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Apontamentos sobre a história dos índios na arte brasileira

Por Kleber Amancio1

Esse texto pretende-se panorâmico, logo agrega o que há de mais geral a fim de
edificar um raciocínio que dê conta de enxergar questões mais amplas. Visa demonstrar
as maneiras como os indígenas foram pensados na arte nacional. História essa cuja
origem, por sinal, confunde-se com as primeiras representações visuais que têm a colônia
como pano de fundo.
A comitiva que acompanhou Maurício de Nassau no nordeste brasileiro em
meados do século XVII trazia dois artistas: Franz Post e Albert Eckhout, ambos
responsáveis pela produção das primeiras telas a respeito do Brasil Holandês. Não por
acaso são também os criadores das primeiras representações que temos notícia e que
trazem indígenas “brasileiros” como personagens.
Uma obra obrigatória, nesse sentido, é A dança dos Tapuias de Eckhout.

Fig. 1 – Albert Eckhout – A dança dos tapuias. Óleo sobre tela. 1,68 x 294 cm.
Museu Nacional da Dinamarca.

Provavelmente a maior desse artista em dimensões. Na imagem acompanhamos


uma série de indígenas, os “tapuia”. O que apreendemos dessa tela? Podemos destrinchar
os seus signos, embora seja necessário estarmos cônscios de que se trata da construção de
indígenas por parte do olhar de um artista europeu e embora isso não invalide a utilização

1 Doutor em História Social pela USP.

1
da tela como fonte, há de se levar esses aspectos em conta; seja por dever de ofício ou por
tornar nossa compreensão do documento histórico mais proveitosa, é necessário “ler” a
imagem à contrapelo.
Há basicamente dois grupos de personagens na figura. Um primeiro, localizado
do lado esquerdo, que traz uma série de homens completamente despidos. Suas idades
são variadas. Eles dançam, ensimesmados num rito. Cada personagem parece
compenetrada em sua respectiva ação. Eles empunham lanças e tacapes; são musculosos
e aplicam vigor na atividade que exercem. Parece tratar-se de algum cerimonial para os
quais os europeus eram, àquela altura, culturalmente míopes. Mais à esquerda há duas
mulheres conversando discretamente sobre o que assistem. Elas têm as suas genitálias,
porém, cobertas. As palmeiras, assim como o tatu a seus pés, indicam o Novo Mundo, o
exótico, o peculiar.
Eckhout, assim como todos os viajantes que posteriormente retrataram o novo
mundo, possuíam formação e referenciais culturais diversos daqueles dos sujeitos a quem
pretendiam retratar. Quando falam dos indígenas, falam também de si. Cabe ao
historiador atentar para essa polifonia. Além disso, as imagens são construídas dentro de
uma tradição artística, isto é: o pintor não possuí o olhar inocente, quando cria tem uma
série de esquemas pictóricos e tradições artísticas com as quais, inevitavelmente, dialoga.
Na prática significa dizer que essas imagens acessam protocolos narrativos que
independem da realidade a que buscam representar e conhecê-los, ajudando-nos a torná-
las mais inteligíveis.
Essas observações servem para muitas outras imagens. Dentre estas temos, por
exemplo, as produzidas por Jean-Baptiste Debret, muito conhecido justamente por ter
“registrado” o quotidiano dos escravos e libertos no Rio de Janeiro do século XIX. Há
nesse caso também o registro de indígenas. Aqui a representação está comprometida com
outros objetivos, sua narrativa é mais ambiciosa do que aquela dos pintores do Brasil
Holandês, além da grande série de litografias há sempre um comentário escrito abaixo
das pranchas, embora traduzir esse Novo Mundo ao público europeu seja, certamente, a
orientação geral que rege sua empresa. As imagens escolhidas representam esses sujeitos,
nos mais diversos aspectos, há, por vezes, um pouco de curiosidade etnográfica, mas em
outros momentos a deliberada vontade de criar narrativas visuais bastante peculiares. A

2
imagem selecionada é exemplo disso. Há ênfase na desenvoltura com que o faz. Isso
também aparece no comentário escrito que acompanha a prancha.2
Certamente os expectadores não possuem aquele físico e tal facilidade no
manuseio de um objeto de caça dessa natureza. Tampouco estariam acostumados a uma
paisagem tão exuberante. Novamente temos destacados elementos que aludem a natureza
específica do Brasil, de suas peculiaridades “selvagens”.

Fig.2 – Jean-Baptiste Debret. (prancha 5)

Se por um lado os viajantes europeus estavam enredados em assentar os indígenas


numa narrativa de exotificação, os pintores brasileiros, ou mesmo estrangeiros radicados
no Brasil que viriam nos séculos seguintes, começam a pensá-los como parte integrante
do discurso da formação da nacionalidade brasileira. Isso é verificável, por exemplo, num
dos maiores veículos de comunicação visual do período, a Revista Illustrada. Essa
publicação constava, via de regra, com ilustrações de Angelo Agostini, proeminente
caricaturista da segunda metade do século XIX.3 Visualizemos uma cena.

2
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. “Índios mestiços e selvagens civilizados de Debret reflexões
sobre relações interétnicas e mestiçagens”. In VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 41: p.85-
106, jan/jun 2009.
3
SILVA, Rosangela de Jesus. Pintura, um projeto político-cultural? A representação do índio no trabalho
de Angelo Agostini. In VALLE, Arthur & DAZZI, Camila. Oitoncentos: arte brasileira do Imperio e
Republica. Tomo II.

3
Fig. 3 – Revista Illustrada. N 523, 1888.

Segundo Luciano Migliaccio, desde o governo Pedro II o indígena é assumido


como uma metáfora do nacional. Encontramos isso por diversas vezes nas caricaturas de
Agostini. A estátua equestre é um bom exemplo. Dom Pedro II aparece guiando um
indígena/o povo, de maneira um tanto quanto subversiva.4
Nesse mesmo período é que aparece uma série de pinturas indianistas, isto é, telas
em cuja narrativa cria-se uma ideia mítica do indígena como herói nacional, tal qual
vemos na literatura de Alencar, por exemplo. Aliás, a relação que essas imagens guardam

4
MIGLIACCIO, Luciano. A escultura monumental no Brasil do Século XIX. A criação de uma iconografia
brasileira e as suas relações com a arte internacional. In: Anais do XXIII Colóquio do Comitê Brasileiro
de História da Arte. Rio de Janeiro, 2004. p.240-241. A estátua equestre havia aparecido em outras
oportunidades na Revista. Cf. SILVA, Rosangela de Jesus. “Desconstruções e reconstruções do Brasil: a
caricatura e o monumento equestre a D. Pedro I”. In 19&20, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 1, jan./jun. 2013.
Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/aa_pedroi.htm.

4
com a literatura indianista é frequente, um aspecto que muito diz sobre sua natureza. Para
além dos debates que esses diversos pintores mantinham, por exemplo, com a crítica e
sobre os caminhos e a importância dessa vertente pictórica na conformação de um
discurso sobre o nacional, podemos destacar, nesse caso, dois grandes pintores que
também passaram por essa temática: Victor Meirelles e Rodolfo Amoedo.5 As afirmações
que farei para esses dois artistas também servem para Frederico Tirone, Jules Le Chevrel,
Diogo Álvares Correa, José Maria de Medeiro e tantos outros.6
Moema, assim como O último Tamoio são construídos baseando-se na literatura.
A tela de Meirelles remonta o poema épico Caramuru de Santa Rita Durão.7 É uma visão
que percorre a nacionalidade no mítico. Moema, irmã de Paraguaçu repousa (morta?).
Um crítico contemporâneo ao quadro assim o descreve:
Obra de maior valor, pois que reúne em grau muito subido todas as
qualidades da grande pintura, é a Moema do Sr. Vitor Meireles de Lima.
Desenho, colorido, transparência aérea, efeitos de luz, perspectiva, exata
imitação da natureza em seus mais belos aspectos, elevam esta composição
magistral à categoria de um original de grande preço. O assunto, todo nacional, é
uma das nossas lendas mais tocantes. Diogo, o Caramuru, regressa à Europa em
uma nau francesa, levando em sua companhia a esposa mais amada, a formosa
Paraguaçu e abandonando a outra, que talvez o amasse mais, a bela Moema.
Lamenta a desgraçada tanto amor tão mal correspondido, solta sentidíssimas
queixas, chama clamorosamente o esposo que lhe foge: entretanto... Impelida de
um zéfiro sereno, vai se afastando a nau, que leva o ingrato, seu único amor,
alma de sua existência, ainda há pouco tão doce: a infeliz, cega, louca de amor e
desespero, se arremessa às ondas, fende-as impetuosamente, a paixão que a
arrebata dá-lhe forças sobre-humanas, avizinha-se da nau, pôde enfim segurar-se
ao leme, mas já exausta, e quase sem alento, com voz entrecortada, diz:
Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,
Quando eu a fé rendia ao teu engano, Que é favor
dado a tempo um desengano; Porém deixando o
coração cativo, Fugiste-me, traidor, e desta sorte
Paga meu fino amor tão crua sorte.[sic]8

Todas essas questões que apontamos aparecem também na fala do crítico. Tal
qual Moema, O Último Tamoio também está morto. Ele é acudido, inutilmente, por um

5
Sobre a pintura indianista de Amoedo Cf. JORGE, Marcelo Gonczarowska. “As pinturas indianistas de
Rodolfo Amoedo”. In 19&20, Rio de Janeiro, v. V, n. 2, abr. 2010. Disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/obras/ra_indianismo.htm.
6
Esses pintores são apontados por CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. “A construção da gênese:
independência, passado colonial e indigenismo no Brasil e México”. Conceptos en tensión: nuevos
abordajes a las culturas políticas de las independencias y sus legados. Bogotá, Universidad Nacional de
Colombia / Francisco Ortega e Yobenj Aucardo Chicangana-Bayona.
7
MIYOSHI, Alexander Gaiotto. Moema é morta. Tese de doutorado em História. IFCH-UNICAMP,
2010.
8
MYOSHI, Alexander Gaiotto. Op. Cit. p. 22.

5
jesuíta. A tela, dramática, de composição forte, comunica-nos, nesse caso, a resistência
dos Tamoios. É um último suspiro daqueles que não se curvaram perante a colônia
portuguesa. 9

Fig. 4 – Victor Meirelles. Moema. 1866. Óleo sobre tela. 129 x 190 cm.
MASP, São Paulo.

Fig. 5 – Rodolfo Amoedo. O último Tamoio. 1883. Óleo sobre tela. 180,3 x 261, 3 cm.
MNBA, Rio de Janeiro.

9
PADILHA, Solange. “O imaginário da nação nas alegorias e indianismo romântico no brasil do século
XIX”. Texto foi apresentado no II Congresso Internacional do Patrimônio Histórico, na Universidade
de Córdoba (Argentina) e na UCAM (Universidade Cândido Mendes-RJ), no programa de Pós
Graduação do Departamento de Ciências Humanas. Disponível em:
http://64.233.163.132/search?q=cache:s_UYAsqJdoJ:www.naya.org.ar/congreso2004/ponencias/solange_p
adilha.doc+solange+padilha+imaginario&cd=2&hl=pt -BR&ct=clnk&gl=br

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Isto posto, fica a seguinte dúvida. E como os indígenas se autorrepresentavam?
Felizmente nos últimos anos tem aparecido historiadores, críticos de arte e curadores
interessados na arte indígena. Em entender como esses sujeitos se pensam, não somente
do ponto de visa pictórico, mas de atividade cultural como um todo. Contudo, não
devemos nos esquecer que quando colocamos a cultura material produzida por esses
sujeitos na condição de “arte”, estamos utilizando uma categoria classificativa
“ocidental” e que não necessariamente traduz a sua contextualização inicial. Digo,
precisamos, nesse caso, de uma nova concepção de arte, menos eurocentrada e mais
atenta aos desafios que as obras produzidas por esses sujeitos nos coloca. O termo “arte
indígena” também é, devemos reconhecer, demasiado genérico, uma vez que pode
abarcar da arte rupestre até aquela produzida hoje por sujeitos identificados como
indígenas. Numa leitura mais apressada, porém, corre-se o risco de entendê-los como
sujeitos sem história e (ou) trajetória, sendo que para além do contato com o mundo
ocidental as modificações internas de suas respectivas comunidades são, de certo,
também relevantes para entender esse processo de produção artística.

Fig. 6 – Moysés Piyãko – Formação para pajé Ashaninka


/ Brasil Acrílica sobre tela 65 x 78,5 x 1cm / no chassi:
64,4 x 76,4 x 2,1 cm. In
https://projetomira.wordpress.com/

Para que possamos compreender qual a melhor postura devemos adotar diante
dessas obras. Termino com uma citação da Profa. Dra. Maria Ines de Almeida, na ocasião
da feitura de um catálogo de uma exposição que buscava por relevo na produção
contemporânea dos indígenas:

7
A arte que alguns indígenas estão fazendo elabora uma
visão refrataria da terra mãe. Floresta, Andes, Cerrado, aldeias,
pessoas, plantas e bichos, diversas cenas, não em sua figura
mimética, mas em estado de distanciamento, em crise. Por isso tais
elaborações pertencem também à modernidade artística. Suas obras
são contemporâneas porque todos nós compartilhamos o mundo
moderno e urbano, estamos, com os artistas indígenas, em estado
de exilio. [....].10

10
ALMEIDA, Maria Ines de. Apresentação/ Introdução. Mira! Artes visuais Comtemporaneas dos
povos indígenas. Belo Horizonte, UFMG, 2014.

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