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CAPA

A Verdadeira História de Jesus


E. P. Sanders

Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus


Noticias editorial

PAGINAÇÃO: Rodapé e nº de páginas 366

Esta obra foi digitalizada e corrigida pelo Serviço de Leitura Especial da Biblioteca
Municipal de Viana do Castelo. Destina-se unicamente a pessoas com necessidades especiais e
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BADANA DA CAPA
JESUS CRISTO. Está na base da maior religião mundial: dois mil milhões de seres humanos
reclama-se hoje da fé nele e dizem-se cristãos. A sua figura foi de tal modo determinante que a
Historia se divide em antes e depois de Cristo. Durante dois mil anos, em seu nome ergueu-se o
que se chama a Igreja, construíram-se catedrais e hospícios, proclamou-se a dignidade infinita
de ser Homem e também se instruiu a Inquisição, veio ao mundo amor e sofrimento. Ninguém
tem dúvidas de que sem ele a Historia seria diferente.
No entanto, viveu num canto remoto do Imperio Romano, a sua intervenção pública pode não
ter chegado aos dois anos, foi condenado à cruz – a execução própria dos escravos -, como
blasfemo religioso e subversivo social e politico. Aparentemente, deveria ter sido o fim. O que
se passou para que, precisamente após a sua morte, tivesse começado um movimento que
transformou o mundo?
O seu enigma para nós é o da passagem do Jesus da história ao Cristo da fé, de tal modo que o
seu nome agora é Jesus Cristo. Assim, a pergunta decisiva é esta: o que se pode saber hoje com
rigor histórico sobre Jesus, o Cristo, independentemente da fé? Precisamente a esta pergunta
responde esta obra modelar, saudada entusiasticamente pela crítica especializada, que sublinha
dois aspetos essenciais: justamente o rigor e a acessibilidade.
Anselmo Borges
CONTRA CAPA
Para crentes e não crentes (numa época que discute o “Código da Vinci”, o sentido da violência
e da paz e a responsabilidade das confissões religiosas nestes domínios) é fundamental entender
as convicções dos que “fizeram grupo” com jesus Cristo, o significado de milagres e
exorcismos, o âmbito de projetos de mudança da história pessoal e coletiva e o alcance de um
“Reino de Deus”.
Que parentesco há entre o sentido e a salvação?
A complacência, a tolerância, a predileção pelos marginais, os conflitos e os equívocos do
tempo, a Paixão e a Ressureição são marcos de uma trajetória. O saber (prefigurado por
abundantes hipóteses de leitura) convoca à sensibilidade e à alteração de critérios de viver.
Com minucia de interprete e transparência de Mestre, o Prof. E. P. Saunders tenta reconstituir a
fisionomia histórica de Jesus através da fidelidade às fontes, à releitura das comunidades
nascentes e aos contextos de uma Pessoa. É uma delícia cultural a travessia de muitas das suas
páginas!
D. Januário Torgal Ferreira, Bispo das Forças Armadas e de Segurança
«Um feito memorável.»
Professor Jaroslov Pelikan, Universidade de Yale
« é, hoje, o maior especialista americano na investigação sobre a vida de Jesus… Espero que
esta obra (…) constitua um antidoto saudável contra algumas teses extravagantes sobre o jesus
histórico que tem aparecido recentemente.»
Professor John B. Meier, Universidade Católica
«Soberbo… A Verdadeira Historia de Jesus destaca-se pela sua clareza e equilíbrio, o seu senso
comum e, acima de tudo, pela sua honestidade.»
Professor Wayne A. Meeks, Universidade de Yale
«Um estudo não dogmático e não religioso sobre a verdade acerca da vida e percurso de Jesus,
desenvolvido por um dos maiores especialistas.»
Professor Paul Johnson, “Sunday Times”
BADANA DA CONTRA CAPA
Depois de dois bacharelatos no Texas, o seu estado natal, E. P. Sanders prosseguiu os estudos
universitários em Gottingen, Jerusalém, Oxford e Nova Iorque, que culminaram num
doutoramento em Teologia pelo Union Theological Seminary. Em 1984, tornou-se professor de
Exegese na Universidade de Oxford. Seis anos mais tarde mudou-se para a Universidade de
Ciências da Religião. Foi professor no Trinity College, de Dublin, e na Universidade de
Cambridge.
O seu campo de estudo centra-se no judaísmo e cristianismo no mundo greco-romano. Paul and
Palestinian Judaism (1977) ganhou vários prémios nacionais. Jesus and Judaism (1985) recebeu
o Premio Grawemeeyer de Religião e foi escolhida pelo Dunday Correspondent como uma das
obras de referência da historia religiosa publicada nos anos 80. Escreveu igualmente The
Tendencies of the Synoptic (1969), Paul, the Law and the Jewish People (1983), Studyng the
Synoptic Gospels, com Margarete Davies (1989), Jewish from Jesus to the Mishnah (1990),
Paul: Past Master (1991) e Judaism: Pratice and Belief 63 BDE – 66 CE (1992).
Recentemente, E. P. Sanders recebeu novos Títulos: coutor em Letras pela Universidade de
Oxford e doutor honoris causa em Teologia pela Universidade de Helsínquia. É membro da
Academia Britânica.
A chave hermeutica de Jesus do Prof. E. P. Sanders reside no tema da «restauração
escatológica». Como ninguém, Sanders conhece profundamente a cultura teológico-literária
judaica da escatologia e conclui que o Deus da Aliança com o seu povo de Israel consuma em
Jesus essa mesma aliança da restauração escatológica.
Pe. Carreira das Neves Professor da Universidade Católica Portuguesa

ISBN 972-46-1529-4
(Edição original: ISBN 0-14-014499-4)
© E. P. Sanders, 1993
Direitos reservados
EDITORIAL NOTICIAS
Rua Bento de Jesus Caraça, 17
1495-686 Cruz Quebrada
E-mail: geral@editorial.noticias.pt
Internet:www.editorialnoticias.pt
JRPENTRETENIMENTO
Título original: The Historical Figure of Jesus
Tradução: Teresa Martinho Toldy
Marian Toldy
Revisão: Domingas Cruz
Capa: Maria Manuel Seixas
Edição: OI 04 0057
I .ª edição: Setembro de 2004
Depósito legal n.º 216622/04
Pré-impressão, impressão e acabamento:
Multitipo - Artes Gráficas, Lda.
BIOGRAFIAS

A VERDADEIRA HISTÓRIA DE JESUS

Nesta coleção:
JOÃO PAULO Il - A VIDA DE KAROL WOJTYLA Tad Szule
YITZHAK RABIN - MISSÃO INACABADA
The Jerusalém Report
EMÍDIO GUERREIRO - UMA VIDA PELA LIBERDADE
A. Encarnação Viegas
ALINA - MEMÓRIAS DA FILHA DE FIDEL CASTRO
Alina Fernández
POR TIMOR - BIOGRAFIA DE D. XIMENES BELO
Arnold S. Kohen
LULA - DO AGRESTE AO PLANALTO
João Nascimento
A VERDADEIRA HISTÓRIA DE JESUS
E. P. Sanders

A VERDADEIRA HISTORIA DE JESUS


Tradução
Teresa Martinho Toldy
Marian Toldy
notícias editorial

Abreviaturas
Antig. Josefo, Antiguidades Judaicas, citado de acordo com a edição inglesa: Jewish
Antiquities, in Work, ed. e trad. H. St. J. Thackeray, Ralph Marcus, Allen Wikgren e Louis
Feldman, Loeb Classical Library, 10 vols., Londres e Cambridge MA 1926-1965
a.e.c. antes da época cristã (= a. C.)
e.c. época cristã (= d. C.)
HJP Emil Schürer, History of the Jewish People in the Age qf Jesus Christ, revisto e editado por
Geza Vermes, Fergus Millar e Martin Goodman, oS vols. em 4 partes, Edimburgo, 1973--1987
J&J E. P. Sanders, Jesus and Judaism, Londres e Filadélfia, 1985
JLJM E. P. Sanders, Jewish Law from Jesus to the Mishnah: Five Studies, Londres e Filadélfia,
1990
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NRSV New Revised Standard Version ofthe Bible
P&B E. P. Sanders, Judaism: Practice and Belief 63 BCE - 66 CE, Londres e Filadélfia, 1992
RSV Revised Standard Version of the Bible
SSG E. P. Sanders e Margaret Davies, Studying the Synoptic Gospels, Londres e Filadélfia,
1989
Guerra Josefo, A Guerra Judaica, citado de acordo com a edição inglesa: The Jewish War, in
Works (edição já mencionada)
/ / paralelo a (Mt 9, 14-17 / / Mc 2, 18-22 significa que as passagens são paralelas uma à outra)

Tabela cronológica
597 a.e.c. - Nabucodonosor da Babilónia conquista Jerusalém; os líderes judaicos são levados
para o exílio na Babilónia
559-332 - Palestina sob o domínio persa
538 - início do regresso a Jerusalém
520-515 - reconstrução do Templo
333-332 - Alexandre Magno conquista a Palestina
cerca de 300-198 - Palestina sob Ptolomeu do Egipto
198-142 - Palestina sob Selêucidas da Síria
175-164 - Antíoco IV (Epífanes), rei da Síria
167 - profanação do Templo; início da revolta dos Asmoneus (Macabeus)
166-142 - os Asmoneus lutam pela autonomia total
142-137 - período dos Asmoneus
63 - Pompeu conquista a Judeia
63-40 - Hircano II, sumo sacerdote e etnarca
40-37 - Antígono, sumo sacerdote e rei
37-4 - Herodes Magno, rei
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31 - batalha de Actium: Octaviano (mais tarde, intitulado Augusto) torna-se imperador romano
4 a.e.c. - 6 e.c. - Arquelau etnarca, administrador da Judeia
4 a.e.c. - 39 e.c. - Antipas tetrarca, administrador da Galileia e da Pereia
cerca de 4 a.e.c. - nascimento de Jesus de Nazaré
6-41 e.c. - Judeia governada por prefeitos romanos
14 - Tibério sucede a Augusto como imperador
cerca de 18-36 - José Caifás, sumo sacerdote dos judeus
26-36 - Pôncio Pilatos, prefeito da Judeia
cerca de 30 - morte de Jesus
37 - Gaio (Calígula) sucede a Tibério como imperador
41 - Cláudio sucede a Gaio
41-44 - Agripa I, rei, governa sobre o anterior reino de Herodes
44-66 - Judeia, Samaria e uma parte da Galileia governada por procuradores romanos
48-66 - Agripa II recebe uma parte do reino do seu pai revolta dos judeus contra Roma
66-74 – revolta doa judeus contra Roma
70 - queda de Jerusalém, destruição do Templo
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Prefácio
A maioria dos investigadores que escrevem sobre o mundo da Antiguidade sente-se obrigada a
avisar os seus leitores de que o nosso conhecimento do objeto, na melhor das hipóteses, é
incompleto e de que raramente se chega a uma certeza. Um livro sobre um judeu do século I,
que viveu numa parte bastante insignificante do Império Romano, deve ser prefaciado por este
aviso. O que sabemos acerca de Jesus provém de livros que foram escritos algumas décadas
após a sua morte, provavelmente, por pessoas que não faziam parte do círculo daqueles que o
seguiram em vida. Estes citam-no na língua grega, que não era a sua primeira língua, e, de
qualquer modo, as disparidades existentes entre as nossas fontes demonstram que o estado de
conservação das suas palavras e dos seus atos não é perfeito. Possuímos poucas informações
sobre ele, para além das obras escritas com intenção laudatória. Atualmente, não estamos bem
documentados sobre regiões tão longínquas como a Palestina e os autores das nossas fontes
também não o estavam. Não possuíam arquivos ou registos oficiais de qualquer espécie. Nem
sequer tinham acesso a mapas. Estas limitações, normais na Antiguidade, resultam num elevado
nível de insegurança.
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Reconhecendo estas e muitas outras dificuldades, os exegetas do Novo Testamento passaram
várias décadas - entre 1910 e 1970 - a afirmar que não sabemos nada, ou praticamente nada,
sobre o Jesus histórico. O exagero provoca reação e, nas últimas décadas, a nossa confiança em
nós mesmos aumentou, aliás, a tal ponto que a literatura exegética recente inclui aquilo que eu
considero serem afirmações precipitadas e infundadas sobre Jesus - hipóteses sem provas que as
sustentem.
Considero o estudo dos Evangelhos um trabalho extremamente difícil. Compreendo os exegetas
que desistiram de recolher muitos dados empíricos úteis sobre Jesus. Penso, contudo, também
que o trabalho compensa tanto quanto é de esperar quando se trata de investigação da história da
Antiguidade.
Este livro apresenta as dificuldades e os resultados bastante modestos, que considero
simultaneamente fundamentais e relativamente seguros - bastante seguros, tendo em conta os
nossos restantes conhecimentos da Palestina antiga, em geral, e das figuras religiosas do
judaísmo, em particular. Sabemos muito sobre Jesus, muito mais do que sobre João Baptista,
sobre Teudas, sobre Judas, o Galileu, ou sobre qualquer outra das figuras cujos nomes
conhecemos e que são, mais ou menos, da mesma época e região.
Enquanto escrevia, apercebi-me de que as páginas com o material de introdução se estavam a
amontoar. Apesar da minha intenção de as reduzir, elas aumentavam continuamente de rascunho
para rascunho. Continuo a pensar que seria desejável que o leitor pudesse chegar mais
rapidamente ao cerne da questão, mas julgo que os capítulos introdutórios são necessários. Os
conhecimentos dos Evangelhos continuam a estar muito difundidos, mesmo nos nossos tempos
secularizados, mas a compreensão dos problemas críticos que estes colocam é mais rara.
Detesto dizer que existe uma dificuldade sem explicar de que dificuldade se trata: é a isto que se
deve uma grande parte do material. Também descrevi mais pormenorizadamente do que é
habitual o cenário político e religioso no qual decorreu a vida de Jesus, porque é muito
frequente estes aspetos serem mal apresentados nos livros sobre Jesus, quer sejam da autoria de
amadores, quer sejam de profissionais.
Fiz, no entanto, algumas economias, sobretudo nas indicações bibliográficas. Evito tanto
debates com outros especialistas como notas bibliográficas, remetendo para as minhas obras
anteriores, nas quais discuti mais pormenorizadamente tanto as fontes primárias como a
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literatura secundária. Esforcei-me igualmente por limitar ao mínimo a discussão de termos e
expressões estrangeiras.
As citações bíblicas, regra geral, seguem a Revised Standard Version, que eu continuo a
considerar a tradução inglesa mais satisfatória, embora tenha usado ocasionalmente a Neto
Revised Standard Version. Por vezes, modifiquei a tradução, em ordem a ser mais fiel ao
fraseado do texto grego.
Rebecca Gray leu e comentou dois rascunhos do livro, pelo que lhe estou muito grato. Agradeço
igualmente a Frank Crouch, que elaborou um índice das passagens bíblicas, e a Marlena Dare,
que o datilografou. Gostaria de agradecer também a Peter Carson e Miranda McAllister, da
Penguin Books, pelos conselhos muitíssimo úteis e pela grande paciência, assim como a Donna
Poppy, pelo seu trabalho minucioso sobre o texto dactilografado.
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1. Introdução
Numa manhã primaveril, por volta do ano 30 da era cristã, as autoridades romanas executaram
três homens na Judeia. Dois eram salteadores - homens que deviam ter sido ladrões ou
bandidos, cujo único interesse era o seu próprio proveito, mas que também podiam ter sido
insurretos cujo banditismo tinha um objetivo político. O terceiro foi executado como um outro
tipo de criminoso político. Não tinha roubado, pilhado, assassinado, nem sequer acumulado
armas. Foi condenado, no entanto, com base na acusação de ter afirmado que era «rei dos
judeus» - um título político. Aqueles que assistiam - entre os quais se encontravam algumas das
mulheres que tinham seguido o terceiro homem - pensavam, certamente, que as suas esperanças
de uma «insurreição» bem sucedida tinham sido destruídas e que o mundo quase não daria pelo
que tinha acontecido naquela manhã de Primavera. De facto, durante algum tempo - tal como
demonstram os vestígios literários da elite do Império Romano -, o mundo quase não registou
este acontecimento. É evidente que o terceiro homem, Jesus de Nazaré, acabou por se tornar
uma das figuras mais importantes da história da Humanidade. A nossa tarefa consiste em
compreender quem foi e o que fez este homem.
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Não vou tentar explicar por que razão este homem tem sido tão importante ao longo dos séculos
subsequentes à sua morte. Isto é uma outra questão que exige o estudo da evolução da teologia
cristã nos séculos posteriores à execução de Jesus, sobretudo nos quatro séculos que se lhe
seguiram. Jesus tornou-se o centro de uma nova religião e transformou-se numa figura
teológica: não só o fundador histórico de um movimento religioso, mas alguém cuja
personalidade e obra constituíram tema do pensamento filosófico e teológico. Durante quase
dois mil anos, a maioria dos cristãos considerou os ensinamentos de Jesus e as suas outras
atividades na Palestina como algo menos importante do que a sua relação com Deus Pai e do
que o significado que Deus atribuiu à sua vida e, sobretudo, à sua morte: a sua morte constituiu
um sacrifício pelos pecados do mundo inteiro.
Direi um pouco mais sobre o Cristo dos credos cristãos no capítulo x: aqui, gostaria apenas de
explicar que este livro constitui uma teologia. Não discutirei aqui nem o que Deus realizou
através da vida e morte de Jesus, nem a forma como Jesus participa ou não na Divindade.
Abordarei Jesus como um ser humano, que viveu numa determinada época e num determinado
local, e procurarei provas e apresentarei explicações - tal como qualquer historiador que escreve
sobre uma figura histórica.
É óbvio que a teologia desempenhará um papel importante nesta obra num outro sentido. Tanto
Jesus como os seus seguidores tinham ideias teológicas. Aqueles que transmitiram e
desenvolveram as tradições sobre Jesus, assim como os autores dos Evangelhos, atribuíram-lhe
um papel importante na sua compreensão da ação divina no mundo. Mencionarei, por vezes, a
teologia dos primeiros cristãos, porque é importante fazê-lo para analisar o que eles escreveram
sobre Jesus, e abordarei mais pormenorizadamente a teologia do próprio Jesus, porque isto
constitui uma parte essencial da pessoa que ele foi. No entanto, não tentarei harmonizar estas
doutrinas teológicas com os dogmas cristãos posteriores. Creio que existe uma continuidade
entre aquilo que o próprio Jesus pensava e aquilo que os seus discípulos pensaram depois da sua
morte, assim como entre aquilo que estes pensavam e aquilo em que os cristãos dos séculos
posteriores acreditavam. Mas também houve alterações e evoluções. Não seguiremos esta
história interessante para além da data do último Evangelho, isto é, cerca do ano 80.
A teologia do próprio Jesus e as teologias dos seus primeiros seguidores constituem questões
históricas, que devem ser exploradas da
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mesma maneira como se investiga o que Jefferson pensava sobre a liberdade, o que Churchill
pensava sobre o movimento operário e sobre as greves de 1910 e de 1911 ou o que Alexandre
Magno pensava sobre a reunião dos Gregos e dos Persas num só Império, bem como o que
pensavam os seus contemporâneos sobre estes grandes homens.
Visto que alguns leitores não estarão habituados a explorar historicamente a vida e o
pensamento de Jesus, gostaria de perspetivar o presente trabalho dizendo algumas palavras
sobre os outros temas históricos que acabei de mencionar. Eles envolvem graus de dificuldade
distintos e requerem a utilização de vários tipos de material. O pensamento de Jefferson sobre a
liberdade e o governo representa um tema vasto, que exige um estudo minucioso, mas cujas
fontes são excelentes, devido, em parte, à vasta correspondência de Jefferson, a qual foi
conservada cuidadosamente.' As medidas que Churchill tomou a respeito da greve dos mineiros,
em 1910, e de uma greve dos caminhos de ferro, em 1911, e, sobretudo, as ordens que deu à
polícia e ao exército quanto à utilização da força foram bastante discutidas na imprensa da
época; além disso, desenvolveram-se opiniões populares que perduraram até aos dias de hoje,
embora sejam, frequentemente, incorretas. O historiador tem de examinar cuidadosamente os
vários relatos, incluindo os boatos e as bisbilhotices, para determinar com precisão aquilo que
Churchill fez e pensou sobre questões que excitaram tão fortemente os ânimos. Segundo parece,
uma investigação exaustiva de todos os documentos; tanto públicos quanto privados, ilibam-no,
em grande parte, das acusações que lhe são feitas." A questão de saber o que Alexandre Magno
pensava sobre as suas conquistas sem precedentes é uma questão por esclarecer, à qual não se
pode responder inequivocamente com base nas provas existentes. Sabemos que conquistou o
Império persa, que casou com uma princesa persa e que
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ordenou a alguns dos seus oficiais que casassem com mulheres da nobreza persa. Mas não
podemos saber o que ele pensava exatamente. Podemos concluir, genericamente, que o seu
objetivo era estabelecer uma espécie de união ou harmonia entre os seus oficiais macedónios e a
nobreza persa, mas não podemos dizer com precisão o que ele pretendia.
Estas questões assemelham-se todas às questões sobre Jesus num aspeto fundamental: as
personagens principais são figuras lendárias. As pessoas falavam sobre elas, transmitiam
histórias sobre elas durante o tempo da sua própria vida e, com o passar dos anos, alguns aspec-
tos da vida destas figuras foram salientados, enquanto outros foram esquecidos. Quem faz
investigação sobre Jefferson ou Churchill dispõe de fontes excelentes que lhe permitem ir para
além das lendas e dos boatos. O biógrafo de Jefferson pode apoiar-se numa quantidade imensa
de fontes, enquanto o biógrafo de Churchill fica quase imerso em documentação. Descobrir
aquilo que Jesus pensava assemelha-se muito mais à investigação sobre o Alexandre histórico.
Não se conservou nada que tenha sido escrito pelo próprio Jesus. Os documentos mais ou
menos contemporâneos a ele, abstraindo os do Novo Testamento, não esclarecem realmente
nada sobre a vida e a morte de Jesus, apesar de revelarem muito sobre o ambiente social e
político. As fontes principais do nosso conhecimento do homem Jesus, os Evangelhos no Novo
Testamento, têm, para o historiador, o defeito de terem sido escritas por pessoas cujo objetivo
era exaltar o seu herói. Contudo, as fontes para Jesus são melhores do que aquelas que se
debruçam sobre Alexandre. As biografias de Alexandre originais perderam-se todas e só as
conhecemos porque foram utilizadas por autores mais recentes - muito mais recentes." As fontes
primárias sobre Jesus foram redigidas numa fase mais próxima da época em que ele viveu e as
pessoas que o tinham conhecido ainda estavam vivas. Este é um dos motivos para se dizer que
sabemos mais sobre Jesus do que sobre Alexandre. Por um lado, Alexandre alterou tanto a
situação política numa grande parte do mundo que os traços fundamentais da sua vida pública
são, de facto, bastante conhecidos. Jesus não alterou a situação social, política e
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económica da Palestina. Mesmo assim - como veremos aprofundadamente mais adiante -,
possuímos uma ideia bastante correta sobre o percurso da sua vida exterior e, sobretudo, sobre a
sua vida pública. A superioridade das provas existentes sobre Jesus, em comparação com
Alexandre, torna-se patente, quando perguntamos o que ele pensava. Os seus discípulos
iniciaram um movimento que se baseava, em parte, naquilo que o próprio Jesus tinha pensado e
feito. Se conseguirmos descobrir quais são as ideias que eles assumiram de Jesus, saberemos
muito sobre o seu pensamento. O estudo minucioso dos Evangelhos permite distinguir
frequentemente entre aquilo que se preservou das ideias do próprio Jesus e as opiniões dos seus
discípulos, como veremos mais pormenorizadamente adiante. O facto de algumas das nossas
fontes serem independentes entre si aumenta a nossa segurança. Em Paulo encontram-se
indicações importantes sobre algumas das perspetivas e expectativas de Jesus e as cartas de
Paulo foram escritas antes dos Evangelhos. Por outro lado, as suas cartas foram coligidas e
publicadas depois de os Evangelhos terem sido redigidos; por conseguinte, Paulo não conhecia
os Evangelhos e os autores dos Evangelhos não conheciam as epístolas de Paulo.
Mesmo assim, as nossas fontes deixam muito a desejar. Os Evangelhos transmitem palavras e
atos de Jesus numa língua que não era a sua (ele ensinou em aramaico e os Evangelhos estão
escritos em grego) e colocam cada peça de informação num cenário imaginado pelos seus
discípulos, sendo que se trata habitualmente de discípulos que se encontravam a uma certa
distância temporal em relação a ele. Mesmo que soubéssemos que estamos perante as suas
próprias palavras, teríamos sempre de recear que ele tivesse sido citado fora de contexto.
O historiador que investiga a vida de um grande homem e faz um relato completo das suas
descobertas escreverá, quase com certeza, algumas coisas que os admiradores da pessoa em
causa prefeririam não ler. As pessoas, cuja imagem de Jefferson foi criada imaginando o
carácter do autor da Declaração da Independência, podem ficar chocadas com um estudo sobre a
sua vida amorosa e o seu consumo de álcool. Quem pensa em Churchill como o homem que
«mobilizou a língua inglesa e a mandou para a guerra» (como se lhe referiu John
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F. Kennedy), achará menos interessante a descrição de Churchill como representante da política
interna. Isto não constitui um aviso de que eu vá revelar algo verdadeiramente chocante sobre
Jesus, como uma promiscuidade sexual, por exemplo. Limitar-me-ei ao material empírico que
não diz absolutamente nada sobre temas deste género. Se Jesus teve alguma falta séria, não
temos possibilidade de a conhecer. Mas também não me limitarei a escrever como ele era
simpático, nem ignorarei os aspetos da sua vida e do seu pensamento que os seus admiradores
mais fervorosos gostariam de ver desaparecer. Temos de compreender por que motivo provocou
controvérsias e porque tinha inimigos. A visão cristã tradicional, segundo a qual os judeus o
odiavam porque ele era um homem bom e porque defendia o amor, ao qual eles se opunham,
não serve. Esforçar-me-ei por lidar com ele e com os seus contemporâneos de uma forma mais
realista.
A pesquisa sobre o Jesus da História já tem mais de 200 anos. Nos finais do século XVIII,
alguns europeus corajosos começaram a aplicar os métodos da crítica literária e histórica aos
livros do Novo Testamento que, até ali, tinham estado fora do seu alcance - eram demasiado
sagrados para a investigação laica da Renascença e do Iluminismo. A leitura das descrições de
Jesus, escritas neste período de dois séculos por investigadores sérios e empenhados, revela que
as conclusões foram extraordinariamente díspares, o que levou muitos a pensar que não
sabemos realmente nada. Esta reação é exagerada; sabemos bastante. O problema está em
conciliar o nosso conhecimento com as nossas esperanças e aspirações. A importância que Jesus
e o movimento que ele iniciou alcançaram posteriormente leva a que queiramos saber tudo
sobre ele, especialmente, sobre os seus pensamentos mais íntimos, como, por exemplo, o que
pensou de si mesmo. Como já disse, penso que temos bons indícios sobre algumas das ideias de
Jesus. No entanto, é, normalmente, ilusório pensar que se tem acesso aos pensamentos íntimos,
mesmo que seja de pessoas cuja vida pública está bem documentada. O que pensava Lincoln de
facto, no fundo do seu coração, sobre a libertação dos escravos? É uma pergunta difícil, apesar
de dispormos de muito material sobre Lincoln, e embora saibamos o que ele
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fez e com que consequências. Com Jesus, a situação é semelhante, embora a nossa
documentação não seja tão completa: conhecemos algumas das coisas que ele fez, uma
quantidade razoável sobre o que ensinou e bastante sobre as suas consequências. A partir daí,
temos de inferir quais eram os seus pensamentos mais profundos. Não deveríamos ter receio de
fazer essas inferências, mas deveríamos reconhecer que elas são menos seguras do que as suas
palavras e os seus atos - sobre os quais já é bastante difícil chegar a provas seguras.
O objetivo do livro é apresentar, tão claramente quanto possível, aquilo que podemos descobrir
recorrendo aos métodos de investigação histórica habituais, assim como fazer uma distinção
entre isto e as inferências, classificando-as inequivocamente como tal. A discussão geral dos
milagres e da doutrina de Jesus incluirá algumas passagens de cuja fiabilidade duvido (como
esclarecerei no lugar devido), mas as provas que eu considero certas controlarão os temas, as
categorias e as conclusões.
Este objetivo é modesto, mas difícil de cumprir. É frequente os autores gostarem de descrever as
dificuldades do seu objeto para despertarem a compaixão dos leitores. Claro que espero ter
leitores benévolos, mas também penso que é, realmente, mais difícil escrever livros sobre Jesus
do que sobre outras pessoas acerca das quais dispomos de documentação comparável. Já chamei
a atenção para o facto de pessoas que se contentam com uma informação geral sobre outras
figuras da Antiguidade quererem saber muito mais no caso de Jesus. Põem-se outros problemas
específicos. Um deles consiste no facto de as fontes principais, os Evangelhos do Novo
Testamento, constituírem uma leitura amplamente divulgada e serem de acesso direto para o
público que lê. Isto exige que o autor esclareça com algum detalhe a forma como utiliza as
fontes - tarefa que os biógrafos de outras figuras da Antiguidade podem realizar rapidamente ou
mesmo omitir. Todos os historiadores têm opiniões sobre as suas fontes, mas, habitualmente, só
têm de as explicar a outros investigadores. A discussão dos problemas postos pelas fontes da
Antiguidade é quase necessariamente técnica, o que impõe um fardo suplementar aos leitores.
Problema mais importante ainda é o de praticamente toda a gente ter a sua própria opinião sobre
Jesus e, portanto, ter uma ideia preconcebida sobre aquilo que um livro sobre ele deveria dizer.
Salvo raras exceções, estas opiniões são extremamente favoráveis. As pessoas querem estar de
acordo com Jesus e isto significa, frequentemente, que o veem concordando com elas.
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Os ensinamentos éticos de Jesus, em particular, são aplaudidos em quase todos os campos. Os
ensinamentos recolhidos no sermão da montanha (Mt 5-7), sobretudo, o mandamento do amor
aos seus inimigos e a oferta da outra face, a par das parábolas em Lucas, como, por exemplo, a
história do bom samaritano, serviram, muitas vezes, como súmula da verdadeira religião no
pensamento dos grandes e famosos, incluindo daqueles que não tinham simpatia por nenhuma
ou quase nenhuma religião organizada. Thomas Jefferson rejeitava a ideia de uma igreja
estabelecida (quer dizer, de uma religião oficial de Estado); e esta perspetiva foi incluída na
Constituição dos Estados Unidos da América. Mas Jefferson foi ainda mais longe: escreveu que
tinha «jurado sobre o altar de Deus uma inimizade eterna por qualquer forma de tirania sobre o
espírito humano», incluindo, em particular, as doutrinas de muitas confissões cristãs. No
entanto, considerava Jesus um «mestre obreiro», cujo «sistema moral foi, provavelmente, o
mais benéfico e sublime alguma vez ensinado». Segundo Jefferson, Jesus era «sensível à
incorreção das opiniões dos seus antecessores sobre a Divindade e a moral» e «fez tudo para os
conduzir aos princípios de um deísmo puro e a noções mais corretas dos atributos de Deus, a
fim de reformar as suas doutrinas morais de acordo com as normas da razão, da justiça e da
filantropia e para inculcar a fé num estado futuro». Por outras palavras, Jesus era muito parecido
com Jefferson.
Charles Dickens era mordaz em relação à Igreja vitoriana. Assim, escreveu que, num dia de
Outono em Coketown (a cidade fictícia de Disckens, na qual era suposto todos os desastres
sociais e económicos da revolução industrial tornarem-se patentes), «as cotovias cantavam,
apesar de ser um domingo».'? Dickens debruça-se pormenorizadamente sobre os horrores do
domingo numa extensa passagem na sua obra intitulada Little Dorrit. Clennam, uma das
personagens do romance, recorda uma legião de domingos passados, «todos eles dias de uma
amargura e angústia absurdas». No entanto, o autor estabelece um contraste entre os
desconsoladores dias de descanso vitorianos e a «história benévola do Novo Testamento»,
acerca da qual Clennam
22
nunca ouviu falar durante as muitas horas que tinha passado na igreja. u Perto do fim do livro, a
heroína insta a dura senhora Clennam a não se agarrar à sua religião vingativa, mas sim a
deixar-se apenas guiar por aquele «que curava os doentes, ressuscitava os mortos, o amigo de
todos os que sofriam e estavam sobrecarregados, o bom Mestre que derramou lágrimas de
compaixão pelas nossas fraquezas». O desagrado de Dickens em relação aos domingos não se
estendia a Jesus. Os domingos em Coketown poderiam ser sombrios, mas o verdadeiro
problema era que os homens que mandavam, como, por exemplo, o senhor Gradgrind,
pensavam que o «bom samaritano» era um «mau economista.»
Winston Churchill, embora não tivesse nada contra o cristianismo oficial, tinha a mesma
opinião sobre Jesus. Segundo um cronista, numa longa conversa com Harry Hopkins e outros,
em 1941, Churchil ventilou a questão da tarefa de reconstrução do mundo quando a Guerra
acabasse, finalmente. «Não podíamos encontrar um fundamento melhor do que a ética cristã e
quanto mais seguirmos o sermão da montanha, tanto mais probabilidade teremos de ser bem
sucedidos nos nossos esforços.» Onze anos mais tarde, Churchill continuava a ver no sermão da
montanha «a última palavra em matéria de ética.»
O facto de Jesus gozar de uma aprovação tão generalizada prova que os autores dos Evangelhos
cumpriram bem a sua tarefa. Eles pretendiam que as pessoas se convertessem a ele, que o
admirassem e acreditassem que ele tinha sido enviado por Deus e que segui-lo levaria à vida
eterna. Raramente as expectativas foram cumpridas de forma tão total. Na perspetiva dos
autores, a admiração por Jesus e a fé nele iam a par. Mateus e Lucas (aos quais devemos o
sermão da montanha e a parábola do bom samaritano) não teriam gostado que os ensinamentos
de Jesus fossem separados da própria convicção teológica, que eles próprios possuíam de que
Deus o tinha enviado para salvar o mundo. Apesar disso, a forma como construíram os seus
livros permite ao leitor escolher aquilo que lhe agrada e foi isso que muitos leitores
23
fizeram, admirando Jesus, mas discordando da teologia cristã. Nestes casos, alguns dos
objetivos dos evangelistas foram alcançados.
É destino do historiador ser a pessoa que submete os Evangelhos a um tratamento severo. Ele
pode aderir ou não à teologia dos Evangelhos, isto é, à ideia de que Deus atuou através de Jesus.
Seja como for, tem de ter consciência de que os autores tinham convicções teológicas e de que é
provável que tenham revisto os seus relatos para que estes apoiassem as suas convicções. O
historiador também tem de suspeitar que a doutrina ética que impressionou tanto o mundo tenha
sido acrescentada através da sua utilização homilética e dos aperfeiçoamentos redaccionais
ocorridos entre o tempo de Jesus e o surgimento dos Evangelhos. Independentemente destas
suspeitas, o historiador tem a obrigação profissional de submeter as fontes a um interrogatório
cruzado rigoroso: «Tu afirmas que "todos os habitantes de Jerusalém" foram ouvir João Baptista
(Mc 1,5) e que Jesus curou "todas as doenças e todos os males" (Mt 4,2.3). Eu digo-te que estás
a exagerar muitíssimo.» É óbvio que, nestas duas passagens, o historiador não observa senão
exageros de retórica. Mas é necessário colocar outras questões: «Tu afirmas que os seus
inimigos eram astuciosos e cheios de maldade. Eu digo-te que alguns eram sinceros, honestos e
piedosos e que, por isso, o conflito não se reduzia a um esquema a preto e branco, como se fosse
um western:» E o exame continua ao longo de todo o relato. Portanto, ao contrário dos políticos,
romancistas ou moralistas, o historiador não pode limitar-se a escolher aquelas partes do
Evangelho que testemunham nobreza e que podem servir de inspiração a outros. O historiador
escolhe, mas com base em critérios diferentes: o que pode ser provado, o que não pode, o que
está entre uma coisa e outra?
O livro tem a seguinte estrutura: nos próximos cinco capítulos apresento mais material
introdutório. O capítulo 2 constitui um esboço preliminar da vida e da época de Jesus; o capítulo
.3 consiste numa breve apresentação da situação política que se vivia na Palestina no século I; o
capítulo 4 consta de algumas questões fundamentais sobre o Judaísmo como religião; nos
capítulos 5 e 6 são debatidos alguns dos problemas inerentes às nossas fontes. O cerne do livro é
constituído pelos capítulos nos quais se procura proceder a uma reconstrução histórica daquilo
que Jesus fez e ensinou, dos seus conflitos com outros e da sua morte. No epílogo, faço uma
reflexão sobre as narrativas da sua ressurreição.
24

2. Esboço da vida de Jesus


Tal como acabei de mencionar, temos de estudar muito material introdutório, antes de podermos
iniciar uma exploração pormenorizada da atividade e da mensagem de Jesus. Teremos de
descrever o mundo político e religioso no qual Jesus nasceu, assim como a natureza dos
problemas e das nossas fontes. No entanto, pode ser útil começar com um breve resumo da vida
de Jesus, o qual pode servir, em parte, como um enquadramento, e por outra parte, como um
ponto de partida para uma apresentação mais completa. Acrescentarei um parágrafo sobre a
forma como os discípulos encararam retrospetivamente a vida de Jesus; apesar de tal não
constituir o tema do livro, é necessário têrmo-lo em conta.
Não existem dúvidas substanciais sobre o curso geral da vida de Jesus: quando e onde viveu,
quando e onde morreu, aproximadamente, e o que fez durante a sua atividade pública. Quando
começamos a investigar mais a fundo, surgem dificuldades e incertezas, mas, por agora,
ficaremos à superfície. Começarei por apresentar uma lista de afirmações sobre Jesus que
cumprem dois critérios: são praticamente indiscutíveis e dizem respeito ao enquadramento da
sua vida, especialmente à sua vida pública. (Se fizéssemos uma lista de todas as informações
sobre Jesus que possuímos, ela seria consideravelmente mais longa.)
25
Jesus nasceu aproximadamente no ano 4 a.e.c., por volta da data da morte de Herodes Magno;
passou a sua infância e os seus primeiros anos de adulto em Nazaré, uma aldeia na Galileia;
foi batizado por João Baptista;
reuniu discípulos à sua volta;
ensinou em pequenas cidades, aldeias e na região rural da Galileia (ao que parece, não nas
grandes cidades);
anunciou o «Reino de Deus»;
por volta do ano 30, foi a Jerusalém, para a festa da Páscoa;
causou distúrbios no recinto do Templo;
tomou uma última refeição com os seus discípulos;
foi preso e interrogado pelas autoridades judaicas, mais precisamente, pelo sumo sacerdote;
foi executado por ordem do prefeito romano, Pôncio Pilatos.
Podemos acrescentar aqui uma pequena lista de factos igualmente seguros sobre os
acontecimentos que se seguiram à sua morte:
Os seus discípulos começaram por fugir;
viram-no (não se sabe, em que sentido, ao certo) após a sua morte;
por consequência, acreditaram que ele voltaria para instaurar o Reino;
criaram uma comunidade para aguardar o seu regresso e procuraram persuadir os outros a
acreditar nele como Messias enviado por Deus.
A maior parte dos pontos nesta lista será discutida ao pormenor mais adiante. Gostaria agora de
completar o esboço com um breve resumo sob a forma de narrativa.
Não se sabe exatamente qual o ano do nascimento de Jesus. Voltaremos mais tarde às narrativas
do nascimento em Mateus e Lucas, no entanto, gostaria de fazer aqui algumas observações
sobre a data. A maioria dos investigadores - entre os quais também eu me encontro - considera
decisivo o facto de Mateus concatenar a data do nascimento de Jesus com a morte de Herodes
Magno. Herodes morreu no ano 4 a.e.c.; portanto, Jesus nasceu nesse ano ou pouco tempo
antes; alguns investigadores preferem o ano 5, 6 ou, até, 7 a.e.c.
O facto de Jesus ter nascido alguns anos antes do início da era que começa com o seu
nascimento constitui uma das pequenas curiosidades
26
da história. Nesta obra, utilizo as letras a.e.c. para significarem «antes da era comum» e e.c. para
significar «era comum». («Comum» que dizer aceite por todos, incluindo os não-cristãos.) As
abreviaturas tradicionais, contudo, são a. C. («antes de Cristo») e d. C. (depois de Cristo»).
Estas letras dividem a história entre os anos antes e depois de Jesus ter nascido. Mas, então,
como é que ele poderia ter nascido no ano 4 a. C. (ou a.e.c.)? No século VI, um monge cítico,
que vivia em Roma, chamado Dionísio Exíguo, introduziu um calendário litúrgico que contava
os anos «a partir da encarnação» (nascimento de Jesus) e não de acordo com o sistema
estabelecido pelo imperador romano Diacleciano, um pagão. No entanto, os conhecimentos de
que Dionísio dispunha eram limitados. Não conseguiu fixar com exatidão nem a data da morte
de Herodes (Mt 2), nem a do censo de Quirino (Lc 2), parecendo ter feito um cálculo baseado
numa outra informação dada por Lucas: João Baptista, o precursor de Jesus, começou a pregar
no décimo quinto ano do império de Tibério (Lc 3,1); Jesus tinha cerca de trinta anos quando
começou a ensinar (Lc 3,23). O décimo quinto ano do império de Tibério foi (segundo o
calendário atual) o ano 29 e.c.; ao atribuir o espaço de um ano à missão de João Baptista,
Dionísio Exíguo concluiu que Jesus tinha iniciado o seu ministério no ano 30 e.c. Se Jesus tinha
precisamente trinta anos naquela altura, então é porque nasceu no ano 1. Este deve ter sido o
raciocínio que levou ao nosso calendário atual. 1 Os investigadores da atualidade consideram
que a idade de Jesus, indicada em Lucas 3,23, constitui um número redondo e que tanto Lucas
como Mateus, colocam o início da história no «tempo do reinado de Herodes» (Lc 1,5). Tal
como já referi, esta parece ser a prova mais segura no que diz respeito à data de nascimento de
Jesus. No entanto, o calendário baseado nos cálculos de Dionísio, nos quais o ano de morte de
Herodes não desempenha qualquer papel, ganhou o apoio geral no século VI e nos séculos
seguintes, pelo que, atualmente, os investigadores colocam o nascimento de Jesus alguns anos
«antes de Cristo».
Jesus viveu com os seus pais, em Nazaré, uma aldeia da Galileia. O governador da Galileia
durante praticamente todo o tempo da vida
27
de Jesus (exceto nos primeiros anos, quando Herodes Magno ainda era vivo) era um dos
herdeiros de Herodes Magno, Antipas. É muitíssimo provável que a atividade de ensinamento
de Jesus, à exceção das últimas duas ou três semanas, tenha decorrido praticamente toda na
Galileia de Antipas." Jesus não era um citadino. As grandes cidades na Galileia - Séforis,
Tiberíades e Citopólis (Beth-Shean, em hebraico) - não aparecem nos relatos sobre a sua vida
pública:" Ele conhecia, seguramente, a cidade de Séforis, que ficava apenas a alguns
quilómetros de Nazaré; apesar disso, parece ter considerado que a sua missão se adequava mais
aos judeus nas aldeias e nas pequenas cidades da Galileia. A própria Nazaré era uma aldeia
bastante pequena. Situava-se numa região montanhosa, longe do mar da Galileia, mas Jesus
ensinava principalmente nas aldeias e nas pequenas cidades junto ao mar. Alguns dos seus
seguidores eram pescadores. Nos ensinamentos que lhe são atribuídos encontram-se, com
bastante frequência, imagens da vida rural.
Jesus era ainda um jovem, provavelmente, perto dos trinta anos, quando João Baptista começou
a pregar na Galileia ou nos arredores. Este anunciava a necessidade urgente de arrependimento
face ao juízo que se aproximava. Jesus ouviu João e sentiu-se chamado a aceitar o seu batismo.
Os quatros Evangelhos apontam todos estes acontecimentos como algo que mudou a vida de
Jesus. Segundo a descrição de Marcos, Jesus «viu os céus abrirem-se e o Espírito descer sobre
ele, como uma pomba; ele ouviu também uma voz que disse: «Tu és o meu Filho amado» (Mc
1,9-11).
Antipas prendeu João porque este (segundo os Evangelhos) criticava o seu matrimónio com
Herodíade ou porque (segundo Josefo) receava que a pregação do Baptista levasse à insurreição
- ou por causa de ambas as coisas. Jesus começou a sua vida pública mais ou menos por essa
altura. Enquanto João tinha pregado fora das povoações, Jesus andava de cidade em cidade e de
aldeia em aldeia, pregando,
28
na maior parte das vezes, nas sinagogas, ao sábado. Reuniu à sua volta um pequeno número de
pessoas para serem seus discípulos e eles acompanhavam-no nas suas viagens. Ao contrário de
João, Jesus não só pregava como também curava os doentes. Ganhou fama e as pessoas
insistiam em vê-lo. Depressa teve, também ele, de pregar ao ar livre, por causa das multidões.
Não sabemos quanto tempo durou este ministério itinerante, mas, ao que parece, deve ter sido
apenas um ou talvez dois anos. Depois de pregar e curar na Galileia durante esse período de
tempo, Jesus foi passar a Páscoa a Jerusalém com os seus discípulos e outros seguidores.
Jerusalém era na Judeia, que, ao contrário da Galileia, era uma província romana. Jerusalém, em
si, era governada pelo sumo sacerdote dos judeus, que estava subordinado a um prefeito
romano. Jesus entrou de burro na cidade e algumas pessoas aclamaram-no como «filho de
David»." Quando foi ao Templo, agrediu os cambistas e os vendedores de pombas. O sumo
sacerdote e os seus conselheiros decidiram que Jesus era perigoso e que tinha de morrer. Depois
da ceia pascal com os seus discípulos, Jesus afastou-se para rezar. Um dos seus discípulos traiu-
o e os guardas do sumo sacerdote prenderam-no. Foi julgado num simulacro de processo e
entregue ao prefeito romano com a recomendação de ser executado. Após um breve
interrogatório, o prefeito ordenou a sua execução. Foi crucificado como agitador juntamente
com outros dois.
Jesus morreu depois de um período de sofrimento relativamente curto. Alguns dos seus
seguidores colocaram-no num túmulo. Segundo alguns relatos, quando voltaram, dois dias
depois, para ungir o seu corpo, encontraram o túmulo vazio. Depois, os seus seguidores viram- -
no. Estas experiências da ressurreição convenceram-nos de que Jesus regressaria e que Deus
tinha agido na vida e morte de Jesus para salvar a humanidade. Os discípulos começaram à.
persuadir outras pessoas a acreditar em Jesus. Atribuíram-lhe vários títulos, incluindo «Ungido»
(«Messias, em hebraico, e «Cristo», em grego, «Senhor» e «Filho de Deus»). Estes títulos
revelam que, à medida que o tempo foi passando, os discípulos de Jesus e os que estes
converteram desenvolveram várias perspetivas acerca da relação de Jesus com Deus, bem
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como do seu significado no plano de Deus para Israel e para o mundo. O movimento deles
acabou por se separar do judaísmo e tornou-se a Igreja cristã. No entanto, quando os Evangelhos
foram escritos, a cristologia (explicação teológica da pessoa e da obra de Jesus) ainda estava
numa fase embrionária e a separação entre o cristianismo e o judaísmo ainda não era completa.
Volto a dizer: cada frase deste esboço exige uma explicação e nós iremos investigar mais
detalhadamente a maior parte destes pontos. Agora, temos de fazer um enquadramento,
descrevendo a situação política e religiosa na Palestina daquela época e, depois, examinando as
fontes das nossas informações sobre Jesus.
30

3. Situação política
Quando Jesus nasceu, o Mediterrâneo oriental estava dominado por Roma. A sua execução foi
ordenada por um administrador romano. No entanto, durante a maior parte da sua vida não
esteve sujeito ao poder direto das autoridades romanas. Vamos examinar o ambiente político, no
qual ele viveu e trabalhou, visto que temos de saber quem tinha poder sobre vários aspetos da
vida nas diversas regiões da Palestina. No final dos anos vinte e no início dos anos trinta, havia
uma tripartição do poder. Herodes Antipas era o tetrarca da Galileia e de Pereia, Pôncio Pilatos
era o prefeito da Judeia e da Idumeia (que, naquela época, englobava três zonas geográficas
(Samaria, Judeia e Idumeia) e José Caifás era o sumo sacerdote em Jerusalém. Esta divisão é
mais fácil de compreender se começarmos com um breve resumo da história política que esteve
na sua origem. Mas, primeiro, vou apresentar o homem a cujos escritos devemos a maior parte
dos nossos conhecimentos sobre a Palestina na época de Jesus.
Josefo, filho de Matatias, nasceu no ano 37 e.c., pouco tempo depois da execução de Jesus,
numa família aristocrática de sacerdotes. Josefo era um grande conhecedor da lei e da história
bíblicas, tendo estudado, também pormenorizadamente, os partidos religiosos mais importantes
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da sua época (os essénios, os saduceus e os fariseus). Era promissor e ainda um jovem quando
foi mandado a Roma para persuadir Nero a libertar alguns reféns judeus. Quando a revolta
contra Roma eclodiu, em 66 e.c., foi-lhe entregue o comando da Galileia, apesar de ter apenas
vinte e nove anos de idade. As suas tropas foram derrotadas, mas ele sobreviveu à derrota,
graças à sorte e à habilidade. Teceu elogios ao general romano vitorioso, Vespasiano,
vaticinando que ele haveria de se tornar imperador. Quando isso aconteceu, em 69, Josefo subiu
na vida. O filho de Vespasiano, Tito, que ganhou a guerra contra os judeus, utilizou Josefo
como intérprete e porta-voz para os judeus que defendiam Jerusalém. Depois da guerra, Tito
levou Josefo consigo para Roma, onde lhe ofereceu casa e uma pensão. Josefo escreveu a
história da guerra (Guerra judaica). Esta foi publicada nos anos setenta. Mais tarde, escreveu
uma grande história dos judeus (Antiguidades Judaicas) que publicou nos anos noventa.
Escreveu também uma defesa do Judaísmo contra os seus críticos (Contra Apion) e uma Vida
apologética. Era um bom historiador, para os critérios da época, e dispunha de fontes exce-
lentes para algumas partes das suas narrativas históricas. As exposições históricas que se
seguem baseiam-se, em grande medida, em Josefo, visto que ele constitui a nossa única fonte
para grande parte delas.
Roma constituía o sucedâneo dos impérios anteriores: o persa, o de Alexandre Magno, e os
vários impérios helenísticos que se seguiram a este." Apesar de os impérios terem surgido e
desaparecido, os seus sistemas não se alteraram muito. Os povos subjugados pagavam tributo ao
imperador; em contrapartida, eram protegidos das invasões e era-lhes permitido viver em paz -
se estivessem dispostos a fazê-lo. Por vezes, os estados subjugados eram governados por
autoridades locais «independentes», outras vezes, por um governador do império, que recorria
às autoridades locais para a administração do dia-a-dia. Existem várias
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situações análogas na história moderna. Nos impérios coloniais do século XVIII e XIX, as
potências colonizadoras nomeavam um governador e estacionavam tropas no país, mas
utilizavam, em certa medida, nativos na administração e na polícia; estes serviam, por vezes,
como intermediários entre o governo e a população." A União Soviética recorreu a uma forma
alternativa de governo imperial depois da Segunda Guerra Mundial. Estabelecia governos
«independentes» nos países da Europa Oriental e só intervinha com as suas próprias tropas
quando havia uma insurreição grave ou uma ameaça efetiva ao seu poder hegemónico.
Entre o século VI e meados do século II a.e.c, os judeus da Palestina constituíam uma nação
muito pequena no interior de um dos grandes impérios, um povo cujo território se limitava às
montanhas da Judeia, sem qualquer acesso ao mar e fora das grandes rotas de comércio. Era
governado pelo sumo sacerdote e o seu conselho, que deviam prestar contas ao governador do
Império ou diretamente à capital do mesmo. Neste período de cerca de 400 anos, não existiram
quaisquer conflitos substanciais entre a Judeia e o poder imperial. Os judeus viviam pacifi-
camente sob o governo dos monarcas persas e helenistas.
A partir do ano 175 a.e.c., com a subida de Antíoco IV Epifânio ao trono do império selêucida,
a situação começou a alterar-se. Alguns dos sacerdotes aristocráticos em Jerusalém queriam
adoptar um estilo de vida mais helenista, incluindo a introdução de um gymnasion, uma das
principais instituições da civilização grega. O gymnasion educava rapazinhos e jovens e uma
parte da educação consistia em exercícios físicos a nu. Isto tornou patente uma diferença
fundamental entre a cultura helenista e a judaica: os judeus do sexo masculino eram
circuncidados, em sinal da aliança feita entre Deus e Abraão (Gn 17), enquanto os
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gregos, que acreditavam numa mente sã em corpo são, abominavam a circuncisão como
mutilação. Alguns judeus submeteram-se a uma operação para disfarçar a sua circuncisão (1
Mac, 1, 14 e segs.).
Estes passos extremos provocaram uma reação. Os judeus não se opunham a todas as formas de
influência estrangeira. Assumiram numerosos aspetos da religião e da cultura persa durante o
período deste império e, em 175, também já tinham aceite alguns aspetos do helenismo. Mas o
gymnasion ia longe de mais, porque levava à remoção da circuncisão, o símbolo da aliança.
Prescindimos de uma descrição pormenorizada dos acontecimentos que se seguiram. A
resistência judaica levou à tomada de medidas coercivas por parte de Antíoco, para impor a
helenização dos judeus. O Templo em Jerusalém foi profanado por sacrifícios pagãos, os judeus
foram obrigados a fazer sacrifícios aos deuses pagãos e alguns judeus foram obrigados a comer
carne de porco, assim como a transgredir a Lei de outras maneiras. Isto levou, por sua vez, a
uma revolta liderada pelos Asmoneus, uma família de sacerdotes, também conhecidos pelo
nome de «Macabeus», por causa de uma alcunha dada a um dos irmãos que liderou a
insurreição. O movimento dos Asmoneus acabou por ser bem sucedido, tendo contado, para
tanto, com a grande ajuda das guerras de sucessão no império selêucida, após a morte de
Antíoco IV.
Os Asmoneus fundaram uma nova dinastia. Governavam a Palestina judaica como sumos
sacerdotes e acabaram por assumir o título real. O Estado judaico totalmente independente
durou cerca de 100 anos, tempo durante o qual os reis sacerdotais Asmoneus aumentaram
consideravelmente o seu território, até este acabar por ter aproximadamente a mesma dimensão
do reino de David. Os conflitos internos entre dois irmãos da família dos Asmoneus, Hircano II
e Aristóbulo II, puseram fim à independência judaica. Durante a sua luta pelo poder, ambos
apelaram à ajuda do general romano Pompeu. Ele respondeu, conquistando Jerusalém e
separando uma parte do território recém-conquistado (63 a.e.c.). Nomeou Hircano II sumo
sacerdote e «etnarca» («regente da nação», um grau inferior ao de rei); além disso, empossou
um idumeu, chamado Antipatro, como uma espécie de governador militar. Em seguida,
Antipatro nomeou dois dos seus
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filhos, Fasael e Herodes (que seria conhecido, mais tarde, por Herodes Magno) para
governadores da Judeia e da Galileia, respetivamente.
A invasão de Pompeu alterou a posição do governo judaico. Este deixou de ser completamente
independente para passar a ser semi-independente. Hircano II tornou-se soberano vassalo.
Pagava tributo a Roma e era obrigado a apoiar a política e as ações militares dos romanos no
Mediterrâneo oriental. Em contrapartida, gozava de autonomia no seu território; Roma assumiu
a obrigação tácita de o proteger e de o manter na sua posição. Aristóbulo II não estava satisfeito
com este regime. Ele e o seu filho Antígono revoltaram-se. Aristóbulo foi assassinado por
amigos de Pompeu, mas o seu filho prosseguiu a luta, aliando-se aos Partos, a principal ameaça
militar contra Roma naquela época. No ano 40 a.e.c., os Partos esmagaram o Médio Oriente,
prenderam Hircano II e Fasael e empossaram Antígono como rei e sumo sacerdote. Herodes
fugiu e conseguiu chegar a Roma. Foi nomeado rei da Judeia pelo Senado romano, com o apoio
de Marco António e de Octaviano (que viria a ser chamado Augusto); além disso, recebeu o
apoio das tropas romanas para reclamar o seu direito ao trono.
Herodes foi escolhido porque era forte, um soldado excelente e leal a Roma; no entanto, a sua
nomeação também estava em consonância com a política do Império Romano. Herodes tinha
sido um apoiante de Hircano lI, a primeira escolha de Roma. Ao nomearem Herodes e ao
apoiarem-no militarmente, os romanos apoiavam o seu protegido, opondo-se ao partido de
Aristóbulo II e Antígono, que se aliou, ele próprio, ao adversário de Roma. Herodes venceu a
guerra civil com a ajuda das tropas romanas. O rei vitorioso mandou Antígono a Marco
António, que o mandou executar. No ano 37, Herodes restabeleceu a Palestina judaica como
«estado independente» - melhor, como um reino vassalo semi-independente.
A ênfase que coloquei na relativa independência da Palestina judaica deve-se ao facto de os
investigadores do Novo Testamento, em particular, pensarem que Roma «dominava» ou
«ocupava» a Palestina no tempo de Jesus, com soldados romanos em cada esquina. A situação
variou de época para época e de local para local (como veremos), mas, em geral, Roma
governava à distância, contentando-se com a cobrança do tributo e com a preservação de
fronteiras estáveis,
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a maior parte das vezes, mesmo a execução destas tarefas era deixada aos governadores e líderes
locais leais a Roma.
Herodes e a sua família eram idumeus, originários de uma região no sul da Judeia, que tinha
sido conquistada pelos judeus com a força das armas durante o tempo dos Asmoneus. Muitos
judeus consideravam-no só meio-judeu e tinham uma atitude de ressentimento em relação ao
seu governo. Além disso, ele tinha suplantado a família dos Asmoneus, que, embora estivesse
parcialmente desacreditada devido a conflitos internos, continuava a contar com a fidelidade de
uma grande parte da população. Herodes casou com Mariamne, uma princesa Asmoneia, mas
sabia que isto não era suficiente para ser amado pelo povo. Receava uma revolta e, ao longo dos
anos, foi eliminando os membros que restavam da família dos Asmoneus, incluindo Mariamne e
os dois filhos que teve dela.
Depois de ter conquistado a Palestina, dominou-a com mão forte, até à sua morte, 33 anos
depois. As tropas romanas, que o tinham ajudado na conquista, retiraram-se para outras regiões
e Herodes era senhor absoluto na sua própria casa. É claro que não podia agir contra os inte-
resses romanos: Augusto tinha a última palavra nas questões decisivas; mas, nas restantes,
Herodes governava o seu reino como lhe apetecia. Lançou-se em grandes projetos de construção
que empregaram dezenas de milhares de trabalhadores, promoveu o negócio e aumentou a
prosperidade das terras reais. Esmagou impiedosamente qualquer oposição, nem que fossem
protestos mínimos. No fim da sua vida mandou executar três dos seus filhos por ter suspeitado
que eles eram traidores. Augusto, que aprovou o julgamento dos primeiros dois filhos,
comentou que preferia ser o porco de Herodes do que o seu filho", Herodes seguia a Lei judaica
com bastante rigor e não comia carne de porco.
Tudo somado, Herodes era um bom rei. Não quero com isto dizer que lhe devêssemos conceder
a nossa aprovação moral, mas que as suas fraquezas, para os critérios daquele tempo, não eram
demasiado graves, sendo, em parte, compensadas por qualidades mais positivas.
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Os ideais que motivam as democracias modernas ainda não tinham surgido. Em comparação
com Augusto, um dos seus patronos, Herodes era desnecessariamente cruel e de visões curtas.
No entanto, se o compararmos com os quatro imperadores romanos que se seguiram a Augusto
(Tibério, Calígula, Cláudio e Nero), ele parece quase benévolo e misericordioso e era mais
eficaz como governador. O que o distingue como um bom rei é o facto de ter aumentado a
importância da Palestina no mundo, de ter prosseguido a política do seu pai no sentido da
obtenção de benefícios para os judeus fora da Palestina, de não ter permitido que estalasse a
guerra civil, que tinha deteriorado a situação no tempo dos Asmoneus e que haveria de se
reacender na insurreição contra Roma e de, mais importante ainda, ter mantido os cidadãos
judeus à distância dos soldados romanos. Enquanto a Palestina judaica fosse estável e forte,
Roma deixava-a em paz.
Quando Herodes morreu, no ano 4 a.e.c., Augusto analisou os testamentos que ele tinha deixado
(eram dois) e decidiu dividir o reino entre três filhos. Arquelau recebeu o título de «etnarca» e
foi nomeado governador da Judeia, Samaria e Idumeia. Antipas e Filipe foram nomeados
«tetrarcas», «governadores de um quarto»; Antipas herdou a Galileia e a Pereia, enquanto Filipe
recebeu as regiões mais remotas do reino de Herodes. Antipas revelou-se um vassalo fiel e
governou a Galileia durante quarenta e três anos, até 39 e.c. Arquelau teve menos sorte; os seus
súbditos protestaram contra algumas das suas medidas e Roma deu-lhes razão, destituindo-o e
exilando-o (6 e.c.). Augusto nomeou, então, um funcionário romano para governar a Judeia, a
Samaria e a Idumeia.
Herodes fundou uma pequena dinastia e, ao que parece, os seus sucessores assumiram - ou,
melhor, foi-lhes atribuído - o seu próprio nome. Tal como os sucessores de Júlio César se
chamaram «César», os sucessores de Herodes receberam o nome de «Herodes». Em
consequência disto, no Novo Testamento, há várias pessoas chamadas Herodes. A nota
identifica os vários «Herodes» do Novo Testamento. Designarei sempre os filhos e os netos de
Herodes pelos seus nomes próprios.
37

O governo da Galileia no tempo de Jesus


Na Galileia do tempo de Jesus (entre 4 a.e.c. e 30 e.c., aproximadamente), a situação política era
a mesma que tinha existido antes da morte de Herodes. Antipas governava a Galileia como o
seu pai tinha governado um estado muito maior e governava-a nos mesmos termos e condições:
pagava tributo, colaborava com Roma e mantinha a ordem pública. Em contrapartida, Roma
protegia-o de invasões, não através do estacionamento de tropas no país ou nas fronteiras, mas
pela ameaça implícita de retaliação contra os invasores. Antipas podia fazer o que quisesse no
seu território, desde que os requisitos básicos fossem cumpridos. Por exemplo, cunhava as suas
próprias moedas - um dos principais sinais de «independência». Tal como o seu pai, também
Antipas era bastante cumpridor da Lei judaica. Mandou decorar o seu palácio com figuras de
animais, o que muitos judeus consideravam uma transgressão ao mandamento que proibia os
ídolos. Provavelmente, ele era de opinião que o seu palácio era um assunto da sua conta. No
entanto, as suas moedas só tinham símbolos agrícolas, o que os judeus consideravam aceitável.
Não existem indicações em nenhuma fonte de que ele tivesse tentado impor à população judaica
costumes e instituições greco-romanas. As instituições nas cidades rurais e nas aldeias da
Galileia eram completamente judaicas. É possível concluir dos Evangelhos que existiam
sinagogas em todas as pequenas cidades e aldeias. As escolas eram judaicas e eram juízes
judeus que julgavam os casos segundo a Lei judaica.
Se Herodes foi um bom rei, em geral, Antipas foi um bom tetrarca. Correspondeu às exigências
mais importantes de uma governação bem sucedida. Da perspetiva romana, isto significava que
pagava tributo, não permitia perturbações à ordem e defendia as
38
suas fronteiras (referir-nos-emos mais adiante a uma exceção a este último ponto). Assim, Roma
não precisava de intervir na Galileia e Antipas impedia que os cidadãos judaicos e os soldados
romanos entrassem em conflito.
Josefo não regista nenhum caso no qual Antipas tivesse sido obrigado a recorrer à força para
reprimir um levantamento. O facto de a população judia tolerar bastante bem o seu governante
revela, provavelmente, duas coisas. Por um lado, que Antipas desprezava publicamente a Lei
judaica. No entanto, o único exemplo de uma infração semipública da Lei, a decoração do seu
palácio, teve repercussões anos depois da destituição de Antipas. Durante a insurreição contra
Roma, a turba judia destruiu o palácio por causa da sua decoração. Podemos concluir daqui que
muitos dos súbditos de Antipas o desaprovavam enquanto estava no poder e pensavam que ele
não era um judeu suficientemente devoto, mas não se insurgiram contra ele. O facto de não ter
existido qualquer insurreição também revela que Antipas não era excessivamente repressivo e
que não cobrava impostos excessivamente altos (isto é, que estes não eram exorbitantes para os
critérios da época). Além disso, Antipas, tal como o seu pai, empreendeu grandes projetos de
construção que contribuíram para reduzir o desemprego. Os galileus no tempo de Jesus não
tinham a sensação de que as coisas que lhes eram queridas estivessem seriamente ameaçadas: a
sua religião, as suas tradições populares e a sua subsistência.
Governantes como os herodianos tinham de pensar sobre a melhor forma de manter a ordem
pública. Não precisavam de procurar a popularidade, embora alguns o tenham feito. O que era
necessário era que avaliassem com prudência o que a população suportaria. Por exemplo,
queriam cobrar tantos impostos quanto possível, mas não queriam uma revolta por causa dos
impostos. Todos os governantes da Antiguidade sabiam que, quando surgia um conflito público,
umas vezes, deviam acalmar a população e, outras, discipliná-la. Arquelau não conseguiu
encontrar o equilíbrio entre ambas as coisas na Judeia. O tetrarca da Galileia teve um reinado
pacífico e longo, em parte, porque a Galileia era menos difícil de governar e, por outra parte,
porque era mais prudente do que Arquelau.
39
Antipas cometeu, no entanto, um grande erro. Como a história envolve João Baptista, que
batizou Jesus, e ilustra Antipas como um governante-vassalo «independente», vamos analisá-la.
Antipas apaixonou-se por Herodíade, a sua meia-sobrinha que já era casada com um outro tio
seu, um dos meios-irmãos de Antipas. (Os herodianos casavam frequentemente entre si.
Herodes tinha dez mulheres, pelo que tinha muitos filhos, que tinham imensas possibilidades de
estabelecer relações de meios-irmãos. O casamento entre tio e sobrinha é permitido na Bíblia
hebraica.) Para poder fazer de Herodíade a sua nova esposa, Antipas planeava repudiar a sua
esposa anterior. Ela fugiu para casa do seu pai, um rei árabe de nome Aretas. Este ficou furioso
e invadiu o território de Antipas, causando-lhe uma pesada derrota, antes de se retirar
novamente. Aretas não se confrontou com tropas romanas, mas sim com o exército pessoal de
Antipas, Roma recorreu, mais tarde, às suas tropas estacionadas na Síria para retaliar o ataque
contra o seu vassalo. Tanto o Novo Testamento como Josefo associam estes acontecimentos a
João Baptista. De acordo com o Evangelho de Marcos 6, 17-'29, João tinha criticado Antipas
publicamente por este ter casado com a mulher do seu irmão, o que levou à sua execução.
Segundo Josefo, Antipas receava que João, que tinha muitos seguidores, incitasse uma revolta,
pelo que mandou executá-lo. Eram muitos aqueles que consideravam que João era um profeta e
a população viu na derrota que Antipas sofreu, na batalha contra Aretas, o castigo de Deus pelo
facto de o tetrarca ter mandado executar João Baptista.!
Por volta do ano 39 e.c., anos depois da morte de Jesus, a ambição de Herodíade provocou a
queda de Antipas. Não estava satisfeita com a posição de tetrarca ocupada por Antipas e queria
que ele obtivesse o título de rei. Antipas foi a Roma para exigir esta promoção. Mas havia
acusações contra ele. Foi considerado culpado de armazenar armamento e foi deposto. Foi para
o exílio, juntamente com Herodíade.
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A Judeia no tempo de Jesus


A Judeia - unidade política composta naquela época por três regiões geográficas, a Samaria, a
Judeia (incluindo Jerusalém) e a Idumeia - passou por uma história completamente diferente no
tempo de Jesus. Arquelau teve sérias dificuldades com o povo por causa de algumas atitudes
que o seu pai, Herodes, tomou no fim da sua vida (este mandou executar dois mestres que eram
muito estimados e nomeou um sumo sacerdote impopular). Arquelau não tratou do assunto de
forma hábil. É possível que as suas tentativas de apaziguar a multidão tenham sido
desadequadas e que os seus esforços para reprimir a insatisfação não tenham sido
suficientemente severos. Seja como for, os protestos públicos acabaram por levar os romanos a
demiti-lo. É necessário dizer, para lhe fazer justiça, que esta parte da Palestina era mais difícil
de governar do que o território de Antipas, uma vez que incluía Jerusalém e Samaria. Os judeus
reagiam com muita sensibilidade ao que acontecia em Jerusalém; além disso, as grandes
concentrações que ali ocorriam por ocasião das festas religiosas criavam condições favoráveis à
eclosão fácil de distúrbios. Havia uma grande hostilidade entre os judeus e os samaritanos, o
que também provocava conflitos.
Quando Augusto decidiu que Arquelau não era um vassalo satisfatório como governador da
Judeia, em vez de entregar o país a outro membro da família de Herodes preferiu nomear um
procurador (6 e.c.). A administração foi entregue a um funcionário romano da cavalaria, que
correspondia a uma espécie de aristocracia inferior, abaixo das ordens dos cônsules e dos
pretorianos.!" Uma epígrafe encontrada há pouco permite concluir que, no período entre 6 e 41
e.c., este oficial era um «prefeito», enquanto, de 44 a 66, tinha o título de «procuradora.»
41
o prefeito (existente no tempo de Jesus) vivia em Cesareia, na costa do Mediterrâneo, num dos
luxuosos palácios que Herodes Magno tinha mandado construir. O prefeito dispunha de tropas
com cerca de 3000 homens, o que não era suficiente para resolver problemas graves. Havia uma
pequena guarnição romana na fortaleza Antónia, em Jerusalém, bem como em outros fortes da
Judeia, mas Roma não governava a Judeia no dia-a-dia. As cidades e as aldeias eram
governadas, como sempre o tinham sido, por um pequeno grupo de anciãos, entre os quais um
ou vários serviam de magistrados. Quando havia dificuldades que poderiam levar ao
derramamento de sangue, os cidadãos mais importantes mandavam uma mensagem ao prefeito.
Os distúrbios mais significativos exigiam a intervenção do legado da Síria, que era superior ao
prefeito da Judeia e dispunha de grandes contingentes militares (quatro legiões, num total de,
aproximadamente, 20000 homens da infantaria e de uma cavalaria de 5000 homens).
Durante as festas mais importantes, o prefeito romano vinha para Jerusalém e o contingente de
tropas era reforçado para garantir que as multidões não se descontrolassem. As reuniões
públicas, em geral, eram vigiadas cuidadosamente em todo o mundo antigo e as festas em
Jerusalém eram conhecidas por serem perigosas: durante os 150 anos anteriores à morte de
Jesus, temos conhecimento de, pelo menos, quatro grandes levantamentos iniciados durante
uma festa - e isto apesar de os governadores judeus e romanos estarem preparados para
enfrentar os problemas que surgissem e de terem concentrado forças nos arredores.
Só o prefeito tinha o direito de condenar alguém à morte - com uma exceção: Roma permitia
aos sacerdotes afixar avisos em grego e latim no Templo proibindo aos prosélitos a entrada num
determinado sector do Templo. Quem infringisse essa proibição, mesmo que fosse um cidadão
romano, era executado imediatamente, sem que o culpado fosse enviado ao prefeito.
Excetuando este caso, o direito do prefeito
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a condenar à morte não só era exclusivo como também era absoluto; ele podia mandar executar
até um cidadão romano, sem precisar de formular uma acusação que fosse apresentada perante
um tribunal romano. Neste posto avançado do Império, um prefeito tinha de ser capaz de fazer
tudo quanto considerasse necessário para defender os interesses de Roma e isto incluía o poder
para disciplinar o exército. Se tinha o direito de executar um oficial romano sem um julgamento
romano regular, então podia tratar os habitantes do país submetido mais ou menos como lhe
apetecesse. A maioria dos prefeitos eram pessoas sensatas e não condenavam à morte de forma
arbitrária. Mas, se um prefeito fosse extraordinariamente cruel, os súbditos não tinham grandes
meios para se defenderem. Podiam reunir-se em massa e persuadir os seus líderes a tentar que o
prefeito fosse mais benevolente. Se os seus líderes os apoiassem, podiam apresentar uma
petição ao legado na Síria e este talvez interviesse. O legado da Síria podia, por exemplo,
mandar o prefeito da Palestina a Roma para responder ali pelos seus atos. Por fim, a população
do país submetido podia ser autorizada a mandar uma delegação diretamente a Roma. Para tal
era provável que precisassem da autorização do legado e este podia proteger-se a si próprio
fazendo reféns, para não se tornar o alvo da delegação.!? Nem Augusto nem o seu sucessor
Tibério estavam interessados num levantamento ou numa insurreição. Por isso, Roma, às vezes,
respondia positivamente a essas petições. No período sobre o qual nos debruçamos aqui, Roma
destituiu dois governantes nativos (Arquelau e Antipas), bem como dois funcionários romanos,
um dos quais era Pilatos.
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Já foi observado que o governo local, sob os prefeitos, estava nas mãos de cidadãos notáveis:
nas cidades e aldeias judaicas, os governantes efetivos eram sacerdotes e leigos judeus notáveis;
nas cidades e nas aldeias samaritanas, esta tarefa era cumprida por sacerdotes e leigos
samaritanos notáveis. Na Judeia, a situação era muito mais complicada do que na Galileia, dado
que, em algumas cidades de maior dimensão, vivia um grande número de prosélitos e a
população da Samaria, uma das regiões geográficas da Judeia, não era judaica. Mas basta que
nos concentremos em Jerusalém, visto que era a única cidade da Judeia importante na vida de
Jesus.
Jerusalém era governada pelo sumo sacerdote judeu e pelo seu Conselho. Isto constituía, pura e
simplesmente, um sistema praticado na época persa e helenística antes do levantamento dos
Asmoneus. O sumo sacerdote - que atuava frequentemente em consonância com os «chefes dos
sacerdotes» e, por vezes, também com «os poderosos» ou com «os anciãos» (leigos influentes) -
controlava a polícia normal e o sistema judicial; o sumo sacerdote - sozinho ou nas combinações
que acabamos de mencionar - ocupa um lugar de destaque nos Evangelhos, nos Atos dos
Apóstolos e em Josefo. Houve sempre uma tendência para atribuir ao Conselho - que se chama
Sinédrio, em hebraico - um papel governativo demasiado relevante. Não irei argumentar aqui
contra a opinião tradicional sobre o Sinédrio e sobre a sua suposta autoridade legislativa e judi-
cial, mas sim falar em termos gerais sobre o sumo sacerdote e o seu Conselho. É correto dizer
que Jerusalém era governada, tanto formal como informalmente, pelo sumo sacerdote e pelos
seus conselheiros.
Darei aqui uma explicação sobre o processo de escolha do sumo sacerdote. O sacerdócio era
hereditário; os sacerdotes judaicos faziam remontar a sua árvore genealógica a Aarão, irmão de
Moisés, que foi considerado o primeiro sacerdote (cf Ex 28, 1). Durante a época persa e
helenística, os sumos sacerdotes, os chefes da nação, eram (ou supunha-se que eram) da família
de Sadoc, o sacerdote que ungiu Salomão como rei (1 Rs 1, 28-45). Os Asmoneus eram
sacerdotes hereditários, mas não eram sadocitas. A consequência natural da sua ascensão ao
poder, em resultado do levantamento bem sucedido contra os Selêucidas, foi a nomeação do
chefe da família como sumo sacerdote. Com a investidura de Simão, o Asmoneu, no cargo de
sumo sacerdote (1 Mac
44
14,41-49), a família dos Sadocitas, que governava anteriormente, foi deposta; no entanto, o
sistema de governo pelo sumo sacerdote manteve-se. Porém, cerca de cem anos mais tarde, o
levantamento de Aristóbulo II e do seu filho levou à entronização de Herodes como rei, o que
alterou o sistema. Herodes não podia invocar uma origem sacerdotal. Durante o período da sua
governação limitou-se a nomear os sumos sacerdotes. Quando Roma depôs Arquelau e entregou
o governo da Judeia a um prefeito, começou também a nomear o sumo sacerdote. A partir daí,
este direito foi concedido, por vezes, a um membro da família de Herodes, mas, outras vezes,
ficava reservado ao prefeito, ao procurador da Judeia ou ao legado da Síria. No período entre 6 e
66 e.c., os sumos sacerdotes foram sempre escolhidos de uma das quatro famílias de sacerdotes
nobres. Visto que chegavam ao seu cargo através de uma nomeação política, não gozavam do
respeito e da autoridade dos sumos sacerdotes hereditários das épocas anteriores (dos Sadocitas
e dos Asmoneus), mas tinham algum prestígio e muito poder. De uma forma geral, foram bem
sucedidos na governação de Jerusalém durante sessenta anos (de 6 a 66 e.c.).
Por conseguinte, mesmo quando a Judeia estava formalmente sob o domínio romano «direto», o
controlo quotidiano era exercido pelos líderes judaicos. Os magistrados eram judeus e
governavam segundo a Lei judaica, as escolas eram judaicas e a religião também. O sumo
sacerdote e o seu Conselho assumiam um amplo leque de responsabilidades. Assim, tinham de
organizar, por exemplo, o pagamento do tributo, bem como zelar para que o dinheiro e os bens
chegassem às mãos certas. A ordem pública em Jerusalém era garantida pelas guardas do
Templo, que estavam sob o comando do sumo sacerdote. Durante a guerra civil que
acompanhou a revolta judaica (66-74 e.c.), morreram 8500 guardas do Templo na defesa de
Ananus, um dos exsumos sacerdotes. Isto pode dar uma ideia da quantidade de forças
policiais que estavam disponíveis em caso de emergência. Já mencionámos que o prefeito e
tropas romanas adicionais vinham para Jerusalém durante as festas, para evitar problemas.
45
O sumo sacerdote era adequado como governante, por três razões: o governo dos sumos
sacerdotes era da tradição; os judeus respeitavam muito o seu cargo e o prefeito romano
considerava-o o porta-voz oficial da população de Jerusalém. Já foi suficientemente explicado o
cariz tradicional do governo dos sacerdotes: eles governaram a Palestina judaica desde cerca de
445 até 37 a.e.c. Os restantes dois pontos necessitam de ser um pouco mais esclarecidos.
A população odiava algumas das pessoas que ocupavam o cargo de sumo sacerdote durante a
era romana; a turba perseguiu e matou um antigo sumo sacerdote, quando a revolta contra Roma
eclodiu, em 66 e.c. Outros sumos sacerdotes, pelo contrário, eram respeitados. O primeiro
governo revolucionário, que foi eleito por aclamação popular, foi liderado por dois antigos
sumo sacerdotes: as massas eram capazes de distinguir os bons dos maus. Porém,
independentemente de um sumo sacerdote concreto ser estimado ou não, o respeito pelo cargo
era profundo e genuíno. Primeiro, Herodes e, mais tarde, Roma, assumiram o controlo das
vestes do sumo sacerdote, entregando-as apenas em ocasiões especiais. O sumo sacerdote, na
sua veste oficial, ficava investido de demasiado poder. Houve várias ocasiões em que litígios
nos quais estavam em causa as vestes de sumo sacerdote, bem como a nomeação deste foram
apresentados para decisão diretamente ao imperador. Era importante saber quem controlava as
vestes e o cargo, porque o detentor do cargo não era intermediário apenas entre Roma e a
população, mas também entre Deus e o seu povo. Era ele que entrava no Santo dos Santos, no
dia da expiação e que expiava os pecados do povo de Israel.
Era provável que existissem pessoas que não gostavam do sistema, não queriam ser governadas
pelo sumo sacerdote e que teriam preferido um governante que fosse responsável diretamente
perante um Conselho. Mas tinham de se conformar. Os Romanos consideravam que o sumo
sacerdote era o funcionário responsável por Jerusalém. Quando alguém queria tratar de algum
assunto com Roma, tinha de ir através do sumo sacerdote. Quando Roma queria comunicar
qualquer coisa ao povo, o prefeito convocava o sumo sacerdote. Quando alguma coisa corria
mal, o sumo sacerdote era considerado o responsável.
O sumo sacerdote no tempo de Jesus era José Caifás. Foi bem sucedido: exerceu o cargo
durante 17 anos, mais tempo do que qualquer outro sumo sacerdote sob o império romano.
Pilatos foi prefeito durante uma década neste período de dezassete anos. Presumivelmente,
entendiam-se bem.
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Visto que tantos leitores e estudiosos do Novo Testamento imaginaram Jesus vivendo num
contexto em que a população era permanentemente oprimida por soldados e funcionários
romanos e dado que, agora, alguns investigadores defendem a opinião de que, nas cidades
judias, havia uma percentagem considerável de gentios, gostaria de voltar a sublinhar qual era,
realmente, a situação Na Galileia não havia qualquer presença de funcionários romanos. Os
gentios de língua grega viviam nas cidades que habitavam havia já muito tempo e que
constituíam uma espécie de semicírculo em torno da Galileia: havia cidades de gentios a leste, a
norte e a ocidente. Na região geográfica da Galileia existia uma única cidade de gentios,
Citópolis, mas não fazia parte da unidade política da Galileia. Na Judeia, a presença de
funcionários romanos era em número muito reduzido. Havia um único romano importante a
residir na província e dispunha de um contingente de tropas muito pequeno. Este romano, bem
como o seu pequeno exército, vivia entre uma multidão de outros gentios na Cesareia, ia
raramente a Jerusalém e não tomava qualquer iniciativa para introduzir leis e hábitos greco-
romanos nas zonas judaicas. Em Jerusalém, a percentagem de gentios era insignificante. Em
lugar da imagem de tropas romanas patrulhando as cidades e as aldeias da Palestina, obrigando
os judeus a carregar os seus fardos e os comerciantes e os agricultores a servir os seus gostos,
deveríamos pensar em alguns soldados romanos, vivendo todos juntos numa pequena unidade,
numa única cidade ou nas suas imediações, e mantendo apenas postos avançados fortificados
muito pequenos num território potencialmente hostil. O governo efetivo estava nas mãos dos
aristocratas e dos anciãos locais.
O imperador romano e o Senado romano não pretendiam romanizar os judeus da Judeia, do
ponto de vista cultural. Ao contrário do que pensam alguns investigadores do Novo Testamento,
Roma não «anexou» a Palestina - nem sequer a Judeia, apesar de esta ser uma província romana.
O prefeito não impunha à população judia instituições greco-romanas ao nível educacional,
civil, religioso ou legal.
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Não existia qualquer expectativa de que a Judeia se tornasse, alguma vez, como a Gália, que
estava cheia de colónias romanas, algumas usufruindo dos direitos dos romanos, etc. Os
interesses de Roma eram bastante limitados: estava interessada numa região estável entre a Síria
e o Egipto. Roma nem sequer estava interessada no lucro financeiro. Os lucros vinham do
Egipto e da Ásia Menor e estes países deviam ser protegidos contra as invasões dos Partos; a
Palestina encontrava-se simplesmente entre aqueles dois países. Não temos conhecimentos
suficientes sobre o montante das receitas fiscais e das despesas para poder avaliar se a Judeia
dava prejuízo, mas é possível que sim. Os prefeitos e procuradores enchiam os seus próprios
bolsos em maior ou menor grau. Estas receitas eram consideradas como fazendo parte do
serviço num ambiente «bárbaro» e hostil.
Nos finais dos anos vinte e trinta, a Palestina judaica não se encontrava, de modo algum, à beira
de uma revolta. Josefo tentou apresentar a situação como se, nas décadas anteriores à irrupção
da revolta no ano 66 e.c., a má administração romana e a rebeldia judaica tivessem aumentado
continuamente. Ele escreveu retrospetivamente e queria fazer passar a mensagem de aumento da
agitação e da violência com o aproximar da guerra. Muitos investigadores pensam que, na
época, a eclosão da guerra era algo cada vez mais provável a cada ano que passava e que as
crises se sucediam umas às outras a uma velocidade crescente. Porém, se se contarem os
levantamentos e os tumultos que o próprio Josefo menciona, não se observa nenhum
crescimento contínuo. Os levantamentos surgiram, sim, quanto houve mudanças na liderança ou
nas formas de governo. Verificaram-se tumultos quando Herodes morreu, quando Arquelau
procurou assumir a sucessão de Herodes e quando Roma destituiu Arquelau. Quando Roma
conseguiu controlar completamente a situação, as coisas acalmaram. Os protestos mais
significativos no tempo em que Jesus viveu foram, de maneira geral, de natureza não-violenta.
Pilatos ordenou às tropas que marchassem através de Jerusalém com os seus estandartes, e isto
constituiu um insulto para os judeus; talvez os estandartes fossem considerados «ídolos». De
qualquer modo, houve uma grande multidão que foi a Cesareia para protestar. Quando Pilatos
deu ordens às suas tropas para os cercarem, eles descobriram os seus pescoços e declararam que
preferiam morrer a ver a Lei espezinhada. Pilatos
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recuou. O ambiente que se vivia naquela época torna-se mais evidente se atendermos a algo que
se tornou o principal motivo de revolta, alguns anos mais tarde. Por volta do ano 40, o
imperador Gaio (que tinha a alcunha de Calígula) decidiu colocar no Templo de Jerusalém uma
estátua da sua pessoa ou de Zeus, com as suas feições. Isto foi algo verdadeiramente alarmante:
o filósofo e estadista judeu Filo escreveu de Alexandria, ameaçando que haveria um
levantamento mundial. Na Palestina, os agricultores judeus planeavam uma greve agrícola que
teria como consequência a fome e enormes distúrbios, incluindo, certamente, tumultos; de resto,
a principal reação consistiu numa petição de uma grande delegação dirigida ao legado romano,
na qual também afirmaram preferir a morte, mas, ao que parece, não empunharam armas.
Impressionado pelo ardor e pelo grande número de pessoas envolvidas na petição e preocupado
com a ameaça de uma greve, o legado adiou a execução da ordem do imperador. O problema
acabou por se resolver a contento de todos: Gaio foi assassinado.
Aqui, cerca de uma década depois da morte de Jesus, temos uma provocação que teria
conduzido certamente a um grande derramamento de sangue, se aquilo que constituía uma
ameaça para o Templo se tivesse concretizado. No entanto, não temos quaisquer provas de que a
população estivesse, de facto, disposta a entrar em guerra.
Com isto não se pretende afirmar que os judeus dos anos vinte e trinta se sentiam bem com a
situação, nem que Roma - e, nos seus respetivos domínios de poder, também Antipas e Caifás -
não tinha de estar alerta. Quando Roma assumiu o poder direto na Judeia, no ano 6 e.c., e
realizou um censo para fins fiscais houve um levantamento armado; nos anos cinquenta, houve
pelo menos um grupo de judeus exaltados que obrigou o procurador a pôr em combate tropas
fortemente armadas (ver abaixo). Segundo Josefo, Antipas mandou executar João Baptista
porque receava que a sua pregação levasse à revolta. Por conseguinte, a guerra era uma
possibilidade, tanto na Galileia, como na Judeia. Na Judeia, qualquer incidente podia levar a que
um soldado romano puxasse da sua espada e, se tal acontecesse, outras espadas podiam ser
puxadas. Isto era mais uma razão para Caifás manter o controlo de Jerusalém e para recorrer à
sua própria guarda para o fazer.
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Alguma, talvez a maior parte, da violência ocorrida revela uma esperança de intervenção divina,
que é designada geralmente (ainda que de forma errónea) como «esperança messiânica» - a
esperança de um ungido que fosse representante de Deus. É muito provável que Antipas tenha
mandado executar João Baptista, em parte, porque este tinha anunciado o juízo que se
aproximava. Depois de Jesus, surgiram profetas que reuniram seguidores, prometendo a
«salvação». Um deles, Teudas, parece ter liderado um movimento não violento. Prometeu aos
seus seguidores que se estes o seguissem até ao rio Jordão, este abrir-se-ia em dois, aludindo,
provavelmente, a um segundo êxodo e a um futuro de liberdade. O procurador enviou uma
unidade de cava-laria ligeira que matou várias pessoas e regressou com a cabeça de Teudas.
Mais tarde, um homem conhecido apenas pelo nome de «Egípcio» liderou um movimento que
representou uma ameaça mais séria. Segundo um relato, prometeu aos seus seguidores que se
estes marchassem à volta das muralhas de Jerusalém, estas cairiam. Provavelmente,
considerava-se a si próprio um segundo Josué, que restabeleceria, a paz e a liberdade no Estado
de Israel. Segundo um outro relato, o Egípcio liderou os seus seguidores num ataque a uma das
portas da cidade, tendo-se confrontado com tropas com armamento pesado, que mataram muitas
pessoas, apesar de o Egípcio ter escapado. Josefo acrescenta que houve outros profetas que
congregaram seguidores no deserto da Judeia, prometendo-lhes «sinais da salvação», isto é, a
esperança de uma intervenção divina. Roma derrubou todos estes movimentos.
Quando a revolta acabou por estalar, no ano de 66, houve muitos que se lhe associaram porque
acreditavam que Deus estava disposto a salvá-los. Gerou-se um tal tumulto e derramamento de
sangue que o Legado da Síria se viu obrigado a marchar sobre Jerusalém. Interrompeu o cerco à
cidade inexplicavelmente, cedeu e iniciou a retirada; durante esta operação, as suas tropas
caíram numa emboscada. Este acontecimento deve ter parecido a muitos um sinal enviado do
céu.
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Eram poucos os judeus - se é que havia alguns - que acreditavam que uma revolta da sua própria
iniciativa seria bem sucedida. No entanto, Deus já os tinha libertado no passado e, se quisesse,
poderia fazê-lo novamente (ver, por exemplo, Vida 290). Havia muitos dispostos a pegar em
armas quando os sinais dos tempos fossem suficientemente claros. Pensavam eles que Deus
interviria e lhes daria a vitória.
Esperanças deste tipo não exigiam a expectativa de um «Messias», de um descendente de
David, pronto para se tornar rei."? Nem sequer era necessária a esperança no estabelecimento
próximo do Reino definitivo de Deus. Por conseguinte, não podemos dizer que as esperanças
judaicas de liberdade eram, necessariamente, de natureza «messiânica» ou, em termos ainda
mais gerais, escatológica." O levantamento dos Asmoneus contra o império sírio no século II
a.e.c. tinha sido bem sucedido graças à intervenção de Deus, mas os judeus não pensaram que o
Reino de Deus tinha chegado. Não temos possibilidade de saber quantos dos judeus que se
juntaram às insurreições contra Roma ou seguiram um profeta estavam convencidos de que o
Reino final de Deus estava próximo. No entanto, deve dizer-se que todos esperavam auxílio de
Deus. Os judeus pensavam que Deus controlava a história e decidia o resultado de todos os
acontecimentos importantes. A situação só se alteraria de forma decisiva se Deus interviesse.
Alguns, talvez poucos, acreditavam que Deus estabeleceria o Seu Reino na terra num futuro
próximo.
Dedicámos este capítulo à história política da Palestina anterior e contemporaneamente a Jesus,
sobretudo à situação política e jurídica, que era diferente na Galileia e Judeia nos anos vinte e
trinta do nosso calendário. Juntámos muito material num espaço reduzido; tal como acontece
sempre nos breves resumos políticos, o leitor deparou-se com muitas datas e com muitos nomes.
Apresento aqui uma lista dos aspetos mais relevantes para compreender Jesus.
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1. Roma não governava realmente a Palestina no dia-a-dia. Governava indiretamente, através de
um rei, etnarca ou tetrarca, que funcionava como um vassalo (fantoche) ou através de um
procurador local, que, por seu lado, se servia dos aristocratas locais, sobretudo, do sumo
sacerdote.
2. Na Galileia, no tempo de Jesus, Antipas era um tetrarca - vassalo semi-independente. Era tão
independente como o tinha sido o seu pai, Herodes Magno, embora pareça ter sido mais brando
e menos impiedoso. As tropas pertenciam-lhe, os impostos eram-lhe pagos a ele (apesar de ele
pagar tributo a Roma), nomeava os governadores distritais e a administração local obedecia-lhe.
3. Nos anos vinte e trinta, a Judeia esteve submetida a um outro sistema imperial: havia um
governador romano (um prefeito) e um pequeno contingente de tropas estacionadas na
Palestina, a maior parte do tempo, longe de Jerusalém, a capital, porque os judeus reagiam com
extrema sensibilidade ao desrespeito à sua religião na Cidade Santa. O controlo do dia-a-dia
estava nas mãos do sumo sacerdote, que possuía conselheiros oficiosos, assim como nas de um
pequeno conselho oficial. A maioria dos conselheiros era aristocrata, e muitos deles pertenciam
à aristocracia sacerdotal.
4. A Palestina judaica não se encontrava à beira de uma revolta no tempo em que Jesus foi
executado. Tinham existido tensões entre os judeus, sobretudo os habitantes de Jerusalém, e os
romanos, porque Pilatos mandou desfilar estandartes romanos pela cidade. Numa outra ocasião
(de qual não se falou acima), também se apropriou de algum dinheiro do Templo para a
construção de um aqueduto, o que provocou protestos da multidão, mas os soldados romanos,
que se encontravam entre esta, abafaram rapidamente a revolta iminente." Porém, é um facto
que nos dez anos do seu mandato (26-S6), nunca houve grades irrupções de violência. Alguns
anos mais tarde, no ano 40 ou 41,
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quando Gaio quis colocar uma estátua pagã no templo de Jerusalém, poderia ter havido um
perigo sério de uma guerra à escala global.
5. Apesar de, sob a prefeitura de Pila tos, não ter havido atos de violência de maior dimensão,
durante a época romana, existiu sempre a possibilidade de uma insurreição grave, tanto nas
regiões governadas por vassalos como nas regiões onde havia um prefeito ou um procurador. O
próprio Herodes tinha receado uma revolta e Antipas tinha preocupações semelhantes. Na
Judeia, o sumo sacerdote e o prefeito tinham de zelar para prevenir o desencadeamento de
violência, sobretudo quando se reuniam grandes multidões para as festas. Mas nada disto era
novo. Na Antiguidade, as grandes multidões, normalmente, tinham de ser observadas. Além
disso, a guerra civil marcou a história judaica durante todo este período. Tinha havido
levantamentos muito importantes contra um dos reis Asmoneus, Alexandre Janeu. Pompeu
invadiu a Palestina por causa da guerra civil entre dois Asmoneus, o que significa que o sistema
imperial dos romanos não provocava mais revoltas do que o sistema dos Asmoneus - reis-
sacerdotes judeus completamente independentes. No tempo de Pila tos, a Palestina não estava à
beira de uma revolta, mas o medo de levantamentos estava presente, como esteve ao longo da
época dos Asmoneus, da dinastia de Herodes e dos romanos.
6. Muitos judeus desejavam a libertação do domínio romano e pensavam que isto só podia ser
alcançado com a ajuda de Deus. A natureza e o objetivo desta mudança há muito desejada
variava bastante, assim como variavam as ideias sobre a forma como Deus provocaria a
mudança. Eram relativamente poucos aqueles que esperavam um Messias da tribo de David,
que libertaria os judeus vencendo o exército romano. Algumas pessoas esperavam que o tempo
da libertação fosse assinalado por um grande sinal (como, por exemplo, a derrocada dos muros
de Jerusalém), enquanto outros não esperavam senão que Deus fortalecesse a mão dos justos e
enchesse de terror o coração dos soldados romanos.
53

4. O judaísmo como religião


No capítulo anterior, pressupus alguns conhecimentos do judaísmo. Aqui quero apresentar
algumas crenças e práticas fundamentais que eram habituais na Palestina judaica do século I e
dar uma ideia esquemática dos grupos e partidos mais importantes.
No mundo mediterrâneo do século I, judeus e gentios estavam de acordo em muitos aspetos. A
maior parte deles acreditava em seres sobrenaturais, na veneração de Deus (ou dos deuses)
através do sacrifício de animais e em vários tipos de rituais e de purificações. Também existiam
muitos pontos de contacto no que diz respeito à ética: todos condenavam o assassinato, o roubo,
o furto e o adultério. Realçarei as ideias teológicas e as práticas religiosas que distinguiam os
judeus dos outros quando apresentar alguns dos elementos fundamentais do judaísmo.
Começamos pela teologia.
55

O judaísmo comum
1. Monoteísmo. Os judeus acreditavam que só havia um Deus verdadeiro. Ele tinha criado o
mundo e continuava a governá-lo. Muitos judeus acreditavam em outros seres sobrenaturais -
anjos e demónios. O apóstolo Paulo, que representa a opinião judaica habitual nestas questões,
considerava que as divindades pagãs eram demónios (1 Cor 10, 20). Chamava até «deus deste
mundo ao arquidemónio, Satanás, (2 Cor 4,4; sobre «Satanás», ver 2 Cor 11, 14). Estas ideias
não significavam uma negação do monoteísmo, do ponto de vista dos judeus daquela época. No
fim, todos os outros poderes se submeteriam ao Deus único (1 Cor 15, 24-26; FI 2, 10 e segs.).
Entretanto, só esse Deus é que era digno de ser adorado. Os gentios (na opinião dos judeus)
deveriam ter sido capazes de reconhecer isto, visto que é possível deduzir o criador a partir da
sua criação, tal como é possível deduzir a existência de um oleiro a partir de uma vasilha de
barro. Seja como for, os judeus eram os recetores da revelação e era-lhes estritamente proibido
ter qualquer relação com divindades pagãs.
2. A eleição divina e a Lei. Os judeus acreditavam que Deus tinha escolhido Israel e feito uma
aliança com o povo judeu que os obrigava a obedecer-lhe, assim como obrigava Deus a guiá-los
e a protegê-los. Os três momentos mais importantes na história desta aliança foram chamamento
de Abraão (Gn 17), o êxodo do Egipto (Ex 14) e a revelação a Moisés da Lei divina, no monte
Sinai (Gn 19, 16 até ao fim do Dt).
3. Arrependimento, castigo e perdão. As pessoas que transgrediam a Lei deviam reparar a sua
falta, caso tivessem prejudicado outras pessoas com o seu ato, deviam arrepender-se e
apresentar um sacrifício. As transgressões que não tinham prejudicado outra pessoa (como tra-
balhar inadvertidamente ao sábado) exigiam o arrependimento e o sacrifício. Deus perdoaria
sempre ao pecador arrependido. Aqueles que não se arrependiam eram sujeitos ao castigo
divino, que se revelava, por exemplo, numa doença. Se aceitassem isto como o castigo de Deus
56
pelos delitos cometidos, continuavam a ser membros dignos da aliança. Em geral, este sistema
também se aplicava ao povo judeu como um todo. As suas transgressões levavam ao castigo
nacional, como o exílio na Babilónia, por exemplo. E as catástrofes levavam à contrição
humilde. Deus salvaria sempre o seu povo e o povo, apesar dos erros ocasionais, permanecer-
lhe-ia sempre fiel.
Os acontecimentos que conduziram ao estabelecimento da aliança (o chamamento de Abraão, o
êxodo, a entrega da Lei) proporcionaram a Israel o seu carácter inconfundível; no entanto, a
revelação de Deus ao povo e as Suas ações em prol do mesmo não acabaram com Moisés. Deus
deu a terra da Palestina aos israelitas. Depois, falou-lhes através de profetas. Os israelitas eram o
povo de Deus; Ele tinha pro- metido que os defenderia e faria deles uma grande nação, assim
como lhes garantiu a salvação. Esta promessa constituía um elemento essencial da eleição.
No século I, o termo «salvação» possuía vários significados (como vimos anteriormente, pp. 49-
52). Alguns judeus esperavam uma libertação nacional num sentido sociopolítico bastante
secularizado, outros ainda esperavam uma salvação individual no momento da morte, outros
contavam com um grande acontecimento que transformaria o mundo, elevaria Israel acima de
todos os outros povos e persuadiria os gentios a converterem-se. Enquanto esperavam, os judeus
deviam cumprir a Lei de Deus e procurar o Seu perdão, caso a transgredissem.
Estas crenças constituíam o cerne da «ortodoxia» judaica («opinião correta»), E incluíam a
exigência da «ortopraxia» («prática correta»), Enumeraremos agora algumas das principais
práticas características dos judeus cumpridores, sobretudo aquelas que os distinguiam dos
gentios.
1. Os judeus deviam adorar ou servir Deus (como se vê no segundo dos dez mandamentos, que
proíbe «servir» a outros deuses: Ex 20, 4; Dt 5,8). Isto significava, acima de tudo, adorá-lo no
Templo de Jerusalém. A Bíblia exige que os judeus varões visitem o Templo três vezes por ano,
isto é, durante as festas ligadas às peregrinações. A dispersão do povo judeu no século I tornou
impossível cumprir esta
57
obrigação; os judeus das regiões mais remotas da Palestina vinham, provavelmente, uma vez
por ano ao Templo, mas os judeus que viviam em outros países (denominados coletivamente
como Diáspora), muito raramente faziam a peregrinação. Quer visitassem ou não o Templo, os
judeus continuavam a pagar o imposto de Templo para a realização dos sacrifícios que eram
apresentados em nome de toda a comunidade. No entanto, o culto judaico não se limitava ao
Templo. O Deuteronómio 6, 5-7 exige que os judeus repitam os mandamentos mais importantes
duas vezes por dia «ao deitar e ao levantar»). A maioria dos judeus obedecia, provavelmente, às
instruções desta passagem: a primeira coisa que faziam de manhã e a última à noite era
pronunciar as palavras decisivas do texto de Deuteronómio «amarás o Senhor, teu Deus, com
todo o teu coração»), assim como alguns dos mandamentos mais importantes. Também
aproveitavam estes momentos de manhã e à noite para a oração. Existiam sinagogas, que se
chamavam habitualmente em grego «casas de oração», em praticamente todas as comunidades
judaicas. As pessoas reuniam-se nelas ao sábado para estudar a Lei e rezar. Por conseguinte,
para além do culto ocasional a Deus, no Templo de Jerusalém os judeus veneravam-No todos os
dias em casa e, semanalmente, na sinagoga. (Falaremos mais pormenorizadamente sobre as
sinagogas no capítulo 8.)
2. Os judeus circuncidavam os seus filhos do sexo masculino. Deus fez esta exigência ao povo
na Sua aliança com Abraão (Gn 17).
3. Os judeus não trabalhavam ao sábado, o sétimo dia da semana (quarto mandamento, Ex 20,8-
11; Dt 5, 12-15). A Bíblia estende o dia de descanso a todos os membros da família, aos criados,
aos estrangeiros que viviam nas cidades judaicas e ao gado. Além disso, de sete em sete anos, os
agricultores judeus na Palestina não plantavam qualquer produto agrícola e a terra ficava em
poisio.
4. Os judeus evitavam determinados alimentos que eram considerados «impuros» e
«abomináveis» (Lv 11, Dt 14). A carne de porco e os crustáceos são os alimentos mais
conhecidos proibidos na Bíblia, mas há muitos outros, como, por exemplo, a carne de aves de
rapina, de roedores e de cadáveres de animais.
5. Os judeus tinham de se purificar antes de entrar no Templo. As principais fontes de impureza
eram o esperma, o sangue de menstruação, outras secreções da zona genital (como, por
exemplo, as que eram provocadas por gonorreia e abortos), o parto e os cadáveres (Lv 11 e 15,
Nm 19). A purificação religiosa antes do culto no Templo fazia
58
parte integrante de todas as religiões da Antiguidade. A Lei judaica exigia que os processos
corporais que se relacionavam mais intimamente com a vida e a morte ficassem afastados
daquilo que era sagrado e imutável: a presença de Deus. No século I, alguns grupos alargaram
as regras de pureza para além das exigências bíblicas fundamentais. Assim, por exemplo, alguns
lavavam as mãos antes da oração e alguns antes ou depois das refeições.
Estes são os aspetos principais das práticas que distinguiam os judeus do resto da humanidade.
Isto não significa que fossem práticas únicas. Longe disso: são apenas formas especiais de
práticas gerais que estavam muito difundidas no mundo antigo. Todos sacrificavam animais aos
deuses e custeavam os templos. O que distinguia os judeus era o facto de terem apenas um
templo e de adorarem apenas um Deus. Do mesmo modo, todos no mundo greco-romano
observavam dias sagrados, mas não o sétimo dia de todas as semanas. Os gregos e os romanos
purificavam-se quando entravam nos templos e antes da apresentação de um sacrifício, aspergir-
se com água e lavar as mãos era um ritual comum. Os judeus na Palestina e, possivelmente,
também em alguns lugares na Diáspora, mergulhavam todo o corpo na água, o que era único
(tanto quanto sei). Quase todas as culturas possuem normas relativas à alimentação, apesar de
serem poucas as que atribuem estas prescrições a Deus. São poucas as ementas em que
aparecem abutres, doninhas, ratos, mosquitos e semelhantes. Os gregos e os romanos,
normalmente, não comiam cães. O tabu judeu em relação à carne de porco e aos crustáceos é
quase exclusivo; no entanto, os sacerdotes egípcios não comiam carne de porco. No que diz
respeito à circuncisão, as coisas são mais complicadas. Também existem paralelos com os
sacerdotes egípcios; além disso, os outros semitas praticavam igualmente a circuncisão
masculina. No entanto, os judeus eram conhecidos pela exigência da circuncisão, visto que esta
desempenhava um papel tão importante na sua cultura.
Como os exegetas modernos do Novo Testamento atacam frequentemente - a palavra não é um
exagero - os judeus do século I por causa de observarem algumas destas normas religiosas
(especialmente as prescrições que regulavam os sacrifícios, a alimentação e a pureza), gostaria
de realçar que esta crítica serve apenas para dizer que os judeus da Antiguidade não eram
cristãos protestantes modernos ou humanistas seculares - o que seria possível dizer com menos
animosidade
59
e presunção do que aquela que estes estudiosos demonstram quando discutem o judaísmo. Os
judeus não eram únicos por terem regras e costumes ou por terem regras e costumes que
abrangiam estas questões. Toda a gente os tinha, mais ou menos.
Apesar de as práticas dos judeus terem paralelos em outras religiões, os gentios consideravam-
nas algo especial e alguns ridicularizavam-nos. Pensavam que um templo sem um ídolo era algo
estranho e que era antissocial recusar-se a venerar os deuses gregos e romanos. Também
consideravam que as normas judaicas sobre os alimentos eram estranhas, visto que a carne de
porco era a carne mais apreciada nos países do Mediterrâneo. A recusa dos judeus em
trabalharem ao sábado era a terceira prática que provocava mais comentários por parte dos
gentios. Estas práticas judaicas eram extravagantes por causa de os judeus serem tão fiéis aos
seus costumes. Os judeus que viviam na Diáspora - e, em algumas zonas, eram muito
numerosos - recusavam a assimilação cultural. Esta recusa tem uma explicação óbvia,
revelando, simultaneamente, a característica distintiva do judaísmo. O que é característico do
judaísmo é o facto de a Bíblia apresentar tantas práticas sob o título de «mandamentos divinos».
Os «costumes» judaicos eram disposições contidas na Lei que Deus deu a Moisés, no monte
Sinai. Enquanto todos os outros tinham hábitos alimentares convencionais, os judeus tinham
mandamentos divinos que prescreviam a alimentação. O mais impressionante na Lei judaica é
que ela submete todos os aspetos de vida, incluindo as práticas cívicas e domésticas, à
autoridade de Deus. Os judeus não podiam assimilar-se: não podiam adotar os feriados dos
outros e abandonar os seus; não podiam comer alguns dos alimentos que os outros comiam. Na
perspetiva dos judeus, estes e muitos outros costumes não eram meras convenções sociais, mas
sim mandamentos de Deus.
No judaísmo, a «religião» não consistia apenas em festas e em sacrifícios, como era o caso em
grande parte do mundo greco-romano, mas envolvia toda a vida. «A religião orienta todas as
nossas ações, trabalhos e palavras; o nosso legislador não deixou nada destas coisas por
examinar ou por determinar.» (Josefo, Contra Apion 2, 171.) Todas as culturas pensam que os
negociantes deveriam utilizar balanças corretas; os judeus atribuíam a Deus o mandamento de
utilizar pesos e medidas justas (Lv 19,35 e segs.). Todos eram a favor da caridade, como
princípio teórico; na Bíblia Hebraica, Deus exige a caridade e especifica como esta deve ser
praticada (Lv 19, 9 e segs.). Isto significa que,
60
no judaísmo, Deus exige moralidade na vida pública e na vida privada. Quando o Levítico
atribui as leis morais ao mesmo Deus que exige a pureza, enaltece as leis morais. O mundo
antigo acreditava em Deus (ou nos deuses) e todas as pessoas pensavam que os mandamentos
divinos exigiam que elas se purificassem e oferecessem sacrifícios. Tudo o resto possuía um
estatuto mais baixo no que diz respeito à sua origem e ao seu carácter absoluto. O judaísmo
elevou todos os aspetos da vida ao mesmo nível corno um culto a Deus (conferir, sobretudo, Lv
19). O judaísmo atribuía a Deus a perspetiva segundo a qual a honestidade e a caridade eram tão
importantes como purificações.
Hoje em dia, a maioria das pessoas que avaliam as religiões fazem-no em termos humanistas:
uma boa religião é aquela que inculca valores humanos. Alguns vão mais longe e querem saber
que posição assume a religião em relação à totalidade do Universo. Os pensadores judeus do
século estavam preparados para avaliar e defender a sua religião do ponto de vista humanista;
alguns também chamavam a atenção para as vantagens da sua religião para as partes não
humanas do Universo. Os judeus reclamavam para si a tão exaltada virtude da filantropia, o
«amor por toda a humanidade». Os mestres judaicos podiam resumir a Lei, citando Lv 19, 18,
onde se encontra o mandamento do amor ao próximo." Josefo chamou a atenção para o facto de
uma das virtualidades da Lei ser o respeito pelos inimigos na guerra; a Lei proibia, por exemplo,
às tropas judaicas cortarem as árvores de fruto dos seus adversários (Dt 20, 19; APion 2,212). O
argumento mais convincente a favor das qualidades «humanistas» da Lei talvez se torne patente
olhando para além da vida humana, para o bem-estar dos animais, das plantas e da terra. Deus
exigiu o descanso ao sétimo dia e o mandamento inclui os animais de trabalho (Apion 2,213).
Josefo até chama a isto filantropia. Por que razão ordenou Deus o ano sabático? Ele poderia ter
proibido os judeus de trabalharem no sétimo ano, mas não o fez; em vez disso, mandou deixar a
terra em pousio. Se Ele apenas tivesse proibido o trabalho dos judeus, a terra podia ser
arrendada
61
aos gentios. Ao que parece, Deus agiu (na opinião de Filo) por «respeito pela terra»
(Hypothetica 7, 18).
Depois das suas exposições sobre este e outros aspetos, Filo apercebeu-se de que muitos leitores
(sem conhecimentos sobre ecologia e direitos dos animais) considerariam que tudo isto era
trivial e respondeu: «Talvez penses que estas coisas não têm importância, mas grande é a Lei
que as ordena e incansável o cuidado que ela exige» (Hypothetica 7,9). Na perspetiva judaica, a
grandeza da Lei consistia, em parte, no facto de cobrir todas as trivialidades da vida e da
criação. Josefo também era de opinião de que Moisés fez bem em não deixar «nada, por muito
insignificante que fosse, ao juízo e ao capricho do indivíduo» (Apion 2,173). Os rabis diziam o
seguinte sobre o mesmo tema, apesar de não estar em causa a questão dos animais: «Ben Azzai
disse: corre para cumprir a obrigação mais pequena tal como para cumprir a obrigação mais
importante e foge da transgressão, porque uma obrigação traz consigo a outra obrigação e uma
transgressão traz consigo outra.» (Avot 4,2) A vida é encarada aqui como um todo. É possível
cumprir ou não cumprir a vontade de Deus em todos os aspetos e uma coisa leva à outra. O
mundo é o jardim de Deus; os seres humanos não são as Suas únicas criaturas.

Sacerdotes e partidos: a questão da liderança


Como a Lei divina cobria todos os aspetos da vida, uma das qualificações para a liderança
consistia no conhecimento da Lei. Um militar como Herodes Magno podia assumir a chefia
política da Palestina judaica sem ter de ser perito em Escritura e tradição judaicas. Mas mesmo
Herodes tinha cuidado para não transgredir as leis e os costumes judaicos de modo demasiado
flagrante." Isto revela que ele era um
62
homem prudente, mas significa também que tinha conselheiros. Os especialistas na lei religiosa
querem, quase por definição, que as pessoas sigam os seus pontos de vista e aceitem as suas
interpretações daquilo que constitui o comportamento correto. Os especialistas religiosos
consideram-se, naturalmente, a si próprios como os porta-vozes da vontade de Deus. Na
Palestina judaica do século I existia uma grande concorrência entre peritos que reclamavam
liderar a população. A situação política e militar significava, seguramente, que, em alguns
domínios da vida, não podia haver concorrência entre os potenciais líderes. Para a maioria dos
judeus era inútil ter opiniões sobre algumas questões importantes, como a política externa; um
líder que afirmasse que Deus queria que os judeus se aliassem aos partos, por exemplo, teria
tido uma carreira muito curta.
Apesar destas limitações, havia muitos aspetos da vida que não eram controlados por Roma, por
Antipas ou por Pilatos. As famílias tinham alguma liberdade de escolha quanto à forma de
observar o sabat e de organizar as festas, quanto à comida que haveriam de comer e a quando
evitar ter relações sexuais (por causa da menstruação da mulher), etc. Estas questões, assim
como muitas outras de grande importância para a vida quotidiana, estavam todas cobertas pela
Lei mosaica, a qual precisava, por seu turno, de ser interpretada. Assim, por exemplo, os Dez
Mandamentos incluem a proibição do trabalho ao sábado (Ex 20, 8-11,5, Dt 5, 12-15), mas a
Bíblia Hebraica não dá muitas definições concretas de «trabalho». Os judeus esforçavam-se
praticamente todos por obedecer às suas leis, portanto, todos os sábados tinham de saber o que
podiam e o que não podiam fazer. A Bíblia também proíbe as relações sexuais quando a mulher
está menstruada
63
(Lv 18, 19; 20, 18) e define que o período dura sete dias (Lv 15, 19). Mas como se devem
contar, exatamente, os dias? E o que fazer se aparecesse sangue depois da relação sexual num
dia supostamente seguro? Nesse caso, a Lei foi transgredida? Na realidade, as pessoas não
repensavam a Lei, nem chegavam a novas decisões cada vez que se colocava uma questão.
Cumpriam a Lei de acordo com a tradição e com as recomendações dos especialistas. A vida,
naquela época, era muito complicada, tal como hoje, e estavam sempre a surgir problemas
novos. Assim, por exemplo, um agricultor judeu podia ter oportunidade de adquirir terra fora da
zona tradicional de colonização judaica, prevista pela Bíblia Hebraica. Precisaria de saber se
devia ou não pagar tributo ao Templo sobre os rendimentos da terra. Necessitaria de perguntar a
um especialista.
No judaísmo, a pessoa era considerada especialista se possuísse um conhecimento preciso e
uma interpretação clara da Lei mosaica, assim como das diversas tradições sobre o seu
cumprimento. Quando o conselho revolucionário decidiu investigar a forma como Josefo
conduziu a guerra na Galileia, mandou uma delegação de especialistas - não em ciência militar,
mas sim na Lei e na tradição judaicas. A delegação de quatro homens era composta por dois
fariseus provenientes das «camadas baixas» da sociedade (isto é, que não eram nem sacerdotes,
nem aristocratas), por um fariseu que era sacerdote e por um sacerdote da aristocracia (um
descendente de sumos sacerdotes). Se os galileus dissessem que eram fiéis a Josefo porque ele
era conhecedor da Lei, os delegados podiam responder que eles também o eram; se a sua lide-
rança resultasse da sua função de sacerdote, a delegação podia dizer que dois deles eram
sacerdotes (Vida 197 e segs.). A liderança da nação - portanto, no tempo de Jesus, os domínios
da vida que não eram decididos por Roma, por Pilatos ou por Antipas - dependia, em grande
medida, do conhecimento da Lei judaica e da herança da tradição. O texto que tomámos como
exemplo diz-nos que existiam dois grupos de especialistas reconhecidos - os sacerdotes e os
fariseus.
Os sacerdotes tinham sido os principais especialistas da história judaica, pelo menos desde o
regresso do exílio na Babilónia. É uma opinião corrente que, no século I, os sacerdotes
perderam a sua autoridade a favor dos fariseus leigos. Mas isto é incorreto. Os sacerdotes não
tinham abandonado, de modo algum, o seu papel de liderança e, quando surgiam problemas,
uma grande parte da população dirigia-se a eles. Não me debruçarei aqui sobre esta questão,
mas
64
apresentarei brevemente o sacerdócio, assim como a autoridade sacerdotal, antes de tratar dos
fariseus e dos outros partidos.
Os sacerdotes que serviam no Templo de Jerusalém não constituíam, em si, um partido. Eram
sobretudo uma classe grande e importante. Os sacerdotes eram as únicas pessoas que podiam
apresentar sacrifícios. Eram assistidos por uma camada de clero inferior, os Levitas, que
serviam o Templo de várias formas: alguns cantavam os salmos durante o culto público; outros
vigiavam as entradas, limpavam a área do Templo e traziam os animais e a lenha para o altar.
Ao que parece, o número total de sacerdotes e de levitas ascendia a cerca de 20000 (Apion
2,108). Estas funções sagradas (que, como vimos, eram hereditárias) não constituíam uma
atividade a tempo inteiro. Um sacerdote ou um levita cumpria as suas funções sagradas apenas
durante algumas semanas por ano. Os sacerdotes e os levitas estavam divididos em vinte e
quatro grupos, chamados «cursos», sendo que cada grupo desempenhava a sua função no
Templo durante uma semana. Durante as três festas anuais, os cursos estavam todos de serviço.
Tanto os sacerdotes como os levitas viviam, em parte, dos tributos e das primícias que o Templo
recebia dos agricultores; mas quando não estavam a servir o Templo, exerciam outras
profissões, exceto a agricultura, já que a Bíblia lhes proibia cultivar a terra. Alguns eram
escribas profissionais (que redigiam documentos legais), mas outros trabalhavam como
artesãos. Quando Herodes mandou reconstruir o Templo, ordenou que alguns dos sacerdotes
recebessem formação de canteiros, para poderem construir as áreas mais sagradas (Antiguidades
15,390). Os sacerdotes estavam submetidos a algumas restrições especiais: não podiam casar
com prostitutas ou com mulheres divorciadas (Lv 21, 7) e só podiam entrar em contacto com
cadáveres quando se tratava de familiares próximos (Lv 21, 1-3).
A maioria dos sacerdotes e levitas não estavam ligados a nenhum partido. Sabemos que alguns
dos sacerdotes nobres eram saduceus e que alguns sacerdotes comuns eram fariseus, mas a
maior parte dos sacerdotes e levitas pertenciam, pura e simplesmente, ao judaísmo
65
comum. Partilhavam as crenças e as práticas dos seus compatriotas e, além disso, cumpriam as
disposições particulares da Lei mosaica que se aplicavam apenas aos sacerdotes (conferir Lv 21;
Nm 18).
A cena nos Evangelhos designada como «purificação do Templo» e na qual Jesus chama ao
Templo um «covil de ladrões» (Mc 11, 15-19 e paralelos) levou muita gente a pensar que os
sacerdotes eram mal-intencionados e corruptos. No entanto, esta generalização é imprópria. A
maioria dos sacerdotes e levitas dedicava-se ao serviço a Deus. Não existe sistema no qual não
haja um certo grau de desonestidade e de abuso; Josefo identifica um sacerdote aristocrata que
era corrupto (Antiguidades 20, 213). Também menciona alguns casos nos quais um chefe dos
sacerdotes abusou do seu poder. Porém, estes casos representam exceções à regra geral: os
sacerdotes acreditavam em Deus, serviam-no dedicadamente no Templo e esforçavam-se por ser
bons exemplos através de uma observação rigorosa da Lei divina.
Voltamos agora ao aspeto relacionado com o facto de, no judaísmo, os sacerdotes serem
reconhecidos tradicionalmente como as autoridades legais e religiosas. Segundo a Bíblia, Deus
transmitiu a Lei a Moisés, mas este, antes de morrer, entregou-a aos sacerdotes e anciãos (leigos
notáveis) (Dt 31, 9). No Deuteronómio, exige-se do rei - caso exista - que escreva «uma cópia
para si da lei da qual os sacerdotes levíticos estavam encarregados» (17, 8). Josefo - ele próprio,
sacerdote - também considerava que os sacerdotes eram os governantes naturais da nação. Nas
suas explicações da constituição do povo judaico escreveu que Deus transmitiu o governo a
«toda a classe sacerdotal» que não só exerce uma «supervisão geral», como também julga e
pune os malfeitores (Apion 2, 165). Ele designa esta constituição, em vigor na Judeia, no tempo
em que ele viveu (nasceu em 27 e.c.), uma «teocracia», um governo de Deus mediado pelos
seus sacerdotes. Josefo e muitos outros preferiam esta forma de governo. O Novo Testamento
transforma a expressão «Filho de David» numa categoria essencial para a compreensão de Jesus
e este facto induz, por vezes, o leitor a pensar que todos os Judeus esperavam que a monarquia
davídica fosse restaurada. No entanto, uma grande parte da Bíblia rejeita o sistema monárquico
e esta hostilidade estava bastante difundida no século l. Os judeus (assim como outros povos)
tinham experiência da tendência dos monarcas para se tornarem tiranos e ditadores. Muitos
judeus pensavam que era
66
melhor serem governados por uma aristocracia teocrática (isto é, por membros das principais
famílias sacerdotais), supervisionada à distância por um procurador estrangeiro.
No capítulo anterior, vimos que este sistema esteve em vigor na Judeia e, sobretudo, em
Jerusalém, durante quase todo o tempo em que Jesus viveu. O procurador romano não estava tão
longe como a maioria dos judeus teria gostado e tinha mais possibilidades de intromissão do que
eles desejavam, mas, a maior parte das vezes, era o sumo sacerdote que possuía autoridade
efetiva em Jerusalém quando, formalmente, o governo estava nas mãos de um prefeito romano.
Isto correspondia a uma das principais teorias de governo bíblicas, à perspetiva de Josefo sobre
a forma constitucional judaica mais natural e à preferência de uma grande parte da população:
os sacerdotes é que mandavam.
Resta ainda notar que foram os sacerdotes do Templo que acabaram por declarar guerra a Roma,
no ano 66 e.c. Um sacerdote da nobreza (Eleasar, filho de Ananias) convenceu-os de que «não
deveriam aceitar mais ofertas ou sacrifícios de estrangeiros». Até aí, tinha
havido sacrifícios em prol de Roma e de César. Agora, os sacerdotes que exerciam o serviço
rejeitavam tais sacrifícios, recusando com eles a obrigação de fidelidade a Roma. Não deram
ouvidos nem aos aristocratas, nem a Agripa II (bisneto de Herodes), nem aos líderes fariseus: os
sacrifícios em prol de Roma acabaram (Guerra 2, 409-421). Este talvez tenha sido o passo mais
decisivo para conduzir o povo judaico para a guerra.
67
Mas também havia não-sacerdotes que desempenhavam um papel de liderança na vida judaica,
graças à sua competência na interpretação da Escritura. Como a Lei estava escrita, todos os
judeus que sabiam ler podiam estudá-la e aqueles que não sabiam ler ouviam-na ler e discutir na
sinagoga. Em consequência disso, em geral, os judeus conheciam muitíssimo bem a sua Lei.
Além disso, qualquer pessoa podia tornar-se especialista. Nas outras religiões, só os sacerdotes
é que precisavam de saber em pormenor como prestar culto a cada deus, visto que a religião
abrangia pouco mais do que o culto no Templo. No entanto, como a religião judaica dizia
respeito a todos os aspetos da vida, havia um estímulo considerável para os leigos aprenderem
cuidadosamente todas as passagens da Lei que se aplicavam às suas próprias vidas.
Mencionámos anteriormente como era importante saber de que maneira observar o sábado e
quando eram permitidas as relações sexuais. Vou apresentar outro exemplo de uma lei que era
importante para uma grande parte da população. A Bíblia tem várias formas de exigir caridade,
mas aplicam-se, todas elas, aos agricultores. O cultivo da terra era proibido ao sacerdócio
judaico hereditário pelo que as disposições legais sobre a caridade só se aplicavam aos leigos.
Uma dessas disposições é a seguinte:
Quando procederes à ceifa dos teus campos, não ceifarás as espigas até à extremidade do
campo, nem apanharás as espigas caídas depois da tua ceifa. E não rebuscarás a tua vinha, nem
apanharás os bagos caídos da tua vinha. Deixá-los-ás para o pobre e para o estrangeiro. Eu sou o
Senhor, teu Deus. (Lv 19, 9 e segs.)
A exigência de deixar ficar as espigas e os bagos caídos é muito clara. Mas quantos bagos
deveriam ser deixados por vinha? Até onde deveriam cortar-se as espigas? O agricultor judeu
consciencioso, que acreditava em Deus e na Lei, queria deixar para os pobres a percentagem
correta da colheita. Mas qual era a percentagem correta? As práticas habituais tinham evoluído
ao longo dos séculos e os filhos que herdavam as propriedades também herdavam tradições
relativas à prática da caridade. Mas esta lei, tal como a maior parte das outras, podia
68
ser estudada e interpretada por qualquer pessoa que fosse instruída, inteligente e diligente. Esta
descrição aplicava-se a alguns leigos, entre os quais se distinguiam os fariseus.
O partido dos fariseus, cujas origens remontam, ao que parece, ao início do período dos
Asmoneus (antes de 135 a.e.c.), era composto, em grande parte, ainda que não exclusivamente,
por leigos. No tempo de Herodes havia cerca de 6000 fariseus (Antiguidades 17, 42). Do ponto
de vista teológico, os fariseus partilhavam a ortodoxia judaica (acreditavam num único Deus, na
eleição de Israel, na origem divina da Lei, assim como no arrependimento e no perdão). Tal
como a maioria dos outros judeus do século I, os fariseus também acreditavam em alguma
forma de existência depois da morte - uma ideia que é difícil encontrar na Bíblia Hebraica (a
única referência clara a este assunto é Dn 12, 2). Além disso, desenvolveram um cânone
considerável de «tradições» não bíblicas sobre as formas de cumprimento da Lei. Algumas
destas tradições tornaram a Lei mais difícil, mas outras tornaram-na menos restritiva. Na maior
parte das vezes, os fariseus só criavam regras especiais para si próprios e não pretendiam impô-
las a todos os outros. (É provável que tenham tentado impor o seu ponto de vista no tempo dos
Asmoneus, mas, ao que parece, não o fizeram durante o período herodiano e pós-herodiano.)
Seja como for, os fariseus eram conhecidos pela meticulosidade com que interpretavam a Lei e
pelo rigor com que a cumpriam. Segundo Josefo, punham em prática «os ideais mais altos tanto
no seu estilo de vida, como no seu discurso» (Antiguidades 18, 15).
Como, no Novo Testamento, os fariseus desempenham um papel ainda mais importante do que
o sumo sacerdote, gostaria de colocar um pouco de «carne» nesta descrição, tão «seca»,
recorrendo a dois exemplos de «tradições» farisaicas não bíblicas. Um dos exemplos está
relacionado com a lei do sábado. O profeta Jeremias tinha proibido os judeus de tirarem cargas
das suas casas ao sábado (Jr 17, 19-27). Isto tornava o jantar festivo difícil, visto que a forma
mais fácil de os amigos jantarem juntos era cada família trazer comida preparada e os sábados
eram os únicos dias em que era possível o convívio social (porque as exigências do trabalho
diário eram demasiado pesadas). Os fariseus
69
decidiram que as casas que se encontravam lado a lado numa rua ou que se encontravam à volta
de um pátio podiam estar ligadas entre si, através das ombreiras e das soleiras das portas,
transformando-se assim numa única «casa». Os habitantes podiam, então, levar tachos e pratos
de uma parte da «casa» para outra, comendo juntos ao sábado. Os fariseus sabiam que esta e
outras ações simbólicas para alterar as limitações do sábado - ações cuja designação técnica é
eruvin - não tinham fundamento na Bíblia Hebraica, mas tornaram-nas uma «tradição dos
anciãos- e observaram-nas. Alguns judeus consideravam isto uma infração à Lei, visto que os
recipientes eram trazidos para fora de algo a que a maioria das pessoas chamaria uma casa.
O segundo exemplo é a lavagem das mãos. A Lei mosaica exige que uma pessoa tome banho
antes de entrar no Templo, a fim de eliminar determinadas impurezas. Os fariseus
acrescentaram uma norma relativa à pureza. Lavavam as mãos antes da refeição ao sábado e das
outras refeições festivas. Provavelmente, a lavagem das mãos antes das refeições nos dias
sagrados tornava-os um pouco mais especiais. Os judeus acabaram por lavar as mãos antes de
todas as refeições.
Estes pequenos ajustamentos farisaicos à Lei revelam o cuidado com que as pessoas pensavam
na Lei e no cumprimento da vontade divina. Em princípio, a Lei cobria todos os aspetos da vida.
Os judeus piedosos do século I pensavam em todos os pormenores, de forma a observarem a
vontade de Deus de todas as maneiras possíveis.
Os fariseus eram respeitados e amados pela maioria dos outros judeus por causa da sua devoção
e precisão. No tempo dos Asmoneus, o partido dos fariseus tinha sido uma força política
importante. Entretanto, a situação tinha mudado. Sob Herodes, ninguém além dele detinha
poder político e aqueles que procuravam tê-lo eram executados imediatamente. Os fariseus
comportavam-se de uma forma discreta. Antipas, que sucedeu a Herodes, na Galileia, estava tão
pouco inclinado como o seu pai a conceder autoridade a um grupo de piedosos mestres da
religião. E em Jerusalém, após a destituição de Arquelau, eram os sumos sacerdotes que
governavam, apoiados pelo poder intimidante de Roma. Os fariseus continuaram a comportar-se
de uma forma discreta. Trabalhavam, estudavam, ensinavam e serviam
70
a Deus. A sua popularidade junto do povo tinha crescido, provavelmente, mas não tinham poder
real.
Para percebermos que papel os fariseus desempenhavam no tempo de Jesus o melhor é fixarmos
a nossa atenção no início da revolta contra Roma, algumas décadas depois da morte de Jesus.
Enquanto a relação entre o procurador e a população judia piorava, os sacerdotes e os leigos
aristocratas continuavam a apelar à calma e à moderação - com um certo, ainda que insuficiente,
sucesso. No último momento, os chefes dos sacerdotes pediram a ajuda dos líderes dos fariseus.
Nem sequer eles conseguiram acalmar a multidão em Jerusalém e a revolta rebentou. Os
fariseus desempenharam um papel de liderança (tal como os chefes dos sacerdotes) na própria
guerra. Estes acontecimentos mostram que os fariseus não tinham qualquer responsabilidade
pública sob o governo do procurador romano. Os sumos sacerdotes e os seus conselheiros eram
os grupos politicamente responsáveis aos olhos de Roma. Mas os fariseus continuavam em jogo
e ainda comandavam a opinião pública. Por isso, a aristocracia governante chamou-os naquela
situação de emergência. Quando a situação o permitia - quando já não eram controlados nem
por Herodes, nem pelos romanos - os fariseus avançavam para desempenhar um papel decisivo
nos assuntos políticos e militares de Israel. Mas, no tempo de Jesus, eles devem ser encarados
principalmente como mestres e especialistas religiosos, merecidamente amados e respeitados.
Conhecemos as designações de mais dois partidos na Palestina do século I: os essénios e os
saduceus. Os essénios são descritos tanto por Josefo como por Filo;15 a maioria dos
investigadores identifica-os como o grupo responsável pelos Manuscritos do Mar Morto. Se esta
identificação for correta - e eu penso que sim - sabemos bastante sobre os essénios. Estes
constituíam um pequeno partido dividido, pelo menos, em dois ramos e que possuía cerca de
4000 membros ao todo. O grupo era composto tanto por leigos como por sacerdotes, mas os
sacerdotes eram predominantes. Quando os Asmoneus chegaram ao poder, em 14'2 a.e.c.,
destituíram a família de sumos sacerdotes anterior, os sadocitas. Alguns dos sacerdotes
aristocratas depostos
71
juntaram-se a um grupo que se transformou, mais tarde, no partido dos essénios e, ao que
parece, assumiram em grande parte a liderança do mesmo. Contudo, os leigos que eram
membros também estudavam a Bíblia e as regras específicas do partido, pelo que se podiam
tornar tão especialistas quanto os sacerdotes. Tanto quanto sabemos, os essénios não
desempenharam nenhum papel direto na vida e na atividade de Jesus; por isso, não farei a
apresentação dos mesmos. Quem se interessa por este tema, verificará que agora a literatura
essénia é relativamente fácil de estudar - graças a boas traduções e a um corpo credível de
material introdutório.
Gostaria, no entanto, de recorrer aos essénios para realçar um aspeto acerca dos fariseus. A
literatura essénia revela um estudo intenso da Bíblia Hebraica e uma riqueza de regras
comunitárias suplementares à Lei mosaica. Os essénios eram muito mais rigorosos do que os
fariseus em quase todos os aspetos. Portanto, se (como diz Josefo) os fariseus eram
considerados os guardiões «mais rigorosos» da Lei, a palavra «rigorosos» tem de ser entendida
no sentido do cumprimento mais «pormenorizado» da Lei e não no sentido de «exageradamente
cumpridores».
Os saduceus constituíam o terceiro partido do qual conhecemos o nome. Sabemos pouco deles,
para além de que a maioria eram aristocratas, não acreditavam em qualquer forma de vida
depois da morte e não aceitavam as tradições particulares dos fariseus. A maioria dos
investigadores pensa que muitos dos sumos sacerdotes, durante a época romana, eram saduceus,
mas Josefo só nos dá informações diretas acerca de um: Ananus, que era sumo sacerdote no ano
de 62 e.c. (quando mandou executar ilegalmente Tiago, o irmão de Jesus), que foi um dos
líderes da revolta contra Roma e que era saduceu.!" O leitor do Novo Testamento encontra
raramente os saduceus,
72
o Novo Testamento confirma a estreita ligação destes com os sacerdotes aristocratas e com o
facto de não acreditarem na ressurreição.
Vimos que, no tempo de Jesus, havia determinadas crenças e práticas que eram habituais no
judaísmo. A força motriz era a fé em Deus e a dedicação à forma de vida que Ele tinha
estabelecido para o povo judaico através dos Seus porta-vozes: Moisés e os profetas e
sacerdotes que se lhe seguiram. A maioria das pessoas no mundo antigo era religiosa, mas,
mesmo assim, a religiosidade e a devoção do povo judaico sobressaía. Além disso, eles estavam
vinculados a uma religião respeitável, que inculcava os princípios de uma vida honesta, do
amor, da oração e do arrependimento.
Vimos também que o sacerdócio hereditário representava, aos olhos de muitas pessoas, a
liderança natural da nação. Apesar disso, a característica fundamental da religião judaica
implicava que os leigos tinham a possibilidade de enfrentar os sacerdotes e de reclamar serem
os melhores intérpretes da Lei. (A Lei estava escrita, orientava todos os aspetos da vida, toda a
gente podia estudá-la e todos ouviam a sua discussão e interpretação na sinagoga, aos sábados.)
Surgiram partidos específicos, com interpretações próprias e com a pretensão de serem os
verdadeiros porta-vozes de Deus. Um dos ramos dos essénios era constituído por um grupo
separatista cujos membros acreditavam que eram os únicos a possuir a verdadeira aliança com
Deus. De resto, os membros dos partidos comungavam do judaísmo comum. Partilhavam as
crenças e as práticas descritas na primeira parte do capítulo, apesar de divergirem em alguns
pormenores. Acima de tudo, todos prestavam culto no mesmo Templo e aceitavam os seus
serviços como uma mediação entre eles e Deus - ainda que não gostassem do sumo sacerdote e
que não concordassem com a forma concreta como os sacerdotes cumpriam algumas das suas
obrigações. Mesmo os membros da linha separatista dos essénios participavam no judaísmo
comum num aspecto muitíssimo importante: acreditavam num único Deus, na eleição
73
divina, na revelação da Lei, assim como no arrependimento e no perdão. Também observavam
todos os mandamentos bíblicos. Eram separatistas por causa das suas afirmações radicais: só
eles é que eram fiéis à aliança, só eles é que tinham a interpretação correcta da Lei, os seus
sacerdotes eram os únicos aceitáveis, etc.
O judaísmo não era constituído pelos três partidos principais: a maioria dos judeus não pertencia
a nenhum deles. Os partidos servem-nos, antes, como exemplos: o judaísmo não estava
totalmente nas mãos da elite dos sacerdotes de Jerusalém; os leigos tinham a possibilidade de
formar as suas próprias opiniões. Tal como os fariseus, todos os outros judeus acreditavam que
deviam compreender e seguir a Lei divina. Resta apenas acrescentar que, de vez em quando,
surgiam indivíduos que reclamavam ser os verdadeiros representantes de Deus. Este é o
contexto em que a figura de Jesus encaixa, em termos gerais. Ele era um indivíduo que estava
convencido de que conhecia a vontade de Deus.
74

5. Fontes externas
As principais fontes para o conhecimento de Jesus são (tal como foi notado anteriormente) os
Evangelhos do Novo Testamento. Neste capítulo, porém, consideraremos fontes «externas»;
debaterei alguns exemplos de informações provenientes da literatura não cristã e que são
relevantes para a vida de Jesus; além disso, recorrerei a uma disciplina científica: a astronomia.

Literatura não cristã


Jesus tornou-se um homem tão importante na História mundial que é, por vezes, difícil acreditar
como ele foi insignificante durante a sua vida, sobretudo fora da Palestina. A maior parte da
literatura do século I que se conservou foi escrita por membros da elite muito restrita do Império
Romano. Para eles, Jesus (se é que tinham ouvido falar dele) não passava de um agitador
incómodo e de um feiticeiro num cantinho atrasado do mundo. As fontes romanas nas quais é
mencionado baseiam-se todas em relatos cristãos. O processo contra Jesus não deu brado em
Roma e os arquivos romanos não possuem
75
quaisquer registos do mesmo. Caso tenham existido arquivos em Jerusalém, foram destruídos na
revolta do ano 66 e.c. ou na guerra subsequente. Esta guerra também devastou a Galileia. Se
havia registos, não foram preservados. Quando Jesus foi executado, não era mais importante
para o mundo exterior do que os dois assaltantes ou rebeldes que foram executados juntamente
com ele e cujos nomes não conhecemos.
Cerca de dez anos depois da morte de Jesus, os romanos já sabiam que um homem, chamado
Chrestus, estava a causar desordem entre os judeus que viviam em Roma. Quer isto dizer que
havia um conflito na comunidade judaica de Roma sobre a questão de Jesus ter sido ou não
enviado por Deus e ser ou não o Messias. «Chrestos» é uma ligeira deturpação de «Christos», a
palavra grega que traduz o termo hebraico «Messias».) Vinte anos depois, os cristãos já eram
suficientemente importantes na capital para serem perseguidos pelo imperador Nero e as
pessoas conheciam a sua estranha «superstição» e a sua devoção a um homem que tinha sido
crucificado. Mas aquilo que se sabia de Jesus limitava-se àquilo que se sabia do cristianismo;
por outras palavras, se os adeptos de Jesus não tivessem dado início a um movimento que
chegou a Roma, Jesus nem sequer teria entrado na história romana. Em consequência disto não
temos aquilo de que gostaríamos muito de dispor: um comentário em Tácito ou num outro autor
gentio que nos ofereça indícios independentes sobre Jesus, sobre a sua vida e sobre a sua morte.
Jesus é mencionado na obra de Josefo, intitulada Antiguidades judaicas o Josefo nasceu (como
já foi dito) no ano de 37 e.c., alguns anos depois da morte de Jesus, e escreveu as Antiguidades
nos anos noventa. Ele sabia, certamente, qualquer coisa sobre Jesus e, na realidade, na obra
mencionada encontra-se um parágrafo sobre ele (18, 63 e segs.). Mas as obras de Josefo foram
conservadas por escribas cristãos que não conseguiram resistir à tentação de rever o texto,
fazendo Josefo proclamar que Jesus era «o Messias», que ele ensinou «a verdade» e que
«ressuscitou» depois da sua morte." Como nos foi negada a descoberta
76
feliz de uma versão original, nunca saberemos aquilo que Josefo escreveu realmente. Ele não se
converteu ao cristianismo e não pensava realmente que Jesus era o Messias. No entanto, há uma
notícia positiva: é provável que os escribas cristãos se tenham limitado a reescrever o texto. É
muito possível que Josefo tivesse incluído Jesus na sua apresentação da época. Josefo debruçou-
se sobre João Baptista e sobre outras figuras proféticas, como, por exemplo, Teudas e o Egípcio.
Além disso, a passagem sobre Jesus não é adjacente ao relatório sobre João Baptista, onde um
escriba cristão o teria, provavelmente, colocado se tivesse inventado todo o parágrafo. Por
conseguinte, o autor da única história do judaísmo na Palestina do século I de que dispomos
atualmente considerava Jesus suficientemente importante para lhe dedicar um parágrafo - nem
mais, nem menos.
Este parágrafo, cujo texto exato não conhecemos é a melhor prova objetiva da importância de
Jesus no tempo em que viveu. Os Evangelhos dão a ideia de que toda a população estava viva-
mente interessada em Jesus e no seu destino. Não há dúvida de que ele chamou a atenção. No
entanto, se medirmos o impacto público das figuras proféticas pela perturbação que causaram,
temos de concluir que Jesus era menos importante aos olhos da maioria dos seus con-
temporâneos do que João Baptista e o Egípcio. Tanto João Baptista como Jesus inquietaram
Antipas, mas Jesus era obviamente menos incómodo do que João, visto que saiu da Galileia
com vida. Alguns anos mais tarde, o Egípcio levou os romanos a porem em marcha tropas com
armamento pesado, para combater o seu movimento. Isto deve ter agitado muito mais a
população do que a prisão secreta e a execução rápida de Jesus.
77
Como as descrições históricas das autoridades romanas se dedicam principalmente à história de
Roma e não às províncias da periferia, seria de esperar que uma história deste tipo mencionasse
o único romano que aparece nos Evangelhos, isto é, Pilatos, sem lhe dar, contudo, muita
atenção, visto que era prefeito de uma província menor. Esta expectativa confirma-se. Tácito, a
nossa principal fonte para a história romana daquela época, menciona Pilatos, mas
incidentalmente e apenas no contexto da perseguição de Nero aos cristãos: Nero iluminou uma
das suas festas queimando seguidores de Christos, um homem que Pilatos tinha mandado
executar." Esta referência de passagem demonstra a insignificância da Palestina. No entanto,
autores judaicos decisivos, Josefo e Filo, para os quais a história da Palestina era muito
importante, escrevem muito sobre Pilatos e de forma pouco lisonjeira. Os Evangelhos
coincidem com Josefo e Filo no que diz respeito aos dados biográficos de Pilatos, mas divergem
no que diz respeito ao seu carácter. Debruçar-nos-emos brevemente sobre o carácter de Pilatos
mais adiante, nas páginas 340-341.

Datas e astronomia
Gostaria de explicar agora um pouco mais pormenorizadamente os nossos problemas com as
datas. É muito difícil determinar inequivocamente datas da história antiga, por uma diversidade
de motivos, um dos quais se prende com o facto de o mundo antigo não ter um calendário
uniformizado, o que leva a que as nossas fontes se refiram às várias épocas de formas muito
diversas. Dois exemplos, um do Evangelho de Lucas e o outro de Josefo:
No décimo quinto ano do reinado do imperador Tibério, quando Pôncio Pila tos era governador
da Judeia e Herodes [Antipas], governava a Galileia e o seu irmão Filipe era governador da ... e
Lisânias era governador de ... durante o sumo sacerdócio de Anás e Caifás ... (Lc 3, 1-2.)
78
Esta desgraça [a ocupação de Jerusalém por Herodes, no ano 37 a.e.c.] abateu-se sobre a cidade
de Jerusalém enquanto Marco Agripa e Caninius Gallus eram cônsules em Roma, durante a
centésima octogésima quinta olimpíada; no terceiro mês, no dia de jejum, como se fosse uma
repetição da desgraça que aconteceu aos judeus, no tempo de Pompeu, visto que foi
precisamente no mesmo dia, mas vinte e sete anos antes, que a cidade foi conquistada por Sôsio.
(Antiguidades 14, 487)
Estas passagens são extraordinariamente elaboradas, mas ilustram os problemas que se colocam
devido à ausência de um calendário comum. Teria sido muito mais simples falar do ano «29
e.c.» e do ano «37 a.e.c.», mas os autores da Antiguidade que escreveram em grego para um
público que abrangia todo o Império Romano não dispunham da possibilidade de uma datação
deste género." Eram obrigados a utilizar uma série de marcos temporais; o acontecimento em
causa ocorreu no momento de cruzamento de vários outros acontecimentos. Era difícil manter a
clareza. A ausência de um calendário comum significava que, até os historiadores da
Antiguidade, que estavam habituados às suas próprias formas de datação, tinham mais
dificuldades do que nós em registar e recordar datas. Também tinham poucos recursos, tais
como arquivos de jornais para os ajudarem.
A citação de Lc 3, 1-3, onde se fala do sumo sacerdócio de «Anás e Caifás», evidencia a
ausência de arquivos. Não podia haver mais do que um sumo sacerdote simultaneamente. As
pessoas mencionadas desempenharam a função de sumo sacerdote em épocas diferentes. O
facto de Lucas conhecer ambos os nomes é um dado positivo; não seria de esperar a perfeição,
dadas as circunstâncias. A citação de Josefo ainda é mais problemática, apesar de eu não ir fazer
uma referência pormenorizada às dificuldades. Na obra de Schürer intitulada History if the
79
Jewish People, são necessárias quase duas páginas com letra miúda para apresentar os
problemas mais importantes e os vários caminhos para a sua solução. Mencionarei apenas um
dos problemas: o estudo de todas as provas sobre a conquista de Jerusalém por Pompeu e, mais
tarde, por Herodes, tornaram praticamente impossível acreditar que Herodes conquistou (com a
ajuda do general romano Sósio) Jerusalém exatamente vinte e sete anos depois da conquista da
cidade por Pompeu. O que acontece é que Josefo gostava de situar uma catástrofe no dia do
aniversário de uma desgraça anterior. Podemos ignorar pura e simplesmente esta parte da
declaração, mas as dificuldades mantêm-se. Existem, fundamentalmente, três tipos de
problemas no que diz respeito às datas do nascimento e da morte de Jesus. Referir-me-ei
sucessivamente a cada um deles.
1. As referências a datas, pessoas e acontecimentos nos Evangelhos entram, por vezes, em
contradição. Como vimos, tanto Mateus como também Lucas situam o nascimento de Jesus no
fim da governação de Herodes (isto é, nos anos 6-4 a.e.c.). Mas Lucas indica também uma data
inconciliável com esta, a saber, o ano do censo sob Quirino (6 e.c.). Quirino não era o legado da
Síria no tempo de Herodes (apesar de Lc 1, 5.26; 2, 2). No momento da morte de Herodes, o
legado era Varus.
2. Por vezes, é difícil harmonizar os dados dos Evangelhos com os de Josefo. Por exemplo, em
Antiguidades, 18, Josefo menciona Jesus e João Baptista. Refere-se a Jesus no contexto de
diversos acontecimentos, a maioria dos quais se situa nos anos 15-19 e.c. As suas referências a
João parecem situá-lo no período entre 034 e 037 e.c. Os Evangelhos estabelecem, obviamente,
uma relação muito estreita entre a vida pública de ambos. Segundo estes, João iniciou a sua vida
pública antes de Jesus, foi preso pouco tempo depois de o ter batizado e foi executado ainda
durante o ministério deste.
Há dois casos nos quais temos dificuldades em conciliar os Evangelhos com a astronomia.
Segundo Mateus, apareceu uma estrela na época do nascimento de Jesus que atraiu a atenção de
homens sábios
80
do Oriente. A ciência investigou acontecimentos astronómicos que pudessem explicar esta
passagem. O segundo caso no qual a astronomia desempenha um papel na avaliação dos dados
dos Evangelhos refere-se à morte de Jesus. Os quatro Evangelhos são unânimes em dizer que
ele foi executado numa sexta-feira. Segundo João, nessa sexta-feira, em particular, foram
sacrificados os cordeiros para a festa da Páscoa: por conseguinte, no calendário judaico, tratava-
se da sexta-feira 14 de Nisan. Os Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), contudo,
situam a crucificação na sexta-feira, 15 de Nisan, no dia seguinte no que se refere ao mês, mas
no mesmo dia da semana. Isto constitui, em parte, um conflito interno (categoria I), mas
também um problema de conciliação dos Evangelhos com os nossos conhecimentos
astronómicos actuais, uma vez que é difícil encontrar um ano no final dos anos vinte ou no
início dos anos trinta, no qual o dia 15 de Nisan tivesse calhado a uma sexta-feira; isto coloca os
sinópticos em conflito com a astronomia. (O dia 15 de Nisan é como o dia 25 de Dezembro:
nem sempre calha no mesmo dia da semana. Em alguns anos, calha na sexta-feira, mas não em
todos.)
É possível que a situação pareça pior do que é de facto. Tal como escrevi no capítulo 2, não
existem dúvidas realmente substanciais acerca da época e do local em que Jesus viveu. Também
sabemos aproximadamente quando Herodes conquistou Jerusalém, embora o parágrafo de
Josefo sobre a data do acontecimento esteja cheio de dificuldades. No que diz respeito ao
período no qual Jesus viveu, os Evangelhos mencionam o imperador Augusto (31 a.e.c.-14 e.c.)
no momento do seu nascimento, e Tibério (14-37 e.c.) numa fase posterior da sua vida (Lc 2, 1;
3, 1). Pôncio Pilatos era prefeito da J udeia (26-36 e.c.) e Caifás, sumo sacerdote (18-36 e.c.)
(Mt 26-27 e outras passagens). Estes dados levam-nos a concluir que Jesus morreu entre 26 e 36
e.c. Este quadro amplo baseia-se em informações «de grande calibre». Tibério, Pilatos e Caifás:
toda a gente na Palestina conhecia estes três nomes e sabia quando as pessoas em causa tinham
desempenhado as suas funções. Devemos confiar nestas informações, a não ser que tenhamos
bons motivos para não o fazer, isto é, a menos que as histórias
81
nos Evangelhos contenham tantos anacronismos e tantas anomalias que sejamos obrigados a
considerá-las fraudulentas. Não é o caso, pelo que não existe nenhum motivo razoável para
duvidar deste leque temporal.
No entanto, é verdade que as datas exatas do nascimento e da morte de Jesus são incertas. Não
temos quaisquer informações sobre o mês e o dia do seu nascimento e existe uma contradição
no que diz respeito ao ano aproximado do mesmo (por volta do ano da morte de Herodes, 4
a.e.c., ou na época do recenseamento de Quirínio, no ano 6 e.c.). Mesmo que aceitemos a
opinião geral segundo a qual Jesus nasceu no final da vida de Herodes, continuamos a não saber
qual o ano exato (ver p. 11). Os Evangelhos também entram em contradição uns com os outros
no que diz respeito ao dia da morte de Jesus. Isto significa, por seu lado, que não sabemos em
que ano morreu. Mesmo que aceitemos a versão dos sinópticos e concordemos que Jesus foi
executado na sexta-feira, dia 15 de Nisan, não conhecemos o ano exato, visto que os cálculos
atuais com base no antigo calendário judaico não apresentam um ano no qual o dia 15 de Nisan
tenha calhado numa sexta-feira.
Estas incertezas não tornam Jesus uma figura única ou, sequer, invulgar. Como no Ocidente
cristianizado dispomos, há tanto tempo, de um calendário único, habituámo-nos a contar com
datas seguras. Na perspetiva atual, é estranho que os investigadores não saibam quando Jesus
nasceu e quando morreu. Isto não surpreenderá aqueles que estão familiarizados com as
discussões académicas sobre a história da Antiguidade. Os aspetos incertos na cronologia da
vida de Jesus não levam a concluir que ninguém sabe nada, nem significam que qualquer
reconstrução dos acontecimentos é possível, devido à falta de pontos de referência fixos.
Sabemos muito acerca de Jesus. Necessitamos apenas de proceder cuidadosa e prudentemente, e
não de maneira precipitada e radical. Jesus nasceu, muito provavelmente, no ano 5 ou 4 a.e.c. e
morreu entre 29 e 31 e.c. (apesar de muitos investigadores preferirem o ano 33).
O interesse pela questão da data da execução de Jesus voltou a recrudescer recentemente;
acrescentei um apêndice sobre esta questão. Aqui, gostaria apenas de comentar genericamente
os erros (eu, pelo menos, considero-os como tal) dos cientistas que apresentam propostas
extremas sobre o assunto, afirmando, por exemplo, que Jesus teria sido executado em 26 ou em
36. O facto de o material empírico ser
82
diversificado e difícil de conciliar com exatidão leva à tendência para escolher um dado,
declarando-o decisivo e moldando as provas restantes no sentido da forma necessária. Isto
significa que existe um perigo de um fundamentalismo esporádico no estudo dos textos antigos
- não só da Bíblia. O «fundamentalismo» refere-se à convicção de que alguns textos da
Antiguidade - ou a literatura da Antiguidade, em geral - contam a verdade pura e simples. Mas o
fundamentalismo é sempre esporádico: os fundamentalistas acreditam que algumas pessoas
nunca exageraram, nunca erraram ou nunca confundiram as suas notas, ou, pelo menos, que
determinados parágrafos em determinados textos são absolutamente credíveis. A leitura das
investigações cronológicas sobre o Novo Testamento revela muito fundamentalismo -
normalmente, esporádico. Um investigador, por exemplo, considera a cronologia de João
melhor do que a de Marcos e de Mateus (e portanto que a cronologia destes não é correta). O
próximo passo consiste na adoção da perspetiva de João em numerosos pontos em que este
diverge dos três restantes: houve três festas da Páscoa e não só uma durante a vida pública de
Jesus, ele foi executado no dia 14 de Nisan e não no dia 15, e, durante o seu ministério, ele
estava na casa dos quarenta «ainda não tinha cinquenta anos», Jo 8, 57) e não dos trinta anos,
como afirma Lucas. Depois de terem rejeitado a cronologia de Mateus, de Marcos e de Lucas,
alguns investigadores atiram-se à história da estrela que se encontrava por cima do local onde
Jesus nasceu, de acordo com Mateus, tentando fazê-la coincidir com o aparecimento de um
cometa - sem notar, ao que parece, que esta estrela especial, de acordo com a única descrição
que existe da mesma, não deixou qualquer rasto luminoso no céu, ficando «parada por cima do
lugar onde estava o menino» (Mt 2, 9). Porque se há-de pressupor que a estrela da história de
Mateus é um astro real e ignorar o que o autor diz sobre o assunto? Por que motivo se há-de dar,
sequer, atenção à estrela de Mateus, se ele estava enganado quanto à data da morte de Jesus (da
qual João estava perfeitamente ciente)?
Estes mesmos investigadores são aqueles que decidem que alguns parágrafos em Josefo são
literais e absolutamente verdadeiros, relatando os acontecimentos tal como eles ocorreram, sem
alterar uma palavra, enquanto outros parágrafos nem sequer contam: como Josefo
83
coloca a sua referência a Jesus numa secção anterior das Antiguidades àquela na qual se refere a
João Baptista, uma delas é absolutamente correta, enquanto a outra tem de ser removida. (Na
realidade, estas secções da obra de Josefo não obedecem a uma ordem cronológica;
A história da Antiguidade é difícil. Exige, sobretudo, bom senso e sensibilidade para as fontes.
As nossas fontes contêm informações sobre Jesus, no entanto, não podemos abordá-las
decidindo dogmaticamente que algumas frases são a pura verdade e outras são ficção.
Normalmente, a verdade está no meio. Como já disse várias vezes e, provavelmente, irei repetir
várias vezes, sabemos bastante sobre Jesus a nível relativamente geral. No que diz respeito à
cronologia, sabemos que a sua vida pública se situou entre 26 e 36 e.c. É errado tentar
transformar os Evangelhos - aliás, como Josefo - em artigos de enciclopédias modernas ou
pressupor que uma afirmação é absolutamente correta, enquanto as outras são absolutamente
erradas.
Isto leva-nos ao próximo capítulo, aos problemas específicos que se colocam no estudo das
nossas fontes principais, isto é, dos Evangelhos. Que tipo de escritos são os Evangelhos? Qual o
melhor uso a dar-lhes?
84

6. Os problemas das fontes primárias


Vamos, agora, debruçar-nos sobre uma das nossas tarefas mais difíceis: a exploração da
natureza do material dos Evangelhos. Examinaremos algumas das questões que os próprios
Evangelhos colocam ao leitor atento. Apesar de a minha visão geral das fontes ser positiva,
muitos pontos deste capítulo serão negativos, sendo o mais genérico deles todos que não
podemos preencher o breve resumo da vida de Jesus através da combinação pura e simples de
todas as informações dos quatro Evangelhos. Margaret Davies e eu próprio apresentámos com
bastante pormenor num livro anterior como abordar os três primeiros Evangelhos. Só na página
301 é que começámos a explicar como é possível obter destas fontes informações acerca do
Jesus histórico. A presente apresentação será muito mais breve, principalmente porque excluirei
uma série de questões. O meu objetivo aqui é muito mais dar exemplos de alguns dos problemas
que se colocam na utilização dos Evangelhos do que conduzir o leitor, passo
85
a passo, através das soluções e de regresso ao Jesus histórico. Limitar-me-ei a introduzir os
tópicos suficientes para poder consubstanciar as seguintes teses:
1. Os primeiros cristãos não fizeram uma narrativa da vida de Jesus, mas utilizaram e, portanto,
conservaram, sequências autónomas - passagens breves sobre as suas palavras e os seus atos.
Estas sequências foram depois agrupadas e colocadas num contexto pelos editores e autores.
Isto significa que nunca podemos ter a certeza do contexto imediato das palavras e dos atos de
Jesus.
2. Algum material foi revisto e outro criado pelos primeiros cristãos.
3. Os Evangelhos foram escritos anonimamente.
4. O Evangelho de João é bastante diferente dos outros três Evangelhos e é sobretudo nestes
últimos que temos de procurar informações sobre Jesus.
5. Os Evangelhos carecem de muitas características típicas para uma biografia e, sobretudo, não
devemos confundi-los com biografias atuais.

A história do material contido nos Evangelhos


Começamos com uma descrição geral da maneira como o material dos Evangelhos surgiu e foi
transmitido. Isto servir-nos-á como uma espécie de mapa de orientação num terreno, por vezes,
difícil.
Quando Jesus foi executado, os seus discípulos fugiram ou esconderam-se, mas as suas
esperanças renasceram quando o viram outra vez vivo. Não pretendo dizer nada aqui sobre as
experiências da ressurreição vividas pelos discípulos, que serão abordadas de forma breve no
epílogo, mas sim de me concentrar no seu comportamento subsequente. Eles estavam
convencidos que o Reino anunciado por Jesus chegaria em breve e que ele próprio voltaria.
Fixaram-se em Jerusalém, à espera. Enquanto esperavam, tentaram convencer os outros de que
o mestre deles era o Messias de Israel e de que ele voltaria em breve para estabelecer o Reino de
Deus. Não se juntaram todos, recolhendo as suas memórias, para escreverem uma biografia de
Jesus. Pensavam que ele voltaria em breve, pelo que a questão de saber qual seria a melhor
forma de preservar o conhecimento sobre a sua vida para as gerações seguintes não se colocava.
86
Ao tentarem persuadir outros, por vezes, contavam histórias de coisas que Jesus tinha dito ou
feito. É provável que, nos primeiros anos, este material não fosse escrito, mas apenas
transmitido oralmente. Quando os discípulos falavam de acontecimentos da vida de Jesus,
faziam-no para ilustrar os pontos que estavam em causa para eles naquele momento. Assim, um
discípulo podia dizer algo deste género:
Jesus era extraordinariamente compassivo. Aqueles de entre vós que são pobres e que se sentem
escravizados deviam segui-lo como o Senhor. Ele disse, uma vez: «Felizes os humildes, porque
herdarão a terra.» Outra vez, mandou que deixássemos as crianças aproximar-se dele, «pois
delas é o Reino de Deus».
Além de conquistarem novos adeptos, os discípulos também se instruíam uns aos outros e ao
número crescente de convertidos recordando acontecimentos da vida de Jesus. Por vezes,
discutiam com mestres judaicos que rejeitavam Jesus; estes debates fornecem um terceiro
contexto no qual foi utilizado material sobre Jesus.
O aspeto positivo desta utilização de material da vida de Jesus está na preservação do mesmo,
ainda que numa forma que era útil aos seguidores de Jesus nas suas diversas atividades. O seu
aspeto negativo está no facto de as palavras e os atos de Jesus terem sido retirados do seu
contexto original (na sua própria vida pública) e colocados num outro contexto, isto é, na
pregação e nos ensinamentos dos discípulos.
Os anos passaram e o Senhor não voltou. Porém, a fé dos seguidores de Jesus, entre os quais se
encontravam já muitos que nunca o tinham visto, mantinha-se sólida. Eles estavam convencidos
de que ele continuava a viver como o Senhor celestial. Começaram a referir, no seu trabalho
evangelizador e pedagógico, acontecimentos da vida de Jesus em breves formas estereotipadas.
Em vez de se limitarem a citar apenas a frase lapidar (tal como no exemplo hipotético referido
acima), os pregadores e mestres cristãos utilizavam pequenas sequências de material, que
incluíam uma introdução breve, bem como o dito ou o gesto que encerrava a unidade. Tomemos
o seguinte exemplo deste hábito:
Naquele momento, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: «Quem é o maior
no Reino do Céu»? Ele chamou um menino, colocou-o
87
no meio deles e disse: «Em verdade vos digo: se não voltardes a ser como crianças nunca
entrareis no Reino do Céu. Quem se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do
Céu.» (Mt 18, 1-4; sobre a expressão «naquele momento» ver mais adiante.)
A certa altura, estas pequenas unidades foram registadas por escrito e reunidas em grupos
maiores, normalmente, com base no seu assunto. Os versículos que se seguem imediatamente à
passagem que acabámos de citar e nos quais encontramos outras palavras sobre crianças e
«pequenos» (provavelmente, não crianças, mas fracos e humildes) demonstram o resultado
deste processo.
Os anos transformaram-se em décadas. Alguns dos primeiros discípulos morreram como
mártires e outros terão partido em longas missões para países distantes. Alguns cristãos
decidiram que, afinal, sempre tinham necessidade de uma descrição coerente da vida de Jesus.
Não sabemos quantas etapas houve entre as sequências utilizadas nas homílias e os nossos
Evangelhos atuais, mas digamos que houve duas. A partir de agora, utilizaremos também o
melhor termo técnico disponível para estas pequenas unidades, muitas das quais se conservaram
nos Evangelhos atuais, a saber, perícopas. A palavra significa literalmente «recortado». Cada
perícopa tem um início e um fim óbvios, sendo possível recortá-lo do lugar onde se encontra
atualmente num dos Evangelhos e transferi-la para outro lugar. Parece que as coleções de
perícopas cujos temas eram similares, como, por exemplo, curas ou disputas com adversários,
foram escritas em folhas de papiro, copiadas e feitas circular entre diversas comunidades cristãs.
Na fase seguinte, estas coleções foram reunidas, formando aquilo que designamos hoje como
«preto-evangelhos» - obras que contam uma história coerente, mas não toda a história. Um
Proto-Evangelho pode ser composto, por exemplo, por uma série de perícopas nas quais se trata
dos conflitos entre Jesus e outros judeus e se acaba com a sua prisão, julgamento e execução.
Um Proto-Evangelho pode consistir, ainda, numa grande coleção de ditos importantes para a
vida quotidiana nas comunidades cristãs (ética, questão de hierarquização, ditos sobre a
atividade missionária e semelhante). Por fim, foi escrito o primeiro Evangelho, tal como o
conhecemos atualmente. A maioria dos investigadores pensa que este Evangelho foi o de
Marcos. Os autores que se seguiram utilizaram este Evangelho e acrescentaram
88
outro material, por exemplo, protoevangelhos ou coleções temáticas que o autor de Marcos não
tinha incluído. Os Evangelhos na sua forma atual foram escritos, provavelmente, entre 70 e 90
e.c., apesar de alguns investigadores colocarem Marcos mais cedo, nos anos sessenta. Gostaria
de sublinhar que não sabemos se foi exatamente assim que os Evangelhos surgiram. Deduzimos
o processo a partir do produto acabado. Verificamos que os Evangelhos sinópticos (Mateus,
Marcos e Lucas) consistem em perícopas móveis. Sabemos que os autores finais deslocaram
perícopas, porque algumas unidades surgem em contextos diferentes nos vários Evangelhos.
Supomos que o processo durou anos, provavelmente, até décadas. Não sabemos se, em tempos,
existiram «panfletos», breves coleções temáticas. Deduzimos a sua existência do facto de uma
parte do material aparecer, agora, ordenada por temas. Foi isto mesmo que levou alguns
investigadores a deduzir a existência de protoevangelhos a partir de uma análise dos nossos
Evangelhos atuais, nos quais descobrem vestígios de uma ordenação anterior, que foi alterada.
Esbocei um esquema com quatro etapas: 1. unidades utilizadas em contextos homiléticos ou
pedagógicos; 2. compilação de unidades afins em grupos de perícopas (que, possivelmente,
circulavam em folhas de papiro separadas); 3. protoevangelhos; 4. os nossos Evangelhos. Não é
necessário acreditar neste processo de quatro etapas para compreender o material. De facto,
alguns investigadores põem em questão a segunda etapa e outros a terceira. O que é necessário é
compreender a evolução geral da tradição. Jesus disse e fez coisas num determinado contexto, o
contexto da sua própria vida; reagiu às pessoas com quem se encontrava e às circunstâncias tal
como as percecionava. Mas não existe uma passagem direta da sua vida para os Evangelhos. Do
que passamos é da sua vida para o uso que os primeiros cristãos fizeram de diversos
acontecimentos como exemplos para apoiar uma ou outra ideia. As perícopas foram organizadas
progressivamente em livros que pretendiam descrever o desenrolar da sua atividade. Mas já
tinham passado décadas e o contexto original, que tinha inspirado determinada afirmação ou
ação, já se tinha perdido.
89
Citei anteriormente Mt 18, 1-4 como um exemplo de uma perícopa que podia servir para ilustrar
a preocupação de Jesus com os fracos (ele chamou uma criança, etc.). No entanto, na sua versão
atual, a perícopa é introduzida com a expressão «nesse momento», o que sugere um
enquadramento temporal. Estas palavras constituem, provavelmente, o enquadramento dado
pelo autor final. Mateus situa a passagem, na qual se trata de ser como as crianças, numa fase
bastante mais adiantada, apenas três capítulos antes da entrada em Jerusalém. Ela segue-se
imediatamente à discussão sobre o tributo do Templo, uma discussão, que, segundo Mateus,
ocorreu em Cafarnaum (Mt 17, 24-27). Marcos coloca a mesma passagem numa fase avançada
da narrativa e também em Cafarnaum (Mc 9, 33-37), mas não depois da história do tributo do
Templo, que nem sequer aparece em Marcos. Lucas situa a perícopa sobre as crianças bastante
no início do Evangelho, dez capítulos antes da entrada em Jerusalém (9, 46-50). Não existe
qualquer motivo para pressupor que algum dos autores soubesse exatamente quando é que Jesus
fez as suas afirmações acerca do ser como as crianças e quais as circunstâncias específicas que
as desencadearam. Pelo contrário, cada um deles introduziu estas afirmações onde quis. A
expressão de Mateus - «nesse momento» - soa a uma afirmação biográfica, como se o autor
soubesse que Jesus tinha feito a sua afirmação sobre as crianças para o fim da sua vida pública e
imediatamente depois de ter sido questionado sobre o tributo do Templo. Trata-se de uma mera
conveniência narrativa. Mateus tirou uma passagem (a perícopa acerca do tributo do Templo) de
uma fonte, de contrário, desconhecida, e colocou-a antes de uma passagem de Marcos
(anteriormente da perícopa acerca da criança), ligando ambas as passagens através da expressão
«nesse momento», para dar a sensação de um relato coerente. Na realidade, não conhecemos o
enquadramento do acontecimento na vida de Jesus.
Até agora, escrevi como se os primeiros cristãos se tivessem limitado a deslocar o material e a
escrever breves introduções, como «nesse momento». No entanto, eles também reviram o
material. A revisão do material reutilizado é inevitável. A alternativa à introdução de pequenas
alterações para tornar uma perícopa relevante para novo público e numa nova circunstância
seria embalsamá-la. O material cristão manteve-se vivo e fresco, apesar de ter sido utilizado
vezes sem conta, por causa de ter sido aplicado a questões atuais - que nem sempre eram as
questões da Galileia dos anos 25 a 30.
90
Além disso, os primeiros cristãos também criaram material novo; inventaram factos. Isto parece
uma acusação de fraude e de desonestidade, mas é apenas uma forma aguda para referir um
procedimento que eles viam de uma forma diferente. Os cristãos acreditavam que Jesus tinha
subido ao céu e que se lhe podiam dirigir através da oração. Por vezes, ele respondia. Os
cristãos atribuíam estas respostas «ao Senhor». Queremos, agora, saber que Senhor: Jesus, antes
da crucificação, ou o Senhor ressuscitado, a habitar no céu? Para os cristãos, tratava-se do
mesmo Senhor. Na 2." Carta aos Coríntios, Paulo relata um dos casos em que o Senhor
respondeu à sua oração, apesar de isto dever ter acontecido muitas vezes. Paulo sofria por causa
de um «espinho na carne», uma doença indefinida. Ele pediu três vezes ao Senhor para Ele o
remover. «[O Senhor] disse-me: "Basta-te a minha graça, porque o meu poder torna-se perfeito
na fraqueza."» (2 Cor 12, 7-9). Temos aqui uma citação direta do Senhor celeste. Temos a carta
de Paulo e, portanto, podemos dizer que ele ouviu isto durante a oração. No entanto, pode ter
havido outros cristãos - incluindo o próprio Paulo - que tivessem repetido afirmações deste tipo,
sem especificar que elas provinham do Senhor do céu. A consequência podia ter sido a inclusão
da frase «o meu poder torna-se perfeito na fraqueza» num dos Evangelhos como uma frase
atribuída ao Jesus histórico. Embora, neste caso, tal não tenha acontecido, podia ter ocorrido e
temos de pressupor que, por vezes, aconteceram coisas deste género. Alguns dos primeiros
cristãos acreditavam que o Senhor do céu comunicava livremente com eles. Volto a citar Paulo,
cujas cartas constituem a literatura cristã mais antiga que chegou até aos nossos dias:" ele
afirmava que «comunicava ... em palavras» coisas que não eram ensinadas pela sabedoria
humana, mas sim que o Espírito inspira» (1 Cor 2, 1.'3). «O Senhor é o Espírito», escreveu ele
numa outra passagem (2 Cor .'3, 17). Por outras palavras, o Espírito que comunicava livremente
com Paulo e com os outros cristãos podia ser entendido como o Espírito do Senhor ressuscitado,
que estava, de alguma maneira, em continuidade com o Jesus histórico.
Não quero dizer com isto que os primeiros cristãos tivessem dado asas à sua fantasia,
inventando todo o tipo de coisas e atribuindo-as ao
91
Espírito = o Senhor = Jesus. Quando estudarmos as afirmações dos Evangelhos sinópticos vou
chamar frequentemente a atenção para a limitação da criatividade dos primeiros cristãos. Penso
que é bastante provável que as principais alterações no material tenham consistido em alterações
do contexto e em pequenas adaptações. No entanto, também temos de aceitar que haja algum
material que tenha sido criado - isto é, que os cristãos o tenham ouvido na oração.
Uma segunda fonte possível para material novo eram as Sagradas Escrituras Judaicas (que se
transformaram no «Antigo Testamento» dos cristãos, depois de estes terem decidido que uma
parte da sua literatura também era Escritura» tendo-a designado como «Novo Testamento»). Os
cristãos pensavam que havia profetas hebreus que tinham falado de Jesus e que ele tinha
cumprido as expectativas proféticas. Por isso, os cristãos podiam ler os profetas e encontrar
coisas que Jesus tinha de ter feito. Explicarei pormenorizadamente esta perspetiva no próximo
capítulo.
Os investigadores desenvolveram vários processos para tentar determinar quais as afirmações e
ações que são «autênticas», portanto, para distinguirem entre o material criado de novo e aquele
que remonta, de facto, ao tempo de Jesus. Não descreverei aqui estes processos, mas alguns
aparecerão em capítulos posteriores. Nos capítulos 20 e 21 do meu livro Studying the Synoptic
Gospels ofereço uma lista bastante completa destes critérios.
Há duas convicções implícitas na nossa apresentação que eu gostaria de tornar, agora, explícitas.
Uma delas é que os Evangelhos, na sua forma actual, não foram escritos por testemunhas
oculares, com base num conhecimento directo de Jesus. O segundo pressuposto é que existe
uma diferença substancial entre os primeiros três Evangelhos e o quarto.

Anonimato
Não sabemos quem escreveu os Evangelhos. Atualmente, eles intitulam-se «segundo Mateus»,
«segundo Marcos», «segundo Lucas»
92
e «segundo João». Os nomes Mateus e João referem-se a dois dos primeiros discípulos de Jesus.
Marcos era um seguidor de Paulo e, provavelmente, também de Pedro; Lucas era um dos
convertidos por Paulo." Estes homens - Mateus, Marcos, Lucas e João - existiram, de facto; no
entanto, não sabemos se eles escreveram os Evangelhos. Aquilo que sabemos hoje indica que os
Evangelhos permaneceram sem nome até à segunda metade do século 11. Eu reuni estas provas
num outro lugar." pelo que não gostaria de as repetir aqui, exceto num ponto. Os Evangelhos,
tal como os temos atualmente, foram citados na primeira metade do século II, mas sempre sob
anonimato (tanto quanto podemos dizer, com base nas provas que chegaram até nós). Os nomes
apareceram subitamente por volta do ano 180. Naquela altura, havia uma série de evangelhos,
não só os nossos quatro, e os cristãos tiveram de decidir quais tinham autoridade. Isto era uma
questão decisiva acerca da qual existiam divergências de opinião muito grandes. Sabemos quem
triunfou: aqueles que consideravam que havia quatro Evangelhos, nem mais, nem menos, que
eram os relatos sobre Jesus que possuíam autoridade.
Embora hoje conheçamos o resultado, no fim do século II, ele era muito incerto. Alguns cristãos
queriam que houvesse mais evangelhos a serem reconhecidos oficialmente, outros, menos.
Comentarei apenas uma parte da história: a existência de evangelhos que acabaram por não ser
reconhecidos na cristandade católica. Estes evangelhos, que se designam habitualmente como
evangelhos «apócrifos» («ocultos»), fascinaram as pessoas durante muito tempo. Alguns deles
(como, por exemplo, o Evangelho dos Egípcios) perderam-se e são conhecidos apenas através
de algumas breves passagens citadas por autores cujas obras chegaram até nós. Atualmente, é
possível ler a tradução de numerosos outros evangelhos apócrifos, mas a maior parte deles foi
escrita depois de 180.8 Dois deles são relativamente antigos e contêm material interessante: o
Evangelho da Infância, de Tiago, e o Evangelho de Tomé. O primeiro é um evangelho especial:
como o título
93
sugere, trata apenas do nascimento e da infância de Jesus. O Evangelho de Tomé é uma coleção
de ditos que foram encontrados no Egipto, entre os manuscritos gnósticos. (O gnosticismo
consistia numa visão da realidade que considerava mau tudo o que era material; o deus que
criou o mundo era um deus mau e a sua criação era má. Os gnósticos que também eram cristãos
acreditavam que o Deus bom tinha enviado Jesus para salvar as almas das pessoas, mas não os
seus corpos, e que Jesus não era verdadeiramente um ser humano. Os cristãos que rejeitavam
estas opiniões acabaram por os declarar heréticos.)
Partilho a convicção da maior parte dos investigadores, segundo a qual é pouquíssimo daquilo
que, nos evangelhos apócrifos, poderia conceber-se como remontando ao tempo de Jesus. Os
evangelhos apócrifos são lendários e mitológicos. De todo o material apócrifo, apenas alguns
ditos no Evangelho de Tomé merecem ser analisados. Isto não significa que possamos fazer
uma distinção clara entre os quatro Evangelhos históricos e os evangelhos apócrifos lendários.
Existem traços lendários nos quatro Evangelhos do Novo Testamento, bem como uma certa
quantidade de material criado de novo (como já vimos). No entanto, é nos quatro Evangelhos
canónicos que temos de procurar os vestígios do Jesus histórico.
Voltamos agora à história da atribuição de nomes aos Evangelhos. Para os membros da fação
vencedora (aqueles que não queriam mais de quatro Evangelhos), era importante poder atribuir
os Evangelhos «certos» às pessoas que tinham proximidade histórica com Jesus ou com os seus
maiores apóstolos. Os detetives de entre os cristãos deitaram mãos ao trabalho e tiraram
conclusões sobre a autoria de cada um dos Evangelhos a partir de pormenores nos mesmos que
eles consideravam como indícios relativos aos seus autores. Para dar um exemplo: no
Evangelho que se encontra atualmente no quarto lugar no Novo Testamento, destaca-se um
«discípulo amado» cujo nome não é revelado. No entanto, este Evangelho não menciona João,
apesar de ele ter sido um dos discípulos principais (como sabemos dos outros Evangelhos, dos
Atos dos Apóstolos e da Carta aos Gálatas). Os detetives cristãos do século II chegaram,
provavelmente, à conclusão de que o quarto Evangelho tinha sido escrito por João, que preferiu
referir-se a si próprio como o «discípulo amado»; e daí resultou que, hoje, designamos o quarto
Evangelho como «Evangelho segundo João». Neste caso, os cristãos do século II deduziram a
autoria a partir da ausência de um nome.
94
O trabalho «detectivesco» do século II foi bastante as tu cioso. Na realidade, é precisamente
com base em indícios de pormenor que nós tentamos dizer alguma coisa sobre os autores de
obras anónimas. Os seus nomes podem-nos escapar, mas as suas características seguramente
que não. No entanto, as conclusões a que os cristãos do século II chegaram no que diz respeito
aos nomes eram muito mais firmes do que as suas provas. Em João (isto é, no Evangelho que
tem o seu nome), o autor pretendia dizer algo através das suas referências frequentes ao
«discípulo amado». Também tem a sua visão própria no que diz respeito aos nomes dos outros
discípulos, que são um tanto diferentes dos nomes apresentados por Mateus, Marcos e Lucas
(abaixo, pp. 120-122). Mas não podemos ter a certeza de que o seu tratamento especial dos
discípulos pretendesse constituir uma indicação do seu próprio nome. É possível que os
primeiros leitores do Evangelho tenham compreendido o que o autor pretendia. Por que razão
não foi o nosso Evangelho atribuído imediatamente a João? A resposta mais provável é que a
atribuição foi tardia e baseada mais numa suposição do que numa tradição sólida.
É improvável que os cristãos conhecessem os nomes dos autores dos Evangelhos, mas que não
os mencionassem na literatura que chegou até nós (e que é bastante), mais ou menos, durante
um século. Também é intrinsecamente provável que os títulos iniciais fossem apenas «o
Evangelho [a boa nova] de Jesus Cristo» ou qualquer coisa semelhante, sem os nomes dos seus
autores. Os autores queriam, provavelmente, eliminar interesse pela pessoa que tinha escrito a
história, para que o leitor se concentrasse no assunto. Mais importante ainda: uma história
anónima possuía mais autoridade do que a de uma obra com autor. Um livro anónimo na
Antiguidade, tal como acontece hoje com um artigo de enciclopédia, reclamava implicitamente
um conhecimento e uma credibilidade totais. O Evangelho de Mateus não teria tido o mesmo
impacto se o autor tivesse escrito: «esta é a minha versão», em vez de escrever: «foi isto que
Jesus disse e fez».
Referir-me-ei sempre aos Evangelhos pelos nomes que são, agora, familiares. Designarei, por
exemplo, o autor do Evangelho de Lucas como «Lucas» e designarei também o próprio
Evangelho como «Lucas», sendo que utilizarei uma expressão descritiva em caso de
ambiguidade (por exemplo, «o evangelista Lucas» é o autor). Utilizo os nomes exclusivamente
por motivos práticos. Na minha opinião,
95
todos os Evangelhos foram escritos anonimamente e os nomes só lhes foram atribuídos depois
de 150, com base em indícios do tipo daqueles que apresentei para o Evangelho de João.

Os sinópticos e João
No capítulo anterior mencionámos brevemente que a cronologia de João se distingue da dos
outros três Evangelhos. Pretendo explorar agora esta e outras diferenças, que são muito
consideráveis.
Mateus, Marcos e Lucas são designados coletivamente como «Evangelhos sinópticos» porque,
no século XVIII, os investigadores começaram a estudá-los em livros com colunas paralelas,
chamadas «sinopses», o que significa literalmente «visão de conjunto». Portanto, é possível
imprimir os textos de Mateus, Marcos e Lucas, colocá-los lado a lado e fazer muitas
comparações diretas. O esquema geral da vida de Jesus é igual e muitas das sequências também.
Veremos exemplos nos capítulos 11, 12 e 16. João é um caso à parte. O plano narrativo é
diferente e o material discursivo tem pouca semelhança com os ditos dos Evangelhos sinópticos.
Comecemos pelo plano narrativo:
Os sinópticos só falam uma vez da festa da Páscoa e a ação parece ter-se desenrolado toda em
menos de doze meses. Em Me 2, 23-28 é possível comer trigo na espiga, o que situa o
acontecimento no início do Verão; em 6, 39, é Primavera, uma vez que a erva está verde; nessa
mesma Primavera, Jesus vai a Jerusalém para a festa da Páscoa (Mc 11; sobre a festa da Páscoa
ver 14,1. 12). Se as indicações relativas às estações do ano são corretas e se encontram no lugar
certo, o ministério de Jesus decorreu todo entre o início de um Verão ou o fim de uma
Primavera e a Primavera seguinte. Em João, pelo contrário, Jesus vai a Jerusalém, para uma
festa da Páscoa (2, 13), no início da sua vida pública e antes da última (11, 55; 13, 1; 18,28),
ainda há uma outra Páscoa (6, 4). Sendo assim, o ministério público de Jesus ter-se-ia
prolongado por um pouco mais de dois anos. Além disso, a narrativa de João situa uma grande
parte do ministério de Jesus na Judeia, enquanto os relatos dos sinópticos situam tudo, exceto a
última semana, na Galileia. No capítulo anterior, também referimos que João coloca a execução
de Jesus no dia 14 de Nisan, enquanto os sinópticos se referem ao dia 15 de Nisan.
96
Há mais dois aspetos da apresentação de João que merecem ser mencionados. A «purificação do
Templo», que aparece nos sinópticos como o motivo principal para a execução de Jesus, em
João, acontece logo no início do seu ministério, durante a sua primeira viagem a Jerusalém (2,
13-22), sem que tenha havido consequências graves. O conteúdo do relato joanico sobre a
audiência perante as autoridades judaicas distingue-se consideravelmente da versão dos
sinópticos. Nos Evangelhos sinópticos, há um processo formal perante o tribunal judaico, o
Sinédrio. São chamadas testemunhas, que fazem depoimentos; por fim, é interrogado o próprio
Jesus. O sumo sacerdote formula uma acusação formal: culpado de blasfémia. Em João, Jesus é
interrogado, ao que parece, em privado, primeiro por Anás (que tinha sido sumo sacerdote e era
pai dos cinco sumos sacerdotes que se lhe seguiram) e depois por Caifás, o sumo sacerdote em
exercício, que é apresentado como genro de Anás (Jo 18, 12-40). Não se fala nem de
testemunhas, nem de uma acusação formal.
A cena do julgamento descrita por João é muito mais plausível do ponto de vista da
probabilidade intrínseca do que a dos sinópticos. Quem ler Josefo aperceber-se-á que João
descreve um tipo de processo que teria sido considerado adequado num caso sem grande
importância: o sumo sacerdote ouviu conselheiros (neste caso, Anás, um antigo sumo sacerdote)
e fez uma recomendação ao prefeito, que agiu em conformidade. Isto é mais provável do que a
existência de um processo completo perante um tribunal formal durante a época festiva.
Portanto, no que diz respeito ao processo, João parece ser melhor. No entanto, no que diz
respeito à colocação da «purificação do Templo» na sequência narrativa, a descrição dos
sinópticos, que situa o acontecimento mais tarde, é muito mais plausível do que a de João. Diz-
se que Jesus tentou interferir nos negócios de compra e venda que eram necessários para a
manutenção do serviço no Templo - um serviço que resultou de uma ordem expressa de Deus.
Isto deve ter causado um escândalo, sendo muito provável que tenha existido uma estreita
relação entre aquilo que Jesus fez no Templo e a sua execução.
Quanto à duração do ministério de Jesus, é difícil decidir. João coincide, certamente, com o
ritmo da vida na Palestina judaica, marcada por três festas anuais. Além das três festas da
Páscoa, João menciona uma outra festa, sem especificar qual (5, 1), enquanto os acontecimentos
do capítulo 7 são situados durante a Festa das Cabanas
97
(ou Tabernáculos). A tabela que se segue compara as referências que João faz às festas que
teriam ocorrido se tivesse havido três Páscoas durante o ministério de Jesus:

Páscoa (Primavera)-------------------------------- Jo 2, 13
Festa das Semanas
(Pentecostes, início do Verão) ----------------- talvez Jo 5, 1
Festa das Cabanas
(Tabernáculos, Outono) ------------------------ não mencionada
Páscoa ------------------------------------------- Jo 6, 4
Festa das Semanas ----------------------------- não mencionada
Festa das Cabanas ------------------------------ Jo 7
Páscoa ------------------------------------------- Jo 11,55
Apesar de existirem lacunas, o esquema geral de João é perfeitamente plausível. Mas o dos
sinópticos também. É o seguinte: quando João Baptista foi preso, surgiu um outro profeta -
Jesus; ele pregou e curou durante alguns meses, causando alguma agitação, mas não a ponto de
assustar Antipas, foi a Jerusalém, para a festa da Páscoa, teve uma intervenção aparatosa no
Templo, fez algumas observações provocatórias sobre o tema da autoridade e do «Reino» e foi
rapidamente eliminado. Esta descrição é perfeitamente razoável. As referências de Josefo a
outras figuras proféticas são compatíveis com carreiras muito curtas. Estes profetas prometiam
«sinais de salvação» no deserto, as massas seguiam-nos e os romanos enviavam tropas
rapidamente - que não precisavam de esperar por um processo formal perante um tribunal
judaico antes de usarem as suas espadas. (Sobre estes profetas, ver pp. 49 e segs.) Existem
outros indícios que tornam o ministério breve dos sinópticos mais credível do que o de João. Ao
que parece, Jesus era um pregador itinerante e os seus seguidores mais próximos abandonaram
as suas ocupações normais para estarem com ele. Há notícias de apoios exteriores (Lc 8, 1; ver
p. 109), contudo, o material não nos revela nada sobre o modo de vida do pequeno grupo, sobre
o local onde dormiam os seus membros e sobre quem pagava as despesas. (Jo 13, 29 afirma que
os membros do grupo juntavam dinheiro de uma maneira não especificada.) Esta ausência geral
de informação é um pouco mais fácil de explicar na hipótese de um ministério curto, baseado na
improvisação de meios. Um ministério mais longo implica mais organização e seria de esperar
encontrar mais vestígios desta nos
98
Evangelhos. (Sobre a vida errante, ver pp. 145-149.) O enquadramento dos sinópticos é pelo
menos tão plausível quanto o de João e, talvez, até um pouco mais convincente.
Esta discussão parece pressupor que temos de aceitar um dos dois: João (três festas da Páscoa;
purificação do Templo no início; processo informal) ou os sinópticos (uma festa da Páscoa;
purificação do Templo perto do fim, processo semiformal). É tentador alternar entre ambos,
com base na plausibilidade ou na probabilidade intrínseca, fazendo um compromisso na questão
da duração: um ministério de onze a vinte e cinco meses (compromisso); purificação do Templo
perto do fim (sinópticos); processo informal (João). No entanto, também temos de considerar
outra possibilidade: talvez nenhum dos autores soubesse nem o que aconteceu, nem quando
ocorreram os acontecimentos (exceto o processo e a crucificação, como é óbvio). É possível que
tivessem reunido pedaços de informações dispersas, a partir das quais construíram narrativas
credíveis que contêm uma grande quantidade de suposições. Ou talvez nem sequer se tenham
preocupado com a ordem cronológica, juntando o material de acordo com outro plano (por
exemplo, temático). A consequência teria sido, então, um espalhar completamente acidental de
indícios cronológicos que não permitiria tirar quaisquer conclusões razoáveis. A cena em
Marcos 2, 23-28, que ocorre no Verão, talvez nem sequer devesse estar colocada antes da cena
da Primavera em Marcos 6, 39; talvez se tenha passado no Verão seguinte e não no Verão
anterior. Nesta secção de Marcos (2, 1-3, 6), os textos estão ordenados por tema e é muito
possível que Marcos tenha colocado 2, 23-28 no seu lugar atual apenas porque é compatível
com o tema da secção (pequenos conflitos sobre a Lei, na Galileia).
Se desviarmos a nossa atenção do esquema narrativo para o conteúdo, verificamos que João e os
sinópticos voltam a ser muito diferentes.
1. Nos Evangelhos sinópticos, há muitas curas feitas por Jesus, algumas delas com um
significado central para a história, que consistem em exorcismos. Em João, não há exorcismos.
(Sobre o exorcismo e outros milagres, ver capítulo 10.)
2. Nos sinópticos, quando pedem a Jesus um «sinal» da sua autoridade, ele recusa-se a dá-lo
(Mc 8, 11 e segs.). Um dos aspetos mais salientes de João consiste numa série de «sinais» que
provam a posição e a autoridade de Jesus (10 2, 11. 23; 3, 2; 4, 4,8. 54; 6, 2.14; 7, 31; 9, 16;
11,47; 12,8.37; 20, 30).
99
3. O Jesus dos sinópticos pergunta aos discípulos quem pensam as pessoas que ele é (Me 8, 27),
mas não comenta explicitamente o assunto. Quando desafiado sobre a sua autoridade, limita-se
a perguntar qual era a autoridade de João Baptista, mas não diz nada sobre a sua (Mc 11, 27-33).
Em João, pelo contrário, o tema principal dos discursos de Jesus é a sua própria pessoa - a sua
posição, a sua identidade e a sua relação com Deus e com os discípulos. Estes temas não consti-
tuem o conteúdo de comunicações privadas aos seus íntimos, mas sim a substância do seu
ensinamento público.
4. O tema principal do material discursivo nos sinópticos é o Reino de Deus. Em João, este
termo só aparece uma vez (3, 3-5).
5. A diferença mais evidente talvez seja a do estilo do ensinamento. Nos sinópticos encontramos
discursos breves sobre diversos temas. Os únicos discursos substanciais consistem numa série
de ditos deste tipo. A outra forma literária predominante é a parábola, na qual se utiliza uma
história simples para afirmar algo sobre Deus e o seu Reino. A comparação exprime-se através
da expressão «é como»: o Reino de Deus é como a história que se segue. Literariamente, as
parábolas sinópticas baseiam-se numa comparação e muitas delas não são mais do que
comparações desenvolvidas. Em João, há discursos metafóricos inseridos no texto, aos quais
falta a palavra «como», pelo que não constituem comparações. O traço característico dos
discursos metafóricos de João consiste nos ditos que começam com a frase: «eu sou», como, por
exemplo, «Eu sou a videira verdadeira» (15, 1). Isto é uma metáfora na qual o autor identifica
Jesus com a realidade indicada pelo símbolo. A videira é um símbolo da vida; Jesus é a
verdadeira videira; portanto, Jesus é a vida. Ele não é corno qualquer coisa - neste caso, uma
videira -, ele é a única videira verdadeira. Assim, Jesus é também o pão (Jo 6, 35), isto é, o
único pão verdadeiro; todas as outras coisas a que se chama pão não passam de uma imitação
insignificante. Ao contrário do material de ensinamento dos sinópticos, em João não existem
histórias, nem ações que revelem a forma como Deus procede com as pessoas. Tal como não
existem comparações ou parábolas em João no sentido dos sinópticos, também não há metáforas
simbólicas nos sinópticos.
É impossível imaginar que Jesus tivesse passado o seu breve ministério a ensinar de duas
maneiras completamente diferentes e a transmitir conteúdos tão díspares e que houvesse
simplesmente duas
100
tradições, remontando a Jesus, transmitindo cada uma delas 50% daquilo que ele disse quase
sem sobreposições. Por isso, nos últimos 150 anos, os investigadores tiveram de escolher.
Concluíram quase unanimemente - e penso que de forma absolutamente correta - que os
ensinamentos do Jesus histórico se devem procurar nos Evangelhos sinópticos e que João
representa um desenvolvimento teológico no qual as meditações sobre a pessoa e a obra de
Cristo são apresentadas na primeira pessoa, como se tivessem sido proferidas pelo próprio
Jesus. O autor do Evangelho de João seria o primeiro a insistir que isto não significa que os
discursos que ele atribuiu a Jesus sejam «falsos»; ele concordaria tão pouco com a ideia de que
o rigor histórico e a verdade são sinónimos como com a ideia de que a verdadeira videira era um
vegetal. Na perspetiva de João, a «verdade», por definição, não é uma coisa que parece rigorosa.
A verdadeira água mata a sede para sempre, propriedade que a substância molhada que a água
parece ser não possui (Jo 4, 13).
João exprime, de uma maneira inequívoca, a sua própria visão do material de ensinamento
incluído no seu Evangelho (atribuindo-o, obviamente, a Jesus):
Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não as podeis compreender por agora. Quando o
Espírito da Verdade vier, há-de guiar-vos para a Verdade total, pois Ele não falará por si
próprio, mas há-de dar-vos a conhecer tudo quanto ouvir e anunciar-vos as coisas que estão para
vir. (Jo 16, 13.)
De maneira semelhante, em 14, 23, o autor de João diz que Jesus «virá» aos seus seguidores, no
futuro, e, em 14, 25, que o Espírito Santo «virá» e ensinar-lhes-á tudo. O autor revela que
escutou o Espírito da Verdade que veio a ele; este Espírito também pode chamar-se «Jesus».
João tem uma visão meta-histórica de Jesus: os limites da história comum eram inadequados e
Jesus ou o Espírito (não é possível distingui-los claramente) continuou a ensinar depois da
crucificação.
Todos os cristãos concordavam com João até certo ponto. O Senhor continuava a falar com eles
em visões e na oração, como já vimos. É de supor que algumas destas mensagens tenham
entrado nos Evangelhos sinópticos. Mas o autor de João foi mais longe: escreveu um Evangelho
baseado nesta premissa. Ele pensa que a sua obra contém
101
muitos ensinamentos do Espírito Santo, ou de Jesus, que «veio» ao autor depois da sua
crucificação e ressurreição, revelando-lhe verdades que os discípulos não tinham ouvido.
Uma vez concluído que devemos seguir os Evangelhos sinópticos no que diz respeito ao
ensinamento do Jesus histórico, qual é o impacto disto na questão do plano narrativo? A
sequência de acontecimentos em João está tão marcada pela teologia do autor como o seu
material discursivo? Há dois casos nos quais temos de dar uma resposta afirmativa a esta
questão. Já mencionámos que, segundo João, Jesus morreu numa sexta-feira, dia 14 de Nisan, e
não numa sexta-feira, dia 15 de Nisan, como afirmam os sinópticos. A razão para tal é que o
autor queria apresentar Jesus como o cordeiro pascal, que era tradicionalmente sacrificado no
dia 14 de Nisan. Na descrição da morte de Jesus, João escreve que os soldados não lhe
quebraram as pernas, tal como fizeram com os outros dois crucificados, visto que a Escritura (a
Bíblia Hebraica) (Ex 12,46) diz que: «Não se lhe quebrará um só osso» (lo 19, 36). Esta citação
refere-se ao cordeiro pascal (SI 34, 20; Ex 12,46; Nm 9, 12). Em João 1,36, Jesus é designado
como o «Cordeiro de Deus» e a comparação entre Jesus e o cordeiro determinou o dia em que
João situa a crucificação. À mesma hora em que os cordeiros pascais estavam a ser sacrificados
no Templo, o verdadeiro cordeiro de Deus morria fora das muralhas da cidade. Dada a estreita
ligação existente entre a data e a teologia de João, estamos inclinados a preferir os sinópticos,
concluindo que Jesus foi executado no dia 15 de Nisan.
O lugar onde João coloca a purificação do Templo também se deve atribuir, provavelmente, a
um motivo teológico. Os adversários de Jesus no Evangelho de João são «os judeus», os quais
fazem parte do mundo que é mau e que rejeita Jesus e os discípulos (Jo 1,9-13; 15, 18 e segs.).
A colocação do incidente no Templo quase no início do Evangelho condiz com este conflito
teológico. A vida pública de Jesus começa com um confronto grave entre ele e a religião judaica
tradicional.
Destas considerações resulta que não podemos afirmar nem que João só foi criativo nos
conteúdos relativos ao ensinamento, nem que ele dispunha de uma boa fonte para a sua narração
e que a seguiu fielmente. Gostaria de aceitar a descrição que João faz do julgamento de
102
Jesus pelas autoridades judaicas, porque é muito mais fidedigna do que o processo dos
Evangelhos sinópticos, mas seria arbitrário escolher esta parte, se não posso provar que Jo 18,
12 e segs. 24 se baseia numa boa fonte - e eu não posso prová-lo. É possível que João apenas
conhecesse melhor a realpolitik do que os outros evangelistas, portanto, que tenha escrito uma
história mais verosímil. O processo judaico descrito por João é parecido com os processos que
eram habituais na Judeia e nas outras províncias romanas governadas da mesma forma. Outra
questão é se se trata de uma descrição exata do que aconteceu em Jerusalém naquela noite
concreta.
Os Evangelhos sinópticos devem ser preferidos como fonte fundamental de informações sobre
Jesus. No entanto, os seus autores também eram teólogos e possuíam criatividade. Tal como não
podemos estabelecer uma alternativa absoluta entre os Evangelhos apócrifos, que são lendários
e mitológicos, e os Evangelhos históricos, canónicos (visto que os Evangelhos do Novo
Testamento também possuem elementos lendários e mitológicos), também não podemos traçar
uma linha de separação clara entre o Evangelho teológico de João e os sinópticos históricos,
visto que os Evangelhos sinópticos também são obra de teólogos. Não existe nenhuma fonte que
nos ofereça a «verdade nua e crua»; o «verniz» da fé em Jesus reveste tudo. Contudo, os
sinópticos não homogeneizaram o seu material, como fez João. As articulações e as costuras são
visíveis e os conteúdos são bastante diferentes. Não existe nada comparável à uniformidade dos
monólogos joanicos. Em resumo, os sinópticos não fizeram uma revisão do material tradicional
tão profunda como fez João.

Os Evangelhos sinópticos como biografias


Já vimos que os Evangelhos sinópticos são compostos de muitas peças, facilmente separáveis,
que foram reunidas pelos autores. Tomemos como exemplo deste trabalho editorial as
referências a tempos relacionados entre si. Marcos utiliza muitas vezes a palavra
«imediatamente» como ligação cronológica entre passagens:
1, 12 o espírito conduziu-o imediatamente ...
1,21 eles foram para Cafarnaum; e imediatamente no sábado ...
1, 25 ele saiu imediatamente da sinagoga e entrou em casa de Simão ...
103
É óbvio que existem variações: «nesse fim de tarde» (1, 32); «de manhã» (1, 35). a mais
frequente é não haver qualquer indicação cronológica:
1,39s ------------------------e foi por toda a Galileia... Um leproso veio ter com Ele ...
2,13 ------------------------- saiu de novo para a beira-mar .
3, 1 ------------------------- entrou novamente na sinagoga .
A utilização da palavra «imediatamente» constitui um artificio narrativo para dar dinâmica e
ritmo ao relato e funciona muito bem. Mas é impossível ultrapassar a sensação de que Marcos
reuniu factos e ditos dispersos. Não estamos perante uma biografia no sentido que nós damos à
palavra; raramente existe um enquadramento concreto da situação (como «isto foi importante
precisamente naquela altura, porque ... »); trata-se, simplesmente, de relatos curtos ligados uns
aos outros através de uma palavra ou de uma frase introdutória. a mesmo se passa,
aproximadamente, com Mateus e Lucas, que se basearam, provavelmente, em Marcos, apesar de
a estrutura dos seus Evangelhos ser mais complexa.
Os Evangelhos sinópticos não possuem a maior parte das coisas que esperamos encontrar, hoje,
na história da vida de alguém. a aspeto, a personalidade, o carácter - sabemos pouquíssimo
acerca disso. No que diz respeito a outras figuras que rodeiam Jesus, estamos completamente às
escuras. A Pilatos, curiosamente, Mateus e João atribuem alguns traços de personalidade e de
carácter, mas a maioria das outras figuras são muito insípidas. Ficamos a saber que Pedro era
um pouco insonso. Como era João? E Tiago? Não sabemos. E os fariseus? Aparecem em grupo,
insultam Jesus, por vezes, são insultados e voltam a desaparecer. a que pretendiam? Tinham
todos a mesma posição hostil em relação a Jesus? Para onde foram quando desapareceram? Se
pensavam que os discípulos de Jesus estavam a violar a lei do sábado (Mc 2, 24), porque não
apresentaram uma queixa, denunciando-os a um sacerdote (que os poderia ter multado, exigindo
que cada um deles apresentasse um sacrifício expiatório - duas aves - quando voltasse a
Jerusalém)?
Muitos dos leitores atuais nem sequer se apercebem de como os Evangelhos sinópticos são
episódicos, já que os cristãos tiveram quase 2000 anos para criar uma visão mais novelesca dos
acontecimentos e das pessoas que aparecem neles. Escreveram-se livros, fizeram-se filmes,
ofereceram-se explicações. Aos domingos, há muitos padres, pastores e catequistas que voltam
a contar algum aspeto do relato
104
evangélico, acrescentando-lhe personalidade e motivos. Judas, o discípulo que traiu Jesus, é
descrito frequentemente como um zelota desiludido, que desejava ver Jesus na liderança de uma
revolução, que se via a si próprio como um grande homem no Reino de Jesus e que ficou
profundamente irado quando percebeu que Jesus queria outro tipo de reino. 10 Isto dá cor e
drama à história. Os Evangelhos não dizem absolutamente nada sobre a ambição de Judas.
Talvez ele se tenha apercebido de que Jesus era um homem marcado e tenha decidido afastar-se
enquanto era tempo, ganhando também alguma coisa. Uma suposição é tão boa como a outra.
Maria Madalena também é uma figura imensamente atraente para as pessoas, que imaginaram
todo o tipo de coisas sobre ela: ela teria sido uma prostituta, muito bonita, apaixonada por Jesus,
e que fugiu para França à espera de um filho dele. Tanto quanto sabemos, a partir das nossas
fontes, ela tinha oitenta e seis anos, não tinha filhos e cultivava instintos maternos para com
jovens desalinhados.
Os cristãos começaram desde muito cedo a melhorar os relatos simples dos Evangelhos
inventando histórias. Os Evangelhos apócrifos estão cheios de incidentes românticos e de toques
encantadores, como, por exemplo, aquele que diz que, no estábulo onde nasceu Jesus, havia um
boi e um burro, adorando-o. Isto encontra-se num Evangelho escrito no século VIII ou IX,
conhecido atualmente como o Evangelho de Pseudo-Mateus. O autor tinha estudado o
Evangelho de Mateus e escreveu no mesmo estilo. Como prova para a autenticidade do seu
relato, cita a Escritura judaica, quando, na realidade, a sua informação tem origem na citação, tal
como acontece com Mateus. «O boi conhece o seu dono, e o jumento, o estábulo do seu senhor.
.. » (Is 1, S). A arte e a música utilizaram esta imagem viva, que é, provavelmente, tão
conhecida como as histórias sobre Jesus que se encontram, de facto, no Novo Testamento. A
única justificação para introduzir um boi e um burro na cena de nascimento é proporcionada por
este evangelho, cujo autor descobriu uma frase em Isaías que ainda não tinha sido usada para
fornecer informações sobre Jesus.
Tanta fantasia romântica foi desperdiçada nos Evangelhos durante tantos séculos que o leitor
atual nem sequer se apercebe imediatamente
105
da sua força. Acrescentamos automaticamente pormenores românticos, muitos dos quais são
conhecidos até das pessoas que nunca entraram numa igreja, nem leram a Bíblia. À exceção das
narrativas do nascimento em Mateus e Lucas, que já estão penetradas pelo interesse novelístico,
não encontramos muito mais no resto dos Evangelhos. As cenas são breves e centradas no
essencial. Isto significa, provavelmente, que foram concebidas precisamente para transmitir o
que pretendiam, tendo deixado de lado outras questões. É por isso que não podemos escrever
uma biografia de Jesus. Não temos cartas nas quais ele reflita sobre acontecimentos e apresente
a sua própria versão a um amigo próximo ou a um familiar; não temos diários escritos por
pessoas que o tivessem conhecido ou, sequer, ouvido falar nele; não temos jornais que nos
digam o que se passava em Cafarnaum no ano 29 e.c. Dispomos de um esboço genérico da sua
vida e, além disso, de breves histórias, ditos e parábolas, a partir das quais podemos ficar a saber
bastante, mas não podemos escrever «a vida de Jesus», no sentido moderno do termo; não
podemos descrever a educação de Jesus, traçar o seu percurso, analisar a influência dos seus
pais sobre ele, apresentar as suas reações a determinados acontecimentos, etc.
Por isso, um livro sobre Jesus não pode ser muito semelhante a um livro sobre Jefferson ou
Churchill (para regressar aos nossos primeiros exemplos). A nossa informação também é
deficiente em comparação com o material disponível sobre a maior parte dos grandes homens
do mundo greco-romano. Homens como Brutus, César, Pompeu, António e outros, eram
provenientes de famílias conhecidas, passaram uma grande parte das suas vidas em público e
rodearam-se de pessoas instruídas, que escreveram, por vezes, sobre eles ou sobre os
acontecimentos nos quais participaram. Plutarco, o biógrafo dos ricos e famosos daquele tempo,
em alguns casos, podia fazer algo muito parecido com uma biografia no sentido atual do termo,
embora nem sempre tivesse essa possibilidade. Quando a informação de que dispunha era
demasiado limitada para permitir um estudo cronológico que incluísse as vitórias, as derrotas e
semelhantes, produzia passagens muito curtas, introduzidas através de expressões tão
informativas como, por exemplo, «outra vez» ou «e». O leitor do estudo de Plutarco sobre Fócio
que não saiba o que se passava em Atenas no século IV a.e.c. fica perplexo. Pode ler
observações inteligentes sobre acontecimentos dispersos, mas não perceberá o seu alcance. É
nesta situação que os Evangelhos sinópticos nos colocam - a única diferença é que as pessoas
tiveram muito tempo
106
para preencher as lacunas e, ao que parece, uma quantidade inesgotável de energia e imaginação
às quais recorrer para tal.
Sou académico, um investigador e um historiador profissional por tendência e formação. Farei
tudo para preencher as lacunas e transformar as peças de que dispomos num todo coerente. Este
trabalho (o leitor já deve ter reparado) assemelha-se a uma cirurgia de reconstrução: é
necessário partir antes de reconstruir. No entanto, ao contrário do cirurgião, eu não tenho
nenhuma imagem inicial sobre o nosso objeto na sua aparência original. Nem tenho uma ideia
exata de qual deveria ser o seu aspeto depois da operação. Começo com os resultados das
intervenções da cirurgia plástica que visavam a glorificação do objeto e que nem sempre
respeitaram a colocação e o significado originais dos vários pedaços. O meu objetivo é
recuperar o Jesus histórico. Mas as dificuldades significarão sempre que os resultados, na
melhor das hipóteses, serão parciais. O título adequado para este projeto seria: «Informações
básicas sobre Jesus: aspetos importantes do que ele fez, do que ele pensou e daquilo que os
outros pensaram sobre ele.
A reconstrução da história deve ter sempre em conta o contexto e o conteúdo. Quanto melhor
for a correlação que conseguimos estabelecer entre ambos, mais compreenderemos. O motivo
pelo qual os políticos, entre outras pessoas, se queixam de ser citados fora de contexto é que o
contexto não é menos importante do que as palavras citadas. Jesus disse: «Amai os vossos
inimigos» (Mt 5, 44; Lc 6, 27). Quem eram os inimigos dos seus ouvintes? É frequente dizer-se
que eram os soldados romanos. Jesus queria dizer: amai os soldados romanos, e se eles vos
baterem, oferecei-lhes outra face. Mas não havia soldados romanos na Galileia (a não ser que
fosse em férias). Talvez o inimigo fosse o juiz da vila ou o maior proprietário de terra. Se o
presente livro fosse uma homilia, isto não teria grande importância. Numa homilia é possível
aplicar a frase «amai os vossos inimigos» a diversos casos, e o contexto original não precisa de
determinar o significado atual desta afirmação. No entanto, se queremos saber o que Jesus
pretendia, o que ele pensava, que tipo de relações o preocupavam, a que nível se dirigia às
pessoas - a nível nacional, local ou familiar - temos de conhecer tanto o contexto como as
afirmações. A nossa tarefa, em geral, consiste em procurar boas ligações entre as unidades de
que os Evangelhos sinópticos são compostos e o contexto da vida e da época de Jesus. Se
conseguirmos fazê-lo, ficaremos a saber muito sobre Jesus.
107

7. Dois contextos
Os contextos apresentam-se sob todas as formas e tamanhos. Sabemos, hoje, que vivemos num
Universo enorme que parece continuar a expandir-se. Entretanto, o nosso próprio planeta está a
encolher; é cada vez mais difícil encontrar nele um canto isolado. Biologicamente, nós, seres
humanos, somos mamíferos. Estes são os nossos próprios contextos gerais: somos formas de
vida, concretamente, mamíferos, que vivem num determinado canto de um vasto Universo. O
conhecimento destes contextos dá-nos uma perspetiva e, por vezes, uma informação muito
direta sobre o nosso comportamento. Os cientistas explicam frequentemente os comportamentos
que são comuns a todos os seres humanos, enquadrando-os no contexto do comportamento ani-
mal em geral: nós protegemos o nosso território, sopramos, inchamos e ficamos vermelhos
quando estamos enfurecidos, etc. Estas e outras reações aos perigos, bem como à hostilidade,
são explicadas através da referência a um contexto extremamente englobante: somos animais. A
sabedoria popular utiliza frequentemente uma técnica de explicação muito semelhante: «é a
natureza humana», diz-se, quando se quer explicar e, por vezes, também desculpar, as ações dos
indivíduos, que manifestam ganância, egoísmo e outras propriedades pouco simpáticas.
109
Também vivemos numa determinada parte do mundo, num determinado período da sua história.
As nossas cidades natais, concelhos, estados e países fornecem-nos um sem-número de
contextos. E, no nosso ambiente próximo, está a família, os amigos e os colegas. Estes
contextos ajudam-nos a sermos aquilo que somos e ajudam a explicar aquilo que fazemos.
Explicamos frequentemente comportamentos, como, por exemplo, a frieza, a gabarolice e a
gesticulação, atribuindo-os ao país ou ao país de origem da pessoa em causa: o britânico é frio,
o texano é gabarola, o italiano gesticula.
Os contextos próximos possuem uma força explicativa ainda maior. Apelamos à História muito
recente ou às situações em curso para compreender quase tudo. Para explicar que o meu pulso
acelera quando estou excitado tenho de procurar um contexto muito abrangente; mas só um
contexto muito próximo pode explicar por que razão o meu pulso fica acelerado em
determinado momento. Também existem muitos contextos intermédios. Por exemplo, nos
últimos tempos, os Estados ocidentais deixaram de construir armas que podiam destruir a União
Soviética para começarem a dar ajudas a algumas das regiões da mesma. Esta mudança é fácil
de compreender à luz da História recente. Se, séculos mais tarde, alguém descobrir apenas
ambos os factos da produção de armas e das ajudas, terá de deduzir que o contexto mudou. Mas
as democracias ocidentais aproximaram-se politicamente da União Soviética? Ou foi o
contrário? Sem conhecer o contexto, não sabemos, normalmente, o que se passa ou o
significado de um acontecimento. Há, no entanto, algumas ações que oferecem indicações rela-
tivas ao seu próprio contexto ou (o que é, provavelmente, mais habitual) que nos dão dois ou
três contextos diferentes a escolher.
Os ideais e as ideologias também criam contextos, isto é, contextos que nós temos sempre
presentes, na nossa cabeça. Estes contextos são muito mais complicados, visto que não
consistem em acontecimentos e lugares, mas sim em constructos mentais. Isto torna-os, a eles e
aos seus efeitos, muito mais difíceis de estudar, visto que não podemos ler as mentes. No
entanto, estes contextos existem e exercem poder sobre as ações humanas. Para dar um
exemplo: os americanos podem encontrar uma justificação para uma guerra perante si próprios
se a conseguirem associar à ideologia nacional dominante: a aspiração à liberdade e à
democracia. Se um governo dos EUA quer empenhar-se militarmente, em geral, tenta enquadrar
o seu procedimento no contexto da ideologia americana. É muito mais difícil vender à opinião
pública guerras
110
que têm por objetivo a defesa de interesses económicos. Isto é, muitos americanos possuem um
contexto ideológico no qual existe lugar para a guerra. Se a guerra não couber nesse contexto
específico, eles têm dificuldades em encontrar um outro contexto que a justifique. Não é preciso
dizer que, por vezes, as pessoas se enganam a si mesmas e os líderes procuram iludir
deliberadamente a opinião pública por causa daquilo que consideram ser interesse nacional
superior. A manobra de ilusão prova, em ambos os casos, a força da ideologia. Os contextos
ideológicos deste tipo são interessantes do ponto de vista histórico: podemos ver
retrospetivamente como as pessoas consideraram uma determinada ação adequada ao contexto
em causa, o que explica o seu comportamento. As formas ideológicas de perspetivar o futuro
oferecem um contexto que ajuda a configurar o comportamento aqui e agora. Se eu considero
que a liberdade e a democracia estão ameaçadas, talvez esteja mais disposto a entrar em guerra
do que quando penso que o que está em causa são os lucros de algumas grandes indústrias.
Compreenderíamos Jesus muito melhor se soubéssemos tudo sobre o seu mundo e a sua
História, incluindo o que as pessoas do seu tempo pensavam e quais eram os seus ideais.
Necessitamos de um conhecimento maior dos contextos do que aquele que nos foi oferecido
pelos capítulos iniciais deste livro. Também ajudaria se pudéssemos desvendar as circunstâncias
precisas em que os Evangelhos foram escritos. Neste capítulo, porém, pretendo esclarecer
apenas os dois contextos que nos serão mais úteis para a compreensão dos Evangelhos e da pes-
soa de Jesus. O primeiro consiste no enquadramento teológico (ou ideológico) nos quais os
Evangelhos sinópticos, sobretudo Mateus e Lucas, inserem a história. A maior parte dos
primeiros cristãos partilhavam esta conceção, mas eu gostaria de limitar o debate aos Evan-
gelhos sinópticos, ainda que fazendo algumas referências a Paulo, a título de mais um exemplo.
O segundo contexto é aquele que nos é fornecido pelo nosso conhecimento daquilo que
aconteceu imediatamente antes de Jesus ter iniciado a sua missão e imediatamente depois do
termo desta: o contexto imediato da sua vida pública.

O contexto teológico: história da salvação


Os Evangelhos apresentam Jesus como a pessoa que cumpre as esperanças de Israel e através da
qual Deus salvará o mundo. Isto é,
111
colocam-no no contexto da «história da salvação», tirada diretamente da Bíblia Hebraica e
adaptada. Esta história é a seguinte: Deus chamou Abraão e os seus descendentes, deu-lhes a
Lei, através de Moisés, estabeleceu Israel como reino no tempo de Saul e de David e castigou
Israel pela sua desobediência, através do exílio; Deus erguerá novamente o Seu povo, um dia, se
for necessário, através da derrota dos seus opressores na guerra; muitos gentios converter-se-ão
a Ele, adorando-o. Este esquema consiste num constructo teológico judaico e está implícito nos
Evangelhos, no entanto, estes expandem-no e alteram-no ligeiramente. Os Evangelhos foram
escritos com pleno conhecimento de que o movimento de Jesus se difundiu muito mais
rapidamente entre os gentios do que entre os judeus. Por isso, privaram o esquema de alguns
elementos judaicos, enfatizando a rejeição parcial de Jesus por parte dos judeus e a sua
aceitação por parte de alguns gentios.
No entanto, o plano de salvação como tal é-nos muito conhecido da literatura bíblica, bem como
de outras fontes judaicas. Há passagens de Isaías, por exemplo, que profetizam que os gentios
acabarão por se converter ao Deus de Israel, sendo, assim, salvos (p. ex., Is 2, 2S). A inclusão
dos gentios, apesar de ser reforçada no cristianismo, não era novidade. É de notar que este plano
teológico é, em parte, passado e, por outra parte, futuro. No passado, Deus chamou Abraão e os
restantes; no futuro, Ele salvará o Seu povo, assim como os gentios. Os judeus podiam explicar
a sua História vendo-a à luz desta ideologia. Quando sofriam, podiam dizer que Deus os
castigava, mas que os recompensaria mais tarde; se viviam uma fase de esplendor, era porque
Deus estava a cumprir a Sua promessa; quando estavam numa fase mediana, era porque Deus
lhes estava a dar um antegosto da redenção plena. Estas estratégias de explicação dos
acontecimentos, inserindo-os num enquadramento ideológico mais amplo, podiam ser utilizadas
sempre para explicar o acontecimento do momento, como é óbvio. O esquema teológico existia
e podia ser explorado. Se acontecia algo dramático, qualquer um podia levantar-se e dizer:
«Vede, isto faz parte do plano grandioso de Deus. Chegou o tempo da nossa salvação.»
112
Duvido que tenha havido muitos judeus a conceberem os acontecimentos do momento como
pontos decisivos da história de salvação, a não ser que se tratasse de acontecimentos tão
importantes como a destruição de Jerusalém por Roma, no ano de 70 e.c. Alguns judeus tinham
mais tendência para encarar as coisas que aconteciam à sua volta como uma parte importante do
plano divino, outros, menos. Felizmente, não precisamos de ser capazes de fazer contagens;
basta sabermos que existia um enquadramento ideológico ou teológico que permitia às pessoas
registar os acontecimentos do momento e perceber o seu sentido, apresentando-os como parte de
um plano divino mais amplo.
Para os primeiros cristãos, Jesus desempenhava um papel importante - aliás, decisivo - no
quadro da história de salvação judaica. Paulo, por exemplo, pensava que tinha chegado o tempo
de converter os gentios ao Deus de Israel e que este chamamento constituía a sua própria missão
especial. Os autores dos Evangelhos também aceitavam este esquema. Isto implicava que eles
sublinhassem determinados momentos na História de Israel, momentos esses ocorridos séculos
antes. Mateus e Lucas concentram-se - de formas e em graus diferentes - nas grandes fi uras
desta _História, como precursores ou antepassados de Jesus: Abraão, Moisés e David.
Segundo Mateus, Jesus era descendente de Abraão e de David (Mt 1, 1). O seu nascimento
cumpriu a profecia segundo a qual o Senhor de Israel nasceria em Belém, a cidade de David (2,
6). Na primeira cena do período adulto da vida de Jesus, no Evangelho de Mateus, João Baptista
avisa os seus ouvintes para que não confiem na sua descendência de Abraão (3, 9; também Lc 3,
8). Mateus identifica o Baptista com Elias, um profeta israelita cujo regresso era esperado por
alguns (17, 2 e segs.; cf Mc 9, 13).3 No Reino futuro, pessoas vindas do Oriente e do Ocidente
sentar-se-ão à mesa com Abraão, Isaac e Jacob (8, 11; cf. Lc 13, 28; para a imagem ver também
Lc 16, 29; 16, 31). No sermão da montanha, Jesus completa e corrige a Lei
113
de Moisés (5, 21-42). Alguns dos discípulos têm uma visão na qual ele conversa com Moisés e
Elias (Mt 17, 1-8; também Me 9, 2-8. 28- 36). Quando Jesus entra em Jerusalém, alguns
aclamam-no como «Filho de David» (21, 9). No seu ensinamento, Jesus discute se o Messias
deve ou não ser um filho de David e, ao que parece, argumenta que não (22, 41-45; assim como
Me 12, 35-37; Lc 20, 41-44). As pessoas que necessitam de ajuda chamam-lhe «Filho de David
(15, 22; 20, 30 e segs.; assim como Mc 10, 47 e segs.; Lc 18, 38 e segs.). Nas passagens em que
a relação entre Jesus e Moisés, Abraão e David é parcialmente negativa, por exemplo, quando
Jesus corrige a Lei, o enquadramento continua a ser o mesmo: Mateus situa Jesus no contexto
da história de salvação judaica.
Lucas partilha algumas destas passagens, mas também tem outras. Quando João Baptista nasce,
o seu pai lembra-se do juramento que Deus fez a Abraão, prometendo a salvação de Israel (Lc 1,
73 e segs.). Um anjo profetiza que Deus dará a Jesus «o trono do seu pai David» (1, 32); Jesus
reinará eternamente «sobre a casa de Jacob» (1, 33). Lucas sublinha que o local de nascimento
de Jesus é a «cidade de David» (2, 4; 2, 11). No relato da ressurreição no Evangelho de Lucas,
Jesus interpreta para os seus discípulos as passagens da Leis de Moisés e os escritos dos
profetas que lhe dizem respeito (24, 27; 24, 44).
Marcos não possui uma narrativa do nascimento, pelo que existe menos oportunidade de
discutir a genealogia de Jesus; no entanto, este Evangelho também é situado no contexto da
História judaica da salvação, como vemos nas referências a Marcos no parágrafo sobre Mateus.
Além disso, os Evangelhos estão todos profundamente marcados por palavras, frases e motivos
bem conhecidos na Escritura judaica.
Todos sabem que o Novo Testamento se segue ao Antigo Testamento. Um acaba e o outro
começa. É assim que os Evangelhos apresentam a situação. Os autores dos Evangelhos fazem
um trabalho tão bom neste como em outros casos que nem sequer reparamos como o seu ponto
de vista é surpreendente. A história é extremamente seletiva, os acontecimentos decisivos
aparecem com grandes intervalos uns entre os outros e as pessoas esquecem frequentemente que
há séculos de distância entre os vários acontecimentos. Mais ainda: há
114
vários séculos que desaparecem completamente; o leitor da Bíblia protestante tem pouquíssima
informação sobre o período entre 400 e 4 a.e.c., o leitor da Bíblia católica dispõe de um pouco
mais." Um historiador normal esperaria que as pessoas que pensavam que Jesus era «rei»
discutissem a sua figura à luz de reis mais recentes do que David - Herodes, por exemplo, ou
um dos Asmoneus. O número dos séculos não desempenha qualquer papel na história da
salvação, visto que é Deus que governa. Segundo uma cronologia bíblica tradicional (que data a
criação no an;-de 4004 a. C.), Deus chamou-Abraão em 1921 a. C., enquanto Moisés libertou os
israelitas do Egipto por volta de 1500 a. C. e David estava na época áurea do seu poder em 1030
a. C. Estes foram o; principais antecessores de Jesus na história &salvação. Um paralelo da
atualidade para o tratamento que os Evangelhos dão a Jesus seria descrever Isabel II da
Inglaterra dizendo que ela é a herdeira do trono de Guilherme, o Conquistador, que ela cumpre a
promessa do rei Artur e que ela é o que o seu nome implica: uma segunda Isabel, portanto, a
imagem de Isabel I - e fazê-lo sem a mínima referência ao derrube de Carlos I por Cromwell, à
restauração de Carlos II, à revolução sangrenta que levou Guilherme de Orange e Maria ao
trono da Inglaterra, processo através do qual o rei se tornou dependente de um governo eleito,
etc.
O historiador atual quer saber em que circunstâncias Jesus operou, porque teve sucesso umas
vezes e outras vezes fracassou, porque evoluiu o cristianismo assim, etc. Os Evangelhos
respondem: Deus decidiu completar agora um processo de salvação que iniciou com o
chamamento de Abraão. É difícil a um historiador estudar o plano de Deus. Retomando a nossa
analogia, suponhamos que alguém que está absolutamente convencido de que Isabel II cumpre
as promessas de grandeza futura contidas nas histórias do rei Artur, de Guilherme, o
Conquistador, e de Isabel I, escreveu uma biografia de Isabel II
115
baseada parcialmente em histórias sobre os seus antecessores. É neste ponto que a nossa
analogia começa a ceder, visto que sabemos tanto sobre Isabel Il. Ninguém acreditaria num
autor que afirmasse que ela é virgem (como Isabel I), que a sua espada se chama Excalibur
(como a de Artur) e que a sua língua materna é o francês (como era o caso de Guilherme, o
Conquistador). É certo que o nosso suposto autor poderia estabelecer autênticos paralelos para
fundamentar a sua comparação: hoje, há problemas com os irlandeses, tal como no tempo de
Isabel I; Isabel II sabe francês. Mas estes paralelos não nos provariam que outros aspetos do
reinado de Isabel I ou de Guilherme, o Conquistador, forneçam informações sobre Isabel Il.
Os autores dos Evangelhos fornecem-nos este tipo de informações sobre Jesus, informações que
se baseiam na suposição de que ele cumpriu as profecias bíblicas. Isto não significa que eram
historiadores desonestos. Eles nem sequer eram historiadores, a não ser acidentalmente (apesar
de Lucas ter algumas características de um historiador helenista). Nem eram desonestos.
Acreditavam que Jesus cumpriu, realmente, as promessas da Escritura Hebraica. Se o fez num
caso, então, provavelmente, também o fez em outros casos. Existiam algumas correspondências
autênticas e isto facilitou aos primeiros cristãos acrescentarem novos factos derivados da
Escritura Hebraica. Este processo ainda estava a decorrer na fase do pseudo-Mateus, que lê em
Isaías que o boi e o burro conhecem o seu senhor e que, por esta razão, acrescentou estes
animais à cena do nascimento (acima, p. 75).
Uma forma de interpretação e de utilização da Bíblia é designada na linguagem técnica como
«tipológica». Uma pessoa ou um acontecimento na Escritura hebraica constitui um «tipo» no
sentido de um arquétipo ou de um protótipo. Mais tarde, algo ou alguém constitui o
cumprimento do tipo e o acontecimento original fornece informações sobre o seguinte. Paulo
utiliza este termo: o povo que saiu do Egipto conduzido por Moisés, mas que, depois, pecou e
foi castigado com a morte, é «um tipo para nós», um «tipo» para nos servir de aviso, para que
não pequemos da mesma forma (1 Cor 10, 1-12).
116
«Estas coisas aconteceram-lhes como um tipo e foram escritas para nosso ensinamento» (1 Cor
10, 11). A perspetiva evangélica da promessa e do seu cumprimento funciona de uma maneira
bastante semelhante.
Esta visão da História constituiu uma grande ajuda para os autores dos Evangelhos. Ela
permitiu-lhes preencher algumas lacunas na história de Jesus. Foi a existência de paralelos
autênticos entre João Baptista e Jesus, por um lado, e figuras e profecias bíblicas, por outro
lado, que os colocou, provavelmente, neste caminho. Quero dizer com isto que, por vezes, os
judeus do século I decalcavam propositadamente os seus atos dos atos das figuras bíblicas. É
bem possível que João Baptista se vestisse, de facto, como Elias e que Jesus tivesse entrado em
Jerusalém montado num burro, evocando conscientemente uma profecia de Zacarias (ver Mt 21,
4 e segs. onde Zacarias é citado). Existem provas de que, na década posterior a Jesus, houve
outros profetas que agiram intencionalmente de formas evocativas de histórias bíblicas,
ocorridas séculos antes deles (atrás, p. 49 e segs.). Não foram só Mateus, Marcos e Lucas que
consideraram a história da salvação de Israel como o verdadeiro contexto de Jesus e Paulo não
foi o único judeu do século I que pensou em termos de «tipos» e de cumprimento; outros,
incluindo, muito possivelmente, Jesus, pensavam da mesma forma.
Quanto mais paralelos havia entre Jesus e as personagens ou profecias da Escritura Hebraica,
maior era a prontidão de Mateus, Marcos e Lucas para inventar ainda mais. Eles podem ter
pensado que, se havia seis semelhanças, provavelmente, havia uma sétima. Penso que não há
dúvida de que eles inventaram alguns paralelos, apesar de, em certos casos, a possibilidade de
correspondências ou de Jesus ter imitado conscientemente tipos escriturísticos significar que,
muitas vezes, não podemos ter a certeza. Os exemplos mais evidentes destas invenções
encontram-se nas narrativas do nascimento. Mateus e Lucas escrevem que Jesus nasceu em
Belém, mas cresceu em Nazaré. Isto reflete, provavelmente, dois tipos de «factos»: na história
vulgar, Jesus era de Nazaré; na perspetiva da história da salvação, o redentor de Israel tinha de
ter nascido em Belém, a cidade de David. Os Evangelhos têm formas completamente diferentes
e irreconciliáveis de deslocar Jesus e a sua família de um local para o outro. Apresento em
colunas os resumos das passagens em causa:
117
Mateus 1,18-2,23 Lucas 2,1-39
Quando Jesus nasceu, um anjo disse-lhes para César Augusto exigiu que todos os homens
fugirem, porque Herodes, que tinha ouvido («todo o mundo») se recenseassem para fins
que havia de nascer um novo rei, planeava fiscais e que se registassem na terra natal dos
matar todos os recém-nascidos do sexo seus antepassados.
masculino.
José era descendente de David e, portanto, foi
Eles refugiaram-se no Egipto e, depois da a Belém, levando Maria consigo. Durante a
morte de Herodes, voltaram ao seu lar em sua estadia naquela cidade, Maria deu à luz
Belém. Mas encontraram ali outro Herodes Jesus.
(Arquelau), por isso, mudaram-se para Nazaré Quando ela estava em condições de viajar, a
na Galileia (onde havia um terceiro Herodes, família regressou ao seu lar, em Nazaré.
Antipas).

É impossível que ambas as histórias sejam corretas. É improvável que alguma delas o seja.
Concordam apenas em dois «factos»: na História real, Jesus era de Nazaré; na história da
salvação, ele tinha de ter nascido em Belém. Não existe concordância na questão do domicílio
original da família, assim como na mudança desta de um local para outro. O esquema de Lucas
é fantástico. Segundo a genealogia do próprio Lucas (3, 23-38), David tinha vivido quarenta e
duas gerações antes de José. Que razão teria José para se registar na cidade natal de um dos seus
antepassados quarenta e duas gerações antes dele? O que pretendia Augusto, o mais inteligente
de todos os imperadores? Com um decreto deste tipo, o Império Romano teria ficado
completamente às avessas. Além disso, como saberia um homem para onde deveria ir?
Ninguém podia recuar na sua genealogia até à quadragésima segunda geração e, mesmo que
pudesse fazê-lo, descobriria que tinha miríades de antepassados (o número ascende já a um
milhão depois da vigésima geração). E, naquela altura, David tinha, certamente, dezenas de
milhares de descendentes. Era possível identificá-los a todos? Se fosse, como poderiam eles
registar-se todos numa pequena aldeia? É óbvio que é possível rever o que Lucas escreveu, de
modo a ser um pouco menos fantástico: César decretou, de facto, que determinados varões que
acreditavam ser
118
descendentes de família real de cada um dos reinos do império se registassem desta forma. No
entanto, esta revisão não resolveria o problema, As pessoas refugiam-se neste tipo de revisões
para salvarem o texto: o texto tem de ser verdade e, se o revirmos, podemos continuar a afirmar
que ele é verídico. Mas a revisão mina o princípio. É que a proposta segundo a qual só os
membros das famílias reais tiveram de se registar nas suas terras natais ignora o facto de, na
Palestina, haver uma família real no poder: a de Herodes. Augusto apoiava Herodes. Ele não
teria pedido a membros de uma família real que não estava no poder havia mais de 500 anos e à
qual se tinham seguido duas outras dinastias (os Asmoneus e os Herodinianos) para se
recensearem de acordo com um processo especial. Ele não teria querido a tensão social que a
revivescência das esperanças de um reino de David teria gerado.
Não é razoável pensar que houve, sequer, um decreto que exigisse às pessoas que viajassem a
fim de se registarem para fins fiscais. O recenseamento de Lucas levanta muitas dificuldades.
Uma das dificuldades consiste no facto de Lucas datar o recenseamento no tempo próximo da
morte de Herodes (4 a.e.c.), bem como dez anos mais tarde, quando Quirino era legado da Síria
(6 e.c.). Sabemos através de Josefo, sendo a informação confirmada por uma inscrição antiga,
que, no ano 6 e.c., quando Quirino era legado, Roma realizou de facto um recenseamento das
pessoas que viviam na Judeia, em Samaria e na Idumeia - mas não na Galileia e não pedindo-
lhes que viajassem. Maria e José, que, de acordo com Lucas, viviam na Galileia, não teriam sido
afetados pelo recenseamento de Quirino, que só abrangeu a população que vivia em ambas as
províncias romanas da Judeia e da Síria. Galileia (como foi descrito no terceiro capítulo) era
independente e não uma província romana. Além disso, o objetivo dos recenseadores da
Antiguidade era verificar quem possuía bens imobiliários sujeitos a impostos. Isto significava
que não eram os contribuintes que tinham de viajar, mas sim os recenseadores. É possível que
Lucas tenha misturado as duas datas porque houve motins tanto depois da morte de Herodes, no
ano 4 a.e.c., como durante o censo no ano de 6 e.c. Isto é um erro histórico relativamente
insignificante para um autor antigo
119
que trabalhava sem arquivos ou sem um calendário oficial sequer e que viveu oitenta anos
depois do período sobre o qual escreveu. A explicação mais provável para o relato de Lucas é a
seguinte: Lucas ou a sua fonte combinaram por engano o ano 4 a.e.c. (a morte de Herodes) com
o ano 6 e.c. (o censo de Quirino); quando «descobriram» um censo na época da morte de
Herodes, decidiram criar o acontecimento, justificando, assim, a viagem de José da sua cidade
natal, Nazaré, para Belém." De qualquer modo, a verdadeira fonte para a opinião de Lucas de
que Jesus tinha nascido em Belém era, quase com certeza, a convicção de que Jesus cumpriu a
esperança de que, um dia, haveria de aparecer um descendente de David para salvar Israel.
Zacarias tinha profetizado que Deus «levantaria um chifre de salvação para nós, na casa do seu
servo David» (citado em Lc 1, 69); Jesus era esse «chifre de salvação»; portanto, Jesus nasceu
na cidade de David.
A história de Mateus é mais verosímil. Herodes era impiedoso, matando as pessoas quando
pareciam constituir uma ameaça para o seu reinado, incluindo (como vimos) a sua esposa
preferida e os seus dois filhos, assim como um filho de uma outra sua esposa. Será que ele
mandou realmente «matar todos os meninos de Belém e de toda a região que tinham de dois
anos para baixo» (Mt 2, 16)? É improvável. Josefo narra uma série de histórias sobre a
crueldade de Herodes, mas não esta. É provável que Mateus tenha ido buscar esta informação à
história do Êxodo (1, 21 e segs.), segundo a qual Moisés, em criança, esteve ameaçado por uma
ordem semelhante do faraó egípcio. Mateus viu em Jesus um segundo Moisés, superior ao
primeiro (assim como o filho de David) e apresentou uma parte considerável dos seus capítulos
iniciais nos termos das histórias sobre Moisés. O relato da fuga para o Egipto e do regresso
lembra ao leitor a História de Israel e do êxodo do Egipto. Mateus cita uma afirmação de
Oseias: «Do Egipto chamei o meu filho» (Mt 2, 15). Isto referia-se originalmente a Israel como
filho (coletivo) de Deus que Moisés retirou do Egipto (note-se a forma passada).
120
Mateus aplicou a citação a Jesus, que ele considerava o Filho de Deus e a afirmação em Oseias,
que fazia alusão ao êxodo no tempo de Moisés, era, provavelmente, a única fonte que Mateus
tinha para a sua história sobre Jesus e a sua família. Em Mateus 5, Jesus sobe a uma montanha
(tal como Moisés, quando recebeu a Lei) e fala sobre alguns dos Dez Mandamentos e sobre
outras passagens da Lei de Moisés (Mt 5, 21-48). Há uma secção do seu Evangelho em que
Mateus coloca dez milagres (Mt, 8-9), talvez para lembrar os dez milagres de Moisés no Êxodo
7,8-11; 10. Os três sinópticos dizem que Jesus ficou quarenta dias no deserto, em parte, para
recordar os quarenta anos de permanência no deserto, no tempo de Moisés. Estes paralelos com
Moisés tornam ainda mais provável que Mateus tenha tirado elementos da narrativa do
nascimento das histórias sobre Moisés. Podemos verificar que Lucas, ao contrário de Mateus,
não atribuiu a Moisés a importância de um «tipo», de um percursor de Jesus. A sua narrativa do
nascimento concentra-se exclusivamente em David e sublinha que as afirmações que Mateus
coloca no sermão da montanha foram feitas numa planície (6, 17). Em Lucas, Jesus não é um
segundo Moisés. Lucas e Mateus concordam que Jesus se enquadra na história da salvação
judaica, mas discordam quanto aos pormenores. Lucas pensava que Jesus tinha cumprido as
profecias judaicas e que era o filho de David prometido, mas não o via como um novo Moisés.
As narrativas do nascimento constituem um caso extremo. Mateus e Lucas utilizam-nas para
situar Jesus na história da salvação. Parece que eles tinham pouquíssimas informações históricas
(no nosso sentido do termo) sobre o nascimento de Jesus e, por isso, seguiram uma das outras
suas fontes, isto é, a Escritura judaica. Não existe mais nenhuma parte significativa dos
Evangelhos que dependa tanto da teoria de que a informação sobre David e Moisés pode ter
sido, pura e simplesmente, transferida para a história de Jesus. Mas temos de constatar que os
primeiros cristãos consideravam que isto era algo perfeitamente legítimo. Do seu ponto de vista,
era legítimo. Na perspetiva deles, Deus tinha planeado tudo: o chamamento de Abraão, a vida
de Moisés, o êxodo do Egipto, o reino de David, a vida de Jesus. Eles também pensavam que
Deus dava indicações antecipadas - sinais, presságios, profecias - daquilo que iria fazer.
Estavam convencidos de que Deus tinha enviado Jesus para salvar o mundo e, portanto,
pensavam que Ele tinha dado indicações prévias
121
sobre aquilo que pretendia fazer e que os seus profetas o tinham profetizado. Muitos outros
escritores judeus do século I pensavam da mesma forma.
Mas havia limites, tanto na redação dos Evangelhos, como na restante literatura judaica. Os
Evangelhos estão cheios de ecos da Escritura judaica, mas, apesar disso, ninguém confundiria o
Jesus dos Evangelhos, nem com Moisés, nem com David. Apesar de a história de Jesus, tal
como Mateus a conta, apresentar uma série de paralelos com as histórias sobre Moisés, também
existem diferenças evidentes. Jesus não trouxe tábuas de pedra da montanha; não casou, como
Moisés, não contou com o apoio do seu irmão, como Moisés com o de Aarão, não viveu 120
anos; não morreu sozinho. Os Evangelhos também afirmam a existência de uma ligação entre
Jesus e David, mas não apresentam Jesus, de maneira nenhuma, como David. Não existem
paralelos reais: não existem equivalentes para Saul, Jonatan, Betsabé ou Absalão, e Jesus
também não é um grande guerreiro.
Os Evangelhos não representam, de maneira alguma, um caso único de adaptação das
esperanças tipológicas judaicas a circunstâncias diferentes. Pelo contrário, houve outros
escritores do tempo que invocaram a história da salvação utilizando nomes e títulos do passado,
mas fazendo, simultaneamente, alterações substanciais. Apresentarei aqui dois exemplos aos
quais voltaremos mais tarde, uma vez que envolvem os títulos de «Messias» e de «Filho de
David». Um hino escrito por volta de 63 a.e.c., no tempo da conquista de Jerusalém por
Pompeu, anseia pelo momento em que um filho de David purificará Jerusalém dos ímpios. No
entanto, este futuro Filho de David «não confiará em cavalo, cavaleiro e arco, nem juntará ouro
e prata para a guerra. Tão-pouco fomentará numa multidão a esperança de um dia de guerra».
(Salmos de Salomão, 17, 33.) Isto significa que ele será completamente diferente do próprio
David. A seita conhecida através dos Rolos do Mar Morto também esperava duas figuras
messiânicas, das quais um seria um descendente do sacerdote Aarão e o outro descendente de
David. O filho de David parece não ter qualquer função, enquanto a autoridade estará nas mãos
do Messias sacerdotal. Segundo um dos rolos (A Guerra entre os Filhos da Luz e os Filhos das
Trevas), haverá uma grande batalha e os Filhos da Luz combaterão os Filhos
122
das Trevas. O Messias davídico não desempenha qualquer papel na guerra. Os sacerdotes, sim;
tocam trombetas e dão ordens. Um exército recrutado das doze tribos de Israel traz estandartes e
marcha de um lado para o outro. Mas a batalha real é travada por anjos e o golpe final é dado
pelo próprio Deus. Portanto, havia outros judeus que esperavam um Messias da casa de David
que não levavam esta expectativa ao ponto de descreverem a figura futura em termos derivados
das histórias bíblicas sobre David. O título - «Messias» ou «Filho de David» - era a única
ligação existente entre ambos.
Os judeus que esperavam um futuro melhor queriam relacioná-lo com o seu passado, com a
história da relação de Deus com Israel, por isso, utilizavam nomes e títulos que eram
importantes na Bíblia. Mas os tempos tinham mudado. Os romanos seriam muito mais duros do
que os cananeus e os filisteus e os judeus sabiam que precisavam da ajuda de um exército
celeste. Um David não era suficiente. Mais: havia muitos judeus no tempo de Jesus que não
queriam uma monarquia. Embora alguns de entre eles, como, por exemplo, os membros da seita
do Mar Morto, ainda falassem de «David», nem mesmo eles pareciam já interessados neste tipo
de monarquia. Os reis tinham tendência para ser ditadores e a seita do Mar Morto preferia uma
forma de governo mais democrática ou teocrática.
Por conseguinte, quando os autores dos Evangelhos situam a história de Jesus no contexto da
história da salvação judaica, utilizam motivos da Escritura, sobretudo motivos relacionados com
Abraão, Moisés e David, mas não modelam o seu próprio Messias à luz destas personagens
bíblicas. É óbvio que se conservou algo do Jesus verdadeiro e os autores introduziram também
os seus próprios ideais, que parecem ser bastante diferentes dos ideais do Génesis, do
Deuteronómio, do 2 Samuel ou do 1 Reis. Eles pensavam que Jesus tinha ultrapassado Moisés e
que era um tipo de rei completamente diferente de David. Por isso, Jesus não representa
nenhuma reprodução «em papelão» de Moisés ou de David.
Também não existem quaisquer indícios seguros que nos digam quando uma passagem nos
Evangelhos foi inventada como um para- lelo com uma fase anterior da história da salvação,
quando uma passagem
123
foi trabalhada para poder servir realmente como um paralelo e quando o próprio Jesus (ou João
Baptista) criaram intencionalmente uma reminiscência. Temos de estudar o material, de
examinar até que ponto o paralelo é estreito e de utilizar o senso comum. No entanto, nunca
devemos esquecer que o objetivo dos autores não era escrever história académica. É
perfeitamente razoável que tentemos obtê-las deles, mas não podemos esperar que eles
colaborem connosco. Eles queriam convencer os leitores de que Jesus cumpriu as promessas
que Deus tinha feito a Israel. Estas promessas incluíam não só a redenção do povo de Israel,
mas também a salvação dos gentios. Os Evangelhos descrevem Jesus como o salvador do
mundo inteiro, mas ele é um salvador universal que pertence à história da salvação judaica.
Os autores queriam convencer os seus leitores de que Jesus era o redentor judaico universal
porque acreditavam que isto era absolutamente verdade. Isto não impede que, tal como vimos,
eles discordem em pontos importantes (como, por exemplo, na questão de saber se Jesudevia ou
não ser compreendido como o cumprimento do «tipo» mosaico). Esta divergência de opiniões é
esclarecedora para o historiador. Seria insensato da parte de um historiador discutir se o Jesus
histórico era ou não uma reminiscência de Moisés, assim como ter esperança de poder resolver
este problema através de uma comparação entre Mateus e Lucas. Mateus atribuiu à Lei um
papel mais importante na religião do que Lucas, pelo que o Jesus de Mateus é mais doutor da
Lei do que o Jesus de Lucas. Isto é uma divergência teológica no quadro de um acordo teológico
mais amplo: Jesus cumpriu «tipos» escriturísticos. Pelo contrário, não seria insensato da parte
de um historiador procurar saber se as passagens isoladas, nas quais Mateus transmite palavras e
atos de Jesus, dão a ideia de que Jesus era um legislador. Será que os pormenores de Mateus
subvertem a sua visão teológica?
Neste caso específico, a resposta será «em parte, sim; em parte, não». Mateus e Lucas tinham
perspectivas teológicas que, no essencial, estão fora do alcance da nossa investigação histórica:
podemos constatar que as tinham e podemos investigar como as obtiveram, mas não podemos
ocupar-nos da questão da sua «veracidade» ou falsidade. Este facto não impede que os
Evangelhos contenham material que não resulta das perspectivas teológicas dos mesmos. Além
disso, existem três Evangelhos sinópticos, com perspectivas teológicas um tanto diferentes e
estas divergências, por vezes, permitem-nos descobrir quais são as partes do material que não
são explicáveis como componentes integrantes de uma
124
construção teológica. Gostaria de voltar a dizer que este tipo de análise não agradaria nada aos
autores dos Evangelhos - e, provavelmente, a maior parte dos primeiros cristãos. Os autores
estavam convencidos de terem escrito a verdade e apelavam ao leitor para que este acreditasse
nela. O historiador responde que deseja distinguir um tipo de verdade da outra e estudar apenas
o segundo tipo, isto é, a verdade profana. Suspeito que os autores dos Evangelhos estavam
menos interessados neste segundo tipo de verdade. Se isto for assim, então a tarefa de descobrir
alguns elementos da história comum no grande contexto da história da salvação estará facilitada.
Se os autores dos Evangelhos não estivessem interessadíssimos em adaptar todos os pormenores
à sua teologia, não teriam feito grandes alterações de pormenor.

O contexto da vida pública do próprio Jesus


Vamos agora debruçar-nos sobre o segundo dos nossos contextos, aquele que é suposto atrair
imediatamente a atenção do historiador atual que procura informações sobre Jesus: os
acontecimentos que antecederam e se seguiram imediatamente ao seu ministério e que estão
estreitamente ligados a ele. O primeiro foi a pregação de João Baptista.
Já vimos que João causou uma impressão assinalável na sociedade da Galileia. Gostaria de
retomar e de aprofundar um pouco a discussão sobre a importância de João e sobre os motivos
para a sua execução (atrás, p. 40). Josefo relata que as pessoas interpretavam a derrota que
Antipas sofreu às mãos de Aretas como castigo de Deus pela execução de João. Isto dá a
entender que João era muito estimado pela população. Por que é que Antipas executou João?
Segundo a versão de Josefo, o Baptista pregava a «justiça» e a «piedade». Estes dois termos são
pouco esclarecedores, visto que se limitam a ser um resumo dos dois aspetos ou das «duas
tábuas» da Lei judaica: tratar os outros corretamente (com justiça) e adorar a Deus com
verdadeira devoção (piedade). Josefo escreveu em grego e estas duas palavras eram muito
utilizadas pelos judeus de língua grega para resumir a sua religião.
125
Não há dúvida de que João acentuava ambas, mas estes termos não nos dizem nada de concreto
sobre o conteúdo da sua pregação. Apesar de Josefo atribuir a João esta mensagem inócua,
escreve que Antipas o mandou executar porque temia que a sua pregação provocasse uma
insurreição. Todos os sábados se ensinava «justiça» e «piedade» nas sinagogas e a Galileia
continuava em paz. João deve ter dito algo mais importante.
Os Evangelhos atribuem duas afirmações a João: (1) Antipas violou a Lei ao casar com
Herodíade (Mt 14,4// Me 6, 18); (2) o dia do julgamento estava próximo e as pessoas deveriam
fazer penitência (Mt 3, 7-10 / / Lc 3, 7-9). Eles atribuem a execução de João à sua crítica pessoal
ao casamento de Antipas. Isto, pelo menos, é plausível. No entanto, se combinarmos as nossas
fontes, aceitando ambas - um procedimento pouco habitual na presente obra -, obtemos um
relato ainda mais provável. João pregava a justiça e a piedade, insistindo especialmente na
penitência pelos pecados cometidos contra os outros e contra Deus e advertindo de que no
julgamento, que estava próximo, aqueles que não se arrependessem, seriam castigados ou
aniquilados. Talvez tenha mencionado o casamento de Antipas como um exemplo para uma
acção injusta que exigia penitência. O anúncio do julgamento que se aproximava era
acompanhado pela profecia de que Deus estava prestes a salvar Israel; como prometera Isaías
(Mc 1, 6; cf também Mt e Lc). Isto levou as pessoas a pensar que a salvação estava muito
próxima. A ideia da redenção levou alguns a imaginar que podiam dar uma ajuda a Deus,
desferindo o primeiro golpe sobre os governantes imorais. Antipas apercebeu-se da ameaça e
mandou executar João. Portanto, se associarmos o medo que Antipas tinha de uma insurreição
(Josefo) à profecia de João sobre um acontecimento dramático no futuro, que iria transformar a
ordem existente (os Evangelhos) obtemos um motivo perfeitamente convincente para a
execução. Se João também criticava o casamento de Antipas, este ainda estaria mais disposto a
atacar e Herodíade pode tê-lo pressionado nesse sentido. Temos de nos lembrar que Antipas era
um bom governante em termos gerais e que não mandava executar arbitrariamente as pessoas só
porque se empenhavam a favor da justiça. Penso que deveríamos aceitar a opinião de Josefo,
segundo o qual o que estava em causa era a segurança do reino. No entanto, no que diz respeito
ao conteúdo da mensagem de João, temos de seguir os Evangelhos, visto que o sumário de
Josefo não diz nada sobre o assunto e a descrição nos Evangelhos
126
explica muito bem a execução. O entusiasmo por causa de uma nova ordem que se aproximava
deixava os governantes muito alarmados. Josefo eliminou sistematicamente dos seus escritos as
informações sobre as esperanças judaicas de redenção, porque estas podiam ter repercussões
políticas e militares e ele queria apresentar o seu povo como não constituindo qualquer ameaça
para a pax romana.
Por isso, João exortava as pessoas a fazerem penitência, tendo em vista a «ira futura». «O
machado já está posto à raiz das árvores» (Mt 3, 10; Lc 3, 9). Esta mensagem é designada
habitualmente como escatológica. Eschaton é uma palavra grega que significa «o último»; por
conseguinte, a escatologia é «o discurso ou a reflexão sobre as últimas coisas». O conceito pode
ser enganador quando o traduzimos à letra. A maioria dos judeus que acreditava que o
julgamento e a redenção estavam próximos esperava que o mundo continuasse a existir. Deus
faria algo dramático, que transformaria a ordem das coisas, mas, depois, reinaria, diretamente ou
através de um representante, como, por exemplo, o Messias de Aarão, descrito nos Rolos do
Mar Morto. Não podemos dizer em pormenor o que o Baptista esperava, mas é evidente que se
tratava de um acontecimento futuro dramático que alteraria a ordem existente.
Os Evangelhos dizem que Jesus iniciou o seu ministério ativo depois de ter sido batizado por
João. É praticamente certo que ele aceitou o batismo de João. Os Evangelhos e os Atos dos
Apóstolos revelam-nos que João tinha um número significativo de seguidores e os seus autores
ficaram um pouco embaraçados por ter de admitir que o seu herói, Jesus, tinha começado por
ser um seguidor do Baptista. O primeiro e o quarto Evangelhos esforçam-se francamente por
garantir que o próprio João testemunha que Jesus é realmente maior do que ele. Segundo
Mateus 3, 14, João protestou quando Jesus veio para ser batizado, declarando que deveria ser
Jesus a batizá-lo. O Evangelho de João faz uma afirmação ainda mais enfática: João (o Baptista)
«confessou a verdade e não negou, afirmando: "Eu não sou o Cristo.”» «No dia seguinte ele viu
Jesus e disse: "Eis o Cordeiro de Deus".» «E João testemunhou: "Vi o Espírito que descia do
céu como uma pomba e permanecia sobre Ele."»12 É duvidoso que o Baptista tivesse
reconhecido a superioridade de Jesus desta forma. Segundo uma outra
127
tradição, quando João estava na prisão, mandou uma mensagem a Jesus, perguntando-lhe se ele
podia provar quem era (Mt 11, 2-6).
Gostaria de introduzir aqui uma explicação sobre uma das formas que os investigadores têm de
avaliar a «autenticidade», isto é, a «correção histórica», do material. Duvidamos daquilo que é
demasiado compatível com a perspetiva dos Evangelhos e consideramos credível aquilo que é
contrário às suas preferências. Esta regra não pode ser aplicada de uma forma mecânica, visto
que algumas das coisas que aconteceram convinham bastante aos autores, mas o critério ser-
nos-á útil. Mateus quer que a subserviência de João a Jesus fique registada com toda a clareza
(Mt 3, 14). Mas transmite-nos uma tradição que se opõe a esta perspetiva (11, 2-6). Portanto,
confiamos nesta última tradição: João, que se encontrava preso, ainda não tinha a certeza de
quem Jesus era.
Sendo assim, é altamente improvável que os Evangelhos ou os primeiros cristãos tenham
inventado que Jesus iniciou a sua vida pública como seguidor de João. Estando eles interessados
em colocar Jesus acima do Baptista, não teriam inventado a história segundo a qual Jesus tinha
sido seguidor deste. Portanto, podemos concluir que Jesus foi de facto batizado por João. Isto
significa, por seu turno, que Jesus concordava com a mensagem de João: era tempo de fazer
penitência, face à ira e à redenção iminentes.
Debruçamo-nos agora sobre as nossas informações mais fiáveis acerca do período
imediatamente a seguir à execução de Jesus, que nos são fornecidas pelas Cartas de Paulo e
pelos Atos dos Apóstolos, mas sobretudo pelas primeiras. Paulo pensava que a história estava
prestes a atingir o seu clímax. Converteu-se ao novo movimento e começou a pregar em meados
dos anos trinta, passando da Síria para o Ocidente, através da Ásia Menor, chegando à Grécia. O
documento cristão mais antigo que possuímos é a sua carta a uma das suas igrejas na Macedónia
- Tessalónica. Esta carta diz-nos que, ao fundar a igreja, Paulo contou àqueles que tinha
convertido que Jesus tinha subido aos céus e que regressaria em breve para estabelecer o seu
Reino. Alguns dos convertidos morreram e a igreja perguntou a Paulo se os mortos ficariam
fora do Reino. Paulo respondeu que, quando Jesus regressasse, os convertidos que tinham
morrido seriam os primeiros a ressuscitar para saudar Jesus, seguidos pelos cristãos que ainda
estivessem vivos (1 Ts, 4, 13-17). Trata-se de uma comunicação extremamente reveladora.
Paulo esperava tão
128
convictamente que Jesus regressasse em breve que não tinha ensinado nada aos tessalonicenses
sobre a ressurreição dos mortos.
Paulo debateu de uma forma acesa outras questões com outros cristãos, mas não esta. Os
cristãos acreditavam todos que Jesus estabeleceria um Reino num futuro muito próximo, ainda
durante a vida deles. Ainda se podem encontrar afirmações deste tipo nos Evangelhos
(debruçar-nos-emos sobre este tema mais pormenorizadamente nas pp. 230-235). A única
explicação lógica para esta convicção dos primeiros cristãos consiste na suposição de que foi o
próprio Jesus que, durante a sua vida, levou os seus seguidores a esperarem o estabelecimento
próximo de um novo Reino. Depois da sua morte e depois das aparições no contexto da
ressurreição, ficaram convencidos de que o próprio Jesus regressaria para estabelecer o Reino,
mas não inventaram completamente a ideia de que o Reino de Deus seria estabelecido na sua
geração.
Por conseguinte, no início da vida pública de Jesus vemo-lo a aceitar a mensagem de João
Baptista, que disse que o clímax da História estava próximo. Possuímos provas seguras de que,
uma década após a execução de Jesus, os seus seguidores esperavam este acontecimento
dramático para dali a pouco tempo. Jesus tem de se adaptar a este contexto. Ainda nos faltam
pormenores e nuances. O que pensava ele que iria acontecer? Que papel iria ele desempenhar?
Faremos o que pudermos para responder a estas questões, apesar de termos de responder por
tentativas, visto que é raro possuirmos o contexto imediato de uma afirmação específica. O
contexto intermédio em que podemos confiar - Jesus encontrava-se entre João Baptista e o
movimento cristão inicial - oferece-nos uma conclusão fundamental que é segura: Jesus pensava
que Deus iria provocar em breve uma alteração decisiva no mundo. Este contexto é essencial do
ponto de vista histórico, visto que constitui o enquadramento para toda a missão de Jesus:
engloba tanto o homem que o batizou, como os seus próprios seguidores.
O enquadramento da missão de Jesus é mais importante para a compreensão da sua vida e da
sua obra do que qualquer outro contexto. Gostaríamos de saber a quem é que Jesus se referia
quando disse: «Amai os vossos inimigos» e de conhecer as circunstâncias exatas em que ele
disse que isto nos iria ajudar muito. Apesar de não podermos saber qual a situação concreta das
diversas afirmações (porque estas foram reutilizadas e deslocadas), conhecemos o contexto mais
importante para a compreensão de Jesus como uma figura histórica.
129
Acabámos de ver dois contextos diferentes: um consistia na convicção dos Evangelhos de que
Jesus constituía o cumprimento da história judaica da salvação e o outro na convicção que o
percursor de Jesus e os seus seguidores tinham de que o clímax da História estava próximo.
Vimos também que esta última convicção tem de ser atribuída ao próprio Jesus. Trata-se,
portanto, de uma conceção generalizada, no contexto da qual o ensinamento de Jesus assume
um lugar particular. Estes dois contextos sobrepõem-se: ambos são judaicos, ambos são
orientados para o futuro e ambos pressupõem que Deus fará algo na história coerente com
outras coisas que já fez. Todos os mencionados estão de acordo a um nível fundamental: João
Baptista, Jesus, Paulo, os autores dos Evangelhos sinópticos, os outros seguidores de Jesus. Na
sua perspectiva, aquilo que se estava a passar era indício de que Deus iria fazer algo muito
especial. O Deus em quem acreditavam era o Deus de Israel, o Deus que chamou Abraão, que
deu a Lei a Moisés e que elevou David a rei. Este Deus concluiria agora a Sua obra.
Portanto, em certo sentido, Mateus, Marcos e Lucas acertaram em cheio quando colocaram
Jesus no contexto da história da salvação judaica. Era assim que ele próprio via o mundo. Isto
não significa que todas as passagens nos Evangelhos que constituem uma reminiscência ou um
eco da Escritura hebraica tenham acontecido realmente. Também não significa que Jesus tentou
imitar David e Moisés. Iremos encontrar provas de que Jesus tinha uma posição crítica em
relação a algumas das suas próprias tradições, apesar de acreditar na sua premissa fundamental
(que o Deus de Israel salvaria o seu povo). Nem significa que podemos prescindir de conhecer o
ambiente social e político da Galileia e da Judeia nos anos vinte e trinta. Gostaria que os
Evangelhos nos dissessem mais sobre este ambiente e menos sobre presumíveis paralelos entre
figuras da Bíblia Hebraica e Jesus. No entanto, agora, temos uma ideia mais clara sobre os
autores dos Evangelhos e sobre o seu trabalho. Eles eram idealistas teológicos. Mas este livro
trata de um idealista teológico. Muitos judeus e cristãos do século [ eram idealistas teológicos.
Nas secções anteriores deste capítulo vimos que Mateus e Lucas situam a sua história no
contexto da história da salvação judaica e eu sugeri que examinássemos os Evangelhos e
retirássemos deles material que não deve a sua existência às convicções dos próprios evange-
listas. Agora, vemos que não podemos reduzir o material dos Evangelhos a um cerne não
teológico, para declarar, depois, que descobrimos
130
Jesus, porque ele próprio era teólogo. Contudo, tal como Mateus e Lucas não concordam
inteiramente um com o outro, assim também podemos pressupor que Jesus defendia
perspectivas que se distinguiam completa ou parcialmente das dos evangelistas e que estes
sobrepuseram, por vezes, a sua teologia à teologia de Jesus. Podemos ter esperança de encontrar
a sua teologia nos Evangelhos.
Destrinçar tudo isto é, evidentemente, uma tarefa difícil e os resultados, muitas vezes, não irão
para além de tentativas. Repito que o objetivo do presente livro é tentar apresentar aquilo que
sabemos de Jesus com grande certeza e distingui-lo de deduções menos seguras.
131

8. O cenário e o método do ministério de Jesus


Ao que parece, o centro da vida pública de Jesus foi Cafarnaum, uma pequena cidade na
Galileia. Foi nas suas imediações que ele chamou os seus discípulos mais importantes, dois
pares de irmãos: Pedro e André, assim como Tiago e João. Pedro tinha uma casa em Cafarnaum,
foi ali que Jesus curou a sogra de Pedro. Foi na sinagoga da cidade que curou um paralítico (Mc
2, 1-12 e paralelos"). Foi em Cafarnaum
133
que comeu «à mesa» com Levi, cobrador de impostos. A refeição ocorreu «em casa dele, o que
quer dizer, provavelmente, «na casa de Levi», embora não seja impossível que se tratasse da
«casa de Jesus» (2, 13-17). Segundo Marcos 2,1, Jesus estava «em casa» em Cafarnaum.
Voltava sempre para lá, depois de ter pregado em outros sítios. Marcos (Mc 9,33-37) situa em
Cafarnaum a grande disputa acerca da verdadeira grandeza e Mateus, o diálogo sobre o
pagamento do tributo do Templo (Mt 17,24-27).
A visualização da vida de Jesus tornar-se-á mais fácil se tivermos em conta o cenário fisico em
que decorreram esta e outras ações. Falaremos das sinagogas (onde, segundo os Evangelhos,
Jesus começou a ensinar) e, depois, de alguns aspetos da Galileia. Visto que alguns
investigadores defenderam a opinião de que não existiam sinagogas na Palestina no século I (o
que significaria que as várias referências a sinagogas nos Evangelhos refletem a época e local
no qual estes foram escritos e não o tempo em que Jesus viveu), tratarei a questão da sua
existência com um pouco mais de pormenor do que seria necessário caso não houvesse tal
opinião. No entanto, a questão fundamental está em compreender em que circunstâncias Jesus
começou a apresentar aos outros as suas perspectivas sobre o Reino de Deus. Como era que ele
chegava a uma nova cidade e ensinava na sinagoga? Punha-se em pé, ao fundo de uma grande
sala, e interrompia o sermão? Seria um comportamento tido como socialmente inaceitável que
um estranho insistisse em falar numa sinagoga? Temos de perguntar como eram as sinagogas e
o que as pessoas faziam nelas.
Todas as fontes indicam que, no século I, existiam sinagogas em todos os lugares onde viviam
judeus, embora não saibamos quando e onde apareceram. Uma sinagoga não era um templo. Na
Antiguidade, um templo era um local onde as pessoas prestavam culto a Deus sacrificando
animais. O templo era considerado sagrado; a divindade habitava nele, em certo sentido, e
existiam leis e rituais que estabeleciam a forma de aproximação a deus ou à deusa (muitos dos
templos pagãos mais conhecidos eram dedicados a uma deusa). O judaísmo assemelhava-se
neste aspeto a outras religiões antigas, como já vimos, apesar de existirem também diferenças
importantes. Só havia um templo judaico,
134
em Jerusalém; o seu Santo dos Santos estava vazio e era dedicado ao culto do Deus invisível e
não à residência de um ídolo representando a divindade. Apesar destas diferenças, qualquer
pessoa na Antiguidade consideraria o Templo de Jerusalém, bem como os seus rituais, algo
familiar. As sinagogas, pelo contrário, não eram sagradas e o acesso às mesmas não era
reservado àqueles que eram puros, em termos rituais. Não havia sacrifícios de animais nas
sinagogas. Os judeus podiam fazer nestes edifícios as coisas que fazem habitualmente quando
se reúnem: comer, cantar, rezar, ensinar-se reciprocamente, discutir, trocar informações e
tagarelar. Os edifícios que serviam como sinagogas funcionavam, em parte, como câmaras
municipais.
A Bíblia Hebraica não conhece sinagogas, pelo que não existem quaisquer leis rígidas em
relação às mesmas, embora se tenham desenvolvido costumes, como é natural. As sinagogas
serviam principalmente como um local onde os judeus se podiam reunir aos sábados para ouvir
uma leitura da sua Escritura, leitura essa à qual se seguia uma discussão. Algumas sinagogas
eram, provavelmente, mais democráticas do que outras; isto é, enquanto em algumas havia um
ou dois líderes religiosos que ensinavam, noutras era possível uma discussão livre. Em grego, as
«sinagogas» eram frequentemente apelidadas como «casas de oração», o que permite concluir
que o culto incluía orações (e talvez também cânticos)." Existia, contudo, uma grande
variedade, visto que não havia quaisquer leis bíblicas. É provável que as sinagogas em
Jerusalém ou nos arredores da cidade desenvolvessem menos atividade do que aquelas que se
situavam mais longe. Quem tinha possibilidade de visitar o Templo com relativa frequência
talvez tivesse menos necessidades religiosas do que aqueles que viviam mais longe. De facto, a
origem das sinagogas explica-se, provavelmente, pela distância a que o Templo se encontrava.
Alguns investigadores pensam que as sinagogas surgiram durante o cativeiro da Babilónia,
como uma substituição para o culto no Templo. Outros defendem a tese segundo a qual as
primeiras sinagogas apareceram na diáspora da língua grega. Seja como for, na Palestina do
século 1 existiam sinagogas - até em Jerusalém - como complemento do culto no Templo.
135
As sinagogas possuíam uma determinada organização. Havia um «chefe da sinagoga» e, em
algumas sinagogas, existiam, possivelmente, outros cargos. Os sacerdotes podiam assumir a
função de chefes das sinagogas, fazendo-o, por vezes, realmente; também podiam ler a Escri-
tura ou comentá-la. Mas os leigos podiam assumir todas estas funções, se estivessem
capacitados para o fazer; tinham de ser letrados, ilustrados e respeitados. Os chefes e os porta-
vozes da sinagoga podiam ser pessoas absolutamente vulgares, desde que tivessem estudado a
Bíblia.
A arqueologia não nos pode dizer muito sobre as sinagogas que existiam na Palestina no tempo
de Jesus. Foram descobertas três que podem ser datadas do período anterior à destruição de
Jerusalém no ano 70 e.c. Também foi descoberta uma inscrição que descreve as obras de
beneficiação de uma sinagoga em Jerusalém; por conseguinte, temos ao todo quatro provas
empíricas da sua existência. Há três explicações para o facto de serem tão poucas as sinagogas
anteriores ao ano 70 e.c. que vieram à luz:
1.) Os arqueólogos não podem fazer escavações em cidades que são habitadas atualmente
(como, por exemplo, Tiberíades). As três sinagogas anteriores ao ano 70 e.c. que foram
identificadas de uma maneira inequívoca foram descobertas em locais desabitados desde a
revolta contra Roma, podendo, portanto, ser objeto de escavações.
2.) Os arqueólogos encontraram grandes sinagogas do século III e IV - época de florescimento
da construção de sinagogas - em diversos locais. Muitas delas foram construídas provavelmente
no local onde já tinham existido sinagogas que foram destruídas.
3.) Nas cidades e nas aldeias pequenas, as sinagogas eram provavelmente apenas casas de
habitação transformadas, o que torna mais difícil identificá-las agora. As escassas provas
arqueológicas podem ser completadas pelas referências a sinagogas existentes na literatura anti-
ga. Josefo, por exemplo, refere-se a sinagogas em Tiberíades e na Cesareia marítima. Mais
importante, contudo, é o facto de as suas discussões pressuporem a existência de sinagogas, o
que nos leva a concluir que elas eram habituais.
Nas três sinagogas da Palestina do século I atualmente conhecidas, as pessoas ficavam sentadas
em bancos colocados ao longo das paredes, exceto junto às janelas e às portas. Os chefes
falavam, provavelmente, no meio da sala, sendo que esta configuração também encoraja a
comunidade a fazer comentários ou a colocar questões. Isto é muito importante.
136
De acordo com os conhecimentos que possuímos atualmente sobre as sinagogas do século 1 na
Palestina, estas tinham pouca semelhança com a maior parte das sinagogas, igrejas ou teatros
atuais. Não eram salas grandes, com lugares sentados, virados para um estrado situado à frente,
num plano elevado. Nas sinagogas anteriores ao ano 70 descobertas até agora, a assistência
podia ver-se reciprocamente e (pelo menos, por vezes) falar entre si. Neste tipo de cenário,
quem tinha alguma coisa para dizer, podia fazê-lo. Não sabemos exatamente quais eram os
hábitos. É possível que se fizesse uma leitura da Escritura, em seguida, o texto seria comentado
por um chefe e, por fim, abria-se a discussão. É também possível que alguém que tivesse uma
mensagem importante a comunicar se dirigisse primeiro ao chefe, pedindo-lhe a palavra. Numa
cidade pequena, o primeiro procedimento parece ser mais provável. É razoável pensar que os
visitantes eram bem-vindos, tal como o são ainda hoje e pelas mesmas razões (curiosidade;
satisfação em ver uma cara nova, boa disposição, resultante do descanso sabático, da oração e
da leitura da Escritura). Podia até acontecer que se reparasse no visitante e que se lhe
perguntasse se tinha alguma coisa a dizer.
Trata-se de especulações. Não sabemos se as plantas das três sinagogas descobertas representam
todas as sinagogas na Galileia. Nem sabemos quais eram as regras seguidas nos discursos
perante a assistência numa sinagoga. No entanto, considero completamente plausível a
descrição que os Evangelhos nos proporcionam sobre o início do ministério de Jesus. Todas as
cidades e aldeias tinham sinagogas; os visitantes eram bem-vindos; até podiam falar. A primeira
perícopa de Marcos sobre o ensinamento de Jesus começa da seguinte forma: «Entraram em
Cafarnaum; chegado o sábado, ele entrou na sinagoga e ensinou» (Mc 1, 21). Isto não é,
certamente, tudo (por exemplo, Jesus teve de esperar que o chefe da sinagoga acabasse o seu
comentário), mas a frase de Marcos é perfeitamente credível.
137

Galileia
As pessoas que se reuniam nas sinagogas das cidades e das aldeias da Galileia viviam, na sua
maioria, da agricultura e da pesca no mar da Galileia. Além disso, existiam as outras ocupações
normais da vida rural própria das pequenas cidades. Os barcos navegavam ao longo da costa do
pequeno mar interior, permitindo relações comerciais com outras aldeias da Galileia e com as
cidades da Decápolis, a leste do lago (sobre este assunto, ver mais adiante). O comércio com as
cidades fora da Galileia significava a presença de funcionários alfandegários nos portos. No
entanto, a produção de alimentos constituía a ocupação principal. A Galileia era muito fértil e o
clima fazia dela uma região agrícola ideal. À volta do mar da Galileia cresciam
«nogueiras, que precisavam de um clima particularmente frio ... palmeiras, que necessitam do
calor, bem como figueiras e oliveiras, que precisam de um clima mais ameno ... A terra não só
tem o mérito surpreendente de dar fruta tão diversa, como também a conserva: a terra produz
este tipo de frutos, as uvas e os figos. E estes últimos podem secar-se e conservar-se durante dez
meses consecutivos. (Guerra 3,517-519)
No entanto, o carácter de Cafarnaum era, provavelmente, determinado pelo facto de a localidade
se encontrar junto do mar. O mar da Galileia, também designado de Genezaret, é um mar muito
pequeno, motivo pelo qual alguns autores da Antiguidade (Lucas, Josefo e Plínio, o Velho) lhe
chamam «lago». É alimentado a norte pelo rio Jordão, que segue para sul, na direção do mar
Morto. O mar da Galileia tem cerca de 20 quilómetros de comprimento e 12 quilómetros de lés
a lés. O peixe é diferente do dos outros lagos e rios e muitas das espécies que se encontram nele
e no Jordão não existem em outros lugares. Os barcos eram, provavelmente, bastante pequenos.
Josefo descreve uma batalha naval ocorrida no mar da Galileia durante o levantamento judaico
contra Roma (66-74 e.c.). Os judeus tinham pequenos esquifes, com «um punhado de homens».
Os romanos abateram árvores e construíram grandes jangadas, nas quais cabiam muitos
soldados; ganharam o confronto sem grande esforço, massacrando-os judeus até ao último
homem, o que deixou o lago vermelho de sangue.
Segundo Josefo, os esquifes foram utilizados para «pirataria» ou «assaltos». Isto talvez queira
dizer que serviam para contrabando,
138
visto que é difícil imaginar uma frota inteira de piratas num mar tão pequeno. Os esquifes talvez
fossem também barcos de pesca transformados, o que explicaria o facto de albergarem «um
punhado de homens» (Guerra 3, 522-531). Os relatos evangélicos fazem supor que os barcos de
pesca eram tripulados por dois ou três homens (Mc 1, 16-20 e par.)
A pesca era sobretudo de arrasto, isto é, com uma rede munida com pesos e boias que era
arrastada atrás de um barco. Jesus refere-se a este tipo de rede (a «rede varredoura») numa
parábola: o Reino dos Céus é semelhante a uma rede de arrasto lançada ao mar que apanha tanto
peixe bom, como peixe mau. É necessário fazer uma escolha (Mt 13,47-50). Também era
utilizado um outro tipo de rede, uma tarrafa, que podia ser lançado do barco ou da margem e
depois novamente recolhido. Parece ser esta rede que está em causa na história de Simão e
André relatada por Marcos (Mc 1, 16). Eles estão a lançar as suas redes ao mar e deixam-nas
para seguir Jesus; não se fala de um barco. Tiago e João, porém, encontravam-se no seu barco,
consertando as suas redes (Mc 1, 19). É possível que houvesse uma distinção social entre
aqueles que podiam ter barcos e redes de arrasto de maior dimensão e aqueles que tinham de
lançar as suas redes da margem. A pesca com redes de arrasto era, quase com certeza, mais
lucrativa.
A maioria das povoações à volta do lago era bastante pequena. Marcos 1, 33, chama «cidade» a
Cafarnaum, o domicílio de Jesus, mas esta designação é exagerada. Aqui, como noutros lugares
no Evangelho, o conceito é utilizado de uma forma vaga. Josefo refere-se a Cafarnaum como
uma «aldeia» (Vida 403), mas «vila» seria, provavelmente, a designação mais adequada. As
ruínas da povoação antiga encontram-se num estreito ao longo da costa, com cerca de 500
metros de comprimento e 350 metros de largura. Um dos arqueólogos calcula que esta
superfície oferecia espaço vital a 1500 a 2000 habitantes, descontando o espaço necessário para
as ruas e os edifícios públicos. Atualmente, é possível visitar as ruínas de uma sinagoga muito
requintada, existente no local. A sinagoga tinha 22 metros de comprimento e dois pisos. No
entanto, é do século III, o período em
139
que foram construídas muitas sinagogas grandes na região. É provável que a sinagoga do tempo
de Jesus se situasse no mesmo local, mas que fosse menor.
Jesus também pregava e curava em outras cidades e aldeias da Galileia. Ouvimos falar de Maria
Madalena, presumivelmente de Magdala, também perto do mar. Os Evangelhos mencionam
outras aldeias próximas, como Corazim, que ficava cerca de três quilómetros a norte de
Cafarnaum, e Betsaida, provavelmente uma pequena localidade junto do mar." Em Mateus
11,20-24 / / Lucas 10, 13-15, encontra-se um lamento profundo de Jesus por causa de Corazim,
Betsaida e Cafarnaum não se terem convertido, quando Jesus fez os seus «atos poderosos»:
«Serei mais tolerante para Tiro e Sídon no dia do juízo do que para vós.» Trata-se de uma
passagem elucidativa porque indica que existia uma tensão maior entre Jesus e as cidades
marítimas do que os Evangelhos nos deixariam supor. Marcos e os outros sinópticos descrevem
Jesus como alguém muito popular nestas pequenas cidades e nos seus arredores. Além disso,
Jesus recrutou os seus discípulos nestas localidades. No entanto, é óbvio que não encontrou ali a
resposta que esperava.
O mesmo se pode dizer da sua cidade natal, Nazaré, onde a sua mensagem foi rejeitada: «E não
pôde fazer ali milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos. Estava
admirado com a falta de fé daquela gente.» (Mc 6, 1-6) Sabemos ainda menos sobre Nazaré
antiga do que sobre Cafarnaum. Devia ter sido uma aldeia insignificante, visto que o seu nome
não aparece nem na Bíblia Hebraica, nem em Josefo, nem na literatura rabínica. Não se
encontrava numa estrada principal, mas ficava apenas alguns quilómetros a sul de Séforis, uma
cidade importante no interior da Galileia. Atualmente, há alguns investigadores que desejam ver
a proximidade de Nazaré em relação a Séforis como um factor muito importante. Imagina-se
que os habitantes de Nazaré beneficiavam da cultura supostamente greco-romana de Séforis.
podiam assistir a peças de teatro gregas, ouvir filósofos gregos e adquirir, em geral, maneiras
cosmopolitas. Isto é altamente improvável. A vida da aldeia era dominada pelo trabalho. As
140
pessoas trabalhavam seis dias por semana e a liberdade de movimento ao sábado era limitada a
um perímetro de cerca de 900 metros. É improvável que muitos habitantes de Nazaré tivessem
passado muito tempo em Séforis. Quando tinham alguns dias livres durante uma ou várias festas
de peregrinação, não viajavam para Séforis, mas sim para Jerusalém, que se encontrava no Sul.
É possível que muitos fossem levar alimentos ou outros produtos a Séforis para os vender no
mercado, como é óbvio. Nesse caso, tinham de se levantar antes do nascer do Sol, de moer grão
e preparar um farnel, comer, carregar o burro, ir com ele a pé até Séforis (uma viagem de uma a
duas horas) e vender a sua mercadoria. Quando o dia de mercado terminava, embrulhavam as
coisas e iam para casa. Não podiam regressar com o burro à aldeia depois do pôr-do-sol, visto
que o animal podia ferir-se. Não ganhavam o suficiente para ir ao teatro ou para passar a noite
na cidade. Em resumo, os aldeões de então, como os de todos os tempos, até hoje, viviam na sua
aldeia e raramente viajavam, exceto para vender ou trocar os seus produtos.
A leste do mar da Galileia e do rio Jordão ficava a Decápolis, «Dez Cidades» de origem
macedónia e grega politicamente independentes. No século III a.e.c., os sucessores de
Alexandre Magno fundaram muitas cidades novas (ou refundaram as antigas), dando-lhes uma
constituição grega e liberdade política (sob supervisão geral exclusivamente do poder
governante). Estas cidades eram muito importantes para impérios cujas tropas serviam durante
anos em regiões muito remotas:
141
os conquistadores davam terras aos soldados aposentados e a promessa de terra própria era um
fator importante no recrutamento das tropas. Os homens estabeleciam-se e casavam -
eventualmente, com uma mulher que tinha seguido o exército nas suas campanhas. Tornavam-se
agricultores, artesãos ou algo semelhante: bons, bravos cidadãos, leais ao império. As cidades
Decápolis serviam de escudo aos reinos helenistas contra ataques provenientes do deserto. Os
reis Asmoneus, sobretudo Alexandre Janeu, conquistaram muitas destas cidades. Roma adquiriu
o controlo delas quando Pompeu conquistou a Palestina. Da perspetiva das cidades helénicas,
ele libertou-as do domínio judaico; as suas moedas comprovam que Pompeu era encarado como
o fundador de uma nova era. Os descendentes dos soldados macedónios e helénicos transferiram
a sua lealdade para o Império Romano.
Segundo Marcos, Jesus foi duas vezes à região da Decápolis, mas, ao que parece, sem visitar as
cidades em si.12 Também foi uma vez à «região de Tiro e de Sídon» (Me 7, 24), duas
importantes cidades não-judaicas na costa fenícia, mas também não visitou as cidades.
Ficaremos com uma ideia mais aproximada da Galileia no tempo de Jesus e talvez o
compreendamos um pouco melhor se dissermos algumas palavras sobre as principais cidades da
Galileia, que contrastavam com as regiões em que ele desenvolveu o seu ministério. Séforis foi
durante muitos anos a cidade mais importante da Galileia. Foi destruída (ou parcialmente
destruída) no ano de 4 e.c., durante os levantamentos posteriores à morte de Herodes Magno.
Segundo Josefo, o legado da Síria, Varus, queimou a cidade e vendeu a população como
escravos, embora a maioria não tivesse nada a ver com os revoltosos e não os tivesse ajudado
(Guerra 2, 56; 2, 58).13 Antipas mandou reconstruir e repovoar imediatamente a cidade,
transformando-a na «joia de toda a Galileia» (Antiguidades 18, 27). Séforis foi a sua capital
durante algum tempo e o lar da nobreza da Galileia. A população era composta
maioritariamente por judeus, embora também houvesse
142
alguns gentios. A cidade permaneceu fiel aos romanos durante a revolta judaica (66 e.c.); as
autoridades civis pediram e receberam uma guarnição romana (Guerra 3, 30-34; cf. 2, 511). Os
galileus que aderiram à revolta detestavam Séforis de todo o coração, naturalmente, mas é
provável que a inimizade tivesse raízes mais profundas: é possível que a cidade, rica e
aristocrática, já não fosse particularmente popular antes da guerra e o facto de ter apoiado Roma
durante a guerra reflete a sua orientação fundamental, que causou ressentimento a muitos
galileus.
Antipas construiu Tiberíades no ano 25 e.c., fazendo dela a nova capital. A cidade fica nas
margens do mar da Galileia, o que permitia um acesso às várias regiões da tetrarquia de Antipas
melhor do que aquele que Séforis possuía. A população de Tiberíades era mista, embora os
judeus estivessem claramente em maioria. Tiberíades foi construída em parte sobre um velho
cemitério e os judeus religiosos recusavam-se a viver nela, porque andar por cima de um túmulo
significava contrair a impureza dos cadáveres. Esta impureza, segundo a Lei bíblica, não é
errada: supõe-se que os vivos cuidem dos mortos, tornando-se, portanto, impuros. A pureza
adquiria-se através de um ritual que durava sete dias. As únicas coisas que a impureza impedia
eram o acesso ao Templo e a participação na ceia pascal, pelo que, na Galileia, não tinha
quaisquer consequências práticas. Mesmo assim, havia muitos judeus piedosos que não
desejavam ser sempre impuros. Por isso, a capital de Antipas atraía gentios e judeus
relativamente pouco piedosos; alguns só eram persuadidos a viver ali através da oferta de casa e
de terra. É provável que Tiberíades, tal como Séforis, também fosse encarada com desconfiança
por muitos judeus da Galileia.
A terceira cidade, Citopólis, foi fundada como uma cidade grega no lugar da antiga Beth Chean.
Tal como foi observado anteriormente, embora Citopólis fizesse parte da Galileia em termos
geográficos, era independente do ponto de vista político; não era governada por Antipas, tal
como não o tinha sido por Herodes. Era a única cidade da Decápolis na margem ocidental do rio
Jordão. Embora a cidade fosse de fundação grega, no tempo de Jesus, tinha uma população
mista. Quando o levantamento começou, em 66 e.c., os cidadãos judeus (cerca
143
de 13 000 pessoas) foram obrigados a ajudar os gentios na defesa da cidade contra os rebeldes
judeus. Apesar disso, a população gentia massacrou os judeus (Vida 26).
De acordo com as informações dos Evangelhos, Jesus só conhecia uma cidade digna desse
nome: Jerusalém. No entanto, é possível que tenha visitado Séforis, pelo menos,
ocasionalmente. Ele não era um cosmopolita; baseou a sua atividade nas pequenas cidades e
aldeias da Galileia, sobretudo naquelas que se encontravam na margem do mar. Apesar de Jesus
ter ficado dececionado com a receção que teve nas aldeias da Galileia, tendo-se lamentado em
relação a algumas delas, Séforis, Tiberíades e Citopólis nem sequer isto receberam.
É difícil saber o peso que devemos atribuir ao facto de Jesus ter evitado os centros urbanos (ao
que parece). Veremos mais adiante que ele prometeu o Reino aos excluídos e aos pecadores,
incluindo aos cobradores de impostos e às prostitutas. Poderia pensar-se que tal missão o teria
levado a Tiberíades, a capital. Ele podia ter ido a Séforis para protestar contra a riqueza da
aristocracia. O desejo de atingir todo o Israel podia tê-lo levado aos centros de maior
concentração populacional. Contudo, Jesus atuou entre os seus: habitantes das aldeias, artesãos,
negociantes, camponeses e pescadores.
Talvez o tenha feito simplesmente porque eram seus iguais. Ele identificava-se com os fracos e
os oprimidos - eles eram, por natureza, os destinatários da sua missão. Além disso, tal como
muitos profetas e visionários, ele não fez cálculos do tipo dos nossos. A pergunta implícita no
último parágrafo - «se queres converter os pecadores, então, porque não vais a Tiberíades?» -
não lhe diria nada. Quando pensava em «todo o Israel», não fazia cálculos, perguntando-se:
«como posso alcançar o maior número possível de pessoas da maneira mais eficaz?» Pensava,
certamente, em termos simbólicos e, provavelmente, representativos - os doze discípulos
simbolizavam e representavam todo o Israel (ver, mais adiante, pp. 159-160,234 e segs.).
Sabemos que Paulo, Pedro, Tiago e João pensaram o mesmo alguns anos mais tarde.
Distribuíram a missionação do mundo entre eles - Pedro, para os judeus, Paulo, para os gentios
(GI 2, 9) - mas ninguém foi a Alexandria. Paulo, depois de ter fundado comunidades em cerca
de uma dúzia de cidades da Ásia Menor e da Grécia, disse que tinha «completado» os
evangelhos e que não tinha mais campo de ação naquela região, pelo que tinha de ir para
Espanha (Rm 15, 19. 23s). Este «completamento» era apenas simbólico e representativo.
144
Portanto, Jesus era um homem proveniente de uma aldeia na Galileia, cuja atividade se limitou a
outras aldeias e pequenas cidades na região e nas redondezas - e, no entanto, estava convencido
de que a sua missão era importante para todo o Israel.

Um movimento itinerante
Vimos que os Evangelhos descrevem Jesus e os seus discípulos como itinerantes. Alguns deles,
se não todos, tinham casa e família, mas passavam muito tempo em viagem e não existem
referências de que trabalhassem durante a vida pública de Jesus. Por um lado, estavam ocupados
com o anúncio do Reino e, por outro lado, o chamamento dos discípulos mais íntimos tinha
como condição que eles deixassem tudo. No entanto, tinham de ter algum apoio financeiro. As
aves do céu comem de graça (Mt 6, 26), mas as pessoas, não. Em Mateus 10, os discípulos são
encarregados de uma missão. Na sua forma atual, a passagem reflete o conhecimento da igreja
pós-ressurreição, mas, mesmo assim, pode fornecer informações sobre a forma como era
suposto viverem os seguidores de Jesus:
Não leveis nem ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos; nem alforge para o caminho,
nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado; pois o trabalhador merece o seu sustento. Em
qualquer cidade ou aldeia onde entrardes, procura i saber se há nela alguém que seja digno, e
permanecei em sua casa até partirdes. (M tIO, 9-11)
As cartas de São Paulo mostram que alguns dos missionários cristãos seguiam estas instruções
depois da morte de Jesus. Segundo Paulo, o Senhor ordenou «que aqueles que anunciam o
Evangelho vivam do Evangelho» (1 Cor 9, 14), o que corresponde, mais ou menos, à citação de
Mt 10,9-11. Paulo escreve que, embora ele e Barnabé não aceitassem dinheiro, e apesar de ele
viver do trabalho das suas mãos, não era isso que se passava com os outros apóstolos. Eles
viviam e viajavam juntamente com as suas mulheres à custa das igrejas (1 Cor 9,3-7). No
entanto, Paulo não abdicou completamente deste direito apostólico: durante a sua atividade em
Corinto, recebeu dinheiro de outras igrejas (2 Cor, 11, 8s) e a Carta aos Filipenses (4, 14-16)
informa-nos do apoio que a igreja local lhe prestou enquanto
145
ele esteve na Macedónia. Por fim, na Carta aos Romanos 16, 2, Paulo menciona uma mulher,
Febe, como sua patrona e de outros. Por conseguinte, Paulo viveu frequentemente de acordo
com a afirmação do Senhor: «o trabalhador merece o seu sustento» - isto é, da caridade.
De acordo com João (21, 1-3), os discípulos de Jesus regressaram à pesca depois da execução
deste. Contudo, os Atos dos Apóstolos afirmam que eles iniciaram imediatamente a sua
atividade em Jerusalém, onde não tinham qualquer apoio financeiro visível. O movimento con-
quistou seguidores que dispunham de bens, como Barnabé, por exemplo (Act 4, 36 e segs.), que
colocavam o seu dinheiro e os seus haveres num cofre comum. Os apóstolos dependeram do
apoio financeiro de outros desde o início da sua atividade.
Por conseguinte, as fontes dos primeiros tempos da igreja indicam que os seguidores de Jesus
esperavam ser apoiados por outros durante a sua atividade missionária. Esta expectativa
derivava, provavelmente, da sua prática enquanto seguidores de Jesus durante a sua vida. Os
Evangelhos mostram, de vez em quando, Jesus e, por vezes, os discípulos, a comer em casa de
alguém. É o que acontece em Marcos 2, 15-17.16 Em Lucas 7, 36-50, Jesus come com Simão,
um fariseu, em 11, 37-44, come em casa de um outro fariseu e em 19, 1-10 fica em casa de
Zaqueu, um cobrador de impostos. Não sabemos se estes pormenores correspondem à verdade,
mas podemos aceitar o sentido geral destas passagens: ao deslocarem-se de aldeia em aldeia,
Jesus e os seus seguidores encontraram alguém disposto a oferecer-lhes comida e um
alojamento simples. Segundo Lucas, Jesus e os seus discípulos dispunham de meios de sustento
ainda mais amplos: enquanto andavam pela Galileia, Jesus e os Doze faziam-se acompanhar por
mulheres, incluindo «Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demónios, e Joana,
mulher de Cuza, administrador de Herodes, e Susana e muitas outras, que os serviam com os
seus bens.» (Lc 8, 1-3.)
146
O autor de Lucas, que também escreveu os Atos dos Apóstolos, queria chamar a atenção para as
mulheres importantes que apoiavam primeiro Jesus e, depois, também os seus apóstolos: em
Tessalónica, «alguns deles ficaram convencidos e juntaram-se a Paulo e a Silas, bem como o
fizeram grande número de crentes gregos e muitas mulheres importantes.» (Act 17, 4) Lucas
tinha um interesse especial pela piedade das mulheres e pelo seu papel na religião, em geral;
além disso, queria demonstrar que o cristianismo atraía as classes mais altas. Por isso, é possí-
vel que a passagem citada (8, 1-3) exagere a dimensão do apoio dado a Jesus e aos seus
seguidores pelas mulheres, entre as quais se encontrava uma com algum estatuto social (a
mulher do camareiro de Antipas).
De qualquer modo, é evidente que estas mulheres existiram, realmente, no início do
cristianismo. Já mencionámos Febe, que era patrona de Paulo e de outros. De Corinto,
conhecemos Cloé, que era suficientemente rica para enviar os seus escravos ou servos livres
com uma mensagem para Paulo (1 Cor 1,11). Além disso, há fenómenos análogos: as mulheres
constituíam, por vezes, as principais apoiantes de outros movimentos religiosos. Foi isto que
aconteceu, por exemplo, numa fase inicial do farisaísmo. Embora Herodes Magno se opusesse
aos fariseus, estes eram, em parte, protegidos e apoiados por mulheres da corte. Na opinião de
Nicolau de Damasco, o cronista da corte de Herodes, este facto constituía um descrédito para os
fariseus: só atraíam mulheres.!? Portanto, ao sublinhar o papel das mulheres, Lucas não estava,
necessariamente, a apresentar Jesus e o seu movimento de uma forma que os leitores de então
considerassem favorável.
Parece, portanto, que podemos aceitar a afirmação de Lucas como provável em termos gerais:
Jesus e os outros eram apoiados, em parte, por mulheres abastadas e algumas de entre elas
também o «seguiam». Em que sentido é que eram seguidoras?
Em Lucas 8, 1-3, as mulheres acompanhavam Jesus e os seus discípulos do sexo masculino
quando estes iam «de cidade em cidade, de aldeia em aldeia». Além disso, as mulheres
encontravam-se no grupo das pessoas que acompanharam Jesus entre a Galileia e Jerusalém.
Segundo Mateus '2.7, 55 e segs., havia «muitas mulheres», entre elas «Maria de Magdala,
Maria, a mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos
147
de Zebedeu». Lucas não menciona nomes nesta passagem, referindo-se apenas a «mulheres que
o tinham seguido desde a Galileia» (23, 55). Marcos menciona «Maria de Magdala, Maria, a
mãe de Tiago Menor e de José, e Salomé», acrescentando que estas também o seguiam na
Galileia e que o «serviam». Acrescenta que «também havia muitas mulheres que tinham vindo
com ele para Jerusalém» (15, 40-41). A palavra grega aqui traduzida com «servir» é diakoneo, a
mesma palavra utilizada em Lc 8, 3, que significa, provavelmente, «apoiado». Penso que é
provável que as mulheres só muito raramente seguissem Jesus no sentido físico do termo, como,
por exemplo, em peregrinações a Jerusalém, nas quais era geralmente aceitável que homens e
mulheres viajassem juntos em grupos. Se as mulheres tivessem, de facto, viajado com Jesus e
com os seus discípulos em outras ocasiões e passado a noite pelo caminho, encontraríamos nos
Evangelhos um eco da crítica que este comportamento escandaloso teria provocado. As apoian-
tes desempenharam, provavelmente, o seu papel mais tradicional, arranjando alojamento e
alimentação.
Jesus disse que «as raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não
tem onde reclinar a sua cabeça». (Mt 8, 20). Será que ele e os seus discípulos mais próximos
ficavam, por vezes, sem alojamento durante a noite? Será que o seu ministério era sasonal? Não
temos respostas certas para estas perguntas. A temperatura média em Tiberíades no mês de
Janeiro situa-se, hoje, entre os 10 e os 18 graus e o número de dias de chuva situa-se entre os
trinta e os cinquenta por ano, sendo que chove sobretudo entre o início de Dezembro e o início
de Março.l'' No entanto, muitos dias são mais desagradáveis do que revelam estas temperaturas.
Além disso, Jesus e os seus discípulos passaram parte do tempo afastados do mar da Galileia,
portanto, em regiões com um clima um pouco mais rigoroso. Não é possível que o grupo
regressasse a Cafarnaum sempre que o tempo estava mau. Jesus deve ter levado uma vida de
pobreza e sem lar durante a sua vida pública; mas, por vezes, tanto ele como os seus
acompanhantes, devem ter encontrado alojamento e camas, em especial, quando viajavam no
Inverno.
148
Estas considerações fazem-nos regressar à questão do período de duração da missão de Jesus
(ver, atrás, pp. 96-99), mas não a resolvem. Mesmo que o seu ministério só tivesse durado
alguns meses, terminando com a Páscoa, na Primavera, teria tido que passar um Inverno e, para
tal, ele e os seus acompanhantes necessitavam de um certo apoio. Temos de adivinhar como
seria a sua vida, a partir de alguns indícios: não tinha casa; viajava na companhia dos seus
discípulos, um grupo composto - pelo menos, durante uma parte do tempo - por mais pessoas do
que apenas os «Doze»; o grupo quase não tinha reservas financeiras; por vezes, podiam comer e
dormir confortavelmente, graças ao facto de Jesus ter encontrado alguns apoiantes abastados,
sobretudo, mulheres.
149

9. O início da missão de Jesus


Depois do relato sobre o batismo de Jesus (discutido no capítulo 7), os Evangelhos sinópticos
apresentam mais material introdutório: a tentação de Jesus, o chamamento dos discípulos e as
curas e os ensinamentos através dos quais ele chamou a atenção das pessoas pela primeira vez.

Jejum e tentação (Me 1, 128; Mt 4, 1-11; Le 4, 1-13)


Depois do seu batismo, Jesus foi fazer jejum para o deserto, onde (de acordo com os
Evangelhos) foi tentado por Satanás (Marcos) ou pelo demónio (Mateus e Lucas). Todos os três
Evangelhos dizem que Jesus foi conduzido pelo Espírito de Deus. Em Marcos, a história da
tentação é extremamente breve: «Em seguida, o Espírito impeliu-o para o deserto. E ele ficou no
deserto quarenta dias, tentado por Satanás e estava entre as feras e os anjos serviam-no.» Mateus
e Lucas oferecem relatos muito circunstanciados; escrevem, sobretudo, acerca das tentações.
Debrucemo-nos um pouco sobre a historicidade e o significado destas passagens.
151
A alegação de que Jesus jejuou durante quarenta dias recorda os quarenta anos durante os quais
Israel vagueou pelo deserto, depois da fuga do Egipto. Este paralelismo entre a permanência de
Israel no deserto durante quarenta anos e os quarenta dias que Jesus passou no deserto
confronta-nos com a dificuldade habitual de não sabermos se foi Jesus ou os primeiros cristãos
que criaram esta correlação. É intrinsecamente provável que Jesus tenha procurado a solidão, de
vez em quando, para rezar e meditar, que se tenha sentido tentado, por vezes, e que tenha
jejuado, antes de começar a sua vida pública. É possível que até o número «quarenta» remonte a
ele. Como veremos mais adiante, ele utilizou pelo menos um número (doze) com uma intenção
simbólica; é possível que tenha sido ele próprio que falou, mais tarde, aos seus discípulos sobre
um jejum de quarenta dias. Apesar de ninguém poder viver durante quarenta dias sem comida e
sem água, para os judeus, a palavra jejum» não significa necessariamente que a pessoa se
abstenha completamente de todo o sustento. Nem Lucas, que escreve que Jesus «não comeu
nada» (4,2), diz que ele não bebeu água. É razoável pensar que Jesus jejuou e rezou durante
vários dias, apenas com um mínimo de comida.
Embora Jesus, mais tarde, durante a sua vida pública, se tenha retirado para rezar e meditar, os
Evangelhos indicam que ele não jejuava, o que era alvo de crítica (Me 2, 18-22). Suponho que
Jesus jejuava no Dia da Reconciliação, dado que isso constitui um mandamento bíblico, e que,
em geral, ele parece ter observado a Lei bíblica. Contudo, tanto ele como os seus discípulos, não
observavam outros jejuns que se pudessem ter tornado habituais.
O enquadramento material do jejum e da tentação merece ser comentado. O deserto da Judeia é
um lugar terrível. É muito montanhoso, pedregoso e árido. Encontra-se entre as montanhas da
Judeia e o vale do Jordão, estendendo-se cerca de 120 quilómetros para norte e sul e cerca de 15
quilómetros para este e oeste. A viagem de Jerusalém para o vale do Jordão e o mar Morto leva
muito rapidamente ao deserto, iniciando-se uma descida íngreme das montanhas para o vale; em
152
18 quilómetros, desce-se cerca de 1150 metros (de cerca de 750 metros acima do nível do mar
para cerca de 390 metros abaixo do nível do mar)" É perigoso para um viajante solitário
abandonar a estrada e entrar no deserto. Há abismos por todo o lado e o terreno é extremamente
acidentado. É fácil torcer um pé ou partir um osso, ficando-se impossibilitado de voltar par trás.
É certo que alguns aprendem a orientar-se no deserto; ele serviu como refúgio para os
perseguidos, bem como para ladrões (como na parábola do bom samaritano). No entanto, para
encontrar comida e água é necessário descer até ao vale do Jordão, onde existem fontes e zonas
férteis. Jericó, uma das cidades continuamente habitadas mais antigas do mundo é um oásis na
margem oriental do deserto que deve a sua verdura e a sua fertilidade a uma fonte abundante. A
seita do mar Morto vivia perto de uma outra fonte, um pouco a sul de Jericó.
A história da tentação de Jesus no deserto é tanto simbólica (quarenta dias), como mitológica.
Um mito é uma história na qual um ser sobrenatural age a nível humano. No presente caso,
Satanás (ou o demónio) é o ser sobrenatural. Marcos menciona-o apenas de passagem, mas, nas
narrativas mais exaustivas de Mateus e Lucas, o demónio fala com Jesus, leva-o do deserto para
o monte do Templo, mostra-lhe «todos os reinos do mundo» e promete-lhe domínio sobre eles.
Estes traços são «mitológicos». Um mito não é equivalente a uma mentira; o mito pode ser
verdade em determinado sentido. Alguns leitores antigos, tal como alguns modernos,
acreditavam que havia uma correspondência exata entre a história mitológica e o acontecimento
real. Outros, pelo contrário, consideravam o mito uma fantasia poética que não continha
qualquer verdade literal. Permitam-me que apresente um exemplo retirado do artigo sobre
mitologia de H. 1. Rose (Oxford Classical Dictionary).
Era comum dizer ... que o desfiladeiro de Peneus tinha sido criado por Poseidon [o deus grego
do mar]. .. Heródoto considera isto uma mera expressão pitoresca para dizer que o desfiladeiro
tinha surgido de um terramoto ... Mas é muito mais provável que o autor da história tivesse uma
imagem mental nítida do desfiladeiro que, aos seus olhos, sugeria uma grande finda, esculpida
por um ser gigantesco e poderoso, e que achando esta imagem satisfatória para a sua
imaginação, não se preocupasse muito com a sua plausibilidade.
153
Considero bastante provável que Mateus e Lucas, que acreditavam em anjos, em demónios e no
Espírito de Deus, pensassem que o demónio tinha levado, realmente, Jesus ao pináculo do
Templo, mostrando-lhe visões. Mas é raro podermos ter a certeza de quando os autores da
Antiguidade consideravam as suas narrativas como meras apresentações pitorescas e quando
acreditavam que elas eram literalmente verdadeiras. Voltaremos a uma questão relacionada com
isto no próximo capítulo, no qual falaremos de milagres.
No relato de Marcos, Jesus foi tentado por «Satanás». Embora Marcos tenha escrito em grego,
utilizou esta palavra hebraica, enquanto Mateus e Lucas utilizaram o equivalente grego habitual,
isto é, «demónio» (Mt 4, 12; Me 1, 12; Lc 4, 2). A palavra hebraica satan significa «adversário»
e, na Bíblia Hebraica, «o adversário» não é necessariamente um inimigo de Deus. Em Nm 22,
22 a palavra designa um dos anjos de Deus. Satanás desempenha um papel importante no Livro
de Job onde é um dos conselheiros de Deus que duvida, no entanto, da firmeza da fé de Job e ao
qual Deus permite que faça Job sofrer, para ver se este perde a fé.
Ao que parece, foi durante o cativeiro na Babilónia (597 a 537 a.e.c.) que Satanás ganhou uma
dimensão maléfica, tornando-se, praticamente, um segundo deus, um deus mau. Na época do
Novo Testamento, Satanás já dispunha, sob um ou outro nome, de uma esfera própria como o
poder espiritual decisivo que se opunha a Deus. O seu reino era um reino de chamas, para onde
eram mandadas as almas condenadas (M t 25, 41). Satanás podia entrar no coração, semeando a
maldade (Mt 13, 19); foi ele que levou Judas a trair Jesus (Lc 22, 3; Jo 13,2). Por fim, ele tinha
os seus próprios anjos, tal como Deus (Mt 25, 41).
Por que razão adquiriu Satanás uma tal relevância naquele tempo? Ao que parece, foi durante o
cativeiro na Babilónia que os judeus começaram a ser completamente monoteístas. Antes,
pensavam que o seu Deus era superior, mas não negavam completamente a existência de outros
deuses. Uma religião que defende que só existe um deus tem dificuldades em explicar o mal.
Foi o Deus bom e único que criou o mal? Porque o permite Ele? Face à coexistência real do
bem e do mal, algumas tradições religiosas postularam a existência de duas divindades opostas.
Esta é a característica teológica mais relevante no zoroastrismo, que surgiu na Pérsia no século
VI ou V a.e.c. e que influenciou o pensamento mediterrânico em muitos aspetos. O judaísmo
deve, provavelmente, a ideia de um poder maligno, oposto a Deus, ao
154
zoroastrismo. (O cristianismo, por seu turno, herdou esta ideia do judaísmo.) O judaísmo
permaneceu fiel ao monoteísmo, rejeitando a ideia da existência de um deus oposto, mas aceitou
alguns aspetos do dualismo persa, como o conflito entre Deus e as forças do mal. Esperava-se,
naturalmente, que Deus acabasse por triunfar sobre o poder maligno, embora, neste mundo,
parecesse - e ainda pareça - que é o mal que vence.
O conflito de Jesus com o mal, que aparece, primeiro, na figura de Satanás e, mais tarde, dos
demónios, constitui um dos temas principais dos Evangelhos. Regressaremos ao conflito com os
demónios no próximo capítulo, quando discutirmos os exorcismos. Aqui, registamos que os
Evangelhos colocam no início das suas narrativas um conflito fundamental com o chefe das
forças do mal, o próprio Satanás.
Mateus e Lucas falam de três tentações. O demónio desafiou Jesus a transformar as pedras em
pão, a lançar-se do pináculo do Templo, confiando que os anjos o salvariam, e a aceitar «todos
os reinos do mundo, com a sua glória». Estas ofertas tinham uma condição: «Tudo isto te darei,
se, prostrado, me adorares» (de acordo com a ordem de Mateus; Mt 4, 1-11; Lc 4, 1-13). Jesus
responde a cada tentação com uma citação da Escritura. Ele responde à tentação de transformar
as pedras em pão, dizendo: «Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da
boca de Deus.» (Citação de Dt 8,3.) Recusa a tentação de tentar a Deus e de chamar a atenção
sobre si próprio, saltando do pináculo do Templo. E cita Dt 6, 16: «Não tentarás o Senhor teu
Deus.» Em relação à tentação de se tornar senhor sobre todos os reinos do mundo, adorando
Satanás, citou uma das passagens mais conhecidas da Bíblia: «Adorarás ao Senhor, teu Deus, e
só a Ele servirás» (Dt 6, 13). Estas palavras provêm de uma passagem que se chama, em
hebraico, Chema - «Escuta», de acordo com a palavra inicial do mandamento: «Escuta, Israel!
O Senhor, nosso Deus, é o Senhor e servirás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com
toda a tua alma e com todas as tuas forças.» Jesus haveria de citar esta passagem, que os judeus
piedosos citam duas vezes por dia, quando lhe perguntaram qual era o maior mandamento.
Duas das respostas atribuídas a Jesus condizem com aspetos centrais da sua vida pública
posterior. Primeiro, hesitou em «mostrar-se» e rejeitou «provar quem era» através de «sinais».
Em segundo lugar, concebia-se a si próprio como um servo de Deus. Movia-se no quadro
conceptual geral sobre Deus e Israel oferecido pela Escritura judaica,
155
não apontando para si próprio, mas sim para Deus. É digno de nota que não tenha falado na
primeira pessoa. Ele não disse: «não é assim que eu faço as coisas», mas sim, efetivamente, que
«isto não corresponde à vontade de Deus, tal com esta se revela na Escritura».
A mais interessante das três tentações é a de se tornar um rei à escala universal. Veremos que
Jesus esperava ansiosamente a vinda do Reino de Deus, mas é difícil dizer que tipo de reino
esperava. Foi executado como alguém que pretendia tornar-se «rei dos judeus» e, depois da sua
morte e ressurreição, os seus discípulos viram nele o Messias, o líder «ungido» de Israel. Os
outros aspetos do seu ensinamento e da sua ação mostram que ele se considerava rei em certo
sentido. Esta tentação constitui o início de um vasto e rico tema dos Evangelhos: o Reino de
Deus viria, mas não se basearia em milagres espetaculares, nem seria um reino no sentido
habitual da palavra. É perfeitamente possível que Jesus tenha lutado consigo próprio por causa
do tipo de reino que queria e a história da sua tentação apresenta este debate interior de uma
forma gráfica.
A questão da transformação de pedras em pão também encontra eco nas narrativas posteriores
dos Evangelhos, visto que se diz que Jesus multiplicou duas vezes peixes e pão e, segundo João,
transformou água em vinho durante umas bodas em Caná. Portanto, a recusa em transformar
pedras em pão não inicia uma série de recusas semelhantes. A questão talvez seja apenas que
Jesus estava a fazer jejum; a fome não o levaria a pedir favores especiais a Deus. Iremos ver que
existe uma tensão ao longo dos Evangelhos entre a realização de milagres e a recusa em recorrer
a eles para provar quem era. Neste caso, a recusa não é em dar um sinal aos outros, visto que
Jesus estava sozinho. Parece tratar-se apenas de uma história sobre a sua coragem moral e a sua
dedicação, uma vez que Jesus estava no início de uma vida na qual não se poupou, mas
renunciou a tudo pela sua causa - incluindo à sua própria vida.
A recusa de se lançar do Templo, deixando-se salvar por anjos, é a mais difícil de explicar, visto
que este tipo de dispositivo dramático não se encontra nas histórias posteriores dos Evangelhos.
No entanto, é coerente com as recusas subsequentes em fazer «sinais», quando os seus inimigos
o desafiaram para tal.
A narrativa da tentação - até na forma breve de Marcos - tem um papel importante na história de
Jesus. Os autores dos Evangelhos sinópticos atribuem a máxima importância à sua dedicação
intensa, ao
156
o seu recolhimento para refletir na sua missão, assim como à sua recusa de seguir o caminho
fácil, de se exibir e de ser o rei dos reis que a maioria das pessoas esperaria que ele fosse.
Também dão a entender que Jesus podia ser tentado, que tinha de lutar consigo próprio. Lucas
não conclui o seu relato dizendo que os anjos serviram Jesus (como Mateus e Marcos), mas
indicando um regresso de Satanás: «ele retirou-se de junto dele até ao momento oportuno» (Lc
4, 13). Lucas estava, provavelmente, a pensar no futuro. As dúvidas em relação a si próprio
regressam num momento decisivo perto do fim da história: quando Jesus, sozinho, reza para que
«este cálice» - a execução iminente - seja afastado dele (Mc 14,36 e par.).
Suspeito que a estreita interligação temática entre as narrativas da tentação e as histórias
posteriores nos Evangelhos constitui um indício de arte literária. No entanto, também é razoável
pensar que Jesus jejuou e rezou, de facto, antes do início da sua vida ativa e que foi sujeito a
tentações. A conclusão mais segura talvez seja que os Evangelhos sinópticos, sobretudo Mateus
e Lucas, constituem elaborações «mitológicas» baseadas num facto.

O chamamento dos discípulos


Depois do seu período de jejum, Jesus regressou à Galileia para começar a sua vida ativa. Os
Evangelhos sinópticos concordam que Jesus foi rejeitado em Nazaré, que foi para Cafarnaum e
que chamou discípulos na cidade e nos seus arredores, mas divergem no que diz respeito à
sequência exata dos acontecimentos. Começaremos com Nazaré, por uma questão de
conveniência. Os Evangelhos não registam senão fracassos nesta cidade. Ele era demasiado
conhecido e a multidão perguntava: «Não é ele o carpinteiro (em Mateus, «filho do
carpinteiro»), o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs
não estão aqui entre nós?» E recusavam-se a ouvi-lo. Ele retirou-se, comentando: «Um profeta
só é desprezado na sua pátria e entre os seus parentes e em sua casa» (Mc 6, 1-6; Mt 4, 12s; Lc
4, 16-30).
Quer tenha sido antes ou depois desta desilusão, o que é certo é que Jesus encontrou um público
mais recetivo em Cafarnaum, na costa do mar da Galileia. Foi ali que chamou os seus primeiros
discípulos. Viu Simão (mais tarde chamado Pedro) e o seu irmão André a
157
lançarem as suas redes ao mar e disse-lhes: «Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens.»
Jesus chamou também dois outros irmãos que eram pescadores: Tiago e João, os filhos de
Zebedeu. Estes estavam com o seu pai a consertar as suas redes e deixaram o barco e o pai
quando Jesus os chamou (Mt 4, 18-22 / / Mc 1, 16-20).
A história do chamamento dos primeiros quatro discípulos em Mateus e Marcos sublinha a
presença de autoridade de Jesus, assim como a prontidão dos discípulos para abandonarem tudo
a fim de o seguirem. As histórias subsequentes reforçam esta ideia geral. Pedro perguntou, uma
vez, o que receberiam como recompensa por terem abandonado tudo. Jesus responde que, na
nova era, os discípulos julgariam as doze tribos de Israel e que os outros que deixaram «casas,
irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos por causa do meu nome, receberão cem vezes mais e
herdarão a vida eterna» (Mt 19, 27-29) Mas, para já, exigia-se o sacrifício de si mesmo.
A descrição do chamamento dos primeiros discípulo em Lucas é notoriamente diferente. Jesus
estava a ensinar junto ao mar e a multidão comprimia-se à volta dele. Ele entrou num barco de
pesca, que pertencia a Simão, e começou a ensinar do barco. Depois, diz a Simão para lançar as
suas redes e Simão respondeu que tinham pescado toda a noite em vão. Mesmo assim, lançou as
redes e apanhou muito peixe, tanto que houve outros pescadores que também puderam encher as
suas redes. Simão reconheceu Jesus como enviado de Deus e pediu-lhe para ele se ir embora,
dizendo: «Afasta-te de mim, porque sou um homem pecador.» Tanto ele como os seus
companheiros - Tiago e João - ficaram estupefactos com o sucedido. Regressaram a terra e
tornaram-se todos discípulos de Jesus (Lc 5, 1-11). Note-se que Lucas inclui Pedro, Tiago e
João na mesma cena, apresentando-os como companheiros, mas não menciona André.
Apesar de, na maioria de casos, deixarmos João de lado, neste caso, é necessário fazer uma
exceção. A sua história é completamente diferente (Jo 1,29-51). Dois discípulos de João
Baptista ouviram este fazer o seguinte comentário acerca de Jesus: «Eis o Cordeiro de Deus», e
seguiram-no. Um deles era André, que trouxe consigo o seu irmão, Pedro, associando-se ambos
a Jesus - antes da prisão de João e, ao que parece, em Betânia, não em Cafarnaum (Betânia: Jo
1, 28). Na
158
Galileia, Jesus encontrou Filipe e chamou-o; Filipe, por seu lado, recrutou Natanael (os
Evangelhos sinópticos não o mencionam). O Evangelho de João pretende salientar a
subordinação do Baptista a Jesus; o facto de Jesus ter ficado com um discípulo de João faz parte
deste esquema. A história nos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), segundo a qual Jesus
chamou os seus primeiros discípulos enquanto estes estavam a pescar, parece mais provável.
Mesmo assim, temos de supor que esta narrativa também é abreviada e idealizada, omitindo
pormenores ao enfatizar o carácter imediato da resposta dos chamados. Lucas manifesta a
necessidade de circunstâncias adicionais para explicar a razão pela qual os discípulos seguiram
Jesus: Pedro, Tiago e João viram um milagre - uma pescaria abundante - e isto persuadiu-os a
seguirem Jesus. Poderia supor-se que a fama e a mensagem de Jesus já tinham chegado aos
pescadores e que estes sabiam algo sobre o homem que os chamou do seu trabalho. Considero o
relato fundamental credível sob o ponto de vista histórico: os primeiros discípulos eram
pescadores da Galileia; entre eles, encontravam-se Pedro, André, e Tiago e João; eles
abandonaram as suas redes para seguirem Jesus.
As narrativas dos Evangelhos sinópticos sobre o chamamento dos discípulos permitem-nos
ilustrar o rumo que a tradição seguiu. Os futuros discípulos já sabiam algo sobre Jesus, de forma
que já tinham uma ideia de quem ele era quando os chamava. Em Marcos e Mateus, podemos
observar que os pormenores originais foram todos eliminados. Ficou apenas a ideia central:
Jesus chamou e os discípulos obedeceram ao seu chamamento. Lucas reintrodux um contexto
narrativo que dá uma explicação: Jesus ganhou a confiança dos pescadores dizendo-lhes onde
pescar. Estes resistiram, inicialmente, mas acabaram por se tornar discípulos. É duvidoso que
Lucas dispusesse de uma tradição antiga que remontasse ao verdadeiro acontecimento. Ele
sentiu que faltava uma explicação e, portanto, forneceu uma, isto é, inventou uma história.
As tradições relativas ao número e à identidade dos seguidores mais próximos de Jesus são tão
importantes quanto interessantes, pelo que iremos examiná-las mais detalhadamente.
Constatamos, em primeiro lugar, que, embora os quatro Evangelhos, os Atos dos Apóstolos e
Paulo falem de doze discípulos especiais (designados frequentemente como «os Doze»), não
existe plena concordância no que diz respeito aos seus nomes. A explicação mais provável é que
o próprio Jesus utilizava este termo simbolicamente e que este número era recordado
159
como um número simbólico, embora o número exato dos discípulos mais próximos pudesse ter
variado. O significado simbólico do número devia ser óbvio para toda a gente: representava as
doze tribos de Israel. Com o chamamento de discípulos, assim como com a referência aos
«Doze», Jesus pretendia demonstrar que visava a plena restauração do povo de Israel. O valor
simbólico deste número é particularmente claro em Mt 19, 28: os doze discípulos julgarão as
doze tribos de Israel. Dez das doze tribos tinham desaparecido havia séculos, quando a Assíria
conquistou o reino do Norte. No entanto, muitos judeus continuavam a ter a esperança de que,
um dia, Deus restaurasse as dez tribos perdidas: portanto, «doze» representa a expectativa de um
milagre escatológico, de um ato decisivo de Deus para redimir o Seu povo.
As cartas de Paulo foram escritas antes dos Evangelhos, pelo que a sua referência aos Doze
constitui a prova mais antiga. Esta encontra-se numa passagem que ele repete como «tradição» e
que, por isso, remonta aos primórdios do movimento. No capítulo 15 da La carta aos Coríntios,
Paulo apresenta uma lista das aparições do Ressuscitado que lhe tinha sido entregue: Jesus
apareceu a Cefas (Pedro), depois, aos Doze, mais tarde, a mais de quinhentos irmãos, depois a
Tiago, a seguir, a «todos os Apóstolos» e, em último lugar, ao próprio Paulo (1 Cor 15, 5-8).
Note-se que o número simbólico dos doze continua a ser utilizado nesta lista de Paulo, embora
Judas já estivesse morto.
Mateus, Marcos e Lucas apresentam listas completas dos Doze; a lista de Lucas repete-se nos
Atos dos Apóstolos (Mt, 10, 1-4; Me 3, 13-19; Lc 6, 12-16; Act 1,13). O Evangelho de João fala
dos Doze (Jo, 6, 67-71; 20, 24), mas não faz uma lista, embora alguns deles sejam mencionados
individualmente. É possível aprender algo interessante da lista e do debate geral sobre os Doze.
(A análise que se segue sobre as provas relacionadas com os doze discípulos é resumida numa
lista no Apêndice 11.)
O círculo mais próximo era composto por três discípulos: Simão (a quem Jesus passou a
chamar, mais tarde, «Pedro») e os dois filhos de Zebedeu, Tiago e João. Os Evangelhos
distinguem-nos frequentemente e, depois da morte e da ressurreição de Jesus, eles irão assumir
uma posição de liderança no movimento cristão. Desempenham um papel proeminente em
Mateus, Marcos e Lucas e a liderança de Pedro e de João é evidente nos Atos dos Apóstolos e
nas cartas de Paulo. Curiosamente, o Evangelho de João não menciona Tiago e João,
160
embora se refira aos filhos de Zebedeu (Jo 21, 2). Alguns pensam que o discípulo «que ele
amava» do quarto Evangelho, que não é mencionado pelo nome, é o discípulo João.
Os quatro Evangelhos e os Atos dos Apóstolos mencionam todos André como irmão de Pedro,
assim como Filipe e Tomé como dois dos Doze, mas apenas João lhes atribui um papel
particular. Se não tivéssemos este Evangelho, os três discípulos mencionados seriam apenas
nomes numa lista.
Marcos, Lucas e os Atos dos Apóstolos incluem Mateus na lista dos discípulos. O Evangelho de
Mateus identifica-o com o cobrador de impostos que Jesus chamou, mas, em Marcos e Lucas,
este tem o nome de Levi.
Os quatro Evangelhos e os Atos dos Apóstolos mencionam todos Judas como o discípulo que
traiu Jesus.
Havia um segundo Simão, a quem Mateus e Marcos chamam «Cananeu», mas Lucas e os Atos
dos Apóstolos chamam «o zelota».
Tiago, o filho de Alfeu, está na lista dos discípulos em Mateus, Marcos, Lucas e nos Atos dos
Apóstolos. A sua mãe, Maria, é mencionada como estando presente na execução de Jesus (Mt
27, 56; Me, 15, 40; Tiago é ali designado como «o mais novo» ou «Tiago Menor»; Me 16, 1; Lc
24, 10). Não sabemos mais nada sobre ele.
O nome Bartolomeu aparece nas listas de Mateus, Marcos, Lucas e dos Atos dos Apóstolos,
mas não temos mais informações sobre ele.
Segundo Mateus e Marcos, o décimo segundo discípulo chamava-se Tadeu, enquanto Lucas e
os Atos dos Apóstolos lhe chamam Judas, o filho de Tiago. O Evangelho de João atribui um
pequeno papel a «J udas, não o Iscariotes» (10 14, 22).
Por fim, João atribui um lugar especial a Natanael, que não é mencionado senão aqui. Em Jo 1,
45-59, Filipe leva Natanael a Jesus e o conhecimento que este tem daquilo que ele estava a fazer
(estava sentado debaixo de uma figueira) leva Natanael a exclamar: «Rabi, tu és o Filho de
Deus! Tu és o Rei de Israell» Jesus declara que aquilo que fez é insignificante, mas promete:
«Hás-de ver coisas maiores do que esta!» Esta profecia também se cumprirá e João menciona
subsequentemente Natanael como um dos sete discípulos aos quais Jesus apareceu junto ao mar
da Galileia (Jo 21, 2).
É óbvio que temos mais de doze nomes, sendo igualmente claro que João dispõe de uma lista
especial, assim como de histórias que não são atestadas por ele. Além disso, o quarto Evangelho
dá importância a discípulos que não desempenham senão papéis menores (André, Filipe
161
e Tomé), assim como atribui um papel importante a um discípulo (Natanael) que as outras
fontes desconhecem. De resto, João confirma Lucas e os Atos dos Apóstolos, ao referir-se a um
segundo Judas no círculo mais restrito dos discípulos.
Algumas destas discrepâncias foram resolvidas tradicionalmente através da suposição de que
alguns discípulos tinham dois nomes. Assume-se frequentemente que Tadeu (Mateus e Marcos)
é a mesma pessoa que Judas, o filho do Tiago (Lucas e Atos dos Apóstolos), e que Judas (não
Iscariotes) (João). Pensa-se, também frequentemente, que Levi é apenas um outro nome para
Mateus. Estas equações baseiam-se no desejo de fazer com que a totalidade dos nomes perfaça
precisamente doze, como se este número não fosse apenas simbólico, mas também exato do
ponto de vista literal, devendo ser utilizado automaticamente. É muito mais provável que o
número doze possua um outro tipo de historicidade: a utilização simbólica que o próprio Jesus
fez do número. Não é que Jesus tivesse só doze discípulos. Parece que tinha mais, mas falou dos
Doze a fim de indicar que a sua missão se dirigia a todo o Israel e que Israel seria plenamente
restaurado no Reino que havia de vir.
Na realidade, Jesus tinha um grupo de seguidores e o seu número foi, por vezes, maior ou
menor de doze. Alguns dos seguidores menos importantes abandonaram o grupo, de modo que,
mais tarde, os primeiros cristãos não sabiam exatamente quem pertencia aos Doze. No entanto,
o próprio Jesus utilizava o número como um símbolo da sua missão e da sua esperança. Os
Evangelhos inseriram a história de Jesus no contexto da história judaica de salvação: Deus tinha
chamado o povo de Israel e salvá-lo-ia no fim dos tempos. Jesus compreendeu a sua própria
vida pública no mesmo contexto. A sua mensagem era, em parte, que as doze tribos de Israel
teriam um lugar no Reino futuro.

Discípulos, seguidores e simpatizantes


Agora que examinámos as tradições sobre os Doze, podemos regressar com proveito aos
«seguidores» e «simpatizantes», a fim de procedermos a distinções mais exatas: «Um
movimento itinerante»). Queremos saber o papel que desempenham nos Evangelhos, tal como
os temos hoje, mas também que posição histórica assumiram na missão de Jesus. Gostaria de
antecipar a ideia fundamental. Jesus anunciou o Reino de Deus a um número muito maior de
162
pessoas do que aquelas que «chamou» para o «seguirem». Tinha (1) discípulos íntimos; (2)
seguidores um pouco mais afastados e (3) simpatizantes ou interessados ainda mais afastados.
Ele teria gostado que todos fossem apoiantes, mas, ao que parece, chamou intencionalmente
apenas alguns para o seguirem no sentido estrito da palavra.
(1) Os discípulos íntimos (os Doze) não desempenham um papel muito importante no relato de
Marcos. O seu papel é negativo em muitos aspetos. Há outros que respondem a Jesus com uma
fé profunda, mas os discípulos ficam confusos e céticos. Quando viram Jesus caminhar sobre a
água, depois de ter alimentado cinco mil pessoas, «ficaram abismados». Marcos comenta que
«não tinham entendido o que se dera com os pães, mas tinham o coração endurecido» (Mc 6,
47-52). Os discípulos do Evangelho de Marcos servem como contraste para outros (a mulher de
origem sirofenícia, o centurião na crucificação) e para o próprio Jesus, sendo o retrato da sua
imprecisão e da sua falta de sensibilidade exagerado.
Em Mateus e Lucas, os discípulos fazem uma figura um pouco melhor, mas a impressão geral
continua a ser de que não eram perspicazes e de que não constituíam uma grande ajuda para o
seu mestre. Existe, no entanto, nos três Evangelhos sinópticos, uma passagem que lhes atribui
um papel positivo no anúncio do Reino de Deus, como uma extensão da vida pública do próprio
Jesus. Jesus chamou os Doze e enviou-os, dizendo-lhe para não seguirem «pelo caminho dos
gentios», nem entrarem «nas cidades dos samaritanos», mas irem, primeiramente, «às ovelhas
perdidas da casa de Israel». Na sua missão, deveriam proclamar que «o Reino dos Céus está
perto», curar os enfermos e fazer exorcismos (Mt 10, 5-15; comparar com missão um pouco
diferente, em Mc 6, 7-13; Lc 9, 1-6).
Os discípulos que não tivessem compreendido Jesus ou a sua missão não poderiam ter cumprido
o mandato de Mt 10,5-15 e par. Suponho que, durante a vida de Jesus, os discípulos não eram
nem de compreensão tão lenta como são habitualmente descritos por Marcos, nem descrentes.
No entanto, também duvido que os discípulos desempenhassem uma missão completamente
independente antes da crucificação. A sua falta de compreensão e de fé serviam como contraste
com outros e a missão independente, como modelo para os missionários cristãos posteriores. A
verdade histórica deve estar no meio: eles compreenderam Jesus melhor do que Marcos quer
fazer crer ao leitor, mas ainda não eram capazes de agir por conta própria.
163
É interessante perguntar-se por que motivo quis Jesus discípulos. Suponho que a resposta é, em
parte, simplesmente, que as pessoas que se sentem chamadas a ensinar e a liderar necessitam de
discípulos e de seguidores. Apesar do retrato de Marcos, os discípulos aprenderam realmente
algumas coisas com Jesus e, quando ele já não estava com eles (exceto em espírito), utilizaram
bem aquilo que aprenderam. Eles também tinham um grande valor simbólico. Jesus falou dos
Doze a fim de simbolizar a futura restauração de Israel e os seus seguidores mais próximos
também simbolizavam a sua convicção de que o Reino de Deus abrangeria sobretudo os pobres,
os fracos e os oprimidos. Se ele tivesse tido discípulos cuja superioridade fosse óbvia para
todos, a sua mensagem poderia ter sido mal interpretada. Por fim, suponho que Jesus pensava
que os seus seguidores iriam desempenhar um papel muito concreto no futuro Reino, mas, sobre
este tema, falaremos mais pormenorizadamente no capítulo 11.
(2) Já conhecemos alguns dos seus «seguidores». Segundo Marcos e Lucas, um cobrador de
impostos, chamado Levi, seguia Jesus, sem, no entanto, fazer parte dos Doze. (Mateus, porém,
equipara o cobrador de impostos ao discípulo Mateus.) Também havia mulheres que seguiam
Jesus (ver mais acima, pp. 109-111). Duas delas eram mães de discípulos (a mãe dos filhos de
Zebedeu e Maria, a mãe de Tiago e de José - presumivelmente Tiago, o filho de Alfeu). Lucas
menciona a mulher de Cuza, administrador de Herodes, e Susana (8, 3), como vimos. Marcos
também menciona Salomé (15, 40) e os Evangelhos sinópticos falam todos de outras mulheres.
No entanto, a mulher que está melhor testemunhada é Maria Madalena, cuja figura é proemi-
nente em todos os quatro Evangelhos.
As mulheres que seguiam Jesus desempenham um papel absolutamente essencial nos relatos
dos Evangelhos. Quando Jesus foi preso, os discípulos varões fugiram (Mc 15, 40 e par.).
Foram as mulheres que assistiram à morte de Jesus, que viram em que túmulo foi sepultado, que
viram que o túmulo estava vazio e que viram o Senhor ressuscitado. Isto é, a identificação do
túmulo vazio com o túmulo de Jesus depende do seu testemunho. Os autores dos Evangelhos
estavam interessados nas mulheres porque estas desempenharam este papel crucial. É difícil
avaliar com segurança a importância que elas tiveram para Jesus durante a sua vida, mas penso
que o seu apoio foi importante (ver, atrás, pp. 148-149).
Foram, provavelmente, estas mulheres que se reuniram com os discípulos, em oração, na «sala
de cima», antes do primeiro sermão de
164
Pedro (Act 1, 14). Não sabemos mais nada sobre elas: a história era, então, tal como nos séculos
anteriores e posteriores, uma história de homens e a maioria das mulheres desempenhava apenas
um papel de apoio. Durante este período breve, crucial para o cristianismo, as mulheres que
seguiram Jesus estiveram na ribalta.
Segundo Lucas, Jesus tinha um grande grupo de outros seguidores: depois da missão dos Doze
(Lc 9, 1-11), Jesus enviou setenta para irem, dois a dois, à sua frente, no seu caminho para
Jerusalém (10, 1-16). Lucas introduz aqui uma parte do material que, em Mateus, se encontra na
entrega da missão aos Doze (Mt 10, 5-15). Os setenta regressam, relatando sucessos nos
exorcismos (Lc 10, 17). É difícil compreender isto. Por um lado, a história reflete corretamente
facto de Jesus ter tido mais do que doze seguidores. Por outro lado, o relato de Lucas depende
da missão dos Doze em Mateus: Lucas parece não ter tido acesso a informações novas no seu
relato sobre a missão dos setenta. É possível que Lucas, reconhecendo que Jesus tinha mais
seguidores, quisesse atribuir-lhes um papel concreto durante a vida de Jesus.
Há uma outra passagem que parece lançar um pouco de luz sobre a questão do número de
seguidores de Jesus. De acordo com uma tradição citada por Paulo, depois da morte de Jesus,
este apareceu «a mais de quinhentos irmãos e irmãs de uma só vez (1 Cor, 15,6). Isto aponta
para um grande número de pessoas que confiavam e acreditavam na missão de Jesus enquanto
ele ainda era vivo. É possível que estes quinhentos devam ser classificados numa categoria
inferior, como «simpatizantes».
É de notar que a família de Jesus não fazia parte dos seguidores. José não aparece depois das
narrativas sobre o nascimento, mas a maior parte do material nos Evangelhos que se refere à
mãe de Jesus e aos seus irmãos é negativa. A dada altura, a família de Jesus quer apanhá-lo,
dizendo que ele «está fora de si» (Mc 3, 21). Segundo Marcos 3,
31-35, a mãe e os irmãos de Jesus ficaram do lado de fora do local onde ele se encontrava, e
mandaram-no chamar. Ele respondeu: «Quem são minha mãe e meus irmãos?» e, olhando à sua
volta para os seus seguidores, acrescentou: «Eis a minha mãe e os meus irmãos! Aquele que faz
a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe.» Outras afirmações
atribuídas a Jesus refletem esta atitude crítica em relação à família. Assim, por exemplo, Mateus
10, 35-37: «Eu vim colocar um homem contra o seu pai ... Quem amar o pai ou a mãe mais do
que a mim, não é digno de mim.» Porém, depois da ressurreição de
l65
Jesus, a sua mãe e os seus irmãos juntaram-se em oração aos discípulos e às mulheres que o
seguiam (Act 1, 14) e alguns dos irmãos de Jesus, nomeadamente Tiago, assumiram a liderança
nos primeiros tempos da Igreja.4 A sua perplexidade perante o comportamento de Jesus e a sua
pretensão de ser enviado de Deus acabou por ser superada.
(3) Por fim, encontramos ainda «simpatizantes». Jesus e os seus discípulos atraíram algum
apoio de pessoas que não o seguiam, como já mostrámos. As referências dos Evangelhos aos
seus nomes não são senão ocasionais. Um deles é Simão, o fariseu, com quem ele jantou, um
outro é Zaqueu, cobrador de impostos (Lc 7, 36-50; 19, l-la). José de Arimateia, um membro do
Conselho, que discordou abertamente da execução de Jesus, ofereceu um túmulo e sepultou o
corpo (Mc 15,42-47). Dignas de nota são, novamente, as mulheres. Existe um complexo
interessante de passagens nas quais as mulheres aparecem, em parte, como seguidoras que
ajudaram Jesus (como foi referido, pp. 148-149), mas sobretudo como simpatizantes.
Comecemos pela história de Maria e de Marta de Betânia, em João 12, 1-8, recuando, a partir
desta história, para o fundamento histórico provável. A narrativa de João desenrola-se do
seguinte modo: Jesus visitou a casa de Maria e de Marta, em Betânia, na Judeia, onde tinha
ressuscitado Lázaro, o irmão delas. Marta servia o jantar, enquanto Lázaro e outros estavam
reclinados à mesa. Maria entrou com um jarro de perfume de nardo, um perfume caro.
Derramou-o sobre os pés de Jesus, que enxugou com os seus cabelos. Judas Iscariotes protesta,
afirmando que o dinheiro teria sido melhor empregue se tivesse sido dado aos pobres. Mas Jesus
responde que o unguento era para a sua sepultura e acrescenta: «Pobres sempre os tereis
convosco, mas a mim não me tereis sempre.»
166
Parece que estamos confrontados com um relato que associa três histórias separadas, existentes
nos Evangelhos sinópticos." Uma delas é a história do jantar de Jesus em casa de Simão, o
fariseu. Uma mulher, que era «pecadora», entrou, banhou os pés de Jesus com as suas lágrimas,
enxugou-os com os cabelos, beijou-os e ungiu-os com óleo (Lc 7, 36-50). Numa segunda
história (Lc 10, 39-42), Jesus estava numa casa, com Maria e Marta, a caminho da Judeia, mas
ainda na Galileia ou na Samaria. Maria sentou-se, a ouvir o mestre, enquanto Marta estava
ocupada com a preparação da refeição. Quando Marta se queixou do comportamento da sua
irmã, Jesus apoiou Maria, respondendo que ela tinha escolhido a melhor parte.
A terceira história, que se encontra tanto em Mateus 26, 6-13, como em Marcos 14, 3-9, é muito
parecida com a narrativa de João, mas desenrola-se numa casa diferente. Jesus está em Betânia,
em casa de Simão, o Leproso, quando se aproxima dele uma mulher com um frasco de alabas-
tro com um perfume caro, que derramou sobre a cabeça dele. Os discípulos ficaram indignados,
tal como na história de João, protestaram, dizendo que o perfume podia ter sido vendido e o
dinheiro dado aos pobres. Também aqui Jesus responde, tal como relata o Evangelho de João,
mas acrescenta: «Onde quer que este Evangelho seja anunciado pelo mundo, há-de narrar-se
também o que ela fez, em memória dela.»
Se analisarmos os componentes da história de Maria e de Marta de Betânia, em João, e
atribuirmos às outras histórias os números 1 e 3, verificamos as seguintes concordâncias:

João -----------------------------------------------------------------Sinópticos Número da história


Nomes: Maria e Marta ------------------------------------------------------------------------------2
Lugar: Betânia ---------------------------------------------------------------------------------------3
Marta serviu -----------------------------------------------------------------------------------------2
Maria ungiu --------------------------------------------------------------------- cf. 2: Maria ouviu
Os pés de Jesus são ungidos com óleo ----------------------------------------cf. 3: a sua cabeça
Os pés enxugados com o cabelo da mulher ------------------------------------------------------1
Protesto contra a extravagância -------------------------------------------------------------------3
«Pobres sempre os tereis convosco» -------------------------------------------------------------3
167
Estas histórias baseiam-se, provavelmente, em memórias, apesar de alguns pormenores terem
sido alterados e, possivelmente, confundidos. De qualquer modo, é evidente que Jesus atraía
mulheres que, embora não fossem «seguidoras», o admiravam, escutavam com prazer e deseja-
vam servir. Não sabemos quantas mais existiam, mas podemos ver por de trás das histórias uma
grande atração humana. Os Evangelhos descrevem sobretudo Jesus em público, viajando de um
lado para o outro, ou falando a uma multidão. As histórias referidas mostram-no dentro de casa,
apresentando-o como uma visita agradável e um homem atraente.
Resumo de Marcos do período inicial do ministério de Jesus
Vamos, agora, seguir Marcos na história da atividade inicial de Jesus na Galileia, depois do
chamamento dos primeiros discípulos. O desenvolvimento é rápido, já que narrativas breves se
seguem umas às outras e o foco de atenção centra-se, em grande parte, nos milagres de Jesus,
prestando-se menos atenção ao conteúdo do seu ensinamento.
Jesus e os seus discípulos foram para Cafarnaum, na margem do mar, onde Jesus ensinou na
sinagoga. Marcos não nos diz o que Jesus ensinou, o que é típico do seu Evangelho. Ele diz
frequentemente que Jesus ensinava, mas apresenta relativamente pouco sobre o conteúdo. No
caso presente, descreve apenas a reação: «E maravilhavam-se com o seu ensinamento, pois
ensinava-os como alguém que tinha autoridade e não como os escribas» (Mc 1, 22). Enquanto
Jesus ainda se encontrava na sinagoga, um homem possuído por um «espírito maligno»
começou a gritar: «Que tens a ver connosco, Jesus de Nazaré? Vieste para nos destruir? Sei
quem Tu és: o Santo de Deus.» Jesus repreendeu o espírito, ordenando-lhe que saísse do
homem. O exorcismo foi bem sucedido. O espírito saiu, sacudindo o homem e gritando. A fama
de Jesus espalhou-se rapidamente (Mc 1, 23-28).
Jesus foi, então, para casa de Simão e André, onde a sogra do primeiro estava de cama, com
febre. Jesus pegou-lhe na mão, levantou-a e ela ficou curada (Mc 1, 29-31). Ao fim do dia,
trouxeram-lhe muitos doentes. Ele curou-os, sobretudo através de exorcismos (Me 1,23-24).
De manhã, Jesus retirou-se. Simão e os outros encontraram-no e disseram-lhe que estavam
«todos» à sua procura. Ele decidiu ir para as cidades seguintes, «a fim de pregar também aí, pois
foi para isso que
168
eu vim» (Mc 1, 35-38). Depois, temos outro sumário: ele foi por toda a Galileia, pregando nas
sinagogas e expulsando demónios. Era seguido por uma grande multidão (Mc 1,39).
Em seguida, um leproso veio com ele e foi curado. A multidão que o seguia tornou-se ainda
maior, a ponto de Jesus «já não poder entrar abertamente numa cidade, ficando fora, no campo.
E as pessoas vinham ter com Ele de todas as partes». (Mc 1, 40-45).
A história do leproso toca uma das questões mais importantes relacionadas com Jesus, a da sua
posição em relação ao judaísmo «oficial»: a nação de Israel como entidade política, o Templo, o
sacerdócio, a Lei, as festas e o jejum, as sinagogas. Vimos que alguns dos ensinamentos e curas
iniciais de Jesus ocorreram em sinagogas. A história do leproso esclarece um pouco a visão que
Jesus tinha do Templo e dos seus sacrifícios. O leproso pede a Jesus para ser «purificado». Jesus
toca-o, dizendo: «fica purificado» e exige-lhe que ele não diga a ninguém, mas que vá mostrar-
se ao sacerdote, oferecendo um sacrifício, tal como estabelecido no Livro do Levítico (duas
aves, uma das quais era sacrificada e a outra, libertada - Lv 14, '2-9, seguido outros sacrifícios).
A história do leproso é o exemplo mais claro e inequívoco no qual Jesus é apresentado como
defensor do Templo, dos sacerdotes e das prescrições relativas à pureza. Jesus mostra-se aqui
em concordância com as leis relativas aos sacrifícios e à pureza, assim como disposto a
obedecer-lhes.
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Marcos relata, depois, uma série de histórias de conflitos, alguns deles relacionados com curas.
Enquanto estava «em casa», em Cafarnaum, juntou-se uma grande multidão. Quatro homens,
trazendo um catre com um paralítico, não conseguiam romper a multidão, por isso, subiram ao
telhado, tiraram algumas das telhas e desceram o catre com o paralítico. Jesus curou-o, dizendo-
lhe: «Meu filho, os teus pecados estão perdoados.» Alguns escribas ali presentes perguntaram-
se o que estava ele a fazer, perdoando pecados por sua própria autoridade (Mc 2, 1-12).
Seguiram-se outros conflitos: Jesus comia com cobradores de impostos e foi criticado por causa
disso (Mc 2, 13-17); foi também alvo de crítica porque os seus discípulos não guardavam jejum,
quando os discípulos de João Baptista e dos fariseus jejuavam (Mc 2, 18-22); os seus discípulos
colheram espigas ao sábado, o que levou a uma crítica por parte dos fariseus (Mc 2, 23-28). Por
fim, Jesus curou num sábado um homem com uma mão paralisada, dizendo-lhe: «Estende a
mão.» Este facto (de acordo com Marcos) levou os fariseus e os herodianos a conspirar sobre a
maneira de o matar (Mc 3, 1-6).
Esta sequência rápida parece ter ocorrido em poucos dias, durante os quais a fama de Jesus se
espalhou por toda a parte, e os fariseus, entre outros, decidiram que ele tinha de morrer. O autor
concentrou os acontecimentos, para alcançar um efeito dramático. As histórias são
extremamente curtas. Jesus diz ou faz alguma coisa e há uma reação imediata: ou fica famoso e
é adulado ou é hostilizado. Em Me 2, 1-3, 6, uma coleção de histórias de oposição, os escribas e
os fariseus parecem surgir do nada, para se confrontarem com Jesus. Ele faz algo, eles dizem
algo, ele responde e o episódio termina. Na vida real, as coisas evoluíram um pouco mais
devagar, as conversas foram um pouco mais longas do que algumas linhas, as discussões acerca
das suas pretensões e da sua pessoa foram mais exaustivas, a oposição evoluiu gradualmente e a
sua fama demorou mais do que um ou dois dias a espalhar-se. Os parágrafos iniciais de Marcos
são sumários dramatizados que mostram a vida de Jesus como uma sequência de desafios
rápidos e de respostas breves e notáveis. Não estamos a ler um diário circunstanciado que nos
proporcionasse acesso ao quotidiano da vida de Jesus.
Gostaria, por uma questão de ênfase e de clareza, de voltar a comentar a natureza do material
incorporado nos Evangelhos, assim como a forma de utilização do mesmo pelos autores.
Quando Marcos
170
escreveu o seu Evangelho, tinha diante dos olhos uma série de perícopes dispersas que juntou
numa narrativa, sem, no entanto, destruir a forma básica das perícopes. Já vimos as breves
expressões de ligação que Marcos utiliza: «imediatamente», «outra vez» e outras indicações
vagas (pp. 103 e segs.). O rápido encadeamento das perícopes permitiu a Marcos iniciar o seu
Evangelho de uma forma dramaticamente enérgica, percorrendo uma série de relatos breves
sobre curas e conflitos, até chegar à conclusão de que algumas pessoas conspiravam contra a
vida de Jesus. Mateus e Lucas nem sempre mantêm a sequência de Marcos, transferindo
algumas das histórias para outras passagens dos seus Evangelhos. Assim, por exemplo, Mateus
não situou a história da cura do paralítico no capítulo 4, onde esta deveria encontrar-se, se ele
tivesse seguido a ordem de Marcos, preferindo juntá-la a outras histórias acerca de milagres, no
capítulo 9. As perícopes podiam ser deslocadas, de acordo com as intenções do respetivo autor.
Isto recorda-nos, mais uma vez, que os Evangelhos não são biografias no sentido atual da
palavra.
É possível que Marcos não tenha sido o primeiro a transformar as perícopes numa história
completa. Muitos investigadores pensam que a sequência de cenas de conflito, em 2,1-3,6, já lhe
chegou às mãos pronta. Note-se que a conclusão (os fariseus e os herodianos planeiam matar
Jesus) aparece demasiado cedo, tendo em conta a estrutura global do Evangelho. Os fariseus e
os partidários de Herodes aparecem novamente nove capítulos mais a frente (Mc 12, 13), onde
se diz que tentaram armar uma cilada a Jesus. É improvável sob o ponto de vista histórico que
os conflitos insignificantes em Me 2,1-3,5 tivessem provocado, de facto, uma conspiração com
a intenção de matar Jesus (3, 6), assim como é improvável em termos editoriais que o próprio
Marcos tivesse criado a conspiração no lugar onde esta se encontra agora (3, 6), só para
reintroduzir uma versão mais suave da oposição destes dois partidos em 12, 13. A explicação
mais provável para 3, 6 é que as histórias de conflitos em 2, 1-3, 5 já existissem como conjunto
e precedessem imediatamente a história da prisão, da condenação e da execução de Jesus. Isto é,
talvez houvesse uma coleção anterior, um protoevangelho, composta por histórias de conflitos,
uma conspiração contra Jesus e a execução bem sucedida da conspiração.
171
Neste momento, é importante constatar que, ao lermos os primeiros capítulos de Marcos, não
estamos a ler um diário em primeira-mão da «vida com Jesus na Galileia», mas sim uma
coleção editada de acontecimentos dispersos cujo contexto original talvez tenha sido outro.
Neste capítulo e no anterior debruçámo-nos sobre o ambiente físico e social no qual Jesus
operou (aldeias, cidades e espaços abertos, mas não grandes cidades), sobre o facto de ele ter
começado por utilizar as sinagogas, para ganhar audiência, sobre as pessoas que encaravam
favoravelmente a sua missão (discípulos, seguidores e simpatizantes), assim como sobre as
primeiras passagens dos Evangelhos. Isto permitiu-nos ver como podemos regressar, partindo
dos Evangelhos, ao Jesus histórico. Propus, por exemplo, que as narrativas sobre a tentação são,
em parte, lendárias e mitológicas, mas que é razoável pensar que Jesus se retirou realmente para
rezar e jejuar, antes de iniciar o seu ministério público. Vimos que as histórias do chamamento
dos discípulos estão concentradas e dramatizadas, mas que ele chamou, realmente, discípulos
nas aldeias e pequenas cidades à volta do mar da Galileia. O estudo relativo ao número dos
discípulos íntimos e aos seus nomes permitiu-nos compreender que o próprio Jesus utilizou
simbolicamente o número doze. Procurámos a história subjacente às afirmações aparentemente
contraditórias de que os discípulos não entenderam Jesus e de que realizaram uma missão
independente durante a vida de Jesus. As diversas histórias sobre mulheres existentes nos
Evangelhos (incluindo João), também se baseiam num substrato factual. A abordagem da
passagem de Me 1, 21-3, 6 e paralelos esclareceu a forma como os autores dos Evangelhos e,
possivelmente, os autores ou editores anteriores, juntaram e interligaram as perícopes, a fim de
produzir uma narrativa.
Agora, estamos prontos para nos debruçarmos sobre os aspetos mais substanciais do ministério
de Jesus: os milagres e a sua mensagem sobre o Reino de Deus.
172

10. Milagres
Marcos coloca a ênfase da parte inicial do seu Evangelho nos milagres. Observámos
anteriormente que, embora o Evangelho refira que Jesus ensinava, fornece pouco material de
ensinamento, enquanto narra as histórias de milagres com bastante pormenor. Os grandes
corpos de material de ensinamento em Mateus e Lucas e, especialmente, o sermão da montanha
em Mateus (capítulo 5-7), levaram a maioria das pessoas a pensar em Jesus sobretudo como um
mestre. Não há dúvida de que ele ensinava e de que aquilo que ensinava é tão importante como
empolgante. Mas os seus contemporâneos também atribuíram um grande significado àquilo que
ele fez, sobretudo, aos seus milagres. Num dos primeiros sermões cristãos, Pedro descreve Jesus
como um homem cujos milagres (<<gestos poderosos», «prodígios» e «sinais») demonstraram
que ele era «atestado por Deus» (Act 2, 22).
Os milagres de Jesus desempenharam um papel decisivo na avaliação que o mundo moderno fez
do cristianismo. Alguns consideraram os milagres como ficções óbvias, concluindo que o
cristianismo se baseia numa fraude, enquanto outros descobriram neles uma prova de que Jesus
era mais do que um ser meramente humano, isto é, que
173
era o Filho de Deus encarnado. Veremos que estas duas visões extremas não compreendem a
perspetiva antiga, que considerava os milagres algo impressionante e significativo, mas não
como um sinal de que aquele que fazia milagres era algo mais do que um simples ser humano.
Apesar de, hoje, muitas, se não a maioria das pessoas nos países industrializados, não acreditar
que haja milagres verdadeiros, na Antiguidade, a maior parte acreditava em milagres ou, pelo
menos, na sua possibilidade. Jesus não foi, de maneira alguma, o único a quem foram atribuídos
milagres. Os primeiros cristãos pensavam que Jesus era o Messias, o Filho de Deus e alguém
que fazia milagres. Este facto levou muitos cristãos do nosso tempo a pensar que os judeus do
século I esperavam um Messias que fazia milagres e que os contemporâneos de Jesus teriam
concluído que aquele que fazia milagres era o Messias. Esta perspetiva é incorreta. As poucas
referências a um Messias que virá, existentes na literatura judaica, não o descrevem como
alguém que faz milagres. Nem sequer existiam expectativas da vinda de um Filho de Deus. Tal
como outros povos da Antiguidade, os judeus também acreditavam em milagres, mas não
pensavam que a capacidade de fazer milagres constituísse uma prova de um estatuto superior.
Os cristãos são os únicos a combinar os títulos de «Messias» e de «Filho de Deus» com a
capacidade de fazer milagres, em consequência da atribuição de ambos os títulos a Jesus,
conhecido, naquela época, como alguém que fazia milagres.
A discussão deste tema é difícil, porque existe uma série de problemas que se cruzam e porque
as questões estritamente históricas se entrelaçam ainda mais do que é habitual com aquilo que as
pessoas pensam e creem hoje em dia. Referi-me a vários temas nos três parágrafos anteriores.
Talvez seja mais simples enumerá-los. Ao estudarmos os milagres de Jesus, não podemos
esquecer uma série de perspectivas, algumas antigas, e outras atuais:
1. Antiguidade:
a) o que as pessoas da Antiguidade pensavam sobre os milagres, em geral;
174
b) o que pensavam os judeus que não aceitaram Jesus sobre os seus milagres;
c) o que pensavam os judeus que aceitaram Jesus;
2. Atualidade:
d) o que pensam as pessoas de hoje sobre os milagres, em geral;
e) o que pensam as pessoas de hoje sobre os milagres de Jesus (I. quando são cristãs; lI. quando
não são cristãs);
f) que importância pensam elas que os seguidores de Jesus atribuíram aos seus milagres;
g) o que pensam elas que é suposto os cristãos acreditarem no que diz respeito aos milagres de
Jesus.
Este capítulo limitar-se-á aos temas referidos no ponto 1, isto é, o que pensavam as pessoas
naquela época. Porém, é difícil discutir os milagres de Jesus do ponto de vista histórico, porque
as convicções sobre aquilo em que os cristãos acreditam ou deveriam acreditar interferem
bastante. Gostaria de dedicar uma página aos temas mencionados no ponto 2. Trata-se apenas de
um exercício de esclarecimento inicial, de uma tentativa de demonstrar que os milagres devem
ser estudados à luz de outros milagres daquela época e não no contexto da doutrina cristã
subsequente sobre a natureza humana e divina de Jesus.
Muitos cristãos e, possivelmente, ainda mais não cristãos, pensam que a convicção segundo a
qual Jesus podia fazer milagres porque era mais do que um mero ser humano é algo central para
o cristianismo. Tomemos como exemplo a caminhada sobre a água. Uma larga maioria das
pessoas pensa, atualmente, que é impossível caminhar sobre a água. Alguns cristãos, ainda que
não todos, sentem-se obrigados a acreditar que Jesus podia fazê-lo; ele era o único que possuía
essa capacidade porque era mais do que um ser humano. Muitos não cristãos também pensam
que os cristãos têm de acreditar nisso. Além disso, muitos cristãos e não cristãos pensam que a
fé dos primeiros cristãos dependia dos milagres de Jesus.
Nada disto corresponde à verdade histórica. Na parte central deste capítulo veremos que, no
século I, os milagres de Jesus não eram decisivos para a aceitação ou não da sua mensagem,
nem eram considerados uma «prova» para os seus contemporâneos de que ele era mais do que
humano. A ideia de que ele não era um ser realmente humano só surgiu
175
no século n, mantendo-se durante algum tempo, mas acabou por ser condenada como heresia.
Desde o século v (quando a questão foi decidida oficialmente) que a ortodoxia cristã acreditou
que Jesus era «verdadeiro ser humano de verdadeiro ser humano» e que a sua divindade (que
também foi afirmada) não se misturou nem interferiu com a sua humanidade; ele não era uma
mistura estranha. É herético afirmar que a sua natureza divina lhe permitiu boiar, enquanto os
seus pés tocaram levemente na água. A palavra definitiva nesta questão é que ele é «da mesma
natureza humana que nós; em tudo igual a nós, exceto no pecado» - não «exceto na capacidade
de caminhar por cima da água».
A explicação de como é possível a uma pessoa ser cem por cento humana e cem por cento
divina, sem que uma coisa interfira na outra ultrapassa as minhas pobres capacidades como
intérprete da teologia dogmática. A definição do Concílio de Calcedónia (451 e.c.), na qual se
encontra a citação que fiz, é sobretudo defensiva e não construtiva. O crente ortodoxo aprende
mais sobre aquilo que não deve dizer do que sobre como falar acerca de Jesus de uma forma que
faça sentido. Os Padres da Igreja pensavam que era prejudicial negar que Jesus era humano e,
por isso, afirmaram-no; era prejudicial negar que ele era divino e, portanto, afirmaram-no
também. Seria interessante estudar por que razão consideravam ambas as negações erradas, mas
a discussão desta questão está bastante para além dos objetivos deste livro. Permito-me dizer
apenas duas frases: a negação da verdadeira e plena humanidade de Jesus teria resultado numa
desvalorização do mundo material; felizmente, os cristãos ortodoxos mantinham a visão do
Génesis: Deus declarou que a criação é boa. Eles defenderam esta visão contra ataques muito
graves e parte desta defesa consistia na afirmação de que Jesus era um ser humano verdadeiro.
Afirmaram reiteradamente que a divindade de Jesus não interferia, de maneira alguma, na sua
humanidade, nem lhe concedia poderes não humanos.
Pretendo que esta breve discussão dos tópicos e) até g) seja negativa, de acordo com o espírito
do Concílio de Calcedónia, apesar de a minha perspetiva ser histórica e não dogmática. Do
ponto de vista histórico, é um erro pensar que os cristãos têm de acreditar que Jesus era sobre-
humano, assim como é um erro pensar que, no tempo de Jesus, os seus milagres fossem
considerados como uma prova parcial ou total da sua divindade. Gostaria de me dedicar, agora,
aos tópicos a) a c), apesar de fazer algumas menções ocasionais à perceção
moderna dos milagres d).
176

Milagres e magia na Antiguidade


Tal como hoje, também naquela época as pessoas esperavam milagres em caso de doença ou de
outros males físicos. Procuravam frequentemente a cura junto de pessoas que não eram médicos
profissionais. Havia médicos, mas, em geral, a sua reputação não era boa. Os Evangelhos
contam a história de uma mulher que «sofrera muito nas mãos de muitos médicos e gastara
todos os seus bens, continuando a piorar cada vez mais» (Me 5, 26). Aqueles que necessitavam
de ajuda e não se queriam entregar nas mãos dos médicos podiam recorrer a três instâncias.
1. Podiam pedir diretamente a Deus ou, no mundo pagão, a um dos deuses. Seria surpreendente
que, em caso de doença, nem o doente, nem a família ou amigos recorressem à oração. Rezar é
extremamente barato e aqueles que rezavam com regularidade verificavam que, de vez em quan
do, a oração era eficaz: algumas doenças eram curadas, e, se as pessoas rezassem sempre pela
cura quando estavam doentes, as suas orações, por vezes, eram atendidas. A ajuda divina era
pedida muitas vezes em privado, mas, por vezes, também em público. O deus grego, Asclépio,
que era especializado em curas, tinha santuários em todo o mundo mediterrâneo. Chegaram até
nós dúzias de relatos breves sobre as suas curas. Os sacerdotes do seu principal local de culto
em Epidauros, na Grécia, copiaram inscrições de ex-votos em madeira para grandes estelas
sepulcrais em pedras que se conservaram. Um médico atual consideraria muitas destas
curas absolutamente credíveis. Uma mulher que não conseguia engravidar foi ao seu santuário e
passou a noite no dormitório. Durante a noite, sonhou que uma das serpentes sagradas de
Asclépio penetrou nela. Levantou-se, foi para a casa e engravidou imediatamente. A explicação
encontrada pela medicina moderna seria que a sua incapacidade de engravidar era
psicossomática e que a visão superou o bloqueio mental, de modo que o seu corpo pôde voltar a
funcionar normalmente. Sigmund Freud teria muito a dizer sobre o simbolismo sexual da
serpente, como é óbvio. Outros relatos de curas, porém, são completamente incríveis para os
padrões científicos modernos. Um homem que perdeu os seus olhos, tendo apenas órbitas
oculares vazias, sonhou que Deus tinha deitado unguento nas suas órbitas; quando acordou,
tinha olhos e conseguia ver.
177
O que é interessante nestas histórias é que se encontram lado a lado, parecendo que os
sacerdotes não repararam que algumas das curas não só são mais credíveis do que outras, como
também que algumas são completamente impossíveis. Isto significa que eles não traçavam
linhas de separação entre o credível e o não credível onde a ciência médica atual as traçaria. Se
deus podia realizar um tipo de milagre, também podia realizar outros. O leitor moderno tem
tendência para fazer distinções: as histórias que consideramos credíveis são encaradas como
possivelmente «verdadeiras», enquanto aquelas que são incríveis são tidas como «ficção». O
termo «ficção» implica, habitualmente, um juízo moral: desonestidade. Apesar de as pessoas na
Antiguidade saberem que existia fraude e desonestidade no campo religioso e de desconfiarem
frequentemente de histórias fantásticas, não traçavam a linha de separação entre verdade e
ficção exatamente onde nós a traçamos hoje. Eles não consideravam impossível que forças espi-
rituais influenciassem o mundo físico de maneira palpável e esta visão significava que histórias
de milagres se podiam desenvolver nos círculos de pessoas sinceras e honestas. Hoje, também
há muitas pessoas que veem as forças espirituais e os milagres da mesma maneira, não
aceitando os padrões da ciência médica. Por conseguinte, continuam a existir histórias de curas
milagrosas, muitas delas provenientes de Lurdes e de outros lugares de peregrinação religiosa.
Na minha opinião, muitas das histórias «incríveis» baseiam-se no desejo ou na tendência para o
exagero, sendo pouquíssimas as que resultam de uma intenção consciente de enganar. Penso o
mesmo sobre as histórias contadas pelos devotos piedosos de Asclépio. O leitor deste livro deve
registar, sobretudo, que estas histórias de milagres eram comuns na Antiguidade e que devemos
hesitar antes de as classificarmos como «verdadeiras» ou como «falsificações deliberadas».
É quase desnecessário dizer que os judeus do século I também rezavam ao seu Deus, pedindo-
lhe curas. São pouquíssimas as orações individuais que se conservaram, mas a naturalidade com
que os judeus se dirigiam a Deus, pedindo-lhe curas, é demonstrada na 2." Carta aos Coríntios
12, 7-9, onde Paulo diz que sofre por causa de um «espinho na carne» - um sofrimento físico
qualquer que ele não descreve - e que pediu a Deus que o libertasse dele. Podemos supor que os
judeus pediam habitualmente ajuda divina quando se encontravam numa dificuldade qualquer e,
sobretudo, quando sofriam de uma doença ou de um mal.
178
2. Não era só Deus ou os deuses que faziam milagres. Do mundo grego, temos um relato
exaustivo sobre Apolónio de Tíana, um filósofo, reformador do culto e curandeiro itinerante.
Possuía grande fama de ter o poder de curar e, especialmente, de exorcizar demónios. Uma vez,
estava Apolónio a discursar sobre libações - uma cerimónia em que se derrama vinho em honra
dos deuses - quando um jovem afetado, com uma reputação de licenciosidade tal que há muito
que era tema de canções de rua grosseiras, começou a troçar dele. Quando Apolónio insistiu que
é necessário derramar as libações sobre a asa do copo, porque seria mais provável que não se
tivesse dado um uso mortal a esta parte, o rapaz rompeu em gargalhadas sonoras e grosseiras,
fazendo com que a sua voz quase deixasse de se ouvir. Apolónio reconheceu que o seu
comportamento revelava uma possessão demoníaca.
De facto, o rapaz estava possesso do demónio, sem o saber, pois ria-se daquilo de que mais
ninguém se teria rido e, depois, rompia em choro, sem motivo, e falava e cantava para si
próprio. Ora, alguns pensavam que a explicação destes excessos estava no humor esfusiante do
jovem, mas ele era o porta-voz de um demónio, apesar de parecer apenas que estava sob o efeito
do folguedo dos embriagados.
Isto significa que alguns dos presentes tinham uma interpretação racional para o comportamento
do jovem. A história continua: Apolónio dirigiu-se ao demónio como um mestre a um servo,
ordenando-lhe que saísse e que o demonstrasse através de um sinal. O demónio prometeu deitar
abaixo uma estátua e fê-lo. O rapaz
esfregou os olhos como se tivesse acabado de acordar. .. e adquiriu uma aparência discreta...
Pois já não se mostrava licencioso, nem ficava como louco, mas tinha voltado a si ... ; e
abandonou o seu vestuário afetado e os seus ornamentos e o resto da sua forma de vida sibarita e
apaixonou-se pela austeridade dos filósofos e vestiu o manto destes e, abandonando o seu antigo
modo de ser, modelou a sua vida dali para o futuro à imagem de Apolónio. (Filostrato, Vida de
Apolónio, 4, 20)
Os judeus eram especialmente conhecidos por fazerem milagres. Josefo afirma que os judeus
tinham herdado a sabedoria de Salomão, sabendo, por isso, como se fazem curas, sobretudo,
exorcismos
179
As doenças e o comportamento irracional eram atribuídos frequentemente à possessão
demoníaca e aqueles que sabiam fazer exorcismos eram muito procurados. Numa sociedade em
que os mentalmente instáveis viviam com os seus parentes e não em asilos, havia muitas
pessoas que seguiam os exorcistas. E o poder da fé ou da mente sobre o corpo é tão grande que
havia, realmente, curas.
Jesus, como veremos adiante com mais pormenor, admitia que alguns outros judeus seus
contemporâneos podiam fazer milagres como os seus. Não conhecemos o nome de nenhum
judeu que realizasse milagres durante a vida de Jesus, mas conhecemos alguns que o
antecederam ou que se lhe seguiram." Hanina ben Dosa, um famoso curandeiro, viveu na
Galileia cerca de uma geração depois de Jesus. A cura mais famosa que lhe foi atribuída
apresenta um forte paralelismo com a cura do servo do centurião (Mt 8, 5-13). O filho do grande
fariseu Gamaliel estava com febre. Este enviou dois dos seus discípulos de Jerusalém a Hanina,
na Galileia, pedindo-lhe que viesse e curas- se o rapaz. Mas Hanina foi para o andar superior e
rezou. Depois, desceu e mandou os discípulos para casa, dizendo que a febre tinha desaparecido.
Os jovens perguntaram, talvez com certo sarcasmo: «És um profeta?» Hanina respondeu: «Não
sou profeta, nem filho de profeta, mas tenho este dom. Se a minha oração sai fluentemente da
minha boca, sei que ele [o rapaz doente] foi agraciado; se não, sei que ela [a doença] é fatal.» Os
discípulos registaram o dia e a hora da oração de Hanina, regressaram a Jerusalém e
descobriram que a partir daquela hora o rapaz tinha ficado curado.
O famoso «Honi, o desenhador de círculos», que viveu em meados do século I a.e.c., era mais
velho de que Jesus. Honi era especialmente conhecido pelas orações bem sucedidas a pedir
chuva. A Palestina está sujeita à seca, por isso, as orações pela chuva constituíam um elemento
normal da piedade. Estas orações eram acompanhadas frequentemente pelo jejum, cuja intenção
era chamar a atenção de Deus para o sofrimento humano e persuadi-lo a aliviá-lo, mandando
chuva. As orações
180
e o Jejum da comunidade eram, muitas vezes, eficazes; isto é, a chuva acabava por chegar."
Embora toda a comunidade participasse nas orações e no jejum, alguns indivíduos, como, por
exemplo, Honi, eram particularmente bem sucedidos no apelo a Deus. Uma vez, Honi pediu
chuva a Deus, mas, inicialmente, sem sucesso. Então, desenhou um círculo, colocou-se dentro
dele e rezou: «Ó Senhor do universo, os Teus filhos voltaram as suas faces para mim, porque,
aos Teus olhos, sou como um filho da casa. Juro sobre o Teu grande nome que não me vou
mexer deste lugar enquanto não tiveres compaixão dos Teus filhos.» Começou a chuviscar, mas
Honi não ficou satisfeito: «Não rezei por uma chuva destas, mas por uma chuva de boa vontade,
de bênção e de graça.» Então, começou a chover com mais intensidade e continuou a chover
durante tanto tempo que alguns dos habitantes de Jerusalém foram para o monte do Templo, que
estava num ponto mais alto. O fariseu que era chefe naquele dia teve uma posição ambivalente
em relação a Honi e ao seu feito: «Se não fosses Honi, declarava-te anátema! Mas o que hei-de
fazer contigo? Importunas Deus e Ele faz o que tu queres, tal como um filho importuna o seu
pai e ele faz-lhe a vontade.»? O comportamento de Honi, tão impertinente que era quase
blasfemo, foi-lhe perdoado porque tinha uma relação íntima com Deus.
Josefo também nos dá informações sobre Honi. Escreve que ele (Onias, em grego) era
conhecido por ser o homem que tinha pedido chuva durante uma seca e a quem Deus respondeu.
A sua reputação era tal que, durante o período da guerra civil entre Hircano II e Aristóbulo lI, os
apoiantes de Hircano capturaram-no, exigindo-lhe que amaldiçoasse Aristóbulo e a sua facção.
Em vez disso, Honi rezou, pedindo que Deus não permitisse tal: «Ó Deus, rei do universo, uma
vez que estes homens que estão ao meu lado fazem parte do Teu povo e que aqueles que estão
cercados por eles são os Teus sacerdotes, suplico-Te que não lhes dês ouvidos contra estes
homens, nem permitas que aconteça aquilo que estes homens querem que faças a esses outros.»
Josefo escreveu que os seguidores de Hircano apedrejaram Honi até à morte. (Antiguidades 14,
22-24.) As pessoas que eram ouvidas por Deus não eram necessariamente populares.
181
Algumas figuras proféticas prometiam milagres, embora não tenhamos notícia de que os
realizassem. Pouco tempo depois da morte e da ressurreição de Jesus, no início dos anos
quarenta, Teudas reuniu seguidores no deserto e prometeu-lhes que marchariam até ao rio Jor-
dão e que as águas do rio se abririam, transformando-o num segundo Moisés. Mais tarde, um
profeta do Egipto, conhecido simplesmente como «o Egípcio», prometeu aos seus seguidores
que, se andassem à volta da muralha de Jerusalém, esta cairia, transformando-o num segundo
Josué. Nenhum dos planos foi posto à prova, porque os romanos enviaram tropas, das duas
vezes, a fim de controlarem a multidão. Teudas e vários dos seus seguidores foram mortos, tal
como muitos dos seguidores do Egípcio, apesar de ele próprio ter escapado.
É necessário notar especialmente que alguns dos milagres discutidos neste capítulo não são
curas, mas sim milagres da «natureza». Honi (como muitos outros) rezava a pedir chuva,
enquanto Teudas e o Egípcio prometiam acontecimentos sobrenaturais que afetavam a água (do
Jordão) ou pedras (das muralhas de Jerusalém). Como Teudas e o Egípcio tinham seguidores, é
evidente que as pessoas consideravam as suas promessas credíveis. Parece que era do consenso
geral que Honi podia rezar com sucesso a pedir chuva. A suposição dos judeus em todos estes
casos era que um indivíduo podia influenciar Deus e que Ele podia fazer obviamente tudo o que
quisesse.
3. Vimos que as pessoas podiam pedir milagres diretamente a Deus (ou, no mundo greco-
romano, a um dos deuses) ou a um indivíduo particularmente piedoso ou dotado. Estes
indivíduos são designados habitualmente como «carismáticos»: têm um poder espiritual
especial ou uma capacidade especial para influenciar Deus. Talvez nos devêssemos referir
também a eles como seres «autónomos», que se regiam a si próprios, visto que tinham uma
relação direta com Deus e não eram servos de um governante ou de um templo. Mas também
existia um terceiro grupo de fazedores de milagres - os mágicos - que podem ser vistos como
uma corporação de milagreiros. Os mágicos não eram carismáticos, nem autónomos; isto é, não
faziam milagres devido à sua relação especial com um deus e as suas técnicas não eram,
habitualmente, invenções deles próprios. Hanina, como vimos, sabia que, se a oração saísse
fluentemente da sua boca, Deus responderia
182
positivamente. Isto constituía o seu próprio teste, baseado na sua experiência de oração a Deus.
No caso dos mágicos, era diferente: eles seguiam regras.
A magia baseava-se numa aplicação particular de uma visão muito difundida, segundo a qual
existia uma Grande Cadeia de Seres na qual tudo está ligado a qualquer outra coisa, tanto acima
como abaixo dela. A manipulação de determinados elementos comuns (por exemplo, o alho, a
urina de cabra e a erva) influenciavam os seres imediatamente acima na cadeia e assim
sucessivamente ao longo de toda a cadeia, até à divindade. A manipulação correta dos
elementos inferiores, associada ao feitiço correto e à utilização dos nomes corretos, podia levar
a divindade superior a cumprir os desejos de uma pessoa. Era possível alugar um mágico. Um
homem podia desejar contratar um mágico para persuadir Vénus a mandar uma jovem núbil ao
seu quarto de dormir.
Uma grande parte da magia praticada a pedido de pessoas individuais era negativa: era «magia
negra». Os mágicos amaldiçoavam inimigos a pedido dos seus clientes, por exemplo. Tinham
uma reputação duvidosa e, de vez em quando, os governantes tentavam reprimi-los. A carreira
de mágico não era algo que as boas famílias desejassem para os seus filhos, apesar de a magia
se basear numa cosmovisão muito difundida.
Porém, o que nos interessa aqui é a «magia branca», pois os mágicos constituíam uma fonte
potencial de curas. Sabiam misturar várias substâncias, colocá-las na parte do corpo que
necessitava de cura, pronunciar os feitiços corretos e efetuar curas milagrosas. Existe uma
história de Josefo que demonstra claramente que estas práticas mágicas eram conhecidas no
judaísmo palestino do século I. Ao elogiar Salomão, Josefo afirma que o rei israelita abandonou
feitiços e técnicas de exorcismo que alguns judeus continuavam a utilizar. Segundo Josefo,
Eleazar realizou um exorcismo na presença do general romano Vespasiano, dos seus filhos, dos
oficiais e de outras pessoas:
Ele chegou ao nariz do homem possesso um anel que tinha por baixo do selo uma das raizes
prescritas por Salomão e, quando o homem o cheirou, o demónio saiu através das suas narinas
... De seguida, para convencer os presentes e para lhes provar que possuía este poder, Eleazar
colocou no chão, a uma certa distância, um copo ou uma bacia para lavar os pés cheia de água e
ordenou ao demónio, quando este saiu do homem, que virasse o copo ou a bacia, demonstrando,
assim, aos espectadores que tinha abandonado o homem.
183
O demónio fez o que lhe foi exigido, revelando-se assim, claramente, a sapiência de Salomão
(Josefo, Antiguidades 8, 46-49).
O demónio nesta história, tal como o demónio expulso por Apolónio, demonstrou, através de
um sinal, que tinha sido expulso. Mas o exorcismo era completamente diferente. Apolónio
limitou-se a ordenar ao espírito que saísse; Eleazar utilizou um segredo transmitido desde o
tempo de Salomão. Apolónio era autónomo: seguiu as suas próprias regras e utilizou o seu
próprio poder espiritual, «carismático». Eleazar tinha aprendido quais as raízes que deviam ser
utilizadas no exorcismo.
Estas histórias (curas realizadas por Deus ou por um deus, milagres levados a cabo por
indivíduos carismáticos e por mágicos) revelam todas que a maioria das pessoas da Antiguidade
não estabelecia a separação rígida entre o «mundo natural» e o «sobrenatural» habitual (ainda
que não universal) hoje em dia. Na perspetiva destes, o universo estava povoado de bons e maus
espíritos que podem entrar quando quiserem no mundo dos sentidos. Algumas pessoas eram
capazes de controlar estes espíritos. A fé generalizada num mundo povoado de poderes
espirituais pode ser ilustrada facilmente citando São Paulo: «para que, ao nome de Jesus, se
dobrem todos os joelhos no céu, na terra e debaixo da terra e toda a língua proclame que Jesus
Cristo é o Senhor» (FI 2, 10-11). Existiam seres com joelhos acima da terra e debaixo da terra,
assim como na terra. O cruzamento entre «sobrenatural» e «natural» vê-se de uma forma
muitíssimo clara se considerarmos os termos ruali e pneuma. Ruali é uma palavra hebraica, que
tanto significa «vento» como «espírito» (dependendo do contexto), enquanto pneuma é o termo
grego correspondente. Atualmente, encaramos o «vento» como algo natural e o «espírito» como
algo sobrenatural. Porém, o facto de ser possível usar a mesma palavra em ambos os sentidos,
tanto no mundo de língua grega, como no mundo de língua hebraica ou aramaica, demonstra
que as pessoas da Antiguidade não viam a realidade como nós a vemos. O «espírito» e o
«vento» eram forças invisíveis e, na perspetiva da maioria, um espírito era algo tão «natural»
como o vento. No terceiro capítulo de João, joga-se com o duplo sentido da palavra pneuma: «o
pneuma sopra onde quer ... Assim acontece com todo aquele que nasceu do pneuma». A
tradução é a seguinte: «o vento sopra onde quer ... Assim acontece com todo aquele que nasceu
do Espírito». No século I, nem aqueles que falavam grego, nem aqueles que falavam hebraico
ou aramaico pensavam que o
184
vento fosse a mesma coisa que o espírito. O jogo com a palavra pneuma demonstra que as
pessoas sabiam distinguir entre os significados, conforme o contexto. Mesmo assim, a ausência
de uma distinção verbal demonstra que, nos primórdios da formação de ambas as línguas, o
espírito era algo tão natural como o vento. Esta visão da «natureza» manteve-se no século I, em
parte, devido à perpetuação do uso do vocabulário antigo, mas também porque o movimento do
vento era misterioso, não sendo encarado como um fenómeno resultante de condições físicas.
A passagem que acabámos de citar da Carta aos Filipenses (« ... se dobre todo o joelho») além
de evidenciar a fé comum em poderes espirituais, também revela a ideia de que alguns nomes
tinham poder («toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor»). A questão do nome no
qual determinada coisa era feita revestia-se de importância. Vemo-lo claramente nos
Evangelhos e em muitos outros lugares. João, o filho de Zebedeu, disse a Jesus que ele próprio e
os outros discípulos tinham visto um homem «expulsar demónios em teu nome» e que o tinham
proibido. Jesus respondeu: «Não o proibais, porque não há ninguém que faça um milagre em
meu nome e vá logo dizer mal de mim.» (Mc 9, 38-41.) Numa outra ocasião, alguns adversários
de Jesus acusaram-no de expulsar demónios utilizando o nome de «Belzebu», o príncipe dos
demónios. Jesus negou esta acusação e voltou a questão contra os seus críticos: «Se Eu expulso
os demónios por Belzebu, por quem os expulsam, então, os vossos filhos?» E prosseguiu
afirmando que exorcizava pelo Espírito de Deus (Mt 12, 27-29). Portanto, ele admitiu que
outros também podiam fazer exorcismos. A questão era: com que poder? Em nome de quem?
Embora a fé em espíritos e demónios estivesse muito difundida e embora a maioria das pessoas,
quer judeus, quer gentios, acreditasse que os agentes humanos podiam encorajar os poderes
espirituais a intervirem no curso normal dos acontecimentos, havia protestos racionalistas.
Cícero (106-43 a.e.c.) formulou-o desta maneira:
Pois nada pode acontecer sem causa; nada acontece que não pudesse acontecer e quando aquilo
que era possível acontecer, aconteceu, não pode ser interpretado como um milagre. Por
conseguinte, não há milagres ... Sendo assim, tira-se esta conclusão: aquilo que não podia ter
acontecido, nunca aconteceu, e aquilo que podia ter acontecido não é um milagre (De
Divinatione 2,28).
185
A opinião expressa por Cícero tornou-se dominante no mundo moderno; e eu partilho-a
inteiramente. Alguns relatos de «milagres» são fantasiosos ou exagerados; os «milagres» que
acontecem de facto são coisas que nós ainda não conseguimos explicar, devido a ignorância no
domínio das causas naturais. Porém, no tempo de Cícero, eram pouquíssimas as pessoas que
aceitavam este racionalismo rigoroso. A grande maioria das pessoas acreditava em poderes
espirituais e pensava que humanos escolhidos especialmente podiam contestar o poder das
mesmas, controlá-las ou manipulá-las. O próprio Jesus tinha esta convicção.
No estudo dos milagres do próprio Jesus não levantarei repetidamente a questão de saber se a
ocorrência relatada podia ou não ter, realmente, acontecido. Pelo contrário, desejo assumir
temporariamente a perspetiva da maioria dos contemporâneos de Jesus e dos primeiros leitores
dos Evangelhos, para que possamos ver como os milagres são apresentados nas nossas fontes e
qual era a importância que tinham num contexto no qual as pessoas, em geral, acreditavam na
possibilidade de milagres. No entanto, regressaremos à questão das respostas modernas às
histórias de milagres.
Jesus realizou dois tipos de milagres, de acordo com os Evangelhos: curas milagrosas e milagres
«naturais» (envolvendo comida e o mar). Os exorcismos constituem uma subcategoria de curas
tão vasta que lhes dedicarei uma secção separada.

Curas milagrosas (exceto exorcismos)


Nas curas milagrosas, a ênfase é colocada frequentemente na fé. No caso do paralítico que
fizeram descer através do telhado, Marcos escreve que Jesus curou o homem «quando viu a fé
daqueles homens» - isto é, a fé daqueles que o trouxeram. Também vemos este motivo
186
numa das narrativas de cura mais interessantes - Me 5, 21-43 -, onde uma história de um
milagre está inserida numa outra história. Um dos chefes da sinagoga, Jairo, diz a Jesus que a
sua filha está a morrer, suplicando-lhe que venha e lhe imponha as mãos. No caminho, uma
multidão começou a apertá-lo, incluindo uma mulher que sofria de um fluxo de sangue havia
doze anos; era uma mulher que «sofrera muito nas mãos de muitos médicos», mas que se sentia
cada vez pior. Ela tocou no manto de Jesus e a hemorragia parou. Jesus, apercebendo-se de que
alguma coisa tinha acontecido, virou-se e perguntou quem lhe tinha tocado. A mulher apareceu,
com medo, e explicou-lhe o que tinha feito. Jesus respondeu: «Filha, a tua fé curou-te.» Isto
parece uma declaração contra a magia: o seu manto não possuía poder mágico; pelo contrário, o
milagre era o resultado da fé da mulher.
Jesus continua o seu caminho para casa de Jairo, mas alguém vem ao seu encontro dizendo que
a rapariga já tinha morrido. Jesus exorta Jairo: «Não tenhas receio; crê somente.» Quando
chegaram a casa, perguntou às pessoas que estavam a chorar: «Porquê todo este tumulto e
choro? A menina não morreu, está a dormir.» Eles riram-se dele, mas ele entrou, tomou a
rapariga pela mão, dizendo-lhe: «talitha qüm», e levantou-a. Ela ergueu-se e começou a andar.
A história da filha de Jairo levanta duas questões interessantes. Uma delas é se o narrador queria
ou não que o leitor pensasse que a rapariga estava morta. Que valor atribuir à afirmação de Jesus
de que a rapariga não estava morta, mas apenas inconsciente? Não existe uma resposta clara
para esta questão, mas parece que o autor de Marcos se inibe de dizer que a rapariga estava
morta.
A segunda questão diz respeito à função da exortação talitha qüm. Trata-se de uma expressão
aramaica que quer dizer, simplesmente: «rapariga, levanta-te». Será que a expressão se
conservou apenas por ter sido aquilo que Jesus disse de facto? Ou será que o autor de Marcos a
introduziu no seu Evangelho escrito em grego como uma palavra estrangeira de poder, como
uma espécie de feitiço mágico? Também não existe uma resposta clara para isto. Jesus falava
realmente aramaico, mas este facto não explica por que motivo há alguns casos - pouquíssimos -
em que aparecem expressões aramaicas nos Evangelhos escritos em grego, enquanto na maioria
dos casos, não. Por conseguinte, o autor queria dizer algo com isso, mas nós não sabemos o quê.
As palavras estrangeiras focam a atenção naquele que fala e, portanto, no seu poder, mas não
podemos afirmar muito mais do que isso.
187
Há dois casos em Marcos nos quais Jesus leva a cabo uma ação física, para além de se dirigir à
pessoa, tocando-lhe. Num caso, trouxeram a Jesus um homem surdo que também sofria de
mudez. Jesus tomou-o à parte, meteu-lhe os dedos nos ouvidos, fez saliva e tocou-lhe a língua.
Depois, olhou para o céu e disse iftathá, «abre-te», em aramaico, e o homem ficou curado (Mc
7, 31-37). Em Betsaida, trouxeram-lhe um cego. Jesus levou-o para fora da aldeia, deitou-lhe
saliva nos olhos e impôs-lhe as mãos. O homem recuperou parcialmente a vista: conseguia ver
as pessoas, mas via-as «como árvores a andar». Jesus voltou a colocar-lhe as mãos sobre os
olhos e ele recuperou completamente a vista (Mc 8, 22-26).
Aqui temos algumas técnicas que lembram «magia». A palavra aramaica em Marcos 7, 34
encontra-se num contexto de manipulação física que a faz soar como um feitiço. É de notar que
nenhuma destas histórias se encontra em Mateus ou em Lucas, embora estes contenham a maior
parte das histórias de milagres de Marcos. É possível que os autores posteriores se tivessem
apercebido de que as histórias de Marcos tendiam para o mágico e, por isso, as tenham omitido.
Consideraremos com um pouco mais de detalhe a forma como os vários Evangelhos utilizam
histórias de cura.
Em Marcos, existem dois temas quase contraditórios no que diz respeito ao impacto das curas
de Jesus. O primeiro é que elas atraíam multidões e eram responsáveis pela fama de Jesus. A
cura de um possesso na sinagoga de Cafarnaum levou a que «a sua fama logo se espalhasse por
toda a parte, em toda a região da Galileia» (Mc 1, 28). Mais tarde, «a cidade inteira estava
reunida» e Jesus curou muitos (Mc 1, 33-34). Em consequência da cura do leproso, Jesus não
podia «entrar abertamente numa cidade; ficava fora, em lugares despovoados. E de todas as
partes iam ter com Ele» (Mc 1,45). Este modelo repete-se até o autor escrever finalmente que
Jesus atraía multidões não só da Galileia, mas também da Judeia, de Jerusalém e da ldumeia (a
Sul da Judeia), de além-Jordão, de Tiro e de Sídon (na Síria) (Mc 3, 7 e segs.).
Em contraponto com isto, Marcos insiste que Jesus tinha procurado não atrair a atenção com os
seus milagres, ordenando aos curados que não contassem a ninguém (Mc 1,44). Ordenou ao
cego de Betsaida que fosse para casa, sem entrar novamente na aldeia, ao que parece, para
manter a cura em segredo (Mc 8, 26). Jesus ordenou àqueles que assistiram à cura do surdo-
mudo que não revelassem a ninguém o sucedido (Mc 7, 36). Contudo, o autor acrescenta que,
apesar da ordem
188
de silêncio, as pessoas curadas contaram as suas histórias, de modo que a fama de Jesus
continuou a espalhar-se (por exemplo, Me 1,45; 7,36).
Parece que Marcos quer levar o leitor a pensar que Jesus podia ter continuado a sua carreira,
muito popular, como curandeiro, mas que preferia não procurar a fama. Em vez disso, aspirava
a tornar-se um líder espiritual de outro tipo: as curas podiam ter trazido grande fama a Jesus,
assim como bastante dinheiro, mas ele «não veio para ser servido, mas sim para servir e dar a
sua vida em resgate por muitos» (Mc 10,45). Na opinião de Marcos, a popularidade junto das
multidões não era o objetivo da vida pública de Jesus.
A forma como Mateus trata as histórias de milagres é claramente diferente da maneira como
Marcos o faz. Em geral, o autor desenfatiza os milagres. Em Mateus, a vida pública de Jesus
não começa com uma série de acontecimentos rápidos nos quais os milagres desempenham um
papel proeminente, mas sim com três capítulos de ensinamento ético: o sermão da montanha. Os
milagres vêm mais tarde. Mateus encarava Jesus, em parte, como um segundo Moisés, mais
importante do que o primeiro, como vimos. (A sua narrativa de nascimento baseia-se na história
do nascimento de Moisés e o sermão da montanha é a contraparte da entrega da Lei a Moisés,
no monte de Sinai.) Portanto, não é de surpreender que Mateus agrupe dez histórias de milagres
nos capítulos 8 e 9, talvez evocando os dez sinais de Moisés (as dez pragas: Ex 7, 14-12, 50). É
certo que os dez milagres não são paralelos aos realizados por Moisés, mas o número pode ser
um indício da influência das histórias sobre Moisés.
Mateus sugere frequentemente ao leitor que Jesus cumpriu uma profecia. Várias citações da
Escritura judaica são introduzidas com as palavras: «Tudo isto aconteceu para se cumprir o que
o Senhor tinha dito pelo profeta ... » (Mt 1,22; 2, 5; 2, 15; 2, 17; 4, 14; etc.) A respeito das curas
de Jesus, Mateus cita Isaías 53, 4: «para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías: "Ele
tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores."» (Mt 8, 17) Outros cristãos
recorreriam a este versículo para explicar a morte de Jesus: ele tomou a fraqueza e o sofrimento
humanos sobre si mesmo. Mas Mateus interpreta a citação no sentido de ela se referir à
libertação das doenças e, por isso, encara os milagres de Jesus como o cumprimento da profecia.
Já vimos que Mateus omite as duas histórias de milagres que poderiam sugerir algo mágico (a
história do homem surdo-mudo, Me 7, 31-37, e a história do cego de Betsaida, Me 8, 22-26).
Elimina ainda
189
outros milagres, como, por exemplo, o exorcismo em Cafarnaum (Mc 1, 23-28), e encurta,
normalmente, as histórias de Marcos, sobretudo eliminando alguns pormenores. Um bom
exemplo disto mesmo é o tratamento que ele dá à história do paralítico que foi trazido a Jesus
num catre. Marcos tinha escrito que ele foi trazido por quatro homens, que estes não podiam
aproximar-se de Jesus por causa da multidão e que tiveram de o descer através da abertura no
telhado. Mateus não se refere a nada disto. Escreve apenas que as pessoas trouxeram um para-
lítico a Jesus e que este o curou, dizendo: «os teus pecados estão perdoados». Mateus regista a
controvérsia com aqueles que protestam contra a sua aparente reivindicação de poder perdoar
pecados: mas o colorido de Marcos desapareceu da história (Mt 9, 1-8).
Em Mateus existem, porém, algumas curas que não se encontram em Marcos. Uma delas
introduz-nos num dos temas fundamentais de Mateus e num dos aspetos decisivos do início do
cristianismo: a admissão de gentios. Terá Jesus procurado seguidores entre os gentios?
Retomaremos esta questão no capítulo seguinte. Aqui, limitamo-nos a registar a história do
servo de um centurião pagão que se encontra em Mateus. O centurião aproximou-se de Jesus,
pedindo-lhe que curasse o seu servo. Jesus oferece-se para o acompanhar até sua casa, mas o
centurião responde-lhe: «"Senhor, eu não sou digno de que entres debaixo do meu teto; mas diz
uma só palavra e o meu servo será curado. Porque eu, que não passo de um subordinado, tenho
soldados às minhas ordens e digo a um: vai, e ele vai ... " Jesus respondeu: "Em verdade vos
digo: Não encontrei ninguém em Israel com tão grande fé."» Ele mandou o centurião para casa
onde este encontrou o seu servo curado (Mt 8, 5-13; também em Lc 7, 1-10). Mateus, Marcos e
Lucas eram todos favoráveis à missão cristã aos gentios, mas Mateus dá-lhe uma ênfase
particular. Ele desejava, naturalmente, que Jesus se tivesse pronunciado favoravelmente em
relação aos gentios, pelo que o comentário de Jesus sobre a fé do centurião e a falta de fé em
Israel era muito importante.
O principal contributo de Lucas para o tema das curas milagrosas consistiu no aumento do
número que ilustra alguns dos temas já existentes em Marcos. Lucas acrescenta duas curas ao
sábado, uma cura de leprosos e uma ressuscitação. A história da ressuscitação é particularmente
190
interessante. Em Naim, Jesus vê um morto a ser levado para fora da cidade. O homem era o
único filho da sua mãe, que, além disso, era viúva; assim, ela ficou sem apoio. Jesus, movido
pela compaixão, mandou parar o cortejo. Ordenou ao homem que se levantasse e ele levantou-
se. A multidão louvou Deus, exclamando: «Surgiu entre nós um grande profeta!»; «Deus visitou
o seu povo» (Lc 7, 11-17). A aclamação de Jesus como um «grande profeta» é bastante
apropriada. A história recorda um dos milagres de Elias: ele também ressuscitou o filho de uma
viúva (1 Rs 17,9.17-24). Tal como vimos, os autores dos Evangelhos encaravam todos Jesus
como o cumprimento de uma profecia e é isso mesmo que temos aqui em Lucas.
A história também ilustra a tendência de Lucas para contar histórias cheias de interesse humano.
O estatuto social das pessoas interessa-o e ele faz frequentemente menção ao facto de uma
pessoa ser rica ou pobre. Zaqueu, por exemplo, era «chefe dos cobradores de impostos e um
homem rico» (Lc 19, 2). Na segunda parte da sua obra, nos Atos dos Apóstolos, Lucas
menciona por vezes convertidos que eram personalidades socialmente importantes. No entanto,
ele preocupava-se especialmente com os pobres. Onde Mateus diz «felizes os pobres em
espírito», Lucas diz «felizes vós, os pobres», e acrescenta «ai de vós, os ricos» (Lc 6, 20.24). O
seu Evangelho também contém várias histórias em que se adverte contra os perigos da riqueza e
se louvam os pobres: o rico insensato (Lc 12, 13-21); o homem rico e Lázaro (Lc 16, 19-31); a
oferta da viúva ( Lc 21, 1-4). As mulheres também desempenham um papel mais importante em
Lucas do que nos outros Evangelhos. Lucas conta a história de uma mulher pecadora que servia
Jesus (Lc 7, 36-50). Como já vimos, Lucas também diz que havia algumas mulheres que
seguiam Jesus, que o apoiavam financeiramente a ele e aos seus discípulos (Lc 8, 1-3). A
situação difícil das viúvas preocupava-o especialmente. Lucas conta a parábola de uma viúva
que teve de se tornar importuna com o juiz para obter justiça (Lc 18, 1-8). A história da
ressuscitação do filho de uma viúva permitiu a Lucas aprofundar o tema da capacidade de Jesus
para ressuscitar os mortos, ao mesmo tempo que conta uma história interessante do ponto de
vista humano na qual Jesus devolve a uma viúva pobre o seu único apoio.
Uma outra cura milagrosa que se encontra unicamente em Lucas concentra-se numa mulher.
Enquanto Jesus estava a ensinar numa sinagoga, num sábado, viu uma mulher que não era capaz
de se endireitar
191
havia dezoito anos. Jesus impôs-lhe as mãos e ela ficou curada. O chefe da sinagoga
repreendeu-o por causa de ele ter curado ao sábado, mas ele defendeu com sucesso o seu direito
a fazer o bem (Lc 13, 10-17). Esta história é muito parecida com a história da cura de um
homem com uma mão paralisada, contada por Marcos e que Lucas já tinha incluído no seu
Evangelho (Lc 6,6-11; Mc 3, 1-6). A sua segunda história permite-lhe salientar o tema da cura
ao sábado, relatando, simultaneamente, uma história de simpatia humana por uma mulher em
sofrimento. Há outros elementos de Mc 3, 1-6 que são repetidos ainda numa outra história de
uma cura ao sábado: o caso da cura de um homem que era hidrópico. Antes de curar o homem,
Jesus pergunta: «É permitido ou não curar ao sábado?» Trata-se, praticamente, da mesma
questão da história do homem com uma mão paralisada.
Enquanto Mateus reuniu o seu material em blocos, processo que lhe permitiu enfatizar
determinado tema, associando todo o material que se lhe referia, Lucas procura uma alternância
mais rápida entre ensinamentos e histórias de curas. Consegue enfatizar os temas repetindo-os
em secções diversas do seu Evangelho. Mateus e Marcos têm apenas um caso de cura ao
sábado, mas Lucas tem três: o homem com a mão paralisada (Lc 6, 6-11); a mulher que andava
curvada (13, 10-17); o homem hidrópico (14, 1-6). A repetição não só enfatiza a questão da
observância do sábado, como vimos, como oferece igualmente a Lucas a oportunidade de
acrescentar narrativas cheias de interesse do ponto de vista humano, e isto é uma das
características principais do seu Evangelho.
Como último exemplo para esta tendência de Lucas podemos acrescentar a cura de dez leprosos
(Lc 17, 11-14), que repete, em parte, a história da cura de um leproso (5, 12-16) e que também
acrescenta uma nota interessante: apenas um dos dez regressou para agradecer.

Exorcismos
Os exorcismos, uma importante subcategoria das curas, merecem uma discussão mais exaustiva.
Eles eram muito importantes no ambiente cultural de Jesus, assim como o foram na sua própria
atividade. A importância da demonologia no judaísmo tinha crescido desde os dias da Bíblia
Hebraica, que atribui numerosos milagres aos profetas (como Elias e Eliseu), mas não contém
quaisquer histórias de exorcismo.
192
O exorcismo é, contudo, o tipo de cura mais proeminente nos Evangelhos sinópticos. O volume
de testemunhos torna extremamente provável que Jesus tivesse tido, de facto, reputação de
exorcista. Apresento aqui um catálogo completo das histórias de possessão demoníaca
existentes nos sinópticos

1. Exorcismos realizados por Jesus

a) Mc 1, 23-28 I I Lc 4, 31-37 --------------------Jesus cura um homem na sinagoga de Cafarnaum


b) Mc 1,32-34 I I Mt 8, 16 I I Lc 4, 41 -----------------------sumário: ele expulsa muitos demónios
c) Mc 1,39 -------sumário (também em Mateus e Lucas, embora eles não mencionem demónios)
d) Mc 3, 11 I I Lc 6, 18 ---------------------------------------------------------------------------sumário
e) Mc 3, 20-30 I I Mt 12,22-37 I I Lc 11, 14-23 e outras passagens --controvérsia sobre Belzebu
f) Mc 5, 1-20 I I Mt 8, 28-34 I I Lc 8, 26-39 ------------------------------------o possesso de Gerasa
g) Mc 7, 24-30 I I Mt 15,21-28 ---------------------------------------------------a mulher siro-fenícia
h) Mc 9, 25 Ii Mt 17, 18 Ii Lc 9, 42 ---------------------------------------------------criança epilética
193
i) Mt 4,24 ------------------------------------------sumário; «demoníacos» faltam em Marcos e Lucas
j) Mt 9,32-34 -------------------------------------------------------------------------------mudo possesso
k) Lc 8, 2 --------------------------------------------Jesus expulsa sete demónios de Maria Madalena
1) Lc 13, 32 -----------------------------------------------Ide dizer a Antipas: «Eu expulso demónios»

2. Exorcismos atribuídos a outros


m) Me 3, 15; 6, 7; 6, 13; Mt 10, 1; 10, 8; Lc 9, 1 discípulos recebem autoridade para expulsar
demónios (ou espíritos impuros)
n) Mc 9, 38 I I Lc 9, 49 ---------------------------------------------------o exorcista exterior ao grupo
o) Mt 7, 22 ---------------------------os hipócritas dirão que expulsam demónios em nome de Jesus
e) Mt 12,27 Ii Lc 11,19 (controvérsia sobre Belzebu, cf acima) «por quem os expulsam os
vossos filhos?»
p) Lc 10, 17 os setenta (e dois) relatam que os demónios se sujeitaram a eles «em nome de
Jesus»

3. Outras passagens que demonstram a teoria da possessão demoníaca


q) Mt 11, 18 Ii Lc 7, 33 --------------------algumas pessoas dizem que João Baptista está possesso
r) Mt 12,43 I I Lc 11,24 ----------------------------descrição do movimento de um espírito maligno
194
Estas passagens suscitam vários comentários. Em primeiro lugar, demonstram que a possessão
diabólica e os exorcismos eram fenómenos bem conhecidos e que existiam muitos outros
exorcistas para além de Jesus. Na «controvérsia sobre Belzebu» (e), o próprio Jesus admite que
alguns fariseus tinham capacidade para proceder a exorcismos. A tradição dos Evangelhos
indica que os discípulos também estavam capacitados para praticar exorcismos (m) e (P), que
um homem que não fazia parte dos seguidores de Jesus fazia exorcismos em seu nome (n) e que,
mais tarde, os «hipócritas» reivindicarão praticar também exorcismos em nome de Jesus (o).
Deveríamos recordar neste contexto as histórias sobre Apolónio e Eleazar.
Em segundo lugar, estas passagens indicam que o sinal de posses- são demoníaca consistia,
habitualmente, num comportamento errático. O possesso de Gerasa (f) tinha sido literalmente
acorrentado, mas tinha quebrado as cadeias e escondia-se nos túmulos. O espírito de que a
criança estava possessa «lançava-a muitas vezes ao fogo e à água» (Mc 9, 22). Na versão da
controvérsia sobre Belzebu que se encontra em Marcos (e), a acusação de que Jesus expulsa
demónios invocando o nome do príncipe destes vem imediatamente depois de a família de Jesus
ter tentado ter mão nele, dizendo «está fora de si». (Mc 3, 21). Voltaremos a esta questão mais
adiante, pelo que aqui nos limitaremos a notar que o próprio Jesus pode ter revelado um
comportamento errático.
Em terceiro lugar, os autores dos Evangelhos e, provavelmente, a tradição cristã anterior aos
nossos Evangelhos, desenvolveram o tema da reputação de Jesus como exorcista. As
recapitulações sumárias vão neste sentido: «trouxeram-lhe todos os enfermos e possessos ... E
ele ... expulsou muitos demónios» (b). Os dois casos mais evidentes de desenvolvimento do
tema são os indicados com as letras (j) e (P). A primeira destas passagens - Mt 9, 32-3 - é,
provavelmente, uma criação de Mateus. A passagem refere-se à cura de um mudo que estava
possesso do demónio. A questão da invenção é importante e Mt 9, 32-34 constitui um caso
interessante de analisar.
Esta passagem constitui, provavelmente, um dos casos em que Mateus criou uma
correspondência adicional entre a profecia e os atos de Jesus. Em 11, 5, Mateus cita a resposta
de Jesus a João Baptista. «Os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os
surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada
195
aos pobres.» Isto baseia-se em Isaías 35, 5 e segs. e Mateus estava provavelmente interessado
em ilustrar todos os pontos com a prova do texto da Escritura. Ele já tinha histórias de curas de
um leproso (Mt 8, 1-4) e de um homem paralítico (Mt 9, 1-8), assim como da ressuscitação de
um morto (Mt 9, 18-26) e só precisava da cura de um cego e de um mudo. Ao que parece, ele
pretendia apresentar ambos nesta secção do seu Evangelho, isto é, nos capítulos 8 e 9. É
também possível que pretendesse atingir o número de dez curas. Seja qual for o seu motivo, é
provável que tenha escrito os dois últimos milagres desta secção. A cura do cego é tirada de
uma passagem que aparece mais adiante (Mc 10, 46 / / Mt 20, 29-34), criando, assim, uma
duplicação; ele compôs a passagem em causa (o mudo possesso) utilizando motivos-padrão. O
homem mudo foi curado através da expulsão de um demónio (motivo habitual); a multidão
exclamou: «Nunca se viu tal coisa em Israel» (cf. 8, 10 «Não encontrei ninguém em Israel com
tão grande fé»), e os fariseus dizem: «É pelo chefe dos demónios que ele expulsa os demónios.»
(Assumido de 12, 24, onde esta acusação se segue à cura de um cego e de um mudo possesso.)
A história presente demonstra, portanto, que se podiam criar novas histórias de milagres com
base em outras. Mas também podemos observar uma falta de capacidade criativa autêntica.
Mateus limita-se a ir buscar outros milagres para as suas novas histórias. Parece dispor de uma
pequena reserva de histórias tradicionais de curas à qual recorrer quando necessitava de
histórias novas, em vez de inventar relatos completamente novos.
Lc 10, 17 constitui um caso muito semelhante. Já verificámos que Jesus teve, provavelmente,
mais adeptos do que apenas os doze apóstolos e que Lucas tornou isto explícito, acrescentando
uma missão de setenta (ou setenta e dois)!" seguidores de Jesus (p. 125). Ele não dispunha de
material novo, tendo-se limitado a utilizar a tradição da missão de que Jesus incumbiu os Doze,
com pequenas alterações. «Os demónios submetem-se a nós, em teu nome» (Lc 10, 17) é
retirado de Mc 6, 7 / / Lc 9, l.
Esta análise, que leva à conclusão de que, por vezes, os primeiros cristãos criaram passagens
sobre exorcismos, torna, ao mesmo
196
tempo, pouco provável que eles tenham inventado o tema completamente. O leitor lembrar-se-á
que, quando encontramos um motivo nos Evangelhos que corresponde exatamente a uma
passagem na Bíblia Hebraica, temos sempre de perguntar se a passagem mais antiga levou ou
não à criação da mais recente. Isaías tinha profetizado que os leprosos iriam ser curados, os
surdos iriam ouvir e os mudos, falar; suspeitamos que Mateus tenha criado uma história sobre
um homem mudo, a fim de demonstrar que Jesus cumpriu esta profecia. Ora o exorcismo não
constitui um tema da Bíblia Hebraica. Por isso, tem de possuir uma fonte diferente. O
exorcismo era muito conhecido no século I. Quererá isto dizer que, então, todos os líderes
religiosos do século I realizavam exorcismos? Aparentemente não. João Baptista parece não ter
sido exorcista. Teudas e o Egípcio prometeram milagres depois de Jesus, mas Josefo não diz
que praticavam exorcismos. Honi e Hanina não eram conhecidos como exorcistas. O exorcismo
constituía, portanto, uma especialização: alguns líderes religiosos eram exorcistas, mas não
todos. Penso que é altamente provável que Jesus fosse encarado como um exorcista.
As pessoas gostam de categorias claras e, por isso, foi dedicada uma grande atenção à questão
de saber que tipo de pessoa era Jesus: em que categoria deveria ser classificado? Morton Smith,
por exemplo, pensava que Jesus deve ser considerado mais como um mágico do que como um
profeta.!" Eu continuo a considerar a de «profeta» como a melhor categoria singular. Contudo,
Jesus também era exorcista. O exorcista podia imitar o comportamento da pessoa que pretendia
curar. Isto podia incluir estrebuchar, rolar pelo chão, etc. As únicas ações que os. Evangelhos
sinópticos atribuem diretamente a Jesus são falar, tocar e cuspir; no entanto, as passagens que
mencionam o ato de cuspir (Mc 7, 31-37; 8, 22-26, acima, p. 145) não se referem a exorcismos.
É, no entanto, possível que a tradição tenha eliminado o material que atribui um comportamento
estranho a Jesus. Referimos que, segundo Me 3, 21, a família de Jesus tinha tentado dominá-lo
porque ele estava «fora de si». É possível que isto se trate de um resquício de um complexo de
material que tinha sido, em tempos, mais vasto e que apresentava Jesus como alguém que
revelava um comportamento
197
estranho. Se ele, por vezes, se tivesse comportado de uma maneira não convencional, as pessoas
não teriam pensado necessariamente que ele era mágico, mas tê-lo-iam encarado de uma forma
um pouco mais estranha.
Acabámos de entrar no reino da especulação, por isso, é o momento de esclarecer o ponto de
vista desta investigação. Para vermos Jesus como ele era realmente, temos de reconhecer que o
ensinamento ético do sermão da montanha não conta a história toda. Ele não foi apenas um
mestre ou um moralista. Segundo Marcos, a sua fama provinha das curas e, sobretudo, dos
exorcismos. Isto, por seu turno, levanta a questão da relação entre Jesus, a magia e o compor-
tamento estranho. As pessoas que recitavam feitiços e misturavam substâncias estranhas não
faziam parte da elite religiosa no tempo de Jesus. Muitos deles recebiam dinheiro pelo seu
serviço, praticavam magia negra e eram, em geral, pessoas de reputação duvidosa. Mateus
eliminou as referências à utilização de saliva por Jesus que se encontram em Marcos, sendo
possível que outros elementos mágicos ou semimágicos também tenham desaparecido. Penso
que podemos ter alguma certeza de que, inicialmente, a fama de Jesus resultava de curas,
sobretudo, de exorcismos. Isto constitui uma correcção importante à ideia habitual, segundo a
qual Jesus era essencialmente um mestre. Ele também era - e para algumas pessoas, acima de
tudo - alguém que fazia milagres. Não podemos, contudo, afirmar que as suas curas o
colocassem ao nível dos mágicos. É uma possibilidade especulativa dizer que, por vezes, ele
utilizou uma ou várias das técnicas dos mágicos, incluindo cuspir e imitar determinado
comportamento físico. Parece ter curado principalmente através da palavra e do contacto físico.

Milagres naturais
Os Evangelhos atribuem a Jesus outro tipo de milagres, além das curas. Estes são designados
geralmente como «milagres naturais», embora o termo nem sempre seja completamente
apropriado.
Um dos mais impressionantes e mais complicados consiste numa história elaborada de um
exorcismo [indicada anteriormente na alínea (flJ. Jesus e os seus seguidores atravessavam o mar
da Galileia, a caminho de Gerasa (Marcos e Lucas) ou de Gadara (Mateus). Encontraram
198
um possesso que era incontrolável.!" Os habitantes da cidade tinham tentado prendê-lo com
correntes, mas ele quebrava-as. «Andava sempre, dia e noite, entre os túmulos e pelos montes, a
gritar e a ferir-se com pedras.» Viu Jesus, correu ao seu encontro e prostrou-se diante dele. Ele -
ou antes o demónio nele - gritou: «Que tens a ver comigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo?
Conjuro-te, por Deus, que não me atormentes» Jesus perguntou-lhe o seu nome. Ele respondeu:
«O meu nome é Legião, porque somos muitos.» Estava uma vara de porcos ali perto e os
demónios pediram a Jesus para os mandar para dentro dos porcos. Jesus consentiu «e a vara,
cerca de uns dois mil, precipitou-se no mar, afogando-se». Os guardas dos porcos contaram o
sucedido e muitas pessoas foram ver o que se passara. Aquele que antes estivera possesso estava
sentado, «vestido e em perfeito juízo». As pessoas pediram a Jesus que se fosse embora. Ele
entrou num barco e o homem curado suplicou-lhe que o deixasse ir com ele. Jesus recusou,
dizendo que ele deveria ficar e contar a história de como Deus tinha tido misericórdia dele. O
homem curado assim fez, apregoando na Decápolis o que Jesus fizera por ele (Mc 5, 1-20). Em
Mateus, contudo, a história termina com o pedido da população para que Jesus se fosse embora
(Mt 8, 28-34).
A história é estranha em todos os aspetos. É de longe o mais dramático de todos os exorcismos
atribuídos a Jesus, ligando, além disso, o exorcismo à «natureza» - aos porcos. Um dos
pormenores referidos na história torna-a inverosímil. Gerasa fica a cerca de 45 quilómetros de
distância do mar da Galileia, não existindo outras águas de grande superfície nas proximidades.
Mateus desloca a cena para Gadara, que se encontra a 10 quilómetros de distância do mar,
talvez pensando que isto diminuía o problema - apesar de um salto de 10 quilómetros ser tão
impossível como um de 45 quilómetros. Tenho dificuldades em explicar a história no sentido de
encontrar um núcleo histórico. Os evangelhos apócrifos dos séculos posteriores descrevem, por
vezes, Jesus a realizar milagres igualmente fantásticos e grotescos, alguns dos quais, ainda mais
cruéis do que a destruição dos porcos, apresentando, por exemplo, Jesus a matar os seus
companheiros de jogo de infância e, em seguida, a ressuscitá-los ou a transformá-los em cabras.
Isto significa, por vezes, que o desejo dos autores cristãos em
199
apresentar Jesus como alguém que dispunha de um poder sobrenatural era tão forte que o
descreveram como não sendo melhor do que um deus mal-humorado da mitologia grega.15 A
maior parte do material dos evangelhos canónicos não possui esta tendência. No entanto, aqui, o
poder espiritual de Jesus sobre os demónios está tão enfatizado que resultou numa história sem
interesse. Na realidade, o que se pretendia era colocar a ênfase na cura de um homem possesso.
O milagre natural mais famoso está relacionado com uma tempestade no mar (Mt 14,22-33 / /
Me 6, 45-52). Jesus tinha estado a ensinar. Despediu a multidão a quem tinha ensinado e foi
orar para o monte, enquanto os discípulos atravessavam o mar num barco. Levantou-se uma
tempestade e o barco ficou numa situação difícil. De repente, os discípulos viram Jesus a
caminhar ao encontro deles. Assustaram-se, pensando: «é um fantasma». Jesus tranquilizou-os,
mas Simão Pedro pediu-lhe uma prova de que era de facto ele, dizendo-lhe que o mandasse
caminhar também a ele, Pedro, sobre as águas. Pedro saiu do barco e começou a caminhar ao
encontro de Jesus. Levantou-se vento e Pedro teve medo e começou a afundar-se. Jesus
estendeu-lhe a mão, dizendo-lhe: «Homem de pouca fé, por que duvidaste?» Entraram
novamente na barca e o vento amainou. Os discípulos convenceram-se de que Jesus era o Filho
de Deus. Isto, pelo menos, na versão de Mateus. Marcos 6, 45-52 não inclui a parte sobre Pedro,
nem a conclusão categórica de que os discípulos acreditaram que Jesus era o Filho de Deus.
Segundo Marcos, eles não compreenderam.
Existe uma outra história sobre uma tempestade no mar (Me 4, 35-41 e par.) Os discípulos e
Jesus estavam no barco quando se levantou uma tempestade e o barco estava prestes a ir ao
fundo. Jesus estava a dormir. Os discípulos acordaram-no, dizendo-lhe: «Mestre, não queres
saber que pereçamos?» Jesus levantou-se, repreendeu o vento e disse ao mar: «Acalma-te, cala-
te!», e o mar acalmou-se.
200
Tal como existem dois milagres relacionados com o mar, existem também dois milagres
relacionados com a comida. De acordo com o primeiro (Me 6,30-44/ / Mt 14, 13-21), Jesus e os
seus discípulos tentavam escapar à multidão que não lhes dava tempo, sequer, para comerem.
Entraram no barco deles e foram para um «local isolado», que não permaneceu isolado durante
muito tempo, porque as pessoas «acorreram a pé àquele lugar, vindas de todas as cidades e
chegaram primeiro que eles». Jesus começou a ensinar a multidão e, entretanto, fez-se tarde. Os
discípulos insistiram que ele mandasse as pessoas embora para que pudessem encontrar comida.
Ele respondeu: «Dai-lhes vós mesmos de comer.» Isto não era razoável, uma vez que eles não
tinham dinheiro suficiente para comprar comida para a multidão. Jesus perguntou, então,
quantos pães tinham consigo. Os discípulos encontraram cinco pães e dois peixes. A multidão
sentou-se, Jesus pronunciou uma bênção e partiu os pães. Os peixes também foram divididos.
Apesar da pequena quantidade inicial de comida, «todos comeram e ficaram saciados», e ainda
sobrou comida. De acordo como Marcos, estavam presentes 5000 homens; Mateus especifica:
«sem contar mulheres e crianças». No segundo caso (Mt 15,32-39// Me 8, 1-10), sete pães
(segundo Marcos; Mateus acrescenta «e alguns peixinhos») foram suficientes para saciar 4000
pessoas.
O aspeto mais curioso dos milagres naturais é a falta de impacto que estes eventos tiveram
segundo os Evangelhos. A única coisa que os autores dos Evangelhos dizem acerca da reação da
multidão à primeira refeição é que: «comeram até ficar saciados» (Mc 6, 42 e par). O
comentário depois da segunda refeição é quase idêntico (Mc 8, 8 / / Mt 15, 37). Nem sequer os
discípulos fazem comentários. A história de Jesus a andar sobre as águas encontra-se, tanto em
Mateus, como em Marcos, entre estes dois milagres da refeição. Marcos escreve que os
discípulos «ainda não tinham entendido o que se dera com os pães, mas tinham o coração
endurecido» (Me 6, 51 e segs.). Mateus, como vimos, tem um final mais reverencial: «Os que se
encontravam na barca prostraram-se diante de Jesus, dizendo: "Tu és, realmente, o Filho de
Deus!"» (Mt 14, 33.) O acalmar do mar, o primeiro milagre natural em Mateus e Marcos,
provoca apenas espanto: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?» (Mc 4, 41, Mt
8, 27.)
Se nos lembrarmos de que Marcos atribuiu um grande impacto a um milagre de uma
importância relativamente menor, a um único
201
exorcismo (Mc 1,28: «A sua fama logo se espalhou por toda a parte»), é difícil explicar por que
motivos os autores dos Evangelhos tiveram tão pouco a dizer sobre o impacto público de um
milagre tão grandioso como alimentar uma multidão. Não podemos resolver inteiramente o
enigma, mas parte da resposta está no facto de os primeiros cristãos terem de levar em conta um
facto histórico grave: eram poucas as pessoas que acreditavam em Jesus como o último e mais
importante enviado de Deus. A 1 a Carta aos Coríntios 15, 6, dá a impressão de que Jesus teve
algumas centenas de seguidores e de simpatizantes (p. 165). Contudo, os autores dos
Evangelhos acreditavam que ele era o Filho de Deus e que tinha realizado sinais dramáticos que
demonstravam a sua relação íntima com a divindade. Mas se ele fez realmente milagres e se os
milagres constituíam uma prova, então, devia haver mais pessoas a acreditar nele. Os autores
dos Evangelhos não tinham dúvidas de que Jesus tinha feito milagres, mas tinham de admitir
que eram poucas as pessoas que acreditavam nele. Isto deixou-os com um dilema. Marcos, em
particular, tentou resolver o problema afirmando que Jesus tinha ordenado silêncio: talvez
poucas pessoas acreditassem porque Jesus tenha restringido a divulgação das notícias. Todavia,
Marcos também diz que as pessoas que receberam estas ordens do silêncio não as observaram,
mas proclamavam Jesus publicamente e que este era acossado pela multidão. No entanto,
quando estas mesmas multidões assistiram a um milagre (a multiplicação dos pães e dos
peixes), não reagiram, praticamente. O leitor moderno está inclinado a pensar que esta situação
curiosa resulta, em parte, da tensão entre o acontecimento real e o relato que os evangelistas
fizeram dele. Talvez Jesus não tenha feito realmente muitos milagres espetaculares, pelo que,
naturalmente, não havia muitas pessoas a quem os milagres convencessem a segui-lo. Tal
significaria que a tradição cristã aumentou e enalteceu as histórias de milagres a fim de as tornar
muito impressionantes. Por conseguinte, poderia pensar-se que a reação foi reduzida do ponto
de vista histórico porque houve poucos milagres grandiosos, ao passo que, nos Evangelhos, há
grandes milagres, mas uma reação inexplicavelmente pequena. É possível que os milagres de
Jesus fossem relativamente insignificantes, não causando senão uma agitação temporária do
público. Isto constitui uma solução especulativa, apesar de razoável, na minha opinião.
Consideraremos, no entanto, a possibilidade de uma reação pública aos milagres de Jesus mais
significativa.
202

A importância dos milagres de Jesus


O retorno às explicações modernas dos milagres, antes de tirarmos conclusões finais sobre a
perspetiva dos evangelistas e a provável opinião de Jesus, contribuirá para esclarecer a questão.
Quando as pessoas de hoje olham para os milagres na Antiguidade (não só para aqueles que se
encontram na Bíblia), querem explicá-los racionalmente, como é óbvio, visto que a ideia de
Cícero, segundo a qual nada não natural pode acontecer, sendo aquilo que acontece natural,
tornou-se uma opinião dominante, apesar de haver muitas pessoas que não partilham esta ideia.
As explicações racionais mais relevantes são as seguintes:
1) Quase todas as curas podem ser explicadas como curas psicossomáticas ou como vitórias da
mente sobre a matéria. Os casos de doença de natureza «histérica» ou psicossomática são bem
conhecidos e estão bem documentados. Esta explicação, aplicada aos milagres nos Evangelhos,
engloba os exorcismos, assim como as curas do cego, do surdo-mudo, do paralítico e,
possivelmente, também da mulher com uma hemorragia.
Alguns tentaram estender esta explicação à história do possesso de Gerasa e dos porcos: Jesus
curou realmente um «possesso» através da sugestão mental, isto é, fê-lo regressar ao seu
perfeito juízo. O homem entrou em convulsões, o que assustou os porcos, fazendo com que eles
entrassem em pânico e caíssem da falésia. Considero esta explicação pouco convincente e
duvido que aqueles que a dão tenham alguma vez tentado assustar uma vara de porcos através
de um ataque. A história não pode ser explicada racionalmente.
2) É possível pensar que alguns milagres não passaram de coincidências. O acalmar do mar, por
exemplo, podia ter-se tratado de uma situação em que a tempestade acalmasse por si mesma,
mais ou menos quando Jesus disse: «Acalma-te, cala-te!»
3) Sugeriu-se que alguns milagres foram apenas aparentes. Quando Jesus foi visto a caminhar
sobre as águas, talvez se encontrasse em terra, mas numa superfície obscurecida por um
nevoeiro cerrado que parecia o mar; ou talvez ele soubesse onde havia rochas submersas.
4) A psicologia de grupo foi utilizada frequentemente para explicar os milagres da multiplicação
dos pães. De facto, todos tinham trazido comida, mas tinham medo de a tirar para fora, para não
ter de partilhá-la com os outros. No entanto, quando Jesus e os discípulos começaram
203
a dividir a sua comida, todos na multidão se sentiram encorajados a fazer o mesmo e a comida
foi mais do que suficiente.
5) Algumas histórias de milagres podem ser lendas historicizadas. É realmente verdade, por
exemplo, que Pedro vacilou na fé. Isso sucedeu quando Jesus foi preso. Ele seguiu Jesus de
longe e negou que era um dos seus seguidores quando lho perguntaram (Mc 14,66-72). Mais
tarde, também vacilou na questão da obrigação ou não de os gentios convertidos ao movimento
cristão observarem as leis alimentares judaicas e Paulo afirmou que ele agiu de maneira
hipócrita (Gl 2, 11-24). Segundo esta explicação, a incapacidade de Pedro caminhar sobre as
águas é apenas uma imagem de um carácter fraco. A sua hesitação é descrita através da narração
de uma breve lenda.
A necessidade de uma explicação racional é algo moderno. As numerosas tentativas de
explicação possuem uma intenção conservadora: se for possível explicar racionalmente os
milagres de Jesus, será mais fácil para as pessoas modernas continuar a acreditar que a Bíblia é
verídica, no sentido moderno do termo: exata do ponto de vista histórico e segura do ponto de
vista científico. Penso que algumas explicações racionalistas são tão rebuscadas que prejudicam
o esforço global, mas o princípio é parcialmente correto. As pessoas da Antiguidade atribuíam a
poderes sobrenaturais (bons ou maus espíritos) aquilo que as pessoas modernas explicam de
uma forma diferente. Consideramos plausível explicar um exorcismo como uma cura psicos-
somática. No entanto, é um erro pensar que explicações racionais dos milagres possam
demonstrar que os Evangelhos são completamente factuais. Algumas das histórias dos milagres
não podem ser explicadas com base no conhecimento científico atual.
A tarefa mais importante para o objetivo deste livro consiste, no entanto, em esclarecer o que os
contemporâneos de Jesus e as pessoas que viveram numa época próxima dele pensavam sobre
os milagres. Também queremos saber mais especificamente o que pensavam os seguidores de
Jesus sobre os seus milagres e o mais possível sobre o que ele próprio pensava. O material a que
podemos recorrer - histórias de milagres nos Evangelhos e noutra literatura da Antiguidade-
forneceu-nos uma informação excelente sobre a opinião geral acerca dos milagres nos dias de
Jesus (pp. 177-185). O estudo dos Evangelhos permitiu-nos descobrir também o que diversos
cristãos - os evangelistas
204
- pensavam sobre os milagres uma ou duas gerações após a época de Jesus (pp. 186-192). No
entanto, temos de procurar por detrás dos Evangelhos para descobrir a importância que Jesus e
os seus seguidores atribuíram aos seus milagres, pelo que as nossas conclusões têm de
permanecer um tanto ao nível de uma tentativa. Debrucemo-nos agora sobre esta tentativa.
As pessoas que se aproximaram de Jesus na esperança de milagres tê-lo-ão visto à luz do seu
próprio passado e presente. A nossa análise das histórias de milagres nos Evangelhos confirmou
as conclusões da discussão anterior sobre os milagres na Antiguidade, em geral, e na Palestina,
em particular: a maior parte das pessoas não tinha dificuldades em acreditar em milagres. Os
judeus liam e acreditavam na Bíblia Hebraica onde se dizia que Moisés, Elias, Eliseu e outros
tinham feito milagres. Josefo pensava que Eleazar podia, realmente, exorcizar. Durante a guerra
civil, muitos judeus acreditaram que a maldição de Honi seria eficaz e era crença que Deus tinha
ouvido a sua oração, pedindo chuva. As pessoas simples da Palestina não tinham dificuldade em
pensar que Deus podia agir na história e que o tinha feito de facto, utilizando por vezes pessoas
justas e santas que faziam milagres.
O que os contemporâneos de Jesus perguntavam acerca das suas ações era se seria ou não Deus
que atuava através dele. Os inimigos de Jesus não suspeitavam de fraude, mas sim de que ele
curava invocando um poder diabólico. Aqueles que pensavam que ele expulsava demónios
através do Espírito de Deus acreditavam, naturalmente, que ele era, de alguma forma, um agente
de Deus. Podemos ser mais concretos quanto à amplitude de opiniões positivas em relação a
ele? Recorde-se que Jesus tinha poucos discípulos, um número maior de seguidores e de
apoiantes e ainda mais simpatizantes. As multidões juntavam-se à volta dele, esperando ver ou
beneficiar de curas. O que teriam pensado sobre ele? Seriam os milagres de Jesus como os de
Honi e Hanina - sinais de que aquele que os realizava era particularmente devoto e que Deus
ouvia os seus pedidos? Ou eram os seus milagres como os sinais prometidos por Teudas, que
indicavam que Deus ia repetir os Seus prodígios em prol do Seu povo? Ou provaram que Jesus
era, de alguma forma, o Filho de Deus? Gostaria de me debruçar primeiro sobre a última
questão, visto que ela constitui o tópico que mais frequentemente induz em erro os leitores
modernos, quando estes leem os Evangelhos ou literatura da Antiguidade.
205
Os Evangelhos sinópticos não descrevem as pessoas que pediam e obtinham curas de Jesus
chamando-lhe «Filho de Deus», embora atribuam esta perspetiva aos demónios. Quando Jesus
expulsava demónios, eles, por vezes, gritavam «Filho de Deus»;'? A versão de Mateus da
passagem em que Jesus caminhou sobre as águas é a única em que uma pessoa reage a um
milagre dizendo que Jesus é Filho de Deus: já vimos que, em Mateus, a história termina com
esta confissão dos discípulos (Mt 14, 33). Marcos, no entanto, constata que eles «tinham o
coração endurecido» (Mc 6, 52). Esta história não se encontra no Evangelho de Lucas. Os
leitores atuais que pensam que o cristianismo se baseia na ideia de que Jesus era mais do que
humano e que os seus milagres confirmam esta crença encontram, naturalmente, confirmação
neste versículo de Mateus. No entanto, de acordo com a reconstrução rigorosa do material
empírico, nada indica que os contemporâneos de Jesus considerassem os seus milagres uma
prova de que ele era Filho de Deus. Os historiadores não conseguem explicar o significado das
exclamações dos demónios, mas, de qualquer modo, estas não podem ser tomadas como um
reflexo da opinião geral entre o público simpatizante. Mateus 14,33 não se refere à opinião das
muitas pessoas que acorreram a Jesus para serem curadas. Na realidade, a frase apenas
evidencia a convicção do próprio Mateus, uma vez que constitui uma simples revisão do texto
de Marcos.
Apesar da falta absoluta de indícios de que o público simpatizante ou as pessoas que vieram ao
encontro de Jesus com a esperança de serem curadas pensassem que os seus milagres provavam
que ele era Filho de Deus, discutirei esta possibilidade em termos gerais. Espero esclarecer um
pouco melhor a questão do «Filho de Deus» e dos milagres. Comecemos por perguntar o que
pode significar a expressão «Filho de Deus».
A expressão «Filho de Deus» em contexto judaico não significa «mais do que humano». Os
judeus eram todos «Filhos de Deus» ou mesmo «Filho de Deus», no sentido coletivo, como
podemos ler em Oseias 11, 1 ou no Êxodo 4, 22 («Israel é o meu filho primogénito» ).
206
O Salmo 2,7 refere-se ao rei de Israel como Filho de Deus; Lucas aplicou este versículo a Jesus
(Lc 3, 21), mas não existe razão para afirmar que, ao fazê-lo, tenha redefinido o conceito de
«Filho de Deus» no sentido de este passar a significar «mais do que humano».
No mundo grego, existia uma distinção um pouco menor entre o humano e o divino do que no
mundo judaico. A mitologia grega descrevia os deuses como tendo ligações com seres humanos
e procriando uma descendência mista.!? Os gregos declararam, por vezes, que um ser humano
era divino. Apesar de os romanos não terem tido inicialmente tendência para conceber seres
humanos como deuses, a prática grega tendeu a espalhar-se por todo o Império Romano.
Por conseguinte, no século I, o termo «Filho de Deus», tal como se encontra na passagem de Mt
14, 33, podia ter uma série de significados. Um dos significados concebíveis é aquele que era
possível na cultura grega: «Os discípulos perceberam que Jesus era algo mais do que meramente
humano.» Penso que isto é improvável. É provável que o termo «Filho de Deus», nesta e nas
outras passagens dos Evangelhos, se aproxime mais do significado que já vimos quando
mencionámos Honi: ele importunava Deus tal como um filho importuna um pai (p. 181). Houve
um rabi importante que pensou que ele era impertinente e tomava excessivamente a graça de
Deus como algo garantido, mas ninguém pensava que Honi tivesse atribuído a si próprio nem
uma origem, nem poderes sobrenaturais. Pelo contrário, Honi apenas insistia que Deus
respondia às suas orações. É muito importante notar que existe uma outra passagem em que
Mateus atribui a Jesus precisamente esta perspetiva. Jesus impediu a tentativa dos discípulos de
o defender quando foi preso perguntando-lhes: «Julgais que não posso recorrer a meu Pai e que
Ele não me enviaria imediatamente mais de doze legiões de anjos?» (Mt 26, 53) Este tipo de
afirmação de uma relação íntima entre pai e filho - a confiança de que Deus fará o que lhe é
pedido - só muito raramente é atestada na literatura judaica, mas constitui um significado
possível do termo «Filho de Deus» no judaísmo do século I.
Embora seja pensável que, no versículo dos Evangelhos sinópticos que afirma que os milagres
de Jesus provocaram a aclamação de «Filho de Deus», a expressão signifique «mais do que
humano», duvido
19 Para um tema relacionado com este na Escritura Hebraica, ver Gn 6, 1-4.
207
que fosse esse o significado que Mateus lhe atribuía. Em todo o caso, não existe qualquer razão
para atribuir tal ideia aos simpatizantes e apoiantes de Jesus. Se os seguidores de Jesus na
Galileia, ou aqueles que assistiam aos seus milagres, disseram alguma vez que ele era Filho de
Deus, então é porque queriam dizer aquilo que Mateus queria, provavelmente, dizer: que ele
podia confiar que o seu Pai celeste responderia às suas orações. Volto a dizer que não existe
qualquer evidência para tal resposta, mas a cultura permiti-lo-ia. Este título, atribuído a Jesus
por tal razão, não o transformaria em absolutamente único, tal como ficámos a saber tanto da
história de Honi, como da de Mateus 7, 11, onde Jesus diz aos seus ouvintes que o Pai deles que
está no Céu lhes dará o que eles pedirem.
Se os contemporâneos de Jesus não consideravam que os seus milagres provavam que ele era
mais do que humano, será que os consideravam uma prova de outra coisa - que ele era como
Honi ou que era o último mensageiro antes da vinda do Reino? A primeira possibilidade é
provável. Recorde-se um outro aspeto das descrições evangélicas acerca das reações da
população aos milagres de Jesus. Os evangelistas tiveram de aceitar que os milagres de Jesus
não provavam inequivocamente que ele era representante de Deus em algum sentido. De facto,
os Evangelhos atribuem várias reações àqueles que assistiram a milagres de Jesus, desde uma
aceitação pacífica (as refeições), passando por aclamações públicas (os primeiros exorcismos e
curas), até à perplexidade (Mc 6, 51 e segs.) e a acusações de magia negra. Os Evangelhos não
têm uma solução clara para o problema de haver algumas pessoas que acreditavam e outras, que
não. Uma das características mais interessantes dos Evangelhos é que apresentam alguns
estrangeiros que acreditavam em Jesus - isto é, confiavam nele e acreditavam que ele podia
ajudá-los; exemplos disso são a mulher que sofria de hemorragia, a mulher gentia na Síria, o
centurião em Cafarnaum e Jairo. No entanto, aqueles que se encontram mais próximos de Jesus,
muitas vezes, ficam simplesmente surpreendidos ou não compreendem (os discípulos em
Marcos, depois da segunda acalmia de uma tempestade). É provável que este contraste esteja
exagerado por motivos dramáticos. Aliás, eu sugeri anteriormente que o mesmo se aplica aos
milagres de Jesus. Uma terceira explicação para o facto de Jesus não ter encontrado uma
aceitação generalizada é que mesmo as pessoas que assistiram a milagres realizados por ele
consideravam-no
208
um segundo Honi, alguém que Deus ouvia e que, por isso, era capaz de realizar ações benéficas,
mas não alguém a quem as pessoas entregassem as suas vidas.
A nossa análise da literatura não cristã mostrou que os milagres atribuídos a Jesus não são muito
diferentes daqueles que eram atribuídos a outros judeus na mesma época. As pessoas que viram
Honi e Hanina fazer milagres concluíram apenas que as suas orações eram eficazes. Aqueles
que viram Eleazar fazer exorcismos, utilizando uma erva e um anel, concluíram apenas que ele
tinha acesso à sabedoria de Salomão. Em geral, o testemunho dos Evangelhos sobre a reação do
público aos milagres de Jesus aponta na mesma direção. As pessoas não tinham dúvidas de que
ele fazia milagres, mas isto não os levava a tornarem-se seus seguidores ou a concluir que ele
era o último enviado de Deus. Alguns confiaram nele, outros não. Alguns aceitaram que os seus
milagres tinham acontecido, ficaram gratos, e, depois, continuaram o seu caminho. Em si, os
milagres de Jesus não provaram nada para a maior parte de galileus a não ser o facto de ele ter
uma relação íntima com Deus. Recordamos que os seus inimigos pensavam que ele tinha uma
relação íntima com o diabo.
Será que os contemporâneos de Jesus pensavam que os seus milagres provavam a proximidade
do Reino de Deus? Mais tarde, os seguidores de Teudas esperaram que ele fizesse um milagre
que lembrasse a separação das águas do mar realizada por Moisés." Presumo, portanto, que eles
estavam dispostos a considerá-lo o último grande profeta antes da chegada do Reino de Deus.
Isto é, algumas pessoas pensavam, provavelmente, que a grande nova era, o Reino de Deus,
seria inaugurada com o tipo de sinais dramáticos que marcaram alguns dos momentos
fundamentais da história judaica, como, por exemplo, o êxodo e a conquista de Canaã. Assim,
um profeta podia prometer um milagre escatológico, atraindo seguidores. Se, depois,
conseguisse, de facto, fazer o milagre, o número dos seus seguidores aumentaria bastante.
Embora tenham existido promessas (não cumpridas) deste tipo depois da morte de Jesus, parece
que ele não tinha prometido ao público um grande milagre escatológico. Por conseguinte, temos
de concluir
209
que os seus milagres, como tal, não constituíram prova para a população em geral, nem sequer
para a parte da mesma que tinha uma atitude amistosa em relação a ele, de que Jesus era o
profeta dos fins dos tempos. Não nos resta senão ter Honi como ponto de referência para a
categoria na qual Jesus se enquadrava na opinião da maioria das pessoas.
Concluindo este tema: parecem existir duas explicações para a relativa falta de apoio a Jesus por
parte da população em geral. Uma delas é que os Evangelhos exageram os milagres de Jesus; a
outra é que, de qualquer modo, os milagres não levavam a maioria das pessoas a comprometer-
se seriamente com alguém que os realizava. É provável que a maior parte dos galileus tenha
ouvido falar de alguns milagres - exorcismos e outras curas - e considerasse Jesus como um
homem santo, que tinha uma relação íntima com Deus.
O que podemos saber da reação dos discípulos de Jesus e dos seguidores mais próximos aos
seus milagres? Vimos que é Marcos que descreve particularmente os discípulos como tendo
menos confiança em Jesus do que alguns estrangeiros e como não ficando impressionados com
os seus milagres. Mateus e Lucas dão um pouco mais de crédito aos discípulos, mas, mesmo
assim, dificilmente podemos duvidar de coisas como, por exemplo, o facto de eles terem fugido
quando Jesus foi preso e de Pedro, seguindo Jesus de longe, ter negado ser um discípulo seu,
quando lhe perguntaram (Me 14,54.66-72 e par.). Mais tarde, alguns dos discípulos estarão
dispostos a morrer por causa da sua devoção a Jesus e à sua mensagem. A explicação para a
mudança está no facto de eles terem visto o Senhor ressuscitado e de esta experiência lhes ter
dado uma confiança absoluta. Os milagres de Jesus não o fizeram. Isto é, provavelmente, os
milagres de Jesus não causaram maior efeito nos seus discípulos, ou, pelo menos, um efeito
muito maior, do que nos outros habitantes da Galileia. Podemos admitir que os discípulos reco-
nheciam todos que Jesus tinha uma relação muito íntima com Deus. Ele disse-lhes que Deus era
o Pai deles (Mt 5, 45; cf 5, 9) e que podiam confiar n'Ele mais do que os filhos confiam nos seus
pais terrenos. Isto aplicava-se, presumivelmente, ainda mais ao próprio Jesus; além disso, os
discípulos viam que ele era um homem de Deus. Mas não pensavam que os poucos milagres de
Jesus provassem que ele ia mudar o mundo. Os milagres realizados por Jesus não podiam pura e
simplesmente provar algo tão dramático.
210
Vejamos a questão de outro ponto de vista. Na Antiguidade, os milagres eram, frequentemente,
encarados como uma acreditação de um enviado de Deus. Foi seguramente por isso que Teudas
e o Egípcio prometeram milagres. Por conseguinte, os discípulos de Jesus estariam dispostos a
seguir a orientação do próprio Jesus no que diz respeito ao significado dos seus milagres.
Suponhamos que ele disse o seguinte: «Agora, vou fazer um milagre para provar que José não
era o meu pai verdadeiro.» Suponhamos também que ele fez o milagre e que os discípulos
assistiram todos ao acontecimento. Nesse caso, eles teriam acreditado, presumivelmente, que
José não era o pai de Jesus. Por outro lado, se ele tivesse afirmado que um milagre seria uma
prova de que Deus estaria prestes a derrotar definitivamente as forças do mal, os seus discípulos
teriam visto os seus milagres nesta perspetiva. É, no entanto, possível que Jesus tenha
considerado os seus milagres como sinais do Reino de Deus que estava prestes a chegar, que
tenha ensinado os discípulos a encará-los da mesma forma, mas que os discípulos não
estivessem completamente convencidos disso. Volto a dizer que foi a ressurreição que os
convenceu.
Voltemos à forma como os Evangelhos avaliam os milagres, na esperança de esclarecer este
tema - a saber, se Jesus disse ou não aos seus discípulos que os seus sinais eram indícios da era
que se aproximava. Os discípulos criaram as histórias sobre Jesus, pelo que é razoável pensar
que o tratamento geral dos milagres nos Evangelhos reflita algo da perspetiva dos discípulos. A
categoria interpretativa mais importante nos Evangelhos é que os milagres demonstram que, em
Jesus, Deus começou a vencer o mal e as suas consequências - o sofrimento e a morte. As curas
milagrosas refletem a perspetiva de que o sofrimento resultava do pecado e do mal, e os
Evangelhos apresentam Jesus como alguém que se encontrava em plena batalha com as forças
de Satanás. Os exorcismos, em particular, mostram-no vitorioso, mas isto também se aplica às
outras curas milagrosas. A relação existente entre a cura e a derrota do pecado e do mal é
explícita na história da cura do paralítico, a quem Jesus disse, depois de o ter curado: «Os teus
pecados estão perdoados» (Mc 2, 5).
Os Evangelhos também apresentam os milagres naturais como mais uma prova da vitória. Jesus
subjuga e submete a Natureza. O triunfo de Deus (ou de um dos deuses) sobre «as profundezas»
constituía um velho motivo nas religiões do Médio Oriente. «As profundezas», isto é, as águas
primordiais, eram consideradas um inimigo
211
perigoso. Deus domina-as e controla-as num dos primeiros atos da criação (Gn 1,2.6). Os
salmos também descrevem Deus como alguém que domina o mar:
Ele falou e levantou-se uma ventania erguendo-se ondas altas, que se elevavam até aos céus e
desciam às prcfundezas ...
Então, eles clamaram ao Senhor, na sua aflição e Ele livrou-os dos seus sofrimentos,
transformando a tempestade num murmúrio, até as ondas do mar amainarem, conduzindo-os,
felizes com bonança, ao porto desejado. (SI 107, 25-30)
Esta é a passagem evocada pela história na qual Jesus acalmou a tempestade e os autores dos
Evangelhos pretenderam apresentá-lo, até certo ponto, como alguém que exerce a soberania
sobre a Natureza que era característica de Deus. Caso isto seja correto, então, eles pensavam que
ele podia invocar o poder de Deus e não que ele próprio seria um ser sobrenatural.
Podemos partir do princípio de que uma parte não insignificante da confiança na vitória sobre o
mal que observamos nos Evangelhos brota da certeza que os cristãos tinham de que Deus tinha
ressuscitado Jesus. Os discípulos não estavam tão seguros disto durante a vida de Jesus - como
já vimos. Apesar disso, este material fornece-nos, provavelmente, uma das categorias corretas
para compreendermos a avaliação que os discípulos fizeram dos milagres de Jesus durante o seu
ministério: além de o considerarem um homem santo, íntimo com Deus, também pensavam que,
na sua obra, as forças do bem estavam a derrotar as forças do mal, que afligem a humanidade.
Será que, enquanto trabalhavam com Jesus na Galileia, eles pensavam que esta vitória sobre o
pecado e o mal seria difinitiva? É provável que tivessem esta esperança, mas não acreditavam
plenamente nisso.
Para terminar, perguntamos que opinião tinha o próprio Jesus sobre as suas curas e os seus
exorcismos. Existem quatro versões de um episódio em que Jesus recusou dar um sinal, quando
lhe foi pedido (Mt 12, 38-42; 16, 1-4; Me 8, 11-12; Lc 11, 29-32). O relato de Marcos,
212
que representa, provavelmente, a versão mais antiga, diz o seguinte: «Os fariseus vieram e
começaram a discutir com Ele, pedindo-lhe um sinal do céu, para o pôr à prova. Jesus,
suspirando profundamente, disse: "Porque pede esta geração um sinal? Em verdade vos digo:
não será concedido sinal algum a esta geração."» Segundo Lucas, Jesus disse que ele («Filho do
Homem») seria um sinal para a geração presente, tal como Jonas foi um sinal para os ninivitas.
«Os ninivitas hão-de levantar-se, na altura do juízo, contra esta geração e hão-de condená-la,
porque fizeram penitência ao ouvir a pregação de Jonas; ora aqui está alguém maior do que
Jonas.» Numa das duas versões de Mateus (16, 1-4), Jesus refere-se ao «sinal de Jonas», mas
não explica a expressão. Numa outra passagem (Mt 12,38-42), «o sinal de Jonas» constitui o
anúncio da morte e da ressurreição do próprio Jesus. «Assim como Jonas esteve três dias e três
noites no ventre do monstro marinho, assim também o Filho do Homem estará três dias e três
noites no seio da terra.»
Assim, temos as seguintes versões da resposta de Jesus àqueles que pediam um sinal: 1. não
será dado nenhum sinal (Marcos); 2. o sinal consiste no apelo que Jesus faz à sua geração para
que esta se arrependesse (Lucas), 3. não existe nenhum sinal a não ser o de Jonas, cujo
significado fica, no entanto, por esclarecer (Mt 16, 1-4); 4. o sinal será a ressurreição (Mt 12,
38-42).
Não é difícil ver que a última interpretação coincide plenamente com a convicção cristã
posterior e que não tem a mínima hipótese de constituir uma convicção do próprio Jesus. Ele
recusou-se, provavelmente, a dar um sinal quando foi desafiado a fazê-lo (Marcos), ou fez uma
referência vaga ao sinal de Jonas (Mt 16, 1-4). O significado original da afirmação de Jesus,
segundo a qual ele apresentaria «o sinal de Jonas», consiste, provavelmente, no contraste com a
geração de Jonas: esta arrependeu-se, a presente geração, não. A interpretação deste «sinal»
como o anúncio, feito pelo próprio Jesus, da sua morte e ressurreição, surgiu, provavelmente,
depois de a ressurreição ter ocorrido de facto; o mais provável é que esta interpretação seja obra
do próprio Mateus. Até aqui, parece que Jesus não quis basear a sua causa nos seus milagres.
Ele considerava-se a si próprio como o verdadeiro enviado de Deus, mas não queria prová-lo
através de milagres; ou talvez soubesse que os seus opositores não ficariam impressionados com
os seus milagres, visto que os milagres, em si, não provam nada.
213
Existe, porém, uma outra passagem sobre histórias de curas que indica que Jesus as considerava
como uma prova de que ele era o verdadeiro enviado de Deus. Quando João Baptista estava na
prisão - provavelmente, pouco depois de Jesus ter iniciado o seu ministério ativo -, enviou
alguns dos seus discípulos a Jesus com a pergunta: «És Tu aquele que há-de vir, ou devemos
esperar por outro?» Jesus respondeu-lhes:
Ide contar a João o que vedes e ouvis: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos
e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres.» (Mt 11, 2-6)
Jesus invoca Isaías 35 nesta resposta; a passagem referida inclui uma lista semelhante de
milagres, pelo que ele afirma, aparentemente, que a profecia foi cumprida na sua própria obra, o
que leva à conclusão de que ele era, de facto, «aquele que há-de vir». Por que razão apresentou
Jesus milagres como «sinais» a João Baptista, mas não aos outros? Talvez tivesse esperança que
João encarasse as suas curas como ele próprio e alguns dos seus seguidores as encaravam: como
uma prova de que ele era o agente do Espírito de Deus. Quer isto dizer que diferentes respostas
aos pedidos de sinais poderão mostrar as diferenças na audiência: ele não ofereceu sinais aos
seus inimigos, mas quem tivesse olhos para ver perceberia que Deus atuava no seu ministério.
Numa perspetiva mais abrangente, é provável que ele considerasse os seus milagres como
indicações de que a nova era estava próxima. Ele partilhava a convicção dos evangelistas de que
nele se cumpriam as esperanças dos profetas - ou, pelo menos, de que o cumprimento destas
esperanças estava preste a acontecer. Aproximavam-se tempos novos nos quais o sofrimento, a
dor e a morte seriam ultrapassados e os milagres constituíam sinais disto mesmo. Quando Jesus
foi acusado de expulsar demónios em nome de Belzebu, respondeu: «Se é pelo Espírito de Deus
que Eu expulso os demónios, então o Reino de Deus chegou até vós» (Mt 12, 28). Repare-se
tanto na proclamação como no «se». Podemos ver o reconhecimento de que os milagres, em si,
não provavam a presença ou a chegada iminente do Reino, mas só o faziam se Jesus atuasse
com a força do Espírito. Não há dúvida de que ele pensava que o fazia com esta força.
Existe uma outra passagem que indica que Jesus interpretava o seu ministério nesta perspetiva -
trata-se da história da missão dos
214
setenta discípulos, que se encontra em Lucas. Quando os discípulos regressaram, disseram a
Jesus: «Até os demónios se sujeitaram a nós, em teu nome.» Ele respondeu: «Eu via Satanás
cair do céu como um relâmpago» (Lc 10, 17 e segs.). Parece que Jesus partilhava parcialmente a
opinião dos autores dos Evangelhos: os seus milagres eram sinais do início da vitória final de
Deus sobre o mal. Atribuímos esta visão aos Evangelhos e aos discípulos e, agora, podemos
atribuí-la à fonte dos mesmos: Jesus.
Jesus não procurou provar isto de uma maneira grandiosa e espetacular e, provavelmente, a
multidão que se juntou a ele não conhecia ou, pelo menos, não compreendia completamente o
contexto escatológico no qual ele próprio enquadrava a sua obra. Os milagres em si não teriam
despertado a esperança escatológica. Eles só tinham este efeito naqueles que compreendiam -
que eram suficientemente próximos de Jesus para colocar os seus milagres no contexto do seu
ensinamento; mesmo assim, nem eles estavam certos do significado dos atos de Jesus.
215

11. A vinda do Reino


Jesus procurou proclamar o poder de Deus tanto por palavras como por atos. Referiu-se a este
poder como «o Reino de Deus» (Marcos e Lucas) ou «o Reino do Céu» (Mateus). Marcos
resume a mensagem de Jesus da seguinte forma: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está
próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho.» (Mc 1, 15)
O termo «Reino de Deus» é claro e preciso sob alguns aspetos, mas noutros é ambíguo. O
aspeto em que ele é mais claro é na sua conotação negativa: salienta a diferença entre o poder de
Deus e o humano, apontando, portanto, para uma reorientação radical dos valores e do poder.
Deus - e os judeus estavam todos de acordo nesse aspeto - não governaria o seu Reino através
de Tibério, Antipas, Pilatos e Caifás, nem a sua preocupação principal seria a
217
segurança do Império Romano. O «Reino de Deus» na Palestina do século I não se identificava
em absoluto com o poder de então.
É mais difícil de dizer pela positiva o que Jesus tinha em mente quando falava do «Reino de
Deus». Os esforços intensos dos últimos cem anos para esclarecer a expressão deixaram a
questão mais confusa do que clarificada. Existem, no entanto, dois significados que teriam sido
mais ou menos evidentes, tendo em conta os pontos de vista tradicionais dos judeus. Um deles é
que Deus governa no Céu; o «Reino de Deus» ou «Reino do Céu» ali é eterno. Deus atua
ocasionalmente na história, mas só governa absoluta e permanentemente no Céu. O segundo
significado é que, no futuro, Deus governará na Terra. Ele decidiu permitir que a história
humana siga com pouca interferência da Sua parte, mas, um dia, levará a história normal ao fim
e governará o mundo de uma forma perfeita. Em resumo: o Reino de Deus existe sempre ali; no
futuro, existirá aqui. Estes dois significados são perfeitamente compatíveis um com o outro.
Seria possível manter ambos simultaneamente e, na realidade, há milhões que continuam a fazê-
lo.
O que podem fazer os seres humanos em relação ao Reino? A maioria das pessoas que
acreditavam num ou em ambos os significados pensava que só podiam preparar-se e esperar por
uma de três eventualidades: ao morrerem, as suas almas entrariam no Reino do Céu; ou
morreriam e teriam de esperar pela ressurreição do corpo; ou Deus traria o Seu Reino à Terra
antes de eles morrerem. Seria razoável manter uma combinação das três possibilidades: quando
as pessoas morrem, as suas almas vão para o céu; no futuro, Deus trará o seu Reino à Terra e,
nessa altura, julgará os vivos e os mortos (cujos corpos serão ressuscitados). A imortalidade da
alma e a ressurreição do corpo começaram por ser ideias separadas: o judaísmo assumiu a ideia
da ressurreição da Pérsia e a ideia da imortalidade da Grécia. Mas, no século I, estas ideias
encontravam-se frequentemente combinadas (como veremos mais adiante).
O «Reino» é um conceito social, mas o parágrafo anterior descreve apenas a preparação
individual para a sua chegada, assim como a participação individual nele - até Deus decidir
trazer o seu Reino à Terra. Naturalmente, pode dizer-se que os indivíduos que se preparavam
para o Reino de Deus influenciavam a sociedade. Estas pessoas viviam uma vida honesta,
transformando, assim, o mundo num lugar melhor. Mas, neste sentido, o termo «Reino» referia-
se apenas a uma sociedade sobrenatural, governada pelo próprio Deus.
218
As pessoas podem preparar-se para a sua chegada, mas, fora disso, não podem fazer nada a seu
favor: o Reino é como o estado do tempo.
Escusado será dizer que muitas pessoas consideravam insatisfatória esta interpretação do
ensinamento de Jesus sobre o Reino de Deus. Na sociedade do tempo de Jesus havia pobreza e
injustiça. Ele queria, seguramente, uma sociedade melhor e pensava seguramente que as pessoas
podiam contribuir para isso; era seguramente isso que ele tinha em mente quando falava do
Reino de Deus. Se acrescentarmos a estas expectativas, que são perfeitamente razoáveis, o facto
de a palavra «reino» ser utilizada de diferentes maneiras nos Evangelhos, podemos ver por que
razão o tópico «o Reino de Deus no ensinamento de Jesus» é um dos assuntos mais discutidos
na investigação do Novo Testamento. Os estudiosos sugerem frequentemente que Jesus pensava
que o Reino estava presente e ativo no mundo, de uma maneira ou de outra, especialmente no
seu ministério. As pessoas não precisavam de esperar pela sua chegada; podiam participar nele.
Talvez ajude pensarmos em Jesus - ou em qualquer outro judeu do século I que desejasse falar
sobre o governo de Deus - como alguém que tinha a possibilidade de combinar de várias
maneiras o aqui, ali, agora e mais tarde. O Reino está ou aqui ou no céu ou em ambos. Ele está
presente e é futuro ou ambas as coisas." A questão é o que Jesus pensava sobre isso. À partida,
seria perfeitamente razoável supor que ele se teria decidido pela opção tanto/como: o Reino de
Deus está tanto aqui como ali, é tanto agora como para sempre. Por que razão se deve limitar a
esfera do poder divino? É óbvio que a opção tanto/como exige algumas mudanças no
significado preciso do «Reino»: aqui e agora, o Reino não pode ser totalmente igual ao que seria
se não houvesse pessoas para interferirem nele. O Reino de Deus presente na Terra teria de ser
invisível e não coercivo. Os indivíduos ou grupos podiam pensar que viviam no Reino de Deus
se tentassem viver como Deus (na sua opinião) desejava. Mas teriam de admitir que a vontade
de Deus não prevalecia em geral e que Deus não forçava a humanidade toda a viver de uma
forma ou outra.
219
Havia um outro sentido no qual quase todos os judeus do século I teriam concordado que Deus
governava aqui e agora, visto que exercia a Sua providências e controlava o resultado final dos
acontecimentos. Os judeus, em geral, pensavam que Deus era Senhor do céu e que acabaria por
governar tudo de forma perfeita. Presumo que Jesus partilhava estas opiniões. Elas eram
completamente incontroversas, em termos gerais. No entanto, parece que Jesus queria dizer algo
mais específico sobre o Reino de Deus. O Reino de Deus, nos ensinamentos de Jesus, não
consiste meramente na capacidade que Deus tem de determinar o rumo final da História, nem
consiste apenas no reinado de Deus no Céu. Estava a acontecer ou para acontecer algo especial.
Quando Jesus falava do Reino, não se limitava a apresentar as opiniões teológicas habituais no
seu tempo. Por conseguinte, temos de procurar dizer de uma forma mais precisa o que ele tinha
em mente.
O primeiro passo consistirá em discutir as afirmações sobre o tema do Reino. Dividi-las-ei em
seis categorias, três das quais constituem, simplesmente, subdivisões do significado futuro do
«Reino de Deus».
1. O Reino de Deus é no Céu: trata-se de um reino transcendente no qual as pessoas podem
procurar inspiração e no qual os indivíduos entrarão depois da morte ou no dia do grande juízo:
o Reino está presente, tanto agora como no futuro. Existem várias passagens nos Evangelhos
que se referem à entrada no Reino (= céu) no momento da morte ou do juízo. Me 9, 47 constitui
um exemplo: «E se o teu olho é ocasião de queda para ti, arranca-o; mais vale entrares no Reino
de Deus com um só olho, do que com os dois olhos para seres lançado no inferno» (da mesma
forma em Mt 18, 9, onde se pode ler: «É melhor entrares na vida.») Aqui, o «Reino de Deus»
opõe-se ao inferno e a pessoa entra nele depois da morte. Quando um homem rico perguntou o
que deveria fazer para herdar a vida eterna, Jesus também lhe disse que deveria vender tudo o
que tinha, dar aos pobres (para adquirir um tesouro no céu), e, depois, deveria tornar-se seu
seguidor (Mc 10, 17- -22 e par.). Embora esta passagem não contenha a palavra «Reino»,
fornece um apoio geral a esta definição: as pessoas ganham a vida eterna no momento da sua
morte.
O significado de «Reino» é fundamentalmente o mesmo em algumas outras passagens, como,
por exemplo, Mc 10, 15 / / Lc 18, 17;
220
cf Mt 18,3 (<<Quem não receber o Reino como uma criança, não entrará nele») e M t 7, 21 e
segs. (só aqueles que fazem a vontade de Deus entrarão no Reino «naquele dia»: isto é, no dia
do juízo final). Se fizermos uma descrição mais detalhada dos significados da palavra de
«Reino», podemos considerar as afirmações sobre o juízo final como uma subcategoria. Estas
afirmações partem do pressuposto quer de que as pessoas morrem e esperam o julgamento, quer
de que o mundo acaba e, então, Deus (ou o Seu representante) julgará - incluindo,
presumivelmente, nesse juízo aqueles que já morreram. O efeito real é o mesmo. As pessoas
entram no Reino depois da morte, desde que a sua vida na Terra tenha reunido as exigências do
juiz. Deus não cria o Reino nessa altura, portanto, o mesmo existe desde sempre. Esta é uma das
definições simples com as quais iniciámos o capítulo e, como podemos ver, ela está presente
nos Evangelhos.
2. O Reino de Deus consiste numa esfera transcendente que se encontra, agora, no Céu, mas que
virá à Terra no futuro. Deus transformará o mundo de modo a que as estruturas fundamentais da
sociedade (físicas, sociais e económicas) se mantenham, ainda que remodeladas. As pessoas
viverão todas de acordo com a vontade de Deus e haverá justiça, paz e abundância. O Reino está
aqui agora e também estará aqui no futuro. Esta é a segunda definição simples, que também se
encontra nos Evangelhos. Uma das petições do Pai-Nosso encerra esta ideia: «Venha o teu
Reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no Céu» (Mt 6, 10; cf Lc 11, 2). Algumas
passagens fazem referência a hierarquias no Reino, o que implica uma estrutura social; isto
indica que o Reino futuro será aqui: segundo Marcos l0, 35-40 ou Mateus 20, 20-23, Tiago e
João (Mateus: a mãe deles) perguntaram a Jesus se poderiam sentar-se um de cada lado dele,
quando chegasse a sua glória (Marcos) ou o seu Reino (Mateus). Jesus respondeu que não teria
autoridade para satisfazer o pedido. Em Mt 18, 1.4, também há uma discussão sobre quem é «o
maior» no Reino. Em Mt 5, 19 discute-se quem é «o menor» no Reino. Na sua última ceia,
Jesus declarou que não voltaria a beber vinho até ao dia em que pudesse bebê-lo de novo no
Reino de Deus» (Mc 14,25 e par.). Lucas situa aqui a disputa sobre a hierarquia no futuro
Reino. Jesus encerra a discussão com a seguinte afirmação: «Eu disponho do Reino a vosso
favor, como meu Pai dispõe dele a meu favor, a fim de que comais e bebeis à minha mesa, no
meu Reino e vos senteis em tronos, para julgar as doze tribos de Israel» (Lc 22, 29). A profecia
de que os doze discípulos julgariam
221
as doze tribos de Israel também aparece em Mt 19, 28, onde se encontra no contexto de uma
afirmação mais geral que também implica uma ordem social e posses materiais: «E todo aquele
que tiver deixado casas, irmãos ... ou campos por causa do meu nome, receberá cem vezes mais
e terá a vida eterna por herança.» (Mt 19, 29; do mesmo modo em Me 10, 29 e segs.; Lc 18, 29
e segs.). Aqui, a recompensa material antecede a vida eterna; isto é, a sociedade será
reorganizada de modo a que os seguidores de Jesus se tornem líderes e tenham posses
substanciais, mas a «vida eterna» ainda se encontra num futuro longínquo. Vai existir um Reino
de Deus na terra, presumivelmente, ainda durante a vida de seguidores de Jesus. Estas passagens
descrevem todas o Reino nos termos de uma sociedade humana na terra substancialmente
transformada. Já vimos que as categorias 1 e 2 podem ser combinadas: as pessoas que morrem
entram no Reino de Deus no Céu, mas, um dia, Deus virá à Terra para reinar também aqui.
3. Existe uma subcategoria especial de afirmações que se concentra num Reino futuro que será
introduzido através de um acontecimento cósmico. O que distingue estas passagens é o facto de
indicarem como o Reino chegará à Terra. A chegada do Reino será acompanhada por sinais
cósmicos. Apresso-me a acrescentar que a palavra «Reino» raramente aparece nestas passagens;
contudo, elas ocupam-se do estabelecimento do domínio de Deus, habitualmente, sob a
suserania do «Filho do Homem». Este título tem vários significados nos Evangelhos (pp. 246 e
segs.); nas passagens em causa, ele refere-se a uma figura celeste que desce à terra para
estabelecer uma ordem nova. A passagem principal encontra-se em Me 13 e nos seus paralelos
em Mateus e Lucas. Limito-me a citar alguns versículos:
«Mas nesses dias, depois daquela aflição, o Sol vai escurecer-se e a Lua não dará a sua claridade
e as estrelas cairão do céu. Então, verão o Filho do Homem vir sobre as nuvens com grande
poder e glória. E então Ele enviará os seus anjos e reunirá os seus eleitos dos quatro
ventos, da extremidade da Terra à extremidade do céu.» (Me 13,24-27)
As passagens paralelas encontram-se em Mt 24; 10, 16-23; 16, 27 e segs.; Lc 17,22-37; 21, 5-
19.
Os exegetas supõem, habitualmente, que Mc 13 se refere ao fim do mundo. Hoje em dia,
sabemos que o universo físico ficaria em sérias dificuldades se as estrelas começassem a cair do
céu. No entanto, para
222
as pessoas na Antiguidade, as estrelas pareciam estar muito perto e ser bastante pequenas (tal
como o parecem, hoje, às crianças, até estas aprenderem os factos básicos da astronomia). Por
conseguinte, a profecia da perturbação cósmica não significa, necessariamente, que o Universo
esteja prestes a ser destruído. É mais provável que estas afirmações descrevam simplesmente
como o Reino chegará a uma Terra que continuará a existir: o Filho do Homem e os seus anjos
virão, acompanhados por sinais celestes. A questão não pode ser esclarecida com absoluta
certeza, mas voltarei brevemente a ela mais adiante.
4. Há muitas passagens em que o Reino é algo futuro, mas não está definido. As passagens
sustentam, em termos gerais, a ideia de que Jesus falava do Reino como algo futuro, mas são
menos específicas do que as passagens da categoria 2 e 3. Me 1, 15 e par. contém um resumo da
mensagem de Jesus: o tempo completou-se e o Reino de Deus está próximo. Esta formulação
encontra-se também na missão que Jesus entrega aos seus discípulos, em Mt 10, 7 e Lc 10, 9:
eles devem anunciar aos outros que o Reino «está próximo». Segundo Me 9, 1 e par., alguns dos
seguidores de Jesus «não experimentarão a morte» sem terem visto o Reino de Deus chegar (Mt
16,28: «antes de terem visto o Filho do Homem chegar com o seu Reino»; Lc 9, 27: «enquanto
não virem o Reino de Deus»), Me 15, 43 observa que José de Arimateia também esperava o
Reino de Deus (cf. Lc 23, 51). Em Lc 21, 31; Mt 25, 34; talvez também 21, 3, encontram-se
outras referências ao Reino como algo futuro.
5. É possível que, em algumas passagens, o Reino seja uma «esfera» especial na Terra,
consistindo em pessoas que se dedicam a viver segundo a vontade de Deus e existindo lado a
lado com a sociedade humana normal. Nos séculos depois da morte de Jesus, os cristãos
compreendiam-se muitas vezes a si mesmos de seguinte forma: viviam simultaneamente em
dois reinos, o temporal e o eclesial. Não existem passagens dos Evangelhos que exprimam
exatamente esta visão, mas algumas aproximam-se dela: o Reino é semelhante ao fermento, que
é invisível, mas que faz fermentar toda a massa (Mt 13, 33 / / Lc 12, 20 e segs.). Em Lc 17, 20 e
segs., o Reino está «entre vós». Esta afirmação inclui uma frase que contraria uma das versões
da ideia de que o Reino é futuro: «O Reino de Deus não vem com sinais que possam ser
observados.»
6. Há duas passagens que muitos investigadores interpretaram como demonstrativas da ideia de
que Jesus considerava o Reino como estando de certa maneira presente nas suas próprias
palavras e nos
223
seus próprios atos: presente aqui e agora, mas apenas no seu ministério. Citarei as duas
passagens, mas adiarei o debate; passaremos imediatamente à reflexão sobre as conclusões que
podemos tirar acerca do Reino de Deus no ensinamento de Jesus:
Mas se é pelo Espírito de Deus que Eu expulso os demónios, então o Reino de Deus chegou até
vós. (Mt 12,28 / / Lc 11,20)
Quando João ouviu falar, na prisão, daquilo que Cristo fazia, enviou-lhe os seus discípulos com
esta pergunta: «És Tu aquele que há-de vir, ou devemos esperar outro?» Jesus respondeu-lhes:
«Ide contar a João o que vedes e ouvis: os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam
limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres. E bem-
aventurado aquele que não encontra em mim ocasião de escândalo» (Mt 11, 2-6)
Os investigadores refletiram durante várias décadas sobre as diversas categorias de afirmações
acerca do Reino, tentando descobrir o que Jesus pensava sobre o assunto. Johannes Weiss
(1892) e Albert Schweitzer (1906) concentraram-se especialmente nas passagens pertencentes à
categoria 3 (que se referem a um acontecimento cósmico) e chegaram à conclusão de que Jesus
esperava um grande cataclismo no futuro próximo - ainda durante a sua vida." Isto constituía,
obviamente, uma conclusão muito desagradável para os investigadores cristãos, visto que
significava que a mensagem fundamental de Jesus estava errada. Rudolf Bultmann (1926)
aceitou que Jesus pensasse no Reino como algo futuro, contudo, era capaz de o apresentar aos
crentes cristãos como algo relevante: O Reino de Deus é ... uma força que, embora que seja
inteiramente futura, determina completamente o presente." Qualquer grande acontecimento que
seja iminente influencia a ação presente e Bultmann pensava que a conceção que Jesus tinha do
Reino funcionava assim. Os cristãos deviam considerar sempre o Reino como algo iminente e,
então, viveriam adequadamente.
224
Um contemporâneo de Bultmann, C. H. Dodd, argumentou que Jesus pensava que o eschaton -
o momento decisivo da história - já tinha chegado no seu próprio ministério. C. H. Dodd
sugeriu, por exemplo, que a expressão «o Reino de Deus está próximo» (Me 1, 15) fosse
traduzida como «o Reino de Deus chegou»." Foram pouquíssimas as pessoas que ficaram
completamente convencidas com os argumentos de Dodd, mas alguns pensaram que ele tinha
alguma razão. Em certo sentido, Jesus estava de facto convencido de que as coisas realmente
importantes já estavam a acontecer. Isto conduziu a um consenso que se manteve durante
algumas décadas: Jesus pensava tanto que o Reino era algo futuro como que estava «em certo
sentido» - nunca especificado - presente nas suas palavras e nos seus atos. Norman Perrin é o
autor da formulação clássica desta perspetiva (1963).
Nos últimos anos, alguns exegetas americanos decidiram que Jesus nem sequer esperava a vinda
do Reino no futuro. Lucas 17, 20 e segs. - «o Reino de Deus está entre vós» - é a única
passagem que conta realmente, quando se define o Reino. Na realidade, Jesus era um reforma
dor político, social e económico e não esperava que Deus fizesse algo dramático ou miraculoso
no futuro.
Penso que não podemos recuperar a opinião de Jesus escolhendo simplesmente algumas das
suas afirmações. Sobretudo, penso que é impossível rejeitar completamente qualquer das
categorias mais importantes. Indicarei em breve onde residem as minhas dúvidas, mas não
penso que uma reconstrução histórica deva depender da ideia de que podemos estabelecer
definitivamente aquilo que Jesus não disse. Se observarmos calmamente todas as afirmações
acerca do Reino, veremos que a maioria delas situam o Reino lá em cima, nos Céus, onde as
pessoas entrarão depois da morte, e no futuro, quando Deus trouxer o Reino para a Terra e
separar os carneiros das cabras. Registámos uma afirmação que contraria ou se opõe, em parte, a
esta opinião: Lc 17, 20 e segs.
225
- o Reino de Deus não vem com sinais que possam ser observados, o Reino de Deus está entre
vós. No entanto, esta afirmação constitui o prefácio de Lucas para a passagem de 17, 22-37, que
constitui um paralelo de Me 13. Depois do prefácio antifuturo de Lucas, encontramos os
versículos: «Porque o relâmpago, ao faiscar, brilha de um extremo ao outro do céu, assim será o
Filho do Homem no seu dia.» «Duas mulheres estarão juntas a moer: uma será tomada e a outra
será deixada» (Lc 17, 24.35). Parece-me impossível citar Lc 17, 20 e segs. como a única
afirmação importante de Jesus sobre o Reino e como prova daquilo que ele pensava realmente.
Dos três Evangelhos, Lucas é aquele que se preocupa mais em minimizar e desenfatizar a
expectativa futura de Jesus. Esta preocupação revela-se, por exemplo, no prefácio do autor a
uma parábola na qual os leitores são advertidos para não esperarem a vinda imediata do Reino
(Lc 19, 11). No entanto, nem sequer 19, 11 nega que o Reino virá." Estas passagens (17, 20 e
segs. e 19, 11) constituem as modificações de Lucas ao material existente previamente. Lc 17,
20 e segs. não aparece na fonte de Lucas (neste caso, Marcos), enquanto 19, 11 constitui um
comentário do autor sobre o tema de uma parábola. A afirmação em 17, 20 e segs. constitui uma
tentativa do próprio autor de reduzir a importância dos versículos dramáticos que se seguem e
que falam sobre a chegada do Filho do Homem e sobre o julgamento iminente. Mas mesmo que
Jesus tivesse realmente pronunciado as afirmações de Lc 17, 20 e segs., elas não podiam ser
utilizadas para provar que ele não tenha dito nada sobre um acontecimento cósmico futuro.
Creio que Lucas escreveu estes dois versículos sozinho, sem recorrer a uma afirmação de Jesus
que tivesse sido transmitida. No entanto, ao definir aquilo que Jesus pensava, não posso esperar
provar que elas não são autênticas e, não posso, certamente, considerar impossível que Jesus
tenha pensado que o Reino estava presente, «em certo sentido». O que eu argumento é que Lc
17, 20 e segs. não pode ser considerado como uma anulação de vasto número de afirmações
sobre o futuro Reino - incluindo aquelas que se seguem imediatamente no mesmo Evangelho.
226
A interpretação que se faz geralmente de Mt 12,28 e 11, 2-6 (ver categoria 6) também não me
convence. Nunca consegui ver nestas passagens aquilo que os outros veem: a afirmação de que
o próprio Jesus considerava que o Reino estava completamente presente nos seus atos. A
declaração de que o Reino «chegou até» aos críticos de Jesus (a primeira passagem) quer dizer
mais provavelmente «está-se a aproximar agora de vós». Além disso, na passagem na qual Mt
12,28 se situa - a controvérsia sobre Belzebu - Jesus admite que há outros que também
expulsam demónios, o que indica que as suas ações não são únicas. Será que, apesar disso, ele
pensava que o Reino estava completamente presente nos seus exorcismos, enquanto os outros
exorcismos não provavam nada? Não podemos sabê-lo e a passagem não o diz. Se Jesus tivesse
pensado que o Reino estava presente nas suas próprias ações, seria de esperar que tivesse dito às
pessoas que curou, especialmente àqueles que acreditavam nele, que tinham participado ou sido
beneficiários do poder do Reino de Deus. A afirmação de que o Reino «chegou até» aos seus
críticos parece-me uma espécie de aviso: o Reino chegou até vós e se mantiverdes a vossa
atitude atual, ireis arrepender-vos disso - no futuro próximo.
Na segunda passagem que pertence à categoria (6) - a resposta de Jesus a João (Mt 11, 2-6) -
Jesus diz apenas que está a cumprir as promessas de Isaías - não que o Reino de Deus está
presente no seu ministério. Ele podia estar a cumprir as promessas e o Reino permanecer,
todavia, algo futuro. Não é possível saber com base nesta passagem.
Dadas as minhas fortes dúvidas em relação à interpretação habitual destas duas passagens,
gostaria de reiterar que a minha posição no que diz respeito ao significado de «Reino de Deus»
não depende da refutação de uma ou da outra categoria. Jesus podia ter pensado que o Reino
estava «de alguma maneira» presente nas suas palavras e atos; não posso provar que ele não
pensava isto. Registo apenas que não existe nenhuma passagem que o afirme claramente. Não
há dúvida de que Jesus pensava que o poder de Deus estava presente tanto na sua vida, como
fora dela; mas dada a ausência de indícios, é improvável que ele tivesse pensado que o Reino
estivesse presente onde quer que ele próprio estivesse.
227
A maneira mais simples e, sob certo ponto de vista, melhor, de abordar a complicada questão do
Reino no ensinamento de Jesus consiste em admitir que ele disse tudo aquilo que foi referido
anteriormente - ou semelhante. Não é difícil imaginar que Jesus pensasse que o Reino estava no
Céu, que as pessoas entrariam nele no futuro e que também estava presente, de alguma maneira,
na sua própria obra. As Cartas de São Paulo mostram, muito convenientemente, que uma pessoa
podia utilizar a palavra «Reino» atribuindo-lhe vários significados. Ele discutiu, por vezes,
quem iria herdar o Reino (p. ex., 1 Cor 6, 9 e segs.), o que implica que se tratava de algo futuro.
Contudo, ele também escreveu que «o Reino de Deus não é uma questão de comer e beber, mas
de justiça, paz e alegria no Espírito Santo» (Rm 14, 17). A revelação plena do Reino de Deus
poderá situar-se no futuro, mas, no presente, as pessoas podem experimentar alguns dos seus
benefícios.
As passagens classificadas anteriormente na categoria S - que profetiza que o Filho do Homem
virá nas nuvens ainda durante a vida de alguns dos ouvintes de Jesus - necessitam de uma
discussão mais ampla. Estas são as passagens que muitos investigadores cristãos gostariam de
ver desaparecer. Primeiro, as passagens são lúridas e muitos dos leitores de hoje consideram-nas
desagradáveis. Segundo, os acontecimentos que anunciam não se verificaram, o que significa
que Jesus estava enganado. Terceiro, e o mais importante, se Jesus esperava que Deus mudasse
a história de uma maneira decisiva no futuro próximo, parece improvável que fosse um
reformador social.
Não quero discutir aquilo que constitui uma questão de gosto, mas quero fazer alguns
comentários sobre o segundo e o terceiro problemas, começando pelo último. Observámos
anteriormente que a marca distintiva das afirmações sobre a chegada do Filho do Homem sobre
as nuvens consiste numa conceção notável da forma como o Reino chega. Mas esta
compreensão da forma como o Reino vem era típica do pensamento judaico do século I num
aspeto muito importante. Deus era sempre o ator principal. É certamente isto que se passa nos
Evangelhos: a única coisa que Jesus pede sempre às pessoas que elas façam é que vivam uma
vida justa. Não existe qualquer material no qual ele inste as pessoas a criarem uma sociedade
alternativa que seria o Reino de Deus. Existem poucas passagens que se coadunem com a
categoria 5, as que eu enumerei também não apelam à criação de uma entidade social
alternativa. Jesus disse que o Reino é como o fermento; isto alude à sua invisibilidade. Ele
também é parecido com um grão
228
de mostarda. Aqueles que criaram, mais tarde, estruturas sociais compostas por pequenas
células em cada vila e cidade podiam afirmar que eram o fermento na massa, como é óbvio;
estavam a tentar melhorar a sociedade. Mas aqueles que ouviam estas parábolas na Galileia sen-
tiam-se motivados para procurar os indícios do Reino invisível que apareceria, um dia, sob a
forma de um pão ou de uma grande árvore; as passagens não dizem «criai pequenos grupos de
reformadores». Jesus pensava que as pessoas deviam e podiam comprometer-se com o caminho
dele; não deviam ficar numa atitude meramente passiva. Mas temos de ter em conta o que ele
exigia. Ele disse que as pessoas podiam entrar no Reino (categoria 1) seguindo uma vida justa.
De acordo com os indícios existentes, ele pensava que não existia nada que alguém pudesse
fazer para trazer o Reino e nem ele próprio podia atribuir lugares no mesmo (categoria 2). O
Reino aproxima-se e as pessoas estão à espera dele, mas não podem provocar a sua chegada
(categoria 4). Tal como o fermento, também o Reino cresce por si próprio (categoria 5). É
sempre Deus que faz aquilo que tem de ser feito, em cada um dos casos, mas os indivíduos que
vivem uma vida justa entrarão no Reino. Não há nada que confirme a opinião de que as pessoas
podem juntar-se com outros e criar o Reino através da reforma das instituições sociais,
religiosas e políticas.
O segundo dos problemas mencionados anteriormente - se Jesus esperava que Deus mudasse o
mundo, estava enganado - não é novo. Surgiu muito cedo no cristianismo. É a questão mais
importante no documento cristão mais antigo que se conservou até aos nossos dias, isto é, a
Carta de Paulo aos Tessalonicenses. Esta diz-nos que os convertidos por Paulo estavam
chocados pelo facto de alguns membros da comunidade terem morrido, esperavam que o Senhor
regressasse ainda durante a sua vida. Paulo garantiu-Ihes que os (poucos) cristãos mortos seriam
ressuscitados, de modo a poderem participar na chegada do Reino, juntamente com aqueles que
ainda estivessem vivos quando o Senhor regressasse. A questão da data exata do grande
acontecimento aparece em outros livros do Novo Testamento. Existe uma afirmação nos
Evangelhos sinópticos (que discutiremos mais pormenorizadamente adiante) que promete que
«alguns dos presentes» ainda estarão vivos quando o Filho do Homem chegar. No entanto, o
apêndice do Evangelho de João (capítulo 21) apresenta Jesus a discutir com Pedro sobre um
discípulo anónimo, chamado «o discípulo que Jesus amava»: «E se Eu quiser que ele fique até
Eu voltar, que tens tu com
229
isso?» Em seguida, o autor explica: «Foi assim que, na comunidade, correu este rumor de que
aquele discípulo não morreria. Jesus, porém, não disse que ele não havia de morrer, mas sim:
"Se Eu quiser que ele fique até Eu voltar, que tens tu com isso?"» (Jo 21, 21-23).
A história desta adaptação à ideia de que Deus iria fazer algo dramático durante a vida dos
contemporâneos de Jesus é fácil de reconstruir. Jesus disse, originalmente, que o Filho do
Homem chegaria num futuro próximo, enquanto os seus ouvintes ainda estivessem vivos.
Depois da sua morte e ressurreição, os seus seguidores anunciaram o seu regresso iminente -
isto é, limitaram-se a interpretar «o Filho do Homem» como uma referência ao próprio Jesus.
Mais tarde, quando as pessoas começaram a morrer, os seguidores de Jesus disseram que alguns
ainda estariam vivos quando ele chegasse. Quando quase toda a primeira geração estava morta,
insistiram que um discípulo ainda estaria vivo. Depois, este morreu e foi necessário declarar
que, realmente, Jesus não tinha prometido nem sequer a este discípulo que ele estaria vivo para
ver o grande dia. No momento em que se chega a um dos últimos livros do Novo Testamento - a
2." Carta de Pedro - o regresso do Senhor tinha sido adiado ainda mais; algumas pessoas
zombam, dizendo: «Em que fica a promessa da sua vinda?» Mas é preciso não esquecer que
«um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos, como um dia» (2 Pe 3, 3-8). O Senhor não
está realmente atrasado, antes segue um calendário diferente.
Portanto, nas décadas depois da morte de Jesus, os cristãos tiveram de rever permanentemente
as suas primeiras expectativas. Este facto torna muito provável que a expectativa tenha tido
origem em Jesus. Estes indícios adquirem inteligibilidade se pensarmos que foi o próprio Jesus
que disse aos seus seguidores que o Filho do Homem viria enquanto eles ainda vivessem. O
facto de esta expectativa ser difícil para os cristãos do século I contribui para provar que o
próprio Jesus partilhava esta expectativa. Também é de notar que o cristianismo sobreviveu
muito bem a esta descoberta inicial de que Jesus se tinha enganado.
Vejamos, agora, mais pormenorizadamente aquilo que parece constituir a afirmação central
subjacente a esta convicção dos primeiros cristãos. Acabámos de registar que os
Tessalonicenses receavam que aqueles que já tinham morrido perdessem o regresso do Senhor:
por isso é que Paulo tinha começado por dizer que o Senhor regressaria imediatamente. Este
responde às suas ansiedades citando aquilo a que
230
chama «a palavra do Senhor» - uma afirmação que ele atribuía a Jesus. A afirmação, tal como
ele a cita, é muito parecida com as palavras atribuídas a Jesus nos Evangelhos. Apresento agora,
em colunas paralelas, três versões desta afirmação.
1 Ts 4,15-17 Mt 24, 27s. Mt 16, 27s.

Nós, os vivos, os que O sinal do Filho do Homem O Filho do Homem há-de vir
ficarmos para a vinda do aparecerá no céu e, então, na glória do seu Pai, com os
Senhor, não precederemos os todas as tribos da Terra se la- seus anjos, e então retribuirá a
que faleceram. mentarão e verão o Filho do cada um conforme o seu
Pois o próprio Senhor descerá Homem vir sobre as nuvens procedimento. Em verdade
do Céu, ao sinal dado, à voz do céu, com poder e glória. vos digo: alguns dos que
do arcanjo e ao som da Ele enviará os seus anjos, estão aqui presentes não hão-
trombeta de Deus, e os com uma trombeta de experimentar a morte,
mortos em Cristo ressurgirão altissonante e eles reunirão os antes de terem visto chegar o
primeiro, depois nós, que seus eleitos desde os quatro Filho do Homem com o seu
estamos vivos ... seremos ventos, de um extremo ao Reino.
arrebatados juntamente com outro do céu.
eles sobre as nuvens, para
Irmos ao encontro do Senhor
nos ares.

Paulo e Mateus têm, no essencial, os mesmos componentes. Se apagarmos da versão de Paulo a


sua nova preocupação com os mortos em Cristo, se apagarmos dos Sinópticos a aparente
modificação, ao dizer-se que apenas alguns estarão vivos, e se equipararmos «o Filho do
Homem», nos Sinópticos, com «o Senhor», em Paulo, temos a mesma afirmação. Esta não
prevê «o fim do mundo», provavelmente, mas sim um ato divino decisivo, através do qual «o
Senhor» ou «o Filho do Homem» assumirá o poder e reunirá «os eleitos» à sua volta. O que é
provável, na opinião de Paulo, é que depois de os vivos e os mortos em Cristo se terem
encontrado com o Senhor nos ares, o acompanhem até ao seu Reino na Terra. Numa outra
passagem, Paulo anuncia que Cristo irá reinar até que tenha colocado todos os inimigos debaixo
dos seus pés, sendo o último deles a morte (1 Cor 15,25 e segs.). Isto quer dizer que os seres
humanos continuarão a morrer durante o reinado do
231
Senhor. Só depois da derrota da morte é que o Senhor entregará o Reino a Deus (15, 24) e,
nessa altura, Deus será «tudo em todos» (15, 28). É possível que Paulo tenha pensado que esta
última fase, depois do reinado bem sucedido de Cristo, implicasse a dissolução do universo
físico.
Os investigadores que procuram «testar» a autenticidade das palavras de Jesus verão que esta
tradição passa a prova com distinção. Primeiro, o acontecimento profetizado não aconteceu
realmente; portanto, a profecia não é uma falsificação. É muito mais provável que uma profecia
não cumprida seja autêntica do que uma que corresponde exatamente àquilo que aconteceu na
realidade, visto que poucas pessoas inventariam algo que não aconteceu, atribuindo-o, depois, a
Jesus. Em segundo lugar, a tradição é atestada em mais do que uma fonte. Paulo escreveu a I:
Carta aos Tessalonicenses antes da redação dos Evangelhos, portanto, não podia ter dependido
de Mateus ou de Marcos. Os autores dos Evangelhos sinópticos não copiaram Paulo, uma vez
que escreveram antes da publicação das suas cartas. Além disso, não revelam conhecimento dos
pontos que distinguiam o pensamento de Paulo do cristianismo comum. Por conseguinte, Paulo
e os autores dos Evangelhos sinópticos possuíam um conhecimento independente destas
palavras. Embora fossem um pouco embaraçosas para os sinópticos, estavam implantadas de
um modo tão forte na tradição sobre Jesus que estes as conservaram.
O único problema efetivo na compreensão daquilo que Jesus e os seus seguidores esperavam
reside no significado da expressão «Filho do Homem». Depois da morte e da ressurreição de
Jesus, os primeiros cristãos concluíram que as suas referências à vinda do Filho do Homem
constituíam uma forma codificada de dizer que ele próprio regressaria; por conseguinte,
transformaram a expressão «o Filho do Homem virá» na expressão «o Senhor virá (ou
regressará)». Não temos possibilidade de reconstituir com exatidão o que Jesus tinha em mente,
mas analisaremos a expressão «Filho do Homem», bem como outros títulos, no capítulo 15. De
momento, basta saber que Jesus esperava que acontecesse algo dramático.
232
Portanto, se tivéssemos de decidir o que Jesus pensava de facto, escolhendo entre as afirmações,
concluiríamos que ele pensava que Deus interviria de forma dramática na História, num futuro
muito pró- ximo, enviando o Filho do Homem. Esta é a tradição com uma comprovação mais
segura. É provável que ele também pensasse aquilo que encontramos na maior parte das
passagens: que as pessoas que morreram entrarão no Reino e que, quando Deus enviar o Filho
do Homem, haverá um grande julgamento, no qual alguns serão destinados ao Céu e outros à
Geena (inferno). Além disso, ele pensava que o poder de Deus se manifestava especialmente no
seu próprio ministério. É possível que ele tivesse chamado «o Reino» a este poder presente (ver
as discussões anteriores, sobre Lc 17, 20 e segs.; Mt 12,28; Mt 11, 2-6).
No entanto, não penso que a questão fique completamente resolvida através da análise de
afirmações concretas. Embora só elas nos possam oferecer todas as cambiantes do pensamento
de Jesus, a melhor prova a favor da opinião de que Jesus esperava que Deus interviesse
proximamente na história consiste no contexto do movimento que começou com João Baptista
(ver capítulo 7). João esperava que o julgamento viesse em breve. Jesus iniciou a sua vida
pública com o batismo de João. Depois da morte e da ressurreição de Jesus, os seus seguidores
pensavam que ele regressaria para estabelecer o seu Reino ainda durante o tempo de vida deles.
Paulo era da mesma opinião após a sua conversão. Os cristãos começaram, desde muito cedo, já
do tempo da l.a Carta aos Tessalonicenses (cerca de 50 d. C.), a enfrentar o facto penoso de o
Reino ainda não ter chegado. É quase impossível explicar estes factos históricos partindo do
pressuposto de que o próprio Jesus não esperava o fim iminente ou a transformação da ordem
universal presente. Ele pensava que, na nova era, Deus (ou o seu representante) teria o poder
absoluto, sem qualquer oposição.
As pessoas para quem isto é incómodo podem dizer, em desespero de causa, que Jesus foi mal
compreendido por todos. Ele queria realmente reformas económicas e sociais. Os discípulos
teriam deixado cair esta parte do seu ensinamento e inventado afirmações sobre o Reino de
Deus futuro - que, depois, teriam tido necessidade de desdizer, visto que o Reino não chegou.
Isto supõe que podemos «saber» coisas para as quais não existem provas, «sabendo», ao mesmo
tempo, que a prova que temos se baseia numa total incompreensão. Estas opiniões não mostram
senão o triunfo de um pensamento baseado naquilo em que se deseja acreditar.
233
Podemos estar completamente seguros de que Jesus tinha uma mensagem escatológica. Como
esta palavra é muito importante na discussão tanto do cristianismo primitivo como do judaísmo,
gostaria de repetir uma explicação que foi dada anteriormente (p. 1'25). Etimologicamente,
«escatologia» significa a discussão ou a reflexão sobre «o fim». O termo «escatologia» é tão
comum e tem uma história tão longa nos estudos bíblicos que não podemos ignorá-lo. No
entanto, temos de sublinhar que ele pode ser enganador quando utilizado para descrever a
mensagem de Jesus, assim como as expectativas de outros judeus em relação ao futuro. Jesus
não esperava o fim do mundo no sentido da destruição do Cosmos. Ele esperava um milagre
divino que transformasse este Cosmos. Enquanto judeu devoto, ele pensava que Deus tinha
intervindo anteriormente no mundo para salvar e proteger Israel. Por exemplo, Deus tinha
aberto o mar, para que Israel pudesse escapar à perseguição do exército egípcio, tinha
alimentado o povo com maná no deserto e tinha-o levado até à Palestina. Jesus pensava que
Deus iria atuar de forma ainda mais decisiva no futuro: Ele iria criar um mundo ideal. Iria
restaurar as doze tribos de Israel e a paz e a justiça iriam prevalecer. A vida tornar-se-ia um
banquete.
Havia muitos judeus que pensavam da mesma maneira, em termos gerais. A esperança de Jesus
em relação ao futuro tornar-se-á mais compreensível se conseguirmos vê-la no seu contexto,
pelo que gostaria de dizer algumas palavras sobre o restabelecimento das doze tribos e sobre o
significado simbólico dos banquetes no judaísmo do tempo de Jesus. Não se trata de uma
descrição exaustiva do pensamento dos judeus sobre o futuro; no entanto, a reflexão sobre estes
dois temas ajudar-nos-á a ver que, embora a esperança que Jesus tinha no futuro fosse partilhada
por muitos outros judeus do seu tempo, tinha características específicas.
Diziam a história e as lendas judaicas que Israel consistia em doze tribos, cada uma das quais
descendente de um dos filhos de Jacob. No século x a. c., as doze tribos dividiram-se em dois
reinos, com dez tribos no reino do Norte e duas no do Sul. No século VIII a. c., os assírios
conquistaram o reino do Norte. A sua política consistia na dispersão
234
dos povos conquistados, a fim de reduzir a hipótese de revolta, e a execução desta política teve
como consequência o desaparecimento das dez tribos do Norte. O reino do Sul foi conquistado
subsequentemente pelos babilónios, que não dispersaram a população, mas levaram os líderes
da nação conquistada para a Babilónia (século VI a. C.). Os persas, sob Ciro, conquistaram a
Babilónia e libertaram os judeus exilados. Quando estes judeus que pertenciam às duas tribos do
Sul (Judá e Benjamim) regressaram à Palestina, restabeleceram um estado judaico, chamado
«Judá».
Apesar do exílio e do passar dos séculos, os judeus mantiveram a memória da perda das dez
tribos e muitos tinham esperança de que estas pudessem ser restabelecidas. Por volta de 200 a.
c., o sábio Ben Sira esperava o tempo em que Deus haveria de reunir «todas as tribos de Jacob»
e «dar-lhes a sua herança, como no princípio» (Sir 36, 11). Por volta de 63 a. c., quando
Pompeu conquistou Jerusalém, um poeta devoto previu que Deus voltaria a reunir o Seu povo e
a «dividi-lo, de acordo com as suas doze tribos no país» (Salmos de Salomão 17, 28-31). Os
membros da seita do Mar Morto esperavam que os exércitos de Israel, divididos em doze
grupos, de acordo com as tribos, derrotassem os exércitos dos gentios e restabelecessem o culto
de Deus no Templo.
Aqueles que esperavam o restabelecimento das doze tribos, esperavam um milagre, visto que
um censo humano nunca conseguiria seguir a pista das dez tribos perdidas. Deus teria de
intervir Ele próprio diretamente na História, reconstituindo ou recriando as tribos perdidas. Este
milagre resultaria num reino terrestre, no qual o país seria dividido entre as tribos, tal como
tinha sido séculos antes. O futuro era descrito, tal como em muitas outras culturas, como um
regresso ao início, ou como uma «era de ouro» idealizada - não como uma destruição do
Cosmos.
Parece que Jesus partilhava esta esperança de um milagre que restabelecesse Israel. Os doze
discípulos julgariam as doze tribos e os seus seguidores chegaram ao ponto de discutir questões
relacionadas com a sua futura posição (ver as passagens na categoria 2). No entanto, ao
contrário dos sectários do Mar Morto, Jesus não pensava em
235
termos de um milagre militar, no qual as tribos reconstituídas lutariam contra os exércitos dos
gentios. Parece que esperava que o Filho do Homem descesse à Terra e que os anjos de Deus
separassem os eleitos dos maus. Se as palavras sobre o Filho do Homem constituíssem adições
cristãs posteriores à tradição, não saberíamos qual a expectativa de Jesus quanto à maneira
como o Reino seria restabelecido, mas as outras passagens continuariam a informar-nos de que
ele procurava uma era melhor.
Jesus disse aos seus discípulos que beberia vinho com eles no Reino (última ceia, Me 14, 25 e
par.). Isto levanta a questão de saber se os judeus em geral esperavam ou não que a nova era
fosse semelhante a um banquete. Será que o «banquete», tal como os «doze», era um símbolo
típico para a intervenção de Deus? Penso que não. A importância da última ceia no pensamento
e na prática dos cristãos levou à sobrevalorização dos banquetes no judaísmo. Há uma passagem
de Isaías que se refere ao tempo em que o Senhor preparará «para todos os povos um banquete
de carnes gordas, acompanhadas de vinho». Nessa altura, ele «aniquilará a morte para sempre»
e «enxugará as lágrimas de todas as faces» (Is 25, 6_8).15 A existência desta passagem signifi-
cava que qualquer um que falasse sobre uma nova era podia utilizar a imagem do banquete. No
entanto, a literatura que chegou até nós indica que não eram muitos os que o faziam. Os
membros da seita do Mar Morto pensavam que, no futuro, as duas figuras messiânicas se junta-
riam num banquete com o resto dos eleitos, mas não podemos afirmar que eles considerassem
as suas refeições diárias como uma antecipação das alegrias da era futura. 16 Jesus referiu-se a
um banquete futuro, não só na última ceia, mas também na profecia de que muitos viriam do
Oriente e do Ocidente e se sentariam à mesa com os patriarcas de
236
Israel (Mt 8, 11 e segs. / / Lc 13, 28 e segs.). Nas parábolas, ele comparava o Reino futuro com
um banquete (Mt 22, 1-14; Lc 14, 15-24) e as suas refeições com pecadores e cobradores de
impostos (ver o próximo capítulo) podem ter simbolizado a inclusão destes no Reino. Os seus
inimigos acusaram-no de ser um beberrão e um glutão. Isto pode constituir um indício de que
ele participava em banquetes quando tinha oportunidade; nesse caso, talvez atribuísse um valor
simbólico a estas refeições.
Tal não significa, de modo algum, que sempre que os judeus festejavam, estavam a proclamar o
Reino de Deus futuro. As festas dos judeus celebravam o passado, com ações de graças. Na
Páscoa, a história do êxodo do Egipto era central. Era natural que, quando se recordavam os atos
de redenção levados a cabo por Deus no passado, se olhasse com esperança para uma redenção
futura: se Deus nos salvou dos egípcios, talvez também nos salve dos romanos. Mas a festa não
simbolizava o Reino de Deus futuro. Parece, contudo, que Jesus via os banquetes nesta
perspetiva: no Reino futuro, «muitos» sentar-se-iam à mesa com Abraão, Isaac e Jacob; os seus
discípulos julgariam as doze tribos; os pecadores, com os quais Jesus comia por vezes, partici-
pariam no Reino; ele beberia vinho com os seus discípulos na nova era.
Portanto, Jesus utilizava, pelo menos, dois símbolos para descrever o futuro Reino de Deus: os
doze discípulos que representavam as doze tribos e o banquete. No entanto, tanto quanto se
pode dizer com base nas provas que chegaram até aos nossos dias, não falava de forma tão
plástica como o faziam alguns visionários. Não deixou nada tão pormenorizado e explícito
como o mais escatológico dos Manuscritos do Mar Morto (o Rolo da Guerra e o Rolo do
Templo), onde se descrevem as armas, as bandeiras e os pormenores arquitetónicos do templo
ideal. Em comparação com estas descrições, o banquete e as doze tribos nas palavras de Jesus
constituem algo muito vago. Mesmo assim, os seus seguidores pensavam que fazia sentido
discutir quem se sentaria à sua direita e à sua esquerda, quando ele entrasse no seu Reino.
Ao trabalharmos com este tipo de material, nunca podemos ter a certeza em que medida
devemos levá-lo à letra. Será que, por exemplo, as pessoas que acreditam no Céu, atualmente,
pensam, de facto, que «lá em cima» há anjos com asas e harpas? Ou será que as asas e as harpas
constituem metáforas para uma felicidade inefável? Penso que, normalmente, a resposta é esta
segunda. Quando se trata de analisar aquilo que os judeus da Antiguidade pensavam, não
podemos ter a certeza
237
no que diz respeito a este ponto. Há uma passagem em que se diz que Jesus considerava um erro
pensar que, na ressurreição, as pessoas casariam (Mc 12, 25 e par.). Isto constitui uma
advertência salutar para não se atribuírem a Jesus as visões mais grosseiras e literais da nova
era. Embora ele tenha falado de beber vinho no Reino, não descreveu (tanto quanto sabemos) a
quantidade de vinho que cada videira produziria (como o fizeram alguns dos primeiros cristãos).
Paulo constitui uma analogia parcial com Jesus. As suas afirmações mais explícitas sobre o
Reino são aquelas que dizem que Cristo irá «reinar até ter colocado todos os inimigos debaixo
dos seus pés», incluindo a própria morte; só então entregará o Reino a Deus (1 Cor 15, 25-28),
assim como que «os santos» (cristãos) irão julgar o mundo (1 Cor 6, 2). Paulo pensava ainda
que as pessoas que participarão no novo mundo terão «corpos espirituais»; não serão de «carne
e osso», no entanto, possuirão corpos (1 Cor 15, 44.50). Não quero dizer que Paulo e Jesus
concordam completamente, mas ambos falam de um mundo que, embora não sendo exatamente
igual ao mundo presente, poderá ser reconhecido com um mundo. Embora (perspetiva de Jesus),
depois da ressurreição, as pessoas não venham a casar, continuarão a ser reconhecíveis como
seres humanos.
Estas sobreposições parciais entre Jesus e outros judeus do seu tempo que pensavam numa nova
era (doze tribos) e entre Jesus e Paulo (pessoas que não têm as mesmas necessidades que
existem actualmente; o juízo estará nas mãos dos seguidores de Jesus) ajudam-nos a
compreender Jesus. Ele não quis fazer descrições exatas do mundo que estava prestes a chegar,
mas não pensava que neste não haveria senão espíritos incorpóreos. Pelo contrário, ele esperava
uma era nova e melhor, na qual os seus discípulos - e, por conseguinte, ele próprio -
desempenhariam um papel decisivo.
Tal como observámos no início deste capítulo, qualquer pessoa pode utilizar a palavra «reino»
em mais do que um sentido. Além disso, quando se pensa no futuro, é possível defender várias
ideias em simultâneo. É lógico que a ideia de imortalidade pessoal (a alma de cada pessoa
separa-se do corpo, na morte) está em contradição com a ideia de ressurreição (as pessoas
morrem e aguardam a ressurreição
238
geral). Contudo, houve milhões de cristãos, incluindo Paulo, que defenderam ambas as
perspetivas. E Jesus? Defendia opiniões contraditórias sobre o futuro ou tinha uma ideia
dominante? Ele tanto poderia ter pensado que Deus enviaria o Filho do Homem que reuniria os
eleitos e condenaria o resto, como que cada um seria julgado no momento da morte. No entanto,
a marca particular da escatologia de Jesus torna algumas reconstruções da sua vida e da sua obra
menos prováveis do que outras. Se ele pensava que, no futuro próximo, Deus iria transformar a
sociedade humana, é improvável que o principal impulso do seu ministério tenha sido a reforma
social. Se procurava uma era nova e melhor, seria de esperar que dissesse algo sobre como ela
seria, instando as pessoas a começarem a viver de forma adequada, mas não seria de esperar que
tentasse assumir as rédeas do poder ou que conspirasse para derrubar o sumo sacerdote e para
persuadir Pilatos a nomear o seu candidato (isto é, o candidato de Jesus). Trata-se de uma
questão de ênfase. Não há dúvidas de que Jesus tinha opiniões sobre as condições sociais,
políticas e económicas do seu povo, mas a sua missão era prepará-lo para receber o Reino de
Deus futuro.
239

12. O Reino: Israel, gentios e indivíduos


Jesus acreditava que Deus estava prestes a estabelecer o Reino e que a Sua vontade seria feita
tanto na Terra como no Céu. Gostaria agora de explorar mais pormenorizadamente algumas das
provas que confirmam que era assim que ele pensava, bem como de analisar a natureza deste
Reino futuro, assim como a sua relação com os grupos e os indivíduos existentes. Comecemos
com um debate mais minucioso sobre duas das passagens mencionadas anteriormente (categoria
2 nas pp. 221 e segs.). A primeira é Me 10, 35-40, que indica que os discípulos pensavam que
Jesus estava a falar sobre um reino «real», no qual a hierarquia seria importante. Um dia, Tiago
e João, dois dos três próximos de Jesus (o terceiro era Pedro), perguntaram a Jesus se lhe
poderia conceder sentarem-se um à sua direita e outro à sua esquerda na sua glória. Jesus
perguntou: «Podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o batismo que Eu vou receber?»
Eles responderam que sim. Jesus aceitou isto, mas disse-lhes ainda que não estava no seu poder
decidir quem ficaria à sua direita e à sua esquerda, pois que isto «é daqueles para quem está
reservado». Não estamos, certamente, perante uma invenção posterior. Mais tarde, todos
reconheceram que Pedro era o líder entre os discípulos, pelo que a questão da possível
241
primazia de Tiago e João não se teria levantado.' Além disso, a História lança um pouco o
descrédito sobre eles, o que torna ainda menos provável que se trate de uma criação dos cristãos.
Marcos prossegue dizendo que os outros discípulos ficaram indignados e Jesus enfatizou que
não deveriam pensar na grandeza, mas sim no serviço (10, 41-45). Toda a discussão pressupõe a
esperança de um reino real, um reino em que os lugares e as distinções seriam verificáveis.
Numa outra ocasião, Pedro chamou a atenção de Jesus para o facto de ele e os outros terem
abandonado tudo a fim de o seguirem, perguntando: «Qual será a nossa recompensa?» Jesus
respondeu:
Em verdade vos digo: no novo mundo, quando o Filho do Homem se sentar no seu trono de
glória, vós, que me seguistes, também haveis de vos sentar em doze tronos para julgar as doze
tribos de Israel. E todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, paz; mãe, filhos ou
campos por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá por herança a vida eterna. (Mt
19, 27-29)
Esta afirmação atribui a Judas, um dos Doze, um lugar entre os outros discípulos e dificilmente
podia ter surgido depois da morte de Jesus, quando Judas já era conhecido como o seu traidor.
São prometi- das posições de autoridade a todos os discípulos. Já registámos que eles receberão
«cem vezes mais», assim como terão por «herança a vida eterna». Parece que a promessa de
uma recompensa cem vezes maior se refere a um reino terreno, distinto da vida eterna e anterior
a ela. Afirmámos igualmente no capítulo 11 que um reino que incluía as doze tribos implicaria
um milagre divino e que havia outros judeus no tempo de Jesus que esperavam este
acontecimento miraculoso (pp. 233-236).
Colocarei em contraste com esta opinião difundida, partilhada por Jesus, as esperanças mais
mundanas de alguns outros judeus, para adquirirmos uma perspetiva. Um dos maiores mestres
judaicos de todos os tempos, o Rabi Akiba, que viveu no fim do século I, início do século 11 d.
c., acreditava que Bar Kokhba, um líder militar judaico, era o Messias. Este Bar Kokhba liderou
uma grande revolta, duas gerações
242
depois da primeira. A revolta foi esmagada em 135. Akiba e outros mestres judeus foram
executados. Akiba não esperava a restauração das dez tribos perdidas," mas sim algo mais
realista: uma verdadeira vitória militar, seguida da independência e liberdade dos judeus, o que
constituiria uma espécie de milagre, mas não um milagre do tipo daquele que seria necessário
para a recriação das dez tribos perdidas. A natureza realista da sua esperança excluía a
possibilidade de reconstituição das dez tribos dispersas e que já não podiam ser identificadas.
No tempo do próprio Jesus, alguns judeus esperavam um reino completamente realista. Embora
o partido dos zelotas, conhecidos do tempo da primeira revolta contra os romanos, ainda não
existisse, já havia alguns que pensavam em termos de uma guerra real, em que se combateria
com homens e armas que podiam ser vistas e contadas. Esta atitude resultava em atos que se
pareciam mais com assaltos do que com uma revolução: houve algumas emboscadas a
caravanas e coisas semelhantes. Barrabás, que foi libertado por Pilatos quando Jesus foi
crucificado (Mt 27, 15-26), foi, provavelmente, um homem deste género: mais um assaltante
pré-revolucionário do que um bandido comum. Barrabás e outros do seu tipo, assim como, mais
tarde, Bar Kokhba e Akiba, realçam, por contraste, que Jesus e muitos outros esperavam que
Deus interviesse e estabelecesse o Reino miraculosamente.

Os gentios e o Reino futuro


Se Israel voltasse a ser grande, é óbvio que as nações dos gentios teriam de diminuir ou de ser
enfraquecidas. Por consequência, algumas esperanças relacionadas com a restauração de Israel
estavam ligadas à convicção de que Deus iria derrotar os gentios que governavam os reinos
deste mundo. No entanto, muitos judeus tinham esperança de que os gentios se convertessem:
que voltassem ao Deus de Israel e viessem ao Monte Sião, a fim de apresentar sacrifícios no
Templo. Limitar-me-ei a dar um exemplo de entre os numerosos disponíveis. O autor do
243
livro de Tobias exprimiu esta esperança pouco depois do ano de 200 a. c., esperança essa que
constituía também um dos temas principais dos profetas bíblicos posteriores:
A vossa luz, há-de refulgir até às extremidades da terra.
Muitos povos virão de longe ao teu encontro dos confins da terra por causa do teu santo nome;
trarão nas mãos oferendas para o Rei do Céu. (Tb 13, 11)
Será que Jesus partilhava a esperança de que, na nova era, os gentios viriam adorar o Deus de
Israel? A sua missão dirigia-se «às ovelhas perdidas da casa de Israel» (Mt 15, 24; ver mais
adiante), mas os Evangelhos descrevem alguns contactos positivos com gentios: Em Marcos
existe uma história da cura de um gentio, mais precisamente, existe uma história na qual o facto
de a pessoa curada ser um gentio é importante." Quando Jesus estava na Síria, perto de Tiro e de
Sídon, uma mulher gentia pediu-lhe que expulsasse um demónio da sua filha. Ele respondeu:
«Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar
aos cães.» No entanto, ela insistiu: «Sim, Senhor, mas até os cães comem debaixo da mesa as
migalhas dos filhos.» Jesus cedeu e curou a sua filha (Me 7, 24-30). Mateus elabora a história
sob três aspetos. Na sua narrativa, os discípulos pedem a Jesus que mande a mulher embora;
Jesus não só diz «deixai que os filhos comam primeiro» (como em Marcos), como também que
não foi enviado «senão às ovelhas perdidas da casa de Israel»; e, quando acaba por aceder ao
seu pedido, comenta que a fé da mulher é grande (Mt 15,21-28). Mateus regista a resistência em
relação aos gentios tanto por parte dos discípulos, como por parte do próprio Jesus, o que
acentua o impacto da história: a mulher gentia tem uma grande fé. Recorde-se que Mateus tem a
história de um centurião cujo servo foi curado por Jesus, na qual se inclui a afirmação: «nem
mesmo em Israel encontrei tão grande fé» (Mt 8, 10). Mateus sublinha, assim, a opinião de que
os gentios que têm fé podem participar no Reino anunciado por Jesus.
244
Os autores dos Evangelhos são todos favoráveis à missão junto dos gentios, pelo que é provável
que tenham incluído todo o material favorável aos gentios que lhes foi possível. Especialmente
Mateus quis realçar o facto de os gentios poderem ter uma grande fé, maior do que a dos
israelitas. Portanto, não é de admirar que, de acordo com Mateus, Jesus tenha afirmado: «muitos
virão do Oriente e do Ocidente sentar-se à mesa do banquete com Abraão, Isaac e Jacob, no
Reino do Céu, enquanto os filhos do Reino serão lançados nas trevas exteriores» (Mt 8, 11 e
segs.)". No contexto em que Mateus escreveu, isto reflete o resultado de uma forma exata: a
maior parte dos judeus tinha decidido não aceitar Jesus, ao passo que a missão aos gentios
constitui um sucesso total. O que é surpreendente é que os evangelistas apresentem tão poucas
passagens que apontem para o sucesso na conversão dos gentios. Só conseguiram citar algumas
histórias sobre os contactos de Jesus com gentios e mesmo estas não o descrevem como sendo
particularmente caloroso em relação a eles. Note-se que Mateus tem de reconhecer a limitação
observada pelo próprio Jesus, ao relatar aquilo que ele pretende que seja uma história a favor da
missão aos gentios: a missão de Jesus dirigia-se a Israel, especialmente, às «ovelhas perdidas»
de Israel. Ele não se esforçou por procurar e conquistar gentios. Temos de suspeitar que as
afirmações mais favoráveis sobre gentios (Mt 8, 10 e 15, 28, sobre a grandeza da fé de dois
gentios) são criação de Mateus. Por conseguinte, não podemos ter a certeza absoluta sobre a
opinião do próprio Jesus acerca dos gentios. Por motivos gerais, inclino-me a pensar que ele
esperava que pelo menos alguns gentios se convertessem ao Deus de Israel e participassem no
Reino futuro. Os motivos gerais são os seguintes: uma boa parte dos judeus esperava que isto
acontecesse; Jesus era um homem bondoso e generoso. Isto é, a alternativa a pensar que Jesus
esperava a conversão dos gentios seria pensar que ele esperava que eles fossem todos
aniquilados. Isto é improvável.
Este debate oferece-nos uma outra oportunidade para comentar a criatividade cristã. Os autores
dos Evangelhos não inventaram material de forma irrefletida. Desenvolveram-no, deram-lhe
forma e orientaram-no como desejavam. Nem mesmo Mateus criou muito material a favor da
missão aos gentios, embora pareça ter empolado o material de que dispunha.
245
A esperança de Jesus no que diz respeito ao Reino insere-se nas esperanças que existiam havia
muito e que estavam profundamente enraizadas entre os judeus. Estes continuavam a esperar
que Deus redimisse o Seu povo e instaurasse um novo Reino, no qual Israel pudesse viver em
segurança e paz e no qual os gentios servissem o Deus de Israel.

O pequeno rebanho
Jesus tinha uma forma de pensamento tradicional em relação a Deus e a Israel: Deus tinha
escolhido todo o Israel e, um dia, salvaria o povo. Este aspeto da visão de Jesus é
frequentemente ignorado por causa da força e da preponderância do ensinamento que se dirige
às pessoas, individualmente. Uma das coisas mais surpreendentes no que diz respeito a Jesus é o
facto de, apesar da sua expectativa da chegada iminente do fim e apesar da sua reflexão
abrangente sobre o Reino futuro, ele ter deixado um corpo de ensinamentos riquíssimos que
acentua a relação entre o indivíduo e Deus, aqui e agora. A orientação para o futuro poderia tê-
lo levado a ser indiferente às pessoas individuais: os escatologistas pensavam frequentemente
em blocos de pessoas que seriam salvas ou destruídas no fim, sem se preocuparem muito com o
bem-estar espiritual dos indivíduos que constituíam cada bloco.
Jesus podia advertir e ameaçar cidades inteiras de uma só vez:
Ai de ti; Corazaim! Ai de ti; Betsaida! Porque, se os milagres realizados entre vós tivessem sido
jeitos em Tiro e em Sídon, estas há muito se teriam convertido, vestindo-se de saco e com cinza.
Mas eu digo-vos: No dia do juízo, haverá mais tolerância para Tiro e Sídon do que para vós.
(Mt 11, 20-22)
Trata-se de um julgamento tradicional a «preto e branco», típico de um escatologista. Mas não é
isto que domina a mensagem de Jesus e a sua visão da atitude de Deus em relação aos seres
humanos. Jesus não encarava Deus meramente como um juiz, à espera de condenar os
imperfeitos e pronto para aniquilar cidades inteiras, mas sim como um pai amoroso, que se
preocupava e procurava o bem-estar de cada pessoa.
Olhai as aves do céu: não semeiam, nem ceifam, nem recolhem em celeiros e, no entanto, o
vosso Pai celeste alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas? (Mt 6, 26)
246
Não se vendem dois pássaros por uma pequena moeda? E nem um deles cairá por terra sem o
consentimento do vosso Pai. Mas até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Por isso,
não temais, pois valeis mais do que muitos pássaros. (Mt 10, 29-.31)
Não temais, pequeno rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino. (Lc 12, .32)
Uma parte significativa do ensinamento de Jesus consiste na garantia de que Deus ama cada
pessoa individual, independentemente das suas imperfeições, e que deseja o regresso mesmo do
pior de todos. O amor de Deus pelos excluídos, mesmo que estes, em geral, não obedeçam à Sua
vontade, constitui o tema de algumas das maiores parábolas de Jesus. Examiná-las-emos mais
pormenorizadamente no próximo capítulo; aqui, mencionarei apenas duas delas: Deus é como
um pastor que vai à procura de uma ovelha perdida; Deus é como um bom pai que aceita com
alegria o regresso do seu filho pródigo.
Do ponto de vista humano, Jesus exortava as pessoas a ver Deus como um pai em quem se pode
confiar completamente, a aceitar o Seu amor e a retribuir-lhe a confiança. Se Deus cuida dos
lírios do campo e dos pássaros, muito mais cuidará dos Seus filhos.
Não vos preocupeis, dizendo: «Que comeremos, que beberemos, ou que vestiremos?» Os
gentios, esses afadigam-se com tais coisas; porém, o vosso Pai celeste bem sabe que tendes
necessidade de tudo isso. Procura i primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos
será dado por acréscimo. (Mt 6, .31-.3.3)
Pedi, e ser-vos-á dado; procura i e encontrareis, batei e hão-de abrir-vos. Pois quem pede,
recebe; e quem procura, encontra; e ao que bate, hão-de abrir. Qual de vós, se o seufilho lhe
pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente? Ora bem, se vós,
sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está no Céu
dará coisas boas àqueles que lhas pedirem! (M t 7, 7-11)
Muitos dos ensinamentos de Jesus - a sua esperança da vinda de uma nova era; a sua confiança
de que Deus cuidará e salvará os Seus filhos; o seu apelo para que as pessoas confiem em Deus
e para que lhe
247
obedeçam - são resumidos na parte mais repetida do seu ensinamento: a oração do Senhor. Vou
citá-la em ambas as versões existentes:

Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o Pai,


Teu nome, venha o Teu Reino. santificado seja o Teu nome.
Faça-se a Tua vontade, assim na Terra como Venha o Teu Reino.
no Céu. Dá-nos cada dia o nosso pão.
Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia. Perdoa-nos os nossos pecados, pois também
E perdoa-nos as nossas dívidas, como nós nós perdoamos a todo aquele que nos deve.
perdoamos aos que nos E não nos leves ao momento do juízo.
devem; (Lc 11, 2-4)
E não nos deixes cair em tentação,
mas livra-nos do mal.
(Mt 6,9-13)

As pequenas variações significam que não podemos ter a certeza absoluta no que diz respeito ao
texto, mas podemos presumir que estamos diante de uma oração que Jesus utilizava e ensinou
aos seus discípulos. Trata-se de uma oração que pode ser rezada por qualquer um a qualquer
momento. Ela não menciona as doze tribos de Israel, nem descreve os gentios como «cães»,
nem exalta Jesus e os seus discípulos. O Jesus desta oração é aquele que foi e é admirado
universalmente. No entanto, se o queremos compreender como uma figura histórica, temos de
ver todas as suas facetas. Se Jesus se tivesse limitado a inventar estas palavras, não teria feito
inimigos; mas ele tinha inimigos. Por enquanto, registamos que, nesta última parte, vimos uma
das facetas de Jesus que lhe mereceu o adjetivo de «grande», tanto por parte de não-crentes,
como por parte dos crentes.
248

1.3. O Reino: inversão de valores e perfeccionismo ético


No início do capítulo 11 observámos que o Reino poderia ser definido negativamente: ele não
seria governado por Tibério, Antipas, Pilatos e Caifás e os seus valores seriam completamente
diferentes dos valores predominantes. Há muito que os leitores dos Evangelhos notaram que
uma grande parte do ensinamento de Jesus aponta para uma inversão de valores. Há uma frase
que aparece várias vezes nos Evangelhos que resume esta perspetiva: «os primeiros serão os
últimos e os últimos serão os primeiros» (Mt 19,30// Mc 10,31; Mt 20,16; Lc 13,30; cf Mc 9,35:
«Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos.»). A exortação
a ser como uma criança (Mt 18, 1-4// Me 10, 13-16// Lc 18, 15-17) enquadra-se aqui, tal como a
parábola de Lázaro e do homem rico: Lázaro, que tinha uma vida extremamente dura, prosperou
no mundo futuro, ao passo que o homem rico perdeu a sua fortuna (Lc 16, 19-31).
A expressão mais plena desta inversão encontra-se em duas parábolas em Mateus e numa em
Lucas. Na primeira, o Reino é semelhante a um proprietário de uma vinha 1 que contratou
trabalhadores a
249
a várias horas do dia durante o mesmo dia. Quando chegou o momento de pagar os seus
salários, pagou o mesmo a todos. Aqueles que tinham trabalhado durante mais tempo
protestaram, mas o proprietário respondeu que podia fazer o que quisesse com o seu dinheiro. A
conclusão moral da parábola é a seguinte: os últimos serão os primeiros (Mt 10, 1-16). De
acordo com a segunda parábola, o Reino do Céu é semelhante a um rei que convidou pessoas
para o banquete nupcial do seu filho. Os convidados não compareceram. Por fim, os «servos,
saindo pelos caminhos, reuniram todos aqueles que encontraram, maus e bons, e a sala do
banquete encheu-se de convidados» (Mt 22, 1-10).
Muitas das parábolas de Jesus, tal como estas duas, são suscetíveis de mais do que uma
interpretação. A insistência em cada pormenor leva frequentemente a uma interpretação
excessiva, quando se deveria realçar a ideia central. O ponto decisivo nestas duas parábolas
parece ser o facto de a atitude da figura principal (o proprietário ou o rei) ser surpreendente.
Espera-se que os salários sejam proporcionais ao trabalho. Normalmente, um rei tomaria
medidas para assegurar a presença daqueles que tinha convidado primeiro; numa situação
limite, ele podia cancelar o banquete. Que rei sujaria as suas salas com gentalha? Jesus descreve
um mundo virado ao contrário. Parece estar a dizer:
Não pensem que Deus atuará de formas que possam prever. Deus pode ser surpreendentemente
generoso (primeira parábola) e também pode surpreender por não fazer distinções (a segunda
parábola). Não sabem quem é que Ele incluirá e quem excluirá. Não devem supor que são os
únicos que Ele preza, só porque são pessoas importantes e que O servem há muito tempo; não
devem supor que o Seu Reino não virá se vocês disserem que não estão preparados. O Reino
está próximo e Deus incluirá nele quem Ele quiser, «maus e bons» (a frase citada é de Mt 22,
10).
A terceira parábola nesta categoria é chamada habitualmente a parábola do Filho Pródigo,
embora a designação de «parábola sobre um pai e dois filhos» fosse mais apropriada. Um
homem tinha dois filhos. O mais novo exigiu a sua herança e partiu. Gastou o seu dinheiro
numa vida fácil e acabou por se ver obrigado a guardar porcos e a comer a sua comida - uma
ocupação inconveniente para um jovem judeu de boa família. Decidiu pedir ao seu pai que o
aceitasse de volta; e quando regressou, o seu pai, rejubilante, mandou matar um vitelo
250
gordo e preparar uma festa. O irmão mais velho ficou ressentido, mas o pai admoestou-o:
«Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e
alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi
encontrado» (Lc 15, 11-32). Penso que esta parábola é mais bem sucedida do que as duas de
Mateus, porque as personagens não são um empregador e assalariados ou um rei e os seus
súbditos, mas sim um pai e dois filhos. É provável que a maioria de nós pense que as relações
entre empregador e trabalhadores deveriam reger-se pela estrita equidade, mas não que os pais
deveriam ter esta mesma obrigação. Muitos pais perdoam sempre aos seus filhos e são pacientes
com os seus filhos desobedientes. É provável que aqueles que ouviam Jesus realçassem mais do
que nós a obrigação dos filhos em relação aos seus pais e que considerassem estas três relações
mais próximas entre si do que nós as consideramos hoje. No entanto, o mundo da Antiguidade
conhecia a clemência dos pais e a comparação de Deus com um pai extremamente compla-
cente foi, certamente, muito eficaz no tempo de Jesus. Isto é, os ouvintes compreenderam a
ideia.
Isto não significa que todos a aprovassem necessariamente. As parábolas deste tipo são
inquietantes do ponto de vista moral. Mais tarde, os inimigos de Paulo acusá-lo-iam de instigar
as pessoas a pecarem, para que a graça de Deus abundasse (Rm 6, 1.15). É óbvio que não era
esta a sua perspetiva: ele também exortava os convertidos a . serem perfeitos em termos morais
(p. ex., 1 Ts 5, 23). Mas a ênfase extrema na graça de Deus sujeita-se a ser mal compreendida,
particularmente se tal acontece no contexto de histórias que dizem, de facto, que Deus
favorecerá, efetivamente, aqueles que não cumprem as suas obrigações e, depois, regressam, ou
aqueles que só iniciam um trabalho produtivo ao fim do dia. Voltaremos à questão da perspetiva
de Jesus em relação à aceitabilidade dos pecadores no capítulo 14, mas, agora, iremos ver a
outra face da moeda - a ética perfeccionista do próprio Jesus.

O perfeccionismo e a Nova Era


A parábola do banquete nupcial, na sua versão atual, não termina quando os maus e os bons
estão reunidos. O rei entra, depois, e examina as vestes dos seus convidados. Verifica que há um
homem que
251
não tem uma veste festiva. O rei ordena aos servos: «Amarrai-lhe os pés e as mãos e lançai-o
nas trevas exteriores; ali, haverá choro e ranger de dentes. Porque muitos são os chamados, mas
poucos os escolhidos» (Mt 22, 11-14). A maioria dos investigadores considera esta segunda
cena como uma criação posterior, cujo objetivo é, precisamente, eliminar o choque moral
causado pela parábola principal, assim como afirmar que o comportamento das pessoas deve ser
correto, se querem permanecer em boas graças. Concordo plenamente com esta perspetiva. No
entanto, também concordo com o autor da parte que foi acrescentada à parábola: Jesus exigia
padrões morais elevados aos seus seguidores. Examinemos mais de perto o ensinamento ético
de Jesus.
Comecemos pela tradição melhor atestada nos Evangelhos: a perícopa sobre o divórcio. A
tradição melhor comprovada não é necessariamente a mais importante, mas, neste caso, sevir-
nos-á muito bem. A proibição do divórcio aparece, ao todo, quatro vezes nos Evangelhos
sinópticos e uma vez nas cartas de Paulo: Mt 5, 31 e segs., 19, 3-9; Me 10,2-12; Lc 16, 18; 1
Cor 7, 10 e segs. Nos Evangelhos, aparecem duas versões da afirmação, uma longa (Me 10, 2-
12 e Mt 19, 3-9) e uma breve (Mt 5,31 e segs. e Lc 16, 18). Paulo aproxima-se mais da versão
breve. Gostaria de apresentar três das cinco versões desta afirmação mais bem comprovada de
Jesus, a fim de ilustrar a liberdade editorial com que os primeiros cristãos utilizavam o
ensinamento de Jesus: a versão de Paulo, a versão breve de Lucas (que tem um paralelo em
Mateus) e a versão longa em Marcos (que também tem paralelo em Mateus):
1.ª Carta aos Coríntios 7, 10-11
Aos que já estão casados, ordeno, não eu, mas o Senhor, que a mulher não se separe do marido
(se, porém, está separada, não se case de novo, ou, então, reconcilie-se com o marido) e o
marido não se divorcie da sua mulher.
Lc 16, 18
Todo aquele que se divorcia da sua mulher e casa com outra comete adultério; e quem casa com
uma mulher divorciada do seu marido, comete adultério.
Mc 10, 2-12
Aproximaram-se uns fariseus e perguntaram-lhe, para o experimentar: «É lícito ao marido
divorciar-se da sua mulher?» Ele respondeu-lhes: «Que
252
vos ordenou Moisés?» Eles disseram: «Moisés mandou escrever um certificado de divórcio e
repudiá-la.» Jesus retorquiu: «Devido à dureza do vosso coração é que ele vos deixou esse
preceito. Mas, desde o princípio da criação "Deus fê-los homem e mulher" [citação de Gn 1,
17]. Por isso, «o homem deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher e serão os dois um
só» [citação de Gn 2,24]. Portanto, já não são dois, mas um só. Pois bem, o que Deus uniu não o
separe o homem.»
Existem diferenças tão substanciais entre a versão longa e a versão breve que é provável que
elas tenham sido transmitidas de forma independente durante algum tempo. A existência de
tradições independentes aumenta a probabilidade de a passagem ser autêntica na sua essência.
Além disso, a proibição constituiu um problema para as comunidades cristãs desde o início.
Paulo atribui explicitamente esta passagem ao Senhor, fazendo uma distinção entre ela e a sua
própria opinião (1 Cor 7, 12). No entanto, o seu debate revela que não concordava totalmente
com a proibição do divórcio: ele preferia que não houvesse divórcio, mas permitia-o no caso de
um crente ser casado com um não crente (1 Cor 7, 15: se o divórcio fosse desejado pelo parceiro
não crente, deveria ser aceite pelo parceiro cristão). O mandamento parecia tão difícil para
Mateus que ele colocou as seguintes palavras na ) boca dos discípulos de Jesus: «Se é esta a
situação do homem perante a sua mulher [não poder divorciar-se dela], é melhor não casar» (Mt
19, 10). É também provável que a exceção de Mateus à proibição . - o divórcio é permitido se o
parceiro já cometeu adultério (Mt 5, 32; 19, 9) - constituísse a tentativa do próprio autor para
tornar a posição de Jesus mais adequada a uma comunidade em desenvolvimento. É difícil
pensar que os primeiros cristãos tivessem inventado a proibição: eles consideravam-na muito
difícil e tiveram de a modificar.
É típico do material sobre Jesus que a sua opinião seja incerta mesmo neste tema. A versão
breve da afirmação (Mt 5 e Lc 16; incluindo também em Paulo) consiste, no essencial, n uma
proibição de um segundo casamento, que é considerado adultério. Tal como exprime Mateus:
«Aquele que se divorciar da sua mulher ... expõe-na ao adultério e quem casar com uma mulher
divorciada, comete adultério.» Esta afirmação parte do princípio que uma mulher divorciada não
poderá sustentar-se a si própria e, por isso, terá de casar outra vez ou tornar-se prostituta; ambas
as coisas são adultério. A versão longa (Mt 19 e Me 10) é mais categórica. «No início», Deus
«fê-los homem
253
e mulher» e mandou que os dois «sejam uma só carne» (referindo-se a Gn 1, 27 e 2, 24). Aqui,
Jesus argumenta que o divórcio é contra a intenção do Criador; Moisés permitiu o divórcio só
por causa da dureza dos corações humanos (Mc 10,5// Mt 19,8). No fim da passagem, a
condenação do segundo casamento repete-se (Mc 10, 11 e segs. / / Mt 19,9).
Podemos ter a certeza de que a proibição do divórcio baseada na convicção de que um segundo
casamento representa adultério remonta a Jesus (tanto a tradição mais longa, como a mais
breve). Penso que é altamente provável que Jesus também tenha apelado à ordem da criação
para criticar o divórcio (tradição mais longa). O divórcio mostra a debilidade humana. Um
mundo ou uma sociedade ideal serão como o paraíso antes do pecado de Adão: os dois serão
uma só carne. Este segundo argumento contra o divórcio também é conhecido dos Rolos do Mar
Morto." Será que Jesus pretendia que a sua opinião sobre o divórcio constituísse uma nova lei,
obrigatória para os seus seguidores? A proibição de voltar a casar implica certamente o
seguinte: o segundo casamento é adultério e o adultério é contra a Lei. E a tradição mais longa,
segundo a qual o divórcio contraria a intenção do Criador? A passagem começa com uma
questão colocada pelos fariseus: «É lícito ao homem divorciar-se da sua mulher?» Jesus admi-
te que sim: Moisés escreveu o mandamento que regulamenta o divórcio (Dt 24, 1-4 exige a
troca de um documento legal) por causa da fraqueza humana, mas Jesus não diz que o
regulamento de Moisés devia ser revogado e que devia ser adotada uma lei mais rigorosa. No
capítulo 14 veremos a opinião de Jesus sobre a Lei de Moisés. Aqui, registamos simplesmente
que ele altera a Lei definindo um termo. (o segundo casamento é adultério) - um dispositivo
legal utilizado frequentemente no seu tempo, tal como hoje - mas não propõe a revogação da lei
escrita. Além de alterar a Lei através da sua interpretação, ele também a critica. A Lei não é
suficientemente rigorosa. Jesus pretende sugerir aos seus seguidores um padrão moral mais
elevado, uma moral que corresponda ao mundo ideal, quando Adão e Eva viviam num estado de
inocência.
O perfeccionismo idealista marca partes substanciais do sermão da montanha (Mt 5-7). Em
Mateus 5, onde aparece a versão breve da
254
perícopa sobre o divórcio, não existem outras afirmações semelhantes no que diz respeito à
estrutura e força de expressão. Jesus cita a Lei e, depois, diz que, na realidade, ela não é
suficiente. Esta secção é chamada, habitualmente, mas não de forma correta, «as antíteses» (ver
pp. 265-267). Além da declaração sobre o divórcio, a secção contém outras exortações a viver
segundo padrões mais elevados do que aqueles que são exigidos pela Lei. As pessoas não só não
deveriam matar, com também não deveriam irritar-se (5, 21-26). Não só deveriam evitar o
adultério, como também não deveriam olhar para os outros com desejo nos seus corações (5, 27-
30). Não só não jurar falso, como nem sequer deveriam jurar (5, 33-37). Longe de retaliar
quando ofendidas, deveriam «oferecer a outra face» (5, 38-42). Por fim, não só deveriam amar
os seus próximos, como também os seus inimigos (5, 43-47). Então, seriam perfeitas como
Deus é perfeito (5, 48). Os investigadores pensam, geralmente, que algumas destas passagens
foram criadas por Mateus ou por um autor dos primeiros cristãos. Uma vez na posse da forma
das afirmações e do sentido geral, é muito fácil produzir mais exemplos sobre como ir para além
da Lei.
No entanto, para cumprir o nosso objetivo, não necessitamos de decidir quais das «antíteses»
remontam a Jesus. Digamos que todas remontam. A questão mais urgente é saber qual o lugar
do ideal de perfeccionismo na sua missão, em geral. Suspeito que fosse menos importante no
pensamento do próprio Jesus do que no Evangelho de Mateus. No início deste livro, registámos
que a imagem comum de Jesus depende muito da ética rigorosa do sermão da montanha. Não
quero negar, de maneira alguma, que Jesus tivesse feito afirmações como «ofereçam a outra
face» e «amai os vossos inimigos». Pelo contrário: não duvido que ele tivesse dito estas coisas.
Mas há alguns aspetos que nos podem ajudar a colocar o perfeccionismo de Mt 5 no seu
contexto.
Antes de mais, é de notar que o leitor de Marcos e Lucas não saberia que Jesus proibiu a ira e os
pensamentos sensuais. As exortações à eliminação de sentimentos que são comuns à
humanidade não constituem uma característica do ensinamento de Jesus em geral, aparecendo
apenas nesta parte de Mateus. Fora disso, Jesus preocupava-se com a maneira como as pessoas
tratavam os outros, não com os pensamentos que se escondiam nos seus corações. Tal como
outros bons mestres judaicos, Jesus pensava que as pessoas deveriam examinar-se a si próprias e
às suas relações com os outros, fazendo tudo aquilo que era necessário para encaminhar bem
estas relações. A continuação da afirmação
255
sobre a irritação ajuda a compreender isto mesmo: «Se fores, portanto, apresentar uma oferta
sobre o altar e ali te recordares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua
oferta diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para
apresentar a tua oferta» (Mt 5, 23 e segs.). Qualquer mestre judeu concordaria com isso. A
«oferta» significa aqui, provavelmente, um «sacrifício de expiação», apresentado para
completar o processo de reparação pela ofensa causada a outra pessoa. O sacrifício não contava
se o mal não fosse reparado primeiro. Isto é claro na própria legislação bíblica (p. ex., Lv 6, 1-7)
e as gerações seguintes compreenderam-no. Ben Sira tinha dito o mesmo cerca de 200 anos
antes de Jesus; além disso, a mesma afirmação pode ler-se nos escritos de Filo de Alexandria e
em outros autores." Não existem dúvidas de que Jesus teria encorajado esta forma de auto-
exame e a oportunidade mais óbvia para o fazer teria sido durante a oração e a ida ao Templo.
Mas a passagem não diz: «Antes do culto no Templo, tens de examinar a tua consciência, des-
cobrir todos os casos em que te irritaste com alguém e arrepender-te.» É possível que Jesus
tenha advertido contra guardar ira no coração, mas a maior parte do seu ensinamento ético
corresponde a Mateus 5, 23 e segs.: tratar bem as outras pessoas. Exemplos disso são Mateus 7,
21-23: entrarão no Reino se fizerem a vontade de Deus, assim como Mateus 25, 21-46: no juízo,
o Filho do Homem recompensar-vos-á se tiverem vestido os nus, visitado os doentes e
consolado os presos; mas punir-vos-á caso não o tenham feito.
Em segundo lugar, o tom geral do ensinamento de Jesus é a compaixão em relação à fraqueza
humana. Parece que ele não andava a condenar as pessoas pelos seus pequenos erros. Ele não
intervinha entre os poderosos, mas sim entre as pessoas humildes e não queria ser um capataz
austero ou um juiz severo que só aumentasse ainda mais os seus fardos:
Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que eu hei-de aliviar-vos. Tomai sobre
vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis
descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve. (Mt 11, 28-30)
256
É certo que os seus seguidores mais próximos deviam pensar que ser discípulo de Jesus era mais
difícil do que esta passagem sugere e ele tinha consciência disso: os discípulos tinham de estar
dispostos a renunciar a tudo. Mas depois de o terem feito, os Evangelhos apresentam Jesus
como alguém muito paciente com as fraquezas e dúvidas dos seus seguidores. As bem-
aventuranças (Mt 5, 3-12; com ligeiras diferenças em Lc 6, 20-26) exaltam os oprimidos, os
pobres e os mansos, assim como aqueles que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os
puros de coração e os pacificadores. Estas declarações implicam exigências, mas a característica
mais clara é a compaixão e a promessa para aqueles que mais necessitam delas. A característica
do ministério de Jesus era a compaixão e não o juízo. As pessoas deveriam ser perfeitas, mas
Deus era clemente - e Jesus, que atuava em Seu nome, também.
Em terceiro lugar, Jesus também não viveu uma vida austera e rigorosa. A palavra «perfeição»
evoca para a maioria de nós imagens de um puritanismo rigoroso: muitas regras, uma grande
quantidade de castigos por erros e pouco espaço para o divertimento. Jesus concordava com esta
espécie de puritanismo; uma vida austera tinha sido óptima para João Baptista, mas não era o
estilo de Jesus. Ele citou os seus críticos:
Veio João, que não comia nem bebia, e diziam dele: «Está possesso!» Veio o Filho do Homem,
que come e bebe, e dizem: «Aí está um glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de
impostos e pecadores!» (Mt 11, 18 e segs. / / Lc 7, 33 e segs.)
Além disso, algumas pessoas criticavam Jesus porque os seus discípulos não jejuavam,
enquanto os seguidores de João Baptista e dos fariseus o faziam, e ele respondeu-lhes colocando
uma questão retórica: «Poderão os convidados para a boda jejuar enquanto o esposo está com
eles?» (Mc 2, 18-22 e par.) Jesus não era puritano.
Por fim, temos de registar um dos aspetos mais interessantes do ministério de Jesus: ele chamou
«pecadores» e, ao que parece, juntou-se a eles e manteve relações de amizade com eles
enquanto estes ainda eram pecadores. Em Mateus 11, 18 e segs., que acabei de citar, os críticos
de Jesus acusaram-no deste comportamento. O perfeccionismo de Jesus não o impediu de estar
em companhia nem sequer dos piores elementos da sociedade. Pelo contrário, ele procurava esta
companhia.
257
Jesus preferia o encorajamento à censura; ele não julgava; era compassivo e clemente; não era
puritano, mas alegre e festivo. Contudo, também era um perfeccionista. A «perfeição» nos
Evangelhos tem de ser definida com cuidado. A única exortação direta à perfeição insta as
pessoas a serem perfeitas como Deus é perfeito, o que significa, no contexto, ser misericordioso
como Deus é misericordioso: «Ele faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz
cair a chuva sobre os justos e os pecadores» (Mt 5, 43-48). Este é o tipo de perfeição que Jesus
exige dos seus ouvintes. O segundo caso em que a palavra «perfeito» é utilizada nos Evangelhos
é na passagem sobre o homem rico: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinhei-
ro aos pobres ... ; depois, vem e segue-me» (Mt 19,21; a palavra «perfeito» não se encontra nas
passagens paralelas em Marcos e Lucas). Jesus não esperava que houvesse muitas pessoas
perfeitas neste segundo sentido. Ele trouxe a sua mensagem de consolo e de alegria a muitos
que não chamou a serem seus seguidores; Jesus só exigiu a alguns que abandonassem tudo o
que tinham.
O tipo específico de perfeccionismo de Jesus é perfeitamente compatível com a sua convicção
de que, no Reino, muitos dos valores humanos serão invertidos. O tipo de perfeição que ele
tinha em mente era adequado para os pobres e para os pobres em espírito: a perfeição da
misericórdia e da humildade. É óbvio que Jesus também esperava que os seus ouvintes tivessem
um comportamento moralmente correcto no sentido normal da palavra (honesto e justo), mas o
aspeto principal da perfeição humana semelhante à perfeição divina era a misericórdia. Ele
mostrou-o sendo manso e amoroso para com os outros, incluindo os pecadores.
258

14. Controvérsia e oposição na Galileia


Jesus morreu numa cruz romana, executado como alguém que pretendia ser «rei dos Judeus». Se
considerarmos a sua mensagem - o amor universal de Deus, a necessidade de se entregar a Ele,
a demonstração de amor a todos, mesmo aos inimigos - é difícil compreender como é que ele
acabou assim.
Voltaremos a este problema fundamental no capítulo 16 e analisaremos os acontecimentos em
Jerusalém que antecederam imediatamente a morte de Jesus. No entanto, os Evangelhos também
nos apresentam uma série de conflitos durante o seu ministério na Galileia. Nessa altura, ele já
se tinha tornado uma figura controversa. Antipas ouviu falar de Jesus e pensou que João
Baptista talvez tivesse ressuscitado (Mc 6, 14 & par). Lucas acrescenta que, a dada altura,
alguns fariseus avisaram Jesus de que Antipas queria matá-lo (Lc 13,31 e segs.). Apesar destes
avisos, Jesus parece não ter corrido perigo real na Galileia. É provável que tenha atraído menos
atenção pública do que João Baptista e parece não ter atacado Antipas ou o seu governo. As
controvérsias apresentadas nos Evangelhos têm a ver com a Lei judaica e os críticos de Jesus,
normalmente, eram escribas ou fariseus ou ambas as coisas.
259
As disputas sobre a Lei constituíam parte integrante da vida dos judeus. No judaísmo, tal como
já referi (pp. 60 e segs.), a Lei divina abrangia todos os aspetos da vida. Como a Lei provinha de
Deus e visto que abrangia tantos aspetos, as discórdias podiam ser bastante sérias: cada parte
podia reivindicar que estava a obedecer à vontade de Deus. Por conseguinte, é plausível que
Jesus tivesse tido grandes conflitos por causa de questões que, hoje, parecem sem importância
para a maioria das pessoas. Isto não significa que, no século I, aqueles que estavam envolvidos
numa disputa considerassem sempre os seus adversários como seguidores de Satanás e não de
Deus e que, por isso, pensassem que eles deveriam ser executados. Pelo contrário, existia uma
tolerância bastante grande. Necessitamos de informações sobre os níveis toleráveis de desacordo
no judaísmo do século I para avaliarmos as passagens dos Evangelhos. Quais eram os temas
mas controversos? A que ponto podia chegar o desacordo, sem que se ultrapassassem os limites
de uma discussão ou de um debate razoável? Numa outra obra referi-me aos debates entre os
vários partidos judaicos sobre as questões legais que são referidas nos Evangelhos.' Aqui
gostaria de definir os níveis possíveis das disputas sobre a Lei e de exemplificar cada nível. Isto
proporcionar-nos-á material comparativo sob uma forma razoavelmente breve. A lista dos
vários graus de desacordo que se segue está ordenada de forma descendente, de acordo com a
sua gravidade:
a) Uma pessoa pode argumentar que uma lei escrita está errada, que deveria ser revogada e que
não é necessário obedecê-la. Trata-se de um passo muito radical. A desobediência civil nas
democracias ocidentais modernas, uma tática seguida por alguns grupos de protesto, é muito
polémica e, quando está em causa um assunto importante, provoca alguns arrepios à sociedade.
Se esta atitude tivesse sido tomada em relação a parte da Lei judaica, teria sido particularmente
chocante, visto que teria significado que Deus tinha cometido um erro ou que a história da
origem divina da Lei não era verdadeira.
b) Uma pessoa pode argumentar que uma lei escrita está errada e que deveria ser revogada, mas,
apesar disso, obedecer-lhe enquanto
260
estiver em vigor. Esta é uma atitude muito comum, atualmente, em relação à legislação
ordinária aprovada por um parlamento. No entanto, a revisão constitucional é bastante rara e
apresenta uma analogia melhor com a Lei judaica do que a legislação parlamentar. Dada a
convicção de que a Lei foi dada por Deus, a proposta no sentido de revogar uma parte desta
constituição fundamental seria aproximadamente tão atroz como argumentar que ela não deveria
ser seguida.
c) Uma pessoa pode reclamar circunstâncias atenuantes, sem se opor, de facto, à lei, a fim de
justificar a transgressão numa ocasião particular.
d) Uma pessoa pode interpretar a lei de uma forma que a altere. Nos Estados Unidos da
América, o Supremo Tribunal, que é responsável pela interpretação da Constituição, tem sido o
instrumento para muitas alterações legais. Havia muitos estados federais nos quais os negros e
os brancos frequentavam escolas separadas, apesar do princípio de igualdade consagrado na
Constituição, porque, segundo a interpretação dominante, era possível as escolas serem
separadas, mas iguais. O Supremo Tribunal decidiu, com efeito, que a palavra «igual» não era
compatível com «separado», pelo que as escolas foram obrigadas à integração racial. Apesar de
normalmente a interpretação ser menos dramática, é comum os juízes interpretarem a lei e, por
vezes, o resultado é o mesmo da aprovação de nova legislação. Esta forma de interpretar a lei
estava bem viva no judaísmo do século l.
e) É possível evitar ou escapar a algumas leis sem as revogar. Atualmente, algumas pessoas,
especialmente as ricas, podem evitar legalmente o pagamento de impostos, organizando as suas
finanças de modo a não terem receitas líquidas tributáveis. Tratar-se-ia de uma evasão ilegal se
não revelassem as suas receitas. Ao tratarmos da lei da Antiguidade, podemos nem sempre ser
capazes de distinguir entre «evitá-la» e «escapar-lhe» e nos exemplos mais abaixo nem sequer
tentarei fazê-lo.
f) Uma pessoa pode propor que a lei se torne mais abrangente e pode criticá-la porque não vai
suficientemente longe. Atualmente, há muitas pessoas que pensam que o limite de velocidade
não é suficientemente rigoroso ou que as leis que limitam a poluição são demasiado suaves.
Podem criticar duramente a legislação sem serem favoráveis à violação das leis que existem.
261
g) Uma sociedade ou um dos seus subgrupos pode criar muitas regras e práticas suplementares
que determinam com precisão a maneira como as leis devem ser cumpridas. As pessoas que não
seguem determinada prática podem pensar que aqueles que a seguem cometem uma
transgressão; as pessoas que seguem a mesma prática podem pensar que aqueles que não a
seguem cometem uma transgressão.
Como os judeus do século I pensavam que a Lei de Moisés lhes tinha sido dada por Deus, as
possibilidades (a) e (b) acima referidas quase nunca se colocavam. Uma pessoa conscienciosa,
que pensava que um mandamento num dos livros atribuídos a Moisés estava errado, devia
apostatar - devia renunciar ao judaísmo - e poucas pessoas o fizeram. A literatura rabínica conta
a história de um rabi que transgrediu, deliberada e flagrantemente, uma norma, o que nos
permite ver como seria uma transgressão deste tipo. Elisha ben A vuyah andou a cavalo diante
do monte do Templo num Dia da Expiação que calhou a um sábado. Visto que o trabalho é
proibido tanto no Dia da Expiação como ao sábado - e montar é um trabalho - Elisha ben
Avuyah cometeu uma transgressão deliberada e grave. De acordo com a história, ouviu-se uma
voz do Templo, dizendo: «voltai, filhos rebeldes» (citando Jr 3, 14), à exceção de Elisha ben
Avuyah, que conhecia a Minha força e se insurgiu contra Mim." A história é provavelmente
lendária, mas, apesar disso, descreve o tipo de transgressão que a perda da fé em Deus e na Sua
Lei representa.
Existem muitos exemplos das outras categorias (c~f;. Apresentarei uma quantidade suficiente de
exemplos para dar ao leitor uma ideia do grau de desacordo no que diz respeito à Lei.
Um desses exemplos ilustra tanto a categoria (c) como um aspeto da categoria (d). A Bíblia
proíbe o trabalho no sétimo dia da semana - desde o pôr do Sol de sexta-feira, até ao pôr do Sol
de sábado (Ex 20, 8-11 / / Dt 5, 12-15). Há várias passagens que especificam algumas das coisas
que são consideradas trabalho, como, por exemplo, acender uma fogueira, apanhar lenha ou
preparar comida (Ex 16; 35, 2 e segs.; Nm 15, 32-36). No entanto, não existe uma definição
sistemática de «trabalho». Por conseguinte, o trabalho era definido por consenso
262
geral ou através de argumentação direta - as duas formas de interpretação (d). A lei relativa ao
sábado não é mencionada quando se fala de guerra, na Bíblia, mas um acontecimento no século
II a. C. revela que, por consenso geral, o combate era considerado trabalho. Durante a revolta
dos Asmoneus contra o império dos Selêucidas, um grupo de judeus recusou-se a defender-se
no sábado e foi assassinado. Depois disso, os judeus chegaram todos a acordo quanto à
possibilidade de se defenderem contra um ataque direto perpetrado ao sábado. Permitiam aos
inimigos que estes colocassem as suas catapultas em posição de combate, mas não respondiam
até serem atacados. Isto é, todos reconheceram que um ataque militar direto constituía uma
circunstância atenuante (c). Em geral, todos os judeus concordavam que a transgressão da lei do
sábado era permitida quando estava em jogo uma vida humana.
E quando se ajudava, ao sábado, uma pessoa cuja vida não estava ameaçada? Aqui havia várias
interpretações concorrentes. Os grupos piedosos (os fariseus e os essénios) proibiam o trabalho
envolvido no tratamento de pequenos incómodos, mas a literatura rabínica discute tantas
possibilidades que é evidente que havia muitas pessoas que estavam dispostas a enfaixar dedos
cortados (e outras coisas) ao sábado. Os rabis até apresentavam formas de alcançar um resultado
benéfico sem trabalhar realmente: ao sábado, uma pessoa não podia tratar de uma dor de dentes
aplicando vinagre, mas podia pôr vinagre na comida e comê-la, alcançando, assim, o mesmo
resultado. Se os rabis recorriam a estes caminhos para contornar a Lei, podemos muito bem
imaginar que algumas pessoas pensavam que a Lei permitia que pusessem vinagre num dente
dorido. Este exemplo permite-nos comparar a interpretação (d) com o evitar a Lei (e). Algumas
pessoas pensavam que o tratamento de doentes era trabalho proibido, mas que era possível
alcançar os resultados do tratamento sem trabalhar no sentido técnico do termo (e). É provável
que algumas pessoas discordassem da interpretação fundamental, considerando que o
tratamento de doentes não era proibido (d). Isto também constitui um tema acerca do qual podia
haver opiniões diversas quanto às circunstâncias atenuantes: que gravidade tem de ter a doença
para justificar tratamento ao sábado (c)?
263
A categoria (f), o alargamento do âmbito de aplicação da Lei, era uma categoria muito vasta. A
Lei escrita é muito incompleta; na teoria, cobre todos os domínios da vida, mas é
frequentemente escassa no que diz respeito a pormenores. Por conseguinte, tinha de ser alargada
e concretizada de todas as formas possíveis. Mencionarei um caso no qual existia desacordo.
Um dos Manuscritos do Mar Morto, a Aliança de Damasco, critica outros judeus por permitirem
o casamento com sobrinhas. Moisés - como realça corretamente o documento - proibiu os
casamentos entre tia e sobrinho (Lv 18, 12 e segs.). As leis do incesto foram escritas tendo em
vista os homens e, por isso, ordenam explicitamente aos homens que não tenham relações
sexuais com as suas tias, mas (como sustentam os autores da Aliança) estes mandamentos
deveriam aplicar-se também no sentido inverso: sobrinhas e tios não deveriam casar-se (Aliança
de Damasco 5, 7-11). Josefo considerava um casamento deste tipo, no mínimo, como um pouco
impróprio, ainda que não ilegal." É duvidoso que existissem muitos casamentos entre tios e
sobrinhas, mas estamos perante uma discussão legal muito clara: a lei deveria ser alargada a
casos análogos ou não. A Aliança de Damasco não critica diretamente Moisés mas sim outros
judeus por não compreenderem que a intenção de Moisés era que a lei fosse aplicada a
casamentos entre tios e sobrinhas. A crítica direta a Moisés não só teria sido pouco diplomática,
como também irreverente, para a maioria dos judeus isto quase significava criticar
simultaneamente Deus. No entanto, trata-se de uma crítica implícita à lei escrita.
A nossa última categoria (g), normas suplementares, também era muito vasta. Os fariseus eram
conhecidos pelas suas «tradições», interpretações herdadas de fariseus anteriores e que não
faziam parte da Lei escrita. No capítulo 4 (p. 70), dei um exemplo de uma das tradições dos
fariseus. a utilização de umbrais e lintéis para ligar casas contíguas, transformando-as numa
grande «casa», de modo a que várias famílias pudessem reunir os seus recursos e juntar-se para
uma refeição festiva aos sábados, sem transgredir a proibição, proveniente de Jeremias, de
transportar cargas para fora de casa aos sábados. Isto é, os fariseus criaram uma «tradição» (g)
que evitava a restrição de Jeremias (e). Há uma história rabínica que mostra que os saduceus
discordavam da utilização
264
de «eruvin» por parte dos fariseus." Eles pensavam, provavelmente, que os fariseus estavam a
transgredir a Lei, mas parece que não fizeram nada para os obrigar a seguir a sua visão mais
rigorosa. É óbvio que os fariseus não criticavam os saduceus por comerem nas suas casas
individuais. Fazê-lo não era contra a Lei, nem contra a tradição dos fariseus, que, neste caso, era
mais permissiva do que prescritiva.
Os exegetas do Novo Testamento afirmaram frequentemente que Jesus se opôs à Lei ou a
algumas partes dela. A ideia mais comum é que ele se opunha à lei relativa aos rituais, mas era
favorável à lei moral. As pessoas que defendem estas ideias raramente esclarecem em que senti-
do é que Jesus se opôs à Lei. Isto é, raramente se ocupam das distinções que é necessário fazer
quando se quer discutir a Lei. Querem dizer que, na opinião de Jesus, Deus não entregou a Lei a
Moisés? Que Jesus não concordava com uma interpretação, em particular? Que, por vezes, ele
contornava algumas leis concretas? É com estas questões em mente que vamos agora examinar
três passagens dos Evangelhos: as «antíteses» no sermão da montanha; uma coleção de histórias
de conflito em Marcos 2, 1-03, 6 e os debates sobre tradições, em Marcos 7.

As «antíteses» (Mt 5, 21-48)


Já discutimos brevemente este material, quando abordámos a questão do perfeccionismo de
Jesus. Aqui só nos interessa saber se Jesus se opõe à Lei nestas passagens. A resposta breve a
esta questão é que não; pelo contrário, ele exige uma prática mais rigorosa da mesma. Ninguém
que cumprisse as exortações que se encontram em Mt 5 transgrediria a Lei e Jesus não propôs a
revogação de qualquer parte da lei de Moisés. Vou repetir um resumo das afirmações contidas
nesta passagem de Mateus, juntamente com breves comentários que mostram que elas não
contrariam a Lei:
Não só não matarás, como não deves irritar-te. (A proibição de matar continua a estar em vigor.)
265
Não só não cometerás adultério, como não deves olhar para alguém com desejo. (O
mandamento que proíbe o adultério continua a estar em vigor.) Não te divorciarás, apesar da
autorização de Moisés. (A definição mosaica de um divórcio legal torna-se desnecessária, mas
os seguidores de Jesus não violarão o mandamento relativo à exigência de um documento legal.)
Não deverás jurar em circunstância alguma. (É óbvio que nunca ninguém irá jurar em falso.)
A Lei diz: «olho por olho ... Eu, porém, digo-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se
alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra,» (O mandamento «olho por olho»
limita a retaliação, não a exige. A pessoa que oferece a outra face não excede o limite legal.)
Amai os vossos inimigos como o vosso próximo. (O mandamento de amar o seu próximo será
cumprido.)
O editor que reuniu as várias partes de Mateus 5 compreendeu perfeitamente as antíteses. A
afirmação seguinte, atribuída a Jesus, constitui um prefácio a estas antíteses:
Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à
perfeição. Porque em verdade vos digo: até que passem o céu e a terra, não passará um só jota
ou um só ápice da Lei. Portanto, se alguém violar um destes preceitos mais pequenos e ensinar
assim aos homens será o menor no Reino do Céu. Mas aquele que os praticar e ensinar, esse
será grande no Reino do Céu. Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não superar a dos escribas
e dos fariseus, não entrareis no Reino do Céu. (Mt 5, 17-20)
Embora esta passagem do sermão da montanha incluída no Evangelho de Mateus não contrarie
a Lei, implica uma crítica: a Lei não vai suficientemente longe. Mas é de registar a maneira
como isto se exprime na passagem que se aproxima mais de uma crítica explícita: a versão
longa da proibição do divórcio. Moisés permitiu o divórcio «por causa da dureza do vosso
coração» (Mt 19, 8 / / Me 10,5). Isto é, Moisés era demasiado clemente, mas a culpa «é vossa» e
não dele.
Na sua versão atual, a última antítese soa como se contrariasse a Lei: «Ouvistes o que foi dito:
"Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo". Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos
... » (Mt 5, 43 e segs.). Isto contrariaria a Lei se esta mandasse realmente odiar os inimigos, mas
ela não o faz. A comunidade de Qumran ensinava que os seus membros deviam odiar os seus
inimigos e é possível que houvesse
266
outras pessoas a partilharem esta opinião. Talvez fosse possível defender de forma razoável que
os romanos eram os inimigos de Deus e do Seu povo e que deviam ser odiados. Mas os
melhores mestres judaicos ensinavam que, mesmo numa guerra, os inimigos deveriam ser trata-
dos de forma decente e não é verdade que o judaísmo, em geral, ensinasse o ódio aos inimigos.
Não podemos afirmar que, nesta passagem, Jesus se opusesse quer à visão oficial, quer à visão
comum dos judeus acerca dos inimigos.
Esta parte de Mateus foi citada frequentemente como prova da «oposição» de Jesus à Lei. Mas
reforçar a Lei não significa opor-se a ela, embora (como acabámos de ver) implique uma
espécie de crítica. Se o reforço fosse contra a Lei, os principais grupos religiosos do judaísmo,
os fariseus e os essénios teriam violado sistematicamente a Lei. Mas, na realidade, nenhum
judeu da Antiguidade pensava que ser super-rigoroso era contra a Lei, nem o autor de Mateus o
pensava. Só os exegetas modernos do Novo Testamento é que pensaram que parte do sermão da
montanha exprime oposição à Lei mosaica, mas isso é porque não tiveram em conta os diversos
níveis de concordância e discordância com a Lei.

Um conjunto de histórias de conflito (Me 2, 1-3, 6)


Vou voltar a resumir as diversas perícopes.
Jesus curou um paralítico dizendo: «os teus pecados estão perdoados», e alguns escribas
murmuraram entre si que ele se arrogasse a autoridade de perdoar pecados, designando isto
como «blasfémia». Jesus adivinhou a sua acusação, mas procedeu à cura. (2, 1-12)
Jesus chamou um cobrador de impostos a segui-lo; depois, sentou-se à mesa com muitos
cobradores de impostos. Os escribas dos fariseus queixaram-se aos seus discípulos e Jesus
defendeu o seu direito de chamar os pecadores. (2, 13-17)
267
As pessoas perguntaram a Jesus porque os seus discípulos não jejuavam, enquanto os discípulos
de João Baptista e dos fariseus guardavam jejum. Jesus defendeu os seus discípulos dizendo
que, enquanto o esposo estivesse com eles, os convidados para a boda não deviam jejuar. (2, 18-
22)
Num sábado, Jesus e os seus discípulos iam através das searas. Os discípulos ficaram com jome
e começaram a colher espigas. Apareceram os fariseus e criticaram-nos. Jesus defendeu os seus
discípulos recorrendo a um precedente parcial; isto é, à situação em que David e os seus homens
estavam com fome e comeram os alimentos sagrados, e a dois ditos: «o sábado foi feito para o
homem e não o homem para o sábado» e «o Filho do Homem até do sábado é Senhor». (2, 23-
28)
Num outro sábado, entrou numa sinagoga e curou um homem com uma mão paralisada.
Dirigiu-se diretamente à audiência, antes que alguém lhe tivesse dito alguma coisa: «É
permitido ao sábado jazer bem ou jazer mal; salvar uma vida ou matá-la?» Realizou a cura e os
fariseus e os partidários de Herodes reuniram-se para deliberar como haviam de o matar. (3, 1-
6)
Esta coleção contém vários pontos interessantes. Começamos por observar que o conflito
aumenta de gravidade ao longo destas cinco histórias sucessivas. Na primeira, os adversários de
Jesus apenas murmuram entre si, não dizendo nada nem a Jesus, nem aos seus discípulos, nem à
multidão. Na história seguinte queixam-se de Jesus aos discípulos. Na terceira e na quarta
histórias, manifestam diretamente a Jesus a sua discordância por causa dos discípulos deste. Na
quinta, vão para além da queixa e da objeção e decidem matá-lo.
Em segundo lugar, a atenção concentra-se nos fariseus. Inicialmente, os adversários são
simplesmente «escribas» - peritos na Lei. De seguida, são designados como «escribas dos
fariseus» - peritos na Lei pertencentes ao partido dos fariseus. Depois, são «pessoas», mas, ao
que parece, seguidores de João Baptista ou dos fariseus. Na quarta e na quinta histórias, são
fariseus, embora, nesta última, se aconselhem com os partidários de Herodes.
Portanto, nesta passagem, existe uma dupla escalada - no que diz respeito à intensidade do
conflito e aos adversários. A escalada não é totalmente uniforme, mas a tendência geral é clara.
Em terceiro lugar, registamos que as narrativas são pouco plausíveis em si mesmas. Ou são as
circunstâncias que são improváveis ou
268
a reação negativa em relação a Jesus é desproporcionada em relação ao seu comportamento. Na
primeira história, a transgressão estaria no facto de Jesus ter anunciado o perdão dos pecados do
homem, o que levou a uma acusação de blasfémia (Mc 2, 7). Mas nenhuma lei judaica, nem
nenhuma interpretação conhecidas teriam considerado blasfémia uma afirmação deste tipo. O
texto não apresenta Jesus a afirmar: «eu perdoo-te os teus pecados», mas sim: «os teus pecados
estão perdoados», na voz passiva. Na cultura de Jesus, a voz passiva era utilizada como uma
circunlocução para Deus: «os teus pecados estão perdoados» significa que estão perdoados por
Deus. Jesus limita-se a anunciar o facto, não assume o lugar de Deus. Podia parecer demasiado
seguro conhecer o que Deus fez ou iria fazer e é possível que parecesse arrogante. Mas esta
pretensão - de conhecer a vontade de Deus - não teria sido rara nem particularmente ofensiva.
Lembremo-nos de Honi, o desenhador de círculos. Ele estava seguro da sua relação com Deus,
mas não era um blasfemo, nem era considerado como tal. A acusação de blasfémia na passagem
de Me 2 parece uma retrojeção para o início do ministério de Jesus de uma acusação que, de
facto, foi feita mais tarde (sobre retrojecção, ver pp. 272-273, 278 e segs.). Isto significa que a
acusação neste contexto é improvável; se os escribas se tivessem oposto, realmente, à cura, a
acusação teria sido menos séria. É surpreendente que, de acordo com o próprio texto da
passagem, os escribas se tenham limitado a falar «nos seus corações». Podemos ter a certeza de
que isto não constituiu uma acusação pública no início do ministério de Jesus.
A história da colheita das espigas num sábado afigura-se improvável. Os discípulos estão a
colher espigas quando os fariseus aparecem subitamente. Mas o que estavam estes a fazer no
meio de uma seara, ao sábado? Estavam à espera de que alguém pudesse colher espigas?
Voltamos a ter aqui uma retrojeção. Houve aspetos do ministério de Jesus ou das ações dos seus
seguidores que levantaram, a dada altura, a questão da lei relativa ao sábado. Não se trata de
uma crónica de um acontecimento real.
Mas suponhamos que o incidente aconteceu realmente. Foi grave? Não muito, visto que Jesus
argumenta que existiam circunstâncias atenuantes e cita um precedente bíblico, assim como
princípios gerais, em defesa dos seus discípulos. David tinha violado a lei da pureza quando ele
e os seus homens estavam com fome (Mc 2, 25 e segs.) Além disso, o princípio geral diz que o
sábado deveria ser benéfico para a humanidade
269
(2, 27). Os fariseus retiraram-se, aparentemente, e não aconteceu nada. O argumento bíblico que
Jesus apresentou a favor de circunstâncias atenuantes não corresponde, realmente, aos padrões
dos fariseus, visto que David não violou a lei do sábado. Jesus teria necessitado de uma analogia
melhor em termos legais. Além disso, na história da seara, a vida humana não estava em jogo.
Toda a gente aceitava que «o sábado foi feito para o homem», mas teria sido um argumento
legal bastante fraco citar este princípio para justificar uma refeição leve. No entanto, o sábado
não era um dia de jejum; era suposto os judeus tomarem uma refeição ao sábado." Sendo assim,
o argumento da existência de circunstâncias atenuantes teria ganho força se os discípulos
tivessem estado muito tempo sem comer. De qualquer modo, a história tal como a conhecemos
atualmente, mostra Jesus como alguém que aceita a Lei e que defende uma transgressão singu-
lar da mesma. É igualmente de notar que não é Jesus que é acusado, mas sim os discípulos. Ele
não violou o sábado - mesmo que a história seja completamente exata.
A ação que (de acordo com Me 3, 6) leva à decisão de procurar a morte de Jesus é a mais
improvável de todas. Jesus cura o homem com a mão paralisada dizendo, simplesmente:
«estende a mão». Não existia nenhuma interpretação da Lei relativa ao sábado que tornasse o
ato de falar ilegal. Seria de esperar algum protesto se Jesus tivesse massajado ou ligado a mão,
mas falar não é um trabalho. Note-se que havia um grupo que cumpria o preceito do sábado de
uma forma mais rigorosa do que os fariseus: a seita do Mar Morto. Não existe nada neste
preceito que se aproxime do rigor de Me 3, 1-6. É duvidoso que alguém tivesse considerado esta
cura como uma transgressão deliberada da lei relativa ao sábado. Todos concordavam com o
princípio fundamental referido por Jesus, segundo o qual é legal salvar uma vida, embora
pudessem fazer notar que a vida do homem não estava em risco. É provável que os fariseus
tivessem regressado aos seus estudos concluindo que Jesus não sabia debater a Lei, visto que
tinha alargado o argumento de «salvar a vida» para cobrir uma cura de importância secundária.
Mas, face ao nível geral das disputas acerca do sábado ocorridas no século I, não existe nada no
relato bíblico que faça supor que talos teria levado a procurar matar Jesus.
270
Portanto, algumas das histórias são improváveis. Mas, mesmo que todas constituíssem registos
exatos dos acontecimentos, não existe um único caso de transgressão óbvia ou grave. As
disputas legais descritas em Me 2, 1- 3, 6 são bastante triviais, em comparação com outras
existentes no judaísmo do século I. O único ato que poderia constituir uma transgressão
substancial é a colheita de espigas ao sábado. Colher é um ato intencional que poderia ser
utilizado por qualquer um que quisesse demonstrar que a lei relativa ao sábado devia ser
violada. No entanto, este é precisamente o caso em que Jesus defende que a ação dos seus
discípulos se justifica com base em circunstâncias excecionais. Uma defesa baseada em
circunstâncias atenuantes admite que a Lei é válida e revela que a ação não constituiu um caso
de oposição à mesma. Imaginemos que os fariseus desta história, que desaparecem tão
rapidamente como apareceram, tinham levado Jesus e os seus discípulos perante um magistrado
e que Jesus tinha repetido o seu argumento: David fez algo semelhante; além disso, o sábado foi
feito para os homens e nós estávamos com fome. O magistrado talvez tivesse castigado Jesus e
os seus discípulos, exigindo que cada um deles apresentasse um sacrifício de expiação no
Templo pela ofensa não intencional - uma ofensa, porque o argumento não era suficientemente
bom para provar circunstâncias atenuantes; não intencional, porque Jesus estava convencido da
qualidade do seu argumento.
No tempo de Jesus, as discussões e as diferenças de opiniões descritas em Me 2, 1-3,6 - mesmo
que tivessem acontecido todas precisamente como estão registadas - não teriam levado à
execução. Havia discordâncias de opinião acerca de assuntos mais sérios entre os próprios
fariseus e divergências ainda mais agudas entre os fariseus e os saduceus. Eles não estavam
sempre a matar-se uns aos outros por causa destes desentendimentos. É certo que havia conflitos
por causa de questões legais entre os judeus na Palestina do século I, assim como alguma
agitação social, de vez em quando. Se observarmos os anos que decorreram desde a revolução
dos Asmoneus até ao fim da primeira revolta contra Roma (entre cerca de 167 e 74 a. C.),
encontraremos vários exemplos de guerras civis bastante graves. Mas as pessoas não se
matavam umas às outras por causa de questões do tipo daquelas que se encontram em Me 2, 1-
3, 6. O nível de discórdia e de discussão está dentro dos limites de debate aceites no tempo de
Jesus.
Se tudo isto for verdade, como podemos interpretar a existência destas passagens? O princípio
de que «onde há fumo, há fogo» torna
271
necessário explicar a sua origem: a descrição da hostilidade crescente dos fariseus por causa das
questões da Lei tem de vir de algum lado. A questão é saber de onde. Na realidade, existem três
questões diferentes: (1) Qual a origem da coleção (Mc 2, I-S, 6)? (2) Qual a origem dos seus
componentes (as cinco perícopes)? (S) As perícopes individuais constituem uma unidade ou
foram, elas próprias, compostas? Por outras palavras: será que os componentes de cada
passagem constituem uma unidade?
(1) A impressão de que os fariseus andavam atrás de Jesus desde muito cedo e que o perseguiam
implacavelmente é-nos transmitida pela própria coleção, tal como agora aparece em Marcos. No
entanto, esta coleção é obra de Marcos ou de um autor anterior. A sequência de histórias, nas
quais a um confronto se segue outro, sem qualquer narrativa ou debate pelo meio, e onde o nível
de ataque está permanentemente a aumentar, é dramática, mas artificial. Alguém juntou várias
histórias, compondo-as de forma a levar a uma decisão prematura de executar Jesus. Se as
passagens forem separadas (como acontece em Mateus e Lucas), não dão a mesma impressão de
uma hostilidade constante. Os acontecimentos que lhes são subjacentes devem ter acontecido
em fases muito diferentes.
(2) Isto não significa que estas histórias aconteceram todas de facto. Já sugeri que elas revelam
sinais de retrojeção: disputas posteriores foram transferidas para o tempo de Jesus. A igreja
cristã posterior ou, pelo menos, partes dela, discordou dos fariseus e dos seus sucessores, os
rabis, no que diz respeito à Lei. Note-se que há dois casos nesta coleção em que os acusados são
os seguidores de Jesus e não ele próprio (colheita de espigas; jejum). Estes «discípulos» pode-
riam representar a igreja pós-ressurreição e a disputa poderia constituir uma retrojeção para o
tempo de Jesus. É possível que tenha havido disputas, mas não necessariamente entre Jesus, os
escribas e os fariseus.
(3) Penso que é provável que a maior parte das passagens acima referidas não constitua uma
«unidade integral»; isto é, que um acontecimento ou uma afirmação tenham sido utilizados para
servirem uma necessidade posterior, através da sua colocação num novo contexto. Lembremo-
nos de que nunca podemos estar seguros do contexto imediato de uma perícope. Também não
podemos ter a certeza de que o contexto de cada uma das afirmações foi transmitido sem
alteração.
272
Por exemplo: é muito possível que Jesus tenha dito que o sábado deveria servir as pessoas, em
vez de serem as pessoas a servir o sábado. Esta afirmação não é necessariamente contra a lei
relativa ao sábado. Ela poderia ter ocorrido numa homilia de louvor ao Criador, que prescreveu
o sábado não para Seu beneficio próprio, mas para bem da Sua criação. Houve outros judeus
que fizeram notar que não só as pessoas, mas também os animais e a terra, gozavam e
beneficiavam do descanso ao sábado." No entanto, é possível que Jesus tenha deparado com um
tratamento menos humanista do sábado, com alguma interpretação que parecia exigir que as
pessoas suportassem privações. Isto poderia ter despoletado a afirmação em causa. Esta só
parece ser contra o sábado quando ocorre numa história em que os discípulos de Jesus são
acusados de desrespeitar o sábado.
Teria sido muito fácil alterar o contexto imediato de uma das curas de Jesus de modo a que esta
se tornasse um desafio à lei do sábado. Basta inserir a expressão «no sábado» e, depois, uma
reação negativa. Lucas junta mais dois casos à tradição (Lc 13, 10-17; 14, 1_6).9
Existe uma impressão geral de que Marcos e, provavelmente, a tradição anterior a ele,
necessitavam de histórias em que Jesus criticava a Lei e, por seu lado, era criticado por judeus
zelosos no cumprimento desta. Existe uma analogia com o desejo dos cristãos em descrever
Jesus como alguém cujo relacionamento com os gentios era positivo. Os cristãos provenientes
dos gentios não observavam parte da Lei e (como é óbvio) tinham uma grande consideração por
estes últimos. Queriam que Jesus concordasse com eles. Contudo, não conseguiam reunir muitas
provas. Não conseguiam citar muitas tradições favoráveis aos gentios, nem conseguiam
encontrar qualquer disputa realmente grave entre Jesus e os escribas ou os fariseus sobre a Lei
judaica. Algumas passagens foram trabalhadas de modo a transformarem-se em disputas sobre a
Lei, embora insignificantes, e, no fim, há uma decisão de matar Jesus. Mas trata-se de uma
construção do editor ou do autor. Se olharmos para as disputas em si mesmas, não encontramos
um grande conflito. O leitor de Marcos é convidado a acreditar que uma série de boas ações
levadas a cabo por Jesus levaram os
273
fariseus a desejar matá-lo. Isto é intrinsecamente improvável e é refutado pela história
subsequente: quando o momento decisivo chegou realmente, os fariseus não tiveram nada a ver
com a morte de Jesus.
No entanto, mais uma vez se vê que a tradição cristã não era tremendamente criativa. Tirou-se
uma afirmação daqui, um contexto dali e acrescentou-se uma conclusão. Estas modificações,
pelo menos em Marcos, resultam numa descrição de disputas legais sérias entre Jesus e outros
intérpretes.

Discrepâncias a propósito de tradições (Mc 7 / / Mt 15)


Vamos agora debruçar-nos sobre a terceira secção dos Evangelhos que descreve conflitos sobre
a Lei entre Jesus e outros na Galileia. Segundo Me 7, os fariseus criticaram Jesus porque os seus
discípulos comiam com as mãos por lavar. Ele respondeu com uma crítica a uma das suas outras
tradições, segundo a qual uma pessoa podia declarar uma propriedade ou dinheiro qorban
(dedicado ao Templo), sem que, no entanto, os entregasse. Jesus acusou-os de poderem utilizar
isto para privar os seus pais da ajuda necessária. (Embora não conheçamos tal tradição de
qualquer outra fonte, é intrinsecamente provável que os fariseus tivessem tido tradições relativas
a coisas dedicadas ao Templo.) A passagem continua: de seguida, Jesus reuniu a multidão e
disse: «Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa tornar impuro; mas o que sai do
homem, isso é que o torna impuro» (Me 7, 14 e segs.). Mais tarde, explicou, em privado, aos
seus discípulos que a comida entra numa pessoa mas sai. O autor faz aqui um comentário na
terceira pessoa: «assim, declarava todos os alimentos puros» (Mc 7, 15). A explicação de Jesus
prossegue: os pensamentos que levam a ações más, como a imoralidade sexual e os roubos, são,
de facto, impuros (Mc 7, 17-23).
Voltemos à situação inicial, para analisar esta secção: os fariseus criticam os discípulos de Jesus
(não o próprio Jesus) pelo facto de estes não lavarem as mãos antes das refeições. A lavagem
das mãos era uma tradição dos fariseus, não uma norma legal. No tempo de Jesus, nem sequer
se tratava de uma tradição uniforme. A maioria dos judeus não purificava as mãos antes das
refeições. Entre os fariseus, havia alguns que consideravam a lavagem das mãos facultativa;
muitos deles só
274
lavavam as mãos antes da refeição do sábado; existia uma discordância entre eles no que dizia
respeito à necessidade ou não de lavar as mãos antes ou depois da preparação do cálice do
sábado. Penso que a existência de uma inimizade mortal por causa da lavagem das mãos é his-
toricamente impossível. 10 Me 7 passa da questão da lavagem das mãos para o ataque de Jesus
à visão que os fariseus tinham do qorban: eles declaravam que a sua propriedade ou o seu
dinheiro estavam dedicados ao Templo, para não precisarem de ajudar os seus pais necessita-
dos. Mas isto é um ataque àquilo que qualquer um - especialmente os fariseus - teria
considerado um abuso. Nenhum fariseu teria justificado a utilização de um instrumento sem
ilegal para prejudicar os seus pais. É óbvio que é possível que alguns fariseus o tivessem feito
de vez em quando. Nesse caso, e se Jesus os tivesse acusado, os fariseus decentes, tementes a
Deus e respeitadores dos pais - 99,8% do partido - teriam concordado com ele.
A terceira secção de Me 7 é constituída pela questão daquilo que entra e sai das pessoas. Fora
do seu contexto atual, a afirmação em Me 7, 14 e segs. («não há nada fora do homem que,
entrando nele, o possa tornar impuro. Mas o que sai do homem, isso é que o torna impuro»),
pode significar várias coisas. A utilização judaica da construção «não» ... «mas» implica que
esta significa frequentemente: «não só isto, mas muito mais aquilo». Quando o autor da Carta de
Aristeias escreveu que os judeus não veneravam Deus «com dádivas e sacrifícios, mas com a
pureza de coração e uma atitude devota», não se opunha aos sacrifícios. Pelo contrário, era-lhes
favorável. 11 A frase significa «não só com sacrifícios, mas ainda mais com pureza de coração».
Por conseguinte, a afirmação de Jesus, em si, não é contra a Lei. No entanto, na interpretação
privada, apenas para os discípulos, Jesus nega a validade das leis judaicas relativas aos
alimentos: «Nada do que, de fora, entra no homem o pode tornar impuro» (Mc 7, 18). Se estas
foram as palavras exactas de Jesus, então a interpretação de Marcos seria correta: «Declarava
todos os alimentos puros.» Mas Mateus não coincide com
275
Marcos. Na versão de Mateus, não existe nenhuma declaração negativa sobre as leis relativas
aos alimentos. Jesus explica que aquilo que entra numa pessoa sai, mas não diz que «aquilo que
entra não pode tornar impuro». Mateus não inclui o comentário de Marcos, segundo o qual
Jesus tinha declarado todos os alimentos puros. (Mt 15, 10-20.)
Jesus transgrediu deliberadamente a Lei? Ensinou aos seus seguidores que a transgressão era
aceitável ou que algumas partes da Lei seriam revogadas? Segundo Mateus ou qualquer das
tradições em Mateus, não. As antíteses de Mateus tornam a Lei mais rigorosa, como vimos, mas
não pretendem levar ninguém a transgredi-la. A versão dos conflitos sobre os alimentos e sobre
o sábado em Mateus também não contém nenhum exemplo de transgressão.
No entanto, Marcos pensava que Jesus tinha dito aos seus seguidores que eles não tinham de
observar as leis relativas aos alimentos e é possível que pensasse o mesmo sobre a lei relativa ao
sábado. É possível que Lucas concordasse com Marcos no que diz respeito à lei relativa ao
sábado, mas não incluiu o debate sobre «aquilo que entra». Veremos mais adiante, ao discutir
Act 10, 11-17, que o autor de Lucas situou a rejeição das leis relativas aos alimentos num
período posterior, não no tempo de Jesus.
Existe uma discrepância entre os autores dos Evangelhos. Podmos chegar a uma conclusão?
Penso que sim: Jesus não ensinou aos seus discípulos que estes poderiam transgredir a lei
relativa ao sábado ou as normas relativas aos alimentos. Se ele tivesse andado pela Galileia a
ensinar às pessoas que não havia problema em trabalhar ao sábado e em comer porco, teria
havido um clamor enorme. Um homem que reivindicava falar em nome de Deus, mas que
ensinava que partes importantes da Lei de Deus não eram válidas? Que horror! É possível que,
hoje em dia, os leitores não judeus não compreendam até que ponto isto teria sido terrível. A
partir de segunda metade do século I, a maioria dos cristãos era de origem pagã. A igreja cristã,
composta na sua maioria por gentios, aceita algumas partes da Lei judaica, rejeitando outras
desde há mais de 1900 anos. Por conseguinte, as pessoas não sentem, hoje, o choque que esta
posição causou, no início, quando emergiu, provavelmente, nos anos cinquenta, nos debates de
Paulo com outros cristãos de origem judaica. Paulo pensava que os gentios podiam tornar-se
«filhos de Abraão» sem serem circuncidados. O conflito por causa desta questão foi amargo. Os
judeus devotos - e a
276
maioria dos judeus era devota - estavam convencidos de que existia, realmente, um Deus, que
Ele tinha entregue a Sua Lei a Moisés, que esta estava registada nas Escrituras e que devia ser
observada. Como é que alguém poderia afirmar que havia partes da Lei que eram inválidas? Ou
eram todas ou não era nenhuma. Se Deus tinha entregue a Lei, ela devia ser observada. Se Deus
não o tivesse feito e se não existisse, não fazia sentido observar qualquer parte que fosse da Lei.
Existe uma diferença enorme entre a Carta de Paulo aos Gálatas e a Carta aos Romanos, por um
lado, e Marcos, por outro lado. Marcos atira calmamente com a frase: «Ele declarava todos os
alimentos puros.» As cartas de Paulo crepitam de cólera e hostilidade provocadas pela sua
posição sobre as normas relativas à circuncisão e aos alimentos. Paulo viveu o debate sobre a
Lei em primeira-mão. Marcos (um cristão da segunda geração), não, visto que a discussão já
tinha praticamente terminado. Jesus também não viveu este debate, visto que ele ainda não tinha
surgido. Os Evangelhos não contêm o tipo de material que se teria gerado se Jesus tivesse
ensinado aos seus seguidores que estes podiam ignorar uma parte da Lei divina.
Além disso, os seguidores de Jesus observavam o descanso ao sábado, como pode ver-se na
história do seu enterro. Jesus morreu pouco antes do pôr-do-sol de uma sexta-feira, e José de
Arimateia sepultou-o imediatamente. As mulheres esperaram até à manhã de domingo, quando
o sábado tinha acabado, antes de ungirem o corpo (Mc 15, 42-16, '2 & par.). Isto é, não
trabalhavam ao sábado. Os Atos dos Apóstolos descrevem a perseguição dos cristãos após a
morte e a ressurreição de Jesus. Eles são acusados de vários crimes, mas nunca de terem
desrespeitado o sábado.
O caso das normas relativas aos alimentos é ainda mais claro. De acordo com os Atos dos
Apóstolos (escritos pelo autor de Lucas), Pedro teve uma visão pouco depois da morte e
ressurreição de Jesus:
Viu o céu aberto e um objeto, como uma grande toalha atada pelas quatro pontas, a descer para
a terra. Estava cheia de todos os tipos de quadrúpedes e de répteis da terra e de todas as aves do
céu. Então, ouviu uma voz dizer-lhe: «Levanta-te, Pedro, mata e come» (Act 10, 11-14.)
Pedro recusou e a voz repetiu a ordem mais duas vezes. De seguida, a toalha e o seu conteúdo
foram levados para o céu e Pedro ficou sem saber «o que poderia significar a visão que acabara
de ter»
277
(Act 10, 15-17). Acabou por concluir que os gentios podiam ser admitidos no novo movimento,
independentemente daquilo que comiam. Mas a História mostra que, na opinião de Lucas, Jesus
não tinha ensinado aos seus discípulos que todos os alimentos eram puros.
As cartas de Paulo também mostram indiretamente que os discípulos não pensavam que Jesus se
opusesse às normas relativas aos alimentos e ao sábado. A dado momento, Paulo criticou Pedro
severamente por causa de ele ter deixado de comer com gentios (Gl 2, 11-14). Não sabemos
qual era a objeção de Pedro - se a comida ou a companhia - mas se Paulo tivesse sabido que o
próprio Jesus tinha dito a Pedro que todos os alimentos são puros, podia ter incluído isto na sua
argumentação. Paulo manifesta igualmente a sua discordância em relação ao facto de os gentios
da Galácia, que ele tinha convertido, terem começado a observar o sábado (Gl 4, 10), mas não
argumenta que o próprio Jesus o tivesse transgredido.
Em resumo, nem as mulheres que ungiram o corpo de Jesus, nem Pedro e os outros apóstolos de
Jerusalém, nem Paulo, nem os adversários de Paulo na Galácia pensavam que Jesus tivesse dito
aos seus discípulos que eles não necessitavam de respeitar as normas relativas ao sábado e aos
alimentos. Isto leva-me a concluir que o próprio Jesus observava estas normas, assim como as
outras partes da Lei de Moisés, e que nunca recomendou a transgressão como uma prática gene-
ralizada (embora, em algumas ocasiões especiais, possa ter sentido que esta se justificava).
As histórias que sugerem que o próprio Jesus transgrediu a Lei e autorizou os seus seguidores a
fazerem o mesmo constituem (como sugeri anteriormente) retrojeções da situação da igreja
primitiva para o tempo de Jesus. Quero explicar um pouco melhor a questão de retrojeção.
Havia três pontos fundamentais de discórdia quanto à Lei no interior da igreja primitiva, assim
como entre esta e a sinagoga judaica: a circuncisão, o sábado e os alimentos. Estes são os temas
relativos à Lei que geram desentendimentos nas cartas de Paulo, assim como nos Atos dos
Apóstolos. Estes três temas possuem um denominador comum: distinguem os judeus dos
gentios, em termos sociais. Por isso, constituíam as áreas fundamentais que tinham de ser
resolvidas sempre que judeus e gentios se juntavam numa comunidade ou numa causa comum.
Dois deles nunca levantaram realmente problemas dentro de uma comunidade judaica. Numa
aldeia, habitada praticamente só por judeus, por exemplo, a questão do consumo da carne de
porco nem
278
sequer se colocava. Não existiam porcos. O mesmo se passava com a circuncisão dos filhos: era
uma questão de rotina. O sábado é mais complicado, visto que a Bíblia é menos clara e
específica no que diz respeito àquilo que é considerado como trabalho do que em relação aos
alimentos que são proibidos. Por isso, era possível haver discussões sobre o sábado mesmo em
locais onde não havia gentios. No entanto, não havia discordâncias em relação à necessidade ou
não de observar o sábado, mas apenas sobre pormenores, como, por exemplo, até que distância
era possível afastar-se em relação à propriedade do próprio. Ninguém trabalhava no campo, nem
abria uma loja, nem cozinhava ao sábado, visto que todos concordavam que isto eram formas de
trabalho. Portanto, era possível haver debates sobre coisas como curas insignificantes, mas a
única coisa que se discutia era a interpretação e havia muitos judeus que discordavam entre si
quanto à interpretação, sem que decidissem matar-se uns aos outros. Existiam diferenças na
prática do sábado dentro de quase todas as comunidades judaicas.
Destes três pontos que, como sabemos, eram cruciais nos primeiros tempos do cristianismo,
depois da morte de Jesus, dois - o sábado e os alimentos - dominam as disputas entre Jesus e os
escribas, e os fariseus, nos Evangelhos. Para voltar à questão do fumo e do fogo: temos a certeza
de que as igrejas cristãs compostas total ou parcialmente por gentios se preocupavam muito com
as normas relativas aos alimentos e ao sábado, enquanto estas teriam sido muito menos con-
troversas nas aldeias da Galileia no tempo de Jesus. É muito provável que o fumo (as passagens
nos Evangelhos) tenha origem em fogo real (disputas nas igrejas cristãs depois do tempo de
Jesus). Considero quase certo que a importância das disputas sobre o sábado e os versículos
sobre as normas relativas aos alimentos (Mc 7) reflitam a situação das igrejas cristãs depois de
os gentios terem começado a ser admitidos no movimento. Creio que a interpretação que
Marcos faz da afirmação «não é aquilo que entra» é uma retrojecção que pretende assegurar aos
seus leitores gentios que eles podem ignorar as normas relativas aos alimentos. A história sobre
a colheita de espigas também é uma retrojecção (embora Jesus pudesse ter afirmado, em alguma
ocasião, que o sábado tinha sido feito para beneficiar os seres humanos).
279
Além disso, a importância das disputas sobre o sábado em Mc 2, 1-3, 6 resulta dos interesses do
próprio Marcos (ou de um editor anterior).
Não quero negar que Jesus tenha debatido alguma vez a prática do sábado. É bem possível que o
tenha feito. Mas não agiu de forma a levar as pessoas - quer fossem os seus contemporâneos na
Palestina, quer fossem os primeiros cristãos - a acreditar que ele negasse a validade das normas
relativas ao sábado, o que significaria negar a origem divina das mesmas. Jesus viveu, de
maneira geral, como um bom judeu e não é possível encontrar qualquer traço da atitude
atribuída a Elisha ben Avuyah (ver p. 262).

Tradições positivas
São muitas as passagens em que Jesus é descrito como alguém que corroborava vários aspectos
da Lei. Quando lhe perguntaram qual era o maior mandamento, ele respondeu:
«Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua
mente.» Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: «Amarás o teu
próximo como a ti mesmo.» Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas. (Mt
22, 37-40)
O mandamento do amor a Deus é uma citação do Deuteronómio (6,4 e segs.), uma passagem
que todos os judeus devotos repetiam duas vezes por dia. O mandamento do amor ao próximo é
citado do Levítico J 9, 18. Muitos judeus do tempo de Jesus consideravam que estes dois
mandamentos resumiam as duas «tábuas» da Lei judaica: os mandamentos que regulavam as
relações com Deus (encabeçado pelo mandamento do «amor a Deus») e os mandamentos que
regulavam as relações com outros seres humanos (resumidos no mandamento do «amor ao
próximo). A resposta de Jesus não se limita a ser correta do ponto de vista acadêmico, ele cita
estas leis, aprovando-as. Numa outra passagem, recomenda aos seus seguidores: «o que
quiserdes que as pessoas vos façam, fazei-o também a elas», caracterizando esta declaração
como «a Lei e os profetas» (Mt 7, 12). Isto constitui uma
280
forma epigramática de dizer «amarás o teu próximo como a ti mesmo». O epigrama é muito
parecido com um outro, conhecido dos mestres judeus, que eles também consideravam um
resumo da Lei.
Além destes indícios de uma aprovação incondicional da Lei e dos seus mandamentos
fundamentais, existem outras passagens que demonstram concordância com os mesmos. Já nos
referimos ao facto de Jesus, depois da cura de um leproso, ter dito ao homem curado para ele se
mostrar aos sacerdotes e para apresentar um sacrifício como Moisés tinha mandado (Me 1, 40-
45, anteriormente, pp.I68 e segs.). Jesus disse aos seus seguidores que, quando fossem ao
Templo, deviam ter a certeza de estarem reconciliados com as pessoas que podiam ter ofendido,
antes de apresentarem o sacrifício (M5 5, '23 e segs.) - mais uma vez, um conselho habitual do
judaísmo, o que reflete a adesão ao sistema sacrificial. Jesus estava manifestamente convencido
de que Isaías e os outros profetas eram realmente profetas de Deus, visto que os citava com
aprovação (por exemplo, Mt 11, '2-6). O facto indiscutível de Jesus pensar que as escrituras dos
judeus continham a palavra que Deus tinha revelado e que Moisés tinha emitido mandamentos
que deviam ser seguidos, deveria levar-nos a hesitar muito na aceitação da opinião comum dos
exegetas do Novo Testamento de que ele se opunha, realmente, à Lei judaica. Isto é tanto mais
verdade, obviamente, quanto as passagens em que existem discórdias sobre a Lei não revelam
uma oposição direta à mesma.
Outras questões legais e possíveis temas de conflito
Acabei de propor que Jesus concordava e aprovava a Escritura judaica na sua totalidade (<<a
Lei e os profetas»). As passagens nas quais algumas pessoas encontram uma oposição à Lei não
a revelam de facto. Mesmo que ignorássemos a retrojecção e as dúvidas quanto à autenticidade,
só encontraríamos uma passagem em que Jesus permite lima transgressão: Me 7, 15-18
(«declarava todos os alimentos puros»; «nada há fora do homem que, entrando nele, o possa
tornar impuro»). A reconsideração dos Atos dos Apóstolos, das cartas de Paulo e dos
281
outros Evangelhos sinópticos mostra que Jesus não disse, de facto, aos seus discípulos que eles
não necessitavam de observar as normas da Lei relativas aos alimentos.
Se voltarmos à nossa lista de níveis possíveis de discórdia, apresentada anteriormente (pp. 260 e
segs.), veremos que a posição de Jesus em relação à Lei não se insere na categoria (a) ou (b).
Quer isto dizer que Jesus não pensava que a Lei escrita estivesse errada e devesse ser revoga da,
nem dizia aos seus seguidores que deveriam desobedecer a alguns aspetos da mesma. É neste
contexto geral que temos de considerar o conflito na Galileia. Jesus não estava envolvido num
combate mortal com os defensores da Lei por uma questão de princípio. Todos, incluindo Jesus
e os seus seguidores, estavam convencidos de que Deus tinha dado a Lei a Moisés e de que
também tinha inspirado as outras Escrituras. Se Jesus discordou de outros intérpretes em
questões de pormenor, as disputas não foram mais importantes do que as disputas entre os
partidos judaicos e até dentro de cada partido.
Existem, contudo, dois pontos em que Jesus afirmou a sua própria autoridade de formas que
eram ou podiam ser questionáveis. Nestes dois tópicos, trata-se, provavelmente, mais de
questões semilegais do que de questões legais. O primeiro diz respeito à ordem que Jesus dá
para que «deixem que os mortos enterrem os mortos». O segundo consiste no seu chamamento
de «pecadores».
Um homem que queria ser discípulo disse que seguiria Jesus, mas quis enterrar primeiro o seu
pai morto. Jesus respondeu: «Segue-me e deixa os mortos sepultar os seus mortos» (M t 8, 21-
22). Há muitos leitores que consideram esta resposta um aforismo: deixa os mortos (no sentido
espiritual) enterrar os mortos (no sentido espiritual). Mas um aforismo deste tipo é tão ofensivo
que é improvável. A ideia de não enterrar os mortos ainda era mais repugnante para a moral
antiga do que para a nossa. A realidade era tão ofensiva que uma metáfora que se baseasse nela
não seria apelativa. Os judeus partilhavam a aversão dos gregos a deixar o corpo por sepultar.
Segundo os rabis, mesmo
282
um sacerdote - aos quais era normalmente proibido enterrar os mortos ou entrar, sequer, num
cemitério, para não contraírem a impureza do cadáver, ficando incapacitados de servir no
Templo - deveria enterrar um cadáver se não existisse ninguém para o fazer. A ordem de
«deixar os mortos sepultar os mortos» não só era contrária à sensibilidade humana normal,
como também era contrária a qualquer interpretação razoável da Lei judaica, que manda honrar
pai e mãe. O carácter ofensivo da afirmação torna improvável que «enterrar os mortos» seja
uma metáfora. O pai do homem candidato a seguidor tinha morrido, provavelmente, e Jesus
disse-lhe: «Deixa os mortos (no sentido espiritual) sepultar os mortos (no sentido físico).»
Nesse caso, Jesus pensava que segui-lo deveria ser mais importante do que qualquer outra coisa.
Estamos perante um caso que apresenta alguma analogia com o do homem rico que desejava ser
«perfeito» e a quem foi dito que deveria vender tudo para seguir Jesus. Jesus não colocou este
tipo de exigência a todos, mas a alguns exigiu uma abnegação total. A diferença no caso do
homem a quem o pai tinha morrido reside no facto de a abnegação implicar uma transgressão do
mandamento de honrar os próprios pais. Jesus ordena aqui uma exceção à regra, que, em termos
legais, deve ser vista, provavelmente, como um apelo a uma circunstância atenuante: a
necessidade de o seguir era tão grande que devia ser mais importante do que as obrigações
normais da piedade.
No entanto, isto parece ter sido um incidente único que não representa a prática geral de Jesus.
Se os fariseus ou outros devotos da Lei tivessem ouvido esta afirmação de Jesus, teriam ficado
escandalizados. Mas parece que não aconteceu nada. A passagem não nos diz que Jesus se
opunha ao mandamento de honrar pai e mãe, mas que tinha uma atitude em relação à sua
própria missão que poderia levar a ignorar a Lei, se fosse necessário. O seu chamamento era
mais importante do que sepultar os mortos. É possível que algo desta atitude tenha sido
transmitido ao público e que muitos tenham ficado profundamente ofendidos. Apesar de este
incidente particular não ter tido quaisquer consequências, a atitude de Jesus teve-as, como
vamos ver agora.
A convicção de Jesus de que a sua missão tinha prioridade sobre qualquer outra coisa exprime-
se mais claramente na passagem sobre os «pecadores». Jesus chamou um cobrador de impostos
(Levi, em Marcos e Lucas, Mateus, em Mateus), para que este o seguisse, e o homem aceitou o
chamamento. Jesus foi acusado, subsequentemente,
283
de comer com cobradores de impostos e com pecadores (Mc 2, 14-17 & par.). Isto parece ter
sido uma verdadeira ofensa: ele fez de facto algo que ofendeu realmente as pessoas. As
passagens mais fidedignas sobre os pecadores são aquelas em que Jesus discute sobre João Bap-
tista e se coloca a si próprio em contraste com ele. João «veio até vós, ensinando-vos o caminho
da justiça» (Mt 21, 32) e era um asceta «que não comia, nem bebia» (Mt 11, 18). Veio Jesus
(<<o Filho do Homem», designação utilizada aqui pelo próprio Jesus), que «come e bebe»; mas
também foi rejeitado: «Aí está um glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos
e de pecadores!» (Mt 11, 19.)
Porque é que a associação de Jesus com cobradores de impostos e pecadores constituía uma
razão para o rejeitar? O termo «pecadores», na Bíblia Hebraica, quando utilizado em termos
gerais, refere-se a uma classe de pessoas, não àqueles que transgridem ocasionalmente a Lei,
mas àqueles que estão à margem da Lei de alguma maneira fundamental. Para podermos
compreender o significado do termo «pecadores», deveríamos ter em conta a descrição dos
«ímpios» nos Salmos. Eles são colocados em contraste com os «pobres». Os ímpios atormentam
os pobres e dizem nos seus corações que Deus não existe ou que, se existe, não os chamará à
responsabilidade (SI 10, 4.8-13). As traduções inglesas modernas dos Salmos Hebraicos
utilizam, de uma forma bastante correta, a palavra «ímpios», nesta passagem, o que constitui a
melhor tradução para a palavra hebraica resha'im. No entanto, os judeus que traduziram a Bíblia
Hebraica para grego utilizaram a palavra «pecadores» hamartoloi" e este tornou-se o termo que
os judeus que falavam grego utilizavam para designar pessoas que estavam fundamentalmente
fora da aliança com Deus porque não observavam a Sua Lei. A palavra «pecadores» no grego
dos judeus podia referir-se a gentios (que, por definição, não observavam a Lei judaica) ou a
judeus verdadeiramente ímpios. A força do termo pode ser observada na censura que Paulo faz a
Pedro: «Nós, que, por nascimento, somos judeus, e não pecadores gentios ... » (GI 2, 15); isto é,
«não somos gentios, que são completamente ímpios porque vivem totalmente fora da Lei». Nos
Evangelhos, a palavra grega hamartoloi refere-se a judeus que transgridem sistemática ou
flagrantemente a Lei e que, por isso,
284
eram como gentios, só que ainda mais culpados. Tal como Elisha ben Avuyah, eles conheciam
Deus, mas optaram por lhe desobedecer. Referir-me-ei a eles como os «ímpios», visto que esta é
quase de certeza a palavra utilizada por Jesus e pelos seus críticos. (Eles falavam aramaico e não
hebraico, mas a palavra é a mesma.)
A importância do facto de Jesus ter sido um amigo dos ímpios estava no seguinte: ele contava
entre os seus seguidores com pessoas que eram geralmente consideradas como alguém que vivia
fora da Lei de uma maneira notória.
A expressão «cobradores de impostos e pessoas ímpias» aparece frequentemente nos
Evangelhos sem qualquer explicação, não sendo imediatamente claro por que razão estes dois
grupos são referidos em conjunto. A explicação provável é que os cobradores de impostos eram
considerados desonestos. Nesse caso, eram ímpios, visto que a sua desonestidade era
sistemática. Uma pessoa que utilizasse o seu cargo para encher o seu próprio bolso, estava a
fazer quase exatamente aquilo que os ímpios fazem nos Salmos: oprimir as outras pessoas e
viver como se Deus não existisse ou como se não concedesse justiça. Esta é a descrição que Filo
faz do homem que, cerca de 40 d. C., tinha a função de cobrador de impostos na província da
Judeia: «Capito é o cobrador de impostos para a Judeia e despreza a população. Quando chegou
lá, era um homem pobre, mas, graças à sua rapacidade e ao peculato, acumulou muita riqueza
sob várias formas (Embaixada 199). A palavra traduzida como «imposto», significa «tributo»,
no sentido mais literal; Capito era responsável pelo envio do tributo da Judeia para Roma ou
para a base romana na Síria. Cobrava mais do que tinha de enviar e ficou rico.
Na obra de Josefo existe uma referência mais favorável a uma outra espécie de cobradores de
impostos: o funcionário alfandegário. Os judeus da Cesareia estavam incomodados com
construções que bloqueavam ou dificultavam o seu acesso a uma sinagoga. João, o funcionário
alfandegário, subornou o procurador romano, Florus, para que este decidisse a disputa a favor
dos judeus. O procurador aceitou o dinheiro e, depois, saiu da cidade, deixando às duas partes a
resolução da questão (Guerra 2, 285-288). Este funcionário alfandegário era judeu e atuou de
acordo com os judeus notáveis da cidade. Ao contrário deles, ele era suficientemente rico para
dispor de uma grande quantidade de dinheiro para o suborno: oito talentos de prata. Um talento
pesava cerca de 35 kg, embora as estimativas dos especialistas
285
variem muito. Se este número for mais ou menos correto, podemos calcular o valor de oito
talentos de prata em moedas contemporâneas. A prata está a ser negociada a cerca de 4,30
dólares americanos por onça; isto significa que os oito talentos valem, aproximadamente, 41280
dólares americanos. Nesta história, o vilão é Florus. Se um político honesto é alguém que resiste
ao suborno, então Florus era desonesto e os resultados foram catastróficos. O conflito por causa
do acesso à sinagoga na Cesareia foi o primeiro numa série de acontecimentos que levaram à
grande revolta dos judeus contra Roma.
Mas o nosso interesse centra-se em João, o funcionário alfandegário. Ele era o único judeu na
Cesareia capaz de oferecer um grande suborno. O funcionário alfandegário que controlava o
porto de Cesareia (pressupondo que este era o cargo de João) estava numa posição muito boa.
As exportações que passavam pelo porto eram muito mais valiosas do que as importações, visto
que o porto de Cesareia se encontrava numa das rotas possíveis através da qual os produtos de
luxo do Oriente chegavam à Ásia Menor, à Grécia e à Itália. As taxas eram cobradas,
provavelmente, tanto sobre as exportações como sobre as importações e, portanto, a maior parte
dos custos suportada pelos consumidores em outros países. João podia cobrar demasiado, ou
tirar para si o melhor, sem causar prejuízo aos habitantes da Cesareia.
Os cobradores de impostos nos Evangelhos, tal como João, eram funcionários alfandegários e
não cobradores de tributos. As pequenas cidades à volta do mar da Galileia eram menos
prósperas do que Cesarei a e as mercadorias exportadas, bem como as importadas, eram mais
básicas do que os bens de luxo que passavam pelo porto de Cesareia. A Galileia produzia
muitos alimentos, mas tinha de importar muitos bens manufaturados. Os cobradores de
portagens na Galileia cobravam taxas sobre coisas que eram utilizadas pelos camponeses
comuns da região. É provável que os cobradores de portagens se tornassem relativamente ricos -
não tão ricos como um cobrador de tributo ou um funcionário alfandegário numa cidade tão
grande como Cesareia, mas mais ricos do que a maioria dos agricultores e pescadores da Gali-
leia. Os habitantes da Galileia consideravam, provavelmente, os funcionários alfandegários
«ímpios»: regra geral, eles eram desonestos.
Muitos investigadores, incluindo eu próprio, pensavam que os cobradores de impostos na
Galileia eram considerados colaboradores, habitantes que atuavam em nome de um poder
imperial. Cobravam impostos ao serviço de Antipas, mas ele pagava tributo a Roma; por
286
conseguinte, ajudavam Roma, indiretamente. Já não estou muito seguro desta opinião. Basta
dizer que eles eram suspeitos de cobrar de mais e, por conseguinte, de pilhar a população. Por
isso, eles viviam como se Deus não existisse ou como se não reagisse; eram «ímpios».
O único outro grupo de pessoas que os Evangelhos mencionam como pertencente aos ímpios
era o das prostitutas. Segundo Mt 21, 31 e segs., os cobradores de impostos e as prostitutas
entrarão no Reino de Deus antes de «vós» - ao que parece, os sumos sacerdotes e os anciãos
(ver 21,23) - porque acreditaram em João Baptista e arrependeram-se. Nunca se diz que Jesus
tinha uma ligação íntima com prostitutas. Lucas conta a história de uma mulher que era uma
«pecadora» e que ungiu os pés de Jesus, mas isto aconteceu na presença de um fariseu, pelo que
está fora de questão um comportamento impróprio (Lc 7, 36-50). Se queremos colocar a questão
da relação entre Jesus e os ímpios, temos de nos limitar aos cobradores de impostos.
Já registámos a crítica generalizada ao facto de Jesus ter sido amigo de cobradores de impostos
e de ímpios (Mt 11, 19). Existem duas histórias concretas das quais já referimos uma: Jesus
chamou um cobrador de impostos a segui-lo e, depois, jantou com cobradores de impostos. «Os
escribas dos fariseus» perguntaram-lhe porque o tinha feito e ele respondeu: «Não são os que
têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos» (Mc 2, 14-17). Isto faz supor que ele
queria curá-los, isto é, levá-los a deixarem de ser desonestos. A outra história também se centra
numa renovação moral bem sucedida. Quando Jesus atravessava Jericó, o chefe dos cobradores
de impostos, Zaqueu, subiu a uma árvore para o ver. Jesus levantou os olhos e disse a Zaqueu
que ficaria em casa dele. Isto levou a multidão a murmurar que Jesus ia ficar com alguém que
era ímpio. Zaqueu prontificou-se imediatamente a dar metade dos seus bens aos pobres e a
restituir quatro vezes mais a todos aqueles que tinha defraudado. Jesus comentou que a salvação
tinha chegado à casa de Zaqueu e acrescentou: «O Filho do Homem veio procurar e salvar o que
estava perdido» (Lc 19, 1-10).
Zaqueu ofereceu muito mais do que o exigido por Lei; de acordo com esta, uma pessoa que
defraudasse outra devia restituir-lhe o que tinha roubado, acrescentar 20 por cento como multa
e, depois, sacrificar um carneiro como sacrifício de reparação (Lv 6, 1-7). Uma pessoa que
fizesse isto e que não voltasse à sua vida anterior, deixava de ser ímpia. Se Jesus tivesse
conseguido persuadir outros funcionários alfandegários a fazer aquilo que Zaqueu fez, teria sido
um herói local.
287
Mas parece que foi criticado. Como havemos de entender isto? Tendo em conta estas e outras
questões, que explanarei em seguida, sugeri num dos trabalhos anteriores que, apesar da história
da conversão maravilhosa de Zaqueu, Jesus não era um pregador de arrependimento: ele não
era, em primeiro lugar, um reformador e a sua associação a cobradores de impostos não tinha o
objetivo de os persuadir a fazer aquilo que Zaqueu fez.
Tal como eu tinha previsto, esta sugestão foi mal recebida. Gostaria de voltar a tentar explicar o
meu ponto de vista. A história de Levi e dos outros cobradores de impostos (Mc 2, 14-17) não
afirma que eles se tivessem arrependido, restituído o dinheiro, acrescentado 20 por cento e
apresentado um sacrifício no Templo. Além disso, as palavras «arrepender-se» e
«arrependimento» são muito raras em Mateus e em Marcos. Se o objetivo de Jesus fosse levar
as pessoas desonestas ao arrependimento, poderíamos esperar que a palavra «arrepender-se»
fosse uma palavra proeminente no seu ensinamento. Gostaria de recapitular brevemente a
ocorrência destas palavras (tanto do verbo, como do substantivo) nos Evangelhos sinópticos. O
sumário que Marcos apresenta da pregação de Jesus inclui um apelo ao arrependimento (Mc 1,
15), mas não dá nenhum exemplo específico. Além disso, Marcos atribui só uma mensagem de
arrependimento a João Baptista e aos doze discípulos (1, 4; 6, 12). Mateus apresenta o mesmo
resumo da mensagem de Jesus (Mt 4, 17) e uma descrição alargada da mensagem de João que
sublinha o arrependimento (3, 2.8.11). Em Mt 11,20 e segs., Jesus critica Corozaim, Betsaida e
Cafarnaum pelo facto de não se arrependerem. Mt 12,41 louva Nínive por se ter arrependido
depois de ter ouvido a pregação de Jonas. Mateus 21, 32 (como já vimos) critica os chefes dos
sacerdotes e os anciãos por não se arrependerem com a pregação de João. Lucas apresenta
paralelos com os versículos sobre João Baptista (Lc 3, 3.8), as cidades da Galileia (10, 13) e
Nínive (11,32). Enquanto em Mateus e Marcos, quando Jesus defende a sua atitude de jantar
com cobradores de impostos, diz que veio para chamar os pecadores, em Lucas, diz que veio
para chamar ao arrependimento (Lc 5, 32). Segundo Lucas, Jesus concluiu a parábola sobre a
ovelha perdida dizendo: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do
que por noventa e nove justos que não necessitam
288
de conversão», uma conclusão que não se encontra na versão de Mateus (Lc 15, 7; Mt 18, 14).
A parábola sobre a dracma perdida, em Lucas, tem um fim semelhante (Lc 15, 10). Há outras
afirmações em Lucas que recomendam o arrependimento (16, 30 e 17, 3 e segs.) e a história de
Zaqueu, que acabámos de debater, versa sobre o arrependimento.
Esta recapitulação demonstra que o arrependimento tem uma importância em Lucas que não
possui em Mateus e em Marcos. Note-se igualmente que o arrependimento tem uma
proeminência nos Atos dos Apóstolos, escritos pelo autor de Lucas, que não possui no resto do
Novo Testamento, com exceção do Apocalipse. As principais palavras gregas para «arrepender-
se» e «arrependimento» aparecem 62 vezes no Novo Testamento, 14 das quais em Lucas, 11
nos Atos dos Apóstolos e 12 no Apocalipse. No que diz respeito aos outros Evangelhos, os
números ascendem a 10 em Mateus, 3 em Marcos e O em João. Se nos perguntarmos sobre a
utilização dos termos «arrepender-se/arrependimento» no ensinamento atribuído a Jesus,
excluindo os debates sobre João Baptista e outros, os números descem: 6 em Mateus, 1 em
Marcos (o resumo do próprio Marcos) e 11 em Lucas. Se, em lugar do número de vezes que as
palavras aparecem, contarmos o número de passagens que as incluem, chegamos ao seguinte
resultado:
Mateus: João Baptista 1; Jesus 4, Judas 1
Marcos: João Baptista 1, Jesus 1, os discípulos
Lucas: João Baptista 1, Jesus 8
Uma das quatro passagens em Mateus na qual a palavra «arrepender-se» é atribuída a Jesus,
refere-se, de facto, a João Baptista: os sumos sacerdotes e os anciãos não se arrependeram
depois de terem ouvido a pregação de João (Mt 21, 22). Isto reduz ainda mais o número de
passagens que provam que Jesus chamou as pessoas ao arrependimento.
Detenhamo-nos agora no substantivo utilizado na mensagem central de Jesus - o «Reino» - em
ordem ao estabelecimento de uma comparação. A palavra aparece 55 vezes em Mateus, 20
vezes em Marcos, 46 em Lucas, 5 vezes em João, 162 vezes em todo o Novo Testamento. Em
termos estatísticos, «Reino» é a palavra mais importante em todos os três sinópticos, ao passo
que as palavras «arrepender-se/arrependimento» são significativas em Lucas, nos Atos dos
Apóstolos
289
e no Apocalipse. A explicação mais razoável é que o autor de Lucas/ Atos dos Apóstolos
gostava especialmente de sublinhar o arrependimento e que este não era um dos temas centrais
da mensagem do próprio Jesus.
Compreendo que esta afirmação parece algo estranha ao leitor, visto que todos, sejam religiosos
ou não, consideram o arrependimento um elemento central e fundamental da religião. E isto é
verdade. O arrependimento constituía um tema central no judaísmo e, mais tarde, no início do
cristianismo. Continuou a ser uma característica dominante de ambas as religiões. Por isso, é
surpreendente que o arrependimento desempenhe um papel tão reduzido no ensinamento de
Jesus, segundo Mateus e Marcos. O seu papel reduzido nestes dois Evangelhos torna-se ainda
mais notável se repararmos que ambos utilizam a palavra nos seus resumos do ensinamento de
Jesus (Mc 1, 15; Mt 4, 15). Eles não tinham qualquer interesse em desvalorizar o tema; contudo,
este tema é pouco significativo. Qual é a explicação para tal?
Não é que o arrependimento desagradasse a Jesus e que ele tivesse pensado que as pessoas
nunca deviam sentir remorsos e rezar pelo perdão. Ele era favorável a tudo isto. Pensava que as
prostitutas que se arrependeram quando ouviram a pregação de João Baptista, assim como os
habitantes de Nínive que se arrependeram depois de terem ouvido a pregação de Jonas, fizeram
bem (Mt 21, 31 e segs.; 12,41) e que as cidades da Galileia se deviam ter arrependido (Mt 11,
20 e segs.). A parábola sobre o servo que não perdoou (Mt 18, 23-35) debate os apelos à
clemência e ao perdão de forma a não deixar qualquer dúvida de que aquele que fala lhes atribui
grande valor. Não é isto que está em causa. Existem duas questões. A primeira é saber o que
desagradou aos críticos de Jesus na sua ligação com as pessoas ímpias. Se as outras pessoas
ímpias tivessem respondido como fez Zaqueu, que se arrependeu e distribuiu generosamente a
sua riqueza, qual poderia ser a acusação? Nenhuma, penso eu.
Isto leva à segunda questão: em que consistia a missão do próprio Jesus? Que objetivo tinha ele
estabelecido para si próprio? Será que o seu objetivo de vida era persuadir as pessoas más a
começarem a ser honestas ou persuadir os ricos a partilharem o seu dinheiro? Para responder a
estas questões temos de perguntar o que os Evangelhos dizem exatamente sobre a associação de
Jesus com os ímpios. Esta investigação revela que apenas Lucas apresenta histórias concretas
em que Jesus chama pessoas ao arrependimento e que só Lucas era de
290
opinião que Jesus tinha persuadido os ímpios a arrepender-se e a devolver os seus lucros obtidos
desonestamente. Isto é, o Jesus de Lucas, que levou os cobradores de impostos ao
arrependimento e à restituição, não teria irritado ninguém, pelo menos, não neste ponto. Mas,
visto que Jesus encontrou oposição por causa da sua atitude para com os pecadores, inclino-me
a pensar que Jesus não deve ser definido como um pregador do arrependimento. Jesus era
favorável ao arrependimento, mas, se o classificarmos como um tipo e descrevermos como ele
encarava a sua missão, temos de concluir que ele não era um reformador orientado para o
arrependimento.
No Novo Testamento, este título pertence claramente a João Batista. Jesus tinha consciência
daquilo que o distinguia de João Batista e comentou-o várias vezes. As prostitutas
arrependeram-se com a pregação de João - não com a de Jesus. João era um asceta; Jesus comia
e bebia. Além disso, Jesus era amigo de cobradores de impostos e de pecadores - não daqueles
que já tinham sido cobradores de impostos e pecadores, como Zaqueu, depois do seu encontro
com Jesus - mas daqueles que ainda eram cobradores de impostos e pecadores. Penso que Jesus
era bastante mais radical do que João. Jesus pensava que o apelo de João ao arrependimento
devia ter sido eficaz, mas, de facto, só o foi em parte. De qualquer modo, o seu estilo era
diferente; ele não repetiu as táticas de João Baptista. Pelo contrário, comia e bebia com os
ímpios e dizia-lhes que Deus os amava especialmente e que o Reino estava próximo. Será que
esperava que eles mudassem o seu estilo de vida? Provavelmente, sim. Mas a sua mensagem
não era «mudem agora ou serão destruídos». Esta era a mensagem de João. A mensagem de
Jesus era: «Deus ama-vos.»
A diferença entre a mensagem de Jesus e de João torna-se mais explícita na parábola da Ovelha
Perdida. Se um homem tivesse cem ovelhas e uma delas se perdesse, o homem deixaria as
noventa e nove entregues a si próprias e iria procurar a ovelha perdida (M t 18, 12-14; Lc 15, 3-
7). Segundo a versão de Mateus, a moral da história é a seguinte: «A vontade do meu Pai que
está no Céu não é que se perca um só destes pequeninos.» Lucas apresenta a declaração que já
registámos: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte do que por noventa
e nove justos que não necessitam de conversão.» A ênfase da conclusão de Mateus está de
acordo com a da própria parábola: o pastor vai à procura da ovelha perdida. A ênfase de Lucas é
diferente: a ovelha perdida tem de se decidir a regressar. Isto colide
291
com a orientação geral da parábola e é na própria parábola que encontramos a perspetiva do
próprio Jesus. O pastor é Deus: assumindo um risco bastante elevado para o rebanho (as ovelhas
não cuidam muito bem de si próprias), Deus vai à procura de uma única ovelha perdida. É certo
que Deus deseja que os pecadores voltem, mas a ênfase recai totalmente na procura de Deus,
não no arrependimento do pecador. Esta é uma parábola de boa nova sobre Deus, não uma
ilustração do valor do arrependimento.
Esta boa nova sobre Deus constitui uma mensagem potencialmente muito mais poderosa do que
uma exortação habitual a abandonar a impiedade e a começar uma vida nova. Num mundo que
acreditava em Deus e no julgamento existiam, apesar disso, algumas pessoas que viviam como
se Deus não existisse. Elas deviam sentir alguma ansiedade por causa disso nas horas sombrias
da noite. A mensagem de que Deus as amava, apesar de tudo, podia transformar a sua vida. No
entanto, tenho de me apressar a acrescentar que não sei se a mensagem de Jesus foi eficaz na
mudança efetiva de perspetiva e, por conseguinte, de vida dos ímpios da Galileia. Tal como as
mulheres que seguiram Jesus foi Jerusalém, o viram morrer e regressaram para o ungir, os
ímpios dos Evangelhos desapareceram. Nem sequer sabemos o que aconteceu a Levi, o
funcionário alfandegário que Jesus chamou. É difícil encontrar espaço para pessoas deste tipo na
igreja de Jerusalém, liderada por Tiago, o Justo (como a tradição chamava ao irmão de Jesus,
que era muito submisso à Lei). Talvez elas tenham acabado a sua vida na Galileia, esperando
que o homem que tinha feito com que se sentissem tão especiais voltasse.
Este olhar prospetivo para a situação da Igreja no seu início é muito útil para compreender
Jesus. Se ele tivesse sido um reformador da sociedade, teria tido de enfrentar o problema da
integração dos ímpios num grupo social mais justo. Nesse caso, deveriam ter existido regras
explícitas sobre os parâmetros de comportamento, bem como algum tipo de política sobre as
fontes de receitas. Não existe nada disto. Jesus não teve de lidar com problemas deste tipo, uma
vez que pensava que Deus estava prestes a mudar as condições no mundo. Ele era uma pessoa
de absolutos. Exigiu a algumas pessoas, aqueles que o seguiam de facto, que abandonassem
tudo. A outros prometeu o Reino, sem estabelecer muitas cláusulas e condições. O Reino estava
próximo; Deus pretendia incluir mesmo os ímpios. Jesus não queria que os ímpios
permanecessem ímpios até lá,
292
mas não estabeleceu um programa que permitisse a cobradores de impostos e a prostitutas
ganhar a vida de maneira menos dúbia.
Quanto à falta de planos específicos para a integração dos ímpios numa sociedade mais justa, é
de registar que não existe nenhum caso no qual Jesus exija aos ímpios que eles façam aquilo que
a Lei estipula, a fim de se tornarem justos. Já vimos estes requisitos: aqueles que tinham tirado
proveito da impiedade deviam restituir aquilo que tinham roubado, acrescentando um quinto do
valor como multa, levar um carneiro ao Templo como sacrifício de reparação, confessar o peca-
do com uma mão colocada na cabeça do carneiro, sacrificar o carneiro e alcançar, assim, o
perdão (p. ex., Lv 6, 1-7). Na história de Lucas sobre Zaqueu, o cobrador de impostos prometeu
restituir quatro vezes o valor daquilo de que se tinha apropriado injustamente, o que é mais do
que a Lei exigia, mas continua a não existir qualquer alusão a um sacrifício e a uma obtenção de
perdão no Templo.
Existem duas explicações possíveis para a ausência deste tema. Uma é que Jesus, aqueles que o
ouviam, os discípulos e todos os primeiros cristãos pressupunham, pura e simplesmente, o
sistema sacrificial. As pessoas ímpias que decidiram mudar as suas vidas, tal como Zaqueu,
sabiam que a Lei exigia um sacrifício, portanto, na visita seguinte a Jerusalém, apresentavam
um sacrifício de reparação. A segunda possibilidade é que Jesus tenha pensado e dito que os ím-
pios que o seguiam, embora não se tivessem «arrependido» no sentido técnico do termo e
embora não se tivessem tornado justos da forma exigida por lei, entrariam no Reino, aliás,
«antes» daqueles que eram justos aos olhos da Lei. Caso tenha sido esse o objetivo do
chamamento que Jesus fez a ímpios, ele teria constituído um perigo para a compreensão comum
e óbvia que os judeus tinham da Bíblia e da vontade de Deus. Considero esta segunda
possibilidade mais provável do que a primeira, visto que a atitude de Jesus para com os
pecadores foi criticada. Vemos aqui como Jesus era radical: muito mais radical do que alguém
que se limitasse a cometer pequenas infrações ao sábado e às normas relativas aos alimentos.
Ele não só era muito mais radical como também muito mais arrogante, de acordo com a opinião
comum. Jesus parece ter pensado que aqueles que o seguiam faziam parte dos eleitos de Deus,
apesar de não cumprirem aquilo que a própria Bíblia exigia. Lembremo-nos da conclusão de
uma das parábolas de Jesus: os servos do rei «saíram pelas ruas e reuniram todos aqueles que
encontraram, maus e bons; e a sala do
293
banquete encheu-se de convidados» (Mt 22, 10). Os servos não exigiram que todos os maus se
tornassem, primeiro, bons: trouxeram-nos de qualquer maneira.
Penso que esta é a explicação para o facto de a associação de Jesus com cobradores de impostos
ímpios ser ofensiva. Como a minha proposta não é aquilo de que a maioria dos leitores estará à
espera, vou repeti-la brevemente. Os Evangelhos afirmam que Jesus foi criticado por se associar
a cobradores de impostos, que eram considerados «ímpios» - pessoas que transgrediam
sistemática e habitualmente a Lei. A maioria dos intérpretes do Novo Testamento presume que a
história de Zaqueu, apresentada em Lucas, revela o objetivo de Jesus: ele queria que os
cobradores de impostos se arrependessem, restituíssem aquilo que tinham roubado,
acrescentassem um pagamento de 20 por cento como multa e abandonassem a sua prática
desonesta. Eu sugeri que isto não é correto. Primeiro, apenas Lucas apresenta Jesus como um
reformador. Segundo, ninguém teria discordado se Jesus tivesse convencido os cobradores de
impostos a abandonar o grupo dos ímpios: os outros teriam sido todos beneficiados com isso. Se
ele tivesse sido um reformador de cobradores de impostos desonestos bem sucedido não teria
sido alvo de crítica. Mas, de facto, ele era criticado por causa da sua associação com cobradores
de impostos. Isto é difícil de explicar e eu apresentei uma hipótese de explicação para a crítica
de que Jesus foi alvo: ele anunciou aos cobradores de impostos que Deus os amava e disse às
outras pessoas que os cobradores de impostos entrariam no Reino de Deus antes das pessoas
justas. Isto é, ele parece ter dito, de facto, que, se eles o aceitassem a ele e à sua mensagem,
Deus os incluiria no Reino - apesar de não se terem arrependido e emendado, tal como a Lei
exigia (restituição, 20 por cento de multa, sacrifício de reparação). Isto teria sido ofensivo sob
dois aspetos: Jesus não tentou fazer valer os mandamentos da Lei judaica que estipulam como
uma pessoa se transforma de ímpia em justa; Jesus considerava-se a si próprio como alguém que
tinha o direito de dizer quem entraria no Reino.
A reivindicação do significado da sua própria missão e autoridade constituiu, provavelmente, a
ofensa mais séria. Em rigor, a reivindicação de Jesus em relação a si próprio não era contra a
Lei. Ele não dizia às pessoas para não apresentarem sacrifícios; pelo contrário, há duas
passagens, referidas anteriormente, em que ele aprova os sacrifícios (o leproso Me 1,40-45; «vai
primeiro reconciliar-te com o teu irmão,
294
Mt 5, 23 e segs.). Embora não se opusesse à Lei, ele sugeria que o mais importante era aceitá-lo
e segui-lo. Isto poderia acabar por levar à ideia de que a Lei era desnecessária, mas parece que
Jesus não tirou, ele próprio, esta conclusão e que também não foi acusado de tal. O que
sobressai nas passagens sobre os pecadores é a convicção que Jesus tinha da importância da sua
missão.
Vemos aqui a mesma compreensão de si mesmo que é evidente nos milagres. Jesus estava
convencido de que Deus atuava direta e imediatamente através dele, não cumprindo os preceitos
acordados e sancionados biblicamente, dirigindo-se às ovelhas perdidas da casa de Israel apenas
através das palavras e dos atos de um homem - ele próprio. Esta é, pelo menos, a conclusão
mais óbvia a tirar das passagens sobre os ímpios. Esta visão de si próprio e da importância vital
da sua missão era ofensiva em termos gerais - não porque ele se tivesse oposto à obediência à
Lei, mas porque considerava a sua própria missão como algo decisivo. Se a coisa mais
importante que as pessoas podiam fazer era aceitá-lo, a importância de outras exigências era
reduzida, mesmo que Jesus não tenha dito que estas exigências não eram válidas.
295

15. A forma como Jesus encarava o seu papel no plano de Deus


Acabámos de abordar aquilo que de mais claro e, possivelmente, mais importante se pode
afirmar sobre a compreensão que Jesus tinha de si próprio e, em particular, do seu lugar no
plano de Deus para Israel e para o mundo. Ele via-se a si próprio como alguém que tinha plena
autoridade para falar e agir em nome de Deus. Os pecadores que o seguiam, mas que podiam ter
ou não voltado à Lei de Moisés, teriam um lugar no Reino de Deus. Para aqueles que não
estavam convencidos, ele era arrogante e atribuía-se a si próprio um grau de autoridade que era
completamente impróprio. Para os seus seguidores e simpatizantes, ele oferecia um caminho
imediato e direto para o amor e a misericórdia de Deus, estabelecendo uma relação que
culminaria na vinda do Reino. Jesus era um profeta carismático e autónomo; isto é, a sua
autoridade (tanto na sua perspetiva, como na dos seus seguidores) não era mediada por qualquer
instituição humana, nem sequer pela Escritura. A autoridade de um rabi ou de um doutor da Lei
derivava do estudo e da interpretação da Bíblia. Não há dúvida de que Jesus fazia ambas as
coisas, mas não era a interpretação da Escritura que lhe dava autoridade sobre as outras pessoas.
Ele não dizia aos potenciais seguidores: «Estudem comigo seis horas por semana e, dentro de
seis
297
anos, ensinar-vos-ei a interpretação correta da Lei.» Na realidade, ele dizia: «Deixem tudo o que
possuem e sigam-me, porque eu sou o instrumento de Deus.»
A reivindicação que Jesus faz para si mesmo tem dois aspetos. Um deles está relacionado com a
afirmação da sua própria autoridade, que acabámos de registar, e que também pode ser
observada em todas as passagens que contêm a exortação «sigam-me», especialmente naquelas
que sugerem que segui-lo implica custos pessoais elevados. Limito-me a apresentar uma lista
dos exemplos mais importantes:
Alguns dos seus seguidores deixaram tudo para o seguir: Mt 19, 27-29.
Aqueles que o querem seguir devem lembrar-se de que ele não tem onde reclinar a sua cabeça,
Mt 8, 19 e segs.
O homem cujo pai tinha morrido devia deixar «os mortos sepultar os seus mortos» e seguir
Jesus, M t 8, 21 e segs.
Os seguidores deviam abandonar a sua família e até as suas próprias vidas, Mt 10, 34-38; cf. Mt
16, 24-28.
O homem rico devia vender tudo aquilo que possuía e seguir Jesus, Mt 19, 16-22.
Atendamos especialmente a Mt 19, 27-29: Pedro perguntou qual seria a recompensa dos
seguidores de Jesus que tinham deixado tudo. Jesus respondeu que receberiam cem vezes mais,
que teriam por herança a vida eterna e que os Doze julgariam as doze tribos de Israel. Aqui, ele
não só reivindica autoridade no sentido de conhecer a vontade de Deus e de ter recebido poder
para chamar as pessoas a seguirem-no, fossem quais fossem os custos presentes, como também
num outro sentido, mais habitual: no Reino, os seus seguidores seriam os juízes. Isto torna-o,
presumivelmente, vice-rei: alguém que encabeça os juízes de Israel, subordinado apenas a Deus.
O segundo aspeto da reivindicação que Jesus faz para si mesmo está relacionado com a
afirmação de uma relação direta com Deus «sem mediações», no sentido estrito do termo. Ele
considera a sua relação com Deus como uma relação particularmente íntima. Tal como Geza
Vermes sublinhou, houve outros profetas carismáticos para além de Jesus que sentiram que
tinham uma relação muito íntima com Deus e nós não deveríamos enfatizar demasiadamente a
compreensão que Jesus tinha de si mesmo neste aspecto. É possível que tenham existido
298
muitas pessoas que se sentiam tão próximas de Deus como Jesus. Mas, no que a ele diz respeito,
podemos ter a certeza de que estava convencido de que tinha recebido o encargo especial de
falar em nome de Deus e de que esta convicção se baseava num sentimento de intimidade
pessoal com a divindade.

Títulos
Sabemos, substancialmente, o que Jesus pensava sobre si mesmo. Agora, queremos saber se ele
atribuiu ou não um título a si mesmo. Os autores do Novo Testamento interessavam-se por
títulos e os cristãos modernos seguiram o seu exemplo. Existem poucos temas de pesquisa que
tenham dado origem a tantas publicações científicas. Todos nós pensamos que compreendemos
uma coisa melhor se conhecermos a palavra correta para a designar, mas, neste caso específico,
esta perspetiva é, provavelmente, incorreta. A demanda do título correto - a palavra que encerra
a compreensão que Jesus tinha de si mesmo, assim como a compreensão dos primeiros
discípulos - pressupõe que estes títulos tenham sido definidos claramente e que basta descobrir-
mos a definição de cada um deles. Se o título a quer dizer x e se Jesus utilizou a para si próprio,
sabemos que ele pensava ser x. Na minha opinião, o pressuposto de base de que os títulos
possuíam definições estipuladas é errado.
Comecemos com o título que foi aplicado mais frequentemente a Jesus desde os seus dias:
«Messias» ou «Cristo». É conveniente repetir aqui a origem destas palavras. A palavra
«Messias» constitui uma transliteração aproximada da palavra hebraica meshiah ou da palavra
aramaica mashiha, palavras que significam «ungido». Em grego, a palavra meshiah traduz-se
por christos, da qual provém a palavra «Cristo». Portanto, «Messias» e «Cristo» têm o mesmo
significado. A maior parte dos autores do Novo Testamento, que escreveram em grego,
utilizavam a palavra christos, mas, por vezes, escreveram messias, mostrando, assim,
conhecimento da palavra semita subjacente. Nas cartas de Paulo, a palavra christos já tinha
começado a ser utilizada como se não se tratasse de um título, mas de uma parte do nome de
Jesus:
299
«Jesus Cristo». O nosso interesse atual concentra-se no significado do título de «Messias» na
cultura de Jesus. Que significado tinha este título para os judeus que viviam na Palestina no
século I?
Na Bíblia Hebraica havia três grupos de pessoas que eram ungidas: os profetas, os sacerdotes e
os reis. A tradição cristã fixou-se cedo no terceiro destes grupos como indício para a identidade
de Jesus: ele era descendente do rei David e era o Messias da casa de David - descendente
carnal de David, escolhido por Deus (<<ungido» espiritualmente) para desempenhar uma tarefa
semelhante à de David. Os investigadores do Novo Testamento aceitaram a definição de «Mes-
sias» como referência a um Messias real, um segundo David. Esta definição levaria as pessoas
que a aceitam a pensar que Jesus pretendia reunir um exército e expulsar os inimigos de Israel.
Como ele não fez nada disso, os investigadores tiveram de especular sobre o motivo que levou
os seus discípulos a chamarem-lhe «Messias». Mas será que a definição do Messias davídico
como um rei guerreiro é correta? Vimos anteriormente que existem duas fontes judaicas
inquestionavelmente pré-cristãs que são relevantes para a compreensão do conceito de
«Messias», especialmente do conceito de «Messias davídico» (pp. 122 e segs.). Repetirei
brevemente o que está em causa. Nos Salmos de Salomão 17, um filho de David é descrito
como alguém que purifica Jerusalém dos gentios e dos judeus perversos. Ele monta um cavalo,
pelo que parece um líder militar. Contudo, não são as suas tropas que cumprem a tarefa, mas
sim o próprio Deus. Aqui temos um filho de David que age, em alguns aspetos, como David.
Contudo, a conceção mudou: não haverá qualquer combate real.
A segunda fonte que lança luz sobre o título de «Messias» consiste na biblioteca encontrada
perto das margens do mar Morto. Em alguns destes documentos existem dois Messias: um que é
filho de David e outro que é filho de Aarão, o primeiro sumo sacerdote. O segundo, o Messias
sacerdotal, lidera. O outro Messias não faz nada. Haverá uma grande guerra (de acordo com um
dos Rolos), mas os Messias não participam nela.
300
Não podemos ler estes textos e, depois, afirmar que sabemos o que o título de «Messias»
significa e, por conseguinte, o que os primeiros cristãos tinham em mente quando chamavam
«Messias» ou «Cristo» a Jesus. Mesmo a expressão «filho de David» permanece um pouco
vaga. Talvez ela aponte mais claramente para um líder militar e político do que o título de
«Messias», mas os Rolos do Mar Morto mostram que ela não exige esta definição. Tudo o que
podemos saber realmente, quando vemos a palavra «Messias», é que a pessoa à qual este título
era aplicado era considerada como o «ungido» de Deus, ungido para alguma tarefa especial.
Os autores dos Evangelhos e outros cristãos, tanto antes como depois deles, pensavam que Jesus
era o Messias - isto é, que ele era uma espécie de Messias. No entanto, as passagens nos
Evangelhos sinópticos tornam duvidoso que Jesus aplicasse este termo a si próprio. Em
Cesareia de Filipe, em resposta à pergunta de Jesus: «Quem dizem os homens que Eu sou», os
discípulos responderam: «João Baptista, outros, Elias, e outros, que és um dos profetas.» Jesus
insistiu: «E vós, quem dizeis que Eu sou?»: e Pedro respondeu: «Tu és o Messias» (em grego,
christos). Jesus ordenou-lhes «que não dissessem a ninguém» (Mc 8, 27-.'30), possivelmente,
para evitar problemas ou porque não concordava completamente com a correção do título.
Depois, continuou a falar de si próprio como o Filho do Homem (8, .'31).
Quando Jesus entrou em Jerusalém para a sua última festa da Páscoa, montando um jumento,
algumas pessoas gritaram: «Hossana! Bendito aquele que vem em nome do Senhor! Bendito é o
Reino do nosso pai David que está a chegar!» (Me 11,9 e segs.). De acordo com Mateus, a
multidão saudava Jesus como «Filho de David» (21, 9), segundo Lucas, como «o Rei» (19,
.'38). Esta passagem não oferece comprovação suficiente para dizer o que a multidão pensava,
nem podemos saber como Jesus encarava estas aclamações. No entanto, se Jesus decidiu
deliberadamente entrar em Jerusalém montado num jumento, para «cumprir» a profecia de
Zacarias 9,9 («o teu rei vem ... sobre um jumentinho»), sabemos que ele não considerava o
título de «rei» completamente inadequado." Mas a palavra não tem de desencadear
necessariamente toda a série de características que os investigadores imaginam estar associadas
aos termos de «Messias» e «Filho de
301
David». Pelo contrário, havia muitos judeus que não desejavam um rei do tipo militarista (ver p.
66). Não é, de modo algum, inimaginável que a entrada de Jesus sobre um jumento tivesse
constituído um sinal deliberado: «"rei", sim, de certo modo, mas não um conquistador militar».
Quando Jesus foi julgado perante o sumo sacerdote, este interrogou-o: «És o Messias [christos],
o Filho do Bendito?» (Mc 14, 61 & par.). De acordo com Marcos, ele respondeu que «sim», de
acordo com Lucas, fugiu à questão, enquanto, segundo Mateus, ele disse, efectivamente: «não»
(Mc 14, 62; Lc 22, 67 e segs.; Mt 26, 64).4 Jesus referese, de novo, imediatamente ao Filho do
Homem (Mc 14, 62 & par.)
Por conseguinte, não existe qualquer certeza de que Jesus se considerasse a si próprio como
portador do título de «Messias». Pelo contrário, é improvável que o tivesse feito: apesar de
todos os evangelistas considerarem Jesus como o Messias, não podem citar muitas provas
diretas; Marcos é o único que tem um «sim» em resposta a uma pergunta direta sobre o título.
Pedro, que talvez pensasse mais em termos de um Messias mundano do que o próprio Jesus,
recebeu esta repreensão: «Vai-te da minha frente, Satanás!» (Mc 8, 33). Jesus conheceu a
tentação do sucesso mundano (M t 4, 1-11), mas voltou a rejeitar a oferta de Satanás.
Na realidade, a verdadeira pretensão de Jesus pode ter sido mais elevada: não só o porta-voz de
Deus, mas o Seu vice-rei e isto não só num reino político, mas no Reino de Deus. Isto infere-se
da reivindicação implícita que Jesus faz para si mesmo discutida anteriormente e não porque ele
próprio tivesse atribuído a si próprio um título explícito.
Visto que a questão do significado do termo «Messias», quando aplicado a Jesus, é complexa,
enumerarei os pontos principais, a título de resumo: 1) A literatura judaica anterior ou
contemporânea a Jesus não oferece uma definição única da palavra «Messias». 2) É provável
que Jesus não considerasse o título de «Messias» como o melhor para descrever aquilo que ele
era. 3) No entanto, depois da morte e ressurreição de Jesus, os seus discípulos decidiram que
este título, um dos mais honoríficos que podiam imaginar, lhe pertencia. 4) Este título
correspondia, num sentido muito geral, à compreensão que Jesus tinha de si mesmo: ele seria o
líder no Reino que estava prestes a chegar. 5) No entanto, os discípulos também podiam
lembrar-se de que ele tinha
302
rejeitado a ambição que Pedro tinha para ele, e que, mais tarde, três deles (Pedro, Tiago e João)
tiveram uma visão na qual viam Jesus glorificado juntamente com Moisés e Elias (Mc 9, 2-13).
Segundo a Bíblia, Elias tinha sido levado em corpo para o Céu e a tradição judaica concedia
frequentemente a mesma honra a Moisés. A presença de Jesus com Elias e Moisés, na visão dos
discípulos, atesta o seu estatuto verdadeiramente elevado - mais uma vez, exatamente o estatuto
de «Filho de David» ou de «Messias». Tanto Elias como Moisés eram «profetas». 6) Por fim, os
primeiros cristãos mantiveram o título de «Messias», mas redefiniram-no de acordo com a sua
própria experiência: Jesus tornou-se para eles um novo tipo de Messias, um Messias que tinha
agido como operador de milagres e como profeta, durante a sua vida, mas que também era o
Senhor do Céu que regressaria no fim. Esta definição de Messias - profeta, operador de milagres
e Senhor do Céu - é uma definição post factum: os primeiros cristãos viam-no desta maneira e
também lhe chamavam «Messias». Tanto quanto sabemos, o termo «Messias» nunca tinha sido
definido assim anteriormente.
O título de «Filho de Deus» ainda é mais vago do que o de «Messias». Graças às narrativas
sobre o nascimento de Mateus e Lucas, os leitores modernos pensam frequentemente que «Filho
de Deus» significa «um varão concebido sem esperma humano» ou até «um varão semi-humano
e semidivino, gerado quando deus fertilizou um óvulo humano, sem esperma». Quando
discutimos os milagres (pp. 205-208), vimos que esta ideia era perfeitamente compatível com o
mundo de língua grega. Contava-se uma história semelhante sobre Alexandre Magno: ele era
filho de Zeus. A sua mãe foi atingida por um raio, antes de ter consumado o seu casamento com
Filipe da Macedónia, pelo que Alexandre era um filho híbrido." Tanto quanto sabemos, nenhum
judeu da Antiguidade utilizava a expressão «Filho de Deus» neste sentido tão grosseiramente
literal. A utilização judaica comum era genérica: os judeus eram todos «filhos de Deus» (neste
caso, o masculino incluía o feminino). A utilização do singular «Filho de Deus» para se referir a
uma pessoa específica teria sido surpreendente, mas não teria levado os ouvintes a pensar numa
forma de conceção não natural e
303
numa descendência híbrida. Tal como observámos no capítulo 10, o título podia sugerir uma
posição especial diante de Deus e um poder fora do comum para fazer o bem.
É difícil dizer com precisão aquilo que os autores do Novo Testamento queriam dizer com o
título de «Filho de Deus», embora dispúnhamos dos seus escritos e possamos estudá-los.
Mateus e Lucas, que têm histórias da conceição de Maria através do Espírito Santo (Mt 1, 20,
Lc 1, 34) traçam igualmente a genealogia de Jesus através de José, marido de Maria (Mt 1, 16;
Lc 3, 23). Os Evangelhos possuem outras formas de definir Jesus como Filho de Deus, para
além das histórias da sua conceição e do seu nascimento. Na história do batismo de Jesus, uma
pomba desce sobre ele e uma voz do céu dirige-se a Jesus: «Tu és o meu Filho muito amado»
(Mc 1, 11 / / Lc 3, 22).6 Trata-se de uma citação do Salmo 2, 7, onde «Filho de Deus» se aplica
ao rei de Israel - que era um ser humano comum. Parece que, em Marcos, a expressão «Tu és o
meu Filho» é entendida como uma declaração de adoção; Deus concedeu a Jesus um estatuto
especial quando ele foi batizado. De acordo com uma passagem nas cartas de Paulo, Jesus foi
«designado» ou «declarado» Filho de Deus em poder pela sua ressurreição, não no momento da
sua conceição (Rm 1,4). O facto de, na opinião de Paulo, «Filho de Deus» não se referir ao
modo como Jesus foi concebido também é indicado nas passagens em que Paulo diz que os
cristãos se tornam filhos de Deus.
Pois todos os que se deixam guiar pelo Espirito são filhos de Deus. Pois vós não recebestes um
espírito que vos escravize ... ; mas recebestes um espírito de adoção. Quando clamamos: «Abbâ!
Pai!» é esse mesmo espirito que dá testemunho de que somos filhos de Deus. Ora, se somos
filhos de Deus, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo,
pressupondo que com Ele sofremos, para também com Ele sermos glorificados. (Rm 8, 14-17;
cf. GI 4, 4-7)
Esta é outra passagem que mostra a definição de filiação como uma adoção. Paulo não escreveu
que os cristãos eram gerados através de um substituto divino do esperma, mas sim que eram
adotados, tornando-se, assim, irmãos de Cristo e seus co-herdeiros - e Jesus tinha
304
sido declarado Filho, não gerado literalmente por Deus. Numa outra passagem, Paulo escreveu
que as pessoas que têm fé são filhas de Deus (GI 3, 26). Na correspondência que chegou até
nós, Paulo não chama a ninguém «Filho de Deus» no singular, exceto a Jesus, mas não existe
nenhuma sugestão nas suas cartas de que ele pensasse que o título, quando aplicado a Jesus,
significava que ele fosse apenas semi-humano. O título também não exige uma história de
conceição milagrosa. Jesus era o Filho de Deus, mas os outros podem tornar-se filhos de Deus.
O próprio Jesus era de opinião que as pessoas podem tornar-se filhos de Deus: ele disse aos seus
seguidores que, se amassem os seus inimigos, tornar-se-iam «filhos de Deus».
Os primeiros cristãos, depois, utilizaram o título de «Filho de Deus» para designar Jesus, mas
não pensavam que ele fosse um ser híbrido - semidivino e semi-humano. Eles consideravam o
título «Filho de Deus» uma designação elevada, mas não podemos ir muito para além disso.
Quando os gentios convertidos começaram a aderir ao novo movimento, é possível que tenham
entendido o título à luz das histórias sobre Alexandre Magno ou da sua própria mitologia: Zeus
assumiu a forma de um cisne, teve relações com Leda e gerou Helena e Polideuses. No entanto,
os primeiros seguidores de Jesus, quando começaram a chamar-lhe «Filho de Deus», tinham em
mente algo mais vago: uma pessoa que tinha uma relação especial com Deus, que a escolheu
para cumprir uma tarefa de grande importância.
Se falei tanto sobre a ideia de Jesus ser um híbrido é porque há muitas pessoas - tanto cristãos
como não cristãos - que pensam que é esta a fé dos cristãos. Mateus e Lucas, nas suas narrativas
sobre o nascimento, semeiam as sementes desta perspetiva, mas nem estes relatos presumem de
uma forma sistemática que Deus fosse diretamente pai de Jesus, uma vez que as genealogias
apresentam Jesus como descendente de David, através de José (Mt, 1,2-16; Lc 3, 23-38). De
qualquer modo, as narrativas de nascimento não configuram a ideia que os primeiros cristãos
tinham sobre Jesus como «Filho de Deus»; no resto da literatura do início do cristianismo -
incluindo o resto do material de Mateus e de Lucas - o título não é tão literal. Jesus é um «Filho
de Deus» especial que vive numa nação de «Filhos de Deus». Devo também recordar ao leitor
um ponto mencionado anteriormente: os credos cristãos, quando os Padres da Igreja procuraram
definir o conceito de «Filho de Deus», são 100 por cento contra a definição «meio/meio». Em
termos de credo, isto é uma heresia.
305
Os Evangelhos sinópticos aplicam a Jesus o título «Filho de Deus» em alguns outros contextos,
para além das narrativas sobre o nascimento. Alguns deles já foram referidos, mas por uma
questão de conveniência e de clareza, reunirei aqui as passagens mais importantes: (1) a voz do
Céu chama «Filho» a Jesus durante o batismo deste (Mc 1, 11 e par.), declaração que se repete
na história da transfiguração (Mc 9, 7 e par.); (2) os demónios chamam-lhe «Filho de Deus»
(Me 3, 11; Lc 4, 41 e outras passagens); (3) nas histórias das tentações em Mateus e Lucas, o
diabo dirige-se a Jesus como o possível Filho de Deus («se tu és o Filho de Deus» Mt 4, 3-7 / /
Lc 4, 3-9); (4) durante o processo de Jesus, o sumo sacerdote pergunta-lhe se ele é Filho de
Deus (Mc 14, 61 e par.); (5) o centurião que assistiu à morte de Jesus confessa que ele era Filho
de Deus (Me 15, 39 / / Mt 27, 54). A única passagem que pode ter um significado «metafísico»
- isto é, que poderia afirmar que Jesus era algo mais do que puramente humano - é a da pergunta
durante o processo, visto que, depois dela, quando Jesus não nega o título, o sumo sacerdote
exclama que se trata de uma «blasfémia». Retomaremos esta passagem no próximo capítulo. No
que diz respeito às outras passagens, podemos ver que o título significa que Jesus tinha um
estatuto especial e o poder para exorcizar; isto não significa que ele não fosse completamente
humano. Além disso, apenas podemos perguntar o que tinham os outros em mente quando
utilizavam este título para designar Jesus, visto que ele nunca se chamou a si próprio «Filho de
Deus (exceto na cena do processo apresentada por Marcos, que vamos debater no próximo
capítulo).
O terceiro título que desempenha um papel importante nos Evangelhos sinópticos é o de Filho
do Homem. Na Escritura judaica, esta expressão tem vários significados. Em Ezequiel, «Filho
do Homem» é simplesmente um título que o profeta atribui a si próprio: Deus fala-lhe como
«Filho do Homem» que a NRSV traduz, muito apropriadamente, por mortal» (p. ex., Ez 12, 2).
Em Daniel, a expressão «um como Filho do Homem» refere-se à nação de Israel ou, talvez, aos
seus representantes angélicos. Nas visões desta parte do Livro de Daniel, os outros reinos do
mundo são representados por animais fantásticos; Israel, pelo contrário, é representado através
de uma figura semelhante a um ser humano (Dn 7, 1-14). Numa das partes que constitui a obra
pseudoepigráfica do I Enoch, o Filho do Homem é uma figura celeste
306
que julga o mundo (p. ex., I Enoch, capítulos 46, 48 e 69, 26-29). No entanto, não é possível
provar que esta parte do livro é pré-cristã. Por conseguinte, não podemos afirmar que a
escatologia judaica já tivesse estabelecido a ideia de que uma figura celeste chamada «o Filho
do Homem» iria julgar a humanidade no fim da história comum, embora isto seja possível.
O título «Filho do Homem» é utilizado nos Evangelhos fundamentalmente em três sentidos:
1. Por vezes, constitui uma circunlocução para «uma pessoa» ou para o próprio orador, tendo o
significado de «eu»: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. O Filho
do Homem é Senhor até do sábado» (Mc 2, 28). Aqui, a expressão poderia significar «eu
próprio», mas é mais provável que constitua simplesmente um paralelo com a expressão
«humanos» na frase anterior, significando, portanto, que «um ser humano é senhor do sábado».
Há outros casos, no entanto, em que «Filho do Homem» significa certamente o próprio Jesus:
ele disse àqueles que o queriam seguir que «as raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos;
mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça» (Mt 8, 20 / / Lc 9, 58). Isto é um aviso
da dificuldade que espera aqueles que seguem Jesus.
2. Quando Jesus anuncia a sua própria morte, fala do «Filho do Homem»: «Começou, depois, a
ensinar-lhes que o Filho do Homem tinha de sofrer muito» (Mc 8, g 1). Nestas passagens, a
expressão também significa «eu».
3. A pessoa que virá do céu e que precede o Reino de Deus é chamada «Filho do Homem».
Vimos anteriormente que Paulo esperava que «o Senhor» descesse do Céu «à ordem dada, à voz
do arcanjo e ao som da trombeta de Deus» (1 Ts 4, 16). Ele diz que esta profecia é «palavra do
Senhor» (4, 15). Os sinópticos atribuem afirmações semelhantes a Jesus, mas, em vez de «o
Senhor», falam do «Filho do Homem». Os paralelos mais evidentes com as afirmações de Paulo
307
encontram-se em Mateus". «o Filho do Homem há-de vir na glória de seu Pai, com os seus
anjos» (16, 27); o «sinal do Filho do Homem» aparecerá no céu e todos os povos verão «o Filho
do Homem vir sobre as nuvens do céu, com grande poder e glória, e ele enviará os seus anjos,
com uma trombeta altissonante» (43, 50 e segs.). Tal como Paulo, Jesus esperava que isto
acontecesse em breve: «Em verdade vos digo: alguns dos que estão aqui presentes não hão-de
experimentar a morte, antes de terem visto chegar o Filho do Homem no seu Reino» (Mt 16, 28
/ / Mc 8, 38 / / Lc 9, 26). Parece que a afirmação de Jesus - «o Filho do Homem virá do céu» -
em Paulo, se transformou na expressão: «o Senhor virá do céu». Com «Senhor», Paulo quer
dizer Jesus: esta é uma profecia da «segunda vinda», quando o Senhor ressuscitado voltará. No
entanto, é menos certo o que Jesus tinha em mente quando profetizava a vinda do «Filho do
Homem».
Pressupúnhamos que estes três grupos principais são palavras autênticas de Jesus." O que não é
certo é se Jesus se referia ou não a si próprio quando falava do Filho do Homem futuro. Note-se
que nenhum dos dois significados aparece simultaneamente. Não encontramos a afirmação de
que «o Filho do Homem tem de sofrer e morrer e regressar», assim como não é claro que
tenhamos de combinar o grupo 2 com o grupo 3. Além disso, durante o seu processo, Jesus
parece ter feito uma distinção entre si próprio e o Filho do Homem futuro.
o Sumo Sacerdote disse-lhe: «Intimo-te, pelo Deus vivo, que nos digas se és o Cristo, o Filho de
Deus.» Jesus respondeu-lhe: «Tu o disseste. Mas Eu digo-vos: Vereis um dia o Filho do Homem
sentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.» (Mt 26, 63 e segs.)
A palavra «mas» (plen, em grego) é adversativa: «mas, por outro lado», e, por conseguinte,
segundo Mateus, Jesus afirmou que esperava uma figura celeste e não o seu próprio regresso.
Marcos combina os
308
títulos: Jesus aceita as designações de «Messias» e de «Filho de Deus» e acrescenta que o Filho
do Homem virá sobre as nuvens (Mc 14, 61 e segs.).
É impossível chegar a uma conclusão segura sobre a utilização que Jesus fez da expressão
«Filho do Homem». Ele utilizou-a; por vezes, aplicou-a a si próprio; ele esperava que o Filho do
Homem viesse do céu; mas não é certo que se identificasse a si próprio com o Filho do Homem
futuro.
Visto que os títulos atribuídos a Jesus suscitavam sempre tanto interesse, quis apresentar um
esboço dos vários significados possíveis e da sua utilização nos Evangelhos sinópticos.
Pretendo, no entanto, voltar ao tema principal. Não ficamos a saber com exatidão o que Jesus
pensava sobre si próprio e qual era a sua relação com Deus através do estudo dos títulos.
Existem três razões para tal. A primeira é que, no judaísmo do tempo de Jesus, não existiam
definições claras de «Messias», «Filho de Deus» ou «Filho do Homem». Mesmo que ele tivesse
atribuído constantemente a si mesmo estes três títulos, só podemos ficar a saber o que ele
pensava sobre si próprio se estudarmos a sua pessoa - não estudando os títulos em outras fontes.
A segunda razão é que não sabemos se ele se atribuiu os títulos a si próprio. É evidente que ele
rejeitava o título de «Messias». Tanto quanto sabemos, não se apelidava a si próprio de «Filho
de Deus». Referiu-se a si próprio como «Filho do Homem», mas não sabemos em que sentido.
Sobretudo, não sabemos se ele pensava que seria o Filho do Homem futuro que virá sobre as
nuvens.
O terceiro motivo pelo qual o estudo dos títulos não nos diz nada sobre o que Jesus pensava
sobre si próprio está relacionado com o facto de dispormos de informações melhores. Jesus
pensava que os doze discípulos representavam as tribos de Israel, mas também que iriam julgá-
las. Jesus estava claramente acima dos discípulos; uma pessoa que está acima dos juízes de
Israel está, de facto, numa posição muito elevada. Sabemos igualmente que ele considerava a
sua missão como sendo algo de absoluta importância e que estava convencido de que a forma
como as pessoas respondiam à sua mensagem era mais importante do que outras obrigações
importantes. Ele pensava que Deus estava prestes a trazer o Seu Reino e que ele, Jesus, era o
último enviado de Deus. Por isso, pensava que era, de certa maneira, «rei». Entrou em
Jerusalém montado num burro, evocando uma profecia
309
sobre o rei montado num burro, e foi executado por ter reivindicado ser «rei dos judeus» (ver o
próximo capítulo). Não existia nenhum título na história do judaísmo que transmitisse tudo isto
plenamente e Jesus parece ter tido bastante relutância em adotar um título para si próprio. Penso
que nem «rei» é um título completamente correto, visto que Jesus considerava Deus como rei.
Eu próprio prefiro o título de «vice-rei» para a compreensão que Jesus tinha de si mesmo. Deus
era rei, mas Jesus representava-O e iria representá-Lo no Reino futuro.
310

16. A última semana de Jesus


Por volta do ano 30 e.c., Jesus, os seus discípulos e outros seguidores foram para Jerusalém,
para a festa da Páscoa. Em rigor, havia duas festas distintas: a Páscoa, que só durava um dia, e a
Festa dos Pães Ázimos, que durava os sete dias seguintes. A Páscoa festeja-se no décimo quarto
dia do mês judaico de Nisan e a Festa dos Pães Ázimos decorre entre o dia 15 de Nisan e o dia
21. Tratava-se, em termos práticos, de uma longa festa e os judeus designavam frequentemente
todo o período de oito dias como a «Páscoa» ou a «Festa dos Pães Ázimos». A Páscoa (como
lhe chamarei) é uma «festa de peregrinação», uma das três nas quais todos os judeus do sexo
masculino deviam participar todos os anos." A diáspora dos judeus, tanto dentro
311
como fora da Palestina, tornou isto impossível, mas, mesmo assim, havia muitas pessoas que
participavam em todas as festas mais importantes, e a Páscoa era a mais popular. Embora a
Bíblia exija a participação apenas dos homens, estes traziam consigo as suas mulheres e os seus
filhos (Antiguidades 11, 109). Era a maior festa do ano. As cidades ficavam vazias quando as
pessoas afluíam a Jerusalém.
Josefo refere um número incrivelmente elevado de pessoas. Diz que houve uma Páscoa em que
os sacerdotes contaram os cordeiros e verificaram que tinham sido sacrificados 255 600. Se um
cordeiro era suficiente para dez pessoas (segundo os cálculos de Josefo), tinham participado na
festa mais de dois milhões e meio das pessoas. Ao falar de uma outra Páscoa, Josefo calcula que
estiveram presentes três milhões de pessoas. Todos concordam que estes números são
exagerados. Segundo o meu cálculo, a cidade e a área do Templo podiam albergar cerca de 300
000 a 400 000 peregrinos, o que é um número mais razoável. Alguns dos peregrinos ficavam em
casas de família, em Jerusalém, e alguns ficavam nas aldeias próximas da cidade (Mc 11, 12),
mas muitos deles acampavam fora dos muros da cidade (Antiguidades 17, 217). A presença de
grandes multidões significava que as festas constituíam, por vezes, ocasião para agitações
populares. Por isso, o prefeito vinha para Jerusalém, com um reforço militar. Os soldados
romanos patrulhavam os telhados dos pórticos do Templo para poderem observar se havia
problemas.
A maioria dos peregrinos tinha de vir uma semana antes. A Bíblia proíbe a celebração da Páscoa
a quem ficou impuro por causa de ter entrado em contacto com um cadáver (Nm 9, 9 e segs.) e a
maior parte das pessoas adquiria esta impureza ao longo do ano. Bastava estar no mesmo
compartimento em que estivesse um cadáver, tocar-lhe ou passar por cima de um túmulo. Os
cortejos fúnebres e os enterros constituíam ocasiões em que não só familiares e amigos se
juntavam à família do morto, mas também conhecidos mais distantes e, por vezes, até estranhos.
Preparar o morto e confortar aqueles que tinham perdido
312
os seus entes queridos era uma obrigação religiosa e eram poucos aqueles que não a cumpriam.
Numa aldeia ou numa cidade pequena, um caso de morte significava, provavelmente, que a
maioria dos residentes ficava impura. A eliminação deste tipo de impureza demorava uma
semana (Nm 19). No terceiro e no sétimo dia do período de purificação, a pessoa impura era
aspergida com uma mistura de água e cinzas de uma bezerra vermelha. Depois da segunda
aspersão, a pessoa impura tinha de tomar banho e de lavar a sua roupa. Depois ficava pura. É
possível que os sacerdotes levassem uma porção desta mistura especial às cidades e aldeias nas
imediações de Jerusalém, mas a maior parte dos peregrinos tinha de ser purificada em
Jerusalém, pelo que tinha de vir uma semana antes do início da festa. Filo debate o valor
religioso desta preparação, da qual, ao que parece, tinha experiência,? e Josefo refere-se ao facto
de os peregrinos se reunirem para a Festa dos Pães Ázimos no dia 8 de Nisan.
Portanto, os peregrinos ficavam uma semana à espera perto do Templo e preparavam-se
espiritualmente, enquanto os seus corpos eram purificados. Na tarde do dia 14 de Nisan, um
membro de cada grupo levava um cordeiro" ao Templo, onde este era sacrificado, esfolado e
parcialmente esventrado. O proprietário trazia-o de volta. Depois, o animal era assado na
íntegra. A ceia pascal decorria nessa noite. Como o dia dos judeus acaba ao pôr-do-sol, a ceia
realizava-se no dia 15, o primeiro dia da Festa dos Pães Ázimos. No ano da morte de Jesus, os
cordeiros foram sacrificados na quinta-feira, dia 14, e a ceia realizou-se nessa noite, segundo a
contagem judaica, no dia seguinte, na sexta-feira.
No dia 8 de Nisan, Jesus e os seus seguidores entraram em Jerusalém, juntamente com uma
multidão enorme. 11 Atentemos, antes de mais,
313
naquilo que não se encontra nos Evangelhos: eles não dizem que Jesus e os seus seguidores
cumpriram os atos religiosos fundamentais que marcavam a preparação para a Páscoa, isto é,
não foram aspergidos no dia 10 e 14 de Nisan e não levaram um cordeiro ao Templo no dia 14.
Os Evangelhos dizem que foram abatidos cordeiros no primeiro dia da festa (Me 14, 12 & par.),
mas não dizem se Jesus ou um dos seus seguidores se juntou à multidão, sacrificando um
cordeiro. Em vez disso, os Evangelhos contam uma história estranha relacionada com a
preparação para a ceia: Jesus disse aos discípulos para eles irem a Jerusalém, onde encontrariam
um homem transportando um cântaro de água. Eles deviam seguir o homem e ver em que casa
ele entraria. Depois, deviam dizer ao dono da casa que «o mestre» utilizaria a sala do andar de
cima para a sua ceia pascal. De seguida, segundo os relatos dos Evangelhos, os discípulos
«prepararam a Páscoa» (Mc 14, 12-16 & par.). A expressão «prepararam a Páscoa» talvez
queira dizer que «compraram um cordeiro, mataram-no no Templo e o enfiaram-no num espeto
para assar». Do mesmo modo, se entre os dias 8 e 14 de Nisan, Jesus é apresentado a ensinar
perto do Templo, podemos imaginar que ele e os discípulos também foram aspergidos com a
mistura purificadora. Mas não existe uma referência explícita à purificação, nem ao sacrifício.
Não podemos ter a certeza do significado exato deste silêncio. Penso que é altamente provável
que Jesus e os seus seguidores estivessem purificados e que um dos discípulos tenha levado um
cordeiro para ser abatido no Templo. Os leitores dos Evangelhos sabiam que os animais eram
sacrificados em festas, como também sabiam que as festas e os sacrifícios incluíam a
purificação. Tal constituía uma parte essencial da vida na Antiguidade: judeus, gregos, sírios,
romanos e outros habitantes do Império Romano, todos eles participavam em rituais deste tipo.
Apenas os pormenores eram diferentes. Por conseguinte, o facto de não existir a afirmação de
que Jesus e os seus seguidores fizeram aquilo que todos faziam não tem, provavelmente,
significado. Se eles não tivessem observado as leis e as tradições, tal teria sido notado, mas a
observação das mesmas não teria dado origem a qualquer comentário. Josefo, por exemplo, que
confirma que os judeus vinham para Jerusalém uma semana antes da Páscoa, não diz o que eles
faziam durante esses dias (Guerra 6, 290). O que eles faziam de facto não era importante para o
objetivo da sua narrativa; todos o sabiam muito bem. Outras fontes, começando pelo Livro dos
Números 19 e incluindo Filo e a literatura rabínica, revelam as especificidades dos rituais de
purificação.
314
No que diz respeito à questão de saber se Jesus foi purificado, devemos lembrar-nos, mais uma
vez, de que os Evangelhos mencionam uma lei relativa à pureza: aquela que se refere à lepra.
Depois de Jesus ter curado o leproso, disse ao homem para ele se mostrar a um sacerdote e fazer
aquilo que tinha sido estabelecido por Moisés (Mc 1,44 & par.). Acrescente-se a isto o facto de
os Evangelhos sinópticos não revelarem um único exemplo no qual Jesus tivesse transgredido
realmente a Lei ou em que tivesse aconselhado outros a fazê-lo. Tudo isto torna altamente
provável que Jesus e os seus seguidores estivessem purificados e tivessem comido um cordeiro
sacrificado no Templo.
Consideremos agora aquilo que os Evangelhos nos dizem positivamente sobre a última semana
de Jesus. Passarei rapidamente por alto sobre uma grande quantidade de material que se
encontra nos últimos capítulos dos sinópticos. Os autores situam em Jerusalém uma grande
quantidade de material de ensinamento, o que, em termos globais, é muito apropriado.
Encontramos aqui uma questão sobre o pagamento de impostos a César (Mc 12, 13-17 & par.),
uma questão muito mais apropriada para Jerusalém do que para a Galileia, visto que, na Judeia,
o dinheiro e os bens iam diretamente para as mãos dos romanos, enquanto na Galileia os
impostos eram pagos a Antipas, que, por seu turno, pagava tributo a Roma. A tributação direta
era mais desagradável do que o tributo indireto. Também é nestes capítulos que encontramos os
saduceus (Mc 12, 18-27 & par.). O partido dos saduceus era um partido aristocrático e havia
poucos - se é que existiam sequer alguns - saduceus nas aldeias da Galileia. Passo por alto este
material de ensinamento não porque o considere duvidoso, mas para chegar ao cerne da questão:
o que fez Jesus para ter sido crucificado.
As cinco cenas principais que compõem o drama da última semana de Jesus são as seguintes:
1. Jesus entrou em Jerusalém sentado num jumento; as pessoas receberam-no exclamando:
«Hossana! Bendito seja o que vem em nome do Senhor! Bendito o Reino do nosso pai David
que está a chegar» (Mc 11,9 e segs.). Segundo Mateus e Lucas, as pessoas chamaram-lhe
explicitamente «Filho de David» ou «rei» (Mt 21, 9; Lc 19,38).
2. Foi ao Templo, onde derrubou as mesas dos cambistas e os bancos daqueles que vendiam
pombas (Mc 11, 15-19 & par.).
315
3. Partilhou uma última ceia com os seus discípulos, dizendo que não voltaria a beber vinho
«até ao dia em que o beber, novamente, no Reino de Deus» (Me 14, 22-25 & par.),
4. Os guardas do sumo sacerdote prenderam-no e levaram-no ao sumo sacerdote e ao seu
conselho. As testemunhas acusaram-no de ter ameaçado destruir o Templo, mas ele não foi
condenado. Segundo Marcos (mas não Mateus e Lucas), ele admitiu perante o sumo sacerdote
que era tanto o «Cristo» (<<Messias») como «Filho de Deus» e foi acusado de blasfémia (Me
14,43-64; cf par.).
5. Aqueles que o prenderam enviaram-no a Pilatos que o interrogou e, depois, ordenou a sua
crucificação, por ter declarado ser «rei dos judeus» (Mc 15, 1-5.18.26 & par.).
Estes cinco incidentes colocam quatro questões centrais. Qual foi o significado das ações de
Jesus (1-3)? Por que razão mandou o sumo sacerdote prender Jesus (4)? Por que razão o
mandou a Pilatos (5)? Por que razão mandou Pilatos executar Jesus (5)?
Ações de Jesus
Qual foi o significado das ações de Jesus? Provavelmente, elas foram todas simbólicas. As
ações simbólicas faziam parte de um vocabulário profético. Elas atraíam a atenção,
transmitindo, simultaneamente, uma informação. Alguns exemplos da Bíblica Hebraica: Isaías
andou «nu e descalço três anos, como sinal de presságio contra o Egipto e a Etiópia» (Is 20, 3);
Deus mandou Jeremias quebrar uma bilha e proclamar que o Templo seria destruído (Jr 19, 1-
13); Jeremias também trazia um jugo, para indicar que Judá seria submetido à Babilónia
(capítulos 27-28). Ezequiel levou a cabo ações muito mais complicadas, que exigiam
explicações muito maiores, como, por exemplo, ficar deitado durante muito tempo para um lado
e, depois, para o outro (Ez capo 4-5; 12, 1-16; 24, 15-24). Estes sinais seriam todos difíceis de
compreender sem uma interpretação verbal. Carregar um jugo simboliza submissão, mas a
quem? Partir uma bilha simboliza destruição, mas uma destruição de quê? Andar nu e descalço
é, certamente, algo que desperta grande atenção e todos saberiam que o profeta estava a
protestar contra alguma coisa, mas teriam de lhe perguntar contra o quê, para terem a certeza.
316
Jesus também recorria a ações simbólicas, como já vimos: a sua utilização do número «doze»,
quando estava a falar dos seus discípulos, transmitia, quase com certeza, a sua intenção de
chamar todo o Israel, outrora dividido em doze tribos; Jesus e, possivelmente, outros
interpretavam os seus milagres, especialmente os exorcismos, como algo que simbolizava a
vitória sobre o mal e a vinda próxima do Reino de Deus. As três ações em Jerusalém também
foram simbólicas, embora, em alguns casos, o seu simbolismo seja difícil de interpretar.
A primeira destas três ações é fácil de compreender: Jesus entrou em Jerusalém montado num
burro, cumprindo, assim, uma profecia de Zacarias citada por Mateus, mas que teria sido óbvia
para muitos:
Exulta de alegria, ó filha de Sião!
Solta gritos de júbilo, ó filha de Jerusalém!
Eis que o teu rei vem a ti;
Ele é justo e vitorioso; humilde e montado num jumento, sobre umjumentinho,filho de uma
jumenta. (Zc 9, 9)
É possível imaginar tanto que a profecia tenha criado o acontecimento, como que a profecia
tenha criado a história e que o acontecimento nunca tenha ocorrido. Este é um de uma série de
casos em que não podemos ter a certeza absoluta se foi o próprio Jesus que encenou uma
profecia, ou se foi a tradição cristã que o descreveu a fazê-lo. Inclino-me para a opinião de que
foi o próprio Jesus que interpretou a profecia e decidiu cumpri-la, isto é, que se declarou aqui,
implicitamente, como «rei». Os seus seguidores compreenderam-no e concordaram: aclamaram
o Reino que estava a chegar (Me 11, 10) ou o próprio Jesus como rei (Mt 21, 9; Lc 19,38).
Mateus e Lucas referem-se a «turbas» ou à «multidão», ao passo que Marcos diz que «muitos»
participaram na saudação a Jesus. No entanto, se houve, de facto, uma grande multidão, temos
de explicar por que razão Jesus ainda viveu uma semana. Uma manifestação pública,
acompanhada por exclamações ao «rei» ou até ao «Reino», teria sido altamente explosiva. A
Páscoa constituía um período ideal para agitadores incitarem a multidão e tanto o sumo
sacerdote como o prefeito romano estavam alertados para o perigo. A única coisa que posso
sugerir é que a manifestação a Jesus foi bastante modesta: ele realizou um gesto simbólico para
o seu pequeno círculo, para aqueles que tinham olhos para ver.
317
A segunda ação é mais difícil de interpretar. Jesus derrubou «as mesas dos cambistas e os
bancos dos vendedores de pombas» (Me I, 15 & par.). E comentou: «A minha casa será
chamada casa de oração ... Mas vós fizestes dela um covil de ladrões» (Mc li, 17 & par.). Esta
declaração junta expressões de Isaías («casa de oração», Is 56, 7) e de Jeremias (<<covil de
ladrões», Jr 7, li). No entanto, Jesus fez uma segunda e, possivelmente, uma terceira afirmação
sobre o Templo. Os autores dos sinópticos atribuem-lhe uma previsão da destruição do Templo
(Mc 13, I e segs. & par.), assim com atribuem aos seus acusadores, durante o seu processo, o
testemunho de que ele tinha ameaçado destruir o Templo (Mc 14, 58 / / Mt 26, 61). A ameaça
volta a aparecer durante a cena da crucificação; quando Jesus estava na cruz, as pessoas que
assistiam à sua crucificação injuriavam-no: «Olha o que destrói o Templo ... Salva-te a ti
mesmo e desce da cruz!» (Mc 15, 29 e segs. / / Mt 27, 40). Mais tarde, Estêvão, um dos
primeiros cristãos, foi acusado de ter dito que «Jesus, o Nazareno, destruiria este lugar», isto é,
o Templo (Act 6, 14). Estas várias declarações tornam difícil dizer com exatidão o que
simbolizava a ação de Jesus no Templo. Tratou-se de uma limpeza ou de uma destruição? Se foi
uma destruição, tratava-se de uma profecia ou de uma ameaça?
Não há hipótese de eliminar nenhuma destas possibilidades. É possível que Jesus pensasse que o
comércio na área do Templo era desonesto e que tivesse previsto que, um dia, o seu povo se
revoltaria contra Roma, o que levaria à destruição do Templo; é possível que este acontecimento
seja tanto um sinal de uma reforma moral, como uma previsão. Comecemos pela reforma
sugerida pela citação do Livro de Jeremias 7, 11: o Templo é um «covil de ladrões». Não existe
nenhuma alusão em outras fontes de que o dinheiro sagrado fosse empregue indevidamente para
fins que não fossem o sustento do Templo e dos seu sacrifícios;" mas dado o princípio universal
de que as reformas e os aperfeiçoamentos são sempre possíveis, podemos admitir a priori
318
que Jesus podia ter tentado reformar «o sistema». O que falta é qualquer outra indicação de que
ele tivesse pretendido reformar o vasto e complexo sistema do Templo. O sustento do Templo e
dos seus ministros constituía um aspeto importante da vida dos judeus: o imposto do Templo, o
dízimo agrícola, as pequenas ofertas agrícolas («as primícias»), a consagração dos filhos e dos
animais primogénitos, os sacrifícios de reparação e de expiação, as festas, os sacrifícios de ani-
mais para fornecer comida para banquetes e festas - o culto do Templo afetava, de uma maneira
ou de outra, todos os domínios da vida. Se Jesus estivesse convencido de que o sistema era todo
corrupto, que os sacerdotes eram criminosos e que os sacrifícios eram errados, devendo ser
eliminados - ou alguma coisa deste género - nós disporíamos de mais material que apontasse
nessa direção. O Templo era fundamental para o judaísmo da Palestina e importante para todos
os judeus em toda a parte. Opor-se ao Templo significaria opor-se ao judaísmo como religião.
Tal seria igualmente um ataque ao principal símbolo unificador do povo judaico. Se Jesus
tivesse atacado realmente esta instituição central, teríamos mais provas disto para além do
incidente com as mesas dos cambistas. Além disso, não seriam só os Evangelhos, mas também
os Atos dos Apóstolos e as cartas de Paulo a informar-nos sobre a oposição de Jesus. Os
Evangelhos mencionam críticas às aldeias da Galileia, mas não ao Templo. Jesus parece ter cri-
ticado os proprietários de terra ricos nas suas parábolas, mas não os sacerdotes aristocráticos.
Ele aprovava a principal lei relativa à pureza mencionada nos Evangelhos (ver o debate sobre a
lepra). Pagava o imposto do Templo, apesar de o fazer com alguma relutância (Mt 17, 24-27).
As poucas passagens nos sinópticos que se referem ao Templo e às prerrogativas dos sacerdotes
são favoráveis e não existe nenhum material que o apresente como um reformador do culto e
dos impostos - à excepção, possivelmente, desta passagem. Se este episódio constituiu um
momento singular de cólera, diz-nos pouco sobre ele e sobre a sua missão.
E a segunda tradição, a previsão da destruição do Templo (Mc 13, 1 e segs. & par.)? Tratou-se
de um mero prognóstico político perspicaz? Também não existem praticamente quaisquer outras
tradições deste tipo. Jesus podia, por exemplo, ter avisado Antipas de que a sua paixão por
Herodíade lhe custaria o seu cargo (o que aconteceu, de facto). As profecias de Jeremias
debruçaram-se amplamente sobre questões políticas e militares, mas não as afirmações de Jesus,
à exceção
319
de uma, no Evangelho de Lucas: «Quando virdes Jerusalém sitiada por exércitos, ficai sabendo
que a sua ruína está próxima.» (Lc 21, 20). A generalidade dos investigadores defende que se
trata aqui de uma revisão levada a cabo por Lucas de uma afirmação que se encontra em Mateus
e em Marcos e que ele atualiza. Parece-me que isto é correto. Por outras palavras, Lucas
escreveu depois de o exército ter realmente cercado e destruído Jerusalém e o seu conhecimento
daquilo que aconteceu no ano 70 influenciou a sua revisão de Marcos. Se assim for, não existe
qualquer tradição de previsões políticas ou militares nos Evangelhos - a não ser que
interpretemos a previsão da destruição do Templo neste sentido.
A investigação histórica não pode, em termos gerais, provar algo no sentido negativo («Jesus
nunca pensou ... »), pelo que não podemos excluir completamente nem uma perspicácia política,
nem uma indignação moral, mas podemos dizer que, fora desse acontecimento (tanto quanto
sabemos), Jesus não passou o seu tempo a fazer previsões políticas e a atacar o comércio
necessário para o funcionamento do Templo. Ele teve, contudo, muito a dizer sobre uma
dramática mudança que Deus levaria a cabo. Isto leva-me a pensar que a ação de virar as mesas
dos cambistas simboliza mais uma destruição do que uma purificação como um ato de reforma
moral. Analisaremos um pouco mais de perto as afirmações em causa, primeiro, a previsão e,
depois, a ameaça.

A previsão é a seguinte:
Ao sair do Templo, um dos discípulos disse-lhe: «Olha, Mestre, que pedras e que construções
maravilhosas!» Jesus respondeu: «Vês estas construções grandiosas? Não ficará pedra sobre
pedra; será tudo destruído.» (Me 13, 1 e segs.)
320
De acordo com Mateus, Jesus disse isto aos «discípulos», não só a um deles (Mt 24, 1 e segs.),
e, segundo Lucas, ele dirigiu-se a «algumas pessoas» (21, 5 e segs.). A coisa mais importante a
registar é que a previsão não se cumpriu completamente. Quando os romanos tomaram a cidade
em 70 e.c., deixaram uma grande parte dos muros do Templo de pé; de facto, uma grande parte
deles continua a existir, suportando a atual área sagrada dos muçulmanos. A maior parte das
pedras no muro que resistiu pesa entre duas e cinco toneladas, mas algumas, especialmente as
pedras angulares, são muito maiores. Uma delas tem 12 metros de comprimento e pesa quase
400 toneladas. Jesus disse que não ficaria pedra sobre pedra.
Quando as «profecias» são escritas depois do acontecimento - isto é, quando um autor posterior
compõe uma profecia fictícia - é habitual a profecia e o acontecimento coincidirem
perfeitamente. Se a previsão de Me 13, 1 e segs. & par. tivesse sido escrita depois do ano 70,
seria de esperar que dissesse que o Templo seria destruído por um incêndio e não que os muros
seriam completamente derrubados. Portanto, esta profecia, provavelmente, tem a sua origem no
período anterior ao ano 70 e é possível que seja do próprio Jesus.
E a ameaça? Os autores dos Evangelhos esforçam-se por nos garantir que Jesus não ameaçou
realmente destruir o Templo.
E alguns ergueram-se e preferiram este falso testemunho contra ele: «Ouvimo-lo dizer:
"Demolirei este Templo construído com as mãos e, em três dias, edificarei outro que não será
feito com as mãos."» Mas nem assim o depoimento deles coincidia. (Mc 14,57-59)
Mateus tem, no essencial, a mesma tradição, mas não tem as expressões: «feito com as mãos» e
«não será feito com as mãos». As acusações contra Jesus enquanto ele estava pregado na cruz
não o citam diretamente: «Olha o que destrói o Templo e o reconstrói em três dias» (Mc 15, 29 /
/ Mt 27, 40).
Enquanto Mateus e Marcos atribuem esta acusação a «testemunhas falsas», Lucas omite-a
completamente. Trata-se de uma forma extrema de negar que Jesus tenha dito isto. Os primeiros
cristãos não queriam que Jesus fosse visto como um rebelde ou, sequer, como uma
321
pessoa conflituosa. Eles queriam defender que o cristianismo gerava bons cidadãos, cidadãos
leais; os governantes das cidades e províncias da Síria, da Ásia Menor, da Grécia, da Macedónia
e da Itália não tinham nada a temer. Esta é a preocupação central do autor do Evangelho de
Lucas, como se pode ver nos Atos dos Apóstolos, onde ele culpa constantemente todos, exceto
os apóstolos cristãos, pelo facto de haver sempre uma certa perturbação civil em todos os
lugares onde eles iam. Esta preocupação explica, provavelmente, por que é que Lucas não
contém, sequer, esta ameaça e por que razão Mateus e Marcos defendem tão vigorosamente que
Jesus não tinha proferido qualquer ameaça contra o Templo.
Eles protestam demasiado. É provável que ele tenha feito algum tipo de ameaça. Veremos isto
mais claramente se considerarmos a possibilidade de Jesus, na realidade, só ter previsto que,
mais cedo ou mais tarde, o Templo seria destruído. Isto significaria que, tal como os Evangelhos
afirmam, os inimigos de Jesus decidiram dizer que ele tinha ameaçado o Templo. Eles teriam
conspirado para prestar um falso testemunho contra ele, mas esqueceram-se de combinar o
conteúdo deste, pelo que a acusação foi rejeitada pelo tribunal. Esta espécie de conspiração mal
preparada não é convincente. É mais provável que Jesus tenha dito e feito algo que os presentes
consideraram uma ameaça e que os alarmou verdadeiramente. Eles transmitiram isto às
autoridades. Mas quando foram ouvidos no tribunal, contaram coisas ligeiramente diferentes -
tal como acontece com as testemunhas oculares. Não podemos saber o que Jesus disse
exatamente. Vou presumir que ele fez uma previsão ameaçadora da destruição do Templo; isto
é, previu a destruição de tal forma que algumas pessoas pensaram que ele estava a fazer uma
ameaça.
É perfeitamente razoável associar o gesto de Jesus contra os cambistas à sua declaração sobre a
destruição do Templo. Os autores dos Evangelhos quiseram dissociar estes dois elementos:
numa ocasião, Jesus limpou o Templo, numa outra, previu a sua destruição. É provável que
existisse uma ligação entre estes dois acontecimentos. Pelo menos, foi assim que a sua ação foi
interpretada por outros. Se estes estabeleceram uma ligação entre uma afirmação sobre a
destruição e a sua ação simbólica de virar as mesas, podemos compreender por que razão lhes
pareceu que Jesus estava a ameaçar o Templo. Isto causou uma ofensa profunda que veio à
superfície quando ele estava a ser julgado por causa da sua vida, quando estava na cruz e, mais
tarde,
322
durante o julgamento de Estêvão. Não podemos atribuir aos autores dos Evangelhos esta
tradição persistente de uma ameaça contra o Templo, eles desejavam que ela tivesse
desaparecido.
Se Jesus ameaçou o Templo ou previu a sua destruição pouco tempo depois de ter virado as
mesas na área comercial deste (o que teria resultado na mesma coisa), não foi pensando que ele
e o seu pequeno grupo seriam capazes de deitar abaixo os muros, de modo a não ficar pedra
sobre pedra. Ele pensava que seria Deus a destruí-lo. Enquanto um bom profeta judaico, podia
ter pensado que Deus utilizaria um exército estrangeiro para esta destruição; mas, enquanto
escatologista radical do primeiro século, é provável que tenha pensado que seria o próprio Deus
a fazê-lo.
As pessoas na Antiguidade não pensavam que a destruição ou a preservação de um templo
dependia completamente da força relativa de dois exércitos. O prognóstico político
verdadeiramente secular correto não é, de facto, uma opção para a compreensão de Jesus. Se os
persas danificaram o templo de Atena, em Atenas, foi porque Atena decidiu permitir que eles o
fizessem ou porque a própria deusa era mais fraca do que os deuses dos persas e não foi capaz
de defender a sua morada. Josefo mostra como este pensamento estava profundamente
enraizado no judeu piedoso comum. Ele descreve numerosos maus presságios sobre a destruição
iminente do Templo. Na festa das Semanas, por exemplo, os sacerdotes ouviram, primeiro, «um
abalo e um ruído» e, depois, «uma voz coletiva que dizia: "Estamos a ir-nos embora.?» Esta
partida permitiu a destruição do Templo. Jesus também estava convencido de que Deus
habitava, de certo modo, no Templo. Segundo Mt 23, 21, ele disse que a pessoa «que jura pelo
Templo, jura por ele e por aquele que nele habita». Se Jesus pensava que Deus habitava no
Templo, dificilmente podia ter pensado que os romanos poderiam destruí-lo contra a Sua
vontade. Eles podiam ser Seus instrumentos, mas não podiam impor-Lhe a sua vontade.
323
Caso Jesus tenha dito, sequer, alguma coisa sobre a destruição iminente do Templo, o que ele
queria dizer era que seria Deus a destruí-lo ou a mandar destruí-lo através dos seus
instrumentos. Isto, associado a um gesto hostil, podia constituir uma ameaça. Mas ninguém -
nem Jesus, nem aqueles que o ouviram e viram, nem o sumo sacerdote, nem Pila tos - pensava
que ele podia deitar realmente abaixo os muros do Templo. No entanto, se ele disse apenas o
que Deus iria fazer, por que razão foi preso? Se Deus podia fazer tudo o que quisesse, por que
razão é que o sumo sacerdote e os outros não podiam ter-se limitado a discordar de Jesus? As
pessoas tinham sempre medo dos profetas, pelo menos, um pouco. Antipas (ou Antipas e
Herodíade) temiam João Baptista." Antipas tinha tropas suficientes para reprimir uma multidão
enfurecida, se fosse necessário, e tanto ele como a sua família foram criticados frequentemente.
Mas ele decidiu silenciar João, em vez de o deixar continuar a pregar. Numa data anterior,
houve um grupo de judeus que esperava que o profeta Honi amaldiçoasse um outro grupo de
judeus. Ele não quis. Eles estavam todos convencidos de que a sua maldição seria eficaz e,
quando ele se recusou a proferi-la, mataram-no. Os profetas eram perigosos. Podiam despertar
uma multidão que podia descontrolar-se facilmente (especialmente na Páscoa). E eram
perigosos a um outro nível, porque Deus lhes dava ou podia dar ouvidos.
Concluo que a ação simbólica de Jesus que consistiu em virar as mesas no Templo foi
compreendida em relação com uma afirmação sobre a destruição e que, na opinião das
autoridades, a ação e a afirmação constituíram uma ameaça profética. Além disso, penso que é
altamente provável que tenha sido intenção do próprio Jesus predizer a destruição do Templo e
não simbolizar a necessidade de purificação deste. No entanto, é impossível provar que a
afirmação sobre o «covil de ladrões» não tenha sido realmente proferida por Jesus ou que ele
tivesse dito: «eu destruirei o Templo». Tenho de confessar que duvido da autenticidade da
afirmação sobre o «covil de ladrões». Parece-me uma expressão que o evangelista teria
facilidade em tirar do Livro de Jeremias para fazer Jesus parecer politicamente inócuo
324
aos olhos dos leitores gentios de língua grega. Muitas pessoas, tanto naquela altura como hoje,
pensavam que a reforma periódica do sistema é uma coisa positiva. Apolónio de Tiana ficou
bastante famoso como reformador do culto. No entanto, um verdadeiro reformador teria um
programa de reformas mais vasto do que Jesus parece ter tido. Se as pessoas não pudessem
comprar pombas sacrificiais na área comercial do Templo, como podiam adquiri-las? Se as
trouxessem dos pombais que tinham em casa, as aves podiam tornar-se impuras. E os cambistas
ofereciam maior comodidade aos peregrinos. O Templo exigia o pagamento do respetivo
imposto numa moeda segura, que não fosse falsificada através da adição de uma quantidade
excessiva de metais vis (um método utilizado frequentemente pelos governantes, quando tinham
dificuldades financeiras). As pessoas podiam adquirir esta moeda de Tiro em qualquer lado; isso
não importava ao Templo, mas, ao que parece, muitos preferiam trazer a sua própria moeda e
cambiá-la no Templo. Portanto, com que substituiria Jesus estes dois negócios, se os
eliminasse? Jesus, o previdente planeador social e económico, novamente em voga, não existe,
pura e simplesmente, nos Evangelhos. Ele podia ter falado sobre o «covil de ladrões», mas uma
afirmação não bastava para o transformar em reformador.
Ele era um profeta, um profeta escatológico. Pensava que Deus estava prestes a destruir o
Templo. E depois? A afirmação continua, segundo os seus acusadores, com a expressão: «em
três dias, edificarei outro», e Marcos acrescenta «que não será com as mãos» (Mc 14,58 / / Mt
26, 61). É provável que Jesus pensasse que, na nova era, quando as doze tribos de Israel
voltassem a reunir-se, haveria um Templo novo e perfeito, construído pelo próprio Deus. Este
era um típico pensamento escatológico ou da nova era. O Apocalipse diz que, quando a nova
Jerusalém descer do céu, não haverá nenhum Templo, mas a explicação é cristológica: «pois, o
senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro são o seu Templo» (Ap 21, 22). Quando o
Apocalipse foi escrito, os cristãos acreditavam que a era do Templo tinha terminado e que o
mundo ideal dispensaria sacrifícios de animais, uma vez que o verdadeiro Cordeiro tinha sido
sacrificado, mas não era isto que os judeus não cristãos pensavam. Seguindo os profetas
bíblicos, eles esperavam um Templo novo e glorioso: «A glória do Líbano virá sobre ti, o
cipreste, o abeto e o pinheiro, para adornar o lugar do meu santuário,
325
e mostrar a glória do trono em que me sento» (Is 60, 13). O autor de uma das secções do I
Enoch fala de uma visão:
E eu levantei-me para ver até eles terem desmontado a casa antiga; e todos os pilares, e todas as
vigas e ornamentos da casa foram desmontados ao mesmo tempo e eles levaram-nos ... E eu
olhei até o Senhor... ter trazido uma nova casa, maior e mais grandiosa do que a primeira e a ter
colocado no lugar da primeira ... : e os seus pilares eram novos e os seus ornamentos eram
novos e maiores do que os da primeira casa ... (I Enoch 90, 28 e segs.)
Estas citações exemplificam tanto a expectativa de um Templo novo ou melhor como uma
evolução importante no pensamento judaico. Com o passar dos anos, as pessoas, em geral,
pensavam que Deus faria mais no contexto da nova era: as suas expectativas tornaram-se mais
grandiosas e mais sobrenaturais. No período clássico da profecia israelita (do século VIII ao
século v a. C.), os profetas pensavam que, geralmente, Deus intervinha na História através de
governantes e exércitos humanos. Esta ideia não desapareceu completamente, mas muitos
judeus começaram a olhar para trás, para tempos mais dramáticos, como modelo da atuação
futura de Deus. Deus tinha aberto o mar uma vez, produzido o maná no deserto, feito o Sol
parar, derrubado os muros de Jericó. No futuro, Ele faria prodígios tão grandes como estes, e até
mais grandiosos. Nas décadas a seguir a Jesus, Teudas pensava que Deus dividiria a água do rio
Jordão e o Egípcio esperava que Ele provocasse a queda dos muros de Jerusalém. Acabámos de
ver que um dos autores de I Enoch esperava que Deus trouxesse um Templo novo e maior e o
autor do Rolo do Templo tinha a mesma esperança.? Referi mais do que uma vez provas que são
pertinentes para esta questão. Para repetir brevemente: o autor do Rolo da Guerra, de Qumran,
esperava que os anjos, liderados por Miguel, combatessem em vez dos exércitos judaicos, mas
que o golpe final fosse dado pelo próprio Deus. O autor dos Salmos de Salomão esperava que o
Messias davídico não «confiasse em cavalos, nem em cavaleiros e arcos», nem «juntasse ouro e
prata para a guerra», nem «edificasse a esperança
326
sobre uma multidão para um dia de guerra»; em vez disso, ele confiaria em Deus (Salmos de
Salomão 17, SS e segs.).
É isto que eu quero dizer quando afirmo que Jesus era um «escatologista radical». Ele esperava
que Deus agisse de uma forma decisiva, de modo a mudar as coisas radicalmente. Jesus, tal
como praticamente todos os outros judeus do século I, pressupunha que continuaria a existir um
Templo. No entanto, neste, como em outros aspetos, não revelou pormenores.
Este debate em torno das afirmações sobre o Templo foi longo. Alguns leitores podem pensar
que dei demasiada importância à questão. Penso que é quase impossível dar demasiada
importância ao Templo no século I da Palestina judaica. Atualmente, as pessoas têm tanta
facilidade em pensar na religião sem sacrifícios que não são capazes de compreender que esta
ideia é nova. O judaísmo teve de acabar por abandonar a ideia do regresso ao culto sacrificial a
Deus e o cristianismo acabou por ver a morte de Jesus como a substituição completa do culto do
Templo. Mas, no tempo de Jesus, estas ideias pertenciam ao futuro. Jesus tinha de aceitar o
Templo, de se opor a ele ou de o reformar. Parece que o aceitou, mas que pensava que ele seria
substituído na nova era. Depois da sua morte e ressurreição, os seus seguidores continuaram a
participar no culto do Templo. Segundo os Atos dos Apóstolos, Paulo foi preso por ter tentado
levar um gentio ao Templo. Estas atitudes são compatíveis com a convicção de Jesus, tal como
eu a reconstruí.
Voltemos, agora, ao terceiro gesto simbólico da última semana de Jesus: a última ceia. A
passagem, em termos gerais, possui a mais sólida confirmação que é possível, possuindo o
mesmo nível de certeza da afirmação sobre o divórcio. Existem duas formas ligeiramente
diferentes, que chegaram a nós através de dois canais independentes - a tradição sinóptica e as
cartas de Paulo. Vou citar as três versões, para que o leitor possa compará-las.
327

Me 14,22-25 Le 22, 17-20 1 Cor 11, 24-26


Enquanto comiam, tomou o Tomando uma taça, deu E, depois de dar graças,
pão e, depois de pronunciar a graças e disse: «Tomai e partiu-o [o pão] e disse: «Isto
bênção, partiu-o e entregou-o reparti entre vós, pois digo- é o meu corpo, que é entregue
aos discípulos, dizendo: vos que não tornarei a beber por vós; fazei isto em
«Tomai: isto é o meu corpo.» do fruto da videira, até chegar memória de mim.» Do
Depois, tomou o cálice, deu o Reino de Deus.» Tomou, mesmo modo, depois da ceia,
graças e entregou-lho. Todos então o pão e, depois de dar tomou o cálice e disse: «Este
beberam dele. E Ele disse- graças, partiu-o e distribuiu-o cálice é a nova Aliança no
lhes: «Isto é o meu sangue da por eles, dizendo: «Isto é o meu sangue; todas as vezes
Aliança, que vai ser meu corpo, que vai ser en- que dele beberdes, fazei-o em
derramado por todos. Em tregue por vós; fazei isto em memória de mim.» Porque
verdade vos digo: não voltarei minha memória.» Depois da todas as vezes que comerdes
a beber do fruto da videira até ceia, fez o mesmo com o deste pão e beberdes deste
ao dia em que o beber, de cálice, dizendo: «Este cálice é cálice anunciais a morte do
novo, no Reino de Deus.» a nova Aliança no meu Senhor, até que Ele venha.
sangue, que vai ser
derramado por vós.»
Tal como na perícopa sobre o divórcio, também aqui não é possível conciliar completamente as
versões entre si. Jesus disse algo sobre o cálice, o pão, o seu corpo e o seu sangue. De acordo
com Mateus e Marcos, ao passar um cálice de vinho, ele disse «isto é o meu sangue da aliança»
(Mt 26, 28 / / Me 14, 24). Em Lucas pode ler-se: «este cálice é a nova Aliança no meu sangue»
(22, 20) e Paulo diz o mesmo (1 Cor 11, 25). Para o nosso objetivo, não preciso de tentar decidir
o que Jesus disse exatamente sobre o seu sangue e sobre o cálice. Mesmo sem o sabermos,
podemos ver que ele considerou a refeição como algo simbólico e como algo que apontava para
o Reino futuro. «Não voltarei a beber do fruto da videira até ao dia em que o beber, de novo, no
Reino de Deus» (Mc 14, 25 / / Mt 26, 29). Lucas diz: «Não tornarei a beber do fruto da videira,
até chegar o Reino de Deus» (Lc 22, 18). Paulo explica aos seus leitores que, quando eles
comerem do pão e beberem do cálice, estarão a anunciar
328
«a morte do Senhor, até que Ele venha» (1 Cor, 11, 26). A ceia apontava para o futuro, para a
nova era. As refeições de Jesus com os pecadores (Mt 11, 18 e segs.) apontavam,
provavelmente, na mesma direção. Como diz uma das parábolas, o Reino de Deus é como um
banquete nupcial (Mt 22, 1-14).
Já vimos que não podemos saber até que ponto Jesus interpretava literalmente o beber do vinho
no Reino. O tema podia muito bem ser metafórico. Apesar disso, este foi o seu último gesto
simbólico e estas foram praticamente as últimas palavras que ele dirigiu aos seus seguidores
mais próximos. Com efeito, ele proclamou solenemente que o Reino estava próximo e que iria
participar nele.
As afirmações tornam altamente provável que Jesus soubesse que era um homem marcado. É
possível que ele pensasse que Deus iria intervir antes de ele ser preso e executado. De qualquer
modo, não fugiu. Foi para o Monte das Oliveiras, para rezar e esperar - esperar a reação das
autoridades e, possivelmente, a intervenção de Deus. Segundo os Evangelhos, ele pediu na
oração para ser poupado, mas fê... -lo numa privacidade total (Me 14, 32-42 & par.). No
entanto, a oração que estes atribuíram a Jesus é perfeitamente razoável. Ele esperava não
morrer, mas entregou-se à vontade de Deus.
Portanto, os três atos simbólicos apontam todos para o Reino que estava prestes a vir e para o
papel do próprio Jesus. Ele festejará com os seus discípulos, haverá um Templo novo ou mais
perfeito, e ele será «rei».

A prisão de Jesus
Debrucemo-nos, agora, sobre a nossa segunda questão importante: por que razão mandou o
sumo sacerdote prender Jesus? No essencial, já respondemos a esta questão: a razão mais
imediata para a prisão de Jesus foi a sua manifestação profética no Templo. Houve algumas
pessoas que pensaram que ele tinha ameaçado o Templo. Se o sumo sacerdote Caifás e os seus
conselheiros soubessem que Jesus tinha sido aclamado como «rei» quando entrou em Jerusalém,
já estariam preocupados por causa dele. O gesto no Templo decidiu o seu destino. A cena do
julgamento em Marcos parece pressupor que o sumo sacerdote tinha conhecimento de ambos os
acontecimentos. Jesus começou por ser acusado de ter ameaçado o Templo. No entanto,
329
havia contradições entre as testemunhas. Depois, Caifás perguntou a Jesus se ele era «o
Messias, o Filho do Bendito» (Me 14, 61). No capítulo anterior, debatemos brevemente as
várias versões da sua resposta. Segundo Marcos, ele respondeu: «sim»; segundo Lucas, ele
respondeu apenas: «Vós dizeis que eu sou»; e segundo Mateus, ele disse: «Tu o disseste; mas
[por outro lado] eu digo-vos: Vereis o Filho do Homem ... » Fosse qual fosse a resposta de
Jesus, registamos que a questão implica algum conhecimento da pretensão de Jesus ou (o que é
mais provável) o conhecimento das aclamações dos seus seguidores, durante a sua entrada na
cidade. Jesus também tinha ensinado sobre «o Reino» enquanto estava em Jerusalém, o que
teria reforçado a impressão negativa. O sumo sacerdote desejava a sua morte pela mesma razão
pela qual Antipas desejava a morte de João: ele podia causar problemas.
Vimos anteriormente (pp. 44-46) que o sumo sacerdote era responsável pela ordem na Judeia,
em geral, e em Jerusalém, em particular. Caifás exerceu a sua função durante mais tempo do
que qualquer outro sumo sacerdote no período de governo direto dos Romanos e este facto
constitui uma boa prova da sua capacidade. Se o sumo sacerdote não mantivesse a ordem, o
prefeito romano interviria militarmente e a situação podia descontrolar-se. Enquanto os guardas
do Templo, agindo como a polícia do sumo sacerdote, efetuassem prisões e enquanto o sumo
sacerdote estivesse envolvido nos processos judiciais (embora não tivesse poder para mandar
executar ninguém), existia uma possibilidade relativamente reduzida de um confronto direto
entre os judeus e as tropas romanas. Se o sumo sacerdote queria manter a sua função, tinha de
manter o controlo, mas um sumo sacerdote que fosse decente - e Caifás era muito decente -
também tinha de se preocupar com a população judaica. O sumo sacerdote tinha outras
obrigações em relação à população para além de se limitar a prevenir confrontos com as tropas
romanas. Também devia representar as opiniões da população perante o prefeito, assim como
defender os costumes e as tradições judaicas. Ele era o mediador. Esta segunda responsabilidade
era importante, mas não desempenha qualquer papel na nossa história.
330
O sumo sacerdote, juntamente com os seus conselheiros, tanto formais como informais, tinha
frequentemente a tarefa de prevenir problemas e de imobilizar provocadores. Gostaria de
ilustrar este facto decisivo da vida política apresentando alguns resumos muito breves da autoria
de Josefo sobre três acontecimentos distintivos.
1. Por volta do ano 50 e.c., durante um confronto entre peregrinos da Samaria e da Galileia em
trânsito através de Samaria, um dos peregrinos foi morto. Veio uma multidão da Galileia,
desejando a vingança, mas os «notáveis» foram ter com o procurado romano, Cumanus,
pedindo-lhe para ele enviar tropas e punir os assassinos, pondo, assim, termo à questão. Ele
recusou-se a fazê-lo. As notícias chegaram a Jerusalém e muitas pessoas acorreram à Samaria,
embora «os magistrados» ou «governantes» tenham tentado impedi-las. No entanto, os
magistrados não desistiram; vestidos de serapilheira e com as cabeças cobertas de cinzas (dois
sinais de luto), foram atrás dos exaltados e tentaram persuadi-los a não fazerem nada
precipitadamente, visto que uma batalha levaria, certamente, a uma intervenção severa por parte
de Roma. Este apelo foi eficaz e a multidão dos judeus dispersou (se bem que alguns bandos
mais pequenos tenham ficado para pilhar). Os samaritanos «poderosos» foram à Síria para expor
o seu caso perante o legado romano e os judeus «notáveis», incluindo o sumo sacerdote, fizeram
o mesmo. O legado foi a Cesareia e a Lida, onde ordenou as execuções de alguns dos grupos de
criminosos. Enviou outros para Roma, para serem julgados por Cláudio: dois homens
«muitíssimo poderosos», isto é, Jonatan, chefe de sacerdotes, e o sumo sacerdote em exercício,
Ananias, assim como o filho de Ananias, outros judeus «notáveis» e os samaritanos «mais
distintos» (Guerra 2, 232-244).
Este acontecimento ocorreu durante uma festa e exigiu uma atitude na Samaria. É duvidoso que,
nestas circunstâncias, o sumo sacerdote tenha sido um dos líderes judeus que foi à Samaria
conter a multidão. Mas podemos ver, mesmo aqui, que Roma o considerava responsável: ele foi
à Síria, para falar com o legado romano, e teve de ir a Roma para ser julgado. Ele não teve nada
a ver com o problema na Samaria, mas, mesmo assim, era responsável pela ordem. Podemos ver
igualmente que o sumo sacerdote era apenas o «primeiro
331
entre iguais». A responsabilidade pela prevenção dos problemas recaía, até certo ponto, sobre
todos os cidadãos de elite.
2. Em 62 e.c., durante um período breve em que não houve nenhum procurador romano
residente na Palestina, o sumo sacerdote saduceu Ananus convocou «um conselho [.rynedrionJ
de juízes»27 e mandou executar Tiago, o irmão de Jesus, e, provavelmente, outras pessoas.
Alguns cidadãos com sentido de justiça e clemência, os mais rigorosos no que dizia respeito às
leis, protestaram, mas a execução cumpriu-se. Muitos investigadores pensam que aqueles que se
opuseram à execução eram fariseus, o que me parece provável. De qualquer modo, o protesto
foi, em parte, bem sucedido: Ananus foi deposto (Antiguidades 20, 199-203), visto que tinha
transgredido a norma romana, de acordo com a qual, numa província administrada por um
cavaleiro romano, a única pessoa que podia ordenar uma execução era o funcionário romano
supremo.
3. A prisão de Jesus assemelha-se mais ao terceiro caso, que diz respeito a um outro Jesus, o
filho do Ananias, e ocorrido cerca de trinta anos após a execução de Jesus de Nazaré. Jesus,
filho de Ananias, foi ao Templo na Festa dos Tabernáculos, um período que era pacífico, e
exclamou: «Uma voz do leste, uma voz do oeste, uma voz dos quatro ventos; uma voz contra
Jerusalém e o santuário, uma voz contra o noivo e a noiva, uma voz contra todo o povo.» Esta
previsão de destruição - e é óbvio que se trata de tal, dada a referência ao noivo e à
332
noiva, tirada de Jer 7, 34 -levou ao seu interrogatório e à sua flagelação, primeiro pelas
autoridades judaicas e, depois, pelos romanos. Respondeu às questões «repetindo
incessantemente as suas «lamentações sobre a cidade» e acabou por ser libertado como louco.
Manteve as suas lamentações durante sete anos, especialmente durante as festas, mas, de resto,
não se dirigiu à população. Acabou por ser morto por uma pedra de uma catapulta romana
(Guerra 6,300-309).
Se utilizarmos este caso como uma orientação, podemos compreender por que razão Jesus de
Nazaré foi executado e não simplesmente açoitado. A ofensa do nosso Jesus foi pior do que a de
Jesus, filho de Ananias. Jesus de Nazaré tinha seguidores, talvez não muitos, mas, apesar disso,
alguns. Tinha ensinado durante algum tempo sobre o Reino de Deus. Tinha feito uma
intervenção material no Templo. Não era louco. Portanto, era potencialmente perigoso. É
possível imaginar que ele se pudesse ter salvo da execução se tivesse prometido que levaria os
seus discípulos, regressaria à Galileia e ficaria calado. Parece que não tentou fazê-lo.
Em conjunto, estas três histórias ilustram como a Judeia era governada enquanto província de
Roma, administrada formalmente por um romano. Já descrevi este sistema de governação (pp.
41-47), mas gostaria de o repetir aqui. O prefeito ou procurador romano tinha de manter a paz
no território e de cobrar o tributo. Ele transferia ambas as tarefas para a aristocracia judaica,
especialmente a aristocracia sacerdotal, liderada pelo sumo sacerdote. A escolha do sumo
sacerdote pelos romanos respeitava a tradição judaica. A Judeia tinha sido governada por sumos
sacerdotes durante vários séculos. Quando Herodes chegou a rei acabou com este sistema e
Roma restabeleceu o antigo sistema, no momento em que o herdeiro deste (Arquelau) se revelou
incapaz de governar com sucesso. Ao ordenar a prisão de Jesus, Caifás estava a cumprir os seus
deveres, de entre os quais um dos principais era prevenir levantamentos.
Mencionarei brevemente outras duas teorias sobre a razão pela qual Jesus foi preso. Uma delas é
que ele foi mal compreendido. Caifás e Pilatos teriam pensado que ele tinha em mente um reino
deste mundo e que os seus seguidores estariam prestes a atacar o exército romano; eles teriam
executado Jesus como rebelde por engano. Esta
333
opinião baseia-se essencialmente em Jo 18, 33-38, que constitui uma longa discussão sobre o
tipo de «rei» que Jesus afirmava ser. No entanto, é altamente improvável que Caifás e Pilatos
tivessem pensado que Jesus liderava um grupo armado e planeava um golpe militar. Se tivessem
pensado isto, Caifás também teria mandado prender os lugar-tenente de Jesus e os seus
seguidores teriam sido executados - como aconteceu mais tarde aos seguidores de outros
profetas, que cometeram o erro de andar em grupos maiores. A execução apenas do líder mostra
que eles receavam que Jesus pudesse instigar a multidão e não que tivesse criado um exército
secreto. Por outras palavras, eles compreenderam muito bem Jesus e os seus seguidores.
De acordo com a segunda teoria, Jesus foi preso por causa de divergências teológicas com a
massa dos judeus liderados pelos fariseus. Ele acreditava no amor e na compaixão, ideias que os
fariseus abominavam, e discordava do legalismo e do ritualismo mesquinhos, que eles
favoreciam; por isso, eles teriam conspirado contra ele, para o matarem. Os investigadores que
defendem esta opinião não explicam o mecanismo que levou os fariseus a conseguirem a prisão
de Jesus, contentando-se em sustentar que a oposição dos fariseus desempenhou um papel. Não
repetirei aqui os meus numerosos esforços para levar os cristãos a verem os fariseus numa
perspetiva mais correta, mas limitar-me-ei a comentar que estes desentendimentos imaginários
não explicam nada em termos históricos. Os judeus, por vezes, matavam-se uns aos outros, mas
não por causa de desacordos deste género. O nível das disputas acerca da Lei entre Jesus e os
outros estava completamente dentro dos limites de um debate normal e não existe qualquer
razão para pensar que eles estivessem em conflito por causa do amor, da misericórdia e da
graça. É possível que Jesus se opusesse às opiniões dos fariseus, por exemplo, na questão dos
produtos que devem ser considerados como alimentos e que devem ser submetidos ao
pagamento do dízimo (Mt 23, 23), mas críticas deste tipo não constituem uma questão de vida
ou de morte. Além disso, os fariseus estão quase completamente ausentes dos últimos capítulos
dos Evangelhos e completamente ausentes das histórias da prisão e do processo. Segundo as
provas existentes, eles não tiveram nada a ver com estes acontecimentos.
334
As descrições do sumo sacerdote e do seu conselho que se encontram nos sinópticos
correspondem completamente à descrição que Josefo faz da forma como Jerusalém era
governada no tempo em que fazia parte de uma província romana. O sumo sacerdote e o chefe
dos sacerdotes são os atores principais e os fariseus não desempenham qualquer papel.
A teoria aqui apresentada - que Caifás mandou prender Jesus, porque tinha a responsabilidade
de reprimir aqueles que causavam problemas, sobretudo durante as festas - é perfeitamente
compatível com todas as provas. Jesus tinha alarmado algumas pessoas por causa do seu ataque
contra o Templo e da sua afirmação sobre a destruição do mesmo, porque elas receavam que ele
pudesse influenciar realmente Deus. No entanto, é altamente provável que Caifás estivesse
sobretudo ou exclusivamente preocupado com a possibilidade de Jesus incitar um motim.
Mandou guardas armados para prenderem Jesus, interrogou-o e recomendou a sua execução a
Pilatos, que a aceitou prontamente. É assim que os Evangelhos descrevem os acontecimentos e
foi assim que as coisas aconteceram realmente, tal como provam as numerosas histórias de
Josefo.

A recomendação da execução
Podemos dizer mais alguma coisa sobre a razão que levou Caifás e os seus conselheiros a
mandarem Jesus a Pila tos para este o executar? As cenas do processo nos Evangelhos
proporcionam as únicas provas possíveis. Já as debati brevemente, mas, agora, iremos observá-
las mais de perto. Penso que estas cenas são suficientemente exatas na generalidade, mas
existem problemas nos pormenores. Gostaria de pressupor aqui que, tanto Mateus como Lucas,
baseiam em Marcos as suas descrições do julgamento judaico." Não penso que possamos
confiar plenamente na descrição do julgamento feita por Marcos, como se fosse uma transcrição
dos registos no tribunal, mas ela constituirá a base para a nossa análise.
335
Marcos e Mateus apresentam duas narrativas do julgamento de Jesus: uma que constitui um
simples relato dos factos e outra que consiste numa descrição mais longa. Estas narrativas
encontram-se agora em Marcos e Mateus como se estivessem em causa dois julgamentos
separados: a versão breve encontra-se em Mc 15, 1 / / Mt 27, 1 e segs.: «Logo de manhã, os
sumos sacerdotes reuniram-se em conselho com os anciãos e os escribas e todo o Sinédrio; e,
tendo manietado Jesus, levaram-no e entregaram-no a Pilatos.» A segunda narrativa do jul-
gamento descreve uma interrogatório. Já abordámos duas das suas partes mais importantes.
Testemunhas falsas acusaram Jesus de ter ameaçado o Templo, mas os seus testemunhos não
foram coincidentes. Então, o sumo sacerdote perguntou a Jesus: «És Tu o Cristo, o Filho do
Bendito?» Jesus respondeu: «Sim» (Marcos) ou «Tu o disseste; [mas, por outro lado] Eu digo ...
» (Mateus). Em Marcos e Mateus, Jesus, depois de ter respondido à pergunta do sumo
sacerdote, profetiza que o Filho do Homem virá em breve. O sumo sacerdote rasga então as suas
vestes (um sinal de luto), dizendo que não necessitavam de testemunhas, visto que tinham
ouvido uma blasfémia (Me 14, 55-65 / / Mt 26, 59-68).
Lucas apresenta uma narrativa ligeiramente diferente. Só houve um julgamento que se iniciou
com os interrogadores a perguntarem a Jesus se ele era o Cristo. Jesus deu uma resposta
evasiva, acrescentando que, «doravante, o Filho do Homem vai sentar-se à direita do poder de
Deus». Só então os interrogadores perguntaram se ele era o Filho de Deus, o que provocou a
resposta: «Vós dizeis que Eu o sou» (Lc 22, 66-71). Os juízes reunidos disseram que não
precisavam de mais testemunhas. Tinham-no ouvido da sua própria boca. Lucas não utiliza a
palavra «blasfémia».
Na opinião de Marcos, Jesus foi condenado por ter reivindicado títulos para si mesmo e esta
reivindicação constituía uma blasfémia aos olhos dos outros judeus - ou, pelo menos, aos olhos
de um deles, Caifás. Nas décadas que se seguiram à morte e à ressurreição de Jesus, os cristãos
atribuíram a Jesus ambos os títulos (Messias e Filho de Deus), interpretando-os de formas que
alguns judeus consideravam blasfemas.
O título de «Filho de Deus», sobretudo, viria a significar que Jesus não era um simples mortal.
Vimos no capítulo 15 que estes títulos, em si mesmos, não têm este significado. A pergunta que
se encontra em Marcos - «És Tu o Cristo, o Filho do Bendito?» - pressupõe que estes dois
títulos estão associados, interpretando-se reciprocamente.
336
Mas isto é obra dos cristãos. A simples combinação já é suspeita e a afirmação de que os dois
títulos, quando interligados, constituem uma blasfémia também parece ser produto da
criatividade dos cristãos. Alguns dos primeiros cristãos queriam atribuir a morte de Jesus à con-
fissão da cristologia da igreja. A cristologia tinha separado o novo movimento das suas raízes e,
naturalmente, eles queriam fazer remontar a Jesus as suas próprias perspectivas distintivas. Os
títulos desempenharam, porém, um papel tão insignificante nos Evangelhos sinópticos, que
temos de duvidar que tivessem constituído realmente a questão central no julgamento.
No entanto, se nos afastarmos da preocupação dos cristãos com os títulos que definem,
supostamente, a pessoa de Jesus e olharmos com novos olhos para a cena do julgamento
apresentada em Marcos, descobrimos que ela é perfeitamente razoável. Se constituísse uma
transcrição, se esta troca de palavras entre Caifás e Jesus tivesse acontecido precisamente como
Marcos a descreve, continuaríamos a ter de concluir que os títulos não constituíram o verdadeiro
problema. O que a passagem diz é o seguinte: Jesus ameaçou o Templo e fez-se importante. O
sumo sacerdote mandou prendê-lo por causa da sua atitude contra o Templo e esta foi a
acusação contra ele. O testemunho foi rejeitado pelo tribunal porque as testemunhas não foram
coerentes. No entanto, o sumo sacerdote tinha decidido que Jesus tinha de morrer, por isso, não
estava disposto a deixar cair o caso. Ele desafiou Jesus a dizer qualquer coisa sobre si próprio e,
depois, gritou «blasfémia» e rasgou as suas vestes. O resto do tribunal associou-se a ele. Isto é,
de acordo com a História, o sumo sacerdote não quis julgar Jesus com base nos títulos que este
reclamava, mas por causa do Templo. Ele recorreu aos títulos e declarou que a resposta de Jesus
era uma blasfémia - independentemente daquilo que este disse. Não temos de decidir se Jesus
respondeu que «sim» ou «talvez». O sumo sacerdote já tinha decidido.
Rasgar as vestes constituía um sinal poderoso de luto e mostrar os sinais de luto tinha poder
persuasivo. Já vimos que os «magistrados» ou «governantes» de Jerusalém puseram cinzas
sobre as suas cabeças e vestiram-se de serapilheira (outros sinais de luto) quando tentaram
prevenir a violência da multidão na Samaria. No caso do sumo sacerdote, rasgar as vestes
constituía o sinal mais extremo de luto, visto que a Bíblia lhe proibia rasgar as suas vestes ou
sequer desgrenhar os seus cabelos (Lv 21, 10). A transgressão da lei por parte de Caifás
337
mostrou o seu horror. Poucos judeus lhe teriam negado aquilo que ele queria e, certamente, não
os seus próprios conselheiros. Jesus foi enviado a Pilatos.
Proponho duas formas de ler Marcos. Uma delas consiste na perspetiva do próprio Marcos.
Jesus não reclamou títulos para si próprio durante o seu ministério e procurou silenciar aqueles
que lhe chamavam «Messias» ou «Filho de Deus». Portanto, de acordo com o Evangelho de
Marcos, os títulos não explicam a decisão que levou à sua prisão. Caifás mandou prender Jesus
porque pensou, erradamente, que Jesus tenha ameaçado o Templo. Jesus não o tinha feito e o
seu processo ilibou-o desta acusação. O sumo sacerdote colocou-lhe, contudo, uma pergunta
capciosa sobre os títulos. Jesus aceitou os termos de «Messias» e de «Filho do Bendito (Deus)»
como títulos que se lhe aplicavam e o sumo sacerdote acusou-o de blasfémia. A segunda leitura
consiste numa interpretação crítica de Marcos. Resulta, em parte, da observação de que Marcos
atribui um significado aos títulos de «Messias» e de «Filho de Deus» que estes não tinham antes
do desenvolvimento da cristologia da Igreja. Por isso, podemos oferecer uma interpretação
histórica melhor do julgamento e da execução de Jesus, mesmo que aceitemos a narrativa de
Marcos. 1. Durante o seu ministério de ensinamento e de cura, Jesus não atribuiu quaisquer
títulos a si próprio; quando lhe perguntavam diretamente, ele recusava-se a dizer quem era. 2.
Jesus foi preso porque ameaçou o Templo. 3. Quando as testemunhas divergiram no que diz
respeito à ameaça que Jesus tinha feito ao Templo, Caifás não mandou açoitá-lo e, depois,
libertá-lo. Em vez disso, decidiu voltar a pô-lo à prova. Isto mostra que ele pretendia mandar
executá-lo desde o início. 4. Então, perguntou a Jesus se ele era o Messias e o Filho de Deus. 5.
Jesus disse que sim. 6. Estes títulos não constituíam, em si, uma blasfémia. 7. O sumo sacerdote
decidiu considerá-los uma blasfémia porque já tinha tomado a decisão da execução. 8. Em vez
de continuar a investigar o que estes termos significavam para Jesus, Caifás fez uma
manifestação extravagante de luto, persuadindo assim os seus conselheiros a juntar-se a ele na
condenação do Galileu. A reconstrução histórica do processo tal como ele está descrito em
Marcos revela que os títulos foram um expediente e que a ameaça sobre o Templo constituiu a
causa imediata da execução. Gostaria de distinguir a minha própria opinião dos oito pontos que
acabei de apresentar e que oferecem uma reconstrução daquilo que a narrativa de Marcos
significaria, caso se tratasse de um relato textual
338
de um julgamento. Penso que a cena do julgamento apresentada por Marcos não constitui uma
transcrição e que temos de avaliar os motivos dos vários actores num contexto mais geral. Se
tivermos em conta a forma como os sumos sacerdotes cumpriam as suas responsabilidades
cívicas sob os prefeitos e procuradores romanos, temos de concluir que Caifás cumpriu as suas
obrigações tal como estava prescrito: Jesus era perigoso porque podia causar um tumulto, que
seria reprimido pelas tropas romanas com muitas perdas de vidas humanas. O autor de João
atribui a Caifás uma afirmação completamente adequada: « ... convém que morra um só homem
pelo povo, e que não se perca a nação inteira» (Jo 11, 50).32 Embora tenha sido a cena do
Templo que decidiu a questão, é provável que tenham existido outros fatores que contribuíram
para a decisão: a entrada de Jesus em Jerusalém e o seu ensinamento sobre o Reino de Deus.
Não sabemos o que Caifás sabia sobre estas outras questões, mas seria razoável pensar que,
depois de ter sido informado sobre o ataque de Jesus aos vendedores de pombas e as cambistas,
e antes de ter ordenado a prisão de Jesus, ele tenha procurado e obtido mais informações sobre
este. Como veremos imediatamente a seguir, é provável que ele tenha transmitido a Pilatos o
facto de Jesus pensar que era «rei». Esta reivindicação para si mesmo está implícita na entrada
de Jesus em Jerusalém, sobretudo se este acto simbólico for combinado com o ensinamento de
Jesus. Embora tenha dúvidas no que diz respeito à combinação que Marcos faz entre «Messias»,
«Filho de Deus» e «blasfémia», não tenho dúvidas de que Caifás e os seus conselheiros sabiam
que Jesus ensinava sobre o Reino de Deus e reivindicava para si um papel importante neste
Reino.
Sendo assim, penso que Caifás tomou uma única decisão: prender e executar Jesus. Se assim
foi, fê-lo não por causa de divergências teológicas, mas por causa daquilo que constituía a sua
principal responsabilidade política e moral: preservar a paz e prevenir tumultos e derramamento
de sangue. O que levou o sumo sacerdote a agir foi a compreensão que Jesus tinha de si mesmo,
revelada, especialmente, no Templo, mas também no seu ensinamento e na sua entrada na
cidade.
339
A decisão de Pilatos
Por que razão ordenou Pilatos a execução de Jesus? Porque o sumo sacerdote lha recomendou e
porque lhe forneceu uma acusação forte: Jesus pensava que era rei dos judeus. Pilatos percebeu
que Jesus era um potencial rei sem exército e, por isso, não fez nenhum esforço por perseguir e
executar os seguidores deste. É provável que o tenha considerado um fanático religioso, cujo
fanatismo se tinha tornado tão extremo que se tinha transformado numa ameaça à Lei e à ordem
pública.
Os Evangelhos, sobretudo Mateus e João, pretendem que Jesus foi condenado pela multidão dos
judeus, contra a opinião de Pilatos. Pilatos estava preocupado, foi avisado pela sua mulher para
não fazer nada, consultou a multidão, argumentou a favor de Jesus; por fim, dada a sua
fraqueza, não conseguiu resistir ao clamor da multidão, por isso, mandou executar Jesus (Mt 27,
11-26; Jo 18,28-19,16). Estes elementos da história das últimas horas de Jesus devem-se ao
desejo dos cristãos de se darem bem com Roma e de apresentarem os judeus como os seus
verdadeiros adversários. É muito provável que Pilatos tenha aceite a acusação de Caifás, tenha
mandado açoitar e interrogar brevemente Jesus e, como as respostas não foram completamente
satisfatórias, tenha mandado crucificá-lo sem pensar duas vezes. Filo, contemporâneo de
Pilatos, escreveu um apelo ao imperador Gaio (Calígula) que incluía uma descrição de Pilatos.
Filo escreveu sobre «os subornos, os insultos, os roubos, os ultrajes, a crueldade incessante e
extremamente penosa» que marcavam a governação de Pilatos (Embaixada a Gaio 302). Aliás,
Pilatos acabou por ser demitido do seu cargo devido a ter mandado fazer execuções mal
avisadas em grande escala (Antiguidades 18,88 e segs.). Este testemunho coincide perfeitamente
com a sequência de acontecimentos relatados nos Evangelhos: Jesus compareceu diante de
Pilatos e foi quase imediatamente executado, sem mais testemunhas e sem um julgamento. As
histórias da relutância e da fraqueza de Pilatos explicam-se melhor como propaganda dos
cristãos; elas constituem uma espécie de desculpa para a atitude de Pilatos que diminui o
conflito entre o movimento dos cristãos e a autoridade romana.

A execução
De manhã cedo, na sexta-feira do dia 15 de Nisan, Jesus e dois outros foram levados para fora
das muralhas da cidade, crucificados e
340
deixados a morrer. Apenas alguns seguidores corajosos assistiram ao acontecimento. Jesus
morreu antes do anoitecer da sexta-feira, portanto, mesmo antes do início do sábado. Um
admirador à distância, José de Arimateia, ofereceu um túmulo e Jesus foi sepultado. Algumas
das suas seguidoras assistiram ao enterro. Os seus discípulos, receosos de serem os próximos,
esconderam-se.
As narrativas da crucificação de Jesus estão cheias de citações do Salmo 22 e de alusões ao
mesmo: «repartiram entre si as suas vestes, tirando-as à sorte» (Mc 15, 24) é uma citação do
Salmo 22, 18; «abanando as suas cabeças» (Mc 15,29) é do Salmo 22, 7; o grito de Jesus: «Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Me 15, 34) é do Salmo 22, 1. Tal como é habitual
nestas circunstâncias, não sabemos que elementos fazem realmente parte do acontecimento.
Suponho que ° grito de Jesus foi a sua própria reminiscência do Salmo e não apenas um motivo
introduzido pelos primeiros cristãos. É possível que, quando Jesus bebeu o seu último cálice de
vinho e previu que voltaria a bebê-lo no Reino de Deus, pensasse que o Reino de Deus viria
imediatamente. Depois de estar na cruz durante algumas horas, desesperou e exclamou que
tinha sido abandonado. Esta especulação constitui apenas uma explicação possível. Não
sabemos o que ele estava a pensar quando estava na cruz, em agonia. Morreu, depois de um
período relativamente curto de sofrimento e alguns dos seus seguidores e simpatizantes
sepultaram-no apressadamente.
341

17. Epílogo: a ressurreição


Jesus pensava que o Reino de Deus estava prestes a chegar e os seus discípulos aceitaram a sua
mensagem. Como acabei de sugerir, é possível que ele tenha morrido desiludido. Os seus
discípulos, pensando, com razão, que seriam os próximos, esconderam-se. Algumas das
seguidoras - que estavam seguras e, possivelmente, eram mais corajosas - assistiram à sua morte
e viram como José de Arimateia sepultou o seu corpo. Suponho que, para além de terem medo
que Caifás e Pila tos se virassem contra eles a seguir, os seguidores de Jesus ficaram todos
desapontados. O Reino de Deus que estava prestes a chegar tinha soado tão bem! Os últimos
seriam os primeiros, os mansos herdariam a terra. Estas expectativas não se cumpriram, pelo
menos, não de uma maneira óbvia. O que aconteceu foi uma surpresa.
Segundo Mateus e Marcos, quando as mulheres regressaram ao túmulo, um dia e meio mais
tarde, para ungirem o corpo de Jesus (ele morreu na sexta-feira e foi sepultado; eles regressaram
no domingo de manhã), descobriram que o túmulo estava vazio. Segundo Mateus (sugerido
também em Marcos), Jesus apareceu às mulheres e, mais tarde,
343
aos discípulos na Galileia. I Em consequência disto, os discípulos reuniram-se em Jerusalém, a
fim de esperarem pelo seu regresso, que aguardavam para breve. Isto é, eles não abandonaram a
ideia de que o Reino viria; agora, esperavam que Jesus regressasse dos céus para o estabelecer.
Em rigor, a ressurreição não faz parte da história do Jesus histórico, mas pertence ao resultado
da sua vida. Apesar disso, podem ser úteis algumas palavras sobre as várias narrativas da
ressurreição. Segundo Mateus e Marcos, os discípulos regressaram à Galileia, onde viram Jesus;
segundo Lucas, eles não saíram dos arredores de Jerusalém. A história da ascensão de Jesus aos
céus apresentada em Lc 24, 50-53 difere da história apresentada em Act 1, 6-11, embora ambas
as narrativas tenham sido escritas pelo mesmo autor. As divergências entre as histórias das
aparições de Jesus são igualmente notáveis. Em Mateus, ele só aparece duas vezes: uma vez a
Maria Madalena e à outra Maria (28, 9 e segs.) e outra vez aos onze discípulos que restam (28,
16-20; Judas tinha cometido suicídio). Em Lucas, ele não aparece às mulheres (ver Lc 24, 8-11),
mas, antes de mais, a dois discípulos - um deles, anónimo, e o outro, Cléofas, também
desconhecido (Lc 24, 13-25) - e, depois, a todos os discípulos, perante os quais comeu (Lc 24,
36-49). Segundo os Actos dos Apóstolos, Jesus ficou com os discípulos durante quarenta dias,
aparecendo-lhes de vez em quando (Act 1, 3 e segs.).
No entanto, a prova mais antiga não se encontra nos Evangelhos mas sim numa das cartas de
Paulo. Ele oferece, como parte daquilo que lhe foi «entregue», uma lista das aparições do
Senhor ressuscitado: ele apareceu primeiro a Cefas (Pedro), depois, aos Doze (não aos Onze!),
de seguida, a mais de quinhentos irmãos, depois a Tiago (irmão de Jesus), depois a «todos os
Apóstolos» (ao que parece, não só aos Doze) e, depois, ao próprio Paulo (1 Cor 15,3-8).
Antes de comentar os problemas levantados por estas descrições divergentes, consideremos a
forma como as nossas fontes descrevem o Jesus ressuscitado: qual era a sua aparência. Segundo
Lucas, não era possível reconhecê-lo imediatamente; os primeiros dois discípulos aos
344
quais ele apareceu caminharam e falaram com ele durante algum tempo sem saber quem ele era;
ele deu-se a conhecer «ao partir o pão», quando estavam a comer juntos (Lc 24, 35).2 Embora
pudesse aparecer e desaparecer, não era um fantasma. Lucas insiste muito neste aspeto. É
possível tocar no Senhor ressuscitado e ele pode comer (24, 39-43).
Quando Paulo estava empenhado num debate com aqueles que tinha convertido em Corinto
sobre se os cristãos já mortos seriam ou não ressuscitados com o corpo, procurou descrever
como seria a ressurreição futura. A sua resposta baseia-se, presumivelmente, na sua própria
experiência da visão do Senhor ressuscitado («Não vi eu Jesus, nosso Senhor?» [1 Cor 9, lJ;
Deus revelou-me «o seu Filho» [GIl, 16J).8 Paulo explicou que, na ressurreição, cada um terá
um corpo, mas este será transformado: não se tratará de um corpo físico, mas sim de um corpo
espiritual. Uma coisa é clara: a carne e o sangue não poderão herdar o Reino de Deus; os corpos
ressuscitados serão corpos espirituais, não de carne. Depois, Paulo aplica isto a Jesus: «E assim
como trouxemos a imagem do homem da terra, assim também levaremos a imagem do homem
celeste» (1 Cor, 15, 42-50). Paulo repete: todos serão transformados; quando se tornarem como
o «homem celeste», deixarão de possuir os seus corpos corruptíveis, para possuírem um corpo
incorruptível. (1 Cor 15, 51-54.)
No século I, as pessoas conheciam dois fenómenos semelhantes à ressurreição: espíritos e
cadáveres ressuscitados. Nessa época, um espírito era o que é hoje, ou aquilo que era para
Shkespeare." um fantasma, que aparece, sobretudo, durante a noite." As pessoas esclarecidas da
Antiguidade, tal como os seus contrapartes modernos, rejeitam os espíritos como criaturas de
sonhos, invenções da imaginação. Os menos esclarecidos acreditavam, naturalmente. Paulo,
assim como Lucas, recusam a ideia de que o Senhor ressuscitado fosse um espírito; Lucas fá-lo
explicitamente («um espírito não tem carne nem ossos, como verificais que Eu tenho», 24, 40),
Paulo, de forma implícita: o
345
que ressuscitou é um corpo espiritual. Mas também se opõem à ideia de que Jesus fosse um
cadáver ressuscitado. Naquela altura, as pessoas conheciam melhor os cadáveres do que agora,
dado que o embalsamamento é uma prática comum. No entanto, é possível que uma pessoa
pareça estar morta e, mais tarde, «readquira» vida. Existem várias histórias deste tipo na
literatura da Antiguidade, algumas delas na Bíblia e em outros lugares.6 Paulo e Lucas negaram,
no entanto, que o Senhor ressuscitado fosse simplesmente um ressuscitado. Na opinião de
Paulo, ele mudou, transformando-se de um corpo «físico» ou «natural» num «corpo espiritual».
Lucas pensava que Jesus possuía um corpo e que podia comer, mas também que ele tinha sido
transformado. As pessoas que o viam não conseguiam reconhecê-lo imediatamente e ele podia
aparecer e desaparecer.
Ambos os autores tentaram descrever - Paulo em primeira mão, Lucas, em segunda ou em
terceira - uma experiência que não se encaixa numa categoria conhecida. Aquilo que eles negam
é muito mais claro do que aquilo que afirmam.
Narrativas desta natureza - que divergem entre si no que diz respeito a dados relativos aos
lugares e às pessoas a quem Jesus apareceu e nas quais não existe concordância e clareza em
relação à sua aparência (à exceção da concordância nos aspetos negativos) - não nos permitem
reconstruir o que aconteceu de facto. Ao longo deste livro, apresentei sugestões sobre o que está
subjacente a determinadas passagens nos Evangelhos. Neste caso, porém, não vejo como obter
provas ou como chegar aos acontecimentos que estiveram por de trás delas. Tenho opiniões
sobre alguns aspetos, como, por exemplo, sobre o movimento dos discípulo: eles fugiram para a
Galileia e, depois, regressaram a Jerusalém. A perspetiva de Lucas, segundo a qual os discípulos
nunca deixaram os arredores de Jerusalém, explica-se através da centralidade de Jerusalém na
sua obra, isto é, no Evangelho e nos Atos dos Apóstolos. Mas eu não pretendo que sei o que os
discípulos viram ou mesmo quem viu. O leitor que pensa que é tudo perfeitamente claro - o
Jesus histórico, com corpo físico, ressuscitou e andou por aí - deveria estudar Lucas e Paulo
mais cuidadosamente. Os
346
discípulos não conseguiram reconhecê-lo; ele não era «carne e sangue», mas um «corpo
espiritual». Não era um espírito, ou um cadáver ressuscitado, ou um homem com ferimentos
graves que sobreviveu durante mais algumas horas: é isso que Lucas e Paulo afirmam e João
(20, 14 e segs.) concorda com eles.
As listas das pessoas que viram o Senhor ressuscitado são, de alguma maneira, ainda mais
confusas.

Mateus Lucas João 20 Atos 1ª aos Coríntios


Jerusalém Jerusalém e Jerusalém Jerusalém
Ausência de
arredores informações
geográficas
Duas Marias Dois Discípulos Maria Madalena Cefas (= Pedro)
Os onze e outros Os discípulos Os apóstolos Os Doze 500
(no mesmo dia) (uma semana durante quarenta Tiago
depois) dias
João 21 Todos os
apóstolos Paulo
Galileia Os Galileia Sete
Onze discípulos

Algumas destas divergências não são difíceis de explicar. O autor de Lucas e dos Atos dos
Apóstolos era um escritor artístico e pensava que repetir-se a si próprio não era de bom gosto
estilístico. Por isso, o Senhor ressuscitado só ficou algumas horas com os discípulos, de
347
acordo com Lucas, e durante quarenta dias, de acordo com os Atos dos Apóstolos. A segunda
narrativa é diferente, para além de que, procura garantir ao leitor que os discípulos sabiam
exatamente o que Jesus queria: ele debateu-o longamente com eles. João 21 constitui um
apêndice, acrescentado, provavelmente, por um autor posterior que queria tratar do difícil
problema resultante do facto de, no tempo em que escreveu, todos os discípulos já terem
morrido (ver pp. 229 e segs.). Uma explicação mais genérica para todos os Evangelhos con-
siste em dizer que os seus autores tinham de apresentar narrativas. Paulo fez uma lista, mas eles
precisavam de histórias. Ao contarem estas histórias, os autores seguiram cada um o seu
caminho. Mas, apesar desta e das outras explicações razoáveis para as disparidades, estamos
perante um problema impossível de resolver. Os seguidores de Jesus tinham a certeza de que ele
tinha ressuscitado, mas não estavam de acordo quanto às pessoas que o tinham visto.
Não considero a fraude deliberada uma explicação útil. Muitas das pessoas que se encontram
nestas listas passariam o resto das suas vidas proclamando que tinham visto o Senhor
ressuscitado e várias delas iriam morrer pela sua causa. Além disso, uma ilusão calculada
deveria ter produzido maior unanimidade. O que parece é que estavam a competir entre si: «Eu
vi-o primeiro!» «Não, fui eu!» A tradição de Paulo, de acordo com a qual houve 500 pessoas
que viram Jesus ao mesmo tempo, levou alguns a sugerir que os seguidores de Jesus sofriam de
uma histeria coletiva. Mas a histeria coletiva não explica as outras tradições. O testemunho de
Paulo parece mais sugestivo a muitos. Ele não distingue aforma como Jesus lhe apareceu da
forma como apareceu aos outros. Se ele teve uma visão, talvez os outros também a tenham tido.
Mas, então, por que razão é que Paulo insiste que viu um «corpo espi- ritual»? Podia ter falado
de «espírito».
348
Na minha opinião, é um facto que os seguidores de Jesus (e, mais tarde, Paulo) tiveram
experiências da ressurreição. Mas não sei que realidade suscitou estas experiências.
Há muitos aspetos do Jesus histórico que permanecerão um mistério. Nada é mais misterioso do
que a história da sua ressurreição, que tenta retratar uma experiência que os próprios autores não
conseguiam compreender. Mas, no meio do mistério e da incerteza, não nos devemos esquecer
de que sabemos muito sobre Jesus. Sabemos que iniciou a sua vida pública sob João Baptista,
que teve discípulos, que esperava o Reino, que foi da Galileia para Jerusalém, fez algo hostil ao
Templo, foi julgado e crucificado. Por fim, sabemos que, depois da sua morte, os seus
seguidores fizeram experiência de algo que descreveram como a «ressurreição»: a aparição de
uma pessoa viva, mas transformada, que tinha realmente morrido. Eles acreditaram nisso,
viveram-no e morreram por isso. Neste processo, criaram um movimento que foi muito para
além da mensagem de Jesus, em muitos aspetos. O seu movimento cresceu e espalhou-se em
termos geográficos. Cerca de vinte e cinco anos mais tarde, Paulo - um convertido, não um
discípulo inicial - continuava à espera do regresso de Jesus durante a sua própria vida. Mas o
Senhor tardou.
O «atraso» levou a uma reflexão teológica criativa e estimulante, que se pode observar
especialmente no Evangelho de João; mas o material sinóptico não foi, de forma alguma, imune
aos desenvolvimentos teológicos. Entretanto, o homem que esteve por detrás de tudo isto
tornou-se remoto. Em consequência disto, é necessário um trabalho preliminar e minucioso para
penetrar através das camadas da devoção cristã e para recuperar o núcleo histórico. A
reconstrução histórica nunca é absolutamente certa e, no caso de Jesus, por vezes, é muitíssimo
incerta. Apesar disso, temos bastante noção das linhas principais do seu ministério e da sua
mensagem. Sabemos quem ele era, o que fez, o que ensinou e porque morreu; e, talvez o mais
importante, sabemos como inspirou os seus seguidores, que, por vezes, não o entenderam, mas
que lhe foram tão fiéis que mudaram a História.
349

Apêndice I: cronologia
O estabelecimento das datas de acontecimentos da Antiguidade é uma tarefa muito difícil, em
parte, porque o mundo mediterrânico antigo não possuía um calendário universalmente aceite. A
maioria dos autores da Antiguidade trabalhava, além disso, sem poder usufruir de arquivos e,
frequentemente, com base em informações orais. Hoje, sabemos mais sobre a sequência de
acontecimentos na Palestina do que Lucas sabia (por exemplo). Podemos comparar Josefo com
fontes romanas e, por vezes, com inscrições. É possível que Lucas dispusesse da obra de Josefo
(isto é uma questão discutida), mas não podia fazer o tipo de cruzamento de dados que os
investigadores modernos podem fazer. Já vimos que ele situa os acontecimentos da primeira
parte do seu Evangelho durante o reinado de Herodes (Lc 1, 5), mas que também datou o
nascimento de Jesus no tempo de um censo ordenado por Quirínio dez anos depois da morte de
Herodes (os acontecimentos deram-se no ano 4 a.e.c e 6 e.c., respetivamente). Isto mostra, pura
e simplesmente, as limitações das suas fontes.
No entanto, neste apêndice, pretendo debater um outro ponto: o ano da morte de Jesus. De
acordo com Lc 3, 1, João Baptista iniciou a sua missão no décimo quinto ano do reinado do
Tibério e Jesus,
351
pouco tempo depois. Tibério sucedeu a Augusto no ano 14 e.c.; portanto, Lucas situa o início do
ministério de Jesus por volta do ano 30. Isto não passa, porém, de um cálculo. Lucas não
escreveu que Jesus iniciou a sua vida pública precisamente um ano depois de João, pelo que a
sua informação não pode dizer quando Jesus morreu. Além disso, não sabemos quanto tempo
durou o ministério de Jesus. Mateus e João mencionam Caifás como o sumo sacerdote que
condenou Jesus (Mt 26, 3; Jo 11, 49; 18, 13 e segs.), e os quatro Evangelhos, assim como os
Atos dos Apóstolos, estão de acordo que Pila tos era o governador romano da Judeia (p. ex., Mt
27,2 & par.; Jo 18,29; Act 3, 13). Isto oferece-nos apenas um leque amplo de datas: Caifás foi
sumo sacerdote entre 18 e 36, Pilatos foi prefeito entre 26 e 36.
As datas que se referem ao ministério de Paulo e sobre as quais temos informações nas cartas do
próprio Paulo e nos Atos dos Apóstolos também são relevantes para a questão da data da morte
de Jesus. A cronologia de Paulo constitui, em si, uma questão complexa e difícil que não vou
tentar explicar. A conclusão geral de muitos estudos é, no entanto, que o ministério de Paulo,
especialmente as referências cronológicas na sua carta aos Gálatas, faz mais sentido se
situarmos a morte de Jesus nos finais dos anos vinte ou no início dos anos trinta e.c. Se
optarmos pelas datas mais antigas ou mais recentes durante a prefeitura de Pilatos (anos 27 e
36), os dados sobre o ministério de Paulo não são muito fáceis de conjugar.
As datas que Lucas apresenta para o início do ministério de João Baptista, o período da
administração de Pilatos e o testemunho derivado da cronologia de Paulo levaram a maioria dos
investigadores a contentar-se com a afirmação de que Jesus foi executado algures entre 29 e 33
e.c.
É possível, contudo, que a astronomia nos possa proporcionar uma data mais precisa. Os
Evangelhos indicam o dia da semana e o mês em que Jesus foi executado. De acordo com os
Evangelhos sinópticos, a execução aconteceu numa sexta-feira, o décimo quinto dia do mês
judaico de Nisan (o dia a seguir à Páscoa). De acordo com João, ele foi executado quando o dia
14 de Nisan (Páscoa) calhou numa sexta-feira.
352
Isto é o mesmo que dizer que algo aconteceu quando a véspera de Natal, dia 24 de Dezembro ou
o dia de Natal, 25 de Dezembro, calharam a uma quinta-feira. Nos últimos anos, tal aconteceu
em 1987, 1992 (24 de Dezembro) e 1986 (25 de Dezembro). Em que anos calharam os dias 14
ou 15 de Nisan numa sexta-feira?
Infelizmente, existem numerosos estudos que não conseguiram decidir a contento de todos. Para
mostrar onde está o problema, terei de explicar o calendário judaico. Este era (e continua a ser)
lunissolar. O ano estava dividido em meses e estes eram calculados estritamente segundo as
fases da Lua. O mês lunar começa com a lua nova e dura cerca de 291/2 dias; por isso, os meses
tinham 29 ou 30 dias. Doze meses deste tipo constituem um ano lunar de cerca de 354 dias, 11
mais curto do que um ano solar sazonal, que é determinado pela posição da Terra em relação ao
Sol. Num ano estritamente lunar, os meses recuam. Os meses começam todos os anos cerca de
11 dias mais cedo do que no ano anterior. Em consequência disso, as festas da Primavera
depressa começam a chegar no Inverno. Para manterem os meses na estação correta, os judeus
«intercalavam» um décimo terceiro mês de dois em dois ou de três em três anos. Por isso,
enquanto a maior parte dos anos tinha 354 dias, alguns tinham 383 ou 384. Num ciclo de
dezanove anos,
353
o número total de dias coincide com o número de dias de um ano solar. É por isso que dizemos
que o calendário judaico é um calendário lunissolar: os meses são lunares, mas o número de
meses é ajustado, a fim de se conseguir compatibilizar o calendário com o ano solar.
Este calendário dá-nos uma perspetiva para considerar o atual calendário ocidental. Nós
ignoramos as fases da Lua. Temos meses, mas os meses não começam com a lua nova se não
por acaso. Em média, os nossos meses têm cerca de 301/2 dias e não 291/2 dias. Doze meses
com 301/2 dias (isto é, seis meses de 30 dias e seis de 31 dias) constituem um ano que é um
tanto longo de mais em termos do ano sazonal. Por isso, há um mês, Fevereiro, que é encurtado.
Mas temos de intercalar um dia de quatro em quatro anos para mantermos os meses na estação
correta. Se não o fizéssemos, o Natal acabaria por começar a chegar no Outono. (Se não fosse o
ano bissexto, cada 120 anos, os nossos meses começariam 30 dias mais cedo no ano sazonal).
Para determinar quando um dia ocorreu em termos astronómicos (de acordo com a inclinação da
Terra no seu eixo e a fase da Lua), temos agora de saber quais foram os anos bissextos.
Podemos projetar o nosso próprio calendário no passado, contando os anos bissextos e atribuir,
assim, datas absolutas a acontecimentos da Antiguidade (isto é, as datas em perfeita
consonância com o calendário ocidental moderno). Teoricamente, também podemos retrojetar o
calendário judaico e, depois, relacioná-lo com o nosso calendário. Para retrojetarmos o
calendário judaico e determinarmos quando o dia 14 ou o dia 15 de Nisan calhou numa sexta-
feira, necessitamos de saber quais eram os meses que tinham 29 dias, quais tinham 30 dias e que
anos foram anos bissextos (duraram 13 meses). Atualmente, os astrónomos podem determinar
quais os meses que deveriam ter tido 29 dias, quais deveriam ter tido 30 dias e que anos
deveriam ter sido bissextos. No entanto, o calendário judaico não se baseava num cálculo
astronómico, mas sim numa observação. Os observadores judeus tinham de olhar para «o pri-
meiro brilho pálido da lua crescente, depois da conjunção com o sol», visto que a lua nova não é
visível, por definição. Não temos possibilidade
354
de de saber nada sobre as condições atmosféricas locais há 2000 anos atrás e estas contribuíram
para determinar o calendário. Os judeus da Antiguidade sabiam quando deviam começar a
observar; a chegada de uma lua nova nunca surpreendeu ninguém, mas, mesmo assim, os obser-
vadores tinham mesmo de a ver. Isto introduz alguma incerteza. Gostaria de citar de um
exemplo do tratamento clássico do tema, retirado de J. K. Fotheringham, que prefere a sexta-
feira, dia 14 de Nisan de 33 e.c., como a data da execução de Jesus. O autor comenta os esforços
dos investigadores para seguirem os sin6pticos e datarem a crucificação numa sexta-feira, dia 15
de Nisan do ano 30 e.c. Fotheringham aceita João e, por isso, acredita que este esforço é inútil.
Em vez disso, ele sugere sarcasticamente o ano 31, mas ao fazê-lo, torna claro o grau de
incerteza:
No ano de 31, o dia 14 de Nisan deve ter calhado a uma terça-feira, dia 27 de Março. Podemos
deslocá-lo para uma quinta-feira, supondo que Nisan começou um mês mais tarde e que o
aparecimento da lua se atrasou devido à existência de nebulosidade ... Os observadores de
eclipses sabem que nunca se pode contar com a ausência de nuvens. Se alguém quer descobrir
um ano que coincida com a data indicada pelos sinópticos, posso certamente aconselhar-lhe
situar Nisan um mês mais tarde e o aparecimento da lua crescente um dia mais tarde no ano 31,
em vez de, tal como Gerhardt; colocar o aparecimento da lua crescente um dia mais cedo, no
ano 30.
Isto dá uma ideia do problema. Quando as datas são fixadas através da observação, existe um
grande leque de possibilidades, algumas mais prováveis do que outras.
Quando as autoridades na Antiguidade fixaram a data da Páscoa, tiveram de tomar em
consideração não s6 a visibilidade da Lua, mas também a estação, determinada pela temperatura
e pelo crescimento dos cereais. A Páscoa tinha de calhar na Primavera. Durante a Festa dos
Ázimos, que se seguia à Páscoa, concretamente, eram oferecidos no Templo os primeiros frutos
da cevada. Os sacerdotes poderiam
355
intercalar um mês adicional, se temperaturas demasiado baixas para a estação do ano
significassem que a cevada não podia ser apresentada durante a festa.
Se os judeus da Antiguidade tivessem fixado os meses e os anos através de um cálculo
astronómico e se tivéssemos de escolher entre a cronologia de João e a cronologia dos
sinópticos com base no nosso cálculo astronómico, escolheríamos João. Dadas as duas
possibilidades para o dia do mês (sexta-feira, dia 14 de Nisan, e sexta-feira, dia 15 de Nisan) e
dado o intervalo de anos estabelecido pelo testemunho literário (29-33 e.c.), a melhor escolha,
em termos astronómicos, é a sexta-feira, dia 14 de Nisan do ano 33 e.c. (que corresponderia ao
dia 3 de Abril no nosso calendário)." Mas, na realidade, não podemos ter a certeza de que a
retroprojeção astronómica moderna para o calendário judaico coincide com o cálculo de datas
realizado de facto no século I. A cronologia dos sinópticos não pode ser confirmada pela
astronomia, mas também não pode ser refutada. A maioria dos investigadores continua a aceitá-
la por causa da forte coincidência entre a cronologia do quarto Evangelho e a sua cristologia:
Cristo era o cordeiro pascal. Isto leva a suspeitar que foi João que alterou o dia da execução.
Consideremos, agora, outro tipo de leitura de algumas das provas literárias que levou alguns
investigadores a decidirem-se por uma data posterior para a execução de Jesus, concretamente,
o ano 35 ou 36. Esta teoria que teve alguma divulgação em décadas anteriores, foi recuperada
recentemente por Nikos Kokkinos." A prova diz respeito à data de João Baptista. De acordo
com Me 6, 14-29 (com passagens parcialmente paralelas em Mateus e Lucas), Antipas pensava
que Jesus podia ser João Baptista ressuscitado. A passagem esclarece que Antipas mandou
executar João porque este tinha criticado o seu casamento com Herodíade. Me 1, 14 / / Mt 4, 12
situa o início do ministério público de Jesus imediatamente depois da prisão de João (Marcos)
ou
356
quase em simultâneo com a prisão deste (Mateus). Portanto, de acordo com os Evangelhos, a
sequência foi a seguinte: João batizou Jesus; João foi preso; Jesus começou o seu ministério;
João foi executado; Jesus foi executado.
Os investigadores que datam a execução de Jesus no ano 36 observam que Josefo narra o
casamento de Antipas com Herodíade depois da história da morte de Filipe, irmão de Antipas,
que ocorreu no final do ano de 3S ou no início do ano 34. Este casamento levou Aretas a invadir
a Galileia e provocou a derrota do exército de Antipas. Vitélio, o legado romano da Síria,
comandou uma expedição punitiva contra Aretas. Esta expedição ocorreu em 37, porque foi
interrompida pela morte de Tibério nesse mesmo ano." De acordo com os Evangelhos, a crítica
que João fez ao casamento de Antipas levou à sua execução. Se Antipas casou com Herodíade
depois de 34 e.c., é óbvio que João foi executado depois desta data. Isto leva à conclusão de que
a vida pública de Jesus se situa em meados dos anos trinta e que ele foi executado em 36, pouco
antes de Pilatos ter sido chamado a regressar a Roma. De acordo com esta teoria, tanto João
como Jesus têm de ser situados no período de tempo entre a morte de Filipe, que ocorreu em 33
ou 34, e a expedição de Vitélio, em 37.
O que é problemático nesta teoria é que, nesta secção das Antiguidades de Josefo, muitas das
histórias não estão ordenadas cronologicamente. Elas são introduzidas por expressões como, por
exemplo, «naquela altura», «mais ou menos na mesma época» e «entretanto». Vejamos a
sequência em que Josefo menciona as pessoas e os acontecimentos que nos interessam, assim
como alguns outros acontecimentos que podem ser datados com segurança. Coloco entre
parênteses as datas para as quais existem provas cronológicas muito fortes.
1. nomeação de Pilatos, Antiguidades 18, 35 (26 e.c)
2. morte de Germanicus, 18, 54 (19 e.c.)
3.. vida de Jesus, 18,63
357
4. escândalo em Roma por causa do culto de Ísis e um outro escândalo que envolveu judeus,
também em Roma, 18, 65-85 (19 e.c.)
5. demissão de Pila tos, 18, 89, indicando uma data específica: quando Pilatos chegou a Roma,
Tibério já tinha morrido (37 e.c.)
6. destituição de Caifás, 18, 95
7. carta de Tibério a Vitélio, 18,96
8. morte de Filipe, 18, 106 (33/34 e.c.)
9. acordo de Antipas para o casamento com Herodíade, 18, 110
10. viagem da filha de Aretas ao encontro do seu pai, 18, 111-113
11. invasão de Aretas, 18, 114
12. morte de João Baptista, 18, 116-119
13. expedição punitiva contra Aretas durante a qual Tibério morreu, 18, 120-126 (37 e.c.)
Na narrativa de Josefo, a vida de Jesus situa-se entre dois acontecimentos ocorridos em 19 e.c. e
a execução de João, entre acontecimentos sucedidos em 33 e 37 e.c. A sugestão de que a vida
pública de Jesus decorreu entre cerca de 34 e 36 requer que acreditemos que Josefo situa a
morte de João Baptista na data correta, mas não a vida de Jesus. Para a vida de Jesus, temos de
aceitar a ligação entre João e Jesus estabelecida pelos Evangelhos. Como «conhecemos» a data
da morte de João, temos de deslocar a vida pública de Jesus para mais tarde.
Não surpreende que alguns investigadores tomem o caminho oposto: conhecemos a data da
morte de Germanicus - ano 19 e.c. Há outros acontecimentos nesta secção das Antiguidades que
também podem ser datados, com toda a certeza, no período entre 15 e 19 e.c. A nomeação de
Pilatos precede este acontecimento, na narrativa de Josefo, portanto, ele foi nomeado antes 19
e.c .. Por conseguinte, a vida pública de Jesus ocorreu muito antes de 26-36. Na realidade, ele
foi crucificado em 21 e.c,"
358
Estas teorias partem ambas do princípio de que há uma parte do Livro 18 das Antiguidades de
Josefo que situa os acontecimentos na sua sequência real, mas não estão de acordo entre si em
relação à parte de que se trata. 10 Seja como for, a carroça vai à frente dos bois. Há um ponto
fixo que oferece uma data precisa para as histórias contíguas e, depois, o resto da prova é
forçada a adaptar-se. Para a teoria segundo a qual Jesus morreu pouco tempo antes de 37, Josefo
refere-se à sua vida demasiado cedo. Para a teoria segundo a qual ele morreu em 21, Josefo
refere-se a João Baptista demasiado tarde. De acordo com ambas as teorias, ele estava certo no
que diz respeito a um dos acontecimentos e completamente errado no que diz respeito a outro.
Em vez de permitirmos que um ponto supostamente fixo determine a data de todos os outros
acontecimentos, deveríamos recuar e olhar para a prova em termos mais gerais. Nesta parte da
sua obra, Josefo não está a narrar acontecimentos na sua ordem cronológica exata. Tibério
morre, depois escreve uma carta e, depois, morre (ver 5, 7 e 13). Uma parte da sequência é
casual (à exceção de que tudo está relacionado com o período de governação de Tibério), tanto
quanto posso dizer, mas uma parte é temática. O ponto 4, já referido, aparece onde está porque
termina com uma tentativa de Roma para forçar os judeus a servirem num exército que era
contra a lei relativa ao sábado (18, 84). Isto relaciona-se vagamente com uma das afrontas de
Pila tos à Lei judaica, relatada por Josefo em 18, 60-62. Por isso, um acontecimento do ano 19
(escândalos em Roma) parece ter ocorrido entre 26 e 36 (a prefeitura de Pilatos na Judeia). No
entanto, os escândalos de 19 e.c. estão fixados por fontes romanas de uma forma demasiado
clara para permitir que a colocação que Josefo faz dos mesmos iluda os biblistas. É óbvio que
Jesus e João Baptista não podem ser datados com exatidão através de fontes romanas, visto que
o seu impacto imediato foi demasiado insignificante, pelo que podem ser deslocados, no caso de
se supor que existe alguma sequência de Josefo que seja exata.
359
Gostaria de fazer mais alguns comentários à teoria de Nikos Kokkinos, assumida recentemente
pelo eminente historiador Robin Lane FOX.II Como vimos, o argumento fundamental de
Kokkinos é que, nas Antiguidades, a história sobre João Baptista aparece depois da morte de
Filipe e antes da expedição contra Aretas, dois acontecimentos que podem ser datados com
precisão: 33/34 e 37, respetivamente. Não há dúvida de que a expedição punitiva contra Aretas
se relacionou com o facto de Antipas ter decidido casar com Herodíade. A sequência deve ter
sido a seguinte: Antipas planeou levar Herodíade para a Galileia; a sua primeira mulher, filha de
Aretas, fugiu para o seu pai; Aretas invadiu a Galileia; as tropas romanas na Síria
desencadearam uma expedição punitiva contra Aretas. É razoável pensar que o novo arranjo
doméstico de Antipas tenha ocorrido imediatamente antes da invasão de Aretas. Se João
Baptista criticou o novo casamento, e se Aretas respondeu prontamente, quando a sua filha foi
substituída, então João estava vivo muito próximo do ano 37. Kokkinos, seguindo esta linha de
raciocínio, escreve: «logo que a aliança entre os dois reis [Antipas e Aretas] foi quebrada [pelo
divórcio], Aretas utilizou o pretexto de uma disputa fronteiriça e declarou guerra a Antipas»;
Esta especulação é plausível no que diz respeito ao divórcio e à retaliação de Aretas. Mas trata-
se de uma especulação. Não sabemos o que significa «logo que»: esta é a questão, não
necessariamente a resposta. Josefo escreveu que a filha de Aretas «chegou ao seu pai e contou-
lhe o que Herodes [Antipas] planeava fazer. Aretas iniciou assim hostilidades fronteiriças no
distrito de Gamalas. «Iniciou assim» não significa necessariamente «logo que»; pelo contrário, é
de supor que tenha passado algum tempo entre o divórcio e a guerra. O segundo argumento que
Kokkinos apresenta para defender a sua teoria é que os judeus
360
consideraram a derrota de Antipas uma vingança justa por causa de ele ter mandado executar
João. «É enganador argumentar que os judeus tinham consciência de que a vingança de Deus
não ocorria imediatamente depois do ato. Circunstâncias no passado recente mais do que no
passado distante levariam mais provavelmente os judeus a falar de uma punição divina.»!"
Trata-se, em parte, de pura suposição e, em parte, de um argumento fraco. Não seria enganador
dizer que os judeus pensavam que a vingança de Deus tardava, se fosse isso que eles pensavam.
Kokkinos parece imaginar que eles tinham escolha e decidiam a favor de uma retribuição
rápida, em vez de uma retribuição demorada. Mas, como João era muito respeitado e a sua
execução foi extremamente impopular, aqueles que condenaram a ação de Antipas teriam
esperado que lhe acontecesse algo de facto sério, antes de declararem que Deus tinha vingado
João. Teria sido desejável um golpe imediato, deste ponto de vista, mas os muitos admiradores
de João tinham de aceitar aquilo que podiam receber. Se a pior coisa que aconteceu a Antipas
durante os cinco anos seguintes foi torcer o tornozelo ao sair do banho, então a multidão teria
esperado que lhe acontecesse algo pior. Quando Aretas derrotou o exército de Antipas, aqueles
que tinham estado à espera - não sabemos durante quanto tempo - declararam que Deus tinha
retribuído.
É preferível pensar que a história de Antipas, de Herodíade e da execução de João é um
«regresso ao passado», fora da sua sequência histórica." De facto, é bastante óbvio que a
história da execução de João é um «regresso ao passado»: Josefo refere-se a ela depois do acon-
tecimento que é suposto ter sido provocado por ela. Josefo ordena o material de toda esta parte
(9-13) por temas; isto explica por que motivo a história de Herodíade, a invasão de Aretas e a
execução de João aparecem tão seguidas. A sua proximidade na narrativa de Josefo não
prova, de modo algum, que elas tivessem ocorrido, de facto, numa sequência rápida. Retomando
a lista apresentada anteriormente, vemos que os acontecimentos datáveis se encontram referidos
nos números 8 e 13. Os acontecimentos mencionados nos números 9-12 aparecem onde estão
porque se relacionam com o número 13, do ponto de vista
361
temático. Não sabemos se estes acontecimentos podem ser todos concentrados no período entre
8 e 13.16 Por conseguinte, não sabemos quando Antipas encontrou Herodíade, quando a sua ex-
mulher fugiu para o seu pai e quando João foi executado.
Não estou a tentar provar ou refutar uma data ou outra. A minha intenção foi dar ao leitor uma
«ideia» das dificuldades históricas que as nossas fontes apresentam, assim como ilustrar como
as pessoas podem agarrar-se a um ponto, tentando adaptar tudo a ele. Fazemos melhor se
aceitarmos que as fontes estão corretas em termos mais gerais. Isto permite que não só uma
delas, mas mesmo todas sejam imprecisas ou erradas em alguns pormenores. A cronologia
oferece o melhor exemplo para isso. A sequência de datas não importa realmente para a nossa
compreensão da vida de Jesus, desde que situemos a sua morte durante o período em que Pilatos
era prefeito (26-36 e.c.). A precisão das datas é, de facto, mais importante quando se estuda a
igreja primitiva, incluindo a vida de Paulo, visto que necessitamos de saber quanto tempo temos
de conceder para o desenvolvimento do cristianismo primitivo. Para termos um número redondo
conveniente, e tendo em conta que não podemos ter a certeza, aceitarei o ano 30 e.c. como
sendo, aproximadamente, o ano da morte de Jesus.
362

Apêndice 11: discípulos de Jesus


Segue-se uma lista completa de nomes, divididos de acordo com os
testemunhos:

Todos os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos:


Simão (chamado Pedro; nas cartas de Paulo, chamado frequentemente Cefas)
André, o seu irmão
Tiago e João - filhos de Zebedeu; o quarto Evangelho não utiliza o seu nome, referindo-se-lhes
apenas como «filhos de Zebedeu»
Filipe
Tomé
Judas Iscariotes

Mateus, Marcos, Lucas e Atos dos Apóstolos:


Bartolomeu
Mateus
Tiago, filho de Alfeu
Simão, o Cananeu ou o Zelo ta
363
Mateus e Marcos
Tadeu

Lucas, Atos dos Apóstolos e João


Judas, filho de Tiago (em Lucas e nos Actos; João fala de «Judas, não o Iscariotes»)

João
Natanael
Isto perfaz catorze nomes. Além disso, Marcos e Lucas referem
Levi como um cobrador de impostos que seguiu Jesus.
364

lindice
Abreviaturas----------------------------------------------------------------------------------- 7
Tabela cronológica -.--------------------------------------------------------------------------9
Prefácio ---------------------------------------------------------------------------------------11

1 Introdução ----------------------------------------------------------------------------------15
2 Esboço da vida de Jesus -------------------------------------------------------------------25
3 Situação política ----------------------------------------------------------------------------31
4 O judaísmo como religião -----------------------------------------------------------------55
5 Fontes externas -----------------------------------------------------------------------------75
6 Os problemas das fontes primárias -------------------------------------------------------85
7 Dois contextos -----------------------------------------------------------------------------109
8 O cenário e o método do ministério de Jesus -------------------------------------------133
9 O início da missão de Jesus ---------------------------------------------------------------151
10 Milagres -----------------------------------------------------------------------------------173
11 A vinda do Reino -------------------------------------------------------------------------217
365
12 O Reino: Israel, gentios e indivíduos ----------------------------------------------------241
13 O Reino: inversão de valores e perfeccionismo ético ----------------------------------249
14 Controvérsia e oposição na Galileia -----------------------------------------------------259
15 A forma como Jesus encarava o seu papel no plano de Deus -------------------------297
16 A última semana de Jesus -----------------------------------------------------------------311
17 Epílogo: a ressurreição --------------------------------------------------------------------341
18 Apêndice I: cronologia --------------------------------------------------------------------351
19 Apêndice Il: discípulos de Jesus ---------------------------------------------------------363
366

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