus! ... Como ela está suportando o golpe?
— Muito mal, segundo sua assistente. Roberta baseava tudo no fato
de estar pagando as dívidas do pai, dando-lhe assim a oportunidade de
levar uma vida honrada depois que saísse da prisão. Acho que deveria
telefonar para ela, persuadindo-a, se fosse possível, a vir passar alguns
dias em Londres.
— Não acho que seja apropriado.
— Ao diabo com o que seja ou não apropriado! — Alain estava
furioso. — Você deve isso a Roberta! Ela o abrigou em sua casa, está
financiando o projeto com seu próprio dinheiro. Ela adora o chão em
que você pisa! ... Se não puder ajudá-la agora, enxugar as suas lágrimas
e bancar o mentor bondoso por alguns dias, então francamente, irmão
Jean, não passa de um embusteiro! Já o ouvi dizer uma centena de
vezes que a caridade não é coletiva. É você e eu... de pessoa para
pessoa! E se está preocupado com a possibilidade de algum escândalo
sexual, aos 65 anos de idade, então tudo o que posso dizer é que é mais
afortunado do que eu!
Jean Marie fitou-o com a boca entreaberta por um momento, numa
incredulidade total. Depois, sem dizer uma só palavra, levantou-se e foi
até o caixa. Pôs uma nota de 10 libras no balcão e perguntou se poderia
dar um telefonema urgente para Paris. Poucos momentos depois, o
criado de Roberta Saracini atendeu. Ele lamentava muito, mas Madame
estava indisposta e não atendia a quaisquer ligações.
— Aqui é Monsieur Grégoire. Estou ligando de Londres. Pode pedir-
lhe que fale comigo?
Houve um silêncio prolongado e sombrio, até que Roberta Saracini
finalmente atendeu. O cumprimento dela foi frio e distante. Jean Marie
disse:
— Alain está comigo. Acaba de me dar a notícia de seu pai... Seu
telefone pode estar sendo interceptado, mas não me importo. Sei como
deve estar se sentindo. Quero que venha para Londres. ... Imediatamente!
Esta noite, se puder. Vou reservar-lhe um quarto no meu hotel. ... Isso
mesmo, o endereço que Hennessy lhe deu. ... Não, não concordo! Este
não é o momento para ficar sozinha. E pelo menos comigo não precisará
dar explicações. ... Ótimo! Estarei à sua espera! ...A tou à l'heure!
Jean Marie desligou e depois telefonou para o seu hotel, a fim de
reservar um quarto. O caixa deu-lhe o troco. Ele voltou à mesa e
respondeu à pergunta não formulada de Alain:
— Ela virá esta noite. Já lhe reservei um quarto em meu hotel.
— Ótimo! — disse Alain bruscamente. — E não perca muito tempo
com as condolências. Mostre-lhe a cidade. Ela adora cinema. E parece

306
que há boas peças em cartaz em Londres neste momento...
— Por que não me deixa planejar o roteiro, irmão?
Alain Barette pareceu transformar-se de repente num homem
espirituoso. Ergueu o copo, numa saudação irônica.
— O problema é que você não está acostumado a andar sozinho, não
é mesmo?
Jean Marie desatou a rir.
— Nós dois temos muito o que aprender um com o outro!
— E não dispomos de muito tempo para isso. — Alain estava outra
vez soturno. — Tenho outra coisa para lhe dizer. Petrov foi procurar-
me. Quer conversar com você. Respondi que você deixara o país e
qualquer encontro teria de ser além das fronteiras. Ofereci-me para
levar uma mensagem. Ele me pediu que lhe transmitisse o seguinte: o
projeto de sua visita a Moscou está sendo estudado no mais alto nível.
Até agora, as reações são favoráveis. Assim que houver uma decisão,
ele entrará em contato comigo e lhe transmitirei o recado.
— Como ele está?
— Bastante abalado. Está sob uma tensão terrível.
— Fico imaginando por quanto tempo mais ele conseguirá agüentar
— comentou Jean Marie, pensativo. — Quando voltar, providencie
outro encontro pessoal com Petrov. Diga-lhe que recebi um convite
para falar no Carlton Club. Explique que isso me pode proporcionar
uma oportunidade de discutir o problema do embargo dos cereais com
pessoas em posições de influência. E essas pessoas pelo menos me
informarão se é possível reabrir o diálogo... Petrov conseguiu alguma
coisa com Duhamel?
— Ele acha que Duhamel pode dar um jeito de desviar um embarque
canadense de cerca de um quarto de milhão de alqueires de trigo,
originariamente destinados à França. Mas isso é uma gota d'água no
oceano e o navio ainda está no meio do Atlântico. Talvez seja apenas
uma tática protelatória. Duhamel é um mestre nesse jogo.
— Você falou com Duhamel?
— Rapidamente, apenas para informá-lo de que estava vindo visitá-
lo. Ele me deu uma mensagem para entregar-lhe.
Alain estendeu um envelope por cima da mesa. Jean Marie abriu-o. A
mensagem estava escrita com a letra impaciente de Duhamel:

"Meu amigo:

A cada dia que passa estamos mais perto do Rubicão. Nossos planos
para o dia da travessia permanecem inalterados, muito embora a

307
remissão de Paulette continue e possamos desfrutar mais um ao outro.
Somos gratos por esse privilégio, além do que posso exprimir com
palavras. Não podemos, no entanto, aceitar como um suborno para um
ato de submissão, que ainda não estamos preparados para fazer.
Você ainda está relacionado como sujeito a vigilância total na
França. Os americanos também estão interessados em você. Recebemos
pedidos de informações de um agente da CIA chamado Alvin Dolman.
Ele viajou na semana passada para o Reino Unido. Apresenta-se como
assistente pessoal do ex-Secretário de Estado Morrow, que agora
trabalha para o Morgan Guaranty.
Pedi a um amigo meu, do serviço de informações britânico, que
fizesse uma investigação sobre Dolman, pois desconfio de que ele pode
ser um agente duplo. Sabemos que ele não é, mas isso ajuda a confundir
as coisas.
Paulette manda-lhe todo o seu amor. Tome cuidado.
Pierre"

Jean Marie dobrou o bilhete e guardou-o no bolsinho do paletó. Alain


observava-o com olhos sombrios e pensativos.
— Más notícias?
— Infelizmente, sim. O homem que tentou matar Mendelius está em
Londres. É um agente da CIA chamado Dolman. Colocaram-no como
assistente de Morrow, do Morgan Guaranty.
— Vou entrar em contato com o Morgan Guaranty e passar-lhes essa
informação.
Alain anunciou-o com tanta pomposidade que parecia uma fala de
uma comédia medíocre. Jean Marie constatou, com alguma surpresa,
que seu irmão Alain estava começando a ficar embriagado. E
comentou, com uma risada:
— Falando francamente, meu irmão, eis uma providência que não
recomendo.
A sensibilidade de Alain estava afrontada.
— Não quero descobrir-me sentado ao lado de um assassino numa
reunião de banqueiros.
— Eu lhe pergunto quantas vezes isso já não aconteceu, sem que
você de nada suspeitasse.
— Touché!
Alain aceitou o argumento com uma saudação e depois fez sinal ao
garçom para que trouxesse mais vinho. E perguntou em seguida:

308
— O que pretende fazer com esse tal de Dolman, Jean?
— Contarei a Hennessy e Waldo Pearson que ele está em Londres... e
depois tratarei de esquecê-lo.
— Na esperança de que um ou outro lhe proporcione alguma
proteção... ou afaste Dolman de cena.
— De certa forma, é isso mesmo.
— Assim, quando ele for encontrado morto em seus aposentos ou
atropelado por um automóvel, quanto lhe corresponderá da culpa? Ou
vai virar-se como Pilatos e lavar as mãos?
— Está sendo muito duro esta noite.
— Estou apenas tentando descobrir como você realmente é. Afinal,
não passamos muito tempo juntos nesses últimos 30 anos.
Jean Marie ficou novamente surpreso. O irmão Alain podia tornar-se
sentimental e sombrio quando bebia.
— Sempre esteve por cima, Jean... como padre, bispo, cardeal e
papa! Mesmo agora, as pessoas ainda o tratam com toda deferência,
pelo que já foi. Isso está sempre acontecendo no meu campo de
atividades. Um príncipe vagabundo, que nunca trabalhou um dia sequer
em toda a sua vida, recebe um tratamento melhor do que um
comerciante vitorioso, com meio milhão de francos em sua conta.
Alain estava tendo agora alguma dificuldade em falar, engrolando as
palavras:
— O que estou querendo dizer é que a coisa funciona como o culto
dos ancestrais. O tataravô foi o sábio, só que ele está morto agora. Mas
você não está morto... e vive pronunciando-se em relação a uma porção
de coisas que realmente não entende.
— Pois vou fazer um pronunciamento sobre você, meu caro irmão.
T'es soül comme une grive! Vou levá-lo de volta a seu hotel.
Alain estava quase caindo enquanto Jean Marie pagava a conta e
levava-o para fora. Percorreram dois quarteirões antes que Alain fosse
finalmente capaz de movimentar os pés quase normalmente. De volta
ao hotel, Jean Marie ajudou-o a subir para o quarto, despiu-o, deixando-
o apenas de cueca, meteu-o na cama, cobrindo com a colcha. Alain
submeteu-se a tudo sem nada dizer. Mas quando Jean Marie já estava
prestes a se retirar, ele abriu os olhos e disse, abruptamente:
— Estou de porre; portanto, existo. A única ocasião em que posso
provar isso é quando estou longe de Odette. Não acha bastante curioso,
Jean?
— Curioso demais para se conversar à meia-noite. Trate de dormir.
Conversaremos pela manhã...

309
— Só mais uma coisa...
— O que é?
— Você precisa compreender o problema de Roberta.
— Eu compreendo.
— Não, não compreende. Ela precisava acreditar que o pai era
alguma espécie de santo, pagando pelos pecados de outros. Mas a
verdade é que ele era um tremendo filho da puta. Nunca pensou em
qualquer outra pessoa que não fosse ele mesmo. Arruinou muita gente.
Não deixe que ele também, de sua sepultura, arruíne Roberta, Jean.
— Não vou deixar. Boa-noite, irmãozinho. Você terá uma linda
ressaca pela manhã.
Jean Marie saiu do quarto silenciosamente e desceu a escada a fim de
esperar por Roberta Saracini.

A aparência dela deixou-o chocado. Estava com a pele ressequida e


opaca. Os olhos estavam vermelhos, as feições contraídas. Seus
movimentos eram bruscos, a fala apressada e volúvel, como se o
silêncio fosse uma armadilha a ser evitada a qualquer custo.
Jean Marie reservara uma pequena suíte para ela, em seu próprio
andar. Ele pediu café para dois e ficou esperando na sala que Roberta se
arrumasse, depois da viagem. Ela voltou com um novo fluxo de
conversa:
— Você tinha toda razão, é claro. É uma loucura ficar trancada
naquela casa imensa. É espantoso o número de pessoas que aproveitam
esses vôos da madrugada. Onde está Alain? Por quanto tempo ele
tenciona permanecer em Londres? Ele está profundamente preocupado,
como todos nós, com as flutuações nos mercados cambiais. Imagino
que ele já lhe contou que...
— Ele me contou que você está numa profunda angústia — disse
Jean Marie solenemente. — E posso constatar agora que é verdade. Eu
gostaria de ajudar. Pode deixar-me ajudá-la, por favor?
— Meu pai está morto... assassinado! Não pode mudar isso. Ninguém
pode. Já me acostumei à idéia. E isso é tudo!
Roberta falou em tom de desafio, como se repelisse de antemão
qualquer compaixão dele. Ela estava tensa como uma corda de violino,
pronta para romper ao primeiro contato do arco. Jean Marie serviu café
e entregou-lhe uma xícara. Pôs-se a falar gentilmente, afastando-a do
estado de quase histeria:
— Senti-me profundamente grato quando você concordou em vir.
Disse que estava disposta a confiar em mim. Deu-me a oportunidade de

310
manifestar meus agradecimentos pelo que está fazendo e também
partilhar com você algumas coisas emocionantes... os últimos estágios
das Cartas, o discurso que vou fazer no Carlton Club, os novos amigos
que fiz em Londres... Quero ir à Tate e à Academia Real, visitar a Torre
de Londres, o palácio do Cardeal Wolsey em Hampton Court e muitos
outros lugares. Faremos tudo isso juntos...
Roberta lançou-lhe um olhar estranho, cauteloso.
— Você está falando como se eu fosse uma garotinha. Mas acontece
que não sou. Sou uma mulher adulta, cujo pai acaba de ser mortalmente
apunhalado no corredor de uma prisão. Isso me torna uma péssima
companhia.
— Está sentindo-se magoada e solitária — disse Jean Marie,
firmemente. — Não tenho muita prática com as mulheres e
provavelmente vou escolher o caminho errado. Não estou querendo
afagar-lhe a cabeça, como um bispo, nem conceder-lhe uma bênção
papal... o que, de qualquer forma, não tenho o direito de fazer. Estou
oferecendo-lhe apenas um braço para segurar quando atravessar a rua e
ombro para encostar a cabeça e chorar, quando sentir vontade.
— Não derramei uma lágrima sequer desde que recebi a notícia —
disse Roberta Saracini. — Isso me transforma numa filha desnaturada?
— Claro que não.
— Mas estou contente que ele esteja morto! E espero que esteja
ardendo no inferno!
— Porque já o julgou — disse Jean Marie, com uma autoridade
incisiva. — E não tem o direito de fazer isso! Quanto a arder no
inferno, é um problema que sempre me incomodou, como uma
pedrinha no sapato. Leio algumas vezes nos jornais sobre pais que
maltratam os filhos pequenos, quebrando-lhes os ossos, queimando-os
em fogões, por algumas travessuras, reais ou imaginárias. Nunca fui
capaz de imaginar que Deus, nosso Pai, ou seu Filho tão humano
pudessem condenar seus filhos a arder no fogo eterno. Se seu pai
estivesse aqui neste momento para ser julgado e o destino dele se
encontrasse em suas mãos, o que haveria de decidir?
Roberta Saracini nada disse. Continuou sentada, de lábios contraídos,
olhos abaixados, as mãos cruzadas para evitar que tremessem. Jean
Marie insistiu:
— Pense nos piores crimes que já foram cometidos... os massacres do
Holocausto, os genocídios no Camboja e no Brasil... Podem algum dia
serem expiados, mesmo por uma infinidade de terrores similares? Não,
não podem. As prisões deste mundo e do outro não dariam para
acomodar todos os malfeitores. Estou convencido... e só divisei meros

311
vislumbres do que vai ser... que o Advento Final e o próprio Juízo Final
devem ser atos de amor. Se não forem, então habitamos um caos criado
por um espírito louco e será melhor que sejamos libertados o mais cedo
possível deste mundo para o nada.
Mesmo depois dessas palavras, Roberta continuou em silêncio. Jean
Marie foi sentar-se no chão ao lado dela. Pegou-lhe a mão e apertou-a
firmemente entre as palmas.
— Não tem dormido muito bem, não é mesmo?
— Não, não tenho.
— Deveria ir deitar-se agora. Voltaremos a nos encontrar ao café da
manhã e iniciaremos as nossas férias imediatamente depois.
— Não tenho certeza se quero ficar.
— Poderia dizer uma pequena prece comigo?
— Tentarei.
A resposta foi em voz baixa e trêmula. Jean Marie concentrou-se por
um momento e depois, ainda segurando a mão de Roberta, entoou a
prece dos mortos:

— "Deus, nosso Pai,


Cremos que seu Filho morreu e subiu à vida.
Oramos por nosso irmão Vittorio Malavolti,
Que morreu em Cristo.
Leve-o finalmente
A partilhar a glória do Cristo Ressuscitado.
Dê-lhe o repouso eterno, ó Senhor,
Deixe que a luz perpétua brilhe sobre ele."

— Amém — disse Roberta Saracini, começando a chorar, baixinho,


as lágrimas salvadoras a lhe escorrerem pelo rosto.
Eles bancaram os turistas pelos próximos cinco dias, deleitando-se
com os prazeres mais simples de Londres. Passearam pelo Serpentine,
assistiram à mudança de guarda no Palácio de Buckingham, passaram
uma manhã na Tate, uma tarde no Museu Britânico, uma noite
escutando um concerto de Beethoven no Albert Hall. Fizeram uma
excursão pelo rio até Greenwich e outra a Hampton Court. Foram ver as
vitrines em Bond Street, passaram uma manhã com Ângelo Vittucci,
que prometeu aprontar para Jean Marie um traje "tão discreto que um
querubim não ficará escandalizado, ao mesmo tempo tão impecável que
vai pensar que criou uma nova pele!''
Roberta Saracini mostrou-se inicialmente desesperadamente instável,
feliz num momento, para mergulhar no instante seguinte na mais

312
profunda depressão. Jean Marie aprendeu rapidamente que a conversa
lógica não surtia qualquer efeito nela, que a gentileza, distração e uma
censura brusca ocasional eram os melhores remédios. Também fez
descobertas a respeito de si mesmo: o quanto se distanciara da Colina
do Vaticano, quantas pequenas alegrias havia perdido quando era o
pastor perplexo de um rebanho anônimo. As Cartas, nas quais
trabalhava até tarde da noite, foram tornando-se cada vez mais
pungentes, à medida que cada dia arcadiano tornava o tempo, a ternura
e as lágrimas mais preciosos.
Roberta decidira que ficaria até o final da semana, deixando Londres
ao final da noite de domingo, a fim de poder estar no banco para
trabalhar na manhã de segunda-feira. A previsão prometia tempo bom...
uma breve extensão do chamado veranico, antes que houvesse a
primeira geada. Roberta sugeriu um piquenique. Alugaria um carro,
poria a bagagem na mala. Poderiam passar o dia inteiro no campo. Jean
Marie a deixaria no aeroporto, na volta a Londres. Ficou tudo
combinado.
Na manhã de domingo, bem cedo, Jean Marie celebrou a missa numa
capela lateral da Igreja Oratório, onde o sacristão o conhecia
simplesmente como Père Grégoire, um idoso sacerdote francês que
usava uma boina e parecia com um coelho benevolente. Depois, com
Roberta ao volante e uma cesta de piquenique preparada pelo hotel,
partiram para Oxford, Woodstock e a região rural de Cotswold, mais
além.
Ainda era cedo e o tráfego do domingo não atingira seu ponto
máximo. Puderam deixar a estrada principal e passar por pequenas
aldeias, ainda sonolentas, mal começando a despertar, atravessando
campos ondulados, com os derradeiros restolhos ou escuros após a
abertura dos primeiros sulcos. Encontravam um profundo prazer em
pequenas coisas, como a faixa de neblina que contornava uma colina,
a torre cinzenta de uma igreja normanda, um pequeno povoado num
trecho improvável do caminho, uma macieira à beira da estrada,
carregada de frutas vermelhas e maduras, à disposição de quem
passasse, uma menina empoleirada num antigo marco da estrada,
acalentando uma boneca.
De certa forma, era mais fácil conversar enquanto estavam viajando,
pois assim não precisavam olhar um para o outro. E havia sempre uma
distração para abreviar os silêncios constrangedores.
Roberta Saracini tocou no braço de Jean Marie e comentou:
— Estou sentindo-me muito melhor do que na ocasião em que
cheguei. As coisas fazem mais sentido agora. Posso enfrentá-las com

313
mais disposição. Devo agradecer-lhe por isso.
— Sua presença também foi maravilhosa para mim.
— Não sei como, mas de qualquer forma fico contente por ouvi-lo
dizer isso.
— Como se sente agora em relação a seu pai?
— Não tenho certeza. Ainda é tudo uma triste confusão. Mas já tenho
certeza de que não o odeio.
— O que a reprime? — Jean Marie espicaçou-a firmemente. — Você
o ama. Não importa o que ele foi ou o que fez, pagou o seu preço... e
também lhe proporcionou o suficiente para começar a sua própria vida.
Vamos, diga que o ama!
— Eu o amo.
Roberta resignou-se à idéia com um sorriso e um suspiro, que podia
ter sido de alívio ou de pesar. E depois de pensar um pouco,
acrescentou:
— Eu também o amo, Monsieur Grégoire.
— E eu a amo — disse Jean Marie, gentilmente. — Isso é bom. E é
tudo o que importa. "Meus filhos, amai-vos uns aos outros."
— Espero que não tenha precisado do mandamento para isso.
— Ao contrário — respondeu Jean Marie, deixando o resto por dizer.
— Como se sente em relação às mulheres... não necessariamente a
mim em particular? Afinal, foi celibatário durante toda a vida...
— Tenho muita prática. — Jean Marie era suave, mas firme. — E
parte dessa prática consiste em não flertar e não se empenhar em jogos
perigosos. Mais importante ainda, nunca se dizem mentiras a si mesmo.
Eu me sinto da mesma forma que qualquer outro homem diante de uma
mulher atraente. Tenho me sentido feliz em sua companhia e lisonjeado
por tê-la ao meu lado. Poderia haver mais. Mas não haverá, exatamente
porque a amo. Seguimos por caminhos separados. E nos encontramos
com o maior prazer nas encruzilhadas. Ao nos separarmos, estamos
ambos um pouco mais ricos.
— É um sermão e tanto, Monsenhor — comentou Roberta Saracini.
— Gostaria de poder acreditar pelo menos na metade.
Jean Marie fitou-a. Ela estava guiando firmemente, os olhos fixados
na estrada à sua frente. Abruptamente, Roberta virou a cabeça para
olhá-lo e perguntou:
— Por que se tornou padre?
— É uma história comprida.
— Temos o dia inteiro.
— Bom... — Jean Marie estava retraído e relutante. — A única

314
pessoa a quem já contei isso foi a meu confessor. Ainda é um assunto
doloroso.
— Foi falta de tato da minha parte perguntar. Desculpe-me.
Percorreram o próximo quilômetro em silêncio. Depois, sem que
houvesse qualquer estímulo adicional, Jean Marie pôs-se a falar,
lentamente, pensativo, como se estivesse ajuntando mentalmente os
pedaços de um quebra-cabeça:
— Quando ingressei nos Maquis, eu ainda era muito jovem... mal
chegara à idade militar. Não era religioso. Havia sido batizado, fizera a
comunhão e a crisma na Igreja. Mas tudo parara por aí. Havia uma
guerra e a vida era uma coisa precária, tinha-se de sobreviver conforme
fosse possível. Com os Maquis, tornei-me um homem da noite para o
dia. Portava um rifle, uma pistola e um punhal. Ao contrário dos mais
velhos, que de vez em quando se esgueiravam para a cidade, eu era
obrigado a permanecer nas montanhas e nos campos, pois se fosse
apanhado em alguma batida na cidade seria imediatamente despachado
para trabalhos forçados na Alemanha. À noite, realizava missões de
mensageiro, porque era jovem e podia deslocar-me rapidamente, correr
mais do que as patrulhas alemãs incumbidas de vigiar o toque de
recolher... Antes, eu tivera namoradas e alguma experiência de sexo...
apenas o suficiente para fazer-me querer mais. Agora, estava sem uma
mulher e meus companheiros zombavam de mim, como os homens
mais velhos geralmente fazem, chamando-me de pequeno virgem e
menino do coro... Eram zombarias banais, um tanto obscenas e
inofensivas, mas eram terríveis para um rapaz que sabia que poderia
nunca viver o suficiente para desfrutar toda a sua virilidade...
"Uma das minhas rotas regulares de mensageiro — continuou —
levava-me a uma fazenda perto de uma estrada. Todos os movimentos
de tropas na área tinham de ser efetuados por ali. Assim, a mulher do
fazendeiro mantinha uma lista das tropas que passavam, que
recolhíamos a cada três dias, transmitindo aos serviços de informação
dos Aliados. Eu nunca ia até a casa. Havia uma cabana de pastor e um
cercado de ovelhas cerca de um quilômetro da casa, no alto de uma
colina. Eu ficava ali, amarrando um pedaço de pano numa árvore nova,
como sinal. Depois do anoitecer, a mulher ia até lá, levando a relação
dos movimentos de tropas e comida para mim e para os demais homens
nas montanhas. O nome dela era Adèle, tinha 30 e poucos anos, sem
filhos. O marido estava desaparecido desde os primeiros dias da
Blitzkrieg... Cuidava da fazenda com a ajuda de dois velhos e duas
moças robustas de famílias que viviam nas proximidades. Cheguei

315
tarde naquele dia em particular. Estava apavorado, profundamente
abalado. Havia diversas patrulhas alemãs percorrendo a região e por
duas vezes eu quase fora apanhado. Para agravar ainda mais a situação,
ferira a perna em arame farpado e estava com medo de tétano. Adèle
apareceu um hora depois do pôr-do-sol. Nunca me sentira tão contente
por ver alguém, em toda a minha vida. Ela também tivera um dia
horrível, com nada menos de três batidas na fazenda, os soldados
alemães revirando tudo. Ela limpou meu ferimento com vinho e
enfaixou-o com tiras da anágua. Depois, tomamos o resto do vinho e
comemos, mais tarde fizemos amor na enxerga de palha...
"Lembro-me disso — prosseguiu — como a experiência mais
maravilhosa da minha vida... uma mulher madura e ardente e um rapaz
assustado, numa única hora de êxtase, num mundo povoado por
monstros. Depois disso, sempre que falei no amor de Deus pelo
homem, do homem por Deus e da mulher pelo homem, foi à luz
daquela hora. De coadjutor a Papa, sempre lembrei-me de Adèle todas
as manhãs, em minha missa. Sempre que me sentei no confessionário e
ouvi pessoas tristes falarem dos pecados em suas vidas amorosas,
lembrei-me dela e tentei oferecer a meus penitentes a dádiva de saber o
que ela me deu.
Jean Marie calou-se. Roberta entrou com o carro num refúgio à beira
da estrada, do qual se podia contemplar uma paisagem interminável de
campos ondulantes, cortados por muros de pedra antigos. Ela baixou a
janela e ficou olhando para a paisagem serena. E perguntou, sem se
atrever a olhar para Jean Marie, com uma humildade singular:
— Quer me contar o resto? Onde está Adèle agora?
— Morta. Ela me deixou pouco antes da meia-noite. Encontrou
novamente os alemães em sua casa, ao chegar. Estavam embriagados
com o vinho dela. Estupraram-na e pregaram-na na mesa com um facão
de cozinha... Foi assim que a encontrei quando, ansioso em renovar a
noite de amor, violei todas as regras e desci furtivamente a colina à sua
procura, às seis horas da manhã. Foi nesse dia que decidi que tinha uma
dívida a pagar. Mais tarde, muito mais tarde, cheguei à conclusão de
que o exercício do sacerdócio era a melhor forma de pagar a dívida. A
paixão de Cristo tornou-se profundamente real para mim, como um
drama de brutalidade, amor, morte e vida outra vez. Jamais me
arrependi da decisão. E também não me arrependi, apesar do horror que
se seguiu, do momento maravilhoso que Adèle e eu partilhamos. Meu
confessor, que era um homem sábio e gentil, ajudou-me bastante. Ele
disse: "O verdadeiro pecado é estar insuficientemente apaixonado. Dar

316
demais é uma falta que pode ser facilmente perdoada. O que você sabia,
sua Adèle também sabia... que vocês partilharam um momento de
estranha graça. E tenho certeza de que ela se lembrou disso, ao final."...
Olhe para mim, Roberta!
Ela sacudiu a cabeça. Estava sentada, com o queixo apoiado na mão,
olhando fixamente para os campos banhados pelo sol. Jean Marie
estendeu a mão e fê-la virar em sua direção o rosto pelo qual as
lágrimas escorriam. Os olhos dele estavam ternos, a voz repleta de
compaixão, ao admoestá-la, gentilmente.
— Sou velho o bastante para ser seu pai... e assim pode adotar-me
como uma espécie de mentor, se quiser. Quanto ao resto, lembre-se do
que falei no início. On ne badine pas avec 1'amour. Não se brinca com
o amor. É por demais maravilhoso e também por demais terrível!
Jean Marie entregou seu lenço para que ela enxugasse os olhos.
Roberta aceitou-o, mas formulou uma última e brusca pergunta:
— Depois de tudo isso, como é possível que um alemão, Carl
Mendelius, seja o seu melhor amigo?
— Como é possível que nós dois estejamos sentados aqui a
conversar, já que seu pai roubou milhões do Vaticano e foi morto num
corredor de prisão?... O maior equívoco que todos cometemos, ao longo
dos tempos, é tentar explicar os caminhos de Deus aos homens. Não
deveríamos fazer isso. Deveríamos simplesmente anunciá-lo. Ele
explica a si mesmo muito bem!

No dia anterior ao encontro no Carlton Club, Jean Marie foi entregar


o original definitivo de Últimas Cartas de um Pequeno Planeta, em
companhia de Adrian Hennessy. Colocou-o na mesa de Waldo Pearson
e disse:
— Aqui está. Bom ou mau, é um brado que sai do coração. Espero
que alguém o escute.
Waldo Pearson pegou o original, ficou em silêncio por um momento
e depois disse estar absolutamente convencido de que alguém escutaria.
Depois, entregou a Jean Marie a versão em inglês datilografada do
discurso que ele faria no Carlton Club.
Jean Marie perguntou:
— Qual é a sua opinião? Acha que faz sentido?
— Faz, sim... e um sentido assustador. E também maravilhoso. Mas
não sei dizer como a audiência o receberá.
— Eu li e adorei — comentou Aldrian Hennessy. — Mas estou
também apavorado. Ainda há tempo de fazer alterações, se você

317
concordar.
Ele olhou para Jean Marie, que acenou com a cabeça em
concordância.
— Sei que vou falar para muitas pessoas que não conheço, num
idioma que não é aquele em que fui criado. Seja franco comigo. Sou
seu convidado, em seu clube. Se estou ultrapassando os limites da
conveniência, deve dizer-me.
— Não há qualquer violação da paz ou das conveniências —
declarou Waldo Pearson. — Atenha-se ao texto.
— Haverá perguntas depois?
— É possível. Geralmente as permitimos.
— Pode fazer o favor de explicá-las bem para mim, antes que eu as
responda? Sou fluente em inglês, mas às vezes, em momentos de
tensão, penso em francês ou italiano.
— Pode deixar que cuidarei disso. Está havendo muito interesse por
sua presença.
—Tem uma relação dos que estarão presentes? — perguntou
Hennessy.
— Infelizmente, não. Quando se prevê um grande comparecimento
como acontecerá desta vez, os sócios devem decidir em votação quem
serão os convidados. Mas pude convidar o Embaixador soviético... e
Sergei Petrov, se ele por acaso estiver em Londres na ocasião. Se ele
aparecer, é um sinal de que ainda é politicamente viável. Também
convidei Morrow, a quem conheci quando ocupava um cargo
equivalente ao meu em Washington. Sugeri que ele poderia levar um
colega... o que lhe permitirá introduzir Dolman na reunião, se assim o
desejar. Quanto ao resto, a lista é impressiva, incluindo membros do
Gabinete, líderes industriais, barões da imprensa, diplomatas. Haverá
assim uma ampla amostragem de religiões, nacionalidades... e também
de moralidades.
Hennessy acrescentou um comentário irônico:
— Talvez o Espírito Santo lhe conceda o dom da eloqüência em
muitas línguas.
— Conversei algumas vezes com Mendelius sobre isso. — Jean
Marie aceitou o gracejo e tratou de desenvolvê-lo. — Ele dizia que era
provavelmente o menos útil de todos os talentos do Espírito. Se um
homem era um tolo numa língua, nunca se poderia torná-lo mais sábio
em 20 línguas!
Todos riram jovialmente. Waldo Pearson pegou uma garrafa de

318
champanha. Fizeram um brinde às Últimas Cartas de um Pequeno
Planeta e a um ex-Papa que estava prestes a ser jogado aos leões no
Carlton Club.

Jean Marie Barette apoiou-se na estante do orador e correu os olhos


pela audiência, que lotava o principal salão de jantar do Carlton Club.
Conhecera apenas alguns dos presentes, um grupo privilegiado que
Waldo Pearson convidara para um coquetel na sala do comitê. Jean
Marie descobrira que Waldo dominava o baluarte conservador com
mão de ferro. Ele não permitira que seu convidado mais exótico fosse
arrastado e esvaziado nos preâmbulos inócuos dos coquetéis. E
declarara-se extremamente satisfeito com a escolha do traje de Jean
Marie, um casaco preto abotoado até o pescoço, com uma exposição
mínima do colarinho clerical e do crucifixo de prata. O traje reforçava
as implicações das palavras iniciais de Jean Marie:
— Apresento-me aqui como um cidadão particular. Sou um clérigo
ordenado no ministério da Palavra na Igreja Católica Romana.
Contudo, não tenho uma missão canônica. Assim, o que vou dizer
nesta reunião constitui minha opinião pessoal e não deve ser
interpretado como um ensinamento da Igreja ou como uma declaração
de política do Vaticano.
Ele exibiu um sorriso e fez um gesto tipicamente francês, a fim de
atenuar a solenidade das palavras.
— Tenho certeza de que não vão precisar de quaisquer explicações
adicionais a respeito deste ponto. Todos os presentes são ligados à
política e... como é mesmo que costumam dizer em inglês?... uma
piscadela diz tanto quanto um aceno para uma mula cega.
Eles lhe deram um pequeno coro de risos para animá-lo... e também
para tentá-lo. Se fosse tolo o bastante para confiar naquela audiência,
não mereceria a atenção de ninguém na manhã seguinte. Mas as
palavras seguintes de Jean Marie arrancaram a todos de sua
complacência.
— Porque sou um homem, tenho experiência do medo, amor e morte.
E porque tenho sido, como vocês, um homem ligado à política,
compreendo o exercício do poder e também as suas limitações! Porque
sou um ministro da Palavra de Deus, sei que estou apregoando no
mercado uma insensatez e posso ser apedrejado por isso... Vocês
também, meus amigos, estão apregoando loucuras, insanidades
monstruosas... e todos corremos o risco de perecer por causa delas!
Houve um silêncio total no salão. Naquele momento, Jean Marie

319
mantinha-os quase que hipnotizados. Eles compreendiam a arte da
eloqüência. Sabiam que aquele homem era um mestre. Mas se seu
pensamento não estivesse à altura do talento de orador, iriam repudiá-lo
como um charlatão. Jean Marie aprofundou sua argumentação:
— A loucura de vocês é prometer uma possível perfeição nas coisas
dos homens... uma distribuição justa dos recursos, um acesso igual às
vias marítimas, aéreas e terrestres estratégicas, um mundo, em suma,
em que todos os problemas podem ser resolvidos por um mediador
honesto, um líder inspirado ou um aparelho partidário. Fazem a
promessa como um passo necessário para a conquista do poder. E
preferem ignorar que estão brincando com dinamite. Promovem
esperanças ilusórias. Despertam expectativas que não podem realizar. E
depois, quando percebem que o povo iludido está voltando-se contra
vocês.... presto!... surge uma nova solução: uma guerra de purificação.
De repente, não são mais aqueles que concedem as dádivas. São os
janízaros impondo as determinações do sultão. Se as pessoas não
quiserem obedecer, vão obrigá-las à força! Vão decepá-las, membro por
membro, como Procusto, até que caibam na cama de ferro em que se
vão contorcer no tormento. Mas acontece que as pessoas jamais hão de
caber na cama. A idade áurea que lhes prometeram jamais vai se
consumar... Vocês sabem disso! E já se resignaram, no mais terrível ato
de desespero! Chegaram até a calcular o custo: tantos milhões em Nova
York, Moscou e Tóquio, na China e na Europa. As conseqüências, o
deserto que será chamado de paz, eis algo que decidiram ignorar.
Afinal, quem restará para se importar com isso? Que os bandidos
dominem os sobreviventes! Que muitos milhões morram! Haverá uma
nova idade das trevas... uma nova Morte Negra. Em algum futuro muito
distante talvez haja uma renascença. Mas ninguém se importa com isso,
porque jamais veremos a maravilha de tal ocorrência.
"Pensam que estou exagerando? — prosseguiu. — Sabem muito bem
que não estou. Se o embargo de cereais não for suspenso, a União
Soviética ficará bem perto da inanição neste inverno... e seus Exércitos
marcharão ao primeiro degelo. Mesmo que tal não aconteça, qualquer
movimento de alguma potência na direção dos campos petrolíferos do
Oriente Médio ou do Extremo Oriente precipitará um conflito global.
Não conheço a ordem de batalha, como alguns dos presentes
certamente conhecem. Mas tenho certeza de que todos admitem que
estou expondo o essencial... Não lhes vou fazer qualquer súplica. Se o
bom senso de vocês, os impulsos de seus corações, quando contemplam
seus filhos e netos, não os levam a entrar em ação para evitar o
holocausto, então... amém! Que assim seja! Ruat coelum... deixem o

320
céu desabar! Procurei apenas definir a loucura, que é acreditar que o
homem é capaz de construir para si mesmo um habitai perfeito e que
pode, a cada vez que fracassa, destruir tudo o que fez, como se fosse
um castelo de areia, para começar novamente... Ao final, o impulso
construtivo é dominado pelo destrutivo. E, durante todo o tempo, a
maré vai avançando inexoravelmente, a fim de acabar com a cabeça-de-
praia em que brincamos!
Jean Marie não podia determinar se a audiência aprovava ou
desaprovava. Tudo o que sabia era que o silêncio persistia e que os
ouvidos deles, assim como provavelmente os corações também, ainda lhe
estavam abertos. Ele continuou a falar, mais suavemente, mais
persuasivamente:
— E agora deixem-me falar-lhes da minha loucura, que é o inverso
da loucura de vocês, mas que serviu apenas para acentuá-la. Ao ser
eleito Papa, senti-me ao mesmo tempo humilde e exultante. Acreditava
que o poder me fora concedido, o poder de mudar as vidas dos fiéis,
reformar a Igreja, talvez servir de mediador nas divergências entre as
nações e ajudar a manter a paz precária que desfrutamos. Todos vocês
conhecem tal sentimento. Experimentaram-no ao serem eleitos pela
primeira vez, ao receberem sua primeira Embaixada, ao serem
designados para o Gabinete, ao comprarem seu primeiro jornal ou
emissora de televisão. Um momento inebriante, não é mesmo? E as
dores de cabeça estão todas no futuro!
Houve alguns risos de assentimento. Ficaram contentes com o alívio.
O homem era mais do que um retórico. Possuía um senso de humor
salvador.
— Claro que há um ardil... uma armadilha em que todos caímos. O
que temos não é poder, mas autoridade... que é cavalo de cor diferente!
O poder implica a capacidade de realizarmos o que planejamos. A
autoridade significa apenas que podemos ordenar que seja realizado.
Decidimos... Fiat! Faça-se! Mas quando a determinação finalmente
chega ao camponês nos arrozais, ao mineiro no fundo do poço e ao
padre na favela, já perdeu a maior parte de sua força e significado. As
definições em que encerramos nossos dogmas e moralidades são pedras
de toque da ortodoxia. Quer sejamos papas, aiatolás ou ideólogos do
partido, não nos atrevemos a revogá-las. Mas a relevância delas para o
homem nas últimas é praticamente inexistente. Que teologia posso
ensinar a uma moça que está morrendo de um aborto séptico? Tudo o
que lhe posso dar é compaixão, conforto e absolvição. O que posso
dizer ao menino revolucionário de El Salvador, cuja família foi fuzilada
pelos soldados na praça da aldeia? Nada posso oferecer além de amor,

321
compaixão e uma proposição improvável de que existe um Criador que
transformará toda essa loucura em sanidade, todo esse sofrimento numa
alegria eterna... Como podem compreender, minha loucura foi a de
acreditar que de alguma forma poderia ao mesmo tempo exercer a
autoridade que aceitara e a caridade a que meu coração me impelia. Era
uma impossibilidade, é claro... assim como é impossível para um
ministro do exterior denunciar as indignidades de um ditador que
fornece matérias-primas essenciais. É nesse contexto que quero
explicar-lhes minha abdicação. Foi dolorosa na ocasião, mas agora não
a lamento nem protesto. Numa experiência que foi espontânea e
inesperada, recebi uma revelação das Últimas Coisas. Recebi uma
ordem de proclamá-las como iminentes. Eu próprio estava e continuo
absolutamente convencido da autenticidade da experiência. Mas não
tinha nem tenho quaisquer meios de prová-la. Assim, meus irmãos
bispos decidiram que eu não poderia legitimamente manter o cargo de
Pontífice e ao mesmo tempo assumir o papel de um profeta e proclamar
uma revelação pessoal não autenticada. Nada falarei a respeito dos meios
usados para garantir minha abdicação. Não passam de uma informação
acessória de uma história que pode nunca ser escrita. Mas uma coisa
posso dizer. Estou contente agora por não ter autoridade. Estou contente
por não ser mais obrigado a defender as fórmulas de definição. É que a
autoridade é muito limitada, as fórmulas são restritas demais para
abranger a agonia da humanidade nos últimos dias e a grandeza da
Parúsia... o prometido Advento. É possível que haja entre os presentes
muitos que, como eu, estão conscientes das limitações do poder e da
loucura do assassinato em massa. É para esses que de...
Subitamente, Jean Marie percebeu que as palavras que estava
dizendo não eram absolutamente palavras, mas um único som infantil,
repetido interminavelmente:
— ... de... de... de... de...
Sentiu alguma coisa a puxar-lhe a perna da calça. Olhou para baixo e
divisou a mão esquerda a bater incontrolavelmente na coxa. A visão se
enevoou. Não podia ver a audiência. Depois, o salão começou a girar e
ele caiu para a frente, por cima da mesa. Depois de alguma confusão de
movimento e tempo, ouviu duas vozes bem perto dele. Uma delas era
de Waldo Pearson:
— Foi muito estranho. Parecia uma prece em linguagem
incompreensível. E ontem mesmo conversamos sobre o dom de falar
muitas línguas.
— É um sintoma típico de AVC.
— E o que é AVC?

322
— Acidente vascular-cerebral. O pobre coitado sofreu um derrame...
Como a maldita ambulância está demorando a chegar?
— O tráfego é intenso a esta hora — disse Waldo Pearson. — Quais
são as possibilidades de ele se recuperar?
— Pergunte-me isso dentro de três dias.
As palavras fizeram com que Jean Marie se lembrasse da
ressurreição. Em vez disso, porém, ele mergulhou na escuridão.

323
LIVRO TRÊS

"Não deis crédito a qualquer espírito, antes comprovai se os


espíritos procedem de Deus, porque
muitos falsos profetas têm saído pelo mundo afora."

— Primeira Epístola de São João, 4:1


CAPÍTULO 13

Agora ele era outro homem, numa terra estranha. E era uma terra
muito pequena. Tinha quatro paredes brancas, duas portas e uma janela.
Havia uma cama, na qual ele estava deitado, uma mesinha-de-
cabeceira, uma cadeira, uma cômoda com um espelho por cima, em que
o homem na cama estava refletindo. Tinha uma expressão estranhamente
torta, como um anúncio de antes e depois para algum remédio de fígado.
Um lado do rosto estava imóvel e virado para cima, o outro ligeiramente
repuxado para baixo, transmitindo uma impressão de dor ou repugnância.
Uma das mãos estava imóvel sobre a colcha branca. A outra se remexia
irrequietamente, explorando contornos, texturas e distâncias.
Havia pelo menos um outro habitante naquela nova terra: uma moça
um tanto feia, num uniforme de enfermeira, que parecia freqüentemente
verificar seu pulso e a pressão, auscultar-lhe o peito. Ela sempre lhe
fazia as mesmas perguntas simples:
— Como se sente? Qual é o seu nome? Gostaria de beber um pouco
de água?
O mais estranho era que ele podia compreendê-la perfeitamente, mas
a moça parecia não compreender uma só palavra do que lhe dizia...
embora lhe desse de beber, amparando-o a fim de que pudesse sugar o
líquido através de um canudo de plástico. E ela também segurou uma
garrafa em seu pênis, a fim de que ele pudesse urinar. E quando ele o
fez, a moça sorriu e disse:
— Isso é ótimo!
Era como se ele fosse um bebê, aprendendo o ato de urinar. A moça
sempre usava a mesma frase de saída:

326
— O doutor virá vê-lo daqui a pouco.
Ele tentou lembrar quem era o médico e como parecia. Mas o esforço
foi grande demais. Ele fechou os olhos e tentou descansar.
Estava perturbado demais para dormir; não perturbado com algo
específico, mas ansioso, como se tivesse perdido alguma coisa preciosa
e agora tateasse à sua procura no meio de um nevoeiro. Volta e meia,
sentia que estava perto, prestes a descobrir o que era. Mas o momento
da descoberta jamais chegava. Sentia-se então como um homem no
porão com o alçapão por cima de sua cabeça fechado. O médico
finalmente apareceu, um homem esguio, de cabelos grisalhos, exibindo
uma preocupação brusca.
— Sou o Dr. Raven. Pode repetir meu nome? Raven.
Jean Marie tentou diversas vezes, mas conseguiu apenas balbuciar:
— Ra...Ra...Ra...
O médico disse:
— Não tem importância. Estará saindo-se melhor muito em breve.
Basta acenar com a cabeça se me compreender. Estou falando em
inglês. Compreende o que estou dizendo?
Jean Marie assentiu.
— Pode me ver?
Outro aceno.
— Sorria para mim. Vamos ver o seu sorriso.
Jean Marie tentou. E ficou contente por não poder ver o resultado. O
médico examinou seus olhos com um oftalmoscópio, testou os seus
reflexos com um martelinho de borracha, verificou a pressão, auscultou
o peito. Depois, sentou-se na beira da cama e fez uma pequena
preleção. Jean Marie lembrou-se do discurso com que o diretor de seu
seminário costumava saudar cada nova leva de recém-chegados.
— É um homem de sorte. Está vivo. Continua capaz de raciocinar e
algumas de suas faculdades permanecem intactas. Ainda é muito cedo
para determinar a extensão das lesões dentro do seu crânio. Temos de
esperar dois ou três dias antes de sabermos se este derrame foi um
incidente isolado ou se outros se podem seguir. Tem de confiar em nós
e tentar aceitar por algum tempo que está desamparado. Este é o
Hospital de Charing Cross. Seus amigos e parentes sabem onde você
está. Mas sabem também que você não deve receber visitas nem ser
incomodado em hipótese alguma, até que seu estado melhore. Pode
entender isso?
— Po... po... po... sso — balbuciou Jean Marie, ficando
absurdamente satisfeito consigo mesmo.
O médico presenteou-o com um sorriso e afagou-lhe o ombro, num

327
gesto de aprovação.
— Ótimo! Isso é promissor. Voltarei a vê-lo pela manhã. Vamos dar-
lhe esta noite uma coisa para ajudá-lo a dormir.
Jean Marie tentou agradecer. Descobriu que esquecera as palavras em
inglês. Em francês, pôde apenas balbuciar:
— Mer...
Ele ficou esforçando-se em falar, até chorar de frustração. A
enfermeira finalmente apareceu e aplicou-lhe um narcótico no braço.

Depois de quatro dias, ele parecia ter efetuado progressos suficientes


para ser iniciado nos usos e costumes daquela nova terra. Mas primeiro
tiveram de providenciar um assistente que falasse francês, a fim de
ensinar-lhe as regras do jogo. Ele já estava tendo problemas suficientes
com confusões fônicas e palavras sem precisar acrescentar uma mistura
de línguas.
O assistente que encontraram era um homem bonito, de 30 e poucos
anos, esguio como um atleta, com a pele azeitonada de um
mediterrâneo e uma cabeça incongruente de cabelos dourados, dando a
impressão de que a herdara de algum cruzado nórdico, há muito morto.
Ele procedia do que vagamente descrevia como Oriente Médio.
Confessou ser fluente em francês, inglês, árabe, hebraico e grego.
Desenvolvera uma carreira modesta nos círculos médicos de Londres,
atuando como intérprete, enfermeiro e fisioterapeuta para os grupos
poliglotas que habitavam a metrópole. O neurologista apresentou-o
como Mr. Atha. Juntos, eles iniciaram uma série de testes, todos
visando determinar as lesões ao sensório, a parte do cérebro que
apreende as sensações. Para o homem que fora outrora, por definição
dogmática, o intérprete infalível da mensagem de Deus aos homens, era
chocante descobrir agora como era falível e nas coisas mais simples.
Quando lhe pediram que fechasse os olhos e levantasse os braços à sua
frente, horizontalmente, Jean Marie ficou espantado ao descobrir que
apenas um braço lhe obedecia plenamente, enquanto o outro permanecia,
como o ponteiro de um relógio parado, em 25 minutos para a hora.
Quando lhe pediram para dizer onde era espetado, com as duas
pontas secas de um compasso, ele descobriu que algumas de suas
identificações estavam totalmente erradas. E o que era ainda pior, não
conseguia encontrar a ponta do nariz com a mão esquerda.
Contudo, havia alguns indícios esperançosos. Quando lhe cocavam
os pés, os dedos se curvavam para dentro. Mr. Atha explicou que isso
demonstrava que seu reflexo Babinski estava funcionando. Quando se
coçava a parte interior da coxa, o saco escrotal se contraía. E isso

328
também era muito bom, pois indicava que o reflexo Cremaster estava
intacto.
Houve então um momento terrível. Mr. Atha pediu-lhe que repetisse
para o neurologista as palavras da antiga canção:

— "Surlepont,surlepont,
Sur lepont d'Avignon."

Jean Marie descobriu, horrorizado, que a boca parecia cheia de


melado e conseguia emitir apenas um burburinho de sons indefiníveis.
Ele começou a chorar novamente. O neurologista censurou-o
firmemente. Ele tinha sorte por estar vivo. E tinha mais sorte ainda por
ter sofrido tão poucos danos. Os prognósticos eram esperançosos, desde
que ele estivesse disposto a ser paciente, cooperativo e corajoso...
virtudes muito além de sua capacidade naquele momento.

Mr. Atha traduziu tudo no francês mais suave e ofereceu-se para


fazer-lhe companhia, até que estivesse novamente calmo. O
neurologista acenou em aprovação à idéia e saiu para tratar de outros
problemas, que incluíam, conforme Mr. Atha explicou, muitos
pacientes em estado bem pior que o de Jean Marie.
— Também trabalho com eles. Portanto, sei do que estou falando.
Você pode engolir. Não tem visão dupla. É capaz de controlar seus
intestinos e a urina... Pense só no que isso significa! Sua fala vai
melhorar, porque vamos praticar juntos. Com o médico, você fica
tentando demonstrar que não foi muito afetado. E se decide a prová-lo
com uma súbita explosão de oratória. E entra em desespero quando não
consegue. Mas nós dois vamos partir da premissa de que você foi
afetado. E vamos reparar o trauma juntos...
Ele era não apenas persuasivo, mas também transmitia uma imensa
serenidade. Jean Marie sentiu que um peso enorme era removido de sua
cabeça, que o nevoeiro em sua caixa craniana se dissipava. Mr. Atha
acrescentou, suavemente:
— Disseram-me que era Papa. Portanto, deve lembrar-se das
escrituras: "A menos que se torne como as criancinhas, não entrará no
reino dos céus." Pois é agora como uma criança. Precisa aprender as
coisas mais simples desde o início. Tem de admitir que por algum
tempo não poderá lidar com as coisas mais complicadas. Mas acabará
crescendo outra vez, assim como acontece com uma criança. Está agora
no jardim de infância. À medida que as semanas forem passando, vai
subir de um ano para outro. Aprenderá a vestir-se, a mover novamente

329
o braço e a perna esquerdos... e acima de tudo, voltará a falar direito.
Já pode falar agora, se o fizer bem devagar. Vamos escolher alguma
coisa bem simples. "Meu nome é Jean Marie." Agora, diga uma
palavra de cada vez...

Em algum momento, durante as longas horas da noite, quando os


únicos sons eram os passos da enfermeira de plantão e a única luz era o
facho da lanterna dela em seu rosto, Jean Marie aprendeu outra lição.
Se tentasse lembrar, as coisas sempre se esquivavam. Mas se ficasse
deitado quieto, sem fazer qualquer esforço, tudo lhe voltava
furtivamente, assentando-se ao seu redor, como animais do bosque num
livro ilustrado para crianças.
Nem sempre as coisas estavam na ordem certa. Drexel estava ao lado
da menina mongolóide. Mendelius estava envolvido em alguma
conferência de bispos no México, Roberta Saracini estava bebendo da
taça do cosmo, a moça aleijada vendia gravuras a Alvin Dolman. Mas
pelo menos estava tudo ali. Não perdera coisa alguma, como alguém
que sofria de amnésia. Eram fragmentos de um padrão num
caleidoscópio. E um dia haveriam de se juntar num padrão familiar.
Havia também outra coisa. Como acontecera com a visão no jardim
do mosteiro, Jean Marie estava consciente dela de uma maneira que
escapava à definição verbal. Em algum lugar, no fundo de si mesmo,
aquela triste fortaleza, tão assediada, bombardeada e arruinada, havia
um lugar de luz em que o Outro habitava e onde havia, quando para lá
podia retirar-se, uma comunhão de amor e bem-aventurança, embora
muito breve. Era como... era como o quê?... Beethoven surdo com a
cabeça repleta de glórias, Einstein despojado da matemática para
exprimir os mistérios que ao final compreendeu. Havia ainda outra
maravilha. Não era capaz de comandar a mão inerte ou a perna
entorpecida, às vezes não controlava a língua vacilante. Mas naquele
pequeno ponto de luz e paz podia dominar-se, dispor livremente de si
mesmo, como uma pessoa que ama entregando-se ao ser amado. Foi ali
que se fez o pacto. "Aceito o que me reserva, não importa o que seja.
Sem perguntas e sem condições! Mas, por favor, quando chegar o Dia
do Rubicão conceda um pouco de luz e alguma alegria a meu amigo
Duhamel e sua mulher. Ele é um homem de bem. Só tem sido
mesquinho consigo mesmo!"

O neurologista comunicou-lhe que o primeiro momento de perigo já


passara. De dedos cruzados e com uma boa oração, podia-se considerar
aquele episódio superado e prever-se uma boa recuperação. É verdade

330
que haveria conseqüências, inconvenientes e inibições, de um tipo ou
outro. Mas, de um modo geral, eram excelentes as perspectivas de que
ele pudesse voltar a levar uma vida normal. Mas ainda não! Ainda faltava
muito! Ele tinha de ser treinado, mais arduamente que qualquer atleta.
Mr. Atha não apenas explicaria, mas também o conduziria por todos os
exercícios, hora após hora, dia após dia. Visitas? Seria melhor esperar
por mais algum tempo, até que pudesse lhes apresentar alguma
competência, não é mesmo? Os visitantes podiam ficar às vezes mais
angustiados que os pacientes. E Mr. Atha acrescentou seu próprio
argumento:
— Além do mais, é um homem importante. Eu gostaria de sentir-me
orgulhoso do primeiro dia em que puder apresentá-lo. Quero que esteja
vestido direito, falando direito, movendo-se direito... com toda classe,
entende?
— Classe — disse Jean Marie, a palavra saindo alta e clara como um
repicar de sino.
— Bravo! — exclamou Mr. Atha. — E agora vamos chamar a
enfermeira. A primeira coisa que temos de ensinar-lhe é sentar-se na
beira da cama e depois ficar de pé sozinho.
Parecia tão simples que Jean Marie não podia acreditar no esforço e
humilhação envolvidos. Vezes sem conta, ele desabou como uma
boneca de trapo nos braços de Mr. Atha e da enfermeira. Vezes sem
conta, eles ficaram amparando-o e gradativamente foram retirando o
apoio, até que ele foi capaz de permanecer ereto por alguns momentos.
Quando ele ficava cansado, sentavam-no na cama e lhe mostravam
como rolar para uma posição reclinada, atenuando os pontos de pressão
em que podiam surgir escaras.
Depois que Jean Marie dominou a abertura, passaram a ensinar-lhe a
ópera: como andar em passos pequenos e arrastados, como exercitar a
mão esquerda com uma bola de borracha, toda uma série de operações
com equipamentos mecânicos, no ginásio. Foi ali que ele compreendeu
como era afortunado, segundo lhe dissera Mr. Atha. Também notou
outra coisa: a infinita paciência com que Atha cuidava de seu grupo
variado, como todos reagiam rapidamente a seu sorriso e suas palavras
de estímulo.
Atha fê-lo participar da pequena e desconjuntada vida comunitária no
ginásio, jogando uma bola para um, entabolando uma conversa
vacilante com outro, demonstrando a um terceiro um momento que ele
próprio já dominara. Por mais breve que fossem, aqueles interlúdios
sociais deixavam-no extenuado. Mas Atha era inflexível:
— Só vai conseguir renovar seus próprios recursos se partilhá-los.

331
Não pode esperar passar o tempo todo da recuperação num mundo
hermético e depois emergir como um animal social. Se ficar cansado de
falar, toque nas pessoas, sorria, partilhe sua percepção das coisas...
como o par de pombos arrulhando no peitoril da janela. O problema
pode não preocupá-lo, mas a verdade é que metade das pessoas aqui
está apavorada com a possibilidade de não ser mais atraente para as
pessoas amadas. Têm pavor de se tornarem sexualmente impotentes ou
mesmo, ao final, constituírem um fardo detestável para suas famílias...
— Desculpe-me — Jean Marie conseguiu pronunciar as palavras
direito. — Tentarei sair-me melhor.
— Ótimo! — exclamou Mr. Atha, com um sorriso. — Pode relaxar
agora. Está na hora da massagem.

Havia um grupo de testes que lhe proporcionava um imenso prazer.


O neurologista chamava-os de testes de sensibilidade gnóstica.
Implicavam o reconhecimento, pelo contato apenas, de texturas e pesos,
formatos e sólidos. O prazer era tão intenso que as sensibilidades se
foram tornando perceptivelmente mais aguçadas e seus palpites se
tornaram mais próximos dos objetos que produziam as sensações.

A extensão de sua atenção foi tornando-se também mais ampla e ele


pôde desfrutar a massa de cartas e cartões que atulhavam a gaveta
superior da cômoda e que ainda não lera. Quando sua concentração
falhava, Mr. Atha lia para ele e depois ajudava-o a formular uma
resposta simples. Só que ele não a escrevia. O próprio Jean Marie é que
tinha de fazê-lo. Mr. Atha fornecia as palavras e frases que se haviam
perdido momentaneamente de seu vocabulário ou se misturavam com
outras num curto-circuito sináptico.

Passou a receber os jornais, em inglês e francês. Gostava de


esquadrinhá-los, embora retivesse muito pouco do que lia. Mr. Atha
consolou-o, à sua maneira tranqüila:
— O que deseja reter? As más notícias de que o homem está
demolindo a civilização, tijolo por tijolo? As boas notícias estão aqui,
diante do seu nariz. O cego vê. O coxo anda. E às vezes até os mortos
voltam à vida... e, se prestar bastante atenção, vai ouvir os ecos das boas
notícias.
— Você... você é um... homem diferente! — disse Jean Marie, à sua
maneira hesitante.
— Estava querendo dizer "estranho".
— Isso mesmo.

332
— Pois então diga agora.
— Estranho — disse Jean Marie, cuidadosamente. — Você é um
homem muito estranho.
— E também trago boas-novas — acrescentou Mr. Atha. — Poderá
começar a receber visitas na próxima semana. Se me disser quem
deseja ver, farei uma relação e entrarei em contato com as pessoas, em
seu nome.

O irmão Alain foi o primeiro a ser convidado, porque Jean Marie


sentia que o vínculo de família devia ser respeitado e que agora já não
restava mais qualquer motivo para ciúmes fraternais. Os dois se
abraçaram meio sem jeito, por causa do braço inerte de Jean Marie.
Depois da primeira troca de palavras, Jean Marie deixou claro que
preferia escutar a falar. Assim, Alain discorreu sobre todas as
novidades da família, até chegar ao ponto em que seu próprio coração
estava preso: a Bolsa de Valores, com todas as suas transações e
rumores.
— Estamos agora no negócio de trocas em larga escala. Petróleo por
cereais, soja por carvão, tanques por lingotes de ferro, carne por urânio,
ouro por tudo! Se você dispõe de alguma mercadoria, podemos
encontrar um comprador... Mas por que estou falando sobre essas
coisas? Por quanto tempo deverá continuar aqui?
— Eles não dizem. — Àquela altura, Jean Marie já descobrira que se
saía melhor com frases curtas, preparadas de antemão. — Não
pergunto. Espero.
— Quando sair, teremos o maior prazer em recebê-lo em nossa casa.
— Obrigado, Alain. Não. Há lugares para... para... — Ele hesitou,
procurando pronunciar a palavra corretamente, quase o conseguiu. —
Rea... Reabi...
— Reabilitação?
— Isso. Mr. Atha vai arrumar.
— Quem é Mr. Atha?
— Ele trabalha aqui. Com vítimas de derrame.
— Hã... — Alain não estava sendo insensível ou indiferente. Era
simplesmente um estranho, numa terra estranha. — Roberta manda-lhe
o seu amor. Ela estará aqui dentro de alguns dias.
— Ótimo. Terei prazer.
Era o máximo que ele podia conseguir. Alain também se sentiu
contente em ser dispensado. Depois de mais algumas frases e alguns
silêncios prolongados, os dois tornaram a se abraçar e despediram-se,
cada um se perguntando por que tinha tão pouco a dizer ao outro.

333
Waldo Pearson apareceu no dia seguinte. Estava acompanhado por
um criado, carregando tesouros inesperados: seis exemplares de
Últimas Cartas de um Pequeno Planeta, um volume encadernado em
couro para o próprio autor, um gravador e duas versões de sucesso de
Johnny, o Bufão, uma por um cantor, outra por uma famosa cantora,
acompanhada de grande coro. Trouxe também uma garrafa de Veuve
Clicquot, um balde de gelo, taças de champanha, um pote de caviar
fresco, torradas, manteiga e o texto integral do discurso de Jean Marie no
Carlton Club, também encadernado em couro. Waldo estava exuberante
e jovial.
— Meu pai teve dois derrames... não chamavam de acidente
vascular-cerebral naquele tempo!... e por isso sei o que acontece. Fale
quando quiser. Fique calado quando assim sentir-se melhor. Gosta do
livro?... Está bonito, não é mesmo? As vendas estão disparando. É o
maior lançamento que tivemos nos últimos 20 anos. Lamento apenas
que não pudéssemos contar com a sua presença na festa de lançamento.
Hennessy telefonou. Disse que a reação nas Américas e no Continente é
a mesma. Disse que virá vê-lo assim que voltar de Nova York. Você
realmente tocou no ponto certo... E todo mundo está assoviando a
canção. Até mesmo eu a cantarolo no banheiro... Champanha? E pode
também comer o caviar?... Isso é ótimo! Está indo muito bem. Eu
estava determinado a servir-lhe champanha e caviar mesmo que tivesse
de dar na boca...
— Estou comovido. Obrigado. — Jean Marie ficou surpreso com a
própria fluência. — Lamento ter feito a cena no clube.
— Foi uma coisa muito estranha. — Pearson tornou-se
imediatamente sério. — Uma parte da audiência ficou hostil. Muitos
ficaram profundamente comovidos. Ninguém foi capaz de permanecer
neutro. Enviei cópias do texto integral de seu discurso a todos os sócios
e seus convidados. As reações, pró e contra, foram bastante
esclarecedoras. Alguns manifestaram medo, outros falaram de um
impacto religioso, houve quem aludisse ao contraste entre a força de
sua mensagem e a modéstia de seu comportamento pessoal. Por falar
nisso, já recebeu notícias de Matt Hewlett? Ele disse que iria escrever-
lhe. Achava que poderia deixá-lo constrangido, se viesse procurá-lo
pessoalmente.
— Ele escreveu. Disse que me ofereceu uma novena de missas. O
Pontífice passou um telegrama, assim como alguns membros da Cúria.
Drexel escreveu uma comprida... comprida... comprida... Desculpe-me.
As palavras mais simples faltam-me às vezes.

334
— Relaxe! — disse Waldo Pearson. — Vou tocar a canção. Prefiro a
versão com a cantora. Quero saber a sua opinião.
— Pode arrumar uma cópia para Mr. Atha?
— Claro que posso. Mas quem é ele?
— É um te... terapeuta. Não posso exprimir o que ele faz por todos
nós. É... é um enviado por Deus! Tenho de autografar um livro para ele.
Tem importância agora se souberem que sou o autor?
— Não creio que isso faça agora alguma diferença. Os generosos vão
encontrar Deus no livro. Os fanáticos dirão que você foi castigado por
seus pecados. E assim todos ficarão felizes.
— Petrov... conseguiu os cereais?
— Algum, mas não o suficiente.
— Perdi a noção do tempo. Não consigo lembrar-me dos
acontecimentos...
— Deve sentir-se contente por isso. Os acontecimentos estão
escapando inteiramente ao nosso controle.
Jean Marie inclinou-se para pegar a mão de Waldo Pearson.
Precisava da segurança do contato humano. O pensamento que há
semanas vinha tentando definir estava finalmente claro. E exprimiu-o
com um cuidado desesperado:
— Ele me mostrou as Últimas Coisas. Disse-me para anunciar a
Parúsia. Renunciei a tudo para fazer isso. Tentei. E tentei com o
máximo de empenho. Mas antes que eu pudesse dizer tudo, Ele me
calou. Não sei o que está querendo agora. Sinto-me totalmente confuso.
Waldo Pearson segurou a frágil mão entre as suas palmas e disse
gentilmente:
— Também fiquei confuso. E furioso. Descobri-me a sacudir o
punho para ele e querendo saber o motivo. Por quê? Li então as
Últimas Cartas de um Pequeno Planeta e compreendi que era o seu
testemunho. Estava tudo ali, preto no branco. O que quer que você
tenha dito ou deixado de dizer no Carlton Club era apenas um
aditamento... e perfeitamente dispensável. E lembrei-me também de
outra coisa. O primeiro precursor, João, conhecido como Batista, teve
um estranho fim. Enquanto o Messias que ele anunciara ainda estava
andando livre pela Judéia, João foi assassinado nas masmorras de
Herodes e sua cabeça presenteada numa bandeja a uma dançarina do
ventre. Tudo o que ele recebeu de seu Messias foi um louvor que se
tornou um epitáfio: "Entre os homens nascidos de mulheres, nenhum é
maior que João Batista"...

335
— Tinha esquecido-me disso — murmurou Jean Marie Barette. —
Mas a verdade é que estou esquecido de muitas coisas.
— Tome mais um pouco de champanha — sugeriu Waldo Pearson.
— E vamos escutar a música.

No dia seguinte, ele foi afligido por novas pragas. Estava sentado em
sua cadeira de rodas, lendo as manchetes do jornal matutino, quando
Mr. Atha entrou no quarto para informar que ficaria ausente por alguns
dias. Precisava viajar ao exterior, a fim de tratar de alguns negócios do
pai. A sessão de terapia de Jean Marie seria conduzida por uma
assistente. E Mr. Atha arrematou:
— Quando eu voltar, quero encontrar um homem vigoroso e capaz de
falar fluentemente.
Jean Marie foi dominado por um súbito pânico.
— Para onde... para onde está indo?
— Vou a diversas capitais. Os interesses de meu pai são amplos. E
vou levar seu livro para ler no avião. Ora, não deve ficar tão triste
assim!
— Estou com medo!
Ele falou antes que pudesse controlar-se. Mas Mr. Atha não se iria
curvar a seu apelo.
— Então deve enfrentar o medo! Todo o trabalho que realizamos
juntos tem um objetivo: fazê-lo andar, falar, pensar e trabalhar por si
mesmo. Tenha coragem.
Mas a coragem abandonou Jean Marie no instante mesmo em que
Mr. Atha saiu do quarto. A depressão, tenebrosa como a meia-noite,
envolveu-o. Mesmo o lugar de luz se extinguiu. Não conseguia
encontrar o caminho para voltar até lá. E à medida que o dia foi
passando, ele se descobriu a mergulhar cada vez mais num profundo
desespero. Jamais ficaria bom. Jamais deixaria o hospital. E, mesmo
que saísse, para onde iria? O que faria? E de que adiantavam todos
aqueles esforços, se nada produziam além da capacidade de vestir um
paletó, falar banalidades elementares e arrastar-se em linha reta por uma
calçada de concreto?
Pela primeira vez, Jean Marie começou a contemplar a possibilidade
da morte, não apenas como uma libertação do sofrimento, mas como
um ato pessoal de encerramento de uma situação intolerável. A
cogitação proporcionou-lhe uma serenidade extraordinária e uma mente
tão lúcida e clara quanto a luz fria e interminável das latitudes
setentrionais. Era uma simples questão de lógica passar da cogitação do

336
ato para uma especulação sobre os meios pelos quais poderia ser
consumado. Somente quando a enfermeira apareceu é que ele
compreendeu, com um brusco sentimento de culpa, até que ponto o
devaneio mórbido o levara.
Ficou bastante apavorado com a experiência para mencioná-la ao
médico, quando este apareceu, em sua ronda ao final do dia. O médico
acomodou-se na beira da cama e falou tranqüilamente sobre o assunto:
— Eu estava começando a pensar que era de fato um afortunado e
conseguira evitar essa crise. Era evidente para todos nós que seus
antecedentes religiosos lhe proporcionavam recursos que a maioria das
pessoas não possui... Mas não se pode prever como ou quando uma
crise depressiva vai dominar o paciente.
— Está querendo dizer que tenho outra doença?
O neurologista explicou pacientemente:
— Estou querendo dizer que acaba de descrever os sintomas
clássicos da depressão aguda. Se por acaso se permitir que esses
sintomas fiquem sem tratamento, a depressão vai tornar-se crônica,
constantemente agravada pelo estado em que se encontra agora. A
viagem de Mr. Atha foi simplesmente um incidente que desencadeou o
processo... Portanto, vamos intervir, antes que a coisa vá longe demais.
Vamos aplicar-lhe doses mínimas de uma droga eufórica. Se der certo...
ótimo! Se não der, há outros métodos. Mas, se você puder reprimir e
rechaçar a depressão sem a ajuda de muitos psicotrópicos, será bem
melhor. Contudo, não deve tentar bancar o bravo ou arrojado. Se
começar a sentir-se desesperado, com vontade de chorar, incapaz de se
controlar, avise à enfermeira. Mande chamar-me imediatamente.
Prometa que fará isso!
— Prometo. — Jean Marie falou em tom firme e incisivo. — Mas é
difícil para mim sentir-me tão dependente.
— Esse é também o meu maior problema como médico. O paciente
está em luta consigo mesmo... — Ele hesitou por um momento e depois
formulou uma pergunta inesperada: — Acredita que o homem possui
um corpo e uma alma que se separam por ocasião da morte?
Jean Marie pensou na pergunta por um momento, receando que um
novo turbilhão de nevoeiro pudesse obscurecer a resposta que
encontrava. Mas, graças a Deus, a luz se manteve. E ele disse, com uma
surpreendente fluência:
— Era assim que os gregos representavam o homem, espírito e
matéria, dual e divisível. Como uma noção, serviu perfeitamente, por
muito tempo. Depois desta experiência, no entanto, já não sei mais...
Não tenho consciência de mim mesmo como dois elementos, um

337
músico tocando um piano em que faltam algumas notas ou,
inversamente, um violino Stradivarius tocado por um estudante
medíocre. Eu sou eu... uno e indivisível! Parte de mim está
parcialmente morta, outra parte está totalmente morta e nunca mais
voltará a funcionar. Estou de... de... de...
— Deficiente.
— Isso mesmo. Deficiente.
O médico pegou a prancheta que estava pendurada ao pé da cama e
escreveu uma receita para um medicamento contra a depressão. Num
raro relance de seu antigo humor, Jean Marie disse:
— Não oferece um encantamento para acompanhar o remédio?
Mas não havia medicamento ou encantamento disponível para o que
lhe aconteceu em seguida. Dois dias depois da partida de Mr. Atha,
uma hora antes do meio-dia, Waldo Pearson e Adrian Hennessy foram
procurá-lo. As indagações sobre o seu estado foram solícitas, mas
breves. Waldo Pearson pôs-se então a falar sobre o motivo da visita,
começando com um pedido de desculpa:
— Eu esperava poupar-lhe o constrangimento, mas tornou-se
inteiramente impossível. Temos de entrar com ações de interdito na
Inglaterra, Estados Unidos, no resto da Europa... onde quer que seja
possível. E precisamos de sua assinatura na procuração.
Jean Marie olhou de um para outro, completamente aturdido. E
indagou:
— Mas o que aconteceu?
Adrian Hennessy abriu sua pasta.
— Prepare-se para um choque, Monsenhor!
Ele pôs na cama um álbum de recortes grande e um volume em
brochura. O título era A Fraude. O autor era um tal de Luigi Marco. E
na capa estava carimbado: "Provas sujeitas a correções." A editora era
Veritas S.p.a., do Panamá. Hennessy pegou o volume.
— Cópias disso já foram distribuídas a todas as agências noticiosas
internacionais. O livro deverá ser lançado em escala mundial, em 20
línguas, no dia em que lançarmos Últimas Cartas. Queremos entrar
com as ações para impedir o lançamento. Contudo... o que é o mais
terrível!... alguns órgãos da imprensa sensacionalista já compraram os
direitos de publicação em série e estão divulgando os trechos mais
suculentos. Os jornais sérios e as redes de televisão não podem ignorar
o assunto. Insistem em seu direito de comentar o material. Temos de
entrar com processos de calúnia a fim de evitar que o escândalo se
espalhe ainda mais. "
— Mas que escândalo é esse, afinal?

338
Waldo Pearson assumiu o encargo da explicação:
— O livro, apropriadamente intitulado A Fraude, pretende ser um
relato verdadeiro de sua carreira, do início da juventude até agora. É
uma mistura cuidadosa e muito hábil de fatos, ficção e insinuações
torpes. Evidentemente, o nome do autor é um pseudônimo. Não resta a
menor dúvida de que se trata de um trabalho de difamação altamente
profissional, como os supostos documentários a respeito de espiões,
desertores ou escândalos políticos, que os serviços de propaganda
produzem para o descrédito alheio. A editora é uma empresa-fantasma
registrada no Panamá. A impressão está sendo feita em Taiwan, por
uma gráfica que produz tais coisas sob contrato. Cópias das provas
foram despachadas de avião para as principais potências... Alguém
investiu muito dinheiro na pesquisa, redação, tradução e impressão...
Algumas das fotografias foram tiradas com uma teleobjetiva, o que
indica que você estava sob vigilância profissional há muito tempo.
— Que espécie de fotografias?
Jean Marie teve de fazer novamente um tremendo esforço para
escapar ao bloqueio fônico.
— Mostre! — disse Waldo Pearson.
Com uma relutância óbvia, Hennessy folheou os recortes de jornais
no álbum. Havia um instantâneo de Jean Marie com a moça aleijada na
Place du Tertre. O ângulo dava a impressão de que o rosto dele estava
quase colado no da moça e era fácil presumir que se tratava de amantes
num tête-à-íête. Havia diversas fotografias dele e Roberta Saracini, de
braços dados, no Hyde Park, passeando de barco no rio, nos jardins em
Hampton Court. Havia uma fotografia de Jean Marie e Alain saindo do
restaurante Sophie's, parecendo uma dupla de velhos bêbados. Uma
fúria intensa apoderou-se de Jean Marie e ele perguntou, quase
sufocando de raiva:
— E...e o texto?
Waldo Pearson deu de ombro, num gesto desolado.
— O que se poderia esperar. Eles fizeram um trabalho meticuloso de
pesquisa e habilmente distorceram os fatos, a fim de apresentá-lo como
um homem corrompido e também um pouco maluco... Conseguiram
obter sobre isso dois relatórios de médicos que o examinaram antes da
abdicação. Há também vários outros detalhes exóticos.
— Vou citar um exemplo — disse Hennessy, folheando rapidamente
o volume. — Eles descobriram alguém que serviu com você nos
Maquis. Há uma história sobre você e a mulher de um fazendeiro, que
foi posteriormente encontrada estuprada e assassinada. É claro que os
moradores da região atribuíram o crime aos alemães, mas... Eles são

339
muito bons com os "mas...". Seu melhor amigo é Carl Mendelius, de
Tübingen, mas eles insinuam que você o ajudou a conseguir a liberação
do sacerdócio por causa de uma ligação homossexual. O fato de você
tê-lo defendido das acusações de heresia e posteriormente oficiar o
casamento dele só serve para reforçar a insinuação... É o mais terrível
nesse tipo de trabalho. Os criadores de escândalos não precisam coisa
alguma. Basta fazer as piores insinuações. Se você beija sua mãe numa
estação ferroviária, isso é indício de incesto.
— O que eles dizem a respeito de Roberta?
Hennessy franziu o rosto numa expressão de profunda repulsa.
— O pai dela roubou o Banco do Vaticano em vários milhões. O
dinheiro jamais foi recuperado. Sabe-se que você possui um patrimônio
substancial, do qual Roberta Saracini é administradora. Na França, a
administração de fundos exige registro público. Quando você esteve em
Paris, ficou hospedado na casa dela. Depois, foi fotografado na
Inglaterra passeando com ela de mãos dadas... e estava aqui com um
nome falso. Quer mais alguma coisa?
— Não. Quem fez tudo isso? De quem partiu a idéia? Como
obtiveram todas essas informações? E por quê?
— Vamos procurar analisar a coisa objetivamente. — Waldo
Pearson falou suavemente, tentando acalmá-lo. — Adrian e eu
conversamos com uma porção de pessoas bem informadas e estamos
convencidos de que encontramos uma explicação que se ajusta a todos
os indícios disponíveis... Tem certeza de que pode agüentar?
— Claro! — Jean Marie estava visivelmente na maior tensão, mas
forçou as palavras a saírem incisivamente. — Não se preocupem
comigo. Quero saber de tudo.
Waldo Pearson pôs-se a falar no tom destituído de inflexões de um
homem que é portador de más notícias:
— A partir do momento em que você afirmou ter tido uma revelação
pessoal das Últimas Coisas e se dispôs a publicá-la numa encíclica aos
fiéis, tornou-se um homem perigoso. Sabe o que aconteceu na Igreja e
como os Amigos do Silêncio se tornaram encarniçados. Lá fora, porém,
onde as nações se preparavam ativamente para uma guerra nuclear, a
reação foi muito pior. Com suas visões de horror e Juízo Final, você se
transformou numa ameaça para os fabricantes de mitos. Eles estavam
preparando o povo para participar de uma competição de destruição
nuclear, um jogo, um jogo diabólico, em que cada lado comete a
mesma carnificina, pela mesma não-razão! Sua visão, que fez com que
parecesse um louco, era na verdade a única sanidade disponível. Você
viu o horror. E revelou-o! Antes que o público pudesse absorver o

340
pensamento, era preciso silenciá-lo. Mas isso não era fácil. Afinal, você
era um homem controvertido, em plena evidência. Na Alemanha,
denunciou um agente da CIA, um importante agente-residente. Na
França, seu próprio país, entrou imediatamente para a lista negra e
passou a merecer uma vigilância total. Também foi vigiado na
Inglaterra. Mas eu era um patrono dos mais respeitáveis e lhe servia
como garantia junto ao nosso Governo.
"Durante todo o tempo, no entanto — prosseguiu — você continuava
a ser uma presença incômoda para os poderosos. Afinal, no momento
em que os tambores da guerra estivessem ressoando, poderia gritar que
o rei estava nu... e que além do mais poderia não haver mais súditos
depois da primeira explosão. Chegaram a cogitar, conforme Adrian e eu
descobrimos, através de fontes diferentes, de sua liquidação. Foi uma
recomendação praticamente unânime. Mas quando se soube que seu
livro já estava sendo produzido, abandonaram o plano de liquidá-lo. Em
vez disso, tiveram outra idéia: desacreditá-lo totalmente... E já sabe
agora como fizeram isso.
Jean Marie perguntou:
— Como eles conseguiram todo esse material tão depressa?
— Dinheiro! — respondeu Adrian Hennessy bruscamente. — Basta
pôr em campo uma quantidade suficiente de agentes, com dinheiro à
vontade para as despesas, e pode-se descobrir todos os segredos da vida
de um homem em apenas um mês. Com a hostilidade da Igreja oficial e
a plena cooperação em alto nível dos Governos, o trabalho é tão fácil
quanto cozinhar um ovo.
— Mas quem organizou tudo?
— Dolman foi o homem que ficou no controle e tinha um bom
motivo para isso. Você sabia que ele tentou matar Carl Mendelius.
— A coisa toda faz sentido.
— E também acarreta um problema.
— Não me escondam nada, por favor! — pediu Jean Marie, com a
maior veemência.
— Mesmo que tenhamos sucesso nas ações judiciais, isso
representaria apenas um alívio temporário — disse Adrian Hennessy.
— Teremos de nos empenhar em batalhas judiciais nos principais
países. O que custará muito dinheiro. Você terá de pagar a maior parte
com seus próprios recursos... E como estamos agora em tempos
sombrios e em breve estaremos vivendo sob leis de emergência, não há
qualquer garantia, mesmo na Inglaterra, de que terá um julgamento
justo.
Jean Marie pensou por um momento e depois disse, lentamente:

341
— Disponho dos recursos necessários. Nem que me custe minha
última moeda, devemos lutar contra essa monstruosidade em qualquer
campo de batalha que pudermos encontrar. Não sou ingênuo ao ponto
de acreditar que podemos vencer. Mas temos de lutar... e com o meu
próprio dinheiro, não o de qualquer outro. Waldo, só espero que isso
não prejudique a sua publicação das Últimas Cartas.
— Pode estar certo de que isso não vai acontecer. Se alguma
diferença houver, será a de contarmos com uma cobertura maior dos
meios de comunicação, os debates tornando-se mais acirrados. Ao final,
tudo se resumirá a um julgamento pessoal na mente de cada leitor: o
autor das Cartas pode realmente ser o mesmo canalha que está
representado nesse pedaço de lixo?
— Enquanto isso, precisamos de sua assinatura nos documentos. —
Hennessy estava tirando-os de sua pasta. — A menos que queira ler
meticulosamente uma verdadeira montanha do que se convencionou
chamar de linguagem jurídica, terá de aceitar a nossa palavra de que os
documentos foram elaborados pelos melhores advogados da Inglaterra,
Estados Unidos e França.
— Aceito a palavra de vocês. — Jean Marie já estava assinando os
primeiros documentos. — Mas devem lembrar-se de uma coisa. Para
disporem de tantos fatos para formularem suas calúnias, eles devem ter
obtido informações de muitas pessoas que me conheciam bastante bem.
— Isso é mais do que evidente — disse Waldo Pearson. — Mas o
simples fato de essas pessoas terem fornecido informações a um
entrevistador não significa que sejam suas inimigas. Não pode saber
quais os artifícios que foram utilizados para persuadi-las a falar. Elas
podiam até estar pensando que lhe prestavam um favor. Podem ter sido
simples comentários. O Vaticano, por exemplo, fervilha de comentários
e intrigas. Hennessy e eu somos seus aliados, mas estamos sempre
falando a seu respeito. Tenho certeza de que deixamos escapar frases e
opiniões que foram aproveitadas nas insinuações e acusações falsas...
Acho que deve simplesmente aceitar o que aconteceu, lutar da melhor
forma que puder e depois dizer aos desgraçados que vão para o inferno.
Não pode dar-se ao luxo de virar um paranóico.
— Sou um deficiente e não um paranóico — disse Jean Marie. — Na
escala de catástrofe final, sou uma quantidade mínima. O que me ocorre
é um não-acontecimento. Estou preocupado por causa de pessoas como
Roberta, que vão sofrer muito porque seus nomes estão ligados a mim
nas calúnias. Quando eu era Papa, todas as pessoas com quem entrava
em contato sentiam-se abençoadas. Agora, sou na verdade um portador
da praga, contagiando até os meus amigos mais íntimos...

342
Naquela noite, pela primeira vez, Jean Marie pediu um medicamento
para fazê-lo dormir. Pela manhã, acordou mais tarde do que o habitual,
mas sentindo-se revigorado e lúcido. Na sessão de terapia, descobriu
que estava andando com mais confiança, que o braço lesionado reagia
bastante bem às mensagens dos centros motores. A fala estava
sistematicamente clara e raramente hesitava à procura de uma palavra
específica. O terapeuta encorajou-o:
— É assim que acontece nos casos em que há prognósticos favoráveis.
Os pacientes melhoram consideravelmente; depois, passam por um longo
período em que parece não haver qualquer progresso mais acentuado; em
seguida há outra melhoria súbita, que geralmente persiste, numa escala
ascendente. Vou comunicar a seu médico. Ele determinará
provavelmente uma nova série de testes e exercícios. E depois... Ora, não
vamos apressar-nos! Agora, o segredo é desfrutar a melhoria, mas sem
fazer um esforço demasiado. Ainda não está em condições de jogar
futebol , mas... ei, a idéia é sensacional!... bem que pode começar a
nadar!
Jean Marie voltou a pé para o quarto, sem qualquer ajuda. Ao chegar,
estava cansado, mas triunfante. Quaisquer que fossem os terrores que
tivesse de enfrentar agora, pelo menos poderia enfrentá-los de pé. Ele
gostaria de que Mr. Atha estivesse presente para partilhar aquela sua
primeira vitória concreta. Deitou-se e deu diversos telefonemas, a fim
de comunicar as boas notícias. Mas não conseguiu falar com ninguém.
O telefone de Carl Mendelius estava desligado; Roberta Saracini estava
em Milão; Hennessy voltara a Nova York; Waldo Pearson fora passar
alguns dias no campo. O irmão Alain estava disponível, mas
preocupado. Ficou satisfeito ao tomar conhecimento dos progressos de
Jean Marie. A família também ficaria satisfeita. Por favor, mantenha-se
em contato!
O que levou Jean Marie a encarar o problema de seu próprio futuro.
Por mais que melhorasse, por menores que fossem as suas
deficiências residuais, ainda era um homem de 65 anos, aproximando-
se dos 66, vítima de um derrame cerebral, sujeito a ter outro, a
qualquer momento.
Quaisquer que fossem os resultados das ações judiciais, ele sairia
desacreditado... mais do que se fosse realmente culpado de todos os
abusos e crimes que lhe atribuíam. O mundo gostava dos canalhas e não
tinha paciência com os incompetentes. Assim, Jean Marie Barette seria
exatamente o que seu passaporte dizia: pasteur en retraite, um
sacerdote aposentado, cuja melhor expectativa seria uma vaga de

343
capelão num hospital ou um chalé no campo, onde poderia distrair-se
com seus livros e seu jardim. Ao cair da noite, os demônios insidiosos
da depressão voltaram a acometê-lo e o médico teve de fazer-lhe uma
preleção sobre os acessos maníaco-depressivos e a maneira de controlá-
los. A preleção terminou com uma surpresa:
— Determinei um encefalograma para depois de amanhã. Se o
resultado for o que estou esperando, poderemos pensar em conceder-lhe
alta dentro de mais alguns dias. Não há muito mais que possamos fazer
para ajudá-lo. Terá de fazer checkups trimestrais, exercícios regulares e
precisará, pelo menos no início, de alguma ajuda na vida doméstica.
Talvez queira pensar nessa perspectiva. Voltaremos a conversar
amanhã, está bem?
Depois que o médico se retirou, Jean Marie verificou o calendário em
sua agenda. Era o dia 15 de dezembro. E mais 10 dias e seria Natal. Ele
ficou pensando onde poderia passá-lo e a quantos mais Dias da
Natividade o mundo poderia assistir, porque Petrov não conseguira
obter os cereais necessários e os Exércitos soviéticos marchariam ao
primeiro degelo.
Ele tratou de se censurar. Menos de cinco minutos antes, o médico
lhe dissera que não deveria ficar remoendo pensamentos sombrios.
Estava quase na hora das visitas. Jean Marie arrumou-se com extremo
cuidado, vestiu um pijama limpo... apenas para provar que sua recém-
adquirida capacidade de trocar de roupa sozinho não era uma ilusão...
pôs um roupão e chinelas, pegou uma bengala e pôs-se a desfilar
cuidadosamente pelo corredor, mas também ostentosamente, acenando
em cumprimento a seus companheiros das sessões de terapia.
O que fora mesmo que Mr. Atha dissera? Devemos ter panache! O
inglês sempre traduzia como classe, mas tinha muito mais floreio do
que a mera classe. Floreio! Isso era sensacional! Estava agora sendo
capaz de coordenar os pensamentos em duas línguas. Devia tentar
também praticar um pouco de alemão, antes de tornar a encontrar-se
com Carl Mendelius . A última carta de Lotte... de quando era datada?
O que ela dissera a respeito de seus planos e movimentos? Jean Marie
voltou pelo corredor, respondendo ao cumprimento da enfermeira da
noite, que lhe disse:
— Ora, mas como estamos ficando desenvoltos!
Respondeu também à saudação do servente jamaicano, um pulo, um
passo, um arrastar dos pés e um convite:
— Vamos cair na dança, cara!
Ele vasculhou a primeira gaveta da cômoda... toda uma seqüência de
pequenos movimentos executados sem a menor dificuldade!...

344
encontrou a carta de Lotte e depois se sentou na cadeira de rodas para
lê-la. Estava datada de 1º de dezembro.

... "Nosso querido Carl está ficando mais forte a cada dia que passa.
Ele se tornou extremamente hábil com o artefato protético que lhe
substitui a mão esquerda. Há bem poucas coisas que não pode fazer
sozinho. Infelizmente, ele perdeu uma das vistas e usa agora uma venda
preta por cima. Isso e mais as outras lesões no mesmo lado do rosto lhe
proporcionam uma aparência muito sinistra de pirata. Temos agora uma
nova piada familiar. Quando precisarmos de dinheiro, poderemos
empregar papai num seriado de televisão como A Ilha do Tesouro ou O
Mar dos Piratas!
Johann, Katrin e mais um pequeno grupo de amigos já estão no vale
há quase um mês. Estão tentando tornar os prédios principais habitáveis
e acumular suprimentos suficientes, antes da chegada do inverno. Carl e
eu iremos encontrar-nos com eles no vale na próxima semana.
Vendemos nossa casa em Tübingen, toda mobiliada. Assim, teremos de
levar apenas os livros de Carl e os poucos pertences pessoais que ainda
significam alguma coisa em nossas vidas. Pensei que seria um suplício
deixar Tübingen depois de tantos anos. Mas tal não acontece. Não
importa muito para onde vamos agora, quer seja a Baviera ou os Mares
do Sul.

E como está você, querido amigo? Guardamos todas as suas


mensagens. Acompanhamos seus progressos pela caligrafia... e é claro
que através também das cartas de seu gentil amigo na Inglaterra, Waldo
Pearson. Aguardamos ansiosamente o recebimento de um exemplar do
seu livro. Carl está morrendo de vontade de conversar com você a
respeito, mas compreendemos por que hesita em usar o telefone.
Também me sinto inibida, especialmente quando estou falando para o
exterior. Começo a balbuciar e gaguejar, acabo gritando por Carl.

Quando vão deixá-lo sair do hospital? Carl insiste, assim como nós,
que venha imediatamente encontrar-se conosco na Baviera. Somos a
sua família... e Anneliese Meissner diz que é muito importante que
você siga diretamente do hospital para um lugar seguro. Ela também
pode passar algum tempo das férias de inverno conosco, na Baviera.
Ela é muito afeiçoada a Carl. Eles são muito bons um para o outro e
aprendi a não sentir ciúme dela, assim como também aprendi a não
sentir ciúme de você. Assim que souber quando terá alta, envie um
telegrama para o endereço bávaro que lhe fornecemos. Voe direto para

345
Munique e estaremos à sua espera no aeroporto, a fim de levá-lo para o
nosso vale.
Carl fica ansioso de vez em quando. Receia de que as fronteiras
possam ser fechadas antes que você tenha tempo de vir encontrar-se
conosco. Há uma grande tensão por toda parte. Mais e mais tropas
americanas e britânicas estão sendo deslocadas para a Renânia. Pode-se
observar a passagem de incontáveis comboios militares. A tônica da
imprensa é francamente chauvinista e o clima na universidade é muito
estranho. Há um constante recrutamento de especialistas e também,
como já era de se esperar, as rigorosas medidas de segurança que Carl e
Anneliese tanto temiam. O mais extraordinário é que poucos estudantes
protestam. Eles também estão afetados pela febre da guerra, de uma
forma que jamais se poderia prever. É um terrível choque ouvir todos
os antigos clichês e slogans! Agradeço a Deus todos os dias pelo fato
de Johann e Katrin estarem longe... A loucura contagia a todos nós.
Mesmo Carl e eu nos descobrimos a usar frases que ouvimos pelo rádio
ou televisão. É como se todas as antigas e sinistras divindades
teutônicas estivessem sendo chamadas de suas cavernas. Mas imagino
que todas as nações possuem as suas galerias subterrâneas de deuses
guerreiros"...

Uma voz rude e transatlântica interrompeu a leitura:


— Boa-noite, Santidade!
Jean Marie levantou os olhos para deparar com Alvin Dolman,
encostado no umbral da porta e sorrindo. Dolman também estava de
pijama e roupão, segurando um embrulho em papel pardo.
Por um momento, Jean Marie ficou completamente atordoado com a
insolência sardônica do homem. Depois, sentiu uma raiva intensa a
ferver-lhe interiormente. Fez um esforço para reprimi-la, com uma
prece rápida e desesperada para que a língua não lhe falhasse e o
deixasse envergonhado na presença do inimigo. Dolman avançou pelo
quarto e foi acomodar-se insolentemente na beira da cama. Jean Marie
nada disse. Estava agora no pleno controle de si mesmo. Esperaria que
Dolman declarasse o que estava querendo.
— Parece estar muito bem — comentou Dolman, cordialmente. — A
enfermeira me disse que terá alta em breve.
Jean Marie continuou calado.
— Vim trazer-lhe um exemplar encadernado de A Fraude —
acrescentou Dolman. — Vai encontrar dentro uma lista das pessoas que
demonstraram o maior prazer em traí-lo. Achei que ficaria satisfeito em
lê-la. Não vai ajudar coisa alguma nos tribunais, é claro. Mas também

346
nada ajuda, num caso como este. Qualquer que seja o veredicto, a lama
já estará espalhada.
Ele pôs o pacote na mesinha-de-cabeceira. Depois, tornou a pegá-lo e
abriu-o parcialmente.
— Isso é apenas para provar que não se trata de uma bomba, como a
que mandei para Mendelius. Não há necessidade de tomar tal
providência em seu caso, não é mesmo? Afinal, já é agora uma carta
fora do baralho.
— Por que me veio procurar?
A voz de Jean Marie era fria como a geada.
— Para partilhar uma piada com você — respondeu Alvin Dolman.
— Achei que iria gostar. A verdade é que vou ser submetido a uma
intervenção cirúrgica amanhã. E este era o único hospital de Londres
que podia aceitar-me às pressas. Estou com câncer no intestino. Vão
tirar a parte atingida e substituí-la por uma pequena bolsa, que
carregarei pelo resto da vida. Estou perguntando-me agora se realmente
vale a pena tanto trabalho. Disponho de todos os instrumentos para uma
saída de cena rápida e sem dor.
— Gostaria de saber por que hesita — disse Jean Marie. — O que há
em sua vida ou em si mesmo que considera tão valioso?
— Não muita coisa — respondeu Dolman, sorrindo. — Mas acontece
que estamos armando um drama infernal... a grande explosão que vai
acabar com todo o nosso passado e talvez com o futuro também! Talvez
valha a pena esperar para assistir ao espetáculo de camarote. E ainda
posso optar pela saída de cena depois. Você é o homem que profetizou
a coisa. O que pensa de tudo isso?
— Por menos que valha a minha opinião, vou dizer-lhe o que penso.
Você está apavorado... tão apavorado que precisa de empenhar-se no
jogo tolo do escárnio! Quer que eu sinta medo como você... e de você!
Mas não vou ter! ... Em vez disso, estou triste, porque sei como se está
sentindo, como tudo parece sem sentido... e como um homem pode
parecer inútil a si mesmo! Esta é apenas a segunda vez em que nos
encontramos. Nada sei a respeito do resto de sua vida ou o que fez a
outras pessoas. Mas como se sente em relação ao que fez a Mendelius e a
mim?
— Indiferente! — A resposta foi imediata e categórica. — Apenas
aquela velha história do cumprimento do dever. Fui treinado para isso e
é o que faço. Não contesto as ordens que recebo. Não faço julgamentos
a respeito delas... boas ou más, sãs ou insanas. Se o fizesse, estaria num
hospício. A humanidade é uma tribo doida. Não há esperança para ela.
Encontrei uma profissão em que posso aproveitar-me da loucura.

347
Trabalho para o que é, com o que é. Cumpro todos os contratos. As
únicas coisas em que não me envolvo são amor e ressurreição. No final
das contas, no entanto, estou pelo menos na mesma situação que você.
Você e os outros vêm apregoando a salvação através do Senhor Jesus
há 2 mil anos... e veja agora até que ponto isso os levou! Pense onde
está neste momento!
— Você também está aqui — disse Jean Marie, suavemente. — E
veio por sua própria iniciativa. Isso implica algo mais do que apenas
indiferença.
— Curiosidade. Eu queria ver como você estava. E devo dizer que
parece muito bem.
— A explicação ainda não é suficiente!
— Está bem, vou dizer-lhe tudo. — Dolman inclinou a cabeça para o
lado, como um pássaro predatório contemplando sua vítima. — Quando
tudo isso começou, fui eu quem recomendou liquidá-lo. Apresentei uma
dúzia de planos simples. Todos se esquivaram a uma decisão, a exceção
dos franceses. Eles sempre foram adeptos de soluções rápidas e
indolores. Mas Duhamel interveio. Concedeu-lhe um passaporte
especial e espalhou a notícia de que iria liquidar quem quer que tentasse
liquidá-lo. Depois que você chegou à Inglaterra, a liquidação parecia
uma solução menos proveitosa. E quando sofreu o derrame, tornou-se
claramente desnecessária... O argumento foi o de que seria melhor
desacreditá-lo do que transformá-lo num mártir.
Ele fez uma pausa, pensativo, antes de continuar:
— Mas eu nunca pensei assim. Quando me deram ontem a notícia de
que teria de submeter-me a uma operação e que ficaria carregando o
meu próprio excremento pelo resto da vida, pensei imediatamente: por
que não liquidar dois coelhos com uma só cajadada... primeiro a você e
depois eu mesmo? Lembrei-me daquela noite em Tübingen, quando
disse que me conhecia e ao espírito que habitava em mim. Acho que
nunca odiei ninguém tanto quanto o odiei naquele momento.
Dolman meteu a mão no bolso do roupão e tirou uma caneta de ouro.
Estendeu na direção de Jean Marie.
— Isto é a Morte em uma de suas vestimentas mais elegantes... uma
cápsula de gás letal suficiente para liquidar a nós dois... a não ser que
eu cubra o nariz com isto, enquanto sopro o gás em você.
Ele cobriu o nariz e a boca com um lenço, enquanto apontava a
caneta para o rosto de Jean Marie. Jean Marie continuou imóvel,
observando-o. E disse, calmamente:
— Há muito tempo que aceito a morte como algo inevitável. Estaria

348
prestando-me um favor, Alvin Dolman.
— Sei disso. — Dolman tornou a guardar no bolso o lenço e a
caneta, fez um gesto cômico de resignação. — Acho que eu apenas
precisava de provar isso a mim mesmo.
Ele se inclinou e pegou o pacote parcialmente aberto na mesinha-de-
cabeceira. E acrescentou, dando de ombros:
— De qualquer forma, seria uma piada de mau gosto. Vou voltar
para o meu quarto.
— Espere um instante. — Jean Marie levantou-se lentamente. —
Vou acompanhá-lo até o elevador.
— Não precisa incomodar-se. Posso encontrar o caminho sozinho.
— Há muito tempo que você perdeu o seu caminho. — O tom de
Jean Marie era sombrio. — Jamais conseguirá encontrá-lo sozinho.
O rosto de Dolman transformou-se subitamente numa máscara pálida
de raiva.
— Eu disse que posso encontrar o caminho sozinho!
— Por que ficou tão zangado por causa de uma cortesia?
— Deveria saber o motivo! — Dolman estava agora sorrindo, um
ricto de júbilo silencioso que era mais terrível do que uma gargalhada.
—Disse-me em Tübingen que conhecia o nome do espírito que
habitava em mim!
— E sei mesmo. — Jean Marie falava com uma autoridade serena e
um humor sutil. — O nome dele é Legião. Mas não vamos exagerar o
drama, Mr. Dolman. Não está possuído por demônios. É um habitai de
demônios... demônios demais para um homem idoso levar dentro de si!
A máscara tensa e sorridente desmoronou num rosto cansado de
meia-idade... o rosto de um clochard envelhecido, que desperdiçara
todas as suas oportunidades e agora não tinha para onde ir.
— Sente-se, Mr. Dolman — disse Jean Marie, gentilmente. —
Vamos tratar-nos mutuamente como simples seres humanos.
— Não está entendendo a coisa — murmurou Alvin Dolman,
parecendo extenuado. — Convocamos os nossos demônios porque não
podemos conviver com nós mesmos.
— Ainda está vivo. Ainda está suscetível à mudança, aberto à
misericórdia de Deus.
— Não me está querendo ouvir! — O sorriso tenso estava de volta.
— Posso parecer como qualquer outra pessoa, mas não o faço. Sou de
uma raça diferente... Somos cães assassinos. Tente mudar-nos, tente
domesticar-nos... enlouquecemos e o destruímos. Tem muita sorte por
eu não tê-lo matado esta noite.

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Ele saiu do quarto sem dizer mais nada. Jean Marie foi até a porta e
ficou observando-o claudicar pelo corredor comprido, com o pacote de
papel pardo debaixo do braço. Lembrou-se da velha história do
demônio coxo, que vagueava pela cidade à noite, levantando os
telhados das casas, a fim de mostrar o mal que ali habitava. Pelo que ele
podia recordar, o demônio coxo jamais encontrara o bem em qualquer
parte. Jean Marie perguntou-se, tristemente, se o demônio coxo era
míope ou tinha uma visão aguçada demais para ser feliz. A menos que
se acreditasse num Criador generoso e em alguma espécie de graça
salvadora, o mundo era um bom lugar para se deixar... especialmente
quando se era um assassino de meia-idade, com câncer no intestino.
Naquela noite, ele ofereceu a oração das completas por Alvin
Dolman. No dia seguinte, ao meio-dia, telefonou para a enfermeira do
andar de Dolman. Foi informado de que Mr. Dolman morrera durante a
noite, de uma parada cardíaca inexplicável. Estava sendo providenciada
uma autópsia para determinar a causa da morte. Seus documentos e
pertences pessoais já haviam sido levados por um representante da
Embaixada dos Estados Unidos.
Jean Marie não podia ignorar sumariamente um homem que, embora
maléfico, fora um elemento no concerto divino. Vidas haviam sido
encerradas, vidas prejudicadas e vidas enriquecidas, mesmo que apenas
por um momento, pela presença de Dolman no planeta. Não era
suficiente ater-se ao julgamento sem o amor dos puritanos:
— O perdão foi oferecido, o perdão foi rejeitado. Ele seguiu o
caminho inevitável da própria perdição.
Jean Marie Barette, antes um Papa, tinha muita experiência do
paradoxo para acreditar que o Todo-Poderoso dispensava a justiça da
fronteira. Independente do que dissessem as Escrituras, não era possível
dividir o mundo em preto e branco. Ele próprio tivera a graça de uma
revelação... e fora levado à cogitação do suicídio. Recebera uma missão
de proclamar as Últimas Coisas, mas fora emudecido no momento de
anunciá-las. Assim, talvez não fosse tão estranho ver no suicídio de
Dolman um ato de arrependimento e na visita dele uma vitória sobre o
assassino que habitava em seu corpo. Não eram verídicas as histórias
contadas por Vovô Barette, de homens mordidos por cães raivosos?
Eles sabiam que a morte era inevitável. Assim, para não contagiarem
suas famílias, preferiam estourar os miolos com uma espingarda de
caça ou se trancavam numa cabana nas montanhas e uivavam até a
morte.
Mais uma vez, Jean Marie estava de volta às trevas, ao mistério
aterrador do desespero e do mal, de quem era salvo e quem não era,

350
quem era em última análise responsável por toda aquela terrível
confusão. Quem gerou o homem que treinou o cão assassino? E quem
era o imperador cósmico que olhava lá de cima, numa eterna
indiferença, enquanto o filho era dilacerado pelo cão?
Era apenas meio-dia, mas a escuridão da meia-noite envolveu-o
novamente. Ele desejou que Mr. Atha estivesse ali, a fim de levá-lo ao
ginásio, arrancá-lo das trevas e conduzi-lo ao centro de luz.

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CAPÍTULO 14

Mr. Atha retornou à vida de Jean Marie tão casualmente quanto saíra.
Naquela noite, quando Jean Marie jantava, ele entrou no quarto,
contemplou-o de alto a baixo, como se fosse alguma peça numa
exposição de flores, sorriu em aprovação.
— Estou vendo que fez um esplêndido progresso. — Ele pôs um
pequeno embrulho na bandeja. — Aqui está a sua recompensa.
— Senti sua falta. — Jean Marie estendeu as duas mãos para
cumprimentá-lo. — Olhe só! As duas estão funcionando! Fez uma boa
viagem?
— Foi... movimentada. — Como sempre, Mr. Atha era evasivo em
relação a si mesmo. — Está muito difícil viajar agora. Há demoras em
todos os aeroportos, muitas intervenções da polícia e dos militares. As
pessoas estão desconfiadas e com medo... Mas olhe o seu presente.
Jean Marie abriu o pacote e encontrou uma bolsa de couro mole,
dentro da qual havia uma pequena caixa de prata, com uma gravação
intrincada. Mr. Atha explicou:
— A gravação é de invocações a Alá. Há um velho em Alepo que
costumava fazê-las. Ele está cego agora. Foi o filho quem fez essa
gravação. Abra a caixa.
Jean Marie abriu a caixa. Lá dentro, aninhado em seda branca, havia
um anel antigo. Era de ouro, a pedra uma esmeralda clara, com a
cabeça de um homem esculpida, ao estilo de camafeu. A esmeralda
estava gasta e arranhada, como um seixo desgastado pelo movimento
do mar. Mr. Atha contou a história:
— Esse anel me foi dado por um amigo em Istambul. Ele disse que

352
certamente é do primeiro século da era cristã e provavelmente veio da
Macedônia. Há uma inscrição meio apagada em grego atrás da pedra.
Precisa de olhos jovens ou de uma lente de aumento para lê-la. Mas diz
o seguinte: "Timóteo para Silvano. Paz!" Meu amigo acha que pode ter
alguma relação com o Apóstolo Paulo e seus dois companheiros,
Silvano e Timóteo... Quem sabe? Pensei que poderia gostar de usar este
anel, já que renunciou ao anel do Pescador.
Jean Marie estava profundamente comovido. Por trás da lembrança
de Mr. Atha havia muita preocupação e ternura. Jean Marie meteu o
anel no dedo. Ajustava-se perfeitamente. Tornou a tirá-lo e pôs de volta
na caixinha de prata, dizendo:
— Obrigado, meu amigo. Se minhas bênçãos servem para alguma
coisa, então as tem todas. — Ele soltou uma risadinha hesitante. —
Imagino que se precisa de alguma fé, mas não seria maravilhoso se
fosse de fato um presente de Timóteo para Silvano? Eles estiveram
juntos na Macedônia. Isso está evidente na carta de Paulo aos
tessalonicenses. Deixe ver se consigo lembrar... "Paulo, Silvano e
Timóteo, à igreja dos tessalonicenses, em Deus Pai e no Senhor Jesus
Cristo"...
Jean Marie franziu o rosto, procurando recordar as palavras
seguintes. E acabou murmurando:
— Desculpe-me. Não consigo recordar o resto.
— ... "Graça e paz a vós outros!" — Mr. Atha concluiu a citação.
— "Damos sempre graças a Deus por todos vós."
Jean Marie ficou aturdido.
— Eu sabia que você era um crente. Não podia deixar de ser.
Ele usou a palavra francesa croyant. Mr. Atha sacudiu a cabeça.
— Não, não sou um crente. Acontece que fui criado na tradição
judaica, mas não posso fazer pessoalmente o ato de fé. Quanto à citação
nos Tessalonicenses, li a carta quando meu amigo me falou sobre a
possível proveniência do anel. Pareceu-me bastante apropriada: "Graça
e paz a vós outros!"... E agora vamos falar a seu respeito. Já foi
submetido a todos os testes e os resultados são ótimos.
— Graças a Deus! Os médicos dizem que poderiam conceder-me alta
imediatamente. Mas preferem que eu continue aqui por mais três ou
quatro dias. Posso deixar o hospital durante o dia e voltar ao cair da
noite. Dessa maneira, eles podem controlar minhas primeiras reações à
tensão física e psíquica.
— E ficará surpreso com o quanto terá de agüentar — comentou Mr.
Atha.
— E vai ficar ao meu lado? Leve-me a passear por Londres... e não

353
poderia também voar comigo até Munique e entregar-me a meus
amigos? Eu gostaria de passar o Natal com eles. E tenho certeza de que
vão gostar também da sua companhia. Não quero afastá-lo de outras
pessoas que precisam de você, mas é que estou sem prática nas coisas
mais simples.
— Não precisa dizer mais nada. Pode contar com a minha
companhia. Sempre tive a intenção de acompanhá-lo até que estivesse
inteiramente recuperado. É um cliente bastante especial... apesar de sua
péssima reputação!
— Isso só pode significar...
— Isso mesmo. Também li o outro livro. Pelo que sei, foi proibido
por ação judicial em alguns países. Mas estava disponível nos lugares
em que estive... e vendendo muito bem. É uma caricatura vergonhosa.
— Mesmo assim, vai prejudicar uma porção de pessoas —
murmurou Jean Marie, sombriamente. — Especialmente a Roberta.
— Nem tanto — disse Mr. Atha. — Tudo estará esquecido antes do
final do ano.
— Eu gostaria de sentir-me tão confiante.
— Não é uma questão de confiança, mas de simples fato. Estaremos
em guerra antes do Ano-Novo.
Jean Marie ficou boquiaberto, num espanto total.
— Como pode dizer uma coisa dessas? Todas as estimativas que ouvi
nos davam um prazo até a primavera pelo menos, possivelmente até o
verão.
Mr. Atha explicou, pacientemente:
— É que todas as estimativas estão baseadas nas avaliações dos
manuais... uma guerra convencional por terra, mar e ar, escalando para
um uso limitado de armas nucleares táticas, com as maiores sendo
mantidas em reserva para as negociações. A lógica da história é a de
que não se começa uma guerra assim no inverno... muito menos entre a
Rússia e o resto da Europa ou entre a Rússia e a China. Mas receio,
meu amigo, de que a lógica da História já foi abandonada. Eles vão
começar desta vez com os maiores fogos de artifício, na premissa de
que sairá vitorioso quem atacar primeiro e que o resultado será decidido
numa semana... Ah, como eles sabem tão pouco!
— E o quanto você sabe? — Jean Marie estava agora cauteloso e
havia um tom áspero em sua indagação. — Que provas pode
apresentar?
— Nenhuma — respondeu Mr. Atha, calmamente. — Mas também
que provas você pode apresentar de sua visão... ou mesmo do que
escreveu nas Últimas Cartas de um Pequeno Planeta? Creia no que lhe

354
estou dizendo. Vai acontecer... e não haverá qualquer aviso prévio. O
que estamos presenciando agora... movimentos de tropas, exercícios de
defesa civil, reuniões de ministros... não passa de uma grande
encenação. É a tradição, as pessoas esperam por tais coisas e é o que os
governos lhes estão dando. Mas a realidade é muito diferente: homens
em cavernas de concreto, muito abaixo da superfície, homens em
cápsulas lá em cima, esperando pela ordem derradeira e fatal... Ouviu o
noticiário vespertino?
— Não.
— O Presidente da França chega amanhã a Londres para
conversações de emergência em Downing Street. Seu amigo Duhamel
virá com ele.
Jean Marie largou o garfo, ruidosamente.
— Como sabe que Duhamel é meu amigo?
— Ele está mencionado em A Fraude.
— Oh! — Jean Marie estava constrangido. — Não li o livro... Tenho
minhas dúvidas se Duhamel concordaria com a sua interpretação dos
acontecimentos globais.
— Isso não faz a menor diferença.
— Faz para mim! — Ele falou asperamente e no mesmo instante se
arrependeu. — Desculpe-me. Foi uma grosseria da minha parte. Há
uma história comprida entre mim e Duhamel. Não gostaria de entediá-
lo com o relato.
— Nunca fico entediado. Sou apaixonado demais por este pequeno
mundo. Fale-me a respeito de Duhamel.
Jean Marie levou um longo tempo para contar, desde o momento do
seu primeiro telefonema do gabinete do irmão Alain à determinação de
Duhamel de acabar tudo no Dia do Rubicão e à taça do cosmo, que era
o símbolo do vínculo entre os dois.
Quando a história terminou, Mr. Atha acrescentou seu comentário:
— E agora está querendo tudo arrumadinho e preso com uma fita
rosa, com Duhamel e a mulher seguros nos braços da Eterna
Misericórdia. É isso?
— É, sim! — disse Jean Marie, veemente. — Seria maravilhoso
saber que alguma coisa estava acertada na salvação.
— Receio de que isso nunca será possível. A matemática é
complicada demais para os cálculos humanos... Tenho de deixá-lo
agora. Virei buscá-lo às 10:30 horas da manhã. E espero encontrá-lo
devidamente vestido e em seu juízo perfeito!

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Era extraordinário como, à sombra da predição de Mr. Atha, os
prazeres mais simples tornavam-se excepcionalmente preciosos: a visão
de crianças brincando no parque, os rostos das mulheres olhando as
vitrinas, a alegria das decorações de Natal, até mesmo a chuva miúda
que os levou a procurar abrigo no conforto de um pub inglês.
Com Mr. Atha, Jean Marie sentia o mesmo companheirismo fácil que
desfrutara nos primeiros anos de sua amizade com Carl Mendelius. Mas
havia uma diferença. Com Mendelius, sempre houvera os momentos
explosivos... de raiva diante de uma injustiça, de excitamento por
alguma idéia recentemente apreendida, de emoção por um vislumbre de
beleza oculta. Mr. Atha, ao contrário, era inexoravelmente calmo, como
um vasto rochedo num mar turbulento. Ele não comunicava emoção.
Compreendi-a. Absorvia-a. O que dava em troca era uma sensação
quase física de paz e repouso.
Se Jean Marie ficava surpreso, Atha de alguma forma ampliava a
surpresa para espanto e o espanto para uma iluminação serena. Se Jean
Marie ficava triste, como às vezes acontecia, diante de um mendigo
dormindo ao relento num beco, uma jovem caçando homens numa
esquina, uma criança com as marcas de crueldade ou negligência, Mr.
Atha transformava a tristeza numa esperança que não parecia
incongruente, mesmo com a ameaça de Armagedom.
— Em terra mais pobre e mais simples, respeitamos os mendigos e
honramos os loucos. Os mendigos nos lembram nossa própria sorte e os
loucos são abençoados por Deus com visões negadas aos outros.
Experimentamos cataclismas, mas os encaramos em termos de
continuidade e não de encerramento... O mais estranho é que os homens
que descobriram os segredos do átomo vão agora usar esses mesmos
segredos para se destruírem.
— O que há em nós que nos leva inevitavelmente ao precipício?
— Foi ensinado desde criança. O homem é feito à imagem e
semelhança de Deus... Isso significa que é uma criatura de recursos
quase inacreditáveis, de potencial tremendo.
— Que ele sempre usa erroneamente.
— Porque é incapaz de aceitar a própria mortalidade. O homem
sempre pensa que pode enganar o carrasco.
— Pensei que me tivesse dito que não era um crente.
— E não sou. A crença é-me impossível.
— Relativa ou absolutamente?
Jean Marie o estava provocando, com uma questão teológica.
— Absolutamente — responde Mr. Atha. — E agora vamos pegar

356
um taxi. Waldo Pearson quer que você esteja no Carlton Club
exatamente ao meio-dia e meia.
— Você também foi convidado.
— Sei disso. E estou devidamente lisonjeado. Mas tenho certeza de
que Pearson e Duhamel preferem recebê-lo sozinho.
— Duhamel? Eu não sabia que ele estaria lá.
— Fui eu que sugeri — informou Mr. Atha, jovialmente. — Afinal, é
uma refeição de despedida... Irei buscá-lo às duas e meia.
Era estranho voltar ao salão em que sofrerá o derrame, um pouco
constrangedor trocar acenos ou cumprimentos com os homens que
haviam testemunhado seu colapso. O almoço era outro momento de
testemunho, no sutil estilo britânico, mas soando claro como trombetas
a todos os que estavam familiarizados com os rituais do reino. Waldo
Pearson estava no fundo dizendo a todos:
— Este homem ainda é meu amigo. As coisas que leram a respeito
dele não passam de mentiras. Se alguém pensa em contrário, então que
eleve a voz para me dizer!
A presença de Pierre Duhamel era também um testemunho
convincente de seu bom caráter. O Presidente da República estava
almoçando em Downing Street. Seu assessor de maior confiança estava
no Carlton Club, à vista de todos, desmentindo uma calúnia contra Jean
Marie Barette. Mas Duhamel descartou o assunto logo no início do
almoço:
— Isso nada significa! Não tem a menor importância. É como algum
rabisco nas ruínas, não restando ninguém para ler. Não concorda,
Waldo?
— Infelizmente, tenho de concordar. Estamos diante de um Natal
sombrio e de um Ano-Novo incerto. Você poderia ser agora pior do que
os Bórgia que ninguém se importaria, Jean.
— Fui informado de que talvez não cheguemos ao novo ano — disse
Jean Marie, cuidadosamente.
Pearson e Duhamel trocaram olhares ansiosos. Duhamel perguntou,
com alguma ironia:
— Outra visão?
— Não — respondeu Jean Marie, dando de ombros. — Desta vez foi
Mr. Atha, meu terapeuta.
— Neste caso, podemos desfrutar o almoço — disse Waldo Pearson,
com um alívio evidente. — Recomendo as costelas de cordeiro e o
Borgonha do clube. Eu mesmo o escolhi e não encontrariam melhor na
mesa do Presidente.

357
Jean Marie não estava disposto a ser dissuadido de alguma conversa
de maneira tão sutil, nem mesmo por Waldo Pearson. Virou-se para
Pierre Duhamel e perguntou:
— Estamos muito longe do Dia do Rubicão?
— Não muito — respondeu Duhamel, sem a menor hesitação. — As
tropas do Pacto de Varsóvia já estão mobilizadas na Europa. Tropas
soviéticas também estão em posição de ofensiva ao longo das fronteiras
da China, Irã, Iraque e Turquia. As disposições e forças correspondem à
ordem de batalha conhecida deles e ao estágio dois da prontidão de
combate.
— E o que representa o estágio dois? — perguntou Jean Marie.
— Significa basicamente que eles estão prontos para enfrentar
qualquer ataque durante o inverno e que as tropas em posição podem
ser rapidamente reforçadas para uma ofensiva no início da primavera. É
justamente isso o que todos esperamos.
— Eles estão seguindo o manual — comentou Waldo Pearson. —
Até os menores detalhes.
— Mas vamos supor que haja um manual diferente — disse Jean
Marie. — A ordem de batalha é invertida e a grande explosão ocorre
primeiro.
— A disposição das tropas russas indica que eles não farão isso.
Waldo Pearson falava com a sólida convicção britânica.
— E se formos nós que estivermos com um manual diferente?
— Sem comentários — disse Pierre Duhamel.
O garçom trouxe o vinho. Waldo Pearson cheirou-o, provou,
anunciou que ainda estava orgulhoso dele e autorizou a que fosse
servido. Ele levantou seu copo para um brinde a Jean Marie:
— À sua boa saúde permanente e ao sucesso permanente do livro!
— Obrigado.
— Li o livro. — Pierre Duhamel não hesitou no elogio. — E Paulette
também. Ela riu e chorou com o seu pequeno fantoche. E eu? Comecei
por admirar a habilidade de sua invenção e a elegância do estilo.
Depois, descobri-me a argumentar com seu Jeannot... algumas vezes a
favor, outras contra. Ao final... como se pode dizer?... o livro não
resolveu os problemas deste terrível século XX, mas me deixou um
gosto bom na boca... Como o seu vinho, Waldo!
— Meus agradecimentos aos dois. — Jean Marie ergueu o próprio
copo. — Sou abençoado em meus amigos.
— O cordeiro! — exclamou Waldo Pearson. — Ganhamos o
primeiro corte. É por isso que gosto de chegar aqui no momento exato.
Jean Marie estava aturdido. A insistência de Pearson em se ater às

358
banalidades durante a refeição parecia estranha e despropositada para
um homem tão vigoroso e inteligente. Mas quando Pearson saiu da
mesa para atender a um telefonema, Duhamel explicou, com um
comentário tipicamente parisiense:
— Tão britânico! Ele sabe que é a despedida. E não sabe como dizê-
lo. É por isso prefere falar sobre as costeletas de cordeiro! Santo Deus,
mas que raça!
— Sou um idiota! — E para disfarçar seu embaraço, Jean Marie
apressou-se em acrescentar: — Teve notícias de Roberta?
— Não. Ela está sempre viajando.
— Se a encontrar, transmita-lhe o meu amor.
— Está certo.
— E a Paulette também.
— Jean, meu amigo, deixe-me dar-lhe um último conselho.
— Pode falar.
— Pense em si mesmo! Não se preocupe comigo, Roberta, Paulette
ou qualquer outra pessoa! Todos dispomos de uma linha de
comunicação com o nosso Deus particular... quem quer que Ele possa
ser! Se Ele estiver lá, falará conosco. Se não estiver, então todo o jogo
não passa de uma blague. Tome mais um pouco de vinho!

— O almoço foi bom? — perguntou Mr. Atha.


— Foi uma despedida — respondeu Jean Marie Barette. —
Apertamo-nos as mãos. Eu falei: "Obrigado por um almoço muito
agradável." Ao que Waldo comentou: "Foi um prazer ter a sua
companhia, meu caro amigo." E Duhamel arrematou: "Mas que frases
horríveis para uma despedida!" Todos rimos e seguimos por nossos
caminhos separados.
— Parece bastante apropriado — disse Mr. Atha. — Já peguei nossas
passagens de avião e contratei um carro para levar-nos ao aeroporto. O
vôo parte às 11 horas. Descontando uma hora normal de atraso,
deveremos estar em Munique por volta das duas horas da tarde. Quando
voltarmos ao final da tarde, aprontarei os cheques para você assinar,
pagando a conta do hospital e dando gorjetas aos funcionários. Assim,
não terá de se preocupar com essas coisas pela manhã.
— E depois está tudo acabado. Outro capítulo da minha vida
encerrado... sem mais nem menos!
Mr. Atha deu de ombros.
— Partir é morrer um pouco e morrer é muito simples. Há um ditado
entre os habitantes do deserto: "Nunca acene em despedida para a

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caravana. Você a seguirá em breve." E agora vamos comprar-lhe
algumas roupas mais quentes, caso contrário irá congelar no vale
alpino.

Estava nevando forte quando aterrissaram em Munique, o último


avião a chegar antes de o aeroporto ser fechado. Havia uma fila
comprida no controle de passaportes. A polícia de fronteira estava
verificando meticulosamente todos os estrangeiros. Jean Marie
perguntou-se se o seu nome estaria incluído na lista negra dos
indesejáveis. Mas, finalmente, lhe acenaram para que passasse pela
barreira para o salão da alfândega, onde havia outro amontoado de
viajantes angustiados. Mr. Atha conduziu-o até à saída e depois voltou
para esperar pela bagagem. Um momento depois, Jean Marie foi
apanhado num abraço forte por Johann Mendelius.
— Tio Jean! Conseguiu chegar! Está com uma aparência
maravilhosa! Mamãe e papai queriam vir, mas as estradas estão
horríveis. Preferi vir sozinho, no jipe, tendo de usar correntes para
passar pelo desfiladeiro.
Jean Marie deu um passo para trás e contemplou-o. Não restava
agora mais nada de menino em Johann. Era um homem, musculoso e
sólido. O rosto estava curtido pelos elementos, as mãos duras e calosas.
Jean Marie assentiu em satisfação.
— Vai dar tudo certo! Você parece um camponês de verdade!
— E é mesmo o que virei! Sou um camponês até a raiz dos cabelos!
Tivemos a maior dificuldade em tornar o vale habitável para o inverno,
mas conseguimos. Mas não espere qualquer coisa espetacular. Tudo o
que garantimos é uma comida rural e um abrigo contra o frio.
— Vai descobrir que sou bem fácil de satisfazer — comentou Jean
Marie.
— Toda a sua gente chegou em segurança.
— Minha gente?
— As que que mandou com a senha "O cosmos numa taça de vinho".
Chegaram em três grupos, nove pessoas no total. Estão todas
devidamente instaladas.
Algum instinto advertiu Jean Marie a não discutir o assunto. O
mistério se explicaria por si mesmo assim que chegasse ao vale. Ele se
limitou a acenar com a cabeça e dizer:
— Fico contente que não estejam causando qualquer problema.
— Ao contrário.
— Como estão sua mãe e seu pai e Katrin?
— Estão muito bem. Mamãe ficou com os cabelos grisalhos, mas até

360
que lhe fica bem. Papai anda de um lado para outro como um capitão
no convés, inspecionando tudo com seu olho bom e aprendendo a
manejar ferramentas com a mão mecânica. Katrin está grávida de dois
meses. Ela e Franz decidiram esperar um pouco e pedir-lhe que os case.
Mr. Atha abriu caminho através da multidão, com um carrinho de
bagagem. Johann fitou-o boquiaberto e depois desatou a rir.
— Eu o conheço! Foi você que... Mas isso é extraordinário, Tio Jean!
Esse homem...
— Não lhe diga agora! — advertiu Mr. Atha. — Deixe para depois.
As surpresas são boas para ele.
— Concordo plenamente! — Johann tornou a rir e pegou o braço de
Jean Marie. — Valeu a pena esperar.
Juntos, eles conduziram Jean Marie através da multidão, até a área de
saída. Enquanto Johann se afastava apressadamente para buscar o jipe
no estacionamento, Jean Marie virou-se para Mr. Atha, com uma
censura suave:
— Há muitas coisas a seu respeito que precisam ser explicadas, meu
amigo.
— Sei disso — respondeu Mr. Atha, à sua maneira tranqüila. — Mas
tenho certeza de que encontraremos uma ocasião e um lugar melhores
para isso... O rapaz é extraordinário!
— Johann? É mesmo. Ele amadureceu muito desde a última vez em
que nos encontramos.
Um pensamento súbito ocorreu-lhe. E ele se lamuriou em voz alta:
— É véspera de Natal! Eu estava tão preocupado comigo mesmo que
me esqueci de comprar presentes para a família... ou para você! Não
pode imaginar quanto o lamento!
— Não preciso de presentes e sou pago para lembrar-me dessas
coisas. Comprei algumas coisas antes de partirmos. Já estão
embrulhadas. Tudo o que precisa fazer é escrever os cartões. — Ele
sorriu e acrescentou: — Espero que aprove as minhas escolhas.
— Tenho certeza de que vou aprovar. Mas, desta vez, gostaria de não
ter qualquer surpresa. O que comprou?
— Para Frau Mendelius, lenços para a cabeça e lenços de bolsa de
renda; para o rapaz, um suéter de esquiador; para a moça, perfume; para
o professor, uma lente de aumento prismático para facilitar a leitura. Fiz
tudo certo?
— Excepcionalmente certo! Tem a minha eterna gratidão. Mas ainda
não está dispensado das explicações.
— Eu lhe prometo que as terá. E espero que as compreenda. Mas eis

361
que Johann já está de volta.
Eles ajudaram Jean Marie a embarcar no jipe, agasalharam-no com
uma manta e uma pelerine de pele de carneiro, depois partiram pela
auto-estrada, na direção de Garmisch.
Johann pôs-se a falar ansiosamente sobre a pequena comunidade no
vale:
— Nossas intenções eram muito vagas. Papai tinha a idéia de fundar
uma academia de pós-graduação. Eu pensava num lugar onde pudesse
refugiar-me com meus amigos, se por acaso nos metêssemos em
alguma encrenca com as autoridades. Deve estar lembrado que foi na
época em que estávamos comprando armas de Dolman e instituindo
uma organização clandestina na universidade... Depois, é claro, tudo
mudou. Tínhamos de ajudar papai a reconstituir sua vida e o vale
parecia um bom lugar para isso.
Ele fez uma breve pausa.
— Oito de nós fomos para lá, a fim de tornarmos as construções
habitáveis. Nós nos instalamos na cabana, trabalhando do amanhecer ao
anoitecer. O vale fica longe de todas as rotas importantes, como vai
verificar. Assim, não esperávamos muitos visitantes. Mas eles
começaram a aparecer... jovens na maioria, mas também algumas
pessoas mais velhas. Atribuímos ao fato de a Baviera ficar repleta de
turistas no outono. Há a Bierfest, a ópera e todos os desfiles de modas.
Recebemos visitantes de todos os tipos, italianos, gregos, iugoslavos,
vietnamitas, poloneses, americanos, japoneses. Disseram que gostariam
de ficar e ajudar. O que foi sensacional. Estávamos com uma
deficiência terrível de gente para trabalhar. Instituímos uma regra
simples: trabalhar e partilhar. E a coisa funcionou de maneira
espantosa! Até agora, conseguimos manter-nos juntos e somos uma
comunidade das mais diversificadas, conforme vai descobrir.
— As pessoas apresentaram alguma razão especial para juntar-se a
vocês? — perguntou Jean Marie.
— Não perguntamos — respondeu Johann. — Se alguém quer falar,
nós escutamos. Creio que se pode dizer que a maioria tem algumas
cicatrizes ocultas.
— E gostariam de nascer de novo sem elas — comentou Mr. Atha.
— Acho que se pode dizer assim — murmurou Johann, pensativo.
Ao chegarem aos primeiros contrafortes alpinos, Johann virou para o
sul e iniciaram uma subida longa e sinuosa por uma estrada rural, já
entre a neve. Pouco antes de a estrada terminar e começar uma trilha
esburacada de lenhadores, através de bosques de pinheiros, havia uma

362
pequena capela à beira da estrada, com o crucifixo de madeira habitual
e uma cobertura por cima. Johann diminuiu a velocidade do jipe,
— Foi aqui que encontramos Mr. Atha pela primeira vez, quando
estávamos pedindo carona, a caminho da Áustria. Perguntamos se ele
conhecia um bom lugar para acamparmos. Ele indicou a trilha em que
estamos entrando agora... Segure-se firme, Tio Jean! A viagem não será
fácil daqui por diante!
Foram 15 minutos de violentos solavancos, que ameaçaram
desprender os dentes. Mas, quando saíram do bosque, depararam com
um paredão alto e escuro de rocha, com a neve acumulada nas fendas.
Havia um desfiladeiro que parecia ter sido aberto por um machado
gigantesco. Devia ter provavelmente 100 metros de comprimento. A
outra extremidade estava fechada por uma paliçada de troncos
rachados, com imensos gonzos de ferro. Johann saltou do jipe e abriu a
paliçada. Voltou ao jipe e seguiu adiante, entrando numa depressão
grande em formato de pires, cercada por rochas escuras, que
gradativamente cediam lugar a pinheiros, até a vegetação mais densa na
área lá embaixo, em torno do lago. Johann parou o jipe. Mr. Atha saltou
para fechar novamente a barreira. Johann apontou para baixo, através
do turbilhão de neve.
— Não dá para ver muita coisa com este tempo. O lago é maior do
que parece aqui de cima. As luzes que pode divisar através das árvores
são da cabana principal e das cabanas menores, nos dois lados. A
catarata fica no outro lado e a entrada da velha mina está cerca de 50
metros à esquerda... Há muita coisa para mostrar, mas vamos logo para
casa. Papai e mamãe devem estar roendo as unhas de ansiedade.
Mr. Atha voltou ao jipe e desceram aos solavancos por uma trilha de
veados, na direção das luzes esparsas.

— Vamos tê-lo só para nós até a hora do jantar! — disse Lotte, na


maior felicidade. — Carl assim decidiu, como as leis dos medas e
persas. Nada de comitê de recepção. Nada de visitantes. Nada de
interrupções enquanto não tivermos passado tempo suficiente com o
nosso Jean Marie! Johann prometeu fazer-lhe companhia, Mr. Atha. Os
outros estão ocupados a decorar a árvore de Natal e preparar o jantar...
Todos tivemos de nos acostumar a dispor de menos espaço de moradia
e menos intimidade. Mas, no Natal, é bastante agradável, uma
comemoração um tanto tribal.
Estavam sentados em torno de uma velha estufa de porcelana, no que
fora outrora a sala dos criados, no pavilhão. Os móveis consistiam de
uma mesa de pinho, com livros empilhados por cima, um banco de

363
madeira e três velhas cadeiras de braços, escalavradas. Tomavam café,
misturado com conhaque, comiam bolinhos, ainda quentes do forno.
Lotte envelhecera rapidamente em poucos meses. Os últimos
vestígios da juventude haviam desaparecido e ela era agora uma
matrona de cabeça prateada, feições suaves e maternais, o sorriso fácil
de uma mulher em paz consigo mesma e com o mundo. Mendelius
emagrecera, mas ainda era um homem sólido e vigoroso. Um dos lados
do rosto estava devastado, coberto de cicatrizes e marcado pelos
minúsculos fragmentos ue haviam rompido os tecidos. A venda preta
sobre o olho lhe dava uma expressão maliciosa e ainda havia humor no
sorriso torto. Ele declarou que estava satisfeito com a aparência de Jean
Marie Barette.
— A manqueira não é nada! É apenas o suficiente para fazê-lo
parecer um distinto veterano de guerra. O rosto? Ora, eu não diria que
sofreu um derrame, se não soubesse. Não acha também isso, Lotte?
Além do mais, em comparação comigo, você parece o Davi de
Donatello! ... O fato é que ainda resta muita vida em nós dois, velho
amigo! O que acha deste lugar? Claro que não pode ver muita coisa
com a nevasca. Mas é tudo sensacional. Temos agora 40 pessoas aqui,
inclusive quatro crianças. Vai conhecê-las antes do jantar. E posso
garantir-lhe que será um jantar magnífico! Johann e seus amigos
trouxeram para cá 50 toneladas de alimentos no último mês. Os
bosques estão repletos de veados. Temos quatro vacas leiteiras no
estábulo. Vai sentir o cheiro delas esta noite, porque seu quarto fica
perto do estábulo... Celebrará a missa da meia-noite para nós, é claro.
Nem todos são cristãos. Mas superamos isso com o que chamamos de
"comunhão de amigos", ao jantar. Quem se sentir constrangido, pode
evitar, bastando para isso que chegue um pouco tarde para o jantar. Os
demais se sentam juntos, em silêncio, de mãos dadas. Se alguém sente
vontade de fazer uma oração pública, pode dizê-la. Se alguém quer
apresentar um testemunho ou pedir um relato de nosso dia comum, este
é o momento apropriado. E terminamos com o padre-nosso. Quase
todos acompanham. E, depois, jantamos... A coisa parece funcionar. Há
mais uma coisa que você deve saber.
Mendelius empertigou-se na cadeira. Seu tom tornou-se um pouco
mais formal:
— A escritura do vale está em meu nome e no de Lotte, com reversão
para as crianças. Mas chegamos à conclusão de que, como a maioria é
constituída de jovens, eu não era mais um líder apropriado. Assim, por
consentimento comum, Johann é o chefe da comunidade.
— E tudo está dando certo — disse Lotte, ansiosamente. — Não há

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mais qualquer rivalidade entre Carl e Johann. Eles se respeitam
mutuamente. Johann constantemente pede conselhos a Carl e a mim.
Sempre nos escuta com atenção... mas ao final é ele quem toma as
decisões. Contudo, todos gostaríamos que você ocupasse o lugar de
honra, à cabeceira da mesa... e tudo o mais!
— Nada disso, minha cara Lotte! — Jean Marie estendeu a mão
para afagar o rosto dela. — Acho que não está entendendo. Sou o
servidor dos servidores de Deus. Sentar-me-ei com você e Carl...
velhos amigos, sensatos o bastante para deixarem que os jovens
assumam o comando!
Subitamente, como se algo houvesse explodido, a conversa afetuosa
acabou. Mendelius estendeu a mão e pegou o pulso de Jean Marie,
dizendo sombriamente:
— Tudo isso é muito ameno, Jean! Ambos sabemos disso. Ouço o
mesmo tipo de conversa entre a nossa gente aqui. Tudo é suavidade e
esperança. Mas que Deus nos ajude! Pode-se até pensar que somos
jovens apaixonados construindo nossos castelos de sonhos!
— Isso não é justo, Carl! — Lotte estava indignada. — Falamos das
coisas simples para afastar os pensamentos das terríveis, que não
podemos controlar. E por que não deveríamos desfrutar o que estamos
fazendo aqui? Há muito esforço sendo empenhado aqui... e também
muito amor. Mas às vezes você fica soturno demais para percebê-lo!
— Desculpe-me, liebchen. Não tive a intenção de ser irritante. Mas
tenho certeza de que Jean pode compreender o que estou tentando dizer.
— Compreendo os dois — disse Jean Marie. — A resposta sumária é
a de que todas as notícias são péssimas. A melhor esperança é a de que
as hostilidades não comecem antes da primavera. E a pior predição feita
por meu amigo Mr. Atha e confirmada em parte por um sem-
comentários de Pierre Duhamel é a de que os americanos podem tentar
um ataque preventivo com os mísseis mais potentes, antes mesmo do
Ano-Novo.
Houve um longo momento de silêncio. Lotte estendeu a mão para
segurar a do marido. Carl Mendelius disse:
— Se isso acontecer, Jean, então tudo será lançado no caldeirão das
feiticeiras: gás dos nervos, germes, lasers, todos os horrores mais
fantásticos dos arsenais do mundo.
— Tem razão — disse Jean Marie. — Mesmo assim, poderão
permanecer em segurança aqui por muito tempo.
— Mas não é essa a questão, não é mesmo, Jean? Não foi o motivo
pelo qual tudo começou... como um simples plano de sobrevivência. Se

365
fosse apenas isso, não creio que Lotte e eu nos incomodássemos. E
creio que você também não se preocuparia. Ambos nos familiarizamos
com a Irmã Morte... e ela não é tão aterradora quanto pode parecer aos
outros. Tudo isso começou com a sua visão e a mensagem que não lhe
deixaram proclamar: centros de esperança, centros de caridade... para o
amanhã. Agora que você está aqui, o que vamos fazer?
— Ele acaba de chegar, Carl! — Era evidente que as frustrações de
Carl Mendelius não constituíam uma novidade para Lotte. — Mas
podemos dizer-lhe o que temos feito. Você mesmo disse: não se pode
oferecer água de um balde vazio. Assim, estamos todos nos preparando
para os serviços que podemos oferecer melhor... não importando o
quanto possam parecer insignificantes. Anneliese Meissner está
treinando alguns dos rapazes e moças em medicina prática... até mesmo
com medicamentos homeopáticos, que podem ser feitos de plantas
locais. Ela lhes despertou o maior entusiasmo com o exemplo dos
médicos descalços das regiões rurais chinesas. Um dos rapazes que
Johann trouxe é engenheiro e está elaborando um plano para aproveitar
a catarata para gerar energia elétrica... Estou dando aulas para as
crianças e Carl está fazendo um projeto para preservar um registro do
que fazemos aqui e dos problemas com que nos defrontamos... Sei que
tudo isso é pouco e elementar, mas é... é partilhável! Mesmo que o
mundo desmorone, tentaremos entrar em contato, mais cedo ou mais
tarde, com os remanescentes nas proximidades. Quando o fizermos,
devemos ter algo a oferecer. Se não for assim, a esperança estará morta
e a caridade será vazia!
Era o discurso mais longo que Jean Marie já ouvira Lotte fazer, a
melhor afirmação de tudo o que ela aprendera como mulher.
— Bravo, Lotte! Deveria estar orgulhoso dessa moça, Carl!
— E estou. — Carl Mendelius estava novamente jovial. — Apenas
fico com ciúme porque ela é muito mais útil do que eu. E estou falando
sério. Sou um homem de grande cultura, mas que valor isso tem em
comparação com uma mulher que pode fazer medicamentos com ervas
ou um homem que pode gerar eletricidade de uma catarata?
— Temos certeza de que poderemos aproveitá-lo em alguma coisa.
— Lotte levantou e beijou o marido na testa. — Vou ver como estão as
coisas na cozinha.
Depois que ela se retirou, Jean Marie fez uma pergunta a Mendelius:
— De onde acha que vem o nome Atha?
— Atha? — Mendelius repetiu a palavra algumas vezes e depois
sacudiu a cabeça. — Não tenho a menor idéia. É o amigo que veio com
você?

366
— É, sim. Ele se mostra bem vago em relação a si mesmo... e
também a muitas outras coisas. Diz que vem do Oriente Médio. Foi
criado na tradição judaica, mas não é um crente... A verdade é que se
trata de um homem singular, Carl. É relativamente jovem, como pode
observar. Não pode ter pouco mais do que 30 anos. Contudo, possui
uma profunda maturidade, uma imensa tolerância interior. Quando eu
estava na mais profunda depressão, agarrei-me a ele como um homem a
se afogar. Senti que ele me levava de volta à segurança, carregando-me
nas costas. Foi muito estranho. Ele se insinuou tão facilmente em minha
vida que era como se sempre o tivesse conhecido. Dá a impressão de
imenso conhecimento e de ampla experiência. Contudo, ele nunca
revela coisa alguma. Eu gostaria de saber qual a sua reação a ele.
— Atha... Atha... — Carl Mendelius ainda estava pensando no nome.
— Não é hebraico, com toda certeza. Mas lembra-me alguma coisa que
não consigo identificar... Não sei por que, mas minha memória já não é
tão boa quanto antigamente, desde que estive no hospital.
— A minha também não está muito boa, Carl. O único consolo é o de
que existem muitas coisas que precisamos esquecer!
Mendelius levantou-se e estendeu a mão para ajudar Jean Marie a
levantar-se também.
— Vamos dar uma volta e falar com algumas pessoas. Assim, não
terá de enfrentar uma fila comprida de rostos novos na hora de jantar.
No que fora outrora a sala de jantar do pavilhão estava ardendo um
fogo intenso de lenha. Velas de Natal, em arranjos de folhagem verde,
estavam nas janelas. Num canto, havia o tradicional presépio de Natal,
figuras de madeira da Virgem, José e Cristo, os pastores e animais
observando, em torno da manjedoura. No lado oposto, havia uma
grande árvore de Natal, enfeitada com fitas douradas e bolas coloridas.
O resto da sala estava ocupada por bancos e mesas de cavalete, com
rapazes e moças empenhados ativamente em arrumar tudo para o jantar.
Mendelius, encontrando dificuldade em recordar todos os nomes,
acabou contentando-se com uma apresentação informal.
— Meus amigos, este é o Padre Jean Marie Barette... Ele estará à
disposição de todos depois, para confissões, conselho... ou apenas uma
conversa agradável! Terão tempo suficiente para conhecê-lo bem...
Num aparte para Jean, ele acrescentou em voz baixa:
— Sei que é um rebaixamento, mas somos pequenos demais para
dispormos de um Papa ou mesmo de um bispo. E também não
queremos assustar os fregueses!
Jean Marie arrematou com a velha piada clerical:
— Não antes de recebermos as oferendas de Natal!

367
A cozinha tinha um imenso e antigo fogão de lenha. Meia dúzia de
cozinheiros preparavam aves, legumes e doces. Uma delas era Katrin,
coberta de farinha de trigo até os cotovelos. Ela estendeu o rosto para
ser beijada e fez um gracejo de seu estado:
— Poderia acreditar numa coisa dessas? Logo eu, entre todas as
pessoas! No início, fui dominada pelo pânico, mas agora estou
sentindo-me realmente feliz. E o mesmo acontece com Franz. Vai
encontrá-lo mais tarde. Ele está cortando lenha no estábulo. Vai fazer
nosso casamento, Tio Jean?
— Quem mais poderia fazê-lo?
— Se não tivesse vindo, íamos oficializar a união numa espécie de
cerimônia pública.
— Dá no mesmo — disse Jean Marie. — Só que, comigo, há o
beneficio do clero.
No canto oposto, Anneliese Meissner estava preparando uma mistura,
num caldeirão grande de cobre. Jean Marie cumprimentou-a e depois
mergulhou os dedos no caldeirão.
— É ponche — explicou Anneliese. — Minha própria receita. Não
pode ser servida a menores de 18 anos ou a pessoas que não estejam
cobertas por seguro de vida.
Ela levantou a concha para que Jean Marie provasse.
— E então, o que acha?
— Letal!
— Só vai tomar um copo bem pequeno e nada mais! Espero que
esteja fazendo tudo o que lhe foi determinado.
Ela o examinou com olhar profissional atento, antes de acrescentar:
— Está com uma ótima aparência... Há apenas um pequeno vestígio
de paralisia facial. Dê-me sua mão esquerda. Um aperto firme!... Está
indo muito bem. Vou examiná-lo amanhã, depois que me recuperar da
ressaca que inevitavelmente terei. É um prazer tornar a vê-lo!
Ainda estava nevando, mas Carl Mendelius estava ansioso em
continuar com a visita. Entregou a Jean Marie um casaco de pele de
ovelha e um par de botas de neve. Saíram em seguida, para dar uma
olhada nos contornos do pequeno povoado: o lago congelado e coberto
de neve, com um bote virado na margem, a catarata ainda caindo, mas
enfeitada com pingentes de gelo, a entrada da mina antiga.
— O túnel é bastante comprido — explicou Mendelius. — Ainda há
alguns afloramentos relativamente grandes de quartzo vermelho.
Guardamos todos os nossos suprimentos lá dentro: alimentos enlatados,
sacos de sementes, ferramentas. É a melhor proteção possível contra
uma explosão ou radiação direta... A precipitação da radiatividade, é

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claro, vai depender dos ventos. Tenho a impressão de que Munique
deve ser o alvo grande mais próximo... Gostaria agora de conhecer as
crianças? Estão nesta cabana. Algumas mulheres estão cuidando delas.
Não queremos estragar a surpresa da árvore de Natal.
Mas quando Mendelius abriu a porta e ficou de lado para que ele
entrasse primeiro, Jean Marie é que teve uma tremenda surpresa. Mr.
Atha estava sentado numa cadeira, de costas para a porta. Tinha uma
criança no colo e três outras estavam sentadas no chão, à sua frente.
Mais atrás, havia quatro mulheres. Todas estavam absorvidas na
história que ele contava. Uma das mulheres fez sinal de silêncio com a
mão. Mendelius e Jean Marie entraram sem fazer barulho e fecharam a
porta silenciosamente. Mr. Atha continuou a contar a história:
— ... Vocês não estiveram lá, mas eu estive. O lugar em que os
pastores vigiavam as ovelhas é a encosta de uma colina, despojada e
fria. Não havia árvores, como existem aqui, apenas pedras e uma relva
ordinária, que mal dava para alimentar as ovelhas. Os pastores sentiam-
se terrivelmente solitários. Passei muito tempo no deserto e posso
garantir-lhes que é assustador à noite. Um dos nossos pastores começou
a cantar. Outro pastor, que estava longe, ouviu e pôs-se a cantar
também. E depois outro e mais outro acompanhou, até que todos
estavam cantando, como vozes de anjos. Foi então que eles viram a
estrela. Era grande... grande como um melão!... tão baixa que eles
quase podiam estender a mão e tirá-la do céu. Era também muito
brilhante, mas com um brilho suave que não lhes machucava os olhos.
E pairava bem por cima da caverna em que o bebê acabara de nascer.
Os pastores caminharam na direção da estrela, ainda cantando. Foram
os primeiros visitantes que a pequena família de Jesus, Maria e José
receberam em Belém da Judéia...
Houve um silêncio momentâneo e um grande suspiro das crianças,
quando a história terminou. Mr. Atha levantou-se em seguida e virou-se
para cumprimentar os recém-chegados. A criança em seus braços era a
pequena mongolóide do Instituto em Versailles. Uma das mulheres era
a patronne da Hostellerie des Chevaliers, outra era Judith, a moça
aleijada que fizera a taça do cosmos.
Jean Marie ficou completamente atordoado com o choque. Balbuciou
e gaguejou, como acontecera logo depois do derrame.
— Como... como chegaram aqui?
— Você nos mandou — respondeu Judith. — Mr. Atha levou a
mensagem.
Jean Marie virou-se para Mr. Atha.
— Como soube da senha? Não falei a ninguém além de Johann.

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— Segure a menina — disse Mr. Atha. — Ela está querendo você.
Ele entregou a criança a Jean Marie. No mesmo instante, ela
começou a acariciá-lo, emitindo sons de prazer. Ele recuperou a voz,
murmurando afetuosamente para a menina:
— Ah, minha pequena palhaça!
Foi só depois que ele pôde cumprimentar as outras pessoas,
abraçando-as como um pai há muito afastado de sua família. Disse à
patronne:
— Agora, madame, tem de fato a mula tola e não o Papa!
A voz de Mr. Atha firmou-o contra o ímpeto de emoção:
— Essas pessoas são meus presentes de Natal para você. Também
convidei outras, da mesma forma. Vai conhecê-las depois, mas não
sabe quem são. Eram clientes meus, que precisavam de uma ajuda
especial. Espero que não se importe com o meu pequeno estratagema,
Professor Mendelius.
— É Natal. — Mendelius estava rindo do embaraço feliz de Jean
Marie. — Sempre mantivemos a casa aberta no Natal.
— Obrigado, Professor.
— Seu nome me interessa, Mr. Atha. Não é hebraico. Qual é a
origem?
— Siríaca.
— Hã...
Carl Mendelius era polido demais para fazer mais perguntas a um
hóspede tão lacônico.

O jantar começou com uma cerimônia das crianças. Jean Marie levou
a pequena fantoche no colo para mostrar-lhe a árvore de Natal e o
presépio, as fagulhas dançando nas achas de pinheiro. Ela não queria
deixá-lo. Assim, antes de a refeição começar, foi preciso colocar a
cadeira alta de menina ao lado de Jean Marie.
Johann ficou à cabeceira da mesa, com a mãe à direita e Anneliese
Meissner à esquerda. Carl Mendelius estava ao lado de Lotte. Jean
Marie estava junto de Anneliese, com a menina ao seu lado. À sua
frente, no outro lado da mesa, estava Mr. Atha, com Judith num lado e
Katrin Mendelius no outro. Johann abriu a cerimônia com um pedido
formal:
— Gostaria que nos desse uma bênção, por favor, Tio Jean.
Jean Marie fez o sinal-da-cruz e recitou a bênção. Notou que Mr.
Atha não fez o sinal-da-cruz, como os outros, embora também entoasse
o "amém" ao final da prece.
E depois o jantar começou, farto, jovial, ruidoso, com todos se

370
deleitando com o ponche de Anneliese e o vinho do Reno. Estava tudo
acertado, Johann informara a Jean Marie, para que o café fosse servido
às 10 e meia, a fim de que as crianças pudessem depois ir para a cama e
os adultos tivessem a oportunidade de recuperar a sobriedade, antes da
missa de Natal, à meia-noite. Por volta das 10 horas, o grupo estava
imbuído de um ânimo sentimental. Johann Mendelius levantou-se e
bateu no copo para pedir atenção. Mesmo inebriado pelo vinho, ele
ainda exibia um ar de confiança e autoridade. E disse:
— Meus amigos, minha família... Este não será um discurso
comprido. Quero inicialmente desejar a todos o melhor das boas coisas
para o Natal e para a nossa vida depois, neste vale. Agradeço a todos
pelo trabalho árduo com que se empenharam nos preparativos para o
inverno. Agora, quero dar as boas-vindas a Tio Jean e dizer-lhe como
nos sentimos contentes por tê-lo em nossa companhia. Quando o
encontrei pela última vez, há vários meses, tinha reservas sobre todas as
coisas que ele representava. Agora, gostaria de dizer-lhe que tenho
menos reservas e muito mais convicções sobre o que faz um homem de
bem. Finalmente, eu gostaria de agradecer-lhe, Mr. Atha, por ter-nos
apontado a trilha para este vale e agora trazer-nos não apenas o nosso
cidadão mais eminente, mas também o mais amado.
Ele gesticulou na direção de Jean Marie e da menina na cadeira alta
ao lado dele. Houve uma pequena explosão de aplausos. Johann
continuou:
— Por um comentário de passagem que ele fez esta tarde, quando
estávamos conversando, descobri que Mr. Atha é uma dessas pessoas
desafortunadas cujo aniversário cai no Dia de Natal. Normalmente, ele
recebe apenas um presente, ao invés de dois. Pois desta vez ele receberá
dois presentes!
Johann pegou uma garrafa de vinho tinto e outra de vinho branco e
passou-as pela mesa, com uma saudação:
— Feliz aniversário, Mr. Atha!
Houve palmas e gritos, pedidos de um discurso. Mr. Atha levantou-
se. Ao brilho das velas e do fogo na lareira, ele parecia alguma figura
de um mosaico antigo, revelado num súbito esplendor de bronze e ouro.
Abruptamente, houve silêncio. Ele não falou alto, mas sua voz encheu a
sala. Até mesmo a pequena mongolóide estava imóvel, como se
compreendesse cada palavra.
— Em primeiro lugar, quero apresentar meus agradecimentos.
Amanhã é de fato meu aniversário e sinto-me feliz em comemorá-lo
com vocês aqui, esta noite. Prometi explicações a meu amigo Jean
Marie e creio que é conveniente que todos vocês também as ouçam, já

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que partilham o mesmo mistério... Devem saber que não estão aqui por
desígnio próprio. Foram conduzidos até aqui, passo a passo, por
caminhos diferentes, através de muitos acidentes aparentes. Mas foi
sempre o dedo de Deus que os chamou. Não constituem a única
comunidade que foi assim reunida. Há muitas outras, espalhadas pelo
mundo inteiro, nas florestas da Rússia, nas selvas do Brasil, em lugares
com que jamais sonharam. São todas diferentes, porque as necessidades
e hábitos dos homens são diferentes. Contudo, são todos iguais, porque
seguiram o mesmo dedo que os chamava e foram unidos pelo mesmo
amor. Não fizeram isso por si mesmos. Não podiam, assim como vocês
também não podiam, sem um impulso especial de graça. Receberam
esse impulso por uma razão. Mesmo enquanto eu falo, neste momento,
o inimigo começa a invadir a terra, pregando a destruição! Nos tempos
terríveis que agora se abatem sobre nós, vocês foram escolhidos para
manter acesa a pequena chama do amor, para cuidar das sementes do
bem neste pequeno vale, até o dia em que o Espírito enviá-los para
acender outras velas numa terra escura e plantar novas sementes numa
terra mergulhada em trevas. Estou com vocês agora, mas amanhã já terei
partido. Ficarão sozinhos e com medo. Mas deixo minha paz com vocês,
assim como meu amor. E se amarão uns aos outros, assim como os tenho
amado.
Ele fez uma pausa, correndo os olhos pela sala. E tentou animá-los:
— Não devem ficar tristes, por favor! A dádiva do Espírito Santo é a
alegria do coração.
Ele sorriu e a sala pareceu iluminar-se. Gracejou com eles:
— O Professor Mendelius e meu amigo Jean Marie estão perplexos
com o meu nome. E foram tantos os seus estudos, meu caro Professor!
E como até os Papas esquecem rapidamente as Escrituras! Estavam
procurando por uma palavra, mas há duas. Vão lembrar-se quando eu
lhes disser. Maran Atha... O Senhor vem!
Jean Marie prontamente se levantou. E sua voz estava estridente em
desafio:
— Você me mentiu! Disse que não era um crente!
— Não menti. Está esquecido. Perguntou se eu era um crente e
respondi que não. E falei em outra ocasião que o ato de fé me era
impossível. Não é verdade?
— É, sim.
— E ainda não compreende?
— Não.
— Chega! — Carl Mendelius interviu, furioso, em defesa de Jean
Marie. — O homem está cansado. Esteve muito doente. Ainda não está

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preparado para enigmas!
Ele se virou para Jean Marie.
— O que ele está dizendo, Jean, é que não pode acreditar porque
sabe. Ensinaram-lhe isso no primeiro ano de teologia. Deus não pode
acreditar em si mesmo. Ele conhece a si mesmo, assim como conhece
toda a obra de suas mãos.
— Obrigado, Professor — disse Mr. Atha.
Jean Marie ficou calado, enquanto o pleno significado das palavras
penetravam em sua mente. Mais uma vez, ele desafiou o homem no
outro lado da mesa.
— Disse que se chamava Mr. Atha. Qual é o seu verdadeiro nome?
Tem de me dizer!
Houve novamente um silêncio abrupto e estranho, finalmente
rompido por Jean Marie:
— É o prometido?
— Sou, sim.
— Como podemos saber?
— Sente-se, por favor!
Mr. Atha sentou-se primeiro. Puxou uma travessa de pão e despejou
vinho numa taça. Partiu um pedaço de pão e segurou-o com as duas
mãos por cima da taça, dizendo:
— Pai, abençoe este pão, fruto de sua terra, o alimento pelo qual
vivemos.
Ele fez uma pausa, antes de continuar:
— Este é o meu corpo...
Jean Marie levantou-se. Estava calmo agora e respeitoso, mas ainda
impávido.
— Senhor, sabe que essas palavras são bastante familiares, sagradas
para todos nós. Conhece o suficiente das nossas Escrituras para
lembrar-se de que os primeiros discípulos reconheciam Jesus no ato de
partir o pão. Poderia estar usando esse conhecimento para enganar-nos.
— Por que eu faria isso? Por que está tão desconfiado?
— Porque Nosso Senhor Jesus advertiu: "Haverão de surgir falsos
Cristos e falsos profetas, que lhes apresentarão grandes sinais, a ponto
de enganar até mesmo os eleitos"... Sou um sacerdote. As pessoas
pedem-me para mostrar-lhes Jesus Cristo. Se é Ele, deve conhecer-me o
que deu aos primeiros discípulos, um sinal de legitimação!
— Tudo isso não é suficiente? — O gesto abrangeu a sala inteira e o
vale. — Não me legitima?
— Não!

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— Por que não?
— Porque há comunidades que se intitulam divinas, mas que
exploram as pessoas e levam-nas ao ódio. Ainda não fomos testados.
Não sabemos se a dádiva é verdadeira ou traiçoeira.
Houve um silêncio prolongado. Depois, o homem que se intitulava
Jesus estendeu as mãos.
— Dê-me a menina.
— Não!
Mesmo enquanto se encolhia de medo, Jean Marie sabia que tudo
fora pressagiado no sonho.
— Deixe-me segurá-la, por favor. Ela não sofrerá qualquer mal.
Jean Marie correu os olhos pelo grupo. O rostos nada lhe diziam. Ele
levantou a menina da cadeira alta e estendeu-a por cima da mesa. Mr.
Atha beijou-a e sentou-a em seu colo. Mergulhou um pedaço de pão no
vinho e alimentou a menina, migalha por migalha. Enquanto o fazia, ele
foi falando, suavemente, persuasivamente:
— Sei o que está pensando. Precisa de um sinal. E que melhor sinal
eu poderia dar que tornar esta menina saudável e nova? Posso fazer
isso. Mas não farei. Sou o Senhor e não um mago. Concedi a esta
menina uma dádiva que neguei a todos vocês... a eterna inocência. Para
vocês, ela parece imperfeita... mas para mim é impecável, como o botão
que morre sem abrir ou o passarinho implume que cai do ninho para ser
devorado pelas formigas. Ela jamais me ofenderá, como todos vocês o
fizeram. Jamais desvirtuará ou destruirá a obra das mãos de meu Pai.
Ela lhes é necessária. Evocará a bondade que os manterá humanos. A
enfermidade dela vai impeli-los à gratidão por sua sorte... Mais do que
isso. Ela lhes lembrará todos os dias que eu sou quem eu sou, que meus
caminhos não são os de vocês e que a menor partícula de poeira
turbilhonando no espaço mais escuro não cai da minha mão... Eu é que
os escolhi. Não foram vocês que me escolheram. Esta menina é o meu
sinal para vocês. Tratem de amá-la!
Ele levantou a menina do colo e devolveu-a a Jean Marie, através da
mesa. E acrescentou, gentilmente:
— É tempo de dar testemunho, meu amigo. Diga-me Agora! Quem
sou eu?
— Ainda não tenho certeza.
— Por que não?
— Sou um tolo — disse Jean Marie Barette. — Sou um fantoche
afetado da cabeça... Juro!
Ele correu os olhos pela mesa. Bateu na cabeça.

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— Uma pequena parte de mim aqui dentro não funciona mais. Eu
claudico, como Jacó depois de sua luta com o anjo. Deixo as coisas
caírem. Há ocasiões em que abro a boca e nada sai. Persigo as palavras
como uma criança corre atrás de bor... bor... — No último momento,
ele conseguiu pronunciar a palavra: — Borboletas! Assim, deve ser
simples comigo. Diga-me uma coisa: pode realmente mudar de idéia?
— Por que pergunta?
— Abraão barganhou com Deus por Sodoma e Gomorra. Ele disse:
"Se houver uma centena, 20 ou 10 homens justos nas cidades, poderá
poupá-las?" E Deus, segundo dizem as Escrituras, aceitou a proposta.
Nosso Jesus, que era da mesma semente de Abraão, disse que nos seria
dado tudo o que pedíssemos. Deveríamos bater na porta e clamar para
sermos ouvidos. Mas não há sentido nisso se não houver ninguém lá
dentro... ou se quem está lá dentro é um espírito louco turbilhonando
indiferente com as galáxias!
— Peça então! — disse Mr. Atha. — O que deseja?
— Tempo.
Jean Marie Barette abraçou a menina e suplicou como nunca fizera
antes, em toda a sua vida:
— Tempo suficiente para podermos acalentar esperança, trabalhar,
orar e argumentar mais um pouco, juntos. Por favor! Se é o Senhor, vai
querer marchar pelo seu mundo como os antigos bárbaros, sobre um
tapete de cadáveres? Seria certamente um triunfo indigno... Esta criança
é uma grande dádiva. Mas precisamos de todas as crianças e de tempo
suficiente para merecê-las. Por favor!
— E o que podem oferecer-me em troca?
— Muito pouco — respondeu Jean Marie, com uma simplicidade
desanimada. — Estou agora diminuído, tenho de pensar em termos
pequenos. Mas pode ter-me como sou!
— Aceito.
— Quanto tempo nos dará?
— Não muito... mas o suficiente.
— Obrigado. Obrigado de todos nós.
— Está pronto agora para dar testemunho?
— Estou, sim.
— Esperem!
Era Carl Mendelius quem intervinha, formulando o desafio final.
Apesar de seus tormentos e ferimentos, ainda era o antigo cético
obstinado de Roma e Tübingen.
— Ele nada prometeu, Jean. Disse apenas palavras que nos são

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familiares há séculos. Posso indicar-lhe todas as fontes! Ele fala como
se o tempo fosse seu dom. Você abdicou porque não tinha autoridade
para a sua profecia. Por que aceita menos desse homem?
Houve um murmúrio de aprovação do grupo. Todos olharam
primeiro para Mr. Atha, sentado em seu lugar, sereno e descontraído,
depois para Jean Marie, segurando a menina e balançando para frente e
para trás em sua cadeira. Lotte Mendelius levantou-se para tirar-lhe a
menina, murmurando, tão baixo que apenas ele pôde ouvir:
— O que quer que você decida, nós o amamos.
Jean Marie afagou a mão dela e entregou-lhe a menina. Lançou um
rápido olhar para Carl Mendelius, com um sorriso que reconhecia todas
as coisas que haviam partilhado nos maus tempos em Roma. E depois
disse:
— Carl, meu velho amigo, nunca há provas suficientes. Você sabe
isso. É o que passou a sua vida inteira estudando. Temos de nos
contentar com o que temos. Jamais recebi qualquer outra coisa desse
homem que não fosse o bem. O que mais posso pedir?
— A resposta, por favor. — Mr. Atha estimulou-o firmemente. —
Quem sou eu?
— Creio... — Jean Marie Barette rezou para que sua voz se
mantivesse firme. — ... creio que é o Ungido, o Filho de Deus Vivo! ...
Mas... mas...
Jean Marie vacilou e recuperou-se lentamente.
— ... não tenho missão. Não tenho autoridade. Não posso falar por
meus amigos. Terá de ensinar-lhes, assim como me ensinou.
— Não! — disse Mr. Atha. — Partirei amanhã, a fim de tratar de
outras coisas de meu Pai. Você é que deve ensinar-lhes, Jean!
— Como... como posso fazê-lo, com a língua tão vacilante e presa?
— Você é uma rocha! E sobre você posso erguer um lugar para o
meu povo!

376
EPÍLOGO

Pierre Duhamel estava de pé junto à janela do gabinete do Presidente,


contemplando a neve a cair sobre Paris. Tateou o bolso do paletó e seus
dedos se fecharam sobre a pequena caixa esmaltada que continha as
duas cápsulas gelatinosas, os passaportes para o esquecimento para
Paulette e ele próprio. A sensação proporcionou-lhe um conforto meio
cansado e triste. Pelo menos Paulette não teria de sofrer mais e ele
próprio seria poupado da visão de Paris depois da hecatombe. Sua
vontade era abandonar aquela vigília interminável e desesperada e
voltar para casa e deitar-se.
O homem a quem servira por 20 anos estava sentado à escrivaninha
imensa, o queixo apoiado nas mãos, olhando sem ver para os
documentos à sua frente. Ele perguntou:
— Que horas são?
— Faltam cinco minutos para meia-noite — respondeu Pierre
Duhamel. — É uma maneira infernal de passar a véspera de Natal.
— O Presidente prometeu telefonar-me da Casa Branca no momento
em que chegasse a uma decisão.
— Acho que ele já tomou a decisão, mas só vai comunicar-nos
quando estiver apertando o último botão.
— E não há nada que possamos fazer. Absolutamente nada.
Em meio ao silêncio que se seguiu, o telefone soou estridentemente.
O homem à escrivaninha atendeu prontamente. Duhamel virou as
costas. Não queria ouvir a leitura da sentença de morte. Ouviu o
telefone ser desligado e depois um longo suspiro de alívio de seu chefe.

377
— Eles cancelaram! Acham que se abriu uma nova perspectiva em
Moscou.
— Qual é o próximo prazo?
— Ainda não fixaram.
— Graças a Cristo! — disse Pierre Duhamel. — Graças a Cristo!
As palavras soavam como uma prece.

***

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