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245 (https://revistacult.uol.com.br/home/categoria/edicoes/cullt-245-walter-benjamin/) •
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Talvez o crime contra Benjamin, como num conto de Poe, tenha deixado mais rastros
em relação à última hipótese, diluída na multidão de violências contra aqueles que
não consentem com o labirinto das mercadorias tampouco com sentidos
contrarrevolucionários. Nossa percepção da necessidade de um dossiê sobre Walter
Benjamin, num contexto de fascistização no/do Estado Ampliado brasileiro, maneja a
compreensão mais usual de “dossiê” como pasta de documentos ou portfólio, mas
também como elemento comum em investigações policiais.
Em março de 2010 a CULT publicou um dossiê sobre o pensador em sua edição nº 106
(https://www.cultloja.com.br/produto/dossie-walter-benjamin-cult-106/), a partir
das reflexões de intelectuais como Vladimir Safatle
(https://revistacult.uol.com.br/home/tag/vladimir-safatle), Márcio Seligmann-Silva
(https://revistacult.uol.com.br/home/walter-benjamin-e-a-tarefa-da-critica/) e
Jeanne Marie Gagnebin (https://revistacult.uol.com.br/home/seis-teses-sobre-as-
teses/). Passada quase uma década, vemos a fotografia de um país que negou o luto
sob um estado de exceção exemplar, normatizou colonialidades – estabelecendo suas
memórias oficiais sob a morfologia de um espremedor das classes populares – e
estabeleceu uma violência administrada como modo de vida e sustentáculo das
instituições.
Compreendendo a Erfahrung benjaminiana como a construção coletiva de sentidos
sobre o real, como dimensão ontológica e práxis em corrosão na contemporaneidade;
defendemos que a democracia fantasmagórica brasileira tem sido, sobretudo no
colapso da Nova República, um enigma a exigir do materialismo histórico
interpretações e veredas à altura do Jetztzeit. A democracia fantasmagórica é
mercadoria, o toma lá dá cá e também uma enganosa projeção; uma democracia cuja
resultante quase que invariavelmente é o par invisibilidade/impossibilidade.
Martha D’Angelo, estudiosa do poeta das Passagens desde longa data, autora de Arte,
política e educação em Walter Benjamin (2006), afirma-se como interlocução obrigatória
nas fronteiras entre filosofia e educação. Na costura dialética entre cultura e
progresso, a filósofa traz-nos um intelectual que não precisa se explicar materialista
porque anticapitalista e narrador-intérprete dos derrotados do tempo como continuum.
Um Benjamin historiador na reflexão de D’Angelo
(https://revistacult.uol.com.br/home/walter-benjamin-cultura-progresso/), que traz
o Brasil dos nossos dias sem vinheta e legenda, o país das tragédias planejadas de
mineradoras, dos massacres justificados de jovens negras/os e pobres, do feminicídio
em profusão que deveria impedir quaisquer consciências tranquilas.
Dizem que caixas-pretas são analisadas por uma equipe de especialistas altamente
preparada. Acreditamos que aqui o esforço foi similar. Em prol da dúvida e da
permanência de Benjamin como problema e trilha.
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Um autor que, à maneira dos românticos do século 18, escreveu grande parte de sua
obra na forma de fragmentos. Com exceção da tese sobre o drama barroco, reprovada
pela banca na Universidade de Frankfurt, sua obra se desenvolve na forma do ensaio,
que permite grande liberdade para se abordar um tema de forma fragmentária. Assim
são as magníficas crônicas da Infância berlinense, assim seus ensaios mais conhecidos,
como “O narrador” e “Experiência e pobreza”, assim as dezoito Teses sobre o conceito
de história e, em especial, o belo ensaio sobre Baudelaire
(https://revistacult.uol.com.br/home/meu-coracao-desnudado/), cuja publicação –
que teria rendido algum dinheiro a Benjamin, na época vivendo miseravelmente em
Paris – foi recusada por Adorno e Horkheimer
(https://revistacult.uol.com.br/home/a-inescapavel-dominacao-da-natureza/), já
refugiados nos Estados Unidos.
Talvez seja abuso interpretativo imaginar que o interesse de Benjamin por Baudelaire
(https://revistacult.uol.com.br/home/meu-coracao-desnudado/) passe por certa
identificação com a condição em que viveu o poeta. No entanto, é verdade que
Benjamin viveu quase miseravelmente em Paris, para onde fugiu em 1933 e onde
ficou até a invasão nazista. “Vivo na expectativa de que uma mensagem de má sorte
caia sobre mim. Por enquanto, ainda me aguento – exceto pelo fato de que não
consigo me prevenir para o futuro” escreve Benjamin em carta ao escritor Bernard
von Brentano, em abril de 1942.
A má sorte de Baudelaire não fica atrás da de seu melhor leitor. Rejeitado pelo
segundo marido de sua mãe (um militar), o poeta deixou a casa familiar e enfrentou
uma vida miserável em Paris, onde morreu aos 46 anos. Se o corpo de Benjamin jaz
num pequeno cemitério de fronteira, os restos mortais de Baudelaire se encontram
em Montparnasse, no túmulo da família, onde seu nome está inscrito em letras
pequenas… “e o poeta Charles Baudelaire” abaixo dos registros mais vistosos da mãe
e do padrasto. Seus poemas sobre os mendigos, os moradores de rua, os habitantes
dos sótãos minúsculos na cidade monumental, dão notícias da proximidade do poeta
com esses personagens. “Baudelaire conformou sua imagem de artista a uma imagem
de herói”, escreve Benjamin na abertura do ensaio “A modernidade”. Um herói
trágico, diga-se, que entregou a vida à poesia, prescindindo praticamente de tudo o
mais.
Passage de l’Opéra, galerie de l’Horloge, Paris, 1866 (Foto Charles Marville / GDC)
*Trecho de poemas extraídos de As flores do mal, tradução Ivan Junqueira, Nova Fronteira,
1985
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de O tempo e o cão – a atualidade das depressões (Boitempo)
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Walter Benjamin na Biblioteca Nacional de Paris, 1937 (Foto Gisèle Freund / Reprodução)
Apesar de não citar Rousseau como referência, Benjamin mostra em suas teses sobre
a história muitas afinidades com ele. Contrário a uma concepção evolucionista-
positivista, compreende a marcha da história como catástrofe. Nessa perspectiva, o
“novo” representa a consolidação da ilusão do progresso. A desconstrução desse mito
remete à desnaturalização da barbárie. Uma barbárie que oculta as contradições da
cultura e apaga a memória dos vencidos, impedindo a ruptura com a reprodução dos
mecanismos de dominação que sustentam a violência e a desigualdade social. Nesta
concepção, a reconstrução do passado é feita através do encadeamento de fatos por
uma memória pretensamente neutra. A leitura de Freud e a incorporação de conceitos
da teoria psicanalítica levaram Benjamin a compreender a história como um campo de
disputa em que atuam forças inconscientes. A história é construída por uma memória
interessada, que seleciona o que merece ser lembrado e o que deve ser esquecido. O
passado, por ser uma construção, não é imutável, nem uma espécie de arquivo morto
onde são colocados autores, obras e fatos dignos de registro à disposição dos
pesquisadores. A articulação entre memória e esquecimento como forma de controle
social auxiliar da história se expressa hoje, por exemplo, na disputa que se trava no
Brasil em torno do legado de Paulo Freire; a tentativa de desqualificar sua obra
confirma a lucidez de Benjamin ao afirmar, na tese VI, que “nem os mortos estarão
seguros se o inimigo vencer”.
Martha D’Angelo é doutora em Filosofia pela UFRJ, professora aposentada da Faculdade de Educação da UFF e autora de Arte,
política e educação em Walter Benjamin (Edições Loyola)
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Compor uma coleção consiste num exercício constante de montar uma narrativa, não
só através do ato de selecionar os objetos, mas também de eleger quais deles serão
exibidos. Trata-se de uma ação atravessada pela dialética da reificação e da
reanimação como lembra Hal Foster em “Arquivos da arte moderna”, de 2009. O
colecionador é o mediador da circulação dos objetos, movimentando seu ciclo de vida
e morte (exibição e apagamento). É aquele que não apenas coleta, mas também o que
investe suas memórias e afetos nesse corpo externo, construindo nele a extensão de
sua existência.
Essa prática de colecionar foi, em diferentes textos, analisada por Walter Benjamin
(https://revistacult.uol.com.br/home/tag/walter-benjamin) como um fenômeno da
modernidade presente tanto no habitar burguês, quanto no ambiente urbano. O
burguês coleciona objetos no interior de sua moradia como um antídoto ao anonimato
da cidade, ambiente marcado pelas multidões, pelo apagamento da individualidade e
pela intensa transformação dada pelas reformas urbanísticas como as de Paris no
século 19 por Hausmann. Ele se fecha em sua casa-estojo. Como Benjamin descreve
no texto “Experiência e pobreza”, de 1933, essa relação entre indivíduo e objeto é
representativa, o burguês investe memórias e afetos nele, por isso, se encoleriza ao
ver seus bibelôs quebrados, imagem que simboliza o apagamento de sua existência no
mundo. Habitar nessa condição burguesa significa deixar rastros.
‘O tropeiro’, 1869 de Edouard Manet (Reprodução)
Além do colecionador burguês, Benjamin identifica outra figura marcada pelo hábito
da coleção: o poeta que atua como um trapeiro. Baseia-se no trapeiro descrito por
Charles Baudelaire, indivíduo atraído pelo resto e pelos dejetos do espaço urbano. A
pintura O trapeiro (1869) de Edouard Manet mostra um homem com as roupas puídas
e sujas acompanhado de um pequeno acúmulo de dejetos. Essa tela ilustra a imagem
desse indivíduo à margem que ao caminhar pela cidade monta seu arquivo a partir de
tudo o que a cidade rejeitou. Observa esse espaço a partir do fragmento, do abjeto.
Como coloca Constance von Krüger em “A coleção – um gesto poético: uma leitura
benjaminiana sobre o colecionismo”, dos Cadernos Benjaminianos: “Ao catar imagens
e recolher impressões, de maneira análoga à obtenção de itens pelo colecionador, o
poeta inaugura um elenco de fragmentos”.
Benjamin propõe um olhar sobre a coleção não a partir de seu produto, a biblioteca,
mas sobre o que está por trás da imagem desse conjunto de livros catalogados em
estantes, homogeneizados pela ordenação de tema, título e autor. O foco sobre o
instante entre a ordem e a desordem, descrito por Benjamin, permite uma leitura
sobre a movimentação desses itens da coleção fugindo da imagem da biblioteca como
um mausoléu de objetos encerrado em seu passado, tratando-a como um local de
efeitos mnemônicos. Nesse texto, Benjamin também chama atenção para a figura do
colecionador que se empenha em compor uma estante de livros sem ter lido os
exemplares de sua coleção, da mesma forma que coleciona porcelana de Sévres e não
a usa diariamente. Ele critica esse papel imóvel da coleção através de sua própria
bibliofilia: “Por anos a fio (…) minha biblioteca não consistiu de mais de duas ou três
fileiras que cresciam anualmente cerca de um centímetro apenas. Foi a sua fase
marcial, em que nenhum livro podia nela ingressar, sem que eu houvesse lido”.
Benjamin critica o colecionador que toma o objeto como inócuo e que estabelece uma
relação fetichista, ao obtê-lo, encerrando o ciclo de vida do objeto chumbando-o em
suas prateleiras ou cristaleiras onde essa coleção é exibida.
Na obra Terra de dois rios (Zweistromland, 1985), do artista alemão Anselm Kiefer
(1945), vê-se uma biblioteca formada por duzentos livros de chumbo, dispostos em
duas estantes de aço. O chumbo é um material pesado que inviabiliza o simples ato de
folhear e mover os livros. Ele atuaria da mesma forma que o colecionador fossilizando
sua coleção ao se relacionar com ela apenas pela contemplação do acúmulo de
volumes em suas estantes. Esse trabalho de Kiefer oferece uma leitura sobre a
neutralização da cultura e do conhecimento e traz uma imagem para pensar a
apropriação da biblioteca como um mausoléu, um compêndio de restos de um
passado fechado.
“Quando se quer designar uma pessoa, uma coisa antiquada, inútil fora de uso,
costuma-se dizer: ‘é uma peça de museu’.” Esse trecho de “Casas ou museus?”
(1958), da arquiteta Lina Bo Bardi, também serve de crítica aos museus como
mausoléus. Lina Bo Bardi foi responsável pelo projeto do Masp, uma instituição que
não se detém apenas na conservação das obras de seu acervo. Trata-se de um museu
que dialoga constantemente com o presente seja através de sua arquitetura, seu vão
livre aberto a diferentes apropriações políticas e a atividades culturais, ou a
exposições realizadas pelo museu que propõe um revisitar do acervo refletindo sua
ação no tempo agora. Um exemplo foi a exposição “Acervo em transformação:
mulheres à frente”, intervenção proposta pelo museu na semana do dia internacional
da mulher, 8 de março de 2019. Nela, as obras dos artistas homens foram viradas e
seus versos foram exibidos em cavaletes de vidro, enquanto as produzidas pelas
artistas mulheres eram exibidas de frente. Essa imagem composta na galeria chamou
atenção para a disparidade entre gêneros na arte e também se propôs a dar visibilidade
para a produção dessas artistas mulheres pouco divulgadas pela história da arte. O
tratamento do acervo nessa proposição não toma a coleção como estática, não lida
com essas obras de modo a compor uma imagem do passado como ele realmente foi,
mas se apropriando dela e refletindo de que modo ela relampeja no presente.
Outro fato que permite pensar a coleção no contexto atual é que sua existência não
está necessariamente condicionada a um espaço físico e a uma instituição tal como
um museu, na medida em que os itens colecionados não são objetos e sim
informação. A relação entre memória e arquivo através de novos dispositivos
eletrônicos e das redes sociais tem modificado a maneira como a ação de arquivar
atua no âmbito da cultura e dialoga com o presente. A produção e a coleta de imagens
feitas por usuários de redes sociais como o Instagram é um potencial arquivo do
cotidiano, um mosaico de impressões composto pelo que resta da experiência, a
fotografia. Coletar essas imagens e dispô-las em coleção, assim como o trapeiro
coleta o que restou no ambiente urbano, traz uma possibilidade de lermos a atual
atmosfera de ruína que vivenciamos marcada pela proliferação de imagens de museus
incendiados, desastres ambientais e construções e projetos paralisados. Colecionar é
um exercício de fazer ver.
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Benjamin chama de fantasmagórica a cultura capitalista, a história da cultura, o espaço, o tempo, dentre outros (Reprodução)
Numa carta para Gretel Adorno (datada de 23 de março de 1939), Benjamin admite o
movimento de centralização, de destaque, de uma das concepções presentes nas
Passagens, qual seja o entendimento da cultura da sociedade produtora de mercadorias
como fantasmagoria. O fetichismo em Marx e a reificação em Lukács ganham em
Benjamin um novo vigor, traduzido no uso da fantasmagoria como instrumento de
investigação da cultura fantasmagórica do capitalismo. A perspectiva da totalidade e o
manejo dialético acompanham esta vereda benjaminiana, atenta aos detalhes.
Este autoengano coletivo, uma das condições que definem o sujeito moderno, pode
ser uma pista para os estudos sobre nosso estado de exceção. Tal aparato é chamado
diuturnamente, dos especialistas da academia ao senso comum, de Estado
Democrático de Direito, sendo um dos raros que ainda se valem do foro privilegiado,
um dos poucos que não puniram protagonistas de suas ditaduras, uma das maiores
experiências de convivência com formas de trabalho escravas ou similares à
escravidão, um caso quase sem cura de manutenção cínica da figura masculina,
branca, cristã e rentista à frente de funções públicas, e uma forma de poder
historicamente permeável aos coronelismos, “familismos” e gangsterismos de toda
sorte.
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