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Francisco Camêlo
Leonardo Apolinário Alves de Lima
Patrick Gert Bange
Ricardo Pinto de Souza
Sumário
Apresentação7
Francisco Camêlo, Leonardo A. Lima, Patrick G. Bange,
Ricardo Pinto
A dialética da imagem 87
Pedro Alegre
8
e embora essas informações biográficas sejam sempre pre-
ciosas na exegese e comentário de seus textos, sempre existe
uma riqueza única em suas palavras, no movimento de seu
pensamento e sua relevância para o entendimento de nos-
so modus que é intrínseca a seu texto e sua escrita. O imbri-
camento entre o trabalho do pensamento e o artesanato do
texto e a experiência específica de uma vida faz parte do que
torna Walter Benjamin um pensador fundamental para nos-
so tempo. Certamente algumas imagens mais intensas dessa
biografia participam de sua leitura — a doce perversidade da
infância, alguns amores, algumas amizades, as várias formas
de penúria dos anos de catástrofe, o suicídio. E há certamen-
te Benjamin, o personagem, que seus leitores conhecem e
admiram. Mas não é propriamente o afeto pelo personagem
que gera a proximidade. Há uma dimensão de amizade na
relação entre seus leitores contumazes e seus textos que não
depende de algum acidente biográfico ou alguma atração
romanesca que a narrativa ao seu redor tenha criado. Entre
os textos de Benjamin e seus leitores há algum tipo de sen-
timento de amizade produzido possivelmente pelo que suas
palavras nos oferecem. Ser leitor da obra de Walter Benja-
min significa ter de lidar, a todo momento, com a alegria da
gratidão. O corpo de seus textos é um caminho — ainda que
um pouco torto e cheio de desvios — para a compreensão do
mundo moderno e quase inesperadamente uma ferramenta
de resistência e combate ao mal que o habita. Coisa estranha:
quem convive com suas palavras se afeiçoa ao que lê sem que
o afeto gere algum tipo de obrigação ou de adesão pura, sua
autoria não gera a angústia de um fantasma. Afeiçoa-se às pa-
lavras, à sua capacidade estrutural de revelar camadas e nu-
ances a cada leitura, à experiência íntima de alguma verdade
que do emaranhado de conceitos e imagens parece querer
surgir. E sua obra possui, de fato, um inegável teor de verdade
sobre a condição moderna. Poucos textos são tão importan-
tes para a história da estética quanto “A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica” ou tão influentes para o pen-
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maneira de garanti-lo é manter suas palavras vivas em ain-
da mais uma leitura. Ainda mais um comentário. Ainda, de
novo, mais um mastigar do que sua palavra traz. É isso o que
foi operado nas jornadas benjaminianas de 2017 pelos auto-
res que se expuseram aos ouvidos, elogios e críticas de seus
pares no início de dezembro. Ainda, mais uma vez, de novo,
Walter Benjamin e seu mito do mundo moderno. Assim, tal-
vez, possamos capturar alguma coisa de sua inteligência e
cultivar nossos melhores anjos.
Para pensar a tensão entre proximidade e distância, Patrick
Gert Bange propõe uma instigante releitura do passado de
Walter Benjamin a partir do relacionamento do pensador
alemão com a diretora de teatro Asja Lacis. O autor toma o
encontro amoroso entre Benjamin e Lacis como um medium
de reflexão e recolhe em Ricardo Piglia e Marcel Proust exem-
plos de uma revelação psicótica e de uma busca de invenção.
O trabalho de Beatriz M. da Gama Malcher em “Um aviso de
incêndio no séc. XXI: a serventia de Walter Benjamin para
pensar a sociedade e a política hoje”, se detém sobre os mo-
vimentos narrativos das redes sociais à luz dos ensaios políti-
cos de Walter Benjamin
Tomaz Amorim Izabel em “A interrupção da violência e sua
interrupção divina” analisa modelos possíveis de relação en-
tre conceitos a partir de “Para uma crítica da violência” de
Walter Benjamin e aponta para formas disruptivas que po-
dem ser pensadas em conjunto ao conceito de violência pura.
Cristina Susigan reflete sobre os conceitos de montagem de
Walter Benjamin e de Bilderatlas de Walburg tendo como
ponto de convergência entre os dois pensadores a questão da
imagem
Pedro Alegre, a partir de uma dialética da imagem, analisa o
pensamento benjaminiano a partir dos problemas do tem-
po e da história na reelaboração da questão da linguagem no
âmbito teórico e filosófico.
O texto de Isabela Pinho traça aproximações entre as obras
12
linguagem e cena da origem em Walter Benjamin e Haroldo
de Campos” realiza um estudo comparativo entre a prática
tradutória do livro bíblico da Gênesis empreendida por Cam-
pos em sua tradução, que tem assumidamente um ponto de
partida benjaminiano, e a teoria da linguagem do próprio
Benjamin. O autor chama a atenção para o caráter político
e essencialmente humanista da concepção benjaminiana
posterior da linguagem. O pensá-la como fundamental e
originariamente enquanto medium da criação, o que permi-
te posteriormente seu ‘radicalismo epistemológico’, quando
‘sua ontologia idealista ou realismo transcendental iniciais se
reconfiguram em um materialismo antropológico em que as
ideias passam a ser entendidas como princípios significan-
tes do pensamento humano entendido como ação cognitiva
transformadora do mundo’.
Caio Paz em “Notas sobre a violência: um debate com Walter
Benjamin” refaz os passos da discussão discussão benjami-
niana sobre direito e violência presente em “Para uma crítica
da violência”. O interesse do autor é revisar os argumentos do
texto original e acompanhar a discussão do texto em Derri-
da e Agamben. A crítica de Derrida (Força da lei) entende
a posição de Benjamin, no que tem de crítica à democracia
burguesa, como próxima de formas de autoritarismo, o que
se afasta da posição de Agamben na série Homo Sacer, que
radicaliza a posição Benjaminiana e demonstra a conivên-
cia — na verdade identidade — da democracia burguesa e
do autoritarismo político. O texto é um recurso valioso para a
entrada no original benjaminiano como para a reflexão sobre
suas consequências éticas e políticas a partir do debate pos-
terior entre Agamben e Derrida.
Ana Carolina Martins em “O real estado de exceção: o direito,
a violência e a política em Walter Benjamin” explora o con-
ceito de “Estado de exceção” no oitavo parágrafo de “Sobre
o conceito de história”, recorrendo ao diálogo na década de
1920 de Walter Benjamin com o teórico do direito alemão
Carl Schmitt (que teria como um de seus produtos mais céle-
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objeto pela projeção psicológica do observador/investigador
na obra”, ou ainda de, nas palavras do próprio Benjamin, “tor-
nar pensamento visível na palavra”. O autor conduz uma re-
flexão valorosa sobre como as condições materiais de produ-
ção da obra benjaminiana são importantes para sua gênese e
interpretação, especialmente uma escrita “do exílio”, escrita
produzida em trânsito intermitente e, posteriormente, fuga.
O texto de Francisco Camêlo propõe um interessante modo
de ler, na obra de Benjamin, a figura de um colecionador de
miniaturas. Numa espécie de vertigem do menor, o texto per-
formatiza um trajeto, a partir de Benjamin, constituindo, ele
mesmo, uma coleção de miniaturas, passando por Willard
Wigan, Márcia X, Marcel Duchamp, John Cage, Arthur Bispo
do Rosário e Clarice Lispector.
Alessandra Affortunati Martins Parente analisa a peça tea-
tral A torre, de Hugo von Hofmannsthal, a fim de explicitar o
modo pelo qual essa releitura de A vida é sonho, de Calderón
de la Barca, questiona a autoridade paterna e a linguagem
após a Primeira Guerra Mundial. A partir da psicanálise e das
resenhas das duas versões da peça de Hofmannsthal, escritas
por Walter Benjamin, a autora evidencia um alargamento das
categorias do drama barroco alemão.
Os editores do volume e organizadores das Benjaminianas
gostariam de agradecer imensamente à colaboração de todos
os autores, mas, mais importante, sua disposição e têmpera:
esse livro é, ao cabo, dedicado àqueles que continuam pen-
sando apesar do tempo, contra o tempo, como Benjamin.
18
uma outra “deusa do tempo”, como Albertine o é para Marcel
(PROUST, 2011, p. 448). Essa outra deusa do tempo implicaria
não só uma releitura do passado de Benjamin, mas também
um efeito formal. Leio uma passagem de 1931, escrita num di-
ário de Benjamin, citada numa bela palestra de Gagnebin em
torno de “Rua de mão única”:
Falou-se sobre experiências do amor e no decorrer da conversa
me ficou pela primeira vez claro que quando um grande amor
ganhava violência sobre mim, eu me transformava tão profun-
damente e fortemente que ficava muito admirado em ter que di-
zer: o homem que diz coisas tão imprevisíveis e que se conduziu
de maneira tão inesperada, esse homem seja eu. [...] Essa experi-
ência se realizou com a maior intensidade na minha relação com
Asja [Lacis], de tal forma que somente nesse momento que eu
descobri muito em mim. [...] Conheci três mulheres diferentes
na minha vida e três homens diferentes em mim2.
Logo aí já se vê o impacto que tem Lacis na vida e no pen-
samento de Benjamin. Para dizer disso um pouco melhor, é
bom lembrar algo sobre essa mulher. Lacis conhece, antes
de Benjamin, Brecht. Ela traz da Rússia algo importante para
o modo como os formalistas russos pensavam o trato com
o objeto literário. O desvelar da arte literária como procedi-
mento e a busca por nomear o que nela a tornava diferen-
te do discurso corrente, da língua normal, da linguagem do
2017, p. 55-86).
2 Man sprach über Erfahrungen in der Liebe und mir wurde es
zum ersten Male im Laufe dieses Gespräches deutlich, daß ich
mich jedesmal, wenn eine große Liebe Gewalt über mich bekam,
von Grund auf und so sehr verändert habe, daß ich sehr erstaunt
war mir sagen zu müssen: der Mann, der so ganz unvermutbare
Dinge sagte und ein so unvorhergesehenes Verhalten annahm,
der sei ich. [...] am Gewaltigsten war diese Erfahrung in meiner
Verbindung mit Asja (Lacis), so daß ich vieles in mir erstmals en-
tdeckte. [...] Ich habe drei verschiedene Frauen im Leben kennen
gelernt und drei verschiedene Männer in mir. (BENJAMIN, GS, VI,
p. 427, tradução de Jeanne Marie Gagnebin, disponível em vídeo,
em https://www.youtube.com/watch?v=Q1RQhiPfzIc&t=2446s).
20
Lacis3, sabe-se que Benjamin arquiteta a viagem a Moscou
para reencontrá-la. Na cena inicial do encontro, narrado
no diário, Benjamin é recebido pelo companheiro de Lacis
assim que chega e, logo depois, a encontra na rua. À época,
ela estava doente, internada em um sanatório, onde se deu a
maioria dos encontros. Dois dias depois, pela manhã, Ben-
jamin a recebe no hotel e mostra-lhe um pequeno livro em
brochura, intitulado “Rua de mão única”. Ele é dedicado a ela.
Benjamin escreve em seu diário:
De manhã. Asja esteve comigo. Dei-lhe presentes, mostrei-lhe
rapidamente meu livro com a dedicatória. Ela não havia dormi-
do bem à noite por causa de uma taquicardia. Também mostrei-
-lhe (e dei-lhe de presente) a sobrecapa do livro feita por Stone.
Agradou-lhe muito. (BENJAMIN, 1989, p. 15)
A cena é doce. E talvez chame a atenção a ausência de inscri-
ção de qualquer reação de Lacis sobre a dedicatória, uma vez
que em “agradou-lhe muito”, o sujeito “er” do alemão, mar-
cado apenas pela desinência verbal na tradução, refere-se
exclusivamente ao substantivo masculino “Umschlag”, sobre-
capa, e não à dedicatória, “Widmung”, substantivo feminino
(cf. BENJAMIN, GS, VI, p. 294). A dedicatória talvez não tenha
sido recebida com muito entusiasmo. A propósito disso, não
deixo de pensar numa passagem do ensaio sobre Proust, em
que lemos:
O silêncio no fundo dessa cratera — seus olhos são os mais si-
lenciosos e permeáveis — quer ser notado. O que em tantas ane-
dotas comparece como irritante e caprichoso é a combinação
de uma conversa de intensidade inédita com uma distância in-
superável do interlocutor. (BENJAMIN, GS, II-1, p. 321, tradução
nossa)
De qualquer modo, o nome, que nas primeiras cartas a Scho-
lem não aparece, encontra seu destino na dedicatória de um
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com sua obsessão pela recolha de vestígios, as citações, esses
pedaços explodidos e sobreviventes da grande tradição4. O
olhar do outro, de uma mulher amada especificamente, tal-
vez possamos dizer, dá a Benjamin a chave de uma forma,
que ele devolve com uma dedicatória: ela abriu essa rua no
corpo do autor, uma rua de ruínas, restos, fragmentos. A essa
rua, o nome de Asja Lacis.
O nome, como o nome de Deus, é questão importante no
pensamento de Benjamin, já desde seus escritos de juventu-
de. Mais uma vez, em “Sobre a linguagem em geral e sobre a
linguagem do homem” (BENJAMIN, 2013, p. 49-74) se pode
ler uma teoria mística do nome. Um biógrafo de Benjamin,
Bernd Witte, oferece uma hipótese instigante vinculada ao
modo com que Benjamin pensa o nome a essa altura:
No âmbito de sua teoria mística do nome, Benjamin elaborou
também o luto pela perda do seu amigo Heinle [que se suicidou].
No lugar do morto, da sua pessoa concreta, aparece progressiva-
mente a língua pura, ligada ao nome, no centro da atenção da-
quele que rememora. (WITTE, 2017, p. 33)
Se Benjamin faz o luto de uma pessoa concreta pelo nome,
o nome de Lacis na dedicatória de “Rua de mão única” não
abriria uma via pelo luto, mas pelo amor. Nesse sentido, é
bom observar algo curioso sobre o nome de Asja Lacis em
algumas cartas de Benjamin. Ele a conhece no verão de 1924,
em Capri. Ela está junto de seu companheiro, Reich, e de sua
primeira filha, Daga. Benjamin escreve a Scholem sobre esse
encontro numa carta, dizendo que conheceu poucas pes-
soas interessantes em Capri. Diferente delas, uma soviética
bolchevique, atriz e diretora de teatro “notável [noteworthy]”
(BENJAMIN, 1994, p. 241). É a primeira alusão que encontro
a Lacis. Algumas semanas depois, uma segunda carta, tam-
bém a Scholem, diz que o melhor que Benjamin encontrava
4 Lembremos, com Gerhard Richter, que “a afinidade eletiva entre
filosofia e literatura é colocada em relevo quando nos lembramos
que, desde o começo, Benjamin concebia Rua de mão única e Pas-
sagens como irmãos” (RICHTER, 2017, p. 62).
24
mático e deambulante.
Pensando nessa lógica, com Asja Lacis, deparei com uma
curiosa passagem, mais uma vez de Piglia. Trata-se de uma
conversa com Renzi, dois dias depois de Piglia escrever que
seria preciso escrever algum dia um texto sobre Asja Lacis.
Ele diz:
Não vejo que sentido pode ter, diz Renzi, escrever algo sobre Asja
Lacis. Existem outras mulheres mais interessantes que podem
servir de tema para uma narrativa. Por exemplo?, pergunto. Por
exemplo, responde ele, a filha de Madame Bovary. [...] A vida de
uma operária têxtil que é a filha de Madame Bovary, diz Renzi,
esse tema me interessa mais do que a história da amante de Wal-
ter Benjamin. (PIGLIA, 2004, p. 77-78)
Uma operária têxtil. Espero não forçar uma leitura, mas inde-
pendente da curiosidade do fragmento, e de certo tom ma-
chista que reduz Lacis a apenas uma amante de Benjamin5,
penso que imaginar a história de Berthe Bovary poderia ser
tarefa para um bom escritor. Como crítico, o que estou ten-
tado a dizer é que haveria quem sabe uma história da filha
de Emma Bovary que se escreve em filigrana na Recherche.
Lembro, para tentar justificar um pouco esse argumento-so-
nho, que Benjamin pensa a escrita de Proust como um tecido
da rememoração, composto por memória e esquecimento, e
que Barthes (1988 p. 281), num ensaio, diz não se identificar
tanto com o grande autor Proust, mas com o Proust operário.
É bonita a imagem, mas também é problemática. Basta pen-
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ponho que há dois modos distintos de pensar a decifração.
Se Champollion, o “descobridor” do sentido da escrita hie-
roglífica, diz “não há mais segredos” (PIGLIA, 2004, p. 86), os
hieroglifos da Recherche sofrem uma espécie de suspensão ao
fim da obra, que, por assim dizer, não fecha. A mudez, por um
lado, e sete volumes de escrita, por outro. Champollion pare-
ce ter a sensação de que encontrou a verdade-ela-mesma, a
verdade-em-si, ao passo que Marcel diz de uma decifração
que é, ao mesmo tempo, uma Busca de invenção.
Parece que pensar o efeito de Asja Lacis em Benjamin dá mar-
gem para dizer o seguinte: Benjamin, como Proust, não cai
numa espécie de mudez diante da tarefa de criar uma forma
a partir de um encontro amoroso. A propósito disso, lembro
de um momento na biografia de Benjamin em que ele, sim,
fica mudo, no sentido de que não escreve nada: os três meses
em que fica preso num campo de concentração, em Nevers,
em 1939, mesmo ano em que Brecht anota em seu diário “Asja
Lacis já não me escreve” (PIGLIA, 2004, p. 77), desaparecida
durante alguns anos em um campo de concentração stalinis-
ta. As única palavras que Benjamin escreve nesse período, lê-
-se na biografia de Bernd Witte, é um pequeno relato de um
sonho, um nó amoroso entre uma língua não decifrada e um
corpo feminino:
No relato, ele fala de uma visão noturna, na qual viu como uma
coisa só a leitura de sinais e a imagem do corpo de uma mulher
‘muito bonita’. ‘Depois desse sonho eu não pude adormecer de
novo, por várias horas. De felicidade’”. (WITTE, 2017, p. 137)
Um corpo, que não necessariamente é o de Asja Lacis, nem
necessariamente a mulher que sai das coxas do narrador
proustiano (cf. PROUST, 2006, p. 22), no início da Recherche,
mas cujo efeito de felicidade é um desdobramento de um
corpo feminino lido com sinais. Asja Lacis e Albertine, cada
uma a seu modo, são mulheres de que Benjamin e Marcel são
leitores. Se a imagem de Albertine, sempre fugidia, abre à re-
leitura do passado, Asja Lacis abre (quebra) uma rua (uma
forma) em Benjamin. Assim, as duas impedem cristalizações
28
jamin, então, vai às ruas, como tão bem mostra este poema
incrível de Sergio Raimondi, a propósito de Benjamin e Asja
Lacis, chamado “Лацис, Анна” e que me chega através de ge-
nerosa tradução de Luciana di Leone:
Quer dizer que a Russia mostra pro mundo o futuro
e o Sr. se dedica a estudar obras barrocas
do século dezessete que ninguém a não ser o próprio Sr.
tem a pachorra suficiente para ler?
A observação crítica não vinha de um corpo
teórico diferente mas de um concreto e encostado
contra a bancada da cozinha do apartamento.
Blblblbl. A água para o spaghetti já fervia.
Não era possível responder sem perceber a assincronia
radical da tentativa Bom, é mais complexo
trata-se de introduzir categorias estéticas úteis
para a análise da arte contemporânea...
Não, porque não era apenas uma pergunta específica;
era também colocar em dúvida o alcance
da sua paixão em referência à vida em geral
e em particular a essa história que estava começando.
Os joelhos dela apareciam sob o vestido de verão
e o fenômeno bolchevique estava ali mesmo
com vontade e decisão para fazer da filosofia
uma práxis cotidiana e constante. Não é exagero?
Ah, passar de revisar obras raras na hemeroteca
a escrever sobre os cartazes da via pública,
os cartões postais e o desenho das vitrines foi então
a maior declaração de amor; insuficiente, obvio6.
30
El verdadero destinatario de la poesía es aquel que no está habi-
litado para leerla. Pero esto también significa que el libro, que es
destinado a quien nunca lo leerá — el iletrado — ha sido escrito
por una mano que, en cierto sentido, no sabe leer y que es, por lo
tanto, una mano iletrada. (AGAMBEN, 2015)
Ao mendigo, que não tem nada nas mãos, talvez seja endere-
çado um livro que não cabe nas mãos. Ele não o lerá. A mão
iletrada que o escreve, no entanto, teima em endereçar-lhe o
que ele não lerá. Por quê? Talvez porque as mãos se queiram
como mãos fora do consumo. Ou talvez porque só queiram se
oferecer como mãos abertas.
Referências
34
(HARVEY, 2005). O trabalho de Benjamin, como se sabe, foi
primoroso na discussão acerca de como este aprimoramento
da técnica teve efeitos diretos sobre o nosso sistema senso-
rial, sobre a nossa experiência, sobre a nossa auto-constru-
ção individual e, principalmente, sobre a nossa vida política.
Guardada a mediação temporal necessária, é interessante
observar como os mesmos diagnósticos e prognósticos fei-
tos pelo filósofo não apenas se adequam às tecnologias mais
avançadas de nossa contemporaneidade, principalmente
a web 2.0, como parecem ter ganhado mais força e sentido.
O que procuro, portanto, com este trabalho é precisamente
apresentar como conceitos caros à sua obra auxiliam no des-
cortinamento de questões importantes e, de certa maneira,
urgentes, em nosso contemporâneo político e social.
As novas galerias
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indivíduo, se promove tanto como produtor — já que o usuá-
rio produz a informação a ser comercializada — quanto como
mercadoria — já que esta informação produzida por ele é sua
construção como indivíduo digital — e, em última instância,
como consumidor, já que as empresas que compraram das
redes esta informação tentam vender de volta para este con-
sumidor produtos direcionados a ele (ROSS, 2013).
Este processo pode ser melhor compreendido se levarmos
em conta o ciclo capital-dinheiro proposto por Marx a par-
tir da fórmula simplificada “D-M…P…M’-D’” (MARX, 2014,
p.107). D seria o capital em forma de dinheiro que é investido
se convertendo em M — onde M = Mp (meios de produção) +
F (força de trabalho), ou seja, a soma em dinheiro se decom-
poria em duas partes, “uma que compra força de trabalho
e outra que adquire meios de produção. Temos assim duas
séries de compras que pertencem a mercados inteiramente
diversos, uma ao mercado de mercadorias propriamente dito
e a outra ao mercado de trabalho.” (MARX,2003, p.40). M,
acrescido pelo tempo (reticências) é transformado em capi-
tal produtivo (P). Neste momento que são importantes as no-
ções de capital constante e capital variável como diferentes
partes do capital produtivo: o primeiro vai ser representado
pelos meios de produção e continua sendo capital do capi-
talista; já o segundo, representado pela força de trabalho, só
deixa de ser mercadoria para se tornar capital quanto utiliza-
do pelo capitalista. O capital produtivo vai consumir capital
constante e variável de modo a transformá-los em produtos
de valor superior aqueles investidos inicialmente através da
extração da mais-valia — relação entre trabalho excedente e
trabalho necessário (MARX, 2011, p.605). P, acrescido do tem-
po desencadearia na mercadoria final acrescida de mais-va-
lia, ou seja, M’, que será vendida de modo a converter-se em
dinheiro D’ , proporcionando a circulação (MARX, 2003).
Na internet este ciclo seria atualizado: as empresas de mídia
digital investiriam dinheiro para comprar capital constante
e variável, de onde apenas parte da mais-valia será extraída.
38
que vendem livros específicos de sua área de atuação, de ci-
nemas e redes de streaming que passam filmes do estilo que
lhe agrada, e etc. Ou seja, este intelectual, que quis afirmar
sua intelectualidade publicamente nas redes de modo a se
diferenciar dos outros usuários, por exemplo, de um usuário
que posta selfies, textos sobre moda e vídeos de fitness, está,
porém, inserido exatamente na mesma lógica que ele — pois
ambos são produtores/produtos e consumidores — cada um
de um nicho, claro. Por isso caberia entender as redes como
uma espécie de galeria baudelairiana, onde o indivíduo é
também mercadoria (BENJAMIN, 2015), porém radicalizada,
porque além de mercadoria, ele se torna também produtor e
consumidor (FUCHS, 2013. ROSS, 2013; DANTAS, 2014).
No entanto, diferente das galerias, na época frequentadas por
uma burguesia ascendente e uma aristocracia decadente, as
redes sociais comportam em si uma maior diversidade de
classes, o que é compreendido por teóricos do capitalismo
cognitivo (DAVIS,2012; CASTELLS, 2013; BENTES, 2014) como
uma espécie de democratização. Acredito que essa perspec-
tiva positivada das redes como espaços democráticos e re-
presentativos pode ser colocada em questão. Primeiramente
devido ao fato de que mais da metade da população mundial
ainda não tem acesso à internet, de modo que, este espaço
supostamente democrático produz um abismo entre aqueles
que tem o acesso ao debate ali produzido e aqueles que não
tem — sendo dele excluídos (SIBILIA, 2008). Em segundo lu-
gar, a chamada “cultura participativa” estimulada pelo forta-
lecimento redes sócio-digitais — especialmente desde de 2011
com a “onda de mobilizações e protestos sociais [que] tomou
a dimensão de um movimento global” (CARNEIRO, 2012,
p.7) e que tiveram nas redes seu local principal de atuação
política e que desencadeou centenas de rebeliões e levantes
nos anos seguintes em níveis globais — parece igualmente
questionável . Existe uma crença na mobilização consciente
e num suposto “empoderamento” das novas gerações através
deste espaço, o que seria baseado em uma ética igualitária
40
política, porém, esgotava-se na conversão de reflexos revolucio-
nários, na medida em que estes afloravam na burguesia, em ob-
jetos de dispersão, de divertimento, facilmente canalizáveis para
o consumo. Foi assim que o ativismo conseguiu dar à dialétiva
revolucionária a face indefinida, numa perspectiva de classe, do
senso comum. Num cereto sentido, ele foi uma liquidação de es-
toque nessa grande loja da inteligência. (BENJAMIN, 2012, p.79)
O trecho anterior, ilustrativo do clima da Alemanha do en-
tre-guerras, parece ilustrar muito bem também o momento
político e intelectual contemporâneo (guardadas as devidas
mediaçãoes espaciais e temporais). Não cabe no momento
entrar em como os modismos, são prejudiciais ao fazer teó-
rico e à práxis nos dias atuais, especialmente nas periferias
do capitalismo 2 — apesar de se tratar de um tema de ampla
importância e que demanda certa urgência em seu debate. A
cargo de interesse ao artigo, meu foco residirá na atualidade
deste debate — que é levantado por Benjamin neste ensaio
supracitado, mas também em outros, que tratarei em seguida
— para pensar o ativismo digital.
Para tal, é central observar pontos importantes do campo so-
ciocultural na contemporaneidade: o primeiro seria, haja vis-
ta os novos padrões de consumo, a maior mobilização para
os mercados de massa; o segundo seria a passagem para um
consumo de serviços no lugar do consumo de bens (HAR-
VEY, 1992). Estas alterações influenciariam diretamente na
maneira “pós-moderna” de se agir, assim como de pensar e
sentir. Uma das influências centrais seria “a volatilidade e a
efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção, pro-
cessos de trabalho, ideias e ideologias, valores e práticas es-
tabelecidas” (IDEM, p.258), criando a chamada sociedade do
descarte (FONTENELLE, 2002). A característica central desta
sociedade é a volatilidade que, por um lado, é resultado do
42
Antes só preciso concluir como as reflexões benjaminianas
auxiliam a compreender como até os movimentos que pro-
põem certa crítica ao que chamam de “sistema”, são subjetivi-
dades de tal vulnerabilidade que o mercado se apropria delas.
Cabe aqui, a cargo de exemplo, observar como grupos comu-
nicacionais que se baseiam no midialivrismo ciberativista
que, em tese, propaga “experiências singulares de constru-
ção de dispositivos digitais” (MALINI & ANTOUN, 2013, p.21)
e que , a exemplo da Mídia Ninja, “busca[m] novas formas
de produção e distribuição de informação” (MIDIA NINJA),
dependem majoritariamente do Facebook para a propagação
de sua produção “singular” e “nova” de distribuir informação
através de uma “comunicação democrática” (IDEM). Sendo
assim, grandes empresas do capitalismo cognitivo, como o
Facebook (cuja dinâmica de extração de mais-valia foi apre-
sentada anteriormente) viram uma espécie de símbolo da li-
berdade de expressão e de local para a mobilização da luta
contra o status quo (MALCHER, 2016). Como mostra Benja-
min, essa já foi a mesma posição assumida pela imprensa tra-
dicional — rádio e jornal, em especial — no passado.
O filósofo mostrava como o ativismo e a suposta “objetivida-
de” de uma burguesia de esquerda tendiam a “abastecer um
aparelho produtivo sem ao mesmo tempo modificá-lo” o que
entendia como “um procedimento altamente questionável,
mesmo que os materiais fornecidos [...] tivessem uma apa-
rência revolucionária” (BENJAMIN, 2012e, p.137). Analisando
a Alemanha do entre guerras que o autor pôde constatar que:
[...] o aparelho burguês de produção e publicação pode assimilar
uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até
mesmo propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua pró-
pria existência e a existência das classes que o controlam. Isso
continuará sendo verdade enquanto esse aparelho for abasteci-
do por escritores revolucionários rotineiros. Defino o rotineiro
como o homem que renuncia por princípio a aperfeiçoar o apa-
relho produtivo a fim de romper sua ligação com a classe domi-
nante (IDEM)
44
mente produtivos porque permitem fixar no passado uma
imagem de como ele se apresenta ao sujeito histórico do
presente no momento de perigo, o que permitiria enxergar a
história como um processo (BENJAMIN, 2012g). O problema,
portanto, da deficiência da memória é que ela impede o vis-
lumbre do processo histórico, sem o qual o homem presente
falha na compreensão dos seus problemas presentes. Vale ci-
tar aqui um trecho da oitava tese sobre o conceito da história:
“o assombro com o fato de que os episódios que vivemos no
século XX ‘ainda’ sejam possíveis não é um assombro filosó-
fico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhe-
cimento de que a concepção de história em que se origina é
insustentável” (IDEM, p.245)
Ora, tal percepção me parece bastante atual. Quando vemos
grupos de nossa esquerda impressionados com ações sociais
conservadoras e extremistas, ou ações políticas antidemo-
cráticas, é um sinal da nossa falta de concepção de história,
que impede o a compreensão crítica do processo social mais
amplo — o que possibilitaria o entendimento da causa dos
nossos problemas atuais e, consequentemente, uma possível
solução a eles. Cabe exemplificar: quando alguma notícia de
alguma arbitrariedade ou perseguição a grupos de oprimidos
toma as redes sociais por um ou dois dias, é comum ver duas
posturas: a primeira, similar àquela exposta por Benjamin,
é de espanto diante do ato e de questionamento de “como
isso pode acontecer em pleno século XXI?”, questionamen-
to este que parte de uma percepção incorreta de que o pro-
gresso científico e tecnológico foi acompanhado de fato de
um progresso ético e moral. Outra observação comumente
feita é a de que “estamos retornando à Idade Média”, o que
simplesmente ignora que as perseguições, opressões e ar-
bitrariedades que experimentamos hoje são altamente mo-
dernas — basta repensar os principais eventos históricos dos
últimos séculos, como o Neocolonialismo, as perseguições
sistêmicas de irlandeses, ciganos, armenos, judeus (dentre
sobre Proust, sobre o qual não tratarei neste artigo.
46
do que as ideias e os grupos políticos aos quais essa persona-
lidade é articulada:
A crise da democracia pode ser interpretada como uma crise nas
condições de exposição do político profissional. [...] com as inova-
ções nos aparelhos de gravação, que permitem ao orador duran-
te a sua fala ser ouvido por um número ilimitado de pessoas e,
pouco depois, ser visto por um número ilimitado de pessoas, a
exposição do político diante do aparelho passa ao primeiro pla-
no. Com isso os parlamentos se atrofiam [...] O rádio e o cinema
não modificam apenas a função do interprete profissional mas
também a função de quem se representa a si mesmo diante des-
ses dois veículos de comunicação, como é o caso do político. O
sentido dessa transformação é o mesmo no ator de cinema e no
político, qualquer que seja a diferença entre as suas tarefas espe-
cializadas. [...] Esse fenômeno determina um novo processo de
seleção, uma seleção diante do aparelho (IDEM, p.198) 4
Se isso já era verdade na era do rádio e do cinema, na era di-
gital é ainda mais evidente: no Facebook, no Instagram, no
Twitter e no Youtube as personalidades políticas se colocam
em público de maneira mais aproximada do eleitor e expõe
opiniões menos matizadas e embasadas do que aquelas emi-
tidas em discursos políticos tradicionais, quando não mais
pessoalizadas. Essas pessoas, paradoxalmente, portanto, ao
se construírem como “homens comuns”, colocam sua ima-
gem à disposição de um culto ainda maior. É uma nova forma
de espetacularização de si, mais complexa, mas que emer-
ge do mesmo local daquele analisado por Benjamin e têm
como consequência o mesmo culto à imagem que em sua
Alemanha permitiu a emergência do fascismo, emblemático
na personalidade de Hitler, e na Alemanha atual permite a
emergência do fascismo emblemático na personalidade de
Frauke Petry, líder dirigente do partido de extrema direita
4 Guy Debord continua este debate sobre a questão da exposição
do político diante do aparato técnico em seu Sociedade do Espetá-
culo, de 1967 (ed. 1997), cuja leitura é extremamente recomendada
para o leitor que busque um aprofundamento posterior neste
tema.
48
O problema disso é que a indignação em massa pode levar a
reações imprevisíveis, que hoje se evidenciam, por exemplo,
em linchamentos e perseguições virtuais, quando não físicas
— práticas em sua essência, fascistas.
Considerações Finais
Referências
50
Paulo: Brasiliense, 2012e.
______. “O Narrador”. In.:______. Magia e técnica, arte e po-
lítica: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras
Escolhidas v.1). Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
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tura (Obras Escolhidas v.1). Tradução: Sérgio Paulo Rouanet.
São Paulo: Brasiliense, 2012g.
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2011”. In.: ______. HARVEY, D. et al. Ocupa: movimentos de
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feminismo digital”. Dissertação (mestrado). Rio de Janeiro:
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MALINI, Fábio; ANTOUN, Henrique. “A internet e a rua: ci-
berativismo e mobilização nas redes sociais”. Porto Alegre:
Sulina, 2013.
54
simulacro. Jeanne Marie Gagnebin também vê na crítica da
violência não apenas um debate sobre soberania e a disputa
política, mas uma reflexão mais profunda sobre o continuum
histórico e a disputa entre sua manutenção e sua interrupção.
Vale a pena a longa citação:
Esse texto fala, sem dúvida, de violência e de soberania, mas
igualmente, e de maneira conjunta, através da greve geral sore-
liana, de uma figura radical da interrupção como resistência à
engrenagem política e social; aqui também, somente a tentativa
de parar o tempo pode permitir a uma outra história vir à tona,
a uma esperança de ser resguardada em vez de soçobrar na ace-
leração imposta pela produção capitalista. A greve geral pára a
produção, assim como os relógios em que revolucionários ati-
ram; é o mesmo gesto de interrupção do tempo, de quebra da
continuidade histórica. (GAGNEBIN, 2004, p. 98).
Benjamin não faz uma crítica tradicional da violência ques-
tionando a justiça do seu uso para objetivos específicos, ou
seja, a violência não é compreendida como meio para fins,
como em sua representação pelo “direito natural”, para o qual
bastaria verificar a legitimidade dos fins para decidir sobre a
justiça ou não de seu uso como meio. Para Benjamin, o di-
reito não apenas legisla sobre o uso da violência, mas é ele
mesmo fruto da violência, instaurado e mantido por ela. “Se
é permitido deduzir que a violência da guerra, enquanto for-
ma originária e arquetípica, é modelo para toda violência que
persegue fins naturais, então é inerente a toda violência desse
tipo um caráter de instauração do direito” (BENJAMIN, 2011,
p. 131). Essa capacidade da violência de instaurar o direito o
torna sensível a qualquer violência que não esteja submissa
a si: “o direito considera a violência nas mãos dos indivíduos
um perigo capaz de solapar a ordenação do direito” (IDEM, p.
126-127). Daí seu desejo de monopólio e a necessidade do di-
reito moderno de “retirar, pelo menos do indivíduo enquanto
sujeito de direito, qualquer violência, mesmo aquela que se
dirige a fins naturais” (IDEM, p. 131). Cada direito, instaura-
do por uma violência, luta por sua manutenção contra a ins-
56
volução contêm tanto a ideia de interrupção (ou seja, rompi-
mento com uma ordem anterior e abertura para instauração
de uma nova) quanto de manutenção (ou seja, repetição da
ordem estabelecida). Interessantemente, o percurso etimo-
lógico dos termos e seu uso presente são invertidos.
“Época” vem do grego epokhē que significa cessar, reter, su-
primir, pausar, parar e tem como alguns de seus usos mais
célebres as expressões suspensão de pagamento, suspensão
da luz solar durante um eclipse e, no contexto filosófico, “sus-
pensão do juízo” (cf. LIDDELL, 1940). A partir da Idade Mé-
dia é que o termo latino epocha ganha o significado atual de
período histórico, momento que se estende a partir de um
acontecimento inaugural ou original. Ou seja, da época como
interrupção fundadora à época como conjunto temporal de
tudo o que vem depois da fundação. Já o termo “revolução”
tem o percurso etimológico oposto, vem do verbo latino re-
volvere que significa voltar novamente, retornar, e teve seu
uso associado principalmente ao estudo dos movimentos
dos astros, àquilo que está dentro de uma trajetória. Seu uso
no contexto político com o significado quase oposto, de rom-
pimento, insurgência, interrupção do status quo, se dá a par-
tir do século XV e se estende até a contemporaneidade. Am-
bos os termos, em seu desenvolvimento histórico invertido,
apontam para os dois momentos de um período histórico:
início com interrupção de uma repetição — epokhē de uma
revolutio —, seguido da repetição desta interrupção — época
depois de uma revolução — até a próxima revolução/epokhē.
Esta concepção dupla do tempo histórico, que também pode
ser identificada na exposição de Benjamin sobre a duplici-
dade da violência que funda e mantém, permite pensar de
forma semelhante a interrupção: não apenas como aconte-
cimento original e exterior que rompe com o passado e inau-
gura no presente um futuro1, mas simultaneamente como seu
1 Jacques Derrida descreve esta estranha temporalidade presen-
te-futura da fundação da seguinte maneira: “Nessas situações
ditas fundadoras de direito ou de Estado, a categoria gramatical
58
reinstaurar, “uma violência pura, imediata, que possa estan-
car a marcha da violência mítica” (2011, p. 150), violência que
ao invés de fundar o direito, “simultaneamente, culpa e ex-
piação” (IDEM) (“verschuldend und sühnend zugleich”), ani-
quila o direito expiando a culpa (“entsühnend”).
Nesta passagem densa, em que Benjamin brinca com os dois
modos de violência jogando com duplos sentidos e usos de
palavras (rechtsetzend / rechtsvernichtend, setzt jene Grenzen
/ vernichtet grenzenlos, verschuldend und sühnend /entsühn-
den), passa-se um pouco rápido por este último aspecto: a
violência mítica como instauradora da lei da qual depende a
dialética culpa-perdão, por sua vez também aniquilada pela
violência divina. Em comentário ao ensaio, Judith Butler afir-
ma: “A violência divina não apenas libera de formas de pres-
tação de contas coercitivas, uma forma violenta ou forçada de
obrigação, mas esta liberação é ao mesmo tempo uma expia-
ção de culpa e uma oposição à violência coercitiva”2 (2012, p.
73). Se só há culpa a partir de uma lei instaurada, então sua
interrupção não é o perdão (Entschulding), caducidade da
dívida num sistema de valor que se mantém, mas expiação
(Entsühnung), dissolução do próprio código que determina o
que é ou não culpa, dívida, pecado. A interpretação instigante
que Alain Badiou propõe do Apóstolo Paulo, ainda que em
contexto teológico e histórico bastante diverso do de Benja-
min, parece caminhar na mesma direção na relação com a lei
e a tentativa de interrupção de sua vigência. Não se trata aqui
de violência, nem mesmo divina, como para Benjamin, mas
da universalidade da graça a partir do “acontecimento-Jesus”.
Badiou analisa a seguinte passagem da Epístola de Paulo aos
Romanos (Rm 7:7-20):
“Mas eu somente conheci o pecado por meio da Lei; pois
eu jamais teria conhecido o desejo, se a Lei não tivesse dito:
2 No original: “Divine violence not only releases one from forms
of coerced accountability, a forced or violent form of obligation,
but this release is at once an expiation of guilt and an opposition to
coercive violence”.
60
versários. A saída paulina da graça pula por cima da delimita-
ção e da proibição e oferece um positivo ao sempre negativo
da lei: a amor que é dado por caridade, que dá de graça. Ao
realizar o ato diplomático de não abolir os Dez Mandamentos
do Velho Testamento, mas conservá-los/superá-los no man-
damento cristão — “‘Tu não cometerás adultério; tu não ma-
tarás; tu não roubarás; não cobiçarás (...)’ resumem-se todos
a estas palavras: ‘Tu amarás teu próximo como a ti mesmo’.
O amor não pratica o mal contra o próximo; o amor é, por
tanto, a execução da Lei” (Rm.13.8 e ss.; apud BADIOU, 2009,
p. 104) -, Paulo não troca a vigência de uma lei pela outra,
num processo como o de reinstauração, mas interrompe a
disputa constante pela gestão das fronteiras rasgando-as sob
o princípio universal da gratuidade, da caridade. Trata-se de
um lei aberta e universal, nas palavras de Badiou, “uma máxi-
ma única, afirmativa, não objetal. Uma máxima que não seja
suscitação do infinito do desejo pela transgressão do proibi-
do (...), [mas] imperativo único [que] não envolve nenhuma
proibição, é pura afirmação” (IDEM 104). A nova lei de Paulo
é, portanto, uma anti-lei, uma interrupção do sistema legal e
jurídico em prol de uma abertura como a que Benjamin cha-
ma de “nova era histórica”.
Mais materialista do que Badiou neste sentido, apesar de re-
correr também à teologia, Benjamin busca no exemplo his-
tórico da greve, no contexto da luta de classes, uma oportu-
nidade de diferenciar entre as duas violências: a mítica (que
contém simultaneamente o momento instaurador e o mo-
mento mantenedor) e a divina. Do primeiro tipo é a “greve
geral política”, violência reformista que busca negociar di-
reitos com o Estado, ou seja, que quer instaurar e ao mesmo
tempo manter o direito estatal, cujo poder passa de agitado-
res à burocratas, “passa de privilegiados para privilegiados”
(2011, p. 143), como diz Benjamin citando Georges Sorel. Do
segundo tipo é a “greve geral proletária”, que “se propõe,
como única tarefa, aniquilar o poder do Estado” sem desejar
reinstaurá-lo porque é anarquista. Ela não disputa o direito e
62
violência. O texto de Benjamin trata de modos de organização
política, da luta entre grupos pela instauração e manutenção
de regime, mas parte de uma concepção linguística para tal:
a exigência da libertação da linguagem de seu uso “burguês”,
ou seja, como mero meio de comunicação (tal como desen-
volvida no ensaio “Sobre a linguagem em geral e sobre a lin-
guagem do homem”), e não como fim em si mesmo como em
seu passado adamítico, é análoga à ideia de uma violência
que não seja apenas compreendida e julgada como meio di-
recionado, legitimamente ou não, a um fim, mas como vio-
lência como fim em si mesma, violência final que interrompe
justamente seu ciclo de instauração-manutenção. Derrida
mostra como a violência instaura não apenas a lei, mas o có-
digo da lei, ou seja, as possibilidades de sua interpretação. A
violência se instaura e mantém também através de regimes
de sentido3:
“A ordem da inteligibilidade depende, por sua vez, da ordem
instaurada que ela serve para interpretar. Essa legibilidade
será, pois, tão pouco neutra quanto não violenta. Uma revo-
lução “bem-sucedida”, a fundação de um Estado “bem-suce-
dida” (...) produzirá a posteriori aquilo que ela estava desti-
nada de antemão a produzir, isto é, modelos interpretativos
próprios para serem lidos retroativamente, para dar sentido,
necessidade e sobretudo legitimidade à violência que produ-
ziu, entre outros, o modelo interpretativo em questão, isto é,
o discurso de sua autolegitimação” (2010, p. 85-86).
Esta grande contribuição, esta religação entre o linguístico e
4
64
Derrida também erra ao estabelecer uma ligação direta entre
coisas que são opostas durante todo o pensamento de Ben-
jamin: a proposta revolucionária de cunho marxista e a “so-
lução final” do fascismo. Como se uma crítica do parlamen-
tarismo e a proposta de uma revolução que não fosse mera
reinstauração de uma lei — ou seja, que não fosse reformista
— fosse responsável pelo genocídio e destruição causados
pela ascensão do fascismo. Ou seja, como se a crítica da de-
mocracia levasse como única alternativa ao totalitarismo.
“Uma crítica da “degenerescência” (Entartung) como crítica
de um parlamentarismo impotente no combate à violência
policial, que a ele se substitui, é uma crítica da violência fun-
dada numa “filosofia da história”: colocação em perspectiva
arqueo-teleológica, ou arqueo-escatológica que decifra a his-
tória do direito como uma decadência (Verfall) desde a ori-
gem. A analogia com os esquemas de Schmitt ou de Heideg-
ger não precisa ser sublinhada” (2010, p. 109).
Derrida tenta posicionar Benjamin ao lado de pensadores
como Carl Schmitt e Martin Heidegger menos através de uma
análise conceitual precisa — o que poderia render uma in-
teressante reflexão sobre as afinidades e diferenças do pen-
samento revolucionário de direita e de esquerda no período
de entre guerras — do que através da associação rápida em
torno de ideias gerais e referências a trocas de cartas, etc.
Georges Sorel e Marx, por outro lado, que aparecem citados
diretamente e que são pano de fundo com o qual o texto de
Benjamin claramente dialoga, são citados de passagem por
Derrida menos para localizar ideologicamente a reflexão de
Benjamin do que para dar um colorido vermelho a algo que,
no fundo, Derrida propõe surpreendentemente como “filo-
sofias da história” semelhantes: a de Schmitt e a de Sorel.
Uma consulta rápida à Teologia Política de Schmitt mostra
o quanto Benjamin se apropriou das ideias do autor (isso já
desde o livro sobre o Drama Barroco), na mesma medida em
que alterou sua orientação. Dentro do gesto típico do que se
66
O argumento de Benjamin vai mais no sentido de uma se-
paração, uma denúncia da violência mítica escondida so-
bre a democracia liberal, uma denúncia de como as formas
parlamentares da democracia existem através da violência e
como eventualmente podem recair nela. Apenas uma revo-
lução que rompesse com este ciclo, uma revolução que não
procura o sangue, mas que vai além dele, porque reconhe-
ce que a vida humana não é uma vida animal e mortal, mas
Imortal (para referir novamente a um conceito de Badiou),
uma revolução que vai além da vida resumida ao sangue — a
mera vida (das bloße Leben), como bem notou e desenvolveu
Agamben — rumo à vida justa. Esta revolução, por fim, que
visa interromper o ciclo de reinstauração da lei não é restri-
tiva é, assim como a superação paulina, universal, se dirige a
todos e não a uma certa nação ou raça, em sentido, portanto,
oposto ao que se propunham os revolucionários de direita na
década de trinta.
Para terminar, a insinuação de Derrida de que o texto de
Benjamin seja antepassado ideológico daqueles que pregam
a “solução final” é não apenas inapropriada como em certo
sentido desrespeitosa, pois se refere a alguém que dedicou
seu pensamento ao combate contra o fascismo e que preferiu
sair livremente da vida (Freitod como Brecht chamou o sui-
cídio do refugiado Walter Benjamin) a viver sob controle do
nazismo. Isto tudo é bem conhecido e não precisa de desen-
volvimento. Mas a provocação, ainda que sem fundamento
no próprio ensaio de Benjamin, merece contemplação. O que
diferenciaria a violência divina, interrupção efetiva, da solu-
ção final? Derrida confessa no fim do seu ensaio que para ele
o ensaio de Benjamin tem algo de terrível e insuportável, algo
que ele deixaria em aberto
[...] principalmente para os sobreviventes ou as vítimas da “solu-
ção final”, a suas vítimas passadas, presentes ou potenciais (...),
de pensar o holocausto como uma manifestação interpretável da
violência divina: essa violência divina seria, ao mesmo tempo,
aniquiladora, expiatória e não-sangrenta, diz Benjamin. (2010, p.
68
fascistas, Brecht escreve o poema intitulado “Zum Freitod des
Flüchtlings W. B.” (1993, p. 48) que começa com os seguintes
versos: “Soube que você levantou a mão contra si mesmo /
antecipando assim o açougueiro” (“Ich höre, dass du die Hand
gegen dich erhoben hast / Dem Schlächter zuvorkommend”) e
termina com estes: “ao destruir a carne torturável” (“Als du
den quälbaren Leib zerstörtest”). Há também uma distinção
no poema de Brecht entre dois tipos de violência: aquela do
refugiado perseguido, mas que ainda assim caminha para
a morte livremente, “frei”, que destrói (zerstört), de forma
não-sanguinária, seu corpo (Leib, não Fleisch) para que ele
não se torne mera vida nas mãos violentas e sanguinárias do
açougueiro (Schlächter) que se aproxima em busca da carne
torturável (quälbaren). Esta diferença, principalmente no
contexto da crítica da violência de Benjamin, não é desim-
portante.
Referências
Cristina Susigan
csusigan@gmail.com | Pesquisadora Independente
(...) Quando uma imagem sobrevive, a
história se desmonta, em todos os senti-
dos da palavra”.
George Didi-Huberman
74
Walter Benjamin: a morte como reconheci-
mento
76
sendo trazida através da “sobrevivência” para a nossa con-
temporaneidade.
Um conceito importante que devemos colocar em evidência
para compreendermos o pensamento benjaminiano é o de
rememoração. Rememoração significa redenção, ou seja, re-
dimir é a recordação do passado, mas não com os olhos do
presente, é trazer o passado para o presente de modo que
ele continue a atuar no presente mesmo enquanto passado.
Onde é possível estabelecer uma relação que não é de conti-
nuidade, mas uma relação imaginal, de imagens, de tal modo
que essa relação não se faça através de um critério tendo
como base as causas e os efeitos. Quando Benjamin cita Jules
Michelet: “ (..) cada época sonha com a seguinte” (Didi-Hu-
berman, 2015, p. 109), ele está estabelecendo uma relação de
continuidade entre épocas históricas que podem ser distan-
tes uma da outra, podendo situar-se em extremos. Para ele a
história não é linear, pois admite saltos no tempo, coloca em
constelação épocas históricas diferentes e que não são contí-
guas uma com as outras, não é algo homogêneo e contínuo.
Benjamin introduz o princípio da descontinuidade; este mo-
mento, que podemos denominar de momento de paragem,
é aquele em que a história cita o seu passado, e utilizando
um exemplo, Benjamin diz que a Revolução Francesa cita em
algum momento a Antiga Roma.
Através destes momentos de suspensão, de interrupção da
história é que Benjamin vai introduzir o conceito de imagem
dialética, em suas palavras: “(...) a imagem dialética é um raio
esférico que percorre todo o horizonte do passado” (BENJA-
MIN, 2012, p. 186), introduzindo uma espécie de simultanei-
dade entre todos os momentos, e continua:
(...) articular historicamente o passado não significa conhecê-lo
‘tal como foi efetivamente’, mas, sobretudo, apropriar-se de uma
reminiscência tal como brilha, no instante de um perigo. (...)
Ela se torna um fato histórico postumamente, graças a aconte-
cimentos que podem estar separados dela por milênios. (BEN-
JAMIN, 2012, p. 196)
78
Benjamin, está implícito que a história faz uma quebra no
contínuo temporal, que a história não é contínua, mas que
é feita de descontinuidades, no entanto, não se trata de uma
descontinuidade cíclica a maneira de Nietzche, do eterno
retorno. Eterno retorno que não significa propriamente ao
mesmo ponto. O retorno ao mesmo não significa o retorno
do mesmo. Não será, nem a hipotese cíclica, do eterno re-
torno nietzchiniano, como a hipotese cíclica do tempo ritu-
al do mito, que iram iluminar a concepção de descontinui-
dade histórica de Warburg; não é o tempo cíclico porque a
memória tem a capacidade de ser dotada de uma espécie de
energia (energeia) que faz com que as coisas se repitam de
uma maneira, portanto, esta tensão leva a produção de uma
coisa diferente. A Ninfa não regressa da mesma maneira, ela
é dotada de uma especie de energia que faz com que ela se
transforme em cada uma das suas aparições, por exemplo, a
Ninfa dos afrescos do Palácio Schifanoia de Ferrara, não será
a Ninfa de Botticcelli, que se transfigurará numa Ninfa como
Marylin Monroe, ou numa imagem da contemporaneidade,
o desfilar de Giselle Bunche na passarela. Portanto, não se
trata de retornar a uma Ninfa originária, pois não se trata de
um processo cíclico.
Como Warburg tentou apontar para uma concepção da his-
tória, toda a concepção de imagem pressupõe um tempo his-
tórico, colocando a imagem — como o faria Benjamin -, no
centro nevrálgico da “vida da história” (grifo da autora). A sua
concepção de imagem é dotada de uma energia que permite
a produção do novo e não a mera repetição do que havia an-
tes. Também Benjamin, no seu conceito de imagem dialética
— o momento em que a história universal é rememorada e
surge como um momento único -, o fato dele colocar na mes-
ma constelação tempos históricos diferentes, significa atuar
sobre o passado de maneira a redimi-la.
Para Walter Benjamin a história universal não existe, aquilo
que existe para ele é a possibilidade se contrair ou abreviar
num momento todos os momentos da história e isto corres-
80
de Benjamin fica muito nítido quando se refere a redenção.
No caso de Warburg apesar de pontos confluentes, o proces-
so não se dá da mesma maneira; há a concepção trágica da
cultura, mas que é imanente, inerente à cultura de todos os
tempos; neste aspecto, o presente não seria mais trágico que
o passado, ou seja, no pensamento warburguiano o demoní-
aco está sempre presente, não encontrando redenção, nem
síntese, sendo o próprio motor da história.
Para Warburg, a questão da tragédia da cultura pode ser co-
locada em termos de uma irredutibilidade, daquilo que é da
ordem do sensível e que é ao mesmo tempo da ordem do in-
teligível. O sensível, o pathos, permanece sempre presente e
acaba por ser sempre irredutível ou que faz parte do logos,
da razão. Por outro lado, o conceito de polaridade — con-
ceito muito importante para Warburg; por polaridade, en-
tende duas coisas: em primeiro lugar, significa, que existem
dois polos em oposição um ao outro, que não se iluminam
e não encontram uma síntese, e em segundo lugar, significa
que, determinados tipos de imagens, dotadas de uma ener-
gia própria da memória — a Nachleben -, entram em contato
com uma determinada época e que é neste contato que elas
são polarizadas — encontrando seus motivos expressivos e
faz com que determinados tipos de formula de pathos seja
reativada. Através deste contato os significados que tinham
estas imagens podem ser alterados ou mesmo completamen-
te investido. As imagens não permanecem com um significa-
do constante, elas são dotadas de memória, encarnam uma
determinada forma e determinada forma de expressão, que
é indissolúvel do seu conteúdo, sendo que seus significados
pode ser diferentes ou apostos. Podemos citar o exemplo ob-
servado por Warburg no Ritual da Serpente, no Novo México,
onde a serpente pode ser ao mesmo tempo a figura do raio,
que é evocada por este ritual, para trazer chuva e significa
vida, e ao mesmo tempo morte, no seu aspecto mais lógico,
na picada venenosa. Também pode remeter ao símbolo da
medicina, associando a cura.
82
E continua:
Não é que o passado lançou a sua luz sobre o presente, ou o pre-
sente a sua luz sobre o pasaado, mas a imagem é aquilo que foi
unido fulminantemente com o agora em sua constelação. Em
outras palavras: a imagem dialética na imobilidade. Porque,
enaunto a relação do presente com o passado é puramente tem-
poral, contínua, a relação entre aquilo que foi e o agora é dialéti-
ca: não é um curso, mas uma imagem descontínua, a saltos. (...)
Apenas as imagens dialéticas são autênticas imagens (isto é, não
são arcaicas); e o lugar nas quais elas se encontram é a lingua-
gem (BENJAMIN, 2007, p. 517)
No caso de Warburg, a maneira que ele se refere — e ainda
que introduza o conceito de arquivos da memória2 -, não é
propriamente de armazém de conteúdos, que posterior-
mente se podem recorrer, de uma maneira ou de outra, em
determinados momentos da história, como se fossem um
“depósito” (grifo da autora), onde vamos recupar o que ali foi
colocado. Para Warburg, o arquivo será construído historica-
mente, só a história através deste processo de temporalização
é que dá realidade a imagem, o pathosformel, daquilo que fi-
cou impresso na memória.
No entanto, mais que solucionar um enigma iconográfico
específico, o que ele quis produzir foi uma ampliação me-
todológica das fronteiras da História da Arte, tanto do ponto
de vista material como espacial. Ao finalizar sua exposição,
sustentava:
(...) com o método que utilizei na interpretação dos afrescos do
Palácio Schifanoia de Ferrara, espero haver mostrado que só é
possível iluminar os grandes processos evolutivos esforçando-
-nos em deixar claro, em detalhes, um ponto escuro concreto,
e por sua vez, isto só é possível com uma análise iconológica
que, rompendo o controle dos “guardiães” que controlam nos-
sas fronteiras metodológicas, contemplar a Antiguidade, a Ida-
de Média e a Idade Moderna como épocas inter-relacionadas,
e interrogue, tanto as obras de arte autónomas como as artes
84
Considerações finais: o Bildertlas e a “Passa-
gens”
Referências
1. A palavra e o nome
88
nheza, pela força com que toda frase parece aproximar um
mistério do mundo, revelar uma verdade perdida. Pode-se
mesmo atribuir o caráter meio mágico dessa escrita a certa
tradição mística a que Benjamin nunca, mesmo ao tratar de
política ou da banalidade moderna, de fato se afastou. Ao
contrário, quanto mais penetrava seu pensamento no pre-
sente, mais antigo parecia ser o fascínio de sua pena. Diante
de qualquer escrito de Benjamin, somos convocados a ex-
perimentar uma face nunca vista e um modo impensável da
história e da arte. E o lugar onde encontramos esse mistério é
a própria linguagem.
Pode-se mesmo dizer que a filosofia da linguagem não foi a
principal preocupação de Benjamin, no seus principais tex-
tos. Contudo, existe em seu pensamento uma teoria da lin-
guagem que, em textos da juventude, já antecipavam a marca
excêntrica da sua escrita. Sua teoria da linguagem perpassa a
natureza de seu método crítico, oscilando entre a iluminação
profana e a teologia. Encontrando, na verdade, uma síntese
original.
Sob certo ponto de vista, como se encontra na Origem do
drama barroco alemão, existe a correspondência, na escrita
benjaminiana, entre uma teoria da linguagem e uma teoria
das ideias, em franca expansão no método crítico. A ideia
está na linguagem. Mas, o que a linguagem comunica? Em
19161, Benjamin responde que a linguagem comunica, antes
de tudo, a si mesma. E a essência espiritual a que alude, nessa
época, é a essência linguística das coisas. Em outras palavras,
a linguagem comunica a si mesma como meio comunicável.
Se mais tarde, como sabemos, Benjamin terá como desafio
intransponível a questão a transmissibilidade da cultura e
a fraqueza de experiência que marca a modernidade, aqui
podemos dizer que ele encontra na linguagem a transmis-
são de sua própria essência enquanto matéria. A matéria da
1 BENJAMIN, W. “Sobre a linguagem geral e a linguagem huma-
na” In: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora 34/Duas
cidades, 2011.
90
da palavra. Se, ainda jovem, o tom metafísico prevalece, isso
em nada prejudica compreender sua atitude posterior ao
pretender escrever a história dos resíduos — que não é senão
salvar os fenômenos anônimos da modernidade numa ideia
de história que lhes faça justiça. Se sua filosofia da história
é a contrapelo, significa restituir na linguagem sua própria
ideia. E se, para Benjamin, escrever a história é dar às datas
sua fisionomia, pretende, com isso, chama-las por seu pró-
prio nome.
Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar”4. Dessas palavras,
é possível compreender o pensamento de Benjamin como uma
polêmica radical com a teoria do conhecimento e o método crí-
tico de sua época, principalmente no que concerne ao método
de análise da cultura e da história. O que há de fundamental em
sua concepção parece ser o fato de que a centralidade do que
ele chama de “montagem literária” coloca a teoria crítica inse-
rida no problema de sua linguagem. Não se pode prescindir, no
caso de um estudo sobre a história, de uma forma que, ao mes-
mo tempo em que trabalhe sobre uma época, saiba recriá-la na
própria linguagem — ou, como ele escreve, “na estrutura do co-
mentário5.
Se é preciso, então, nada dizer, mas ao contrário, o que defi-
ne a história dos resíduos a que se pretende é seu caráter de
exposição, isto é, nomeação, isso significa que a teoria benja-
miniana para o conhecimento só é política até o fim porque
coloca o aspecto residual da história a contrapelo no âmbito
de um uso. Assim, o crítico se vale dos fragmentos da reali-
dade para restituí-la em sua historicidade — análogo ao que
faz também o escritor, o poeta. A montagem, em Benjamin,
como método teórico, encontra na imagem o índice da his-
tória que define a forma da escrita e a teoria social. A partir
da imagem é que Benjamin vai reelaborar sua visão dialética.
92
sua dialética imóvel, redimindo-os numa totalidade mono-
dalógica que, para Benjamin, é a ideia. A política da imagem
acontece, portanto, somente na dimensão de um uso. A teoria
alcança, em sua linguagem, o terreno estético da montagem
e a condição política daquilo que, permanecendo inacabado,
exige de nós uma construção.
A experiência da imagem é, nesse caso, a experiência que res-
tou a ser transmitida. O passante assaltado no caminho das
citações, como o flaneur, encontra-se sujeito à experiência do
choque, isto é, uma experiência social que tornou-se essen-
cialmente estetizada pelo mundo das mercadorias. A ima-
gem onírica, a que Benjamin alude muitas vezes, faz fulgurar
o século XIX como o lugar no qual as imagens ganharam o
estatuto estético-político de uma morada dos sonhos. “O ca-
pitalismo”, escreve Benjamin, “foi um fenômeno natural com
o qual um novo sono, repleto de sonhos, recaiu sobre a Euro-
pa e, com ele, uma reativação das forças míticas”7. Submeter
à crítica um modo de visibilidade que tenha como método a
imagem do passado citada na ordem do dia significa aplicar à
história a técnica do despertar do sonho burguês enfeitiçado.
Mas a imagem é uma aparição efêmera e somente por isso é
histórica, de temporalidade messiânica. A história, enquanto
imagem dialética, só se apresenta como objeto ao crítico se,
enquanto tal, for de fato um objeto perdido no instante se-
guinte. A história se apresente como objeto perdido e o texto
como melancolia dessa perda. Imobilizar no próprio movi-
mento de sua fugacidade é a tarefa do transeunte que vaga
assombrado pelas esquinas da história, constantemente as-
saltado pelo passado, imerso na fantasmagoria moderna da
qual resta ainda despertar.
Com isso, é possível pensar o mundo social e estético pro-
duzido pelas mercadorias como a forma de uma poética das
imagens que nos levaria continuamente a elaborar uma polí-
tica. Benjamin compreende o caráter crítico e prodigioso da
7 BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/ Im-
prensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 436.
94
da cidade o céu já não visível, transformando a vida cidade
no interior sem lado externo — tal como acontece nos so-
nhos. A isso se encerra, como a última fantasmagoria, dessa
vez de ordem cósmica, a visão da história de Blanqui como o
eterno retorno. Para o século que não souber responder com
uma nova ordem social as potencialidades técnicas, isto é,
que denegou o novo modelo de produção, o sonho que enco-
bre a história, se mostra, ao fim, como um pesadelo infernal.
Benjamin pretendia, ao trabalhar sobre os elementos do so-
nho, como na recordação, introduzir na dialética das ima-
gens do passado a técnica do despertar para, assim, salvar
aquilo que, no curso catastrófico dessa história, não cessa
um segundo de erguer os monumentos da época como ruí-
nas antes mesmo de seu desmoronamento.
96
é a “dialética na imobilidade”14. O passado se torna apreensí-
vel na efemeridade imóvel da imagem.
“A imagem dialética [como a memória proustiana] é uma
imagem que lampeja”15, interrompendo o fluxo linear do
tempo. Ela se apresenta como a origem de uma determina-
da experiência histórica. Como índice da história, a imagem
diz não que ela pertence a uma época específica, mas que,
em determinada época, ela se torna legível. (Este consiste
a questão da visibilidade de que fala Benjamin ao cotejar a
concepção marxista da história — e que marca também seu
ponto de desvio com essa tradição). Combray recuperada no
chá não pertence ao passado, mas se tornou passível de co-
nhecimento no momento em que ela reaparece no presente
da madeleine. A história, para Benjamin, é anacrônica.
Isso diria também respeito à melancolia que, como um véu,
perpassa as páginas de Proust. Pois, levando a sério a noção
da temporalidade crítica a que se submete a história pela
imagem, segundo Didi-Huberman, somente assim é possí-
vel viver essa história — como “um trabalho de luto e uma
evocação sem esperança da coisa perdida”16. O mesmo au-
tor vai definir a imagem que surge interrompendo o curso
do progresso histórico, forma originária, como um sintoma.
Pois, os tempos que sobrevivem como fósseis não estão mor-
tos de todo, “são tempos escondidos bem debaixo dos nossos
passos e que ressurgem, fazendo tropeçar o curso de nossa
história.”17. Estaria Didi-Huberman pensando no tropeço do
narrador proustiano na casa dos Guermantes que o fez re-
98
da história, é preciso que se tenha a obscura mas sintomá-
tica dimensão do sonho. Despertar: instante fugaz da inter-
penetração do estado do sonho — ainda sentimos o gosto,
os gestos e o tempo no corpo ao despertamos de um sonho
intenso — e do estado consciente da razão — vigilante e im-
passível ao lançar suas luzes. Benjamin lembra o início da
Recherche de Proust, pois se trata de um despertar. Retira daí
a imagem dialética de toda e qualquer busca de nossos tem-
pos para sempre perdidos. “Nesse caso, o momento do des-
pertar seria idêntico ao ‘agora na cognoscibilidade’, no qual
as coisas mostram seu rosto de verdade — o surrealisa.”20. O
despertar é a síntese antitética da aparição histórica da ori-
gem. Não seria difícil ver nele a expressão mais penetrante
da consciência histórica enquanto pressente ardentemente
uma reminiscência, enquanto, nesse mesmo instante, vive
comovidamente o seu presente preenchido do passado in-
suspeito. O rosto surrealista a que almeja Benjamin é a ex-
pressão violenta da latência da realidade escondida por uma
suposta normalidade, que pode ser definida como um histo-
ricismo narcótico.
A história é, antes de tudo, um objeto (sempre perdido, nun-
ca encontrado) de construção. Na compreensão benjami-
niana de imagem dialética, a função da imagem ganha sua
dimensão política dentro da história residual dos vencidos. A
história construída pela imagem é a expressão do Despertar.
Em 1939, depois da eclosão da guerra, Benjamin foi preso e
levado a um campo de trabalhos ao sul de Paris, onde passou
três meses. Durante esse período, não escreveu nada, exceto
o relato de um sonho, registrado depois em carta. Esse sonho
teria sido como uma visão noturna na qual se deparou com a
leitura de sinais e o corpo de uma mulher muito bonita como
fossem uma só coisa. Ele escreve que, depois do sonho, não
pôde dormir por horas, tamanha a felicidade. Nesse mesmo
ano, Benjamin escrevia uma nova versão da exposição sobre
20 BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/
Imprensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 506.
100
Referências
104
lher? O que sabemos nós da mulher? Tão pouco quanto da
juventude. Nós somos ainda sem experiência de uma cultura
da mulher, assim como nós ignoramos uma cultura da juven-
tude.5
Na mesma carta a Belmore, Benjamin esclarece:
eu, a bem dizer, evito aqui toda linguagem concreta e falo de
bom grado em masculino e feminino: não estão eles extrema-
mente misturados no ser humano?! E dessa forma você compre-
ende que em uma reflexão sobre a cultura eu estimo um pouco
primária a tipologia “homem”, “mulher”.6
Gostaria de me concentrar, sobretudo, na questão da lingua-
gem feminina suscitada no ensaio. Se por um lado, na “Me-
tafísica da juventude”, Benjamin concebe a linguagem mas-
culina como uma infatigável dialética, as personagens Safo, a
mulher e a prostituta, em suas atitudes tipificadas de mulhe-
res silenciosas, aparecem, por outro lado, como porta-vozes
de um passado feminino da linguagem (Weiblich-Gewesenes
im Gespräch), inacessível ao presente do falante. Sobretudo,
a linguagem das personagens femininas não é da ordem de
um meio para um fim, uma linguagem comunicativa, mas
consiste em um louco tagarelar. Ao se perguntar como Safo
e suas alunas conversavam, Benjamin afirma que elas não
depositam confiança na linguagem como comunicação (Mi-
tteilung), mas que levam a sério o prazer lúdico da conversa.
Por isso, ele dirá que “elas caem em conversa inútil, tagarelam
[sie werden geschwätzig]”.7 Em busca do que seria esse taga-
relar, ele afirma que “as mulheres falantes são possuídas por
uma língua louca [sprechende frauen sind von einer wahnwit-
zgen Sprache besessen]”.8 Em alemão, Benjamin utiliza a pa-
106
não estava no jardim do Éden pelas informações que pudesse
fornecer, mas como símbolo distintivo da sentença [Gericht]
sobre aquele que pergunta”.9 E prevê, ainda, um dia do juízo
final, um tribunal, para findar a relação de culpa que acome-
te o falante, o humano tagarela (Geschwätzige Mensch). Nas
palavras de Benjamin:
o conhecimento do bem e do mal é [...] uma “tagarelice” [Ges-
chwätz], e este só conhece uma purificação e uma elevação (a
que também foi submetido o ser humano tagarela [Geschwät-
zige Mensch], o pecador): o tribunal [...]. Essa palavra que jul-
ga expulsa os primeiros seres humanos [die ersten Menschen]
do paraíso; eles mesmos a incitaram, em conformidade com
uma lei eterna segundo a qual essa palavra que julga pune
seu próprio despertar como a única, a mais profunda culpa
[Schuld] — e é isso que ela espera.10
Aqui o tagarelar aparece remetido à impossibilidade do fa-
lante de dizer a dizibilidade da própria linguagem. Pois se a
linguagem, como já nos dizia Platão, é sempre “legein ti kata
tinos”,11 dizer algo sobre algo, aquilo que permanece indizível
nesse dizer é justamente a dizibilidade da própria linguagem.
Por isso, o médium da linguagem aparece em uma dimen-
são negativa, de inefabilidade. Mas é justamente como con-
trapartida a essa relação de negatividade e inefabilidade que
gostaria de pensar o tagarelar feminino, tal como concebido
por Benjamin três anos antes. Gostaria de pensá-lo, então,
como a possibilidade de dizer a dizibilidade da linguagem,
para além de seu uso instrumental, hipótese possível se le-
varmos em conta o elemento do chiste em sua caracterização
9 Ibid. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem.
Escritos sobre mito linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages.
São Paulo: Editora 34, 2011, pp. 212-156. Tradução modificada.
10 BENJAMIN. “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem
do homem”, p. 67.
11 PLATÃO. O sofista (262a). Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz
Costa. São Paulo: Abril
Cultural, 1972.
108
extinguir.13
A tarefa do tradutor, assim como a do filósofo, é justamente
a descrição e exposição de uma língua livre de toda comuni-
cação e de todo querer dizer, já que, se essa língua é o visado
em cada língua histórica, ela, por outro lado, já não exprime
nada e já não quer dizer mais nada. Nas duas notas sobre a
linguagem que Benjamin escreve em Ibiza, em 1933 — “So-
bre a faculdade mimética” e “A doutrina das semelhanças”
— podemos dizer que o parentesco supra-histórico das di-
ferentes línguas históricas será pensado como da ordem das
semelhanças extra-sensíveis (unsinnlicher Ähnlichkeiten). A
linguagem será concebida como cânone, como registro das
semelhanças não-sensíveis, em oposição a uma concepção
da linguagem como mero sistema convencional e arbitrário
de signos. Nas palavras de Benjamin, “a escrita transformou-
-se, ao lado da linguagem oral, num arquivo de semelhanças,
de correspondências extrassensíveis”.14 Esse arquivo material,
poderíamos dizer, é constituído por homófonos, equívocos e
mal-entendidos, cujo trecho “Mummerhelen” de Infância em
Berlim, também escrito em 1933, pode bem elucidar. De fato,
em carta a Scholem, Benjamin afirma que “A doutrina das
semelhanças” foi escrita durante os estudos para aquele que
deveria ter sido o primeiro capítulo de Infância em Berlim: a
Mummerhelen.15
110
ouvir a palavra kupferstich, que significa “gravura de cobre”,
colocou-se debaixo de uma cadeira, esticou a cabeça para
fora, ação denotada pela palavra alemã kopffverstich, e a isso
chamou de “gravura de cobre”. Sobretudo, Benjamin afirma
que o dom de reconhecer semelhanças exercia-se nele por
meio de palavras, mas não aquelas, como ele o diz, “que me
faziam semelhante a modelos de civilidade, mas sim às casas,
aos móveis, às roupas. E por isso ficava desorientado quan-
do exigiam de mim semelhança”.17 É para essa experiência da
linguagem como arquivo de semelhanças extrassensíveis na
ordem das próprias palavras que a figura da Mummerehlen
também aponta.
Benjamin, ao ouvir a expressão “Ich will dir was erzählen von
der Mummerhelen [quero te contar algo sobre a tia Rehlen]”,18
rememora a sensação de assombro que a materialidade dos
sons das palavras, sem significado algum, produzia. A Mum-
merhelen aparece como um espectro para escuta infantil e
constitui de fato um arquivo de semelhanças sem sentido ou
significado — se pudermos forçar a tradução de un-sinnli-
cher Änlichkeiten para semelhanças para além do sentido.19
Ela constitui, sobretudo, uma experiência de homofonia da
própria língua, pois a partir da unidade dos sons entre Mum-
merehlen e Muhme Rehlen podemos ter acesso aos vários
sentidos dessa palavra, para os quais gostaria rapidamente
de apontar.
“Mumm” é o murmúrio de alguém que não quer ou não pode
falar, o balbuciar da criança, enquanto que Mumme signifi-
ca máscara ou o que é mascarado. No verbo mummen, essas
duas significações se cruzam, pois “mumem” corresponde
à “mum mum sagen” ou à ação de murmurar, mas também
àquela de se dissimular ou de se pôr sob uma máscara.
112
linguística estruturalista e pela leitura de Kojève de Hegel,
pensa o Nome-do-pai, releitura lacaniana do falo freudiano,
como o primeiro significante que marca a “entrada” do falan-
te na linguagem. O Nome-do-pai implicaria o falante em uma
cadeia de significantes (“S1, S2, S3... Sn”) em que o sujeito se
encontraria em uma relação de falta, na medida em que o S1,
como significante que é pura marca do “assujeitamento” do
sujeito à linguagem, é inacessível21.
O registro do Real, em oposição aos registros do Simbólico
e do Imaginário,22 aparece, aqui, em sua negatividade, como
resto, como aquilo que resta do encontro do falante com a
linguagem. É para essa impossibilidade que a por vezes mal
compreendida proposição lacaniana “não há relação sexual”
aponta. “Não há relação sexual” quer dizer que o falante, na
21 Nas palavras de Jacques-Alain Miller, nas célebres “Confe-
rências caraquenhas”: “a tese de Lacan é que o significado é um
efeito do significante, e que os efeitos de significado são criados
pelas permutações, os jogos do significante. O sentido surge,
fundamentalmente, da substituição de um significante por outro”.
MILLER, J.-A. Percurso de Lacan: uma introdução. Tradução de Ari
Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 31. É da substituição
do primeiro significante (S1), o Nome-do-pai, com referência a
um significante S2, que advém o sentido ou o significado. Mas
esse primeiro significante, do ponto de vista do sentido, é inaces-
sível, por isso seu efeito de “pouco sentido” (peu de sens), como
diz Lacan. Nas palavras de Lacan: “este 1 [S1] como tal, enquanto
marca da diferença pura, é a ele que vamos nos referir para colocar
à prova [...] as relações do sujeito com o significante. Teremos [...]
que mostrar em que sentido o passo que é franqueado é aquele da
coisa apagada; os diversos apagamentos[effaçons] [...] pelos quais o
significante vem à luz, nos darão precisamente os modos capitais
da manifestação do sujeito”. LACAN, J. Seminário IX, A identificação
(1961, 61). Tradução de Ivan Corrêia e Marcos Bagno. Recife: Cen-
tro de estudos freudianos do Recife, 2003, p. 64.
22 Real, Simbólico e Imaginário são os três registros universais que
compõem a subjetivação em Lacan. O registro do Simbólico cor-
responde à linguagem, à palavra, ao significante; o do Imaginário,
ao corpo próprio, às imagens e ao sentido; e o do Real, ao gozo.
114
gua incarnada e que, como tal, a transmite ao bebê.23 Essa pa-
rece ser a mesma experiência infantil de linguagem descrita
por Benjamin em Mummerhelen, palavra que — como vimos
— em suas variações de sentido, contém tanto a Mumme ma-
trilinear quanto o balbuciar (Mummler) e o murmurar (Mum
mum sagen). Em todo caso, essa relação entre o falante e a
linguagem, marcada pelos equívocos das palavras impostas
d’alíngua materna, produziria sintomas no sujeito (symptô-
mes com “p”) a partir do quais, no trabalho de análise e no
savor-y-faire, no saber-fazer com os sintomas, em uma outra
lida com eles, o sujeito produziria o que Lacan chama de sin-
thome, com “th”, no fim de análise24.
Assim, se o Nome-do-pai insere o sujeito em uma cadeia su-
cessiva de significantes, que também aponta para uma inter-
pretação infinita no trabalho do analista, o que está em ques-
23 Cf. LACAN, Jacques. Alla Scuola Freudiana. Lacan in Italia, 1953-
1978. Milão: La Salamandra, 1978, p. 104-147.
24 Nas palavras de Geneviève Morel “a teoria do sinthoma propõe
uma alternativa ao Nome-do-pai”, e isso não somente para psi-
cóticos, como teria sido o caso de James Joyce. Assim, a relação
entre linguagem e corpo, segundo Morel, pode passar ou não pelo
Nome-do-pai, e ele também se torna um significante contingen-
te. Como afirma Morel: “dizer que não existe nomeação unívoca
do Real pelo Simbólico leva a refutar radicalmente a afirmação
segundo a qual a sexuação de um sujeito seria fixada de uma vez
por todas pelo Nome-do-pai. E, no entanto, alguns psicanalistas
lacanianos sustentam esta tese com sua correlata de que a sexua-
ção não seria jamais estabelecida na psicose visto que o Nome-do-
-pai não funciona aí. [...] A sexuação não provém de uma nomea-
ção unívoca pelo Nome-do-pai – teoria simplista frequentemente
promovida por razões ideológicas”. Para Morel, há um importante
elemento ético-político a ser levado em consideração na clínica
da psicanálise implicado na virada do Nome-do-pai em direção às
palavras impostas d’alíngua materna, na medida em que caberá
a cada um, singularmente, interpretá-las; interpretação e criação
que “colorem de ambiguidade a ‘escolha’ de uma identidade sexu-
al”. Cf. MOREL, Geneviève. La loi de la mère. Essai sur le sinthome
sexuel. Paris: Ed. Economica, 2008, p. 327 – 331.
116
ciente” (Unbewusst) e o chiste (bévue); o que agora nos faz re-
tomar a questão do tagarelar feminino e de sua wahnwitzigen
Sprache, de sua língua louca, na “Metafísica da juventude”.
Muito curiosamente, também em Lacan, há um tagarelar fe-
minino, e ele aparece em uma paródia que ele faz, para nossa
surpresa, do Gênesis bíblico. Logo nas primeiras páginas do
seminário 23 Lacan dirá que se Adão nomeou o mundo, é Eva
quem primeiro se utilizou dessa linguagem, ao falar com a
serpente. Em suas palavras:
Adão, como seu nome pronunciado em inglês bem indica
(...) era uma madame, de acordo com a piada que faz Joyce.28
É bem preciso supor que Adão nomeou as criaturas na língua
daquela que chamaria de Évida.29. Posso chamá-la assim pois
que em hebreu (...) seu nome quer dizer a mãe dos viventes.
Bom, Évida tagarelou imediatamente nessa língua, pois após
a suposta nomeação de Adão, a primeira pessoa que se serviu
dela, foi ela, para falar com a serpente. A chamada criação
divina se duplica no tagarelar do ser falante [parlote du par-
lêtre].30
Muitas páginas adiante, em uma passagem que ressoa a opo-
sição entre linguagem masculina e linguagem feminina do
ensaio de Benjamin de 1913, Lacan afirma que
o homem é o portador da ideia de significante. Essa ideia, em
alíngua [lalangue] tem seu suporte essencialmente na sin-
taxe. De qualquer maneira, o que caracteriza alíngua entre
todas são os equívocos [equivoce] que lhe são possíveis, tal
como ilustrei com equívoco de dois [deux] com deles [d’eux].
Se alguma coisa na história pode ser suposta, é que foi o con-
118
feminina, e acredito que o ensino de Lacan possa nos ajudar
nesse sentido.
Referências
122
quantidade de temas e assuntos ali abordados transbordem
em uma constelação de possibilidades e citações, há uma co-
nexão inegável entre essa obra e a cidade de Paris, seja em
seus aspectos poéticos, políticos, históricos, arquitetônicos
ou culturais. De acordo com Presner (2009, p. 303):
(...) poderíamos certamente argumentar que todos os seus es-
critos experimentais sobre viagens e sobre espaços urbanos (dos
primeiros retratos das cidades até o projeto das Passagens) fo-
ram não somente tentativas de mapear sua própria vida, mas
também tentativas de se pensar sobre o que poderia significar
escrever a história em forma gráfica, mapear a cultura e espacia-
lizar a história, reunir a experiência, a representação e a produ-
ção do espaço1.
De fato, o tema da cartografia não está completamente ausen-
te de seus textos. De acordo com Bolle (2009, p. 24), “o mapa
como gênero foi um dos recursos prediletos de Benjamin
para falar do espaço urbano enquanto lugar público e refe-
rência afetiva”. Tanto na elaboração dos fragmentos reunidos
no livro das Passagens, quanto na suas publicações autobio-
gráficas, é possível identificar algumas menções a mapas.
Tais trechos demonstram que Benjamin tinha um particular
interesse por esse tema, embora não o tenha desenvolvido.
Essas menções estão ligadas, por exemplo, ao mapeamento
de aspectos aparentemente banais de uma cidade. Benjamin
sugere mapear não ruas, avenidas e igrejas — temas típicos
de um mapa convencional — mas bancos de parque, cemi-
térios e bordéis — elementos da cidade que funcionam com
índices diretamente ligados à sua memória subjetiva. Ben-
jamin também associa esse mapeamento à ação do flâneur,
o caminhante da cidade que vagueia pelas ruas observando
1 Do original: “although one could certainly argue that all of his ex-
perimental writings on travel and urban space (from the early city
portraits to the Arcades Project) were not only attempts to map his
life but also to think through what it might mean to write history in
graphic form, to map culture and spatialize history, to bring toge-
ther the experience, representation, and production of space.”
124
tal editor. A figura 1 exibe o 7ème arrondissement de Paris, um
dos 22 mapas presentes nessa publicação.
126
Figura 2: Notação diagramática do projeto das Passagens3
128
doutrina dos temperamentos conhecem bem a nostalgia desse
tipo de homens pelas viagens longas. (BENJAMIN, 2013, p. 37)
No trecho Artigos de papelaria, Benjamin menciona um mapa
chamado Pharus. Na versão em inglês, o fragmento foi publi-
cado da seguinte maneira: “Pharus map. I know someone who
is absent-minded…” (BENJAMIN, 2016, p. 53). Na versão em
português, João Barrento optou por pela seguinte tradução:
Planta topográfica: conheço uma mulher que é distraída. No lu-
gar onde eu tenho presentes os nomes dos meus fornecedores, o
local onde estão guardados os documentos, endereços de ami-
gos e conhecidos, a hora de um encontro, é para ela o lugar onde
fixou conceitos políticos, palavras de ordem do partido, fórmu-
las de profissões de fé e ordens. Vive numa cidade de slogans e
mora num bairro de vocábulos irmanados pelo espírito da con-
juração, onde cada viela toma partido e cada palavra tem por eco
um grito de guerra (BENJAMIN, 2013, p. 32).
Presner (2009) afirma que o mapa Pharus (mencionado na
tradução em inglês) foi um dos mapas dobráveis de bolso
mais populares na Alemanha entre os anos 1920 e 1930. A fi-
gura 3 exibe um mapa Pharus de Berlim, datado de 1929. Um
dos destaques desse mapa é a ênfase no sistema de transpor-
tes ferroviário, o que reforça a relevância da mobilidade e da
rede de conexões com outras localidades para os berlinenses
daquele contexto. Segundo Presner, Benjamin tinha familia-
ridade com mapas desse tipo e, muito provavelmente, teve
acesso a uma versão do mapa mostrado na figura 3.
O mapa do flâneur
130
relações da obra de Benjamin com os mapas e a cartografia
também foram propostas por seus comentadores. Por exem-
plo, no livro A razão nômade, Sergio Rouanet (1993) — um
dos principais tradutores da obra de Benjamin no Brasil —
propõe um mapa que traça, pelas ruas de Paris, uma possível
trajetória do flâneur (figura 4). Rouanet utilizou, como crité-
rio de mapeamento, palavras-chave da obra de Benjamin que
remetem aos temas dos fragmentos e aos títulos dos cader-
nos que compõem o livro das Passagens: colecionador, moda,
trapeiro, prostituta, barricadas, exposição universal etc. Cada
palavra-chave foi associada a um ponto da cidade, criando
uma trajetória que se inicia pela galeria Vivienne (uma das
Passagens parisienses situada nas proximidades da Biblio-
teca Nacional, local frequentado por Benjamin), passa pela
região da bolsa de valores e chega ao boulevard Montmartre.
De lá, o flâneur segue em direção ao Grand Palais na avenida
Champs-Élysées, passando pela região de l’Opéra Garnier, da
igreja Madeleine e da Place de la Concorde. Atravessando o rio
Sena, o flâneur chega à região do museu d’Orsay, uma antiga
estação de trem. Seguindo pela margem esquerda do rio, ele
alcança a ponte que divide outras duas estações de trem: a
Gare d’Austerlitz e a Gare de Lyon. Retornando, o flâneur então
se aproxima da igreja de Notre Dame e pega a rua de Saint-De-
nis, passando ao lado do Forum les Halles para concluir seu
passeio na passagem do Cairo.
132
neur de Rouanet é estimulado a consultar o mapa da cidade,
tão logo deixa uma das passagens onde se encontrava: “Antes
de sair da passagem, o flâneur consulta o plano de Paris, não
porque não conheça de cor os mínimos pormenores da ci-
dade, mas porque não há maior prazer que examinar o mais
perfeito dos planos urbanos do mundo” (ROUANET, 1993, p.
24-25). Em seguida, é mencionado o trecho onde Benjamin
diz que não há salvação para aqueles que não se deixam se-
duzir pelo estudo desse mapa.
A interpretação cartográfica de Rouanet sobre o projeto das
Passagens é uma sugestão sedutora para um passeio filosó-
fico pelas ruas de Paris, inspirado pelas reflexões de Benja-
min. Seu mapa conduz o leitor pelas ruas, esquinas, praças,
monumentos, pontes e galerias, estabelecendo uma relação
topográfica entre os espaços reais da cidade e a obra de Ben-
jamin. O mapa de Rouanet funciona como um instrumento
diagramático que desperta novas interpretações sobre os
temas desenvolvidos no projeto das Passagens. Em outras
palavras, novas camadas de significado à obra de Benjamin
são adicionadas a partir do momento em que organizamos
algumas de suas ideias em um plano cartográfico. Além dis-
so, somos convidados a nos colocar no lugar do flâneur para
percorrer o trajeto sugerido, ainda que estejamos a milhares
de quilômetros de distância de Paris.
Por outro lado, o mapa proposto por Rouanet não introduz
elementos inovadores e questionadores da própria lingua-
gem cartográfica. Pois, afinal, esse não é seu objetivo. O mapa
do flâneur é somente um instrumento diagramático que po-
tencializa a interpretação de certos aspectos espaciais da
obra de Benjamin. Para esse propósito, um mapa simples e
um traçado linear foi suficiente para representar visualmente
elementos espaciais trabalhados por Benjamin.
Contudo, a obra de Benjamin também tem inspirado outros
autores a pensarem a própria maneira de se criar mapas.
Como o pensamento desse filósofo pode nos ajudar a refle-
134
Para explicar sua proposta, Presner descreve um típico mapa
de sistemas de transportes ferroviários. A estrutura em rede
desse tipo de diagrama, com suas infinitas possibilidades
de interconexões e sua abertura descentralizada, enfatiza a
importância do espaço e da mobilidade. Além da atenção
ao movimento dos corpos, Presner reforça a identificação,
nesse tipo de mídia, dos espaços percorridos e a visualiza-
ção de narrativas dos deslocamentos. Dessa maneira, esse
pesquisador sugere uma investigação da história e da cultura
— presente, por exemplo, no embate entre autores judeus e
alemães — apoiando-se em uma estrutura cartográfica:
Poderíamos perguntar: e se a história não fosse mais escrita
(pelo menos não exclusivamente) em uma prosa linear, mas sim
composta por espaços em rede de um sistema ferroviário? E se
o passado fosse mapeado em cima e ao longo de ruas, bairros e
territórios? E se a cultura fosse reconectada ao lugar? (...) Como
outros tipos de visualizações e mídias — sejam cartográficas, fíl-
micas ou hipermidiáticas — poderiam não somente expandir
mas potencialmente romper com as normas da mídia impressa,
talvez abrindo caminho para um ambiente mais aberto, tran-
siente, flexível e em múltiplas camadas para se conceitualizar e
compor estudos históricos?6 (PRESNER, 2009, p. 298-299)
Presner estabelece uma conexão com uma área de estudos
conhecida como mapeamento profundo (ou deep mapping).
Trata-se de uma abordagem emergente que se situa no cru-
zamento entre as áreas da cartografia e das ciências huma-
nas, cujo objetivo é estudar lugares em profundidade através
136
anet e sugere que deveríamos pensar em um suporte visual
que pudesse corresponder, de maneira mais adequada, aos
tipos de experiência que Benjamin privilegia em suas refle-
xões. Segundo Presner (2009, p. 301):
Benjamin está preocupado com coisas que estão ausentes do
mapa Pharus: estruturas sociais e econômicas, memórias de
infância, emoções, imagens fugazes, gostos e aromas, barulhos,
texturas e outras experiências somáticas (...) As paisagens ur-
banas de Benjamin (...) são as histórias fragmentadas e não-si-
multâneas que coexistem como “camadas temporais” num dado
presente.8
Trata-se, no entanto, de um modelo cartográfico hipotético,
de difícil concepção. Basicamente, o grande desafio consiste
em pensar um mapeamento que possa traduzir tanto expe-
riências qualitativas ligadas ao espaço — sensórias e mnê-
micas — quanto conexões históricas temporalmente frag-
mentadas. Da maneira análoga, poderíamos imaginar um
mapa com uma estrutura labiríntica, onde o desvio e a deriva
também se incorporam à metodologia. Por fim, um mapa co-
erente com os princípios benjaminianos, não pode deixar de
explorar as experiências que se encontram nos limiares dos
espaços urbanos.
A questão crítica permanece: como tal mapa (e, desse modo, a
construção de sua história e a história do que ele representa)
pode ser re-animado — ou seja, aberto ao infinito número de
histórias não-simultâneas contidas em cada rua, estrutura e edi-
fício, as inumeráveis vozes e corpos que criam essas histórias
através das suas interações e os contingentes encontros em tais
espaços?9 (PRESNER, 2009, p. 301).
138
arquitetônica e urbanística das cidades. Os estudos publica-
dos em HyperCities combinam, além de mapas, vídeos, tex-
tos, documentos, fotos e visualizações gráficas de dados. Os
resultados do projeto também foram publicados em um livro
(PRESNER et al, 2014).
Em resumo, podemos concluir que a proposta de Presner
consiste em usar a cartografia como método de investigação
histórica. Para isso, o autor dialoga com as pesquisas sobre
mapeamento profundo, que buscam desenvolver técnicas
alternativas de mapeamento. Essas técnicas visam alcançar
outros aspectos relevantes aos estudos da área de spatial hu-
manities, tais como narrativas que emergem dos lugares, pro-
priedades qualitativas ligadas ao espaço e recortes temporais
não-lineares. Essa é uma preocupação geral dos pesquisa-
dores interessados nessa vertente. No entanto, o que difere o
trabalho de Presner das outras pesquisas sobre mapeamento
profundo, é o interesse em apoiar seus argumentos em cate-
gorias benjaminianas: “O que é muito mais relevante para as
paisagens urbanas de Benjamin e uma parte central do thick
mapping imaginado aqui são as histórias não simultâneas e
fraturadas que coexistem como ‘camadas de tempo’ em qual-
quer presente12” (PRESNER et al, 2014, p. 58).
140
Contudo, há um aspecto nessa analogia entre o pensamento
de Benjamin e a cartografia das cidades que requer atenção.
Como aponta Willi Bolle (2000), Benjamin se concentrou nas
metrópoles europeias do início do século XX. Trata-se de um
contexto histórico e geográfico distinto das cidades contem-
porâneas que se situam na periferia do eixo Atlântico-Norte
(tais como São Paulo, Cidade do México, Nova Déli, Pequim
e Joanesburgo, por exemplo). De fato, poderíamos alegar que
os problemas associados às metrópoles contemporâneas (in-
cluindo a própria Paris) alcançaram uma outra escala, em
comparação ao contexto em que Benjamin escreveu sobre as
cidades. Mobilidade urbana, segurança, moradia, tolerância
religiosa, lazer, poluição são exemplos de temas que ganha-
ram outra dimensão em nosso atual momento. Dado esse
problema, o próprio Willi Bolle se pergunta: “diante das di-
ferenças históricas e geográficas entre os dois mundos, como
extrair dos retratos benjaminianos de cidades um modelo
também válido para a representação de uma metrópole sul-
-americana?” (BOLLE, 2000, p. 33). De maneira análoga, po-
deríamos derivar algumas questões: como traduzir a figura
do flâneur para os dias de hoje? Como as ruínas produzidas
pelo capitalismo globalizado se manifestam nas cidades? Se-
ria possível mapear a “aura” que pulsa na arte urbana e nas
modalidades artísticas de intervenção dos espaços públicos
da cidade?
Embora aponte para um outro contexto, não há dúvidas de
que o pensamento de Benjamin nos fornece subsídios con-
ceituais para refletirmos sobre a cidade contemporânea. Se-
gundo Bolle (2000, p. 33), “(...) determinadas estruturas de
nossas grandes cidades foram antecipadas, de modo visioná-
rio, pelas ‘radiografias’ da modernidade, de autoria de Benja-
min”. Contudo, além das próprias considerações que Benja-
min tece sobre a cidade de sua época, interessa-nos focalizar
a maneira como esse pesquisador desempenha essa tarefa,
ou seja, em seu método investigativo.
Ao fazer da cidade um laboratório de estudos, Benjamin pro-
142
Referências
Carolina Peters
carolinapeters50@gmail.com | Un. Federal do Rio de Janeiro
Juventude em Berlim por volta de 1915
146
flexiva, encara o texto — a formação ideal — em sua consistên-
cia autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores
que o conformam, tanto positivos quanto negativos: o conjunto
de suas afirmações, conexões e suficiências, como também as
eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configu-
ração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos
quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscu-
recida no movimento de produção do para nós que é elaborado
pelo observador (CHASIN, 2009, pp. 25-26).
Privilegiamos no trabalho investigativo, portanto, a própria
textualidade benjaminiana, face a seus comentadores. O
mesmo vale para a exposição, na qual nos esforçamos para
que prevaleça a dicção do autor. Procuramos ainda preser-
var a autonomia e autossuficiência desses primeiros escritos,
resistindo à tentação de projetá-los (sem mediação) nos en-
saios consagrados, bem como àquela de redimir os posicio-
namentos juvenis em razão das convicções ideológicas que
assumiu nos anos posteriores — e que, em grande medida,
foram responsáveis por motivar essa empreitada de desco-
brimento de Walter Benjamin.
Trataremos aqui de “A vida dos estudantes”, publicado pela
primeira vez em 1915. Redigido a partir de conferências mi-
nistradas no ano anterior, quando ainda ocupava a presi-
dência da Berliner Freie Studentenschaft3, o texto registra o
momento de ruptura daquele que mais de quatro anos an-
tes “[...] emergiu como um líder e orador em vários grupos
estudantis associados ao que hoje se conhece como o Mo-
vimento de Juventude alemão” (ELIAND; JENNINGS, 2014,
3 Oposição às tradicionais corporações estudantis [Burschenscha-
ften], surgidas no início do século XIX, as Freie Studentenschaft, ou
Associações de Estudantes Livres, representavam uma tendência
mais radical do movimento de juventude alemão no começo do
século XX. Em 1914, Benjamin se elege presidente da Berliner Freie
Studentenschaft, abandonando o cargo pouco após a eclosão da
Primeira Guerra Mundial (Cf. WOLIN, 1982, p. 12; WITTE, 2017, p.
22; SCHOLEM, 2008, p. 21; KONDER, 1999, p. 16; ELIAND; JENNIN-
GS, 2014, pp. 62-67).
148
1940, no momento de todos os perigos.
De forma semelhante, aos olhos de Michel Löwy (2005, p. 20)
, o artigo parece “[...] reunir num único raio de luz todas as
ideias que vão povoá-lo ao longo de sua vida” e, particular-
mente, ao final dela. Stéphane Mosès (2009, pp. 66-67), por
sua vez, fala em uma analogia arrebatadora entre ambos,
como se “[...] antecipando o estágio final de seu pensamento,
Benjamin criticasse a ideia de progresso”. A proposta bastante
singela desta exposição, no entanto, nem trilha o comparati-
vismo atrás das semelhanças, como nos exemplos supracita-
dos, nem para estabelecer a differentia specifica entre os escri-
tos de 1915 e 1940, mas busca tão somente apreender em sua
singularidade a crítica presente em “A vida dos estudantes”,
à qual Benjamin articula uma reflexão sobre a Universidade
alemã de seu tempo e sobre o que considera o papel histórico
do estudantado.
***
150
concepção histórica aqui defendida por Walter Benjamin tira
consequências de si, demandando uma tarefa que se apre-
senta diante deste quadro de descrédito e ridicularização:
converter, de forma pura, o estado imanente de perfeição,
onde estão incrustadas as criações e pensamentos índice do
estado final, em estado absoluto. Em outras palavras, fazê-lo
emergir no tempo que habita; reconhecê-lo no presente.
A fim de delinear esse estado final, não podendo “[...] ser
parafraseado com a descrição pragmática de pormenores
(instituições, costumes, etc.), descrição da qual ele se fur-
ta”, posto que, “[...] apreendido em sua estrutura metafísica,
como o reino messiânico ou a ideia da Revolução Francesa”
(BENJAMIN, 2009, p. 31), ele é a própria utopia, a vida dos
estudantes, seu significado histórico e o significado histórico
da universidade alemã contemporânea a Benjamin são en-
tão mobilizados como símile, como reflexo. Remetendo à sua
textualidade:
O atual significado histórico dos estudantes e da universidade, a
forma de sua existência no presente, merecem portanto ser des-
critos apenas como símile, como reflexo de um momento mais
elevado e metafísico da História. Somente assim ele se torna
compreensível e possível. Tal descrição não é apelo ou manifes-
to, que tanto um como o outro permaneceram ineficazes, mas
indicia a crise que, situando-se na essência das coisas, conduz
a uma decisão à qual os covardes sucumbem e os corajosos se
subordinam (BENJAMIN, 2009, pp. 31-32).
O estabelecimento do símile tem, portanto, a dupla função
de demonstrar que a utopia, “um momento mais elevado
e metafísico da História”, é não somente mensurável, como
igualmente possível, realizável. A busca por descrever tal mo-
mento não configuraria apelo ou manifesto7, mas é índice/
que traduz moquées (Cf. BENJAMIN, 1971).
7 Em que pesem as palavras do nosso autor, acatadas por seus bi-
ógrafos (Cf. ELIAND; JENNINGS, 2014, p. 65), “A vida dos estudan-
tes” não deixa de ser, a uma só vez, manifesto de ruptura com os
Estudantes Livres e chamado à juventude para uma tarefa histórica.
152
limite, conduz imperiosamente a uma decisão — a tarefa his-
tórica —, curvando os covardes e dirigindo os bravos a fim de
reconstituir a totalidade do que se encontra fragmentado, en-
contrar o sentido ético e verdadeiro naquilo que foi derivado.
Cabe aos jovens, tomando por ferramenta a crítica, realizá-la:
O único caminho para tratar do lugar histórico do estudantado e
da universidade é o sistema. Enquanto várias das condições para
isso continuarem vedadas, restará apenas libertar o vindouro de
sua forma desfigurada, reconhecendo-o no presente. Somente
para isso serve a crítica (BENJAMIN, 2009, p. 32).
Como símile do estado final, o “lugar histórico do estudanta-
do e da universidade” necessita ser abordado em sua totali-
dade e seu conteúdo de verdade, de forma sistemática. Posta,
contudo, a condição de imanência deste estado, circunscre-
ve-se a única — e vale comentar que já é muita coisa — fun-
ção da crítica para este jovem Benjamin: libertar o vindouro
da forma desfigurada que assume enquanto os pensamentos
e criações rejeitados, fragmentados e encravados no presen-
te; dito de outro modo, fortalecer tais pensamentos, dando a
ver a utopia que subsiste em seu tempo.
É uma tarefa de grande envergadura, Benjamin aponta, so-
bretudo por perceber que falta ao estudante de seu tempo,
a quem cabe conduzir a crítica, “coragem para submeter-se
de maneira ampla”, e prossegue: “O marcante na vida do es-
tudante é, de fato, a aversão em submeter-se a um princípio,
em se deixar imbuir de uma ideia” (BENJAMIN, 2009, p. 32).
Face a essa recusa, presente inclusive entre seus colegas do
Movimento de Juventude, a posição expressa nesse texto é
de submissão a uma tarefa intelectual; posição disputada por
ele inclusive no seio do estudantado livre. Encontramos uma
anedota sobre esse episódio, tão fidedigna quanto possa ser
Mnemosyne, nas memórias de Gershom Scholem sobre a
amizade dos dois:
Benjamin me contou que, quando da sua eleição a presidente
da Associação dos Estudantes Livres em Berlim, Joël era um dos
154
A profissão que abre à juventude a trilha da “segurança bur-
guesa” (p. 40), retilínea e previsível como a ideia de progresso
histórico, é para ele inimiga da ciência; logo, sendo a univer-
sidade um “reduto da ciência”, não caberia a esta instituição a
profissionalização de seus estudantes. O conhecimento cien-
tífico, que alcança sua universalidade tendo em vista “[...] as
questões metafísicas de Platão e Espinosa, dos românticos e
de Nietzsche” (BENJAMIN, 2009, p. 41), tal como o concebe
Benjamin no presente texto, é por sua vez uma vereda tor-
tuosa, correspondendo a uma outra concepção histórica na
qual nada está determinado na linha de seu desenvolvimen-
to. Com “medo do vindouro” (p. 45), os estudantes que abrem
mão de seu espírito em nome da suposta tranquilidade da
vida burguesa, do casamento e da profissão, abdicam tam-
bém à ciência.
Com isso, Benjamin sublinha a situação singular em que se
encontram os estudantes “[...] uma vez que neles, pela pró-
pria essência das coisas, esses dois polos da existência hu-
mana [o filho de família e o pai de família] encontram-se tem-
poralmente lado a lado” (BENJAMIN, 2009, p. 43). No limiar
da completa imersão no mundo das instituições burguesas,
estão em posição privilegiada para reivindicar uma “grande
vida”. Para a questão fundamental (ou anterior) instaurada
pela unidade consciente que permite à vida dos estudantes
na universidade ser abordada enquanto “símile ou reflexo de
um momento mais elevado e metafísico da História”, Benja-
min fornece uma resposta:
A vida do estudante é abordada mediante a questão de sua uni-
dade consciente. Essa questão está no início, pois não leva a
nada distinguir problemas da vida do estudante — ciência, Esta-
do, virtude — se lhe falta coragem para submeter-se de maneira
ampla. [...] O nome da ciência presta-se por excelência a ocul-
tar uma indiferença comprovada e profundamente arraigada.
Mensurar a vida estudantil com a ideia de ciência não significa
de maneira alguma panlogismo ou intelectualismo — como se
está inclinado a temer —, mas é crítica legítima, uma vez que
na maioria dos casos a ciência é levantada, como muralha férrea
156
cia), sem contudo se ocupar em oferecer alternativa nesse
sentido: “A objeção de como o Estado atual recrutaria então
os seus médicos, juristas e docentes não prova aqui nada em
contrário” da tese de que a ciência não deve ser profissionali-
zante, afirma ele. A ligação que pretende e julga, além de vital,
suficiente, é de outra ordem: não que a instituição universitá-
ria abandone a ciência servindo a um interesse da existência
imediata, mas que preserve-se como reduto da ciência, for-
mulando a crítica que promova uma vida mais elevada. Nes-
sa recusa do pragmatismo que intenta “[...] fundar uma co-
munidade de pesquisadores no lugar de uma corporação de
funcionários públicos e de diplomados” (BENJAMIN, 2009,
p. 33), se mostra a “grandeza revolucionária” [umwälzende
Größe] da tarefa.
Como em um sistema fechado, o parágrafo final se encerra
retomando precisamente a tarefa exposta no primeiro, onde
in nuce pulsa todo o argumento motivador do escrito. A de-
licada circularidade de “A vida dos estudantes” remonta ela
própria à concepção de História nele expressa e defendida,
segundo a qual os significados históricos repousam em um
foco de utopia submerso no presente, não dispersos no cor-
rer infinito dos tempos. A relação íntima que aqui se opera
entre forma e conteúdo atesta a relevância aqui conferida por
Benjamin à crítica como o instrumento justo através do qual
se revela o vindouro, reconstituindo à vida um sentido essen-
cial e verdadeiro de totalidade. Um artigo em que se revela
sua utopia.
158
Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. 18. ed. São
Paulo: Cultrix, 2011.
WITTE, Bernd. Walter Benjamin: uma biografia. Tradução de
Romero Freitas. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
WOLIN, Richard. Walter Benjamin: An aesthetic of redemp-
tion. New York: Columbia University Press, 1982.
Erika Santos
162
dos textos Experiência e Pobreza (1994) e O Narrador (1994) do
próprio autor.
Ao definirmos o fragmento Desempacotando minha biblio-
teca: um discurso sobre o colecionador (1987, p. 227-235),
do livro Rua de Mão Única como fio condutor para pensar
as construções cênicas, as poéticas e teatralidades surgiam
durante as improvisações e brincadeiras para costurar uma
dramaturgia de um corpo que dançava com memórias. Para
Benjamin, o ato de colecionar livros e o seu comportamento
diante dos objetos de coleção faz surgir lembranças de sua
mais tenra infância. Por isso, o próprio autor consegue com
maestria descrever poeticamente em seu único livro autobio-
gráfico, pois o objeto de sua coleção é “uma de suas moradas,
que tem livros como tijolos” (BENJAMIN, 1987, p. 235).
É importante ressaltar como “os adultos estão interpretan-
do à sua moda a sensibilidade infantil” (BENJAMIN, 1994,
p. 247), e que experimentar diversas formas de se relacionar
com o mundo por meio de diferentes objetos foi o percurso
que possibilitou, e ainda possibilita, uma escrita da memó-
ria para elaboração de uma dramaturgia que é variável. Essa
mutabilidade permite a transitoriedade entre as imagens
formadas pela leitura dos fragmentos benjaminianos e as
cenas/imagens que podem ser criadas diante do espectador,
formulando novas outras imagens a partir da experiência e
relação com o fazer teatral. “Pois é a brincadeira, e nada mais,
que está na origem de todos os hábitos” (BENJAMIN, 1994, p.
253). É justamente essa necessidade de se vivenciar o univer-
so infantil que levou à construção da experiência cênica, o
monólogo Haveres da infância; Um Poeta colecionador.
A improvisação foi utilizada como uma “escuta” sensível do
corpo no momento da interação corpo/espaço/tempo, possibi-
litando que as observações atentas do “olhar in-fante” e suas ex-
pressões lúdicas, emergissem das brincadeiras que a própria di-
retora indicou para que a atriz fizesse durante os intervalos entre
um encontro e outro. As ações lúdicas improvisadas, os gestos
corporais e as narrativas sobre a percepção do universo infan-
164
As crianças como os artistas são capazes de reinventar novos
objetos a partir da manipulação. A aura que envolve o indiví-
duo no momento da experiência consegue trazer à luz novos
significados. Por isso, a cena e seus processos intensos, as lei-
turas dos textos benjaminianos e as brincadeiras realizadas
pela atriz propuseram um corpo em arte para que o repre-
sentante da inabilidade fosse vivenciado não só no momento
de atuação da atriz, mas por todos os envolvidos nas narrati-
vas cênicas de Haveres da infância; Um Poeta colecionador.
Nesse jogo entre o brincar e o rememorar há suspensão do
cotidiano.
Assim, no momento do jogo, o indivíduo é tomado pelo espí-
rito do jogo acessando sua memória. Esse acessar a memória
é que conduziu (e ainda conduz) a atriz em seus processos
de apresentação da cena. Um exemplo claro é no momento
em que o Poeta se configura como o estado cênico da atriz
quando ela é perpassada pelas memórias da infância de Ben-
jamin. É o corpo-em-arte evidenciando a memória e o movi-
mento na composição do corpo cênico, realçando o encontro
do “poeta colecionador” com a “atriz-pesquisadora”.
Há alguns traços que definem o Poeta. Quando está em pé e
parado uma perna é levemente flexionada enquanto a outra
fica esticada; quando caminha as duas pernas ficam flexio-
nadas e os dedos dos pés ficam entreabertos possibilitando
a passagem de ar entre eles. O metatarso é ponto de apoio
principal para dar suporte ao desequilíbrio que é nato ao Po-
eta; os braços iniciam os movimentos em 90º graus e após
a criação de desenhos aleatórios no espaço os dedos ficam
esticados, cruzando vetores e formando figuras geométricas;
o tronco está sempre um pouco inclinado para frente; e desa-
fios como deixar o plexo iluminado com um faixo de luz bem
à frente faz com que o olhar siga esta direção preenchendo
o espaço e conectando com a atenção do espectador. A figu-
ra do Poeta não está totalmente definida pois ela descobre
novas formas e sentidos quando o olhar da atriz consegue
encontrar sua própria infância através das lembranças e re-
166
cênicos e/ou memórias, brincadeiras e gestos.
O primeiro passo foi quando começamos a pensar no cená-
rio, no qual teria uma escrivaninha ao centro. Um percurso
foi criado para chegar até ela com diversas brincadeiras pelo
caminho, modificando o andar na tentativa de ser ora poe-
ta, ora criança, ora o adulto que está com pressa e necessita
chegar ao seu compromisso, ora o velho sábio que caminha
percebendo seu próprio jeito de caminhar modificado pelo
tempo. Percurso cênico criado por meio do rememorar e das
brincadeiras; o rememorar quando no ato das leituras do li-
vro Rua de Mão Única abriu as portas das memórias da infân-
cia da atriz possibilitando um olhar sensível.
O encontro com o Poeta foi um dos primeiros passos para
compreender as investigações acerca do corpo na experiên-
cia a partir das brincadeiras, memórias e objetos descritos
por Benjamin nos fragmentos trabalhados. Chamamos de
encontro com o Poeta os momentos de dedicação e constru-
ção da cena Haveres da infância; Um Poeta colecionador, que
ocorreram de forma mais intensa na elaboração de imagens
que fomentavam a relação da atriz com a movimentação cê-
nica para a construção da dramaturgia. Após os anos de 2014,
2015 e totalizando 14 apresentações2 em diversos espaços,
2 O monólogo Haveres da infância; Um poeta colecionador iniciou
suas apresentações para o Ambulatório e na Reunião de Inte-
grantes do Conselho Tutelar da Região das Vertentes/MG em
28/03/2014. Desde então tem acontecido intervenções esporádi-
cas, algumas em eventos acadêmicos, outras em eventos culturais
e na Biblioteca Municipal de São João del-Rei. Apresentações: (i)
Para os integrantes do Ambulatório. (Foram realizadas em outu-
bro de 2013 com o intuito de abrir um diálogo com as diferentes
pesquisas realizadas no grupo); (ii) na Reunião de integrantes do
Conselho Tutelar da região das Vertentes/MG – 28/03/14; (iii) no
Colóquio de Pesquisa e Extensão da Universidade do Estado de
Minas Gerais-UEMG – 17/05/14; (iv); no 7º Festival de Curtas de
Uberlândia – 15/11/14; no III Colóquio Crítica da Cultura. A Política
e as Letras, realizado pelo Programa de pós-graduação em Letras–
Promel/UFSJ – 23/11/2014; (v) no VIII Encontro de Cultura Popular
168
e preparação do corpo cênico para que ao apresentar-se a si
mesmo pudesse trazer a consciência do devir, das percepções
corporais ao rasgar-se e desvelar o que ainda estava inteiro e
fragmentado ao mesmo tempo nessa dramaturgia que fora
tecida concomitantemente por diretora, dramaturgo, atriz e
memórias benjaminianas. Ao transitar por um espaço aberto,
com muito verde e imensa lagoa, houve um pequeno desper-
tar para as descrições que Benjamin traz no fragmento/peça
As cores:
Em nosso jardim havia um pavilhão abandonado e carcomido.
Gostava dele por causa de suas janelas coloridas. Quando, em
seu interior, passava a mão de um vidro a outro, ia me transfor-
mando. Tingia-me de acordo com a paisagem na janela, que se
apresentava ora chamejante, ora empoeirada, ora esmaecida,
ora suntuosa. Acontecia o mesmo com minhas aquarelas, onde
as coisas me abriam seu regaço tão logo as tocava como uma nu-
vem úmida. Coisa semelhante se davam com as bolhas de sabão.
Viajava dentro delas por todo o recinto e misturava-me ao jogo
de cores de suas cúpulas até que se rompessem. Perdia-me nas
cores, fosse nos céus, numa joia ou num livro. De todo modo, as
crianças são sempre presas suas. (BENJAMIN, 1995, p. 101)
As relações entre as memórias trazidas pelo texto e a vivên-
cia durante o caminhar, se entrelaçaram ainda mais com as
memórias que afloraram durante a transposição das narra-
tivas benjaminianas em texto para a cena. O perder-se nas
cores das bolhas de sabão que relata Benjamin, também é
algo que a atriz apresenta em sua trajetória. Ao caminhar e
transitar pelas cores do espaço naquele instante, ocorreu um
insight de que a experiência com essa caminhada propunha
uma retomada e ao mesmo tempo uma nova situação, pois
já não haveria a ligação física com a diretora e dramaturgo,
verificando-se que a forma expressiva/intensiva — expressi-
va/expansiva ocorre em processos de reminiscências quan-
do a atriz se torna o “Poeta”. Portanto, o processo de escrita
da memória se encontra na experimentação cênica que ve-
nho aqui denominar de Conversas de um Poeta Colecionador.
Devo salientar que, ao ser extraído do monólogo Haveres da
170
espaço, mas esse ponto é dos que mais me impressionam
diante das possibilidades de levar esse experimento cênico
para diversos lugares. No Centro Pedagógico a disposição fez
com que o “salto” sobre o carretel trilhasse uma compreen-
são do texto frente às ações. Todo o caminho percorrido de
um corpo que pretende dançar com suas memórias se torna-
ra mais vívido quando aqueles pequenos olhares viram junto
comigo um “marinheiro”, um “trem” e as pedras colocadas
nos trilhos. Outro momento marcante era quando as meias
eram simples meias, os balões simples balões e a caixa que
continha os objetos de coleção uma simples e possível “cai-
xa mágica”. Todos os objetos cênicos despertaram nas crian-
ças certa curiosidade, mas foi somente com a encenação do
Corcudinha que roubava sapatos, bonés e garrafinhas d’água
dos espectadores que estavam imersos na cena, que houve
a melhor das improvisações: as crianças adentraram à cena
para brincar, abrindo a gaveta do Poeta, colocando as mãos
nas meias e solicitando balões que estavam dentro do bolso
do paletó. Na hora, o pensamento lógico do ator que está em
cena é que só faltavam dois minutinhos pra entregar o texto
final ao espectador. Ali, entre os restos de uma cena sendo
remontados com mãos tão habilidosas, a atriz se viu apenas
como uma profissional que se perdeu frente ao público. Sem
ação, só mais tarde me houve questionamentos e colocações
que seguem como norte de um corpo docente.
172
realiza é o que instiga a prática artística vislumbrando res-
postas durante a apresentação cênica.
Referências
176
tas obras repletas de arquivos mas que nem por isso se apro-
ximam das discussões que estruturam o cinema que analiso.
É característica deste último se deter no arquivo em si, em
sua materialidade, em seus detalhes, naquilo que lhe falta,
enfim, olhar para os arquivos fundamentalmente enquanto
imagens, superfícies a serem lidas (DOANE, 2003, p.94), e
não simplesmente como “exemplos” de contextos históricos
passados. Ou seja, no grupo de obras que abordo, apesar de
se reconhecer o elo entre as imagens assistidas e o contexto
histórico em que foram produzidas, não se ignora o fato de
que se trata, antes de tudo, de imagens, portadoras de toda
uma complexidade estética que nos impede de saltar imedia-
tamente à história: o que o enquadramento mostra? Como se
comportam os seres filmados? O que ficou de fora quadro?
Por que filmar este ou aquele objeto desta forma, com este
ângulo de câmera? Por que incluir este ou aquele plano na
montagem do filme? E por que esse tempo de duração do
plano? E por que essa ordem de sucessão de planos? Como
retrabalhar isso tudo em uma nova montagem?
A forma que Harum Farocki encontrou de fazer essas pergun-
tas (e não necessariamente de respondê-las) em seu filme A
saída dos operários da fábrica envolve pelo menos dois ele-
mentos: a fala — narração em off — e a manipulação ostensi-
va da imagem-arquivo — cortes, desacelerações, repetições,
reenquadramentos, congelamentos da imagem, associações
com outras imagens. O filme começa com a primeira película
exibida pelos irmãos Lumière, intitulada A saída dos operá-
rios da fábrica Lumière (1895), que tinha a duração de menos
de um minuto. Enquanto assistimos aos corpos saindo do es-
tabelecimento, surge a voz off:
O primeiro filme da história apresentado no cinema tem o
título de: A saída dos operários da fábrica. Mostra como
homens e mulheres que trabalham na fábrica Lumière em
Lyon abandonam o recinto por duas saídas e desaparecem
da imagem do filme. Este filme pretende sobretudo mostrar
que se podem ver movimentos nas imagens. Desta primeira
178
mundo na medida em que expõe sua superfície audiovisual
em uma outra superfície, a tela. A narração em Farocki com-
põe, assim, um passeio pelas imagens, num processo que
aproxima o lugar do montador àquele do espectador.
Tentar dar conta de quem eram aquelas pessoas filmadas em
1895 por meio de, por exemplo, uma fórmula sobre a tensão
da luta de classes no capitalismo iria reduzir a existência da-
queles corpos — e o próprio argumento da luta de classes. A
luta de classes está ali e não pode jamais ser ignorada: não
somente os operários saindo da fábrica, mas seu patrão os
filmando (é a Fábrica Lumière). Por esse motivo, inclusive,
Thomas Y. Levin vai comentar que as relações entre cinema
e vigilância estão presentes desde o início do cinema (2009,
p.179). Mas há outra coisa também presente na imagem: tudo
aquilo que é visível, que se mexe, que está em quadro, e que
forma também um extracampo (os corpos e as coisas que
saem do alcance do enquadramento). Ou seja, há também
tudo aquilo que nos escapa, que não está previsto, que não
está dito ou teorizado — mas que assistimos ainda assim.
A fala da narração em off reconhece que há ali uma imensa
complexidade, e por isso faz observações analíticas simples,
quase banais: desse modo, ela dá espaço para a imagem tra-
balhar, desabrochar diante do olhar do espectador, que é su-
tilmente orientado pela narração.
Georges Didi-Huberman trata essa complexidade plural da
imagem como um anacronismo intrínseco a ela (2000, p.16).
O autor aponta que o eucronismo, isto é, a forma de organi-
zação temporal que situa os seres e as coisas através de suas
épocas (segundo a qual um quadro pertence a determina-
do movimento artístico, que pertenceu a determinado mo-
mento da história), se mostra uma abordagem rasa quando
lidamos com imagens (ibid., p.13). Elas são corpos de tempo
complexo, impuro, múltiplo: “uma extraordinária montagem
de tempos heterogêneos formando anacronismos” (ibid.,
p.16). Se Adorno assinala que “a atualidade do ensaio é a do
anacrônico” (2003, p.44), é possível sugerir que uma história
180
[2]. E aqui me refiro menos ao universo da representação do
que à problemática da natureza da imagem cinematográfica
em si, isto é, me interesso menos pelo nível de iconicidade
do cinema do que por seu nível de indexicalidade: todos os
elementos que aparecem em uma cena filmada (ficção ou
documentário) tiveram que passar diante da câmera e riscar
com luz a sua superfície sensível (seja ela película ou sensor
eletrônico). Esse funcionamento foto-gráfico empresta ao ci-
nema um fundamento materialista, como argumentou Sieg-
fried Kracauer (1997, p.309), ou parcialmente pré-linguístico,
de acordo com Jean Epstein (1974, p.351). Ao mesmo tempo,
contudo, a forma como a cena se realiza (ângulos de câmera,
mise en scène, inserção na montagem) pode fazer parte de um
universo de semelhanças não-sensíveis (estilos de autor, con-
venções de gênero ou de época: a gramática do cinema clás-
sico, por exemplo, com sua progressão linear de planos ge-
rais, médios e closes, ou suas fusões de passagem de tempo).
Os filmes que usam os arquivos meramente como exem-
plos para suas teses históricas, utilizam a indexicalidade da
imagem cinematográfica para fazer valer seu ponto de vis-
ta, como se dissessem “aqui está a prova”, ou ainda “isto é o
mundo”. Ignoram o fato da imagem cinematográfica ser an-
tes de tudo indeterminada (MONDZAIN, 2009, pp.25-26), ou
ainda, de ser “não toda”, indecifrável até que seja trabalhada
na montagem (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.85). Aquilo que
chamo aqui de filme de arquivo, por outro lado, usa a indexi-
calidade da imagem para se espantar com ela, para observar
o descontrole, o pedaço de mundo que invadiu a imagem e se
182
tória do cinema. História do cinema. História sem palavra”.
Surge a imagem em preto e branco de dois homens sepa-
rados por uma estaca larga, juntamente com o som de um
canto à capela melancólico (récita do poema Testamento de
um condenado de Robert Brasillach, que colaborou com os
nazistas em Vichy e foi executado em 1945) [3]. Vemos os dois
homens em close, a imagem lenta, frame a frame; logo su-
pomos se tratar de uma futura execução. Por sobre essa ima-
gem, escreve-se: “jamais esquecerei...”. Corta para a imagem
colorida de um homem e uma mulher dançando à noite, em
coreografia ensaiada: Gene Kelly e Leslie Caron em Um artis-
ta em Paris (1951). Retornamos aos dois homens em preto e
branco; por sobre eles está escrito: “... o sangue...”. Voltamos à
coreografia em colorido: “... que em carmim prefigura o bei-
jo” — completa-se a frase do cineasta russo Friedrich Ermler.
Acrescenta-se às interações o canto lírico de amor Adije, adije
amore de Abruzzo, do século XIX. Por fim, enquanto todos os
elementos continuam interagindo, vem a voz de Godard: “o
pobre cinejornal deve limpar o sangue e as lágrimas de toda
a suspeita como as ruas são limpas assim que é tarde demais
e que o exército já atirou nas massas”.
A alteridade entre os elementos da cena são gritantes, a pon-
to de ser difícil estabelecer uma conexão discursiva fechada
entre eles. Mas isso é porque essas interações estão sempre
em aberto, comunicando por meio de suas radicais diferen-
ças uma semelhança que as une. Dois humanos em preto
e branco que se matam; dois humanos em colorido que se
amam; a letra escrita nos lembrando o carmim do beijo, que
prefigura o sangue; a forma fragmentada como Godard dis-
põe essa frase, tirando dela múltiplos sentidos; a récita me-
lancólica de um poeta fascista executado; o canto lírico so-
bre o amor; a crítica ao cinejornal e com ele à mídia, que tem
papel conformista e não transformador. Imagem convulsiva
184
imagens que são índices, sobrevivências de marcas feitas
pela luz do mundo, e além disso, lida com essas imagens em
seu fluxo pelo tempo. O cinema vem assim como máquina de
fazer ver semelhanças, no sentido benjaminiano, de tornar o
espectador assombrado com sua própria clarividência, e de
assombrar por evidenciar que a semelhança é sempre ponto
de encontro com a alteridade — confrontando e desnatura-
lizando a visão que nutro de mim e do mundo. A percepção
da semelhança, através do cinema de arquivo, como método
para a transformação do olhar.
186
história ou história da imagem? Um pedaço de mundo que,
na medida em que o assisto se revela resto de imagem, ima-
gem-sobrevivência, que mantem seu olhar fixo em nós, que
não se perdeu com o tempo (ao contrário de tantas outras:
apenas 7% de todos os mais de 4mil filmes feitos até a década
de 1930 no Brasil sobreviveram até nós) [4]. A experiência com
a passante desconhecida, que desaparece para todo sempre
ao evadir o enquadramento de Botelho, remetendo ao poe-
ma de Charles Baudelaire, é plenamente fotogênica. A partir
dessa cena, perguntamo-nos se o elemento fotogênico não
poderia ser encontrado no olhar que a própria imagem de-
volve ao montador, ao espectador (MARTINS & ANDUEZA,
2017, p.148).
Quando Benjamin descreve a imagem do passado, que “re-
lampeja irreversivelmente no momento de sua conhecibili-
dade”, ele nos alerta sobre a efemeridade dessa imagem: “é
uma imagem do passado que ameaça desaparecer com cada
presente que não se sinta visado por ela” (quinta tese: BENJA-
MIN, 2012, p.243). A imagem-relâmpago é portanto tão frágil
quanto potente. Nós, seres presentes, precisamos nos sentir
investidos por essa imagem para podermos percebê-la, só
então será possível acolhê-la e salvá-la (e nos salvar) do de-
saparecimento. O olhar da passante de Passeio público ressoa
com as palavras de Benjamin: seu olhar está fixo na objetiva
de Botelho, um olhar que atravessa tempos diversos e chega
até nós, um corpo que nos olha de lá da década de 1920 — e
desde lá. Há uma troca intensa de olhares: entre a passante e
a câmera, os montadores, os espectadores. Nos sentimos vi-
sados por essa imagem, que relampeja diante de nós.
Um paralelo começa a se tornar mais claro: para Epstein, a
imagem fotogênica só ocorre quando há expansão da nossa
percepção na medida em que a assistimos; para Benjamin, a
4 Estimativa feita por pesquisadores do cinema silencioso brasilei-
ro, apresentada por Carlos Roberto Souza, no libreto que contém
a coleção Resgate do cinema silencioso brasileiro, editada pela
Cinemateca Brasileira, s/a.
188
não é?”. Falava-se muito, mas ninguém nunca se tocava, havia
uma interdição. Enquanto ela fala, a imagem do retrato sorri-
dente vai se aproximando de maneira sutil.
Nesse trecho, a imagem vem antes. Sem discurso explicativo
ou introdutório: o sorriso. Depois que a mulher começa a fa-
lar, a fotografia (que se mantém sempre a mesma) parece ir
tomando outras formas, parece ir mostrando suas camadas
de tempo e complexidade. Uma mudança drástica na per-
cepção ocorre, por exemplo, quando ela revela que se trata
de uma foto de saída e não de entrada. Uma camada de leitu-
ra completamente imprevista se superpõe à imagem quando
a mulher comenta de seu suéter, que cobre todo o corpo, e
faz um adendo sobre a situação dos relacionamentos sexuais
no Portugal da época: “uma tragédia”. A lógica discursiva que
vimos em Farocki, cujo princípio disparador é a imagem, se
aplica muito bem aqui. Não fosse o suéter, não seríamos con-
textualizados sobre os desastrosos candidatos a namorados,
que “falavam, falavam, mas não tocavam”.
Mistura de tempos: a menina ontem, a mulher hoje. Mistura
de presenças: a voz de um corpo, um corpo mudo. O olhar
daquela foto interpela a própria depoente, investida por ele
na medida em que o assiste. Ela explica o sorriso e denuncia
seu incômodo com ele. O mesmo olhar e o mesmo sorriso
nos interpelam junto com a voz madura de alguém que tem
lembranças, e nos relacionamos à nossa maneira com a le-
viandade de uma jovem e o arrependimento de uma adulta.
Cruzamento de vivências. O suéter, como imagem-relâm-
pago, dispara na depoente as memórias amorosas da época
da ditadura. O sorriso se complexifica ainda mais para nós
quando ouvimos falar do excesso de pudor, da ausência de
mãos, de corpo. Assistimos à imagem, à voz, e à construção
dinâmica e frágil de um elo entre ambas, de um lugar de pro-
dução de sentido e criação de imagens (do pai, da mãe, dos
candidatos a namorados).
Observar esse processo da memória de identificação de se-
190
conecta à imagem-relâmpago benjaminiana: uma visão do
passado que irrompe no presente, como epifania da memó-
ria (HUYSSEN, 2014, p.158).
A memória no mundo
192
— a própria essência da encenação o é. É curioso que o mo-
vimento do corpo-arquivo fingindo levantar um corpo-au-
sência lembra a dança entre vida e morte que Jean-Louis Co-
molli enxerga no filme Memory of the camps (1985), quando
os guardas nazistas são obrigados pelas tropas aliadas a car-
regar os corpos mortos dos judeus — e o fazem se abraçando
a eles (2006, p.43). Na dança absurda descrita por Comolli
se prefigura a coreografia filmada por Rithy Panh. Comolli
aponta, naquilo que assiste, os polos entre vida e morte. Ele
assemelha essas extremidades ao procedimento cinemato-
gráfico, que atua essencialmente pela análise do movimento
(fragmentação em frames) e por sua síntese durante a exibi-
ção (reconstituição pela passagem de frames, produzindo
ilusão de continuidade). A análise como polo de morte, a
síntese como polo de vida. Comolli aponta que “aquilo que
o cinema não foi feito para filmar, a morte enquanto tal, in-
transponível, é filmada aqui. Violência feita ao cinema pela
morte. O cinema suporta esse desafio porque nele, através da
análise, a morte atua” (2006, p.46).
Acrescente-se aos polos de morte-vida e análise-síntese o
do ausência-presença, esquecimento-memória. A cena dos
ex-guardas do Khmer é portanto essencialmente cinemato-
gráfica. É fotogênica. Nesse sentido, já que a fotogenia atua
conectada ao presente, ela “presentifica” aquele corpo-au-
sência, tornando sua falta tão concreta quanto a matéria do
corpo do ex-guarda — matéria-imagem. Desse modo, a ima-
gem abre as portas para a clarividência do espectador e atua
como catalisador de imagens-relâmpago.
194
1997.
LEVIN, Thomas Y. Retórica do índex temporal: narração vigi-
lante e o cinema de “tempo real”. In: MACIEL, Katia. Transci-
nemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009. pp.175-192.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas,
SP: Papirus, 2011.
MARTINS, Andréa F. e ANDUEZA, Nicholas. Presente que ir-
rompe: fotogenia e montagem. Revista Eco Pós, Rio de Janei-
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ROHDIE, Sam. Film modernism. Manchester: Manchester
University Press, 2015.
SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO,
Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas, SP:
Papirus, 2006.
198
o refúgio da arte. O colecionador é o verdadeiro habitante do
intérieur. Ele se incumbe de transfigurar as coisas. Sobre ele
recai a tarefa de Sísifo de despir as coisas de seu caráter de
mercadoria, uma vez que as possui.” (BENJAMIN, 2006, p.
45).
No belo ensaio “Desempacotando minha biblioteca”, Walter
Benjamin discorre em primeira pessoa “sobre a arte de cole-
cionar mais do que sobre a coleção em si” (BENJAMIN, 1987,
p. 227) e sublinha que a opção por fazê-lo através de diver-
sas maneiras de adquirir livros é arbitrária: “Este processo ou
qualquer outro é apenas um dique contra a maré de água viva
de recordações que chega rolando na direção de todo cole-
cionador ocupado com o que é seu.” (idem)
Benjamin é referência de certa forma incontornável na abor-
dagem do colecionador particular por enxergar este último
como o agente mais legítimo no empreendimento de uma
coleção: “o fenômeno do colecionar perde sentido à medida
que perde seu agente. Mesmo que coleções públicas sejam
menos censuráveis pelo seu lado social e mais úteis pelo seu
lado científico que as particulares, os objetos só têm sua ra-
zão de ser nestas.” (idem, p. 234). É por meio dessa lente que o
autor aborda a emblemática figura do “colecionador autênti-
co”, calcada em um tipo de ligação específica com os objetos:
Bem-aventurado o colecionador! Bem-aventurado o homem
privado! [...] Pois dentro dele se domiciliaram espíritos ou genio-
zinhos que fazem com que para o colecionador — e me refiro ao
colecionador autêntico, como deve ser — a posse seja a relação
mais íntima que se pode ter com as coisas: não que elas estejam
vivas dentro dele; é ele que vive dentro delas. E, assim, erigi dian-
te de vocês uma de suas moradas, que tem livros como tijolos, e
agora, como convém, ele vai desaparecer dentro dela. (BENJA-
MIN, 1987, p. 235)
Na fusão entre colecionador e coisas colecionadas, a coleção
ergue-se como morada um tanto quanto transcendente, mas
não deixa de ter alicerces concretos.
200
“morada de sonho”. As estratégias de aquisição das coisas e
a transmissibilidade do conjunto delas são relevantes para a
reflexão sobre a arte de colecionar. O “destino” dos objetos
também. Entre camadas oníricas e objetivas, portanto, a co-
leção é uma forma de acesso ao mundo a partir de um inte-
rior, mas nunca um encerramento nele.
Aparição
202
A possibilidade de pensar em termos de combinação (em vez
da oposição) de valores é profícua para refletir sobre a ambi-
valência de objetos de culto expostos em museus como obras
de arte. Em minha tese de doutorado (GOMES, 2017), bus-
quei analisar as relações engendradas por imagens de santos,
ex-votos5 e outros objetos de devoção em situações nas quais
os mesmos são mobilizados para outros fins que não o culto
religioso. A exposição desses objetos, como argumentei, mais
do que sacrificar o valor de culto, pode ser pensada como rito
que institui novos status para as coisas. O rito de mostrar evi-
dencia as intenções dos colecionadores, vistos com suspei-
ção por razões variadas, dentre elas, a manipulação de coisas
impregnadas de forças diversas e a legitimidade das formas
de obtenção do que colecionam.
Arjun Appadurai (2008, p. 42) assevera que “o desvio de ob-
jetos para fora das rotas especificadas é sempre um sinal de
criatividade ou crise, seja estética ou econômica”. Essa pista
sobre o potencial das transações ser tanto criativo, quanto
perigoso — e, por conseguinte, pregnante de possibilidades
de recomposição das significações em torno dos objetos —
reitera a pertinência de estudar a utilização de objetos rituais
para outros fins que não as trocas com os deuses. Voltando a
Benjamin, trata-se de pensar a aquisição, guarda, transmis-
são, exibição, enfim, o destino das coisas originalmente con-
cebidas para estreitarem relações com divindades e que são
enredadas em coleções de arte.
Nos muitos museus e exposições de arte sacra que visitei,
pude observar a interação entre pessoas e esse tipo de obra
de arte, bem como ouvir os relatos dos profissionais envolvi-
204
nador em alusão a um altar e ao ato de elevar o sagrado ca-
racterístico de algumas práticas religiosas.
Essa reiterada elevação, como nos lembra Agamben (2007), é
uma separação:
Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares,
animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfe-
ra separada. Não só não há religião sem separação, como toda
separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente
religioso. […] O termo religio, segundo uma etimologia ao mes-
mo tempo insípida e inexata, não deriva de religare (o que liga e
une o humano e o divino), mas de relegere, que indica a atitude
de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com
os deuses, a inquieta hesitação (o “reler”) perante as formas — e
as fórmulas — que se devem observar a fim de respeitar a sepa-
ração entre o sagrado e o profano. (AGAMBEN, 2007, p. 58-59)
Quando participei de uma visita guiada ao acervo do Museu
Casa do Pontal, em 2013, ouvi da mediadora que o acesso ao
mezanino onde ficam as peças de religião já foi evitado por
grupos de visitantes levados por escolas. Os professores que
levam esses alunos, segundo a profissional, até conseguem
lidar com o preconceito das crianças em relação às obras,
mas temem a reação enérgica dos pais delas em relação ao
trabalho pedagógico que envolva “santo católico” e, princi-
palmente, “coisas de macumba”.
Segundo a curadora do museu, a parte religiosa do acervo
não é contemplada em algumas visitas em função da ampli-
tude da coleção, que impõe a necessidade de escolhas das
obras a serem apresentadas. De acordo com Ângela Mascela-
ni, o percurso dos grupos é definido caso a caso e de acordo
com os objetivos das visitas entrevistos pelas escolas na insti-
tuição museológica, tais como “mostrar o folclore”, a “cultura
brasileira”, propiciar “lazer” etc.
Os relatos que apontam tanto para a interdição tácita do con-
tato com certas obras, quanto para o acesso a elas sendo en-
tendidas, sem maiores ruídos, como representativas da cul-
tura brasileira, são indicativos da multiplicidade de relações
206
anteriormente. O contraste é intencional: passamos de uma
mostra sobre “arte popular” e suas evocações de noções de
povo, criatividade e classe popular etc. para uma exposição
idealizada pelo Estado com vistas a enaltecer heróis da pátria
e figuras de proa da política brasileira. O MHN foi criado em
1922 pelo intelectual Gustavo Barroso como parte das come-
morações pelo centenário da Independência.
O colecionamento da instituição, historicamente pautado
por critérios elitistas e pelo “culto da saudade”, tem se recon-
figurado a partir da proposição do MHN de buscar reformu-
lar seu entendimento do que seria o “nacional”:
Na atual exposição “Portugueses no Mundo”, inaugurada em
2010, o museu tenta dialogar com outra influência cultural re-
cebida durante o período colonial, a de origem africana. Em
seu último módulo são apresentadas obras de Mestre Valentim
(identificadas como tal), joias típicas das africanas que viveram
na Bahia, além de painéis que tematizam as contribuições dos
africanos e seus descendentes para a cultura do brasileiro como,
por exemplo, a capoeira e o jongo. (FERREIRA, 2016, p. 10)
Desse modo, o acervo eivado de referências às conquistas
militares e ao poder político/econômico do Brasil desde seu
período colonial tem sido reinterpretado e contado com a in-
corporação de obras contemporâneas. A exposição em pau-
ta conta com uma grande instalação cenográfica, chamada
“Templo de Oxalá”, encomendada ao artista plástico Emanoel
Araújo. Verena Alberti (2013, p. 8) sinaliza que a plasticidade e
a beleza da peça de destaque atraem a atenção dos visitantes:
“com efeito, numa de minhas visitas, vi estudantes adoles-
centes de uma escola pública fotografarem-se uns aos outros
na frente do altar.”
A autora, entretanto, é crítica da ênfase à miscigenação pre-
sente na exposição, nitidamente tributária da ideologia da
mestiçagem. A interpretação, segundo a historiadora, é dada
de antemão e não dissolve uma grande narrativa nacional.
Em uma das salas da exposição, inclusive, o visitante se con-
fronta com os objetos ao som de Maria Bethânia declamando
208
do, muitas vezes é estabelecido pelos próprios colecionado-
res que as formaram; seja por anteverem os dilemas familia-
res que podem ser provocados por seus legados materiais,
seja por ambição de preservação do acervo reunido. A maior
presença no espaço público, portanto, é uma estratégia que
compõe a edificação da coleção como trincheira, apesar de
ser vista por Benjamin como um aspecto da dissolução de
sua autenticidade. Nas palavras do autor: “As coisas, assim
representadas, não admitem uma construção mediadora a
partir de ‘grandes contextos’” (BENJAMIN, 2006, p. 240).
A possibilidade de reunião de fragmentos da experiência em
uma nova ordem caracteriza a atuação do colecionador se-
gundo princípios de montagem que podem facilmente ser
pensados em relação a exposições. Nessa linha de raciocínio,
elas podem “fazer explodir o continuum da história” (BENJA-
MIN, 1994, p. 22). A interdição de obras não é a única narra-
tiva possível sobre a interação com as peças abordadas. Elas
também atraem, seduzem, inquietam. O ato de separar ine-
rente ao religioso de que nos fala Agamben — presente em
templos de natureza diversa, como museus, casas e igrejas
— propicia a interação oportuna para re-parar; para o exer-
cício de olhar de modo fascinado para o mundo, tão caro ao
flâneur descrito por Benjamin. Para tanto, contudo, é preciso
arregalar os olhos e mirar mesmo o que assombra, tal qual o
anjo da historia.
Referências
Ivan Capeller
ivan.capeller@eco.ufrj.br | Un. Federal do Rio de Janeiro
Para Walter Benjamin, “la chose est medium de la commu-
nication et ce qui en elle se communique est justement —
d’après ce rapport de médiation — ce « medium » (langage)
lui-même » (BENJAMIN, 1971, 85)1. Pensar a linguagem
como um meio de auto-expressão em vez de pensá-la como
um meio de representar alguma coisa é mais do que uma
maneira de evitar e criticar a ideia de que a linguagem é um
mero instrumento ou ferramenta de mediação entre entes di-
versos. É o próprio conceito da linguagem como um meio de
representação da realidade através de signos que se encon-
tra virado de cabeça para baixo, pois a própria realidade se
transforma em medium através do qual a linguagem como tal
se apresenta, se expressa e transmite a si mesma.
Uma teoria da comunicação (humana ou não), ainda a ser
conceitualizada como ciência, provavelmente se beneficia-
ria muito da concepção benjaminiana, de extração bíblica,
da linguagem como medium da criação, em oposição à visão
convencional, adotada pelos teóricos do campo da informa-
ção e da comunicação, de que a linguagem é apenas um meio
de representação. Em função de tal necessidade, renova-se
o interesse em abordar a teoria da linguagem de Benjamin
através do elucidativo prisma enunciado por Terry Eagleton
em seu ensaio Walter Benjamin or Towards a Revolutionary
Criticism2: é precisamente no idealismo radical da teoria da
212
linguagem de Benjamin que reside a chave de sua controver-
sa adesão ao materialismo histórico.
Segundo T. Eagleton,
(...) o messianismo de Benjamin é ao mesmo tempo a prova mais
evidente de seu idealismo e uma das fontes mais poderosas de
seu pensamento revolucionário (…) a linguística de Benjamin,
em todo o seu primitivismo místico e sensualismo ingênuo, é
sem dúvida idealista; porém, a crença judaica na unidade ex-
pressiva de palavra e corpo, se dada uma guinada dialética, pode
tão facilmente reaparecer como a base para uma recolocação
materialista do discurso nas práticas sociais a partir das quais,
como Benjamin vê astutamente, ideologias semióticas moder-
nas a isolaram estrategicamente. De fato, pode ser que a primeira
inclinação de Benjamin em direção ao marxismo tenha ocorrido
precisamente por essas razões. (EAGLETON, 2010, 132/170-171).
A rejeição de Benjamin às «ideologias semióticas modernas »
não está em contradição com sua adesão posterior ao mate-
rialismo histórico, antes permitiu-lhe configurar sua forma
particular de pensar a linguagem como uma entidade mate-
rial inscrita na historicidade concreta do mundo. Por isto, sua
rigorosa leitura do Be’reshit (o livro da Gênesis) consegue ser
tão próxima das exegeses teológicas tradicionais sem jamais
colocar-se fora dos estritos limites da razão:
Lorsque dans la suite nous allons considérer l’essence du langa-
ge à la lumière des premiers chapitres de la Génèse, nous n’en-
tendons ni poursuivre un projet d’exégèse biblique, ni, dans ce
contexte, situer objectivement la Bible, comme vérité révélée,
à la base de notre réflexion, mais simplement explorer ce que
nous présente la Bible quant à la nature même du langage; et
la Bible n’est au départ indispensable à nôtre projet que parce
que nous la suivrons ici dans son principe en présupposant avec
elle le langage comme une réalité dernière, inexplicable, mysti-
que, qu’on ne doit considérer que dans son développement. En
se donnant elle-même pour une révélation, elle développe né-
cessairement les faits linguistiques fondamentaux. (BENJAMIN,
214
Além de revelar, em toda plenitude, as qualidades propria-
mente poéticas de um texto literalmente soterrado por ca-
madas sucessivas de interpretações e exegeses de caráter
teológico, apologético e doutrinário, e de recuperar o sabor
do original até mesmo no que concerne sua pontuação e or-
ganização formal (já que a aparentemente inocente reorga-
nização do texto bíblico em parágrafos já constitui em si uma
traição aos critérios onto-epistemológicos próprios à men-
talidade do seu presumido autor6), a tradução de Haroldo
de Campos revela a estrutura onto-lógica profunda do pen-
samento inerente à narrativa bíblica: a criação do mundo é
apresentada como um processo de auto-presentificação em
que o universo assim criado se constitui através da própria
linguagem divina postulada enquanto ordenamento uni-
versal e princípio basilar da Criação. O mundo organizado é
resultado da linguagem de Deus e a linguagem de Deus or-
ganiza-se enquanto criação divina, isto é, enquanto mundo
organizado.
Se os dois primeiros versículos se referem ao caos pré-lin-
guístico do silêncio abissal anterior à Criação, momento em
que « a terra § era lodo § torvo §§ e a treva § sobre o rosto
do abismo §§§ E o sopro-Deus §§ revoa § sobre o rosto da
água », a estrutura semio-lógica da narrativa bíblica revela-
-se, a partir do terceiro versículo, como o processo de nome-
ação divina de uma série de pares sêmicos ontologicamente
constitutivos da própria existência do mundo e de todos os
entes que o povoam, de tal forma que cada um dos sete dias
da criação apresenta-se como o nome de uma determinada
oposição semântica fundamental, em uma exposição pontu-
ada pelo refrão « e foi tarde e foi manhã § dia X », conforme o
seguinte esquema:
(...) e foi tarde e foi manhã § dia um [LUZ/TREVA : DIA/NOITE]
(...) e foi tarde e foi manhã § dia segundo : [CÉU/ÁGUAS :
216
Benjamin inicia a sua própria análise do livro da Gênesis
precisamente neste ponto, ou seja, logo após a narrativa da
Criação propriamente dita, ou narrativa sacerdotal, já que o
segundo capítulo do Gênesis apresenta uma segunda versão
da narrativa bíblica da Criação que é aquela de fato por ele
comentada7. Trata-se de uma escolha importante, pois Ben-
jamin expõe sua teoria idealista da linguagem, baseada na
ideia do poder divino do nome como « medium » da criação,
a partir de uma versão radicalmente materialista deste pro-
cesso em que Deus, agora denominado IHVH (Iavé ou Jeová)
molda o primeiro homem, Adão, a partir dos vapores e eflú-
vios que emanam da terra (« adamá », em hebraico), para só
então « fabricar » a primeira mulher a partir de uma de suas
costelas. Para Benjamin, o fundamental aqui, no entanto, é o
fato de que, nesta segunda narrativa da Criação, Deus atribui
ao Homem seus próprios poderes linguísticos de nomear os
entes do mundo para que este os consagre com seus nomes
próprios no Pardess, o Jardim do Éden ou Paraíso:
La deuxiéme version du récit de la Création, celle qui parle du
souffle insuflé à l’homme, enseigne aussi que l’homme a été fait
de la terre. Dans tout le récit de la Création, c’est le seul passage
où il soit question pour le Créateur d’une matière dans laquelle il
exprime son voulouir; partou ailleurs ce voulouir est conçu com-
me créant sans intermédiaires.Dans ce second récit, la création
n’advient point par le verbe (Dieu dit — et cela fut) , et à cet hom-
me qui n’a pas été créé à partir du verbe est maintenant accordé
le don du langage, qui l’élève au dessus de la nature. (BENJAMIN,
1971, 87).
Porém os poderes de nomeação do homem não são iguais
aos poderes da nomeação divina:
En Dieu le nom est créateur parce qu’il est verbe, et le verbe de
Dieu est savoir parce qu’il est nom. (...) Le rapport absolu du
nom à la conaissance ne se trouve qu’en Dieu; là seulement est
le nom parce qu’il est au plus intime de lui-même identique au
verbe créateur, le pur « medium » de la conaissance. C’est à dire:
218
enunciados, argumentos e interprteações — convergentes,
divergentes ou mesmso indiferentes — que Benjamin não
hesita em classificar como « tagarelice »8.
No entanto, as supostas semelhanças entre a teoria da lingua-
gem de Benjamin e o clichê heideggeriano que tenta pensar
a linguagem como « morada do Ser » devem ser desconstru-
ídas se quisermos compreender o verdadeiro alcance episte-
mológico e político do interesse de Benjamin pelo materia-
lismo histórico. A linguagem humana, para Benjamin, é um
sintoma do exílio do Ser. Neste exílio, porém, a relação do ho-
mem com os poderes criativos e vitais (portanto igualmente
mortíferos e letais) da linguagem não pode ser considerada
apenas como uma relação de perda e decadência a partir de
um momento original de plenitude de sentido na relação en-
tre as palavras e as coisas.
É por isto que Pierre Bouretz tem toda a razão ao apontar a
necessária complementaridade entre o ensaio sobre a lingua-
gem de Benjamin e seu ensaio sobre A Tarefa do Tradutor9 :
(...) la traduction a finalement pour but d’exprimer le raport le
plus intime entre les langues. Il est impossible qu’elle puisse ré-
véler ce rapport caché lui-même, qu’elle puisse le restituer; mais
elle peut le représenter en l’actualisant dans son germe ou dans
son intensité. Et cette représentation d’un signifié par l’essai, par
le germe de sa restitution, est un mode de représentation tout à
fait original, qui n’a guère d’équivalent dans le domaine de la vie
non-langagière. Car cette derniére connaît, dans des analogies et
des signes, d’autres types de référence que l’actualisation inten-
sive, c’est-á-dire anticipatrice, annonciatrice. — Mais le rapport
auquel nous pensons, ce rapport trés intime entre les langues,
220
dim dos sentidos é capaz de manter os poderes esquecidos
de um signo em suspenso, no domínio virtual das ideias ain-
da impensadas, como bem o expressa o midrash hassídico
transmitido por Régine Robin no livro La Mémoire Saturée10:
Quando o Baal Shem-Tov tinha uma tarefa difícil para realizar ia
a certo lugar na floresta, acendia uma fogueira e caia numa pre-
ce silenciosa, e o que ele devia fazer se realizava. Quando uma
geração mais tarde o Maggid de Meseritz tinha de realizar a mes-
ma tarefa, ia para este mesmo lugar da floresta e dizia: “Nós não
sabemos mais acender a fogueira, mas nós ainda sabemos re-
zar”, e o que ele devia fazer se realizava. Uma geração mais tarde,
quando Rabbi Moshe Leib de Sasson devia fazer a mesma tarefa,
também ele ia à floresta e dizias: “Nós não sabemos acender o
fogo, nós não conhecemos mais todos os mistérios da prece, mas
nós ainda conhecemos o lugar exato na floresta onde isso acon-
tecia, e isso deve ser o suficiente”. Mas quando passou mais uma
geração e o Rabbi Israel de Rishin devia fazer a mesma tarefa, ele
ficou em casa sentado na poltrona e disse: “Nós não sabemos
mais acender a fogueira, nós não sabemos mais dizer as preces,
nós não sabemos mais o lugar da floresta, mas nós ainda saber-
mos contar a história”, e a história que ele contava produzia o
mesmo efeito que a prática de seus predecessores.
As implicações epistemo-metodológicas e éticas desta forma
de pensar a natureza da linguagem são imensas: cada ele-
mento significante de um texto — cada letra, signo ou sinal
emitidos — é capaz de conter (e, potencialmente, de trans-
mitir) várias camadas superpostas de organização do sentido
do pensamento em torno de uma ideia. A exegese talmúdica
destaca quatro níveis sucessivos de interpretação do texto
sagrado, do mais superficial ao mais profundo, na seguin-
te ordem: nivel literal (pshat), alegórico (remez), exegético
(drash) e oculto (sod). Mais importante do que a escolha de
um método apropriado de exegese, porém, é a exigência ética
implícita à relação entre linguagem, conhecimento e memó-
ria, presente tanto no midrash acima citado como, na obra de
Benjamin, em sua visionária teoria das constelações exposta
10 ROBIN, Régine: La Mémoire Saturée, Paris, Éd. Stock, 2003.
222
sobre os fenômenos empíricos que orbitam em torno dos
potenciais sentidos de um símbolo (ou signo). Atuam, antes,
como ímãs ocultos ou atratores estranhos em torno dos quais
se agrupam e se reagrupam as coisas assim como as estre-
las se reúnem em constelações organizadas por um olhar (a
ideia) estranho às suas respectivas posições e trajetórias reais
no espaço. Presentes à própria constituição do mundo como
linguagem, as ideias estão presentes no mundo enquanto lin-
guagem e seu potencial encontra-se contido na mais ínfima
letra ou sinal emitidos, pois, ao participarem da constituição
da linguagem do mundo, participam constitutivamente da
realidade do mundo em seu próprio processo de realização
fenomênica:
O conjunto dos conceitos que servem à representação de uma
ideia presentifica-a como configuração daqueles. De fato, os fe-
nômenos não estão incorporados nas ideias, não estão contidos
nelas. As ideias são antes a sua disposição virtual objetiva, são a
sua interpretação objetiva. Se elas não contêm em si os fenôme-
nos por incorporação nem se dissipam em funções, na lei dos
fenômenos, na « hipótese », coloca-se então a questão de saber
de que modo elas alcançam os fenômenos. A resposta é: na sua
representação. Em si, a ideia pertence a um domínio radical-
mente diverso daquele que apreende. O critério para definir a
sua forma de existência não pode, por isso, ser o de dizer que
ela compreende em si aquilo que apreende, por exemplo como
o gênero compreende em si as suas espécies. Não é essa a tarefa
da ideia. O seu significado pode ser ilustrado por meio de uma
analogia. As ideias relacionam-se com as coisas como as cons-
telações com as estrelas. Isto significa desde logo que elas não
são nem os conceitos nem as leis das coisas. Não servem para
o conhecimento dos fenômenos, e estes de nenhum modo po-
dem servir de critério para a existência das ideias. Pelo contrário,
o significado dos fenômenos para as ideias esgota-se nos seus
elementos conceituais. Enquanto os fenômenos, pela sua exis-
tência, pelas suas afinidades e as suas diferenças, determinam o
alcance e o conteúdo dos conceitos que os circunscrevem, a sua
relação com as ideias é a inversa, na medida em que é a ideia,
enquanto interpretação objetiva dos fenômenos — ou melhor,
224
nectar as ideias potencialmente expressas pela linguagem, o
trabalho conceitual de produção do conhecimento e a expe-
riência vital da memória está ligado assim à possibilidade de
sua transmissão, ao longo da história, através da frágil mate-
rialidade dos seus significantes. A erudição filológica faz-se
ainda mais necessária, mas não a serviço de uma pretensa re-
construção histórica fiel do sentido passado das ideias, e sim
em prol de uma avaliação crítica do maior ou menor teor de
verdade remanescente em dada obra, medido por contraste
ou oposição ao seu teor material de signo posto em circula-
ção em determinado momento histórico, e ainda capaz de
transmitir-se ao presente para tentar transformar o seu curso
mítica, isto é, supostamente, pre-determinado.
A distinção metodológica entre teor de verdade (ligado ao
conteúdo significante da ideia) e teor material ou coisal (li-
gado à expressão material do signo) de determinada obra, já
presente em seu ensaio de 1922 sobre As Afinidades Eletivas
de Goethe12, permitiu a Benjamin, a partir do final dos anos
1920, a articulação de uma estética materialista avançada em
que as demandas artísticas da avant-garde modernista e a
presença dos modernos dispositivos técnicos de reprodu-
ção e transmissão de imagens e sons podiam ser plenamen-
te pensadas em sua atualidade histórica e em seu potencial
heurístico acerca do futuro próximo. Como todos sabem, o
cinema e o rádio eram os dispositivos de comunicação de
massa paradigmáticos da época de Benjamin, e o fato de que
seus curtos, porém densos, textos sobre a mimesis e a doutri-
na das correspondências13 não tenham sido escritos duran-
te o seu período idealista inicial, ao qual pertence seu texto
sobre a origem da linguagem, mas apenas alguns anos antes
de sua mais comentada peça acerca do « declínio da aura da
226
racionalizada e esclarecida de judaísmo formulada por seu
mestre Hermann Cohen17, assim como o seu estilo elíptico e
aforismático, pleno de parábolas, alegorias e imagens de for-
te sabor bíblico, constituem-se em séries de camadas de sen-
tido a ser interpretadas por seus exegetas exatamente como
os rabinos do Talmud deviam interpretar a Bíblia. Porém, seu
sentido último não reside em um movimento de retorno eru-
dito às fontes hebraicas da tradição, como em Scholem, nem
em uma ontologia da existência baseada na maior ou menor
proximidade ao Ser pela linguagem, como em Heidegger,
mas em uma aposta política no futuro da memória como fru-
to de um encontro do passado e do presente mediados pelos
poderes analógico-miméticos da linguagem.
Se a Internet apresenta um desafio espistemológico imenso à
perspectiva teórica de Benjamin sobre as relações entre lin-
guagem, conhecimento e memória, não deixa de apresentar
também, do ponto de vista ontológico, possibilidades fasci-
nantes: não será possível reler a parábola do Angelus Novus,
narrada na famosa nona tese Sobre o Conceito de História18,
como uma profecia acerca destes nossos últimos novos dias?
Não daria esse anjo, o anjo da história, o seu nome próprio
aos dias de hoje?
Se assim for, e se situarmos o materialismo messiânico de
Benjamin em sua perspectiva correta, isto é, politicamente
comunista e revolucionária, o olhar do anjo da história em
direção ao passado deve ser considerado em uma disjunção
refratária à visão tradicionalmente melancólica com que é
comumente interpretado19. Longe de representar apenas a
pp. 181-211.
17 BOURETZ, Pierre: Testemunhas do Futuro – filosofia e messianis-
mo, São Paulo, Ed. Perspectiva, 2011, pp. 29-147.
18 BENJAMIN, Walter: “Sobre o conceito da história”, in Walter Ben-
jamin: Obras Escolhidas – magia e técnica, arte e política, São Paulo,
Ed. Brasiliense, 1987, pp. 222-234.
19 Acerca da disjunção olhar/visão no ângelus novus de klee/
228
Referências
Caio Paz
caiocnp@gmail.com | Un. Federal do Rio do Janeiro
— As máquinas de guerra vêm aí, mas
não tenha medo. O problema não são as
máquinas que se aproximam da cida-
de, são as máquinas que já estão aqui.
A máquina de Joseph Walser — Gonçalo
M. Tavares
232
as relações que a violência tem com o direito para distinguir e
articular os diversos modos como ela se exerce. Nessa crítica
à violência não se trata de denunciar a violência em nome de
uma recusa total ao seu exercício, mas de evidenciar como o
direito se funda e se conserva apenas pelo uso da violência.
Benjamin situa sua abordagem em um ponto de vista externo
ao direito porque, a partir dele, uma crítica à violência esta-
ria fadada à dialética dos meios e fins. 2 Mais precisamente,
uma discussão com ponto de partida no direito, segundo essa
perspectiva, repetiria de modo circular as seguintes pergun-
tas: se os fins são justos, a violência como meio é justificável?
Ou ainda, se os meios sãos justos ou sancionados, os fins são
justificáveis? À primeira pergunta, o direito natural respon-
deria afirmativamente, acreditando que a violência é um
dado da natureza e que existem direitos naturais. A crença na
existência de direitos fornecidos pela natureza permite que
o direito natural justifique qualquer meio violento em fun-
ção dos fins, uma vez que esses são, por si só, compreendidos
como justos. Apesar de o direito positivo se fundar no direi-
to natural e manter a crença em alguns direitos oriundos da
própria natureza (como o direito à vida e à propriedade), ele
sustenta a crença de que o próprio direito é uma construção
histórica. Por esse motivo, o direito positivo responde afirma-
tivamente à segunda pergunta, ou seja, ele justifica os fins se
esses seguiram a forma prescrita pelo direito. 3 Apesar de se
diferirem, há um pressuposto solidário em ambas as abor-
dagens: tanto o direito natural quanto o positivo acreditam
em uma correspondência entre direito e justiça. A novidade
e a singularidade da abordagem de Benjamin não consistem
apenas em separar direito e justiça, mas também de pensar
em uma violência que não seja pensada a partir da dialéti-
ca de meios e fins. Ou seja, o ensaio do filósofo alemão tem
um duplo movimento: por um lado trata-se de realizar uma
São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2011. p. 125.
2 Ibidem. p. 122.
3 Ibidem. p. 124.
4 Ibidem. p. 130.
234
limites ao modo como se pode alcançar e garantir inclusive
os fins naturais. Dito de outro modo, se a guerra é um meio
para alcançar um fim natural, o direito moderno captura toda
forma possível dessa violência “originária” para garantir que
o seu exercício pelos indivíduos tenha uma forma prescri-
ta pela jurisdição. Essa estratégia utilizada pelo direito mo-
derno é uma forma de neutralizar o seu poder criador que,
exatamente por isso, é também ameaçador à ordem jurídica
estabelecida. O direito de guerra ajuda a expor a contradição
do próprio direito moderno pelo fato de ele ter de reconhecer
nessa violência de guerra uma potência criadora da lei e, ao
mesmo tempo, uma potência ameaçadora da lei instituída.
Então, o movimento pelo qual o direito faz coincidir fins na-
turais (e aqui se situaria a violência instauradora presente na
guerra) com fins de direito é uma tentativa não apenas de ali-
jar de qualquer indivíduo o acesso a essa violência originária,
mas também impedir que ela se insurja contra o direito e, a
um só tempo, usá-la na sua própria conservação. 5
É nesse sentido que Benjamin só admite hipoteticamente e
provisoriamente a distinção entre violência instauradora e
conservadora do direito, porque ele pretende mostrar como
o próprio direito torna essa distinção opaca. 6 Ou seja, ele
evidencia como na violência a serviço da conservação do
direito reaparece aquela instauradora, que o próprio direito
insidiosamente insiste em apagar. Essa confusão é demons-
trada no ensaio de Walter Benjamin por meio de três dispo-
sitivos jurídicos: o militarismo, a pena de morte e a polícia.
O filósofo alemão vê no militarismo a confusão entre a fun-
dação e a conservação do direito porque, por um lado, por
meio dele, realiza-se a guerra, que, como exposto, é arqueti-
picamente ligada à execução de fins naturais e enquanto tal é
fundadora do direito. Por outro, Benjamin vê no militarismo
a imposição do emprego universal da violência como meio
5 Ibidem. p. 130-131.
6 Ibidem. p. 124.
7 Ibidem. p. 131-133.
8 Ibidem. p. 134.
236
tendo em vista a ação policial no Rio de Janeiro. 9
Com a análise desses três dispositivos, Benjamin observa que
o direito confunde a distinção entre a violência instauradora
e a mantenedora para a sua conservação. Uma das consequ-
ências dessa análise é a constatação da impossibilidade de o
direito resolver qualquer conflito de modo não violento. So-
bre esse aspecto, lê-se:
A pergunta [é possível o direito resolver conflitos de modo não
violento?] obriga, sobretudo, a constatar que uma resolução de
conflitos totalmente não-violenta jamais pode desembocar num
contrato de direito. Mesmo que este tenha sido firmado pelas
partes contratantes de maneira pacífica, o contrato leva, em últi-
ma instância, a uma violência. Pois o contrato dá a cada uma das
partes o direito de recorrer à violência, de um modo ou de outro,
contra a outra parte contratante, caso esta rompa com o contra-
to. E não apenas isso: do mesmo modo como o seu desfecho,
também a origem de qualquer contrato aponta para a violência.
Esta não precisa estar imediatamente presente no contrato como
violência instauradora do direito, mas está nele representada na
medida em que o poder [Macht] que garante o contrato de di-
reito é, por sua vez, de origem violenta, mesmo que este poder
não tenha sido introduzido no contrato pela violência. Quando
se apaga a consciência da presença latente da violência numa
instituição de direito, esta entra em decadência.10
A última frase da citação revela um dos objetivos de Benja-
min com o texto: evidenciar a natureza violenta do direito e,
por isso, criticá-la. Além de criticar essa íntima solidariedade
entre direito e violência, o texto benjaminiano tem também
outro objetivo, pensar em uma violência que não esteja ins-
crita no direito. É nesse sentido que ele apresenta uma vio-
lência pura, isto é, uma violência que não visa nem conservar
nem instaurar o direito. Se, em suas relações com o direito, a
violência está fadada ou à justificação dos seus meios pelos
fins ou à justificação dos fins pelos meios, Benjamin pensa
9 Ibidem. p.135-136.
10 Ibidem. p. 136-137.
238
que Benjamin utiliza para se referir à violência é gewalt. É
curioso que, em português, gewalt possa ser traduzida não
apenas como violência, mas também como poder. Essa pos-
sibilidade, conservada no título da tradução que João Barren-
to fez desse texto de Benjamin para o português, explica em
que sentido poderia ser lida a afirmação benjaminiana se-
gundo a qual a violência pura é não-violenta e não sangrenta.
Falar em um poder como violência que não é violento, talvez,
seja um gesto de pensar em uma dimensão ético-política que
não esteja circunscrita a uma esfera exclusiva do direito, ain-
da que ela soe bastante enigmática.
Essa crítica de Benjamin e a proposição de uma violência
pura rendeu ao século XX um enorme debate acerca do es-
tatuto de ambas. Derrida, em Força de lei, afirma que a críti-
ca de Benjamin ao Estado de Direito não previu a ascensão
do fascismo e, nesse sentido, ela seria solidária com ele. Por
outro lado, Agamben desenvolveu a crítica de Benjamin em
direção a uma separação da violência e do direito em seu
projeto Homo sacer.
O livro Força de lei, de Derrida, reúne duas conferências. A
primeira intitulada “Do direito à justiça” e a segunda “Pre-
nome de Benjamin”. Ainda que a discussão com o texto “Para
uma crítica da violência” esteja presente na segunda confe-
rência, a primeira contém tanto elementos que rementem às
questões abertas pelo texto benjaminiano quanto ao debate
a que Agamben convoca Derrida.
“Prenome de Benjamin” foi uma conferência apresentada no
colóquio “O nazismo e a solução final”. Nas advertências pre-
liminares, Derrida afirma que o texto revolucionário do filó-
sofo alemão se situa na onda antiparlamentarista e anti-ilu-
minista, que, na Europa entre guerras, permitiu a ascensão
do nazismo. Sobre esse aspecto, lê-se:
Zür Kritik der Gewalt não é apenas na crítica da representação
como perversão e queda da linguagem, mas da representação
como sistema político da democracia formal e parlamentar.
240
mentos em que a decisão entre o justo e o injusto nunca é garan-
tida por uma regra. 14
No trecho anterior, o direito é distinguido da justiça. Essa dis-
tinção operada por Derrida funciona de modo a considerar a
crítica benjaminiana, segundo a qual a existência do direito
só é possível por meio da violência. Com isso, ele reconhece
que o direito, apesar das suas determinações históricas, isto
é, as leis por ele estabelecidas, ele deve se dirigir à justiça,
que não é determinável. Assim, a aporia referida por ele é o
fato de o direito querer fazer justiça ainda que nunca consiga
coincidir com ela. Ou seja, a aporia consiste no cálculo so-
bre o incalculável em que estão implicados direito e justiça.
A afirmação de que o justo e o injusto nunca é decido por
uma regra é um outro modo de o filósofo mostrar a sua posi-
ção quanto as leis positivas estabelecidas em determinando
momento e lugar históricos: essas leis não garantem a jus-
tiça. No entanto, mesmo considerando a justiça como algo
incalculável e, assim, reconhecendo que a criação de leis é
insuficiente uma decisão seja justa ou injusta, Derrida afirma
que “é justo que haja um direito”. Nesse sentido, se por um
lado o texto derridiano distingue direito e justiça, por outro
ele afirma ser justo a existência do direito. Esse movimento
duplo de distinção e articulação entre o direito e a justiça, na
estratégia argumentativa de Derrida, visa garantir um trân-
sito reciproco essas duas dimensões distintas e, ao mesmo
tempo, articuladas. No entanto, ao sustentar essa posição
com relação ao direito, Derrida estabelece uma importante
diferença quanto à crítica radical que Benjamin realiza ao di-
reito. A partir da crítica radical ao direito do texto de 1921, não
seria possível afirmar, em Benjamin, algo como: “é justo que
haja um direito”.
Ao fazer essa afirmação sobre o direito, o texto derridiano
não querer abandonar completamente o direito, ainda que
14 DERRIDA, Jaques. “Do direito à justiça”. In: Força de Lei: o
fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moises. 2º
ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 30.
242
a relação habitual estabelecida entre o direito e a justiça. Ao
pensar o direito como algo desconstrutível, o que Derrida faz
é expor aquilo que Benjamin também havia exposto em seu
ensaio de 1921 e que permanece recalcado no direito moder-
no: o direito só se cria e se conserva por meio da força, isto é,
a violência. No entanto, diferente de Benjamin, Derrida não
quer, com esse movimento, abandonar o direito, mas, de al-
gum modo, “aprimorá-lo”, ainda que, com isso, não se possa
alcançar a justiça nem eliminar o seu caráter violento. Uma
vez desconstruído e consciente de todo a seu fundamento
negativo, o direito se endereça à justiça, de modo a perceber-
-se em falta em relação a ela. Só na medida em que o direito
se endereça à justiça e sabe não apenas que ela é indescons-
trutível, mas também indeterminada, que se pode dizer: “é
justo que haja um direito”.
A perspectiva desconstrucionista não propõe e nem parece
acenar para o fim do direito, ainda que seja crítica àquilo que
Benjamin chamou de decadência do direito moderno, isto é,
o ocultamento e o esquecimento da sua violência fundadora.
Mais do que não acreditar no horizonte para o qual se dire-
ciona o texto de Benjamin, Derrida parece considerar proble-
mática essas proposições benjaminianas, que, segundo a sua
argumentação, teriam possibilitado o nazismo.16
Diferente de Derrida, Giorgio Agamben apresenta outra re-
lação com o texto benjamininano. Seria possível afirmar,
ainda que só parcialmente, que os livros Homo sacer, Estado
de exceção e O que resta de auschwitz são uma tentativa de
continuar as reflexões que Benjamin ensaiou em “Para um a
crítica da violência”. Assim, Agamben, com o seu método pa-
radigmático, faz uma crítica à democracia e ao direito ainda
mais radical que a crítica do filósofo alemão. Nesse sentido,
ele sustenta, em Homo sacer, a tese de que há uma íntima so-
lidariedade entre as democracias e os totalitarismos. 17 Com
244
tese com a de Benjamin se mostre de modo mais explícito. Se
para Benjamin o direito mostra a sua decadência na figura da
polícia, que faz uso da violência fundadora e mantenedora
do direito, é possível ver no uso da violência fundadora para
conservar o direito a suspensão da lei a que Agamben se re-
fere. Então, ainda insistindo nesse exemplo da polícia, seria
possível afirmar que quando a polícia executa uma ordem ju-
dicial de busca e apreensão nas favelas do Rio de Janeiro ela
está fazendo uso da violência mantenedora, mas, ao mesmo
tempo, sabe-se que em sua ação truculenta, na maior parte
das vezes, casas são invadidas sem mandados e pessoas são
torturadas, o que configura como uma suspensão da lei, isto
é, o uso da violência anômica que funda o direito.
No entanto, Agamben não se restringiu a afirmar que a sus-
pensão da lei no momento mesmo de sua aplicação está ape-
nas em um instituto tal como a polícia. Para o filósofo italiano,
toda lei só se aplica se desaplicando, o que significa dizer que
a violência fundadora direito, que é arbitrária e anômica, não
cessa de se inscrever em toda execução da lei. Nesse sentido,
seria possível afirmar que todo Estado de direito é um Estado
policial. Para chegar a essa formulação, Agamben se utiliza
de um texto de Benjamin escrito nos anos de 1940, as “Teses
sobre o conceito de história”. Mais especificamente, ele utili-
za a oitava tese, que afirma que o estado de exceção em que
vivemos se tornou a verdadeira regra. Conjugando esse texto
de 1940 como aquele outro texto que o filósofo alemão escre-
veu em 1921, Agamben desenvolve a crítica ao direito realiza-
da por Benjamin. 20
Para desenvolver essa crítica, o filósofo italiano discute com
um contemporâneo de Benjamin, Carl Schmitt. A partir da
definição schmittiana de soberano, ele evidencia a paradoxal
topologia da soberania. Ao definir o soberano como aquele
que pode decidir sobre a suspensão e a validade da norma,
Schmitt mostra o elemento excepcional que constitui a juris-
246
e o direito é um vínculo fundacional e mantenedor, o estado
de exceção efetivo ou verdadeiro implica uma deposição do
próprio direito, ou seja, a invenção de um novo uso para ele,
que é o que está em jogo na violência pura.
Tanto Derrida quanto Agamben circulam em torno do texto
que Benjamin escreveu ainda em sua juventude e chegam a
conclusões distintas. Enquanto Derrida, através da descons-
trução, permanece vinculado, de algum modo, ao direito e
vislumbra certa solidariedade entre as proposições de Ben-
jamin sobre o fim do direito e a ascensão do fascismo, Agam-
ben faz o inverso. Nesse sentido, desde uma perspectiva der-
ridiana, Agamben seria colocado ao lado de Benjamin, e o
apontamento em direção ao fim da violência exercida pelo
direito seria visto como condição de possibilidade para a as-
censão do fascismo. Diametralmente oposto, o filósofo italia-
no estabelece uma secreta solidariedade entre a democracia
e o totalitarismo. Se a posição derridiana contrária à abolição
do direito está vinculada à democracia, o que Agamben pa-
rece fazer é jogar a crítica que Derrida fez a Benjamin con-
tra ele mesmo. Desde a perspectiva agambenina, apesar de
compreender o fundamento místico da autoridade, isto é, a
ficção vazia e violenta sobre a qual todo direito está fundado,
Derrida permanece como um “guardião” desse vazio violen-
to da lei por acreditar que, de algum modo, “é justo que haja
direito”.
Referências
250
te dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provo-
car o verdadeiro estado de exceção;1
A perspectiva apresentada pode levar à compreensão de que
há a uma separação entre um tempo histórico específico,
“em que vivemos” ou “em que Benjamin viveu”, de um outro
tempo, um tempo ainda não revelado, no qual o verdadeiro
estado de exceção estará posto. Esta compreensão guarda
em si uma certa concepção de tempo e de história e mere-
ce algumas considerações. Na perspectiva histórica que o
próprio Benjamin nos ensina, contrapor dois mundos, como
duas cronologias distintas (uma que é e outra que não é, mas
será), corresponde ao modo próprio de compreender a histó-
ria do historicismo — solidária com uma ideia de processo e
progresso histórico, no âmbito do histórico e do político — e
também teleológica, na qual no fim da história está a salvação
messiânica, a realização do espírito ou o fim da luta de clas-
ses. A primeira convocação que Benjamin nos faz, antes mes-
mo de indicar a tarefa de chegarmos a um “verdadeiro estado
de exceção”, é, na verdade, aquela sobre o próprio conceito de
história que está em jogo. Com “temos de chegar a um con-
ceito de história que corresponda a esta ideia”, Benjamin nos
convida não a mudar o curso da história, mas a voltarmo-nos
para ela de outro modo. A revolução benjaminiana é, antes e
sobretudo, uma revolução na concepção de tempo e história
que domina o ocidente.
Para indagarmos os sentidos do uso do conceito de estado
de exceção na filosofia benjaminiana é preciso ter em mente
que a estrutura do tempo histórico para Benjamin não se ins-
creve na ordem negativa, que ele chama de “tempo homogê-
neo e vazio”, cuja substituição incessante de um instante por
outro dá a cadência da passagem do tempo. Trata-se de uma
experiência temporal que a tão familiar contagem do tempo
através dos segundos, dos minutos e das horas, já não nos
1 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: O anjo da
história. Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2012. p. 13
252
sias dispõe: “Lá tudo será exatamente como é aqui. Como
agora é o nosso quarto, assim será no mundo que vem; onde
agora dorme nosso filho, lá dormirá também no outro mun-
do. E aquilo que vestimos neste mundo, o vestiremos tam-
bém lá. Tudo será como é agora, só um pouco diferente”. 4
Os antagonismos entre mundo-outro mundo, teologia-ma-
terialismo assumem outra forma na filosofia da história de
Walter Benjamin. Embora sua obra esteja repleta de imagens
do mundo messiânico, não devemos lê-las como opostas ao
tempo histórico. Ainda que estas duas instâncias não coinci-
dam perfeitamente, o tempo messiânico está desde sempre
presente no histórico, mas não coincide com ele: enquanto
um é ainda processual e marcha em direção ao futuro, o ou-
tro é uma paragem, uma abertura que dilata e implode a ca-
dência do antes e do depois, presentificando, digamos assim,
a história. O que esta coexistência nos indica é, então, uma
outra dimensão do próprio tempo, uma abertura para um
não mais e um ainda não, ou melhor, uma dimensão do “não
é aí”. É sob esta luz que olho para o paralelo que Benjamin
estabelece entre o “estado de exceção no qual vivemos” e o
“verdadeiro estado de exceção”. O verdadeiro estado de ex-
ceção, poder-se-ia admitir, é exatamente como o “estado de
exceção no qual vivemos”, só um pouco diferente.
254
definição de soberania que Schmitt apresenta. A exceção não
perde, desse modo, sua relação com a norma, ela mantém-se
em relação com ela sob a forma da suspensão ou do excesso,
daquilo que excede a norma sem estar fora dela. O soberano
se situa externamente à ordem vigente legal, mas pertence a
ela na medida em que lhe compete decidir sobre a suspensão
total da constituição, por exemplo.
O estado de exceção, na doutrina schmittiana, é também a
condição limite entre o jurídico e o político, posto que é a de-
cisão sobre o estado de exceção o elemento fundamental para
instituição de uma nova ordem jurídico-política. A exceção é
a estrutura da soberania e não é nem um conceito exclusiva-
mente político, pois está previsto na doutrina jurídica, nem
uma categoria meramente jurídica, posto que concebe um
fora da norma. O estado de exceção é, então, para Schmitt,
a estrutura originária de todo e qualquer direito, posto que é
a condição de possibilidade de fundação do direito. É dessa
maneira que as condições de normalidade e as condições de
exceção se mostram ambas como pressupostos de toda orde-
nação jurídica e o direito pode ser aplicado desaplicando-se.
Através da categoria da exceção, Schmitt pôde estabelecer
uma dialética relação de fundação e manutenção do direi-
to na qual haverá sempre um resíduo da lei mesmo sob as
condições de absoluta suspensão do ordenamento jurídico.
O jurista católico procurou garantir assim uma estrutura tota-
lizante do direito, baseando-se na divisão entre norma de di-
reito e norma de realização do direito, isto é, na divisão entre
poder constituído (ditadura comissária) e poder constituinte
(ditadura soberana).
256
pode ser traduzido tanto por poder quanto por violência e, no
ensaio benjaminiano, este sentido duplo não está de manei-
ra alguma dissociado. De modo que todo poder, mesmo que
aparente e supostamente não violento, é um meio do direito
para instituí-lo ou para mantê-lo, é então, exercício do poder
como violência. A aporia de todo sistema jurídico é o de ten-
tar adequar fins universais a casos particulares e o dispositivo
que visa torná-la possível é, para Benjamin, Gewalt (poder/
violência).
Benjamin quer pensar, então, uma manifestação distinta da
violência — que não se reduz à dialética: violência instaura-
dora do direito-violência mantenedora do direito ou, nos ter-
mos da teoria schimittiana, poder constituinte-poder consti-
tuído. Um tipo de violência que não tem o direito como um
fim de sua aplicação, que não instaura nem mantém o direito,
mas o depõe. Uma tal manifestação da Gewalt é chamada por
Benjamin de “violência pura”, “divina” ou revolucionária6. A
violência pura/revolucionária que interrompe o ciclo inces-
sante dos poderes mantenedores e dos poderes instituintes
está situada na esfera divina porque o poder divino é justa-
mente, o poder aniquilador do direito — o messias finda o
tempo cronológico sob a Lei. Este é precisamente o ponto
que pode ser caro para uma possível teoria do estado de ex-
ceção em Benjamin, poder/violência divinos significam não
outra coisa senão, vida fora do direito ou dito de outro modo,
a vida não separada dela mesma. Uma vida que não pode ser
mais apenas uma “mera vida”, um corpo que sangra e morre,
que é uma pura vida. E assumo aqui a palavra “pura”, própria
do vocabulário benjaminiano, para lembrar que a condição
de pureza de algo só pode ser relacional, posto que pura é
a vida que não é objeto do direito, que não é meio nem fim
do direito, mas ao contrário, que é pura e simplesmente uma
vida.
258
que Benjamin deixou para as gerações futuras, a tarefa que
se quisermos, deveríamos assumir, não é a de instaurar um
novo estado de coisas, um novo estado de exceção, mas o de
mudar a nossa compreensão do tempo e da história. Estaría-
mos com isso, talvez operando o pequeno deslocamento do
qual trata a parábola sobre o reino messiânico.
260
5
Referências
262
BENJAMIN, Walter. “Para uma crítica da violência” In: Escri-
tos sobre mito e linguagem. Tradução de Ernani Chaves. São
Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: O anjo
da história. Organização e tradução de João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Walter Benjamin: o estado de
exceção entre o político e o estético”. In: SELIGMANN-SIL-
VA, Márcio (org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo:
FAPESP: Annablume, 2007.
Cláudio Guilarduci
| Un. Federal de São João del Rei
Diego José Domingos
diegojse@hotmail.com | Un. Federal de São João del Rei
Este texto é uma tentativa de materializar em narrativa o
processo de criação artístico-teatral que há anos vem sendo
desenvolvido na Universidade Federal de São João del-Rei
nos cursos de graduação em Teatro pelo Grupo de Pesquisa
(GPAC). Quando se tem a memória como base do trabalho
do ator, o tempo e o espaço são fatores-chave que se lançam
frente à reflexão do processo de criação. Digo ator, pois rela-
to aqui minha experiência performática no espetáculo Araci:
quando abraço de mãe não cura.
No caso da composição cênica, a memória atuava como fon-
te, mas não necessariamente como cópia a ser reproduzida.
Discutíamos como seria a transformação estética dessa me-
mória, como atingiríamos o devir necessário daquela deter-
minada lembrança à cena teatral. De que forma o passado
lança-se sobre o presente e transforma-se no futuro como
algo ainda a ser apresentado? Qual é a linguagem que atribui
cognoscibilidade ao que era íntimo e agora quer ser públi-
co? Qual ou que seria a experiência da criação teatral (auto)
biográfica em Araci? O caminho metodológico é traçado pela
reflexão do uso do espaço (auto)biográfico proposto pela ar-
gentina Leonor Arfuch e de parte do pacto autobiográfico do
francês Philippe Lejeune no Teatro. Ambos autores são par-
te importante na fase de composição do trabalho refletido.
O texto pretende ainda refletir a figura do autor partindo de
três textos de Walter Benjamin escritos entre 1929 e 1932, sen-
do eles, A imagem de Proust (1929), Melancolia de Esquerda
(1931) e O Erro do Ativismo (1932). Um dos principais pontos
a ser destacado é que tomo o teatro — a cena teatral — como
ponto de partida para essa reflexão.
Nos últimos anos, tenho percebido e acompanhado os ques-
tionamentos que derivam do embate entre a tarefa crítica
artístico-acadêmica e a crítica social. Por crítica social en-
tenda-se a crítica que deriva das experiências individuais ou
através de coletivos que promovam algum tipo de discussão
relacionada aos direitos das pessoas que figuram grupos iso-
lados e que ainda necessitam de políticas públicas para aces-
sar e fruir direitos já alcançados pelos demais grupos que
compõem nossa sociedade. Isso quer dizer que, quando um
sujeito lança-se a uma crítica, frequentemente em um em-
bate contemporâneo, questionarão seu lugar de fala, isso é,
questionarão a legitimidade de sua fala, e com isso, questio-
nam o sujeito que diz, a partir de seu lugar de origem ou sua
condição natural.
Mitos apoiam as principais correntes de pensamento que se
apresentam para falar das possíveis resoluções para nosso
cotidiano, entretanto, dois são os destacados para esta refle-
xão. Enquanto um se apóia em um discurso intelectual, o ou-
tro se apóia no que viveu, ignorando todo o resto. A Esquer-
da sempre usará a história e seus documentos a seu favor. O
Ativista, as mazelas do mundo para lhe conferir coerência e
bom senso. O problema não é novo e, como um surto social,
insiste em nos pegar de surpresa de tempos intelectuais des-
colados de sua práxis emergem na mesma proporção em que
surgem práticas comportamentais — e também discursivas
— reivindicando certo lugar abstrato, negociado com a inte-
lectualidade pelo direito à fala.
Como pensar uma crítica harmoniosa, se possível for, no que
diz respeito aos problemas apontados em Melancolia de Es-
querda e O Erro do Ativismo? Como compreender esse em-
bate que anda por nossos corredores? Como entender suas
características e manifestações? Em suma: como positivar as
figuras que Benjamin aniquilou, já que essas, ainda hoje, são
figuras populares no imaginário de autores?
A partir do teatro, começo a refletir sobre o ator como pro-
266
dutor, a transmissibilidade de uma narrativa e a cultura
como documento da história, tendo como objeto de análise
o espetáculo criado pelo grupo de extensão e pesquisa Araci
da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), sendo
financiado pelo MEC e pela FAPEMIG. O espetáculo Araci:
quando abraço de mãe não cura apresenta o universo LGBT-
TQ pela perspectiva da diversidade sexual e de gênero. Como
argumentação teórica dessa reflexão traz-se à luz três textos
de Walter Benjamin escritos entre 1929 e 1932, sendo eles: A
imagem de Proust (1929), Melancolia de Esquerda (1931) e O
Erro do Ativismo (1932).
O Projeto de Extensão Araci: teatro e diversidade sexual, do
Curso de Teatro da UFSJ, objetivou-se pela criação de um es-
petáculo teatral tendo como temática a diversidade sexual e
de gênero. A realização do trabalho partiu do uso de mate-
riais (auto)biográficos e da elaboração de oficinas para ado-
lescentes nas escolas da rede pública de educação do estado
de Minas Gerais. O projeto é coordenado pelo professor Al-
berto Ferreira da Rocha Junior, responsável ainda pela fun-
ção de encenador do espetáculo criado.
De 2015 o projeto foi financiado pelo MEC e pela FAPEMIG
e se apresentou em cidades dos estados de Minas Gerais e
Rio de Janeiro. A metodologia adotada para a criação das ce-
nas do espetáculo pelo grupo se baseou na memória. A pri-
meira afirmação que constatamos é que a memória instaura
um campo (auto)biográfico em que o sujeito se aproxima da
ação praticada através de sua narrativa (auto)biográfica. Nes-
se caso, ficamos acertados que o uso da memória nos pro-
cessos criativos dos cursos de Teatro da UFSJ não diz respei-
to à tentativa de resgatar a vida de determinado sujeito ou a
memória de um acontecimento em si, mas como esse sujeito
transforma sua narrativa em cena.
O uso da autobiografia era o motor de criação. A memória
foi responsável pelo fornecimento de imagens (lembranças)
que, mais adiante, serviriam para encontrar as ações a serem
Proust como autor | Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos 267
realizadas imagens (auto)biográficas captadas para o proces-
so passaram a assumir um papel equivalente ao do subtexto.
Se o subtexto pode ser compreendido como a consciência da
personagem em cena, a autobiografia pode ser considerada
o subtexto do ator na cena. O mapeamento dessas imagens
e suas possíveis utilizações aconteceram de forma gradual,
o que significa que o processo nunca esteve fechado, pelo
contrário, ele esteve sempre imagens foram disponibiliza-
das para o encenador ambientar e teatralizar tais materiais,
criando o enredo corporal e dramatúrgico dos atores.
Através dos estímulos dados pelo encenador, juntamente com
a memória específica para o trabalho, o ator, através de suas
partituras corporais, associava aquela lembrança tornando-
-a parte da encenação e, embora o processo de estetização
aconteça, tratamos a memória (recordações, depoimentos,
lembranças, imagens do passado) como algo sensível e a tra-
balhávamos para que atingisse a condição de manifestar-se.
Essa afetação e/ou contaminação pelas manifestações da
memória ao longo do processo pode acontecer a todo tempo.
Mas também não tratamos a memória com esoterismo. Tan-
to a narrativa quanto a imagem trazida a partir da memória,
para de fato ser elemento da encenação, foram submetidas a
repetições até que atingissem a condição de partitura corpo-
ral.
Outro recurso teatral no processo de estetização é a troca da
autoria da partitura corporal, criada no decorrer do processo
de criação. Essa ação tinha como consequência a performa-
tização não só da memória do outro, mas da ação praticada
pelo outro. Essas trocas, em âmbito teatral, levam à constata-
ção de um espaço biográfico, ideia descrita por Leonor Arfuch
em seu livro Espaço Biográfico: dilemas da subjetividade con-
temporânea (2010). Através do seu conceito de espaço (auto)
biográfico, a autora mostra como a narrativa (auto)biográfica
de determinado sujeito contamina e afeta as demais, criando
uma codificação específica, mas comum a todos, tornando-a
técnica e executável em qualquer situação e conferindo sen-
268
tido ao todo pela complementação dialógica que há na estru-
turação dos relatos de vida dos envolvidos que compõem a
encenação.
Outro ponto importante para refletirmos o trabalho com a
memória é a pergunta “quem sou o eu?”. Resumidamente,
quem é o “eu” que me conta tal história? No teatro conven-
cional temos a noção, previamente estabelecida, que um ator
desempenha a vida de outro ser então uma operação, não
impossível, mas improvável para a linguagem cênica con-
vencional: a capacidade do sujeito que narra ser o sujeito da
ação praticada. Dessa forma, o estudo em questão se baseou
no livro O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet (LE-
JEUNE, 2008), que propõe um método para identificação da
voz biográfica contida em literaturas íntimas. Para Philippe
Lejeune, a autobiografia pode ser entendida como uma nar-
rativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua
própria existência, quando focaliza sua história individual,
em particular a história de sua personalidade.
A busca por Lejeune se deu no processo de criação das parti-
turas. Havia, por minha parte, uma produção literária que se
baseava na ideia das “escritas de si”. Quando o autor, Lejeune,
cria o mecanismo de reconhecimento das vozes narradoras
para a literatura, ele ofereceu ao teatro uma oportunidade de
tentar entender, não “o que se fala”, mas sim “o como se fala”.
O como se fala pode ser visto como outro recurso cênico. Isso
porque a materialidade para o teatro é de fundamental im-
portância; a palavra em linguagem cênica se transforma em
corporeidade na expressão que não advém da informação.
Esse recurso cênico seria a performance da linguagem, sua
materialidade, sua imagem: o ator. Por essa modalidade li-
terária, subsidiada pela visão de Lejeune, a possibilidade da
narrativa (auto)biográfica artística dialoga com Walter Ben-
jamin que indica a existência e a potencialidade de uma nar-
rativa imagética, isso é: de um autor capaz de se apropriar do
espaço imagético para transformá-lo.
Proust como autor | Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos 269
Escritas (auto)biográfica e cena teatral: imagem
como movimento da memória
270
Assim, no chão, de joelhos, o primeiro homem é protegido
por todos. E ainda no chão, o primeiro homem fala com os
olhos vendados pelas mãos de outra atriz:
- E se eu te dissesse que tudo que eu mais queria era que você
estivesse exatamente aí. Sentado na primeira fila. Para que
ao final você pudesse se levantar bem lentamente: primeiro,
apoiando todo o peso do seu corpo somente sobre o calcanhar
e, em seguida, transferindo todo o peso para a ponta dos pés,
gritando o meu nome... Bravo, Bravo, Bravo. Fada azul me
transforma em um menino de verdade? É fada azul... em um
menino de verdade, por favor...
(Todo texto é dado pelo primeiro homem de olhos fechados.
Ao abrir seus olhos, ele se dá conta de que quem está a sua
frente era o homem que o perseguia e que este havia escri-
to ofensas e disparates por todo chão. Ao abrir seus olhos, o
primeiro homem se deu conta de que os rabiscos pelo chão
indicavam outra relação entre aqueles dois. O primeiro cons-
tata a ofensa. É levantado e bruscamente levado ao armário
aos gritos de: — Não fada azul, de novo não fada azul, não
me deixe aqui sozinho. Fada azul. O segundo homem — em
uma ação concomitante ao primeiro — é conduzido ao lado
oposto. Ele é colocado em oposição ao armário e ao primeiro
homem.)
Demanda Popular, Academia, Intelectualidade e Ativismo
são palavras-chaves na busca pela tarefa de se fazer autor.
O autor estaria ligado a uma espécie de função primordial:
apropriar-se do espaço imagético para transformá-lo. O im-
portante a ser percebido nesse caso é que nessa operação te-
mos uma maneira dialética de se imaginar o autor, isso por-
que, ao associar a produção autoral ao espaço imagético e a
leitura ao tempo da memória, o que temos é uma nova forma
de compreendimento narrativo. A imagem de Proust, escrita
por Walter Benjamin (2010), não diz respeito apenas ao autor,
mas na verdade põe em cheque a soberania da autoria indi-
cando um novo modos operandi: é o leitor peça importante da
Proust como autor | Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos 271
complementação dessa narrativa imagética.
Sobre a imagem de Proust, Benjamin ressalta sua capacidade
em ser dialética. Apropriando-se da fala de Maurice Barres,
Benjamin considera a imagem de Proust um ato de sobera-
nia, mas, ao mesmo tempo, um ato de submissão. Pela ideia
de submissão atingimos outra característica do autor: o ato
de servir. Ao autor, submeter-se pode ser lido como servir à
submissão, fazendo de sua obra uma compra casada. Uma
dialética no sentido de fazer de uma determinada narrati-
va um contrato memorável entre leitores, autores e editores
(quem viabiliza esse processo de difusão). O ato de sobera-
nia, entretanto, está na condição indicada por Benjamin ao
descrever o que Proust fazia com as imagens que ele trazia
em sua escrita: apropriar-se do espaço imagético para trans-
formá-lo.
A autoria de determinado produto estético para Benjamin
não deveria excluir seus elementos constitutivos. Excluir do
produto final as marcas de sua produção é deixar o produto
desnudo como se sua natureza não estivesse ligada ao fazer
humano ou como se seu processo criativo não interessasse a
seu futuro fruidor. Sobre o olhar de Proust, Benjamin é cate-
górico e destaca a existência de uma dupla vontade de felici-
dade, constatada por Cocteau: não eram olhos felizes, mas a
felicidade estava presente neles. Como no jogo ou no amor.
Se Proust é o modelo de autor indicado por Benjamin é ne-
cessário ressaltar que sua imagem era dialética por possibi-
litar um ponto possível entre o jogo e o amor. Não um ponto
estático, mas um ponto que se desloca entre aquilo que nos
sacia e também nos destrói. Entre o conhecido e o imaginá-
vel. Entre o hino e a eleática.
É nesse contexto que destaco duas coisas: a primeira é que
Araci atuava pela elegia; a eterna restauração da felicidade
primeira e originária. Isso é constatável através das memórias
guardadas a sete chaves, submersas pelo medo da violência,
da opressão e do abandono, agora flutuarem sobre um palco
272
à vista de todos. As imagens mais íntimas completamente pu-
blicizadas. A elegia, segundo Benjamin, também compunha
a imagem de Proust. Foi a ela que Benjamin atribui o cam-
po de rememoração de Proust. A rememoração, no caso de
Araci, pode ser compreendida como eco, espécie de espectro
vocal ativista por reivindicar nosso lugar previamente conso-
lidado por nossas experiências.
A segunda constatação é que Araci também atuava seguin-
do o rito da intelectualidade melancólica de esquerda. Dessa
forma, Araci também se manifestava pela felicidade como
hino que, como nos explica Benjamin, está em busca do
inaudito, do sem precedentes, a ela cabe apenas esperar pelo
auge da beatificação (publicação?) lançando-se ao sagrado,
se afastando do profano, portanto, do meio dos homens. O
pensamento dialético nos permite entender esse fenômeno
de duas formas:
a) Ao lançar-se ao sagrado, afasto-me do profano, portanto,
afasto-me dos homens.
ou
b) Eu, que sempre estive em meio ao profano, ao lançar-me
ao sagrado, poderei ver o Paraíso.
Como resultado do projeto podemos contar com três mem-
bros com pesquisas em desenvolvimento em programas de
Pós-Graduações e uma disciplina intitulada Teatro e diversi-
dade como desdobramento do projeto no desenho curricular
das graduações de Teatro da UFSJ. Destaca-se ainda que o
coordenador do projeto, Alberto Tibaji, recentemente este-
ve na Universidade da Georgia (EUA) para uma nova etapa
do projeto. A extensão tornou-se pesquisa, nossas pesquisas
tornaram-se extensões de nós. Sei que Benjamin alerta sobre
os males de uma melancolia de esquerda, mas, ressalto: em
Proust havia uma dupla vontade de felicidade, seus olhos não
eram felizes, mas seu olhar indicava a presença da felicidade.
Como os olhos de Araci.
Com os olhos de Proust tento fazer do ativismo e da esquerda
Proust como autor | Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos 273
melancólica a primavera para a imaginação de um autor. A
ideia de refletir a autoria teatral, tendo como base os meios
de produção e não necessariamente a obra, baseia-se maior
destaque dessa reflexão talvez fique a cargo dos olhos de
Proust, olhos que abrigavam a elegia e o hino, e que nossa
escrita, portanto nossa imagem, como Benjamin já descreve,
sirva aos homens (como um ativista), mas permaneça sobe-
rano em sua imagem (como um intelectual).
Essa reflexão toma como base a visão de que o produto es-
tético se torna claramente uma exposição do esfacelamento
da ideia de destino, ao menos aquela ideia de imutável na
acepção divina, como já fazia Brecht com seu teatro, trazen-
do para cena a noção nada abstrata de que o destino é uma
atividade dos homens, e que ela — a cena — torna-se um
produto de exposição da estruturação do que agora vemos.
Essa reflexão faz parte do projeto Araci: Teatro e Intervenção,
sob orientação do Professor Cláudio Guilarduci e é uma ten-
tativa de evidenciar a possibilidade de transformação da his-
tória pelos seus próprios agentes, passando a desconsiderar
a associação feita entre destino e história, determinando-os
como eventos socialmente mutáveis. Os desdobramentos da
ideia de teatro como intervenção crítica deriva da ideia de li-
teratura como intervenção. Em ambos os casos, não há uma
definição assertiva, ou uma metodologia prévia embutida re-
lacionada a esses termos em cartas trocadas entre Benjamin
e Brecht.
Referências
274
BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: _____. Magia e
técnica, arte e política. Obras Escolhidas, vol. 1. São Paulo:
Brasiliense, 2010.
BENJAMIN, Walter. Melancolia de Esquerda. In:____. Docu-
mentos de Cultura. Documentos de Barbárie. Escritos Esco-
lhidos. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São
Paulo. 1986.
FERNANDES, Frederico Augusto Garcia. Entre histórias e
tererés: o ouvir da literatura pantaneira. São Paulo: Editora
Unesp, 2002.
GATTI, Luciano. Benjamin e Brecht: a pedagogia do gesto.
In: Cadernos de Filosofia Alemã: crítica e modernidade. N. 12,
jul./dez, 2008, p. 51-78. USP.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à
internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
Proust como autor | Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos 275
A influência de Walter Ben-
jamin na teoria estética de
Carl Schmitt
Verena Seelaender da Costa
vesdac@yahoo.com.br | Un. do Estado do Rio de Janeiro
Introdução
278
do “Hamlet” e mostrar como a relação entre história e tea-
tro presente no texto shakespeariano é não análoga a entre
pano de fundo e ação dramática, mas sim parte de uma única
e mesma substância. Assim, na interpretação de Benjamin
e, no mesmo sentido, de Schmitt, havia na arte dramática do
período barroco uma disposição histórico-espiritual de ler o
drama não só como essencialmente histórico, mas, de forma
muito mais importante, ver na história o desenrolar de um
drama trágico (Benjamin, 2013; Schmitt, 2006).
O monarca, nesse sentido, era visto tanto como soberano
e incontestável detentor do poder político — visão que era
sustentada pelas teorias jurídicas da soberania da época —
quanto, por consequência disso, como protagonista por ex-
celência da representação teatral. No entanto, é exatamente
nesse ponto que a filosofia benjaminiana rompe com o pen-
samento schmittiano e uma diferença fundamental é erigi-
da. Enquanto na interpretação de Schmitt a ação soberana
da história rompe com a dimensão teatral do drama trágico e
traz a peça de volta à imanência político-histórica através da
força da decisão do soberano, para Benjamin está claro que o
soberano nunca poderia realizar tal feito, pois ele está preso,
assim como qualquer outro elemento da disposição espiri-
tual barroca, à indecibilidade essencial resultante da perda
da dimensão escatológica da história (Benjamin, 2012; Bre-
dekamp, 1999; Weber, 1992).
280
de uma obra de arte. No ensaio, a análise do drama trágico
alemão de Walter Benjamin não só é citado na introdução —
como uma das principais fontes — mas também é objeto de
um apêndice. Outro indício de que Schmitt provavelmente
teria tido Benjamin em mente durante o período de 1930 está
contido em uma carta de Schmitt de 1973 na qual ele mencio-
na como seu ensaio sobre Hobbes de 1937 (“O Leviatã na Te-
oria do Estado de Thomas Hobbes”) na verdade foi pensado
como uma resposta a Benjamin (Bredekamp, 1999).
A última palavra do diálogo pertence, como sabemos, a Ben-
jamin. No artigo de 1940 “Sobre o conceito de história”, o filó-
sofo faz uma referência não-nominal ao pensamento de Sch-
mitt ao mencionar o “estado de exceção” como paradigma do
funcionamento da política, ensinamento este possível segun-
do ele a partir da “tradição dos oprimidos” (Benjamin, 2012,
p. 245). Nessa referência, no entanto, o conceito de exceção
não é o mesmo que em Schmitt. Enquanto Schmitt afirma
que a exceção é algo que age como uma ruptura na monoto-
nia do tempo, trazendo a política de volta a seu estado mais
vivo, Benjamin rebaixa a exceção a parte constitutiva dessa
mesma monotonia, sendo a tarefa revolucionária a criação
de um “verdadeiro estado de exceção”, que romperia o ciclo
de violência e compromisso característico do regime político
tanto burguês quanto fascista (Benjamin, 2012).
282
senta sob uma nova luz, na qual fatos do conteúdo do texto
da peça ganham uma nova dimensão, e essa nova dimensão
está, por sua vez, ligada ao tempo histórico e político vivido
por Shakespeare e sua trupe — a Inglaterra de Elizabeth I
(1558-1603). Segundo Schmitt, a fonte do trágico na peça de
teatro somente pode ser encontrada “em uma realidade his-
tórica” (Schmitt, 2006, p. 8).
No entanto, é importante perceber que a intrusão não é uma
transposição perfeita de um conflito político ou de um epi-
sódio histórico para dentro do desenvolvimento da peça de
teatro, mas sim algo que agiu como uma restrição à liberdade
absoluta de criação do poeta ou, no caso, dramaturgo que,
por circunstâncias externas à obra de arte, foi obrigado a con-
tornar certas alusões (Schmitt, 2006). São duas as intrusões
observadas por Schmitt em “Hamlet”: o tabu da rainha e o
caráter do vingador. Em ambos os casos, o tempo histórico
“transbordou” para a peça de teatro e a transformou, fatos
observáveis apenas a partir de uma análise da ação temporal
do soberano.
No primeiro caso, o tabu da rainha refere-se ao fato de que
não só não há uma ideia clara e inequívoca sobre a partici-
pação da personagem da rainha, mãe de Hamlet, na morte
do pai, como em muitos momentos Hamlet é efetivamente
deencorajado a entender a mãe como cúmplice ou a se voltar
contra ela em busca de vingança. Essa inconsistência, que se-
gundo Schmitt possibilitou inúmeras interpretações psicoló-
gicas, torna-se menos obscura quando observada juntamen-
te ao contexto histórico no qual Shakespeare redigiu sua obra
e, especialmente, a qual público ele se dirigia. Apesar da peça
ter sido encenada pela primeira vez em Londres entre 1600 e
1603, ela faz referência a episódios ocorridos em 1566 envol-
vendo a Rainha da Escócia, Mary Stuart, e seu segundo ma-
rido, Henry Lord Darnley. Naquele ano, Lord Darnley e seu
valete foram assassinados em circunstâncias não-esclareci-
das pelo Conde de Bothwell no início o ano, episódio a que
se seguiu, após poucos meses, o casamento da rainha com o
284
dois caminhos a Hamlet enquanto vingador da morte do pai,
o rei: unir-se a rainha e matar o usurpador ou matar tanto
a rainha quanto o assassino. Entretanto, Hamlet não opta
por nenhum deles; pelo contrário, sua única ação durante a
maior parte da duração da peça em face da tarefa da vingan-
ça é não agir em absoluto, fingindo loucura enquanto monta
uma peça de teatro — dentro da peça — com o objetivo de
descobrir se o fantasma do pai é legítimo ou apenas um de-
mônio tentando o enganar (Schmitt, 2006). O vingador, que
sempre foi colocado como arquétipo do guerreiro decidido e
sem questionamentos, transformou-se, em Hamlet, em pro-
blemático, indeciso e de caráter melancólico.
Essa inconsistência do caráter do vingador, inovação shakes-
peariana no conteúdo dramático, ganha clareza quando se
tem em mente que, novamente, o poder do soberano agiu so-
bre a liberdade criativa do dramaturgo, forçando-o a recorrer
a lacunas e alusões indiretas, porém facilmente reconhecidas
pelos espectadores elizabetanos. Para Schmitt, o caráter de
Hamlet enquanto vingador é uma analogia, dentro contexto
histórico então vivenciado pela Inglaterra, à trajetória e ao
caráter do Rei James I. A vida de James sempre foi marcada
pela ameaça constante de Elizabeth sobre sua vida por causa
de sua mãe, Mary. Carl Schmitt dá exemplos de episódios da
vida de James que mostram que se ele, por um lado, era um
possível herdeiro e se beneficiava da aliança com Elizabeth,
por outro, não podia demonstrar qualquer tipo de reverência
à mãe, pois havia o risco de levantar suspeitas sobre sua leal-
dade para com Elizabeth e, em consequência disso, arriscar
perder não somente sua chance de sucedê-la como rei, mas
também a própria vida (Schmitt, 2006).
Assim, Shakespeare, para poder agradar a James e, simulta-
neamente, tornar sua peça interessante do ponto de vista do
público, criou um novo tipo de arquétipo para o personagem
do vingador: não mais herói violento ou ardiloso, agora so-
litário, indeciso e reflexivo, ele era a imagem do rei e de sua
própria trajetória, que envolveu muito mais omissão e neu-
286
Europa na virada do século XVI ao XVII. As teorias jurídicas
e políticas da Contrarreforma apontam, em geral, para um
processo de secularização sem, no entanto, haver um real
rompimento com o cristianismo — como, por exemplo, no
Renascimento (Benjamin, 2013). Dessa maneira, a seculari-
zação barroca leva a determinação de uma transcendência
completamente distinta da imanência mundana, imanência
esta na qual a história dos soberanos e a história em geral se
desenrolam, e que, em consequência, nega a possibilidade
de uma eventual instauração da imanência do reino trans-
cendente na mundanidade imanente e histórica — ou seja, a
possibilidade de uma escatologia histórica ou da instauração,
pela ação do soberano, do reino do céus no mundo terreno
(Benjamin, 2013; Weber, 1991).
Do ponto de vista da produção teatral, a manifestação de tal
disposição movida pelo sentimento de ausência de ligação
entre imanência e transcendência resultou na percepção,
para além do próprio teatro, de que a história em si era um
teatro e de que seria possível identificar, no movimento de
ascensão e queda dos soberanos apresentado no palco, o
mesmo movimento que havia naturalmente na história polí-
tica da monarquia. De acordo com Benjamin, “acreditava-se
que o drama trágico estava, de forma tangível e concreta, no
próprio curso da história, e que a única coisa necessária era
encontrar as palavras” (Benjamin, 2013, p. 57). Pelo sobera-
no ter perdido, por causa da imanencialização realizada pela
secularização, sua capacidade de transpor a transcendência
divina para o mundo da criação, passou-se a acreditar que,
assim como no teatro os atores trocam de personagem ao fi-
nal da peça, a história também é composta por papéis que,
de forma contínua e repetitiva, são trocados à medida que os
personagens mudam, sendo o soberano apenas um papel —
o de maior destaque — dentre outros. A peça-dentro-da-pe-
ça no terceiro ato de “Hamlet” é, para Schmitt, uma confir-
mação da teatralização do mundo e da história realizada pelo
Barroco. Tal recurso buscava reforçar, com ímpeto dobrado, a
Conclusão
288
ideia de história. Porém, Schmitt não consegue se separar da
teoria da exceção como forma de recurso a uma “imanência”
exterior que funcionaria como uma injeção de vida ao siste-
ma, sem, entretanto, mudá-lo essencialmente. Em sua visão,
a decisão sobre a exceção tem como objetivo a preservação
do Estado e a volta à normalidade, interrompida temporaria-
mente (Weber, 1991). Benjamin alcança, de certa forma, uma
perspectiva mais elevada: o soberano não é capaz de tomar
nenhuma decisão porque para ele não há diferença entre
normal e excepcional — em outras palavras, porque a trans-
cendência de uma decisão jurídica sempre será infinitamen-
te distante da imanência do contínuo impermanente da vida
histórica.
Como foi possível observar, a totalidade das dimensões do
diálogo Walter Benjamin-Carl Schmitt são mais numerosas e
menos diretas do que se poderia supor apenas limitando-se
às referências recíprocas. Neste artigo buscamos demonstrar
que a leitura conjunta da obra de ambos abre novas possibi-
lidades de interpretação que nunca poderiam ser percebidas
senão dessa maneira. A teoria estética de Schmitt, aspecto de
pequeno destaque dentro de sua obra em geral, juntamen-
te com sua teoria política, é de grande importância para a
compreensão tanto do “Origem do drama trágico alemão” de
Benjamin quanto de toda a reflexão filosófica do período de
juventude do filósofo. A afirmação realizada em 1940 de que
“o estado de exceção em que vivemos é a regra” também indi-
ca que o diálogo prosseguia e que a indecibilidade entre nor-
ma e exceção identificada por Benjamin em 1925 ainda tinha
lugar em sua filosofia da história. A necessidade de criação
de um “verdadeiro estado de exceção” retoma a crítica da so-
berania do Barroco e a atualiza na forma de crítica da social-
-democracia alemã do entre-guerras (Benjamin, 2012, p. 245).
292
precisam ser traduzidos. As submissões que não estiverem
de acordo com as normas, por exemplo, A origem do drama
barroco alemão não serão aceitas.
294
quanto viva, de uma mão para afastar um pouco de seu desespe-
ro pelo seu destino [...] mas com sua outra mão ela pode anotar
o que vê entre as ruínas, pois vê mais coisas, e diferentes, do que
as outras; afinal, está morto durante sua vida e é o verdadeiro so-
brevivente. Franz Kafka, Diários, apontamento de 19 de outubro
de 1921 Como alguém que se mantém à tona num naufrágio por
subir no topo de um mastro que já se desmorona. Mas dali ele
tem uma oportunidade de fazer sinais que levem à sua salvação.
Walter Benjamin, numa carta a Gerhard Scholem datada de 17
de abril de 1931. (ARENDT, 2008, p. 126).
Nesta mão que se esforça para afastar o desespero e que tam-
bém anota o que é visto entre ruínas está o aspecto alegóri-
co do gesto — sim, mas ainda não. Sim, há um mastro que
pode ser escalado, mas o naufrágio é inevitável. A mão entre
o desespero e a esperança faz sinais enquanto submerge. É
nisto que dizemos que há a escrita do assombro, ou seja, na
contradição de uma condição e, em certo sentido, nisto tam-
bém está certo aspecto da personagem brechtiana. Em nos-
sa hipótese de leitura, o mastro está entre a ideia e a escrita.
Identificar o que venha a ser o mastro é em si um desafio. É
bem possível que a ideia de mastro opere em vários senti-
dos. Enquanto para Benjamin pode ser a escrita, a filosofia
ou a própria crítica literária para Brecht seria o teatro épico e
tudo o que o compõe. a dramaturgia, o palco, as personagens.
Aquilo que está justamente entre a ideia do teatro épico e a
escrita dramatúrgica.
Precisamos pontuar que Benjamin entende que as ideias es-
tão — no sentido de lugar — na linguagem o que é uma dife-
rença fundamental do pensamento platônico. Para Benjamin
as ideias estão naquilo que a linguagem nomeia naquilo que
a linguagem dá nome. Em carta a Martin Buber em junho de
1916, Benjamin escreve:
É opinião generalizada e prevalece em quase todos os lugares
como axiomática de que a escrita pode influenciar o mundo
moral e o comportamento humano, posicionando as motiva-
ções atrás das ações a nosso dispor. Desta maneira, portanto, a
296
(BENJAMIN, 1994, p. 13).
Aqui, começamos a esboçar um primeiro sentido de gesto
benjaminiano próximo ao que seria “ação”, mas ação de que?
Em “O que é o teatro épico?”, Benjamin escreve:
A mais importante realização de quem escreve é tornar a pala-
vra visível em um gesto de espaçamento como faz o tipógrafo
ao espaçar as letras. Significa tornar o pensamento acessível na
mancha da página tal qual faz o ator ao tornar seus gestos citá-
veis (BENJAMIN, 2012 p. 93).
Ou seja, a escrita, é a ação de tornar “pensamento visível na
palavra”. A página traz o resíduo do pensamento salvo pelo
conceito e a escrita enquanto mancha na página que evita
que o pensamento se torne pura abstração, o que também é
um gesto crítico.
Em termos de linguagem, é bem possível que Benjamin esti-
vesse pensando em dois tipos: a linguagem adâmica — aque-
la que chama pelo nome, que desperta “pelo beijo do prínci-
pe”. A linguagem pós-paraíso que, pelo pecado, é corrompida
e só pode servir para comunicar algo. Essa é uma diferença
fundamental, pois uma aponta para o nome e outra para a
palavra. A ideia está inscrita assim, na ordem do nome que
contém em si a dialética: ideia-fenômeno. Outra dialética
que se coloca aqui é a do nome-palavra restando ao filósofo a
tarefa de salvar o nome. E, na ação de salvar o nome, também
estaria um gesto. Há assim, uma potência inscrita no gesto,
como já dissemos a potência de salvar algo.
Há uma crítica que pode ser feita aqui, pois se de um lado o
gesto pode ser entendido em Benjamin enquanto potência,
de outro lado pode ser entendida enquanto negatividade, ou
seja, ausência. É o que percebe Derrida. Em Farmácia de Pla-
tão (2005). Diz Derrida:
Não que o lógos seja o pai. Mas a origem do logos é seu pai. Dir-
-se-ia, por anacronia, que o “sujeito falante” é o pai de sua fala
(...). O lógos é um filho, então, e um filho que se destruiria sem
seu pai. De seu pai que responde por ele e dele. Sem seu pai ele
298
Parte três: Gesto: É possível definir? Movimen-
to do corpo, principalmente da cabeça e dos
braços, para exprimir ideias ou sentimentos.
Aperto de mão, cafuné, cumprimento, dedo
médio.
300
Nesse sentido, Benjamin e Brecht estão de acordo. “O teatro
épico dirige-se a indivíduos interessados, que não pensam
sem motivo (...). O teatro épico não reproduz, portanto, con-
dições, processa-se pela interrupção dos acontecimentos”
(BENJAMIN, 2012, p. 86-87). Talvez tenha sido esse endere-
çamento a pessoas que não pensam sem motivo que tenha
atraído Benjamin a meios de comunicação de massa como
o cinema e o rádio. Benjamin via uma positividade no cine-
ma que Adorno recusava, como descrito por ele, Adorno, e
Horkheimer em “Indústria cultural” (1985). O aspecto repro-
dutivo da obra de arte enquanto constituinte de outra coisa,
de outro objeto a um público interessado.
É claro que entre 1916 (quando troca cartas com Martin Bu-
ber) e 1929 quando apresenta “A hora das crianças”, Benjamin
passa por mudanças. Se distancia, por exemplo, do misticis-
mo judaico e se aproxima do marxismo histórico além de
receber forte influência de Adorno e do próprio Brecht. Tais
influências que no caso de Adorno giravam em torno de um
certo rigor dialético presente nas críticas de Adorno aos textos
de Benjamin e que no próprio Brecht e de Asja Lacs giravam
em torno de certo fazer, de uma praxis que parecia encan-
tar Benjamin. O interesse de Benjamin pela práxis pode ser
visto, por exemplo, em seu interesse por Baudelaire que, em
sua poesia, trazia à tona o modo de viver na Paris moderna. O
trabalho de Asja Lacs com teatro proletário e de Brecht com o
teatro épico agem no sentido de imprimir em Benjamin uma
perspectiva de gesto que aparecerá em “A hora das crianças”,
programa de rádio que apresentou entre 1929 e 1933. É nele
302
resistência e fascínio. Benjamin estava fascinado pela “classe
média” trabalhadora da Alemanha. Trabalhadores que Ka-
fka, de certa forma, retratou na família de Gregor Samsa. Essa
classe trabalhadora não era formada pela antiga aristocracia
alemã, mas detinha poder econômico e se mostrava interes-
sada nas formas tecnológicas de entretenimento e cultura
que surgiam como a fotografia, o cinema e o rádio. Precisa-
mos dizer que essas novas tecnologias de consumo de entre-
tenimento eram mal vistas por Adorno, o que pode ser visto
no texto que divide com Horkheimer “A indústria cultural: O
esclarecimento como mistificação das massas”. Podemos nos
perguntar a razão pela qual Benjamin se interessa pela foto-
grafia, cinema e rádio. Haveria nelas espaço para a busca por
uma ingenuidade como traço constituinte de um gesto so-
cial? Benjamin em “A hora das crianças” indica que sim. Ou-
tro aspecto interessante que pode nos servir pista para esta
questão está em “Poesia ingênua e sentimental” de Friedrich
Schiller em que os termos infância e ingenuidade são impor-
tantíssimos. Precisamos dizer que em seu livro. Schiller dia-
loga diretamente com o romantismo alemão ao se debruçar
sobre uma ideia específica sobre poesia lírica. A relação que
podemos fazer deste aspecto de poesia lírica lida por Schiller
com Benjamin não está apenas na relação de Benjamin com
o romantismo alemão que é intensa principalmente no que
conhecemos como sendo o jovem Benjamin. Está presente
também em Baudelaire, uma vez que a poesia baudelairia-
na é lírica em seu negativo. Schiller, ao falar sobre o aspec-
to sentimental da poesia lírica define como “aspecto refle-
xionante da poesia” (SCHILLER, 1991, p. 27). A poesia lírica
que faz refletir sobre um aspecto negativo da vida da classe
proletária parisiense, daqueles que não eram vistos ou escri-
tos por Mallarmé ou Victor Hugo atrai Benjamin. Schiller é
importante para Benjamin que dele diz: “Friedrich Schiller,
também para seus amigos, permaneceu muitas vezes incom-
preensível. Mas sua intuição sobre a essência da crítica de
arte é a palavra final da Escola sobre o tema.” (BENJAMIN,
304
questão de distinguir conceito de ideia. É nisto que repousa
a dialética benjaminiana, ou seja, ao se deter no medium-de-
-reflexão a própria dialética repousa antes que os extremos se
choquem, ou seja, antes que os extremos conceituais, antes
que os sistemas se choquem.
Nesse sentido, a bela adormecida que descansa em seu sono
tranquilo não é o medium-de-reflexão e sim o próprio siste-
ma. A bofetada é o outro conceito que aflora acima do mastro
do naufrágio em que alguém tenta se equilibrar. É sempre um
risco. Dizemos, portanto, que o estado de repouso está entre
a mão que esbofeteará e o rosto de quem dorme, o sistema.
Curiosamente, quem esbofeteia é um cozinheiro. Cozinhar
significa escolher os ingredientes, medi-los e juntá-los de
acordo com a receita. Gesto semelhante ao que diz Benjamin
do que faz o farmacêutico em seu programa de rádio. Por ou-
tro lado, o “Terremoto de Lisboa” traz o contrário da ordem e
da medida precisa. Caso o farmacêutico erre a medida o re-
médio se tornará veneno. Caso o cozinheiro erre a receita, o
alimento se perderá. O terremoto mais do subverter, destrói
a ordem. Desorganiza e impõe o caos. É nesse sentido que se
coloca a escrita benjaminiana. Um pouco de caos em meio às
medidas de tempo do rádio, da tela de cinema, do palco tea-
tral ou mesmo da crítica. O Benjamin que desorganiza Ador-
no, que expõe o que Adorna chamou de falta de rigor. Por fim,
a escrita que assombra na forma da vanguarda.
Não eram apenas as formas técnicas de reprodutibilidade da
obra de arte que atraía Benjamin, havia por parte dele, inte-
resse nas vanguardas o que podemos ver, por exemplo, ao ser
atraído pelo surrealismo que chama de “último instantâneo
da inteligência europeia”4. Os escritores surrealista eram
admirados por Benjamin de quem escreveu: “Esses autores
compreenderam melhor do que ninguém a relação entre ob-
jetos e a Revolução” (BENJAMIN, 2012, p. 25). É escrevendo
sobre o surrealismo que Benjamin pensa no amor como nas-
4 “O surrealismo, o último instantâneo da inteligência europeia”,
1929.
306
exílio lhe impôs.
É possível que o aspecto mais importante da escrita de van-
guarda benjaminiana em seu gesto seja o exílio. A escrita do
exílio e não a escrita no exílio. Escrever em trânsito nas con-
dições impostas pelo trânsito. Por exemplo, a dificuldade de
se obter papel. Benjamin pedia constantemente a seus ami-
gos que lhe trouxessem cadernos. O exílio evoca a infância no
sentido de se buscar o “lá o então” ao invés das condições ad-
versas do “aqui do agora”. O exílio impõe outra relação com as
condições sociais e com a Revolução. O exílio como condição
para o amor ou, a busca de “uma aventura peculiar de amor”
em Moscou por Asia Lacs ou pelo próprio Brecht. Sobre o exí-
lio, trazemos um poeta argentino que evoca a lírica negativa
reflexiva que já temos mencionado. Cito Juan Gelman:
Serias mais suportável, exílio, sem tantos professores do exí-
lio, sociólogos, poetas do exílio, chorões do exílio, alunos do
exílio, profissionais do exílio, boas almas com uma balanci-
nha na mão pesando o mais, o menos, o resíduo, a divisão das
distâncias, o 2x2 desta miséria.
Um homem dividido por dois não dá dois homens.
Quem diabos se atreve, nestas circunstâncias, a multiplicar
minha alma por um. (GELMAN, 1984, p.)
Trazemos o exílio como elemento de um medium-de-refle-
xão seguindo um sistema benjaminiano de escrita. É o exí-
lio que se esforça em suspender a dialética. O exílio que age
como o terremoto de Lisboa e impõe o caos à balancinha,
que desorganiza a medida. O exílio é a catábase dos antigos
gregos imposta a todos aqueles interessados no gesto como
agente dialético social cujo resultado seria a implosão do
conceito e o surgimento de outro sistema.
No entanto, o nosso próprio “aqui e agora” nos impõe ou-
tra condição, talvez não presente no exílio benjaminiano. O
exílio enquanto refluxo. Enquanto condição velada em um
estado de exceção não oficial, não legislado, mas operando
de forma aberta e diária. Um estado de exceção engendrado
308
Para encerrar, permitam-me recontar-lhes uma história:
Eu gostaria de contar, por uma segunda vez, a história da Bela
Adormecida. Ela dormia no seu próprio arbusto espinhento. E
então, depois de muitos anos, despertou. Mas não foi por um
beijo de um príncipe afortunado. O cozinheiro a acordou, ao
dar-lhe uma sonora bofetada, que ressoou por todo o palácio,
com sua energia encarcerada por tantos anos. Uma criança lin-
da dorme atrás dos arbustos espinhentos das próximas páginas.
Não deixe que qualquer príncipe da fortuna, enfeitado com o
deslumbrante equipamento científico, chegar perto. Pois, no
beijo de noivado, ela pode esbofeteá-lo. Melhor que o autor a
desperte, reservando-se a tarefa de mestre cuca. Já é hora para
esta bofetada ressoar pelos campos da ciência. Então desper-
tará também esta pobre verdade, que tendo se espetado numa
roca fora de moda, indevidamente, pensou que podia fiar-se no
arquivo-armadilha de uma toga profissional (BENJAMIN, 202,
p.47)
O assombro está no susto que de quem acorda com a bofe-
tada. Está na experiência do choque que é a própria moder-
nidade. É importante dizer que a experiência da modernida-
de envolve outras formas técnicas de reprodução da obra de
arte, mas permanece em jogo a questão da representação,
“representação por um desvio do universal — a ordem das
ideias” (BENJAMIN, 1984, p. 13). Razão pela qual enfatizamos
a demanda por um sistema que dê conta — e esse esforço
é sempre incompleto — das possíveis formas de representa-
ção na forma das condições sociais do “aqui e do agora”. O
exemplo mais contundente está justamente na passagem de
um pensamento lírico ingênuo e sentimental no seio do ro-
mantismo alemão para um lírico negativo que representou
as condições francesas ainda que, em um quadro mais global
(europeu) isso constitua um fragmento. A poesia lírica nega-
tiva de Baudelaire não eliminou o lirismo ingênuo da mesma
forma que o teatro burguês subsiste a despeito do teatro épi-
co.
Já é hora para essa bofetada ressoar pelos campos da ciência
— em nós mesmos como apontou Sérgio Paulo Rouanet.
310
www.companhiadolatao.com.br/site/wp-content/uplo-
ads/2016/01/Vintem0.pdf
314
com gestos mágicos, plásticos e violentos. Veja-se o efeito de
uma das peças [Stück3] que compõe sua singular narrativa
autobiográfica, Infância berlinense: 1900, onde reencena uma
“Manhã de inverno”. A imagem daquele dia frio, que conec-
tava o menino judeu aos objetos de seu quarto burguês, ser-
viu-lhe para ler o que não estava escrito: no desejo infantil de
dormir à vontade decifrou a própria inaptidão de conseguir
uma situação financeira estável. O desdobrar da imagem do
passado no presente da escrita abre uma dinâmica entretem-
pos que origina a compreensão do futuro a partir dos restos
da memória infantil.
Quando fez a “Caracterização de Walter Benjamin”, Theodor
Adorno sublinhou o protagonismo que a infância tem no
conceito de linguagem e na teoria da história de Benjamin de
tal modo que o que ele “dizia e escrevia soava como se o seu
pensamento assumisse as promessas dos contos de fadas e
dos livros infantis [...] e isso de um modo tão radical e literal
que torna perceptível até mesmo a real efetivação do conhe-
cimento” (ADORNO, 2001, p. 224-225). Alguns poucos exem-
plos já evidenciam o destaque, nos escritos benjaminianos,
da figura alegórica da criança, capaz não só de “fazer história
dos detritos da História” (BENJAMIN, 2002, p. 138), mas de
acessar o “arquivo de semelhanças não sensíveis” da lingua-
gem, já que para as crianças “as palavras ainda são como ca-
vernas entre as quais conhecem os mais estranhos caminhos
de ligação” (BENJAMIN, 2013, p. 126). Se essa exploração da
linguagem dá notícias da antiga faculdade de ler semelhan-
ças, outrora tão decisiva para os povos arcaicos, que liam o
3
Leitor dos românticos alemães e de Friedrich Nietzsche, Wal-
ter Benjamin não se refere à forma de escrita da Infância como
“fragmento” ou “aforisma”. Ele utiliza a palavra “Stück”, que pode
ser traduzida tanto por “peça” (de jogo, de teatro) como “peda-
ço” (de bolo). Agradeço à pesquisadora Juliana Lugão (UFF) pela
referência ao uso deste termo por Benjamin, que o utiliza muito na
correspondência com Gershom Scholem.
316
“sich sammeln” (recolher) e “Sammlung” (colecionar) que
certamente impressionaram Walter Benjamin, aumentan-
do sua atração por tudo que era pequeno, como miniaturas,
brinquedos, selos, cartões postais ou ainda dois grãos de tri-
go onde estava escrito todo o Schema Israel. É Hannah Aren-
dt (2008) quem conta esse episódio ocorrido no Museu de
Cluny, em Paris, para afirmar, em seguida, que o interesse
de Benjamin pelo minúsculo provém da convicção de que
quanto menor fosse o objeto, mais provável pareceria poder
conter tudo sob a mais concentrada forma. Para Susan Son-
tag (1986), o olhar curioso de Benjamin para o pequeno e o
insignificante resulta de sua preferência por formas narrati-
vas breves e da percepção de que as coisas em vias de desa-
parecimento possuem uma energia revolucionária, a exem-
plo dos brinquedos artesanais russos comprados por ele
quando fora à Rússia visitar a diretora de teatro infantil Asja
Lacis, como se lê no Diário de Moscou.
318
Wigan e Márcia X sentem-se atraídos por brinquedos e obje-
tos minúsculos. Com gestos lúdicos e violentos, manipulam
seus materiais de trabalho, fazem pequenas intervenções em
brinquedos, constroem com coisas diminutas uma coleção
de imagens — às vezes oníricas, outras vezes eróticas — ex-
plorando a energia e a plasticidade da infância. Assim, am-
pliam as possibilidades do jogo infantil, tornando expansivo
o campo da criação artística e escrevendo uma outra história
da infância, menos autorreferente e mais informe.
Quando viu o pequeno Willard Wigan construindo casas para
formigas e outros insetos, sua mãe teria dito: “Você se torna-
rá grande fazendo coisas pequenas”. Desde então, o menino
empenhou-se na brincadeira de mostrar que as coisas pe-
quenas podem ser maiores. Com paciência e disciplina físi-
ca, passou a esculpir miniaturas em grãos de areia e fibras
de pó ao ouro, posicionando-as no buraco de uma agulha ou
na cabeça de um alfinete. Esses pequenos mundos, onde fi-
guras dos contos de fadas são redesenhadas em dimensões
liliputianas, variam de tamanho (de 0,0002 a 0,005 mm) e são
construídos através de um método meditativo que retarda a
frequência cardíaca do artista.
320
textual e de sua atenção minuciosa ao pormenor, ao detalhe,
aos aspectos aparentemente insignificantes dos seus objetos
de estudo. Ambas experiências estão inscritas em uma outra
temporalidade, certamente não a do progresso, que empurra
o Angelus Novus, de Paul Klee (também ele um colecionador)
para o futuro, mas a que conecta esse anjo de feição e traço
infantis com o amontoado de ruínas do passado.
4
Cf. https://www.ted.com/talks/willard_wigan_hold_your_brea-
th_for_micro_sculpture Acesso em 23 abr. 2018
322
Figura 8: Étant donnés, Duchamp, 1946-1966
5
Cf. http://marciax.art.br/mxTexts.asp?sMenu=3&sTipo=4 Acesso
em: 24 abr. 2018
324
Figura 10: En nombre del Padre, Fábrica Fallus, 1994
326
talação. Essa observação da artista poderia servir também de
comentário à intervenção Tricyc(l)age — música para duas
bicicletas e piano, realizada anos antes, em 1986, quando ela,
pedalando um velocípede, invadiu um concerto em homena-
gem a John Cage, para perplexidade da plateia e do próprio
compositor que, dizem, gostou da performance. O velocípe-
de pertencia aos sobrinhos da artista e produzia um baru-
lho, “um nhec nhec” que “ia ao encontro de uma sonoridade
atonal, de uma melodia estranha6”. O único registro daquela
noite é uma fotografia em que Márcia X aparece pedalando o
veículo infantil e segurando um cartaz onde se lê: “Ser serrote
não é defeito, defeito é viver serrando”.
6
Cf. https://performatus.net/entrevistas/alex-hamburger/ Acesso
em: 24 abr. 2018
328
alça, a primeira Caixa-valise (Boîte-em-valise) só ficou pronta
em janeiro de 1941, quando as tropas alemãs já tinham inva-
dido Paris e a vida ali tornava-se incerta. Lembrando retá-
bulos medievais, como observam alguns comentaristas7, a
Caixa-valise contém 69 miniaturas de obras de Duchamp ou
de Rrose Sélavy (do lado de fora da caixa lê-se escrito à mão
“de ou par Marcel Duchamp ou Rrose Sélavy”) dispostas em
divisórias e aberturas deslizantes e desdobráveis. A miniatu-
rização como procedimento, ou seja, a redução da obra de
Duchamp a um tamanho apropriado à mala, independente-
mente de sua escala original, serviu ao artista como garantia
de sobrevivência durante os anos da guerra e também como
estratégia para ocultar seus trabalhos futuros, já que algumas
caixas foram enviadas para Nova York como “utensílios do-
mésticos” (TOMKINS, 2013). A portabilidade da miniatura,
como afirma Susan Sontag (1986), é a forma ideal de possuir
as coisas para um nômade, ou um refugiado, como Benjamin
e Duchamp.
7
Cf. MACK, 2007, p. 83
8
Ver a propósito o ensaio “A vontade de arte e o material existente
na Terra dos homens”, de Paulo Herkenhoff e o livro Arthur Bispo
do Rosário: a poética do delírio, de Marta Dantas.
330
Figura 17: La boîte verte, Duchamp, 1914
9
Agradeço ao pesquisador João Henrique Queiroz (UERJ) a gentile-
za de disponibilizar as ORFAs reproduzidas neste trabalho.
332
Figura 20: ORFA, Bispo do Rosário, s/d
334
castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a (2009,
p. 71).
Também este conto de Clarice é um pequeno brinquedo,
uma boneca russa, de onde surgem, parágrafo a parágrafo,
imagens de estranhamento, repugnância, crueldade, carinho
e erotismo. Escrito como se fosse “uma caixa dentro de uma
caixa, dentro de uma caixa” (Ibid, p. 68), o conto toca o me-
nos, o pouco, o nada, uma “existência mínima”. Tão peque-
nina e, por isso mesmo, completa e irredutível. Concentrado
naquela pequenez, o riso bestial, delicado e inclassificável de
Pequena Flor perturba etnógrafo e leitor “como só home[ns]
de tamanho grande se perturba[m]”; perturba porque é riso
de amor: “e amor é não ser comido” (Ibid, p. 75).
A menor mulher do mundo de Clarice, as caixas de Duchamp
e de Bispo do Rosário, os brinquedos eróticos de Márcia X,
os mundos liliputianos esculpidos em agulhas e alfinetes por
Willard Wigan, o pensador alemão de letra minúscula e cole-
cionador de brinquedos são uma pequena amostra da cole-
ção de imagens recolhidas por um pesquisador — ao modo
da peça do “Corcundinha” —, que aposta nas ações de cole-
cionar e miniaturizar e no cruzamento de escritores e artistas
com o universo da infância.
Referências
336
escritores da Escola de Frankfurt a partir da vida danificada.
Tradução de Fabio Akcelrud Durão. São Paulo: Nankin, 2017.
SONTAG, Susan. Sob o signo de saturno. In: Sob o signo de
Saturno. Tradução de Ana Maria Capovilla e Albino Poli Jr.
Porto Alegre: L&PM, 1986. p. 85-103.
TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. Tradução de
Maria Thereza de Rezende Costa. São Paulo: Cosac Naify,
2013.
340
de um rei ainda criança, o que simbolizaria um reino feliz,
na segunda, o pérfido rebelde Olivier mata traiçoeiramente
Sigismund. Em vez do rei ingênuo, promessa de felicidade, o
que prevalece aqui é o poder anárquico e incontrolável nas
mãos dos homens.
Para muitos críticos, o cenário da peça alude à crise extrema
de toda civilização europeia contemporânea de Hofmanns-
thal. Drama em que política e psicologia são indissociáveis,
A torre expõe as ruínas de uma ordem despojada de legiti-
midade e longe do anelo da harmonia mundi, almejada por
Carlos v (1500-1558), imperador do Sacro Império Romano-
-Germânico. Herdeiro dos reinos de Castela, Aragão e Navar-
ra — atuais Portugal e Espanha — e da Casa da Áustria, entre
vários outros territórios, Carlos v ansiava criar um império
universal. Com o intuito de adotar o cristianismo de Eras-
mo de Roterdã, que criticava os abusos do clero e propunha
vias conciliatórias com o protestantismo, Carlos v acabou
perdendo o apoio da Igreja, e o ansiado “universalismo eu-
ropeu” se esfacelou. Nas análises de Walter Benjamin e Otto
Maria Carpeaux, os constantes paralelos entre A torre de Ho-
fmannsthal e o drama A vida é sonho de Calderón de la Barca
visam resgatar esses conflitos ancestrais reencarnados em
cenários históricos do começo do século xx. Ou seja, é esse
anacronismo suscitado pela peça e exercitado de maneira
fértil por Benjamin (1926/1972 e 1928/1972) e Carpeaux (1947)
que pode mostrar analogias e cruzamentos entre o Barroco
espanhol, que ganhou do “universalismo europeu”, e o Im-
pério Austro-Húngaro do início do século xx. Assim como
a arte barroca expõe a corrosão de um modelo humanista e
europeísta, isolando o príncipe em seu estado de melancolia
diante de um mundo que desaba, o príncipe da monarquia
parlamentar austro-húngara, Francisco José I, sabe que seu
posto é um engodo e que os rituais palacianos são farsescos.
Soterrada pelos destroços da Revolução Francesa, a lógica
do Ancien Régime renova-se de forma tirânica, obliterando
perniciosamente a falta de legitimidade e fundamento que se
342
fantis de ser superado pelo filho, agindo de modo descabido.
Ou seja, a corte se retroalimenta num sonho infindável, sem
ligação com os claros indícios do real.
Esse conceito ritualista da política traz a marca nítida da tradição
habsbúrgica. No crepúsculo do Império Austríaco, o cargo im-
perial, com sua aura de formalismo cerimonial, era o único foco
efetivo de lealdade cívica. Hoffmannsthal pode ter-se inspirado
nessa tradição imperial, mas não se limitou a ela. Em suas peças
e sketchs políticos, ele mostrou que a forma hierárquica por si só
não basta: a forma deve conter a realidade viva de uma cultu-
ra, ou fatalmente se destruirá. Sua mensagem de dessublimação
da arte no “Idílio sobre uma pintura de vaso antigo” continuava
como advertência em sua busca de uma ressublimação da polí-
tica (Schorske, 1988, p. 41).
Diferentemente do rei desenhado por Calderón (1635/2008),
que ainda pode explicar a “precaução cristã” de isolar seu fi-
lho de forma tão cruel e violenta, visando preservar seu reino
do mal, o rei que sai das mãos de Hofmannsthal (1923-5/2012e
1927/2012) perdeu inteiramente sua aliança com Deus e não
tem como negar suas faltas. A diferença entre as versões de
Calderón e Hofmannsthal mostra, então, uma mudança de
perspectiva diante do regime monárquico. Enquanto na obra
barroca de Calderón de la Barca a rebelião palaciana é supe-
rada e o regime é restaurado, a morte do príncipe Sigismund
na peça de Hofmannsthal simboliza a queda da monarquia.
Considerado por Otto Maria Carpeaux representante de um
“mito político” (Capeaux, 1947, p. 214), Sigismund encontra o
logos, extraído de fontes rudimentares, ao se defrontar com a
origem dos males que experimentou.
Sendo a torre símbolo da estrutura política, na peça barro-
ca de Calderón (1635/2008) ela parece encerrar o príncipe
nos dramas de sua alma hesitante e despreparada, tornan-
do-o alheio aos males do mundo. Desiludido e impotente, o
príncipe barroco observa do alto da torre a figurabilidade de
seus sonhos intangíveis. Esse estado letárgico apresentado
por Calderón do começo ao fim da peça muda na versão do
344
Twellmann, 2004, p. 179).
Em agosto do mesmo ano, ele novamente escreve a Hermann
Bahr, agora explicitando as razões que o conduzem à litera-
tura psicanalítica: “Trata-se do material que agora mais me
atrai no Vida, um sonho, sim, para dali descer no mais profun-
do fundo do duvidoso reinado da gruta do eu, e lá encontrar
o não-mais-eu ou o mundo” Hofmannsthal apud Urban, 1978,
p. 31). Como diz Urban, é possível reconhecer a psicanálise
como pano de fundo das obras inaugurais de Hofmannsthal,
que estabelecem uma versão coerente entre a subjetividade
e a identidade do filho, essencialmente relacionada à função
do pai.
Esse interesse pela psicanálise é bem visível em Édipo e a esfinge,
releitura da tragédia clássica de Sófocles. O teor da matéria que
Freud extraiu de Édipo-rei para conceber seu conceito de com-
plexo de Édipo é da mesma espécie do colhido por Hofmanns-
thal para Édipo e a esfinge. Mas, numa carta de 15 de novembro de
1920, Hofmannsthal escreve a Moissi: “Algo me deixa novamente
hesitante, depois de longos anos de estranhamento com Édipo e
a esfinge. [...] Conservo-o de forma inteira, fresca na memória e
me mantenho severo e frio contra meu trabalho” (Hofmannsthal
apud Twellmann, 2004, p. 179).
Perguntar sobre o que afasta Hofmannsthal de seus trabalhos
anteriores nos conduz às novas formas estilísticas desenvol-
vidas pelo poeta em A torre. Calderón é resgatado para a ela-
boração de A torre, assim como foi o material soflocliano em
torno do personagem Édipo para a composição de Édipo e a
esfinge. Notas de Hofmannsthal apontam para os territórios
espanhóis de Calderón, coincidentes com sua peça anterior,
e nos quais Sigismund tem “todo o complexo paterno evoca-
do, todo o ódio sublimado. O pai se torna coerção encarnada”
(Hofmannsthal apud Urban, 1978, p. 81). Em A torre, porém,
o príncipe se alça conscientemente contra o rei, rompendo
com o modelo sublimatório da peça anterior. Aliás, é com
A torre que se percebe mais nitidamente o esforço de Ho-
fmannsthal em rasgar sua própria pele para sair de seu eu.
346
existência anterior ao social, e dela se pode dizer: “soberania
espiritual: vê o mundo de cima” (Hofmannsthal apud Twell-
mann, 2004, p. 46). O que falta ao espírito em seu estado so-
berano transcendental é, então, uma existência no mundo,
mais claramente, uma existência histórica.
Mas, aos olhos de Walter Benjamin (1926/1972), a peça do
poeta não se encaixa nem na clássica estética trágica nem
na antiga poética da tragédia. Trata-se antes de um material
pré-trágico, que, portanto, faltaria à tragédia antiga. Ou seja,
a tensão explícita entre corpo e linguagem mapeia uma pré-
-lógica anterior a toda a dialética. Para que haja o trágico, a
trama grega sufocava o elemento dramático, anterior à ten-
são que se desdobra em ações, dando lugar a uma tensão dia-
lógica, que pode ocorrer até mesmo sob forma de solilóquios
infindáveis. No drama barroco, os obstáculos intransponíveis
que configuravam o destino inescapável da tragédia apare-
cem sob forma de coisas. São restos ou vestígios cujos elos se
apagaram, mas que preservam certo testemunho da história.
Ao contrário dos mitos inerentes à tragédia, que se repetem
indefinidamente, trazendo ao espectador aquilo que é cons-
tante, no drama transparece o que é irreprodutível, isto é,
elementos históricos. É isso justamente o que define o dra-
ma como tal. No decorrer dos atos dramáticos, entretanto, os
personagens aceitam o enredo e a face obscura dos aconte-
cimentos como naturais. Nessa defecção estética se encontra
o realismo histórico do drama, cuja expressão máxima está
no soberano e seu Estado de exceção, cujo ato/crime revela a
decisão de instituir outra ordem.
Esses aspectos do drama podem, de fato, ser identificados nas
duas versões de A torre. Na peça reconhecemos a arbitrarie-
dade de Basilius e seu Estado de exceção, assim como o azar
fatal imprevisível, que atinge Sigismund com uma arma. Na
segunda versão há, ainda, as figuras de Julian e Sigismund,
que realizam o destino como círculo que não se fecha. Tan-
to a arma mortal, cujo tiro atualiza afetos, cumprindo a fun-
348
apud Twellmann, 2004, p. 54).
Freud reconheceu a magnitude de um acontecimento como
o assassinato do pai primevo pelo grupo de filhos, cujas mar-
cas inscritas na história da humanidade são indeléveis e seu
esquecimento só reitera a culpa. A história mítica criada em
“Totem e tabu” delineia a origem civilizatória, o que não sig-
nifica rastrear a gênese fatídica de tal fenômeno. Cena sim-
bolicamente reiterada em plano individual ou grupal, o as-
sassinato do pai e o consecutivo poder compartilhado entre
irmãos, mantido pelas leis representativas da figura paterna,
concretamente extinta, aparecem com novas máscaras na
modernidade. Sob as vestes do discurso político, esses confli-
tos re-atualizam questões arcaicas ao mesmo tempo em que
as esconde. O valor da novidade vela rastros maculados do
passado e enaltece medidas de caráter político que eliminem
os indícios do crime e dos desejos originários.
Nesse empreendimento de apagar o mal e o desejo que nos
indicia, reiterado nos diferentes processos de modernização,
os maiores prejudicados são antigos bens culturais e figuras
da tradição, pequenos rastros de antigos atos/crimes. Espo-
liados de seus costumes ancestrais, os homens modernos es-
tão soterrados por uma dívida impagável que os assola numa
profunda e densa melancolia. Diante dos crimes cometidos
numa velocidade extraordinária contra as heranças deixadas
pela tradição, resta a tarefa de fazer dos destroços imagens
alegóricas. Com tais imagens, torna-se visível o frêmito dialé-
tico de tempos contrastantes, e as partes afogadas pelos ven-
cedores da história podem ascender à superfície.
Segundo Twellmann (2004), o desejo de que seu trabalho
não fosse “apresentado/ representado” (darstellt), mas sim
“presentado” (herstellt) aponta para outro anseio do poeta
austríaco: o de que seu texto fosse lido como atual, isto é, im-
bricado no contexto sociopolítico ao qual pertencia. É nesse
sentido que Hofmannsthal apresenta variações de um tema
recente, causando no espectador ou leitor um estranhamen-
350
para ele, a melhor forma de recepção que o autor de um texto
poderia desejar.
352
e Kaspar Hauser”, supõe que, nos tempos em que o domínio é
da massa, todos estão um pouco no lugar de Kaspar Hauser;
ou seja, o complexo de Édipo teria sido substituído por um
complexo de Kaspar Hauser, no qual o abandono é o traço
central. Ele denuncia o estado de desamparo no qual se en-
contra a Europa, destituída de um pai legítimo. Mitscherlich
percebe que o enorme sacrilégio cometido contra Hauser
atingiu a humanidade como um todo, e Hofmannsthal sabia,
ao evocá-lo, que Kaspar Hauser não era um caso único, mas
modelo civilizatório incrustado, ainda que de forma invisível.
Se o drama edípico freudiano era o caso exemplar de uma
subjetivação no naturalizado contexto burguês da família
conjugal, o caso de Kaspar Hauser introduz a patogênese da
orfandade. Essa privação é exemplificada por Hofmannsthal
no caso de Sigismund, quando este se auto-intitula príncipe
por “direito de natureza”. Fora sua natureza, isto é, seu san-
gue, tudo dele foi usurpado pelo rei. A usurpação, porém, não
se limita à mãe — como ocorre no clássico conflito edípico
freudiano. Não natural não é aqui a violência do poder pa-
terno que se impõe ao filho como lei e proibição diante do
desejo pulsional natural ao qual o filho deve renunciar; não
natural é muito mais a sonegação da paternidade, a recusa do
rei de tomar para si seu destino e se comportar como pai de
seu filho. De onde frases da peça como estas: “Onde está meu
pai fisicamente, que me deixou abandonado! Sim, ele fez isso
comigo! Eu estico as mãos e grito em sua direção: pai!” (Ho-
fmannsthal, (1923-25/1927, 2012).
Esse apelo só pode ser feito no interior da lógica do trauma,
isto é, quando Sigismund reencontra seu pai e passa a perce-
ber nachträglich tudo o que dele foi sonegado. Por isso, seu
chamado pelo pai não é de modo algum um lamento diante
da coerção da proibição incestuosa. O que é negado ao filho
em A torre é claramente a o gesto coercitivo, e essa absten-
ção aparece como obra inexplicável e incompreensível. Com
a negação de sua paternidade, Basilius permanece culpado,
e seu filho, privado de um direito natural. Tratado como ani-
354
ralisia obsessiva que marcam os heróis dos dramas barrocos,
analisados por Walter Benjamin (1928b/1991).
Esse homem-criatura sob a influência de manifestações cor-
póreas, como emoções, agitações da alma ou excitações, tem
seus atos como derivações puras da afetividade. Como nos
dramas do barroco, Walter Benjamin reconhece nos balbu-
cios e nos gemidos inarticulados de Sigismund todas as fe-
ridas do mártir, que recusa a linguagem para dar vazão ao
lamento (Klage). O lamento é o que precede a sonoridade
musical, isto é, quando a linguagem articulada pela lógica
coerente se esgota, nascem os diferentes ritmos musicais, tão
próximos de gemidos e lamúrias. Marcas corpóreas introdu-
zem também outra linguagem, avessa às palavras, e com ela
Hofmannsthal avança no interior do gênero dramático. Se a
linguagem convencional se estabelece como juízo, o corpo é
a condição de sua possibilidade, mas tal condição permane-
ce quase sempre afogada no esquecimento.
O fato de Sigismund ser capaz de reconhecer a falácia na qual
procuram enredá-lo, e reagir de maneira rebelde contra ela, é
o que inverte os preceitos estilísticos e éticos do drama barro-
co. Diante das mentiras do rei, que, se aceitas, invalidariam o
“sonho” de Sigismund como expressão do real para colocá-lo
no lugar da mera ilusão, o personagem entrevê a forma cáus-
tica e os duros indícios da verdade, respondendo à altura.
Daí ser possível afirmar que o otimismo cristão de Calderón,
impeditivo da emergência disruptiva, é abandonado por Ho-
fmannsthal, que se compromete com a balbuciante verdade
enunciada nos próprios intervalos do real. Com Sigismund,
os sonhos não caem mais dos céus, mas se erguem da pro-
fundidade bruta da terra.
Esses aspectos aparecem ainda mais acirrados na segunda
versão de A torre, na qual Hugo von Hofmannsthal mostra
que “a vida não é mais um sonho” (1928/1972, p. 98). Sem o
rei-criança, que salva os obstáculos apresentados na primei-
ra versão, a peça concentra algo de abismal. Modificado o
356
não me perder. [...] Todas as palavras são vórtices que giram
em torno de mim e me deixam encará-las num buraco sem
fim” (Hofmannsthal apud Twellmann, 2004, p. 189). Não é
ousado dizer que o trauma se ingere nesse momento em que
a palavra se apresenta enquanto vórtice, rondando por entre
as coisas sem fixar-se nos objetos.
Por fim, é importante destacar que o cenário de Hofmanns-
thal não conhece nenhum papel feminino significativo. O
papel masculino secundário de Julian entra no lugar da ação
amorosa, em geral executada por mulheres. O personagem
ama Sigismund a seu modo, o que quer dizer que nesse amor
preserva-se uma dimensão utilitária. Enquanto Julian ama
Sigismund, ele busca simultaneamente se beneficiar dessa
relação naquilo que tange seus anseios pessoais. Como vin-
gança e insurgência da materialidade, das ligações temporais
e da maternidade, Hofmannsthal indicou o atentado fatal a
Sigismund. Elas alcançaram-no com um punhal depois que
ele manifestou a ameaça dos homens por meio das coisas.
Segundo Twellmann (2004), a perda do pai é, para Hofman-
nsthal (1923-25/ 2012 e 1927/2012), uma perda que ameaça a
humanidade. O uso que Twellmann faz do conceito de massa,
esse “aterrador” e “perigoso” conceito, descoberto, sobretu-
do, durante a Primeira Guerra e pelas décadas subsequentes,
mostra um medo diante do disforme, que também é desper-
tado diante da palavra matéria. O termo matéria, por sua vez,
interconecta-se ao termo mãe, presente nesta “assustadora”
linhagem. Na primeira versão de A torre, Sigismund alude a
duas figuras femininas, dizendo: “Você é jovem e mais bonita
do que feia, e não obstante me faz estremecer. Mas não temos
nada de diferente além daquilo que poderia nos tornar mãe,
do que esse gênero, e isso é a matéria com a qual o mundo foi
feito.” (Hofmannsthal, 1923-25/2012 e 1927/2012).
Numa análise clássica freudiana, o drama de Hofmannsthal
poderia ser considerado o reconhecimento de que a falta de
recursos simbólicos e a precária linguagem de Sigismund
358
ca para a psicanálise, bastante coerente com os problemas
apresentados nas sociedades contemporâneas; ao invés dos
filhos com traços do Édipo e seu desejo incestuoso, temos
essa figura desamparada e desaculturada — seu desenho
segue as linhas de Kasper Hauser em toda sua precariedade,
dor e potência.
Referências
360
Sobre os autores
361
Traduziu Kafka e Walt Whitman para o português. É poeta e
assina uma coluna de crítica cultural na Revista Fórum.
Cristina Susigan
É doutora em Educação, Arte e História da Cultura pela UPM
Com a tese intitulada: “A Sobrevivência das Mulheres de
Johannes Vermeer na Arte Contemporânea”, recorre à meto-
dologia warburguiana para questionar a “sobrevivência” das
imagens. Publicou na Revista Estúdio, da Univesidade de Lis-
boa, onde através da artista argentina Nicola Constantino, faz
o diálogo entre os grandes mestres do passado no presente.
Pedro Alegre
Doutorando em Teoria Literária pelo PPGCL da UFRJ/bolsis-
ta do CNPq.
Isabela Pinho
É graduada e mestre em Filosofia pela Universidade Federal
Fluminense, e doutoranda em Filosofia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, com bolsa CNPq. Sua pesquisa
consiste na interseção entre linguagem e lei a partir de Gior-
gio Agamben, Walter Benjamin e Jacques Lacan. Foi pes-
quisadora nos arquivos de Walter Benjamin em Berlim e do
departamento de literatura comparada da Universidade de
Munique (LMU). É membro da Associação Americana de Li-
teratura Comparada (ACLA) e integrante do laboratório “Es-
critas – filosofia, gênero e psicanálise” da UFRJ. Suas publica-
ções mais importantes são “Greve, violência e lei: debates em
Benjamin e Agamben” e “Por uma puríssima eliminação do
indizível na linguagem: de Walter Benjamin ao Bartleby de
Giorgio Agamben”.
Daniel Melo Ribeiro
É doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
Membro do Centro Internacional de Estudos Peircianos. Re-
alizou estágio de pesquisa no Geomedia Lab da Universidade
Concordia em Montreal/CA, com bolsa do Emerging Leaders
in the Americas Program (ELAP), concedida pelo Global Af-
362
fairs Canada. Interesses de pesquisa: visualização de dados,
design de informação, semiótica e cartografia.
Carolina Peters
Graduanda em Letras – Literaturas de língua portuguesa pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, monitora bolsista do
Departamento de Ciência da Literatura.
Erika Santos
Bolsista CAPES e mestranda em Artes Cênicas pelo PPGAC-
-UFSJ. Encontra nos textos de Walter Benjamin uma impor-
tante contribuição para o desenvolvimento e entendimento
do fazer teatral. Procura investigar a criação de dramaturgias
por meio de um corpo que dança com suas memórias. Licen-
ciada (2014) e Bacharela ( 2015) em Teatro pela Universidade
Federal de São João del-Rei integra o GPAC – Grupo de Pes-
quisa em Artes Cênicas da supracitada universidade.
Nicholas Andueza
É doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ, com
pesquisa sobre fotogenia e cinema de arquivo. É mestre em
Comunicação – Cinema pela PUC-Rio. É professor de cinema
em cursos de curta duração em Nova Friburgo – RJ. Além de
artigos na área de Comunicação, publicou também artigos e
resenhas sobre artes plásticas na revista Dasartes. É monta-
dor de filmes e editor audiovisual.
Lilian Alves Gomes
Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional –
UFRJ, pesquisadora do Centro de Estudos Sociais Aplicados
da Universidade Cândido Mendes – CESAP|UCAM
Ivan Capeller
É técnico de som direto e professor da Escola de Comunica-
ção da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e
membro permanente do corpo docente do Programa de Pós-
-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI-UFRJ).
363
Ana Carolina Martins
É doutoranda do Programa de Pós-graduação em Filosofia –
PPGF da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde de-
senvolve a pesquisa intitulada Linguagem e gesto: categorias
políticas em Giorgio Agamben. É também Professora do En-
sino Básico Técnico e Tecnológico do Colégio Pedro II e atua
como pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Linguagem, Infância e Filosofia (NEPLIF-CPII).
Cláudio Guilarduci
É professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em
Artes Cênicas PPGAC - da Universidade Federal de São João
del-Rei. Pós-doutorado em Artes Cênicas (2011), doutorado
(2009) e mestrado (2001) em Teatro pela UNIRIO. Graduação
em Filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei/
UFSJ (1995). Coordenador do Laboratório Ambulatório. Diego
Domingos é estudante de Teatro pelo Programa de Pós-gra-
duação em Artes Cênicas (UFSJ), estudante de Licenciatura
em Teatro e Bacharel em Teatro pela Universidade Federal de
São João del-Rei. Integra o Grupo de Pesquisa Araci: teatro e
contemporaneidade.
Diego Domingos
É estudante de Teatro pelo Programa de Pós-graduação
(UFSJ), estudante de Licenciatura em Teatro e Bacharel em
Teatro pela Universidade Federal de São João del-Rei. Integra
o Grupo de Pesquisa Araci: teatro e contemporaneidade.
Verena Seelaender
É mestre em Ciência Política (UFF) e doutoranda em Filoso-
fia (UERJ).
Francisco Camêlo
É Doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PU-
C-Rio), onde obteve o título de Mestre (2017), pelo mesmo
programa de pós-graduação, com bolsa FAPERJ Nota 10. É
pesquisador da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio.
Alessandra Affortunati Martins Parente
Psicanalista e pós-doutoranda pelo Departamento de Filoso-
fia da FFLCH-USP (bolsa FAPESP), membro do Laboratório
de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise LATESFIP-USP e do
GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF.
PAPEL Papel Pólen 80gr/m²
FONTE Utopia Std