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Dossiê | Walter Benjamin, cultura e crítica em


tempos de novas barbáries
Eduardo Rebuá 
30 de abril de 2019

1.2K

(Arte Andreia Freire / Foto Reprodução)

Walter Benjamin (https://revistacult.uol.com.br/home/tag/walter-benjamin) como


caixa-preta do século 20. É impossível pensá-lo sem imagens num trágico momento
de derrotas das formas dialógicas e, por isso, solidárias da experiência. A caixa-preta
nos parece um duplo signo: um campo a ser prospectado no movimento de
“decifragem” de enigmas (fantasmagorias) e ao mesmo tempo um guardador de
memórias e sentidos de uma temporalidade.

Em 2020 teremos os 80 anos de sua morte e na última década, proporcionalmente ao


seu tamanho, tivemos sintomaticamente no Brasil poucos seminários, congressos
sobre o filósofo que figura entre aqueles que mais penetração têm nas diversas
esferas da vida acadêmica, da História às Artes, da Filosofia à Arquitetura, da
Literatura à Sociologia. A despeito dos importantes grupos de pesquisa e trabalhos
sobre Benjamin, da reedição de suas obras ou daquelas tecidas a partir delas, temos a
impressão de que há ainda incisivos desafios em fazer este colecionador dos
estilhaços da dialética caminhar, numa flânerie pelos trópicos, mais perto da vida fora
das bancas de pós-graduação e dos periódicos-commodities.
Somos um canteiro de obras que se especializou e “espacializou” num tipo de
barbarismo bovarista edulcorado capaz de matar, duas vezes ou mais, jovens negros
sobreviventes de chacinas, museus resistentes a incêndios
(https://revistacult.uol.com.br/home/museu-nacional-rj-cidade-entre-ruinas/),
mulheres violentadas que denunciam abusos de seus corpos e desejos, ecossistemas
que não pediram para ser guarda-volumes de rejeitos minerais, parlamentares do
contrapelo que quase sozinhos denunciam as máfias de estimação e os mitos de
ocasião, artistas que insistem em nos lembrar do capitão do mato, da mesquinhez
sudestina, de Marighella, de nosso conservadorismo para inglês não ver, de Paulo
Freire em Angicos e no Chile, da poesia ainda não usurpada dos derrotados das vielas.
Matamos a morte a ponto de a reificarmos.

Teremos, os intelectuais, transmutado Benjamin em totem, em souvenir de Frankfurt?


Sua exímia capacidade de antever perdas e catástrofes nos assombrou a todos como
alguém que tapa os ouvidos quando não mais suporta receber a má notícia? Seus
escritos heréticos endógenos e exógenos ao marxismo, produzidos em recantos vários
e quase sempre em fuga, ainda são desconhecidos de um enorme público, sobretudo
na esfera pública da política, ali onde os autores geniais transitam sob pseudônimos
como hegemonia, revolução, arte, narrativa, sentimento.

Continuamos: se é impossível esgotar um pensador de tamanha amplitude, teríamos


domesticado sua potência crítica, notadamente em relação à modernidade capitalista
burguesa, filtrando em sua diagnose do que vai mal na cultura os anseios
revolucionários dos vencidos? Parece-nos que a um Benjamin exilado no Brasil,
professor universitário na USP a partir do convite de Erich Auerbach, interessaria
sobremaneira, na hora atual, a potência fascista das milícias e dos tribunais que
condenaram Marielle (https://revistacult.uol.com.br/home/tag/marielle-franco), a
estética do manguebeat que brota do legado de Chico Science
(https://revistacult.uol.com.br/home/chico-science-o-homem-que-veio-do-
futuro/), o cinema das favelas que não é o favela movie da indústria cultural, a
elaboração autoritária, sob as bênçãos religiosas, de um passado negacionista que
apaga a ditadura e desloca o nazismo para a esquerda, as cruzes sem nomes, os
jovens negros estrangulados por seguranças negros de supermercados
(https://revistacult.uol.com.br/home/um-chamado-aos-brancos/) que nos eternizam
nos rankings da morte mundo afora.

Talvez o crime contra Benjamin, como num conto de Poe, tenha deixado mais rastros
em relação à última hipótese, diluída na multidão de violências contra aqueles que
não consentem com o labirinto das mercadorias tampouco com sentidos
contrarrevolucionários. Nossa percepção da necessidade de um dossiê sobre Walter
Benjamin, num contexto de fascistização no/do Estado Ampliado brasileiro, maneja a
compreensão mais usual de “dossiê” como pasta de documentos ou portfólio, mas
também como elemento comum em investigações policiais.

Em março de 2010 a CULT publicou um dossiê sobre o pensador em sua edição nº 106
(https://www.cultloja.com.br/produto/dossie-walter-benjamin-cult-106/), a partir
das reflexões de intelectuais como Vladimir Safatle
(https://revistacult.uol.com.br/home/tag/vladimir-safatle), Márcio Seligmann-Silva
(https://revistacult.uol.com.br/home/walter-benjamin-e-a-tarefa-da-critica/) e
Jeanne Marie Gagnebin (https://revistacult.uol.com.br/home/seis-teses-sobre-as-
teses/). Passada quase uma década, vemos a fotografia de um país que negou o luto
sob um estado de exceção exemplar, normatizou colonialidades – estabelecendo suas
memórias oficiais sob a morfologia de um espremedor das classes populares – e
estabeleceu uma violência administrada como modo de vida e sustentáculo das
instituições.
Compreendendo a Erfahrung benjaminiana como a construção coletiva de sentidos
sobre o real, como dimensão ontológica e práxis em corrosão na contemporaneidade;
defendemos que a democracia fantasmagórica brasileira tem sido, sobretudo no
colapso da Nova República, um enigma a exigir do materialismo histórico
interpretações e veredas à altura do Jetztzeit. A democracia fantasmagórica é
mercadoria, o toma lá dá cá e também uma enganosa projeção; uma democracia cuja
resultante quase que invariavelmente é o par invisibilidade/impossibilidade.

Abrimos o dossiê com Maria Rita Kehl (https://revistacult.uol.com.br/home/walter-


benjamin-e-as-cidades/), psicanalista e escritora, uma das mais sensíveis intérpretes
benjaminianas no movimento que apontamos, o de sua tradutibilidade menos erudita
porque colada à experiência como partilha. Em O tempo e o cão: a atualidade das
depressões (2009, vencedor do prêmio Jabuti 2010) escava a temporalidade no
capitalismo em seus vínculos com a experiência buscando compreender os sintomas e
as condições contemporâneas do mal-estar. Em seu artigo apresenta uma narrativa
que ausculta a relação de nosso filósofo com as cidades, trazendo o lirismo-navalha
de Baudelaire como camada. Num exagero anacrônico válido podemos dizer que sem
Benjamin não haveria Paris, bem como o contrário. A cidade que foi objeto, casulo,
biblioteca, medo e sonho ressurge em Kehl com a força das barricadas.

Martha D’Angelo, estudiosa do poeta das Passagens desde longa data, autora de Arte,
política e educação em Walter Benjamin (2006), afirma-se como interlocução obrigatória
nas fronteiras entre filosofia e educação. Na costura dialética entre cultura e
progresso, a filósofa traz-nos um intelectual que não precisa se explicar materialista
porque anticapitalista e narrador-intérprete dos derrotados do tempo como continuum.
Um Benjamin historiador na reflexão de D’Angelo
(https://revistacult.uol.com.br/home/walter-benjamin-cultura-progresso/), que traz
o Brasil dos nossos dias sem vinheta e legenda, o país das tragédias planejadas de
mineradoras, dos massacres justificados de jovens negras/os e pobres, do feminicídio
em profusão que deveria impedir quaisquer consciências tranquilas.

Luiza Amaral em Desempacotando minha biblioteca: montagem, memória e exposição


remexe o gigantesco-pequenino texto publicado em 1931 no Die Literarische Welt
(https://revistacult.uol.com.br/home/walter-benjamin-o-ato-de-colecionar/), num
artigo original marcado por sua habilidade em manejar áreas do sensível como a
História da Arte, a Arquitetura e a Restauração. É da sociedade burguesa que a autora
trata, restaurando – no limite imposto pelo fetichismo e pela alienação – a potência
do ato de colecionar como forma de ver, de perceber, de sentir.

Finalmente, eu radiografo o conceito de fantasmagoria em Benjamin


(https://revistacult.uol.com.br/home/benjamin-e-a-fantasmagoria/) num recorte de
suas investigações recentes acerca do processo de fascistização no Brasil, enfatizando
a relação entre estado de exceção e democracia fantasmagórica. Há nestas linhas uma
reivindicação da crítica antifascista benjaminiana, nunca descolada da diagnose do
capital na modernidade, no movimento sempre complexo de encontrar a distância
certa da crítica, como asseverou o ensaísta em Rua de mão única.

Dizem que caixas-pretas são analisadas por uma equipe de especialistas altamente
preparada. Acreditamos que aqui o esforço foi similar. Em prol da dúvida e da
permanência de Benjamin como problema e trilha.

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Walter Benjamin e as cidades


Maria Rita Kehl 
30 de abril de 2019

135

Asja Lācis e Charles Baudelaire (Arte Revista CULT/ Reprodução)

Um autor que, à maneira dos românticos do século 18, escreveu grande parte de sua
obra na forma de fragmentos. Com exceção da tese sobre o drama barroco, reprovada
pela banca na Universidade de Frankfurt, sua obra se desenvolve na forma do ensaio,
que permite grande liberdade para se abordar um tema de forma fragmentária. Assim
são as magníficas crônicas da Infância berlinense, assim seus ensaios mais conhecidos,
como “O narrador” e “Experiência e pobreza”, assim as dezoito Teses sobre o conceito
de história e, em especial, o belo ensaio sobre Baudelaire
(https://revistacult.uol.com.br/home/meu-coracao-desnudado/), cuja publicação –
que teria rendido algum dinheiro a Benjamin, na época vivendo miseravelmente em
Paris – foi recusada por Adorno e Horkheimer
(https://revistacult.uol.com.br/home/a-inescapavel-dominacao-da-natureza/), já
refugiados nos Estados Unidos.

Outra característica marcante na obra de Benjamin é seu interesse pelas cidades. A


Infância berlinense é rememorada pelo autor na forma de pequenas passagens –
lembremo-nos de que Passagens é o título do grande projeto inacabado de Benjamin,
cujo nome foi inspirado nas galerias comerciais construídas em Paris como parte do
projeto de Napoleão III de modernizar a cidade, executado pelo prefeito Georges-
Eugène Haussmann – e recantos da cidade. A Berlim de Benjamin é toda descrita da
perspectiva da criança míope: atenta aos detalhes, a beleza das cores, aos recantos
secretos do zoológico, aos barulhos produzidos pelo trabalho doméstico no pátio
interno da casa da avó. Também são as coisas pequenas, modestas, que o
impressionam na viagem a Moscou, movido pela paixão por uma jovem comunista,
Asja Lacis. A capital da Rússia comunista comove o viajante através dos detalhes: as
cores dos modestos brinquedos de madeira vendidos nas ruas; o papagaio
empoleirado no ombro da vendedora de roupas íntimas; os bandos de meninos de rua
que perambulam a mendigar pelo centro da cidade. No entanto, através dessa
observação miúda, Benjamin admira a vivacidade das pessoas comuns, engrandecidas
pelas conquistas do primeiro período da vida revolucionária.

Nessa breve intervenção, escolho o ensaio Charles Baudelaire: um lírico no auge do


capitalismo – primeiro texto de Benjamin com o qual tive contato, nos anos oitenta (do
século passado…). É a última série de ensaios escrita por ele, na qual o filósofo,
exilado em Paris, segue as pegadas do poeta em busca dos fragmentos do passado
naquela cidade toda reconstruída de forma monumental por iniciativa do prefeito
Barão de Haussmann, no período napoleônico. De forma análoga ao anonimato
daquele que viria a ser consagrado (postumamente) como o maior poeta da língua
francesa, a publicação dos preciosos ensaios de Walter Benjamin
(https://revistacult.uol.com.br/home/tag/walter-benjamin), enviados para a revista do
Institute for Social Research foi recusada pelos amigos frankfurtianos Adorno e
Horkheimer, que a editavam desde Nova York. Uma prova, a meu ver, de extrema
insensibilidade de parte da dupla, que não ignorava a penúria enfrentada pelo amigo
na capital francesa e também não entendeu a grandeza do ensaio não acadêmico de
Benjamin. Prova também, por outro lado, da desadaptação de Benjamin aos padrões
acadêmicos de pesquisa.

Talvez seja abuso interpretativo imaginar que o interesse de Benjamin por Baudelaire
(https://revistacult.uol.com.br/home/meu-coracao-desnudado/) passe por certa
identificação com a condição em que viveu o poeta. No entanto, é verdade que
Benjamin viveu quase miseravelmente em Paris, para onde fugiu em 1933 e onde
ficou até a invasão nazista. “Vivo na expectativa de que uma mensagem de má sorte
caia sobre mim. Por enquanto, ainda me aguento – exceto pelo fato de que não
consigo me prevenir para o futuro” escreve Benjamin em carta ao escritor Bernard
von Brentano, em abril de 1942.

Durante o regime de Vichy (entre 1940-1944 o governo mudou-se para a cidade de


Vichy, a qual se tornou a capital de fato do Estado francês), aliado dos nazistas,
Benjamin esteve preso por um tempo em um campo de concentração. Voltou a Paris,
pouco antes da iminência da chegada das tropas de Hitler à cidade, quando demorou a
fugir com um pequeno grupo guiado pela jovem combatente Lisa Fitko. Ao chegar a
Port Bou, limite da França com a Espanha, o grupo recebe a notícia de que a fronteira
tinha sido fechada. Sem mais nenhuma esperança, Benjamin toma em seu quarto uma
cápsula de morfina que levava para a possibilidade de ser capturado. Na manhã
seguinte a fronteira foi reaberta. O corpo de Walter Benjamin foi sepultado no
pequeno cemitério da cidade catalã. O trágico episódio faz lembrar o comentário
familiar sobre o então menino “azarado”. Perseguido pelo “corcundinha”, dizia
carinhosamente a avó.

A má sorte de Baudelaire não fica atrás da de seu melhor leitor. Rejeitado pelo
segundo marido de sua mãe (um militar), o poeta deixou a casa familiar e enfrentou
uma vida miserável em Paris, onde morreu aos 46 anos. Se o corpo de Benjamin jaz
num pequeno cemitério de fronteira, os restos mortais de Baudelaire se encontram
em Montparnasse, no túmulo da família, onde seu nome está inscrito em letras
pequenas… “e o poeta Charles Baudelaire” abaixo dos registros mais vistosos da mãe
e do padrasto. Seus poemas sobre os mendigos, os moradores de rua, os habitantes
dos sótãos minúsculos na cidade monumental, dão notícias da proximidade do poeta
com esses personagens. “Baudelaire conformou sua imagem de artista a uma imagem
de herói”, escreve Benjamin na abertura do ensaio “A modernidade”. Um herói
trágico, diga-se, que entregou a vida à poesia, prescindindo praticamente de tudo o
mais.

Os traços que Benjamin valoriza em Baudelaire são intrigantes para o leitor de


expectativas românticas. Embora o poeta seja considerado pelo cânone como o último
romântico e o primeiro dos modernos, não é banal entender de que romantismo se
trata. No espaço que este breve ensaio me permite, posso resumir o romantismo de
Baudelaire com a frase citada pelo próprio Benjamin: ele possuiria “a indolência
natural dos inspirados”. Nada lhe interessava exceto a poesia. O heroísmo romântico
do poeta reside em sua resistência a aburguesar-se, em sua escolha radical de viver
como um clochard, “colhendo a poesia que espalha(s) no chão”, para citar um belo
verso de Chico Buarque (https://revistacult.uol.com.br/home/quem-quer-ser-o-
chico-buarque-desta-geracao/). Um clochard que se portava e se vestia como um
dândi. Mas o dandismo do poeta estava fadado ao fracasso: para Benjamin, “seu amor
pelo dandismo não foi feliz. Não tinha o dom de agradar, um elemento tão importante
na arte de não agradar do dândi”.

Passage de l’Opéra, galerie de l’Horloge, Paris, 1866 (Foto Charles Marville / GDC)

O pretenso dandismo de Baudelaire era inseparável da escolha de levar ao extremo sua


vocação – daí o aspecto trágico de sua vida. “Para viver a modernidade”, escreveu
Baudelaire, “é preciso ter uma constituição de herói”. No entanto, nela não há lugar
para o herói. “Nela o herói não cabe”, observa Benjamin, ao ressaltar o desencanto
que caracteriza os tempos modernos. “Ela não tem emprego algum para esse tipo (…).
Pois o herói moderno não é herói – apenas representa o papel do herói. A
modernidade heroica se revela como uma tragédia onde o papel do herói está
disponível”. Diante disso Benjamin, em uma pirueta ardilosa que é bem do seu estilo,
cita Jules Lemaître para concluir que o dandismo do poeta é “o último brilho do
heroico em tempos de decadência”.
O elemento que Benjamin destaca na poesia de Baudelaire, na contramão do que uma
leitura romântica poderia esperar, é o elemento do choque. O tema da velocidade que
caracteriza a vida moderna, presente em outros de seus ensaios é destacado na leitura
dos poemas de Baudelaire.

On voit un chiffonnier qui vient, hochant la tête,


Buttant, et se cognant aux murs comme un poëte,
Et, sans prendre souci des mouchards, ses sujets,
Épanche tout son coeur en glorieux projets.

Il prête des serments, dicte des lois sublimes,


Terrasse les méchants, relève les victimes,
Et sous le firmament comme un dais suspendu
S’enivre des splendeurs de sa propre vertu.

Oui, ces gens harcelés de chagrins de ménage


Moulus par le travail et tourmentés par l’âge,
Éreintés et pliant sous un tas de débris,
Vomissement confus de l’énorme Paris,

Reviennent, parfumés d’une odeur de futailles,


Suivis de compagnons, blanchis dans les batailles,
Dont la moustache pend comme les vieux drapeaux.
Les bannières, les fleurs et les arcs triomphaux

*Vê-se um trapeiro cambaleante, a fronte inquieta,


Rente às paredes a esgueirar-se como um poeta,
E, alheio aos guardas e alcaguetes mais abjetos,
Abrir seu coração em gloriosos projetos.

Juramentos profere e dita leis sublimes,


Derruba os maus, perdoa as vítimas dos crimes,
E sob o azul do céu, como um dossel suspenso,
Embriaga-se na luz de seu talento imenso.

Toda essa gente afeita às aflições caseiras,


Derreada pela idade e farta de canseiras,
Trôpega e curva ao peso atroz do asco infinito,
Vômito escuro de um Paris enorme e aflito,

Retorna, a trescalar do vinho as escorralhas,


Junto aos comparsas fatigados das batalhas,
Os bigodes lembrando insígnias espectrais.
Os estandartes, os pendões e arcos triunfais

Ou o choque da brutal transformação da cidade antiga, demolida para dar lugar à


monumental “cidade-luz”:

Paris change! mais rien dans ma mélancolie


N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,
Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie,
Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs.

*Paris muda! mas nada em minha nostalgia


Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,
E essas lembranças pesam mais do que rochedos.

As transformações da velha Paris não alteraram a melancolia do poeta, que busca na


alegoria um destino simbólico para o que se perdeu. A alegoria foi também um tema
caro a Benjamin, que a analisa em seu estudo pós-doutoral – que seria recusado – de
admissão à Universidade de Frankfurt, em 1925, como professor, A origem do drama
trágico alemão. Brevemente: para Benjamin, o Romantismo (que na Alemanha surge no
século 18) com sua fome de absoluto, teria dominado toda a filosofia da arte, tornando
“antiquado” o uso da alegoria que caracteriza o Barroco. O “simbolismo concreto” da
alegoria, símbolo artístico por excelência no entender de Benjamin, associa-se ao que
os antigos consideravam como “sinais dos deuses”, já que na alegoria existiria uma
correspondência completa, ponto por ponto, entre o “simbolizante”, suporte do
símbolo, e aquilo que é simbolizado. Assim, quando Baudelaire escreve “J’ai plus de
souvenirs que si j’avais mil ans” (Eu tenho mais recordações do que há em mil anos),
é de uma alegoria e não de uma metáfora que se trata. O poeta afirma que sim, ele
tem mais lembranças do que teria se vivesse mil anos e não (no caso da metáfora),
que tem lembranças como se tivesse mil anos.

Apenas para dar mais um exemplo, vejamos o final do poema “Obsession”:

Comme tu me plairais, ô nuit! sans ces étoiles


Dont la lumière parle un langage connu!
Car je cherche le vide, et le noir, et le nu!

Mais les ténèbres sont elles-mêmes des toiles


Où vivent, jaillissant de mon oeil par milliers,
Des êtres disparus aux regards familiers.

*Me agradarias tanto, ó noite, sem estrelas


Cuja linguagem é por todos tão falada!
O que eu procuro é a escuridão, o nu, o nada!

Mas eis que as trevas afinal são como telas,


Onde, jorrando de meus olhos aos milhares,
Vejo a me olharem mortas faces familiares.

O que agradaria ao poeta, na “linguagem” da noite? Ao buscar o vazio, o negro, o nu,


o eu poético encontra, não o brilho das estrelas, mas os seres invisíveis, impossíveis
de se ver a olhos nus. O poeta declara seu fascínio por um objeto perdido, cujo brilho
lhe acena de tão longe quanto a luz das estrelas. Como não pensar aqui no objeto
perdido da psicanálise, causador de desejo? Objeto que também pode ser a cidade,
aquela que desapareceu sob os escombros da reforma promovida por Napoleão III e
que mais tarde Benjamin veio a buscar para compor com elas o livro interminável, o
livro fragmentado e impossível das Passagens.

*Trecho de poemas extraídos de As flores do mal, tradução Ivan Junqueira, Nova Fronteira,
1985

Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de O tempo e o cão – a atualidade das depressões (Boitempo)
 

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Walter Benjamin, crítica da cultura e do progresso


Martha D'Angelo 
2 de maio de 2019

1.8K

Walter Benjamin na Biblioteca Nacional de Paris, 1937 (Foto Gisèle Freund / Reprodução)

A potência do pensamento de Walter Benjamin


(https://revistacult.uol.com.br/home/walter-benjamin) revela-se na forma como ele
aborda, no ensaio “Sobre a crítica do poder como violência”, a relação de toda ordem
jurídica com a violência e a questão da legitimidade esdos meios constituintes do
poder. Esse texto, escrito provavelmente na virada do ano de 1920 para 1921,
prenuncia o grau de sutileza e consistência que o autor viria a alcançar através de um
paciente rastreamento do obscuro e massacrante caminhar da história. Em sua obra
foram incorporados elementos de muitas fontes – clássicos da filosofia
(https://revistacult.uol.com.br/home/categoria/secoes/filosofia/), livros para crianças,
panfletos, poesia, diários de viagem, álbuns de fotografia, textos sobre cinema e
arquitetura, tratados teológicos, revistas de moda etc. – e também documentos
retirados do lixo da história oficial. O fôlego intelectual para processar um conjunto
tão variado de fontes e informações tinha como contraponto uma sensibilidade
dolorosamente frágil e inábil para resolver problemas práticos. Até o fim de sua vida,
na trágica noite de 26 de setembro de 1940, Benjamin investiu suas energias contra
aquilo que os historiadores liberais entendem por “progresso”. Diante da história, um
gesto tornou-se necessário para ele: deter a marcha do progresso e implodir o
enquadramento servil que mantém o status quo.
A carga de violência inerente à cultura e ao seu processo de transmissão podem se
tornar invisíveis dependendo da forma como a história é escrita. A reflexão de
Benjamin sobre a questão do poder como violência remete à ideia de “estado de
exceção como regra”, exposta na tese VIII Sobre o conceito de história. Suas primeiras
intuições sobre esse tema surgiram em 1919, sob o impacto da derrota espartaquista e
os assassinatos de Rosa Luxemburgo (https://revistacult.uol.com.br/home/rosa-
luxemburgo-e-paul-celan-na-encruzilhada/) e Karl Liebknecht, em janeiro daquele
ano, antes da instituição da República de Weimar. Dois anos depois, no ensaio “Para
uma crítica da violência”, Benjamin trata do abismo que separa a justiça do direito na
época moderna.

A crítica benjaminiana ao progresso absorveu elementos da mística judaica, do


romantismo alemão, da poética de Baudelaire e das reflexões de Louis-Auguste
Blanqui. Na vertente romântica, Rousseau
(https://revistacult.uol.com.br/home/ipseidade-e-sentimento-de-si/) foi o primeiro
autor moderno a criar uma filosofia da história que tem como eixo central a crítica ao
progresso. Desde seu escrito inaugural, o Discurso sobre as ciências e as artes,
manifestou uma grande desconfiança em relação aos filósofos iluministas herdeiros
da tradição racionalista, que veem a marcha da história como progresso. A polêmica
gerada por esse Discurso, que obteve o primeiro prêmio no concurso promovido pela
Academia de Dijon em 1749, deve-se principalmente ao fato de ele admitir que o
desenvolvimento das ciências e das artes teria contribuído para a degeneração dos
costumes e a corrupção da sociedade. O progresso teria favorecido a decadência das
civilizações ao ampliar a separação entre o homem e a natureza. Para Rousseau, a
opacidade do mundo, fruto da alienação advinda com a perda da inocência própria ao
estado de natureza, explica a permanente tensão que perpassa a história. O processo
de formação da cultura, opondo o homem à natureza e aos seus semelhantes, nos
conduziu a um estado geral de alienação e a um mal-estar insustentável.

Apesar de não citar Rousseau como referência, Benjamin mostra em suas teses sobre
a história muitas afinidades com ele. Contrário a uma concepção evolucionista-
positivista, compreende a marcha da história como catástrofe. Nessa perspectiva, o
“novo” representa a consolidação da ilusão do progresso. A desconstrução desse mito
remete à desnaturalização da barbárie. Uma barbárie que oculta as contradições da
cultura e apaga a memória dos vencidos, impedindo a ruptura com a reprodução dos
mecanismos de dominação que sustentam a violência e a desigualdade social. Nesta
concepção, a reconstrução do passado é feita através do encadeamento de fatos por
uma memória pretensamente neutra. A leitura de Freud e a incorporação de conceitos
da teoria psicanalítica levaram Benjamin a compreender a história como um campo de
disputa em que atuam forças inconscientes. A história é construída por uma memória
interessada, que seleciona o que merece ser lembrado e o que deve ser esquecido. O
passado, por ser uma construção, não é imutável, nem uma espécie de arquivo morto
onde são colocados autores, obras e fatos dignos de registro à disposição dos
pesquisadores. A articulação entre memória e esquecimento como forma de controle
social auxiliar da história se expressa hoje, por exemplo, na disputa que se trava no
Brasil em torno do legado de Paulo Freire; a tentativa de desqualificar sua obra
confirma a lucidez de Benjamin ao afirmar, na tese VI, que “nem os mortos estarão
seguros se o inimigo vencer”.

Na crítica à cultura burguesa e sua visão do progresso, dois autores foram


fundamentais para Benjamin: Blanqui, e o relato de sua experiência pessoal como
revolucionário no livro A eternidade pelos astros, e Baudelaire
(https://revistacult.uol.com.br/home/meu-coracao-desnudado/), que revelou o
reprimido da história na sua prosa poética e nos versos d’As flores do mal. A ira, o
rancor, o sangue-frio, a paixão que animou meio século de lutas de barricadas em
Paris estão presentes no espírito de Baudelaire e na sua descrença em relação ao
progresso. Blanqui, o grande herdeiro dos valores jacobinos, um revolucionário que
participou do processo de transformação da França desde as insurreições de 1830 até a
Comuna de Paris, reforçou no pensamento de Benjamin a ideia de progresso como a
mais perversa e mentirosa de todas as ilusões modernas. A aproximação entre os dois
foi reconhecida em muitos trechos das Passagens, de onde destaco os seguintes: “A
fórmula de L’Éternité par les Astres – ‘É o novo sempre velho e o velho sempre novo’ –
corresponde rigorosamente à experiência do spleen tal qual descrita em Baudelaire” e
“O spleen é o sentimento que corresponde à catástrofe em permanência”.

Em nossa época, a ideologia do progresso, ao estimular um desenvolvimentismo


predatório, cria condições para que aconteçam tragédias como as de Mariana e
Brumadinho (https://revistacult.uol.com.br/home/brumadinho-a-lama-nosso-
espelho/). As imagens fortíssimas do rompimento da barragem
(https://revistacult.uol.com.br/home/brumadinho-terra-clama/), mostrando a
velocidade da lama devorando tudo a sua frente são uma alegoria viva do progresso
como catástrofe. Na versão da história escrita pelos vencedores, o esquecimento do
sacrifício imposto aos perdedores em nome do progresso condena o presente a repetir
os erros do passado. O genocídio da juventude negra
(https://revistacult.uol.com.br/home/mnu-milton-barbosa-regina-dos-santos/)
pobre que vemos hoje nas periferias das grandes cidades brasileiras é uma violência
que se conecta com o esquecimento da dívida social resultante de mais de trezentos
anos de escravidão. O feminicídio, por sua vez, é indissociável da vigência de
elementos da cultura patriarcal na política institucional, na mídia e no Poder
Judiciário. A fragilidade da democracia brasileira, visível na pouca consistência e
autonomia de suas instituições, sempre tuteladas pelos militares, impede que esse
ciclo de repetição infernal da desigualdade seja rompido. Como observou Hannah
Arendt (https://revistacult.uol.com.br/home/tag/hannah-arendt), em A origem do
totalitarismo, em tempos sombrios, e isso caracteriza bem o que vivemos hoje, os
excluídos e os mais ressentidos com o establishment político, os que odeiam a política,
são facilmente recrutados pela direita. O fascismo brasileiro tem se expressado
através da negação e criminalização da política, da afirmação de símbolos religiosos e
de mitos como a família tradicional, a hierarquia, a disciplina, as cores da pátria, a
autoridade etc. Faixas pedindo a volta dos militares nas manifestações que levaram ao
golpe de 2016 demonstram esse desejo regressivo de dominação fascista
(https://revistacult.uol.com.br/home/o-autoritarismo-da-vida-cotidiana/) e de
restauração moral e social (https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-sexologia-
politica/).

A noção de tikkún, extraída da tradição messiânica cabalista de Isaac Luria, que


compreende a redenção como restauração da harmonia cósmica quebrada, apresenta
pontos de contato com a tradição romântica. No texto “A caminho do planetário”, que
integra a coletânea Rua de mão única (1928), a compreensão de Benjamin sobre o
progresso parece amalgamar essas duas fontes, sobretudo quando ele observa que o
“descaminho dos modernos”, conduzido pelo desejo de dominação da natureza,
significa exatamente a quebra da harmonia cósmica. Esse desejo de dominação,
potencializado pela ideologia do progresso, promoveu uma mudança profunda na
relação do homem com a natureza, levando-o a considerar a experiência cósmica com
o universo como “irrelevante”, “descartável” ou como “devaneio místico em belas
noites estreladas”. A rejeição de Benjamin aos princípios e valores da cultura
burguesa, e sua denúncia do progresso como mito, também atinge o materialismo
vulgar e as teorias reducionistas que limitam o desenvolvimento da humanidade às
descobertas científicas e técnicas, e ao crescimento das forças produtivas. Foi a
dominação da natureza, movida pela avidez do lucro da classe dominante, que
impediu a tecnologia de realizar o casamento entre a humanidade e o Cosmos: “a
técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue.”

Martha D’Angelo é doutora em Filosofia pela UFRJ, professora aposentada da Faculdade de Educação da UFF e autora de Arte,
política e educação em Walter Benjamin (Edições Loyola)
 

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O que o ato de colecionar nos fala sobre o presente?


Luiza Batista Amaral 
2 de maio de 2019

10

Carteira da Biblioteca Nacional de Paris, 1940 (Reprodução)

Compor uma coleção consiste num exercício constante de montar uma narrativa, não
só através do ato de selecionar os objetos, mas também de eleger quais deles serão
exibidos. Trata-se de uma ação atravessada pela dialética da reificação e da
reanimação como lembra Hal Foster em “Arquivos da arte moderna”, de 2009. O
colecionador é o mediador da circulação dos objetos, movimentando seu ciclo de vida
e morte (exibição e apagamento). É aquele que não apenas coleta, mas também o que
investe suas memórias e afetos nesse corpo externo, construindo nele a extensão de
sua existência.

Essa prática de colecionar foi, em diferentes textos, analisada por Walter Benjamin
(https://revistacult.uol.com.br/home/tag/walter-benjamin) como um fenômeno da
modernidade presente tanto no habitar burguês, quanto no ambiente urbano. O
burguês coleciona objetos no interior de sua moradia como um antídoto ao anonimato
da cidade, ambiente marcado pelas multidões, pelo apagamento da individualidade e
pela intensa transformação dada pelas reformas urbanísticas como as de Paris no
século 19 por Hausmann. Ele se fecha em sua casa-estojo. Como Benjamin descreve
no texto “Experiência e pobreza”, de 1933, essa relação entre indivíduo e objeto é
representativa, o burguês investe memórias e afetos nele, por isso, se encoleriza ao
ver seus bibelôs quebrados, imagem que simboliza o apagamento de sua existência no
mundo. Habitar nessa condição burguesa significa deixar rastros.
‘O tropeiro’, 1869 de Edouard Manet (Reprodução)

Além do colecionador burguês, Benjamin identifica outra figura marcada pelo hábito
da coleção: o poeta que atua como um trapeiro. Baseia-se no trapeiro descrito por
Charles Baudelaire, indivíduo atraído pelo resto e pelos dejetos do espaço urbano. A
pintura O trapeiro (1869) de Edouard Manet mostra um homem com as roupas puídas
e sujas acompanhado de um pequeno acúmulo de dejetos. Essa tela ilustra a imagem
desse indivíduo à margem que ao caminhar pela cidade monta seu arquivo a partir de
tudo o que a cidade rejeitou. Observa esse espaço a partir do fragmento, do abjeto.
Como coloca Constance von Krüger em “A coleção – um gesto poético: uma leitura
benjaminiana sobre o colecionismo”, dos Cadernos Benjaminianos: “Ao catar imagens
e recolher impressões, de maneira análoga à obtenção de itens pelo colecionador, o
poeta inaugura um elenco de fragmentos”.

É interessante pensar nessa figura do trapeiro como um indivíduo que coleciona o


que sobra, o que é pedaço, logo, não partindo do todo (conjunto). Sobre esse ponto,
Benjamin em “Desempacotando minha biblioteca: um discurso sobre o colecionador”,
de 1931, olha para o livro, o fragmento da coleção, o objeto, e, a partir dele, tece uma
reflexão sobre o ato de colecionar, revisitando também a memória presente nesses
objetos. Ao desempacotar seus itens, Benjamin convida o leitor a adentrar na
paisagem na qual ele se encontra, ou seja, o canteiro de obras de sua biblioteca:
“Devo pedir-lhes que se transfiram comigo para a desordem de caixotes abertos à
força, para o ar cheio de pó de madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por
entre pilhas de volumes”. Nesse canteiro, Benjamin reflete sobre a ação de colecionar;
cada livro o leva a rememorar a história de sua aquisição, a excitação do ato de
adquirir própria da atmosfera dos leilões, e, principalmente, a tensão entre a ordem e
a desordem que atravessa o colecionador em seu incessante impulso de catalogar e
finalizar sua biblioteca, seja a partir de sua organização, ou pela aquisição de um novo
item que a atualize.
Terra de dois rios (Zweistromland, 1985), do artista alemão Anselm Kiefer, 1945 (Divulgação)

Benjamin propõe um olhar sobre a coleção não a partir de seu produto, a biblioteca,
mas sobre o que está por trás da imagem desse conjunto de livros catalogados em
estantes, homogeneizados pela ordenação de tema, título e autor. O foco sobre o
instante entre a ordem e a desordem, descrito por Benjamin, permite uma leitura
sobre a movimentação desses itens da coleção fugindo da imagem da biblioteca como
um mausoléu de objetos encerrado em seu passado, tratando-a como um local de
efeitos mnemônicos. Nesse texto, Benjamin também chama atenção para a figura do
colecionador que se empenha em compor uma estante de livros sem ter lido os
exemplares de sua coleção, da mesma forma que coleciona porcelana de Sévres e não
a usa diariamente. Ele critica esse papel imóvel da coleção através de sua própria
bibliofilia: “Por anos a fio (…) minha biblioteca não consistiu de mais de duas ou três
fileiras que cresciam anualmente cerca de um centímetro apenas. Foi a sua fase
marcial, em que nenhum livro podia nela ingressar, sem que eu houvesse lido”.
Benjamin critica o colecionador que toma o objeto como inócuo e que estabelece uma
relação fetichista, ao obtê-lo, encerrando o ciclo de vida do objeto chumbando-o em
suas prateleiras ou cristaleiras onde essa coleção é exibida.

Na obra Terra de dois rios (Zweistromland, 1985), do artista alemão Anselm Kiefer
(1945), vê-se uma biblioteca formada por duzentos livros de chumbo, dispostos em
duas estantes de aço. O chumbo é um material pesado que inviabiliza o simples ato de
folhear e mover os livros. Ele atuaria da mesma forma que o colecionador fossilizando
sua coleção ao se relacionar com ela apenas pela contemplação do acúmulo de
volumes em suas estantes. Esse trabalho de Kiefer oferece uma leitura sobre a
neutralização da cultura e do conhecimento e traz uma imagem para pensar a
apropriação da biblioteca como um mausoléu, um compêndio de restos de um
passado fechado.

“Quando se quer designar uma pessoa, uma coisa antiquada, inútil fora de uso,
costuma-se dizer: ‘é uma peça de museu’.” Esse trecho de “Casas ou museus?”
(1958), da arquiteta Lina Bo Bardi, também serve de crítica aos museus como
mausoléus. Lina Bo Bardi foi responsável pelo projeto do Masp, uma instituição que
não se detém apenas na conservação das obras de seu acervo. Trata-se de um museu
que dialoga constantemente com o presente seja através de sua arquitetura, seu vão
livre aberto a diferentes apropriações políticas e a atividades culturais, ou a
exposições realizadas pelo museu que propõe um revisitar do acervo refletindo sua
ação no tempo agora. Um exemplo foi a exposição “Acervo em transformação:
mulheres à frente”, intervenção proposta pelo museu na semana do dia internacional
da mulher, 8 de março de 2019. Nela, as obras dos artistas homens foram viradas e
seus versos foram exibidos em cavaletes de vidro, enquanto as produzidas pelas
artistas mulheres eram exibidas de frente. Essa imagem composta na galeria chamou
atenção para a disparidade entre gêneros na arte e também se propôs a dar visibilidade
para a produção dessas artistas mulheres pouco divulgadas pela história da arte. O
tratamento do acervo nessa proposição não toma a coleção como estática, não lida
com essas obras de modo a compor uma imagem do passado como ele realmente foi,
mas se apropriando dela e refletindo de que modo ela relampeja no presente.

Outro fato que permite pensar a coleção no contexto atual é que sua existência não
está necessariamente condicionada a um espaço físico e a uma instituição tal como
um museu, na medida em que os itens colecionados não são objetos e sim
informação. A relação entre memória e arquivo através de novos dispositivos
eletrônicos e das redes sociais tem modificado a maneira como a ação de arquivar
atua no âmbito da cultura e dialoga com o presente. A produção e a coleta de imagens
feitas por usuários de redes sociais como o Instagram é um potencial arquivo do
cotidiano, um mosaico de impressões composto pelo que resta da experiência, a
fotografia. Coletar essas imagens e dispô-las em coleção, assim como o trapeiro
coleta o que restou no ambiente urbano, traz uma possibilidade de lermos a atual
atmosfera de ruína que vivenciamos marcada pela proliferação de imagens de museus
incendiados, desastres ambientais e construções e projetos paralisados. Colecionar é
um exercício de fazer ver.

Luiza Batista Amaral é doutoranda em História Social da Cultura pela PUC-Rio


 

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Walter Benjamin e a fantasmagoria


Eduardo Rebuá 
2 de maio de 2019

250

Benjamin chama de fantasmagórica a cultura capitalista, a história da cultura, o espaço, o tempo, dentre outros (Reprodução)

O adjetivo fantasmagórico aparece usualmente, sobretudo no senso comum, mais


como sinônimo de fantasma do que de esilusão, falseamento. Em outras palavras, o
termo, que também significa o que é relativo a fantasmas, ganhou pelo uso mais
proximidade com seres espectrais, assombrados, mortos-vivos, de outro mundo, e
menos relação com o significado de irreal, quimera, utopia, fabulação. Interessa-nos
aqui justamente esta segunda acepção de fantasmagoria, notadamente porque vimos
trabalhando com o conceito de “democracia fantasmagórica” no esforço de
compreensão do Brasil da Nova República
(https://revistacult.uol.com.br/home/erosao-da-nova-republica-e-o-
escancaramento-da-farsa/), com destaque para os últimos quinze anos (2003-2018),
quando o lulismo (https://revistacult.uol.com.br/home/depois-de-lula-o-lulismo/)
enquanto pacto social, campo político e conformismo entra em cena, ao mesmo
tempo que o par neo-neo (neoliberalismo-neoconservadorismo
(https://revistacult.uol.com.br/home/neoliberalismo-e-autoritarismo-historia-de-
amor/)) materializa um corpo prenhe de afetos desencantados e desencantos do afeto,
a caminhar pelas formas de hegemonia vigentes. Os acontecimentos de junho de 2013
(https://revistacult.uol.com.br/home/as-pautas-e-os-ecos-de-junho-de-2013/) e a
chamada onda conservadora (https://revistacult.uol.com.br/home/quem-sao-e-o-
que-querem/) são dinâmicas distintas, mas relacionadas, das metamorfoses do/no
Estado Ampliado periférico.
A fantasmagoria foi uma categoria central para as análises de Walter Benjamin
(https://revistacult.uol.com.br/home/tag/walter-benjamin) no projeto das Passagens
(1927-1940), já presente nos textos mais maduros da década de 1930, profundamente
vinculados ao materialismo histórico, ao qual adere paulatinamente a partir da leitura
de Lukács (História e consciência de classe, de 1921), em 1924. Nestes escritos Benjamin
começa a conferir mais atenção à teoria marxista da cultura da mercadoria com lastro
no conceito de fetichismo. Para uma primeira aproximação entendemos ser crucial
demarcar a fantasmagoria no pensador alemão como vinculada tanto ao fetichismo
quanto à ideologia, relacionados ao se investigar os efeitos do crescimento
vertiginoso da lógica da mercadoria como sentido e direção das relações sociais na
modernidade capitalista.

Em Parque Central (1939-1940), na parte 35, Benjamin utiliza o termo fantasmagoria


como sinônimo de “ideia especulativa”, antes de se valer da expressão
“fantasmagoria da modernidade” ao contrapor Baudelaire
(https://revistacult.uol.com.br/home/meu-coracao-desnudado/) a Nietzsche. Em
Paris, capital do século XIX (1935), nome que receberiam as Passagens a partir de então,
Benjamin admite para o amigo Scholem o desejo de compreensão do 19, nesta grande
obra que erigia, a partir de um espaço, Paris, assim como fizera em Origem do drama
trágico alemão, de 1928, ao utilizar a Alemanha como lente para a compreensão do
século 17. Neste texto que reúne escritos diversos e dispersos, com uma densidade
aberta, Benjamin chama de fantasmagórica a cultura capitalista, o interior (das casas
burguesas), a história da cultura, o espaço, o tempo dentre outros. O diminuto texto
tem na fantasmagoria uma costura destacada, partindo da crítica radical ao
capitalismo e seus modos de reificação, de fetichização.

Assim, todas essas relações passam a se transformar de acordo com a óptica


mercantil, reificadora da vida. Em Benjamin, a fantasmagoria indica também um
declínio na comunicabilidade e na transmissibilidade da experiência perceptível na
expansão da informação e na corrosão da narrativa, de acordo com Jaeho Kang. Na
experiência da fantasmagoria torna-se questionável a mirada cartesiana que
estabelece uma clivagem entre mundo da subjetividade e mundo objetivo. Para Kang,
a fantasmagoria de Benjamin não indica um modo nem parcial tampouco transitório
da experiência, mas sim geral, oriundo exatamente da transformação de todas as
relações sociais segundo a lógica da mercadoria.

De maneira sintética podemos afirmar que o núcleo da crítica aguda e original de


Benjamin à modernidade capitalista se encontra no trato do fetichismo da mercadoria,
segundo Fabio Mascaro Querido, sob a utilização da noção de fantasmagoria, com
grande presença em seus últimos escritos, com destaque para Das Passagen-Werk, de
1937 a 1940. Benjamin amplia o escopo marxiano acerca do fetichismo, a partir da
contribuição decisiva de Lukács sobre a reificação, pois busca compreender o
fenômeno dentro da crítica mais alargada e histórica da modernidade capitalista, a
partir do estudo da epidêmica expansão da forma-mercadoria para além das fábricas e
do comércio, atingindo a cultura ao acertar em cheio as formas da subjetividade
humana. Benjamin também confidencia a Scholem, ainda comparando o trabalho das
Passagens com A origem do drama: “E eu posso te dizer previamente que também aqui
haverá no ponto central o desenvolvimento de um conceito tradicional. Se lá foi o
conceito de drama trágico, aqui será o conceito do caráter de fetiche da mercadoria”.

O termo fantasmagoria, presente nos trabalhos de diversos escritores românticos


como Edgard Allan Poe, Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud
(https://revistacult.uol.com.br/home/rimbaud-o-rebelde/), se encontra em Marx
(https://revistacult.uol.com.br/home/karl-marx) no Livro I de O capital (1867), no
primeiro capítulo, quando trata da mercadoria, especificamente de seu caráter
fetichista e seu segredo: “Já a forma-mercadoria (…) é apenas uma relação social
determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas”. A depender da tradução, em outro
trecho da mesma parte, salienta: “Por isso, todo o misticismo do mundo das
mercadorias, toda a mágica e a assombração [fantasmagoria] que anuviam os
produtos do trabalho na base da produção de mercadorias desaparecem
imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção”.

Em Marx o valor é um ente fantasmagórico, a despeito de sua racionalidade. Na fronte


do valor não está escrito o que ele é. Todo o produto do trabalho social é convertido
pelo valor em hieróglifo social, aponta o filósofo. O fetiche mercantil separa, oculta a
forma-mercadoria em relação à verdadeira fonte de valor, o trabalho humano,
mascarando as relações de exploração e garantindo a supremacia dos vencedores e
seu cortejo triunfal(ista). As fantasmagorias se apresentam, com o suporte da
ideologia dominante, como a mais fiel representação do real.

Numa carta para Gretel Adorno (datada de 23 de março de 1939), Benjamin admite o
movimento de centralização, de destaque, de uma das concepções presentes nas
Passagens, qual seja o entendimento da cultura da sociedade produtora de mercadorias
como fantasmagoria. O fetichismo em Marx e a reificação em Lukács ganham em
Benjamin um novo vigor, traduzido no uso da fantasmagoria como instrumento de
investigação da cultura fantasmagórica do capitalismo. A perspectiva da totalidade e o
manejo dialético acompanham esta vereda benjaminiana, atenta aos detalhes.

Esta cultura capitalista-fantasmagórica seria para Benjamin uma autoimagem desta


sociedade, uma construção que esconde a memória da forma como as mercadorias
aparecem na vida social, quem as produziu, como produziram, quando o fizeram. O
mergulho de Benjamin na teoria marxiana tem mais a ver com a oferta original de
conceitos radicais por parte desta escola de pensamento, porque visando a crítica e a
superação do capitalismo, do que com o fato do materialismo histórico se constituir
num possível sistema de conceitos sólido.

A noção da fantasmagoria em Benjamin, ainda que não proponha uma outra


abordagem do fetichismo e da fantasmagoria em relação a Marx e Lukács, focaliza
especialmente na representação crítica da experiência – em seu processo moderno de
declínio, erosão e até mesmo impossibilidade – resultante das modificações tanto nas
relações quanto nas percepções sociais elaboradas no/pelo capitalismo e seus
fantasmas reais. Reivindica a imperiosa renovação/atualização das formas de
representação estética e de crítica política, tendo em vista os múltiplos limites
impostos à crítica racionalista num momento histórico de colapso dos meios
clássicos de representação.

Como é possível observar, o marxismo em Benjamin não representava axiomas vazios


ou uma teoria determinista, dogmática. Exatamente pela heterodoxia de seus escritos
ele conseguiu trabalhar com esta perspectiva ontológica como uma referência em
aberto, oriunda do 19, mas fornecedora de pistas significativas em suas investigações
sobre o capitalismo no/do 20. Ao compreender as fantasmagorias como obstáculos
concretos à interrupção da barbárie, à percepção de catástrofes iminentes e dos
vencedores do momento presente, Benjamin estabelece um cordão-memorial exitoso
em articular lutas pretéritas e hodiernas numa mesma perspectiva de resistência,
entendendo, a contrapelo, que a opressão dá origem a tradições tanto dos algozes
quanto dos derrotados. Apontando para o vínculo inapagável entre passado, presente e
futuro, sob a perspectiva de um tempo não linear, porque descontinuidade, e de uma
temporalidade não uniforme, porque sentido e conflito, tece uma história que é
abertura, sempre imprevisível e passível de ser reescrita, narrada novamente.
A partir de seus prismas é possível perceber os múltiplos elementos fantasmagóricos
da modernidade burguesa: o mercado (invisível), o gozo (insaciável), a justiça
(inacessível), a liberdade (inexistente), o amor (impedido), o medo (inacabável), o
Estado de Direito (excepcional) e finalmente, a democracia (impossível). Focalizando
nela recuperamos mais enfaticamente a noção de fantasmagoria no pensador das
Teses, ao reivindicarmos um novo conceito ou ao menos um esforço de atualização: o
que chamamos de “democracia fantasmagórica”.

Compreendemos a sociedade brasileira como uma das mais bem-acabadas expressões


deste tipo de democracia, concomitantemente resultado da cultura e da política do/no
capitalismo e o efeito de uma sociedade surgida da colonização/escravidão, cujas
(des)identidades e dívidas impossibilitam até hoje a junção das peças de nosso
quebra-cabeça, sob o forte signo do bovarismo brasileiro, segundo Maria Rita Kehl
(https://revistacult.uol.com.br/home/maria-rita-kehl-subversao-politica-e-pratica/).

Este autoengano coletivo, uma das condições que definem o sujeito moderno, pode
ser uma pista para os estudos sobre nosso estado de exceção. Tal aparato é chamado
diuturnamente, dos especialistas da academia ao senso comum, de Estado
Democrático de Direito, sendo um dos raros que ainda se valem do foro privilegiado,
um dos poucos que não puniram protagonistas de suas ditaduras, uma das maiores
experiências de convivência com formas de trabalho escravas ou similares à
escravidão, um caso quase sem cura de manutenção cínica da figura masculina,
branca, cristã e rentista à frente de funções públicas, e uma forma de poder
historicamente permeável aos coronelismos, “familismos” e gangsterismos de toda
sorte.

A tese de Kehl é a de que o bovarismo representa um sintoma social brasileiro, onde o


“fazer-se passar por um outro” não é um delírio epidêmico, mas um modo de
aceitação e ao mesmo tempo uma negação/mascaramento de uma condição de atraso
em inúmeras dimensões da vida social, como o provincianismo, o racismo, o
patriarcalismo, o fisiologismo, o elitismo, o machismo, o patrimonialismo.
Entendemos que sua análise dialoga com a perspectiva da fantasmagoria em
Benjamin, pois o bovarismo também é o nome para uma forma de fantasia ou
convicção delirante, nítida tanto na personagem Emma Bovary quanto em Rubião, de
Machado, em Quincas Borba. A fantasmagoria benjaminiana, lembramos, tem profunda
conexão com o fetiche e com a ideologia, portanto, comportando-se como uma noção
advinda da percepção da transformação das formas de subjetividade (relações e
percepções) em valores de troca, sob o capital. Ora, o bovarismo nos parece em
sintonia com esta leitura uma vez que trata da transmutação simbólica, psíquica,
subjetiva, de um sujeito em outro ou em outros.

Há na reflexão da psicanalista elementos que nos autorizam a associar estado de


exceção e bovarismo, bem como estado de exceção e fetiche, no movimento de
desenho da noção de democracia fantasmagórica. Segurar o cabo do chicote – e por
aqui o chicote nunca foi pequeno – como um não privilégio das elites, num país que é
acima de tudo uma forma de violência, como aponta Vladimir Safatle
(https://revistacult.uol.com.br/home/tag/vladimir-safatle), em Só mais um esforço. Uma
sociedade nascida da violência e que soube com maestria incorporá-la às relações
sociais, a ponto de seus sujeitos não identificarem e assimilarem as opressões que
sofrem, sendo comum a defesa do agressor, uma justificação do horror. A negação
recente, mais cínica ou menos, da tragédia da ditadura civil-militar de 1964
(https://revistacult.uol.com.br/home/tag/ditadura-militar) por amplas camadas
sociais e capitaneadas pelo capitão-presidente miliciano, em conluio com o quarteto
mídia-parlamento-judiciário-think tanks, é apenas mais uma expressão do longo
processo de fascistização no Brasil, elaborador e difusor de vontades coletivas
neofascistas.

Fantasmagorias do último período ditatorial brasileiro, cujo luto e o trauma foram


adiados como projeto e sintoma social, impregnaram instituições, classes, sujeitos, a
cultura, numa síntese que amalgama o que temos chamado de “ethos (neo)pentecostal
corporativo”, mais visível nas duas últimas décadas, com elementos de nossa
subalternidade, nossa heteronomia cultural, nossa narrativa da casa-grande, nosso
ódio às classes populares, forjando um fascismo à brasileira que tem cabeça de
fascismo, olho de fascismo, nariz de fascismo, pernas de fascismo e que ainda, para
muitos, não é fascismo (https://revistacult.uol.com.br/home/a-personalidade-
autoritaria-adorno/). Nossa dificuldade costumeira com as temporalidades da
violência, numa sociedade que tem o medo e o ódio como religião, tem obliterado a
compreensão desta ideologia como tempo, como experiência e, logo, como forma de
sentir. Benjamin, que entendeu o fascismo como fenômeno difuso em toda a cultura,
nos ajuda nesta arqueologia tardia dos ecos do tempo.

Eduardo Rebuá é doutor em Educação pela UFF e professor adjunto de Pedagogia na UFPB

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