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benjaminiana

outros ensaios sobre arte, política,


linguagem e história
2019 © Copyright Vários autores

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Faculdade de Letras
Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura
Projeto Fortuna & Editora Desalinho

Capa, projeto gráfico e diagramação


Labedição — Laboratório de Edição de Ciência da Literatura

Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)


Benjaminiana: outros ensaios sobre arte, política, linguagem
e história / Organizadores Francisco Camêlo, Leonardo
Apolinário Alves de Lima, Patrick Gert Bange e Ricardo Pinto
de Souza et al. – São João de Meriti [RJ]: Desalinho, 2019.

[livro digital] ISBN 978-85-92789-26-8


[livro físico] ISBN 978-85-92789-25-1

1. Walter Benjamin. 2. Filosofia e outras disciplinas. I. Título.


CDD 193

Rua Caricó. Av. Horácio Macedo.


São João de Meriti, RJ. Cidade Universitária, RJ.
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benjaminiana
outros ensaios sobre arte, política,
linguagem e história

organização
Francisco Camêlo
Leonardo Apolinário Alves de Lima
Patrick Gert Bange
Ricardo Pinto de Souza
Sumário
Apresentação7
Francisco Camêlo, Leonardo A. Lima, Patrick G. Bange,
Ricardo Pinto

Uma revelação psicótica? 16


Patrick Gert Bange

Um aviso de incêndio no século XXI 33


Beatriz Moreira da Gama Malcher

A repetição da violência e sua interrupção divina 53


Tomaz Amorim Izabel

Walter Benjamin e a “sobrevivência” das imagens 71


Cristina Susigan

A dialética da imagem 87
Pedro Alegre

O cristal da língua, tagarelar feminino e lalangue em Benjamin


e Lacan 102
Isabela Pinho

Walter Benjamin e os mapas 121


Daniel Melo Ribeiro

Juventude em Berlim por volta de 1915 145


Carolina Peters

[In] Memória de imagens no tempo:  160


Erika Santos
Fotogenia e imagem-relâmpago 174
Nicholas de Andueza Sineiro

Notas benjaminianas sobre interioridade e aparição de


objetos de devoção em museus de arte do Rio de Janeiro 196
Lilian Alves Gomes

O dia do nome e o nome dos dias:  211


Ivan Capeller

Notas sobre a violência 231


Caio Paz

O real estado de exceção 249


Ana Carolina Martins

Proust como autor 264


Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos

A influência de Walter Benjamin na teoria estética de Carl


Schmitt276
Verena Seelaender da Costa

Walter Benjamin e a escrita enquanto gesto do assombro 291


Leonardo A. Alves de Lima

Em torno de coleções e miniaturas com Walter Benjamin 312


Francisco Camêlo

A torre destroçada de Hugo von Hofmannsthal 338


Alessandra Affortunati Martins Parente

Sobre os autores 361


Apresentação
Benjaminiana – outros ensaios sobre arte,
política, linguagem e história

Francisco Camêlo, Leonardo A. Lima, Patrick G. Bange,


Ricardo Pinto
À medida que a calma possível se instala, senta-se à mesa,
à cama, alguma tela e corre os olhos sobre o mesmo texto já
lido e glosado muitas vezes ao longo dos meses e anos. Não se
trata propriamente de descobrir uma novidade ou encontrar
algum detalhe que tenha passado despercebido pela legião
de olhos que se dedicaram ao texto e seu comentário. Com
tantos autores o estudo se dá pela criação de um fantasma
ou, ao contrário, pela diluição do sujeito (im)possível por trás
das palavras em um conjunto de funções e relações, quase ao
ponto da eliminação do traço de sua singularidade. Poucos
autores se põem em um lugar no meio, sem se impor como
presença biográfica, a ponto de quase obrigar que ao falar de
suas palavras um pesquisador na verdade fale dele, pesso-
almente, do autor, mas também sem permitir que a especi-
ficidade do que deixou seja tornada abstrata, as palavras de
qualquer um ou pura palavra sem a mancha da vida que a
escreveu. Walter Benjamin é um desses casos, escritores que,
como Freud ou Bataille, impuseram simultaneamente o es-
tudo analítico e cuidadoso do corpo do texto e a consciência
quase de soslaio de que aquilo é muito pessoal. Quando pen-
samos na relação possível com autores e obras, poderíamos
dizer que estudamos “A tarefa do tradutor” ou “o texto dele
sobre tradução”; no caso específico de Benjamin, lidamos
com “A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin”, e isso faz toda
a diferença.
Poucos autores criam um sentido de proximidade como Wal-
ter Benjamin, temperado por uma certa irritação — e espan-
to — estrutural pela densidade, dificuldade e riqueza de sua
obra. Por mais rica que seja a narrativa ao redor da sua vida,

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e embora essas informações biográficas sejam sempre pre-
ciosas na exegese e comentário de seus textos, sempre existe
uma riqueza única em suas palavras, no movimento de seu
pensamento e sua relevância para o entendimento de nos-
so modus que é intrínseca a seu texto e sua escrita. O imbri-
camento entre o trabalho do pensamento e o artesanato do
texto e a experiência específica de uma vida faz parte do que
torna Walter Benjamin um pensador fundamental para nos-
so tempo. Certamente algumas imagens mais intensas dessa
biografia participam de sua leitura — a doce perversidade da
infância, alguns amores, algumas amizades, as várias formas
de penúria dos anos de catástrofe, o suicídio. E há certamen-
te Benjamin, o personagem, que seus leitores conhecem e
admiram. Mas não é propriamente o afeto pelo personagem
que gera a proximidade. Há uma dimensão de amizade na
relação entre seus leitores contumazes e seus textos que não
depende de algum acidente biográfico ou alguma atração
romanesca que a narrativa ao seu redor tenha criado. Entre
os textos de Benjamin e seus leitores há algum tipo de sen-
timento de amizade produzido possivelmente pelo que suas
palavras nos oferecem. Ser leitor da obra de Walter Benja-
min significa ter de lidar, a todo momento, com a alegria da
gratidão. O corpo de seus textos é um caminho — ainda que
um pouco torto e cheio de desvios — para a compreensão do
mundo moderno e quase inesperadamente uma ferramenta
de resistência e combate ao mal que o habita. Coisa estranha:
quem convive com suas palavras se afeiçoa ao que lê sem que
o afeto gere algum tipo de obrigação ou de adesão pura, sua
autoria não gera a angústia de um fantasma. Afeiçoa-se às pa-
lavras, à sua capacidade estrutural de revelar camadas e nu-
ances a cada leitura, à experiência íntima de alguma verdade
que do emaranhado de conceitos e imagens parece querer
surgir. E sua obra possui, de fato, um inegável teor de verdade
sobre a condição moderna. Poucos textos são tão importan-
tes para a história da estética quanto “A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica” ou tão influentes para o pen-

Apresentação | F. Camêlo, L. A. Lima, P. G. Bange, R. Pinto 9


samento político de hoje quanto “Sobre o conceito de histó-
ria”. Este teor de verdade, quase “coisal”, atesta sua relevância,
mas ainda não reside aí sua singularidade. A obra de Walter
Benjamin convida ao convívio como a de poucas pessoas.
Para além da verdade que deixou em suas investigações, dos
lampejos e vestígios de um espelho do mundo que às vezes
se revela a partir da densidade de suas sentenças, o convívio
com a obra de Benjamin tem uma dimensão estética única,
que está além do conhecimento: nela há o prazer encantató-
rio, e, às vezes, assustador, de se chegar ao olho do furacão,
lá onde interpretação e iluminação parecem convergir. Sua
obra é o observatório do século e, como no caso de seu anjo
mais famoso, o olhar desse ponto congela as cenas para que
aqueles que vêm depois possam manter a memória do que
foi perdido.
Este livro é uma tentativa de dar conta da amizade para com
esta assinatura e suas palavras. Aqui estão reunidos os textos
gerados pelo colóquio Benjaminiana 2017, que juntou na Fa-
culdade de Letras da UFRJ pesquisadores de várias partes do
país para discutirem e pensarem ao longo de três jornadas a
obra do filósofo, crítico, tradutor, escritor e sábio. Como qual-
quer coletânea, trata-se de mapear tendências, confrontar
interpretações e preservar a memória e o afeto pelas palavras
de Walter Benjamin. Trata-se também do esforço de manter a
conversa infinita em tempos difíceis, quiçá quando ela é mais
necessária, de tal maneira que laços e redes possam surgir
através do esforço coletivo.
Os textos reunidos pertencem a pesquisadores de campos
distintos e diferentes tipos de experiência e relação com a
obra benjaminiana, tendo como horizonte comum a con-
tribuição da sua obra para suas atividades investigativas e a
consciência de uma dívida coletiva para com seu legado. Os
organizadores do volume contam, com a reunião destes tex-
tos, dar uma humilde contribuição para o estudo da obra do
autor. Certamente precisaremos de outros Walter Benjamins
nos anos que vêm, que, parece, não serão fáceis. A melhor

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maneira de garanti-lo é manter suas palavras vivas em ain-
da mais uma leitura. Ainda mais um comentário. Ainda, de
novo, mais um mastigar do que sua palavra traz. É isso o que
foi operado nas jornadas benjaminianas de 2017 pelos auto-
res que se expuseram aos ouvidos, elogios e críticas de seus
pares no início de dezembro. Ainda, mais uma vez, de novo,
Walter Benjamin e seu mito do mundo moderno. Assim, tal-
vez, possamos capturar alguma coisa de sua inteligência e
cultivar nossos melhores anjos.
Para pensar a tensão entre proximidade e distância, Patrick
Gert Bange propõe uma instigante releitura do passado de
Walter Benjamin a partir do relacionamento do pensador
alemão com a diretora de teatro Asja Lacis. O autor toma o
encontro amoroso entre Benjamin e Lacis como um medium
de reflexão e recolhe em Ricardo Piglia e Marcel Proust exem-
plos de uma revelação psicótica e de uma busca de invenção.
O trabalho de Beatriz M. da Gama Malcher em “Um aviso de
incêndio no séc. XXI: a serventia de Walter Benjamin para
pensar a sociedade e a política hoje”, se detém sobre os mo-
vimentos narrativos das redes sociais à luz dos ensaios políti-
cos de Walter Benjamin
Tomaz Amorim Izabel em “A interrupção da violência e sua
interrupção divina” analisa modelos possíveis de relação en-
tre conceitos a partir de “Para uma crítica da violência” de
Walter Benjamin e aponta para formas disruptivas que po-
dem ser pensadas em conjunto ao conceito de violência pura.
Cristina Susigan reflete sobre os conceitos de montagem de
Walter Benjamin e de Bilderatlas de Walburg tendo como
ponto de convergência entre os dois pensadores a questão da
imagem
Pedro Alegre, a partir de uma dialética da imagem, analisa o
pensamento benjaminiano a partir dos problemas do tem-
po e da história na reelaboração da questão da linguagem no
âmbito teórico e filosófico.
O texto de Isabela Pinho traça aproximações entre as obras

Apresentação | F. Camêlo, L. A. Lima, P. G. Bange, R. Pinto 11


de Benjamin e Jacques Lacan, atadas pela noção de um ta-
garelar feminino. A autora constrói uma instigante hipótese,
segundo a qual um ponto de homofonia eliminaria a oposi-
ção indizível/dizível, ali onde o que se diz é a dizibilidade da
própria linguagem.
Daniel Melo Ribeiro recolhe e dá a ver uma teoria cifrada da
cartografia na obra de Benjamin. Esse gesto abre caminho
para ler alguns textos pela chave dos mapas e convoca alguns
interlocutores para (re)pensar processos de mapeamento,
sobretudo Todd Presner.
Carolina Peters propõe um exercício de leitura cerrada do
texto “A vida dos estudantes”. Preocupada em resistir a uma
rápida comparação desse texto com “Sobre o conceito da
História”, como se fez com frequência, a autora revela uma
concepção de história singular e circunscrita nesse ensaio de
juventude, escutando forma e conteúdo desse texto, o que dá
a ver nele, argutamente, uma “delicada circularidade”.
Érica Santos fala de sua experiência ao performar o monó-
logo “Haveres da infância; Um Poeta colecionador” a partir
de uma perspectiva de copo infantil em Walter Benjamin. O
texto de Nicholas de Andueza Sineiro explora as afinidades
entre as noções de imagem-relâmpago e fotogenia cunha-
das, respectivamente, por Walter Benjamin e Jean Epstein.
Com base em um corpus heterogêneo do cinema de arqui-
vo, ou seja, filmes que retomam e recontextualizam imagens
de outrora, o autor busca mostrar que o caráter ensaístico e
cinematográfico do cinema de arquivo aproxima-se tanto da
noção benjaminiana de imagem-relâmpago quanto natureza
cinematográfica da fotogenia.
O texto de Lilian Alves Gomes apresenta objetos de devoção
expostos em museus de arte do Rio de Janeiro. Numa refle-
xão cruzada com o pensamento de Walter Benjamin sobre a
coleção e o “valor de culto” de uma imagem, a autora busca
pensar a “aparição” e a “interioridade” de coleções.
Ivan Capeller em “O dia do nome e o nome dos dias: teoria da

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linguagem e cena da origem em Walter Benjamin e Haroldo
de Campos” realiza um estudo comparativo entre a prática
tradutória do livro bíblico da Gênesis empreendida por Cam-
pos em sua tradução, que tem assumidamente um ponto de
partida benjaminiano, e a teoria da linguagem do próprio
Benjamin. O autor chama a atenção para o caráter político
e essencialmente humanista da concepção benjaminiana
posterior da linguagem. O pensá-la como fundamental e
originariamente enquanto medium da criação, o que permi-
te posteriormente seu ‘radicalismo epistemológico’, quando
‘sua ontologia idealista ou realismo transcendental iniciais se
reconfiguram em um materialismo antropológico em que as
ideias passam a ser entendidas como princípios significan-
tes do pensamento humano entendido como ação cognitiva
transformadora do mundo’.
Caio Paz em “Notas sobre a violência: um debate com Walter
Benjamin” refaz os passos da discussão discussão benjami-
niana sobre direito e violência presente em “Para uma crítica
da violência”. O interesse do autor é revisar os argumentos do
texto original e acompanhar a discussão do texto em Derri-
da e Agamben. A crítica de Derrida (Força da lei) entende
a posição de Benjamin, no que tem de crítica à democracia
burguesa, como próxima de formas de autoritarismo, o que
se afasta da posição de Agamben na série Homo Sacer, que
radicaliza a posição Benjaminiana e demonstra a conivên-
cia — na verdade identidade — da democracia burguesa e
do autoritarismo político. O texto é um recurso valioso para a
entrada no original benjaminiano como para a reflexão sobre
suas consequências éticas e políticas a partir do debate pos-
terior entre Agamben e Derrida.
Ana Carolina Martins em “O real estado de exceção: o direito,
a violência e a política em Walter Benjamin” explora o con-
ceito de “Estado de exceção” no oitavo parágrafo de “Sobre
o conceito de história”, recorrendo ao diálogo na década de
1920 de Walter Benjamin com o teórico do direito alemão
Carl Schmitt (que teria como um de seus produtos mais céle-

Apresentação | F. Camêlo, L. A. Lima, P. G. Bange, R. Pinto 13


bres o ensaio “Para uma crítica da violência”). A base do con-
ceito de exceção benjaminiano estaria na teoria de soberania
que Schmitt apresenta em seu volume Teologia política. A
autora traça, utilizando-se também do posterior comentário
de Giorgio Agamben sobre o poder soberano, as aproxima-
ções e fraturas entre o conceito de soberania shmittiano e o
de Benjamin.
Diego José Domingos e Cláudio Guilarduci dão testemunho
de um trabalho teatral, a encenação da peça Araci: quando
abraço de mãe não cura. Buscando um modo de dizer da
criação de um autor, os autores narram o processo de criação
da peça, dialogando com alguns textos de Benjamin.
Verena Seelaender da Costa em “A influência de Walter Ben-
jamin na teoria estética de Carl Schmitt” retoma o comen-
tário de Horst Bredekamp sobre uma “segunda fase” das
relações entre Walter Benjamin e Carl Schmitt, baseadas na
influência do primeiro e seu Origem do drama trágico alemão
sobre a fase final da obra do jurista, especialmente no volu-
me Hamlet ou Hécuba: a intrusão do tempo na peça [1956],
de admitida influência benjaminiana. Seelaender discute a
influência do conceito de história benjaminiano na ideia de
“intrusão” do tempo histórico no universo estético do palco
elisabetano trabalhado no livro de Schmitt, estabelecendo os
vasos comunicantes e as diferenças fundamentais entre o tra-
balho crítico dos dois.
Leonardo Alves de Lima em “Walter Benjamin e a escrita en-
quanto gesto do assombro: da dialética em estado de repou-
so ao refluxo do exílio” explora o sentido do gesto da escrita
no texto de Walter Benjamin. Lima defende o caráter explo-
ratório da escrita na obra de Walter Benjamin, funcionando
como um caminho possível para a investigação filosófica. Se-
gundo o autor há uma “metodologia da escrita” em Walter
Benjamin: “um objetivismo radical que demanda uma inter-
pretação objetiva e que se opõe a uma visão subjetivista que,
para Benjamin em nossa hipótese de leitura, faz dissolver o

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objeto pela projeção psicológica do observador/investigador
na obra”, ou ainda de, nas palavras do próprio Benjamin, “tor-
nar pensamento visível na palavra”. O autor conduz uma re-
flexão valorosa sobre como as condições materiais de produ-
ção da obra benjaminiana são importantes para sua gênese e
interpretação, especialmente uma escrita “do exílio”, escrita
produzida em trânsito intermitente e, posteriormente, fuga.
O texto de Francisco Camêlo propõe um interessante modo
de ler, na obra de Benjamin, a figura de um colecionador de
miniaturas. Numa espécie de vertigem do menor, o texto per-
formatiza um trajeto, a partir de Benjamin, constituindo, ele
mesmo, uma coleção de miniaturas, passando por Willard
Wigan, Márcia X, Marcel Duchamp, John Cage, Arthur Bispo
do Rosário e Clarice Lispector.
Alessandra Affortunati Martins Parente analisa a peça tea-
tral A torre, de Hugo von Hofmannsthal, a fim de explicitar o
modo pelo qual essa releitura de A vida é sonho, de Calderón
de la Barca, questiona a autoridade paterna e a linguagem
após a Primeira Guerra Mundial. A partir da psicanálise e das
resenhas das duas versões da peça de Hofmannsthal, escritas
por Walter Benjamin, a autora evidencia um alargamento das
categorias do drama barroco alemão.
Os editores do volume e organizadores das Benjaminianas
gostariam de agradecer imensamente à colaboração de todos
os autores, mas, mais importante, sua disposição e têmpera:
esse livro é, ao cabo, dedicado àqueles que continuam pen-
sando apesar do tempo, contra o tempo, como Benjamin.

Apresentação | F. Camêlo, L. A. Lima, P. G. Bange, R. Pinto 15


Uma revelação psicótica?
A questão da distância entre Asja Lacis e Walter
Benjamin

Patrick Gert Bange


patrickbange@gmail.com | Un. Federal do Rio de Janeiro
Cifrada no título de “Rua de mão única”, pequeno livro com-
posto por aforismos, piadas/brincadeiras [Scherze] e sonhos,
que Benjamin imaginou como plakette para amigos (cf. RAU-
LET, 2001, p. 359), a irreversibilidade do tempo “tal como ele
de fato foi”, conhecida frase do historiador Ranke, que com-
parece tanto no ensaio sobre Proust (BENJAMIN, GS, II-2, p.
311), como nas teses sobre o conceito de história (BENJAMIN,
GS, I-2, p. 695), coloca um nome ao lado do de Marcel Proust:
Asja Lacis. Ambos desmontam a versão oficial e acabada do
passado, para abrir à articulação dele, inclusive por fendas
impensáveis, que, diz Proust, devemos traduzir “à maneira
dos hieroglifos” (PROUST, 2004, p. 158).
Ricardo Piglia, em Formas breves (2004), diz brevemente
sobre dois linguistas, um louco e outro mudo. O primeiro
chama-se George Hughtinghton, que trabalhou no depar-
tamento de arqueologia do Museu Britânico. Piglia conta
que Hughtinghton, na tarde em que conseguiu traduzir um
fragmento do sumério, saiu ao corredor e despiu-se, dizendo
“após dois mil anos de silêncio, sou o primeiro a escutar essa
voz” (PIGLIA, 2004, p. 85). Morreu jovem, internado numa
clínica psiquiátrica, em que enfermeiros o escutavam mur-
murar uma língua desconhecida. O segundo chama-se Jean-
-François Champollion e trabalhava como professor de his-
tória em Grenoble. Champollion, depois de um insight que o
permitiria decifrar a escrita dos hieroglifos:
[...] trancou-se em sua casa e trabalhou por duas semanas, doze
horas por dia, sem ver ninguém. O 14 de março de 1822 termina-
ra. Nessa noite, foi ao Instituto e se apresentou no escritório de

Uma revelação psicótica? | Patrick Gert Bange 17


Kircher. “Não há mais segredos”, disse-lhe, e não voltou a falar. O
linguista mudo. (PIGLIA, 2004, p. 86)
A revelação dessas duas escritas, uma revelação “psicótica”,
segundo Piglia (2004, p. 85), tem um excesso em comum, am-
bas abrem o sentido de uma língua há muito guardada, vela-
da, mantida em segredo pelo tempo. A abertura dessa fenda
para uma língua redescoberta é demais, é violenta, implica
para aquele que a escuta uma cisão. O acesso a essa nova
linguagem tem efeito mortífero, diante do qual uma defesa
se produz nos linguistas, uma defesa que gostaria de pensar
como uma tomada de distância necessária: o exílio na loucu-
ra ou na mudez. Nesse sentido, se pensarmos o amor como
uma escrita que impede a cisão, o amor viria proteger a expo-
sição insuportável de um segredo: o amor viria propor uma
tomada de distância. Para dizê-lo com Benjamin, “a vida de
Eros se acende graças ao longínquo” (BENJAMIN, GS, VI, p.
78 apud GAGNEBIN, 2014, p. 83). Longínquo [Ferne], Jeanne
Marie Gagnebin ressalta, no ensaio “Eros da distância” (GA-
GENBIN, 2014, p. 131-140), de seu livro Limiar, aura e reme-
moração, tem a raiz “fern” em alemão, que “trata-se de uma
distância que a ação instrumental do sujeito não consegue
abolir” (GAGNEBIN, 2014, p. 133). Assim, Gagnebin se remete
à Prisioneira, de Proust, para dizer dessa distância:
Como as estrelas, em particular como a estrela cadente que pas-
sa sobre os amantes n’As afinidades eletivas de Goethe, a mulher
amada não pode, portanto, pertencer a uma proximidade exces-
siva, mas deve escapar do domínio que está sempre disponível,
do espaço familiar e doméstico. Se ela se aproximar é porque
escolheu transpor essa distância graças à força do seu desejo.
Essa dialética — que em A prisioneira Proust levaria a seu ápice
de delícias e, talvez, também perversões — encontrou inúmeros
exemplos na literatura. (GAGNEBIN, 2014, p. 133-134)
Puxarei desse ensaio esse fio1, para pensar Asja Lacis como
1  Gerhard Richter também pensou a questão da distância no pen-
samento de Benjamin, em seu ensaio “Uma questão de distância:
a Rua de mão única de Berlim por meio das Passagens” (RICHTER,

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uma outra “deusa do tempo”, como Albertine o é para Marcel
(PROUST, 2011, p. 448). Essa outra deusa do tempo implicaria
não só uma releitura do passado de Benjamin, mas também
um efeito formal. Leio uma passagem de 1931, escrita num di-
ário de Benjamin, citada numa bela palestra de Gagnebin em
torno de “Rua de mão única”:
Falou-se sobre experiências do amor e no decorrer da conversa
me ficou pela primeira vez claro que quando um grande amor
ganhava violência sobre mim, eu me transformava tão profun-
damente e fortemente que ficava muito admirado em ter que di-
zer: o homem que diz coisas tão imprevisíveis e que se conduziu
de maneira tão inesperada, esse homem seja eu. [...] Essa experi-
ência se realizou com a maior intensidade na minha relação com
Asja [Lacis], de tal forma que somente nesse momento que eu
descobri muito em mim. [...] Conheci três mulheres diferentes
na minha vida e três homens diferentes em mim2.
Logo aí já se vê o impacto que tem Lacis na vida e no pen-
samento de Benjamin. Para dizer disso um pouco melhor, é
bom lembrar algo sobre essa mulher. Lacis conhece, antes
de Benjamin, Brecht. Ela traz da Rússia algo importante para
o modo como os formalistas russos pensavam o trato com
o objeto literário. O desvelar da arte literária como procedi-
mento e a busca por nomear o que nela a tornava diferen-
te do discurso corrente, da língua normal, da linguagem do

2017, p. 55-86).
2  Man sprach über Erfahrungen in der Liebe und mir wurde es
zum ersten Male im Laufe dieses Gespräches deutlich, daß ich
mich jedesmal, wenn eine große Liebe Gewalt über mich bekam,
von Grund auf und so sehr verändert habe, daß ich sehr erstaunt
war mir sagen zu müssen: der Mann, der so ganz unvermutbare
Dinge sagte und ein so unvorhergesehenes Verhalten annahm,
der sei ich. [...] am Gewaltigsten war diese Erfahrung in meiner
Verbindung mit Asja (Lacis), so daß ich vieles in mir erstmals en-
tdeckte. [...] Ich habe drei verschiedene Frauen im Leben kennen
gelernt und drei verschiedene Männer in mir. (BENJAMIN, GS, VI,
p. 427, tradução de Jeanne Marie Gagnebin, disponível em vídeo,
em https://www.youtube.com/watch?v=Q1RQhiPfzIc&t=2446s).

Uma revelação psicótica? | Patrick Gert Bange 19


dia-a-dia. Para eles, algo nesse objeto foge do convencional,
algo ali resiste como “estranhamento”, o que eles chamam
de “ostranenie”. Lembremos, por exemplo, uma passagem do
texto “Arte como procedimento”, de Victor Chklovski: “A auto-
matização engole os objetos, os hábitos, os móveis, a mulher
e o medo à guerra” (CHKLOVSKI, 1971, p. 44), e que Benjamin
escreve que, no Nilo da linguagem de Proust, “é tudo fora da
norma” (BENJAMIN, GS, II-1, p. 310, tradução nossa). Assim,
Brecht, por sua vez, afirma, também leio em Piglia, que é gra-
ças a Asja Lacis que se dá a sua teoria do distanciamento no
teatro épico, que tanto fascinou Benjamin. É numa adapta-
ção de Brecht que Lacis “pronuncia o alemão com um mar-
cado sotaque russo, e ouvi-la recitar o texto produz um efeito
de desnaturalização que contribui para que ela desvende um
estilo e uma escrita literária baseados no desnudamento dos
procedimentos” (PIGLIA, 2004, p. 77). Benjamin se apaixona,
assim, por alguém que desnaturaliza o alemão, que o apre-
senta de maneira deslocada, como alguém que impede a re-
lação com a linguagem baseada na fácil identificação, para
usar um termo aristotélico, quase como se ali não houvesse
em jogo uma invenção. Esse é um dos princípios da revira-
volta dramática que Brecht opera em seu teatro, fazendo com
que seus atores achassem outros modos de interpretar suas
personagens, sem que eles as incorporassem, mas as apre-
sentassem distanciadamente, sob suspeita. Esse outro modo
de interpretar, com todos os efeitos políticos que Brecht dá
a isso, está, como numa mônada, no alemão estrangeirizado
de Lacis. Um amor que nasce à imagem e semelhança dessa
cena guardaria em si, não uma aderência narcísica aos fun-
cionamentos de uma projeção, mas, ao contrário, o conflito
com isso que deixa ver uma diferença. Não à toa, talvez, lê-se
em um comentário de Scholem, o seguinte: “[...] todas as pes-
soas que viram Benjamin e Asja juntos e me contaram suas
impressões: são unânimes em seu espanto em relação a esse
casal de namorados que só brigava” (BENJAMIN, 1989, p. 15).
A despeito do comentário de Scholem, que não gostava de

20
Lacis3, sabe-se que Benjamin arquiteta a viagem a Moscou
para reencontrá-la. Na cena inicial do encontro, narrado
no diário, Benjamin é recebido pelo companheiro de Lacis
assim que chega e, logo depois, a encontra na rua. À época,
ela estava doente, internada em um sanatório, onde se deu a
maioria dos encontros. Dois dias depois, pela manhã, Ben-
jamin a recebe no hotel e mostra-lhe um pequeno livro em
brochura, intitulado “Rua de mão única”. Ele é dedicado a ela.
Benjamin escreve em seu diário:
De manhã. Asja esteve comigo. Dei-lhe presentes, mostrei-lhe
rapidamente meu livro com a dedicatória. Ela não havia dormi-
do bem à noite por causa de uma taquicardia. Também mostrei-
-lhe (e dei-lhe de presente) a sobrecapa do livro feita por Stone.
Agradou-lhe muito. (BENJAMIN, 1989, p. 15)
A cena é doce. E talvez chame a atenção a ausência de inscri-
ção de qualquer reação de Lacis sobre a dedicatória, uma vez
que em “agradou-lhe muito”, o sujeito “er” do alemão, mar-
cado apenas pela desinência verbal na tradução, refere-se
exclusivamente ao substantivo masculino “Umschlag”, sobre-
capa, e não à dedicatória, “Widmung”, substantivo feminino
(cf. BENJAMIN, GS, VI, p. 294). A dedicatória talvez não tenha
sido recebida com muito entusiasmo. A propósito disso, não
deixo de pensar numa passagem do ensaio sobre Proust, em
que lemos:
O silêncio no fundo dessa cratera — seus olhos são os mais si-
lenciosos e permeáveis — quer ser notado. O que em tantas ane-
dotas comparece como irritante e caprichoso é a combinação
de uma conversa de intensidade inédita com uma distância in-
superável do interlocutor. (BENJAMIN, GS, II-1, p. 321, tradução
nossa)
De qualquer modo, o nome, que nas primeiras cartas a Scho-
lem não aparece, encontra seu destino na dedicatória de um

3  Jeanne Marie Gagnebin fala do desgosto de Adorno e de Scho-


lem com relação ao relacionamento de Benjamin com Asja Lacis
na mesma palestra já mencionada.

Uma revelação psicótica? | Patrick Gert Bange 21


livro:
Esta rua chama-se Asja Lacis
em homenagem àquela que
como um engenheiro
a abriu [durchgebrochen] no corpo
do autor deste livro
(BENJAMIN, 2013, p. 7)
Nessa dedicatória, lemos que a diferença do alemão de Lacis
tem consequências corporais em Benjamin. Ali ele diz que
essa rua leva o nome de Asja Lacis, que, como um engenhei-
ro, a abriu no corpo do autor daquele livro. O verbo traduzido
como “abriu” na dedicatória também poderia ser traduzido
como “rasgou”, ou ainda “rompeu”, dado certa violência de
“durchbrechen”, que literalmente seria “quebrar-através”. As-
sim, Albertine e Lacis deixam um efeito em Marcel e Benja-
min, um efeito de releitura, reescrita e abertura: essas mulhe-
res, de certo modo, desmontam uma versão estabilizada do
passado e impelem à releitura. Ler fragmentos desse peque-
no livro, sob esse prisma, ganha uma dimensão renovada.
Há, por exemplo, o fragmento em que lemos o encontro com
duas moças que falam italiano, que Benjamin não entende,
como o russo que deve ter ouvido em sua viagem a Moscou
para encontrar com Lacis. A escuta dessa língua indecifrável
dá ao narrador desse pequeno texto, que sente fortes dores,
a sensação de que uma atadura fresca envolvesse a zona do-
lorida. Também há um fragmento chamado “armas e muni-
ções”, que fala justamente da cidade de Riga, onde Lacis nas-
ceu, e do encontro com uma amiga. Ao final, lê-se:
[...] eu teria a todo custo de ser o primeiro dos dois a ver o ou-
tro. Pois se ela tivesse aproximado de mim a mecha do seu olhar
— eu explodiria com certeza como um depósito de munições.
(BENJAMIN, 2013, p. 32)
Esse estilhaçamento que o olhar súbito do outro provocaria
parece performatizado em “Rua de mão única”, com a pro-
fusão de seus pequenos textos, em suas pequenas formas, e
mais ainda no trabalho das Passagens (BENJAMIN, GS, V),

22
com sua obsessão pela recolha de vestígios, as citações, esses
pedaços explodidos e sobreviventes da grande tradição4. O
olhar do outro, de uma mulher amada especificamente, tal-
vez possamos dizer, dá a Benjamin a chave de uma forma,
que ele devolve com uma dedicatória: ela abriu essa rua no
corpo do autor, uma rua de ruínas, restos, fragmentos. A essa
rua, o nome de Asja Lacis.
O nome, como o nome de Deus, é questão importante no
pensamento de Benjamin, já desde seus escritos de juventu-
de. Mais uma vez, em “Sobre a linguagem em geral e sobre a
linguagem do homem” (BENJAMIN, 2013, p. 49-74) se pode
ler uma teoria mística do nome. Um biógrafo de Benjamin,
Bernd Witte, oferece uma hipótese instigante vinculada ao
modo com que Benjamin pensa o nome a essa altura:
No âmbito de sua teoria mística do nome, Benjamin elaborou
também o luto pela perda do seu amigo Heinle [que se suicidou].
No lugar do morto, da sua pessoa concreta, aparece progressiva-
mente a língua pura, ligada ao nome, no centro da atenção da-
quele que rememora. (WITTE, 2017, p. 33)
Se Benjamin faz o luto de uma pessoa concreta pelo nome,
o nome de Lacis na dedicatória de “Rua de mão única” não
abriria uma via pelo luto, mas pelo amor. Nesse sentido, é
bom observar algo curioso sobre o nome de Asja Lacis em
algumas cartas de Benjamin. Ele a conhece no verão de 1924,
em Capri. Ela está junto de seu companheiro, Reich, e de sua
primeira filha, Daga. Benjamin escreve a Scholem sobre esse
encontro numa carta, dizendo que conheceu poucas pes-
soas interessantes em Capri. Diferente delas, uma soviética
bolchevique, atriz e diretora de teatro “notável [noteworthy]”
(BENJAMIN, 1994, p. 241). É a primeira alusão que encontro
a Lacis. Algumas semanas depois, uma segunda carta, tam-
bém a Scholem, diz que o melhor que Benjamin encontrava
4  Lembremos, com Gerhard Richter, que “a afinidade eletiva entre
filosofia e literatura é colocada em relevo quando nos lembramos
que, desde o começo, Benjamin concebia Rua de mão única e Pas-
sagens como irmãos” (RICHTER, 2017, p. 62).

Uma revelação psicótica? | Patrick Gert Bange 23


ali não era a respeito de trabalho, mas no sentido de uma “li-
beração vital e visão intensa da atualidade do comunismo”
(BENJAMIN, 1994, p. 245, tradução nossa). De novo Benjamin
fala de uma revolucionária russa, “uma das mulheres mais
esplêndidas que já conheci” (BENJAMIN, 1994, p. 245, tradu-
ção nossa). Há ainda uma terceira carta a Scholem, em que
Benjamin fala de uma “comunista maravilhosa” (BENJAMIN,
1994, p. 248, tradução nossa). O que gostaria de sublinhar nas
três alusões a Lacis é justamente que são alusões, isto é, não
lemos o nome de Asja Lacis, ele permanece guardado. Além
disso, chama a atenção que, embora as cartas tenham sido
escritas próximas no tempo, Benjamin não retoma a referên-
cia às anteriores, mas diz, a cada uma das três vezes, como
se fosse a primeira. Um nome velado, um invólucro fechado.
Isso faz pensar numa questão para Benjamin: o segredo. O
que talvez esteja ficando um pouco evidente, é que, no en-
dereçamento a Asja Lacis, pode-se ler a escrita de Benjamin
como uma escrita propriamente erótica, isto é, não tão por-
nográfica, entendendo o pornográfico como isso que se mos-
tra sem resguardo algum, mas uma escrita que joga com o
seduzir e com o esconder. Em “Rua de mão única”, lê-se este
trecho: “princípio básico de sedução: multiplicar-se por sete”
(BENJAMIN, 2013, p. 45), o que pode ser lido como um tor-
nar-se inapreensível, fugir sempre para outro lugar, não estar
onde se espera. A criança que se esconde joga com esse prin-
cípio, como o narrador do conto “A carta roubada”, de Poe,
que sabe bem o que significa esconder. Benjamin escreve, em
Imagens de pensamento, a propósito da carta roubada: “es-
conder significa: deixar rastro. Mas invisível. É a arte da mão
leve” (BENJAMIN, 2013, p. 99). Aqui, o nome é menos uma re-
velação do que um modo de deixar oculto! Por isso, a escrita
de Benjamin, e o modo como escreve o encontro com Lacis,
não é frontal, mas fugidio, não de cara, mas de soslaio. Esse
modo de escrita erótica pode ser tomado até mesmo como
um método de leitura de Benjamin, por entre as curvas de
seu texto, por sua flanerie interna, por seu modo pouco siste-

24
mático e deambulante.
Pensando nessa lógica, com Asja Lacis, deparei com uma
curiosa passagem, mais uma vez de Piglia. Trata-se de uma
conversa com Renzi, dois dias depois de Piglia escrever que
seria preciso escrever algum dia um texto sobre Asja Lacis.
Ele diz:
Não vejo que sentido pode ter, diz Renzi, escrever algo sobre Asja
Lacis. Existem outras mulheres mais interessantes que podem
servir de tema para uma narrativa. Por exemplo?, pergunto. Por
exemplo, responde ele, a filha de Madame Bovary. [...] A vida de
uma operária têxtil que é a filha de Madame Bovary, diz Renzi,
esse tema me interessa mais do que a história da amante de Wal-
ter Benjamin. (PIGLIA, 2004, p. 77-78)
Uma operária têxtil. Espero não forçar uma leitura, mas inde-
pendente da curiosidade do fragmento, e de certo tom ma-
chista que reduz Lacis a apenas uma amante de Benjamin5,
penso que imaginar a história de Berthe Bovary poderia ser
tarefa para um bom escritor. Como crítico, o que estou ten-
tado a dizer é que haveria quem sabe uma história da filha
de Emma Bovary que se escreve em filigrana na Recherche.
Lembro, para tentar justificar um pouco esse argumento-so-
nho, que Benjamin pensa a escrita de Proust como um tecido
da rememoração, composto por memória e esquecimento, e
que Barthes (1988 p. 281), num ensaio, diz não se identificar
tanto com o grande autor Proust, mas com o Proust operário.
É bonita a imagem, mas também é problemática. Basta pen-

5  Cheguei a postar a passagem no Facebook e Maria João Canti-


nho, uma benjaminiana importante, não demorou em escrever
um comentário, que copio aqui, com autorização dela: “Asja Lascis
não foi apenas amante de Benjamin. Trabalhou com Brecht no te-
atro e foi uma importante voz feminina na Rússia, no tempo da Re-
volução Russa. Calhou ser amante de Benjamin porque o destino
os cruzou. E sem ela Benjamin talvez nunca tivesse lido Luckàcs e
conhecido um filão da literatura e do pensamento que conformou
a segunda fase e o transformou no grande pensador que é hoje.
Além disso, a viagem à Rússia deveu-se a Asja!”.

Uma revelação psicótica? | Patrick Gert Bange 25


sar nas condições que Proust tinha para escrever a Recher-
che, “uma riqueza enorme” e “um milieu muito feudal”, como
diz Benjamin (GS, II-1, p. 315, tradução nossa) no ensaio sobre
Proust! Então uso a imagem aqui, mesmo sem aderir muito à
justiça dela. De qualquer forma, isso faz pensar que essa filha
de Emma Bovary e Asja Lacis teriam mais em comum do que
poderia pensar um homem cansado. Lacis e a Recherche que-
bram o passado tal como ele de fato foi, abrindo o possível de
ver fendas impensáveis, que, mais uma vez diz Proust, cum-
pre traduzir “à maneira dos hieroglifos” (PROUST, 2004, p.
158). O próprio Marcel, narrador, se posiciona como tradutor,
especialmente diante do fenômeno da memória involuntária
e do encontro com o outro. Assim, no último livro da Recher-
che, o narrador afirma:
Lembrei-me com prazer, porque significava que eu já era então
o mesmo, e se marcava assim um traço fundamental de minha
natureza, com tristeza também, porque não fizera nenhum pro-
gresso, de em Combray ter fixado atentamente em meu espírito
uma imagem qualquer que se me impusera à vista, uma nuvem,
um triângulo, um campanário, uma flor, um seixo, sentido que
talvez houvesse, sob esses sinais, algo diferente que devia pro-
curar descobrir, uma ideia traduzida à maneira dos hieróglifos,
que se suporiam representar apenas objetos materiais. Decifra-
ção sem dúvida difícil, mas que unicamente nos permitiria ler a
verdade. (PROUST, 2004, p. 158, grifo meu)
Decifrador, isto é, no caso, tradutor, o narrador deixa claro
que, aqui, o exercício de tradução constitui o único que “per-
mitiria ler a verdade”. O livro interior de que fala Proust preci-
sa ser traduzido. Sobre esse livro interno, lemos:
O livro de caracteres figurados, não traçados por nós, é nosso
único livro. [...] O que não precisamos decifrar, deslindar a nossa
custa, o que já antes de nós era claro, não nos pertence. Só vem
de nós o que tiramos da obscuridade reinante em nosso íntimo,
o que os outros não conhecem. (PROUST, 2004, p. 159)
Aqui, com o texto de Piglia, retomam-se Proust e Cham-
pollion, a propósito de Lacis como uma deusa do tempo. Pro-

26
ponho que há dois modos distintos de pensar a decifração.
Se Champollion, o “descobridor” do sentido da escrita hie-
roglífica, diz “não há mais segredos” (PIGLIA, 2004, p. 86), os
hieroglifos da Recherche sofrem uma espécie de suspensão ao
fim da obra, que, por assim dizer, não fecha. A mudez, por um
lado, e sete volumes de escrita, por outro. Champollion pare-
ce ter a sensação de que encontrou a verdade-ela-mesma, a
verdade-em-si, ao passo que Marcel diz de uma decifração
que é, ao mesmo tempo, uma Busca de invenção.
Parece que pensar o efeito de Asja Lacis em Benjamin dá mar-
gem para dizer o seguinte: Benjamin, como Proust, não cai
numa espécie de mudez diante da tarefa de criar uma forma
a partir de um encontro amoroso. A propósito disso, lembro
de um momento na biografia de Benjamin em que ele, sim,
fica mudo, no sentido de que não escreve nada: os três meses
em que fica preso num campo de concentração, em Nevers,
em 1939, mesmo ano em que Brecht anota em seu diário “Asja
Lacis já não me escreve” (PIGLIA, 2004, p. 77), desaparecida
durante alguns anos em um campo de concentração stalinis-
ta. As única palavras que Benjamin escreve nesse período, lê-
-se na biografia de Bernd Witte, é um pequeno relato de um
sonho, um nó amoroso entre uma língua não decifrada e um
corpo feminino:
No relato, ele fala de uma visão noturna, na qual viu como uma
coisa só a leitura de sinais e a imagem do corpo de uma mulher
‘muito bonita’. ‘Depois desse sonho eu não pude adormecer de
novo, por várias horas. De felicidade’”. (WITTE, 2017, p. 137)
Um corpo, que não necessariamente é o de Asja Lacis, nem
necessariamente a mulher que sai das coxas do narrador
proustiano (cf. PROUST, 2006, p. 22), no início da Recherche,
mas cujo efeito de felicidade é um desdobramento de um
corpo feminino lido com sinais. Asja Lacis e Albertine, cada
uma a seu modo, são mulheres de que Benjamin e Marcel são
leitores. Se a imagem de Albertine, sempre fugidia, abre à re-
leitura do passado, Asja Lacis abre (quebra) uma rua (uma
forma) em Benjamin. Assim, as duas impedem cristalizações

Uma revelação psicótica? | Patrick Gert Bange 27


em uma totalidade. Não se trata, por isso, de um amor ingê-
nuo em nenhum dos dois casos, como espero ter ficado claro.
À diferença do um amor platônico, na dedicatória de “Rua de
mão única”, o nome abre (quebra-através) a obra/rua no cor-
po do amante, aliás como um engenheiro, imagem por exce-
lência de um espírito mais prático que sonhador. Isso desloca
esse livro de Benjamin, como entendo, a uma questão de uso.
É um livro, frágil, mas que pretende abrir nos corpos outros
modos de uso, outras relações de troca com o objeto livro.
Isso porque esse livro pode ser lido como um experimento
um tanto singular: uma troca entre amigos, com a cidade e é
endereçado a uma mulher. É essa a via a que estava tentando
chegar, porque, sob o efeito disso, é possível ao leitor de “Rua
de mão única” transitar por ele como um texto fora de uma
concepção autonomista de arte. Uma outra via. Aliás, uma
via que parece inscrita no livro, num pequeno fragmento de
uma lista chamada “Treze teses contra os esnobes”: “VIII. Na
obra de arte, a matéria é um lastro de que a contemplação se
liberta” ao lado do qual lemos “Quanto mais nos perdemos
num documento, tanto mais denso ele se torna” (BENJA-
MIN, 2013, p. 29). Benjamin faz, aqui, uma espécie de ataque
ao que se distancia da matéria: a contemplação. Que outro
modo de ler, então?
E antes de os nossos contemporâneos poderem abrir um li-
vro já um denso turbilhão de letras em movimento, coloridas,
concorrentes, lhes caiu diante dos olhos, tornando muito re-
motas as possibilidades de eles se concentrarem no silêncio
arcaico do livro. (BENJAMIN, 2013, p. 25)
Nesse fragmento, o livro comparece como arcaico diante da
aceleração dos movimentos contemporâneos a Benjamin.
“Rua de mão única”, assim podemos entender, constitui um
modo de resistir a essa economia acelerada de leitura, na
medida em que opera mais pelo precário, por relações mais
próximas e frágeis, por outras lógicas de troca de afetos. Ler
de outra forma é o que parece estar em jogo neste texto. Ben-

28
jamin, então, vai às ruas, como tão bem mostra este poema
incrível de Sergio Raimondi, a propósito de Benjamin e Asja
Lacis, chamado “Лацис, Анна” e que me chega através de ge-
nerosa tradução de Luciana di Leone:
Quer dizer que a Russia mostra pro mundo o futuro
e o Sr. se dedica a estudar obras barrocas
do século dezessete que ninguém a não ser o próprio Sr.
tem a pachorra suficiente para ler?
A observação crítica não vinha de um corpo
teórico diferente mas de um concreto e encostado
contra a bancada da cozinha do apartamento.
Blblblbl. A água para o spaghetti já fervia.
Não era possível responder sem perceber a assincronia
radical da tentativa Bom, é mais complexo
trata-se de introduzir categorias estéticas úteis
para a análise da arte contemporânea...
Não, porque não era apenas uma pergunta específica;
era também colocar em dúvida o alcance
da sua paixão em referência à vida em geral
e em particular a essa história que estava começando.
Os joelhos dela apareciam sob o vestido de verão
e o fenômeno bolchevique estava ali mesmo
com vontade e decisão para fazer da filosofia
uma práxis cotidiana e constante. Não é exagero?
Ah, passar de revisar obras raras na hemeroteca
a escrever sobre os cartazes da via pública,
os cartões postais e o desenho das vitrines foi então
a maior declaração de amor; insuficiente, obvio6.

6  ¿O sea que Rusia muestra al mundo el futuro / y Ud. se dedica


a estudiar obras barrocas / del siglo diecisiete que nadie sino Ud.
mismo / tiene la parsimonia suficiente para leer? / La observaci-
ón crítica no provenía de un cuerpo / teórico distinto sino de uno
concreto y apoyado / contra la mesada de la cocina del departa-
mento. / Blblblbl. El agua para los spaghetti ya hervía. / No se po-
día contestar sin percibir la asincronía / radical del intento Bueno,
es más complejo / se trata de introducir categorías estéticas útiles
/ para el análisis del arte más contemporáneo... / No, porque no
era solo una pregunta específica; / era además una puesta en duda
del alcance /de su pasión en referencia a la vida en general / y en

Uma revelação psicótica? | Patrick Gert Bange 29


(RAIMONDI, 2017 )
Lá, na rua, encontra outros modos de ler e outros leitores, en-
tre eles um me parece especial:
Queixamo-nos dos mendigos nos países do sul e esquecemo-
-nos de que a insistência com que se nos colam é tão legítima
quanto a obstinação do estudioso perante um texto difícil. Não
há sombra de hesitação, não há indício, ainda que imperceptí-
vel, de vontade ou reflexão que eles não leiam na nossa fisiono-
mia. (BENJAMIN, 2013, p. 64)
Talvez seja essa uma chave importante do livro. Num momen-
to em que se faz necessário pensar outras lógicas de circuito
de afetos, ver, ali, num mendigo, um modo de leitura possível,
ainda que se apresente a nós como enigma, um modo talvez
inacessível para quem está dentro de um regime assalariado,
por exemplo. Cito, a propósito disso, uma passagem do en-
saio de Benjamin sobre Proust, em que ele defende ser Proust
um autor subversivo, sobretudo por conta do seguinte:
Havia na curiosidade de Proust um quê detetivesco. Os altos dez
mil eram para ele um clã criminoso, um bando de conspirado-
res, com o qual nenhum outro pode se comparar: a camorra dos
consumidores. Ela expulsa de seu mundo tudo que tem parte na
produção, exige no mínimo que essa parte se encerre graciosa
e envergonhadamente por trás de um gesto, como os perfeitos
profissionais do consumo o encenam. A análise de Proust do es-
nobismo, a qual é muito mais importante que sua apoteose da
arte, representa o ponto alto em sua crítica da sociedade . (BEN-
JAMIN, GS, II-1, p. 318-319, tradução nossa, grifo nosso)
Agamben ajuda a desdobrar uma última dobra, com seu tex-
to chamado “A quem se dirige a poesia?”. Ele escreve:

particular a esa historia que comenzaba. / Las rodillas asomaban


bajo el vestido de verano / y el fenómeno bolchevique estaba ahí
mismo / con voluntad y decisión para hacer de la filosofía / una
praxis cotidiana y constante. ¿No será mucho? / Ah, pasar de revi-
sar incunables en la hemeroteca / a escribir sobre los carteles de la
vía pública, / las postales y el diseño de las vidrieras fue entonces /
la mayor declaración de amor; insuficiente, obvio.

30
El verdadero destinatario de la poesía es aquel que no está habi-
litado para leerla. Pero esto también significa que el libro, que es
destinado a quien nunca lo leerá — el iletrado — ha sido escrito
por una mano que, en cierto sentido, no sabe leer y que es, por lo
tanto, una mano iletrada. (AGAMBEN, 2015)
Ao mendigo, que não tem nada nas mãos, talvez seja endere-
çado um livro que não cabe nas mãos. Ele não o lerá. A mão
iletrada que o escreve, no entanto, teima em endereçar-lhe o
que ele não lerá. Por quê? Talvez porque as mãos se queiram
como mãos fora do consumo. Ou talvez porque só queiram se
oferecer como mãos abertas.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. “¿A quién se dirige la poesía? Trad.


Gerardo Muñoz & Pablo Domínguez Galbraith, Infrapoliti-
cal-Deconstruction Collective [Publicação original em New
Observations, N.130, 2015]. Disponível em: https://infrapo-
litica.wordpress.com/2015/04/22/a-quien-se-dirige-la-poe-
sia-giorgio-agamben/. Acesso em: 01 jul. 2015.
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Uma revelação psicótica? | Patrick Gert Bange 31


gas. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2013.
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Suhrkamp Verlag, 1985.
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São Paulo: Nankin, 2017.
WITTE, Bernd. Walter Benjamin: uma biografia. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2017..
Um aviso de incêndio no
século XXI
A serventia de Walter Benjamin para pensar a
sociedade e a política hoje

Beatriz Moreira da Gama Malcher


malcher.beatriz@gmail.com | Un. Federal do Rio de Janeiro
Introdução

O presente artigo1 tem como objetivo principal expor como


reflexões caras à obra de Walter Benjamin podem ter ampla
serventia para pensar a atualidade, principalmente levando
em conta a inserção nas redes socio-digitais tendo em vista
seu papel central no processo de socialização e de ação polí-
tica hoje. Para a análise que proponho apresentar aqui, é pa-
tente levar em conta a percepção do autor a respeito do pro-
cesso através do qual a vida comum passa a ser mediada pela
técnica. Diferentes tecnologias capazes de exercer influência
direta na sociabilidade e na percepção do indivíduo sobre
o mundo e sobre si mesmo foram apresentadas e debatidas
pelo autor em distintos trabalhos ao longo de sua obra: o rá-
dio, o cinema, a fotografia e até mesmo a imprensa. Naquele
período, de fato, aqueles eram alguns dos principais produ-
tos de um processo de intensa produção e reprodução cien-
tifica cujo objetivo era alcançar elevados níveis de avanço da
técnica que possibilitassem a redução do espaço pelo tempo

1  Por ser um texto que foi apresentado oralmente no “Benjaminia-


na 2017”, optei por manter o estilo mais informal do que aquele tra-
dicionalmente e recorrente em artigos científicos sem, no entanto,
retirar a densidade analítica e crítica a ele dada.

34
(HARVEY, 2005). O trabalho de Benjamin, como se sabe, foi
primoroso na discussão acerca de como este aprimoramento
da técnica teve efeitos diretos sobre o nosso sistema senso-
rial, sobre a nossa experiência, sobre a nossa auto-constru-
ção individual e, principalmente, sobre a nossa vida política.
Guardada a mediação temporal necessária, é interessante
observar como os mesmos diagnósticos e prognósticos fei-
tos pelo filósofo não apenas se adequam às tecnologias mais
avançadas de nossa contemporaneidade, principalmente
a web 2.0, como parecem ter ganhado mais força e sentido.
O que procuro, portanto, com este trabalho é precisamente
apresentar como conceitos caros à sua obra auxiliam no des-
cortinamento de questões importantes e, de certa maneira,
urgentes, em nosso contemporâneo político e social.

As novas galerias

Antes de entrar diretamente na análise, cabe fazer uma bre-


ve apresentação do que aqui será chamado de web 2.0. Até
meados dos anos 2000 a internet era um espaço cuja poten-
cialidade crítica não havia se afirmado, sendo reservada em
sua parte mais significante à troca passiva de informação e
ao entretenimento, sendo um local de socialização terciário
(VAZ, 2004). No entanto, a sua reconfiguração em web 2.0
serviu para uma apropriação distinta do meio, que se tor-
nou o local principal do qual emanam as demais formas de
sociabilidade, como mostra Castells (2013). Neste sentido,
proponho analisar as redes socio-digitais (como o Facebook,
o Instagram, o Twitter, dentre outros) como uma espécie de
galeria do século XXI.
Em seu estudo sobre Baudelaire , Benjamin mostra como as

Um aviso de incêndio no século XXI | Beatriz M. G. Malcher 35


galerias eram um espaço social específico no qual se desen-
rolavam inúmeros processos importantes para esta analogia
que proponho aqui. As galerias se tratavam de um espaço in-
termediário entre o mundo interno e externo; sendo “qual-
quer coisa de intermédio entre a rua e o interior” (BENJAMIN,
2015, p.39). Isso tornava as fronteiras entre público e privado,
anteriormente bem demarcadas, mais flexíveis. Elas também
eram um espaço de sociabilidade que funcionava como um
“remédio infalível ao tédio, uma doença que grassa[va] facil-
mente sobre o olhar [...] de um regime saturado” (IBIDEM).
Se tratavam, por fim, de um local destinado à produção de
si como indivíduo e, ao mesmo tempo, como parte de uma
massa — ou seja, quanto mais o homem da época frequenta-
va este ambiente e exaltava suas particularidades a fim de se
destacar como um indivíduo, mais ele fazia parte das massas
e se colocava a disposição e em exibição, tal qual uma merca-
doria (BENJAMIN, 2015).
O mesmo parece acontecer nas redes: elas também são um
espaço intermediário entre o mundo externo e o mundo pri-
vado e também funcionam hoje como um antídoto ao tédio.
Além disso, são um espaço de auto representação no qual o
usuário tem a ilusão de se diferenciar da massa ao criar uma
imagem particular de si mesmo (SIBILIA, 2008; MALCHER,
2016). O irônico é que, como ocorria em tempos pretéritos,
quanto maior o seu esforço para se diferenciar e se indivi-
dualizar, maior a sua imersão na massa digital e maior a sua
desumanização ao se promover como mercadoria (DANTAS,
2014). No entanto, mais radical do que se dava nas galerias,
este indivíduo da massa digital não se transforma em mer-
cadoria apenas devido à sua exposição, mas por de fato in-
corporar em si um valor de troca. Explico: o produto das re-
des sociais não é a rede em si, mas sim o chamado capital
informacional, ou seja, a informação e os dados produzidos
por seus usuários, que são vendidos para outras empresas
(IDEM). Trata-se, portanto, de uma representação ambígua
onde o usuário das redes, na tentativa de se promover como

36
indivíduo, se promove tanto como produtor — já que o usuá-
rio produz a informação a ser comercializada — quanto como
mercadoria — já que esta informação produzida por ele é sua
construção como indivíduo digital — e, em última instância,
como consumidor, já que as empresas que compraram das
redes esta informação tentam vender de volta para este con-
sumidor produtos direcionados a ele (ROSS, 2013).
Este processo pode ser melhor compreendido se levarmos
em conta o ciclo capital-dinheiro proposto por Marx a par-
tir da fórmula simplificada “D-M…P…M’-D’” (MARX, 2014,
p.107). D seria o capital em forma de dinheiro que é investido
se convertendo em M — onde M = Mp (meios de produção) +
F (força de trabalho), ou seja, a soma em dinheiro se decom-
poria em duas partes, “uma que compra força de trabalho
e outra que adquire meios de produção. Temos assim duas
séries de compras que pertencem a mercados inteiramente
diversos, uma ao mercado de mercadorias propriamente dito
e a outra ao mercado de trabalho.” (MARX,2003, p.40). M,
acrescido pelo tempo (reticências) é transformado em capi-
tal produtivo (P). Neste momento que são importantes as no-
ções de capital constante e capital variável como diferentes
partes do capital produtivo: o primeiro vai ser representado
pelos meios de produção e continua sendo capital do capi-
talista; já o segundo, representado pela força de trabalho, só
deixa de ser mercadoria para se tornar capital quanto utiliza-
do pelo capitalista. O capital produtivo vai consumir capital
constante e variável de modo a transformá-los em produtos
de valor superior aqueles investidos inicialmente através da
extração da mais-valia — relação entre trabalho excedente e
trabalho necessário (MARX, 2011, p.605). P, acrescido do tem-
po desencadearia na mercadoria final acrescida de mais-va-
lia, ou seja, M’, que será vendida de modo a converter-se em
dinheiro D’ , proporcionando a circulação (MARX, 2003).
Na internet este ciclo seria atualizado: as empresas de mídia
digital investiriam dinheiro para comprar capital constante
e variável, de onde apenas parte da mais-valia será extraída.

Um aviso de incêndio no século XXI | Beatriz M. G. Malcher 37


O resultado deste processo é o primeiro produto, ou seja, a
mídia digital em si (Facebook, Instagram, Twitter, Tumblr,
etc.), que não será vendida aos usuários (sendo gratuita).
Este primeiro produto vira o meio de produção utilizado por
uma segunda força de trabalho: o usuário das redes (o “con-
sumidor gratuito” do primeiro produto). Ele utiliza a rede ge-
rando conteúdo (user-generated data) — um trabalho para
o qual ele não é pago na forma de capital. Este processo que
vai desencadear em um segundo produto (um produto in-
formacional), que é o principal produto da empresa, sendo
vendido por um preço maior do que aquele investido inicial-
mente, transformando-se em dinheiro. A mais-valia extraída
é, portanto, apenas em parte da força de trabalho comprada
inicialmente, sendo a maior parte do trabalho elaborada pelo
próprio usuário gratuitamente para produzir o produto infor-
macional. Como não são pagos, todo o tempo gasto utilizan-
do nestas redes se trata de um tempo onde ocorre a extração
da mais-valia em valores absolutos (FUCHS, 2012). Em última
instância estas empresas que compram o produto informa-
cional vão vender seus próprios produtos para este usuário/
trabalhador das redes.
Para ficar mais claro, cabe trazer à tona um exemplo bastante
próximo da nossa realidade como acadêmicos: um usuário do
Facebook cria a sua individualidade neste espaço ao se apre-
sentar, por exemplo, como um intelectual. Ele cita poesias,
faz pequenas resenhas de livros, fala sobre seus filmes favori-
tos, etc. Neste processo ele está criando a sua individualidade
perante a massa “disforme” do Facebook. No entanto, todas
essas informações sobre ele mesmo que ele disponibilizou
ali na rede para os outros usuários é vendida pelo Facebook
para diversas empresas. Deste modo, este usuário produziu
uma informação que foi vendida e, ao mesmo tempo, se pro-
duziu como um produto que foi comercializado. Depois este
mesmo usuário vai receber destas mesmas empresas para
as quais ele/ suas informações foram “vendidas”, anúncios
de produtos de seu interesse. No caso, anúncios de livrarias

38
que vendem livros específicos de sua área de atuação, de ci-
nemas e redes de streaming que passam filmes do estilo que
lhe agrada, e etc. Ou seja, este intelectual, que quis afirmar
sua intelectualidade publicamente nas redes de modo a se
diferenciar dos outros usuários, por exemplo, de um usuário
que posta selfies, textos sobre moda e vídeos de fitness, está,
porém, inserido exatamente na mesma lógica que ele — pois
ambos são produtores/produtos e consumidores — cada um
de um nicho, claro. Por isso caberia entender as redes como
uma espécie de galeria baudelairiana, onde o indivíduo é
também mercadoria (BENJAMIN, 2015), porém radicalizada,
porque além de mercadoria, ele se torna também produtor e
consumidor (FUCHS, 2013. ROSS, 2013; DANTAS, 2014).
No entanto, diferente das galerias, na época frequentadas por
uma burguesia ascendente e uma aristocracia decadente, as
redes sociais comportam em si uma maior diversidade de
classes, o que é compreendido por teóricos do capitalismo
cognitivo (DAVIS,2012; CASTELLS, 2013; BENTES, 2014) como
uma espécie de democratização. Acredito que essa perspec-
tiva positivada das redes como espaços democráticos e re-
presentativos pode ser colocada em questão. Primeiramente
devido ao fato de que mais da metade da população mundial
ainda não tem acesso à internet, de modo que, este espaço
supostamente democrático produz um abismo entre aqueles
que tem o acesso ao debate ali produzido e aqueles que não
tem — sendo dele excluídos (SIBILIA, 2008). Em segundo lu-
gar, a chamada “cultura participativa” estimulada pelo forta-
lecimento redes sócio-digitais — especialmente desde de 2011
com a “onda de mobilizações e protestos sociais [que] tomou
a dimensão de um movimento global” (CARNEIRO, 2012,
p.7) e que tiveram nas redes seu local principal de atuação
política e que desencadeou centenas de rebeliões e levantes
nos anos seguintes em níveis globais — parece igualmente
questionável . Existe uma crença na mobilização consciente
e num suposto “empoderamento” das novas gerações através
deste espaço, o que seria baseado em uma ética igualitária

Um aviso de incêndio no século XXI | Beatriz M. G. Malcher 39


que abre o caminho para a “radicalização da democracia par-
ticipativa” (BENTES ET AL, 2008, p.140). Não obstante o entu-
siasmo que essa aparente politização via redes possa gerar, é
essencial que seja feita, pegando emprestado o termo benja-
miniano, uma leitura a contrapelo do processo, pois isso tor-
na possível observar os limites que a crítica social pode en-
contrar no ciberativismo e questionar, não apenas a validade
dos argumentos otimistas acerca das “redes de indignação”
(CASTELLS, 2013), mas também se ainda é possível vislum-
brar a internet como um ambiente de edificação de uma de-
mocracia radical e não institucional, principalmente se levar-
mos em conta o progresso do pensamento fascista em meio
aos seus usuários, que se reflete diretamente na vida política
local e global. Neste sentido, quase um século depois de sua
produção, Walter Benjamin ainda pode nos proporcionar
uma análise mais acertada de nosso contexto imediato do
que muitos intelectuais da onda pós-estruturalista.

Pobreza crítica e fascismo

Em “Melancolia de esquerda” Benjamin mostra como no pe-


ríodo entre guerras havia uma tendência por parte da esquer-
da, em especial dos intelectuais e artistas, de converter seus
reflexos revolucionários em objetos de dispersão e consumo:
Os publicistas radicais de esquerda, do gênero de um Kästner,
Mehring ou Tucholsky, são a mímica proletária da burguesia de-
cadente. Sua função política é gerar cliques, e não partidos, sua
função literária é gerar modas, e não escolas, sua função econô-
mica é gerar agentes,e não produtores. Pois nos últimos quinze
anos essa inteligência de esquerda tem sido ininterruptamente
agente de todas as conjunturas intelectuais, do ativismo à “nova
objetividade”, passando pelo expressionismo. Sua significação

40
política, porém, esgotava-se na conversão de reflexos revolucio-
nários, na medida em que estes afloravam na burguesia, em ob-
jetos de dispersão, de divertimento, facilmente canalizáveis para
o consumo. Foi assim que o ativismo conseguiu dar à dialétiva
revolucionária a face indefinida, numa perspectiva de classe, do
senso comum. Num cereto sentido, ele foi uma liquidação de es-
toque nessa grande loja da inteligência. (BENJAMIN, 2012, p.79)
O trecho anterior, ilustrativo do clima da Alemanha do en-
tre-guerras, parece ilustrar muito bem também o momento
político e intelectual contemporâneo (guardadas as devidas
mediaçãoes espaciais e temporais). Não cabe no momento
entrar em como os modismos, são prejudiciais ao fazer teó-
rico e à práxis nos dias atuais, especialmente nas periferias
do capitalismo 2 — apesar de se tratar de um tema de ampla
importância e que demanda certa urgência em seu debate. A
cargo de interesse ao artigo, meu foco residirá na atualidade
deste debate — que é levantado por Benjamin neste ensaio
supracitado, mas também em outros, que tratarei em seguida
— para pensar o ativismo digital.
Para tal, é central observar pontos importantes do campo so-
ciocultural na contemporaneidade: o primeiro seria, haja vis-
ta os novos padrões de consumo, a maior mobilização para
os mercados de massa; o segundo seria a passagem para um
consumo de serviços no lugar do consumo de bens (HAR-
VEY, 1992). Estas alterações influenciariam diretamente na
maneira “pós-moderna” de se agir, assim como de pensar e
sentir. Uma das influências centrais seria “a volatilidade e a
efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção, pro-
cessos de trabalho, ideias e ideologias, valores e práticas es-
tabelecidas” (IDEM, p.258), criando a chamada sociedade do
descarte (FONTENELLE, 2002). A característica central desta
sociedade é a volatilidade que, por um lado, é resultado do

2  Alguns textos clássicos de Roberto Schwarz, como “Nacional por


subtração” e “As ideias fora do lugar”, já apontavam para este pro-
blema e são incontornáveis para qualquer autor que se interesse
pelo debate. (SCHWARZ, 2009; 2009b)

Um aviso de incêndio no século XXI | Beatriz M. G. Malcher 41


capital e, por outro, deve ser dominada por ele de uma forma
específica, através de estratégias que visem a “manipulação”
dos desejos. Neste sentido, se torna patente que a mercantili-
zação da cultura se baseie em tamanha imediatez que torna
impossível a “experiência do olhar” (IDEM), minando qual-
quer possibilidade de diálogo ou de desenvolvimento de sen-
so crítico por parte do público.
Isso não é um processo recente, já tendo sido observado por
Benjamin quando ele analisa o processo de declínio da ex-
periência transmitida. Segundo o autor, o avanço da técnica,
por desenvolver a compensação tempo/espaço que abrevia
tudo, passa a proporcionar um acúmulo informacional que,
ao reduzir nosso tempo ocioso, abrevia também nosso tempo
de troca e de reflexão, indispensável para o desenvolvimen-
to de posicionamentos mais críticos em relação à ordem das
coisas e dos acontecimentos. Tudo isso seria feito em nome
do “novo” e da novidade (BENJAMIN, 2012b). As redes se-
riam, neste sentido, uma fase avançada do mesmo contexto.
Paula Sibilia (2008) faz uma observação similar sobre os
tempos atuais ao apresentar como a nossa pobreza crítica é
gerada pela falta dos relatos sólidos, o que levaria a um pro-
cesso multiplicação de narrativas individuais. E, se por um
lado, esta falta de relatos sólidos implica em um abandono
do peso das tradições conservadoras — Estado, família, igre-
ja, etc. — por outro, a libertação das subjetividades de to-
das as tradições desemboca no surgimento de subjetividades
vulneráveis, tornando fácil que o mercado se instale nestes
espaços vazios. A análise dos problemas da queda da expe-
riência e do acúmulo informacional de Benjamin muito tem
a auxiliar nesta crítica, precisamente por mostrar como esta
falta da transmissão das experiências não coloca em questão
apenas as tradições conservadoras, mas todas as tradições,
levando a um declínio da memória e da rememoração em
nome de uma aparente “novidade” constante (BENJAMIN,
2012c) e, principalmente, de um suposto progresso (BENJA-
MIN, 2012d), tema este que falarei em breve.

42
Antes só preciso concluir como as reflexões benjaminianas
auxiliam a compreender como até os movimentos que pro-
põem certa crítica ao que chamam de “sistema”, são subjetivi-
dades de tal vulnerabilidade que o mercado se apropria delas.
Cabe aqui, a cargo de exemplo, observar como grupos comu-
nicacionais que se baseiam no midialivrismo ciberativista
que, em tese, propaga “experiências singulares de constru-
ção de dispositivos digitais” (MALINI & ANTOUN, 2013, p.21)
e que , a exemplo da Mídia Ninja, “busca[m] novas formas
de produção e distribuição de informação” (MIDIA NINJA),
dependem majoritariamente do Facebook para a propagação
de sua produção “singular” e “nova” de distribuir informação
através de uma “comunicação democrática” (IDEM). Sendo
assim, grandes empresas do capitalismo cognitivo, como o
Facebook (cuja dinâmica de extração de mais-valia foi apre-
sentada anteriormente) viram uma espécie de símbolo da li-
berdade de expressão e de local para a mobilização da luta
contra o status quo (MALCHER, 2016). Como mostra Benja-
min, essa já foi a mesma posição assumida pela imprensa tra-
dicional — rádio e jornal, em especial — no passado.
O filósofo mostrava como o ativismo e a suposta “objetivida-
de” de uma burguesia de esquerda tendiam a “abastecer um
aparelho produtivo sem ao mesmo tempo modificá-lo” o que
entendia como “um procedimento altamente questionável,
mesmo que os materiais fornecidos [...] tivessem uma apa-
rência revolucionária” (BENJAMIN, 2012e, p.137). Analisando
a Alemanha do entre guerras que o autor pôde constatar que:
[...] o aparelho burguês de produção e publicação pode assimilar
uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até
mesmo propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua pró-
pria existência e a existência das classes que o controlam. Isso
continuará sendo verdade enquanto esse aparelho for abasteci-
do por escritores revolucionários rotineiros. Defino o rotineiro
como o homem que renuncia por princípio a aperfeiçoar o apa-
relho produtivo a fim de romper sua ligação com a classe domi-
nante (IDEM)

Um aviso de incêndio no século XXI | Beatriz M. G. Malcher 43


Essa análise dos grupos supostamente revolucionários que
pensavam em aperfeiçoar os aparelhos produtivos de infor-
mação da época sem, com isso, colocar em risco a classe e o
sistema que os controlava, me parece muito próxima à que
proponho aqui a respeito dos grupos midialivristas que bus-
cam novas formas de produção e divulgação da informação,
mas não rompem com os grupos hoje responsáveis pelo seu
controle.
Em última instância, a falta de bases causada pela lógica do
descarte e da imediatez em nome do progresso faz com que
a fetichização da marca se torne o processo pelo qual o su-
jeito e os movimentos busquem um sentido de permanên-
cia; onde a cultura, o pensamento político e a crítica social
passam a ser submetidas ao reino da mercadoria. Desta for-
ma, segundo nossa análise, seria construído o paradoxo do
ativismo digital, que, no discurso, se coloca contra o sistema
capitalista, e, no entanto, por ter sido submetido à sua lógi-
ca, não apenas é esvaziado, mas passa a trabalhar para o seu
fortalecimento, não muito diferente do que ocorria, portanto,
com os intelectuais ativistas do entre guerra (IDEM).
A maior consequência disso também já havia sido atestada
pelo autor: em nome do progresso e do “novo”, o acúmulo
informacional e a falta do tempo “ocioso” e da transmissão
de experiência faz com que abramos mão de algo da maior
importância: a memória. O declínio da memória e da reme-
moração, como nos mostra Benjamin, faz com que se desa-
prenda com a história. Isso não significa que a história seja
ignorada, mas sim que se faça uma leitura do passado como
uma temporalidade fechada em si mesma, que nada teria a
ver com os problemas presentes (BENJAMIN, 2012f ). A me-
mória e a rememoração3, em Benjamin, são processos alta-
3  Cabe destacar, neste momento, que Walter Benjamin fez, ao
longo de sua obra, usos distintos destes conceitos. Utilizo-os aqui
tendo em vista, principalmente, seu ensaio “O Narrador” e suas
teses “Sobre o conceito da história”. Um uso distinto das noções de
memória e rememoração será feito, por exemplo, em seu ensaio

44
mente produtivos porque permitem fixar no passado uma
imagem de como ele se apresenta ao sujeito histórico do
presente no momento de perigo, o que permitiria enxergar a
história como um processo (BENJAMIN, 2012g). O problema,
portanto, da deficiência da memória é que ela impede o vis-
lumbre do processo histórico, sem o qual o homem presente
falha na compreensão dos seus problemas presentes. Vale ci-
tar aqui um trecho da oitava tese sobre o conceito da história:
“o assombro com o fato de que os episódios que vivemos no
século XX ‘ainda’ sejam possíveis não é um assombro filosó-
fico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhe-
cimento de que a concepção de história em que se origina é
insustentável” (IDEM, p.245)
Ora, tal percepção me parece bastante atual. Quando vemos
grupos de nossa esquerda impressionados com ações sociais
conservadoras e extremistas, ou ações políticas antidemo-
cráticas, é um sinal da nossa falta de concepção de história,
que impede o a compreensão crítica do processo social mais
amplo — o que possibilitaria o entendimento da causa dos
nossos problemas atuais e, consequentemente, uma possível
solução a eles. Cabe exemplificar: quando alguma notícia de
alguma arbitrariedade ou perseguição a grupos de oprimidos
toma as redes sociais por um ou dois dias, é comum ver duas
posturas: a primeira, similar àquela exposta por Benjamin,
é de espanto diante do ato e de questionamento de “como
isso pode acontecer em pleno século XXI?”, questionamen-
to este que parte de uma percepção incorreta de que o pro-
gresso científico e tecnológico foi acompanhado de fato de
um progresso ético e moral. Outra observação comumente
feita é a de que “estamos retornando à Idade Média”, o que
simplesmente ignora que as perseguições, opressões e ar-
bitrariedades que experimentamos hoje são altamente mo-
dernas — basta repensar os principais eventos históricos dos
últimos séculos, como o Neocolonialismo, as perseguições
sistêmicas de irlandeses, ciganos, armenos, judeus (dentre
sobre Proust, sobre o qual não tratarei neste artigo.

Um aviso de incêndio no século XXI | Beatriz M. G. Malcher 45


outros), os estados totalitários, toda as dinâmicas de guerras
desde Napoleão, etc.
O problema dessa incompreensão do processo histórico é
grave pois ela nos deixa desarmados para combater o con-
servadorismo em todas as suas formas, especialmente o
fascismo — como vemos hoje. Explico melhor: nas últimas
décadas algumas ações reformistas que garantiam direitos a
grupos de minoria causaram a impressão de progresso e mu-
dança social. E, de fato, aconteceram mudanças, mas apenas
imediatas. Nunca sofremos nenhuma alteração real nas nos-
sas estruturas sociais, morais e políticas, o que fez com que o
conservadorismo social e as tendências à arbitrariedade polí-
tica não se extinguissem, mas apenas ficassem adormecidas;
esperando um contexto de crise propício para despertarem.
Apesar disso, ao considerarmos o passado uma entidade es-
tática, temos o progresso como dado e o conservadorismo
como morto. E quando a barbárie ascende não conseguimos
nem a compreender nem a combate — situação e bastante si-
milar aos problemas expostos por Benjamin, principalmente
em suas teses sobre a história. Faltaria a nós, isto posto, como
o próprio autor entende que faltou aos seus contemporâne-
os, “articular historicamente o passado”, o que não significa
“conhecê-lo tal como ele de fato foi”, mas sim “apropriar-se
de uma recordação, como ela lampeja no momento de um
perigo” (IDEM, p.243).
Sobre a relação entre progresso da técnica e fascismo outra
discussão levantada por ele também é de extrema relevância:
o problema da crise da democracia e as condições de expo-
sição de figuras políticas. O filósofo observa em “A Obra de
Arte na Era de sua reprodutibilidade técnica” como os veícu-
los de comunicação de massa permitem que o orador políti-
co tenha uma fala ouvida por um número ilimitado de pessoa
(BENJAMIN, 2012d). Desta forma, o pensamento e as organi-
zações políticas da qual aquele indivíduo faz parte são atro-
fiados diante da exposição de sua própria imagem. Ou seja, a
personalidade, como objeto de culto, passa a ter mais valor

46
do que as ideias e os grupos políticos aos quais essa persona-
lidade é articulada:
A crise da democracia pode ser interpretada como uma crise nas
condições de exposição do político profissional. [...] com as inova-
ções nos aparelhos de gravação, que permitem ao orador duran-
te a sua fala ser ouvido por um número ilimitado de pessoas e,
pouco depois, ser visto por um número ilimitado de pessoas, a
exposição do político diante do aparelho passa ao primeiro pla-
no. Com isso os parlamentos se atrofiam [...] O rádio e o cinema
não modificam apenas a função do interprete profissional mas
também a função de quem se representa a si mesmo diante des-
ses dois veículos de comunicação, como é o caso do político. O
sentido dessa transformação é o mesmo no ator de cinema e no
político, qualquer que seja a diferença entre as suas tarefas espe-
cializadas. [...] Esse fenômeno determina um novo processo de
seleção, uma seleção diante do aparelho (IDEM, p.198) 4
Se isso já era verdade na era do rádio e do cinema, na era di-
gital é ainda mais evidente: no Facebook, no Instagram, no
Twitter e no Youtube as personalidades políticas se colocam
em público de maneira mais aproximada do eleitor e expõe
opiniões menos matizadas e embasadas do que aquelas emi-
tidas em discursos políticos tradicionais, quando não mais
pessoalizadas. Essas pessoas, paradoxalmente, portanto, ao
se construírem como “homens comuns”, colocam sua ima-
gem à disposição de um culto ainda maior. É uma nova forma
de espetacularização de si, mais complexa, mas que emer-
ge do mesmo local daquele analisado por Benjamin e têm
como consequência o mesmo culto à imagem que em sua
Alemanha permitiu a emergência do fascismo, emblemático
na personalidade de Hitler, e na Alemanha atual permite a
emergência do fascismo emblemático na personalidade de
Frauke Petry, líder dirigente do partido de extrema direita
4  Guy Debord continua este debate sobre a questão da exposição
do político diante do aparato técnico em seu Sociedade do Espetá-
culo, de 1967 (ed. 1997), cuja leitura é extremamente recomendada
para o leitor que busque um aprofundamento posterior neste
tema.

Um aviso de incêndio no século XXI | Beatriz M. G. Malcher 47


Alternatif fur Deutschland. Isso, como se sabe, infelizmente
ocorre numa conjuntura mais ampla; em níveis globais, ten-
do em vista personalidades como Donald Trump, Marine Le-
Pain, Jair Bolsonaro, dentre muitos outros.
Para não me extender muito mais, quero então remarcar os
três pontos cruciais que, na obra de Benjamin, nos permite
observar hoje os limites das redes sociais e sua relação com o
fascismo: a pobreza de transmissão da experiência e a grande
valorização do novo, que impedem o desenvolvimento críti-
co matizado, não havendo espaço para a reflexão e para o de-
bate; o declínio da compreensão da história como processo;
por fim, o estimulo do culto à personalidade, onde o indiví-
duo supera a ideia.
Esses três pontos eu apresentei separadamente, mas eles, na
prática, estão imbricados. Por exemplo, o impacto que o revi-
sionismo histórico que essas personalidades cultuadas exer-
cem sobre a sociedade faz parte do processo de declínio da
memória. Por exemplo, a releitura positivada feita por Petry
sobre os anos de nazismo, ou discurso pró-ditadura civil-mi-
litar de Bolsonaro, só ganham espaço tendo em vista o culto
às suas personalidades em conjunto à falta de perspectiva
histórica geral. Ou ainda, o impacto exercido por pequenas
declarações feitas no Twitter por personalidades cultuadas
tem muito a ver não apenas com o culto às suas personali-
dades, claro, mas com a imediatez, com o excesso informa-
cional e com o fato de o novo sempre imperar. Por exemplo,
uma notícia que viraliza nas redes tem seu tempo de reflexão
comprimido: só será debatida por poucos dias, quando não
horas. A falta de tempo para o debate acerca do fato faz com
que as pessoas recorram precisamente à opinião dessas per-
sonalidades cultuadas para a formação da sua própria opi-
nião. Porém, como nem essas personalidades nem os seus
“seguidores” teriam o tempo para desenvolver uma reflexão
matizada (porque se usarem o tempo necessário para pen-
sar no assunto, o assunto já vai ser ultrapassado) elas reagem
através da sua indignação, o que normalmente é irracional.

48
O problema disso é que a indignação em massa pode levar a
reações imprevisíveis, que hoje se evidenciam, por exemplo,
em linchamentos e perseguições virtuais, quando não físicas
— práticas em sua essência, fascistas.

Considerações Finais

A leitura de Benjamin, trazida aos tempos presentes, permite


questionar o estado das coisas e as nossas ilusões sobre o pro-
gresso técnico e o ativismo. Sendo assim, olhar as experiên-
cias passadas à luz do autor, é poder, talvez, repensar o nosso
lugar diante do presente incerto levando em conta a História
como uma temporalidade aberta (BENJAMIN, 2012g):
O fato de estarmos situados na incerteza do presente, ou seja,
em uma posição em que não é possível prever as consequências
que terão nossas ações e nossas escolhas para o futuro, permite-
-nos conceber cada momento histórico como um presente que
se abre para vários futuros. Ou seja, abordar o passado como um
campo dos possíveis, tentando localizar os fatores que permiti-
ram alguns desses possíveis se realizar com a exclusão de todos
os outros (VARIKAS apud. LÖWY, 2005, p.158)
Observar, isto posto, as constatações benjaminianas sobre a
sua época, tendo em vista nosso local privilegiado no tem-
po que permite entender como aqueles acontecimentos se
desencadearam — nas barbáries dos campos de extermínio
e da Segunda Guerra Mundial — não serve, portanto, para
pensarmos que a história se repetirá porque vivemos situ-
ações similares. A história não está dada. O que está dado,
como na época de Benjamin estava, era um anúncio de uma
catástrofe para a qual a história avança, mas que pode, talvez,
ser interrompida. Como mostra Löwy, toda a obra de Benja-

Um aviso de incêndio no século XXI | Beatriz M. G. Malcher 49


min “pode ser considerada uma espécie de ‘aviso de incên-
dio’ dirigido a seus contemporâneos, um sino que repica e
busca chamar a atenção sobre os perigos iminentes que os
ameaçam” (LÖWY, 2005, p.32). O que procurei mostrar bre-
vemente neste artigo é que ela pode servir também como um
alarme aos nossos contemporâneos. Cabe talvez, desta vez,
ouvi-lo soar e não o ignorar.

Referências

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tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Edito-
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Paulo: Brasiliense, 2012e.
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tura (Obras Escolhidas v.1). Tradução: Sérgio Paulo Rouanet.
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125-139.
A repetição da violência e
sua interrupção divina
Tomaz Amorim Izabel
tommy.amorim@gmail.com | Un. de São Paulo
A repetição da violência e sua interrupção divi-
na

No ensaio “Para uma crítica da violência” (Zur Kritik der


Gewalt) de 1921, ao criticar a ideia de violência-poder
(“Gewalt”) em sua relação ética e política com o direto, ou
seja, sobre a legitimidade de seu uso por agentes estatais ou
extra-estatais, Benjamin acaba por oferecer um interessante
modelo para o fluxo temporal e as possibilidades de sua inter-
rupção. A violência não é apresentada no ensaio como uma
força única e extraordinária que age singularmente, como na
forma de invasão bárbara, revolução, golpe, etc., mas, diale-
ticamente, como presença e possibilidade constantes, como
manutenção do poder violentamente instituído e ao mesmo
tempo possibilidade de nova interrupção violenta. “A crítica
da violência é a filosofia de sua história” (BENJAMIN, 2011,
p.155). Não se trata, portanto, de uma violência essencializa-
da e supra-histórica que por forças contingentes de tempos
em tempos se atualiza, como um trovão que cai numa flores-
ta, mas de um evento que não apenas instaurou o momento
histórico no qual está inserido como o gerencia e reinstau-
ra constantemente. Interrupção, portanto, seguida de repe-
tição indefinida de si mesma: simultaneamente original e

54
simulacro. Jeanne Marie Gagnebin também vê na crítica da
violência não apenas um debate sobre soberania e a disputa
política, mas uma reflexão mais profunda sobre o continuum
histórico e a disputa entre sua manutenção e sua interrupção.
Vale a pena a longa citação:
Esse texto fala, sem dúvida, de violência e de soberania, mas
igualmente, e de maneira conjunta, através da greve geral sore-
liana, de uma figura radical da interrupção como resistência à
engrenagem política e social; aqui também, somente a tentativa
de parar o tempo pode permitir a uma outra história vir à tona,
a uma esperança de ser resguardada em vez de soçobrar na ace-
leração imposta pela produção capitalista. A greve geral pára a
produção, assim como os relógios em que revolucionários ati-
ram; é o mesmo gesto de interrupção do tempo, de quebra da
continuidade histórica. (GAGNEBIN, 2004, p. 98).
Benjamin não faz uma crítica tradicional da violência ques-
tionando a justiça do seu uso para objetivos específicos, ou
seja, a violência não é compreendida como meio para fins,
como em sua representação pelo “direito natural”, para o qual
bastaria verificar a legitimidade dos fins para decidir sobre a
justiça ou não de seu uso como meio. Para Benjamin, o di-
reito não apenas legisla sobre o uso da violência, mas é ele
mesmo fruto da violência, instaurado e mantido por ela. “Se
é permitido deduzir que a violência da guerra, enquanto for-
ma originária e arquetípica, é modelo para toda violência que
persegue fins naturais, então é inerente a toda violência desse
tipo um caráter de instauração do direito” (BENJAMIN, 2011,
p. 131). Essa capacidade da violência de instaurar o direito o
torna sensível a qualquer violência que não esteja submissa
a si: “o direito considera a violência nas mãos dos indivíduos
um perigo capaz de solapar a ordenação do direito” (IDEM, p.
126-127). Daí seu desejo de monopólio e a necessidade do di-
reito moderno de “retirar, pelo menos do indivíduo enquanto
sujeito de direito, qualquer violência, mesmo aquela que se
dirige a fins naturais” (IDEM, p. 131). Cada direito, instaura-
do por uma violência, luta por sua manutenção contra a ins-

A repetição da violência e sua interrupção divina | Tomaz A. Izabel 55


tauração de outros direitos através de novas violências. Luta
violentamente pelo monopólio de uma forma de violência, a
violência com “fim de direito”, ou seja, pela própria manuten-
ção. Para usar a distinção de Benjamin, a violência mantene-
dora (rechtserhaltende) associada ao direito instaurado trava
uma batalha constante contra a tentativa de sua interrupção
por uma nova violência instauradora (rechtsetzende):
Toda violência mantenedora do direito acaba, por si mesma,
através da repressão às contraviolências inimigas, enfraquecen-
do indiretamente, no decorrer do tempo, a violência instaurado-
ra do direito, por ela representada. (...) Isso dura até o momento
em que novas violências ou violências anteriormente reprimi-
das vencem a violência até aqui instauradora do direito, fundan-
do assim um novo direito para um novo declínio. (IDEM, p. 155).
Se se puder com Benjamin e Marx entender o fluxo histórico
através do movimento violento da luta de classes, talvez se
possa dizer então que o objetivo do direito, através da vio-
lência mantenedora, é paralisar a História, ou seja, bloquear,
sob pena de desaparecer, uma violência instauradora, pro-
vinda de outra classe, que ameace interromper sua ordem.
Não por acaso, a ordem temporal que Benjamin associa ao
direito assim estabelecido é aquela temporalidade à prova de
interrupção: a ordem do destino (schicksalhaften Ordnung).
Destino como história total que resiste e tentar incorporar
qualquer manifestação exterior: “só existe um único destino
e justamente aquilo que existe, e em particular aquilo que
ameaça, pertence inexoravelmente à sua ordem” (IDEM, p.
133). A forma temporal da violência que Benjamin apresenta,
portanto, é uma em que a violência não está contida na época
histórica ou contém uma determinada época, mas é dialeti-
camente forma e conteúdo da época.
Vale a pena suspender o argumento para refletir sobre a eti-
mologia dos termos época e revolução. Ambos, já em seu de-
senvolvimento etimológico, performatizam a especificidade
temporal que Benjamin apresenta aqui como da violência
fundadora do direito e, portanto, de uma época. Época e re-

56
volução contêm tanto a ideia de interrupção (ou seja, rompi-
mento com uma ordem anterior e abertura para instauração
de uma nova) quanto de manutenção (ou seja, repetição da
ordem estabelecida). Interessantemente, o percurso etimo-
lógico dos termos e seu uso presente são invertidos.
“Época” vem do grego epokhē que significa cessar, reter, su-
primir, pausar, parar e tem como alguns de seus usos mais
célebres as expressões suspensão de pagamento, suspensão
da luz solar durante um eclipse e, no contexto filosófico, “sus-
pensão do juízo” (cf. LIDDELL, 1940). A partir da Idade Mé-
dia é que o termo latino epocha ganha o significado atual de
período histórico, momento que se estende a partir de um
acontecimento inaugural ou original. Ou seja, da época como
interrupção fundadora à época como conjunto temporal de
tudo o que vem depois da fundação. Já o termo “revolução”
tem o percurso etimológico oposto, vem do verbo latino re-
volvere que significa voltar novamente, retornar, e teve seu
uso associado principalmente ao estudo dos movimentos
dos astros, àquilo que está dentro de uma trajetória. Seu uso
no contexto político com o significado quase oposto, de rom-
pimento, insurgência, interrupção do status quo, se dá a par-
tir do século XV e se estende até a contemporaneidade. Am-
bos os termos, em seu desenvolvimento histórico invertido,
apontam para os dois momentos de um período histórico:
início com interrupção de uma repetição — epokhē de uma
revolutio —, seguido da repetição desta interrupção — época
depois de uma revolução — até a próxima revolução/epokhē.
Esta concepção dupla do tempo histórico, que também pode
ser identificada na exposição de Benjamin sobre a duplici-
dade da violência que funda e mantém, permite pensar de
forma semelhante a interrupção: não apenas como aconte-
cimento original e exterior que rompe com o passado e inau-
gura no presente um futuro1, mas simultaneamente como seu
1  Jacques Derrida descreve esta estranha temporalidade presen-
te-futura da fundação da seguinte maneira: “Nessas situações
ditas fundadoras de direito ou de Estado, a categoria gramatical

A repetição da violência e sua interrupção divina | Tomaz A. Izabel 57


oposto, uma continuidade a partir da proliferação constante
de simulacros daquela interrupção original, cada presente
como repetição do passado que o instaurou. Para usar uma
analogia psicológica: se o traumatizado está condenado a
partir de um trauma passado a repeti-lo inconscientemente
em suas mais variadas versões em sua vida futura, assim tam-
bém a época jurídico-histórica instaurada por uma violência
também a reproduz continuamente em sua manutenção co-
tidiana, ou seja, seria possível compreender então a revolu-
ção burguesa como interrupção jurídico-histórica original e
a polícia como seu simulacro.
Mas se é assim, se cada interrupção disruptiva inaugura uma
época a ser mantida a partir de repetições em simulacro da-
quela interrupção inicial, então não haveria diferença entre
interrupção e repetição, senão uma diferença meramente
cronológica entre quem veio antes e quem veio depois. Ou
seja, se repetição e interrupção são a mesma coisa, então isso
significa que a ideia de interrupção não é possível, a menos
que a interrupção não inaugure e mantenha, como na descri-
ção até então da violência, mas apenas interrompa. Para fugir
justamente deste ciclo de interrupção-repetição da violência,
Benjamin propõe a ideia de “violência divina”, uma violência
que não é meio para o fim que é sua auto-instauração, mas
que é fim em si mesma: pura interrupção do movimento his-
tórico. Em oposição à violência mítica, repetitiva, escondida
sob a violência legal e estatal, portanto, uma forma “pura”
de violência chamada teologicamente por Benjamin de vio-
lência divina, violência que interrompe definitivamente sem

do futuro anterior assemelha-se ainda demasiadamente a uma


modificação do presente, para descrever a violência em curso. Ela
consiste justamente em simular a presença ou a simples modali-
zação da presença. Aqueles que dizem “nossos tempo”, pensando
então “nosso presente” à luz de uma presença futura anterior, não
sabem muito bem, por definição, o que dizem. É justamente nesse
não saber que consiste a eventualidade do evento, aquilo que se
chama ingenuamente de sua presença” (2010, p. 83).

58
reinstaurar, “uma violência pura, imediata, que possa estan-
car a marcha da violência mítica” (2011, p. 150), violência que
ao invés de fundar o direito, “simultaneamente, culpa e ex-
piação” (IDEM) (“verschuldend und sühnend zugleich”), ani-
quila o direito expiando a culpa (“entsühnend”).
Nesta passagem densa, em que Benjamin brinca com os dois
modos de violência jogando com duplos sentidos e usos de
palavras (rechtsetzend / rechtsvernichtend, setzt jene Grenzen
/ vernichtet grenzenlos, verschuldend und sühnend /entsühn-
den), passa-se um pouco rápido por este último aspecto: a
violência mítica como instauradora da lei da qual depende a
dialética culpa-perdão, por sua vez também aniquilada pela
violência divina. Em comentário ao ensaio, Judith Butler afir-
ma: “A violência divina não apenas libera de formas de pres-
tação de contas coercitivas, uma forma violenta ou forçada de
obrigação, mas esta liberação é ao mesmo tempo uma expia-
ção de culpa e uma oposição à violência coercitiva”2 (2012, p.
73). Se só há culpa a partir de uma lei instaurada, então sua
interrupção não é o perdão (Entschulding), caducidade da
dívida num sistema de valor que se mantém, mas expiação
(Entsühnung), dissolução do próprio código que determina o
que é ou não culpa, dívida, pecado. A interpretação instigante
que Alain Badiou propõe do Apóstolo Paulo, ainda que em
contexto teológico e histórico bastante diverso do de Benja-
min, parece caminhar na mesma direção na relação com a lei
e a tentativa de interrupção de sua vigência. Não se trata aqui
de violência, nem mesmo divina, como para Benjamin, mas
da universalidade da graça a partir do “acontecimento-Jesus”.
Badiou analisa a seguinte passagem da Epístola de Paulo aos
Romanos (Rm 7:7-20):
“Mas eu somente conheci o pecado por meio da Lei; pois
eu jamais teria conhecido o desejo, se a Lei não tivesse dito:
2  No original: “Divine violence not only releases one from forms
of coerced accountability, a forced or violent form of obligation,
but this release is at once an expiation of guilt and an opposition to
coercive violence”.

A repetição da violência e sua interrupção divina | Tomaz A. Izabel 59


“Não cobiçarás!” (Êxodo, 20. 17). Foi o pecado que, tendo
aproveitado a ocasião, produziu em mim, por meio do man-
damento, todos os tipos de desejo; pois, sem a Lei, o pecado
morre. Outrora, eu era sem Lei e eu vivia, mas quando veio o
mandamento, o pecado reviveu e eu mor­ri — de modo que se
confirmou que o mandamento que deveria me dar a vida, me
levou à morte” (apud BADIOU, 2009, p. 94).
A lei, segundo a psicologia paulina avant la lettre, é quem
produz o desejo de rompê-la, assim como para Benjamin o
direito é “simultaneamente culpa e expiação”, com especial
atenção para o caráter paradoxal do simultaneamente. Daí
para Paulo ser impossível atingir a vida justificada ou a sal-
vação, ou seja, superar o círculo mortal e repetitivo da cul-
pa-desculpa instaurado pela lei, por dentro da lei, buscando
agir sempre apropriadamente segundo o código, sendo re-
compensado por boas ações e punido por ações más. Contra
a necessidade da lei, Paulo, na leitura de Badiou, oferece a
gratuidade da graça:
“A polêmica contra o “o que é devido”, contra a lógica do direi­
to e do dever é o cerne da não aceitação paulina das obras e
da lei: “Aquele que faz um a obra recebe seu salário não com
o um a graça, mas como uma coisa devida” (Rm. 4. 4). Mas,
para Paulo, nada é devido. A salvação do sujeito não poderia
ter a forma de uma re­compensa ou de um salário. A subjeti-
vidade da fé não é salarial (o que permite, em última análise,
que a declaremos comunista). Ela depende de um dom con-
cedido, χάρισμα [khárisma] (IDEM, p. 91).
Este carisma para Paulo é dado exemplarmente pelo acon-
tecimento-“Cristo nos remiu da maldição da lei” (Gl. 3. 13).
Se cada nova violência fundadora estabelece novos limites,
novas leis, novas fronteiras, então a lei é sobretudo negativa,
delimita até que ponto sujeitos podem agir e ser. As violên-
cias instauradoras que se debatem tentam, sobretudo, puxar
a sardinha para o seu lado do muro, buscando estabelecer li-
mites mais amplos para os seus e mais estreitos para seus ad-

60
versários. A saída paulina da graça pula por cima da delimita-
ção e da proibição e oferece um positivo ao sempre negativo
da lei: a amor que é dado por caridade, que dá de graça. Ao
realizar o ato diplomático de não abolir os Dez Mandamentos
do Velho Testamento, mas conservá-los/superá-los no man-
damento cristão — “‘Tu não cometerás adultério; tu não ma-
tarás; tu não roubarás; não cobiçarás (...)’ resumem-se todos
a estas palavras: ‘Tu amarás teu próximo como a ti mesmo’.
O amor não pratica o mal contra o próximo; o amor é, por­
tanto, a execução da Lei” (Rm.13.8 e ss.; apud BADIOU, 2009,
p. 104) -, Paulo não troca a vigência de uma lei pela outra,
num processo como o de reinstauração, mas interrompe a
disputa constante pela gestão das fronteiras rasgando-as sob
o princípio universal da gratuidade, da caridade. Trata-se de
um lei aberta e universal, nas palavras de Badiou, “uma máxi-
ma única, afirmativa, não objetal. Uma máxima que não seja
suscitação do infinito do desejo pela transgressão do proibi-
do (...), [mas] imperativo único [que] não envol­ve nenhuma
proibição, é pura afirmação” (IDEM 104). A nova lei de Paulo
é, portanto, uma anti-lei, uma interrupção do sistema legal e
jurídico em prol de uma abertura como a que Benjamin cha-
ma de “nova era histórica”.
Mais materialista do que Badiou neste sentido, apesar de re-
correr também à teologia, Benjamin busca no exemplo his-
tórico da greve, no contexto da luta de classes, uma oportu-
nidade de diferenciar entre as duas violências: a mítica (que
contém simultaneamente o momento instaurador e o mo-
mento mantenedor) e a divina. Do primeiro tipo é a “greve
geral política”, violência reformista que busca negociar di-
reitos com o Estado, ou seja, que quer instaurar e ao mesmo
tempo manter o direito estatal, cujo poder passa de agitado-
res à burocratas, “passa de privilegiados para privilegiados”
(2011, p. 143), como diz Benjamin citando Georges Sorel. Do
segundo tipo é a “greve geral proletária”, que “se propõe,
como única tarefa, aniquilar o poder do Estado” sem desejar
reinstaurá-lo porque é anarquista. Ela não disputa o direito e

A repetição da violência e sua interrupção divina | Tomaz A. Izabel 61


seu poder estabelecido com o Estado, mas busca justamente
sua aniquilação:
“É na ruptura [Durchbrechung] desse círculo atado magica-
mente nas formas míticas do direito, na destituição do di-
reito e de todas as violências das quais ele depende, e que
dependem dele, em última instância, então, na destituição
da violência do Estado, que se funda uma nova era histórica”
(IDEM, p. 155).
Por um lado, portanto, uma interrupção mítica, reinstaura-
dora, aquela da polícia, do golpe parlamentar, do reformismo
político da greve geral política, das formas de violência que
vencem temporariamente uma violência mantenedora atra-
vés de uma violência instauradora que se manterá logo em
seguida, ou seja, que não combatem a forma do poder jurí-
dico-estatal, mas disputam direitos, disputam o direito de ter
direito, disputam por fim o Direto, uma forma de interrup-
ção que de uma perspectiva histórica ampla (a da pré-Histó-
ria como diria Marx, aquela que considera nulo tudo o que
aconteceu antes, porque nada ainda aconteceu, como diria
Kafka) é eterno retorno do mesmo, repetição sem diferença
que modifica os pesos, mas mantém os termos injustos da re-
lação. A segunda, associada por Benjamin naquele momento
histórico à greve geral proletária, impede o movimento re-
petitivo de reinstauração violenta do poder jurídico-estatal
através da aniquilação de suas instituições abrindo espaço
então para algo de diferente, novos termos em uma nova re-
lação histórica. Interrupção com diferença, portanto, contra
o eterno retorno do mesmo.
Um dos comentários mais célebres do ensaio de Benjamin,
fonte de contribuições importantes e também de alguns mal-
-entendidos, vem de Jacque Derrida em uma comunicação
chamada “Prenome de Benjamin” e posteriormente agrupa-
da no volume Força de lei. A leitura profunda de Derrida re-
vela a presença subterrânea mas organizadora da filosofia da
linguagem de Benjamin em sua análise histórico-política da

62
violência. O texto de Benjamin trata de modos de organização
política, da luta entre grupos pela instauração e manutenção
de regime, mas parte de uma concepção linguística para tal:
a exigência da libertação da linguagem de seu uso “burguês”,
ou seja, como mero meio de comunicação (tal como desen-
volvida no ensaio “Sobre a linguagem em geral e sobre a lin-
guagem do homem”), e não como fim em si mesmo como em
seu passado adamítico, é análoga à ideia de uma violência
que não seja apenas compreendida e julgada como meio di-
recionado, legitimamente ou não, a um fim, mas como vio-
lência como fim em si mesma, violência final que interrompe
justamente seu ciclo de instauração-manutenção. Derrida
mostra como a violência instaura não apenas a lei, mas o có-
digo da lei, ou seja, as possibilidades de sua interpretação. A
violência se instaura e mantém também através de regimes
de sentido3:
“A ordem da inteligibilidade depende, por sua vez, da ordem
instaurada que ela serve para interpretar. Essa legibilidade
será, pois, tão pouco neutra quanto não violenta. Uma revo-
lução “bem-sucedida”, a fundação de um Estado “bem-suce-
dida” (...) produzirá a posteriori aquilo que ela estava desti-
nada de antemão a produzir, isto é, modelos interpretativos
próprios para serem lidos retroativamente, para dar sentido,
necessidade e sobretudo legitimidade à violência que produ-
ziu, entre outros, o modelo interpretativo em questão, isto é,
o discurso de sua autolegitimação” (2010, p. 85-86).
Esta grande contribuição, esta religação entre o linguístico e

3  Márcio Seligmann-Silva também comenta a presença da filoso-


fia da linguagem de Benjamin a partir da leitura do comentário
de Derrida: “Como já se disse, todo ato de linguagem é em certa
medida um “golpe de estado” com relação às regras da linguagem.
Do mesmo modo o direito só existe dentro deste espaço (negado
e temível) entre a lei e sua realização. Ele sempre depende, em
última instância, do poder decisório dos que dominam o aparelho
jurídico. Ele é sempre, portanto, poder instituinte e mantenedor”
(2007, p. 220).

A repetição da violência e sua interrupção divina | Tomaz A. Izabel 63


o político, presente mas escondido no ensaio de Benjamin,
deixa, no entanto, a desejar quando se tenta fazer o movi-
mento oposto, ou seja, retornar ao político, a partir da luta de
classes em torno da interpretação quando não instauração
ou aniquilação da lei. As partes mais aproveitáveis do texto
de Benjamin, segundo a leitura de Derrida, parecem ser, ao
mesmo tempo, as mais inofensivas ou, para dizer em outros
termos, as mais auto-referenciais. As ideias, perigosas ou co-
rajosas, dependendo de como se leem, de Benjamin parecem
ser de alguma forma sublimadas em jogos linguísticos de in-
terpretação de texto que se, sem dúvida, participam da luta
de classes, como bem mostra Derrida, certamente também
não são sua totalidade. Uma explicação para esta ênfase le-
gítima poderia ser aquela simples de que o filósofo Derrida
está mais interessado em pensar sua própria teoria da des-
construção a partir ou em contato com o texto de Benjamin
(como ele o faz abertamente em diversas passagens) do que
em lê-lo a partir de seus próprios pressupostos4. A palavra
Walter tem tanta importância ou mais neste ensaio do que o
posicionamento de Benjamin em relação às diferentes con-
cepções de revolução que se construíam e se debatiam na
Europa de entreguerras.
Em relação à leitura que aqui se propõe, da violência divina
como interrupção efetiva, em oposição à eterna repetição da
violência mítica, o comentário de Derrida também não ajuda
muito, já que ele dedica longos períodos do seu texto criti-
cando a distinção entre violência fundadora e mantenedora
como se esta fosse a distinção principal do ensaio, quando
na verdade, ainda que explicitamente assim exposto, as duas
são apenas dois momentos de uma mesma e única violência,
aquela mítica, a qual Benjamin antepõe a divina. Esta é a dis-
tinção importante e seminal do ensaio, não aquela primeira
que apenas separa para mostrar as diversas formas de agir da
violência em sua relação com a lei.

4 

64
Derrida também erra ao estabelecer uma ligação direta entre
coisas que são opostas durante todo o pensamento de Ben-
jamin: a proposta revolucionária de cunho marxista e a “so-
lução final” do fascismo. Como se uma crítica do parlamen-
tarismo e a proposta de uma revolução que não fosse mera
reinstauração de uma lei — ou seja, que não fosse reformista
— fosse responsável pelo genocídio e destruição causados
pela ascensão do fascismo. Ou seja, como se a crítica da de-
mocracia levasse como única alternativa ao totalitarismo.
“Uma crítica da “degenerescência” (Entartung) como crítica
de um parlamentarismo impotente no combate à violência
policial, que a ele se substitui, é uma crítica da violência fun-
dada numa “filosofia da história”: colocação em perspectiva
arqueo-teleológica, ou arqueo-escatológica que decifra a his-
tória do direito como uma decadência (Verfall) desde a ori-
gem. A analogia com os esquemas de Schmitt ou de Heideg-
ger não precisa ser sublinhada” (2010, p. 109).
Derrida tenta posicionar Benjamin ao lado de pensadores
como Carl Schmitt e Martin Heidegger menos através de uma
análise conceitual precisa — o que poderia render uma in-
teressante reflexão sobre as afinidades e diferenças do pen-
samento revolucionário de direita e de esquerda no período
de entre guerras — do que através da associação rápida em
torno de ideias gerais e referências a trocas de cartas, etc.
Georges Sorel e Marx, por outro lado, que aparecem citados
diretamente e que são pano de fundo com o qual o texto de
Benjamin claramente dialoga, são citados de passagem por
Derrida menos para localizar ideologicamente a reflexão de
Benjamin do que para dar um colorido vermelho a algo que,
no fundo, Derrida propõe surpreendentemente como “filo-
sofias da história” semelhantes: a de Schmitt e a de Sorel.
Uma consulta rápida à Teologia Política de Schmitt mostra
o quanto Benjamin se apropriou das ideias do autor (isso já
desde o livro sobre o Drama Barroco), na mesma medida em
que alterou sua orientação. Dentro do gesto típico do que se

A repetição da violência e sua interrupção divina | Tomaz A. Izabel 65


chamaria depois de “teoria crítica”, Benjamin se apropriou da
filosofia do direito mais avançada de sua época, mas colocan-
do-lhe um gume antiburguês. O soberano que em Schmitt
decide sobre o estado de exceção, em Benjamin é aquele da
hesitação hamletiana. E o estado de exceção que em Schmitt
“é diferente da anarquia”, em Benjamin se torna greve geral
anarquista. Há, sem dúvida uma relação íntima (que Agam-
ben esmiuçou em Estado de exceção) entre o modo como
Direito e Estado aparecem descritos por Benjamin e Carl
Schmitt. É na exceção, no entanto, ou seja, na interrupção do
contato entre estas duas esferas que se diferenciam os proje-
tos. Para Schmitt, no estado de exceção o Estado se mantém
em detrimento do Direito, uma nova ordem, ainda que pro-
visória, é instaurada por uma violência pela manutenção do
Estado:
Como o Estado de exceção ainda é algo diferente da anarquia e
do caos, no sentido jurídico a ordem continua subsistindo, mes-
mo sem ser uma ordem jurídica. A existência do Estado mantém,
nesse caso, uma indubitável superioridade sobre a validade da
norma jurídica. A decisão liberta-se de qualquer ligação norma-
tiva e toma-se, num certo sentido, absoluta. No caso da exceção
o Estado suspende o direito em função de um, por assim dizer,
direito à autopreservação. Os dois elementos do conceito “or-
dem jurídica” chocam-se entre si e provam sua independência
conceitual (1996, p. 92).
O movimento que Benjamin descreve através da dialética da
violência mítica é justamente a eterna suspensão do Direi-
to em prol da autopreservação, seja do Estado, seja de outro
modelo de organização social, é justamente o estado de ex-
ceção schmittiano. A decisão absoluta do Estado, ou seja, o
pleno direito de uso de violência, vai no sentido oposto ao
movimento da violência divina que, também através de uma
ação absoluta, pretende abolir Estado e Direito. Para distin-
guir claramente, portanto: suspensão temporária do direito
para garantir o Estado em Schmitt; suspensão permanente
do direito para abolir o Estado em Benjamin.

66
O argumento de Benjamin vai mais no sentido de uma se-
paração, uma denúncia da violência mítica escondida so-
bre a democracia liberal, uma denúncia de como as formas
parlamentares da democracia existem através da violência e
como eventualmente podem recair nela. Apenas uma revo-
lução que rompesse com este ciclo, uma revolução que não
procura o sangue, mas que vai além dele, porque reconhe-
ce que a vida humana não é uma vida animal e mortal, mas
Imortal (para referir novamente a um conceito de Badiou),
uma revolução que vai além da vida resumida ao sangue — a
mera vida (das bloße Leben), como bem notou e desenvolveu
Agamben — rumo à vida justa. Esta revolução, por fim, que
visa interromper o ciclo de reinstauração da lei não é restri-
tiva é, assim como a superação paulina, universal, se dirige a
todos e não a uma certa nação ou raça, em sentido, portanto,
oposto ao que se propunham os revolucionários de direita na
década de trinta.
Para terminar, a insinuação de Derrida de que o texto de
Benjamin seja antepassado ideológico daqueles que pregam
a “solução final” é não apenas inapropriada como em certo
sentido desrespeitosa, pois se refere a alguém que dedicou
seu pensamento ao combate contra o fascismo e que preferiu
sair livremente da vida (Freitod como Brecht chamou o sui-
cídio do refugiado Walter Benjamin) a viver sob controle do
nazismo. Isto tudo é bem conhecido e não precisa de desen-
volvimento. Mas a provocação, ainda que sem fundamento
no próprio ensaio de Benjamin, merece contemplação. O que
diferenciaria a violência divina, interrupção efetiva, da solu-
ção final? Derrida confessa no fim do seu ensaio que para ele
o ensaio de Benjamin tem algo de terrível e insuportável, algo
que ele deixaria em aberto
[...] principalmente para os sobreviventes ou as vítimas da “solu-
ção final”, a suas vítimas passadas, presentes ou potenciais (...),
de pensar o holocausto como uma manifestação interpretável da
violência divina: essa violência divina seria, ao mesmo tempo,
aniquiladora, expiatória e não-sangrenta, diz Benjamin. (2010, p.

A repetição da violência e sua interrupção divina | Tomaz A. Izabel 67


143).
Ao falar sobre a morte não-sangrenta que a violência divina
privilegiaria, Benjamin explicita o caráter de “mera vida” da
morte pelo sangue da violência mítica, ou seja, redução do
humano à sua mera corporeidade, à forma mais banal de
materialidade e natureza. A violência divina não se recusa à
morte, não compartilha da ideia de sacralidade da vida, por-
que isso seria sacralizar a “mera vida”, mas trata da vida ver-
dadeira, vida justificada. Em “A tarefa do tradutor” (Die Auf-
gabe des Übersetzers), Benjamin inclusive destina ao filósofo
a tarefa de desnaturalizar a natureza, ou seja, de encontrar na
mera vida a vida “mais abrangente”:
É somente quando se reconhece vida a tudo aquilo que possuir
história e que não constitui apenas um cenário para ela, que o
conceito de vida encontra sua legitimação. Pois é a partir da his-
tória (e não da natureza — muito menos de uma natureza tão
imprecisa quanto a sensação ou alma) que pode ser determina-
do, em última instância, o domínio da vida. Daí deriva, para o fi-
lósofo, a tarefa: compreender toda a vida natural a partir da vida
mais abrangente que é a história. (2011, p. 105).
É difícil de compreender, portanto, a associação macabra de
Derrida entre as câmaras de gás nazistas que permitiriam
“um extermínio que seria expiatório porque não-sangrento”
com a expiação da lei a partir do sacrifício não-sangrento da
violência divina, como proposto por Benjamin. As câmaras
de gás são justamente a redução do humano à mera vida.
Derrida toma o significante “sangue” pelo significado mais
amplo que Benjamin propôs: o fim da redução do humano
ao seu ser de sangue, ao ser assassinável por uma violência
como a do nazismo, que se reproduz, camuflada ou não, sob
os mais diversos regimes e ao qual se antepõe a ideia de uma
revolução aniquiladora, não-sangrenta, ou seja, em prol de
uma outra ideia de humanidade, em prol da resposta à per-
gunta imortal: “É isto um homem”?
Ao saber do suicídio de Benjamin em Portbou, em fuga dos

68
fascistas, Brecht escreve o poema intitulado “Zum Freitod des
Flüchtlings W. B.” (1993, p. 48) que começa com os seguintes
versos: “Soube que você levantou a mão contra si mesmo /
antecipando assim o açougueiro” (“Ich höre, dass du die Hand
gegen dich erhoben hast / Dem Schlächter zuvorkommend”) e
termina com estes: “ao destruir a carne torturável” (“Als du
den quälbaren Leib zerstörtest”). Há também uma distinção
no poema de Brecht entre dois tipos de violência: aquela do
refugiado perseguido, mas que ainda assim caminha para
a morte livremente, “frei”, que destrói (zerstört), de forma
não-sanguinária, seu corpo (Leib, não Fleisch) para que ele
não se torne mera vida nas mãos violentas e sanguinárias do
açougueiro (Schlächter) que se aproxima em busca da carne
torturável (quälbaren). Esta diferença, principalmente no
contexto da crítica da violência de Benjamin, não é desim-
portante.

Referências

BADIOU, Alain. São Paulo: a fundação do universalismo. Tra-


dução: Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2009.
BRECHT, Bertolt. “Zum Freitod des Flüchtlings W.B.”, in:
Werke. Bd. 15: Gedichte 5. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
1993.
BUTLER, Judith. Parting Ways. Jewishness and the Critique of
Zionism. Nova Iorque: Columbia University Press, 2012.
BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. Tradu-
ção: Susana Kampff Lages e Ernani Chaves. Rio de Janeiro:
Editora 34, 2011.
DERRIDA, Jacques. Força de Lei. Tradução: Leyla Perrone-
-Moisés. São Paulo: Editora WMF; Martins Fontes, 2010.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter

A repetição da violência e sua interrupção divina | Tomaz A. Izabel 69


Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004.
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Roberto. “ἐποχή”, in: A Gre-
ek-English Lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1940. Disponível
online em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?do-
c=Perseus:text:1999.04.0057:entry=e)poxh/, 05/05/2017.
SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Tradu-
ção: Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Leituras de Walter Benjamin.
São Paulo: Annablume, 2007.
Walter Benjamin e a “so-
brevivência” das imagens
articulações com Aby Warburg

Cristina Susigan
csusigan@gmail.com | Pesquisadora Independente
(...) Quando uma imagem sobrevive, a
história se desmonta, em todos os senti-
dos da palavra”.
George Didi-Huberman

A relação que podemos estabelecer entre Aby Warburg (1866-


1929) e Walter Benjamin (1892-1940) tem como pressuposto o
momento histórico em que ambos viveram. Ambos são ho-
mens do século XIX, contemporâneos, que pensam a moder-
nidade e os horrores da Primeira Guerra Mundial, e refletem
sobre o impacto destas mudanças, que ocorreram tanto na
esfera do social, como no pessoal. Fazem parte de uma ge-
ração de pensadores alemães que estavam contaminados e
eram impregnados do mesmo espírito, que tem relação com
aquilo que ficou conhecido como “pessimismo cultural”. As
contaminações entre Warburg e Benjamin são muitas, tor-
nou-se um topos obrigatório esta comparação, porque as re-
lações — algumas mais identificáveis -, sem nunca terem se
conhecido ou partilhado de suas teorias. Faz-se importante,
entretanto, contextualizar o percurso de ambos para compre-
endermos seus pensamentos e pontos de intersecção.

Aby Warburg: vida e obra

Aby Warburg nasceu um Hamburgo, no seio de uma impor-


tante família de banqueiros judeus e se auto-proclamava: ju-
deu de sangue, hamburguês de coração e florentino de alma.
Seus biógrafos relatam que aos treze anos cedeu seus direitos
como filho primogênito a seu irmão Max, em troca este lhe
compraria, durante toda a sua vida, todos os livros que ele
precisasse. Este feito marcou o início de sua famosa Bibliote-
ca, da qual foi fundador e idealizador, conhecida carinhosa-
mente como KWV, ou em português, Biblioteca Warburg para
a Ciência da Cultura. Fundada em Hamburgo, mas que devi-
do às perseguições raciais do entre guerras (1933), teve que
ser transladada para Inglaterra, convertendo-se no Instituto
Warburg que hoje faz parte da Universidade de Londres e é
um dos centros de estudos humanísticos e interdisciplinares
mais importantes do mundo; esta tomada de decisão preco-
ce, assinalou o seu destino como investigador independente,
que esteve a margem de uma instituição acadêmica, questão
decisiva para compreender a evolução e originalidade de sua
obra.
Foi mentor do que pode-se denominar a “Escola Warburg”,
vinculada às atividades da Biblioteca, era um centro de es-
tudos por onde passaram importantes nomes da história da
arte, como Erwin Panofsky, Fritz Saxl, Ernst Cassirer, Edgar
Wind, Ernst Gombrich, entre outros. A relevância desta “Es-
cola” no contexto da disciplina História da Arte foi, no en-
tanto, em parte responsável pelo desconhecimento que se
instalou, durante muitas décadas, em torno das pesquisas e
verdadeiros objetivos de Aby Warburg (MATTOS, 2007), pois
com o tempo, o nome de Warburg foi sendo identificado com
aquele de seus sucessores, e em especial com os métodos de
iconologia de Panofsky, que, no entanto, eram bastante dife-
rentes dos métodos por ele defendidos.
Aby Warburg fez seus primeiros estudos de História da Arte
na Universidade de Bonn, donde seguiu as lições do filólogo
e historiador das religiões, Hermann Usener, especialista em
estabelecer relações entre as práticas da religiosidade primi-
tiva e as novas disciplinas humanistas, como a antropologia e
a psicologia. Junto com Usener, outro pensador desse mesmo

Walter Benjamin e a “sobrevivência” das imagens | Cristina Susigan 73


período, que influenciaram a direção que as futuras inves-
tigações de Warburg tomaram, foi o historirador Karl Lam-
precht. Deste, utilizou a psicologia dos fenômenos históricos
baseada na teoria da evolução e que o levaram a reparar nos
elementos como o movimento e a gestualidade das escultu-
ras clássicas, aspectos geralmente descartados pela historio-
grafia da arte da antiguidade.
A inquietude por estudar a continuidade de certos elementos
acessórios de uma imagem junto à uma gestualidade expres-
siva do corpo, uma “mímica intensificada” (GUERREIRO)
com origem nas paixões e nas ações sofridas pela humani-
dade e se traduzirá em um dos conceitos fundamentais do
pensamento warburguiano para estudar a vida das imagens:
Pathosformeln ou fórmula de pathos.
Em 1889, Aby Warburg muda-se para Florença, ali começou
uma investigação que o acompanharia por toda a sua vida
em torno da sobrevivência de alguns motivos da antiguida-
de clássica na arte do Renascimento, o que chamaria de Na-
chleben. A partir da observação direta das obras e de um tra-
balho metódico dos arquivos da cidade italiana, elaborando
um ensaio sobre as pinturas mitológicas de Botticelli, que se
converteu no seu trabalho final da licenciatura: Investigações
sobre as Imagens da Antiguidade no Renascimento Italiano,
publicada em Hamburgo em 1893. Deste primeiro trabalho
emerge um dos elementos característicos de toda sua obra:
a confrontação entre texto e imagem subtraindo o valor ex-
pressivo das formas e da estrutura compositiva das obras fi-
gurativas. Como observou Georges Didi-Huberman em seu
livro sobre o autor, Warburg desenvolve uma teoria da his-
tória calcada numa temporalidade não linear, onde as ima-
gens, portadoras de uma memória coletiva, romperiam com
o continuum da história, traçando pontes entre o passado e
o presente.

74
Walter Benjamin: a morte como reconheci-
mento

Walter Benjamin nasceu um Berlim, filho de um rico anti-


quário judeu, tinha o gosto pelo colecionismo, que irá de cer-
to modo refletir em seu pensamento e no desenvolvimento
do que podemos denominar um “método” (grifo da autora):
textos construídos à base de citações sobre citações. Apenas
após a sua morte — quando se suicida em 26 de setembro de
1940, em Port Bou -, é que seus escritos serão estudados e re-
conhecido pelos seus pares. Será o filósofo Theodor Adorno,
a partir dos anos 60.
Em 1915, conhece Gerschom Gerhard Scholem, de quem se
torna muito próximo, partilhando tanto o gosto pela arte
como pela religião judaica. Scholem e Benjamin trocaram
ampla correspondência sobre diversos assuntos. Graduado
em filosofia pela Universidade de Friburgo, doutorou-se com
a tese O conceito de crítica de arte no romantismo alemão,
em 1919, na Universidade de Berna, Suíça, obra publicada em
1920. Em meus as turbulências políticas, vê sua tese de livre-
-docência ser recusada formalmente pelo Departamento de
Estética da Universidade de Frankfurt — ela irá ser publicada
em 1928 -, porque não conseguiu um orientador. Frustrado
diante de vir a seguir uma carreira acadêmica, lança-se na
carreira de tradutor, jornalista e radialista.
Numa tentativa de aproximar-se do círculo de Warburg, com
que partilha afinidades de pesanmento — como também
numa tentativa de fuga da Alemanha que caminha para um
direcionamento político de perseguição as minorias -, Ben-
jamin através de Hofmannsthal, numa carta que lhe escre-
ve em 1926, pede-lhe que tome atenção para seu trabalho
Trauerspiel barroco, no que tange a questão da melancolia
— estudos que Fritz Saxl e Erwin Panofsky haviam efetuado
analisando a obra de Dürer sobre a “Melancolia” (1923). Mais

Walter Benjamin e a “sobrevivência” das imagens | Cristina Susigan 75


tarde, numa nova tentativa, e com a perseguição aos judeus
eminente, será através de seu amigo Scholem que tenta inter-
ceder por Benjamin, numa carta endereçada a Saxl, que mais
uma vez resulta em um falhanço.
Será, entretanto, através de Benjamin que o ressurgimento de
Warburg se faz. Ironicamente, a história subverteu a ordem
dos acontecimentos. Foi através dos estudos de Waolfgang
Kemo em 1975 — e não através da biografia de Gombrich,
que chegou a ser o diretor do Instituto Warburg em Londres,
após deixar a Alemanha -, que estabelece as afinidades com
Benjamin. Recentemente, Georges Didi-Huberman tem sido
o autor que analisa os pontos de confluência entre os dois au-
tores.

Benjamin e Warburg: uma relação tardia

No inutito de nos aproximarmos da questão das imagens, e


fazendo um paralelo com a história da arte, para Benjamin,
as imagens não são fetiches atemporais ligados à estética
clássica, provindas de uma história positivista das artes, e
quando Benjamin afirma: “(...) não há uma história da arte”
(Huberman, 2015, p. 103), ele não está renegando a disciplina
ou declarando sua inexistência, mas que ela comece a ser es-
tudada através de uma “história das próprias obras (ibidem),
e através desta metodologia, acabar com as oposições entre
conteúdo e forma, ou iconologia, na tradição de Warburg e
o formalismo na tradição de Wölfflin. Da mesma forma, para
Warburg, todas as obras de arte estão aptas a criar o seu pró-
prio tempo e assim projetar sua dimensão imagética, onde
uma imagem do passado pode ser considerada contemporâ-
nea, ou ao menos, ser dotada de um olhar contemporâneo,

76
sendo trazida através da “sobrevivência” para a nossa con-
temporaneidade.
Um conceito importante que devemos colocar em evidência
para compreendermos o pensamento benjaminiano é o de
rememoração. Rememoração significa redenção, ou seja, re-
dimir é a recordação do passado, mas não com os olhos do
presente, é trazer o passado para o presente de modo que
ele continue a atuar no presente mesmo enquanto passado.
Onde é possível estabelecer uma relação que não é de conti-
nuidade, mas uma relação imaginal, de imagens, de tal modo
que essa relação não se faça através de um critério tendo
como base as causas e os efeitos. Quando Benjamin cita Jules
Michelet: “ (..) cada época sonha com a seguinte” (Didi-Hu-
berman, 2015, p. 109), ele está estabelecendo uma relação de
continuidade entre épocas históricas que podem ser distan-
tes uma da outra, podendo situar-se em extremos. Para ele a
história não é linear, pois admite saltos no tempo, coloca em
constelação épocas históricas diferentes e que não são contí-
guas uma com as outras, não é algo homogêneo e contínuo.
Benjamin introduz o princípio da descontinuidade; este mo-
mento, que podemos denominar de momento de paragem,
é aquele em que a história cita o seu passado, e utilizando
um exemplo, Benjamin diz que a Revolução Francesa cita em
algum momento a Antiga Roma.
Através destes momentos de suspensão, de interrupção da
história é que Benjamin vai introduzir o conceito de imagem
dialética, em suas palavras: “(...) a imagem dialética é um raio
esférico que percorre todo o horizonte do passado” (BENJA-
MIN, 2012, p. 186), introduzindo uma espécie de simultanei-
dade entre todos os momentos, e continua:
(...) articular historicamente o passado não significa conhecê-lo
‘tal como foi efetivamente’, mas, sobretudo, apropriar-se de uma
reminiscência tal como brilha, no instante de um perigo. (...)
Ela se torna um fato histórico postumamente, graças a aconte-
cimentos que podem estar separados dela por milênios. (BEN-
JAMIN, 2012, p. 196)

Walter Benjamin e a “sobrevivência” das imagens | Cristina Susigan 77


Deste ponto de vista, esta concepção de imagem é de uma
imagem de natureza mais legível que visível, ou seja, as ima-
gens só se tornam legíveis numa época posterior, pois apon-
tam para um determinado tempo da história. Esta concep-
ção elevada a uma especie de metodologia historiográfica é
o que vamos encontrar, por exemplo, no Livro das Passagens,
onde o princípio é que o século XX — a modernidade só é
legível -, porque ela pode ser sonhada pelo século XIX. Por-
que as imagens próprias do século XIX contém esse índice
histórico — isto quer dizer, que as imagens são determinadas
historicamente -, que quando é remetido para uma epoca
posterior, estas imagens tornam-se reconhecíveis e legíveis.
A partir desta metodologia, Benjamin vai poder fazer uma
história material do século XX, à guisa de “montagem” (grifo
da autora) a partir de pequenos detalhes que surgem como
novidades absolutas na grande metrópole do século XIX, por
exemplo, quando Benjamin vai analisar a Paris antiga, coloca
sem saber, a concepção warburguiana de Nachleben: na fun-
cionária do caixa de uma loja onde sobrevive Danaé, ou nas
entradas do metro, onde sobrevivem as bocas do inferno.
Quando analisamos a questão da imagem dialetica na con-
cepção benjaminiana significa que o que ele entende por
imagem é uma especie de contraçào de momentos históri-
cos, em que o passado, presente e futuro se contraem num
momento único, numa ‘esfera” e deixa de ser impossível para
nós determinarmos apenas o presente em função do passado,
trata-se de colocar em constelação. Segundo o entendimen-
to de Didi-Huberman que vai corroborar este pensamento,
quando afirma: “(...) “os fatos” do passado se tornam coisas
dialéticas, coisas em movimento: aquilo que lá no passado,
vem “nos surpreender” como uma “tarefa de recordação.”
(DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 116).
Segundo Benjamin, não há possibilidade de existir história
sem uma teoria da memória e aqui podemos fazer nossa pri-
meira aproximação a Warburg. O conceito warburguiano em
relação à história, que não se apresenta como teses como em

78
Benjamin, está implícito que a história faz uma quebra no
contínuo temporal, que a história não é contínua, mas que
é feita de descontinuidades, no entanto, não se trata de uma
descontinuidade cíclica a maneira de Nietzche, do eterno
retorno. Eterno retorno que não significa propriamente ao
mesmo ponto. O retorno ao mesmo não significa o retorno
do mesmo. Não será, nem a hipotese cíclica, do eterno re-
torno nietzchiniano, como a hipotese cíclica do tempo ritu-
al do mito, que iram iluminar a concepção de descontinui-
dade histórica de Warburg; não é o tempo cíclico porque a
memória tem a capacidade de ser dotada de uma espécie de
energia (energeia) que faz com que as coisas se repitam de
uma maneira, portanto, esta tensão leva a produção de uma
coisa diferente. A Ninfa não regressa da mesma maneira, ela
é dotada de uma especie de energia que faz com que ela se
transforme em cada uma das suas aparições, por exemplo, a
Ninfa dos afrescos do Palácio Schifanoia de Ferrara, não será
a Ninfa de Botticcelli, que se transfigurará numa Ninfa como
Marylin Monroe, ou numa imagem da contemporaneidade,
o desfilar de Giselle Bunche na passarela. Portanto, não se
trata de retornar a uma Ninfa originária, pois não se trata de
um processo cíclico.
Como Warburg tentou apontar para uma concepção da his-
tória, toda a concepção de imagem pressupõe um tempo his-
tórico, colocando a imagem — como o faria Benjamin -, no
centro nevrálgico da “vida da história” (grifo da autora). A sua
concepção de imagem é dotada de uma energia que permite
a produção do novo e não a mera repetição do que havia an-
tes. Também Benjamin, no seu conceito de imagem dialética
— o momento em que a história universal é rememorada e
surge como um momento único -, o fato dele colocar na mes-
ma constelação tempos históricos diferentes, significa atuar
sobre o passado de maneira a redimi-la.
Para Walter Benjamin a história universal não existe, aquilo
que existe para ele é a possibilidade se contrair ou abreviar
num momento todos os momentos da história e isto corres-

Walter Benjamin e a “sobrevivência” das imagens | Cristina Susigan 79


pondia a ideia de imagem dialética, uma espécie de contra-
ção — o presente cita o passado sempre. Quando Warburg
define a imagem como Mnemosine, como uma certa ideia de
memória —mas não uma memória voluntária, em que o pas-
sado continua a atuar e fica lá como uma espécie de impres-
são, que não se consegue apagar -, este conceito não pode
corresponder a uma ideia de História Universal, aproximan-
do-se assim do conceito delineado por Benjamin.
A imagem warburguiana na sua possibilidade de inscrever
toda a memória, de fazer reviver o passado no presente, aca-
ba por ter a capacidade de instituir uma tensão entre tempos
muito diversos. Uma tensão que não pode se resumir numa
síntese, e como Benjamin, “o momento fulgurante” (jetztzeit)
também não corresponde a uma síntese, não sendo um mo-
vimento dialético, sendo aqui a dialética suspensa. As ten-
sões permaneciam e não se passavam para um momento
posterior em que as tensões estariam resolvidas, portanto as
tensões entre o passado e o presente, tal como as tensões de
toda a memória que Benjamin transporta consigo, estas ten-
sões são perenes, nunca se resolvem, não se aquietam.
Para se estabelecer uma relação entre Warburg e Benjamin
é importante pensar que existem questões metodológicas e
não apenas questões conteudistas do pensamento que con-
duzem o percurso de ambos no mesmo sentido. Um dos
princípios fundamentais desta metodologia é a adoção do
fragmento como princípio conceitual, ambos estão do aldo
do fragmento e não do sistema. Depois, em termos de fetichi-
zação de épocas históricas, ambos tem um gosto pelo barro-
co e sobretudo com a relação entre o barroco com a moderni-
dade, e por fim, a modernidade,, numa tentativa de defini-la
e, dar uma configuração teórica, ambos acabam por ter enve-
redar pelo mesmo objeto de estudo.
O ponto, entretanto, que consideramos mais importante e
que vai os unir — que poderíamos denominar o pathos do
presente -, é uma visão pessimista da história, que no caso

80
de Benjamin fica muito nítido quando se refere a redenção.
No caso de Warburg apesar de pontos confluentes, o proces-
so não se dá da mesma maneira; há a concepção trágica da
cultura, mas que é imanente, inerente à cultura de todos os
tempos; neste aspecto, o presente não seria mais trágico que
o passado, ou seja, no pensamento warburguiano o demoní-
aco está sempre presente, não encontrando redenção, nem
síntese, sendo o próprio motor da história.
Para Warburg, a questão da tragédia da cultura pode ser co-
locada em termos de uma irredutibilidade, daquilo que é da
ordem do sensível e que é ao mesmo tempo da ordem do in-
teligível. O sensível, o pathos, permanece sempre presente e
acaba por ser sempre irredutível ou que faz parte do logos,
da razão. Por outro lado, o conceito de polaridade — con-
ceito muito importante para Warburg; por polaridade, en-
tende duas coisas: em primeiro lugar, significa, que existem
dois polos em oposição um ao outro, que não se iluminam
e não encontram uma síntese, e em segundo lugar, significa
que, determinados tipos de imagens, dotadas de uma ener-
gia própria da memória — a Nachleben -, entram em contato
com uma determinada época e que é neste contato que elas
são polarizadas — encontrando seus motivos expressivos e
faz com que determinados tipos de formula de pathos seja
reativada. Através deste contato os significados que tinham
estas imagens podem ser alterados ou mesmo completamen-
te investido. As imagens não permanecem com um significa-
do constante, elas são dotadas de memória, encarnam uma
determinada forma e determinada forma de expressão, que
é indissolúvel do seu conteúdo, sendo que seus significados
pode ser diferentes ou apostos. Podemos citar o exemplo ob-
servado por Warburg no Ritual da Serpente, no Novo México,
onde a serpente pode ser ao mesmo tempo a figura do raio,
que é evocada por este ritual, para trazer chuva e significa
vida, e ao mesmo tempo morte, no seu aspecto mais lógico,
na picada venenosa. Também pode remeter ao símbolo da
medicina, associando a cura.

Walter Benjamin e a “sobrevivência” das imagens | Cristina Susigan 81


A ideia de que uma época histórica não é dotada de autono-
mia, encontra convergência no pensamento warburguiano e
benjaminiano. Em Warburg, as épocas históricas não podem
ser definidas segundo a historiografua tradicional. Primeiro
porque os tempos se cruzam uns com os outros; a questão
da memória faz com que uma determinada época vá reme-
morar épocas passadas e portanto, nenhuma época é em si
autonoma, pois não existe uma continuidade lógica de uma
época que a antecede. Esta falta de autonomia própria de
uma época também vai caracterizar o pensamento de Benja-
min, quando ele diz:
(...) o historicismo limitou-se a estabelecer um nexo causal entre
vários momentos diversos da história. Mas um fato, por ser causa
do outro, não se transforma por isso em fato histórico. Tornou-se
histórico postumamente é enquanto causa, em circunstâncias
que podem estar a milênios de distânia dele. (BENJAMIN, 2012,
p. 23)
Vale ressaltar que este conceito de dialética difere da defini-
ção comumente usada, pois aqui se refere a épocas históricas
completamente diferebtes, separadas por intervalos, além de
colocar na mesma constelação1 épocas históricas indepen-
detemente de uma relação causal. Será a citação que irá legi-
timar o momento histórico:
O acontecimento, que circunda o histórico e do qual fazr parte,
estará sempre na base da sua exposição como um texto escrito
com tinta invisível. A história que ele apresenta ao leitor consti-
tui, por assim dizer, as citações desse texto e são somenta essas
que se apresentam em modo legível a cada um. Escrever histó-
ria significa, portanto, citar história. No conceito das citações é,
contufo, implícito que o objeto histórico venha arrancado do seu
contexto (BENJAMIN, 2007, p. 516).

1  O conceito de constelação é o termo que Benjamin utiliza para


estabelecer a relação entre épocas diferentes. Uma época entra
em constelção com uma época anterior, e entrar em constelação
significa fazer parte do mesmo conjunto, onde elas se iluminam
reciprocamente.

82
E continua:
Não é que o passado lançou a sua luz sobre o presente, ou o pre-
sente a sua luz sobre o pasaado, mas a imagem é aquilo que foi
unido fulminantemente com o agora em sua constelação. Em
outras palavras: a imagem dialética na imobilidade. Porque,
enaunto a relação do presente com o passado é puramente tem-
poral, contínua, a relação entre aquilo que foi e o agora é dialéti-
ca: não é um curso, mas uma imagem descontínua, a saltos. (...)
Apenas as imagens dialéticas são autênticas imagens (isto é, não
são arcaicas); e o lugar nas quais elas se encontram é a lingua-
gem (BENJAMIN, 2007, p. 517)
No caso de Warburg, a maneira que ele se refere — e ainda
que introduza o conceito de arquivos da memória2 -, não é
propriamente de armazém de conteúdos, que posterior-
mente se podem recorrer, de uma maneira ou de outra, em
determinados momentos da história, como se fossem um
“depósito” (grifo da autora), onde vamos recupar o que ali foi
colocado. Para Warburg, o arquivo será construído historica-
mente, só a história através deste processo de temporalização
é que dá realidade a imagem, o pathosformel, daquilo que fi-
cou impresso na memória.
No entanto, mais que solucionar um enigma iconográfico
específico, o que ele quis produzir foi uma ampliação me-
todológica das fronteiras da História da Arte, tanto do ponto
de vista material como espacial. Ao finalizar sua exposição,
sustentava:
(...) com o método que utilizei na interpretação dos afrescos do
Palácio Schifanoia de Ferrara, espero haver mostrado que só é
possível iluminar os grandes processos evolutivos esforçando-
-nos em deixar claro, em detalhes, um ponto escuro concreto,
e por sua vez, isto só é possível com uma análise iconológica
que, rompendo o controle dos “guardiães” que controlam nos-
sas fronteiras metodológicas, contemplar a Antiguidade, a Ida-
de Média e a Idade Moderna como épocas inter-relacionadas,
e interrogue, tanto as obras de arte autónomas como as artes

2  Os arquivos da memória implicam o processo de reativação.

Walter Benjamin e a “sobrevivência” das imagens | Cristina Susigan 83


aplicadas, as considerando como documentos expressivos de
idêntica relevância. Minha preocupação menor é de oferecer
uma solução elegante que pôr em relevo um novo problema que
podemos formular da seguinte maneira: Até que ponto a revolu-
ção estilística na representação da figura humana na arte italia-
na não foi fruto de um processo de confrontação de dimensões
internacionais com as representações sobreviventes do imagi-
nário da cultura pagã dos povos do Mediterrâneo oriental? (DI-
DI-HUBERMAN, 2013, p. 253)
A aproximação de Warburg a esta série de afrescos renascen-
tistas tinha como intuito responder a uma pergunta central:
Que sentido teve a influência da Antiguidade clássica para a
civilização artística do Renascimento? A interpretação dos
significados das obras de arte a partir de uma recomposi-
ção do contexto cultural e da mentalidade da época supõe
o estudo de fontes literárias e uma busca de documentos
heterogéneos encontrados nos arquivos, tratados de estilos
e costumes. Warburg estava convencido que “se podem es-
cutar vozes articuladas inclusive em documentos de pouca
importância”. Ampliar as possibilidades metodológicas, sig-
nificou para ele tomar uma distância do conceito tradicional
de “obra de arte” e do método estilístico formal dominante
da história da arte europeia até finais do século XIX. A histó-
ria da arte tradicional sustenta uma noção linear de tempo
expressa por uma supervalorização das etapas cronológicas
observadas, tanto no contexto individual de criação artísti-
ca, quanto no processo de transmissão de modelos artísticos
dentro de uma cultura, que segundo Didi-Huberman, provo-
ca uma desorientação da história. A imagem, ou as imagens,
se apresentariam então como uma superposição simbólica
de conteúdos latentes e manifestos, sempre em movimen-
to em relação ao presente do sujeito histórico, mas também
portadora dos significados que permanecem na memória co-
letiva.

84
Considerações finais: o Bildertlas e a “Passa-
gens”

Quando estamos diante de uma imagem, sabemos que esta


imagem irá nos sobreviver, somos o elemento de passagem
diante dela, como todas as outras pessoas que anteriormen-
te a contemplaram. Com sua teoria Warburg estabelece um
processo de apropriação que são em certa medida processos
de ressemantização, quando o artista se apropria da imagem,
ao torna-la sobrevivente, mantém a energia — a força -, o tra-
ço figurativo, mas altera o conteúdo, podendo se revelar de
modo evidente, com os sentidos intrincados e alusivos, mas
sempre transformadores.
A imagem enquanto memória, condensada e ativada, permite
fazer com que o tempo histórico transite para outro comple-
tamente diferente. Ao deslocar as imagens, em paíneis Estes
painéis3 eram montagens de imagens, das mais diversas fon-
tes: fotografias, imagens de revistas, de jornais, de quadros da
história da arte, que Warburg denominou Atlas Mnemosine,
ia pregando, formando mosaicos ou sequências de imagens
não fixas, móveis e intercambiáveis segundo o estado de sua
investigação, e relacionadas segundo o princípio “de boa vi-
zinhança”. Este sistema, tinha uma notável semelhança com
O Livro das Passagens de Walter Benjamin, produtiviza o sen-
tido ligado ao encontro casual entre “pequenos momentos
particulares” ou entradas nas quais o acontecimento histó-
rico pode ser descoberto e as sequências que a ligam com o
presente serem compreendidas.
Aby Warburg e Walter Benjamin permanecem um desafio
constante para a história da arte e da imagem. Se o século XX
foi o século da imagem, então Warburg e Benjamin são pes-

3  Estes painéis eram formados por pranchas de tecido negro, de


1.50m por 2.00m, presas por prendedores que facilitavam a movi-
mentação das imagens

Walter Benjamin e a “sobrevivência” das imagens | Cristina Susigan 85


quisadores extraordinários, pois ninguém se igualou a eles na
dedicação intensa e escrupulosa não só às obras de arte, mas
também às imagens do cotidiano.

Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: O Anjo


da História. Tradução: João Barrento. São Paulo: Autêntica
Editora, 2012.
__________. Origem do drma trágico alemão. Traduçao: João
Barrento. São Paulo: Autêntica Editora, 2011.
__________. Passagens. Org. Willi Bolle. Belo Horizonte/São
Paulo: UFMG/Imprensa Oficial do Estado. 2007.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo. A história da
arte e anacronismo das imagens. Tradução Vera Costa Nova e
Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
_________________. A Imagem Sobrevivente. História da arte e
tempos dos fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução: Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
GUERREIRO, António. Aby Warburg e os Arquivos de Memó-
ria. In: Enciclopédia e Hipertexto. Organização Olga Pombo.
Lisboa: Edições Duarte Reis, 2006, s/n.
MATTOS, Claudia Valladão de. Arquivos da Memória: Aby
Warburg, a história e a arte contemporânea. In: II ENCON-
TRO DE HISTÓRIA DA ARTE -IFCH / UNICAMP. 2006. Dis-
ponível em: http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2006/
DE%20MATTOS,%20Claudia%20Valladao%20-%20IIEHA.
pdf Consultado em 04 de Fevereiro de 2018.
A dialética da imagem
Pedro Alegre
pedroalegre@globo.com | Un. Federal do Rio de Janeiro
O que resta de um sonho ao despertar
está destinado ao fragmentário e é as-
sim que a análise o entende. Destinado
a se despedaçar, ele não tem vocação de
síntese simbólica ou de interpretação to-
talizante. Assim como a lembrança do so-
nho não diz respeito a uma performance
intelectual, o esquecimento não é relativo
a uma falta de memória ou de julgamen-
to. Como a dúvida que a afeta a lembran-
ça do sonho, o esquecimento é relativo a
esses distúrbios de pensamento conheci-
dos pelo nome de dejà-vu, de já-contado,
de falso reconhecimento etc. O esqueci-
mento do sonho recolhe assim a matéria
do sono na qual ele se faz e é também a
sensibilidade da sua fala. O esquecimen-
to é, por assim dizer, aquilo a partir do
qual e em direção ao qual se desenha o
umbigo do sonho — do mesmo modo
que é o ponto de fuga da interpretação.
Sigmund Freud

1. A palavra e o nome

Existe, na escrita benjaminiana, a intensa sensação de que


algo, além da palavra, está sendo transmitido — pela estra-

88
nheza, pela força com que toda frase parece aproximar um
mistério do mundo, revelar uma verdade perdida. Pode-se
mesmo atribuir o caráter meio mágico dessa escrita a certa
tradição mística a que Benjamin nunca, mesmo ao tratar de
política ou da banalidade moderna, de fato se afastou. Ao
contrário, quanto mais penetrava seu pensamento no pre-
sente, mais antigo parecia ser o fascínio de sua pena. Diante
de qualquer escrito de Benjamin, somos convocados a ex-
perimentar uma face nunca vista e um modo impensável da
história e da arte. E o lugar onde encontramos esse mistério é
a própria linguagem.
Pode-se mesmo dizer que a filosofia da linguagem não foi a
principal preocupação de Benjamin, no seus principais tex-
tos. Contudo, existe em seu pensamento uma teoria da lin-
guagem que, em textos da juventude, já antecipavam a marca
excêntrica da sua escrita. Sua teoria da linguagem perpassa a
natureza de seu método crítico, oscilando entre a iluminação
profana e a teologia. Encontrando, na verdade, uma síntese
original.
Sob certo ponto de vista, como se encontra na Origem do
drama barroco alemão, existe a correspondência, na escrita
benjaminiana, entre uma teoria da linguagem e uma teoria
das ideias, em franca expansão no método crítico. A ideia
está na linguagem. Mas, o que a linguagem comunica? Em
19161, Benjamin responde que a linguagem comunica, antes
de tudo, a si mesma. E a essência espiritual a que alude, nessa
época, é a essência linguística das coisas. Em outras palavras,
a linguagem comunica a si mesma como meio comunicável.
Se mais tarde, como sabemos, Benjamin terá como desafio
intransponível a questão a transmissibilidade da cultura e
a fraqueza de experiência que marca a modernidade, aqui
podemos dizer que ele encontra na linguagem a transmis-
são de sua própria essência enquanto matéria. A matéria da
1  BENJAMIN, W. “Sobre a linguagem geral e a linguagem huma-
na” In: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora 34/Duas
cidades, 2011.

A dialética da imagem | Pedro Alegre 89


linguagem é o que se transmite como um meio puro. O que
se comunica ao fim é a própria comunicabilidade. No mun-
do sem experiência, a saída não é comunicar este ou aquele
conteúdo, mas o próprio fato da língua. Que seja possível fa-
lar — esta é a experiência que ainda nos resta. Então, o pro-
blema originário da linguagem é a sua magia. E essa magia
é a da matéria. Pode-se dizer que a mágica da linguagem se
concentra no nome, no ato de nomear.
Isto é, a origem da linguagem está não na palavra, mas no
nome. Benjamin sonhava com uma língua primordial que se
fizesse apenas por nomes. Porque, no nome, nada se comu-
nica a não ser o puro meio da linguagem que nomeia, que
pode nomear. No nome, encontramos a essência das coisas
como essência linguística, isto é, como ideia. E é nesse senti-
do que tal atitude, para Benjamin, não está em Platão, e sim
em Adão2. A ideia está na linguagem e é inscrita sob a ordem
do Nome. Assim, pensar se torna o ato de recordação que
conduz a palavra ao nome. A palavra está para o fenômeno,
assim como o nome está para a ideia. Recuperado uma atitu-
de platônica, o que procura Benjamin é salvar os fenômenos.
A ideia é algo de linguístico. O que compõe o método crítico
como recordação é o fato de, na escrita, se comunicar a ideia
de algo, salvando os fenômenos na própria linguagem. Em
outras palavras, a ideia de que fala Benjamin é aquele capaz
de garantir, como linguagem, a singularidade das coisas. A
anamnese é um método de escrita por reconduzir os fenô-
menos às ideias e as palavras ao nome. A quintessência do
método é a sua apresentação. Para Benjamin, “método é ca-
minho indireto, é desvio”3. O que pode ser visto tanto no mo-
delo do tratado filosófico, como no mosaico, na montagem
e na noção de imagem. Benjamin agrupa, ao longo da vida,
uma maneira de transmitir uma linguagem, uma recordação
2  BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. São Paulo:
Brasiliense, 1984, p. 59.
3  BENJAMIN, W. Origem do drama barroco alemão. São Paulo:
Brasiliense, 1984, p. 50.

90
da palavra. Se, ainda jovem, o tom metafísico prevalece, isso
em nada prejudica compreender sua atitude posterior ao
pretender escrever a história dos resíduos — que não é senão
salvar os fenômenos anônimos da modernidade numa ideia
de história que lhes faça justiça. Se sua filosofia da história
é a contrapelo, significa restituir na linguagem sua própria
ideia. E se, para Benjamin, escrever a história é dar às datas
sua fisionomia, pretende, com isso, chama-las por seu pró-
prio nome.
Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar”4. Dessas palavras,
é possível compreender o pensamento de Benjamin como uma
polêmica radical com a teoria do conhecimento e o método crí-
tico de sua época, principalmente no que concerne ao método
de análise da cultura e da história. O que há de fundamental em
sua concepção parece ser o fato de que a centralidade do que
ele chama de “montagem literária” coloca a teoria crítica inse-
rida no problema de sua linguagem. Não se pode prescindir, no
caso de um estudo sobre a história, de uma forma que, ao mes-
mo tempo em que trabalhe sobre uma época, saiba recriá-la na
própria linguagem — ou, como ele escreve, “na estrutura do co-
mentário5.
Se é preciso, então, nada dizer, mas ao contrário, o que defi-
ne a história dos resíduos a que se pretende é seu caráter de
exposição, isto é, nomeação, isso significa que a teoria benja-
miniana para o conhecimento só é política até o fim porque
coloca o aspecto residual da história a contrapelo no âmbito
de um uso. Assim, o crítico se vale dos fragmentos da reali-
dade para restituí-la em sua historicidade — análogo ao que
faz também o escritor, o poeta. A montagem, em Benjamin,
como método teórico, encontra na imagem o índice da his-
tória que define a forma da escrita e a teoria social. A partir
da imagem é que Benjamin vai reelaborar sua visão dialética.

4  BENJAMIN, W. Passagens. . Belo Horizonte: Editora UFMG/


Imprensa Oficial de São Paulo, 2006, p. 502.
5  BENJAMIN, W. Passagens. . Belo Horizonte: Editora UFMG/
Imprensa Oficial de São Paulo, 2006, p. 503.

A dialética da imagem | Pedro Alegre 91


2. Política da imagem

A já célebre passagem benjaminiana, na qual as “citações em


meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrom-
pem armados e roubam ao passante a convicção”6, tem o
dom de articular uma encruzilhada do seu pensamento, além
da evidente manifestação de seu método. Nesse caminho, o
transeunte se vê assaltado por uma experiência do tempo, de
índice intensamente histórico, na qual se encontra entre a es-
tética e a política como forma de experiência social imediata.
A teoria da linguagem, cuja utopia estaria em conceber uma
língua feita apenas de nomes, encontra correspondência na
utopia da crítica, na qual seu modelo se realizaria num texto
feito apenas de citações. A teoria da modernidade, em Ben-
jamin, somente se realiza como construção de um método
de escrita. Ambos caminham no interior dos seus textos, de
modo a não ser possível separá-los. Isso coloca, no caso de
uma política, a centralidade da noção de imagem como ao
mesmo tempo método e conteúdo.
O que assalta o crítico, numa concepção benjaminiana da
história, é também o passado. Assim como as citações sai-
riam de seu contexto original para serem reorganizadas no
texto crítico, o passado aparece citado na ordem o dia pelo
historiador. A maneira como a visibilidade histórica acon-
tece, a partir da questão da transmissibilidade da cultura, é
como a montagem descontínua do cinema. O passado vive,
para o presente histórico, como uma citação. Isto é, sobre-
vive apenas como imagem e, como tal, nos dar a ver em sua
crítica.
O papel do teórico está, como aparece nos estudos das Pas-
sagens, em apenas usar o passado, como se usam as citações,
de maneira a construir, na empiria dos fenômenos citados,
6  BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense,
1987, p. 61.

92
sua dialética imóvel, redimindo-os numa totalidade mono-
dalógica que, para Benjamin, é a ideia. A política da imagem
acontece, portanto, somente na dimensão de um uso. A teoria
alcança, em sua linguagem, o terreno estético da montagem
e a condição política daquilo que, permanecendo inacabado,
exige de nós uma construção.
A experiência da imagem é, nesse caso, a experiência que res-
tou a ser transmitida. O passante assaltado no caminho das
citações, como o flaneur, encontra-se sujeito à experiência do
choque, isto é, uma experiência social que tornou-se essen-
cialmente estetizada pelo mundo das mercadorias. A ima-
gem onírica, a que Benjamin alude muitas vezes, faz fulgurar
o século XIX como o lugar no qual as imagens ganharam o
estatuto estético-político de uma morada dos sonhos. “O ca-
pitalismo”, escreve Benjamin, “foi um fenômeno natural com
o qual um novo sono, repleto de sonhos, recaiu sobre a Euro-
pa e, com ele, uma reativação das forças míticas”7. Submeter
à crítica um modo de visibilidade que tenha como método a
imagem do passado citada na ordem do dia significa aplicar à
história a técnica do despertar do sonho burguês enfeitiçado.
Mas a imagem é uma aparição efêmera e somente por isso é
histórica, de temporalidade messiânica. A história, enquanto
imagem dialética, só se apresenta como objeto ao crítico se,
enquanto tal, for de fato um objeto perdido no instante se-
guinte. A história se apresente como objeto perdido e o texto
como melancolia dessa perda. Imobilizar no próprio movi-
mento de sua fugacidade é a tarefa do transeunte que vaga
assombrado pelas esquinas da história, constantemente as-
saltado pelo passado, imerso na fantasmagoria moderna da
qual resta ainda despertar.
Com isso, é possível pensar o mundo social e estético pro-
duzido pelas mercadorias como a forma de uma poética das
imagens que nos levaria continuamente a elaborar uma polí-
tica. Benjamin compreende o caráter crítico e prodigioso da
7  BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/ Im-
prensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 436.

A dialética da imagem | Pedro Alegre 93


imagem — que aparece (como um sintoma) e some (como
um sonho) no relampejar histórico da época — para a qual
resta ao teórico ainda uma missão no limiar da modernidade:
escrevê-la.

3. Modernidade como Trauerspiel

Longe de apenas constituir uma estudo sobre o teatro alemão


do século XVII, o estudo a que se lançou Benjamin em Ori-
gem do drama barroco alemão foi a base para sua compreen-
são da modernidade, principalmente como noção de história
como catástrofe, isto é, como a história mundial do sofrimen-
to, o que tornaria nossa época, numa imagem dialética, um
drama de luto.
Quando começou a elaborar o projetos das Passagens de Pa-
ris, Benjamin entendeu que aquilo que havia realizado para
o século XVII seria agora aplicado, de maneira mais nítida
e com nova expansão, para o século XIX francês. No teatro
barroco, a história é o seu conteúdo. Não qualquer história,
mas uma concepção da história como natureza que, na mo-
dernidade das grandes cidades, ganharia novas implicações
lutuosas.
Os elementos que compõem, para Benjamin, o sonho do sé-
culo XIX parisiense transformaram a experiência moderna
na expressão de uma fantasmagoria. Assim se apresentam as
passagens, as construções em ferro, as exposições universais,
precursoras da indústria do entretenimento, a experiência do
flanuer nas ruas fantasmagóricas da cidade, totalmente en-
tregue à fantasmagoria do mercado; assim também as trans-
formações feitas por Haussman, como fantasmagoria da civi-
lização, mas também a iluminação a gás cobrindo sob o teto

94
da cidade o céu já não visível, transformando a vida cidade
no interior sem lado externo — tal como acontece nos so-
nhos. A isso se encerra, como a última fantasmagoria, dessa
vez de ordem cósmica, a visão da história de Blanqui como o
eterno retorno. Para o século que não souber responder com
uma nova ordem social as potencialidades técnicas, isto é,
que denegou o novo modelo de produção, o sonho que enco-
bre a história, se mostra, ao fim, como um pesadelo infernal.
Benjamin pretendia, ao trabalhar sobre os elementos do so-
nho, como na recordação, introduzir na dialética das ima-
gens do passado a técnica do despertar para, assim, salvar
aquilo que, no curso catastrófico dessa história, não cessa
um segundo de erguer os monumentos da época como ruí-
nas antes mesmo de seu desmoronamento.

4 — Proust, imagem e o sonho

A importância da noção de imagem em Benjamin se dá por-


que ela possibilita uma compreensão da história para além
da noção de um presente que observa o passado (positivis-
mo) ou mesmo de um passado que indicaria os rumos do
presente (historea magistra vitae — o paradigma clássico).
Ao contrário, a imagem é “o ocorrido [que] encontra o agora
num lampejo, formando uma constelação”8. Imagens dialé-
ticas “são autenticamente históricas, isto é, imagens não-ar-
caicas”9. Não pertencem ao passado, mas ao “agora de uma

8  BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/ Im-


prensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 504.
9  BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/ Im-
prensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 505.

A dialética da imagem | Pedro Alegre 95


determinada congnoscibilidade”10: o momento em que o
passado e o presente se chocam revelando um determinado
conhecimento do tempo e da história.
Nesse ponto, encontramos as correspondências entre Benja-
min e o autor de A busca do tempo perdido. A imagem dialé-
tica como compreensão autêntica do passado é análoga à
memória involuntária em Proust, na qual o outrora encontra
o agora, recuperando o tempo num lampejo. A compreensão
capital em Proust é que a natureza do passado, em relação ao
presente, não é temporal, mas imagética. Nesse sentido, uma
leitura que levasse em consideração a imaginação dialética
benjaminiana saberia encontrar Proust a partir do sonho , no
qual estaria seu “culto apaixonado da semelhança”, de onde
“carregam consigo uma realidade frágil e preciosa: a ima-
gem”11.
A fragilidade de uma compreensão da história pela imagem é
seu caráter efêmero, porém incontornável para o historiador
materialista. É nesse sentido que aparece certa passagem das
Teses, segundo a qual “a verdadeira imagem do passado per-
passa, veloz” 12. Recuperar — ou salvar, para Benjamin — o
passado perdido apenas se torna possível porque é algo fu-
gaz, algo que estará irremediavelmente perdido no instante
seguinte ao ocorrido. Isto é, só se torna possível apreender
um objeto que, desde o início, apresenta-se como objeto per-
dido. A linguagem de Proust é a imagem daquilo que é perdi-
do, na forma da sua salvação. Para ele, “o passado não só não
é fugaz, mas também imóvel”13. E a imagem, para Benjamin,

10  BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/


Imprensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 505.
11  BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 40.
12  BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 224.
13  PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. São Paulo: Globo,
2007, p. 454.

96
é a “dialética na imobilidade”14. O passado se torna apreensí-
vel na efemeridade imóvel da imagem.
“A imagem dialética [como a memória proustiana] é uma
imagem que lampeja”15, interrompendo o fluxo linear do
tempo. Ela se apresenta como a origem de uma determina-
da experiência histórica. Como índice da história, a imagem
diz não que ela pertence a uma época específica, mas que,
em determinada época, ela se torna legível. (Este consiste
a questão da visibilidade de que fala Benjamin ao cotejar a
concepção marxista da história — e que marca também seu
ponto de desvio com essa tradição). Combray recuperada no
chá não pertence ao passado, mas se tornou passível de co-
nhecimento no momento em que ela reaparece no presente
da madeleine. A história, para Benjamin, é anacrônica.
Isso diria também respeito à melancolia que, como um véu,
perpassa as páginas de Proust. Pois, levando a sério a noção
da temporalidade crítica a que se submete a história pela
imagem, segundo Didi-Huberman, somente assim é possí-
vel viver essa história — como “um trabalho de luto e uma
evocação sem esperança da coisa perdida”16. O mesmo au-
tor vai definir a imagem que surge interrompendo o curso
do progresso histórico, forma originária, como um sintoma.
Pois, os tempos que sobrevivem como fósseis não estão mor-
tos de todo, “são tempos escondidos bem debaixo dos nossos
passos e que ressurgem, fazendo tropeçar o curso de nossa
história.”17. Estaria Didi-Huberman pensando no tropeço do
narrador proustiano na casa dos Guermantes que o fez re-

14  BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/


Imprensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 504.
15  BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/
Imprensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 515.
16  DIDI-HUBERMAN, Georges. A sobrevivência das imagens. Rio
de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p. 17.
17  DIDI-HUBERMAN, Georges. A sobrevivência das imagens. Rio
de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p. 295.

A dialética da imagem | Pedro Alegre 97


lembrar, como um lampejo, Veneza perdida?
Para Benjamin, o historiador dialético deve “erguer as gran-
des construções a partir de elementos minúsculos, recorta-
dos com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise
do pequeno momento individual o cristal do acontecimen-
to total”18. Seu pensamento funciona também como a forma
narrativa de Proust, na qual os objetos revelam a época no
microcosmos da alta sociedade. O que parece decisivo em
Benjamin é que ele reivindica, para a teoria, um certo esta-
tuto análogo à estética. Nesse sentido, assim entendemos a
passagem de Rancière, segundo a qual nas coisas e objetos
“on y lit des symptômes des temps nouveaux, on y reconnaît
les débris de mondes écroulés, on y reencontre l’équivalent
des divinités mythologiques défuntes”19 (RANCIÈRE, 2007, p.
29).
Contudo, a imagem dialética, como pequena aparição de
uma estrutura histórica monumental, em Benjamin, surge
como despertador para a compreensão dessa época. O ago-
ra da cognoscibilidade, possível através do saber da imagem
dialética, “é o momento do despertar” (BENJAMIN, 2006, p.
528).
Benjamin é um leitor de Marx. No entanto, opera em seu
pensamento desvios de modo a preparar seu projeto de vi-
sibilidade da história. Assim, criou um novo contraponto em
sua filosofia: a ideia do Despertar. Nessa imagem condensa-
-se o ponto crítico no qual se encontra o pensamento benja-
miniano para a história. Diante da razão desmascaradora de
Marx, Benjamin precisou de sua dialética inerente: o sonho.
Se não se pode permanecer na absoluta consciência racional

18  BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/


Imprensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 503.
19  RANCIÈRE, Jacques. Politique de la littérature. Paris: Éditions
Galilée, 2007, p. 29. “Nelas são lidos os sintomas dos novos tempos,
nelas são reconhecidos os destroços de mundos arruinados, nelas
se acha o equivalente das divindades mitológicas mortas”.

98
da história, é preciso que se tenha a obscura mas sintomá-
tica dimensão do sonho. Despertar: instante fugaz da inter-
penetração do estado do sonho — ainda sentimos o gosto,
os gestos e o tempo no corpo ao despertamos de um sonho
intenso — e do estado consciente da razão — vigilante e im-
passível ao lançar suas luzes. Benjamin lembra o início da
Recherche de Proust, pois se trata de um despertar. Retira daí
a imagem dialética de toda e qualquer busca de nossos tem-
pos para sempre perdidos. “Nesse caso, o momento do des-
pertar seria idêntico ao ‘agora na cognoscibilidade’, no qual
as coisas mostram seu rosto de verdade — o surrealisa.”20. O
despertar é a síntese antitética da aparição histórica da ori-
gem. Não seria difícil ver nele a expressão mais penetrante
da consciência histórica enquanto pressente ardentemente
uma reminiscência, enquanto, nesse mesmo instante, vive
comovidamente o seu presente preenchido do passado in-
suspeito. O rosto surrealista a que almeja Benjamin é a ex-
pressão violenta da latência da realidade escondida por uma
suposta normalidade, que pode ser definida como um histo-
ricismo narcótico.
A história é, antes de tudo, um objeto (sempre perdido, nun-
ca encontrado) de construção. Na compreensão benjami-
niana de imagem dialética, a função da imagem ganha sua
dimensão política dentro da história residual dos vencidos. A
história construída pela imagem é a expressão do Despertar.
Em 1939, depois da eclosão da guerra, Benjamin foi preso e
levado a um campo de trabalhos ao sul de Paris, onde passou
três meses. Durante esse período, não escreveu nada, exceto
o relato de um sonho, registrado depois em carta. Esse sonho
teria sido como uma visão noturna na qual se deparou com a
leitura de sinais e o corpo de uma mulher muito bonita como
fossem uma só coisa. Ele escreve que, depois do sonho, não
pôde dormir por horas, tamanha a felicidade. Nesse mesmo
ano, Benjamin escrevia uma nova versão da exposição sobre
20  BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/
Imprensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 506.

A dialética da imagem | Pedro Alegre 99


o trabalho das passagens que, diferente da de 1935, mais se-
gura de sua eficácia, está imersa numa obscuridade muito
maior, a partir dos escritos de Banqui. Até sua morte, no ano
seguinte, Benjamin viveria ainda mais incertezas, que acaba-
riam por mergulhar o século XX num renovado sono. Talvez
ele estivesse certo, ao escrever que “os primeiros estímulos
do despertar aprofundam o sono”21, pois assim ocorreu con-
sigo e com a época.
Em 1843, aos 25 anos, o jovem Marx escrevia a seu amigo
Arnold Ruge, dizendo que “não se trata de traçar uma li-
nha divisória entre o passado e o futuro senão de realizar
os pensamentos do passado”. Mais adiante, completa: “será
evidente que a humanidade não está começando uma nova
tarefa, senão que está levando a cabo de maneira conscien-
te sua antiga tarefa”22. Marx pensava nossa época como um
pesadelo do qual a humanidade precisava despertar. O que
Benjamin pretende em seus esboços é justamente organizar
a dialética do conhecimento histórico das imagens na noção
do Despertar — síntese entre a consciência onírica e a cons-
ciência desperta. Nesse sentido, o início da Recherche, com
a narração daquele que desperta, já nos oferece o sintoma.
Em Proust, é importante a mobilização da vida inteira nesse
ponto de ruptura. O historiador trabalha com a matéria do
sono, com linhas de fuga de interpretação, capazes talvez de
registar, ao fim, como no sonho que Benjamin relatou como
a imagem da felicidade sob os escombros da história, uma
redenção do que foi esquecido. Como uma época inteira se
revela numa imagem, o homem, esfregando os olhos, perce-
be a linguagem onírica — um mundo mágico de coisas — e,
nesse momento, “o historiador assume a tarefa da interpreta-
ção dos sonhos”23.
21  BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/
Imprensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 503.p. 436.
22  Disponível em: https://www.marxists.org/espanol/m-e/cartas/
m09-43.htm.
23  BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/

100
Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:


Brasiliense, 1994.
__________. Origem do drama barroco alemão. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
__________. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG/ Im-
prensa Oficial de São Paulo, 2006.
__________. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987.
__________. “Sobre a linguagem geral e a linguagem huma-
na” In: Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora 34/
Duas cidades, 2011.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A sobrevivência das imagens.
Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013.
PROUST, Marcel. O caminho de Guermantes. São Paulo: Glo-
bo, 2007.
RANCIÈRE, Jacques. Politique de la littérature. Paris: Éditions
Galilée, 2007.

Imprensa Oficial de São Paulo, 2006 p. 506.

A dialética da imagem | Pedro Alegre 101


O cristal da língua, tagare-
lar feminino e lalangue em
Benjamin e Lacan
Isabela Pinho
isabelafpinho@gmail.com | Un. Federal do Rio de Janeiro
Podemos dizer que não há muitas pesquisas acerca de pos-
síveis aproximações entre Walter Benjamin e Jacques Lacan.
Como sugere Cláudio Oliveira no artigo “Língua pura e alín-
gua: um encontro (im)possível entre Benjamin e Lacan”,1
tudo acontece como se leitores de Benjamin não lessem La-
can, e leitores de Lacan não lessem Benjamin. Dentre os pou-
cos trabalhos que encontrei até o presente momento, pode-
mos dar destaque para os livros Benjamin-Lacan, do discurso
do Outro (1998), de Gregor Schwering,2 e O Real da perspec-
tiva, o Barroco, a Psicanálise lacaniana e o cadáver na cultu-
ra (2013), de Sebastian Kirsch.3 Este artigo se dedica a esse
“silêncio” e surge de uma comunicação que fiz na biblioteca
de Psicanálise de Berlim, em junho de 2017. Tanto lá como
aqui, minha tentativa é apresentar essas aproximações para
pesquisadores(as) tanto de Benjamin quanto de Lacan.
O ponto de encontro entre Benjamin e Lacan que move mi-
nha pesquisa talvez possa parecer ainda mais insólito. Trata-
-se de um tema, uma questão: o feminino. Na verdade, minha
ida a Lacan passa por uma proposta feita por Benjamin, uma
indagação acerca do que seria uma cultura do feminino e, so-
1  OLIVEIRA, Cláudio. Língua pura e alíngua: um encontro (im)
possível entre Benjamin e Lacan. Revista Trágica: estudos de filo-
sofia da imanência, Rio de Janeiro, v. 9, n 2, 2016, p. 41 – 50. Dispo-
nível em: <http://tragica.org/artigos/v9n2/oliveira.pdf>.
2  SCHWERING, Gregor. Benjamin – Lacan. Vom Diskurs des Ande-
ren. Viena: Turia und Kant, 1998.
3  KIRSCH, Sebastien. Das Reale der Perspektive. Der Barock, die
Lacanische Psychoanalyse und das “Untote” in der Kultur. Berlim:
Theater der Zeit, 2013.
bretudo, uma linguagem feminina. Essa indagação surge em
um ensaio de juventude ainda não traduzido para o portu-
guês, intitulado “Metafísica da juventude”, escrito entre 1913
e 1914. Esse ensaio deve ser compreendido na esteira das crí-
ticas do movimento de juventude (Jugendbewegung) a uma
certa concepção de história e linguagem, e ao sistema educa-
cional vigente nos anos juvenis de Benjamin.
Podemos pensar, então, em duas principais fontes históri-
cas para a redação da “Metafísica da Juventude”, às quais me
dediquei em minha dissertação de mestrado, e que por ora,
não poderei abordar, mas somente nomear. A primeira seria
Gustav Wyneken, fundador da Freie Schulgemeinde, de quem
Benjamin foi aluno em 1906. Benjamin foi um dos principais
responsáveis por levar o movimento de juventude e as refor-
mas propostas por Wyneken para a universidade. A segunda
seria o curso de verão ministrado pelo neokantiano Heinrich
Rickert na universidade de Friburgo em que este pensava em
“masculino” e “feminino” como esferas axiológicas de seu
“Sistema de Valores” (1913).4
Importante para nós é o fato de que a crítica à história como
herança, como acúmulo de meros fatos históricos isolados,
diante dos quais nos encontramos como meros receptores,
coincide com a crítica a uma língua comunicativa, instru-
mentalizada, ambas representadas pela tradição paterna, ou
pelo “ser dos pais” (sein der Väter), como diz Benjamin. Por
isso, feminino e juventude constituem elementos para a crí-
tica da cultura desses anos juvenis de Benjamin, como po-
demos constatar em uma carta ao amigo do movimento de
juventude, Herbert Belmore, datada de 23 de junho de 1913,
em que Benjamin questiona:
Quem sabe até onde se estende a natureza profunda da mu-

4  Cf. PINHO, Isabela Ferreira de. O feminino como Medium da lin-


guagem: sobre algumas figuras femininas na obra de Walter Benja-
min. 2014. 141 f. Dissertação (mestrado em Filosofia) – Programa de
Pós-graduação em Filosofia, UFF, Niterói, 2014.

104
lher? O que sabemos nós da mulher? Tão pouco quanto da
juventude. Nós somos ainda sem experiência de uma cultura
da mulher, assim como nós ignoramos uma cultura da juven-
tude.5
Na mesma carta a Belmore, Benjamin esclarece:
eu, a bem dizer, evito aqui toda linguagem concreta e falo de
bom grado em masculino e feminino: não estão eles extrema-
mente misturados no ser humano?! E dessa forma você compre-
ende que em uma reflexão sobre a cultura eu estimo um pouco
primária a tipologia “homem”, “mulher”.6
Gostaria de me concentrar, sobretudo, na questão da lingua-
gem feminina suscitada no ensaio. Se por um lado, na “Me-
tafísica da juventude”, Benjamin concebe a linguagem mas-
culina como uma infatigável dialética, as personagens Safo, a
mulher e a prostituta, em suas atitudes tipificadas de mulhe-
res silenciosas, aparecem, por outro lado, como porta-vozes
de um passado feminino da linguagem (Weiblich-Gewesenes
im Gespräch), inacessível ao presente do falante. Sobretudo,
a linguagem das personagens femininas não é da ordem de
um meio para um fim, uma linguagem comunicativa, mas
consiste em um louco tagarelar. Ao se perguntar como Safo
e suas alunas conversavam, Benjamin afirma que elas não
depositam confiança na linguagem como comunicação (Mi-
tteilung), mas que levam a sério o prazer lúdico da conversa.
Por isso, ele dirá que “elas caem em conversa inútil, tagarelam
[sie werden geschwätzig]”.7 Em busca do que seria esse taga-
relar, ele afirma que “as mulheres falantes são possuídas por
uma língua louca [sprechende frauen sind von einer wahnwit-
zgen Sprache besessen]”.8 Em alemão, Benjamin utiliza a pa-

5  BENJAMIN, Walter. Correspondances I (1910-1928). Tradução de


Guy Petitdemange. Paris: Éditions Aubier-Montaigne, 1979, p .61.
6  Ibidem, p. 61.
7  Ibid. Metaphysic der Jugend. Gesammelte Schriften, Vol. II, 1.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, pp. 91 – 105.
8  Ibidem.

O cristal da língua, tagarelar feminino ... | Isabela Pinho 105


lavra “wahnwitzigen” para o adjetivo “louca”. Nesse vocábulo,
encontramos o substantivo “Wahn”, que significa delírio, fre-
nesi, ilusão, e o adjetivo, “witzig”, “espirituoso (a)”, mas cuja
origem é o “Witz”, chiste ou ato falho, termo caro ao primeiro
romantismo alemão e também à Psicanálise, de Freud a La-
can. É a partir dessa indicação que procurarei, mais à frente,
delinear possíveis aproximações entre Benjamin e Lacan.
Em primeiro lugar é preciso pensar os deslocamentos de
sentido que a palavra Geschwätz (tagarelar) possui em al-
guns textos de Benjamin. Já na “Metafísica da juventude”
Benjamin produz uma diferença entre o tagarelar feminino,
como vimos, e a verborragia (Wortfülle) do homem tagarela
(Schwätzer). A verborragia com a qual Benjamin caracteriza
a linguagem masculina pode ser pensada em analogia com
a vacuidade (Wortleerheit) com a qual é caracterizada a lin-
guagem humana no momento de seu surgimento, no célebre
ensaio escrito como uma carta a Gerschom Scholem, e não
originalmente destinado à publicação, “Sobre a linguagem
em geral e sobre a linguagem humana”, de 1916. Inclusive,
nesse ensaio, escrito três anos após a “Metafísica da Juven-
tude”, a tipologia linguagem feminina/linguagem masculina
parece ser retomada em outros termos, os de médium e Mit-
tel da linguagem, em uma releitura do Gênesis bíblico. Se ao
médium da linguagem corresponde, por um lado, a língua
paradisíaca com a qual Adão nomeia o mundo, ou a comuni-
cabilidade da própria linguagem, por outro lado, a linguagem
humana coincide, em seu caráter instrumental — de ser um
meio (Mittel) para um fim — com a queda do paraíso, no mo-
mento de obtenção do fruto proibido. A propósito, é interes-
sante notar que Benjamin usa novamente a palavra tagarelar,
“Geschwätz” para caracterizar a relação de culpa ou débito
(Schuld) quanto à comunicabilidade da linguagem ela mes-
ma, quanto ao médium da linguagem, instaurada no falante
no momento de surgimento da linguagem humana.
Assim, Benjamin dirá que o conhecimento do bem e do mal é
uma tagarelice (Geschwätz), pois “a árvore do conhecimento

106
não estava no jardim do Éden pelas informações que pudesse
fornecer, mas como símbolo distintivo da sentença [Gericht]
sobre aquele que pergunta”.9 E prevê, ainda, um dia do juízo
final, um tribunal, para findar a relação de culpa que acome-
te o falante, o humano tagarela (Geschwätzige Mensch). Nas
palavras de Benjamin:
o conhecimento do bem e do mal é [...] uma “tagarelice” [Ges-
chwätz], e este só conhece uma purificação e uma elevação (a
que também foi submetido o ser humano tagarela [Geschwät-
zige Mensch], o pecador): o tribunal [...]. Essa palavra que jul-
ga expulsa os primeiros seres humanos [die ersten Menschen]
do paraíso; eles mesmos a incitaram, em conformidade com
uma lei eterna segundo a qual essa palavra que julga pune
seu próprio despertar como a única, a mais profunda culpa
[Schuld] — e é isso que ela espera.10
Aqui o tagarelar aparece remetido à impossibilidade do fa-
lante de dizer a dizibilidade da própria linguagem. Pois se a
linguagem, como já nos dizia Platão, é sempre “legein ti kata
tinos”,11 dizer algo sobre algo, aquilo que permanece indizível
nesse dizer é justamente a dizibilidade da própria linguagem.
Por isso, o médium da linguagem aparece em uma dimen-
são negativa, de inefabilidade. Mas é justamente como con-
trapartida a essa relação de negatividade e inefabilidade que
gostaria de pensar o tagarelar feminino, tal como concebido
por Benjamin três anos antes. Gostaria de pensá-lo, então,
como a possibilidade de dizer a dizibilidade da linguagem,
para além de seu uso instrumental, hipótese possível se le-
varmos em conta o elemento do chiste em sua caracterização
9  Ibid. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem.
Escritos sobre mito linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages.
São Paulo: Editora 34, 2011, pp. 212-156. Tradução modificada.
10  BENJAMIN. “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem
do homem”, p. 67.
11  PLATÃO. O sofista (262a). Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz
Costa. São Paulo: Abril
Cultural, 1972.

O cristal da língua, tagarelar feminino ... | Isabela Pinho 107


por Benjamin.
Pensar a linguagem para além de sua inefabilidade consti-
tutiva, ou para além do fato de que ela já sempre antecipa o
falante já sempre nela lançado, aparece como tarefa em uma
carta de Benjamin a Martin Buber datada de 17 de setembro
de 1916, mesmo ano de redação de “Sobre a linguagem”. Ben-
jamin recusa o convite para participar da revista sionista “O
judeu”, ao afirmar que não concebe a linguagem como meio
para o ato político, como mero instrumento, mas que tem em
vista “a pura cristalina eliminação do indizível na linguagem
[die kristallen reine elimination des Unsagbaren in der Spra-
che]”.12 Voltarei a essa formulação mais adiante para pensar
o que Lacan chama de efeito de cristal da língua. Por ora,
gostaria de chamar atenção para algumas reformulações do
médium da linguagem tanto na “Tarefa do tradutor” (1921)
quanto nas chamadas notas de Ibiza, de 1933.
Se, em “Sobre a linguagem”, a língua pura, ou o médium da
linguagem, aparece como uma espécie de “origem” paradi-
síaca diante da qual o homem falante se encontra em uma
relação de culpa ou débito, em “A tarefa do tradutor” ela apa-
rece como aquilo que é visado (das Gemeinte) pelas múlti-
plas línguas históricas. Assim, as múltiplas línguas históricas
teriam um parentesco supra-histórico justamente naquilo
que visam e querem dizer: a pura língua. Mas o que me pa-
rece fundamental é o fato de que, ao fim do ensaio de Benja-
min, a língua pura apareça caracterizada como uma palavra
sem expressão (Ausdruckloses Wort), uma palavra que já não
quer dizer nada e que já não exprime nada. Nas palavras de
Benjamin:
Nessa pura língua, que já não quer dizer nada [nichts mehr
meint] e já não exprime nada [nichts mehr ausdruckt], mas
como palavra sem expressão e criadora é aquilo que é visado
por todas as línguas, toda comunicação, todo sentido e toda
intenção alcançam uma esfera em que estão destinados a se

12  BENJAMIN, Walter. Correspondance I, p. 117.

108
extinguir.13
A tarefa do tradutor, assim como a do filósofo, é justamente
a descrição e exposição de uma língua livre de toda comuni-
cação e de todo querer dizer, já que, se essa língua é o visado
em cada língua histórica, ela, por outro lado, já não exprime
nada e já não quer dizer mais nada. Nas duas notas sobre a
linguagem que Benjamin escreve em Ibiza, em 1933 — “So-
bre a faculdade mimética” e “A doutrina das semelhanças”
— podemos dizer que o parentesco supra-histórico das di-
ferentes línguas históricas será pensado como da ordem das
semelhanças extra-sensíveis (unsinnlicher Ähnlichkeiten). A
linguagem será concebida como cânone, como registro das
semelhanças não-sensíveis, em oposição a uma concepção
da linguagem como mero sistema convencional e arbitrário
de signos. Nas palavras de Benjamin, “a escrita transformou-
-se, ao lado da linguagem oral, num arquivo de semelhanças,
de correspondências extrassensíveis”.14 Esse arquivo material,
poderíamos dizer, é constituído por homófonos, equívocos e
mal-entendidos, cujo trecho “Mummerhelen” de Infância em
Berlim, também escrito em 1933, pode bem elucidar. De fato,
em carta a Scholem, Benjamin afirma que “A doutrina das
semelhanças” foi escrita durante os estudos para aquele que
deveria ter sido o primeiro capítulo de Infância em Berlim: a
Mummerhelen.15

13  Ibid. A Tarefa do tradutor. Escritos sobre mito linguagem. Tradu-


ção de Susana Kampff Lages. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 101-119.
14  Ibid. A doutrina das semelhanças. Tradução de Sergio Paulo
Rouanet. São Paulo: ed. Brasiliense, 2011, p. 111. (Obras escolhidas
vol.I).
15  Carta de fevereiro de 1933. SCHOLEM, G. Correspondências. Tra-
dução de Neusa Soliz. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 45. A Infância
em Berlim por volta de 1900, considerada pelo próprio Benjamin
como um de seus sucessos no plano literário, não foi publicada em
vida, mas somente alguns de seus fragmentos tiveram publicação
na imprensa alemã entre 1933 e 1935. Trata-se de um conjunto de
fragmentos de recordação da infância. Sua versão mais conhecida

O cristal da língua, tagarelar feminino ... | Isabela Pinho 109


No trecho Mummerehlen Benjamin narra a experiência de ter
ouvido pela primeira vez, quando criança, uma antiga rima
sobre uma certa tia Rehlen, visto que Muhme é uma palavra
obsoleta para tia. Mais precisamente, Muhme significa “a
irmã da mãe”, e de uma maneira geral, a ancestral, a parente
mais velha da linha materna. Isso é importante, pois não me
parece arbitrário que essa experiência com a linguagem seja
marcada por uma experiência referente ao feminino, já que
se trata aqui da tia matrilinear, e já que, um ano mais tarde,
Benjamin escreve um artigo (1934-35) sobre o Matriarcado de
Bachofen, autor com o qual ele havia tido contato desde 1916.
Em todo caso, ao narrar sua experiência infantil com a lin-
guagem, Benjamin afirma que “os mal-entendidos [miss-
verstehen] modificavam o mundo”16 para ele. Ele brinca, por
exemplo, com o trocadilho kupferstich e kopffverstich pois ao

foi a organizada por Adorno e consiste na reunião, em livro, de


uma série de fragmentos publicados nos jornais, e cujo fragmento
inicial é o Tiergarten. A tradução brasileira produzida pela editora
Brasiliense (Obras escolhidas, vol. II) segue a versão estabelecida
por Adorno, que é a mesma das Obras Completas (Gesammelte
Schriften) de Benjamin em língua alemã. Nos anos de 1980, no
entanto, duas versões datilografadas e com correções manus-
critas foram encontradas. Em 1981, Giorgio Agamben encontrou
na Biblioteca Nacional da França um tapuscrito contendo uma
dedicatória ao filho de Benjamin. Por fim, uma outra versão foi
encontrada em 1988 na biblioteca da universidade de Giessen.
Essa versão, conhecida como “Giessener Fassung” foi publicada
na Alemanha somente em 2000 e representa o primeiro esboço
do trabalho redigido entre 1932 e 1933. O primeiro capítulo dessa
versão, contemporânea à escrita da “Doutrina das semelhanças”, é
o trecho Mummerehlen. Cf. LAVELLE, Patrícia. Religion et Histoire,
sur le concept d’expérience chez Walter Benjamin. Paris: Les Éditions
du Cerf, 2008. p.107.
16  BENJAMIN, Walter. Mummerhelen, Infância em Berlim por volta
de 1900. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José C. M.
Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 2011. p. 120 - 122. (Obras escolhidas
Vol. II).

110
ouvir a palavra kupferstich, que significa “gravura de cobre”,
colocou-se debaixo de uma cadeira, esticou a cabeça para
fora, ação denotada pela palavra alemã kopffverstich, e a isso
chamou de “gravura de cobre”. Sobretudo, Benjamin afirma
que o dom de reconhecer semelhanças exercia-se nele por
meio de palavras, mas não aquelas, como ele o diz, “que me
faziam semelhante a modelos de civilidade, mas sim às casas,
aos móveis, às roupas. E por isso ficava desorientado quan-
do exigiam de mim semelhança”.17 É para essa experiência da
linguagem como arquivo de semelhanças extrassensíveis na
ordem das próprias palavras que a figura da Mummerehlen
também aponta.
Benjamin, ao ouvir a expressão “Ich will dir was erzählen von
der Mummerhelen [quero te contar algo sobre a tia Rehlen]”,18
rememora a sensação de assombro que a materialidade dos
sons das palavras, sem significado algum, produzia. A Mum-
merhelen aparece como um espectro para escuta infantil e
constitui de fato um arquivo de semelhanças sem sentido ou
significado — se pudermos forçar a tradução de un-sinnli-
cher Änlichkeiten para semelhanças para além do sentido.19
Ela constitui, sobretudo, uma experiência de homofonia da
própria língua, pois a partir da unidade dos sons entre Mum-
merehlen e Muhme Rehlen podemos ter acesso aos vários
sentidos dessa palavra, para os quais gostaria rapidamente
de apontar.
“Mumm” é o murmúrio de alguém que não quer ou não pode
falar, o balbuciar da criança, enquanto que Mumme signifi-
ca máscara ou o que é mascarado. No verbo mummen, essas
duas significações se cruzam, pois “mumem” corresponde
à “mum mum sagen” ou à ação de murmurar, mas também
àquela de se dissimular ou de se pôr sob uma máscara.

17  Ibidem, p. 93.


18  Ibidem, p. 94.
19  A palavra alemã “Unsinn” pode significar tanto sem sentido
quanto extrassensível, não-sensível.

O cristal da língua, tagarelar feminino ... | Isabela Pinho 111


Mummel é o nome de um lago na Floresta Negra e também
de uma flor aquática, mas que, segundo Patrícia Lavelle no
livro Religião e História, sobre o conceito de experiência em
Walter Benjamin ainda nos reenvia à “forma mascarada (ver-
mummte Gestalt) dessa vez assustadora ou terrível (Schreck-
gestalt), como também a uma conversação secreta (heimli-
ches reden)”20. Chegaríamos assim à palavra Mummler, que
significa sussurro, cochicho. Enfim, se são com todas essas
variações de sentido que Benjamin parece jogar a partir da
imagem da Mummerehlen, o importante para nós é o fato de
que o médium da linguagem não mais é pensado em seu ca-
ráter de negatividade, de inefabilidade, mas aponta para uma
experiência com a linguagem em que a própria dizibilidade
da língua é dita, para além da intenção de um sujeito. E em
Benjamin os homófonos seriam exemplo dessa autotrans-
parência da língua em que aquilo que se diz é a dizibilidade
mesma da língua.
Não será por acaso, portanto, que no chamado último ensino
de Lacan (de 1970 em diante), o psicanalista trabalhará com
o homófono la langue (“a língua”) e lalangue (“alíngua”). Se-
gundo Jean-Claude Milner, em O amor da língua, la langue
pertence à esfera da realidade da língua, ou seja, ao seu ca-
ráter instrumental, e lalangue aponta para o real da língua,
registro inconsciente da linguagem, em que os equívocos,
chistes e homófonos se dão. Não somente a “oposição” entre
“alíngua” e “a língua” é extremamente próxima daquela entre
médium e Mittel da linguagem, como também, podemos di-
zer que até mesmo o percurso de Lacan é semelhante ao de
Benjamin.
Seguindo indicações da psicanalista Geneviève Morel no li-
vro A lei da mãe, ensaio sobre o sintoma sexual, o primeiro
ensino de Lacan marca a relação entre o falante e a lingua-
gem a partir da noção de uma falta constitutiva, um débito.
Nesse primeiro ensino, Lacan, ainda muito influenciado pela
20  LAVELLE, Patrícia. Religion et Histoire, sur le concept d’expérien-
ce chez Walter Benjamin, pp.108 - 109.

112
linguística estruturalista e pela leitura de Kojève de Hegel,
pensa o Nome-do-pai, releitura lacaniana do falo freudiano,
como o primeiro significante que marca a “entrada” do falan-
te na linguagem. O Nome-do-pai implicaria o falante em uma
cadeia de significantes (“S1, S2, S3... Sn”) em que o sujeito se
encontraria em uma relação de falta, na medida em que o S1,
como significante que é pura marca do “assujeitamento” do
sujeito à linguagem, é inacessível21.
O registro do Real, em oposição aos registros do Simbólico
e do Imaginário,22 aparece, aqui, em sua negatividade, como
resto, como aquilo que resta do encontro do falante com a
linguagem. É para essa impossibilidade que a por vezes mal
compreendida proposição lacaniana “não há relação sexual”
aponta. “Não há relação sexual” quer dizer que o falante, na
21  Nas palavras de Jacques-Alain Miller, nas célebres “Confe-
rências caraquenhas”: “a tese de Lacan é que o significado é um
efeito do significante, e que os efeitos de significado são criados
pelas permutações, os jogos do significante. O sentido surge,
fundamentalmente, da substituição de um significante por outro”.
MILLER, J.-A. Percurso de Lacan: uma introdução. Tradução de Ari
Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 31. É da substituição
do primeiro significante (S1), o Nome-do-pai, com referência a
um significante S2, que advém o sentido ou o significado. Mas
esse primeiro significante, do ponto de vista do sentido, é inaces-
sível, por isso seu efeito de “pouco sentido” (peu de sens), como
diz Lacan. Nas palavras de Lacan: “este 1 [S1] como tal, enquanto
marca da diferença pura, é a ele que vamos nos referir para colocar
à prova [...] as relações do sujeito com o significante. Teremos [...]
que mostrar em que sentido o passo que é franqueado é aquele da
coisa apagada; os diversos apagamentos[effaçons] [...] pelos quais o
significante vem à luz, nos darão precisamente os modos capitais
da manifestação do sujeito”. LACAN, J. Seminário IX, A identificação
(1961, 61). Tradução de Ivan Corrêia e Marcos Bagno. Recife: Cen-
tro de estudos freudianos do Recife, 2003, p. 64.
22  Real, Simbólico e Imaginário são os três registros universais que
compõem a subjetivação em Lacan. O registro do Simbólico cor-
responde à linguagem, à palavra, ao significante; o do Imaginário,
ao corpo próprio, às imagens e ao sentido; e o do Real, ao gozo.

O cristal da língua, tagarelar feminino ... | Isabela Pinho 113


medida em que fala, é constitutivamente marcado por uma
fratura, uma falta constitutiva, uma negatividade. Pois, se
desde Aristóteles, o humano é definido como o zôon échon
lógon, “o vivente que possui linguagem”, aquilo de que ele não
pode fazer a experiência na medida em que fala, na medida
em que faz um uso instrumental da língua, é aquilo que cons-
titui sua própria definição como humano e o diferencia do
animal. Essa dimensão da existência da própria linguagem
para além de seu caráter instrumental e comunicativo é cha-
mada por Benjamin de médium da linguagem, como vimos.
Por isso, podemos dizer que tanto em Benjamin como em
Lacan, em determinado momento, a relação de negatividade
entre o falante e a linguagem é acentuada. Porém, também
em Lacan, há uma tentativa de repensar essa relação — ou
de lidar com ela de um outro modo — que passa pelo femi-
nino. Minha hipótese é de que o mesmo ocorra em Benjamin
quando ele se propõe a investigar o que seria uma linguagem
feminina no ensaio “Metafísica da Juventude”. A partir de
1970, Lacan se afasta do estruturalismo e se aproxima cada
vez mais da literatura, sobretudo da literatura de James Joy-
ce, para quem dedica O seminário 23, O sintoma, e o escrito
Joyce, le Symptôme. Essa mudança implica um afastamento
do Nome-do-pai como o que marca o encontro entre o falan-
te e a linguagem, e uma aproximação com o que ele chama
de “falas impostas” (paroles imposées) d’alíngua materna. É
também uma tentativa de pensar o registro do Real não mais
como negatividade. Agora, seriam “as palavras impostas” re-
cebidas pela criança através da língua materna que marca-
riam a relação entre o falante e a linguagem.
Para Lacan, não é arbitrário que alíngua seja materna, e isso
quer dizer, que ela tenha relação com o feminino. Em “À Es-
cola Freudiana”, Lacan afirma que a mãe, diante da qual se
encontra o bebê em sua “lalação”, seu balbuciar, é exatamen-
te a mesma coisa que alíngua, na medida em que ela é alín-

114
gua incarnada e que, como tal, a transmite ao bebê.23 Essa pa-
rece ser a mesma experiência infantil de linguagem descrita
por Benjamin em Mummerhelen, palavra que — como vimos
— em suas variações de sentido, contém tanto a Mumme ma-
trilinear quanto o balbuciar (Mummler) e o murmurar (Mum
mum sagen). Em todo caso, essa relação entre o falante e a
linguagem, marcada pelos equívocos das palavras impostas
d’alíngua materna, produziria sintomas no sujeito (symptô-
mes com “p”) a partir do quais, no trabalho de análise e no
savor-y-faire, no saber-fazer com os sintomas, em uma outra
lida com eles, o sujeito produziria o que Lacan chama de sin-
thome, com “th”, no fim de análise24.
Assim, se o Nome-do-pai insere o sujeito em uma cadeia su-
cessiva de significantes, que também aponta para uma inter-
pretação infinita no trabalho do analista, o que está em ques-
23  Cf. LACAN, Jacques. Alla Scuola Freudiana. Lacan in Italia, 1953-
1978. Milão: La Salamandra, 1978, p. 104-147.
24  Nas palavras de Geneviève Morel “a teoria do sinthoma propõe
uma alternativa ao Nome-do-pai”, e isso não somente para psi-
cóticos, como teria sido o caso de James Joyce. Assim, a relação
entre linguagem e corpo, segundo Morel, pode passar ou não pelo
Nome-do-pai, e ele também se torna um significante contingen-
te. Como afirma Morel: “dizer que não existe nomeação unívoca
do Real pelo Simbólico leva a refutar radicalmente a afirmação
segundo a qual a sexuação de um sujeito seria fixada de uma vez
por todas pelo Nome-do-pai. E, no entanto, alguns psicanalistas
lacanianos sustentam esta tese com sua correlata de que a sexua-
ção não seria jamais estabelecida na psicose visto que o Nome-do-
-pai não funciona aí. [...] A sexuação não provém de uma nomea-
ção unívoca pelo Nome-do-pai – teoria simplista frequentemente
promovida por razões ideológicas”. Para Morel, há um importante
elemento ético-político a ser levado em consideração na clínica
da psicanálise implicado na virada do Nome-do-pai em direção às
palavras impostas d’alíngua materna, na medida em que caberá
a cada um, singularmente, interpretá-las; interpretação e criação
que “colorem de ambiguidade a ‘escolha’ de uma identidade sexu-
al”. Cf. MOREL, Geneviève. La loi de la mère. Essai sur le sinthome
sexuel. Paris: Ed. Economica, 2008, p. 327 – 331.

O cristal da língua, tagarelar feminino ... | Isabela Pinho 115


tão n’alíngua materna é a simultaneidade cujo exemplo é a
homofonia. E se Benjamin definia o médium da linguagem
em 1933 como o arquivo das semelhanças não-sensíveis, La-
can afirma que alíngua (lalangue) é “o depósito, a aluvião, a
petrificação do inconsciente, e da maneira como um grupo
lida com sua própria experiência”25. A homofonia não aponta,
portanto, para uma relação, mas sim para uma simultaneida-
de e imediatidade de aspectos materiais da própria língua, ou
da dizibilidade da língua mesma, para a qual Lacan constrói
o neologismo “móterialisme”, a materialidade (matérialisme)
das próprias palavras (mots). Na homofonia, não há nada de
indizível por dizer, pois é a própria dizibilidade da linguagem
que se diz. Dessa maneira, a cristalina eliminação do indizí-
vel na linguagem, proposta por Benjamin, pode ser pensada
nesse sentido. E de fato, em Radiofonia, Lacan não cansa de
ressaltar “o caráter de cristal da língua” ou o “efeito de cristal
homofônico”.26 De Benjamin a Lacan, o cristal da língua é o
âmbito da dizibilidade da própria linguagem a partir de um
ponto de vista material, o âmbito em que a oposição indizí-
vel/dizível não se dá.
Assim, se Benjamin, na “Tarefa do Tradutor”, concebe o mé-
dium da linguagem como aquilo que constitui o parentesco
supra-histórico das línguas históricas, e, por isso, as ultrapas-
sa, Milner dirá que é justamente dessa ultrapassagem que se
trata na homofonia (crossover).27 Nesse sentido, Lacan aponta
para a não arbitrariedade dos homófonos “une bévue”, (em
francês, uma mancada/ “que mancada!”) e “Unbewusst” (em
alemão, inconsciente). Do ponto de vista da materialidade
das palavras, há uma relação não arbitrária entre “o incons-

25  LACAN, Conferência A terceira [1974]. Cadernos Lacan. Porto


Alegre: APPOA, 2002. v. 2.
26  LACAN, Jacques. “Radiophonie”, Autres Écrits. Paris: Éditions du
Seuil, 2001, p. 425, 427.
27  MILNER, Jean-Claude. “Back and forth form letter to homo-
phony”. Language and the intersection of Politics, Law and Desire.
Birbeck College, University of London. Palestra em 25/04/2017.

116
ciente” (Unbewusst) e o chiste (bévue); o que agora nos faz re-
tomar a questão do tagarelar feminino e de sua wahnwitzigen
Sprache, de sua língua louca, na “Metafísica da juventude”.
Muito curiosamente, também em Lacan, há um tagarelar fe-
minino, e ele aparece em uma paródia que ele faz, para nossa
surpresa, do Gênesis bíblico. Logo nas primeiras páginas do
seminário 23 Lacan dirá que se Adão nomeou o mundo, é Eva
quem primeiro se utilizou dessa linguagem, ao falar com a
serpente. Em suas palavras:
Adão, como seu nome pronunciado em inglês bem indica
(...) era uma madame, de acordo com a piada que faz Joyce.28
É bem preciso supor que Adão nomeou as criaturas na língua
daquela que chamaria de Évida.29. Posso chamá-la assim pois
que em hebreu (...) seu nome quer dizer a mãe dos viventes.
Bom, Évida tagarelou imediatamente nessa língua, pois após
a suposta nomeação de Adão, a primeira pessoa que se serviu
dela, foi ela, para falar com a serpente. A chamada criação
divina se duplica no tagarelar do ser falante [parlote du par-
lêtre].30
Muitas páginas adiante, em uma passagem que ressoa a opo-
sição entre linguagem masculina e linguagem feminina do
ensaio de Benjamin de 1913, Lacan afirma que
o homem é o portador da ideia de significante. Essa ideia, em
alíngua [lalangue] tem seu suporte essencialmente na sin-
taxe. De qualquer maneira, o que caracteriza alíngua entre
todas são os equívocos [equivoce] que lhe são possíveis, tal
como ilustrei com equívoco de dois [deux] com deles [d’eux].
Se alguma coisa na história pode ser suposta, é que foi o con-

28  A piada consiste na proximidade dos sons das palavras “Adam”


e ”madam” em língua inglesa.
29  Lacan brinca com a homofonia entre “Èvie” e “est vie”, que
significa “é vida”.
30  LACAN, Jacques. Le Sinthome (Le séminaire 23). Paris: Édition
du Seuil, 2005, p. 13.

O cristal da língua, tagarelar feminino ... | Isabela Pinho 117


junto de mulheres que engendrou o que chamei de alíngua.31
Quando Lacan diz que a criação divina se duplica no taga-
relar feminino do ser falante, ou quando diz que a ideia de
significante, da qual o homem é portador, tem seu suporte
em alíngua feminina, poderia parecer que, como suporte ou
fundamento, o tagarelar feminino permanece em uma ne-
gatividade. Mas assim como, em psicanálise, o inconsciente
não é um conceito negativo — ou seja, não é aquilo que não
vem à consciência, mas sim um pensamento que pensa e que
diz, como afirma Lacan em “Meu ensino”32 — assim também
alíngua, ao expor a dizibilidade e a expressividade da língua
mesma, aponta para uma positividade.33
O que chamo aqui de positividade deve ser pensado como
essa autotransparência da língua, marcada pelo caráter de
imediatidade e sincronia da homofonia, da qual Lacan acen-
tua seu efeito de cristal. Por isso, se Benjamin procura, em
1913, por uma linguagem feminina, e a caracteriza como uma
língua dos chistes, podemos, seguindo suas reformulações
acerca do médium da linguagem, aproximá-la de alíngua la-
caniana, engendrada, como Lacan o diz, por um conjunto de
mulheres. Tanto em Lacan quanto em Benjamin, a língua fe-
minina é marcada por equívocos e chistes e é a língua na qual
aquela cristalina eliminação do indizível na linguagem se dá.
Em trabalho futuro, gostaria de pensar nas implicações ético-
-políticas para a qual um pensamento do feminino poderia
remeter. Sobretudo, gostaria de levar a sério as inquirições de
Benjamin acerca do que seria uma cultura ou uma linguagem
31  Ibidem, p. 117.
32  LACAN, Jacques. Meu ensino. Tradução de André Telles. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar ed., 2006.
33  Nas palavras de Zizek, o real d’alíngua “é a positividade pura de
ser sem nenhuma falta– como Lacan repete inúmeras vezes nesses
anos, rien ne manque dans le réel, não falta nada no real, a falta só é
introduzida pelo Simbólico.” ZIZEK, Slavoj. “O Real”. Em defesa das
causas perdidas. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo:
Boitempo, 2011.

118
feminina, e acredito que o ensino de Lacan possa nos ajudar
nesse sentido.

Referências

BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. Tradução


de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: ed. Brasiliense, 2011, p.
111. (Obras escolhidas vol.I).
________________. A Tarefa do tradutor. Escritos sobre mito
linguagem. Tradução de Susana Kampff Lages. São Paulo:
Editora 34, 2011, pp. 101-119.
________________. Correspondances I (1910-1928). Tradução
de Guy Petitdemange. Paris: Éditions Aubier-Montaigne, 1979
________________. Metaphysic der Jugend. Gesammelte
Schriften, Vol. II, 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, pp.
91 — 105.
________________. Mummerhelen, Infância em Berlim por
volta de 1900. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e
José C. M. Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 2011. pp. 120 — 122.
(Obras escolhidas Vol. II).
________________. Sobre a linguagem em geral e sobre a lin-
guagem do homem. Escritos sobre mito linguagem. Tradução
de Susana Kampff Lages. São Paulo: Editora 34, 2011, pp. 212-
156.
LACAN, Jacques. Conferência A terceira [1974]. Cadernos La-
can. Porto Alegre: APPOA, 2002. v. 2.
________________. Le Sinthome (Le séminaire 23). Paris: Édi-
tion du Seuil, 2005.
________________. “Radiophonie”, Autres Écrits. Paris: Édi-
tions du Seuil, 2001, pp. 403 — 447.
LAVELLE, Patrícia. Religion et Histoire, sur le concept d’expé-
rience chez Walter Benjamin. Paris: Les Éditions du Cerf, 2008.

O cristal da língua, tagarelar feminino ... | Isabela Pinho 119


MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Campinas, SP: Edi-
tora Unicamp, 2012.
MOREL, Geneviève. La loi de la mère. Essai sur le sinthome
sexuel. Paris: Ed. Economica, 2008.
PLATÃO. O sofista. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz
Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
Walter Benjamin e os mapas
o olhar cartográfico sobre a cidade

Daniel Melo Ribeiro


e-mail | Pontifícia Un. Católica de São Paulo
Walter Benjamin e a cartografia da modernidade

Sabemos que os mapas não foram objeto de investigação espe-


cífica e aprofundada de Walter Benjamin. Por outro lado, pode-
mos entender sua obra como uma espécie de mapeamento ou
cartografia da decadência da modernidade. Encontramos, em
seu pensamento, uma leitura crítica da cultura que parte de ín-
dices e rastros que se encontram presentes, por exemplo, no es-
paço urbano. Essa característica se manifesta, principalmente,
em suas obras Rua de Mão Única e o projeto inacabado das Pas-
sagens. Ambas estão profundamente conectadas com a experi-
ência corporal e histórica do indivíduo no espaço das cidades,
cujo personagem-chave dessa exploração é representado pela
figura do flâneur.
Por exemplo, no livro Rua de mão única, Benjamin usa a metá-
fora da rua como um princípio narrativo. Os títulos que se su-
cedem — Posto de gasolina, Sala do café da manhã, Número
113, Casa de dez divisões luxuosamente decorada, Embaixada
mexicana, Bandeira a meia haste etc. — remetem a um passeio
do autor por uma rua, repleta não somente de edifícios, de pla-
cas publicitárias e de personagens, mas também de memórias,
de sensações e de reflexões críticas sobre a burguesia. O livro
das Passagens segue uma estratégia semelhante. Mesmo que a

122
quantidade de temas e assuntos ali abordados transbordem
em uma constelação de possibilidades e citações, há uma co-
nexão inegável entre essa obra e a cidade de Paris, seja em
seus aspectos poéticos, políticos, históricos, arquitetônicos
ou culturais. De acordo com Presner (2009, p. 303):
(...) poderíamos certamente argumentar que todos os seus es-
critos experimentais sobre viagens e sobre espaços urbanos (dos
primeiros retratos das cidades até o projeto das Passagens) fo-
ram não somente tentativas de mapear sua própria vida, mas
também tentativas de se pensar sobre o que poderia significar
escrever a história em forma gráfica, mapear a cultura e espacia-
lizar a história, reunir a experiência, a representação e a produ-
ção do espaço1.
De fato, o tema da cartografia não está completamente ausen-
te de seus textos. De acordo com Bolle (2009, p. 24), “o mapa
como gênero foi um dos recursos prediletos de Benjamin
para falar do espaço urbano enquanto lugar público e refe-
rência afetiva”. Tanto na elaboração dos fragmentos reunidos
no livro das Passagens, quanto na suas publicações autobio-
gráficas, é possível identificar algumas menções a mapas.
Tais trechos demonstram que Benjamin tinha um particular
interesse por esse tema, embora não o tenha desenvolvido.
Essas menções estão ligadas, por exemplo, ao mapeamento
de aspectos aparentemente banais de uma cidade. Benjamin
sugere mapear não ruas, avenidas e igrejas — temas típicos
de um mapa convencional — mas bancos de parque, cemi-
térios e bordéis — elementos da cidade que funcionam com
índices diretamente ligados à sua memória subjetiva. Ben-
jamin também associa esse mapeamento à ação do flâneur,
o caminhante da cidade que vagueia pelas ruas observando

1  Do original: “although one could certainly argue that all of his ex-
perimental writings on travel and urban space (from the early city
portraits to the Arcades Project) were not only attempts to map his
life but also to think through what it might mean to write history in
graphic form, to map culture and spatialize history, to bring toge-
ther the experience, representation, and production of space.”

Walter Benjamin e os mapas | Daniel Melo Ribeiro 123


detalhes inusitados. Dessa maneira, Benjamin reforça a re-
levância do próprio processo de mapeamento na leitura da ci-
dade, um procedimento que envolve tanto a ação do tempo
quanto o deslocamento no espaço.
Por exemplo, no fragmento seguinte, Benjamin associa a cria-
ção de um possível filme a partir de um mapa de Paris, cujas
imagens condensariam uma sucessão de referências históri-
cas de lugares da cidade. Essa “apaixonante” realização ima-
ginada pelo autor, que reuniria diversas camadas temporais
a partir de mapas de Paris, seria muito semelhante à própria
ação do flâneur:
Não seria possível realizar um filme apaixonante a partir do mapa
de Paris? A partir da evolução de suas diversas configurações ao
longo do tempo? A partir da condensação do movimento secular
de suas ruas, boulevards, passagens, praças, no espaço de meia
hora? Não é isso que faz o flâneur? (BENJAMIN, 2009, p. 122, frag-
mento [C1,9], grifo nosso).
Em outro fragmento, Benjamin elogia a “excelente” publica-
ção de A. Taride — editora responsável pela comercialização
de diversos mapas de bolso. Benjamin lamenta que, à sua
época, poucas cidades europeias possuíam um mapa “tão
prático, minucioso e durável quanto o que existe para Paris”
(BENJAMIN, 2009, p. 124, fragmento [C1a,4]). De acordo com
Benjamin, em contraste com outros suportes, tal mapa é uma
fonte de imaginação e fantasia para experiências ligadas à ci-
dade. Neste trecho, Benjamin demonstra uma certa desilu-
são em relação àquelas pessoas que não se interessam pelo
teor imaginativo do mapa Taride.
Para as pessoas, cuja fantasia não se desperta ao se debruçarem
sobre o Taride, ou que preferem entregar-se a suas experiências
parisienses através de fotos ou anotações de viagem, em vez de
fazê-lo por meio de um mapa, para essas pessoas não há remé-
dio. (BENJAMIN, 2009, p. 124, fragmento [C1a,4]).
Provavelmente, Benjamin tinha em mãos o mapa Nouveau
Plan Taride Paris par Arrondissement, publicado em 1926 por

124
tal editor. A figura 1 exibe o 7ème arrondissement de Paris, um
dos 22 mapas presentes nessa publicação.

Figura 1: Mapa do 7ème arrondissement de Paris, publicado por A.


Taride em 19262.

Em outro trecho, referente às crônicas sobre a cidade de Ber-


lim, Benjamin comenta seu desejo antigo em criar uma re-
presentação cartográfica de sua vida: “Desde há muitos anos,
estou brincando com a ideia de organizar graficamente o es-
paço da vida — bios — na forma de um mapa.” (BENJAMIN
apud BOLLE, 2000, p. 332, grifo nosso). Nesse trecho, pode-
mos perceber o claro interesse de Benjamin pelo mapeamen-
to de elementos heterogêneos de sua experiência pessoal
numa espécie de narrativa cartográfica alternativa, em detri-
mento de pontos típicos de um mapa convencional. A tarefa
de se criar um mapa biográfico demandaria um “sistema de

2  Fonte: Antiqua Print Gallery website. Disponível em: http://www.


antiquemapsandprints.com/blog/2016/02/03/paris-arrondisse-
ment-maps-from-the-nouveau-plan-taride-paris-par-arrondisse-
ment-1926/. Acesso em 29/05/2017.

Walter Benjamin e os mapas | Daniel Melo Ribeiro 125


signos” através do qual ele marcaria determinados pontos de
interesse da seguinte forma (BENJAMIN apud BOLLE, 2015,
p. 86):
Quando eu estiver velho, gostaria de ter no meu corredor da
minha casa
Um mapa de Berlim
Com uma legenda
Pontos azuis designariam as ruas onde morei
Pontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas
Triângulos marrons, os túmulos
Nos cemitérios de Berlim onde jazem os que me foram próxi-
mos
E linhas pretas redesenhariam os caminhos
No zoológico ou no Tiergarten
Que percorri conversando com as garotas
E setas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores
Onde deliberava sobre as semanas berlinenses
E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos
Do amor da mais baixa espécie ou do amor mais abrigado do
vento
Segundo Bolle (2015), Benjamin chegou a criar uma espécie
de notação visual diagramática baseada em um sistema de
siglas e cores para o seu projeto das Passagens (figura 2). Essa
notação seria uma espécie de metodologia visual de organi-
zação de suas citações e fragmentos em categorias, que se-
riam associadas a um determinado símbolo colorido.
Nesse contexto pode-se apresentar a hipótese perfeitamente
plausível de que Benjamin, paralelamente às suas diferencia-
das formulações verbais, trabalhou com uma forma alterna-
tiva da escrita, que lhe permitiu pensar a história social da
cidade de Paris de modo abreviado, como um esboço e uma
montagem, com elementos do diagrama e de uma escrita
pictórica semelhante a hieróglifos. Neste caso, as siglas em
cores representariam uma nova forma de escrita da história
com funções semânticas e sintáticas próprias (BOLLE, 2015,
p. 89)

126
Figura 2: Notação diagramática do projeto das Passagens3

No entanto, Bolle afirma que essa notação era de uso priva-


do de Benjamin na organização de seu material de pesquisa,
não sendo necessariamente destinada à publicação. De todo
modo, é provável que tal sistema seja um desdobramento das
ideias não desenvolvidas por Benjamin sobre seu mapa afe-
tivo de Berlim.
Para Benjamin, o mapa é um instrumento imagético de co-
nhecimento e de descoberta da cidade. Em seus comentários
sobre Moscou, Benjamin exalta a relevância dos mapas na
sua orientação pelas ruas, esquinas e praças da capital russa.

3  Notação diagramática desenvolvida por Bolle (2015) a partir das


considerações de Benjamin sobre a organização do projeto das
Passagens. Os temas a serem publicados foram organizados em ca-
tegorias e associados a um determinado símbolo gráfico colorido.
No diagrama da figura 2, Bolle menciona a cor de cada símbolo no
topo, na primeira linha. Fonte: Bolle (2015, p. 92)

Walter Benjamin e os mapas | Daniel Melo Ribeiro 127


Após flanar pela cidade e se perder nas “armadilhas topográ-
ficas” de Moscou como um estrangeiro, “os mapas e as plan-
tas acabam por vencer: à noite, na cama, a imaginação faz os
seus jogos com edifícios, parques e ruas verdadeiros” (BEN-
JAMIN, 2015, p. 21). Assim, Benjamin entende o mapa como
uma espécie de jogo que estimula a imaginação a encontrar
correspondências gravadas na memória espacial do flâneur.
Benjamin também se refere ao mapa (ou planta) como um
estímulo ao conhecimento “total” da cidade, contrastando
com o conhecimento detalhado da fotografia. Ambos os su-
portes — mapa e fotografia — são complementares e alcan-
çam um “espectro” da cidade que os livros e a literatura não
podem representar.
Existe um conhecimento ultravioleta e outro infravermelho des-
ta cidade [Paris], que não cabem já na forma do livro: a fotogra-
fia e a planta — o mais exato conhecimento do pormenor e do
todo. Dispomos das mais belas amostras dessas extremidades
do campo visual (BENJAMIN, 2015, p. 58, 59).
Por fim, há duas breves menções a mapas no livro Rua de mão
única. Em ambas, Benjamin usa o termo “mapa” como título
de um fragmento, que não necessariamente possui uma liga-
ção evidente com esse tema (aliás, trata-se, propositalmente,
de uma estratégia discursiva de montagem e estranhamen-
to utilizada por Benjamin ao longo de toda essa obra). Uma
dessas menções se encontra no trecho Antiguidades. Nesse
trecho, um tanto enigmático, Benjamin vincula a ideia de
“mapa antigo” a uma reflexão sobre a melancolia e o amor. A
saudade da pátria-mãe, associada ao sentimentos de amor e
a nostalgia, assemelha-se a uma “viagem longa”. Nesse senti-
do, o mapa poderia ser entendido como um índice da memó-
ria afetiva que nos conduz nessa viagem melancólica.
Mapa antigo. A maior parte das pessoas busca num amor a pátria
eterna. Outros, porém, muito poucos, a eterna viagem. Estes são
melancólicos, e têm motivos para temer o contato com a terra-
-mãe. Procuram aqueles que poderiam manter afastada deles a
saudade da pátria. A esses são fiéis. Os livros medievais sobre a

128
doutrina dos temperamentos conhecem bem a nostalgia desse
tipo de homens pelas viagens longas. (BENJAMIN, 2013, p. 37)
No trecho Artigos de papelaria, Benjamin menciona um mapa
chamado Pharus. Na versão em inglês, o fragmento foi publi-
cado da seguinte maneira: “Pharus map. I know someone who
is absent-minded…” (BENJAMIN, 2016, p. 53). Na versão em
português, João Barrento optou por pela seguinte tradução:
Planta topográfica: conheço uma mulher que é distraída. No lu-
gar onde eu tenho presentes os nomes dos meus fornecedores, o
local onde estão guardados os documentos, endereços de ami-
gos e conhecidos, a hora de um encontro, é para ela o lugar onde
fixou conceitos políticos, palavras de ordem do partido, fórmu-
las de profissões de fé e ordens. Vive numa cidade de slogans e
mora num bairro de vocábulos irmanados pelo espírito da con-
juração, onde cada viela toma partido e cada palavra tem por eco
um grito de guerra (BENJAMIN, 2013, p. 32).
Presner (2009) afirma que o mapa Pharus (mencionado na
tradução em inglês) foi um dos mapas dobráveis de bolso
mais populares na Alemanha entre os anos 1920 e 1930. A fi-
gura 3 exibe um mapa Pharus de Berlim, datado de 1929. Um
dos destaques desse mapa é a ênfase no sistema de transpor-
tes ferroviário, o que reforça a relevância da mobilidade e da
rede de conexões com outras localidades para os berlinenses
daquele contexto. Segundo Presner, Benjamin tinha familia-
ridade com mapas desse tipo e, muito provavelmente, teve
acesso a uma versão do mapa mostrado na figura 3.

Walter Benjamin e os mapas | Daniel Melo Ribeiro 129


Figura 3: Pharus Map Berlin, 1929.4

O mapa do flâneur

Além do diagrama desenvolvido por Willi Bolle (2015), outras

4  Fonte: Wikimedia commons. Disponível em: <https://commons.


wikimedia.org/wiki/File:Pharus_Map_Berlin_1929.jpg>. Acesso
em: 01/06/2017.

130
relações da obra de Benjamin com os mapas e a cartografia
também foram propostas por seus comentadores. Por exem-
plo, no livro A razão nômade, Sergio Rouanet (1993) — um
dos principais tradutores da obra de Benjamin no Brasil —
propõe um mapa que traça, pelas ruas de Paris, uma possível
trajetória do flâneur (figura 4). Rouanet utilizou, como crité-
rio de mapeamento, palavras-chave da obra de Benjamin que
remetem aos temas dos fragmentos e aos títulos dos cader-
nos que compõem o livro das Passagens: colecionador, moda,
trapeiro, prostituta, barricadas, exposição universal etc. Cada
palavra-chave foi associada a um ponto da cidade, criando
uma trajetória que se inicia pela galeria Vivienne (uma das
Passagens parisienses situada nas proximidades da Biblio-
teca Nacional, local frequentado por Benjamin), passa pela
região da bolsa de valores e chega ao boulevard Montmartre.
De lá, o flâneur segue em direção ao Grand Palais na avenida
Champs-Élysées, passando pela região de l’Opéra Garnier, da
igreja Madeleine e da Place de la Concorde. Atravessando o rio
Sena, o flâneur chega à região do museu d’Orsay, uma antiga
estação de trem. Seguindo pela margem esquerda do rio, ele
alcança a ponte que divide outras duas estações de trem: a
Gare d’Austerlitz e a Gare de Lyon. Retornando, o flâneur então
se aproxima da igreja de Notre Dame e pega a rua de Saint-De-
nis, passando ao lado do Forum les Halles para concluir seu
passeio na passagem do Cairo.

Figura 4: Mapa do flâneur em Paris, por Sergio Rouanet5.

5  Fonte: Rouanet (1993).


Walter Benjamin e os mapas | Daniel Melo Ribeiro 131
Em cada um desses pontos da cidade, Rouanet recupera uma
reflexão do livro das Passagens, associando-a ao espaço ma-
peado. Por exemplo, no trecho Urbanismo (ROUANET, 1993,
p. 29), Rouanet recorda as considerações de Benjamin sobre
o Barão de Haussmann, prefeito da cidade responsável por
conduzir uma significativa intervenção arquitetônica e ur-
banística na cidade a partir do século XIX e que dá nome a
uma das avenidas que cruzam o trajeto do flâneur. O plano
de Haussmann contribuiu de maneira radical para a “moder-
nização” da cidade, porém às custas tanto da demolição sem
precedentes de prédios e casas quanto do aumento de gastos
públicos. Similar análise é feita no trecho A ruína (ROUANET,
1993, p. 47), onde Rouanet menciona o longo e demorado
projeto de revitalização do Forum des Halles, onde antes se
localizava um mercado e hoje concentra, sob um shopping
center, uma das principais conexões subterrâneas de trens e
metrôs da cidade. Segundo Rouanet:
Há pouco tempo, toda essa parte da cidade era uma vasta crate-
ra, grandes buracos onde antes havia um mercado. Ruínas, em
toda parte ruínas. Mas não está nisso a essência da cidade? Não
é ela habitada pela virtualidade do declínio? (ROUANET, 1993,
p. 47)
No trecho A exposição universal (ROUANET, 1993, p. 35),
Rouanet relembra os palácios construídos para esse evento
ocorrido em 1900. Além da própria estrutura arquitetôni-
ca em vidro e metal do teto do Grand Palais — um tipo de
construção similar a das próprias passagens — Benjamin se
interessou pelo fascínio despertado pelas exposições univer-
sais nas pessoas daquele contexto. Nessa reflexão, Benjamin
recupera um conceito de Marx, referindo-se ao poder atrati-
vo da mercadoria-fetiche, que seduz o operário aos prazeres
consumistas do mundo burguês. Ao mesmo tempo em que
diverte, as exposições universais cumprem uma função di-
dática: elas convidam e ensinam as massas a se “impregnar
pelo valor de troca dos produtos expostos” (ROUANET, 1993,
p. 36). Já no trecho O labirinto (ROUANET, 1993, p. 24), o flâ-

132
neur de Rouanet é estimulado a consultar o mapa da cidade,
tão logo deixa uma das passagens onde se encontrava: “Antes
de sair da passagem, o flâneur consulta o plano de Paris, não
porque não conheça de cor os mínimos pormenores da ci-
dade, mas porque não há maior prazer que examinar o mais
perfeito dos planos urbanos do mundo” (ROUANET, 1993, p.
24-25). Em seguida, é mencionado o trecho onde Benjamin
diz que não há salvação para aqueles que não se deixam se-
duzir pelo estudo desse mapa.
A interpretação cartográfica de Rouanet sobre o projeto das
Passagens é uma sugestão sedutora para um passeio filosó-
fico pelas ruas de Paris, inspirado pelas reflexões de Benja-
min. Seu mapa conduz o leitor pelas ruas, esquinas, praças,
monumentos, pontes e galerias, estabelecendo uma relação
topográfica entre os espaços reais da cidade e a obra de Ben-
jamin. O mapa de Rouanet funciona como um instrumento
diagramático que desperta novas interpretações sobre os
temas desenvolvidos no projeto das Passagens. Em outras
palavras, novas camadas de significado à obra de Benjamin
são adicionadas a partir do momento em que organizamos
algumas de suas ideias em um plano cartográfico. Além dis-
so, somos convidados a nos colocar no lugar do flâneur para
percorrer o trajeto sugerido, ainda que estejamos a milhares
de quilômetros de distância de Paris.
Por outro lado, o mapa proposto por Rouanet não introduz
elementos inovadores e questionadores da própria lingua-
gem cartográfica. Pois, afinal, esse não é seu objetivo. O mapa
do flâneur é somente um instrumento diagramático que po-
tencializa a interpretação de certos aspectos espaciais da
obra de Benjamin. Para esse propósito, um mapa simples e
um traçado linear foi suficiente para representar visualmente
elementos espaciais trabalhados por Benjamin.
Contudo, a obra de Benjamin também tem inspirado outros
autores a pensarem a própria maneira de se criar mapas.
Como o pensamento desse filósofo pode nos ajudar a refle-

Walter Benjamin e os mapas | Daniel Melo Ribeiro 133


tir sobre a linguagem cartográfica? Que aparência teria um
mapa inspirado no pensamento limiar de Benjamin? Quais
seriam os critérios utilizados para se pensar um mapeamen-
to capaz de contemplar uma visão crítica da cidade?

Mapas: lugares de encontro e espaços de movi-


mento

Outro comentador da obra de Benjamin que também elabora


uma interpretação cartográfica do pensamento desse filósofo
é o pesquisador Todd Presner, professor em línguas germâni-
cas, literatura comparada e estudos judaicos da Universidade
da Califórnia, em Los Angeles. Em uma de suas publicações
chamada Mobile Modernity: Germans, Jews, Trains, Presner
(2009) propõe uma reflexão sobre a modernidade a partir do
confronto de ideias entre pensadores de origem germânica e/
ou judaica, tais como Kafka, Heidegger, Arendt, Freud e He-
gel. Presner ressalta os “espaços de encontros, trocas e conta-
minações” (PRESNER, 2009, p. 297) entre esses pensadores,
em busca de “geografias de simultaneidade ou constelações
de possibilidades” (PRESNER, 2009, p. 297).
Presner defende o seguinte argumento: há diversas técnicas
para se trabalhar um conteúdo de caráter historiográfico.
Essas técnicas poderiam ser aplicadas como uma forma de
se explorar os diversos objetos da cultura, tais com os pró-
prios textos filosóficos. A narrativa escrita, por exemplo, se-
ria somente uma dessas escolhas. Poderíamos, de maneira
análoga, criar uma colagem, um diagrama, uma pintura, um
website, um filme etc. No entanto, interessa-lhe discutir a
possibilidade de se usar mapas como ferramentas potencia-
lizadoras dessa investigação.

134
Para explicar sua proposta, Presner descreve um típico mapa
de sistemas de transportes ferroviários. A estrutura em rede
desse tipo de diagrama, com suas infinitas possibilidades
de interconexões e sua abertura descentralizada, enfatiza a
importância do espaço e da mobilidade. Além da atenção
ao movimento dos corpos, Presner reforça a identificação,
nesse tipo de mídia, dos espaços percorridos e a visualiza-
ção de narrativas dos deslocamentos. Dessa maneira, esse
pesquisador sugere uma investigação da história e da cultura
— presente, por exemplo, no embate entre autores judeus e
alemães — apoiando-se em uma estrutura cartográfica:
Poderíamos perguntar: e se a história não fosse mais escrita
(pelo menos não exclusivamente) em uma prosa linear, mas sim
composta por espaços em rede de um sistema ferroviário? E se
o passado fosse mapeado em cima e ao longo de ruas, bairros e
territórios? E se a cultura fosse reconectada ao lugar? (...) Como
outros tipos de visualizações e mídias — sejam cartográficas, fíl-
micas ou hipermidiáticas — poderiam não somente expandir
mas potencialmente romper com as normas da mídia impressa,
talvez abrindo caminho para um ambiente mais aberto, tran-
siente, flexível e em múltiplas camadas para se conceitualizar e
compor estudos históricos?6 (PRESNER, 2009, p. 298-299)
Presner estabelece uma conexão com uma área de estudos
conhecida como mapeamento profundo (ou deep mapping).
Trata-se de uma abordagem emergente que se situa no cru-
zamento entre as áreas da cartografia e das ciências huma-
nas, cujo objetivo é estudar lugares em profundidade através

6  Do original: “We might ask: What if history was no longer written


(at least not exclusively) in linear prose but composed like the
networked spaces of a railway system? What if the past was ma-
pped onto and along streets, neighborhoods, and territories; what
if culture was reconnected to place? (...) How might other kinds
of visualizations and media—whether cartographic, filmic, or
web-based—not only extend but potentially disrupt the normative
medium of print, perhaps giving way to a more open, transient,
flexible, and multilayered environment for conceptualizing and
composing historical studies?”

Walter Benjamin e os mapas | Daniel Melo Ribeiro 135


da mobilização de um conjunto mais amplo de informações
geográficas, incluindo ficção, artes, narrativas e memórias
associadas aos lugares (RIBEIRO; CAQUARD, 2018). No tre-
cho acima, Presner propõe uma série de conceitos que se
tornaram centrais nos estudos sobre mapeamento profun-
do, tais como o uso de camadas, a exploração de dimensões
temporais e a integração com outras mídias. Por ser um pes-
quisador também ligado às áreas de digital humanities e da
geografia cultural, Presner se interessa pelas alternativas de
mapeamento, capazes de romper com padrões de represen-
tação linear da história. Esse é um dos desafios perseguidos
pelo mapeamento profundo: investigar modelos de visuali-
zação que permitam mapear o passado “em ruas, bairros e
territórios”, a fim de reconectar a cultura com o lugar.
Para viabilizar esse projeto, Presner recorre, antes de mais
nada, ao pensamento de Walter Benjamin. Segundo Presner,
o método proposto em seu próprio livro possui um signifi-
cativo débito à abordagem materialista e crítica de Walter
Benjamin sobre os processos históricos, “um pensamento
que começa e termina com as ruínas e os detritos da cultura
moderna” (PRESNER, 2009, p. 297). Partindo dessas ruínas,
acumuladas em camadas temporais como um palimpsesto,
seria possível mapear histórias e narrativas que se proliferam
nesses lugares de encontro e espaços de movimento.
De acordo com Presner, esse tipo de mapeamento — que
almeja alcançar uma profundidade histórica e que valoriza
narrativas não lineares — assemelha-se estruturalmente ao
próprio pensamento de Benjamin. No entanto, esse mapa
benjaminiano não seria um mapa comum. Ao contrário do
mapa Pharus, mencionado anteriormente, “as meditações
urbanas de Benjamin não podem ser facilmente mapeadas
sobre a cidade em suas representações cartográficas tradi-
cionais7” (PRESNER, 2009, p. 300). Nesse sentido, Presner vai
além do exercício cartográfico do flâneur proposto por Rou-
7  Do original: “Benjamin’s urban meditations do not easily map
onto the city or its traditional, cartographic representations”

136
anet e sugere que deveríamos pensar em um suporte visual
que pudesse corresponder, de maneira mais adequada, aos
tipos de experiência que Benjamin privilegia em suas refle-
xões. Segundo Presner (2009, p. 301):
Benjamin está preocupado com coisas que estão ausentes do
mapa Pharus: estruturas sociais e econômicas, memórias de
infância, emoções, imagens fugazes, gostos e aromas, barulhos,
texturas e outras experiências somáticas (...) As paisagens ur-
banas de Benjamin (...) são as histórias fragmentadas e não-si-
multâneas que coexistem como “camadas temporais” num dado
presente.8
Trata-se, no entanto, de um modelo cartográfico hipotético,
de difícil concepção. Basicamente, o grande desafio consiste
em pensar um mapeamento que possa traduzir tanto expe-
riências qualitativas ligadas ao espaço — sensórias e mnê-
micas — quanto conexões históricas temporalmente frag-
mentadas. Da maneira análoga, poderíamos imaginar um
mapa com uma estrutura labiríntica, onde o desvio e a deriva
também se incorporam à metodologia. Por fim, um mapa co-
erente com os princípios benjaminianos, não pode deixar de
explorar as experiências que se encontram nos limiares dos
espaços urbanos.
A questão crítica permanece: como tal mapa (e, desse modo, a
construção de sua história e a história do que ele representa)
pode ser re-animado — ou seja, aberto ao infinito número de
histórias não-simultâneas contidas em cada rua, estrutura e edi-
fício, as inumeráveis vozes e corpos que criam essas histórias
através das suas interações e os contingentes encontros em tais
espaços?9 (PRESNER, 2009, p. 301).

8  Do original: “Benjamin is concerned with things that are absent


from the Pharus map: social and economic structures, childhood
memories, emotions, fleeting images, tastes and smells, noises,
textures, and other somatic experiences (...) Benjamin’s cityscapes
(...) are the non-simultaneous, fractured histories that co-exist as
‘time layers’ in any given present”
9  Do original: “The critical question remains: How can such a map

Walter Benjamin e os mapas | Daniel Melo Ribeiro 137


Sabemos que os mapas são poderosos aliados das narrativas,
sejam elas ligadas aos textos literários ou à própria memória
(CAQUARD; CARTWRIGHT, 2014). Além disso, sabemos que
o rompimento com as convenções da cartografia tradicional
nos abre algumas possibilidades de leituras estéticas e políti-
cas do espaço (WOOD, 2010). É justamente nessa fresta que
se inserem as pesquisas sobre o mapeamento profundo, das
quais Presner é um entusiasta.
Nesse sentido, o mapeamento profundo (ou thick mapping,
como ele prefere chamá-lo), lidaria com as expressões cul-
turais que se manifestam em um determinado lugar, “bem
como os seus movimentos, padrões de desenvolvimento,
ambientes urbanos e as paisagens culturais e sociais, usan-
do ferramentas extraídas da geografia, geologia, antropolo-
gia, estudos culturais e etnologia10” (PRESNER, 2007, p. 11).
Em outras palavras, o mapeamento profundo poderia ser um
instrumento para investigação de certas expressões culturais
tendo em vista suas articulações espaciais.
Tal exercício foi colocado em prática por Presner, em con-
junto com outros pesquisadores, na elaboração do projeto
HyperCities11. Trata-se de um tipo de plataforma colaborativa
de divulgação de estudos ligados ao espaço urbano. O projeto
disponibiliza na internet um ambiente interativo de pesquisa
e ensino, destinado a estimular a análise da história cultural,

(and, thereby, the construction of its history and the history of


what it represents) be re-animated—that is to say, opened to the
infinite number of non-simultaneous histories contained in every
street, structure, and building, the innumerable voices and bodies
that made these histories through their interactions and contin-
gent encounters in such spaces?”
10  Do original: “[...] deals with the cultural and linguistic expres-
sions of people in a particular place as well as their movements,
patterns of development, urban environments, and cultural and
social landscapes using tools that pull from geography, geology,
anthropology, cultural studies, and ethnology”
11  http://www.hypercities.com/

138
arquitetônica e urbanística das cidades. Os estudos publica-
dos em HyperCities combinam, além de mapas, vídeos, tex-
tos, documentos, fotos e visualizações gráficas de dados. Os
resultados do projeto também foram publicados em um livro
(PRESNER et al, 2014).
Em resumo, podemos concluir que a proposta de Presner
consiste em usar a cartografia como método de investigação
histórica. Para isso, o autor dialoga com as pesquisas sobre
mapeamento profundo, que buscam desenvolver técnicas
alternativas de mapeamento. Essas técnicas visam alcançar
outros aspectos relevantes aos estudos da área de spatial hu-
manities, tais como narrativas que emergem dos lugares, pro-
priedades qualitativas ligadas ao espaço e recortes temporais
não-lineares. Essa é uma preocupação geral dos pesquisa-
dores interessados nessa vertente. No entanto, o que difere o
trabalho de Presner das outras pesquisas sobre mapeamento
profundo, é o interesse em apoiar seus argumentos em cate-
gorias benjaminianas: “O que é muito mais relevante para as
paisagens urbanas de Benjamin e uma parte central do thick
mapping imaginado aqui são as histórias não simultâneas e
fraturadas que coexistem como ‘camadas de tempo’ em qual-
quer presente12” (PRESNER et al, 2014, p. 58).

Uma leitura benjaminiana sobre o mapeamen-


to profundo

O olhar investigativo de Benjamin para a cidade em busca de


12  Do original: “What is far more relevant for Benjamin’s citysca-
pes and a central part of the ‘thick mapping’ imagined here are the
non-simultaneous, fractured histories that co-exist as ‘time layers’
in any given present.”

Walter Benjamin e os mapas | Daniel Melo Ribeiro 139


rastros da modernidade pode ser entendido como uma espé-
cie de olhar cartográfico. Ainda que Benjamin não tenha tra-
duzido esse pensamento em uma representação cartográfica
propriamente dita, é possível detectar esse princípio imagéti-
co e diagramático em recortes de sua obra, especialmente em
Rua de mão única e no livro das Passagens.
Podemos também nos arriscar a dizer que esse olhar seria
mais próximo de um exercício crítico de mapeamento. Em
afinidade com as ideias da cartografia crítica (WOOD, 2010), o
estilo filosófico de Benjamin também busca um viés político,
criticando convenções do pensamento ocidental positivista.
Em uma de suas afirmações mais célebres, Benjamin propõe
que a tarefa do materialista histórico consiste em “escovar a
história a contrapelo” (BENJAMIN, 2012, p. 245), ou seja, ir
contra a trajetória corrente, percorrer o sentido inverso para
revelar traços que se encontram sob as camadas superficiais
da leitura histórica tradicional. Não seria esse mesmo movi-
mento que a cartografia crítica se propõe a fazer em relação à
cartografia científica?
Ao associarmos o pensamento de Benjamin à cartografia,
buscamos um embasamento conceitual para propormos
uma discussão sobre os processos que envolvem o mapea-
mento de lugares. Sabemos que esse tipo de mapeamento in-
cluiria uma série de pressupostos que tornariam árdua a sua
materialização em um suporte visual consolidado. No entan-
to, acreditamos que o desafio é válido e, no mínimo, suscita-
rá reflexões sobre as representações cartográficas do espaço:
como poderíamos conceber um mapa desse tipo? Sob quais
fundamentos ele deveria ser construído? Como esse mapa
poderia proporcionar uma interpretação alternativa da ci-
dade? Assim sendo, este estudo dialoga intimamente com
o trabalho de Presner. Em sintonia com esse autor, também
acreditamos na possibilidade de se pensar no processo de
mapeamento profundo fundamentado na filosofia materia-
lista e crítica desenvolvida por Walter Benjamin.

140
Contudo, há um aspecto nessa analogia entre o pensamento
de Benjamin e a cartografia das cidades que requer atenção.
Como aponta Willi Bolle (2000), Benjamin se concentrou nas
metrópoles europeias do início do século XX. Trata-se de um
contexto histórico e geográfico distinto das cidades contem-
porâneas que se situam na periferia do eixo Atlântico-Norte
(tais como São Paulo, Cidade do México, Nova Déli, Pequim
e Joanesburgo, por exemplo). De fato, poderíamos alegar que
os problemas associados às metrópoles contemporâneas (in-
cluindo a própria Paris) alcançaram uma outra escala, em
comparação ao contexto em que Benjamin escreveu sobre as
cidades. Mobilidade urbana, segurança, moradia, tolerância
religiosa, lazer, poluição são exemplos de temas que ganha-
ram outra dimensão em nosso atual momento. Dado esse
problema, o próprio Willi Bolle se pergunta: “diante das di-
ferenças históricas e geográficas entre os dois mundos, como
extrair dos retratos benjaminianos de cidades um modelo
também válido para a representação de uma metrópole sul-
-americana?” (BOLLE, 2000, p. 33). De maneira análoga, po-
deríamos derivar algumas questões: como traduzir a figura
do flâneur para os dias de hoje? Como as ruínas produzidas
pelo capitalismo globalizado se manifestam nas cidades? Se-
ria possível mapear a “aura” que pulsa na arte urbana e nas
modalidades artísticas de intervenção dos espaços públicos
da cidade?
Embora aponte para um outro contexto, não há dúvidas de
que o pensamento de Benjamin nos fornece subsídios con-
ceituais para refletirmos sobre a cidade contemporânea. Se-
gundo Bolle (2000, p. 33), “(...) determinadas estruturas de
nossas grandes cidades foram antecipadas, de modo visioná-
rio, pelas ‘radiografias’ da modernidade, de autoria de Benja-
min”. Contudo, além das próprias considerações que Benja-
min tece sobre a cidade de sua época, interessa-nos focalizar
a maneira como esse pesquisador desempenha essa tarefa,
ou seja, em seu método investigativo.
Ao fazer da cidade um laboratório de estudos, Benjamin pro-

Walter Benjamin e os mapas | Daniel Melo Ribeiro 141


põe um método que exige do pesquisador a busca por ín-
dices que se manifestam na cidade a partir de uma postura
arqueológica. “Como o flâneur de Benjamin, o pesquisador
em deriva observa, recupera índices e marcas urbanas para
analisá-los sob o impacto da descoberta daquilo que não se
impõe à observação” (FERRARA, 2015, p. 124). Esses índices
são frágeis, fugidios, que escapam ao olhar superficial e gene-
ralista do pesquisador apressado. Por essa razão, o tempo do
flâneur é outro, mais lento, que contrasta com a velocidade
dos transeuntes, dos automóveis, da informação digital ime-
diata. Ao comentar sobre seu próprio método de pesquisa,
Benjamin reforça o interesse pelos desvios de rota e para os
detalhes que requerem uma outra noção de temporalidade:
O que são desvios para os outros, são para mim os dados que de-
terminam a minha rota. — Construo meus cálculos sobre os di-
ferenciais de tempo — que, para outros, perturbam as ‘grandes
linhas’ da pesquisa (BENJAMIN, 2009, p. 499, fragmento [N 1,2]).
Dessa forma, “a descoberta daquilo que se esconde ou não
se exibe na cidade nos leva a perceber suas distinções, hete-
rogeneidades descontínuas e surpreendentes que fascinam o
olhar e intrigam o conhecimento” (FERRARA, 2015, p. 124). A
cidade — repleta não só de índices, mas também de incon-
táveis outras manifestações sígnicas — apresenta-se como
um rico objeto de pesquisa da comunicação e da semiótica.
Portanto, ao buscar compreender melhor os lugares por meio
dos processos de mapeamento, este estudo encontrou em
Walter Benjamin um roteiro epistemológico para explorar a
cidade contemporânea.

142
Referências

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1900. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
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tica, cidade, educação: itinerários de Walter Benjamin. Rio de
Janeiro: Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2009.
BOLLE, Willi. A metrópole como hipertexto: a ensaística
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Walter Benjamin: experiência histórica e imagens dialéticas.
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CAQUARD, Sébastien; CARTWRIGHT, William. Narrative
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and mapping. The Cartographic Journal, 2014, v. 51, n. 2, p. 101-
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PRESNER, Todd. Mobile Modernity: Germans, Jews, Trains.
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Body of Knowledge (1st Quarter 2018 Edition), John P. Wilson
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ROUANET, Sergio. A razão nômade: Walter Benjamin e ou-
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WOOD, Denis. Rethinking the power of maps. New York: The
Guilford Press, 2010.
Juventude em Berlim por
volta de 1915
Universidade e sociedade em “A vida dos estu-
dantes”, de Walter Benjamin

Carolina Peters
carolinapeters50@gmail.com | Un. Federal do Rio de Janeiro
Juventude em Berlim por volta de 1915

O conteúdo desta exposição é um dos primeiros desdobra-


mentos de uma pesquisa de Iniciação Científica dedicada ao
estudo de textos benjaminianos da década de 1910, iniciada
em março de 2017, sob a orientação da professora drª Martha
Alkimin1. Exercitando a leitura imanente2, buscamos apre-
ender em sua singularidade as formulações do jovem autor
para dois temas caros à sua produção posterior: a experiên-
cia [Erfahrung] e a crítica à corrente historicista. Nos valemos,
do ponto de vista metodológico, das proposições feitas por
José Chasin para a investigação da obra marxiana, que têm se
mostrado bastante produtivas no trabalho com Walter Benja-
min. Escreve ele sobre seu procedimento:
É decisivo, numa época devastada pelo arbítrio e pela equiva-
lência das “leituras”, ressaltar uma questão fundamental: repro-
duzir pelo interior mesmo da reflexão [de um autor] o traçado
determinativo de seus escritos, ao modo como o próprio autor
os concebeu e expressou. […] Tal análise, na melhor tradição re-

1  Martha Alkimin de Araújo Vieira, professora Associada do Depar-


tamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).
2  Cf. CHASIN (2009).

146
flexiva, encara o texto — a formação ideal — em sua consistên-
cia autossignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores
que o conformam, tanto positivos quanto negativos: o conjunto
de suas afirmações, conexões e suficiências, como também as
eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configu-
ração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos
quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscu-
recida no movimento de produção do para nós que é elaborado
pelo observador (CHASIN, 2009, pp. 25-26).
Privilegiamos no trabalho investigativo, portanto, a própria
textualidade benjaminiana, face a seus comentadores. O
mesmo vale para a exposição, na qual nos esforçamos para
que prevaleça a dicção do autor. Procuramos ainda preser-
var a autonomia e autossuficiência desses primeiros escritos,
resistindo à tentação de projetá-los (sem mediação) nos en-
saios consagrados, bem como àquela de redimir os posicio-
namentos juvenis em razão das convicções ideológicas que
assumiu nos anos posteriores — e que, em grande medida,
foram responsáveis por motivar essa empreitada de desco-
brimento de Walter Benjamin.
Trataremos aqui de “A vida dos estudantes”, publicado pela
primeira vez em 1915. Redigido a partir de conferências mi-
nistradas no ano anterior, quando ainda ocupava a presi-
dência da Berliner Freie Studentenschaft3, o texto registra o
momento de ruptura daquele que mais de quatro anos an-
tes “[...] emergiu como um líder e orador em vários grupos
estudantis associados ao que hoje se conhece como o Mo-
vimento de Juventude alemão” (ELIAND; JENNINGS, 2014,
3  Oposição às tradicionais corporações estudantis [Burschenscha-
ften], surgidas no início do século XIX, as Freie Studentenschaft, ou
Associações de Estudantes Livres, representavam uma tendência
mais radical do movimento de juventude alemão no começo do
século XX. Em 1914, Benjamin se elege presidente da Berliner Freie
Studentenschaft, abandonando o cargo pouco após a eclosão da
Primeira Guerra Mundial (Cf. WOLIN, 1982, p. 12; WITTE, 2017, p.
22; SCHOLEM, 2008, p. 21; KONDER, 1999, p. 16; ELIAND; JENNIN-
GS, 2014, pp. 62-67).

Juventude em Berlim por volta de 1915 | Carolina Peters 147


p. 32). Apesar de textualmente ausente do artigo — segundo
seu amigo Gershom Scholem (2008, p. 33), Benjamin mani-
festava “[...] total aversão a discutir os acontecimentos políti-
cos do dia e as ocorrências da guerra” — os bombardeios da
Primeira Guerra Mundial ecoam nas entrelinhas, fornecendo
como plano de fundo para o rompimento do autor com os
Estudantes Livres o entusiasmo bélico que tomou conta de
seus mentores e bases4. No cerne de seu argumento, contu-
do, o então universitário de 23 anos interroga uma juventude
que, aderindo a certa “concepção de História” e sua confian-
ça no progresso, troca seu espírito pelo “filisteísmo”; vende
sua alma e seu presente pela “segurança burguesa” futura.
A crítica contundente que expõe, logo no primeiro parágrafo,
a tal vertente historicista5 conduziu estudiosos e comenta-
dores de sua obra posterior, em particular de seu derradeiro
escrito, “Sobre o conceito da História”, a evocar “A vida dos
estudantes”. Destacando seu “assombroso exórdio”, o pesqui-
sador e tradutor francês Philippe Ivernel (2012, p. 6) afirma
que o trecho inicial
[...] ilustra, na relação instaurada entre esses dois termos [crítica
e utopia], um movimento que se encontra, mutatis mutandis, nos
escritos ulteriores do autor, até sua última versão inscrita nas re-
flexões sobre o conceito abrangente de história, vindo à luz, em
4  O apoio do pedagogo Gustav Wyneken (1875 – 1964), importante
mentor intelectual de Benjamin desde a adolescência, à entrada
da Alemanha no conflito foi inadmissível para ele. Escreve ainda
seu Biógrafo Richard Wolin (1982, p. 4): “Com o início da I Guerra
Mundial, o Movimento de Juventude chegou a um fim (ainda que
algumas de suas correntes tenham vivido até o início da década de
1920) que foi a uma só vez trágico e irônico: em uma orgia de zelo
patriótico, milhares se voluntariaram ao front, onde iriam pere-
cer em uma guerra concebida e engendrada pela mesma geração
cujos valores haviam desprezado sem hesitar até a véspera da
eclosão da guerra”.
5  Corrente historiográfica surgida no final do século XIX, exerceu
grande influência no pensamento alemão do início do século XX
(Cf. REIS, 1996).

148
1940, no momento de todos os perigos.
De forma semelhante, aos olhos de Michel Löwy (2005, p. 20)
, o artigo parece “[...] reunir num único raio de luz todas as
ideias que vão povoá-lo ao longo de sua vida” e, particular-
mente, ao final dela. Stéphane Mosès (2009, pp. 66-67), por
sua vez, fala em uma analogia arrebatadora entre ambos,
como se “[...] antecipando o estágio final de seu pensamento,
Benjamin criticasse a ideia de progresso”. A proposta bastante
singela desta exposição, no entanto, nem trilha o comparati-
vismo atrás das semelhanças, como nos exemplos supracita-
dos, nem para estabelecer a differentia specifica entre os escri-
tos de 1915 e 1940, mas busca tão somente apreender em sua
singularidade a crítica presente em “A vida dos estudantes”,
à qual Benjamin articula uma reflexão sobre a Universidade
alemã de seu tempo e sobre o que considera o papel histórico
do estudantado.
***

O sedutor parágrafo de abertura condensa as ideias que se-


rão desenvolvidas pelo autor ao longo das páginas seguintes.
De partida, localiza e busca definir uma linha historiográfica
corrente, segundo a qual a história da humanidade transcor-
reria dentro de um continuum temporal, percorrido ora deva-
gar, ora aceleradamente. Escreve ele:
Há uma concepção de História que, confiando na infinitude do
tempo, distingue apenas o ritmo dos homens e das épocas que
rápida ou lentamente avançam pela via do progresso. A isso cor-
responde a ausência de nexo, a falta de precisão e de rigor na
exigência que ela faz ao presente (BENJAMIN, 2009, p. 31).

Juventude em Berlim por volta de 1915 | Carolina Peters 149


Confiando na certeza do progresso, tal concepção tem por
consequência um descompromisso com a ação presente dos
homens. Aqueles que a seguem, portanto, se mostram pouco
rigorosos e displicentes (afinal, falta-lhes nexo) com suas ati-
tudes. Contrapondo-se a tal acepção, a consideração de Ben-
jamin (2009, p. 31) “[...] visa, porém, um estado determinado,
no qual a História repousa concentrada em um foco, tal como
desde sempre nas imagens utópicas dos pensadores”, apre-
sentando, assim, uma concepção de História concorrente,
fundamentada não mais na ideia de progresso, mas de foco,
tendo em perspectiva um estado determinado — “estado fi-
nal” [Endzustand], como dirá na sentença seguinte:
Os elementos do estado final não afloram à superfície enquanto
tendência amorfa do progresso, mas se encontram profunda-
mente engastados em todo presente como as criações e os pen-
samentos mais ameaçados, difamados e desprezados. Conver-
ter, de forma pura, o estado imanente de perfeição em estado
absoluto, torná-lo visível e soberano no presente, esta é a tarefa
histórica (BENJAMIN, 2009, p. 31).
Tomando em conta essa outra concepção, a significação his-
tórica não se dá, portanto, no transcurso e sucessão infinitos
das eras, mas deve ser extraída de imagens utópicas focais.
Daí, derivam duas assertivas: a primeira nega que o porvir es-
teja aprioristicamente assegurado, posto que não se alcança o
Endzustand por um movimento tendencial; a segunda afirma
que o estado final, as imagens de utopia, subjazem no tempo
presente através de suas manifestações intelectuais e artísti-
cas, que não são incorporadas ou diluídas (como tendência
amorfa), mas pelo contrário, são interditadas pelo status quo.
Percepção de interdição que é reforçada no texto pela sequ-
ência de qualificativos disfóricos “mais ameaçados, difama-
dos e desprezados”6. Rigorosa e exigente com o presente, a

6  No original, “als gefährdetste, verrufenste und verlacht” (BENJA-


MIN, 1991, p. 75). O último desses termos, que em alemão carrega
o radical do verbo lachen, “rir”, poderia ainda ser traduzido por “ri-
dicularizados”, como na versão francesa de Maurice de Gandillac,

150
concepção histórica aqui defendida por Walter Benjamin tira
consequências de si, demandando uma tarefa que se apre-
senta diante deste quadro de descrédito e ridicularização:
converter, de forma pura, o estado imanente de perfeição,
onde estão incrustadas as criações e pensamentos índice do
estado final, em estado absoluto. Em outras palavras, fazê-lo
emergir no tempo que habita; reconhecê-lo no presente.
A fim de delinear esse estado final, não podendo “[...] ser
parafraseado com a descrição pragmática de pormenores
(instituições, costumes, etc.), descrição da qual ele se fur-
ta”, posto que, “[...] apreendido em sua estrutura metafísica,
como o reino messiânico ou a ideia da Revolução Francesa”
(BENJAMIN, 2009, p. 31), ele é a própria utopia, a vida dos
estudantes, seu significado histórico e o significado histórico
da universidade alemã contemporânea a Benjamin são en-
tão mobilizados como símile, como reflexo. Remetendo à sua
textualidade:
O atual significado histórico dos estudantes e da universidade, a
forma de sua existência no presente, merecem portanto ser des-
critos apenas como símile, como reflexo de um momento mais
elevado e metafísico da História. Somente assim ele se torna
compreensível e possível. Tal descrição não é apelo ou manifes-
to, que tanto um como o outro permaneceram ineficazes, mas
indicia a crise que, situando-se na essência das coisas, conduz
a uma decisão à qual os covardes sucumbem e os corajosos se
subordinam (BENJAMIN, 2009, pp. 31-32).
O estabelecimento do símile tem, portanto, a dupla função
de demonstrar que a utopia, “um momento mais elevado
e metafísico da História”, é não somente mensurável, como
igualmente possível, realizável. A busca por descrever tal mo-
mento não configuraria apelo ou manifesto7, mas é índice/
que traduz moquées (Cf. BENJAMIN, 1971).
7  Em que pesem as palavras do nosso autor, acatadas por seus bi-
ógrafos (Cf. ELIAND; JENNINGS, 2014, p. 65), “A vida dos estudan-
tes” não deixa de ser, a uma só vez, manifesto de ruptura com os
Estudantes Livres e chamado à juventude para uma tarefa histórica.

Juventude em Berlim por volta de 1915 | Carolina Peters 151


indício de uma crise que ocorre “na essência das coisas”. Con-
vém aqui um pequeno desvio para melhor compreendê-la.
Um trecho de seu discurso de posse como presidente da As-
sociação dos Estudantes Livres de Berlim, citado pelo próprio
Benjamin, pode contribuir com esse intuito. Diz então:
Todo indivíduo atuante aspira pela totalidade, e o valor do de-
sempenho individual reside precisamente nessa totalidade, ou
seja no fato de que a essência total e indivisível de um ser hu-
mano possa ganhar expressão. Mas a realização socialmente
fundamentada, tal como hoje encontramos, não contém a tota-
lidade, é algo inteiramente fragmentado e derivado. Não é raro
que a comunidade social seja o espaço em que, sorrateiramente
e na mesma sociedade, luta-se contra os desejos mais elevados
(BENJAMIN, 2009, p. 35).
O intento de atestar o valor espiritual de uma comunidade,
no caso em questão, da comunidade estudantil, dá a tônica
das palavras proferidas pelo recém-empossado presidente.
Esse valor, ele nos conta, é expresso na medida em que in-
divíduo e comunidade sejam imprescindíveis um ao outro, e
que tal relação primordial permita ao indivíduo se expressar
em sua integralidade, em sua “essência total e indivisível”, nos
sentimentos mais elevados de seu espírito. O que percebe en-
tre seus contemporâneos, porém, é um descompasso entre as
atividades exercidas8 e o espírito, posto que seu sentido “não
emana do próprio trabalho” (BENJAMIN, 2009, p. 36). Obser-
va a supressão dos “desejos mais elevados”, com um sentido
originário verdadeiramente ético que conduza as ações dos
indivíduos em sociedade, em nome do sentimento de dever
daquele que se amedronta, que se acovarda diante das ex-
pectativas da comunidade social. A crise, como momento

Em todo caso, a diferenciação parece reforçar a linha que no texto


opõe o espírito à política; a ciência às necessidades do Estado, que
infelizmente não aprofundaremos aqui.
8  O exemplo que aparece em seu discurso é do trabalho assisten-
cial desempenhado pelo estudantado alemão (Cf. BENJAMIN,
2009, pp. 35-37

152
limite, conduz imperiosamente a uma decisão — a tarefa his-
tórica —, curvando os covardes e dirigindo os bravos a fim de
reconstituir a totalidade do que se encontra fragmentado, en-
contrar o sentido ético e verdadeiro naquilo que foi derivado.
Cabe aos jovens, tomando por ferramenta a crítica, realizá-la:
O único caminho para tratar do lugar histórico do estudantado e
da universidade é o sistema. Enquanto várias das condições para
isso continuarem vedadas, restará apenas libertar o vindouro de
sua forma desfigurada, reconhecendo-o no presente. Somente
para isso serve a crítica (BENJAMIN, 2009, p. 32).
Como símile do estado final, o “lugar histórico do estudanta-
do e da universidade” necessita ser abordado em sua totali-
dade e seu conteúdo de verdade, de forma sistemática. Posta,
contudo, a condição de imanência deste estado, circunscre-
ve-se a única — e vale comentar que já é muita coisa — fun-
ção da crítica para este jovem Benjamin: libertar o vindouro
da forma desfigurada que assume enquanto os pensamentos
e criações rejeitados, fragmentados e encravados no presen-
te; dito de outro modo, fortalecer tais pensamentos, dando a
ver a utopia que subsiste em seu tempo.
É uma tarefa de grande envergadura, Benjamin aponta, so-
bretudo por perceber que falta ao estudante de seu tempo,
a quem cabe conduzir a crítica, “coragem para submeter-se
de maneira ampla”, e prossegue: “O marcante na vida do es-
tudante é, de fato, a aversão em submeter-se a um princípio,
em se deixar imbuir de uma ideia” (BENJAMIN, 2009, p. 32).
Face a essa recusa, presente inclusive entre seus colegas do
Movimento de Juventude, a posição expressa nesse texto é
de submissão a uma tarefa intelectual; posição disputada por
ele inclusive no seio do estudantado livre. Encontramos uma
anedota sobre esse episódio, tão fidedigna quanto possa ser
Mnemosyne, nas memórias de Gershom Scholem sobre a
amizade dos dois:
Benjamin me contou que, quando da sua eleição a presidente
da Associação dos Estudantes Livres em Berlim, Joël era um dos

Juventude em Berlim por volta de 1915 | Carolina Peters 153


líderes da oposição a ele. Joël encabeçava o grupo cujo progra-
ma era a reforma político-social, enquanto Benjamin considera-
va uma falsa solução esta orientação e, como evidencia em seu
artigo Das Leben der Studenten, que se baseava em parte no seu
discurso inaugural como presidente, defendia uma “renovação”
intelectual (SCHOLEM, 2008, p. 21).
Apesar de vitorioso nas eleições estudantis de 1914, é forçoso
assinalar que a posição de “renovação intelectual” defendi-
da por Benjamin perde força dentro de um movimento que
começa a se dissipar com a eclosão da guerra, tornando-se
francamente minoritária à época da redação de “A vida dos
estudantes”, ao passo em que o apoio ao viés profissionali-
zante9 do ensino superior ganha densidade e um sentido de
urgência contra os danos sociais do conflito em curso. A ade-
são das organizações estudantis livres à reforma escolar e sua
insuficiência em reverter o quadro de apatia generalizada,
estão explícitas na dicção de seu já ex-presidente:
A submissão acrítica e inerte a esse estado é um traço essencial
na vida dos estudantes. É verdade que as assim chamadas “or-
ganizações estudantis livres” e outras de cunho social empre-
enderam uma tentativa aparente de solução. Esta, em última
instância, caminha no rumo de um aburguesamento completo
(BENJAMIN, 2009, p. 34).
O processo de “aburguesamento” aqui apontado refere-se a
um caráter pragmático e especializado da formação univer-
sitária, conduzindo a juventude aos quadros da burocracia
pública e ao “filisteísmo”. Desse entendimento decorre a fal-
sidade do argumento daqueles que propagam a indiferença
do corpo estudantil com os problemas de uma “grande vida”,
considerando-os estranhos às preocupações acadêmicas
e erguendo na “ciência”, com as aspas do próprio Benjamin
(1991, p. 76), sua guarida.

9  Sobre as mudanças ocorridas na Universidade alemã no início


do século XX, a palestra ministrada por Max Weber em 1917, “A ci-
ência como vocação” [Wissenschaft als Beruf], fornece importantes
contribuições (Cf. WEBER, 2011, pp. 17-64).

154
A profissão que abre à juventude a trilha da “segurança bur-
guesa” (p. 40), retilínea e previsível como a ideia de progresso
histórico, é para ele inimiga da ciência; logo, sendo a univer-
sidade um “reduto da ciência”, não caberia a esta instituição a
profissionalização de seus estudantes. O conhecimento cien-
tífico, que alcança sua universalidade tendo em vista “[...] as
questões metafísicas de Platão e Espinosa, dos românticos e
de Nietzsche” (BENJAMIN, 2009, p. 41), tal como o concebe
Benjamin no presente texto, é por sua vez uma vereda tor-
tuosa, correspondendo a uma outra concepção histórica na
qual nada está determinado na linha de seu desenvolvimen-
to. Com “medo do vindouro” (p. 45), os estudantes que abrem
mão de seu espírito em nome da suposta tranquilidade da
vida burguesa, do casamento e da profissão, abdicam tam-
bém à ciência.
Com isso, Benjamin sublinha a situação singular em que se
encontram os estudantes “[...] uma vez que neles, pela pró-
pria essência das coisas, esses dois polos da existência hu-
mana [o filho de família e o pai de família] encontram-se tem-
poralmente lado a lado” (BENJAMIN, 2009, p. 43). No limiar
da completa imersão no mundo das instituições burguesas,
estão em posição privilegiada para reivindicar uma “grande
vida”. Para a questão fundamental (ou anterior) instaurada
pela unidade consciente que permite à vida dos estudantes
na universidade ser abordada enquanto “símile ou reflexo de
um momento mais elevado e metafísico da História”, Benja-
min fornece uma resposta:
A vida do estudante é abordada mediante a questão de sua uni-
dade consciente. Essa questão está no início, pois não leva a
nada distinguir problemas da vida do estudante — ciência, Esta-
do, virtude — se lhe falta coragem para submeter-se de maneira
ampla. [...] O nome da ciência presta-se por excelência a ocul-
tar uma indiferença comprovada e profundamente arraigada.
Mensurar a vida estudantil com a ideia de ciência não significa
de maneira alguma panlogismo ou intelectualismo — como se
está inclinado a temer —, mas é crítica legítima, uma vez que
na maioria dos casos a ciência é levantada, como muralha férrea

Juventude em Berlim por volta de 1915 | Carolina Peters 155


dos estudantes, contra reivindicações “estranhas” [fremde]. Tra-
ta-se, portanto, de unidade interior e não crítica que vem de fora.
Neste ponto, a resposta está dada com a observação de que, para
a grande maioria dos estudantes, a ciência é uma escola profis-
sionalizante. Já que “ciência não tem nada a ver com a vida”, en-
tão ela deve [muß] moldar com exclusividade a vida de quem a
segue (BENJAMIN, 2009, p. 32, grifos nossos).
Tendo a função de tornar “[...] um momento mais elevado e
metafísico da História [...] compreensível e possível” (BENJA-
MIN, 2009, pp. 31-32), o símile necessita não somente aferir
a unidade interna dos distintos problemas que entrecruzam
a vida dos estudantes, como demanda que esses estudantes
assumam o compromisso crítico com a tarefa histórica. Ben-
jamin, no trecho acima, demonstra como, apesar das obje-
ções de setores estudantis à tarefa histórica por ele reivindi-
cada, as comunidades estudantil e social se tocam, tal vasos
comunicantes, na medida em que a formação universitária
se volta para os interesses imediatos do Estado na formação
de médicos, juristas, professores universitários; e como, con-
tudo, essa configuração é prejudicial ao interesse científico
que julgam preservar, posto que “a profissão decorre tão mi-
nimamente da ciência que esta pode até excluí-la. Pois, em
consonância com a sua essência, ela não tolera nenhuma
solução para si mesma” (BENJAMIN, 2009, p. 32). O modal
müssen, com o sentido imperativo de dever que guarda na lín-
gua alemã, enfatiza o oxímoro retórico dos que pretendem
a preservação da ciência responsabilizando-a pela formação
do funcionalismo estatal.
Nosso jovem autor rechaça, portanto, que a universidade
sirva à formação de profissionais (à exceção dos professores
[Lehrer]10, cuja vida profissional seria a própria vida da ciên-

10  Uma recordação de Gershon Scholem (2008, pp. 64-65) sugere


uma interpretação para o vocábulo Lehre bastante pertinente, ba-
seada na Torá: “[...] instrução não só sobre a verdadeira condição
e caminho do Homem no mundo, mas também sobre a conexão
transcausal das coisas”.

156
cia), sem contudo se ocupar em oferecer alternativa nesse
sentido: “A objeção de como o Estado atual recrutaria então
os seus médicos, juristas e docentes não prova aqui nada em
contrário” da tese de que a ciência não deve ser profissionali-
zante, afirma ele. A ligação que pretende e julga, além de vital,
suficiente, é de outra ordem: não que a instituição universitá-
ria abandone a ciência servindo a um interesse da existência
imediata, mas que preserve-se como reduto da ciência, for-
mulando a crítica que promova uma vida mais elevada. Nes-
sa recusa do pragmatismo que intenta “[...] fundar uma co-
munidade de pesquisadores no lugar de uma corporação de
funcionários públicos e de diplomados” (BENJAMIN, 2009,
p. 33), se mostra a “grandeza revolucionária” [umwälzende
Größe] da tarefa.
Como em um sistema fechado, o parágrafo final se encerra
retomando precisamente a tarefa exposta no primeiro, onde
in nuce pulsa todo o argumento motivador do escrito. A de-
licada circularidade de “A vida dos estudantes” remonta ela
própria à concepção de História nele expressa e defendida,
segundo a qual os significados históricos repousam em um
foco de utopia submerso no presente, não dispersos no cor-
rer infinito dos tempos. A relação íntima que aqui se opera
entre forma e conteúdo atesta a relevância aqui conferida por
Benjamin à crítica como o instrumento justo através do qual
se revela o vindouro, reconstituindo à vida um sentido essen-
cial e verdadeiro de totalidade. Um artigo em que se revela
sua utopia.

Juventude em Berlim por volta de 1915 | Carolina Peters 157


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Juventude em Berlim por volta de 1915 | Carolina Peters 159


[In] Memória de imagens
no tempo:
As lembranças no processo artístico do monó-
logo Haveres da infância; Um Poeta colecionador

Erika Santos

eerikacamila@gmail.com | Un. Federal de São João del Rei


Primeiramente é preciso descrever o monólogo, as intera-
ções com os objetos cênicos e suas relações diretas com os
fragmentos/peças benjaminianos que dialogam na (re)ela-
boração de imagens para a narrativa cênica, o que contribui
com o processo de rememoração e, por conseguinte, de (re)
estruturação da dramaturgia. Para desembocar o olhar para
a construção do monólogo, foram escolhidos os seguintes
fragmentos/peças (BENJAMIN,1995): O Corcundinha (p. 141),
A escrivaninha (p. 118-120), O jogo de letras (p. 104-105), Um
anjo de natal (p. 120-122), Esconderijos (p. 91) e Armários (p.
122-125). A construção da cena abarcou o universo do in-fante
de cada um que se propôs a realizar a transposição da litera-
tura benjaminiana em dramaturgia, o que possibilitou per-
mear uma certa compreensão da espontaneidade que cerca
o sujeito que brinca, daquele que busca no movimento infan-
til se envolver inteiramente com o espaço.
No caminho prático para a construção do monólogo Haveres
da infância; Um Poeta colecionador é preciso ressaltar que a
pesquisa exigiu muito mais do que um simples pensar sobre
o universo infantil, necessitando levantar também metodo-
logias de um corpo em cena. Através da crença que Walter
Benjamin tinha sobre a possibilidade de recuperar o modo
como seus pais viveram e também a sensibilidade do olhar
infantil sobre o mundo, fez-se necessário compreender os
conceitos benjaminianos para estabelecer entre a criança de
outrora e o adulto de hoje uma percepção aguçada do coti-
diano. Pensar o movimento infantil foi vivê-lo todos os dias,
retomando os fúteis augúrios da infância.
Dessa forma, mergulhados nas rememorações que os frag-
mentos de Benjamin nos trazem, outros olhares para o pró-
prio corpo do ator foram constituídos. Dividido em três par-
tes, o livro autobiográfico Rua de Mão Única (1987), de Walter
Benjamin, evidencia o quão importante é o papel do jogo na
infância. No jogo, o sujeito amplia sua percepção e aguça os
sentidos que o levam para a compreensão do mundo que o
cerca. No Rua de Mão Única é possível distinguir as ações que
o próprio autor experienciou durante sua infância. O olhar do
próprio autor ao descrever sua infância é modificado pela ex-
periência que viveu, pois, sensibilizado pelo universo infan-
til, sua escrita autobiográfica é poética e tende a criar laços
com o tempo de outrora no tempo presente. É como se o au-
tor buscasse intensificar as ações do tempo através da experi-
ência que há no limiar do tempo passado na escrita presente.
Infância Berlinense não apresenta estes desdobramentos do eu
que fazem a força da Recherche. Mas a criança que, na lembrança
do adulto, fala “eu”, está aberta, como já o ressaltamos, às dimen-
sões mais amplas do inconsciente e do político, inaugurando
uma descrição de uma subjetividade irredutível à particularida-
de de um menino singular. (GAGNEBIN, 2007, p. 89-90)
Segundo Jeanne Marie Gagnebin, o que interessa a Benjamin
é a elaboração da possível experiência no sentido mais estrito
do termo, pois para o adulto que volta o olhar para sua pró-
pria infância lhe é possível uma releitura do próprio presen-
te a partir do passado vivido. Nesse sentido, o presente texto
apresenta uma possível discussão sobre a experimentação
cênica (monólogo) e a busca do autor alemão ao apresentar
o corpo infantil — o seu próprio corpo — nos seus relatos. A
construção cênica de Haveres da infância; Um Poeta colecio-
nador foi iniciada durante a execução do projeto de pesquisa
Memória e História Cultural: Infância em Berlim (2013) que ti-
nha por objetivo discutir o movimento corporal infantil e/ou
o corpo do in-fante no momento das suas experiências para
entendimento do conceito de infância trabalhado por Ben-
jamin. Para essa discussão o projeto partiu do entendimento

162
dos textos Experiência e Pobreza (1994) e O Narrador (1994) do
próprio autor.
Ao definirmos o fragmento Desempacotando minha biblio-
teca: um discurso sobre o colecionador (1987, p. 227-235),
do livro Rua de Mão Única como fio condutor para pensar
as construções cênicas, as poéticas e teatralidades surgiam
durante as improvisações e brincadeiras para costurar uma
dramaturgia de um corpo que dançava com memórias. Para
Benjamin, o ato de colecionar livros e o seu comportamento
diante dos objetos de coleção faz surgir lembranças de sua
mais tenra infância. Por isso, o próprio autor consegue com
maestria descrever poeticamente em seu único livro autobio-
gráfico, pois o objeto de sua coleção é “uma de suas moradas,
que tem livros como tijolos” (BENJAMIN, 1987, p. 235).
É importante ressaltar como “os adultos estão interpretan-
do à sua moda a sensibilidade infantil” (BENJAMIN, 1994,
p. 247), e que experimentar diversas formas de se relacionar
com o mundo por meio de diferentes objetos foi o percurso
que possibilitou, e ainda possibilita, uma escrita da memó-
ria para elaboração de uma dramaturgia que é variável. Essa
mutabilidade permite a transitoriedade entre as imagens
formadas pela leitura dos fragmentos benjaminianos e as
cenas/imagens que podem ser criadas diante do espectador,
formulando novas outras imagens a partir da experiência e
relação com o fazer teatral. “Pois é a brincadeira, e nada mais,
que está na origem de todos os hábitos” (BENJAMIN, 1994, p.
253). É justamente essa necessidade de se vivenciar o univer-
so infantil que levou à construção da experiência cênica, o
monólogo Haveres da infância; Um Poeta colecionador.
A improvisação foi utilizada como uma “escuta” sensível do
corpo no momento da interação corpo/espaço/tempo, possibi-
litando que as observações atentas do “olhar in-fante” e suas ex-
pressões lúdicas, emergissem das brincadeiras que a própria di-
retora indicou para que a atriz fizesse durante os intervalos entre
um encontro e outro. As ações lúdicas improvisadas, os gestos
corporais e as narrativas sobre a percepção do universo infan-

[In] Memória de imagens no tempo | Erika Santos 163


til, liberaram caminhos múltiplos para transpor a literatura em
dramaturgia, as ações descritas por Benjamin em experimento
cênico. É brincando que

as crianças criam para si um pequeno mundo de coisas com ele-


mentos garimpados no vasto mundo físico e social em que estão
inseridas, e esse pequeno mundo dá a conhecer a forma ativa e
genuína como as crianças percebem e recriam a cultura, a polí-
tica, a economia, e educação, etc. (PEREIRA & MACEDO, 2012,
p. 27)
A dramaturgia do monólogo em um primeiro momento foi
elaborada a partir dos fragmentos já citados no início do tex-
to e buscou experimentar a não-fala do universo infantil que
perdura nas ações do sujeito adulto. No entanto, ao obser-
var o corpo da criança na própria brincadeira e também per-
ceber o corpo do adulto que brinca, à atriz coube descrever
as sensações sobre a relação de seu corpo com o espaço, de
suas leituras dos fragmentos benjaminianos com suas remi-
niscências. Assim, foi parte da construção cênica a sensação
das próprias experiências da atriz que surgiam a partir das
releituras dos fragmentos e das brincandeiras nas quais se
propunha a realizar.
Utilizando o conceito de autobiografia referenciada foi realizada
análise do fragmento O Corcundinha, e para tal análise adotou-
-se muito cuidado, pois como afirma Gagnebin (2007), as histó-
rias autobiográficas narradas por Benjamin não se resumem a
anedotas de um jovem judeu, pois estão carregadas de imagens
políticas. Como nos diz Gagnebin, “o Corcundinha é o represen-
tante privilegiado da inabilidade, do fracasso e do esquecimen-
to, ou ainda, de tudo o que escapa à soberania do sujeito cons-
ciente e marca tão profundamente a criança que não adquiriu a
‘segurança’ do adulto” (2007, p. 82-87). Por isso, ao buscar a ela-
boração do personagem para que fosse possível transitar entre a
criança que derruba facilmente as coisas e a atriz que busca uma
atuação dialógica com as memórias do autor berlinense, a figura
que realçou o corpo cênico fora o Corcundinha que detém parte
do esquecimento do qual gostaríamos de nos esquecer, mas que
ele registra sem folga (GAGNEBIN, 2007, p. 82-83).

164
As crianças como os artistas são capazes de reinventar novos
objetos a partir da manipulação. A aura que envolve o indiví-
duo no momento da experiência consegue trazer à luz novos
significados. Por isso, a cena e seus processos intensos, as lei-
turas dos textos benjaminianos e as brincadeiras realizadas
pela atriz propuseram um corpo em arte para que o repre-
sentante da inabilidade fosse vivenciado não só no momento
de atuação da atriz, mas por todos os envolvidos nas narrati-
vas cênicas de Haveres da infância; Um Poeta colecionador.
Nesse jogo entre o brincar e o rememorar há suspensão do
cotidiano.
Assim, no momento do jogo, o indivíduo é tomado pelo espí-
rito do jogo acessando sua memória. Esse acessar a memória
é que conduziu (e ainda conduz) a atriz em seus processos
de apresentação da cena. Um exemplo claro é no momento
em que o Poeta se configura como o estado cênico da atriz
quando ela é perpassada pelas memórias da infância de Ben-
jamin. É o corpo-em-arte evidenciando a memória e o movi-
mento na composição do corpo cênico, realçando o encontro
do “poeta colecionador” com a “atriz-pesquisadora”.
Há alguns traços que definem o Poeta. Quando está em pé e
parado uma perna é levemente flexionada enquanto a outra
fica esticada; quando caminha as duas pernas ficam flexio-
nadas e os dedos dos pés ficam entreabertos possibilitando
a passagem de ar entre eles. O metatarso é ponto de apoio
principal para dar suporte ao desequilíbrio que é nato ao Po-
eta; os braços iniciam os movimentos em 90º graus e após
a criação de desenhos aleatórios no espaço os dedos ficam
esticados, cruzando vetores e formando figuras geométricas;
o tronco está sempre um pouco inclinado para frente; e desa-
fios como deixar o plexo iluminado com um faixo de luz bem
à frente faz com que o olhar siga esta direção preenchendo
o espaço e conectando com a atenção do espectador. A figu-
ra do Poeta não está totalmente definida pois ela descobre
novas formas e sentidos quando o olhar da atriz consegue
encontrar sua própria infância através das lembranças e re-

[In] Memória de imagens no tempo | Erika Santos 165


memorações durante as experimentações cênicas que acon-
tecem por meio de ensaios e apresentações1.
Segundo Huizinga (2004), o homem é um ser essencialmente
lúdico, homo ludens, por isso através do brincar ele desenvol-
ve e alcança estímulos para compreensão do universo que o
cerca. Para Benjamin (1984), é no jogo, e nada mais que está
a origem de todos os hábitos, assim por meio do lúdico ao
corpo em arte é possível alcançar com espontaneidade a ma-
nipulação dos objetos cênicos, das memórias trazidas para a
dramaturgia e de um olhar que busca nas apresentações vi-
ver a “experiência”.
Com o intuito de aproximar-se das reminiscências que eclo-
dem em cena é preciso estar atento as vivências. Pois, “o ‘vi-
vido’ se ressignifica à medida que é ‘narrado’, uma vez que
o narrar não apenas apresenta ao outro uma história vivida,
mas reapresenta a quem viveu sua própria experiência” (PE-
REIRA & MACEDO, 2012, p. 44). Portanto, no instante em que
o sujeito se dá conta da sua própria experiência, o passado é
ressignificado a partir do olhar no presente. Ainda de acordo
com Pereira e Macedo,
pensar a experiência da infância como perspectiva para a for-
mulação de uma crítica da cultura implica compartilhar com as
crianças pontos de imersão e coautoria de interpretações. Esses
processos envolvem tanto a criação de uma relação social entre
adultos-pesquisadores com as crianças, como também a cons-
trução de uma análise material dos objetos culturais que se colo-
cam em meio a essa relação. (PEREIRA & MACEDO, 2012, p. 55)
É justamente nesse compartilhar entre criança e o jogo cêni-
co que o monólogo Haveres da infância; Um Poeta coleciona-
dor atua, pois a elaboração da dramaturgia possibilitou a bus-
ca de um corpo cênico que se deu através do trânsito entre
a criança e o adulto. A transposição das narrativas literárias
em dramaturgia ocorreram por meio da relação com objetos

1  Outras informações ver texto História e memória cultural: Imagens


e lembranças da infância em Berlim (2015).

166
cênicos e/ou memórias, brincadeiras e gestos.
O primeiro passo foi quando começamos a pensar no cená-
rio, no qual teria uma escrivaninha ao centro. Um percurso
foi criado para chegar até ela com diversas brincadeiras pelo
caminho, modificando o andar na tentativa de ser ora poe-
ta, ora criança, ora o adulto que está com pressa e necessita
chegar ao seu compromisso, ora o velho sábio que caminha
percebendo seu próprio jeito de caminhar modificado pelo
tempo. Percurso cênico criado por meio do rememorar e das
brincadeiras; o rememorar quando no ato das leituras do li-
vro Rua de Mão Única abriu as portas das memórias da infân-
cia da atriz possibilitando um olhar sensível.
O encontro com o Poeta foi um dos primeiros passos para
compreender as investigações acerca do corpo na experiên-
cia a partir das brincadeiras, memórias e objetos descritos
por Benjamin nos fragmentos trabalhados. Chamamos de
encontro com o Poeta os momentos de dedicação e constru-
ção da cena Haveres da infância; Um Poeta colecionador, que
ocorreram de forma mais intensa na elaboração de imagens
que fomentavam a relação da atriz com a movimentação cê-
nica para a construção da dramaturgia. Após os anos de 2014,
2015 e totalizando 14 apresentações2 em diversos espaços,
2  O monólogo Haveres da infância; Um poeta colecionador iniciou
suas apresentações para o Ambulatório e na Reunião de Inte-
grantes do Conselho Tutelar da Região das Vertentes/MG em
28/03/2014. Desde então tem acontecido intervenções esporádi-
cas, algumas em eventos acadêmicos, outras em eventos culturais
e na Biblioteca Municipal de São João del-Rei. Apresentações: (i)
Para os integrantes do Ambulatório. (Foram realizadas em outu-
bro de 2013 com o intuito de abrir um diálogo com as diferentes
pesquisas realizadas no grupo); (ii) na Reunião de integrantes do
Conselho Tutelar da região das Vertentes/MG – 28/03/14; (iii) no
Colóquio de Pesquisa e Extensão da Universidade do Estado de
Minas Gerais-UEMG – 17/05/14; (iv); no 7º Festival de Curtas de
Uberlândia – 15/11/14; no III Colóquio Crítica da Cultura. A Política
e as Letras, realizado pelo Programa de pós-graduação em Letras–
Promel/UFSJ – 23/11/2014; (v) no VIII Encontro de Cultura Popular

[In] Memória de imagens no tempo | Erika Santos 167


sendo que no ano de 2016 sucederam algumas experimenta-
ções como na Biblioteca da Escola Estadual Amélia Passos e
dentro das aulas de Arte na Escola Estadual João dos Santos.
Os elementos utilizados foram principalmente o andar do
Poeta, as memórias e a tentativa de criar imagens individuais
para um coletivo.
Tais experimentações fizeram com que a pesquisa persistis-
se em sua linha tênue entre memória/imagem e literatura/
dramaturgia, pois o que antes era a montagem de um monó-
logo, foi ganhando mais sentido nesse encontro com o Poeta
ao passo que as memórias dele influenciavam e muito o es-
tado cênico e a percepção do corpo nesses espaços criados
dramaturgicamente. No processo de investigação do corpo
cênico que se constitui e entrelaça as memórias do poeta e
da atriz, fica evidente que a brincadeira em cena trilha um
percurso intenso. Por essas evidências, o encontro com o Po-
eta torna-se, a partir do Festival de Teatro de Bambuí, realiza-
do em outubro de 2017, a força motriz para que a performa-
tividade cênica se dê através dos pensamentos fragmentados
dessa dramaturgia.
O intuito com a retomada fora desembaraçar-se a partir do
caminhar com os objetos cênicos, memórias da cena e lem-
branças das pessoas que estavam na elaboração da mesma
nos primeiros anos de sua concepção. Houve aquecimento

do Caquende/MG – 02/05/15; (vi) IV Congresso Internacional de


Literatura Infantil e Juvenil, Celebrando a Leitura. CELLIJ/UNESP/
Campus Presidente Prudente – 03/09/2015; (vii) Intervenção
artística para Ensaio Fotográfico realizado nas ruas de Tiradentes em
30/08/2015; (viii) na Biblioteca Pública Municipal Baptista Caetano
D’Almeida nos dias 29 e 30/10/2015; (ix) no II Seminário Internacio-
nal Casa Aberta / II Semana Acadêmica do curso de Teatro da UFSJ
– 28/10/2015; (x) na III Semana Interna de Prevenção de Acidentes
da empresa Magnu’s Minerais Metais e Ligas Ltda - 27/11/2105; (xi)
e ainda aconteceram apresentações como a participação no 3º
Festival de Cenas Curtas de Tiradentes e para a defesa da Banca de
TCC de Bacharel em Teatro.

168
e preparação do corpo cênico para que ao apresentar-se a si
mesmo pudesse trazer a consciência do devir, das percepções
corporais ao rasgar-se e desvelar o que ainda estava inteiro e
fragmentado ao mesmo tempo nessa dramaturgia que fora
tecida concomitantemente por diretora, dramaturgo, atriz e
memórias benjaminianas. Ao transitar por um espaço aberto,
com muito verde e imensa lagoa, houve um pequeno desper-
tar para as descrições que Benjamin traz no fragmento/peça
As cores:
Em nosso jardim havia um pavilhão abandonado e carcomido.
Gostava dele por causa de suas janelas coloridas. Quando, em
seu interior, passava a mão de um vidro a outro, ia me transfor-
mando. Tingia-me de acordo com a paisagem na janela, que se
apresentava ora chamejante, ora empoeirada, ora esmaecida,
ora suntuosa. Acontecia o mesmo com minhas aquarelas, onde
as coisas me abriam seu regaço tão logo as tocava como uma nu-
vem úmida. Coisa semelhante se davam com as bolhas de sabão.
Viajava dentro delas por todo o recinto e misturava-me ao jogo
de cores de suas cúpulas até que se rompessem. Perdia-me nas
cores, fosse nos céus, numa joia ou num livro. De todo modo, as
crianças são sempre presas suas. (BENJAMIN, 1995, p. 101)
As relações entre as memórias trazidas pelo texto e a vivên-
cia durante o caminhar, se entrelaçaram ainda mais com as
memórias que afloraram durante a transposição das narra-
tivas benjaminianas em texto para a cena. O perder-se nas
cores das bolhas de sabão que relata Benjamin, também é
algo que a atriz apresenta em sua trajetória. Ao caminhar e
transitar pelas cores do espaço naquele instante, ocorreu um
insight de que a experiência com essa caminhada propunha
uma retomada e ao mesmo tempo uma nova situação, pois
já não haveria a ligação física com a diretora e dramaturgo,
verificando-se que a forma expressiva/intensiva — expressi-
va/expansiva ocorre em processos de reminiscências quan-
do a atriz se torna o “Poeta”. Portanto, o processo de escrita
da memória se encontra na experimentação cênica que ve-
nho aqui denominar de Conversas de um Poeta Colecionador.
Devo salientar que, ao ser extraído do monólogo Haveres da

[In] Memória de imagens no tempo | Erika Santos 169


infância; Um Poeta colecionador, o fio condutor dessa escrita
dramatúrgica apresentar um corpo que dança com suas me-
mórias, evidenciando uma interação direta com o espaço e
com as reminiscências que surgem quando o movimento do
texto no corpo instaura conexões com memórias coletivas e
individuais.
As interfaces entre memória e esquecimento se intensificaram
durante o processo e tem possibilitado pensar nas modificações
acerca do mundo do próprio leitor que é tomado pelas memó-
rias do autor e que convergem nas brincadeiras infantis, pois “o
que interessa a Benjamin é tentar elaborar uma certa experiên-
cia (Erfahrung) com a in-fância” (GAGNEBIN,1997, p. 181).
É possível e necessária a leitura da memória em Proust, para
que seja plausível um entendimento sobre a escrita de Ben-
jamin, dessa maneira o que é comum para o entendimento
dos caminhos dramatúrgicos do monólogo seria uma costu-
ra das memórias de uma infância que perpassaram (e ainda
percorrem) o fazer teatral do sujeito que se lança no espaço
com suas teatralidades e compartilha suas lembranças com
as “possíveis memórias” construídas pelo “Poeta” em cena.
Na experiência para Proust, a memória involuntária forja o
encontro de conteúdos individuais ou coletivos de um passa-
do, que rememorado no presente, acentua essa fusão. E é na
relação das imagens com o tempo que desvelo lembranças e
procuro no esquecimento (re)invenções, pois de acordo com
Benjamin, “onde há experiência no sentido estrito do termo,
entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do
passado individual com outros do passado coletivo” (BENJA-
MIN,1989, p. 107). 
O texto que converge a poética dos objetos e das memórias da
atriz/de Walter Benjamin na retomada do processo por vezes
tem sido o pilar que conduz o espectador. Um bom exemplo
dessa condução ocorreu na segunda vez em que o processo
de retomada se colocou frente à um grupo de crianças Cen-
tro Pedagógico da UFMG/Belo Horizonte. A posição inicial
dos objetos cênicos tiveram que ser modificados devido ao

170
espaço, mas esse ponto é dos que mais me impressionam
diante das possibilidades de levar esse experimento cênico
para diversos lugares. No Centro Pedagógico a disposição fez
com que o “salto” sobre o carretel trilhasse uma compreen-
são do texto frente às ações. Todo o caminho percorrido de
um corpo que pretende dançar com suas memórias se torna-
ra mais vívido quando aqueles pequenos olhares viram junto
comigo um “marinheiro”, um “trem” e as pedras colocadas
nos trilhos. Outro momento marcante era quando as meias
eram simples meias, os balões simples balões e a caixa que
continha os objetos de coleção uma simples e possível “cai-
xa mágica”. Todos os objetos cênicos despertaram nas crian-
ças certa curiosidade, mas foi somente com a encenação do
Corcudinha que roubava sapatos, bonés e garrafinhas d’água
dos espectadores que estavam imersos na cena, que houve
a melhor das improvisações: as crianças adentraram à cena
para brincar, abrindo a gaveta do Poeta, colocando as mãos
nas meias e solicitando balões que estavam dentro do bolso
do paletó. Na hora, o pensamento lógico do ator que está em
cena é que só faltavam dois minutinhos pra entregar o texto
final ao espectador. Ali, entre os restos de uma cena sendo
remontados com mãos tão habilidosas, a atriz se viu apenas
como uma profissional que se perdeu frente ao público. Sem
ação, só mais tarde me houve questionamentos e colocações
que seguem como norte de um corpo docente.

Não de um corpo que é só do ator, mas de um


corpo que é também do professor.

Ao não jogar o jogo imposto pelas crianças, atriz negou seu


olhar para seu próprio universo infantil, o que possibilitou

[In] Memória de imagens no tempo | Erika Santos 171


sentir a necessidade de voltar a brincar, como nos momen-
tos iniciais da cena, quando a imagem do marinheiro estava
tão forte que vários olhares dos espectadores buscaram o ho-
mem que descascava batatas no fundo de um navio.
Na montagem, o texto foi essencial para que a direção desper-
tasse na atuação ações que ligadas às estéticas dos objetos,
costurasse as memórias da atriz que emergiram a partir das
leituras dos fragmentos/peças do livro Rua de Mão Única, de
Walter Benjamin. Na retomada, ou melhor dizendo, em Con-
versas com o Poeta, o que pretende-se realizar é uma ence-
nação emancipadora (ou experimento cênico, ou performa-
tividade cênica) para abordar conceitos da cena-paisagem,
como o da horizontalidade e profundidade, para alcançar
uma compreensão do “desnorteamento” dos fragmentos que
a própria retomada instiga ao colocar em performatividade
uma dramaturgia que dança com as memórias. Essa dança
busca lançar um olhar para elaborar um enlace da descone-
xão entre o ver e ouvir-se frente à um público que contribui
para as improvisações cênicas. Um dos elementos que cau-
sam estranheza e que é perceptível em Conversas com o Poe-
ta Colecionador é sua relação com o tempo e a desconstrução
de uma dramaturgia prévia que busca no aqui-e-agora a sus-
pensão de relações pré-estabelecidas.
Assim, alguns trajetos possibilitam acreditar em uma in-
vestigação do espaço-movimento e também que as leituras
dos textos benjaminianos possuem a delicadeza de elaborar
uma certa experiência com nossa própria infância. Portanto,
as elucubrações do rememorar e suas potencialidades são a
força motriz para conceber um corpo cênico em movimento
com suas memórias e se configura como uma investigação
do mesmo para compreender o jogo em cena. O que até o
presente momento foi possível notar é que o corpo na brin-
cadeira se ex-põe à entrega total do espaço abrindo os mui-
tos caminhos para o fazer cultural. Além disso, a hipotética
do encontro entre as memórias descritas por Benjamin e as
memórias que emergem das leituras e (re)leituras que a atriz

172
realiza é o que instiga a prática artística vislumbrando res-
postas durante a apresentação cênica.

Referências

AGAMBEN, G. O que é contemporâneo? e outros ensaios.


Chapecó: Argos, 2009.
AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência
e a origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
BENJAMIN, W. Rua de Mão Única. São Paulo, São Paulo: Bra-
siliense, 1987.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história ­da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BENJAMIN, W. Rua de sentido único e Infância em Berlim
por volta de 1900. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
BENJAMIN, W. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educa-
ção. São Paulo: Summus, 1984.
BENJAMIN, W.; SCHOLEM, G. Correspondência 1933-1940.
São Paulo: Perspectiva, 1993.
GAGNEBIN, J.M. História e narração em Walter Benjamin.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
GAGNEBIN, J.M. Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e
História. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultu-
ra. São Paulo: Perspectiva, 2004.
PEREIRA, R. M. R.; MACEDO, N. M. R. (orgs.). Infância em
pesquisa. Rio de Janeiro: Nau, 2012.

[In] Memória de imagens no tempo | Erika Santos 173


Fotogenia e imagem-re-
lâmpago
O arquivo no cinema

Nicholas de Andueza Sineiro


nicholasandueza@gmail.com | Un. Federal do Rio de Janeiro
Introdução

No presente artigo, pretendo explorar afinidades entre as


noções de imagem-relâmpago (Walter Benjamin) e fotogenia
(Jean Epstein) quando aplicadas ao cinema de arquivo. Para
isso, analiso alguns filmes que se baseiam na produção de
sentido a partir da retomada e da recontextualização de ima-
gens de outrora: A saída dos operários da fábrica (1995), de
Harum Farocki; Histoire(s) du cinéma (1988-1998), de Jean Luc
Godard; 48 (2009), de Susana de Sousa Dias; e S-21: a máqui-
na de morte do Khmer Vermelho (2003), de Rithy Panh. Além
desses, convoco também ao texto um curta-experimento que
realizei em conjunto com a Professora Doutora Andréa Fran-
ça Martins (PUC-Rio), intitulado Passeio público (2016) [1].
Tais obras formam um corpus heterogêneo de análise — e ex-
tenso, para um curto artigo — e isso já comunica um pouco
do modo como serão abordadas: não é minha intenção fazer

1  Curta com duração de 14 minutos, dirigido por de Andréa


França e Nicholas Andueza. Já foi recebido em alguns festi-
vais em 2017, entre eles: 12ª CineOP (Ouro Preto – MG), FIDBA
(Buenos Aires – Argentina), ISFF (Kolkata – Índia), Arquivo em
Cartaz (Rio de Janeiro – RJ). Curta acessível em: <https://vimeo.
com/176409696#at=5>.
um estudo aprofundado a respeito de cada filme (sob o risco
de exceder os limites desta escrita), e nem mesmo um pano-
rama sobre as obras e o cinema de arquivo (sob o risco de in-
correr em generalização e vaziez). Vou pelo meio disso: pre-
tendo pinçar questões e cenas específicas de cada obra para
remeter à discussão central, que trata da relação entre ima-
gem-relâmpago e fotogenia no cinema de arquivo. Também
é importante ressaltar que as obras não serão tomadas como
exemplos simplesmente. Em minha pesquisa, esses filmes
foram cada um disparando suas próprias questões, de modo
que a abordagem proposta pretende recuperar essa lógica: as
obras não como exemplos, mas como gatilhos.
Minha hipótese é a de que o caráter ensaístico e cinematográ-
fico do cinema de arquivo o aproxima da noção benjaminia-
na da imagem-relâmpago — também ela ensaística e cine-
matográfica em alguma medida. Os escritos de Jean Epstein
acerca da fotogenia vêm fortalecer esses laços ao tornarem
mais claro o funcionamento do cinema enquanto máquina
de visão capaz de expandir a percepção humana e, com isso,
construir um elo entre o estético e o epistemológico (GUN-
NING, 2012, p.17). Junto a essas observações, tento “localizar”
(sem perder de vista a maleabilidade das noções e dos obje-
tos com que trabalho) o elemento fotogênico e a imagem-re-
lâmpago a ele atrelada nos funcionamentos audiovisuais que
analiso nos filmes.

Ensaios com a imagem-arquivo: semelhança e


alteridade

Quando digo “cinema de arquivo” não me refiro a qualquer


filme que use imagens passadas em sua montagem. Há mui-

176
tas obras repletas de arquivos mas que nem por isso se apro-
ximam das discussões que estruturam o cinema que analiso.
É característica deste último se deter no arquivo em si, em
sua materialidade, em seus detalhes, naquilo que lhe falta,
enfim, olhar para os arquivos fundamentalmente enquanto
imagens, superfícies a serem lidas (DOANE, 2003, p.94), e
não simplesmente como “exemplos” de contextos históricos
passados. Ou seja, no grupo de obras que abordo, apesar de
se reconhecer o elo entre as imagens assistidas e o contexto
histórico em que foram produzidas, não se ignora o fato de
que se trata, antes de tudo, de imagens, portadoras de toda
uma complexidade estética que nos impede de saltar imedia-
tamente à história: o que o enquadramento mostra? Como se
comportam os seres filmados? O que ficou de fora quadro?
Por que filmar este ou aquele objeto desta forma, com este
ângulo de câmera? Por que incluir este ou aquele plano na
montagem do filme? E por que esse tempo de duração do
plano? E por que essa ordem de sucessão de planos? Como
retrabalhar isso tudo em uma nova montagem?
A forma que Harum Farocki encontrou de fazer essas pergun-
tas (e não necessariamente de respondê-las) em seu filme A
saída dos operários da fábrica envolve pelo menos dois ele-
mentos: a fala — narração em off — e a manipulação ostensi-
va da imagem-arquivo — cortes, desacelerações, repetições,
reenquadramentos, congelamentos da imagem, associações
com outras imagens. O filme começa com a primeira película
exibida pelos irmãos Lumière, intitulada A saída dos operá-
rios da fábrica Lumière (1895), que tinha a duração de menos
de um minuto. Enquanto assistimos aos corpos saindo do es-
tabelecimento, surge a voz off:
O primeiro filme da história apresentado no cinema tem o
título de: A saída dos operários da fábrica. Mostra como
homens e mulheres que trabalham na fábrica Lumière em
Lyon abandonam o recinto por duas saídas e desaparecem
da imagem do filme. Este filme pretende sobretudo mostrar
que se podem ver movimentos nas imagens. Desta primeira

Fotogenia e imagem-relâmpago | Nicholas de Andueza Sineiro 177


projeção, fica na memória a pressa dos trabalhadores à saída,
como se algo os puxasse. Ninguém fica no recinto da fábrica.
Logo depois, Farocki corta para uma filmagem de 1975, em
que operários da Volkswagen saem às pressas da fábrica; em
seguida, corta para a fábrica da Ford, em Detroit, em 1926;
por fim, para uma fábrica em Lyon, em 1957. “Correm como
se soubessem onde tudo é melhor”, comenta a voz off. Indo
e voltando várias vezes ao longo do filme para a película dos
Lumière, Farocki observa nela diversas camadas e as retraba-
lha com outras imagens, produzidas ao longo do século XX.
Vemos uma complexidade no objeto com que o cineasta-
-montador está lidando: embora ele reconheça contextos
históricos (ele dá todas as datas, sinaliza questões contextu-
ais, comenta sobre o primeiro filme exibido no cinema), não
é bem esse seu assunto principal. Seu ponto de partida é a
imagem, é o quê ela mostra e como. A descrição supracitada
feita pela voz off evidencia isso: mesmo tendo uma função de
localizar o que se vê e de guiar o olhar do espectador, a nar-
ração não produz nenhuma explicação elaborada (de como
era a época, de quem eram aquelas pessoas); pelo contrário,
ela enumera alguns tópicos sobre o contexto de produção do
primeiro filme e logo se detém naquilo que vemos: “desta pri-
meira projeção, fica na memória a pressa dos trabalhadores à
saída, como se algo os puxasse”.
Nesta sugestão simples, introdutória, Farocki remete a toda
uma complexa tensão que envolve a relação patrão-operário
ou trabalho-operário de uma ponta a outra do capitalismo: o
que puxa aqueles corpos para fora da fábrica? Testemunha-
mos assim uma das riquezas do recurso ensaístico aplicado
ao cinema de arquivo, isto é, uma orientação mais livre, volta-
da ao jogo, à interpretação estética do mundo, mais orientada
à superfície fértil, do que à profundidade acadêmica — como
propõe Theodor Adorno em seu célebre texto sobre a forma
ensaio (2003, pp.18-19). Com isso, repete-se a própria nature-
za da imagem cinematográfica, que só é capaz de penetrar o

178
mundo na medida em que expõe sua superfície audiovisual
em uma outra superfície, a tela. A narração em Farocki com-
põe, assim, um passeio pelas imagens, num processo que
aproxima o lugar do montador àquele do espectador.
Tentar dar conta de quem eram aquelas pessoas filmadas em
1895 por meio de, por exemplo, uma fórmula sobre a tensão
da luta de classes no capitalismo iria reduzir a existência da-
queles corpos — e o próprio argumento da luta de classes. A
luta de classes está ali e não pode jamais ser ignorada: não
somente os operários saindo da fábrica, mas seu patrão os
filmando (é a Fábrica Lumière). Por esse motivo, inclusive,
Thomas Y. Levin vai comentar que as relações entre cinema
e vigilância estão presentes desde o início do cinema (2009,
p.179). Mas há outra coisa também presente na imagem: tudo
aquilo que é visível, que se mexe, que está em quadro, e que
forma também um extracampo (os corpos e as coisas que
saem do alcance do enquadramento). Ou seja, há também
tudo aquilo que nos escapa, que não está previsto, que não
está dito ou teorizado — mas que assistimos ainda assim.
A fala da narração em off reconhece que há ali uma imensa
complexidade, e por isso faz observações analíticas simples,
quase banais: desse modo, ela dá espaço para a imagem tra-
balhar, desabrochar diante do olhar do espectador, que é su-
tilmente orientado pela narração.
Georges Didi-Huberman trata essa complexidade plural da
imagem como um anacronismo intrínseco a ela (2000, p.16).
O autor aponta que o eucronismo, isto é, a forma de organi-
zação temporal que situa os seres e as coisas através de suas
épocas (segundo a qual um quadro pertence a determina-
do movimento artístico, que pertenceu a determinado mo-
mento da história), se mostra uma abordagem rasa quando
lidamos com imagens (ibid., p.13). Elas são corpos de tempo
complexo, impuro, múltiplo: “uma extraordinária montagem
de tempos heterogêneos formando anacronismos” (ibid.,
p.16). Se Adorno assinala que “a atualidade do ensaio é a do
anacrônico” (2003, p.44), é possível sugerir que uma história

Fotogenia e imagem-relâmpago | Nicholas de Andueza Sineiro 179


sobre imagens ou feita de imagens torna-se mais rica quando
ensaística — porque só então o elemento anacrônico da ima-
gem deixa de ser ruído para se tornar semente. A abordagem
anacrônica em Farocki (visual e ensaística) é o que o permite
montar a pressa dos operários de 1895 com a pressa daqueles
filmados nos anos de 1926, 1975 e 1957: não se trata somente
de juntar tempos diversos, mas sim de ver esses tempos di-
versos já habitando as imagens de 1895 — e por isso associá-
-los via montagem.
O filme de Farocki, portanto, opera marcadamente pelo me-
canismo mágico da semelhança, proposto por Benjamin em
sua Doutrina das semelhanças. Seu argumento trata de um
funcionamento mimético que permeia a relação dos seres —
particularmente o humano — com o mundo. Benjamin des-
creve uma transformação da capacidade mimética humana
dado que “o círculo existencial regido pela lei da semelhança
era outrora muito mais vasto” (BENJAMIN, 2012, p.117). Com
o tempo as culturas desenvolveram semelhanças não-sensí-
veis entre as quais a principal é a linguagem: símbolos cuja
relação de semelhança com seu referente em algum momen-
to se tornou obscura. Assim, se antes a faculdade mimética
se realizava na clarividência (a base desta sendo o jogo de se-
melhanças diretas entre sujeito e mundo), ela foi aos poucos
direcionada para a escrita e para a fala. Estas, ao se tornarem
um “arquivo de semelhanças, de correspondências não sen-
síveis” (ibid., p.121), passaram a funcionar como “medium em
que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamen-
te, como antes, no espírito do vidente ou do sacerdote, mas
em suas essências” (ibid., pp.121-122).
A temática da mimética é demasiado abrangente e já muito
visitada, de modo que não vou me estender sobre ela. Mas
tomo esse argumento geral da Doutrina das semelhanças
para defender que o cinema talvez recupere em parte a se-
melhança relacionada à clarividência, de relação mais direta
entre coisas, seres e mundo, ao mesmo tempo que não aban-
dona o regime de semelhanças não-sensíveis da linguagem

180
[2]. E aqui me refiro menos ao universo da representação do
que à problemática da natureza da imagem cinematográfica
em si, isto é, me interesso menos pelo nível de iconicidade
do cinema do que por seu nível de indexicalidade: todos os
elementos que aparecem em uma cena filmada (ficção ou
documentário) tiveram que passar diante da câmera e riscar
com luz a sua superfície sensível (seja ela película ou sensor
eletrônico). Esse funcionamento foto-gráfico empresta ao ci-
nema um fundamento materialista, como argumentou Sieg-
fried Kracauer (1997, p.309), ou parcialmente pré-linguístico,
de acordo com Jean Epstein (1974, p.351). Ao mesmo tempo,
contudo, a forma como a cena se realiza (ângulos de câmera,
mise en scène, inserção na montagem) pode fazer parte de um
universo de semelhanças não-sensíveis (estilos de autor, con-
venções de gênero ou de época: a gramática do cinema clás-
sico, por exemplo, com sua progressão linear de planos ge-
rais, médios e closes, ou suas fusões de passagem de tempo).
Os filmes que usam os arquivos meramente como exem-
plos para suas teses históricas, utilizam a indexicalidade da
imagem cinematográfica para fazer valer seu ponto de vis-
ta, como se dissessem “aqui está a prova”, ou ainda “isto é o
mundo”. Ignoram o fato da imagem cinematográfica ser an-
tes de tudo indeterminada (MONDZAIN, 2009, pp.25-26), ou
ainda, de ser “não toda”, indecifrável até que seja trabalhada
na montagem (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.85). Aquilo que
chamo aqui de filme de arquivo, por outro lado, usa a indexi-
calidade da imagem para se espantar com ela, para observar
o descontrole, o pedaço de mundo que invadiu a imagem e se

2  O elo entre cinema e clarividência se insinua a partir de certas


descrições sobre as arcaicas pinturas rupestres dos homens das
cavernas. Arlindo Machado trata disso em seu Pré-cinemas & pós-
-cinemas (2011, p.16), bem como Werner Herzog no filme A caverna
dos sonhos esquecidos (2010): o movimento das tochas, a sinuosi-
dade das cavernas, animais galopantes representados com oito ou
mais patas – elementos que produziam a impressão de movimen-
to, base do cinema.

Fotogenia e imagem-relâmpago | Nicholas de Andueza Sineiro 181


tornou contra-imagem, imagem-outra, porção heterogênea
de visibilidade que havia outrora passado despercebida. Ao
mesmo tempo, o cinema de arquivo tende a manter à vista o
fato das semelhanças não-sensíveis permearem a produção
visual de uma época por meio de convenções estéticas — e
por isso insistir mais na imagem passada do que no mundo
passado: porque, dos dois, foi a imagem que sobreviveu até
nós.
Dessa forma, a imagem de arquivo ganha sua força na medida
em que a revemos posteriormente e lhe projetamos algumas
semelhanças assombrosas. Nós, espectadores, nos tornamos
clarividentes. É como aponta Jeanne Marie Gagnebin, acerca
da escrita de Marcel Proust: não se trata de encontrar “o pas-
sado em si (...), mas a presença do passado no presente e o
presente que já está lá, prefigurado no passado” (2012, p.15).
Com essa afirmação, Gagnebin não só frisa que o método do
historiador materialista (descrito por Benjamin) deve muito
à estética proustiana como também explicita que esse méto-
do está baseado na Doutrina das semelhanças (ibid., p.16).
Uma expansão importante para essa doutrina é notar que a
semelhança não se dá somente por proximidade ou continui-
dade. A colagem surrealista já propunha estruturalmente um
alargamento do nosso círculo de semelhanças. A montagem
cinematográfica também pôde repetir esse procedimento,
e outros ainda, como a montagem dialética de Eisenstein,
baseada no choque entre visão-tese e visão-antítese para a
produção de uma imagem-síntese (SARAIVA, 2006, p.132).
Na série de filmes Histoire(s) du cinéma (1988-1998), de Jean
Luc Godard, há um farto uso da montagem de diferenças — e
não de proximidades, como ocorre em Farocki. Destaco uma
sequência do fim do primeiro filme, em que Godard faz um
paralelismo entre a encenação de um filme musical e a ima-
gem documental da preparação para a execução de um pri-
sioneiro.
A sequência começa em tela escura. A voz de Godard: “His-

182
tória do cinema. História do cinema. História sem palavra”.
Surge a imagem em preto e branco de dois homens sepa-
rados por uma estaca larga, juntamente com o som de um
canto à capela melancólico (récita do poema Testamento de
um condenado de Robert Brasillach, que colaborou com os
nazistas em Vichy e foi executado em 1945) [3]. Vemos os dois
homens em close, a imagem lenta, frame a frame; logo su-
pomos se tratar de uma futura execução. Por sobre essa ima-
gem, escreve-se: “jamais esquecerei...”. Corta para a imagem
colorida de um homem e uma mulher dançando à noite, em
coreografia ensaiada: Gene Kelly e Leslie Caron em Um artis-
ta em Paris (1951). Retornamos aos dois homens em preto e
branco; por sobre eles está escrito: “... o sangue...”. Voltamos à
coreografia em colorido: “... que em carmim prefigura o bei-
jo” — completa-se a frase do cineasta russo Friedrich Ermler.
Acrescenta-se às interações o canto lírico de amor Adije, adije
amore de Abruzzo, do século XIX. Por fim, enquanto todos os
elementos continuam interagindo, vem a voz de Godard: “o
pobre cinejornal deve limpar o sangue e as lágrimas de toda
a suspeita como as ruas são limpas assim que é tarde demais
e que o exército já atirou nas massas”.
A alteridade entre os elementos da cena são gritantes, a pon-
to de ser difícil estabelecer uma conexão discursiva fechada
entre eles. Mas isso é porque essas interações estão sempre
em aberto, comunicando por meio de suas radicais diferen-
ças uma semelhança que as une. Dois humanos em preto
e branco que se matam; dois humanos em colorido que se
amam; a letra escrita nos lembrando o carmim do beijo, que
prefigura o sangue; a forma fragmentada como Godard dis-
põe essa frase, tirando dela múltiplos sentidos; a récita me-
lancólica de um poeta fascista executado; o canto lírico so-
bre o amor; a crítica ao cinejornal e com ele à mídia, que tem
papel conformista e não transformador. Imagem convulsiva

3  Essa e as outras referências inseridas por Godard nessa sequên-


cia foram identificadas a partir do livro Film modernism, de Sam
Rohdie (p.43).

Fotogenia e imagem-relâmpago | Nicholas de Andueza Sineiro 183


que comunica o indizível. História do cinema como “histó-
ria sem palavra” não porque ela não contenha palavra, mas
porque seu todo é da ordem do indizível: da ordem da ima-
gem. Nessa sequência absolutamente contaminada por alte-
ridades e entrecruzamentos, temos a sensação de partilhar
da clarividência de Godard, mas somos incapazes de dizê-la,
porque para “dizê-la” seria preciso fazer filme.
O uso que Godard faz da palavra (não somente neste filme)
parece recolocá-la no círculo expandido de semelhanças di-
retas, como se ela voltasse a ser feitiço ou mantra, em vez de
mero texto, de mera informação. Nesse sentido, é possível di-
zer que o tom de Farocki é muito mais analítico, enquanto
o de Godard é mais poético. Embora a forma ensaística do
primeiro seja bastante notada por meio da narração, como
comentado acima, é importante frisar que seu ensaio é au-
diovisual como o de Godard, porque junto com a fala está a
imagem, a seleção de quais imagens integram o corpo fílmi-
co, a construção da palavra a partir do que se vê e a opção
de quando entram as falas com base no conteúdo e no ritmo
das imagens. Se Godard ativa visibilidades, sons e palavras
por meio de sua retomada, recontextualização e conflito, Fa-
rocki faz o mesmo, tendo o foco no retorno, na proximidade
entre tensões de operários com fábricas em imagens filma-
das desde Lumière. Nos dois casos o anacronismo é gritante,
estrutural, e se produz pela via da semelhança benjaminiana
— mesmo que o caminho de um deles seja a proximidade e
do outro a discrepância.
É importante que Benjamin, em sua teses Sobre o conceito
de história, tenha tratado o elemento motivador do método
materialista histórico como imagem-relâmpago (2012, p.243).
Isso significa que esse elemento tem a complexidade anacrô-
nica e múltipla que descrevi acima, ou seja, que ele é funda-
mentalmente um problema para o historiador (e talvez por
isso seu motivador). Significa também que o cinema se tor-
na um meio estético singular para lidar com esse elemento,
na medida em que não somente lida com imagens, mas com

184
imagens que são índices, sobrevivências de marcas feitas
pela luz do mundo, e além disso, lida com essas imagens em
seu fluxo pelo tempo. O cinema vem assim como máquina de
fazer ver semelhanças, no sentido benjaminiano, de tornar o
espectador assombrado com sua própria clarividência, e de
assombrar por evidenciar que a semelhança é sempre ponto
de encontro com a alteridade — confrontando e desnatura-
lizando a visão que nutro de mim e do mundo. A percepção
da semelhança, através do cinema de arquivo, como método
para a transformação do olhar.

A imagem que nos olha

No processo de montagem do curta Passeio público (2016),


que realizei junto com a Professora Doutora Andréa França
Martins (PUC-Rio) na forma de um experimento com ima-
gens de arquivo, nos deparamos com uma imagem que nos
atraiu de modo singular. Nosso experimento se baseava na
retomada de imagens da cidade do Rio de Janeiro feitas por
Alberto Botelho em um filme de 1924, e entre essas imagens
estava um plano curto de uns poucos segundos, em que uma
jovem mulher andava de braços dados com uma outra mu-
lher mais velha. O que nos fascinou foi a forma como a moça
olhava para a câmera, numa mistura de hesitação e firmeza,
com um andar oblíquo se aproximando da câmera. No gesto
de retomada, nós desaceleramos a imagem ao máximo, de
modo que é possível notar o passar dos frames do material
original de Botelho. Quadro a quadro a jovem se aproxima
de nós lançando um olhar que parece responder ao olhar da
câmera — e nosso. O objetivo com o experimento era, além
de retrabalhar as imagens do Rio, pensar a relação do reuso

Fotogenia e imagem-relâmpago | Nicholas de Andueza Sineiro 185


de imagens com a fotogenia, tal como trabalhada por Jean
Epstein.
Para Epstein, a fotogenia é a característica específica do ci-
nema, é o que há de plenamente cinematográfico no filme
(1974, p.145). Ao mesmo tempo ela não está presente a todo
momento, sua natureza é efêmera, curta, como faísca, como
exceção. Nesse sentido, apesar da fotogenia evidenciar o que
é cinematográfico, ela ao mesmo tempo está para além do
cinema, porque é da ordem da exceção. Uma estética fotogê-
nica se conecta a uma expansão da percepção humana via-
bilizada especificamente pela mediação do cinema. Dois dos
exemplos favoritos de Epstein são o close-up e a câmera len-
ta. O primeiro, uma fragmentação violenta, pedaço de corpo,
uma aproximação penetrante entre câmera e rosto, uma fa-
ce-paisagem imensa que se espalha pela tela e a ocupa por
completo: “teatro da pele” (EPSTEIN, 1974, p.66). O segundo,
uma redescoberta do movimento, um universo desconheci-
do de ritmos e fluxos dos corpos, uma libertação da percep-
ção dos gestos: presença incontestável da matéria desfilan-
do pelo tempo. Ambos os procedimentos atacam a ordem
familiar das aparências por expandirem nossa percepção a
lugares inacessíveis sem o cinema (ibid., p.256), conectando
o estético ao epistemológico — considerando que se trata de
imagem-índice, como discutido anteriormente.
Em Passeio público, na cena da passante desconhecida, tan-
to o close-up como a câmera lenta entram em jogo. Na me-
dida em que os corpos da jovem e de sua acompanhante se
aproximam, seus rostos vão crescendo e tomando o espaço
da tela, vão transmutando a escala de paisagem da cidade —
do plano geral ao close. A câmera lenta que executamos na
retomada do material torna visíveis as passagens de frame a
frame: os fluxos da própria imagem revistos. Visitamos cada
momento de captação da cidade por Botelho, cada quadro,
passando aos poucos pela cena toda. Do rosto que se faz tela
ao movimento que se demora em frames, revivemos a tensão
que discuti há pouco sobre história e estética — imagem da

186
história ou história da imagem? Um pedaço de mundo que,
na medida em que o assisto se revela resto de imagem, ima-
gem-sobrevivência, que mantem seu olhar fixo em nós, que
não se perdeu com o tempo (ao contrário de tantas outras:
apenas 7% de todos os mais de 4mil filmes feitos até a década
de 1930 no Brasil sobreviveram até nós) [4]. A experiência com
a passante desconhecida, que desaparece para todo sempre
ao evadir o enquadramento de Botelho, remetendo ao poe-
ma de Charles Baudelaire, é plenamente fotogênica. A partir
dessa cena, perguntamo-nos se o elemento fotogênico não
poderia ser encontrado no olhar que a própria imagem de-
volve ao montador, ao espectador (MARTINS & ANDUEZA,
2017, p.148).
Quando Benjamin descreve a imagem do passado, que “re-
lampeja irreversivelmente no momento de sua conhecibili-
dade”, ele nos alerta sobre a efemeridade dessa imagem: “é
uma imagem do passado que ameaça desaparecer com cada
presente que não se sinta visado por ela” (quinta tese: BENJA-
MIN, 2012, p.243). A imagem-relâmpago é portanto tão frágil
quanto potente. Nós, seres presentes, precisamos nos sentir
investidos por essa imagem para podermos percebê-la, só
então será possível acolhê-la e salvá-la (e nos salvar) do de-
saparecimento. O olhar da passante de Passeio público ressoa
com as palavras de Benjamin: seu olhar está fixo na objetiva
de Botelho, um olhar que atravessa tempos diversos e chega
até nós, um corpo que nos olha de lá da década de 1920 — e
desde lá. Há uma troca intensa de olhares: entre a passante e
a câmera, os montadores, os espectadores. Nos sentimos vi-
sados por essa imagem, que relampeja diante de nós.
Um paralelo começa a se tornar mais claro: para Epstein, a
imagem fotogênica só ocorre quando há expansão da nossa
percepção na medida em que a assistimos; para Benjamin, a
4  Estimativa feita por pesquisadores do cinema silencioso brasilei-
ro, apresentada por Carlos Roberto Souza, no libreto que contém
a coleção Resgate do cinema silencioso brasileiro, editada pela
Cinemateca Brasileira, s/a.

Fotogenia e imagem-relâmpago | Nicholas de Andueza Sineiro 187


imagem-relâmpago só se faz ver na medida em que nos sen-
timos visados por ela e a olhamos de volta. Ao que parece,
ambas as formas de imagem se situam em uma espécie de
entre-lugar, num elo instável que se estabelece apenas even-
tualmente por sobre um vão profundo e que se situa entre o
espectador e a imagem assistida. A cineasta portuguesa Su-
sana de Sousa Dias joga com esse entre-lugar em 48. O filme
se baseia em uma série de retratos de identificação de presos
políticos portugueses. A diretora encontrou os retratos nos
arquivos da PIDE, a polícia política portuguesa da ditadura
salazarista, e localizou as pessoas para entrevistá-las, mos-
trando-as as fotos e pedindo para que falem delas. Visual-
mente, assistimos apenas aos retratos em preto e branco das
pessoas; a voz dessas mesmas pessoas hoje (vozes amadure-
cidas ou envelhecidas) entra somente por meio do som. Não
há música extradiegética, apenas falas, suspiros, respiros, si-
lêncios.
Em uma das cenas, surge uma jovem sorridente olhando para
nós. Estranhamento: trata-se de uma foto tirada por uma po-
lícia política, que destratava e torturava seus presos. Neste
ponto do filme já passamos por alguns depoimentos que tra-
taram da tortura do sono, de espancamentos, de ameaças de
morte, de desfigurações corporais pelo stress, pela fome, pela
falta de descanso. Por que o sorriso? Por que o olhar tran-
quilo? Somos deixados sozinhos, em silêncio, com o sorriso
dessa menina por alguns segundos. Até que entra a voz de
uma mulher: “eu estava contente por ser presa”. Ela diz que
no momento da fotografia (que é de saída da prisão, e não
de entrada) sentia que um ciclo familiar se completava, por-
que seus pais eram resistentes de esquerda — o pai fugido, a
mãe presa. Mas diz que durante muito tempo conviveu mal
com a fotografia, “sorriso imbecil”, porque o entendia como
um desrespeito aos que sofreram e resistiram nesse lugar. Em
seguida descreve a roupa que usava: um suéter simples, com
gola role. Aponta que nunca usavam decote: “a parte sexual
era uma tragédia em Portugal, não é? À esquerda e à direita,

188
não é?”. Falava-se muito, mas ninguém nunca se tocava, havia
uma interdição. Enquanto ela fala, a imagem do retrato sorri-
dente vai se aproximando de maneira sutil.
Nesse trecho, a imagem vem antes. Sem discurso explicativo
ou introdutório: o sorriso. Depois que a mulher começa a fa-
lar, a fotografia (que se mantém sempre a mesma) parece ir
tomando outras formas, parece ir mostrando suas camadas
de tempo e complexidade. Uma mudança drástica na per-
cepção ocorre, por exemplo, quando ela revela que se trata
de uma foto de saída e não de entrada. Uma camada de leitu-
ra completamente imprevista se superpõe à imagem quando
a mulher comenta de seu suéter, que cobre todo o corpo, e
faz um adendo sobre a situação dos relacionamentos sexuais
no Portugal da época: “uma tragédia”. A lógica discursiva que
vimos em Farocki, cujo princípio disparador é a imagem, se
aplica muito bem aqui. Não fosse o suéter, não seríamos con-
textualizados sobre os desastrosos candidatos a namorados,
que “falavam, falavam, mas não tocavam”.
Mistura de tempos: a menina ontem, a mulher hoje. Mistura
de presenças: a voz de um corpo, um corpo mudo. O olhar
daquela foto interpela a própria depoente, investida por ele
na medida em que o assiste. Ela explica o sorriso e denuncia
seu incômodo com ele. O mesmo olhar e o mesmo sorriso
nos interpelam junto com a voz madura de alguém que tem
lembranças, e nos relacionamos à nossa maneira com a le-
viandade de uma jovem e o arrependimento de uma adulta.
Cruzamento de vivências. O suéter, como imagem-relâm-
pago, dispara na depoente as memórias amorosas da época
da ditadura. O sorriso se complexifica ainda mais para nós
quando ouvimos falar do excesso de pudor, da ausência de
mãos, de corpo. Assistimos à imagem, à voz, e à construção
dinâmica e frágil de um elo entre ambas, de um lugar de pro-
dução de sentido e criação de imagens (do pai, da mãe, dos
candidatos a namorados).
Observar esse processo da memória de identificação de se-

Fotogenia e imagem-relâmpago | Nicholas de Andueza Sineiro 189


melhanças, nos permite uma função contemplativa que se
distancia daquela do voyeur, embora trabalhe ainda assim
com a curiosidade. Mergulhamos em uma experiência pro-
fundamente anacrônica que nos liberta da instituição do
tempo linear e imparável. Epstein frisa muitas vezes que o ci-
nema se torna mais libertador em sua estética-epistemologia
por ser um meio quadridimensional, isto é, por explorar tan-
to as três dimensões do espaço, como a quarta dimensão do
tempo (EPSTEIN, 1974, p.139). Para o autor, é por conta dessa
relação íntima com as diferentes espaço-temporalidades que
o cinema, através do elemento fotogênico, viria como ponto
de contato possível com o presente (CHARNEY, 2004, p.326).
Leo Charney assinala uma proximidade entre as concepções
de presente de Epstein e de Benjamin: se para o primeiro,
a fotogenia vem como possibilidade de experimentação do
instante-presente; para o segundo, é o choque que designa
essa experiência (ibid., pp.323-324).
Na leitura de Epstein, “o eu futuro irrompe no eu passado; o
presente é somente essa muda instantânea e incessante. O
presente é somente um encontro” (Apud: CHARNEY, 2004,
p.326). Ou seja, o presente, como o elemento fotogênico, é
um entre-lugar, um entre-tempo. A fotogenia é portanto tão
efêmera e fugidia quanto o presente que ela designa, por
isso ela define o “indefinível”, sendo para o cinema “o que a
cor é para a pintura, o volume para a escultura: o elemento
específico dessa arte” (EPSTEIN, 1974, p.145). “Fotogenia” é
um nome possível para aquilo de indizível que vimos ante-
riormente em Godard. Pensando na configuração temporal
proposta por Epstein (o presente como encontro — e tensão
— entre passado e futuro), é possível perceber que o cinema
de arquivo repete estruturalmente essa configuração, na me-
dida em que recontextualiza imagens passadas no presente,
para que se tornem novas imagens e que lhes sejam acres-
centadas camadas futuras (como no filme de Farocki, que
desvela camadas múltiplas do filme de Lumière). Trata-se de
um funcionamento intrinsecamente transtemporal que se

190
conecta à imagem-relâmpago benjaminiana: uma visão do
passado que irrompe no presente, como epifania da memó-
ria (HUYSSEN, 2014, p.158).

A memória no mundo

Em S-21: a máquina de morte do Khmer Vermelho, Rithy Panh


não apenas monta arquivos da prisão mais tenebrosa do Kh-
mer Vermelho, S-21, ele principalmente os filma. Esse proce-
dimento acaba por colocar o filme de Panh na fronteira do
cinema de arquivo, no sentido de se basear menos na mon-
tagem e mais na mise en scéne, mas ao mesmo tempo poten-
cializa a presença dos elementos filmados e das memórias a
que eles se referem. O diretor trabalha com algum material
de arquivo (fotos, rolos de filme, planilhas escritas), mas seu
foco é a entrada da câmera nas ruínas da prisão e nas vidas
das pessoas afetadas por um evento histórico tão traumático
como o governo Khmer Vermelho no Camboja (1975-1979).
Entre os personagens do documentário, estão dois ex-prisio-
neiros que foram torturados e alguns ex-guardas da prisão,
que presenciaram ou executaram algumas torturas. Um dos
ex-prisioneiros é pintor, e visita as ruínas da prisão para pin-
tar suas memórias nos dias em que esteve lá. Pinta cenas vio-
lentas, retratando a forma como os corpos dos presos eram
organizados nas celas, algumas posições de tortura, cenas de
agressão dos guardas. Aqueles que eram guardas da S-21 são
convidados a revisitá-la, a reler relatórios, contar histórias e
encenar alguns procedimentos que realizavam com os pri-
sioneiros. É preciso assistir a este filme.
Enquanto encenam, os ex-guardas explicam suas ações. Em
dado momento, um deles se mostra indo até uma cela. “Para

Fotogenia e imagem-relâmpago | Nicholas de Andueza Sineiro 191


encontrar um prisioneiro eu vinha com o número da cela es-
crito na palma da mão”, diz ele enquanto procura as celas. A
câmera, na mão, o acompanha no percurso. “Seção 39, pri-
sioneiro 13”. Diz ao “guarda” da cela: “leve o prisioneiro 13
para o interrogatório”. O segundo “guarda” entra na cela com-
pletamente inabitada. Nós reparamos que na parede da celas
há números: o homem para em frente ao número 13 e inicia
o procedimento de retirada, fingindo manusear o corpo do
preso enquanto alterna sua fala entre um suposto diálogo
com o prisioneiro imaginário e a descrição de seus procedi-
mentos: “Número 13, de pé! Estou mandando levantar! Cego-
-o com uma venda. Algemo-o por trás. Depois retiro a barra.
Tranco o cadeado novamente e o levo para fora pelo braço”.
Em cada detalhe da fala o ex-guarda faz gestos no ar, fingindo
haver venda, algema, barra, cadeado — e preso. Chegando na
porta da cela, entrega o prisioneiro imaginário àquele que o
havia demandado, que explica que o pegaria pelo braço e o
levaria ao interrogatório.
A cena é forte. Há nela um desequilíbrio abissal, irreparável:
a absoluta presença dos corpos dos ex-guardas e a absolu-
ta ausência do corpo do prisioneiro número 13. Ao longo de
todo o seu funcionamento, a prisão teve um total próximo a
20 mil presos, dos quais mais ou menos 12 mil foram tortura-
dos e mortos. Tratava-se do campo de concentração mais ati-
vo e violento do Khmer Vermelho. Mesmo que não soubésse-
mos esses números, a ausência do corpo da vítima extrapola
a cena para comunicar algo muito elementar da miséria hu-
mana, algo indizível. A força da cena vem de sua natureza
cinematográfica: a indexicalidade da imagem nos conta que
aqueles corpos um dia já foram guardas torturadores, cor-
pos-arquivo; essa mesma indexicalidade nos apresenta uma
cela vazia, marcada apenas com números, que foram um dia
usados para nomear corpos que já não estão mais lá, que não
são sobreviventes, corpos-ausência.
A coreografia feita pelo ex-guarda para sinalizar seus pro-
cedimentos é toda baseada no mecanismo da semelhança

192
— a própria essência da encenação o é. É curioso que o mo-
vimento do corpo-arquivo fingindo levantar um corpo-au-
sência lembra a dança entre vida e morte que Jean-Louis Co-
molli enxerga no filme Memory of the camps (1985), quando
os guardas nazistas são obrigados pelas tropas aliadas a car-
regar os corpos mortos dos judeus — e o fazem se abraçando
a eles (2006, p.43). Na dança absurda descrita por Comolli
se prefigura a coreografia filmada por Rithy Panh. Comolli
aponta, naquilo que assiste, os polos entre vida e morte. Ele
assemelha essas extremidades ao procedimento cinemato-
gráfico, que atua essencialmente pela análise do movimento
(fragmentação em frames) e por sua síntese durante a exibi-
ção (reconstituição pela passagem de frames, produzindo
ilusão de continuidade). A análise como polo de morte, a
síntese como polo de vida. Comolli aponta que “aquilo que
o cinema não foi feito para filmar, a morte enquanto tal, in-
transponível, é filmada aqui. Violência feita ao cinema pela
morte. O cinema suporta esse desafio porque nele, através da
análise, a morte atua” (2006, p.46).
Acrescente-se aos polos de morte-vida e análise-síntese o
do ausência-presença, esquecimento-memória. A cena dos
ex-guardas do Khmer é portanto essencialmente cinemato-
gráfica. É fotogênica. Nesse sentido, já que a fotogenia atua
conectada ao presente, ela “presentifica” aquele corpo-au-
sência, tornando sua falta tão concreta quanto a matéria do
corpo do ex-guarda — matéria-imagem. Desse modo, a ima-
gem abre as portas para a clarividência do espectador e atua
como catalisador de imagens-relâmpago.

Fotogenia e imagem-relâmpago | Nicholas de Andueza Sineiro 193


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Fotogenia e imagem-relâmpago | Nicholas de Andueza Sineiro 195


Notas benjaminianas sobre
interioridade e aparição
de objetos de devoção em
museus de arte do Rio de
Janeiro
Lilian Alves Gomes
lilianallves@gmail.com | Un. Federal do Rio de Janeiro
Interioridade

Como primeiro lampejo sobre os escritos de Walter Benjamin


acerca da interioridade de coleções, aciono o personagem
do quadro descrito pelo autor em sua famosa tese IX sobre o
conceito de História:
Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um
anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa
que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escan-
carada e as asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspec-
to. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece
diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que
incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos
pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir,
a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do
paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que
é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Esse vendaval
arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas,
enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu. Aquilo
a que chamamos o progresso é este vendaval. (BENJAMIN, 1994,
p. 226).
A aquarela de Paul Klee que tanto impactou Benjamin per-
tencia ao autor, que a adquiriu em uma feira em Munique.
A incorporação da imagem em sua teoria teria sido fruto da
“identificação mística” do autor com o Angelus Novus. Nessa
perspectiva, o “anjo da história” é uma visão melancólica do
processo histórico como um ciclo incessante de desespero.
Quando Benjamin vai a Paris, a obra fica por um tempo sob
a guarda de Georges Bataille. Em setembro de 1940, o autor
cometeu suicídio durante uma tentativa frustrada de fugir do
regime nazista. Seu amigo Scholem herdou o Angelus Novus.
A viúva de Scholem doou o quadro ao Museu de Israel, que
fica em Jerusalém, onde a obra permanece até hoje1.
A interpretação da aquarela em termos de “anjo da história”
fez com que a obra do pintor suíço passasse também a ser o
“anjo do Klee” encarnado pela visão de Benjamin. Essa trans-
formação de um ser angelical em mensageiro do caos mos-
tra-nos como uma imagem pode não só nascer da dimensão
narrativa, como propõe Carlo Ginzburg (2001), como tam-
bém, na direção inversa, incitar leituras de cunho apocalíp-
tico. O vendaval do capitalismo e seus dispositivos de con-
sumo levam necessariamente à catástrofe e arrasta o anjo de
rosto voltado para o passado.
A criatura alada arrebata o espectador com seus olhos arre-
galados, boca e asas abertas. Se o anjo nada pode fazer contra
o progresso desenfreado — a não ser expressar corporalmen-
te o absurdo de sua empreitada — o colecionador autêntico
nos termos de Benjamin, por sua vez, pode coletar e ordenar
fragmentos para ativar a memória e recompor a experiência.
A coleção, nesse sentido, é a trincheira contra o universo mo-
derno desencantado.
Essa trincheira é cultivada a partir de ambientes interiores.
Em suas “Passagens”, Walter Benjamin nos encaminha para
os locais onde as coleções são elaboradas. Eles são o refú-
gio no qual o colecionador expia a condição de mercadoria
das coisas ao inseri-las em uma nova ordem: “O intérieur é

1  As informações sobre o quadro foram coletadas na página da


instituição: http://www.imj.org.il/imagine/collections/item.asp?i-
temNum=199799

198
o refúgio da arte. O colecionador é o verdadeiro habitante do
intérieur. Ele se incumbe de transfigurar as coisas. Sobre ele
recai a tarefa de Sísifo de despir as coisas de seu caráter de
mercadoria, uma vez que as possui.” (BENJAMIN, 2006, p.
45).
No belo ensaio “Desempacotando minha biblioteca”, Walter
Benjamin discorre em primeira pessoa “sobre a arte de cole-
cionar mais do que sobre a coleção em si” (BENJAMIN, 1987,
p. 227) e sublinha que a opção por fazê-lo através de diver-
sas maneiras de adquirir livros é arbitrária: “Este processo ou
qualquer outro é apenas um dique contra a maré de água viva
de recordações que chega rolando na direção de todo cole-
cionador ocupado com o que é seu.” (idem)
Benjamin é referência de certa forma incontornável na abor-
dagem do colecionador particular por enxergar este último
como o agente mais legítimo no empreendimento de uma
coleção: “o fenômeno do colecionar perde sentido à medida
que perde seu agente. Mesmo que coleções públicas sejam
menos censuráveis pelo seu lado social e mais úteis pelo seu
lado científico que as particulares, os objetos só têm sua ra-
zão de ser nestas.” (idem, p. 234). É por meio dessa lente que o
autor aborda a emblemática figura do “colecionador autênti-
co”, calcada em um tipo de ligação específica com os objetos:
Bem-aventurado o colecionador! Bem-aventurado o homem
privado! [...] Pois dentro dele se domiciliaram espíritos ou genio-
zinhos que fazem com que para o colecionador — e me refiro ao
colecionador autêntico, como deve ser — a posse seja a relação
mais íntima que se pode ter com as coisas: não que elas estejam
vivas dentro dele; é ele que vive dentro delas. E, assim, erigi dian-
te de vocês uma de suas moradas, que tem livros como tijolos, e
agora, como convém, ele vai desaparecer dentro dela. (BENJA-
MIN, 1987, p. 235)
Na fusão entre colecionador e coisas colecionadas, a coleção
ergue-se como morada um tanto quanto transcendente, mas
não deixa de ter alicerces concretos.

Notas benjaminianas sobre interioridade ... | Lilian Alves Gomes 199


O maior fascínio do colecionador é encerrar cada peça num cír-
culo mágico onde ela se fixa quando passa por ela a última exci-
tação — a excitação da compra. Tudo que é lembrado, pensado,
conscientizado, torna-se alicerce, moldura, pedestal, fecho de
seus pertences. A época, a região, a arte, o dono anterior — para
o verdadeiro colecionador todos esses detalhes se somam para
formar uma enciclopédia mágica, cuja quintessência é o destino
de seu objeto. (BENJAMIN, 1987, p. 228)

Pode-se partir do fato de que o verdadeiro colecionador retira


o objeto de suas relações funcionais. Esse olhar, porém, não ex-
plica a fundo esse comportamento singular. [...] Pois é preciso
saber: para o colecionador, o mundo está presente em cada um
de seus objetos e, ademais, de modo organizado. Organizado,
porém, segundo um arranjo surpreendente, incompreensível
para uma mente profana. Este arranjo está para o ordenamento
e a esquematização comum das coisas mais ou menos como a
ordem num dicionário está para uma ordem natural. Basta que
nos lembremos quão importante é para cada colecionador não
só o seu objeto, mas também todo o passado deste, tanto aquele
que faz parte de sua gênese e qualificação objetiva, quanto os
detalhes de uma história aparentemente exterior: proprietários
anteriores, preço de aquisição, valor etc. Tudo isso, os dados “ob-
jetivos”, assim como os outros, forma para o autêntico colecio-
nador em relação a cada uma de suas possessões uma completa
enciclopédia mágica, uma ordem no mundo, cujo esboço é o
destino de seu objeto. […] Basta que acompanhemos um colecio-
nador que manuseia os objetos de sua vitrine. Mal segura-os nas
mãos, parece estar inspirado por eles, parece olhar através deles
para o longe, como um mago. (BENJAMIN, 2006, p. 241)
A longa citação nos familiariza de modo definitivo com a fi-
gura do colecionador autêntico benjaminiano. Como o au-
tor sinaliza, não se trata meramente de alguém que destaca
as coisas de suas relações funcionais2 e as insere em uma
2  Em leituras canônicas como as de Krzysztof Pomian (1987) e Jean
Baudrillard (2004), os objetos de coleção são analisados como
mercadorias desligadas de seu uso e abstraídos de suas funções
habituais.

200
“morada de sonho”. As estratégias de aquisição das coisas e
a transmissibilidade do conjunto delas são relevantes para a
reflexão sobre a arte de colecionar. O “destino” dos objetos
também. Entre camadas oníricas e objetivas, portanto, a co-
leção é uma forma de acesso ao mundo a partir de um inte-
rior, mas nunca um encerramento nele.

Aparição

Ao lançar o olhar para as “passagens” e “moradas de sonho”


da cidade moderna, Benjamin nos fala de ambientes onde
mercadorias de luxo e da moda são “entronizadas”, colocan-
do “arte a serviço do comerciante”. A estratégia expositiva no-
meada pelo autor de “fantasmagoria da cultura capitalista”
alcança seu ápice nas exposições universais realizadas na
Europa no final do século XIX. Nesse período, lojas, galerias
e pavilhões de exposição precisam colocar o que vendem —
quer sejam mercadorias, quer seja o poder do Império — ao
alcance dos olhos dos passantes, para que eles se entreguem
por distração (e não necessariamente comprando). Para que
tal ‘captura’, enquanto meio de entretenimento, se efetivas-
se, os estabelecimentos se valeram do avanço nas técnicas
de iluminação artificial e da larga utilização arquitetônica do
ferro e do vidro. As inovações técnicas e mercadológicas em
questão seriam, na opinião do autor, armadilhas da idealiza-
ção do progresso.
As novas técnicas de produção e reprodução emanciparam
as obras de arte do uso ritual, tornando-as exibíveis. Se antes
elas tinham “valor de culto” e não precisavam ser vistas para
serem cultuadas3, a partir do desenvolvimento da possibi-
3  “O valor de culto, como tal, quase obriga a manter secretas as

Notas benjaminianas sobre interioridade ... | Lilian Alves Gomes 201


lidade da reprodução técnica, ganham “exponibilidade”, ou
seja, há incremento do “valor de exposição”. Essa conceitu-
ação é interessante para pensar sobre a circulação de coisas
que, por mais que sejam oferecidas como mercadorias, não
podem ser exatamente mensuradas em termos de valor de
uso e ou de troca (MARX, 1988), uma vez que há uma separa-
ção (mesmo que temporária) da esfera da utilidade e não se
mede uma força-trabalho4.
No célebre texto de Benjamin sobre “A obra de arte na era
da reprodutibilidade técnica”, a “aura” diz sobre a aparição
única de uma coisa distante (BENJAMIN, 1994). Como uma
centelha, é algo que ilumina uma presença singular, um aqui
e agora que se perde junto com a unicidade da obra quan-
do sua manifestação é multiplicada e/ou exposta de forma
permanente. A perda da aura, contudo, não é um movimento
inexorável. Benjamin sugere, em várias passagens, que o “va-
lor de culto não se entrega sem resistências”. Para o autor, a
arte laica não se destaca completamente do culto mágico e
religioso. As técnicas modernas de exposição desestabilizam,
mas não eliminam o “valor de culto”.

Objetos de devoção em museus de arte do Rio


de Janeiro
obras de arte: certas estátuas divinas somente são acessíveis ao
sumo sacerdote, na cella, certas madonas permanecem cobertas
quase o ano inteiro, certas esculturas em catedrais da Idade Média
são invisíveis, do solo, para o observador.” (BENJAMIN, 1994,
p.173).
4  Ao cotejar análises marxistas e ensaios benjaminianos é impor-
tante lembrar que os objetivos dos autores ao tratarem de valores
eram bem distintos e também que não necessariamente coinci-
dem os objetos/mercadorias aos quais se referiam.

202
A possibilidade de pensar em termos de combinação (em vez
da oposição) de valores é profícua para refletir sobre a ambi-
valência de objetos de culto expostos em museus como obras
de arte. Em minha tese de doutorado (GOMES, 2017), bus-
quei analisar as relações engendradas por imagens de santos,
ex-votos5 e outros objetos de devoção em situações nas quais
os mesmos são mobilizados para outros fins que não o culto
religioso. A exposição desses objetos, como argumentei, mais
do que sacrificar o valor de culto, pode ser pensada como rito
que institui novos status para as coisas. O rito de mostrar evi-
dencia as intenções dos colecionadores, vistos com suspei-
ção por razões variadas, dentre elas, a manipulação de coisas
impregnadas de forças diversas e a legitimidade das formas
de obtenção do que colecionam.
Arjun Appadurai (2008, p. 42) assevera que “o desvio de ob-
jetos para fora das rotas especificadas é sempre um sinal de
criatividade ou crise, seja estética ou econômica”. Essa pista
sobre o potencial das transações ser tanto criativo, quanto
perigoso — e, por conseguinte, pregnante de possibilidades
de recomposição das significações em torno dos objetos —
reitera a pertinência de estudar a utilização de objetos rituais
para outros fins que não as trocas com os deuses. Voltando a
Benjamin, trata-se de pensar a aquisição, guarda, transmis-
são, exibição, enfim, o destino das coisas originalmente con-
cebidas para estreitarem relações com divindades e que são
enredadas em coleções de arte.
Nos muitos museus e exposições de arte sacra que visitei,
pude observar a interação entre pessoas e esse tipo de obra
de arte, bem como ouvir os relatos dos profissionais envolvi-

5  O termo ex-voto designa algo ofertado para um santo em reco-


nhecimento a uma promessa ou a uma graça recebida indepen-
dente de pedido. A realização de uma romaria ou a construção de
um templo, por exemplo, podem ser efetuadas à guisa de ex-voto.
Em minhas reflexões, contudo, privilegio os ex-votos que ganham
a forma de objetos e o devir obra de arte dessas representações
plásticas.

Notas benjaminianas sobre interioridade ... | Lilian Alves Gomes 203


dos nas mostras em questão. Não são raros os casos de bilhe-
tes deixados por devotos aos pés de seus santos de devoção e
de solicitações de pessoas que queriam acender velas na pro-
ximidade de algumas imagens. Uma imagem pode ser, para
o devoto, uma das muitas formas de corporificação de um
santo. Para o colecionador, uma obra de arte. Para o Estado,
um bem cultural. Há formas diversas de travar relações com
esses objetos. Uma das modalidades de relação de que tive
notícia — mas que não tive condições de analisar nos limites
da tese e por ora busco começar a pensar sobre — passa pela
recusa de visitantes de exposições em interagir com certos
objetos. É sobre essa consequência da “exponibilidade” de
acervos religiosos que discorro adiante.
O Museu Casa do Pontal, situado no Recreio dos Bandeiran-
tes, na zona oeste do Rio de Janeiro, dedica-se à “arte popu-
lar”. A instituição abriga o acervo do colecionador Jacques
van de Beuque e foi concebida pelo próprio. O dilema entre
reservar e exibir, como analisa Ângela Mascelani (2001), atu-
al curadora do museu, foi impresso na própria escolha do
nome do local. “Casa” remete ao íntimo, evoca afetividade
em relação ao espaço e ao que o habita. Instituiu-se, assim, o
lugar do colecionador como o narrador que estabelece as co-
nexões entre as peças, tal como é necessário quando alguém
nos apresenta um álbum de família e precisa explicar a rela-
ção entre uma pessoa e outra que aparecem nas fotografias.
Nesses termos, o colecionador mediador torna-se presen-
te por meio da organização do espaço. A religião é um dos
eixos que compõem a Casa do Pontal6. Estátuas de santos
católicos e de entidades ligadas às religiões afro-brasileiras
concentram-se em um mezanino. Em comunicação pessoal
recente7, a curadora do museu afirmou que a disposição das
peças religiosas nessa plataforma foi pensada pelo colecio-

6  Os demais eixos são: Trabalho, festas, diversões, ciclo da vida,


cangaceiro e retirantes, arte incomum.
7  Estive com Ângela Mascelani em janeiro de 2018.

204
nador em alusão a um altar e ao ato de elevar o sagrado ca-
racterístico de algumas práticas religiosas.
Essa reiterada elevação, como nos lembra Agamben (2007), é
uma separação:
Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares,
animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfe-
ra separada. Não só não há religião sem separação, como toda
separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente
religioso. […] O termo religio, segundo uma etimologia ao mes-
mo tempo insípida e inexata, não deriva de religare (o que liga e
une o humano e o divino), mas de relegere, que indica a atitude
de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com
os deuses, a inquieta hesitação (o “reler”) perante as formas — e
as fórmulas — que se devem observar a fim de respeitar a sepa-
ração entre o sagrado e o profano. (AGAMBEN, 2007, p. 58-59)
Quando participei de uma visita guiada ao acervo do Museu
Casa do Pontal, em 2013, ouvi da mediadora que o acesso ao
mezanino onde ficam as peças de religião já foi evitado por
grupos de visitantes levados por escolas. Os professores que
levam esses alunos, segundo a profissional, até conseguem
lidar com o preconceito das crianças em relação às obras,
mas temem a reação enérgica dos pais delas em relação ao
trabalho pedagógico que envolva “santo católico” e, princi-
palmente, “coisas de macumba”.
Segundo a curadora do museu, a parte religiosa do acervo
não é contemplada em algumas visitas em função da ampli-
tude da coleção, que impõe a necessidade de escolhas das
obras a serem apresentadas. De acordo com Ângela Mascela-
ni, o percurso dos grupos é definido caso a caso e de acordo
com os objetivos das visitas entrevistos pelas escolas na insti-
tuição museológica, tais como “mostrar o folclore”, a “cultura
brasileira”, propiciar “lazer” etc.
Os relatos que apontam tanto para a interdição tácita do con-
tato com certas obras, quanto para o acesso a elas sendo en-
tendidas, sem maiores ruídos, como representativas da cul-
tura brasileira, são indicativos da multiplicidade de relações

Notas benjaminianas sobre interioridade ... | Lilian Alves Gomes 205


que os objetos mobilizam. As coleções não são universos
estanques imunes ao tempo ou desconectados da realidade
social na qual o colecionador está inserido. No Brasil, o culto
aos santos e mais propriamente às imagens dessas divinda-
des é um conhecido ponto de divergência entre católicos e
evangélicos. O fato desses últimos não conceberem a ma-
terialidade de certas divindades também influi na evitação
do contato com obras provenientes do panteão das religiões
afro-brasileiras. Refiro-me então não somente às imagens de
santos, mas também de orixás, ex-votos, oferendas, presépios
e outros objetos de devoção.
É preciso ser dito, a propósito, que a conversão de católicos
e praticantes de religiões de matriz africana para denomina-
ções protestantes concorre para afluência de imagens para
coleções. Trata-se de um momento virtualmente iconoclasta,
dado que a condenação da devoção aos santos pelos evan-
gélicos baseia-se largamente na acusação de ser um culto às
imagens, que constituem, nessa medida, um fator diacrítico
acionado de modo corriqueiro no estabelecimento de dife-
renças entre evangélicos e seus “outros”. Em contraposição ao
barulho dos protagonistas de episódios iconoclastas de gran-
de repercussão midiática — como o “chute na santa”8 — os
gestos silenciosos em relação às imagens por parte das pes-
soas que as deixam em locais sagrados ou as encaminham
para coleções são indiciários de processos de conversão que
não necessariamente estilhaçam as representações envolvi-
das na adesão anterior.
A pluralidade religiosa aludida acima e os conflitos dela de-
correntes também estão presentes nas relações incitadas por
acervos públicos. Nesse sentido, o Museu Histórico Nacional,
localizado no centro do Rio, é um contraponto interessante à
exibição forjada por um colecionador particular apresentada
8  Episódio ocorrido em 1995, no dia 12 de outubro, dia de Nossa
Senhora Aparecida, quando a imagem da Padroeira do Brasil foi
atacada com um chute pelo bispo Sergio Von Helder, da Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD), em um programa de televisão.

206
anteriormente. O contraste é intencional: passamos de uma
mostra sobre “arte popular” e suas evocações de noções de
povo, criatividade e classe popular etc. para uma exposição
idealizada pelo Estado com vistas a enaltecer heróis da pátria
e figuras de proa da política brasileira. O MHN foi criado em
1922 pelo intelectual Gustavo Barroso como parte das come-
morações pelo centenário da Independência.
O colecionamento da instituição, historicamente pautado
por critérios elitistas e pelo “culto da saudade”, tem se recon-
figurado a partir da proposição do MHN de buscar reformu-
lar seu entendimento do que seria o “nacional”:
Na atual exposição “Portugueses no Mundo”, inaugurada em
2010, o museu tenta dialogar com outra influência cultural re-
cebida durante o período colonial, a de origem africana. Em
seu último módulo são apresentadas obras de Mestre Valentim
(identificadas como tal), joias típicas das africanas que viveram
na Bahia, além de painéis que tematizam as contribuições dos
africanos e seus descendentes para a cultura do brasileiro como,
por exemplo, a capoeira e o jongo. (FERREIRA, 2016, p. 10)
Desse modo, o acervo eivado de referências às conquistas
militares e ao poder político/econômico do Brasil desde seu
período colonial tem sido reinterpretado e contado com a in-
corporação de obras contemporâneas. A exposição em pau-
ta conta com uma grande instalação cenográfica, chamada
“Templo de Oxalá”, encomendada ao artista plástico Emanoel
Araújo. Verena Alberti (2013, p. 8) sinaliza que a plasticidade e
a beleza da peça de destaque atraem a atenção dos visitantes:
“com efeito, numa de minhas visitas, vi estudantes adoles-
centes de uma escola pública fotografarem-se uns aos outros
na frente do altar.”
A autora, entretanto, é crítica da ênfase à miscigenação pre-
sente na exposição, nitidamente tributária da ideologia da
mestiçagem. A interpretação, segundo a historiadora, é dada
de antemão e não dissolve uma grande narrativa nacional.
Em uma das salas da exposição, inclusive, o visitante se con-
fronta com os objetos ao som de Maria Bethânia declamando

Notas benjaminianas sobre interioridade ... | Lilian Alves Gomes 207


um trecho de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre.
O realce dado à miscigenação, de acordo com Alberti, dilui
a percepção das diferenças, da persistência do racismo e da
intolerância religiosa dele decorrente. Estes aspectos não di-
tos na mostra se tornam evidentes, todavia, na observação
do confronto entre visitantes e obras expostas. Foi defronte
ao mesmo altar descrito por Alberti como objeto de atração
que a mediadora de uma visita guiada ao MHN, em 2017, me
descreveu como frequentemente crianças e adolescentes re-
futam a interação com a instalação. Dizem “tá repreendido”,
“tá amarrado em nome de Jesus” e tentam passar direto por
ela. Carolina Ferreira (2016, p. 34) narra ter presenciado uma
reação semelhante:
[…] muita estranheza me causou, quando ainda em 2015, levei
alunos do 9º ano à instituição e uma das alunas saiu correndo
da sala onde estava exposta a obra “Templo de Oxalá”, falando
baixinho “cruz credo”. Lembro que na mesma ocasião nenhum
aluno reclamou ou se sentiu constrangido quando entramos na
sala que reúne diversos oratórios do século XVIII.
O relato apresenta a receptividade diferenciada dos alunos
da professora em relação aos objetos religiosos. A arte sacra
católica — referência primeira de uma herança coletiva na-
cional consensualmente referida — não é evitada, ao pas-
so que a mirada para os elementos da cultura material dos
cultos de matrizes afro-brasileiras não é investida do mesmo
“valor de exposição”. O “valor de culto” tributado a elas, no-
tadamente, não diz só sobre quem cultua, mas sobre quem
historicamente condena o culto. As obras de arte concebidas
com finalidades religiosas, portanto, não nos dizem apenas
sobre a estetização de peças rituais, mas também a respeito
das implicações políticas de sua exposição no espaço públi-
co. Mais do que como indícios do passado, é preciso enten-
dê-las no âmbito das relações que continuam a estabelecer.
Como foi visto, Benjamin só via razão de ser dos objetos nas
coleções particulares. O caráter mais público destas, contu-

208
do, muitas vezes é estabelecido pelos próprios colecionado-
res que as formaram; seja por anteverem os dilemas familia-
res que podem ser provocados por seus legados materiais,
seja por ambição de preservação do acervo reunido. A maior
presença no espaço público, portanto, é uma estratégia que
compõe a edificação da coleção como trincheira, apesar de
ser vista por Benjamin como um aspecto da dissolução de
sua autenticidade. Nas palavras do autor: “As coisas, assim
representadas, não admitem uma construção mediadora a
partir de ‘grandes contextos’” (BENJAMIN, 2006, p. 240).
A possibilidade de reunião de fragmentos da experiência em
uma nova ordem caracteriza a atuação do colecionador se-
gundo princípios de montagem que podem facilmente ser
pensados em relação a exposições. Nessa linha de raciocínio,
elas podem “fazer explodir o continuum da história” (BENJA-
MIN, 1994, p. 22). A interdição de obras não é a única narra-
tiva possível sobre a interação com as peças abordadas. Elas
também atraem, seduzem, inquietam. O ato de separar ine-
rente ao religioso de que nos fala Agamben — presente em
templos de natureza diversa, como museus, casas e igrejas
— propicia a interação oportuna para re-parar; para o exer-
cício de olhar de modo fascinado para o mundo, tão caro ao
flâneur descrito por Benjamin. Para tanto, contudo, é preciso
arregalar os olhos e mirar mesmo o que assombra, tal qual o
anjo da historia.

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Notas benjaminianas sobre interioridade ... | Lilian Alves Gomes 209


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MASCELANI, Â. Coleções, colecionadores e o mundo da arte
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pologia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFRJ,
2001.
POMIAN, K. Collectionneurs, amateurs et curieux — Paris, Ve-
nise: XVIe -XVIIIe siècles. Paris: Gallimard, 1987.
O dia do nome e o nome
dos dias:
Teoria da linguagem e cena da origem em Wal-
ter Benjamin e Haroldo de Campos

Ivan Capeller
ivan.capeller@eco.ufrj.br | Un. Federal do Rio de Janeiro
Para Walter Benjamin, “la chose est medium de la commu-
nication et ce qui en elle se communique est justement —
d’après ce rapport de médiation — ce « medium » (langage)
lui-même  » (BENJAMIN, 1971, 85)1. Pensar a linguagem
como um meio de auto-expressão em vez de pensá-la como
um meio de representar alguma coisa é mais do que uma
maneira de evitar e criticar a ideia de que a linguagem é um
mero instrumento ou ferramenta de mediação entre entes di-
versos. É o próprio conceito da linguagem como um meio de
representação da realidade através de signos que se encon-
tra virado de cabeça para baixo, pois a própria realidade se
transforma em medium através do qual a linguagem como tal
se apresenta, se expressa e transmite a si mesma.
Uma teoria da comunicação (humana ou não), ainda a ser
conceitualizada como ciência, provavelmente se beneficia-
ria muito da concepção benjaminiana, de extração bíblica,
da linguagem como medium da criação, em oposição à visão
convencional, adotada pelos teóricos do campo da informa-
ção e da comunicação, de que a linguagem é apenas um meio
de representação. Em função de tal necessidade, renova-se
o interesse em abordar a teoria da linguagem de Benjamin
através do elucidativo prisma enunciado por Terry Eagleton
em seu ensaio Walter Benjamin or Towards a Revolutionary
Criticism2: é precisamente no idealismo radical da teoria da

1  BENJAMIN, Walter: “Sur le langage em général et sur le langage


humain”, in Walter Benjamin I: Mythe et Violence, prefácio e tradu-
ção de Maurice de Gandillac, Paris, Ed. Denoël, 1971.
2  EAGLETON, Terry: Walter Benjamin, Rumo a uma Crítica Revolu-

212
linguagem de Benjamin que reside a chave de sua controver-
sa adesão ao materialismo histórico.
Segundo T. Eagleton,
(...) o messianismo de Benjamin é ao mesmo tempo a prova mais
evidente de seu idealismo e uma das fontes mais poderosas de
seu pensamento revolucionário (…) a linguística de Benjamin,
em todo o seu primitivismo místico e sensualismo ingênuo, é
sem dúvida idealista; porém, a crença judaica na unidade ex-
pressiva de palavra e corpo, se dada uma guinada dialética, pode
tão facilmente reaparecer como a base para uma recolocação
materialista do discurso nas práticas sociais a partir das quais,
como Benjamin vê astutamente, ideologias semióticas moder-
nas a isolaram estrategicamente. De fato, pode ser que a primeira
inclinação de Benjamin em direção ao marxismo tenha ocorrido
precisamente por essas razões. (EAGLETON, 2010, 132/170-171).
A rejeição de Benjamin às «ideologias semióticas modernas »
não está em contradição com sua adesão posterior ao mate-
rialismo histórico, antes permitiu-lhe configurar sua forma
particular de pensar a linguagem como uma entidade mate-
rial inscrita na historicidade concreta do mundo. Por isto, sua
rigorosa leitura do Be’reshit (o livro da Gênesis) consegue ser
tão próxima das exegeses teológicas tradicionais sem jamais
colocar-se fora dos estritos limites da razão:
Lorsque dans la suite nous allons considérer l’essence du langa-
ge à la lumière des premiers chapitres de la Génèse, nous n’en-
tendons ni poursuivre un projet d’exégèse biblique, ni, dans ce
contexte, situer objectivement la Bible, comme vérité révélée,
à la base de notre réflexion, mais simplement explorer ce que
nous présente la Bible quant à la nature même du langage; et
la Bible n’est au départ indispensable à nôtre projet que parce
que nous la suivrons ici dans son principe en présupposant avec
elle le langage comme une réalité dernière, inexplicable, mysti-
que, qu’on ne doit considérer que dans son développement. En
se donnant elle-même pour une révélation, elle développe né-
cessairement les faits linguistiques fondamentaux. (BENJAMIN,

cionária, Fortaleza, Omni Editora, 2010.

O dia do nome e o nome dos dias | Ivan Capeller 213


1971, 87)3
Entre a poderosa voz da criação divina e o poder humano
de nomear o que há no mundo, o texto bíblico desvela todo
o processo de criação como uma linguagem primal que se
manifesta como medium sonoro vibrante, capaz de ressoar
e reverberar o próprio Universo em vez de limitar-se a re-
presentá-lo através de signos considerados como meros int-
srumentos para o registro de uma linguagem codificada. O
caráter materialista da teoria da linguagem de Benjamin de-
pende de uma leitura precisa da narrativa da criação do Gê-
nesis como narrativa da emergência da linguagem enquanto
advento universal da existência de tudo o que pode vir a ser.
Porém, tal precisão não é necessariamente tributária de uma
exegese teologicamente erudita, ligando-se antes ao tipo de
precisão poético-analógica presente em traduções como a do
poeta Haroldo de Campos, publicada sob o título A Cena da
Origem4.
Haroldo de Campos traduziu o primeiro capítulo do livro da
Gênesis (além dos quatro primeiro versículos do segundo ca-
pítulo), do hebraico para o português, a partir de uma apre-
ensão sintética do sentido preciso a unir a forma e o conteúdo
do texto original. Este sentido é vertido a partir das inter-rela-
ções fonéticas, sintáticas e semânticas que é possível estabe-
lecer mesmo entre duas línguas tão distantes no tempo e no
espaço. Com isto, Haroldo de Campos realiza plenamente a
ideia benjaminiana de que «a versão intralinear do texto sa-
grado é o modelo ou ideal de toda tradução  » (BENJAMIN,
1971, 275)5.
3  BENJAMIN, Walter: “Sur le langage em général et sur le langage
humain”, in Walter Benjamin I: Mythe et Violence, prefácio e tradu-
ção de Maurice de Gandillac, Paris, Ed. Denoël, 1971, pp. 79-98.
4  CAMPOS, Haroldo de. Be’reshith: a Cena da Origem. São Paulo,
Ed. Perspectiva, 2000, pp. 45-50.
5  BENJAMIN, Walter: “La Tâche du Traducteur”, in Walter Benjamin
I: Mythe et Violence, prefácio e tradução de Maurice de Gandillac,
Paris, Ed. Denoël, 1971, pp. 261-275.

214
Além de revelar, em toda plenitude, as qualidades propria-
mente poéticas de um texto literalmente soterrado por ca-
madas sucessivas de interpretações e exegeses de caráter
teológico, apologético e doutrinário, e de recuperar o sabor
do original até mesmo no que concerne sua pontuação e or-
ganização formal (já que a aparentemente inocente reorga-
nização do texto bíblico em parágrafos já constitui em si uma
traição aos critérios onto-epistemológicos próprios à men-
talidade do seu presumido autor6), a tradução de Haroldo
de Campos revela a estrutura onto-lógica profunda do pen-
samento inerente à narrativa bíblica: a criação do mundo é
apresentada como um processo de auto-presentificação em
que o universo assim criado se constitui através da própria
linguagem divina postulada enquanto ordenamento uni-
versal e princípio basilar da Criação. O mundo organizado é
resultado da linguagem de Deus e a linguagem de Deus or-
ganiza-se enquanto criação divina, isto é, enquanto mundo
organizado.
Se os dois primeiros versículos se referem ao caos pré-lin-
guístico do silêncio abissal anterior à Criação, momento em
que « a terra § era lodo § torvo §§ e a treva § sobre o rosto
do abismo §§§ E o sopro-Deus §§ revoa § sobre o rosto da
água », a estrutura semio-lógica da narrativa bíblica revela-
-se, a partir do terceiro versículo, como o processo de nome-
ação divina de uma série de pares sêmicos ontologicamente
constitutivos da própria existência do mundo e de todos os
entes que o povoam, de tal forma que cada um dos sete dias
da criação apresenta-se como o nome de uma determinada
oposição semântica fundamental, em uma exposição pontu-
ada pelo refrão « e foi tarde e foi manhã § dia X », conforme o
seguinte esquema:
(...) e foi tarde e foi manhã § dia um [LUZ/TREVA : DIA/NOITE]
(...) e foi tarde e foi manhã § dia segundo : [CÉU/ÁGUAS :

6  Sobre o presumido autor do primeiro capítulo do Gênesis,


ALTER, Robert e KERMODE, Frank: Literary Guide to the Bible,
Harvard University Press, 1990.

O dia do nome e o nome dos dias | Ivan Capeller 215


FOGO/ÁGUA]
(...) e foi tarde e foi manhã § dia terceiro: [MAR DE ÁGUAS/
TERRA FIRME : MOLHADO/SECO]
(...) e foi tarde e foi manhã § dia quarto: [SOL/LUA-ESTRELAS :
SINAL DIURNO/SINAIS NOTURNOS]
(...) e foi tarde e foi manhã § dia quinto: [CRIATURAS DO MAR/
CRIATURAS DO AR : VIDA MARINHA/VIDA TERRESTRE]
(...) e foi tarde e foi manhã § dia sexto: [FERAS/GADO : MA-
CHO/FÊMEA].
A nomeação dos dias da semana reflete a própria estrutura
onto-semiológica da narrativa bíblica, de tal forma que cada
dia é o nome de um determinado campo ôntico balizado pela
tensão gerada por seus respectivos pares sêmicos: campo
onto-lógico para o duplo par sêmico Luz/Treva  : Dia/Noite
(dia um) que estabelece os pilares ônticos da Criação; cam-
po cosmo-lógico para o par sêmico Céu/Águas (dia segundo)
que erige os alicerces da Criação; campo geo-lógico do par
sêmico Mar de Águas/Terra Firme (dia terceiro) que descreve
a Cena da Criação; campo crono-lógico do par sêmico Sol/
Lua e Estrelas (dia quarto) que estrutura o seu calendário e
possibilita a própria crônica ou memória da Criação; campo
bio-lógico do par sêmico Animais Marinhos/Animais Terres-
tres (dia quinto) que valoriza a vida orgânica como o ponto
mais alto da Criação e campo sócio-lógico do duplo par sê-
mico Feras/Gado  : Macho/Fêmea (dia sexto) que postula o
Homem como o ente mais importante de toda a Criação.
Santificado pelo Nome de Deus, o sétimo dia — que é o único
dia a possuir nome próprio em hebraico (todos os outros dias
são identificados ordinalmente de acordo com o texto bíbli-
co) passa a ser o Dia do Nome, ao mesmo tempo coroamento
e interrupção do processo de nomeação divina dos dias, isto
é, do próprio processo de criação entendido como um pro-
cesso ligado à ação significante da palavra de Deus. É desta
interrupção no processo criativo de enunciação divina da pa-
lavra que se refere a Bíblia ao afirmar que « ele descansou §
no dia sétimo §§ da obra toda-feita § do seu fazer ».

216
Benjamin inicia a sua própria análise do livro da Gênesis
precisamente neste ponto, ou seja, logo após a narrativa da
Criação propriamente dita, ou narrativa sacerdotal, já que o
segundo capítulo do Gênesis apresenta uma segunda versão
da narrativa bíblica da Criação que é aquela de fato por ele
comentada7. Trata-se de uma escolha importante, pois Ben-
jamin expõe sua teoria idealista da linguagem, baseada na
ideia do poder divino do nome como « medium » da criação,
a partir de uma versão radicalmente materialista deste pro-
cesso em que Deus, agora denominado IHVH (Iavé ou Jeová)
molda o primeiro homem, Adão, a partir dos vapores e eflú-
vios que emanam da terra (« adamá », em hebraico), para só
então « fabricar » a primeira mulher a partir de uma de suas
costelas. Para Benjamin, o fundamental aqui, no entanto, é o
fato de que, nesta segunda narrativa da Criação, Deus atribui
ao Homem seus próprios poderes linguísticos de nomear os
entes do mundo para que este os consagre com seus nomes
próprios no Pardess, o Jardim do Éden ou Paraíso:
La deuxiéme version du récit de la Création, celle qui parle du
souffle insuflé à l’homme, enseigne aussi que l’homme a été fait
de la terre. Dans tout le récit de la Création, c’est le seul passage
où il soit question pour le Créateur d’une matière dans laquelle il
exprime son voulouir; partou ailleurs ce voulouir est conçu com-
me créant sans intermédiaires.Dans ce second récit, la création
n’advient point par le verbe (Dieu dit — et cela fut) , et à cet hom-
me qui n’a pas été créé à partir du verbe est maintenant accordé
le don du langage, qui l’élève au dessus de la nature. (BENJAMIN,
1971, 87).
Porém os poderes de nomeação do homem não são iguais
aos poderes da nomeação divina:
En Dieu le nom est créateur parce qu’il est verbe, et le verbe de
Dieu est savoir parce qu’il est nom. (...) Le rapport absolu du
nom à la conaissance ne se trouve qu’en Dieu; là seulement est
le nom parce qu’il est au plus intime de lui-même identique au
verbe créateur, le pur « medium » de la conaissance. C’est à dire:

7  Ver BLOOM, Harold: O Livro de J, New York, Vintage Books, 1991.

O dia do nome e o nome dos dias | Ivan Capeller 217


Dieu, en leur donnant un nom, a rendu les choses conaissables;
mais c’est dans la mesure où il les connaît que l’homme leur
donne un nom.

(...) dans l’homme, Dieu a libéré de lui-même le langage que


lui avait servi, à lui, comme « medium » de la Création. Dieu se
réposa lorsque dans l’homme il eut déposé son pouvoir créateur.
Vidé de son actualité, ce pouvoir créateur est devenu conaissan-
ce. L’homme est celui qui connaît le langage que Dieu a créé.
Dieu a créé l’homme à son image, il a créé celui qui connaìt à
l’image de celui qui crée. (...) Il n’est aucun langage humain qui
ne soit seulement reflet du verbe dans le nom. Le nom n’atteint
pas davantage le verbe que la conaissance n’atteint la Création.
En comparaison de l’infinité absolument illimitée et créatrice du
verbe divin, l’infinité de tout langage humain reste toujours d’es-
sence limitée et analytique. (BENJAMIN, 1971, 88-89).
Se a Criação do mundo é o processo de nomeação divina
do mundo, sua própria existência está sustentada pelo seu
potencial desvelamento através do conhecimento humano.
A teoria da linguagem de Benjamin implica não só uma on-
tologia do Nome, mas também uma epistemologia do seu
potencial heurístico, inteiramente distinto quer tratemos de
Deus ou do Homem: o Nome de Deus é o « medium » comum
a todo Ser, isto é, presente em qualquer ente cognoscível, e
sua capacidade de nomeação é singular e infinita; o Nome do
Homem é próprio, isto é, limitado e privativo, e sua capacida-
de de nomeação dos entes que o rodeiam é uma função do
seu maior ou menor conhecimento acerca destes, ou seja, é
plural e limitada. Portanto, é a outorga ou dom da linguagem
ao homem que reduz gradativamente os poderes de media-
ção da linguagem à mera condição de símbolo ou signo ar-
bitrário em relação ao(s) seu(s) referente(s). Neste sentido, o
livro da Gênesis, em seus capítulos imediatamente seguintes
à segunda narrativa da criação, pode ser interpretado com
uma espécie de pré-história mítica da linguagem humana:
da expulsão de Adão e Eva do Paraíso à destruição da Tor-
re de Babel e além, a humanidade se vê irremediavelemen-
te mergulhada em uma proliferação incessante de códigos,

218
enunciados, argumentos e interprteações — convergentes,
divergentes ou mesmso indiferentes — que Benjamin não
hesita em classificar como « tagarelice »8.
No entanto, as supostas semelhanças entre a teoria da lingua-
gem de Benjamin e o clichê heideggeriano que tenta pensar
a linguagem como « morada do Ser » devem ser desconstru-
ídas se quisermos compreender o verdadeiro alcance episte-
mológico e político do interesse de Benjamin pelo materia-
lismo histórico. A linguagem humana, para Benjamin, é um
sintoma do exílio do Ser. Neste exílio, porém, a relação do ho-
mem com os poderes criativos e vitais (portanto igualmente
mortíferos e letais) da linguagem não pode ser considerada
apenas como uma relação de perda e decadência a partir de
um momento original de plenitude de sentido na relação en-
tre as palavras e as coisas.
É por isto que Pierre Bouretz tem toda a razão ao apontar a
necessária complementaridade entre o ensaio sobre a lingua-
gem de Benjamin e seu ensaio sobre A Tarefa do Tradutor9 :
(...) la traduction a finalement pour but d’exprimer le raport le
plus intime entre les langues. Il est impossible qu’elle puisse ré-
véler ce rapport caché lui-même, qu’elle puisse le restituer; mais
elle peut le représenter en l’actualisant dans son germe ou dans
son intensité. Et cette représentation d’un signifié par l’essai, par
le germe de sa restitution, est un mode de représentation tout à
fait original, qui n’a guère d’équivalent dans le domaine de la vie
non-langagière. Car cette derniére connaît, dans des analogies et
des signes, d’autres types de référence que l’actualisation inten-
sive, c’est-á-dire anticipatrice, annonciatrice. — Mais le rapport
auquel nous pensons, ce rapport trés intime entre les langues,

8  BENJAMIN, Walter: Sur le langage em général et sur le langa-


ge humain”, in Walter Benjamin I: Mythe et Violence, prefácio e
tradução de Maurice de Gandillac, Paris, Ed. Denoël, 1971, p. 95:
“L’asservissement du langage dans le bavardage aboutit presque
inévitablement à l’asservissement des choses dans la sottise”.
9  BOURETZ, Pierre: Testemunhas do Futuro – filosofia e messianis-
mo, São Paulo, Ed. Perspectiva, 2011.

O dia do nome e o nome dos dias | Ivan Capeller 219


est celui d’une convergence originale. Elle consiste en ce que les
langues ne sont pas étrangères l’une à l’autre, mais, a priori et
abstraction faite de toutes les relations historiques, sont appa-
rentées l’une à l’autre en ce qu’elles veulent dire. (BENJAMIN,
1971, 264).
O germe da redenção está potencialmente presente nas ma-
nifestações de linguagem mais fossilizadas e/ou desconec-
tadas de seus sentidos supostamente originais; não há aqui
nenhuma necessidade de pressupor uma hierarquia entre
as línguas que as classificariam de acordo com sua maior
ou menor autenticidade ou proximidade ao Ser, assim como
também não há aqui nenhuma intenção de isolar conceitu-
almente o fato social linguístico dos fatores extra-linguísticos
que o envolvem e parcialmente o determinam — seja através
da noção de signo, código, sinal ou de qualquer outro concei-
to. Pelo contrário: a « abstração feita a todas as relações histó-
ricas » aqui evocada não tem o objetivo de isolar as estuturas
sincrônicas da língua para melhor compreender o seu fun-
cionamento instrumental, sem levar em conta as modifica-
ções diacrônicas mais ou menos imprevisíveis que a afetam
incessantemente; antes, pretende demonstrar como as cen-
telhas do Jardim do Éden ou Pardess — o pomar da lingua-
gem em que se situam as árvores da Vida e do Conhecimento
e onde Adão nomeou todos os entes do mundo antes do seu
exílio — cintilam discretamente em toda mensagem linguis-
ticamente organizada, por mais distante que esta esteja, no
tempo e no espaço, do sentido originalmente constituinte
dos seus signos.
A este respeito, a tradição acerca da palavra « pardess » como
o nome do jardim dos sentidos, é extremamente eloquente,
pois P.aR.D.eS. também é um acróstico que contém as inciais
dos quatro níveis exegéticos de interpretação do sentido do
texto bíblico, ou seja, « pardess » é ao mesmo tempo o nome
do Jardim e de sua Perda, nomeando da linguagem tanto
aquilo que é capaz de realizar como aquilo que se perde em
sua realização; tal perda, porém, nunca é total, já que o jar-

220
dim dos sentidos é capaz de manter os poderes esquecidos
de um signo em suspenso, no domínio virtual das ideias ain-
da impensadas, como bem o expressa o midrash hassídico
transmitido por Régine Robin no livro La Mémoire Saturée10:
Quando o Baal Shem-Tov tinha uma tarefa difícil para realizar ia
a certo lugar na floresta, acendia uma fogueira e caia numa pre-
ce silenciosa, e o que ele devia fazer se realizava. Quando uma
geração mais tarde o Maggid de Meseritz tinha de realizar a mes-
ma tarefa, ia para este mesmo lugar da floresta e dizia: “Nós não
sabemos mais acender a fogueira, mas nós ainda sabemos re-
zar”, e o que ele devia fazer se realizava. Uma geração mais tarde,
quando Rabbi Moshe Leib de Sasson devia fazer a mesma tarefa,
também ele ia à floresta e dizias: “Nós não sabemos acender o
fogo, nós não conhecemos mais todos os mistérios da prece, mas
nós ainda conhecemos o lugar exato na floresta onde isso acon-
tecia, e isso deve ser o suficiente”. Mas quando passou mais uma
geração e o Rabbi Israel de Rishin devia fazer a mesma tarefa, ele
ficou em casa sentado na poltrona e disse: “Nós não sabemos
mais acender a fogueira, nós não sabemos mais dizer as preces,
nós não sabemos mais o lugar da floresta, mas nós ainda saber-
mos contar a história”, e a história que ele contava produzia o
mesmo efeito que a prática de seus predecessores.
As implicações epistemo-metodológicas e éticas desta forma
de pensar a natureza da linguagem são imensas: cada ele-
mento significante de um texto — cada letra, signo ou sinal
emitidos — é capaz de conter (e, potencialmente, de trans-
mitir) várias camadas superpostas de organização do sentido
do pensamento em torno de uma ideia. A exegese talmúdica
destaca quatro níveis sucessivos de interpretação do texto
sagrado, do mais superficial ao mais profundo, na seguin-
te ordem: nivel literal (pshat), alegórico (remez), exegético
(drash) e oculto (sod). Mais importante do que a escolha de
um método apropriado de exegese, porém, é a exigência ética
implícita à relação entre linguagem, conhecimento e memó-
ria, presente tanto no midrash acima citado como, na obra de
Benjamin, em sua visionária teoria das constelações exposta
10  ROBIN, Régine: La Mémoire Saturée, Paris, Éd. Stock, 2003.

O dia do nome e o nome dos dias | Ivan Capeller 221


no famoso prólogo epistemológico-crítico à Origem do Dra-
ma Barroco Alemão11 :
A ideia é da ordem da linguagem, mais precisamente, na essência da
palavra, aquele momento em que esta é símbolo. Na percepção
empírica, em que as palavras se decompuseram, elas possuem,
paralelamente ao seu lado simbólico mais ou menos escondi-
do, um explícito significado profano. Cabe ao filósofo restituir
pela representação o primado do caráter simbólico da palavra,
no qual a ideia chega ao seu autoconhecimento, que é o oposto
de toda comunicação orientada para o exterior. Como a filoso-
fia não pode pretender falar em tom de revelação, isso só pode
acontecer por meio de uma rememoração que recupere antes
de mais nada a percepção primordial. A anamnese platônica
não andará longe desta forma de rememoração. A diferença é
que aqui não se trata de uma presentificação de imagens por via
intuitiva; pelo contrário, na contemplação filosófica a ideia en-
quanto palavra solta-se do recesso mais íntimo da realidade, e
essa palavra reclama de novo os seus direitos de nomeação. Mas
na origem desta atitude não está, em última análise, Platão, mas
Adão, o pai dos homens no papel de pai da filosofia. O ato adâ-
mico da nomeação está tão longe de ser jogo e arbitrariedade
que nele se confirma o estado paradisíaco por excelência, aquele
que ainda não tinha de lutar com o significado comunicativo das
palavras. Na nomeação, as ideias dão-se destituídas de intenção,
a contemplação filosófica é o lugar da sua renovação. Nesta re-
novação reconstitui-se a percepção original das palavras. E as-
sim a filosofia mostrou ser, e com razão, no decurso da sua histó-
ria (tantas vezes objeto de troça) uma luta pela representação de
algumas palavras, poucas e sempre as mesmas — que o mesmo
é dizer, de ideias. (BENJAMIN, 2011, 25).
Adão é o pai da filosofia porque é o pai dos homens, isto é,
a filosofia entendida como o trabalho de rememoração das
ideias é a atividade própria ao homem exilado do Pardess, o
jardim dos sentidos em que Adão dera às coisas os seus no-
mes reais. As ideias, porém, não correspondem ou se ade-
quam integralmente ao trabalho realizado pelos conceitos
11  BENJAMIN, Walter: Origem do Drama Trágico Alemão, Belo Ho-
rizonte, Ed. Autêntica, tradução de João Barrento.

222
sobre os fenômenos empíricos que orbitam em torno dos
potenciais sentidos de um símbolo (ou signo). Atuam, antes,
como ímãs ocultos ou atratores estranhos em torno dos quais
se agrupam e se reagrupam as coisas assim como as estre-
las se reúnem em constelações organizadas por um olhar (a
ideia) estranho às suas respectivas posições e trajetórias reais
no espaço. Presentes à própria constituição do mundo como
linguagem, as ideias estão presentes no mundo enquanto lin-
guagem e seu potencial encontra-se contido na mais ínfima
letra ou sinal emitidos, pois, ao participarem da constituição
da linguagem do mundo, participam constitutivamente da
realidade do mundo em seu próprio processo de realização
fenomênica:
O conjunto dos conceitos que servem à representação de uma
ideia presentifica-a como configuração daqueles. De fato, os fe-
nômenos não estão incorporados nas ideias, não estão contidos
nelas. As ideias são antes a sua disposição virtual objetiva, são a
sua interpretação objetiva. Se elas não contêm em si os fenôme-
nos por incorporação nem se dissipam em funções, na lei dos
fenômenos, na « hipótese », coloca-se então a questão de saber
de que modo elas alcançam os fenômenos. A resposta é: na sua
representação. Em si, a ideia pertence a um domínio radical-
mente diverso daquele que apreende. O critério para definir a
sua forma de existência não pode, por isso, ser o de dizer que
ela compreende em si aquilo que apreende, por exemplo como
o gênero compreende em si as suas espécies. Não é essa a tarefa
da ideia. O seu significado pode ser ilustrado por meio de uma
analogia. As ideias relacionam-se com as coisas como as cons-
telações com as estrelas. Isto significa desde logo que elas não
são nem os conceitos nem as leis das coisas. Não servem para
o conhecimento dos fenômenos, e estes de nenhum modo po-
dem servir de critério para a existência das ideias. Pelo contrário,
o significado dos fenômenos para as ideias esgota-se nos seus
elementos conceituais. Enquanto os fenômenos, pela sua exis-
tência, pelas suas afinidades e as suas diferenças, determinam o
alcance e o conteúdo dos conceitos que os circunscrevem, a sua
relação com as ideias é a inversa, na medida em que é a ideia,
enquanto interpretação objetiva dos fenômenos — ou melhor,

O dia do nome e o nome dos dias | Ivan Capeller 223


dos seus elementos — a determinar as formas da sua recíproca
interação. As ideias são constelações eternas, e se os elemen-
tos se podem conceber como pontos em tais constelações, os
fenômenos estão nelas simultaneamente dispersos e salvos. E
aqueles elementos, que os conceitos têm por tarefa destacar dos
fenômenos, são mais claramente visíveis nos extremos da cons-
telação. A ideia é definível como a configuração daquele nexo
em que o único e extremo se encontra com o que lhe é seme-
lhante. Por isso é falso entender as normas mais gerais da língua
como conceitos, em vez de as reconhecer como ideias. É errado
pretender apresentar o universal como uma média estatística. O
universal é a ideia. Já o empírico será tanto mais profundamente
apreendido quanto mais claramente for visto como algo de ex-
tremo. O conceito procede de algo de extremo. Tal como a mãe
só começa a viver plenamente quando o círculo dos seus filhos,
sentindo-lhe a proximidade, se fecha à sua volta, assim também
as ideias só ganham vida quando os extremos se reúnem à sua
volta. As ideias — na formulação de Goethe: os ideais — são as
Mães fáusticas. Permanecem obscuras se os fenômenos não se
reconhecerem nelas e não se juntarem à sua volta. Cabe aos
conceitos agrupar os fenômenos, e a fragmentação que neles se
opera por ação do entendimento analítico é tanto mais significa-
tiva quanto, num único e mesmo lance, consegue um duplo re-
sultado: a salvação dos fenômenos e a representação das ideias.
(BENJAMIN, 2011, 22-23).
A longa citação faz-se aqui necessária para demonstrar o ra-
dicalismo epistêmico do método benjaminiano, pois sua on-
tologia idealista ou realismo transcendental iniciais se recon-
figuram em um materialismo antropológico em que as ideias
passam a ser entendidas como princípios significantes do
pensamento humano entendido como ação cognitiva trans-
formadora do mundo. A universalidade da ideia não corres-
ponde nem à abstração transcendental do conceito, nem à
particularidade empírica do fenômeno, mas à onipresença
epistemológica da linguagem como « medium » de represen-
tação auto-reflexiva do pensamento humano e à dupla exi-
gência ética de salvar os fenômenos e representar as ideias
através do trabalho dos conceitos. O problema central a co-

224
nectar as ideias potencialmente expressas pela linguagem, o
trabalho conceitual de produção do conhecimento e a expe-
riência vital da memória está ligado assim à possibilidade de
sua transmissão, ao longo da história, através da frágil mate-
rialidade dos seus significantes. A erudição filológica faz-se
ainda mais necessária, mas não a serviço de uma pretensa re-
construção histórica fiel do sentido passado das ideias, e sim
em prol de uma avaliação crítica do maior ou menor teor de
verdade remanescente em dada obra, medido por contraste
ou oposição ao seu teor material de signo posto em circula-
ção em determinado momento histórico, e ainda capaz de
transmitir-se ao presente para tentar transformar o seu curso
mítica, isto é, supostamente, pre-determinado.
A distinção metodológica entre teor de verdade (ligado ao
conteúdo significante da ideia) e teor material ou coisal (li-
gado à expressão material do signo) de determinada obra, já
presente em seu ensaio de 1922 sobre As Afinidades Eletivas
de Goethe12, permitiu a Benjamin, a partir do final dos anos
1920, a articulação de uma estética materialista avançada em
que as demandas artísticas da avant-garde modernista e a
presença dos modernos dispositivos técnicos de reprodu-
ção e transmissão de imagens e sons podiam ser plenamen-
te pensadas em sua atualidade histórica e em seu potencial
heurístico acerca do futuro próximo. Como todos sabem, o
cinema e o rádio eram os dispositivos de comunicação de
massa paradigmáticos da época de Benjamin, e o fato de que
seus curtos, porém densos, textos sobre a mimesis e a doutri-
na das correspondências13 não tenham sido escritos duran-
te o seu período idealista inicial, ao qual pertence seu texto
sobre a origem da linguagem, mas apenas alguns anos antes
de sua mais comentada peça acerca do « declínio da aura da

12  BENJAMIN, Walter: “As Afinidades Eletivas de Goethe”, in En-


saios Reunidos: Escritos sobre Goethe, São Paulo, Ed. 34, pp. 11-122.
13  BENJAMIN, Walter: “A Doutrina das Semelhanças”, in Walter
Benjamin: Obras Escolhidas – magia e técnica, arte e política, São
Paulo, Ed. Brasiliense, 1987, pp. 108-113.

O dia do nome e o nome dos dias | Ivan Capeller 225


obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica »14, é
uma demonstração cabal da correção das posições de Eagle-
ton acerca da importância da teoria idealista da linguagem
de Benjamin para o seu período materialista tardio. Concei-
tos como o de “destruição da experiência”, “declínio da aura”
e “tempo do agora”, claramente ligados à necessidade de pen-
sar a conturbada atualidade política daqueles “tempos som-
brios” a partir das novas possibilidades históricas advindas
da tecnologia industrial moderna, não deixam de transpare-
cer, inclusive em sua própria terminologia, a presença pro-
funda, no autor do misterioso Fragmento Teológico-Político15,
de um pensamento materialista anti-historicista radical, ana-
lógico e mimético, afeito às ressonâncias e correspondências
ocultas das idéias e às operações mentais e determinações
materiais que, ao longo dos séculos, possibilitaram sua trans-
missão (ou mediação) significante sob condições sociais es-
pecíficas de enunciação.
É na transmissão oculta e subterrânea de um pensamento
materialista subjacente às entrelinhas do texto bíblico — an-
terior a qualquer ontologia metafísica, teologia ou filosofia da
história capaz de recobrir este mesmo texto com camadas su-
cessivas de interpretação e exegese doutrinal judaica, muçul-
mana ou cristã — que reside a unidade fundamental da obra
de Walter Benjamin — a verdade ou essência de sua idéia mo-
triz. Seu uso constante de termos e conceitos emprestados à
teologia judaica, não só em conexão com a Cabala, conforme
foi mais tarde amplamente divulgado por Gershom Scho-
lem16, mas, sobretudo em conexão com a versão kantiana

14  BENJAMIN, Walter:”A Obra de arte na Era de sua reproduti-


bilidade Técnica”, in Walter Benjamin: Obras Escolhidas – magia e
técnica, arte e política, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987, pp 165-196.
15  BENJAMIN, Walter: “Fragment théologico-politique”, in Walter
Benjamin I: Mythe et Violence, prefácio e tradução de Maurice de
Gandillac, Paris, Ed. Denoël, 1971, pp. 149-150.
16  SCHOLEM, Gershom: “Walter Benjamin”, in O Golem, Benjamin,
Buber e outros justos: Judaica I, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1994,

226
racionalizada e esclarecida de judaísmo formulada por seu
mestre Hermann Cohen17, assim como o seu estilo elíptico e
aforismático, pleno de parábolas, alegorias e imagens de for-
te sabor bíblico, constituem-se em séries de camadas de sen-
tido a ser interpretadas por seus exegetas exatamente como
os rabinos do Talmud deviam interpretar a Bíblia. Porém, seu
sentido último não reside em um movimento de retorno eru-
dito às fontes hebraicas da tradição, como em Scholem, nem
em uma ontologia da existência baseada na maior ou menor
proximidade ao Ser pela linguagem, como em Heidegger,
mas em uma aposta política no futuro da memória como fru-
to de um encontro do passado e do presente mediados pelos
poderes analógico-miméticos da linguagem.
Se a Internet apresenta um desafio espistemológico imenso à
perspectiva teórica de Benjamin sobre as relações entre lin-
guagem, conhecimento e memória, não deixa de apresentar
também, do ponto de vista ontológico, possibilidades fasci-
nantes: não será possível reler a parábola do Angelus Novus,
narrada na famosa nona tese Sobre o Conceito de História18,
como uma profecia acerca destes nossos últimos novos dias?
Não daria esse anjo, o anjo da história, o seu nome próprio
aos dias de hoje?
Se assim for, e se situarmos o materialismo messiânico de
Benjamin em sua perspectiva correta, isto é, politicamente
comunista e revolucionária, o olhar do anjo da história em
direção ao passado deve ser considerado em uma disjunção
refratária à visão tradicionalmente melancólica com que é
comumente interpretado19. Longe de representar apenas a

pp. 181-211.
17  BOURETZ, Pierre: Testemunhas do Futuro – filosofia e messianis-
mo, São Paulo, Ed. Perspectiva, 2011, pp. 29-147.
18  BENJAMIN, Walter: “Sobre o conceito da história”, in Walter Ben-
jamin: Obras Escolhidas – magia e técnica, arte e política, São Paulo,
Ed. Brasiliense, 1987, pp. 222-234.
19  Acerca da disjunção olhar/visão no ângelus novus de klee/

O dia do nome e o nome dos dias | Ivan Capeller 227


impotência ligada à visão dos escombros catastróficos da-
quilo que já passou enquanto “uma tempestade sopra do pa-
raíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não
pode mais fechá-las” (BENJAMIN, 1987, 226), seu estrabismo
acentuado revela a disjunção entre a visão de uma inexorá-
vel continuidade a ligar causalmente o passado ao presente
e a irrupção momentânea de um olhar paralisante que inter-
rompe o fluxo da história para reconfigurar sua imagem em
nova constelação do pensamento, e que poderia ser capaz de
ter “entre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite,
que o gelo se retiraria dos pólos, que a água marinha deixa-
ria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a
serviço do homem” (BENJAMIN, 1987, 228), como já o previra
Charles Fourier.
A força fraca deste potencial messiânico inerente às possíveis
reconfigurações dos signos da linguagem em distintas for-
mas de conhecimento é amplificada de maneira exponencial
pelas novas condições infotelecomunicacionais da socieda-
de capitalista contemporânea: por mais ínfima que seja, seu
potencial transformador é sempre imprevisível. Em um mun-
do em que as coisas literalmente emitem sinais complexos
entre si sem interferência humana imediata, em que os astrô-
nomos descobrem dezenas de exo-planetas potencialmente
habitáveis por ano, não é mais impossível pensar uma teoria
da linguagem e da informação que inclua a possibilidade de
recepção e decifração ao menos parcial de mensagens extra-
-terrestres produzidas por seres inteligentes, tal como imagi-
nado no genial romance A Voz do Mestre, do escritor polonês
Stanislaw Lem. Não seria esse o possível sentido oculto do
versiculo 14 do capítulo 1 do livro da Gênsis20?

Benjamin, ver KHATIB, Sami: “Melancholia and destruction:


brushing Walter Benjamin’s “Angel of History” against the grain”,
in CLEMENS, Justin e HOENS, Dominiek (orgs.): Crisis & Critique:
Politics and Melancholia, Volume 3/Issue 2, 2016.
20  E Deus disse § sejam luminárias § no arco do céufogoágua §§
para dividir §§ entre o dia § e a noite §§§ E para ser quais sinais §

228
Referências

ALTER, Robert e KERMODE, Frank: Literary Guide to the Bib-


le, Harvard University Press, 1990.
BENJAMIN, Walter: “Sur le langage em général et sur le langa-
ge humain”, in Walter Benjamin I: Mythe et Violence, prefácio
e tradução de Maurice de Gandillac, Paris, Ed. Denoël, 1971.
BENJAMIN, Walter: “La Tâche du Traducteur”, in Walter Ben-
jamin I: Mythe et Violence, prefácio e tradução de Maurice de
Gandillac, Paris, Ed. Denoël, 1971.
BENJAMIN, Walter: Origem do Drama Trágico Alemão, Belo
Horizonte, Ed. Autêntica, tradução de João Barrento.
BENJAMIN, Walter: “As Afinidades Eletivas de Goethe”, in En-
saios Reunidos: Escritos sobre Goethe, São Paulo, Ed. 34.
BENJAMIN, Walter: “A Doutrina das Semelhanças”, in Walter
Benjamin: Obras Escolhidas — magia e técnica, arte e políti-
ca, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987.
BENJAMIN, Walter:”A Obra de Arte na Era de sua Reprodu-
tibilidade Técnica”, in Walter Benjamin: Obras Escolhidas —
magia e técnica, arte e política, São Paulo, Ed. Brasiliense,
1987.
BENJAMIN, Walter: “Fragment Théologico-politique”, in
Walter Benjamin I: Mythe et Violence, prefácio e tradução de
Maurice de Gandillac, Paris, Ed. Denoël, 1971.
BENJAMIN, Walter: Paris, Capitale du XIXème Siècle: Le Livre
des Passages, Paris, Les Éditions du Cerf, 1989.
BENJAMIN, Walter: “Sobre o Conceito da História”, in Walter
Benjamin: Obras Escolhidas — magia e técnica, arte e políti-
ca, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987.
BLOOM, Harold: O Livro de J, New York, Vintage Books, 1991.
BOURETZ, Pierre: Testemunhas do Futuro — filosofia e mes-
sianismo, São Paulo, Ed. Perspectiva, 2011.
CAMPOS, Haroldo de. Be’reshith: a Cena da Origem. São Pau-
lo, Ed. Perspectiva, 2000.
para as estações §§ e para os dias § e os anos

O dia do nome e o nome dos dias | Ivan Capeller 229


EAGLETON, Terry: Walter Benjamin, Rumo a uma Crítica Re-
volucionária, Fortaleza, Omni Editora, 2010.
GAGNEBIN, Jeanne Marie: Limiar, Aura e Rememoração —
Ensaios sobre Walter Benjamin, São Paulo, Editora 34, 2014.
GAGNEBIN, Jeanne Marie: História e Narração em Walter
Benjamin, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1999.
KHATIB, Sami: “Melancholia and destruction: brushing Wal-
ter Benjamin’s ‘Angel of History’ against the grain”, in CLE-
MENS, Justin e HOENS, Dominiek (orgs.): Crisis & Critique:
Politics and Melancholia, Volume 3/Issue 2, 2016.
LEM, Stanislaw: His Master’s Voice, Northwestern University
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NEHER, André: L’Éxil de la Parole,du silence biblique au silen-
ce d’Auschwitz, Paris, Éditions du Seuil, 1970.
ROBIN, Régine: La Mémoire Saturée, Paris, Éd. Stock, 2003.
SCHOLEM, Gershom: “Walter Benjamin”, in O Golem, Benja-
min, Buber e outros justos: Judaica I, São Paulo, Ed. Perspec-
tiva, 1994.
Notas sobre a violência
Um debate com Walter Benjamin

Caio Paz
caiocnp@gmail.com | Un. Federal do Rio do Janeiro
— As máquinas de guerra vêm aí, mas
não tenha medo. O problema não são as
máquinas que se aproximam da cida-
de, são as máquinas que já estão aqui.
A máquina de Joseph Walser — Gonçalo
M. Tavares

O texto acima faz referência a dois tipos de máquinas e apre-


senta uma advertência acerca do estatuto de ambas. Referin-
do-se às máquinas de guerra com o imperativo “não tenha
medo”, Gonçalo lança o leitor na frase seguinte, mostrando
que há um problema mais iminente que a proximidade da
guerra: o que já está na cidade. Se o medo que poder-se-ia ter
da guerra tem que ver com a violência, o que poderia ser lido
no trecho acima é o seguinte: as máquinas da cidade causam
mais preocupação porque são tão violentas quanto as de
guerra. Talvez essas máquinas que habitam o espaço político,
a pólis, sejam o verdadeiro problema porque elas, diferente
das de guerra, tentam apagar e justificar o seu caráter violen-
to. Lendo benjaminiamente esse trecho, essas máquinas da
cidade poderiam ser pensadas como uma imagem do direi-
to e, nesse sentido, o gesto de indicá-las como o verdadeiro
problema é o gesto benjaminiano de evidenciar a violência
implicada no direito.
Esse movimento se encontra presente no texto que Walter
Benjamin publicou em 1921, “Por uma crítica da violência”. A
crítica que ele faz à violência procura um ponto de partida ex-
terno ao direito. 1 Desse modo, o filósofo alemão apresenta

1  BENJAMIN, Walter. “Para uma crítica da violência” In: Escritos


sobre mito e linguagem. Organização, apresentação e notas de Jean-
ne Marie Gagnebin. Tradução de Susana Kampff e Ernani Chaves.

232
as relações que a violência tem com o direito para distinguir e
articular os diversos modos como ela se exerce. Nessa crítica
à violência não se trata de denunciar a violência em nome de
uma recusa total ao seu exercício, mas de evidenciar como o
direito se funda e se conserva apenas pelo uso da violência.
Benjamin situa sua abordagem em um ponto de vista externo
ao direito porque, a partir dele, uma crítica à violência esta-
ria fadada à dialética dos meios e fins. 2 Mais precisamente,
uma discussão com ponto de partida no direito, segundo essa
perspectiva, repetiria de modo circular as seguintes pergun-
tas: se os fins são justos, a violência como meio é justificável?
Ou ainda, se os meios sãos justos ou sancionados, os fins são
justificáveis? À primeira pergunta, o direito natural respon-
deria afirmativamente, acreditando que a violência é um
dado da natureza e que existem direitos naturais. A crença na
existência de direitos fornecidos pela natureza permite que
o direito natural justifique qualquer meio violento em fun-
ção dos fins, uma vez que esses são, por si só, compreendidos
como justos. Apesar de o direito positivo se fundar no direi-
to natural e manter a crença em alguns direitos oriundos da
própria natureza (como o direito à vida e à propriedade), ele
sustenta a crença de que o próprio direito é uma construção
histórica. Por esse motivo, o direito positivo responde afirma-
tivamente à segunda pergunta, ou seja, ele justifica os fins se
esses seguiram a forma prescrita pelo direito. 3 Apesar de se
diferirem, há um pressuposto solidário em ambas as abor-
dagens: tanto o direito natural quanto o positivo acreditam
em uma correspondência entre direito e justiça. A novidade
e a singularidade da abordagem de Benjamin não consistem
apenas em separar direito e justiça, mas também de pensar
em uma violência que não seja pensada a partir da dialéti-
ca de meios e fins. Ou seja, o ensaio do filósofo alemão tem
um duplo movimento: por um lado trata-se de realizar uma
São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2011. p. 125.
2  Ibidem. p. 122.
3  Ibidem. p. 124.

Notas sobre a violência | Caio Paz 233


crítica à violência exercida pelo direito (seja o natural, seja o
positivo); por outro trata-se de pensar em uma violência que
não esteja ligada a ele, que não seja um meio para um fim
(mittel), mas sim um meio puro (medium). Nesse texto, um
puro meio é aquele que não tem o direito como um fim, seja
para instituí-lo ou preservá-lo. Nele, a violência como puro
meio é apenas manifestação.
Ao abordar a violência exercida direito, Benjamin não eviden-
cia apenas aquela que é chamada de violência sancionada,
isto é, aquela que é considerada “justa” para a conservação
do próprio direito, mas também aquela que foi responsável
por fundá-lo. Tomando o direito positivo como ponto de par-
tida hipotético, ou seja, utilizando a crença segundo a qual
toda lei é fruto de uma construção histórica, a violência de
sua construção estaria justamente no gesto de se estabelecer
as leis enquanto leis por meio da figura arquetípica da violên-
cia de guerra. Desse modo, ele afirma que se se admite que a
violência de guerra é um tipo de violência arquetípica para
a perseguição de fins naturais, poder-se-ia vislumbrar nela o
caráter de fundação do direito. 4 Assim, se Benjamin admite
provisoriamente a distinção que o próprio direito positivo faz
para fundamentar o uso da violência (a sancionada e a não
sancionada), não é para fazer coincidir com outra distinção, a
de violência para fins justos e violência para fins injustos. Ao
contrário disso, Benjamin mostra as contradições do direito
que, por meio dessa distinção, faz coincidir a violência de fins
naturais com a violência de fins de direito.
Esse movimento contraditório aparece em toda a sua clare-
za no caso da guerra. Se a violência de guerra é um modelo
arquetípico e originário da perseguição de fins naturais, há
nela caráter de instauração do direito. É por isso que, para
Benjamin, o direito faz coincidir esse fim natural com um fim
de direito. Isso significa que por meio da distinção da violên-
cia sancionada em relação à não sancionada, o direito impõe

4  Ibidem. p. 130.

234
limites ao modo como se pode alcançar e garantir inclusive
os fins naturais. Dito de outro modo, se a guerra é um meio
para alcançar um fim natural, o direito moderno captura toda
forma possível dessa violência “originária” para garantir que
o seu exercício pelos indivíduos tenha uma forma prescri-
ta pela jurisdição. Essa estratégia utilizada pelo direito mo-
derno é uma forma de neutralizar o seu poder criador que,
exatamente por isso, é também ameaçador à ordem jurídica
estabelecida. O direito de guerra ajuda a expor a contradição
do próprio direito moderno pelo fato de ele ter de reconhecer
nessa violência de guerra uma potência criadora da lei e, ao
mesmo tempo, uma potência ameaçadora da lei instituída.
Então, o movimento pelo qual o direito faz coincidir fins na-
turais (e aqui se situaria a violência instauradora presente na
guerra) com fins de direito é uma tentativa não apenas de ali-
jar de qualquer indivíduo o acesso a essa violência originária,
mas também impedir que ela se insurja contra o direito e, a
um só tempo, usá-la na sua própria conservação. 5
É nesse sentido que Benjamin só admite hipoteticamente e
provisoriamente a distinção entre violência instauradora e
conservadora do direito, porque ele pretende mostrar como
o próprio direito torna essa distinção opaca. 6 Ou seja, ele
evidencia como na violência a serviço da conservação do
direito reaparece aquela instauradora, que o próprio direito
insidiosamente insiste em apagar. Essa confusão é demons-
trada no ensaio de Walter Benjamin por meio de três dispo-
sitivos jurídicos: o militarismo, a pena de morte e a polícia.
O filósofo alemão vê no militarismo a confusão entre a fun-
dação e a conservação do direito porque, por um lado, por
meio dele, realiza-se a guerra, que, como exposto, é arqueti-
picamente ligada à execução de fins naturais e enquanto tal é
fundadora do direito. Por outro, Benjamin vê no militarismo
a imposição do emprego universal da violência como meio

5  Ibidem. p. 130-131.
6  Ibidem. p. 124.

Notas sobre a violência | Caio Paz 235


para fins de Estado, o que confirma a coincidência de fins
naturais com fins de direito. Essa coincidência implicada na
imposição está ligada ao serviço militar obrigatório, que exi-
ge a todo cidadão o alistamento nas forças armadas apenas
para garantir a manutenção do Estado e do direito de uma
nação. Assim, aquela violência arquetipicamente pensada
como originária, que poderia criar outro direito e destituir o
existente, converte-se em um meio para a sua manutenção.
O alistamento militar obrigatório visa assegurar que toda
violência dita originária seja investida de modo a assegurar a
existência do Estado e do direito.7
No caso da pena de morte, essa indeterminação entre a ins-
tauração e a manutenção do direito se verifica pelo fato de ela
ser, ao mesmo tempo, a punição de um crime e a afirmação
do poder soberano do próprio direito sobre a vida. Enquan-
to punição por uma infração das normas jurídicas, a pena de
morte estaria apenas a serviço da conservação do direito. No
entanto, por se tratar de uma punição que se afirma por meio
de um poder soberano ou supremo — o de vida e de morte —
sobre os indivíduos, para Benjamin, o que ela afirma também
é todo o poder do direito, que está em jogo no movimento
pelo qual o próprio direito se instaura e se fortalece.8
Por fim, no caso da violência policial, essa dupla função da
violência aparece porque a polícia é uma instituição que visa
a manutenção e a execução do direito estabelecido. Contudo,
para garantir a execução das leis, ela lança mão de um tipo
de violência característica da instauração do direito. Dito de
outro modo, a ação policial em nome da aplicação de fins de
direito coincide com uma função “legisladora”, uma vez que
ela “legisla” arbitrariamente com decisões com força de “de-
creto-lei” no curso de sua ação para colocar em prática o di-
reito, ou seja, aplica a lei por meio de sua suspensão. De todas
as teses de Benjamin, talvez essa seja a mais compreensível

7  Ibidem. p. 131-133.
8  Ibidem. p. 134.

236
tendo em vista a ação policial no Rio de Janeiro. 9
Com a análise desses três dispositivos, Benjamin observa que
o direito confunde a distinção entre a violência instauradora
e a mantenedora para a sua conservação. Uma das consequ-
ências dessa análise é a constatação da impossibilidade de o
direito resolver qualquer conflito de modo não violento. So-
bre esse aspecto, lê-se:
A pergunta [é possível o direito resolver conflitos de modo não
violento?] obriga, sobretudo, a constatar que uma resolução de
conflitos totalmente não-violenta jamais pode desembocar num
contrato de direito. Mesmo que este tenha sido firmado pelas
partes contratantes de maneira pacífica, o contrato leva, em últi-
ma instância, a uma violência. Pois o contrato dá a cada uma das
partes o direito de recorrer à violência, de um modo ou de outro,
contra a outra parte contratante, caso esta rompa com o contra-
to. E não apenas isso: do mesmo modo como o seu desfecho,
também a origem de qualquer contrato aponta para a violência.
Esta não precisa estar imediatamente presente no contrato como
violência instauradora do direito, mas está nele representada na
medida em que o poder [Macht] que garante o contrato de di-
reito é, por sua vez, de origem violenta, mesmo que este poder
não tenha sido introduzido no contrato pela violência. Quando
se apaga a consciência da presença latente da violência numa
instituição de direito, esta entra em decadência.10
A última frase da citação revela um dos objetivos de Benja-
min com o texto: evidenciar a natureza violenta do direito e,
por isso, criticá-la. Além de criticar essa íntima solidariedade
entre direito e violência, o texto benjaminiano tem também
outro objetivo, pensar em uma violência que não esteja ins-
crita no direito. É nesse sentido que ele apresenta uma vio-
lência pura, isto é, uma violência que não visa nem conservar
nem instaurar o direito. Se, em suas relações com o direito, a
violência está fadada ou à justificação dos seus meios pelos
fins ou à justificação dos fins pelos meios, Benjamin pensa

9  Ibidem. p.135-136.
10  Ibidem. p. 136-137.

Notas sobre a violência | Caio Paz 237


a violência na própria esfera dos meios de modo a realizar
uma desarticulação entre violência e direito. Como um puro
meio (medium), e não um meio (mittel) para um fim — seja
esse a instauração ou a conversação do direito -, a violência
seria capaz, nessa perspectiva, de depor o direito de forma
não violenta.11
Walter Benjamin se refere a essa violência como um puro
meio de diversos modos. Ora escreve violência pura, ora vio-
lência divina, ora violência revolucionária. Ao expor essa vio-
lência capaz de depor o direito, ele evoca a greve geral prole-
tária como uma forma de pura deposição do direito. Este, ao
tentar apagar a violência que o funda e ao justificar a violên-
cia que o garante, concede o direito de greve, mas o circuns-
creve por meio da dialética de meios e fins, isto é, delimita
em que circunstâncias a greve pode acontecer e quando ela é
justa ou não. Para Benjamin, no entanto, o direito só permite
que a greve possa acontecer por temê-la. Segundo essa pers-
pectiva, o que ele teme nela é o seu caráter potencialmente
revolucionário, isto é, o seu poder de, no limite, acabar com o
direito estabelecido. Assim, o direito à greve visa estabelecer
os limites e a forma das ações da greve de modo a neutralizar
o seu poder revolucionário. 12 É nesse sentido que deve ser
lida a distinção que Benjamin toma de empréstimo de Geor-
ge Sorel. Em suas Reflexões sobre a violência, Sorel opõe a gre-
ve geral política à greve geral proletária. Enquanto a primeira
luta pela reivindicação de direitos, de modo a não abalar em
nada o poder do Estado e do direito estabelecidos, a segunda
afirma-se apenas a partir de uma única tarefa, a de acabar
com ambos. A primeira é uma violência instauradora do di-
reito e a segunda é aquela responsável pela sua deposição.
Exatamente porque se constitui como uma mera deposição
do direito, a violência revolucionária é pura manifestação,
ou seja, o seu acontecer não visa colocar um outro direito ali
onde ela havia deposto o direito existente. A palavra alemã
11  Ibidem. p. 139.
12  Ibidem. p. 140

238
que Benjamin utiliza para se referir à violência é gewalt. É
curioso que, em português, gewalt possa ser traduzida não
apenas como violência, mas também como poder. Essa pos-
sibilidade, conservada no título da tradução que João Barren-
to fez desse texto de Benjamin para o português, explica em
que sentido poderia ser lida a afirmação benjaminiana se-
gundo a qual a violência pura é não-violenta e não sangrenta.
Falar em um poder como violência que não é violento, talvez,
seja um gesto de pensar em uma dimensão ético-política que
não esteja circunscrita a uma esfera exclusiva do direito, ain-
da que ela soe bastante enigmática.
Essa crítica de Benjamin e a proposição de uma violência
pura rendeu ao século XX um enorme debate acerca do es-
tatuto de ambas. Derrida, em Força de lei, afirma que a críti-
ca de Benjamin ao Estado de Direito não previu a ascensão
do fascismo e, nesse sentido, ela seria solidária com ele. Por
outro lado, Agamben desenvolveu a crítica de Benjamin em
direção a uma separação da violência e do direito em seu
projeto Homo sacer.
O livro Força de lei, de Derrida, reúne duas conferências. A
primeira intitulada “Do direito à justiça” e a segunda “Pre-
nome de Benjamin”. Ainda que a discussão com o texto “Para
uma crítica da violência” esteja presente na segunda confe-
rência, a primeira contém tanto elementos que rementem às
questões abertas pelo texto benjaminiano quanto ao debate
a que Agamben convoca Derrida.
“Prenome de Benjamin” foi uma conferência apresentada no
colóquio “O nazismo e a solução final”. Nas advertências pre-
liminares, Derrida afirma que o texto revolucionário do filó-
sofo alemão se situa na onda antiparlamentarista e anti-ilu-
minista, que, na Europa entre guerras, permitiu a ascensão
do nazismo. Sobre esse aspecto, lê-se:
Zür Kritik der Gewalt não é apenas na crítica da representação
como perversão e queda da linguagem, mas da representação
como sistema político da democracia formal e parlamentar.

Notas sobre a violência | Caio Paz 239


Desse ponto de vista, esse ensaio “revolucionário” (revolucio-
nário num estilo ao mesmo tempo marxista e messiânico), per-
tence, em 1921, à grande vaga [vague/onda] antiparlamentar e
anti-“Aufklärung” sobre a qual o nazismo veio à superfície e até
mesmo “surfou”. 13
Nessa advertência introdutória ao texto, Derrida sugere que
as críticas à democracia parlamentar e à Ratio ocidental, que
ganharam força na Europa durante o período entre guerras,
deram condições para que discursos como o nazismo pudes-
se surgir. Ao situar o texto de Benjamin nesse contexto histó-
rico, o que parece ficar sugerido é que, em alguma medida, a
crítica benjaminiana ao direito e ao Estado parlamentar têm
uma secreta solidariedade com o nazismo. Contudo, Derri-
da nem questiona nem descarta totalmente a argumentação
benjaminiana. Ele retoma diversos argumentos de “Zür Kritik
der Gewalt” para chegar em uma crítica, por assim dizer, me-
nos radical. Se, nessa perspectiva, a crítica benjaminiana se
endereça a um ponto de vista inteiramente fora do direito e,
por isso, aponta para o esgotamento e decadência das demo-
cracias da época, a derridiana se afirma no intuito de pensar
um certo aprimoramento da democracia e do direito. Com
isso, poder-se afirmar que apesar de concordar com o diag-
nóstico quanto ao o caráter violento e anômico do direito,
Derrida parece discordar das consequências que Benjamin
tira delas.
Essa posição pode ser lida de modo muito mais explícito na
primeira conferência desse livro Força de lei, que se chama
“Do direito à justiça”. Nessa conferência, o filósofo franco-
-magrebino procura diferenciar direito e justiça e escreve:
O direito não é justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo
que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se
calcule o incalculável; e as experiências aporéticas são experi-
ência tão improváveis quanto necessárias da justiça, isto é, mo-

13  DERRIDA, Jaques. “Prenome de Benjamin”. In: Força de Lei: o


fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moises. 2º
ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 63.

240
mentos em que a decisão entre o justo e o injusto nunca é garan-
tida por uma regra. 14
No trecho anterior, o direito é distinguido da justiça. Essa dis-
tinção operada por Derrida funciona de modo a considerar a
crítica benjaminiana, segundo a qual a existência do direito
só é possível por meio da violência. Com isso, ele reconhece
que o direito, apesar das suas determinações históricas, isto
é, as leis por ele estabelecidas, ele deve se dirigir à justiça,
que não é determinável. Assim, a aporia referida por ele é o
fato de o direito querer fazer justiça ainda que nunca consiga
coincidir com ela. Ou seja, a aporia consiste no cálculo so-
bre o incalculável em que estão implicados direito e justiça.
A afirmação de que o justo e o injusto nunca é decido por
uma regra é um outro modo de o filósofo mostrar a sua posi-
ção quanto as leis positivas estabelecidas em determinando
momento e lugar históricos: essas leis não garantem a jus-
tiça. No entanto, mesmo considerando a justiça como algo
incalculável e, assim, reconhecendo que a criação de leis é
insuficiente uma decisão seja justa ou injusta, Derrida afirma
que “é justo que haja um direito”. Nesse sentido, se por um
lado o texto derridiano distingue direito e justiça, por outro
ele afirma ser justo a existência do direito. Esse movimento
duplo de distinção e articulação entre o direito e a justiça, na
estratégia argumentativa de Derrida, visa garantir um trân-
sito reciproco essas duas dimensões distintas e, ao mesmo
tempo, articuladas. No entanto, ao sustentar essa posição
com relação ao direito, Derrida estabelece uma importante
diferença quanto à crítica radical que Benjamin realiza ao di-
reito. A partir da crítica radical ao direito do texto de 1921, não
seria possível afirmar, em Benjamin, algo como: “é justo que
haja um direito”.
Ao fazer essa afirmação sobre o direito, o texto derridiano
não querer abandonar completamente o direito, ainda que
14  DERRIDA, Jaques. “Do direito à justiça”. In: Força de Lei: o
fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moises. 2º
ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. p. 30.

Notas sobre a violência | Caio Paz 241


ele questione e evidencie o seu fundamento místico e infun-
dado, o que o aproxima do texto de Benjamin. Desse modo,
a um só tempo, Derrida diferencia e articula direito e justiça
através da desconstrução. No texto, essa distinção-articula-
ção aparece por meio das seguintes proposições:
1. A desconstrutibilidade do direito (por exem-
plo) torna a desconstrução possível.
2. A insdeconstrutibilidade da justiça torna
também a desconstrução possível, ou com
ela se confunde.
3. Consequência: a desconstrução ocorre no
intervalo que separa a indesconstrutibili-
dade da justiça e a desconstrutibilidade do
direito. Ela é possível como experiência do
impossível, ali onde, mesmo que ela não exis-
ta, se não está presente, ainda não ou nun-
ca, existe a justiça. Em toda parte em que se
pode substituir, traduzir, determinar o X da
justiça, deveríamos dizer: a desconstrução é
possível como impossível, na medida (ali) em
que existe X (indesconstruível), portanto na
medida (ali) em que existe (o indesconstruí-
vel).15
No trecho acima, a desconstrução aparece como algo possí-
vel devido à desconstrutibilidade do direito, que é descons-
truível pelo seu fundamento místico, isto é, pela ausência de
fundamento que funda o direito a partir de um vazio opera
por meio da força. Ao mesmo tempo, a desconstrução tam-
bém é possível pela indesconstrutubilidade da justiça, que
não é algo tangível, dizível, alcançável, mas que tem exis-
tência. Com isso, Derrida quer situar a desconstrução no
intervalo entre as essas duas posições antagonicamente si-
métricas. A estratégia dele com esse jogo entre desconstruti-
bilidade e indesconstrutibilidade é uma maneira de deslocar

15  Ibidem. p. 27-28.

242
a relação habitual estabelecida entre o direito e a justiça. Ao
pensar o direito como algo desconstrutível, o que Derrida faz
é expor aquilo que Benjamin também havia exposto em seu
ensaio de 1921 e que permanece recalcado no direito moder-
no: o direito só se cria e se conserva por meio da força, isto é,
a violência. No entanto, diferente de Benjamin, Derrida não
quer, com esse movimento, abandonar o direito, mas, de al-
gum modo, “aprimorá-lo”, ainda que, com isso, não se possa
alcançar a justiça nem eliminar o seu caráter violento. Uma
vez desconstruído e consciente de todo a seu fundamento
negativo, o direito se endereça à justiça, de modo a perceber-
-se em falta em relação a ela. Só na medida em que o direito
se endereça à justiça e sabe não apenas que ela é indescons-
trutível, mas também indeterminada, que se pode dizer: “é
justo que haja um direito”.
A perspectiva desconstrucionista não propõe e nem parece
acenar para o fim do direito, ainda que seja crítica àquilo que
Benjamin chamou de decadência do direito moderno, isto é,
o ocultamento e o esquecimento da sua violência fundadora.
Mais do que não acreditar no horizonte para o qual se dire-
ciona o texto de Benjamin, Derrida parece considerar proble-
mática essas proposições benjaminianas, que, segundo a sua
argumentação, teriam possibilitado o nazismo.16
Diferente de Derrida, Giorgio Agamben apresenta outra re-
lação com o texto benjamininano. Seria possível afirmar,
ainda que só parcialmente, que os livros Homo sacer, Estado
de exceção e O que resta de auschwitz são uma tentativa de
continuar as reflexões que Benjamin ensaiou em “Para um a
crítica da violência”. Assim, Agamben, com o seu método pa-
radigmático, faz uma crítica à democracia e ao direito ainda
mais radical que a crítica do filósofo alemão. Nesse sentido,
ele sustenta, em Homo sacer, a tese de que há uma íntima so-
lidariedade entre as democracias e os totalitarismos. 17 Com

16  DERRIDA, Jaques. “Prenome de Benjamin”. Op.cit. p. 63.


17  AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua.

Notas sobre a violência | Caio Paz 243


esse gesto, Agamben inverte o movimento derridiano, que,
ao incluir o texto do Benjamin na “onda anti-paramentaris-
ta”, produziu uma certa solidariedade entre o fascismo e as
críticas à democracia e ao direito. Assumindo não apenas os
argumentos benjaminianos de que o direito é vazio e violen-
to, Agamben leva adiante a consequência que Benjamin tira
dessa tese, que é a de depor o direito.
Desse modo, a argumentação agambeniana se constrói rea-
firmando a ideia — presente tanto em Benjamin quanto em
Derrida — segundo a qual o direito se funda a partir de uma
anomia, um vazio violento que, enquanto tal, torna todo o
direito possível. No entanto, o caminho pelo qual Agamben
chega a essa afirmação é um pouco diferente, uma vez que
resgata o debate entre Walter Benjamin e Carl Schmitt para
elucidar que as normas jurídicas sobrevivem da exceção, isto
é, daquilo que é incluído nas normas por meio de sua exclu-
são. 18 Com essa ideia de uma inclusão-exclusiva, Agamben
não quer apenas reafirmar a tese anterior, que expõe o cará-
ter infundado do direito, mas quer também afirmar que este
só se aplica por meio de sua suspensão, isto é, só se aplica se
desaplicando. Sobre esse aspecto, ele escreve:
(...) Não é a exceção que se subtrai à regra, mas a regra que, sus-
pendendo-se, dá lugar à exceção e somente deste modo se cons-
titui como regra, mantendo-se em relação com aquela. O parti-
cular “vigor” da lei consiste nessa capacidade de manter-se em
relação com uma exterioridade. Chamemos relação de exceção
a esta forma extrema de relação que inclui alguma coisa unica-
mente através de sua exclusão. 19
Se pensarmos no caso da polícia, talvez, a correlação dessa

Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.


p. 17-18.
18  AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção [Homo Sacer, II, I].
Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 83-98.
19  AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida
nua. Op.cit. p. 25.

244
tese com a de Benjamin se mostre de modo mais explícito. Se
para Benjamin o direito mostra a sua decadência na figura da
polícia, que faz uso da violência fundadora e mantenedora
do direito, é possível ver no uso da violência fundadora para
conservar o direito a suspensão da lei a que Agamben se re-
fere. Então, ainda insistindo nesse exemplo da polícia, seria
possível afirmar que quando a polícia executa uma ordem ju-
dicial de busca e apreensão nas favelas do Rio de Janeiro ela
está fazendo uso da violência mantenedora, mas, ao mesmo
tempo, sabe-se que em sua ação truculenta, na maior parte
das vezes, casas são invadidas sem mandados e pessoas são
torturadas, o que configura como uma suspensão da lei, isto
é, o uso da violência anômica que funda o direito.
No entanto, Agamben não se restringiu a afirmar que a sus-
pensão da lei no momento mesmo de sua aplicação está ape-
nas em um instituto tal como a polícia. Para o filósofo italiano,
toda lei só se aplica se desaplicando, o que significa dizer que
a violência fundadora direito, que é arbitrária e anômica, não
cessa de se inscrever em toda execução da lei. Nesse sentido,
seria possível afirmar que todo Estado de direito é um Estado
policial. Para chegar a essa formulação, Agamben se utiliza
de um texto de Benjamin escrito nos anos de 1940, as “Teses
sobre o conceito de história”. Mais especificamente, ele utili-
za a oitava tese, que afirma que o estado de exceção em que
vivemos se tornou a verdadeira regra. Conjugando esse texto
de 1940 como aquele outro texto que o filósofo alemão escre-
veu em 1921, Agamben desenvolve a crítica ao direito realiza-
da por Benjamin. 20
Para desenvolver essa crítica, o filósofo italiano discute com
um contemporâneo de Benjamin, Carl Schmitt. A partir da
definição schmittiana de soberano, ele evidencia a paradoxal
topologia da soberania. Ao definir o soberano como aquele
que pode decidir sobre a suspensão e a validade da norma,
Schmitt mostra o elemento excepcional que constitui a juris-

20  Ibidem. p. 60.

Notas sobre a violência | Caio Paz 245


dição, evidenciando que ela, ao tentar legislar sobre aquilo
que lhe escapa, acaba por se colocar fora de si mesma. Ou
seja, se a norma depende da figura do soberano para que a
sua validade seja decidida, esse, que se encontra nela para
que esteja investido desse poder, por isso mesmo, está fora
dela. Essa questão se torna mais explicita na afirmação de
Schimtt, segundo a qual: “É preciso criar uma situação nor-
mal, e o soberano é aquele que decide de modo definitivo se
este estado de normalidade reina de fato”. 21 Isto é, a situa-
ção normal sobre a qual a norma é aplicada é decida através
de um gesto que não se encontra na norma. Nesse sentido,
é exatamente um elemento não normatizado (anômico) que
possibilita o estabelecimento do que é e do que não é nor-
mal, ou seja, aquilo que está de acordo ou em desacordo com
a norma. A partir disso, Agamben demonstra, concordando
com Schmitt, que paradoxalmente o direito encontra na ex-
ceção o seu fundamento e que esse fundamento vazio sem-
pre reaparece na figura da decisão soberana que, no limite,
decide sobre a vigência ou não da lei.
O objetivo de Agamben ao evidenciar o paradoxo da sobera-
nia é dar inteligibilidade à tese benjaminiana, segundo a qual
o estado de exceção se tornou a regra, e, ao mesmo tempo,
afirmar como tarefa “a necessidade de provocar o verdadeiro
estado de exceção”. Seguindo Benjamin, Agamben opõe o es-
tado de exceção que se tornou regra a um estado de exceção
verdadeiro ou, para usar a terminologia de Homo Sacer, um
estado de exceção efetivo. 22 Em Agamben, essa necessidade
de efetivar o estado de exceção diz respeito a uma outra rela-
ção com o direito, isto é, trata-se de liberar a exceção do seu
vínculo com a fundação do direito. Ou, para usar o vocabu-
lário do texto de 1921, de liberar a violência das suas relações
com o direito. Se o vínculo entre o estado de exceção virtual
21  SCHMITT, Carl. Politische Theologie, Vier Kapitel zue Lebre von
der Souvranitat. Munchen-Leipzig, 1922. Apud: AGAMBEN, Giorgio.
Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Op.cit. p. 22.
22  Ibidem. p. 60.

246
e o direito é um vínculo fundacional e mantenedor, o estado
de exceção efetivo ou verdadeiro implica uma deposição do
próprio direito, ou seja, a invenção de um novo uso para ele,
que é o que está em jogo na violência pura.
Tanto Derrida quanto Agamben circulam em torno do texto
que Benjamin escreveu ainda em sua juventude e chegam a
conclusões distintas. Enquanto Derrida, através da descons-
trução, permanece vinculado, de algum modo, ao direito e
vislumbra certa solidariedade entre as proposições de Ben-
jamin sobre o fim do direito e a ascensão do fascismo, Agam-
ben faz o inverso. Nesse sentido, desde uma perspectiva der-
ridiana, Agamben seria colocado ao lado de Benjamin, e o
apontamento em direção ao fim da violência exercida pelo
direito seria visto como condição de possibilidade para a as-
censão do fascismo. Diametralmente oposto, o filósofo italia-
no estabelece uma secreta solidariedade entre a democracia
e o totalitarismo. Se a posição derridiana contrária à abolição
do direito está vinculada à democracia, o que Agamben pa-
rece fazer é jogar a crítica que Derrida fez a Benjamin con-
tra ele mesmo. Desde a perspectiva agambenina, apesar de
compreender o fundamento místico da autoridade, isto é, a
ficção vazia e violenta sobre a qual todo direito está fundado,
Derrida permanece como um “guardião” desse vazio violen-
to da lei por acreditar que, de algum modo, “é justo que haja
direito”.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção [Homo Sacer, II, I].


São Paulo : Boitempo Editorial, 2004.
________________. Homo Sacer: o poder soberano e a vida

Notas sobre a violência | Caio Paz 247


nua I. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.
BENJAMIN, Walter. “Para uma crítica da violência”. In: Es-
critos sobre mito e linguagem. Tradução Ernani Chaves. São
Paulo : Editora 34, Editora Duas cidades, 2011.
BUTLER, Judith. “Walter Benjamin e a crítica da violência”.
in: Caminhos divergentes —judaicidade e crítica do sionismo.
São Paulo : Boitempo Editorial, 2017.
DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da
autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moises. 2º ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2010.
O real estado de exceção
O direito, a violência e a política em Walter Ben-
jamin

Ana Carolina Martins


martins.anacarolinas@gmail.com | Un. Federal do Rio de Ja-
neiro
1

Há, na oitava tese “Sobre o conceito de história” duas apari-


ções do que é chamado por Benjamin de “estado de exceção”.
Benjamin não define cada um dos empregos do termo “Aus-
nahmezustand”, e podemos ler, com alguma rapidez, o pri-
meiro como um diagnóstico onde se verifica que o estado de
exceção em que vivemos é a verdadeira regra. Disso, o já ins-
taurado regime nazista na Alemanha, na ocasião da escrita
das teses, não nos deixa dúvida. A segunda aparição do termo
é, também, uma convocação. Por ela somos convidados ou
intimados a realizar a enigmática tarefa de “provocar o verda-
deiro estado de exceção”. A relação entre as duas referências
ao estado de exceção, na oitava tese, é o que pretendo inter-
rogar. Nesta comunicação, desde Benjamin e Agamben, entre
e com eles, procurarei dar contornos a seguinte questão: O
que marca e distingue o estado de exceção em que vivemos
de um verdadeiro estado de exceção que não instaura nem
mantém o direito, mas que o depõe?
Benjamin diz:
A tradição dos oprimidos ensina-nos que o “estado de exceção”
em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de
história que corresponda a essa ideia. Só então se perfilará dian-

250
te dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provo-
car o verdadeiro estado de exceção;1
A perspectiva apresentada pode levar à compreensão de que
há a uma separação entre um tempo histórico específico,
“em que vivemos” ou “em que Benjamin viveu”, de um outro
tempo, um tempo ainda não revelado, no qual o verdadeiro
estado de exceção estará posto. Esta compreensão guarda
em si uma certa concepção de tempo e de história e mere-
ce algumas considerações. Na perspectiva histórica que o
próprio Benjamin nos ensina, contrapor dois mundos, como
duas cronologias distintas (uma que é e outra que não é, mas
será), corresponde ao modo próprio de compreender a histó-
ria do historicismo — solidária com uma ideia de processo e
progresso histórico, no âmbito do histórico e do político — e
também teleológica, na qual no fim da história está a salvação
messiânica, a realização do espírito ou o fim da luta de clas-
ses. A primeira convocação que Benjamin nos faz, antes mes-
mo de indicar a tarefa de chegarmos a um “verdadeiro estado
de exceção”, é, na verdade, aquela sobre o próprio conceito de
história que está em jogo. Com “temos de chegar a um con-
ceito de história que corresponda a esta ideia”, Benjamin nos
convida não a mudar o curso da história, mas a voltarmo-nos
para ela de outro modo. A revolução benjaminiana é, antes e
sobretudo, uma revolução na concepção de tempo e história
que domina o ocidente.
Para indagarmos os sentidos do uso do conceito de estado
de exceção na filosofia benjaminiana é preciso ter em mente
que a estrutura do tempo histórico para Benjamin não se ins-
creve na ordem negativa, que ele chama de “tempo homogê-
neo e vazio”, cuja substituição incessante de um instante por
outro dá a cadência da passagem do tempo. Trata-se de uma
experiência temporal que a tão familiar contagem do tempo
através dos segundos, dos minutos e das horas, já não nos
1  BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: O anjo da
história. Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2012. p. 13

O real estado de exceção | Ana Carolina Martins 251


permite estranhar sem algum esforço. Tampouco podemos
associar a concepção benjaminiana do tempo e da história
de um certo tipo de messianismo que prevê e aguarda a vinda
do messias como salvação do histórico, numa dinâmica que
separa “este mundo” do “outro mundo”.
O messianismo benjaminiano é melhor compreendido quan-
do não associado a uma concepção que estabelece esferas
absolutamente separadas para o sagrado e o profano, cada
uma delas com suas estruturas de tempo, história e lei dis-
tintas. Sabemos que o pensamento de Benjamin está repleto
de temas e abordagens próprios de uma tradição teológica,
especialmente judaica cabalista, assim como o materialismo
está significativamente presente em alguns textos, nas teses,
por exemplo esta referência é explícita. De modo que essa
relação, como adverte Jeanne Marie Gagnebin, precisa ser
compreendida sem o caráter religioso que, não raro, leitores
de Benjamin a concede.2 A religião é justamente a dimensão
que, virtualmente, procura reunir, re-ligar, que vem de re-li-
gio, aquilo que foi separado, o reino da terra e do céu, o puro e
o impuro, etc.3 A filosofia de Benjamin se volta precisamente
contra essa separação e quer lançar luz, criar condições para
que o não separado, o não interdito, a vida não dividida, na
terra, na história no mundo, emerja não como uma revolu-
ção, uma destruição ou uma desconstrução de um estado de
coisas, mas numa espécie de pequeno desvio que faz com
que as interdições (religiosas ou legais) já não digam mais
respeito à vida dos homens.
Como numa parábola que certa vez Benjamin ouviu de Scho-
lem que diz que o mundo após a realização messiânica será
exatamente como hoje é o nosso mundo, só que um pouco
diferente. A parábola diz sobre o mundo que a vinda do Mes-
2  GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “Teologia e messianismo no pensa-
mento de Walter Benjamin”. Estudos Avançados. vol.13 no.37 São
Paulo Sept./Dec. 1999.
3  AGAMBEN, Giorgio. “Elogio da profanação” in: Profanações.
Tradução de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.

252
sias dispõe: “Lá tudo será exatamente como é aqui. Como
agora é o nosso quarto, assim será no mundo que vem; onde
agora dorme nosso filho, lá dormirá também no outro mun-
do. E aquilo que vestimos neste mundo, o vestiremos tam-
bém lá. Tudo será como é agora, só um pouco diferente”. 4
Os antagonismos entre mundo-outro mundo, teologia-ma-
terialismo assumem outra forma na filosofia da história de
Walter Benjamin. Embora sua obra esteja repleta de imagens
do mundo messiânico, não devemos lê-las como opostas ao
tempo histórico. Ainda que estas duas instâncias não coinci-
dam perfeitamente, o tempo messiânico está desde sempre
presente no histórico, mas não coincide com ele: enquanto
um é ainda processual e marcha em direção ao futuro, o ou-
tro é uma paragem, uma abertura que dilata e implode a ca-
dência do antes e do depois, presentificando, digamos assim,
a história. O que esta coexistência nos indica é, então, uma
outra dimensão do próprio tempo, uma abertura para um
não mais e um ainda não, ou melhor, uma dimensão do “não
é aí”. É sob esta luz que olho para o paralelo que Benjamin
estabelece entre o “estado de exceção no qual vivemos” e o
“verdadeiro estado de exceção”. O verdadeiro estado de ex-
ceção, poder-se-ia admitir, é exatamente como o “estado de
exceção no qual vivemos”, só um pouco diferente.

Que o conceito de estado de exceção em Benjamin dialoga


com aquele elaborado por Carl Schmitt a propósito de sua

4  BENJAMIN, Walter apud AGAMBEN, Giorgio. “Auréola” In: A


comunidade que vem. Tradução Cl[audio oliveira. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2013. p. 51

O real estado de exceção | Ana Carolina Martins 253


Teologia Política foi observado, entre outros importantes
pensadores, por Giorgio Agamben, Judith Butler e Derrida.
Na verdade, há indícios bastante sólidos de que Benjamin e
Schmitt liam um ao outro desde 1921, na ocasião da publica-
ção do ensaio “Para uma crítica da violência”, do qual Schmitt
foi um provável leitor. Agamben, por exemplo, lê a doutrina
da soberania de Carl Schmitt, apresentada na sua Teologia
Política de 1922, como uma resposta ao ensaio benjaminia-
no. Benjamin, por outro lado, reconheceu em uma carta, que
acompanhava um exemplar do seu livro sobre o Drama bar-
roco, o quanto aquele trabalho devia à elaboração da doutri-
na da soberania que Schmitt desenvolveu no seu livro.5 O
que por ora é importante, é como a teoria do estado de exce-
ção em Benjamin, e sua apresentação na oitava tese, dialoga
com o conceito de exceção em Schmitt.
A famosa definição de soberania apresentada nos dois pri-
meiros capítulos da Teologia Política diz que “soberano é
aquele que decide sobre o estado de exceção”. De modo que
o conceito de exceção se destaca, para Schmitt, como o nú-
cleo de sua teoria jurídica. O soberano é aquele que decide
sobre a suspensão da lei, sobre aquilo que a excede, sem, no
entanto, estar fora da lei. Segundo a leitura agambeniana da
doutrina formulada por Carl Schmitt, esta proposição possui
importantes consequências e significa a instituição de uma
teoria jurídica que se fundamenta sobre o paradoxo da exclu-
são-inclusiva. Na medida em que a suspensão da lei é uma
previsão jurídica para Schmitt, a lei pode legalmente deixar
de viger.
É nesse sentido que a exceção se apresenta como um concei-
to limite nuclear: excepcionais são os casos que não podem
ser previstos, ou seja, estão excluídos da norma. No entanto,
essa exclusão se dá por meio de uma inclusão — atestada pela
5  SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Walter Benjamin: o estado de ex-
ceção entre o político e o estético”. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio
(org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP: Annablu-
me, 2007.

254
definição de soberania que Schmitt apresenta. A exceção não
perde, desse modo, sua relação com a norma, ela mantém-se
em relação com ela sob a forma da suspensão ou do excesso,
daquilo que excede a norma sem estar fora dela. O soberano
se situa externamente à ordem vigente legal, mas pertence a
ela na medida em que lhe compete decidir sobre a suspensão
total da constituição, por exemplo.
O estado de exceção, na doutrina schmittiana, é também a
condição limite entre o jurídico e o político, posto que é a de-
cisão sobre o estado de exceção o elemento fundamental para
instituição de uma nova ordem jurídico-política. A exceção é
a estrutura da soberania e não é nem um conceito exclusiva-
mente político, pois está previsto na doutrina jurídica, nem
uma categoria meramente jurídica, posto que concebe um
fora da norma. O estado de exceção é, então, para Schmitt,
a estrutura originária de todo e qualquer direito, posto que é
a condição de possibilidade de fundação do direito. É dessa
maneira que as condições de normalidade e as condições de
exceção se mostram ambas como pressupostos de toda orde-
nação jurídica e o direito pode ser aplicado desaplicando-se.
Através da categoria da exceção, Schmitt pôde estabelecer
uma dialética relação de fundação e manutenção do direi-
to na qual haverá sempre um resíduo da lei mesmo sob as
condições de absoluta suspensão do ordenamento jurídico.
O jurista católico procurou garantir assim uma estrutura tota-
lizante do direito, baseando-se na divisão entre norma de di-
reito e norma de realização do direito, isto é, na divisão entre
poder constituído (ditadura comissária) e poder constituinte
(ditadura soberana).

O real estado de exceção | Ana Carolina Martins 255


Com isso, o que significa dizer, não mais com Schmitt — pos-
to que para Schmitt a declaração do estado de exceção tem
uma função estratégica para o ordenamento jurídico e, por-
tanto, um caráter temporário —, mas com Benjamin, que o
estado de exceção se tornou a regra? Significa pensar filoso-
ficamente a vida não relacionada ao direito. Significa pensar
o que para Schmitt seria intolerável, a possibilidade de uma
existência que esteja verdadeiramente fora do direito. Uma
vida que não esteja relacionada ao direito sob qualquer as-
pecto, nem mesmo sob o aspecto de uma exclusão. Uma vida
que não se dirige mais ao direito, como nos ensina a tradição
dos oprimidos, mas à própria vida.
O primeiro vislumbre da possibilidade de que algo não esteja
relacionado ao direito, ou seja, uma primeira abordagem da-
quilo que pode ter se tornado a teoria do estado de exceção
benjaminiana aparece no ensaio de 1921, “Para uma crítica da
violência”. Neste texto, Benjamin procura estabelecer os cri-
térios de uma crítica da violência desvinculados dos fins de
seu emprego. Ele demonstra que tanto na doutrina do direito
natural quanto no direito positivo, a violência é um meio para
determinados fins. Ambas as doutrinas jurídicas atribuem à
violência um critério de justiça: um meio violento pode ser
aplicado para alcançar fins justos ou fins justos podem ser al-
cançados por meios justificados.
Para Benjamin, é fundamental estabelecer uma crítica da
violência pensando-a de forma não mediatizada. Nos esta-
dos de direito, a violência, observa Benjamin, é sempre um
meio para determinados fins de direito. Seja para instaurar
um novo direito, e nesse ponto o estado de exceção schmit-
tiano demonstra seu caráter radicalmente violento, seja para
manter o direito, e aqui, no militarismo, se torna explícito o
uso da violência como meio para o fim de manutenção do
direito, a violência é sempre meio com vistas a fins.
Estas indicações deixam ver o sentido mais profundo do uso
do termo Gewalt, que no alemão, possui uma dupla acepção:

256
pode ser traduzido tanto por poder quanto por violência e, no
ensaio benjaminiano, este sentido duplo não está de manei-
ra alguma dissociado. De modo que todo poder, mesmo que
aparente e supostamente não violento, é um meio do direito
para instituí-lo ou para mantê-lo, é então, exercício do poder
como violência. A aporia de todo sistema jurídico é o de ten-
tar adequar fins universais a casos particulares e o dispositivo
que visa torná-la possível é, para Benjamin, Gewalt (poder/
violência).
Benjamin quer pensar, então, uma manifestação distinta da
violência — que não se reduz à dialética: violência instaura-
dora do direito-violência mantenedora do direito ou, nos ter-
mos da teoria schimittiana, poder constituinte-poder consti-
tuído. Um tipo de violência que não tem o direito como um
fim de sua aplicação, que não instaura nem mantém o direito,
mas o depõe. Uma tal manifestação da Gewalt é chamada por
Benjamin de “violência pura”, “divina” ou revolucionária6. A
violência pura/revolucionária que interrompe o ciclo inces-
sante dos poderes mantenedores e dos poderes instituintes
está situada na esfera divina porque o poder divino é justa-
mente, o poder aniquilador do direito — o messias finda o
tempo cronológico sob a Lei. Este é precisamente o ponto
que pode ser caro para uma possível teoria do estado de ex-
ceção em Benjamin, poder/violência divinos significam não
outra coisa senão, vida fora do direito ou dito de outro modo,
a vida não separada dela mesma. Uma vida que não pode ser
mais apenas uma “mera vida”, um corpo que sangra e morre,
que é uma pura vida. E assumo aqui a palavra “pura”, própria
do vocabulário benjaminiano, para lembrar que a condição
de pureza de algo só pode ser relacional, posto que pura é
a vida que não é objeto do direito, que não é meio nem fim
do direito, mas ao contrário, que é pura e simplesmente uma
vida.

6  BENJAMIN, Walter. “Para uma crítica da violência” In: Escritos


sobre mito e linguagem. Tradução de Ernani Chaves. São Paulo:
Duas Cidades; Ed. 34, 2011.

O real estado de exceção | Ana Carolina Martins 257


Assim, o horizonte para o qual aponta a crítica de Benjamin
é simetricamente oposto ao que resulta da formulação schi-
mittiana. Enquanto Schmitt visa o fortalecimento do direito,
Benjamin propõe a sua deposição. A decisão soberana na
Teologia política seria uma categoria jurídica que não fun-
da nem conserva o direito, mas o suspende sem o destituir.
À tentativa benjaminiana de deposição do direito, Schmitt
opõe a decisão soberana como limite extremo do direito.
Se voltarmos agora para a pergunta da qual partimos, “o que
significa dizer que o estado de exceção se tornou a regra?”,
algumas hipóteses, não excludentes, são possíveis:
1ª) Aquela demonstrada por Agamben que compreende o
fato do estado de exceção ter se tornado a regra como a ex-
posição do modo próprio de funcionamento da ordem jurí-
dica (a sua estrutura excepcional) que agambenianamente
podemos chamar de “estado de exceção como paradigma de
governo”;
2ª) Que o estado de exceção possui não apenas a função
estratégica e temporária de instaurar uma ordem, mas que
mantém a ordem suspensa indeterminadamente e a suspen-
são da norma passa a ser a própria norma;
3ª) Ou ainda, assumindo uma proximidade maior com Ben-
jamin do que com Schmitt, que o estado de exceção, seja uma
condição na qual a vida não esteja relacionada ao direito,
uma esfera na qual não se inscreve o horizonte de fundação
de um novo direito. Que seja, porém, uma dimensão que abre
a história para a sua estrutura temporal mais própria, aquela
que a tradição dos oprimidos nos ensina, uma estrutura tem-
poral outra que irrompe a temporalidade da Lei, mas que não
institui nada.
A 4ª hipótese decorre desta terceira e é com ambas que meu
pensamento seguirá. Que o estado de exceção seja a regra é já
uma indicação de um verdadeiro estado de exceção, na me-
dida em que se trata de uma constatação que só é possível
sob o ponto de vista de um outro conceito de história. A tarefa

258
que Benjamin deixou para as gerações futuras, a tarefa que
se quisermos, deveríamos assumir, não é a de instaurar um
novo estado de coisas, um novo estado de exceção, mas o de
mudar a nossa compreensão do tempo e da história. Estaría-
mos com isso, talvez operando o pequeno deslocamento do
qual trata a parábola sobre o reino messiânico.

Ainda na oitava tese, Benjamin diz que somente tendo alcan-


çado um conceito de história que corresponda ao fato de que
o estado de exceção é a regra é que “nossa posição na luta
contra o fascismo melhorará”. E continua:
A hipótese de ele [o fascismo] se afirmar reside em grande par-
te no fato de os seus opositores o verem como norma histórica,
em nome do progresso. O espanto por as coisas a que assistimos
“ainda” poderem ser assim no século vinte não é um espanto fi-
losófico. Ele não está no início de um processo de conhecimen-
to, a não ser o de que a ideia de história de onde provém não é
sustentável.7
O fortalecimento do fascismo está, para Benjamin, no fato de
que ele representa para seus opositores, numa clara crítica à
esquerda de seu tempo, uma interrupção da marcha do pro-
gresso e se opõem a ele, ao fascismo, justamente, em nome
do progresso, como se este fosse uma norma histórica. O es-
panto diante da barbárie não pode ser, portanto, um espanto
filosófico, no sentido em que a filosofia é o espaço sobre a
interrogação dos pressupostos, de um conhecimento daquilo
que se volta para os fundamentos e possibilita a compreen-
são dos fenômenos. A esta concepção de história, progressis-
7  BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. op. cit. p. 13

O real estado de exceção | Ana Carolina Martins 259


ta, na qual o fascismo é uma anomalia, uma espécie de re-
torno a um estado de coisas menos desenvolvido da história
da humanidade, Benjamin contrapõe seu próprio conceito
de história. Desde o ponto de vista dos oprimidos, a dialética
que funda o direito, cujo dispositivo de manutenção é o po-
der/violência, não passa de uma ficção, como o é a tentativa
schmittiana de incluir o estado de exceção na norma jurídica.
A concepção de história do historicismo não é sustentável
diante da história dos oprimidos na qual a incessante inter-
rupção do direito através de contextos opostos aos estados
ordinários de existência vieram a tona. Na obra de Benjamin,
alguns exemplos que podemos, agora, compreender como
estados de exceção foram apresentados: no ensaio sobre a
violência: a greve geral revolucionária; no drama barroco, a
impossibilidade de decisão do príncipe; nas teses, o gesto dos
primeiros revolucionários na França do século XVIII, em um
conto escrito por ele chamado “Observando o corso passar”, é
o carnaval que aparece como imagem do estado de exceção.
Um conceito de história que corresponda ao ensinamento
da tradição dos oprimidos, a constatação de que o estado
de exceção é a regra, é uma experiência da história que volta
seus olhos não para o futuro, não para a superação da exce-
ção pela norma, mas que atualiza o estado de exceção como
aquela dimensão que não pode ser capturada pelo direito ou
pela narrativa do progresso histórico. Somente um tal con-
ceito de história pode provocar o verdadeiro estado de exce-
ção, no qual não Auschwitz (um estado de exceção inscrito
na ordem da história), mas o carnaval e o soberano que nada
decide, sejam a regra. Sob esta outra concepção de história
não teríamos mais uma Lei que tem força mesmo estando
ausente, suspensa, mas subsistiria tão somente uma lei que
perdeu completamente sua força ainda que exista. Como no
carnaval não são os nossos corpos que restam abandonados
à Lei, mas a lei que foi por nós abandonada e esquecida.

260
5

Com Agamben, aprendemos que compreender o estado de


exceção como um paradigma significa também evidenciar o
fato de que a norma não pode conter sua exceção (2004). O
estado de exceção é, portanto, aquilo que não pode ser inclu-
ído no direito. Instaurar o real estado de exceção deve signi-
ficar, a partir da perspectiva da história de Benjamin, que o
estado de direito não é o único horizonte para nós, como não
é também o progresso da história a única marcha possível. O
verdadeiro estado de exceção não se mantém mais em rela-
ção com o direito, ele abandona a norma, não mais como nos
governos contemporâneos a Benjamin e a nós, ele a aban-
dona como um acontecimento revolucionário, a abandona
verdadeiramente.
Se o estado de exceção é aquela condição que está fora do
direito ao mesmo tempo em que constitui o nexo de exclu-
são-inclusiva e que o mantém em relação com ele, torná-lo
a regra deve significar abandonar por completo a expectativa
de reestabelecimento da ordem normal, colocando o sobe-
rano numa radical impossibilidade de decisão. O que o so-
berano decide não é sobre a aplicação na norma, mas sobre
sua suspensão. Indeterminadamente suspensa, a norma des-
vincula-se da vida e abre no tempo uma dimensão que não
é aquela do antes e do depois; no direito, que não é mais de
instituição e manutenção, na ontologia, fundante e fundado.
O real estado de exceção não é aquele que apenas suspende
a vigência da norma, mas sim aquela situação messiânica na
qual se suspende o vínculo entre a vida e a Lei.
Em sua reflexão sobre a oitava tese, Agamben prefere ler “ver-
dadeiro estado de exceção” como “estado de exceção efeti-
vo”.8 Isto porque o filósofo italiano compreende que fictício é

8  AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo,


2004. p. 92.

O real estado de exceção | Ana Carolina Martins 261


aquela figura do estado de exceção que, como também com-
preende Carl Schmitt, mantém seu vínculo com o direito, tal
qual nas constituições em que ele está previsto, “estado de sí-
tio”, “estado de emergência”, etc. Fictício é um estado de exce-
ção que se pretende regulamentar. Agamben lê, no entanto, a
própria tentativa de relacionar exceção e norma realizada por
Schmitt como fictícia, porque mantém, de uma forma ou de
outra, o nexo com o direito. Tornar efetivo o estado de exce-
ção deve significar, portanto, tornar inoperosa a máquina que
mantém o vínculo com a norma.
Se falso é o estado de exceção que pretende se distinguir da
regra, verdadeiro é o estado de exceção que é a própria regra.
Assim como se pura é a violência que não está mais relacio-
nada ao direito, do mesmo modo como pura é a língua que
não se subsume à sua mera dimensão comunicativa, o real
estado de exceção deve ser ainda aquele onde se exibe uma
violência pura, revolucionária, divina e não sangrenta, que
não pode mais ser vista do ponto de vista do direito e, por
isso, é eficaz na luta contra o fascismo. O real estado de ex-
ceção é um puro meio, que não comunica nada, assim como
não instaura uma nova ordem, nele não há vencedores, nem
vencidos, não há juízo, nem culpa.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo,


2004.
BENJAMIN, Walter. “Sobre a linguagem em geral e sobre a
linguagem do homem”. In: Escritos sobre mito e linguagem.
Tradução de Susana Kampff Lages. São Paulo: Duas Cidades;
Ed. 34, 2011.

262
BENJAMIN, Walter. “Para uma crítica da violência” In: Escri-
tos sobre mito e linguagem. Tradução de Ernani Chaves. São
Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: O anjo
da história. Organização e tradução de João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Walter Benjamin: o estado de
exceção entre o político e o estético”. In: SELIGMANN-SIL-
VA, Márcio (org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo:
FAPESP: Annablume, 2007.

O real estado de exceção | Ana Carolina Martins 263


Proust como autor
Entre o Erro do Ativismo e a Melancolia de Es-
querda, a imagem quando encenada

Cláudio Guilarduci
| Un. Federal de São João del Rei
Diego José Domingos
diegojse@hotmail.com | Un. Federal de São João del Rei
Este texto é uma tentativa de materializar em narrativa o
processo de criação artístico-teatral que há anos vem sendo
desenvolvido na Universidade Federal de São João del-Rei
nos cursos de graduação em Teatro pelo Grupo de Pesquisa
(GPAC). Quando se tem a memória como base do trabalho
do ator, o tempo e o espaço são fatores-chave que se lançam
frente à reflexão do processo de criação. Digo ator, pois rela-
to aqui minha experiência performática no espetáculo Araci:
quando abraço de mãe não cura.
No caso da composição cênica, a memória atuava como fon-
te, mas não necessariamente como cópia a ser reproduzida.
Discutíamos como seria a transformação estética dessa me-
mória, como atingiríamos o devir necessário daquela deter-
minada lembrança à cena teatral. De que forma o passado
lança-se sobre o presente e transforma-se no futuro como
algo ainda a ser apresentado? Qual é a linguagem que atribui
cognoscibilidade ao que era íntimo e agora quer ser públi-
co? Qual ou que seria a experiência da criação teatral (auto)
biográfica em Araci? O caminho metodológico é traçado pela
reflexão do uso do espaço (auto)biográfico proposto pela ar-
gentina Leonor Arfuch e de parte do pacto autobiográfico do
francês Philippe Lejeune no Teatro. Ambos autores são par-
te importante na fase de composição do trabalho refletido.
O texto pretende ainda refletir a figura do autor partindo de
três textos de Walter Benjamin escritos entre 1929 e 1932, sen-
do eles, A imagem de Proust (1929), Melancolia de Esquerda
(1931) e O Erro do Ativismo (1932). Um dos principais pontos
a ser destacado é que tomo o teatro — a cena teatral — como
ponto de partida para essa reflexão.
Nos últimos anos, tenho percebido e acompanhado os ques-
tionamentos que derivam do embate entre a tarefa crítica
artístico-acadêmica e a crítica social. Por crítica social en-
tenda-se a crítica que deriva das experiências individuais ou
através de coletivos que promovam algum tipo de discussão
relacionada aos direitos das pessoas que figuram grupos iso-
lados e que ainda necessitam de políticas públicas para aces-
sar e fruir direitos já alcançados pelos demais grupos que
compõem nossa sociedade. Isso quer dizer que, quando um
sujeito lança-se a uma crítica, frequentemente em um em-
bate contemporâneo, questionarão seu lugar de fala, isso é,
questionarão a legitimidade de sua fala, e com isso, questio-
nam o sujeito que diz, a partir de seu lugar de origem ou sua
condição natural.
Mitos apoiam as principais correntes de pensamento que se
apresentam para falar das possíveis resoluções para nosso
cotidiano, entretanto, dois são os destacados para esta refle-
xão. Enquanto um se apóia em um discurso intelectual, o ou-
tro se apóia no que viveu, ignorando todo o resto. A Esquer-
da sempre usará a história e seus documentos a seu favor. O
Ativista, as mazelas do mundo para lhe conferir coerência e
bom senso. O problema não é novo e, como um surto social,
insiste em nos pegar de surpresa de tempos intelectuais des-
colados de sua práxis emergem na mesma proporção em que
surgem práticas comportamentais — e também discursivas
— reivindicando certo lugar abstrato, negociado com a inte-
lectualidade pelo direito à fala.
Como pensar uma crítica harmoniosa, se possível for, no que
diz respeito aos problemas apontados em Melancolia de Es-
querda e O Erro do Ativismo? Como compreender esse em-
bate que anda por nossos corredores? Como entender suas
características e manifestações? Em suma: como positivar as
figuras que Benjamin aniquilou, já que essas, ainda hoje, são
figuras populares no imaginário de autores?
A partir do teatro, começo a refletir sobre o ator como pro-

266
dutor, a transmissibilidade de uma narrativa e a cultura
como documento da história, tendo como objeto de análise
o espetáculo criado pelo grupo de extensão e pesquisa Araci
da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), sendo
financiado pelo MEC e pela FAPEMIG. O espetáculo Araci:
quando abraço de mãe não cura apresenta o universo LGBT-
TQ pela perspectiva da diversidade sexual e de gênero. Como
argumentação teórica dessa reflexão traz-se à luz três textos
de Walter Benjamin escritos entre 1929 e 1932, sendo eles: A
imagem de Proust (1929), Melancolia de Esquerda (1931) e O
Erro do Ativismo (1932).
O Projeto de Extensão Araci: teatro e diversidade sexual, do
Curso de Teatro da UFSJ, objetivou-se pela criação de um es-
petáculo teatral tendo como temática a diversidade sexual e
de gênero. A realização do trabalho partiu do uso de mate-
riais (auto)biográficos e da elaboração de oficinas para ado-
lescentes nas escolas da rede pública de educação do estado
de Minas Gerais. O projeto é coordenado pelo professor Al-
berto Ferreira da Rocha Junior, responsável ainda pela fun-
ção de encenador do espetáculo criado.
De 2015 o projeto foi financiado pelo MEC e pela FAPEMIG
e se apresentou em cidades dos estados de Minas Gerais e
Rio de Janeiro. A metodologia adotada para a criação das ce-
nas do espetáculo pelo grupo se baseou na memória. A pri-
meira afirmação que constatamos é que a memória instaura
um campo (auto)biográfico em que o sujeito se aproxima da
ação praticada através de sua narrativa (auto)biográfica. Nes-
se caso, ficamos acertados que o uso da memória nos pro-
cessos criativos dos cursos de Teatro da UFSJ não diz respei-
to à tentativa de resgatar a vida de determinado sujeito ou a
memória de um acontecimento em si, mas como esse sujeito
transforma sua narrativa em cena.
O uso da autobiografia era o motor de criação. A memória
foi responsável pelo fornecimento de imagens (lembranças)
que, mais adiante, serviriam para encontrar as ações a serem

Proust como autor | Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos 267
realizadas imagens (auto)biográficas captadas para o proces-
so passaram a assumir um papel equivalente ao do subtexto.
Se o subtexto pode ser compreendido como a consciência da
personagem em cena, a autobiografia pode ser considerada
o subtexto do ator na cena. O mapeamento dessas imagens
e suas possíveis utilizações aconteceram de forma gradual,
o que significa que o processo nunca esteve fechado, pelo
contrário, ele esteve sempre imagens foram disponibiliza-
das para o encenador ambientar e teatralizar tais materiais,
criando o enredo corporal e dramatúrgico dos atores.
Através dos estímulos dados pelo encenador, juntamente com
a memória específica para o trabalho, o ator, através de suas
partituras corporais, associava aquela lembrança tornando-
-a parte da encenação e, embora o processo de estetização
aconteça, tratamos a memória (recordações, depoimentos,
lembranças, imagens do passado) como algo sensível e a tra-
balhávamos para que atingisse a condição de manifestar-se.
Essa afetação e/ou contaminação pelas manifestações da
memória ao longo do processo pode acontecer a todo tempo.
Mas também não tratamos a memória com esoterismo. Tan-
to a narrativa quanto a imagem trazida a partir da memória,
para de fato ser elemento da encenação, foram submetidas a
repetições até que atingissem a condição de partitura corpo-
ral.
Outro recurso teatral no processo de estetização é a troca da
autoria da partitura corporal, criada no decorrer do processo
de criação. Essa ação tinha como consequência a performa-
tização não só da memória do outro, mas da ação praticada
pelo outro. Essas trocas, em âmbito teatral, levam à constata-
ção de um espaço biográfico, ideia descrita por Leonor Arfuch
em seu livro Espaço Biográfico: dilemas da subjetividade con-
temporânea (2010). Através do seu conceito de espaço (auto)
biográfico, a autora mostra como a narrativa (auto)biográfica
de determinado sujeito contamina e afeta as demais, criando
uma codificação específica, mas comum a todos, tornando-a
técnica e executável em qualquer situação e conferindo sen-

268
tido ao todo pela complementação dialógica que há na estru-
turação dos relatos de vida dos envolvidos que compõem a
encenação.
Outro ponto importante para refletirmos o trabalho com a
memória é a pergunta “quem sou o eu?”. Resumidamente,
quem é o “eu” que me conta tal história? No teatro conven-
cional temos a noção, previamente estabelecida, que um ator
desempenha a vida de outro ser então uma operação, não
impossível, mas improvável para a linguagem cênica con-
vencional: a capacidade do sujeito que narra ser o sujeito da
ação praticada. Dessa forma, o estudo em questão se baseou
no livro O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet (LE-
JEUNE, 2008), que propõe um método para identificação da
voz biográfica contida em literaturas íntimas. Para Philippe
Lejeune, a autobiografia pode ser entendida como uma nar-
rativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua
própria existência, quando focaliza sua história individual,
em particular a história de sua personalidade.
A busca por Lejeune se deu no processo de criação das parti-
turas. Havia, por minha parte, uma produção literária que se
baseava na ideia das “escritas de si”. Quando o autor, Lejeune,
cria o mecanismo de reconhecimento das vozes narradoras
para a literatura, ele ofereceu ao teatro uma oportunidade de
tentar entender, não “o que se fala”, mas sim “o como se fala”.
O como se fala pode ser visto como outro recurso cênico. Isso
porque a materialidade para o teatro é de fundamental im-
portância; a palavra em linguagem cênica se transforma em
corporeidade na expressão que não advém da informação.
Esse recurso cênico seria a performance da linguagem, sua
materialidade, sua imagem: o ator. Por essa modalidade li-
terária, subsidiada pela visão de Lejeune, a possibilidade da
narrativa (auto)biográfica artística dialoga com Walter Ben-
jamin que indica a existência e a potencialidade de uma nar-
rativa imagética, isso é: de um autor capaz de se apropriar do
espaço imagético para transformá-lo.

Proust como autor | Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos 269
Escritas (auto)biográfica e cena teatral: imagem
como movimento da memória

Um dos exercícios mentais que mais gosto de fazer é ima-


ginar o que está por trás de cada narrativa. Imaginar ainda
como aquela realidade organizada vai se alocando na con-
cretude da vida cotidiana e, em especial, como a sociedade
vai lidar com a visão de mundo que aquele autor traz de si
embutido em sua obra. Nesse caso, torna-se mais claro que
a tarefa de produzir deve tomar como sentido os desdobra-
mentos de duas realidades simultâneas, embora uma não te-
nha necessariamente que estar relacionada à outra e, se dis-
tantes, deve procurar compreender qual o ponto fulcral desse
distanciamento. Trata-se então de desdobrar práxis e crítica
ao seu refinamento no que diz respeito à sensibilidade para
o que não foi escrito, complementar silêncios literários com
os gritos da história, suplementar a ausência política com a
sobra cultural que atravessa determinada narrativa.
A dramaturgia que vem a seguir é resultado das experiências
que tivemos em Araci.
(Ao abrir a luz, um homem salta ao palco. Do escuro ele apa-
rece ao público na luz. Outro, segundos depois, se levanta.
O primeiro se incomoda com o gesto de aproximação do se-
gundo e dá um passo à frente. O segundo o segue. Eles não
se falam. O primeiro segue tentando dar continuidade a seu
trajeto sozinho. O outro o acompanha pela sombra. Ao perce-
ber a movimentação do segundo, o primeiro corre; o segundo
põem-se a correr também. Adentram a cena outros agentes.
O primeiro os ultrapassa atingindo o ponto oposto. Ele não se
dá conta. Mas corre rumo ao armário. Rumo ao armário, es-
quivando-se de seu conflito. O segundo homem que estava a
perseguir o primeiro é impedido — bloqueado pelos demais
que adentraram a cena. O primeiro homem — do lado oposto
— evoca um gesto corporal de proteção ao passar por todos.

270
Assim, no chão, de joelhos, o primeiro homem é protegido
por todos. E ainda no chão, o primeiro homem fala com os
olhos vendados pelas mãos de outra atriz:
- E se eu te dissesse que tudo que eu mais queria era que você
estivesse exatamente aí. Sentado na primeira fila. Para que
ao final você pudesse se levantar bem lentamente: primeiro,
apoiando todo o peso do seu corpo somente sobre o calcanhar
e, em seguida, transferindo todo o peso para a ponta dos pés,
gritando o meu nome... Bravo, Bravo, Bravo. Fada azul me
transforma em um menino de verdade? É fada azul... em um
menino de verdade, por favor...
(Todo texto é dado pelo primeiro homem de olhos fechados.
Ao abrir seus olhos, ele se dá conta de que quem está a sua
frente era o homem que o perseguia e que este havia escri-
to ofensas e disparates por todo chão. Ao abrir seus olhos, o
primeiro homem se deu conta de que os rabiscos pelo chão
indicavam outra relação entre aqueles dois. O primeiro cons-
tata a ofensa. É levantado e bruscamente levado ao armário
aos gritos de: — Não fada azul, de novo não fada azul, não
me deixe aqui sozinho. Fada azul. O segundo homem — em
uma ação concomitante ao primeiro — é conduzido ao lado
oposto. Ele é colocado em oposição ao armário e ao primeiro
homem.)
Demanda Popular, Academia, Intelectualidade e Ativismo
são palavras-chaves na busca pela tarefa de se fazer autor.
O autor estaria ligado a uma espécie de função primordial:
apropriar-se do espaço imagético para transformá-lo. O im-
portante a ser percebido nesse caso é que nessa operação te-
mos uma maneira dialética de se imaginar o autor, isso por-
que, ao associar a produção autoral ao espaço imagético e a
leitura ao tempo da memória, o que temos é uma nova forma
de compreendimento narrativo. A imagem de Proust, escrita
por Walter Benjamin (2010), não diz respeito apenas ao autor,
mas na verdade põe em cheque a soberania da autoria indi-
cando um novo modos operandi: é o leitor peça importante da

Proust como autor | Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos 271
complementação dessa narrativa imagética.
Sobre a imagem de Proust, Benjamin ressalta sua capacidade
em ser dialética. Apropriando-se da fala de Maurice Barres,
Benjamin considera a imagem de Proust um ato de sobera-
nia, mas, ao mesmo tempo, um ato de submissão. Pela ideia
de submissão atingimos outra característica do autor: o ato
de servir. Ao autor, submeter-se pode ser lido como servir à
submissão, fazendo de sua obra uma compra casada. Uma
dialética no sentido de fazer de uma determinada narrati-
va um contrato memorável entre leitores, autores e editores
(quem viabiliza esse processo de difusão). O ato de sobera-
nia, entretanto, está na condição indicada por Benjamin ao
descrever o que Proust fazia com as imagens que ele trazia
em sua escrita: apropriar-se do espaço imagético para trans-
formá-lo.
A autoria de determinado produto estético para Benjamin
não deveria excluir seus elementos constitutivos. Excluir do
produto final as marcas de sua produção é deixar o produto
desnudo como se sua natureza não estivesse ligada ao fazer
humano ou como se seu processo criativo não interessasse a
seu futuro fruidor. Sobre o olhar de Proust, Benjamin é cate-
górico e destaca a existência de uma dupla vontade de felici-
dade, constatada por Cocteau: não eram olhos felizes, mas a
felicidade estava presente neles. Como no jogo ou no amor.
Se Proust é o modelo de autor indicado por Benjamin é ne-
cessário ressaltar que sua imagem era dialética por possibi-
litar um ponto possível entre o jogo e o amor. Não um ponto
estático, mas um ponto que se desloca entre aquilo que nos
sacia e também nos destrói. Entre o conhecido e o imaginá-
vel. Entre o hino e a eleática.
É nesse contexto que destaco duas coisas: a primeira é que
Araci atuava pela elegia; a eterna restauração da felicidade
primeira e originária. Isso é constatável através das memórias
guardadas a sete chaves, submersas pelo medo da violência,
da opressão e do abandono, agora flutuarem sobre um palco

272
à vista de todos. As imagens mais íntimas completamente pu-
blicizadas. A elegia, segundo Benjamin, também compunha
a imagem de Proust. Foi a ela que Benjamin atribui o cam-
po de rememoração de Proust. A rememoração, no caso de
Araci, pode ser compreendida como eco, espécie de espectro
vocal ativista por reivindicar nosso lugar previamente conso-
lidado por nossas experiências.
A segunda constatação é que Araci também atuava seguin-
do o rito da intelectualidade melancólica de esquerda. Dessa
forma, Araci também se manifestava pela felicidade como
hino que, como nos explica Benjamin, está em busca do
inaudito, do sem precedentes, a ela cabe apenas esperar pelo
auge da beatificação (publicação?) lançando-se ao sagrado,
se afastando do profano, portanto, do meio dos homens. O
pensamento dialético nos permite entender esse fenômeno
de duas formas:
a) Ao lançar-se ao sagrado, afasto-me do profano, portanto,
afasto-me dos homens.
ou
b) Eu, que sempre estive em meio ao profano, ao lançar-me
ao sagrado, poderei ver o Paraíso.
Como resultado do projeto podemos contar com três mem-
bros com pesquisas em desenvolvimento em programas de
Pós-Graduações e uma disciplina intitulada Teatro e diversi-
dade como desdobramento do projeto no desenho curricular
das graduações de Teatro da UFSJ. Destaca-se ainda que o
coordenador do projeto, Alberto Tibaji, recentemente este-
ve na Universidade da Georgia (EUA) para uma nova etapa
do projeto. A extensão tornou-se pesquisa, nossas pesquisas
tornaram-se extensões de nós. Sei que Benjamin alerta sobre
os males de uma melancolia de esquerda, mas, ressalto: em
Proust havia uma dupla vontade de felicidade, seus olhos não
eram felizes, mas seu olhar indicava a presença da felicidade.
Como os olhos de Araci.
Com os olhos de Proust tento fazer do ativismo e da esquerda

Proust como autor | Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos 273
melancólica a primavera para a imaginação de um autor. A
ideia de refletir a autoria teatral, tendo como base os meios
de produção e não necessariamente a obra, baseia-se maior
destaque dessa reflexão talvez fique a cargo dos olhos de
Proust, olhos que abrigavam a elegia e o hino, e que nossa
escrita, portanto nossa imagem, como Benjamin já descreve,
sirva aos homens (como um ativista), mas permaneça sobe-
rano em sua imagem (como um intelectual).
Essa reflexão toma como base a visão de que o produto es-
tético se torna claramente uma exposição do esfacelamento
da ideia de destino, ao menos aquela ideia de imutável na
acepção divina, como já fazia Brecht com seu teatro, trazen-
do para cena a noção nada abstrata de que o destino é uma
atividade dos homens, e que ela — a cena — torna-se um
produto de exposição da estruturação do que agora vemos.
Essa reflexão faz parte do projeto Araci: Teatro e Intervenção,
sob orientação do Professor Cláudio Guilarduci e é uma ten-
tativa de evidenciar a possibilidade de transformação da his-
tória pelos seus próprios agentes, passando a desconsiderar
a associação feita entre destino e história, determinando-os
como eventos socialmente mutáveis. Os desdobramentos da
ideia de teatro como intervenção crítica deriva da ideia de li-
teratura como intervenção. Em ambos os casos, não há uma
definição assertiva, ou uma metodologia prévia embutida re-
lacionada a esses termos em cartas trocadas entre Benjamin
e Brecht.

Referências

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetivi-


dade contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.

274
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internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

Proust como autor | Cláudio Guilarduci & Diego José Domingos 275
A influência de Walter Ben-
jamin na teoria estética de
Carl Schmitt
Verena Seelaender da Costa
vesdac@yahoo.com.br | Un. do Estado do Rio de Janeiro
Introdução

O intercâmbio de ideias entre o filósofo alemão Walter Ben-


jamin e o jurista Carl Schmitt vem sendo objeto de muitas re-
flexões dentro da filosofia contemporânea, sendo o exemplo
mais conhecido o projeto filosófico de Giorgio Agamben. O
estudo do filósofo italiano abriu todo um campo de análises
filosóficas, políticas e sociológicas a partir do paradigma do
“estado de exceção” e está se encaminhando para ser um dos
mais fecundos campos da filosofia política contemporânea.
Este trabalho, no entanto, não explorará as dimensões políti-
co-jurídicas que Agamben buscou situar dentro de sua obra.
Pelo contrário, aqui buscaremos discutir o diálogo Benjamin-
-Schmitt a partir do que denominaremos sua “segunda eta-
pa”. De fato, de um ponto de vista da tradição hermenêutica,
esse diálogo se dá tradicionalmente entre os textos “Teologia
Política” de C. Schmitt e “Sobre o conceito de história” de W.
Benjamin e, em especial, na formulação benjaminiana, na
qual o conceito de estado de exceção aparece explicitamente:
A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção”
em que vivemos é a regra geral. Precisamos construir um con-
ceito de história que corresponda a esse ensinamento. Percebe-
remos, assim, que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado
de exceção; e, com isso, nossa posição ficará mais forte na luta
contra o fascismo. (Benjamin, 2012, p. 245)
A partir da interpretação de Horst Bredekamp, buscaremos
aqui determinar que essa seria apenas uma das dimensões
da relação Schmitt-Benjamin. De fato, é possível organizar o
intercâmbio entre os autores em fases, mostrando um diálogo
iniciado da parte de Benjamin (que, no início de sua carrei-
ra, repetidamente demonstrou sinais explícitos de admiração
por Schmitt), seguido de uma espécie de “resposta” de Sch-
mitt para Benjamin, que, por sua vez, o concluiu derradeira-
mente em uma referência indireta em seu último texto. Essa
organização nos possibilita ver muito além do diálogo entre
Schmitt e Benjamin e, conforme será demonstrado, lança luz
sobre os textos tanto de um quanto do outro autor.
A partir da ordenação histórico-interpretativa de Bredekamp,
buscaremos situar a obra estética de Schmitt como parte da
resposta deste para Benjamin. Das três principais referências
teóricas utilizadas no seu estudo “Hamlet ou Hécuba: a in-
trusão do tempo na peça” [Hamlet oder Hekuba: der Einbru-
ch der Zeit in das Spiel] de 1956, o fato do livro “Origem do
drama trágico alemão” de Benjamin figurar em uma posição
de destaque e ter, inclusive, um apêndice dedicado apenas
a ele, indica o quanto o pensamento deste filósofo era obje-
to de reflexão de Schmitt na primeira metade do século XX.
Essa posição é reforçada por uma carta da década de 1970 na
qual Schmitt menciona que tinha Benjamin em mente quan-
do escreveu seu ensaio sobre Thomas Hobbes em 1937 (Bre-
dekamp, 1999).
A influência da teoria benjaminiana na análise de Schmitt
sobre o “Hamlet” de Shakespeare é bastante clara. O concei-
to schmittiano de “intrusão” [Einbruch] soberana da história
no texto da peça parece ter sido formulado, como será mos-
trado, sob forte influência da reflexão de Benjamin sobre a
relação entre história e obra de arte no Barroco. Em seu texto,
Schmitt busca se diferenciar das interpretações tradicionais

278
do “Hamlet” e mostrar como a relação entre história e tea-
tro presente no texto shakespeariano é não análoga a entre
pano de fundo e ação dramática, mas sim parte de uma única
e mesma substância. Assim, na interpretação de Benjamin
e, no mesmo sentido, de Schmitt, havia na arte dramática do
período barroco uma disposição histórico-espiritual de ler o
drama não só como essencialmente histórico, mas, de forma
muito mais importante, ver na história o desenrolar de um
drama trágico (Benjamin, 2013; Schmitt, 2006).
O monarca, nesse sentido, era visto tanto como soberano
e incontestável detentor do poder político — visão que era
sustentada pelas teorias jurídicas da soberania da época —
quanto, por consequência disso, como protagonista por ex-
celência da representação teatral. No entanto, é exatamente
nesse ponto que a filosofia benjaminiana rompe com o pen-
samento schmittiano e uma diferença fundamental é erigi-
da. Enquanto na interpretação de Schmitt a ação soberana
da história rompe com a dimensão teatral do drama trágico e
traz a peça de volta à imanência político-histórica através da
força da decisão do soberano, para Benjamin está claro que o
soberano nunca poderia realizar tal feito, pois ele está preso,
assim como qualquer outro elemento da disposição espiri-
tual barroca, à indecibilidade essencial resultante da perda
da dimensão escatológica da história (Benjamin, 2012; Bre-
dekamp, 1999; Weber, 1992).

De Benjamin para Schmitt, de Schmitt para


Benjamin

Com o objetivo de situar a influência de Schmitt em Benjamin


e vice-versa, o historiador da arte alemão Horst Bredekamp,

A influência de Walter Benjamin ... | Verena Seelaender da Costa 279


em seu artigo “De Walter Benjamin para Carl Schmitt, via
Thomas Hobbes” (1999) separa a relação entre Benjamin e
Schmitt em três fases: 1) admiração de Benjamin por Carl
Schmitt externalizada por ele no período de 1923 a 1930; 2) em
via oposta, as resposta de Carl Schmitt às teses formuladas
por Benjamin, entre 1937 a 1956; e 3) a resposta de Benjamin
a Schmitt no texto “Sobre o conceito de história”, de 1940, ano
da morte do filósofo (Bredekamp, 1999). Discorreremos sobre
cada uma delas a seguir para compreender melhor dentro de
qual contexto se deu a influência de Benjamin em Schmitt.
Em uma conhecida carta de dezembro de 1930, Walter Ben-
jamin anuncia o breve envio de um exemplar de sua tese de
pós-doutoramento — que o habilitaria a pleitear uma posi-
ção de docente em uma universidade alemã — sobre o dra-
ma trágico alemão [Trauerspiel] junto a uma nota de agrade-
cimento bastante efusiva a Carl Schmitt, então professor da
Universidade Técnica de Berlim (Benjamin, 2013). No decor-
rer da tese, de fato, o ensaio de Schmitt “Teologia política”, de
1922, é citado diversas vezes não só como base para a com-
preensão das teorias jurídicas da soberania do período entre
os séculos XVII e XVIII, mas como uma das principais fontes
metodológicas do trabalho, conforme a exposição no “Pró-
logo crítico-epistemológico” (Weber, 1991). A ideia de que há
uma espécie de dívida teórica em relação a Schmitt segundo
a percepção do próprio Benjamin também se confirma no
currículo feito por este em 1928, no qual afirma que as princi-
pais influências de seu trabalho, do ponto de vista metodoló-
gico, eram o historiador da arte Alois Riegl e o teórico político
Carl Schmitt (Bredekamp, 1999).
A resposta de Schmitt para Benjamin não se manifesta de for-
ma tão aparente, mas ainda assim é perceptível por algumas
referências diretas e indiretas. Em 1956, Schmitt lança um en-
saio sobre o “Hamlet” de Shakespeare, o já citado “Hamlet
ou Hécuba: a intrusão do tempo na peça”, no qual procura
fundamentar uma interpretação da peça de teatro a partir
da aplicação dos princípios de sua teoria política à análise

280
de uma obra de arte. No ensaio, a análise do drama trágico
alemão de Walter Benjamin não só é citado na introdução —
como uma das principais fontes — mas também é objeto de
um apêndice. Outro indício de que Schmitt provavelmente
teria tido Benjamin em mente durante o período de 1930 está
contido em uma carta de Schmitt de 1973 na qual ele mencio-
na como seu ensaio sobre Hobbes de 1937 (“O Leviatã na Te-
oria do Estado de Thomas Hobbes”) na verdade foi pensado
como uma resposta a Benjamin (Bredekamp, 1999).
A última palavra do diálogo pertence, como sabemos, a Ben-
jamin. No artigo de 1940 “Sobre o conceito de história”, o filó-
sofo faz uma referência não-nominal ao pensamento de Sch-
mitt ao mencionar o “estado de exceção” como paradigma do
funcionamento da política, ensinamento este possível segun-
do ele a partir da “tradição dos oprimidos” (Benjamin, 2012,
p. 245). Nessa referência, no entanto, o conceito de exceção
não é o mesmo que em Schmitt. Enquanto Schmitt afirma
que a exceção é algo que age como uma ruptura na monoto-
nia do tempo, trazendo a política de volta a seu estado mais
vivo, Benjamin rebaixa a exceção a parte constitutiva dessa
mesma monotonia, sendo a tarefa revolucionária a criação
de um “verdadeiro estado de exceção”, que romperia o ciclo
de violência e compromisso característico do regime político
tanto burguês quanto fascista (Benjamin, 2012).

Intrusão do tempo na peça de teatro em


“Hamlet”

Ao iniciar o ensaio sobre o “Hamlet”, Schmitt já no Prefácio se


coloca fora das principais tradições metodológico-interpre-
tativas do texto de Shakespeare, chamadas por ele de “histó-

A influência de Walter Benjamin ... | Verena Seelaender da Costa 281


ricas” ou “psicológicas” (Schmitt, 2006, p. 9-10). Segundo ele,
tais tradições dariam, tanto por um lado quanto por outro,
margem a um número excessivo de interpretações, que, por
sua vez, acabariam se mostrando limitadas e repetitivas. Em
contraposição a essas tradições, o jurista propõe uma espécie
de “terceira via” metodológica a partir do conceito de “intru-
são” [Einbruch] da história na peça de teatro. Porém, antes de
examinar a função da intrusão na produção da obra de arte
e qual relação entre obra e história que é assim engendrada
por ela, é necessário entender o que Schmitt entende por
tempo histórico e exceção.
No ensaio “Teologia Política”, citado por Benjamin diversas
vezes em sua tese sobre o drama trágico alemão, Schmitt faz
a célebre afirmação de que o “soberano é aquele que decide
sobre a exceção” (Schmitt, 2006, p. 5). Decidir sobre a exce-
ção, nesse sentido, significa decidir se há ou não um estado de
normalidade e, caso não haja, a suspensão do estatuto jurídi-
co normal e a implementação de um estatuto de emergência.
A exceção age como uma interrupção do tempo contínuo das
disputas e rivalidades na qual um elemento externo, o sobe-
rano, cessa essas disputas e traz a política novamente para
sua dimensão real e imanente. Nas palavras de Schmitt, “na
exceção o poder da vida real atravessa a crosta de um me-
canismo que se tornou tórpido por repetição” (Schmitt, 1985,
p. 15). A monotonia e repetibilidade do tempo contínuo são
contrapostas, no estado e exceção, pela vitalidade e violên-
cia característicos de sua interrupção temporal (Bredekamp,
1999).
A intrusão, desta forma, é uma transposição dos conceitos
políticos da teoria schmittiana para a estética. Na análise da
obra de teatro, o que Schmitt está buscando são os sinais da
ação histórica do soberano no conteúdo do texto, sinais esses
que só se tornam aparentes ao entender tal ação como uma
intrusão que interrompe a temporalidade lúdica do teatro
com a realidade séria das disputas políticas contemporâneas
a sua produção. O “Hamlet” shakespeariano, assim, se apre-

282
senta sob uma nova luz, na qual fatos do conteúdo do texto
da peça ganham uma nova dimensão, e essa nova dimensão
está, por sua vez, ligada ao tempo histórico e político vivido
por Shakespeare e sua trupe — a Inglaterra de Elizabeth I
(1558-1603). Segundo Schmitt, a fonte do trágico na peça de
teatro somente pode ser encontrada “em uma realidade his-
tórica” (Schmitt, 2006, p. 8).
No entanto, é importante perceber que a intrusão não é uma
transposição perfeita de um conflito político ou de um epi-
sódio histórico para dentro do desenvolvimento da peça de
teatro, mas sim algo que agiu como uma restrição à liberdade
absoluta de criação do poeta ou, no caso, dramaturgo que,
por circunstâncias externas à obra de arte, foi obrigado a con-
tornar certas alusões (Schmitt, 2006). São duas as intrusões
observadas por Schmitt em “Hamlet”: o tabu da rainha e o
caráter do vingador. Em ambos os casos, o tempo histórico
“transbordou” para a peça de teatro e a transformou, fatos
observáveis apenas a partir de uma análise da ação temporal
do soberano.
No primeiro caso, o tabu da rainha refere-se ao fato de que
não só não há uma ideia clara e inequívoca sobre a partici-
pação da personagem da rainha, mãe de Hamlet, na morte
do pai, como em muitos momentos Hamlet é efetivamente
deencorajado a entender a mãe como cúmplice ou a se voltar
contra ela em busca de vingança. Essa inconsistência, que se-
gundo Schmitt possibilitou inúmeras interpretações psicoló-
gicas, torna-se menos obscura quando observada juntamen-
te ao contexto histórico no qual Shakespeare redigiu sua obra
e, especialmente, a qual público ele se dirigia. Apesar da peça
ter sido encenada pela primeira vez em Londres entre 1600 e
1603, ela faz referência a episódios ocorridos em 1566 envol-
vendo a Rainha da Escócia, Mary Stuart, e seu segundo ma-
rido, Henry Lord Darnley. Naquele ano, Lord Darnley e seu
valete foram assassinados em circunstâncias não-esclareci-
das pelo Conde de Bothwell no início o ano, episódio a que
se seguiu, após poucos meses, o casamento da rainha com o

A influência de Walter Benjamin ... | Verena Seelaender da Costa 283


provável assassino (Schmitt, 2006).
Entretanto, no início do século XVII, o caráter suspeito do ca-
samento de Mary Stuart era um assunto razoavelmente vivo
no contexto das intrigas da corte inglesa pois, em razão da
ausência de herdeiros diretos para a sucessão de Elizabeth, o
filho de Mary — a quem Elizabeth ordenara a execução em
1587 -, James Stuart, tornou-se um dos candidatos potenciais
ao trono inglês. Servos dos Condes de Essex e Southampton,
Shakespeare e sua trupe apoiavam as pretensões de James à
monarquia, e, inclusive, com a morte de Elizabeth e a escolha
de James como sucessor, passaram a se apresentar na corte,
tendo tido muito prestígio junto ao rei. James, porém, bus-
cou redimir a memória da mãe quando ascendeu ao poder e
proibiu manifestações contra a sua honra — como no caso,
por exemplo, da acusação de cumplicidade no assassinato de
seu pai, Lord Darnley (Schmitt, 2006).
Dessa maneira, Shakespeare se viu impossibilitado, na con-
cepção do texto dramático de “Hamlet”, de fazer qualquer
tipo de implicação direta da participação da rainha no assas-
sinato do rei. Porém, ele estava ciente de que o público espec-
tador de Londres tinha fresca na memória a acusação contra
Mary e não necessariamente estava convencido de sua ino-
cência. O tabu da rainha é uma intrusão do tempo histórico
no espetáculo por meio da ação do soberano, que não per-
mitia que a rainha fosse diretamente acusada de ter parte no
assassinato de seu marido; por outro lado, a expectativa do
público da época também não possibilitava ao dramaturgo
inocentar completamente uma personagem do drama trá-
gico histórico que se desenrolava na realidade histórica dos
conflitos políticos vividos então (Schmitt, 2006).
A segunda intrusão identificada por Schmitt no drama age
sobre a constituição do caráter do vingador. Assim como o
tabu da rainha, o caráter do vingador parece uma inconsis-
tência do ponto de vista da teoria da ação teatral. Para Sch-
mitt, segundo a tradição dramático-literária, seriam possíveis

284
dois caminhos a Hamlet enquanto vingador da morte do pai,
o rei: unir-se a rainha e matar o usurpador ou matar tanto
a rainha quanto o assassino. Entretanto, Hamlet não opta
por nenhum deles; pelo contrário, sua única ação durante a
maior parte da duração da peça em face da tarefa da vingan-
ça é não agir em absoluto, fingindo loucura enquanto monta
uma peça de teatro — dentro da peça — com o objetivo de
descobrir se o fantasma do pai é legítimo ou apenas um de-
mônio tentando o enganar (Schmitt, 2006). O vingador, que
sempre foi colocado como arquétipo do guerreiro decidido e
sem questionamentos, transformou-se, em Hamlet, em pro-
blemático, indeciso e de caráter melancólico.
Essa inconsistência do caráter do vingador, inovação shakes-
peariana no conteúdo dramático, ganha clareza quando se
tem em mente que, novamente, o poder do soberano agiu so-
bre a liberdade criativa do dramaturgo, forçando-o a recorrer
a lacunas e alusões indiretas, porém facilmente reconhecidas
pelos espectadores elizabetanos. Para Schmitt, o caráter de
Hamlet enquanto vingador é uma analogia, dentro contexto
histórico então vivenciado pela Inglaterra, à trajetória e ao
caráter do Rei James I. A vida de James sempre foi marcada
pela ameaça constante de Elizabeth sobre sua vida por causa
de sua mãe, Mary. Carl Schmitt dá exemplos de episódios da
vida de James que mostram que se ele, por um lado, era um
possível herdeiro e se beneficiava da aliança com Elizabeth,
por outro, não podia demonstrar qualquer tipo de reverência
à mãe, pois havia o risco de levantar suspeitas sobre sua leal-
dade para com Elizabeth e, em consequência disso, arriscar
perder não somente sua chance de sucedê-la como rei, mas
também a própria vida (Schmitt, 2006).
Assim, Shakespeare, para poder agradar a James e, simulta-
neamente, tornar sua peça interessante do ponto de vista do
público, criou um novo tipo de arquétipo para o personagem
do vingador: não mais herói violento ou ardiloso, agora so-
litário, indeciso e reflexivo, ele era a imagem do rei e de sua
própria trajetória, que envolveu muito mais omissão e neu-

A influência de Walter Benjamin ... | Verena Seelaender da Costa 285


tralidade do que energia explosiva e passional. Shakespeare
buscou construir o personagem dessa forma, pois a ação do
soberano, novamente, interrompeu a temporalidade teatral
e fictícia do drama trágico e trouxe os problemas e questões
históricas à obra, que se iluminam a partir de tais considera-
ções.

Drama trágico e história

A dinâmica da relação entre tempo histórico e tempo dramá-


tico em Carl Schmitt é, como foi afirmado, bastante devedora
da interpretação de Benjamin do drama trágico alemão e da
concepção de temporalidade presente na produção dramáti-
ca do período do barroco. Na interpretação de Schmitt, o dra-
ma trágico shakespeariano se afasta, por um lado, do teatro
eclesiástico medieval anterior a ele, mas, por outro, não é ain-
da um teatro político no sentido estatal como, por exemplo,
na dramaturgia francesa encenada no regime de Luís XIV.
Por isso, de certa forma, prevaleceria nele uma disposição,
nas palavras de Schmitt, “bárbara”, que nada mais era do que
consequência da situação sociopolítica da Inglaterra do sé-
culo XVII, cujo Estado ainda não havia se solidificado em sua
forma moderna como na França (Schmitt, 2006, p. 53). Para
justificar esse ponto de vista, o autor buscou no “Origem do
drama trágico alemão” a concepção de tempo barroca con-
forme havia sido sistematizada por Benjamin.
Walter Benjamin observou que, no teatro barroco em geral,
está expressa uma concepção de mundo e de história (sen-
do o barroco alemão apenas uma variação na qual essa con-
cepção de tempo ganhou um destaque especial) resultado
de tensões na vida política e religiosa experienciadas pela

286
Europa na virada do século XVI ao XVII. As teorias jurídicas
e políticas da Contrarreforma apontam, em geral, para um
processo de secularização sem, no entanto, haver um real
rompimento com o cristianismo — como, por exemplo, no
Renascimento (Benjamin, 2013). Dessa maneira, a seculari-
zação barroca leva a determinação de uma transcendência
completamente distinta da imanência mundana, imanência
esta na qual a história dos soberanos e a história em geral se
desenrolam, e que, em consequência, nega a possibilidade
de uma eventual instauração da imanência do reino trans-
cendente na mundanidade imanente e histórica — ou seja, a
possibilidade de uma escatologia histórica ou da instauração,
pela ação do soberano, do reino do céus no mundo terreno
(Benjamin, 2013; Weber, 1991).
Do ponto de vista da produção teatral, a manifestação de tal
disposição movida pelo sentimento de ausência de ligação
entre imanência e transcendência resultou na percepção,
para além do próprio teatro, de que a história em si era um
teatro e de que seria possível identificar, no movimento de
ascensão e queda dos soberanos apresentado no palco, o
mesmo movimento que havia naturalmente na história polí-
tica da monarquia. De acordo com Benjamin, “acreditava-se
que o drama trágico estava, de forma tangível e concreta, no
próprio curso da história, e que a única coisa necessária era
encontrar as palavras” (Benjamin, 2013, p. 57). Pelo sobera-
no ter perdido, por causa da imanencialização realizada pela
secularização, sua capacidade de transpor a transcendência
divina para o mundo da criação, passou-se a acreditar que,
assim como no teatro os atores trocam de personagem ao fi-
nal da peça, a história também é composta por papéis que,
de forma contínua e repetitiva, são trocados à medida que os
personagens mudam, sendo o soberano apenas um papel —
o de maior destaque — dentre outros. A peça-dentro-da-pe-
ça no terceiro ato de “Hamlet” é, para Schmitt, uma confir-
mação da teatralização do mundo e da história realizada pelo
Barroco. Tal recurso buscava reforçar, com ímpeto dobrado, a

A influência de Walter Benjamin ... | Verena Seelaender da Costa 287


ideia de que vida e ação dramática são compostas pelo mes-
mo conteúdo e, simultaneamente, torna esta menos lúdica,
menos “teatral”, mais próxima do conteúdo da vida histórica
e social (Schmitt, 2006).
No entanto, há uma distinção fundamental entre a teoria de
Schmitt e a reflexão de Benjamin sobre o papel do soberano.
Schmitt pensa na intrusão como interrompimento da tempo-
ralidade transcendente, vazia e teatral do Barroco, trazendo
a peça novamente para a imanência do tempo histórico por
meio da força do soberano. Essa força deriva de sua capaci-
dade de decidir sobre a exceção e, por isso, depende em larga
medida da possibilidade de diferenciação entre o estado de
normalidade e a exceção (Schmitt, 1985). Porém, o que Ben-
jamin observa em todos os monarcas representados no tea-
tro barroco é o oposto: completamente incapazes de tomar
qualquer decisão, os soberanos sucumbem a seus próprios
ímpetos, inaptos a interromper o fluxo contínuo e repetitivo
de ascensão e queda dos príncipes (Benjamin, 2013). A atua-
lidade da teoria da soberania barroca está exatamente na in-
consistência expressa esteticamente na peça de teatro entre a
função jurídica do soberano — derivada de uma força trans-
cendente, ou seja, divina — e sua efetiva e mundana capa-
cidade de exercer essa função — derivada da indecibilidade
de uma imanência sem possibilidade de interrupção, ou seja,
sem escatologia (Weber, 1991).

Conclusão

O conceito intrusão da história na peça de teatro é uma inter-


pretação de Schmitt, a partir de sua própria teoria, da análi-
se benjaminiana do drama trágico barroco, em especial sua

288
ideia de história. Porém, Schmitt não consegue se separar da
teoria da exceção como forma de recurso a uma “imanência”
exterior que funcionaria como uma injeção de vida ao siste-
ma, sem, entretanto, mudá-lo essencialmente. Em sua visão,
a decisão sobre a exceção tem como objetivo a preservação
do Estado e a volta à normalidade, interrompida temporaria-
mente (Weber, 1991). Benjamin alcança, de certa forma, uma
perspectiva mais elevada: o soberano não é capaz de tomar
nenhuma decisão porque para ele não há diferença entre
normal e excepcional — em outras palavras, porque a trans-
cendência de uma decisão jurídica sempre será infinitamen-
te distante da imanência do contínuo impermanente da vida
histórica.
Como foi possível observar, a totalidade das dimensões do
diálogo Walter Benjamin-Carl Schmitt são mais numerosas e
menos diretas do que se poderia supor apenas limitando-se
às referências recíprocas. Neste artigo buscamos demonstrar
que a leitura conjunta da obra de ambos abre novas possibi-
lidades de interpretação que nunca poderiam ser percebidas
senão dessa maneira. A teoria estética de Schmitt, aspecto de
pequeno destaque dentro de sua obra em geral, juntamen-
te com sua teoria política, é de grande importância para a
compreensão tanto do “Origem do drama trágico alemão” de
Benjamin quanto de toda a reflexão filosófica do período de
juventude do filósofo. A afirmação realizada em 1940 de que
“o estado de exceção em que vivemos é a regra” também indi-
ca que o diálogo prosseguia e que a indecibilidade entre nor-
ma e exceção identificada por Benjamin em 1925 ainda tinha
lugar em sua filosofia da história. A necessidade de criação
de um “verdadeiro estado de exceção” retoma a crítica da so-
berania do Barroco e a atualiza na forma de crítica da social-
-democracia alemã do entre-guerras (Benjamin, 2012, p. 245).

A influência de Walter Benjamin ... | Verena Seelaender da Costa 289


Referências

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Walter Benjamin e a escrita
enquanto gesto do assom-
bro
Da dialética em estado de repouso ao refluxo
do exílio

Leonardo A. Alves de Lima


leonarddo.delima@gmail.com | Un. Federal do Rio de Janeiro
Escrever apesar do desespero. Não:
com desespero. Que desespero, eu não
sei o nome disso. Escrever ao lado daqui-
lo que precede o escrito é sempre estra-
ga-lo. E é preciso no entanto aceitar isto:
estragar o fracasso significa retornar para
um outro livro possível deste mesmo livro
Marguerite Duras, Escrever

Parte um: Das condições da escrita

Condições para submissão: como parte do processo de sub-


missão, os autores são obrigados a verificar a conformidade
da submissão em relação a todos os itens listados a seguir:
As citações com mais de três linhas deverão vir destacadas,
com um recuo de quatro centímetros, em espaço 1,5, em fon-
te Times New Roman, corpo onze, sem aspas (as citações com
menos de três linhas serão indicadas no corpo do texto, entre
aspas) as referências bibliográficas figurarão entre parênte-
ses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em
caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página
(p.) e o número desta. Ex: (SILVA, 1992, p. 3-23). Citações te-
óricas sem tradução para o idioma original do artigo devem
ser traduzidas no corpo do texto, com a informação (nossa
tradução), fazendo-se constar o trecho original da citação
em nota de rodapé. Textos literários, objeto da análise, não

292
precisam ser traduzidos. As submissões que não estiverem
de acordo com as normas, por exemplo, A origem do drama
barroco alemão não serão aceitas.

Parte dois: Choque entre extremos

A bela adormecida não será acordada com um beijo, como


na história original, e sim pela bofetada do cozinheiro como
conta o próprio Benjamin, de forma irônica, numa espécie de
parábola da história original, em que a princesa é acordada
por um príncipe. Parábola que esteve no prefácio da primei-
ra edição de Origem do drama barroco alemão (título como
foi publicado no Brasil) que o próprio Benjamin retiraria do
prefácio para a publicação do livro. De fato, Benjamin parece
interessado em esbofetear a sonolência de uma certa tradi-
ção que para ele, deita esclerosada fazendo-se de princesa.
Ou mesmo a própria verdade que não será “acordada” por
um príncipe e sim por um gesto — o gesto do cozinheiro (o
próprio Benjamin); o gesto de esbofetear a verdade adorme-
cida. O gesto do assombro.
O que procuraremos investigar, neste trabalho, é a escrita en-
quanto componente do ou o próprio gesto em Walter Ben-
jamin. Um procedimento técnico na forma da escrita como
caminho de uma investigação filosófica que, como apontou
Sérgio Paulo Rouanet, em Benjamin passa essencialmente
pela questão da representação: “representação por um des-
vio do universal — a ordem das ideias” (BENJAMIN, 1984, p.
13). Uma investigação que pretende tatear por aquilo que se-
riam considerações epistemológicas e metodológicas sobre
ideias e coisas, sobre nome e palavra, sobre origem e gênese,
sobre filosofia e sistema a partir do que nos parece ser a me-

Walter Benjamin e a escrita ... | Leonardo A. Alves de Lima 293


todologia benjaminiana de escrita: um objetivismo radical
que demanda uma interpretação objetiva que se opõe a uma
visão subjetivista que, para Benjamin em nossa hipótese de
leitura, faz dissolver o objeto pela projeção psicológica do ob-
servador/investigador na obra. Em outras palavras, o método
benjaminiano se revela no confronto entre extremos — pelo
menos o que Benjamin considera estar nos extremos — do
choque para ver o que resta, o que sobra desse choque (cho-
que é uma palavra cara para Benjamin). Daquilo que resta da
ruína para ver o que pode ser salvo. Cabe ao conceito à função
salvadora, e ao filósofo, a tarefa de “injetar nas ideias o san-
gue vigoroso da empiria e de salvar os fenômenos, guardan-
do-os no recinto das ideias”. (ROUANET In BENJAMIN, 1984,
p. 13). Podemos nos perguntar se é esse o esforço de escrita
benjaminiana. O que parece estar em evidência em Origem
do drama barroco alemão. Nesse sentido, é o conceito que
tornará as coisas universais sem se tornarem pura abstração,
ou seja: ideia e escrita. Entre a ideia e a escrita está a bofetada
que é dada em nós a priori, ou seja, em quem escreve e detém
sobre um determinado fazer crítico e/ou sobre o próprio crí-
tico e, nesse sentido, a bofetada se configura enquanto gesto
e gesto social.
Tendo em mente a metodologia benjaminiana, precisamos
agora, delinear um caminho teórico para sua aplicação tendo
também, em mente, nosso objetivo de responder ao gesto e
ao assombro que é o próprio gesto. Para isso, não nos parece
o melhor caminho seguir direto para o gesto sob o risco de
perdermos os componentes fundamentais que estruturam
o conceito. Como já dissemos, é de nosso interesse salvar —
em um gesto benjaminiano — o que resta da própria palavra
gesto na escrita. No entanto, isso que se salva não se encontra
intacto e mesmo o gesto de salvar não é uma garantia. Isso
quer dizer que há um sim, mas ainda não intrínseco ao ges-
to de salvar. Foi Hannah Arendt que apontou essa espécie de
sim, mas ainda em Homens em tempos sombrios. Citamos:
A pessoa que não consegue enfrentar a vida sempre precisa, en-

294
quanto viva, de uma mão para afastar um pouco de seu desespe-
ro pelo seu destino [...] mas com sua outra mão ela pode anotar
o que vê entre as ruínas, pois vê mais coisas, e diferentes, do que
as outras; afinal, está morto durante sua vida e é o verdadeiro so-
brevivente. Franz Kafka, Diários, apontamento de 19 de outubro
de 1921 Como alguém que se mantém à tona num naufrágio por
subir no topo de um mastro que já se desmorona. Mas dali ele
tem uma oportunidade de fazer sinais que levem à sua salvação.
Walter Benjamin, numa carta a Gerhard Scholem datada de 17
de abril de 1931. (ARENDT, 2008, p. 126).
Nesta mão que se esforça para afastar o desespero e que tam-
bém anota o que é visto entre ruínas está o aspecto alegóri-
co do gesto — sim, mas ainda não. Sim, há um mastro que
pode ser escalado, mas o naufrágio é inevitável. A mão entre
o desespero e a esperança faz sinais enquanto submerge. É
nisto que dizemos que há a escrita do assombro, ou seja, na
contradição de uma condição e, em certo sentido, nisto tam-
bém está certo aspecto da personagem brechtiana. Em nos-
sa hipótese de leitura, o mastro está entre a ideia e a escrita.
Identificar o que venha a ser o mastro é em si um desafio. É
bem possível que a ideia de mastro opere em vários senti-
dos. Enquanto para Benjamin pode ser a escrita, a filosofia
ou a própria crítica literária para Brecht seria o teatro épico e
tudo o que o compõe. a dramaturgia, o palco, as personagens.
Aquilo que está justamente entre a ideia do teatro épico e a
escrita dramatúrgica.
Precisamos pontuar que Benjamin entende que as ideias es-
tão — no sentido de lugar — na linguagem o que é uma dife-
rença fundamental do pensamento platônico. Para Benjamin
as ideias estão naquilo que a linguagem nomeia naquilo que
a linguagem dá nome. Em carta a Martin Buber em junho de
1916, Benjamin escreve:
É opinião generalizada e prevalece em quase todos os lugares
como axiomática de que a escrita pode influenciar o mundo
moral e o comportamento humano, posicionando as motiva-
ções atrás das ações a nosso dispor. Desta maneira, portanto, a

Walter Benjamin e a escrita ... | Leonardo A. Alves de Lima 295


linguagem é apenas um meio para sugerir mais ou menos o lan-
çar de bases para as motivações que determinam as ações das
pessoas em sua essência. O que é característico sobre essa visão
é que ela falha por completo em considerar o relacionamento
entre linguagem e ação quando a linguagem não é instrumento
da ação. Essa relação seria equilibrada diante de uma língua im-
potente, resumida a um puro instrumento, diante de uma escrita
miserável, diante de uma ação fraca e cujas origens não residem
em si mesmas, mas em algum tipo de motivação dizível e que
possa ser expressa. Por outro lado, essas motivações podem ser
discutidas; outras podem ser justapostas a elas e, desta forma, a
ação é (fundamentalmente) colocada ao fim como o resultado
de um processo aritmético, testado em todas as suas variáveis.
Toda ação que se deriva de uma tendência expansiva de amarrar
palavras umas às outras me parece terrível e ainda mais catas-
trófica quando a completa relação entre a palavra e o ato é, em
um nível crescente, ganhar espaço como um mecanismo de re-
alização da verdade absoluta, como é o caso entre nós agora1
1  The opinion is widespread, and prevails almost everywhere as
axiomatic, that writing can influence the moral world and hu-
man behavior, in that it places the motives behind actions at our
disposal. In this sense, therefore, language is only one means of
more or less suggestively laying the groundwork for the motives
that determine the persons’s actions in his heart of hearts. What is
characteristic about this view is that it completely fails to consider
a relationship between language and action in which the former
would not be the instrument of the latter. This relationship would
hold equally for an impotent language, degraded to pure ins-
trument, and for writing that is a pitiful, weak action and whose
origin does not reside within itself, but in some kind of Payable
and expressible motives. On the other hand, these motive can be
discussed; others can be juxtaposed to them, and thus the action
is (fundamentally) placed at the end as the result of an arithmetic
process, tested from all sides. Every action that derives from the
expansive
tendency to string words together seems terrible to me, and even
more catastrophic where the entire relationship between word and
deed is, to an ever-increasing degree, gaining ground as a mecha-
nism for the realization of the true absolute, as is the case among
us now. (nossa tradução).

296
(BENJAMIN, 1994, p. 13).
Aqui, começamos a esboçar um primeiro sentido de gesto
benjaminiano próximo ao que seria “ação”, mas ação de que?
Em “O que é o teatro épico?”, Benjamin escreve:
A mais importante realização de quem escreve é tornar a pala-
vra visível em um gesto de espaçamento como faz o tipógrafo
ao espaçar as letras. Significa tornar o pensamento acessível na
mancha da página tal qual faz o ator ao tornar seus gestos citá-
veis (BENJAMIN, 2012 p. 93).
Ou seja, a escrita, é a ação de tornar “pensamento visível na
palavra”. A página traz o resíduo do pensamento salvo pelo
conceito e a escrita enquanto mancha na página que evita
que o pensamento se torne pura abstração, o que também é
um gesto crítico.
Em termos de linguagem, é bem possível que Benjamin esti-
vesse pensando em dois tipos: a linguagem adâmica — aque-
la que chama pelo nome, que desperta “pelo beijo do prínci-
pe”. A linguagem pós-paraíso que, pelo pecado, é corrompida
e só pode servir para comunicar algo. Essa é uma diferença
fundamental, pois uma aponta para o nome e outra para a
palavra. A ideia está inscrita assim, na ordem do nome que
contém em si a dialética: ideia-fenômeno. Outra dialética
que se coloca aqui é a do nome-palavra restando ao filósofo a
tarefa de salvar o nome. E, na ação de salvar o nome, também
estaria um gesto. Há assim, uma potência inscrita no gesto,
como já dissemos a potência de salvar algo.
Há uma crítica que pode ser feita aqui, pois se de um lado o
gesto pode ser entendido em Benjamin enquanto potência,
de outro lado pode ser entendida enquanto negatividade, ou
seja, ausência. É o que percebe Derrida. Em Farmácia de Pla-
tão (2005). Diz Derrida:
Não que o lógos seja o pai. Mas a origem do logos é seu pai. Dir-
-se-ia, por anacronia, que o “sujeito falante” é o pai de sua fala
(...). O lógos é um filho, então, e um filho que se destruiria sem
seu pai. De seu pai que responde por ele e dele. Sem seu pai ele

Walter Benjamin e a escrita ... | Leonardo A. Alves de Lima 297


é apenas, precisamente, uma escritura (...) A especificidade da
escritura se relacionaria, pois com a ausência do pai. (DERRIDA,
2015, p. 22).
Para Derrida, o lógos — a escritura do pai no filho eviden-
cia uma perda. A diferença entre a escrita benjaminiana e a
escritura derridiana não são apenas estilísticas, são estética
— na forma da letra e conceituais na relação da letra com
o fenômeno e com a ideia. A escritura derridiana evidencia
uma perda. É lacunar. Nada pode ser salvo e o que resta é o
gesto em si que é dizer da negatividade, dizer sobre a negati-
vidade. A escrita benjaminiana enuncia uma positividade no
gesto da própria escrita. a bofetada, em última análise, é para
que alguém acorde. Dois judeus, dois lógos já que um chama
o lógos de escritura, o outro de escrita. Um opera pela e na
alegoria, o outro na metáfora.
Para Benjamin a linguagem nunca pode ser usada a serviço
de nada. Para ele, a linguagem é. É uma revelação.
Posso entender a escrita desta forma como poética, profética e
objetiva em termos de seus efeitos, mas em qualquer um de seus
casos, apenas tão mágica quanto como imediável. Todo efeito
salutar, de fato, todo efeito que não seja inerentemente devas-
tador, que qualquer escrita possa ter, reside em seu próprio (da
própria palavra, da própria linguagem) mistério2. (BENJAMIN,
1994, p. 13-14).
Para Benjamin, o que se perde na escrita é aquilo que ela po-
deria mediar, não à toa, para ele, não há escrita absoluta. A
escrita, assim, demanda um gesto, o gesto de escrever, mas o
que se escreve não é a ideia da coisa, é outra coisa, é esse mis-
tério. Benjamin retomará esse tema em outros textos como “A
tarefa do tradutor”, “O autor como produtor” e “Sobre a Lin-
guagem geral e sobre a linguagem humana”.
2  I can understand writing as such as poetic, prophetic, objective
in terms of its effect, but in any case only as magical, that is as un-
mediated. Every salutary effect, indeed every effect not inherently
devastating, that any writing may have resides in its (the word’s,
language‘s) mystery. (nossa tradução).

298
Parte três: Gesto: É possível definir? Movimen-
to do corpo, principalmente da cabeça e dos
braços, para exprimir ideias ou sentimentos.
Aperto de mão, cafuné, cumprimento, dedo
médio.

Após termos delineado uma metodologia e de termos segui-


do um caminho teórico, passaremos a nos deter nos possíveis
sentidos que a palavra gesto traz como resíduo. Aquilo que
sobra do choque entre uma positividade — potência revela-
dora e uma negatividade lacunar, aquilo que a palavra não
diz aquilo que a palavra arruína.
Em “O que é o teatro épico”, Benjamin usa a palavra gesto,
primeiro no sentido de ação; “O teatro épico é gestual (...) em
consequência, para o teatro épico a interrupção da ação está
no primeiro plano. Nela reside a função formal”. (BENJAMIN,
2012, p.85). Nesse ponto, é importante que recorramos à defi-
nição que o próprio Brecht faz de gesto para lançarmos mão
de outro extremo:
Por gesto não se deve entender um simples gesticular, não se tra-
ta de movimentos de mãos para sublinhar ou começar qualquer
passagem da peça, e sim de atitudes globais. Toda a linguagem
que se apoia no “gesto”, que mostra determinadas pessoas da
pessoa que fala em relação às outras, é uma linguagem gesto.
A frase “arranca o olho que incomoda” tem valor de gesto mais
reduzido do que esta outra: “quando teu olho incomodar arran-
ca-o”. Aqui, o que nos é primeiramente revelado é o olho, a pri-
meira parte da frase comporta o “gesto” preciso do ato de supor
algo; por fim, como que de surpresa, vem o conselho libertador
da segunda parte da frase. (BRECHT, 2005, p.237)
Obviamente há aqui, um choque entre os pensamentos bre-
chtiano e benjaminiano de gesto. Brecht pensa de forma glo-
bal. A personagem brechtiana age — no sentido do gesto de
forma contraditória — de forma diferente a sua condição so-

Walter Benjamin e a escrita ... | Leonardo A. Alves de Lima 299


cial ou a aquilo que seria sua forma de agir naquela condição
ou determinado contexto social. Esta é uma das diferenças
fundamentais entre o teatro burguês e o teatro épico. Nesse
sentido o gesto, segundo Brecht, pode ser entendido como
“gesto social” — “o gesto que é significativo para a sociedade,
que permite tirar conclusões que se apliquem a essa socieda-
de” (p.238). “Mãe coragem” não age de acordo com a condi-
ção social de um(a) caixeiro(a) viajante. Sua postura rebelde
em relação à autoridade constitui o que Brecht define como
gesto social. Gesto que faz pensar. José Antônio Pasta Jr. ao
escrever para a revista Vintém3 aborda a questão do gesto
em Brecht ao se perguntar, primeiro, sobre a relevância do
teatro brechtiano hoje. Pasta se refere a essa pergunta como
a pergunta inerente a Brecht e seu gesto a priori. Diz Pasta:
A pergunta pela permanência atual da obra de Brecht lhe é diri-
gida meramente desde o exterior. Antes mesmo que o façamos,
é a própria obra que se adianta e liminarmente nos opõe a ques-
tão de sua vigência crítica. Instalada no próprio núcleo da obra
brechtiana tal pergunta é indissociável dela. Esse gesto é pratica-
mente exclusivo de Brecht; ele o singulariza e, sou tentado a di-
zer, constitui o cerne mesmo do que seja uma noção materialista
da beleza. (PASTA, 1997, p.20)
É a partir dessa pergunta inerente a Brecht que Pasta segue
em sua análise para pensar a questão da representação no
teatro brechtiano. Representação essa intrinsecamente liga-
da ao contraditório. É possível que Pasta estivesse marcando
uma posição pós-kantiana ao se referir a essa concepção ma-
terialista de beleza. A leitura que Hannah Arendt faz de Ben-
jamin também segue nesse sentido, o que significa dizer que
uma perspectiva materialista de gesto demanda a superação
da concepção platônica, por exemplo, de beleza uma vez que
a moral — para citar um exemplo — é inerente ao conceito
de beleza. A beleza materialista não pode ser moral por pos-
suir aspecto global. Mãe coragem é bela ao viver e capitular
da guerra, Galileu é belo em sua astúcia estúpida.

3  Vintém, número 0, julho/agosto 1997

300
Nesse sentido, Benjamin e Brecht estão de acordo. “O teatro
épico dirige-se a indivíduos interessados, que não pensam
sem motivo (...). O teatro épico não reproduz, portanto, con-
dições, processa-se pela interrupção dos acontecimentos”
(BENJAMIN, 2012, p. 86-87). Talvez tenha sido esse endere-
çamento a pessoas que não pensam sem motivo que tenha
atraído Benjamin a meios de comunicação de massa como
o cinema e o rádio. Benjamin via uma positividade no cine-
ma que Adorno recusava, como descrito por ele, Adorno, e
Horkheimer em “Indústria cultural” (1985). O aspecto repro-
dutivo da obra de arte enquanto constituinte de outra coisa,
de outro objeto a um público interessado.

Parte quatro: Benjamin e o rádio

É claro que entre 1916 (quando troca cartas com Martin Bu-
ber) e 1929 quando apresenta “A hora das crianças”, Benjamin
passa por mudanças. Se distancia, por exemplo, do misticis-
mo judaico e se aproxima do marxismo histórico além de
receber forte influência de Adorno e do próprio Brecht. Tais
influências que no caso de Adorno giravam em torno de um
certo rigor dialético presente nas críticas de Adorno aos textos
de Benjamin e que no próprio Brecht e de Asja Lacs giravam
em torno de certo fazer, de uma praxis que parecia encan-
tar Benjamin. O interesse de Benjamin pela práxis pode ser
visto, por exemplo, em seu interesse por Baudelaire que, em
sua poesia, trazia à tona o modo de viver na Paris moderna. O
trabalho de Asja Lacs com teatro proletário e de Brecht com o
teatro épico agem no sentido de imprimir em Benjamin uma
perspectiva de gesto que aparecerá em “A hora das crianças”,
programa de rádio que apresentou entre 1929 e 1933. É nele

Walter Benjamin e a escrita ... | Leonardo A. Alves de Lima 301


que encontramos uma pista da estética do gesto benjaminia-
na.
Em “O terremoto de Lisboa”, programa que foi ao ar em Ber-
lim e Frankfurt em 1931, Benjamin diz:
Já alguma vez, ao esperar na farmácia por alguma receita, ob-
servaram a maneira como o farmacêutico a prepara? Pesa uma
balança com pesos levíssimos, grama, a grama e decigrama a
decigrama, todas as substâncias e pozinhos que entram na com-
posição do remédio. Passa-se comigo a mesma coisa que com
o farmacêutico quando vos conto alguma coisa neste programa
radiofônico. Os meus pesos são os minutos, e tenho de pesar
com muito rigor as quantidades deste e daquele ingrediente,
para que a mistura resulte certa” (BENJAMIN In GRATUITA,
2013, p. 140).
Benjamin expande sua própria perspectiva de gesto que, de
uma potencialidade na escrita, passa para — como entende
Brecht, para uma potencialidade social. No programa, Benja-
min passa a narrar o terremoto e as sensações causadas por
ele e pelo tsunami que se seguiu em exatos vinte minutos.
O gesto é simples e mais claro que a própria fala no teatro épi-
co na simplicidade e na pobreza dos elementos cênicos em
que qualquer lugar pode ser palco, até mesmo um programa
de rádio. A essa simplicidade está associado a ingenuidade
da infância.
Benjamin apresentava interesse sobre a infância, “Rua de
mão única” e “Infância em Berlim” trazem a infância benja-
miniana com certos traços de ingenuidade que chamaríamos
de cartográfica. Infância que mapeia e é mapeada por alguns
aspectos da vida moderna que pareciam assombrar Benja-
min, como o erotismo ou as dificuldades com seu próprio
sustento. O próprio Benjamin diria a Scholem em carta se re-
ferindo a “Rua de mão única” como sendo uma plaquete a ser
oferecida como presente a amigos.
Em “A hora das crianças” há ingenuidade enquanto traço de
um gesto benjaminiano. Uma ingenuidade que se volta como

302
resistência e fascínio. Benjamin estava fascinado pela “classe
média” trabalhadora da Alemanha. Trabalhadores que Ka-
fka, de certa forma, retratou na família de Gregor Samsa. Essa
classe trabalhadora não era formada pela antiga aristocracia
alemã, mas detinha poder econômico e se mostrava interes-
sada nas formas tecnológicas de entretenimento e cultura
que surgiam como a fotografia, o cinema e o rádio. Precisa-
mos dizer que essas novas tecnologias de consumo de entre-
tenimento eram mal vistas por Adorno, o que pode ser visto
no texto que divide com Horkheimer “A indústria cultural: O
esclarecimento como mistificação das massas”. Podemos nos
perguntar a razão pela qual Benjamin se interessa pela foto-
grafia, cinema e rádio. Haveria nelas espaço para a busca por
uma ingenuidade como traço constituinte de um gesto so-
cial? Benjamin em “A hora das crianças” indica que sim. Ou-
tro aspecto interessante que pode nos servir pista para esta
questão está em “Poesia ingênua e sentimental” de Friedrich
Schiller em que os termos infância e ingenuidade são impor-
tantíssimos. Precisamos dizer que em seu livro. Schiller dia-
loga diretamente com o romantismo alemão ao se debruçar
sobre uma ideia específica sobre poesia lírica. A relação que
podemos fazer deste aspecto de poesia lírica lida por Schiller
com Benjamin não está apenas na relação de Benjamin com
o romantismo alemão que é intensa principalmente no que
conhecemos como sendo o jovem Benjamin. Está presente
também em Baudelaire, uma vez que a poesia baudelairia-
na é lírica em seu negativo. Schiller, ao falar sobre o aspec-
to sentimental da poesia lírica define como “aspecto refle-
xionante da poesia” (SCHILLER, 1991, p. 27). A poesia lírica
que faz refletir sobre um aspecto negativo da vida da classe
proletária parisiense, daqueles que não eram vistos ou escri-
tos por Mallarmé ou Victor Hugo atrai Benjamin. Schiller é
importante para Benjamin que dele diz: “Friedrich Schiller,
também para seus amigos, permaneceu muitas vezes incom-
preensível. Mas sua intuição sobre a essência da crítica de
arte é a palavra final da Escola sobre o tema.” (BENJAMIN,

Walter Benjamin e a escrita ... | Leonardo A. Alves de Lima 303


2011, p. 22).
Chamamos a atenção para a perspectiva de poesia ingênua
que aparece no texto de Schiller que é justamente uma busca
pela infância. Para Schiller, é a infância que se opõe a um es-
tado de submissão cultural. Em nossa hipótese de leitura os
aspectos que temos apontado até aqui, a saber: a infância, a
atração de Benjamin por um determinado lirismo negativo
presente, por exemplo, em Baudelaire, a relação que Benja-
min mantém com mecanismos de reprodutibilidade técnica
da obra de arte e a ingenuidade são constituintes de um sis-
tema. Um sistema de pensamento, um sistema de escrita e de
reflexão. Precisamos dizer que os elementos listados por nós
não são exclusivos e que tão pouco não podem ser subtraídos
do sistema ou outros elementos somados a ele. É como esses
elementos são utilizados é que importa e isso Benjamin nos
esclarece em “O conceito de crítica de arte no romantismo
alemão” em que o escreve: “Uma determinação do concei-
to de crítica de arte não pode ser pensado sem Pressupostos
gnosiológicos” (BENJAMIN, 2011, p. 19). É na construção de
um conceito de crítica de arte por pressupostos gnosiológico
que Benjamin chegará em seu sistema que chamará de me-
dium-de-reflexão. Sobre o médium de reflexão citamos Ben-
jamin:
A teoria de conhecimento do objeto é determinada pelo des-
dobramento do conceito de reflexão em seu significado para o
objeto. O objeto, assim como tudo o que é efetivo, repousa no
medium-de-reflexão. O medium-de-reflexão é, no entanto, de
um ponto de vista metodológico ou gnosiológico, o médium do
pensar, pois ele é formado segundo o esquema da reflexão do
pensar, da reflexão canônica. (BENJAMIN, 2011, p. 61).
Neste ponto precisamos pontuar o que Benjamin entende
como reflexão. Em suas palavras: “Reflexão e o ato intencio-
nal de compreensão absoluta do sistema, e a forma adequada
da expressão deste ato é o conceito” (BENJAMIN, 2011, p. 55).
O conceito, portanto, para Benjamin, dá conta de um siste-
ma. Esta é a razão pela qual, no início deste trabalho fizemos

304
questão de distinguir conceito de ideia. É nisto que repousa
a dialética benjaminiana, ou seja, ao se deter no medium-de-
-reflexão a própria dialética repousa antes que os extremos se
choquem, ou seja, antes que os extremos conceituais, antes
que os sistemas se choquem.
Nesse sentido, a bela adormecida que descansa em seu sono
tranquilo não é o medium-de-reflexão e sim o próprio siste-
ma. A bofetada é o outro conceito que aflora acima do mastro
do naufrágio em que alguém tenta se equilibrar. É sempre um
risco. Dizemos, portanto, que o estado de repouso está entre
a mão que esbofeteará e o rosto de quem dorme, o sistema.
Curiosamente, quem esbofeteia é um cozinheiro. Cozinhar
significa escolher os ingredientes, medi-los e juntá-los de
acordo com a receita. Gesto semelhante ao que diz Benjamin
do que faz o farmacêutico em seu programa de rádio. Por ou-
tro lado, o “Terremoto de Lisboa” traz o contrário da ordem e
da medida precisa. Caso o farmacêutico erre a medida o re-
médio se tornará veneno. Caso o cozinheiro erre a receita, o
alimento se perderá. O terremoto mais do subverter, destrói
a ordem. Desorganiza e impõe o caos. É nesse sentido que se
coloca a escrita benjaminiana. Um pouco de caos em meio às
medidas de tempo do rádio, da tela de cinema, do palco tea-
tral ou mesmo da crítica. O Benjamin que desorganiza Ador-
no, que expõe o que Adorna chamou de falta de rigor. Por fim,
a escrita que assombra na forma da vanguarda.
Não eram apenas as formas técnicas de reprodutibilidade da
obra de arte que atraía Benjamin, havia por parte dele, inte-
resse nas vanguardas o que podemos ver, por exemplo, ao ser
atraído pelo surrealismo que chama de “último instantâneo
da inteligência europeia”4. Os escritores surrealista eram
admirados por Benjamin de quem escreveu: “Esses autores
compreenderam melhor do que ninguém a relação entre ob-
jetos e a Revolução” (BENJAMIN, 2012, p. 25). É escrevendo
sobre o surrealismo que Benjamin pensa no amor como nas-
4  “O surrealismo, o último instantâneo da inteligência europeia”,
1929.

Walter Benjamin e a escrita ... | Leonardo A. Alves de Lima 305


cente para o que chama de iluminação profana: “Basta, aliás,
levar a sério o amor para descobrir, também nele, uma ilumi-
nação profana” (BENJAMIN, 2012, p. 24). Tal iluminação pro-
fana engendra o surrealismo da mesma forma que engendra
a ingenuidade. Benjamin continua: “Todos experimentam
peculiares aventuras de amor muito semelhantes, a todos o
amor concede ou recusa dádivas que mais se assemelham a
uma iluminação do que a um prazer sensual” (BENJAMIN,
2012, p.25). O amor na nascente do gesto social como con-
traponto à máquina reprodutiva, tanto técnica, quanto crítica
— enquanto sistema crítico — o amor na ingenuidade da
infância — tanto a berlinense quanto a radiofônica.
Resta saber se poderemos, em um futuro próximo, agir na
medida dos delicados pesos e no tempo exato dos vinte mi-
nutos do rádio ou, em nosso caso, do tempo de uma comuni-
cação oral em um congresso ou mesmo no número de laudas
de um texto. Nossas comunicações expressando aquilo que
resta de um gesto em meio a um naufrágio. Pode haver ges-
to em Times New Roman doze, espaçamento 1,5 citado entre
entres aspas com o sobrenome do autor, ano e página? Como
escrever, como citar, como produzir teses no fluxo do exílio
dessa nossa democracia de mentirinha?
O que está em jogo é o embate de diferentes sistemas (con-
ceitos) na escrita. Significa muito mais do que omitir as fontes
em uma citação. A escrita vanguardista de Benjamin, a escri-
ta que não se enquadrou na forma acadêmica de sua época
olhava para o que o próprio Benjamin chamou de “tempo de
agora”. De fato, as vanguardas europeias estavam interessa-
das em dar conta das condições sociais do “aqui e agora” da
década de 1920 ou a partir dessa década. Nisto reside a críti-
ca que podemos fazer a Benjamin, ou seja, o “aqui e agora”
se tornou tão fragmentado, especialmente no pós-guerra,
que se tornou impossível dar conta dele em um único sis-
tema (conceito). É nisto que, também em nossa hipótese de
leitura, está a necessidade de haver o choque e nada foi tão
chocante para Benjamin quanto o exílio e as condições que o

306
exílio lhe impôs.
É possível que o aspecto mais importante da escrita de van-
guarda benjaminiana em seu gesto seja o exílio. A escrita do
exílio e não a escrita no exílio. Escrever em trânsito nas con-
dições impostas pelo trânsito. Por exemplo, a dificuldade de
se obter papel. Benjamin pedia constantemente a seus ami-
gos que lhe trouxessem cadernos. O exílio evoca a infância no
sentido de se buscar o “lá o então” ao invés das condições ad-
versas do “aqui do agora”. O exílio impõe outra relação com as
condições sociais e com a Revolução. O exílio como condição
para o amor ou, a busca de “uma aventura peculiar de amor”
em Moscou por Asia Lacs ou pelo próprio Brecht. Sobre o exí-
lio, trazemos um poeta argentino que evoca a lírica negativa
reflexiva que já temos mencionado. Cito Juan Gelman:
Serias mais suportável, exílio, sem tantos professores do exí-
lio, sociólogos, poetas do exílio, chorões do exílio, alunos do
exílio, profissionais do exílio, boas almas com uma balanci-
nha na mão pesando o mais, o menos, o resíduo, a divisão das
distâncias, o 2x2 desta miséria.
Um homem dividido por dois não dá dois homens.
Quem diabos se atreve, nestas circunstâncias, a multiplicar
minha alma por um. (GELMAN, 1984, p.)
Trazemos o exílio como elemento de um medium-de-refle-
xão seguindo um sistema benjaminiano de escrita. É o exí-
lio que se esforça em suspender a dialética. O exílio que age
como o terremoto de Lisboa e impõe o caos à balancinha,
que desorganiza a medida. O exílio é a catábase dos antigos
gregos imposta a todos aqueles interessados no gesto como
agente dialético social cujo resultado seria a implosão do
conceito e o surgimento de outro sistema.
No entanto, o nosso próprio “aqui e agora” nos impõe ou-
tra condição, talvez não presente no exílio benjaminiano. O
exílio enquanto refluxo. Enquanto condição velada em um
estado de exceção não oficial, não legislado, mas operando
de forma aberta e diária. Um estado de exceção engendrado

Walter Benjamin e a escrita ... | Leonardo A. Alves de Lima 307


na ilusão democrática e na ponta de lança de um capitalismo
2.0. O que estamos nos perguntando é se as novas condições
sociais — de um exílio no refluxo — de um exílio sem a impo-
sição geográfica não demandaria um outro sistema, um outro
conceito por patê da crítica. Isso nos perguntamos ao lançar
mão do método benjaminiano e incluir as novas condições
sociais no médium-de-reflexão. O perigo que inferimos ha-
ver, está na pseudo-reformulação dos efeitos estéticos como,
aliás, é uma crítica a ser feita às vanguardas europeias, ou
seja, as novas formas estéticas não deram conta das deman-
das sociais relegando as vanguardas e um prazo relativamen-
te curto (com pouquíssimas exceções) de vida, senão seu uso
pelo totalitarismo como, também, aliás, as formas estéticas
parecem cada vez mais apropriadas pelo fascismo. Seria ne-
cessário haver a implosão da forma, mas a partir de sua nas-
cente, ou seja, do choque entre extremos dos conceitos.
Benjamin percebeu a possibilidade de implosão no efeito e
não na causa. Citamos:
Numa formulação mais concisa e mais dialética, porém, pode-
mos dizer: o domínio da literatura foi aqui explodido a partir de
dentro, na medida em que um grupo homogêneo de homens
levou a vida literária até os limites extremos do possível. (BEN-
JAMIN, 2012, p. 22).
O surrealismo implodiu de dentro para fora da literatura e
não do sistema de reflexão canônico, por exemplo, Alemão
que não via com bons olhos as vanguardas francesas e, por
conseguinte, suas produções.
É preciso dizer que a necessidade de haver novos sistemas
(conceitos) não anula os antigos sistemas. Não se trata de agir
no sentido de apagar os rastros dos elementos constituintes
de outros conceitos, pelo contrário. É o próprio Benjamin que
age como um colecionador de conceitos e sistemas para di-
zer da necessidade de outro. Não se trata de uma disputa no
âmbito da importância de um em detrimento de outro e sim
da confluência destes no sentido do debate.

308
Para encerrar, permitam-me recontar-lhes uma história:
Eu gostaria de contar, por uma segunda vez, a história da Bela
Adormecida. Ela dormia no seu próprio arbusto espinhento. E
então, depois de muitos anos, despertou. Mas não foi por um
beijo de um príncipe afortunado. O cozinheiro a acordou, ao
dar-lhe uma sonora bofetada, que ressoou por todo o palácio,
com sua energia encarcerada por tantos anos. Uma criança lin-
da dorme atrás dos arbustos espinhentos das próximas páginas.
Não deixe que qualquer príncipe da fortuna, enfeitado com o
deslumbrante equipamento científico, chegar perto. Pois, no
beijo de noivado, ela pode esbofeteá-lo. Melhor que o autor a
desperte, reservando-se a tarefa de mestre cuca. Já é hora para
esta bofetada ressoar pelos campos da ciência. Então desper-
tará também esta pobre verdade, que tendo se espetado numa
roca fora de moda, indevidamente, pensou que podia fiar-se no
arquivo-armadilha de uma toga profissional (BENJAMIN, 202,
p.47)
O assombro está no susto que de quem acorda com a bofe-
tada. Está na experiência do choque que é a própria moder-
nidade. É importante dizer que a experiência da modernida-
de envolve outras formas técnicas de reprodução da obra de
arte, mas permanece em jogo a questão da representação,
“representação por um desvio do universal — a ordem das
ideias” (BENJAMIN, 1984, p. 13). Razão pela qual enfatizamos
a demanda por um sistema que dê conta — e esse esforço
é sempre incompleto — das possíveis formas de representa-
ção na forma das condições sociais do “aqui e do agora”. O
exemplo mais contundente está justamente na passagem de
um pensamento lírico ingênuo e sentimental no seio do ro-
mantismo alemão para um lírico negativo que representou
as condições francesas ainda que, em um quadro mais global
(europeu) isso constitua um fragmento. A poesia lírica nega-
tiva de Baudelaire não eliminou o lirismo ingênuo da mesma
forma que o teatro burguês subsiste a despeito do teatro épi-
co.
Já é hora para essa bofetada ressoar pelos campos da ciência
— em nós mesmos como apontou Sérgio Paulo Rouanet.

Walter Benjamin e a escrita ... | Leonardo A. Alves de Lima 309


Referências

ADORNO, Theodor. HORKHEIMER, Mas. Dialética do escla-


recimento. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Ja-
neiro: Zahar, 1985.
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Tradução:
Denise Bottman. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte
e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tra-
dução: Sérgio Paulo Rouanet. 8°ed. Tatuapé SP: Brasiliana,
2012.
________________. Origem do drama barroco alemão. Tra-
dução: Sérgio Paulo Rouanet. Tatuapé SP: Brasiliana, 1984.
_______________ . O conceito de crítica de arte no romantis-
mo alemão. Tradução: Márcio Seligmann-Silva. São Paulo:
Iluminuras, 2011.
________________. The correspondence of Walter Benjamin
1910-1940. Tradução: Manfred R. Jacobson e Evelyn M. Jaco-
bson, Chicago USA: University of Chicago, 1994.
________________. apud BUCK-MORSS, Susan. Dialética do
olhar: Walter Benjamin e o projeto das Passagens. Trad. Ana
Luiza de Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Chapecó:
Editora Universitária Argos, 2002, p. 47
Brecht, Bertolt. Estudos sobre teatro. Tradução: Fiama Paes
brandão. 2° ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Tradução: Rogério
da Costa. 3°ed. São Paulo: Iluminuras, 2005.
GELMAN, Juan. Inquilinos da solidão; notas de rodapé para
uma derrota.
SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. Tradu-
ção: Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991.
THEODOR, Adorno. HORKHEIMER, Max. Dialética do es-
clarecimento. Fragmentos filosóficos. Tradução: Guildo An-
tonio de Almeida. Rio de janeiro: Zahar, 1985.
Revista Vintém número 0, julho/agosto 1997. http://

310
www.companhiadolatao.com.br/site/wp-content/uplo-
ads/2016/01/Vintem0.pdf

Walter Benjamin e a escrita ... | Leonardo A. Alves de Lima 311


Em torno de coleções e mi-
niaturas com Walter Benja-
min
Francisco Camêlo
ftcamelo@outlook.com | Pont. Un. Católica do Rio de Janeiro
Quem, um dia, começou a abrir o leque da
lembrança, sempre encontra novos seg-
mentos, novos bastõezinhos, nenhuma
imagem lhe basta, pois reconheceu o se-
guinte: ela se deixaria desdobrar, somente
nas dobras está o verdadeiro: esta imagem,
este gosto, este toque em vista do qual
abrimos, desdobramos tudo isso; e agora a
lembrança vai do pequeno ao menor, dos
menores ao mais minúsculo e aquilo que
vem ao seu encontro nestes microcosmos
adquire uma violência cada vez maior1.
Walter Benjamin, Crônica berlinense

1  Tradução de Jeanne Marie Gagnebin (2013).


Figura 1: Caligrafia de Walter Benjamin no manuscrito de Passa-
gens

Colecionador de brinquedos e livros infantis, filósofo da


“história constelar” atraído por objetos kitsch e insignifican-
tes, escritor melancólico de caligrafia microscópica, Walter
Benjamin construiu sua obra com a “miniatura dos Denk-
bilder2” (imagens de pensamento). Usou sua coleção de ci-
tações recolhidas de livros da Bibliothèque Nationale e seus
passeios pelas passagens parisienses para montar sua histó-
ria do século XIX e das primeiras décadas do XX; reconheceu
no mundo da infância uma temporalidade intermitente feita

2  Utilizo a feliz expressão de Gerhard Richter em seu livro recente-


mente traduzido no Brasil e referido ao final do trabalho.

314
com gestos mágicos, plásticos e violentos. Veja-se o efeito de
uma das peças [Stück3] que compõe sua singular narrativa
autobiográfica, Infância berlinense: 1900, onde reencena uma
“Manhã de inverno”. A imagem daquele dia frio, que conec-
tava o menino judeu aos objetos de seu quarto burguês, ser-
viu-lhe para ler o que não estava escrito: no desejo infantil de
dormir à vontade decifrou a própria inaptidão de conseguir
uma situação financeira estável. O desdobrar da imagem do
passado no presente da escrita abre uma dinâmica entretem-
pos que origina a compreensão do futuro a partir dos restos
da memória infantil.
Quando fez a “Caracterização de Walter Benjamin”, Theodor
Adorno sublinhou o protagonismo que a infância tem no
conceito de linguagem e na teoria da história de Benjamin de
tal modo que o que ele “dizia e escrevia soava como se o seu
pensamento assumisse as promessas dos contos de fadas e
dos livros infantis [...] e isso de um modo tão radical e literal
que torna perceptível até mesmo a real efetivação do conhe-
cimento” (ADORNO, 2001, p. 224-225). Alguns poucos exem-
plos já evidenciam o destaque, nos escritos benjaminianos,
da figura alegórica da criança, capaz não só de “fazer história
dos detritos da História” (BENJAMIN, 2002, p. 138), mas de
acessar o “arquivo de semelhanças não sensíveis” da lingua-
gem, já que para as crianças “as palavras ainda são como ca-
vernas entre as quais conhecem os mais estranhos caminhos
de ligação” (BENJAMIN, 2013, p. 126). Se essa exploração da
linguagem dá notícias da antiga faculdade de ler semelhan-
ças, outrora tão decisiva para os povos arcaicos, que liam o

3 
Leitor dos românticos alemães e de Friedrich Nietzsche, Wal-
ter Benjamin não se refere à forma de escrita da Infância como
“fragmento” ou “aforisma”. Ele utiliza a palavra “Stück”, que pode
ser traduzida tanto por “peça” (de jogo, de teatro) como “peda-
ço” (de bolo). Agradeço à pesquisadora Juliana Lugão (UFF) pela
referência ao uso deste termo por Benjamin, que o utiliza muito na
correspondência com Gershom Scholem.

Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 315


destino dos homens a partir da posição das estrelas, os jogos
infantis evidenciam comportamentos miméticos, que muitas
vezes brincam arriscadamente com a morte. Leiam-se as em-
blemáticas peças “Esconderijos” e “Caça às borboletas”. De
um lado, a criança abandona temporariamente sua condição
humana para se camuflar no esconderijo; de outro lado, ela
aproxima-se perigosamente da essência do inseto para cap-
turá-lo; em ambas, o assujeitamento imposto pela ação de
brincar e de caçar ocasiona uma experiência de quase morte.
Esse aspecto violento dos jogos infantis também caracteriza
o gesto do colecionador. Por definição, toda coleção é lacu-
nar e incompleta, o que justifica o impulso anarquista e des-
trutivo do colecionador, que arranca o objeto de seu contexto
original para acrescentá-lo a um conjunto de peças, modi-
ficando seu valor. Opondo-se ao alegorista, que desistiu de
reunir as coisas e para quem estas representam “verbetes de
um dicionário secreto”, o colecionador encerra cada coisa em
uma enciclopédia ou em um círculo mágico onde ela, a coisa,
se imobiliza, enquanto a percorre o estremecimento de ser
adquirida (BENJAMIN, 2009). O método violento do cole-
cionador evoca “O caráter destrutivo”. Neste pequeno ensaio
escrito em 1931, o gesto de destruir é qualificado como ati-
vo, jovem e alegre; a imagem do destruidor é descrita como
a daquele que simplifica o mundo à medida que vai abrindo
espaço, já que não vê nada de duradouro, e sim caminhos por
toda parte. Às vezes ele o faz com força bruta, outras com re-
quinte, mas sempre convertendo em ruínas tudo o que existe,
menos pelas ruínas e mais pelas passagens que as atraves-
sam. Com gestos destrutivos, a criança também não conhe-
ce nada de permanente; ela destroça seus brinquedos para
ver do que são feitos e arranca as coisas de seus contextos,
desenfeitiçando seus sentidos originais e as encerrando num
mundo de sonho.
No ensaio “A paixão de coleccionar”, a filósofa portuguesa
Maria Filomena Molder (1999) chama atenção para a “ener-
gia semântica” de três palavras alemãs “sammeln” (reunir),

316
“sich sammeln” (recolher) e “Sammlung” (colecionar) que
certamente impressionaram Walter Benjamin, aumentan-
do sua atração por tudo que era pequeno, como miniaturas,
brinquedos, selos, cartões postais ou ainda dois grãos de tri-
go onde estava escrito todo o Schema Israel. É Hannah Aren-
dt (2008) quem conta esse episódio ocorrido no Museu de
Cluny, em Paris, para afirmar, em seguida, que o interesse
de Benjamin pelo minúsculo provém da convicção de que
quanto menor fosse o objeto, mais provável pareceria poder
conter tudo sob a mais concentrada forma. Para Susan Son-
tag (1986), o olhar curioso de Benjamin para o pequeno e o
insignificante resulta de sua preferência por formas narrati-
vas breves e da percepção de que as coisas em vias de desa-
parecimento possuem uma energia revolucionária, a exem-
plo dos brinquedos artesanais russos comprados por ele
quando fora à Rússia visitar a diretora de teatro infantil Asja
Lacis, como se lê no Diário de Moscou.

Figura 2: Fotografia de brinquedos russos com anotações de Wal-


ter Benjamin

Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 317


Figura 3: Fotografia de brinquedos russos com anotações de Wal-
ter Benjamin

Como apontou recentemente Gerhard Richter, a procura


atenta e meticulosa de Benjamin pelo não monumental é
um gesto eminentemente político, que recusa a condição
de insignificância dos objetos culturais como algo natural.
Tal atitude é a semente de uma historiografia radicalmente
inovadora construída não da cultura oficial, mas dos detritos
e daquilo que foi marginalizado. Nesse sentido, o fragmento
“Canteiro de obra”, de Rua de mão única é emblemático não
só porque descreve a capacidade das crianças de construir
novas formas com materiais negligenciados, mas também
porque apresenta Benjamin como o colecionador e o trapei-
ro do lixo da história (RICHTER, 2017).
Assim como Benjamin, também os artistas visuais Willard

318
Wigan e Márcia X sentem-se atraídos por brinquedos e obje-
tos minúsculos. Com gestos lúdicos e violentos, manipulam
seus materiais de trabalho, fazem pequenas intervenções em
brinquedos, constroem com coisas diminutas uma coleção
de imagens — às vezes oníricas, outras vezes eróticas — ex-
plorando a energia e a plasticidade da infância. Assim, am-
pliam as possibilidades do jogo infantil, tornando expansivo
o campo da criação artística e escrevendo uma outra história
da infância, menos autorreferente e mais informe.
Quando viu o pequeno Willard Wigan construindo casas para
formigas e outros insetos, sua mãe teria dito: “Você se torna-
rá grande fazendo coisas pequenas”. Desde então, o menino
empenhou-se na brincadeira de mostrar que as coisas pe-
quenas podem ser maiores. Com paciência e disciplina físi-
ca, passou a esculpir miniaturas em grãos de areia e fibras
de pó ao ouro, posicionando-as no buraco de uma agulha ou
na cabeça de um alfinete. Esses pequenos mundos, onde fi-
guras dos contos de fadas são redesenhadas em dimensões
liliputianas, variam de tamanho (de 0,0002 a 0,005 mm) e são
construídos através de um método meditativo que retarda a
frequência cardíaca do artista.

Figura 4: Miniatura de Willard Wigan

Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 319


Figura 5: Miniatura de Willard Wigan

A temporalidade desacelerada no ato da criação guarda se-


melhança com a leitura que Susan Sontag fez da vida e da
obra de Benjamin, a partir da astrologia. Para a ensaísta, o
signo de Saturno, planeta das revoluções mais lentas sob o
qual o pensador alemão nasceu, regeu seu temperamento
melancólico e influenciou seus principais temas de reflexão.
A energia saturnina constela em torno de cada escrito de
Benjamin, impelindo-o tanto a um “recuo à interiorização”
(SONTAG, 1986) quanto à “valorização da exterioridade, que
se faz num movimento de evasão, de entrega total às minúcias
da realidade concreta, onde a intenção subjetiva se apaga no
objeto e o pensamento, agarrado à coisa, transforma-se num
tatear, em um cheirar e em um saborear”, segundo a caracteri-
zação de Adorno (1998, p. 231). A entrega total à exterioridade
das coisas diz da imersão de Benjamin nos espaços urbano e

320
textual e de sua atenção minuciosa ao pormenor, ao detalhe,
aos aspectos aparentemente insignificantes dos seus objetos
de estudo. Ambas experiências estão inscritas em uma outra
temporalidade, certamente não a do progresso, que empurra
o Angelus Novus, de Paul Klee (também ele um colecionador)
para o futuro, mas a que conecta esse anjo de feição e traço
infantis com o amontoado de ruínas do passado.

Figura 6: Angelus Novus, Paul Klee, 1920

Essa temporalidade vagarosa conduz o movimento desace-


lerado de Willard Wigan, que, entre um batimento e outro e
com precisão técnica extenuante, refigura personagens de
histórias infantis em pequeníssimos mundos onde “o aces-
so final à sua interioridade e aos segredos que podem conter
nos é negado para sempre4”. O retardamento cardíaco e a di-

4 

Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 321


mensão de cifra das miniaturas de Wigan lembram não só o
método lento de Benjamin, mas também o efeito de retard
(atraso) produzido pela anti-arte de Marcel Duchamp, cujas
obras substituem “o olhar (regard) pelo atraso (retard)”, mos-
trando que “o invisível não é da ordem do obscuro”, mas de
“uma transparência turva que força o espectador a pensar,”
como observa Raúl Antelo no livro Maria com Marcel. Re-
corde-se, por exemplo, a última criação duchampiana, Étant
Donnés (1946-1966), em que o observador precisa olhar com
atenção através de dois pequenos buracos feitos numa porta
de madeira para ter acesso a uma espécie de segredo da obra,
o nu feminino escondido num pequeno quarto.

Figura 7: Étant donnés, Duchamp, 1946-1966

Cf. https://www.ted.com/talks/willard_wigan_hold_your_brea-
th_for_micro_sculpture Acesso em 23 abr. 2018

322
Figura 8: Étant donnés, Duchamp, 1946-1966

Embora a dimensão de segredo não esteja presente nos traba-


lhos de Márcia X, sua obra “desabrida”, por assim dizer, pos-
sui uma semelhança sugestiva com o Étant donnés no que
diz respeito ao tratamento erótico dado pela artista às coisas
kitsch, aos pênis de plástico e aos brinquedos do universo
feminino (bonecas, espelhos, caixas de música, bijuterias)
comprados em lojas do comércio popular e em sex shops. Fá-
brica Fallus (1993-2005) é o título de uma série em que pênis
de plástico são transformados em bonecos, ora vestidos com
pompons e rendas, ora cheios de medalhinhas, ou inseridos
em redomas, como se fossem peças sacras. Os objetos retira-
dos das prateleiras das lojas pela colecionadora ganham uma
dupla feição: fálica e feminina, pornográfica e infantil, sagra-

Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 323


da e profana5. Assim, não só “o teológico penetra no reino
do kitsch” (BENJAMIN, 2013, p. 150), mas também o infantil
e o erótico.

Figura 9: Sem título, Fábrica Fallus, s/d

5 
Cf. http://marciax.art.br/mxTexts.asp?sMenu=3&sTipo=4 Acesso
em: 24 abr. 2018

324
Figura 10: En nombre del Padre, Fábrica Fallus, 1994

Se Fábrica Fallus mostra a apropriação lúdica e profana de


objetos, na instalação Os Kaminhas Sutras (1995) o que está
em jogo é a transformação perversa de brinquedos em per-
sonagens de uma cena erótica. Duplas e trios de bonecos
em posição sexual estão dispostos em pequenas camas co-
loridas, com lençóis e travesseiros feitos de tecidos infantis.
Todos os bonecos estão despidos e não possuem cabeça, o
que lhes garante o anonimato e a indistinção de gênero mas-
culino/feminino. Encaixados uns nos outros por finíssimos
cabos de aço, movem braços e pernas quando aciona-se um
pedal, numa coreografia de movimentos sexuais ao som da
música tema da Disneylândia “It’s a small world”. Ao contrá-
rio da lentidão que preside o trabalho de Wigan e do aspecto
cifrado de suas miniaturas, a obra explícita de Márcia X si-
tua-se em uma temporalidade mais frenética, que nos leva a
afirmar que as miniaturas, por si sós, não significam isto ou
aquilo. Sua inserção em dinâmicas criativas específicas pode

Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 325


alterar radicalmente os efeitos que elas produzem e aquilo
que se pode dizer delas.

Figura 11: Os Kaminhas Sutras, 1995

Figura 12: Os Kaminhas Sutras, 1995

Num texto sobre Os Kaminhas Sutras, Márcia X observa que


“a cacofonia de sons intensifica a violência da movimenta-
ção mecânica contrastando com o visual adocicado” da ins-

326
talação. Essa observação da artista poderia servir também de
comentário à intervenção Tricyc(l)age — música para duas
bicicletas e piano, realizada anos antes, em 1986, quando ela,
pedalando um velocípede, invadiu um concerto em homena-
gem a John Cage, para perplexidade da plateia e do próprio
compositor que, dizem, gostou da performance. O velocípe-
de pertencia aos sobrinhos da artista e produzia um baru-
lho, “um nhec nhec” que “ia ao encontro de uma sonoridade
atonal, de uma melodia estranha6”. O único registro daquela
noite é uma fotografia em que Márcia X aparece pedalando o
veículo infantil e segurando um cartaz onde se lê: “Ser serrote
não é defeito, defeito é viver serrando”.

Figura 13: Fotografia de Marcia X na intervenção Tricyc(l)age, 1985

A imagem de Márcia X no minúsculo velocípede, pequena


em meio aos enormes pianos de cauda, lembra a fotografia
do próprio John Cage sentado num banquinho, tocando um
instrumento infantil na peça Suite for toy piano (1948). Con-

6 
Cf. https://performatus.net/entrevistas/alex-hamburger/ Acesso
em: 24 abr. 2018

Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 327


forme descreve a pesquisadora e professora da UFMG Maria
Angélica Melendi (2017, p. 230), “as grandes mãos do homem
brincam no pequeno teclado, as costas se curvam à altura do
teclado, os joelhos alcançam os cotovelos”. Ao se curvarem,
Márcia X e John Cage involuem criadoramente, ganham uma
estatura pequena, estão em um limiar com a infância onde
podem jogar perigosamente com seus brinquedos: um velo-
cípede e um piano infantil.

Figura 14: John Cage, Suite for toy piano, 1948

Guardadas as diferenças óbvias, essa dimensão de perigo,


própria dos jogos da infância, é o que o leva Marcel Duchamp
a colocar reproduções em miniatura de seus trabalhos em
uma caixa. Construída durante a segunda grande guerra,
a caixa de Duchamp, espécie de “pequeno museu portá-
til”, abriga réplicas em ponto pequeno de suas obras, como
O grande vidro (La mariée mise à nu par ses célibataires,
même ou Le Grand Verre) e reproduções tridimensionais de
ready-mades. Feita de madeira e de uma valise de couro com

328
alça, a primeira Caixa-valise (Boîte-em-valise) só ficou pronta
em janeiro de 1941, quando as tropas alemãs já tinham inva-
dido Paris e a vida ali tornava-se incerta. Lembrando retá-
bulos medievais, como observam alguns comentaristas7, a
Caixa-valise contém 69 miniaturas de obras de Duchamp ou
de Rrose Sélavy (do lado de fora da caixa lê-se escrito à mão
“de ou par Marcel Duchamp ou Rrose Sélavy”) dispostas em
divisórias e aberturas deslizantes e desdobráveis. A miniatu-
rização como procedimento, ou seja, a redução da obra de
Duchamp a um tamanho apropriado à mala, independente-
mente de sua escala original, serviu ao artista como garantia
de sobrevivência durante os anos da guerra e também como
estratégia para ocultar seus trabalhos futuros, já que algumas
caixas foram enviadas para Nova York como “utensílios do-
mésticos” (TOMKINS, 2013). A portabilidade da miniatura,
como afirma Susan Sontag (1986), é a forma ideal de possuir
as coisas para um nômade, ou um refugiado, como Benjamin
e Duchamp.

Figura 15: Boîte-en-valise, Duchamp, 1941

7 
Cf. MACK, 2007, p. 83

Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 329


A produção plástica do autodidata Arthur Bispo do Rosário
possui semelhanças com as de Duchamp, como alguns es-
pecialistas vêm apontando, a exemplo de Paulo Herkenhoff
e Marta Dias8. Ao contrário das sofisticadas caixas de Du-
champ (a Caixa-valise, a Caixa verde [La boîte verte] e a Caixa
branca [La boîte blanche]) — a Caixa dos escolhidos de Bispo
do Rosário é um objeto rudimentar, feito de madeira, onde
ele, o enviado, arquivava nomes de pessoas que deveriam ser
conduzidas ao céu.

Figura 16: Caixa dos escolhidos, Bispo do Rosário, s/d

8 
Ver a propósito o ensaio “A vontade de arte e o material existente
na Terra dos homens”, de Paulo Herkenhoff e o livro Arthur Bispo
do Rosário: a poética do delírio, de Marta Dantas.

330
Figura 17: La boîte verte, Duchamp, 1914

Figura 18: À l’infinitif (La boîte blanche), Duchamp, 1912-20

Na mesma época em que Duchamp começou a apropriar-


-se de objetos industriais no âmbito da arte e a construir sua

Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 331


Caixa-valise, Bispo do Rosário passou a recolher artefatos
que registrassem sua passagem pela Terra, os quais seriam
apresentados à divindade no dia do Juízo Final. A partir de
então, o antigo marinheiro empenhou-se com afinco na mis-
são para a qual fora assinalado: construiu uma coleção de
objetos manufaturados feitos de materiais diversos (metal,
vidro, madeira, lata, papelão, tecido etc.), anotou em pedaços
de papel o nome dos escolhidos e bordou fardões e majesto-
sos mantos, que cobriam sua cama-nave. Recolhido à cela da
instituição psiquiátrica onde passou cerca de 50 anos, dedi-
cou-se também ao dispendioso exercício de encobrir alguns
objetos até esconder o material de que eram feitos. Com li-
nhas azuis desfiadas do seu uniforme manicomial ou de seus
companheiros, enrolava brinquedos, embarcações, utensí-
lios domésticos, materiais hospitalares, alguns em tamanho
real, outros miniaturizados, como um patinete, um tambo-
rim e bandeiras de navio9.

Figura 19: ORFA, Bispo do Rosário, s/d

9 
Agradeço ao pesquisador João Henrique Queiroz (UERJ) a gentile-
za de disponibilizar as ORFAs reproduzidas neste trabalho.

332
Figura 20: ORFA, Bispo do Rosário, s/d

Figura 21: ORFA, Bispo do Rosário, s/d

Os Objetos Recobertos de Fio Azul (ORFAs)10, miniaturizados


ou não, perdem sua função utilitária ao serem encapsula-
dos fio a fio pelo artista colecionador, ganhando, por conse-
guinte, uma dimensão mística e mágica na medida em que
representam o que deve ser preservado no mundo pós-apo-
calíptico para o qual Bispo do Rosário estava se preparando.
Assim como as crianças no “Canteiro de obra” benjaminiano,
que constroem um “pequeno mundo dentro do grande” com
10 
Termo cunhado por Frederico Moraes.

Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 333


aquilo que resta do trabalho da construção, da costura ou da
marcenaria, o habilidoso artesão Bispo do Rosário mumifi-
ca e/ou miniaturiza coisas precárias com extremo requinte e
precisão manual, para apresentá-las à divindade.
Já Clarice Lispector, a seu modo, escrevendo por acrobáticas
e aéreas piruetas11, colecionou, em um dos seus contos, uma
figura minúscula, enigmática e sedutora: “A menor mulher do
mundo”. Na África Equatorial, um etnógrafo francês descobre
uma tribo de uma pequenez surpreendente; mais surpreso
ele fica quando é informado de que, no fundo das florestas
africanas, existe um povo ainda menor, de linguagem breve
e simples. É no topo de uma árvore que o pesquisador Mar-
cel Pretre encontra uma pigmeia de 45 cm, uma “coisa rara”
a quem nomeia de Pequena Flor. O encontro com a “coi-
sa humana menor que existe”, ali “toda em pé e a seus pés”,
causa-lhe vertigem e espanto: Pequena Flor está grávida, traz
dentro de si um “filho mínimo”, outra “existência mínima12”.
A fotografia da mulher de quarenta e cinco centímetros, ne-
gra e grávida, estampa os jornais de domingo e produz afetos
diversos nas famílias de classe média. Em um apartamento,
uma família afixa, junto à imagem da menor mulher do mun-
do, uma fita métrica e dá-se à tarefa de verificar o tamanho
daquele pequeno ser. Noutra casa, um menino quer assustar
o irmão com a imagem da minúscula mulher. A brincadeira
da criança faz a mãe lembrar-se de uma história que a cozi-
nheira lhe contara do tempo do orfanato e que diz do caráter
violento e erótico das brincadeiras infantis:
Não tendo boneca com que brincar [...] as meninas sabidas ha-
viam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guarda-
ram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a
menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de

11 Cf. LISPECTOR, 1998, p. 12-13.


12 Quero com isto, em um trabalho futuro, ler o conto de Clarice a
partir das considerações de David Lapoujade sobre Étiènne Sou-
riau, em As existências mínimas.

334
castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a (2009,
p. 71).
Também este conto de Clarice é um pequeno brinquedo,
uma boneca russa, de onde surgem, parágrafo a parágrafo,
imagens de estranhamento, repugnância, crueldade, carinho
e erotismo. Escrito como se fosse “uma caixa dentro de uma
caixa, dentro de uma caixa” (Ibid, p. 68), o conto toca o me-
nos, o pouco, o nada, uma “existência mínima”. Tão peque-
nina e, por isso mesmo, completa e irredutível. Concentrado
naquela pequenez, o riso bestial, delicado e inclassificável de
Pequena Flor perturba etnógrafo e leitor “como só home[ns]
de tamanho grande se perturba[m]”; perturba porque é riso
de amor: “e amor é não ser comido” (Ibid, p. 75).
A menor mulher do mundo de Clarice, as caixas de Duchamp
e de Bispo do Rosário, os brinquedos eróticos de Márcia X,
os mundos liliputianos esculpidos em agulhas e alfinetes por
Willard Wigan, o pensador alemão de letra minúscula e cole-
cionador de brinquedos são uma pequena amostra da cole-
ção de imagens recolhidas por um pesquisador — ao modo
da peça do “Corcundinha” —, que aposta nas ações de cole-
cionar e miniaturizar e no cruzamento de escritores e artistas
com o universo da infância.

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Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 335


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Em torno de coleções e miniaturas ... | Francisco Camêlo 337


A torre destroçada de Hugo
von Hofmannsthal
Alessandra Affortunati Martins Parente
aamparente@gmail.com | Un. do Estado de São Paulo
A torre destroçada de Hugo von Hofmannsthal

Claramente inspirada na peça A vida é sonho, de Calderón de


la Barca (1635/2008), traduzida para o alemão pelo próprio
Hofmannsthal, A torre, composta de cinco atos, transcorre
num reinado na Polônia, com ares do século xvii. Trata-se
de um cenário idílico que resgata esse passado, apontando
para impasses vividos principalmente na Europa pós-guer-
ra. O mote trazido pela peça de Hofmannsthal é claramente
edípico, e o drama molda o filho conforme a figura de Kaspar
Hauser, o menino europeu conhecido por ter sido privado
de tudo aquilo que poderia torná-lo humano. Suscitando in-
certezas quanto a sua índole, Sigismund torna-se quase um
animal em razão de decisões arbitrárias do pai, o rei Basilius.
Os terrores impingidos ao próprio filho pelo mais alto repre-
sentante da corte colocam questões para o mundo civilizado.
Rituais e cerimoniais que compõem a sofisticada rotina da
vida palaciana aparecem, nessa peça, em sua versão brutal,
ao passo que em Sigismund conserva-se uma humanidade
oriunda justamente de sua estrutura não-humana. O con-
fronto do príncipe Sigismund com o pai abre um campo de
dúvidas sobre a linguagem e a cultura, colocando o especta-
dor num horizonte ético e estético indefinido.
Fruto de um parto que lhe custou a vida da mãe, Sigismund
encarna o terror aos olhos de Basilius, já que leituras visio-
nárias dos astrólogos da época haviam previsto que o futu-
ro príncipe lhe roubaria a coroa. A fim de preservá-la, o rei
tranca Sigismund em uma torre, tendo como único contato
humano Julian, seu guardião. Tempos depois, sentindo os
efeitos psicológicos da culpa e o estremecimento da legitimi-
dade do seu poder, Basilius acredita que a razão disso pode
estar na decisão de ter prendido o próprio filho, e decide fa-
zer um teste para verificar a capacidade soberana de Sigis-
mund como herdeiro do trono após a sua morte. Sob efeito
de uma substância química que o coloca em estado de sono,
Sigismund é sequestrado e levado para o castelo do seu pai,
onde acorda príncipe.
Como na peça do dramaturgo espanhol, a ideia da prova pre-
via que, caso os potenciais aristocráticos naturais do príncipe
não fossem identificados pelo rei, ele seria devolvido à torre,
ficando apenas com a sensação de que tivera um lindo so-
nho. Mas na peça de Hofmannsthal, diferentemente daquela
escrita por Calderón de la Barca, esse final não se cumpre.
Diante do trauma de descobrir as raízes de sua história, Sigis-
mund procura integrar sua experiência na torre com os acon-
tecimentos subsequentes no palácio, constatando que sua
falta de aptidão para o trono não é natural ou parte das linhas
do destino, mas decorre dos terríveis atos do rei. Descoberta
que o revolta e o lança em um horizonte afetivo complexo e
mais elaborado que o de seu pai. Do ponto de vista aqui assu-
mido, a principal diferença entre os dramas de Calderón e de
Hofmannsthal centra-se nessa rebelião do filho contra o pai.
Cumpre observar que este drama ganhou duas versões dife-
rentes: uma escrita em duas partes entre 1923 e 1925 e outra
em 1927, publicada pela S. Fischer Verlag, na qual os três atos
finais surgem completamente recém-escritos. É crucial assi-
nalar, para fins deste estudo, as principais alterações sofridas
na segunda versão. Enquanto na primeira, Sigismund é fatal-
mente ferido no final, transferindo seu governo para as mãos

340
de um rei ainda criança, o que simbolizaria um reino feliz,
na segunda, o pérfido rebelde Olivier mata traiçoeiramente
Sigismund. Em vez do rei ingênuo, promessa de felicidade, o
que prevalece aqui é o poder anárquico e incontrolável nas
mãos dos homens.
Para muitos críticos, o cenário da peça alude à crise extrema
de toda civilização europeia contemporânea de Hofmanns-
thal. Drama em que política e psicologia são indissociáveis,
A torre expõe as ruínas de uma ordem despojada de legiti-
midade e longe do anelo da harmonia mundi, almejada por
Carlos v (1500-1558), imperador do Sacro Império Romano-
-Germânico. Herdeiro dos reinos de Castela, Aragão e Navar-
ra — atuais Portugal e Espanha — e da Casa da Áustria, entre
vários outros territórios, Carlos v ansiava criar um império
universal. Com o intuito de adotar o cristianismo de Eras-
mo de Roterdã, que criticava os abusos do clero e propunha
vias conciliatórias com o protestantismo, Carlos v acabou
perdendo o apoio da Igreja, e o ansiado “universalismo eu-
ropeu” se esfacelou. Nas análises de Walter Benjamin e Otto
Maria Carpeaux, os constantes paralelos entre A torre de Ho-
fmannsthal e o drama A vida é sonho de Calderón de la Barca
visam resgatar esses conflitos ancestrais reencarnados em
cenários históricos do começo do século xx. Ou seja, é esse
anacronismo suscitado pela peça e exercitado de maneira
fértil por Benjamin (1926/1972 e 1928/1972) e Carpeaux (1947)
que pode mostrar analogias e cruzamentos entre o Barroco
espanhol, que ganhou do “universalismo europeu”, e o Im-
pério Austro-Húngaro do início do século xx. Assim como
a arte barroca expõe a corrosão de um modelo humanista e
europeísta, isolando o príncipe em seu estado de melancolia
diante de um mundo que desaba, o príncipe da monarquia
parlamentar austro-húngara, Francisco José I, sabe que seu
posto é um engodo e que os rituais palacianos são farsescos.
Soterrada pelos destroços da Revolução Francesa, a lógica
do Ancien Régime renova-se de forma tirânica, obliterando
perniciosamente a falta de legitimidade e fundamento que se

A torre destroçada de Hugo von... | Alessandra A. M. Parente 341


instaurou no poder.
Sigismund, preso na torre como uma besta selvagem a ser de-
tida, é figura que se aproxima dessa situação concreta na qual
vive Hofmannsthal — a crise da monarquia europeia que cul-
mina no terror da Primeira Guerra Mundial. A peça explici-
ta a fragilidade da autoridade patriarcal moderna na qual se
fundam tradicionais formas de poder. Nas diferentes cenas,
os objetos aparecem destituídos de uma ordem simbólica e
se alastram desconexos por entre ruínas que o grande pai —
o rei — não foi capaz de evitar, ou mais: foi ele mesmo quem
as provocou.
A figura precária de Sigismund expõe a imagem brutal do
rei, assim como os efeitos devastadores da guerra sobre os
“filhos” da pátria exibem as incongruências bestiais da au-
toridade monárquica. Espécie de impostor que subverte a
nobreza do seu posto, o rei Basilius põe a nu os sustentáculos
arbitrários do poder perpetrado pela corte. Por isso, no pa-
norama traçado por Schorske (1988) da Viena fin-de-siècle, a
peça de Hugo von Hofmannsthal (1923-25/2012 e 1927/2012)
retrata de forma alegórica o declínio e a queda do Império
Habsburgo. Personificando o pai na figura do rei Basilius,
Hofmannsthal mostra como ele exclui o próprio filho e ou-
tros súditos da “cerimônia do todo” (Schorske, 1988, p. 41).
Ilegítima, a lei não se sustenta. Com suas vozes abafadas, os
oprimidos rebelam-se, mas a insurgência instintual só pode
desembocar em tragédia. Por outro lado, “uma política da
elegância que sublima o instinto” (Schorske, 1988, p. 41) tam-
bém já se mostra obturada. O crepúsculo do Império Austro-
-Húngaro está anunciado muito antes da sua evidente derro-
cada na Grande Guerra. No drama, os algozes estão na corte
e Sigismund não teme evidenciar essa verdade, comparando
o pai a Satanás e lhe desferindo uma bofetada.
Nesse cenário, os sonhos de Sigismund assopram para o
novo, para a vida desperta. Os sonhos enganosos do rei, por
outro lado, mostram que ele se deixa levar por seus medos in-

342
fantis de ser superado pelo filho, agindo de modo descabido.
Ou seja, a corte se retroalimenta num sonho infindável, sem
ligação com os claros indícios do real.
Esse conceito ritualista da política traz a marca nítida da tradição
habsbúrgica. No crepúsculo do Império Austríaco, o cargo im-
perial, com sua aura de formalismo cerimonial, era o único foco
efetivo de lealdade cívica. Hoffmannsthal pode ter-se inspirado
nessa tradição imperial, mas não se limitou a ela. Em suas peças
e sketchs políticos, ele mostrou que a forma hierárquica por si só
não basta: a forma deve conter a realidade viva de uma cultu-
ra, ou fatalmente se destruirá. Sua mensagem de dessublimação
da arte no “Idílio sobre uma pintura de vaso antigo” continuava
como advertência em sua busca de uma ressublimação da polí-
tica (Schorske, 1988, p. 41).
Diferentemente do rei desenhado por Calderón (1635/2008),
que ainda pode explicar a “precaução cristã” de isolar seu fi-
lho de forma tão cruel e violenta, visando preservar seu reino
do mal, o rei que sai das mãos de Hofmannsthal (1923-5/2012e
1927/2012) perdeu inteiramente sua aliança com Deus e não
tem como negar suas faltas. A diferença entre as versões de
Calderón e Hofmannsthal mostra, então, uma mudança de
perspectiva diante do regime monárquico. Enquanto na obra
barroca de Calderón de la Barca a rebelião palaciana é supe-
rada e o regime é restaurado, a morte do príncipe Sigismund
na peça de Hofmannsthal simboliza a queda da monarquia.
Considerado por Otto Maria Carpeaux representante de um
“mito político” (Capeaux, 1947, p. 214), Sigismund encontra o
logos, extraído de fontes rudimentares, ao se defrontar com a
origem dos males que experimentou.
Sendo a torre símbolo da estrutura política, na peça barro-
ca de Calderón (1635/2008) ela parece encerrar o príncipe
nos dramas de sua alma hesitante e despreparada, tornan-
do-o alheio aos males do mundo. Desiludido e impotente, o
príncipe barroco observa do alto da torre a figurabilidade de
seus sonhos intangíveis. Esse estado letárgico apresentado
por Calderón do começo ao fim da peça muda na versão do

A torre destroçada de Hugo von... | Alessandra A. M. Parente 343


poeta austríaco. Se, no início da peça, o Sigismund de Ho-
fmannsthal é o protótipo da categoria benjaminiana de prín-
cipe barroco, ao se defrontar com a figura do pai, sua ação é
decidida e enfática, o que rompe com a versão melancólica
do Trauerspiel.

Do sonho ao ato: Hofmannsthal e a psicanálise

Sobre a relação de Hugo von Hofmannsthal com Freud1,


Bernd Urban (1978) lembra que, enquanto Theodor Adorno
percebe uma influência decisiva da psicanálise na obra de
Hofmannsthal, Jens considera que, embora evidentes, as in-
vestigações psicanalíticas realizadas por Hofmannsthal não
devem ser supervalorizadas. De qualquer modo, o interesse
de Hofmannsthal pela psicanálise está abertamente declara-
do desde maio de 1904, quando escreve à Hermann Bahr2:
Você eventualmente poderia me emprestar (enviar), apenas por
alguns dias, o livro de Freud e Breuer sobre a cura da histeria por
meio da libertação de uma memória recalcada? Se não, escreva
para mim, por favor, o título correto dele para que eu possa en-
contrá-lo? Eu sei que encontrarei coisas ali que devem me ser-
vir bastante para “A vida, um sonho” (Hofmannsthal, 1904 apud

1  No artigo “Hugo von Hofmannsthal und die Psychoanalyse”,


Renate Langer (2004) discute essa relação, mostrando as ambiva-
lências do autor em relação a Freud.
2  Infelizmente não pude recorrer às fontes primárias para a cita-
ção de correspondências entre Hofmannsthal e seus interlocuto-
res. Embora tenha feito uma ampla pesquisa sobre essas obras no
Brasil, encontrei pouca coisa disponível. Não tive como adquirir
esse vasto material e também não foi ainda possível pesquisa-lo
fora do país, o que me deixa como opção apenas confiar nos bons
autores alemães e austríacos que estudaram a obra do poeta.

344
Twellmann, 2004, p. 179).
Em agosto do mesmo ano, ele novamente escreve a Hermann
Bahr, agora explicitando as razões que o conduzem à litera-
tura psicanalítica: “Trata-se do material que agora mais me
atrai no Vida, um sonho, sim, para dali descer no mais profun-
do fundo do duvidoso reinado da gruta do eu, e lá encontrar
o não-mais-eu ou o mundo” Hofmannsthal apud Urban, 1978,
p. 31). Como diz Urban, é possível reconhecer a psicanálise
como pano de fundo das obras inaugurais de Hofmannsthal,
que estabelecem uma versão coerente entre a subjetividade
e a identidade do filho, essencialmente relacionada à função
do pai.
Esse interesse pela psicanálise é bem visível em Édipo e a esfinge,
releitura da tragédia clássica de Sófocles. O teor da matéria que
Freud extraiu de Édipo-rei para conceber seu conceito de com-
plexo de Édipo é da mesma espécie do colhido por Hofmanns-
thal para Édipo e a esfinge. Mas, numa carta de 15 de novembro de
1920, Hofmannsthal escreve a Moissi: “Algo me deixa novamente
hesitante, depois de longos anos de estranhamento com Édipo e
a esfinge. [...] Conservo-o de forma inteira, fresca na memória e
me mantenho severo e frio contra meu trabalho” (Hofmannsthal
apud Twellmann, 2004, p. 179).
Perguntar sobre o que afasta Hofmannsthal de seus trabalhos
anteriores nos conduz às novas formas estilísticas desenvol-
vidas pelo poeta em A torre. Calderón é resgatado para a ela-
boração de A torre, assim como foi o material soflocliano em
torno do personagem Édipo para a composição de Édipo e a
esfinge. Notas de Hofmannsthal apontam para os territórios
espanhóis de Calderón, coincidentes com sua peça anterior,
e nos quais Sigismund tem “todo o complexo paterno evoca-
do, todo o ódio sublimado. O pai se torna coerção encarnada”
(Hofmannsthal apud Urban, 1978, p. 81). Em A torre, porém,
o príncipe se alça conscientemente contra o rei, rompendo
com o modelo sublimatório da peça anterior. Aliás, é com
A torre que se percebe mais nitidamente o esforço de Ho-
fmannsthal em rasgar sua própria pele para sair de seu eu.

A torre destroçada de Hugo von... | Alessandra A. M. Parente 345


Como define Thomas Mann, no Em memória de Hugo von
Hofmannsthal “A torre, sua peça mais sofrida e caótica, que
ele amava como se fosse seu próprio destino, é o monumento
do embate de Hofmannsthal com o novo, com a revolução,
com a juventude.”. (Mann, 2012, p. 9).
Em sua terceira “Wiener Brief” [carta vienense], Hofmanns-
thal faz menção a duas obras de Freud — “Totem e tabu” e
“Psicologia das massas e análise do eu” —, considerando-as
atuais. As teorias de Trotter e McDougall sobre as massas são
compreendidas por Hofmannsthal com o respaldo empírico
da Primeira Guerra Mundial. Sensível ao problema da sobe-
rania depois do fim do sistema monárquico, Hofmannsthal
desenha a problemática da legitimidade do poder com linhas
dramáticas. O drama (Trauerspiel) não contradiz a tragédia,
mas se inscreve como ajuste da contradição não soluciona-
da na forma trágica. A torre, entretanto, não se encaixa com-
pletamente nas formas do drama, tal como reconhecidas por
Walter Benjamin em Origem do drama trágico alemão. Como
crítica imanente do drama, as belas formas repletas e aparen-
tes (Schein) são destruídas por Hofmannsthal em A torre.
O termo alemão Tat significa ação, mas também quer dizer
crime. A palavra agente (Täter) pode ser interpretada ainda
com o sentido de criminoso. Seguindo o léxico alemão, somos
levados a pensar que aquele que age com autonomia sempre
é um criminoso por trair a lei e sair da condição de submis-
são inerente à heteronomia. Essa perspectiva é confirmada
em “Totem e tabu”, de Freud (1913-14/1996) que introduz a au-
tonomia e a instituição da lei dos homens justamente como
efeito do crime contra a lei do pai primevo. Assim, Hofman-
nsthal está em perfeita harmonia com preceitos freudianos
ao considerar o crime/a ação (Tat) como caminho originá-
rio para o social. É nesse sentido que Twellmann afirma: “A
ação/o crime (Tat) é compreendido por Hofmannsthal como
caminho de uma ‘pré-existência’ denominada como condi-
ção para uma ‘existência’, como um caminho para o social”
(Twellmann, 2004, p. 46). Sem o crime, há tão somente uma

346
existência anterior ao social, e dela se pode dizer: “soberania
espiritual: vê o mundo de cima” (Hofmannsthal apud Twell-
mann, 2004, p. 46). O que falta ao espírito em seu estado so-
berano transcendental é, então, uma existência no mundo,
mais claramente, uma existência histórica.
Mas, aos olhos de Walter Benjamin (1926/1972), a peça do
poeta não se encaixa nem na clássica estética trágica nem
na antiga poética da tragédia. Trata-se antes de um material
pré-trágico, que, portanto, faltaria à tragédia antiga. Ou seja,
a tensão explícita entre corpo e linguagem mapeia uma pré-
-lógica anterior a toda a dialética. Para que haja o trágico, a
trama grega sufocava o elemento dramático, anterior à ten-
são que se desdobra em ações, dando lugar a uma tensão dia-
lógica, que pode ocorrer até mesmo sob forma de solilóquios
infindáveis. No drama barroco, os obstáculos intransponíveis
que configuravam o destino inescapável da tragédia apare-
cem sob forma de coisas. São restos ou vestígios cujos elos se
apagaram, mas que preservam certo testemunho da história.
Ao contrário dos mitos inerentes à tragédia, que se repetem
indefinidamente, trazendo ao espectador aquilo que é cons-
tante, no drama transparece o que é irreprodutível, isto é,
elementos históricos. É isso justamente o que define o dra-
ma como tal. No decorrer dos atos dramáticos, entretanto, os
personagens aceitam o enredo e a face obscura dos aconte-
cimentos como naturais. Nessa defecção estética se encontra
o realismo histórico do drama, cuja expressão máxima está
no soberano e seu Estado de exceção, cujo ato/crime revela a
decisão de instituir outra ordem.
Esses aspectos do drama podem, de fato, ser identificados nas
duas versões de A torre. Na peça reconhecemos a arbitrarie-
dade de Basilius e seu Estado de exceção, assim como o azar
fatal imprevisível, que atinge Sigismund com uma arma. Na
segunda versão há, ainda, as figuras de Julian e Sigismund,
que realizam o destino como círculo que não se fecha. Tan-
to a arma mortal, cujo tiro atualiza afetos, cumprindo a fun-

A torre destroçada de Hugo von... | Alessandra A. M. Parente 347


ção do objeto capaz de materializar potências ameaçadoras
antes invisíveis, como a indeterminação do fim, ou mesmo
a forma aleatória de governar do soberano, apontam para
dramas barrocos. Nos dramas, ao contrário do que se vê nas
tragédias, os acontecimentos não podem ser compreendidos
de maneira encadeada, e existe uma ameaça constante à pró-
pria unidade do enredo. Nesses círculos incompletos é que
irrompe a condição insolúvel do destino. Daí a exigência fei-
ta por Hofmannsthal de que suas diferentes versões fossem
lidas lado a lado, sem que se visse a superação de uma pela
outra. Sem tomar partido de uma delas, como fazem alguns
de seus leitores, o que se tem é justamente um impasse ins-
transponível na modernidade — a questão insolúvel acerca
da soberania.
Olivier personifica justamente essa ameaça da matéria tran-
sitória que traz consigo o poder satânico para as cenas. Ao
final irreconciliável do drama de Hofmannsthal corresponde
a já aludida realidade política e histórica desarmônica da Eu-
ropa pós-guerra. Sobre sua experiência concreta do Estado
de exceção, Hofmannsthal escreve em novembro de 1918 a
Gräfin Degenfeld:
O mundo inteiro cai junto e morre. Em Viena, 2.800 pessoas
morrem de gripe, nós temos quatro pessoas de sete na cama e,
para lidar com isso, ligamos o alarme e logo começa o tiroteio
contra os adversários, uma vez em Brunn, uma vez em Liesing.
São milhares de frotas famintas, de prisioneiros de guerra ao re-
dor, centenas de crimes nascentes nos pequenos lugarejos. (Ho-
fmannsthal apud Twellmann, 2004, p. 54).
Outra cena impactante é relatada por Hofmannsthal a Bur-
ckhardt:
Aqui tudo segue de forma inapropriada demalenpis, sem delon-
gas assassinaram uma criança e a jogaram fora e outros, então,
comeram sua carne sob pretexto de que elas a teriam guardado
para um cachorro — aquilo que uma vez se lia em Michelet so-
bre o século xi como o mais maldoso, o mais tenebroso, o mais
horripilante é exatamente o que se vive aqui. (Hofmannsthal

348
apud Twellmann, 2004, p. 54).
Freud reconheceu a magnitude de um acontecimento como
o assassinato do pai primevo pelo grupo de filhos, cujas mar-
cas inscritas na história da humanidade são indeléveis e seu
esquecimento só reitera a culpa. A história mítica criada em
“Totem e tabu” delineia a origem civilizatória, o que não sig-
nifica rastrear a gênese fatídica de tal fenômeno. Cena sim-
bolicamente reiterada em plano individual ou grupal, o as-
sassinato do pai e o consecutivo poder compartilhado entre
irmãos, mantido pelas leis representativas da figura paterna,
concretamente extinta, aparecem com novas máscaras na
modernidade. Sob as vestes do discurso político, esses confli-
tos re-atualizam questões arcaicas ao mesmo tempo em que
as esconde. O valor da novidade vela rastros maculados do
passado e enaltece medidas de caráter político que eliminem
os indícios do crime e dos desejos originários.
Nesse empreendimento de apagar o mal e o desejo que nos
indicia, reiterado nos diferentes processos de modernização,
os maiores prejudicados são antigos bens culturais e figuras
da tradição, pequenos rastros de antigos atos/crimes. Espo-
liados de seus costumes ancestrais, os homens modernos es-
tão soterrados por uma dívida impagável que os assola numa
profunda e densa melancolia. Diante dos crimes cometidos
numa velocidade extraordinária contra as heranças deixadas
pela tradição, resta a tarefa de fazer dos destroços imagens
alegóricas. Com tais imagens, torna-se visível o frêmito dialé-
tico de tempos contrastantes, e as partes afogadas pelos ven-
cedores da história podem ascender à superfície.
Segundo Twellmann (2004), o desejo de que seu trabalho
não fosse “apresentado/ representado” (darstellt), mas sim
“presentado” (herstellt) aponta para outro anseio do poeta
austríaco: o de que seu texto fosse lido como atual, isto é, im-
bricado no contexto sociopolítico ao qual pertencia. É nesse
sentido que Hofmannsthal apresenta variações de um tema
recente, causando no espectador ou leitor um estranhamen-

A torre destroçada de Hugo von... | Alessandra A. M. Parente 349


to familiar. Mais precisamente: sem pretender conceder um
ar ficcional à realidade, sua intenção é antes provocar, diante
de um cenário estranho e distante, os mesmos impactos que
o indivíduo sofre na sociedade atual. Por isso, no drama idí-
lico de Hofmannsthal, a transfiguração dos poderosos é cla-
ra, assim como a falsidade inerente à manutenção da lógica
social. O espectador contemporâneo à peça, que se defronta
com esses cenários espaço-temporalmente longínquos e si-
multaneamente presentes, reavalia os lugares simbólicos es-
tabelecidos ao seu redor. Colocando em cena o esfacelamen-
to do cerimonial soberano, Hofmannsthal mostra claramente
o estado das coisas: o rei é destituído do poder, e seu lugar
vazio mostra que a corporeidade soberana não era nenhuma
realidade substancial, mas resultado de sua representação
simbólica. Com isso, o drama provoca um estremecimento
na ordem simbólica vigente, dividida em dois corpos: corpo
natural e corpo político. Com o corpo despedaçado, o rei tor-
na-se um pequeno resíduo natural, sem ligação direta com
os símbolos da dignidade. Esse embaralhar entre presente
e passado, ficção e realidade, ação e representação é o que
torna a obra alegórica, oferecendo possibilidades de recons-
tituir um raciocínio crítico sobre aquilo que é atual.
Talvez por essas razões Peter Szondi tenha escrito que Ho-
fmannsthal tratava a própria obra como se ela fosse um es-
tranho. Ou seja, “a apropriação do próprio supõe um alhe-
amento/ estranhamento” (Szondi, 1978/2004, p. 10). Para
ele, o conhecimento da “indisponibilidade do que é pró-
prio” ou essa “dificuldade insuperável” de apreender um eu
coeso corresponde a uma entrega à alteridade, com a qual
uma transformação é libertada. Há uma coincidência entre
a intenção nutrida por Hofmannsthal de se tornar outro ao
escrever e seu desejo de ser lido por pessoas que ele nunca
tinha visto com os próprios olhos, pessoas cujo endereço ele
desconhecia. Esses leitores que dão vida ao texto não o des-
vendam de acordo com as intenções originárias do autor ao
escrevê-lo, mas o traem. A traição — mais uma vez o Tat — é,

350
para ele, a melhor forma de recepção que o autor de um texto
poderia desejar.

Benjamin, leitor de Hofmannsthal

Só a posterioridade descobriu, a partir dos escritos de Walter


Benjamin sobre o drama barroco e, mais diretamente, sobre
as duas versões da peça, que o poeta vienense já estava inseri-
do em outros meios linguísticos, distantes do classicismo. Em
A torre, Hofmannsthal está mais afinado aos conceitos ben-
jaminianos sobre o drama barroco. Do simbólico ao alegóri-
co, do soberano à criatura, do poder ao sofrimento do mártir,
fica claro que os críticos que se pautaram nas categorias es-
tabelecidas na Poética de Aristóteles estavam enganados em
suas análises sobre as peças de Hofmannsthal. Um drama
barroco, isso sim; todavia, um drama barroco que embaralha
as próprias categorias do Barroco pós-Reforma. Estudiosos
da obra de Hofmannsthal, como Gerhard Austin (1992 apud
Twellmann, 2004), ponderam que a última versão de A torre
não pode ser encaixada nem mesmo nas próprias categorias
extraídas da obra de Hofmannsthal. De mais a mais, seu es-
forço foi desvencilhar-se de categorias pré-existentes, dando
vazão à demora na dedicação à matéria dessa peça. Essa au-
sência de conceitos encerrados, aliás, é o elemento inaugural
dessa peça no campo da estética. As resenhas críticas de Wal-
ter Benjamin (1926/1972 e 1928/1972) sobre A torre provam, de
todo modo, que a obra de Hofmannsthal está mais alinhada
aos dramas do barroco do que a outros gêneros teatrais.
Para Benjamin (1926/1972), a primeira versão de A torre con-
trapõe-se à peça de Calderón de la Barca, que contorna inte-
riormente o todo, apresentando a mais alta tensão barroca

A torre destroçada de Hugo von... | Alessandra A. M. Parente 351


e sua matéria deglutinadora do real. Na versão de Hugo von
Hofmannsthal, o poder/a violência (Gewalt) patriarcal anti-
natural encarnam, ao contrário, o próprio inominado martí-
rio do príncipe Sigismund. Nos limites da nova “cena onírica”
construída pelo poeta vienense, a cega criatura não se deixa
desgovernar — como ocorre na versão de Calderón —, deten-
do seu sofrimento diante do torturante tribunal que a ele se
impõe. Basilius deixa de ser o tradicional fundador da razão
do Estado, para se tornar um arbitrário e ilegítimo governan-
te que pretende alçar tardiamente seu filho ao poder, visando
silenciar a rebelião instaurada no reino que comanda. Rom-
pendo a tradição espanhola de Calderón, que subjuga o filho
à arbitrariedade do governante, o personagem Sigismund de
Hofmannsthal torna-se o “rei da revolução” (Carpeaux, 1947,
p. 218). Ele assume uma posição de embate, e enxerga os hor-
rores cometidos pelo pai, o que o leva a esbofeteá-lo, dizen-
do: “Quem é você Satã, que roubou meu pai e minha mãe?
Você é legítimo?” (1923-5/2012)3.
É precisamente nesta passagem do confronto entre pai e fi-
lho que se observa uma reviravolta na peça de Hofmannsthal
em relação à construção predominantemente onírica de Cal-
derón. Daí ser possível a Walter Benjamin comparar: onde o
sonho era um espelho côncavo na peça barroca espanhola,
refletindo uma interioridade imensurável como forma de
acesso transcendental ao sétimo céu, o sonho apresentado
por Hofmannsthal é acesso ao real, a partir do qual sobrevém
um mundo inteiramente desperto. “O sonho como ponto
crucial dos acontecimentos históricos”, diz Walter Benjamin
sobre A torre, “este é seu aspecto formal fascinante e estra-
nho” (Benjamin, 1926/1972, 31).
É interessante lembrar que a escolha da figura de Kaspar
Hauser para compor o personagem de Sigismund na peça
não é casual. Alexandre Mitscherlich (1950/2016), em “Édipo
3  As citações do drama A torre estão sem paginação já que seguem
a versão e-book JazzybeeVerlag com variação de páginas conforme
o tamanho adotado da letra e da plataforma para a leitura do livro.

352
e Kaspar Hauser”, supõe que, nos tempos em que o domínio é
da massa, todos estão um pouco no lugar de Kaspar Hauser;
ou seja, o complexo de Édipo teria sido substituído por um
complexo de Kaspar Hauser, no qual o abandono é o traço
central. Ele denuncia o estado de desamparo no qual se en-
contra a Europa, destituída de um pai legítimo. Mitscherlich
percebe que o enorme sacrilégio cometido contra Hauser
atingiu a humanidade como um todo, e Hofmannsthal sabia,
ao evocá-lo, que Kaspar Hauser não era um caso único, mas
modelo civilizatório incrustado, ainda que de forma invisível.
Se o drama edípico freudiano era o caso exemplar de uma
subjetivação no naturalizado contexto burguês da família
conjugal, o caso de Kaspar Hauser introduz a patogênese da
orfandade. Essa privação é exemplificada por Hofmannsthal
no caso de Sigismund, quando este se auto-intitula príncipe
por “direito de natureza”. Fora sua natureza, isto é, seu san-
gue, tudo dele foi usurpado pelo rei. A usurpação, porém, não
se limita à mãe — como ocorre no clássico conflito edípico
freudiano. Não natural não é aqui a violência do poder pa-
terno que se impõe ao filho como lei e proibição diante do
desejo pulsional natural ao qual o filho deve renunciar; não
natural é muito mais a sonegação da paternidade, a recusa do
rei de tomar para si seu destino e se comportar como pai de
seu filho. De onde frases da peça como estas: “Onde está meu
pai fisicamente, que me deixou abandonado! Sim, ele fez isso
comigo! Eu estico as mãos e grito em sua direção: pai!” (Ho-
fmannsthal, (1923-25/1927, 2012).
Esse apelo só pode ser feito no interior da lógica do trauma,
isto é, quando Sigismund reencontra seu pai e passa a perce-
ber nachträglich tudo o que dele foi sonegado. Por isso, seu
chamado pelo pai não é de modo algum um lamento diante
da coerção da proibição incestuosa. O que é negado ao filho
em A torre é claramente a o gesto coercitivo, e essa absten-
ção aparece como obra inexplicável e incompreensível. Com
a negação de sua paternidade, Basilius permanece culpado,
e seu filho, privado de um direito natural. Tratado como ani-

A torre destroçada de Hugo von... | Alessandra A. M. Parente 353


mal, Sigismund tem um acesso muito precário à linguagem.
De todo modo, o que está em xeque é exatamente a validade
da linguagem e da cultura como contraponto da barbárie. Há
uma dubiedade que atravessa a peça, e o espectador não tem
certeza se, na qualidade de “animal”, Sigismund não teria se
tornado mais humano do que seu cultivado e supostamente
sagrado pai. Essa dubiedade insolúvel persiste em ambas as
versões, pois a insurgência do filho não leva a nenhuma so-
lução, já que ele também é dominado por seus impulsos que,
embora justificadamente rebeldes, mostram-se politicamen-
te inábeis.
Por isso, Walter Benjamin compreende a esfera do ritual em
A torre como uma “tensão entre corpo e linguagem — entre
ação e palavra — [...] resolvida de forma expressivamente
pura” (Benjamin, 1926/1972, p. 32) e de onde nasceria uma
disputa constante num eterno retardar, que traz um elemen-
to esporádico e variante aos maus construídos caminhos dra-
máticos. O ritual do qual o drama emerge é sempre inaugu-
ral, pois instaura um novo campo linguístico na indissolúvel
tensão do campo da palavra, que faísca entre o fazer e o falar
polarizados. Essa palavra do drama não é a mesma usada nos
debates públicos nem aquela que procura sinalizar o inex-
primível, mas se trata antes da palavra que está no lugar do
gesto, sem que seja indicação representativa de outra coisa.
Essa peça é interpretada no limiar entre matéria e linguagem,
corpo e palavra, mostrando precisamente os limites da cultu-
ra. Com uma peça que retira o elã de seus personagens, Ho-
fmannsthal apoia os objetos do drama diante dos olhos do
espectador, dividindo suas dúvidas e incertezas com o mais
comum dos homens — cada um dos espectadores que foi
assistir à peça. Em vez de ações éticas modelares, a obra ex-
põe a condição de criatura do personagem e os motivos que
o conduzem à culpa e ao desamparo, sendo o herói um már-
tir. Ao contrário dos dramas do barroco, porém, Sigismund,
que pode ser também considerado mártir, rebela-se contra o
algoz, colocando em xeque a passividade melancólica e a pa-

354
ralisia obsessiva que marcam os heróis dos dramas barrocos,
analisados por Walter Benjamin (1928b/1991).
Esse homem-criatura sob a influência de manifestações cor-
póreas, como emoções, agitações da alma ou excitações, tem
seus atos como derivações puras da afetividade. Como nos
dramas do barroco, Walter Benjamin reconhece nos balbu-
cios e nos gemidos inarticulados de Sigismund todas as fe-
ridas do mártir, que recusa a linguagem para dar vazão ao
lamento (Klage). O lamento é o que precede a sonoridade
musical, isto é, quando a linguagem articulada pela lógica
coerente se esgota, nascem os diferentes ritmos musicais, tão
próximos de gemidos e lamúrias. Marcas corpóreas introdu-
zem também outra linguagem, avessa às palavras, e com ela
Hofmannsthal avança no interior do gênero dramático. Se a
linguagem convencional se estabelece como juízo, o corpo é
a condição de sua possibilidade, mas tal condição permane-
ce quase sempre afogada no esquecimento.
O fato de Sigismund ser capaz de reconhecer a falácia na qual
procuram enredá-lo, e reagir de maneira rebelde contra ela, é
o que inverte os preceitos estilísticos e éticos do drama barro-
co. Diante das mentiras do rei, que, se aceitas, invalidariam o
“sonho” de Sigismund como expressão do real para colocá-lo
no lugar da mera ilusão, o personagem entrevê a forma cáus-
tica e os duros indícios da verdade, respondendo à altura.
Daí ser possível afirmar que o otimismo cristão de Calderón,
impeditivo da emergência disruptiva, é abandonado por Ho-
fmannsthal, que se compromete com a balbuciante verdade
enunciada nos próprios intervalos do real. Com Sigismund,
os sonhos não caem mais dos céus, mas se erguem da pro-
fundidade bruta da terra.
Esses aspectos aparecem ainda mais acirrados na segunda
versão de A torre, na qual Hugo von Hofmannsthal mostra
que “a vida não é mais um sonho” (1928/1972, p. 98). Sem o
rei-criança, que salva os obstáculos apresentados na primei-
ra versão, a peça concentra algo de abismal. Modificado o

A torre destroçada de Hugo von... | Alessandra A. M. Parente 355


final dessa segunda versão, o que se impõe, então, é o prín-
cipe Sigismund como obra evocativa de um poder sinistro,
que se manifesta para além de qualquer intenção deliberada.
Polo provocador dos mais incontroláveis e demoníacos po-
deres, Sigismund introduz o terror quando tenta justamente
denunciá-lo. Seus murmúrios, acompanhados do seu olhar
estrangeiro, igualam-se à linguagem visionária ou enganosa
das crianças, quando impactadas pelas terríveis inverdades
dos adultos. De um depósito de sonoridades originárias da
língua, onde ainda não se esboça nada muito elaborado ou
sublime, o poeta retira as forças mais poderosas da peça. Lu-
tando para compô-las, sem falseá-las com belezas que obs-
truam seu caráter precário, Hofmannsthal apenas direciona
a palavra para margens ctônicas. Graças à recusa da paterni-
dade protagonizada por Basilius e do exílio na torre imposto
pelo pai, o processo de se tornar humano é recusado a Sigis-
mund, “que anda nu, com uma velha pele de lobo em torno
de seu corpo” e se pergunta: “O que é isso um humano —
como sou um humano?” (1923-5/2012). Crustáceos, vermes,
sapos, besouros, víboras aparecem como seus semelhantes:
“Eu vejo um bicho agachado no chão”, e diante de um porco
morto, lamenta: “Eu não ‘consegue’ separar mim com eles”.
Olhando para o bicho, que estava pendurado e estripado em
uma madeira, pergunta: “Mãe, onde está o meu fim e onde
está o fim do bicho?” (1923-5/2012e 1927/2012).
Essa passagem mostra, ao contrário do que se poderia supor,
uma consciência profundamente humana, não reificada pe-
las amarras da cultura. Sigismund identifica-se com a natu-
reza, é empático ao sofrimento do bicho pendurado e estri-
pado, coisa que os homens ocidentais não são mais capazes
de sentir. Não se trata, portanto, de observar apenas aquilo de
que Sigismund foi privado, mas de apontar exatamente para
a selvageria que também é inerente ao mundo civilizado.
Hofmannsthal procedeu dessa forma porque nunca confiou
plenamente nos poderes das palavras, esteios da cultura. Ele
afirma, “eu sempre depositei esforço para me delimitar, para

356
não me perder. [...] Todas as palavras são vórtices que giram
em torno de mim e me deixam encará-las num buraco sem
fim” (Hofmannsthal apud Twellmann, 2004, p. 189). Não é
ousado dizer que o trauma se ingere nesse momento em que
a palavra se apresenta enquanto vórtice, rondando por entre
as coisas sem fixar-se nos objetos.
Por fim, é importante destacar que o cenário de Hofmanns-
thal não conhece nenhum papel feminino significativo. O
papel masculino secundário de Julian entra no lugar da ação
amorosa, em geral executada por mulheres. O personagem
ama Sigismund a seu modo, o que quer dizer que nesse amor
preserva-se uma dimensão utilitária. Enquanto Julian ama
Sigismund, ele busca simultaneamente se beneficiar dessa
relação naquilo que tange seus anseios pessoais. Como vin-
gança e insurgência da materialidade, das ligações temporais
e da maternidade, Hofmannsthal indicou o atentado fatal a
Sigismund. Elas alcançaram-no com um punhal depois que
ele manifestou a ameaça dos homens por meio das coisas.
Segundo Twellmann (2004), a perda do pai é, para Hofman-
nsthal (1923-25/ 2012 e 1927/2012), uma perda que ameaça a
humanidade. O uso que Twellmann faz do conceito de massa,
esse “aterrador” e “perigoso” conceito, descoberto, sobretu-
do, durante a Primeira Guerra e pelas décadas subsequentes,
mostra um medo diante do disforme, que também é desper-
tado diante da palavra matéria. O termo matéria, por sua vez,
interconecta-se ao termo mãe, presente nesta “assustadora”
linhagem. Na primeira versão de A torre, Sigismund alude a
duas figuras femininas, dizendo: “Você é jovem e mais bonita
do que feia, e não obstante me faz estremecer. Mas não temos
nada de diferente além daquilo que poderia nos tornar mãe,
do que esse gênero, e isso é a matéria com a qual o mundo foi
feito.” (Hofmannsthal, 1923-25/2012 e 1927/2012).
Numa análise clássica freudiana, o drama de Hofmannsthal
poderia ser considerado o reconhecimento de que a falta de
recursos simbólicos e a precária linguagem de Sigismund

A torre destroçada de Hugo von... | Alessandra A. M. Parente 357


derivariam da impossibilidade de diferenciar seu eu daquilo
que o cerca. O que lhe faltaria, além do acesso ao simbólico,
seria a falta — há uma falta da falta, princípio simbólico da di-
ferença que o distanciaria da materialidade para delimitar o
ego. Essa tese é bem conhecida entre psicanalistas — o mun-
do da mera necessidade é um mundo no qual o humano não
articula seu desejo. O que a peça de Hofmannsthal acrescen-
ta a ela é justamente a humanidade inerente à animalidade
do homem e, inversamente, a barbárie explícita da sociedade
cultivada. O que esse drama revela de forma surpreendente
é a validade da revolta animalesca de Sigismund como algo
pertencente ao mais fundamentalmente humano. O não sim-
bólico, portanto, estaria depositado na série de cerimoniais
inconsequentes e compulsiva e automaticamente repetidos
pelas figuras de poder. O balbucio precário e o gesto desacul-
turado de Sigismund, ao contrário, são traços humanos que
merecem escuta e atenção apuradas.
De acordo com Twellmann, em A torre há uma espécie de
insurgência política da materialidade e, por conseguinte, da
maternidade, representada pelas imagens de rebelião das
massas e pelas partes orgânicas da peça. As consequências
psíquicas e sociais da opressão do elemento material e femi-
nino tornam-se evidentes no personagem de Sigismund. Ao
contrário do discurso mais comum, é sem a mãe — ou sua
função — que o horror se instaura. No entanto, Basilius quer
perpetrar a estrutura patriarcal e seu legado ao filho, dizendo
a Sigismund: “De pai quero lhe chamar, pai de todos”. No ins-
tante em que expressa sua recusa em compactuar com o ter-
ror promovido pelo pai, Sigismund estilhaça sua aura e abala
toda a estrutura patriarcal na qual o poder soberano do rei se
sustentava.
Desde as duas guerras mundiais e os modelos civilizatórios
sustentados pelos modelos capitalistas com todos seus apa-
ratos técnicos e econômicos, precisamos de outras bases
míticas para compreender impasses psíquicos e sociais. O
Sigismund de Hofmannsthal traz essa outra dimensão míti-

358
ca para a psicanálise, bastante coerente com os problemas
apresentados nas sociedades contemporâneas; ao invés dos
filhos com traços do Édipo e seu desejo incestuoso, temos
essa figura desamparada e desaculturada — seu desenho
segue as linhas de Kasper Hauser em toda sua precariedade,
dor e potência.

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360
Sobre os autores

Ricardo Pinto de Souza


É professor adjunto de Teoria Literária na Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro. Coordena o Laboratório de Edição do
PPG em Ciência da Literatura (https://labedicao.com) e seus
projetos, o Fortuna (que abriga o encontro anual Benjaminia-
na) e o editorial Argó.
Patrick Gert Bange
Possui graduação em Letras (Português e Literaturas) e mes-
trado em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é doutorando em Teoria Lite-
rária também pela UFRJ. É membro-associado do Centro de
Pesquisas Outrarte – psicanálise entre ciência e arte, do IEL/
UNICAMP.
Beatriz Malcher
É doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no
qual estuda a formalização estética das questões referentes
à dialética civilização-barbárie no livro Os Anéis de Saturno,
de W.G. Sebald. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura da referida instituição, no qual estu-
dou as formas assumidas pelo pensamento crítico na con-
temporaneidade e sua relação com a reprodução da técnica
digital, estudo no qual se baseia o presente artigo.
Tomaz Amorim Izabel
É bacharel em Estudos Literários pela UNICAMP e douto-
rando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP.
Pesquisa a obra de Kafka e de Walter Benjamin a partir da
perspectiva das representações do tempo na Modernidade.

361
Traduziu Kafka e Walt Whitman para o português. É poeta e
assina uma coluna de crítica cultural na Revista Fórum.
Cristina Susigan
É doutora em Educação, Arte e História da Cultura pela UPM
Com a tese intitulada: “A Sobrevivência das Mulheres de
Johannes Vermeer na Arte Contemporânea”, recorre à meto-
dologia warburguiana para questionar a “sobrevivência” das
imagens. Publicou na Revista Estúdio, da Univesidade de Lis-
boa, onde através da artista argentina Nicola Constantino, faz
o diálogo entre os grandes mestres do passado no presente.
Pedro Alegre
Doutorando em Teoria Literária pelo PPGCL da UFRJ/bolsis-
ta do CNPq.
Isabela Pinho
É graduada e mestre em Filosofia pela Universidade Federal
Fluminense, e doutoranda em Filosofia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, com bolsa CNPq. Sua pesquisa
consiste na interseção entre linguagem e lei a partir de Gior-
gio Agamben, Walter Benjamin e Jacques Lacan. Foi pes-
quisadora nos arquivos de Walter Benjamin em Berlim e do
departamento de literatura comparada da Universidade de
Munique (LMU). É membro da Associação Americana de Li-
teratura Comparada (ACLA) e integrante do laboratório “Es-
critas – filosofia, gênero e psicanálise” da UFRJ. Suas publica-
ções mais importantes são “Greve, violência e lei: debates em
Benjamin e Agamben” e “Por uma puríssima eliminação do
indizível na linguagem: de Walter Benjamin ao Bartleby de
Giorgio Agamben”.
Daniel Melo Ribeiro
É doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
Membro do Centro Internacional de Estudos Peircianos. Re-
alizou estágio de pesquisa no Geomedia Lab da Universidade
Concordia em Montreal/CA, com bolsa do Emerging Leaders
in the Americas Program (ELAP), concedida pelo Global Af-

362
fairs Canada. Interesses de pesquisa: visualização de dados,
design de informação, semiótica e cartografia.
Carolina Peters
Graduanda em Letras – Literaturas de língua portuguesa pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, monitora bolsista do
Departamento de Ciência da Literatura.
Erika Santos
Bolsista CAPES e mestranda em Artes Cênicas pelo PPGAC-
-UFSJ. Encontra nos textos de Walter Benjamin uma impor-
tante contribuição para o desenvolvimento e entendimento
do fazer teatral. Procura investigar a criação de dramaturgias
por meio de um corpo que dança com suas memórias. Licen-
ciada (2014) e Bacharela ( 2015) em Teatro pela Universidade
Federal de São João del-Rei integra o GPAC – Grupo de Pes-
quisa em Artes Cênicas da supracitada universidade.
Nicholas Andueza
É doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ, com
pesquisa sobre fotogenia e cinema de arquivo. É mestre em
Comunicação – Cinema pela PUC-Rio. É professor de cinema
em cursos de curta duração em Nova Friburgo – RJ. Além de
artigos na área de Comunicação, publicou também artigos e
resenhas sobre artes plásticas na revista Dasartes. É monta-
dor de filmes e editor audiovisual.
Lilian Alves Gomes
Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional –
UFRJ, pesquisadora do Centro de Estudos Sociais Aplicados
da Universidade Cândido Mendes – CESAP|UCAM
Ivan Capeller
É técnico de som direto e professor da Escola de Comunica-
ção da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e
membro permanente do corpo docente do Programa de Pós-
-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI-UFRJ).

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Ana Carolina Martins
É doutoranda do Programa de Pós-graduação em Filosofia –
PPGF da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde de-
senvolve a pesquisa intitulada Linguagem e gesto: categorias
políticas em Giorgio Agamben. É também Professora do En-
sino Básico Técnico e Tecnológico do Colégio Pedro II e atua
como pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Linguagem, Infância e Filosofia (NEPLIF-CPII).
Cláudio Guilarduci
É professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em
Artes Cênicas PPGAC - da Universidade Federal de São João
del-Rei. Pós-doutorado em Artes Cênicas (2011), doutorado
(2009) e mestrado (2001) em Teatro pela UNIRIO. Graduação
em Filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei/
UFSJ (1995). Coordenador do Laboratório Ambulatório. Diego
Domingos é estudante de Teatro pelo Programa de Pós-gra-
duação em Artes Cênicas (UFSJ), estudante de Licenciatura
em Teatro e Bacharel em Teatro pela Universidade Federal de
São João del-Rei. Integra o Grupo de Pesquisa Araci: teatro e
contemporaneidade.
Diego Domingos
É estudante de Teatro pelo Programa de Pós-graduação
(UFSJ), estudante de Licenciatura em Teatro e Bacharel em
Teatro pela Universidade Federal de São João del-Rei. Integra
o Grupo de Pesquisa Araci: teatro e contemporaneidade.
Verena Seelaender
É mestre em Ciência Política (UFF) e doutoranda em Filoso-
fia (UERJ).
Francisco Camêlo
É Doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PU-
C-Rio), onde obteve o título de Mestre (2017), pelo mesmo
programa de pós-graduação, com bolsa FAPERJ Nota 10. É
pesquisador da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio.
Alessandra Affortunati Martins Parente
Psicanalista e pós-doutoranda pelo Departamento de Filoso-
fia da FFLCH-USP (bolsa FAPESP), membro do Laboratório
de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise LATESFIP-USP e do
GT de Filosofia e Psicanálise da ANPOF.
PAPEL Papel Pólen 80gr/m²
FONTE Utopia Std

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