Você está na página 1de 3

MENEZES, A. de A.; SILVA, J. B. da.

A concepção de atividade filosófica em Herbert


Marcuse. Revista Ágora Filosófica, [S. l.], v. 22, n. 1, p. 96–116, 2022. Disponível em:
https://www1.unicap.br/ojs/index.php/agora/article/view/2069. Acesso em: 16/11/2022.

José de Sá Araújo Neto

Neste trabalho, Menezes e Silva tomam para si a tarefa de investigar os traços


essenciais do labor filosófico segundo Herbert Marcuse (1898-1979). Para tanto, iniciam
lançando mão dos principais elementos da história da filosofia, que expressam diferentes
concepções acerca do que seja a atividade filosófica para, então, apresentar, neste filósofo
alemão e membro da escola de Frankfurt, uma tal elucidação que se dá a partir de três
momentos do seu próprio percurso: o comprometimento social diante das questões do seu
tempo, a influência do pensamento do Heidegger de Ser e Tempo (1927), e a leitura das obras
de Marx, às quais se dedica com maior afinco.

Partindo de seu aprofundamento nas obras de Marx, sobretudo, dos Manuscritos


econômico-filosóficos (1844, mas só publicado em 1932), bem como de seu rico
conhecimento da tradição filosófica, Marcuse elabora um conceito de atividade filosófica
cujas bases são a experiência vivencial e a transformação da realidade na qual as vivências
estão enraizadas. Para ele, o filósofo é aquele que é chamado a entender, descobrir a realidade
– compreenda-se não como algo já posto, mas construído com os dados concretos – e, nela, as
tendências predominantes a fim de promover uma transformação social, a saber, a revolução
sociopolítica e econômica que seja capaz de minar as bases de produção capitalista. Nesse
contexto, Marcuse pensa o sujeito revolucionário como o agente de mudança social
historicamente presente ao longo dos séculos, o que Marx e Engels identificaram, ao analisar
a sociedade capitalista, e, nela, a burguesia e o proletariado como classes em tensão constante.

Assim como Engels, o filósofo da Escola de Frankfurt percebe que, com as revoluções
industriais e técnicas, a classe trabalhadora foi ampliada e, internamente, dividida. Em geral,
de um lado estão os trabalhadores mais especializados e integrados no modo de manutenção
da produção capitalista – a estes, Engels chamou “aristocracia operária” (LESSA, 2014, p. 20
apud MENEZES; SILVA, 2022, p. 101) –, do outro, estão os trabalhadores não qualificados,
aqueles que estão na linha de frente do trabalho bruto. Desse modo, a classe trabalhadora,
dividida e alienada pelo desejo de consumo baseado em pseudonecessidades, torna-se aliada
da burguesia, nesse caso, dos controladores do grande capital, os quais veem a promoção da
justiça social meramente como um meio de evitar revoluções e manter a ordem de produção.
Assim, Menezes e Silva apresentam três elementos constituintes do processo de alienação da
ação do sujeito revolucionário: a criação de cargos executivos com salários consideráveis e
gradativos; os grandes investimentos na promoção de uma cultura de consumo que satisfaça
demandas criadas pela sociedade capitalista; a educação para a conformação das novas
gerações dos países em desenvolvimento aos padrões em vigência (2022, p.103).

A prática desses princípios é atribuída ao Estado, o qual, não sendo uma entidade
fechada em si mesma, geralmente, obedece ao ritmos do grande capital. Consequentemente, a
manutenção do Estado equivale à permanência do capital. No entanto, adverte os autores, o
estado moderno possui a particularidade de tentar não seguir essa circularidade, integrando os
interesses trabalhistas na gestão de políticas públicas, provocando o fenômeno que Marcuse
chamou de mais-repressão, ou seja, o peso da elite capitalista, utilizando-se até mesmo do
aparato do Estado, reprimindo movimentos organizados de revolução, o que redunda, na
maioria das vezes, na cedência do Estado aos interesses de quem movimenta o mercado
financeiro e na dissolução do sujeito revolucionário. Desse modo, assevera Marcuse,
implanta-se a unidimensionalidade, ou seja, não há espaço para a mudança social, mas apenas
meros ajustes no interior da ordem social capitalista, o que inviabiliza a superação de uma tal
sociedade pela implantação de uma democracia de tipo socialista, uma sociedade
qualitativamente distinta da vigente.

Marcuse, em meio a essa alienação da massa de trabalhadores e do silenciamento,


mediante integração no Estado, dos sindicatos e outras organizações trabalhistas, percebe o
surgimento de uma nova esquerda motivada por uma clara manipulação da sociedade pelos
interesses do capital, organizado em multinacionais e no mercado financeiro mundial
(MENEZES; SILVA, 2022, p. 108). Concomitantemente, na Europa e na América Latina,
sobretudo, a partir dos anos sessenta, surgem movimentos sociais contestatórios, contrários às
ditaduras ou à sociabilidade dominada pelo imperativo do consumismo. Menezes e Silva
interpretam essa persistência da ideia de transformação, apontada pelo filósofo alemão, como
o processo contínuo e necessário de humanização, o qual só pode ocorrer com a
transformação da ordem social, que hegemonicamente é capitalista, isto é, com a superação de
tal ordem por uma democracia socialista (2022, p. 109).

Como podemos ver, Marcuse toma para si o projeto do Manifesto Comunista (1848)
de Marx e Engels. O pensador considera-o como ainda não decididamente implantado em
nenhuma parte do mundo, mas perseguido em suas tentativas de efetivação, gerando governos
de elevada estatização e burocratização, além de isolados e com a população oprimida pela
falta de artigos básicos e com altos investimentos bélicos, como, por exemplo, o socialismo
soviético, que ele considera como insuficiente para o processo de humanização. Em outras
palavras, Marcuse considera que o socialismo é ainda uma alternativa para uma sociedade
qualitativamente distinta da capitalista, uma vez que a sua ideia de socialismo consiste na
autoafirmação das liberdades individuais e na promoção da equidade como indispensável para
a humanização da sociedade. Nessa mesma linha, ele defende uma nova sensibilidade, uma
espécie de renovação do sentido desgastado pela destruição, competitividade e centramento
das relações no lucro e no desenvolvimento financeiro, o que gera a introjeção de valores
apregoados como necessários e, consequentemente, comportamentos doentios podem ser
considerados, facilmente, como “normais”.

Voltando-nos para o labor filosófico, depois de compreendermos a transformação da


realidade enquanto um processo intrínseco ao sujeito revolucionário, cujo lugar histórico tem
sido o de trabalhadores, e que o filósofo, segundo Marcuse, é aquele que entende, descobre e
transforma a realidade na qual está enraizado, pomos a questão central do artigo, a saber, o
que caracteriza essencialmente a atividade filosófica e como ela pode favorecer a implantação
de uma sociedade democrática. O pensador em questão defende que o capitalismo não possui
o material para o filosofar, isto é, os elementos fundamentais do pensamento livre, a saber, a
liberdade e a democracia. Somente em uma sociedade dita socialista é que tais elementos
tornam-se possíveis.

Por fim, Menezes e Silva interpretam que o filósofo, diante dos dois âmbitos da
reflexão, o teórico e o prático, pode ou desenvolver sua reflexão somente no primeiro ou,
como Marcuse e outros, tornar ambos um mesmo plano sob uma perspectiva política (2022, p.
114). Independentemente de qual procedimento for adotado, a atividade filosófica é
considerada fundamental, uma vez que ou desenvolve as teorias, atualizando-as com novos
dados e construindo uma nova aplicação conforme as demandas hodiernas, ou possibilita
meios práticos, válidos e humanitários, de como proceder para a transformação da sociedade.
De um modo geral, tanto em um quanto em outro caso, o filósofo deve estar totalmente
comprometido com o processo de humanização das relações em sociedade sem que se possa
distinguir o ambiente vivencial, social, onde se desenrolam as atividades políticas e
econômicas entre os indivíduos, do ambiente natural, sem considerá-lo mais uma mera
reserva energética a ser utilizada em favor da produção, do capital e da manutenção de um
estilo de vida consumista falsamente necessário para a realização do ser humano.

Você também pode gostar