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O BRASIL COLONIAL — VOL.

1 COLONIZAÇÃO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL — MEMÓRIA E HISTORIOGRAFIA

Brasil, fazendo algumas proposições para conectar historiografias muitas Antes da publicação da História geral... havia alguns títulos vol-
vezes desenvolvidas em paralelo. tados para a história do Brasil publicados no exterior. Entre os mais
conhecidos no país, além dos três volumes da History of Brazil de
Southey, escritos a partir dos documentos coletados por seu tio, que
Acolonização na historiografia oitocentista: vivera por mais de 30 anos em Portugal, havia também uma Histoi-
Varnhagen e a escravidão como história do tempo presente re du Brésil por Alphonse Beauchamps, que teria de fato plagiado o
primeiro volume do poeta inglês. Nela se baseara em grande parte o
Ao publicar em 1854 o primeiro tomo da História geral do Brasil, Fran— Compêndio de História do Brasil, publicado pelo general Abreu e Lima
cisco Adolfo de Varnhagen esclarecia em subtítulo próprio que o livro em 1842. Tal Compêndio... foi objeto de feroz crítica de Varnhagen, a
tratava do descobrimento, colonização, legislação e desenvolvimento partir da qual se estabeleceu intensa polêmica. Nele, certo nativismo
deste Estado, hoje Império independente, escrita em presença de muitos na leitura da guerra contra os holandeses se fazia presente, inclusive
documentos autênticos recolhidos nos arquivos do Brasil, de Portugal, com a busca de incorporação de heróis de origem negra e indígena a
da Espanha e da Holanda." Na ocasião, a expressão Brasil Colônia história pátria.“ Também em francês, o Resume de l'histoire du Brésil
ainda não se mostrava consagrada. Apenas o subtítulo do tomo 1 fazia (1825), de Ferdinand Denis, republicado em versão ampliada como
a ela referência, numa acepção bastante específica, ao informar que as Brésil, em 1846, era bastante conhecido e inspirou o manual escolar
doutrinas daquele tomo compreendiam a história do Brasil Colônia, ou de Henrique N. Bellegarde (1828).17 Tais textos franceses, bem como
do Brasil antes de ser Principado, referindo-se à disposição feita logo ] os três volumes de Southey, dedicavam muito mais espaço à escravidão
após a restauração portuguesa (1640) de que os primogênitos do rei de e aos costumes dos grupos indígenas do que os compêndios e manuais
Portugal herdeiros presuntivos da Coroa, se intitulariam para sempre brasileiros neles inspirados.
Príncipes do Brasil.|Z A partir daí, Varnhagen já não utilizou para o Para o olhar estrangeiro, a escravidão e a presença indígena marcavam
Estado do Brasil a expressão colônia. o exotismo e a peculiaridade do país.
Do ponto de vista historiográfico, a História da América portuguesa, Na narrativa de Varnhagen, porém, a linha divisória entre a América
publicada em princípios do século XVIII pelo erudito baiano Sebastião da portuguesa e o Império do Brasil mostrava-se bastante imprecisa. Na
Rocha Pitta, seria o principal texto de interlocução da História geral...13 primeira edição do trabalho (1854, 1857), começava o livro com a ex—
Apesar de fluente em inglês, o historiador brasileiro oitocentista citou pansão portuguesa no Atlântico e o terminava com a carta de abdicação
bem menos History of Brazil, de Robert Southey, publicado na Inglaterra de Pedro I, em 1831. Na segunda edição, feita ainda em vida pelo autor,
entre 1810 e 1819, ainda na época da presença da Corte portuguesa no cedendo parcialmente às críticas de alguns contemporâneos," passou
Brasil;14 Única obra comparável à História geral... do a iniciar o livro com a descrição da terra e os capítulos sobre as popu—
ponto de vista da
erudição. Quando o faz, o elogio é contido e largamente superado pela lações indígenas (cap. 7 a 10 da primeira edição) e a concluí-lo com o
crítica à abordagem, que considerava, antes que uma história do Brasil, capítulo sobre os escritores e viajantes do período joanino. Retirou do
memórias cronológicas, que se detinham exageradamente em histórias segundo tomo as narrativas referentes aos eventos posteriores à revolu-
indígenas e se equivocavam ao ultrapassar as fronteiras da América ção pernambucana de 1817, que seriam incorporados à sua história da
portuguesa para incorporar acontecimentos relativos à região do Prata.” independência do Brasil, publicada postumamente.”

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MEMÓRIA HISTORIOGRAFIA
COLONIZAÇÃO E ESCRAVIDÃO NO BRASIL — E

Para Varnhagen, a nacionalidade brasileira era filha direta da presença


Portugal, do qual o país acabava de se separar. É bem conhecida a tese
do Brasil
portuguesa enraizada na América. E por isso a História geral do naturalista alemão Von Martius, ganhadora do concurso sobre como
foi severamente criticada desde a publicação, ainda que celebrada como
escrever a história do Brasil.26 Para mais de um comentarista, ela prefi—
emblema de erudição.ZU No entanto, através de manual do Colégio Pedro
gurava a construção que Gilberto Freyre formularia cerca de cem anos
II escrito por joaquim Manoel de Macedo,ªl que teve na obra sua base
depois, ao propor que a história do Brasil devia ser escrita levando-se em
historiográfica, e da republicação do livro já no século XX, com notas
'

conta o encontro de três raças, a portuguesa, a ameríndia e a africana.”


e comentários de Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia, incorporando ,

Mas Martius enfatizava também o papel preponderante da expansão


a organização dos capítulos da segunda edição,22 pode-se afirmar que
'

portuguesa e a necessidade de se estudar a história da legislação e do


a narrativa tornou—se clássica. estado social d[aquela] nação.23
Como bem reconheceu Capistrano de Abreu, Varnhagen foi o mais '
Apesar das críticas a ele dirigidas, Varnhagen parece ter se esforçado
erudito e bem formado dos historiadores brasileiros nos termos propos-
'

para seguir a receita.” A legislação e o estado social da nação portuguesa


tos pela cultura histórica oitocentista.“ Seu gosto pelos arquivos 0 fez
ocupam lugar privilegiado na obra que escreveu. Dedicou três capítulos
_

descobrir inúmeros documentos e textos inéditos. Ao procura—los, tinha


aos povos indígenas, seus usos e costumes. Muitos outros às guerras
|.

de
por objetivo formar uma base erudita para a memória pátria, o que travadas contra eles. E não se furtou a analisar a contribuição do que
certa forma conseguiu. Principalmente os capítulos com resenhas gerais .

chamou em alguns trechos de colonização africana.


sobre as obras publicadas no ou sobre o Brasil formaram uma espécie
de primeira brasiliana. Sua questão central, como de resto de quase
Como a colonização africana, distinta principalmente pela sua cor, veio
:

toda a historiografia oitocentista, era como construir uma narrativa“


a ter tão grande entrada no Brasil que se pode considerar hoje como um
histórica baseada em documentos e textos de época, conferindo suporte dos três elementos de sua população, julgamos nosso dever consagrar
à identidade nacional?4 A epígrafe do primeiro volume, assinada pelo
algumas linhas neste lugar a tratar desta gente, a cujo vigoroso braço
visconde de Cayru, enfatizava a orientação: A importância de uma deve o Brasil principalmente os trabalhos do fabrico do açúcar, e mo-
história geral de qualquer Estado independente é reconhecida em todo
.,

dernamente os da cultura do café.lu


país culto.ZS História-memória, mas que devia se apoiar em fatos bem
documentados e que por isso competia com outras narrativas e formas
'

lnformava que vinham de toda a antiga Nigrícia (Costa Atlântica, Contra


de apropriação do passado. Costa e Sertões da África), formavam diferentes nações e podiam ser
Apesar de uma reconhecida superioridade em termos de aparato de muçulmanos ou cristãos, mas em sua maioria eram gentios e idólatras.31
erudição em relação a outros textos produzidos por autores brasileiros, a ,

As primeiras levas teriam vindo como escravos diretamente de Portugal,


obra de Varnhagen esteve longe de ser consensual entre os contemporâ- :

com seus amos. Depois, passaram a ser diretamente vendidos para as


neos. Não foram poucos os que criticaram seu continuísmo, que tornava .

plantações de açúcar das Américas, aprisionados nas guerras internas


Brasil e a da colonização
quase indistinta a fronteira entre a história do ou vendidos pelas próprias famílias em caso de fome. De uma maneira
portuguesa na América. geral (pelo menos no Brasil), considerava que melhorar/am eles de sorte.32
'

Desde princípios do século XIX, para muitos, e no interior do próprio


Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (II-1GB), pensar em escrever Reconhecia bens e males provindos da África e do cativeiro estrangei—
a história do Brasil era pensar em como diferencia—la da história
de
ro. Entre os bens, a influência na agricultura e nas formas de beneficia-

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mento dos metais, na culinária e na língua portuguesa. Entre os males, No tratar dos colonizadores Portugueses, dos bárbaros Africanos, e
os hábitos menos decorosos, seu pouco pudor e sua tenaz ousadia, mas dos selvagens Índios, procurávamos ser tão justos como nos ditaram
principalmente a própria experiência degradante do cativeiro hereditário, a razão, o coração e a consciência... sentenciando imparcialmente aos
só atenuado pela presença de um bom senhor, sem o qual o africano delinquentes e premiando o mérito, sem perguntar a nenhum se procedia
boçal dez/ia perecer a míngua... do sertão, se d7Africa, se da Europa, ou se do cruzamento de sangue. De
outro modo, mal houvéramos podido conscienciosamente condenar aos
ferozes assassinos do nosso primeiro bispo, aos bárbaros amocambados,
e o mesmo sucederia ainda hoje a muitos deles se momentaneamente
os libertássemos antes de os ir preparando para com o tempo fazer a aos cobiçosos mascates e aos revolucionários de 1798, nem vitoriar devi—
damente o Índio Camarão, o preto Henrique Dias, o português Conde
seus descendentes o bem que seja compatível, em relação ao estado e
de Bobadela e o pardo sertanejo Manduaçu.“
à família.”

Combinando elementos desde o século XVIII presentes no pensamento


'

Vale a longa transcrição para enfatizar o que tentei sugerir com o subtí-
tulo desta parte. Na obra deFVarnhagen, a escravidão africana era uma católico ilustrado, incluindo citações do filósofo francês Buffont, pre-
questão histórica, mas também um problema político contemporâneo. E cursor do racismo científico, o texto é verdadeira obra-prima do que
«essa perspectiva não pode ser esquecida. O mesmo vale para sua polêmica hoje chamaríamos de politicamente incorreto. Varnhagen afirmava-se
abordagem sobre os povos originários. Ao trará-los historicamente, o pessimista em relação às possibilidades morais e civilizacionais dos ín-
autor nunca deixava de ter em mente o problema político da presença dios sem que fossem coagidos pelo uso da força e fazia o elogio do papel
de povos indígenas considerados não ciuilizados nas áreas de fronteira civilizador da escravidão e da expansão imperial europeia. Apesar de
da jovem monarquia. descartar de uma maneira geral explicações racialistas (lembremo-nos,
Entre os opositores da abordagem de Varnhagen, o indianismo român- de que são homens como nós“) e preferir pensar em termos civilizacio-
tico configurou-se como movimento de dimensões políticas e culturais nais, considerou os índios selvagens, verdadeiros homens caidos, “ muito
importantes à época da edição do primeiro volume do trabalho. Uma menos evoluídos no plano civilizacional do que aqueles a quem chamava
leitura atenta do livro evidencia a construção do texto em disputa direta de nossos africanos,” considerados bárbaros, mas não selvagens.
'

com tais opositores, chamados por ele de adeptos do incoerente sistema Para Varnhagen, autoidentificado como um sócio do Instituto His-
do patriotismo caboclo?4 .
tórico do Brasil nascido em Sorocaba, a escolha de um determinado
Foram tantas as críticas ao enfoque adotado em relação aos indígenas ponto de vista era algo imprescindível à escrita da história:
que, ainda em 1857, quando da publicação do segundo volume, Var- .

Um Índio que escrevesse a história da Conquista não teria que cansar-se


nhagen se sentiu obrigado a escrever toda uma nova introdução para
muito para nos dizer que para ele tudo quanto haviam feito os Europeus
respondê-las.” já no prefácio do volume, afirmou a legitimidade de seu
fora violência, ilegitimidade, usurpação; e com inscrever estas três pala—
ponto de vista cristão e monarquista, defendendo-se das acusações de
vras no frontispício de um livro em branco satisfaria a sua missão, sem
parcialidade em relação às contribuições de negros e índios à naciona— rebuscar documentos nos arquivos inimigos; pois que lhe faltaria tempo
lidade brasileira. No afã da polêmica, os africanos perdiam a condição
para contar—nos a miséria, degradação e antropofagia dos seus. Eis a
de colonizadores, que passava a ser reservada apenas aos portugueses.
história nacional se os Índios do mato conquistassem todo o Brasil, e se

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tivesse por chefe a um Ambiré e por armas uma frecha índia espetando Ainda assim, a narrativa se mantém construída da perspectiva das
a caveira de um cristão. elites portuguesas enraizadas na América, acentuando sua autonomia de
Um infeliz africano, que escrevesse a história do cativeiro hereditário,
ação e a liberalidade da Coroa no primeiro volume (referente aos séculos
poderia também compendiar a sua obra exclamando: Engano, cruelda— XVI e primeira metade do XVII) e, no segundo, a presença intelectual
de e escravidão! E nestas três palavras se deveria resumir a história da
e política dessas mesmas elites na Corte portuguesa, referidas como
república do Haiti, anterior ao atual domínio nela da raça africana, se
portugueses da América. Nesse aspecto, a obra de Sebastião da Rocha
a sua forma de governo, os seus códigos, e a sua língua permitissem ao
Pitta e também a dos genealogistas brasílicos do século XVIII, paulistas
historiador haitiense renegar de todo da civilização francesa!IU
ou pernambucanos, serviram de base para argumentação!Z
Na História geral do Brasil, se as prefigurações culturalistas de“
Partindo do ponto de vista do colonizador português e de uma perspec-
Von Martius não se realizam e as preocupações mais propriamente
tiva racialista, apresentava sem meias palavras o branqueamento como
socioeconômicas encontram-se bastante longe do espírito da obra, as
horizonte da nação:
abordagens de história institucional se fazem bem mais consistentes.
Desse ponto de vista, a escravatura —— indígena ou africana — aparece
Se quereis saber que elemento de povoação predomina atualmente no
Brasil, percorrei as cidades e as vilas. Vereis brancos de tipo europeu, como questão importante no trabalho. Era difícil ignora—la em um país .

vereis alguns negros, vereis gente procedente destes dois sangues, e em que a escravidão era reconhecida por lei e que tolerava de maneira
raramente, numa ou noutra figura, encontrareis rasgos fisionômicos do
escandalosa o comércio ilegal de cativos africanos enquanto Varnhagen
tipo índio, aliás por si bem distinto. E isto não porque se exterminasse redigia a História geral...
esta raça, e sim porque eram os índios em tão pequeno número no país Especialmente no primeiro volume, os conflitos entre colonos, re-
que foram absorvidos fisicamente pelos outros dois elementos, como o presentantes da Coroa portuguesa e jesuítas em relação à escravidão
foram moralmente. Isto pelo que respeita ao presente. Quando ao futuro indígena e seus desdobramentos legais são elementos privilegiados na
meditai no desejo que tendes de promover a colonização europeia, na narrativa empreendida. Tal abordagem tomada cronologicamente leva
necessidade reconhecida de a favorecer, e nas providências que já estamos o autor a desenvolver uma espécie de tese, não enunciada como tal em
para isso tomando, e dizei se a nação futura poderá ser índia ou conga.“ função do estilo narrativo da obra, sobre a gênese da dependência bra-
sileira ao tráfico atlântico de escravos.
Mais do que confirmar a perspectiva elitista e de fundo racista do au— Segundo a História geral..., a escravidão hereditária com direito à
tor, tais parágrafos revelam a existência de divergências políticas entre compra e venda do escravizado vinha da tradição romana e Lisboa se
os homens do tempo sobre a forma de escrever a história do Brasil e constituía em um dos principais portos negreiros da Europa nos sécu-
sobre o lugar a ser ocupado nessa narrativa por indígenas e africanos los XV e XVI.*3 A mesma base jurídica legitimava a possibilidade da
escravizados. Varnhagen escrevia na defensiva e ao imprimir a segunda escravidão africana ou indígena, que podia se fazer por guerra justa ou
edição da obra, como já foi assinalado, cedeu a algumas críticas, pas-
por resgate de pessoas escravizadas legalmente dentro da lei dos gentios.
sando a iniciar o volume com a descrição da terra e os usos e costumes Da mesma forma que os jesuítas denunciavam os excessos da escra-
dos povos originários (seção VII a X da primeira edição) ao invés da vização indígena por cristãos nas Américas, outros religiosos fizeram
expansão ibérica no Atlântico. denúncias semelhantes em relação às práticas de escravização na Áfri—

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Seu elogio à colonização portuguesa e a defesa do escravismo em


ca, o que é sublinhado no texto. Ao narrar os conflitos entre jesuítas e
colonos ao tempo do governo de Mem de Sá, transcreve integralmente determinadas circunstâncias históricas foram alvos de intensas críticas.
o famoso texto de frei Thomas de Mercado (1569) sobre os abusos do Em 1869, o livro de Southey foi finalmente traduzido para o português
tráfico de escravos na África.“ O trecho denunciava o caráter negreiro e apresentado como alternativa à História geral..., por seu tom aboli-
das guerras travadas no continente africano, a prática dos batismos em cionista e antiportuguês. Como era também anticatólico, a edição se
massa e os horrores cometidos nos portos de embarque e continuados fez anotada por um padre, de modo a diminuir o impacto do ponto de
nos navios. Propunha como solução proibir os cristãos de participar do vista protestante presente na obra.48
comércio de escravos no continente africano. Varnhagen assinala ainda A interpretação da institucionalização da escravidão africana no
o envolvimento de algumas ordens religiosas, em especial a dos jesuítas, país, a partir do desenvolvimento das plantações de cana-de-açúcar
na remessa de escravos africanos para a América. nas Antilhas e da adesão jesuítica ao tráfico africano como forma de
Segundo a História geral..., as repetidas proibições da escravidão proteger os povos originários da América da ação escravizadora dos
indígena se deveram à influência das Antilhas, onde se teria comprovado colonos guarda interesse e atualidade. O argumento foi parcialmente
a melhor resistência dos africanos ao extenuante trabalho do cultivo da retomado (especialmente a importância da tese de concentrar a ação
cana—de-açúcar, e aos interesses negreiros dos jesuítas, assim literalmente evangelizadora em um só continente para a legitimação do tráfico atlân-
.
referidos.“ A preponderância de tais interesses teria levado à proibição tico) por Luiz Felipe Alencastro em texto que se tornou referência sobre
da escravidão indígena na América e à generalização do tráfico negreiro a formação do Brasil no contexto do Atlântico sul.'w As informações e
no Atlântico, com nefastas consequências para o Brasil, ainda às voltas análises reunidas na História geral... sobre a presença da instituição da
com medidas repressivas que concretizassem sua extinção definitiva três escravidão na legislação e nas práticas tradicionais portuguesas, sobre
décadas depois da independência (o primeiro volume da História geral... o papel de Lisboa como porto negreiro antes da consolidação do siste-
foi publicado em 1854).
ma de plantation nas Américas, bem como a abordagem institucional
Coerente com o texto do historiador de uma nação que se queria
interligada entre escravidão indígena e africana, construíram a base de
moderna, apesar de ainda escravista, defende um ponto de vista fran-
um primeiro saber histórico sobre a escravidão no Brasil que teria im-
camente favorável à legitimidade da escravidão em algumas condições.
Ainda que crítico à forma como se estruturou a escravidão africana, portantes desdobramentos nas abordagens historiográficas posteriores.
Mas do ponto de vista político, a análise teria vida mais curta. A
baseada no tráfico transatlântico. O autor apresenta algum apreço pelas
dependência do tráfico atlântico que o país ainda se esforçava por ex-
novas teorias racialistas, como pode ser visto nos textos em relação aos
tinguir era apresentada como consequência indesejável da vitória jesuíta
indígenas e aos africanos, mas considerava que precisavam ainda ser
sobre os colonos, impedindo a continuidade da escravidão indígena
submetidas a novas observações para dar resultados seguros e simples,
no país. Também a existência de povos indígenas ainda selvagens nos
capazes de serem aproveitados em uma história civil;“ E não precisava
delas para legitimar a escravidão historicamente e para advogar a im- sertões seria consequência daquela derrota. Segundo o polêmico ponto
de vista, tais índios poderiam ter sido e ainda deveriam ser ciuilizados
possibilidade de uma liberdade imediata para os escravizados no país.
Segundo ele, a escravidão era princípio antigamente admitido por todos a partir de formas variadas de trabalho compulsório.
os povos... ainda hoje [reconhecido por] algumas nações da Europa e Na década de 1870, defesa tão explícita da escravidão era conside-
até o tolera o Evangelho.47 rada quase intolerável por muitos críticos. Além da falta de estilo e da

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organização narrativa do texto da História geral..., que, para alguns, por diversos comentadores, a adoção do adjetivo colonial pode ser pen-
a aproximariam da crônica, e não da História.-ªº Caberia a Capistrano sada como principal operação historiográfica de diferenciação.
de Abreu a reabilitação de Varnhagen como historiador, ao escrever seu Capistrano não estava dissociado da concepção de história-memória
necrológio, em 1878. ainda predominante em fins do século XIX, mas buscava fazer para o
Brasil uma história íntima, que deveria mostrar como aos poucos foi
obra de Varnhagen se impõe ao nosso respeito e exige nossa gratidão
(...) a se formando a população, deuassando o interior, ligando entre si as
e mostra um grande progresso na maneira de conceber a história pátria. diferentes partes do território, fundando indústrias, adquirindo hábi-
já não é a concepção de Gandavo e Gabriel Soares, em que o Brasil e con— tos, adaptando-se ao meio e constituindo por fim a nação. Para ele, a
siderado simples apêndice de Portugal, e a história um meio de chamar a outra, a história externa, que trata o Brasil como colônia portuguesa,
emigração, e pedir a atenção do governo para o estado pouco defensável já tinha sido em grande parte contemplada?4 Para Capistrano, o des—
do país, sujeito a insultos de inimigos, contra os quais se reclama proteção. bravamento das vastas extensões de terra da América, com a adaptação
Não é a concepção dos cronistas eclesiásticos, que veem simplesmente uma do português ao novo meio, misturando-se com os povos nativos e
província, onde a respectiva Congregação prestou serviços, que procuram incorporando muitas de suas técnicas e conhecimentos, consistiria o
realçar. Não é a de Rocha Pitta, atormentado pelo prurido de fazer estilo,
principal elemento de transformação da colônia portuguesa em um novo
imitar Tito Lívio e achar no solo americano cenas que relembrem as que
tipo de sociedade.55 Para josé Honório Rodrigues, Caminhos antigos
passaram na Europa. Não é a de Southey, atormentado ao contrário pela e povoamento [1899] representariam para a bistoriograâa brasileira
impaciência de fugir às sociedades do Velho Mundo, visitar países pouco
o que The Frontier in American History [1893] de F. Turner é para a
conhecidos, saciar a sede de aspectos originais e perspectivas pitorescas,
historiograâa americana.Só
a que cedem todos os poetas transatlânticos (...) Não. Varnhagen atende '
Nessa história íntima do país, a escravidão e o tráfico atlântico
somente ao Brasil, e no correr de sua obra procurou sempre e muitas vezes
conseguiu colocar-se sob o verdadeiro ponto de vista nacional.51
ocupavam lugar secundário, seja do ponto de vista institucional, seja
do ponto de vista étnico-cultural. Em polêmica pública com Silvio Ro- '

De fato, a trajetória do historiador cearense se constrói em diálogo mero, intérprete que enfatizava a importância da escravidão africana
na formação do povo brasileiro, atribuía o que havia de diverso entre
crítico com a obra de Varnhagen. Os Capítulos de história colonial
o brasileiro e o europeu... em máxima parte ao clima e ao indígena?7
foram finalizados ao mesmo tempo que Capistrano fazia a revisão e
Textualmente, considerava que o caráter nacional brasileiro, em sua
os comentários críticos do primeiro volume da História geral...52 e o
diferenciação e sentimento de superioridade em relação ao português,
diálogo entre as duas obras é bastante rico. teria 'se formado, mesmo que imperfeitamente, na conquista e no des—
bravamento do sertão, ao longo do século XVII. Manteria a tese na
sua principal obra, Capítulos de história colonial, publicada em 1907:
A formação da nação: Capistrano de Abreu
e a construção do Brasil Colonial Por outra parte transparece o segredo do brasileiro: a diferenciação
paulatina do reinol, inconsciente e tímida a princípio, consciente, reso-
Para Capistrano, Varnhagen era a referência, mas também o paradigma luta e irresistível mais tarde, pela integração com a natureza, com suas
a ser ultrapassado.” Entre as muitas diferenças entre os dois, analisadas árvores, seus bichos e o próprio indigena.53

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