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vivendo um momento novo. Se durante dé lização de novas práticas discursivas e de co-
cadas predominou um tipo de atuação pre- lecionamento, bem como o desenvolvimen
servacionista voltado prioritariamente para to de novos estudos. Nunca se colecionou
o tombamento dos chamados bens de pedra tanto, nunca se arquivou tanto, nunca tantos
e cal - igrejas, fortes, pontes, chafarizes, pré grupos se inquietaram tanto com memória,
dios e conjuntos urbanos representativos de patrimônio e museus.
estilos arquitetônicos específicos -, a apro M em ória e patrim ônio: ensaios contemporâ
vação do Decreto 3.551, de 4 de agosto de neos reúne um conjunto expressivo de ca
200 0, que instituiu o inventário e o registro pítulos, resultado de reflexões instigantes e
do patrimônio cultural imaterial ou intangí atuais desenvolvidas por um grupo variado
vel, descortinou um panorama que provo de autores que reconhecem a posição de
cou a alteração radical da antiga correlação centralidade ocupada pelo tema no debate
de forças. contemporâneo.
Parece justo afirmar que uma revolução
silenciosa se processa quando segmentos da
sociedade civil (detentores de saberes tradi
cionais e locais) associados a profissionais no
interior do aparelho de Estado (detentores recina abreu é professora do Programa de Pós-
de saberes específicos) põem em marcha um Graduação em Memória Social e do Departamen
novo conceito de patrimônio cultural, con to de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
tribuindo social e politicamente para a cons Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e
trução de um acervo amplo e diversificado doutora em Antropologia Social pelo Programa de
de expressões culturais em diferentes áreas: Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS)
línguas, festas, rituais, danças, lendas, mitos, do Museu Nacional - Universidade Federal do Rio
músicas, saberes, técnicas e fazeres diversi de Janeiro (UFRJ).
ficados.
As forças desencadeadas pelo debate em mário chagas e professor do Programa de Pós-
torno do patrimônio cultural intangível dese Graduação em Memória Social e do Departa
nham um novo cenário. Essa redefinição pas mento de Estudos e Processos Museológicos da
sa inclusive pelo campo do biopatrimônio Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
e do patrimônio genético, propondo novos (UniRio), doutor pelo Programa de Pós-Graduação
olhares para a relação entre natureza e cul em Ciências Sociais da Universidade do Estado do
tura, e facilitando a compreensão da noção Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador técnico do
de patrimônio natural como uma construção Departamento de Museus do Instituto do Patrimô
que se faz a partir do intangível. No campo nio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
MEMÓRIA E PATRIMÔNIO
ENSAIOS CONTEM PORÂNEOS
Memória e 'patrimônio: ensaios contemporâneos
Regina Abreu; Mário Chagas (orgs.)
© Lamparina editora
Revisão
M ichclle Strzoda (1. cd.)
Ângelo Lessa (2. ed.)
Imagem da capa
Pintura corporal e arte gráfica wajãpi. Seni Wajãpi/2000.
O texto deste livro foi adaptado ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado
em 1990, que começou a Mgorar cm ia de janeiro de 2009.
Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprográ-
fico, fotográfico, gráfico, microfilmagem etc. Estas proibições aplicam-se também às
características gráficas e/ou editoriais. A violação dos direitos autorais é punível co
mo crime (Código Penal. art. 184 e §§; Lei 6.895/80), com busca, apreensão e inde
nizações diversas (Lei 9.610/98 - Lei dos Direitos Autorais - arts. 122, 123. 124 e 126).
M487
2. ed.
Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos / Regina Abreu, Mário Chagas (orgs.)
- 2. ed. - Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.
32c p.: il.
Inclui bibliografia
ISB N 978-85-98271-59-0
Lamparina editora
Rua Joaquim Silva, 98, 2o andar, sala 201, Lapa
Cep 20241-110 Rio de Janeiro RJ Brasil
Tel./fax: (21)2232-1768 lamparina@lamparina.com.br
MEMÓRIA E PATRIMÔNIO
ENSAIOS CONTEMPORÂNEOS
R EG IN A A B R EU • M A R IO C H A G A S
JAMES CLIFFO RD
M ARCIA SANT'ANNA
VERA BEATRIZ S IQ U E IR A
2a edição
lam parina
OS AUTORES
JAMES CLIFFORD
Professor do Programa de História da Consciência da Universida
de da Califórnia (Santa Cruz, Estados Unidos).
MARCIA SANT'ANNA
Diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e doutora
em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA).
MÁRIO CHAGAS
Professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e do
Departamento de Estudos e Processos Museológicos da Universi
dade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UníRio), doutor pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador técnico do Depar
tamento de Museus do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan).
D ia n a de Souza âPinto
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
em Memória Social da Universidade Federai do
Estado do Rio de Janeiro (PPGMS/UniRio)
SUMÁRIO
Introdução
REGINA ABREU E MÁRIO CHAGAS 13
Certificado 19
1. P A T R IM Ô N IO , N A T U R E Z A E C U L T U R A
I II . M E M Ó R IA E N A R R A T IV A S U R B A N A S
Os museus e a cidade
JOSÉ REG1NALD 0 SANTOS GONÇALVES 171
Espelhos urbanos:
ordenação temporal na coleção Castro Maya
VERA BEATRIZ SIQUEIRA 18 7
IV . M E M Ó R IA E E T N IC ID A D E
Museologia e contra-história:
viagens pela Costa Noroeste dos Estados Unidos
JAMES CLIFFORD 254
V . M E M Ó R IA E R E F L E X IV ID A D E
Jo sé Carlos Cevinho
Diretor do Museu do índio
da Fundação Nacional do índio
c e r t if ic o que do Livro de Registro das Formas de Expressão, volume pri
meiro, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional —Iphan,
instituído pelo Decreto número três mil quinhentos e cinquenta e um, de
quatro de agosto de dois mil, consta à folhas hum, o seguinte: “Registro
número hum; Bem cultural: Arte Kusiwa —pintura corporal e arte gráfica
Wajãpi; Descrição: Trata-se de um sistema de representação, uma lin
guagem gráfica dos índios Wajãpi do Amapá, que sintetiza seu modo par
ticular de conhecer, conceber e agir sobre o universo. O sistema gráfico
kusiwa opera como um catalisador para a expressão de conhecimentos e
de práticas que envolvem desde relações sociais, crenças religiosas e tec
nologias até valores estéticos e morais. O excepcional valor desta forma de
expressão está na capacidade de condensar, transmitir e renovar —através
da criatividade dos desenhistas e narradores - todos os elementos par
ticulares e únicos de um modo de pensar e de estar no mundo, próprio
dos Wãjapi do Amapá. A linguagem kusiwa é uma forma de expressão
complementar aos saberes transmitidos oralmente, a cada nova geração,
e compartilhados por todos os membros do grupo. E um conhecimento
que se encontra principalmente nos relatos orais que este grupo indígena,
hoje com quinhentos e oitenta indivíduos, continua a transmitir aos seus
filhos e que explicam como surgiram as cores, os padrões dos desenhos
e as diferenças entre as pessoas. A arte gráfica e a arte verbal dos wajãpi
lhes permite agir sobre múltiplas dimensões do mundo: sobre o visível e
o invisível, sobre o concreto e sobre o mundo ideal. Não se trata de um
saber abstrato e sim de uma prática, que é permanentemente interativa,
viva e dinâmica. A arte Kusiwa se expressa em desenhos e pinturas de cor
pos e objetos, a partir de um repertório definido de padrões gráficos e suas
variantes, que representam, de forma sintética e abstrata, partes do corpo
ou da ornamentação de animais, como sucuris, jibóias, onças, jabotis,
peixes, borboletas; e objetos, como limas de ferro e bordunas. Com deno
minações próprias, os padrões gráficos podem ser combinados de muitas
maneiras diferentes, que não se repetem, mas são sempre reconhecidos
pelos Wajãpi como kusiwa. Trata-se de um acervo cultural que se trans
forma de forma dinâmica, com a inclusão de novos elementos, enquanto
outros podem entrarem desuso ou se modificar através de suas variantes.
O livro “Kusiwa: pintura corporal e arte gráfica wajãpi”, anexo do processo
administrativo n° 01450.000678/2002-27, de registro deste bem cultural,
apresenta exemplares dos vinte e um padrões utilizados hoje pelos Wajãpi
do Amapá, com suas variantes mais recorrentes. As pinturas aplicadas no
corpo não são tatuagens nem decalques, nem são marcas étnicas ou sím
bolos rituais. É tradição dos Wajãpi decorar corpos e objetos por prazer
estético e desafio criativo. Três tipos de tintas são utilizadas: o vermelho
claro é obtido com sementes de urucum amassadas e misturadas com
gordura de macaco ou óleo de andiroba; o preto azulado é obtido com a
oxidação do suco de jenipapo verde misturado com carvão e o vermelho
escuro é uma laca preparada com diversas resinas de cheiro e urucum.
Muitas vezes, essas tintas são aplicadas em justaposição, ou ainda sobre
postas, como, por exemplo, quando os padrões gráficos são pintados com
jenipapo sobre uma camada uniforme de urucum aplicada no rosto e em
todo o corpo. Como pincel, utiliza-se finas lascas de bambu - ou de talos
de folha de palmeira —sobre as quais são enrolados fios de algodão. Partes
do corpo podem ser decorados diretamente com o dedo, ou com chuma
ços de algodão embebidos de tinta. A pintura corporal é uma atividade do
cotidiano, realizada no âmbito familiar. Mulheres pintam seus esposos
e vice-versa; namorados pintam-se entre si; as mulheres pintam seus fi
lhos pequenos, após cada banho, de manhã e à tarde, sempre renovando
as composições de motivos. Por ocasião das festas, todos exibem uma
decoração mais farta, quando a pintura é realçada por colares, bandolei
ras e adornos de plumária. A aplicação de padrões gráficos no corpo não
está relacionada à posição social, nem existem desenhos reservados para
determinadas ocasiões específicas. No entanto, o uso das tintas varia de
acordo com o estado de espírito da pessoa: se está de luto, doente ou sadia
- e com os efeitos pretendidos pelo tipo de tinta e padrões gráficos utili-
zaclos - para atrair, afastar, seduzir ou evitar, para se esconder ou se mos
trar, e assim por diante. A Arte Kusiwa, antes reservada apenas ao corpo,
está sendo aplicada pelos Wajãpi a um conjunto variado de suportes. Fa
zem desenhos nas peças de cerâmica destinada à venda, decoram suas
cuias com motivos incisos, utilizados também na tecelagem de bolsas e
tipoias e no trançado de seus cestos. O uso do papel e de canetas colori
das constitui-se num campo novo e muito apreciado para esta expressão
cultural. Esta descrição corresponde à síntese do conteúdo do processo
administrativo n° 01450.000678/2002-27 e Anexos, no qual se encontra
reunido o mais completo conhecimento sobre este bem cultural, contido
em documentos textuais, bibliográficos e audiovisuais. O presente Re
gistro está de acordo com a decisão proferida na trigésima oitava reunião
do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada em onze de
dezembro de dois mil c dois. Data do Registro: vinte de dezembro de dois
mil e dois”. E por ser verdade, eu, Fátima Lúcia Nascimento Cisneiros,
Diretora do Departamento de Identificação e Documentação do Instituto
do Patrimônio Histórico c Artístico Nacional —Iphan, lavrei a presente
certidão que vai por mim datada e assinada em seis vias. Brasília, Distrito
Federal, vinte de dezembro dc dois mil e dois.
Titulação
Carlos jH eck
Presidente do iphan
I. PATRIMÔNIO, NATUREZA E CULTURA
Referências
nologv, nation, and humanity in thc work of Marcei Mauss. In: Ja m es,
W.; A llen , N.J. (orgs.) Marcei Mauss: a centenary tribute. Nova York/
Oxford: Berghan Books, 1998.
A EMERGÊNCIA DO PATRIMÔNIO GENÉTICO E A NOVA
CONFIGURAÇÃO DO CAMPO DO PATRIMÔNIO*
R EG IN A A BREU
Referências
2. E s s e a c e r v o e n c o n t r a - s c r e u n id o e m in s t itu iç õ e s c o m o a D is c o t e c a O n e y d a A lv a re n g a ,
e m S ã o P a u lo .
p. 83-91). A principal herança desse período foi a introdução, na
Constituição Federal, de um conceito mais largo de patrimônio,
que incluiu os bens de natureza material e imaterial “portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes gru
pos formadores da sociedade brasileira”.
O Instituto do Registro, criado pelo Decreto 3.551/2000, não é
um instrumento de tutela e acautelamento análogo ao tombamen-
to, mas um recurso de reconhecimento e valorização do patrimô
nio imaterial, que pode também ser complementar a este. O re
gistro corresponde à identificação e à produção de conhecimento
sobre o bem cultural de natureza imaterial e equivale a documen
tar, pelos meios técnicos mais adequados, o passado e o presente
dessas manifestações, em suas diferentes versões, tornando tais
informações amplamente acessíveis ao público. O objetivo é man
ter o registro da memória desses bens culturais e de sua trajetória
no tempo, porque só assim se pode “preservá-los”. Como proces
sos culturais dinâmicos, as referidas manifestações implicam uma
concepção de preservação diversa daquela da prática ocidental, não
podendo ser fundada em seus conceitos de permanência e auten
ticidade. Os bens culturais de natureza imaterial são dotados de
uma dinâmica de desenvolvimento e transformação que não cabe
nesses conceitos, sendo mais importante, nesses casos, registro e
documentação do que intervenção, restauração e conservação.
O conhecimento gerado sobre essas formas de expressão, no
processo de registro, permite identificar de modo bastante preciso
as maneiras mais adequadas de apoio à sua continuidade. A viabi
lização desse apoio pode ir, a exemplo do citado sistema “Tesouros
humanos vivos”, desde a ajuda financeira a detentores de sabe-
res específicos, com vistas à sua transmissão, até a facilitação de
acesso a matérias-primas. O Decreto 3.551/2000 estabeleceu que
essas ações serão desenvolvidas no âmbito do Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial, que tem como objetivo implementar uma
política pública de identificação, inventário e valorização desse pa
trimônio.
Os bens selecionados para registro serão, à semelhança dos bens
tombados, inscritos em livros denominados, respectivamente, Livro
de registro dos saberes (para o registro de conhecimentos e modos
de fazer), Livro das celebrações (para as festas, os rituais e os fol
guedos), Livro das formas de expressão (para a inscrição de mani
festações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas), e Livro
dos lugares (destinado à inscrição de espaços onde concentram-
se e reproduzem-se práticas culturais coletivas). Ao considerar a
dinâmica dessas manifestações e com o objetivo de acompanhar
suas transformações, prevê-se que o registro seja refeito, no míni
mo, a cada dez anos.
Paralelamente aos estudos sobre o registro do patrimônio ima-
terial, o Iphan também desenvolveu pesquisas para a elaboração
de uma metodologia de inventário de referências culturais — ins
trumento que subsidiará as ações de registro e realizará um recen-
seamento mais amplo de todas essas manifestações no país. Tra
balhando com as categorias instituídas pelo Decreto 3.551/2000, o
Inventário Nacional de Referências Culturais (IN R C ) é um ins
trumento de pesquisa que busca dar conta dos processos de produ
ção desses bens, dos valores neles investidos, de sua transmissão e
reprodução, bem como de suas condições materiais de produção.
Operando com o conceito de referência cultural, 0 IN R C supera a
falsa dicotomia entre patrimônio material e imaterial, tomando-os
como faces de uma mesma moeda: a do patrimônio cultural.
O IN R C , em sua forma atual, aprofunda reflexões e experiên
cias anteriores de inventário no âmbito do Iphan, resultando mais
especificamente de uma experiência-piloto, realizada em 1999,
na região do Museu Aberto do Descobrimento, em Porto Seguro,
Bahia. Coordenada pelo antropólogo Antônio Augusto Arantes, a
experiência foi levada a efeito em estreita interlocução com a equi
pe Técnica do Departamento de Identificação e Documentação
do Iphan. O inventário organiza-se conforme as categorias estabe
lecidas no Decreto 3.551/2000 para o registro do patrimônio imate
rial - ofícios e modos de fazer, celebrações, formas de expressão
e lugares - , acrescidas da categoria “edificações", pertencente ao
universo tradicional do patrimônio material ou construído.
Como método, o IN R C prevê três níveis sucessivos de aborda
gem. No levantamento preliminar, são realizadas pesquisas em
fontes secundárias e em documentos oficiais, entrevistas com a
população e contatos com instituições, propiciando um mapea
mento geral dos bens existentes num determinado sítio e a seleção
dos que serão identificados. Na fase de identificação e documen
tação, são aplicados os formulários do inventário que descrevem e
tipificam os bens selecionados: mapeiam as relações entre os itens
identificados e outros bens e práticas relevantes; identificam-se,
portanto, os aspectos básicos dos processos de configuração da
manifestação, seus executantes, seus mestres, seus aprendizes e
seu público, assim como suas condições materiais de produção
(matérias-primas, acesso a estas, recursos financeiros envolvidos,
comercialização, distribuição etc.). A etapa inclui ainda uma do
cumentação, por meio de registro audiovisual mínimo, ficando seu
detalhamento e sua complementação como atividade especializa
da a ser realizada na fase final de registro. O estágio seguinte, o re
gistro propriamente dito, corresponde a um trabalho técnico, mais
aprofundado, de natureza eminentemente etnográfica, que poderá
ou não ser empreendido com vistas à inscrição do bem num dos
Livros criados pelo Decreto 3.551/2000. Tais registros também de
vem ser periodicamente atualizados, para o acompanhamento da
evolução e das transformações sofridas pelo bem.
Os instrumentos de reconhecimento e valorização dos bens cul
turais imateriais criados pelo governo brasileiro consideram, então,
a natureza dinâmica e processual desses bens, promovendo ainda
a interação dos aspectos materiais e imateriais do patrimônio cul
tural que proporcionam uma concepção mais rica e ampla. Novas
e instígantes questões, a partir daí, serão postas à prática patrimo
nial tradicional. De início, uma atenção maior ao uso e à prática dos
espaços protegidos, mas também, e sobretudo, a uma ideia de iden
tidade e uma noção de autenticidade mais complexas e dinâmicas.
Referências
3. T a m b é m n a c id a d e d e B e lé m e c m m u n ic íp io s v iz in h o s o c o rre a n u a lm e n t c , n o s e g u n d o
d o m in g o d e o u t u b ro , o C ír io d e N a z a r é , c o n s id e r a d o a m a io r fe s t a d a c r is ta n d a d e p e lo
n ú m e ro d e p e s s o a s q u e re ú n e , e q u e ta m b é m n ã o fig u ra n o re p e rtó rio o fic ia lm e n t e c o n s t i
tu íd o d o p a trim ô n io c u lt u r a l b ra s ile iro .
4. ü D e c r e t o 3 .5 5 1. d e 4 d e a g o s to d e z c o o , "in s titu i o R e g is tr o d e B e n s C u lt u r a is d e N a
tu re z a Im a te ria l q u e c o n s titu e m p a trim ô n io c u lt u r a l b r a s ile ir o , c ria o P ro g ra m a N a c io n a l
d o P a t rim ô n io I m a t e r ia l c d á o u t r a s p r o v id ê n c ia s ’. S o b r e o s tra b a lh o s q u e c u lm in a r a m n a
p u b lic a ç ã o d o d e c r e t o , v e r p u b lic a ç ã o O registro do patrimônio imaterial - dossiê final ►
universo de bens considerados pelo Estado patrimônio histórico e
artístico nacional.
N a verdade, do conjunto de bens e manifestações culturais ci
tados, apenas uma pequena parte foi, até agora, integrada ao p a
trimônio cultural brasileiro, constituído por legislação federal:
o Paço Imperial, o Chafariz e a antiga Catedral, na Praça XV; o
conjunto arquitetônico e paisagístico Ver-o-Peso, em Belém ; c as
edificações já mencionadas em C oiás. São esses os bens passí
veis de tombamento, e a leitura deles feita, como incorporados
ao patrimônio, está centrada em seus aspectos arquitetônicos,
integrando marginalmente dados históricos e análises de sua re
lação com a cidade e a paisagem .5
A Constituição Federal de 1988 (2003), em seu artigo 216, en
tende como patrimônio cultural brasileiro
6. E m d e p o im e n to a o C o n s e l h o F e d e r a l d e C u lt u r a , e m ja n e ir o d e 19 6 8 , R o d rig o M e lo
F r a n c o d e A n d r a d e ( 19 8 7 , p . 7 1 ) diz q u e , e n t r e “ o s b e n s a p r o t e g e r d e v a lo r a r q u e o ló g ic o ,
h is tó ric o , a r t ís t ic o e n a tu ra l [ . . . ] a v u lta m , p o r é m , o s m o n u m e n t o s a r q u it e t ô n ic o s , c o m o
n ú c le o p r im a d a ) d e n o s s o p a tr im ô n io ” .
A p r o t e ç ã o d o s m o n u m e n t o s a r q u e o ló g ic o s e p r é - h is t ó r ic o s é o b je to d e le g is la ç ã o e s p e
c íf ic a , a L e i 3 .9 2 4 , d e 2 6 d e ju lh o d e 19 6 1.
sociedade brasileira' (Brasil, 2003, p. 146-147) a que não se podia
aplicar, até recentemente, nenhum instrumento legal que os cons
tituísse como patrimônio. Isso significa que muitos deles poderíam
desaparecer sem deixar nenhum vestígio, seja material, seja na
memória da nação, pelo fato de não terem sido considerados “de
valor excepcional”, conforme determina o artigo 1- do D ec.-Lei 25,
de 30 de novembro de 1937, que cria 0 tombamento, ou por tratar
de manifestações de caráter processual, a que não se aplica qual
quer forma de proteção que tenha por objetivo fixar determinada
feição física do bem .8
A limitação, durante mais de sessenta anos, dos instrumentos
disponíveis de acautelamento teve como consequência a produ
ção de uma compreensão restritiva do termo “preservação”, que
costuma ser entendido exclusivamente como tombamento. Tal si
tuação veio reforçar a ideia de que as políticas de patrimônio são
intrinsecamente conservadoras e elitistas, uma vez que os critérios
adotados para 0 tombamento terminam por privilegiar bens que
referem os grupos sociais de tradição europeia, que, no Brasil, são
aqueles identificados com as classes dominantes.
A consciência desses problemas, que também ocorrem, com as
devidas diferenças, na grande maioria dos estados que desenvol
vem políticas de patrimônio, tem levado, nos foros nacionais e in
ternacionais, como a Unesco, a soluções diferenciadas, visando a
ampliar a abrangência de tais políticas.9 Esse movimento é relativa
mente recente e, na Unesco, é fruto tanto da crítica ao eurocentris-
mo da noção tradicional de patrimônio histórico e artístico quan
to da reivindicação de países e grupos de tradição não europeia,
8. C a b e l e m b r a r o p r o c e s s o d e t o m b a m e n t o d o S a n t u á r io d e B o m J e s u s d a L a p a , n a B a h ia ,
q u e fo i a r q u iv a d o p o r q u e o re la to r, o a n t ro p ó lo g o L u ís d e C a s t r o F a r i a s , e m 1 9 6 8 , v ia u m
c o n f l it o e n t r e a c o n s e r v a ç ã o d a e d if ic a ç ã o e s e u u s o , a p r á t ic a d e “ u m c u lt o d e c u n h o
p o p u la r ” q u e tin h a u m a d in â m ic a p r ó p r ia e n v o lv e n d o “ a m p lia ç ã o , r e n o v a ç ã o e m e s m o in o
v a ç ã o ” d o e s p a ç o . A r g u m e n t o s e m e lh a n t e fo i in v o c a d o c o m o o b je ç ã o a o t o m b a m e n to do
T e r r e ir o d a C a s a B r a n c a , e m 19 8 4 , m a s , n e s s e c a s o , o b e m fo i in s c r it o n o Livro histórico e
no Livro arqueológico, etnográfico e -paisagístico.
9. V e r L é v i- S t r a u s s (in é d ito ). O a n t r o p ó lo g o a c o m p a n h o u a t iv a m e n t e o s tr a b a lh o s d c p r e
p a r a ç ã o d a p ro p o s ta d o d e c r e t o , d e s d e o S e m in á r io d e F o rta le z a , e m 19 9 7 . V e r t a m b é m 0
te x to p u b lic a d o n o d o s s iê , c it a d o n a n o ta 4 .
no sentido de verem reconhecidos os testemunhos de sua cultura
como patrimônio cultural da humanidade.
No Brasil, a publicação do Decreto 3.551/2000 insere-se numa
trajetória a que se vinculam as figuras emblemáticas de Mário de
Andrade e de Aloísio M agalhães, mas em que se incluem também
patrimônio cultural brasileiro, montada a partir de 1937 .101 Contri
buem, ainda, para essa reorientação não só o interesse de univer
sidades e institutos de pesquisa em mapear, documentar e analisar
as diferentes manifestações da cultura brasileira, como também
a multiplicação de órgãos estaduais c federais de cultura, que se
empenham em construir, via patrimônio, a “identidade cultural”
das regiões em que estão situados.1'
Entretanto, ante a existência, hoje, de um contexto favorável à
ampliação do conceito de patrimônio cultural e à maior abrangên
cia das políticas públicas de preservação, ficam no ar algumas per
guntas: o que se entende por “patrimônio imaterial”, se é que essa
expressão não constitui uma contradição em termos? Qual 0 objeti
vo do Estado ao criar um instrumento específico para preservar ma
nifestações que não podem e não devem ser congeladas, sob o risco
de, assim, interferir-se em seu processo espontâneo? E como evitar
que esse registro venha constituir um instrumento “de segunda
classe”, destinado às culturas materialmente “pobres”, porque a
seus testemunhos não se reconhece o estatuto de monumento?12
Não se pretende aqui responder a essas perguntas, apenas fazer
algumas considerações que auxiliem no mapeamento dessa nova
10. E s s a o b s e r v a ç ã o n ã o d e v e s e r e n t e n d id a c o m o u m a c r ít ic a à a ç ã o p a s s a d a d o S P H A N ,
o q u e s ig n ific a r ia u m a n a c r o n is m o ( F o n s e c a , 19 9 7 , p . 20 ).
1 1 . U m e x e m p lo é 0 p ro je t o “ C o n h e c e r p a ra p r e s e r v a r '’ , a p r e s e n t a d o a o p r ê m io R o d r i
g o M e lo F r a n c o d e A n d r a d e , e m 19 9 7 , p e la S e c r e t a r ia d e E s t a d o d a E d u c a ç ã o e C u l t u r a
d o T o c a n t in s , q u e s e p r o p õ e a fa z e r u m in v e n tá rio e m n o v e c id a d e s h is tó r ic a s d o e s ta d o
r e c é m - c r ia d o , a lia n d o a s s im à e m a n c ip a ç ã o p o lític a u m a " e m a n c ip a ç ã o '’ s im b ó lic a . A p r o
p ó s ito , u m im p o r ta n te m a te r ia l p a ra o e s t u d o d o p a tr im ô n io c u lt u r a l d e n a t u r e z a im a te ria l
n o B r a s il é c o n s t it u íd o p e lo s tr a b a lh o s a p r e s e n t a d o s a o s p r ê m io s S ílv io R o m e r o , d o C e n t r o
N a c io n a l d e F o lc lo r e c C u l t u r a P o p u la r d a F u n a r t c , e R o d r ig o M e l o F r a n c o d e A n d r a d e ,
d o ip h a n .
12. A “ C a r t a d e V e n e z a ’’ , d e 19 6 4 , e s t e n d e a n o ç ã o d e m o n u m e n t o h is tó r ic o “ t a m b é m à s
o b ra s m o d e s t a s q u e t e n h a m a d q u ir id o c o m o te m p o u m a s ig n ific a ç ã o c u lt u r a l” ( C a r t a s
P a t rim o n ia is , 19 9 5 , p . 10 9 ).
representação, mais ampla, do patrimônio cultural brasileiro, e a
traçar políticas inclusivas, que contribuam para aproximar o patri
mônio da cultura produzida no país.
13 . V e r R u b in o ( 1 9 9 1) . V e r t a m b é m a m e n s a g e m d o e n t ã o m in is t r o d a C u l t u r a , F r a n c is c o
V Veffort, a o C o n s e l h o C o n s u lt iv o d o P a t rim ô n io C u l t u r a l , p ro fe r id a c m 2 d e d e z e m b r o d e
19 9 7 , n a s e s s ã o c o m e m o r a t iv a d o s s e s s e n t a a n o s d o Ip h a n , e p u b lic a d a n o d o s s iê r e fe r id o
na n o ta 4.
Sobre a noção de patrimônio imaterial
:u . H a ja v is t a o s e f e it o s in ó c u o s d o t o m b a m e n t o d a e d ific a ç ã o e d o s e q u ip a m e n t o s d a f á
b ric a d e v in h o d e c a ju T it o S ilv a , e m J o ã o P e s s o a , re a liz a d o e m 1 9 8 1, v is a n d o à p r e s e r v a ç ã o
i e s s e m o d o d e fa z e r.
Em segundo lugar, vem esclarecer certos mal-entendidos, como
o que restringe a ideia de patrimônio imaterial a folclore e/ou cul
tura popular. Embora essas áreas venham a ser das mais benefi
ciadas por uma política de patrimônio mais abrangente, na medida
em que têm ficado bastante desassistidas pelas políticas públicas
de cultura, não é a suposta imaterialidade ou, pior, uma hipotéti
ca “pobreza” de seus testemunhos materiais que constituiríam o
diferencial em relação a bens culturais de natureza material, que
seriam assim associados às manifestações de caráter erudito.15
Em terceiro lugar, a questão abre espaço para estender a grupos
e nações de tradição não europeia as políticas de patrimônio cul
tural. Foi a pressão de países como o Japão e outros do Oriente e
da África, manifestada na conferência de Nara, realizada em 1994,
no Japão, e em outras ocasiões, que levou a uma revisão dos cri
térios da U nesco para inscrição na lista do patrimônio mundial.
A impossibilidade de incluir na lista bens como o Templo de Ise,
naquele país, que é sistematicamente destruído e reconstruído no
mesmo local,16 ou a arquitetura no Norte da África, cujas edifica
ções devem ser constantemente refeitas devido à ação do vento,
constituía um desafio para o Com itê do Patrimônio M undial. Nos
dois casos, e em outros tantos, a proteção física do bem é inviá
vel, mesmo porque essa não é a lógica de sua preservação. O que
importa para esses grupos sociais é assegurar a continuidade de
um processo de reprodução, preservando os modos de fazer e o
respeito a valores como 0 do ritual religioso, no caso do Templo de
Ise, e o sentido de adequação da técnica construtiva às condições
geológicas e climáticas, no caso da arquitetura em terra do deserto
norte-africano.
A ampliação da noção de patrimônio cultural é, portanto, mais
um dos efeitos da globalização, na medida em que ter aspectos de
sua cultura, até então considerada por olhares externos como tos
ca, primitiva ou exótica, reconhecidos como patrimônio mundial
15 . S o b r e e s s a s q u e s t õ e s , v e r o s te x to s d o S e m in á r io " F o lc lo r e c C u lt u r a P o p u la r" , p r o m o v i
d o p e lo e n t ã o In s t itu t o N a c io n a l d o F o lc lo r e d a F u n a r t e , e m 19 8 8 (2 0 0 0 ).
16 . E m 19 9 3 , o te m p lo fo i r e c o n s t r u íd o p e la 6 3 a v e z .
contribui para inserir um país ou um grupo social na com unidade
internacional, com benefícios não só políticos, mas também eco
nômicos.
Por outro lado, essa abertura no processo de produção dos pa
trimônios culturais apresenta novos problem as para uma prática
de caráter essencialm ente seletivo, e que tem sido restrita a espe
cialistas. Se os critérios de atribuição de valor tornaram-se mais
flexíveis, se há maior preocupação com a dimensão política dessa
prática social, o que significa a participação de novos atores e um
permanente questionam ento dos critérios adotados, há estudiosos
que alertam para o risco de banalização no pressuposto de que tudo
pode sc tornar patrimônio (Chastel e Babelon, 1980, p. 5-32). C abe,
então, a pergunta: banalização ou dessacralização, como conside
ram outros estudiosos, que veem nesse movimento um a orientação
democratizante?
O fato é que, tendo em vista fenôm enos recentes com o os in
tensos fluxos migratórios, os processos de com unicação cada vez
mais ágeis, a presença e a interpenetração de tradições culturais
distintas, m esm o em países de cultura consolidada, com o a Fran
ça, movimentos que podem ser resumidos no que tem sido deno
minado “desterritorialização da cultura” (Gupta e Fergusson, 2000,
p. 31-49), não há dúvidas de que essa am pliação no conceito de
patrimônio cultural contribui para aproximar as políticas culturais
dos contextos m ultiétnicos, multirrelígiosos e extrem am ente hete
rogêneos, que caracterizam as sociedades contem porâneas.
N esse raciocínio, torna-se necessário ampliar também o repertó
rio das práticas de preservação, que até recentem ente eram identi
ficadas, no Brasil, exclusivam ente com o tombamento. N o caso das
m anifestações citadas no início c ao longo deste capítulo, o que se
pode preservar são registros (escritos, sonoros, visuais etc.) dessas
formas de expressão e informações sobre 0 contexto cm que ocor
rem, assim como os sentidos que têm para os diferentes produtores
e destinatários, 0 que tem um interesse evidente para a sociedade
(Fonseca, 2000).
A preservação da memória de manifestações, como interpre
tações musicais e cênicas, rituais religiosos, conhecimentos tra
dicionais, práticas terapêuticas, culinárias e lúdicas, técnicas de
produção e de reciclagem, a que é atribuído valor de patrimônio
cultural, tem uma série de efeitos:
1) aproxima o patrimônio da produção cultural, passada e presente;
2) viabiliza leituras da produção cultural dos diferentes grupos so
ciais, sobretudo daqueles cuja tradição é transmitida oralmente,
que sejam mais próximas dos sentidos que essa produção tem
para seus produtores e consum idores,'7 dando-lhes voz não ape
nas na produção, mas tam bém na leitura e na preservação do
sentido de seu patrim ônio;
3) cria melhores condições para que se cumpra o preceito consti
tucional do “direito à memória” como parte dos “direitos cultu
rais” de toda a sociedade brasileira;
4) contribui para que a inserção em novos sistemas, como o mer
cado de bens culturais e do turismo, de bens produzidos em con
textos culturais tradicionais possa ocorrer sem o comprometi
mento de sua continuidade histórica, contribuindo, ainda, para
que essa inserção aconteça sem 0 comprometimento dos valores
que distinguem esses bens e lhes dão sentido particular.
Considerações finais
17 . E m r e c e n t e v is it a à s n o v a s s a la s d o M u s e u d o L o u v r e , e m q u e e s t ã o e x p o s t a s p e ç a s m u i
to a n t ig a s d e c u lt u r a s a fr ic a n a s , a s iá t ic a s e d a O c e a n ia , o u v i d o c h e f e d o S e r v iç o C u lt u r a l
d o M u s e u , J e a n G a la r d , u m a o b s e r v a ç ã o s o b r e a d ific u ld a d e d o s c u r a d o r e s d e a p r e s e n t a r e
c o n t e x t u a liz a r a s p e ç a s , p o r fa lt a , p r a t ic a m e n t e a b s o lu t a , d e in fo r m a ç õ e s c o m p le m e n t a r e s ,
o q u e o s le v a v a d e m o d o in e x o rá v e l a fa z e r u m a le it u r a p r e d o m in a n t e m e n t e e s t é t ic a d o s
b e n s , p e lo q u e v in h a m s e n d o c r it ic a d o s s o b r e t u d o p o r h is t o r ia d o r e s e a n t ro p ó lo g o s .
Para os que mantêm esses estilos de vida, o propósito pode ser
o de preservar o conhecimento tradicional e um valioso modo de
vida para as futuras gerações; pode ser, igualmente, a sobrevivência
física, uma vez que a adaptação tradicional ao meio ambiente é ca
paz de evitar um estilo de vida, em última instância, insustentável.
Para um Estado, o objetivo pode ser o de manter tratamento médi
co local de baixo custo para populações no limite da subsistência;
para outros, a intenção pode ser a de ganhar tempo para inventariar
e explorar exaustivamente recursos, como o conhecimento tradi
cional de propriedades vegetais (médicas, biológicas e agrícolas),
de modo a apropriar-se delas para ganho econômico; para cientis
tas, o objetivo pode ser o de viabilizar a pesquisa sobre modos de
vida sustentáveis ou sobre diversidade do desenvolvimento huma
no como evidenciado, por exemplo, nos milhares de línguas hoje
ameaçadas de extinção, ou na sobrevivência de espécies desconhe
cidas fora de sua comunidade, como parte dos recursos biológicos
da Terra. Ainda outros grupos podem querer utilizar elementos tra
dicionais em sua cultura como fonte de renda, a ser autorizada para
uso de outros ou reservada para eles próprios, a fim de prover-lhes
recursos econômicos. Pode-se preservar um modo único de vida
como uma fonte de dignidade, de orgulho cultural e de identidade,
ou usá-lo como uma atração turística para gerar renda.
Não é coincidência o fato de que, no texto citado, patrimônio
natural e cultural praticamente não se diferenciem. Cada vez mais,
a preocupação em preservar está associada à consciência da im
portância da diversidade - seja a biodiversidade, seja a diversidade
cultural —para a sobrevivência da humanidade.
No caso da biodiversidade, há uma clareza cada vez maior, por
parte da opinião pública, de que se trata de um patrimônio de
todos os cidadãos, acima de interesses particulares. Talvez as ori
gens do movimento ambientalista, que nasce associado à pesquisa
científica e às organizações da sociedade, tenham favorecido essa
mobilização em torno da necessidade de preservar o meio am
biente, dificultando a apropriação dessa “causa” por facções polí
ticas ou sua associação a posturas ideológicas, como elitismo ou
conservadorismo.
Por sua vez, o conceito de patrimônio histórico e artístico é for
mulado tendo como pano de fundo a questão nacional. Raros são
os autores que, como Aloís Riegí (1984), pensam a questão do pa
trimônio cultural a partir da dinâmica de valores que o constitui.
Dado 0 modo como se implantaram as políticas de patrimônio,
predominantemente associadas à construção dos Estados-nação
e de uma representação de “identidade nacional”, e dada também
sua precária apropriação pela sociedade como um todo, essas po
líticas terminaram por referir-se predominantemente àqueles gru
pos sociais que detêm o poder de produzir a representação hege
mônica do “nacional”.
Sem dúvida, a ampliação do conceito de cidadania - 0 que im
plica reconhecimento dos “direitos culturais” de diferentes grupos
que compõem uma sociedade, entre eles 0 direito à memória, ao
acesso à cultura e à liberdade de criar, como também reconheci
mento de que produzir e consumir cultura são fatores fundam en
tais para o desenvolvimento da personalidade e da sociabilidade
- veio contribuir para que o enfoque da questão do patrimônio
cultural fosse ampliado para além da questão do que é “nacional”,
beneficiando-se do aporte de compor como a Antropologia, a So
ciologia, a Estética e a História.
Outra analogia com a questão ambiental diz respeito à posição,
nesse novo cenário, dos países em desenvolvimento. Nesse caso,
menos se torna mais: a manutenção, em geral involuntária, dos
recursos naturais, torna-os “ricos” nesse sentido,'6 assim como a
sobrevivência de formas de vida, ou melhor, de “formas de ex
pressão” e “modos de criar, fazer e viver” diversificados, em geral
mais apropriados aos recursos disponíveis na região, torna não só
esses recursos, como os conhecimentos a eles associados, uma
“riqueza” que tem sido cobiçada e, em muitos casos, expropriada
pelos países desenvolvidos.’9 Pensar em formas de preservar esse 18
9
18 . E s s a fo i a p r in c ip a l p r e m is s a d a s id é ia s d e s e n v o lv id a s p o r A lo ís io M a g a lh ã e s (19 8 5 ) c d o
tra b a lh o q u e d e s e n v o lv e u à fr e n t e d a s d ife r e n t e s in s t it u iç õ e s p ú b lic a s q u e d ir ig iu , d e 19 7 5
a 19 8 2 , a n o d c s e u fa le c im e n t o .
19 . N o B r a s il, e s s e a s s u n t o te m s id o o b je to d o s t r a b a lh o s d o G r u p o I n te r m in is te r ia ! d e P r o
p r ie d a d e I n t e le c t u a l ( G íp i) , q u e fu n c io n a n a C a s a C iv il d a P r e s id ê n c ia d a R e p ú b lic a , e m
q u e h á u m s u b g r u p o q u e tra ta e s p e c ift c a m e n t e d o s c o n h e c im e n t o s t r a d ic io n a is .
matrimônio, como também sua relação com seus produtores e con
sumidores, passa a ser estratégica para o desenvolvimento de tais
regiões.
Como se vê, as questões levantadas por essa nova concepção,
ampliada, de patrimônio cultural, abrem em muito o leque de cam-
nos de saberes e de instituições que passam a se envolver, direta
:>u indiretamente, com a produção, gestão e promoção desse patri
mônio. No mesmo sentido, as novas questões levam a sociedade
a uma compreensão mais rica da noção de patrimônio cultural, e
certamente mais próxima de seus interesses.
Para finalizar, o processo de releitura da questão do patrimônio
não se esgota no nível conceituai. Implica, sim, o envolvimento de
novos atores e a busca de novos instrumentos de preservação e pro
moção. Frente a esse novo quadro, muito mais complexo e desa
fiador, é fundamental que se formulem e se implementem políticas
que tenham como finalidade enriquecer a relação da sociedade
com seus bens culturais, sem que se perca de vista os valores que
ustificam a preservação.iC
Falar em políticas significa ir além dos conceitos, embora sem-
nre os tendo como referência. Significa formular diretrizes, defi
nir critérios e prioridades, elaborar projetos, realizar intervenções,
mantendo sempre como parâmetro a tensão entre necessidades,
demandas e recursos disponíveis. E, ainda que os conceitos con-
:inucm imprecisos, é imperioso passar da teoria à prática, na es-
Derança de que as experiências venham, como de costum e, en
riquecer a reflexão, numa dialética do processo de produção do
conhecimento e de transformação da realidade.
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PATRIMÔNIO INTANGÍVEL! CONSIDERAÇÕES INICIAIS*
RUBEN C E O R G E O LIV EN
* C o m u n i c a ç ã o a p r e s e n t a d a n a m e s a - r e d o n d a "P a t r im ô n io s e m e r g e n t e s c n o v o s d e s a fio s :
d o g e n é t ic o a o in t a n g ív e !” , d u r a n t e a 2 6 a R e u n iã o A n u a ! d a A s s o c ia ç ã o N a c io n a l d c P ó s -
G r a d u a ç ã o e m C i ê n c i a s S o c ia is , r e a liz a d a e m C a x a m b u , e m 2 3 d e o u t u b r o d e 2 0 0 2 .
A opção feita naquela época foi realizada pela arquitetura de elite.
Mário de Andrade propôs, em 1936, um projeto de lei em que tam
bém fossem incluídos, no patrimônio brasileiro, os falares, os can
tos, as lendas, as magias, a medicina e a culinária indígenas. M as
Getulio Vargas e Gustavo Capanem a, então ministro da Educação
e Cultura, optaram pelo patrimônio edificado, com o consequente
tombamento de igrejas barrocas, casas-grandes e outras formas de
pedra e cal.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 216, ampliou a
definição de patrim ônio cu ltu ral b ra sileiro .1 Essa conceítuação
mais abrangente de patrimônio cultural abriu espaço não somente
para as expressões da cultura popular, mas também para os “bens
imateriais”, que formam o patrimônio intangível. O Decreto 3.551,
de 4 de agosto de 2000, “institui 0 Registro de Bens Culturais de
Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro,
cria o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial e dá outras pro
vidências” . E ssa peça de legislação determina que o “Registro de
Bens Culturais de Natureza Im aterial” seja constituído em quatro
livros: “ I - Livro de registros de saberes; II - Livro de registro das
celebrações; III - Livro de registro das formas de expressão; IV -
Livro de registro dos lugares”.
O Estado brasileiro tem uma longa tradição de zelar pelos bens
edificados que compõem o patrimônio material, E sses bens, por
seu caráter único e pelo fato de serem vistos como depositários de
uma memória que aponta para a identidade nacional, precisam
ser defendidos. Daí a existência de instituições como 0 C o n se
lho Consultivo do Patrimônio Cultural e 0 Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsáveis pelo tomba
mento e pela preservação dos bens que precisam ser mantidos.
Para isso, existe uma legislação que procura evitar danos ou m odi
ficações aos bens tombados. Uma igreja barroca deve ser preser
vada a fim de que perm aneça como foi construída.
A distinção entre bens materiais e bens imateriais não é pacífica.
As propriedades quím icas da água benta e da água com um são
D e s t a q u e p a r a o s in c is o s I-V.
as mesmas; entretanto, a primeira água, ao contrário da segunda,
tem poder sagrado, que lhe foi conferido pela Igreja. Um a ban
deira é um pedaço de tecido ao qual os habitantes de uma nação
atribuem um significado igualmente sagrado. A comida é material,
mas a culinária é imaterial. Com o separar ambas?
Quando se fala em patrimônio artístico e histórico, o referente,
em geral, são bens materiais: igrejas, casas, estátuas, quadros etc.
Com o, entretanto, tratar daqueles bens que são imateriais e cons
tituem o que é hoje chamado de patrimônio intangível? Com o
tratar os considerados bens imateriais? Desejam os que um ritual,
uma vez registrado, nunca mais se modifique? Um prato típico
definido pode ser alterado? Os falares populares são passíveis de
modificação? Com o se percebe, trata-se de algo qualitativamente
diferente do patrimônio cultural e que necessita ser elaborado do
ponto de vista conceituai.
Em 2002, foi apresentada uma proposta de registrar o acarajé no
Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. Isso significa que
seriam definidos os ingredientes e a forma ‘ correta” de preparar tal
quitute. Entretanto, as formas de preparar alimentos modificam-se
com o tempo. Além de ser registrado, o acarajé também está sendo
“congelado”. O que ocorre quando se registra uma forma de celebra
ção, como o Quarup (proposta pela Fundação Roberto Marinho),
que, com o tempo, deixa de ser executada? 0 Estado obviamente
não pode impor um ritual a um grupo que não quer mais praticá-lo.
Os “bens imateriais” não só são de difícil definição, mas também só
têm sentido se significarem uma prática regular.
E importante, no entanto, dar-se conta de que o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial dá ao Estado a possibilidade de
atuar na área do patrimônio cultural a um custo menor que o en
volvido em zelar pelos bens culturais físicos. O registro de um bem
imaterial o insere num inventário de bens prestigiosos, que equivale
quase a uma Legião de Honra. Isso significa um reconhecimento
que, muitas vezes, é extremamente importante para os agentes en
volvidos em disputas simbólicas.
"TESOUROS HUMANOS VIVOS" OU QUANDO AS PESSOAS
TRANSFORMAM-SE EM PATRIMÔNIO CULTURAL - NOTAS
SOBRE A EXPERIÊNCIA FRANCESA DE DISTINÇÃO DO
"MESTRES DA ARTE"
REG IN A A BR EU
A s c it a ç õ e s a s e g u ir s o b r e o s m e s t r e s d a a r te r e f e r e m - s e a e n t r e v is t a s r e a liz a d a s p e la
a u to ra , e m 19 9 7 , e a t r e c h o s d e r e f e r ê n c ia s b ib lio g r á fic a s p r e s e n t e s n e s t e c a p ít u lo .
Um dos principais critérios de seleção consiste no reconheci
mento da excelência das competências do mestre por seus pares.
Cada mestre da arte recebe uma dotação de ioo mil francos para
a formação de um aluno escolhido. E obrigação do detentor do
título transmitir a esse aluno seu tonr de main.
De acordo com as próprias palavras do secretário geral do Conse
lho dos Ofícios de Arte do Ministério da Cultura, Pascal Leclercq,
os mestres da arte podem ser definidos como aqueles “artesãos
de arte detentores de um saber extremamente específico e raro”.
Ao implementar o programa “M estres da Arte”, o governo francês
estaria preocupado com a preservação desse “saber específico e
raro”. Leclercq define a ação do Ministério da Cultura nesse do
mínio com a equação “preservar é transmitir”. Am eaçado de ver
o desaparecimento dessas habilidades específicas, o governo visa
a “restaurar a cadeia da transmissão”. Trata-se, portanto, de um
projeto também de cunho pedagógico.
Em relatório sobre o triênio 1994-1996, 0 então ministro da cul
tura, Philippe Douste-Blazy, classificava os mestres da arte como
os artesãos do futuro. N a ocasião, já haviam sido distinguidos 37
mestres, ilustrando a excelência das habilidades próprias dos ofí
cios da arte. O ministro valorizava, nos mestres escolhidos, “o do
mínio de técnicas muito sofisticadas, ao preço de um longo processo
de aprendizagem, que são colocadas à disposição da restauração
do patrimônio, tanto imobiliário quanto monumental, público e
privado, ou ao serviço de artistas contemporâneos”. Os mestres da
arte conjugariam, em seu entender, a dupla função da engenharia
e da arte, (transformando a matéria bruta em arte, frequentem en
te em obras-primas), criando, assim, referências culturais para a
nação francesa. Para o então ministro, os ateliês de arte, em que
os mestres trabalhavam, poderíam ser destacados como laborató
rios do futuro: “Investidos da memória de seus ofícios, eles sabem
também mobilizar seus conhecimentos para inovar, para imaginar
os objetos e os volumes de amanhã. Eles lembram que preservar
é transmitir e que progredir ou inventar é também formar jovens
profissionais”. Em sua visão, o título de mestre da arte seria mais
do que uma distinção; seria
um convite a uma tomada de consciência, hoje mais necessária do
que nunca, de que a educação das crianças ficaria incompleta se ela
não integrasse esta dimensão, outrora chamada de trabalho manual,
que mobiliza a um só tempo a inteligência e a imaginação, o cérebro
e a mão, a sensibilidade à matéria, ao volume, às cores c o rigor ma
temático.
Foi meu bisavô que montou a casa em 1877. Pouco a pouco, ele foi se
especializando em chapéus para o teatro, embora, durante muito tem
po, ele tenha feito chapéus para todos os usos. Naquela época, cada
corporação tinha seu chapéu específico. A corporação dos com pagnos
de tour de F ra n ce , por exemplo, dispunha de chapéus de formas altas
muito especiais com diversas fitas. Reconhecia-se um ofício pelo cha
péu que a pessoa usava. Antes da última guerra, todo mundo portava
um chapéu. Mesmo as pessoas mais simples... Um operário usava
um casquete, um mendigo trazia na cabeça um feltro... Mas todo
mundo usava alguma coisa sobre a cabeça... Foi apenas nos últimos
trinta anos que se passou a não se colocar mais nada sobre a cabeça...
Talvez devido aos transportes em comum, talvez devido aos automó
veis... Tudo isto... Atualmente, quase ninguém coloca nada sobre a
cabeça... E muito raro...
Referências
IV
H is t ó r ic a H is t ó r ic o H is t ó r ic o
A r te E r u d it a n a c io n a l G a le r ia d e
D a s B e la s A r t e s
E r u d it a e s t r a n g e ir a B e la s A rte s
A p lic a d a n a c io n a l
D a s A rte s D e A r te s
A p lic a d a A p lic a d a s A p lic a d a s
e s tr a n g e ir a
Como se vê, no sistema octogonal do poeta, o histórico era uma
das categorias definidoras do patrimônio. Ele próprio, por diversas ve
zes, soube defender a predominância do valor histórico sobre o esté
tico, como no clássico caso do parecer para o tombamento da capela
de Santo Antônio: “O critério para um trabalho proveitoso de defesa
do que o passado nos legou tem de se pautar, no Estado de São Paulo,
quasi [sic] exclusivamente pelo ângulo histórico” (1975, p- 81).
Ora, no momento em que uma dessas oito categorias (a históri
ca) foi posta em pé de igualdade com a entrada principal (a arte),
esta sofreu uma redução. Os conceitos de arte e de história no
dec.-lei foram alterados. Com o justificar a passagem da história do
plano de categoria para 0 de entrada principal?
Um defensor afoito poderia dizer: o termo “patrimônio” está
vinculado à ideia de “herança paterna”. Herança, por seu turno,
é aquilo que se movimenta no tempo, de geração para geração, de
pai para filho. Logo, é clara a relação entre patrimônio, herança e
história - disciplina que articula diferentes perspectivas de tempo.
Contra esse argumento se poderia perguntar, simplesmente: por
que, então, manter o artístico como entrada principal? N a visão
apresentada, a história envolve a arte. Toda arte passível de pre
servação é já produzida, já feita. Em suma, a manutenção de duas
entradas principais (história e arte), em vez de ser somatória, é
subtrativa.
VIII
XI
XII
XIII
Referências
A ndrade , M. de. Aspectos das artes plásticas no Brasil. São Paulo: Martins;
Brasília: M EC, 1965.
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II. MEMÓRIA E NARRATIVAS NACIONAIS
us
ção da população em arenas públicas centralizadas. Mas a história
não se desenrola de forma linear e muitas são as permanências
que encontramos nos movimentos de mudança, entrelaçadas em
sua singularidade, ignoradas ou simplesmente absorvidas e natu
ralizadas. A construção da nação brasileira tem traços em comum
e singularidades em relação às formações nacionais europcias,
ou mesmo norte-americanas. A constituição da nação vincula-se
a estruturas hierárquicas de poder e à inclusão tardia da popu
lação negra, mesmo assim a partir de traçados racistas e exclu-
dentes. Ironicamente, em que pesem as grandes diferenças entre
nações, um dos temas centrais da intelectualidade e das elites é
justamente a procura da singularidade nacional.
O Museu Imperial (MI) foi criado em 1940, durante o Estado
Novo, com a proposta de preservar a memória do Império durante
um período em que intelectuais c políticos procuravam retraçar a
noção de brasilidade. Desde a criação do museu, um nível de visita
ção altíssimo tem sido mantido, atingindo uma média de quase mil
pessoas por dia, índice raramente encontrado nas demais institui
ções museológicas do país, que lutam para continuara receber seus
10 mil visitantes anuais. Inegavelmente, é um dos museus aceitos
pelos brasileiros como sendo uma de suas mais fortes referências
culturais. Ouem nunca foi ao museu mostra intenção de visitá-lo
c quem já o visitou guarda dele boas lembranças. O que ele nos
proporciona, que valores representa?
1. E n t r e v is t a r e a liz a d a , e m 19 8 8 , c o m 0 e n t ã o d ire to r d o M I , L o u r e n ç o L u iz L a c o m b e , p o r
o c a s iã o d a fo r m u la ç ã o d a d is s e r t a ç ã o d e m e s tra d o d e S a n to s (19 8 9 ).
Segundo o Dec.-Lei 2.090, de março de 1940 (Laeombe e Cotrim,
:-.87), que criou o MI, este tinha por finalidade
A história-memória do Império
Considerações finais
Referências
* A c o la b o r a ç ã o d e A n d r é a P r a t e s , E c y l a B r a n d ã o , L ú c ia V ie ir a e M ír ia m B e n c v e n u t c fo i
im p o r ta n te p a ra o d e s e n v o lv im e n t o d e s t e c a p ítu lo .
Nos museus nacionais, sobretudo os históricos, está em pauta a
preservação, o uso e a transmissão de determinada herança cultu
ral, composta de fragmentos a que se atribui o papel de represen
tação do nacional,' ou melhor, de representação de determinados
eventos, narrados sob determinada ótica. Essa herança, à medida
que se articula com fatos, acontecimentos, processos e conjun
turas políticas, é convertida em memória política. Por sua vez, a
preservação e a difusão dessa memória está atrelada à política de
memória posta em curso pelas instituições museológicas.
O tema é atraente e tem sido abordado de diversos ângulos.
Com o presente capítulo, o pesquisador quer contribuir, de modo
singelo, para a construção de um novo olhar, lançado sobre o per
fume das flores de memória. Em termos estratégicos, visando a
uma maior precisão e melhor delimitação temporal e espacial, a
pesquisa foi concentrada em um único documento ou bem cu l
tural. Trata-se de uma pintura histórica, realizada por Aurélio de
Figueiredo, em 1896, denominada “Compromisso constitucional”
e que integra o acervo do M useu da República, criado em 1960,
por ocasião da transferência da capital federal do Rio de Janeiro
para Brasília.
O discurso expográfico do M useu da República atua como um
elemento mediador entre o público e a obra concebida pelo artista
que, por sua vez, funciona como mediador entre o acontecim en
to e os pósteros. O M useu da República interpreta a obra que,
por sua vez, inteqireta o acontecimento. Aurélio de Figueiredo,
ao pintar o “Compromisso constitucional”, cinco anos depois do
acontecimento, produz uma obra que quer habitar 0 imaginário
social republicano e dizer como aquele acontecimento processou-
se. O artista, por esse ângulo, é produtor privilegiado de memória
política, pois deseja reconstituir o acontecimento com seu estilo,
sua memória. Entre o público visitante e o acontecimento, há uma
dupla mediação.
t. N o I n s t itu t o d o P a t rim ô n io H is t ó r ic o e A r t ís t ic o N a c io n a l e s t ã o in c lu íd o s , n a c a te g o r ia
" m u s e u s n a c io n a is ” : M u s e u H is t ó r ic o N a c io n a l, M u s e u d a R e p ú b lic a , M u s e u [m p e r ia i,
M u s e u N a c io n a l d e B e la s A r te s c M u s e u d a I n c o n fid ê n c ia . E s s a c a íe g o r iz a ç ã o c r e c o n h e
c id a m e n t e p o lê m ic a e t a m b é m e s t á v in c u la d a a q u e s t õ e s o r ç a m e n t á r ia s .
O presente capítulo, dividido em quatro partes, toma o "Com
promisso constitucional” como base para uma investigação que se
debruça sobre a memória política no início da República, sobre
o papel mediúnico2 do artista e do museu e sobre a política de
preservação (e uso) de representações de memória, levada a efeito
pelo M useu da República.
Memória política
2. O te rm o “ m e d iú n ic o ” fo i a q u i e m p r e g a d o p a ra in d ic a r o p a p e l d o a rtis ta e d o m u s e u
c o m o m e d ia d o r e s d e e m o ç õ e s , p e n s a m e n t o s , in t u íç õ e s e s e n s a ç õ e s , e n t r e p ú b lic o e fa to s ,
fe n ô m e n o s e a c o n t e c im e n t o s .
O termo “documento” merece atenção especial. Ainda que seu
uso corriqueiro esteja associado à ideia de fonte textual, ele tem
sentido de suporte de informação e, como indica Paul Otlet, ci
tado por Fonseca (1983, p. 5), aplica-se a livros, revistas, jornais,
desenhos, filmes, discos, selos, medalhas, fotografias, esculturas,
pinturas, monumentos, edifícios, espécies animais, vegetais e mi
nerais etc. A origem latina do termo (doccere) indica que docu
mento é aquilo que ensina algo a alguém. Nesse sentido, parece
claro que a transmissão de memória política, ao valer-se de docu
mentos, no sentido mais amplo do vocábulo, tem também uma in
tenção pedagógica, um desejo de articulação entre os que foram e
os que vieram depois, uma vontade de formar e produzir continui-
dades. Lançando mão de múltiplas fontes documentais, os grupos
políticos e sociais recorrem ao passado pela via da memória, não
tanto para remontá-lo, mas sim para recontá-lo, ou mesmo, como
indica Sento-Sé (1999, p. 99), para afirmar
Trata-se de duas coisas irredutíveis uma à outra: por mais que se tente
dizer o que se vê, o que se vê jamais reside no que se diz; por mais
que se tente fazer ver por imagens, por metáforas, comparações, o
que se diz, o lugar em que estas resplandecem não é aquele que os
olhos projetam, mas sim aquele que as sequências sintáticas definem
(id., ib.)-
F lo r ia n o P e ix o to 3 C3
S a ld a n h a M a r in h o 2 °.9
J o s é H ig in o I
C o n s t it u in t e s v o ta n te s 232 10 0
F lo r ia n o P e ix o to 153 66
A lm ir a n t e W a n d e n k o lk 57 2 4 ,6
P r u d e n t e d e M o r a is
12 5.2
T
C o r o n e l P ira g ib e 5 2,1
A lm e id a B a rre to 4 1.7
C u s t ó d io J o s é d e M e lo 1 0.4
C o n s t it u in t e s v o ta n te s 232 10 0
4 . H á p e r s o n a lid a d e s p r e s e n t e s n a im a g e m d e q u e n ã o s e c o n s e g u ir a m in fo r m a ç õ e s d e d a ta
e/o u lo c a l d e n a s c im e n t o e/o u m o r te . C o m o , p o r v e z e s , o s d a d o s o b tid o s fo ra m im p r e c is o s ,
o a u to r p r e fe r iu n ã o le g it im á - lo s a q u i.
4. F loriano P eixoto (1839, A L - 1895, R j) • Militar, ministro da
Guerra no Governo Provisório, vice-presidente da República
(1891) e presidente da República (1891-1894).
17. N ão identificado .6
6. S e g u n d o G il d a L o p e s (19 6 4 ) , c p o s s ív e l q u e 0 r e p r e s e n t a d o s e ja J a c q u e s O u r iq u e ou
F u r k u im W e r n e c k . P o r m e io d e c o n s id e r a ç õ e s in fo r m a is d e A n d r é a P r a t e s ( t é c n ic a d o Mu
s e u d a R e p ú b lic a ) , a h ip ó t e s e d c u m a u to r r e tr a to , p o r e n q u a n t o , n ã o d e v e s e r d e s c a r t a d a .
Província de São Paulo (1894-1898), presidente da República
(1898-1902), senador federal (1909).
A. C a e t a n o d a S il v a • Taquígrafo.
Política de memória
todos nós falamos mal dos nossos senadores e deputados; todos nós
os apelidamos atrozmente; mas quando o Congresso se fecha, há um
vazio na nossa vida comum e nos enchemos de pavor. [...] Temos
também a festa da bandeira, que é eminentemente tendenciosa e po
sitivista. O seu fito é manter o lema comtista —Ordem e Progresso
- no pavilhão auriverde; e não tem outro fim. [...] Implico com três
ou quatro sujeitos das letras, com a Câmara, com os diplomatas, com
Botafogo e Petrópolis; e não é em nome de teoria alguma, porque não
sou republicano, não sou socialista, não sou anarquista, não sou nada:
tenho implicâncias.
A não ser que suba ao poder, por uma revolta mais ou menos disfar
çada, um general mais ou menos decorativo, o mandachuva é sempre
escolhido entre os membros da nobreza doutorai; e, entre os doutores,
a escolha recai sobre um advogado.
Referências
Narrativa e informação
[...] um homem que passeia não devia se preocupar com os riscos que
corre, ou com as regras de uma cidade. Se uma ideia divertida lhe vem à
mente, se uma loja curiosa se oferece à sua visão, é natural que, sem ter
de afrontar perigos tais como nossos avós nem mesmo puderam supor,
ele queira atravessar a via. Ora, hoje ele não pode fazê-lo sem tomar mil
precauções, sem interrogar o horizonte, sem pedir conselho à delegacia
de polícia, sem se misturar a uma multidão aturdida e acotovelada, cujo
caminho está traçado de antemão por pedaços de metal brilhante. Se
ele tenta juntar os pensamentos fantásticos que lhe ocorrem, e que as1
1. Flâneur ( s .m .) , d o fr a n c ê s : fla n a d o r , p a s s e a n t e .
Referências
* C o m u n ic a ç ã o a p r e s e n t a d a n o s e m in á r io “ P a t r im ô n io c u lt u r a l: c o l e ç õ e s , n a r r a tiv a s o m e
m ó ria s o c ia l" , r e a liz a d o n a U n iv e r s id a d e F e d e r a l d o E s t a d o d o R io d e J a n e ir o ( U n íR io ) ,
p r o m o v id o p e lo P r o g r a m a d o P ó s - G r a d u a ç ã o e m M e m ó r ia S o c ia l, etn m a io d e 2 0 0 1.
É nesse ambiente de “fusão espiritual de formas novas com as
antigas” que, nos domingos, a partir de 1964, Castro Maya passou
a receber o público, mostrando sua coleção de iconografia do Rio
de Janeiro, de azulejos portugueses e holandeses, de cerâmica do
Porto e de objetos artísticos adquiridos desde 1920. Na imagem da
edificação ressaltava-se antes 0 caráter tradicional, a vivência de
uma urbanidade extinta, do que sua modernidade, questão que
era reendereçada na construção de sua casa moderna em Santa
Teresa, a Chácara do C éu. Antes mesmo de selecionar o projeto
arquitetônico, Castro Maya preocupara-se com a implantação da
casa. O arquiteto Lúcio Costa (1980) elogia a escolha do sítio:
i. R e fu g ia d o e m N o v a Y o rk d u r a n t e a S e g u n d a G u e r r a M u n d ia l. L c v i- S t r a u s s ( 19 8 5 . p . 35)
e s c r e v e u : " N o v a Y o rk - d a í v in h a o s e u e n c a n t o c a e s p é c ie d e fa s c ín io q u e e x e r c ia — e ra
e n t ã o u m a c id a d e e m q u e tu d o p a r e c ia p o s s ív e l. A im a g e m d o t e c id o u r b a n o , o t e c id o s o
c ia l e c u lt u r a l o fe r e c ia u m a te x tu ra c r a v a d a d e b u r a c o s . B a s t a v a e s c o lh ê - lo s e e n fia r m o -n o s
p o r e l e s p a r a c h e g a r, c o m o A l ic e n o o u tro la d o d o e s p e lh o , a m u n d o s tã o e n c a n t a d o r e s q u e
p a r e c ia m irr e a is ” .
indivíduo em face de sua responsabilidade de autodeterminação.
O espaço urbano tornava-se o signo maior dessa capacidade hu
mana de, por meio do juízo, ajustar-se a uma comunidade.
Diante da multiplicidade e da heterogeneidade urbanas, era pre
ciso escolher, decidir sobre o que valia ser afirmado e o que de
veria ser negado ou abandonado. Com sua coleção, Castro Maya
julgava a cidade. Ela era o reverso privado da livre convivência ur
bana com a diferença. Como livre jogo de imaginação e razão, o
gosto implicava a edificação de inter-relações culturais que tinham
o poder de ativar uma dimensão pessoalizante. Pela coleção, su
jeito e cidade passaram a constituir uma mesma realidade, que se
autorrepresentava em seu “estar-ali”.
Era necessário, portanto, experimentar a cidade na singulari
dade de cada um de seus elementos, decifrar sua significação,
para poder substituir essa vivência pela forma de expressá-la: o estilo.
A construção da Chácara do Céu foi momento essencial na defini
ção do estilo de Castro Maya. E é lá que podemos encontrar, de
forma aparentemente casual, o emblema de sua coleção: o espelho
que fez instalar, atrás de sua mesa de trabalho, na biblioteca. Nele
inscreveram-se os livros que, por sua vez, espelhavam as narrativas
literárias e de viajantes.2 N ele também aparecia, fragmentada pelo
reflexo do lustre de cristal sueco, a aquarela Portrait d'une jeune
veuve (“Retrato de uma jovem viúva”), de Modigliani, líder da E s
cola de Paris até 1920. Colocada por Castro Maya em moldura
cusquenha, cheia de pequenos pedaços de vidro espelhado, essa
obra tornou-se um ícone da forma singular como o colecionador se
apropriou de cada objeto que adquiriu, bem como de toda tradição
artística moderna.
O espelho parecia, à primeira vista, uma incongruência. Q uan
do Castro M aya decidiu construir a Chácara do C éu, uma das exi
gências que fez foi dotá-la de “paredes à vontade: 0 que faltava no
apartamento [do Flamengo, onde residia anteriormente], sobrava
nessa casa” (Santarrita, s/d, p. 52). Além disso, a rigorosa simetria
2. I n s p ir e i- m e , a q u i, n a a s s o c ia ç ã o d e W a lt e r B e n ja m in e n t r e e s p e lh o e lite r a tu r a n a c id a d e
d e P a ris , q u e a p a r e c e e m s e u e n s a io “ P a ris , a c id a d e n o e s p e lh o ” (1992., p. 7 9 5 -19 8 ).
repetia-se em toda a biblioteca. Em todo o espaço, a lógica era a
da reflexão. Tudo aparecia duplicado e reduplicado por espelhos,
vidros, cristais e janelas, ou ainda pelas peças de prataria que re
pousavam em sua mesa de trabalho e pelas texturas vidradas das
cerâmicas orientais que ornamentavam a biblioteca, desde então.
Se a duplicação era lógica intrínseca ao espaço da biblioteca, de
que serviría uma duplicação artificiai? Como brasão intelectual, o
espelho era a narrativa, a superfície agônica na qual se assemelha
vam sujeito e objeto, cidade e coleção. Era o lugar onde, a um só
tempo, afirmava-se e anulava-se o narcisismo do colecionador; onde
a singularidade de Castro Maya devia sua existência à repetição
da diferença. O espelho era o fundo histórico, o reflexo simétrico
e deslocado da coleção. Mas era, igualmente, a afirmação pública
do discurso do colecionador, no qual víamos a nós mesmos refle
tidos, vistos e videntes, parceiros na determinação do significado
desta coleção.
A comicidade do espelho como emblema - entendida na condi
ção integrativa e reconciliatória da comédia - surgiu na transfigu
ração da experiência da coleção e da cidade em seu limite ideai: a
pura visibilidade. Ao tentar negar a morte de sua concepção de ci
dade e de arte - negar, portanto, o limite destrutivo de seu conceito
de modernidade - , construiu para si e para os outros a possibilida
de de uma vivência estritamente contemplativa —a vista urbana, o
museu, o espelho. Nisso, apresentava a incerteza sobre os valores
que balizaram sua atuação como colecionador e cidadão como ima
gem, representação instável da reconciliação ocasional, mas ainda
possível entre homem e mundo, unidade e multiplicidade.
Referências
1. A í e s tã o p r e s e n t e s d iv e rs o s d is c u r s o s d e C a r lo s L a c e r d a , d is p o n ív e is a o p ú b lic o n o M I S .
ta política, no parlamento e na imprensa, em torno de sua transfor
mação em hino oficial da Guanabara, o que efetivamente ocorreu,
por meio do sancionamento do projeto de lei do vereador udenista
do Distrito Federal, Francisco Sales Neto, pelo governador interino
da Guanabara, Sette Câmara, em 25 de maio de 1960. Esse fato
é bastante ilustrativo das disputas envolvendo a criação de signos
implicados na constituição simbólica do novo estado.
Entendendo que o processo de criação de um museu é ante
rior à data de sua inauguração, pois nasce primeiramente de uma
ideia, de um projeto e de estratégias, a descoberta e 0 cotejamento
com outros tipos de fontes, como discursos políticos, iconografia,
periódicos de época, documentos de arquivos, discos e fontes
orais foram fundamentais para 0 entendimento e o estabelecim en
to dos marcos cronológicos do início do processo de gestação do
M IS, na virada dos anos 1950.
O trabalho com fontes, fora das encontradas nos limites do M IS,
associadas a um trabalho rigoroso de pesquisa sobre 0 contexto polí
tico e social do período, foram essenciais para tomar inteligível 0 tipo
de narrativa regional inscrita na concepção e nas primeiras coleções
do M IS que, uma vez situado no contexto histórico de sua época
como expressão material de uma narrativa regional em constru
ção, pode ser entendido como parte de um trabalho de constitui
ção de uma memória oficial, empreendido por Carlos Lacerda,
considerado, para usar a noção desenvolvida por M ichcl Pollak
(1989, p. 9), um ‘‘profissional do enquadramento” da memória.
Essa categoria foi atribuída a determinados atores (intelectuais e
políticos) e instituições, como os museus, dedicados à fundamen
tação de uma identidade coletiva, a partir dos usos diferenciados
da memória, entendida por Pollak como um campo de disputa por
excelência.
Desse modo, partindo da recusa dos enfoques esyontaneístas e
universais que frequentemente atravessam as abordagens sobre as
identidades, trabalhamos essa noção como pertenças e singula
ridades construídas e reconstruídas ao longo do tempo, no cam
po das lutas políticas e das tensões sociais. N esse sentido, nossa
pesquisa sobre as estratégias empreendidas por atores sociais, na
reafirmação e reconstrução da identidade carioca, levou-nos a per
ceber a presença de um tipo particular de regionalismo, fom en
tado num contexto histórico determinado, que tem como marca
distintiva a negação do caráter regional, pelo investimento no per
fil do Rio como síntese da nação, principalmente na qualidade de
"capital cultural’' do país.
E sempre bom lembrar que, quando nos debruçamos sobre a iden
tidade coletiva dos habitantes da chamada Cidade Maravilhosa, nem
sempre o Rio foi considerado como tal —essa qualidade é também
uma construção datada - e, não faz muito tempo, os "cariocas”
eram todos fluminenses (Scarpino, 1989), como fazia questão de
afirmar, até princípios do século, 0 cronista e escritor M achado
de Assis, adotando a designação erudita que a Monarquia havia
generalizado como dos habitantes ou naturais dos dois lados da
baía de Guanabara.
Essa marca de "capital cultural” foi sendo construída ao longo da
trajetória do Rio como cidade-capital, sobretudo a partir da rede de
instituições de cultura, montada por D. João VI, com a transferên
cia da Corte portuguesa, em 1808, mas foi, sem dúvida, reforçada
e redimensionada, quando o Rio de Janeiro efetivamente deixou
de ser capital federal, no início dos anos 1960, como resultado de
ações conjuntas de intelectuais e políticos, com destaque para o
papel da imprensa local, notadamente para a campanha lançada
pelo jornal O Gloho, intitulada O Rio será sempre 0 Rio, idealizada
pelo jornalista Péricles de Barros. De acordo com o jornalista, essa
campanha teve como fonte de inspiração uma crônica de M acha
do de Assis, na qual o escritor carioca compara o Rio com a mais
cosmopolita cidade americana: Nova York. A força dessa argumen
tação, na construção de uma nova ideia de capital para a cidade,
foi lançada pelo cronista na virada do século XX, quando das dis
cussões sobre os destinos do Rio, mobilizadas pela Constituição
de 1891, que estabelece a mudança da capital, e é retomada como
referência no momento em que a cidade deixa efetivamente de
ocupar sua secular posição de capital do país. Foi um período ím
par de apelo à exaltação do Rio como “eterna” capital eao orgulho
carioca.
Vale ainda notar que a primeira metade dos anos 1960 foi um
período particularmente profícuo para a sedimentação da cidade
do Rio de Janeiro como “capital cultural” e, por conseguinte, para
a criação de um museu voltado para a sacralização da memória
local, podendo ser compreendido como um momento de “trans-
bordamento da memória”, para usar a expressão de Jacques Le
G o ff (1990) sobre a expansão das memórias coletivas. Tal transbor-
damento foi acelerado tanto pela criação de um novo estatuto para
a cidade, com a criação do Estado da Guanabara (1960), quanto
pelo “bom” memorialista que tomou conta do Rio, por ocasião das
comemorações de seu quarto centenário (1965).
C abe também destacar que a década de 1960, até a decretação
do AI-5, em 1968, que marcou o recrudescimento da censura do
governo militar, foi uma época de surgimento de importantes li
deranças culturais e de explosão criativa, com o surgimento, por
exemplo, do Teatro de Arena, do Teatro Oficina, dos Festivais da
Canção, do tropicalismo e do cinema novo, percorrendo 0 caminho
aberto pela então denominada “arte revolucionária”, do início dos
anos 1960, pelos Centros Populares de Cultura (C P C s).
Pelo exposto, alguns fatores contribuíram, no início da déca
da de 1960, para a sedimentação do perfil do Rio como “capital
cultural” do país: um sentimento nostálgico, movido pela transfe
rência da capital e pelo boom memorialista, decorrente das com e
morações do quarto centenário. A rara efervescência cultural do
período, um dos fatores determinantes, decorreu da manipulação
desse imaginário social num momento de redefinição da identida
de coletiva, empreendida pelo então governador Carlos Lacerda.
N essa linha de análise, 0 M IS foi criado como um monumento de
exaltação ao Rio e à alma carioca, como parte de uma estratégia
política com vistas às eleições presidenciais de 1966, para as quais
Lacerda era um candidato em potencial.
O Museu da Imagem e do Som como documento/
monumento da cidade-capital Rio de Janeiro
2. E m a r t ig o p u b l ic a d o n o c a d e r n o “ M a i s ! ” , d a Folha de S .Paulo (2 ju n . 1 9 9 6 ) , s o b o t ít u lo
“A m u s e if ic a ç ã o d o s m u s e u s ” , P e t e r B u r k e c o m e n t a e s s e te m a .
original. A documentação existente no M IS sobre Carlos Lacerda
ou Maurício Quádrio - pesquisador e musicólogo italiano, principal
colaborador de Lacerda e idealizador do conceito de um “museu da
imagem e do som”, além de seu primeiro diretor - é muito escassa ou
inexistente. Daí a importância do trabalho com fontes diversificadas
e o cotejamento entre elas, como também do recurso à história oral.
Facilitada, nesse caso, pela contemporaneidade do objeto.
Dessa forma, foi possível recuperar o processo de montagem
institucional e material do M IS, inicialmente denominado por
Carlos Lacerda “M useu da Imagem e da Luz”3 e, posteriormente,
batizado por M aurício Quádrio de Museu da Imagem e do Som.
Essa instituição começou a tomar forma no início da década de
1960, a partir da criação de um grupo de trabalho responsável pela
ideia original, aquisição de suas primeiras coleções, escolha e re
cuperação do prédio que iria abrigar o primeiro centro de docu
mentação audiovisual da memória carioca.
Esse trabalho de montagem foi realizado ao longo de todo 0 go
verno de Carlos Lacerda, sendo legalmente formalizado em 24 de
abril de 1964, com a criação da Fundação Vieira Fazenda, que, na
qualidade de pessoa jurídica de direito privado e sem fins lucrativos,
tinha como objetivo primordial
3. D u r a n t e a p e s q u is a , M a u r íc io Q u á d r io , c o le c io n a d o r d e v o z e s g ra v a d a s , p e s q u is a d o r
d e m ú s ic a , jo r n a lis t a , p r im e ir o d ir e to r d o M I S e m e m b r o d a e q u ip e d e C a r lo s L a c e r d a n o
p r o je t o d e c o n c e p ç ã o e in s t a la ç ã o d o M I S , c o n c e d e u - m e u m a e n t r e v is ta .
responsável pela abertura do museu ao público carioca, em 3 de
setembro de 1965.
A escolha do médico, “político acidental”, bibliotecário do Ins
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro e emérito pesquisador da
história da cidade do Rio de Janeiro, Vieira Fazenda, para patrono
do M IS, é uma expressão significativa do caráter memorialista e
saudosista que envolveu sua criação.
Embora reconhecendo a importante contribuição da pioneira
equipe de trabalho liderada por Carlos Lacerda na idealização e na
realização do M IS, este capítulo pretende destacar a intervenção
do ex-governador como ator privilegiado. Nesse sentido, a partir
do cotejamento das fontes, podemos afirmar que tanto a escolha
do prédio para sediar o M IS quanto o conjunto das primeiras pe
ças adquiridas revelam alguns aspectos do trabalho de “enquadra
mento da memória'', empreendido por Lacerda, e seus m ecanis
mos de seleção, exaltação e censura na recuperação e recriação do
passado da cidade e de seus principais personagens.
No artigo “O Rio, escola de Brasil”, do livro de Gastão Cruls,
Aparências do Rio de Janeiro, uma das publicações comemorativas
do quarto centenário da cidade, Lacerda afirma:
4. "V o c ê c o n h e c e o p e d re iro W a ld e m a r? N ã o c o n h e c e ? M a s e u v o u lh e a p re s e n ta r: d e
m a d ru g a d a to m a o tr e m d a c irc u la r, ía z ta n ta c a s a e n ã o te m o n d e m orar. L e v a a m a rm ita
e m b ru lh a d a n o jo rn a l. S e te m a lm o ç o n e m s e m p r e te m ja n ta r. O W a ld e m a r, m e s tre no
o fíc io , c o n s tró i e d ifíc io e d e p o is n ão p o d e e n t ra r" (A ra ú jo , 19 9 5).
6. A c o le ç ã o d e A u g u s t o C é s a r M a l t a d e C a m p o s ( 1 8 6 4 - 19 5 7 ) , n o M I S , c o n t a c o m c e r c a
d e 8 0 m il fo t o s , a lé m d e 2 .6 0 0 n e g a tiv o s d e v id r o e q u a t r o c e n t o s n e g a tiv o s p a n o r â m ic o s -
q u a s e d o is t e r ç o s d e s u a p r o d u ç ã o . A c o l e ç ã o d e G u il h e r m e A n t ô n io d o s S a n t o s ( 1 8 7 1 - 19 6 6 )
é c o n s t it u íd a d e 1 7 m il n e g a tiv o s , m a is d e 7 m il p o s it iv o s e m v id ro , a m p lia ç õ e s e m p a p e l
fe ita s a p a r tir d e s t e s n e g a tiv o s , a lé m d e do7.e a p a r e lh o s e s t e r e o s c ó p ic o s c m v á rio s fo r m a to s .
F o n t e : A r q u iv o s A d m in is t r a t iv o s d a F M 1S / R J .
do cotidiano carioca do princípio do século, tais como vendedo
res ambulantes, quiosques, as batalhas de flores e corsos, entre
outros.
Ao incorporar, ao acervo do M IS, as vozes gravadas de Rui Bar
bosa, Washington Luís e do Barão do Rio Branco, adquiridas do
pesquisador de música, colecionador de vozes e primeiro diretor
da Fundação Vieira Fazenda, Maurício Quádrio, Carlos Lacerda
incorpora à memória oficial da cidade mitos de origem da Repú
blica Brasileira, figuras legendárias e mitos consagrados da União
Democrática Nacional em seu discurso na Convenção Carioca
da U D N , em junho de 1960:
Considerações finais
7 . C o m a m e s m a m a r c a d e c r ia ç ã o d o M u s e u d a Im a g e m e d o S o m d o R io d e Ja n e ir o , n o
d e c o r r e r d a s ú ltim a s tr ê s d é c a d a s , m u s e u s c o n g ê n e r e s v ê m s e n d o in a u g u r a d o s o u e s tã o
e m fa s e d e im p la n t a ç ã o n o s m a is d ife r e n t e s lu g a r e s d o p a ís , c o m o C u r it ib a , T a u b a t é , ►
de sua experiência pioneira. Todos eles com a marca comum de
museus voltados para a recuperação e a sacralização da memória
local. O primeiro foi o Museu da Imagem e do Som do Estado de
São Paulo, legalmente criado em 29 de maio de 1970, pelo gover
nador Roberto de Abreu (São Paulo, 1985).
Concluo este capítulo sobre museus e narrativas regionais re
produzindo uma indagação de caráter didático, dirigida a colegiais
franceses, no ano de 1939, ao término de uma apresentação do
M useu Alsaciano de Estrasburgo, como parte de um programa de
construção do regionalismo francês, empreendido durante a Ter
ceira República (1870-1940), cujo conteúdo pedagógico voltado para
a fixação da memória local estava presente na seguinte questão:
Referências
As experiências indígenas
O Museu Magüto
Os projetos em andamento
O Museu do Descobrimento
Referências
* T r a d u ç ã o d e M a ria H e le n a C a r d o s o d e O liv e ir a c J o s é R ib a m a r B e s s a F r e ir e .
i. O te rm o kwakiutl, b e m c o n h e c id o n a lite ra tu ra a n t ro p o ló g ic a , é s e m p r e c r it ic a d o co m o
u m s a c o d e g a to s “ tr ib a l’’. O te rm o kivagiuUh (o u ku'aguí), fo n e t ie a m e n t e m a is e x a to ,
r e f e r e - s e p r o p r ia m e n te a u m a só d a s m u it a s c o m u n id a d e s a ld e a d a s , d e p o v o s q u e o u tro ra
e ra m c h a m a d o s d e Kwakiutl do Sul e v iv ia m ao n o rte d a ilh a d e V a n c o u v e r e e m p e q u e n a s
ilh a s v iz in h a s e e n s e a d a s d o c o n tin e n te . R e c e n t e m e n t e , a S o c ie d a d e C u lt u r a l d e U in is t a ,
e m A le rt B ay, p ro p ô s o n o m e Kwakwakciwctkw (“ A q u e le s q u e fa la m a lín g u a kwakxvaia"),
c o m o d e n o m in a ç ã o m a is g e n é r ic a . O u s o c o r r e n t e é a m b íg u o . Q u a n d o fa lo kwagiulth,
d e n o m in o a p r o x im a tiv a m e n te os ín d io s d a re g iã o d e C a p e M u d g e . A le rt B a y c F o rt R u p e rt.
O n o m e m u d a e id e n t ific a ç õ e s m a is p r e c is a s c o n t in u a m a p a r e c e n d o e m to d a a ilh a d c
V an co u ver: hesquiaht, m e n c io n a d o v á ria s v e z e s n e s te c a p ítu lo , é u m g ru p o d e u m a "tr ib o ” ,
c o n h e c id a a n t ig a m e n te c o m o nooika, d e p o is westeoast e a g o ra nua-cha-nalth.
Cape Mudge, numa fila de casas alinhadas frente ao Discovery
Passage, onde, durante as noites de verão, barcos deslizam pela
rota interior, em direção ao Alaska. Atrás do museu, cobertos por
uma tela de arame, restos de um mastro totêmico apodrecem no
meio do mato.
O M useu Real da Colúmbia Britânica (Royal British Colum-
bia Museum) parece uma grande caixa branca. Está localizado
numa área administrativa da cidade de Victoria, ao lado de hotéis
e lojas para turistas, expondo peças de coleção, inglesas e escoce
sas. Logo na entrada do museu, uma grande loja de presentes e
suvenires oferece joias indígenas americanas, objetos artesanais,
livros e antiguidades. Do lado de fora, sob um toldo, um artista
hesquiaht, do Oeste da ilha de Vancouver - Tim Paul, principal
escultor vinculado ao museu, desde 1976 - trabalha sobre uma
peça que deve substituir um velho mastro totêmico no Stanley
Park, em Vancouver.
O Centro Cultural de U mista está situado em Alert Bay, na ilha
Cormorant, perto da ponta norte da ilha de Vancouver. A institui
ção ocupa parte de uma construção imponente de tijolos, onde
funcionava, antigamente, 0 internato Saint M ichel, para crianças
indígenas, e abriga, atualmente, a administração tribal local. O centro
espraia-se, descendo a colina em direção ao porto e termina num es
paço de exposição, cujo estilo lembra uma “casa-grande” tradicional.
No pico da colina, ao lado de uma casa cerimonial muito maior,
elevado por fios metálicos como uma enorme antena de rádio, en
contra-se “o maior mastro totêmico do mundo”, segundo o Livro
Guinness de Recordes.
2. Potlatch - g ra n d e fe s t a c e r im o n ia l, c o m c a r á te r sa g ra d o , p ro m o v id a p o r a lg u n s g ru p o s
in d íg e n a s d a C o s t a N o r te d o P a c ífic o , c s p e c ia lm e n t e o s kwakiutl, n a q u a l h á d is trib u iç ã o
g e n e ra liz a d a d e p r e s e n te s a o s c o n v id a d o s , c o n s titu in d o u m d e s a fio , p a ra q u e m r e c e b e u o s
p r e s e n t e s , re a liz a r d e p o is o u tro potlatch c o m d o a ç ã o e q u iv a le n t e o u m a io r d e b e n s . D u r a n
te m u it o s a n o s , a Ig re ja e o E s t a d o p r o ib ira m s u a re a liz a ç ã o . (N .T .)
7. O e n fo q u e d a “ r e la ç ã o ” n ã o v a i tão lo n g e q u a n to n u m a n o va e x p o s iç ã o d o M u s e u e C e n
tro d e C iê n c ia s , d e R o c h e s te r, d e n o m in a d a “ N a s p o rta s d o O e s t e " . A q u i, o fio c o n d u t o r e s tá
c e n tr a d o n o in te r c â m b io c u lt u ra l e n t re o s ín d io s seneca c a s o c ie d a d e e u r o p é ia , d e s d e o s
p rim e iro s c o n ta to s a té h o je . A c a d a in s t a n t e , a h istó ria é a p r e s e n ta d a , o ra s e g u n d o a v is ã o
d o s ín d io s, o ra s e g u n d o a d o s b ra n c o s.
A abordagem histórica geral do Museu Real da Colúmbia Bri
tânica é linear e sintética. Conta uma história de adaptação cul
tural, de crise e conflito, numa escala regional mais ampla. A his
tória, tal como vivida por grupos específicos, e as contribuições
das tradições “míticas'’ e da agenda política local para as diferentes
versões históricas, estão agrupadas na sequência mais importan
te. Veremos que a história tem orientação diferente no Centro de
Um ista.
8. O liv ro d e J e n s e n e S a r g e n t (19 8 6 ) é u m c a tá lo g o c o m u m a e x ib iç ã o im p r e s s io n a n t e d e
c o b e r t u r a s d e b o tã o , a b r a n g e n d o a m ito lo g ia , a h is t ó r ia o ra l e e s c r it a , o design e a pro d u ção
a tu a l. É c o m p o s t o , s o b r e t u d o , d e d e c la r a ç õ e s d e fa b r ic a n t e s d e c o b e r t u r a s d e b o tã o e r e f le
te , e m s e u a rra n jo , a s s e q u ê n c ia s d e u m potlatch.
mo, a má vontade em ver com olhos críticos a história de algumas
aquisições é raro ouvir nos museus da América do Norte um
anúncio tão claro de tais prioridades.9
As exposições dos dois grandes museus provam como é pos
sível, na mostra de peças tribais, introduzir uma consciência da
evolução político-cultural em dois contextos tradicionais impor
tantes - o histórico e o estético. Definindo, grosso modo, as duas
instituições, chamei atenção, com particular insistência, para suas
exposições permanentes, ambas concebidas nos anos 1970, dei
xando um pouco de lado suas exposições temporárias mais diver
sificadas, suas atividades nos arquivos, na pesquisa e no exterior.
Nessas áreas mais flexíveis, pode-se ver uma inclinação para mul
tiplicar as estratégias explicitas de interpretação, uma tendên
cia característica do contexto político em permanente mudança e
disputa.
A discussão mais comum nos grandes museus de Arte e Antro
pologia era sobre a escolha de quais aspectos deviam predominar
na exposição: o estético ou o científico, o formal ou o cultural.
Hoje, isso parece estar sendo substituído taticamente por aborda
gens combinadas com habilidade. O contexto “cultural” está pre
sente, em certa medida, em todos os museus que visitei, da mes
ma forma que uma apreciação “estética”. De fato, 0 tratamento
mais “formalísta” que encontrei foi num museu de Antropologia,
cujo resultado mostra a arte aparecendo como processo cultural.
io . A a p r e c ia ç ã o o c id e n ta l d e o b je to s “ t r ib a is ” c o m o o b ra s d e a r te r e m o n ta a p ro x im a d a
m e n t e a o “p r im itiv is m o ” m o d e rn o d e P ic a s s o e d e s u a g e ra ç ã o ( R u b in , 19 8 4 ). P o r m a is
c o n tro v e rtid a q u e te n h a s id o e s s a a p r e c ia ç ã o , a in s t it u iç ã o d e u m a “ a r t e t r i b a l ” é , a t u a l
m e n t e , u m a i m p o r t a n t e f o n t e d e p o d e r in d íg e n a e d e re n d a .
u . W a llis ( 19 8 9 ) d is c u t e a a r te c o m o m e c a n is m o d e tr a d u ç ã o q u e , a o m e s m o te m p o , r e v e la
e o c u lt a os s ig n ific a d o s .
etnografia, que se esforça para ser valiosa deve compartilhar as se
guintes qualidades:
1) a busca da “melhor” arte ou da cultura mais “autêntica”;
2) 0 interesse por objetos típicos ou representativos;
3) o sentimento de ter uma coleção que é um tesouro para a cida
de, para 0 patrimônio nacional, para a humanidade;
4) a tendência a separar as (belas) artes da cultura (etnográfica).'2
A atitude do “museu maior”, diante do denominado “provincia
nismo” do museu local e de sua coleção “limitada”, é bem conhe
cida. O outro lado da moeda pode ser percebido num comentário
sobre o Museu de Antropologia da Universidade, feito por um mem
bro do pessoal de um dos centros tribais kwagiulth: “Lá, eles têm
um montão de bugigangas, mas não entendem muito do assunto”.
O museu tribal tem propostas diferentes:
1) sua postura é, de alguma forma, de resistência, com as peças
expostas refletindo experiências excluídas, um passado colonial
e combates atuais;
2) a distinção entre arte e cultura é frequentemente considerada
fora de propósito ou simplesmente abolida;
3) a história geral ou linear (seja da nação, da humanidade ou da
arte) é interpelada por histórias locais, das comunidades;
4) a coleção não procura incorporar-se ao patrimônio (da nação, da
grande arte etc.), mas inscrever-se em práticas e tradições dife
rentes, à margem de todo patrimônio nacional, cosmopolita.
A posição de resistência das instituições tribais, entretanto, é
mais complexa, não se define simplesmente como estando “à mar
gem de”. E, desse ponto de vista, a experiência tribal aproxima-se
de outras experiências “minoritárias”. O museu tribal ou minori
tário e o artista, ainda que se situem localmente, podem também
desejar um reconhecimento mais amplo, com alguma participa
ção nacional ou até mesmo internacional. Um movimento tático
constante faz-se, então, necessário, indo da margem para o centro 12
12 . O a rtig o d e D u n c a n ( 19 9 1) s o b r e o L o u v r e , c o m o p ro tó tip o d e m u s e u n a c io n a l, p r o
p o r c io n a r e le v a n t e s in fo r m a ç õ e s s o b re a s o rig e n s . V e r ta m b é m H o m e (19 8 4 ) e C o o m b e s
(1988).
e vice-versa, aproximando-se e, depois, afastando-se dos sistemas
dominantes, mercados, carreira, padrões de sucesso, modelos “da
moda”.
As instituições e os artistas das minorias indígenas participam
do sistema arte-cultura, mas com uma diferença. Por exemplo, o
Centro de LTmista produz e explora “efeitos museográficos” tri
viais (Alpers, 1991)- Mas, como veremos, questiona-os igualmente,
historiando e politizando seus pontos de vista.
Portanto, de um lado, uma postura puramente local ou de opo
sição não é possível nem desejável para instituições minoritárias/
tribais. De outro, a abertura para o sistema majoritário encontra
resistência e é boicotada por ligações, interesses e aspirações lo
cais, tradicionais, da comunidade. O resultado é uma dialética
híbrida muito complexa, como fica claro no artigo sobre arte e
cultura dos chicanos (Ybarra-Fausto, 1991). Veremos como varia
essa mistura de objetivos locais e globais, de compromissos com
a comunidade, com a nação e com o planeta, comparando os dois
m useus indígenas: 0 Centro Cultural Kwagiulth e o Centro C u l
tural de U mista.
15 . O m u s e u h a v ia c o la b o ra d o a n t e rio rm e n t e c o m os musqueam, m o n ta n d o u m a e x p o s iç ã o
so b re s u a t e c e la g e m , re p re s e n ta d a r e c e n t e m e n t e ( Jo h n s o n e B e r n ic k , 19 8 6 ).
os curadores da exposição escrevem: “Não tivemos tanta sorte com
esta imagem, pois não obtivemos o nome de nenhuma das senho
ras, o que foi realmente triste”.
Segundo o pessoal do museu, o livro de comentários sobre a ex
posição registra um extraordinário interesse da parte de um público
internacional, com reações que se dirigem quase sempre direta
mente aos curadores m u sq u ea m . Quando deixar o Museu de An
tropologia, a exposição irá de maneira permanente para o Centro
Cultural Musqueam.
17 . “ U rs o G riz z ly ” - u rs o do o e s te d a A m é ric a d o N o r te , c o n h e c id o p o r su a fe ro c id a d e
(Unus horribilis); “ p á ss a ro -tro v ã o ” - n a tra d iç ã o o ral d e c e rta s trib o s d a c o s ta o e s te , é um
g ig a n t e s c o p á ss a ro , s e m e lh a n t e à á g u ia , c a p a z d e p ro d u z ir ra io s, tro võ e s e c h u v a ; “ g u a x i-
n ím " - n o texto o rig in al e m in g lê s , o te rm o é raccoon, u m a v a rie d a d e d e a n im a l ca rn ív o ro
n o rte -a m e ric a n o , c o m fo c in h o p e q u e n o e p o n tia g u d o , ra b o e s p e s s o e a n e la d o , q u e a n d a na
p o n ta d o s d e d o s, d o m e s m o g ê n e ro q u e 0 m ã o -p e la d a e o g u a x ín im . (N .T .)
Concluindo a introdução sobre os mitos de origem, o texto pro
clama bem incisivo: “Cada povo na terra tem sua própria história,
contando como foi sua origem”. Como afirma Bill Reid (1988):
Meu pai pegou uma grande placa de cobre, ela ainda está lá. Pegou
um grande cobre e pagou nosso resgate para sairmos da prisão. Pois os
brancos não sabiam que valia muito dinheiro. Eles não acreditavam
que custasse tão caro.
Todo ser vivo na terra tem uma história de seu povo; isto faz
parte agora de nossa história, que fomos para a prisão por nada.
As coisas que Dan Cranmer fez não terminaram; mesmo que se
quisesse acabar com elas, ficariam para sempre em nossa lembrança
(Glendale, G., Alert Bay, 1975).
19 . O v íd e o d o C e n t r o C u lt u r a l d e U m is t a s o b re o re p a tria m e n to d a c o le ç ã o d o pothtch
{a p e n a s p a ra A lc r t B a y ) r e c e b e u o títu lo d e “ A a rc a d o s te so u ro s ", d e p o is d o c o m e n tá rio
s o b re o m u s e u fe ito p o r u m v e lh o ín d io . A s c a te g o ria s '‘te s o u ro ’’ e “o b ra d e a r te " s c s o b r e
p õ e m , m a s n ão c o in c id e m . A arca guardiã da tradição é a te se d e d o u to ra d o d e Ira Ja c k n is ,
q u e e s c r e v e e m s e u re su m o : “'A A r c a G u a r d iã d a T ra d iç ã o ’ é u m a e x p re ss ã o do id io m a
kwakiutl q u e c o n v é m e q u e so a b e m p a ra u m m u s e u . A r c a s , b a ú s , e s to jo s , c o fr e s , c e s t o s ,
c a ix a s e r a m fu n d a m e n t a is d e v id o à im p o rtâ n c ia d a d a p e lo s h a b ita n te s d a C o s t a N o r o e s te
p a ra a g u a rd a , c la s s ific a ç ã o e a c u m u la ç ã o d e riq u e z a s. E r a m v is to s c o m o re c e p t á c u lo s ,
c o n c r e ta m e n t e , d o s o b je to s h e rd a d o s e , m e t a fo r ic a m e n te , d a tra n sm is sã o d o s p riv ilé g io s
a n c e s tr a is . O te rm o ‘a rc a ’ e ra u s a d o n o d is c u rs o d o pothtch p a ra d e s t a c a r a g u a rd a e d e fe s a
d o s c o s tu m e s , su a p re se rv a ç ã o . B o a s u so u a p a la v ra p a ra te n ta r e x p lic a r aos kwakiutl seu
tra b a lh o c o m G e o r g e H u n t. E la ta m b é m é u s a d a p e lo s a tu a is kwakiutl p a ra re fe rir-s e ao
s e u C e n t r o C u lt u r a l In d íg e n a ” (19 8 8 , p . 3 ). A im p o rta n te te s e d e Ja c k n is , q u e a p ro fu n d a
m u ito s a s p e c t o s h istó ric o s a q u i a b o rd a d o s , fo i p u b lic a d a em 19 9 1 p e lo S m ith s o n ia n In sti-
tu tio n P re s s.
partida, toda arte representada em U mista preserva um forte
acento histórico. E é difícil separar a arte da cultura numa gravura
de uma baleia assassina, de Tony Hunt, sabendo que seu destino
explícito é ser usada num yotlatck.
N a parte da exposição, duas aquisições recentes estão lado a
lado: uma velha máscara e uma antiga máquina de costura, iden
tificada como tendo pertencido a Marys Ebbets Hunt (1823-1919),
Anisalaga, originária do Alaska e esposa do agente de Hudson Bay,
em Fort Rupert. Sua bela máquina faz bem em garantir seu lugar
entre as obras de arte, ao mesmo tempo que rememora uma im
portante linhagem (Mary Ebbets Hunt era mãe de George Hunt,
colaborador de Franz Boas e ancestral de inúmeros membros im
portantes da comunidade kwagiulth) ,20
A reinvenção do museu
2 0 . A s ú n ic a s o u tra s m á q u in a s d e c o s tu ra q u e v i e m e x p o s iç ã o e n c o n t ra v a m -s e n o M u s e u
R e a l d a C o lô m b ia B ritâ n ic a , o n d e d o is m o d e lo s a n tig o s a p a re c ia m n u m a v itrin a p a ra m o s
trar a v a rie d a d e d e b e n s re g u la rm e n t e d is trib u íd o s e m c e rim ô n ia s d e potlatch: m á s c a ra s ,
m a ra c á s , c o b re , c e r â m ic a , c a fe t e ir a s , te c id o s , m a n ta s e t c . A s m á q u in a s d e c o s tu ra n ã o d i
z em a m e s m a c o is a n a ‘‘h istó ria c u lt u r a l” d e lin e a d a e m V ic to r ia e n a ‘‘g e n e a lo g ia p o lític a ”
r e tra ta d a c m A le rt Bay.
m useus. N aturalm ente, há obstáculos reais para tais relações:
as desigualdades nas subvenções, o prestígio, o acesso aos recursos.
Entretanto, à medida que as perspectivas tribais tornam-se nacio
nalmente mais visíveis e que as coleções nacionais desistem de as
pirar à totalidade e à universalidade, pode-se esperar que as relações
entre as instituições reflitam essas mudanças.21
O surgimento de centros culturais e de museus tribais torna pos
sível um repatriamento efetivo e uma circulação de objetos, consi
derados por muito tempo - sem ambiguidade - propriedades, pelos
colecionadores e curadores de museus metropolitanos. E cada vez
mais questionável a ideia de grandes museus - tais como o Museu
Canadense da Civilização, em HuII (Ottawa) e o Museu dos ín
dios Americanos, em Nova York (em processo de transferência para
Washington, D .C.) - exporem para a nação inteira as culturas in
dígenas americanas, como também é controvertida a existência de
coleções primorosas, de valor inestimável, mas que não circulam.
Podemos derrubar a lógica científico-política dominante, em
pregada para justificar a existência de coleções centralizadas, fa
zendo uso de seus argumentos:
1) existe, hoje, uma notória capacidade das comunidades locais
de realizar atividades diferentes e sofisticadas com objetos de
sua herança;
2) é cada vez maior a disponibilidade dos cidadãos (e pesquisa
dores científicos) para visitar lugares distantes;
3) há uma melhoria das com unicações profissionais.
Portanto, uma distribuição mais variada, mais interessante e mais
equitativa dos bens culturais deveria ser encorajada ativamente pe
las agências financeiras, governamentais e privadas.
Após visitar o Centro Cultural de Um ísta, comecei a perder a pa
ciência com os relatos das negociações que se arrastavam, relativas
ao destino do Museu dos índios Americanos e de seu depósito ca
vernoso do Bronx, entupido de objetos indígenas, cuja maior parte
nunca foi mostrada em exposição e talvez jamais 0 seja.
2.1. P a ra u m a a p r e s e n t a ç ã o p r e c is a d o M u s e u T r ib a l H o o p a ( C a lifó r n ia ) e u m a a r g u m e n
ta ç ã o c o n v in c e n t e s o b re a s p r o fu n d a s d ife r e n ç a s e , a o m e s m o te m p o , a s p o s s ib ilid a d e s d e
c o o p e r a ç ã o e n t r e m u s e u s trib a is e n a c io n a is (u n iv e rsit á rio s ), v e r D a v ís (19 8 9 ).
Essa coleção “maior, insubstituível", deve ir para o Museu Am e
ricano de História Natural, ou deve ser incorporada ao Smithso-
nian Institution? Ou, ainda, deve ser depositada nas dependên
cias da Alfândega, no Sul de Manhattan? Deve-se permitir a H.
Ross Perrot transportá-la para o Texas? Ela “pertence" ao Estado
de Nova York? Ou trata-se de um “tesouro nacional" que deve ir
para Washington? Decidiu-se, finalmente, criar um novo museu
no Smithsonian e usar a Alfândega como anexo.
Lendo que muitos milhões de dólares foram coletados para “sal
var" essa incômoda coleção, não posso esquecer que os dois mu
seus indígenas kwagiulth devem manter uma luta constante em
busca de recursos para pagar suas despesas essenciais, desviando
assim energias dos projetos da comunidade. Eles e muitos outros
novos museus tribais e centros culturais poderíam sobreviver com
apenas algumas migalhas caídas das mesas de Nova York e W ash
ington.
Mas há uma ironia ainda pior: em algum lugar do cavernoso de
pósito do Bronx, encontram-se 33 peças dos tesouros do potlatch de
Village Island. Elas foram vendidas por W. M. Halliday, de Alert
Bay, a George Heye, 0 insaciável arquiteto da coleção de Nova York.
Um documento, exposto no Centro Cultural de Um ista, registra
essa compra, efetuada em Ottawa, por um “preço excelente”. Halli
day foi repreendido por seus superiores por ter o Canadá perdido
essas peças. Até hoje, o Museu dos índios Americanos recusou-se a
devolver esses tesouros que faltam à coleção do potlatch (Webster,
1988).
22. P ara u m r e la to s o b re a fo rm a c o m o o s o b je to s d a C o s t a N o r o e s t e , a p r e s e n ta d o s n u m
m u s e u o c id e n t a l, fo ra m c o n v e r tid o s p o r v e lh o s a n c iã o s in d íg e n a s (tlingit) e m a ç ã o “ te a t r a l”
e c m v ig o ro sa s n a rra tiv a s m ít ic a s , h is tó r ic a s e p o lític a s , v e r a e n t re v is ta d e B r ia n W a llis c o m
J a m e s C liffo r d (W a llis, 19 8 9 ). A a tu a ç ã o d o s a n c iã o s , c o m o c o n s u lto r e s p a ra u m p ro je t o d e
re m o n ta g e m , p ô s s e r ia m e n t e e m q u e s t ã o a c la s s ific a ç ã o d e o b je to s tr a d ic io n a is - m á s c a r a s ,
m a r a c á s , ta m b o r e s e t c . — c o m o “ o b je t o s ” (a rte o u a rte fa t o ) .
conflitos sobre as exatas atribuições familiares (nem todo mundo
concorda com todas as etiquetas de Cape Mudge, na ilha Qua
dra), o Centro Cultural de Um ista reivindica a propriedade num
nível mais profundo. Os objetos são apresentados no museu como
tesouros e testemunhas históricas dos kwakwaka wakw. O que o
Centro de Um ista busca, na realidade, é uma espécie de hege
monia no interior da unidade '‘tribal’' dispersa, mas que emerge,
conhecida antigamente como “os kwakiutl do Sul”.
No leque comum às instituições tribais, podemos talvez distin
guir entre estilo “cosmopolita” e estilo “local”, o que sugere públi
cos, aspirações e finalidades diferentes.
O Centro Cultural de U’mista é, ao mesmo tempo, um centro
comunitário (com história oral, língua, vídeo e programas de edu
cação) e uma instituição aberta para o exterior (oferecendo progra
mas para um público amplo e diversificado, colaborando com os
museus nacionais em exposições itinerantes etc.).
A Sociedade de Um ista compartilha os objetivos da Sociedade
Nuyumbalees, de Cape Mudge, desempenhando o papel de cata
lisar a comunidade e um local onde são conservados e mostrados
objetos e histórias do poder tribal e seu significado.
O Centro Cultural de Umista articula-se também no mundo mais
vasto dos museus. Por exemplo, a exposição pelo dccimo aniversá
rio da obra de Mungo Martin, criada durante os piores decênios da
opressão, irá a Cape Mudge, a Victoria e à Universidade da Colúmbia
Britânica, assim como a muitos outros museus do Canadá e, talvez,
dos Estados Unidos. Gloria Cranmer Webster, como diretora do cen
tro, colabora com instituições nacionais em Victoria e na Universida
de da Colúmbia Britânica. E o centro mantém artistas locais de pri
meira qualidade, especialmente os Hunt e os Cranmer, cujo público
ultrapassa amplamente a ilha de Vancouver.2*23
Quando vosso pai [Dan Cranmer] voltou, estava vestido assim, pés
nus dentro dos sapatos. EIc deu tudo. Ele fez tudo, de uma só vez,
para restabelecer nossa autoestima, para fazer todas as grandes coi
sas para nosso povo. Outros fizeram uma coisa de cada vez; ele foi
o único a fazer tudo de uma só vez, pois sua mulher era uma sábia
mulher (Agnes Alfred, Alert Bay, 1975).
2 5. V e r 0 liv ro d e S m it h e ta m b é m o u tro re la to q u e d e s c r e v e o p a p e l d a a ld e ia d e C a p e
M u d g e n o p r o c e s s o d e r e p a t ria m e n t o (A s s u , 19 8 9 ). A v e r s ã o d e A le r t B a y c o n s id e r a fa ls a
a in fo r m a ç ã o d e q u e , d e s d e o c o m e ç o d o m o v im e n to d e r e p a t r ia m e n t o , m u it o s d o s q u e
tin h a m d ire ito s le g ítim o s so b re a s p e ç a s d o te so u ro d e s e ja v a m q u e o m u s e u fo s s e e m A le rt
Bay. A lé m d is so , o s p ro p rie tá rio s d o s b e n s r e p a tria d o s n ã o e ra m p r e d o m in a n te m e n te m e m
b ro s o rig in á rio s d o g ru p o d a re g iã o d e C a p e M u d g e . A m a io r p a rte d a q u e le s d a re g iã o q u e
tin h a le g ítim o d ire ito s o b re p a r c e la d a “ C o le ç ã o d o potlatch”, ta l co m o 0 c h e f e ja m e s S e w id
(d e V illa g e I s la n d c p a r e n te d e E m m a C r a n m e r ) , h a v ia m ig ra d o d e A le r t B a y p a ra a zon a
c e n tr a l d a ilh a d e V a n c o u v e r a p e n a s n as d é c a d a s r e c e n t e s . A d is c u s s ã o s o b re a lo c a liz a ç ã o
d o m u s e u c o m p lic o u - s e c o m s e s s e n t a a n o s d e c a s a m e n t o s e x o g â m ic o s , c o m a e m ig r a ç ã o
p a ra n o v o s c e n tro s d e p o d e r e c o n ô m ic o c trib a l c c o m a s a le g a ç õ e s e m c o n trá rio re la tiv a s
à p ro p rie d a d e .
ção kwagiulth — símbolo de uma diversidade vital no interior de
uma cultura e de uma história compartilhadas.26
Seria falso, além do mais, exagerar as rivalidades. As comunida
des antigamente chamadas de “kwakiutl do Sul” estão unidas pelo
sentimento de história e de cultura comuns, de laços de parentes
co e de uma opressão que continua. O sentimento de uma identi
dade (kwakwakawakw) mais abrangente, representado no Centro
Cultural de Um ista, é uma poderosa realidade. Mais abrangente
ainda é a área cultural da Costa Noroeste e a cooperação entre
seus membros, o que constitui, por si, um considerável poder tri
bal. Uma pintura, apresentada no Centro Cultural de Um ista, é
de autoria do artista haida Bill Reid; com ele, o escultor nimpkish
Doug Cranmer trabalhou nas casas e nos mastros atrás do Museu
de Antropologia da Universidade da Colúmbia Britânica.
Num nível ainda mais globalizante, operam as alianças no qua
dro da política pós-colonial e do 'quarto mundo”. O nome de uma
equipe de vídeo feminino do Centro Cultural de Umista, as “Sal-
monistas”, brinca com “salmão” e “sandinista”, fazendo alusão ao rela
cionamento de “cidades irmãs” entre Alert Bay e um vilarejo de pes
cadores na Nicarágua. Programa-se uma visita dos kwagiulth à Nova
Zelândia, em resposta à recente vinda de uma delegação maori.
26 . S o b r e a p r o p e n s ã o q u a s e le g e n d á ria d o s kwagiulth p a ra a d iv e rs id a d e e a p o lê m ic a :
" A a n tro p o lo g ia c o n tin u a v e n d o a s o c ie d a d e tra d ic io n a l c o m o b a s e a d a n o c o n s e n tim e n to
m ú tu o e n o a c o rd o . O c o n c e ito d e D u rk h e im d e s o c ie d a d e m e c â n ic a , e m q u e c a d a c o is a e
c a d a u m tra b a lh a m ju n to s p a ra m a n t e r o status qu0, c o n tin u a v ig e n te e n tre n ó s. S e r ia m a is
a u tê n tic o d iz e r d a s o c ie d a d e kwagiulth q u e e la e s tá b a s e a d a n o d e sa c o rd o g e n e ra liz a d o .
C a d a m e m b ro fo i c u id a d o s a m e n te tre in a d o p a ra s e r c a p a z d e d e c id ir p o r si, fo i p re p a ra d o
p a ra q u e s tio n a r a s e s tru tu ra s s im b ó lic a s , c o m c u jo s s ig n ific a d o s c o n c o rd o u e m s u a in fâ n
cia . V e n d o q u e e la s n ã o c a íra m d o c é u , m a s fo ra m p ro d u z id a s p e lo h o m e m , o kwagiulth
a p r e n d e a u s á -la s c ria tiv a m e n te , to rn a n d o -se , p o r s u a v e z , u m c ria d o r d e o u tro s s ím b o lo s ’’
(R e id , 19 8 1, p. 250 ).
museus está amarrado a uma situação pós-colonial, em que as
relações de poder modificam-se e em que as conexões entre signi
ficados locais e globais rivalizam-se.
Poder e identidade “tribal” foram sempre moldados por alianças,
discussões e intercâmbios entre as comunidades locais, e, desde
a metade do século XIX, com os brancos intrometidos. Esses pro
cessos prolongam-se por meio da vida cultural contemporânea.
A medida que os dois centros kwagiulth - ou instituições simila
res —tornam-se mais visíveis, escapando da condição meramente
local ou “minoritária”, eles contestam as visões globais apresenta
das pelas “grandes” coleções. Funcionam, ao mesmo tempo, como
centros culturais, como locais para a educação da comunidade,
para sua mobilização e para a continuidade da tradição.
Os grandes museus, instituições cosmopolitas que aí estão para
apresentar, de forma global, a arte e a cultura, começam a apare
cer como instituições nacionais mais limitadas, enraizadas em cen
tros metropolitanos específicos. Esses “centros” são “produtos” de
culturas e histórias vigorosas, hoje contestadas e deslocadas por
outras culturas e outras histórias. Os efeitos desse deslocamento
começam a se fazer sentir nos grandes museus de Victoria e de
Vancouver. Resta ver como e com que rapidez.
Na Costa Noroeste, como em outros lugares, as economias e as
instituições do moderno Estado-nação reprimiram, marginalizaram
e exploraram sistematicamente as culturas tradicionais dos povos
indígenas. Um combate desigual pelo poder econômico, cultural e
político continua, ininterrupto sob muitos aspectos, desde os dias
do fotlatch de Dan Cranmer, no Natal de 1921.
Mas, pelo menos, uma coisa mudou. Tornou-se totalmente evi
dente para a cultura dominante que muitas populações indíge
nas, que haviam sido “convertidas” ao cristianismo, cujas tradições
culturais foram “salvas” em coleções de textos como os de Boas e
Hunt, cujas obras “autênticas” foram coletadas em grandes quan
tidades um século antes e cujas culturas já haviam sido declara
das oficialmente moribundas, não desapareceram. Com suas vidas
dramaticamente transformadas, em certos aspectos, e, em outros,
profundamente ligadas à tradição e à terra, esses grupos tribais
continuam a resistir, conscientizam-se, adaptam-se e ignoram as
pretensões da cultura dominante. A exploração - escolas de baixo
nível, atendimento médico insuficiente, poucas perspectivas de
trabalho - continua em muitos locais, da mesma forma que a re
sistência política e o potencial decisivo de uma tradição flexível e
soberana.
Na ilha de Vancouver, o 'potlatch está de volta, como a maior
parte dos tesouros confiscados em 1922. M as isso tem um preço:
os objetos apreendidos ilegalmente não foram devolvidos dire
tamente às famílias que eram suas donas - solução quase im
possível. Em vez disso, um museu foi imposto e, mais tarde, dois.
E difícil imaginar uma instituição mais elitista, mais metropolita
na, mais ocidental. E, no entanto, viu-se que mesmo ela pode ser
recomeçada e reinventada. Aí está, por exemplo, o que acontece à
palavra “museu”, numa passagem do livro do chefe Harry Assu, em
que é evocada a cerimônia de abertura do Museu e Centro Cultu
ral Kwagiulth, em Cape Mudge, em 1979 (um acontecimento com
espírito semelhante inaugurou o Centro Cultural de Urnista, em
1980 - registrado no filme do centro A caixa dos tesouros):
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* A u la in a u g u ra l m in istra d a e m 20 0 0 , n o in íc io do a n o letivo d o P ro g ra m a d e P ó s - G r a d u a
ç ã o e m M e m ó r ia S o c ia l d a U n iv e rs id a d e F e d e ra l d o E s t a d o d o R io d e Ja n e ir o (U n iR io ).
horizonte abrangente, sem os investimentos sistemáticos que de
mandariam um tempo inadequado à ocasião. Reterei apenas o sinal
de relatividade que a comparação permite aos que se aproximam das
instituições de nossa cultura, sobretudo daquelas que —por seu alto
vulto e sua basilar presença - impõem-se como obviedades, com
a força de uma “naturalidade”. Entre elas, a “memória”.
O ponto crucial, a reter, da relativização que permite o exame com
parado dos fatos de memória é o de que sua institucionalidade obedece
aos mesmos ditames de uma totalidade a priori, que ordena a vida
simbólica da maior parte das culturas. A memória coletiva é a memória
da sociedade, da totalidade significativa em que se inscrevem e trans-
comem as micromemórias pessoais, elos dc uma cadeia maior. E esse
caráter encompassador da memória coletiva que reveste de sacrali-
dade as rememorações míticas e as reencenações rituais, frequen
temente associadas à identidade tribal ou clânica (Bateson, 1967),
apanágio de um gênero, de uma classe de idade, de uma fraterni
dade. Nas culturas agrafas, as mnemotécnicas atingem graus de
sofisticação dificilmente imagináveis para nossa cultura objetivan-
te, por meio de disciplinas de memorização de alcance bastante
amplo. Não podemos esquecer, porém, que - sistematicamente
- os pontos, os princípios, as ênfases descritas nesses discursos
são solidários a uma linguagem mais ampla, inscrita na arquitetura
da aldeia, na leitura dos sinais naturais, na decoração corporal e
instrumental, na gestualidade, numa solidariedade de significação
que só uma fantasia paranoide poderia evocar, no plano individual,
em nossa cultura.
A emergência da escrita, como recurso suplementar a toda essa
mnemotecnia, aparece assim como uma curiosa ameaça (que tex
tos da antiga cultura grega evocam) de reificação, de desentranha-
mento de uma memória profundamente “incorporada”, vivenciada,
encenada no coletivo imediato; por isso mesmo, sagrada.
A escrita surge, porém, sagrada, como mais um recurso de pre
servação do que os gregos chamavam arché, das coisas eternas ou
das que servem à manutenção da eternidade, como o ritmo das
cheias e das luas ou o fluxo dos bens nos armazéns reais. A ameaça
da escrita, no entanto, não é apenas a do esvaziamento das antigas
mnemotecnias orais, mas a da autonomização do meio de lingua
gem do suporte vivo imediato que sempre a portara. Nos termos do
sociólogo Georg Símmel, a ameaça de separação entre a “cultura
objetiva” e a “cultura subjetiva”. Essa separação, esse “distancia
mento” “entre os recursos objetivados de memória e a experiência
vivida da rememoração” implicou, na verdade, duas linhas de de
senvolvimento paralelas: se a desvitalização e a dessensibilização
dos suportes ameaça a integridade vivencial da cultura (inclusi
ve servindo diretamente às diferenciações sociais, decorrentes da
emergência das estruturas estatais, de que são, às vezes, conside
radas alguns dos mecanismos ativos), enseja por outro lado uma
autonomização virtual dos processos de racionalização do pensa
mento. Este último efeito foi radicalmente importante para o sur
gimento das culturas de “civilização”, os grandes empreendimentos
de significação que catapultaram a experiência humana para os pa
tamares de grande escala de que a cultura ocidental moderna não é
senão a exacerbação contemporânea (para o melhor e o pior).
A “racionalização” permitida pelos novos recursos da memó
ria objetivada deve ser compreendida sob vários ângulos. Di
versos aspectos instrumentais deveríam ser ressaltados, como a
concomitante emergência de especialistas da escrita que se tor
nam logo especialistas do pensamento: do escriba ao intelectual.
O que mais importa, aqui, é o da autonomização da função “refle
xiva” do pensamento. Desentranhada parcíalmente da totalidade
de significação cultural de que emerge, a cada momento, estabi
lizada no tempo e portátil no espaço (scri-pta manent), a escrita
permite mais amplamente uma formalização do pensamento que
a suscitou originalmente, uma autonomização da “consciência” e
“crítica” às condições de sua produção (uma hermenêutica), uma
disposição em distinguir e sopesar as implicações diferenciais da
“letra” e do sentido prático das normas sociais (uma ética). Isso é
bem expresso pelos efeitos da sistematização doutrinária, escrita
nas religiões mundiais (como nas chamadas civilizações do livro:
judia, cristã, maometana).
A emergência desse patamar de “reflexividade”, tão crucial para
o destino da humanidade, tem implicações imediatas sobre todos
os outros recursos de memória. A escrita contamina-os com seus
novos horizontes de permanência, seja recobrindo-os diretamente
com sua trama sob a forma das inscrições, seja reproduzindo-os
simbolicamente, sob a forma dos mapas, das descrições, dos rela
tos, dos comentários, das paráfrases e das enumerações. Surgem,
enfim, ao lado dos monumentos, os arquivos e as bibliotecas - lo
cais sagrados de uma "reflexividade” crescente (mais tarde acom
panhados pelas academias e pelas universidades).
Em alguns contextos culturais específicos, esses efeitos de ra
cionalização e reflexivização permitiram a emergência de um novo
lugar social de memória: a experiência pessoal, individual. Isso é,
para nós, a evidência mais direta, o sentimento de senhorio de uma
vida própria, insubstituível e significativa, algo inconcebível para
a maior parte das culturas. As pessoas são, aí, fragmentos de co
nexões sociais mais amplas; seu sentimento de identidade não- se
afasta do adscrito papel previsível, senão numa margem de ação e
variação, também previsível.
Jean-Pierre Vernant descreve como pôde emergir na Grécia An
tiga uma condição pessoal que - sem deixar de estar socialmente
demarcada - ensejava a seu portador uma inquietação toda nova
a respeito de sua identidade: o desejo de “imortalidade individu
al” manifestava-se em diversos cultos de mistério, por elaborações
muito peculiares da memória, considerada o vetor por excelência
da continuidade buscada. Veja-se o estatuto de reencarnação e
memória entre os órficos e os pitagóricos, por exemplo (Vernant,
1973)-
Essa abertura social dos recursos de memória às elaborações
ditas individuais viria a constituir um dos filões mais ricos dos de
senvolvimentos ocidentais, por força da crescente preeminência
da ideologia do “individualismo”, disseminada a partir de dentro
da cosmologia cristã (Duarte e Giumbelli, 1994). Lembremo-nos
de que a categoria “memória” veio, mesmo, designar um modo
literário comemorativo da continuidade das identidades individu
ais: as “memórias ’. Por outro lado - e em decorrência desse desli
zamento o fenômeno da memória passou a ser crescentemente
confundido com a função psicológica intraindívidual que o sus
tenta e, em algum momento de nossa história - provavelmente
no século XIX passou a ser necessário empregar a expressão
“memória social”, a fim de enfatizar o caráter coletivo, construído
e abrangente de todos os fenômenos da identidade persistente no
tempo.
A individualização da memória implicou um redobrado refor
ço de sua relação com a reflexividade. Infinitamente perseguida
pela especulação filosófica, a “função psicológica correspondente”
viu-se atribuída de grande valoração, figurando entre as prestigio
sas irmãs da “razão” c da “imaginação”, por exemplo, em Bacon.
A elaboração de uma “subjetividade” densa e preciosa depende da
construção e do povoamento de um “castelo interior” (expressão
de santa Teresa d’Ávíla) que, já desde o Renascimento, devia ser
construído conscientemente, cultivado formalmente, como um
theatrum munâi (Yates, 1974). Todo o desenvolvimento da Bildung
romântica, uma das bases da construção do modelo do intelectual
moderno, exige um investimento acentuado nos recursos da me
mória individual, em que se acumula, pouco a pouco, 0 tesouro de
uma experiência singular, o microcosmo do sujeito pleno, rico de
si (Duarte, 1983b).
A par da reflexivização intelectual e ética - construída sobre o
modo do “privado”, desenvolveu-se, na cultura ocidental, a partir
do Renascimento, também uma reflexivização estética, essencial
mente pública, associada aos deslocamentos da antiga identidade
aristocrática, para o cumprimento das novas funções políticas di
rigentes. Os novos “príncipes”, religiosos ou seculares, assumem
explicitamente a tarefa de encadear suas identidades individuais,
seu gosto estético, à expressão identitária (e suntuária) de suas
“dinastias”, “nações”, “cidades” e “épocas”. Essa singular disposi
ção, coetânea do empreendimento sistemático de recuperação da
“memória” das culturas clássicas e de constituição de um mercado
de bens móveis de “arte”, implica a organização de todo um novo
aparato de recursos de memória, centrado na estratégia das “co
leções”. A ideia moderna dos museus nasce totalmente aí, dessa
conjugação muito singular da “memória coletiva”, social, pelas no
vas vias da personalização, da personalidade de um “colecionador”
(que podia acabar participando de uma série de “colecionadores”,
como os papas ou os príncipes de determinada dinastia).
Uma das dimensões mais notáveis desse processo, com impli
cações indeléveis para todos os fenômenos da memória social con
temporânea, é o fato de que as coletividades políticas passaram a
ser constituídas de atributos de memória, pensados por analogia
com os que se haviam montado para as memórias cultivadas das
elites ocidentais, a partir do Renascimento. As “nações” que se
vão constituindo entre os séculos XVII e XIX vão paulatinamcnte
incorporando uma preocupação sistemática com o tesouro acu
mulado ao longo do tempo, em seu território, e nas práticas de
sua população, construindo uma identidade forjada e esmerilhada
com esses curiosos amálgamas de restos culturais. Os filósofos
românticos constroem, com base em Herder e Rousseau, a teoria
dessas reconstruções, a partir da ideia de um “espírito coletivo”
a ser celebrado nessas obras de memória de crescente importân
cia. Surgem, assim, no começo do século XIX, a filologia, os es
tudos de folclore, a arqueologia, as “ciências da antiguidade” e a
preocupação sistemática com a preservação do passado perdido.
Nem é preciso explicar muito como a busca do conhecimento e
preservação da “natureza” obedece ao mesmo impulso, mesclando
na “história natural” os fenômenos biológicos, geológicos e antro
pológicos.
Mais uma vez é fundamental ressaltar os efeitos dessa racio
nalização generalizada da relação dos sujeitos individuais e das
coletividades individualizadas com as marcas de suas identidades
acumuladas ao longo do tempo. Nem o projeto sistemático de clas
sificação, empreendido a partir de Lineu nas Ciências Naturais,
nem o surgimento de todas as Ciências Humanas (desde a His
tória, a Filologia e a Arqueologia, até a Sociologia, a Psicanálise e
a Linguística) poderíam ser concebidos sem essa “autonomização
dos acervos” originários de arquivos, bibliotecas, gabinetes, cole
ções, museus, jardins botânicos e zoológicos, cidades, monumen
tos e sítios preservados cada vez mais conscientemente. Boa parte
da ciência moderna decorre, assim, das possibilidades críticas, re
flexivas, abertas pela sistematização dos fundos de memória organi
zados maciçamente no Ocidente entre os séculos XVII e XIX.
É preciso, ainda, ressaltar que nesse contexto está em jogo não
apenas uma tarefa acumulativa linear de avanço do conhecimento
científico, tal como se o imagina comumente, mas a intervenção
de princípios críticos revolucionários, transtornadores da direção de
toda a nossa cultura erudita. Creio que posso resumi-los numa ca
tegoria geral: a da incorporação à consciência ocidental da dimen
são da “diferença”, manifestável numa miríade de efeitos sociais
precisos.
A universalização do humano, construída como crença e insti
tuição a partir do Renascimento (pela laicização de antigos pos
tulados da cultura cristã) demandou uma cobertura radical dos
fenômenos em todos os níveis, seu registro sistemático, a recu
peração permanente de sua memória por todos os instrumentos
possíveis. O século XIX é balizado por uma “rede de memorização
implacável”: todos os recursos dos deslocamentos da informação
e da impressão dos sinais vão sendo postos ao dispor de uma rede
de eficiência crescente. A antigos museus, bibliotecas e coleções
acrescentam-se as redes de publicações científicas, os censos de
mográficos e econômicos, a gravura de descrição científica, os
institutos de Geografia e Estatística, os romances naturalistas, os
observatórios de Astronomia e Geofísica, as observações clínicas,
as mensurações da Antropologia Física, a pintura de paisagens, os
relatos etnográficos, numa interminável parafernália de produção
de “data”.
E dessa pletora de informação memorizada, disponibilizada aos
mais diversos rearranjos críticos, que emergirá a possibilidade de
sistematizar as inquietações românticas com a fronteira e o avesso
da razão. O que não se poderia de outra forma expressar senão
como um balbucio irracionalista, misticizante, pode hoje articular
“propostas verdadeiramente alternativas ao exercício irrelativiza-
do da universalização”, fazendo uso dos mesmos instrumentos re
flexivos que tinham presidido à coleta e ao registro generalizados.
O débito de Nietzsche com a pesquisa filológiea e arqueológica,
o de Ereud com a pesquisa neurológica e psiquiátrica (aliás, tam
bém arqueológica), o de Durkheim com os relatos etnográficos e
demográficos bem podem ser ilustrados com o exemplar monu
mento de O suicídio, a primeira obra revolucionária desse autor.
Aí encontramos minuciosamente retrabalhado o imenso acervo de
dados demográficos acumulados sobre a saúde, a doença mental e
o suicídio entre as nações, as regiões, as religiões e as classes so
ciais, produzindo o primeiro monumento afirmativo da percepção
de que alguma outra ordem de causalidade perfilava-se por trás da
aleatoriedade das decisões humanas de autodestruição. Sobre um
território de sombras, estendia-se uma nova ciência, a Sociologia,
disposta a incorporá-lo às luzes, abrindo novas nuanças, matizes
de cinza entre a razão e a não razão (Durkheim, 1977). Um novo
território de reflexívidade, fundamental para os desenvolvimentos
da consciência do século XX.
A desmedida disposição de retenção universal pela memória
(ou pela memorabilidade, se me permitem o uso da palavra) im
põe uma verdadeira “reentronização” de Mnemósine, como pro-
pus e analisei em outra ocasião. Com efeito, se 0 critério último
da sacralidade é o da referência ou representação da “totalidade”,
poucas instituições modernas poderíam ser mais sagradas do que
o complexo das instituições da memória. Enfatizo, particularmen
te, os investimentos sobre a memória individual, transmutada com
a criação dessa memória paradoxal que é o “inconsciente” (uma
permanência significativa e elaborável do que escapa à memória
imediata) - com seus mitos e ritos regulares.
Mas esse valor de totalidade pode ser percebido por trás de
todos os esforços reiterados da “indústria da informação”, por
exemplo. Uma parte importante da tecnologia contemporânea,
sua ponta de lança - e a economia que lhe corresponde de
corre da obsessão pelos “data”, pela retenção e disponibilização
do registro de todo e qualquer aspecto das atividades humanas
(ou das naturais por elas afetadas), numa desesperada tentati
va de reconstituição da totalidade perdida pela fragmentação ra
cional do mundo. Fotografia, cinema, gravadores, computadores,
CD -R O M s, z if drives, desembocaram recentemente na consti
tuição do mundo virtual das redes de internet, imensa paráfrase
do mundo objetivado em ação, por onde será possível acessar,
em princípio, cada um de nós, no recesso doméstico, todos os
bancos de dados do universo. Não é à toa que os mesmos temo
res que a escrita suscitou lá onde, incipientemente, ofereceu-se
como recurso objetivado de memória surjam entre nós, quando
tão imenso e novo recurso parece se substituir à elaboração ínti
ma, vivenciada, experienciada, da memória e da rememoração.
Importantíssima dimensão dessa gigantesca objetivação da sa
grada memória em curso há mais de um século é a constituição da
casta sacerdotal correspondente. Estamos aqui, hoje, celebrando
um dos rituais desse fascinante culto: inaugurando mais um curso
de clérigos da informação e da memória, que tão logo serão postos
a seu desvelado serviço e reproduzirão, com a contrição profissio
nal que deles se espera, o precioso aparelho de crença e salvação
das instituições da memória moderna. Durkheim (1970) celebrou,
em um artigo memorável do final do século XIX, o nascimento da
categoria dos “intelectuais"; papel social mais recente do que se
imagina. O artigo foi concebido como mais uma peça de combate
da formidável luta ideológica em que consistiu o Caso Dreyfus.
Contra uma atitude de conformismo e linear reprodução dos valo
res da cultura, Durkheim acentuava que cabia aos “intelectuais”,
que tinham acabado de subscrever um famoso manifesto, em de
fesa do capitão injustamente acusado, representar os valores da
“liberdade do pensamento” moderno. Esse era, na verdade, seu
caráter distintivo: o de servidores da reflexividade que impõe a
razão livre dos impedimentos da tradição. E, por fazê-lo ao serviço
de uma liberdade que é a liberdade do pensamento e, portanto,
da razão, devem fazê-lo de forma bem treinada e profissional, com
racionalidade, organizando os instrumentos do saber retido pelos
recursos de memória, para o serviço da crítica e da reflexão. Essa
era a ética de um típico representante das primeiras gerações de
cadres, clérigos laicos formados no espírito da nova nação france
sa, herdeira dos ideais da Revolução, que se espelha até hoje no
formidável aparelho escolar e acadêmico daquele país. Poucos de
safios serão maiores para uma nação periférica, como a nossa, do
que a de reproduzir seus quadros de profissionais da memória, de
clérigos da função sagrada de portar e garantir os sinais de todos os
nossos valores: identidade nacional, identidade cultural; condição
da relação entre cada identidade pessoal e os conjuntos significati
vos contra os quais poderão desenhar sua legitimidade (ou não).
Como enfatizava, porém, Durkheim, essa tarefa sacerdotal não
se faz do modo habitual no quadro das demais culturas. Entre nós,
ela deve conceber-se e processar-se não como estereotipia, repro
dução convencional das formas tradicionais, mas como contínua
dedicação à abertura e “liberdade intelectual”, ao ideal da razão
em progresso: crítica e reflexão.
Efetivamente, nenhuma outra cultura acentuou tão gravemente
a diferença entre a dimensão objetivada da cultura (ritos, crenças,
instituições, objetos e costumes) e a dimensão “subjetiva”: a vivên
cia ou experiência vivida de todas as coisas sociais. Essa diferença
suscitou inclusive a sábia formulação de Georg Simmel da opo
sição entre “cultura objetiva” e “cultura subjetiva”, codificando um
princípio cosmológico ocidental, enfatizado particularmente na
versão romântica de que ele era herdeiro (Simmel, 1971). O que se
deve reconhecer é que, na cultura ocidental moderna, a hegemo
nia da ideologia do individualismo ensejou uma forte associação
entre identidade individual e vitalidade cósmica, o que faz com
que se desconfie sistematicamente do mundo objetivado, desvi-
talizado das intenções pessoais. Esse princípio ideológico exige
uma permanente dedicação ao arejamento do gigantesco depósito
cultural de que dispomos, da assombrosa memória objetivada nas
instituições. Com a mesma força e o mesmo empenho com que
construímos esse aparelho sistemático de coleta e guarda de todas
as coisas, tememos que ele se desvitalize, que se torne apenas um
“arquivo morto”, um cemitério da experiência passada.
Mas tememos, sobretudo, a “inautenticidade” dos investimen
tos de revitalização. A visitação, o uso, o arejamento dos acervos
de memória não podem ser serviços farisaicos dos sacrários, um
mero incensamento de ídolos petrificados. Deve ser uma prática
intensa e comprometida, reflexiva e critica, implicando os agen
tes na coisa visitada, consultada, de modo a permitir a emergên
cia da verdadeira vida: a que brota pela ação da força subjeti
va, íntima, sobre o imenso solo das criações passadas. Assim, os
enormes recursos tecnológicos de dísponibilização da memória
acumulada, objetivada, de que dispomos não nos são suficientes.
Na realidade, tememos mais fortemente, ainda que eles apresen
tem apenas um simulacro de vitalidade, uma gigantesca e estéril
agitação superficial entre os acervos e as intenções. Esse é, sem
dúvida, o maior desafio que hoje se apresenta aos profissionais
da memória: o de como assegurar que os extraordinários recursos
de que se pode lançar mão mantenham o comprometimento re
flexivo dos fiéis (e dos sacerdotes). Permitir, nos termos de M ax
Webcr, que o carisma, o comprometimento subjetivo e a força
vital permaneçam circulando no aparelhamento burocrático da
memória.
Eis o sentido dessa '‘inauguração”: lembrar que os antigos sis
temas divinatórios, de augúrios, baseavam-se na possibilidade -
sempre ansiada pelo espírito humano, em face da multiplicidade
permanente do real - de poder prevê-lo ou propiciá-lo por uma
divinação, adivinhação, dos sinais pela consulta aos protocolos
da tradição (como ainda sc vê no nosso horóscopo, por exemplo).
Para o essencial de nossa cultura ocidental moderna, porém, o que
nos cabe é decifrar, pelos recursos de memória c reflexão dispo
níveis, as brechas do virtual, não para conformá-lo aos traços do
passado, mas para materializar nossa crença e expectativa numa
“permanente vitalização da matéria”, uma contínua colonização do
futuro (nos belos termos de Octavio Paz), construção das luzes
propiciatórias dos passos novos vindouros.
Essa é a vocação e o sacerdócio a que vocês deverão, doravante,
aprender a responder.
Referências
Lam parina. (Do esp. la m p a r illa ) S. f. 1. Pequena lâm pada. 2. Pequeno recipiente com
um líquido ilum inante (óleo, querosene, etc.) no qual se m ergulha um pequeno disco
de m adeira, de cortiça ou de m etal traspassado por um pavio que, aceso, fornece luz
atenuada [...}.
e im p r e s s a e m p a p e l o f f s e t 7 5 g / r r r p e la M o r a d a d o L iv r o
p a r a a L a m p a r i n a e d it o r a e m m a r ç o d e 2 0 0 9 .
Antropólogos, educadores, sociólogos, museólogos e uma gama diver
sificada de profissionais do campo das Ciências Sociais e Humanas são
requisitados pelo poder público para formular novas metodologias de
pesquisa e novas estratégias de ação, capazes de dar conta de uma con
cepção de patrimônio atual. Segmentos sociais diversos reivindicam lu
gar de destaque para diversas manifestações culturais. Os exemplos se
multiplicam nos âmbitos federal, estadual e municipal, passando pelos
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Seria um efeito da disseminação do conceito antropológico de cul
tura, em que a ideia de diversidade consolida-se como força motriz em
oposição ao conceito iluminista de cultura com o civilização e erudição,
lugar de acesso de poucos? Talvez.
O leitor encontrará neste livro reflexões instigantes e atuais, desenvol
vidas por autores que já há algum tempo vêm discutindo esse tema em
seminários, congressos, bancas e encontros informais. Alguns capítulos
foram produzidos em seminários realizados pelo Programa de Pós-
Graduação em Memória Social e pelo Centro de Ciências Humanas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), de cujo cor
po docente são integrantes os idealizadores e organizadores desta obra,
Regina Abreu e Mário Chagas.