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A lógica do processo de produção: O anti-Édipo e luta pela reconstituição de uma

posição materialista em filosofia

- Paulo Henrique Flores


Colégio Universitário Geraldo Achilles Reis, Universidade Federal Fluminense

1.

A prática de leitura não é, como nenhuma prática social, uma atividade trans-
histórica. Ela não opera com os mesmos métodos e não tem os mesmos resultados em
todas as situações. A prática de leitura é sempre determinada em sua operação pelo
universo semântico da formação ideológica em que acontece, assim como pelos meios
teóricos que mobiliza em seu processo. É por isso que toda leitura produz sempre um
resultado singular: ela é leitura de um texto singular, em uma situação singular e através
de meios teóricos determinados. E isto ainda que devamos defender, a partir de nossa
posição, que é sempre possível, e mesmo necessária, uma prática de leitura que produza
resultados mais ou menos verdadeiros na medida em que mobiliza meios teóricos
científicos1.

Neste sentido, a leitura de um texto – e, por suposto, a de um texto de filosofia


política – deve variar de acordo com a situação concreta em que é operada. Esta situação
concreta, os maxistas-leninistas a chamamos de conjuntura. Evidentemente, O anti-Édipo
é um texto marcado pela conjuntura à qual responde, a saber o maio 1968 francês. Há a
marca do ascenso paralelo das lutas proletárias e das lutas de estudantis, do bloqueio que
o Partido Comunista Francês – já, então, abertamente um Partido revisionista – tenta
impor à comunicação destas lutas, das lutas de massas contra o Estado social da Europa
do pós-guerra.2.

Da mesma maneira, ler O anti-Édipo na atual conjuntura é uma operação que não
deixa de ter efeitos teóricos sobre o sentido produzido a partir de seu texto, efeitos que
são determinados justamente pela situação concreta em que esta leitura é realizada. Ora,
pensamos que é justo apresentar a seguinte hipótese de trabalho: o acontecimento que

1
Ver, sobre este ponto, a teoria da leitura defendida por Althusser em Lire ‘Le capital’, p. 17-18.
Pensamos que é neste mesmo sentido que Deleuze aponta para o caráter científico do método de
leitura de Martial Guéroult na história da filosofia. Ver DELEUZE, G. L’île déserte et autres textes, p. 216.
2
Ver SIBERTIN-BLANC, G. Politique et État chez Deleuze et Guattari, p. 9 e BADIOU, Alain. A hipóstese
comunista, p. 31-38. Nosso trabalho deve muito aos trabalhos magistrais de Sibertin-Blanc, que
pensamos ser o ponto de partida para qualquer análise marxista-leninista dos textos de Deleuze.
organiza toda a série histórica atual na formação social brasileira, acontecimento ao qual
respondem em parte todos os movimentos de reestruturação do Estado capitalista no
Brasil nos últimos anos, são as jornadas de junho de 2013. Mais uma vez, o ascenso
paralelo das lutas da juventude nas ruas e das lutas proletárias3, o bloqueio que o
reformismo tentou impor a estas lutas, chegando a participar ativamente da construção
das leis “antiterrorista”, as lutas de massas contra aparelho de repressão do Estado policial
brasileiro, bem como a operação ideológica de deformação do que se passou neste
acontecimento, principalmente por parte do reformismo então governante que buscava e
segue buscando legitimar a fachada “democrática” deste mesmo Estado policial – toda
esta sequência é fundamental para formação de nossa conjuntura, não apenas a de nossa
conjuntura histórica, mas também a de nossa conjuntura teórica.

E isto porque o acontecimento que foram as lutas de massas de 2013 impôs,


necessariamente, a necessidade de uma ruptura com todo o imaginário político constuído
nas últimas décadas entre as “esquerdas” – reais ou fantásticas – na formação social
brasileira. Por um lado, o ciclo de lutas de 2013 tornava evidente o alinhamento das
“esquerdas” reformistas aos aparelhos do Estado capitalista, inclusive e sobretudo com o
seu aparelho de repressão4, tornando evidente a necessidade da luta pela reconstrução de
uma posição política revolucionária e de massas. Por outro, a prática demonstrou – como
tem demonstrado desde 2013 – a incapacidade seja das posições anarquistas, seja das
posições comunistas de tipo dogmático para tornar efetiva esta posição e combater a
fascistização do Estado capitalista no Brasil, fascistização da qual o movimento
bolsonarista é a expressão aberta.

A única saída política e teórica, então, era retomar marxismo-leninismo desde uma
posição não apenas anti-revisionista, mas também antidogmática, operando uma crítica
interna de sua posição teórica e uma avaliação consistente de suas vitórias e derrotas ao
longo da série histórica do século XX. Esta retomada devia ser – como foi pelos muito
poucos que assumiram a tarefa – sempre colocada principalmente nos termos de uma
intervenção nas práticas sociais e nas lutas de massas. Mas ela exigia, simultaneamente,
que fosse colocado o problema teórico de uma ampla avaliação crítica do legado do

3
Cabe apontar que o ano de 2013 registrou, então, o maior número de greves na série histórica dos 30
anos anteriores. Ver DIEESE, Balanço das greves em 2013 in Estudos e pesquisas Nº 79, dezembro de
2015.
4
Ver, por exemplo, a matéria de Cecília Olliveira publicada no The Intercept, “Lula é responsavel, com
Dilma, por incrementar o Estado policial que agora se volta contra ele”, janeiro de 2018.
marxismo-leninismo. E isso não apenas em função da necessidade de reativá-lo em uma
nova conjuntura mas, sobretudo, da necessidade de analisar seus impasses e a razão pelas
quais ele pôde ser derrotado desde seu interior pelo desenvolvimento das posições
revisionistas e burocráticas em seu desenvolvimento histórico5.

Ora, nesta frente teórica há, por suposto, uma luta filosófica a ser travada, na
medida em que é também a filosofia marxista-leninista que deve ser analisada e retomada
em todas as suas implicações. Evidentemente, não se trata de assumir a posição
francamente idealista segundo a qual todos os desvios e impasses históricos do marxismo-
leninismo seriam o resultado direto de suas teses em filosofia; nem, por outro lado, de
assumir a tese inversa – e igualmente idealista – de que o marxismo-leninismo pode
persistir de maneira inviolável em sua primeira formulação uma vez que estes mesmos
desvios e impasses não dizem respeito a suas formulações teóricas, que permaneceriam
em uma pureza doutrinal completamente indiferente a seus desenvolvimentos práticos6.
A filosofia marxista-leninista está, necessariamente, implicada em todas as práticas
políticas que podem reivindica-la com alguma consistência de tal maneira que ela não é
sem efeitos politicos sobre estas práticas e nem estas práticas são sem efeitos teóricos
sobre ela.

O que não é senão, outra, maneira de afirmar que a prática teórica, ainda que
específica, não pode ser compreendida sem sua determinação pela prática social e
política, sobretudo a prática teórica comunista. O último ciclo desta luta pela reavaliação
teórica da filosofia marxista-leninista foi, sem dúvida, conduzido pelos trabalhos de Louis
Althusser. Os trabalhos de Althusser, no entanto, permaneceram inconclusivos sobre uma
série de pontos. Certamente isto se deu parcialmente em razão de suas tragédias pessoais,
mas também porque sua prática teórica ainda se ligava, de uma maneira ou de outra, aos
aparelhos e formas do mesmo ciclo de lutas que já encontrava seu esgotamento nos anos
19707. No que diz respeito à filosofia marxista-leninista, ainda que Althusser tenha
estabelecido uma série de teses aboslutamente necessárias – a elaboração de um novo

5
Para o desenvolvimento desta análise e suas lições ver RODRIGUES, Francisco Martins. Anti-Dimitrov e
BETTELHEIM, Charles & SWEEZY, Paul. A transição ao socialismo.
6
Ver ALTHUSSER, Louis. “Enfin, la crise du marxisme” in Solitude de Machiavel¸ p. 271.
7
Vale lembrar que apesar de suas posições francamente anti-revisionistas, especialmente a respeito da
defesa 1. da centralidade do conceito de ditadura do proletariado, contra a sua integração às
instituições e formas da política burguesa, e 2. da forma científica do materialismo histórico, contra a
redução do marxismo a uma “filosofia da consciência” humanista, Althusser continua a se situar até o
fim no interior da constelação organizativa do já abertamente revisionista Partido Comunista da França
(PCF).
conceito de tempo histórico, a crítica do humanismo e do economicismo, a indicação da
filosofia como “luta de classes na teoria”, a análise do desenvolvimento de uma nova
prática da filosofia por Lênin etc.8 –, seus trabalho ainda se limitam a um valor inicativo
e descritivo sobre uma das questões fundamentais: o sentido da dialética materialista.

Esta limitação não é sem importância. A questão da dialética materialista é central


na problemática dos trabalhos de Marx, Engels e Lênin, tendo efeitos teóricos importantes
sobre sua teoria da história, mas também sobre sua a teoria do Estado – ainda que, em
muitos sentidos, esta permaneça ausente na obra de Marx com a exceção de algumas
indicações cruciais sobre o problema da ditadura de classe. Como veremos, a questão da
dialética materialista está implicada em uma série de impasses práticos enfrentados pelo
movimento comunista.

Por exemplo, o enigma da filosofia, e em particular o da


dialética, sobre a qual Marx se calou depois de algumas fórmulas
demasiado esquemáticas para serem levadas ao pé da letra, e muito
equívocas para serem pensáveis. Trata-se da relação da dialética em
Marx e da dialética em Hegel. Sob aparências muito abstratas e sob
referências filosóficas, a questão era importante: estava em jogo a
concepção da necessidade na história e de suas formas (a história tem
um sentido e um fim? O fim do capitalismo é uma fatalidade? Etc.), ou
seja a concepção da luta de classes e a ação revolucionária. O silêncio
de Marx e a dificuldade de reconstituir suas posições filosóficas a partir
de sua obra abriram – salvo exceções (Lênin, Gramsci) – a via ao
positivismo e ao evolucionismo, dos quais o capítulo de Stalin sobre o
Materialismo dialetico e materialismo histórico fixou e consolidou as
fórmulas por trinta anos.9

É verdade que já que os artigos de Althusser “Contradição e sobredetermiação” e


“Sobre a dialética materialista”, escritos nos anos 1960 e republicados em Por Marx,
avançam uma série de pontos sobre a questão da dialética materialista, partindo de uma
análise sumária da dialética hegeliana e apontando para alguns traços notáveis das
estruturas lógicas da dialética marxista (a complexidade das contradições, a desigualdade
entre os termos de uma contradição, uma concepção multilinear do tempo etc.). No
entanto, para além da tese absolutamente fundamental de que o processo de diferenciação

8
Ver, respectivamente, ALTHUSSER, Louis et alii. Lire “Le capital”, pp. 274-288, ALTHUSSER, Louis,
“Resposta a John Lewis” in Posições I¸ p. 60-64, Sur la reproduction, p. 240-247, “Lénine et la
philosophie” in Solitude de Machiavel¸ p. 134-136
9
ALTHUSSER, Louis. “Enfin la crise du marxisme!” in Solitude de Machiavel, p. 276.
sensível das estruturas dialéticas determina o próprio modo de operação destas estruturas
– processo que Althusser desgina tomando de empréstimo da psicanálise o termo de
“sobredeterminação” – as análises de Por Marx assumem principalmente um sentido
crítico e não avançam na elaboração destas mesmas estruturas lógicas.

Neste ponto, pensamos ser possível assumir uma hipótese que tem sido
fundamental no desenvolvimento de nossa própria prática teórica: os trabalhos de
Deleuze, e em especial os dois tomos de Capitalismo e esquizofrenia¸ são intercessores
fundamentais para repensar a dialética materialista. Esta afirmação, a princípio, pode
parecer espantosa. Deleuze já não denunciava a dialética como um pensamento do
negativo, das forças reativas, que permanece, como tal, necessariamente idealista? Já não
encontrava na dialética, e mesmo na dialética tal como mobilizada por Marx, uma lógica
resultante de uma insuficiência da crítica teórica que deixava subsistir no interior da forma
da auto-consciência os valores tradicionais da moral e da religião10? O Marx de A
ideologia alemã poderia aparecer, assim, nos primeiros textos de Deleuze, como o limite
final da dialética hegeliana, invertendo-a apenas na medida em que a subordina a uma
última figura, o proletariado11.

Estas teses inicias de Deleuze sobre a dialética devem, no entanto, ser situadas em
seu contexto teórico imediato e comparadas com seus desenvolvimentos teóricos
posteriores. Elas contém, é verdade, uma parte importante de verdade. Ao apresentar estas
críticas em Nietzsche e a filosofia¸de 1962, Deleuze toma como objeto teórico os escritos
de juventude de Marx: sua tese de doutoramento sobre a Diferença entre a filosofia da
natureza de Demócrito e a de Epicuro e, sobretudo, A ideologia alemã.

Mas, como demonstrarão os artigos reunidos por Althusser em Por Marx,


publicados em 1965, estes textos são justamente aqueles que se situam antes ou nos
momentos iniciais do corte epistemológico no qual Marx e Engels acertam suas contas
“com sua consciência filosófica anterior”, rompendo processualmente com os temas e
estruturas do hegelianismo e das filosofias da história. Cabe lembrar que este corte, para
além das versões caricaturais em que se tentou enquandrá-lo, é um processo contínuo que
não terá fim nem na obra de Marx nem no desenvolvimento do marxismo-leninismo12.

10
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie¸ pp. 9-10 e 111.
11
Ibid., p. 186.
12
Ver ALTHUSSER, Louis. Pour Marx¸ p. 69-73 e “Éléments d’autocririque” in Solitude de Machiavel, p.
164-165.
Justamente nesse sentido, é legítima a indicação de que nas fases iniciais do processo,
tudo de passa como se a dialética marxista se limitasse às formas da dialética idealista.

No entanto, afirmar que o processo do corte epistemológico não terá fim é, ao


mesmo tempo, afirmar que as sobrevivências do idealismo hegeliano não terão fim na
obra de Marx. E isto porque a própria luta de classes se faz presente no desenvolvimento
da prática teórica de Marx – como, aliás, em qualquer prática teórica. A luta contra as
estruturas lógicas do idealismo é, no interior de cada filosofia, uma luta contínua que
retoma em formas próprias a luta de classes que se desenvolve objetivamente no interior
das formações sociais capitalistas. A sobrevivência das estruturas lógicas hegelianas se
fará presente, de maneira dramática, mesmo no interior de O capital13. No entanto, já o
famoso Prefácio da segunda edição russa do capital estabelecia os marcos conceituais
pelos quais seriam possível reconstruir teoricamente as estruturas da dialética
materialista.

Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do


método hegeliano, mas exatamente o seu oposto [ihr direktes Gegenteil,
“se opõe diretamente a ele”]. Para Hegel, o processo de pensamento que
ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito
autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas
uma manifestação externa do primeiro. Para mim, a contrário, o ideal
não é mais do que o material transposto e traduzido na cabeça do
homem.
[...] A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não
impede, em absoluto, que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo
amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela
encontra-se virada de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de
descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico.
Em sua forma mistificada [mystifizierten Form], a dialética esteve
em moda na Alemanha porque parecia glorificar o existente. Em sua
configuração racional [ihrer rationellen Gestalt, “em sua forma
racional”], ela constitui um escândalo e um horror para a burguesia e
seus porta-vozes doutrinários, uma vez que na intelecção positiva do
existente [Bestehenden] inclui, ao mesmo tempo, a intelecção de sua
negação, de seu necessário perecimento. Além disso, apreende toda
forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu
lado transitório; porque não se deixa intimidar por nada e é, por
essência, crítica e revolucionária.14

13
Para este ponto, ver ALTHUSSER, Louis.”Avant-propos au livre de G. Duménil” in Solitude de
Machiavel, p. 250-260.
14
MARX, Karl. O capital, p. 90-91. Os grifos, as inserções do original alemão e as traduções alternativas
são nossos.
Não é sem razão que Marx insiste no problema da “forma mistificada” da dialética
hegeliana, à qual ele opõe uma “configuração racional” da dialética. O que Marx afirma,
como vemos, é que no interior da “forma mistificada” da dialética hegeliana se encontram
“as formas gerais de movimento” que deve ter uma “configuração racional” da dialética.
E isto de modo que estas “formas gerais” são, pelo proprio fato de sua subordinação à
“forma mistificada”, deformadas pelo hegelianismo. Como mostrou Althusser, para o
Marx de O capital a inversão da dialética é apenas o momento inicial a partir do qual se
deve operar uma verdadeira extração e transformação das “formais gerais” sobre as quais
deve se constituir uma “forma racional” da dialética15.
O que constitui o “cerne racional” da dialética de Hegel, tal como Marx a
compreende, são as seguintes teses: 1. que na “intelecção positiva do existente [a
dialética] inclui, ao mesmo tempo, a intelecção de sua negação, de seu necessário
perecimento”; 2. que a dialética “apreende toda forma desenvolvida no fluxo do
movimento, portanto, incluindo o seu lado transitório”. Deste ponto de vista, Althusser
afirma mais uma vez o fundamental quando diz que um dos grandes aprendizados de
Marx com a leitura de Hegel é a ideia de uma “lógica de um processo, da qual a dialética
hegeliana lhe oferece um ‘modelo’ abstrato e ‘puro’”16.
É certo que a elaboração desta lógica materialista do processo é elaborada por
Marx de maneira demasiado sumária, e que sua formulação é o resultado de uma longa
luta teórica contra as sobrevivências de uma lógica idealista do processo que percorre,
como vimos, não apenas a obra de Marx mas toda a história do movimento comunista.
É precisamente a respeito do problema da constituição desta lógica dos processos
de produção que pensamos que a filosofia de Deleuze assume uma importâncial crucial
para o desenvolvimento do marxismo-leninismo. Não se deve, quanto a este ponto,
levantar a objeção de que a filosofia de Deleuze assume a posição de um “anti-
hegelianismo generalizado”. Antes, é também justamente por essa razão que a filosofia
de Deleuze ocupa um papel tão importante. Assim, nos parece um equívoco apontar para
a possibilidade de que, a partir de determinado momento em sua obra – digamos, com o
fim da redação de Espinosa e o problema da expressão – abandona a luta contra o

15
ALTHUSSER, Louis. Pour Marx¸ p. 89-92. Não é de espantar, aliás, que estas “formas gerais” possam
ser encontradas no interior do hegelianismo, uma vez que todo o segundo livro da Ciência da lógica¸
central para Marx e Engels, se desenvolve em torno de uma absorção do espinosismo, já concebido por
Hegel como uma filosofia do processo de produção do real, e de sua subordinação à categoria de sujeito
do idealismo alemão. Para uma análise deste problema, ver nossa Introdução aos Cadernos spinozistas
de Marx, no prelo, e HEGEL, G. W. F. Science de la logique – Livre deuxiême: L’éssence, p. 173-228.
16
ALTHUSSER, Louis. Pour Marx¸ p. 82.
hegelianismo17. Pensamos, em relação a isto, que toda a obra de Deleuze tem como seus
principais inimigos teóricos as figuras de Kant e Hegel, que ela é uma máquina de guerra
montada contra as teses centrais do idealismo moderno.
Ao contrário do que se poderia afirmar, a recusa da dialética por Deleuze não se
reduz a um vago embate terminológico. Antes, Deleuze determina de maneira precisa as
estruturas lógicas contra as quais luta na dialética idealista.

Uma relação, mesmo essencial, entre o mesmo e o outro [l’un


et l’autre] não basta para formar uma dialética: tudo depende do papel
do negativo nesta relação. Nietzsche diz mesmo que a força tem uma
outra força por objeto, Mais preisamente, é com outras forças que a
força entra em relação. É com um outro tipo de vida que a vida entra
em luta. O pluralismo ocasionalmente tem aparências dialéticas; ele é
seu inimigo mais feroz, seu único inimigo profundo. [...] Em Nietzsche
nunca a relação essencial de uma força com uma outra é concebida
como um elemento negativo na essência. Em sua relação com a outra,
a força que se faz obedecer não nega a outra ou o que ela não é, ela
afirma sua própria diferença e goza desta diferença. O negativo não está
presente na essência como aquilo do qual a força tira sua atividade: pelo
contrário, ela resulta desta atividade, da existência de uma força ativa e
da afirmação de sua diferença. O negativo é um produto da própria
existência: a agressividade necessariamente ligada a uma existência
ativa, a agressividade de uma afirmação.18

Vemos que o que Deleuze recusa na dialética não é, de modo algum, a ideia de
uma lógica do processo, central à sua filosofia. É, antes, a tese de o negativo é o operador
lógico capaz de reprodiz o movimento real. Esta tese, absolutamente central19 para a
filosofia hegeliana, será reusada por Deleuze. O negativo e, portanto, a dialética hegeliana
seriam, então, apenas capazes de gerar um “falso movimento”20. E isto porque o negativo
é, na verdade, o operador lógico necessário para extrair a diferença de uma identidade¸de
tal modo que é por sua autonegação que a identidade se torna capaz de produzir uma
diferença. Este é, com efeito, todo o movimento teórico pelo qual Hegel busca construir
a Ciência da lógica como uma filosofia da identidade da identidade e da diferença.
Como bem mostra Gérard Lebrun o papel do negativo em Hegel não é o de uma
simples oposição ou de uma determinação, como seria o caso em Kant ou Espinosa,
“entendida como exclusão recíproca de conteúdos positivos coexistentes”. Nestes casos,

17
Para esta posição, ver HARDT, Michael. Gilles Deleuze: um aprendizado em filosofia¸ p. 10-18. Apesar
desta discordância, o livro de Hardt nos parece de grande importância.
18
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie, p. 9-10. O primeiro grifo é nosso.
19
Ver HEGEL, G.W.F. Science de la logique – Livre prémier: L’Être, pp. 30, 61, 88-89, 103-140 e Science de
la logique – Livre deuxième: L’Éssence, p. 45-77.
20
DELEUZE, Gilles. O bergsonismo¸ p. 37-38.
nos quais também se insere o exemplo da relação de forças em Nietzsche, os “conteúdos
são simultaneamente unificados e distintos, simultaneamente dependentes e
independentes. Simultaneamente, mas sobretudo não ‘no mesmo momento’ ou ‘sob o
mesmo ponto de vista’ [...] Há, portanto, união e diferença, mas não união na diferença”21.
Por outro lado, a negação hegeliana se apresenta como autonegação lógica, mas
uma autonegação operada de tal forma que seu resultado não é apenas a supressão do
termo incial, mas seu desenvolvimento cumulativo ou seu enriquecimento, na medida em
que, contendo e subordinando a si o seu Outro, o Mesmo constitui sua própria
temporalidade22 - é isto, afinal, a identidade da identidade e da diferença.
É notável que a formulação de Marx elide esta construção conceitual. Não apenas
o movimento é apresentado como exterior às formas, como sua condição, como a inclusão
de sua transitoriedade é afirmada como consequência deste movimento produtivo. Assim,
a intelecção da negação de uma determinada forma, de “seu necessário perecimento”, é
operada simultaneamente [zugleich, “ao mesmo tempo”] à intelecção positiva de uma
forma existente não como sua autonegação, mas como a oposição real de duas forças
positivas23.
Do mesmo modo, devemos apontar que já desde Diferença e repetição
identificava a lógica transcendental a ser construída por uma filosofia da diferença como
uma dialética24 liberada das figuras do negativo – e, por isso mesmo, do primado da
identidade. É neste sentido que Deleuze afirma que “A dialética é a arte dos problemas
e das questões, a combinatória, o cálculo dos problemas enquanto tais. Mas a dialética
perde seu poder próprio – e então começa a história de sua longa desnaturação, que a faz
cair sob a potência do negativo – quando ela se contenta em decalcar os problemas a partir
das proposições”25. No mesmo sentido, em Lógica do sentido, Deleuze afirma que

A dialética é precisamente esta ciência dos acontecimentos


incorporais tais como são exprimidos em proposições e das ligações
[liens] dos acontecimentos tais como são exprimidos nas relações entre

21
LEBRUN, Gérard. A paciênia do conceito, p. 267-268.
22
Ver LEBRUN, Gérard. A paciência do conceito¸ p. 299-306.
23
Para uma análise mais extensa deste problema e da necessidade da constituição do proletariado
como uma força positiva para além da forma do modo de produção capitalista, ver TRONTI, Mario.
Operários e capital, p. 209-222. Para a centralidade do complexo na dialética materialista, por oposição
ao esquema identidade-negação da identidade em Hegel, ver ALTHUSSER, Louis. Pour Marx¸ p. 198-204.
24
Para as referências positivas à dialética e sua identificação com uma lógica transcendental ver, por
exemplo, DELEUZE, Gilles. Différence et répétition¸ pp. 22, 39, 83, 104 e 205.
25
DELEUZE, Gilles. Différence et répétition¸ p. 204.
proposições. A dialétia é de fato a arte da conjugação (cf. os confatalia
ou séries de acontecimentos que dependem uns dos outros).26

Ora, é justamente a elaboração desta “nova lógica”, que não se confunde com
aquela das estruturas da lógica hegeliana, que Althusser afirma ser a tarefa necessária dos
marxistas em filosofia, lógia que não é outra senão a dialétia materialista27. Não devemos
estranhar, portanto, que em uma de suas notas inéditas a respeito dessa nova lógica do
processo Althusser escreva:

O mundo é doravante um fluxo imprevisível. Se se quiser dar


uma imagem, é preciso remontar a Heráclito (não nos banhamos duas
vezes no mesmo rio), ou Epicuro (primado do vazio sobre os
corpúsculos atômicos). Se se quiser dar uma imagem mais próxima,
seguindo aquela de Deleuze [...], não é mais preciso representar o
mundo como à maneira de Descartes, como uma árvore hierarquizada,
mas antes, como um rizoma.28

2.
O desenvolvimento ulterior desta nova lógica do processo é, talvez, uma das
principais conquistas teóricas dos dois livros de Capitalismo e esquizofrenia. E já em O
anti-Édipo ela é apresentada como uma lógica do processo de produção. O conceio de
processo já era essencial na primeira formulação da teoria marxista29. Marx afirma em
uma nota à edição francesa de O capital que “a palavra ‘processo’ exprime um
desenvolvimento considerado no conjunto de suas condições reais”30.
No entanto, o conceito materialista de processo é essencialmente distinto daquele
com que operava a dialética hegeliana. Nesta, como viu Althusser, o processo é sempre o
processo de um sujeito, na medida em que é o desenvolvimento de uma mesma origem e,
por isso mesmo, está necessariamente subordinado a um fim. Em Hegel todo processo
encontra sua verdade e sua finalidade na constituição de um sujeito capaz de atribuir a si
o processo – ou, o que é mesmo, na constituição de uma identidade capaz de atribuir a si
o processo de diferenciação31. Todo o trajeto especificamente filosófio de Marx consiste,

26
DELEUZE, Gilles. Logique du sens, p. 18.
27
ALTHUSSER, Louis. “L’objet du capital” in Lire le Capital, p. 88.
28
ALTHUSSER, Louis. Thèses de juin, IMEC, ALT2. A29.60.04, p. 9. Cit. Em MASCARO, Alysson &
MORFINO, Vittorio. Althusser e o materialismo aleatório, p. 65.
29
Como testemunha todo o texto de O capital, cuja problemátia é toda colocada nos termos da análise
de processos.
30
Cit. em ALTHUSSER, Louis. A transformação da filosofia, seguido de Marx e Lênin perante Hegel, p. 95.
31
Ver HEGEL, G.W.F. Science de la logique – Livre troisième: Le Concept¸ p. 14-18.
em certo sentido, na transição do conceito do processo de um sujeito ao conceito de um
processo sem sujeito32.
Quando isso se torna claro, desaparece a questão do “sujeito”
da história. A história é um imenso sistema “natural-humano” em
movimento, cujo motor e a luta de classes. A questão de saber como “o
homem faz a história” desaparece completamente; a teoria marxista
rejeita-a definitivamente em seu lugar de nascimento: a ideologia
burguesa. [...] Uma coisa é certa: não se pode partir do homem, porque
isso seria partir de uma ideia burguesa do “homem” [..]. Essa ideia do
“homem”, do qual se deve “partir” como de um ponto de partida
absoluto, é o pano de fundo de toda ideologia burguesa, é a alma
inclusive da grande economia política clássica.33

O que está em jogo no conceito de processo como processo de um sujeito é o


próprio núcleo da ideologia burguesa, na medida em que se constitui em torno do par
humanismo/economicismo. Os mitos sobre a história como “autotranscendência do
homem” quanto aqueles sobre a história como “desenvolvimento das forças produtivas e
da satisfação nas necessidades” são as duas faces necessárias de uma mesma posição de
classe.
É com todo esse dispositivo conceitual que O anti-Édipo rompe. Ao tomar como
forma lógica do processo o processo psíquico do esquizofrênico, Deleuze retoma e
reelabora uma de suas teses inicias, já apresentadas em seu trabalho sobre o empirismo:
ao afirmar que “o fundo do espírito é delírio” o que se afirma é que de direito a atividade
mental é um “movimento de ideias”, um “conjunto de suas ações e reações” que se
compõe como uma coleção de elementos singulares e, ao mesmo tempo, indistintos34.
Esta coleção, que já é o primeiro modelo de uma multiplicidade intensiva, não
agrupa seus elementos segundo regras internas de constância ou de uniformidade. Ainda
que estas se apresentem necessariamente, esta necessidade é antes externa do que interna.
A unificação não é aquilo que o espírito desenvolve, mas aquilo que lhe sobrevém. O
mesmo se pode dizer da distinção dos elementos do processo. Esta forma lógica, em um
paralelismo surpreendente com a função da autoconsciência na lógica hegeliana e na
transposição à lógica objetiva, é também a forma do processo de produção material.

O que o esquizofrênico vive especificamente, genericamente,


de modo algum é um polo específico da natureza, mas a natureza como

32
De tal maneira que quando Althusser afirma que a principal herança hegeliana de Marx é o conceito
de um processo sem sujeito o que se afirma é que a principal herança hegeliana de Marx é a
transformação que Marx opera em Hegel. Ver ALTHUSSER, Louis. A transformação da filosofia, seguido
de Marx e Lênin perante Hegel, p. 95.
33
ALTHUSSER, Louis. “Resposta a John Lewis” in Posições I¸ p. 29-30.
34
DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade, p. 11.
processo de produção. Que quer dizer processo aqui? Em um certo
nível, é provável que a natureza se distinga da indústria: por um lado a
indústria se opõe à natureza, por outro, absorve os materiais dela; por
outrom ainda, ela lhes restitui seus resíduos etc. Esta relação distintiva
homem-natureza, natureza-indústria, sociedade-natureza, condiciona,
na própria sociedade, a distinção de esferas relativamente autônomas,
que chamaremos de “produção”, “distribuição”, “consumo”. Mas este
nível de distinções gerais, considerado na sua estrutura formal
desenvolvida pressupõe (como Marx mostrou) não só o capital e a
divisão do trabalho, mas também a falsa consciência que o ser
capitalista tem nessariamente de si e dos elementos cristalizados no
conjunto de um processo.35

Deleuze e Guattari retomam os desenvolvimentos de Marx na famosa Introdução


ao método da economia política, de 1857, sobre a relação entre produção, distribuição,
troca e consumo como momentos supostamente distintos da economia política. Esta
distinção é tão mais importante para a compreensão da nova lógica por Marx por se
oporem diretamente aos momentos de desenvolvimento das categorias do silogismo na
Ciência da lógica. Assim, para a economia política clássica, o desenvolvimento lógico
das atividades econômicas segue a seguinte ordem: 1. A produção, como ponto de partida,
cria socialmente objetos correspondentes às necessidades humanas (universalidade); 2. A
distribuição reparte estes objetos segundo leis sociais (particularidade A1); 3. A troca
prolonga este movimento de repartição (particularidade A2); 4. O consumo faz com que
os objetos saiam da sociedade para serem utilizados e satisfaçam as necessidades dos
indivíduos (singularidade)36.
Marx aponta que se estes momentos não são, de modo algum, idênticos, nem por
isso eles são distindos. Trata-se, antes, de diferenças no interior de um mesmo processo,
diferenças que se determinam reciprocamente e de maneira imediata: a produção é
também consumo, como consumo produtivo (o consumo cria a necessidade como objeto
interno da produção), é também distribuição, como distribuição dos fatores de produção
(a produção pressupõe uma determinada distribuição dos meios de produção e dos
produtores). Da mesma maneira, cada um desses momentos é também produção. Assim,
a produção “sobrepõe-se sobre os outros momentos”, como a atividade que estabelece as
condições para todo o processo37. O que é o mesmo que afirma que o processo de
produção é pensado, no interior do campo da filosofia materialista, como um processo de
diferenciação imanente que não remete a nenhum princípio de identidade.

35
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 14.
36
MARX, Karl. Grundrisse¸ p. 44.
37
MARX, Karl. Grundrisse, p. 53.
Mantendo a análise comparativa com a teoria especulativa do silogismo na
Ciência da lógica, o que se trata de afirmar não é apenas que ao longo do processo de
desenvolvimento lógico a universalidade se determina progressivamente, como
particularidade e, depois, como singularidade, para, por fim, se descobrir como identidade
do universal e do singular. A própria universalidade já se encontra imediatamente
determinada pela singularidade e pela particularidade, e encontra nela seus
pressupostos. Em outros termos, se há uma forma lógica universal, esta é precisamente a
forma de um “fluxo imprevisível” uma vez que o universal não é outra coisa senão a
universalidade da singularidade, de tal maneira que a dialética materialista não é outra
coisa que não uma “ciência dos acontecimentos”.
Um dos efeitos teóricos mais importantes deste desenvolvimento em O anti-Édipo
é justamente analisado por Guillaume Sibertin-Blanc nos termos althusserianos de uma
crítica da “filosofia espontânea da psicanálise”38. Partindo da descoberta freudiana da
produtividade do desejo, Deleuze e Guattari apontam que esta descoberta permanece
limitada por teses que bloqueiam seu desenvolvimento. Afinal, “descobrindo o elemento
de uma produção inconsciente do desejo, Freud compromete seu conceito o remetendo
diretamente à ideia de um trabalho voltado para as ‘representações inconscientes’ e
mantenso o pressuposto segundo o qual o ser do desejo consiste em sua representação
por um sujeito ou em um sujeito”39.
Em certo sentido, tudo se passa como se, através da crítica dos elementos idealistas
do pensamento de Freud, Deleuze e Guattari visassem não apenas o idealismo de Platão
e Kant, mas proseguissem também uma crítica silenciosa de Hegel. O desejo aparece,
então, como processo de um sujeito justamente na medida em que é reconduzido ao
modelo da representação e é assumido como potêncial de realização de representações
subjetivas diante de uma falta objetiva. Assim, por um lado é reafirmada uma distinção
entre momentos distintos do processo, o interno e o externo, a fantasia e o real. Por outro
lado, a falta objetiva poderia mesmo ser afirmada como resultante da própria atividade

38
SIBERTIN-BLANC, Guillaume. Deleuze et l’Anti-OEdipe¸ p. 22. Deste ponto de vista, cabe lembrar que
Althusser, em Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas denunciava a tendência das ciências,
quando desenvolvidas no interior de uma sociedade de classes, de serem pressionadas pelas ideologias
dominantes, desenvolvendo assim uma “filosofia espontânea” que interpreta os resultados científicos
através de lentes idealistas. Contra isto, um dos papéis da filosofia marxista seria o de retificar essa
deformação, deslocando as ciências para o campo do materialismo. Neste sentido, O anti-Édipo contém
uma crítia da “filosofia espontânea” da psicanálise, buscando recolocar suas conquistas teóricas no
campo de uma psiquiatria materialista.
39
SIBERTIN-BLANC, Guillaume. Deleuze et l’Anti-OEdipe¸ p. 22. O grifo é nosso.
do desejo, como sua projeção, ainda que ela não deixe, deste modo, de se distinguir do
momento positivo que a constitui. O desejo reencontraria, assim, sua satisfação através
do motor do negativo justamente no ato de consumir a si mesmo, da mesma maneira que
na lógica hegeliana o universal devém concreto com a suprassunção do singular.
O anti-Édipo afirmará, então, contra esta tese idealista, a tese materialista da
univocidade do processo de produção40 do desejo. O sentido final desta tese é atribuir ao
desejo uma objetividade imediata, de tal maneira que não apenas é superada a distinção
entre os regimes subjetivo e objetivo (mas não sua diferenciação), como a atividade do
desejo é diretamente singularizada nas formas de seus objetos materiais em suas
coordenadas sociais e históricas.
O que se afirma neste ponto é que o processo de produção não está subordinado a
uma norma que lhe seja transcendente, seja esta transcendência absoluta ou relativa. Não
existe instância de universalidade que não encontre, desde o início, suas condições e sua
forma na própria singularidade. É exatamente este o modelo lógico para o qual Althusser
apontava em Por Marx ao retomar da psicanálise o conceito de sobredeterminação, e ao
fazer da causalidade estrutural uma causalidade sempre modificada pela operação própria
de seus efeitos singulares41. Aliás, explica-se, então, que Althusser e Deleuze possam se
encontrar no campo do espinosismo, uma vez que esta nova lógica não é outra coisa que
não o desdobramento das teses de Espinosa sobre a causalidade imanente42.
Como processo de singularização imanente, o processo de produção é
imediatamente um processo de singularização. Neste sentido,

Se o desejo produz, ele produz real. Se o desejo é produtor, ele


só pode sê-lo na realidade, e de realidade. O desejo é esse conjunto de
sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os fluxos e os
corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre
disso, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução
do insconciente. Nada falta ao desejo, não lhe falta o seu objeto. É o
sujeito, sobretudo, que falta ao desejo, ou é ao desejo que falta sujeito
fixo; só há sujeito fixo pela repressão. O desejo e o seu objeto
constituem uma só e mesma coisa: a máquina, enquanto máquina de
máquina. [...] O ser objetivo do desejo é o Real em si mesmo.43

40
SIBERTIN-BLANC, Guillaume. Deleuze et l’Anti-OEdipe¸ p. 26.
41
Ver ALTHUSSER, Louis. Pour Marx¸ p. 100-115.
42
Ver ESPINOSA, Baruch de. Ética, EIP18.
43
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 43.
O que são estas sínteses que operam como unidades de produção singulares e que
constituem o Real? Pensamos ser legítimo afirmar que, para o materialista, estas sínteses
produtivas são as determinações mínimas do concreto. Elas ligam, a cada caso, dois
processos diferentes, de maneira que um opera uma transformação no outro de modo a
extrair do primeiro um produto.

A síntese produtiva, a produção de produção, tem uma forma


conectiva: “e”, “e depois”... É que há sempre uma máquina produtora
de um fluxo, e uma outra que lhe está conectada, operando um corte,
uma estração de fluxo (o seio – a boca). E como a primeira, por sua vez,
está conectada a uma outra relativamente à qual se comporta como corte
ou extração, a série binária é linear em todas as direções. O desejo não
para de efetuar o acoplamento de fluxos contínuos e de objetos parciais
essencialmente fragmentários e fragmentados. [...] Bolsa de água e
clálculos do rim; fluxo de cabelos, fluxo de baba, fluxo de esperma, de
merda ou de urina produzidos por objetos parciais que, por sua vez,
produzem outros fluxos também recortados por outros objetos parciais.
Todo “objeto” supõe a continuidade de um fluxo, e todo fluxo supões a
fragmentação do objeto.44

A tese de que o conceito fundamental de uma lógica do processo é esta síntese que
reune em um mesmo processo duas singularidades díspares não é, aliás, nova para a
filosofia de Deleuze. Este não é outro, afinal, do que o conceito de devir que se afirmava,
pelo menos, desde a Lógica do sentido45. Como tal, o devir é a realidade do paradoxo. Se
levantamos este ponto é para apontar que o caráter binário das sínteses produtivas, que
afirma simultaneamente uma disparidade positiva de um mesmo processo e que forma o
núcleo lógico da nova dialética, se opõe diretamente ao conceito que constitui o núcleo
lógico da dialética hegeliana, o conceito de contradição.
Com efeito, a contradição hegeliana não é tanto a afirmação de uma disparidade
como uma afirmação da unidade. É verdade que, em Hegel, o conceito de contradição
tem como objetivo exprimir um devir, mas apenas na medida em que se trata do devir de

44
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 16.
45
“Quando digo ‘Alice cresce’, quero dizer que ela se torna maior do que era. Mas por isso mesmo ela se
torna menor do que é agora. Certamente, não e ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao
mesmo tempo que ela se devém. Ela é maior agroa, ela era menor antes. Mas é ao mesmo tempo, no
mesmo ato, que nos tornamos maiores do que éramos e nos tornamos menores do que devimos. Esta é
a simultaneirade de um devir cuja propriedade é se esquivar do presente. Enquanto ele se esquiva do
presente, o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro.
Pertence à essência do devir ir, apontar nos dois sentidos ao mesmo tempo: Alice não cresce sem
encolher, e inversamente. O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido
determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos simultaneamente”. DELEUZE, Gilles.
Logique du sens, p. 9.
uma unidade. Como figura lógica o que define a contradição é que os termos que ela
coloca em relação se constituam pela negação de seu outro, não apenas na forma de sua
limitação recíproca, mas na forma da supressão de si mesmos: a boca não nega o seio
apenas no sentido em que o limita ou o determina, mas no sentido de que busca suprimi-
lo e, o suprimindo, suprime a si mesma. Cada um dos termos só existindo na medida em
que se relaciona com seu term contrário, a supressão de seu contrário é também a
supressão de si mesmo46.
Neste sentido, a contradição contém em si mesma os meios de sua resolução, para
a qual se encaminha por uma necessidade interna. A negação de cada um dos termos de
uma contradição por si mesmos, implicada na negação de seu outro, abole a subsistência
de cada um destes termos de maneira que a contradição é suprimida em sua negação
recíproca. Esta negação recíproca tem como resultado “uma unidade que é para si e, na
realidade, subsistente por si”47.
Assim, se Hegel pode enunciar a proposição especulativa de que “Todas as coisas
são, em si mesmas, contraditórias” e afirmar que a contradição “é o negativo em sua
determinação essencial, o princípio de todo automovimento, automovimento que não
consiste em nada além da contradição”, que ela é “raiz de todo movimento e de toda
vitalidade”48, é apenas na medida em que pela mediação da negação recíproca a
contradição direciona todos os processos para a constituição de uma unidade que suprime
e integra em si os contrários a partir dos quais foi gerada.
Esta suprassunção da disparidade do devir a uma unidade superior é inadmissível
para a lógica materialista dos processos. As singularidades não apenas se mantém em sua
disparidade, como só podem alimentar um novo processo de sigularização. Em outros
termos, o resultado do processo de produção nunca é uma unidade que totaliza os
momentos anteriores – e, justamente nessa medida, os nega ou suprime sua posição – mas
um novo produto parcial que, por sua vez, começa um novo momento do processo
produtivo.
A nova lógica não encontra “a raiz de todo movimento e de toda vitalidade” na
contradição mas, antes, no paradoxo. O devir não é a autonegação da diferença, mas a
afirmação da diferença enquanto diferença, de tal maneira que o processo de produção
não está subordinado à necessidade interna de uniformidade. Retornamos, assim, à tese

46
HEGEL, G.W.F. Science de la logique – Livre Deuxième: L’Essence, p. 60-61.
47
HEGEL, G.W.F. Science de la logique – Livre Deuxième: L’Essence, p. 62.
48
HEGEL, G.W.F. Science de la logique – Livre Deuxième: L’Essence, p. 69.
de Althusser sobre o mundo como um fluxo imprevisível. Este processo de produção só
tem como norma necessária a contingência – “primeiramente, a história universal é a das
contingências, e não a da necessidade; é a dos cortes e dos limites, não a da
continuidade”49.
A afirmação de O anti-Édipo de que o Real é o resultado destas sínteses produtivas
pode ser melhor compreendida neste ponto. Antes de ser uma totalidade uniforme, capaz
de integrar todas as singularidade em uma unidade orgânica, como um processo natural
ou histórico unilinear e teleológico, o Real é um resultado justamente porque e constituído
pela conjunção destes processos de produção singulares. O global não é o que unifica as
determinações locais, mas o que é constituído por sua conexão. É neste sentido que
afirmávamos que o universal tem imediatamente a forma do singular.
O conceito de Real também não é mais definido como negação universal oposta à
potência subjetiva do desejo. Sua universalidade é a de uma potência de produção em
imanência com todas as suas determinações singulares. As sínteses do processo de
produção, que formam como que suas unidades de produção, são conexões de
singularidades determinadas. Ora, para o materialista o Real é imediatamente concreto.
A multiplicidade do Real só pode ser, desta maneira, compreendida logicamente como
resultado de um processo de síntese diferenciante. “O concreto é concreto porque é síntese
de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto
aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, não como ponto de
partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo”50. O concreto é, então, síntese global
destas sínteses locais, síntese de sínteses.
Como processo complexo, o Real só pode ser compreendido pela articulação das
singularidades. Em outros termos, não se pode mais falar em um conjunto universal de
leis da história, aplicáveis a todo o processo de produção. Só e possível analisar as normas
de imanentes de uma determinada estrutura produtiva em sua própria operação, sem que
estas normas possam ser universalizadas para estruturas diferentes. As estruturas do
processo de produção são, então, incomensuráveis, uma vez que cada uma mensura
apenas a si mesma na forma particular de determinação de suas sínteses produtivas. A
universalidade das singularidades está exatamente no fato de que o Real, como universal,
é constituído como síntese global das síntese produtivas locais.

49
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O anti-Édipo, p. 185.
50
MARX, Karl. Grundrisse, p. 54.
Não era exatamente esta a dialética que Marx nos apresentava já desde O capital,
ao recusar a realidade de leis universais de funcionamento para todas as formações sociais
e todos os períodos históricos? É por isso que ele subscreve um de seus críticos russos
quando este afirma que, segundo a lógica de O capital¸”um e mesmo fenômeno é regido
por leis totalmente diversas em decorrência da estrutura geral diversa [das formações
sociai], da diferenciação de alguns de seus órgãos, da diversidade das condições em que
funcionam etc.”51.
Como escreve Marx em resposta à polêmica levantada na Rússia sobre a
unilinearidade ou a pluralidade das rotas históricas (todas as sociedades devem repetir o
mesmo processo de desenvolvimento econômico, passando pelas mesmas etapas?),

acontecimentos de uma surpreendente analogia, mas que


ocorreram em períodos históricos diferentes, levaram a resultados
inteiramente distintos. Estudando cada uma dessas evoluções
separadamente e comparando-as em seguida, encontraremos facilmente
a chave deste fenômeno, mas nunca chegaríamos a ela com a solução
genérica [passe-partout] de uma teoria histórico-filosófica geral, cuja
suprema virtude consiste em ser supra-histórica.52

Se Marx não elaborou esta nova lógica materialista dos processos em vida,
certamente foi porque os obstáculos teóricos levantados pelas estruturas herdadas do
idealismo só se tornaram explícitos ao londo do tempo, na medida em que seus efeitos
práticos se mostravam no desenvolvimento da prática proletária das lutas de classes. Foi
preciso o tempo deste desenvolvimento para que o obstáculo começasse a se mostrar,
tempo de desenvolvimento muito maior do que o tempo das vidas de Marx e Engels. Foi
preciso que, sob a aparência do marxismo, o revisionismo da Segunda Internacional
elaborasse a chamada “teoria das forças produtivas”, foi preciso o peso do burocratismo
na experiência soviética, foi preciso o desenvolvimento do revisionismo moderno tanto
na URSS quanto na China e, para além delas, no conjunto do movimento comunista
internacional.
Quando Althusser finalmente coloca o problema nos anos 1960-1980, é já no
desenvolvimento da crise do marxismo-leninismo. O hiato imposto à tarefa teórica de
Althusser, em muitos sentidos, se confunde com a decomposição do campo marxista-
leninista. Hoje, quando as crises iminentes do capitalismo, o retorno do fascismo em

51
MARX, Karl. O capital¸ p. 90.
52
MARX, Karl. “À redação de ‘Otietchestvienniie Zapiski’” in FERNANDES, Rubem César. Dilemas do
socialismo, p. 168.
escala mundial e a destruição da estabilidade relativa da biosfera gerada pelo
desenvolvimento apitalista colocam novamente na ordem do dia a luta pela reconstrução
teórica e prática do marxismo-leninismo, é esta tarefa inacabada que, ao lado de muitas
outras tarefas práticas e teóricas, também se impõe. A elaboração e o desenvolvimento
desta nova lógica materialista dos processos e sua articulação com a ideologia marxista-
leninista é uma das frentes de luta teórica em que se deve combater. Desde nossa posição,
que Deleuze e Guattari sejam intercessores de primeira importância nesta rente de luta
não é uma casualidade. É uma consequência do alinhamento político e do programa
teórico de sua filosofia e das tarefas que ela se colocava como objetivo. Ao afirmar que a
minoria, como processo de produção de socialização, é “o devir de todo o mundo” capaz
de produzir uma posição antagônica em relação ao Estado e ao capitalismo, o segundo
livro de Capitalismo e esquizofrenia já estabelece estes objetivos políticos claramente:

A potência de minoria, da particularidade, encontra sua figura


ou sua consciência universal no proletário. Mas, enquanto a classe
trabalhadora de define por um estatuto adquirido ou mesmo por um
Estado teoricamente conquistado, ela aparece somente como ‘capital’,
parte do capital (capital variável) e não sai do plano do capital. Quando
muito o plano devém burocrático. Em compensação, é saindo do plano
do capital, não parando de sair dele, que uma massa devem sem cessar
revolucionária e destrói o equilíbrio dominante dos conjuntos
numeráveis. [...] Do mesmo modo, a questão das minorias é antes abater
o capitalismo, redefinir o socialismo, constituir uma máquina de guerra
capaz de responder à máquina de guerra mundial, com outros meios.53

53
DELEUZE, Gille & GUATTARI, Félix. Mil platôs, Vol. 5, p. 189.
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