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Antiguidade

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EDITOR-CHEFE
Pablo Rodrigues

SELO PÓRTICO DE ESTUDOS SOBRE A ANTIGUIDADE


DIREÇÃO CIENTÍFICA
Anderson de Araujo Martins Esteves (UFRJ)
Carlos Eduardo da Costa Campos (UFMS)

CONSELHO EDITORIAL
Breno Battistin Sebastiani (USP)
Claudia Beltrão da Rosa (UNIRIO)
Fábio de Souza Lessa (UFRJ)

CONSELHO CONSULTIVO
Alexandre Santos de Moraes (UFF)
Carlos Eduardo da Costa Campos (UFMS)
Fernando Rodrigues Júnior (USP)
Tania Martins Santos (UFRJ)

ASSESSORIA EXECUTIVA
Bárbara da Costa e Silva (USP)
Emerson Cerdas (FAPESP/USP)
Luis Filipe Bantim de Assumpção (UFRJ)
Ricardo de Souza Nogueira (UFRJ)

REVISORES
Arthur Rodrigues (UFRJ)
Bráulio Costa Pereira (UFRJ)
Antiguidade
e usos do passado
Políticas e Práticas Sociais

ò
Leandro Mendonça Barbosa
Dolores Puga
(orgs.)
Copyright © 2021 by Leandro Mendonça Barbosa, Dolores Puga e Desalinho.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que
entrou em vigor no Brasil em 2009.
Este livro foi avaliado e aprovado por pareceristas ad hoc.
CAPA E PROJETO GRÁFICO
Pablo Rodrigues
ASSISTENTE EDITORIAL
Annelise Rodrigues
ORGANIZAÇÃO
Leandro Barbosa e Dolores Pulga

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Antiguidade e usos do passado : políticas e


práticas sociais / Leandro Mendonça Barbosa, Dolores Puga
(org.). – 1. ed. – São João de Meriti, RJ : Desalinho, 2021.
ISBN 978-65-88544-15-0

1. Antiguidades 2. História – Aspectos sociais

3. História – Aspectos políticos 4. História do mundo antigo até ca. 499 I.


Barbosa, Leandro Mendonça. II. Puga, Dolores.

21-90026 CDD-930
Índices para catálogo sistemático: 1.

Antiguidade : História antiga 930

Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB-8/7964

[2021] | DESALINHO
Rua Caricó. São João de Meriti, RJ.
Telefone: (21) 994428064
www.desalinhopublicacoes.com.br
www.blogdadesalinho.wordpress.com
desalinhopublicacoes@gmail.com
Sumário
8
Apresentação 7
Leandro Mendonça Barbosa
Dolores Puga

«Túria» Ou como ser matrona na Roma dos alvores do principado 13


Nuno Simões Rodrigues

Jesus, Fundamentalismo Religioso e Cinema nas Décadas de 1930 e 1960 31


André Leonardo Chevitarese
Tayná Louise de Maria

A Gens Septímia e as Moedas com referências à Concórdia: A busca pelo consenso e


pela abundância 53
Ana Teresa Marques Gonçalves

As Representações de Deméter na Comédia de Aristófanes 89


Leandro Mendonça Barbosa

Problematizações teóricas e políticas do Teatro clássico ateniense 109


Dolores Puga

Os colégios sacerdotais romanos no municipium de Sagunto (século I d.C.): um


estudo de caso através das inscrições epigráficas honoríficas 139
Carlos Eduardo da Costa Campos

Uma viagem pelas terras do faraó: o Egito nos relatos da Antiguidade 177
Nathalia Monseff Junqueira
Arqueologia e História e Cultura da Alimentação: alguns olhares
sobre a Sicília grega antiga 201
Leandro Hecko

Uma pólis não é uma empresa. A diferença entre âmbitos público


e privado em Aristóteles 221
Cristina Agostini
Apresentação
8

Este livro é o resultado da dedicação de uma equipe de pesquisadores


da antiguidade e professores de História de Mato Grosso do Sul dese-
josos por implementar e fortalecer um Grupo de Trabalho em História
Antiga no Estado. Desta maneira, fundamenta-se como continuidade
de um livro inaugural intitulado “Antiguidade e Usos do Passado: temas
e abordagens”. Trata-se do primeiro esforço do grupo em se constituir
como pontapé inicial de nossa reunião preliminar, momento em que foi
criado o GT em um Simpósio da ANPUH-MS de 2018, na cidade de Dou-
rados.
Outrossim, a atual obra se consolida como desfecho não apenas
da necessária constância de atividades do GT Regional de História Anti-
ga de Mato Grosso do Sul, como também celebra a realização do seu pri-
meiro evento: o “I Encontro do GT de História Antiga de MS: Políticas
e Práticas Sociais”, em outubro de 2020. Este foi um evento realizado
remotamente e de caráter internacional, com participação de Portugal
e Argentina, além de muitas regiões brasileiras.
Como estrutura, o livro apresenta alguns trabalhos sobre o mun-
do antigo, análises por vezes atreladas a investigações acerca dos usos
dessa antiguidade no contemporâneo, demonstrando vinculação com
diversas pesquisas da área na atualidade, caminhos os quais têm se for-
talecido nos estudos de História Antiga. Como base temática, a obra
propõe um passeio entre Egito, Grécia, Roma e o Cristianismo; tópicos
que carregam profundo interesse de estudiosos, professores, alunos e

7
curiosos sobre as questões da antiguidade ocidental e oriental. De for-
mas instigantes, esses temas ainda nos dizem respeito, seja na constru-
ção de análises críticas, seja por nosso grande empenho por sua com-
preensão e por abranger as razões de seu fascínio.
Como subtemas, tem-se desde as análises culturais sobre o teatro
grego antigo e o cinema de meados do século XX que retratam a figura
de Jesus, até a cultura da alimentação pelos estudos arqueológicos da
Sicília, na Grécia, e os estudos filosóficos e políticos do século XXI na
visão da ideia de polis, público e privado por Aristóteles em uma releitu-
ra da antiguidade.
O Egito se faz presente por meio da representação que os anti-
gos dele fizeram, e a comédia aristofânica e sua relação com o divino é
problematizada na figura da deusa Deméter. Roma é discutida em suas
múltiplas complexidades, como o papel do feminino, as relações de po-
der contidas em artefatos numismáticos e a interação sociorreligiosa
abarcada por documentação epigráfica.
Na relação passado e presente, nada como se debruçar em pes-
quisas sobre teatro e cinema. As peças teatrais da antiguidade ainda
instigam interesses os mais diversos e o capítulo de Dolores Puga per-
passa pela preocupação do debate historiográfico acerca do tema lite-
rário/dramatúrgico. Problematiza as questões filosóficas abstratas e de
caráter apenas religioso que permeiam as pesquisas sobre os festivais
teatrais e aprofunda o critério dos posicionamentos políticos que en-
volvem as produções artísticas do século V AEC, em Atenas, suscitando
estudos diferenciados que buscam valorizar essa perspectiva de inves-
tigação. Nesse viés, até mesmo a formação teatral pensada em inten-
ções religiosas na figura do tirano Pisístrato é questionada.
Ainda compreendendo obras artísticas que fomentam o imaginá-
rio acerca de elementos da antiguidade, é preciso enfatizar o capítulo de
André Leonardo Chevitarese e Tayná Louise de Maria ao suscitarem um

8
levantamento das, então, poucas representações de Jesus nas produções
fílmicas norte americanas, europeias e até a mexicana entre 1932 e 1962,
perspectivas que se diferenciavam totalmente do Jesus do século I EC.
Fomenta-se a ideia construída pelas obras cinematográficas de apelo à
visão cristã de sua própria época de produção e o fato de que a imagem
de Jesus está mais carregada e disseminada de elementos posteriores a
ele como sujeito histórico.
Dentro das questões dos usos do passado também é possível com-
preender o capítulo de Cristina de Souza Agostini, ao situar o pensa-
mento e a escrita do Livro I da Política de Aristóteles para fundamentar
suas ideias e diferenciações entre a administração privada e a pública
na relação entre família e polis para construir um debate com a discus-
são política do Brasil do século XXI. Essa discussão, que mescla o pri-
vado e o público, segundo a autora, despolitizam o campo político, ca-
bendo compreender as definições aristotélicas de família e cidade para
vislumbrar a catástrofe dessa perspectiva brasileira. De maneira geral,
tanto nas produções artísticas sobre Jesus, quanto no pensamento fi-
losófico político, a antiguidade serve de ponto de referência para com-
preendermos as questões da contemporaneidade.
Em se tratando de um diálogo com as análises culturais, o capí-
tulo de Leandro Hecko nos convida a compreender as perspectivas da
alimentação na região da Sicília a partir dos usos da arqueologia como
ponto de referência, enriquecendo as investigações acerca da História
da Cultura da Alimentação pelos elementos materiais, e apresentando
um recorte temporal que vai do século VIII ao IV AEC, com especial
atenção entre os séculos VI e IV AEC. Nesse trabalho, releva-se sobretu-
do o aprofundamento sobre o cotidiano e a existência das conexões do
mundo mediterrânico antigo para compreender de que forma os povos
se alimentavam.

9
Já Nathalia Monseff Junqueira apresenta um trabalho de análise
das narrativas sobre um objeto notado por documentos diferentes, pro-
duzidos em épocas distintas. Não se limitando a uma apreciação com-
parada – que por si só seria motivo de enaltecimento – o texto expõe um
exame das obras Histórias, de Heródoto, e Geografia, de Estrabão, no que
tange aos olhares sobre o Egito antigo lançados pelos escritores, em um
diálogo com a História das Paisagens que demonstra a interação huma-
na com as edificações, bem como a função social destas.
Leandro Mendonça Barbosa propõe um reparo sobre a deusa De-
méter, o papel do divino e do feminino na Atenas do século V AEC, por
meio da visão deixada como herança pelo comediógrafo Aristófanes.
Através da pesquisa em três comédias, que percebe um período de qua-
se uma década, o autor entende as especificidades do que chamou de
“Deméter aristofânica”, como a personificação da abundância e, tam-
bém, do poder feminino. Diferente de outros documentos do mesmo
período ou de períodos pretéritos que representaram a deusa, a inten-
ção é a de compreender como Aristófanes percebeu Deméter e de que
forma a representou para tecer sua narrativa cômica.
Para entender a sociedade romana, suas imbricações políticas e
sociais, é necessário partir de uma abordagem que vá além do essen-
cialmente diacrônico, dialogando com os sujeitos e suas práticas ao lon-
go do contexto romano. O poder, longe da legitimação de figuras de im-
peradores como “grandes homens”, é percebido pelos autores dentro de
complexas relações entre seus atores, relacionado a interesses diversos.
É o que vemos na investigação de Nuno Simões Rodrigues. Fugin-
do do juízo sobre as relações sociais como uma dicotomia “governantes/
governados”, o Historiador apresenta uma atualizada análise das teias
de práticas sociais tecidas no início do Principado romano a partir do
conceito construído sobre uma matrona e seus atributos. Por meio da
crítica precisa de uma laudatio, o autor alcança as narrativas que giram

10
em torno da representação da matrona ideal. Conceitos como pietas, fi-
des, humanitas e abnegatio, dentre outros, são considerados para a cons-
trução de seu texto, ao ponto que se atinja a imagem da mulher ideal
dentro de uma realidade específica.
Na temática do poder, é importante apresentarmos o trabalho de
Ana Teresa Marques Gonçalves como uma visão de poder imperial que
vai além da documentação escrita, mas sem desconsiderá-la. Seu capí-
tulo é composto por discussões teóricas acerca do conceito de “propa-
ganda” aplicado ao período imperial romano e por um debate sobre a
metodologia no trato com moedas. A autora utiliza-se de documenta-
ção numismática para compreender seu objeto: a imagem do governo
e da família dos Severos tendo como ponto de divulgação a figura de
Concórdia. A complexidade com a qual o poder se mostrava no período
analisado por Ana Teresa Marques Gonçalves aponta para os ardis polí-
ticos que eram tramados, superando a ideia de hegemonia e governan-
ça como a base de uma solidez do poder, mas notando as contendas de
cunho propagandístico como essenciais para se compreender as analo-
gias de influência e domínio.
Encerrando as discussões sobre o mundo romano, o capítulo de
Carlos Eduardo da Costa Campos desloca a visão tradicional da análise
do poder, entendendo a figura do sacerdote como parte de um intrinca-
do enredo. Por meio do trabalho de descrição e investigação de inscri-
ções epigráficas, o autor demonstra como as instituições sacerdotais,
atribuídas com o poder de uma religião social, que abarcava todos os
aspectos da vida do romano, participavam das relações de força socio-
política e se relacionavam com as elites governamentais. Carlos Eduar-
do da Costa Campos elege a municipium de Sagunto durante o século I
EC para sua análise.
Percebe-se, pela pluralidade de temas e pelo corpus documental
diversificado, que o livro Antiguidade e Usos do Passado: Políticas e Práticas

11
Sociais, apesar de apresentar em seu título temas notoriamente tradi-
cionais da análise historiográfica e filosófica, é inovador no que se pro-
põe: uma abordagem atualizada sobre temas caros a antigos e moder-
nos.
A dedicação dos pesquisadores materializa-se em uma obra que
se intenta dinâmica sobre o trato com o comumente chamado Mundo
Antigo e suas diversas temáticas, na propositura de argumentos que
levem a novas reflexões acerca das relações de poder político, das mul-
tifacetadas interações sociais entre comunidades ou grupos, e do pen-
samento e uso por parte dos contemporâneos às representações do pas-
sado. Esperamos que a leitura seja interessante, edificante e, sobretudo,
prazerosa.

Leandro Mendonça Barbosa


Dolores Puga

12
«Túria»
Ou como ser matrona na Roma
dos alvores do principado
8

Nuno Simões Rodrigues1

É na coleção de anedotas históricas conhecida como Facta et dicta me-


morabilia que Valério Máximo, autor contemporâneo do imperador Ti-
bério (14-37 d.C.), faz referência a uma mulher de nome Túria. A fama
dessa Túria ter-se-ia estabelecido pelo fato de ela ter ajudado o marido,
Quinto Lucrécio [Vespilão] – um senador de elevado estatuto na Roma
augustana –, salvando-o de uma morte anunciada. Para isso, escondeu-
-o com risco da própria vida, depois de aquele ter sido proscrito pelos
triúnviros durante as perseguições de 43 a.C.2 Esta Túria surge assim
ao lado de outras mulheres, Tércia Emília e Sulpícia, como exemplo de
fides feminina para com os respectivos maridos (V. Max. 6.7.13, esp. 2).3

1. Professor Associado da Universidade de Lisboa. Membro do CECH-UC, do CH-


-ULisboa e do CEC-ULisboa. Estudo financiado por Fundos Nacionais através da
FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito dos projectos Rome
our Home: (Auto)biographical Tradition and the Shaping of Identity(ies) (PTDC/
LLT-OUT/28431/2017) do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universi-
dade de Coimbra; CH-ULisboa: UIDB/04311/2020 y UIDP/04311/2020; CEC‑ULisboa:
UIDB/00019/2020 e UIDP/00019/2020. Orcid.org/0000-0001-6109-4096
2. Trata-se de uma referência às proscrições levadas a cabo pelo triunvirato formado
por Octávio, Marco António e Lépido em 43 a.C., sob a justificação de vingar o assassí-
nio de Júlio César. Mais do que isso, estas proscriptiones serviram para eliminar inimi-
gos políticos e usurpar-lhes bens e propriedades. Vide Gowing (1992).
3. Q. Lucretium proscriptum a triumuiris uxor Turia inter cameram et tectum cubiculi abdi-
tum una conscia ancillula ab inminente exitio non sine magno periculo suo tutum praestitit
singularique fide id egit, ut, cum ceteri proscripti in alienis et hostilibus regionibus per summos
corporis et animi cruciatus uix euaderent, ille in cubiculo et in coniugis sinu salutem retineret.

13
A anedota de Valério Máximo é em parte confirmada por outro
autor, mais tardio, Apiano de Alexandria (c. 95-c. 165 d.C.), que no Bellum
ciuile conta como o proscrito Quinto Lucrécio foi, durante o período das
proscrições de 43 a.C., ajudado por dois escravos e pela própria mulher,
que aqui, todavia, permanece anônima. Os pormenores da narrativa,
contudo, assim como a coincidência do nome do proscrito permitem-
-nos deduzir que se trata das mesmas figuras/personagens (App. BC
4.6.44).4
Foram estas duas referências, a primeira sobretudo, que levou
Theodor Mommsen, numa comunicação feita à Academia de Berlim em
1863, a considerar a possibilidade de a Túria mencionada por Valério
Máximo ser a mulher a quem uma já então famosa inscrição fúnebre
descoberta em Roma elogiava (MOMMSEN, 1863). Embora fragmen-
tada, a inscrição em causa destacava-se pelo fato de ser relativamente
longa e rica em pormenores, registrados na voz do marido da falecida,
que assim encontra oportunidade para lhe fazer a que considera ser a
sua justa homenagem, inscrevendo-lhe uma laudatio fúnebre. Além dis-
so, a pessoa a quem o panegírico se destina é uma mulher, o que não é
frequente nos casos de elogios fúnebres antigos conhecidos, ainda que
as fontes refiram alguns.5
Apesar do momento marcante da comunicação de Mommsen, po-
rém, a proposta de identificação da mulher a quem a inscrição se refere
4. Λουκρήτιος ἀλώμενος σὺν δυσὶ θεράπουσιν ἀγαθοῖς ὑπὸ ἀπορίας τῶν τροφῶν ᾔει πρὸς
τὴν γυναῖκα, φορείῳ φερόμενος ὑπὸ τῶν οἰκετῶν οἷά τις ἄρρωστος, ἐς τὴν πόλιν. ἑνὸς
δὲ τῶν φερόντων τὸ σκέλος συντρίβεντος τῷ ἑτέρῳ τὴν χεῖρα ἐπιθεὶς ᾔει. παρὰ δὲ ταῖς
πύλαις γενόμενος, ἔνθα αὐτοῦ καὶ ὁ πατὴρ ὑπὸ Σύλλα προγραφεὶς ἑαλώκει, εἶδε λόχον
ὁπλιτῶν ἐκτρέχοντα καὶ πρὸς τὸ συγκύρημα τοῦ τόπου καταπλαγεὶς συνεκρύφθη μετὰ
τοῦ θεράποντος ἐν τάφῳ. τυμβωρύχων δὲ τοὺς τάφους ἐρευνωμένων, ὁ θεράπων ἑαυτὸν
τοῖς τυμβωρύχοις παρέσχε περιδύειν, μέχρι Λουκρήτιον ἐπὶ τὰς πύλας διαφυγεῖν. ἐκεῖ
δὲαὐτὸν ὁ Λουκρήτιος περιμείνας τε καὶ τῆς ἑαυτοῦ μερισάμενος ἐσθῆτος, ἧκε πρὸς τὴν
γυναῖκα καὶ ὑπ᾽ αὐτῆς ἐκρύπτετο ἐπὶ διπλῆς ὀροφῆς μεταξύ, μέχρι τινὲς αὐτὸν ἐρρύσαντο
παρὰ τῶν προγραψάντων καὶ ὕστερον ἐπὶ εἰρήνης ὑπάτευσεν.
5. Epigraficamente, conhecemos três: o elogio de Múrdia (CIL VI 10230), o da imperatriz
Matídia (CIL XIV 3579) e o dito de Túria. Vide Durry (1950, xxi, p. 65-66); Lindsay (2004).

14
com a Túria de Valério Máximo tinha sido já feita por outros investiga-
dores, como Filippo della Torre no século XVIII (GORDON, 1950: p. 223,
n. 2). A novidade de Mommsen estava no fato de ele ter sido o primeiro
a apresentar uma perspectiva compreensiva da inscrição, suas formas
e conteúdos. Naturalmente, o testemunho foi depois incluído no CIL e a
publicação da inscrição continuamente atualizada.6
Com efeito, a destinatária da laudatio inscrita no monumento
permanece anônima, sendo apenas perceptível parte do genitivo de
uxor ([V]XORIS). Assim, a partir da comunicação de Mommsen, a ins-
crição e o seu texto passaram a ser conhecidos como a Laudatio Turiae,
ainda que, logo em 1898, outros investigadores tivessem posto em cau-
sa a identificação da mulher elogiada com a Túria de Valério Máximo.7
Na verdade, como mais tarde veio bem a demonstrar M. Durry, vários
elementos não só não permitem uma coincidência absoluta entre as
personagens mencionadas por Valério Máximo e as figuras da Laudatio,
como há mesmo elementos aparentemente incompatíveis, além de que
nada no texto epigráfico permite sustentar essa hipótese de fato.8
A tão entusiasmante proposta defendida por Della Corte e Momm-
sen teve, pois, de ser abandonada. De qualquer modo, e conscientes das
problemáticas inerentes à identificação da mulher do elogio fúnebre
com a Túria, mulher de Quinto Lucrécio Vespilão, decidimos, tal como
Josiah Osgood (2014, p. 5), por pragmatismo e comodidade historio-
gráficos, manter a designação “Túria” para nos referirmos à mulher e
esposa protagonista da célebre inscrição, ainda que alguns prefiram a
expressão mais abstrata e abrangente Laudatio uxoris, para designar o
documento a que se refere.

6. Com efeito, a publicação desta inscrição distribui-se por várias rubricas do CIL: VI
1527, 31670, 37053 (= ILS 8393; cf. CIL VI 41062).
7. Nomeadamente, Dante Vaglieri, que nesse ano pôs em dúvida essa identificação,
depois de descoberto um sexto fragmento da inscrição (OSGOOD, 2014, p. 5).
8. Para uma discussão desta problemática, vide Durry (1950, lviii-lxii).

15
Num dos mais importantes estudos dedicados à Laudatio Turiae,
Marcel Durry classifica a inscrição em causa como um “puzzle épigra-
phique” (DURRY, 1950, p. XLV). Com efeito, gravada em duas colunas
sob um título comum e sobre duas tábuas de mármore, a longa inscri-
ção de 180 linhas acabou partida e fragmentada, permanecendo até aos
dias de hoje incompleta. Ainda assim, no total, conseguimos recuperar
sete fragmentos,9 a partir dos quais o esforço de arqueólogos, epigrafis-
tas, paleógrafos, filólogos e historiadores conseguiu reconstituir cerca
de três quartos do texto original.10 É de notar, porém, que este é um tra-
balho que se tem mantido em contínuo praticamente desde o final do
século XVI, cronologia de que datam as primeiras transcrições e estu-
dos em torno deste testemunho da civilização romana.11
Como assinalamos, basicamente, a inscrição registra o elogio ou
louvor fúnebre de um marido que ali dá testemunho do que foi a vida
com a sua mulher e como ela marcou a sua existência. O louvor resulta
numa pequena biografia de “Túria” em forma de laudatio, a qual permi-
te enriquecer sobremaneira o nosso conhecimento prosopográfico da
Roma Antiga.12 Com efeito, a Laudatio Turiae é particularmente rica –
não sem problematização – em informações de natureza jurídica, mas
também política, social e cultural, como foi já salientado por alguns au-
tores.13

9. Em 1950, quando M. Durry publicou o seu livro, apenas seis fragmentos tinham
sido recuperados; pouco tempo depois, porém, um sétimo fragmento foi encontrado
e acrescentado ao puzzle. Esse fragmento foi publicado por Gordon (1950, p. 223-226).
Note-se que alguns dos fragmentos recuperados já só existem transcritos e não na sua
forma original. Vide Osgood (2014, p. 3-8); Fowler (1905, p. 261-266).
10. Vide Durry (1950, li); e.g. Kruschwitz (1999); Horsfall (1983).
11. Uma síntese da história da inscrição, sua redescoberta e estudo, pode ser lida em
Durry, 1950, xl-liii; vide também Osgood (2014, p. 4-5).
12. Sobre a laudatio e de quão ela era comum em Roma, vide Durry (1950, xiv-xxii);
Osgood (2014, p. 107-112).
13. Nomeadamente, Durry (1950); Wistrand (1976); Osgood (2014).

16
É bem provável que o discurso fúnebre ali registado, bem como
a inscrição, date de 7 ou 6 a.C., ano em que deverá ter morrido a uxor a
quem o autor do texto se dirige.14 Trata-se, portanto, de um documento
do tempo de Augusto e do início do Principado em Roma. O texto da
laudatio alude a vários episódios da vida de “Túria” e seu marido, histo-
ricamente verosímeis e contextualizáveis em datas e fatos conhecidos,
que vão da compra de uma casa em 52 a.C. até à reabilitação do marido
da uxor, proscrito na sequência das proscrições de 43 a.C., por edito de
Augusto, em 42 a.C. Pelo meio, fica ainda um exílio daquele que viria a
ser marido de “Túria”, e do cunhado, Clúvio, em 49 a.C. além do casa-
mento de ambos em 47 a.C (OSGOOD, 2014, p. 153).15 Posto isto, a vida
dessa mulher desenrolou-se entre o final das Guerras Civis, o Primeiro
Triunvirato (6053 a.C.) e a acessão de Octávio Augusto, com momentos
particularmente intensos durante o Segundo Triunvirato (43-36 a.C.).
Trata-se, portanto, de uma figura que viveu o fim da República e os al-
vores do Principado.
A laudatio funebris, que remonta à antiga nênia, tem característi-
cas semelhantes a outras composições laudatórias (e.g. elogium, a me-
moria uitae, o panegírico ou o epitáfio)16 sem, todavia, se confundir em
absoluto com elas. Recorrendo a um estilo que roça a esfera do jurídico-

14. Consideramos pertinentes e aceitamos os argumentos propostos por Osgood


(2014, p. 151-153), para a datação do monumento e dos fatos nele mencionados.
15. Osgood é convincente na proposta da data, sendo mais específico do que Durry
(1950, liv), que propunha como datação da inscrição o intervalo 8-2 a.C.
16. Durry (1950, xxxi), chama-lhes “avatares da laudatio”. Um exemplo de epitáfio a
citar é o de Cláudia, datado do século II a.C. e traduzido por Rocha Pereira (1994, p. 13):
“Estrangeiro, pouco tenho para te dizer; pára e lê.
Este é o sepulcro não pulcro de uma pulcra mulher.
Cláudia foi o nome que lhe puseram seus pais.
Ao marido amou de todo o seu coração.
Filhos, criou dois. Destes, a um,
deixou sobre a terra, o outro sob ela.
Aprazível a sua fala, gracioso era o seu andar.
Cuidou da sua casa, fiou lã. Disse. Podes ir-te.”

17
-historiográfico, tal é a sua simplicidade,17 o seu objetivo seria essencial-
mente evocar e reconstituir a vida do defunto, exaltando todas as suas
conquistas e virtudes. Albrecht considera-a mesmo um escalão prelimi-
nar da historiografia latina e uma ponte entre a oratória, a biografia e a
historiografia (ALBRECHT, 1997, p. 57, 66, 443).18 Note-se que a laudatio
constitui um gênero de composição oferecido a uma pessoa e é especifi-
camente romana. Sem prejuízo para a existência de orações ou elogios
fúnebres em contexto grego, é entre os Romanos que, pela primeira vez,
surge o louvor fúnebre dedicado a um indivíduo e não a um grupo ou
comunidades, como parece ter acontecido com os Gregos.19 No Bruto,
Cícero sugere que a laudatio seria um dos mais antigos monumentos da
eloquência latina, ad memoriam laudum domesticarum et ad illustrandam
nobilitatem (“para memória das glórias domésticas e para abrilhantar a
nobreza”, Cic. Brut. 61-62). Faz ainda parte das características da lauda-
tio o fato de ela ser proferida por parentes próximos do defunto elogia-
do. E se, no início, a laudatio era dirigida a indivíduos do gênero mascu-
lino, a partir de finais da República, começam a aparecer referências e
testemunhos de laudationes dirigidas a mulheres, primeiro a matronas
mais velhas e de elevado estatuto sóciojurídico, alargando-se depois a
mulheres mais jovens. Assim mostra o caso de Júlio César, que proferiu
o louvor da sua mulher, Cornélia, precocemente falecida aos 28 anos, c.
69 a.C. (Plut. Caes. 5; cf. Plut. De mul. uirt. 1).20
A Laudatio Turiae inscreve-se neste contexto. Deverá tratar-se de
um louvor proferido pelo marido da finada, em ambiente íntimo e pri-
vado, ad sepulcrum.21 A sua estrutura não obedece propriamente a um

17. Durry (1950, xliii), usa a expressão “anti-Kunstprosa”.


18. Vide ainda Crawford (1941, p. 17-27).
19. Sobre esta questão, vide a excelente síntese de Durry (1950, xiii-xvi).
20. Vide Durry (1950, xxi).
21. Em alguns casos, essa laudatio terá ocorrido, tal como acontecia com os homens,
em espaço público, mas concretamente junto aos rostra (vide Plut. De mul. uirt. 1). So-
bre o gênero da chamada Laudatio Turiae, vide Durry (1950, xxii, liv, lxxix).

18
esquema retórico conhecido, ainda que nela possamos reconhecer al-
gum tipo de estrutura, pela comparação com várias laudationes fune-
brium, nomeadamente com a de Lúcio Cecílio Metelo, que foi cônsul em
251 e em 247 a.C. e ditador em 224 a.C. A laudatio Metelli foi proferida
em 221 a.C., por um dos netos do morto, e a sua memória é evocada por
PlíniooVelho (NH 7.139). Alguns dos tópicos que encontramos na lauda-
tio Turiae teriam muito provavelmente sido incluídos na laudatio Metelli,
nomeadamente: lamentações, origens do falecido, antepassados, re-
trospectiva cronológica, honras, vida privada, patrimônio, descendên-
cia, consolações e as normais fórmulas funerárias intrínsecas ao gênero
(DURRY, 1950, LXXX-LXXXI).22 Por outro lado, a laudatio em geral de-
veria obedecer à inclusão de alguns tópicos tidos como essenciais para
a sua eficácia, tal como o sugerem Cícero, no De oratore – que salienta a
importância de numa laudatio se exaltar aquilo que uma boa natureza e
fortuna concederam aos homens, como a beleza e o caráter, mas tam-
bém o patrimônio, amigos, recursos e saúde (Cic. De Orat. 2.45-46) – e
Quintiliano, na Institutio Oratoria – que salienta a importância dos da-
dos cronológicos na vida de um indivíduo (Quint. Inst. 3.7.15).
Efetivamente, a evocação da memória de “Túria” faz-se trazendo à
colação assuntos inerentes à vida pública e à vida privada (com suas co-
nexões e implicações jurídicas, naturalmente), mas também traços do
ethos da falecida, assim como aspectos ligados aos afetos e à vida senti-
mental.
Relativamente à vida pública, referem-se o exílio e a proscrição
do, primeiro, noivo e, depois, marido, respectivamente em 49 e em 43
a.C. – em 49, também o exílio do cunhado (2.2-10; 1.24) – o fim das Guer-
ras Civis e a vigência do regime de triunvirato (2.25-50). Quanto à vida
privada, são mencionados o assassínio dos pais (1.3-6), a punição dos

22. Como nota este autor, a ordem e o esquema poderiam variar de acordo com as
circunstâncias do celebrado.

19
assassinos – na qual, “Túria” teve um papel activo e fundamental (1.7-
12) –o testamento do pai (1.13-26), o patrimônio doméstico (1.37-41), as
mercês familiares (1.42-51) e o projeto de divórcio (2.25-50).
Ao nível afetivo, fazem-se ouvir as lamentações próprias da perda
e, em particular, da viuvez do marido (2.51-68), a que se associa a oração
em prol da defunta (2.69).
Por fim, no plano ético, destacam-se as qualidade e virtudes de
“Túria”, enquanto mulher e esposa (1.27-36). A ordem de apresentação
dos vários temas, porém, não é a mesma por que os sistematizamos.23
Com efeito, os tópicos aparecem entrelaçados ao longo do elogio fú-
nebre feito pelo marido. Como nota M. Durry, muito provavelmente, o
louvor iniciavase com alusões à família e à juventude, que, contudo, a
fragmentação da lápide não permite confirmar – até aos dias de hoje
– (DURRY, 1950, LXXXI). E, relativamente às virtudes, ainda que con-
centradas num passo (1.30-32), elas estão implícitas e são intuídas pelo
auditor/leitor e perceptíveis ao longo de todo o relato das vicissitudes
do percurso biográfico de “Túria”.
Interessa-nos destacar precisamente este último tópico: as qua-
lidades e virtudes de “Túria”, visto que são elas que no final das con-
tas acabam por definir a uxor ali elogiada como uma matrona romana
ideal.24
Apesar de truncada, é ainda possível ler na primeira linha da colu-
na 1 o que resta do substantivo probitas, a “honradez” ou “pureza”, muito
provavelmente ali aplicado à uxor (1.1). Essa probitas é associada a mores,
os costumes, as práticas ou as ações, implicando desde logo um dos im-
portantes valores romanos: o mos maiorum.25 As ações, incluindo as dos

23. A nossa sistematização segue o esquema definido por Durry (1950, lxxxi).
24. Apesar de pertinentes, não tratamos aqui as problemáticas de natureza jurídica,
e.g., que a laudatio coloca. Essas, aliás, foram já alvo de análises profundas e discus-
sões pertinentes. Vide e.g. Osgood (2014, p. 18-22); Flach (1991); Lemosse (1950).
25. Sobre o mos maiorum, vide e.g. Rocha Pereira (2002, p. 357-361).

20
antepassados, eram particularmente importantes para a definição da
romanidade ou romanitas de um indivíduo. Aqui, elas parecem ser as-
sociadas à honradez de “Túria”, vinculando-a a esse valor fundamental.
A laudatio explora então alguns dos acontecimentos da vida da
uxor. Evoca-se o combate de “Túria” por fazer cumprir as vontades do
pai, depois da morte violenta deste (1.7, 20). O marido refere explici-
tamente por mais que uma vez a pietas da mulher ao levar a cabo a sua
determinação em fazer cumprir os desejos paternos, assim como a pu-
nição dos assassinos dos pais (1.3, 25). Com efeito, ao fazê-lo, “Túria”
demonstrava o seu respeito pelo antepassado, assim como cumpria o
seu dever filial; e ao mesmo tempo procurava servir a justiça (iustitia).
Note-se que o combate pela herança paterna, de que o texto é testemu-
nha, assim como a pretensão de a partilhar com a irmã (1.10, 20), revela
a pietas familiar de “Túria” num sentido geral, pois implica não só o res-
peito pelo paterfamilias, como também o desejo de protecção da soror ou
irmã (1.26, 32; 2.39). Mais tarde, essa pietas vem também a revelar-se no
respeito e afeição que revela ter pela sogra (1.32; 2.39).26
O marido louva a presença de espírito (praesentia animi) e resis-
tência (restiteris, de resisto) da uxor em concretizar a sua vontade, de
modo a ir ao encontro do que, na sua perspectiva de matrona romana
de elevado estatuto no século I a.C., estava eticamente correto (1.16-17).
Na sequência destas observações, o marido remata o passo da laudatio
com a ideia de que, além da pietas, “Túria” revelava também um outro
não menos importante valor romano: o da fides. No caso da fides, ela é
aplicada ao contexto conjugal, como aliás faz Valério Máximo, ao contar
a história da Túria de Lucrécio Vespilão, a qual acabou por motivar a
pseudodesignação da uxor da laudatio uxoris (cf. V. Max. 6.7.2). A ideia

26. Como notámos, deixamos as questões jurídicas aqui envolvidas, visto estarem
fora dos objectivos deste estudo e terem sido já exaustivamente estudadas por autores
como Durry, Lemosse, Osgood, Flach e Wistrand. Sobre a pietas de “Túria”, vide ainda
Osgood (2014, p. 20, 24).

21
moral de fides é também suficientemente citada na laudatio para que to-
memos consciência da sua relevância naquele contexto (e.g. 2.43, 45).
A fides é assim colocada a par da pietas, enquanto valores que podem
expressar a natureza essencial não só de uma vivência política, na Vrbs
– porque de fato o é – como também de uma relação conjugal (cf. 2.1).
Envolvida nessas obrigações, diz a laudatio, e ao mesmo tempo
que se revelava uma mulher sanctissima, i.e., “irrepreensível” / “muito
íntegra”, pois assim é descrita ao ser comparada à irmã detentora des-
se adjetivo (1.9), “Túria” deixa a sua casa para se juntar à sogra, na casa
do noivo, e desse modo guardar a sua pudicitia ou “modéstia” / “conten-
ção” / “castidade” / “pudor” (1.10).27 Esta é uma oportunidade para lou-
var uma outra qualidade romana particularmente associada ao gênero
feminino. É, aliás, um dos princípios definidores de Lucrécia, a heroína
matricial dos Romanos.28
Outra qualidade apontada ainda pelo marido para caracterizar a
sua mulher é a liberalitas (“generosidade”, 1.42), pois foi sob os auspícios
dessa virtude que “Túria” ajudou alguns parentes necessitados. Além
disso, “Túria” é apresentada como consiliosa (“boa conselheira”) e modes-
ta (“sensata”, 2.6-7, 55) e patiens (“resistente”, 2.21).
É, pois, sob o disfarce de uma aparente redundância, que o ma-
rido a determinado passo enumera as virtudes domésticas (domestica
bona, 1.30) que reconhece na sua mulher. Elas são tipicamente roma-
nas, como a já aludida pudicitia (“modéstia” / “contenção” / “castidade” /
“pudor”, uma segunda referência serve para retoricamente a reforçar,
como é evidente). Mas o texto exalta também virtudes, como obsequium
(“obediência”), comitas (“gentileza”), facilitas (“afabilidade”), caritas
(“amor”). Além das virtudes que lhe são atribuídas, “Túria” é dita ser la-
nifica (“habilidosa no trabalho a lã”), religiosa sine superstitione (“piedosa
27. Sobre a pudicitia e a exemplaridade, vide Langlands (2006, p. 357-362); Langlands
(2018), e Osgood (2014, p. 25).
28. Vide Rodrigues (no prelo).

22
sem ser supersticiosa”), ornata non conspicienda (“desataviada”), cultus
modica (“contida nos cuidados de si”) (OSGOOD, 2014, p. 54).
Com efeito, várias são as fontes que enumeram as grandes qua-
lidades ou virtudes femininas, destacando-se de entre estas atributos
como lanifica, pia, pudica, frugi (“sóbria”), casta, domiseda (“caseira”), ma-
ter bona, religiosa, laboriosa, efficaxs (“actuante”), uigilans, sollicita, uniui-
ra, unicuba (“casada apenas uma vez”), fidei matrona e totius industriae.29
As qualidades enumeradas na laudatio bem como as ações ali descritas
vão ao encontro destas outras ou complementam-nas. Quando “Túria”
entrega as jóias pessoais para garantir a subsistência, e até sobrevivên-
cia, daquele que virá a ser seu marido, então exilado e perseguido, isso
corresponde tanto à modéstia própria do desatavio (ornata non conspi-
cienda), como a alguém que pratica a fides (2.2a).
Esta galeria de virtudes corresponde à definição de um gênero fe-
minino que remontava, pelo menos aos inícios da República. Ainda que
a posteriori projectada no passado, sobretudo por autores como Tito Lí-
vio e Dionísio de Halicarnasso, uma figura como Lucrécia, a mulher ro-
mana que espoleta o tiranicídio, e consequente abolição da monarquia
romana, ostentava já a esmagadora maioria dessas qualidades, nas nar-
rativas que dela davam conta.30 De igual modo, Túlia Menor, a perversa
filha de Sérvio Túlio, constituía-se como a antiromana por definição,
por representar a negação de todas as qualidades e virtudes romanas,
nomeadamente a pietas, através do flagrante acto de impietas consubs-
tanciado no acto de fazer passar o carro em que se faz transportar por
cima do cadáver ensanguentado do próprio pai.31
A novidade de “Túria”, ou o que se entende como inovador nas pa-
lavras do seu marido, é a associação da mulher a ações e virtudes que
vão além destas e que, em alguns casos, a uma primeira vista seriam
29. Vide e.g. Sen. Helu. 16.2; CIL VI 11602; VIII 11294.
30. Vide Rodrigues (no prelo).
31. Vide Rodrigues (no prelo); Hemelrijk (2004, p. 185-197).

23
mais do foro masculino do que do feminino. Neste sentido, a Laudatio
Turiae ou, se preferirmos a feliz expressão de M. Durry, a Laudatio uxoris
ignotae (DURRY, 1950, XCVII) parece apontar para um protótipo reno-
vado da matrona romana, aquela que emerge neste período de fim de
ciclo, representado pelas guerras civis, na agonia da República e emer-
gência do Principado. “Túria” parece prenunciar a mulher augustana.
Ela continua a ser boa filha, boa mulher, boa nora, boa irmã. Ela retoma
as virtudes ancestrais romanas. Mas traduz também uma nova mulher,
que é a do Principado. De certo modo, estamos a falar de um estado que
podemos classificar como o da maturidade da mulher romana clássica,
que passa a estar à altura do seu congênere masculino, capaz de, como
aquele, encarnar o espírito dessa Nova Roma.
Esse ideal de mulher implica agora, de modo reforçado: o casa-
mento; a asseguração da descendência; a criação, manutenção e admi-
nistração de um patrimônio; e a garantia da sucessão. Já iremos a esta
questão. Antes, há que salientar que esta nova mulher implica também
o domínio de uma coragem que chega a ser física e por isso, cremos po-
der dizê-lo, viril (uirtus).32 I.e., aquela coragem ou até mesmo audácia,
por norma associada aos homens e não às mulheres, como a que “Túria”
demonstra ter ao perseguir e conseguir a punição dos assassinos dos
pais (1.5-7), ao defender a sua casa (2.9a) e ao apresentar-se no tribunal
de Marco Lépido para interceder pelo marido proscrito e sujeitar-se às
humilhações que o triúnviro lhe inflige (2.11-18). Vai, portanto, muito
além da amazona Clélia, dos tempos da lenda.33 A este propósito, vale a
pena citar M. Durry: “Femme sans homme, elle a agi en homme, mais
elle consent à redevenir femme.” (DURRY, 1950, XCIV). Talvez por isso
essa coragem seja expressa por uirtus, de uir (2.6a, 19). Também assim

32. Cf. Osgood (2014, p. 54); vide ainda Hemelrijk (2004, p. 185-197).
33. Sobre Clélia, Rodrigues (2005, p. 187-191); Rocha Pereira (2002, p. 34-35).
se revela a patientia, ou capacidade de resistência e de suportar o sofri-
mento, de “Túria”.
Impõe-se uma última análise: a das virtudes que, de modo não
inocente, por certo, também o marido deixa para o final da laudatio. Por
conseguinte, essas são as qualidades que o auditor/leitor do louvor da
esposa reterá mais facilmente na memória, salientandose como o mais
importante traço da personalidade de “Túria” como mulher romana: o
altruísmo e a abnegação.
A primeira associamo-la a humanitas (ROCHA PEREIRA, 2002, p.
423-429), a segunda a abnegatio. São estas duas características que en-
trevemos na atitude de “Túria”, quando, ao perceber que não será mãe
e que, portanto, será incapaz de assegurar ao seu homem uma descen-
dência que lhe perpetuasse os cultos familiares tal como Roma recla-
mava, ela se prontifica a dar o divórcio ao marido para que ele despose
outra mulher, angariando assim outra uxor, capaz de lhe proporcionar
tais prerrogativas e dignidades.
Como assinalamos, parte das funções da femina romana ideal es-
tava em assegurar a descendência e a sucessão do seu marido, i.e. da
sua familia, e a continuação da sua gens. No tempo de Augusto, esta será
uma realidade particularmente significativa e importante, como revela
o conjunto de leis familiares e de costumes promulgadas pelo princeps.34
Assim se entende que “Túria” tenha desesperado, como se deduz pela
nossa fonte, quando percebeu que era infértil e que jamais assegura-
ria essa tão desejada descendência ao marido. Com efeito, em Roma, a
infertilidade e consequente ausência de descendentes não eram meros
problemas domésticos; tinham sérias implicações públicas e civis (OS-
GOOD, 2014, p. 65). Mas, ciente da importância desse fator, “Túria” não
hesita em abnegar-se, em anular-se e, assim, propor ao marido o di-

34. Relativamente ao adultério, vide e.g. Teixeira (2009, p. 361-366); vide ainda Osgood
(2014, p. 84).

25
vórcio, para que, com outra mulher, ele possa assegurar a continuidade
da sua casa (2.31-33). Desse modo, antes de nela própria, a uxor pensa
no marido, revelando um altruísmo ou forma de humanitas ímpar. Com
efeito, não seria fácil ser matrona sem a capacidade de ser mãe.
É também essa atitude da uxor que deixa que entrevejamos nela
uma precursora do estoicismo em Roma.35 Mas não só. Há nela também
algo daquela caritas cristã, de que São Paulo faz eco na primeira epístola
aos Coríntios (1Co 13.4-7).36 Essa verificação permite-nos colocar uma
outra questão: no seu contexto de origem, afinal quão inovador é o cris-
tianismo no que à condição feminina diz respeito?
O marido, reconhecendo as qualidades da sua mulher, aceita-
rá resignado a dor da ausência de descendência, mas fará questão de
demonstrar que essa em nada ultrapassava a que seria uma dor ainda
maior: a da perda da mulher amada (2.58-68). Agora perdida para a
morte, o marido recusara-se, pois, a perder “Túria” em vida, rejeitando
a proposta de divórcio, que considerou ofensiva do seu amor, todavia
digna de uma mulher com um grande sentido de romanitas.

Em conclusão
A Laudatio Turiae é na verdade uma história de amor. Ou melhor, um
hino ao amor, como só um bem-sucedido casamento de 40 anos pode
compor. Josiah Osgood chamalhe “a love poem in prose” (OSGOOD,
2014, p. 101-107, 115). A gratidão demonstrada pelo marido de “Túria”

35. Esta questão foi debatida por Durry (1950, xcvii).


36. Texto que na Vulgata reza: Caritas patiens est, benigna est. Caritas non æmulatur, non
agit perperam, non inflatur, non est ambitiosa, non quærit quæ sua sunt, non irritatur, non co-
gitat malum, non gaudet super iniquitate, congaudet autem veritati: omnia suffert, omnia cre-
dit, omnia sperat, omnia sustinet. Caritas numquam excidit. Naturalmente, o texto original
de São Paulo, todavia, foi escrito é grego e o termo grego aqui traduzido por caritas é
ἀγάπη. Mas ideia subjacente mantém-se.

26
está na proclamação pública dos seus feitos, das suas qualidades e vir-
tudes (2.23-24):

The laudatio was an opportunity for the husband to praise his wife and
tell her a final time what she meant to him; it also became, in published
form, a chance to share his grief with others, reveal its origins, and in
doing so defend a love that he shared with his wife. (OSGOOD, 2014, p.
101-107, 115)

Desse modo, o marido consegue que a mulher atinja a fama (2.58,


65), também esta um valor querido dos Romanos, perpetuando-lhe a
memória (2.60) (OSGOOD, 2014, p. 101-107, 115).37 O marido não hesita
mesmo em classificar as ações da sua uxor como maxima opera (2.22-23).
De certo modo, “Túria” segue os passos de Lucrécia e concretiza
o exemplum que a matrona primordial fora para todas as romanas. Mas
“Túria” parece ir mais além. Também ela defende o seu honos e a sua pu-
dicitia. Também ela se sacrifica por um bem maior. Também ela revela
uma uirtus que chega a implicar o confronto com o físico. Mas a novida-
de em “Túria” está na disposição para aceitar tudo isso sem sair com-
pletamente de cena, mantendo-se abnegada nos bastidores, assistindo
na retaguarda ao êxito daqueles que, por prioridade cívica, o devem ter.
Por outras palavras, garantir a felicidade do marido. Não fosse a recusa
deste em aceitar tal abnegação e “Túria” tê-la-ia aceitado de bom grado.
Ao mesmo tempo, essa laudatio constitui-se como uma biografia
e muito ao gosto romano. Note-se, aliás, com M. Durry, como apesar de
toda a influência cultural helenística que no tempo de “Túria” e do ma-
rido se fazia sentir em Roma, nada há nesta laudatio que a marque com
elementos gregos. Ali nada lemos sobre Alceste ou Laodamia, e.g., que
no corpus mitológico grego são os protótipos do amor conjugal capaz de

37. Sobre a fama, vide ainda Langlands (2006, p. 65-67, 198-199).

27
resistir à própria morte (DURRY, 1950, XLII). Tudo ali é intrinsecamen-
te romano, nomeadamente, as virtudes evocadas.
Não podemos deixar de concordar ainda com Durry quando es-
creve sobre um tom de tristeza que subjaz a este texto (DURRY, 1950, p.
XCVII). É o fim de um ciclo que se pressente. É verdade. Mas não deixa
também de ser válido afirmar que se trata de um documento em que se
percebe, talvez melhor do que em nenhum outro, a profundidade das
palavras proferidas no casamento romano e transmitidas por Plutarco:
Vbi tu Gaius, ego Gaia (Plut. QR 30).38

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38. Evidentemente, Plutarco repete a fórmula matrimonial romana em grego: ὅπου σὺ


Γάιος, ἐγὼ Γαΐα.

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