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HISTÓRIA DO CRISTIANISMO

Sob a direcção de ALAIN CORBIN


com NICOLE LEMAITRE, FRANÇOISE THELAMON, CATHERINE VINCENT
HISTÓRIA DO CRISTIANISMO
Para compreender melhor o nosso tempo
Tradução de António Maia da Rocha
72 EDITORIAL PRESENÇA
FICHA TÉCNICA
Título srcinal: Histoire du Christianisme
Direcção de Alain Corbin com a colaboração de Nicole Lemaitre, Françoise Thelamon e
Catherine Vincent
Autores: Vários
Copyright (c) Éditions du Seuil, 2007
Tradução (c) Editorial Presença, Lisboa, 2008
Tradução: António Maia da Rocha
Capa: Ana Espadinha
Composição, impressão e acabamento: Multitipo - Artes Gráficas, Lda.
1.ª edição, Lisboa, Dezembro, 2008
Depósito legal 283 313/08
Reservados todos os direitos
para a língua portuguesa (excepto Brasil) à
EDITORIAL PRESENÇA
Estrada das Palmeiras, 59
Queluz de Baixo
2730-132 Barcarena
Email: info@presenca.pt
Internet: http://www.presenca.pt

ÍNDICE

PREÂMBULO.............................11
PRIMEIRA PARTE
No princípio
Os inícios da história do cristianismo (séculos I-V)
I - SURGIMENTO DO CRISTIANISMO.............................................----1
7
Jesus de Nazaré. Profeta judeu ou Filho de Deus? ..........................----17
No seio da primeira aliança. O ambiente judeu ...............................--- 2
2
As comunidades cristãs de srcem judaica na Palestina..................--- 26
Paulo e a primeira expansão cristã..................................................
..--- 30
II - VIVER COMO CRISTÃO "NO MUNDO SEM SER DO MUNDO"
(A DIOGNETO)....................................................................
.............--- 39
Perseguidos, mas submetidos ao Império Romano (até 311)...........--- 39
"Vivemos convosco", mas... Os cristãos e os costumes do seu
tempo...........................................................................
...................--- 43
Respondendo às críticas. Os apologistas, de Aristides a Tertuliano .--- 46
III - QUANDO O IMPÉRIO ROMANO SE TORNA CRISTÃO..........--- 50
De Constantino a Teodósio. Da conversão do imperador à conversão
do Império........................................................................
..............--- 50
Pensar o Império cristão. Teologia política e teologia da História...--- 54
Roma christiana, Roma aeterna. O lugar adquirido pela Igreja de
Roma durante a Antiguidade tardia...............................................
...--- 57
IV - DEFINIR A FÉ ................................................................
.................--- 61
Heresias e ortodoxia............................................................
..............--- 61
Concorrentes do cristianismo. Gnose e maniqueísmo......................--- 64
A elaboração de uma ortodoxia nos séculos IV e V .........................--- 68
V - EDIFICAR ESTRUTURAS CRISTÃS ............................................--- 71
Estruturar as igrejas...........................................................
................--- 71
Iniciação cristã, culto e liturgia....................................................
.....--- 75
Cristianização do espaço e cristianização do tempo ........................--- 79
Dignidade dos pobres e prática da assistência .................................--- 8
3
Em busca da perfeição. Ascetismo e monaquismo ..........................--- 87
VI - INTELECTUAIS CRISTÃOS PARA CONFIRMAR A FÉ.
OS PADRES DA IGREJA.............................................................
...--- 91
Basílio, Gregório de Nazianzo e João Crisóstomo...........................--- 91
Jerónimo e a "Vulgata" ...........................................................
..........--- 96
Santo Agostinho e a irradiação do seu pensamento.........................---100
VII - ANUNCIAR O EVANGELHO "ATÉ AOS CONFINS DA TERRA"--- 107
A cristianização da bacia mediterrânica no século V nas fronteiras
do Império Romano.................................................................
......---108
Povos cristãos nas fronteiras do Império Romano...........................---114
Bárbaros cristãos, dentro e fora do Império Romano ......................---119
SEGUNDA PARTE
A Idade Média
Nem lenda negra nem lenda dourada... (séculos V-XV)
I _ CONSOLIDAÇÃO E EXPANSÃO .................................................---127
São Bento (+ ca. 547). Pai dos monges do Ocidente.......................---127
Gregório Magno. Um pastor à dimensão do Ocidente.....................---132
Por volta do ano 1000. As "cristandades novas".............................---13
6
Roma, cabeça da Igreja latina (a partir do século XI) ......................---142
Bizâncio/Constantinopla e o Ocidente. Comunhão e diferenciação ..---146
São Bernardo de Claraval (+ 1153) e os cistercienses ......................---150
A catedral .....................................................................
.....................---153
II - AFIRMAÇÃO, CONTESTAÇÕES E RESPOSTA PASTORAL ...---157
A primeira cruzada (1095) e os seus prolongamentos .....................---157
As heresias (século XII)..........................................................
...........---161
A Inquisição (século XIII)............................................................
......---165
O fim dos tempos................................................................
..............---169
Latrão IV (1215). O ímpeto pastoral ................................................
---173
Francisco, o pobre de Assis (+ 1226) ...........................................
....---177
As ordens mendicantes...........................................................
...........---181
Tomás de Aquino (+ 1274) .........................................................
......---185
III - TRABALHAR PARA A SUA SALVAÇÃO...................................---188
O Purgatório e o além...............................................................
........---188
Culto dos santos, relíqüias e peregrinações......................................---192
Nossa Senhora...................................................................
................---196
A multiplicação das obras de caridade (séculos XII-XIII).................-- 200
O culto do Santíssimo Sacramento (século XIII) ..............................-- 204
i (+ 1415)......................................................................
......-- 207
A busca de Deus. Místicos do Oriente e do Ocidente .....................-- 211
A Imitação de Cristo................................................................
.........-- 218
TERCEIRA PARTE
Os tempos modernos
A aprendizagem do pluralismo
(séculos XVI-XVIII)
I - OS CAMINHOS DA REFORMA....................................................--
229
Erasmo e Lutero. Liberdade ou escravidão do ser humano.............-- 229
Até ao fim das Escrituras. Os radicais das reformas........................-- 233
Calvino. Eleição, vocação e trabalho................................................-- 2
36
A via média anglicana. Uma lenta construção .................................-- 240
I - RIVALIDADES E COMBATES......................................................
-- 244
Inácio de Loiola e a aventura jesuíta...............................................
.-- 244
As Inquisições na época moderna.....................................................--
248
Liturgias novas ou liturgias de sempre? ........................................
...-- 251
Mística do coração, do fogo e da montanha.....................................-- 256
Mística da Encarnação e da escravidão ............................................-- 260
O jansenismo. Entre sedução rigorista e mentalidade de oposição .-- 264
III - EVANGELIZAR E ENQUADRAR O MUNDO.............................-- 268
Cristianismos longínquos .........................................................
.........-- 268
"Instruir na cristandade".......................................................
............-- 275
A imagem tridentina. Ordem e beleza.............................................
.-- 279
Roma e Genebra. Novas Jerusalém da comunicação.......................-- 283
V - NOVOS HORIZONTES DE SENSIBILIDADE..............................-- 286
Bach. A música sem fronteiras ....................................................
.....-- 286
Nascimento da crítica bíblica (séculos XVI e XVII) ..........................-- 289
A renovação protestante. Do pietismo ao pentecostalismo, passando
pelos despertares ..............................................................
..............-- 293
Os santos e a sua nação (séculos XIV-XX)........................................-- 296
A Ortodoxia russa. Monolitismo e cisões (séculos XVI-XVIII)..........-- 299
QUARTA PARTE
O tempo da adaptação ao mundo contemporâneo (séculos XIX-XXI)
I - A EVOLUÇÃO DA EXEGESE BÍBLICA E DAS FORMAS DA
PIEDADE...................309
A Bíblia e a história das religiões (séculos XIX-XX)....................309
João Maria Baptista Vianney, cura d'Ars (1786-1859) ...................-- 313
A renovação da teologia e do culto marianos ..................................-- 316
Teresa do Menino Jesus (1872-1897)..............................................
.-- 319
Pio X, a infância espiritual e a primeira comunhão..........................-- 323
Dois séculos de querelas em torno da arte sacra..............................-- 32
7
II -A DOUTRINA CRISTÃ PERANTE O MUNDO MODERNO......-- 330
Um catolicismo intransigente. O "momento Pio IX" (1846-1878)..-- 330
A encíclica Rerum novarum (1891) e a doutrina social da Igreja
católica..........................................................................
.................-- 334
O cristianismo e as ideologias do século XX....................................--
337
O Concilio Vaticano II (1962-1965)..............................................
...-- 340
O catolicismo perante a limitação dos nascimentos.........................-- 343
III - O CRISTIANISMO À DIMENSÃO DO PLANETA......................-- 347
Regresso à história longa do cristianismo oriental na época otomana
(séculos XV-XIX)..................................................................
...........-- 347
A acção missionária nos séculos XIX e XX.......................................-- 354
O protestantismo na América do Norte ............................................-
- 358
Do ecumenismo ao inter-religioso? ..............................................
....-- 361
GLOSSÁRIO.........................................................................
........................-- 365
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................
...-- 367
REFERÊNCIAS BÍBLICAS................................................................
.........-- 369
OS AUTORES......................................................................
.........................-- 371
ÍNDICE DOS MAPAS..................................................................
................-- 377
10
PREÂMBULO
O cristianismo impregna, com maior ou menor evidência, a vida quotidiana, os valor
es e as opções estéticas, mesmo daqueles que o ignoram. Contribui para o desenho
da paisagem dos campos e das cidades. Por vezes, faz a actualidade. Entretanto,
os conhecimentos necessários à interpretação desta presença vão-se apagando rapidamente
e, ao mesmo tempo, vai crescendo a incompreensão.
Admirar o monte Saint-Michel e os monumentos de Roma, de Praga ou de Belém; deleit
ar-se com a música de Bach ou de Messiaen; contemplar os quadros de Rembrandt ou
saborear verdadeiramente determinadas obras de Stendhal ou de Victor Hugo implic
a poder decifrar as referências cristãs que constituem a beleza destes lugares e
destas obras-primas. Também a existência dos debates mais recentes sobre a colonização,
as práticas humanitárias, a bioética e o choque das culturas pressupõe um
conhecimento do cristianismo, dos elementos fundamentais da sua doutrina, das pe
ripécias que marcaram e ritmaram a sua história, das etapas da sua adaptação ao mundo.
Foi nesta perspectiva que nos dirigimos a especialistas eminentes. Propusemos-lh
es que pusessem o seu saber à disposição dos leitores de um grande público culto.
Mas, sem o peso da erudição, sem o emprego de um vocabulário demasiado especializado,
sem eventuais alusões a um pressuposto conhecido que já não tem existência
real e, evidentemente, sem visões proselitistas.
Esta obra colectiva interessará aos leitores cristãos desejosos de aprofundar o seu
saber e, ainda mais, a todos aqueles que, por simples curiosidade intelectual
ou para compreender melhor o seu ambiente e a cultura dos outros, desejam conhec
er a história de uma religião que, até agora, não lhes tem sido revelada deforma
suficientemente nítida.
Alain Corbin, Nicole Lemaitre, Françoise Thelamon, Catherine Vincent
11

PRIMEIRA PARTE
NO PRINCÍPIO
OS INÍCIOS DA HISTÓRIA
DO CRISTIANISMO
(séculos I-V)

Componente da cultura do nosso tempo, o cristianismo nasceu numa época precisa da


história do mundo mediterrânico e do Próximo Oriente, na Antiguidade, num país,
a Judeia, que então fazia parte do Império Romano; enraízado na fé e na cultura judaicas
, desenvolveu-se rapidamente na cultura greco-romana.
O cristianismo surgiu com a pregação do profeta judeu Jesus de Nazaré, em quem os cris
tãos reconhecem o Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado para a salvação
dos homens. A sua fé fundamenta-se no testemunho dos primeiros discípulos, que recon
heceram em Jesus o Messias ou Cristo (daqui o nome de cristãos que lhes foi dado),
anunciado pelos profetas. Proclamaram que aquele que tinha sido condenado à morte
pelas mãos dos homens foi ressuscitado por Deus com o seu corpo, em que eles tocar
am
- fundamento da crença dos cristãos na ressurreição da carne - e que, depois, desaparece
u diante dos seus olhos, tendo enviado o Espírito Santo que os amava para
anunciarem esta Boa-Nova (Evangelho) "até aos confins da Terra", conforme com a mi
ssão que Jesus lhes tinha confiado.
Na Palestina, entre judeus e não-judeus (ou gentios), foram-se formando pequenas c
omunidades de crentes; depois, na parte oriental do Império Romano e em Roma; e,
logo a seguir, não só na sua parte ocidental, mas também nas regiões exteriores - Mesopo
tâmia e talvez a índia desde a época apostólica, Arménia, Geórgia e Etiópia
- e, nos séculos IV e V, entre os povos bárbaros: visigodos, ostrogodos e vândalos.
Os crentes cristãos dos primeiros séculos viveram e praticaram a sua fé nas condições conc
retas do mundo do seu tempo. Foi em grego que a Boa-Nova de Jesus Cristo
e os outros textos que formam o Novo Testamento foram passados a escrito, embora
o aramaico, o hebraico e o siríaco tenham sido conjuntamente utilizados nalguns
casos. A Bíblia (Antigo e Novo Testamento - o primeiro já tinha uma tradução grega, a do
s Setenta) foi traduzida nas diferentes línguas: latim, gótico, siríaco,
copta, arménio e eslavónio. Foi também em grego que as primeiras fórmulas de fé foram conc
eptualizadas e fixadas. Os cristãos da Antiguidade usaram modos do pensamento
judaico, categorias filosóficas do pensamento grego, técnicas de discurso da retórica
grega e latina para formular uma teologia que se foi apurando ao longo do tempo.
Aqueles que o fizeram - bispos reunidos em concílios, apologistas e Padres da Igre
ja - estavam convencidos de que se exprimiam sob a inspiração do Espírito Santo.
15

Quando se tornou evidente que o regresso de Cristo, que os primeiros cristãos tinh
am esperado, não estava iminente, as comunidades organizaram-se e estruturaram-se,
unidas por um laço de comunhão. Embora, espiritualmente, a Igreja se defina como cor
po místico de Cristo, que é a sua cabeça, e todos os baptizados sejam os membros,
concretamente a Igreja constituiu-se a partir das Igrejas locais unidas por um f
undo comum de crenças e de ritos essenciais (baptismo e eucaristia). Com a ajuda
dos conceitos de heresia e ortodoxia, elaborados pouco a pouco, definiu-se uma d
outrina que conduziu, marginalizando certas correntes, à construção da "Grande Igreja"
.
Perseguidos pelas autoridades judaicas desde o início, os cristãos também o são, logo qu
e identificados como tais, pelas autoridades romanas, que podem punir a sua
recusa de venerar os deuses comuns a todos. Apesar de sujeitos ao Estado e ao po
der, pelo qual oram, os cristãos distinguem-se pela sua fé e apego a valores e modos
de vida que os levam a viver com os seus contemporâneos, mas "no mundo sem ser do
mundo". Por isso, são alvo da hostilidade popular e do desprezo das pessoas cultas
.
Tanto a uns como a outros, os intelectuais cristãos respondem, enquanto, em tempo
de perseguição, homens e mulheres dão testemunho da sua fé e, até à morte, reivindicam
a sua identidade cristã; estes mártires tornam-se modelos venerados; mas os pastores
aceitam reconciliar, depois de uma penitência apropriada, os que falharam e
caíram. Com o fim das perseguições, o ascetismo substituiu o martírio como meio para ati
ngir a santidade através de uma perfeita identificação com Cristo.
O reconhecimento da liberdade religiosa perante o fracasso das perseguições e a adesão
pessoal do imperador Constantino à fé cristã (a partir de 312), depois a dos
seus sucessores, excepto de Juliano, criam condições radicalmente novas. Doravante,
o imperador concede favores aos cristãos, o que permite uma certa cristianização
do espaço e do tempo. Ele também intervém nos negócios da Igreja e até na definição da própri
o que foi, durante o século IV, fonte de conflitos. Pouco a pouco,
também reprime os cultos tradicionais até os proibir no final do século IV, fazendo do
cristianismo a religião do Estado. A esta evolução estava subjacente uma teologia
cristã do poder político e da história. Os cristãos tinham de pensar não só no soberano cris
tão e no seu lugar na Igreja, mas também na função do Império Romano
no plano providencial de Deus para, finalmente, quando Roma foi ameaçada, compreen
derem que a sorte da Igreja não estava ligada a nenhum Estado, mesmo que fosse
cristão. Assim, os cristãos aprendiam a ver-se como "cidadãos do Céu" e a aspirar ao "Re
ino que nunca terá fim" (Agostinho, Cidade de Deus, XXII, 30).
Françoise Thelamon
16

SURGIMENTO DO CRISTIANISMO

Jesus de Nazaré Profeta judeu ou Filho de Deus?

Como se conhece a vida de Jesus de Nazaré?


Jesus falou, mas não escreveu nada: nenhum documento dele nos chegou à mão. Portanto,
as fontes documentais de que dispomos são todas indirectas; mas são múltiplas.
A mais antiga é a correspondência do apóstolo Paulo, redigida entre 50 e 58. Falava da
morte do Nazareno por crucifixão e da fé na sua Ressurreição; além disso,
o apóstolo conhece uma colecção de "palavras do Senhor" que utiliza (às vezes, sem as ci
tar) na sua argumentação. Depois, por ordem de antiguidade, vêm os Evangelhos:
por volta de 65, o de Marcos foi redigido tendo por base tradições que remontam aos
anos 40; os de Mateus e Lucas foram redigidos entre 70 e 80, ampliando Marcos;
o de João data de 90-95. Estes escritos não são crónicas históricas: fazem memória da vida d
o Nazareno, mas numa perspectiva de fé que apresenta simultaneamente
factos e a sua leitura teológica. Evangelhos mais tardios ausentes do Novo Testame
nto, ditos apócrifos, foram, por vezes, herdeiros de tradições não consideradas
pelos quatro anteriores: nomeadamente o Evangelho de Pedro (120-150), o Proto-Ev
angelho de Tiago (150-170) e o Evangelho copta de Tomé (por volta de 150).
As fontes não cristãs são raras: os historiadores romanos não julgaram o acontecimento d
igno de ser contado. Mas um historiador judeu, Flávio Josefo, apresenta nas
suas Antiguidades Judaicas (93-94) esta notícia: "Naquela época, houve um homem sábio
chamado Jesus, cuja conduta era boa; as suas virtudes foram reconhecidas. E
muitos judeus e de outras nações fizeram-se seus discípulos. E Pilatos condenou-o a se
r crucificado e a morrer..." (18, 3, 3). Mais tardiamente, o Talmude judeu
apresenta uma quinzena de alusões a "Yeshu"; estas falam da sua actividade de cura
dor e da sua condenação à morte, por ter - diz-se - extraviado o povo (Baraitha
Sanhedrin 43a; Abodoh Zara 16b-17a).
17

O que há de certo?
A reconstituição da vida de Jesus é objecto de pesquisas literárias minuciosas; mas, com
o para todas as personagens da Antiguidade, as certezas absolutas são pouco
numerosas. Entretanto, podemos apresentar alguns factos com alguma segurança.
Jesus nasceu numa data desconhecida, que poderia ter sido o ano 4 antes da nossa
era (antes da morte de Herodes, o Grande). Foi baptizado no Jordão por João Baptist
a,
de quem se tornou discípulo, antes de fundar o seu próprio círculo de aderentes. À manei
ra de João, Ele espera a vinda iminente de Deus à história; também partilha
a convicção de que, para se ser salvo, não basta pertencer ao povo de Israel: é indispen
sável praticar o amor e a justiça. Pelos trinta anos, Jesus é um pregador
popular que alcança algum sucesso na Galileia. Ao contrário dos rabinos (doutores da
Lei) da época, Ele ensina com uma linguagem simples; as suas parábolas retomam
o quadro familiar dos seus ouvintes (o campo, o lago, as vinhas) para falar surp
reendentemente de um Deus próximo e acolhedor. Simplifica a obediência à Lei, centrand
o-a,
como outros rabinos antes dele, no amor aos outros. Os seus numerosos actos de c
ura revelam que Ele era um curador talentoso e apreciado. Com o seu grupo de ade
rentes,
leva uma vida itinerante; vão-se aumentando e alojando nas aldeias onde param. Além
de um círculo próximo de doze galileus, há outros homens e mulheres que o acompanham
e partilham o seu ensino diário.
A subida a Jerusalém irá causar a sua morte. Comete um acto violento no Templo, um g
esto profético que atrai a hostilidade da elite política de Israel: derruba as
bancas dos vendedores de animais de sacrifício, talvez para protestar contra a mul
tiplicação dos ritos que se interpõem entre Deus e o seu povo. Então, por instigação
do partido saduceu, decide-se denunciar Jesus ao prefeito Pôncio Pilatos por causa
da agitação popular. Pressentindo que a hostilidade iria apanhá-lo, Jesus despedira-s
e
dos seus amigos durante uma última refeição (a Ceia), em que instaurou um rito de comu
nhão no seu corpo e no seu sangue: o pão partido e a taça de que todos bebem
simbolizavam a sua morte futura e relembrariam a sua memória. Depois da sua detenção,
facilitada por um discípulo, Judas, Jesus foi levado perante o prefeito, condenado
à morte e entregue aos legionários que o pregaram numa cruz. A sua agonia durou apen
as algumas horas, facto que espantou Pilatos; o homem de Nazaré devia ter uma
constituição fraca. Pouco depois da sua morte, correu o boato de que os seus discípulo
s o tinham visto vivo e de que Deus o atraíra a si.

Um reformador de Israel
Jesus de Nazaré não tinha o projecto de criar uma nova religião. A sua ambição era reforma
r a fé de Israel, simbolizada pelo círculo dos doze
18

íntimos que o seguiam. Estes homens representam simbolicamente o povo das doze tri
bos, o Israel com que Jesus sonha. Ele queria reformar a fé judaica, mas fracassou
.
Porquê?
Jesus era um místico, dotado de uma forte experiência de Deus. A seus olhos, Deus es
tava próximo dos humanos, tão próximo que, para lhe orar, bastava chamar-lhe
"papá" ou "paizinho" (abba em aramaico). As suas palavras e os seus gestos estão mar
cados por um sentimento de urgência inadiável. O apelo para seguir Jesus começa
a quebrar as solidariedades mais intocáveis: já não há necessidade de despedir-se dos se
us nem de cuidar das exéquias do seu pai (Lc 9,59-62). Este atentado aos
ritos funerários e aos deveres familiares deve ter sido considerado totalmente ind
ecente, escandaloso. Outro sinal de urgência: a necessidade de anunciar o Reino
de Deus é tão imperiosa que os seus discípulos recebem a ordem de ir dar testemunho se
m levar alforge nem sandálias nem saudar ninguém pelo caminho (Lc 10,4).
A sua transgressão do repouso sabático também chocou. Por várias vezes, Jesus cura em di
a de sábado; para se justificar, reivindica a necessidade imperiosa de salvar
uma vida (Mc 3,4). Quando Jesus comenta a Tora (a Lei), que é a colectânea das presc
rições divinas, o imperativo do amor ao outro desvaloriza todas as outras prescrições;
até o rito sacrificial no Templo de Jerusalém deve ser interrompido perante a exigênci
a de se reconciliar com o seu adversário (Mt 5,23-23). Em suma: tanto as curas
como a leitura da Tora participam num estado de urgência provocado pela iminência da
vinda de Deus. Jesus está convencido de que, dentro de pouco tempo, acontecerá
a vinda de Deus que, com o seu julgamento, suprimirá todas as causas de sofrimento
e reunirá os seus à sua volta. Já nada importa senão chamar à conversão.

Opções chocantes de solidariedade social


Os Evangelhos e o Talmude judeu falam concordantemente da tolerância chocante de J
esus quanto às suas atitudes e amizades. Tornou-se solidário com todas as categorias
sociais marginalizadas pela sociedade judaica daquele tempo, fosse por desconfia
nça social, por suspeição política ou por discriminação religiosa. Provocou escândalo
o acolhimento que, no seu grupo, reservava às mulheres, aos doentes e às pessoas mar
ginalizadas; de facto, Ele considerava que as regras de pureza que proíbem todo
o contacto com estes são contrárias ao perdão que Deus oferece. "Eu não vim chamar os ju
stos, mas os pecadores" (Mc 2,17). Jesus não concorda com o ostracismo que
atinge os cobradores de impostos por razões políticas e os samaritanos por razões reli
giosas. Admite mulheres no seu círculo (Lc 8,2-3), quebrando a desqualificação
religiosa de que elas sofriam. Deixa que os doentes se aproximem dele, fazendo c
om que, através das suas curas,
19

sejam integrados no povo santo. Dirige-se ao povo dos campos, aquele "povo da te
rra" depreciado pelos fariseus pela sua incapacidade de cumprir o código de pureza
e de pagar os dízimos sobre tudo o que produziam. As refeições de Jesus com os reprova
dos e as mulheres de má vida oferecem o sinal mais impressionante desta recusa
de todos os particularismos (Mc 2,15-16). Estas refeições não indicam apenas uma opção de
tolerância social e religiosa, mas também antecipam o banquete do fim dos
tempos, englobando desde logo todos os que o Reino de Deus acolherá no futuro. Est
ar à mesa com os desclassificados é o anúncio da esperança de Jesus num Reino que
visa a sociedade do seu tempo; esta esperança contradiz a estrutura fechada que a
ordem religiosa fundada na Tora e no Templo tinham construído na sociedade judaica
.
Este ataque à estrutura da piedade judaica - considerado blasfemo - e a sua abertu
ra aos desclassificados atraíram contra Jesus a animosidade mortal das autoridades
religiosas da sua época.

A fé no Messias
Jesus declarou-se Messias ou Filho de Deus? Se deixarmos de lado o Evangelho de
João, que é uma recomposição teológica tardia da tradição de Jesus, os Evangelhos
mais antigos nunca põem na boca dele uma declaração sobre a sua identidade formulada n
a primeira pessoa. "O que dizem as multidões a meu respeito? - pergunta Ele
aos seus discípulos; e depois - E vós quem dizeis que Eu sou?" (Mc 8,29). Sobre a su
a identidade, Ele cala-se. O único título que os primeiros evangelistas põem
nos seus lábios é "Filho do homem", o antigo título daquele cuja vinda sobre as nuvens
do céu era, segundo o profeta Daniel, esperada por Israel. Jesus solidarizou-se
com este ser celeste vindo de Deus. E de tal modo se lhe comparou, que se identi
ficou com ele.
Em contrapartida, os títulos "Filho de Deus", "Messias", "Filho de David" foram-lh
e atribuídos pelos primeiros cristãos. Mas não devemos admirar-nos. Jesus evitou
apropriar-se do título de Messias, provavelmente porque estava sobrecarregado de e
xpectativas nacionalistas e de uma dimensão de poder violento que Ele não queria.
Depois da sua morte, os seus aderentes tomaram consciência do que significava a su
a vinda e a sua acção. E propuseram um nome sobre o que Jesus tinha deixado suspenso
.
Em suma, Jesus não disse quem era, mas fez quem Ele era. Afirmá-lo é o papel do crente
na sua confissão de fé. O evento da Páscoa, a que os cristãos chamam a Ressurreição,
pode ser compreendido como aquela iluminação que os seus amigos conheceram, pouco de
pois da morte dele, ao aperceberem-se de que Deus não estava do lado dos carrascos
,
mas se solidarizava com a vítima suspensa no madeiro. A Páscoa é este acontecimento vi
sionário em que os amigos de Jesus compreenderam que o que tinham recebido
dele e com Ele
20

vivido lhes advinha do próprio Deus; então, eles proclamaram-no: "Deus ressuscitou-o
dos mortos e nós somos testemunhas disso" (Act 3,15). Rapidamente, os primeiros
discípulos anunciaram que Deus tinha reabilitado Jesus, restituindo-o à vida; e esta
crença, reafirmada ao longo dos séculos, é capital para a compreensão da história
do cristianismo.
Daniel Marguerat
21

No seio da primeira aliança


O ambiente judeu

O judaísmo da época de Jesus não era nada monolítico. Repartido entre o antigo reino da
Judeia, tendo por capital Jerusalém, e uma importantíssima diáspora desde
a Babilónia ao Mediterrâneo ocidental, divide-se em várias correntes, mesmo na Judeia.

O aparecimento de várias correntes


Quase nada se sabe do judaísmo judeu na época do Segundo Templo, entre o regresso do
exílio da Babilónia (édito de Ciro, 538 a. C.) e a revolta dos macabeus que
rebenta sob o domínio do rei selêucida da Síria, Antíoco IV Epifânio.
Durante este período conturbado, o sumo sacerdócio tinha sido tirado à dinastia legítima
. Em 164 a. C, Judas, chamado Macabeu, conseguiu restabelecer o culto do
Templo, interrompido durante três anos. Depois da sua morte, o seu irmão Jónatas, apro
veitando as querelas de sucessão na Síria, aumentou o seu território, tendo-lhe
sido oferecido o sumo sacerdócio em 152 a. C. O seu irmão Simão, depois o filho deste,
João Hircano, sucedem-lhe na dupla função política e religiosa. Finalmente,
a partir de 104 a. C, Judas Aristóbulo [Aristóbulo I], depois o seu irmão Alexandre Ar
istóbulo [Alexandre Janeu] (103-76 a. C.) acumulam definitivamente a realeza
e o sacerdócio nesta dinastia chamada "asmoneia".
É neste contexto que aparecem as divisões que, durante mais de século e meio, iriam ag
itar o judaísmo da Judeia. O historiador judeu Flávio Josefo (37-95 d. C.)
menciona três correntes a partir da época de Jónatas: saduceus, fariseus e essénios. Seg
undo o seu nome, os saduceus parecem remontar a Sadoc, o sumo sacerdote do
tempo de Salomão, fundador da única dinastia sacerdotal legítima. Literalmente, os far
iseus são os "separados", os "dissidentes"; mas de quem? Os essénios levam
uma vida monacal à margem da sociedade. Segundo uma parte da sua literatura, que [
a partir de 1947]
22

foi encontrada em Qumrân entre os manuscritos do mar Morto, o fundador da sua "sei
ta", o "mestre de justiça", teria sido perseguido por um "sacerdote ímpio", em
quem muitos estudiosos querem reconhecer Jónatas, usurpador do pontificado.
Também há divergências políticas a opor estas três correntes na época asmoneia. Os saduceus,
inicialmente contrários à dinastia, acabaram por se unir a ela. Os fariseus,
sem dúvida saídos daqueles homens piedosos (assideus ou hassidim) que tinham combati
do ao lado de Judas Macabeu, manifestam a sua hostilidade ao acumular das funções
sob João Hircano. Foram duramente perseguidos durante o reinado do seu filho e do
seu sucessor Alexandre Janeu que, ao aperceber-se da influência crescente dos fari
seus
entre o povo, legou, antes de morrer, o trono a sua mulher Salomé Alexandra (76-67
a. C), aconselhando-a a governar com os fariseus.
As tensões entre fariseus e saduceus desempenham um papel notável na querela entre o
s dois irmãos, Hircano II e Aristóbulo II, de que Pompeu se aproveita em 62 a.
C. para instalar um controlo mais ou menos directo de Roma na Judeia. Mas quando
Herodes, filho do conselheiro idomeu de Hircano II, Antipáter, chega ao trono da
Judeia, graças ao apoio romano, os fariseus já se encontram na oposição.
No ano 6 da nossa era, quando Roma impõe o seu domínio directo, aparece uma "quarta
filosofia" que, mais tarde, inspira sicários e zelotes, motores da revolta contra
Roma que acaba na destruição do Templo no ano 70.
Outros grupos aparecem esporadicamente na obra de Josefo: os que seguem diferent
es líderes surgidos após a morte de Herodes, os que acompanham até ao deserto os
pregadores exaltados que anunciam milagres, os que respondem ao apelo de João Bapt
ista e mergulham no Jordão para se lavarem dos seus pecados. Numa célebre passagem
conhecida como Testimonium Flavianum, Josefo também menciona um "homem sábio", chama
do Jesus, que está na srcem de um novo grupo, os "cristãos", do grego christos,
correspondente ao hebraico mashiah, "ungido", de que deriva a palavra "messias".
Crenças e práticas
Sobre as crenças e as práticas que distinguem alguns destes grupos, a nossa fonte pr
incipal continua a ser Flávio Josefo. Podem-se recolher alguns ensinamentos no
Novo Testamento, apesar da apresentação polémica dos fariseus e saduceus que neles enc
ontramos. Os essénios são igualmente conhecidos pelo filósofo judeu Fílon de
Alexandria (20 a. C.-50 d. C.?), mas são ignorados tanto pelos Evangelhos como pel
as fontes rabínicas. Além disso, toda a literatura judaica não canónica, transmitida,
as mais das vezes, pela Igreja nas várias traduções, atesta a força da corrente apocalípti
ca bem representada em Qumrân.
23

A principal discórdia entre saduceus e fariseus refere-se à "lei oral" desenvolvida


por estes: "Os fariseus tinham introduzido no povo muitos costumes que mantinham
dos Antigos, mas que não estavam inscritos nas leis de Moisés e que, por isso, a sei
ta dos saduceus rejeitava, argumentando que só devia considerar-se lei o que
estava escrito" (Antiguidades Judaicas, XIII, 297).
As correntes judaicas apoiavam-se todas nos mesmos textos sagrados hebreus, cujo
corpus já estava constituído. Os fariseus tinham a reputação de serem os melhores
intérpretes dos textos e esforçavam-se mais que os outros por instruir a juventude.
Os mais sábios de entre eles recebiam o título de rabino ("mestre"), também aplicado
a Jesus pelos Evangelhos. Enquanto o Evangelho de Mateus, escrito depois do ano
70, numa atmosfera polémica entre judeus e judeo-cristãos, é particularmente hostil
aos fariseus, Josefo, que - depois de ter descrito as três correntes principais -
optou pelo farisaísmo, insiste na moral elevada e na afabilidade que o caracteriza
m.
A popularidade dos fariseus obrigava os saduceus a seguirem os seus usos no Temp
lo "porque, de outro modo, o povo não os suportaria" (Antiguidades Judaicas, XVIII
,
17).
Ao apresentar as três correntes principais do judaísmo de antes de 70 como três "filos
ofias", Josefo volta à questão da liberdade humana. Os saduceus afirmam-na
plena e inteira; os essénios, pelo contrário, sustentam a predestinação e os fariseus co
nciliam as duas doutrinas. Cada um destes grupos devia apoiar-se em argumentos
escriturísticos fáceis de encontrar. Os essénios tinham fama de saber predizer o futur
o, o que nada tem de espantoso, se se considerar que tudo está escrito. Comentários
dos profetas encontrados em Qumrân levam-nos a descobrir uma técnica de exegese, o p
esher, que vê no presente o cumprimento das profecias antigas.
A quarta corrente, nascida no ano 6 d. C, no momento do recenseamento imposto pe
los Romanos às regiões - Judeia, Samaria e Idumeia - que acabavam de perder a sua
independência, segue a doutrina fariseia, mas proclama: "Só Deus é o mestre." Animada
pela convicção de combater a favor da chegada do reino divino, alimenta a resistência
mais encarniçada ao poder romano.
As idéias difundidas pela literatura apocalíptica puderam influenciar sicários e zelot
es. Tinha havido grandes impérios, mas doravante o Reino de Deus estava próximo.
O Livro de Daniel, composto durante a revolta dos macabeus, descrevia ao lado de
Deus "um filho de homem" que representava "o povo dos santos do Altíssimo". O Liv
ro
de Henoc fazia dele uma figura individual soteriológica. Depois da decepção causada pe
la dinastia asmoneia e pelo reinado de Herodes, houve quem sonhasse com um
verdadeiro rei legítimo, descendente de um David idealizado que receberia a unção real
. Deste modo, a expectativa de um "ungido" ou "Messias" sobrepunha-se à do
"filho de homem".
24

Esta atmosfera de expectativa e espera febris, reforçada pelas desgraças daquele tem
po, pode explicar a busca activa de pureza que se encontra sob formas diferentes
entre os fariseus, observadores da Lei, em João Baptista que, pela imersão, oferece
a purificação física e moral, e entre os essénios que, na sua grande maioria,
preferem o celibato e vivem em comunidade, numa ascese rigorosa. Ao contrário dos
saduceus, todos estes grupos partilhavam a crença na ressurreição. Esta crença,
difícil de fundamentar escrituristicamente (daí, a zombaria dos saduceus expressa no
s Evangelhos sinópticos), só é explícita no Livro de Daniel (12,2) e no Livro
2 dos Macabeus. Na doutrina fariseia que a propaga, ela é essencial para assegurar
que a justiça se manifestará no "mundo vindouro" ligado ao Juízo Final anunciado
pelos profetas. Este aspecto consolador explica, em grande parte, a popularidade
do farisaísmo. A crença nos anjos e nos demónios também estava bastante desenvolvida
entre os fariseus e os essénios, mas era rejeitada pelos saduceus.
O ensino de Jesus, tal como no-lo descrevem os Evangelhos, concorda em muitos po
ntos com a doutrina dos fariseus e visa reformá-la noutros. Desde as descobertas
de Qumrân, às vezes, o "mestre de justiça" tem sido visto como uma prefiguração de Jesus;
pelo menos, é freqüente afirmar que João Baptista era essénio. Mas todas
as descrições antigas do essenismo no-lo mostram como um grupo que vive encerrado em
si mesmo, enquanto João e Jesus pregam diante das multidões.
Entre os crentes na ressurreição, nos anjos e nos demónios e os que não acreditavam; ent
re os que só observavam a Lei escrita e os que lhe juntavam a Lei oral; entre
os que viviam ao redor do Templo e os que, como os essénios, viviam longe do Templ
o; entre os judeus da Judeia e os da numerosíssima diáspora, muitos cismas poderiam
ter surgido; mas a história não regista quando aconteceram. A revolta dos judeus con
tra os romanos (66-73), que provocou a tomada de Jerusalém e a destruição do
Templo no ano 70, levou consigo saduceus, sicários, zelotes e essénios. Só deixou, fac
e a face, os judeus que criam que o Messias tinha chegado e os que ainda estão
à sua espera.
Mireille Hadas-Lebel
25

As comunidades cristãs de srcem judaica na Palestina

Construir a história das comunidades cristãs de srcem judaica na Palestina é tocar no


nascimento do cristianismo, o que não é nada fácil; dado o estado parcelar
da documentação, o historiador é obrigado a avançar por etapas sucessivas que não permitem
uma síntese real.
Jesus não é o fundador do cristianismo como religião independente. É, quando muito, o fu
ndador da comunidade cristã de Jerusalém no quadro do judaísmo do seu tempo.
Falar das comunidades cristãs de srcem judaica na Palestina implica um estudo sob
re os discípulos de Jesus, sobre as grandes figuras como Tiago, o Justo, Pedro
e Paulo, que difundiram progressivamente a sua mensagem não só nos meios judaicos co
mo também pagãos.
No ano 30 da nossa era, em Jerusalém, Jesus de Nazaré, srcinário da Galileia, que há do
is anos é pregador itinerante e profetiza a iminência do reino de Deus, é
preso, julgado e executado por razões político-religiosas - sendo Pôncio Pilatos prefe
ito da província romana da Judeia. No dia seguinte à morte do seu mestre, num
primeiro momento, os seus discípulos parecem ter-se dispersado por toda a Palestin
a. Contudo, num segundo momento, encontram-se em Jerusalém a proclamar que "aquele
"
que tinha sido crucificado foi ressuscitado. Anunciam um tempo novo e a realização,
aquando do regresso de Jesus, da antiga promessa de salvação feita pelo Deus
de Israel aos antepassados do seu povo. Está prestes a nascer um movimento religio
so com srcens proféticas e tendências cada vez mais messiânicas, constituído por
judeus que, discípulos de Jesus, vivem do seu Espírito, de quem eles herdaram o pode
r criador, curando os doentes e expulsando os demónios como o seu mestre já fizera
antes deles.
Isto acontece em Jerusalém, a cidade santa do judaísmo, dominada pelos romanos havia
quase um século. A nova comunidade dos discípulos de Jesus é relativamente pouco
homogénea, constituída por judeus oriundos de horizontes extremamente diferentes: al
guns são de cultura e de língua hebraicas (os hebreus), outros de cultura e de
língua gregas (os helenistas).
26

Ela subsiste graças ao facto de todos porem em comum os bens vendidos para socorre
r as necessidades de todos e parece ter como centro uma "sinagoga" situada no mo
nte
Sião, no lugar onde Jesus tomou a sua última refeição com os discípulos mais chegados (os
apóstolos).
Os novos adeptos são admitidos no grupo dos "santos", como chamam a si mesmos, med
iante uma iniciação em forma de uma ablução lustral - um baptismo em nome de Jesus,
o Messias. Os seus membros freqüentam o Templo com assiduidade; é o caso do seu prim
eiro responsável, Tiago, o Justo, o irmão de Jesus.
Às vezes, esta comunidade é perseguida pelas autoridades religiosas judaicas, o que
obrigará alguns dos seus membros a dispersarem-se, motivando a difusão da mensagem
do Reino de Deus entre as comunidades judaicas da diáspora. No ano 33, um cristão de
srcem judaica de língua grega chamado Estêvão foi condenado à morte por apedrejamento
por blasfémia contra o Templo; no mesmo ano, sem dúvida, Paulo de Tarso torna-se mem
bro do movimento dos discípulos de Jesus, vindo a ser um dos maiores missionários
cristãos conhecidos. Então, estes cristãos espalham o que consideram a "Boa-Nova" (que
r dizer, o Evangelho de Jesus, o Messias): assim, em 33, Filipe, um dos sete
escolhidos pelos helenistas para o "serviço das mesas" (quer dizer, para a adminis
tração da sua comunidade), propaga-a na Samaria; em 34, cristãos de srcem judaica
de língua grega são levados a criar uma comunidade em Antioquia onde os crentes rece
berão pela primeira vez o nome de "cristãos", ou seja, "messianistas".
Cristãos de srcem judaica de língua hebraica como Pedro e Tiago (o irmão de João, e não d
e Jesus) são ambos perseguidos em 43-44; o segundo é executado por decapitação
por ordem de Herodes Agripa I, enquanto o primeiro é obrigado a fugir em condições apr
esentadas como miraculosas. Então, Pedro é levado a propagar a "Boa-Nova" da
crença messiânica em Jesus até Roma, a capital do Império. Tiago, o Justo, também é executad
o por lapidação em 62, por ordem do sumo sacerdote em exercício, por
violação da lei de Moisés - aquando de uma vacatura da procuradoria romana. Nessa ocas
ião, a comunidade de Jerusalém parece desorganizar-se, sendo obrigada a refugiar-se
em Pela (Transjordânia) em 68, durante o cerco da cidade pelas legiões romanas; só lá vo
ltará, parcialmente, depois de 70.
No início, a difusão da mensagem cristã foi realizada em meio judaico; depois, em meio
pagão. Mas, na realidade, a maior parte dos não-judeus atingidos por esta
mensagem são pagãos simpatizantes do judaísmo, relativamente numerosos nesta época nas c
omunidades judaicas do Império Romano.
Durante os anos 30-135, a entrada dos pagãos nas comunidades provocará dificuldades
pelos confrontos entre as diferentes tendências existentes no movimento cristão.
Tiago, Pedro e Paulo estão no centro dos conflitos, cujos contornos podem resumir-
se nestes termos: deveria a nova
27

crença messiânica impor as observâncias judaicas aos pagãos, nomeadamente a circuncisão? P


arece que as respostas foram várias e diversificadas: para os crentes de
srcem judaica mantêm-se as observâncias que não serão necessariamente impostas aos de o
rigem pagã - uns e outros deverão partilhar a mesma mesa, pelo menos durante
a eucaristia.
Antes do conflito de Antioquia e da reunião de Jerusalém, em 49-50, quando Tiago e P
edro, de um lado, e Paulo, do outro, se enfrentaram sobre esta questão, já Pedro,
em Cesareia, tinha feito entrar para os "santos" um incircunciso e toda a sua ca
sa, o que obrigou a explicar-se à comunidade de Jerusalém: trata-se de Cornélio,
um centurião antigo simpatizante do judaísmo.
A repartição dos campos de missão entre Pedro e Paulo é uma idéia que aparece tardiamente
na literatura cristã; de facto, entre estas duas grandes figuras há concorrência
na propagação da mensagem cristã, como se pode verificar não só na Anatólia, mas também em Ro
a. Sem contar que enviados de Tiago desempenharam um papel não desprezável
nesta rivalidade. Com efeito, há um conflito nas interpretações: alguns consideram que
, para a salvação, basta acreditar no Messias (Paulo, no que concerne unicamente
os cristãos de srcem pagã); outros julgam que é necessário observar e crer na Lei e, co
njuntamente, no Messias (Tiago e, em menor escala, Pedro).
Seja como for, nos anos 60 da nossa era, há cristãos por todo o Oriente romano e tam
bém em Roma. Não são, é claro, muito numerosos e vivem secretamente a sua condição
para se protegerem por todos os lados. Mas, embora constituam comunidades disper
sas, partilham essencialmente, de uma forma ou de outra, a crença de que Jesus é
o Messias ou Cristo enviado pelo Deus de Israel e que, apesar de condenado à morte
, foi arrancado aos poderes das trevas para se sentar à direita do seu Pai, envian
do
o seu Espírito capaz de transformar os corações e de perdoar os pecados na expectativa
e espera do seu próximo regresso.
Estas comunidades ainda permanecem no judaísmo, apesar de nelas haver já a presença de
cristãos de srcem grega. Durante um período dificilmente determinável com
precisão, manter-se-ão no seio do judaísmo, não obstante as conseqüências das revoltas judai
cas contra Roma de 66-74, de 115-117 e de 132-135. É difícil falar de
cristianismo antes da segunda metade do século II - no melhor dos casos. Melhor di
to, o cristianismo está tanto dentro do judaísmo, como fora dele, mas sem constituir
uma religião desligada das suas raízes judaicas.
Em meados do século II, o cristianismo adquire autonomia relativa em relação ao judaísmo
, mas sem pretender quebrar as pontes; na verdade, esta corrente religiosa
não tem data de nascimento, porque a sua edificação durou mais de um século, até à tentativa
de emancipação - um divórcio que nunca será pronunciado, não obstante
as excomunhões mútuas. A separação ou a ruptura (?) com o judaísmo será o resultado de um
28

percurso semeado de conflitos que, inicialmente, tomarão uma forma inter-judaica (


entre judeus cristãos e judeus não-cristãos), antes de se revestir de uma forma
antijudaica (entre cristãos e judeus).
Ao longo do século II, assiste-se à marginalização das comunidades cristãs de srcem judai
ca (o judeocristianismo), em proveito das comunidades cristãs de srcem
pagã (o paganocristianismo) que haverão de, progressivamente, erigir-se em "Grande I
greja".
Durante os anos 30-150/180, os cristãos ainda não realizaram a utopia da unidade, em
bora as fontes, transmitidas pelos que se proclamam pertencentes à "Grande Igreja"
,
afirmem evidentemente o contrário. Na verdade, o cristianismo da "Grande Igreja" c
onstruiu-se no decurso dos séculos II e III, elaborando conceitos novos, como os
de heresia e de dogma. Foram eles que permitiram que esta se construísse à custa das
outras tendências relegadas para a sombra da marginalidade, tanto judaizantes
(nazoreus, ebionitas, elcasaítas...) como gnosticizantes (basilidianos, valentinia
nos...) ou marcionitas (Marcião), montanistas (Montano) ou, ainda, encratitas (Tac
iano).
De algumas destas franjas emergirão outras correntes religiosas: no século III, do e
lcasaísmo nascerá o maniqueísmo.
Simon C. Mimouni
29

Paulo e a primeira expansão cristã

A cristianização do Império Romano, realizada em três séculos, foi espantosamente rápida. Pr


essupõe um duplo processo: a expansão geográfica da nova religião a partir
de Jerusalém e a sua penetração nas redes e nos meios de vida do mundo greco-romano. E
mbora a primeira história cristã, os Actos dos Apóstolos, dê a impressão de
poder reconstituir as etapas de uma progressão geográfica na bacia do Mediterrâneo ori
ental, de Jerusalém a Roma, no seguimento das viagens de Paulo, trata-se de
uma visão hagiográfica, destinada a mostrar a passagem do cristianismo do judaísmo ao
helenismo, deixando na sombra numerosos aspectos da missão, como a chegada
do cristianismo a Roma ou a Alexandria, e não tendo na devida conta a totalidade d
as missões de Paulo, de que não se fala a partir da sua chegada a Roma. Os escritos
do Novo Testamento contêm bastante mais informação sobre os meios evangelizados do que
sobre os itinerários da missão e permitem uma análise minuciosa da penetração
do cristianismo em certas regiões, entre as quais se deve privilegiar a Ásia Menor,
isto é, a actual Turquia, onde convergem fontes de informação variadas e contínuas.
De facto, a actividade missionária está no centro das Epístolas apostólicas, a começar pel
as de Paulo, que representam um testemunho autobiográfico insubstituível;
das atribuídas a João para as comunidades destinatárias do Apocalipse joânico; das coloc
adas sob o nome de Pedro que são dirigidas às fundações deste apóstolo na
Ásia Menor; e das chamadas pastorais, que emanam de comunidades paulinas desta mes
ma região durante a terceira geração. A história local das comunidades cristãs
é bastante mais tardia e foi construída, sobretudo, sobre os relatos de mártires a par
tir de meados do século II.
30

Paulo, o "último dos apóstolos"... que também é o maior

Paulo domina toda a geração apostólica, tanto pela sua teologia como pela sua estratégia
missionária... e pela sua escrita fulgurante que, ainda hoje, constitui
uma presença excepcional. Paulo não era um discípulo como os outros porque não tinha con
hecido Jesus em vida. A sua fé e a sua adesão a Cristo resultam de uma série
de experiências místicas que fundaram e fundamentaram a sua concepção antropológica de uma
re-criação do crente, mediante a união mística a Cristo. A primeira teve
lugar em Damasco: como fariseu militante, partira para arrasar uma seita que ele
considerava desviante e ímpia, teve uma visão e um chamamento que imediatamente
o converteram e comprometeram a pregar o Evangelho com o mesmo ardor que ele tin
ha posto em combatê-lo. Paulo foi sempre independente do grupo dos discípulos, mas
reconhecia a autoridade especial de Tiago, de João e de Pedro, de quem recebeu ens
inamentos. Portanto, seria abusivo fazer dele o fundador de uma religião nova,
muito distante da pregação de Jesus pelo facto de se dirigir aos gregos. Na realidad
e, toda a vida de Paulo o predestinava para se tornar um transmissor de cultura:
judeu da diáspora em país grego, poliglota, associava uma educação grega, recebida em Ta
rso, sua cidade natal, a uma formação de fariseu recebida em Jerusalém. Pertencendo
certamente a uma família de nível internacional (sem dúvida no comércio do têxtil), imedia
tamente viu e serviu-se das possibilidades de mobilidade e de encontros
que o Império Romano lhe oferecia. A sua rota cruzou algumas vezes a de Pedro em A
ntioquia, Corinto e Roma.

Os grande pólos do cristianismo

Com efeito, as missões apostólicas não têm o objectivo de percorrer o maior espaço possível,
mas o de implantar o cristianismo localmente. As tradições da Igreja
sugerem a existência de pólos que desempenharam um papel mais importante como pontos
de partida da missão. O primeiro é, evidentemente, Jerusalém. No dia de Pentecostes,
o horizonte missionário do grupo dos discípulos de Jesus abre-se em três direcções. Em pri
meiro lugar, está a diáspora oriental da Mesopotâmia e dos contrafortes
iranianos, para lá de Damasco - regiões que efectivamente se relacionavam com Jerusa
lém, mas sobre as quais não temos depois nenhuma informação até ao aparecimento
da cristandade siríaca e das tradições relativas ao apóstolo Tomé, a partir do século III. O
segundo eixo da missão saída de Jerusalém desenvolve-se na Ásia Menor,
de leste para oeste, começando nas regiões continentais do planalto anatólio e termina
ndo nas cidades mais helenizadas da costa. Segundo o testemunho das Epístolas,
isto corresponde às missões de Paulo e de Pedro, que convergiram com o desenvolvimen
to das comunidades joânicas
31

na província da Ásia à volta de Éfeso; é, portanto, o campo missionário mais bem documentado
. A terceira área missionária corresponde ao espaço dominado por Alexandria
- Creta, Cirenaica, deserto arábico e Egipto -, onde, em meados do século II, depois
de um século de silêncio, emerge um cristianismo intelectualmente brilhante.
Eram constantes as deslocações e as trocas entre Jerusalém e Alexandria. No Oriente, o
primeiro horizonte cristão inscreve-se no quadro geográfico bastante convencional
dos judeus helenizados do século I: o de Fílon, por exemplo. Quer dizer que o suport
e da diáspora foi determinante na elaboração dos primeiros projectos missionários.
Roma, capital do Império, já está presente no horizonte do Pentecostes, na menção de judeu
s de Roma idos a Jerusalém para a festa. A religião de Cristo atingiu a
cidade antes da chegada de Pedro e de Paulo, sem dúvida desde o reinado de Cláudio,
em 49 e durante os anos seguintes, no momento em que as fontes romanas e cristãs
assinalam perturbações no seio das sinagogas da capital. Roma foi realmente o ponto
de partida do movimento de cristianização das províncias ocidentais - Gália,
África e Península Ibérica. É verosímil que o cristianismo tenha sido levado para África, on
de só entra na história aquando das primeiras perseguições em 180, por
judeus idos de Óstia, o porto de Roma, dado tratar-se de uma comunidade de língua la
tina. Na Gália - onde o cristianismo emerge na mesma data, em 177, aquando da
perseguição sofrida pelas Igrejas de Lião e de Viena [a actual Vienne Isère no lés-nordest
e da França] -, as primeiras comunidades localizam-se no vale do Ródano
e reivindicam uma srcem asiática, mas parece que Roma teria servido de intermediári
a no envio de missionários. A cristandade de Lião é uma comunidade helenófona
como as Igrejas e as sinagogas de Roma; mergulhou num meio de negociantes e de o
utros profissionais idos do Oriente, todos de língua grega. É impossível datar os
inícios do cristianismo na Península Ibérica. Paulo teria fixado este objectivo no fin
al das suas três missões no mundo grego, quando preparou a sua chegada a Roma.
Nesse momento, nos anos 60, é um objectivo absolutamente inovador, porque os orien
tais helenizados limitavam as suas perspectivas de viagem ao Mediterrâneo oriental
,
que, aliás, é o quadro limitado dos Actos dos Apóstolos. Conseqüentemente, Paulo tinha s
ido um dos primeiros a integrar a totalidade do espaço controlado por Roma
e o universalismo do Império, o que o conduzia progressivamente à concepção da universal
idade da Igreja. Este objectivo extremo-ocidental é reafirmado por Clemente
de Roma nos anos 90.

As missões paulinas na estrutura do Império Romano

Postos assim em evidência os grandes pólos, é possível analisar mais exactamente o proce
sso da expansão do cristianismo, graças às Epístolas de
32
Paulo, que cobrem as suas missões em Antioquia, em Chipre, na Anatólia, na Macedónia,
na Grécia e, finalmente, na região de Éfeso. Felizmente, possuímos referências
cronológicas: em 52, Paulo encontrava-se em Corinto, o que inscreve o conjunto da
sua missão nos anos 50-60, mas o seu ritmo mantém-se bastante hipotético. A concepção
que ele tem das suas viagens missionárias é inteiramente tradicional, já que se trata
sempre de périplos ou circuitos a partir de Jerusalém com regresso ao seu ponto
de partida para prestar contas à Igreja de Jerusalém ou, na terceira vez, para uma p
eregrinação. Freqüentemente, Paulo é considerado um grande viajante, mas não
podemos considerá-lo um aventureiro ou um descobridor. Nessa época, estas viagens na
da tinham de extraordinário. Ele não se esforçou por ocupar o maior espaço possível,
mas antes por criar pólos cristãos, utilizando a infra-estrutura do Império para trans
mitir o seu Evangelho.
Em suma, Paulo passou pelas capitais provinciais do Oriente romano: Antioquia, c
apital da Síria; Pafos, capital de Chipre; Tessalónica, capital da Macedónia; Corinto,
capital da província da Acaia, que corresponde à Grécia antiga; Éfeso, capital da provínci
a da Ásia. A isto, junte-se a evangelização de colónias de veteranos romanos,
que controlavam os nós rodoviários, como Antioquia da Pisídia e Filipos da Macedónia, qu
e Paulo sempre considerou como o ponto de partida e o suporte da sua missão
na Grécia. Igualmente, numa escala muito maior, foi sempre a partir das capitais p
rovinciais, de Alexandria, de Cartago ou de Lião, que se difundiu o cristianismo
nas províncias. As capitais provinciais eram pólos de reunião para os habitantes da re
gião que lá iam regularmente, chamados pela presença da administração romana
e pela realização de sessões judiciárias; esta função decuplicava-se quando estas cidades ta
mbém eram sede de peregrinações ou de festivais, como Corinto ou Éfeso.
Neste lugares cimeiros da romanidade, Paulo talvez visasse a elite romana, o círcu
lo familiar, clientelar e oficial do governador; é assim que os Actos dos Apóstolos
o põem em cena em Chipre. Sobretudo, como ele explica na sua Carta aos Tessalonice
nses, utiliza as redes de difusão das notícias, embora a sua mensagem preceda sempre
a sua chegada a cada terra. Pode calcular-se em cerca de três centenas de quilómetro
s a circulação da informação a partir de uma capital. Quando, na Carta aos Romanos,
faz o balanço da sua missão na Grécia, Paulo diz que atingiu a "Ilíria": mas esta expres
são não pode designar a região de língua ilíria, onde acaba o grego e começa
o mundo bárbaro setentrional, porque o país dos ilírios, nas margens do Adriático, só foi
evangelizado mais tarde. Este limite linguístico situa-se na região do
lago de Ochrid, no centro dos Balcãs, a cerca de três centenas de quilómetros de Filip
os, mais ou menos a mesma distância entre Éfeso e as fundações paulinas de
Hierápolis, Colossos e Laodiceia. Compreende-se por que motivo Paulo se deteve tão l
ongamente nestas capitais, que eram nós de comunicação e retransmissoras de informações;
por isso, ficou dezoito meses em Corinto e três anos em Éfeso.
33

O exame dos itinerários de Paulo e das suas passagens de uma região para outra revel
am-no como homem de recursos. Como enviado da Igreja de Antioquia, tinha sido
adjunto de Barnabé, srcinário da ilha de Chipre, numa missão nesta ilha; lá, os dois após
tolos estavam num universo familiar, porque Chipre era uma etapa intermédia
entre a Síria e a Cilícia, pátria de Paulo. A primeira escolha, estranha e significati
va, foi a passagem de Chipre para a Pisídia, no centro da Anatólia. Antioquia
da Pisídia era o lugar de srcem da família do procônsul de Chipre com quem Paulo se e
ncontrara e mantinha relações de amizade. Como então faziam os viajantes notáveis,
Paulo, cidadão romano, usou o apoio das infra-estruturas oficiais da época: cartas d
e recomendação, escolta das delegações oficiais... A segunda passagem, também
determinante, é a da Ásia para a Europa, de Tróade para a Macedónia. Os Actos dos Apóstolo
s, que solenizam este acontecimento através de uma visão, não explicam
as suas razões secretas, mas pode deduzir-se, da estrutura do relato, que Paulo re
sponde, sem dúvida, a um convite de macedónios de Filipos que, desde então, desempenha
ram
um papel determinante no seu círculo pessoal. A missão desenvolve-se através dos conhe
cimentos pessoais de cada um, servindo-se dos encontros e das relações de hospitalid
ade.
Mesmo que a passagem para a Europa pareça altamente simbólica, a verdade é que havia t
ravessias e intercâmbios contínuos entre as duas margens do mar da Trácia.
A figura de Lídia, uma negociante de púrpura de Filipos, srcinária de Tiatira na Ásia,
corresponde perfeitamente ao que as inscrições revelam sobre o comércio têxtil
e os movimentos migratórios entre as cidades da Macedónia e as da Lídia. Em Éfeso, e dep
ois em Roma, Paulo foi precedido e chamado por um dono de loja-oficina itinerant
e,
Áquila, para quem trabalhou em Corinto. Da Macedónia até Corinto, apoiou-se num certo
número de familiares seus, como acontecia freqüentemente nas diásporas orientais,
fenícia ou judaica.

As redes da missão cristã


A missão paulina, a única que podemos realmente estudar, foi organizada como uma pen
etração por capilaridade, que utiliza as redes da cidade antiga que funcionava
como uma imbricação de comunidades, da mais pequena - que é a família - até à maior - que é a
cidade. A célula-mãe da missão é a "gente da casa", o oikos, que é
simultaneamente comunidade familiar e comunidade de actividade, exploração agrícola, o
ficina e armazém. Contrariamente à família nuclear moderna, o oikos antigo
reúne pessoas de estatuto diferente, incluindo mulheres e crianças, escravos e liber
tos, em maior número nas famílias dos notáveis; por isso, a sua composição transcende
as clivagens da cidade antiga entre gregos e bárbaros, homens e mulheres, livres e
não-livres. Os cristãos de uma cidade
34

reuniam-se quer por oikos, quer na morada mais espaçosa de um notável que juntava os
seus vizinhos e amigos. Esta prática continuou durante dois séculos. Tanto em
Roma como em Doura Europos, na Síria, os primeiros edifícios cristãos referenciados no
tecido urbano, em meados do século III, resultam da adaptação de grandes moradias
urbanas: são "casas-igrejas".
As actividades e as relações dos membros do oikos inserem-no em todas as espécies de r
edes de sociabilidade, em função do desenvolvimento familiar ou por afinidades,
para responder a interesses profissionais ou a serviços de entreajuda, tanto em as
sociações e comunidades de imigrados como nas sinagogas e nas associações desportivas
ou culturais. A vida associativa é um traço característico das cidades do Oriente roma
no na época em que se difunde o cristianismo. Paulo utilizou claramente as
solidariedades profissionais do meio têxtil, a que ele pertencia e em que trabalha
va aquando das suas escalas: a oficina de Áquila fornece o exemplo de uma Igreja
itinerante que se desloca de Corinto para Éfeso e para Roma. A preponderância das re
lações associativas, baseadas no convívio, justifica a importância alcançada
em Corinto pelas questões de promiscuidade à mesa e de partilha das carnes sacrifici
ais. De facto, a maneira como os cristãos desenvolveram as suas estruturas de
entreajuda impressionou os contemporâneos, desde o escritor Luciano ao imperador J
uliano, dando ao cristianismo a sua primeira visibilidade, à falta de imagens e
de monumentos. Portanto, os cristãos organizavam-se em pequenas comunidades muito
personalizadas, de seis, dez, doze indivíduos, uma estrutura que ainda subsiste
na época dos primeiros relatos de mártires no século II e III. Nas cidades, constituíam
grupos a par de outros, sujeitos ao risco de parecerem sectários, de que
Paulo tem perfeita consciência em Corinto.
Esta descrição da missão paulina deve poder ser generalizada. Aliás, as missões de Paulo,
de Pedro e do movimento joânico seguiram os mesmos itinerários e adoptaram
as mesmas perspectivas na Ásia Menor, com problemas de usurpação entre os paulinianos
e os outros na região de Éfeso, embora a pregação joânica e a de Pedro privilegiassem
as cidades de numerosa população judaica. A partir de implantações pontuais em meio urba
no, em volta de personalidades carismáticas, a unidade da Igreja foi-se construind
o
progressivamente segundo a mesma dinâmica, ao redor dos bispos como personalidades
de referência e graças às novas redes que estes estabeleceram com as suas viagens
e, sobretudo, com a troca de correspondência.

O universalismo cristão
O pensamento e a reflexão teológicos do apóstolo Paulo fizeram evoluir um messianismo
judeu para uma religião de salvação para todos os habitantes do Império. Pode
considerar-se que o cristianismo assenta no acto de fé de um grupo de galileus dia
nte de um túmulo vazio. A Ressurreição
35

está no coração da nova fé: era uma esperança já viva em certas correntes judaicas, fariseia
s e essénias, bem como no orfismo e nos mistérios dionisíacos e egípcios
do mundo greco-romano. O cristianismo conserva a concepção bíblica da ressurreição dos cor
pos, sem entrar nas idéias gregas do renascimento ou de transmigração das
almas, divergência que explica sem dúvida o fracasso de Paulo em Atenas.
A confissão de fé cristã reconhece Jesus como o Cristo, o Messias anunciado pela revel
ação bíblica, e considera que Ele veio realizar os oráculos dos profetas. Os
autores do Novo Testamento referem-se sem cessar ao Antigo Testamento para pô-lo e
m evidência. A identificação do Messias cria a separação entre judeus e cristãos,
apesar de concepções teológicas comuns, que se acelera depois da insurreição messiânica de B
ar Kochba, em 135, que obriga os cristãos de srcem judaica a uma escolha.
Mas, mesmo depois desta data, não obstante a tentativa de Marcião, o cristianismo pe
rmanece uma religião bíblica que se apropria da Bíblia hebraica, ao mesmo tempo
que vai surgindo uma literatura de propaganda dirigida a notáveis do mundo greco-r
omano.
Como as outras religiões de salvação do Império, o cristianismo dirige-se a indivíduos, in
dependentemente da sua srcem étnica e do seu estatuto: na vivência das
comunidades paulinas, já não há diferença entre judeus e gregos, homens e mulheres, pess
oas livres e escravos, habitantes do Império e bárbaros. Assim, a eclesiologia
paulina baseia-se na paridade e na reciprocidade, o que exclui, por exemplo, tod
a a misoginia srcinal que só aparece no século II, em conformidade com uma evolução
geral da sociedade. A ética cristã assenta inteiramente na imitação de Cristo: em período
de perseguições, termina no martírio. A nova religião é a única cujos membros
foram designados pelos romanos em referência ao seu fundador, christiani, "os de C
risto".
Mais do que qualquer outra, a religião cristã baseia-se na adesão pessoal, o que a faz
parecer uma seita, ambigüidade de que Paulo tem consciência, ao observar a
explosão da cristandade de Corinto à volta de personalidades opostas e que ultrapass
ou ao afirmar a vocação universal da Igreja no espaço do Império e ao trabalhar,
com a sua correspondência, na união das primeiras comunidades que ele fundara.
Marie-Françoise Baslez
36

II

VIVER COMO CRISTÃO "NO MUNDO SEM SER DO MUNDO" (A DIOGNETO)

Perseguidos, mas submetidos ao Império Romano (até 311)


Os cristãos foram perseguidos desde que, identificados como tais, deixaram de bene
ficiar do estatuto privilegiado dos judeus. A perseguição, inicialmente pontual,
local e esporádica, tornou-se sistemática em meados do século III. Porque se perseguia
m os cristãos no Império Romano, considerado "tolerante" relativamente a tantos
cultos diferentes?
A frase de Jesus "dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" (Mt 22,21) fund
amentava não só o lealismo político dos cristãos e a sua sujeição ao Estado,
mas também a separação dos domínios político e religioso, quando a sua intricação era a norma
no mundo antigo. Porque professam um monoteísmo exclusivo e recusam
o culto dos deuses, os cristãos são considerados maus cidadãos, perigosos para a salvação
do Império. O seu "ateísmo" põe em perigo o necessário acordo harmonioso
entre os deuses e os homens, esta paz dos deuses que garante, pelo estrito cumpr
imento dos ritos dos cultos públicos, o bom funcionamento do mundo romano. Os cris
tãos
sujeitam-se aos governantes porque todo o poder vem de Deus e, mesmo perseguidos
, oram a Deus pelo imperador e seus representantes, mas recusam o culto imperial
.
Na ausência de legislação anticristã, o zelo dos governadores era determinante em relação a
estes adeptos obstinados de uma "superstição perigosa e insensata": bastava
aplicar as leis da época republicana contra as religiões novas e ilícitas. Era o facto
de ser cristão que era punido de morte, e não os pretensos delitos. Foi essa
a jurisprudência estabelecida em 112, na resposta do imperador Trajano a Plínio, o J
ovem, que, nomeado governador da Bitínia (na Ásia Menor), acabava de descobrir
a presença de numerosos cristãos; todavia, o imperador recomendava que não os procuras
se e recusasse as denúncias anónimas. Os cristãos, punidos pelo
39

que são e não pelo que fazem, são mais vítimas do ódio que anima a opinião pública, às vezes
o massacre, e do zelo dos governadores, do que de uma vontade política
de repressão.
Em Roma, no ano 64, na seqüência do incêndio que devastava a cidade, foram executados
cristãos, "condenados não tanto pelo crime de incêndio quanto pelo ódio do
género humano", como escreveu o historiador Tácito, por volta de 115-116. Foram entr
egues às feras, crucificados ou transformados em tochas ardentes durante os jogos
no anfiteatro dos jardins de Nero. Foi verosimilmente no decurso deste "suplício g
randemente espectacular" que o apóstolo Pedro foi crucificado. Como cidadão romano,
Paulo, levado do Oriente para Roma, foi decapitado, depois de um processo, em 66
ou 67.
Houve perseguições pontuais e locais durante o século II: na Bitínia e em Antioquia sob
Trajano (98-117); na província da Ásia, aquando e a pretexto de manifestações
populares; sob Adriano (117-138); sob Antonino (138-161), o cristão Ptolomeu em Ro
ma e o bispo Policarpo em Esmirna foram condenados, unicamente por serem cristãos;
nota-se uma recrudescência das perseguições no reinado do imperador filósofo Marco Aurélio
(161-185) que não tem senão desprezo pelos cristãos, apesar da coragem
dos mártires diante da morte. Os cristãos foram responsabilizados pelas desgraças do t
empo e constituem vítimas potenciais de ritos expiatórios. Assim, o filósofo
e apologista Justino foi condenado à morte em Roma, enquanto em Lião, em 177, o velh
o bispo Potino e vários cristãos morrem na prisão; Sanctus, o diácono da Igreja
de Vienne Isère, Átalo, cidadão romano, a escrava Blandina, o adolescente Póntíco e outros
foram entregues às feras no anfiteatro das Três Gálias; os seus corpos
foram oferecidos aos cães, depois queimados e as cinzas lançadas ao Ródano; em Pérgamo,
cristãos são torturados, depois queimados vivos no anfiteatro. Em 180, pela
primeira vez na África do Norte, são decapitados cristãos por causa da sua fé; em Roma,
alguns são condenados aos trabalhos forçados nas minas da Sardenha. Mas também
se vêem governadores soltar cristãos e o imperador Cómodo amnistiar confessores por in
fluência de quem o rodeia, porque o cristianismo penetrou em todos os meios,
até mesmo na corte.
Doravante, os cristãos são mais numerosos; em cada cidade, a Igreja local organiza-s
e com o bispo à cabeça, assistido por presbíteros e diáconos; esta organização,
conhecida tanto pelas autoridades como pelo público, pode ser comparada com os colég
ios cívicos ou corporações, o que permite ter lugares de culto e cemitérios.
Entretanto, as perseguições continuam. Algumas visam os convertidos, catecúmenos e nov
os baptizados bem como os seus catequistas: em Alexandria, em 202-203; em Cartag
o,
onde são detidos alguns catequistas, entre os quais duas jovens mulheres, Perpétua e
Felicidade; julgados e condenados às feras, são executados no dia 7 de Março
de 203, com o seu catequista, depois de terem sido baptizados na prisão; tinham re
cusado ser vestidos, os homens com os hábitos dos sacerdotes
40

de Saturno e as mulheres com os das iniciadas de Ceres, para que o seu sacrifício
não se transformasse em sacrifício aos deuses da África romana. As denúncias e
a pressão popular suscitam sempre chamas de violência, como o massacre anticristão de
249, em Alexandria. Os cristãos em perigo de morte exaltaram o ideal do mártir,
testemunho absoluto de fé, realização da perfeição cristã pela imitação de Cristo crucificado
racasso aparente que se transcende em triunfo.
Ao longo do século III, o Império é confrontado com graves provações (invasão dos godos, catá
trofes naturais) interpretadas como sinais da ruptura da paz dos deuses;
para restaurá-la, o imperador Décio ordena que se faça, no dia 3 de Janeiro de 250, um
a súplica geral: todos os cidadãos (praticamente todos os habitantes livres
do Império desde 212) e as suas famílias devem realizar um acto religioso em honra d
os deuses - oferenda de incenso, libação, sacrifício ou consumo de carne consagrada;
e são entregues certificados - que alguns compraram. Propriamente falando, não se tr
atava de um édito de perseguição, mas o facto desencadeou-a porque visava condenar
ou fazer abjurar quem se recusava submeter-se. Numerosos cristãos submeteram-se es
pontaneamente, alguns abjuraram, obrigados, outros, sujeitos à tortura, resistiram
:
são os confessores; alguns foram condenados à morte: são os mártires. A perseguição cessou c
om a morte de Décio, em 251, mas foi retomada quando o seu sucessor ordenou
numerosos sacrifícios públicos para afastar uma epidemia de peste; e novamente as mu
ltidões hostis gritavam: "Os cristãos aos leões!" Os apóstatas tinham sido mais
numerosos que os mártires e que os confessores, nomeadamente na África. Evitando o d
uplo escolho do rigorismo e do laxismo, Cipriano, bispo de Cartago, preconizou
uma penitência proporcional à falta, que foi adoptada por um concílio africano, em com
unhão com o bispo de Roma, Cornélio. Assim, foi definida para a Igreja universal
uma disciplina de penitência e de misericórdia.
Em 257-258, por causa da situação particularmente grave, o imperador Valeriano orden
ou uma perseguição geral dos cristãos, a fim de obviar ao descontentamento popular
contra os cristãos, considerados responsáveis. Pela primeira vez, dois éditos visam-no
s explícita e exclusivamente: em 257, as reuniões e o acesso aos cemitérios
são interditos; bispos, presbíteros e diáconos devem sacrificar sob pena de exílio e de
confiscação dos bens; em 258, é a morte de clérigos e pessoas de elevada
categoria social. A perseguição torna-se sangrenta: em Roma, o bispo e quatro diáconos
são decapitados; Cipriano e outros bispos africanos, alguns das Hispânias
e Dinis de Lutécia (Paris) também o foram.
Depois da captura de Valeriano pelos persas, seu filho Galiano, preocupado com a
paz civil, mostra-se realista e suspende a perseguição em 260, autorizando os cristão
s
a recuperar lugares de culto e cemitérios. Embora a religião cristã não fosse reconhecid
a como legal, os cristãos beneficiaram durante quarenta anos de um período
de paz que permitiu à
41

Igreja desenvolver-se, certamente de maneira desigual, consoante as regiões. Convém,


no entanto, não sobrestimar esta expansão, que pode atingir de cinco a quinze
por cento da população, mais no Oriente e na África, bastante menos nas regiões pouco ur
banizadas do Ocidente.
A partir de 284, o imperador Diocleciano empreende a reorganização do Império e chama
a si três colegas que formam, em 293, um colégio de quatro imperadores (a tetrarquia
).
Esta obra implicava uma estrita coesão religiosa no quadro da religião tradicional,
o que conduziu à perseguição de quem a recusasse: dos maniqueus em 297 e dos
cristãos a partir de 303. Quatro éditos anunciam as proibições e as penas cada vez mais
severas: arrasar as igrejas, queimar as Escrituras, despedimento dos oficiais
e funcionários cristãos, depois prisão dos chefes das Igrejas e, finalmente, obrigação de
todos sacrificarem, sob pena de morte. A aplicação destas medidas foi variável:
a perseguição foi muito dura no Oriente até 311 (e mesmo depois), brutal na Hispânia, na
África e na Itália até 306, restrita na Gália, domínio do imperador Constâncio,
tolerante, se não mesmo simpatizante, do cristianismo.
Em 311, o imperador Galério, perseguidor obstinado, reconheceu o fracasso de uma p
erseguição que, por mais sangrenta que tivesse sido, não havia conseguido erradicar
o cristianismo. Realista, mas não contra a vontade, decide mostrar-se "indulgente"
. Concede o direito de ser cristão, de reedificar os lugares de reunião e acrescenta
:
"Os cristãos deverão orar ao seu Deus pela nossa saúde, pela do Estado e pela sua própri
a." Havia três séculos que eles não pediam outra coisa! O cristianismo era
legalmente reconhecido.
A decisão tomada em Milão em 313 pelos imperadores Constantino, pessoalmente convert
ido, e Licínio concede "aos cristãos, como a todos, a liberdade de poderem seguir
a religião de sua escolha, de modo que o que há de divino na morada celeste possa se
r benevolente e propício". Era reconhecida a liberdade de religião e de culto,
algo profundamente novo. O martírio deixava de ser - pelo menos por agora - a via
real de acesso à santidade; o culto dos mártires e a veneração das suas relíqüias
desenvolveram-se. Encontraram-se, particularmente no ascetismo, outros modos de
testemunho da fé, outros meios para aceder à vida perfeita.
Françoise Thelamon
42

"Vivemos convosco", mas...


Os cristãos e os costumes do seu tempo
Animados por uma fé exclusiva que não tolera compromissos, os cristãos recusam toda a
participação nos cultos tradicionais: não apenas cerimónias e festas em honra
dos deuses, mas também formas de sociabilidade que delas fazem parte, como banquet
es e espectáculos, e o consumo da carne de sacrifício.
Certas profissões ou estados de vida são incompatíveis com o baptismo que, então, deve s
er recusado ou adiado: todos quantos estão ligados aos cultos, aos templos,
à adivinhação e até à magia; ao anfiteatro, ao circo e ao teatro, à prostituição e também a p
são de soldado, as magistraturas que implicam o poder da espada
e/ou o cumprimento de ritos em honra dos deuses ou dos imperadores. Portanto, os
cristãos mantêm-se à margem de uma parte da sua vida pública; por isso, são acusados
de misantropia e de "ódio ao género humano" (Tácito). Como a sua fé informa práticas relig
iosas, individuais e colectivas que lhes são próprias, os cristãos são
suspeitos de formar uma seita perigosa devotada a uma "vã e louca superstição", porque
adoram como deus um criminoso devidamente condenado por um magistrado romano
ao mais infame dos suplícios, o da cruz. São acusados de realizar ritos horrendos ou
imorais - matança de crianças, canibalismo, magia - e de terem costumes sexuais
depravados. Finalmente, os intelectuais e os meios cultos desprezam-nos. Deste m
odo, para o filósofo Celso (ca. 178), são pessoas da "última ignorância", "sem educação"
nem cultura, que enganam os espíritos fracos (mulheres e crianças, artesãos, escravos
e libertos) servindo-se da sua credulidade, sendo gente que põe em perigo a
família e a sociedade.
A estas acusações, os cristãos respondem: "Não fazemos nada de mal", os nossos costumes
são puros. "Vivemos convosco, levando o mesmo género de vida", escreve Tertuliano,
por volta de 197, afirmando que os cristãos cultivam a terra, comerceiam, freqüentam
o foro, o mercado, as termas, as lojas, as estalagens, as feiras, em suma, vive
m
com os seus concidadãos e como eles. De facto, os cristãos afastam-se dos costumes e
43

das formas de sociabilidade do mundo do seu tempo, quando são incompatíveis com a su
a fé e os seus valores.
As suas refeições em comum, os seus ágapes - que provocavam tanto mexerico -, são emblemát
icos da sociabilidade cristã: sob o olhar de Deus, estão marcados pela
modéstia, pelo pudor e pela sobriedade (neles não se bebe demasiado e cantam-se hino
s em honra de Deus). Um cristão pode freqüentar as termas, mas só para se lavar;
pode utilizar incenso em honra dos mortos. "Quanto aos espectáculos, renunciamos a
eles", escreve ainda Tertuliano, que denuncia a loucura do anfiteatro, onde as
corridas provocam o desencadear frenético das paixões, a imoralidade do teatro, a at
rocidade do circo, onde o espectador vive um prazer sádico de assistir à morte
de seres obrigados a matarem-se - os gladiadores - ou a exporem-se às feras, a fri
volidade das competições desportivas. A crítica cristã, além de se juntar à de
alguns filósofos (os estóicos), às corridas e aos jogos do anfiteatro, acrescenta-lhe
uma denúncia do carácter idolátrico e, portanto, diabólico - os deuses são
identificados com os demónios - de certas práticas, de que, aliás, nem os seus próprios
contemporâneos já teriam consciência, como o carácter religioso do cortejo
que, no circo, preludiava o desenrolar das corridas ou, ainda, o facto de os com
bates dos gladiadores terem a sua srcem no sacrifício humano em honra dos mortos.
Por isso, a renúncia aos espectáculos é realmente um sinal distintivo dos cristãos. Mas
teria sido sempre respeitado? As ordens e os avisos regularmente repetidos
até ao século V permitem que se duvide.
Ao recomendar às mulheres cristãs que "só agradem ao [seu] marido" e, portanto, não usem
artifícios de sedução como maquilhagem, jóias e vestidos luxuosos ou impudicos,
Tertuliano afirma precisamente que há uma regra comum e que um esposo, cristão ou não
- o que era freqüentemente o caso -, considere a castidade o mais belo dos
adornos. Neste ponto, a moral cristã concorda com a moral comum, excepto nos usos.
Mas Tertuliano também convida as mulheres cristãs a saírem de casa para socorrer
os pobres, participar no santo sacrifício e ouvir a palavra de Deus; admite as vis
itas de amizade a não-cristãs para que lhes sirvam de exemplo. Igualmente, Clemente
de Alexandria (ca. 190) esforça-se por "esboçar" - em O Pedagogo - "o que deve ser e
m toda a sua vida quem se chama cristão", dá conselhos muito práticos para viver
no mundo com simplicidade, moderação e autodomínio, e usar bem o que Deus criou. Mas é n
ecessário ter em conta o facto de estes conselhos de ética e de vida quotidiana
constituírem um discurso normativo dirigido a uma certa categoria social abastada.
Não sabemos grande coisa da vida concreta da maioria anónima das pessoas comuns,
homens e mulheres, cristãos ou não. Além disso, o adiamento do baptismo para perto da
morte também permitia continuar a viver "como antes", sem contar a pressão
social e os cargos a que os notáveis das cidades podiam eximir-se.
Ao fazer da união de Cristo e da Igreja o modelo do casamento, os cristãos estabelec
eram o fundamento de uma ética específica da união conjugal,
44

baseada no autodomínio e na fidelidade mútua dos esposos. Deste modo, o homem que vi
ve em concubinato deve casar-se para ser admitido ao baptismo, mas a escrava
concubina do seu dono, que educou os seus filhos e não tem relações sexuais com outros
homens, pode ser baptizada. Entre as correntes sectárias, como os marcionitas,
que preconizam a continência absoluta tanto para os homens como para as mulheres,
os que negam o primado da virgindade (Joviniano) ou os que ridicularizam as mulh
eres
casadas (Jerónimo), o equilíbrio é mantido pelos responsáveis das comunidades que insist
em no valor do casamento, embora o modelo da virgindade consagrada seja exaltado
no século IV, com o desenvolvimento do ascetismo. Ao reprovar o adultério, tanto do
homem como da mulher, e o uso sexual dos jovens, e sem estabelecer diferença
entre livres e escravos, os pregadores cristãos contribuem para que os homens tome
m consciência da dignidade igual de todos os seres humanos. O mesmo se diga quando
,
contra o uso estabelecido, os cristãos se recusam a abandonar os recém-nascidos inde
sejáveis, mesmo que se trate de crianças malformadas.
Ao responderem "Sou cristão" ao magistrado que tinha o poder de condená-los à morte e,
talvez mais ainda, "Sou cristã", no caso das mulheres, os/as futuros/as mártires,
ao recusarem pronunciar a sua identidade, ao recusarem apresentar a sua srcem f
amiliar patrícia ou nobre, ou a sua qualidade de cidadão romano, acediam à dignidade
de pessoas e de sujeitos do seu próprio destino, em nome da sua fé. Tertuliano foi o
primeiro a dirigir-se às mulheres num tratado sobre a toilette, inovação que
foi continuada. Pregadores, retóricos e filósofos cristãos trataram da educação, tanto das
raparigas como dos rapazes, e depois, no século IV, da virgindade, do
casamento e da viuvez, em cartas e tratados freqüentemente destinados às mulheres, c
ontribuindo para desenvolver a nova ética familiar, primeiro nos meios abastados,
e depois difundindo-se gradualmente em toda a sociedade.
De facto, os cristãos estão numa situação paradoxal, como explica o autor do escrito A D
iogneto (redigido em Alexandria entre 190 e 210, sem dúvida a um magistrado
encarregado de um inquérito sobre os cristãos): "Os cristãos não têm nada diferente dos ou
tros homens [...]; não vivem em cidades à parte [e] conformam-se com os
usos locais, mas também seguem as leis extraordinárias [...] da sua república espiritu
al." Simultaneamente semelhantes e diferentes, os cristãos têm outros valores
e outros comportamentos diversos dos seus concidadãos. Ao contrário dos estóicos, que
pretendem ser "cidadãos do mundo", os cristãos "passam a sua vida na Terra,
mas são cidadãos do Céu". Habitando nas cidades do mundo, são como a alma no corpo. Como
"a alma habita no corpo, mas não está no corpo, assim os cristãos moram
no mundo, mas não estão no mundo". Conscientes da sua identidade e do que ela implic
a, os cristãos não deixam de reivindicar, salvo em certas correntes sectárias,
a sua pertença a uma família, a uma cidade e ao Império Romano, e a sua ligação à cultura gr
eco-romana.
Françoise Thelamon
45

Respondendo às críticas
Os apologistas, de Aristides a Tertuliano

O conflito que opunha a jovem comunidade cristã à massa do povo, à sua elite intelectu
al e às autoridades levou os seus membros mais cultos a tomar a palavra para
defender (apologeisthai) os seus correligionários, endereçando súplicas aos poderes ou
cartas abertas aos seus compatriotas: são os autores a quem geralmente se
chama apologistas, palavra que se aplica mais especificamente aos autores de língu
a grega do século II. Este movimento prolongou-se pela primeira metade do século
III, pelo IV (Eusébio e Atanásio) e até ao início do século V (Agostinho, Cirilo e Teodore
to).
A apologética primitiva parece largamente tributária da tradição judaica. É ilustrada pelo
ateniense Aristides, que dirige o seu libelo ao imperador Adriano, aquando
da sua estada na Ática, por volta de 124-125. Esta obra, de conteúdo bastante rude,
segue um plano muito simples: depois de um exórdio sobre a existência e a natureza
do verdadeiro Deus, Aristides passa em revista o erro dos bárbaros (o culto dos el
ementos), o dos gregos (o politeísmo associado à zoolatria egípcia) e o dos judeus
que honram o verdadeiro Deus sem o conhecerem; e segue-se uma exposição sobre a pied
ade dos cristãos. Esta divisão em quatro "raças" é a primeira afirmação testemunhal
datada da separação da Igreja e da Sinagoga. Também se encontram em Aristides fragment
os de fórmulas de fé, compreendendo a afirmação da unicidade de Deus, único
criador, e a confissão do Filho, Deus vindo à carne "pelo Espírito", para assegurar a
salvação dos homens, crucificado, morto e ressuscitado.
A actividade de Justino, que dirigiu ao imperador Antonino e ao Senado, entre 15
0 e 155, duas súplicas (biblidia), marca o apogeu do género. Nascido em Naplusa [ant
iga
Siquém, Israel], de uma família de colonos helenizados, não circuncidados, formado na
filosofia pagã (afirma-se discípulo de Platão), Justino converte-se depois
e na seqüência de um itinerário espiritual de que faz um duplo relato, realçando, ora o
valor exemplar da coragem dos cristãos, ora a força de convicção de um didáscalos
(mestre, professor) encontrado em Éfeso e dos escritos que ele lhe deu a conhecer.
Esteve em Roma por duas vezes: uma assinalada por
46

disputas com o filósofo cínico Crescendo, a outra terminada com o seu martírio sob Mar
co Aurélio entre 163 e 168. Dele foram-nos igualmente transmitidos um diálogo
com o judeu Trifão, que contém em germe toda a argumentação contra os judeus desenvolvid
a nos séculos seguintes, e um tratado Sobre a Ressurreição dirigido contra
cristãos heterodoxos, sem dúvida os gnósticos. Justino está na srcem de um género literário
novo, que se define mais pelo fundo que pela forma; ao servirem-se dos
seus escritos, Taciano, Atenágoras e Tertuliano afirmam-se implicitamente seus seg
uidores. O seu uso das Escrituras, e mais particularmente dos testemunhos (testi
monia)
cristológicos, marca uma etapa importante na afirmação da exegese cristã. Por fim, contr
ibui de forma decisiva para o progresso da reflexão cristológica: ao definir
o Filho como "outro Deus", segundo em categoria, afirmando também a sua unidade co
m o Pai, ele concilia a unidade e a distinção dos dois numa perspectiva de subordinação
que será regra até [ao Concílio de] Niceia [325].
A geração seguinte - Taciano, Atenágoras, Melitão e Teófilo, que floresceram em finais do
reinado de Marco Aurélio - é a da diversificação do género. Sírio, convertido
do paganismo e discípulo de Justino em Roma, Taciano vai-se afastando da "Grande I
greja" depois da morte do seu mestre, para dirigir no Oriente uma seita própria,
chamada dos encratitas ("abstinentes"). Dele conserva-se um Discurso aos Gregos,
um ataque violento à cultura helénica identificada com o paganismo, em que ainda
é muito notória a influência de Justino, e diversas traduções do Diatéssaron, uma concordânci
dos Evangelhos que foi a versão oficial da Igreja siríaca até ao século
V. Estes textos não permitem julgar o grau de heterodoxia da doutrina de Taciano,
cujos escritos não parecem ter causado grande escândalo no Oriente, enquanto que
Clemente de Alexandria e, depois, o heresiarca Epifânio de Salamina, os colocavam
entre as obras gnósticas.
Atenágoras, "filósofo" de Atenas, apresenta-se como um moderado. Sobre ele nada se c
onhece de seguro, embora o historiador Filipe de Sidé o designe como o primeiro
mestre do didaskaléion de Alexandria. Redigiu uma Súplica a propósito dos cristãos dirig
ida ao imperador Marco Aurélio, por volta de 176-177, em que refuta sucessivamente
as três acusações - de antropofagia ritual, de incestos edípicos e de "ateísmo" -, antes d
e condenar os costumes e as crenças pagãos, que ele opõe aos dos seus correligionários;
e um Tratado sobre a Ressurreição, em que combate a interpretação espiritual que os gnósti
cos faziam desta doutrina. A Súplica manifesta uma vontade evidente de
apresentar a mensagem cristã à luz da razão, em particular na definição das relações que unem
o Pai ao Filho. Também fundamenta racionalmente a refutação do paganismo:
oposição muito platónica entre o Deus incriado e os deuses criados, polidemonismo para
explicar a acção dos ídolos nos santuários, evemerismo para justificar a existência
das suas lendas e dos seus cultos. Na mesma época, o bispo de Sardes, Melitão, dirig
iu ao imperador uma apologia de que só restam
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alguns fragmentos; nela desenvolve a visão utópica de uma união da Igreja e do Império,
contradita pelos factos. Outra obra de Melitão, a homilia Sobre a Páscoa,
define pela primeira vez a unidade das naturezas (duo ousiai) em Cristo, que só im
plicitamente aparece em Justino.
De Teófilo, bispo de Antioquia, só se conservaram três livros: A Autolykos, relato de
uma conversa com um amigo pagão. Embora ele seja também de srcem pagã, é o
primeiro a desenvolver uma exegese contínua dos primeiros capítulos do Génesis em que
se detecta a influência dos métodos rabínicos. Também contribui de maneira
importante para a elaboração do dogma, em particular pelo primeiro emprego conhecido
do termo trías ("tríade", "trindade") para designar o Pai, o Filho e o Espírito,
e para uma sistematização da doutrina da processão do Logos, conciliando a co-eternida
de do Verbo contido em Deus desde o princípio e a sua prolação como dois momentos
na existência do Verbo. A cronologia universal que ele dá no seu último livro para pro
var a grande antiguidade das Escrituras cristãs permite situar a sua actividade
num período de calma relativa, nos anos seguintes à subida ao poder de Cómodo (180).
Numerosos historiadores associam às apologias o escrito A Diogneto, obra anónima mal
situada no tempo e no espaço (em Alexandria do início do século III?) que é
uma resposta às questões postas ao autor, uma vez mais, por um amigo pagão: "A que deu
s se dirige a fé dos cristãos, que culto lhe prestam, de onde lhes vem o desdém
unânime pelo mundo e o seu desprezo pela morte, porque não fazem nenhum caso dos deu
ses reconhecidos pelos gregos e não observam as superstições judaicas, qual é
o grande amor que têm uns pelos outros e, finalmente, porque é que este povo novo, e
ste novo modo de vida, não começou a viver mais cedo?" São estes os principais
temas da apologética.
Não parece que as apologias tenham alcançado o seu objectivo. A política dos imperador
es não se inflectiu no sentido de uma maior tolerância e, embora a comunidade
não cesse de se alargar, deve-o mais à propaganda individual e ao valor do exemplo:
retomando a palavra de Tertuliano, é o sangue dos cristãos que constitui a melhor
das sementeiras, e também sem dúvida a austeridade da sua moral. Mas o contributo do
s apologistas para a construção do cristianismo não se limita a este papel de
defesa das comunidades, nem mesmo ao de pôr em causa o politeísmo; este aporte é acomp
anhado por um esforço de racionalização da doutrina, para torná-la compreensível
a um público culto, contribuindo assim para a elaboração do dogma.
A actividade apologética prossegue no século III. Clemente de Alexandria (ca. 150-ca
. 215) não foi somente um pregador, um director de consciências, um "gnóstico"
dentro da ortodoxia, detentor de uma doutrina esotérica, cujo segredo ele preserva
: foi também um cantor do cristianismo e, ao mesmo tempo, um denunciador eloqüente
do paganismo no seu Protréptico. Entre os latinos, o africano Tertuliano (ca. 160-
ca.. 225),
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moralista rigoroso, tão retórico com uma eloqüência virulenta quão teólogo brilhante (a ele
se deve o vocabulário teológico usado no Ocidente: persona, trinitas,
etc.), com uma obra tão abundante quanto diversificada, realça na sua Apologética (ca.
197) a fragilidade do fundamento jurídico das perseguições, tema até então
um pouco negligenciado; como Taciano, nos finais da sua vida afasta-se da Grande
Igreja para se juntar à corrente montanista. Um pouco mais tarde, parece, o advog
ado
Minúcio Félix, no seu Octavius, põe em cena o debate de dois amigos, um pagão (Cecilius)
e outro cristão (Octavius), que se encerra com a vitória do segundo. Por
fim, Orígenes, fundador e mais brilhante representante da escola exegética de Alexan
dria, no seu Contra Celso (ca. 248), refuta sistematicamente a primeira obra
de envergadura dirigida contra os cristãos, Discurso Verdadeiro do filósofo Celso, a
nterior cerca de setenta anos. Mas, para estes escritores, o combate mudou de
natureza: as acusações caluniosas já pertencem ao passado e o confronto torna-se mais
intelectual. Doravante, a literatura e o pensamento cristãos rivalizarão com
os seus concorrentes pagãos.
Bernard Pouderon
49

III

QUANDO O IMPÉRIO ROMANO SE TORNA CRISTÃO


De Constantino a Teodósio Da conversão do imperador à conversão do Império

Como muitos outros não-cristãos da sua época, o imperador Constantino parece ter, de i
nício, simplesmente uma fé monoteísta, crendo num Deus criador supremo, conhecido
sob diversos nomes e adorado de várias maneiras - assim, o Sol invictus aparece na
s moedas depois de 308; mas só progressivamente ele virá a formular de maneira
explícita, em textos saídos da sua pena, a sua adesão ao cristianismo. Não é possível contes
tar a sua sinceridade, como fizeram bastantes historiadores, embora esta
adesão lhe permita ser identificado como um instrumento escolhido pessoalmente por
Deus e esta relação pessoal ganhe um alcance político; então, estava-se num mundo
em que pagãos e cristãos consideravam o imperador um indivíduo marcado religiosamente.
Aliás, não se pode imaginar uma conversão súbita, mas, antes, uma evolução,
um despertar gradual: o próprio Eusébio de Cesareia, seu biógrafo, diz que o imperador
recebeu sinais de Deus, por diversas vezes.
Em todo o caso, parece que, quando entrou em Roma, depois da batalha da ponte Mílv
ius (312), Constantino encontrou o denominador comum que assegurará não só a unidade
do seu Império - o reconhecimento de um Deus único - mas também a sua legitimidade, qu
e ele considera uma missão pessoal recebida de Deus. Isso condu-lo a uma atitude
intolerante em matéria de religião. Em 313, o "Édito de Milão" exprime simultaneamente a
idéia de que a segurança do Império é assegurada pelo Deus supremo (e já
não pelos deuses da tetrarquia, Júpiter e Hércules) e o reconhecimento oficial do fact
o de a religião não poder ser obrigatória. Ele testemunha uma política de consenso
a que cristãos e pagãos podem aderir, com um fundamento comum unitário: o monoteísmo, um
monoteísmo que
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tolera as diferenças religiosas e rejeita a coerção. Conseqüentemente, ao pôr termo à Grande


Perseguição lançada em 303 por Diocleciano, que fracassou na sua tentativa
de erradicar o cristianismo, Constantino visa conciliar os cristãos e incorporá-los
no Império e na sua política tradicional.
Está assente que, desde muito cedo, irá manifestar um favor acentuado à Igreja: oferta
s em dinheiro, terrenos, palácios, financiamento de basílicas em Roma e em
Jerusalém. Conseqüentemente, os bispos pedem-lhe que intervenha nos seus negócios inte
rnos e, embora inicialmente ele procure regular os seus conflitos de maneira
consensual, as resistências encontradas conduzem-no rapidamente à punição severa dos dis
sidentes: donatistas e, depois, arianos. Em contrapartida, conserva uma atitude
tolerante (se bem que um pouco desdenhosa) para com a religião tradicional, conten
tando-se com proibir algumas práticas já recusadas por um paganismo esclarecido
(os sacrifícios sangrentos, a magia e a adivinhação privada). Embora tivesse podido co
nter os bispos e as suas violentas disputas teológicas, durante o seu reinado,
soube neutralizar um cristianismo militante antipagão.
Os sucessores cristãos de Constantino (muito especialmente Constâncio II, Valente e
Teodósio) continuam a intervir nos assuntos da Igreja. Para isso, podem apoiar-se
na teologia política elaborada por Eusébio de Cesareia nos seus últimos escritos, em p
articular no Discurso para os Trinta Anos de Reinado e Vida de Constantino,
em que o seu autor apresenta o modelo de um basileus cristão, colocado à cabeça de um
Império também cristão. Isso implica que ele "submeta os inimigos da verdade",
que proclame a todos "as leis da piedade verdadeira", que vele por assegurar a s
alvação de todos. Investidos com esta missão de protecção ou, mesmo, de vigilância,
os imperadores cristãos, ao longo da crise ariana, apoiam ou impõem diversas fórmulas
de fé, concedendo o seu favor aos que as aceitam, mas perseguindo os que as
recusam (os dissidentes, bispos sobretudo, são depostos e exilados - como Atanásio d
e Alexandria e Hilário de Poitiers). Ao cabo de cinqüenta anos de controvérsias,
a chegada de Teodósio I (379-395) marca o regresso definitivo à "ortodoxia" definida
no Concílio de Niceia de 325 e reafirmada aquando do Concílio de Constantinopla
de 381: recebe o apoio do imperador, que faz disso uma lei que se impõe a todos. U
ma série de leis, cada vez mais repressivas, restringem a liberdade de expressão
e do culto de todos os dissidentes da ortodoxia, considerados hereges e persegui
dos como tais.
Mas, em nome dos deveres do imperador, Eusébio contava igualmente o de combater o
"erro ateu", o paganismo. Deste modo, a par das medidas de repressão das dissidência
s
cristãs, os sucessores de Constantino tomaram outras que irão restringir e, depois,
proibir a liberdade do culto pagão. Os filhos de Constantino foram os primeiros
que as puseram em prática. Uma lei de Constante de 341 declara: "Que cesse a super
stição, que seja abolida a loucura dos sacrifícios." Todavia, ao que parece, ainda
não se trata de uma proibição absoluta de todos os cultos pagãos já autorizados, mas de
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uma simples renovação das restrições impostas por Constantino. De facto, uma das suas le
is proíbe que se destruam os templos, tolerados "embora toda a superstição
deva ser totalmente destruída". Constâncio II vai mais longe, por razões em que a políti
ca parece ter o maior peso: entre 353 e 357, depois da derrota do usurpador
Magnêncio, que tinha autorizado novamente os sacrifícios nocturnos, diversas leis or
denam o encerramento dos templos e tentam interditar totalmente o culto pagão:
quem ousar sacrificar é ameaçado de ser "atingido por uma espada vingadora" e pela c
onfiscação dos bens; a adoração das estátuas é proibida sob pena de morte. Contudo,
estas medidas só foram parcialmente aplicadas. Por isso, a política religiosa dos do
is irmãos não terminou na repressão sistemática do paganismo, mas somente num
desfavor acentuado. O imperador Juliano, nascido cristão mas regressado à religião tra
dicional, aboliu estas medidas e tentou fazê-la reviver; contudo, o seu curto
reinado (361-363) não lhe permitiu realizar esta empresa. A sua lei escolar, imedi
atamente abolida pelo seu sucessor Joviniano, tentara proibir os professores cri
stãos
de difundirem a herança da cultura clássica, considerada um bem do paganismo. Entret
anto, a política dos seus sucessores Valentiniano e Valente continua relativamente
tolerante com este. Uma das suas primeiras leis, renovada em 370, declara que ma
ntém a liberdade de culto; mas, no final do seu reinado, Valente proíbe novamente
os sacrifícios sangrentos.
A política religiosa de Graciano e de Teodósio I, e deste sozinho, quando desaparece
u o seu associado, adoptará medidas bastante mais decisivas, que acabarão por
pôr o paganismo fora da lei. Aquando da sua investidura, Teodósio I recusa o título e
o manto de Pontifex maximus e Graciano renuncia a isso pouco depois. Os cristãos
regressados ao paganismo são visados por éditos e, a partir de 381, perdem o direito
de fazer testamentos. A lei é renovada em 383, aplicando-se estritamente aos
cristãos baptizados que abandonaram a sua fé, considerados "excluídos do direito roman
o", deixando àqueles que não foram catecúmenos o direito de testemunhar a favor
da sua família. Em 391, Teodósio endurece-a porque o abandono da comunhão cristã equival
e a "cortar-se do resto dos homens". Por outro lado, são renovadas as antigas
proibições das práticas religiosas tradicionais: em 381 e 382, são proscritos os sacrifíci
os sangrentos sob pena de deportação; em 385, as práticas de adivinhação,
sob pena de morte. Os dois imperadores também atingirão as próprias instituições do culto
pagão. No Outono de 382, Graciano manda tirar do Senado de Roma a estátua
e o altar de Vitória, depois suprime as imunidades das Vestais e dos sacerdotes pa
gãos, confisca as suas receitas e os seus subsídios; Teodósio ordena o encerramento
dos templos; só podem ficar abertos para fins exclusivamente culturais ou para que
, nos que contêm obras de arte, se realizem assembleias públicas. Em 384, são fechados
ou demolidos diversos templos.
52

Mas é uma série de leis emanadas em 391-394 que completa a empresa proibindo todas a
s manifestações do culto pagão: a lei de 24 de Fevereiro de 391 aplica-a a Roma,
a de 16 de Junho ao Egipto, a de 8 de Novembro de 392, a todo o Império. São proibid
os todos os sacrifícios, mesmo os mais modestos do culto doméstico, tanto em
público como em privado, seja qual for a categoria social, sob pena de pesadíssimas
coimas ou de penas mais graves. É esta lei que torna, doravante, o cristianismo
religião do Império, já que a religião tradicional perdeu todo o direito legal de se exp
rimir: foi com Teodósio (e não com Constantino como, às vezes, se diz) que
o Império romano se tornou oficialmente cristão.
Pierre Maraval
53

Pensar o Império cristão


Teologia política e teologia da história

A escolha do cristianismo por Constantino, o fim das perseguições e o reconhecimento


da liberdade religiosa para todos criaram condições radicalmente novas para
os cristãos; doravante, era preciso pensar o Estado romano no plano divino, na eco
nomia da salvação, pensar a relação do soberano cristão com Deus e o seu lugar
na Igreja.
No seio dos Estados antigos, a realeza humana era pensada como imagem terrestre
da realeza divina, e aquele que era investido como representante na Terra do sob
erano
celeste; o exercício do poder era uma imitação sacralizante da acção divina. Na própria Roma
, tinha-se desenvolvido, de várias formas, uma determinada sacralização
do imperador, cujo título Augusto já exprime e de cujo culto imperial, ele, na sua q
ualidade de sumo pontífice, era o chefe e o responsável da religião tradicional.
Eusébio, tornado bispo de Cesareia da Palestina por volta de 313-314, próximo de Con
stantino depois de 324, apologista, teólogo e historiador, é o primeiro a formular,
em vários discursos e obras, uma teologia cristã do poder e da história. Mostra que a
encarnação do Verbo de Deus, o Logos, na pessoa de Jesus é o ponto crucial
da história da humanidade e dá-lhe sentido; ora, este acontecimento operou-se no Impér
io Romano no tempo de Augusto, o que não é uma coincidência, mas a realização
do plano de Deus; desde então, "um Deus único era proclamado a todos e, simultaneame
nte, uma única realeza, a dos romanos, estabelecia-se, florescente, entre nós
[...], no preciso momento [...], uma paz profunda apoderava-se do universo" (Elo
gios de Constantino, XVI, 4). Daí em diante, havia um só Deus e um só imperador -
monoteísmo e monarquia andam a par; a paz romana era o sinal objectivo desta reali
zação providencial, mesmo que, durante vários séculos, os imperadores não tenham
sido cristãos, mesmo que os cristãos tenham sido perseguidos. Deste modo, o Império Ro
mano é totalmente assumido; no plano de Deus, ele tem por missão assegurar
a unidade e a harmonia do género humano; a expansão do Império e a paz romana criam as
condições que permitem que se realize o "Ide, ensinai todas
54

as nações em meu nome" (cf. Mt 28,19, citado por Eusébio em XVI, 8). Com esta meditação so
bre a história, Eusébio permitia que os seus contemporâneos se considerassem
plenamente romanos e cristãos, de maneira que "no nosso tempo", diz ele, esta vocação
do Império se realizava. Quando, em Constantino, o imperador se torna cristão,
pode ser verdadeiramente imagem de Deus na Terra; a sua realeza é uma imagem da do
Logos, o Filho pelo qual o Pai, soberano universal e todo-poderoso, exerce a su
a
realeza na Terra: "Trazendo a imagem da realeza do alto, o rei amado de Deus seg
ura a cana do leme e dirige, imitando o Todo-poderoso, tudo o que está sobre a Ter
ra"
(I, 6). "Bem-amado de Deus", o imperador cristão é dotado de virtudes carismáticas: ra
zão, sabedoria, bondade, justiça, temperança, coragem e, acima de tudo, piedade
- são as do soberano ideal da tradição filosófica -, que ele não considera como méritos pess
oais, mas sim como graças recebidas do alto. Nisso, ele é o verdadeiramente
"filósofo", porque "se conhece a si mesmo"; reconhecendo a sua posição subalterna e as
pirando ao Reino do alto, invoca o Pai celeste pela sua salvação e a do seu
povo, de quem está encarregado. Mas qual a missão de que Constantino terá sido concret
amente investido na Igreja, se apenas foi baptizado no seu leito de morte?
Estava tudo por inventar.
Porventura, daí para o futuro, incumbirá ao imperador cristão ensinar a verdadeira dou
trina, dar força de lei a uma fórmula de fé definida por um Concílio, fazer
com que se execute as suas decisões, ordenar a construção de igrejas, tomar medidas co
ntra cultos tradicionais? E qual é o seu lugar na Igreja, quando ele nem sequer
for baptizado ou quando for considerado herege ou até impuser uma ortodoxia que não
seja recebida por todos num contexto de querelas teológicas graves? Desde o reinad
o
do filho de Constantino, Constâncio II (317-361), acende-se um conflito entre os b
ispos que defendem a fé estabelecida pelo Concílio de Niceia (325) contra as definições
de concílios posteriores que o imperador impõe; então, eles são afastados das suas sés e e
nviados para o exílio. As reacções são muito vivas: Hilário, bispo de Poitiers,
num panfleto particularmente violento, trata Constâncio como Anticristo! Portanto,
o lugar do imperador na Igreja e a sua competência em matéria de definição da
fé devem ser repensados.
"O imperador está na Igreja e não acima da Igreja." Esta fórmula de Ambrósio, bispo de M
ilão (339/340-397), resume bem o pensamento dos bispos ao longo dos últimos
decénios do século IV, em particular no Ocidente romano. Em 386, ele lembrava firmem
ente os "direitos do sacerdócio" ao jovem imperador Valentiniano II ainda não
baptizado: em matéria de fé, "são os bispos que são juizes dos imperadores" e não o invers
o, sobretudo se o imperador é suspeito de heresia ou cometeu uma falta
grave. Em 390, recusou ao imperador Teodósio - culpado de, num acesso de cólera, ter
ordenado o massacre dos habitantes de Tessalónica - o acesso à igreja antes
de ter feito penitência pública; o imperador submeteu-se de
55

tal maneira, que Ambrósio não deixou de sublinhar o seu exemplo edificante. De um im
perador "bispo dos negócios de fora"*, como se teria chamado a si mesmo Constantin
o,
a um imperador "o primeiro dos leigos", tal como é apresentado por Ambrósio, é claro q
ue a concepção do imperador cristão evoluiu durante o século IV. Doravante,
mais do que Constantino, é Teodósio quem constitui o modelo do soberano cristão ideal;
ele tem essas qualidades: temor a Deus e piedade, clemência, autodomínio e
humildade; por isso, ele merece a vitória e, para ele e para o seu povo, também a "f
elicidade eterna que Deus dispensa às almas realmente piedosas" (Agostinho, Cidade
de Deus, V, 26). De futuro, a humildade aparece como a virtude essencial do impe
rador cristão. À semelhança de Cristo, que "se fez obediente até à morte", o imperador
deve ser submisso a Deus e também à Igreja, em matéria de fé, de conduta e até na sua form
a de exercer o poder.
Mas, se o Império romano tinha podido ser pensado como querido por Deus e realizad
o em império cristão, o choque provocado pelos ataques dos bárbaros e a tomada
de Roma pelos godos em 410 obrigaram os cristãos a superar a idéia da eternidade de
Roma, em não ligar a sorte da Igreja à de um Estado terrestre seja ele qual for,
mesmo cristão, em não confundir "as extremidades da terra" a evangelizar com as fron
teiras do Império. "Que horror, o Universo desaba!", escreve Jerónimo (Carta
128), mas também, apelando à penitência: "São os nossos pecados que fazem a força dos Bárbar
os" (Carta 60). O próprio Agostinho convida a que se releia a história
de Roma e se reflicta na velhice do mundo, em vias de desaparecer, mas ao qual,
pela sua encarnação, Cristo trouxe a salvação. Ultrapassando as representações da
cidade ideal, mesmo dilatada nas dimensões do mundo, Agostinho anuncia então: "Dois
amores construíram duas cidades. O amor-próprio até ao desprezo de Deus, a cidade
terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si próprio, a cidade celeste" (Cidade d
e Deus, XIV, 28). Não se trata de opor uma cidade terrestre inteiramente má a
uma cidade celeste fora do tempo e desencarnada: trata-se de dois amores. As dua
s cidades não são contraditórias: a cidade terrestre que pode fazer reinar a paz
e a concórdia não é desprezável, mas é insuficiente e não conseguirá ser um fim; a cidade cel
ste, na sua viagem sobre a Terra, ultrapassa todas as formas de Estado
e transcende-as: "atrai a si os cidadãos de todas as nações [...] de todos os pontos d
a Terra" para conduzi-los "para o Reino que não terá fim" (Cidade de Deus,
XXII, 30).
Françoise Thelamon

* Mais exactamente: "rerum exteriorum in eclesia Episcopus ac Inspector", "Bispo


e Inspector das coisas externas na Igreja". (NT)
56

Roma chrístiana, Roma aeterna


O lugar adquirido pela Igreja de Roma
durante a Antiguidade tardia

A vitória de Constantino sobre o seu rival Maxêncio na ponte Mílvius, no dia 28 de Out
ubro de 312, não só lhe abriu as portas de Roma e do poder, como também assinalou
o início da Antiguidade tardia. No decurso deste período de três séculos, as datas mais
significativas para a história da Igreja romana são dois anos marcados por
eventos sobrevindos fora da cidade, mas prenhes de futuro para ela: 330 e 429.
A 11 de Maio de 330, o novo príncipe fundava Constantinopla; com isso, ligava-se a
uma política de regionalização do Império que conheceu a sua concretização plena
sob Teodósio. E isso conduziu a uma regionalização da cristandade. Disso é testemunha o
terceiro cânone do Concílio de Constantinopla de 381: "Que o bispo de Constantinopla
tenha o primado de honra depois do bispo de Roma, porque esta cidade é a nova Roma
", a que faz eco de maneira mais firme o cânone vigésimo oitavo do Concílio de
Calcedónia, em 451. Roma podia protestar, mas já tinha acabado o seu primado univers
al que afirmava deter não pelo seu estatuto político, mas devido às suas srcens
apostólicas. Daí em diante, o Oriente ficava-lhe largamente fechado, embora as Igrej
as continuassem a voltar-se para ela quando entravam em conflito com o imperador
.
Por outro lado, na Primavera de 429, oitenta mil vândalos, homens, mulheres e cria
nças, passaram o estreito de Gibraltar e apoderaram-se da África romana, quase
sem desferir um golpe. Conquistados pelo arianismo, os novos senhores quiseram i
mpor a sua fé aos seus súbditos; seguiu-se um século de perseguição, umas vezes feroz,
outras, branda. Mas, embora a Igreja local saísse vitoriosa da provação, tinha vivido
um longo eclipse e nunca mais reencontrou o seu antigo brilho. Ora, os nomes
dos seus bispos, a glória dos seus mártires e a recordação viva deixada por alguns pasto
res como Cipriano ou Agostinho faziam dela a única Igreja ocidental que podia
rivalizar com Roma; o apagamento permite que a Igreja romana exerça no Ocidente o
primado que tinha podido salvaguardar no Oriente. Porque, se
57
a Itália do Norte outrora resistiu, as jovens Igrejas das Gálias e das Hispânias viram
de repente no bispo de Roma o patriarca indiscutível do Ocidente.
Pelo menos na srcem, o favor imperial contribuiu muito para esta aura reconheci
da da Igreja romana porque, logo que entrou na Urbs, Constantino multiplicou as
iniciativas
a seu favor. Com a edificação da basílica Constantiniana (São João de Latrão), ele dota Roma
de uma vasta e luxuosa catedral, mais adequada para reunir os fiéis
à volta do seu bispo que as "casas de oração". Para Pedro, ergueu uma basílica não menos v
asta no Vaticano; para Paulo, outra igreja - sem dúvida mais modesta -
na Via de Óstia, enquanto, na Via Apia, a basílica Apostolorum (São Sebastião) celebrava
conjuntamente estes dois "pilares" da Igreja local. Finalmente, para si
próprio, manda construir na Via Labicana uma igreja funerária e um mausoléu em que, po
r fim, repousa Helena, sua mãe. E, ao longo do século IV, os príncipes prosseguiram
no mesmo caminho, os constantínidas erguendo São Lourenço e Santa Inês, a dinastia teodo
siana reconstruindo São Paulo Fora de Muros para fazer dela a "gémea" de
São Pedro, que a sua dedicação saudava como uma "morada régia".
No século V, os bispos de Roma tinham-se tornado suficientemente poderosos para ed
ificar basílicas que pudessem rivalizar com estas fundações imperiais, como Santa
Maria Maior, sobre o Esquilino, obra de Sisto III (420-440). E, embora os seus p
redecessores tivessem sido menos ambiciosos, também contribuíram para o surgimento
na Urbs de uma topografia cristã, cujo tempo ou ambiente histórico foi magistralment
e reconstituído por Charles Pietri. Na cidade, isso passou pela construção dos
tituli, simultaneamente igrejas e centros de catequese, cuja rede se tornara tão d
ensa, desde o século V, que não havia fiel que tivesse de percorrer mais de quinhent
os
metros para assistir ao ofício. O mesmo aconteceu fora das muralhas da cidade, com
a multiplicação, nos cemitérios e nas catacumbas, de santuários mais ou menos
importantes em onra dos mártires. Nenhuma outra cidade podia concorrer com Roma no
número e na qualidade dos seus edifícios; por isso, Roma oferecia um modelo de
equipamentos eclesiásticos tanto mais notável quanto estava ao serviço da pastoral ori
ginal, cujos traços principais foram sendo delineados desde o episcopado de
Dâmaso (366-384).
As inscrições em verso, numa caligrafia esplêndida, que este pontífice mandou gravar nas
tumbas dos mártires não se limitam a elogiar os santos: pelo seu aparecimento
regular em todos os cemitérios, celebram a agregação à comunidade romana destes heróis da
fé cristã. "Cristianização de Roma e romanização do cristianismo" (Richard
Krautheimer) são as duas faces de um mesmo processo que foi crescendo ao longo da
Antiguidade tardia de que Dâmaso foi o primeiro cantor - e que cantor! Isso mesmo
testemunha o elogio que ele tinha destinado à basílica Apostolorum: se ele concede,
como que de passagem, que Pedro e Paulo tinham sido
58

"enviados pelo Oriente", é para acrescentar que, por causa do sangue que lá derramar
am, "Roma pode reivindicá-los como seus cidadãos"; também os saúda por terem
acabado como "novas estrelas", o que voltava a identificar estes príncipes da Roma
christiana com os gémeos Castor e Pólux que velavam desde as srcens, ou quase,
pela salvação da Roma aeterna.
É evidente que o facto de Pedro e Paulo terem sido assim convocados por esta reint
erpretação cristã da ideologia cívica de Roma não é inocente, dado que os papas
do século IV não tinham cessado de exaltar o enraízamento apostólico da sua Igreja e da
figura de Pedro, por detrás da qual se desenhava pormenorizadamente o seu
retrato de sucessores dos apóstolos. Este tema, tão abundantemente orquestrado nos s
eus escritos, também encontrou tradução visual nas pinturas das catacumbas e
nos sarcófagos, muitos dos quais foram exportados, o que contribuiu significativam
ente para difundir no Ocidente a ideologia pontifícia. Testemunham-no as tinas
de pedra do início do século IV, sobre as quais Pedro é representado, sob os traços de M
oisés, como patriarca da "nova Israel", e sobretudo as cenas dos finais do
século em que Cristo, no seu palácio celeste, entrega a sua Lei a Pedro na presença de
Paulo, que o aclama. Diferentemente da primitiva arte cristã, que oferecia
um acesso imediato às Escrituras, aqui mostra-se que a recepção da Escritura deve faze
r-se na Igreja, especialmente por intermédio da Igreja de Roma.
E os artistas traduziram esta concepção usando uma composição hierática e dando aos protag
onistas da cena traços em que a iconografia cristã se tem inspirado até
aos nossos dias. Além deste, há outro legado
- e não menor - que a Igreja de Roma da Antiguidade tardia deixou à Igreja universal
, que é próprio do Ocidente e em que se deve igualmente insistir: o legado da
língua.
Isto é válido também para a língua jurídica - o direito canónico e a sua jurisprudência - que
o papado começou a elaborar a partir do século IV, inspirando-se intimamente
no direito romano. Também nisso, Dâmaso foi pioneiro: a chancelaria pontifícia que val
orizou e enriqueceu prefigura a cúria, enquanto a expressão decreuimus [decretamos]
que usou nas suas relações com as Igrejas do Ocidente anuncia as decretais* da Idade
Média. Aliás, a designação "Sé [sede] apostólica", que se difundiu durante o
seu pontificado, visava sobretudo traduzir a idéia de que a Igreja romana era font
e de direito, e as imagens de Pedro-Moisés nos sarcófagos contemporâneos não diziam
outra coisa: ao privilegiarem as cenas do Sinai
- entrega da Lei e "milagre da nascente" - , é a figura de um legislador que elas
exaltam.

* Colecções de cartas de papas que, a partir do século xIII, constituem autoridade no


corpus de direito canónico, com a mesma valia do Decreto de Graciano, composto
em meados do século XII.
59

O contributo não foi menor no domínio da língua sagrada. Dâmaso - ainda ele - solicitara
ao seu secretário Jerónimo que traduzisse para latim as escrituras e, em
resposta, recebeu nada menos que a Vulgata. Ousou substituir o grego pelo latim
nas celebrações, srcinando assim a elaboração da liturgia romana, cujo formulário
é uma das criações mais srcinais: uma mistura harmoniosa de grandeza e de sobriedade,
de simplicidade e de dignidade. Henri-Irénée Marrou, profundo e erudito conhecedor
da cultura antiga, considerava-a "a derradeira, e não a menor, obra-prima da civil
ização clássica". Certamente foi necessário esperar pela fórmula carolíngia para
que esta liturgia se difundisse no Ocidente, mas, desde então e até ao Vaticano II,
ela foi património comum dos fiéis católicos romanos.
Jean Guyon
60

IV

DEFINIR A FÉ
Heresias e ortodoxia

A diversidade caracteriza o cristianismo nascente, segundo formas que as relações co


m o judaísmo vão tomando, os contactos com o mundo politeísta penetrado pelas
missões junto dos "gentios" e a referência a Cristo nas comunidades primitivas. As E
pístolas de Paulo e os Actos dos Apóstolos de Lucas testemunham a existência
de conflitos; existem diferenças entre a teologia dos escritos joânicos e a dos Evan
gelhos sinópticos. Poder-se-iam multiplicar os exemplos, tendo igualmente em
conta os escritos cristãos mais antigos, classificados posteriormente como "apócrifo
s". As múltiplas "Igrejas" constróem a sua identidade; os indivíduos, as doutrinas
e os usos circulam, enquanto se exprimem aspirações à unidade. Enquanto as "Igrejas" v
ivem o presente como iminência dos últimos tempos, as divisões, quando provocam
perturbações, aparecem como outros tantos sinais da última hora, o que basta para comp
reendê-las e dominá-las, vendo nelas a intervenção dos "falsos profetas" descrita
pela tradição viva do apocalipse. Entretanto, como a Parúsia (o regresso de Cristo) ta
rda a manifestar-se e o cristianismo se organiza para assegurar a sua difusão
num mundo que já não percebe unicamente como estrangeiro, é preciso enfrentar os seus
conflitos internos, tal como sucede numa sociedade estabelecida com alguma
permanência, e associá-los aos critérios de delimitação e de exclusão tirados da sua herança
riginal dos modelos tomados do horizonte universal que a rodeia.
A oposição entre "heresias" e "ortodoxia" é o resultado da afirmação das estruturas instit
ucionais. No século IV, Eusébio de Cesareia impôs durante muito tempo a
imagem da unidade srcinal da Igreja, atacada por "heresias" surgidas mais tarde
. Este quadro presidiu à historiografia, com algumas excepções, até ao século XX.
Então, foi abalado por Walter Bauer, que se esforçou por mostrar que as correntes po
steriormente classificadas como "heréticas" eram maioritárias no século II, enquanto
as tendências retrospectivamente consideradas "ortodoxas" eram minoritárias. Embora
a tese de Bauer seja contestável no pormenor, concorda com o progresso dos
61

conhecimentos tornado possível desde há alguns decénios pelas descobertas relativas ao


gnosticismo, como a biblioteca copta de Nag Hammadi (no Egipto), tendo em
conta sem preconceitos a literatura chamada "apócrifa", e por uma percepção aperfeiçoada
das relações entre cristianismo e judaísmo nos primeiros séculos. Entretanto,
uma das fraquezas da tese é ter conservado a dupla "heresia"/"ortodoxia", mantendo
-se tributária de conceitos produzidos pela apologética.
De facto, a noção de "heresia" precisa-se em meados do século II, numa descrição unificant
e de erro que, depois, serve de quadro e de instrumento de polémica, de
que é testemunho, em primeiro lugar, a obra do apologista (e mártir) Justino. A adopção
de um modelo comum de exclusão situa-se num momento em que a Igreja procura
ser conhecida, definindo a sua autenticidade segundo as maneiras de pensar de qu
em ela quer convencer. O Tratado contra todas as heresias que se foram produzind
o,
de Justino, assim como algumas alusões na Apologia e no seu Diálogo com Trifão, bem co
mo alguns traços em Ireneu de Lião, permitem reconstituir a sua heresiologia.
Antes de Justino, o termo hairesis foi tomado dos gregos para designar tendências
divergentes, num sentido desfavorável: assim é na Epístola de Paulo aos Gálatas
(5,20) e na sua primeira Epístola aos Coríntios (11,19). Também nos Actos dos Apóstolos
- onde é empregado geralmente segundo o sentido da corrente dos judeus helenizados
,
para evocar, de modo neutro, as correntes do judaísmo - aparece uma tonalidade neg
ativa (em 24,14). Na segunda Epístola de Pedro (2,1-2), um dos escritos mais tardi
os
do Novo Testamento, haireseis, no plural, é empregado no sentido de "doutrinas per
niciosas" e hairetikos, na Epístola a Tito (3,10), atribuída a Paulo, é nitidamente
pejorativo. Sentido pejorativo que se acentua ainda mais nas cartas de Inácio de A
ntioquia.
O que é novo em Justino é, por um lado, o agravamento do sentido restritivo da palav
ra aplicada aos "falsos profetas" e à srcem diabólica dos factores de perturbações;
e, por outro, a adaptação polémica à heresiologia cristã de esquemas próprios da historiogra
fia da época helenística e imperial, ao tratar das "escolas" filosóficas.
Em resumo, pode dizer-se que Justino tira partido do sentido vago de "escola de
pensamento" tomado pelo termo hairesis nos tratados Peri haireseôn (Sobre as heres
ias),
a partir da segunda metade do século II a. C, para a distinguir da "escola" instit
ucional, scholè, de que falam as obras intituladas Sucessões dos filósofos, um
pouco anteriores, a propósito das quatro escolas de Atenas (Academia, Liceu, Jardi
m e Pórtico). A analogia assim estabelecida por Justino entre as "escolas" filosófic
as
e as "seitas" cristãs permite que não se chame "cristãos" a pessoas cujas convicções são atr
ibuídas a seres humanos pervertidos e, graças ao tema judeu e cristão
da falsa profecia, a uma srcem diabólica; e também permite esboçar a tese que faz de
Simão, o Mago, o pai de todas as heresias, tornando plausível uma genealogia
das "seitas". Tinha nascido a heresiologia.
62

Ireneu sistematiza-a e endurece o discurso, expondo as "escolas" ao ridículo e int


roduzindo a suspeita relativamente à influência da filosofia; depois, Tertuliano
fazia de Platão o despenseiro das "heresias". Desemboca-se no século III no método ilu
strado pela Denúncia de todas as heresias do Pseudo-Hipólito, que identifica
cada "seita" com um sistema pagão e, depois, no século IV, no género da suma heresiológi
ca, rematado por Epifânio com o seu Panarion ou Caixa de remédios. Mesmo
os Padres da Igreja mais favoráveis à filosofia, como Clemente de Alexandria e Orígene
s, exploram o mais possível o poder acusador da qualificação de "heresia".
Doravante, é uma censura grave nos debates teológicos e nos conflitos institucionais
no seio da Igreja. Quando o Império se torna cristão, a legislação política
ataca os suspeitos de heresia, como atestam o Código de Teodósio e, mais tarde, o Códi
go de Justiniano.
O instrumento heresiológico é elaborado por Justino e desenvolvido por Ireneu na época
em que duas grandes crises atravessam o cristianismo, provocadas por Marcião
e pelos "gnósticos": um rejeita a herança judaica e a lei bíblica, e constitui uma Igr
eja rival; os outros alegorizam a Escritura e reivindicam o acesso ao conhecimen
to
puro, que os coloca acima dos "simples" e dos pastores que os governam, e também c
ontestam radicalmente a autoridade das instituições, de que a Igreja está a dotar-se.
Este instrumento é então completado pelo tema da "sucessão" autêntica, esboçado por Justin
o no contexto da controvérsia com o judaísmo e não sem reminiscências da
maneira como o farisaísmo estabelecia em seu proveito a continuidade da transmissão
da Tora desde Moisés. Em contrapartida, no tempo de Ireneu, a ruptura com o cristi
anismo
é consumada, e os cristãos acusados de judaísmo são, também eles, banidos e qualificados c
omo hereges. Mas a verdade é que a influência indirecta de representações
oriundas do judaísmo sobre a teoria da sucessão autêntica remonta aos Apóstolos e a Cris
to. Considera-se que esta continuidade institucional e normativa contém a
tradição da verdade, única e pura, oposta à heresia e às dissensões dos "hereges". É também c
Ireneu que se afirma a constituição de um cânone do Novo Testamento,
outra peça-chave da ortodoxia em que a Igreja, na sua conquista de unidade, assent
a a sua autoridade.
O conjunto das normas que constituem a "ortodoxia" é completado no século IV, quando
os defensores do Concílio de Niceia, nos documentos oficiais, opõem a orthodoxia
à "heresia" ariana. E, doravante, o adjectivo "ortodoxo" qualifica a fé da Igreja, p
or oposição àquilo que é denunciado como heresia: trata-se de julgamentos em
matéria de doutrina, dos escritos, dos bispos e de qualquer adepto da regra de fé pr
ecisada e confirmada pelos concílios ecuménicos.
Alain le Boulluec
63

Concorrentes do cristianismo Gnose e maniqueísmo

Privilegiando, tanto uma como outra, um conhecimento (gnosis) que é iluminação directa
do homem, a gnose e o maniqueísmo concorreram poderosamente com o cristianismo
nos primeiros séculos da nossa era. A gnose manifestou-se no Império Romano entre os
séculos II e IV, ilustrada pelos mestres cuja memória foi preservada pela polémica
dos Padres da Igreja. Oriundas do Egipto, da Síria ou da Ásia Menor, cuja herança cult
ural se enraíza tanto no paganismo como na tradição judaica e cristã, construíram
sistemas de pensamento que, malgrado a sua diversidade, concordam num ponto fund
amental: o mundo é a criação defeituosa de um deus inferior (demiurgo) em que o homem
está aprisionado. No entanto, portador de uma réstia de luz proveniente do Inconhecíve
l, o homem pode remontar às suas verdadeiras srcens, se conseguir revivificar
esta luz interior. Ser "gnóstico" (gnostikos, "aquele que conhece") é desfazer-se do
s laços do corpo, tomando consciência da negatividade do universo e de si próprio
no universo. Ao conhecer, superam-se as leis perversas da história e do tempo, fei
tas pelo criador, para reintegrar o "pleroma" (plenitude).
Vários sistemas gnósticos identificaram o deus criador com o Deus da Bíblia: o livro d
o Génesis é a história mítica de um Deus ciumento que deu ao homem um corpo
para o servir. Cristo é um enviado celeste, revelador dos mistérios do começo e do fim
. Por uma tradição oculta, esta instrução, confiada a alguns discípulos escolhidos,
como Tomé, Filipe, Tiago e Maria Madalena, foi posta em forma escrita por autores
anónimos entre os séculos II e III.
Esta releitura, que perturbava os fundamentos do cristianismo, suscitou a reacção do
s Padres da Igreja, que refutaram a gnose, conscientes das suas perigosas implic
ações.
Adversário ameaçador da Igreja em vias de estruturação, preconizando uma salvação pela via ún
ca do conhecimento individual e não tendo nenhuma necessidade das hierarquias
eclesiásticas, a gnose foi taxada como heresia, os seus adeptos perseguidos e os s
eus escritos destruídos - política de repressão seguida pelo Estado romano tornado
cristão.
64

Em primeiro lugar, a gnose foi exclusivamente conhecida pelos seus opositores: I


reneu de Lião (Denúncia e Refutação da Falsa Gnose, entre 180 e 185), o Pseudo-Hipólito
de Roma (Refutação de Todas as Heresias, início do século III) e Epifânio de Salamina (Pan
arion, "Caixa de Remédios", de finais do século IV), mas também Tertuliano
de Cartago, Clemente de Alexandria e Orígenes. Em meio pagão, Plotino, cuja escola r
omana era freqüentada por gnósticos, e o seu aluno Porfírio de Tiro, levantaram-se,
no século III, contra uma doutrina que associava mito e filosofia. Embora polémica,
a documentação da controvérsia é útil porque nos informa sobre os nomes e as
teorias de um certo número de mestres: Valentim e os seus alunos Ptolomeu e Heracléo
n, Carpócrates, Isidoro e Basílides, todos naturais do Egipto, os sírios Satornilo
e Menandro, e o asiata Marcos, o Mago. A partir de Alexandria, de Antioquia e de
Roma, as doutrinas gnósticas espalharam-se por todo o Império.
Desde o fim do século XVIII, encontraram-se textos compostos pelos próprios gnósticos:
escritos em copta, língua do Egipto na época cristã, são traduções de srcinais
gregos perdidos, dos séculos II e III. Estes textos conservaram-se em códices (o códex
é o antepassado do livro) reunidos e criados por volta de 350: o códex Askew,
o códex Bruce e o códex de Berlim. A maior descoberta arqueológica foi a de Nag Hammad
i (Alto Egipto) onde existe toda uma biblioteca gnóstica: treze códices em
papiro, reunidos em meados do século IV, com cinqüenta e três tratados, que tinham sid
o metidos numa jarra, escondida numa gruta sobranceira ao Nilo. Evangelhos,
apocalipses e homilias, e também exposições de filosofia e de mitologia constituem a r
ica paleta deste corpus. São textos de teor esotérico, destinados à instrução
de quem se compromete numa via de conhecimento. Em 2006, acabava-se o restauro d
e um novo códex; descoberto em 1970 no Egipto Médio, o códex Tchacos contém quatro
tratados gnósticos, o mais surpreendente dos quais é, sem dúvida, o Evangelho de Judas
. O estudo concomitante destas fontes permite reconstituir uma doutrina, fascina
nte
e complexa, que tem o seu lugar entre as grandes construções da história do pensamento
.
A tendência dualista expressa na gnose pela separação entre um deus perfeito e um deus
criador torna-se mais nítida no sistema de pensamento elaborado por Mani (216-276
).
Nascido na Babilónia do Norte, em Mardinou, Mani passou a sua infância na comunidade
baptista do Dastumisan, praticando ascetismo e purificações rituais. Aos doze
anos, em 228, segundo diversas fontes, Mani teve uma revelação do seu gémeo celeste, d
escido da terra da luz. Depois de uma segunda visita do anjo, doze anos depois,
Mani deixou a seita para difundir a mensagem divina recebida: a verdadeira purez
a decorre da separação, tanto no homem como no universo, entre o que pertence à luz
e o que pertence à treva. A partir da capital sassânida, Selêucia-Ctesifonte, Mani emp
reende viagens missionárias durante trinta anos. Com o apoio de Shabuhr I,
funda comunidades em todo o Irão. No Império
65

Romano, depois da Mesopotâmia e do Egipto (por volta de 240), a sua doutrina passo
u por todas as províncias. Durante uma estada em Ctesifonte (262-263), preparou
os estatutos da sua Igreja. A morte de Shabuhr I (272-273) põe termo à expansão extrao
rdinária da religião de Mani, e a ascensão de Vahram I, influenciada pelos
sacerdotes masdeístas, priva-o da protecção régia. Chamado pelo novo rei a Beth Lapat (S
usiana), esmagado por falsas acusações e lançado na prisão, Mani vai-se extinguindo
(276), condenado ao suplício das correntes: comemora-se todos os anos a sua paixão n
a festa do Bêma. A morte de Mani e, depois, a do seu sucessor Sis (284) marcaram
o início da perseguição.
Segundo uma fórmula bem testemunhada, a doutrina de Mani é a dos "dois princípios e do
s três tempos". Os dois princípios são bem e mal, luz e treva, coeternos, opostos
um ao outro, cujas relações se articulam em três tempos: o tempo da separação; o tempo médio
, onde a luz é agredida pela treva e se mistura com ela; o tempo final,
em que são de novo separados. A cosmologia (génese do mundo), a antropogonia (génese d
o homem) e a soteriologia (doutrina da salvação mediante um redentor) inserem-se
no tempo médio, durante o qual a luz aprisionada é progressivamente libertada através
de um dispositivo cósmico de filtragem. O combate mítico entre o bem e o mal
interioriza-se em cada maniqueu, que separa a luz da treva por meio de um compor
tamento ascético e um regime alimentar vegetariano, rico em partículas luminosas.
Mito e doutrina entrecruzam-se nas nove obras compostas por Mani, de que nos res
tam apenas alguns fragmentos: Shabuhragan, Evangelho vivo, Tesouro, Mistérios, Len
das,
Imagem, Gigantes, Cartas, Salmos e Orações - todos em siríaco, excepto Shabuhragan.
A sua doutrina está repleta de elementos tomados de outras religiões (budismo, zoroa
strismo e cristianismo), não só para se adaptar a todos os contextos culturais,
mas também porque Mani se considerava o último elo na cadeia das mensagens divinas.
Ao pôr por escrito a sua revelação, Mani distingue-se dos outros fundadores de
religiões - Buda, Zoroastro, Jesus; aplicava a si próprio a metáfora do "selo da profe
cia", significando que era nele que se realizava a revelação.
A extraordinária difusão do maniqueísmo apoia-se na organização sem falhas da sua Igreja,
estruturada em duas classes: leigos e religiosos; estes são apóstolos itinerantes,
adstritos a um código moral muito exigente.
O pensamento de Mani revisita, segundo uma grelha de leitura dualista, diversos
elementos da tradição cristã. Embora a recusa da Bíblia judaica seja muito clara,
honra-se a figura de Jesus, um Jesus celeste de quem Mani se proclama apóstolo e p
aracelso (o consolador - o termo designa o Espírito Santo). A Igreja enfrenta o
maniqueísmo, que acusa de heresia devido à sua distinção entre um deus do bem e um deus
do mal, criador (o Deus da Bíblia), da rejeição das Escrituras Veterotestamentárias
e da releitura da figura de Jesus. A partir de 280 (carta de Teonas de Alexandri
a), multiplicam-se os avisos contra a propaganda maniqueia, até à redacção das
66

refutações: a primeiríssima, os Actos de Arquelau (por volta de 345), descreve Mani co


mo um persa bárbaro que se infiltrou no mundo cristão. Esta imagem, tomada
da heresiologia - de Cirilo de Jerusalém (348) a Epifânio de Salamina (376), de Fila
stro (385) a Fócio (870) -, contrasta com aquela transmitida pela tradição persa
e árabe, na qual Mani goza de grande prestígio. O Estado romano reage contra o maniq
ueísmo: o Édito de Diocleciano (297) acusa os seus seguidores de espionagem por
conta do rei persa, condenando-os a castigos extremos. Agostinho, maniqueu duran
te dez anos, testemunha a sua penetração na África proconsular.
O maniqueísmo tem sido explicado, desde o início do século XX, pela descoberta de font
es primárias. Dos códices coptas de Medinet Madi (Fayoum, século IV) ao pequeno
códex grego de Colónia (século V) e às escavações arqueológicas do oásis de Dahlah (antiga Ke
s), encetadas em 1982, tem aparecido uma rica documentação sobre
os maniqueus do Egipto.
Banido no Ocidente, o maniqueísmo expandiu-se no Oriente, com sortes diferentes, e
chegou, seguindo a Rota da Seda, até à Ásia Central e à China, conforme ilustrado
por abundantes fontes literárias e iconográficas. Se, em 1292, Marco Pólo encontrou ma
niqueus em Zaitun, há vestígios do século XVI que atestam a permanência desta
religião na China do Sul.
Madeleine Scopello
67

A elaboração de uma ortodoxia nos séculos IV e V

Estes dois séculos são um tempo de elaboração doutrinal intensa, marcada inicialmente pe
las controvérsias trinitárias e, depois, no século V, pela querela cristológica;
tanto as primeiras como a segunda punham em causa a divindade do Filho e, simult
aneamente, a economia da salvação que ela implica. As soluções finalmente consideradas
fundam e fundamentam, ainda hoje, a fé da maioria dos cristãos, embora muitos deles
confessem não acreditar que Jesus fosse realmente Filho de Deus e se mostrem
cépticos acerca da Ressurreição. Contudo, trata-se do ponto fundamental de que depende
a identidade dos cristãos, pois, no seio do monoteísmo herdado dos judeus,
a fé em Jesus Cristo, Filho de Deus, ligada à questão da salvação, obriga-os a formular as
relações que Ele mantém com Deus Pai. Cristo é Deus como o Pai? Ou um
ser divino distinto dele? Ou ainda uma criatura de Deus, nem que seja a primeira
? Para assegurar a salvação da humanidade, o Filho deve ser plenamente Deus e plenam
ente
homem.
Nos séculos precedentes já tinham sido encaradas diversas soluções: recorrendo a conceit
os da filosofia grega como ousia ("substância" ou "essência"), hypostasis
("hipóstase", existência real), prosopon ("pessoa") ou physis ("natureza"), oscilava
m entre dois escolhos: o modalismo (representado por Sabélio), que insistia na
unidade da substância divina (ousia) em detrimento do reconhecimento das três pessoa
s distintas; e o diteismo, que concede ao Filho uma substância divina própria
e igual à do Pai. A questão volta a ser abordada no início do século IV por Ario, padre
de Alexandria que, em nome do único Deus não-gerado, considera o Filho, gerado
pelo Pai, uma criatura, e define uma teologia trinitária segundo a qual o Filho se
subordina ao Pai, sendo-lhe inferior. Mas Constantino, imperador único desde 324,
desejoso de estabelecer a unidade da Igreja depois da do Império, reúne um Concílio ge
ral em Niceia em 325 para definir uma data para a Páscoa e uma ortodoxia comuns
a todos os cristãos do Império. De facto, doravante, a Igreja é reconhecida como uma i
nstituição oficial no conjunto do Império. Contra o arianismo, o homousios,
que
68

afirma que o Filho é "da mesma substância" (ou essência) que o Pai, é adoptado por todas
as Igrejas e as proposições de Ario são anatematizadas, sendo ele próprio
exilado.
Entretanto, esta fórmula suscita grandes reservas entre os bispos do Oriente devid
o a uma interpretação sabeliana sempre possível. Também as discussões srcinaram,
durante quase quarenta anos, uma sucessão de sínodos em que os arianizantes, apoiado
s pelo imperador Constâncio (337-361), voltaram a ganhar terreno. Desenvolveu-se
uma teologia antinicena da semelhança, que oscilava entre o semelhante segundo a s
ubstância (homoios kafousiari) e o simplesmente semelhante (homoios), destinada
a afastar os extremos: os sabelianos para quem o Filho não é mais que uma modalidade
do Pai e os arianos radicais que defendiam a diferença de substância Qieterousios)
do Filho.
Em 359, surgiu uma solução intermédia, o homeísmo. Esta foi adoptada em Janeiro de 360 c
omo fé oficial por Constâncio, que via nela o meio de impor a unidade a todo
o Império. Os opositores foram exilados. Esta fé foi partilhada fora do Império por Úlfi
la, evangelizador dos godos. A morte de Constâncio, em 361, voltou a pôr
em causa este equilíbrio: face ao perigo do arianismo radical, as posições nicenas são r
eafirmadas em Alexandria por Atanásio (Concílio "dos confessores" de 362)
e reconhecidas em Antioquia pelo antigo homeiano Melécio (sínodo de 363). Mas Valent
e (364-378) retoma também a política homeiana de Constâncio. A sua morte marca
o início da viragem nicena fortemente apoiada por Teodósio (379-395). O seu édito de 2
8 de Fevereiro de 380 define a ortodoxia a partir da fé dos bispos de Roma
e de Alexandria que, a seus olhos, eram o símbolo da unidade do Império. Convoca um
sínodo de todo o Oriente em Constantinopla, em Maio de 381, enquanto, no Ocidente,
o Concílio de Aquileia condena os últimos homeianos, exilados por Graciano (375-383)
. A lei de Niceia é reafirmada por cento e cinqüenta bispos, e explicitada em
dois pontos, precisando que "o reino de Cristo não terá fim" e afirmando a divindade
do Espírito Santo, "adorado e glorificado com o Pai e o Filho". O édito de 30
de Julho de 381 só reconhece como "católicos" os que professam esta fé, sendo os outro
s rejeitados como hereges.
A reflexão cristológica prossegue à volta da questão da coexistência em Jesus do humano e
do divino. Ainda a esse respeito, as posições extremas serão afastadas
depois de violentas discussões, com proveito para um compromisso entre as duas pri
ncipais tendências representadas pela Igreja de Alexandria e pela de Antioquia.
A primeira, monofisita, defendia uma cristologia de natureza única (physis) do Ver
bo encarnado; a segunda, diofisita, insistia nas duas naturezas (physeis) de Cri
sto,
reconhecendo ao mesmo tempo a sua unidade na pessoa real. Ora, a confusão entre os
conceitos de natureza e de pessoa contribuía para fazer ferver o debate: os monof
isitas
acusavam os seus adversários de dividirem Cristo e de ensinarem a existência de dois
Filhos, a que os diofisitas respondiam que
69

os monofisitas negavam a humanidade de Cristo e punham em causa a economia da sa


lvação. De forma nenhuma se poderá admitir uma distinção demasiado vincada em Cristo
entre o Verbo divino e o homem Jesus, como fazia Nestório de Constantinopla, segun
do o qual desaparecia a união real em proveito de uma simples união moral que era
um atentado à divindade de Jesus; também de modo nenhum se podia aceitar a mistura d
as duas naturezas, divina e humana, em que o humano desaparecia em proveito da
única divindade - outra posição extrema defendida pelo arquimandrita Eutiques que sedu
z Teodósio II (408-450).
Este reúne o concílio em Éfeso em 431, para resolver a crise suscitada pela posição nestor
iana. O partido de Cirilo de Alexandria (412-444), maioritário, obtém a
condenação e a deposição de Nestório, aprovadas pelos legados romanos e, depois, pelo impe
rador, que o exilou, mas nenhuma decisão doutrinal foi tomada a não ser
o reconhecimento do Símbolo [ou Credo] de Niceia. Depois do Concílio, em 433, fracas
sou uma tentativa de aproximação entre Alexandria e Antioquia. Eutiques, primeiro
condenado por Flávio de Constantinopla de acordo com o bispo de Roma, é apoiado por
Dióscoro (444-454), novo bispo de Alexandria, que é designado por Teodósio II
para presidir a um novo concílio de Éfeso em 449, no qual Eutiques é reabilitado contr
a o parecer dos legados romanos, enquanto os antioquenos são violentamente
afastados. As decisões deste Concílio, reafirmando o monofisismo, foram confirmadas
por Leão de Roma, autor de um Tomo dirigido a Flaviano e nitidamente diofisita,
que denunciava a "pilhagem" ou "exacção" de Éfeso.
Com a morte de Teodósio II, a relação das forças inverte-se. O novo imperador, Marciano
(450-457), hostil a Eutiques e a Dióscoro, convoca um novo concilio em 451,
em Calcedónia. Reunidos em Outubro, trezentos e cinqüenta bispos, quase todos orient
ais, anulam as decisões de Éfeso II (449) e, após longas discussões, homologam
uma cristologia diofisita, em parte retomada do Tomo de Leão, proclamando a união da
s duas naturezas perfeitas na pessoa de Cristo encarnado: "Um único e mesmo Filho
[...], gerado para nós e para nossa salvação da Virgem Maria, mãe de Deus [Têotokos] [...]
, reconhecido em duas naturezas [], uma só pessoa e uma única hipóstase."
Esta solução doutrinal de conciliação foi considerada um esclarecimento do símbolo de Nice
ia-Constantinopla e não uma nova definição de fé. Mas, afinal, a união
entre calcedónios e monofisitas revelou-se impossível, sendo que ambas as facções logo s
e organizaram em Igrejas separadas, ainda hoje activas (no Egipto).
Niceia, Constantinopla, Éfeso (431) e Calcedónia são considerados, na história da Igreja
, os quatro concílios "ecuménicos" que fundaram a doutrina cristã.
Annick Martin
70

EDIFICAR ESTRUTURAS CRISTÃS


Estruturar as igrejas

Numa homilia sobre o capítulo VI dos Actos dos Apóstolos, João Crisóstomo (falecido em 4
07) interroga-se sobre a função realmente exercida pelos "sete homens de
boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria" que os Doze instituem para "o serviço
das mesas" na primeira comunidade de discípulos de Jesus de Nazaré estabelecida
em Jerusalém: "Mas que dignidade lhes será conferida? Que ordenação receberam? É o que é pre
ciso saber. Seria a dos diáconos? E, no entanto, não será o caso nas
Igrejas, mas então é aos presbíteros que pertence administrar? Ainda não havia bispos, m
as somente os apóstolos. Por isso, creio que se pode concluir clara e evidentement
e
que nem o nome "diácono" nem o de "presbítero" se lhes aplicavam; contudo, foi com e
ste objectivo que foram ordenados."
O embaraço do pregador é patente, a expressão hesitante: a leitura rápida dos Actos não lh
e permite identificar com evidência a idade apostólica, os cargos e funções
que conhece na sua Igreja na viragem do século IV: bispo, diácono e presbítero. O hist
oriador contemporâneo não está mais bem armado que Crisóstomo para abordar
os primeiros tempos da estruturação ministerial das comunidades cristãs. Das alusões e i
ncidentes contidos nas cartas unanimemente atribuídas a Paulo - os primeiros
escritos cristãos -, resulta que, em Jerusalém, os Doze, quer dizer, os discípulos dir
ectamente escolhidos por Jesus (excepto Matias, que substituiu Judas) e enviados
por Ele em missão (daí o seu nome de apóstolos) constituem, com Tiago, o "irmão do Senho
r", os pilares do grupo que se afirma de discípulos do Nazareno. As comunidades
que Paulo cria ou encontra ao longo das suas viagens são colocadas sob a direcção de c
olégios de responsáveis chamados episcopoi ("vigilantes") ou diakonoi ("servidores")
,
sem que seja possível precisar bem os cambiantes eventualmente
71

colados às denominações diferentes. O mesmo acontece com o termo presbyteroi que se en


contra nos Actos dos Apóstolos. A dificuldade é tanto maior quanto os mesmos
vocábulos se conservaram ao longo do tempo para designar as principais funções em uso
nas comunidades cristãs da "Grande Igreja", mas com uma acepção que mudou.
É por isso que a tradição erudita fala, em relação à época primitiva, de "epíscopos", de "pre
ros", mas também, talvez com alguma incoerência, de "diáconos",
pressupondo implicitamente que esta última função permaneceu substancialmente a mesma
ao longo do tempo. Portanto, toda a questão está em determinar qual o momento
e segundo que processos os termos presbyteroi e episcopoi adquiriram o seu signi
ficado moderno, o que torna legítimo traduzi-los respectivamente por "presbíteros"
e por "bispos".
Durante a primeira metade do século II, talvez por volta de 110-120, a correspondênc
ia de Inácio de Antioquia, por mais discutidos que sejam a sua composição exacta
e o seu texto, testemunha a favor do surgimento de uma evolução decisiva da organização
eclesiástica. De facto, nas cartas que, na viagem que faz para Roma, onde
irá sofrer o martírio, Inácio envia a diversas Igrejas da Ásia Menor, não cessa de exortar
os cristãos à unidade e de recomendar a todos a submissão ao episcopos
que "ocupa o lugar do próprio Deus" (Epístola aos Magnésios, 6,1): aqui é uma direcção coleg
ial e não um bispo único - os eruditos utilizam a palavra "monoepiscopado"
- que preside a uma comunidade hierarquizada dotada de "presbíteros" e de "diáconos"
. O tom particularmente polémico desta correspondência permite que se pense que
essa transformação suscitou debate. Revolução ou mutação gradual? As fontes não permitem resp
nder, embora as epístolas pastorais, cuja autenticidade paulina é geralmente
negada e, conseqüentemente, cuja datação é muito disputada, atestem uma tendência para a p
recisão crescente das funções e obrigações dos servidores das igrejas,
o estabelecimento de ministros permanentes e uma especialização progressiva das tare
fas. Certos especialistas chegam a identificar nestes textos os traços de um
monoepiscopado. Seja como for, a passagem para o episcopado único aconteceu aos po
ucos, ao longo do século II, segundo uma cronologia variável, em todas as comunidade
s
da "Grande Igreja": é deste modo que, na viragem do século II, o polemista anticristão
Celso (cf. Orígenes, Contra Celso, V, 59) designa a rede maioritária de comunidades
cristãs em comunhão umas com as outras, por oposição aos pequenos grupos dissidentes.
Esta nova constituição permitiu que se desse uma visibilidade maior à apostolicidade r
eclamada pelas comunidades da "Grande Igreja" (aliás, tanto quanto os seus
adversários). De facto, desde Paulo, e de maneira cada vez mais acentuada ao longo
dos decénios, a investidura apostólica, directa ou indirecta, aparece como o requis
ito
sine qua non de toda a autoridade nas Igrejas. Na viragem do século I, a Carta da
Igreja de Roma à Igreja de Corinto (42,1-4 e 44,2) estabelece todas as regras dest
e
tema: "Para nós, os apóstolos receberam de Senhor Jesus Cristo a Boa-Nova; Jesus, o
Cristo,
72

foi enviado por Deus. Portanto, Cristo vem de Deus e os apóstolos vêm de Cristo; as
duas coisas saíram em boa ordem da vontade de Deus. Por isso, receberam instruções
e, cheios de certeza pela ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, confirmados pel
a Palavra de Deus, com a plena certeza do Espírito Santo, partiram a anunciar
a Boa-Nova de que o reino de Deus estava para vir. [...] Tendo recebido um conhe
cimento perfeito do futuro, eles estabeleceram ["epíscopos" e "diáconos"] e, depois,
puseram como regra que, depois da morte destes últimos, outros homens experimentad
os lhes sucedessem no seu ofício."
Os bispos da "Grande Igreja" reivindicam para si a qualidade de depositários desta
tradição confiada aos apóstolos e aos seus sucessores, e de intérpretes legítimos
e exclusivos face a todos os dissidentes; desde o terceiro quartel do século II, C
orinto e Roma estabeleceram "sucessões da verdade", opostas às "sucessões do erro"
dos mestres gnósticos. É assim que nascem listas episcopais que projectam de maneira
anacrónica, no passado mais longínquo das comunidades, a organização monoepiscopal.
Na passagem do século II para o III, Tertuliano pode interpelar os seus rivais: "M
ostrai a srcem das vossas Igrejas; desenrolai a série dos vossos bispos que se
sucedem desde a srcem, de tal maneira que o primeiro bispo tenha tido como gara
nte e predecessor um dos apóstolos ou um dos homens apostólicos que, desde o início,
estiveram em comunhão com os apóstolos. Porque é assim que as Igrejas apostólicas aprese
ntam os seus fastos" (Das Prescrições dos Hereges, 36,1). Deste ponto de
vista, a ausência de uma estruturação episcopal dos grupos dissidentes podia constitui
r uma fraqueza nas controvérsias entre cristãos.
No decurso do século III, a Didascália dos Apóstolos, um regulamento canónico-litúrgico síri
o colocado sob um padroado apostólico ou a correspondência de Cipriano,
o bispo de Cartago, ou, ainda, as críticas com que Orígenes semeia as suas obras tes
temunham a favor do novo equilíbrio ministerial das comunidades cristãs. Como
chefe de uma Igreja, eleito pelo conjunto da comunidade e sagrado por outros bis
pos vindos como vizinhos para assistir à eleição, o bispo é o seu liturgo por excelência:
é ele quem celebra principalmente a eucaristia, ajudado pelos diáconos para levar as
oferendas e distribuir o pão e o vinho consagrados. É ele quem acolhe na igreja,
administra geralmente o baptismo e, em casos extremos, excomunga; é ele quem, depo
is de avisar a comunidade, confia os cargos e funções, e ordena um ou outro para
tal ou tal ofício. É ele quem pode e deve ser chamado a arbitrar os conflitos entre
membros da comunidade e a indicar a regra de fé, aquando de controvérsias doutrinais
.
É ele quem gere, com o concurso dos diáconos, a caixa e os bens da comunidade, embor
a apareça exteriormente, e em particular aos olhos das autoridades romanas, como
o verdadeiro presidente da associação dos cristãos.
Sob as suas ordens, encontram-se directamente colocados os clérigos ("aqueles a qu
em foi atribuída uma parte"), sempre homens na "Grande
73

Igreja" (exceptuando o caso das diaconisas) que as fontes distinguem cada vez ma
is, desde entrado o século II, leigos ("aqueles que pertencem ao povo"), embora não
se deva extremar demasiado esta distinção, pois as fronteiras inferiores do clero co
ntinuam incertas durante muito tempo, tanto mais que um cursus clerical só progres
sivamente
se foi consolidando e os cargos subalternos (diaconisa, subdiácono, acólito, exorcis
ta, leitor, ostiário, chantre e coveiro) variam de igreja para igreja. Assim,
no início dos anos 250, a Igreja de Roma conta com "46 presbíteros, 7 diáconos, 7 subd
iáconos, 42 acólitos, 52 exorcistas, leitores e ostiários" (Cornélio, bispo
de Roma, citado por Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, VI, 43, 11). Os diáconos
estão ligados muito directamente à pessoa do bispo e ajudam-no em todas
as suas actividades. Os presbíteros parecem ter sobretudo um papel de suplência do b
ispo (para a eucaristia, para o baptismo ou para a pregação) e aparecem freqüentemente
nas fontes de maneira mais discreta que os diáconos. Não são raras as rivalidades dest
es colégios de clérigos, em que tanto uns como outros podem ter acesso ao episcopado
.
A revolução constantiniana acelera o processo de institucionalização das igrejas e a con
cessão de subsídios aos clérigos arrasta consigo uma definição mais precisa
do clero, das aptidões requeridas dos seus membros e das suas carreiras, enquanto
os progressos da difusão do cristianismo terminam num alargamento das competências
dos presbíteros.
Michel-Yves Perrin
74

Iniciação cristã, culto e liturgia

Na petição que o filósofo Justino de Naplusa, que tem escola em Roma e é discípulo de Cris
to, dirige ao imperador Antonino, o Pio, e aos seus filhos adoptivos Marco
Aurélio e Lucius Verus, pouco depois de meados do século II, para defender e ilustra
r os seus irmãos na fé, evoca dois ritos dos cristãos:
"Quanto a nós, depois de termos lavado aquele que crê e de ele se ter juntado a nós, c
onduzimo-lo ao lugar onde estão reunidos aqueles a quem chamamos irmãos. Com
fervor, fazemos orações comuns por todos, pelo iluminado, por todos os outros, em qu
alquer lugar que estejam, para que sejam julgados dignos, depois de terem aprend
ido
a verdade, de serem encontrados a praticar a virtude e a observar os mandamentos
, e de, assim, serem salvos para uma salvação eterna. Quando as orações terminam,
damos uns aos outros o beijo da paz.
Depois, leva-se pão e uma taça de água e de vinho temperado ao que preside à assembleia
dos irmãos. Ele pega neles e louva e glorifica o Pai do universo pelo nome
do Filho e do Espírito Santo; depois, faz uma longa acção de graças [eucharistia] por to
dos os bens que recebemos dele. Quando ele termina as orações e a acção de
graças, todo o povo presente exclama: "Ámen." "Ámen" é uma palavra hebraica que signific
a: "Assim seja".
Quando aquele que preside fez a acção de graças e todo o povo fez a aclamação, aqueles a q
uem chamamos diáconos distribuem a cada um dos presentes o pão, o vinho
e a água que receberam a acção de graças, e levam-nos aos ausentes." (Primeira Apologia,
65).
O primeiro destes ritos, acabado de descrever, é o baptismo (palavra derivada do v
erbo grego que significa "mergulhar", "temperar" [com água]). Tem srcem nas prática
s
de imersão ritual muito difundidas no judaísmo palestiniano do tempo de Jesus de Naz
aré. Concebido como purificador, este tipo de banho podia ter um significado
escatológico, como no caso do movimento de João Baptista, e ser conferido uma única ve
z em sinal de conversão (metanoia); Jesus recebeu-o (Mc 1,9-11) e Ele próprio
também
75
baptizou (Jo 3,22) e também os seus discípulos, imitando-o. Este gesto de penitência,
realizado em sinal da "remissão dos pecados", ganha um novo significado já
que este acto é freqüentemente apresentado nos Actos dos Apóstolos como efectuado "em
nome de Jesus": trata-se do sinal de adesão plena e inteira à fé em Cristo,
da integração na comunidade cristã que Paulo de Tarso interpreta como participação na mort
e e ressurreição de Cristo (Rom 6,3-5). Desde os primeiros textos cristãos,
foram-lhe dadas várias designações que conheceram uma larga difusão: "selo do Espírito" (2
Cor 1,22; Ef 1,13; 4,30), "banho do novo nascimento e da regeneração"
(Tt 3,5), "circuncisão não feita por mão humana" (Cl 2,11); e está associado à imagem de u
ma "iluminação" (Ef 5,8-14; Heb 6,4; etc).
A partir da segunda metade do século II, aparecem cada vez mais testemunhos de uma
preparação para o baptismo - o catecumenato (de uma palavra grega que significa
"instrução oral") - que visa, por um lado, experimentar a seriedade do pedido de ade
são do futuro baptizado e verificar a conversão do seu modo de vida às prescrições
então reconhecidas como definidoras do ser cristão e, por outro, assegurar uma formação
doutrinal e moral. As Catequeses baptismais de Cirilo de Jerusalém, em meados
do século IV, ou de Teodoro de Mopsuéstia, alguns decénios mais tarde, para apresentar
somente dois exemplos, permitem conhecer as diversas etapas do catecumenato
- a sua ordem e a sua cronologia podem variar segundo as igrejas: inscrição na lista
dos catecúmenos, exorcismos (freqüentemente repetidos), catequeses, jejuns e
vigílias, penitências, traditio [entrega] (transmissão oral) e redditio [restituição, repe
tição] (recitação pelo catecúmeno) do símbolo de fé, traditio do Pai-Nosso.
O baptismo, administrado preferencialmente durante a celebração da vigília pascal, com
porta diversos ritos: depois de ter renunciado solenemente a Satanás e às suas
obras - o lugar deste acto é diferente no Ocidente -, o catecúmeno, que já foi ungido
uma ou mais vezes com óleos, entra nu na tina [ou piscina] baptismal cheia
de água previamente benzida, antes de o bispo em pessoa - salvo delegação num presbítero
- o baptizar, por imersão ou infusão, "em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo". Em geral, o catecúmeno recebe outra unção, agora perfumada, interpretada como
símbolo do Espírito Santo, tornando-se, então, neófito (em grego, uma "nova
planta"), novo baptizado, vestindo-se de branco durante uma semana; desde então, p
ode aceder plenamente ao segundo rito evocado por Justino: a eucaristia.
A génese e a história deste ritual durante os primeiros séculos são particularmente difíce
is de analisar sendo, por isso mesmo, controversas, porque as fontes -
exceptuando Justino - são muito raras e só contêm alusões. De facto, a partir da viragem
do século II, vai-se estabelecendo progressivamente, nas comunidades da
"Grande Igreja", uma grande reticência em evocar diante de não-baptizados os ritos d
o baptismo e da eucaristia com maior reserva sobre o segundo que sobre o primeir
o.
Esta
76

atitude - que o polemista protestante Jean Daillé (1594-1670) denominou "disciplin


a do arcano" - faz com que estes rituais assumam cada vez mais um carácter "mistéric
o",
precisando de uma "iniciação". Com efeito, a partir da época helenística, e na esteira d
e precedentes platónicos, o uso metafórico da terminologia dos cultos politeístas
de mistérios conheceu uma difusão maciça. Somente um "iniciado" - é assim que, muito fre
qüentemente, as fontes gregas denominam um baptizado - pode ter conhecimento
do ritual eucarístico na sua totalidade e tomar parte nele. Por mais diversificada
s que sejam as suas formas segundo as regiões e as igrejas, este ritual compreende
duas partes principais: a primeira consta de leituras escriturísticas (Antigo e No
vo Testamento) - cujo número é variável
- seguidas de uma homilia, em geral, pronunciada pelo presidente da assembleia d
os fiéis, e que visa, com algumas excepções, comentar tudo ou parte destes textos.
Depois, vem a despedida dos catecúmenos e dos penitentes vigiada pelos diáconos e os
tiários. Os penitentes são aqueles que cometeram pecados graves e públicos, como
a apostasia, a heresia, o adultério ou o assassínio, e que, por isso, foram excomung
ados pelo bispo, mas desejam voltar a integrar-se plenamente na comunhão dos
fiéis. Se a sua reconciliação for considerada possível - o que depende não só das normas e p
ráticas em vigor na sua igreja, mas também da aquiescência do seu bispo
-, são inscritos no grupo dos penitentes e, durante algum tempo, variável, até à sua rec
onciliação solene, só podem assistir à primeira parte da missa, antes de
serem dispensados, geralmente ao mesmo tempo que os catecúmenos.
Começa, então, o rito eucarístico propriamente dito, reservado aos baptizados, descrit
o em pormenor, em relação aos finais do século IV, no livro VIII das Constituições
Apostólicas, uma compilação canónico-liturgica realizada provavelmente em meio ambiente
antioqueno. Uma oração, chamada "anáfora" no mundo grego, é pronunciada por
um bispo ou por um presbítero - na "Grande Igreja" são os únicos habilitados a fazê-lo -
sobre pão e vinho eventualmente misturado com água e sobre as oferendas
previamente trazidas pelos fiéis. Considera-se que esta oração de acção de graças, cujo text
o se vai progressivamente fixando ao longo séculos, e que
- em geral, embora não necessariamente - compreende a recordação da última refeição de Jesus
com os seus discípulos, opera uma mudança do pão e do vinho em corpo
e sangue de Cristo. Embora não apareçam, salvo em casos excepcionais, desenvolviment
os precisos sobre a natureza e as modalidades desta transformação, convém notar
o realce freqüentemente dado, pelo menos nos testemunhos saídos das cristandades ori
entais, ao poder transformador do Espírito invocado sobre as oferendas. Depois,
os elementos "eucaristificados" são distribuídos pelos diáconos aos fiéis que podem, se
for caso disso, levá-los para casa para os consumir quando desejarem comungar.
Com efeito, a eucaristia tem lugar todos os domingos e, eventualmente, algumas v
ezes por semana, segundo um calendário que é próprio de cada igreja.
77

Compreendido como um "sacrifício espiritual" em íntima relação com o "sacrifício realizado


na Cruz", segundo uma temática muito querida do autor da Epístola aos
Hebreus, o ritual eucarístico é o objecto de uma sacralização crescente ao longo dos sécul
os, que usa os modelos do Antigo Testamento dos sacrifícios oferecidos
no Templo de Jerusalém; trata-se de um léxico sacrificial que tende a designar os di
spositivos litúrgicos (edifícios, mesas e recipientes) que lhe estão ligados
e também os ministros que o realizam, enquanto se multiplicam as regras e as proib
ições, em particular de ordem sexual.
As aclamações e os cantos dos fiéis vão ritmando as cerimónias, cujos rituais não cessam de
se enriquecer ao longo dos séculos e de fascinar os observadores externos,
enquanto a eucaristia, ao sabor das controvérsias doutrinais, se torna a pedra de
toque da comunhão das igrejas, de que a crise donatista na África do Norte e a
crise monofisita no Mediterrâneo oriental oferecem numerosíssimos exemplos.
Michel-Yves Perrin
78

Cristianização do espaço e cristianização do tempo

A Paixão dos Sete Dormentes de Éfeso, que Gregório de Tours conhecia, narra a história d
e cristãos perseguidos que tinham adormecido numa gruta durante a perseguição
do imperador Décio (249-251). Despertaram do seu longo sono no tempo do imperador
Teodósio II (408-450) e um deles chegou à cidade próxima. Qual não foi a sua surpresa
ao ver "o sinal da cruz gravado na porta da cidade"! Esta observação resume, por si
só, uma revolução política e religiosa - a passagem, para o cristianismo, do
estatuto de adesão criminal à de religião de Estado - e testemunha a favor da inscrição vi
sível desta transformação no espaço da vida quotidiana no seio do Império
Romano (a situação é diferente no Império Persa).
A partir de finais do segundo decénio do século IV, a cruz e o crismon ou chrismon -
o símbolo formado pela sobreposição das duas primeiras letras gregas da palavra
Christos [CRISTOS] - floresceram progressivamente, muitas vezes como sinal de pr
otecção ou de exorcismo, nos monumentos públicos e privados: marcos miliários em
África e padieiras das portas das casas ou lintéis das portas das igrejas, lagares d
e vinho ou de azeite, marcos de delimitação dos prédios rústicos na Síria, fontes
ou estátuas em Éfeso, para citar alguns exemplos, sem esquecer as sepulturas. A afir
mação espacial da presença cristã também se marca com a erecção de lugares de
reunião para os cristãos cada vez mais claramente identificáveis, tanto na malha urban
a como nos campos. Este processo, que tinha começado durante a segunda metade
do século III (provavelmente graças ao édito do imperador Galiano que, em 260, pusera
fim às perseguições gerais dos cristãos e iniciara o período da "Pequena Paz
da Igreja", como a denominam os historiadores modernos), tinha sido brutalmente
interrompido pela perseguição de Diocleciano. De facto, as medidas de repressão tomada
s
em 303, com aplicação desigual consoante as regiões, previam a destruição dos lugares de a
ssembleia dos cristãos.
79

De novo em paz, inicia-se uma verdadeira revolução edilícia que, segundo uma cronologi
a e uma intensidade variáveis, se apodera de numerosas igrejas no mundo romano:
a necessidade de reconstruir edifícios destruídos, o apoio financeiro, não só dos notáveis
cristãos, mas também dos simples fiéis, e o exemplo do próprio imperador
Constantino, que, primeiro em Roma e na Itália central, depois nos lugares santos
da Palestina, se encarrega da construção de igrejas e de santuários, contribuem
para a multiplicação dos lugares de reunião dos cristãos. Por razões sobretudo funcionais
- trata-se de conceber edifícios capazes de abrigar comunidades em pleno
crescimento demográfico -, o plano "basilical" (rectangular) é geralmente privilegia
do e realizado segundo as suas numerosas variantes. Este também permite uma repart
ição
e uma distinção eficazes dos espaços interiores entre o coro, onde se encontra o altar
e estão os presbíteros, e o resto da basílica, onde tomam lugar os fiéis.
Em certas regiões, a orientação do edifício é objecto de atenção. Um evidente cuidado com a v
sibilidade acompanha estas novas construções; para isso contribuem
a cobertura em geral elevada da nave central, a monumentalidade cada vez mais ac
entuada da entrada, a eventual construção de anexos (o pátio, denominado atrium,
à frente da igreja, o baptistério, a residência episcopal, etc). Por mais dependente q
ue seja da estrutura da malha urbana e das suas mutações (compras, vendas e
doações), a implantação dos edifícios cristãos no interior das cidades sofre uma importante
transformação que, nalguns casos, ao fim de dois ou mais séculos, acabaria
por saturar o espaço urbano e periurbano: a cidade média de Oxirrinco, no Egipto, co
ntava, no início do século IV, com pelo menos duas igrejas, por volta do ano
400 já tinha doze e em 535/536, vinte e cinco. Com efeito, aos edifícios situados na
cidade juntam-se os que foram erguidos nas suas redondezas, no suburbium, junto
dos túmulos dos mártires e, depois, dos santos monges ou bispos.
O cuidado que os cristãos reivindicam para a sepultura daqueles que, de entre eles
, morreram mártires, a convicção cada vez mais divulgada da sua capacidade de interces
sores
junto de Cristo juiz, o desenvolvimento da prática da inumação ad sanctos, quer dizer,
enterramento junto dos seus túmulos, que favorece a constituição em volta
de autênticas cidades dos mortos - testemunhas disso são certas catacumbas romanas o
u as necrópoles de Santa Salsa em Tipasa (na Argélia actual) ou de Manastirine
em Salone, na Croácia - traduz-se também na monumentalização das tumbas veneradas e na e
ventual construção de santuários próprios para atrair os peregrinos, as mais
das vezes vindos da cidade próxima. A desigual repartição espacial dos corpos santos f
avorece a circulação de relíqüias, geralmente roupa branca ou óleos previamente
colocados em contacto com restos venerados, que são considerados portadores do mes
mo poder de cura e, mais geralmente, de milagre, capazes de magnetizar as devoções
dos fiéis e, portanto, próprios para estimular os impulsos edilícios. Neste contexto,
os lugares ligados a um episódio do Antigo ou do Novo
80

Testamento têm um lugar especial: tradições judaicas, memórias cristãs e lendas locais con
correm para um inventário continuamente crescente num movimento sem precedentes
de apropriação do espaço. Se convém não sobrestimar a amplitude das peregrinações a longa dis
cia na "Terra Santa", na Antiguidade tardia, a viagem de Egéria,
em 381-384, continua a ser um caso excepcional, a difusão de relíqüias da verdadeira C
ruz em todo o mundo mediterrâneo testemunha a favor de um fascínio intenso.
Os cristãos tinham uma história e, doravante, também uma geografia.
Esta conquista do espaço também toma a forma de uma substituição simbólica: assim, já não são
lugares de culto pagãos, oficialmente encerrados a partir de 392,
que gozam de direito de asilo (privilégio de inviolabilidade) e acolhem os fugitiv
os, mas, cada vez mais, o mesmo acontece com os santuários cristãos, num processo
complexo de sacralização. Além disso, os edifícios de culto pagãos podem ser objecto do ar
dor destruidor de cristãos, desde meados do século IV, a ponto de, no início
do século seguinte, ter havido imperadores que, por vezes, tentaram proteger os te
mplos então desertos. Entretanto, na maior parte dos casos, estes edifícios não
são imediatamente reutilizados pelo culto cristão: são precisos decénios, ou mesmo séculos
, para apagar a recordação dos "demónios".
Esta cristianização do espaço tem como resposta uma cristianização do tempo. Com efeito, o
s cristãos tinham conservado o ritmo hebdomadário da semana judaica, que
podia harmonizar-se facilmente com o da semana planetária (dia da Lua, de Marte, e
tc), cujo uso tendia a difundir-se no seio do mundo romano. Mas, por um lado, na
"Grande Igreja", a observância do sabat tinha sido abandonada em proveito do repou
so ao domingo, dia associado à ressurreição de Cristo e, por outro, os bispos censurav
am,
com pouco sucesso, o emprego do nome dos planetas para designar os dias da seman
a. Ainda por outro lado, no decurso do século II, tinha-se instaurado uma festa an
ual
de Páscoa com um conteúdo especificamente cristão, mas a determinação deste dia dividia os
cristãos. Uns celebravam-na no tempo da Páscoa judaica, que começa na
tarde do décimo quarto dia do mês de Nisan, isto é, na Lua cheia depois do equinócio da
Primavera, levando a realçar a Paixão de Cristo, porque, segundo a cronologia
do Evangelho de João, Jesus foi crucificado no dia 14 de Nisan; outros, no domingo
seguinte à festa judaica, o que valorizava a Ressurreição. O primeiro cômputo
torna-se rapidamente minoritário e o concílio imperial de Niceia (325) bane o seu us
o na "Grande Igreja". O segundo foi geralmente adoptado, mas, por mais esforços
que, todos os anos, se fizessem para se chegar a uma determinação do dia da Páscoa, váli
do para o conjunto do mundo cristão, não deixaram de subsistir divergências
durante toda a Antiguidade. Por fim, na viragem do século III, o mais tardar, esta
beleceu-se uma festa da natividade de Cristo no dia 25 de Dezembro em Roma e no
dia 6 de Janeiro em Alexandria. As razões que levaram à adopção destas duas datas contin
uam obscuras e controversas. Outras festas anuais ligadas
81

a Cristo e, depois, à Virgem, aparecem em certas igrejas, e a sua observância difund


iu-se segundo uma cronologia e uma geografia variáveis.
Com Constantino, o tempo cristão começou a ser levado em conta pela legislação imperial.
E foi assim que, desde 321, o "dia do Sol", o domingo, se torna um dia feriado
para permitir que as populações das cidades fossem às igrejas (Código teodosiano, II, 8,
1 e Código justiniano, III, 12, 2). Em 389, uma lei fixa os dias feriados
dos tribunais: no dia 1 de Janeiro, nos aniversários das fundações de Roma (21 de Abri
l) e de Constantinopla (11 de Maio), os sete dias antes da Páscoa e os sete
dias seguintes, os domingos, os aniversários de nascimento e de entronização dos imper
adores (Código teodosiano, II, 8, 19). O tempo da liturgia cristã insinua-se
no calendário público. Desde 367, institui-se uma amnistia pascal (ibid., IX, 38, 3)
e, em 380, uma lei prevê a suspensão de todas as instruções criminais durante
a Quaresma (ibid., IX, 35, 4), porque, como explicará uma disposição ulterior, "durant
e estes dias em que se espera a libertação das almas, não se pode supliciar
os corpos" (ibid., IX, 35, 5).
A partir dos decénios centrais do século IV, os bispos tentam concorrer com o calendár
io das festas pagãs, multiplicando as festas dos mártires, e esforçam-se por
organizar verdadeiros ciclos de festas cristãs. Em 392, a autoridade imperial, pro
vavelmente industriada a tal, proíbe as corridas do circo ao domingo, salvo se
o aniversário do imperador for nesse dia (ibid., II, 8, 20); mas esta excepção logo de
ixa de ser tolerada, de modo que as festas pagãs são oficialmente suprimidas;
algumas, como as calendas de Janeiro, ainda sobrevivem, como testemunham as repe
tidas queixas dos pastores ao longo do século V. Mas o crescimento contínuo das fest
as
cristãs no decurso da Antiguidade tardia, o apoio dos imperadores e as adesões maciças
ao cristianismo terminam numa transformação quase total das referências tradicionais
do tempo público.
Michel-Yves Perrin
82

Dignidade dos pobres e prática da assistência

Interrogar-se sobre o que os cristãos dos seis primeiros séculos realizaram a favor
dos pobres é deparar-se com um vasto problema, herdado de vários séculos de debates:
terá o cristianismo, com a sua expansão através do mundo antigo, trazido progressos em
matéria social e humanitária? Já o século XVIII fizera esta pergunta com,
por exemplo, Montesquieu. O século seguinte dividiu-se entre os que censuravam os
cristãos por só terem oferecido algum alívio, sem criticarem a ordem nem, sobretudo,
tentarem abolir a escravatura, e os que, por zelo apologético, apresentavam a difu
são inicial da mensagem evangélica como uma inovação que ultrapassava, antecipadamente,
o "Século das Luzes" e a Revolução Francesa. O mais ilustre dos segundos é, sem contestação,
Chateaubriand (embora não sejam os seus Estudos Históricos nem o seu
Génio do Cristianismo que actualmente lhe dão renome); mas dever-se-ia sobretudo cit
ar Franz de Champagny, cujos livros influenciaram o bispo de Perúsia, Giuseppe
Pecci, futuro autor, enquanto papa Leão XIII, da primeira encíclica sobre a condição dos
operários. Com a sua História da Escravatura na Antiguidade, Henri Wallon,
um dos pais fundadores da III República [Francesa], também participou nesta controvérs
ia, sublinhando tudo o que julgava inovador na maneira como os primeiros cristãos
consideravam e tratavam os escravos. Do século XX até hoje, a discussão continua abert
a: certos historiadores minimizam o contributo humanitário do cristianismo,
vendo nisso apenas um aspecto da evolução geral das idéias e dos costumes greco-romano
s; outros insistem na srcinalidade dos valores e das práticas cristãos, assim
como nas mudanças felizes que suscitariam.
Mas acontece que a atitude perante os pobres e a escravatura constituem dois exe
mplos opostos do papel social desempenhado pelo cristianismo no mundo antigo. São,
por assim dizer, dois pólos opostos: embora a Igreja não tenha recusado o sistema es
clavagista, não deixou de inovar grandemente a favor dos pobres, tanto no domínio
das realizações concretas como
83

no das representações colectivas. Esta diferenciação explica-se sobretudo pela diversida


de das prescrições que os cristãos dos primeiros séculos encontraram na Bíblia.
Mesmo que esta contenha alguns versículos que condenam explicitamente a escravatur
a, teria sido extremamente difícil pô-los em prática, salvo à escala das comunidades
pouco numerosas e marginais, fortes como eram as inércias socioeconómicas e os hábitos
psicológicos. Aristóteles imaginava uma sociedade sem escravos só quando as
lançadeiras tecessem sozinhas. Como é que os cristãos da Antiguidade, acostumados, com
o os seus contemporâneos, a ver na escravidão de uma parte da população um
facto elementar da sua vida quotidiana, teriam podido decretar intolerável uma ins
tituição que as suas Escrituras não proibiam? Em contrapartida, o cuidado dos pobres
e dos infelizes ocupa de imediato na tradição cristã um lugar central, porque o próprio
Jesus, como se lê no Evangelho segundo Mateus (25,35-36), estava plenamente
identificado com eles: "Tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de
beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci
e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo."
Esta enumeração, cujo eco se propaga de Justino de Roma (mártir em 165) às Constituições Apo
stólicas (compiladas por volta de 380) e muito para além, leva à interrogação
da diversidade daqueles que os textos patristicos e, depois, a bibliografia cont
emporânea, agrupam habitualmente no nome vago e muito englobante de "pobres". Em
primeiro lugar, trata-se dos infelizes, daqueles que se encontram numa situação, mom
entânea ou duradoura, de sofrimento e de necessidade: os indigentes de toda a
espécie, os expatriados sem ajuda, os doentes isolados, os detidos, e também, na lin
ha das imposições bíblicas, as viúvas e os órfãos. Os "pobres" das nossas srcens
são igualmente aqueles que, para viver, só dispõem do necessário ou nem sequer isso: hum
ildes artesãos ou camponeses que, às vezes, a imprecisão do vocabulário nos
levaria a confundir com mendigos. Existem ainda os desclassificados, aquelas e a
queles que as perturbações políticas e as invasões da Antiguidade final privaram
dos seus bens e do seu estatuto: Ambrósio de Milão, Jerónimo, Victor de Vita e, sobret
udo, Gregório Magno interessam-se por eles, como se fossem especialmente sensíveis
a estas subversões da ordem social, e como se eles julgassem particularmente miseráv
el o infortúnio daqueles que já se tinham habituado às riquezas e às honras.
Finalmente, estes "pobres" são aqueles que, dispondo de uma pequena propriedade, s
e vêem despojados por um vizinho mais poderoso, como o Nabot da Bíblia, querido
de Ambrósio.
Mas, se o léxico das nossas srcens se mostra ambíguo, a prática das igrejas antigas não
admite dúvidas. Os Actos dos Apóstolos atestam que, no modelo das comunidades
judaicas, os primeiros "cristãos" (não se chamavam assim) de Jerusalém procuravam, ao
menos sob a forma de refeição colectiva, uma assistência às viúvas do seu meio
social. Em finais do século II, Tertuliano fala de quotizações feitas pelos cidadãos par
a alimentar e inumar
84

os indígenas, para ajudar os órfãos, os servos envelhecidos, os náufragos e os que se en


contravam nas minas ou na prisão por causa da sua fé. Em meados do século
seguinte, a igreja de Roma mantinha mais de mil e quinhentas viúvas e indigentes.
Foi precisamente nos anos 250 que esta prática cristã da assistência começou a
ultrapassar o estrito quadro comunitário para se dirigir indistintamente a todas a
s vítimas de uma epidemia de peste: o mesmo aconteceu em Cartago sob o episcopado
de Cipriano, depois em Alexandria, com Dionísio. Uma nova etapa é ainda franqueada e
m 313, com a "viragem constantiniana". Doravante, instaladas na legalidade ou,
até, favorecidas pelo poder central, as igrejas desenvolvem estruturas de assistênci
a de um novo tipo; obtêm dos imperadores cristãos o reconhecimento oficial pelo
serviço que prestam à sociedade. A segunda metade do século IV vê florescer um vocabulário
srcinal, bem conseguido como tal por um Agostinho de Hipona, que nomeia
os edifícios onde se dispensa a ajuda aos infelizes: assim, a palavra grega xenodo
kheion que em latim dá xenodochium, parece designar um edifício onde se recebem
pessoas de passagem (peregrinos e também vagabundos) e se tratam os doentes. Estes
estabelecimentos de caridade empregam um pessoal específico: médicos, enfermeiros,
maqueiros (como os parabalani de Alexandria, no início do século V). A sua importância
e o número dos seus beneficiários variam consideravelmente consoante os lugares:
neles acolhem-se desde uma dúzia a várias centenas de indigentes. O exemplo mais imp
ressionante é o do vasto complexo, composto de hospícios e uma leprosaria, criado
em Cesareia da Capadócia pelo bispo Basílio. O seu amigo, Gregório Nazianzeno, vê nesse
conjunto uma "nova cidade", a que outras fontes chamam a "Basilíada". Em
suma, é nesta acção concreta do cristianismo da Antiguidade tardia a favor dos indigen
tes que se deve procurar as srcens longínquas das nossas instituições hospitalares.
Já não há dúvida do contributo cristão, também ele herdeiro da tradição judaica tardia, no do
das idéias e das representações colectivas. Os escritos dos Padres
da Igreja, como antes a Bíblia, falam dos "pobres" (oprimidos, mendigos, viúvas, órfãos.
..), muito mais freqüentemente do que a literatura greco-romana e com um
apreço inédito. Judaísmo e cristianismo têm no seu activo uma verdadeira reabilitação dos in
digentes e dos infelizes que o segundo, graças a um texto fundador já
citado, chega a identificar com Jesus. Perante o desprezo dos ricos, Gregório de N
issa proclama a dignidade dos pobres; o seu amigo Gregório de Nazianzo declara
que todos os cristãos são "companheiros de miséria" que precisam da ajuda divina; para
Agostinho, cada homem é um "mendigo de Deus". Encontra-se um eco desta pregação
nos epitáfios que elogiam crentes ricos, qualificando-os, segundo uma fórmula empreg
ada igualmente pelas inscrições judaicas, como "amigos dos pobres". Isto quanto
ao discurso destinado aos abastados; mas também é preciso mencionar as palavras que
Ambrósio e Agostinho dirigem aos cristãos menos favorecidos, exortando-os a não
se
85

desencorajarem nem se depreciarem. Esses bispos tentaram realizar, numa sociedad


e muito inigualitária, tanto nos princípios como nos factos, aquilo a que poderíamos
chamar uma democratização da estima de si mesmo. Precisamente, parece que, no seio d
as igrejas, os mais pobres tinham tomado consciência do seu peso colectivo e
souberam fazer interceder a seu favor os bispos que, às vezes, tiveram individualm
ente a tendência para considerar-se já seguros da sua salvação no além. Agostinho
vê-se obrigado a lembrar-lhes o dever da humildade que têm em comum com todos os out
ros fiéis, de que são os mais afortunados.
Por mais inegáveis que sejam, estas inovações dos cristãos da Antiguidade em matéria de aj
uda material e psicológica aos pobres não devem ser olhadas com "angelismo".
A assistência eclesiástica não pertence unicamente ao domínio da moral: tem conseqüências mu
ito para além do alívio das misérias mais gritantes. Para aqueles que
o dirigem, os bispos, este sistema de beneficência constitui uma justificação teórica da
s riquezas, por vezes consideráveis, cuja administração asseguram e, sobretudo,
uma fonte de influência diária no seio das cidades. Tornados protectores dos mais po
bres e até das camadas populares em geral, os bispos saem da esfera "religiosa"
estrita, sendo doravante novos actores - e não dos menores - na vida social e políti
ca. No Ocidente, nos séculos V e VI, a derrocada das estruturas administrativas
do Império Romano leva-os a desempenhar, pelo menos pontualmente, o papel de autor
idades civis e militares. Assim, acabou por se partilhar tarefas que o século IV,
a "idade do ouro dos Padres da Igreja", tinha realizado: é o momento de um equilíbri
o que não haveria de durar e de um pensamento social cristão que, depois, iria
perder a sua audácia.
Jean-Marie Salamito
86

Em busca da perfeição Ascetismo e monaquismo

Desde as srcens, muitos discípulos de Jesus adoptaram um modo de vida ascético. Par
a o seguir ou para ser perfeito como Ele exigia, era preciso deixar a família,
a profissão e a propriedade: estas exigências aceites pelos primeiros discípulos também
foram entendidas, sob várias formas, pelos seus sucessores. Os membros da
primeira comunidade de Jerusalém punham os seus bens em comum; nas outras comunida
des, numerosos cristãos dos dois sexos escolhem viver na virgindade e na pobreza,
"errantes apostólicos" sulcam as estradas do Império-e este tipo de ascese durará vários
séculos. Até se chega a encontrar, em regiões como a Síria, a partir do
século III, esboços de estruturas comunitárias que reúnem celibatários ao serviço das igreja
s, os "filhos da Aliança".
Mas, em finais deste século, aparece uma maneira de viver o ascetismo que, pouco a
pouco, irá suplantar estas formas antigas e tornar-se uma verdadeira instituição:
o monaquismo. Na biografia que Atanásio, bispo de Alexandria, nos deixou, Antão apar
ece como o modelo, se não o iniciador, do monaquismo. Não só se despoja dos seus
bens e escolhe viver na castidade e na penitência, como também o faz na solidão, defin
indo o que será a srcinalidade do monaquismo: a opção por uma vida separada
ou isolada, implicando uma separação física do mundo; o monge é aquele que está só (monos ou
monachos). Nos anos 280, Antão deixa a sua aldeia do vale do Nilo e
instala-se, isolado, primeiro num túmulo afastado das habitações; depois, num fortim a
bandonado no deserto e, finalmente, no "deserto interior" da montanha próxima
do Mar Vermelho, onde reside de 312 até quase à sua morte, em 326. Na sua solidão, o m
onge ora, jejua, vela e luta contra o demónio, tudo isto com a finalidade de
o conduzir à unificação do seu ser e à contemplação.
Antão não é, assim, o único a adoptar este modo de vida que, aliás, graças ao seu sucesso, i
rá transformar-se muito rapidamente. Como muitos outros solitários, tinha
visto afluir junto dele candidatos a esta vida,
87

tornando-se seu guia espiritual. Por isso, vão-se constituindo colónias monásticas ond
e cada um se exercita na ascese na solidão; mas os mais jovens mantêm-se em
contacto com um ancião e seguem os seus conselhos. No entanto, não existe nenhuma re
gra comum, fazendo cada um a sua própria regra. Nos primeiros anos do século
IV, esses grupos aparecem em várias regiões do Egipto, em particular no deserto de S
ceta, a cerca de sessenta quilómetros a sul de Alexandria.
Entretanto, uma nova etapa - a da vida comunitária - começa naquela época. O seu inici
ador é Pacómio, que, depois de alguns anos de vida solitária, se instala, por
volta do ano 321, em Tabenese, uma aldeia abandonada do Alto Nilo, onde alguns d
iscípulos se juntam a ele. Pouco a pouco, vai-se constituindo aí uma verdadeira comu
nidade
sob a sua direcção; e vai-se elaborando uma regra que se torna o quadro jurídico que e
strutura a existência diária dos "irmãos". Esta prevê orações comuns várias
vezes ao dia e práticas ascéticas vividas num quadro colectivo (que moderam o rigor
das práticas dos solitários, tanto em matéria de jejum como de vigílias). Entre
eles, o trabalho manual torna-se um elemento essencial da ascese, como reacção a um
monaquismo que pretendia contentar-se exclusivamente com a oração e ser alimentado
pelos outros cristãos (tendência que se encontrará em diversas regiões). Os monges vivem
num mosteiro, num conjunto de edifícios rodeados por um muro de cerca que
garante a sua separação em relação ao mundo; as refeições e o regime alimentar são comuns, a
artilha dos bens é integral, pois cada um entrega os seus bens ao mosteiro
e não pode dispor deles senão no que a regra lhe concede. Nesta vida organizada, a o
bediência ao superior torna-se a virtude principal do monge.
Rapidamente florescente no Egipto, tanto sob a forma solitária como sob a forma co
munitária, o monaquismo espalha-se pouco a pouco por todo o mundo cristão com difere
nças
locais, às vezes bastante acentuadas. Por isso, o monaquismo sírio caracteriza-se pe
lo extremo rigor da ascese dos solitários que impõem a si mesmos penitências
terríveis. É lá que aparecem os primeiros estilitas que vivem a sua ascese no cimo de
uma coluna, um modo de vida que terá numerosos imitadores. Na Ásia Menor, encontram-
se
fraternidades marcadas por um radicalismo evangélico que critica as estruturas e a
s práticas de uma Igreja "instalada" e tende a fazer do monaquismo um movimento
sectário; Basílio, bispo de Cesareia de Capadócia, levará um grande número dos seus membro
s a adoptar um quadro de vida propriamente monástica, com comunidade de
bens, castidade e exigência de trabalhar para ganhar a sua vida e fazer caridade.
Como no caso de Pacómio, a obediência a um superior ganha uma importância capital:
é ele quem tem o carisma do discernimento e sabe explicar os mandamentos. Por outr
o lado, estas comunidades continuam ao serviço da igreja local, em redor do bispo.
As regras basilianas conhecem uma longa posteridade no monaquismo oriental.
89

Embora o modo de vida solitário esteja reservado aos homens, o modo de vida comuni
tário é bem depressa adoptado pelas mulheres. Pacómio funda conventos de mulheres,
outros são criados por iniciativa de mulheres de nível social elevado, como Macrina,
a irmã de Basílio. Durante muito tempo, subsistiram as virgens independentes
que continuavam a residir com a sua família e até partilhavam o seu modo de vida com
um homem que havia feito a mesma escolha: este tipo de coabitação é testemunhado
desde muito cedo, mas os bispos, considerando-o suspeito, não cessarão de combatê-lo d
urante todo o século IV, até que acabará por desaparecer em proveito da vida
comum.
No Ocidente, o monaquismo propriamente dito é de importação oriental e só se desenvolveu
a partir da segunda metade do século IV. A antiga maneira de viver a vida
ascética manter-se-á durante mais tempo, não comportando nem a solidão nem a existência co
munitária: no quadro da sua vida quotidiana habitual, cada um respeita
a virgindade, a pobreza, a oração, o jejum e o serviço dos pobres e só, pouco a pouco, e
ste modo de vida desaparecerá ou se fundirá no molde monástico.
A Vida de Antão, traduzida [do grego] para latim desde o seu aparecimento (em 357)
, logo provocou no Ocidente o aparecimento de numerosos eremitas que, como o seu
modelo, se exercitavam na vida ascética e na solidão. Alguns escolhiam o campo ou as
florestas, outros instalavam-se nas ilhas do Mediterrâneo. A atracção da vida
eremítica, testemunhada em obras como Louvor do Deserto de Eucher de Lião, escrita p
or volta do ano 400, persistiu durante muito tempo no Ocidente. São relativamente
raros os testemunhos precisos, porque muitos eremitas desapareceram sem deixar o
mínimo rasto, mas sabe-se que muitos daqueles que fundaram mosteiros comunitários
começaram pela vida solitária e que à volta destes conventos se conservaram longamente
algumas células isoladas, onde os monges mais avançados na ascese podiam viver
durante algum tempo. Apesar de tudo, é possível afirmar que, no Ocidente, houve um d
eclínio progressivo do ideal eremítico.
Em contrapartida, o monaquismo comunitário conheceu um grande sucesso sob as mais
variadas formas. No início, fundam-se mosteiros familiares, quando cristãos (ou,
sobretudo, cristãs) atraídos pelo ascetismo transformam pouco a pouco as suas casas
em mosteiros, levando nelas uma vida já mais ou menos comunitária com jovens
mulheres solteiras e viúvas da aristocracia, sem falar dos seus servos e servas. C
riam-se igualmente mosteiros episcopais, onde os clérigos vivem comunitariamente
em redor do seu bispo (um dos mais conhecidos é o de Agostinho, em Hipona). Em bre
ve, estabelecem-se mosteiros em sentido estrito, onde se reúne em volta do fundado
r
um grande número de monges. João Cassiano, vindo do Oriente, funda um mosteiro em Ma
rselha e, com os seus escritos, difunde no Ocidente o ideal dos cenobitas egípcios
.
Outros fundadores começaram pela vida solitária e juntaram numerosos discípulos, como é
o caso de
89

Martinho (+ 398), inicialmente instalado em Ligugé, depois em Tours, de que se tor


na bispo, e também de Honorato, que se instala na ilha de Lérins entre 400 e 419,
aonde acorreram discípulos de todas as regiões, que começaram por residir em celas sep
aradas, mas sob a autoridade do mesmo chefe e da mesma regra. Lérins torna-se
rapidamente um ccenobium, um grande convento onde se pratica a vida comum. Nos séc
ulos V e VI, foi o mais importante centro monástico da Gália e até do Ocidente,
com múltiplas filiais. As regras que lá surgiram inspiraram numerosos mosteiros ocid
entais antes do aparecimento da de São Bento.
Pierre Maraval
90

VI

INTELECTUAIS CRISTÃOS PARA CONFIRMAR


A FÉ
OS PADRES DA IGREJA
Basílio, Gregório de Nazianzo e João Crisóstomo

A mensagem do Evangelho, destinada a todos os homens, tinha sido revelada por Je


sus prioritariamente aos pequenos. Os apóstolos, que, seguindo-o, a tinham difundi
do
no Oriente grego e, depois, no Ocidente, não eram letrados.
Face à cultura tradicional, os escritores cristãos dos primeiros séculos tiveram de en
frentar verdadeiros desafios: denunciar o absurdo ou a imoralidade das fábulas
do politeísmo, receber e reter da cultura grega o que podia contribuir para estabe
lecer as bases intelectuais do cristianismo nos domínios do dogma e da moral, util
izar
os recursos da dialéctica e da retórica para comunicar com os seus irmãos ou com os se
us contraditores; e, graças a isso, nobilitar e emancipar os textos cristãos
nos diversos géneros literários - obra imensa de confrontação, para a qual era necessário
estar perfeitamente armado, como o revela a carreira de grandes bispos
do século IV.
Basílio de Cesareia (ca. 330-379): teólogo e homem de acção
O mais velho dos capadócios pertence a uma família muito abastada da aristocracia qu
e tinha conhecido a perseguição. Cesareia era afamada pelos seus retóricos, mas
Basílio, o Velho, que ensinou a retórica, enviou o seu filho para Constantinopla e,
sobretudo, para Atenas, a fim de completar
91

a sua formação. Durante estas estadas, seis a sete anos no total, Basílio tornou-se am
igo de Gregório de Nazianzo. Ambos tiveram mestres prestigiados, um dos quais
o pagão Libânio, e percorreram o ciclo completo dos conhecimentos.
A sua formação religiosa, recebida da mãe e da avó, foi sólida. De facto, quando regressou
à Capadócia, Basílio voltou-se para a vida ascética e empreendeu (sozinho?)
uma grande viagem pelo Baixo Egipto e pela Síria, entrando em contacto com diversa
s formas de vida monástica. Então, retirou-se em Annesi, no Ponto, no coração da
solidão arborizada de uma propriedade familiar, com a mãe, a irmã Macrina, o irmão Gregóri
o (futuro bispo) de Nissa (durante algum tempo) e também Gregório de Nazianzo.
Com este, dedicou-se ao estudo de Orígenes (+ ca. 254), de cuja obra retiraram ext
ractos em forma de metodologia exegética e filosófica, a Philocalia. Logo a seguir,
foi ordenado presbítero e, em 370, por morte do bispo de Cesareia, foi eleito para
lhe suceder. Os seus oito anos de episcopado foram bem cheios, tanto no plano
doutrinal, disciplinar e canónico, como nas suas iniciativas litúrgicas (ofícios canta
dos com coros mistos), nas suas viagens pela sua província eclesiástica, nas
suas fundações de fraternidades monásticas, nas suas obras caritativas (sopas populare
s e complexos de assistência, sobretudo a famosa Basilíada, às portas de Cesareia),
na sua defesa dos pequenos e das vítimas da administração imperial, e no seu trabalho
incansável a favor da paz e da unidade entre as igrejas.
Basílio soube fazer frutificar os dons que tinha recebido do seu meio social e da
sua "escolaridade" em prol do povo que lhe estava confiado. Convencido de que só
existe uma autoridade, a das Escrituras, redige uma súmula dos deveres do cristão, a
s Regras Morais (um dossiê de mil e quinhentos versículos do Novo Testamento),
depois as respostas às questões postas pelas fraternidades, o Pequeno Askêticon, que,
depois, se torna as Grandes e as Pequenas Regras ou Grande Askêticon. O tratado
Sobre o Espírito Santo abre caminho ao Concílio de Constantinopla (381). A pregação de B
asílio compreende homilias sobre os Salmos, homilias "morais" sobre diversos
assuntos, entre os quais as questões sociais, e, finalmente o Hexaemeron (sobre Gn
1-3). O opúsculo Aos jovens sobre a maneira de tirar proveito das cartas helénicas
é uma obra maior sobre as relações entre a fé cristã e a cultura "clássica": com os conhecim
entos que tinha adquirido junto dos melhores representantes desta cultura,
Basílio estava muito bem preparado para formar os jovens espíritos no discernimento.
Por fim, deixou mais de trezentas cartas dirigidas a clérigos e a bastantes
leigos fervorosos, que revelam uma grande sensibilidade. Favorecida pelas traduções
latinas, a influência de Basílio atinge o Ocidente ainda em sua vida, e talvez
faça dele o Padre grego mais citado pelos autores medievais.
92

Gregório de Nazianzo (ca. 330-390): teólogo poeta

Gregório nasceu numa aldeia do Sudoeste da Capadócia, numa família ortodoxa fervorosa,
filho de Gregório, o Velho, que foi eleito bispo de Nazianzo antes do seu
nascimento. Freqüentou as escolas de Cesareia da Capadócia, Cesareia da Palestina, A
lexandria e, depois, sobretudo, Atenas, onde conheceu Basílio. Voltou à sua pátria
antes de Basílio, e depois foi para Annesi, levar a "vida filosófica" que os dois am
igos tinham escolhido. Em 361, chamado pelo pai, Gregório é ordenado presbítero
contra a sua vontade. Pouco depois, cedendo à atracção pela vida solitária, foge para ju
nto de Basílio, mas regressa a Nazianzo antes da Páscoa de 362.
Algum tempo depois da sua eleição para a sé de Cesareia, Basílio obriga Gregório a deixar
sagrar-se bispo de Sasimes, simples entreposto de mala-posta no Sul da
Capadócia. O temperamento de Gregório, absolutamente nada disposto a controvérsias, le
vou ao fracasso do papel que o seu amigo desejava que ele desempenhasse junto
de Antímio de Tiana. E Gregório fugiu novamente para a montanha. O seu pai conseguiu
, pouco antes da sua morte, fazer com que ele regressasse e, então, administrou
a diocese de Nazianzo com satisfação dos bispos da região. Mas, como eles tardaram a n
omear um sucessor, fugiu para Selêucia de Isáuria. Em 378, com a chegada de
Teodósio, protector da ortodoxia, a comunidade católica de Constantinopla pediu a Gr
egório que fosse seu pastor e ele aceitou, depois de alguma hesitação (379).
Deste período datam os seus notáveis Discursos Teológicos (n.ºs 27-31), consagrados à defe
sa da Trindade.
Inicia-se então o Concílio de Constantinopla (381), presidido por Melécio de Antioquia
, que regularizou a situação canónica de Gregório à frente da diocese, mas
morreu antes do encerramento da assembleia. A sua sucessão em Antioquia deu lugar
a dissensões entre os Padres, que se repercutiram em Gregório, cuja posição foi
contestada por alguns; ele aproveitou-se disso para se demitir, passando a admin
istrar a igreja de Nazianzo até 383 para, depois da eleição do seu primo Eulálio,
se retirar para Arianzo, onde se entregou ao estudo e à poesia até à sua morte (390).
A vida desta alma delicada, inclinada à contemplação, foi uma seqüência de
abandonos ou de fugas.
A obra daquele que o Oriente iria denominar como "o Teólogo" foi incansavelmente r
ecopiada, lida e citada nos concílios; compreende duzentas e quarenta e nove carta
s
de grande interesse histórico e espiritual, nomeadamente as suas cartas de orientação
de jovens teólogos, plenas de sinceridade e naturalidade; numerosos poemas
(dezassete mil versos ao todo), escritos teológicos (apologia contras os hereges)
e históricos (entre os quais, epitáfios e epigramas e - coisa rara nos Antigos
- duas autobiografias) e, por fim, quarenta e cinco discursos (vários dos quais so
bre festas e algumas orações fúnebres, como a de Basílio). Nestes tempos
93

de fermentação teológica, era preciso uma imensa cultura para não sacrificar aos gostos
do tempo, como o faziam os clérigos mais destacados, e para não se limitar
a defender a fé de Niceia "com hábeis e subtis dosagens".
Contudo, Gregório - adversário do helenismo nos seus discursos ao povo mas adepto da
cultura grega na sua correspondência e nos seus poemas - não se contradiria
ao usar as mesmas armas literárias cujo emprego reprovava nos outros? De facto, pa
ra Gregório, "o verdadeiro perigo é a ignorância das letras", o "erro do julgamento"
da maioria dos cristãos e que ele denuncia. Era isso mesmo que o aproximava do seu
amigo Basílio, e que o torna muito actual.

João Crisóstomo (ca. 344/354-407): a delicadeza do coração

Nascido em Antioquia, João recebeu muito de sua mãe Antusa, a sua primeira educadora
, a quem deve uma grande sensibilidade. Formado em Antioquia, parece também ter
sido aluno de Libânio; mas logo se voltou para os ensinamentos divinos, junto de M
elécio (que o baptiza em 372), e depois com Diodoro de Tarso. Ordenado leitor,
João leva uma vida ascética, primeiro em sua casa, e depois como cenobita, durante q
uatro anos vividos a oriente de Antioquia, e, por fim, solitário numa gruta.
Mas os seus excessos de austeridade obrigaram-no a regressar a Antioquia, onde f
oi ordenado diácono (381) e, depois, presbítero (396); então, torna-se o pregador
de Antioquia.
A sua reputação chegou a Constantinopla, sem dúvida aquando da revolta de Antioquia (3
87); por morte do arcebispo Nectário (397), João foi escolhido para lhe suceder
(398) e, embora a contragosto, conduzido a Constantinopla. Também lá conquistou a af
eição dos pobres e de uma parte do clero. Por causa de alguns diferendos com
a imperatriz Eudóxia, foi deposto ilegalmente em 403 - ordem revogada quase imedia
tamente - e, depois, banido pelo jovem imperador Arcádio (404), deportado para
Cucusa (Arménia) e, depois, para Pityus (Cáucaso); estas marchas forçadas venceram-no
durante a caminhada em Comana, no Ponto, no dia 14 de Setembro de 407.
João, que deve muito à cultura grega - "a clareza das idéias, a força da persuasão e o bri
lhantismo da expressão" -, não deixou de perseguir o helenismo com os seus
ataques, suplicando aos pais que preservassem os seus filhos das fábulas dos grego
s. Este rigor deve-se à corrupção dos costumes em Antioquia. Apesar disso, chega
a usar temas platónicos e estóicos. Além dos sermões de circunstância (Ao Povo de Antioqui
a), a sua imensa obra oratória comenta uma grande parte do Antigo e do
Novo Testamento, fazendo de João Crisóstomo (Boca de Ouro, em grego) o mais
94

fecundo dos pregadores gregos; também deixou uma abundante correspondência, nomeadam
ente à viúva Olímpia, e alguns tratados ascéticos e espirituais. João Crisóstomo
"entra nos corações; torna as coisas sensíveis" (Fénelon) e distingue-se a comentar as a
titudes mais simples. Por toda a parte, a gravidade do tom e as exigências
do Evangelho misturam-se com diálogos fictícios em que o pastor se mostra preocupado
com a educação dos jovens.
Benott Gain
95

Jerónimo e a "Vulgata"

Jerónimo (347?-418) é muito mais celebrado como autor da Vulgata do que pelos seus c
omentários da Escritura - em particular os dos profetas, pequenos e grandes,
do Antigo Testamento. Passado mais de um milénio, mas em particular depois do Concíl
io de Trento, no século XVI, ainda se lhe chama a "edição Vulgata da Bíblia"
- quer dizer edição corrente, comum, difundida -, ou, simplesmente, "a Vulgata", a t
radução latina do Antigo e do Novo Testamento elaborada, em grande parte, nos
finais do século IV, que demorou dois a três séculos a ser adoptada, muito lentamente,
por vezes muito dificilmente, no uso da Igreja do Ocidente. A partir do século
IX, certos manuscritos, e, depois, nos séculos XIV e XV, muitos pintores populariz
aram a imagem de um Jerónimo a redigir a Vulgata sob a inspiração do Espírito Santo.
Na realidade, a palavra "Vulgata" tem uma história tão complexa que será muito difícil não
a simplificar excessivamente e não a deformar numa apresentação sucinta.
"Vulgata" designa sobretudo o resultado e o reconhecimento de uma empresa durant
e muito tempo contestada pela sua novidade, que Jerónimo quer estabelecer como tex
to
normativo. Ele próprio designa como vulgata a ou as traduções latinas anteriores a ele
, que considera inexactas. Antes de se tornar "corrente", a sua tradução será
considerada uma tradução nova, o que, por isso, a torna suspeita, mesmo aos olhos de
alguém como Santo Agostinho, que quase não a utilizará.
Para compreender esta evolução e as reviravoltas, não só da situação mas também do vocábulo,
essário partir da situação concreta dos cristãos do Ocidente de
então que, em geral, desconhecem a língua grega, na qual estão escritos os textos do N
ovo ou do Antigo Testamento que eles usam. Diversas traduções latinas aparecem
em África e na Itália na viragem do século III. As do Novo Testamento, por exemplo, do
s Evangelhos, de que se ocupa Jerónimo, remontam a um texto grego da época,
mas que não é o mais difundido no Oriente. As traduções do Antigo Testamento, na sua
96

maioria parciais, baseiam-se, todas elas, não no texto hebreu, mas numa ou noutra
das traduções gregas realizadas pelos judeus da diáspora, em particular sobre a
que foi efectuada em Alexandria do Egipto entre o século II antes da nossa era e o
início da era actual: a "Setenta" [Septuaginta ou LXX], assim chamada porque se
considera ter sido feita por setenta sábios judeus. Por outro lado, fossem quais f
ossem os textos a traduzir, a realização deixava a desejar, não somente em termos
de exactidão ou de conformidade com os textos gregos mais recentes, mas também pela
sua qualidade literária. No século IV, os cristãos letrados mostravam-se chocados
com a mediocridade formal do texto latino que usavam. Além da singularidade do voc
abulário e da diferença de sintaxe entre as várias línguas, os erros gramaticais
e de estilo pareciam-lhes indignos da palavra de Deus, independentemente dos lap
sos dos copistas.
Por um lado, este aspecto estético entra no primeiro trabalho de conjunto que Jeróni
mo, de regresso do Oriente onde encontrou diversas versões gregas dos Evangelhos,
empreende em Roma entre 382 e 384. A partir de um texto grego que ele julga ser
melhor, e que era, então, corrente no Oriente, corrige a tradução latina dos Evangelho
s
usada em Roma, melhora a sua cor latina e fluidez, sem se sujeitar a oferecer um
a tradução totalmente nova. O tempo, mas também a prudência e o desejo de não chocar
demasiado os costumes, incitam-no a não alterar demasiado o texto existente. É esta
a tradução que foi reconhecida muitíssimo rapidamente no Ocidente. E também foi
só isto que ele fez em relação àquela que se chama a Vulgata do Novo Testamento. A revisão
das Epístolas de Paulo data mais ou menos da mesma época; talvez tenha
sido elaborada pelo grupo mais próximo de Jerónimo, mas, contrariamente ao que se cr
eu durante longos séculos, não é obra sua.
Desde a sua estada em Roma, Jerónimo também se mostrou preocupado com outra dificuld
ade no que concerne o Antigo Testamento: o diálogo com os judeus. Muito preocupado
com o estabelecimento da messianidade de Cristo, confronta o texto grego dos liv
ros dos profetas com manuscritos hebraicos emprestados por rabinos judeus. Segun
do
ele, o texto hebraico é mais favorável à fé cristã do que o texto grego dos Setenta, que o
cultou o messianismo. Ele ignora - será necessário esperar pela nossa época
para que se tome verdadeiramente consciência disso - que o regresso dos judeus da
diáspora ao texto hebraico, notório desde os primeiros séculos da nossa era, quando
surgem diversas revisões gregas da Setenta, é devido a uma inflexibilidade da comuni
dade judaica face à utilização do texto dos Setenta pelos cristãos. Por outro
lado, na esteira de Orígenes, que tinha começado a comparar o texto hebraico com as
diversas traduções gregas, Jerónimo admite que a discussão com os judeus só pode
efectuar-se tendo por base o seu texto. O que não o impediu de trabalhar primeiro
numa revisão do texto latino do Antigo Testamento traduzido a partir do texto greg
o
dos Setenta revisto por Orígenes. Mas quase nada resta desta
97

tradução, mais usada e consultada por Santo Agostinho do que a tradução a partir do hebr
aico. Entretanto, há um paradoxo: o Livro dos Salmos da Vulgata é tão-somente
o texto da revisão da tradução da Setenta. Aliás, a tradução a partir do hebraico - o "Saltér
o segundo o hebraico" -, mais sábia, nunca fez parte da Vulgata.
O desejo de discussão com os judeus provoca outra conseqüência: Jerónimo só pode servir-se
dos livros conhecidos por eles. Portanto, são excluídos, por exemplo,
os livros, mesmo que judeus, srcinalmente escritos em grego. Estes, sem terem s
ido objecto de alguma revisão feita por Jerónimo, entraram na Vulgata, sob a forma
de um texto que remonta a uma ou mais traduções anteriores a Jerónimo (Sabedoria e Ecl
esiástico [actualmente chamado Ben Sira], por exemplo). Será daqui que virá
em particular a diferença entre o "cânone" - a lista dos livros recebidos - da Igrej
a católica, que acolhe todos os livros utilizados pela Igreja antiga, e o cânone
da Reforma, fiel a Jerónimo e ao cânone judaico.
Última indicação antes de entrar na história da feitura da tradução: Jerónimo, ocupado com mi
afazeres, não fez todas as traduções com o mesmo cuidado. Alguns livros
(o Génesis, os Profetas) pareceram-lhe mais importantes que outros. Entretanto, re
cebeu algumas encomendas que satisfez em prazos muito curtos. Por isso, nem a qu
alidade
do trabalho é igual nem, de modo algum, a ordem dos livros é respeitada. Um dia, tod
as as suas traduções serão reunidas e acabarão por constituir uma edição especial,
mas começaram por circular separadamente, à medida que iam sendo feitas.
Foi em 390/392 que Jerónimo abandonou a sua revisão do texto grego do Antigo Testame
nto para passar a um trabalho de revisão do latim a partir do texto hebraico,
não sem servir-se das várias traduções gregas (judaicas) existentes. Com muitas interrupções
, seguidas de fases de grande actividade, o trabalho retê-lo-á até 405,
ou seja, durante quase quinze anos. Podemos seguir a sua progressão e, em particul
ar, os dissabores, pelos Prefácios que Jerónimo antepõe ao início da maior parte
de cada um dos seus "pedaços" de tradução. Estes Prefácios respondem sobretudo às críticas q
ue o acusam de inutilizar a tradução reconhecida até então pela Igreja.
Nos livros mais importantes, o texto de Jerónimo melhora a língua e a sintaxe, embor
a se mantenha sempre muito próximo do hebraico. Mas, para aquela época, o resultado
está longe de ser negligenciável.
Como edição sábia que é, esta tradução foi criando lentamente o seu lugar no seio da Igreja
latina, até nas leituras litúrgicas. Por isso, ela exerceu uma influência
considerável em toda a Europa, mesmo nas outras línguas. Mas, ao difundir-se, o seu
texto sofrerá muita corrupção material na sua própria transmissão, sem contar
os reenvios mais ou menos inconscientes ao texto latino anteriormente em uso. É co
m Cassiodoro (ca. 550) que aparece a primeira colectânea dos textos traduzidos
por Jerónimo, mas como uma bíblia entre muitas. Ao longo dos séculos seguintes, inclus
ive
98

na Renascença, fizeram-se diversas tentativas de regresso ao texto de Jerónimo. Mas


será preciso esperar pelo século XX para que uma equipa, constantemente renovada,
de monges beneditinos consagre oitenta anos de trabalho obstinado não somente a re
unir os múltiplos manuscritos da Vulgata mais ou menos alterada, mas também a recons
tituir,
segundo as regras mais estritas da filologia, o texto deixado por Jerónimo.
Yves-Marie Duval
99

Santo Agostinho e a irradiação do seu pensamento

Paradoxalmente, foi na África do Norte, num país hoje totalmente isla-mizado, que na
sceu o cristianismo ocidental latino. Aparecida no Oriente num meio judeu bastan
te
impregnado de helenismo, durante muito tempo a nova religião não tem expressão em Roma
e no resto da Europa Ocidental, nem entre os membros bastante pouco numerosos
de colónias de orientais. Na África do Norte, em meados do século II, inicia-se em tod
os os meios sociais a comunidade cristã ocidental mais abundante e mais dinâmica
da língua latina. Também foi lá que, no século V, o cristianismo ocidental encontrou a s
ua personalidade própria, intelectual e espiritual, graças à marca indelével
que deveriam imprimir nela o pensamento e a obra de Santo Agostinho.
Agostinho apresenta três particularidades ao historiador. Em primeiro lugar, é o esc
ritor antigo mais documentado: não somente milhares de páginas da sua obra chegaram
até nós, como ainda se continua a descobrir, nos manuscritos, textos dele que ignoráva
mos (vinte e nove cartas em 1981 e uma trintena de sermões nos anos noventa
do século XX). Por outro lado, ele é o homem da Antiguidade cuja vida, sentimentos e
psicologia conhecemos melhor, pois falou muito de si, e não só nas suas Confissões,
que contêm um relato dos trinta e quatro primeiros anos da sua vida. A sua terceir
a característica é a imensa influência do seu pensamento, que marcou de maneira
decisiva o Ocidente cristão na Idade Média e na época moderna. Um índice desta marca é o f
acto de os monges medievais terem incansavelmente copiado as suas obras,
transmitindo-nos mais de quinze mil manuscritos que reproduzem os seus escritos.
Agostinho nasceu em 354 na pequena aldeia de Tagaste, hoje Souk-Ahras, na Argélia,
junto da fronteira com a Tunísia. Os seus pais pertenciam à pequena nobreza local,
mas conseguiram dar-lhe uma educação brilhante que, em 375, lhe permitiu tornar-se p
rofessor de retórica em Cartago. Chegou à Itália em 383, tornando-se professor
de retórica em
100

filão, residência do imperador, pois então ambicionava uma brilhante carreira administ
rativa e política. A sua conversão em 386 pôs fim a estes projectos e incitou-o
a regressar a África em 388, para se dedicar à vida religiosa. Tornou-se padre em 39
1, bispo em 395, em Hipona, hoje Annaba (antiga Bône), e consagrou-se a este
ministério pastoral e à redacção da sua imensa obra até à morte, em 430, com quase setenta e
seis anos, na sua cidade episcopal sitiada pelos vândalos.
Agostinho viveu cinco anos em Itália; durante todo o resto da sua longa [existência,
viveu e escreveu no Norte de África. Contudo, a sua obra teve rapidamente uma
grande repercussão na Europa, até porque, então, as costas norte e sul do Mediterrâneo a
inda não eram universos linguísticos e culturais diferentes. As províncias
da África romana contavam-se entre as mais ricas do imenso Império; nelas havia nume
rosas cidades prósperas onde vivia uma elite culta e formada, as mais das vezes,
por berberes latinizados (como o eram, com toda a evidência, o próprio Agostinho e a
sua família). A África parecia não ter sofrido, durante o Baixo-Império, o mesmo
declínio que certas regiões do Império Romano. As trocas culturais e as económicas com a
Europa eram contínuas e a metrópole cartaginesa, a segunda cidade do Ocidente
depois de Roma, exercia uma influência que ia muito além das praias africanas. Por i
sso, compreende-se que, embora redigidas em África, as obras de Agostinho tenham
podido ser imediatamente lidas e comentadas em todo o mundo ocidental. Em Cartag
o, admiradores seus mandavam fazer cópias dos seus livros que expediam para Itália,
de onde se difundiam pelas Gálias e pelas Hispânias. Esta irradiação devia-se não só à profun
idade da sua reflexão teológica e espiritual, mas também ao seu imenso
talento literário, à sua língua rica, poderosa e srcinal, à sua faculdade de exprimir p
ela linguagem escrita a sua sensibilidade aguda, e a penetração, desconhecida
antes dele, da sua análise psicológica.
Dele, a posteridade só reteve um pessimismo inato sobre a natureza humana, corromp
ida pelo pecado srcinal e propensa ao mal, e também um austero rigorismo moral.
Isto deve-se ao facto de os teólogos agos-tinianos terem freqüentemente, ao longo do
tempo, sistematizado e endurecido o pensamento do mestre que, na sua obra gigan
tesca,
se revela complexo, subtil e não desprovido de contradições (pensamento que evoluiu ba
stante ao longo dos anos), o que torna muito difícil uma apresentação sumária.
Por isso, aqui, evocaremos apenas alguns aspectos de um pensamento variado, múltip
lo e multiforme. Foi somente numa última etapa, no fogo da controvérsia com os
seus adversários pelagianos, que ele apresentou as suas teses de maneira vigorosa
e sistemática, em particular a doutrina da predestinação em que, de algum modo,
o velho homem, sem querer, se caricaturava a si mesmo. Consideremos que, para Ag
ostinho, a natureza humana está irremediavelmente marcada pelo pecado e que não pode
mos
aceder à salvação pelos nossos méritos pessoais
101

ou pelas nossas boas obras, pois só a graça divina pode salvar-nos. Era essa a exper
iência do próprio Agostinho, relatada nas Confissões: depois das suas múltiplas
errâncias, Deus tinha-o, de algum modo, levado pela mão e guiado até si, revelando-lhe
a sua presença no mais íntimo de si mesmo e a omnipotência do seu perdão.
A sua conversão não se devia aos seus méritos pessoais, pois não era senão a resposta a um
chamamento divino, à graça divina.
Os adversários de Agostinho, que eram o asceta britânico Pelágio e, sobretudo, os seus
discípulos, reduziam o cristianismo a um rigoroso moralismo sem espiritualidade.
Segundo eles, quem cumprisse estritamente a lei divina podia chegar à perfeição, e Deu
s devia recompensá-lo pelos seus méritos (ou puni-lo pelas suas faltas) na
vida futura. Como os pelagianos consideravam boa a natureza humana, também pressup
unham que este programa era realizável. Estas idéias tiveram sucesso nos meios
monásticos. O pelagianismo também foi apreciado pelo mundo aristocrático romano, onde
a exaltação da virtude individual encontrava ecos profundos na antiga tradição
romana e no estoicismo. Agostinho reagiu fortemente. Segundo ele, no fundamento
desse sistema encontra-se uma ilusão sobre a bondade da natureza humana e a negação
do pecado srcinal que tornava esta natureza predisposta para o mal. Além disso e
sobretudo, Pelágio e os seus minimizam o valor da graça divina e da necessidade
da salvação operada por Cristo: no seu orgulho, julgavam-se aptos a tornarem-se perf
eitos com as suas próprias forças; pensavam que, de algum modo, podiam prescindir
de Deus. Nesta questão, Agostinho tinha consciência de que defendia um elemento cent
ral da essência do cristianismo. Mas a polémica durou e azedou-se: Agostinho
acabou por elaborar um sistema antipelagiano radical, em que reservava a salvação pa
ra uma comunidade de eleitos escolhidos pela graça de Deus desde toda a eternidade
,
os predestinados, tirados aleatoriamente da "massa condenada" que era a humanida
de pecadora. Esta foi a última fase do seu pensamento, que a posteridade, muitas
vezes e erradamente, haveria de considerar sob o nome de agostinismo.
Foi entre 413 e 426, portanto na época das invasões bárbaras, que Agostinho redigiu A
Cidade de Deus, que é uma vasta reflexão, numa perspectiva de eternidade, sobre
o destino da humanidade e que, no contexto da actualidade trágica, era um pouco -
como pôde escrever aquele profundo conhecedor moderno de Agostinho que foi Henri-I
rénée
Marrou - "uma arte de viver num tempo de catástrofe". Aqui, retenhamos um aspecto
desta síntese imensa. No tempo da história, a Cidade de Deus, quer dizer, a comunida
de
dos eleitos, está a caminho da sua realização, que só chegará no fim dos tempos. Por agora
, não poderá confundir-se com nenhuma comunidade ou instituição humana
actual: mesmo que um Estado, como o Império Romano de então, se proclame cristão, não po
de afirmar que é a Cidade de Deus na Terra e reivindicar um carácter sagrado,
uma
102

omnipotência de srcem divina. O mesmo é válido para a Igreja terrena, a Igreja visível,
que compreende simultaneamente justos e pecadores. Henri-Irénée Marrou percebeu
muito bem que este pensamento constituía uma recusa forte de todos os totalitarism
os e de todos os integrismos.
Agostinho também foi arrastado para uma querela dramática que dilacerava a cristanda
de africana desde a época de Constantino. Uma comunidade cismática chamada Igreja
donatista, do nome do seu fundador Donato, dominava regiões inteiras, uma das quai
s a Numídia de Hipona. Os donatistas acusavam os bispos católicos de terem sido
fracos no tempo da perseguição de Diocleciano e afirmavam-se como os únicos membros da
Igreja autêntica, a Igreja dos santos, dos puros e dos mártires. A forte implantação
desta Igreja nos meios rurais e a implicação de alguns dos seus membros numa insurre
ição popular que ensanguentou a Numídia nos anos 340 (a revolta dos circunceliões
ou "vagabundos dos palheiros") levaram alguns historiadores modernos a ver, não se
m anacronismo, neste movimento religioso a manifestação de um nacionalismo anti-roma
no
ou de uma luta de classes. De facto, tratava-se de uma forma sumária e intransigen
te de religiosidade, a que chamamos integrismo, sem programa político especial,
que compreendia entre os seus partidários bastantes nobres e até senadores. O baptis
mo, as mais das vezes recebido na idade adulta, introduzia na comunidade cristã
e tinha uma imensa importância na espiritualidade do tempo. Os donatistas rebaptiz
avam os cristãos das outras Igrejas que aderiam à sua comunidade porque consideravam
-se
os únicos cristãos autênticos. Agostinho tenta, em vão, reconduzi-los à unidade pela persu
asão, mas face ao fracasso e embora inicialmente reticente, acabou por
unir-se à repressão feita pela autoridade imperial. Em suma, ele foi um dos líderes da
conferência episcopal contraditória reunida em Cartago em 411, que acabou
na dissolução autoritária da Igreja cismática, sendo os donatistas obstinados punidos co
m pesados castigos. O conflito freqüentemente muito violento entre irmãos
cristãos foi incontestavelmente uma causa de fraqueza para a Igreja de África e, com
todo o direito, alguns historiadores viram nele uma das causas longínquas do
futuro desaparecimento do cristianismo naquele país.
Até Agostinho, o pensamento teológico e filosófico cristão era quase exclusivamente de lín
gua grega. Doravante, o Ocidente cristão latino possuía um mestre com uma
poderosa personalidade, que exprimia o seu génio com tanto mais srcinalidade cria
tiva quanto, conhecendo mal o grego, tinha sido levado a pensar por si mesmo, em
vez de continuar tributário dos seus predecessores. Aliás, o nascimento em África de u
ma teologia ocidental particular é uma das causas, distante mas fortíssima,
do cisma, consumado a partir do século XI, que havia de separar o Ocidente latino
católico do Oriente grego ortodoxo. No Ocidente, no decurso da Idade Média, Agostinh
o
foi o único mestre que pensou, sem no entanto se admitirem os aspectos extremos da
sua doutrina: no século IX, o saxónico
103

Gottschalk foi condenado a prisão perpétua por ter defendido a doutrina da predestin
ação. A partir do século XII, o pensamento escolástico afastou-se muito de Agostinho,
partindo precisamente dele. O bispo de Paris Pedro Lombardo apresentou a sua dou
trina em fórmulas dogmáticas abstractas, caindo inevitavelmente numa caricatura que
deformava. Depois, o sucesso do aristotelismo afastou cada vez mais a teologia e
scolástica da pura tradição agostiniana.
As controvérsias religiosas do século XVI recolocaram Agostinho em primeiro plano. L
utero e Calvino romperam com a Igreja católica porque a acusavam de ser pelagiana.
Para eles, o homem não podia ser justificado diante de Deus a não ser pela graça e pel
a fé, não pelas suas obras, porque estava desprovido de méritos por causa da
sua natureza corrompida. Por isso, desde o início, o protestantismo voltou-se deci
didamente para o agostinismo e, em Calvino, para a doutrina da predestinação. Todavi
a,
os adversários católicos dos Reformadores, no Concílio de Trento, também se inspiraram n
o pensamento do antigo bispo africano, embora recusando certos aspectos radicais
,
como a predestinação ou a negação absoluta do valor das obras humanas.
No século XVII, o prestígio e a autoridade de Agostinho foram incontestados em França,
onde foi constantemente invocado como uma autoridade infalível. Inspirou todos
os movimentos espirituais do tempo, como o Oratório do cardeal Bérulle. Em 1640, foi
publicado o Augustinus, um grosso livro póstumo de Jansénio, bispo de Ypres,
na Flandres, que retomava os argumentos de Agostinho contra os pelagianos e prop
ugnava uma teologia agostiniana radical. A Igreja de França dividiu-se entre os pa
rtidários
e os adversários do jansenismo. O mosteiro feminino de Port-Royal-des-Champs torna
-se o centro do movimento. O Augustinus foi condenado sucessivamente por vários
papas. A partir de 1665, o apoio que muitos parlamentares lhe deram tornou-o sus
peito aos olhos de Luís XIV, que mandou destruir Port-Royal em 1710. Um dos argume
ntos
favoritos apresentados em sua defesa pelos jansenistas era o de que apenas expri
miam a doutrina de Agostinho e que os seus adversários, até mesmo os papas, só podiam
estar em erro quando atacavam o ilustre doutor.
No século XVIII, a grande época da Europa agostiniana já pertencia ao passado. O janse
nismo estava em declínio total: não passava de uma mistura de rigorismo moral
e de oposição política. Por seu lado, os teólogos protestantes abandonavam cada vez mais
o agostinismo estrito dos seus antecessores. Sobretudo, constata-se uma
rejeição do agostinismo na Europa das Luzes. A idéia de uma natureza humana irremediav
elmente corrompida e incapaz de perfeição chocava claramente alguns filósofos,
convencidos da possibilidade de um progresso ilimitado, tanto moral como intelec
tual. Jean-Jacques Rousseau elabora a sua teoria de um homem naturalmente bom, u
nicamente
corrompido pela sociedade, talvez como
104

reacção contra o calvinismo em que tinha sido educado durante a sua juventude, em Ge
nebra. Mais tarde, alguns românticos apreciaram muito vivamente a sensibilidade
de Agostinho e o seu sentido trágico do destino humano, mas este interesse mantém-se
superficial.
O destino do pensamento agostiniano pode parecer singular. Desde o triunfo do Is
lão, a sua recordação manteve-se oculta no seu próprio país, no qual Agostinho não
teve nenhuma posteridade intelectual ou religiosa. Na Argélia actual, a ideologia
oficial só considera o seu conflito com os hereges donatistas, vistos muito anacro
nicamente
como os antepassados do nacionalismo argelino; nesta perspectiva, Agostinho é cons
iderado um partidário do colonialismo! Olhando para tal e tamanho génio, filho
de um país a que esteve profundamente ligado ao longo de toda a vida, esta atitude
parece simultaneamente absurda e ridícula. Aqui, vê-se a profundidade da ruptura
radical provocada pela islamização do Magrebe. Por isso, foi na Europa Ocidental, e
não no Norte de África, que se copiaram, ao longo da Idade Média, os milhares
de manuscritos que nos transmitiram as obras de Agostinho. Mas, embora ele tenha
marcado mais fortemente do que nenhum outro a vida religiosa e intelectual do O
cidente
europeu, foi também aqui que, desde o século XVIII, esta influência decaiu irremediave
lmente: a ideologia do Ocidente moderno exalta o humanismo, a crença no progresso
e na perfectibilidade da natureza humana. Essa visão do mundo e da humanidade insc
reve-se resolutamente contra o teocentrismo agostiniano e a sua concepção pessimista
ou, talvez, simplesmente lúcida, de uma natureza humana irremediavelmente propensa
ao mal.
Todavia, embora o agostinismo, enquanto sistema doutrinal, pareça hoje pouco estim
ado, verifica-se que os nossos contemporâneos continuam sensíveis à profundidade
excepcional da análise psicológica de Agostinho: assim, ele foi o primeiro a descobr
ir, no fundo do nosso ser, as forças obscuras que, independentemente da consciência
clara e do livre exercício da vontade, podem determinar o nosso comportamento - aq
uilo a que, depois, Freud veio a chamar o subconsciente. Finalmente, lembremos
que a sua visão pessimista da natureza humana não impediu Agostinho de afirmar o lug
ar essencial da inteligência em toda a reflexão, religiosa ou outra. A razão
e a inteligência são dons de Deus que devem estar sempre activos: nada lhe é mais estr
anho do que uma religião obscurantista. Dizia ele que é necessário procurar
para encontrar e encontrar para procurar - magnífica definição, não só da busca de Deus, m
as também de todo o esforço intelectual. Igualmente, toda a filosofia permanecerá
para sempre devedora da reflexão agostiniana sobre o tempo e a memória. Por fim, alg
uns espíritos religiosos continuam profundamente marcados pela espiritualidade
de Agostinho, em particular a sua visão do frente a frente na interioridade do cor
ação, entre a alma e o seu Criador, "mais íntima de mim mesmo que eu próprio".
Último paradoxo: é no mundo muçulmano que se encontra hoje a fidelidade mais explícita a
princípios que foram
105

agostinianos antes de serem islâmicos: a afirmação sem concessão da transcendência divina


absoluta, a aceitação pacífica da vontade de Deus e a expectativa da salvação
operada só pela misericórdia. Se se chegasse a estabelecer um diálogo religioso sereno
e desapaixonado entre as duas margens do Mediterrâneo, o pensamento do antigo
doutor cristão africano talvez pudesse servir de traço de união.
Claude Lepelley
106

VII

ANUNCIAR O EVANGELHO "ATÉ AOS CONFINS DA TERRA"

O anúncio da Boa-Nova (Evangelho) "até aos confins da Terra" é um elemento constitutiv


o do cristianismo, tendo Jesus enviado os seus apóstolos em missão dizendo-lhes:
"Ide..., fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai e do Fil
ho e do Espírito Santo" (Mt 28,19). Uma tradição já atestada no século II e retomada
pelos historiadores da Igreja (Eusébio de Cesareia no início do século IV, Rufino de A
quileia no início do século V) verificava a existência de uma partilha entre
os apóstolos da terra a evangelizar. Durante muito tempo, isso validou a pretensão d
e numerosas igrejas de ter um apóstolo como fundador e a inscrever-se na sucessão
(diadoché) apostólica directa. Embora, inicialmente, a expansão do cristianismo se ten
ha feito no Império Romano e nas regiões orientais vizinhas, para além delas
havia muitos mais povos a evangelizar; desde o século III, alguns deles começaram a
penetrar no Império. No decurso do século IV e do V, pouco a pouco, os cristãos
foram tomando consciência do facto de a Igreja não poder limitar-se ao Império Romano,
mesmo que este se tivesse tornado oficialmente cristão.
Françoise Thelamon
107

A cristianização da bacia mediterrânica no século v nas fronteiras do Império Romano

A 9 de Abril de 423, o imperador da parte oriental do Império, Teodósio II, dirigiu


ao prefeito do pretório Asclepiódoto ou Asclepíades uma lei em que, entre outras
coisas, dispunha que "os pagãos que ainda existem, embora pensemos que já não resta ne
nhum, sejam tratados segundo as prescrições [leis] já promulgadas" (Código
teodosiano, XVI, 10, 22).
Cerca de trinta anos depois do encerramento dos templos ordenado em todo o Império
por Teodósio I, o seu sucessor considerava de maneira muito ambígua o efeito desta
medida. À negação ideológica da existência de adeptos dos cultos politeístas opunha-se a rea
lidade quotidiana da sua presença, mesmo que as suas actividades culturais
já não pudessem realizar-se em público e, com medo de uma legislação cada vez mais repress
iva, tivessem de procurar a protecção das casas particulares, das margens
ou dos lugares mais remotos do mundo romano. O historiador contemporâneo não consegu
e medir quantitativamente e em momentos sucessivos a amplitude desta adesão,
condenada - salvo excepções - ao segredo nos territórios dos "cristianíssimos imperadore
s". Conseqüentemente, não é possível avaliar o ritmo da passagem dos "pagãos"
para o cristianismo, e as "conversões" de judeus, às vezes em massa, como em Mahón, na
ilha de Minorca, em Fevereiro de 418, continuam claramente minoritárias. Certamen
te,
Agostinho (Comentário dos Salmos, VII, 7, XXXIX, I, etc.) denuncia freqüentemente -
não é o único na viragem do século IV - "o crescimento da hipocrisia" nas fileiras
dos cristãos ou, por outras palavras, o crescimento das ligações simuladas, mas já Orígene
s, século e meio antes, emprega uma linguagem similar (Comentário sobre
Mateus, sermão 19,20, 24). Por isso, e em geral, a história da progressão numérica do cr
istianismo no Império Romano depende das impressões de leitura e da convicção
mais ou menos bem fundamentada do historiador que a estuda, mesmo que seja o res
ultado de tentativas de "modelização" fundadas em bases estatísticas tão evanescentes
quanto controversas.
108

A cristianização crescente do espaço e do tempo, quer dizer, a saturação progressiva em re


ferências cristãs destas duas dimensões essenciais da vida quotidiana,
é inegável e consolida o peso das leis que proscrevem o "paganismo" e limitam, a par
tir do século V, o exercício do culto judaico. Mas as transferências de adesão
religiosa, especialmente as "conversões ao cristianismo", não estão de modo nenhum doc
umentadas com pormenor a não ser em certos retratos de grupo, como os "Ismaelitas"
(quer dizer, populações árabes) junto da coluna de Simeão, o Estilha, segundo o testemun
ho de Teodoreto de Cirro (História Filoteia, XXVI, 13-16) ou os autobiográficos
de Justino mártir a Arnóbio ou de Agostinho, que é difícil ordenar cronologicamente. Des
de então, a tradição historiográfica tratou da "conversão dos povos" em narrativas
leves tão vastas quanto imprecisas ou do "itinerário de uma alma", investigado com t
odos os recursos da psicologia moderna aplicada aos textos antigos. São numerosas
as tentativas de realçar certos mecanismos sócio-históricos de "conversão ao cristianism
o". Mas, freqüentemente, transformam-se em grandes textos com visão explicativa
que, mesmo libertos da sombra da Providência, têm dificuldade em articular efeitos l
ocais e causas gerais, porque estes relatos baseiam-se na determinação de pressupost
as
capacidades de atracção das comunidades cristãs e da(s) sua(s) mensagem(ns) - por exem
plo, as práticas assistenciais e a sua justificação teórica - ou, numa perspectiva
que, em última análise, se reduz à apologética cristã, e no realce de fraquezas também press
upostas pelos politeísmos tradicionais. Isto é prova, se fosse necessária,
da dificuldade de conciliar o pormenor - a "conversão" de um indivíduo - com o unive
rsal - a cristianização de uma sociedade.
Estas considerações preliminares convidam-nos a entrar no fenómeno das "conversões" ao c
ristianismo de modo mais circunscrito, centrando-nos no exame dos motivos
de adesão explicitamente assinaláveis nas fontes, sem procurar distinguir entre "con
versões sinceras" e "conversões interessadas". A neutralidade axiológica do historiado
r
impõe que renuncie a essa discriminação absolutamente inoperante. Ela faz com que só se
valorizem as informações disponíveis sobre o que determina as transferências
de fidelidade religiosa, num tempo em que desapareceu a menção de pregadores itinera
ntes cristãos no Império Romano. De facto, a difusão do cristianismo sobre o
modelo da missão paulina tinha-se tornado, no essencial, não só um esquema literário que
teve muito êxito na literatura apócrifa dos Actos dos Apóstolos, como também
o apanágio de Mani e dos seus discípulos.
Esta investigação terminou numa enumeração de factores variados cujo entrelaçamento, hoje,
nos impede de classificar por ordem de importância as influências familiares,
a imitação dos poderosos - "se determinado nobre se tornar cristão, ninguém permanecerá pa
gão" (Agostinho, Comentários dos Salmos, LIV, 13) - e, em particular, do
príncipe, a vontade de obter uma vantagem material ou de se mostrar, através do medo
da coacção ou até do exercício da violência como em Mahón, os dons recebidos
à
109

maneira de caridade, os milagres e os sonhos, as discussões com familiares, bispos


ou monges, as influências entre amigos, a leitura de livros, a pregação e, mais
em geral, as artes da palavra, etc. Também se deverá realçar os factores de resistência à
"conversão" - determinado factor podia influenciar em sentidos diferentes:
tradições familiares, uma certa consciência de classe, um apego ideológico (como é o caso
dos neoplatónicos de Atenas, como Proclo), etc.
Fosse qual fosse o nexo dos motivos que conduziam à inscrição nas fileiras dos catecúmen
os e a duração do processo gradual de assimilação das normas e das crenças
então consideradas requeridas a um cristão, aderir ao cristianismo significava ingre
ssar numa comunidade. Esta dimensão ordinariamente comunitária do facto cristão
na Antiguidade tardia e, conseqüentemente, a importância crescente da caracterização rel
igiosa na definição de uma identidade social, aparecem com tanto mais evidência
quanto o catecúmeno e o baptizado são incessantemente chamados não só a distinguir de um
ponto de vista intelectual a "ortodoxia" da "heresia", mas também a diferenciar,
numa perspectiva prática, os grupos que professavam o cristianismo.
Desde então, uma primeira avaliação da densidade da presença cristã no mundo romano pode f
undir-se com a cartografia tradicional dos bispos confirmados nas diversas
épocas. Os progressos das investigações prosopográficas permitem completar as listas epi
scopais e, por exemplo, calcular que, no início do século V, seriam quatrocentos
os bispos donatistas no Norte de África, enquanto haveria uns seiscentos bispos "c
atólicos" (antidonatistas), tendo em conta o número de dioceses com dois titulares
antagonistas. Em meados do século v, existiriam na Gália entre setenta a oitenta sés/s
edes episcopais, mais ou menos o mesmo número que na Itália dessa época. O
Egipto possui uma centena de bispados; na diocese civil da Ásia, quer dizer, na me
tade ocidental da Ásia Menor, há cerca de duzentas dioceses cristãs. Na determinação
destes dados numéricos, as listas das presenças dos bispos (ou dos seus representant
es) nas actas dos concílios ou sínodos - os dois termos, o primeiro latino e
o segundo grego, são então sinónimos - desempenham um papel decisivo. Aparecida no fim
do século II, a instituição conciliar, que consiste na reunião de chefes da
Igreja numa base geográfica mais ou menos alargada para debaterem os problemas com
que se defrontavam, conheceu um começo pujante. Os imperadores, desde Constantino
e dos concílios de Aries (314) e de Niceia (325), apropriaram-se deles para tentar
dirimir e sanar os conflitos que dilaceravam o mundo cristão.
Paralelamente, progrediu uma certa hierarquização das sés episcopais, e os bispos, ess
encialmente orientais, reunidos em Niceia, ratificaram a preeminência do bispo
de Alexandria sobre todo o Egipto e do de Roma sobre a Itália central e meridional
- a quem, pouco depois, começaram a chamar "arcebispos". Por outro lado, decidira
m
criar em cada província civil uma sede metropolitana, cujo titular seria encarrega
do de velar pelas
110
eleições episcopais em todo o seu território e de convocar duas vezes por ano os seus
sufragâneos para um concílio provincial. A difusão do sistema dos metropolitas,
primeiro no Oriente e depois no Ocidente, assegurou uma estruturação mais firme da I
greja imperial. No Concílio de Calcedónia (451) apareceu a noção de "patriarcado"
que só começou a ganhar toda a sua importância a partir do reinado de Justiniano (527-
565) com a "pentarquia": Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém
- a "Antiga" e a "Nova" Roma disputavam o seu primado sobre a Igreja imperial.
O vigor desta organização eclesiástica, muito prejudicada ao longo do século V pelas "in
vasões bárbaras", especialmente em África e na Península Ibérica, não pode
esconder a densidade irregular da rede episcopal nas fronteiras do Império Romano.
O contraste pode ser grande, não somente à escala regional, por exemplo, entre
a parte oriental do Norte de África e as suas costas ocidentais, mas também à escala m
icro-regional, como o prova o caso italiano, ou mesmo a nível local, onde uma
cidade como Edessa largamente cristianizada pode opor-se a um bastião dos cultos p
agãos como Harran. Além do mais, a importância não somente territorial, mas também
demográfica de uma sé episcopal pode variar consideravelmente, embora, na ausência de
dados sólidos sobre o povoamento, convenha renunciar a toda a cartografia do
fenómeno da progressão numérica do cristianismo para privilegiar análises micro-regionai
s que façam jus a uma cristianização muito esporádica.
Michel-Yves Perrin
111

Povos cristãos nas fronteiras do Império Romano

Ao atribuir aos apóstolos Tadeu e Tomé a evangelização da Me-sopotâmia (em particular, de


Edessa) e, até, da índia, apercebemo-nos da existência de comunidades cristãs
testemunhadas na segunda metade do século II.

Uma Igreja da Pérsia


A dinastia persa dos Sassânidas, que então assumiu o controlo do Império Parto, fortal
ece a religião nacional, o masdeísmo, enquanto as vitórias do rei Shabuhr I
(240-272) sobre o Império Romano provocaram a deportação em várias regiões do Império Persa,
da Mesopotâmia ao Irão, de cristãos da Ásia Menor e da Síria, perseguidos
depois de terem sido tolerados.
A política normal de tolerância na primeira metade do século IV permite o desenvolvime
nto da Igreja da Pérsia, tendo um dos seus bispos participado no Concílio de
Niceia em 325. Desde o fim do século III, o bispo de Selêucia-Ctésifon tinha procurado
estabelecer a hegemonia da sua sede sobre todas as igrejas do Império Sassânida,
com grande prejuízo dos seus colegas que tinham apelado para a arbitragem de bispo
s do Império Romano. Por isso, dos confins do Império Romano ao Golfo Pérsico,
existem numerosas comunidades, dotadas com um bispo, nas quais a presença de cristão
s foi provada a leste e a norte até ao mar Cáspio; há cristãos em toda a sociedade,
mesmo na corte, assim como ascetas solitários e monges a viver em comunidades.
A retoma das hostilidades entre persas e romanos em 338 foi, sem dúvida, juntament
e com a hostilidade dos magos que tinham reformado a religião nacional, uma das
causas da mudança de política do imperador Shabuhr II (309-378), que, então, perseguiu
os cristãos: foi o "grande
114

massacre" (340-383). Suspeitos de serem traidores do interior recebidos do inimi


go romano, os cristãos foram vítimas de uma perseguição sangrenta que fez numerosos
mártires.
No início do século V, o rei Yazdgard I, preocupado com libertar-se da influência dos
magos e aproximar-se do Império Romano, soltou os cristãos prisioneiros, autorizou
a reconstrução das igrejas e a reunião de um Concílio em Selêucia-Ctésifon em Fevereiro de 4
10; organizou uma Igreja nacional reconhecida pelo Estado, com o bispo
de Selêucia à sua frente, que, em breve, toma o título de catholicos, patriarca (em 42
4); adoptando as decisões do Concílio de Niceia, estabelecia a Igreja da Pérsia
na comunidade da Igreja universal; mas, em 423-424, um sínodo decidiu sobre a sua
autonomia disciplinar e doutrinal.

A Arménia: primeiro reino cristão

Reino independente nos confins do Império Romano e do Império Persa sassânida, a Arménia
foi, no século IV, por influência de um e de outro, depois partilhada pelos
dois (ca. 387): dois terços do território passaram para o protectorado persa conserv
ando um rei, e a parte ocidental foi praticamente anexada pelo Império Romano.
As srcens cristãs da Arménia são apenas conhecidas por meio de algumas fontes arménias
evidentemente posteriores à invenção do alfabeto arménio pelo monge Machtots
(Mesrop), por volta do ano 405. A srcem siríaca da primeiríssima evangelização dos cantõe
s meridionais próximos da Alta-Mesopotâmia, tradicionalmente ligados ao
apóstolo Judas Tadeu, deixou vestígios no vocabulário religioso. Mas esta evangelização fo
i sobretudo obra de Gregório, o Iluminador, pregador de srcem parta, oriundo
da Capadócia: enfrentou o rei Tirídates IV (298-330), que, primeiro, mandou prendê-lo,
e depois deixou que ele pregasse o cristianismo. Depois de ter regressado
a Cesareia, onde foi ordenado bispo, em 314, baptizou o rei, convencido da inani
dade do culto dos ídolos, e também toda a corte, o exército e todos os habitantes.
Assim, o reino da Arménia tornou-se o primeiro Estado cristão. Os missionários gregos
e sírios que acompanhavam Gregório introduziram novos convertidos - filhos
dos antigos sacerdotes dos cultos pagãos que herdaram domínios anteriormente devolvi
dos a seus pais - com a intenção concreta de formar o clero cristão; por ordem
do rei, os templos tinham sido destruídos e substituídos por igrejas. Tirídates não quer
ia mudar nem as leis fixadas pelo costume nem as estruturas do seu reino;
a conversão ao cristianismo fortaleceu a coesão. Concedeu a Gregório e aos seus descen
dentes os títulos de sumo sacerdote e de bispo principal, juiz supremo do reino
e protector dos pobres, funções anteriormente exercidas pelo chefe dos sacerdotes pa
gãos. A Arménia conheceu as mesmas querelas doutrinárias que o Império Romano:
os bispos permaneceram fiéis à lei definida pelo
115

Concílio de Niceia, mas os soberanos alinharam geralmente com as escolhas doutrina


is dos imperadores, tornando-se fonte de conflitos.
Em meados do século IV, o bisneto de Gregório, Nerses Magno, organizou a Igreja da A
rménia; também criou fundações caridosas e introduziu o monaquismo. Os seus sucessores
já não foram ordenados em Cesareia; a partir de 373, a Igreja arménia tornou-se autocéfa
la. Depois da partilha da Arménia, ela teve de enfrentar a hostilidade do
conquistador persa. Enquanto isso, o neto de Nerses, Sahak (387-438), último desce
ndente de Gregório, foi nomeado arcebispo, mas a sé episcopal foi transferida para
junto da residência real; por morte de Sahak, o arcebispado tornou-se electivo. Pr
otector de Machtots, Sahak encorajou o desenvolvimento de uma literatura arménia:
a Bíblia começou a ser traduzida para arménio antes de 407, os livros litúrgicos também o
foram e, depois, numerosas obras dos Padres gregos e siríacos; foi o fundamento
de uma cultura arménia cristã. Machtots obtém do imperador Teodósio II o direito de ensi
nar o alfabeto arménio também do lado bizantino da fronteira, permitindo
assim aos arménios destas regiões salvaguardar a sua identidade, a sua língua e a sua
cultura.
Em meados do século V, os cristãos da Arménia foram duramente perseguidos pelo poder p
ersa: a abjuração simulada dos dinastas não foi suficiente; alguns magos foram
para os meios rurais, perseguiram os presbíteros e obrigaram os camponeses a alime
ntar o fogo dos altares pagãos. Estalou a revolta; os arménios foram vencidos por
um exército mais forte (Junho de 451); o seu chefe Vardan Mamikonian e os duzentos
e oitenta príncipes que tinham perecido com ele foram venerados sob o nome de
Santos de Vardanank. Os persas suspenderam durante algum tempo as conversões forçada
s, mas as perseguições foram retomadas por diversas vezes nos séculos V e VI,
sem jamais vencerem a resistência do cristianismo dos arménios.

A conversão da Geórgia
Apesar de uma tradição atribuir ao apóstolo André a evangelização da Geórgia ocidental, ignor
m-se os seus inícios; um bispo de Pitionte, no mar Negro, estava presente
no Concílio de Niceia e foram encontrados vestígios de igrejas do século V. O Sul da r
egião e o Leste (Azerbaijão), e também a Albânia foram evangelizados por missionários
enviados por Gregório, o Iluminador, e por outros oriundos da Síria. Mas foi nos pri
meiros decénios do século IV, sob Constantino ou pouco depois da sua morte, em
337 ou 338, que a Ibéria do Cáucaso (Geórgia central e oriental) [de onde, possivelmen
te, vieram os antepassados dos iberos da península do Sudoeste europeu] se
converteu ao cristianismo. Os georgianos chamam Kartli a este reino cuja capital
era Mtskheta (a oeste de Tíflis, actual Tbilissi). A sua sorte estava
116

ligada às lutas entre os romanos e os persas. No início do século IV, a Geórgia está sob o
protectorado dos romanos, que nomeiam o rei. Como as fontes escritas georgianas
são todas muito posteriores, a relação escrita mais antiga da conversão dos iberos do Cáuc
aso foi redigida em latim, em 402-403, pelo historiador Rufino de Aquileia,
segundo o testemunho do príncipe ibero Bacurius (Bacur), então oficial no exército rom
ano: uma mulher "cativa" - entenda-se "cativa de Deus" ou "cativa de Cristo"
e não "prisioneira de guerra" - revela o nome do deus que ela venera e que realiza
curas por seu intermédio: Cristo. A rainha, depois o rei e, através deles, o conjun
to
do povo converteram-se. A "cativa" ensina os ritos do culto e a maneira de const
ruir uma igreja, mas foi só depois de ela ter passado uma noite em oração que uma
coluna que ficara suspensa no ar se colocou por si mesma no lugar. O nome de "Co
luna viva", dado mais tarde à catedral de Mtskheta, sob a qual foram encontrados
os vestígios da pequena igreja de madeira do século IV, perpetua a recordação deste mila
gre, rito de fundação. A conversão ao cristianismo era também uma escolha
política que fortalecia os laços com o Império de Constantino (ou dos seus filhos) fac
e aos persas. Segundo a tradição georgiana, Nino, a "Santa Mulher", teria vindo
da Capadócia durante o reinado do rei Mirhian que pediu padres a Constantino. De f
acto, os primeiros bispos foram de srcem grega e a Igreja da Ibéria do Cáucaso
considerava-se dependente de Antioquia, onde o seu catholicos foi consagrado no
momento em que ela se constituiu como Igreja nacional, na segunda metade do século
V (467?). No princípio do século V, a criação de uma escrita nacional facilita a evangel
ização, a elaboração da liturgia e o aparecimento de uma literatura cristã.
Entretanto, enquanto a planície é evangelizada e os persas tentam impor o masdeísmo qu
ando controlam a Ibéria, o sistema religioso politeísta mantém-se longamente
nos vales das montanhas do Cáucaso.

A introdução do cristianismo na Etiópia

Deste modo, é a Rufino de Aquileia que se deve o relato mais antigo da introdução do c
ristianismo no reino de Axum (Etiópia) a que chama índia ulterior. No século
IV, Axum era um Estado poderoso cujo rei possuía o título de "negus" e de "rei dos r
eis". Inscrições em língua e escrita etíopes (gueza) e sul-arábicas testemunham
e falam de um rei Ezana que parecia já não exercer a suserania real do outro lado do
Mar Vermelho, mas que empreende campanhas vitoriosas na África, que ele começa
por agradecer a vários deuses e, depois, a um só chamado "Senhor do céu". Ora, segundo
o testemunho de um deles, Rufino relata que dois jovens cristãos srcinários
de Tiro, feitos prisioneiros durante uma viagem, haviam entrado ao serviço do rei
do país; pouco depois, o mais brilhante, Frumentius, dirige a chancelaria e, por
morte do rei, desempenha o papel de regente junto da rainha
117

e do seu jovem filho. Dá aos negociantes romanos de passagem a possibilidade de co


nstruírem igrejas e favorece um início de evangelização da população. Quando o
príncipe se torna rei, Frumentius vai a Alexandria, por volta de 330. No regresso,
prega com sucesso a fé definida no Concílio de Niceia, como o confirma, em 356,
uma carta do imperador Constancio II aos soberanos de Axum, Ezana e Sazana, o qu
e evidentemente não implica que sejam cristãos. As fontes etíopes, todas tardias,
retomam o relato de Rufino e colocam no reinado destes dois reis a acção de Fremenat
os, primeiro patriarca da Etiópia, venerado como Abba Salama, o "Revelador da
luz". Por fim, numa inscrição em grego, de data incerta, um rei Ezana diz-se "servo
de Cristo", cuja divindade proclama e afirma a sua fé em Deus Pai, Filho e Espírito
Santo. Em finais do século V, alguns monges prosseguem a evangelização e desenvolvem o
monaquismo, mas a Igreja da Etiópia continua em comunhão com Alexandria.
Ao escolher fazer o ponto da situação destes dois casos de expansão do cristianismo em
direcção ao Cáucaso e à índia ulterior situados nos extremos do mundo, Rufino
mostra que, no tempo de Constantino, a expansão do cristianismo prossegue "até aos c
onfins da Terra", inscrevendo na continuidade dos tempos apostólicos a época
do primeiro soberano romano cristão, considerado o décimo terceiro apóstolo.
Françoise Thelamon
118

Bárbaros cristãos, dentro e fora do Império Romano

Os bárbaros - isto é, por definição, os povos que não falavam nem latim nem grego - sempre
tinham cercado e ameaçado o Império Romano, que se protegia deles graças
a uma fronteira militarizada contínua, o limes, o limite. No entanto, desde finais
do século III, a crise que corroía o mundo romano tornou os custos desta defesa
difíceis de assegurar. A barreira tornou-se cada vez mais permeável, mas o cristiani
smo ganhou com isso novas ocasiões para se difundir entre os povos vizinhos.
É verdade que, havia muito tempo, Roma fazia uma política de sedução junto dos bárbaros ma
is próximos. Oferecendo-lhes algum dinheiro, os imperadores uniam estas
nações belicosas mas economicamente vulneráveis, que se fixavam junto das fronteiras,
de modo a criar uma barreira protectora. Estas populações, mais ou menos sedentariza
das,
abriam-se às influências culturais dos seus poderosos protectores. Ocasionalmente, o
cristianismo aproveitava estas aberturas. Assim, no Norte da Arábia, uma tribo
de sarracenos aliada de Roma converteu-se desde os anos 370.
Esta instalação dos povos clientes romanos nas fronteiras não bastou para travar a cri
se profunda que o Império vivia e cuja causa principal era provavelmente a
queda da demografia. Por isso, para repovoar o mundo romano, os dirigentes dos séc
ulos IV e V permitiram que bárbaros entrassem no seu território. Bastantes deles
foram contratados para um exército que não conseguia encontrar recrutas entre os cid
adãos. Alguns deles tiveram belas carreiras: a maior parte dos grandes generais
do Império Tardio, como Estílico ou Estilicão [em latim, Flavius Stilicho], Bauto ou A
rbogasto foram bárbaros. Embora, em geral, estes homens tenham permanecido
pagãos, os seus filhos converteram-se ao cristianismo e casaram-se com membros das
maiores famílias romanas.
Outro bárbaros, em grupos inteiros, foram instalados nas províncias despovoadas para
as fortalecer. Assim aconteceu com diversos povos chamados "germânicos" que
habitavam a leste do Reno e a norte do Danúbio
119
e foram arrastados para o Império pelos fluxos migratórios oriundos da Ásia central. M
uitas vezes, era a fome que os levava a entrar no Império, não para pilhá-lo,
mas para procurar a sua protecção. Quando, então, descobriam o cristianismo, as suas r
eacções à nova religião dependiam bastante das relações complexas que mantinham
com os imperadores.
Nesta perspectiva, basta o destino dos visigodos para resumir o processo de evan
gelização dos bárbaros. Em meados do século IV, este antigo povo germânico vivia
no baixo vale do Danúbio, quando recebeu a visita de Úlfila, um bispo capadócio, que l
he pregou o cristianismo e lhe traduziu a Bíblia em língua gótica. Ora, este
Úlfila tinha participado em 360 no Concílio de Constantinopla, em que triunfara a pr
ofissão de fé proposta pelo imperador Constâncio II. Estabelecido no seu terreno
de missão, Úlfila ensinou aos visigodos o único modelo trinitário que conhecia: a doutri
na homoiana, que apresentava o Filho como ligeiramente subordinado ao Pai
e que os seus opositores qualificavam como arianismo disfarçado. E assim, por mero
acaso, acabava de nascer o "arianismo germânico".
Apesar do ardor de Úlfila, o sucesso do cristianismo não foi imediato. Entre 369 e 3
72, um dos chefes visigodos, Atanarico, lançou uma perseguição, provavelmente
porque a nova religião ameaçava as antigas crenças tribais em torno das quais se funda
va a identidade gótica. Tudo mudou quando o poder dos visigodos decaiu e o
seu território foi invadido pelos Hunos. Em 376, o chefe Fritigerno foi obrigado a
negociar a entrada do seu povo no território romano. Em sinal de boa vontade,
converteu-se ao cristianismo homoiano, que, então, era a religião oficial do Império R
omano do Oriente.
No entanto, o imperador Valente não teve consideração alguma pelos refugiados. Humilho
u os chefes godos e provocou a fome entre os seus povos. Num movimento de desesp
ero,
os bárbaros revoltaram-se. Desastradamente, Valente tentou esmagá-los, subestimando
a sua força. Assim fazendo, arrastou o exército romano para um dos piores desastres
da sua história, a batalha de Andrinopla (378), em que ele próprio encontrou a morte
. O traumatismo causado pela derrota selou o destino da doutrina homoiana no
Império, onde se considerava que a morte do imperador tinha sido um castigo divino
punindo a sua heresia. Em 380, o novo imperador, Teodósio I, pôde sem dificuldade
impor o regresso ao catolicismo, doutrina do Concílio de Niceia (325).
Por seu lado, os visigodos continuaram a vaguear através do Império, ora como aliado
s, ora como inimigos. Mantendo-se fiéis à doutrina pregada por Úlfila, foram
descobrindo pouco a pouco que os romanos já não professavam o mesmo modelo trinitário.
E, em vez de se converterem ao catolicismo, preferiram continuar "arianos".
De facto, embora sofressem uma forte romanização no seu modo de vida, a diferença reli
giosa permitia-lhes proteger a sua identidade étnica. Por isso, enquanto a
língua gótica ia sendo cada vez menos usada no dia-a-dia em proveito do latim, conti
nuava a ser a língua litúrgica da Igreja ariana.
120

Embora o cristianismo dos visigodos tenha sido fruto do seu oportunismo político,
nem por isso era menos sincero. Quando, em 410, fizeram o saque de Roma, respeit
aram
o direito de asilo das basílicas. Foi preciso esperar por 418 para que, finalmente
, o Império lhes confiasse uma tarefa digna e remunerada segundo as suas expectati
vas.
Com efeito, receberam a missão de defender as províncias do Sul da Gália de todos os o
utros bárbaros. Continuando senhores deste imenso território aquando do desaparecime
nto
do último imperador do Ocidente, os visigodos fizeram dele o seu reino.
Nas regiões que controlavam, os visigodos implantaram um clero ariano e construíram
basílicas heréticas. Mas também difundiram a sua fé entre outros povos germânicos.
Os ostrogodos, que lhes eram aparentados, tinham sido convertidos desde a época da
sua instalação comum nas margens do Danúbio. Os seus reis conservaram esta fé
depois de terem conquistado a Itália em 493. Do mesmo modo, os vândalos aceitaram a
doutrina ariana, em circunstâncias mal precisas, mas em data muito precoce; o
seu reino de África tornou-se uma terra de heresia. Em 466, a diplomacia conquista
dora dos soberanos visigodos alcança também a conversão ao arianismo dos suevos
instalados no Noroeste das Hispânias. Quanto aos burgúndios, fixados no Reno médio, ti
nham decidido converter-se ao catolicismo durante os anos 430, pensando que,
assim, beneficiariam do apoio de Roma contra os hunos que ameaçavam as suas fronte
iras. Mas ficaram cruelmente decepcionados. Por isso, quando, nos anos 470, volt
aram
a formar um reino independente ao redor de Lião, preferiram converter-se à religião do
s seus poderosos aliados visigodos.
Em resumo, por volta do ano 500, no conjunto do Ocidente, o arianismo germânico to
rnara-se a "lei dos godos", símbolo da sua supremacia. Contudo e paradoxalmente,'a
s
Igrejas arianas abstinham-se de todo o proselitismo em relação às populações locais. Na ve
rdade, a única razão de ser da heresia - baseada numa subtileza teológica,
cuja compreensão escapava a muitos - era manter nos novos reinos uma distinção entre "
romanos" e "bárbaros". Para que esta estratégia de distinção funcionasse, ainda
faltava que os romanos não se sentissem tentados a converter-se ao arianismo. Isso
explica que os reis arianos, com a notável excepção dos vândalos, fossem extremamente
tolerantes com os seus súbditos católicos.
Esta especificidade do arianismo germânico explica igualmente o seu fracasso entre
os povos bárbaros que tinham escolhido aproximar-se das populações romanas. Foi
o caso dos francos, que se converteram em massa ao catolicismo depois do baptism
o do seu rei Clóvis, por volta do ano 500. Então, jogaram com a sua ortodoxia para
se aliarem estreitamente às elites galo-romanas, nomeadamente com o episcopado. Es
tes apoios permitiram-lhes derrubar os visigodos da Aquitânia, em 507 (batalha
de Vouillé).
Desde então, o arianismo começou a recuar em toda a parte. Em 516, os burgúndios procl
amaram a igualdade das três pessoas divinas na Trindade,
121

a pedido do seu rei Segismundo. Em meados do século VI, foi a vez de os reinos vânda
lo e ostrogodo desaparecerem, vencidos pelos exércitos bizantinos. Então, o imperado
r
Justiniano impôs a doutrina de Niceia no Norte de África e na Itália reconquistados. O
s visigodos, voltando-se para as Hispânias, continuaram a ser durante muito
tempo um dos últimos bastiões do arianismo. Contudo, em 589, o seu rei Recaredo orde
nou a conversão do conjunto do seu povo à fé católica. Tendo compreendido que
as tensões confessionais minavam o seu reino, preferira sacrificar a religião identi
tária dos godos.
Quando Gregório Magno se tornou papa em 590, o catolicismo já triunfava na maior par
te dos povos bárbaros instalados nas antigas províncias do Império. Só os lombardos,
senhores do Norte de Itália desde 568, se mantiveram fiéis, ainda por alguns decénios
(até ao início do século VII) a um arianismo germânico cada vez mais anacrónico.
Bruno Dumézil
122

SEGUNDA PARTE

A IDADE MÉDIA NEM LENDA NEGRA NEM LENDA DOURADA. (séculos V-XV)

A primeira metade deste período com uma duração de dez séculos corresponde a um tempo de
consolidação dos quadros locais e centrais. A obra missionária prosseguiu,
alargando os espaços cristianizados. Os acasos da história puseram frente a frente a
s metrópoles de Constantinopla e de Roma, que encarnaram duas formas de cristianis
mo
a que não se chamavam "ortodoxa" e "católica", mas "grega" e "latina". No Ocidente,
para aprofundar a cristianização da sociedade e dissociar o espiritual do temporal,
o papado erigiu-se como potência religiosa soberana. Mas o movimento não fez nascer
uma teocracia: coexistiam dois direitos, o direito civil e o direito da Igreja
(direito canónico), ambos muito devedores ao direito romano; tanto o Império como os
reinos foram governados por príncipes e não pelo papa; e também nenhum soberano
pôde aproveitar-se das prerrogativas sacerdotais.
Distante da imagem de uma Idade Média rendida a uma submissão cega à autoridade da Igr
eja, observa-se que, depois do ano 1000, a penetração da mensagem cristã suscita
fortes correntes de afirmação (cruzada) e de contestação ("heresia"). As segundas manife
stam, antes de tudo, um anticlericalismo virulento, prova de que os espíritos
podiam discernir as contradições entre o conteúdo da mensagem pregada e o exemplo dado
; também deixam transparecer as dificuldades em receber uma religião da Encarnação.
Independentemente do uso da coacção, que só tem uma época, a resposta mais pertinente es
forçou-se por satisfazer as aspirações assim manifestadas. A multiplicação
dos carismas religiosos contribuiu para isso, ilustrada pela criação de novas ordens
, tanto contemplativas como hospitaleiras ou "mendicantes", atentas aos pobres
e dedicadas à pregação. Deste modo, os regulares vieram apoiar, com o seu prestígio e a
sua acção, a obra pastoral confiada aos seculares e que o período sistematizou
no quadro da paróquia, criando para a designar a expressão "cura d'almas", ligada àque
le que tinha essa responsabilidade, o "cura".
No prolongamento de uma pastoral da responsabilidade individual em matéria de salv
ação, que valoriza a conversão até ao extremo fim da vida, nos antípodas de qualquer
forma de predestinação - um conceito estranho à espiritualidade medieval, pelo menos a
té ao século XIV -, este período viu nascer, por iniciativa não só dos clérigos
mas também
125

dos leigos, homens e mulheres, modalidades srcinais de vida religiosa, todas ma


rcadas pela convicção de que a salvação não se ganha só e, simultaneamente, por uma
individualização crescente: esta exploração das vias da interioridade deu srcem a belas
páginas espirituais e místicas.
Catherine Vincent
126
CONSOLIDAÇÃO E EXPANSÃO

São Bento (+ ca. 547) Pai dos monges do Ocidente

Forma de renúncia por Deus praticada como solidão absoluta (eremitismo) ou em comuni
dade (cenobitismo), o monaquismo grego (do grego monachos, "solitário") aparece
no século IV no Egipto, na Ásia Menor e, depois, no Ocidente. A partir do século VI,,
a integração dos "renunciantes" na estrutura da Igreja latina é um factor de
evolução essencial da sociedade cristã. Mas como estar só e, ao mesmo tempo, junto? Como
santificar a comunidade no isolamento e retirado do mundo? São estas as
questões-chave do monaquismo no Ocidente entre 500 e 1200.

São Bento e a regra beneditina

São Bento, considerado o "pai dos monges do Ocidente", é uma figura bastante obscura
, de quem o papa Gregório I, Magno, (ca. 540-604) se fez arauto no segundo livro
dos seus Diálogos. Nascido por volta de 490 em Núrsia, no Apenino Úmbrio, Itália, Bento
pertence a uma família abastada. Enviado para Roma para receber uma educação
à antiga, não tarda que o jovem Bento decida devotar-se à "douta ignorância" na solidão de
uma gruta no Monte Subiaco. Funda uma dezena de pequenos mosteiros que
acolhem descendentes da aristocracia romana, como os seus discípulos Amaro e Plácido
. Cerca do ano 547, Bento e os seus companheiros transferem-se para o Monte Cass
ino,
onde Bento morre, por volta de 547, e repousa em companhia da sua irmã Escolástica.
Vinte anos mais tarde, o mosteiro é destruído pelos lombardos. Uma lenda deixada
por longínquos discípulos de Bento instalados em Fleury, nas margens do rio Loire, p
retende que as relíqüias do santo teriam sido fraudulentamente recolhidas
127

no Monte Cassino no ano 670 para, depois, serem transportadas para a Gália, tornan
do-se Fleury, a partir de então, "Saint-Bênoit-sur-Loire".
Para as necessidades da comunidade do Monte Cassino, Bento compôs uma regra que de
pende largamente dos usos anteriores consignados na "Regra do Mestre". Tanto par
a
ele como para o seu modelo, trata-se de fixar da melhor maneira o modo de vida d
os "irmãos" que, à imitação dos apóstolos, escolheram romper as ligações ao mundo
(o parentesco carnal, o casamento, a rede dos amigos e das relações) para se juntare
m a uma família espiritual antecipadora da comunidade dos santos no além. Num
mundo que regride economicamente por causa do desmembramento do Império Romano, a
regra de São Bento prescreve o trabalho manual para que o mosteiro viva, em autocr
acia,
dos frutos da terra; além disso, outra tarefa manual, a cópia de manuscritos, oferec
e à comunidade todo o acesso necessário às "Letras", especialmente à Sagrada
Escritura e aos seus comentários. Assim, o mosteiro beneditino é, simultaneamente, u
ma unidade de vida económica (muitas vezes, é o agente dinâmico e de vanguarda
da vida dos campos) e um órgão cultural de importância essencial na sobrevivência e na r
enovação intelectuais do Ocidente durante a Alta Idade Média. O segundo objectivo
da regra é oferecer aos irmãos uma imagem viva dos degraus da escada de perfeição que se
eleva até ao Céu. Ela impõe a todos uma estrita organização do tempo, repartido
entre o trabalho (cerca de seis horas); a oração, solitária ou colectiva no quadro do
ofício divino - recitação dos salmos e leituras (Vidas de Santos, textos dos
Padres da Igreja) a horas fixas, desde as vigílias às completas*; e a prática da lecti
o divina (leitura e meditação da Bíblia).
Inicialmente, a regra de São Bento não era mais do que um texto entre muitos outros,
numa abundância de regras que, no seio das "microcristandades" do Ocidente (Peter
Brown), ensinavam diversos modos de renúncia. Tendo em conta estes modestos começos,
como se explica o sucesso prodigioso do modelo beneditino? Essencialmente, deve
r-se-á
ver nele um efeito indirecto da lenta política de unificação da Igreja latina. O papa
Gregório Magno, que fora monge e devoto de Bento, envia uma pequena equipa
de discípulos para evangelizar a Inglaterra. Foi por intermédio destes monges que a
regra de São Bento foi adoptada nos grandes mosteiros anglo-saxónicos; no início
do século VIII, outros missionários, agora insulares, regressam ao continente para e
vangelizar a Germânia e implantar lá o monaquismo beneditino. Desde então, os
discípulos de São Bento ocupam um lugar de primeiro plano nesta frente pioneira de u
ma Igreja latina conquistadora. Tanto mais que os soberanos carolíngios

* As horas da oração são as seguintes, começando pela oração da alta madrugada: vigílias ou m
tinas, laudes, prima, tércia, sexta, nona, vésperas e completas (que
correspondiam, mais ou menos, às duas/três, seis, nove, doze, quinze, dezoito horas
e à hora do deitar ou recolher que, para a comunidade, era cedo).
128

decidem, no quadro do seu grande projecto do Império cristão, impor o tipo beneditin
o como modo de vida universal dos monges. Bento de Aniana (+ 821), conselheiro
do imperador Luís, o Pio, em matéria religiosa, é o promotor de um verdadeiro aggiorna
mento (actualização) em matéria monástica, no termo do qual os irmãos reunidos
em comunidade escolhem "uma só regra e um só costume": a regra de São Bento, mais ou m
enos adaptada em função das necessidades do tempo com a ajuda de "costumes",
quer dizer, de disposições (modos de vida, usos litúrgicos) não previstas por São Bento.

O sacerdócio dos monges

A multiplicação dos costumes a partir do século IX é um bom índice da importância da socieda


de cristã. Esta evolução um tanto paradoxal vai transformar aqueles que
renunciaram ao mundo em engrenagens essenciais da vida em sociedade. De facto, o
monaquismo torna-se, desde os anos 800, uma "ordem" perfeitamente integrada no
serviço
da Igreja e do poder político. Na repartição ideal das tarefas, definida pelo esquema
carolíngio das três ordens funcionais (os que oram, os que combatem e os que
trabalham), os monges integram-se na ordem de oração. No isolamento do claustro, a s
ua função é orar pela salvação dos cristãos vivos ou mortos. Na categoria destas
"obras" contam-se, é claro, não só a oração, mas também o serviço do altar, especialmente imp
rtante para acompanhar os defuntos, nem suficientemente bons nem demasiado
maus, que precisam do sufrágio dos vivos para se juntarem à comunidade dos santos. É,
sem dúvida, relativamente ao modelo srcinal dos beneditinos que se encontra
o ponto de evolução mais importante. Na época de Bento, os irmãos são leigos, salvo raras
excepções; no século IX, e mais ainda nos tempos seguintes, as comunidades
contam cada vez mais com monges sacerdotes que celebram missas "especiais" ou "p
rivadas", servindo os defuntos, os antigos membros da sua fraternidade e os fami
liares
ou amigos da comunidade. Estes familiares e estes amigos, cujos nomes são muitas v
ezes inscritos nos livros de memória do mosteiro (necrológio e cartulário), dão
uma boa idéia das ligações que a sociedade dos monges mantinha com o exterior, especia
lmente com as grandes famílias aristocráticas. Depois de terem sido instrumentos
do poder público no tempo dos Carolíngios, os mosteiros e o controlo dos seus patrimón
ios tornam-se objecto de lutas de poder na época feudal. Em vez de nos deixarmos
ofuscar perante o espectáculo de uma "Igreja nas mãos dos leigos"*, precisamos de co
mpreender que as elites da Alta Idade Média constituem uma aristocracia,

* Fórmula do historiador Augustin Fliche, largamente usada para qualificar a situação


anterior à reforma gregoriana e por ela combatida.
129

ao mesmo tempo leiga e eclesiástica, para quem o domínio sobre os homens e sobre a t
erra passa pelo controlo e pela posse dos mosteiros. O melhor exemplo deste tipo
de integração na "ordem senhorial" é, sem dúvida alguma, oferecido pelos monges de Cluny
.

Os senhores de Cluny (910-1150)

O mosteiro de Cluny, no Mâconnais, foi fundado em 910 (ou 909) por Guilherme III,
duque da Aquitânia e conde de Mâcon, chamado o Piedoso. Este grande príncipe renuncia
a todo o direito sobre o estabelecimento e coloca o mosteiro directamente sob a
protecção de Roma, de modo a assegurar a independência de Cluny em relação a qualquer
poder temporal ou espiritual. Na lógica da acta de fundação, os papas Gregório V (998) e
João XIX (1024) concordam imediatamente com a isenção concedida aos cluniacenses.
Trata-se de um privilégio que, segundo modalidades diversas, liberta os monges de
toda a ligação ao seu bispo de tutela, neste caso, o de Mâcon. É então que nasce
verdadeiramente a Igreja cluniacense, uma rede bastante densa de abadias, priora
dos e subpriorados, directamente ligada à abadia-mãe (Cluny) e ao seu abade, que
só responde diante do papa, vigário de Pedro e de Cristo. Ao mesmo tempo, a Igreja c
luniacense integra-se e compromete-se profundamente na vida geral da Igreja lati
na,
fornecendo a Roma numerosos quadros: padres, bispos, arcebispos, cardeais e até um
papa, Urbano II. Num jogo de espelhos surpreendente, Cluny confunde-se com Roma
,
considerando-se uma miniatura do conjunto da Igreja. Nela se praticam todas as f
ormas de vida consagrada: monaquismo, eremitismo e clausura estrita, tanto para
homens
como para mulheres. Além disso, o mosteiro borguinhão e as suas dependências funcionam
como um imenso asilo aberto a todos os leigos, pobres e ricos, desejosos de
retirar-se temporária ou definitivamente do mundo, sem contar os fiéis que pedem par
a ser acolhidos na comunidade na hora da morte.
Esta imensa rede eclesiástica centrada no "mosteiro principal" (a própria Cluny) está
profundamente implicada na sociedade feudal e na ordem senhorial. A viragem
do ano 1000 representa, na França ocidental (parte oeste do antigo Império Carolíngio,
na srcem da França), uma fase de desagregação do poder real que permite o
desenvolvimento sobretudo no Sul do reino, de senhorias independentes, laicas e
eclesiásticas, entre as quais figura o mosteiro de Cluny. Os dois tipos de senhori
a
são concorrentes, embora estejam ligados pelo mesmo destino. Com efeito, as grande
s famílias aristocráticas dotam Cluny de bens e, freqüentemente, possuem alguns
dos seus membros na comunidade. A simbiose clero-aristocracia é constitutiva das e
struturas de dominação social e política na idade feudal. Aliás, todos os abades
de Cluny, do século X ao XII, saíram da pequena, média ou alta aristocracia. Para infl
uenciar o comportamento, por vezes
130

violento, dos seus vizinhos castelões, os monges e grandes senhores de Cluny põem em
cena, nos seus escritos, aristocratas leigos como modelos. O essencial deste
modelo é elaborado desde muito cedo por Odon (879-942), segundo abade do mosteiro
que faz um esboço do primeiro retrato de homem de armas cristão na biografia do
conde Géraud d'Aurillac, prefiguração do "cavaleiro cristão", uma síntese do monge e do so
ldado, tal como no-la descreveria São Bernardo, dois séculos mais tarde.
Dominique Iogna-Prat
131

Gregório Magno Um pastor à dimensão do Ocidente

Os catorze anos (590-604) do pontificado de Gregório Magno constituem um momento e


xcepcional na história da Alta Idade Média. De facto, o papa deixou uma obra escrita
imensa, fonte importantíssima para todo o conhecimento da época. Também foi uma das ma
iores personagens activas deste tempo, à cabeça da Igreja romana, no quadro
de um Império Romano já bizantino e de uma Europa ocidental herdeira da romanidade e
transformada pelo desenvolvimento dos reinos romano-germânicos.
Gregório nasceu por volta de 540 numa família da aristocracia romana ligada à Igreja.
Na sua infância, conheceu as desgraças da guerra gótica* e o restabelecimento
do poder imperial dirigido de Justiniano sobre Roma e a Itália. Foi prefeito da ci
dade e, depois, monge. Como Roma se encontrava sob a ameaça insistente dos lombard
os,
ele foi enviado a Constantinopla como representante oficial do papa junto do imp
erador. No regresso a Roma, encontrou a vida monástica e foi a seqüência de circunstânci
as
dramáticas - inundação, fome e epidemia de peste que provocou a morte do papa Pelágio II
- que conduziu à sua eleição à sé romana.
Gregório redigiu um comentário sobre o livro de Job (Moralia in Job) a pedido dos se
us irmãos monges que o tinham acompanhado a Constantinopla. Desenvolve uma exegese
fundada nos três sentidos da Escritura: literal, alegórico e moral. A letra do texto
bíblico pode ser por si só uma lição moral. A alegoria consiste em reconhecer
nas figuras do Antigo Testamento as verdades doutrinais reveladas pelo Novo e, a
ntes de tudo, a pessoa de Cristo. Por fim, o sentido moral desenvolve o ensino d
a
Escritura para o cristão e para a Igreja. O próprio título Moralia mostra o lugar domi
nante que Gregório concedia a esta dimensão da exegese, largamente ligada ao
próprio

* Travada contra os ostrogodos em Itália de 535 a 554, no reinado de Justiniano, n


o quadro da "Reconquista", antes da implantação dos lombardos no território da
península itálica.
132

contexto em que compôs o seu comentário. Gregório via em Job, o justo afligido por des
graças espantosas, uma figura de actualidade: a Igreja romana atravessava provas
terríveis ligadas à guerra, causas de uma grave perturbação moral.
Quando Gregório se tornou papa, já tinha desenvolvido uma reflexão orientada para a pa
storal. Nomeadamente sobre o tema dos vícios e das virtudes, as Moralia inspiram-s
e
fortemente na tradição monástica ocidental, umas das quais é a de João Cassiano. Mas elas
transpõem a direcção dos irmãos que vivem no seio de uma comunidade monástica
para a direcção das almas que formam o povo de Deus.
Logo depois de eleito papa, Gregório redigiu a Regula Pastoralis (Regra Pastoral),
em que examina como se deve aceder à função pastoral, como se deve conduzir-se
nela e, sobretudo, como se deve pregar às várias categorias de fiéis. Mas ele não examin
a o acesso ao "governo das almas" apenas numa perspectiva jurídica: é a qualidade
da vida moral e a intensidade da vida espiritual que devem qualificar o candidat
o à pregação e caracterizar o bispo em exercício. Além disso, a lista das dezenas
de categorias de fiéis que constitui a maior parte deste tratado testemunha verdad
eiramente um cuidado pastoral: Gregório procura tocar cada homem na sua realidade
psicológica, social e moral. Sublinha nas suas Homilias que as suas ovelhas já receb
eram uma instrução cristã; mas, em contrapartida, têm uma necessidade urgente
de exortação moral. Gregório utiliza uma técnica nova de exortação, o exemplam, um facto ou
peripécia interessante, muitas vezes ligado ao culto de um santo, bem
inserido na vida quotidiana, e que desperta a atenção dos ouvintes. Observa-se um cu
idado análogo nos Diálogos, colectânea de vidas de santos. É verdade que o cerne
dos Diálogos é o livro II, inteiramente consagrado à vida de São Bento, única fonte biográfi
ca sobre o "pai dos monges do Ocidente" e em quem o monaquismo ocidental
encontrou o seu modelo. Mas também se encontram nesta obra alguns santos "leigos"
e monges que guiam fiéis leigos. A diferença de estilo entre os Diálogos, inclinados
para o maravilhoso, mais "populares", e as Homilias sobre Ezequiel, orientadas p
ara as significações espirituais da visão grandiosa do Templo de Jerusalém, é reveladora
de uma exigência fundamental, longamente desenvolvida na Pastoral: o pastor não deve
abandonar o cuidado das questões materiais na atenção que põe nas questões espirituais
nem negligenciar as actividades espirituais quando se consagra às ocupações materiais.
Temos um conhecimento bastante preciso da acção de Gregório graças às oitocentas e cinqüenta
cartas que dele conservamos. A negligência do imperador obrigou-o a
ocupar-se de questões militares na guerra entre o Império e os lombardos. Contra o p
arecer do exarco de Ravena, ele negoceia uma trégua com o rei dos lombardos,
Agilulfo, e zanga-se com o imperador Maurício. Aliás, Gregório fustigava o emprego do
adjectivo "ecuménico" (ou "universal") do patriarca de Constantinopla, quando
"a
133

Europa" - num sentido moderno: é uma das primeiríssimas ocorrências da palavra - "era
devastada pelos bárbaros". Estas devastações inspiravam a Gregório uma escatologia
premente: o mundo inteiro desaba, o regresso de Cristo está próximo. Esta tensão escat
ológica levava-o também a uma acção de reorganização no plano material e administrativo.
A Igreja romana possuía grandes domínios na Sicília e Gregório esforçou-se por obter deles
receitas mais abundantes, velando pelos recursos dos camponeses: lutou
contra a corrupção e as comissões dos intermediários. Ocupou-se da restauração de uma rede e
piscopal nos territórios colocados sob a jurisdição de Roma. Velou pelo
bom andamento das eleições e sugeriu pessoalmente alguns candidatos. Face à existência d
e bispos negligentes ou corruptos, promoveu os mais dignos deles, freqüentemente
saídos do seu próprio mosteiro romano. Em Roma, deu aos monges um lugar mais importa
nte que antes.
Além disso, o seu olhar voltou-se cada vez mais para o Ocidente "bárbaro". Durante a
sua estada em Constantinopla, conviveu com Leandro de Sevilha, que, regressado
às Hispânias, obtém, em 587, a conversão ao catolicismo de Recaredo, o rei dos visigodos
até então ariano. Mais tarde, Isidoro, irmão de Leandro, bispo de Híspalis
(Sevilha), sucedeu-lhe na sé episcopal. Para Leandro, a quem Gregório dedica as Mora
lia, o laço que une o papa e Isidoro (+ 636) é estreito, e a obra do segundo
é largamente tributária da do primeiro no domínio moral e teológico.
Na Itália, Gregório não se contentou com velar pela defesa de Roma e procurar as tréguas
. Também trabalhou na conversão dos lombardos, que, para uns, eram pagãos,
e, para outros, arianos, e ainda para outros, já católicos. Apoiou-se na esposa de A
gilulfo, a rainha Teodolinda, católica, e, em 603, conseguiu o baptismo de Adoloal
do,
herdeiro do trono. Contudo, a conversão dos lombardos não foi alcançada ainda em sua v
ida.
Da Gália, Gregório conheceu a herança espiritual marselhesa e de Lérins. Ele sabe que os
reis francos são católicos de longa data. Todavia, preocupa-se com a reforma
da Igreja franca ainda marcada por práticas pagãs e de corrupção. Os conflitos internos
na família merovíngia limitam os seus meios de acção, mas pode ver-se a conseqüência
dos seus esforços no Concílio de Paris de 614, reunido por Clotário II, tornado o único
rei depois da execução de Brunehaut.
A Gália também foi a passagem obrigatória das missões que ele enviou para Inglaterra. Gr
egório encontrou apoios eficazes em alguns bispos galo-francos que o ajudaram
a desenvolver esta actividade missionária audaciosa na antiga Bretanha. Estas missõe
s, que lhe valem o título de "apóstolo dos anglos", são bem conhecidas de Beda,
o Venerável. A primeira, constituída significativamente de monges, desembarcou na co
sta de Kent em 597, onde foi recebida pelo rei Etelberto, cuja esposa era uma
princesa franca católica. Gregório lança as bases de uma hierarquia episcopal. Embora,
depois, Beda tenha diminuído a influência do substrato bretão
134
cristão na conversão dos anglo-saxões, a verdade é que o papel de Gregório e da missão roman
a foi considerável no nascimento de um novo povo cristão. A legitimidade
romana dada ao reino de Etelberto permitiu que surgissem uma Inglaterra e um pov
o inglês em que se fundiu a antiga população celta.
A preocupação pastoral levou Gregório, que vê na missão o prolongamento da pregação, a estend
r o anúncio de Cristo até aos limites do mundo conhecido. Nas desgraças
e nas provações do seu tempo, ele não se poupou a esforços para restaurar a Igreja roman
a e desenvolver uma solicitude pastoral no sentido da renovação moral dos
povos já cristãos e conversão dos povos ainda pagãos. De maneira impressionante, desde o
século VII, Gregório Magno aparece como uma autoridade, ao mesmo nível dos
grandes escritores do século IV, Ambrósio, Jerónimo ou Agostinho. Na época carolíngia, é con
siderado um dos quatro Padres da Igreja Latina, numa contracção do tempo
que sublinha a sua proximidade de Agostinho e o seu afastamento dos contemporâneos
de Carlos Magno. Contudo, está cronologicamente mais próximo de Beda do que de
Jerónimo. É esta a característica de um "fundador da Idade Média".
Bruno Judie
135

Por volta do ano 1000 As "cristandades novas"

Por volta de 1040, o monge cluniacense Raoul le Glabre evocou, numa fórmula célebre,
o "manto branco das igrejas" a que se assemelhava a Europa em plena renovação.
Menos espectacular, mas também significativo da Nova Aliança que via germinar diante
dos seus olhos, era a recente dilatação da cristandade; é que, acrescentava
ele, "por toda a parte, o reino de Deus submeteu os tiranos pela virtude do sant
o baptismo". Eslavos ocidentais, escandinavos e húngaros que, havia poucos decénios
ainda, semeavam o terror através de todo o continente acabavam de integrar a crist
andade latina. Em breve, apenas subsistiriam alguns redutos pagãos em terra finlan
desa
ou báltica: os lituanos esperariam por 1386 para se converter. Mas, exceptuando es
tes irredutíveis, é forçoso reconhecer com o nosso cronista que o ano 1000 corresponde
pouco mais ou menos ao desaparecimento da vasta no man's land pagã no Norte e no L
este da Europa.
Estes "recém-chegados" (Aleksander Gieysztor) apresentaram-se-nos em três conjuntos
diferentes. Primeiro, os escandinavos: tendo iniciado, desde finais do século
VIII, a expansão viquingue, um movimento indissoluvelmente comercial e guerreiro,
tinham lançado raízes nas regiões conquistadas, na Normandia ou no Danelaw, no
Norte ou no Leste da Inglaterra. Os dinamarqueses aproveitaram para se impor com
o potência hegemónica e fundaram um grande reino que englobava a Noruega, dominando
o mar do Norte até à Gronelândia e exercendo uma pressão constante sobre a Grã-Bretanha. E
nquanto isso, grupos suecos, que, sob o nome de Varegos, navegavam na rota
de Novgorod até Constantinopla, tinham entrado em contacto com as imensidões do mund
o eslavo. De facto, desde meados do século VII, a maior parte da Europa oriental,
até ao arco alpino e ao Adriático, era habitada por tribos eslavas, em processo de d
iferenciação etnolinguística. Os mais ocidentais, como os eslovenos da Caríntia,
foram rapidamente integrados no Império Carolíngio. Entretanto,
136

em meados do século IX, foram surgindo Estados eslavos poderosos; mas, mesmo o mai
s vasto deles, o reino da Grande Morávia, teve uma existência efémera por causa
da irrupção dos húngaros, chegados da Ásia central. Dirigidos pelo duque Arpad, este pov
o seminómada estabeleceu-se nos Cárpatos, de onde lançou incursões destruidoras
até o imperador Otão I lhes infligir uma pesada derrota em Lechfeld, perto de Augsbu
rgo (955). Nesta data, além dos eslovenos e dos seus vizinhos, os croatas, só
os checos e os morávios tinham abraçado o cristianismo, não sem alguma resistência. Todo
s os outros povos do Norte e do Centro da Europa se mantiveram alheios ou
refractários. Isto porque, embora, por exemplo, no decurso do século IX, se tivessem
edificado igrejas nas grandes praças comerciais escandinavas de Birka, Hedeby
e Ribe, elas só existiam para acolher os mercadores estrangeiros, e nada testemunh
a que os autóctones as tenham freqüentado.
Para explicar a entrada destas populações na cristandade por volta do ano 1000, de b
om grado a posteridade pôs à frente delas algumas individualidades excepcionais,
muitas das quais acederam rapidamente à glória dos altares, de tal modo o seu papel
na conversão dos seus povos foi considerado decisivo. Porventura não se apresenta
ainda hoje os baptismos do polaco Mieszko I (966), do russo Vladimir (ca. 988),
do húngaro Vaík-Estêvão (995) ou ainda do norueguês Olaf (ca. 1015) como rupturas
históricas importantíssimas? No entanto, as coisas estão longe de ser assim tão simples.
A cristianização estende-se por toda a parte durante bastantes decénios
ou até mais. Assim, alguns chefes húngaros da Transilvânia convertem-se ao cristianism
o na sua forma bizantina desde os anos 940, ou seja, cerca de meio século antes
de o futuro Santo Estêvão ter dado o passo e arrastado atrás de si a totalidade do pov
o húngaro. Do mesmo modo, na Escandinávia, a conversão oficial dos chefes foi
precedida de um longo período de tolerância deste novo culto. Inversamente, sobretud
o onde, como na Suécia, faltava uma verdadeira unidade política, o paganismo
pôde manter-se até ao fim do século XI. Portanto, durante muito tempo, a cristianização co
nviveu com um pluralismo religioso de facto. As mais das vezes, os próprios
novos príncipes cristãos hesitavam em perseguir os antigos cultos, para não terem de o
fender aristocratas reticentes, tal como aconteceu com certo chefe sueco que,
com medo de que os pagãos se servissem disso para o destronarem, dissuadiu os miss
ionários de destruir o santuário de Upsala. Também houve outros que, embora baptizados
,
desejavam captar os favores dos antigos deuses. A atitude do húngaro Geza é eloqüente:
embora cristão, continuou a oferecer sacrifícios aos deuses pagãos; ao padre
que o censurava, respondeu orgulhosamente que "era suficientemente rico e podero
so para também lhes dar presentes"! Como se vê, a cristianização obedece a um processo
complexo e gradual que não está isento de recuos: mais cedo ou mais tarde, em quase
todas estas novas comunidades rebentaram reacções paganizantes, por vezes tão
violentas
137
que foi necessário quase partir do zero, como, por exemplo, na Polónia no tempo do r
ei Casimiro, o Renovador (1034-1058). Por isso, não sucumbamos às miragens do
ano 1000. Embora esta datação se manifeste cómoda, não pode fazer-nos esquecer os contor
nos de uma história mais movimentada do que parece.
Outra idéia feita pretenderia que, em certas regiões, a cristianização teria andado a pa
r da germanização. É verdade que as missões entre os eslavos partiram dos
bispados bávaros de Salzburgo, Passau e Ratisbona e tiveram bons resultados. Também
o duque da Boémia, São Venceslau (ca. 922-935) escolheu o cristianismo romano
e, ao mesmo tempo, a submissão ao rei saxão Henrique I, o Passarinheiro. Entretanto,
por toda a parte, a influência germânica esbarrou com uma forte concorrência.
Mas não foi certamente a de Bizâncio que criou obstáculos: com a expulsão dos discípulos d
os santos Cirilo e Metódio da Grande Morávia, os missionários bávaros tinham
vencido a resistência da presença grega na Europa central; enquanto o cristianismo b
izantino brilhou sem obstáculos na Bulgária e, depois, na Rússia de Kiev, continuou
marginal na Hungria e na Dalmácia, e nem entrou na Polónia. Mas, face ao Império Germâni
co em plena expansão, os chefes eslavos e escandinavos conscientes e ciosos
da sua independência podiam contar com outras compensações pelo menos tão eficazes. Assi
m, os primeiros bispos que chegaram à Noruega e à Dinamarca foram de Inglaterra.
Graças à familiaridade cultural que unia a Escandinávia às Ilhas Britânicas, eles consegui
ram contrabalançar a pressão alemã exercida por intermédio dos arcebispos
de Hamburgo-Bremen. Igualmente, a conversão dos polacos não foi confiada à metrópole ger
mânica de Magdeburgo, mas resultou de um acordo com o duque checo Boleslau,
cuja filha Dobrava se tinha casado com Mieszko. O caso húngaro ilustra ainda melho
r a diversidade de influências que o cristianismo nascente provocou nestas regiões,
dado que Santo Estêvão se apoiou simultaneamente em Adalberto, bispo de Praga, na su
a mulher bávara Gisela, irmã do imperador Henrique II, e no bispo húngaro Gellert,
que se tinha formado no mosteiro veneziano San Giorgio Maggiore.
Simultaneamente, significa a srcinalidade da dinâmica política que presidiu a esta
cristianização dos confins. Na época carolíngia, a unidade da fé implicava, em
geral, a agregação ao Império: a missão, armada em caso de necessidade, fazia recuar as
fronteiras políticas ao mesmo tempo que conquistava almas. Esta estratégia
foi ainda a de Otão I (936-973), mas diversos factores começaram a atacá-la para nela
abrir alguma brecha em finais do século X. Desde que, um século antes, o papado
havia decidido apoiar a obra de São Metódio, aderira à idéia de fazer emergir Igrejas au
tóctones além do limes saxonicus. Mas as resistências pagãs que atingiram
o máximo aquando da insurreição dos eslavos no Verão de 983, acabavam de selar o fracass
o de uma unificação religiosa conduzida a ferro e fogo. Coube ao jovem Otão
III (983-1002) o mérito de se encarregar disso. No
138

seu desejo de restaurar o Império universal em simbiose com o papa Silvestre II (9


99-1003), lançou os fundamentos de uma nova organização do mundo cristão: no decurso
da peregrinação que fez em Março do ano 1000 ao túmulo de Santo Adalberto, em Gniezno, c
oroou Boleslau, o Valoroso, à maneira bizantina, concedendo-lhe oficialmente
a categoria de irmão na família imperial dos príncipes; conseqüentemente, foi ali criada
uma metrópole eclesiástica, provida com três bispados sufragâneos e separada
da província de Magdeburgo pelo rio Óder. No ano seguinte, era a vez de Santo Estêvão re
ceber, com soberania plena, a coroa real e obter a instituição de uma metrópole
em Gran (Esztergom). Finalmente, só o reino da Boémia ficou privado de arcebispado p
orque ainda estava em gestação e pertencia ao Santo Império; ainda o bispado
de Praga, fundado em 973, e o de Olomouc, um pouco mais recente, foram subtraídos à
Igreja de Salzburgo para serem colocados sob a autoridade da longínqua Mogúncia.
A Escandinávia seguiu um destino semelhante, embora com um ritmo próprio: começou por
depender de Hamburgo, antes de se dotar de um centro metropolitano em Lund
(1104), depois em Nidaros para a Noruega, em 1152, e em Upsala para a Suécia, em 1
164.
Portanto, e em resumo, a Igreja do Império sonhada por Carlos Magno e sucessores f
oi substituída pela Europa das cristandades. Esta mutação é testemunhada numa célebre
miniatura proveniente de Reichenau, em que se vê o imperador majestoso, escoltado
não só por Roma e pelas antigas províncias romanas, mas também pela Eslavónia,
o país dos eslavos. Foi deste modo que nasceram, na periferia da Europa, poderosas
Igrejas territoriais, em breve transformadas em nacionais. Muito ligadas à Sé
romana, onde tinham encontrado o seu primeiro apoio, compensado com um derradeir
o sinal de agradecimento, modelaram a sua identidade através dos seus santos reis,
numa união estreita da fé, da dinastia e do país. Neste sentido, a Europa das nacional
idades que hoje conhecemos é realmente filha do ano 1000, embora já num contexto
secularizado.
Olivier Marin
139

O OCIDENTE RELIGIOSO
SÉCULOS XI-XV

Roma, cabeça da Igreja latina (a partir do século XI)


Ao cabo de um longo processo, no qual o período medieval se revela decisivo, o pre
stígio ligado à cidade de Roma transforma-se numa superioridade institucional sobre
o mundo cristão, fazendo com que o papa seja muito mais do que o simples bispo de
Roma, que, no entanto, continuará a ser.
O enfraquecimento das instituições romanas favoreceu o aumento do poder do bispo de
Roma, patriarca do Ocidente, no governo da capital imperial. Aquele a quem se
chama o papa (do grego papas, "pai") assume o papel de chefe da parte ocidental
do mundo cristão, ocupando, perante as outras sedes episcopais, uma posição de árbitro
ou de último recurso. Roma ainda está sob o controlo do imperador de Constantinopla;
contudo, é o papa quem deve assegurar a boa gestão da vida quotidiana de uma
cidade muito despovoada, mas ainda famosa. Enquanto Bizâncio continua dona e senho
ra da Itália, Roma e o papa beneficiam de uma protecção militar eficaz; o mesmo
não acontece aquando das invasões lombardas, no século VI.
Ameaçado pelos bárbaros, preocupado com manter uma certa autonomia, o bispo de Roma
pede insistentemente a ajuda militar dos francos, então em plena ascensão. Pepino,
o Breve, responde favoravelmente ao apelo urgente de Estêvão II, em 753. Seguem-se a
intervenção militar do carolíngio e a doação territorial à sé apostólica que
devia dar srcem a um Estado Pontifício, com Roma por capital; colocada sob a auto
ridade moral do primeiro imperador cristão, por meio de um documento que ainda
é uma das mais célebres falsificações da história desmascarada no século XV pelo humanista i
taliano Lorenzo Valla, esta doação foi posteriormente conhecida com o
nome de Doação de Constantino. Carlos Magno segue os passos de seu pai: toma a coroa
dos lombardos e inicia uma política de estreitas relações com o papado. A coroação
imperial de 800 inaugura uma forte aliança dos dois soberanos que pretendem, cada
um deles, governar a sociedade dos cristãos
142

{respublica christiana). Doravante, Roma é senhora de uma boa parte da Itália. Nessa
s condições, a eleição do papa reveste-se de grande importância; todavia, começa
a ser controlada por algumas grandes famílias romanas, o que parece não ter tido gra
ves conseqüências na acção puramente religiosa daquele que servia de referência
e de autoridade para os cristãos do Ocidente. Depois de meio século de vacância, o ren
ascimento do Império, em 962, marca o início de cem anos de domínio dos soberanos
alemães sobre Roma, o papado e a Itália. Quando a sua influência abrandou, como aconte
ceu sob Henrique II (1002-1024), o destino do papado voltou a cair nas mãos
da aristocracia local.
O século XI representa uma viragem decisiva, prelúdio de uma ascensão cada vez mais fi
rme do papado. Durante os séculos que separam a chegada a Roma de Pepino, o
Breve (753), da de Henrique III (1039-1056) ou, seja, durante três séculos, o papado
desempenhou um papel secundário, só expedindo bulas para uma pequena parte do
Ocidente. Mas, embora não apenas se interessem por regiões distantes que era necessári
o converter e onde, por vezes, se impõem, como na Polónia e na Hungria, mas
também se façam reconhecer pela liturgia romana que faz escola e se difunde largamen
te desde o primeiro impulso dado por Carlos Magno, os papas, freqüentemente prisio
neiros
daqueles que os colocaram na cátedra de São Pedro, têm ambições limitadas, sobretudo quand
o os imperadores estão presentes na Itália ou são lá representados. Em
1049, a escolha de Leão IX (+ 1054) marcará uma viragem decisiva que arrasta o papad
o para uma revisão completa do seu funcionamento e lhe dá um novo poder.
A reforma que se inicia nutre grandes desejos: tenta definir e separar os dois d
omínios, o espiritual e o temporal, mas hierarquizando-os e confiando ao primeiro
a missão de guiar o segundo. Por isso, mesmo que ambicione cristianizar profundame
nte o conjunto da sociedade, começa por unir-se ao mundo dos clérigos, encarregados
de ilustrar e transmitir o seu programa aos leigos. A concretização de tudo isto ass
enta numa concepção centralizada do governo das Igrejas, cuja cabeça está em
Roma: uma eclesiologia piramidal, em que os bispos colaboram com o papa, sucede
a uma eclesiologia horizontal, impregnada de comunhão colegial. Mais especificamen
te,
não há dúvida de que a escolha unilateral dos papas feita pelo imperador acelerou o pr
ocesso de revisão do modo de nomeação dos pontífices romanos. Em 1059, foi
acordado em sínodo que o papa, até então promovido unicamente pelo clero e povo de Rom
a, fosse daí em diante eleito pelos cardeais, um grupo de clérigos composto
pelos bispos suburbicários (colocados à frente das igrejas dos arrabaldes de Roma),
e também dos padres e dos diáconos das igrejas romanas. Esta medida revolucionária
cria ao memo tempo uma instituição, a do colégios dos cardeais, que se põe ao serviço dos
papas para quem constitui uma verdadeira corte, a "cúria", e que assegura
a continuidade do governo da Igreja entre dois reinados pontifícios.
143

A chancelaria vê a sua actividade reforçada e a sua produção aumentada: um número crescent


e de bulas parte de Roma com destino a todos os países para levar aos fiéis
as decisões do papa. O novo modo da sua nomeação - de que os leigos, por mais poderoso
s sejam, são excluídos - inspira o dos bispos, entregue aos cónegos dos cabidos
catedrais. O movimento prolonga-se até aos simples padres, cuja nomeação pelos "patron
os" leigos das igrejas é cada vez mais contestada, para voltar para os bispos.
A introdução de novidades tão radicais nas modalidades da investidura nos cargos ecles
iásticos provocou a "querela do sacerdócio e do Império", porque quem mais
perdia nesta questão era o imperador, directamente interessado na escolha dos prel
ados, intimamente associados à eleição imperial e ao governo. Henrique IV (1056-1106)
revoltou-se, mas pediu perdão em Canossa, sem conseguir triunfar militarmente em I
tália. Perante ele, Gregório VII (1073-1085) foi o defensor intransigente da liberda
de
da Igreja; é por isso que a expressão "reforma gregoriana" foi utilizada para design
ar uma empresa que se prolongou muito para além do seu pontificado, durante mais
de um século (ca. 1050-ca. 1150).
Impostas pelas mesmas preocupações, a reunião de concílios gerais, as viagens do papa fo
ra de Roma e da Itália, a criação de organismos curiais e o desenvolvimento
do espírito jurídico contribuíram para uma emancipação considerável do papado. De facto, até
ntão, somente alguns raros papas tinham deixado Roma. Leão IX teve
outra concepção e empreendeu longas viagens através das regiões fronteiriças da França e da
Alemanha. Posteriormente, a vontade de tornar o papado presente em toda
a parte da cristandade levou à prática das legações que permitiram que o papa tivesse fiéi
s executantes em todos os países: os legados pontifícios. É durante o pontificado
de Alexandre III (1159-1181) que se manifestam mais claramente todas estas inovações
; depois, Inocêncio III (1198-1216) põe termo a este longo período de transformações.
Os concílios de Latrão em 1123, 1148 e 1179 já anunciam outro, bastante mais amplo, de
Latrão IV (1215) convocado por este papa; sobretudo, Inocêncio III estabelece
os Estados do papa a nível dos principados laicos e instala-os na feudalidade, que
r distribuindo feudos, quer obtendo juramentos de vassalagem de outros príncipes.
Ao longo dos séculos XII e XIII, o papado tornou-se plenamente senhor das decisões q
ue deviam ser tomadas, a todos os níveis, desde o metropolita ao cura de paróquia,
no conjunto da cristandade. Não tardou a encarregar-se das promoções dos clérigos, contr
olando, revendo ou ordenando as eleições dos bispos, distribuindo prebendas
de todas as espécies a pedido dos grandes e a seu bel-prazer. Poucas acções religiosas
escaparam ao patriarca do Ocidente. Bonifácio VIII quis exprimir este poder
total por ocasião do jubileu de 1300, prelúdio brilhante de um período difícil para o pa
pado, diante da afirmação dos Estados nacionais cujos príncipes pretenderam
ter influência sobre "o seu" clero.
144

Em 1308, a eleição de um papa francês precedeu pouco a transferência da cúria para Avinhão,
onde, durante setenta anos, mostrou que podia reinar sobre a cristandade
longe da Itália, acentuando a sua burocracia, tornando-se um verdadeiro modelo par
a os Estados nascentes, no domínio jurídico ou no financeiro. No entanto, ao perder
o papado, Roma não perdera todo o seu prestígio, fundado na dupla recordação do Império e
dos mártires. Elevaram-se numerosas vozes a reclamar o seu regresso, que
aconteceu em 1377 mas provocou o início de uma fase particularmente dramática do gov
erno da Igreja do Ocidente: o Grande Cisma. Então, o Ocidente foi dividido entre
dois papas, reinando um em Roma e o outro em Avinhão, onde os cardeais saudosos do
antigo estado de facto e irritados com o comportamento do eleito romano tinham
procedido à nomeação de um novo pontífice. Cada qual contava os seus apoios; mas, como o
s dois campos tinham poder quase igual, nada se podia resolver pela força.
Nenhum pontífice quis demitir-se, ambos considerando legítimas as suas eleições. A situação,
que se manteve durante mais de uma geração, provocou o desenvolvimento
de uma poderosa corrente reformadora, que via na reunião do concílio o último recurso.
Embora o Grande Cisma haja terminado graças à acção do concílio de Constança
(1414-1418), a assembleia conciliar não conseguiu impor-se como um órgão estável do gove
rno da Igreja e desacreditou-se aquando do Concílio de Basileia (1431-1440),
ao alongar-se interminavelmente em debates sem fim. Face aos defensores das tese
s conciliaristas, o papado saiu de lá fortalecido, como é disso testemunha o notável
sucesso do jubileu de 1450, que viu multidões afluírem a Roma.
Michel Parisse
145
Bizâncio/Constantinopla e o Ocidente
Comunhão e diferenciação

A ruptura entre a Igreja romana e a Igreja bizantina e o rótulo de "cismática" que d


esde então ficou ligado à segunda permitem-nos considerar que, nesta questão,
o mau papel foi desempenhado por um Oriente que teria recusado seguir a via rect
a traçada para os cristãos por Roma, a mãe das Igrejas. Mas isto seria ignorar que
cada uma delas tem a sua história: a Igreja de Roma só progressivamente foi afirmand
o a sua autoridade, enquanto a Igreja de Constantinopla se ia construindo num
quadro muito diferente. Em vez de se falar de separação, seria melhor sublinhar a co
munhão entre estas duas Igrejas e as razões da diferenciação que se introduziu
entre elas.
Na Idade Média, as duas Igrejas, que utilizavam a mesma Bíblia, em grego para uma, e
m latim para outra, sempre acabaram por estar de acordo nos três domínios fundamenta
is.
Em primeiro lugar, sublinhemos que o seu Credo (expressão do conteúdo da fé) é o mesmo: é
o que foi definido pelos concílios ecuménicos entre os séculos IV e IX.
Em segundo lugar, as duas Igrejas concordam em ter São Pedro como "corifeu" (o che
fe de coro) dos apóstolos; e, igualmente, a peregrinação a Roma para ir venerar
as relíqüias de Pedro e de Paulo nunca deixou de ser uma prática oriental. Finalmente,
ambas as Igrejas têm as mesmas estruturas de enquadramento (bispados agrupados
em províncias metropolitanas). Pode acrescentar-se que os concílios ecuménicos não se oc
uparam exclusivamente da definição do dogma, mas também legislaram em numerosos
domínios (liturgia, organização do clero, vida moral, piedade, vida monástica...) para n
ormalizar e harmonizar, mediante regras comuns, muitos aspectos da vida dos
cristãos e dos seus pastores. De facto, nunca se poderá esquecer que as Igrejas prim
itivas se caracterizaram por uma grande diversidade em todos os domínios e que,
a partir dos textos considerados revelados, se foram, pouco a pouco, dotando de
formas de vida e de culto elaboradas em função das tradições locais e de problemas
particulares, tendo por único recurso as suas
146

vizinhas mais próximas. A partir do primeiro concílio ecuménico (Niceia, 325), a diver
sidade inicial das Igrejas primitivas começou a reduzir-se.
Além disso, foi no final do século IV que o Império Romano se dividiu em Império Romano
do Oriente centrado em Constantinopla (Bizâncio) e Império Romano do Ocidente.
O Império bizantino iria existir, sem solução de continuidade, até 1453, considerando-se
o herdeiro de um Império Romano de vocação universalista. Em contrapartida,
o Império do Ocidente conheceu uma história mais atormentada que se traduziu numa fr
agmentação política: houve um imperador, mas nem sempre; e nunca coincidiu com
o conjunto do mundo cristão ocidental, cujos fundamentos romanos se foram colorind
o com outras heranças, sobretudo a franca. Esta diferença política não se encontra
no plano eclesiástico porque a Igreja cristã, saída dos concílios ecuménicos, comportava c
inco instâncias supermetropolitanas, chamadas patriarcados. Na parte oriental
do Império Romano, densamente povoado, onde havia numerosos bispados, houve quatro
patriarcados: Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém. Na parte ocident
al,
apenas um: Roma. Cada patriarcado tinha autoridade no seu território, mas o acordo
entre as cinco sés era a garantia da rectidão da fé, concordando todas que o patriarc
ado
de Roma tinha direito, no seio dos patriarcados, a honras especiais. Convém acresc
entar que, até ao século VIII, a autoridade do imperador de Constantinopla se estend
ia
sobre parte da Itália; mas nem por isso Roma, que dependia do Oriente no plano polít
ico, deixava de reger as Igrejas ocidentais.
Foi respeitando esta organização, a pentarquia ("cinco poderes") - que se conjuga co
m a idéia de que o único verdadeiro sucessor do colégio dos apóstolos é o corpo
dos bispos reunidos -, que se desenrolaram os concílios ecuménicos, todos convocados
pelos imperadores, guardiões da ordem pública. No entanto, muito em breve, a
marcha da história srcinará uma evolução.
Primeiro, no Oriente, a importância de Constantinopla cresceu consideravelmente de
pois e como conseqüência da formação do Império Arábico-Muçulmano. Alexandria,
Antioquia e Jerusalém continuaram a existir como patriarcados, mas em terra muçulman
a e, ainda por cima, enfraquecidas pelo desenvolvimento das Igrejas heréticas
rivais. Constantinopla foi o único patriarcado que permaneceu em terra cristã; melho
r, o seu território acabou por quase coincidir com o do Império Bizantino, que,
a partir do século VIII, dispôs de duas cabeças: o imperador e o patriarca, associados
e solidários, a títulos diferentes, na sua responsabilidade perante os cristãos.
A Igreja bizantina nunca se concebeu fora da relação com o imperador (foi esse o seu
grande problema quando o Império desapareceu, em 1453): era uma Igreja imperial
e orgulhosa de o ser, "dando a César o que é de César" e tanto mais disposta a fazê-lo,
quanto o imperador era chamado o "coroado de Deus". A sua capital estava
sob a protecção particular da Mãe de Deus e o seu Império tinha uma dimensão providenciali
sta. Já desde o século V, o patriarca de Constantinopla atribuía a si
147
mesmo uma importância especial e o segundo lugar no seio do colégio dos patriarcas,
pelo facto de ocupar a sede da capital do Império que substituía a Roma antiga.
Por seu lado, a Igreja de Roma evoluíra em função de outras realidades. O seu chefe, a
quem cada vez mais chamavam "papa", tinha a responsabilidade do conjunto das
Igrejas ocidentais. Muito cedo, desde o século v, nasceu a idéia de, entre todos os
bispos, conceder um primado especial ao de Roma, enquanto sucessor de São Pedro,
a quem Cristo havia dado a missão de fundar a sua Igreja sem limitação geográfica e cuja
s relíqüias guardavam a cidade. Todavia, o bispo de Roma precisou de algum
tempo para impor este primado às Igrejas do Ocidente e para impor igualmente a sua
liberdade perante os fiéis, soberanos, reis ou imperadores, no quadro da reforma
gregoriana, iniciada no século XI. Entretanto, o aprofundamento da herança de São Pedr
o levara o papa a definir-se já não somente como sucessor do chefe dos apóstolos,
mas como vigário ("aquele que está no lugar de") de Cristo, o que o colocava numa si
tuação excepcional e única em todo o mundo cristão.
As vicissitudes da história tinham gerado dois pólos no mundo cristão - Roma e Constan
tinopla -, cada qual fundado na sua própria concepção de Igreja: ideologia
petrinista que tendia a dar uma dimensão simultaneamente universalista (é o sentido
da palavra católico) e monárquica à Igreja de Roma; ideologia imperial providencialist
a
em que a dimensão colegial e pentárquica da Igreja se inclinava a favor da sua capit
al, Constantinopla. Esta diferenciação aprofundou-se a partir dos finais do século
IX e, depois nos séculos X e XI, período a partir do qual se julgou já não ser útil pedir
aos imperadores que reunissem concílios ecuménicos, dado que nenhuma heresia
nova ameaçava a integridade da fé cristã. Durante estes séculos houve muitos contactos e
ntre Roma e Constantinopla, facto propositadamente esquecido [por alguns
historiadores] para se privilegiarem os momentos de crise, como o verificado dur
ante o patriarcado de Fócio, na segunda metade do século IX. Mas o facto que, a praz
o,
teve conseqüências mais pesadas foi o fim dos concílios ecuménicos que tinham sido o qua
dro de encontros e permutas para elaborar decisões comuns. Ao desenvolvimento
intelectual sucedeu o tempo de gestação; às tumultuosas e escaldantes questões teológicas,
a busca paciente de soluções face às interrogações formuladas pelas sociedades
em evolução; à definição da ortodoxia, já então comum, a busca de uma ortopráxis. A normaliza
uniformização romanas tiveram os seus equivalentes no Império
Bizantino. Fundamentando-se em textos, muitos dos quais comuns, com métodos e inst
ituições diferentes (decretais pontifícias e concílios de Latrão, em Roma; sínodo
permanente e legislação sinodal, ratificada pelo imperador, em Constantinopla), a Ig
reja romana e a Igreja de Constantinopla chegaram a resultados práticos por vezes
notoriamente diferentes. Conhecem-se as divergências mais marcantes: pão ázimo ou pão le
vedado na Eucaristia, celibato ou não dos padres, jejum ou não ao sábado...
148

Também, sem minimizar a violência dos acontecimentos de 1054, é necessário apreciar a cr


ise à luz desta evolução que, no decurso de dois séculos, não tinha provocado
nenhum confronto notável. Os problemas postos nesta ocasião eram reais e sérios, nomea
damente o do primado que o papa julgava dever exercer no conjunto das Igrejas.
As personalidades que se ocuparam deles tinham pouca capacidade para os resolver
. Mas só houve excomunhão de pessoas, não de Igrejas que, durante o século e meio
seguinte, mantiveram relações de tipo tradicional: então, Roma não considerava que os or
ientais fossem "cismáticos" e Constantinopla não sentia repugnância em falar
com o sucessor de São Pedro, agora que ele se emancipara completamente dos poderes
temporais.
Em contrapartida, é certo que as cruzadas, singularmente a quarta, em 1204, quebra
ram este movimento. Ao conquistar o Império Bizantino, ao estabelecer um imperador
latino no trono de Constantinopla, ao instituir um patriarca latino, ao dominar
repetidas vezes a cidade, os cruzados realizaram não só actos que feriam o orgulho
político dos bizantinos, como também tocaram em realidades que eram sagradas para os
seus irmãos cristãos, tornando-se sacrílegos. Roma não censurou o facto. Por
isso, é fácil compreender que muitos gregos tenham, desde então, considerado os latino
s mais perigosos que os muçulmanos, sobretudo quando se lembravam da maneira
pacífica com que Saladino retomara a posse de Jerusalém em 1187.
Bernadette Martin-Hisard
149

São Bernardo de Claraval (+ 1153) e os cistercienses

Quando a "Igreja cluniacense" (ecclesia cluniacensis) atinge o apogeu, a regra d


e São Bento vai dar srcem a outra forma de experiência monástica, simultaneamente
próxima e diferente: o movimento cisterciense, cujo nome provém da abadia de Cister,
seu berço.

Cister ou o encontro efémero com a pobreza monástica das srcens (1089-1220)

A palavra francesa para Cister (Citeaux) evoca os "juncos" (étimo: "cistels") que
se podem encontrar nos pântanos e lameiros da planície do Saône. Foi lá que, a
21 de Março de 1098, antigos eremitas conduzidos pelo abade Robert decidem fundar
o seu "Novo Mosteiro", depois do fracasso de uma primeira instalação em Molesmes
(nos confins da Champagne e da Borgonha). Ao contrário do fausto dos grandes senho
res cluniacenses, Robert e os seus irmãos pretendem voltar às fontes do monaquismo
e à letra da regra de São Bento. Instalados (em teoria, pelo menos) em vales afastad
os das cidades, esforçam-se por viver exclusivamente do seu trabalho, recusando
todos os proventos senhoriais e todas as receitas eclesiásticas (oferendas ou dízimo
s); renunciam portanto a inserir-se na vida das paróquias e até a encarregar-se
da memória dos mortos, de modo a subtrair-se à arbitrariedade dos vivos.
Esta fundação conhece um sucesso rápido. Em 1115, Cister conta já com quatro "filhas": L
a Ferté (junto de Chalon-sur-Saône), Pontigny (a sul de Auxere), Morimond
(a leste de Chaumont) e Clairvaux (Claraval), (perto de Troyes). Esta foi fundad
a por um grupo de irmãos conduzidos por Bernardo de Claraval, que foi seu abade até
à morte, em 1153. Nascido em 1090 em Fontaine-les-Dijon, no seio de uma família da p
equena aristocracia, o jovem Bernardo foi educado numa escola de cónegos. Aos
vinte e dois anos,
150

decide-se, em companhia de uma trintena de nobres - entre os quais alguns dos se


us irmãos, dos seus tios e dos seus primos -, juntar-se aos irmãos do "Novo Mosteiro
",
depois Claraval. Cisterciense de segunda geração, por si só Bernardo encarna todo o es
pírito do movimento. Na sua oposição aos cluniacenses e ao seu abade Pedro,
o Venerável, o melhor inimigo de Bernardo, com quem manteve uma correspondência assídu
a, o abade de Claraval reivindica um regresso dos monges à pobreza dos tempos
apostólicos e à pureza da regra de São Bento. Ele pretende impor aos irmãos uma verdadei
ra renúncia em todos os aspectos da vida comunitária: conduta pessoal ascética,
quadro de vida de grande sobriedade, liturgia despojada das longas durações e dos fa
ustos de Cluny. Mas, à maneira de Pedro, o Venerável, ele quer promover o magistério
dos monges no seio da Igreja, persuadido de que só os mais puros podem mostrar o c
aminho aos outros fiéis. Daí a sua presença fora do mosteiro em todas as frentes
de luta pela defesa e pelo esclarecimento da cristandade: denuncia os velhos hábit
os e erros teológicos de Abelardo no Concílio de Soissons; ajuda o papa Inocêncio
II a eliminar o antipapa Anacleto II e o seu partido (1130-1138); opõe-se aos here
ges maniqueus no Languedoque, que pretende eliminar como "raposinhos na vinha do
Senhor"; percorre o Nordeste de França e o Império a fim de pregar a segunda cruzada
pela libertação dos Lugares Santos (1146).
A irradiação de Cister e das suas filhas é imediata e duradoura. Em 1250, o primeiro c
onjunto difundiu-se pelos quatro cantos da cristandade latina e contava mais
de seiscentos e quarenta estabelecimentos, muitos dos quais mosteiros femininos.
É um corpo colocado sob a protecção da "Virgem da Misericórdia", cujos membros são
tratados de modo absolutamente igual, no quadro do capítulo geral (ou assembleia d
os abades) reunido todos os anos em Cister. A pobreza e o despojamento, patentes
até na simplicidade do vestuário feito de lã não tingida (daí o nome de "monges brancos"),
não deixam dúvidas. Desde o seu início, a ordem de Cister foi apoiada
pela prodigalidade aristocrática. Os estabelecimentos cistercienses acolhem numero
sos filhos e filhas das grandes famílias. Aliás, a organização do mosteiro cisterciense
típico reflecte uma estratificação social rígida entre, de um lado, o espaço dos monges de
coro, freqüentemente de srcem aristocrática, e, do outro, o dos conversos,
aqueles irmãos leigos maioritariamente nascidos no campesinato que escolheram serv
ir o Senhor com as suas mãos.
Estes últimos participam na grande obra cisterciense: a domesticação da natureza e a e
xploração dos frutos da terra. Tendo escolhido o isolamento dos eremitas, os
cistercienses encontram-se rapidamente à frente de vastos domínios rurais organizado
s em centros de produção à frente dos progressos agrícolas e industriais: as
herdades ou quintas. Exploram terras, pastagens, madeira e lenha, vinhas e camin
hos; o domínio da força hidráulica permite-lhes ter azenhas, forjas e fundições.
Alimentam os mercados com os seus excedentes: lã, carne, couros, vinho, vidro, car
vão e ferro. Deste modo,
151

comerciando, os "pobres" cistercienses acedem à moeda e às riquezas do mundo; pela lóg


ica das suas opções fundamentais - trabalho manual e exploração das propriedades
agrícolas - adquirem o estatuto de "santos empresários" (C. B. Bouchard), participan
do no formidável crescimento da Europa ocidental a partir dos anos 1100. Nestas
condições, pode dizer-se que o século e o mundo apanharam estes arautos do retorno à pob
reza das srcens. Aliás, numa evolução natural, o capítulo geral de 1220
suprime todas as proibições iniciais e reconduz os cistercienses ao regime comum dos
monges, quer dizer, ao estatuto de grandes senhores eclesiásticos.
As igrejas de pedra, que os cistercienses começam a construir em grande número a par
tir de 1140, são largamente alimentadas pelos excedentes dos produtos da terra.
No plano monumental e estético, Cister entra em ruptura com o luxo dos edifícios rea
lizados pelos "monges negros" em Cluny, a maior ecclesia da cristandade ou, para
o abade Suger em Saint-Denis, o primeiro edifício de estilo gótico. Na sua Apologia
a Guilherme de Saint-Thiérry, composta por volta de 1125, Bernardo de Claraval
expõe a carta do despojamento cisterciense, ainda perceptível na ausência de imagens e
de cores nas igrejas hoje conservadas. Defendendo-se a mais extrema sobriedade,
trata-se primeiro de preservar os bens destinados a manter os pobres; ao privile
giar a luz branca e nua, mal filtrada pelas vidraças sem cor, proibindo a decoração
no interior da igreja, trata-se também e sobretudo de não desviar os sentidos da med
itação interior das Escrituras. Este manifesto é uma tomada de posição contra
a função mística da decoração, contra a função "anagógica" segundo a qual as imagens permitem
elo despertar dos sentidos, subir até ao Criador. No mosteiro cisterciense,
não se procura aceder a Deus, mas habitar com aquele que, segundo Bernardo de Clar
aval, é "altura, largura, comprimento e profundidade".
Dominique Iogna-Prat
152

A catedral
Imortalizada por Victor Hugo em Notre-Dame de Paris, a catedral permanece nos es
píritos como símbolo da Idade Média cristã. Mas, "igreja do bispo", a catedral não
conseguiria ser compreendida mediante a única versão gótica. Contudo, o cliché não é fortuit
o...
A Igreja catedral recebe o seu nome da cátedra, a cadeira, o assento solene reserv
ado ao bispo e colocado no coro do edifício; portanto, trata-se da igreja devolvid
a
à autoridade episcopal que se estende à diocese. A amplitude desta circunscrição territo
rial evoluiu bastante. Nos primeiros séculos da cristianização, depois da
paz da Igreja, as dioceses confundiram-se com os territórios das cidades antigas,
pelo menos nos espaços romanizados. Também era à catedral que os fiéis da cidade
e dos campos em redor vinham celebrar as grandes festas, no decurso das quais re
cebiam um ensinamento do bispo; também era lá que se baptizavam os neófitos, na vigília
pascal. Estas dioceses pequenas, ainda numerosas na Itália, existiram no Sul da Fr
ança até à Revolução Francesa. A este estado de coisas correspondeu uma realidade
monumental que se exprimiu em vários edifícios a que os arqueólogos, que recentemente
a trouxeram à luz do dia, chamam o "grupo episcopal": um dos primeiros foi
descoberto em Genebra nos anos 1970-1980. Este conjunto compunha-se inicialmente
de várias igrejas cujas serventia e afectação ainda são mal conhecidas: a maior
devia servir para as cerimónias solenes; outra estaria certamente reservada ao cle
ro da catedral que ajudava o bispo nas suas responsabilidades, na recitação diária
do ofício. Juntava-se-lhe um baptistério, facilmente identificável pelos seus com equi
pamentos hidráulicos destinados à realização do baptismo por imersão num tanque
ou piscina central. Por fim, diversos edifícios civis serviam de lugar de habitação pa
ra o clero, sem contar com o edifício central da escola e o que servia para
acolher os pobres e os doentes, o xenodochium. Isto quer dizer que a categoria e
piscopal de uma cidade se notava facilmente no tecido construído.
153

Quando a cristianização chegou às regiões menos urbanizadas, a estatura das dioceses amp
lificou-se tanto que tornou impossível uma prática regular na catedral; além
disso, o baptismo era conferido às crianças desde o seu nascimento. A catedral já não re
unia todos os fiéis, que celebravam o culto nas igrejas paroquiais, mais
próximas. O bispo, que tinha delegado uma parte das suas funções aos curas destas paróqu
ias, continuava à frente da circunscrição diocesana como a autoridade de
referência, rodeada de um clero que era designado, cada vez mais correntemente, co
m o nome de cónegos, distintos dos monges. Os edifícios religiosos do grupo episcopa
l
foram-se progressivamente fundindo numa só igreja, a catedral, enquanto as outras
construções persistiam, ampliando-se. Os palácios episcopais ganharam magnificência,
abrigando serviços de uma administração diocesana cuja pompa aumentava incessantemente
, com alguns dos seus edifícios postos ao serviço da população, nomeadamente
para a autenticação de actos e certidões num país sem notariado. Os cónegos construíram edifí
ios adequados à sua maneira de viver que, numas regiões, era comunitário
(cónegos regulares) e, noutras, individual, cada um podendo ter a sua casa: o conj
unto estava situado ao redor da catedral, no chamado "bairro canonical". Este es
paço
- que, por vezes, era fechado e possuía um estatuto próprio - ainda hoje é perceptível n
o mapa das cidades. As escolas catedrais tiveram a sua hora de glória nos
séculos XI e XII (Angers, Chartres, Laon, por exemplo), dirigidas por um cónego mand
atado pelo bispo: o mestre-escola. Quanto aos antigos xenodochia, foram substituíd
os
por asilos-hospitais mais espaçosos, onde se acolhiam os pobres e os necessitados.
A função da igreja catedral transformou-se quando se iniciou a acção pastoral realizada
pelos párocos, a que se juntaram, a partir do século XIII, os frades mendicantes.
Embora os reformadores continuassem à espera do bispo para pregar nos dias de fest
as maiores (o que nem todos respeitavam), muitos destes centraram a sua atenção
nos seus deveres para com o clero diocesano. Diversas circunstâncias ofereciam ao
bispo ocasião para manter com os "seus" padres a ligação que unia a "igreja-mãe"
da diocese (é assim que os textos da época chamam à catedral) às igrejas-filhas das paróqu
ias: as assembleias sinodais, reunidas rigorosamente de dois em dois anos,
para a instrução do clero; a missa crismal celebrada na Quinta-Feira Santa, durante
a qual eram benzidos os óleos usados na administração dos sacramentos (como o
óleo do Santo Crisma, de onde vem o nome desta missa); no fim, cada pároco leva uma
pequena quantidade para a sua paróquia, em sinal de comunhão. Além disso, observa-se
que a catedral vai assumindo cada vez mais o papel de lugar de repositório da iden
tidade diocesana, como atesta a existência, dentro dos seus muros, dos túmulos
dos seus bispos e das relíqüias das figuras locais mais ilustres, e também as suas tra
dições litúrgicas, que associavam elementos universais comuns a todas as igrejas
cristãs e outros próprios da história da cristianização local, como a
154

memória dos santos da diocese, a comemoração da consagração da igreja no fim da sua constr
ução, a tradição coral que ainda não fora suplantada pelo canto romano
imposto por Carlos Magno às igrejas do Império (como o canto ambrosiano na Igreja de
Milão). Um ou outro cónego, consciente deste papel, escreveu a história da sua
igreja, quer sob a forma de notícias biográficas dos bispos (Actos dos Bispos), como
acontece em Roma com o Liber pontificalis, quer sob a forma de relatos mais
sintéticos.
Ao contrário das igrejas dos mosteiros ou dos conventos dos mendicantes, a catedra
l apresenta-se como um edifício partilhado, onde coexistem diversos grupos. Em
primeiro lugar, estão os cónegos que são quem a usa mais regularmente. Eles são os verda
deiros senhores e donos dos locais em que se organiza o seu coro, isolando-o
da animação ambiente com uma grade, e, depois, no fim da Idade Média, com estrados em
degraus, dotando-os de estalas por vezes ornadas com esculturas dos maiores
mestres (Amiens). A seguir, o bispo, presente de modo cada vez mais episódico, cuj
os direitos sobre o edifício estavam rigorosamente delimitados. Finalmente, os
fiéis do bairro, que tinham necessidade de uma paróquia; às vezes, essa função era desempe
nhada por uma igreja vizinha ou até por uma parte restrita da catedral,
como uma capela da nave lateral. Alguns raros leigos, em geral pessoas abastadas
, foram autorizados a deixar a sua marca neste monumento prestigioso, as mais da
s
vezes construindo uma capela privada para servir de jazigo.
Não será demasiado afirmar que as catedrais ainda existentes no mundo contemporâneo il
ustram todos os estilos da arquitectura. Nos países de antiga cristianização,
este monumento, que, por definição, se inscreve numa lista muito longa no tempo, foi
sujeito a numerosas alterações ou, mesmo, a reconstruções totais, depois e como
conseqüência de incêndios ou para adaptar o monumento aos gostos contemporâneos. Embora
seja difícil para o observador actual aperceber-se disso, ainda há catedrais
românicas, mais bem conservadas sobretudo na Alemanha e na Itália. Mas a catedral co
nfunde-se, e não sem razão, nas nossas memórias com a arquitectura gótica. Esta
nova arte de construir, aparecida na íle-de-France durante a segunda metade do sécul
o XII e prosseguida até à Renascença, correspondeu a uma fase de reconstrução
de numerosas igrejas catedrais. As obras eram impulsionadas pela expansão urbana e
pelo enriquecimento da população, inclusive do clero, que as financiou largamente.
Os corpos canonicais e as corporações citadinas, sem contar os príncipes, um dos quais
era o rei de França (o novo estilo nascera no coração do seu reino), olhavam
para estes edifícios com todo o seu orgulho, rivalizando entre si para elevar as a
bóbadas a alturas vertiginosas. As catedrais góticas, abundantemente iluminadas
graças à técnica do cruzamento de arcos ogivais que permite aliviar as paredes do peso
das abóbadas e nelas inserir vitrais, foram dotadas de uma decoração esculpida
ou pintada na pedra ou no vidro, cuja coerência o historiador de arte Emile Mâle ten
tou reconstruir no seu livro L'Art
155

religieux du xme siècle. Na catedral gótica exprime-se a visão cristã do mundo: uma criação
boa, querida por Deus, na qual todos os elementos minerais, vegetais
e animais encontram o seu lugar; uma história humana que ganha sentido na perspect
iva da Encarnação de Cristo, cuja vida é abundantemente representada nas suas correspo
ndências
tipológicas com os episódios do Antigo Testamento; quando muito, hoje, neste program
a, dar-se-ia mais relevo e mais espaço à história local, intimamente imbricada
nesta história universal mediante uma selecção dos santos representados. Neste pensame
nto englobante, tanto no jogo de correspondências entre o Antigo e o Novo Testamen
to
como nesta arquitectura analítica em que as forças são divididas pelas colunazinhas qu
e compõem os pilares, encontra-se o eco do progresso intelectual das escolas
urbanas e das universidades (Erwin Panofsky): a tipologia adoptada pela exegese
medieval, a decomposição escolástica dos problemas em questões sucessivas e a vontade
de reunir o saber em Sommes.
Mas a vida das catedrais não parou no fim da Idade Média: os novos arranjos e as nov
as decorações provam que estas igrejas continuaram a assumir o seu papel de guardiãs
da memória da diocese, estando presentes no seu tempo.
Catherine Vincent
156

II

AFIRMAÇÃO, CONTESTAÇÕES E RESPOSTA PASTORAL

A primeira cruzada (1095) e os seus prolongamentos

A cruzada suscita um interesse historiográfico sempre apoiado e captado pelas opções i


deológicas e pelo ambiente contemporâneo. A expansão europeia e a colonização
no século XIX, depois a experiência sionista no século XX, suscitaram e ainda suscitam
comparações e assemelhações pretensamente polémicas, que se baseiam na identificação
do movimento de 1095 com uma agressão, entre dois blocos, vinda do Ocidente. Mais
subtilmente, a cruzada foi interpretada segundo grelhas de leitura económicas e
sociais (expansão do feudalismo ou do comércio italiano) que lhe tiram toda a especi
ficidade e que encontramos primeiramente nos historiadores árabes dos séculos
XII e XIII, que a assemelham à Reconquista ibérica e à conquista da Sicília, mostrando a
ssim a dificuldade de perceber a sua srcinalidade.
De facto, só há um ponto que reúne as três arremetidas da Europa latina: a resposta ao a
pelo de cristãos sujeitos ao Islão e oprimidos, moçárabes de Andaluzia, gregos
da Sicília e cristãos da Palestina.
A Europa conhece bem os sofrimentos destes últimos. Sob a terrível perseguição do califa
fatimita Hâkim, em 1009-1012, sofreram o assassínio do patriarca de Jerusalém,
tio materno do califa, a destruição de todos os santuários cristãos e judeus, e a conver
são forçada, como em todo o Império Fatimita, da Sicília à Síria. O seu primeiro
efeito foi o desenvolvimento vigoroso das peregrinações a uma Jerusalém sem igrejas, i
niciadas em 1025, que abrandaram de 1040 a 1050 e foram retomadas, não só com
expedições numerosas e exércitos, mas também com a multiplicação na Europa Ocidental das igr
ejas dedicadas ao Santo Sepulcro ou imitando a sua planta e a sua cúpula.
157

A cruzada de 1095-1099 é um movimento religioso, autónomo e independente do magistério


pontifício, laical nos seus quadros e quase sem o controlo da hierarquia episcopa
l,
ausente da marcha para Jerusalém. O apelo de Clermont, lançado por Urbano II e de co
nteúdo incerto (apoiar Bizâncio ou libertar cristãos do Oriente e dos Lugares
Santos) não foi o seu principal motor: de facto, este apelo é posterior à difusão feita
por Pedro, o Eremita, regressado da Terra Santa, da carta do patriarca de
Jerusalém, Simeão, exortando à libertação dos cristãos e que esteve na srcem de uma primeir
a mobilização. O apelo pontifício reúne, na resolução de partida, uma
forma jurídica nova, dois elementos: o compromisso do peregrino e a indulgência plenár
ia prometida aos penitentes. Esta resolução é imediatamente simbolizada por
uma cruz de pano cosida nas roupas. É um povo numeroso de peregrinos penitentes, m
ais de cem mil, homens e mulheres, que parte em 1096, animado com um espírito de
guerra santa inspirado na Bíblia, nos Livros dos Macabeus, e estimulado pelas expe
riências na Península Ibérica e na Sicília entre 1060 e 1080. A batalha de Cerami,
em que o conde Roger da Sicília desbarata os muçulmanos, é o protótipo dos combates de 1
098-1099: vitória esmagadora com intervenção celeste. É uma ruptura, certamente
preparada pelas expedições carolíngias contra os pagãos, com a tradição que identificava a v
ida militar com o mal e a impureza (militia malitia).
A considerável força militar da expedição de 1096 compreende dez mil cavaleiros, enquadr
ados por membros das principais famílias da aristocracia europeia, todos
eles os mais velhos, como Godofredo de Bulhões e Raimundo de Saint-Gilles, conde d
e Toulouse. É uma verdadeira comuna, como a das cidades de burgos da Europa, sem
autoridade real. O acolhimento do Império Bizantino, nada hostil, leva numa colabo
ração eficaz e duradoura, que será contrariada pelas ambições de alguns chefes
da cruzada, mas que só será quebrada no início do século XIII. O cerco de Antioquia, de
Outubro de 1097 a Junho de 1098, manifesta a srcinalidade do movimento,
que foi analisada por Paul Alphandéry. Numa atmosfera saturada de referências bíblicas
, em particular aos "pobres de Israel", e de temas de libertação messiânica,
multiplicam-se os sinais do Céu: visões do além e promessas de milagres, aparições de anjo
s e de santos a combater. Embora haja facções do exército que mantêm dúvidas
sobre a sua srcem, as visões de Pierre Barthelemy e a descoberta da Santa Lança dão u
m formidável impulso aos peregrinos. O exército turco é desbaratado e o Império
Seldjúcida desmorona. A ajuda dos cristãos da Síria permite uma chegada rápida aos muros
de Jerusalém.
Um cerco de um mês, marcado por novas aparições, permite a tomada de assalto da Cidade
Santa no dia 15 de Julho de 1099 e uma purificação dos Lugares Santos. Mas,
quase logo, na atmosfera festiva e inquieta que reúne os Latinos, os Sírios e os Gre
gos de Jerusalém, tudo muda: a fundação de um Estado para guardar o Sepulcro
é confiada a Godofredo de Bulhões, que se recusa a cingir a coroa temporal na terra
onde Cristo
158

foi coroado de espinhos; o seu irmão e sucessor, Balduíno de Bolonha, aceita o título
real para evitar a constituição de outro "património de São Pedro", como na
Itália. Foi enterrado no Santo Sepulcro com o epitáfio que lhe chama precisamente "o
outro Macabeu". Este reino, cumprindo a profecia de Isaías, será um reino de
justiça e de paz. Cristãos orientais e muçulmanos conservam os seus quadros religiosos
e jurídicos; não se nota nem colonização económica nem política de povoamento.
A atribuição de senhorias aos peregrinos que optassem por ficar - inicialmente um pe
queno número - só prolongou o enquadramento fiscal dos fatimitas. Os cristãos
gregos (dependentes do patriarcado de Constantinopla) e os jacobitas (dependente
s do patriarcado de Antioquia) conservam a sua hierarquia episcopal e os seus mo
steiros,
numa atmosfera de união implícita com os latinos. E é pelo casamento com os cristãos ori
entais que se opera uma mestiçagem que chocou os latinos do Ocidente, que
chamam "potros" aos filhos destas uniões, usando uma metáfora animal de desprezo.
Encontra-se o mesmo clima de unidade nos três outros principados fundados pelos cr
uzados de 1095-1099: o condado de Edessa, implantado pelos Bolonhas em país arménio,
junto do Eufrates; o principado de Antioquia, que coube ao normando de Itália, Boe
mundo; o condado de Trípoli, estabelecido por Raimundo de Saint-Gilles e consolida
do
por seu filho. Segundo o testemunho do patriarca jacobita Mateus, o Sírio, durará até
ao fim do século XII, para, depois ser enfraquecido pela ruptura de 1204 entre
Roma e Constantinopla, conseqüência da tomada da capital grega por uma cruzada de ca
mponeses desviada contra ela por Veneza. As conseqüências religiosas deste clima
de unidade são notáveis: pacificação geral, ausência de disputas teológicas, reunião à Igreja
mana dos maronitas (cristãos do Líbano constituídos em Igreja patriarcal
desde o século VIII), imigração dos nestorianos (discípulos de Nestório que, no século V, não
reconheceu a dupla natureza de Cristo) e de jacobitas para os principados
latinos. Mas também se notam, como afirma Jacques de Vitry, em 1215, as primícias de
um afrouxamento destes laços quando Jerusalém voltou a passar para o domínio
dos muçulmanos. Esta paz estendeu-se aos muçulmanos e aos judeus: embora os primeiro
s não fossem autorizados a viver em Jerusalém nem a fazer a peregrinação à mesquita
de Ornar, que então se tornara a colegiada do Templo do Senhor, não era proibido aos
segundos ir lá orar, como testemunha o relato da peregrinação de maimónidas.
As relações com os Estados muçulmanos vizinhos colocam-se sob o sinal de conflitos polít
icos. A propaganda dos meios pietistas a favor do djihâd não revolta o mundo
muçulmano, e os príncipes, chefes de guerra turcos, servem-se disso apenas para se l
egitimarem. Além disso, algumas alianças transitórias unem as dinastias muçulmanas
com os príncipes dos Estados latinos. Entretanto, por volta de 1170, com o surgime
nto de Saladino, favorecido pelo aventureirismo de Amaury de Jerusalém, que tenta
a conquista do Egipto, desenha-se uma força considerável. Mas, uma
159

vez mais, é necessária a imprudência do jovem rei Gui de Lusignan, que procura legitim
ar o seu poder frágil por uma vitória, para conduzir à derrota de Hattin (1187)
e à ruína do reino meridional.
Não se pode considerar a política dos latinos unicamente na perspectiva das conquist
as territoriais. Querem defender um património sagrado, sem hostilidade preconcebi
da
nem menosprezo. Sublinhemos que os sentimentos que nutrem pelos adversários são part
ilhados por eles, segundo Usâma ibn Munqidh, que não esconde a sua admiração
pelos cavaleiros francos. Os seus valores militares comuns e uma forma ecuménica q
ue ilustra a convivência em peregrinações e santuários partilhados explicam a oferta
que, em várias ocasiões, os herdeiros de Saladino fizeram de restituir Jerusalém aos l
atinos, terminando, em 1229, na partilha da Cidade Santa entre o imperador
Frederico II, rei de Jerusalém por casamento, e o ayyoubide Malik Kâmil. Jerusalém pas
sa para a soberania de um príncipe cristão, os muçulmanos conservam o monte
do Templo e podem livremente ali organizar a sua peregrinação. Este acordo durou sem
demasiados choques até 1244.
A partir de 1099, as cruzadas continuam, mas mudam de sentido, pois já não é a grande
expedição de voluntários de 1095, mas um fluxo reduzido e contínuo de peregrinos
que vão servir a defesa dos Lugares Santos e, nos momentos difíceis, mobilizações limita
das que reúnem as forças dos Estados guiadas pelos reis da Europa latina,
para levar ajuda aos principados ameaçados: em 1147, depois da tomada de Edessa; e
m 1189, depois da queda de Jerusalém. Durante o século XIII, há projectos mais
ambiciosos que fracassaram: a conquista do Egipto em 1218-1221 e, de novo, em 12
50, sob o comando directo de um legado pontifício; a expedição de São Luís a Tunes
em 1270. Mas deixam transparecer ambições políticas. Depois do encontro de Francisco d
e Assis com Mâlik Kâmil diante de Damieta em 1219, outra preocupação - a da
missão e da conversão - domina o mundo latino. Ela anima, antes e depois da queda de
Acre (1291), uma relação directa com o mundo muçulmano e com as cristandades
orientais.
Henri Bresc
160

As heresias (século XII)


Uma heresia, a dos "bons homens" (denominação confirmada em 1165) nasceu no século XII
no Languedoque, França. Por volta de 1200, outra, a dos valdenses, parece
já largamente implantada na mesma região. Estes movimentos têm um lugar importante na
história da Igreja, porque suscitaram uma reacção vigorosa que tomou duas formas
sucessivas: uma cruzada que se desenrolou entre 1209 e 1229; depois, a instauração d
e uma instituição nova, a Inquisição, em 1231.
A Igreja define a heresia. Esta simples verificação sugere uma estreita relação entre el
a e o facto de a heresia consistir, antes de tudo, na rejeição da norma eclesiástica.
Não há dúvida de que os clérigos da Idade Média sentiram e apresentaram esta rejeição como a
rrupção em terras ocidentais de uma lepra ou de um cancro saídos do
Oriente. Mas seria errado tomar as suas palavras ao pé da letra porque dão à heresia u
ma representação que mascara a realidade. Não se trata de um corpo estranho
à cristandade, vindo de longe para subverter a verdadeira fé, mas de uma dissidência,
de um desvio. A contestação dos dogmas e das instituições da Igreja romana
nasce no coração do Ocidente cristão, é um fenómeno interno.
Assim, a dissidência aparece como prolongamento e conseqüência da reforma gregoriana.
Baseado na vida apostólica, o movimento gregoriano provoca a proliferação de
correntes "evangélicas" que vêem nela a necessidade de uma superação contínua que não se fix
e no institucional; além disso, este movimento exalta o sacerdócio e
os religiosos regulares, constituindo-os mediadores obrigatórios entre o mundo ter
restre e o além, entre os fiéis, de um lado, e os mortos, os santos e Deus, do
outro. É evidente que os dois aspectos são contraditórios, tanto mais que a clericaliz
ação acentuada da vida religiosa se efectua ao mesmo tempo que a eclosão, principalmen
te
no mundo urbano, de um laicado portador de aspirações espirituais novas. De facto, a
s cidades compõem um universo particular, aberto à acção, favorável à afirmação
do indivíduo, caracterizado pelos
161

contratos igualitários e pelas solidariedades horizontais em que os negócios geram u


ma reflexão fundada no raciocínio e favorecem a prática alargada da escrita e
da leitura. Desenvolvem-se elites que quereriam participar activamente no culto
divino e ter acesso directo à Palavra de Deus; desejam uma religião que seja mais
permuta e convívio do que autoridade, e que dê espaço tanto à meditação pessoal quanto aos r
itos. Em suma, estes leigos, em vias de emancipação política, esperam
paralelamente uma libertação espiritual. Além disso, como a Igreja ainda não tinha levad
o em conta o surgimento das novas realidades económicas, estas elites urbanas
sofrem o opróbrio lançado não apenas sobre a actividade mercantil, mas também sobre o co
mércio do dinheiro e quem o pratica. Finalmente, as novas elites são, no
Languedoque, excluídas das dignidades eclesiásticas e monásticas, que continuam reserv
adas aos filhos da aristocracia: deste modo, encontram-se privadas do magistério
espiritual e do reconhecimento social. Baseadas na sua afirmação política, elas reivin
dicam igualmente o fim da sua subordinação religiosa.
Esse estado de coisas começa por alimentar, na primeira metade do século XII, um vig
oroso anticlericalismo. Depois, o conflito radicaliza-se: os movimentos evangélico
s
urbanos, definidos como os de "pseudo-apóstolos", são denunciados, ao contrário dos mo
vimentos anteriores rapidamente integrados na instituição eclesiástica. Dá-se,
então, uma fractura social: a pretensão dos citadinos de serem portadores e transmis
sores da Palavra tende a arruinar a preponderância da aristocracia na Igreja
e na gestão do sagrado. De resto, o respeito absoluto pelo Evangelho aniquila a so
ciedade feudal nos seus fundamentos, porque o texto sagrado proíbe que se julgue
e se mate, e proscreve o juramento, nó das relações sociais. Os dissidentes também opõem o
Evangelho às instituições eclesiásticas. Pretextando um evangelismo literal,
recusam sacramentos e hierarquia, afirmando que é o modo de vida apostólico que fund
a e fundamenta o direito de pregar a Palavra, e não a ordem (o facto de se ser
ordenado clérigo).
Com o tempo, o confronto entre os dissidentes e os clérigos produz múltiplos efeitos
. Primeiro, uma divisão da contestação em dois ramos. Discípulos de Valdo, um
mercador lionês, os valdenses admitem a Encarnação e a Redenção, mas rejeitam a Igreja e o
s sacramentos, porque trata-se de "obedecer a Deus mais que aos homens"
(Act 5,29). Professam que cada um deles, em razão da pureza dos seus costumes, pod
e pregar, confessar e, até, consagrar o pão e o vinho. Não reconhecem entre eles
nenhuma hierarquia, porque o único mestre é Cristo. Adoptam a pobreza e a mendicidad
e como condição prática do seu apostolado itinerante: nem bens nem mulher nem
trabalho, à maneira dos apóstolos.
Por seu lado, o anticlericalismo dos "bons homens" evolui progressivamente para
o dualismo, amplificando certas latências do cristianismo da época "romana". Rejeita
m
o mundo visível e também a criação de Satanás, levando ao extremo o desprezo pelo mundo e
o ódio à carne e às
162

vaidades terrestres que se exprimiram em muito autores eclesiásticos nos séculos XI


e XII. Retomam, radicalizando-a, a certeza de que o universo é o campo de um
combate entre as forças do mal, conduzidas pelo diabo, o Inimigo, omnipresente, e
as do bem, um antagonismo figurado na decoração pintada e esculpida das igrejas
mais humildes. Mas, entre os bons homens, o deslizar de uma concepção unitária para a
concepção dualista do mundo parece derivar, antes de mais, da experiência vivida
e também do desenvolvimento da lógica e da dialéctica nas escolas. As lutas e as conde
nações geram nelas o sentimento de uma ruptura total entre o Evangelho e o
século: este dualismo vivido acaba por suscitar um dualismo ontológico que também nasc
e de uma reflexão sobre a incompatibilidade entre a omnipotência de Deus e
o livre curso do mal no mundo. Produto ou, melhor, contraproduto, da teologia na
scente, a "cisão do universal" (Jean Jolivet) permite pôr em causa a unidade da Igre
ja
e da sociedade. O dualismo implica uma doutrina particular da criação, assim como re
lações entre Deus e o mundo. Os bons homens do Languedoque rejeitam a Encarnação
e a Redenção pela cruz. Mas a sua dissidência permanece de inspiração cristã. Eles apoiam-se
exclusivamente na Bíblia, principalmente no Novo Testamento, que lêem
e comentam em língua vernácula. O "Pai-Nosso" constitui a sua única oração. A regra de vid
a que eles observam conforma-se com os preceitos evangélicos. A sua liturgia,
muito simples, só comporta elementos recebidos da tradição da Igreja.
Outras dissidências religiosas vão surgindo em diversas regiões do Ocidente latino, a
partir de 1120, nomeadamente nos países da bacia do rio Mosa, na Renânia e
na Itália setentrional e central. Antes mesmo do fim do século XII, os clérigos estend
em sobre estes movimentos o manto da unidade, reunindo-os sob uma denominação
genérica: herética pravitas, a "perversão herética". Deste modo, dão corpo a um fantasma n
ascido do medo causado pela contestação. Nos factos, não existe nenhuma
ligação orgânica entre estas dissidências com as estruturas frouxas, embora as suas aspi
rações concordem. Portanto, é injustificado pensar-se que eles são uma Igreja
e uma doutrina. Neste aspecto, revela-se totalmente ilegítimo o emprego dos termos
"cátaros" e "catarismo", indiferentemente aplicados ao conjunto das dissidências
religiosas que desabrocharam na cristandade ocidental entre 1000 e 1300. O Langu
edoque medieval ignora estes vocábulos e só os conhece por "bons homens" e os seus
"crentes".
Depois de 1200, os valdenses do Sul da França são mal conhecidos, por falta de arqui
vos suficientes. Contudo, verifica-se a sua persistência até ao fim do primeiro
terço do século XIV. Recrutam-se principalmente na classe média das cidades, a dos art
esãos. O Languedoque serve igualmente de refugio a valdenses vindos da Sabóia
e da Borgonha. Os fiéis dos bons homens pertencem às elites urbanas do saber e da ri
queza, às quais se junta uma parte da pequena aristocracia do Sul da França:
grandemente excluída do prestígio, do poder e dos rendimentos dos benefícios eclesiástic
os,
163

detentoras das igrejas fundadas pelos seus membros e, por isso, dos dízimos que lh
es eram muitíssimo contestados, inclina-se naturalmente para o anticlericalismo,
depois para um clero desligado dos bens deste mundo e correspondendo a exigências
espirituais que também são suas. O facto de a dissidência dos bons homens ser própria
das elites ajuda-nos a compreender que rejeitem o sensível e se afastem da religião
popular, muito ligada ao concreto: rejeição dos milagres, das imagens e da pompa
dos rituais. O seu recrutamento sociológico torna-a muito minoritária, tanto nas cid
ades como nos campos: atinge um máximo de cinco por cento da população e o valdismo
ainda menos. Os clérigos afirmam que o Sul da França está totalmente "gangrenado" pela
heresia; mas esta asserção deriva da polémica combatente e de modo nenhum
descreve a realidade.
Aliás, o radicalismo evangélico contém em si mesmo o aniquilamento dos poderes tempora
is e espirituais, associados por laços apertados. Pela sua função espiritual
e escatológica, numa época em que a religião, a natureza e a sociedade são co-extensivas
, a Igreja define o quadro das relações sociais e das condutas; é uma instância
reguladora muito importante em que se apoiam os poderes do século. A defesa da uni
dade da fé, espiritual em primeiro lugar, interessa não só à instituição eclesiástica,
mas, com ela, também a todo o sistema social. Por isso, bons homens e valdenses su
scitam vivas reacções, cuja violência é correlativa do carácter revolucionário
das suas propostas.
Jean-Louis Biget
164

A Inquisição (século XIII)

Uma série de concílios regionais, coroados pelo de Latrão III (1179) e, depois, pela b
ula Ad abolendam (1184), começam a organizar a perseguição aos hereges. Deste
modo, com o apoio dos príncipes temporais cujo poder judiciário segue a mesma evolução,
passa-se da justiça acusatória à justiça inquisitória no domínio da fé. Em
1199, o papa Inocêncio III, pela constituição Vergentis in senium, assemelha a heresia
a um crime de lesa-majestade divina, cominando com as mesmas penas que os
atentados à majestade imperial romana. Neste momento, pela conjugação de vários factores
, na cristandade prevalece a opinião de que o Languedoque está povoado de
hereges. De facto, desde 1170, os poderosos vizinhos condes de Toulouse, o duque
da Aquitânia (rei de Inglaterra) e o conde de Barcelona (rei de Aragão) instrumenta
lizam
a heresia para fazer dela um motivo de ingerência nos territórios do principado de T
oulouse. Além disso, a fraqueza política do Sul da França faz com que esta se
torne um campo privilegiado da acção do soberano pontífice e dos seus legados, na maio
r parte cistercienses. A luta contra a heresia é a mola da sua política, servindo-se
dela para renovar o episcopado, substituindo bispos ligados aos poderes locais p
or prelados fiéis a Roma. Dá-lhe o pretexto para impor ao conde de Toulouse uma subo
rdinação
de facto ao papa. Estas ofensivas conjugadas provocam uma representação hiperbólica da
dissidência languedociana. A situação fica tensa quando fracassa a quarta
cruzada (1204) que, de certa maneira, humilha o poder pontifício. Por outro lado,
há pregadores populares que afirmam que este fracasso está relacionado com a impurez
a
do Ocidente, de que é responsável a heresia. Neste contexto, o assassínio do legado po
ntifício, Pierre de Castelnau, nas margens do Ródano, numa manhã de Janeiro
de 1208, desencadeia a cruzada contra os inimigos internos (1209).
Mas a empresa revela-se totalmente contraproducente em relação à dissidência, tanto mais
que a forma de violência, sofrida colectivamente,
165

acaba por alimentar a heresia. Aliás, é precisamente quando os cruzados se retiram,


depois de 1218, que a audiência dos bons homens tem o seu melhor período. Mas
tudo muda com a intervenção do rei no Sul da França. O tratado de Paris, concluído em 12
29, implica a caça aos hereges. É seguido de um concílio que define os princípios
da Inquisição que, então, continua confiada aos bispos. Após diversas hesitações relativamen
te à Itália, Gregório IX, em Outubro de 1231, instaura, para a Alemanha
do Sul, juizes delegados por ele, dando srcem à Inquisição papal. Tal como a bula Ver
gentis in senium, que se referia aos habitantes de Viterbo revoltados contra
o papa, a Inquisição procede em primeiro lugar de problemas italianos, em particular
do conflito entre Frederico II e a Santa Sé. Contudo, estendida à Alemanha e,
depois, na Primavera de 1233, a toda a cristandade latina, ela manifesta a unive
rsalidade do poder pontifício e permite que o papa intervenha em todos os locais,
justificando-se com a defesa da fé; assim, além de instrumento do magistério pontifício,
serve também para a sua afirmação.
A Inquisição é uma jurisdição de excepção, derrogatória de todos os direitos. Substitui o pro
so acusatório, oral e público, por outro, a que deve o seu nome,
de inquérito de gabinete, totalmente secreto, em que os visados não têm direito a nenh
uma assistência ou defesa. Usa técnicas "modernas", oriundas da racionalidade
universitária: elaboração de manuais práticos e precisos, constituição de uma memória estrutu
ada, consignada em registos, que a indústria nascente do papel permite
multiplicar. Os inquisidores esforçam-se por obter a confissão dos acusados: do pont
o de vista judiciário, esta considera-se, então, uma prova perfeita; do ponto
de vista espiritual, se for sincera, abre caminho à penitência, a que os hereges arr
ependidos são admitidos; graduada consoante a gravidade das faltas, toma a forma
da prisão, d'"o muro", ou, então, andar com a cruz - infamante - e a obrigação de fazer
peregrinações aos principais santuários da cristandade. A participação na
viagem ultramarina, isto é, na cruzada do Oriente, também constitui uma pena até perto
de 1250. Os hereges impenitentes são entregues aos representantes dos poderes
temporais, que os conduzem à fogueira. Estes autos-de-fé, que chocam no século XXI, no
século XIII não tinham o impacto que se poderia imaginar. Para a maioria da
população, trata-se de cerimónias penitenciais e purificadoras que reduzem uma fractur
a e marcam um regresso à unidade e à harmonia. Para os cristãos que permanecem
na ortodoxia, o castigo dos hereges - que ofenderam a Deus - é promessa de eternid
ade, motivo de alegria e não de luto. A solidariedade espiritual e social não se
estabelece em torno dos hereges, mas contra eles. Na verdade, o que está em causa,
tanto para os inquisidores como para a enorme maioria da população, é a salvação
de todos. No século XIII, não se considera que a acção inquisitorial viole as consciências
; muito pelo contrário, a heresia é que é sentida como uma violação da
fé. A Inquisição não suscita mais que uma hostilidade minoritária, o que explica que possa
funcionar, porque, por
166

si mesma, não dispõe de nenhuma força material. Com o apoio das multidões, ela também bene
ficia da assistência decisiva do poder capetíngio. Com efeito, a ortodoxia
sincera dos soberanos opõe-se vigorosamente a todas as formas de dissidência; além dis
so, independentemente da sua fé pessoal, intervém a defesa da monarquia, porque
a "explosão universal" põe em causa a unicidade do poder, desqualificada ainda mais
como emancipação de Satanás; por fim, numa época em que a ligação espiritual
é a mais forte garantia da coesão das populações, está certo que a unidade política assente
na unidade de crença.
Perante a dissidência, a Inquisição mostra-se, graças a estes apoios, bastante mais efic
az do que o exército dos cruzados. Quebra e destrói solidariedades territoriais,
familiares e sociais, chegando até a aniquilar o clero dos bons homens. Por isso, é
certo que ela desempenha um papel no enfraquecimento da dissidência. No entanto,
a desagregação da base social da heresia também parece determinante. Durante o século XI
II, a pequena cavalaria acaba por ser esmagada pela evolução económica e
pela inflação, que reduzem os seus rendimentos. A única tábua de salvação reside no acesso a
os ofícios da monarquia ou aos benefícios da igreja, o que exclui a opção
da dissidência. As elites burguesas ligam-se à monarquia, que lhes oferece possibili
dades de participação no poder e de promoção porque precisa de técnicos do direito,
da escrita e da finança. As causas sociais da derrocada da dissidência dos bons home
ns são realçadas pelo caso dos valdenses, que desaparecem do Languedoque depois
de 1330 mas se mantêm nos Alpes do Delfinado e na Provença, desertando das cidades p
ara os campos. A religião dos bons homens não tem a capacidade de se popularizar
para sobreviver: no final do primeiro terço do século XIV já está extinta.
Nesta extinção, os factores religiosos desempenham um papel essencial. Com efeito, a
s ordens mendicantes, frades menores e pregadores, efectuam a reconquista espiri
tual
das elites. Ao contrário das ordens religiosas tradicionais, cujos monges do coro
pertencem na sua esmagadora maioria, se não na sua totalidade, à aristocracia,
os pregadores e os menores reúnem no seu seio os filhos das elites de nascimento e
das elites burguesas. Esta integração, também própria dos bons homens, constitui
uma novidade revolucionária, contribuindo para uma melhor compreensão dos problemas.
Uma análise mais apurada dos dados da economia justifica a existência de certas
formas de benefícios e de créditos. Abrem-se novos caminhos para a penitência e a salv
ação que situam as obrigações individuais no plano da consciência, como testemunha
o desenvolvimento da confissão auricular. A insistência na pregação sobre o Purgatório pro
mete o resgate aos pecadores eventuais e abre a todos a esperança da eleição
celeste. Os mendicantes também propõem às elites uma pregação que convém à sua cultura e ao s
u estado. Para que seja mais bem entendida, no Sul, concorre com a
elaboração e a expansão de uma arquitectura militante, cujo volume
167
amplo e unificado promove as igrejas, tornando-as casas da palavra nova, e desvi
am contra a heresia alguns dos seus trunfos mais fortes: a austeridade e um cert
o
distanciamento do sensível. O despojamento dos edifícios do gótico da região de Toulouse
incita a elevar-se para Deus, mediante o retorno a si próprio e à meditação:
constitui a expressão monumental de um processo de interiorização e de afirmação do person
alismo religioso; participa na resposta a necessidades espirituais parcialmente
responsáveis pelo sucesso da dissidência nas elites sociais.
Esta pastoral tem êxito. Por toda a parte no Languedoque, os filhos das famílias herét
icas contribuem para povoar os conventos dos mendicantes desde o início do
século XIV. Além disso, a multiplicação de capelas abertas nas paredes exteriores das ig
rejas meridionais, iniciada no convento dos Jacobinos de Toulouse, tem por
função primordial acolher a sepultura das grandes linhagens ou os altares das confra
rias. A sua concentração ao redor dos coros e das naves exprime actos de fé,
traduz o regresso à Igreja de oligarquias há muito dedicadas aos bons homens e marca
o sucesso da renovação pastoral que se manifesta igualmente no progresso do
enquadramento paroquial. Assim, muito mais do que a actividade dos inquisidores,
foram os dados políticos, sociológicos e sobretudo religiosos que conduziram à extinção
da religião dos bons homens no Languedoque.
Jean-Louis Biget
168

O fim dos tempos

Na perspectiva medieval cristã, a visão da história é indissociável de uma interrogação sobre


o fim dos tempos e o Último Juízo que impregna toda a Bíblia: a escatologia
que mergulha as suas raízes no Antigo Testamento. Os profetas Amós, Miqueias e Oseia
s descrevem o futuro dia de trevas, de luto e de castigo: furacões e tremores
de terra precederão o Juízo Final; depois, Deus manifestar-se-á no esplendor da uma te
ofania e a conversão da humanidade inaugurará um logo período de felicidade.
Ezequiel, Joel, Isaías e Daniel precisam estas noções nos textos designados sob o nome
de apocalipses ("revelações"), em que descrevem a sua visão, realçando a vinda
do Messias, rei sobre-humano que governará este mundo renovado. Redigido pouco ant
es do nascimento de Cristo, o Livro dos segredos de Henoc precisa que, depois de
seis mil anos de existência, o mundo será destruído; então será instaurado um reino univer
sal de mil anos, que precederá o dia de Iavé, o grande Julgamento que inaugurará
a eternidade. No Novo Testamento, o Evangelho de Mateus, as duas Epístolas de Paul
o aos Tessalonicenses e, sobretudo, o Apocalipse de João (dos últimos anos do século
I da nossa era) falam da Parúsia, da segunda vinda de Cristo no fim dos tempos, e
dos seus sinais precursores: catástrofes cósmicas, perseguições dos cristãos, apostasia
geral e abandono da fé, o reinado do Anticristo e sua derrota final, a ressurreição do
s mortos e o Juízo Final.
A Idade Média alimentou-se destas concepções: a sua visão da história foi dominada pela idéi
a de que ela constitui não só uma etapa num percurso cíclico - como no
mito antigo do eterno retorno -, mas também que, um dia, terá um fim definitivo; enq
uanto esperam, os homens devem trabalhar para construir cá em baixo o reino de
Deus, cuja realização plena se situará no além.
Um dos maiores problemas postos pelo texto do Apocalipse - cujo carácter inspirado
só tardiamente foi reconhecido e que foi muito pouco comentado no mundo bizantino
- é o da menção (Ap 20,1-5) a um período
169

intermédio, um "reino de mil anos", situado entre o tempo da história e a eternidade


do além. Seria preciso tomar a expressão à letra ou atribuir-lhe um valor simbólico?
Santo Agostinho prefere esta segunda interpretação, tendo apresentando no início do sécu
lo V este milénio como uma figura da história da Igreja, chamada a durar
até ao fim dos tempos. Mas outros comentadores, minoritários, continuaram a consider
ar que esta passagem anunciava um período de regeneração que preparava a vinda
do Céu à Terra. Esta interpretação é designada como "milenarismo": nem todos os que o defe
nderam acreditaram no advento de um reino de mil anos; além disso, realçaram
menos o fim do mundo do que a instauração na Terra de uma era de felicidade e de paz
, e o "grande dia" que devia marcar o seu início. Esta espera e expectativa manife
stou-se
numa atenção vigilante e nas profecias que caracterizaram as suas etapas. Contudo, o
milenarismo é tão-só uma das formas possíveis da escatologia cristã, que também
inspirou certas correntes reformadoras que se esforçaram por criar, no quadro dos
mosteiros, uma sociedade perfeita, como antecipação da Jerusalém celeste (por exemplo,
Cluny).
Na perspectiva tradicional, até ao início do século XIII, desconhecia-se a idéia de prog
resso. Pelo contrário, os cronistas estão convencidos da existência de um
declínio progressivo do fervor religioso, à medida que os cristãos se afastam da perfe
ição dos primeiros tempos. Por conseguinte, a aspiração a uma reforma só podia
apresentar alguma legitimidade, caso se apresentasse como um regresso às srcens: à
Igreja dos apóstolos ou ao mundo anterior ao pecado de Adão e Eva. A aspiração
a uma sociedade mais justa e mais fraterna traduziu-se mais geralmente no desejo
de regressar à Idade de Ouro, mito igualitário e paradisíaco que constituiu o pano
de fundo ideológico de numerosos movimentos políticos e sociais nos últimos séculos da I
dade Média. Entretanto, nesta tensão permanente entre o passado e o futuro,
a referência ao futuro mantém-se fundamental. A escatologia cristã tem por finalidade
a salvação prometida por Deus, no final de cada história: da individual de
cada ser humano e da colectiva da Igreja, nova Israel, que, nesta Terra, caminha
para o Reino eterno. Nesta perspectiva, o lugar da salvação da humanidade só poderia
ser Jerusalém, onde deviam acontecer as promessas divinas não só para Israel, mas também
para o conjunto das nações (cf. Is 42,6; 49,6). A data em que se realizariam
estes acontecimentos é objecto de numerosas especulações, em geral baseadas no Livro d
e Daniel.
Para os exegetas medievais, seria necessário determinar se os combates e os triunf
os descritos no Apocalipse concernem a um tempo já passado - ao tempo das perseguições
sofridas pela Igreja primitiva - ou se se aplicam ao presente e ao futuro. A pri
meira interpretação, baseada em Santo Agostinho, prevaleceu durante a Alta Idade
Média, nos comentários do Apocalipse de Beda, o Venerável, e de Beatus de Liébana, nos séc
ulos VII e VIII, assim como no de Haimon d'Auxerre, por volta de 840. Mas,
a partir do século X, observa-se uma renovação de interesse por uma leitura
170

histórica do Apocalipse, atestada, por exemplo, pelo tratado do abade Adson de Mon
tier-en-Der, Sobre o nascimento e os progressos doAnticristo (ca. 950): o fim do
mundo aproxima-se e será precedido pelo regressos dos dois grandes profetas subtraíd
os à morte, Elias e Henoc, que prepararão os fiéis para o enfrentamento com o
Anticristo. Este reinará durante três anos e meio: reconstruirá o Templo de Jerusalém e
far-se-á adorar como se fosse Deus, até que será morto pessoalmente por Cristo,
descido do Céu para o Juízo Final. Nesta obra também aparece o tema do imperador dos últ
imos tempos que, com a aproximação do termo da história, se dirigirá a Jerusalém
para depor as suas armas e a sua coroa no monte das Oliveiras. É neste contexto qu
e é necessário situar o sucesso popular da primeira cruzada (1095-1099). Mas o
papado empenhou-se igualmente a mobilizar estas energias ao serviço da reforma "gr
egoriana", ao apresentá-la como uma urgência absoluta e um episódio decisivo do
combate entre as forças do bem e do mal (adeptos e praticantes da simonia, do casa
mento dos padres e da investidura laica). Nisto, Roma recebeu o apoio de uma mon
ja
alemã visionária e profetisa, Hildegarda de Bingen (+ 1179), que não hesitou em advert
ir o imperador Frederico Barba-Ruiva e de ameaçar o clero com os piores castigos,
se não se reconciliasse com os reformadores. Mas, neste aspecto, a personagem então
mais importante é, sem dúvida alguma, Joaquim de Fiore (+ 1202). Este monge calabrês,
que deixou a ordem cisterciense para se dedicar a uma vida mais perfeita, foi o
primeiro autor medieval que fez do livro do Apocalipse a chave de uma leitura te
ológica
da Igreja e da humanidade. Dividiu a história em três idades, correspondendo cada um
a a uma pessoa da Trindade. A primeira, da criação à Encarnação, é a idade do
Pai: o seu livro é o Antigo Testamento e os homens, todos casados, viviam nele de
forma carnal. A idade do Filho ia do nascimento de Cristo até ao início do século
XIII, em função dos números dados pelo Livro de Daniel; é uma época simultaneamente carnal
e espiritual, colocada sob o sinal do Novo Testamento, em que os simples
fiéis estavam enquadrados e dirigidos pelos clérigos seculares. Depois, devia começar
a terceira idade, marcada pela manifestação plena do Espírito, em que os crentes,
sob a influência de uma elite de "homens espirituais", chegariam a uma compreensão p
lena "em espírito e em verdade" da Palavra de Deus. No espírito de Joaquim, estes
"homens espirituais" eram, sem dúvida, os monges. Mas a sua mensagem foi retomada,
nos anos 1240-1250, por alguns frades menores que viram em São Francisco, tornado
"segundo Cristo" (alter Christus) depois da sua estigmatização, o Messias da terceir
a idade, cujos filhos eram chamados a renovar a Igreja e o mundo. Com Joaquim
de Fiore e as correntes joaquimitas, cuja influência se estende a toda a Europa até
ao século XVI, a história reveste-se, pela primeira vez, de um significado positivo,
concebido como um tempo de crescimento e de progresso em direcção à idade do Espírito.
171
A partir do século XIV, a reflexão sobre o fim dos tempos centra-se no antagonismo e
ntre as forças do mal - a Igreja carnal - e as do bem, associadas à Igreja espiritua
l;
na segunda metade do século, a referência ao Apocalipse torna-se mais freqüente e o re
alce incide, tanto nos sermões de certos pregadores como na iconografia, no
carácter violento do "tempo do fim": comentadores e artistas dão cada vez mais espaço
e importância à personagem do Anticristo; mas também difundem a imagem da Jerusalém
celeste, morada eterna prometida aos eleitos, apresentada sob a forma de uma cid
ade ideal, e já não do jardim do Éden. Paralelamente, à medida que diminuem as esperanças
de uma reforma da Igreja, a escatologia vai-se politizando: multiplicam-se os ho
mens e as mulheres, tanto clérigos como leigos, que afirmavam ter recebido de Deus
a missão de ler os acontecimentos e de identificar entre os soberanos os sequazes
do Anticristo ou, ao contrário, os prováveis reis messiânicos. Aquando do Grande
Cisma (1378-1417) e durante as guerras franco-inglesas, cada um dos campos rodeo
u-se de profetas ou de profetisas. Alguns chegaram mesmo a acreditar, como Brígida
da Suécia (+ 1373) e Catarina de Sena (+ 1380), que o papado deveria reformar-se e
, com ele, a Igreja; outros houve que, como Joana d'Arc e muitos outros, centrar
am
as suas esperanças na acção do rei da França, do imperador ou de um soberano da Península
Ibérica: os melhores cristãos andavam à procura de um chefe espiritual
ou temporal que, pondo termo às divisões, restabelecesse a paz e organizasse a última
"passagem" ultramarina [a última cruzada] que permitisse libertar a Terra Santa
e converter os muçulmanos e os judeus, criando assim as condições favoráveis ao regresso
glorioso de Cristo a Jerusalém.
André Vauchez
172

Latrão IV (1215) O ímpeto pastoral

Embora não tenha ficado na história do cristianismo ocidental como um concílio tão célebre
como o de Trento, o IV Concílio de Latrão marca uma etapa decisiva, nomeadamente
do ponto de vista da prática religiosa, cujos elementos definiu segundo modalidade
s que se revelarão duradouras.
Convocado em 1215 por Inocêncio III (+ 1216), esta assembleia é como que o cadinho d
a reforma gregoriana. Parte dos três concílios anteriores do mesmo nome, que
se reuniram no decurso do século XII por iniciativa papal. Esta renovação da actividad
e conciliar num local propositadamente escolhido, o palácio de Latrão, próximo
da catedral de Roma, a igreja de São João de Latrão, e que é, então, a residência papal (o V
aticano só começou a sê-lo em finais do século XIV), é o sinal do poder
recentemente adquirido pelo bispo de Roma. A reunião foi preparada com cuidado por
convites largamente dirigidos, desde o ano precedente, aos dignitários eclesiástico
s
latinos e orientais, e a alguns poderosos leigos. O programa dos debates foi fix
ado pelo papa, eminente jurista formado nas escolas de Bolonha. Pela dimensão que
lhe é dada (mais de mil e duzentos participantes) e pelo alcance das decisões que to
mou, o concílio emparelha com os grandes concílios ecuménicos dos primeiros séculos
cristãos.
Situada na aurora do século XIII, a reunião desta assembleia intervém no contexto pert
urbado: enraízamento dos movimentos de contestação sobretudo no Norte da Itália
e no Languedoque (valdenses e homens bons, chamados cátaros); aspirações claras da mai
or parte dos leigos cultos, em meio urbano, a um enquadramento religioso mais
apoiado, que traduz o florescimento de movimentos de devoção, como os humilhados (Um
iliati) ou os penitentes, na Itália; fracasso da quarta cruzada, que regressou
do Oriente por Constantinopla, cujo saque (1204) sela a ruptura entre os mundos
cristãos latino e grego. Com lucidez e energia, o papado quis retomar, com este Co
ncílio,
as rédeas da situação e afirmar os quadros da
173

vida religiosa no espaço sob a sua obediência, que então cobria não só as regiões antigament
e cristianizadas, mas também os países de "cristandades novas".
A propósito, é sugestivo verificar que os cânones do IV Concílio de Latrão começam por uma l
onga profissão de fé. Menos sintética do que as dos concílios ecuménicos
dos primeiros séculos e mais marcada, na sua parte final, pelo contexto da época, não
teve o mesmo sucesso; mas foi a ocasião para reafirmar o conteúdo da fé da
Igreja ocidental e a sua posição sobre as questões sacramentais, então debatidas ou cont
estadas, nomeadamente a doutrina eucarística da transubstanciação.
Depois, num longo corpo de cânones (artigos), o concílio aborda todos os problemas a
inda suspensos, terminando pela cruzada e pela situação nos Lugares Santos. Na
linha das disposições internas da Igreja do Ocidente, encontram-se os grandes combat
es dos reformadores gregorianos para limitar os tráficos de dinheiro ligados
aos cargos eclesiásticos e à administração dos sacramentos, assim como para promover a d
ignidade dos clérigos, elevados a modelos de comportamento cristão para as
suas ovelhas. Por isso, o concílio recorda que estes devem adoptar um modo de vida
que, com as suas renúncias, os separe cada vez mais dos leigos: obrigação do celibato
;
modéstia no vestir e no mobiliário e arranjo das casas; dignidade dos costumes, afas
tamento dos locais de diversão e de devassidão. O concílio mostra-se igualmente
preocupado com a sua formação, que ainda não está dotada de instituições próprias (os seminár
só haveriam de aparecer depois do Concílio de Trento) e baseia-se
nas pequenas escolas paroquiais, nas escolas catedrais de que, por vezes, nascerão
uma universidade, como em Paris, ou, mais regularmente, a reunião dos clérigos
diocesanos à volta do bispo aquando das assembleias sinodais, cuja reunião é obrigatória
duas vezes por ano. Nesta ocasião, a leitura dos cânones dos concílios,
a pregação do bispo ou de um clérigo mandatado para o substituir, assim como a partici
pação na liturgia da catedral são outros tantos meios para dar aos servidores
da paróquia modelos a que possam ater-se.
Estas disposições aparecem em perfeita coerência com as que tornam célebre o IV Concílio d
e Latrão e que concernem à acção pastoral a empreender junto dos fiéis
para corresponder às suas aspirações e reabsorver a contestação que passa, em primeiro lug
ar, pelo desenvolvimento de uma pregação apoiada: o meio tradicional de
transmissão da fé foi amplamente captado por estas correntes contestatárias que a Igre
ja pretende combater, situando-se no mesmo terreno. É por isso que o concílio
se propõe instituir pregadores especialmente afectados a esta missão junto dos bispo
s que não podem ou não querem desempenhar este aspecto do seu cargo. É verdade
que a disposição não teve nenhuma aplicação prática; mas, de algum modo, antecipa o sucesso
das ordens mendicantes, a mais célebre das quais foi a dos irmãos pregadores,
instituída em 1216.
174

No entanto, o instrumento pastoral em que mais se insistiu foi a paróquia, a mais


pequena das circunscrições eclesiásticas, pela qual se opera o enquadramento dos
fiéis. Pela primeira vez desde há séculos, um concílio geral debruça-se sobre esta institu
ição e fixa as condições mínimas da prática requerida aos fiéis: cada um
deverá confessar-se e comungar ao menos uma vez por ano, pela Páscoa, na igreja da s
ua paróquia (cânone 21). O cumprimento destes gestos distinguirá os fiéis respeitadores
da Igreja dos que põem em causa a validade dos sacramentos administrados por clérigo
s que eles julgam indignos ou por aqueles que recusam totalmente o valor destes
sinais concretos da graça. O servidor da paróquia [o padre cura] é encarregado de apon
tar o nome daqueles que resmungam ao cumprir o seu dever. Ao adoptar um ritmo
anual para a prática da confissão e da comunhão, o concílio apenas retoma as disposições míni
as adoptadas pelos numerosos bispos, que podem obrigar os seus fiéis
a uma prática mais freqüente - três vezes por ano, no Natal, na Páscoa e no Pentecostes.
O ritmo anual entrará tão solidamente nos costumes que fornecerá aos inquéritos
contemporâneos de sociologia religiosa um critério de cálculo da identidade cristã média e
definirá uma categoria de praticantes, os "pascalizantes", menos fervorosos
do que os praticantes regulares. Ao enunciar esta obrigação, o cânone 21 liga dois sac
ramentos importantes do grupo dos sete que acabava de ser fixado e cuja primeira
menção figura nas Sentenças de Pedro Lombardo (ca. 1140), obra de base do ensino teológi
co. Trata-se dos sacramentos cuja prática é renovável, ao contrário dos outros
cinco, que são recebidos uma só vez: baptismo, confirmação, ordem ou matrimónio, consoante
o estado de vida clerical ou laical, e a extrema-unção. Com efeito, na
prescrição, estes dois sacramentos estão dependentes um do outro: a comunhão só acontece q
uando o fiel está preparado mediante a confissão das suas faltas junto
do padre da paróquia. Ao fazer isto, o concílio integra uma evolução mais ampla registad
a pelo sacramento da penitência que, doravante, toma a forma de confissão
das faltas, anteriormente identificadas e pelas quais sente pesar e arrependimen
to: a confissão individual auricular. Este acto é considerado suficientemente penoso
para garantir ao fiel o perdão divino, dado pelo confessor, e concluído com o cumpri
mento de algumas penas concretas: orações, esmolas ou, por vezes, dias de jejum
ou peregrinações. Esta nova disciplina penitencial pressupõe uma educação da consciência ind
ividual, pela qual o fiel se reconhece responsável pelos seus actos e
pelas suas conseqüências em matéria de salvação; ele foi-se preparando ao longo do século XI
I pelo surgimento do "socratismo cristão" (Marie-Dominique Chenu). Assenta
igualmente na convicção segundo a qual, distante de qualquer forma de predestinação, o a
rrependimento e a conversão podem assegurar a todo o momento a salvação,
como o ilustra a figura evangélica de Maria Madalena, a pecadora arrependida, cujo
culto conhece nesse período um grande desenvolvimento. Nesta aprendizagem, o pape
l
do confessor é primordial;
175

é por isso que o concílio descreve qual deve ser a atitude do padre de paróquia, compa
rada com a do médico que deve derramar o óleo e o mel nas chagas da consciência
e não avivá-las com uma culpabilização excessiva: uma verdadeira "cura das almas" cuja f
ormulação latina, a cura animarum, está na srcem do termo "cura" adoptado
a partir do século XIII-XIV [no português] para designar o pároco [termo cujo uso é só do
século XVIII]. Em vez de permanecerem letra morta, as decisões pastorais
do IV Concílio de Latrão foram amplamente difundidas. Há quem veja uma prova disso na
presença de passagens inteiras dos seus cânones, nomeadamente do vigésimo primeiro,
nos textos de legislação para uso das dioceses redigidos aquando das assembleias sin
odais, e nos estatutos sinodais, de que os padres das paróquias deviam ter uma
cópia em seu poder. Melhor ainda, as primeiras palavras do cânone 21 Utriusque sexus
("Os fiéis de um e de outro sexo...") são referenciadas na pregação, independentemente
de ser ou não fonte de brincadeira, sinal de que os fiéis se tinham familiarizado co
m elas. E, além da letra das disposições conciliares, o ideal sacerdotal da cura
d'almas que as inspirava perdurou através dos séculos.
Catherine Vincent
176

Francisco, o pobre de Assis (+ 1226)

Nascido em 1191-1192, Francisco era o filho mais velho de um mercador de tecidos


da pequena cidade de Assis (Úmbria, Itália) a quem deveria suceder. Mas mostrou-se
mais interessado pela vida festiva vivida pela juventude dourada da sua cidade.
A sua riqueza permite-lhe freqüentar as famílias nobres e, em contacto com elas,
impregnou-se dos ideais da cultura cortesã e cavaleiresca. Em 1202, participou na
guerra que opôs Assis a Perúsia e ficou prisioneiro durante alguns meses. Em 1205,
com a esperança de se cobrir de glória, juntou-se a uma expedição militar contra os part
idários do Império, na Apúlia. Mas, em Espoleto, mudou o rumo da sua vida
na seqüência de uma visão. Trabalhado pela graça, procurou o seu caminho na meditação solitár
a e na caridade. Depois de um violento conflito com o seu pai, que
lhe censurou a prodigalidade para com os pobres e as igrejas, Francisco renuncio
u aos seus bens, colocou-se sob a protecção do bispo de Assis como penitente leigo
e viveu como um eremita itinerante nos arrabaldes da cidade, onde o seu comporta
mento fez com que o considerassem um louco. Em Fevereiro de 1208, ao ouvir a pas
sagem
do Evangelho de São Mateus (10,7-10) relativa ao envio dos apóstolos em missão, descalço
s e sem dinheiro, tomou consciência da sua verdadeira vocação: viver na pobreza
evangélica e anunciar a Palavra de Deus. Desde então, modificou o seu comportamento:
conservando unicamente uma túnica e substituindo o seu cinto por uma corda,
começou a chamar os seus concidadãos à conversão. Logo depois, juntaram-se a ele alguns
habitantes de Assis e arredores, tanto clérigos como leigos. Em 1209, Francisco
redigiu uma espécie de "manifesto" programático, feito com algumas frases do Evangel
ho, e dirigiu-se a Roma com os seus companheiros para o submeter ao papa Inocêncio
III, que se contentou com aprovar oralmente a sua opção de vida, esperando para ver
como evoluiria a sua experiência, muito próxima dos primeiros valdenses.
De regresso a Assis, onde lhes foi entregue uma pequena igreja em ruínas, Santa Ma
ria da Porciúncula, os irmãos ou frades - que, então,
177

tomaram o nome de "menores", os pequeninos, os humildes - desenvolveram as suas


campanhas de pregação na Itália central e atraíram jovens mulheres, fascinadas com
o carisma de Francisco. Entre elas, uma jovem aristocrata de Assis, Clara, que f
ugiu de casa dos pais em 1212 e haveria de estar na srcem das "Pobres damas rec
lusas"
de São Damião - as futuras clarissas -, o ramo feminino do movimento. Em 1217, aquan
do do capítulo geral (reunião anual dos irmãos), decidiu-se enviar alguns em
missão para o Norte dos Alpes e para além-mar. Parece que Francisco teria querido pa
rtir para França, mas o cardeal Hugolino persuadiu-o a ficar em Itália para velar
pela sua comunidade, ainda frágil, embora em pleno desenvolvimento. Entretanto, em
1219, o Pobre de Assis vai para o Oriente e junta-se às tropas da quinta cruzada.
Durante uma trégua, foi conduzido à presença do sultão Al-Kâmil, a quem tentou convencer d
a superioridade da fé cristã. Depois deste fracasso, dirigiu-se à Terra
Santa, mas teve de voltar à Itália em 1220. Na sua ausência, alguns irmãos haviam tomado
iniciativas que ameaçavam o espírito da fundação. Francisco restabeleceu
a ordem, mas preferiu abandonar a direcção do movimento, cujo rápido desenvolvimento -
em 1221, contavam-se mais de mil frades - punha problemas institucionais e
disciplinares que ele não se sentia à altura de enfrentar. Com efeito, o papado pres
sionava no sentido de que esta fraternidade evangélica se transformasse numa
ordem religiosa, evolução que Francisco não rejeitava, mas que pretendia controlar. A
partir de então, embora continuando a pregar com um sucesso cada vez maior,
consagrou todos os seus esforços à redacção de uma regra, cuja primeira versão (1221) foi
recusada pela Cúria; a segunda, mais jurídica e menos srcinal, foi aprovada
por Honório III em Novembro de 1223, tornando-se a regra dos frades menores.
Muito doente e pouco à vontade com os novos problemas postos pelo crescimento da o
rdem, Francisco passou longos períodos em eremitérios onde, num deles, o de La
Verna, teria recebido os estigmas da Paixão de Cristo, no dia 24 de Setembro de 12
24. Quase cego, compôs ali o Cântico do Sol ou das criaturas, texto fundador da
literatura religiosa em língua italiana. Sentindo que o fim se aproximava, redigiu
o seu Testamento, onde, com emoção, evoca os primeiros tempos e lembra com vigor
a necessidade de permanecer fiel ao ideal evangélico. Morreu na Porciúncula na noite
de 3 para 4 de Outubro de 1226 e foi canonizado em 1228 por Gregório IX (antigo
cardeal Hugolino). Sob o impulso de frei Elias, rapidamente se iniciou a construção
da magnífica basílica que lhe foi dedicada no exterior de Assis. Os seus restos
mortais foram para lá trasladados em 1230 e, por volta de 1300, a parte superior d
a basílica foi coberta, por Giotto e sua oficina com frescos que evocam os princip
ais
episódios da sua vida e alguns dos seus milagres.
Francisco de Assis não deixou uma obra escrita muito importante: duas pequenas reg
ras, alguns bilhetes, cartas e orações, isto é, um pequeno
178

volume. E, embora alguns textos (Cântico do irmão sol ou das criaturas ou o seu Test
amento) sejam justamente célebres, conhecemos Francisco sobretudo através das
lendas. Ele não foi nem teólogo nem legislador, mas testemunha do Evangelho no seu t
empo, mais próximo na sua busca de Deus dos heróis dos romances cavaleirescos
do que dos doutores universitários. Por isso, a sua recordação fixou-se simultaneament
e nas lendas orais, reunidas na colectânea Fioretti (Florinhas, passadas a
escrito durante o século XIV) e em numerosas Vidas escritas pelos seus irmãos. A int
erpretação da sua existência constituiu de imediato uma empresa importante. Desde
1229, Tomás de Celano, um frade próximo dos meios dirigentes da ordem e do papa Gregór
io IX, escreveu uma primeira Vida que teve uma grande difusão. Mas, apesar
das suas qualidades e da sensibilidade religiosa do seu autor, esta biografia é ob
jecto de sérias críticas. Depois, escreveram-se outros textos, como a Lenda dos
três companheiros, que realça os laços que Francisco manteve com a sociedade urbana de
Assis. Em 1246, o ministro geral da ordem mandou que os frades que tivessem
conhecido o seu fundador escrevessem as suas recordações. Daí resultou um grande volum
e de testemunhos, a Compilação de Perúsia ou de Greccio, em que inspiraram
os biógrafos seguintes, a começar por Tomás de Celano que, em 1247, escreveu uma segun
da Vida, bastante diferente da primeira. Mas as tensões que surgiram no seio
da ordem por alturas de 1250 acentuaram a necessidade que os irmãos tinham de conh
ecer o verdadeiro rosto do seu fundador e a sua atitude face a questões fundamenta
is
para eles: a prática da pobreza e os estudos. Em 1263, Boaventura de Bagnoreggio,
ministro geral da ordem, publicou uma Vida intitulada Legenda maior, que se torn
ou
a única biografia autorizada e, em 1266, o capítulo geral ordenou a destruição dos manus
critos de todas as Vidas anteriores. Contudo, a sua interpretação mística
e triunfalista nem de longe reuniu unanimidade e, a partir de finais do século XII
I, quando se agravou a querela entre os espirituais, partidários da pobreza integr
al,
e a maioria da ordem, redigiram-se novas compilações que puseram em causa a imagem d
esenhada por Boaventura. Entretanto, estes escritos contestatários, que se referia
m
às recordações deixadas pelos primeiros companheiros, um dos quais foi o irmão Leão, não pod
em considerar-se mais objectivos que as biografias anteriores: até contribuíram
para baralhar mais as cartas, interpretando a santidade do Pobre de Assis em função
dos problemas que se punham no seu tempo e não dos que ele tinha realmente encontr
ado.
Esta produção abundante e a das colectâneas de milagres, bem como uma iconografia supe
rabundante, mostram bem que a figura de Francisco continuava no centro das
preocupações dos frades menores e dos leigos que os rodeavam.
A continuação deste fascínio deve-se ao facto de o santo de Assis ter operado uma síntes
e dos movimentos religiosos populares anteriores - alguns dos quais acabaram
por ser condenados como heréticos - e da
179

tradição cristã mais autêntica. Nele, andavam a par uma profunda devoção a Cristo, venerado
na sua abjecção e nos seus sofrimentos, com um sentido profundo da omnipotência
e da transcendência divinas. O seu desejo de levar uma vida evangélica, na pobreza e
na humildade, como Cristo e os apóstolos, não excluía a fidelidade total à Igreja,
a única que podia transmitir a Palavra de Deus e torná-lo presente pelo sacramento d
a eucaristia. A seus olhos, a prática da pobreza constituía a própria essência
da vida evangélica. Não representando de modo nenhum uma virtude entre outras ou uma
condição económica e jurídica, era em primeiro lugar um modo de vida individual
e colectivo que permitia "seguir nu Cristo nu". Ao conferir uma segurança ilusória,
o dinheiro falseava as relações entre os homens, fazendo com que se esquecessem
da sua igualdade fundamental como filhos do mesmo Pai. É por isso que ele proíbe que
os frades menores recebam ou possuam a mais pequena moeda, excepto se necessária
para os doentes, e prescreve-lhes que trabalhem com as suas mãos, vendo a mendicid
ade como um remedeio. Viver segundo o Evangelho pressupunha não somente a aceitação
da insegurança, mas também que se estivesse em pé de igualdade com os mais pobres como
, por exemplo, os leprosos. Por isso, pode considerar-se que Francisco de Assis
procurou criar com os frades menores um modelo alternativo de sociedade, subtraído
ao mundo da compra e venda, e recusando as hierarquias ligadas à riqueza e ao
prestígio social ou cultural. Na fraternidade que ele fundou, os clérigos e os leigo
s estavam em pé de igualdade e, pelo menos nos primeiros tempos, os homens e
as mulheres tinham vidas separadas, mas complementares. É a "utopia franciscana".
Mas, embora este modelo tenha sido rapidamente abandonado, continua a exercer um
fascínio real, como o mostram os movimentos que, no seio da ordem franciscana, até a
o século XVI já bem entrado, se afirmam seus seguidores com a reforma dos capuchinho
s.
Ainda que, freqüentemente, tenha perdido a sua força ou tenha sido falseada, a mensa
gem de Francisco de Assis marcou a visão religiosa dos últimos séculos da Idade
Média no sentido de um cristocentrismo radical e de uma devoção à humanidade sofredora d
o Salvador, cujo caminho da cruz (via crucis) constituiu uma das expressões
mais significativas.
Francisco de Assis estava em sintonia com a piedade popular; por isso, a represe
ntação mimada do Nascimento de Jesus que apresentou em Greccio, na noite de Natal
de 1223, esteve na srcem da difusão do Presépio, enquanto a espiritualidade mística f
eminina italiana, com Margarida de Cortona (+ 1297) e Angela de Foligno (t
1308), não cessou de se referir à sua experiência espiritual. Portanto, pode dizer-se
que influenciou de maneira profunda e duradoura a espiritualidade e a sensibilid
ade
do Ocidente.
André Vauchez
180

As ordens mendicantes

Os contemporâneos foram sensíveis ao aparecimento das ordens religiosas, dos frades


menores fundados por São Francisco de Assis (1181-1226) e dos frades pregadores
por São Domingos (1175-1221), como este cronista premonstratense alemão, Burcardo de
Ursperg: "Neste tempo, o mundo envelhecia. Duas ordens surgiram na Igreja, cuja
juventude renovaram à maneira da águia." Apesar das diferenças que existiam entre elas
, perceberam os seus traços comuns e a singularidade em relação às formas de
vida consagradas preexistentes. Por vezes, designam-se estes religiosos com o no
me de "monges mendicantes", expressão muito inexacta porque, justamente, os mendic
antes
não são monges, mas religiosos de um tipo novo.
A srcinalidade das ordens mendicantes reside, em primeiro lugar, numa opção a favor
da pobreza colectiva e da mendicidade, forma de abandono à Providência. O monaquism
o
beneditino, mesmo o mais rigoroso (cister-ciense), nunca tinha exigido a pobreza
individual, que não impedia a comunidade de possuir terras e rendimentos fundiários
ou comerciais. Com Francisco e Domingos, as exigências cresceram: ambos proibiram
que se possuísse alguma coisa, tanto pessoal como em comum. Para Francisco, a pobr
eza
era a própria essência da vida evangélica: os frades menores deviam viver, dia a dia,
do trabalho das suas mãos. Em caso de necessidade, podiam recorrer à mendicidade,
mas nunca aceitariam dinheiro. Desde os anos 1230, esta exigência atenuou-se e a m
aior parte das comunidades vivia das receitas da mendicidade e das ofertas, de
onde lhes adveio o nome. Para São Domingos, a mendicidade constituía, antes de tudo,
uma arma contra a heresia, uma condição necessária - mas não suficiente - para
que o testemunho dos pregadores que ele tinha reunido à sua volta no Languedoque f
osse recebido pelos leigos desta região, hostis a uma Igreja poderosa e rica. Dest
e
modo, os dominicanos mostraram-se mais flexíveis, aceitando tornar-se proprietários
das igrejas e dos conventos em que residiam. Mais tarde, não hesitaram em receber
rendas oferecidas pelos reis ou pelas cidades: para eles, a prioridade era
181

o ministério das almas, mediante a pregação e a confissão. Mas, mesmo quando começaram a a
fastar-se das exigências iniciais, os mendicantes, a que se devem juntar
os carmelitas e os eremitas de Santo Agostinho, constituídos, por impulso do papad
o, em 1240-1255, apareceram como religiosos diferentes porque não tinham proprieda
des
fundiárias e situavam-se fora do quadro senhorial e feudal. Foi uma das razões do se
u sucesso junto da sociedade urbana: ao contrário dos bispos, dos cónegos e dos
monges, não recaía sobre eles a suspeição de quererem preservar ou estabelecer posições de p
oder.
Entre as inovações dos mendicantes, uma das que mais impressionou foi a sua abertura
ao mundo: mesmo continuando a viver em comunidade, não deixaram de permanecer
ao abrigo do claustro, obrigados à estabilidade como os monges, mas saíam regularmen
te dele. O religioso só fica na clausura para restabelecer as suas forças: a
sua vocação é incitar os fiéis à conversão e à penitência, pela palavra e pelo exemplo. Deslo
do-se, os frades estão em todos os caminhos, dois a dois, para pedir,
pregar a palavra de Deus, ir aos studia (centros de estudos superiores) da sua o
rdem para se formarem em teologia e em exegese bíblica, participar nos capítulos
provinciais ou gerais ou executar missões junto da Cúria romana ou do seu superior g
eral. Estas deslocações são ocasião de numerosos contactos entre eles. Mas as
relações com os leigos são bastante mais importantes. Dependendo destes para a sua sub
sistência, os mendicantes precisam de uma rede eficaz de amizades. Chega-se
até a censurar-lhes, depois de 1250-1260, serem demasiado amáveis com os fiéis, sobret
udo com as mulheres, para suscitar a seu favor esmolas e legados testamentários.
Mas era a pregação que provocava os encontros mais significativos: podia acontecer n
uma paróquia ou nas praças e nos adros das igrejas ou ainda no quadro das reuniões
de confrarias ou de outros grupos de leigos devotos que tinham escolhido frades
mendicantes como seus directores espirituais.
Outra inovação: a sua relação com a Igreja hierárquica. Embora, srcinariamente - como São D
omingos em Toulouse -, os mendicantes tivessem o cuidado de actuar concertadamen
te
com os bispos, estavam ligados directamente à Santa Sé. Em vez de agirem como simple
s cooperadores do clero secular, colocaram-se sob a protecção romana, porque
pretendiam que o seu chamamento à conversão fosse universal. Em contrapartida desta
conivência estreita com o papado, que os cumulou de privilégios, eles apareceram
como seus agentes zelosos, o que fez com que fossem considerados suspeitos e até p
rovocou graves conflitos com o clero secular, enquanto não se encontrou um equilíbri
o
satisfatório na repartição das tarefas e das receitas da cura animaram, da cura d'alma
s, entre eles e os padres das paróquias, graças à bula Super cathedram de Bonifácio
VIII, de 1300.
Esta acção apostólica realizada em toda a cristandade também teve repercussões nas estrutu
ras do governo das suas ordens. O superior geral (denominado mestre geral
nos dominicanos e ministro geral nos franciscanos)
182

era eleito por uma instância representativa; e o capítulo geral, o único que tinha o p
oder de modificar as constituições, desempenhava o papel de órgão judiciário
supremo e podia depô-lo. A inovação mais srcinal consiste num desdobramento do govern
o da ordem. Em cada província, encontrava-se uma organização semelhante à que
existia no cume: um prior ou ministro provincial, escolhido pelo capítulo provinci
al, constituído por representantes de cada um dos conventos que a compunham. Só
levavam à instância superior os problemas que não podiam ser regulados a nível local, o
que permitia que os mendicantes conciliassem uma forte autoridade na sua
cabeça com uma descentralização efectiva das decisões. Mas a principal diferença em relação a
governo dos monges reside no facto de os superiores só se manterem
em funções durante um tempo limitado, enquanto os abades beneditinos eram-no desde a
sua eleição até à morte. Além disso, as práticas eleitorais das ordens mendicantes
inspiravam-se nas das instituições comunais ou municipais, relativamente democráticas
para a época: enquanto, entre os monges, a eleição se fazia segundo uma maioria
qualificada, pela adesão da saniorpars - [da parte mais sã, isto é,] o grupo dos mais
antigos e dos que exerciam funções de autoridade -, entre os mendicantes bastava
a maioria simples: um homem, um voto. O que hoje é regra na vida política, foi naque
le tempo uma novidade.
Em última análise, o aspecto mais srcinal das ordens mendicantes é, sem dúvida, a sua o
rientação para a missão entre os não-cristãos e os pagãos, que, desde a srcem,
se encontra em São Domingos, que sonhava com evangelizar os cumanos [povos bárbaros
da região sudeste da Ucrânia], e em São Francisco, que, desde 1217, depois de
ter enviado para Marrocos cinco frades [que se alojaram no convento de Santa Cru
z em Coimbra, onde os conheceu Fernando de Bulhões, o futuro Santo António, então
cónego regrante de Santo Agostinho], tentou converter o sultão do Egipto em 1219. Na
seqüência desta experiência, Francisco consagrou um capítulo da sua primeira
regra (1121) a definir a atitude a adoptar "entre os sarracenos e outros infiéis".
"Os irmãos que para lá forem poderão encarar o seu papel espiritual de duas maneiras:
ou não fazer nem demandas nem disputas, ser submissos a todas as criaturas humanas
por causa de Deus e confessar simplesmente que são cristãos; ou, então, se virem
que é a vontade de Deus, anunciar a Palavra de Deus, a fim de que os pagãos creiam e
m Deus omnipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, e no seu Filho redentor e salvado
r,
se façam baptizar e se tornem cristãos."
Mas os resultados das missões franciscanas foram muito decepcionantes e vários irmãos
pagaram com a vida o seu anúncio público da fé cristã. Como já, por volta de
1340, o notava o bispo de São João de Acre, Jacques de Vitry (Historia occidentalis)
: "Os sarracenos ouviram de bom grado os frades, enquanto pregavam a fé de Cristo
e a doutrina evangélica até que se puseram a contradizer manifestamente Maomé na sua p
regação... Então, batiam neles e escorraçavam-nos das suas cidades."
183

Deste modo, os mendicantes tomaram consciência de que, para pregar aos muçulmanos co
m alguma sorte de ser escutados, era preciso renunciar à polémica e aos argumentos
de autoridade, aprender a sua língua e impregnar-se da sua cultura com uma leitura
aprofundada do Corão. Também criaram centros de estudos para a aprendizagem das
línguas orientais, por exemplo em Valência e em Tunes. Alguns deles tornaram-se exce
lentes conhecedores do islão, como o dominicano Ricoldo di Monte Croce, que teve
contactos aprofundados com os letrados de Bagdade. Mas os mendicantes tentam igu
almente evangelizar os Mongóis: em 1289, o franciscano João de Montecorvino foi envi
ado
pelo papa para junto do Grande Cão. Chegou a Khanbaliq - Pequim -, onde exerceu o
seu apostolado junto das minorias cristãs existentes e dos indígenas. Depois de
ter recebido reforços, tomou o título de arcebispo de Pequim e repartiu os frades qu
e tinham chegado pelos principais centros da China, onde fundaram conventos fran
ciscanos
que foram srcem de novos bispados. O esforço missionário das ordens mendicantes tam
bém se encontra nas costas do Báltico, junto dos prussianos, dos povos bálticos
e na Finlândia.
Portanto, os mendicantes corresponderam a este novo clero apostólico com que tinha
sonhado Inocêncio III e o Concílio de Latrão IV (1215). De facto, o sucesso dos
movimentos heréticos mostrara que a cristianização do Ocidente estava incompleta e, fr
eqüentemente, era superficial. Na periferia da Europa, estavam ainda por converter
numerosos pagãos e o islão continuava a exercer uma pressão terrível. Nesta conjuntura,
a Igreja não podia contar nem com os monges, cuja vocação não era a acção
no mundo, nem com um clero secular mal formado e cujos costumes não tinham, muitas
vezes, nada de edificante, enquanto numerosos bispos se deixavam assoberbar pel
os
negócios e afazeres temporais. Com as ordens mendicantes, apareceram religiosos qu
e o papado considerou providenciais, ratificando a sua entrada em cena, canoniza
ndo
rapidamente os seus fundadores, São Francisco (+ 1226) em 1228 e São Domingos (t 122
1) em 1234. Com efeito, o papado compreendeu muito rapidamente qual poderia ser
o papel destas para desfazer a heresia: por isso, apoiou-se profundamente na sua
acção, mediante a pastoral, e confiou-lhes a responsabilidade da repressão no quadro
do tribunal da Inquisição.
André Vauchez
184

Tomás de Aquino
(+ 1274)
Tomás de Aquino resumiu o programa da sua vida, ao explicar um adágio da ordem domin
icana que encontrou em 1244: "É mais belo iluminar do que apenas brilhar; do
mesmo modo que é mais belo transmitir aos outros o que se contemplou do que contem
plar somente." Com efeito, ele consagrou toda a sua vida ao ensino, ilustrando,
com a sua estatura intelectual, o melhor do pensamento escolástico.
Durante a sua vida de estudo, Tomás percorreu longamente a Europa: srcinário do Sul
da Itália, começou os seus estudos na universidade de Nápoles, esteve algumas
vezes em Paris, primeiro como estudante, depois como professor (1245-1248; 1252-
1259; 1268-1272) e exerceu ofício de professor em Orvieto, Itália, (1261-1265), em
Roma (1265-1268) e em Nápoles (1272-1273). Toda a sua obra tem a marca do ensino;
porque, embora se tratasse do fruto de um ensino obrigatório para obter a licença
para leccionar teologia, o Comentário das Sentenças [de Pedro Lombardo] (1252-1254)
continua a ser uma obra teológica pessoal que já anuncia as duas grandes Sumas,
ou seja, a Suma Contra os Gentios (começada em 1259 e terminada em 1265) e a Suma
Teológica (1265-1273, inacabada).
Na primeira destas duas sínteses, Tomás pretende propor uma obra de sabedoria, dado
que o estudo da sapientia era considerado a empresa humana mais perfeita, mais
sublime, mais útil e mais agradável. Portanto, ele pretende "expor, segundo a nossa
medida, a verdade proposta pela fé católica, ao mesmo tempo que se rejeitam os
erros contrários" (Suma contra os Gentios, I cap. II). Por seu lado, a Suma Teológic
a, que, com as suas três partes, apresenta-se como uma obra concebida para "instru
ir
os principiantes" (Suma Teológica, I, 1, 7).
Além disso, na medida em que em que a função do mestre em teologia, que Tomás assumiu de
sde a Primavera de 1256, comportava então três aspectos - comentar (legere
[ler]), pregar e disputar -, possuímos várias séries de questões disputadas que testemun
ham a diversidade e a riqueza
185

dos debates intelectuais no século XIII, nomeadamente as questões Sobre a Alma e Sob
re as Criaturas Espirituais, ou ainda Sobre o Mal. Os numerosos comentários bíblicos
deixados por Tomás - o Comentário de Job (1261-1265), o Comentário das Epístolas de São Pa
ulo, a Lectura sobre São Mateus (1269-1270) e a Lectura sobre São João
- remetem igualmente para a sua actividade docente. Mas o mesmo não se poderá dizer
dos seus doze comentários das obras de Aristóteles (redigidos a partir de 1265),
que testemunham mais a sua convicção de que uma filosofia sólida é o fundamento indispen
sável a uma teologia de boa qualidade.
A esta série já impressionante de obras convém acrescentar um número considerável de parec
eres e, sobretudo, de tratados muito srcinais como, no domínio da filosofia
primeira, Do Ser e da Essência (1256) e o opúsculo inacabado Sobre as Substâncias Sepa
radas (1271) ou, no domínio da teologia, o Breve Resumo da Teologia, e, no
campo da política, o tratado Sobre o Reino (1267).
Também não se pode esquecer que Tomás tomou parte activa nos debates que agitavam a vi
da intelectual em Paris, defendendo vigorosamente o direito das ordens mendicant
es
de ensinar na querela que as opunha aos seculares: diversos opúsculos e tratados t
estemunham a sua intervenção nesta disputa tão viva como acalorada. Não menos virulenta
e feroz parece ter sido a intervenção de Tomás na discussão filosófica acerca da doutrina
da possibilidade da unicidade do intelecto, que fora nomeadamente provocada
por alguns escritos de Sigério de Brabante, a partir de 1265. Com uma verve sem pr
ecedentes, no tratado Da Unicidade do Intelecto Contra os Averroístas (1270), o
dominicano combate a idéia de um intelecto único para todos os homens e quer demonst
rar que os seus adversários, especialmente o filósofo árabe Averróis (falecido
em 1198), chamado o Comentador, são intérpretes lastimáveis dos textos de Aristóteles.
Estes numerosos escritos são fruto de uma actividade incansável e de um trabalho obs
tinado que, segundo as testemunhas mais próximas dele, parou repentinamente no
mês de Dezembro de 1273. Tomás deixou de escrever, desembaraçou-se do seu material de
escrita e, segundo Reinaldo de Piperno, seu companheiro e assistente, teria
afirmado: "Não posso mais. Comparado com o que vi, tudo o que escrevi parece-me pa
lha." Pouco tempo depois desta decisão, que os historiadores têm interpretado de
vários modos (teria sido conseqüência de alguma experiência mística?), Tomás de Aquino morre
u a caminho de Lião, na abadia de Fossanova (a sul de Roma), no dia 7
de Março de 1274.
O pensamento do dominicano italiano funda-se numa concepção tão precisa e rigorosa da
teologia, que preenche os critérios da cientificidade. Ao afirmar a superioridade
da teologia, Tomás defende a legitimidade e a autonomia relativa da filosofia que
se funda exclusivamente na razão. A espantosa "confiança no poder da razão" (Étienne
Gilson), que caracteriza toda a sua especulação, explica-se pelo facto de o real, qu
e o filósofo tenta
186

compreender com a ajuda da razão, e a revelação, que o teólogo interpreta, terem o mesmo
Deus por causa: por conseguinte, é impensável que "a verdade da fé seja
contrária aos princípios que a razão conhece naturalmente" (Suma Contra os Gentios, I,
cap. VII). O primeiro princípio indemonstrável em que assenta toda a busca
da razão humana é o princípio da não-contradição. A este primeiro axioma da razão especulativ
corresponde, na ordem da razão prática, a proposição: "É preciso fazer
e procurar o bem e evitar o mal", axioma que se baseia na noção de bem, cujo conteúdo
a razão apreende através das inclinações naturais do homem. Em última análise,
daí resulta uma ética para a qual a conformidade com a razão é decisiva: "Nos actos huma
nos, o bem e o mal são determinados pela relação com a razão" (Suma Teológica,
I-II, 18,5). Para Tomás, o homem é determinado por três relações: com a razão que é a medida
as suas acções; com Deus, que é o seu criador; com o seu semelhante
(Suma Teológica, I-II, 72,4). Na verdade, o ser humano é não só animal racional, mas tam
bém "animal social e político", o que é atestado pelo facto de o homem possuir
linguagem que o torna capaz de manifestar o seu pensamento e de enunciar o que é j
usto e bom.
Graças ao hilemorfismo aristotélico, segundo o qual todo o ser se explica pela matéria
(hylê) e pela forma (morphê), é possível compreender a alma como forma do
corpo e asseverar, ao contrário de qualquer dualismo, a unidade do homem. O empiri
smo epistemológico de Tomás, para quem o conhecimento humano não pode prescindir
da sensação, explica porque é que a proposição "Deus existe", impossível de apreender direct
amente pelos sentidos, não é evidente para a razão natural e, portanto,
deve ser demonstrada. A demonstração mais célebre da existência de Deus (que se encontra
na Suma Teológica, I, 2, 3) tenta provar a verdade dessa proposição por
cinco vias, referindo-se à experiência do movimento, da causalidade, da contingência,
dos graus de perfeição e da finalidade das realidades naturais. Contudo, estas
provas, que dependem de várias fontes filosóficas, ainda não revelam o aspecto mais or
iginal da concepção tomista de Deus: é um ser subsistente por si (esse per
se subsistem).
Esta concepção de Deus pressupõe não só a distinção entre o ser e a essência, que caracteriza
do enquanto finito, mas também uma interpretação específica do ser
concebido como "a actualidade de todas as formas" e "a perfeição de todas as perfeições"
. Esta metafísica do Êxodo, designando Deus como "Eu sou aquele que sou"
(Ex 3,14), depende de uma consciência apurada dos limites do conhecimento humano d
e Deus. "O nosso conhecimento é de tal modo fraco que nenhuma filosofia jamais
pôde examinar perfeitamente a natureza de uma mosca; é por isso que se lê que um filósof
o passou trinta anos na solidão para conhecer a natureza da abelha" (Sobre
o Credo, prólogo).
Ruedi Imbach
187

III
TRABALHAR PARA A SUA SALVAÇÃO
O Purgatório e o além

Segundo Jacques Le Goff (La Naissance du Purgatoire, 1981*), o terceiro lugar do


além, com o Inferno e o Paraíso, seria uma invenção da Idade Média. Embora seja
possível encontrar alguns precedentes, não há dúvida de que, a partir dos séculos XII-XIII
, a noção vai-se ancorando nos espíritos e nas práticas da Igreja do Ocidente,
sem, contudo, obter o assentimento das Igrejas gregas. Então, fixa-se durante século
s a tríade das vias oferecidas aos fiéis depois da morte e que Dante explorou
no percurso poético e iniciático de A Divina Comédia. Mas em que consistiu esta novida
de?
O cristianismo desenvolve uma concepção linear da história da humanidade marcada por t
rês etapas maiores: a criação do mundo, obra divina relatada de modo metafórico
no primeiro livro da Bíblia, o Génesis; a Encarnação de Deus na Terra na pessoa de Jesus
; o fim dos tempos, descrito também ele de modo metafórico, no último livro
da Bíblia, o Apocalipse. Por seu lado, o Evangelho de Mateus (Mt 25,31-46) refere
de que modo o fim do mundo será marcado pela ressurreição dos corpos e o julgamento
que separará, segundo o cuidado havido com o próximo, os condenados dos eleitos, sen
do os primeiros precipitados no Inferno e os segundos admitidos no Paraíso. Numero
sas
representações figuradas, colocadas sobre os portais das igrejas (Autun, Bourges, Ch
artres), transmitiram largamente, com o ensino escrito e oral, esta visão binária
do além. Mas, nesta perspectiva, o destino final só se joga no fim do mundo; por iss
o, os fiéis interrogaram-se como deveriam imaginar o destino das almas entre
o momento em que se considerava terem saído do corpo, aquando da morte, e o encerr
amento

* Tradução portuguesa: O Nascimento do Purgatório, Lisboa, Editorial Presença, 1994. (AT


)
188

da história humana. Então, era-lhes ensinado que este longo tempo de espera decorria
no seio de Abraão, pai de todos os crentes; lugares chamados limbos acolhiam
os homens: nos limbos dos Patriarcas, os que não tinham conhecido a revelação de Crist
o e, nos limbos das crianças, os bebês falecidos antes de terem recebido o
baptismo e de serem agregados à comunidade dos cristãos. Encontra-se também em alguns
autores anteriores do século XII, entre os quais Santo Agostinho, a idéia de
que a visão de Deus prometida aos eleitos não estaria acessível senão ao cabo de um temp
o de purificação, deixando entrever o que iria tornar-se o Purgatório.
Notam-se os primeiros vestígios do Purgatório no século XII, na pena de autores cister
cienses e de mestres ou professores seculares das escolas urbanas que desenvolvi
am
a seguinte concepção: são raros os crentes que podem arrogar-se uma perfeição que os condu
za directamente ao Paraíso e, para a grande maioria, é necessário um tempo
suplementar de penitência, proporcional ao tamanho das faltas não expiadas - princípio
ousado, talvez influenciado pela cultura matemática que, então, se desenvolve
nas cidades. Estas idéias transformam a visão do além que, de binária, passa a ternária. A
sua maior conseqüência é antepor ao Juízo Final um julgamento individual
situado para cada um no momento da morte: o fiel poderá ser lançado no Inferno se te
imar nas suas faltas e na ausência voluntária de esperança na misericórdia divina;
ou ir imediatamente para o Paraíso, se mostrar todos os sinais da perfeição; mais segu
ramente, irá para o Purgatório, onde cumprirá a penitência necessária, no fim
da qual entrará no Paraíso, dado que só se sai do Purgatório em direcção ao alto. Como o sen
tiu muito bem Jacques Le Goff, este "terceiro lugar" constituiu uma enorme
lufada de esperança trazida aos fiéis: "O Purgatório esvaziou o Inferno." Portanto, a
visão de Deus (ou visão beatífica) pode ser alcançada antes mesmo do Juízo
Final, depois do qual, porém, será intensificada, segundo o ensino do papa Bento XII
(Constituição Benedictus Deus, 1336).
Para difundir estas concepções novas, foi preciso formalizá-las em função das categorias d
o tempo e do espaço. Por isso, os autores tentaram situar o Purgatório
em lugares terríveis do planeta, conhecidos pelas suas condições naturais extremas; co
nsideraram-se tanto a cratera do Etna, boca de fogo que se adaptava bem à imagem,
como uma ilha ao largo da Irlanda, que servia de lugar de ascese para os eremita
s: o "Purgatório de São Patrício". De facto, embora termine com uma saída favorável,
o Purgatório não é olhado de modo agradável, dado que as penas sofridas pelas almas apro
ximam-se das do Inferno, a julgar pela iconografia que, pouco a pouco, se
vai fixando e retoma os suplícios do fogo, do frio e das trevas que as imagens inf
ernais tinham desenvolvido. Quanto ao tempo de purgação, considerou-se que poderia
ser abreviado graças aos méritos acumulados pelos justos, dando lugar a uma verdadei
ra solidariedade entre os crentes. Dizem os textos (Santo Anselmo, 11109), que
os incomensuráveis méritos de Cristo permitiam que a Igreja dispusesse de um "tesour
o" que distribuía
189

sob a forma de indulgências; os méritos dos santos eram invocados pelos devotos que
procuravam a sua intercessão junto de Deus, nomeadamente na hora do seu julgamento
;
quanto aos méritos dos simples fiéis, acumulados sob a forma de "boas obras" (orações, c
elebração de missas, esmolas ou outros gestos de piedade), também eram tidos
em conta. Relatos exemplares, consignados sobretudo pelos dominicanos, irão contar
que determinado marido defunto tinha aparecido depois da sua morte à sua esposa,
vindo do Purgatório, primeiro completamente negro pelas suas faltas, depois cada v
ez mais branco, à medida que ela amontoava graças a seu favor... Este princípio
também srcinou o grande sucesso das confrarias e das associações fundadas por iniciat
iva dos fiéis que, entre os seus membros, praticavam não só uma solidariedade
espiritual, mas também formas de entreajuda material em caso de necessidade.
Por isso, concebe-se que, desde então, importava preparar o fiel para conseguir um
bom fim, já que todo o arrependimento, mesmo o mais tardio à hora da morte, pode
ser fonte de salvação. Os meios intelectuais que formalizaram o Purgatório são os mesmos
onde se elabora a nova disciplina penitencial, a confissão auricular individual,
segundo a qual a verdadeira responsabilidade reside na intenção que preside ao acto.
Conseqüentemente, a ajuda sacramental prestada havia já muito tempo ao moribundo
com a Extrema-Unção enriquece-se com uma comunhão e uma confissão derradeiras, como ates
tam as "Artes de morrer" (Artes moriendi), aqueles livrinhos, compostos ao
longo do século XV, em que se descrevem e ilustram em tábuas gravadas os últimos comba
tes espirituais a travar.
Essa visão do além vai contribuir para desenvolver e sistematizar as práticas, anterio
rmente nascidas, da oração a favor dos mortos. Muito antes do nascimento do
"Purgatório", a sociedade já esperava que os monges, os especialistas da oração, orassem
pelos mortos: cada mosteiro possuía a sua lista de familiares, alguns dos
quais tinham mesmo o privilégio de ser inumados dentro das paredes do mosteiro. No
século XI, o abade de Cluny, Odilão, instaurou uma festa especial a favor dos
defuntos, no dia 2 de Novembro, precisamente depois da que comemora os eleitos,
o Dia de Todos os Santos, que teve grande sucesso. A "lógica" do Purgatório veio
amplificar o fenómeno e dar-lhe um realce particular, tanto mais que, simultaneame
nte, parecia que a boa obra por excelência era a comemoração do sacrifício de Cristo,
a celebração eucarística. Por conseguinte, os fiéis, a título individual ou colectivo, no
quadro das confrarias, encomendaram abundantemente aos clérigos celebrações
de missas, quer imediatamente depois de um falecimento, para abreviar o mais pos
sível, a favor do defunto, as penas do Purgatório, quer perpetuamente, quer combinan
do
os dois ritmos, porque a introdução de um juízo individual não tinha feito desaparecer a
crença no Juízo Final. Numerosos clérigos, ordenados padres mas desprovidos
de paróquia ou de outros benefícios, encontram nestas celebrações fontes de rendimentos
lucrativos que, em certas regiões, se repartiam entre naturais da
190

mesma aldeia, no quadro de poderosas associações clericais. No Sudoeste da França, col


ectas organizadas entre os paroquianos para financiar missas por intenção das
almas do Purgatório também motivaram a fundação de associações: as "Bacias das Almas" ou "Ba
cias do Purgatório". A representação da sociedade dos crentes dividiu-se
em três grupos: a Igreja triunfante, a dos eleitos; a Igreja padecente, a das alma
s do Purgatório; a Igreja militante, a dos vivos [na Terra], preocupada com alivia
r
a anterior.
Por mais surpreendentes que possam parecer ao homem do século XXI, estas concepções e
os usos que introduziram corresponderam certamente a uma expectativa profunda;
aliás, não se conseguiria explicar de outra forma a persistência tenaz através de toda a
época moderna que conservou a oração medieval pelas "almas do Purgatório"
até aos nossos dias. Contudo, na seqüência das investigações recentes (Guillaume Cuchet),
a Primeira Guerra Mundial teria contribuído para lançar um olhar diferente
sobre a noção do Purgatório; com efeito - se é que podemos permitir-nos este triste jogo
de palavras -, o inferno das trincheiras foi considerado, pára aqueles que
o viveram, um verdadeiro Purgatório na Terra...
Catherine Vincent
191

Culto dos santos, relíqüias e peregrinações

Estas formas de devoção permanecem associadas, nos espíritos, ao período medieval; contu
do, precederam-no e sobreviveram a ele, embora tivessem conhecido bons momentos
testemunhados por fontes muito sugestivas: hagiografias, relatos de milagres, de
invenção (descoberta) ou de trasladação de relíqüias e também descrições de peregrinações.
A Idade Média herda da Antiguidade cristã o costume de honrar, entre os defuntos, aq
ueles que são considerados ilustres por terem sido grandes testemunhas da fé.
Além das figuras dos tempos apostólicos, distinguem-se aqueles que foram mortos viol
entamente, os mártires (o termo significa "testemunha"); os que desenvolveram
uma intensa obra de evangelização pelo seu pensamento e pela sua acção, os confessores (
"confessaram" a sua fé); os que, nos claustros ou nos eremitérios, deixaram
uma rica herança espiritual, como os Padres do deserto. Estas grandes figuras eram
festejadas ao longo do ano, em datas que correspondiam ao seu "nascimento para
o Céu", isto é, ao aniversário da sua morte, misturadas no calendário com as festas da v
ida de Cristo ou da sua mãe, a Virgem Maria, que ofereciam outros tantos
pontos de referência à vida social e económica (termos de pagamento de contratos, por
exemplo). O grupo dos santos e das santas foi-se enriquecendo ao longo das
gerações. Os bispos que, durante a Alta Idade Média, desempenhavam o papel de pais pro
tectores da sua cidade, rapidamente granjearam uma reputação de santidade,
assim como alguns soberanos que apoiaram a evangelização do seu reino, nomeadamente
nos países mais tardiamente cristianizados. A eles se juntam alguns monges reforma
dores,
como Bento de Aniana ou Bernardo de Claraval, os fundadores de ordens novas, com
o Bruno para os cartuxos, Francisco de Assis para os frades menores, e Domingos
de
Gusmão para os frades pregadores, algumas mulheres reconhecidas pela sua acção caritat
iva (Isabel da Turíngia), pela sua irradiação espiritual (Catarina de Sena)
ou
192

pela sua vida mística (Brígida da Suécia); somente alguns raros leigos foram elevados
aos altares, depois de uma vida devotada aos valores evangélicos, como, na
Itália, o comerciante de tecidos Homebon de Cremona ou, por razões que misturam espi
ritualidade e política, o rei da França São Luís.
Ao valorizar estes comportamentos, a Igreja pretendia dar referências aos fiéis, pro
mover vários tipos de conduta e também, a partir do século XIII, propor modelos,
embora na sua maioria os santos não fossem nada imitáveis, pelo seu carácter excepcion
al tão marcado (André Vauchez). Isto é, o quadro que constituía o acesso à
santidade. Este começou por basear-se na "reputação" de santidade (afama sanctitatis),
para cuja definição a vox populi ("voz do povo") se considerava ter o valor
da vox Dei (a "voz de Deus"); a decisão final pertencia ao bispo ou ao abade, quan
do se estava em território monástico. O processo não esteve isento de abusos, de
que os próprios contemporâneos se aperceberam, como se pode ler no tratado muito críti
co escrito no século XII pelo monge Guiberto de Nogento sobre As Relíqüias
dos Santos. Os casos mais litigiosos foram levados a Roma; deste modo, tendo em
conta este precedente e o desenvolvimento do poder do papa, não será de admirar ver
o papado julgar que o controlo do acesso à santidade lhe pertencia em último recurso
e fixar o procedimento no fim do qual se tomaria a decisão: o "processo de canoni
zação".
Em parte decalcado no novo processo judiciário da Inquisição, consiste num inquérito fei
to a testemunhas, cujos resultados são examinados na cúria de Roma: a progressão
da causa não dependia unicamente das virtudes da pessoa em causa, mas também do pode
r e da riqueza daqueles que tinham apresentado o processo!
A veneração de que os santos foram objecto não se apoia somente na admiração que a sua vid
a suscitava, cujos episódios eram ampliados intencionalmente pela literatura
hagiográfica, como a Lenda Áurea do dominicano Tiago de Voragine. Baseia-se igualmen
te na convicção de que os seus méritos lhes mereceram que Deus lhes outorgasse
um poder de intercessão (virtus) que continuava unido não apenas aos seus ossos ou p
artes do corpo, mas também a todos os objectos, tecidos, líqüidos ou pequenas
coisas postas em contacto com eles. Foi assim que os lugares de sepultura dos sa
ntos se tornaram muito rapidamente destino de viagens piedosas, cuja finalidade
era
relacionar-se directamente com a fonte da virtus e obter os auxílios solicitados,
as mais das vezes de ordem terapêutica (curas diversas), mas igualmente de ordem
familiar (fecundidade, bom parto, sobrevivência de um bebê para baptizá-lo). Os lugare
s de culto foram providos de estruturas adequadas. Mas se, como acontecia freqüent
emente
na Idade Média, o túmulo do santo estava numa igreja, acedia-se a ele por uma galeri
a que permitisse a circulação em volta dele: um deambulatório com janelas através
das quais se podia estabelecer o contacto desejado com a sepultura.
193

Em certos casos, os fiéis passavam debaixo da pedra tumular ou até eram autorizados
a dormir nas suas proximidades, praticando a incubação já em vigor nos templos
antigos. Para atrair a benevolência do santo ou agradecer a sua intercessão que tinh
a obtido de Deus o milagre esperado, os fiéis depositavam no santuário oferendas
e ex-votos: os dons em cera, com o peso ou a altura da pessoa a curar ou moldado
s segundo a forma do membro a tratar, eram substituídos no fim da Idade Média e na
época moderna por pequenos quadros representando o episódio miraculoso. Para difundi
r o mais amplamente possível as virtudes dos santos, foi-se tornando costume,
desde a época carolíngia, dividir os seus corpos para os distribuir por numerosas ig
rejas que conservavam estas preciosas parcelas em relicários cuja forma lembra,
por vezes, a ossada preservada. Os cemitérios romanos, que se considerava só contere
m sepulturas de mártires (o que já não é de modo nenhum admitido pela crítica
actual), foram grandes fornecedores, até meados da época moderna. Nalguns casos, che
gou-se a cometer piedosos roubos, aqueles roubos de relíqüias cujo êxito se acreditava
terem o assentimento do santo e que estão na srcem de pitorescos conflitos entre
igrejas. No fim da Idade Média, nomeadamente em Itália, depois em todo o Ocidente,
na época moderna, observa-se que se reconhecem competências análogas às "ymagens" [assim
se escrevia em português naqueles tempos] dos santos, quadros, pinturas
ou estátuas que, por sua vez, se tornavam os suportes de gestos de devoção análogos.
O inegável e persistente sucesso desta piedade baseada no concreto e que não foi rec
usada pelo magistério, pelo contrário, já que os próprios clérigos participavam
nela, está na srcem de uma miríade de locais de peregrinação de que o Ocidente está semea
do: a sorte de alguns durou tão-só o tempo de um fogo de palha, ao sabor
do entusiasmo dos fiéis. Desta multitude de santuários, umas vezes anichados em loca
is dificilmente acessíveis, e, outras, quadro de práticas ilícitas, emergem alguns
destinos com irradiação mais ampla, geralmente servidos por pessoas da Igreja, secul
ares e, mais ainda, regulares, que acolhiam os visitantes e enquadravam as suas
devoções. Entre eles, além dos santuários marianos, como o de Rocamador [no Sul da França]
, citemos a basílica de São Nicolau de Bari, na Apúlia [Itália]; a da jovem
mártir de Agenais, Santa Fé, em Conques-en-Rouergue [França]; o túmulo de São Tomás Becket n
a Cantuária ou o Hospital de Santo Antão em Viennois que afirma deter
as relíqüias do grande santo monge egípcio e com uma especialidade na cura do "mal des
ardents", "fogo sagrado" ["peste do fogo", "fogo de Santo Antão" ou, mais
correctamente, ergotismo] que é transmitido pelo consumo da cravagem do centeio [e
nvenenamento causado pela ergotina].
De entre os mais célebres santuários medievais, a época moderna reteve especialmente o
de Santiago de Compostela, actual destino de caminheiros, peregrinos ou turista
s,
cada vez mais numerosos. O culto do apóstolo, parente de Jesus, desenvolveu-se na
Galiza a partir do século IX; depois,
194

foi muito bem orquestrado no contexto da luta contra os muçulmanos de que a Penínsul
a Ibérica foi palco na Idade Média. No estado actual da documentação, não é de
modo nenhum possível saber qual teria sido a amplitude da freqüentação deste santuário; não
nos deixemos levar por uma fonte muito srcinal, o Guia do Peregrino
de Santiago [do século XII], espécie de itinerário comentado, santuário por santuário, de
que só se conserva um único manuscrito. Mas a popularidade do santo é incontestável
- não somente enquanto "mata-mouros" -, como o prova a multiplicidade de igrejas q
ue afirmam possuir as suas relíqüias; e a viagem em direcção a Compostela, misturada
com a lenda de Carlos Magno, alimentou abundantemente o imaginário medieval; supom
os que, para alimentá-lo, tenham sido necessários alguns relatos de peregrinos,
que se tornaram auréolas da glória de um destino tão distante e prestigiado, e, ainda
por cima, situado no extremo do mundo então conhecido.
Dois últimos destinos de peregrinação distinguem-se nos usos cristãos ocidentais. O prim
eiro é Jerusalém, para onde os fiéis são cada vez mais atraídos, depois do
ano 1000, dado que a piedade se fixa mais na meditação da vida terrestre de Jesus. A
seguir, depois de 1095, a história da viagem para os Lugares Santos está imbricada
na da cruzada, que constitui a sua bússola armada e, às vezes, também o desvio do seu
rumo. O segundo é Roma, lugar importante da memória cristã por lá terem sido
mortos Pedro e Paulo, e, depois, muitos outros mártires. Além disso, o papel devolvi
do ao bispo da antiga capital do Império dá à peregrinação romana um relevo especial.
Se os peregrinos vão lá visitar os túmulos das duas "colunas da Igreja", muitos deles
também vão para receberem a absolvição de faltas graves que só o papa lhes
pode conceder. Assim, a "viagem romana" ganha, desde a Alta Idade Média, uma dimen
são penitencial, presente em todas as peregrinações, em razão do esforço realizado,
mas mais acentuada neste. Estes precedentes fizeram com que, nos finais do século
XIII, germinasse a idéia de que essa fonte de graça podia estender-se a todos os
fiéis, na viragem de cada século, depois segundo um ritmo mais freqüente, pela proclam
ação dos Jubileus, o primeiro dos quais aconteceu no ano 1300: nestas circunstâncias,
a visita das basílicas romanas valia a indulgência plenária - quer dizer, a remissão de
todas as faltas cometidas até então e das penas acumuladas para as expiar
- para aqueles que a realizassem.
Catherine Vincent
195

Nossa Senhora

Foi ao longo do século XII que Maria se tornou "Nossa Senhora" na literatura maria
na: então, o culto da Virgem conhecia um novo fôlego ligado à redescoberta da humanida
de
de Cristo. Num mundo ocidental que se esforça por conjugar realeza e feudalismo, a
Virgem afirma-se como uma figura importante de poder.
Posta ao serviço da ideologia da soberania, definida como uma realeza sagrada desd
e o século VIII, Maria torna-se rainha do Céu. Depois da vacatura do poder real,
conseqüência do desmoronamento do Império Carolíngio, no século X, participa na sua eleição c
mo rainha da Terra. Também é neste momento que as novas estruturas
de comando - entre as quais estão, por exemplo, a ordem monástica de Cluny, em pleno
crescimento - apelam instantemente para a figura mariana a fim de fixar a sua
soberania. Por isso, vê-se a "Senhora das senhoras" reinar sozinha nos mosteiros a
presentados como terras "virgens", sem lastro de pecado e povoadas de homens esp
irituais,
os monges, que sonham ser semelhantes aos anjos para conduzir os homens carnais à
salvação. Em virtude da conclusão de um paralelismo teológico entre a Virgem e
a Igreja, baseado na comparação entre as suas respectivas maternidades, uma em relação a
o Filho de Deus, a outra relativamente aos homens, doravante Maria está em
condições de impor a sua autoridade de Igreja às dissidências, uma das missões que a refor
ma gregoriana se propusera erradicar.
Com o Menino Jesus ao colo, a Virgem "em majestade" apresenta um Deus encarnado
aos homens que interrogam de tal modo o mistério cristão que o põem em causa. "Porque
é que Deus se fez homem?", resume Santo Anselmo (+ 1109) que responde, interpondo
Maria. Para ir venerar o Menino Jesus, o povo cristão põe-se em marcha, como os
reis magos, rumo aos santuários marianos - este povo a quem se explica que ele per
egrina para a Jerusalém celeste, meta e fim do seu exílio na Terra.
196

O progresso doutrinal conduz paralelamente à afirmação da maternidade espiritual da So


berana, definida como a mediadora entre os homens e Deus: Mãe de Deus, Maria
torna-se Mãe dos homens.
Nos anos 1100, começa o desenvolvimento das peregrinações à Virgem. Localizam-se essenci
almente nos Centro e Norte da Europa. Em Laon, em Soissons, em Chartres...,
há milhares de peregrinos que vão tocar nas relíqüias de Maria: a sua túnica branca, o seu
delicado calçado, o seu leite ou os seus cabelos, últimos vestígios da
sua presença corporal. A crença na Assunção, que se fixa nos espíritos do século XII, coloca
no Céu o corpo incorruptível de Maria elevada com a sua alma até à luz
de Deus. Os relatos de milagres de Maria, escritos, muito freqüentemente, por mong
es e cónegos, visam não só assegurar a promoção das peregrinações, como também
promover a salvação. Rapidamente reunidas em colecções - como os Milagres de Nossa Senho
ra de Guilherme de Malmesbury, compostos por volta de 1123, ou os de Gautier
de Coinci, antes de 1236 -, os relatos de milagres contam as inumeráveis graças da Mãe
de Deus. Os miraculados da Idade Média parecem ter saído directamente dos
Evangelhos. Vivem o mesmo quinhão de sofrimentos e enfermidades, inspirados por um
a história comum, relida como sendo a da humanidade subtraída, depois da queda,
à ordem estabelecida por Deus no Génesis. Então, a Virgem mostra o rosto da sua graça, E
la que é a "cheia de graça", como diz a oração Ave-Maria, um dos elementos
do catecismo mínimo do cristão do século XII com o Pater ou Pai-Nosso e o Credo (prime
ira palavra da profissão de fé cristã). São Bernardo (+ 1153) utiliza nomeadamente
a imagem do aqueduto para descrever este fluir do amor divino que corre para tod
o o homem que eleva a sua oração a Maria. Deste modo, os relatos de milagres são
a ocasião para traduzir a crença na intercessão da Virgem, que, ainda melhor do que os
santos, apresenta a Deus os pedidos dos homens para que todos sejam salvos.
Ao mesmo tempo que Ela restabelece a sociedade medieval numa bem-aventurada feli
cidade, semelhante à que reinava antes da queda no jardim do Éden, a Virgem em majes
tade
domina sobre os portais das igrejas, tornando-se uma imagem monumental, como em
Notre-Dame de Paris. A partir de finais do século XII, assiste-se à sua coroação
ao lado de Cristo, simultaneamente juiz e rei. Nos textos, a Virgem é apresentada
como a advogada dos pecadores e a rainha das rainhas. Triunfante, Maria é revestid
a
com um manto que as suas mãos abrem para acolher a cristandade nas entradas das ig
rejas, quais portas do paraíso. Agora, os comentadores identificam a mulher coroad
a
com a Mulher do Apocalipse, vestida de Sol e coroada de estrelas. À maneira de Rup
erto de Deutz (+ 1129), sublinham o seu papel na história do fim dos tempos. O
seu seio de mãe avoluma-se em tempo de novas maternidades, definidas como espiritu
ais. Assim, por alturas de 1200, a ordem cisterciense proclama-a fundadora e mãe
dos
197

monges. Ao jeito de São Bernardo (+ 1153), "o bebê de Nossa Senhora", segundo o seu
hagiógrafo Pierre de Celle, os noviços são apresentados como irmãos de leite
do Menino Jesus. Bebem o leite espiritual que brota do seio alimentador da Mãe de
Deus. Depois, seguindo a ordem cisterciense, as novas ordens religiosas de São
Francisco (+ 1226) e de São Domingos (+ 1221) reivindicam o seu padroado: os frade
s refugiam-se sob os panos do grande manto da mãe de misericórdia.
A partir de então, a figura mariana mostra toda a sua magnificência. De facto, o cor
po de Maria situa-se no centro da teologia que se vai elaborando a propósito
dela. E, como deste corpo nasceu o corpo de Cristo que é, ao mesmo tempo, de carne
, corpo eucarístico e corpo da Igreja, quer dizer, de todos os baptizados, o corpo
da Virgem também pode servir de metáfora para designar a Igreja. Por isso, cada um d
os membros ou corporações que compõem a Igreja - do povo ao papa - vê em Maria
a sua figura mais eminente. Imediatamente depois do IV Concílio de Latrão (1215), a
Virgem, modelo de obediência ao Pai, é proposta com modelo da normalização da
Igreja. Compete-lhe dar o exemplo às ordens religiosas, guiar as almas até à descobert
a do mistério de Deus, convidar os fiéis a tornarem-se cristãos exemplares.
Em suma, fazer respeitar o programa conciliar de erradicação da heresia, de enquadra
mento da crença dos leigos e de construção da unidade da cristandade.
Então, a rainha apresenta-se também como a serva deste dispositivo. A figura da "ser
va" dos Evangelhos é realçada nas releituras do texto sagrado. É assim que aparecem,
em meados do século XIV, os primeiros "servos e servas de Maria", tanto clérigos com
o leigos: por exemplo, a ordem dos servitas de Maria. A Virgem é, para eles,
uma mãe de ternura em quem os seus "filhos" e as suas "filhas" vêem uma santidade in
imitável. A imitação mariana abre sobretudo novos caminhos espirituais às mulheres
místicas do início do século XIV, que se consideram "grávidas do Espírito Santo" e "dão à luz
o Menino Jesus na sua alma como, por exemplo, Santa Catarina de Sena
(+ 1380).
A devoção mariana faz parte deste mesmo processo de incorporação destinado a integrar ca
da corpo individual ou colectivo no corpo da Igreja. Da Flandres à Itália,
o mesmo movimento ordena confrarias, ordens terceiras, cidades, universidades (n
o sentido medieval genérico de "agrupamento")... Igualmente, quando a Igreja se di
vide,
e com ela a cristandade, durante o Grande Cisma (1378-1417), o Filho martirizado
descido da cruz sucede ao Menino Jesus ao colo da sua mãe. As Pietà, esta nova icon
ografia
do século XIV, mostram a Virgem dolorosa perante as desgraças do tempo (peste, fome,
epidemias...), enquanto a oração Stabat Mater descreve Maria aos pés da cruz.
Nas ladainhas oferecidas a Maria, as dores substituem as alegrias e os teólogos co
mentam a comunicação da Paixão entre a Virgem e o seu Filho. Em Maria, pedra angular
do mundo cristão ocidental, o fim da Idade Média também tenta
198

o seu último estertor de indivisão. Os seus milagres e as suas aparições enchem-se dessa
visão, em particular nas controvérsias sobre a Imaculada Conceição que,
mais que nunca, ameaçam a unidade da Igreja. No final da Idade Média, o culto da Vir
gem também se expõe a uma reforma que o século XVI protestante realizou em actos.
Sylvie Barnay
199

A multiplicação das obras de caridade (séculos XII-XIII)


Desde os primeiros séculos, a Igreja proclamou a necessidade de prestar assistência
aos pobres: o amor de Deus anda a par do amor ao próximo (Mt 22,34-40; Mc 12,28-34
;
Lc 10,25-28). Na tradição cristã, este dever de caridade realçou em alto grau a responsa
bilidade dos bispos. Com o desenvolvimento do monaquismo, sobretudo beneditino,
a prática da hospitalidade e da esmola exigida pela regra de São Bento aumentou as c
apacidades de ajuda aos indigentes. É a partir do século XI e, sobretudo, do
século XII, independentemente das expressões multiformes da caridade privada, que a
doutrina da salvação pelas obras, largamente desenvolvida, incita os fiéis a
praticar a generosidade - já que, segundo a Escritura, a esmola apaga os pecados -
e o cuidado dos pobres toma progressivamente formas mais organizadas, tanto no
seio das ordens especializadas como no quadro dos movimentos confraternais. Esta
actividade caritativa encontrou o seu programa nos actos que distinguem os elei
tos
dos reprovados, seguindo o relato do Juízo Final (Mt 25,31-46): são as "obras de mis
ericórdia". Às obras concretas citadas no texto (alimentar, dessedentar os pobres
e vesti-los, visitar os doentes e os presos, acolher os estrangeiros e sepultar
os mortos), os teólogos acrescentaram um equivalente espiritual (ensinar, aconselh
ar,
repreender, consolar, perdoar, converter, orar pelos vivos e pelos defuntos).
Socorrer os peregrinos esgotados pela sua caminhada para Jerusalém, depois ir ajud
ar os cruzados feridos e doentes, foram os objectivos da primeira iniciativa tes
temunhada
de vocação ao serviço do próximo inserida no quadro de uma ordem religiosa reconhecida:
o Hospital de São João de Jerusalém, que é a mais antiga das ordens de caridade.
A regra que lhe foi atribuída em meados do século XII foi, depois, muitas vezes imit
ada por numerosos estabelecimentos hospitalares, no que concerne ao acolhimento
dos doentes. Depois de ter recebido os cuidados indispensáveis (confissão e comunhão),
os pacientes são conduzidos à sua cama e servidos como se
200
fossem os senhores da casa. A qualidade de hospedagem e a eficácia dos cuidados, j
untamente com a abundância das esmolas distribuídas diariamente aos necessitados,
constituem os traços característicos de uma hospitalidade-modelo, com certeza princi
palmente ilustrada na casa-mãe de Jerusalém, depois em Acre e em Rodes, mas que
também existiu em numerosas comendadorias dispersas por toda a cristandade.
Ao longo do século XII, num Ocidente em pleno desenvolvimento económico e demográfico
que também gera os seus pobres abandonados, as formas de assistência multiplicam-se
e também se diversificam. A par dos organismos de distribuições caridosas, cuja inicia
tiva pertenceu a algumas cidades e também freqüentemente a simples cidadãos,
surgiram numerosos hospitais e leprosarias, na maioria das vezes independentes u
ns dos outros. Em 1198, o papa Inocêncio III aprova duas fundações recentes, novas
nos seus objectivos: a dos irmãos do Espírito Santo e a dos trinitários. Com efeito, f
oi por volta de 1180 que Gui de Montpellier fundou na sua cidade um estabelecime
nto
que se propunha como missão alimentar os famintos, vestir os pobres e tratar os do
entes. O seu reconhecimento pelo papa, seguido pouco depois pela sua união, sob
a mesma direcção de frei Gui, ao hospital que o próprio Inocêncio III mandara construir
em Roma, nas margens do Tibre, Sancta-Maria-in-Saxia, depois a agregação
progressiva de diversos lugares de acolhimento na Europa fizeram desde o século XI
II irmãos do Espírito Santo, doravante encarregados de uma verdadeira ordem religios
a
hospitaleira, os promotores dedicados e eficazes da caridade evangélica. Esta exer
cia-se em benefício das vítimas da miséria e da doença: pobres transeuntes, velhos,
enfermos, mulheres em trabalho de parto, crianças abandonadas, todos podiam encont
rar asilo e conforto nas suas casas.
Ao mesmo tempo, a criação de outra ordem dedicada ao resgate de cativos prisioneiros
em terra do islão e colocada sob a protecção da Santíssima Trindade também se
insere na prática das obras de misericórdia. Desde o seu primeiro estabelecimento de
Cerfroid (diocese de Meaux, França), depois em casas estabelecidas nos países
mediterrânicos, os trinitários não somente se devotaram ao serviço dos prisioneiros, afe
ctando a esta actividade um terço das suas receitas, mas também mantiveram,
agregado à maior parte dos seus conventos, um hospital, e consagram à assistência aos
pobres e aos doentes ainda um terço dos seus bens. À sua imitação foi fundada
em Barcelona, em 1223, uma confraria consagrada à libertação dos cristãos escravizados p
elos muçulmanos que, a partir de 1235, se tornou uma ordem religiosa de cónegos
agostinhos, Santa Maria das Mercês. Os "mercedários" dedicavam-se essencialmente à org
anização de grandes campanhas de peditórios e serviam igualmente nos hospitais.
Outra ordem hospitaleira especializada, a dos irmãos de Santo Antão em Viennois, dev
otou-se às vítimas do ergotismo: o "fogo de Santo Antão" ou "mal des ardents"
é uma grave intoxicação alimentar que fez razias na
201

Europa entre os séculos XI e XIV. Devida ao consumo de cereais fermentados, provoc


a sensações de queimadura, depois a queda dos membros atingidos. A partir do seu
estabelecimento primitivo no Delfinado, os antoninos implantaram uma vasta rede
de dependências, centros de recebimento dos produtos dos peditórios e lugares de
acolhimento para os doentes. Em 1297, Bonifácio VIII integrou-os numa ordem religi
osa de cónegos regulares que seguiam a regra de Santo Agostinho, sob a autoridade
do abade de Santo Antão em Viennois. A competência dos antoninos, as curas que obtin
ham, a sua dedicação no cumprimento da sua missão valeram-lhe a admiração da
sociedade cristã, a devoção de numerosos testadores, o sucesso das suas campanhas de p
editórios e colectas, e, finalmente, a honra de manterem um hospital ambulante
seguindo a corte pontifícia nas suas deslocações, para cuidar dos peregrinos e os curi
alistas sofredores. De facto, pouco a pouco, com o recuo do ergotismo no século
XIV, os hospitais da ordem acolheram todos os doentes sem distinção, mantendo através
dos séculos uma fidelidade sem falhas ao seu ministério de caridade.
Ao lado das grandes ordens, foram numerosas as pequenas comunidades hospitaleira
s, organizadas à volta de uma casa importante, mas cuja irradiação se limitava a
uma determinada região, como os grandes hospícios dos peregrinos que foram Roncesval
es, São Tiago d'Altopascio ou Aubrac e, sobretudo, as múltiplas fraternidades
semi-religiosas e as confrarias laicais que consagram o essencial ou uma parte i
mportante das suas actividades à assistência. "Esmolas", "caridades", "mesas dos
pobres" pulularam na Europa na Idade Média, a funcionar em formas variadas, submet
idas a estatutos e a regulamentos também muito diferentes, mas todas elas voltadas
para o socorro das necessidades, especialmente das necessidades corporais, sob a
forma de "dõaçom" de alimentos e de roupas. Instituições caridosas de outro tipo
também nasceram à volta da tomada de consciência do perigo representado pela travessia
de ribeiros e rios. Deste modo, associações de irmãos e de irmãs "da ponte"
encarregaram-se da manutenção e, por vezes, até da construção de uma ponte ou do atravessa
mento dos cursos de água por barco e do acolhimento dos viandantes nos
hospícios situados nas proximidades, ilustrando uma hospitalidade caminheira srci
nal, particularmente representada ao longo do Ródano (Lião, Pont-Saint-Esprit,
Avinhão).
À acção destas estruturas associativas com finalidades assistenciais, institucionaliza
das e cada vez mais municipalizadas, acrescenta-se um desenvolvimento de iniciat
ivas
individuais que iam da fundação de um hospital por uma personagem rica à instituição dos "
pobres de Cristo" como legatários universais; desde a manutenção por um
príncipe ou prelado de uma capelania até à ajuda perante os tribunais oferecida gratui
tamente por um jurista misericordioso.
Por isso, foram-se multiplicando as respostas dadas pela Idade Média ao desafio so
cial e religioso representado pela existência de miséria no seio
202

de uma franja da população mais ou menos numerosa segundo os locais e as épocas. Desen
volvidas no contexto do grande impulso de prosperidade que caracterizou os
séculos XII e XIII europeus, estimuladas pelo despertar das consciências que a palav
ra dos pregadores provocava, as instituições de assistência e todos os outros
gestos e comportamentos ilustravam a caritas, a lei de amor evangélico, e também for
am, para o mundo laical e face ao clero, uma via de acesso ao controlo parcial
do sagrado e a uma responsabilização acrescida do cristão diante da sua salvação.
Daniel le Blévec
203

O culto do Santíssimo Sacramento (século XIII)

O culto do Santíssimo Sacramento - entendido não só como a cerimónia da eucaristia (a mi


ssa), mas também a veneração prestada ao pão e ao vinho consagrados pelas
palavras do celebrante em corpo e sangue de Jesus (Mt 26,26-28; Mc 14,22-24; Lc
22,19-20) - nasceu durante a segunda metade da época medieval. Na verdade, o prime
iro
milénio cristão não se tinha preocupado com aprofundar e explicitar a teologia da euca
ristia. Foi preciso esperar pela época carolíngia para que dois monges se enfrentass
em
sobre a interpretação a dar à transformação assim operada: um, Pascásio Radberto (+ ca. 860)
, abade de Corbie, atendo-se a uma interpretação "realista" (as espécies
tornam-se realmente o corpo e o sangue de Cristo); o outro, Ratramo (+ ca. 870),
igualmente monge de Corbie, militava por uma leitura espiritual. No século XII,
Berengário, um clérigo de Tours, relançou o debate em termos mais marcados, num contex
to de renovação da busca dialéctica e do pensamento científico. Como resposta
às várias correntes, os escolásticos acabaram por formular o que ainda continua como p
osição oficial da Igreja ocidental: a "transubstanciação". Segundo esta doutrina,
as espécies eucarísticas são verdadeiro corpo e verdadeiro sangue de Cristo, sob o "as
pecto" aparente do pão e do vinho, cuja "substância" foi transformada pela
prolação das palavras da consagração: a forma continua, a matéria muda.
A transubstanciação é citada nos cânones do IV Concílio de Latrão (1215) e a sua transmissão
oi objecto de uma pastoral intensa entre os séculos XIII e XV. Todos
os recursos da arte, do gesto e da palavra foram mobilizados para levar os fiéis a
entrar na delicada inteligência do mistério e responder às objecções que nunca
faltaram. Multiplicaram-se os relatos de milagres eucarísticos que falam de toalha
s de altar cheias de sangue (em Bolsena, Itália, em 1263) ou da aparição de Cristo
menino ou a sofrer na hóstia. A divisão infinita do corpo de Cristo é comparada à da cha
ma que nem por isso diminui. A cerimónia da missa conhece a introdução do
204

gesto da elevação, precisamente depois da consagração, durante o qual o padre, que celeb
ra de costas para os fiéis, eleva a hóstia e o cálice acima da sua cabeça
para que os assistentes possam vê-los: os fiéis chegam a pensar que "ver a hóstia" é uma
garantia contra a morte súbita. Compõem-se orações para preparar clérigos
e leigos para a contemplação do Corpus Christi ("Corpo de Cristo") e para a comunhão.
Esta recepção da hóstia consagrada ainda não era preconizada a não ser de modo
limitado, mas ao menos uma vez por ano, pela Páscoa.
O fervor eucarístico é particularmente vivo no mundo dos religiosos: mas é entre os ca
rtuxos que se encontra a primeira menção da elevação. As mulheres mostram-se
especialmente receptivas; uma delas, Juliana de Montcornillon (+ 1258), religios
a agostinha da região de Liège, está na srcem da celebração de uma festa própria
do mistério eucarístico, chamada Festa do Corpo de Deus ou Corpus Christi. Esta cele
bração foi adoptada pela diocese de Liège antes de o papa Urbano IV, antigo arcedíago
desta diocese, a estender a toda a cristandade de obediência romana em 1264; parec
e que as orações litúrgicas próprias desta celebração podem ser atribuídas a Tomás
de Aquino. Em 1311, o Concílio de Vienne reafirmou a sua obrigatoriedade.
Então, esta torna-se, nomeadamente nas cidades, um dos maiores acontecimentos anua
is. De facto, implicava a organização de uma procissão durante a qual a hóstia
(o vinho foi eliminado por razões práticas evidentes) era levada solenemente sob um
pálio, numa pequena caixa preciosa, uma píxide, posteriormente substituída por
um "ostensório" (objecto próprio para lhe acrescentar dignidade e a mostrar aos assi
stentes), rodeado pelo clero e pelos fiéis que o precediam e seguiam. Entre estes,
figuravam em lugar destacado os membros das confrarias do Santíssimo Sacramento, q
ue tinham sido abundantemente fundadas para desenvolver nas paróquias o culto do
Corpus Christi - por exemplo, recolhendo dinheiro para a manutenção de uma lamparina
junto da reserva eucarística (o seu uso perpetuou-se nas igrejas). Nos últimos
séculos da Idade Média, os governos citadinos promoveram esta procissão do Corpo de De
us, ocasião privilegiada para a cidade manifestar a identidade dos elementos
que a compunham. As corporações de artes e ofícios, os grupos eclesiásticos (cónegos da ca
tedral e colegiais, monges, frades mendicantes e confrarias) e o corpus
da cidade rivalizavam uns com os outros para se mostrarem no seu melhor e ficare
m bem colocados na procissão. Deste modo, a Festa do Corpo de Deus ganhou uma dime
nsão
cívica que conservou na época moderna.
No final do século XV, a espiritualidade da eucaristia fortalecia-se com favores c
olectivos e individuais mais estruturados, tanto no espaço renano-flamengo (de
que é testemunha A Imitação de Cristo) como na Itália, quando se desenvolve, por alturas
de 1500, nalguns círculos como o Oratório do Divino Amor de Génova, a idéia
de uma comunhão diária e de um culto mais freqüente da hóstia. Quando, a partir de 1527,
os barnabitas
205

ou os capuchinhos organizam em Milão a oração das Quarenta Horas (orações expiatórias dirigi
das a Deus diante do Santíssimo Sacramento) e quando o papa dá indulgências
por este gesto em 1537, é todo o sistema moderno da devoção ao Santíssimo Sacramento exp
osto em tempo de calamidade que é promovido. Em 1550, Filipe de Néri adapta
a liturgia a Roma e apresenta-a em decorações pintadas, criando assim um espaço que re
alça o poder do Santíssimo Sacramento e motivando, neste contexto, o nascimento
de uma característica da arte barroca. Em 1552, também os jesuítas organizam orações inint
erruptas diante do SS. Sacramento em Messina [Sicília] ameaçada pelos turcos
e, a partir de 1556, convidam os fiéis a orar durante o Carnaval para expiar as fa
ltas cometidas durante esta época, criando assim o conceito de adoração perpétua
reparadora que atingiu o seu pleno sucesso em finais do século XIX.
Estas sensibilidades novas são propostas em grande escala pelos jesuítas nos seus co
légios desde o fim do século. Reafirmado pelo Concílio de Trento, o culto divino
torna-se então um sinal identificativo do catolicismo e, às vezes, um instrumento de
opressão relativamente a outras confissões, obrigadas à veneração da hóstia.
Em redor desta identidade, fortalecida por milagres em finais do século XVI, Franc
isco de Sales ou Bérulle, entre outros, estabelecem as modalidades de um companhei
rismo
de cada fiel com Cristo glorioso. Esta capacidade de evocar a presença concreta e
tranqüilizadora de Cristo vencedor sobre todo o mal justifica cerimónias grandiosas
para recordar a protecção divina nas catástrofes, em situação de minoria, ou para lançar nov
as cruzadas, políticas ou morais, até ao século XX. Ajoelhar-se diante
do SS. Sacramento permite que se mostre uma submissão pessoal à Igreja romana, ao me
smo tempo que constitui uma prática segura e activa para reparar os pecados do
mundo. A basílica do Sacré-Coeur, construída a partir de 1877 unicamente com o dinheir
o dos fiéis em reparação pelos excessos da Comuna, e dedicada desde a sua srcem
à adoração perpétua, não será porventura o melhor exemplo da influência do SS. Sacramento no
undo?
O culto da presença permanente de Cristo, incessantemente revivifi-cada, permite a
limentar a espiritualidade individual dos leigos numa intimidade com Ele em razão
da sua Encarnação e da sua vitória sobre a morte; é a marca da srcinalidade católica, uma
sensibilidade que torna concreta a transcendência enquanto arma de combate
contra os maus cristãos, contra os pagãos e, mesmo, contra quem se opõe a Roma.
Catherine Vincent e Nicole Lemaitre
206

João Huss (+ 1415)

Constança, Alemanha, 6 de Julho de 1415: os padres do Concílio assistem à morte na fog


ueira de um padre checo que acabavam de declarar herege, Jan de Husinec, conheci
do
por João Huss. Ainda não tinham passado dois meses e já centenas de nobres da Boémia e d
a Morávia protestavam contra a sentença. Seguiram-se quinze anos de guerras,
durante as quais a Boémia enfrentou cinco cruzadas lançadas contra os discípulos de Hu
ss pelo papa Martinho V e pelo imperador Segismundo. Facto inédito, um novo
concílio reunido em Basileia teve de negociar com eles e, por fim, em 1436, outorg
ar-lhes um grande reconhecimento de facto. Mas como pôde a morte deste obscuro
teólogo eslavo promover o nascimento de uma das primeiras Igrejas nacionais na Eur
opa?
Nada parecia predispor o jovem Huss para um papel de revolucionário. Tinha nascido
por volta de 1370 numa aldeia da Boémia meridional, no seio de uma família modesta
que o orientou, tanto por ambição quanto por convicção, para a carreira eclesiástica. Depo
is dos estudos elementares, por alturas de 1390, João inscreveu-se na faculdade
de artes da universidade de Praga, onde rapidamente obteve os seus primeiros gra
us, embora sem grande brilho: bacharel "em artes" em 1393, foi aceite como profe
ssor
três anos mais tarde. Nesse tempo, a capital da Boémia brilhava em todo o seu esplen
dor. Promovida a arcebispado em 1344, sede de uma universidade desde 1347, teria
entre trinta a quarenta mil habitantes e abrigava a residência de Venceslau IV, re
i dos Romanos (título que o imperador tinha depois da sua eleição pelos príncipes
germânicos, antes da sua coroação em Roma). Ao descobrir a metrópole mais povoada, mais
cosmopolita e mais brilhante da Europa Central, Huss familiarizou-se com
o movimento de renovação religiosa que havia ganhado corpo guiado pelos arcebispos;
debatido no quadro dos sínodos diocesanos, depois tratado na universidade, o
movimento visava dar mais regularidade ao funcionamento das instituições eclesiásticas
, mais dignidade aos membros da Igreja secular
207

e mais cultura cristã ao povo no seu conjunto. Como muitos outros membros da unive
rsidade praguense, João Huss quis participar o melhor possível nesta obra educadora
que fortalecia a sua utilidade social ao mesmo tempo que satisfazia as suas aspi
rações espirituais.
Depois da morte do imperador Carlos IV em 1378, a reforma de Praga enfrentava um
a crise de crescimento. O arcebispo Jan de Jenstejn entrara em conflito com Venc
eslau
IV, enquanto as dificuldades económicas nascentes reavivavam as tensões entre checos
e alemães; e, lá como em toda a parte, o Grande Cisma exercia os seus efeitos
perniciosos, instilando desconfiança onde antes havia respeito pela Sé de Roma. Huss
foi a testemunha e intérprete desta efervescência inquieta. Como professor da
universidade, pertencia certamente à elite clerical que aconselhava o arcebispo. M
as a sua geração sentia-se, com ou sem razão, ameaçada: menos seguros acerca do
seu saber e da sua posição académica do que os doutores em teologia mais idosos, despr
ovidos dos privilégios e do prestígio dos seus colegas juristas, expostos à
concorrência dos frades mendicantes, amargurados por terem de partilhar funções e rece
itas com os professores estrangeiros, Huss e os seus amigos estavam prestes
a pôr as suas competências ao serviço da crítica da ordem estabelecida.
Inicialmente, isto passou pela adopção do wyclifismo, do nome do célebre professor da
universidade de Oxford John Wyclif (ca. 1327-1384). Este grande teólogo deixara
uma obra tão abundante quanto polémica que puxava o agostinismo no sentido de uma co
ntestação explícita das mediações eclesiais. Huss foi daqueles que recopiaram
os seus escritos filosóficos e que, desde então, subscreveram um realismo* radical,
professando a existência de universais (ou conceitos aplicáveis a todos os indivíduos
de um género ou espécie) formais e incriados na inteligência divina. Mais aberto que o
seu inspirador às necessidades espirituais dos fiéis, tornou-se também pregador
de sucesso, conforme a corrente pastoral estabelecida em Praga desde meados do séc
ulo XIV por Conrado de Waldhausen e Milíc de Kromeríz. Tendo obtido em Março de
1402 uma cátedra na capela de Belém recentemente fundada (1391), pregou aí em checo du
rante dez anos e animou uma escola de pregadores que abastecia com sermões-modelo.
Severo com os abusos na Igreja, mas ainda prudente no plano teológico, o seu ensin
o conheceu um grande sucesso e valeu-lhe o apoio do novo arcebispo Zbynek Zajíc
de Házmburk, que o nomeou pregador nos sínodos de Outubro de 1405 e 1407. Foi para e
le a ocasião de se inserir na sociedade política de Praga e de comunicar com
valores patrióticos a que os universitários tinham durante muito tempo sido refractári
os. Autor de cânticos e também de manuais de educação, o pregador de Belém
soube seduzir as elites praguenses pelo seu rigorismo

* Doutrina oposta ao nominalismo e que defende a realidade dos universais, indep


endentemente de serem ou não conhecidos por um sujeito.
208

moral e pela sua aptidão em lhes comunicar o gosto pela Palavra de Deus, largament
e difundida e traduzida. Os círculos de leigos piedosos, em particular os beguinos
que, havia alguns anos, reclamavam o acesso directo às fontes da fé, encontraram ass
im em João Huss um pai espiritual à sua medida.
A partir de 1408, a referência clara a Wyclif pô-lo em conflito aberto com a hierarq
uia eclesiástica. Embora Huss tenha permanecido ligado ao realismo eucarístico
(fé na "presença real" do corpo e do sangue de Cristo sob a aparência das espécies do pão
e do vinho eucarísticos) e tenha hesitado diante da predestinação, defendeu
vigorosamente a ortodoxia do pensamento de Wyclif contra o arcebispo que quis pr
oscrevê-lo do ensino. Proibido de pregar, revoltou-se e procurou o apoio do rei Ve
nceslau
IV. Esta aliança conjuntural permitiu que a "nação" checa da universidade arrancasse o
decreto de Kutná Hora, que reduzia os professores alemães à minoria, obrigando-os
a emigrar (18 de Janeiro de 1409). Por seu lado, embora apoiasse teoricamente o
Concílio de Pisa (1409), a partir de então, Huss confiou largamente no poder laico
para assegurar a reforma para que apelava tanto na capela de Belém como na univers
idade. A sua audiência foi crescendo, como o prova a abundante correspondência
que manteve com todos os que, desde a rainha Sofia a simples estudantes ou caval
eiros, solicitavam os seus conselhos. A sua desgraça foi muito mais penosa quando,
em 1412, se opôs ao rei, a quem censurou por ter autorizado a pregação de indulgências a
favor da "cruzada" italiana do papa. Cominado com uma excomunhão agravada,
não lhe restou senão apelar para Cristo e exilar-se fora de Praga em plena ebulição. Enc
ontrou refúgio nos castelos que os seus protectores possuíam na Boémia meridional,
onde se consagrou a uma pregação itinerante cada vez mais radical e à redacção de numerosa
s obras polémicas. Entre elas destacam-se um panfleto contra a simonia,
uma ampla colecção de sermões em checo (Postila) e, sobretudo, o seu tratado De Eccles
ia, em que ele corta definitivamente todas as amarras: ignorando as soluções
conciliaristas que, na época, haviam ganhado o favor dos teólogos, acabou por recusa
r o primado romano e a definição usual da Igreja como sociedade visível.
Para quebrar o seu isolamento, Huss teve finalmente de ceder, no Verão de 1414, ao
rei dos romenos, Segismundo, que se apressou a ir defendê-lo em Constança diante
do futuro Concílio. Embora munido de um salvo-conduto, os seus adversários alemães e t
ambém franceses e checos conseguiram lançá-lo na prisão pouco depois da sua
chegada. Então, aproveitou a sua inactividade forçada para responder por escrito às ac
usações que lhe eram feitas e para confortar os seus discípulos que acabavam
de restabelecer em Praga a comunhão sob as duas espécies (pão e vinho) para todos os f
iéis, quando se tinha imposto o uso de dar em comunhão aos leigos somente o
pão. Perante a avalanche de protestos dos nobres checos presentes, o concílio conced
eu que o acusado fosse ouvido em sessão pública. Desde
209

Junho, as suas audições apenas mostraram publicamente a hostilidade visceral do concíl


io a uma reforma conduzida fora de qualquer mediação institucional nem preocupação
com o escândalo ou com a oportunidade. É-se tentado a reconhecer que, por detrás desta
oposição, se encontra a clivagem entre cristandades de antiga latinidade,
dotadas de uma longa tradição de auto-regulação reformadora, e o cristianismo, espontane
amente mais impaciente e intransigente, de quase "recém-chegados". Fosse
como fosse, Huss negou ter defendido as posições erradas que lhe haviam sido imputad
as e recusou em consciência retractar-se. Depois de o cardeal Zabarella e outros
Padres conciliares terem tentado em vão as últimas mediações, Huss foi queimado e as sua
s cinzas espalhadas no Reno. Mas, em breve, desenvolveu-se na Boémia um culto
em sua honra a que foi associado o seu companheiro de infortúnio Jerónimo de Praga (
ca. 1380-1416).
A memória do seu martírio iria alimentar cada vez mais os conflitos sobrepostos da h
istória política e religiosa checa. Os reformadores protestantes, na peugada
de Martinho Lutero, arrolaram Huss entre os precursores da pressuposta verdadeir
a religião, enquanto, depois da batalha da Montanha Branca (1620), a Contra-Reform
a
triunfante se esforçou por erradicar a menor das suas recordações. Tempo perdido: desd
e os primeiros decénios do século XIX, o nacionalismo checo revivescente tornou-o
inspirador da sua luta pela identidade eslava face ao autoritarismo germânico. A p
rimeira república checoslovaca, que nasceu em 1918 sobre os escombros do Império
Austro-Húngaro, arrogava-se, muito logicamente, o direito de ser sua herdeira e até
defendia a formação de uma Igreja hussita auto-céfala, composta de fiéis liberais
e nacionalistas. Contudo, nestes últimos anos, a imagem por Huss foi-se alterando.
De um lado, a Igreja católica, sem pronunciar a reabilitação da sua doutrina,
reconheceu a sua piedade e o seu zelo apostólico. Sobretudo, a instrumentalização do h
ussitismo pelo regime comunista e as coligações da Igreja hussita com a ditadura
acabaram por cansar a opinião pública. Sinal dos tempos, quando a Europa se reunific
a, João Huss vai cedendo o seu lugar, no coração dos checos, ao muito europeu
Carlos IV...
Olivier Marin
210

A busca de Deus Místicos do Oriente e do Ocidente

A mística, palavra aparecida no século XVII para designar a experiência da presença divi
na alcançada no fim de um processo de meditação e de contemplação, "inaugura-se
nos mais longínquos começos da história religiosa" (Michel de Certeau). Nas Igrejas do
Oriente, a via mística constituiu um elemento importante da vida religiosa
e foi até integrada na teologia oficial da Igreja bizantina, enquanto, no cristian
ismo ocidental apenas sai da sombra a partir do século XII.
A mística bizantina

No Oriente, a via mística, já presente nos tratados de Orígenes (185-ca. 253), teve os
seus teólogos nos meios monásticos dos finais da Antiguidade, em Macário,
o Egípcio (ca. 300-ca. 390), Evagro, o Pôntico (346-399) ou João Cassiano (ca. 350-ca.
435). Na verdade, os Padres do deserto comentaram a sua experiência da comunhão
com Deus na solidão. Obtinha-se graças não só a uma longa ascese e a uma luta contra os
demónios, que permitiam a purificação da alma, mas também graças a um estado
de oração, criado pela recitação da "oração de Jesus" ou "oração do coração" (uma curta fórmu
ciada em consonância com o ritmo respiratório: "Senhor Jesus
Cristo, filho de Deus, tem piedade de mim") ou pela "ruminação" meditativa da palavr
a de Deus através de um versículo bíblico. Para instaurar este estado de oração
que permite o encontro com Deus, monges e monjas procuram a hèsychia, a paz interi
or, que se atinge mediante o controlo das paixões e dos pensamentos. Então, a alma
pode experimentar o maravilhamento do contemplativo.
Os Padres do deserto, como os monges que retomaram a sua tradição espiritual, tentar
am definir os efeitos deste encontro com Deus, sendo um deles, aliás muito corrent
e,
o aparecimento das lágrimas. Diádoco de
211

Foticeia (século V) descreve-o assim: "Quando o Espírito Santo age na alma, ela salm
odia e ora, em total abandono e doçura, no segredo do coração. Esta disposição
é acompanhada por lágrimas interiores e, depois, por uma espécie de plenitude ávida de s
ilêncio." Para João Cassiano, a presença divina revela-se "por uma alegria
inefável". Às vezes, a experiência mística também passa por uma percepção sensível desta pres
uma visão luminosa, os eflúvios de um perfume sublime ou de uma
brisa leve, um fogo interior que regenera os seres com o seu calor vivificante e
os ilumina, mas que, em si, permanece puro e sem mistura", refere Dinis, o Areo
pagita*.
Para numerosos autores, o objectivo último é chegar à "visão" de Deus ou à união com Deus.
Embora a tradição mística bizantina tenha nascido nos meios monásticos do deserto, onde
encontrou os seus teóricos, nem por isso se manteve exclusiva dos profissionais
da ascese e da oração, mas antes fez parte integrante da vida religiosa de numerosos
fiéis. Dionísio, o Areopagita, insiste no facto de o amor divino ansiar por
se comunicar. Como o fogo, explica, "ele dá-se a quem dele se aproximar, por pouco
que seja".
Entretanto, a via mística nem sempre foi favorecida: conheceu fases em que a sua e
xpressão era controlada pela autoridade eclesiástica. Preconizando um acesso directo
a Deus pela oração e pela ascese, sem passar pela mediação clerical, os seus teóricos fora
m, por vezes, considerados espíritos perigosos que procuravam subtrair-se
aos sacramentos e criticavam a hierarquia clerical. Alguns grupos místicos, como o
s messalianos, identificados no século IV em Antioquia como oriundos da Mesopotâmia
e baptizados como "orantes" pelos seus adversários em referência à importância quase exc
lusiva que atribuíam à oração na prática religiosa, foram declarados hereges
e perseguidos. Depois, a acusação de "messalianismo" tornou-se um selo que permitiu
a rejeição de outros místicos.
A época iconoclasta (730-843) não parece de modo nenhum favorável à expressão da corrente
mística, nomeadamente porque não só os imperadores, mas também os bispos
favoreciam o clero secular, único intermediário reconhecido com o divino, e não os mon
ges, muito freqüentemente iconódulos (favoráveis à veneração das imagens).
Mesmo nos meios monásticos, por causa do seu carácter individualista, a via mística ne
m sempre obteve os favores dos reformadores, como Teodoro Estudita (759-826),
porque podia gerar uma hierarquia paralela fundada na proximidade declarada ou s
uposta em relação a Deus. Ora, a reorganização monástica

* Designa-se sob o nome de Pseudo-Dionísio (ca. 500) um conjunto de textos - entre


os quais a célebre Hierarquia Celeste - atribuídos, até ao século XVI, a Dionísio,
o Areopagita, ateniense convertido por São Paulo, em quem alguns também quiseram ver
o santo bispo de Paris que morreu mártir por volta de 250 (segundo Gregório
de Tours, bispo e hagiógrafo do século VI). Estas obras, que integram o neoplatonism
o no cristianismo, marcaram profundamente a espiritualidade e a mística medievais.
212

tinha um carácter pragmático que não favorecia o individualismo; portanto, o misticism


o devia ser discreto. Aquando do apogeu do Império (séculos X-XI), certas formas
de vida mística foram condenadas como heréticas. Nalguns episódios pode ver-se uma rec
uperação do controlo exercido pelo patriarcado e pelos metropolitas sobre as
correntes que tendem a escapar-lhes e podem ser populares. Por isso, os partidário
s de Eleutério de Paflagónia (século X) foram condenados por duas vezes pelo sínodo
patriarcal. Somente conhecido pelas acusações deformadoras do sínodo que vê nela um mess
a-liano e um libertino, Eleutério foi, no entanto, venerado como santo na
província onde residia.
A popularidade dos místicos e o respeito que a sua proximidade com Deus inspirava
estão bem ilustradas na carreira de Simeão, chamado o Novo Teólogo (+ 1022). Filho
de uma família aristocrática, decidiu entrar no mosteiro de Stoudios, o mais prestig
iado de Constantinopla, onde desenvolveu a idéia de que cada um pode procurar
directamente a sua salvação pessoal pela graça; isto porque nem as obras de caridade n
em os sacramentos constituem o caminho para lá chegar, mas somente a humildade,
a submissão a um pai espiritual e o temor de Deus podem conduzir à percepção da luz divi
na. Simeão chegara a proclamar a superioridade daqueles que Deus distinguiu
pela sua graça em relação aos padres que tinham passado pela ordenação clerical. Também afir
mava que o poder de perdoar os pecados foi dado por Cristo aos apóstolos
através do dom do Espírito e que, por conseguinte, os monges, sem serem padres, podi
am confessar. Essa visão tornou-o suspeito: foi expulso do Stoudios, depois obriga
do
a demitir-se do seu cargo de higoumène (abade) em São Mamas, antes de ser exilado pa
ra a costa asiática do Bósforo, em Crisópolis. Mas, como era apoiado por numerosos
aristocratas da capital, sensíveis à sua proximidade directa com Deus, conseguiu vol
tar a Constantinopla para lá fundar o mosteiro de Santa Marina; finalmente, foi
um monge estudita, Nicétas Stéthatos, quem redigiu a sua Vida e estabeleceu a sua re
putação de santidade, uma geração depois da sua morte.
A via mística continuou a prosperar em Bizâncio. No entanto, sob os primeiros Comnen
os (dinastia que governou de 1081 a 1185), a Igreja secular, que tinha toda a
liberdade de promover a repressão em troca de um apoio dado à nova dinastia, atirou-
se uma vez mais a diversos representantes desta corrente que fez condenar. Por
exemplo, em 1140, um certo Constantino Crisómalos, leigo, foi acusado de partilhar
a heresia com os messalianos e, nomeadamente, não reconhecer que o sacramento
do baptismo era suficiente para entrar na comunidade cristã. Esta decisão sinodal re
vela, em primeiro lugar, que os escritos de Constantino Crisómalos se tinham
espalhado pelos mosteiros da capital e dos arredores; em segundo lugar, dá a enten
der que as idéias místicas e subversivas relativamente à hierarquia eram bem aceites
pelos leigos. É verdade que a corrente mística se tinha nobilitado pela difusão das ob
ras dos Padres dos finais da Antiguidade,
213

como Máximo, o Confessor (+ 662), que tinha sido canonizado pela sua defesa da fé or
todoxa, ou João Clímaco (+ ca. 649), cuja obra A Escada Santa era lida e comentada.
Mas a Igreja secular não podia aceitar os autores que proclamavam a superioridade
da via mística em relação à via sacramental, a não ser que abandonassem a sua crítica
aos sacramentos e reintegrassem o acesso à comunhão com Deus na oração litúrgica.
Foi com este fundamento que, nos últimos séculos do Império Bizantino, se elaborou uma
solução de compromisso entre a Igreja secular e as correntes místicas. Com
o enfraquecimento do império, decorrente da ocupação latina e do avanço dos turcos na Ásia
Menor, e com o aumento do recrutamento monástico na Alta Igreja, tinha-se
desenvolvido uma poderosa corrente mística, em particular no Monte Atos, que reuni
a monges que partilhavam experiências espirituais muito diferentes. Atribui-se
a Gregório, o Sinaíta, a renovação da oração mística e o desenvolvimento do hesicasmo. Oriund
de uma família rica, capturado pelos turcos na sua juventude, em finais
do século XIII, Gregório foi resgatado por cristãos e tornou-se monge no Sinai. Lá apren
deu a oração do coração, que rezava ininterruptamente e em que iniciou numerosos
monges do Monte Atos, antes de fundar três lauras (mosteiros) na Macedónia. Conta-se
entre os seus primeiros discípulos o futuro patriarca Kallitos, que aprovou
o seu pensamento e esforços e redigiu a sua Vida.
Gregório, o Sinaíta, ensinava como praticar a oração para se aproximar de Deus, alternan
do a salmódia monástica tradicional com a oração do coração; mas foi a Gregório
Palamas (1296-1359) que competiu teorizar e defender o hesicasmo. Nas suas obras
, ele estabelece uma distinção entre a essência divina, inacessível, e que, portanto,
escapa a todo o conhecimento, e as energias divinas, como a luz divina que se ma
nifestara aquando da transfiguração de Cristo no monte Tabor e a que o fiel pode
aceder pela oração e pela contemplação. Esta teologia encontrou uma forte oposição naquilo e
m que, parecia, punha em causa a unidade divina; mas acabou por ser incorporada
na doutrina oficial da Ortodoxia; durante a guerra civil que dilacerou o Império,
em meados do século XIV, Gregório Palamas tomou o partido de João VI Cantacuzeno,
cuja vitória lhe permitiu obter a sé da prestigiada metrópole de Tessalónica. Por seu la
do, um dos seus amigos, Nicolau Cabasilas (+ 1317), propôs uma mística mais
sacramental que passava pela liturgia e também teve muita influência. A canonização muit
o rápida de Gregório Palamas, em 1368, é uma prova da boa integração das
correntes místicas na Igreja grega.
Por isso, independentemente das condenações de que foi objecto, a via mística, tanto s
ob a forma de hesicasmo como da corrente litúrgica, faz parte integrante da
atitude religiosa dos bizantinos, para quem a tradição dos Padres do deserto continu
ava muito viva e não apenas no meio monástico. Esta tradição é largamente exportada
para as outras Igrejas ortodoxas. As Igrejas russas, búlgaras e sérvias também tiveram
os seus
214

mosteiros na Montanha Santa, o Monte Atos. Na Igreja copta, a tradição dos Padres do
deserto egípcios subsistiu no seio dos mosteiros, apesar dos constrangimentos
derivados da ocupação árabe. Do mesmo modo, também nas Igrejas sírias de língua siríaca se ma
ifestou uma corrente muito viva durante os séculos medievais, largamente
inspirada pela poesia religiosa que remontava a Efrém (t 373). O eco destas ricas
tradições ainda se nota na época moderna.
Béatrice Caseau

A mística ocidental

No Ocidente, a mística começa a desenvolver-se no século XII, quando aparecem as prime


iras obras que relatam este tipo de experiência, para imediatamente desabrochar,
até ao século XV, em vários focos dispersos, em que brilham mais especialmente o mundo
flamengo, o vale do Reno e a Itália. Coube ao chanceler da universidade de
Paris, João Gerson (1363-1429), no seu De mystica theologia, dar a definição desta com
o "o conhecimento de Deus", e analisar as suas formas em termos ainda considerad
os
válidos.
Até ao século XI, nos meios monásticos ocidentais, parece ter prevalecido mais a conte
mplação do que a experimentação dos mistérios divinos. Entretanto, alguns religiosos
conheceram obras dos Padres do deserto ou as de João Cassiano, e viveram segundo e
sta tradição, nomeadamente em Marselha e em Lérins; também Gregório Magno, antes
de ser papa, levou uma vida contemplativa, impregnada de mística. Mas só no século XII
aparecem os primeiros autores cujas obras descrevem de maneira mais sistemática
a passagem da reflexão à iluminação no conhecimento dos "mistérios" divinos (é esta etimolog
ia da palavra). Entre estes, figuram em lugar de destaque a abadessa
Hildegarda de Bingen (t 1179), mais visionária do que propriamente mística, e os mon
ges de Claraval Aelred de Rievaulx (+ 1167), Bernardo de Claraval (1091-1153)
e o seu amigo Guilherme de Saint-Thierry (t 1148). Foram as páginas ardentes de pa
ixão do livro do Antigo Testamento, o Cântico dos Cânticos, que inspiraram ao abade
de Claraval, no comentário que dele faz, a sua ampla concepção da relação que une, no modo
do amor, o Criador e as suas criaturas, Deus e a sua Igreja. A alma esposa
é apresentada à procura do seu esposo divino, em tensão para uma união cujo êxtase na Terr
a dá tão-somente uma pálida imagem da visão face a face esperada no além.
Por seu lado, Guilherme de Saint-Thierry realça mais o mistério trinitário, vendo na a
lma criada a imagem da Trindade criadora; pois é graças às suas três funções,
associadas às três pessoas - a memória ao Pai, a razão ao Filho e a vontade ao Espírito Sa
nto - que ela pode esperar aceder ao conhecimento íntimo do Deus-Trindade.
Na mesma época, em Paris, a abadia dos cónegos de Saint-Victor, prestigiado centro i
ntelectual, desenvolveu, pelas penas de Hugo de São Victor e de Ricardo de
215

São Victor, uma mística mais especulativa, que tenta conciliar a reflexão com a busca
amorosa de Deus.
No século XIII, a corrente amplia-se e, facto até então inédito, sai dos claustros para
entrar no mundo dos leigos e das mulheres. Entre elas, figuram religiosas
cistercienses, como Beatriz de Nazareth (1200-1268), beguinas que, sem fazer vot
os, tinham abraçado um modo de vida religioso feito de oração e de serviço ao próximo,
como Matilde de Magdeburgo (século XIII), ou, depois da fundação das ordens terceiras
dominicana e franciscana - movimentos expressamente destinados aos leigos que
viviam nos círculos de influência das duas principais ordens mendicantes -, alguns t
erceiros, a mais célebre dos quais é Catarina de Sena (ca. 1347-1380). Estas
mulheres não hesitaram em dar a conhecer as experiências excepcionais com que foram
agraciadas: umas escreveram pessoalmente o relato, sinal da sua cultura e do
seu conhecimento das Escrituras e dos comentários; outras confiaram-no aos seus di
rectores espirituais. Mais experientes no manuseio do vocabulário espiritual, mas
suspeitos de terem adaptado os testemunhos recolhidos às normas que lhes eram fami
liares. Todavia, em certos casos, o ascendente da dirigida sobre o director era
tal, que a relação acabava por inverter-se, como aconteceu entre Catarina de Sena e
o dominicano Raimundo de Cápua.
Os relatos que chegaram até nós desenvolvem uma temática muito rica. A metáfora da ilumi
nação ocupa neles um lugar importante, como testemunha, por exemplo, o título
do livro de Matilde, A Luz que flui da Divindade; situa-se na esteira da apresen
tação escriturística de um Deus "Luz do mundo" e de uma corrente neoplatónica difundida
pelas obras do Pseudo-Dionísio. Na mesma época e no mesmo espírito, o teólogo franciscan
o São Boaventura (+ 1247) fixou as três vias da Ascensão espiritual: purgativa,
iluminativa e unitiva. Mas, para espíritos profundamente marcados pela obra de São B
ernardo, as imagens apresentadas pela mística nupcial continuam a ser um modo
fecundo de expressão, a que se junta uma forte inspiração eucarística, trazida pelo dese
nvolvimento contemporâneo do culto ao Corpus Christi, oriundo destes mesmos
meios. No entanto, a meditação sobre a vida de Cristo não podia ignorar a sua parte de
sofrimento, em consonância viva com as dores sofridas por Jesus na sua carne
ao longo da Paixão, nomeadamente através da devoção às Cinco Chagas (mãos, pés e lado). Além
so, distante das discussões teológicas, o relato místico comporta
uma dimensão experimental em que o corpo, em particular o feminino, se torna o ins
trumento privilegiado para os fenómenos extraordinários de que é quadro. Os relatos
superabundam em descrições, para que foi necessário criar um vocabulário adequado, ondas
ou rios de lágrimas, de êxtases, de arroubos ou enlevamentos, de levitações.
Muitos devotos alimentavam-se exclusivamente de uma hóstia consagrada; às vezes, rec
ebida das mãos do esposo celeste em pessoa, a hóstia também podia ter o sabor
da carne que atesta o mistério da comunhão na presença real. A união com os sofrimentos
de Cristo crucificado inscreve-se igualmente nos corpos mediante a estigmatização,
de que
216

Francisco de Assis não é exemplo único; e culmina no mais íntimo com a troca de corações (Ca
tarina de Sena e Doroteia de Montau, 11394).
Nos conventos mendicantes e nas beguinarias flamengas ou renanas, o movimento co
nhece uma autêntica reviravolta de perspectiva: a caminhada ascensional da alma é
substituída por um abandono total, esperando que, da renúncia de si mesmo, receba tu
do do Criador, para encontrar o seu ser por fusão no Ser divino. A mística nupcial
é suplantada ao Ser, própria da tradição renana, de que o dominicano Mestre Eckhart (+ 1
327) foi a grande figura. Para ele, trata-se de perder-se para se encontrar,
de permitir que "o homem seja Deus em Deus" ou "tornar-se por graça aquilo que Deu
s é por natureza": estas frases valeram ao seu autor a acusação, errónea, de panteísta.
Como no Oriente, as autoridades eclesiásticas reagiram de maneiras muito diferente
s diante da amplitude e do vigor da corrente mística. Alguns não esconderam a sua
admiração, como o cardeal Tiago de Vitry (+ 1240) na Vida que redigiu da beguina Mar
ia d'Oignies (1177-1213). Mas, mais geralmente, é a desconfiança que suscita.
De facto, os clérigos estavam espantados ao ver que simples mulheres os tinham pre
cedido no caminho da vida espiritual! Além disso, os místicos, homens e mulheres,
viviam uma relação directa com Deus independentemente das mediações eclesiásticas (sacrame
ntos, cerimónias litúrgicas, pregações) cujo cumprimento obrigatório tinha
sido afirmado pela reforma gregoriana e pelo Concílio de Latrão IV (1215). Finalment
e, o magistério lamentava, não sem razão, os desvios que estas experiências particulares
poderiam ocasionar. A seus olhos, os relatos feitos pelos místicos não poderiam ser
deixados em todas as mãos, sobretudo quando redigidos em língua vernácula, como
um remédio demasiado poderoso que poderia provocar nas almas mais estragos que ben
efícios. Entretanto, as autoridades religiosas esforçaram-se por encontrar nestas
obras traços propriamente heréticos: verifica-se na leitura do Prólogo do livro da beg
uina Margarida Porete, o Espelho das Almas Simples Aniquiladas, que teve o
cuidado de, antes de o difundir, o fazer aprovar por três clérigos, um frade francis
cano, um monge cisterciense e um professor de teologia. Quando houve condenação,
como foi o caso desta beguina, queimada em Paris em 1310, foi sobretudo por caus
a do contexto político, na circunstância a luta entre Filipe, o Belo, e o papado,
tendo ela sido mero bode expiatório. Mas, para a maioria das pessoas de Igreja, se
guindo um ponto de vista de que João Gerson se fez eco, seria melhor considerar
as "pessoas simples" fora destes excessos e propor-lhes uma via espiritual mais
equilibrada. Foi esse o papel desempenhado pela Imitação de Cristo, a mais bela flor
desta literatura espiritual, mediante a qual, porém, se percebe o quanto ela deve às
grandes obras místicas que a precederam.
Do outro lado da tormenta da reforma, há laços profundos que unem a mística medieval o
cidental à da época moderna, marcada pelas evocações do aniquilamento ou as
da união dos espíritos e dos corações.
Catherine Vincent
217

A Imitação de Cristo

Entre as jóias da literatura cristã, A Imitação de Cristo é, depois da Bíblia, o texto mais
difundido e mais traduzido no mundo. Do século XV ao século XX, é considerável
a sua influência em gerações de cristãos, dos mais ilustres aos mais humildes, dos católic
os aos protestantes. Classificada na categoria das obras espirituais, A
Imitação nem por isso deixa de ter um conteúdo teológico de elevado alcance. Quatro trat
ados redigidos em latim e distintos uns dos outros são agrupados neste livro
célebre, cujo título saiu das primeiras linhas da obra. Colectâneas de pensamentos, ca
da qual dotado de uma unidade redaccional, foram sem dúvida produzidos pelo
mesmo autor, que permanece anónimo. Nada no seu conteúdo permite identificar este re
ligioso, muito discreto, que relata as suas experiências para ajudar os seus
semelhantes na descoberta de Deus e na obtenção da paz interior.
Muito crítico da teologia praticada nas universidades, mas também muito irritado com
os excessos das devoções exteriores, o autor rejeita em bloco o formalismo do
ensino e das observâncias. Por isso, a sua intenção não é propor uma exegese nem, ainda me
nos, uma doutrina elaborada, frutos de uma erudição pretensiosa, mas antes
testemunhar humildemente a sua experiência, destinada a ajudar outros a conformar-
se a Cristo. Sem exigir do seu destinatário grandes qualidades intelectuais, aliás
inúteis para penetrar nos mistérios divinos, apela à inteligência do coração, convidando o l
eitor a ruminar o ensinamento de Cristo e, depois, a considerar o exemplo
dos santos. Nascido da prática de exercícios de meditação sobre a Sagrada Escritura e a
vida dos Padres do deserto, o texto introduz o indivíduo, qualquer que seja,
numa relação de proximidade íntima ou, até, afectiva, com Cristo, embora aceite livrar-s
e dos entraves que o amor-próprio, o apego aos bens materiais ou a suficiência
intelectual constituem. Em contrapartida, ele cultiva a humildade, a compunção do co
ração e a simplicidade. Ao propor ao seu destinatário uma ascese exigente mas
acessível, eleva-o da consideração da sua miséria ao encontro com o Deus de amor e ao
218

acolhimento da sua graça santificante, pelas vias da interioridade e da purificação. A


ssim, o conhecimento de si mesmo abre caminho ao conhecimento de Deus.
Nenhum plano preciso organiza estes livros que, em vez de proporem uma antologia
de citações tradicionais, reintegram-nas na releitura pessoal, posta ao serviço
de uma direcção espiritual. Por isso, pôde-se extrair deles passagens, para as aprofun
dar ou ler sequencialmente, para saborear o seu desenvolvimento geral. Todavia,
não se trata de um caminhar progressivo para a perfeição, mas de exortações a um trabalho
interior constantemente renovado.
O primeiro livro reúne "Avisos úteis para entrar na vida interior". Cada um é encoraja
do a desembaraçar-se das ilusões do mundo exterior para se consagrar à procura
do essencial, no mais profundo do seu ser. A alma assim libertada poderá restabele
cer a sua inclinação mais nobre: tender para Deus. A via mais segura para lá chegar
é a disponibilizada por Cristo, que leva o homem a viver segundo o Evangelho e, po
rtanto, a cultivar o amor de Deus e a renúncia a si próprio. Será árduo o caminho
para a virtude, mas numerosos os frutos colhidos. As referências a um contexto con
ventual destinam prioritariamente estas páginas a religiosos, sem excluir os leigo
s,
também eles chamados a uma conversão interior.
Na segunda colectânea, o homem é posto em contacto íntimo com Cristo. Capaz de elevar-
se para esperar o repouso em Deus, o homem é, em razão da sua natureza pecadora,
confrontado com uma rude tarefa. A graça de Cristo pode ajudar a suportar contradições
e humilhações e, até, correr ao encontro dos sofrimentos. Para a receber,
o homem deve abandonar-se confiadamente nas mãos de Deus, sem contar com os seus r
ecursos.
O discurso meditativo segue o diálogo afectivo "entre Cristo e a alma fiel" expost
a às provações de uma busca em que as delícias de encontros efémeros com o divino
alternam com a experiência dolorosa dos limites da condição humana. É então que se pede ao
homem que renuncie a todas as formas de desejo, para se abandonar totalmente
à iniciativa divina.
A união tão procurada alcança-se no quarto livro, "sobre a eucaristia", na comunhão do c
orpo de Cristo, recebido não como recompensa no termo de um percurso, mas
como ajuda necessária ao prosseguimento da caminhada.
Muito mais do que uma exortação moral para viver à semelhança de Cristo, os livros artic
ulam-se em torno do tema do amor que une o crente à pessoa de Jesus, que
inaugurou o caminho que conduz a Deus. Só Ele poderá fornecer-nos a ajuda necessária.
"Por isso, deixai entrar Jesus em vós e não deixeis entrar senão ele." Uma
única opção possível: renunciar às vaidades de um mundo corrompido e às solicitações da condi
ana para seguir Jesus no caminho da cruz e responder com uma
doação total de si próprio ao amor incomensurável de Cristo. Esta relação será não somente al
ntada por consolações reconfortantes, como também percorrida por
sentimentos de privação que o cristão aprenderá a receber como outro dom divino. Este es
tado
219

de abandono e de acolhimento nunca está inteiramente adquirido, mas deve ser procu
rado à custa de esforços continuados sem concessões às exigências da natureza humana,
que só a graça divina pode elevar.
Ao consagrar durante muito tempo no Ocidente a ruptura entre a teologia e a espi
ritualidade, estes textos encontram, desde a sua difusão por volta de 1425, as exp
ectativas
de um leitorado atraído por propostas simples que apostam mais na prática da humilda
de e do desapego do que na especulação pura como método de santificação. Ao manter-se
anónimo, não tarda a suscitar uma série de controvérsias a propósito da sua autoria. Peran
te o seu sucesso, diversos meios espirituais reivindicam a sua paternidade.
Há manuscritos que pretendem que sejam de João Gerson (+ 1429), chanceler da univers
idade de Paris. Outros fazem-nos remontar a Johannes Gersen, beneditino italiano
do século XIII.
Uma tradição mais comummente aceite associa-os à pessoa de Tomás Hemerken (+ 1471), src
inário de Kempen, no arcebispado de Colónia. Durante os seus estudos, este
homem freqüenta os Irmãos da Vida Comum, com quem aprendeu a conhecer o movimento es
piritual implantado em Deventer pelo seu fundador Gérard Grote (t 1384). Agrupados
em fraternidades de clérigos e de leigos, estes irmãos e irmãs reúnem-se à volta de projec
tos comuns: a busca de uma santificação pessoal pela oração, pela meditação
e pela ascese, e a participação eficaz na edificação dos contemporâneos, cada um segundo a
s suas possibilidades. A sua propensão para o isolamento não os segrega
do mundo: para eles, é primordial acolher o pobre. Dando uma importância extrema à rep
rodução das obras dos seus mestres, depois à composição e à difusão de obras
de meditação centradas na Sagrada Escritura, animam oficinas de copistas e escolas,
rapidamente tornadas atractivas, em que o saber e a espiritualidade se misturam
subtilmente. Propugnando uma religião do interior, propõem aos seus destinatários um p
rograma de vida devota absolutamente "discreta", uma Devotio moderna sem excesso
s,
ao alcance de todos, exactamente o contrário de uma teologia mística ou especulativa
, reservada às elites. Privilegiam os temas da vaidade [de vanitas, mais no sentid
o
etimológico de aparência vã, vacuidade, ausência de valor], do mundo e do amor de Cristo
e louvam as virtudes da humildade, da obediência e da renúncia. A moderação
manifesta-se ainda na sua liturgia, simplificada, e nas suas práticas ascéticas, ace
ssíveis.
O seu destino encontra-se rapidamente associado à história da congregação dos cónegos de W
indesheim, aprovada em 1395 e centro de uma verdadeira reforma da vida
religiosa. Tomás, chamado a Kempis, professou nesta ordem em 1407. Autor de numero
sos tratados, sermões e biografias espirituais, entre as quais a de Gérard Grote,
foi-lhe atribuída, muito depois da sua morte, a paternidade dos textos d'A Imitação fa
voravelmente acolhidos nestes meios religiosos em expansão e que lhe asseguram
uma enorme difusão desde o último quartel do século XV.
220

O texto terá uma disseminação considerável, tanto nos meios conventuais como nos laicais
e servirá de cadinho espiritual em diversas correntes de reforma na Igreja.
Recebendo especialmente o favor dos círculos femininos, que nele vêem o alívio de um p
ossível acesso a Deus sem outra mediação além da de Cristo, A Imitação será,
como todos os grandes textos, objecto de múltiplas releituras extremamente diversi
ficadas, tanto católicas como protestantes.
Marie-Élisabeth Henneau
221

TERCEIRA PARTE

OS TEMPOS MODERNOS
A APRENDIZAGEM DO PLURALISMO
(séculos XVI-XVIII)

Durante muito tempo - até finais do século xx -, o nascimento dos tempos modernos fo
i concebido na cultura comum como progresso e abertura, como vitória face ao
arcaísmo e ao obscurantismo medievais. Neste quadro, a religião estabelecida tomava
um carácter negativo que justificava que poderosos movimentos a pusessem em causa:
reforma das instituições políticas, clericais e monásticas, do papado ou do clero, mas t
ambém reforma da leitura da Bíblia, da pregação, da oração pessoal e, sobretudo,
dos costumes. Pressupunha-se que estas aspirações conduziriam a um futuro melhor, um
a nova idade, a do progresso, da liberdade e das opções de consciência..., quando
os contemporâneos, persuadidos da degradação de todas as coisas, pensavam-nas como reg
resso à srcem. Os historiadores saídos das Luzes legavam-nos uma leitura discutível:
as evidências, mesmo partilhadas, são sempre justas? O clero de finais do século XV se
ria mais depravado do que o do século XIII? O papado dos Bórgia (Alexandre
VI) seria mais escandaloso do que o papado de Avinhão? Hoje responde-se a estas pe
rguntas simples de maneira mais circunstanciada. Nos casos em que se pode encont
rar
documentação que nos fornece as suas características, não se nota aumento dos abusos, ma
s os contemporâneos de Erasmo e de Lutero acreditaram nisso e os historiadores
dos dois séculos seguintes deixaram-se levar pelas suas palavras para desenvolvere
m uma retórica da decadência do fim da Idade Média.
Hoje, as técnicas históricas reavaliaram profundamente este período intermédio entre a i
dade gótica e a idade clássica, sublinhando a sua inventividade, o seu dinamismo
religioso, a sua capacidade de pôr em questão as falsas aparências do momento, as suas
incertezas e até mesmo as suas angústias. Para si próprio e para a multidão
considerável dos seus partidários e simpatizantes que estão na mesma busca, Lutero opt
a por reconhecer como única autoridade da Bíblia e única maneira de cumprir
a vontade de Deus a justificação pela fé. Por isso, ele edifica, com destino ao maior
número dos fiéis, um cristianismo de perfeição pessoal, outrora reservado a
uma elite reduzida de "virtuosos" do religioso: uma religião fundada na recusa das
mediações humanas (a dos padres) e no face a face directo com a transcendência.
É assim que se deve pensar a Reforma protestante à volta do ano 1520 tenha ela sido
luterana, já radical ou ainda erasmiana e, por isso, católica (porque Erasmo
é lido e discutido dos dois lados). Foi o que constituiu o carácter crucial do
225

confronto entre Erasmo e Lutero em 1524: o homem será, porventura, livre de avançar
por si mesmo a caminho de Deus pelos seus esforços, ou será ajudado pela Escritura
e pela fé, que ligam a sua consciência em ordem à sua salvação?
Outros reformadores tentam responder à sua maneira à procura do sentido da vida, de
Tomás More a João Calvino, de Inácio de Loiola a Teresa de Ávila, de Francisco
de Sales a Bérulle e a São Cirano. Todavia, neste século que quer acreditar que Deus c
onduz a ordem do mundo e inspira para o bem ou abandona ao mal cada uma das
suas criaturas, as conseqüências desta fermentação são inicialmente de exclusão do outro, a
vontade de disciplinar as populações e fortalecer o Estado e os poderes
eclesiásticos (tanto católicos e clericais como protestantes e leigos). No clima de
confronto, a fronteira entre as confissões construiu-se de maneira extremamente
rápida. Entre a revolta do homem Lutero, que se coloca em 1517, mas que só se torna
efectiva em 1520, e a formação de Estados que se dizem protestantes (1529), depois
da instalação definitiva de Calvino em Genebra (1541), não passa mais que um quarto de
século. No espaço destes poucos anos, a destruição da "Babilónia" romana é
um leitmotiv, aliás, por vezes, executada, também aquando do saque de Roma (1527), e
o fim do velho mundo é postulado como iminente para muitos.
Durante este quarto de século, o papado recusa mover-se enquanto partes inteiras d
a Igreja romana reclamam a reforma e outras pedem o aniquilamento definitivo dos
rebeldes, enquanto estes predizem a inutilidade e o fim próximo do "papismo". Quan
do, em 1534, o cardeal Alexandre Farnese (Paulo III) foi eleito, queria reunir
um Concílio. Mas foram precisos mais de dez anos de batalhas diplomáticas para torna
r efectiva a reunião do Concílio de Trento, e muitas querelas e interrupções
para que ele desenvolvesse, entre 1545 e 1563, um corpo de doutrinas e uma consc
iência católica fundada no consenso (as questões disputadas como a da Imaculada Conceição,
por exemplo, nunca terminaram na redacção de um texto durante estes anos). O concílio
promoveu uma religião de combate que colocou à sua frente o papa de Roma, numa
luta travada contra os protestantes com todos os meios culturais do momento. Por
isso, tendo-se o papado tornado o órgão executivo do Concílio, com a Inquisição,
utiliza certamente a coerção, mais racional nos seus métodos do que a polémica podia faz
er crer, mas também transforma Roma como montra do catolicismo novo pela
beleza arquitectónica e pictural - maneirista, depois barroca - e pela música.
Uma intensa competição entre Roma e as capitais protestantes acompanha este combate:
a escola, a missão longínqua assim como a interior, a própria cultura são dinamizadas
por esta dura luta; os ecos ressoaram até aos nossos dias nas etiquetas apostas às i
nstituições em questão. Doravante, se o cristianismo é plural e obrigado a dar
lugar ao outro contra sua vontade, também se exprime, as mais das vezes, nas ident
idades nacionais, culturais e locais fortes, que seguram os seus fiéis e, ao mesmo
tempo, os seus
226

súbditos. Nestes combates fratricidas, não se separa a religião da política. Este mesmo
esforço também constrói o seu contrário, "espíritos fortes", "libertinos",
que tomam à letra as buscas místicas, que privilegiam a procura de uma vida singular
em que cada indivíduo entra em contacto com Cristo. Ao abrir a um maior número
de pessoas aventuras interiores e psíquicas outrora reservadas a alguns, os devoto
s, jansenistas, pietistas... consagram a consciência individual como o mais alto
dos valores. Mas, nas suas utopias de fraternidade de pureza, o indivíduo chamado
a evangelizar o mundo como a si mesmo encontra justificação e estabilidade para
empreender e para agir, independentemente de qualquer esperança terrestre. Embora
o dinamismo da Europa moderna seja sem dúvida demográfico, é igualmente ético e
também reside na consciência adquirida e refundada permanentemente por cada confissão
e por cada nação da sua escolha e com a certeza da adequação da sua acção ao
plano de Deus. Amordaçados pelo poder imperial russo ou otomano, os ortodoxos não ti
veram estas oportunidades.
Mas o progresso e as Luzes não se teriam inscrito nas crises do cisma? O historiad
or não pode dizer nada a esse propósito; simplesmente observa, através destas fissuras
fundamentalmente religiosas, o gosto da busca de novos mundos, tanto para conven
cer quanto para conquistar, o respeito pelo rigor e o conhecimento necessários à
controvérsia, a liberdade interior da experiência de Deus... Tantas características pr
ovavelmente mais importantes do que o controlo, sempre relativo, das consciências,
quantos os "horrores" da Inquisição desconfiada, quanto a intolerância e a exclusão tran
sformadas em sistema, e quanto o conformismo de uns e de outros. Por vezes,
os excessos de um mundo violento são limados pelos poderes de todos os feitios; ma
s, no fundo, este gosto da ordem conduz a outras violências, saídas da radicalização
de certos crentes, da sua necessidade de distinção e do fascínio de um mundo que muda
demasiado depressa para uma verdade única e estável. Estes tempos de dinamismo
também são tempos de perturbações, demasiado ocultas pela exaltação dos mártires e da idade d
ouro das fundações fraternas. Paradoxalmente, a instrumentalização
das aspirações religiosas pelos poderes políticos e pelos grupos sociais, embora denun
ciada por alguns crentes, contribuiu sem dúvida para manter as sociedades ocidenta
is
afastadas do radicalismo religioso. De resto, a Europa também está ligada por estes
acontecimentos e por estas lutas de irmãos inimigos, em que ela aprendeu a desconf
iar
de uma pureza religiosa demasiado proclamada e demasiado reservada a certas comu
nidades.
Nicole Lemaitre
227

OS CAMINHOS DA REFORMA

Erasmo e Lutero Liberdade ou escravidão do ser humano


Por alturas de 1500, o humanismo preconiza um regresso às srcens e aos textos fun
dadores do cristianismo, enquanto a Devotio moderna prega uma religião mais interi
or,
individual e cristocêntrica. É neste enquadramento que Erasmo e Lutero se confrontam
sobre a idéia de liberdade. A sua imensa erudição, o seu talento literário e
o seu apego ao Evangelho valem a Erasmo de Roterdão (1469-1536), antigo cónego regul
ar que se manteve padre secular, um prestígio inigualável, e suscitam oposições
ferozes. Editor dos Padres da Igreja, ele apresenta, em 1516, a primeira edição greg
a e uma nova tradução latina do Novo Testamento com notas críticas, uma exortação
a ler a Escritura de modo a retirar benefício da leitura e uma exposição do método teológi
co. Desde 1503, no Manual do Cristão Militante, propõe um programa de vida
evangélica, em que "a piedade não se identifica com a vida monástica".
Com o Elogio da Loucura, Erasmo dirige a sua inspiração contra a ambição e a cupidez que
conduzem aos abusos de poder e aos negócios ilícitos; contra a cegueira
e a auto-suficiência dos teólogos que se presumem capazes de ensinar tudo; contra a
ignorância e as superstições dos monges que desnaturam e confiscam a piedade.
Para ele, a piedade contabilizável e as observâncias ameaçam o cristianismo com dois p
erigos mortais: o paganismo e o farisaísmo. Contra uma escolástica repleta
de empolamentos e querelas - que substitui a Bíblia por Aristóteles e a humildade do
crente pela arrogância do raciocinador -, Erasmo apela a uma teologia escriturístic
a,
fundada num conhecimento preciso do texto e conduzida para o único objectivo de ou
vir Cristo para ser transformado nele. O estudo das letras prepara melhor do que
a dialéctica para entender a Escritura e para a conversão do coração, porque "a verdadei
ra teologia é mais vida do que
229

discussão". Longe das "curiosidades ímpias", uma investigação atenta à letra e aberta ao E
spírito alimentará "uma doutrina piedosa e uma piedade esclarecida". Teria
ele sido aliado de Lutero na Reforma?
Religioso agostinho em Erfurt, depois professor de teologia em Wittenberg, Marti
nho Lutero (1483-1546) atravessa, desde 1516, uma crise espiritual grave. Embora
respeite a regra, ele sente-se sempre pecador, digno da cólera de Deus. Conhece a
angústia e o desespero. Por fim, a leitura de Santo Agostinho e de São Paulo liberta
-o
e inspira doravante a sua teologia.
Segundo ele, o pecado srcinal corrompeu totalmente a natureza humana. Minado pe
lo orgulho e pelo amor-próprio, o homem peca necessariamente, mesmo externamente,
quando faz o bem. Ele não pode merecer a sua salvação, mas Deus vem em seu auxílio através
da lei que dá a conhecer para convencer o homem da sua impotência e mostrar
que só Ele salva, generosamente, por Cristo. Só a fé no perdão generoso restitui a inocênc
ia, sem as obras nem os méritos. Então, o crente encontra a paz e a liberdade,
uma liberdade que não é a livre escolha entre o bem e o mal (o livre-arbítrio). Em A L
iberdade Cristã (1520), Lutero declara: "O cristão é o homem mais livre, dono
de todas as coisas, não está sujeito a ninguém. O cristão é, em todas as coisas, o mais se
rviçal de todos os servos, está sujeito a todos." Esta liberdade interior
não autoriza a licença moral nem a sedição. Liberta da tirania das observâncias, da falsa
segurança das obras, da ilusão do mérito, do orgulho e do desespero. Liberta
da lei, não contra a lei, mas por reconhecimento, mesmo no fundo da provação. Justo e
pecador, o homem novo perdoado pela fé luta contra o antigo, não para ser salvo,
mas porque está salvo. Esta via de salvação só é conhecida pela Palavra de Deus, contida u
nicamente na Escritura. Tradições e magistério só têm força e legitimidade
para anunciar fielmente esta Palavra. O sentido da Escritura é claro, e é ela própria
a sua própria interpretação, e só Cristo é a sua chave. O "Deus escondido",
inacessível ao homem, revelou-se, velando-se em Jesus crucificado. A "teologia da
Cruz" opõe-se à "teologia da glória", que confia nas obras e na razão. Nesta base,
Lutero critica vigorosamente as práticas da Igreja do seu tempo, conseqüências, segund
o ele, da teologia da glória. A sua contestação das indulgências lançadas por
Leão X para financiar a construção da basílica de São Pedro provoca uma reacção de Roma. Exco
ungado como herege, Lutero é banido do Império em 1521. Está consumada
a ruptura. Lutero proclama o sacerdócio de todos os fiéis, mantém unicamente dois sacr
amentos, o baptismo e a eucaristia, rejeita o Purgatório, a missa como sacrifício,
os votos monásticos, a intercessão dos santos, o direito canónico, a hierarquia romana
e considera o papa o Anticristo. No meio de muitos mal-entendidos, a sua audiênci
a
aumentou na Alemanha.
Erasmo pensa que as teses de Lutero merecem ser ouvidas e não tanto condenadas qua
nto moderadas. Enquanto para Lutero a reforma impõe
230

rupturas inevitáveis, Erasmo está convencido de que a concórdia é uma exigência evangélica.
Ora, a manutenção da paz requer paciência, como a salvaguarda da unidade
exige que se suporte uma certa diversidade, porque o nosso conhecimento é imperfei
to.
Estas divergências têm raízes profundas. Desde 1517, Lutero pensa que Erasmo "não promov
e suficientemente Cristo e a graça de Deus". Deus, insiste Erasmo, revela-se
progressivamente através da história, de cujos meandros se serve e respeita. Como os
Padres notaram, Deus "balbucia", "adapta-se" às condições concretas dos homens
a quem se dirige, consentindo passar através da sua intermediação. A pedagogia divina
manifesta a paciência de Deus: a Antiguidade pagã é uma "preparação para o
Evangelho"; homens criados à imagem de Deus trazem em si esboços de verdade, que a fé
cristã assume e aperfeiçoa. É verdade que a sabedoria de Deus é loucura para
os homens, mas Cristo atrai tudo a si, recapitula e reconcilia tudo em si (Jo 12
,32; Ef 1,10; Cl 1,20). Assim, a Palavra de Deus fez-se palavra de homem e, fina
lmente,
Deus fez-se homem. O próprio Jesus adoptou a linguagem de um tempo e de um lugar.
A historicidade da revelação inscreve-se na ordem da criação e da Encarnação. Estas
mediações humanas e históricas explicam simultaneamente a necessidade de reformas, à luz
do Evangelho, e a atenção devida à tradição que carregou este Evangelho.
A história continua, o Espírito Santo não abandona a Igreja na sua marcha, mas chama-a
sem cessar a purificar-se, a converter-se.
Em 1524, Erasmo enfrenta Lutero sobre um tema decisivo, num Ensaio sobre o Livre
-Arbítrio. Conclui que o homem pode modestamente cooperar na sua salvação com a graça
de Deus. Com o pecado, o homem não perdeu tudo da sua semelhança srcinal com Deus. É
Deus quem o salva por amor, mas respeita-o e associa-o a si. A "filosofia de
Cristo" não esmaga, mas "restaura a natureza que foi criada boa" -já São Tomás o tinha s
ublinhado. É claro que esta questão é difícil. Erasmo só quis comparar argumentos,
analisar os dados variados da Escritura e da Tradição. Como, por vezes, a Escritura
não é nada clara - diz ele -, está sujeita a interpretação, por se inscrever
na história e na linguagem humana, e pela profundidade dos mistérios entregues a est
as mediações. Como acreditar que, até ao nosso tempo, a Igreja tenha errado sobre
um ponto capital? Tentemos seguir Cristo, confiando na sua ajuda e na sua miseri
córdia, não nos nossos méritos obscuros e sem pretendermos saber tudo, mas trabalhando
livremente por saber mais e melhor.
A este exame crítico (diatribe), Lutero responde com um tratado Sobre o Servo Arbítr
io. Trata-se de uma afirmação (assertio), porque a Palavra de Deus não tolera
hesitação nem de compromisso, explode e ilumina como o relâmpago, corta como a espada,
reduz a nada as pretensões de uma natureza pervertida e os balbucios da história.
Não pode deixar de suscitar desordem e tumulto e não concórdia, porque Deus e o mundo
opõem-se como Deus e Satanás. Ora, toda a Escritura afirma claramente a decadência
231

total do homem natural, a soberania, a santidade exclusiva e a alteridade de Deu


s e a absolvição unicamente pela fé. A própria fé é um dom imerecido do Deus insondável.
Depois do pecado, o homem é igual a um animal de carga montado ou por Deus ou por
Satanás. Afirmar o homem é negar Deus. Portanto, Erasmo é um ímpio. Mas, embora
Lutero confesse aqui a sua fé com segurança, também declara, na véspera da sua morte: "S
omos todos mendigos. Eis a verdade."
Lutero, mais profético do que Erasmo, opõe à sua teologia uma teologia radical da tran
scendência. Erasmo faz da Encarnação o ponto culminante de uma história em
que se conjugam transcendência e imanência. Estes dois teólogos não tiram da "loucura da
Cruz" as mesmas conseqüências sobre a condição do homem nem sobre os modos
de acção divina. Entre a criação e a Encarnação redentora, Erasmo mantém uma certa continuida
e. A preocupação com assegurar a plenitude da Redenção leva Lutero
a ver nisto sobretudo uma ruptura, uma criação inteiramente nova, sobre os destroços d
a antiga. Assim, a fé do convertido, cativo da verdade, opõe-se à busca humilde
do crente que caminha, sem renunciar a ela, para uma verdade que se oculta. Duas
sensibilidades, duas antropologias abrem caminhos diferentes a uma reforma igua
lmente
desejada. Mas também houve muitos reformadores protestantes que acolheram os traba
lhos de Erasmo mais favoravelmente, embora não aceitassem o seu pensamento profund
o.
A reforma católica rejeitou sobretudo o humanista; mas, às vezes, sem o ler, desde o
Concílio de Trento e, depois, com Francisco de Sales e os jesuítas, chegou a
algumas das suas intuições.
Será preciso esperar pelo século XX para que se reconhecesse ao pensamento de Erasmo
um alcance teológico profundo, talvez mais de acordo com uma modernidade pluralis
ta
do que à de Lutero, mais agarrado ao absoluto de Deus.
Jean-Pierre Massaut
232

Até ao fim das Escrituras Os radicais das reformas

Desde os primeiros anos das reformas posteriormente chamadas "protestantes", sur


giram dissidências multiformes. Nascidos ao lado destes reformadores, convencidos
do fracasso da Igreja medieval, estes radicais decepcionam-se bastante rapidamen
te com certas hesitações ou "compromissos" de Lutero e de Zuínglio (1484-1531) e
seguem o seu próprio caminho.
Nos anos 1524-1525, surge a primeira manifestação popular: começa na Floresta Negra, d
epois difunde-se por toda a Alemanha meridional e central até ao Tirol. Inspirando
-se
em escritos anticlericais de Lutero e Zuínglio, insistindo no direito local dos pa
stores, no direito da paróquia de ler e de interpretar a Escritura, e também da
busca de uma justiça social inspirada pelo Evangelho, o "movimento camponês", também a
nimado em diversas regiões por um certo milenarismo, termina com um banho de
sangue e provoca o descrédito da Reforma aos olhos dos católicos.
Desde então, as reformas luteranas e zuinglianas tornam-se cada vez mais questão dos
príncipes e das cidades livres do Império. A dissidência que se segue toma o
caminho da clandestinidade. Por isso, nos decénios seguintes podemos seguir pelo m
enos três formas de "radicalismo" protestante.
Em primeiro lugar, aparecem várias formas de "anabaptismo" mais ou menos estrutura
das. Em Zurique, os primeiros anabaptistas são jovens humanistas e discípulos de
Zuínglio. Partilhando a aspiração de autonomia local dos camponeses, Conrad Grebel, Fe
lix Mantz e Balthasar Hubmaier afirmam que o Novo Testamento não ensina o baptismo
dos bebês. Além disso, o princípio reformador da "salvação pela fé" encoraja-os a considerar
em o compromisso individual como a condição necessária de um baptismo
de adulto, quando vivido com conhecimento de causa. Os primeiros baptismos confe
ridos sobre a confissão de fé acontecem em Janeiro de 1525, em Zurique. Embora, desd
e
o princípio do movimento, se encontre entre a maioria uma não-violência de princípio fun
dada numa leitura
233

erasmiana dos ensinamentos de Cristo, aqueles que doravante se chamam "rebaptiza


dores" estão associados ao movimento camponês e são considerados perigosos. Sob a
direcção do antigo prior beneditino Michaél Sattler, o anabaptismo suíço - a partir de então
fora-da-lei - estrutura-se e sobrevive graças aos princípios elaborados
na "Confissão" de Schleitheim, em Fevereiro de 1527: baptismo dos crentes, discipl
ina exercida pela comunidade no seu seio, separação do mundo, recusa da violência
e do juramento, escolha do pastor local.
Ao mesmo tempo, nasce na Alemanha do Sul e na Áustria outra forma de anabaptismo m
ais "místico" que sobrevive de maneira estruturada no movimento "hutteriano" (Jaco
b
Hutter) na Morávia. A partilha integral dos bens, segundo o modelo da primeira Igr
eja de Jerusalém, faz parte da eclesiologia não-violenta e separatista destes anabap
tistas.
Estimulada pelo pensamento de Melchior Hoffman, surge nos Países Baixos uma forma
"milenarista" do anabaptismo. Esperando o regresso de Cristo, esta corrente cons
olida-se
em 1534-1535 em Munster, na Vestefália. Este reinado aterroriza a Europa cristã no s
eu conjunto e, como o movimento camponês, termina no sangue e na violência. Na
seqüência deste desastre e sob a direcção de Menno Simons, padre que se tornou anabaptis
ta em 1536, o movimento anabaptista neerlandês e flamengo estrutura-se também
em torno da não-violência evangélica e de uma Igreja não ligada ao Estado. Com o tempo,
estes anabaptistas serão chamados "menonitas".
Um segundo ramo de protestantismo radical é freqüentemente chamado "espiritualista".
Reagindo às divisões e aos conflitos relativos às coisas "externas" ou "materiais",
o espiritualismo realça o lado interior e espiritual da fé cristã. Estes homens não se s
atisfazem nem com o solafide de Lutero (o princípio segundo o qual apenas
a fé é fonte de salvação) nem com o princípio católico do ex opere operato (que afirma que o
sacramento é eficaz pela sua própria realização, independentemente de
quem o dá e até de quem o recebe). Aos olhos destes, se o último conduzia à salvação pelas o
bras, o primeiro favorecia o laxismo moral. Teologicamente, estes homens
fundamentam-se na "Escritura só", mas também são atraídos ou influenciados pela interior
ização da fé presente num Erasmo ou pela mística medieval. Como o anabaptismo,
também o espiritualismo conhece múltiplas expressões. As primeiras manifestam-se em to
rno de Lutero, em homens como Thomas Müntzer ou Andreas Carlstadt, que criticam
as hesitações de Lutero e se identificam com o "povo". Embora Carlstadt não se comprom
eta directamente com o movimento camponês, Müntzer torna-se um dos seus chefes
nas regiões mais directamente influenciadas por Lutero. Convencido de que Lutero e
stabelecia uma primeira elite de teólogos formados na Universidade, os únicos habili
tados
a interpretar correctamente a Escritura, Müntzer fala da presença do Cristo interior
em todos os fiéis, dado assim um acesso directo a Deus aos camponeses que não
sabem ler.
234

Apesar do espiritualismo de Müntzer acabar por encorajar a violência dos camponeses


revoltados, também houve formas mais "pacíficas" desta tendência em homens como
Hans Denck e Sebastian Franck. Do mesmo modo, o teólogo leigo silesiano Caspar Sch
wenckfeld, que se encontra em Estrasburgo no início dos anos 1530, propugna um
cristianismo totalmente interior, pretendendo que o verdadeiro baptismo é o do Espír
ito, que a verdadeira eucaristia não precisa de elementos sensíveis e que a verdadei
ra
Igreja de Jesus Cristo não precisa de estruturas visíveis. O seu movimento atrai pes
soas instruídas e sobrevive em pequenos círculos dispersos no Sul da Alemanha.
Não obstante, em princípio, os espiritualistas não formem grupo estruturado, é possível di
scernir traços comuns: recusa de uma monopolização dos meios da salvação
pela instituição, sensibilidade à experiência individual e à interioridade da fé, recusa de
uma teologia da predestinação.
Em terceiro lugar, durante os anos 1550, emergem movimentos às vezes chamados "ant
itrinitários". O primeiro exemplo bem conhecido teria sido a corrente conduzida
por Michel Servet (1511-1553), médico e teólogo espanhol que se interessa intensamen
te pelos debates teológicos de então. Notemos desde já que, até 1492, a teologia
foi confrontada em Espanha com a presença de judeus e muçulmanos que, em comum, reje
itavam a doutrina trinitária. Quando Servet começa a estudar a Escritura mais
profundamente, acaba por verificar que as categorias cristológicas de Niceia-Const
antinopla não têm fundamento bíblico. Para Servet, a boa cristologia faz-se a partir
do Jesus histórico e de uma interpretação rigorosa da Bíblia.
Na Itália também existia uma corrente "heterodoxa" que recusava o conceito de Trinda
de. Depois da morte de Servet na fogueira em Genebra, alguns dos seus membros
- Celio Secondo Curione, Camillo Renaro, Lelio Sozzini - refugiam-se na Europa c
entral e oriental (Lituânia, Polónia, Morávia e Transilvânia). O seu primeiro terreno
de acção foram as jovens Igrejas calvinistas, dentro das quais nasce uma ala antitri
nitária que acaba por tornar-se "unitariana" e, em finais do século XVI, "sociniana"
.
Algumas destas comunidades também partilham diversos traços teológicos e éticos das corr
entes anabaptistas.
Apesar da sua diversidade, estas correntes dissidentes partem todas do mesmo pon
to, nos grandes princípios da sola Scriptura e da solafide. Se bem que os moviment
os
reformadores oficiais não os reconheçam, os dissidentes são "protestantes" porque, emb
ora não possamos evocar um movimento homogéneo - alguns historiadores falam
de "Reforma radical" ou de "ala esquerda da Reforma" -, na verdade é possível reconh
ecer que há elementos comuns que atravessam mais ou menos este conjunto disperso:
uma leitura bíblica liberta dos conceitos da teologia medieval, uma crítica da doutr
ina luterana da absolvição, a recusa da síntese institucional "constantiniana"
e uma ética muitas vezes fundada na vida no seguimento de Cristo.
Neal Blough
235

Calvino
Eleição, vocação e trabalho

Ao nome de Calvino, já durante a sua vida e ainda mais depois, está associada a pala
vra "predestinação", oriunda de Agostinho, com a sua dupla face: eleição e condenação.
A predestinação divina confirma, radicalizando-a, a doutrina da salvação "só pela graça", se
m as obras nem os méritos do homem. Desde Max Weber (A Ética Protestante
e o Espírito do Capitalismo, 1905), predestinação calvinista e "espírito do capitalismo"
formam um par improvável, subjugado por uma ética do sucesso profissional.
De facto, a tese de Weber baseia-se nos escritos de pastores calvinistas inglese
s do século XVII, que procurou distinguir da doutrina de João Calvino (1509-1564).
Pode-se encontrar em Calvino a matriz temática que liga a teologia da predestinação e
a ética económica? Nos textos em que Calvino trata da predestinação, a eleição
está unida à "vocação", produtoras de obras; mas é nos outros textos que o tema da vocação, n
sentido de "profissão", está unida a uma ética do trabalho.

Eleição e vocação

Apoiando-se nas Epístolas paulinas, Calvino articula eleição e vocação: a eleição é devolvida
cada um, intimamente, pela "vocação" (de vocare "apelar", "chamar"),
o chamamento de Deus à conversão e à "santidade" ou, mais exactamente, à "santificação" ou "
regeneração".
Por uma ou duas vezes, na sua obra, Calvino evocou a sua própria "conversão súbita": é D
eus quem faz passar o jovem estudante do mundo das "superstições" da Igreja
tradicional, que ele era incapaz de deixar por si próprio ao "gosto e [ao] conheci
mento da verdadeira piedade". Calvino sabe que a sua experiência - uma reviravolta
descrita como uma iluminação simultaneamente intelectual e espiritual - não é um caso si
ngular. Os seus contemporâneos, leitores de Lutero, Zuínglio e outros, descobrem
como ele uma
236

compreensão nova do homem diante de Deus, da fé e do Evangelho. Na sua Epístola ao Car


deal Sadolet (1539), Calvino apresenta assim uma dupla: "abri os ouvidos e
tive de agüentar ser ensinado [pelos "novos pregadores"]. Portanto [...], estando
eu veementemente consternado e perdido com a miséria em que caí [...], pensei que
nada me seria mais necessário, depois de ter condenado com choros e gemidos a minh
a maneira de viver passada, do que me [...] retirar na tua [Senhor]".
Para Calvino, esta libertação pela graça - ou "justificação pela fé" - não é um fim, mas um i
. Retirado do "abismo de perdição", o crente (o eleito) começa
a viver uma vida nova. Neste processo, é ainda Deus quem tem a iniciativa: "Regene
rou-o e reformou-o numa vida nova." A "regeneração" concerne à "vida cristã" inteira:
trata-se de "procurar e conhecer a vontade de Deus", resumida no "sumário da lei",
o duplo.mandamento de piedade e de caridade; por outras palavras, "renunciar a
nós mesmos", "carregar a cruz de Cristo", servir a Deus e ao próximo. As consciências
libertadas do jugo da Lei e do cuidado das obras meritórias obedecem livremente
à Lei, para dar glória a Deus.
Se a fé não está "ociosa", mas trabalha e produz frutos, "boas obras", quererá dizer que
as boas obras dos fiéis são sinais de eleição divina? Segundo Max Weber,
para os puritanos, angustiados com a predestinação, as obras, frutos da "fé eficaz", a
"conduta de vida do cristão que serve para aumentar a glória de Deus", objectivam
a "certeza da salvação". Em contrapartida, para Calvino, as obras dos santos, sempre
manchados de pecado, não podem ser sinais seguros de eleição. O único "testemunho
de eleição" na consciência dos fiéis é a "vocação dos eleitos", a Palavra de graça ouvida, re
ida e "selada nos nossos corações": "Ao tocar os homens concretamente
para fazer com que vão para Ele, [Deus] declara a sua eleição que anteriormente estava
secreta." Partindo daqui, "a consciência também pode fortificar-se pela consideração
das obras", como "frutos da sua vocação", mas, então, trata-se de uma confirmação secundária
. Ao elidirem o "testemunho interior do Espírito Santo", os puritanos
ingleses puseram em primeiro lugar as obras para conquistar a certeza subjectiva
da eleição, obras postas em sistema, o "trabalho sem descanso numa profissão" ou
uma vocação.

O trabalho como vocação

Sobre o tema do trabalho como vocação, Calvino é devedor de Lutero: o trabalho é uma "vo
cação" de Deus, dada ao homem (Adão) antes da queda, para impedir a "ociosidade".
Aqui, entende-se "vocação" no sentido do apóstolo Paulo (1 Cor 7,17-20), como a maneir
a de viver a que Deus chama cada um: "Quero que vivas assim ou assim", num
estado (pai de família, servo...), num "ofício" (magistrado) ou numa profissão. As
237

profissões "úteis", em "proveito de todos", são "aprovadas por Deus", portanto, são vocações
. A hierarquia tradicional dos géneros de vida é invertida. O estado
monástico, a "vocação religiosa", já não é o "estado de perfeição cristã", o ideal de contemp
lificado como ociosidade egoísta. São as profissões dos leigos
(ou o seu trabalho em geral) que são chamadas "vocações".
Calvino identifica a dimensão própria da vocação com a "comunicação mútua entre os homens", a
excelência das diferentes profissões na sua interactividade. Deste
modo, ele mostra-se mais aberto do que Lutero às realidades do mundo moderno, ao c
omércio e ao manuseamento do dinheiro em geral. "Portanto, quando se disputa sobre
a mercadoria, dir-se-á que é uma vocação santa, que Deus aprova e que é útil, ou mesmo neces
sário, a todo o género humano; e, quando o homem se mistura com tudo
isso, deve aplicar-se como se servisse a Deus [...]. Por conseguinte, os comerci
antes devem servir a Deus no seu estado, sabendo que Ele os chama e que os quer
conduzir
com a sua palavra."
Também se sabe que sobre os empréstimos com juros, o lucro do dinheiro, Calvino abri
u uma brecha na posição tradicional dos teólogos, apoiados em Aristóteles, no
Antigo Testamento e nos Padres da Igreja. Primeiro isola, em exegese, as objecções bíb
licas; depois, em nome da equidade, refuta a idéia segundo a qual o juro seria
contra a natureza, porque o dinheiro não pode produzir frutos por si mesmo. Levant
ando os obstáculos da tradição, o caminho fica aberto para o empréstimo a juros
ou o crédito, desde que o dinheiro emprestado vá servir para produzir um ganho para
quem pede emprestado (empréstimo de produção). "Não deixar o dinheiro ocioso"
é uma das fórmulas de Calvino, encorajando um dos seus amigos, comerciante fixado em
Estrasburgo, a emprestar para fazer negócios.
Este dinamismo prolífico, socialmente útil, valorizado em oposição à "ociosidade" estática,
não é a única consonância entre Calvino e os calvinistas ingleses descritos
por Max Weber. No capítulo da sua Instituição da religião cristã (1541) consagrada à "vida c
ristã", Calvino estabelece regras de ética, de como "bem ordenar a sua
vida", que podem prefigurar a ética puritana do trabalho profissional: a ascese no
mundo ("usando o mundo como se não se usasse", 1 Cor 7,29-31); a idéia de um "depósit
o
de que teremos, um dia, de prestar contas"; finalmente, o "serviço da nossa vocação",
quer dizer, a consideração da vocação particular de cada um, como quadro dos
seus actos, regula quem orienta e organiza as suas obras ao longo de toda a sua
vida.
Sobre os dois pares temáticos no centro do modelo weberiano da ética calvinista-capi
talista - eleição e vocação, trabalho e vocação particular -, não faltam os pontos
de contacto entre Calvino e os calvinistas do século XVII. Contudo, nos textos de
Calvino não se lê este hino sem descanso que é próprio
238
dos puritanos e nem sequer se encontra neles vestígios do móbil que, segundo Weber,
faz a ligação entre a teologia calvinista e o "espírito do capitalismo", a necessidade
de conquistar pelas obras a certeza da eleição. Por isso, não surpreende que Weber não t
enha conseguido encaixar o reformador de Genebra na sua demonstração.
Marianne Carbonnier-Burkard
239

A via média anglicana


Uma lenta construção

Mesmo que esteja ligada a factores sociais, económicos e, evidentemente, religioso


s, a srcem da Reforma anglicana é, em primeiro lugar, dinástica. O rei Henrique
VIII julga indispensável consolidar a jovem dinastia dos Tudor, assegurando uma su
cessão masculina. Tendo unicamente uma filha do seu casamento com Catarina de Aragão
,
não conseguiu obter do papa a declaração de nulidade desta união. Por isso, Henrique dec
idiu, em 1534, ao cabo de um longo inquérito sobre um caso difícil de direito
matrimonial, repatriar a sua "grande questão", como então se dizia, para a Igreja de
Inglaterra de que ele se tornava, depois de Cristo, o chefe supremo.
No entanto, a coroa inglesa tinha-se mostrado das mais zelosas na defesa da fé rom
ana, contestada por Lutero e pelos seus partidários. Duas figuras ilustram-no bem:
John Fisher, bispo de Rochester, e, sobretudo, um leigo, Thomas More, autor de U
topia (1516) e "gémeo" de Erasmo, cujo ideal de humanismo cristão partilhava. O própri
o
Henrique VIII, que se presumia teólogo, assinou uma obra para refutar Lutero, ocas
ião para o papa Leão X lhe conceder o título havia muito solicitado de "Defensor
da fé".

A "reforma henriquina" (1534-1547)


O "divórcio" do rei, que tornava possível o seu casamento com Ana Bolena, de quem er
a amante, provocou simultaneamente a separação de Roma e a aproximação daqueles
que, desde os anos 1520, essencialmente em Cambridge, professavam as idéias lutera
nas. Os advogados de uma Reforma protestante, cujos fundamentos haviam sido esta
belecidos
por Wyclif no século xiv, foram William Tyndale, que traduziu a Bíblia para inglês, Hu
gh Latimer e, sobretudo, Thomas Cranmer, padre sábio e político dócil, casado
secretamente em 1532 com uma sobrinha do reformador alemão Osiander.
240

Nomeado arcebispo de Cantuária por Henrique VIII, Cranmer tornou-se o artífice mais
eficaz da difusão das idéias protestantes em Inglaterra. Em 1534, o Parlamento
aprovou o Acto de Supremacia relativo à Igreja anglicana. No início do Verão de 1535,
o rei mandou executar John Fisher e, depois, Thomas More, que fora seu chanceler
de 1529 a 1532, porque não tinham querido prestar o juramento exigido pelo rei.
Thomas Cromwell foi encarregado de gerir as mudanças e fez uma política sistemática de
propaganda a favor das idéias novas. Entretanto, houve operações de supressão
dos mosteiros, entre 1536 e 1539, com a transferência das suas propriedades para a
coroa e para beneficiários privados que ligaram duradouramente a "reforma henriqu
ina"
a uma classe que tinha tudo a ganhar com a manutenção do novo estado de coisas. Houv
e, porém, um movimento de resistência com uma amplitude que se tem subestimado.
Os mentores da "Peregrinação de Graça", que abrangeu sobretudo o Yorkshire e o Norte d
a Inglaterra (1536-1537), foram executados.
Artífice de uma aproximação dos príncipes protestantes, de que - depois da execução de Ana B
olena e da morte de Jane Seymour - o quarto casamento do rei com Ana
de Clèves devia ser o símbolo, mas que se mostrou desastroso, Cromwell foi acusado d
e traição e condenado à morte em 1540. Um ano antes, por um movimento de pêndulo
que caracteriza todo este período, o soberano tinha imposto os Seis Artigos, de to
nalidade menos protestante, para substituir os Dez Artigos de 1536.
Com este "nacional-catolicismo", Henrique VIII parecia já procurar uma "via média" q
ue o anglicanismo vai depois reivindicar. Tirânica, mas hábil, esta política
podia contentar simultaneamente aqueles que, aceitando ou desejando a separação de R
oma e uma reforma na Igreja, se mantinham nas suas crenças tradicionais e aqueles
que, de convicção protestante, ainda podiam esperar a chegada de uma revolução religiosa
.
Doravante, já com um herdeiro dado por Jane Seymour (em 1537), Henrique VIII, ao p
reparar a sua sucessão, promoveu, na organização do Conselho de regência, a família
desta esposa a família da esposa bem-amada que tinha morrido pouco depois do parto
. De facto, era programar o triunfo das doutrinas calvinistas depois da sua mort
e,
em 1547.

O reinado de Eduardo VI e os anos protestantes (1547-1553)


Um quadro alegórico que se encontra na National Portrait Gallery de Londres descre
ve com uma bela economia de meios o que pretendia ser a corte de Eduardo VI (154
7-1553),
chegado ao trono com dez anos de idade e freqüentemente comparado a Josias, o meni
no-rei que, no Antigo Testamento, é o restaurador da Lei em Israel. À esquerda
do quadro, o rei Henrique VIII, deitado na sua cama de doente, aponta o seu jove
m filho Eduardo que está ao centro, sentado num trono por baixo do qual jaz o papa
,
241

derrubado por uma grande Bíblia aberta. Perto dele, lêem-se as palavras "idolatria"
e "santidade fingida". Dois monges, reconhecíveis pela sua tonsura, fogem. À
direita, vêem-se oito personagens de aspecto grave, das quais uma é bispo, sem dúvida
Cranmer. Por cima delas, num quadro dentro do quadro, homens derrubam uma estátua
da Virgem.
A influência de Calvino é conhecida pelas suas cartas dirigidas ao próprio Eduardo VI.
Martin Bucer, o reformador de Estrasburgo que tinha encontrado refúgio em
Cambridge, é o inspirador do ritual de ordenação dos padres. Mas o mestre-de-obras da
reforma litúrgica em língua inglesa foi Thomas Cranmer, bom conhecedor não
só da tradição, mas também criador. Pessoalmente próximo de uma concepção simbólica da eucari
a, foi o autor principal do Livro de Oração Comum (Prayer Book) em
1549, depois de um Segundo Livro, de tendência mais explicitamente protestante, em
1552, assim como dos Quarenta e Dois Artigos de fé de 1553. Pouco antes, uma camp
anha
iconoclasta destruía os altares de pedra, substituídos por mesas.
Depois da queda do duque de Somerset, em 1550, o poder foi tomado por John Dudle
y, que conseguiu persuadir Eduardo VI a excluir da sua sucessão Maria, filha de Ca
tarina
de Aragão, que se tinha mantido fiel à fé católica. Por morte de seu irmão, em Julho de 15
53, Maria, apoiada pelos partidários do antigo regime, conseguiu impor-se.
Chegada ao trono, restabeleceu os laços quebrados da Inglaterra com a Igreja Católic
a, depois de vinte anos de cisma.

Maria Tudor e os anos romanos (1553-1558)

Até então, Maria tinha vivido na recordação de sua mãe, que tinha sido humilhada. Ficou próx
ima dos Habsburgo da Alemanha e de Espanha, que lhe pareciam o melhor
apoio do catolicismo na Europa. A política de Maria contra os partidários do protest
antismo só se endureceu verdadeiramente depois das revoltas que se ergueram no
Sul da Inglaterra. Então, foram executados Cranmer e Latimer, que não tinham ido par
a o exílio como muitos outros.
Maria apoiou-se em Reginald Polé, ligado por sua mãe à família real e, por isso, banido
por Henrique VIII. Legado do papa, arcebispo de Cantuária, Polé reconciliou
solenemente a Inglaterra com Roma (1556). Este teólogo humanista, que tinha partic
ipado no Concílio de Trento, empreendeu de maneira espantosamente rápida uma reforma
católica, antecipando, por exemplo, a criação dos seminários dos padres. No entanto, a p
erseguição dos hereges alimentou um sentimento anticatólico e contribuiu
para um crescendo de impopularidade da rainha. Mas a opinião rejeitou sobretudo o
casamento de Maria com aquele que se tornou o rei de Espanha com o nome de Filip
e
II, embora, diplomaticamente esta
242

escolha pudesse perfeitamente ser defendida. Contudo, foram a morte da rainha em


Novembro de 1558, sem descendência, apesar do seu desejo desesperado de a ter, e,
algumas horas depois, a de Reginald Polé, que determinaram uma nova reviravolta re
ligiosa, com a chegada de Isabel.

Isabel e o primado do político (1558-1603)


Uma das raras coisas que o historiador pode afirmar acerca das convicções de Isabel,
filha de Henrique VIII e de Ana Bolena, é a admiração que ela dedicou durante
toda a sua vida ao seu pai e a sua vontade de imitá-lo. É a ela que se deve o estabe
lecimento de uma via media entre um protestantismo radical e o catolicismo roman
o.
Desde o início do seu reinado, o restabelecimento, com poucas modificações, do Livro d
e Oração Comum de 1552 mostrou que a orientação protestante retomava o seu
lugar no equilíbrio religioso e político de Inglaterra, ao longo de um dos maiores r
einados da sua história.
Em Janeiro de 1559, o Parlamento votou um novo Acto de Supremacia, suprimindo a
jurisdição pontifícia mas substituindo o título de chefe supremo da Igreja Anglicana
pelo de, menos ofensivo, governador, o que não impediu que Pio V excomungasse a ra
inha. Os Trinta e Nove Artigos, redigidos em 1563 e adoptados em 1571, apresenta
ram
a doutrina mais como uma série de posições sobre as controvérsias teológicas do momento do
que como um credo. Os artigos sobre a predestinação, tão caros dos protestantes,
ou sobre a eucaristia, que preocupavam os católicos, estavam redigidos de maneira
a ser diversamente interpretados.
Este compromisso religioso foi defendido pelo teólogo Richard Hooker. Contra os pu
ritanos, ele justifica a estrutura episcopal cuja continuidade apostólica a rainha
quis estabelecer com a ordenação de Matthew Parker, em 1559, como arcebispo de Cantuár
ia. Hooker queria sobretudo mostrar a necessidade de harmonizar o direito positi
vo
simultaneamente com a lei natural e com as prescrições da Bíblia. O governo da Igreja
tinha de adaptar-se às circunstâncias e a reforma anglicana podia ser justificada
sem a separar da instituição medieval.
Apoiada, num regime estável, por uma liturgia servida pelos maiores músicos do tempo
, como Tallys ou Byrd, esta síntese permite que o anglicanismo se implante duradou
ramente,
aliás, com um endurecimento anticatólico e uma exigência de maior conformidade nos fin
ais do reinado. Este protestantismo moderado viria a ser ameaçado por crises
políticas e religiosas do século seguinte.
Guy Bedouelle
243

II

RIVALIDADES E COMBATES

Inácio de Loiola e a aventura jesuíta

Aos quinze anos, Inigo López de Onaz y Loyola (1491-1556) é enviado para o castelo d
e Arévalo, de Juan Velázquez de Cuéllar, um parente seu, superintendente das
finanças do reino de Castela e membro do Conselho real. Depois de ter passado dez
anos na administração junto deste funcionário, torna-se diplomata ao serviço de
Manrique de Laras, duque de Nájera e vice-rei de Navarra, outro parente. Em 1521, é
ferido durante o cerco de Pamplona. Reconduzido a Loiola, converte-se. Vai a
Monserrate, um foco da Devotio moderna, depois a Manresa, onde a sua vida assume
um cariz místico, e finalmente a Jerusalém, em busca de Cristo. No seu regresso,
desejando "ajudar as almas", estuda em Barcelona, Alcalá e Salamanca. Mas alguns e
xcessos fazem com que seja considerado um alumbrado (iluminado herético) e teve
de justificar-se perante a Inquisição.
Em 1528, em Paris, adquire rapidamente no colégio de Montaigu o nível requerido em l
atim, gramática e retórica para se inscrever na faculdade das artes. Depois,
entra em Sainte Barbare, um colégio inovador, onde se cruza com Calvino. Forma-se
como mestre em artes em Março de 1534. No dia 15 de Agosto seguinte, em Montmartre
,
com seis amigos que fizeram os Exercícios Espirituais, compromete-se a viver o Eva
ngelho na castidade e na pobreza, a ir a Jerusalém ou, se isso for impossível,
a pedir ao papa que o envie aos infiéis. Pouco depois, aquando da questão dos Placar
ds e da repressão real, os companheiros trabalham na reconciliação dos luteranos,
estudando teologia nos dominicanos e nos franciscanos, e também no colégio de Navarr
a e na Sorbona. Interessam-se, então, pelas Escrituras e pelos Padres da Igreja,
e alguns deles, apaixonados pelo grego, vão ouvir os leitores reais.
Em 1537, estão todos em Veneza para aí esperar um barco para Jerusalém. Então, os que não
eram padres foram ordenados. Não chegando
244

a embarcar, os companheiros dirigem-se ao papa, que os envia em missão na Itália: un


s dirigem os Exercícios (propõem aos fiéis retiros à maneira de Inácio de Loiola),
outros pregam ou ensinam as Escrituras, mas todos se dedicam às obras de misericórdi
a. Em 1539, depois de uma longa deliberação, escolhem tornar-se religiosos. A
srcinalidade do seu propósito é apresentar-se como um corpo internacional bem estru
turado, unido por uma profunda amizade e uma forte espiritualidade, a dos Exercíci
os,
de maneira a poderem dispersar-se a pedido do papa ou dos seus superiores. A mar
ca dos Exercícios Espirituais, editados em 1548, é tal que, em breve, este método
de acesso à vida espiritual torna-se uma das características do catolicismo moderno.
Para Inácio e seus companheiros, trata-se de um itinerário que se segue à luz
do Evangelho, sendo guiado discretamente por uma pessoa que já os praticou. Ao faz
er os Exercícios, cada um também é convidado, em toda a liberdade, a unir-se a
Deus e a encontrar a sua própria vocação, tanto na sociedade como na Igreja.
Os jesuítas são aprovados em 1540 por Paulo III. Em 1546, decidem abrir colégios e dar
ao seu apostolado uma visão quádrupla: o ensino universitário, o acompanhamento
espiritual, as pregações missionárias e as obras de misericórdia.
Em França, a entrada dos jesuítas é difícil. Censuram-lhes a novidade do seu instituto,
o seu ultramontanismo (ou a sua vassalagem exclusiva ao papa) e o seu carácter
internacional. Apesar do apoio de bastantes cardeais, o seu desejo de fundar colég
ios é mal recebido. Considera-se suficiente a presença dos mendicantes nas universid
ades
e julga-se exorbitante o seu desejo de ensinar as artes e as letras. Em 1561, ob
têm um estatuto legal, mas serão necessários vinte anos para realmente se implantarem.
Em 1582, já são trezentos, repartidos por três províncias. As suas fundações, só decididas pe
o superior geral, são motivadas pelo desejo de realizar o "bem mais
universal" com um máximo de eficácia. Nesta estratégia, a luta contra as heresias está l
onge de ser o único objectivo e várias razões levam os jesuítas para as universidades:
o seu desejo humanista de unir fortemente a cultura e a religião, e também a sua von
tade de estarem presentes nos locais de onde propagam as reformas. Mas têm ainda
outros motivos, como o de recrutar estudantes brilhantes.
Em 1594, o parlamento de Paris, sempre hostil, usa o atentado contra Henrique II
I para expulsar os jesuítas do seu domínio, sem, contudo, conseguir que os parlament
os
de Toulouse e de Bordéus se decidam a segui-lo. Em 1603, Henrique IV restabelece a
Companhia e institui-se seu protector. Luís XIII e Luís XIV seguiram a mesma política
:
em 1616, a assistência de França conta já cinco províncias. Daí em diante, a Companhia nun
ca mais terá modificações substanciais. Em 1762, os jesuítas são 3049,
repartidos por 161 casas, das quais 91 são colégios e 20 seminários onde residem não ape
nas os regentes e os professores, os escritores e os sábios, mas igualmente
os pregadores e os missionários.
245

Durante o primeiro terço do século XVII, os jesuítas franceses atingem o estádio místico a
tingido pelos seus companheiros espanhóis e italianos. A espiritualidade
inaciana conhece, então, grandes desenvolvimentos não somente na ordem, na Bretanha,
na região de Bordéus e nas missões, mas também no exterior, nas congregações
marianas e nas associações de amigos, ligadas às residências e aos colégios. Os teólogos jes
uítas sublinham os debates importantes sobre a Escritura e os Padres
da Igreja, mas alguns deles também entram nas discussões sobre a graça e a liberdade d
eixadas pendentes pelo Concílio de Trento. Formados pelos Exercícios, não podem
admitir que os homens não tenham parte na sua salvação. Estas posições causar-lhes-ão aborre
cimentos com os dominicanos, os agostinianos e, mais precisamente, com
Pascal e Port-Royal. Os sábios jesuítas dão prova de menos audácia, quando, com Tycho Br
ahe, tentam um compromisso entre Ptolomeu e Copérnico.
Os jesuítas franceses estão na América do Norte, nos países do Levante e no Extremo Orie
nte. Muitas vezes, a partir destas missões longínquas, mantêm correspondência
com os sábios de Paris, Londres ou Moscovo. Mas, em 1685, quando uma dezena deles
embarca para o Sião e para a China a pedido do rei Luís XIV, a sua situação torna-se
difícil em França, porque o rei suporta mal a sua submissão ao papa. Logo que esta que
stão é regulada pelo padre de La Chaise, o confessor real, outra se declara.
No momento em que esta rebenta, em 1730, a Companhia não se apercebe da sua fragil
idade. Os seus colégios estão pouco adaptados ao momento em que o Estado-nação
se esforça por assumir o controlo do ensino. O seu funcionamento financeiro também s
e fragiliza. O fim do sistema beneficiário marca o início das dificuldades da
Companhia O fracasso de La Valette, na Martinica, é um exemplo das suas inadaptações.
O princípio da "solidariedade" financeira justifica o assalto aos jesuítas.
Ora, embora os magistrados saibam que, em direito, cada casa é autónoma e não pode ser
proprietária, também sabem que, nos factos, esta estrutura jurídica não é
aplicada. A inabilidade dos jesuítas foi não só dirigirem-se ao parlamento, mas sobret
udo não se aterem aos factos.
Então, ressoa uma palavra de ordem: "É preciso destruir os jesuítas!" Editam-se os Ext
ractos das Asserções Perigosas, uma verdadeira "máquina de guerra", mas, mais
subtilmente, alguns querem transferir para o interior do Estado o que tinha opos
to jesuítas e jansenistas na Igreja. Ao contrário de Pascal, Le Paige, o jansenista
que conduz a questão, não está contra o laxismo nem contra o regicídio; quer denunciar o
próprio princípio das Constituições da Companhia: o seu despotismo. Depois
de ter hesitado, o parlamento de Paris redige, em 1762, um projecto de édito que d
enuncia a Companhia como o próprio exemplo do despotismo na Igreja e no Estado.
O seu desejo nada tem a ver com os jesuítas, mas com o governo de quem são eles reféns
. Todos os parlamentos e todas as cortes soberanas adoptam
246

o mesmo procedimento e, em 1764, a Companhia já não tem existência legal em França, apes
ar dos protestos de Clemente XIII e dos bispos. Por fim, pressionado pelos
Bourbon, Clemente XIV suprime a ordem em 1773. Mas, tendo a czarina recusado est
e acto, a Companhia subsiste na Rússia, onde é reconhecida por Pio VI em 1801, antes
de o ser universalmente por Pio VII, em 1814. Então, pouco a pouco, clandestinamen
te ou não, a Companhia regressa às suas terras de srcem.
Philippe Lécrivain
247

As Inquisições na época moderna

A Inquisição não é uma criação da época moderna, mas conhece modificações profundas no decurs
séculos XV e XVI: em declínio em França, onde os tribunais reais
se arrogam as suas competências, ela aparece na Península Ibérica e reorganiza-se na I
tália. Como tal, ela é, portanto, comparável a outros organismos de controlo
social que então se desenvolvem nos outros contextos: assim, o consistório calvinist
a exerce um controlo minucioso dos costumes e sanciona duramente os contraventor
es.
Mas as Inquisições conservam a sua especialidade: como justiça eclesiástica e tribunal d
as consciências, definem os crimes que conhecem; apoiam-se no braço secular
e, no caso ibérico, dependem estreitamente dele, mas também conservam uma autonomia
que faz delas verdadeiros poderes locais.
Outra característica da Inquisição moderna é a sua adaptação ao quadro político e nacional qu
justifica a utilização do plural. A Inquisição espanhola é a primeira
destas Inquisições modernas. Em 1478, os Reis católicos Isabel e Fernando obtêm do papa
a nomeação de juizes eclesiásticos encarregados, antes de tudo, de vigiar
os cristãos novos ou conversos, aqueles judeus convertidos ao cristianismo, por ve
zes há várias gerações, e suspeitos de conservar em segredo a sua antiga fé. Muito
rapidamente, esta nova instância estrutura-se, com um inquisidor-geral, ou conselh
o central, a Suprema, e tribunais regionais. Ao período de terror que marca os
primeiros decénios, em que vários milhares de judaizantes ou suspeitos como tais são p
erseguidos, sucede uma fase de consolidação, durante a qual a Santa Sé alargou
a sua acção aos delitos que concernem também os cristãos velhos (aqueles de quem não se po
de afirmar que tenham uma srcem judia ou muçulmana), como a blasfémia,
as práticas supersticiosas e os comportamentos sexuais. O poder da Inquisição em Espan
ha manifesta-se de maneira estrondosa em 1559, quando o arcebispo de Toledo,
Bartolomé Carranza, foi preso por suspeita de heresia. Entretanto,
248

a monarquia mantém sob controlo apertado esta instituição, a única que escapa ao parcela
mento jurídico dos vários reinos que a compõem. Em Portugal, a Inquisição
implantada em 1547 é da mesma natureza que na Espanha. As Inquisições ibéricas estendem
a sua jurisdição às terras ultramarinas conquistadas. No México, em Lima
ou em Goa, os inquisidores querem perseguir a imigração de cristãos europeus suspeitos
, judai-zantes ou simpatizantes da Reforma, e sancionar todas as formas de
mestiçagens religiosas produzidas pela experiência colonial.
A Inquisição romana tem outra srcem e não está ligada de maneira tão estreita a um Estado
. O medo da difusão da Reforma em Itália leva o papa Paulo III a criar
em 1542 uma congregação de cardeais com âmbito suficiente para inquirir em matéria de he
resia. Esta nova congregação, cujo império se estende teoricamente sobre
o conjunto do mundo católico, exceptuando as terras submetidas às Inquisições ibéricas, só e
xerce de facto a sua jurisdição na Itália, onde os tribunais inquisitoriais
já existentes lhe estão sujeitos. Mas a sua existência modifica consideravelmente os e
quilíbrios de poder no seio da cúria romana. Bastião dos intransigentes, o
Santo Ofício pode impedir a eleição ao pontificado de cardeais suspeitos de simpatias
pela Reforma como, em 1549, o cardeal inglês Reginald Polé, ou, ao contrário,
promover candidatos saídos das suas fileiras: a maior parte dos papas da segunda m
etade do século XVI são antigos inquisidores. Localmente, os tribunais inquisitoriai
s
desmantelam grupos dissidentes que, em alguns decénios, sucumbem aos seus golpes.
Então, a Inquisição romana alarga o seu campo de acção a outros delitos religiosos
e interessa-se, como no caso ibérico, por comportamentos heterodoxos que nada têm a
ver com o protestantismo. Doravante, ela exerce um controlo intelectual global,
nomeadamente sobre a produção e a difusão de livros impressos. Esta vontade de impor a
ortodoxia católica a todos os sectores do saber acaba naturalmente numa confrontação
com as inovações da revolução científica que se iniciou no século XVI, apesar do apoio de um
a parte da Igreja romana aos sábios mais ilustres. O processo feito a
Galileu e a sentença lida em 1633 ilustram de modo notável a ruptura entre a ciência e
a teologia provocada pela instituição inquisitorial e a sua visão intransigente
das relações entre a fé e o saber.
Quando se fala de Inquisição, é necessário evitar uma reabilitação que seria perfeitamente c
hocante e, ao mesmo tempo, uma lenda negra que mascara uma realidade
já terrível. A instituição inquisitorial suscita desde a época moderna uma viva repulsa no
próprio seio do mundo católico e, de Nápoles aos Países Baixos, a perspectiva
da introdução da Inquisição desencadeou verdadeiras revoltas. No entanto, as censuras fe
itas à Inquisição pelos seus contemporâneos não são as que um espírito do
início do século XXI poderia esperar. Por exemplo, a prática da tortura não figura entre
as primeiras objecções feitas às Inquisições modernas. É verdade que elas
praticavam-na com muito mais moderação e regras do que os tribunais laicos da época. D
epois dos seus primeiros decénios de existência, em que
249

fizeram numerosas vítimas (sem dúvida milhares em Espanha, centenas na Itália), as jur
isdições inquisitoriais só raramente condenaram à morte. Perante as denúncias
odiosas e interessadas, também souberam instaurar um procedimento bastante exigent
e de verificações das testemunhas, de audição dos acusados, que tinham acesso a
uma parte do seu dossiê para poderem defender-se. Isso evitou, nos países submetidos
à Inquisição, a loucura dos linchamentos de feiticeiros e de bruxas que assolou
a Europa do Norte entre, mais ou menos, 1550 e 1650. A Inquisição foi sempre muito c
ircunspecta perante os delitos da feitiçaria e nunca manifestou a ferocidade
de que era capaz noutras circunstâncias. Foi das primeiras jurisdições do mundo católico
que duvidou da realidade do sabat ou do pacto com o diabo. A Europa da primeira
modernidade achou a prática inquisitorial particularmente terrífica por razões diferen
tes dos aspectos tantas vezes apresentados, às vezes de maneira fantasiosa,
pela polémica anticatólica do Século das Luzes e da época contemporânea. O segredo do proc
esso, em que o acusado não conhece o delito nem o nome de quem o denunciou,
em que ele próprio tem de prometer que nada dirá acerca do desenrolar do processo, s
eja qual for a conclusão, suscita uma profunda angústia entre os réus da Inquisição.
A infâmia social ligada a uma condenação do Santo Ofício é mais dolorosa que a duração da pen
: postas em cena aquando dos autos-de-fé, em que os condenados deviam
abjurar publicamente, mesmo que depois só fossem sujeitos a penas leves, as sentença
s da Inquisição marcavam com a ignomínia as suas vítimas e a sua descendência.
Finalmente, no plano intelectual, as Inquisições não abafaram toda a criação nos países que
lhes estavam submetidos, mas favoreceram o surgimento de uma forma de
conformismo religioso e de autocensura que, para certos historiadores, contribui
u para o declínio da Espanha, de Portugal e da Itália nos séculos XVII e XVIII. Entret
anto,
a avaliação global das Inquisições na época moderna e do seu impacte permanece um desafio,
em razão da mole de documentos deixada por estas instituições minuciosas
e do prisma deformador das experiências totalitárias do século XX, de que dificilmente
o historiador se desliga para analisar sem anacronismos esta polícia das consciênci
as.
Alain Tallon
250

Liturgias novas ou liturgias de sempre?

Reduzem-se demasiado as reformas à fé e à Bíblia, como se o cristianismo fosse tão-só o come


ntário jamais acabado. Ora, o cristianismo moderno também desenvolve
práticas corporais e sociais que exprimem a fé na e pela liturgia, e que estabelecem
uma relação com Deus e com Cristo não menos essencial que a da Escritura; é,
aliás, o aviso de Lutero, primeiro bastante conservador em matéria litúrgica, contra C
arlstadt e contra Zuínglio que, ao contrário, afastavam os seus fiéis de uma
concepção puramente sacramental (mágica, para eles) da liturgia, para desenvolver os s
eus aspectos simbólicos. Em 1523, Lutero adoptava uma fórmula depurada e em
alemão do ritual do baptismo. No entanto, a sua missa alemã só apareceu em 1526. Os cânt
icos evangélicos (ele próprio compôs vários), editados desde 1524, na primeira
colectânea de cânticos, constituíam, pelo contrário, um verdadeiro comentário da sua teolo
gia.
Muito rapidamente, os gestos e as palavras da liturgia implicaram escolhas antro
pológicas importantes. Na verdade, a força da idéia do sacerdócio universal e, sobretudo
,
a questão sobre a pertinência do latim, cujas raízes pagãs alguns humanistas então redesco
briram, fazem explodir os fundamentos da liturgia medieval, que são a missa
e o ofício das horas. Este novo questionamento de gestos e palavras da liturgia fe
z mais pelo surgimento da violência interconfessional do que todos os comentários
teológicos... O que seriam hoje a reforma luterana ou a calvinista sem os salmos e
cânticos em alemão ou em francês, a reforma anglicana sem o Livro de Oração Comum
e a reforma tridentina sem a missa "romana"? Para explorar estes espaços, observem
os alguns lugares de batalha confessional antes de vermos como se fixam as opções
feitas no século XVI.
No terreno escaldante dos gestos, é preciso desde já pôr de lado as práticas eucarísticas,
porque é "aí que tudo se realiza ou tudo se destrói", como já dizia Pierre
Chaunu. A violência da polémica sobre a missa, contra
251

a "malcheirosa missa" papista, faz parte da explosão reformada. É o sinal de que o r


ito é muitíssimo mais do que uma refeição partilhada: institui uma comunhão dos
participantes entre si e com Cristo triunfante. Portanto, é preciso haver aqui uma
interpretação da fraternidade realizada em volta da figura de Cristo, eternamente
presente no meio dos seus. É por isso que as posições sobre a presença eucarística são tão im
ortantes; é por isso que as palavras técnicas de consubstanciação ou
de transubstanciação, de presença real, corporal, espiritual, memorial, provocam tanta
s paixões. Esqueceu-se demasiado depressa quanto os insultos escatológicos,
as provocações contra o "Deus de massa", as acusações de antropofagia a propósito do banqu
ete eucarístico e das suas conseqüências construíram uma atmosfera de suspeição
e de enquistamento entre os cristãos. Pensa-se sempre na contraposição polémica aguda en
tre católicos e protestantes, mas os debates sobre a Ceia também pesaram
muitíssimo nos debates entre reformados: desde muito cedo, zuinglianos e luteranos
, calvinistas e anabaptistas estabeleceram fronteiras identificativas que retoma
m
discussões sempre renascentes sobre o sentido da memória da última ceia de Cristo.
Enquanto os protestantes desprezam a multiplicação das missas e dos sinais de adoração e
ucarística, os católicos, pelo contrário, desenvolvem a devoção ao SS. Sacramento,
saída do coração da Idade Média, mas muito em voga no fim do século XV nos meios mais ferv
orosos. Continuam a apresentá-lo em cerimónias cada vez mais visíveis (e,
em breve, também agressivas contra os "hereges" forçados a terem de se sujeitar a el
as, quando for o caso). Desenvolveram uma participação no sacrifício de Cristo,
muito mais pela visão (no momento da elevação da hóstia durante a missa) do que pela con
sumpção da eucaristia, apoiando-se nas práticas seculares e, portanto, veneráveis;
em meados do século XVI, a comunhão freqüente ainda só era prática de alguns grupos devoto
s em formação, como os jesuítas.
Também não nos podemos esquecer do apego dos cristãos a certas orações saídas da liturgia da
s horas: quem poderá avaliar a função tranqüilizadora exercida pela Ave-Maria
em latim ou pelo Pai-Nosso em francês, pelas antífonas do Livro de Oração Comum tornadas
sentenças morais?... A violência católica da primeira guerra de religião
em França tem tanto a ver com a prática ostentatória do canto dos salmos ao ar livre e
nas ruas como a iconoclastia dos perseguidores. Os saltérios luterano ou huguenot
e
e os cânticos anabaptistas ainda hoje são sinais identificativos fortes que ligam ca
da tradição confessional à sua srcem e aos tempos bíblicos.
Mas é do lado da língua litúrgica que o corte é mais nítido. Enquanto algumas línguas vernácu
as se emancipavam na administração e ganhavam estatura literária, enquanto
a Escritura era traduzida havia várias gerações, as Igrejas protestantes optaram, logo
à partida e com sucesso imediato, por abandonar o latim. Sentindo o perigo
para o enraízamento na tradição, uma parte dos humanistas pôs-se a defender com a crítica
e a história as traduções
252

latinas dos salmos (como o discípulo de Jacques Lefèvre d'Étaples, Josse Clichtove). D
o lado católico, há muito que parecia impossível abandonar o latim, língua
das coisas sagradas havia bem mais de um milénio. Todavia, outra parte dos humanis
tas, que escolheu permanecer no catolicismo não obstante os mitos, continuou persu
adida
de que a tradução era indispensável para defender o princípio de interiorização da fraternid
ade com Cristo. Foi assim que muitos clérigos dos círculos de Margarida
de Navarra, Lefèvre d'Étaples, Gérard Roussel e Claude d'Espence, por exemplo, defende
ram a liturgia em língua vernácula até cerca de 1535 e trabalharam a língua
francesa para a levar a uma melhor expressão da experiência espiritual. As traduções/int
erpretações de Clément Marot que edificam o saltério huguenote também nasceram
deste esforço.
Mas ainda nem tudo estava decidido; no Concílio de Trento ainda se discutia sobre
a oportunidade da passagem para a língua vulgar, para se acabar por recusá-la por
causa do seu papel já claramente identificativo dos protestantes. Então, o concílio de
cide rever e simplificar o latim dos livros litúrgicos: Pio V edita o Breviário
(1568), depois, o Missal (1570), saídos destes trabalhos, e Paulo V produz o Ritua
l Romano em 1614. O católico orará em latim, enquanto o protestante fará oração
em língua vulgar, até que o recuo das humanidades, provocando um empobrecimento da l
iturgia católica, voltará a pôr a questão com outros fundamentos no século XX.
As opções do século XVI ainda têm conseqüências importantes a longo prazo.
A liturgia católica mantém o seu carácter universalista e, até, supranacional, muito útil
quando a celebração impuser diversas línguas. No entanto, periodicamente,
por exemplo em França, com o jansenismo, voltar-se-á a pôr a questão do uso litúrgico da lín
gua vulgar. Porque embora a utilização exclusiva do latim fortaleça o
sentido do sagrado, entra em contradição com a exigência de saber e de apropriação pessoai
s que, doravante, é condição de acesso à primeira comunhão. As orações
usuais ou a missa ainda podem ser assimiladas em latim, mas não acontece o mesmo c
om a compreensão da Escritura e, portanto, da capacidade de responder sobre a sua
fé num mundo pluralista.
Em contrapartida, a insistência católica na missa leva a maior parte das Igrejas da
Reforma, com a notável excepção dos anglicanos, a insistir mais na leitura da
Bíblia e da pregação do que no ritual da Ceia, cuja prática está, em geral, reservada às qua
tro grandes festas de devoção comuns a todos os fiéis da primeira metade
do século XVI e que, às vezes, como entre os anabaptistas, tem a forma de uma simple
s refeição comemorativa.
As palavras dos rituais que constróem e exprimem a ligação com o invisível continuam a s
er diversas, como acontecia nas primeiras gerações cristãs, mas as escolhas
do século XVI acentuam as diferenças que desenham identidades assumidas até aos nossos
dias. Uma mesma fé cristã
253

na Encarnação está contida em rituais cujo sentido se tornou cada vez mais opaco entre
primos de uma mesma tribo, mas que, de algum modo, marca a fé num homem-Deus
eternamente vencedor, com os seus fiéis, sobre a morte e o mal. No fundo, a comuni
dade escatológica realizada em toda a liturgia zomba das eventuais mudanças, desde
que encontre uma maneira de exprimir melhor a sua experiência consensual (fraterna
, pelo menos) e o seu enraízamento num outro mundo.
Nicole Lemaitre
254

Mística do coração, do fogo e da montanha

"Ciência não de estudo mas de oração, não de discurso mas de prática, não de contenção mas de
ldade, não de especulação mas de amor" (Bérulle), a mística cristã,
verdadeira "ciência dos santos" que não se ensina nas escolas, conhece o seu apogeu
literário na época moderna. Ela designa a experiência directa de uma fruição
de Deus que se deixa saborear, embora conserve o seu segredo. Originariamente, e
m actividades de escrita muito diversificadas, os místicos espanhóis, italianos,
franceses... utilizaram todos os recursos da linguagem para traduzir o indizível d
e experiências que lhes sacudiram o corpo e a alma. À procura de uma união com
o Absolutamente-Outro, sabem que é para já inacessível, ao mesmo tempo que a desejam e
, às vezes, saboreiam as suas primícias. Servindo-se das metáforas do tacto,
do paladar e, depois, dos outros sentidos, as suas palavras não cessam de cantar e
sta alegria dolorosa de um desejo ardente jamais satisfeito. Num caminhar consta
nte,
o místico apraz-se a relatar o itinerário de que se serve, com as suas descobertas f
elizes e as suas desilusões frustrantes, para guiar os outros pelas vias difíceis
da sua própria experiência. Por vezes suspeitos de heresia por se terem afastado mai
s ou menos da mediação sacramental da Igreja, sentem-se freqüentemente espartilhados
numa religião feita de observâncias e de práticas, constrangedoras ou estéreis a seus ol
hos. No entanto, alguns deles tiveram a boa sorte de convencer as autoridades
acerca da sua ortodoxia e até de serem elevados à categoria dos santos. A sua criati
vidade poética leva-os a recorrer aos símbolos da tradição bíblica transmitidos
pelos seus predecessores. Sempre revestidos de significados novos, estes element
os permitem que os místicos exprimam melhor o inexprimível e ofereçam aos simples
devotos matéria para meditarem sobre os mistérios divinos.
A montanha, ponto de encontro entre o Céu e a Terra, abriga a maior parte das cena
s bíblicas em que se selou e renovou a Aliança entre Deus e o seu povo, do Sinai
ao Gólgota. Os místicos recorrem a esta imagem para
256

evocar a elevação da alma chamada a escalar as sendas árduas que a elevarão ao cume da u
nião com Deus. O Monte Carmelo será o seu símbolo para João da Cruz (+ 1591),
que propõe a sua "subida" à guisa de iniciação. Descreve as primeiras etapas da ascensão q
ue exige abandono total, para Deus, daquilo que não é Deus. Depois de purificado,
o espírito entrará numa noite escura, onde talvez se manifeste uma presença bem no cen
tro da ausência.
Na tradição cristã, a simbologia do fogo permite exprimir o esplendor incomparável de De
us, os esforços da sua acção na Terra, e o mistério da sua transcendência
insondável. Simultaneamente agente vital e elemento destruidor, o fogo remete não só p
ara a imagem do criador e para a presença do Espírito, mas também para a imagem
do Deus vingador. Aquando das teofanias, a sarça ardente, as línguas de fogo ou as c
hamas abrasadoras manifestam aos homens a presença gloriosa do Deus em três pessoas.
Os místicos experimentam os seus benefícios e o seu calor reconfortante, mas também pr
ovam as suas devastações, recebidas como outras tantas suaves queimaduras.
A prova do fogo purifica-os, antes de fazer com que o seu coração atinja o ponto de
fusão com o divino. O fogo que, ao comunicar-se, não perde nada do seu brilho,
também se presta a significar a virtude da caridade, concebida como tendo por mode
lo o amor de Deus a todos os homens. O coração inflamado torna-se o seu símbolo,
associado tanto à figura de Santo Agostinho como à de Calvino.
Não há dúvida de que a mística do fogo encontra a sua expressão mais lírica em João da Cruz,
ue traduziu n'A Chama Viva de Amor (por volta de 1585) o canto da alma
purificada pelo fogo, saboreando, finalmente, a queimadura suave, chaga delicios
a, da união com Deus. Depois de Gertrudes de Helfta e de Catarina de Sena no século
XIV, Teresa de Ávila (+ 1582) compara o amor divino a um braseiro, de onde escapam
as fagulhas que hão-de tocar a alma com o ardor da sua paixão, enquanto a ursulina
Maria da Encarnação (t 1672) só aspira a arder neste braseiro. A simbologia, presente
na iconografia e na liturgia, encontra-se igualmente no discurso pastoral que
vê na comunhão eucarística e nas orações outros tantos elementos próprios para atear este fo
go de amor capaz de abrasar os corações.------------------ -
A metáfora do coração é habitual na linguagem espiritual para designar a sede da vida e
das paixões ou, mesmo, o ponto de contacto possível entre o homem e o infinito.
Intervém regularmente nos métodos de oração que vêem nela o oratório mais propício para um en
ontro íntimo com Deus. Os místicos utilizam-na, a cada passo, para
fazer do coração simultaneamente o receptáculo do amor divino e o reservatório dos seus
próprios sentimentos. Entre os modernos, o Coração de Jesus é recebido como
o símbolo do Deus de amor feito homem de carne. Antes deles, esta devoção tinha nascid
o no século XII, no contexto de uma meditação privada sobre a Paixão e nomeadamente
na contemplação do coração traspassado, fonte da graça
257

divina escoando-se do lado ferido. Alimentou um rico movimento que irrigou diver
sas famílias espirituais.
Na peugada de Bernardo de Claraval (+ 1153), mas com uma sensibilidade muito ori
ginal, monjas beneditinas e cistercienses ousaram descrever o seu ardor em termo
s
espantosamente concretos: embriaguez bebida na fonte da ferida divina; encontro
na carne com Cristo, divino mediador entre Deus e os homens; união íntima, na permut
a
de corações com o Bem-Amado. A família franciscana ilustra-se desde o século XIV com exp
eriências femininas análogas antes que Bernardino de Sena (+ 1444) exprima
com lirismo a sua veneração pelo Coração de Jesus, que ele percebe que arde completament
e de amor pela humanidade. Em meados do século XIV, no vale do Reno, os dominicano
s
Suso e Tauler e também a sua irmã, Margarida Ebner, tinham a mesma compaixão pelos sof
rimentos de Cristo e pelo seu Coração ferido de amor, diferenciando-o, pouco
a pouco, do culto das Cinco Chagas do Crucificado, ainda muito queridas a Lutero
. Por seu lado, Ludolfo, o Cartuxo (+ 1378), levou os seus filhos espirituais a
considerarem
o Coração aberto como via de acesso à vida espiritual.
Depois, o seu sucessor, Lansperge (+ 1539), produziu o primeiro manual de devoção ao
Coração traspassado e introduziu o uso das imagens. Outros devotos compõem orações
em que a metáfora do fogo se associa à do coração para evocar a intensidade do amor de C
risto. A carmelita Maria Madalena de Pazzi (+ 1607) compara as chagas de
Jesus a fornalhas ardentes.
No século XVII, textos e práticas de piedade testemunham um aumento de interesse pel
a devoção ao Coração de Jesus na sociedade francesa, em que o coração é visto
como a expressão da personalidade, feita de inteligência e de sensibilidade, e em qu
e a humanidade carnal de Cristo é particularmente cultivada pelos espirituais
e pelos místicos. Todavia, as manifestações da devoção mantêm um carácter privado. Beneditina
e cistercienses reformadas veneram a título pessoal o Coração de Jesus,
enquanto Francisco de Sales (+ 1622) encoraja o seu culto nos conventos da Visit
ação. A ursulina Maria da Encarnação chega a uma relação íntima com o Coração de
Jesus, cuja devoção exporta para a Nova França (América do Norte). Alguns métodos de medit
ação exortam as religiosas a penetrar no Coração a sangrar para viverem
a sua vida assim oferecida e também fazerem no seu próprio coração, a experiência do seu a
mor redentor. Para João Eudes (+ 1680), formado por Piore de Bérulle (t
1629), o Coração de Jesus exprime a divina humanidade de Cristo. Portanto, importa q
ue se institua um ofício litúrgico em sua honra, para dar graças ao amor que
ele tem aos homens (1672).
Ao mesmo tempo, as experiências da visitandina de Paray-le-Monial, Margarida Maria
Alacoque (+ 1690), e especialmente a sua insistência em discorrer sobre o Coração
de carne e sobre os sofrimentos suportados por Cristo por causa dos pecados da h
umanidade, vão relançar a expressão desta espiritualidade, posta desde então ao serviço
da Contra-Reforma.
258

A sua visão do Coração de Jesus, cercado de espinhos e encimado por uma cruz (1672), c
onfere à devoção novos contornos, não só fazendo eco do código de honra que
regula as relações sociais, mas também como resposta às necessidades de uma cristandade
despedaçada: o amor de Cristo, desprezado pelos ímpios (protestantes), chama
a um amor reparador, que os fiéis (católicos) lhe manifestarão com outras tantas "sati
sfações", destinadas a expiar os ultrajes infligidos ao Redentor e a apaziguar
a sua justa cólera. Os jesuítas Claude de la Colombière (+ 1682), seu director espirit
ual, depois Jean Croiset (+ 1738), autor de um livro de sucesso (1691), são,
com as visitandinas, os principais agentes de difusão desta espiritualidade. A répli
ca jansenista é virulenta, insurgindo-se contra os aspectos afectivos da devoção,
fundada numa revelação mística julgada suspeita. Mas, além disso, o acolhimento não é de mod
o nenhum benevolente em relação a práticas consideradas singulares e
cujo vocabulário é tomado da linguagem política do absolutismo para justificar uma sub
missão radical à majestade divina.
Contudo, a devoção encontra eco favorável junto de uma população tocada pela referência ao C
oração ferido de um Cristo ultrajado mas misericordioso, a ponto de lhe
conferir uma coloração dolorista, à medida dos acontecimentos trágicos da história, e também
na Vendeia [França], em que foi difundida pela pregação dos Monfortinos
ao longo do século XVIII. Foi somente em 1765 que Roma permitiu o culto público pres
tado ao Sagrado Coração, na seqüência de esforços do jesuíta Gallifet (+ 1749).
A devoção serve um cristianismo familiar e dolorista, particularmente promovido e ac
eite nas terríveis guerras modernas, a partir do século XIX.
Marie-Élisabeth Henneau
259

Mística da Encarnação e da escravidão

A Encarnação do Filho de Deus, um dos dogmas fundamentais do cristianismo, foi uma d


as noções mais difíceis de admitir pelo espírito humano. Entre os místicos, inclinados
a deixar de lado a reflexão intelectual para dar lugar às faculdades do coração, a exper
iência íntima desse mistério pôde revelar-se mais vivificante que o enunciado
meramente teológico. Por isso, na Idade Média, alguns deles viveram uma relação amorosa
muito pessoal com Cristo contemplado na sua humanidade. Outros, no entanto,
em busca da fusão total com a essência divina, não precisaram sequer de intermediário, m
esmo que fosse o Filho de Deus. A favor de uma redescoberta dos textos neotestam
entários
e por virtude da influência da espiritualidade franciscana e da Devotio moderna, n
o tempo do humanismo, novas correntes restituíram ao Homem-Deus o seu papel de
mediador entre um Deus Todo-Poderoso e a humanidade pecadora.
Na época moderna, duas figuras de proa testemunham, de um lado e do outro dos Piri
néus, uma mística inventiva da Encarnação, que marcou várias gerações de espirituais
e de devotos. Quando Teresa de Ávila (+ 1582) se sente "apanhada por um vivo senti
mento da presença de Deus" não pode duvidar de que Ele está "nela" e que ela própria
está "abismada nele". Esta experiência de união mística subverte a vida da futura reform
adora do Carmelo, abalada com o choque de encontros sucessivos com Cristo
revelado na sua humanidade, a quem ela se consagra de corpo e alma. Com efeito, é
para o Homem-Deus que tendem todos os seus desejos. Aquando dos primeiros contac
tos,
apenas sente a sua presença invisível. Ela percebe-o como a testemunha de todos os s
eus actos. Pouco a pouco, visões da imaginação e da inteligência alternam para
avivar uma relação de pessoa a pessoa, cada vez mais intensa, alimentada por diálogos
amorosos e trocas de olhares, até ao matrimónio espiritual, nova etapa da ascensão
da alma, finalmente levada pelo Esposo a penetrar o mistério da Trindade. Mas, mes
mo sendo penetrada por esta presença trinitária, é a Cristo e à sua
260

humanidade que regressa espontânea e incessantemente. Para Teresa, Cristo é realment


e o acesso ao Pai. Esta época revela-se fecunda em comportamentos análogos nos
conventos femininos de Espanha, sem, contudo, terminar na realização de uma obra tão m
agistral como a produzida pela mística de Ávila, mais tarde reconhecida como
doutora da Igreja.
Quando Pierre de Bérulle (+ 1629) começou a acolher em França as carmelitas espanholas
, herdeiras de Teresa, recebeu o apoio da sua prima Bárbara Acarie. Freqüentador
do seu salão, foi lá que ele encontrou o capuchinho Bento de Canfeld (+ 1610), canto
r do aniquilamento em Deus, e o cartuxo Richard Beaucousin, que o apresenta aos
místicos renano-flamengos. O círculo de Mme Acarie professa um teocentrismo que priv
ilegia a união imediata e "abstracta" da alma humana à essência divina. Por conseguint
e,
Cristo aparece muito pouco no Bref Discours de l'Abnégation intérieur publicado pelo
jovem Bérulle no fim do século XVI. Por outro lado, o seu pensamento, influenciado
pela obra do Pseudo-Dionísio e pela hierarquização do mundo que ela opera, sofre então u
ma lenta evolução, influenciada pela prática dos exercícios de Santo Inácio
e, ao mesmo tempo, pela descoberta da mística teresiana. A sua dirigida da época, Ma
deleine de Saint-Joseph (+ 1637), ministra um ensino no seu Carmelo de Paris
centrado na humanidade de Cristo. Não renunciando completamente à herança dos renano-f
lamengos e, sobretudo, à sua mística trinitária, Bérulle redescobre a que ponto
o desejo de amor de Deus se liga ao mistério da Encarnação, em que a divindade do Filh
o se une à sua Humanidade para fazer de Cristo o único mediador entre Deus
e os homens, "verdadeiro sol e verdadeiro centro do mundo".
Para os membros do Oratório, instituto de padres que ele fundou em 1611 com a fina
lidade de restaurar o ideal sacerdotal, Bérulle elabora um programa de iniciação
mística que recapitula a sua evolução cristológica ligada a uma concepção hierarquizada da s
ociedade eclesial, inspirada pelo modelo dionisiano. Por causa da dignidade
do seu estado, os padres beneficiam de uma proximidade especial com as esferas c
elestes que, conseqüentemente, lhes confere altas responsabilidades sobre as almas
que lhes estão confiadas. Para transmitir fielmente a irradiação de Cristo, deverão subm
eter-se inteiramente à sua vontade. Bérulle vê na Encarnação o arquétipo
da renúncia perfeita e de uma submissão total a Deus, às quais ele espera que os padre
s se conformem. Neste contexto, propõe-lhes um voto de sujeição à Virgem, como
expressão do desejo de viver na dependência da Mãe de Deus, depois outro a Jesus e à sua
humanidade deificada (1615), que os tornará capazes de comunicar às hierarquias
inferiores o que eles próprios tiverem recebido do Verbo encarnado.
No Discours de l'état et des grandeurs de Jesus (1623), Bérulle procura justificar o
seu comportamento, vivamente criticado pelos seus contemporâneos, em virtude
de um contexto político-religioso oposto aos seus
261

compromissos. Nele expõe os últimos desenvolvimentos da sua mística da Encarnação. O crist


ocentrismo de Bérulle ressente-se da maneira como ele considera o papel
reservado a cada uma das pessoas da Trindade. No Pai, ele vê a srcem e a conclusão
de todas as coisas. O Filho, Verbo de Deus, é a "imagem viva e idéia perfeita"
que o Pai tem de si mesmo, enquanto o Espírito constitui "o elo e a unidade do Pai
e do Filho". Por isso, opõe-se a qualquer tentativa que pretenda atingir a essência
divina sem a mediação do Filho que, durante toda a sua vida terrestre, passa por div
ersos estados, todos eles portadores de graça, desde que igualmente assumidos
pela sua divindade.
O estado da infância perturba especialmente Bérulle, impressionado com a abjecção do Ver
bo de Deus num ser inacabado, privado de palavra (infans). Por amor ao homem,
o Verbo aceita aniquilar-se na natureza humana, reduzida a nada pelo pecado. Dep
ois de ter contemplado a divindade do Filho eterno aniquilada na humanidade, Bérul
le
maravilha-se diante desta humanidade "deificada" e, desde então, perspectiva-se-lh
e um possível regresso da criatura a Deus. Para isso, terá de renunciar a si mesma
e, num abandono total ao Espírito, "aderir" a Cristo em todos os seus estados. Seg
undo Bérulle, o sacramento da ordem torna o padre particularmente apto a viver
este estado de adesão que lhe permitirá oferecer aos cristãos a possibilidade de subir
até Deus por mediação de Cristo, comungando o seu Corpo. A influência da sua
mística da Encarnação nas comunidades de religiosas provoca nestas mulheres um verdade
iro entusiasmo por um mistério a que elas consagram todas as suas orações e
a cujo nome muitas delas juntam o seu, como, por exemplo, Bárbara Acarie, que, com
o carmelita, se chamou Maria da Encarnação. Mais tarde, outra Maria da Encarnação
(+ 1672), a ursulina de Tours, figura mística da Nova França [América do Norte], vive
igualmente uma relação apaixonada com Cristo, em que ela vai descobrindo pouco
a pouco, pelo dom da oração, que Ele é "o Caminho, a Verdade e a Vida".
Na história da espiritualidade cristã, a noção de servidão continua associada à personalidad
e de Bérulle, nomeado cardeal em 1627. Esta noção refere-se à simbologia
da escravatura, já usada para qualificar uma relação de pertença livre e total a Deus, a
Cristo ou a Maria. Foi deste modo que a ordem dos servitas de Maria foi
criada no século XIII em Florença. No século XIV, nasceu em Espanha uma devoção da escravi
dão mariana, sob a forma de práticas de piedade - recitação do rosário,
novenas... - em voga em certos conventos femininos, que esteve na srcem de nume
rosas confrarias, igualmente implantadas nos Países Baixos. Com Bérulle, os votos
de escravidão foram considerados "elevações a Deus, sobre o mistério da Encarnação, [...] pa
ra oferecer a Jesus no estado de servidão que lhe é devida, como conseqüência
da união inefável da Divindade com a Humanidade, [...] e a Maria [...] como tendo po
der especial" sobre os homens, em razão da sua qualidade de Mãe de Deus.
262

A mística da Encarnação também conduz a uma devoção a Cristo, particularmente venerado no se


u "estado de infância" por determinadas congregações femininas, como
as anunciadas celestes, que se caracterizam por uma consagração ao Verbo encarnado,
cuja vida escondida no seio de Maria pretendem imitar, devotando-se a uma clausu
ra
particularmente rigorosa. Margarida do SS. Sacramento (+ 1648), no Carmelo de Be
aune, torna-se uma das grandes promotoras ao Menino Jesus depois de ter recebido
o favor extraordinário de se unir a Cristo no seu estado de infância. Embora, na sua
Vida de Jesus, limitada ao tempo anterior ao nascimento em que Jesus vive em
Maria e Maria em Jesus, Bérulle privilegie as noções de submissão do Verbo "às condições da n
tureza e da infância" e insista no seu estado de dependência e na sua
incapacidade de comunicar, ele não pode impedir a manifestação de sentimentos mais mar
cados de afectividade para com o Menino Jesus, cujo culto se desenvolve no
século XVII na França, na Itália e na Boémia.
Marie-Élisabeth Henneau
263

O jansenismo Entre sedução rigorista e mentalidade de oposição

Austeridade, rigor e despojamento são indissociáveis do jansenismo; mas, embora esta


palavra ainda hoje conserve uma força de evocação, não será também por os jansenistas
terem encarnado o desafio de uma consciência moral e religiosa para a qual as "gra
ndezas institucionais" e os poderes de cá de baixo não conseguiriam igualar a grande
za
de Deus?
O jansenismo, do nome de Jansen (Jansenius, em latim), teólogo da universidade de
Lovaina, tem as suas srcens numa obra póstuma deste autor, o Augustinus (1640),
uma exposição sistemática do pensamento de Santo Agostinho sobre a graça: com toda a lib
erdade, Deus decide a condenação ou a salvação do ser humano, sem que este
possa, de algum modo, influenciar na decisão divina. Então, a grandeza do homem está n
a aceitação desta omnipotência. É também uma reacção face ao desenvolvimento
de uma teologia de inspiração jesuíta que sublinha o livre-arbítrio e a capacidade do ho
mem de colaborar na sua salvação. Este pensamento penetra nos círculos devotos
franceses graças a Duvergier de Hauranne, abade de Saint-Cyran, e próximo de Jansénio.
O seu pensamento é particularmente bem recebido no mosteiro feminino de Port-Roya
l,
cuja abadessa, Angélica Arnauld, restabelecera a disciplina alguns anos antes e qu
e se torna o centro de um núcleo militante com o apoio dos Arnauld, poderosos no
parlamento de Paris.
Desde os primeiros decénios, o que é antes de tudo uma aspiração a retirar-se do mundo e
ncontra a desconfiança e, depois, a hostilidade das autoridades. A aliança
de Richelieu com os príncipes protestantes, fortemente criticada por Jansénio, começa
por desaprovar o círculo de Port-Royal: em 1638, Saint-Cyran é preso. Começa
então o braço-de-ferro com o poder. Na seqüência de uma bula pontifícia, os clérigos e as re
ligiosas são obrigados a assinar um formulário que condena cinco fórmulas
ou proposições que se julgava estarem contidas no Augustinus. Os jansenistas replica
m reconhecendo que (por direito) são efectivamente condenáveis, mas que, de facto,
elas não estão na obra. Alguns anos mais tarde, quando
264

Pascal, nas suas Cartas Provinciais, vota ao ridículo o que ele apresenta como a m
oral laxista dos jesuítas, estes respondem inabilmente: é já o tempo (até 1670)
da grande irradiação do círculo de Port-Royal-des-Champs, no vale de Chevreuse. Os "so
litários", leigos que se instalaram nas proximidades, trabalham em obras de
gramática e de lógica; alguns alunos, entre os quais o jovem Racine, freqüentam as sua
s "escolinhas", onde o ensino dá mais espaço ao francês do que em qualquer
outro lugar.
Esta forma de oposição passiva é inaceitável para Luís XIV. A ofensiva do poder retoma, ex
igindo dos principais interessados que eles reneguem oficialmente e por
escrito as idéias de Jansénio. O apoio levado a Roma por alguns bispos jansenistas a
quando da crise da Regale, em 1682, exaspera o soberano, que contava, para o
exercício deste direito, unificar todas as dioceses francesas sob o seu poder. Em
1709, as últimas religiosas de Port-Royal-des-Champs são dispersas e o seu mosteiro
arrasado. Em 1713, o rei obtém de Roma a condenação de várias afirmações extraídas literalmen
e de uma obra do oratoriano Pasquier Quesnel: é a bula (ou a Constituição)
Unigenitus, que provoca a oposição dos "anticonstitucionais".
Por morte de Luís XIV, em 1715, o jansenismo parece definitivamente extinto, mas o
seu fantasma não tarda a manifestar-se. Para isso, concorrem duas razões essenciais
:
em primeiro lugar, a constituição de um núcleo activo no seio do clero e entre os fiéis,
essencialmente em Paris e na bacia parisiense. O segundo ponto forte é o
aparecimento de uma rede internacional que repousa nas trocas epistolares regula
res entre os exilados, nomeadamente nos Países Baixos, e simpatizantes estrangeiro
s,
em Roma e em certas cidades italianas. Minoritários, estes homens, cuja opinião vari
a da convicção profunda à simples simpatia, não deixam de constituir grupos de
pressão eficazes. Aproveitando o enfraquecimento do poder que acompanha a Regência,
os jansenistas franceses apelam à reunião do concílio geral que se pronunciaria
contra a bula. Estes "apelantes" (que apelam ao Concílio) são pouco numerosos (quand
o muito, 5 por cento do clero francês), mais fortemente representados em certas
congregações de vocação sábia (oratorianos e beneditinos de Saint-Maur, por exemplo) e mui
to implantados em determinadas paróquias parisienses; alguns bispos, entre
os quais o arcebispo de Paris, Noailles, não hesitam em ligar-se à sua causa. Face à p
ossível conjunção das oposições, a atitude do poder rarefaz-se. Um dos bispos
apelantes, Jean Soanen, é condenado ao exílio em La Chaise-Dieu em 1727. Em 1730, a
Constituição Unigenitus é proclamada Lei de Estado. Durante os anos 1740, os
jansenistas são sistematicamente afastados dos cargos eclesiásticos.
Este enfraquecimento institucional coincide com uma mudança radical. Depois do fal
ecimento, em 1727, do diácono jansenista François Paris, muito considerado pela
sua humildade e pela sua pobreza voluntária, os fiéis acorrem ao seu túmulo, no cemitéri
o da igreja de Saint-Médrad, em Paris. Pouco depois, começam a surgir curas
miraculosas, acompanhadas de
265

transes e de convulsões; atraem uma multidão de crentes e de curiosos. Inquietas, as


autoridades ordenam o encerramento do cemitério, mas os fenómenos prosseguem
no quadro de reuniões privadas. Aquando destas sessões, as convulsionárias, em geral m
ulheres, são persuadidas de que encarnam a verdadeira Igreja, detentora da
verdade e perseguida. Elas reclamam "socorros": então, espancam-nas até fazer chagas
; a sua resistência à dor é interpretada como o sinal da justeza da sua causa.
Deste modo, traduzem no seu corpo a teologia figurista desenvolvida por certos c
lérigos jansenistas para quem a Bíblia, através das provações sofridas pelo povo
hebreu e por Cristo, "prefigura" e assinala o pequeno grupo dos eleitos.
A resistência à autoridade também se traduz pela difusão de um semanário clandestino, Les
Nouvelles Ecclésiastiques, regularmente impresso e difundido na capital,
com um tom fortemente polémico. Como jornal de propaganda, centralizando as inform
ações, também é a manifestação da capacidade dos jansenistas para organizar uma
imprensa que, graças à autonomia e à compartimentação dos participantes, consegue proteger
-se das perseguições e das detenções.
A dupla natureza do jansenismo - defesa dos direitos da consciência e mentalidade
de oposição - é ilustrada pela evolução do movimento durante os anos 1750. Quando
o fenómeno das convulsões escalda, o arcebispo de Paris exige que os fiéis apresentem
bilhetes de confissão - espécie de atestados assinados pelos curas favoráveis
à bula -, antes de receberem a comunhão, nomeadamente o viático. Ao provocar o escândalo
da recusa dos últimos sacramentos a pessoas moralmente irrepreensíveis,
esta disposição desencadeia uma profunda indignação contra o clero e a autoridade real.
Por táctica ou por convicção, magistrados e advogados tomam o partido dos
jansenistas. Seguindo o advogado Le Paige, transpõem para o plano político a idéia de
que uma minoria guardiã das leis e "depósito" delas deve impedir a autoridade
de um só (o papa em Roma, o rei na França) que abuse do seu poder transgredindo a le
i divina.
Cantado nos escritos dos filósofos como Voltaire, firmemente combatido nas fileira
s do clero, associado à sorte dos parlamentos quando estes se adaptam, o jansenism
o
parece estiolar no último decénio do Antigo Regime. Contudo, no próprio seio da Igreja
, ele inspira os que defendem as teses do "richerismo"*, ligada aos direitos
do baixo clero. Além disso, a atenção aos mais humildes motiva o seu interesse pelo en
sino popular e por uma concepção ampla da participação dos leigos nas cerimónias,
com o desenvolvimento, em determinadas paróquias, de uma liturgia em francês. Mas, n
as dioceses em que defendem uma moral muito rigorista, é provável que a sua atitude
favoreça mais o afastamento religioso.

* Doutrina baseada nas teses de Edmond Richer (1559-1631), que defendiam a neces
sidade de uma representação mais alargada do baixo clero no governo da Igreja, muito
apoiada neste clero do tempo da Revolução Francesa. (NT)
266

No tempo da Revolução, os jansenistas franceses dividem-se uma vez mais a propósito da


Constituição Civil do Clero. Embora alguns deles sejam favoráveis ao princípio
da eleição dos párocos e ao controlo exercido sobre eles pelo Estado, outros, em compe
nsação, opõem-se-lhe em nome da separação dos poderes espiritual e temporal.
Fora da França, uma minoria influente de bispos trabalha na reorganização do clero aus
tríaco aquando das reformas empreendidas por José II, enquanto clérigos italianos
formulam claramente, por ocasião do Concílio de Pistóia (1786), a sua adesão a um funcio
namento colegial do governo da Igreja.
Os episódios revolucionários e napoleónicos assistem às derradeiras manifestações de um espír
to jansenista através da esperança milenarista de que estes acontecimentos
sejam uma etapa anunciadora de uma era nova. Mas o século XIX, com a afirmação da infa
libilidade papal e de uma moral menos intransigente, transforma fatalmente
o jansenismo num emblema nostálgico dos direitos da consciência religiosa perseguida
.
Isabelle Brían
267

III
EVANGELIZAR E ENQUADRAR O MUNDO
Cristianismos longínquos
A caminho da América e da Ásia

Segundo os princípios do tempo, os soberanos portugueses e espanhóis não distinguiam n


em separavam, nos seus impérios, os negócios da religião. As partilhas, efectuadas
em 1481 por Sisto IV quanto à África e, em 1494, por Alexandre VI, relativamente às índi
as, confirmavam-nos neste sentido, porque estes papas reconheciam-lhes toda
a autoridade em matéria de exploração e de evangelização. É o que, então, se chamava padroado
Nas índias espanholas ou portuguesas, os primeiros missionários a
trabalhar sob a autoridade real são os dominicanos, os franciscanos e os carmelita
s. No Brasil, os calvinistas chegam ao Rio e a Pernambuco, a partir de 1555, que
r
dizer, pouco depois dos jesuítas. Em contrapartida, estes só mais tarde se instalara
m no México e no Peru. Então, a conquista está quase acabada e é preciso organizar.
Acabou o sonho de um reino índio no México apoiado pelo filho de Coités e pelo francis
cano Jerónimo de Mandieta. Também acabou o sonho da Igreja índia acalentado
pelo bispo dominicano Bartolomeu de las Casas. Era uma empresa importante: como,
por alturas de 1550, cristianizar cerca de cem milhões de americanos e um espaço
ainda desconhecido, quando as populações de Espanha e Portugal juntas mal chegavam a
os oito milhões de habitantes? E que dizer das rotas marítimas portuguesas, tão
longas?
As missões jesuítas ilustram bem este paradoxo. Desde a sua chegada a Goa, em 1542 (
cuja diocese fora erigida apenas em 1539), o jesuíta Francisco Xavier apresenta
ao bispo franciscano João de Albuquerque as cartas de Roma que lhe dão todos os pode
res nos "territórios submetidos ao rei de Portugal", mas explica que só os usará
segundo o parecer do prelado. Quanto a si, apenas deseja "plantar a sua fé no meio
dos Gentios".
268

Volta-se para os pobres, não se desinteressando pelo colégio de São Paulo, onde cerca
de sessenta autóctones são instruídos a expensas do rei. Como os franciscanos
e os dominicanos, Francisco Xavier e os seus companheiros que haviam partido pou
co depois dele para o Brasil, para o Congo, para a Mauritânia e para a Etiópia encon
tram-se
perante o desafio da imensidão. Os jesuítas são humanistas. Muito rapidamente, Loiola
prescreveu que criassem colégios para formar aqueles que, com o concurso de
"letrados" europeus, evangelizarão os infiéis. Foi assim que nasceu São Paulo, no Bras
il. Inspirando-se na experiência dos etnólogos franciscanos, por exemplo a
de Bernardino de Sagunto, Inácio também pede aos jesuítas que "se adaptem" às sociedades
indígenas e compreendam os seus costumes. Por fim, pede que lhe enviem regularmen
te
cartas, cujo objectivo primário é "edificar" a Companhia, mas também subverter as aqui
sições da Antiguidade. Ao opor à autoridade dos livros as certezas da experiência,
elas abrem, para além do mundo antigo, imensos horizontes de que nasce o sentiment
o da ilimitação do espaço. Mas o que, na descoberta dos outros, mais impressiona
estes homens do século XVI é a sua semelhança com eles próprios. O pensamento moderno pr
ocede, em larga medida, deste encontro do humanismo com o espaço novo. Embora
não tenham sido os jesuítas quem o criou, eles souberam dar-lhe a sua plena eficácia.
Por volta de 1550, o império português compreende, além de todo o contorno africano, o
conjunto edificado por Afonso de Albuquerque em Goa, entre Ormuz e Malaca,
com as suas ramificações em direcção ao Japão e à China. Francisco Xavier sulca-o durante de
z anos, enquanto o Brasil é percorrido por Nóbrega e Anchieta. Por toda
a parte, os jesuítas devem "considerar que, naquele lugar, se tem o direito de esp
erar mais fruto dos meios que a Companhia emprega: por exemplo, onde se veria a
porta mais amplamente aberta e onde as pessoas estariam mais dispostas a aptas p
ara o progresso... Porque, sendo o bem mais universal e mais divino, devem prefe
rir-se
as pessoas e os lugares cujo progresso permita que o bem se estenda mais a outro
s...". Por morte de Inácio, sob o generalato de Laynez, o tom é mais frio; em compen
sação,
sob o de Bórgia, os jesuítas deslocam-se para as índias do imperador: para a Florida e
m 1566, para o Peru em 1568 e para o México em 1572. No vice-reino de Lima,
é lançada uma vasta campanha para a "extirpação da heresia", enquanto no do México, a pedi
do do rei de Espanha, as pesquisas etnológicas de Bernardino de Sagunto,
consideradas subversivas, são destruídas em 1572. Algumas, redescobertas nos anos 19
30, apoiarão a renovação do indianismo.
A extensão das missões jesuítas na América e na Ásia requer rapidamente um novo modo de go
verno na Companhia de Jesus. Então, os padres gerais Mercurian e Aquaviva
decidem enviar Visitadores com toda a autoridade necessária: La Plaza para o Peru
e para o México, Valignano para a Ásia. Este, tirando partido do padroado, mas
desejando uma acção missionária independente, esforça-se por regular o difícil problema do
269

comércio da seda. No Japão, depois de ter promovido os princípios de um método apropriad


o, recorda que é aos missionários estrangeiros que compete adaptarem-se aos
japoneses e não o inverso. Pede a Ricci e a Ruggieri que se preparem para entrar n
a China. Mais tarde e com o mesmo espírito, Nobili e João de Brito deslocar-se-ão
para a índia e Rhodes para o Vietname. Na América Latina, os Visitadores convidam os
jesuítas a não se dispersar nas doctrinas e a empregar todas as suas forças
nos colégios e nas missões junto dos negros e dos índios. Também são chamados como teólogos
aos concílios provinciais. No de Lima, em 1582, o jesuíta Juan de Acosta
toma posição sobre a difícil questão da "extirpação" dos cultos indígenas.
Aquando do seu regresso a Espanha, Acosta publica o seu De procurando Indorum sa
lute (1576), uma obra muito lida até ao século XVIII, em que propõe uma tipologia
das "culturas" segundo os princípios da Renascença europeia, nos quais o escrito é mai
s valorizado que o oral. Por isso, divide os povos a evangelizar em três categoria
s:
em baixo, os "bárbaros" ferozes ou corrompidos com quem é desejável empregar uma atitu
de forte. Acima deles, os povos dotados de verdadeiras "civilizações", os Astecas
do México e os Inças do Peru, junto de quem se deve intervir de maneira mitigada. Po
r fim, os chineses, os japoneses e os indianos distinguem-se dos outros pelo
desenvolvimento de um direito e de uma literatura autóctones: é preciso comportar-se
com eles como os primeiros cristãos com os gregos e os latinos. Assim, definem-se
uma compreensão da missão e uma nova consciência europeia.
Duas experiências podem ilustrar a maneira de proceder dos jesuítas: as reduções america
nas e as missões chinesas. Diego de Torres, o primeiro superior da província
do Paraguai, inspirando-se nos franciscanos decide reagrupar (reducir [reduccion
es reduções]) os autóctones. Logo depois, já há trinta reduções entre os Guaranis
e, de 1609 a 1768, esta "República" permite que os índios acedam ao estatuto de cida
dãos. Viu-se nisso uma utopia, mas trata-se mais de uma "eutopia" submetida à
antropologia do possível. Ultrapassando muito a simples idéia de uma evangelização forçada
ou de uma assimilação precária por sincretismo duvidoso, embora estes
factores devam ser levados em conta, os jesuítas procuraram apropriar-se do interi
or da subjectividade dos guaranis, respeitando a sua liberdade. Segue-se uma con
versão,
duplicada por uma transferência de valores - os do "Outro" - numa visão espiritual.
Então, as obras de arte dos guaranis ganham toda a importância. Exprimem, à sua
maneira, que a "Terra sem mal" (Yvy maraê'y) que procuram existe, mas além da morte.
Na China, a maneira dos jesuítas é diferente. No gabinete imperial de Astronomia, co
nduzidos pelos chineses, alguns deles dissociam as demonstrações matemáticas
da sua roupagem dogmática, mas outros recusam-se fazê-lo em nome de uma compreensão ma
is rígida da religião. Por outro lado, traduzindo três dos quatro clássicos
confucianos (Ta-hiisch,
270

Chung-ying, Lum-yii), os jesuítas contribuíram para a "proto-sinologia". Depois, as


controvérsias centraram-se em Les Nouveaux Mémoires do padre Lecomte, um livro
popular pelo tom e conteúdo, mas sem grande experiência directa da tradição chinesa nem
do programa de adaptação jesuíta. Em 1700, a Sorbona censura a obra. Está
próxima da querela dos ritos que, ao fim e ao cabo, não é mais do que um debate ociden
tal que se resume a uma pergunta: Ricci, fundador da missão na China, está
errado ou tem razão? Por outras palavras: poderia o cristianismo abstrair do seu s
uporte europeu para se adaptar, sem perder a sua identidade, a outros modos de
pensar, a outras normas e ritos? Fosse como fosse, os ritos chineses foram conde
nados em 1742. Alguns jesuítas, pintores, botânicos ou arquitectos, continuaram junt
o
do imperador, mas já se tinha virado uma página para os católicos.
Philippe Lécrivain

As missões africanas (séculos xvi-xx)*

O trabalho missionário só começou em África no fim do século XV, na esteira da conquista p


ortuguesa. Mas o cristianismo tinha raízes muito mais antigas no continente,
nomeadamente no Egipto, na Etiópia e no Sudão. É no reino do Congo, em relação com Portuga
l desde 1491, que se observaram os primeiros progressos, com a ordenação
de um bispo negro, Dom Henrique, filho do rei Afonso [I do Congo], em 1521, e a
criação de uma diocese independente em 1578. Mas não tiveram continuação. Em 1619,
o bispo podia contar com o apoio de vinte e quatro padres e os cónegos da catedral
de São Salvador cantavam o ofício "segundo o uso da Europa". Em 1649, a Congregação
da Propaganda Fide, fundada havia uma vintena de anos em Roma, cria a prefeitura
apostólica do Congo, que confiou aos capuchinhos italianos. Nada menos que quatro
centos
e trinta e quatro destes religiosos foram enviados para o Congo e Angola entre 1
645 e 1820. Os esforços feitos na Senegâmbia, na Serra Leoa e nos reinos do Benim
e Warri na mesma época tiveram menor sucesso. Em contrapartida, no Sudeste da África
, não só na costa do Oceano Índico, mas também na bacia do rio Zambeze e até
ao coração do reino de Monomo-tapa, os missionários portugueses, principalmente jesuítas
e dominicanos, chegaram a assegurar uma presença modesta mas constante durante
mais de dois séculos.
O balanço desta primeira vaga de evangelização é magro. O efeito combinado das doenças, da
s dificuldades de comunicação, compromissos

* Tendo-se em conta a especificidade da temporalidade da história africana, os cin


co séculos são aqui objecto de uma visão global.
271

da Igreja com o poder político e da sua aceitação da escravatura arruinaram toda a hipót
ese de desenvolvimento. Em todas as regiões penetradas pelos missionários
a influência do cristianismo foi mínima. O seu verdadeiro impacte exerceu-se através d
o sincretismo. Na Alta Guiné, no Congo e no vale do Zambeze surgiram formas
religiosas inéditas, combinando elementos da religião tradicional e os mistérios do do
gma cristão.
A fundação de sociedades missionárias protestantes como a Baptist Missionary Society,
a London Missionary Society e a Church Missionary Society, no fim do século
XVIII, em Inglaterra, marcou o início de uma nova era na história das missões. Signifi
cativamente, são as classes populares, muito influenciadas pelo movimento evangélico
,
que forneceram os primeiros contingentes de voluntários. Depois, sociedades semelh
antes também se desenvolveram na Alemanha, na Suíça e nos Estados Unidos. Os católicos,
que tinham começado atrasados, responderam fundando em 1822 a Société de la propagatio
n de la foi. Estabelecida em Lião, esta obra progrediu rapidamente, graças
a um importante apoio popular. No primeiro ano, os donativos elevavam-se a 22 91
5 francos, Em 1846, presente em 475 dioceses, recolhia 3575 885 francos ou, seja
,
150 vezes mais.
Em 1799, o primeiro elemento da London Missionary Society desembarcou na Cidade
do Cabo, onde os ingleses acabavam de chegar. Cinco anos mais tarde, um grupo de
missionários anglicanos chegou à Serra Leoa. Em 1833, a Société des missions évangeliques
de Paris enviou os seus primeiros homens para o Lesoto. Em Zanzibar e em
Mombaça, foi necessário esperar pelo ano 1844 para que chegasse o primeiro missionário
, um alemão empregado pela Church Missionary Society. O início do movimento
missionário nos Hausas e nos Igbos, na Nigéria actual, e também nos Camarões, data da me
sma época.
Mais centralizado, o movimento missionário católico beneficiou do impulso do papa Gr
egório XVI, que, desde 1845, apelou com todas as forças para a formação de um
clero indígena. Em 1841, Francisco Libermann fundou a congregação do Sagrado Coração de Ma
ria para a evangelização dos negros, que logo depois se fundiu com a antiga
congregação do Espírito Santo. Em 1850, os primeiros oblatos de Maria, fundados por Eu
gênio de Mazenod sob a Restauração, chegavam ao Natal. Alguns anos mais tarde,
o cardeal Lavigerie, apóstolo da luta contra a escravatura e promotor daquilo a qu
e ele ainda não chamava inculturação, fundou os missionários de África, também
chamados Padres Brancos, para a evangelização dos territórios a sul do Sara. Escrevia:
"É preciso que os jovens negros, mesmo os que quisermos um dia tornar professores
primários e catequistas, tenham um estado que lhes permita viver à sua custa o modo
de vida africana e, se possível, um estado que os honre, que lhes dê influência
e seja aceite sem contestação por todos, de modo que possam ajudar poderosamente os
missionários sem serem uma carga para eles." De facto, os formadores indígenas
especializados nas aprendizagens culturais
272

e religiosas de base desempenham um papel considerável na interpretação dos valores oc


identais para as outras sociedades.
Embora usem de uma certa margem de manobra, os missionários estavam ligados de fac
to ao sistema colonial. Até meados do século XX, todos, por mais esclarecidos que
fossem, criam na superioridade do modo de vida ocidental. Parafraseando David Li
vingston, o missionário que se tornou explorador, eles não duvidavam de que existia
uma convergência fundamental entre o cristianismo, o comércio e a civilização. Diferente
mente dos chefes tribais, que só pretendiam abrir as suas portas aos missionários
que lhes levassem benefícios materiais ou diplomáticos, os governos coloniais garant
iam aos representantes das Igrejas a paz, a segurança, o direito de comunicar,
de circular e de pregar livremente. Foram raros os missionários que, como John Wil
liam Colenso, o bispo anglicano do Natal, ou Joseph Schmidlin, um pioneiro da mi
ssionação
nos Camarões, souberam erguer-se contra os abusos do regime colonial. E, mais tard
e, a maior parte das sociedades missionárias abstiveram-se de apoiar os movimentos
de emancipação.
A historiografia moderna tradicional apresenta uma visão falseada da história do cri
stianismo em África, ao sublinhar de maneira desproporcionada o papel desempenhado
pelos missionários europeus e norte-americanos. Os agentes pastorais indígenas cumpr
iram uma missão não menos importante no movimento missionário e no enraízamento
local do cristianismo. Não são raros os casos em que a evangelização precedeu a chegada
dos Europeus, como em Moçambique, onde trabalhadores migrantes, que descobriram
o cristianismo no Transval, fundaram uma missão presbiteriana durante os anos 1880
. Do lado católico, apesar dos esforços de pioneiros como Mons. Alois Kobès no
Senegal ou o cardeal Lavigerie na África Central, poucos padres indígenas foram orde
nados antes do início do século XX. O impulso veio de Roma, com as encíclicas
missionárias Maximum illud de Bento XV (1919), Rerum ecclesiae de Pio XI (1926) e
Fidei donum de Pio XII (1957). No terreno, os missionários brancos invocavam os
mais diversos pretextos para adiar a aplicação das normas. Foi necessário esperar por
1939 para que um africano - Joseph Kiwanuka, um padre de Massaka, Uganda -
fosse ordenado bispo. As igrejas protestantes hesitaram durante menos tempo em o
rdenar padres e pastores indígenas. Samuel Crowther, um iorubá que tinha trabalhado
para a Church Missionary Society, foi consagrado bispo da Igreja de Inglaterra e
m 1864 para a diocese do Níger. Contudo, a experiência fracassou por causa do fraco
apoio dado ao bispo pela sua Igreja e pelo tamanho excessivo da diocese. Mas tam
bém se fizeram outras experiências. Segundo o World Christian Handbook, o número
de ministros ordenados na África Subsariana passa de 1200 em 1900 para 4200 em 195
7. Em contrapartida, durante o mesmo período, o número de agentes pastorais não
ordenados, catequistas, ministros leigos e professores de
273

religião, aumentou de 6000 para 82 433. A partir de então, o movimento de indigenização


do clero tem vindo a acelerar. Os missionários europeus e norte-americanos
são cada vez menos numerosos. Exceptuando a Igreja católica, que continua a depender
das antigas metrópoles, embora de maneira menos intensa, para o seu pessoal
e o seu financiamento, a maior parte das Igrejas tornou-se completamente indígena.
Philippe Denis
274

"Instruir na cristandade"

O grande impulso educativo que varre a cristandade a partir do século XVI é inspirad
o por duas idéias directrizes: os homens e as mulheres pecam e perdem-se por
ignorância, e o remédio deve começar pelas crianças. A partir daí, as rupturas causadas pe
la Reforma criam entre as Igrejas uma emulação que deu um formidável impulso
às duas instituições complementares que são o catecismo e a escola.
Há coisas que é preciso saber para se ser salvo. Esta idéia vinha-se impondo desde o f
im da Idade Média. Já ninguém pode contentar-se com a fé "implícita", pela
qual os fiéis aderiam "ao que a Igreja crê", sem saber enunciá-lo suficientemente e, a
inda menos, compreendê-lo. É necessário que saibam no que devem crer, mesmo
que não o saibam explicar. É claro que isso será ainda mais necessário quando a Reforma
obrigar os fiéis a colocarem-se sob uma "confissão de fé" concreta, distinguindo-a
de todas as outras. E como poderão levar uma vida cristã digna deste nome se ignorar
em os mandamentos de Deus e as orações que Ele espera deles?
Ora, este saber é às crianças que deve ser inculcado. Não somente porque a pouca idade r
ecebê-lo-á e conservá-lo-á mais facilmente, mas também porque é desde a "idade
da razão" (por volta dos sete anos) que a sua alma estará em perigo, se ignorar os f
undamentos da fé e da moral cristãs. Já por alturas de 1400, Jean Gerson, em
França, era dos primeiros a levantar esta questão. E foi ouvido nos Países Baixos pelo
s Irmãos da Vida Comum, que tinham como objectivo a instrução das crianças.
Ao mesmo tempo, os humanistas italianos avançam com a idéia de que o homem perfeito
com que sonham é o produto de uma educação bem conduzida. "Não nascemos homens,
tornamo-nos homens", escreve por volta de 1500 o príncipe dos humanistas, Erasmo,
que não desdenha publicar pequenos livros para ensinar as boas maneiras às crianças.
Com a Reforma, a questão da instrução dos cristãos passa para primeiro plano. Em 1514, M
artinho Lutero lança um apelo veemente aos magistrados
275

das cidades alemãs para que abram e mantenham escolas. Zuínglio em Zurique e Bucer e
m Estrasburgo têm a mesma preocupação. E Calvino, acabado de chegar a Genebra
em 1537, faz da instrução das crianças um dos quatro pontos fundamentais que exige das
autoridades da cidade para que a Igreja esteja "bem regulada". É preciso citá-lo
porque é a sua linguagem que se impõe doravante: "É muito requerido e quase necessário,
para conservar o povo em pureza de doutrina, que as crianças sejam de tal
modo instruídas que possam dar razão da fé."
Desde então, cada um dos reformadores começa a compor um manual com o resumo das ver
dades da fé, as orações e as regras de vida do cristão. Os "catecismos" publicados
por Lutero em 1529, o "pequeno" para as crianças e o "grande" para os adultos, com
o livro do mestre, tiveram um sucesso que, até hoje, nunca foi desmentido. Depois,
Calvino fez o mesmo para Genebra.
"Conservar o povo em pureza de doutrina." Concebe-se que os responsáveis da Igreja
Católica não tenham sido menos ambiciosos. Já ninguém pode contentar-se com repetir
no ofício de domingo fórmulas estereotipadas (os doze artigos do Credo, os dez manda
mentos de Deus e os cinco da Igreja, as sete obras de misericórdia, etc.) ou
passagens do manual de Gerson. Imediatamente a seguir ao Concílio de Trento (1566)
, Roma publicou um catecismo oficial, mas destinava-se aos curas d'almas nas paróq
uias,
para que o pusessem ao alcance dos fiéis. Os primeiros manuais para crianças são obra
dos jesuítas, discípulos de Inácio de Loiola que, nos seus anos de transformação,
tinham ensinado a doutrina cristã às crianças da rua. Os de Pedro Canísio ainda hoje são a
utoridade entre os católicos da Europa Central. Em França, no século XVII,
os bispos preferirão mandar compor e impor o manual próprio da sua diocese.
Onde e como instruir as crianças? Duas instituições contribuem para isso: a escola e a
igreja, que devem considerar-se complementares e não rivais. As crianças que
freqüentam a escola não aprendem somente a ler e a escrever, mas, em primeiro lugar
e essencialmente, a crer e a viver como cristãos. A primeira tarefa do mestre
é dar o catecismo. É por isso que Lutero, por exemplo, preconiza a escola tanto para
as meninas como para os meninos. E, por toda a parte, a autoridade eclesiástica,
protestante e católica, exerce um controlo sobre a doutrina e a moralidade dos mes
tres. Todavia, mesmo nas regiões em que as escolas são bastante numerosas, só uma
minoria de crianças as freqüentam. As outras são retidas em casa pela pobreza dos seus
pais (em geral, é preciso pagar ao mestre) ou, muito simplesmente por necessidade
de trabalhar. Para já não se falar das meninas e raparigas, cuja instrução é considerada m
enos útil e que o pudor proibia que freqüentassem a mesma escola que os
rapazes.
Então, para todos os excluídos da escola, só restava o ensino religioso, o catecismo o
u a "escola de domingo". De facto, o repouso dominical permite que o cura ou
o pastor reúna as crianças nos bancos da igreja ou
276

do templo, ajudado por alguns leigos (os fiéis da Igreja romana, inscritos nas con
frarias, ditas da Doutrina Cristã, são recompensados com abundantes indulgências).
Também se deseja que os seus pais assistam às sessões, para aproveitarem as lições. Mas, p
ara se chegar a um resultado, foi preciso, primeiro, convencer os curas
d'almas a dar catecismo e os pais a enviar os seus filhos. Para isso, as Igrejas
souberam usar um sólido argumento: a profissão de fé entre os protestantes e a primei
ra
comunhão entre os católicos.
No difícil debate que tiveram de conduzir para justificar, contra os anabaptistas,
o baptismo dos bebês, os reformadores retomaram a sugestão de Erasmo: porque não
pedia aos adolescentes que ratificassem publicamente o baptismo recebido à nascença?
Em Estrasburgo e na Genebra de Calvino, esta profissão de fé será como que a
coroação dos anos de catecismo. Do lado católico, foi preciso quase um século para aperf
eiçoar a fórmula concorrente, porque a idade e as condições da primeira comunhão
tinham ficado muito fluidas. E como, ao mesmo tempo, se tinha imposto a idéia de f
azer desta primeira comunhão uma festa colectiva, imagine-se a vergonha por que
passaria não só a criança que fosse rejeitada, mas, sobretudo, os pais. Os antropólogos
continuam a espantar-se com o facto de terem sido necessários quinze ou dezasseis
séculos para que, nas sociedades cristãs, a Igreja reinventasse um rito de final da
infância.
Aliás, catequizar sem alfabetizar só podia ser considerado um triste remedeio. Entre
os protestantes, o essencial é ler a Bíblia; portanto, não há templo sem escola.
Entre os católicos, é desejável que os fiéis saibam ler o seu catecismo e livros de pied
ade que a imprensa e a propaganda difunde por toda a parte. Tanto mais que
a escola também é escola moral. A partir de então, a sociedade nunca deixará de clamar p
ela abertura de escolas, para os rapazes e para as raparigas. Fundar escolas
e dotá-las de rendimentos próprios é um acto de generosidade que os senhores da aldeia
e os curas de paróquias praticam à porfia. Nas cidades, criam-se escolas chamadas
de caridade, isto é, gratuitas, para disciplinar as crianças das classes pobres. Então
, põe-se a questão do recrutamento dos mestres e das mestras, profissão ainda
bastante desprezada. Para responder a esta necessidade, começam a florescer congre
gações religiosas de mulheres e de homens que têm por vocação consagrar-se à educação
cristã e humana das crianças. Do lado das mulheres, são todas as que se agrupam sob o
padroado de Santa Úrsula, a partir da iniciativa de uma italiana de Bréscia,
Angela Merici, várias vezes modificada pelas autoridades eclesiásticas; ou das congr
egações análogas nascidas em Bordéus, na Lorena, etc. Depois surgiram outras
fórmulas, bastante mais flexíveis: simples beatas ou mulheres consagradas, em grupos
de duas ou três, fixam-se numa aldeia para ministrar um ensino muito rudimentar
de leitura e de trabalhos manuais. Do lado dos homens, foi preciso esperar pelo
fim do século XVII para que nascesse, por iniciativa de um cónego de Reims, João-Bapti
sta
de la Salle,
277

uma congregação dedicada à educação dos rapazes. Mas o sucesso é estrondoso, porque estes "I
rmãos das Escolas Cristãs" recebem uma formação pedagógica muito sólida
e estarão na srcem de uma verdadeira renovação dos métodos escolares.
No ensino secundário, fizeram-se os mesmos esforços, mas só os rapazes beneficiaram de
les. Aqui, são mais fortes as exigências das famílias: a promoção social passa
pela aprendizagem do latim nas escolas de gramática - assim se chamavam, inspirada
s pelo humanismo italiano. Mas, sempre que as escolas se multiplicavam até nas
cidades mais pequenas, acontecia uma ruptura confessional. As autoridades católica
s incriminam os regentes, não sem razão, de simpatia protestante. Nas cidades reform
adas,
o colégio é e deve ser confessional, porque um dos seus objectivos é formar futuros pa
stores. Alguns serão famosos, como o Gymnasium de Estrasburgo, criado e durante
muito tempo dirigido por João Sturm. A réplica dos católicos foi dada pelos jesuítas que
, embora não tivessem sido fundados para isso, aceitam, a partir dos anos
1550, encarregar-se dos colégios que saberão inculcar nos adolescentes o humanismo c
ristão, defendendo a fé católica. O sucesso supera todas as expectativas, tanto
mais que os jesuítas se revelam notáveis pedagogos, cuja experiência é reunida, em 1599,
na célebre Ratio studiorum. Importa reler o testemunho dado por Descartes,
no início do Discurso do Método (1637), do ensino que tinha recebido em La Flèche dos
seus mestres jesuítas. E é no colégio de Rouen que Corneille se impregna da
cultura clássica e cristã que devia alimentar as suas comédias ligeiras, o seu teatro
heróico e a sua poesia sagrada...
Globalmente, a educação da juventude terá sido a principal beneficiária da rivalidade da
s confissões cristãs.
Marc Venard
278

A imagem tridentina Ordem e beleza

No início do século XVI, na cristandade ocidental, a arte religiosa está em plena expa
nsão, mas em duas direcções opostas: na Itália, a admiração pela Antiguidade
leva a uma racionalização das formas e a uma humanização dos temas que arrisca esvaziar
o mistério cristão; nos países do Norte da Europa, segundo uma arborescência
gótica levada aos extremos, exprime-se numa sensibilidade que vai da ternura ao pa
tético. Ao encontro destes dois domínios, talvez Albert Dürer (1471-1528) tenha
sido a melhor testemunha da vitalidade de uma arte autenticamente cristã. Umas vez
es, esta arte é monumental, enchendo de cores e de luz as paredes e as janelas
dos grandes santuários; outras vezes é íntima, graças à multiplicação dos quadros de oratório
das gravuras. Mas é difícil dizer que relação os fiéis mantêm com
todas estas imagens que os rodeiam.
Contudo, a partir dos anos 1520, os reformadores julgam que estas imagens são um i
nsulto à Palavra de Deus. Menos Lutero, a bem dizer, que Carlstadt, Zuínglio e,
depois deste, Farel e Calvino. Brandem com veemência o segundo mandamento bíblico (q
ue a Igreja da Idade Média passava em silêncio): "Não farás nenhuma imagem diante
da minha face." E denunciam todas as estátuas da Virgem e dos santos a quem o povo
presta um culto só devido a Deus. À medida que a Reforma ganha terreno, assiste-se
à "limpeza" dos santuários nos locais em que se impõe ou em actos iconoclastas isolado
s, perpetrados por prosélitos zelosos que partem ou danificam as imagens, cruzes
e altares. Muito mal recebidas pelas populações, estas manifestações da fé reformada são obj
ecto de cerimónias reparadoras e de pregações inflamadas. As grandes
vagas iconoclastas de 1561 e 1562 em França, e a de 1566 nos Países Baixos deixarão at
rás de si ódios inexpiáveis.
Mas caberia ao Concílio de Latrão dar uma justificação teórica e prática da arte religiosa,
o que fez nas suas vigésima primeira e vigésima segunda sessões (em 1563),
num longo decreto que mistura culto dos santos, culto
279

das relíqüias e culto das imagens. Retomando os termos do segundo Concílio de Niceia (
787), começa por afirmar que a veneração não é prestada às imagens, aos objectos
materiais, mas às pessoas que eles representam, Cristo, a Virgem ou os santos; as
imagens estão lá unicamente para orientar a fé dos fiéis. Por outro lado, é legítimo
representar Deus nas suas intervenções, tais como a Bíblia ou as Vidas de santos no-la
s referem: estas "histórias" servem para instruir o povo, são como um catecismo
ilustrado. Contudo, o concílio adverte contra abusos: não se deve figurar nada que não
esteja conforme com os relatos autênticos e que não respeite a decência. "Dever-se-á
evitar toda a lascívia, de modo que as imagens não sejam pintadas nem ornamentadas c
om uma graça impudente." Posteriormente, estas fórmulas conciliares um pouco
lacónicas iriam ser explicitadas de várias maneiras. Mais concretamente, quando Pio
V ordenou a Daniele da Volterra (il Braghettone) que tapasse com véus pudicos
as nudezes grandiosas do Juízo Final de Miguel Angelo; e nos tratados teóricos com q
ue o arcebispo de Bolonha Gabriele Paleotti ou o jesuíta neerlandês Van Meulen
(Molanus) escreveram para uso dos artistas os temas que deviam representar e as
regras que deveriam seguir para isso. Se é verdade que, desde então, a Reforma católic
a
iria romper com certas tendências da arte religiosa anterior, também é verdade que con
heceu um relançamento artístico pelo menos igual, senão até mais vigoroso do
que no século precedente, e isto sob formas que os padres conciliares estariam bem
longe de imaginar.
O concílio não tinha dito nada sobre lugares de culto. Coube a São Carlos Borromeu, ar
cebispo de Milão, transcrever o seu espírito numa Instrução sobre a construção
das igrejas que haveria de ter uma grande autoridade. Contra a planta circular o
u em cruz grega, preconiza-se a planta em cruz, que alonga a nave para os fiéis,
separando-a do coro, reservado ao clero. Sabe-se que mesmo a planta adoptada por
Brabante e Miguel Angelo para a basílica de São Pedro de Roma iria ser arranjada
neste sentido. Na igreja, o altar-mor deve destacar-se (à custa dos púlpitos e dos túm
ulos) e sobreelevado, de tal modo que todos os olhares se dirijam para o sacrifíci
o
da missa. No altar será colocada, com toda a solenidade conveniente, uma reserva e
ucarística. E, dominando o altar, um retábulo teatral para valorizar e testemunhar
o seu papel de ligação entre o Céu e a Terra. Enquanto o altar é assim exaltado no santuár
io, a cátedra do pregador aproximar-se-á o mais possível da assistência.
Por outro lado, para que esta possa seguir melhor os ofícios, a igreja também deverá t
ornar-se o mais iluminada possível. Acabaram-se os belos vitrais coloridos
que tinham resplandecido com os seus últimos raios durante a primeira metade do sécu
lo XVI. Nestas igrejas claras, importa que o sacramento da penitência seja adminis
trado
com toda a discrição: por isso, é na mesma Instrução de São Carlos que se encontra minuciosa
mente descrito o móvel que deverá ser utilizado para confessar os fiéis
- o confessionário.
280

E instaura-se uma polícia da arte, cujos agentes mais eficazes são os bispos em visi
ta pastoral pelas paróquias. Então, mandam deslocar os altares, eliminar túmulos
ou mobiliário que atravancam o santuário. Lá, ordenam a construção de um retábulo, a ornamen
tação de um sacrário. Um pouco por toda a parte, mandam retirar imagens
indecentes, um São Sebastião demasiado nu ou um São Martinho eclipsado pelo seu cavalo
. Por vezes, as populações resmungam e só retiram da sua igreja o "bom" santo
quando querem fazer ou cumprir promessas às escondidas, enquanto os artistas trans
põem para Madalenas penitentes e anjos ambíguos a sensualidade que a autoridade
quis banir.
Conforme o decreto conciliar, doravante a arte católica proíbe certas liberdades. Tr
atando-se da Trindade divina, adopta-se uma representação estritamente funcional:
o Pai em majestade, o filho na sua Humanidade crucificada e, entre ambos, o Espíri
to, na forma de uma pomba. Depois, a partir do fim do século XVII, já ninguém ousa
representar o mistério divino a não ser com um triângulo impresso com o tetragrama. Da
vida da Virgem Maria, desapareceram algumas cenas predilectas da Idade Média,
mas não testemunhadas pelos Evangelhos, como a aparição de Cristo ressuscitado a sua mãe
. Em compensação, os artistas são encorajados a fazer sair da sombra São
José, até cruzar a Trindade divina com a trindade humana de uma Família sagrada. Também
assume prioridade tudo o que pode não só proclamar a autoridade da Igreja
e o valor dos seus sacramentos, mas também os méritos dos santos, tanto os do passad
o como os que mostram a graça divina sempre em acção: santos não só para invocar,
mas igualmente para imitar.
A partir das obras mais importantes produzidas pelos artistas da Reforma católica,
as dos grandes arquitectos romanos, dos pintores da escola bolonhesa ou dos ate
liês
flamengos, é preciso reconstruir uma cadeia inteira de imitações talentosas ou malsuce
didas, alimentada pelas migrações de homens ou pela circulação das gravuras.
Assim, é interessante seguir, numa determinada cidade ou província, a introdução dos nov
os temas e das novas decorações. Porque, neste domínio, os jesuítas foram
muitas vezes iniciadores, surgiu o hábito de baptizar erroneamente como "jesuíta" o
estilo do catolicismo reformado. Mas, além de os padres da Companhia terem por
princípio entregar o trabalho aos artistas locais, só usaram das novas modas o que s
ervia para o seu apostolado.
Em contrapartida, durante muito tempo negligenciou-se o papel das confrarias na
difusão da arte pós-tridentina. Uma multidão delas, encorajadas pelo papado e pelos
bispos, propagadas pelas novas ordens religiosas, popularizam as devoções mais impor
tantes da Reforma católica, como a adoração eucarística, a oração mariana do
rosário, a intercessão pelas almas do Purgatório e muitas outras. Por isso, cada uma d
eve ter a sua capela ou, pelo menos, o seu altar, identificado com um retábulo,
assim como imagens para distribuir aos seus membros para lhes recordar os seus d
everes.
281

Embora algumas confrarias, como a dos ourives de Paris, tenham dado trabalho aos
maiores artistas, a maior parte povoou as nossas igrejas de obras modestas, pro
duzidas
por artistas locais.
Pode ligar-se a esta produção a das imagens de piedade para uso individual, cujo suc
esso é, hoje, difícil medir. Freqüentemente são réplica de obras-primas e de
directrizes precisas como acontece, por exemplo, com a série de gravuras que o jes
uíta Nadal mandou realizar nos Países Baixos, no fim do século XVI, para ilustrar
as cenas da vida de Jesus. Não só puderam servir para guiar pintores pouco imaginati
vos, mas também, levadas para casas de particulares, puderam ajudá-los nas suas
orações a fazer a "composição do lugar" recomendada por Santo Inácio. De resto, todos os m
estres espirituais da época (mesmo César de Bus, que era cego!) preconizam
que se medite diante das imagens piedosas. O que não impede que as imagens tenham
podido, em muitas casas, conservar o seu uso, oficialmente proibido, de talismãs..
.
Foi propositadamente que não empregámos o adjectivo "barroco". A nova arte católica, p
reconizada na época em que o estilo da moda era aquele a que chamamos "maneirista"
,
por si mesma não conduzia ao florescimento e aos excessos daquele que as gerações segu
intes cultivaram e a que chamamos "barroco". Ou, se a ele conduzia, era de
maneira implícita. Porque reconhecia-se nela não apenas o triunfalismo da Verdade, tão
manifesto na Roma papal, mas também a exaltação dos sentidos, em particular
da vista, de maneira que a beleza terrestre fosse a promessa do Paraíso celeste.
Marc Venard
282

Roma e Genebra
Novas Jerusalém da comunicação

Genebra, nova Roma? A analogia parece impor-se a partir do século XVI, quando esta
s duas cidades se tornam emblemáticas do confronto confessional.
A Contra-Reforma decidida contra o protestantismo pelo Concílio de Trento foi mais
romana do que tridentina porque, apesar das críticas que o magistério romano suscit
a
entre certos galicanos ou jansenistas, a fidelidade a Roma impôs-se ao conjunto do
mundo católico, pois a cidade pontifícia é o lugar de definição da ortodoxia e
da censura da heresia. A Inquisição romana e o índex são prova disso. Por seu lado, embo
ra não tenha sido a primeira cidade a passar para a Reforma de tipo sacramental,
Genebra apareceu desde 1540 como o bastião da ortodoxia definida com brio por Calv
ino e Teodoro de Beza, depois conservada pela companhia dos pastores, nomeadamen
te
contra os desvios arminianos. Na Idade Moderna, Roma queimou Jordano Bruno e per
to de noventa hereges, mas Genebra também executou Michel Servet e Spifame.
Cada uma destas cidades esforçou-se por brilhar no seu campo por todos os meios mo
dernos de comunicação. Em Genebra, na Idade Média não havia universidade e foi
estabelecendo uma academia que se formaram muitos dos pastores para a Europa ref
ormada, nomeadamente francófona, que se tornaram émulos dos dogmas e da organização
da Europa. Esta influência foi sublimada pela função de refúgio exercida pela cidade em
relação às vítimas das perseguições religiosas, italianas, inglesas e sobretudo
francesas, desde o século XVI, e ainda mais depois da revogação do édito de Nantes (1685
). A perseguição favoreceu a expansão da cidade, proporcionando-lhe, no século
XVI, uma força de dissuasão editorial que contribuiu muito para a propagação na área francóf
ona das traduções genebrinas da Bíblia, do saltério e de um conjunto
de literatura polémica, teológica e política. Post tenebras lux era a divisa da cidade
reformada.
283

Roma também valorizou a sua imagem por meio dos jubileus, renovando o seu urbanism
o e a sua decoração para se erigir em cidade universal, católica no sentido literal
do termo, acolhendo os peregrinos que acorriam a obter as indulgências. Enquanto a
tipografia vaticana poliglota imprimia em todas as línguas conhecidas, o papado
desenvolvia, no século XVII, instituições coordenando a propagação da fé no mundo e assegura
ndo a formação missionária. Nas duas cidades, usa-se a erudição para
derrotar a outra na controvérsia confessional.
De facto, como rivais, as duas cidades sonharam destruir-se, e não somente pela ra
bies theologica ("raiva teológica"). O saque de Roma pelas tropas imperiais (1527)
teria tido tão grande dimensão profanadora, se os protestantes não tivessem denunciado
a nova Babilónia? "Ser cristão não é ser romano", afirma Lutero a Leão X.
E o dia da Escalada (11/12 de Dezembro de 1602) testemunha, pela aliança entre o p
apado, o rei de Espanha e o duque de Sabóia, o desejo de cruzada contra este bastião
que, segundo Ronsard, se tornou "a miserável estância de toda a apostasia". Quando,
no dia seguinte, 12 de Dezembro, os genebrinos repeliram o exército de mercenários
que escalava as muralhas, abandonaram definitivamente a obediência ao seu suserano
feudal, o duque de Sabóia, mas encontraram uma identidade colectiva própria que
ainda hoje se mantém muito viva (além da festa colectiva do costume, come-se uma mar
mita de chocolate repartida pela mesa familiar aos gritos de "Assim morrem os
inimigos da República!"). O fracasso da empresa saboiana e católica foi imediatament
e apresentado aos europeus como um sinal providencial da eleição celeste da Reforma.
À maneira da sua rival das margens do rio Tibre, a cidade encostada ao lago Leman
reforçou o seu dispositivo defensivo nos séculos XVI e XVII, com o concurso financei
ro
de príncipes e das Igrejas reformadas de toda a Europa, porque a queda desta peque
na república teria sido uma derrota da "Internacional Protestante". Por isso, tant
o
no mito como no seu reverso, as duas cidades parecem análogas, pelo menos no que c
oncerne à maneira de enfrentar as controvérsias.
Todavia, não podem ser idênticas porque não se inscrevem na mesma economia da salvação nem
na própria eclesiologia. Roma é o coração de uma Igreja hierárquica visível
que reivindica o seu enraízamento na tradição apostólica e no sangue dos mártires da Igrej
a primitiva. Governada depois do Concílio de Trento por vários papas notáveis
e por uma administração curial renovada desde 1588, Roma assegura no presente a cont
inuidade e a renovação permanentes da tradição. A Roma da Renascença procurava
a fonte do seu poder nos vestígios antigos romanos; a Roma barroca escavou as cata
cumbas a partir de 1578 e decifrou as inscrições da Antiguidade cristã, ao mesmo
tempo que se orna com novas igrejas para visualizar esta nova mediação ancorada na I
greja romana cristã da Antiguidade. As artes foram postas ao serviço de uma teologia
das obras, ilustrando a participação do homem na sua salvação. Ao refundar a peregrinação me
dieval em torno
284

das sete basílicas maiores, que Carlos Borromeu, Pio V e muitos outros voltaram a
pôr na moda, numerosos guias e vedute [vistas, gravuras ilustradas] difundiram
novamente esta imagem da Cidade Eterna junto dos peregrinos. Uma imagem de tal m
aneira densa que até funda o urbanismo do centro de Roma nas construções da unidade
italiana. Sede do papado, Roma torna-se o coração da economia da salvação para os católico
s do século XVII. Só ela decide a autenticação dos santos para recompensar
os méritos e propor modelos edificantes ao mundo. Roma exporta indulgências, jubileu
s e relíqüias para valorizar a sua função sacra.
Ao contrário, na Igreja protestante, marcada pela invisibilidade dos eleitos e pel
o sacerdócio universal, Genebra tornou-se certamente, depois de Calvino, um modelo
de cidade santa onde os desvios são perseguidos pelo olhar vigilante dos pastores
e dos magistrados, não sem conflitos nem sem resistências; no entanto, ela só pode
ser uma Igreja reformada entre outras, sem proeminência, como o manifestam as opções d
as Igrejas de França, da Escócia e dos Países Baixos.
É por isso que, embora Genebra possa ser comparada a Roma, a analogia tem limites.
Ela inscreve-se num tempo muito breve, o século XVI, porque, desde o século XVII,
o magistério genebrino teve como concorrentes não só o de outras cidades, como Saumur
ou Leyde, onde vivem eminentes teólogos reformados, mas também, depois, na
aurora do século XVIII, o profetismo cevenol [de Cévennes, região do Centro-sudeste da
França]. O liberalismo teológico introduzido por Jean-Alphonse Turrettini
leva a Enciclopédia de Diderot e d'Alambert a apresentar Genebra como uma cidade d
as Luzes e de deístas, com prejuízo para os seus habitantes e para Rousseau, mas
talvez para depreciar ainda mais a sede da "infame catolicidade". Sobretudo, lim
itada no tempo, a analogia das duas cidades-Igreja não poderá esconder a diferença
entre as suas funções respectivas no interior do seu bloco confessional. Genebra nun
ca pretendeu ser uma terceira Roma, como reivindicou Moscovo.
Pelo menos, esta competição entre as duas cidades modelou a sua identidade e a sua p
aisagem urbana. Mas o que há de comum entre a Roma triunfante barroca e a austerid
ade
genebrina de cidadela reformada? Talvez o facto de terem ambas atingido uma cert
a universalidade. A Roma pontifícia assegurou a herança imperial cristã. Cidade do
refúgio, marcada pelo acolhimento provisório ou definitivo dos perseguidos de todo o
tipo, até aos anarquistas e revolucionários do século XIX, Genebra alberga organizações
internacionais não governamentais e interconfessionais encarregadas da paz, da leg
islação do trabalho, do socorro dos mais desfavorecidos e do diálogo entre religiões.
Jean-Marie le Gall
285

IV
NOVOS HORIZONTES DE SENSIBILIDADE
Bach A música sem fronteiras

"A música é um dom de Deus", afirmava Lutero, fazendo eco do seu mestre Santo Agosti
nho. Ela exorciza o mal e põe o homem em relação imediata simultaneamente física
e metafísica com o sobrenatural. E "quem canta reza duas vezes", não só com as palavra
s, mas também com o poder dos sons. Por isso, o reformador tinha de colocar
a música com a palavra no centro da nova liturgia que ia instituindo. Doravante, a
música que todos praticam, cantando a uma só voz estes cânticos simples e comoventes
que se conhecem mesmo antes de se saber falar e cujos textos, freqüentemente devid
os a poetas de primeiro plano, declina todos os artigos da fé, e também as horas
de uma vida cristã bem regrada. E, é claro, na igreja, em casa, réplica da paróquia, tod
os os dias, de manhã e à tarde, e ainda na escola e até na rua, dado que
as cidades mantêm um corpo de músicos municipais para tocar do alto da câmara municipa
l, à maneira de ângelus, corais harmonizados. Nas quatro igrejas de Leipzíg,
a missa dominical dura umas quatro horas e as vésperas, à tarde, três horas. Todo este
tempo é duplamente ocupado pela pregação e pela música. Ao mesmo tempo que
é uma terapia que trata das vicissitudes do quotidiano, o canto colectivo consolid
a a comunidade, pondo-a em estado de receptividade interior em relação ao ensino
espiritual que lhe será ministrado durante longas horas.
Em Leipzig, Bach ocupa múltiplas funções. Cantor na Thomaskirche, na igreja de São Tomé, q
uer dizer, professor de música igualmente encarregado da instrução religiosa,
portanto, é também mestre da música das igrejas e, sobretudo, director musices, respon
sável por todas as actividades e celebrações musicais da cidade. Um músico
na cidade - uma cidade unanimemente religiosa, num tempo em que, segundo Jean De
lumeau, "cada cidadão é sociologicamente cristão". Já não há separação entre o civil
e o
286

religioso, a não ser diferenças de estilo entre música para a igreja ou música para a ci
dade. Se os habitantes de Leipzig gostam da festa, se nunca faltam a nenhuma
ocasião de regozijar-se com a visita dos soberanos, com um casamento ou o aniversári
o de uma personalidade, é sempre em música; e é ao director musical que compete
compô-la e dirigi-la, assim como a música que se ouve ao domingo nas igrejas. Até a el
eição do conselho municipal se realiza no santuário, seguida de uma cantata
de acção de graças.
Por isso, as cantatas dominicais são consideradas um duplicado da pregação no púlpito. D
istribui-se o seu texto aos fiéis, para que possam compreender perfeitamente
as palavras. Mais concisas, tratam os mesmos temas, concertados com as autoridad
es religiosas, com a eficácia acrescida que lhes confere o poder da música. Não só
as cantatas, mas também as obras para órgão. Do alto da tribuna, o organista prega com
o o pastor do alto do púlpito. Como ele, entre o Céu e a Terra, o músico fala,
como mediador, de Deus aos homens, e leva até Deus a palavra cantada pelos fiéis. Qu
em sabe se, tratando-se de Bach, ele não fará melhor do que o pastor, não só
pela imensidade do seu génio, mas também pela extensão dos seus conhecimentos teológicos
!
Na sua obra, Bach mostra-se sempre e em toda a parte preocupado com manter um di
scurso em música, qualidade que já lhe era reconhecida no seu tempo, em que se falav
a
dele como de um muito grande orador. Naquele século de retórica, como os seus contem
porâneos e, sem dúvida, mais, ele não deixa de se dirigir aos seus ouvintes para
comentar a Palavra. Modela o seu discurso musical e articula-o segundo as regras
precisas da arte oratória, então devidamente codificadas. Retórico para organizar
as formas, para despertar e governar os afectos dos ouvintes e, sobretudo, para
manter uma linguagem inteligível com uma quantidade de figuras que vão do simples
motivo rítmico ou melódico à estrutura de conjunto das suas grandes obras ou, mesmo, d
as suas colectâneas na sua globalidade.
Igualmente na sua expressão sonora, Bach apela a um considerável conjunto de meios,
que usa com uma ciência e uma precisão admiráveis, seguindo um código simbólico
então conhecido de todos. Nele, não há instrumento, voz, tonalidade ou movimento que não
possua uma conotação espiritual, cujos elementos de significação o músico
trabalha e cruza. Além disso, essa citação de coral arrasta com ela as palavras de um
cântico, operando a um nível suplementar de exegese.
Conseqüentemente, por mais intenso que possa ser o prazer estético sentido ao escuta
r estas obras-primas, não se conseguirá, como os ouvintes de então, perceber
o seu significado real sem um perfeito conhecimento dos textos que elas veiculam
e exaltam e também o conjunto destes sinais auditivos outrora familiares que os
encarnam e comentam. Independentemente de qualquer adesão religiosa pessoal, só é possív
el apreender o pensamento musical de Bach na sua plenitude à luz da cultura
e da espiritualidade que o subentendem e animam.
287
Mas, se escutarmos bem, numerosas obras "profanas" também testemunham uma visão espi
ritual do mundo - as Variações Goldberg, por exemplo - e mesmo o mistério da
Redenção na Cruz. Estão neste caso os cânones enigmáticos que o compositor dedica em Ofere
nda musical a um rei da Rússia perfeitamente ateu, Frederico II. Na sua
sobreposição a si mesmo por movimento retrógrado, como que lido simultaneamente num es
pelho, o motivo do primeiro cânone já traça o sinal sonoro da cruz, este qui
[c] grego que se tornou a figura de retórica do quiasmo*, simultaneamente nome de
Cristo e imagem da cruz, figura a que o músico recorre muitas vezes.
Ao longo da sua vida, Bach reuniu um saber enciclopédico. Conhece todas as músicas d
o seu tempo, estuda e assimila todas as do passado. Desconfiando da cultura euro
peia,
construiu uma linguagem sincrética que lhe pertence exclusivamente e é imediatamente
reconhecível, e na qual o pensamento musical do Ocidente cristão encontra a
sua expressão mais acabada. Ainda hoje a posteridade continua a rever-se nele e no
seu ideal de espiritualidade da obra de arte. "Fonte primordial de toda a música"
,
segundo Beethoven, ele é o criador universal que transmite às gerações seguintes a própria
essência da arte musical, dom de Deus.
Simultaneamente discurso e método, a sua música contém a sua própria teoria e a sua visão
do mundo. Havia alguns decénios, o discípulo do lipsiense Leibniz, Bach,
parece ter posto em obra o pensamento do filósofo, afirmando que "é pelo cálculo e pel
o exercício do seu pensamento que Deus criou o mundo". Criado à imagem de Deus,
é pelo cálculo e pelo seu pensamento que, por sua vez, Bach criou um mundo sonoro, m
undo que nos fala da criação divina.
A sua derradeira obra completa é a Missa em si menor, fruto de um trabalho estranhís
simo, compilação de vários trechos escritos anteriormente, alguns com trinta
e cinco anos, que o músico unifica e completa com três novos que lhe faltavam. Pedra
angular no coração da obra, o Credo é constituído por três grupos de três trechos
que formam um grande arco, no cimo do qual se encontra o perturbador Crucifixus,
pedra angular do imenso edifício. Porquê esta missa? Porque não em alemão? E porque
tem proporções que a tornam imprópria para qualquer uso na igreja? Missa absoluta, Mis
sa tota, acima das liturgias e das famílias do cristianismo. Bach, confessor
da fé.
Fundamentalmente polissémico, o discurso sonoro de Bach não cessa de propor uma leit
ura do mundo e do lugar que o homem tem nele, numa visão coerente e ordenada
de natureza espiritual, sob o signo da serenidade e do ímpeto vital. Não em música, ma
s pela música.
Gilles Cantagrel
* Figura de estilo que consiste em inverter a ordem dos termos nas partes simétric
as de dois membros de frase, de maneira a formar um paralelo ou uma antítese (Trésor
de la langue française).

Nascimento da crítica bíblica (séculos XVI e XVII)

O termo "crítica", no sentido de "juiz dos livros" ou de "arte de julgar os livros


", é introduzido em francês no fim do século XVI pelo grande erudito Juste-Joseph
Scaliger [em português "crítica" aparece em 1712]. Na revolução científica dos tempos mode
rnos, a filologia tem uma pálida figura ao lado da física, da astronomia
e da biologia. Contudo, a irrupção dos métodos filológicos na cultura ocidental poderia
explicar, por si só, a entrada da crítica no campo da exegese bíblica. Mas
é preciso juntar-lhe a pressão das ciências da natureza e do tumulto dos debates teológi
co-políticos procurando modelos bíblicos. Filologia, ciência e política:
tantos campos a explorar para compreender a mudança do olhar sobre a Bíblia no mundo
ocidental nos séculos XVI e XVII.

Filologia, crítica e controvérsia

Como promotor dos studia humaniora ensinados na universidade medieval, o chamado


movimento "humanista" parte em primeiro lugar à busca do melhor texto, do que será
digno da impressão e, por isso, inicia um processo constante de decomposição da transm
issão manuscrita. Pelos seus anacronismos, pelas suas peças e pelas suas costuras,
o texto tem em si mesmo a marca de uma história e o erudito deve percorrer o camin
ho que conduz o texto a esta história. Mas, para compreender um texto, o mesmo
erudito também deve fazer o caminho inverso: da história ao texto, porque todo o tex
to do passado confunde o leitor, e o comentário deve atenuar esta estranheza,
acumulando notas filológicas e históricas que permitam superar o fosso do tempo. A a
plicação à Bíblia deste duplo movimento começa entre o fim do século XV e meados
do século XVI. Ao mesmo tempo, fazem-se traduções em língua vulgar a partir dos srcinai
s, para uso de todos os fiéis que saibam ler, inclusive as mulheres. Em 1530,
289

Lefèvre d'Étaples edita em Lovaina a sua tradução da Bíblia em francês, efectuada sobre a Vu
lgata, com correcções a partir do texto grego do Novo Testamento. Esta
versão será utilizada pelas traduções posteriores: de um lado, a Bíblia "protestante" de O
livetan (1535), srcem das Bíblias de Genebra; do outro, as Bíblias católicas,
chamadas de Lovaina, expurgadas de todas as infiltrações luteranas. Com efeito, a se
paração da velha cristandade medieval em duas Igrejas passou por aí. Quais são,
para a Bíblia, as conseqüências deste rompimento?
O sinal decisivo desta fractura é a elaboração, na quarta sessão do Concílio de Latrão (Abri
l de 1546), de um decreto que marca o corte em relação às práticas bíblicas
dos protestantes. Consideremos unicamente um ponto: mesmo os textos bíblicos devem
ser interpretados segundo o sentido que lhes dá e sempre lhes deu a tradição da
Igreja; mas, para os protestantes, esta regra favorece as construções alegóricas e as
glosas, em detrimento do sentido autêntico do texto. A aplicação das directrizes
tridentinas pelos exegetas católicos e a constituição, entre os protestantes, de prática
s opostas geram uma dupla direcção da exegese incapaz de uma comparação do
dualismo confessional. Os controversistas muito aplicados nas polémicas doutrinais
tentam justificar as suas opções com versículos das Escrituras devidamente selecciona
dos
ou arbitrariamente explicados. Esta prática gera uma forma de comentário hiperteológic
o contra o qual se erguem os exegetas com sensibilidade filológica e histórica
apurada. Os mais notáveis, entre os protestantes Hugo de Groot (Grotius) e, para o
s católicos, Richard Simon, insurgem-se contra uma certa manipulação dos textos
pelos teólogos e privilegiam sistematicamente o sentido literal. São marginais em re
lação à exegese dos professores que, nos seus cursos, consideram que, em matéria
de controvérsia, sendo o sentido literal o único que faz autoridade, o "sentido teológ
ico" (que permanece capital) só poderá estabelecer-se depois de uma cuidadosa
elaboração do sentido literal pela gramática, pelo léxico e pela história. Nesta empresa,
a Grã-Bretanha coloca-se no primeiro lugar, com a publicação de uma Bíblia
poliglota (a Bíblia de Walton, 1654-1658) e de uma antologia de comentários literais
em nove volumes (os Critici sacri, 1660).
Todos estes esforços convergem num distanciamento em relação aos textos bíblicos. Em vez
de serem o receptáculo de uma Palavra divina situada numa eternidade imóvel,
os textos sagrados aparecem cada vez mais como marcados pelo tempo da sua redacção.
Assim, a atribuição inexacta de livros sagrados a autores prestigiados como Moisés,
Isaías e Daniel pertence à mentalidade de um tempo que já não é o nosso, em que esse proce
dimento seria qualificado como falsidade. Contra toda a tradição judaica
e cristã, chega-se a considerar que Moisés poderia muito bem não ser o único autor do Pe
ntateuco (como afirmam Hobbes, Simon e Spinoza). Esta convicção não nasce
de informações sobre a história literária dos documentos, mas de um raciocínio sobre os te
xtos. Assim,
290

a aplicação à Bíblia dos métodos filológicos é ocasião para se afirmar a existência de uma no
toridade sobre a interpretação dos textos sagrados: a da razão.

Bíblia e ciência

Esta distanciação dos tempos bíblicos também provém das dificuldades apresentadas pela cos
mologia bíblica. Para esta, a Terra é um corpo imóvel, situada no centro
do mundo, em torno do qual giram o Sol e os planetas. As estrelas estão fixas, mas
é o firmamento inteiro que gira sem cessar. Posto em causa por ter sustentado
a hipótese heliocêntrica de Copérnico, Galileu defende-se, na sua célebre carta à grã-duques
a da Toscana, Cristina de Lorena (1615), invocando a autoridade de Santo
Agostinho e de São Tomás. Estes dois grandes doutores do Ocidente asseguram que, se
uma descrição cosmológica contida na Bíblia é contradita pelos sábios, é preciso
interpretá-la como uma expressão familiar, usando a linguagem das aparências, ou como
uma opinião do tempo passado. É este último ponto que o movimento da exegese
vai tentar levar por diante. Assim, uma dissertação exegética de 1714 da autoria do sábi
o Dom Calmet demonstra que a cosmologia bíblica é a cosmologia popular do
mundo antigo. Outros espíritos, mais ousados, que militam contra os processos de b
ruxaria, procurarão provar que a omnipresença do diabo no Novo Testamento e os
numerosos exorcismos praticados por Jesus provêm das convicções de uma época que desconh
ecia a existência de doenças nervosas. O distanciamento em relação aos tempos
bíblicos é evidente e apoia-se na autoridade da razão, comparando agora o texto bíblico
com os da literatura antiga.

Bíblia e política

Os tempos modernos registam duas revoluções cujas correntes se chocam violentamente:


uma revolução religiosa, a da Reforma, que reivindica a escolha da consciência
contra a autoridade absoluta do soberano em matéria espiritual; e uma revolução jurídica
, que substitui o Estado único e soberano pela multiplicação dos territórios
e das jurisdições feudais. De um lado, impõe-se o dever de obedecer à consciência, custe o
que custar; do outro, a máxima de que a soberania não se divide. Dos dois
lados, é necessário recorrer ao Antigo Testamento. Ou, então, os partidários do direito
da consciência fazem valer os casos em que os profetas organizaram a resistência
às tentativas de um rei idólatra; ou, então, os partidários da soberania absoluta observ
am que o povo de Israel ignorava a dualidade dos poderes: poder espiritual
e poder temporal são um só. Outros juristas ou teólogos procuram sair deste dilema faz
endo notar que o cristão já não está
291

sujeito às leis do Antigo Testamento. Por isso, eles dirão que, como o reino de Cris
to não é "deste mundo", o recurso à violência para o estabelecer já caducou;
e acrescentarão que a soberania dos reis só pode ser exercida sobre a ordem exterior
da religião e não sobre as consciências (deste modo, o Novo Testamento recomenda
aos fiéis a obediência aos imperadores romanos, excepto quando prescrevem actos imor
ais ou idólatras). Por estas reflexões sobre os modelos políticos que prescreve
ou defende, a Bíblia é relegada ao seu passado findo. No mínimo, as mentalidades cristãs
afastam-se das lições do Antigo Testamento, em nome dos direitos da consciência
e da razão.

Em direcção às Luzes

No fim do século XVII, o termo "crítica" difundiu-se a grande velocidade: toda a his
tória deve ser crítica. Mas, no caso da história bíblica, a pobreza dos recursos
filológicos e arqueológicos entrava a marcha. Em vez de ousar fazer comentários, a mai
oria dos exegetas entrega-se a "introduções à Bíblia", que descrevem um programa
sem o realizarem. Então, a crítica bíblica torna-se mais corrosiva, sobretudo na área da
s Luzes francesas. Na Alemanha pietista, a oposição à escolástica luterana
produz o retorno à Bíblia em que a convicção espiritual não se extingue com o ardor filosófi
co mas, ao contrário, estimula-a. Por esta abertura, a Alemanha protestante
é chamada a tornar-se o santuário dos estudos bíblicos.
François Laplanche
292

A renovação protestante
Do pietismo ao pentecostalismo,
passando pelos despertares

Pelos seus próprios princípios (só Escritura, só fé, ecclesia semper reformando), o protes
tantismo - já plural no século XVI - sempre fez surgir no seu seio Igrejas
e movimentos novos. Alguns destes movimentos exerceram uma influência observável até a
os nossos dias.
Em meados do século XVII, a Europa, já constituída por numerosas entidades confessiona
is (católica, reformada, luterana, anglicana), assiste ao fim das guerras religios
as.
A experiência colectiva de combates pela fé produz efeitos diferentes e, por vezes,
contraditórios. No continente e no Reino Unido, verifica-se alguma lassidão ou
até uma grande indiferença a propósito das Igrejas. Ao mesmo tempo, a "ortodoxia prote
stante" continua a desenvolver-se, criando uma forma de escolástica reformada
ou luterana concebida de maneira sobretudo polémica.
No seio do luteranismo continental desenha-se uma reacção que se pretende seja um ap
elo para voltar à dinâmica dos primeiros anos da Reforma. Philippe Jacques Spener
(1635-1705), pastor luterano nascido na Alsácia, representa esta tendência nova, a q
ue chamará "pietismo". Aspirando a uma espiritualidade mais interior e comprometid
a,
rejeitando a polémica e a disputa, ao mesmo tempo que pretende ser considerado lut
erano ortodoxo, Spener faz a sua tese de doutoramento em Estrasburgo sobre o tem
a
do "novo nascimento" (Jo 3,5) e torna-se o chefe de fila de um movimento de reno
vação do luteranismo na Alemanha. Segundo Spener, o luteranismo corria o perigo de
se tornar cada vez mais uma religião formalista, cujos adeptos teriam somente um p
ouco de fé ou de compromisso reais. A teologia dinâmica de Lutero transformar-se-ia
em ortodoxia definhadora.
A sua obra clássica (Pia desideria, 1675) propõe um programa de renovação aceite por uns
e estigmatizado por outros. Entre as suas proposições: uma fé mais consciente
e pessoal, o estudo da Bíblia em família e em pequenos grupos, um cristianismo prático
fundado no amor fraterno e
293

na recusa da polémica, uma reforma das faculdades de teologia.


Com personagens como Spener e o seu aluno August Hermann Francke (1663-1727), o
pietismo tornar-se-á uma corrente importante no seio do luteranismo, com as suas
universidades, faculdades de teologia (Halle) e projectos de compromisso social
(orfanatos etc...). Spener sempre se proclamou luterano fiel e quis reconduzir a
sua Igreja ao que, a seus olhos, era a dinâmica de srcem. Portanto, este primeiro
pietismo afirmar-se-á como renovador e não cismático. Infelizmente, nem sempre
foi o caso. No século XVIII, o conde Ludwig von Zinzendorf (1700-1760) alimentado
desde a sua infância pelo pietismo de Halle, é o instigador de uma tendência pietista
que acabará por abandonar o seio da Igreja luterana. Num encontro entre Zinzendorf
e um grupo de morávios (hussitas) emigrados para as terras do seu pai, nasce a
Igreja da unidade dos irmãos. Marcados por uma piedade emocional centrada em Crist
o e no seu sofrimento, os morávios têm um ímpeto espiritual que acelera a sua difusão
na Europa. Pouco depois da morte do fundador, já há 226 missionários "morávios" enviados
para fora da Europa (Antilhas, América do Sul e do Norte, África do Sul).
John Wesley (1703-1791), padre anglicano, encontra o pietismo alemão no barco que
o conduzia como missionário para a colónia da Geórgia, povoada de prisioneiros
ingleses. Regressado a Londres, mantém com os morávios contactos que terminam numa c
onversão de tipo pietista (1738). Querendo renovar a Igreja anglicana a partir
do seu interior, Wesley e os seus seguidores encontram inicialmente alguma oposição.
A impossibilidade de pregar nas igrejas leva-os a falarem ao ar livre e, assim,
o movimento atrai fortemente as classes populares. John Wesley e George Whitefie
ld anunciam uma mensagem de conversão que apela a uma importante mudança de vida
(a santificação). Com um espírito muito rigoroso, Wesley estrutura de maneira eficaz o
seu movimento, que se difunde rapidamente. Perto do fim da sua vida, consagra
pessoalmente - sem autorização eclesial - bispos nas colónias que se haviam tornado os
Estados Unidos, um acontecimento que acaba num cisma entre a Igreja de Inglater
ra
e os "metodistas".
De facto, estes movimentos de tipo pietista ou wesleyano contribuem para o nasci
mento de um novo protestantismo que atravessa fronteiras nacionais e confessiona
is.
Por isso, encontramos uma corrente pietista entre os luteranos e os reformados c
ontinentais, tal como entre os anglicanos, os puritanos e grupos mais separatist
as
como os baptistas ingleses, que já tinham nascido no início do século XVII. Este tipo
de protestantismo conhece um acolhimento muito favorável na América do Norte.
Outra maneira de caracterizar este protestantismo seria falar do fenómeno dos "des
pertares". O pietismo contribui para forjar uma realidade protestante anglófona
transatlântica a partir do século XVIII. Por alturas de 1750, acontece o "primeiro g
rande despertar", caracterizado por reuniões ao ar livre em que se prega o Evangel
ho
e os ouvintes são convidados quer
294

a converter-se quer a "despertar", isto é, a renovar um compromisso cristão que se t


eria tornado insípido. Às vezes, estas reuniões são acompanhadas de fenómenos
e de reacções emocionais que John Wesley acaba por criticar.
O "segundo grande despertar" teve lugar na América do Norte e na Europa durante a
primeira metade do século XIX. Os pregadores populares continuam a juntar multidões
para anunciarem o Evangelho. Estes despertares moldam de maneira importante o co
njunto do protestantismo americano - branco e negro -, em que os metodistas e os
baptistas se tornam maioritários. O protestantismo é muito popular, apoiando a const
rução da democracia americana e acreditando na possibilidade de melhorar a vida
(conjunção entre a santificação metodista e o "progresso" das Luzes). Na Europa, durante
o mesmo período, movimentos de despertar partem do Reino Unido para o continente
e influenciam os meios reformados na Suíça e na França, introduzindo aí novas correntes
(baptistas e metodistas).
Depois da Guerra da Secessão (1861-1865), da abolição da escravatura, da industrialização
e de uma emigração católica importante, o protestantismo americano dos
finais do século XIX e do início do século XX ainda conhecerá outro "despertar" importan
te. Certos meios metodistas estão descontentes com a morosidade e o pessimismo
ambientes: isto faz nascer "movimentos de santificação" que apelam às srcens do movim
ento wesleyano, insistindo, portanto, na importância da experiência individual
do Espírito Santo e da santificação. Em 1906, na Igreja Azusa Street, em Los Angeles,
acontece um grande despertar acompanhado de manifestações de glossolalia e
de curas. O seu pregador é William Seymour (1870-1922), filho de antigos escravos.
Este movimento, em breve chamado "pentecostista", popular e multirracial nas su
as
srcens, difunde-se rapidamente no Sul dos Estados Unidos e em muitos lugares do
mundo - na Europa desde 1906 e na França nos anos 1920 - para tornar-se hoje uma
das famílias cristãs mais importantes.
O leitor avisado reconhecerá neste desenvolvimento as raízes de uma grande parte das
tendências protestantes hoje chamadas "evangélicas". Embora estas tendências
tenham uma ligação importante com os Estados Unidos, as suas srcens são bem europeias
e remontam, pelo menos, ao século XVII ou até à própria Reforma.
Neal Blough
295
Os santos e a sua nação (séculos XIV-XX)

O santos do Paraíso são a priori estranhos às divisões políticas deste baixo mundo; contud
o, em Roma e nas grandes capitais, encontramos São Luís dos Franceses,
São Tiago dos Espanhóis, São Nicolau dos Lorenos, São João dos Florentinos. Portanto, as c
omunidades humanas - cidades, províncias ou nações cristãs - podem associar-se
a um santo. A escolha de um nome-marcador, como Yves na Bretanha, Martial no Lim
usino, Claude no Franco Condado, etc, faz parte das práticas familiares mais comun
s.
Em certas cidades, há procissões que reúnem toda a população em volta de um santo, situado
bem no centro da religião cívica: Santa Genoveva em Paris, São Nicolau
em Bari ou São Januário em Nápoles... Por fim, algumas festas de santos são festas nacio
nais: em França, "la Saint-Denis" no fim da Idade Média, "la Saint-Louis"
sob "l'ancient Regime" ou, ainda hoje, São Patrício na Irlanda ou São Venceslau na Boémi
a. Mesmo a Grã-Bretanha, passada ao protestantismo, institui em 1801 uma
bandeira, a Union Jack, que mistura as cruzes de Santo André, de São Jorge e de São Pa
trício, respectivamente patronos da Escócia, Inglaterra e Irlanda.
Por conseguinte, desde o seu nascimento, as nações tiram proveito da glória dos santos
. Sentem-se orgulhosas por terem um santo padroeiro ou patrono antigo que inscre
ve
a sua evangelização e o reconhecimento da sua existência nos tempos apostólicos e lhes dá
a etiqueta de um povo escolhido da Igreja primitiva. A Espanha é honrada
por ter sido evangelizada pelo próprio apóstolo São Tiago, como a França por Dionísio, o A
reopagita, discípulo de São Paulo. Quando, no final do século XVI, a crítica
abala estas lendas, depara-se com cepticismo ou mesmo oposição. Por isso, em 1602, F
ilipe III solicita a Roma que o texto da missa de São Tiago em Espanha seja mantid
o
no breviário romano.
As nações gostam dos santos que exerceram um apostolado universal ou receberam um cu
lto generalizado, ao passo que as cidades - no reino de Nápoles, por exemplo
- procuram ter um patrono mais local. Assim,
296

São Jorge é o santo tutelar da Inglaterra, de Génova, de Malta e da Catalunha, de Port


ugal, de Hanôver e de numerosas cidades alemãs.
Eis o que conduz estas nações e cidades a capitalizar as relíqüias e a disputá-las. Deste
modo, Angers, Toulouse e Compostela pretendem, cada qual, possuir as relíqüias
de São Tiago, enquanto Saint-Denis [França] e Ratisbona [Alemanha] rivalizam pela po
sse dos restos do Areopagita.
Esta sacralização de um território pelos santos manifesta-se, no momento da confession
alização, pelo estabelecimento de hagiografias nacionais, como o Catalogus
sanctorum Italiae (1613), a Bavaria sacra (1615) ou o Martyro-logium gallicanum
(1626). Neles figuram santos "indígetes" que viveram nesses países ou cujos restos
lá repousam, o que permite captar uma grande parte do martirológio universal para pr
oveito de cada um. Com perto de sessenta mil santos, recenseados por André Du
Saussay em 1626, a França não duvida de que merece o título de filha mais velha da Igr
eja.
Entretanto, a época moderna caracteriza-se pelo apego crescente à autoctonia do sant
o patrono. São Jorge seria um bretão, talvez nascido em Coventry, e não um capadócio.
Os portugueses reivindicam Santo António de Pádua porque nasceu em Lisboa. Quando Ra
ymon de Peynafort foi canonizado em 1601, a sua mãe-pátria catalã também fez
dele o seu santo patrono. Nápoles fará o mesmo com Santo Afonso de Ligório. Os santos
modernos, cuja srcem se inscreve nos quadros políticos existentes, prestam-se
mais facilmente que os antigos santos a esta apropriação nacional. Mas isto nem semp
re foi fácil, por causa das alterações das fronteiras. Inácio nasceu com toda
a certeza na Navarra espanhola, mas este reino é reivindicado e em parte detido pe
la França, e a ordem jesuíta foi fundada em Paris. Por isso, a monarquia do Cristianís
simo
não pretende deixar que a santidade de Inácio glorifique exclusivamente a monarquia
católica. E os galicanos preocuparam-se com opor-se ao esplendor das canonizações
romanas dos séculos XVI-XVIII que favorecem os santos de srcem ibérica e italiana.
Os santos padroeiros são protectores da nação e da sorte das armas. Numerosas ordens d
e cavalaria são colocadas sob a sua protecção, como a Jarreteira sob a de São
Jorge em Inglaterra ou as ordens de São Miguel e de São Luís em França. São Jorge a combat
er o dragão torna-se o símbolo da Inglaterra a lutar contra os seus sucessivos
adversários - o papismo, a França ou a Alemanha. São Tiago foi matamoros, depois, com
a expansão castelhana, tornou-se mataíndios. Em França, Saint Denis e São Miguel
foram amplamente invocados contra o inimigo inglês na Idade Média. A partir do século
XIX, a figura de Joana d'Arc expulsando da França o estrangeiro mobilizou contra
a Inglaterra e sobretudo contra a Alemanha. Mas também foi explorada nos debates p
olíticos internos.
Com efeito, existe mais de uma concepção de nação; além disso, a promoção aos altares incumbe
a Roma; portanto, há dois parâmetros que fazem da escolha do santo
patrono uma questão eminentemente política, no momento da secularização.
297
Para alguns, embora seja possível escolher um advogado celeste, o patrono é eleito p
or Deus e inscreve-se numa ordem divina inviolável. Não obstante o desejo das
cortes castelhanas e da aprovação romana, a monarquia católica renunciou em 1630 a eri
gir Santa Teresa como co-padroeira da Espanha para que não atentasse contra
o monopólio inalienável de São Tiago. Portanto, o padroeiro é superior à ordem política e im
põe-se por si mesmo, substituindo-a até, quando esta falha. A coroa de
Santo Estêvão ou de São Venceslau encarna a eternidade transcendente da Hungria ou da
Boémia, apesar de todos os acidentes históricos.
Mas a promoção de um santo ao padroado nacional ou a desclassificação de outro testemunh
a que a nação é uma construção histórica. Quando Henrique VIII rompeu com
Roma, foi preciso destruir as relíqüias de São Tomás Becket e todas as suas representações,
não fosse este mártir dos reis de Inglaterra excitar o zelo daqueles
que se opunham à ruptura com Roma. A canonização de João Nepomuceno, no século XVIII, cons
agra a reconfiguração tridentina da Boémia: até então marcada pela Igreja
utraquista e pela figura de João Huss, ela torna-se, assim, um último baluarte de ca
tolicidade.
Em França, a Revolução impõe uma concepção política da nação que, em parte, se forja contra o
licismo. Ao passo que relíqüias insignes, como as de Santa Genoveva,
são queimadas, o poder valoriza o culto dos santos mártires da Revolução. No século XIX, p
ara ajudar o clero a libertar-se do Estado, Roma canoniza bastantes franceses
do "século dos santos", o século XVII, até então suspeito de jansenismo ou de galicanism
o. No início do século XX, o confronto entre clericais e republicanos apoderou-se
da santidade, o que conduz à beatificação das ursulinas de Compiègne em 1905 ou à apresent
ação da causa de vários mártires da Revolução, a dos carmelitas em 1906
(canonização em 1926), dos de Angers (beatificação em 1984). Eles simbolizam o apego à fé, c
ontra a Revolução ímpia. Mas não podem pretender reunir a nação. Em contrapartida,
os dois campos disputam largamente Joana d'Arc. Michelet vê nela a mulher do povo,
abandonada pelo seu rei e queimada pela Igreja que não conseguirá admiti-lo e
só introduz a causa de canonização e de reabilitação em 1894, que termina em 1926, precisa
mente quando Roma condena a Action Française. Ora, a direita nacionalista
vê em Joana d'Arc o símbolo da luta contra todos aqueles que, a seus olhos, mancham
a França - protestantes, franco-mações, socialistas e judeus - e apodera-se novamente
da sua figura mítica contra as evidências religiosas de outrora.
Com a secularização, o culto dos santos diminui, mas continuam presentes nos conflit
os de memórias em torno das nações e das cidades, pequenas e grandes, prova de
que os santos ainda podem servir a mobilização comunitária, de modo totalmente indepen
dente das políticas clericais e das catequeses.
Jean-Marie le Gall
298

A Ortodoxia russa Monolitismo e cisões (séculos xvi-xviii)

A metrópole de Rhossia, criada nos finais do século X, depois da conversão do príncipe V


ladimir, preserva a sua unidade e permanece sob a tutela do patriarcado bizantin
o
até 1448. Então, torna-se autocéfala, porque rejeita a união de Florença (1439) que os biz
antinos aceitaram provisoriamente. Mas, como o metropolita russo (o chefe
desta Igreja) é eleito em Moscovo, por instigação do soberano local, o rei da Polónia re
cusa-se, desde 1458, a reconhecer a sua autoridade e subtrai à metrópole
russa quase metade das suas dioceses. Desde então, coexistem uma Igreja ortodoxa r
utena que se mantém, mais ou menos, nos territórios orientais da Polónia-Lituânia,
e uma Igreja russa, cuja alçada coincide muito rapidamente com os limites da Moscóvi
a e, depois, do Império Russo. Os laços entre a Igreja e o Estado apertam-se
ainda mais durante o período moderno, em que a fé ortodoxa desempenha um papel centr
al na constituição de uma identidade nacional. Todavia, a Igreja russa também
tem de enfrentar dissidências importantes.

Do patriarcado ao santo sínodo: a Igreja burocratizada

As relações entre a Igreja e o Estado evoluem no sentido de uma subordinação cada vez ma
is forte do espiritual face ao temporal. Entre 1448 e 1547, o grão-príncipe
de Moscovo é o árbitro da eleição do metropolita russo e assegura-se de que os bispos su
fragâneos, em particular o de Novgorod, permanecem na sua obediência. Ivan
III (1462-1505), Vasilij III (1505-1533) e os boiardos que asseguram a regência du
rante a menoridade de Ivan, o Terrível, (1533-1547) não hesitam em depor os prelados
que os incomodam. A instabilidade cessa quando Macário, uma das grandes figuras ec
lesiásticas do seu tempo, se torna metropolita (1542-1563).
299

Macário é o organizador da coroação imperial de Ivan, o Terrível, (16 de Janeiro de 1547)


que refunda o regime monárquico russo sobre o modelo bizantino. Também
encoraja o czar a conquistar os canatos (reinos dirigidos por um cão [chefe mongol
]) tártaros de Cazã e Astracã (1552-1556). Esta vitória, que abre aos russos o
acesso ao mar Cáspio e à Sibéria, é celebrada com a construção da igreja conhecida com o nom
e de Basílio, o Bem-aventurado, na praça Vermelha (1555-1560) e, sobretudo,
com a fundação do arcebispado ortodoxo de Cazã (1555), que, deste modo, se torna a van
guarda da Ortodoxia.
Os russos, porém, contentam-se com ter um metropolita ao lado do seu czar e Ivan,
o Terrível, não hesita em mandar depor e, depois, assassinar um dos sucessores
de Macário, Filipe Kolytchev (1569). Abre-se uma nova etapa em 1589, no reinado de
Feodor, filho de Ivan, o Terrível, que obtém do patriarca de Constantinopla a
criação de um patriarcado russo. Desta vez, o modelo bizantino é restaurado em Moscovo
. A Igreja pode desempenhar um papel decisivo nos negócios do Estado. Em 1598,
quando se extingue a dinastia moscovita, o patriarca Job apoia a eleição do czar Bor
is Godounov. No tempo das perturbações, outro patriarca, Hermógenes, apela à
população para que só aceite um czar russo e expulse os polacos do país (1610-1612). Dor
avante, o sentimento nacional em formação assenta nesta identidade entre
russa e ortodoxa. Finalmente, a Rússia conhece uma situação que lembra a da Sérvia medie
val, quando o czar é Mikhail Fedorovitch Romanov (1613-1645) e o patriarca,
seu próprio pai, Pilarète (1619-1633).
Contudo, o período patriarcal dura somente um século (1589-1700). Com efeito, por mo
rte de Adriano, que freqüentemente tinha perorado contra a ocidentalização dos
costumes, Pedro, o Grande, deixa o trono patriarcal vacante durante vinte anos e
apodera-se regularmente das receitas da Igreja para ajudar o esforço de guerra co
ntra
a Suécia. Ademais, limita estritamente o acesso dos jovens à carreira monástica e proc
lama a tolerância dos cultos não ortodoxos entre os súbditos não russos. Finalmente,
impõe à Igreja um regulamento eclesiástico que a subordina ao Estado (1720). O patriar
ca é substituído por um santo sínodo, assembleia eclesiástica que, a partir
de 1722, é presidida por um ober-prokuror leigo designado pelo imperador. O clero
tem de jurar fidelidade ao czar e velar pela lealdade dos fiéis, sem sequer se
poder escusar com o segredo da confissão. Catarina II acaba esta obra, procedendo à
confiscação dos bens da Igreja, em 1764.
Do Stoglav ao Raskol: disciplina e dissidências

O início do reinado de Ivan, o Terrível, entre 1547 e 1564, é não só marcado com a coroação i
perial e a tomada de Cazã, mas também por importantes reformas. A obra
realizada na Igreja começa por ser de
300

Macário, mas o czar interessa-se muito por ela. O sínodo de 1547 é o primeiro a propor
"novos" santos russos à veneração dos fiéis. Em 1551, o Sínodo dos Cem Capítulos
(Stoglav) esforça-se por restaurar a disciplina, tanto no seio do clero como entre
os fiéis, e desenvolver em todos os escalões uma administração eclesiástica que
escapa às ingerências dos leigos. Também é esta assembleia que prescreve que os pintores
de ícones tomem como modelo a Trindade de Rublev.
Entretanto, um século mais tarde, ainda se sente vivamente nas altas esferas da Ig
reja a necessidade de enquadrar melhor os fiéis e de corrigir as lições em falta
nos livros litúrgicos. Forma-se, então, junto do czar Alexis (1645-1676), um círculo d
e "zeladores da piedade" que pretende realizar bem estas tarefas. Em 1652,
um dos seus membros, Nikon, é feito patriarca. Precipitadamente, lança uma série de re
formas que suscitam a rejeição dos seus antigos companheiros, em particular
do arcipreste Avvakum. De facto, preocupado com estar em perfeita conformidade c
om o rito grego, Nikon ousa corrigir a ortografia do nome de Jesus, a maneira de
fazer o sinal da cruz ou de pronunciar o aleluia... Para os seguidores da devoção tr
adicional ou velhos-crentes, estas inovações anunciam o reino do Anticristo.
Nikon começa por mandá-los calar, intimidando-os ou exilando-os, como Avvakum. Mas o
autoritário patriarca desavém-se com o czar e renuncia ao exercício do seu cargo
em 1658. Inicia-se um período confuso, durante o qual os velhos-crentes multiplica
m as petições e protestos, construindo verdadeiras redes.
O czar convoca um concílio em 1666. A assembleia depõe Nikon, consagrando assim a de
stituição da função patriarcal. Mas também condena como cismáticos (raskolniki)
os defensores da velha fé. Avvakum e os seus mais ardentes companheiros são exilados
para além do círculo polar. Apesar disso, continuam a dar testemunho e as suas
obras são difundidas clandestinamente. Por fim, são queimados, em Abril de 1682. Já ha
viam surgido outros mártires, como a "boiarina" Morozova, morta no exílio em
1675, ou os monges da famosa abadia de Solovki, no mar Branco, que as tropas do
czar tomaram de assalto em 1676. A cisão continuou a aumentar porque os mujiques
das aldeias afastadas ou os cossacos dos confins da Rússia entram em contacto com
velhos-crentes, em ruptura de banimento, e freqüentemente são receptivos à sua
mensagem. Por seu lago, a Igreja denuncia todos aqueles que lhe resistem como "c
ismáticos". Portanto, é erróneo falar "do" Raskol. Desde 1694, distinguem-se duas
dependências, os "presbiterianos" (popovtsy) e os "sem-padres" (bespopovtsy). Por
outro lado, a resistência toma uma infinidade de formas locais: comunidades paramo
násticas,
famílias de comerciantes-empresários combinando mística e têxtil, vagabundos a pregar o
fim do mundo, bandos de rebeldes saqueando as zonas rurais...
Pedro, o Grande, concede uma tolerância precária aos velhos-crentes em 1716, desde q
ue eles se registem e paguem um imposto duplo. Mas os
302

defensores da velha fé continuaram em ruptura com o Estado e a Igreja e são persegui


dos, intermitentemente, até 1905. Apesar destas dificuldades extremas ou por
causa delas, eles seguem e conservam um importante património textual que constitu
i a primeira literatura dissidente na Rússia (um dos seus corolários é a autobiografia
do arcipreste Avvakum).
Pierre Gonneau
303

QUARTA PARTE

O TEMPO DA ADAPTAÇÃO AO MUNDO CONTEMPORÂNEO


(séculos XIX-XXI)
Ao longo dos dois últimos séculos, o cristianismo foi visado e freqüentemente afectado
por perturbações que lhe impuseram uma adaptação permanente.
A exegese histórico-crítica modificou profundamente a leitura dos textos sagrados. N
este aspecto, alguns sábios, na maioria protestantes, desempenharam o papel de
iniciadores. A Igreja católica, durante muito tempo reticente ou até hostil, mostrou
-se finalmente favorável à nova investigação.
Durante este mesmo período desenharam-se figuras de santidade, todas de humildade,
de abandono, impregnadas de infância espiritual, devotadas a uma piedade seráfica,
avivada pela renovação do culto mariano.
A chegada da sociedade industrial e todas as transformações económicas e sociais que d
aí resultaram fizeram evoluir os procedimentos da acção social e caritativa.
A promulgação da encíclica Rerum novarum constitui, neste domínio, um acontecimento sign
ificativo.
Os séculos XIX e XX foram marcados pela forte influência de múltiplas ideologias. O li
beralismo, o socialismo, o marxismo e o nazismo obrigaram os cristãos a tomar
posição a seu respeito. O magistério católico, nomeadamente, teve de se pronunciar; daí um
a série de condenações cuja lógica e grau de firmeza são aqui claramente
expostos.
A partir de 1870, o papado foi confrontado com a perda dos Estados pontifícios e,
portanto, com a de todo o poder temporal.
A intransigência foi substituída por uma aceitação resignada, depois resoluta. O Concílio
Vaticano II, que foi aberto em 1962, manifesta claramente o esforço intenso
realizado pela Igreja católica para se adaptar ao mundo moderno.
A exploração dos últimos territórios desconhecidos do planeta, a retoma, em grande escal
a, de uma colonização orientada segundo novas modalidades conduziram à remodelação
da actividade missionária. Os padres e as religiosas idos dos territórios da cristan
dade tradicional dão progressivamente lugar ao clero e aos leigos dos países
até pouco antes considerados terras de missão.
Na longa perspectiva da história do cristianismo que é a nossa, resta a importância do
s esforços realizados para unir todos os cristãos e a expectativa suscitada
pela instauração recente do diálogo inter-religioso.
Alain Corbin
307

A EVOLUÇÃO DA EXEGESE BÍBLICA E DAS FORMAS DA PIEDADE

A Bíblia e a história das religiões (séculos XIX-XX)

No século XVII, os "modernos", opostos aos "antigos", não encontravam as suas raízes n
o passado, mas julgavam ter dado um salto para um mundo novo, iluminado pelas
luzes da razão. Contudo, desde o século XVIII, desenha-se uma reacção contra este desdém e
m relação à herança. À imagem do indivíduo, não teria, porventura, a humanidade
passado por etapas cuja descrição ofereceria uma "história do espírito humano"? E, em ce
rto sentido, a etapa mais primitiva não seria a mais promissora, a mais fresca
e a mais fecunda? Neste entusiasmo romântico em relação à srcem destaca-se o pensamento
de Schelling sobre o mito. O mito não é um artifício mentiroso forjado pela
aliança dos déspotas e dos padres, mas sim o cadinho da humanidade. Muito mais do qu
e invenções do homem, é na língua, na sociedade e na religião, e por elas, que
o homem se inventa a si próprio. Este regresso jubiloso dos fiéis do cristianismo à tr
adição exige deles que aceitem que a Palavra divina também é sempre e ao mesmo
tempo uma palavra humana, e, como tal, submetida aos acasos da história: "Se não hou
ve história sem religião, também não houve religião que não tivesse sido sujeita
a todas as leis gerais da história" (Littré). Recuperada pela cultura, introduzida n
a "lenda dos séculos", a velha história sagrada também vai ser dissecada pelo
escalpelo dos historiadores.
Um após outro, os livros do Antigo e do Novo Testamento são interrogados nos seus míni
mos pormenores. Merecerão a confiança do historiador? E, em primeiro lugar,
terão sido compostos pelos autores a quem a tradição os atribui? É evidente que não. O Pen
tateuco é uma compilação posterior ao exílio de Babilónia, que reúne quatro
documentos cuja redacção vai da época real (Salomão) até ao regresso do exílio. Os Evangelho
s não são obra de testemunhas directas, mas colecções de tradições sobre
Jesus, interpretadas
309

diferentemente segundo as visões do redactor final. Na primeira metade do século XIX


, nasce a hipótese de que Marcos poderia ser a fonte dos dois outros sinópticos,
completada por uma colectânea de discursos. Esta hipótese fortalecer-se-á no final do
século e ainda é aceite actualmente. Compostos numa data afastada dos acontecimentos
que transmitem, os relatos bíblicos acabam por perder o seu carácter de testemunho h
istórico. Remetem sobretudo para uma fé da comunidade de onde saíram e tratam
de problemas religiosos que então se lhe punham, referindo as soluções encontradas pel
o seu herói/fundador: Moisés ou Jesus. Na Vida de Jesus (1835-1836), David
Friedrich Strauss tenta demonstrar que o relato evangélico é concebido unicamente em
função das crenças judaicas: trata-se de um relato "arranjado", para demonstrar
que Jesus de Nazaré era realmente o Messias esperado. Este livro gera numerosas re
futações e custa ao autor o seu lugar de leitor/prefeito em Tubinga. Para o Antigo
Testamento, a revolução operada consiste em sustentar que os verdadeiros fundadores
da religião de Israel são profetas do século VIII a. C. São eles os inventores
de uma Lei (a Tora) de que não se encontra nenhum vestígio antes deles (obra importa
nte de Julius Wellhausen: Prolegomena zur Geschichte Israelis, 1883). Todas as
obras do protestantismo alemão são difundidas em França graças aos trabalhos do sábio alsa
ciano Édouard Reuss e ao encanto da pena de Renan; bom conhecedor da ciência
germânica, vulgariza tranqüilamente as suas conclusões (Vida de Jesus, 1863; História do
Povo de Israel).
Este desenvolvimento da ciência histórica no campo da Bíblia encontra ecos no seio do
judaísmo alemão, que vai interessar-se pela sua própria história. O esforço
dos sábios judeus, que procuram a assimilação no meio de povos cristãos, leva-os a inter
essarem-se pela figura de Jesus e a colocá-lo entre os sábios de Israel.
Mas o realce sobre a judaicidade de Jesus não cativa ninguém entre os cristãos. Os def
ensores da definição teológica de Jesus pela cristologia conciliar do século
IV acham-no muito diminuído por esta leitura judaica da sua história. São ou os católico
s ou os protestantes chamados "ortodoxos" (em França, "evangélicos"). Perante
eles, agrupam-se os protestantes ditos "liberais", que aceitam a aplicação da história
à Bíblia. Consideram que a judaicidade de Jesus constitui uma concessão aos
ouvintes da sua mensagem e que é unicamente a roupagem sob a qual se oculta "a rel
igião de Jesus" (quer dizer, a sua consciência religiosa). A mensagem de Jesus
é tão-só a revelação do Pai celeste, infinitamente amante e misericordioso: esta é a essência
do cristianismo, liberta de toda a dimensão tomada da escatologia judaica.
Esta mensagem do protestantismo liberal ecoou poderosamente na Europa; foi levad
a para a França pelas vozes de Auguste Sabatier e de Maurice Goguel. Depois, esta
descrição da religião de Jesus acaba por parecer arbitrária. Porque, objecta Rudolf Bult
mann, não conhecemos grande coisa da sua vida e dos seus actos (Geschichte
der synoptischen Tradition, 1921). Mas a sua mensagem é clara. Anuncia a interpelação
absoluta de Deus, mostrando que o homem
310

é obrigado a decidir-se prontamente pelo Reino, sempre oferecido e jamais possuído.


E, embora os discípulos de Bultmann tenham procurado ser mais firmes que o mestre
quanto à manifestação histórica de Jesus, eles continuam vigilantes face a qualquer tent
ativa de ver na Igreja uma grandeza deste mundo (o que, para eles, é a tendência
do catolicismo) e a sua exegese do Novo Testamento contém permanentemente o traço de
sta preocupação.
O movimento da exegese protestante nos séculos XIX e XX é tão vivo que a exegese católic
a tem dificuldade em seguir o seu andamento. Ela segue-o de longe, e o seu
arcaísmo, nos anos 1840, afastou para sempre o jovem Renan do catolicismo. Ela com
eçou por ceder sobre a exactidão e sobre a precisão da cronologia bíblica, depois
dos achados de Boucher de Perthes nas suas grutas. Em geral, a exegese e a teolo
gia católicas foram mais rapidamente receptivas aos resultados das ciências naturais
do que cederam aos assaltos do historiador com receio de um novo "processo Galil
eu". Em contrapartida, as proposições condenadas de Alfred Loisy (decreto Lamentabil
e
sane exitu e encíclica Pascendi, 1907), os vexames sofridos pelo dominicano Joseph
-Marie Lagrange e os obstáculos postos ao sucesso da sua grande obra, a fundação
da Escola Bíblica de Jerusalém, visavam directamente conclusões da ciência histórica. Lois
y aceitou o combate e foi excomungado; Lagrange submeteu-se, mas continuou
suspeito até à sua morte. O descontentamento dos exegetas católicos terminaria em 1943
com a publicação pelo papa Pio XII da encíclica Divino afflante Spiritu, que
lhe permitiu trabalhar mais livremente. O ensino deste texto foi completado pelo
da constituição Dei Verbum, votada pelo Concílio Vaticano II. Ela procura alcançar
um certo equilíbrio entre a afirmação da historicidade dos Evangelhos e o reconhecimen
to do trabalho da tradição (e dos últimos redactores) sobre os relatos. No
fim do século XX, os exegetas católicos aderiram ao grosso do grupo dos "biblical sc
holars".
O movimento da ciência bíblica durante o período aqui tratado está longe de fluir como u
m "longo rio tranqüilo". Foi pontilhado de paragens e retomas. Não apenas
gerou disputas entre sábios, mas também provocou debates vivos na opinião pública, nomea
damente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Em França, a neutralidade imposta
às ciências religiosas na instituição universitária endureceu freqüentemente os conflitos e
o que os exegetas ganharam em reconhecimento da parte dos seus colegas
foi interpretado nos meios tradicionalistas como uma vil concessão ao século.
Nos finais do século XX, impelido pela cultura americana, o interesse dos exegetas
desliza do valor histórico da Bíblia para o seu fecho canónico e para as suas
qualidades literárias. Que efeitos históricos se produziram com o encerramento do câno
ne bíblico, com o seu duplo "Testamento", pondo fora deste cânone os livros
declarados apócrifos? Como é que a revelação divina é perceptível através dos diferentes géne
literários da Bíblia (relatos, poemas, provérbios e leis)? Estas
orientações novas não
311

significam a extinção de todo o interesse pela história: a de Israel continua a ser mi


nuciosamente inspeccionada pelos arqueólogos assim como pelos historiadores,
e o núcleo histórico, para o período pós-exílico, contrai-se cada vez mais. A história das o
rigens cristãs torna-se bastante tributária das investigações sobre o
judaísmo essénio ou fariseu e a importância da fonte Q (os discursos de Jesus referido
s em comum por Mateus e Lucas) é reforçada pelo seu lugar preponderante no
Evangelho apócrifo de Tomé. Doravante, a Bíblia nunca mais procura o seu lugar na cult
ura, usando o raciocínio apologético que a estabelecia em lugar único de "verdadeira
religião". Ela manifesta a sua singularidade através da força da sua expressão poética ou
da sua inspiração religiosa; inspirada na medida em que é livremente percebida
como inspiradora.
François Laplanche
312
João Maria Baptista Vianney, cura d'Ars (1786-1859)

O santo cura. Estas duas palavras designavam, já em sua vida, aquele que iria torn
ar-se o bem-aventurado (1905), depois o santo (1925) cura d'Ars, patrono dos pároc
os
de França (1905), depois do universo (1929), aquele cuja "admirável figura sacerdota
l" foi celebrada em Julho de 1959 pelo papa João XXIII, aquele em quem o papa
João Paulo II, que vai pessoalmente a Ars no dia 6 de Outubro de 1986, glorifica o
"pastor sem igual que ilustrou o cumprimento pleno do ministério sacerdotal e
ao mesmo tempo a santidade do ministro". Contudo, a consagração de um simples padre
não seria algo tão evidente no século XIX, em que o catolicismo, acabado de ser
restaurado depois da Revolução, fez nascer um clero assalariado do Estado, submisso à
dupla tutela do bispo e do prefeito, cuja existência era limitada pela estreiteza
dos horizontes aldeãos, pelas múltiplas obrigações do ministério rural e pela autoridade c
oncorrente do maire e do professor primário.
Por vezes, no coração de uma santidade, há a exemplaridade e a excepcionalidade. Nasci
do a 8 de Maio de 1786 em Dardilly, perto de Lião, no seio de uma família de
camponeses proprietários, o futuro cura d'Ars tem sete anos quando a Convenção começa a
"descristianizar" a República; confessa-se aos onze a um padre refractário;
comunga aos treze anos numa granja. Este rapaz piedoso, que "estava quase contin
uamente ocupado a rezar" - dirá uma testemunha -, viveu uma experiência de perseguição
religiosa que não só fortaleceu, como também simplificou a sua fé. Dos missionários clande
stinos que, com perigo de vida, lhe levaram os sacramentos, ele recordará
"a eminente dignidade do padre": "Se eu encontrasse um padre e um anjo, saudaria
o padre antes de saudar o anjo." Da experiência da descristianização, ele concluirá
que é necessário recolocar Deus e os sacramentos no centro da vida religiosa das pop
ulações: "Deixai uma paróquia vinte anos sem padre e adorar-se-ão os animais"
- diz ele. - "Onde já não há padre, também não há sacrifício; e onde não
313
há sacrifício também não há religião." João Maria Vianney pertence à geração dos jovens padre
stauração; partilha as suas srcens maioritariamente rurais,
a formação acelerada, o ardor, a intransigência e a piedade. Formado já tarde pelos cuid
ados de um padre austero, Charles Balley, antigo cónego da congregação de
Santa Genoveva, não freqüentou o seminário menor, mas uma simples "escola presbiteral"
; desertou em Outubro de 1809 para não ir para a guerra em Espanha e refugiou-se
durante catorze meses nos montes de La Madeleine; dominava mal o latim: em Dezem
bro de 1813, foi excluído do seminário maior Saint-Irénée de Lião como debilissimus;
fará o exame de teologia em francês*. Foi ordenado padre com a idade de vinte e nove
anos, em plena debandada em Grenoble, a 13 de Agosto de 1815; e logo colocado
em "formação contínua junto do padre Balley, como vigário em Écully, às portas de Lião.
Este jovem padre mal classificado herda em 1818 uma paróquia ínfima, completamente r
ural: Ars-en-Dombes, do outro lado do Saône, acima de Trévoux, com cerca de duzentos
e cinqüenta habitantes; a paróquia tinha ficado oito anos sem padre e o campanário tin
ha sido derrubado no ano 11 [1892]. O padre Vianney ficará nela até à morte,
durante quarenta e um anos. "Desejo uma paróquia pequena, que possa governar melho
r e onde possa santificar-me melhor", confia o jovem cura. Ele concebe o seu min
istério
como uma obra de conversão colectiva, vivida sob o sinal da unanimidade reencontra
da, com receio do Juízo Final. A conversão da aldeia aparece primeiro através de
um testemunho pessoal de que se fará eco em 1862 um rendeiro da aldeia: "Quando o
padre Vianney entrou na paróquia, pareceu-nos primeiro cheio de bondade, de alegri
a
e de afabilidade; mas nunca poderíamos acreditar que seria tão profundamente virtuos
o. Notámos que ele ia muitas vezes à igreja e que ficava lá muito tempo. Não
tardou a espalhar-se o rumor de que ele levava uma vida muito austera. Não tinha c
riada, não ia cear ao castelo como o seu predecessor, não ia visitar os seus confrad
es
nem os recebia em sua casa. O que nos impressionou muito foi que começámos por nos a
perceber de que não guardava nada; estávamos admirados com uma conduta tão pouco
comum e, desde então, dizíamos uns aos outros: o nosso cura não é como os outros." Difun
diu-se um boato: o cura alimenta-se de batatas estragadas; multiplica os
jejuns e as macerações; no presbitério, ouvem-se uns barulhos estranhos: é o diabo, o "g
rappin", o "fateixa". Esta percepção muito localizada de uma "santidade"
é acompanhada por uma pastoral coerente, que haveria de provocar o "regresso" dos
habitantes à prática religiosa. Primeiro, passa pelas raparigas, organizadas em
confraria; depois, pela luta contra o cabaré e o baile, com o risco de chocar de f
rente com os jovens da aldeia; finalmente, para os pais de família, chamados a
restabelecer a sua autoridade sobre os seus filhos e

* Nos anos 50 e inícios de 60 do século XX, ainda se faziam os exames escritos e ora
is de teologia em latim, em seminários portugueses. (NT)
314
os seus familiares e criados. A sua pastoral também passa pela restauração material da
igreja (o cura gastou nela a sua magra herança), pela solenidade do culto
e pela observação das práticas cristãs: em Ars, não se trabalha ao domingo; e, em 1855, só s
ete ou oito habitantes não comungam pela Páscoa. A 6 de Agosto de 1823,
o cura conduz de barco e, depois, a pé o seu "povo" em procissão ao santuário mariano
de Lião, Notre-Dame de Fourvière, "precedido de três belos estandartes, cantando
cânticos, hinos e recitando o terço". A conversão colectiva de Ars parecia alcançada.
No entanto, um facto novo veio ameaçar esta unanimidade reencontrada: o nascimento
de uma peregrinação. Pela tensão estabelecida pela peregrinação (prática individual,
penitencial, por vezes "pânico") com a paróquia (prática colectiva, diária, usual), o cu
ra d'Ars entra resolutamente, muito perturbado (por duas vezes, em 1843 e,
depois, em 1853, ele tentará fugir da aldeia para ir "chorar a sua pobre vida" e "
preparar-se para a morte"), na modernidade do século XIX. Longe de poder encontrar
a paz do coração numa "ilhota de cristandade", ele tem de enfrentar o vento do mar a
lto, a individualização das condutas religiosas, a descristianização dos meios
rurais e das cidades, as conseqüências religiosas da industrialização e da urbanização, a pr
ocura desvairada do perdão, da cura e da salvação, sem contar com o ciúme
dos seus "confrades". O nascimento da reputação local do cura d'Ars data das missões d
a Restauração, quando, nos finais dos anos 1820, ele foi convidado a pregar
nas comunas circunvizinhas, até Trévoux e Villefranche; já então ele vê o seu confessionário
assaltado por penitentes. O "rumor d'Ars" dissemina-se. Quando a revolução
liberal de Julho de 1830 proibiu as missões, é precisamente a Ars que vão os que quere
m ver, ouvir e tocar o "santo cura", que se transforma num "missionário imóvel".
Nos anos 1850, são entre sessenta a oitenta mil os peregrinos que, todos os anos,
se dirigem a Ars, a pé, a cavalo, em diligência ou a partir das gares mais próximas.
Isso perturba a vida do padre: "prisioneiro das almas", ele confessa sem cessar,
oito a doze horas por dia, consoante as estações, e prega o catecismo diante de
multidões atentas, na escola da Providência. A sua reputação cresce; os viajantes e as c
artas afluem à aldeia, que se dota de hotéis, lojas e transportes. Através
do sacramento da penitência, vai-se até ele como a um vidente que revela o passado,
o presente e o futuro; como a um taumaturgo que cura não só as almas, mas também
os corpos, à maneira da sua "santinha", Filomena, cujo culto ele difunde e até o nom
e; como a um "santo vivo" cuja imagem se multiplica ("o meu Carnaval", dizia
ele), deixando-o aborrecido. Quando ele morre, a 4 de Agosto de 1859, com a idad
e de setenta e três anos, rodeado pelo seu bispo e por um clero numeroso, habitant
es
e peregrinos disputam o seu corpo: João Maria Vianney ganhou um lugar na história do
catolicismo francês como "cura universal".
Philippe Boutry
315

A renovação da teologia e do culto marianos

Imediatamente após o Concílio de Trento (1545-1563), a Virgem dos tempos modernos to


rna-se a Senhora do catolicismo reconquistador, face aos avanços da Reforma,
que suspeita de idolatria a devoção a Maria. A Contra-Reforma católica é menos reactiva
do que a visibilidade que dá ao culto mariano.
No século XVII, as igrejas da Virgem das Vitórias e da Virgem do Loreto, com louros
vitoriosos, implantam-se por toda a Europa católica onde, por sua vez, as monarqui
as
convocam a figura vitoriosa da Virgem para construir ou consolidar o seu poder.
A Imaculada legitima, por exemplo, as tentativas de restauração monárquica dos Estados
ibéricos. O "voto de Luís XIII" (10 de Fevereiro de 1637) coloca a França sob a protecção
mariana. O rosto da Virgem serve igualmente os desígnios dos missionários,
que procuram evangelizar o Novo Mundo, vasto território por definição "virgem" de cris
tianismo.
É igualmente nas imagens marianas que o clero das missões interiores - Pierre de Bérul
le (+ 1629), João Eudes (+ 1680) e Louis-Marie Grignion de Montfort (+ 1716)
- encontra os meios de evangelização profunda das aldeias europeias no século XVIII. V
oto a Maria, imitação das suas virtudes, santa escravidão mariana e recitação
do rosário constituem as práticas devocionais mais difundidas. É no contexto de um pro
gresso das peregrinações aos santuários marianos que a Revolução de 1789 conduz
a Mãe de Deus ao exílio e entroniza a deusa Razão em Notre-Dame de Paris.
Depois da Revolução Francesa, a Virgem encontra uma visibilidade sob a forma de uma
estátua vestida de branco e azul, num século XIX atravessado por sincretismos
religiosos. Por volta de 1830, os ilustradores dos catecismos da rua Saint-Sulpi
ce, em Paris, ainda dão à Virgem um rosto da mulher-flor dos românticos. As imagens
piedosas cheiram a rosa e a violeta. Por sua vez, as associações das "filhas de Mari
a", fundadas em 1845, andam em procissão vestidas de branco e de azul. As suas
mães
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procuram seguir o exemplo da mãe desta Sagrada Família que o novo catecismo social p
rocura difundir. Nossa Senhora da Graça, da Caridade, da Piedade ou Auxiliadora
apoia a maioria silenciosa das massas laboriosas e trabalhadoras num quadro de a
scensão dos socialismos. Durante os anos 1830-1840, revivem numerosas peregrinações
marianas como, por exemplo, ao Puy. O restabelecimento das festas dos padroeiros
, a redescoberta de estátuas milagrosas levadas solenemente para os altares acompa
nham
o novo lançamento do culto mariano.
Em 1858, as aparições da Virgem em Lourdes precipitam as multidões em oração para o lugar
das visões da pastora Bernardette Soubirous. A crença nas aparições marianas,
que aumenta, é instrumentalizada nos grandes debates do século: Igreja contra o Esta
do, catolicidade contra laicidade, milagre contra a ciência, etc. A autentificação
das aparições pela Igreja (La Salette, 19 de Setembro de 1851; Lourdes, 18 de Janeir
o de 1862, etc.) inscreve-se numa estratégia. Como na Idade Média, o aval dado
às aparições acompanha a evolução do dogma. É o caso da crença na Imaculada Conceição, que, d
trina aprovada, se torna dogma revelado em 1854, quatro anos antes
de a Virgem de Lourdes declarar: "Eu sou a Imaculada Conceição."
Desde 1835, a estampagem de milhares de exemplares da medalha milagrosa e da sua
inscrição revelada a uma filha da Caridade, Catarina Labouré (+ 1876) - "Ó Maria,
concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós" -, preparou o terreno para
o reconhecimento dogmático. A introdução dos termos "Imaculada Conceição" nas
ladainhas do Loreto, as petições do povo cristão, a consulta aos cardeais e, depois, a
o conjunto do episcopado católico precipitam o movimento. A definição solene
da Imaculada Conceição de Maria é proclamada pelo papa Pio IX, a 8 de Dezembro de 1854
(bula Ineffabilis Deus). Ele declara "doutrina revelada por Deus" a isenção
de Maria do pecado srcinal desde o primeiro instante da sua existência. Esta defi
nição torna-se mais um obstáculo em relação às Igrejas do Oriente e às da Reforma.
De facto, protestantes e ortodoxos negam a Maria a isenção, porque não tem apoio na Es
critura e torna-se tributária da interpretação do pecado srcinal pela tradição
ocidental, diferente da do Oriente. A proclamação do novo dogma mariano inscreve-se
igualmente num contexto de afirmação do poder papal. Ela precede a proclamação
do dogma da infalibilidade pontifícia pelo Concílio Vaticano I (1870), outro ponto d
e desacordo entre as Igrejas cristãs.
Depois desta data, face às doutrinas liberais e anticlericais, a figura apocalíptica
da mulher que combate o dragão torna-se o símbolo da luta da Igreja católica
e romana contra os perigos revolucionários do presente. Aliás, a Virgem ganha os con
tornos da Mulher forte do Antigo Testamento. Do alto dos seus cinco, dez ou vint
e
metros de altura, do cimo dos rochedos e das torres sineiras de França, Ela domina
, esmagadora, com a sua estatura imponente, uma serpente que tem o nome de todos
os universalismos do momento, sejam laicos ou republicanos.
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A seguir à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e à revolução russa de 1917, os milagres


e as aparições continuam a ser instrumentalizados. Assim, as releituras apocalípticas
das aparições de Fátima (1917) alimentam a propaganda anticomunista durante as duas gu
erras. A Senhora do Céu entra igualmente no discurso de um catolicismo radical
e intransigente em que primam a autoridade e o antimodernismo. É esta Virgem quem
domina toda a primeira metade do século XX. Ao mesmo tempo, esboçam-se novas tentati
vas
de construção da figura mariana, entre tradição e modernidade. O seu rosto de "Rainha da
Paz", título acrescentado às ladainhas do Loreto por Bento XV (1914-1922),
participa nos esforços da reconstrução moral, religiosa e pacífica do pós-guerra. O seu co
ração cravado de espinhos responde imediatamente às expectativas da devoção
das mulheres particularmente provadas pela Grande Guerra. Por outro lado, a sua
imagem universal acompanha os programas de evangelização maciça das colónias de África,
da Ásia e da índia.
Entre o Vaticano I (1870) e o Vaticano II (1962-1965), a devoção mariana é igualmente
relançada pela inscrição de novas festas no calendário romano. Em 1944, a do
Coração Imaculado de Maria (22 de Agosto) é imposta por Pio XII a todo o rito romano,
dez anos antes da de Maria Rainha (31 de Maio). O culto de Maria honra-se também
com um novo dogma. Apoiando-se no privilégio da infalibilidade, o papa Pio XII pro
clama, em 1950, a Assunção da Virgem "elevada em corpo e alma à glória celeste"
(Constituição apostólica Munificentissimus Deus, 1 de Novembro de 1950). Doravante, es
tá encerrada a reflexão sobre a srcem e o fim terrestre de Maria, que tinha
preocupado os espíritos desde a época patrística. Por isso, a teologia mariana de mead
os do século XX vê-se obrigada a fazer uma escolha: aprofundar ainda mais estas
definições ou, ao contrário, pensar num outro rosto da Virgem.
O Concílio Vaticano II (1962-1965) abre o debate. A Constituição Lumen gentium insiste
na recentragem cristológica da devoção e na necessidade de uma redefinição
do lugar de Maria na história da salvação e da Igreja. Uma série de encíclicas e de docume
ntos - de Marialis cultus de Paulo VI (1974) a Redemptoris mater de João
Paulo II (1987) - vem completar e precisar as orientações do Vaticano II. A pastoral
com tonalidade mariana lançada por estes papas à escala planetária dinamiza
novamente uma devoção que, rapidamente, começa a perder velocidade a partir dos anos 1
950 (bastará pensar no "ano mariano de 1986-1987"). O culto dedicado a Maria
continua, definitivamente, à procura do seu caminho.
Sylvie Barnay
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Teresa do Menino Jesus (1872-1897)

Thérèse Martin - em religião, Teresa do Menino Jesus e da Santa Face - é também muito conh
ecida por Teresa de Lisieux. Aliás, os papas não demoraram muito a classificá-la:
a "maior santa dos tempos modernos" (Pio X), a "flor do meu pontificado" (Pio XI
). Empregaram os meios necessários para fazer reconhecer a sua santidade. Faleceu
em 1897, foi canonizada em 1925. Dois anos mais tarde, é proclamada padroeira das
missões. Um único passo em falso: Pio XI não aprecia a idéia do padre Desbucquois
(1932) de a proclamar, a ela, uma mulher, doutora da Igreja. Mas, em Í944, Pio XII
faz dela padroeira para a França em guerra. Em 1947, as suas relíqüias fazem uma
primeira viagem pela França. Meio século mais tarde, em 1997, por ocasião das Jornadas
Mundiais da Juventude, Teresa é colocada entre os doutores da Igreja, a terceira
mulher a gozar desta honra, mas a única "doutora" dos tempos modernos. E, passados
alguns anos, as suas relíqüias fazem uma viagem triunfal pelo mundo. Contudo,
não foi a hierarquia quem criou Teresa: contentou-se com canalizar o surgimento de
sta nova figura de santidade, cuja doutrina (o "caminhinho") era acessível através
dos textos reescritos e editados (História de uma alma, 1898), e cujos abundantes
milagres reunidos pelo Carmelo (Chuvas de rosas) mostrariam o poder de intervenção
junto de Deus.
As razões desse sucesso? Primeiro, a figura de Teresa testemunha a riqueza espirit
ual do Carmelo francês. Nunca as carmelitas foram tão numerosas, com mais de 140
conventos; nunca elas irradiaram tanto para o exterior, da Palestina à Indochina.
Ao mesmo tempo, abandonaram, com alguma dificuldade, a tradição depauperada da
escola francesa de espiritualidade, para conceder mais importância à grande mística es
panhola: Teresa, leitora de João da Cruz, é testemunha privilegiada deste "regresso
às srcens". Teresa e, na sua esteira imediata, Isabel da Trindade, ou a árvore carm
elita julgada pelos seus frutos.
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Outro contexto, mais conjuntural - a viragem que se opera em França a partir dos a
nos 1880: sufocação das congregações activas e novo interesse pela via contemplativa;
movimento de conversão nos meios literários e intelectuais; por fim, renovação dos escri
tos espirituais. Teresa, também ela convertida, dirá na sua autobiografia,
inscreve-se perfeitamente nesta conjuntura. A História de uma Alma inaugura um nov
o tipo de obra de espiritualidade, mais moderna na sua escrita, mais centrada em
Cristo. O sucesso de Teresa coincide finalmente com a crise modernista: Roma fav
orece, contra uma inteligência suspeita e condenada, a revelação do íntimo, da via
do coração, do recurso à comunhão freqüente ou, até, diária. A jovem carmelita também está ne
ncontro.
Entretanto, Teresa existe primeiro por si mesma. Singular, mas não única, sublinhou-
se o peso de um contexto familiar incómodo que, até à sua morte, a marcará e
fragilizará. Em todo o caso, as imagens são conhecidas: Teresa em família, em Alençon, c
om sua mãe; Teresa nos Buissonnets com o seu pai e as suas irmãs; Teresa
no Carmelo com as suas três irmãs e a sua prima. Seria preciso acrescentar a glória de
Teresa graças às suas irmãs mais velhas, madre Inês (a sua prima Paulina)
antes de tudo. Teresa é a última de nove filhos, dos quais cinco filhas que viverão. A
sua mãe esgota-se nas maternidades e numa grande empresa de rendas de Alençon:
e morre com um cancro da mama quando a filha mais nova dos Martin tem quatro ano
s. Perda irremediável. A família passa para a protecção do tio Guérin, farmacêutico
em Lisieux, porque o pai Martin, homem de idade, amável e piedoso, não conseguiria e
ducar sozinho as cinco filhas. Lisieux é um refúgio de paz para Teresa até que
Paulina, sua "mãezinha", a segunda das cinco, escolhe entrar no Carmelo: ruptura i
nsuportável para esta criança de dez anos, que se traduz numa doença estranha,
curada depois de uma novena a Nossa Senhora das Vitórias. Quatro anos mais tarde,
Maria, a mais velha, junta-se a Paulina no Carmelo.
Aos catorze anos, no Natal de 1886, Teresa conhece uma repentina saída da infância,
um brusco amadurecimento, ruptura a propósito da qual ela falará de conversão.
Com toda a certeza no Verão de 1887, Jesus quer que ela entre no Carmelo no Natal
seguinte. Ela mobiliza o seu pai para fazer o cerco ao bispo e, face à prudência
deste, ela aproveita a audiência que tem com os peregrinos da diocese de Bayeux em
Roma para se abrir a Leão XIII. Sem sucesso. Contudo, as autoridades diocesanas
cederão e ela entra aos quinze anos no Carmelo de Lisieux para onde também arrastará,
seis anos mais tarde, Celina, a sua irmã mais próxima, para onde também chamará
a sua prima, a escrupulosa Maria, uma das duas filhas do tio Guérin.
No Carmelo, o noviciado é difícil. Ela confia-se, ao ritmo de uma carta por mês, a um
longínquo director espiritual, o padre Pichon, que escreve pouco mas que a
apoia na provação que a esmaga. De facto, o seu pai, sofrendo, é internado num asilo d
e alienados de Caen e há quem cochiche,
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mesmo no convento, que a sua razão não sobreviveu à partida da sua filha preferida. El
a própria procura a paz na devoção à Santa Face de Jesus. Depois, em razão
da sua juventude, a sua tomada de véu e a sua profissão são retardadas. Ao cabo dos três
anos canónicos de noviciado, ela que, de todos os modos, não pode ter voz
no capítulo, decide ficar com as noviças, de quem era uma acompanhante privilegiada.
Ela também recebe as confidências da velha fundadora de Lisieux, que a tranqüiliza.
E, sobretudo, descobre João da Cruz aos dezassete anos: a sua leitura desenvolve-a
e fá-la entrar no tempo bendito das núpcias com o bem-amado do Cântico, com Jesus
amado, amante.
Depois desta longa formação, duas viragens decisivas marcam a sua curta vida. Primei
ro, um empurrãozinho do destino, uma piscadela do Céu: em 1894 - ela tem vinte
e um anos -, a sua irmã Paulina - madre Inês - é eleita prioresa. Teresa torna-se escr
itora para a comunidade: prepara alegres brincadeiras piedosas, pequenas peças
representadas para as festas do Carmelo por ela e pelas suas noviças; também escreve
poesias para estimular as suas noviças e para confortar a piedade de irmãs que
lhas pedem. E chega 1895, o ano abençoado. O seu pai morre no ano anterior, a sua
irmã Celina chega ao Carmelo com as suas provisões de textos do Antigo Testamento
a que ela se atira como uma esfomeada. Madre Inês, que em Janeiro tinha gostado da
sua Joana d'Arc, representada na sua festa, encomenda-lhe, para o ano seguinte,
as suas recordações de Alençon, período que ela não conhecera porque estava no convento de
Mans. Teresa sente-se autorizada, aos vinte e quatro anos, a escrever
a sua autobiografia (manuscrito A). No meio da sua redacção, em Junho de 1895, acont
ece uma revelação decisiva, a da misericórdia divina, a que ela se dedica. A
escrita da sua autobiografia é perturbada com isso: a luz desta revelação ilumina como
um novo dia os meses decisivos vividos em Lisieux antes da sua entrada no
Carmelo; então, ela confia ao papel com alegria e vivacidade as passagens mais con
hecidas, a conversão de Natal, os meses de graça antes do Carmelo, a peregrinação
a Roma, a descoberta da força da oração quando Deus, a seu pedido, converte o seu "pri
meiro filho", tocado pela graça no cadafalso.
O segundo acontecimento, dramático, é a revelação da sua morte precoce. Na manhã da Sexta-
Feira Santa de 1896, ela descobre algumas manchas de sangue no travesseiro,
assinatura inegável de uma tuberculose que a levará com menos de vinte e cinco anos.
Agora, a vida de Teresa conta-se mês a mês. Ao mesmo tempo, ela entra numa noite
da fé: está-lhe definitivamente escondido o "belo Céu" onde, até então, ela vivia em sinto
nia com os santos e os seus já falecidos. Mas este drama é escondido às
irmãs. Paradoxalmente, Teresa aceita responsabilidades, tornando-se mestra de noviça
s, embora sem o título; e é posta em contacto com um jovem padre que partia para
a China, em quem ela descobre um irmão dado por Deus desde toda a eternidade para
ser, em seu lugar, o padre que ela não podia ser.
321

Então, ela produz, num tranqüilo frenesim de escrita, as obras da sua maturidade. Pr
imeiro, o seu poema de Setembro (manuscrito B), o único texto místico, em que
enfrenta os seus desejos insaciáveis. Depois, durante alguns meses, as soberbas ca
rtas aos seus dois irmãos: um partiu para a China, o outro prepara-se para a África;
um é o seu irmão, o seu igual; o outro é o seu irmãozinho, o filho da sua agonia. Em Jun
ho de 1897, ela confia-se à sua "bem-amada mãe", a prioresa Maria Gonzaga,
de quem também é confidente: sob a forma de cartas diárias (manuscrito C), ela desvend
a-lhe a sua vida desde há dois anos, as suas "tentações contra a fé", fala-lhe
de caridade, da maneira de partilhar o dia-a-dia de uma família de eleição cujos membr
os não se escolheram. Crueldade e ternura.
Em meados de Julho, despede-se por carta dos seus que não estão no Carmelo. Diz e es
creve que não tem nenhuma apetência pela fruição do Céu, mas que "voltará" para
estar com os seus até ao fim do mundo. Morre a 30 de Setembro de 1897. Paulina mel
horará as suas misteriosas palavras, encontrará as fórmulas necessárias para colocar
a sua "vozinha" de infância espiritual ao alcance das "alminhas". A "Teresinha" na
scera na aurora de um século de ferro.
Claude Langlois
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Pio X, a infância espiritual e a primeira comunhão

A acreditar em quem estava à sua volta, o papa Pio X chorou de alegria quando se p
ublicou, no dia 8 de Agosto de 1910, o decreto Quam singularí, que instituía oficial
mente
a primeira comunhão. Viu nela o reconhecimento do amor especial de Jesus às crianças,
tal como relatam os Evangelhos de Marcos e de Mateus.
Na verdade, Roma não inovava absolutamente nada nessa matéria. O Concílio de Latrão IV já
tinha (em 1215) previsto a confissão e a comunhão das crianças a partir
da idade do discernimento ["da razão", se dizia em português]; quer dizer, a partir
dos seis ou sete anos, quando já podiam tomar consciência da malícia dos seus
actos e distinguir o pão eucarístico do pão comum. No século XVI, os Padres do Concílio de
Trento tinham ratificado as disposições anteriores. Depois, estas decisões
foram precisadas, nomeadamente aquando do Concílio romano realizado no tempo de Be
nto XIII: a idade de discernimento correspondia ao uso da razão, do sentido da
liberdade e, portanto, da responsabilidade; sem esquecer a necessidade de a cria
nça possuir um conhecimento elementar das coisas da fé.
No decurso do século XIX, muitas testemunhas atestam a prática da confissão das crianças
, apesar de uma real inquietação no seio do clero. De facto, os seus membros
sentiam-se divididos entre o receio de, no confessionário, ensinarem demasiado às cr
ianças e o medo de permitirem que o mal se enraízasse, se deixassem de interrogá-las.
As reticências seriam bastante mais fortes no que concerne à comunhão. Os padres lamen
tavam-se de ver as crianças manifestar muito pouco respeito pela eucaristia.
Se a influência latente do jansenismo e, mais amplamente, de um rigorismo ambiente
, travava a comunhão freqüente [dos adultos], afortiori travaria a das criancinhas.
Os adolescentes só podiam aproximar-se da mesa eucarística aos doze ou treze anos, a
quando de uma primeira comunhão que era o termo do ensino do catecismo, desde
o início do século XVII. Esta primeira comunhão, celebrada à saída de uma preparação ascética
moral
323

efectuada sob a orientação do pároco, constituía simultaneamente uma cerimónia e uma festa
paroquial.
As atitudes evoluem lentamente ao longo do século XIX. Então, cresce um desejo novo
de eucaristia, de que são testemunhas a fundação de uma série de obras, como
a Adoração perpétua, e também a realização de congressos eucarísticos nacionais e internacion
is. No pontificado de Leão XIII, um pouco por toda a parte, há diferendos
que opõem o baixo clero, desejoso de admitir as crianças à comunhão antes dos doze anos,
aos bispos, reticentes em relação a esta prática. O papa, consultado em
1888 por ocasião de um desacordo na diocese de Annecy [França], dá razão aos que desejam
admitir as crianças à mesa sagrada. Alguns anos mais tarde, Mons. Sarto,
o futuro Pio X, então bispo de Mântua [Itália], depois patriarca de Veneza, mostra-se
fervoroso partidário da comunhão dos pequeninos. E redigiu para eles um catecismo
numa linguagem simples e fácil.
Eleito papa, Pio X, com um decreto de 20 de Setembro de 1905, convida à comunhão fre
qüente, quer dizer, diária e já não semanal. Deste modo, triunfa a concepção
de uma comunhão "presencial", de um pão quotidiano que alimenta uma presença permanent
e no foro interior dos fiéis, à custa de uma concepção ascética, que leva a
singularizar a eucaristia como uma recompensa. O decreto Quam singulari inscreve
-se nesta lógica. Retoma as decisões dos Concílios de Latrão IV e de Trento, e acrescent
a-lhes
o realce da responsabilidade dos pais, nomeadamente do pai, em matéria religiosa e
moral das crianças. A partir daí, o pároco não é o único visado.
Resta interpretar o movimento que conduziu ao decreto. Para isso, precisamos de
traçar a história da atenção teológica dada à infância de Jesus, na medida em que
isso ilumina o nosso objecto. No decurso da Idade Média, o ciclo da infância de Cris
to era freqüentemente figurado. Com o da Paixão, constitui o tema privilegiado
dos diálogos e dos jogos litúrgicos. O interesse assim manifestado por tudo o que co
ncerne ao Menino Deus também se conjuga com a devoção de São Bernardo pela infância
de Jesus, depois pela do movimento franciscano relativamente ao presépio. O convit
e dos fiéis a uma infância espiritual, inscrita na mensagem evangélica, encontra-se
nos Exercícios de Inácio de Loiola. Já vimos que, no século XVII, tanto o cardeal Bérulle
como Margarida do SS. Sacramento, que celebram ao mesmo tempo as humilhações
e os encantos dos primeiros anos de Jesus, encorajam a aquisição do espírito de infância
, o que, na mesma época, apoia o fervor ao Menino Jesus de Praga.
Embora esta forma de espiritualidade pareça ter depois enfraquecido, o culto da in
fância de Jesus continua muito vivo no século XIX, favorecido pela ascensão do
da Sagrada Família. A mensagem de Teresa Martin, quase contemporânea da obra de Pio
X, testemunha o clima espiritual em que germinou o decreto Quam singulari.
324

Há uma série de processos globais e globalizantes que contribuem igualmente para exp
licar a decisão de 1910. O historiador Philippe Aries e outros depois dele sublinh
aram,
recentemente, a ascensão progressiva do sentimento da infância no Ocidente. Grandes
textos literários, como os de Rousseau e de Stendhal, por exemplo, testemunham
este movimento que, além disso, se harmoniza com a esfera privada e com a densific
ação dos sentimentos que se opera no seu seio; trata-se de um processo complexo,
preparado, a partir do Concílio de Trento, pela concepção de uma espiritualidade conju
gal, depois acelerado pelo sucesso do tema da alma sensível e do modelo novo
do casamento amoroso. No domínio da piedade, isso traduz-se pela existência de um cu
lto familiar, feito de orações recitadas em comum, por vezes no interior de pequenos
oratórios domésticos. Ao longo do século XIX, difunde-se uma imagética religiosa que impõe
uma sensibilidade seráfica. O par recorrente constituído pela criança
e o seu anjo da guarda, o modelo proposto pela pessoa de Luís de Gonzaga, a figura
do Tobias da Bíblia, de quem então se faz uma criança, ilustram este clima.
Também há motivos de ordem pastoral na instauração da primeira comunhão: a Igreja, que per
de a sua influência nos homens, conta com as mulheres, com as mães educadoras,
para travar a descristianização, nomeadamente no quadro da família burguesa. Tudo isto
explica a insistência de Leão XIII, depois a de Pio X, sobre a necessidade
de fazer da comunhão das crianças um acto privado, centrado na intimidade do lar fam
iliar, dispensador de uma educação moral e religiosa.
Em 1910, Roma dirigiu prescrições mais severas para dar a conhecer rapidamente o dec
reto Quam singularis. Apesar de uma resistência manifesta no seio da massa dos
fiéis e do clero, o texto foi aplicado com bastante rapidez, nomeadamente nos inte
rnatos. É por isso que a primeira metade do século XX constitui o apogeu da primeira
comunhão. A 3 de Junho de 1951, o papa Pio XII sublinha este sucesso aquando da be
atificação de Pio X. Segundo ele, foi ao papa Sarto que se "atribuiu a tarefa de
dar Jesus às crianças e as crianças a Jesus". A primeira comunhão tinha favorecido a ecl
osão das vocações sacerdotais e preparado a expansão do apostolado leigo.
Não se pode negar que, desde meados do século XX, a prática da primeira comunhão tenha d
iminuído; um processo, à primeira vista, paradoxal, quando se imagina a importância
que o Ocidente concede doravante ao menino-rei. A propósito deste declínio, é certamen
te difícil distinguir entre o que provém do processo global e o que resulta
de uma modificação da atitude dos católicos praticantes. De facto, a primeira comunhão c
ontinua a ser celebrada nos meios mais fervorosos.
Dito isto, a comunhão sofreu com o recuo incontestável da confissão auricular em geral
. Em matéria de educação religiosa das crianças, acentua-se freqüentemente
um despertar progressivo para a fé, em detrimento da inculcação do medo do pecado e da
necessidade da contrição. Não haveria,
325

porventura, alguma discordância entre a vontade de suscitar um sentimento de culpa


bilidade ou, até, de responsabilidade, desde a idade dos seis ou sete anos, e,
na sociedade global, o adiamento da malícia dos actos muito para além desta idade?
Também se poderia pensar que a retracção do culto familiar, mesmo no seio das comunida
des praticantes, assim como o culto da devoção ao Menino Jesus jogaram contra
a manutenção de uma prática maciça da primeira comunhão.
Seja como for, no tempo da sua maior expansão, ela criava um momento de intensa em
oção entre as crianças e os seus pais. Favorecia uma tomada de consciência precoce
da responsabilidade. Permitia que se estreitassem os laços afectivos entre os memb
ros da família mais chegada. O seu declínio, mesmo que relativo, sanciona o declínio
das técnicas mentais que se referem ao exame de si mesmo, à meditação e à contemplação. A bre
e história da comunhão particular, ou primeira comunhão, inserida na,
bastante mais ampla, da infância espiritual, constitui um indicador da evolução da pie
dade no seio da Igreja católica.
Alain Corbin
326

Dois séculos de querelas em torno da arte sacra

Arte sacra? Arte religiosa? Arte cristã? Não será certamente aqui o lugar de iniciar e
sse debate. Visto de longe, verificamos sobretudo o vivo contraste entre um
século XIX "Saint-Sulpice" e um século XX revelado pela revista L'Art sacré. De facto,
querelas quase incessantes sobre este tema atravessam estes dois séculos:
as que opõem partidários e adversários do gótico, em volta dos Annales archéologiques de D
idron (ca. 1850), não têm nada a invejar às polémicas dos anos 1950. Podemos
dizer que todas as épocas não cessam de se interrogar sobre a orientação e os problemas
da arte religiosa.
Ao sair do sismo revolucionário [Revolução Francesa], muitos só pensam em "restauração" e po
ucos desejam inovar. Entretanto, os recursos são fracos e as encomendas,
raras. As artes menores regressam às formas do Antigo Regime; a arquitectura mantém-
se fiel ao estilo "neoclássico": planta basilical, fachada com frontão e colunata,
abóbada de berço e abside em abóbada de semicúpula. Foi só nos anos 1840 que a procura cre
sceu como conseqüência do grande despertar católico, enquanto o romantismo,
apesar das vivíssimas oposições, introduz uma predilecção durável pelo estilo gótico. Os seus
defensores afirmam que é mais económico, mas, sobretudo, idealizam
a arte do século XIII como a única verdadeiramente cristã. As igrejas góticas multiplica
m-se em todos os lugares, como a basílica de Santa Clotilde em Paris; a descendência
é numerosa. Sem falar nos estaleiros de restauração a que está ligado o nome de Viollet-
le-Duc. Os objectos religiosos prolongarão durante muito tempo o sucesso
precoce mas efémero do estilo "troubadour" no mobiliário e nas artes decorativas.
Durante a segunda metade do século XIX, uma real vitalidade do catolicismo, conjug
ada com o enriquecimento geral, mantém num alto nível a procura de edifícios e
de objectos religiosos. A industrialização da população deixa inegavelmente a sua marca
nos diversos sectores; no mínimo, permite que se enfrentem as necessidades.
A partir de meados do século XIX, constitui-se em volta da igreja de Saint-Sulpice
, em Paris (dando o seu nome
327

a um "estilo"), uma concentração comercial que também fornece a província e o estrangeir


o, embora encontre aí sérios concorrentes (com um "estilo" muito próximo).
E manter-se-á até aos anos do Concílio Vaticano II.
Certos sectores da arte religiosa são pouco tocados pela industrialização e pela estétic
a "Saint-Sulpice". Deste modo, a arquitectura atém-se, mesmo nos estaleiros
mais prestigiados (Lourdes, Montmartre) a um tímido eclectismo: neo-românico, neobiz
antino, neo-renascença. Só a basílica de Fourvière, em Lião, ousa inovar. Nem
mesmo o emprego do ferro revoluciona as formas. As artes litúrgicas - ornamentos e
vasos sagrados - continuam sobretudo marcadas pelo gosto medieval.
Dá-se o nome de "Saint-Sulpice" a um tom de piedade piegas e fácil em que convergem
as heranças degradadas do maneirismo italiano e do classicismo francês (e dos
elementos rococó) com caracteres de uma produção industrializada. Os seus domínios de pr
edilecção são os elementos da decoração das igrejas - vitrais, quadros, móveis
e, sobretudo, estátuas (então é o reinado do gesso colorido) -, assim como os múltiplos
"artigos de piedade" para uso privado, sem esquecer a imagética religiosa.
O fenómeno é largamente internacional e, talvez, inerradicável, mas evoluiu ao longo d
o século XX.
Contra esta degradação da arte religiosa (ou, pelo menos, o que se julga como tal),
os protestos multiplicam-se e intensificam-se depois de 1890. Cita-se sempre
Huysmans; mas ele não é o primeiro nem o único a erguer a voz. Outro dado importante é a
mudança acelerada nesta viragem de século das artes "profanas". Olhando
só para a pintura numa panorâmica rápida, em trinta anos passou-se de Corbet a Picasso
. Seria impossível que as artes religiosas não reagissem a esta mudança de
contexto.
Houve numerosas tentativas para lhe dar (crê-se) uma grande autenticidade. Notemos
, por exemplo, os esforços realizados pelos monges de Beuron (Alemanha) e pelas
"confrarias de artistas" lançadas por iniciativa dos pintores Maurice Denis e Geor
ges Desvallières. O sector que muda mais rapidamente é, então, o da arquitectura,
transformada pelo advento do betão. O emprego do "cimento armado" em Saint-Jean-Évan
géliste de Montmartre não modifica realmente o aspecto geral; para isso, terá
de se esperar por Notre-Dame du Raincy dos irmãos Perret (1922). A mesma mutação triun
fa mais claramente nos países germânicos.
Uma nova viragem acontece durante os anos 1925-1935. Primeiro, em 1925, é a exposição
das Artes Decorativas; este novo estilo contribui para voltar as artes menores
religiosas para um "neo-Saint-Sulpice": mais expressionismo, mais esquematização. Em
1931, a inauguração na diocese de Paris dos "estaleiros do cardeal" - uma centena
de igrejas novas em poucos anos - relança a actividade (depois da reconstrução dos ano
s 1920), mas tem apenas um efeito artístico limitado: faltou proceder com economia
,
salvo no que concerne a algumas operações de prestígio (por exemplo, a igreja do Espírit
o Santo: neobizantino, betão e art deco).
328

Sobretudo em 1935, fundou-se a revista L'Art sacré, que vai ter um lugar capital,
durante mais de trinta anos, na renovação das artes religiosas. De 1937 a 1954,
é dirigida pelos padres dominicanos Couturier e Régamey; mensal antes da guerra, bim
estral depois, até ao seu desaparecimento em 1969. Mostra-se muito crítica com
a arte do século XIX e apoia fervorosamente algumas grandes empresas: a decoração da i
greja de Assy (Alta Sabóia) que inclui o Cristo contestado de Germaine Richier;
a capela de Vence (Alpes Marítimos) concebida por Henri Matisse, a primogénita de um
a família de "capelas de artistas"; a capela de Ronchamp (Alto Saône) e o convento
dominicano de L'Arbresle (Ródano) construídos por Le Corbusier; e muitos outros.
Rebentam polémicas violentas que culminam em 1950-1952. Têm o mérito de pôr algumas ques
tões verdadeiras, a começar por: o que é a arte sacra? Ou, por outras palavras:
a arte não-figurativa será capaz de exprimir o sagrado? E ainda: um artista pessoalm
ente descrente poderá fazer uma obra autenticamente religiosa? Questões que talvez
ainda não tenham encontrado a sua resposta inteira; mas, pouco a pouco, o debate f
oi diminuindo de paixão e começou a soprar um vento novo.
Entretanto, preparava-se outra tempestade: o Concílio Vaticano II e a crise pós-conc
iliar acompanhada por um desmoronamento das vocações e da prática religiosa,
e, conseqüentemente, uma considerável diminuição da procura para as várias artes religiosa
s. Quanto à arquitectura, acrescenta-se-lhe, durante os anos 1970-1980,
o desejo de uma "invisibilidade" dos edifícios religiosos que reduz os programas;
a maciça catedral de Évry marca bem o fim desta tendência. As artes menores também
são atingidas. A reforma litúrgica leva à "limpeza" das igrejas, por vezes exageradame
nte, e a que se adopte uma decoração mais sóbria. Mas nada de inquietação:
o "Saint-Sulpice" está bem de saúde!
Porquê esta longa crise da arte sacra contemporânea? É evidente que se pensa na evolução d
o sentimento religioso. Mas é preciso ir mais longe: esta crise é tão-só
um reflexo do lamentável divórcio entre o catolicismo e a civilização saída do pensamento
das Luzes. Talvez o "religioso" não explique tudo: também a arquitectura
profana naufragou no pastiche, e o kitsch afectou todas as espécies de objectos. P
or isso, a questão continua aberta...
Claude Savart
329

II

A DOUTRINA CRISTÃ PERANTE O MUNDO MODERNO

Um catolicismo intransigente
O "momento Pio IX" (1846-1878)

No centro do século XIX, o pontificado de Pio IX, Mastai-Ferretti, (1846-1878) apa


rece, por excelência, na história do catolicismo como o momento intransigente.
O termo impôs-se entre os historiadores, primeiro em Itália e, depois, na França, para
qualificar a corrente que outrora se denominava ultramontana, quer dizer,
italiana ou romana. A intransigência toca no mais profundo do dispositivo intelect
ual, mental e afectivo dos católicos do século XIX. Essencialmente, esta define-se
como a recusa de qualquer transacção, isto é, um distanciamento em relação a qualquer conc
essão, a qualquer compromisso que pusesse em perigo a conservação e a transmissão
da fé, dos dogmas e da disciplina católicos; a intransigência também é simultaneamente def
ensiva e ofensiva, afirmação e condenação, às vezes até provocação ou agressão.
Historicamente, a intransigência refere-se ao texto mais célebre do pontificado, o S
yllabus dos erros modernos, que é uma seqüência da encíclica Quanta cura (8 de
Dezembro de 1864). No contexto dramático que conduz, a partir de 1859, ao desapare
cimento definitivo dos Estados temporais do papa e à anexação de Roma como capital
do reino de Itália (1870), Pio IX, que foi erradamente apresentado no início do seu
pontificado como o papa "liberal", rompe frontal e radicalmente com o liberalism
o
religioso, filosófico, moral, jurídico e político do seu tempo. Entre as vinte e quatr
o proposições condenadas foi, sobretudo, a última frase que desencadeou as
paixões [Syllabus: § IX. Erros acerca do Principado Civil do Pontífice Romano]: "O pon
tífice romano pode e deve reconciliar-se e transigir com o progresso, o liberalism
o
e a civilização moderna." Com esta
330

última negação, o papa parece desafiar a sua época e consagrar um catolicismo da recusa.
Assim, o Syllabus rejeita confusamente proposições sobre Deus (panteísmo,
naturalismo e racionalismo), sobre a religião ("indiferen-tismo" ou "latitudinaris
mo", segundo os quais a salvação seria acessível a qualquer religião que cada homem
pode escolher com toda a liberdade), sobre a "moral natural" e o divórcio; e recus
a a liberdade absoluta de opinião e de expressão, de consciência e de culto, a
idéia de separação da Igreja e do Estado, o derrubamento dos governos legítimos, o socia
lismo e o comunismo; reafirma a independência e a autoridade da Santa Sé
relativamente às Igrejas orientais, como sede da unidade e da universalidade católic
as, assim como os direitos da Igreja perante o Estado. Contudo, entre esta seqüência
de negações, algumas revestem uma tonalidade mais moderna: deste modo, Pio IX critic
a o princípio de "não-intervenção" (§ 62), funda a autoridade civil sobre o direito
("A autoridade não é mais do que soma do número das forças materiais", § 60), recusa sobre
tudo como uma idolatria o poder ilimitado do Estado sobre as consciências
("Como o Estado é a srcem e a fonte de todos os direitos, goza de um direito sem
limites", §39).
Portanto, a intransigência não poderá ser reduzida a uma pura negatividade, mesmo que
pretenda nada conceder, nada ceder ao tempo nem aos valores nascidos da modernid
ade
liberal. Pio IX quer conservar e transmitir intacto aos seus sucessores o "depósit
o da fé" (depositum fidei), objecto essencial dos cuidados e das inquietações de
uma Igreja que se sente assaltada por todos os lados na sua fé, e contestada até na
sua existência. A plenitude dos direitos e da autoridade da Igreja de Roma justifi
ca
a proclamação de dogmas novos, concebidos como um aprofundamento e uma conclusão da tr
adição viva da fé através dos séculos. A 8 de Dezembro de 1854, a proclamação
do dogma da Imaculada Conceição, segundo o qual "a bem-aventurada Virgem Maria, no p
rimeiro instante da sua concepção, foi, por uma graça e um privilégio especial
de Deus todo-poderoso, pelos méritos de Jesus, salvador do género humano, preservada
e isenta de toda a mancha do pecado srcinal", vem consagrar, no meio da excepc
ional
unanimidade dos episcopados, a intensidade e a universalidade do culto mariano n
o mundo católico. Quatro anos mais tarde, as aparições marianas de Lourdes a Bernadett
e
Soubirous (1858) parecerão confirmar miraculosamente aos olhos das multidões a defin
ição pontifícia: "Que soy era Immaculada Counceptiou", "Eu sou a Imaculada Conceição".
Igualmente, o reforço contínuo da centralização romana, o aumento das visitas dos bispos
a Roma, "ao limiar dos apóstolos" (ad limina aposto-lorum), a unificação
do culto em torno da liturgia romana, a multiplicação das congregações religiosas mascul
inas e femininas colocadas sob a autoridade imediata de Roma, o impulso missionári
o
católico ordenado e regulado pela Congregação da "Propaganda" (de propaganda fide), a
exaltação da própria pessoa do papa através da imprensa e da imagética católicas
conduzindo o primeiro Concílio do Vaticano, reunido a 8 de
331

Dezembro de 1869 para proclamar, a 18 de Julho de 1870, a despeito da oposição do ep


iscopado francês e de alguns prelados liberais, o dogma da infalibilidade pontifícia
:
"O pontífice romano, quando fala ex cathedra, isto é, quando desempenha o seu cargo
de pastor e de doutor de todos os cristãos, e define, em virtude da sua suprema
autoridade apostólica, que uma doutrina em matéria de fé ou de moral deve ser admitida
por toda a Igreja, goza, pela assistência divina que lhe foi prometida na
pessoa de São Pedro, desta infalibilidade com que o divino Redentor quis dotar a s
ua Igreja, quando ela define a doutrina sobre a fé ou a moral." Dois meses mais
tarde, no dia 20 de Setembro de 1870, as tropas italianas entram em Roma pela br
echa da Porta Pia e põem definitivamente fim à existência plurissecular dos Estados
do papa; mais que nunca, tanto na teologia como na sua eclesiologia, a Igreja ca
tólica, tal como uma fortaleza sitiada, parece reagrupar-se à volta da autoridade
e da pessoa do "vigário de Cristo".
Também a intransigência católica, na sua quádrupla recusa da Reforma protestante e da fi
losofia das Luzes, da Revolução de 1789 e do Estado liberal, constitui um
modo de resistência aos "tempos maus" que a Igreja parece atravessar, uma forma de
sensibilidade à história, às ameaças do presente e às promessas do futuro. Mas
também pode ser crispação, inflexibilidade, intolerância ou, às vezes, injustiça, e concebe
a sua relação com o mundo, com a sociedade civil e com as outras religiões
segundo o modelo do confronto. Em Novembro de 1848, Pio IX preferiu deixar Roma
a pactuar com o movimento democrático. Em Junho de 1858, confirmou a ordem de subt
rair
aos seus pais uma criança judia de seis anos, Edgardo Mortara, baptizada sub-repti
ciamente em Bolonha por uma criada, a fim de não perder a graça do seu baptismo
e ser educado em Roma na religião católica. Durante o Verão de 1860, reuniu sob as ord
ens do general Lamoricière um exército para impedir a unificação da Itália,
que será esmagado em Castelfidardo, a 18 de Setembro de 1860. Em Janeiro de 1861,
prescreve a todos os fiéis católicos que se abstenham de votar no quadro das institu
ições
parlamentares do jovem reino de Itália do rei Victor Emanuel II. Nos anos seguinte
s, mobilizou por toda a Europa, particularmente em França, na Bélgica e na Áustria
e até no Quebeque, voluntários, os zuavos pontifícios, para defender Roma. Na Primaver
a de 1867, fez um apelo ao seu exército e também a um corpo expedicionário
francês para esmagar em Mentana (3 de Novembro de 1867) a tentativa dos "camisas v
ermelhas" de Garibaldi para tomar Roma. Depois de 20 de Setembro de 1870, mura-s
e
no seu palácio do Vaticano, como um "prisioneiro", e rejeita a lei das Garantias (
13 de Maio de 1871) que lhe é oferecida por uma Itália cuja unidade encontrada
ele recusa reconhecer.
Deste modo, a intransigência vem sancionar a derrocada da independência temporal da
Santa Sé, cujo princípio o cardeal Giacomo Antonelli se esforça por manter contra
ventos e marés, e isolar dramaticamente o papado na Europa e no mundo. Mas ela foi
intensamente vivida pelo mundo católico
332

como testemunho, isto é, etimologicamente, do martírio: em 1867, aquando da Exposição Un


iversal de Paris, o Estado Pontifício escolherá estar representado por uma...
catacumba. Uma dimensão sacrificial da fidelidade, nunca estranha a horizontes esc
atológicos ou apocalípticos, é inseparável do pontificado de Pio IX, que se extingue,
num sentimento de grande solidão, ao cabo do mais longo pontificado da história, no
seu vasto palácio deserto do Vaticano, a 7 de Fevereiro de 1878. O catolicismo
intransigente do século XIX alimentou-se destas recusas e destas afirmações, desta inf
lexibilidade e desta esperança.
Philippe Boutry
333

A encíclica Rerum novarum (1891) e a doutrina social da Igreja católica

A importância aqui atribuída à encíclica Rerum novarum de Leão XIII (15 de Maio de 1891) j
ustifica-se por duas razões. O documento pontifício é a primeira tomada
de posição do magistério romano sobre a "questão social", para retomar a designação do tempo
. Por outro lado, a Rerum novarum é um texto fundador, regularmente evocado,
em particular aquando dos aniversários da sua promulgação, como em 1931, 1971 e 1991.
Consideremos a génese, o conteúdo e o alcance da encíclica.
Para compreender a decisão romana, é preciso conhecer a multiplicação de iniciativas e d
e reflexões nascidas, não só de clérigos como Mons. von Ketteler, bispo de
Mogúncia, mas também, freqüentemente, de leigos, face às conseqüências da industrialização e
ante a ascensão do socialismo e do movimento operário. Basta evocar
a secção de economia social na Obra dos congressos em Itália, os cristãos sociais na Áustr
ia-Hungria e na Alemanha, a Obra dos círculos católicos em França, com
Albert de Mun e René de La Tour du Pin. A partir de 1884, a União Católica de Estudos
Sociais de Friburgo reúne católicos sociais de diversos países para efectuar
uma reflexão à luz da filosofia de São Tomás.
Estes homens podem ser repartidos em dois grupos principais: os mais radicais põem
em causa a legitimidade do direito de propriedade, condenam o capitalismo e estão
convencidos da necessidade de intervenção do Estado na economia, em nome do bem comu
m; em contrapartida, a escola de Angers - do nome do bispo desta cidade, Mons.
Freppel -, embora critique a sociedade individualista nascida da Revolução Francesa,
é hostil ao papel do Estado e confia num liberalismo temperado, fundado na inicia
tiva
individual.
No congresso internacional de Liège, em 1890, o conflito entre as duas escolas tor
na-se particularmente vivo. Impõe-se uma tomada de posição do papa Leão XIII, pedida
havia anos. Ainda cardeal Pecci, ele esboçou, nas suas cartas pastorais sobre a Ig
reja e a civilização, temas que anunciam a Rerum novarum: condenação da "espantosa
usura" e das "escolas modernas
334

de economia política", que consideram tanto o homem quanto uma máquina, valor do tra
balho, contraste entre "multidões sem esperança" e "um pequeno número [...] aplicado
a entesourar". Como Pio IX, no Syllabus de 1864, atira-se à economia liberal basea
da na acumulação de riqueza. O futuro Leão XIII deve bastante aos jesuítas da revista
Civiltà Cattolica. Um deles, Matteo Liberatore, alimentado pelas reflexões tomistas
sobre o direito liberal, é o autor do primeiro e mais importante esboço da futura
encíclica.
É sabido que, desde os estudos efectuados por ocasião do seu centenário, os seus autor
es quiseram fazer da encíclica um texto de compromisso, independentemente das
escolas opostas. A influência da de Friburgo e do seu corporativismo é menos dominan
te do que se pensou; mas deu-se realce ao papel do cardeal inglês Manning e do
cardeal Gibbons, arcebispo de Baltimore, que, desde 1887, se tinha oposto a que
Roma condenasse a Ordem dos Cavaleiros do Trabalho, organização operária da América
do Norte. Gibbons inspira o inciso de Leão XIII, que junta os sindicatos separados
aos sindicatos mistos que associam patrões e operários: "as minhas esperanças
estão satisfeitas", escreve ele ao papa.
Intitulada Sobre a condição dos operários, a encíclica constata nas suas primeiras palav
ras "a sede de inovações [rerum novarum] que, desde há muito, se apoderou
das sociedades". Descreve "a afluência da riqueza às mãos de um pequeno número, a par da
indigência da multidão". O quadro evoca "a situação de infortúnio e de miséria
imerecida" que atinge "a maior parte" dos homens das "classes inferiores". A abo
lição das corporações, a laicização do Estado e a "usura voraz" contribuíram para
entregar "trabalhadores isolados e sem defesa" a "patrões desumanos". Em suma, um
"pequeno número de ricos e de opulentos" impõe "um jugo quase servil à infinita
multidão dos proletários". A encíclica admite a existência dos conflitos de classe; em c
ompensação, a sua leitura da realidade social não tem em conta a ascensão
das classes médias. A crítica vigorosa do socialismo apoia-se em duas razões: pôr em cau
sa o "direito de propriedade sancionado pelo direito natural" e pôr em causa
a família que, segundo Leão XIII, tem prioridade sobre a sociedade civil.
O papa afirma a legitimidade da intervenção da Igreja em matéria social "com toda a pl
enitude do Nosso direito". A Igreja deve reconciliar os ricos e os pobres "lembr
ando
às duas classes os seus deveres mútuos e, antes de todos os outros, os que derivam d
a justiça". Aos operários compete "honrar o contrato de trabalho e recusar a
violência", aos patrões, não "tratar o operário como um escravo", respeitando nele a "di
gnidade da pessoa" (dignitatem personae), "dar a cada um o salário que lhe
é devido". O Estado é fundado para intervir em nome da sua missão, que é a de "proteger
a comunidade e as suas partes". O seu poder policial face aos abusos e o
cuidado do bem comum legitimam a sua intervenção, mas não a tese, tão cara a certos católi
cos sociais, da função social da propriedade.
335

Os limites da intervenção do Estado estão claramente marcados: "nada empreender além do


que for necessário, para reprimir os abusos e afastar os perigos".
Os exemplos citados que concernem aos horários e às condições do trabalho mostram que Leão
XIII não se afasta muito do liberalismo temperado da escola de Angers.
O salário "não deve ser insuficiente para fazer subsistir o operário sóbrio e honesto".
Mas o recurso à intervenção do Estado não deveria ser prioritário, para que
não fosse importuno: "Perante a variedade das circunstâncias dos tempos e dos lugare
s, será preferível que toda a solução seja reservada às corporações ou sindicatos."
Aos olhos de Leão XIII, face ao risco de estatismo que conduziria ao socialismo, i
mpõe-se o regresso aos "corpos intermédios".
Neste ponto, os católicos da escola de Liège e os da escola de Angers estão de acordo.
A solução da questão social reside no encontro do trabalho e do capital. As
corporações, cuja "benfazeja influência" no passado a encíclica recorda, permitirão ultrap
assar os conflitos. Mas terão de adaptar-se às "novas condições". Leão
XIII alegra-se por ver "que se formam por toda a parte sociedades do género, tanto
compostas unicamente por operários, como mistas, reunindo simultaneamente operários
e patrões". A primeira fórmula, decisiva, foi acrescentada ao primeiro projecto pelo
próprio papa, instigado pelo cardeal Gibbons. Compete aos operários cristãos
"organizarem-se a si mesmos", uma fórmula que convida a criar sindicatos confessio
nais, já que as associações operárias eram, comummente, "hostis ao nome cristão".
O papa não retoma a idéia de corporação obrigatória elaborada no seio da União de Friburgo.
O considerável eco da encíclica, mesmo fora do mundo católico, tem sido esquecido às vez
es, pela historiografia. Os comentadores daquele tempo observam que Leão
XIII, ao aproximar-se do povo e da democracia, rompe com as forças conservadoras e
volta-se para as massas, para reencontrar a influência perdida. Leão XIII retomou
a crítica do liberalismo e da economia liberal tão cara aos intransigentes; mas, pel
a primeira vez, Roma consagra uma reflexão de conjunto à "questão social" que
já não é abordada unicamente mediante condenações morais, pois estabelecem-se orientações.
Texto de compromisso, a encíclica deixa muitas questões abertas, onde se percebem as
linhas de fractura que se cavam entre católicos sociais a partir de 1891. Mas
ainda continuam vivas as questões sobre o salário familiar, o salário mínimo, a amplitud
e da intervenção do Estado, o sindicalismo, o capitalismo e as controvérsias
que levam a autoridade romana a novas intervenções; desde então, ela arbitra, recusa e
aprofunda. Segundo a fórmula do historiador belga Roger Aubert, "está colocado
o primeiro marco oficial do catolicismo social", como também está doravante marcada
a legitimidade de uma doutrina social da Igreja católica, reafirmada até aos
nossos dias.
Jean-Marie Mayeur
336

O cristianismo e as ideologias do século XX

O cristianismo recusa-se a ser uma ideologia, embora se tenha inspirado em ideol


ogias ou as tenha suscitado. Mas não pode ignorá-las, nem elas o deixariam indiferen
te.
Também está em competição com elas: ele propõe uma explicação do destino humano e, da leitura
do Evangelho, deduz uma antropologia, saberes que partilha com as ideologias
e que o opõem a elas. Também as suas relações com elas são, o mais freqüentemente, conflituo
sas. Isto é particularmente verdadeiro no século XX, que foi por excelência
o século das ideologias, o século em que elas exerceram um fascínio, conquistaram o po
der e inspiraram regimes. O choque era tanto mais imparável quanto estes sistemas
de pensamento pretendiam reinar sem partilha nos espíritos: as ideologias não deixav
am espaço à liberdade de consciência e aspiravam a substituir o cristianismo
por si mesmas. As suas ambições obrigaram as Igrejas a definir-se em relação a elas e a
precisar os pontos sobre que havia incompatibilidade. O surgimento destas
religiões seculares também precipitou a elaboração, pelo magistério espiritual, de um ensi
no sobre todos os aspectos da vida em sociedade cuja amplitude e coerência,
por vezes, deram a impressão de constituir uma contra-ideologia.
Embora a concorrência e a ameaça das ideologias tenham afectado todas as confissões cr
istãs, nem todas reagiram da mesma maneira. Algumas sentiram afinidade com
uma ou outra ideologia; assim, as Igrejas da Reforma, que tinham reivindicado o
direito ao livre exame, identificaram-se com o espírito do liberalismo. Além disso,
nem todas elas tinham a mesma idéia da relação entre a fé pessoal e o compromisso com a
sociedade. De todas as expressões do cristianismo, foi manifestamente a católica
a que menos aceitou coabitar com filósofos estranhos, tanto mais que ela dispunha,
com a instituição pontifícia, de um magistério cuja função principal era definir
orientações e denunciar o que é errado em relação ao "depósito da fé".
337
No início do século XX, a mais antiga das ideologias, o liberalismo, ainda é o princip
al adversário filosófico do catolicismo. Embora as Igrejas da Reforma não tenham
as mesmas razões para o considerarem inimigo, a Igreja de Roma de modo nenhum desa
rmou, continuando a ver nele a fonte de todos os erros modernos, a mãe de todas
as heresias. Considera-o responsável não só pela descristianização, mas também pelos males q
ue afligem a sociedade. Censura-lhe essencialmente o racionalismo, que
opõe o esforço do espírito crítico ao ensino dogmático, e o individualismo, que eleva a re
gra a vontade do indivíduo. Esta denúncia do liberalismo permanecerá durante
muito tempo como referência para a apreciação dos outros sistemas e explica certas sim
patias por ideólogos que exaltavam a autoridade ou a submissão do indivíduo
às exigências colectivas; mas também foi responsável por complacências prolongadas para co
m os regimes que se definiam por oposição ao liberalismo.
Entretanto, mesmo no seio do catolicismo, havia espíritos que pensavam que o comba
te frontal entre catolicismo e liberalismo não procedia de uma incompatibilidade
fundamental, mas era conseqüência de um mal-entendido circunstancial e, por isso, em
penhavam-se em defender que a liberdade não podia ser contrária ao cristianismo,
que a religião não podia sofrer com a liberdade religiosa - como prova o exemplo dos
Estados Unidos, em que esta tinha favorecido o desenvolvimento do catolicismo.
A história veio dar-lhes razão, com algum atraso: a experiência dos regimes totalitários
, que se inspiraram em ideologias autoritárias, fez com que o magistério
católico tomasse consciência de que havia adversários mais perniciosos ao homem e à fé do
que o liberalismo e permitiu que este descobrisse o preço da liberdade
de consciência, à qual o Vaticano II prestou homenagem. Mas nem por isso a Igreja de
Roma aceitou as conseqüências do liberalismo; realçou especialmente as suas
reservas quanto à sua aplicação à economia: não se trata de deixar correr livremente os me
canismos do mercado nem de desenvolver os efeitos das relações de força.
Depois de ter preconizado durante algum tempo uma organização corporativa, o ensino
social da Igreja pronunciou-se a favor de uma regulação pelo direito.
Por isso, a Igreja católica não manifestou simpatia pelas várias formas de ideologia s
ocialista. A sua antropologia faz da propriedade privada, adquirida pelo trabalh
o
ou herdada da família, um prolongamento da pessoa, cuja independência ela preserva.
O diferendo é mais de ordem filosófica do que política, em particular com o marxismo,
cujos postulados são assumidamente materialistas e que faz profissão de ateísmo, porqu
e - afirma esta ideologia - a religião é factor e fruto da alienação. A política
anti-religiosa dos regimes comunistas, que traduzia a sua referência marxista, con
firmou as reservas da Igreja católica. Em 1937, o papa Pio XI condenou o comunismo
como "intrinsecamente perverso" e a Santa Sé sempre desaprovou toda a tentativa de
aproximação entre cristianismo e
338

comunismo, mesmo que minorias de padres e de militantes leigos tenham crido ser
possível discernir no programa comunista ressonâncias da utopia cristã (solidariedade
com os mais pobres, exigência de justiça, aspiração a viver a fraternidade), e se tenham
aplicado a dissociar o projecto de sociedade que o animava de uma filosofia
anticristã.
Talvez as Igrejas cristãs tenham demorado tempo demais a reconhecer a perversidade
das ideologias inspiradoras dos regimes ditos fascistas, a avisar os seus fiéis
contra a sua sedução e a proclamar a sua incompatibilidade com a fé cristã, como o tinha
m feito com o liberalismo e as escolas socialistas. É que estas ideologias
estavam menos fortemente constituídas e não tinham uma coerência comparável às ideologias
mais antigas e, portanto, não eram abrangidas pelo mesmo julgamento doutrinal.
As autoridades religiosas também foram tributárias das suas tradições teológicas, que prec
onizavam o respeito pelo poder estabelecido: procuraram instaurar com estes
governos relações de direito, até que se convenceram de que os seus interlocutores não r
espeitavam a palavra dada. A experiência do fascismo italiano abriu os olhos
para o perigo da estatolatria. Por isso, Pio XI condenava o comunismo e, ao mesm
o tempo, publicava uma encíclica que denunciava o racismo e o culto da força inerent
es
ao nacional-socialismo.
Estas experiências e as reflexões que suscitaram explicam que hoje as expressões autor
izadas e organizadas do cristianismo - as Igrejas e os seus responsáveis -
se inclinem a ver na democracia o modo mais satisfatório de organização da sociedade:
respeita o direito, a que a Igreja católica, herdeira de Roma, sempre dedicou
uma grande estima. Aquela aceita sem reservas a herança das liberdades públicas, cuj
o preço a experiência dos regimes seguidores de ideologias contrárias lhe fez
descobrir. Depois do segundo Concílio do Vaticano, com os pontificados de João XXIII
, Paulo VI e João Paulo II, que se bateram pela liberdade religiosa, fechou-se
a fractura histórica entre o cristianismo e a liberdade. A Igreja católica, como tal
e pela acção dos seus, tomou parte, por vezes decisiva, na queda dos regimes
fundados sobre ideologias opostas. O cristianismo - dizíamos ao começar - não é uma ideo
logia: adverte os espíritos relativamente a elas. Se, por um lado, reconhece
a necessidade de uma visão de conjunto para orientar as opções políticas e instrui pela
experiência do século tirando disso ensinamentos, por outro avisa o espírito
dos perigos do fascínio de sistemas de pensamento contrários à liberdade da consciência
e da fé cristã.
René Rémond
339

O Concílio Vaticano II (1962-1965)

O segundo Concílio do Vaticano, vigésimo primeiro concílio ecuménico, decorreu na basílica


de São Pedro, em Roma, de 11 de Outubro de 1962 a 8 de Dezembro de 1965.
Representa uma seqüência tardia do Concílio Vaticano I, reunido na mesma praça de 8 de D
ezembro de 1860 a 20 de Outubro de 1870 e suspenso sine die por causa da
tomada de Roma, capital dos Estados pontifícios, pela jovem monarquia italiana, a
20 de Setembro de 1870. O Vaticano II, à maneira do concílio anterior, é chamado
ecuménico na medida em que reuniu, por convocação expressa de João XXIII (1881-1963, pap
a desde 28 de Outubro de 1958), a totalidade dos arcebispos, bispos e superiores
religiosos do mundo inteiro, enquanto sucessores dos Apóstolos, dispondo da capaci
dade de discutir as matérias de Igreja relativas à fé e aos costumes. Estes Padres
conciliares constituíram uma Assembleia deliberativa de perto de duas mil e quinhe
ntas pessoas. Os episcopados dos países de Leste receberam autorização para se
deslocarem a Roma, excepto os da Hungria e o arcebispo de Zagrebe. Foi necessário
juntar cerca de duzentos peritos com voto consultivo e alguns observadores leigo
s,
entre os quais duas mulheres.
Depois da Primeira Guerra Mundial, a Santa Sé, a única em condições de convocar um Concíli
o, percebeu que a Igreja católica estava confrontada com uma mudança radical:
perdia os meios de chamar o mundo à conversão; o mundo pedia-lhe que se adaptasse a
ele. Projectos de concílio tinham sido examinados por Pio XI em Dezembro de 1922
e Pio XII em 1948. O peso da empresa tinha dissuadido os predecessores de João XXI
II, cuja iniciativa [de convocar um Concílio], três meses depois de eleito papa,
não teve nada que ver com estas tentativas. Ele próprio sublinhou que era uma decisão
muito pessoal, para a apresentar melhor como o efeito da divina Providência.
João XXIII nunca pensara que o concílio desejado seria tão longo e difícil. Tinha imagin
ado uma reunião de alguns meses consecutivos, menos de um ano, adequada a
um aggiornamento da Igreja,
340

quer dizer, a uma actualização do seu discurso e da sua prática face ao mundo moderno.
O termo "reforma" foi posto de lado, para evitar toda a confusão com as Igrejas
reformadas do século XVI.
A reunião plenária do Vaticano II foi precedida de uma fase chamada antepreparatória (
18 de Junho de 1959 a 30 de Maio de 1960), durante a qual os futuros Padres
conciliares foram encarregados de reunir à sua volta, e nomeadamente junto dos lei
gos e dos movimentos de acção católica, os desejos de uns e de outros para a elaboração
de um programa conciliar Chegou mesmo a falar-se no Vaticano de "consulta plebis
citária". A expressão destes desejos (vota) versou principalmente sobre a recusa
de qualquer condenação e o pedido de uma abertura mais pastoral da Igreja, de uma me
lhor definição do ministério episcopal, deixado em suspenso aquando do Concílio
Vaticano I e sobrecarregado com o voto da infalibilidade pontifícia e de uma tomad
a de consciência do lugar dos leigos na Igreja. Mas quase não se mencionou a aproxim
ação
das Igrejas católica, protestante e ortodoxa. Este material muito abundante, diver
so, que oferecia uma imagem muito clara da Igreja católica, foi objecto de uma
classificação em grandes temas por comissões pré-conciliares que fixaram o programa do V
aticano II sobre a discussão de setenta e dois temas. Um regulamento conciliar
(6 de Outubro de 1962) estabeleceu que os esquemas seriam discutidos por capítulo
e dariam lugar a votos parciais para o sim (placet), para o não (non placet) ou
emenda (placet juxta modum). Os textos adoptados seriam promulgados pelo soberan
o pontífice em sessão solene.
A abertura solene do Vaticano II, a 11 de Outubro de 1962, foi transmitida pela
Eurovisão. O acontecimento foi tanto mais notável quanto o mundo atravessava um gran
de
período de tensões devido ao confronto entre os Estados Unidos e a URSS, a propósito d
e Cuba. Muito rapidamente percebeu-se que o concílio devia enfrentar duas dificuld
ades:
o lugar ocupado pela cúria romana no desenrolar do Concílio, demasiado importante de
sde o arranque dos trabalhos, e o peso da opinião pública, alimentada pelos media
do mundo inteiro, cada vez mais atentos e críticos. João XXIII teve de decidir organ
izar em sessões anuais os trabalhos de um concílio que foi aberto sob o signo
de um conflito com as repartições romanas, desde 13 de Outubro, a propósito das modali
dades de eleição das comissões conciliares. Simultaneamente, apareceram uma
maioria conciliar dita progressista, quer dizer, que desejava fazer do Vaticano
II uma verdadeira assembleia deliberativa em consonância com o soberano pontífice,
e uma minoria conservadora e reaccionária, essencialmente curialista, que consider
ava o concílio um entrave à autoridade do papa e de Roma. A grandíssima habilidade
de João XXIII e o imenso respeito que ele inspirava salvaram o Concílio, que se sepa
rou no dia 8 de Dezembro de 1962 num clima de incerteza. Criaram-se comissões
mistas que se reuniam entre as sessões, nomeadamente no domínio do ecumenismo. João XX
III morreu a 3 de Junho de 1963. O concílio foi suspenso, como previa o direito
341

canónico. O cardeal arcebispo de Milão, Giovanni Battista Montini, foi rapidamente e


leito. Tomou o nome de Paulo VI, recordando aquele grande apóstolo conversor
dos pagãos. Convocou o concílio para uma segunda sessão, a 29 de Setembro de 1963. O n
ovo papa assumiu como missão levar o concílio a bom termo sobre alguns pontos
fundamentais de um programa resumido: o lugar da revelação; a definição da natureza íntima
da Igreja; o ministério episcopal na sua função de subsidiariedade no
seio da Igreja ensinante; a liturgia como expressão viva da fé; o papel dos leigos;
as relações com as Igrejas cristãs e com o judaísmo; a missão da Igreja em relação
às outras culturas; as relações entre a Igreja e o mundo moderno.
A segunda sessão foi a mais difícil de toda a história do Vaticano II. A questão da libe
rdade religiosa (a liberdade de crer e de não crer) assumiu um relevo que
não se esperava e foi então que apareceram as raízes do futuro cisma dos partidários de
Mons. Lefebvre. Paulo VI mostrava autoridade e também muitas hesitações.
Vinha à superfície uma certa memória do conciliarismo - o governo da Igreja por uma as
sembleia conciliar, uma espécie de parlamentarismo -, relançada pelos media,
face a um papa que não pretendia contentar-se com ser o primeiro entre iguais. As
viagens efectuadas pelo papa conferiam à Santa Sé um renome internacional que punha
o concílio numa situação falsa.
O concílio encontrou um ritmo mais tranqüilo na terceira sessão, durante a qual foram
votados textos importantes, em particular, a Constituição dogmática sobre a
Igreja e a Constituição sobre o ecumenismo. Mas Paulo VI anunciou que a sessão seguint
e seria a última. Desenrolou-se de 14 de Setembro a 8 de Dezembro de 1965 e
foi decisiva: votaram-se sete constituições ou declarações, num conjunto de dezasseis do
cumentos conciliares. No dia 7 de Dezembro, foi a vez da esperadíssima Constituição
Gaudium et spes, aliás, A Igreja no mundo deste tempo, que foi um dos textos mais
ambiciosos do programa e a propósito do qual se produziram fortes confrontos no
seio do Concílio, assim como entre o papa e o próprio Concílio. A opinião pública tinha ba
seado na qualificação "pastoral" dada ao concílio a esperança da recuperação
de uma maior liberdade em matéria de moral privada. Esta sentia-se inspirada pelo
individualismo e pela estética da personalidade. Então, constata com um espanto
para o qual os Padres conciliares a tinham preparado pouco, que o concílio não somen
te não se tinha pronunciado sobre as questões de costumes, mas que estes assuntos
- essencialmente a questão do casamento e da regulação dos nascimentos - estavam reser
vados por Paulo VI à sua única jurisdição. Abriu-se uma grave crise na Igreja
na seqüência da publicação pelo papa, no dia 25 de Julho de 1968, da encíclica Humanae vit
ae sobre o casamento e o dom da vida. Mas a obra do Vaticano II permanece
uma referência quanto à vontade da Igreja de se fazer compreender pelo mundo moderno
e vice-versa.
Philippe Levillain
342
O catolicismo perante a limitação dos nascimentos

A sexualidade é um universo de que os teólogos e os confessores falam, mas de ouvido


, como antropólogos no gabinete a fazer a síntese dos relatos dos viajantes.
Os clérigos evocam um mundo semeado de escolhos, perigosos, mortal para a salvação por
que neste domínio a "matéria é sempre grave". A relação do catolicismo com
a sexualidade estruturou-se em redor de duas instituições: o casamento, o único lugar
autorizado do seu exercício, e o celibato consagrado, de que fazem profissão,
de direito (religioso) ou de facto (clérigos), os que têm a legitimidade para falar
dele. O controlo da sexualidade toca em dois registos: o natural e o social.
É natural a união potencialmente fecunda entre um homem e uma mulher. Portanto, não o
são a prática solitária (masturbação), a escolha de outros parceiros (homossexualidade,
bestialidade) ou de maneiras indevidas entre homem e mulher (felação, relação anal). Fun
da-se socialmente no casamento indissolúvel, sacramento para a Igreja; por
isso, nesta segunda perspectiva, são inaceitáveis a fornicação, o amor livre, o adultério,
a relação com uma pessoa consagrada.
Para compreender a mudança capital neste domínio, situemo-nos no tempo da Restauração, e
m 1822. O padre Bouvier, teólogo no seminário de Le Mans, consulta a Sagrada
Penitenciaria, instância romana habilitada a dar esclarecimentos em matéria de confi
ssão, para conhecer a atitude a adoptar com a mulher de um marido onanista. Em
1827, publicou um manual para uso dos seminaristas - que se tornou um (relativo)
best-seller - sobre problemas de sexualidade e inseriu nele um esclarecimento s
obre
"o pecado de Onan". Para compreender a novidade do que então estava em jogo, é preci
so ter em conta quatro elementos. Em primeiro lugar, uma tradição, que remonta
a Agostinho, de pôr sob o padroado de Onan (Gn 38,9) a prática de retirar, de interr
omper, ou coitus interruptus. Em segundo lugar, uma mutação que se opera na segunda
metade do século XVIII e que consiste em centrar-se no onanismo juvenil,
343
qualificativo que se dá à masturbação, considerada mortal para a própria vida do jovem. Em
terceiro lugar, a revolução coperniciana operada por Malthus, quando afirma
que o mundo vindouro ficará demasiado cheio de homens e convidando cada casal a "l
imitar os nascimentos" em função das suas capacidades de educar os seus filhos.
Finalmente, a limitação dos nascimentos, que começou em França na segunda metade do século
XVIII: a Revolução Francesa acelerou a sua propagação, mas retardou a
sua verificação. Será preciso esperar pelos anos 1820 para que os confessores francese
s descubram o crime de Onan.
Os responsáveis religiosos tomam rapidamente consciência de uma urgência especial a qu
e é preciso responder porque o novo mal atinge o casamento, justamente no lugar
em que o uso da sexualidade é legítimo. Será preciso restringir o seu exercício, imiscui
ndo-se nos segredos do leito conjugal? Ou, se se punir, dever-se-á alinhar
pelo rigorismo ambiente, segundo o qual a esposa deve preferir a morte ao acto c
ontraceptivo do marido? Ora, na sociedade fragilizada pela Revolução, a mulher const
itui
o único elo que a Igreja mantém com a família por, freqüentemente, os homens já não se confe
ssarem ou calarem a sua prática contraceptiva. Bouvier, com o apoio da
Sagrada Penitenciaria, propõe uma solução de compromisso. Na relação onanista, a mulher so
fre o gesto contraceptivo do marido: é obrigada e, portanto, não culpada.
Bouvier recorre à tradição casuística para avalizar as "boas razões" da esposa em particip
ar no acto mau do seu cônjuge. Todos os teólogos e os confessores adoptam
esta posição que, pelo menos, permite "salvar a mulher", apesar de condenar o marido
, as mais das vezes por contumácia.
Em 1842, Bouvier, então já bispo de Le Mans, mais seguro de si, mais a par da prática
das famílias, confrontado, como a Igreja de França, à reconquista dos homens,
propõe que se opere uma mudança profunda de perspectiva em matéria de apreciação da limitação
dos nascimentos. O casal, confia ele à Sagrada Penitenciaria, seu fiel
interlocutor romano, é um agente moral que distingue o bem do mal (aborto, adultério
). Quer limitar o tamanho da sua família por razões que lhe parecem boas, continuand
o
a ter relações sexuais. Por isso, o meio que usa não é falta, a seus olhos. Bouvier acei
ta levar em conta esta perspectiva e pede a desculpabilização da prática
contraceptiva. O seu interlocutor romano evita a questão de fundo, mas aceita as s
uas soluções práticas. Apoiando-se em Santo Afonso de Ligório, que acaba de ser
canonizado, a Sagrada Penitenciaria aceita o princípio teórico e fixa uma regra prátic
a. Bouvier explicita um e outra. Pode-se, esclarece ele, considerar que os
casais que praticam este tipo de contracepção estão de boa-fé quando obedecem à sua consciên
cia, mesmo que ela seja errónea; conseqüentemente, não devem ser interrogados
sobre isso na confissão. Apesar das opiniões partilhadas por clérigos sobre este novo
rumo, os confessores em França, pelo menos até ao princípio do século XX, senão
até mais tarde, evitarão maioritariamente interrogar em confissão os homens e as mulhe
res casados.
344

Mas, no decurso dos primeiros anos do decénio de 1850, a situação evoluiu bruscamente.
Em 1849, Bouvier teoriza a boa-fé dos casais e, apoiando-se nos progressos
da exegese, põe discretamente em causa a relação entre a condenação bíblica de Onan e a cont
racepção. Mas dá-se uma alteração do contexto romano: a eclesiologia
galicana, a seguida por Bouvier, é posta no índice, e a liturgia romana é brutalmente
imposta. Em 1851, o Santo Ofício, pela primeira vez consultado, condena o crime
de Onan, pregando uma partida à gestão acomodatícia das práticas contraceptivas que esta
va então em vigor. Ao mesmo tempo, apareciam duas "novidades": a borracha
dá alguma aparência de eficácia ao preservativo; a recente descoberta (1842-1845) do c
iclo feminino revela a realidade de infecundidade periódica. Em 1853, a Sagrada
Penitenciaria, consultada sobre esta novidade científica, dá força a uma via benigna a
té então seguida, admitindo as relações infecundas do casal; ao contrário,
o Santo Ofício, interrogado sobre o preservativo, condena o seu uso. Opera-se uma
divisão no uso dos dois métodos. Na prática, são ambos ineficazes; e, durante muito
tempo, a prática contraceptiva que funciona é a de retirar.
A partir de 1870, as coisas alteram-se. Em França, a contracepção torna-se um problema
político e, portanto, objecto de debate público. A diminuição da natalidade
põe a pátria em perigo perante o prolífico vizinho alemão. Agora, os campos defrontam-se
: neomalthusianos e neopopulacionistas. Teólogos e confessores tornam-se
natalistas. Ao mesmo tempo, os bispos apercebem-se de que as famílias menos numero
sas já não fornecem padres nem religiosas: a limitação dos nascimentos torna-se
um problema vital para a Igreja, que vive do "dízimo demográfico". Roma começa a suspe
itar da boa-fé dos casais. Por volta dos anos de 1880, a Sagrada Penitenciaria
alinha com o Santo Ofício. No início do século XX, a contracepção torna-se uma prática europ
eia; os episcopados intervêm no debate: a Bélgica em 1909, a Alemanha
em 1913, a França em 1919, os Países Baixos em 1922. Em 1916, os pareceres da Sagrad
a Penitenciaria regressam ao rigorismo que imperava em França no início do século
XIX.
Em 1930, Pio IX, na sua encíclica Casti connubii, coloca a limitação dos nascimentos n
o centro dos males que atingem a família. É a primeira vez que um papa intervém
no assunto. A sua intransigência na matéria pretende demarcar-se da Igreja anglicana
, que acaba de adoptar em Lambeth uma posição pastoral compreensiva; ele visa
sobretudo o clero, obrigado a interrogar os casais na confissão. O seu integralism
o choca com uma vontade de reconquista da totalidade das práticas humanas, mas
as famílias que levam a sério as suas exigências confessam o seu mal-estar em testemun
hos pungentes, recentemente publicados (Les enfants du bon Dieu).
A salvação viria de Knaus e de Ogino, que, finalmente, conseguiram, nos anos 1930, d
eterminar o período infecundo da mulher? Pio XII, aberto à modernidade médica,
assim crê e manda que se diga. A contracepção, mais seguramente, entrará numa nova era c
om Pincus e a pílula contraceptiva.
345

O concílio Vaticano II entende que tem uma palavra a dizer. Paulo VI retira-lha e
entrega-a a uma comissão que se declara maioritariamente favorável à contracepção.
Hesitante, o papa alia-se ao parecer dos teólogos da minoria, que pede que se mant
enha a linha de Pio IX. E surgiu a Humanae vitae (1968). Impossível, dizia Paulo
VI, reconhecer o casal como um agente moral que seja o juiz em última instância dos
meios a usar para limitar os nascimentos. Houve teólogos que se opuseram à posição
romana e os bispos franceses aceitaram a partilha das tarefas: Roma condenava o
princípio, o episcopado geria a pastoral.
Claude Langlois
346

III

O CRISTIANISMO À DIMENSÃO DO PLANETA

Regresso à história longa do cristianismo oriental na época otomana (séculos XV-XIX)

A organização das Igrejas submetidas


A característica principal da história do cristianismo oriental, durante todo este l
ongo período, é a submissão ao poder muçulmano, que determina todos os aspectos
da vida das Igrejas no Oriente. É verdade que a quase totalidade dos territórios cri
stãos da Ásia estava sujeita ao islão desde o primeiro século das conquistas
arábico-muçulmanas (632-717). Mas, durante esta segunda fase, a denominação turca muçulman
a estende-se igualmente sobre os Balcãs, ao sul do Danúbio e pelas ilhas
do Mediterrâneo Oriental. Pouco depois da queda de Constantinopla (1453), já não resta
nenhum poder cristão no Oriente, excepto a longínqua e nórdica Rússia ortodoxa.
Os cristãos - e as outras "gentes do Livro" não muçulmanas - vivem, doravante sob o es
tatuto de dhimmis, de protegidos. Trata-se de um estatuto conhecido desde o
reinado dos oméiadas (661-750), mas que, sob os otomanos, adquire um significado b
astante mais existencial, porque deixara de haver o poder político cristão a que
os fiéis orientais poderiam referir-se. Por outro lado, o estatuto dos dhimmis con
stitui a base sobre que se constituem, não só a organização das comunidades não-muçulmanas
submetidas, mas também as relações entre o poder político otomano e os seus súbditos não-muçu
manos, assim como toda a vida económica e social do Império.
Tal como foi estabelecido e aplicado, este estatuto decorre dos privilégios que Me
hmet II tinha outorgado ao primeiro patriarca de Constantinopla, Gennadios II Sc
holarios
(ca. 1400-1472), aquando da sua investidura (4 de Fevereiro de 1454). Conforme c
om a vontade do Conquistador, o bispo da sua nova capital tornou-se o chefe de t
odos
os cristãos do
347

Império (roum millet bachi, chefe da nação dos cristãos, etnarca); depois, estes mesmos
privilégios são concedidos aos chefes religiosos das outras comunidades monoteístas
do Império (judaica, arménia, copta, etc), à excepção dos cristãos católicos (romanos), cujos
interesses junto da Porta Sublime serão garantidos pelas capitulações
e defendidos pelas embaixadas dos países ocidentais. O estatuto de dhimmi deixa ce
rtamente tanto aos súbditos cristãos do sultão como a todos os não-muçulmanos uma
certa liberdade para organizarem a sua vida social, civil e religiosa, praticare
m o seu culto e poderem ter a sua formação intelectual e espiritual. Mas esta liberd
ade
também tem um número importante de restrições e de contrapartidas dolorosas: um imposto
de capitação (djizya), outro sobre as receitas anuais (kharadj); as corveias
para os trabalhos de utilidade pública (angariai); a "arrecadação" [antecipação de imposto
] das crianças ou imposto de sangue (devchirmé, pêdomazoma); a posição
de inferioridade em relação aos muçulmanos perante os tribunais muçulmanos; proibição de con
struir igrejas novas ou até de reparar as que estavam à sua disposição,
depois da confiscação e da transformação em mesquitas dos lugares de culto mais represen
tativos; proibição de exteriorizar a sua fé com procissões, toque de sinos,
cruzes ou outros sinais religiosos externos; proibição absoluta de qualquer opinião de
selegante em relação ao islão e ao seu profeta; proibição de todo o proselitismo
e de conversão de um muçulmano a outra religião; proibição de o não-muçulmano se casar com um
mulher muçulmana, etc.
Por isso, os súbditos não-muçulmanos do Império são levados a organizar a sua vida social,
intelectual, cultural e espiritual em ambiente fechado, no seio das suas
próprias comunidades. Só o lugar de reunião autorizado, o lugar do culto, se torna cen
tro da vida da comunidade. À cabeça encontra-se o chefe religioso, que é o
seu único responsável junto da Porta Sublime, o único responsável pela conduta dos seus
membros diante do poder político otomano. No caso que aqui mais nos interessa,
o patriarca de Constantinopla, secundado pelo Grande Sínodo e pelos vários secretari
ados, está encarregado da colecta dos impostos por conta da sua comunidade, da
manutenção da ordem, da obediência e da execução de todas as ordens emanadas pelas autorid
ades otomanas. Em contrapartida, o millet bachi tem a possibilidade de
organizar e de fazer viver a sua comunidade, os cristãos ortodoxos do Império, segun
do o direito canónico da Igreja ortodoxa e os usos e costumes da sociedade bizanti
na;
de prover à vida cultural e espiritual e da formação intelectual dos fiéis; de preservar
os cristãos das islamizações maciças e de protegê-los da arbitrariedade
das autoridades turcas; de defender a Ortodoxia e os ortodoxos da propaganda e d
o proselitismo exercidos pelos missionários católicos romanos e, mais tarde, protest
antes.
Portanto, a Igreja preserva a sua organização em patriarcados, metrópoles, arcebispado
s, bispados, paróquias, etc, assim como a dos fiéis em comunas e em corporações
de ofícios; mas a eleição
348

dos patriarcas, dos metropolitas e dos outros altos dignitários eclesiásticos pelo S
anto Sínodo está sujeita à publicação de um bérat, um decreto de nomeação que
emana do sultão. Ora, muito em breve, o bérat torna-se um instrumento terrível nas mãos
de uma administração otomana arbitrária, ocasião de lances custosos para
as finanças das Igrejas e penosas para a sua vida. Limitando-nos à função exclusiva do p
atriarca de Constantinopla, notemos que, ao longo do período de 1453-1821,
o trono patriarcal mudou cento e trinta vezes de titular, o que dá uma média de meno
s de três anos para cada investidura; setenta e sete patriarcas ocuparam o trono
ecuménico, o que significa que cada um deles foi destituído pelo menos uma vez. Os p
atriarcas falecidos por morte natural, em exercício, são muito pouco numerosos,
tendo a maior parte deles perecido no exílio ou na prisão. Dos seis patriarcas que t
iveram morte violenta, uns foram enforcados, outros estrangulados e deitados
ao mar.
A concentração extrema de todos os poderes na capital acabou por dar às instâncias ecles
iásticas de Constantinopla uma importância que elas nunca tinham conhecido
na época bizantina. A instância suprema da Igreja ortodoxa é o Grande Sínodo, composto p
or prelados, clero, dignitários eclesiásticos e leigos notáveis; elege os
patriarcas e os metropolitas dos cinco patriarcados, zela pela administração central
e diocesana, trata da criação e do bom funcionamento das escolas, pronuncia-se
sobre a rectidão da fé e das práticas culturais, julga os delitos consoante as suas co
mpetências, decreta a independência de uma determinada Igreja ou a autocefalia
de outra, decide a atitude a tomar face à Igreja latina ou às Igrejas saídas da Reform
a. Também está encarregado da repartição equitativa entre as regiões e os corpos
de ofícios dos impostos devidos ao sultão, assim como da sua cobrança. Em relação ao patri
arca de Constantinopla, a sua ecumenicidade nunca foi tão ampla, tão importante
e tão determinante. Assim, por exemplo, o Grande Sínodo de Constantinopla declara (1
484) inválida a união das Igrejas, decidida no Concílio de Ferrara (1438-1439);
propõe a abertura de escolas em cada diocese do Império (1593). Por seu lado, o patr
iarca de Constantinopla Jeremias II eleva a Igreja da Rússia à categoria de patriarc
ado
(1591), responde às solicitações dos teólogos protestantes de Tubinga, definindo as relações
doutrinais entre a Ortodoxia e as Igrejas saídas da Reforma (1573-1581).
Certos patriarcas de Antioquia, de Alexandria ou de Jerusalém desempenham realment
e um papel importante na Igreja, mas a título pessoal: pela sua cultura, pela sua
acção e pela força da sua personalidade. O clero secular e os monges estão isentos dos p
esados impostos que atingem os outros rayas (os súbditos não-muçulmanos),
gozam de certos privilégios e são os únicos autorizados a deslocar-se; mas são obrigados
a vestir, como sinais exteriores distintivos e bem visíveis, uma túnica
castanho-escura ou preta, uma coifa especial, a barba e a longa cabeleira do cle
ro bizantino.
349

Os mosteiros, situados geralmente nas regiões montanhosas, distantes dos centros u


rbanos e dos grandes eixos rodoviários, servem de refúgio; oferecem protecção e
reconforto espiritual a todos os fiéis aflitos ou desamparados; tornam-se, sobretu
do, centros vivos e activos da vida cultural, espiritual e intelectual da Ortodo
xia.
Os mosteiros do Monte Atos, a Montanha Santa, são certamente os mais conhecidos; n
o entanto, existem mosteiros importantes e muito activos em todas as regiões do
Império, não só no mundo de cultura grega, mas também nos Balcãs de cultura eslava, e no s
eio das outras comunidades cristãs, arménia, nestoriana, copta, maronita,
etc. O seu papel será notabilíssimo e salutar para o fortalecimento dos fiéis e a salv
aguarda da fé.

Vida espiritual e consciência de pertença a uma "nação ortodoxa"

Durante toda esta longa época de sujeição, os povos cristãos conheciam condições de vida mat
erial, intelectual e moral miseráveis. Faltavam padres e, freqüentemente,
também igrejas; por isso, os fiéis ganharam o hábito de freqüentar as capelas rupestres
e os mosteiros, porque sentiam-se aí cada vez mais seguros. Qualquer festa
importante era motivo para fugas para os campos despovoados e sítios escarpados, o
nde se fazia mais livremente a celebração dos ofícios numa atmosfera de maior segurança
e solidariedade. Desde então, a vida religiosa reveste-se de um carácter eminentemen
te litúrgico. Os padres, pouco numerosos, são geralmente rudes e iletrados. A
instrução dos monges só raramente é superior à dos padres seculares. Mas a sua vida retira
da e o seu apego à tradição ou, até, mais às formas exteriores do que à
prática religiosa, exercem uma grande influência nos fiéis, de quem eles são os guias in
contestados. Também a vida religiosa adquire um acentuado carácter monástico,
que se pode observar continuamente durante este período e mesmo ainda hoje.
O cuidado principal de todas as Igrejas submetidas é a protecção dos seus fiéis contra a
arbitrariedade do senhor muçulmano, o alívio da sua miséria material e espiritual,
o fortalecimento da sua fé ortodoxa perante os dois grandes perigos: a conversão ao
islão e a adesão à fé católica romana (e, no século XIX, também à fé protestante).
As Igrejas submetidas têm de travar este duplo combate com armas desiguais: de um
lado, têm de enfrentar a atracção que o poder e a riqueza do senhor muçulmano exercem
nos rayas e também a proibição absoluta de entrar em polémica com a religião muçulmana; do o
utro, têm de medir-se com a superioridade intelectual incontestável dos
missionários latinos, cuja obra assenta numa formidável organização e no apoio interessa
do dos Estados ocidentais. As Igrejas orientais só têm para oferecer aos
seus fiéis a beleza dos seus ofícios litúrgicos e a sua riqueza espiritual; elas convi
dam igualmente a um apego
350

incondicional à tradição e a uma observância estrita da prática religiosa ortodoxa. Uma tr


adição e uma prática tão profundamente enraízadas na história e na cultura
de cada povo que acabam por fazer parte indissociável da sua identidade linguística,
cultural e étnica.
Por outro lado, a natureza da vida religiosa e moral encontra-se estreitamente l
igada ao nível de instrução e da vida espiritual dos rayas. Ora, durante o primeiro
século (1453-1530), a instrução é quase inexistente. Também a vida religiosa e moral ating
e um patamar crítico. Mas, em meados do século XVI, desenha-se um movimento
de renovação intelectual e religiosa cujos actores procuram já lançar as bases e definir
o conteúdo. Entretanto, um século mais tarde, o ensino altamente universitário
ministrado entre 1614 e 1640 pelo neo-aristotélico Teófilo Coridáleo (ca. 1570-1646) p
ermite um progresso considerável da instrução e uma mudança radical da sua
organização e do seu conteúdo. O sistema educativo coridaleano conhecerá o seu pleno des
envolvimento no século XVIII, nas Academias dos príncipes de Bucareste e
de Jassy; nessa altura, preparará os espíritos para a recepção das Luzes europeias.
Estas foram introduzidas no sistema educativo ortodoxo graças ao ensino (1742-1765
), principalmente na Academia do Monte Atos (1753-1757), e nas obras científicas
do monge Eugênio Vulgaris (1716-1806). Além da abertura do mundo ortodoxo às ciências e às
idéias novas da Europa das Luzes, o "século das Luzes neogregas" (1750-1821)
caracteriza-se pela multiplicação das escolas, pelo aumento considerável do número de pr
ofessores e alunos em todos os territórios ortodoxos submetidos, pela elevação
significativa do nível dos estudos e por uma sede ávida de aceder o mais rapidamente
possível a um saber até então desconhecido. É neste contexto que se deve situar
a formidável renovação espiritual conhecida geralmente pelo nome de movimento filocálico
, que, partindo do Monte Atos e da renovação espiritual grega, gozou no século
XIX de um desenvolvimento e de uma disseminação extraordinários no meio eslavo.
Os intelectuais, em geral eclesiásticos, fazem os seus estudos no Ocidente (inicia
lmente em Itália, depois um pouco por toda a parte), nas universidades europeias,
onde têm ocasião de conhecer as correntes de pensamento e as querelas religiosas da
Europa. Foi também no Ocidente que se editaram os livros (primeiro em grego,
depois em árabe, eslavónio, arménio, copta, etc.) destinados ao culto, à educação e à formaçã
electual e religiosa em geral. E, se a edição e a difusão de obras
contra o islão se mostram uma empresa perigosa, os tratados antilatinos são particul
armente numerosos. São igualmente escritas e publicadas outras obras, como as
colectâneas de sermões, de hagiografias e de histórias edificantes, os manuais de cate
cismo, as traduções em línguas vernáculas dos escritos dos doutores da Igreja
antiga.
A natureza da organização da Igreja e as condições miseráveis de existência conduzem, pouco
a pouco, ao nascimento e ao desenvolvimento
351

de uma consciência unitária de todos os povos ortodoxos submetidos. Esta coincidência


de pertencer à nação ortodoxa, desenvolvida sobretudo pelos altos prelados
e pelo ensino secundário e superior, não exclui certamente a consciência étnica que é cult
ivada no seio das comunidades, não só pelo baixo clero e pelas escolas
elementares, mas também pelos ofícios religiosos em língua vernácula - porque a fé cristã é v
vida, antes de tudo, como que enxertada na história, na língua e na
cultura de cada povo. Em nenhum outro momento da história de todos estes povos a c
onsciência étnica e a consciência religiosa, a identidade cultural e a autenticidade
da fé estiveram tão intimamente unidas, confundidas e fundidas. Mas, independentemen
te desta consciência étnica particular, o conjunto dos rayas ortodoxos tem o
sentimento de formar o povo eleito a que Deus faz sofrer todas as desgraças para o
provar e lhe testemunhar o seu amor. Estas provações são tão-somente passageiras.
Deus intervirá de novo na história para abreviar os sofrimentos dos seus fiéis servido
res e para os recompensar, quer oferecendo-lhes a vida eterna depois da Parusia
de Cristo, muito próxima, quer ajudando-os a restaurar um império ortodoxo oriental
maior, mais poderoso e mais glorioso que no passado. Esta última idéia, nascida
antes mesmo do desaparecimento do Império Bizantino, atravessa todo o período de dom
inação otomana, enriquece-se com múltiplos contributos, conhece orientações diversas
e gera uma literatura escatológica riquíssima; alimenta a resistência dos rayas ao ocu
pante, ao mesmo tempo que é alimentada pelos diversos movimentos insurreccionais
e também por uma propaganda hábil das potências cristãs, nomeadamente pela política orient
al da Rússia ortodoxa.
Durante a segunda metade do século XVIII, as duas guerras russo-turcas (1767-1792)
e os movimentos insurreccionais que as acompanham ou as seguem galvanizam os es
píritos
e amplificam as aspirações relativas à libertação do jugo otomano. Em finais deste século e
durante os primeiros decénios do século XIX, as idéias políticas das
Luzes referentes à igualdade, à identidade linguística e cultural e à independência nacion
al desfazem em pedaços a consciência ortodoxa unitária e o sonho da restauração
de um império ortodoxo oriental. Desde então, os povos sujeitos - nomeadamente os ba
lcânicos - preparam, cada um por si e para si, secreta mas activamente, a sua
libertação e a criação de um Estado nacional independente. De facto, perseguem três object
ivos: a criação de um Estado independente, de uma Igreja nacional independente
e de uma cultura nacional independente. Apesar da completa desorganização do patriar
cado e dos fanariotas perante o esboroamento da consciência ortodoxa unitária
e o abandono do sonho do império restaurado, a Igreja de cada povo põe-se ao serviço d
as lutas travadas por ele. A conquista da independência exigirá lutas encarniçadas
e sacrifícios enormes. Entre as reivindicações territoriais ambiciosas de cada povo ba
lcânico, as oposições da Turquia e os interesses das grandes potências, o caminho
será longo,
352

tortuoso e semeado de emboscadas. Com efeito, será preciso mais de um século de gest
ação dolorosa entre o rebentar da insurreição sérvia (1804) e o reconhecimento
da independência do Estado albanês (1913). O mesmo acontecerá com a independência das Ig
rejas em relação ao patriarcado ecuménico: embora tenha bastado um espaço
temporal de vinte anos entre a proclamação unilateral da autocefalia da Igreja da Gréc
ia (1833) e o seu reconhecimento pelo patriarcado (1850), a regulação da Igreja
búlgara durará um século (1860-1961). Mas, enquanto os cristãos dos Balcãs lutam pela sua
independência, nos territórios do Próximo e do Médio Oriente estabelecem-se
os mandatos francês e britânico. E, desde então, os problemas tanto políticos como relig
iosos surgem de uma maneira completamente diferente.
Astérios Argyriou
353

A acção missionária nos séculos XIX e XX

Nos séculos XIX e XX, as missões exteriores conhecem o seu segundo grande impulso, d
epois do dos séculos XVI e XVII, que permitira a cristianização das Américas
e das Filipinas, e a implantação de comunidades cristãs na Ásia ou na África Equatorial, c
riações efémeras no Japão e no Congo-Angola, e duradouras na índia e no
Vietname. Durante muito tempo consideradas como uma actividade secundária das Igre
jas, as missões são hoje objecto de uma reavaliação que realça a sua importância
decisiva, tanto para os países de partida como para os países de destino.

Uma mobilização internacional

Na Europa, a expansão missionária confirma a vitalidade do cristianismo, apesar da c


rise revolucionária. Partindo da Inglaterra protestante no fim do século XVIII,
durante o século XIX, a mobilização missionária contemporânea ganha todos os grandes países
protestantes, primeiro os da Europa do Norte, depois os Estados Unidos.
Para as Igrejas da Reforma, até então reticentes a qualquer proselitismo entre os pa
gãos, a missão exterior é uma experiência nova que contribui para a sua transformação.
No caso do catolicismo, trata-se, ao contrário, de um despertar que surpreende pel
o seu vigor. A França desempenha um papel central neste compromisso católico. Vê
florescer novas congregações religiosas que se destinam à missão (maristas, padres branc
os, missões africanas de Lião, etc.) e faz nascer poderosas associações que
apoiam o movimento (Obra da Propagação da Fé, fundada em Lião em 1822). Em 1900, mais de
um terço dos missionários masculinos e a maioria das mulheres são franceses.
Mas a internacionalização das sociedades missionárias explica a participação sempre cresce
nte no século XX da Bélgica, dos Países Baixos, da Itália, da Suíça ou
da Alemanha.
354

As missões católicas são colocadas em Roma sob a autoridade da Congregação (no sentido de
"ministério do governo pontifício") para a Propagação da Fé, em latim,
Propaganda Fide. É esta que delimita os territórios, atribuindo-os a uma congregação rel
igiosa masculina, nomeia o chefe de missão (prefeito ou vigário apostólico),
envia instruções que insistem sobre a formação rápida de um clero indígena, exige relatórios
eriódicos, decide a transformação em diocese de pleno direito. Perante
este modelo centralizado, as missões protestantes caracterizam-se por uma profusão d
e sociedades que se formam no seio das Igrejas históricas (missões anglicanas,
luteranas, metodistas, etc.) ou, pelo contrário, preconizam a superação das clivagens
eclesiásticas (Sociedade Missionária de Londres, Missão de Paris). Têm como
prioridade a formação de Igrejas locais autónomas. Mas evitam uma concorrência selvagem
no terreno, com acordos de comum acordo, e contribuem para o surgimento de
uma consciência ecuménica intraprotestante que se traduz na organização de conferências mi
ssionárias internacionais (Edimburgo, 1910).

Redes mundiais para resultados desiguais

Católicas e protestantes, as missões têm em comum o facto de funcionarem em redes mund


iais que se apoiam nos fiéis, reúnem fundos, suscitam vocações e racionalizam
investimentos. Desde muito cedo, os meios de informação mais modernos são utilizados p
ara sustentar a missão. Eles dão conta dos progressos realizados e testemunham
o bom uso dos fundos recolhidos, ao mesmo tempo que sensibilizam os leitores par
a os mundos longínquos. A imprensa missionária conta centenas de periódicos no mundo
e atinge tiragens consideráveis, antes de, por sua vez, a rádio, a imagem fixa e o c
inema contribuírem para fazer circular a informação, para manter o entusiasmo
e para obter as ajudas indispensáveis.
Os resultados obtidos em termos de conversões são desiguais, no tempo e no espaço. Dep
ois de um período de latência, que pode ser breve ou durar várias gerações,
certas populações aderem em massa ao cristianismo, que, assim, se torna a religião mai
oritária na África subsariana equatorial, oriental e austral. O Pacífico é
o outro grande espaço que se tornou maioritariamente cristão. Inversamente, a Ásia fic
a largamente impermeável à evangelização, à excepção da Coreia do Sul. Os sinais
de interesse pelo cristianismo manifestados pelas sociedades indiana, chinesa e
japonesa não desaguaram num movimento importante de conversão. O cristianismo perman
ece
ultramarino no mundo asiático, com excepção de alguns países: Filipinas (90%), Timor Les
te (95%), Coreia (25%), Vietname (9%), Indonésia (10%), Singapura (13%) e
Sri Lanka (8%).
355

Uma interface entre dois mundos

Mas um balanço fiável dá somente uma imagem parcial do papel desempenhado pelas missões
contemporâneas nos países em que se instalam. Com efeito, a sua influência
exerceu-se muito para além do círculo dos seus fiéis, nomeadamente nas regiões reticente
s à cristianização. Para muitas populações, elas são o intermediário que
introduziu no seu seio a modernidade através das escolas ou da acção sanitária e social.
Em volta das missões constrói-se um conjunto de serviços cuja eficácia é
desmul-tiplicada pelo concurso de autóctones. O primeiro círculo, cujo centro é ocupad
o pelos missionários masculinos, conta com um número importante de mulheres,
religiosas ou leigas, encarregadas de ajudar e de formar as mulheres autóctones. T
ambém comporta agentes especializados (irmãos leigos de congregações religiosas
entre os católicos), encarregados de tarefas materiais (construção dos edifícios, agricu
ltura, marcenaria, fábricas de tijolos, telhas e ladrilhos...) e do ensino.
No total, este pessoal estrangeiro atinge, sem dúvida, por alturas de 1930, uma tr
intena de milhares de pessoas, tanto entre os católicos como entre os protestantes
.
Mas a eficácia da organização missionária vem do recurso a um segundo círculo: o dos "auxi
liares indígenas", muito mais numerosos e, freqüentemente, os únicos capazes
de atingir as populações. Catequistas, chefes de aldeias ou de comunidades e profess
ores primários fornecem progressivamente os quadros locais das Igrejas. Eles
permitem o surgimento das Igrejas autóctones, cuja voz fazem ouvir nas instâncias in
ternacionais (assembleias ecuménicas protestantes, sínodos episcopais católicos).

Missão e expansão ocidental

A vitalidade missionária do cristianismo contemporâneo foi alimentada durante muito


tempo pelas Igrejas da Europa e da América do Norte, que forneceram os homens
e os meios da expansão. Num sentido, o movimento missionário é indissociável da expansão o
cidental. Além disso, denunciou-se a missão como uma forma particular do
domínio ocidental, a que ela dava legitimidade moral e boa consciência. De facto, a
missão foi muitas vezes instrumentalizada pelas nações colonizadoras e até se
colocou sob a protecção das grandes potências, para obter a liberdade religiosa e a se
gurança dos seus fiéis ou bens. Consoante os países e os períodos, estas interferências
vão dar boa vizinhança à colusão anunciada e reivindicada. Embora esta conivência tenha fa
vorecido largamente a implantação material, raramente teve os efeitos que
se lhe atribuíram em termos de adesões. Na África subsariana, a descolagem estatística o
pera-se no decénio de 50 do século XX e amplifica-se depois das independências.
Deste modo, o número dos católicos passa de dez a vinte milhões entre 1950 e 1960, e a
356

cento e seis milhões em 1995. A evolução da segunda metade do século XX realça principalme
nte um processo de apropriação das igrejas missionárias pelos fiéis, que
encontraram nela um meio de acesso à modernidade e um lugar de afirmação da sua identi
dade, inventando maneiras srcinais de viver e de pensar o cristianismo. Neste
sentido, o objectivo proposto pelas missões, que as distingue fundamentalmente do
processo colonial, isto é, a implantação das Igrejas locais, foi realmente extinto.
E conduziu a uma emancipação progressiva em relação aos missionários estrangeiros, em vez
de suprimir a dependência financeira em relação às Igrejas ocidentais.
Por uma autêntica reviravolta da situação, neste início do século XXI, as Igrejas saídas da
missão já se encontram em condições de fornecer clérigos e pastores às
Igrejas que lhes deram srcem.

Crise e mutação da missão no Ocidente

O dinamismo das Igrejas saídas da missão contrasta com a grave crise que atravessa o
movimento missionário na Europa nos anos 70. De facto, este movimento conhece
uma diminuição do recrutamento e sofre uma perda de legitimidade que, doravante, ali
menta a desconfiança relativamente a qualquer forma de domínio religioso ou cultural
.
No entanto, a crise não acabou no desaparecimento da idéia missionária, mas na sua tra
nsformação e no seu deslocamento. No seio do cristianismo, daqui em diante
a missão realça a colaboração, a interdependência e o respeito dos destinatários. A transferê
cia para o ultramar dos modelos elaborados nas antigas cristandades
recua em proveito da valorização de todas as culturas (inculturação) e da adaptação (context
ualização). O cristianismo da era pós-missionária aprende a viver a unidade
em regime de pluralismo à escala do mundo. Mas a idéia missionária, na medida em que é p
ortadora da afirmação de uma solidariedade universal entre os homens, também
se secularizou e investiu noutros domínios: nomeadamente, desempenhou um papel imp
ortante na fundação de numerosas organizações não-governamentais voltadas para
a acção humanitária e para o desenvolvimento.
Claude Prudhomme
357

O protestantismo na América do Norte

Se a América do Norte ainda continua a ser o maior pólo protestante do mundo, deve-o
à sua história. Na verdade, as colónias americanas foram srcinalmente povoadas
por dissidências religiosas protestantes que a Europa não queria. O mito da fundação de
uma América como "nova Israel", terra de esperança que acolhia o povo de
Deus saído do Egipto, é indissociável da identidade protestante americana que durante
muito tempo considerou a alteridade católica como ameaçadora. Entretanto, esta
realidade confessional é menos forte hoje do que já foi. Cerca de 60% da população total
estado-unidense ostenta hoje uma etiqueta confessional protestante, contra
40% que se reconhecem de outros credos (a começar por 26% de católicos). No Canadá, 29
,2% da população define-se hoje como protestante (recenseamento de 2001), contra
34,9% dez anos antes (recenseamento de 1991).
Actualmente, o protestantismo norte-americano é confrontado com um duplo movimento
: o da secularização, com um lento recuo dos credos religiosos (mais claro no Canadá
do que nos Estados Unidos) e o da pluralização (alargamento da diversidade confessio
nal nas religiões monoteístas). Assim, continua a haver uma força religiosa dominante
que pesa na vida social, cultural e, até, política. Esta influência tem colorações diferen
tes no Canadá e nos Estados Unidos.
Foi nos Estados Unidos que a identificação entre o protestantismo e a idéia de um novo
povo eleito foi mais longe. Isto explica-se pelo facto de, ao contrário do
futuro Canadá, povoado principalmente por anglicanos e católicos (acadianos), os fut
uros Estados Unidos terem tido no seu primeiro povoamento uma forte proporção
de puritanos, quer dizer, de protestantes em ruptura com a Igreja anglicana da mãe
-pátria. Para estes puritanos, a Europa e a Inglaterra faltaram à sua aliança com
Deus. E é a eles que incumbe a missão de restaurar o que foi falseado, constituindo
o Novo Mundo uma tabula rasa sobre a qual se pode construir o projecto divino
358
com bases bíblicas. Este excepcionalismo estado-unidense, fundado na cultura purit
ana dos primeiros colonos, articula-se, classicamente, com a temática da cidade
sobre a colina desenvolvida pelo governador John Winthrop (1588-1649), num sermão
pronunciado diante dos Pais Peregrinos (Pilgrim Fathers), aquando do seu périplo
oceânico para o Novo Mundo (1639). Afirmando que "os olhos de todos os povos" (the
eyes of all peoples) estão fixos neles, o calvinista Winthrop exorta os seus ouvi
ntes
a não decepcionarem o apelo recebido, sob pena de serem rejeitados por Deus.
Este tema querido dos primeiros puritanos de Nova Inglaterra encontra a sua font
e na Bíblia, particularmente no Evangelho segundo Mateus (5,15-16). Neste trecho
do Sermão da Montanha, discurso célebre atribuído a Jesus Cristo, o texto sublinha o t
estemunho pelo exemplo, comparando o crente (e a sociedade dos discípulos)
a uma cidade colocada sobre uma colina. Ela não poderá ficar escondida, mas deve ser
vista, para servir de exemplo ao mundo ainda nas trevas. Aplicando à letra esta
recomendação divina, quando se estabeleceram no Massachusetts, os puritanos protesta
ntes que acompanhavam Winthrop apressaram-se a construir a "cidade" utópica.
Na sua esteira, os colonos de Nova Inglaterra trabalharam para edificar a nova I
srael, terra exemplar liberta das impurezas europeias. Esta centralidade do prot
estantismo
no projecto americano srcinal não se desmentiu nos séculos seguintes. Os "despertar
es", quer dizer, os movimentos de mobilização de massas, caracterizados por conversões
individuais e criações de Igrejas novas, vão reactualizar periodicamente a temática da e
leição. Para serem fiéis ao maravilhoso desígnio divino para a América, os
cidadãos devem soldar a sua aliança com o Todo-Poderoso, Lord Almighty. Estes sonhos
estruturam-se em quatro vagas.
A primeira vaga de fundo manifesta-se durante os anos 1730-1740, classicamente c
onsiderados como o período do Grande Despertar (Great Awakening). Levado por um pr
egador
e teólogo puritano de Nova Inglaterra, Jonathan Edwards (1703-1758) e por um evang
elista metodista inglês, George Whitefield (1714-1770), prestigia a conversão,
a autoridade absoluta da Bíblia aos olhos do indivíduo e o congregacionalismo (auton
omia das assembleias locais "despertadas"), dimensões que irão constituir a ossatura
de um protestantismo que, em breve, será qualificado como evangélico (Evangelicalism
). Esta confissão traduz-se no desenvolvimento de Igrejas revivalistas (chamadas
as New Lights), povoadas de crentes prosélitos que alimentam principalmente dois c
ampos de influência protestante em pleno crescimento: o metodismo (impulsionado
por Wesley e Whitefield no interior e, depois, no exterior do anglicanismo) e o
baptismo [confissão dos protestantes baptistas] (nascido no início do século XVII).
Com o Grande Despertar, é o modelo oscilante de uma sociedade hierarquizada a part
ir de cima, cimentada por uma Igreja estabelecida, que se vê abalada de maneira
decisiva, preparando os acontecimentos que iam conduzir, nos anos 1770-1780, à ind
ependência dos Estados Unidos. Temas como a escolha pessoal, a partilha da autorid
ade
e a noção de "virtude" transitaram do campo
359

religioso para o campo político. Enquanto no Canadá ainda se está num protestantismo m
aioritariamente "estabelecido", ligado à coroa britânica, o protestantismo
evangélico estado-unidense levado pelos despertares continua a opção dissidente dos pu
ritanos. O protestantismo afirma-se como subversivo, força de independência
e de emancipação da tutela colonial.
Desde então, a figura do despertar como momento de remobilização cristã pela base conhec
erá, na história dos Estados Unidos, numerosos avatares. Um segundo Grande
Despertar, que se estendeu pelo primeiro terço do século XIX e, depois, uma terceira
vaga revivalista, em finais do mesmo século, abalam a paisagem protestante.
Actualmente, discute-se a hipótese de um quarto momento revivalista, iniciado depo
is dos anos 1960 com o evangelista Billy Graham. Uma coisa é certa: o protestantis
mo
estado-unidense conheceu, desde o século XVIII, um refortalecimento regular do pro
testantismo de tipo evangélico, fundado na conversão, na comunidade local e num
biblicismo conservador. No início do século XX, é acompanhado por duas novas orientações:
o fundamentalismo (ramo radical, ultra-ortodoxo e separatista do movimento
evangélico) e o pentecostalismo (corrente que valoriza o milagre e o Espírito Santo)
. O protestantismo pluralista, herdeiro das Igrejas estabelecidas, qualificado
como mainline, decaiu fortemente, depois de ter mantido um alto nível de influência
até aos anos 1940. O National Council of Churches (NCC), que agrupa os representan
tes
deste protestantismo mainline, é actualmente menos influente do que a National Ass
ociation of Evangelicals (NAE), órgão que reúne os evangélicos, ou que a nova direita
cristã, sustentada depois dos anos 1970 pela maior parte dos fundamentalistas. Rea
ctivando a mitologia calvinista da aliança fundadora entre Deus e a América, estes
protestantes conservadores batem-se hoje contra o que entendem ser o declínio dos
valores cristãos na sociedade (luta contra o divórcio, o aborto e pelo restabelecime
nto
da oração na escola).
Ao invés do vizinho do sul, a evolução do Canadá está marcada por uma secularização mais prec
ce e mais nítida. Menos ligado à identidade nacional do que nos Estados
Unidos, o protestantismo decaiu bastante desde os anos 1940, especialmente com u
ma diminuição da prática religiosa no seio da Igreja Unida do Canadá, principal Igreja
protestante, com carácter ecuménico (baixa de 8,2% dos efectivos entre 1991 e 2001).
Em compensação, as correntes evangélicas conhecem um relativo progresso, mas
sem chegar a inflectir o programa federal (legalização do casamento homossexual em 2
005). Tanto no Canadá como nos Estados Unidos, é nas suas formas conversionistas,
empresariais e associativas que o protestantismo parece resistir melhor à seculari
zação, reactualizando o modelo do self-made-saint numa sociedade de consumo em
que primam o indivíduo e a performance.
Sébastien Fath
360

Do ecumenismo ao inter-religioso?

Depois das feridas e cisões dos séculos XI e XVI, raras são as épocas que não conheceram t
entativas que visaram remediar a separação das confissões cristãs. Mas
todas fracassaram. E seguiu-se-lhes a dispersão, sobretudo no mundo anglo-saxónico p
rotestante. Com o aparecimento do neologismo "ecumenismo", o século XX marca,
neste aspecto, uma viragem de tendência decisiva pelo triplo desafio lançado ao cris
tianismo pelo seu ambiente.
Primeiro, o desafio missionário. A primeira conferência ecuménica, a de Edimburgo, em
1910, que reuniu as principais sociedades anglo-protestantes, ouve os delegados
daquele a que então ainda não se chamava Terceiro Mundo deplorarem que os missionários
se preocupem mais com as suas querelas de capelas do que com o anúncio do
Evangelho. E, assim, nasce em 1921 o Conselho Internacional das Missões, que, quar
enta anos mais tarde, se juntará ao Conselho Ecuménico.
Depois, o desafio de uma guerra em que se defrontam, entre 1914e 1918, muitas ve
zes em nome de Deus e com uma brutalidade inédita, cristãos de todas as confissões,
prontos a confundir a sua fé religiosa com o fervor patriótico. Este contratestemunh
o perante a descrença suscita como reacção, a partir de meios anglo-protestantes
e ortodoxos, as conferências de Estocolmo sobre o "cristianismo prático" (1925) e de
Lausana sobre "a fé e a constituição da Igreja" (1927). Em 1928, Pio XI condena
vigorosamente este ecumenismo nascente, sob o nome de "pancristianismo".
Por fim, o desafio das ideologias e dos regimes totalitários, cujo fim último não é outr
o senão a erradicação das crenças estranhas às suas concepções do "homem
novo". Tema maior das conferências de Oxford e de Edimburgo de 1937, este desafio
provoca a fusão dos dois ramos deste movimento num Conselho Ecuménico das Igrejas
cuja criação é retardada dez anos pela Segunda Guerra Mundial. Na assembleia de Ameste
rdão, em 1948, cento e quarenta e sete Igrejas não-romanas federaram-se tendo
por "base" o reconhecimento de Jesus Cristo como Deus e salvador, sem no
361

entanto renunciarem às suas convicções próprias. Nascera o Movimento Ecuménico, cuja sede
se instala em Genebra.
Mas padece de dois handicaps: de um lado, em plena Guerra Fria, a oposição das Igrej
as orientais de influência moscovita, que vêem nele um apêndice do imperialismo
americano; do outro, a recusa de Roma de abandonar a sua própria concepção da unidade:
regresso ao seu seio das Igrejas "dissidentes", do Oriente, principalmente,
mediante as comunidades "uniatas", solução energicamente combatida pelos principais
interessados. Contudo, no seio dos catolicismo alemão, belga, neerlandês ou francês,
padres e religiosos convertidos à causa da unidade advogam uma convergência sem fron
teiras na oração e no diálogo teológico. Inicialmente ameaçados com sanções disciplinares,
vão pouco a pouco obtendo de Roma um reconhecimento precário que é testemunhado pela c
riação, em 1952, da Conferência Católica para as Questões Ecuménicas. Entretanto,
é preciso esperar pelos anos 1960, marcados, tanto nas Igrejas como fora delas, co
m um sopro de optimismo, para que estes obstáculos sejam derrubados e o ecumenismo
se imponha como uma das dominantes do cristianismo contemporâneo.
Em 1961, a aplicação ao domínio religioso da estratégia da coexistência pacífica traduz-se n
a adesão das Igrejas do bloco soviético-ao Conselho genebrino, que, então,
chega à sua representatividade máxima, sem perder o seu carácter federador: nem Superi
greja nem matriz de futura Igreja unida, mas associação fraterna de Igrejas
que confessam um Deus trinitário. Paralelamente, sob o impulso de João XXIII, eleito
papa em 1958, realiza-se a conversão da Igreja católica ao ecumenismo. Não terá
sido, porventura, a aproximação dos cristãos separados um dos dois objectivos do Concíli
o, cuja convocação ele anunciou em Janeiro de 1959? A criação do Secretariado
Romano para a Unidade dos Cristãos e o convite de observadores não-católicos para as d
iversas sessões da assembleia dão ao concílio um cunho ecuménico que não se
limita à adopção dos dois documentos em que encarna essa conversão: o decreto sobre o ec
umenismo (1964) e a declaração sobre a liberdade religiosa (1965). A multiplicação
dos gestos simbólicos, dos quais o levantamento das excomunhões mútuas entre Roma e Co
nstantinopla, em Dezembro de 1965, é tão-só o mais espectacular, e a multiplicação
conjunta dos diálogos interconfessionais a todos os níveis induzem um novo ambiente,
bastante eufórico nos meados dos anos 1960. A oração pela unidade ganha terreno,
mesmo onde as tensões eram, ainda recentemente, mais vivas; desenvolvem-se relações co
rdiais dbase ao cimo, até ao balão de ensaio, logo esvaziado, de uma possível
adesão da Igreja romana ao conselho genebrino, em finais dos anos 1960.
Quarenta anos mais tarde, o balanço é menos positivo. É verdade que a atitude ecuménica
permanece como regra, enquanto antes era apenas excepção. É verdade que as
Igrejas trabalharam na análise e resolução dos mais dolorosos contenciosos do passado.
É verdade que os teólogos trabalharam na eliminação dos obstáculos, como o
provam o acordo de
362

Balamand [Líbano] entre ortodoxos e católicos sobre a proscrição do "uniatismo" (1993) e


o de Augsburgo entre luteranos e católicos sobre a justificação pela fé
(1999). Mas a intensificação identitária que se apoderou do conjunto do planeta depois
da recuperação da depressão económica em meados dos anos 1970, reconduz cada
uma das confissões cristãs à sua tentação própria, o que trava a sua aproximação: osmose da f
odoxa com nacionalismos renascentes, que contesta a evolução liberal
do cristianismo ocidental em matéria de doutrina e de costumes; separação do anglo-pro
testantismo entre este liberalismo e um fundamentalismo bíblico que viu com
bons olhos o ecumenismo; exaltação católica do papado a que a personalidade carismática
de João Paulo II deu um novo impulso. Por vezes contestado como a heresia
do século XX pelos tradicionalistas de todas as proveniências, continua a ser a linh
a directriz tanto em Roma como em Genebra, em Cantuária ou em Constantinopla
e, portanto, uma das principais inovações religiosas do século XX.
A amplitude inédita do desafio muçulmano e a expansão das religiões asiáticas tendem a res
tringir às dimensões de uma questão de somenos aquela entre cristãos, ultrapassada
pelas urgências do momento. É preciso dizer claramente: o recente diálogo inter-religi
oso não é exactamente a dilatação do ecumenismo. Aliás, ele foi precedido,
antes e sobretudo depois da Shoah, por um esforço de "amizade judeo-cristã" pela qua
l os cristãos, católicos e protestantes, tentaram esvaziar-se do seu passado
anti-semita. Uma vez mais, o conselho Ecuménico das Igrejas e o Vaticano II foram
determinantes: a passagem consagrada aos judeus, na declaração conciliar sobre
as religiões não-cristãs, risca séculos de perseguição e de desprezo. Mesmo não satisfazendo
lenamente os judeus, João Paulo II fez bastante para alargar e aprofundar
esta abertura. Do mesmo modo, se bem que menormente, as amizades islâmico-cristãs co
nduziram à passagem da mesma declaração que presta homenagem à fé dos muçulmanos.
Mas estes dois movimentos não comunicam de maneira nenhuma: no organigrama romano,
as relações com o judaísmo continuam da competência do ecumenismo, enquanto as
relações com o islão dependiam das religiões não-cristãs, antes de serem ligadas ao Conselho
Pontifício para a Cultura. Foi preciso esperar pelo encontro de Assis,
em 1986, para que tomasse forma, por iniciativa de Roma, um diálogo inter-religios
o, multilateral por definição. Em relação ao ecumenismo, apresenta uma diferença
de natureza: enquanto diálogo entre cristãos ou entre judeus e cristãos saídos da mesma
cepa, versa sobre a fé que os une e os separa, o diálogo inter-religioso,
face à diversidade das crenças implicadas, só pode viver da aptidão dos seus protagonist
as para dar testemunho em comum diante do mundo sobre questões tão urgentes
como a rejeição da guerra, o respeito dos direitos do homem, a supressão das desiguald
ades gritantes ou a preservação ecológica do planeta. Assenta na elaboração
de uma visão comum do futuro da humanidade e não na busca de uma eventual unidade or
gânica na fé.
Étienne Fouilloux
363

GLOSSÁRIO
Catequese
De um verbo grego que quer dizer "instruir de viva voz"; instrução. Ensinamento oral
da fé dado aos candidatos ao baptismo, aos catecúmenos, pela voz do catequista,
e considerado como eco da palavra de Deus. A partir do século II, o catecumenato o
rganizou-se - com diferenças consoante as Igrejas - e pode durar vários anos. Compor
ta
instruções sobre o símbolo de fé, o Pai-Nosso, os sacramentos, a vida moral e os deveres
do cristão; são testemunho disto as catequeses dos Padres da Igreja.
Confissão auricular
Forma de disciplina penitencial, secreta e renovável, instaurada no Ocidente a par
tir do século XII e que consiste na confissão das faltas pelo fiel ao ouvido do
padre.
Devotio moderna
Corrente espiritual fundada na meditação pessoal e na ascese que nasceu nos actuais
Países Baixos durante a segunda metade do século XIV.
Evemerismo
Tese segundo a qual os deuses não são senão humanos divinizados, sustentada por Evémero
de Messina (340-280 a.C.) e retomada pelos apologistas e pensadores cristãos.
Grande Cisma
Período (1378-1417) durante o qual a Igreja do Ocidente esteve dividida em duas ob
ediências pontifícias, uma em Roma e a outra em Avinhão; acabou durante o Concílio
de Constança, com a demissão dos dois papas rivais e a eleição de Martinho V.
365

Indulgências
Perdão de uma pena ou de uma penitência pela Igreja, em nome de Deus; impõe um sacrifíci
o pessoal (não somente financeiro) e baseia-se nos méritos acumulados de
Cristo e dos santos através dos tempos e do espaço na Igreja. Lutero, como muitos ou
tros, critica a falsa segurança sobre a salvação que estas podem dar.
Simonia
Designa a venda ou a compra de um sacramento ou de um cargo eclesiástico; esta pal
avra refere-se a Simão, o Mago, que quis comprar aos apóstolos o poder de comunicar
o Espírito Santo (Act 8,19).
Uniata
O termo designa Igrejas de tradição e de ritos orientais que estão em comunhão com Roma.
366
SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS

Sobre cada um dos pontos tratados nesta obra, o leitor pode consultar as duas ob
ras seguintes:
J.-M. Mayeur, Ch. e L. Pietri, A. Vauchez, M. Venard (dir.), Histoire du christi
anisme, des srcines à nos jours, Paris, Desclée, 1990-2001.
- vol. I, L. Pietri (dir.), Le Nouveau Peuple: des srcines à 250 (2000);
- vol. II, Ch. e L. Pietri (dir.), Naissance d'une chrétienté: 250-430 (1995);
- vol. III, L. Pietri (dir.), Églises d'Orient et d'Occident (1991);
- vol. IV, A. Vauchez (dir.), Évêques, moines et empereurs: 612-1054 (1993);
- vol. V, A. Vauchez (dir.), Apogée de la papauté et extension de la chrétienté (1994);
- vol. VI, M. Mollat do Jourdin, A. Vauchez (dir.), Un temps d'épreuves: 1274-1449
(1990);
- vol. VII, M. Venard (dir.), De la Reforme à la Réformation 1450-1530 (1994);
- vol. VIII, M. Venard (dir.), Le Temps des confessions: 1530-1620/30 (1992);
- vol. IX, M. Venard (dir.), L'Âge de raison (1995);
- vol. X, B. Plongeron (dir.), Défis de la modernité (1995);
- vol. XI, J. Gadille, J.-M. Mayeur (dir.), Libéralisme, industrialisation, expans
ion européenne: 1830-1914 (1995);
- vol. XII, J.-M. Mayeur (dir.), Guerres et totalitarismes 1914-1958 (1990);
- vol. XIII, J.-M. Mayeur (dir.), Crises et renouveau: de 1958 à nos jours (2000);
- vol. XIV, F. Laplanche (dir.), Anamnésies: srcines, perspectives, índex (2001).
367

Os volumes VI e XII foram publicados em co-edição com as Editions Fayard.


The Cambridge History of Christianity, Cambridge, Cambridge University Press, 20
05-2006.
- vol. I, M. M. Mitchell, F. M. Young (dir.), Origins to Constantine (2006);
- vol. V, M. Angold (dir.), Eastern Christianity (2006);
- vol. VI, R. Pochia Hsia (dir.), Reform and Expansion 1500-1660 (2006);
- vol. vII, S. J. Brown, T. Tackett (dir.), Enlightenment, Reawakening and Revol
ution 1660-1815 (2006);
- vol. VIII, S. Gilley, B. Stanley (dir.), World Christianities c. 1815-c. 1914
(2005);
- vol. IX, H. McLeod (dir.), World Christianities c. 1914-c. 2000 (2006).
Citemos ainda, sobre um ponto mais particular:
Philippe Levillain (dir.), Dictionnaire historique de la papauté, Paris, Fayard, 1
994.
368

REFERÊNCIAS BÍBLICAS
Abreviaturas utilizadas
Antigo Testamento
Gn---Génesis Ex---Êxodo Is--- Isaías
Novo Testamento
Mt---Evangelho segundo São Mateus Mc-- Evangelho segundo São Marcos Lc---Evangelho s
egundo São Lucas Jo--- Evangelho segundo São João Act-- Actos dos Apóstolos Rm--
Epístola aos Romanos
1-Cor Primeira Epístola aos Coríntios
2 Cor Segunda Epístola aos Coríntios Ef---Epístola aos Efésios
Cl--- Epístola aos Colossenses Tt--- Epístola a Tito Heb--Epístola aos Hebreus
369

OS AUTORES
Alain Corbin
Professor emérito de História da França no século XIX. Universidade de Paris I-Panthéon-So
rbonne, Instituto Universitário da França
Nicole Lemaitre
Professora de História Moderna. Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne
Françoise Thelamon
Professora emérita de História Antiga. Universidade de Rouen
Catherine Vincent
Professora de História Medieval. Universidade Paris X-Nanterre
Contributos de: Astérios Argyriou
Professor emérito de Literatura Grega Moderna. Universidade Marc-Bloch-Strasbourg
II
Sylvie Barnay
Maitre de conférences em História do Cristianismo e História das Religiões. Universidade
de Metz
Marie-Françoise Baslez
Professora de História Antiga. Universidade de Paris XII-Val-de-Marne
Guy Bedouelle
Dominicano, professor de História da Igreja (Universidade de Friburgo, Suíça)
371
Jean-Louis Biget
Professor emérito de História Medieval. Escola Normal Superior de Letras e Ciências Hu
manas (Lião)
Neal Blough
Director do Centro Menonita de Paris, Professor de História da Igreja (Faculdade L
ivre de Teologia Evangélica de Vaux-sur-Seine)
Philippe Boutry
Professor de História Contemporânea (Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne), direc
tor de estudos (Escola dos Altos Estudos em Ciências Sociais, Centro de Antropolog
ia
Europeia)
Henri Bresc
Professor de História Medieval. Universidade Paris X-Nanterre
Isabelle Brian
Maitre de conférences em História Moderna. Universidade Paris I-Panthéon-Sorbonne
Gilles Cantagrel
Musicólogo. Membro correspondente do Institut (Academia das Belas-Artes)
Marianne Carbonnier-Burkard
Maitre de conférences em História do Cristianismo Moderno. Faculdade de teologia pro
testante de Paris
Béatrice Caseau
Maitre de conférences em História Bizantina. Universidade Paris IV-Sorbonne
Philippe Denis
Professor de História do Cristianismo. Universidade do KwaZuluNatal (África do Sul)
Bruno Dumézil
Maitre de conférences em História Medieval. Universidade Paris X-Nanterre
Yves-Marie Duval
Professor emérito de Língua e Literatura Latinas Tardias. Universidade Paris X-Nante
rre
Sébastien Fath
Investigador no CNRS, encarregado de conferências (Escola Prática de Altos Estudos,
Secção de Ciências Religiosas)
372

Étienne Fouilloux
Professor emérito de História Contemporânea. Universidade Louis-Lumière-Lyon II
Benoit Gain
Professor de Língua e Literatura Latinas. Universidade Stendhal-Grenoble III
Pierre Gonneau
Professor de História e Civilização Russas (Universidade Paris IV-Sorbonne), director
do Centro de estudos Eslavos (CNRS-Paris IV), director de estudos (Escola Prática
de Altos Estudos, Secção de Ciências Históricas e Filológicas)
Jean Guyon
Director de investigação no CNRS (Centre Camille-Jullian, Casa Mediterrânea das Ciências
do Homem, Aix-en-Provence)
Mireille Hadas-Lebel
Professora de História das Religiões. Universidade Paris IV-Sorbonne
Marie-Élisabeth Henneau
Maitre de conférences em História das Religiões. Universidade de Liège
Ruedi Imbach
Professor de Filosofia Medieval. Universidade Paris IV-Sorbonne
Dominique Iogna-Prat
Directora de investigações no CNRS
Bruno Judie
Professor de História Medieval. Universidade François-Rabelais-Tours
Claude Langlois
Director de estudos emérito (Escola Prática de Altos Estudos, Secção de Ciências Religiosa
s)
François Laplanche
Director de investigações honorário no CNRS
Daniel Le Blevec
Professor de História Medieval. Universidade Paul-Valéry-Montpellier III
373

Alain Le Boufluec
Director de estudos (Escola Prática de Altos Estudos, Secção de Ciências Religiosas)
Jean-Marie Le Gall
Maitre de conférences em História Moderna. Universidade Paris I-Panthéon-Sorbonne
Philippe Lécrivain
Jesuíta, professor de História da Igreja (Faculdades Jesuítas de Paris)
Claude Lepelley
Professor emérito de História Antiga. Universidade Paris X-Nanterre
Philippe Levillain
Professor de História Contemporânea. Universidade Paris X-Nanterre, Instituto Univer
sitário de França
Pierre Maraval
Professor emérito de História das Religiões. Universidade Paris IV-Sorbonne
Daniel Marguerat
Professor de Novo Testamento. Faculdade de Teologia e de Ciências das Religiões. Uni
versidade de Lausana (Suíça)
Olivier Marin
Maitre de conférences em História Medieval. Universidade Paris XIII-Nord
Annick Martin
Professora emérita de História Antiga. Universidade de Haute-Bretagne-Rennes II
Bernadette Martin-Hisard
Maitre de conférences honorária em História Medieval. Universidade de Paris I-Panthéon-S
orbonne
Jean-Pierre Massaut
Professor emérito de História Moderna. Universidade de Liège
Jean-Marie Mayeur
Professor emérito de História Contemporânea. Universidade de Paris IV-Sorbonne
374

Simon C. Mimouni
Director de estudos (Escola Prática de Altos Estudos, Secção de Ciências Religiosas)
Michel Parisse
Professor emérito de História Medieval. Universidade de Paris I-Panthéon-Sorbonne
Michel-Yves Perrin
Professor de História Romana. Universidade de Rouen
Bernard Pouderon
Professor de Grego Antigo. Universidade François-Rabelais-Tours
Claude Prudhomme
Professor de História Contemporânea. Universidade Lumière-Lyon II
René Rémond
Membro da Académie française, professor emérito de História Contemporânea (Universidade Pa
ris X-Nanterre), presidente da Fondation nationale des sciences politiques
Jean-Marie Salamito
Professor de História do Cristianismo Antigo. Universidade Paris IV-Sorbonne
Claude Savart
Professor emérito de História Contemporânea. Universidade Paris XII-Val-de-Marne
Madeleine Scopello
Investigadora no CNRS. Universidade Paris IV-Sorbonne
Alain Tallon
Professor de História Moderna. Universidade Paris IV-Sorbonne
André Vauchez
Professor emérito de História Medieval (Universidade Paris X-Nanterre), antigo direc
tor da Escola Francesa de Roma, membro do Institut (Academia das Belas-Artes)
Marc Venard
Professor emérito de História Moderna. Universidade Paris X-Nanterre
375

ÍNDICE DOS MAPAS

A difusão do cristianismo nos dois primeiros séculos ...............----- 37


A organização eclesiástica na época de Justiniano (527-565) ...--112-113
O Ocidente religioso (séculos XI-XV) .........................................--14
0-141
As confissões na Europa no final do século XVI........................-----255
A expansão cristã no final do século XVIII.................................-----301
O cristianismo hoje ............................................................
.........-----364
377

1. A Era dos Extremos, Eric Hobsbawm


2. O Passado de Uma Ilusão, François Furet
3. As Regras da Arte, Pierre Bourdieu
4. Milénio, Felipe Fernández-Armesto
5. O Liberalismo Político, John Rawls
6. As Grandes Religiões do Mundo, Jean Delumeau
7. História de Espanha, Fernando Garcia Cortázar e José Manuel González Vesga
8. Deus: Uma Biografia, Jack Miles
9. História Social de Inglaterra, Asa Briggs
10. Uma História da Leitura, Alberto Manguel
11. Os Grandes Pensadores do Cristianismo, Hans Kiing
12. A Luz da Noite, Pietro Citati
13. A Civilização Europeia no Renascimento, John Hale
14. A Ideia de História, R. G. Collingwood
15. A Era das Revoluções, Eric Hobsbawm
16. Na Rota da Pimenta, Theresa M. Schedel de Castello Branco
17. Macau: Poder e Saber - Séculos XVI e XVII, Luís Filipe Barreto
18. A Viagem de Fernão de Magalhães e os Portugueses, José Manuel Garcia
19. Roteiro de Leitura da Bíblia, Frei Fernando Ventura
20. A Vida do Dalai Lama - O Homem, o Monge, o Místico, Mayank Chhaya
21. A Vida de Jesus Cristo - O Homem Que Mudou o Mundo, Corrado Augias e Mauro P
esce
22. O Mundo Islâmico - Do Século XVI à Actualidade, Pier Giovanni Donini
23. Istambul - Memórias de Uma Cidade, Orhan Pamuk
24. História do Cristianismo, Alain Corbin

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